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LUCIANA ROSSATO

A LUPA E O DIÁRIO:
HISTÓRIA NATURAL, VIAGENS CIENTÍFICAS E RELATOS SOBRE
A CAPITANIA DE SANTA CATARINA (1763-1822)

PORTO ALEGRE
2005
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2

LUCIANA ROSSATO

A LUPA E O DIÁRIO:
HISTÓRIA NATURAL, VIAGENS CIENTÍFICAS E RELATOS SOBRE
A CAPITANIA DE SANTA CATARINA (1763-1822)

Tese apresentada ao Programa de


Pós-graduação em História da
Universidade Federal do Rio Grande
do Sul para a obtenção do título de
Doutor em História, sob a orientação
da Profª. Drª. Susana Bleil de Souza.

Porto Alegre
2005
3

SUMÁRIO

Índice de Gravuras 4

Resumo 5

Resume 6

Agradecimentos 8

Introdução 9

1. Viagens científicas européias ao redor do mundo (séculos XVIII e XIX) 27

2. Os viajantes: alguns dados biográficos 44

3. O relato: diferentes olhares, diferentes perspectivas 65

4. A História Natural como um novo campo do conhecimento 87


4.1. Um novo olhar sobre a natureza 88
4.2. A natureza e os habitantes do Novo Mundo 99

5. Descrevendo a natureza de Santa Catarina 111


5.1. A natureza entre a razão e a emoção 129

6. Núcleos urbanos em meio a natureza 143


6.1. Do espaço urbano 143
6.2. Da população 159

7. Populações de origem africana 175

8. Trabalho e indolência: uma outra cultura 197


8.1. Natureza exuberante versus a pobreza e a indolência dos habitantes locais 209

9. Louis Choris: um artista viajante 223

Considerações Finais 248

Informações Gerais sobre os Viajantes 257

Referências Bibliográficas 258


4

ÍNDICE DE GRAVURAS

Fig. 1 - Plano da Villa de N. S. do Desterro 147

Fig. 2 - Mapa da Vila de Desterro 153

Fig. 3 - Irís Gramínea 231


.
Fig. 4 - Lophostachys publiflora Lindau 232

Fig. 5 – Brèsil 235

Fig. 6 - Vue dans l’intérieur de l’Ile de Stª. Catherine (Brèsil) 236

Fig. 7 - Ile de Stª Catherine (Brèsil) 239

Fig. 8 - Vue de la côte du Brèsil vis à vis de l’ile de Stª Catherine 240

Fig. 9 - Vista da vila de Desterro a partir do Hospital 242


5

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo analisar os discursos elaborados pelos cientistas viajantes sobre

a Capitania de Santa Catarina, no período que compreende a segunda metade do século XVIII

e a primeira metade do século XIX. Esse período é marcado pelo desenvolvimento científico,

principalmente da História Natural, que vai influenciar na produção de imagens e

representações sobre a América e seus habitantes. Entre os anos de 1763 e 1822, sete viajantes

europeus passaram pelo litoral catarinense. Seis deles estavam vinculados aos estudos da

História Natural (botânica, zoologia e mineralogia) e o sétimo era artista viajante, que

integrava uma viagem marítima de estudos. A partir do estudo dos relatos de viagens,

analisamos como os viajantes construíram seus discursos. Nesses relatos é descrita a natureza

da região, suas características e seu aproveitamento pelas populações locais. Além disso, os

cientistas viajantes tinham um olhar voltado para o todo, o que significa que se dedicaram a

relatar também as características da população local, seu desenvolvimento tecnológico, suas

relações de trabalho, entre outros aspectos. Nosso objetivo é perceber como essas descrições

estão inseridas no contexto sócio-cultural de quem as produziu, neste caso, os viajantes, que

eram cientistas, europeus, originários de sociedades urbanas e em processo de

industrialização. Outro aspecto trabalhado foi a produção pictórica sobre a região, de autoria

de Louis Choris, que, como outros que retrataram nossas paisagens, criou imagens que se

caracterizam por estereótipos e lugares comuns. Esse é um aspecto que se aplica a todos os

viajantes: seus relatos são marcados por representações, que de certa forma mostram muito

mais sobre a cultura de quem os escreveu do que sobre a região que está sendo descrita.

Palavras-chave: Viajantes, História Natural, Relatos de Viagem


6

RESUME

Ce travail a pour objectif d’analyser les discours élaborés par les scientifiques-voyageurs dans

la Capitania de Santa Catarina, pendant la période qui comprend la seconde moitié du

XVIIIème siècle et la première du XIXème siècle. Cette période est marquée par le

développement scientifique, surtout de l’Histoire Naturelle, laquelle va influencer la

production d’images et les représentations de l’Amérique et de ses habitants. De 1763 à 1822,

sept voyageurs européens sont passés sur le littoral du Santa Catarina. Six d’entre-eux étaient

liés aux études de l’Histoire Naturelle (botanique, zoologie et minéralogie) et le septième était

un artiste-voyageur qui faisait partie d’un voyage maritime d’études. A partir de l’étude des

récits de voyages, nous analysons comment les voyageurs ont construit leurs discours. Dans

ces récits, la nature de la région, ses caractéristiques et ce dont les populations locales en ont

tiré sont décrits. De plus, les scientifiques-voyageurs portaient un regard sur le tout, ce qui

signifie qu’ils se sont aussi consacrés à rapporter les caractéristiques de la population locale,

son développement technologique, ses rapports de travail, parmi d’autres aspects. Notre

objectif est de voir comment ces descriptions sont insérées dans le contexte socio-culturel de

ceux qui les ont produites, dans ce cas, les voyageurs qui étaient des scientifiques européens,

venus de sociétés urbaines bourgeoises et en phase d’industrialisation. Un autre aspect abordé

a été la production picturale sur la région, de la part de Louis Choris. Ce peintre, comme

d’autres qui ont peint nos paysages, a créé des images qui sont caractérisées par des

stéréotypes et des lieux communs. Ceci est un aspect qui s’applique à tous les voyageurs :

leurs récits sont marqués par des représentations qui, d’une certaine façon, en montrent

beaucoup plus en ce qui concerne la culture de celui qui les a écrits que sur le région à l’étude.

Mots-clés : Voyageurs, Histoire Naturelle, Récits de Voyage.


7

Ao Aldonei
com quem compartilho o pão e os sonhos
8

AGRADECIMENTOS

Inicialmente gostaria de registrar que, para desenvolver este trabalho, contei com o
financiamento governamental, através da CAPES, que me concedeu bolsa durante o período
de três anos, e também financiou o estágio de quatro meses junto a EHESS/França. Além
disso, saliento que minha formação educacional, desde as primeiras letras até a conclusão do
doutorado, somente foi possível devido ao ensino público e gratuito.
À Profª Dr.ª Suzana Bleil de Souza pela orientação.

Ao Paulo Rogério, amigo de tantos anos, que pacientemente me ajudou, lendo idéias

mal esboçadas, desde o projeto até o texto final.

Aos amigos que ajudaram a tornar esta caminhada menos penosa. Em especial: Kátia

Renck, Vanderlei Machado, Carla Rodeghero, Viviani Poyer, Maria das Graças Maria,

Claudia Zanella e Marco Aurélio.

À Claudia Mortari, pela ajuda no que se refere as populações de origem africanas, e ao

Reinaldo Lohn, pela leitura e sugestões.

À Sílvia Arend, colega de doutorado e de viagens, amiga com quem dividi as

angústias da escrita.

À minha família que, mesmo distante, sempre me apoiou e me incentivou, e a minha

sogra, Dona Maria Ana.

À minha prima, Cristiane, pela correção ortográfica.

Aos funcionários das várias instituições, museus, bibliotecas e arquivos, que

contribuíram tornando acessível livros e outros materiais, bem como prestando informações.

As professoras doutoras Sandra Jatahy Pesavento e Maria Angélica Zubaran, que

contribuíram com este trabalho ao participarem da banca de qualificação. Aos professores e

aos funcionários do departamento de Pós-graduação em História da UFRGS.

Ao Profº Drº Jacques Leenhardt, que me recebeu durante 4 meses na EHESS/França.


9

INTRODUÇÃO

Para Rousseau a botânica era a melhor distração para o homem elegante do

século XVIII. Munido de uma lupa e de um manual contendo as denominações científicas das

plantas, poderia se distrair com algo que lhe possibilitaria um contato mais profundo com a

natureza, e desta forma, com o seu eu interior. Para o cientista viajante, além da lupa (e de

outros instrumentos), o diário também era fundamental. Além de coletar espécimes, precisava

nomear, descrever suas características e classificar. No diário eram registrados os locais

visitados, as coisas e as pessoas que conheceu, bem como comentava sobre os mais diferentes

temas, que iam desde as plantas, borboletas e minerais até a vestimenta usada pelas mulheres

de determinada região ou país. A partir das anotações registradas no diário de viagem

desenvolveria outros textos, tais como os relatórios, apresentados para seus pares em reuniões

nas instituições científicas, e os relatos de viagens, que eram escritos para o público em geral.

A lupa, mais do que um instrumento de trabalho, pode ser entendida como uma metáfora do

olhar do viajante. Um olhar que tinha a pretensão de tudo ver, em seus mínimos detalhes, mas

que, ao mesmo tempo, limitava seu foco à pequena circunferência da lente.

Margarita Pierini comenta que “a Europa vê o que os olhos de Colombo vêem;

Colombo vê com os olhos da Europa.”1 Esse trocadilho do olhar exprime a relação entre o

Velho Mundo e os viajantes, que são seus olhos e ouvidos em terras distantes. A América,

bem como outras regiões descobertas pela Europa, foram visitadas e observadas em diferentes

momentos por viajantes europeus, os quais eram exploradores comerciais, membros de ordens

1
PIERINI, Margarita. La Mirada y el discurso: la literatura de viagens. In: PIZARRO, Ana (org.). América
Latina: Palavra, literatura e cultura. São Paulo: Memorial/Ed. da Unicamp, 1993. p. 163.
10

religiosas ou cientistas. Posteriormente, muitos desses escreveriam sobre suas viagens,

descrevendo o que tinham visto e vivido nestas regiões “exóticas” e completamente distintas

daquilo que constituía a sua realidade. O viajante pode ser entendido como um elo de ligação

entre dois mundos diferentes, o europeu, seu continente de origem, e o Novo Mundo. Esses

viajantes, fossem cientistas do século XIX ou colonizadores do século XVI, possuíam algo em

comum: a necessidade de conhecer, de obter informações e de possuir mapas detalhados das

regiões que eram alvo de suas investidas. Os relatos de viagens eram uma leitura útil,

instrutiva e agradável, que possibilitava interpretações variadas, estabelecendo relação entre o

conhecido e o desconhecido, entre o próximo e o distante, entre o geral e o particular.

Segundo Daniel Roche, a “Europa letrada é leitora de viagens.”2 Leitores que aumentavam a

cada edição, da mesma forma como aumentava o número de títulos publicados. De 5.562

títulos publicados nos séculos XVI, XVII e XVIII, relacionados com viagens, 456 foram

publicados no século XVI, 1.566 no século XVII e 3.540 no século XVIII e na primeira

década do século XIX. Do total de livros elencados como relatos de viagens, 794 tinham

como tema a América.

Entre 1500, quando o Brasil foi integrado ao Império Português, até a

atualidade, inúmeros estrangeiros que por aqui passaram escreveram sobre a experiência do

contato com uma cultura diferente e sobre o “outro” que fazia parte dessa realidade. Entre

esses relatos, que podem se apresentar como cartas, diários, memórias, testemunhos, etc.,

podemos citar a Carta de Pero Vaz de Caminha; A verdadeira história dos selvagens, nus e

ferozes devoradores de homens, de Hans Staden e os relatos dos cientistas viajantes, como por

exemplo, Spix e Martius. Essas três obras, escritas em períodos históricos diferenciados,

constituem-se como relatos escritos por estrangeiros a partir de um fator motivador, ou seja,

uma viagem, que os confrontou com uma realidade distinta daquela com a qual eles estavam

2
ROCHE, Daniel. Humeurs Vagabondes: de la circulation des hommes et de l’utilité des voyages. Paris:
Fayard, 2003. p. 40.
11

habituados. O deslocamento entre o conhecido, a Europa, e o desconhecido, no caso o Novo

Mundo e seus habitantes, motivou-os a registrarem o que viram e viveram. Mas, apesar disso,

as diferenças entre esses três documentos e seus autores são inúmeras, como por exemplo, a

formação profissional de cada um, o tempo e as condições do contato com o “outro”, o

público a quem eram destinados esses relatos e, principalmente, o contexto social e cultural da

época que motivou e influenciou a forma como esses viajantes observaram a cultura local e

que foi posteriormente descrita.3 As diferenças entre cada relato contribuem para a

importância dessas fontes, bem como das informações que podem ser obtidas através de sua

leitura e análise.

Os relatos dos viajantes estrangeiros foram e ainda são muito utilizados como

fontes nos estudos de várias áreas, como a História, a Sociologia e a Antropologia. Até a

década de 1970, essa documentação foi usada sem maiores análises críticas, sem a

preocupação de contextualizar a fala desses viajantes e o local de produção desses discursos.

Ilka Boaventura Leite percebeu que os viajantes são citados por determinados autores, como

Gilberto Freyre para “enfatizar o caráter democrático das relações raciais da sociedade

brasileira”, enquanto outros os utilizam para dizer justamente o contrário, ou seja, que as

relações sociais no Brasil são marcadas por forte racismo. Entre esses últimos podemos citar

Roger Bastide, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Otávio Ianni.4

Esses textos, os relatos de viagens, não podem ser tomadas como insuspeitos

ou neutros, o que significa que devemos historicizá-los, uma vez que se inserem em uma

época e uma cultura. Para Eni P. Orlandi é fundamental relacionar os sujeitos enunciadores e

3
Análises sobre esses viajantes e seus relatos: PEREIRA, Paulo Roberto (org.). Os três únicos testemunhos do
Descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 1999. FAGUNDES, Marcelo G. B. Viagens reais a um
mundo imaginado: A “História Verídica” de Hans Staden no contexto do século XVI. Florianópolis:
TCC/UDESC, 2001. LISBOA, Karen Macknow. A Nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização
na Viagem pelo Brasil (1817-1820). São Paulo: Ed. Hucitec/FAPESP, 1997.
4
LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia da Viagem: escravos e libertos em Minas Gerais no século XIX.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996. p. 13.
12

os sentidos que são produzidos pelo discurso.5 Salienta também que, para atingir a

historicidade das falas, dos discursos produzidos em determinado contexto, é necessário ir

além dos textos em si, é necessário compreender sua discursividade, ou seja, a trama

discursiva que estabelece os sentidos. Nessa perspectiva, o papel ocupado pelo sujeito é

descentrado, deixando de ser considerado como o único responsável pelos sentidos que são

produzidos, passando a ser entendido como parte do processo de produção de sentidos. Os

silêncios produzidos são outro ponto importante. A predominância de um discurso significa o

silenciamento de inúmeras vozes. Segundo a autora, os “discursos sobre” é uma das formas de

institucionalização dos sentidos, é uma forma de organizar as diferentes vozes, ou os

diferentes discursos, que são reduzidos e organizados.6

Para pensarmos os discursos dos viajantes, optamos pelas reflexões

desenvolvidas por Michel Foucault. Seu método parte da análise das condições de

possibilidades dos discursos, para o estudo dos enunciados que precedem, encerram e tornam

possível a emergência de um discurso, uma vez que estes se “inscrevem dentro de uma série

de relações entre instituições, processos econômicos e sociais, formas de comportamento,

sistema de normas e tipos de classificações que dão conta deles.”7 Foucault estabelece as

relações entre as práticas discursivas e as práticas não discursivas. Seu método de análise

postula a necessidade de sair do discurso, da semântica, para dar conta das condições de como

este discurso se forma. Para Regine Robin, a contribuição de Foucault é limitada, pois as

relações entre as práticas discursivas e as não discursivas são justapostas, sem hierarquia, sem

dominância, sem que o nível discursivo seja relacionado ao “conjunto articulado de uma

formação social, ao seu jogo complexo de instâncias e de dominâncias.”8 No entanto, Robin

5
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Texto e Discurso. Cópia mimeografada. pp. 2-3.
6
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Terra à Vista!: Discurso do Confronto: velho e novo mundo. São Paulo:
Cortez/Campinas: Editora da Unicamp, 1990. pp. 18-37.
7
GOLDMAN, Noemí. El discurso como objeto de la historia. In: GOLDMAN, Noemí et. al. El discurso como
objeto de la historia/ El discurso de Mariano Moreno. Buenos Aires: Hachette, 1989. p. 24.
8
ROBIN, Regine. História e Lingüística. São Paulo: Cultrix, 1977. p. 95
13

faz uma distinção. A proposta de análise do discurso de Foucault é diferenciada nos dois

trabalhos nos quais ele aprofundou o tema: A Arqueologia do Saber e A Ordem do Discurso.

Enquanto no primeiro o seu interesse volta-se mais para as condições de possibilidade dos

discursos e não tanto para os discursos em si, no segundo a abordagem centra-se mais no

discurso e coloca de maneira menos central as relações entre as práticas discursivas e não-

discursivas.9

Para Foucault, o discurso não é somente aquilo que “manifesta (ou oculta) o

desejo” e não pode ser visto simplesmente como “aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de

dominação”, uma vez que é o poder pelo qual se luta, o poder do qual desejamos nos

apoderar.10 E como outros poderes, o discurso também é normatizado através de

procedimentos de controle e de delimitação. Esses podem ser externos ou internos. Os

externos, e que funcionam como sistemas de exclusão são três: a palavra proibida e a

segregação da loucura, que se enfraqueceram no mundo contemporâneo, e a vontade de

verdade, que se reforçou e se aprofundou com o passar do tempo. Os internos são os

procedimentos que funcionam a partir de princípios de classificação, de ordenação e de

distribuição. Um desses princípios é o que Foucault denomina como comentário, que pode ser

representado como as narrativas maiores que todas as sociedades possuem e que se repetem,

algumas vezes com variações, repetindo também fórmulas e conjuntos ritualizados de

discursos. Fazem parte de nosso sistema de cultura, nos textos jurídicos e religiosos, mas

também nos textos “literários” e de certa forma nos textos científicos.11 Outro aspecto é a

questão da autoria. Essa não é entendida somente como o indivíduo que falou ou escreveu o

texto, mas como o princípio que unifica e significa os discursos, que lhe dá coerência. Nos

discursos científicos, a autoria vem se enfraquecendo a partir do século XVII. Já nos discursos

9
Ibidem. pp. 96-97.
10
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso: aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de
dezembro de 1970. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. 7º ed. São Paulo: Edições Loyola, 2001. p. 10.
11
Ibidem. pp. 21-22.
14

literários está acontecendo o contrário, uma vez que a autoria se fortaleceu e continua se

fortalecendo no decorrer dos últimos séculos.

Outro dos princípios de controle na produção dos discursos é a organização das

disciplinas, que se opõe ao comentário e à autoria, uma vez que o que define uma disciplina

são vários aspectos, como o domínio de objetos, um corpus de proposições verdadeiras, um

conjunto de métodos, um jogo de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos. Esse

sistema anônimo que está à disposição de quem quiser utilizá-lo se opõe à autoria, enquanto a

possibilidade de formular proposições novas se opõe ao comentário, que trata de um sentido

já dado e que deve ser redescoberto. Mas o conhecimento das disciplinas não é a soma de

tudo o que pode ser verdadeiro sobre determinada coisa, uma vez que os erros também fazem

parte dessas áreas do conhecimento. Uma disciplina não comporta tudo o que pode ser aceito,

em decorrência de princípios de coerência ou de sistematicidade. Além disso, para que uma

proposição pertença a uma área do conhecimento, ela precisa corresponder a certas condições.

Para que uma proposição fosse aceita como “botânica” no fim do século XVII, ela precisava

versar sobre a estrutura visível da planta e suas qualidades intrínsecas e não mais seus valores

simbólicos ou suas qualidades humanas socialmente relevantes.12

Para Foucault

a forma mais superficial e mais visível desses sistemas de restrição é


constituída pelo que se pode agrupar sob o nome de ritual; o ritual define a
qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que, no jogo de
um diálogo, da interrogação, da recitação, devem ocupar determinada
posição e formular determinado tipo de enunciação); define os gestos, os
comportamentos, as circunstâncias, e todo o conjunto de signos que devem
acompanhar os discursos; fixa, enfim a eficácia suposta ou imposta das
palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem, os limites de seu
valor de coerção.13

Para analisar as condições dos discursos, seus jogos e seus efeitos, Foucault

propõe um método, que compreende 4 exigências que devem ser aprofundadas e que ele

12
Ibidem. pp. 30-32.
13
Ibidem. pp. 38-39.
15

nomeou como a inversão, a descontinuidade, a especifidade e a exterioridade. O princípio da

inversão é a necessidade de percebermos o jogo negativo de um recorte e de uma rarefação do

discurso no qual normalmente vemos a vontade de verdade, o papel positivo do autor e da

disciplina. O princípio da descontinuidade é a não aceitação de um discurso ilimitado,

contínuo e silencioso que está à espera de alguém que venha lhe restituir a palavra. Para ele,

“os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas

também que se ignoram ou se excluem.”14 O princípio da especificidade define que não se

deve entender os discursos como se fossem parte de um jogo de significações prévias. Ele

deve ser entendido como uma violência que fazemos com as coisas, como uma prática

imposta e que contribui para sua regulamentação. E, por fim, o princípio de exterioridade, que

propõe que o movimento seja do interior dos discursos, de seus princípios de aparição e de

regularidade, para as condições externas de possibilidade, para o que estabelece suas

fronteiras. Além desses quatro princípios que definem seu método de análise dos discursos,

Foucault enumera outras quatro noções que servem como princípio regulador da análise: a

noção de acontecimento (em oposição a de criação), a noção de série (em oposição a de

unidade), a noção de regularidade (em oposição a de originalidade) e a noção de possibilidade

(em oposição a de significação).15

A partir das reflexões de Foucault consideramos que os discursos dos

viajantes são delimitados, modelados por parâmetros que são seguidos pelos seus autores, que

estão inseridos em um meio, o científico, que possui parâmetros de produção de

conhecimento que devem ser seguidos. Esses são distintos em um literato ou mesmo em um

indivíduo que viaja e resolve descrever em texto as experiências pelas quais passou. Ao

mesmo tempo, apesar dos aspectos que os unem, isto não significa uma homogeneidade no

discurso desses viajantes. A despeito da autoria ser nomeada, constata-se a repetição de idéias

14
Ibidem. pp. 52-53.
15
Ibidem. pp. 51-54.
16

em comentários sobre determinada região que, numa outra área de conhecimento, poderia ser

considerada como plágio. Nesse aspecto a repetição de comentários e, muitas vezes, de

opiniões sobre o outro constitui um aspecto que contribui para reforçar a veracidade do texto

produzido. Mesmo estando ancorada na fundamentação teórica da análise do discurso, a

leitura desse tipo de documentação nos reserva várias armadilhas, uma vez que as falas dos

viajantes estrangeiros permitem múltiplas interpretações.

Quando usamos a designação “viajantes” consideramos que dentro desse grupo

inseriam-se diferentes atores, que não possuíam as mesmas posições sociais e nem as mesmas

funções intelectuais. Além disso, essa diferenciação também significava formas distintas de

financiamento e de divulgação dos resultados da viagem. Essas diferenças, de certa forma,

espelhavam as desigualdades internas existentes nas instituições culturais e científicas de seus

países de origem.16 Apesar de todos serem denominados pelo mesmo nome, não existe uma

unidade entre eles. A maioria dos viajantes era originária do continente europeu, mas alguns

aspectos os diferenciavam, como, por exemplo, a forma como seus relatos foram organizados.

Para Mary Louise Pratt, tais relatos podem ser divididos em dois tipos, de acordo com a sua

estruturação discursiva. Os relatos anteriores ao século XVIII eram agressivos, colonialistas e

imperialistas, enquanto o sujeito viajante que emerge a partir de meados do século XVIII é

detentor de uma postura diferenciada, passando de ativo para passivo, tornando-se

“observador” e assumindo a “estratégia da inocência.”17 Segundo a autora, os fatores que

motivaram a mudança na forma de descrever o “outro” foram dois: a publicação da obra do

16
OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. Elementos para uma Sociologia dos Viajantes. In: Sociedades
Indígenas e Indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro: Marco Zero/UFRJ. 1987. p.92.
17
Conceito utilizado por Mary Louise Pratt que consiste em “paradigmas narrativos onde o sujeito europeu é
mais passivo e reacionário do que agressivo e pró-ativo”. PRATT, Mary Louise. Pós-colonialidade: projeto
incompleto ou irrelevante? In: VÉSCIO, Luiz Eugênio & SANTOS, Pedro Brum. Literatura & História.
Perspectivas e Convergências. Bauru, SP: EDUSC, 1999. p. 25.
17

naturalista sueco Carl von Linné18, intitulada Systema Naturae (1735), e a exploração do

interior do continente africano pelos europeus.

Os viajantes selecionados para esta pesquisa fazem parte de um grupo

específico, o de cientistas viajantes. A motivação para sair da Europa não era o interesse

comercial ou a busca de riquezas materiais, como muitos dos viajantes que os antecederam ou

mesmo contemporâneos seus. Enquanto os viajantes dos primeiros séculos da colonização da

América estavam presos às narrativas maravilhosas e à exacerbada religiosidade do período,

os cientistas viajantes do final do século XVIII e do século XIX estavam imbuídos de um

espírito mais científico e investigativo. Eram estudiosos que possuíam as características e o

perfil descrito por Charles Darwin: “o amor à ciência; uma paciência ilimitada para refletir

longamente sobre qualquer assunto; zelo para observar e colecionar dados; e uma porção de

invenção e senso comum.”19 Viajante, qualquer um podia ser, bastava ter gosto pela aventura

ou necessidade econômica. Para ser um cientista viajante, no entanto, era necessário estudo,

conhecimento e possuir um perfil pré-determinado.

A História Natural, enquanto um novo campo científico, construiu um novo

modo de olhar a natureza. Essa não deveria mais ser simplesmente descrita, mas classificada,

ordenada e organizada segundo os esquemas criados para a classificação global das plantas,

dos animais e dos minerais, conhecidos ou não pelos europeus. A ciência forneceria aos

viajantes os procedimentos de observação da natureza e da população que vivia nas regiões

visitadas a partir de meados do século XVIII e durante todo o século XIX. A maioria desses

viajantes eram cientistas que saíam da Europa para coletar espécimes de plantas e animais

para as coleções dos museus de História Natural ou para os Jardins Botânicos. Para a

definição do período de estudo e do conjunto de fontes, tomamos como base dois aspectos: o

18
Carl von Linné, ou Linnaeus nasceu em 23 de maio de 1707 na Suécia e morreu em 10 de janeiro de 1778.
Formou-se em medicina, mas preferiu dedicar-se ao estudo da botânica.
19
DARWIN, Charles apud. MOREIRA LEITE, Miriam Lifchitz. Livros de Viagem 1803/1900. Rio de Janeiro:
Editora da UFRJ, 1997. p. 209.
18

desenvolvimento científico da História Natural e os relatos de viagens que versam sobre a

região geográfica que decidimos estudar, neste caso a área que atualmente compreende o

estado de Santa Catarina.

No primeiro item delimitamos o período que compreende os anos de 1758 a

1858. Em 1758 Carl von Linné publicou a 2º edição de sua obra, Systema Naturae. Nessa

edição Linné generaliza a nomenclatura e seu sistema de classificação para todo o reino

animal, juntamente com o reino vegetal. Além disso, a partir das contribuições de outros

cientistas e do aprofundamento dos estudos, as 15 páginas da primeira edição transformam-se

em 1.300 na segunda edição. Apesar das críticas e dos limites de seu método, o estudo marca

a definição de um código para designar as espécies vegetais e animais, estabelecendo um

sistema de classificação para as novas descobertas. Sua concepção considera que cada espécie

é um dado fundamental e invariante da criação divina.

Um século depois, no verão de 1858, são apresentados publicamente os estudos

desenvolvidos por Charles Darwin e por Alfred Russel Wallace sobre a evolução das

espécies, na Linnean Society de Londres. Nos dois estudos e na obra A Origem das Espécies,

publicada um ano depois, em 1859, foi apresentada a tese de que as espécies animais e

vegetais não eram fixas, invariáveis, como se acreditava até então, mas que elas se

modificavam, se transformavam devido a vários fatores, entre eles a seleção natural.

Essas mudanças no pensamento científico, da classificação para a genealogia,

deveram-se em grande parte à descoberta de novas espécies, que chegavam à Europa de todas

as partes do mundo pelas mãos de viajantes, fossem cientistas ou não. No final do século

XVII, Tournefort citava a existência de pouco mais de dez mil plantas conhecidas pela ciência

européia. Em 1833, o professor de botânica de Montpellier, Alire Raffenau-Delile, observava

que eram conhecidas mais de cinqüenta mil plantas. O aumento no conhecimento foi
19

decorrente das inúmeras viagens científicas, que tiveram seu apogeu entre o final do século

XVIII e o início do século XIX.20

Tomando como delimitação temporal esses aspectos, partimos para os relatos

de viajantes que descrevem a região que tínhamos nos proposto a analisar. Entre os vários

relatos disponíveis, selecionamos seis cientistas viajantes, que podem ser enquadrados como

estudiosos da História Natural, e um artista, que acompanhou uma viagem de estudos

científicos. São eles Antoine Joseph Pernetty, Georg Heinrich von Langsdorff, John Mawe,

Adalbert von Chamisso, Auguste de Saint-Hilaire, René Primevère Lesson e o artista Louis

Choris. Entre os anos de 1763 e 1822, esses viajantes europeus conheceram e registraram

aspectos da paisagem natural e humana do litoral da Capitania de Santa Catarina. Devemos

salientar que a maior parte deles conheceu somente a Ilha de Santa Catarina e o continente

próximo. Saint-Hilaire foi o único que esteve em outras vilas da Capitania. Outro aspecto é

que, no período estudado, a Capitania de Santa Catarina compreendia uma estreita faixa

litorânea, com suas ilhas, entre elas aquela onde estava localizada a administração da

Capitania, a vila de Nossa Senhora do Desterro.

Atualmente, a maioria dos relatos dos viajantes que estiveram no Brasil nos

séculos XVIII e XIX foi traduzida e publicada em português e constitui-se em importante

documentação para entendermos a forma como a natureza e os habitantes foram descritos

pelos estrangeiros que por aqui passaram. No entanto, no nosso entendimento, devemos ir

além da publicação desses relatos. Devemos aprofundar os estudos sobre essa produção

científica e literária. É necessário contextualizar o local de produção, as influências e as

filiações científicas desses viajantes, uma vez que o conhecimento intelectual articula-se com

um lugar de produção sócio-econômico, cultural e intelectual.

Sobre estas mudanças ver: DROUIN, Jean-Marc. De Lineu a Darwin: os viajantes naturalistas. In: SERRES,
20

Michel (org.) Elementos para uma História das Ciências. Vol. 2. Lisboa: Terramar, 1996. pp. 149-166.
20

Podemos tomar os relatos de viagem como representações sobre a cultura

visitada. Partindo desse entendimento, impõem-se alguns cuidados metodológicos no trato

com essas fontes. Durante muito tempo postulou-se o caráter insuspeito e a isenção dos

viajantes, o que desobrigava o historiador de contextualizar os relatos de viagem. Buscar a

historicidade dos relatos é, no entanto, a forma de compreender como eles produzem sentidos,

pois a representação, conforme se depreende dos estudos de Roger Chartier, pressupõe um

discurso articulado e um lugar de enunciação.

Os textos, e entre eles os relatos de viajantes, têm que ser apreendidos em suas

significações e interpretados através do conhecimento de suas determinações fundamentais e

nas práticas que os produziam, uma vez que estas “determinam as operações de construção do

sentido.”21 As imagens projetadas por esses viajantes sobre a Ilha de Santa Catarina e o litoral

próximo constituíram-se a partir de coisas vistas e lidas, lugares comuns em voga que,

combinadas em proporções variadas, conforme o autor, projetam representações sobre os

lugares visitados e suas relações sociais. Pensar os relatos de viagem a partir da perspectiva da

história cultural pressupõe que sua produção e sua circulação estão inseridas num campo de

lutas, cujos desafios enunciam-se em termos de poder e dominação.22

Um dos pontos que chama a atenção quando lemos esses relatos é a profusão

de temas. Apesar de estarem realizando viagens por regiões desconhecidas com o objetivo

principal de coletar e analisar plantas e animais que deveriam ser enviados para instituições

científicas européias, esses viajantes escreviam sobre vários assuntos. Descreviam plantas e

animais, mas também debruçavam-se sobre assuntos econômicos, políticos, sociais, históricos

e etnográficos. Como o homem fazia parte da natureza, tudo o que o envolvia era também do

interesse desses estudiosos.

21
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução: Maria Manuela
Galhardo. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Ed. Bertrand Brasil, 1991. p. 27.
22
CHARTIER, Roger. Op. Cit. p. 17.
21

Nossa problemática de trabalho é analisar os relatos dos cientistas viajantes que

estiveram na Capitania de Santa Catarina durante o período de 1763 a 1822. Esta análise parte

do conhecimento de quem era o viajante, de onde ele vinha e quais eram suas influências

sócio-culturais. Esses dados são importantes, uma vez que irão influenciar na forma de

escrever o relato, na seleção dos temas que serão descritos e das teorias as quais irão recorrer

para explicar o que foi visto na região visitada. Como não quisemos nos restringir a salientar

como o viajante elaborou seu discurso, em muitos dos temas tratados nos relatos recorremos a

obras historiográficas, a fim de melhor entendermos como os autores desses textos

selecionaram e registraram aspectos da realidade da Capitania.

O processo de escrita da tese teve como ponto de partida os relatos produzidos

pelos viajantes anteriormente citados. O capítulo 1 trata das viagens. Essa breve discussão

justifica-se, uma vez que as viagens não podem ser consideradas de uma forma geral.

Diferentes sociedades em diferentes momentos históricos vêem as viagens, os deslocamentos

de indivíduos, de maneiras distintas. As viagens que nos propomos a analisar inserem-se no

contexto do desenvolvimento das ciências, principalmente da História Natural. Tinham uma

lógica diferenciada na sua organização, nas formas de financiamento e nos objetivos.

No capítulo 2, achamos necessário fazer uma biografia de cada viajante

selecionado para este estudo. Além de informações sobre nascimento, filiação e formação,

acrescentamos também dados sobre sua inserção na sociedade científica, sobre as obras

publicadas, incluindo edições e traduções. Esses viajantes eram cientistas que estavam

vinculados às Academias, espaços de pesquisa científica. Na França, a Académie Royale des

Sciences foi fundada em 1666, durante o reinado dos Bourbons. Era um exemplo de

instituição estreitamente vinculada ao Estado. Na Inglaterra, o protestantismo contribuiu para

uma revolução cultural. Para Bacon e muitos pensadores puritanos, a ciência tinha o papel de

produzir riquezas, melhorar a saúde, desenvolver o comércio e instaurar o Éden Original na


22

terra.23 No século XVII e XVIII, a ciência estava estreitamente vinculada com as guerras,

principalmente na Prússia, na Rússia, nos Reinos de Nápoles e Piemonte. Durante o século

XVIII desenvolveu-se uma comunidade científica internacional, cujos integrantes mantinham

correspondência entre si e principalmente tinham a consciência de pertencer a uma elite

cultural de dimensão internacional, detentora de características definidas e uma linguagem

comum que, em muitos momentos, suplantava as diferenças entre as nações. Com a fundação

de academias científicas em vários países europeus, financiadas pelas famílias nobres, como a

Universidade de Göttingen, que era mantida pela casa Hanovre, no final do século XVIII o

“homme de science” entra definitivamente na moda. A ciência triunfa e se legitima aos olhos

do público. O homem da ciência é distinto do filósofo, do teólogo e, sobretudo, do homem das

letras. Os cientistas podem ser classificados em dois tipos: os profissionais, vinculados as

instituições do Estado, como as Academias de Ciência, e os diletantes. Esses últimos estavam

vinculados às sociedades de estudo privadas, comuns principalmente na Inglaterra, onde

possuíam um enfoque no utilitarismo e no industrialismo.24

No capítulo 3, aprofundamos a questão da escrita do relato de viagem. A partir

do estudo desses textos, fizemos uma análise da retórica de cada autor, ou seja, de como cada

viajante construiu sua obra, as suas partes, a maneira de descrever e a forma de descrição do

que era visto, bem como a relação do texto com as representações produzidas. Em suma,

analisamos como era estruturado o trabalho intelectual do viajante e como ele organizou o seu

campo de pesquisa. Do que eles falavam? Qual a relação entre a viagem, o relato e a produção

de um conhecimento sobre as regiões visitadas?

No capítulo 4 enfocamos o desenvolvimento da História Natural na Europa e as

discussões sobre a natureza e o homem que vivia na América. Os viajantes estavam inseridos

num ambiente cultural e científico que se encontrava envolvido em intensas discussões sobre

23
FERRONE, Vincenzo. L’homme de science. In: VOVELLE, Michel. L’homme des Lumières. Paris: Éd. du
Seuil, 1996. p. 212.
24
Ibidem. pp. 220-232.
23

as características naturais do Novo Mundo. Além disso, naquele momento, o desenvolvimento

ou não do ser humano era visto como estreitamente vinculado com a natureza onde estava

inserido. A delimitação de uma nova área do conhecimento e, conseqüentemente, as exclusões

impostas, os embates de opiniões entre seus integrantes mais ilustres e influentes, os

arcabouços téoricos que seriam utilizados para explicar a América, contribuíam na forma

como os cientistas viajantes analisariam o mundo novo que eles estavam conhecendo.

O capítulo 5 aprofunda o discurso dos viajantes sobre a natureza na capitania

de Santa Catarina. Relatos sobre as matas, as plantas, os animais que existiam nesta região

são analisados a fim de percebermos como os viajantes descreveram a região e de que forma

os debates sobre a América, que circulavam na Europa, influíram na compreensão da natureza

local. Em contraponto ao discurso do viajante, tentamos apreender como os indivíduos que

viviam na região entendiam esta mesma natureza. Para isto recorremos a outros textos, de

documentos de época a trabalhos historiográficos, que se referem a Santa Catarina mas

também a outras regiões do Brasil.

Os capítulos 6, 7 e 8 voltam-se para outro aspecto dos relatos. Os viajantes,

apesar de cientistas, não se restringiram a descrever a natureza. Escreveram também sobre as

vilas, os homens e mulheres que viviam na região, a forma como a sociedade se organizou, e

muitos outros aspectos. Uma das dificuldades dessa fonte, o relato de viagem, é

contraditoriamente a riqueza e a quantidade de informações registradas pelos viajantes sobre

os mais diversos temas. Os seus olhares percorriam, encantados, surpresos, chocados ou

indignados, inúmeros aspectos da região que estava sendo explorada. Mesmo quando o relato

foi escrito muitos anos após a viagem, sua escrita acompanhava o olhar disperso que buscava

contemplar a totalidade do que era visto e sentido.

Entre os diversos temas e assuntos dos quais os viajantes escreveram,

selecionamos os seguintes para aprofundarmos: os núcleos urbanos, seus habitantes, o


24

trabalho desenvolvido e a situação econômica em que se encontrava a região. Esses temas

foram escolhidos após a leitura de todos os relatos e a constatação de que alguns assuntos

eram tratados pela maioria dos viajantes. Apesar da diferença temporal entre os viajantes

selecionados para análise, cuja primeira viagem foi realizada na segunda metade do século

XVIII por Pernetty, que esteve nesta região em 1763, até a última delas, realizada por Lesson,

no ano de 1822, os dados por eles relatados eram recorrentes.

Entre esses viajantes, Saint-Hilaire, pelo próprio tamanho de seu relato, que

compreende 90 páginas de texto, foi o que mais falas dedicou aos temas selecionados. No

entanto, outros autores, mesmo em textos de poucas páginas, como Langsdorff e Mawe,

respectivamente 20 e 7 páginas, deixaram registrados vários trechos que se referem ao

trabalho que era desenvolvido na região. Langsdorff também se dedicou a descrever

características do povo, tema também do interesse de Lesson, que num texto pequeno, de

somente 9 páginas, dedicou muitas linhas para descrever os habitantes locais, fossem estes

homens ou mulheres, livres ou escravos. Ao examinarmos o tamanho do texto e o espaço que

cada viajante dedicou aos diferentes temas selecionados, constatamos que o interesse

individual influenciou na escolha dos temas que iriam ser descritos no relato de viagem.

Mesmo sendo todos cientistas viajantes, com um objetivo em comum, isso não significava

uma proximidade de interesses. Langsdorff dedicou longos trechos a descrever a música e a

dança que ele conheceu na Ilha de Santa Catarina, enquanto Pernetty descreveu a comida que

provou quando de um jantar na casa do governador da Capitania, além de outros alimentos

desconhecidos, como a banana.25 O relato de viagem, por ser um texto que se diferenciava dos

relatórios científicos que eram feitos, muitas vezes coletivamente, junto com os outros

membros da expedição, para prestarem contas às instituições que haviam financiado as

25
Os cálculos de páginas tiveram como base as seguintes edições: SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem a
Curitiba e Província de Santa Catarina. Prefácio Mário G. Ferri; tradução Regina Regis Junqueira. Belo
Horizonte: Ed. Itatiaia/São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1978. PALMA DE HARO, Martim Afonso
(org.) Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX. 4º ed.
Florianópolis: Editora da UFSC, Editora Lunardelli, 1996.
25

viagens, permitia que seu autor extrapolasse os objetivos puramente científicos. O público

leitor, a quem eram voltados esses textos, tinha um interesse distinto dos colegas cientistas.

Os textos falam sobre uma região da América da Sul que atualmente faz parte

do estado de Santa Catarina, Brasil. No entanto, não engloba todo o estado, mas somente a

região litorânea, e principalmente a Ilha de Santa Catarina, onde atualmente localiza-se a

capital do estado. Geograficamente estamos falando do litoral. No que se refere às

características étnicas de sua população, esta era constituída majoritariamente por

descendentes de portugueses e açorianos. Existia também uma significativa parcela da

população de origem africana. Além desses grupos étnicos que formavam a maioria da

população, também foi citada pelos viajantes a presença de nativos da América e de europeus

de outras nacionalidades. A intenção é ir além de analisar como essas populações foram

descritas pelos viajantes, mas construir, a partir desses discursos e das recentes análises

elaboradas pela historiografia catarinense, uma nova possibilidade de interpretação da

sociedade e da população que vivia na região litorânea de Santa Catarina, mais precisamente

na área que se estende da vila de Nossa Senhora da Graça do rio São Francisco até Santo

Antônio dos Anjos de Laguna, costeando o Oceano Atlântico.

O capítulo 9 é dedicado a Louis Choris. O único artista viajante foi

contemplado com um capítulo a parte. Analisamos como o desenvolvimento da História

Natural contribuiu para formar uma nova forma de pintar as paisagens, principalmente de

regiões não européias. Além disso, buscamos mapear as influências que Choris recebeu, sua

formação e quem era o público consumidor dos álbuns ilustrados publicados na Europa e que

tinham como tema regiões distantes e desconhecidas.

Os viajantes escreveram relatos onde estão registradas suas impressões e seu

testemunho sobre a região visitada. Seu testemunho, além de ser matizado por coisas lidas, era

também marcado por distâncias temporais e culturais - viajante, estrangeiro, cientista,


26

citadino, seja nobre ou burguês. Além disso, o viajante encontra-se na postura do observador

que lança seu olhar sobre o observado, indivíduos de outras nacionalidades, com outras

formas de se relacionar entre si e com o trabalho, e que vão desenvolver outras manifestações

culturais e práticas cotidianas. Além da distância entre o viajante e o que ele observa, outro

aspecto que precisamos considerar é o próprio texto. Esses relatos foram escritos a partir de

informações colhidas na viagem, muitas vezes no contato do viajante com a elite local, fosse

ela administrativa, militar ou eclesiástica, que eram seus principais interlocutores. Outra

forma de conseguir informações era através da leitura de textos de outros viajantes ou mesmo

de documentos oficiais, como no caso específico de Saint-Hilaire. A distância cultural entre o

viajante e o que ele vai descrever contribuiu para a escrita de relatos marcados pela

negociação, pela troca, entre o conhecimento que estava se desenvolvendo na Europa em

relação com a América e o resto do mundo.


27

1. Viagens científicas européias ao redor do mundo (séculos XVIII e XIX)

Durante a segunda metade do século XVIII, e na primeira metade do seguinte,

ocorreram muitos empreendimentos internacionais de circunavegação com o objetivo de fazer

uma descrição física do mundo.26 Muitos viajantes e mesmo nações, como a França, a Grã-

Bretanha e o Império Russo, justificavam as viagens como necessárias para conhecer o

mundo e seus habitantes ou, muitas vezes, em prol do avanço científico. No entanto, elas

tinham também outro objetivo, ou seja, relacionar as possibilidades econômicas dos

continentes, sobretudo do africano. O Brasil, por fazer parte de uma região “desconhecida”

para os europeus, foi alvo de inúmeras expedições científicas, principalmente a partir de 1808.

Antes da transferência da corte portuguesa de Lisboa para o Brasil, a entrada de viajantes era

proibida a fim de manter em segredo as informações sobre as potencialidades da colônia,

evitando assim a cobiça de outras potências. Alexander von Humboldt, em sua viagem à

América do Sul, realizada no final do século XVIII, foi expulso do Brasil devido à suspeita

das autoridades coloniais de que fosse espião. No entanto, mesmo antes de 180827, era

permitido que navios, de diferentes bandeiras, atracassem para fazer escala, principalmente no

porto do Rio de Janeiro. No caso da Inglaterra, existiam tratados anglo-lusitanos do século

XVII que permitiam a utilização dos portos do Rio de Janeiro, Salvador e Recife aos barcos

de bandeira inglesa.
26
Entre elas podemos citar as expedições comandadas por: Louis Antoine de Bougainville (1767-1771), Jean-
François de La Pérouse (1785-1789), George Anson (1740-1744), entre outras. O próprio Bougainville, em sua
obra Voyage autor du monde, enumera treze viagens. Destas, quatro ocorreram no século XVI, quatro no século
XVII, e quatro no século XVIII, sendo a sua a décima terceira. Para mais informações ver MOREIRA LEITE,
Miriam Lifchitz. Livros de Viagens: 1803-1900. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997 e MOLLAT, Michel &
TAILLEMITE, Étienne. L’importance de l’exploration marítime au siècle des lumières: à propos du voyage
de Bougainville. Paris: Editions du CNRS. 1978. pp. 17-40.
27
Sobre as mudanças que ocorreram a partir desta data, ver: LEITE, Ilka Boaventura. Op. cit. Cap. 1: O Brasil
sob o olhar estrangeiro.
28

Gostaríamos de levantar alguns questionamentos em relação às viagens e ao

ato de viajar por regiões pouco conhecidas ou distantes. Viagens e viajantes existiram muito

antes do período que nos propomos a estudar. Entretanto, conforme o contexto histórico no

qual seus protagonistas estão inseridos, os sentidos e as finalidades das viagens são distintos.

A fim de melhor entendermos como as viagens eram diferentes dependendo do contexto

histórico nos quais estavam inseridas, discutiremos os relatos das viagens elaborados por

Cristovão Colombo, Hans Staden e Jean de Léry.

As grandes viagens marítimas e a incorporação de territórios desconhecidos

pelos europeus, a partir do século XV, marcam também uma mudança no tipo de relação

estabelecida entre o viajante e os povos visitados. Estas mudanças também são reproduzidas

nos relatos de viagens. Exploradores, comerciantes e, em menor escala, religiosos estavam a

serviço dos Estados Nacionais que, motivados pelo lucro, financiavam expedições que tinham

o objetivo de descobrir novas terras e a expectativa de encontrar riquezas, principalmente

ouro. Quando lemos os Diários da Descoberta da América escrito por Cristovão Colombo, a

busca pelo disputado mineral era repetidamente manifestada, principalmente no relato da

primeira viagem. Trechos onde aparecem referências à palavra ouro são salientados por

Tzvetan Todorov em sua obra A Conquista da América: a questão do outro. Nesse trabalho,

que toma a descoberta e a conquista da América a fim de desenvolver uma reflexão sobre o

outro e sua estranheza, o autor salienta que Cristovão Colombo falou/escreveu

freqüentemente sobre seu objetivo de descobrir riquezas, motivado pela necessidade de

acalmar tanto os marinheiros, que estavam assustados pela longa viagem e pelo medo de não

retornarem a sua terra, quanto os próprios reis da Espanha, uma vez que foi a expectativa de

encontrar riquezas que havia possibilitado os altos investimentos necessários à expedição.

Ainda segundo Todorov, o que impulsionou Cristovão Colombo foi a “vitória universal do

cristianismo”, uma vez que sua expansão era “muito mais importante do que o ouro.” Esses
29

dois objetivos estavam vinculados, e a obtenção de um significaria os meios necessários para

a implementação do outro.28

Outro exemplo de relato de viagem é o que foi escrito por Hans Staden.

Nascido no principado de Hessen, viajou para a América portuguesa entre os anos de 1548 e

1555, tendo participado de duas expedições: a primeira à capitania de Pernambuco e a

segunda à de São Vicente. Foi nessa última que aconteceu o naufrágio e seu aprisionamento

entre os Tupinambá. A experiência entre indígenas de costumes antropofágicos e sua fuga do

triste destino de ser devorado motivou a escrita de seu relato intitulado História Verídica29.

Staden não era um viajante como os outros. Suas motivações não eram nem a busca da

aventura, nem a busca de conhecimentos. Engajou-se como soldado em uma embarcação

portuguesa após a derrota do exército de Felipe de Hessen na disputa contra o exército de

Carlos V, que teve, entre outros motivos, a questão religiosa, nesse período marcado pela

Reforma Religiosa e pela Contra-Reforma.

Viajante em decorrência das circunstâncias que o levaram a sair de sua região

de nascimento, engajado como soldado em navios estrangeiros, torna-se cronista devido ao

inusitado de sua experiência de prisioneiro que conseguiu escapar de ser devorado por índios

antropófagos da América. A curiosidade de seus conterrâneos e a necessidade manifesta de

agradecer a Deus, que o salvou, levou-o a relatar por escrito sua experiência. Staden viveu

nove meses como prisioneiro entre os Tupinambá e seu objetivo, como salienta o próprio

título do relato, é descrever uma história verídica. Dessa maneira, ele privilegia uma escrita

onde o que viveu é descrito de forma narrativa. Além disso, enfatiza os acontecimentos e

28
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. Tradução: Beatriz Perrone Moisés. 3º
ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988. pp. 8-9.
29
O relato foi publicado em 1557 com o título de “História Verídica e descrição de uma terra de selvagens, nus e
cruéis comedores de seres humanos, situada no Novo Mundo da América, desconhecida antes e depois de Jesus
Cristo nas terras de Hessen até os dois últimos anos, visto que Hans Staden, de Homberg, em Hessen, a conheceu
por experiência própria, e que agora traz a público com essa impressão”. Deste viajante estão publicados em
português as seguintes obras: STADEN, Hans. Hans Staden: os primeiros registros escritos e ilustrados
sobre o Brasil e seus habitantes. Tradução: Angel Bojadsen. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 1999;
STADEN, Hans. A verdadeira história dos selvagens, nus e ferozes devoradores de homens (1548-1555).
Tradução: Pedro Süssekind. 2º ed. Rio de Janeiro: Dantes, 1999.
30

experiências no qual foi protagonista ou então observador, a fim de incutir veracidade ao

texto. Seu relato afasta-se das descrições fantasiosas de outros viajantes da época. Segundo

Guillermo Giucci, no relato de Staden, a América aparece “não só desmistificada do modelo

do maravilhoso que a recobria e deformava, como reconhecida em sua singularidade e em sua

diferença radical com o referente europeu.”30

No mesmo ano em que era publicado o relato de Hans Staden na Europa, o

francês Jean de Léry partia para a França Antártica. Nascido na região da Borgonha em 1534,

era sapateiro e estudante de teologia na cidade de Genebra. A partir da solicitação de Nicolau

Villegaignon, simpatizante da Igreja Reformada, fundador e administrador da colônia

francesa implantada na Baía de Guanabara, entre os anos de 1555 a 1567, Léry, juntamente

com outros quatorze protestantes, acompanhou os pastores Richier e Cartier e partiu para o

Brasil em 1557, onde permaneceu por um ano no Forte Coligny. Durante este período

presenciou os problemas enfrentados na colônia devido à difícil adaptação ao clima, às

disputas internas agravadas pelos desmandos de Villegaignon e os enfrentamentos com os

portugueses. Sua experiência na América permitiu-lhe conviver com os índios Tupinambá,

observando e estudando seus costumes. Em 1558 abandona a colônia e retorna à França, de

onde é obrigado a partir devido às disputas entre católicos e protestantes. Morando novamente

em Genebra, dedica-se a escrever sobre o período em que viveu na América. Anos depois, em

1578, publicou a obra Histoire d’une Voyage fait en la terre du Brésil. Sucesso imediato, foi

traduzido para diversas línguas. No Brasil foi publicado em 1941 como Viagem à Terra do

Brasil e, a partir de 1972, recebeu inúmeras reedições.31

O relato foi escrito com o material retirado do Brasil, a experiência vivida pelo

autor do texto. Segundo Michel de Certeau, o texto de Léry “joga com a relação entre a

30
GIUCCI, Guillermo. Viajantes do maravilhoso: o Novo Mundo. Tradução: Josely Vianna Baptista. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 215.
31
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Alegres Trópicos: Gonneville, Thevet e Léry. Revista USP. São Paulo: USP, nº
1 (mar./mai. 1989). pp. 84-93.
31

estrutura - que propõe a separação - e a operação - que a supera criando assim efeitos de

sentido.”32 Em sua escrita, este viajante estabelece um corte entre o Velho Mundo e o Novo

Mundo, e o que separa estes dois mundos é o Oceano Atlântico. Enquanto a França é o aqui, o

litoral do Brasil é o lá embaixo, lá adiante. O interesse principal do viajante, no caso a

sociedade tupi, é apresentada como um quadro de “dissemelhanças”. Por este termo podemos

entender como o diferente de tudo o que pode ser encontrado na Europa, ou então o que é

mais comum, a combinação de formas ocidentais que, cortadas, seriam combinadas de uma

forma insólita. Além disso, Léry apresenta o mundo selvagem dividido entre a natureza e a

sociedade civil. A divisão aqui/lá transforma-se numa divisão entre natureza/cultura.33

A leitura e a apropriação das construções discursivas elaboradas pelos viajantes

em seus relatos ocorreram de maneira distinta. Colombo evoca o mito do paraíso terrestre,

Staden enfatiza as práticas antropofágicas dos índios e Léry passa a imagem de uma terra

agradável, citando inclusive casos de franceses que, seduzidos pela vida nos trópicos, por aqui

ficaram e se tornaram selvagens.34 Faz-se necessário salientar que as imagens construídas

sobre o Brasil e a América repercutiram na Europa, principalmente na França, agindo sobre

seus conceitos éticos, políticos, pedagógicos, etc. Influências e referências podem ser

encontradas nas obras de Montaigne, Rousseau, Rabelais, Voltaire, entre outros. 35

Cristovão Colombo, Hans Staden e Jean de Léry são alguns do extenso grupo

de viajantes que, por diferentes motivos, escreveram os relatos de suas experiências em terras

distantes e entre indivíduos detentores de uma cultura diferenciada. Os cientistas viajantes

escreviam os relatos com o objetivo de difundir o conhecimento adquirido a partir da viagem

realizada, bem como valorizar seu trabalho em prol da ciência. Já o motivo que levava os

32
DE CERTEAU, Michel. A escrita da história. Tradução: Maria de Lourdes Menezes. 2 ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2000. p. 219.
33
Ibidem. pp. 220-221.
34
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Op. cit. p. 90.
35
Sobre a influência americana no pensamento francês ver: FRANCO, Affonso Arinos de Mello. O índio
brasileiro e a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937.
32

outros tipos de viajantes a escreverem relatos eram os mais diversos, da mesma forma como

eram distintos os motivos de suas viagens. Hans Staden escreveu para agradecer a Deus pela

vida, enquanto Jean de Léry aproveita para discutir questões religiosas que agitavam seu país.

As viagens por terras distantes e desconhecidas aumentaram a partir do período

moderno. No entanto, nem todos os viajantes, bem como nem todas as viagens, possuíam o

mesmo objetivo ou o mesmo significado. Podemos tomar como exemplo as viagens que se

desenvolveram e tiveram seu auge na segunda metade do século XVIII e no século XIX, e que

tinham como justificativa essencial a busca do conhecimento científico. Elas eram

estruturadas e organizadas segundo alguns parâmetros que as distinguiam das viagens que as

antecederam, mas isto não quer dizer que podemos inseri-las em um conjunto homogêneo.

Para Lorelai Kury, apesar da existência de diretrizes que preconizavam métodos rigorosos de

trabalho, as viagens científicas formavam um conjunto heterogêneo devido às suas

motivações, seu desenvolvimento e seus resultados.36 No entanto, devemos salientar um

aspecto que as unificavam: o aprendizado através da experiência. O que motivava e

justificava os investimentos, fossem eles financeiros ou humanos, era a crença que a obtenção

do conhecimento e do aprendizado se daria pelo “contato direto com as coisas do mundo.”37

As expedições científicas foram em sua maioria financiadas por Estados

europeus, entre eles a França, a Inglaterra, o Império Russo, caracterizando-se como viagens

oficiais. Além disso, ocorreram viagens que foram custeadas por famílias nobres ou pela

fortuna pessoal do próprio viajante, como por exemplo, a viagem realizada por Alexander von

Humboldt. Entre as viagens financiadas por instituições públicas ou pelos governos, podemos

fazer uma distinção entre expedições marítimas e expedições científicas. Enquanto o primeiro

tipo de expedição restringia-se ao estudo das regiões litorâneas e as possibilidades para a

navegação, o segundo tipo embrenhava-se no interior dos continentes. A primeira viagem

36
KURY, Lorelei. Histoire naturelle et voyages scientifiques (1780-1830). Paris: L’Harmattan, 2001. p. 148.
37
SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador; a viagem. São Paulo: Companhia das Letras,
1990. p. 110.
33

envolvendo cientistas de vários países europeus que entrou pelo interior do continente

americano foi a expedição La Condamine.38

Essa expedição teve início em 1735 e tinha como objetivo responder o seguinte

questionamento: seria a terra uma esfera ou um esferóide achatado nos pólos? Para elucidar

essa questão, foi montada uma expedição formada por cientistas de diferentes nacionalidades,

que contou com o apoio inclusive do rei da Espanha, o qual permitiu a entrada de estrangeiros

em seus territórios na América a fim de que os cientistas pudessem fazer as mensurações

necessárias próximo à linha do Equador. Enquanto um grupo deslocava-se para as

proximidades de Quito, o outro era enviado para o norte, para a Lapônia. Durante o período

que a expedição permaneceu na América, ocorreram vários imprevistos: disputas entre os

viajantes e com as autoridades coloniais, enfermidades, assassinatos, perda do material

arrecadado e das anotações por causa das chuvas, instrumentos danificados, etc.. O grupo

francês se desintegrou e cada um teve que encontrar por conta própria a melhor forma de

retornar para casa. A expedição foi iniciada em 1735 e mais de uma década se passou antes

que os primeiros integrantes começassem a retornar à Europa. O matemático Pierre Bourguer

foi o primeiro a voltar e, em 1744, apresentou um relatório à Academia Francesa de Ciências,

onde relata os inúmeros sofrimentos e privações dos quais foram vítimas e, ao mesmo tempo

trata das mensurações e análises meteorológicas que fizeram no Peru. La Condamine chegou

em 1744, após ter descido o Rio Amazonas. O naturalista Joseph de Jussieu permaneceu na

Nova Espanha até 1771, quando foi expulso, com graves problemas de saúde mental. Essa

expedição rendeu muitos relatórios e relatos de viagem. Além disso, nos possibilita refletir

sobre o papel integrador da ciência, que permitiu a constituição da primeira expedição

PRATT, Mary Louise. Os Olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. Tradução: Jézio Hernani
38

Bonfim Gutierre. Bauru, SP: EDUSC, 1999. p. 54.


34

científica internacional, passando por cima das rivalidades nacionais presentes na Europa,

bem como o seu oposto, a “política e o (anti-)heroísmo da ciência.”39

Além dos problemas e dificuldades que os viajantes deveriam enfrentar no

decorrer das viagens, havia também outros obstáculos que não pertenciam ao campo da

ciência, mas sim da política. As disputas entre os países europeus interferiam nas viagens,

obrigando muitas vezes a mudanças de rota ou mesmo ao cancelamento ou interrupção das

mesmas. Exemplo disto é a viagem de Alexander von Humboldt e Aimé Bonpland. Seus

planos de viajar para o Egito foram abortados após a ocupação daquela região pelas tropas de

Napoleão Bonaparte, obrigando-os a mudar o trajeto para a América Espanhola. Através dos

contatos e das boas relações de Humboldt com membros da corte em Madri, conseguiram

autorização para visitar as colônias espanholas. Também foram feitos contatos com a Coroa

Portuguesa com o intuito de conseguir autorização para entrar nos territórios coloniais

portugueses na América, mas as negociações não tiveram resultados positivos. Os viajantes

não conseguiram autorização devido ao medo por parte da Coroa Portuguesa de que

realizassem atividades de espionagem. Como foi comentado anteriormente, somente a partir

de 1808, com a transferência da Família Real Portuguesa para o Rio de Janeiro, passa a ser

autorizada a entrada de viajantes estrangeiros no Brasil. Antes dessa data, somente era

permitido que navios em trânsito fizessem escala para abastecimento. Os portos escolhidos

eram geralmente o do Rio de Janeiro e o da Ilha de Santa Catarina. Como essas paradas

duravam dias, algumas vezes meses, os estudiosos aproveitavam para realizar coletas de

materiais, principalmente botânicos.

No que se refere à Ilha de Santa Catarina, sua escolha era motivada pela

posição geográfica, estratégica para os barcos que se dirigiam à região do Rio da Prata e para

os que iriam fazer a travessia do Cabo Horn, no extremo sul da América. Alguns barcos

39
Sobre a organização e as disputas presentes na expedição La Condamine ver: PRATT, Mary Louise. Op. cit.
pp. 41-55.
35

também ancoravam na Ilha quando, por causa de doenças e epidemias, não era recomendado

parar no porto do Rio de Janeiro. Devido a esses fatores, na região ancoravam barcos, muitos

deles em expedições de circunavegação, que ficavam o tempo necessário para serem

abastecidos com madeira, víveres e água potável, bem como fazer reparos na embarcação,

como nos mostra o relato escrito pelo capitão do navio “Nadeshda”, Adam J. von

Krusenstern, chefe da expedição russa de exploração do Pacífico Norte. Segundo ele,

o governador Dom José de Carrado, coronel do exército português, a quem


eu estava visitando com o capitão Lisiansky e alguns dos oficiais do navio,
imediatamente à nossa chegada, recebeu-nos com grande cortesia. Ele
prometeu, com a maior gentileza, oferecer-nos toda a assistência ao seu
alcance; ele mandou um sargento para bordo de ambos os navios, o qual foi
colocado inteiramente à nossa disposição; mandou fazer uma lista das
provisões de que necessitávamos, e ordenou a um oficial, para maior rapidez
em procurá-las, a comprá-las no interior da ilha e no continente. Ele
determinou que fosse cortada madeira para nós, um pedido que
particularmente fiz a ele, já que essa tarefa teria sido muito laboriosa, sob o
extremo calor, e poderia resultar em prejuízo à saúde dos marinheiros. 40
Além dos viajantes que aqui paravam somente pela necessidade de

abastecimento, e aproveitavam para escrever algumas poucas páginas, tivemos outros, que

foram além. Embrenharam-se nas matas e nos caminhos, segundo eles, péssimos, a fim de

conhecer o interior da Capitania de Santa Catarina. Auguste de Saint-Hilaire a cruzou por

terra, no sentido norte-sul. Na época de sua viagem, a Capitania de Santa Catarina era uma

das menores do Brasil. Tinha somente três vilas: Nossa Senhora da Graça do Rio de São

Francisco, Nossa Senhora do Destêrro e Santo Antônio dos Anjos da Laguna.41 Com exceção

do distrito de Lages42, localizado no planalto serrano, e do povoamento das margens de alguns

40
KRUSENSTERN, Adam Johann von. In: Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos
séculos XVIII e XIX. Op. cit. p. 137. O nome correto do governador é Joaquim Xavier Curado, governou a
Província de 1800 a 1805.
41
São Francisco foi elevada à vila em 1660 e, em 1847, torna-se cidade. Desterro é elevada à condição de vila
em 1726. Em 1823 torna-se a capital da província. Troca de nome em 1894, quando passa a chamar-se
Florianópolis. Laguna torna-se vila em 1714 e comarca em 1856.
42
A cidade de Lages, localizada no Planalto Catarinense, foi fundada em 1766 por Antônio Correa Pinto, no
caminho que ligava os Campos de Viamão a São Paulo. Seu desenvolvimento foi em decorrência de seus
campos de pastagem, ponto de passagem e invernada das tropas de animais que eram levadas do Rio Grande do
Sul as regiões das Minas Gerais. Em 1771 foi elevada à categoria de vila como o nome de Nossa Senhora dos
Prazeres “das Lagens”. Em 1738, após a criação da Capitania de Santa Catarina, continuou fazendo parte da
Capitania de São Paulo até o ano de 1820.
36

rios “as terras ocupadas pelos colonos até 1822 não se estendiam a mais de três léguas do

litoral, e nada indica que a partir dessa época eles tenham avançado mais para o interior.”43

Uma característica dessas expedições, fossem elas de circunavegação ou pelo

interior dos continentes, era que a maior parte constituíam-se como viagens de grupo, no qual

estavam envolvidas várias categorias de estudiosos, como naturalistas, botânicos, geólogos,

zoólogos, pintores, entre outros. Apesar de financiadas por seus países de origem, os viajantes

muitas vezes recebiam apoio dos governos locais. O governo colonial português e,

posteriormente, o Império Brasileiro, ajudava através do fornecimento da licença de entrada e

cartas de recomendação direcionadas aos funcionários estatais, ou então, possibilitando a

divulgação das pesquisas nas instituições científicas existentes no país. Este intercâmbio

permitiu o desenvolvimento de pesquisas e a organização de expedições científicas brasileiras

no final do século XIX, com cientistas e financiamento nacional.44

Entre as várias expedições científicas realizadas por países europeus, e que

envolvia um conjunto de estudiosos de diferentes áreas de conhecimento, podemos citar a

expedição “Rurick”, comandada por Otto von Kotzebue, da qual fizeram parte o pintor Louis

Choris e o botânico Adalbert von Chamisso. Essa expedição partiu da Rússia em janeiro de

1815 e aportou na Ilha de Santa Catarina no final do ano, onde permaneceu durante vários

dias, com o objetivo de abastecer os navios, tratar os doentes e realizar estudos. Financiada

pelo governo da Rússia, tinha como objetivo concluir a exploração da parte norte do Pacífico.

Entre os anos de 1803 e 1806, o Império Russo havia financiado uma outra expedição naval

que iniciou a exploração do Pacífico Norte, estabelecendo relações diplomáticas com o Japão.

Nessa expedição estiveram envolvidos dois navios, “Neva”, sob a chefia do capitão Urey

43
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem a Curitiba e Província de Santa Catarina. Tradução Regina Regis
Junqueira. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1978. p. 127.
44
Sobre as relações entre viajantes estrangeiros e as instituições de pesquisas brasileiras ver: LOPES, Maria
Margaret. As ciências dos Museus: a história natural, os viajantes europeus e as diferentes concepções de
Museus no Brasil do século XIX. In: História da Ciência: o mapa do conhecimento. Rio de Janeiro: Expressão
e Cultura; São Paulo: Edusp, 1995. pp. 721-372.
37

Lisiansky e “Nadeshda”, cujo capitão era Adam Johann von Krusenstern, chefe também da

expedição. Tanto a primeira como a segunda expedição fizeram uma escala na Ilha de Santa

Catarina e alguns de seus integrantes deixaram registrados em seus relatos de viagem

comentários sobre a sua natureza e sua população. Esses relatos e seus autores serão

analisados na seqüência do texto, nos próximos capítulos.

Apesar da expedição “Rurick” ser financiada pelo governo russo e sua

tripulação ser composta por russos, pelo menos metade dos cientistas envolvidos no projeto

eram de outras nacionalidades, como o médico e zoologista Johann Friedrich Eschscholtz,

nascido na Estônia, e o botânico Adalbert von Chamisso, nascido na França. O intercâmbio

científico entre nações, ou então a presença de cientistas de diferentes países numa expedição

não era algo incomum, apesar da competitividade entre as nações européias no que se refere à

expansão por terras de outros continentes e pela liderança no desenvolvimento do

conhecimento científico. Segundo Mary Louise Pratt, durante a segunda metade do século

XVIII, “a expedição científica tornar-se-ia um catalizador das energias e recursos de

intrincadas alianças das elites comerciais e intelectuais por toda a Europa.”45

Um aspecto que gostaríamos de salientar é como esse trabalho dependia de

contatos pré-estabelecidos, principalmente com as autoridades coloniais. Georg von

Langsdorff, em sua curta estadia na Ilha de Santa Catarina, teve seu trabalho facilitado por

causa desses contatos. Foi através do governador da província que ele soube da existência do

Sr. Matheos Cardoso Caldeira, que vivia na Fazenda São José, no continente.

Para mim foi surpresa das mais agradáveis, saber do governador que havia
aqui uma pessoa há muitos anos interessada e dedicada à coleção de insetos.
Procurei tirar proveito desta ocasião oportuna [...] meu maior pedido a ele foi
que me mostrasse as regiões mas ricas em insetos e que me levasse em suas
excursões, no que concordou imediatamente de modo cordial e prestativo.46

45
PRATT, Mary Louise. Op. cit. p. 52.
46
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. In: Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos
séculos XVIII e XIX. Op. cit. p. 170.
38

O conhecimento dos ‘nativos’ e dos moradores locais não era totalmente

desprezado pelos viajantes europeus. Eles não eram detentores do conhecimento científico

que estava sendo desenvolvido na Europa, não conheciam a nomenclatura científica, mas

possuíam um conhecimento empírico que interessava aos cientistas, principalmente no que se

referia às plantas e suas utilidades práticas. No caso de Langsdorff, sua coleta de insetos foi

facilitada pelo fato de ter um guia experiente. Prestativo, cordial, adjetivos largamente

utilizados pelos estrangeiros para descrever os habitantes locais, também foram empregados

para definir um indivíduo que não se importou de apresentar para um desconhecido os

melhores locais para coletar espécimes animais importantes para o trabalho de um cientista.

Eram muitas vezes através das relações estabelecidas com os habitantes locais

que os viajantes conseguiam desenvolver o trabalho pelo qual haviam empreendido tão longa

e desgastante viagem. Langsdorff encontrou no litoral Sul do Brasil uma natureza rica e a

ajuda dos habitantes locais que lhe permitiu, em sua curta estadia de pouco mais de um mês,

aumentar sua coleção de insetos e plantas.

No alvorecer da manhã seguinte, após um bom desjejum, [...] afastamo-nos


menos de uma milha alemã da casa e, ao entardecer, voltamos fartamente
carregados de insetos e borboletas. Da minha parte caçei tudo o que me
vinha pela frente e enchi de insetos e besouros quatro caixotes médios,
levados por um pequeno menino. 47

A maior dificuldade foi o curto período em que permaneceu em terra firme, e o

fato da estadia na Ilha de Santa Catarina ter ocorrido durante o verão. Estes dois fatores eram

prejudiciais para o trabalho de um cientista que tivesse como atividade coletar plantas.

Segundo ele,

não consegui investigar mais do que o nome, pois para conseguir as folhas
ou pétalas deste feto, teria que arrancar cada caule. Um botânico que pudesse
permanecer aqui não apenas dias ou semanas, mas anos, e empreendendo
excursões com machadinhas e machados, haveria de se tornar
conhecidíssimo pelas descobertas de novos gêneros e novas espécies. 48

47
Ibidem. p. 171.
48
Ibidem. p. 172. Nota de rodapé.
39

No final do século XVIII e durante o século XIX, em decorrência das viagens

realizadas e do aprimoramento dos métodos de análise, existia a preocupação de instruir os

viajantes. A “Société d’Histoire Naturelle de Paris” tinha o cuidado de redigir instruções

endereçadas aos viajantes que iriam realizar expedições de coleta. O Museu de História

Natural de Paris redigiu e publicou seis edições (nos anos de 1818, 1824, 1827, 1829, 1845 e

1860) da Instruction pour les voyageurs et pour les employés dans les colonies sur la manière

de recueillir, de conserver et d’envoyer les objets d’histoire naturelle, rédigée sur l’invitation

de S.E. le Ministre de la Marine et des Colonies par l’administration du Muséum Royal

d’histoire naturelle.49 Com a ampliação e o crescente interesse pela história natural,

principalmente pela botânica, eram muitos os correspondentes que enviavam coleções

naturais para os órgãos de pesquisas, como os Jardins Botânicos. Esse trabalho era realizado

muitas vezes por funcionários coloniais, sejam estes administrativos ou militares. Dessa forma

era necessário instruir sobre a melhor forma de realizar a coleta e como preservar as

espécimes. Linné, cientista que espalhou seus discípulos por várias partes do mundo, também

escreveu um texto, o Instructio Peregrinatoris, no qual instruía sobre a melhor forma de levar

a cabo a atividade de coleta do material para as pesquisas de História Natural. Os viajantes

financiados pelos estados europeus diferenciavam-se dos diletantes, uma vez que os

resultados de seus trabalhos eram de interesse de toda a Europa. Dessa forma, eles tinham que

seguir algumas instruções, tais como recolher produtos dos três reinos, vegetal, animal e

mineral, descrevendo com atenção suas utilidades. No que se refere às plantas, o interesse era

pelas sementes, uma vez que estas seriam utilizadas em trabalhos de aclimatação. Existia a

preocupação, da parte das instituições científicas européias, de instruir adequadamente os

viajantes coletores.

49
Sobre as orientações de viagem e de coleta direcionadas aos viajantes coletores ver: KURY, Lorelei. Op. cit.
Cap. III: Les instructions de voyage: orienter le regard, former les gestes.
40

As facilidades para conseguir as espécimes muitas vezes esbarravam nas

dificuldades para acondicioná-las adequadamente. Saint-Hilaire, em seus relatos, reclama dos

percalços enfrentados para conseguir os materiais necessários para a conservação das

amostras que foram coletadas no decorrer da viagem.

Encontrei em São Francisco as mesmas dificuldades que sempre enfrentava


quando necessitava dos serviços de um obreiro. Eu já tinha tido bastante
sorte em conseguir alguns caixotes de que precisava, mas procurei em vão o
couro para revesti-los.50

Para realizar uma viagem de coleta eram necessários alguns materiais, que

poderiam ser trazidos da Europa, ou então, caso fosse uma viagem longa e por terra, como

a realizada por Saint-Hilaire, poderiam ser adquiridos conforme a necessidade. Uma das

maiores dificuldades era a preservação do que era encontrado, o que era agravado pelas

dificuldades e deficiências enfrentadas no processo de conservação das espécimes, sejam elas

animais ou vegetais. Além disso o que havia sido coletado poderia se perder durante as

viagens, devido a naufrágios ou incêndios nos navios, como o que destruiu todo o trabalho de

coleta realizado pelo viajante inglês Wallace durante sua viagem de retorno.

O cientista francês e farmacêutico da Marinha René Lesson (1794-1849), que

participou da viagem no “La Coquile”, entre os anos de 1822 e 1825, listou os materiais que

eram necessários para o bom desenvolvimento do trabalho de taxidermista, num texto

publicado em 1828 no Dictionnaire des Sciences Naturelles. Segundo ele, os materiais

indispensáveis para a boa conservação do que era coletado, fossem planta ou animal, eram os

seguintes:

Álcool etílico incolor: trezentos litros [...]


Frascos de vidro forte e branco: trezentos [...]
(os frascos e o álcool permitem o transporte dos animais de pequena
estatura)
Mástique [...]: vinte e cinco quilogramas [...]
Sublimado corrosivo, fechado num frasco de vidro, com rolha de esmeril e
sempre fechado numa caixa de medicamentos: quinhentos gramas.
(o “sublimado corrosivo”, tal como o “sabão arsenical”, servia para tratar as
peles, a fim de impedir a sua putrefacção).
50
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 152.
41

Os outros objectos indispensáveis são:


1. Chumbo laminado com a espessura de uma folha de cartão fino, para fazer
etiquetas: três pés quadrados.
2. Um saca-bocados, do tamanho de uma moeda, com uma série de dez
pequenos números em relevo. Os números assim gravados sobre o chumbo
servem para designar cada frasco, e este número é repetido numa lista onde
se inscrevem todas as notas relativas ao objecto que nele está fechado.
3. Três espingardas de caça com os respectivos equipamentos [...]
4. Duas caixas de lata um pouco achatadas para a caça e para a botânica.
5. Sabão arsenical, vinte e cinco quilogramas, fechado num pequeno barril.
6. Doze caixas almofadadas e encaixando-se umas nas outras, para insectos.
7. Quinze resmas de papel para plantas e cinquenta quilogramas de papéis
velhos para embrulhar os minerais.51

Esse era o material previsto para uma viagem realizada em um navio, durante

aproximadamente três anos. A participação em uma viagem de circunavegação poderia

facilitar a vida de um viajante em alguns aspectos, como o transporte do material ou o contato

com outros cientistas. Os longos percursos em alto mar permitiam que o material coletado

fosse analisado durante a viagem. Além disso, muitas vezes o material poderia ser

desembarcado em algum porto, de onde seria remetido para a Europa.

Um viajante que se deslocava pelo interior não poderia transportar grandes

quantidades de material, o que o obrigaria a adquiri-los no decorrer da viagem, em alguns

lugares com grande dificuldade. Karen Macknow Lisboa, em seu trabalho sobre os viajantes

bávaros Spix e Martius, nos informa sobre alguns dos materiais necessários para uma

expedição botânica e zoológica pelo interior do Brasil. Entre eles estão

livros, mapas, bússolas, botica portátil e outros utensílios de viagem. Entre


os instrumentos, um microscópio de Utzchneider e Fraunhofer, um
telescópio de Dollond, higrômetros, barômetros, além de sólidos
conhecimentos de ciências naturais, que serão testados e ampliados diante de
novos espécimes e terras desconhecidas.52

Auguste de Saint-Hilaire deixou registrado, em inúmeros textos e relatos,

pormenores sobre a viagem e o trabalho que desenvolvia a serviço do Museu Nacional de

História Natural de Paris. Além disso, escreveu sobre inúmeros aspectos da sociedade

51
LESSON, René. Apud. DROUIN, Jean-Marc. Op. cit. p. 155.
52
LISBOA, Karen Macknow. Op. cit. p. 45.
42

brasileira que conheceu durante os sete anos em que viajou por diversas regiões do país, entre

elas a Capitania de Santa Catarina durante os meses de abril e maio de 1820. Em um de seus

relatos de viagem deixou registrada a seguinte fala: “Nesse dia não recolhi uma só planta. O

tempo estava magnífico, não havia uma nuvem no céu, mas a paisagem era de uma monotonia

sem par.”53 Gostaríamos de discutir um aspecto que é pouco trabalhado quando se fala sobre

os viajantes: a monotonia. Saint-Hilaire reclamava do calor irritante, da poeira, da sede, da

vegetação cerrada, da uniformidade, do tédio. Mas também deixava aparente o que o

motivava: o gosto pela História Natural o levara às viagens, após ter esgotado o estudo das

espécimes nas regiões próximas de onde havia se criado.54 Para muitas pessoas,

contemporâneas dos viajantes e mesmo estudiosos posteriores, a viagem por terras distantes e

pouco conhecidas era percebida como uma aventura. No entanto, os elogios dirigidos aos

viajantes que se aventuravam nestes empreendimentos nos mostra que essas viagens eram

muito mais do que uma aventura. Salientavam-se características como coragem, zelo e

abnegação em nome da ciência. Alguns biógrafos vão mais além e reforçam a imagem

heróico-romântica dos viajantes.55

Um fator importante, ao qual Lorelai Kury chama a atenção, é que a realização

de uma viagem, fosse a serviço de alguma instituição científica, fosse por meios próprios,

resultaria em prestígio, uma vez que possibilitaria ao viajante tornar-se um especialista na

natureza da região visitada e dessa forma ascender na carreira. Além disso, o viajante adquiria

entre seus colegas uma ‘imagem’ de aventureiro, o que é revelador de como o exótico fazia

parte do imaginário dos cientistas e sábios do final do século XVIII e início do século XIX.56

53
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 195.
54
SÜSSEKIND, Flora. Op. cit. pp. 108-109. Este trabalho discute como, nas décadas de 30 e 40 do século XIX,
a prosa brasileira estabeleceu relações com os relatos de viagens e os desenhos e pranchas dos paisagistas-em-
trânsito a fim de constituir a figura do narrador de ficção.
55
Marcus Vinícius de Freitas, em sua pesquisa sobre o cientista viajante Hartt, comenta que se criou uma
imagem de doação e amor pela ciência da parte deste viajante, a ponto de seu principal biógrafo defini-lo como
um mártir da ciência. Ver: FREITAS, Marcus Vinícius de. Charles Frederick Hartt: um naturalista no
Império de Pedro II. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. p. 39.
56
KURY, Lorelei. Op. cit. p. 151.
43

A viagem empreendida por Saint-Hilaire pode ser inserida num contexto mais

amplo, ou seja, no conjunto das viagens de exploração que tinham como mote principal o

desenvolvimento da ciência. Saint-Hilaire não era um viajante qualquer, era um cientista que

estava a serviço de um órgão público francês e que tinha como objetivo fazer coleta de

plantas, animais e minerais, entre outros. Esses exemplares iriam enriquecer o acervo de uma

instituição científica e, juntamente com outros materiais coletados em regiões distantes do

mundo, permitiriam aos pesquisadores desenvolverem trabalhos sobre a natureza e suas

possibilidades, principalmente para a agricultura.

As viagens científicas foram empreendidas com a finalidade de desenvolver

um conhecimento dentro de um domínio de saber que tinha o status de científico ou então

ampliar as informações práticas vinculados à Geografia e à Economia. É importante salientar

que essas viagens foram desenvolvidas a partir da segunda metade do século XVIII e em

países específicos, tais como a França, a Inglaterra, a Áustria, a Alemanha, a Rússia e, mais

tarde, os Estados Unidos. Outro aspecto era a escolha das regiões que seriam visitadas.

Algumas, em determinados períodos, eram priorizadas em detrimento de outras. Um exemplo

é a região amazônica, que durante o século XIX, encontrava-se no centro dos interesses dos

viajantes e da ciência. O litoral sul do Brasil não despertou maiores interesses por parte dos

estudiosos e viajantes, e os que aqui estiveram, em sua maioria, foi devido ao trajeto

escolhido e à necessidade de abastecimento, no caso dos navios.

As viagens no qual estiveram envolvidos inúmeros indivíduos, sejam estes

coletores ou cientistas, contribuíram para o avanço das pesquisas e da ciência européia.

Contribuíram também para a elaboração de um conhecimento no qual a América e outras

regiões do mundo se inserem de forma periférica. Essas regiões são vistas como locais que

tinham a função de fornecer produtos para abastecer a Europa, fortalecendo assim seu

sentimento de superioridade.
44

2. Os viajantes: alguns dados biográficos

Antes de nos determos sobre o que escreveram esses viajantes, é necessário

tecermos uma breve biografia de cada um deles, que na falta de um critério melhor, será feito

segundo o ano em que cada um desses viajantes esteve em Santa Catarina. Para isso

utilizaremos informações coletadas em diferentes edições dos relatos e em outras referências

historiográficas. A principal fonte, no entanto, será a Biographie Universelle (Michaud)

Ancienne et Moderne editada em Paris no ano de 1854 pela Chez Madame C. Desplaces.

Foram pesquisados os tomos 8, 22, 23, 24, 27, 32 e 37.

Antoine Joseph Pernetty esteve na Ilha de Santa Catarina entre 23 de novembro

e 15 de dezembro de 1763. Era membro de uma expedição financiada por Louis Antoine de

Bougainville, o qual tinha a intenção de fundar uma colônia francesa nas Ilhas Malouines.

Pernetty nasceu em 13 de fevereiro de 1716, em Roanne. Abraçou a vida religiosa na

Congregação de Saint-Maur chegando a tornar-se abade de Saint-Germain. Apaixonado pela

História Natural percorreu os entornos de Paris, e desenhou as plantas que recolheu durante

esses passeios. Em 1764, após o retorno da viagem, iniciou a escrita de suas memórias, que

seriam publicadas pela primeira vez em Berlim no ano de 1769, numa edição de dois volumes

contendo 16 pranchas. No que se refere à sua vida religiosa, tentou, juntamente com outros

membros beneditinos, mudar as regras da congregação. Acabou abandonando o hábito e

partiu para a Rússia. Em 1783 retornou a Paris, lutou e conquistou o direito de não precisar

voltar para seu monastério. Durante este período dedicou-se à tradução e edição de inúmeras

obras. Envolveu-se em uma discussão pública com Corneille de Pauw sobre a questão da
45

polêmica dos americanos serem ou não uma raça degenerada. Durante a Revolução Francesa

foi preso, vindo a morrer em 1801 em Valence. Suas principais obras são Dictionnaire

portatif de peinture, sculpture et gravure, avec un traité pratique des différentes maniéres de

peintre, publicado em Paris no ano de 1757, no formato in-8º57. Foi traduzido para o alemão e

publicado em Berlim no ano de 1764. Dedicou-se ao estudo dos gregos e egípcios com a

publicação do Le fables ègyptiennes et grecques dévoilées et réduites au même principe,

acompanhado de uma explicação sobre os hieróglifos e sobre a Guerra de Tróia. A primeira

edição é de 1758, 2 volumes em in-8º. A segunda edição é de 1786 em 3 volumes no formato

in-12º. Publicou mais duas obras: Dictionnaire mytho-hermétique, em 1758, e Lettre à L’abbé

Villain sur l’histoire critique de Nicolas Flamel, em 1762, no tomo I da coletânea Année

Littéraire.

Após essas obras sobre diversos temas, dedicou-se à descrição da viagem

empreendida como cientista da expedição de Bougainville. Em 1769, aparece a primeira

edição do texto que trata da viagem às Ilhas Malouines, publicada em Berlim em 2 volumes

no formato in-8º e intitulado Journal historique d’un voyage fait aux îles Malouines. Em

1770 essa obra foi traduzida para o inglês e publicada no formato in-4º. A 2ª edição,

modificada e aumentada com informações sobre história natural foi publicada em Paris, no

ano de 1770, em 2 volumes, acompanhada de 16 pranchas, com o título de Histoire d’un

voyage aux îles Malouines, fait en 1763 et 1764. Essa edição também foi traduzida e

publicada em inglês no ano de 1794. O trecho sobre a à Ilha de Santa Catarina foi traduzida

para o português por Carmen Lucia Cruz Lima a partir da edição francesa de 1770 e publicada

na obra Ilha de Santa Catarina: relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX.
57
Segundo Manguel, o formato preferido para a edição de livros populares foi o in-octavo. Este formato foi
utilizado pela primeira vez pelo mestre-impressor Aldus Manutius, em 1501. O livro em in-octavo era a metade
do tamanho de um livro in-quarto. Os livros in-fólio eram do tamanho de uma folha inteira, sem dobras. No
formato in-quarto uma única folha resultava numa brochura de 8 páginas, enquanto no formato in-octavo uma
única folha resultava numa brochura de 16 páginas. No século XVIII, para produzir obras maiores, as folhas
foram dobradas em 12 partes, resultando em libretos de 24 páginas de brochura, o in-12º. Mais informações
sobre encadernações e tamanhos dos livros ver: MANGUEL, Alberto. Uma história do livro. Tradução: Pedro
Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras. 1997. pp. 149-174.
46

Além das descrições da viagem em que esteve envolvido, Pernetty também

escreveu alguns textos em decorrência da polêmica com Corneille de Pauw: Dissertation sur

l’Amérique et les Américains contre les Recherches philosophiques de mr. de P***, publicado

em Berlim no ano de 1770. No ano seguinte publicou, também em Berlim, 2 volumes

intitulados Examen des Recherches philosophiques sur l’Amérique et les Américains et de la

Défense de cet ouvrage. Essas obras foram seguidas pela publicação das respostas de

Corneille de Pauw. Em 1776, Pernetty publicou outra obra: La connaissance de l’homme

moral par celle de l’homme physique em 3 volumes no formato in-8º. A discussão travada

entre Pernetty e De Pauw será aprofundada no capítulo 4.

Georg Heinrich von Langsdorff era graduado em Medicina pela Universidade

de Göttingen. No entanto, preferiu dedicar-se aos estudos da História Natural. Nasceu em 18

de abril de 1774 e faleceu em Freiburg (Breisgau) no ano de 1852, padecendo de distúrbios

mentais. Para Marcos Pinto Braga, “Langsdorff foi homem de um destino incomum, marcado

pela ânsia do conhecimento e frenética corrida contra o tempo.”58 Formado aos 23 anos,

perdeu a memória aos 54 anos e morreu aos 78 anos. Em relação à cidade de nascimento

encontramos divergências. Enquanto na Biographie Universelle Michaud consta como tendo

nascido em Laisk, na obra Ilha de Santa Catarina: relatos de viajantes estrangeiros nos

séculos XVIII e XIX consta como tendo nascido em Wollstein (Hesse). Essa também é a

informação que consta na obra Os Diários de Langsdorff, publicado pela Associação

Internacional de Estudos Langsdorff em parceria com a Fiocruz. Era filho do intendente mor

(ou prefeito) de Wollstein e vice-chanceler do Supremo Tribunal de Kalrsruhe, no grão-

ducado de Baden. Pela filiação, pelo título de barão e pela sua trajetória acadêmica,

Langsdorff era pertencente a um grupo privilegiado, cuja família estava vinculada aos

governantes de sua região de nascimento. Em 1797 viajou para Lisboa, onde exerceu sua

58
BRAGA, Marcos Pinto. Apresentação. In: BECHER, Hans. O Barão Georg Heinrich von Langsdorff:
pesquisas de um cientista alemão no século XIX. São Paulo: Edições diá; Brasília, DF: Editora Universidade
de Brasília, 1990. p. 8.
47

profissão de médico. Aproveitou para aprender o português. Engajou-se na expedição que

navegou ao redor do mundo sob o comando de Adam J. von Krusenstern, mas a abandonou

antes de seu término. Esteve na Ilha de Santa Catarina e no continente próximo entre 20 de

dezembro de 1803 a 04 de fevereiro de 1804. A primeira edição de seu relato apareceu em

1812 com o título Bemerkungen auf einer Reise um die Welt in den Jahren 1803 bis 1807,

publicado em Frankfurt. É desta obra a versão para o português que utilizamos e que foi

traduzida por Dolores R. Simões de Almeida. Também sobre essa viagem foi publicado

Plantas recueillies pendant le voyage des Russes autour du monde em conjunto com F.

Fischer e publicado em 1810-1818 em Tubingue.

A partir de 1813, tornou-se cônsul Geral da Rússia no Brasil, passando a residir

no Rio de Janeiro. Desde o final do século XVII, no governo de Pedro I, a Rússia estava

passando por reformas que contribuíram para sua ocidentalização. Elas continuaram durante

os governos dos imperadores Alexander I e Nicolau I. No século XVIII a Rússia conquista a

Sibéria, o Extremo Oriente, domina o Alasca e algumas ilhas próximas. Em 1799 é fundada a

Companhia Russo-americana, que controlava os territórios na região Noroeste da América. A

partir de 1803 iniciam-se regulares viagens de circunavegação financiadas pelo governo

russo. Em 1812, é estabelecido na cidade do Rio de Janeiro o Consulado Geral da Rússia,

cargo que Langsdorff assume no ano seguinte, criando uma rede de estabelecimentos

consulares pelo Brasil, inclusive em Nossa Senhora do Desterro, cujo cargo de vice-cônsul foi

ocupado por Duarte de Souza. Em 1815, Langsdorff foi substituído no cargo e no ano

seguinte adquiriu a Fazenda Mandioca, no atual município de Magé, localizado no estado do

Rio de Janeiro. A fazenda tornou-se ponto de encontro e de recepção a inúmeros viajantes

estrangeiros que passaram pela região. No ano de 1818 foi à Rússia a fim de preparar a

expedição pelo interior do Brasil. Essa expedição durou de 1822 a 1829, e passou por regiões

que hoje compreendem os Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato
48

Grosso, seguindo pelos rios que levam à foz do Rio Amazonas. Além de Langsdorff, chefe da

expedição, participaram o astrônomo russo Rubzov, o botânico alemão Riedel, bem como o

pintor e geógrafo Hercules Florence e o pintor Adriano Amadey Taunay. Além desses

estudiosos, integraram a expedição, homens “pretos” e “mulatos”, alguns desses escravos,

bem como tropeiros e guias que eram contratados conforme a necessidade.

O material produzido pela expedição de Langsdorff encontra-se guardado no

Arquivo da Academia de Ciências Russa. Microfilmes desses documentos estão arquivados

no Núcleo de Estudos Langsdorff vinculado ao Centro de Estudos Avançados

Multidisciplinares e ao Departamento de História da Universidade de Brasília. Fazem parte

deste rico material os diários feitos pelo barão de Langsdorff. São 26 cadernos de diferentes

formatos que totalizam 1388 páginas escritas em alemão com ortografia arcaica, com palavras

em inglês, latim, francês e línguas indígenas. O trabalho de transcrição destes diários foram

iniciados em 1936 pelo filólogo V. A. Egerov, continuados nos anos 40 e 60 por Maria

Krutikova e finalizados nos anos 70 por Dimitrij E. Berthels. O material foi publicado em

português em 3 volumes.59 A doença forçou Langsdorff a encerrar a expedição, obrigando-o

a retornar à Europa. Também não pôde organizar o material, que havia sido duramente

coletado. Outra obra de interesse produzida pelo viajante foi a Memória sobre o Brasil para

servir de guia a’quelles que nelle se desejão estabellecer, traduzido para o português por A.

M. de Sam Paio, do Rio de Janeiro, e impresso na oficina de Silva Porto, no ano de 1822. É

uma obra pequena, de apenas 18 páginas, mas foi escrita com o objetivo de tranqüilizar os

estrangeiros sobre a situação política no Brasil, principalmente no que se refere à propriedade

de terras. Além disso comenta sobre o clima agradável, a falta de epidemias e as

possibilidades agrícolas. Em uma de suas viagens entre a Europa e o Brasil, Langsdorff trouxe

59
SILVA, Danuzio Gil Bernardino da (org.) Os Diários de Langsdorff. Tradução: Márcia Lyra Nascimento
Egg e outros. Editores: Bóris N. Komissarov e outros. Campinas: Associação Internacional de Estudos
Langsdorff; Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997. Vol. 1: Rio de Janeiro e Minas Gerais. Vol. 2: São Paulo. Vol. 3:
Mato Grosso e Amazônia.
49

colonos para trabalhar na Fazenda Mandioca. Em março de 1822 atraca no porto do Rio de

Janeiro um navio fretado em Bremen e que, além de pessoas pertencentes a sua família e

amigos, trazia 29 famílias de colonos alemães, o que totalizava 94 pessoas. O projeto era

assentá-los em sua fazenda, o que contou com o apoio do ministro José Bonifácio de Andrada

e Silva.

John Mawe nasceu em Derbyshire (Inglaterra) em 1764 e faleceu em Londres

em 26 de outubro de 1829. A região onde nasceu e cresceu era rica em minérios. Após viajar

por diversas regiões da Grã-Bretanha, realizando estudos e coletando minérios, estabeleceu-se

em Londres, onde montou um negócio dedicado ao comércio de minerais. Além do comércio,

dedicou-se ao estudo e à escrita de trabalhos sobre minerais, entre eles The Mineralogy of

Derbyshire. No ano de 1804 partiu para a América Meridional a fim de explorar a região do

Rio da Prata. O desejo de empreender tal viagem surgiu em decorrência do trabalho realizado

no Gabinete de Madri, onde foi encarregado de examinar as amostras de minérios de seu

acervo. Apesar do objetivo da viagem ser mais comercial do que propriamente científico,

devido à sua formação, bem como ao meio científico pelo qual circulava, podemos enquadrá-

lo no conjunto formado por homens de ciência, pelo interesse voltado para a coleta e pesquisa

de minerais. Sua vinda para o Brasil foi conseqüência dos impasses entre a Inglaterra e a

Espanha, que o impossibilitou de continuar na Região do Prata. Por isso, viajou para o Brasil,

chegando na Ilha de Santa Catarina em setembro de 1807. Graças às cartas de recomendação

do embaixador de Portugal em Londres, foi bem recebido pelo vice-rei do Brasil. Visitou São

Paulo e o Rio de Janeiro, de onde partiu em agosto de 1809, para conhecer as Minas Gerais,

acompanhado de uma escolta militar. Foi o primeiro estrangeiro que conseguiu autorização da

Coroa Portuguesa para percorrer as ricas regiões de minérios do Brasil. A edição portuguesa

foi feita na Impressão Régia, com licença e autorização do rei D. João VI, constando na capa

o brasão de Portugal. Sua gratidão ficou expressa na carta endereçada ao rei de Portugal e que
50

foi publicada no lado direito da primeira página em várias edições do relato, entre as quais a

portuguesa de 1819 e a edição norte-americana de 1816:

Debaixo dos auspícios de Vossa Magestade, fiz duas viagens ao interior do


Brazil, cuja relação se contém nesta obra; e para obedecer às Ordens de
Vossa Magestade, as publíco, na minha partida do Rio de Janeiro. Inimigo
da facção e parcialidade, fiz os maiores esforços para dar huma relação fiel
do que hei visto; e quando descrevo o estado actual da agricultura do paiz,
ouso indicar alguns melhoramentos, que parece podem contribuir para
augmentar as rendas de Vossa Magestade, e multiplicar os recursos de tão
vastos, e ferteis Estados [...] De Vossa Magestade, Mui obrigado servidor
João Mawe.60

Esse mesmo relato é publicado em 1812, em Londres, com o título de Travels

in the interior of Brazil, particulary in the gold and diamond districts of that country ...

including a voyage to the Rio de la Plata, and an historical sketch of the revolution of Buenos

Ayres, no formato in-4º, acompanhado de ilustrações e figuras. Essa obra obtém grande

sucesso. Várias vezes reeditada na Inglaterra, foi traduzida para outras línguas, como

português, alemão, russo, sueco e francês. Também foi reimpressa nos Estados Unidos da

América. Na França foi publicada em 1816, no formato in-8º, também acompanhado de

figuras representando o trabalho nas minas de ouro e diamantes e mapas, sendo um da região

de Tejuco, importante área mineradora. A edição norte-americana, publicada em Boston,

apesar de reproduzir a carta endereçada ao rei D. João VI da edição portuguesa de 1819, não

possui o mesmo conteúdo. Enquanto a primeira contém uma parte referente à passagem por

Santa Catarina, na obra de 1819 não consta nada, sendo priorizada a descrição das Ilhas dos

Açores. Provavelmente foram publicadas outras edições, com modificações, em Portugal. A

tradução utilizada nesta tese é de Solena Benevides Viana sobre a edição londrina de 1822,

publicada no livro Ilha de Santa Catarina: relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII

e XIX.

60
MAWE, João. Viagem ao Interior do Brazil, com huma exacta descripção das Ilhas dos Açores por João
Mawe, inglez, authorizadas pelo Rei Fidelissimo D. João VI, Nosso Senhor. A benefício da Livraria do
Convento de S. Francisco da Cidade: obra promovida pelo R. P. M. Fr. Polidoro de N. S. da Lapa, Leitor
de Theologia e Bibliothecario da mesma. Lisboa: Na Impressão Regia, 1819. p. A2.
51

Adalbert von Chamisso (Louis-Charles-Adelaïde Chamisso de Boncourt)

nasceu em Champagne (França) em 27 de janeiro de 1781 e faleceu em Berlim em 21 de

agosto de 1838. Sua família mudou-se da França no ano de 1792, exilando-se primeiro nos

Países Baixos, e posteriormente, fixando-se em Berlim, onde Louis-Charles, aos quinze anos

adotou o nome germânico Adalbert. Mesmo após o retorno de seus familiares à França,

permaneceu em Berlim, vinculando-se ao exército prussiano. Dedicou-se ao estudo da língua

e da literatura alemã. Juntamente com outros jovens, entre eles Wilhelm Neumann, Karl

Varnhagen von Ense e Louis de La Foye, formou um círculo de amizade e de discussões que,

no ano de 1804, publicou o Almanach des Muses. Receberam o encorajamento de Fichte e de

Zacharias Werner. Chamisso freqüentou a casa de Rahel Levin, onde se encontravam

escritores, filósofos, inclusive os irmãos Humboldt. Tornou-se conhecido como literato e

filósofo, e também como poeta. Publicou em 1814 a obra Histoire merveilleuse de Pierre

Schlémihl, l’homme qui a vendu son ombre, muito bem recebida pela crítica e pelo público

leitor. No Brasil foi publicado com o título A singular história de Peter Schemihl, pela

Ediouro em 1993, e como A história maravilhosa de Peter Schemihl, em 2003, pela editora

Estação Liberdade. Sua paixão pela natureza manifestou-se desde a infância, como muitos

outros viajantes, mas somente passou a dedicar-se a ela após sua saída do exército. Em 1812,

após ter realizado viagens pelas montanhas, consideradas o jardim botânico da Europa,

resolveu dedicar-se ao estudo da botânica. Por isso, inscreveu-se na Universidade. Seu

indicação para participar da expedição ao Pacífico Norte, comandada por Kotzebue e

financiada pelo governo Russo, deveu-se às suas relações e influências. Um amigo facilitou a

escolha de seu nome para integrar o grupo de cientistas que fizeram parte na expedição. Seu

interesse pela ciência foi, em grande parte, influenciado pela leitura dos relatos de viagens

escritos por Cook. Dedicou-se às ciências naturais, principalmente à botânica. Sua função no

“Rurick” era recolher plantas, insetos, sementes e outras amostras que interessassem a ciência.
52

Segundo ele, como estava integrado numa expedição de descoberta levada a cabo pela

marinha russa, seu trabalho era limitado pelo cronograma da expedição, o que dificultava seu

trabalho de observação, devido à brevidade das escalas. Isto também limitou seu trabalho

posterior, o da escritura do relato de viagem. Esse foi publicado numa edição conjunta, no ano

de 1819, no qual estavam relatos de vários dos membros da expedição. Após seu retorno da

viagem, foi nomeado diretor do Jardim Botânico de Berlim (1818). Somente 15 anos após o

fim da expedição, Chamisso retomou suas anotações e escreveu a obra intitulada

originalmente Reise um die Welt 1815-1818. Foi traduzida para o francês com o título Voyage

autour du monde: 1815-1818. Infelizmente, não encontramos nenhuma edição brasileira dessa

obra. O que temos é a tradução de Dolores Simões de Almeida do fragmento que se refere a

Santa Catarina, publicado na coletânea de textos de viajantes que escreveram sobre a Ilha de

Santa Catarina. Além das obras citadas, Chamisso publicou comunicações científicas

especializadas e tratados, entre eles o Traité des plantes les plus nuisibles comme les plus

utiles, sauvages ou cultivées qui poussent en Allemagne du Nord. Em 1832 tornou-se diretor

do Herbário Real e em 1833 da Academia de Ciências de Berlim. Morreu em 21 de agosto de

1838, aos cinqüenta e sete anos.

Auguste de Saint-Hilaire, botânico e viajante naturalista, nasceu em 1779 na

cidade de Orléans, França, membro de uma família que possuía muitos domínios e de uma

considerável fortuna. Seus ancestrais serviram na marinha e seu pai foi preso durante a

Revolução Francesa. Estudou com os beneditinos de Solesmes e posteriormente foi enviado

para a Holanda para estudar comércio a fim de dirigir a refinaria de açúcar da família. Durante

o período revolucionário foi obrigado a viver no estrangeiro, o que permitiu que tivesse

contato com a língua alemã e inglesa. Após seu retorno à França, passou a dedicar-se

totalmente à botânica. Mudou-se para Paris onde travou contato com Laurent de Jussieu e

Desfontaines. Os interesses de Saint-Hilaire estavam voltados para as herborizações, a


53

anatomia e os órgãos reprodutores das plantas, bem como para sua utilização na cura de

doenças. Através de contatos políticos conseguiu ser incluído como membro da comitiva

diplomática do Duque de Luxembourg, embaixador francês na corte do Rio de Janeiro. Partiu

em 1º de abril de 1816 para o Brasil onde permaneceu durante 6 anos. Visitou o Rio de

Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Goiás, São Paulo, Santa Catarina e o Rio Grande do

Sul. Percorreu as bordas do Rio Paraíba e o entorno da cidade do Rio de Janeiro e de Belém.

Também visitou a Província Cisplatina (atual Uruguai) e as antigas missões do Paraguai.

Em dezembro de 1819 foi nomeado correspondente do Instituto da França e

posteriormente tornou-se professor de botânica na Faculdade de Ciências de Paris. Foi eleito

para a Academia Francesa de Ciências, ocupando a cadeira deixada por Jean Baptiste de

Monet Lamarck. Recebeu o título de Cavaleiro da Legião de Honra e da Ordem de Cristo de

Portugal. Era ligado a várias instituições científicas da Europa, como museus de História

Natural, Jardins Botânicos e outras instituições, tanto na Europa como na América.61

Esteve em Santa Catarina durante o ano de 1820, entre os meses de abril e

maio (7 de abril a 6 de junho). Enquanto viajava, Saint-Hilaire fazia anotações em seu diário

de viagem, aproveitando os momentos em que parava para o pernoite. Esses apontamentos

foram trabalhados quando de seu retorno à França, resultando em diversas obras, como a que

iremos analisar, intitulada Viagem a Curitiba e Província de Santa Catarina. Em 1820,

quando de sua viagem, Santa Catarina era uma capitania, mas como Saint-Hilaire escreveu

seu relato posteriormente, utiliza a denominação de província. Escrita provavelmente em

1847, enquanto vivia e trabalhava em Paris, foi publicada pela primeira vez em 1851 sob o

título Voyage dans les provinces de Saint-Paul et de Sainte-Catherine. Integra a obra Voyage

61
Só para termos uma idéia, na folha de rosto de uma obra sua publicada em 1851 em Paris, consta sua biografia
e vínculos com instituições: “membre de l’académie des Sciences de L’institut de France, professeur a la faculté
des sciences de Paris, chevalier de la légion d’honneur, des Ordres du Christ et de la Croix du Sud, des
acadèmies de Berlin, S. Peterbourg, Lisbonne, C. L. C. de Curieux de la Nature, de la Société Linnéenne de
Londres, de L’institut historique et geographique Brésilien, de la société d’Histoire Naturelle de Boston, de celle
de Genève, Botanique d’Edimbourg, Medicale de Rio de Janeiro, philomatique de Paris, des sciences d’Orléans,
etc.”
54

dans l’interieur du Brèsil. Os outros volumes, publicados anteriormente, foram intitulados de

Voyage dans la Province de Rio de Janeiro et Minas-Geraës, 2 volumes in-8º, Paris, 1830;

Voyage dans le district des diamants et sur le littoral du Brèsil, 2 volumes in-8º, Paris, 1833;

Voyage aux sources de San-Francisco et dans la province de Goyaz, 2 volumes, in-8º, Paris,

1847-48. Além desses, há um volume sobre o Rio Grande do Sul, a Província Cisplatina e as

antigas Missões do Paraguai. No total, Saint-Hilaire publicou 9 volumes sobre a viagem

realizada pelo Brasil, que foram reeditadas e traduzidas para outras línguas. Em 1928, durante

a inauguração do busto de Saint-Hilaire no Museu Nacional, Tobias Monteiro, em seu

discurso, lamentava o fato desses textos ainda não estarem traduzidos para o português.62 Esse

problema foi sanado com sua publicação pela Editora Nacional, na década de 30.

Posteriormente, a partir de 1974, as Editoras Itatiaia, de Belo Horizonte, e Edusp, de São

Paulo, associaram-se para relançar os relatos de viagens de Saint-Hilaire, na coleção

“Reconquista do Brasil”, organizada por Mário Guimarães Ferri.

Ao todo, Saint-Hilaire escreveu 14 obras e 7 dissertações, além de inúmeros

artigos em revistas e anais, tais como: Memóries du Muséum, Annales des Sciences

Naturelles, Comptes rendus de l’Institut, Bulletins de la Société Philomatique e Annales de la

Société d’Orléans. No Brasil é mais conhecido devido aos seus inúmeros relatos de viagens, a

maioria já traduzidos e publicados, alguns com mais de uma edição. No entanto, além de

viajante, Saint-Hilaire desenvolveu importantes trabalhos de pesquisa na área da botânica,

entre os quais podemos citar Flora Brasiliae Meridionalis. Paris: Impr. A. Belin, 1825-1833,

3v.; Histoire des plantes plus remarquabels du Brèsil et du Paraguay. Paris: Impr. A. Belin,

1814-1826; Mémoire sur le système d’agriculture adopté par les Brésiliens, et les résultats

qu’il a eus dans la province de Minas Geraes Paris: Impr. A. Pilham de la Forest, 1827. A

lista é extensa, uma vez que Saint-Hilaire produziu muito, apesar dos problemas de saúde que

62
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem a Província de Santa Catharina (1820). São Paulo: Ed. Nacional,
1936. Prefácio.
55

o obrigavam a passar os invernos na cidade de Montpellier, localizada as margens do Mar

Mediterrâneo. Morreu em 30 de setembro de 1853, aos 73 anos de idade, de um ataque

fulminante de apoplexia. Seu herbário brasileiro foi legado ao Museu de História Natural de

Paris, seus desenhos originais da Flora do Brasil foram doados à cidade de Montpellier,

juntamente com seus quadros e objetos de arte.

René Primevère Lesson nasceu em 20 de março de 1794, filho de um

empregado de escritório da Marinha, em Rochefort. Estudou no colégio da cidade e, ainda

jovem, ingressou no corpo de cirurgiões da Marinha. Embarcou na fragata Saale. Passou o

ano de 1812 a bordo do Regulus. Em 1816 assumiu o posto de oficial da saúde e pouco após o

de farmacêutico da marinha, sendo posteriormente encarregado do Jardim Botânico de

Rochefort. Participou da expedição na corveta La Coquille em torno do mundo, comandada

pelo capitão Duperrey na condição de naturalista. Durante os anos de 1822 a 1825, tempo de

duração da viagem, foi encarregado das observações sobre todos os ramos da História

Natural. Em 1830 publicou um relato sobre essa expedição, com o título de Journal d’un

voyage pittoresque autour du monde, executé par la corvette la Coquille. Juntamente com M.

Garnot, o médico da expedição, redigiu a parte zoológica no relato oficial da mesma viagem,

sob o título de Voyage autour du Monde... publicada em 1829, 2 volumes em in-4º, Paris:

Arthur Bertrand, Librarie-Éditeur. Sob o mesmo título foi publicado em 1838 pela P. Pourrat

Frères Éditeurs. O trecho que estamos utilizando foi traduzido para o português por Gilberto

Gerlach e publicado na coletânea Ilha de Santa Catarina: relatos de viajantes estrangeiros

nos séculos XVIII e XIX.

Naturalista e antiquário, Lesson teve uma produtiva carreira como estudioso da

zoologia, com vários trabalhos publicados. Entre eles podemos citar: Manuel de mammalogia

publicado em 1827 na Encyclopédie des Manuels de Roret. Foi seguido de um Manuel

d’ornithologie, 2 vol. in-18. Sobre o mesmo tema redigiu um tratado mais completo em in-8º
56

com atlas, publicado no ano de 1830-1831. Publicou também Histoire naturelle des oiseaux-

mouches, Paris, 1829-1830, no formato in-8º; Centurie zoologique, ou choix d’animaux rares,

com 100 pranchas originais desenhadas por Prêtre, 1830-1831; Histoire naturelle des

mammifères et des oiseaux découverts depuis la mort de Buffon, Paris: Livrarie Roret; Manuel

d’ornithologie domestique, ou guide des amateurs des oiseaux de volière, publicado na

Encyclopédie des Manuels de Roret. Foi também o responsável pelo artigo “Taxidermie” no

Dictionnaire des Sciences Naturelles. Apesar de dedicar-se à zoologia, também escreveu

sobre botânica e sobre medicina. Sobre esses últimos publicou Voyage médical autour du

monde exécuté par la corvette la Coquille. Paris, 1829; Manuel d’histoire naturelle médicale,

em 1833, 2 vol. em in-18. Em 1835 foi nomeado “premier pharmacien en chef de la marine”.

Em 1847 recebeu o título de oficial da Légion d’honneur. Morreu dois anos depois, em 1849,

na cidade onde nasceu e viveu, Rochefort. Seu irmão, Pierre-Adolphe, redigiu a parte de

botânica do Voyage de l’Astrolabe e publicou um Voyage aux îles Mangareva a partir das

anotações feitas por René Primèvere.

Além desses viajantes, acima biografados, analisaremos também o trabalho

realizado pelo artista viajante Louis Choris, que acompanhou a expedição de Kotzebue ao

redor do mundo e uma prancha produzida por Jean-Baptiste Debret, onde retrata uma vista de

Nossa Senhora do Desterro. Esse último não pode ser considerado como viajante vinculado ao

estudo científico. No entanto, sua obra será analisada a fim de perceber as semelhanças e as

diferenças em relação às pinturas de Louis Choris e também para analisarmos como o sistema

de estudo e observação da História Natural influenciava o conhecimento produzido por

viajantes do século XIX. As biografias desses artistas serão trabalhadas no capítulo 9.

Todos os viajantes, exceto Debret, têm em comum o fato de empreenderem as

viagens com o objetivo de fazerem coleta de materiais para serem enviados para instituições

científicas sediadas na Europa, principalmente na França, Rússia, Alemanha e Inglaterra. Os


57

viajantes dos séculos XVIII e XIX possuem algumas singularidades, uma vez que estavam

imbuídos de um espírito diferenciado dos cronistas do período do descobrimento. Era um

espírito mais investigativo e científico, uma vez que eram herdeiros de uma tradição

rousseauniana de viajantes da ilustração. Segundo Rousseau, viajar por viajar “é ser um

vagabundo. Viajar para instruir-se é todavia um objetivo demasiado vago; a instrução que não

tem um fim determinado não é nada.”63

Míriam Moreira Leite comenta que os viajantes eram também colecionadores e

classificadores que organizavam tudo o que era coletado em herbários, caixas, gabinetes e

elaboravam catálogos. Para isso, utilizavam-se do sistema desenvolvido por Linné (1707-

1778). No entanto, o que mais distingue o viajante naturalista de outros viajantes é que seu

“esquema de percepção do outro, das coisas e da natureza provém da experiência social do

viajante no seu grupo de origem, acrescida por uma tradição iluminista, trabalhada e

defendida pela ciência do século XVIII.”64 Segundo a autora, naturalista é uma denominação

utilizada para definir um indivíduo que transitava por várias áreas do conhecimento científico,

as chamadas ciências naturais. Spix e Martius, apesar de dedicarem-se a Zoologia e a

Botânica respectivamente, são considerados como naturalistas, já que sua formação aprofunda

temas da História Natural: também dedicam-se ao estudo da Geografia, da Mineralogia, da

Meteorologia, da Paleontologia e da Astronomia.65 Segundo Marie-Noëlle Bourguet, a

denominação viajante naturalista somente era utilizada para definir os correspondentes do

Jardin du Roi, mais tarde, Muséum National d’Histoire Naturelle, localizado em Paris.66 A

partir das considerações da estudiosa, Saint-Hilaire poderia ser chamado de viajante

naturalista, enquanto Chamisso não se enquadraria nesta definição. Devido a essas

controvérsias, optamos por utilizar outro termo, o de cientista viajante. Antes de aventurar-se

63
ROUSSEAU, Jean-Jacques apud. PIERINI, Margarita. Op. cit. p. 166.
64
MOREIRA LEITE, Miriam Lifchitz. Op. cit. p. 163.
65
LISBOA, Karen Macknow. Op. cit. p. 33.
66
BOURGUET, Marie-Noëlle. L’explorateur. In: VOVELLE, Michel. L’Homme des Lumiéres. Paris: Ed. Du
Seuil, 1996. p. 286.
58

numa viagem, esses homens eram formados como cientistas, se consideravam e eram

considerados homens da ciência, com uma formação que os diferenciava da maioria da

população. Utilizamos aqui a definição mais simples de cientista, como um indivíduo que se

especializa em alguma ciência, no caso em questão, as ciências naturais. Aliás, foi o fato de

serem detentores de conhecimentos científicos que os habilitou a empreenderem essas

viagens, sendo escolhidos pelos órgãos que as financiaram .

Além isso, outro aspecto que deve ser considerado é como são estabelecidos os

vínculos entre os viajantes e os habitantes das regiões com quem eles estão tendo contato e

que posteriormente serão descritos nos relatos. Ilka Boaventura Leite salienta que esses

vínculos irão influenciar na impressão tomada pelo viajante e que eles se caracterizavam pela

transitoriedade e pela indeterminação. O viajante mantinha com os indivíduos do grupo

visitado uma relação que se baseava na transitoriedade. A convivência entre eles já estava

estabelecida: seria por um determinado número de dias, talvez meses, mas a priori já se sabia

que após algum tempo o viajante partiria, rompendo desta forma os vínculos com os que

ficariam. Essa característica, além do fato do viajante ser exterior ao grupo, possibilitava-lhe,

muitas vezes, ter acesso a informações que não necessariamente faziam parte de seu objeto de

estudo.67

Miriam L. Moreira Leite também salienta este aspecto ao discutir a importância

dos relatos de viajantes estrangeiros como fonte histórica. Para ela, o fato de ser estrangeiro

ao grupo visitado, não somente por ter nascido em outro país, mas principalmente por não

compartilhar dos mesmos sistemas de orientação, como a linguagem e a etiqueta, além de não

estarem presos a hábitos e relações afetivas, permitiam-lhes observar e descrever o grupo de

forma diferenciada.68 As bases sobre as quais eram estabelecidas as relações entre o viajante e

os habitantes locais em alguns aspectos são consideradas positivas, enquanto que em outros

67
LEITE, Ilka Boaventura. Op. cit. pp. 96-97.
68
LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Op. cit. p. 162.
59

são vistas como negativas para a análise da sociedade. O fato do viajante “ser de fora” lhe

permitia perceber aspectos muitas vezes desconsiderados pelos habitantes locais, uma vez que

para esses eram corriqueiros. Por outro lado, não ser detentor dos códigos e normas do grupo

visitado poderia induzir a conclusões equivocadas por parte dos “estrangeiros”. Outra questão

salientada pela antropóloga Ilka Boaventura Leite é a indeterminação. O fato do viajante não

pertencer à comunidade, ser “estrangeiro”, possibilitava-lhe ter acesso a diferentes grupos

sociais, o que lhe permitia “ser aceito - ou não - a lugares onde, geralmente, a classe senhorial

local evitava penetrar no dia-a-dia.”69

O viajante estrangeiro possuía liberdade maior de circulação, mantendo contato

com indivíduos de diferentes grupos sociais, o que lhe possibilitava o acesso a informações e

testemunhos tanto de membros da elite (proprietários e funcionários administrativos e

militares) como da população pobre e excluída, livre ou escrava, fossem eles descendentes de

europeus ou de africanos. Mas, por outro lado, também enfrentavam dificuldades. Estas

poderiam estar relacionadas à língua da região visitada, proibições de circulação, ou mesmo à

desconfiança gerada por sua atividade ou devido às questões políticas, o que suscitava

resistências por parte tanto da população como das autoridades locais. Um caso que ilustra os

cuidados tomados pelas autoridades locais foi a vistoria realizada pelo Chefe de Justiça

quando da chegada da expedição de Bougainville à baía ao norte da Ilha de Santa Catarina.

Foram interrogados sobre os motivos da viagem, bem como informações sobre o navio.

Segundo o naturalista, esses cuidados eram tomados pelo medo de espionagem. Outro caso foi

o relatado por Chamisso. Entre a população local existia a crença de que os russos eram

portadores de mau agouro, pois, “chovia constantemente, e, entre a população relacionava-se

a chegada dos russos com o mau tempo.”70

69
LEITE, Ilka Boaventura. Op. cit. p. 97.
CHAMISSO, Adalbert von. In: Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos
70

XVIII e XIX. Op. cit. p. 234.


60

Além desses dois aspectos - transitoriedade e indeterminação - salientados por

Ilka Boaventura Leite, e que dizem respeito às diferentes categorias de viajantes, devemos

ressaltar que no caso do grupo de viajantes selecionados para o desenvolvimento de nossa

análise, que engloba os viajantes que partiram da Europa a fim de realizar uma viagem

científica, vinculada ao estudo da História Natural, outro aspecto deve ser levado em

consideração: sua inserção numa sociedade fundamentada na ciência e no conhecimento.

Os viajantes, além de estrangeiros quanto ao local de nascimento, eram

também estrangeiros devido à formação intelectual e social. Esses indivíduos vinham de uma

mesma região (a Europa), pertenciam a uma elite intelectual e, como viajantes que tinham a

função de fazer coleta de material para o desenvolvimento científico, eram detentores de uma

formação que os habilitava a ver, analisar e utilizar determinados aparatos explicativos.

Apesar de todos esses fatores que aparentemente criam uma unidade entre esses indivíduos,

devemos salientar que nesse grupo estão envolvidos diferentes e distintos atores sociais. Para

desenvolvermos nossa análise, apoiamo-nos no estudo do antropólogo João Pacheco Oliveira

Filho sobre o grupo de viajantes que desenvolveu coletas e pesquisas na região do Alto

Solimões durante o período que compreende os séculos XVII e XIX. Em seu texto, intitulado

Elementos para uma Sociologia dos Viajantes, o autor vai questionar a unidade dos viajantes,

uma vez que diferentes atores sociais fazem parte deste grupo, com funções intelectuais

diferenciadas, bem como possuem origens e circulação por esferas sociais distintas. Outro

aspecto que vai diferenciá-los é sua vinculação com a produção científica, o que significa

possibilidades diferentes de financiamento e de divulgação dos resultados de suas pesquisas.71

Uma dessas hierarquias era entre o que poderemos chamar de coletores e

cientistas. Os primeiros desenvolviam uma atividade prática, o trabalho de coleta e de

identificação das diferentes espécies naturais, ou seja, um trabalho essencialmente técnico.

Enquanto isso os cientistas estavam vinculados ao ensino nas universidades, ao trabalho de


71
OLIVEIRA PINTO, João Pacheco de. Op. cit. p. 92.
61

gabinete e a redação de trabalhos especializados, que tinham como finalidade divulgar o

conhecimento, circulando pelas diferentes instituições científicas. 72 Existia uma diferenciação

entre os estudiosos, dividindo-os entre os coletores, viajantes que tinham a função de recolher

e descobrir novas espécies, remetendo-as para os centros de estudos, e os cientistas que

recebiam este material, enviado de todos os cantos do mundo, o que possibilitaria o

desenvolvimento de suas pesquisas, sistematizando e refletindo sobre este material. A

existência dessa hierarquia não significa que não existiram viajantes que também eram

cientistas e que desenvolveram suas próprias análises sobre o material coletado. Só queremos

salientar que os cientistas, por estarem vinculados a instituições de pesquisa que financiavam

vários viajantes coletores, encontravam-se em uma posição privilegiada em relação aos outros

estudiosos.

Podemos tomar o exemplo de Auguste de Saint-Hilaire. O naturalista fazia

parte da comitiva do embaixador francês no Brasil, duque de Luxemburgo, e sua viagem foi

financiada pelo governo de seu país, com a finalidade de fazer pesquisas e enviar coleções ao

Museu de História Natural de Paris. Percorreu, entre junho de 1816 a junho de 1822, as

Capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Província

Cisplatina (atual Uruguai), bem como as Missões Jesuíticas. Coletou 16.000 insetos, 2.005

aves, 129 mamíferos, e formou um herbário de 30.000 plantas contendo 7.000 espécies, mais

amostras de minerais e outros animais, como répteis e moluscos. No decorrer do período que

permaneceu no país, Saint-Hilaire fazia remessas freqüentes desse material para o Museu de

História Natural de Paris. O material botânico não foi submetido a um inventário taxonômico

completo e no que se refere ao material zoológico, a falta de informações precisas referentes

ao local e data da coleta impossibilitou que especialistas pudessem utilizá-los.73 Como sua

viagem foi financiada pelo governo, e todo o material coletado pertencia ao Museu, outros

72
Ibidem. p. 118.
73
BUARQUE, Sérgio Buarque de (org.) História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II: O Brasil
Monárquico. v 3, 5. ed. São Paulo: Difel, 1985. p. 451.
62

estudiosos e cientistas tinham acesso a ele. Os anos após o retorno de sua viagem ao Brasil

foram dedicados à elaboração de seus relatos e à análise do material coletado.

Para muitos naturalistas novatos, fazer uma viagem de coleta de material

poderia significar um impulso à sua carreira no mundo científico. No entanto, muitos não

chegavam a colher os louros da fama. Mais do que descobrir espécies era necessário

sistematizar os novos conhecimentos a fim de apresentá-los à comunidade científica européia,

e isto poderia levar anos de estudos e pesquisas. Um exemplo disso foi a trajetória de Spix e

Martius após o retorno a Europa. Martius teve tempo para continuar os estudos do material

coletado na viagem e usufruir da celebridade que suas descobertas científicas lhe

possibilitaram, ocupando cargos em importantes instituições científicas e educacionais. Spix

morreu logo após seu retorno, de uma doença contraída durante a viagem, o que não permitiu

que ele concluísse seus estudos e “silenciou sua importância no contexto da viagem.”74

Outra diferenciação entre os viajantes refere-se à organização das viagens e às

formas de financiamento. Um primeiro tipo são os viajantes que integravam comissões

científicas e faziam parte de expedições. Elas eram financiadas por instituições vinculadas a

algum país, recebendo subvenção estatal, como por exemplo a expedição comandada por Otto

von Kotzebue, financiada pela Rússia, que tinha como objetivo principal descobrir uma

passagem entre o Pacífico e o Atlântico na região próxima ao estreito de Bering. Essa

expedição tinha como integrantes geógrafos, naturalistas e pintores, como por exemplo

Chamisso e Choris. O segundo grupo é formado por viajantes que realizam expedições

individuais, alguns com financiamento de instituições, como Saint-Hilaire, outros por conta

própria. A viagem poderia ser financiada pela fortuna pessoal ou então com recursos

adiantados que seriam pagos posteriormente, com a remessa de coleções e com a publicação

dos relatos das viagens. Diferentes esquemas de financiamento significavam interesses

74
LISBOA, Karen Macknow. A Nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na Viagem pelo
Brasil (1817-1820). São Paulo: Ed. Hucitec/FAPESP, 1997. p. 51.
63

diferenciados que influenciavam na forma de escrever os relatos. Viajantes que integravam

expedições científicas não possuíam a necessidade premente de publicar os relatos de viagens,

muito menos que estes fossem escritos de forma a atrair um público não científico como os

viajantes que financiavam suas viagens através de empréstimos e subscrições. Oliveira

Pacheco não considera que a etnografia produzida pelos viajantes possa ser vista como

constituindo uma unidade, uma vez que “os diferentes tipos de viajantes obedecem a pressões

econômico-sociais bem distintas e servem-se de esquemas mentais muito diferentes.”75 Mas, a

despeito das diferenças no que se refere às formas de organização e financiamento das

viagens, os cientistas viajantes possuem pontos de unidade, tais como o fato de serem

cientistas que possuem uma qualificação e passaram por um processo de preparação. Além

disso, são indivíduos europeus, letrados, provenientes de sociedades urbanizadas que

produzem discursos sobre mundos não europeus, não letrados e rurais.76

Outro aspecto que podemos utilizar para definir os viajantes é em relação aos

objetivos das viagens. Além do interesse pela coleta de exemplares da flora e da fauna, existia

o interesse pela busca de conhecimentos universais, como o estudo da Geografia, da História,

dos costumes dos povos. Viajava-se para explorar o mundo físico, mas também o mundo

social e o mundo moral. Esse interesse amplo do olhar do viajante é sintetizado na fala de

Humboldt:

Meu relato de viagem [...] não conterá senão o que possa interessar a todo
homem culto: as observações físicas e morais, as condições gerais, as
características dos povos indígenas, as línguas, os costumes, o comércio das
colônias e as cidades, o aspecto do país, a agricultura, a altura das
montanhas, a meteorologia.77

Mas, entre todos esses interesses, o olhar dos viajantes naturalistas estava

voltado principalmente para a natureza americana, tema este marcado por inúmeras

75
OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. Op. cit. p. 134.
76
PRATT, Mary Louise. Op. cit. p. 72.
77
HUMBOLDT, Alexander von apud. PIERINI, Margarita. Op. cit. p. 166.
64

discussões. Os relatos de viagens não podem ser entendidos como uma peça discursiva

independente, mas como uma espécie de encruzilhada onde se encontram uma multiplicidade

de discursos. O olhar do viajante é determinado por uma infinidade de referências, de teorias,

sobre as quais ele formula seu próprio discurso. Esses viajantes partem da Europa com uma

formação e com leituras de outros estudiosos que os antecederam. Entre essas leituras, que

eram do conhecimento dos cientistas que trabalhavam com a História Natural, estão os

estudos desenvolvidos por Buffon, Linné, Humboldt, etc. Esses estudiosos travaram acirrados

debates sobre as características da América e sobre sua natureza, que influenciaram a forma e

o conteúdo das descrições produzidas pelos viajantes que estiveram no Brasil.


65

3. O relato: diferentes olhares, diferentes perspectivas

Entre os resultados das viagens encontram-se os textos que foram produzidos

pelos viajantes: cartas, relatórios científicos, diários e relatos de viagens. Além disso, caso o

viajante tivesse aptidão para o desenho, ou fosse um artista viajante, registraria sua passagem

pelas terras visitadas em pranchas ou em seu caderno de campo, podendo ser coloridas ou em

preto e branco.78

Nesta parte do texto iremos discutir algumas questões relativas aos relatos

produzidos pelos viajantes que estiveram na Capitania de Santa Catarina. Qual a importância

que os viajantes, ou seja, os autores dos relatos, davam à produção desses registros da

viagem? O que era relatado nestas obras? Esses relatos possuíam características comuns de

forma a definir um padrão ou cada viajante tinha uma forma de escrever diferenciada e única?

Já vimos que, conforme a época, as motivações dos indivíduos que empreendiam as viagens

eram distintas. A maneira de relatar as experiências vividas também eram distintas? Essas e

outras questões serão discutidas no decorrer do trabalho. Não temos a pretensão de respondê-

las, mas sim de iniciar algumas reflexões que nos permitam melhor trabalhar com esse tipo de

fonte.

Um primeiro ponto é a relação de antecedência e de tutela entre o relato e a

viagem. Como o próprio nome estabelece, o relato de viagem torna-se possível a partir da

realização da própria viagem. Segundo Roland Le Huenen, “ver, fazer ver e fazer saber será

78
Essas pranchas poderiam ser desenhadas com lápis, ou então, o que é mais comum, pintadas utilizando
técnicas diversas, entre elas a da aquarela. A alusão colorida e preto e branco comumente remetem à fotografia.
Após a difusão da fotografia enquanto técnica de reprodução, esta também passou a ser utilizada pelos viajantes,
mas isto não significa que o desenho tenha sido descartado como instrumento de trabalho.
66

desde o início o programa do viajante.”79 Nem todos os relatos de viagem foram escritos ao

mesmo tempo em que a viagem estava sendo realizada. Muitos foram escritos posteriormente,

utilizando como referência as anotações feitas durante a viagem e também, em alguns casos,

pesquisando em relatos elaborados por outros viajantes que estiveram na mesma região. Não

podemos, no entanto, deixar de lembrar que foram publicados inúmeras relatos de viagens

imaginárias, onde o ato de viajar faz parte do esforço de evasão e de utopia. Num esforço de

fugir da realidade, vista como alienação, inferno e sofrimento, autores de ficção, poetas e

místicos escreveram obras nas quais a viagem é o tema principal e o texto está estruturado em

forma de relato. Nesses relatos de viagens imaginárias, a viagem não antecede a escrita do

relato. Entre as várias obras existentes, podemos citar as Viagens de Gulliver, de J. Swift,

escrita em 1722.80

O que caracteriza o relato de viagem em relação a outros tipos de obras

literárias? Yasmine Marcil confessa sua dificuldade de definir o que é um relato de viagem.

Segundo ela, no século XVIII esse texto é um tipo de escritura que contempla ou então circula

entre a memória, a história, a descrição de aventuras, as informações geográficas.81 Roland Le

Huenen salienta que “o relato de viagem apresenta portanto esta característica de constituir

um gênero sem lei.”82 Além disso, sua apresentação também pode ser diversa: diário de

viagem, cartas, autobiografias e ensaio antropológico. Mas são esses mesmos autores que

definem alguns aspectos comuns. Entre eles salienta-se que o relato tem uma função didática,

79
LE HUENEN, Roland. Qu’est-ce qu’un récit de voyage? In: LITTÉRALES. Nº 7: Les modèles du récit de
voyage. Centre de Recherches du Département de Français de Paris X - Nanterre. 1990. p. 16.
80
Fernando Cristovão salienta que “tão natural é a ligação do maravilhoso com a viagem que lhe dá acesso, que
também a viagem real dificilmente escapa a ser descrita em termos de ficção. Mas respeitando uma diferença
fundamental: na narrativa da viagem real, a estrutura assenta na verdade ou na verossimilhança, sendo os
elementos imaginários meros ornatos; na narrativa de viagem imaginária, é ao relato que cabe o papel de
ornamento.” CRISTOVÃO, Fernando. Para uma teoria da Literatura de Viagens. In: CRISTOVÃO, Fernando
(org.). Condicionantes culturais da Literatura de Viagens: estudos e bibliografias. Lisboa: Edições Cosmos,
1999. p. 51.
81
MARCIL, Yasmine. Recits de voyage et presse periodique au XVIII siècle de l’extrait a la critique. Paris:
École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2000. Thése de doctorat. p. 75
82
LE HUENEN, Roland. Op. cit. p. 14.
67

uma vez que ele tem a preocupação em ser um veículo de informações sobre outras regiões.83

Outros critérios comuns aos relatos de viagens produzidos nos séculos XVIII e XIX referem-

se à sua escritura. Os relatos são marcados pela alternância entre narração e descrição, a

natureza das descrições, a presença do narrador no texto e a organização do relato segundo

um itinerário.84

Antoine Joseph Pernetty inicia seu relato com as seguintes palavras: “Foi a 23

(novembro 1763) que nos apercebemos pela primeira vez da terra do Brasil, cerca de 15

léguas de distância.”85 Aspectos semelhantes podem ser percebidos na forma como Adalbert

von Chamisso inicia o seu: “A 9 de dezembro (1815) observamos faixas de água esverdeadas,

menos largas do que outras de tonalidade cinza-amarelada. Exalam um cheiro podre muito

penetrante.”86 O início da parte referente a Santa Catarina nos dois relatos se dá pelo dia em

que a região é avistada. Como muitos outros autores de relatos de viagem, a forma escolhida

para iniciar foi a descrição da primeira impressão sobre a terra na qual eles estavam chegando.

Os dois autores utilizam o relato linear, descrevendo os acontecimentos na seqüência temporal

e espacial em que a viagem se desenvolveu, muitas vezes com a citação do dia em que os

acontecimentos se passaram, o que permite ao leitor acompanhar o desenrolar da viagem.

Mas, em outros aspectos, eles se diferenciam. Pernetty inicia seu relato

descrevendo a baía, os fortes e outros detalhes técnicos úteis à navegação. A primeira edição

de seu relato foi publicada em Berlim no ano de 1769, seis anos após ter passado pela Ilha de

Santa Catarina. Ele produziu um relato de viagem voltado para o estudo da História Natural.

Do total de páginas que escreveu sobre sua breve passagem pelo Sul do Brasil, ¾ foram

dedicadas a descrições de plantas e animais e somente ¼ descreviam os dias passados na Ilha

83
Ibidem. p. 19.
84
MARCIL, Yasmine. Op. cit. p. 71
85
PERNETTY, Antoine Joseph. In: Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos
XVIII e XIX. Op. cit. p. 78.
86
CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 232.
68

de Santa Catarina.87 No entanto, essa divisão não é estanque. O inventário das plantas e

animais encontrados, suas características físicas, sua utilidade prática são intercalados com

histórias do cotidiano das populações locais. Para fazermos uma breve comparação, na obra

de Chamisso, não se encontra essa divisão. Comentários pessoais sobre a região, sua

população e seus costumes misturam-se com informações de História Natural. Uma

possibilidade de explicação para as diferenças na forma de redigir possivelmente se deve ao

fato desses autores terem viajado em dois períodos distintos. Pernetty viajou durante os anos

de 1763 e 1764, enquanto Chamisso participou de uma expedição de circunavegação realizada

durante os anos de 1815-1818. Mais de meio século separam as duas viagens, seus autores e

seus respectivos relatos. Meio século de muitas mudanças na Europa e no desenvolvimento da

História Natural.

Gostaríamos de acrescentar a primeira impressão de outro viajante, Langsdorff,

que em 1803 estava realizando sua primeira viagem à América. Segundo ele, “o panorama da

paisagem à nossa frente, coberta de flores multicolores, prometia-nos a todo instante o maior

prazer durante a nossa estada naquele lugar e o mais confortável bem-estar.”88 A beleza, a

exuberância da paisagem, nova para ele, foi o que mais lhe impressionou. A natureza, além de

campo de estudo, é fonte de prazer e deleite. Por causa da fiscalização alfandegária que

enfrentaria no porto do Rio de Janeiro, os gastos e a perda de tempo, o capitão do navio em

que viajava Langsdorff preferiu deslocar-se diretamente para a Ilha de Santa Catarina,

evitando assim o principal porto da Colônia Portuguesa na América.89

Alguns viajantes deixaram registrados aspectos do trabalho científico que

realizavam durante o período da viagem. Saint-Hilaire comenta que, ao final do dia, quando

87
Na edição que estamos utilizando como base para nosso estudo, 20 páginas foram dedicadas a História Natural
e 6 páginas para a descrição dos dias passados na Ilha de Santa Catarina. Ver: PERNETTY, Antoine Joseph. Op.
cit. pp. 80-108.
88
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 161. Para refletir sobre as mudanças na noção de conforto
durante os séculos XVIII e XIX, ver: SENNETT, Richard. Carne e Pedra: o corpo e a cidade na Civilização
Ocidental. Tradução: Marcos Aarão Reis. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003. pp. 273-277.
89
BECHER, Hans. Op. cit. p. 8.
69

paravam para dormir e após um dia de coleta, dedicava-se ao registro em seu diário: “minha

cama também foi armada dentro da carroça, sobre as canastras; foi também nela que o

prestimoso Laruotte guardou as plantas e que eu escrevi meu diário.”90 Pernetty, por sua vez,

registra o trabalho que teve para desenhar uma “mosca luminosa”. Enquanto estava na Ilha de

Santa Catarina ele havia coletado alguns exemplares do inseto, mas como os guardou, ainda

vivos, num cartucho de papel para desenhá-los no dia seguinte, os insetos conseguiram fugir

após furar o papel. Na região do Rio da Prata também foram surpreendidos pelos mesmos

insetos. Desta vez, Pernetty prendeu algumas das “moscas luminosas [...] em uma taça de

vidro coberta com uma outra [...] na manhã do dia seguinte tirei uma das taças e piquei-a com

um alfinete para fixá-la na madeira da mesa e fazer um desenho.”91 Como podemos deduzir a

partir das informações registradas nos relatos produzidos pelos viajantes, eles tinham a

preocupação de, além de coletar espécies vegetais e animais, fazer anotações sobre as

mesmas, fossem estas escritas ou desenhadas. Esse aspecto era de extrema importância para o

estudo científico, como salienta o relatório feito sobre a viagem de Saint-Hilaire e assinado

por Geoffroy Saint-Hilaire, Desfontaines, Latreille, Brongniart, De Jussieu e o Barão Cuvier.

No relatório, lido numa sessão da Académie Royale de Sciences, Institut de France, consta

que, além da grande quantidade de exemplares coletados, o viajante elaborou um

diário exato de sua viagem, anotou todas as informações que ele pode
adquirir sobre a estatística dos países visitados, sobre os costumes dos
habitantes, suas línguas, seu comércio, seus hábitos, etc. Viajando mais
especialmente para a pesquisa dos vegetais, ele fez a descrição das espécies
recolhidas, sobretudo daquelas que os brasileiros fazem uso para a medicina
e as artes. 92

Como podemos perceber pela citação, a produção escrita de um diário de

viagem era valorizada, uma vez que possibilitaria a outros estudiosos obter informações

complementares que contribuiriam para o estudo científico do que havia sido coletado. Um
90
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 206.
91
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 21.
92
Rapport sur le voyage de M. Auguste de Saint-Hilaire dans le Brésil et les missions du Paraguay.
Elaborado e assinado por Geoffroy Saint-Hilaire, Desfontaines, Latreille, Brongniart, De Jussieu e o Barão
Cuvier. Paris, Imprimerie de J. Smith, 1823. p. 07.
70

exemplo de como o material coletado, juntamente com as anotações feitas durante a viagem,

renderiam vários anos de estudos, não somente do cientista viajante, mas também de colegas e

discípulos, é o caso de Spix e Martius. Logo após o retorno a Munique em dezembro de 1820,

os cientistas bávaros dedicam-se à escrita do relato de viagem ao mesmo tempo em que

trabalham em suas obras botânicas e zoológicas. Com a ajuda de seu assistente, Spix

conseguiu descrever cerca de 550 espécies desconhecidas da fauna do Brasil até 1826, ano em

que veio a falecer. A edição de seu trabalho, bem como de seus apontamentos, ficaram sob a

responsabilidade de Martius e do professor de zoologia da Universidade de Munique, que

assumiu a cadeira anteriormente ocupada pelo estudioso na Academia de Ciências. Martius

vem a falecer no ano de 1868. Após 48 anos dedicados ao estudo do material trazido do

Brasil, somente um terço do trabalho havia sido concluído. Foram necessários 66 anos, cerca

de 60 botânicos de vários países para descrever as mais de 22.000 espécies de plantas

coletadas durante os 4 anos em que permaneceram no Brasil. 93

No que se refere à forma de organização do texto, Pernetty e Chamisso o

estruturam a partir do tempo cronológico, como muitos outros viajantes. Nesse ponto, os dois

relatos se assemelham, enquanto que em outros eles se diferenciam. Um dos aspectos é o que,

na ausência de um termo melhor, poderíamos chamar de ‘subjetividade do viajante’. Com

esse termo queremos salientar a presença do sujeito. O viajante, na redação de seu texto, se

coloca como um indivíduo que não só vivenciou a viagem, mas principalmente foi afetado

pela experiência do contato com o novo. Essa característica torna-se cada vez mais presente

nos relatos a partir do final do século XVIII. Na citação anterior, que inicia a descrição de

Chamisso sobre a Ilha de Santa Catarina, podemos perceber melhor essa questão quando o

autor diz que as águas da região litorânea “exalavam um cheiro podre muito penetrante”. O

autor utiliza-se de um sentido, neste caso, o olfato, a fim de acrescentar informações à busca

de conhecimentos sobre a região. Na seqüência do texto, o mesmo autor explicita melhor


93
LISBOA, Karen Macknow. Op. cit. Ver Capítulo II.
71

como critérios subjetivos interferem na redação de seu relato de viagem. Apesar de ser um

membro de uma viagem científica, os fatores que definem o que deve ser escrito não passam

necessariamente por critérios vinculados à ciência. Para ele, “somente aquilo que despertou

dentro do meu ser viva impressão é que transmito aos amigos, ainda que me faltem

palavras.”94

A presença do autor no texto pode ser constatada através dos tempos verbais.

Em todos os relatos selecionados os autores utilizam o verbo na primeira pessoa do singular

ou, o que é mais comum, na primeira pessoa do plural, o que abarcaria também seus

companheiros de viagem: vimos, observamos são alguns dos mais usados. O viajante, apesar

de suas observações e experiências, se implica no texto, já que se coloca como o sujeito da

narração, que é marcado pelo “eu” e pelo “nós”. Além disso, em alguns momentos os autores

dos relatos se colocam enquanto um indivíduo que, além de ter estado presente no local que

está descrevendo, foi afetado por tudo o que vivenciou. Chamisso, no início de seu texto

escreve: “quero ter a franqueza de dizer alguma coisa de útil sobre o Brasil.”95 É ele que vai

comentar sobre o país onde estão ancorados. Pernetty também relata, em alguns momentos,

opiniões e sensações pessoais, como quando descreve o sabor da banana: “tem também o

gosto do marmelo amadurecido demais, quando se a mistura à polpa. Afirma-se que é um

alimento muito bom. Eu não achei nada admirável; comi-a crua e cozida, madura e verde, sem

apreciar seu sabor.”96 Outro que não consegue abster-se em seu texto, talvez devido às fortes

impressões causadas pela paisagem que teria que reproduzir, foi o artista viajante Louis

Choris. Em seus breves comentários explicativos das pranchas que pintou, deixou registrado

94
CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 232.
95
Ibidem. p. 232.
96
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 104.
72

que na Ilha de Santa Catarina “descobrem-se sempre novas ocasiões para se extasiar ante a

visão de inesgotável fecundidade da natureza.”97

Como já comentamos anteriormente, o olhar do cientista viajante possui

algumas especificidades. Para Ana Maria Belluzzo, “o ver não é uma ocorrência natural e sim

um fato histórico, interligado aos critérios de valoração e aos modos operativos de que o

homem dispõe.”98 Salienta que as obras produzidas pelos viajantes constituem-se por ser uma

história de pontos de vista distintos, de distâncias entre diferentes focos de observação, de

“triangulações do olhar”. Além de observar a vida e a paisagem americana, é necessário

analisar a espessa camada da representação que se produziu a partir do olhar desses viajantes.

Essas fontes evidenciam versões, apontam a forma como as culturas se percebem e percebem

as outras, estabelecendo diferenças e semelhanças, contribuindo para elaborar identidades,

tanto do grupo visitado como das regiões de onde os viajantes vieram, ou seja, da Europa.99

Para entendermos como se constituía a forma de olhar do viajante, um caminho

possível, além da análise dos relatos, é compreendermos qual era a concepção de olhar para os

europeus, mais especificamente o europeu influenciado pela ilustração. Na obra Encyclopédie,

elaborada no século XVIII, entre as várias definições do verbo e substantivo olhar (regarder)

existe uma que é a relação entre o olhar e a visão. Essa preocupação não se encontra mais no

Grand Larousse, obra de referência atual. Na Encyclopédie, entre os vários verbetes,

encontra-se o que diz que “não se vê sempre o que se olha, mas se olha sempre o que se vê.”

Para o viajante, influenciado pela ilustração, não era suficiente ver, era preciso ver tudo, e

para isso era necessário educar o olhar, adestrá-lo, dirigi-lo, para desta forma observar

corretamente o objeto. Segundo Sérgio Paulo Rouanet

97
CHORIS, Louis. In: Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX.
Op. cit. p. 245.
98
BELLUZZO, Ana Maria. A propósito D’o Brasil dos viajantes. Revista USP. São Paulo: USP, nº 1 (mar./mai.
1989). p. 18.
99
Ibidem. p. 10.
73

o enciclopedista está subentendendo, ao dizer que nem sempre se vê tudo o


que se olha, que essa visão parcial é imperfeita, anômala, deficitária, e que o
ideal humano é o da visibilidade irrestrita. Ele não pode ser atingido, mas
deveria ser constantemente visado. A frase descritiva converte-se, assim,
numa frase prescritiva: é preciso ver tudo. 100

Os relatos dos viajantes europeus são aqui entendidos enquanto representações

sobre o outro, enquanto um instrumento para reconstituir uma determinada visão do passado,

mas eles também são, bem como seus autores, parte do acontecer histórico. Nessa perspectiva,

entender o contexto que influenciou e formou este cientista viajante é imprescindível para

melhor analisarmos suas falas.

A vinculação dos viajantes com sua sociedade de origem, européia, iluminista,

e sua formação científica, influenciava a forma como os cientistas iriam observar e descrever

as regiões visitadas. Segundo Michel Foucault, o principal fator que diferencia a forma de ver

dos viajantes europeus do final do século XVIII e início do século XIX em relação aos

viajantes que os antecederam foi o desenvolvimento da História Natural. Para ele a História

Natural nada mais é do que a nomeação do visível. Essa nova forma de olhar, no qual eram

aproximadas a linguagem do olhar e as coisas olhadas da linguagem, se constituiu a partir de

exclusões e limitações. Por um lado é excluído o gosto, o sabor, o som, uma vez que estes

conhecimentos são marcados pela incerteza; por outro ado, a utilização do tato é limitada.

Privilegia-se quase que exclusivamente o olhar, de tal forma que

observar é, pois, contentar-se com ver. Ver sistematicamente pouca coisa.


Ver aquilo que, na riqueza um pouco confusa da representação, pode ser
analisado, reconhecido por todos e receber, assim, um nome que cada qual
poderá entender.101

Mas nem tudo o que é percebido pelo olhar pode ser aproveitado, como por

exemplo as cores. Dessa forma, definem-se os objetos da História Natural: linhas, formas,

relevos, superfícies. Essa mudança de escala na observação torna-se possível com o uso do

100
ROUANET, Sérgio Paulo. O olhar iluminista. In: NOVAES, Adauto (org.). O Olhar. São Paulo: Companhia
das Letras, 1988. p. 128.
101
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. Tradutor: Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins
Fontes, 1992. p. 148.
74

microscópio e de lentes. No entanto, para melhor observar, existe a necessidade de renunciar

outras formas de se alcançar o conhecimento, seja ele através dos outros sentidos ou através

do ouvir-dizer.102

Esse olhar, além de ser europeu, era também de um cientista, o que significa

que era detentor de um esquema próprio de classificação, um esquema estranho, estrangeiro

para a grande maioria das pessoas e, principalmente, para aquelas que estavam sendo

observadas e que posteriormente seriam descritas nos relatos. Luciana de Lima Martins

salienta que o viajante é sempre um estrangeiro, um indivíduo estranho à cultura local,

alguém que a todo momento está negociando o que vê, as diferenças culturais com as quais se

depara. A partir de seu mundo, o viajante pensa o outro e o seu próprio mundo. A fim de

melhor explicar o diferente, ele automaticamente o ordena, o classifica, a partir de seus

códigos. Isto não significa que o mundo “de fora”, o mundo que está sendo descrito pelo

viajante seja sempre passível de ser ordenado. Assim, existe uma brecha entre a intenção

oficial do viajante e o que realmente é produzido, uma vez que nem sempre o que escreve está

sob o seu domínio. As descrições de viagem comportam um espaço para a subjetividade, para

o que não pode ser controlado neste encontro entre diferentes.103

Na construção da escrita de muito viajantes, principalmente quando descrevem

as vilas e as cidades onde se encontram, podemos perceber como o olhar, a visão, é utilizada

como a principal forma de se apropriar do local visitado. O texto é escrito de forma a

acompanhar o olhar do visitante sobre a cidade, enquanto este se desloca pelas suas ruas.

Auguste de Saint-Hilaire utiliza-se desse recurso quando descreve Nossa Senhora do

Desterro:

A cidade é dividida em duas partes desiguais por uma grande praça, que
ocupa quase toda a sua largura e vai em declive suave até a beira da água. A
praça é retangular e coberta por uma fina relva, medindo aproximadamente

102
Ibidem. p. 146-147.
103
MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos Viajantes: o olhar britânico (1800-1850). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. p. 36.
75

noventa passos de largura por trezentos de comprimento desde a beira


d’água até a igreja paroquial, onde termina.
Essa igreja, dedicada a Nossa Senhora do Desterro, prejudica a simetria da
praça, já que não tiveram o cuidado de construí-la a igual distância das duas
fileiras de casas, além de a colocarem em posição oblíqua em relação à beira
do mar. Ela é grande e tem duas torres, mas não me pareceu que tivesse uma
largura proporcional à sua altura. Sobe-se até ela por uma pequena rampa
margeada por dois muros de arrimo, a qual vai desembocar numa pequena
plataforma em meia-lua. Na base desta elevação há uma alta palmeira, cuja
elegante folhagem, que se agita à mais leve brisa, contrasta com a
imobilidade do prédio ao qual ela serve de ornamento. No seu interior, a
igreja tem forro e é bem iluminada, mas achei-a menos limpa do que em
geral são as igrejas no Brasil [...]104

E assim ele continua descrevendo as construções da cidade, as capelas, o

hospital, a Câmara Municipal, o Palácio do Governo, etc. Na seqüência, seu relato desloca-se

para a economia, para a população, para as mulheres, descrevendo-as fisicamente, bem como

seu comportamento diante de estranhos. Essas descrições são intercaladas por comparações

com a Europa e com opiniões pessoais do viajante.

Outros viajantes também utilizam-se do recurso que transforma a descrição da

cidade num guia e que representa o viajante caminhando pela cidade. Pierre Berthiaume

salienta a forma como o viajante François-Xavier de Charlevoix descreve Quebec (atualmente

uma cidade do Canadá) quando de sua viagem no ano de 1720. Essa forma de apresentar o

texto, como se, ao mesmo tempo em que está passeando pela cidade estivesse escrevendo,

segundo Pierre Berthiaume é “pura retórica”. Mesmo que Charlevoix tenha tomado notas

enquanto passeava, a redação da carta deu-se sobre uma mesa de trabalho e utilizando um

mapa da vila de Quebec feito pelo engenheiro Chaussegros de Léry. Segundo o estudioso, o

mundo passa a existir a partir do olhar, que lhe dá um sentido, investido pela subjetividade

daquele que ordena as coisas, ao mesmo tempo que as esclarece.105

Utilizando as reflexões de Paul Ricouer quando diz que o “fazer narrativo re-

significa o mundo na sua dimensão temporal, na medida em que contar, recitar, é refazer a

104
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 170.
105
BERTHIAUME, Pierre. L’aventure américaine au XVIII siècle. Du voyage à l’ecriture. Ottawa: Les
presses de l’université d’Ottawa, 1990. p. 351.
76

ação”106, podemos concluir que, no momento em que o viajante se utiliza da palavra escrita

para descrever ou narrar o que ocorreu durante sua viagem, seja através de cartas, diários ou

monografias, de certa forma ele está refazendo sua viagem, o que viu e sentiu. No entanto,

devemos também salientar que o relato, apesar da pretensão de restituir o que ocorreu, é um

texto que possui limites e cuja redação enfrenta dificuldades. Segundo Nicole Hafid-Martin,

para os cientistas viajantes, os relatos se opõem ao projeto puramente literário. Para eles, a

relação de viagem “é um suporte textual muito antes de ser o lugar de uma aventura; também

não são jamais a simples transposição dos diários redigidos durante a viagem.”107 Isto

significa que o trabalho da redação do relato passa por rever as anotações, ler outros relatos a

fim de analisar as mudanças e fazer as correções e retificações que se fazem necessárias.

Entre os viajantes que analisamos, praticamente todos fazem, em algum momento, menção a

outros viajantes, mas o que mais se utiliza de referências e faz retificações, sem dúvida, é

Auguste de Saint-Hilaire.

Alguns recursos são largamente utilizados nos relatos. Entre eles encontram-se

o inventário do que foi encontrado e as comparações. Pernetty, na segunda parte de seu texto,

enumera os tipos de animais e plantas que encontrou na Ilha de Santa Catarina. Cada um é

acompanhado por sua respectiva descrição, na qual normalmente consta tamanho, formato,

cor e outras informações. Em alguns trechos consta o sabor, quando o que está sendo descrito

for comestível, e sua utilidade. O autor, em alguns momentos, utiliza comparações com

plantas e animais conhecidos dos europeus a fim de, através delas, possibilitar ao leitor ter

uma idéia mais precisa do que está sendo descrito. É o que ocorre quando ele descreve as

gralhas, nome “que os portugueses dão a uma espécie de ‘corneille’, cuja plumagem é de um

106
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Volume I. Tradução: Constança Marcondes Cesar. Campinas, SP:
Papirus, 1994. p. 124.
107
HAFID-MARTIN, Nicole. Voyage et connaissance au tournant des Lumières (1780-1820). Oxford:
Voltaire Foundation, 1995. p. 64.
77

belo azul terno. São, dizem eles, os corvos da região.”108 O inventário do que encontrou e a

comparação são recursos utilizados por Pernetty e por outros viajantes, entre eles Saint-

Hilaire, que se utiliza deles para descrever a população, ou então o nível de desenvolvimento

da região: “os agricultores da Ilha de Santa Catarina não são nem de longe tão ativos,

evidentemente, quanto os camponeses da França e da Alemanha; entretanto, eles me

pareceram bem mais industriosos do que comumente os fazendeiros do interior.”109 Os

fazendeiros a quem ele se refere provavelmente são os que ele encontrou quando viajou pelo

interior das Províncias de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Georg von Langsdorff

também utiliza o recurso da comparação ao descrever um tipo de transporte, usado na região:

“estas ‘cadeirinhas’ não são como as nossas, fechadas por portas e janelas de vidro; elas se

assemelham a uma poltrona provida de encosto bem vertical, coberta por um baldaquim

enfeitado [...].”110 Outros exemplos nos quais o viajante utiliza esse recurso se sucedem nos

textos pesquisados.

O que nos interessa é que essa forma de escrever foi utilizada por vários

viajantes e constitui um aspecto comum em muitos relatos de viagens. Para Roland Le

Huenen, “o discurso do viajante empenha-se em reconstruir o mundo segundo um modelo

conhecido, de reduzir as distâncias e as diferenças, e de projetar sobre a nova realidade a

forma de um sentido já conhecido.”111 Isto também é salientado no estudo de Pierre

Berthiaume. Para ele, as comparações inscrevem artificialmente as coisas numa estrutura já

conhecida, ao mesmo tempo em que reduzem a especificidade e a singularidade do universo

americano.112 Podemos acrescentar que a utilização do recurso da comparação propicia a falsa

ilusão de compreender e conhecer, uma vez que insere o novo em categorias mentais

conhecidas e largamente utilizadas, da mesma forma que inventariar o que foi coletado,

108
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 97.
109
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 174.
110
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 168.
111
LE HUENEN, Roland. Op. cit. p. 18.
112
BERTHIAUME, Pierre. Op. cit. p. 341.
78

descrevê-lo e posteriormente renomeá-lo com nomes em latim marca uma tomada de posse, a

inscrição destas coisas no mundo classificado, ordenado e hierarquizado dos museus. A

estrutura que norteia a escrita do relato espelha, de certa forma, o mundo mental dos cientistas

e da ciência européia da época.

Um outro recurso utilizado pelos viajantes na escrita de seus relatos é a

‘bricolage’, na qual, para descrever um animal ou outra coisa desconhecida, é montada uma

colcha de retalhos utilizando partes de diferentes animais conhecidos. Entre os cientistas

viajantes que estão sendo estudados, este recurso não é muito utilizado. Provavelmente devido

ao fato de a natureza da América não ser mais totalmente desconhecida, ou então, em

decorrência da utilização entre os cientistas viajantes do desenho, recurso que foi mais

utilizado do que entre outras categorias de viajantes.

Saint-Hilaire utiliza um método interessante para inventariar os animais e

plantas: “entre as espécies comuns posso citar a Sophora littoralis (feijão-da-praia), a

Avicennia nº 1665, a Escrofulariácea nº 1589.”113 Mais adiante ele também utiliza esse

recurso enquanto descreve uma região ao sul da Capitania de Santa Catarina:

diante de sua entrada, do lado da lagoa, vêem-se ilhas rasas e pantanosas,


cobertas unicamente pela Gramínea nº 1667, as quais servem de refúgio para
as garças brancas nº 345, bem como para outras aves aquáticas.114

A utilização da nomenclatura em latim é comum entre os cientistas viajantes,

com exceção de Pernetty. O método científico estabelecido por Carl Linné visava classificar

as plantas da terra, fossem elas conhecidas ou não, a partir de seu sistema reprodutivo. Este

método, que estabeleceu o latim como a língua a ser utilizada para a nomenclatura, se

difundiu por toda a Europa na segunda metade do século XVIII. Pernetty, como estudioso da

história natural, provavelmente conhecia o método, mas se absteve de utilizá-lo em seu relato.

Seria por que ele não concordava com este método ou por que ele ainda era restrito aos

113
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 175.
114
Ibidem. p. 199.
79

círculos científicos e seu texto tinha o objetivo de ser lido por pessoas que não faziam parte

dele? O método de Linné, juntamente com o estudo da botânica, difundiu-se na sociedade

burguesa européia no final do século XVIII e no século XIX. Na França revolucionária, a

botânica tornou-se a ciência mais representativa, uma vez que o “culto a natureza encetado

pelas Sociedades Lineanas que se difundiram pela Europa, inspiravam a idéia de uma

educação naturalista, baseada nas leis naturais em oposição ao dogma religioso.”115 Já em

relação à numeração utilizada por Saint-Hilaire, não temos certeza, mas provavelmente os

números remetessem a alguma obra de referência, onde os animais e as plantas encontravam-

se descritos em detalhes, inclusive acompanhados por imagens.

Neste momento gostaríamos de discutir as seguintes questões: para quem esses

textos, esses relatos de viagens eram escritos? Quem era o público leitor que motivava os

viajantes a redigir textos contando o que viram e vivenciaram? Alguns dados são importantes

para pensarmos sobre estas questões. No século XVII, o número de livros publicados cujo

tema versava sobre viagem somou 1.566 títulos. No século XVIII, esse número, entre títulos

franceses e estrangeiros, somou 3.540 obras. Segundo Yasmine Marcil, a prática de viajar

incentiva a leitura, a escrita e a publicação dos relatos de viagem.116 Durante o Siècle des

Lumières117 a literatura de viagem torna-se um gênero vencedor. Nesse período a Europa

redescobre as grandes viagens de circunavegação, as viagens através de outros itinerários

além do “Grand Tour” e desenvolve a “viagem no quarto, sonho(devaneio, fantasia) a partir

de um livro.”118 O relato de viagem permitia àqueles que não viajavam o acesso à regiões

distantes, à recantos de outros continentes como a América e a África, ou seja, através da

115
CARNEIRO, Henrique. As influências culturais do sistema de classificação sexual da botânica de Lineu no
século XVIII. In: Atas Seminário Internacional Dimensões da História Cultural - Unicentro Newton Paiva,
BH. 1999. p. 7. Disponível em: < http: //kant.fafich.ufmg.br/~scientia/ art_carn.htm > Acesso em: 17 abr. 2002.
116
MARCIL, Yasmine. Op. cit. p. 4
117
Segundo Pierre Chaunu este período vai dos anos 1680 a 1780. No entanto esse autor comenta que esta
delimitação cronológica não se limita a esses anos, pois as idéias que integram o que é comumente conhecido
como período das Luzes não se difundiram de forma uniforme em todas as regiões e entre diferentes grupos
sociais.
118
BOURGUET, Marie-Noëlle. Le livre de voyage au siècle des Lumières. In: Encyclopaedia Universalis: le
grand atlas des littératures. Paris: Animex Productions, devenir studio. 1990. p. 307.
80

leitura, uma parcela da população européia tinha a sensação de viajar, de conhecer terras e

indivíduos até pouco tempo inacessíveis.

Apesar do aumento do número de títulos publicadas entre os séculos XVII e

XVIII, o que deve ter significado também o aumento no número de leitores, o público

principal desse tipo de leitura era composto pelos “savants”119 e filósofos. Michèle Duchet,

em seu trabalho sobre a história da antropologia francesa do século XVIII, analisa os

interesses de Voltaire, De Brosses, barão d’Holbach e Turgot a partir do inventário de suas

bibliotecas. Entre os livros da coleção do barão d’Holbach, que foram vendidos em 1789,

encontram-se 26 títulos referentes à “História da América”, 17 obras sobre “história oriental”

e 31 livros que tratam da “história asiática.” Já a coleção de Voltaire contabilizava 3.867

títulos. Desses, 133 referiam-se à literatura de viagens: 19 coletâneas, coleções ou história

geral, 7 viagens ao redor do mundo, 2 livros sobre as terras austrais, 26 sobre as Índias

Ocidentais (sendo que 13 eram sobre a América do Sul), 4 sobre a África, 1 sobre as

“Moluques”, 8 sobre as regiões do Norte e 70 títulos sobre as Índias Orientais (16 referiam-se

à China).120 Esse inventário mostra como a literatura sobre regiões não européias ocupava um

lugar importante na biblioteca de muitos estudiosos. No entanto, devemos lembrar que o gosto

literário e a curiosidade do público em geral é distinto das necessidades e exigências dos

filósofos e dos homens das ciências. Além disso, a análise de inventários de bibliotecas

particulares deixa lacunas, uma vez que seu número é muito limitado, bem como as

informações recolhidas. Mas, apesar das dificuldades, a autora conclui que a listagem dos

títulos permite acompanhar os debates que ocorreram entre 1750 e 1780, principalmente os

que se referiam à questão da origem dos americanos, o nascimento e a diversidade das

civilizações, as religiões do antigo e do novo mundo.121

119
Savant pode ser traduzido por erudito ou por cientista, quando se refere as ciências.
120
DUCHET, Michèle. Anthropologie et histoire au siècle des Lumières. 1º ed. 1971. Paris: Albin Michel,
1995. pp. 68-71.
121
Ibidem. pp. 68-74.
81

Para Nicole Hafid-Martin, uma característica dos leitores do Siècle des

Lumières é que, mesmo que seu interesse seja a singularidade e o insólito, o que o aproxima

do leitor da Idade Média e da Renascença, ele se caracteriza por ser menos crédulo e por

exigir uma garantia de autenticidade no que está sendo relatado.122 Carlo Ginzburg, em seu

estudo sobre Mennochio, um moleiro que viveu na região do Friuli durante o século XVI,

mostra como esse indivíduo leu e se apropriou dos textos aos quais teve acesso. Mais do que

ler, extraiu significado dos livros e construiu uma cosmologia que explicava o surgimento do

mundo e que se contrapunha às crenças da Igreja Católica. Outro aspecto que caracteriza esse

leitor é a leitura repetida. Durante sua vida, Mennochio teve acesso a poucos livros, mas esses

foram lidos várias vezes. Robert Darnton analisou outro leitor. Jean Ranson era um

comerciante na França setecentista, apaixonado por Rousseau. Entre os anos de 1774 e 1785

escreveu cartas à Société Typographique de Neuchâtel, editora suiça de livros franceses. Suas

cartas ao editor, de quem era amigo e antigo aluno, mostra um interesse em saber notícias de

l’ami Jean-Jacques. Rousseau vai estabelecer uma nova relação entre o autor e seu leitor. E

essa relação foi correspondida por Ranson, como mostram suas cartas ao editor. Comentários

sobre sua vida eram intercaladas com referências a Rousseau, com suas idéias sobre os

deveres entre maridos e esposas, de mães e pais com seus filhos bem como sobre

amamentação ao seio e o amor materno. As cartas de Ranson possuem as características

estabelecidas por Rousseau para tratar das coisas da vida. A banalidade foi substituída pela

seriedade e pela moralidade. As cartas tinham um tom íntimo e sentimental. Segundo

Darnton, com a obra La Nouvelle Héloïse, Rousseau ensinou o público a digerir os livros, de

forma que a obra era absorvida pela vida. Seus leitores atiravam-se à leitura com uma paixão

que nos é estranha.123

122
HAFID-MARTIN, Nicole. Op. cit. pp. 61-62.
123
Ver GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela
inquisição. Tradução: Betania Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1987 e DARNTON, Robert. O
82

Daniel Roche fala que as leituras de viagens tinham múltiplas utilidades.

Permitiam uma aproximação do conhecido com o desconhecido, do próximo com o distante e

do geral com o particular. Mas como esses textos eram lidos pelos europeus? Tanto os

letrados, os escritores e filósofos, como as pessoas da sociedade buscavam nos relatos um

conjunto de referências que lhes permitia compreender ou recusar as diferenças, organizar sua

capacidade para aceitar as mudanças, possibilitando-lhes integrar as novidades.124

Em seu estudo sobre as leituras camponesas, Chartier mostra como o

entendimento que os citadinos letrados possuíam sobre os camponeses e seus hábitos de

leitura foi “construído no cruzamento da experiência com a imagética, indício

simultaneamente de um conhecimento do campo, visitado, percorrido, e dos arquétipos

partilhados da rusticidade.”125 Ressaltam-se duas características sobre a leitura camponesa: os

textos, em sua maioria religiosos, eram lidos em voz alta em serões onde participava a

família, normalmente após a ceia. Essas imagens pertencem a um repertório de representações

na qual a sociedade rural é apresentada como patriarcal, fraterna, comunitária, enquanto o

campo é apresentado como bucólico e de uma simplicidade natural, ao contrário da sociedade

corrompida encontrada nas cidades. Essas representações foram difundidas ao mesmo tempo

em que o campo, juntamente com seus habitantes, era visto como uma terra de preconceitos e

de ignorância, onde os homens esclarecidos deveriam desenvolver sua missão de educadores.

No que se refere ao serão, este era mencionado como um “lugar de trabalho em comum, do

jogo e da dança, dos contos e das canções, da confidência e dos mexericos, praticamente

nunca como espaço da leitura comunitária em voz alta.”126 Nesse sentido, as representações

dos serões camponeses revelam mais sobre as expectativas dos letrados do final do século

XVIII do que a própria realidade dos camponeses. As reflexões de Chartier sobre a leitura e o

grande massacre de gatos, e outros episódios da história cultural francesa. Tradução: Sonia Coutinho. São
Paulo: Companhia das Letras, 1986. Capítulo 6.
124
ROCHE, Daniel. Op. cit. pp. 30-37.
125
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Op. cit. p. 150.
126
Ibidem. p. 160.
83

interesse expresso pela quantidade de relatos de viagens encontrados nas bibliotecas de alguns

filósofos nos remetem a importância deste tipo de leitura na construção de uma imagem para a

própria Europa e sua cultura. Travar contato com a cultura de outros povos através dos relatos

permitiu o fortalecimento de uma identidade européia. A imagem dos outros e de si mesmo

vai estar presente no momento de estabelecer as bases das relações entre os grupos, sejam eles

étnicos ou nacionais.

No século XVIII o relato de viagem é percebido como útil. Segundo Yasmine

Marcil, esse gênero literário se firmou no decorrer do século XVII como um meio de

informação e como um instrumento de pesquisa, que permitia ao leitor ter informações do

mundo. Para os filósofos é um instrumento para o desenvolvimento de uma ciência do homem

e do mundo natural.127 A principal crítica feita aos relatos de viagens refere-se à sua

veracidade. Segundo o Dictionnaire Français de Richelet, publicado em 1759, a maior parte

dos relatos são mal feitos e cheios de exageros e de contradições. No entanto, os relatos de

viagens são classificados pelas livrarias do século XVIII como história, o que confirma a

percepção dominante de que o relato é um meio de conhecimento.128 Conselhos voltados para

os viajantes que porventura desejassem escrever um relato e para que esse tivesse

credibilidade foram dados por Louis-Mayeul Chaudon na obra Nouvelle Bibliotheque d’un

Homme de Goût publicado em 1777. Para ele, uma escrita simples, sem excessos e frases

inúteis confirma a credibilidade de um relato.129 Além da forma de escrever, outros fatores

que contribuem para aumentar a credibilidade de um texto de viagem são o domínio da língua

e o tempo que o viajante permaneceu no local visitado. Entre os viajantes que estiveram no

litoral de Santa Catarina, Langsdorff e Saint-Hilaire falavam português. O primeiro havia

morado em Portugal antes de sua viagem e o segundo já estava no Brasil desde 1816,

visitando e realizando estudos em outras regiões. Sobre os outros não temos informações

127
MARCIL, Yasmine. Op. cit. p. 36.
128
Ibidem. p. 41.
129
Apud. MARCIL, Yasmine. Op. cit. p. 47.
84

precisas. A Expedição de Bougainville, da qual fazia parte Antoine Joseph Pernetty, utilizou

como intérprete um português que havia permanecido em Paris durante 4 anos, como pajem

do embaixador de Portugal na França. Esse recurso era utilizado por muitos dos estrangeiros

que aqui chegavam, mas devemos salientar que o não conhecimento da língua local

dificultava o contato com as pessoas e a troca de informações sobre a região. Pernetty

conhecia o latim, mas sua tentativa de conversar nesta língua com um padre franciscano, que

estava presente no jantar oferecido pelo governador da Capitania de Santa Catarina130, não foi

bem sucedida. Segundo ele, “o bom padre ignorava esta língua, e acredito que este defeito é

comum em quase todo o clero no Brasil.”131

Os relatos de viagens têm importância distinta para os viajantes e para os

cientistas viajantes. Enquanto para os primeiros ele é o resultado público da viagem, para os

segundos, seu papel limita-se a ser um comentário das observações feitas e dos resultados

alcançados no decorrer da viagem.132 Talvez isso explique o longo tempo entre a viagem e a

escritura do relato de muitos dos cientistas viajantes. Para estudiosos como Saint-Hilaire era

mais premente analisar o que foi coletado do que escrever um relato voltado para o público

leigo. Para Nicole Hafid-Martin, o que levava os viajantes que haviam empreendido viagens

científicas a escreverem seus relatos, durante o Siècle des Lumières, era uma combinação

entre o interesse das instituições em difundir o conhecimento e o interesse cada vez maior do

público por esse tipo de leitura. Para as instituições que haviam financiado a viagem, era

proveitoso divulgar os resultados, uma vez que poderiam reverter em mais investimentos,

sejam públicos ou privados. Para o viajante, era o reconhecimento pelo trabalho

empreendido.133 Além disso, ao longo do século XVIII, a demanda do público e as aspirações

130
A capitania de Santa Catarina compreendia a Ilha de Santa Catarina, atualmente pertencente ao município de
Florianópolis, vilas como Laguna e São Francisco e algumas regiões do continente, como São José da Terra
Firme, São Miguel, bem como outras áreas ocupadas a partir do final da década de 40 do século XVIII por
colonos açorianos.
131
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 82
132
BERTHIAUME, Pierre. Op. cit. p. 327.
133
HAFID-MARTIN, Nicole. Op. cit. p. 57.
85

dos viajantes garantiram para a literatura de viagem um grande sucesso e contribuíram para o

enriquecimento das diversas disciplinas constituídas. Além desses interesses, existiam outros,

como a divulgação das informações coletadas nas diferentes regiões por onde viajaram a fim

de possibilitar o avanço dos estudos científicos, e mesmo intenções humanitárias. Dessa

forma, é um conjunto de finalidades que vai permitir e sustentar a publicação dos relatos, e

todos eles relacionados com o projeto fundamental, que é o desenvolvimento do

conhecimento.

Além dos aspectos considerados, para alguns estudiosos, como Silvia

Figueirôa, também devemos levar em consideração as diferenças entre textos científicos,

diário de campo e relato de viagem. Enquanto o primeiro era tido como “necessariamente

‘objetivo’ e, portanto, expurgado de tudo que possa cheirar a subjetividade”134, os outros dois

tipos de textos permitiam tratar de outros aspectos, como o cotidiano das expedições. A

procedência das informações relatadas eram basicamente três: observações pessoais,

testemunhos recolhidos no local e o testemunho dos viajantes anteriores. Muitas vezes, o

autor fazia correções nas informações divulgadas por algum de seus antecessores. Já no que se

refere ao conhecimento dos habitantes locais este era re-elaborado de forma a se adaptar aos

canônes científicos desenvolvidos e utilizados pelos viajantes. Segundo Miriam Moreira

Leite,

o diário de campo costuma ser um instrumento de trabalho científico,


realizado com vistas à elaboração de relatórios completos e minuciosos ou
da publicação de livros, através de desdobramentos da continuidade e do
inter-relacionamento dos dados anotados apressadamente, como lembretes, e
da organização lógica de seu conteúdo para um público mais amplo, mesmo
que conserve a forma atraente do diário. Escrito para uso próprio, o diário de
campo conserva a espontaneidade do pensamento ingênuo, que não entra em
confronto com o leitor. A ausência de um público dispensa uma
comunicação mais cuidadosa e mais conforme às convenções lingüísticas e
científicas.135

134
FIGUEIRÔA, Silvia. Apresentação. In: Os Diários de Langsdorff. Op. cit. p. XXXIX.
135
MOREIRA LEITE, Miriam. Prefácio. In: Os Diários de Langsdorff. Op. cit. p. XLV.
86

A partir desses relatos serão difundidas diferentes imagens sobre a América e

seus habitantes. Até este momento salientamos como a busca e a divulgação do conhecimento

influenciava e motivava a escrita dos relatos de viagens. Nosso interesse é analisar como as

discussões que estavam sendo travadas na Europa, entre cientistas e estudiosos, influenciou na

forma como os viajantes descreveram a natureza e a organização social na América.


87

4. A História Natural como um novo campo do conhecimento

Na ânsia de tornar compreensíveis o mundo e a natureza, são estabelecidos

códigos e categorias mentais que mudam ou são modificadas conforme o contexto histórico.

Essas categorias são importantes, uma vez que é a partir delas que vemos, entendemos e

ordenamos o mundo ao nosso redor. Ao mesmo tempo que temos consciência que elas

existem, e que sociedades e culturas distintas possuem outras categorias, sabemos que uma

vez inseridos nelas, torna-se difícil percebermos de outra maneira o que nos cerca. Para Keith

Thomas “o sistema de classificação dominante toma posse de nós, moldando nossa percepção

e, desse modo, nosso comportamento.”136

Os cientistas viajantes que analisamos eram detentores de um sistema de

ordenação e de compreensão do mundo que foi moldado numa época, o Siècle des Lumières,

num espaço geográfico, a Europa, e num meio intelectual, as academias de ciências e os

jardins botânicos. Essas características comuns não significam, no entanto, que os discursos

proferidos, veiculados através de seus relatos de viagens, são homogêneos. Através deles

podemos perceber que existiam diferenças e divergências entre os cientistas da História

Natural, como também existem em outras áreas do conhecimento.

Nosso objetivo neste capítulo é analisar os discursos que circulavam pela

Europa sobre a natureza da América, uma vez que esta era entendida de maneira distinta pelos

cientistas e filósofos envolvidos nas discussões. Além disso, os debates que eram travados na

136
THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos
animais, 1500-1800. Tradução João Roberto Martins Filho. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 62
88

época vinculavam estreitamente o espaço físico e suas características com o desenvolvimento

do ser humano.

4.1. Um novo olhar sobre a natureza

A forma como o homem passou a interagir com a natureza sofreu grandes

transformações no período moderno. Na Inglaterra, a crença de que o mundo havia sido

criado para servir ao homem, submetendo-se as suas necessidades e desejos, modifica-se e

abre espaço para uma outra visão sobre a relação homem/natureza. Essa visão tradicional era

fundamentada nos filósofos clássicos, como Aristótoles, mas principalmente na Bíblia.

Segundo essa, inicialmente, no Jardim do Éden, a convivência entre homens e animais era

pacífica. Com a expulsão do paraíso, a terra degenerou e o homem precisou lutar, através do

trabalho árduo, pela sua sobrevivência. Surgiram pestes, pulgas e outros insetos. Os animais

tornaram-se ferozes e passaram a atacar os homens, obrigando estes últimos a torná-los

submissos através da força. Após o Dilúvio, a autoridade dos homens sobre os animais é

renovada. Segundo Thomas Keith, entre os pregadores ingleses dos séculos XV ao XVIII, era

corrente que as criaturas bestiais haviam sido criadas por Deus para servirem aos seres

humanos, para seu uso, e não por si mesmas. Essas necessidades poderiam ser práticas,

morais ou estéticas. Os pássaros e os macacos haviam sido criados para nosso contentamento,

o boi e o cavalo para labutar em nosso lugar, os cães para demonstrar lealdade e os piolhos
89

porque incentivavam a higiene. A teologia da época iria lançar os alicerces da dominação do

homem sobre a natureza, distintamente de algumas religiões orientais. 137

Concepções como essas sobre a natureza modificaram-se a partir de influências

diversas, como por exemplo, a própria re-interpretação do legado judaico-cristão, a

industrialização, a urbanização e o desenvolvimento de novas áreas da ciência. Para a cultura

francesa do final do século XVIII e início do século XIX, o papel da natureza era central e, ao

mesmo tempo, origem primeira da felicidade social e o terreno onde o homem civilizado

exercia seu domínio, sua autoridade. É nesse período que o domínio da natureza aparece

como a seqüência lógica do progresso humano.138

Carl von Linné, naturalista sueco, publicou em 1735 a primeira edição do

Systema Naturae (O Sistema da Natureza). Na obra, publicada em latim, e que teve doze

edições entre 1735 e 1768, a sistemática de classificação era dividida em classe, ordem,

gênero e espécie. Os minerais eram divididos em pedras e fósseis, os animais em seis classes

acrescentado da sétima, o homem, e os vegetais em 24 classes. A continuidade dos estudos e o

aperfeiçoamento do método resultou na publicação, em 1751, da obra Philosophia Botanica e,

em 1753, do estudo intitulado Species Plantarum. Em 1763, publica Genera Morborum, onde

os vegetais são ordenados em 11 classes e 325 gêneros. A partir desses estudos, difunde-se a

nomenclatura binária que denomina as plantas utilizando o nome do gênero seguido pelo

nome de sua espécie. É na botânica que seu sistema classificatório obtém melhores e

inovadores resultados. Primeiramente, porque ao reino vegetal é aplicado um sistema artificial

de classificação baseando-se na observação de seus órgãos reprodutores. Em segundo lugar,

devido a sua reforma da nomenclatura das plantas, quando cria também uma nova língua para

137
Ibidem. pp. 21-30.
138
KURY, Lorelei. Op. cit. p. 10.
90

a descrição das plantas, distinta de tudo o que havia, e que descartava o conhecimento

acumulado.139

Os objetos de estudo da história natural, a partir da publicação do trabalho de

Carl von Linné serão descritos seguindo “os seguintes passos: nome, teoria, gênero, espécie,

atributos, uso e, para terminar, Litteraria.”140 Para ele a linguagem, as crenças, as histórias

que se tinha em relação à determinada planta deveriam ser deixadas em último plano, o que

possibilitaria que o próprio objeto analisado, com suas características, aparecesse. Segundo

Michel Foucault, na Idade Clássica (século XVII e parte do século XVIII), o estudo da

História passa a ser entendido de uma forma diferente: o estudioso deve pousar “um olhar

minucioso sobre as coisas” e “transcrever, em seguida, o que ele recolhe em palavras lisas,

neutralizadas e fiéis.”141 Esse novo significado, a partir do qual a História é entendida, passa a

influenciar também o entendimento da História Natural. A História passa a ser feita a partir de

uma nova vinculação das coisas ao olhar e ao discurso, e os documentos dessa nova ciência

tornam-se

espaços claros onde as coisas se justapõem: herbários, coleções, jardins; o


lugar dessa história é um retângulo intemporal, onde, despojados de todo
comentário, de toda linguagem circundante, os seres se apresentam uns ao
lado dos outros, com suas superfícies visíveis, aproximados segundo seus
traços comuns e, com isso, já virtualmente analisados e portadores apenas de
seu nome. 142

Um fator positivo que contribuiu para a difusão do método linneano foi a

utilização do Latim, língua nacional de ninguém, o que o colocava acima das rivalidades

nacionais. Este fator, combinado com o fato de seu autor ser de um país secundário na

“disputa econômica e imperial global”, aumentou a receptividade e a difusão de seu sistema

139
DURIS, Pascal. Linné et la France (1780-1850). Genève: Droz, 1993. pp 28-34.
140
FOUCAULT, Michel. Op. cit. 1992. p. 144.
141
Ibidem. p. 145.
142
Ibidem. p. 145.
91

na Europa. Além disso, a abordagem de Linné, segundo Mary Louise Pratt, conseguiu

“combinar o ideal de um sistema classificatório de todas as plantas com uma sugestão

concreta e prática, de como construí-lo.”143 A natureza deveria ser organizada, ordenada, e

para Linné “o fio de Ariadne em Botânica é a classificação, sem a qual só existe o caos.”144

Ou seja, as formas de vida, vegetais e animais, deveriam ser retiradas da natureza e

reordenadas segundo os critérios europeus de ordem e unidade global. Além disso, esse

sistema classificatório rompia com o conhecimento nativo, uma vez que os viajantes não

precisariam mais depender do saber local sobre as plantas, seus nomes e suas funções na

natureza.145

Keith Thomas salienta que uma das mudanças relacionadas com a difusão do

sistema lineano na Inglaterra, a partir de 1760, foi o aprofundamento do abismo entre “os

modos popular e erudito de ver o mundo da natureza”, principalmente devido à introdução das

terminologias em latim. Segundo ele, o que influenciou a implantação desse método único de

classificação na Inglaterra foram vários motivos: primeiro, o interesse em padronizar os

nomes das plantas, substituindo suas nomenclaturas locais ou regionais em decorrência do

crescimento do mercado nacional de plantas e flores. O segundo motivo deve-se ao fato de

muitos dos nomes antigos possuírem conotação religiosa ou então serem considerados

grosseiros.146

Na Inglaterra, o sistema lineano passou a ser aceito no início da década de

1760. Entre seus divulgadores podemos salientar o avô de Charles Darwin, Erasmus Darwin,

que, em 1789, publicou um livro chamado “The loves of the plants”. A obra foi traduzida e

publicada na França, em 1799. Nessa obra, um “poema erótico-botânico”, o autor faz

143
PRATT, Mary Louise. Op. cit. p. 56.
144
Linné apud PRATT, Mary Louise. Op. cit. p. 56.
145
Ibidem pp. 66-67.
146
THOMAS, Keith. Op. cit. pp 97-101.
92

analogias entre a fecundação das plantas a partir do número de estames e pistilos, a disposição

destes nas plantas e se os estames e pistilos são visíveis ou não.147 Linné descrevia flores cujo

estame e pistilo encontravam-se na mesma flor como “esposos que dormem na mesma cama”.

Além disso, as inúmeras variantes de flores encontradas na natureza possibilitavam outras

metáforas: o número de estames era considerado o número de machos, que poderiam ser

encontrados em quantidades variadas numa mesma flor; os estames inférteis eram chamados

de eunucos; os pistilos femininos poderiam ser monogâmicos ou poliândricos, conforme a

flor. Na botânica, o sistema de classificação artificial criado por Linné era baseado nos

elementos da fecundação. A descrição do número de pistilos e estames, e a proporção e a

situação nas quais se dava a polinização, era carregada de conotações sexuais, o que acarretou

reações contrárias de setores da sociedade inglesa. Ao mesmo tempo que gerou reações

escandalizadas, podemos pensar que através da botânica determinados grupos sociais

poderiam falar de um tema que se tornara tabu: a sexualidade. A partir de 1810, o sistema

lineano passa a perder espaço e a ser substituído por outros esquemas de classificação na

Inglaterra e em outros países.

A França também foi palco de reações contrárias ao sistema desenvolvido por

Linné. Seu principal contestador foi Georges Louis Leclerc, mais conhecido como Conde de

Buffon, nascido em 1707 em uma rica família burguesa e que ascendeu à nobreza. Iniciou

seus estudos com os jesuítas e posteriormente dedicou-se ao direito, à medicina e à botânica.

Em 1739, Buffon ocupou o cargo de intendente do Jardin du Roi, atualmente Jardin des

Plants, onde localiza-se o Museum d’Histoire Naturelle. Essa instituição, a partir do século

XVIII, tornou-se o principal centro de estudos da natureza no país. Na direção do

estabelecimento, esforçou-se para aumentar suas coleções através de contatos com estudiosos

147
Sobre este aspecto ver: CARNEIRO, Henrique. Op. cit. pp. 50-55.
93

de toda a Europa que lhe enviavam animais, plantas, minerais ou então informações sobre os

estudos que estavam sendo desenvolvidos. Ampliou o número de alas do Jardin du Roi e

conseguiu doações de coleções. Em 1748, Buffon anunciou seu plano de elaborar uma vasta

obra, intitulada História Natural, geral e particular. O estudo teria como objetivo descrever a

natureza inteira, desde os minerais até o homem. O plano previsto era escrever 15 volumes

entre os anos de 1749 a 1789. Apesar de contar com vários ajudantes, não conseguiu cumprir

o programa, uma vez que este exigia informações e conhecimentos não disponíveis na época.

Após sua morte foi publicado o sétimo e último volume. Os três primeiros volumes contaram

com uma edição de 1.000 exemplares que esgotaram em seis semanas.148

A oposição entre Buffon e Linné em relação à classificação refere-se a

diferentes regimes teóricos: enquanto Linné sustentava que toda a natureza poderia ser

inserida numa taxonomia, Buffon a considerava muito rica, demasiadamente diversa, o que

impossibilitava seu ajustamento a um quadro rígido.149 Para Linné, classificar é procurar as

características gerais que permitem determinar grandes conjuntos diferenciados (classes) onde

está inserida uma espécie, não em função de todas as suas propriedades, mas de algumas

delas, que estão presentes nas outras espécies. No que se refere aos vegetais, suas

características gerais são determinadas a partir dos órgãos de reprodução. Era sobre esse

aspecto que se fundamentava a crítica de Buffon ao sistema lineano. Recusava-se a aceitar

que, para classificar, devia observar somente algumas partes específicas dos vegetais e

animais e não mais o conjunto. Além disso, Buffon defendia o princípio de que tudo o que

existia na natureza deveria servir para a classificação dos corpos naturais: sua reprodução, seu

nascimento, sua alimentação, seus costumes, o lugar de sua habitação, os serviços que eles

podiam nos render, entre outros aspectos. Segundo Giulio Barsanti

148
DEL CAMPO, Angelina Martín. Introducción. In: BUFFON. Del Hombre: escritos antropológicos. 1º ed.
francesa: 1749. Tradução: Angelina Martín Del Campo. México: Fondo de Cultura Econômica, 1986. pp.8-10.
149
FOUCAULT, Michel. Op. cit. 1992. p. 140.
94

a controvérsia aconteceu porque Linné considerava, de maneira mais restrita,


o que é ‘verdadeiramente’ natural (quer dizer, fundamental, primeiro e
essencial), ao contrário de Buffon que não considerava nenhuma propriedade
natural como acessória, derivada, insignificante: Linné se dedicava a
distinguir as qualidades primeiras das qualidades secundárias dos corpos,
enquanto Buffon não o fazia.150

Outro estudioso que de certa forma contribuiu para a difusão do método de

Linné na França foi Antoine-Laurent de Jussieu. Em 1770 ele entrou no Jardin du Roi a fim

de desenvolver seus estudos. Dois anos depois tornou-se doutor em medicina e, em 1773,

apresentou um estudo sobre a família dos ranúnculos na Academia Real de Ciências.

Apoiando-se nos trabalhos de Linné, Bernard de Jussieu, seu tio, e de Adanson, Jussieu

propôs uma nova forma de classificar, no qual determinou seis características que eram

definidas a partir da frutificação, da semente, e que iria estabelecer a ordem ao qual

pertenceria o vegetal. Na França, os métodos que eram utilizados naquele momento eram o de

Tournefort, que apesar de precisar de reforma, tinha bastante espaço nos meios científicos

devido à influência de Bernard de Jussieu, Adanson e Buffon. O de Linné também era

utilizado, devido principalmente a sua divisão em gêneros e a nomenclatura. O método

proposto por A-L de Jussieu combinava as famílias naturais do método de Tournefort e a

divisão em gênero e a nomenclatura de Linné. Nos anos de 1773-1774, o método foi adotado

pela École de Botanique de Paris. Por esse método, a semente, e não mais o órgãos sexuais da

plantas (pistilos e estames), passou a ser utilizada para definir o centro das divisões iniciais da

ordem natural. As diferenças permitiam separar as plantas em três grandes ordens,

posteriormente divididas em classes, gêneros e espécies. Em 1789, A-L de Jussieu publicou

seu estudo intitulado Genera Plantarum, no qual estão estabelecidas 100 famílias (que ele

chama de ordem) e 1754 gêneros; destes, 76 até hoje são usados. Mas sua grande contribuição

foi a vulgarização do método natural na França. Além disso, apesar das críticas ao método de

Linné, também viu os pontos positivos que inclusive foram incorporados na criação de seu

BARSANTI, Giulio. Linné et Buffon: Deux visions différentes de la nature et de l’histoire naturelle. In:
150

Revue de Synthèse. III.ªS. Nºs 113-114, Janvier-juin 1984. Paris: CNRS. p. 97.
95

método. No entanto, independente do método, fosse ele artificial como o de Linné, ou natural

como o de Adanson e de Jussieu, todos eles supunham a fixidez das espécies. Isso somente

vai ser superado com Lamarck.151

Em decorrência dos estudos de Linné, Buffon e outros cientistas, o campo do

conhecimento da história natural passou a ser marcado por uma mudança na forma de olhar,

ou seja, constituiu-se um novo campo de visibilidade. Aproximou-se o olhar e as coisas que

são olhadas da linguagem, nomeando as coisas que são visíveis. A partir do século XVII, a

observação das coisas passou a ser vinculada com a renúncia e a exclusão de outros

conhecimentos. Privilegiou-se o olhar em detrimento dos outros sentidos, como o olfato e o

tato. Como dizia Rousseau, para herborizar era necessário utilizar somente um instrumento, a

lupa. A partir da difusão do sistema classificatório linneano, as viagens e seus relatos foram

organizados de forma diversa. Fosse ou não um cientista, o viajante passou a ser influenciado

pelos métodos de coleta e de estudo das plantas, principalmente devido ao fato da pesquisa

científica ter se tornado mais popular, uma vez que qualquer um, após o estudo do sistema,

poderia inserir as plantas em sua ordem ou classe, ou mesmo em seu gênero. Ao mesmo

tempo em que ocorreu uma democratização do conhecimento científico entre os letrados,

ocorreu a exclusão do conhecimento popular sobre as plantas e os animais, que era baseado

essencialmente nas utilidades práticas que a natureza oferecia aos seres humanos.

Como uma tentativa para melhor compreendermos de que maneira a natureza e

a história natural inseriam-se na sociedade francesa letrada, citaremos a obra escrita por Jean-

Jacques Rousseau, intitulada Os Devaneios do Caminhante Solitário. Trata-se de dez textos,

iniciando com a Primeira Caminhada, escrita no outono de 1776, e encerrando em 12 de

abril

151
DURIS, Pascal. Op. cit. pp. 139-155.
96

de 1778, com a Décima Caminhada. Em 2 de julho desse mesmo ano, Rousseau morre após

ter realizado um de seus passeios matinais, quando aproveitava para coletar e herborizar

plantas. Para ele, as caminhadas significavam um contato com o não-eu, a natureza, além de

contribuir como um estímulo à meditação. Além disso, elas também eram motivadas pela

busca interior do autor da plenitude de seu ser, “sem obstáculos e em que posso

verdadeiramente dizer que sou o que desejou a natureza.”152 Dos dez textos, é o sétimo que

nos interessa. Nesse texto, o tema são as observações e os relatos das atividades botânicas, às

quais voltara a dedicar-se nos últimos anos de vida, após ter se desfeito de todo seu material

de botânica.

Segundo Rousseau, a botânica é o estudo que melhor se adequa aos indivíduos

solitários e ociosos, uma vez que, para observar as plantas, os únicos equipamentos

necessários são um estilete e uma lupa. Para o autor, o hábito de procurar nas plantas somente

drogas e remédios manteve afastada a atenção das pessoas de gosto do reino vegetal. O

trabalho de Linné “retirou um pouco a botânica das escolas de farmácia para devolvê-la à

história natural e aos empregos econômicos.”153 A coleta de espécimes vegetais ainda era

relacionada à cura de doenças. Rousseau comenta que as pessoas que ele encontrava em suas

andanças para coletar plantas o tomavam como ajudante de cirurgião e lhe solicitavam ervas

para tratar doenças, tanto em seres humanos ou em animais.154 Essa confusão, por parte da

população em geral, no que se refere ao trabalho realizado pelos viajantes e estudiosos da

natureza, principalmente da botânica, também ocorreu no Brasil. Em sua passagem pela

região de Garopaba, litoral sul de Santa Catarina, Auguste de Saint-Hilaire foi tomado como

152
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os devaneios do caminhante solitário. Tradução: Fúlvia Maria Luiza Moretto.
2 ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1986. p. 31.
153
Ibidem . p. 94.
154
Ibidem. p. 94.
97

médico e forçado por uma mulher a ir até sua casa ver um doente, que se encontrava paralítico

há muitos meses.155

O interesse difundido entre os europeus em relação à natureza, principalmente

a botânica, conjugado com a política dos governos europeus de apropriar-se e controlar esse

conhecimento, criou e ampliou a demanda por novas áreas e profissionais relacionados à

História Natural. Entre os novos campos profissionais, estavam os artistas especializados em

botânica e zoologia, tipógrafos, cientistas coletores, entre outros. Também havia a

necessidade de melhores meios de armazenamento e transporte do material coletado que era

enviado para formar Jardins Botânicos abertos ao público. O interesse pela História Natural

motivou uma maior demanda por obras que descrevessem as viagens empreendidas por países

e regiões distantes. Era através dessas obras que se estabelecia a relação entre a ciência e o

público em geral. Além da demanda do público europeu, outro motivo foi o interesse dos

países do velho continente em fazer um “mapeamento sistemático da superfície do mundo”

relacionado à necessidade de descobrir “recursos comercialmente exploráveis, mercados e

terras para colonizar.”156 Um exemplo desse interesse, não tão inocente da busca de

conhecimento, fica explícito na citação a seguir, que mostra qual era o objetivo da viagem

empreendida por Auguste de Saint-Hilaire: “prestar à ciência e a seu país informações

importantes sobre a flora e a fauna do Brasil, contribuindo para enriquecer o herbário do

Museu de Paris e descobrir plantas próprias à tintura para serem introduzidas na Guiana

Francesa.”157 Essa viagem, como as outras empreendidas no século XIX, tinha uma finalidade

prática, um interesse econômico.

Na França, alguns fatores contribuíram para a aceitação do método criado por

Linné entre os cientistas. Além da utilização do latim, da concisão na forma de descrever e

155
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 192.
156
PRATT, Mary Louise. Op. cit. p. 65.
157
SAINT-HILAIRE apud. OLIVEIRA, Paulo Rogério Melo de. O Naturalista e os Selvagens: a visão de
Saint-Hilaire sobre os índios Guarani no Rio Grande do Sul. Florianópolis: Dissertação de Mestrado.
Programa de Pós-Graduação em História. CFH/UFSC. 1996. p. 25.
98

nomear as espécies naturais, outro fator foi a eclosão da Revolução Francesa, em 1789. Com

ela, a autoridade intelectual de Buffon, seu principal opositor e intendente do Jardin du Roi,

passou a ser questionada pelo poder instituído, devido a sua vinculação com o antigo regime.

O método desenvolvido por Linné é divulgado como uma alternativa a Buffon. Conseguiu

uma maior aceitação entre os revolucionários e também de alguns profissionais da ciência,

como os anatomistas, os químicos, os matemáticos e os mineralogistas. A partir de 1818, a

obra de Linné conhece um grande sucesso, devido principalmente à multiplicação das

Sociedades Linneanas na França e no mundo.158

A utilização da obra Systema Naturae difundiu-se entre cientistas e amadores

no estudo da botânica. Rousseau, em suas caminhadas, quando ficou hospedado no Lago de

Bienne a utilizava a fim de descrever as plantas encontradas em seus passeios matinais pela

ilha.159 Entre os cientistas que utilizavam o Systema Naturae em seus estudos e no trabalho de

descrição e catalogação de novas espécies vegetais temos Alexandre Rodrigues Ferreira.

Luso-brasileiro, nascido na Bahia, em 1756, faleceu em Lisboa, em 1815. Estudou filosofia

natural em Coimbra e foi membro da Academia de Ciências de Lisboa, encarregado pela

Coroa Portuguesa de realizar uma expedição científica pela região do Rio Amazonas. Entre os

anos de 1783 e 1793, estudou a flora e a fauna da colônia portuguesa na América do Sul,

coletou material a fim de montar uma coleção de espécimes naturais, depositada na Academia

de Lisboa. Além disso, fez importantes anotações sobre os costumes e hábitos da população

da região. Suas anotações de viagem foram publicadas com o título Viagem Filosófica pelas

Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá (1783-1793). O material

coletado na viagem foi furtado pelas tropas de Napoleão Bonaparte quando estas invadiram

Portugal, e levadas para o Museu de História Natural de Paris. É importante lembrar que o

interesse em relação às riquezas naturais da América Portuguesa era grande, principalmente

158
DURIS, Pascal. Op. cit. pp. 28-30.
159
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Op. cit. p. 73.
99

porque a região era protegida pela Coroa, que, com raras exceções, limitava a entrada de

expedições científicas de outros países da Europa.

4.2. A natureza e os habitantes do Novo Mundo

Outro ponto de intensos debates e divergências entre os estudiosos europeus

referia-se à imagem, fosse ela negativa ou positiva, que foi construída sobre o Continente

Americano e seus habitantes. As primeiras descrições da natureza americana surgiram a partir

dos primeiros contatos dos europeus com a nova região. Entre elas, salienta-se os escritos de

Gonzalo Fernández de Oviedo, Padre Acosta, Herrera e Padre Cobo, que vieram a público nos

séculos XVI e XVII. O tema, no entanto, continuou gerando discussão, na qual estiveram

envolvidos detratores e admiradores da natureza americana. A polêmica tornou-se mais

intensa entre os anos de 1750 e 1900. Nela estiveram envolvidos, diretamente ou não,

cientistas, religiosos, filósofos, literatos, entre outros. Muito material foi escrito, muitos

debates foram travados, com direito à réplica e até tréplica, como foi o embate entre De Pauw

e Pernetty, na França do século XVIII.

Essas vozes e penas digladiando-se publicamente foi tema de pesquisa do

estudioso italiano Antonello Gerbi, editado em português com o título de O Novo Mundo:

história de uma polêmica (1750 - 1900). Uma primeira versão desse trabalho foi publicado

em 1943, em Lima. Posteriormente, em 1955, foi publicada na Itália uma outra edição, com

inúmeros acréscimos e com outro título: La disputa del Nuovo Mondo: storia di una

polemica: 1750-1900. Novas edições, novos acréscimos e, em 1996, o livro foi traduzido e
100

editado no Brasil. Tomando como base esse trabalho discutiremos, na seqüência do texto, as

idéias e teses que eram debatidas nos meios científicos europeus sobre a América e os

americanos. Esta discussão justifica-se, uma vez que nos relatos dos viajantes que estão sendo

analisados, entre os assuntos tratados encontram-se descrições da natureza e dos habitantes da

América, mais especificamente, do litoral de Santa Catarina. Como já discutimos

anteriormente, os viajantes estavam inseridos num meio intelectual e seu olhar é determinado

por uma infinidade de referências, de teorias, sobre as quais ele formula seu próprio discurso.

Dessa forma, os relatos de viagens não podem ser entendidos como uma peça discursiva

independente, mas como uma espécie de encruzilhada onde se cruzam uma multiplicidade de

discursos.

No século XVIII difundiu-se pela Europa a tese da “debilidade” ou

“imaturidade” das Américas. Segundo Antonello Gerbi, a tese nasceu com Buffon, a partir de

sua leitura dos relatos de viajantes que haviam visitado a América, uma vez que ele nunca

havia empreendido esta viagem. O estudioso defendia que não existiam espécies que

possuíam cidadania americana. Para ele, os animais que aqui viviam eram formas

degeneradas dos animais que existiam no Velho Mundo. Entre eles, cita como exemplo, a

puma e a anta. Enquanto a puma era entendida como uma degeneração do leão, uma vez que

era desprovida da juba, a anta era considerada como uma forma debilitada do elefante. Em sua

opinião, a experiência mais conclusiva era o que ocorria com os animais domésticos que,

transplantados do Velho para o Novo Mundo, acabavam diminuindo de tamanho, com

exceção do porco. Outros pontos que utiliza para referendar sua tese sobre a América é a

presença de animais pequenos em abundância, o “estado bruto da natureza” e a umidade,

comprovada pelo “aspecto pantanoso da paisagem”.

Entre todos esses aspectos, a imagem da América como um continente

encharcado difundiu-se e pode ser encontrada na fala de viajantes do século XIX, como
101

Auguste de Saint-Hilaire. Segundo ele, a cidade de São Francisco do Sul, localizada ao norte

da Capitania de Santa Catarina, era infestada de mosquitos por causa das matas que a

cercavam e também devido à presença de água empossada e brejos.160 Segundo Buffon, a

umidade, o clima quente, a vegetação espessa, tudo isto contribuía para a proliferação de

répteis, insetos e outros animais de sangue frio. Esses últimos são “as espécies de animais que

se arrastam no lodo, cujo sangue é água, e que pululam em meio a podridão” e que “são mais

numerosos e maiores em todas as terras baixas, úmidas e pantanosas do Novo Continente.”161

Para ele, a natureza da América era possuidora de répteis e insetos em demasia, o que ocorria

devido ao clima, à qualidade da terra, às condições do céu e principalmente ao estado bruto

em que a natureza se encontrava na região. Tudo isto, somado ao aspecto pantanoso da

natureza, resultava numa paisagem que, “úmida e prolífica mãe de animaizinhos minúsculos e

malvados, privada de feras magnânimas, devia apresentar aos olhos de Buffon todos os

sintomas de uma repugnante debilidade orgânica.”162

Outro aspecto de sua teoria é a tese de que as espécies grandes eram mais

perfeitas e estáveis do que as espécies pequenas. Buffon partia do princípio de que o grande

era “melhor” do que o pequeno, que os animais maiores eram superiores e que a força física

era um atributo das espécies mais perfeitas. Essa visão aponta para os motivos do estudioso

desqualificar os índios devido a sua debilidade física. Além do grande ser superior ao

pequeno, o fixo era superior ao mutável e o grande era mais fixo do que o pequeno. Para ele,

“alterar-se equivale a decair”, o que significava que o estável, o fixo, era superior ao variável.

Buffon é herdeiro de um pensamento tão antigo como Aristóteles, que dizia que a espécie não

muda, e que tem algumas relações com o pensamento corrente na Idade Média, que via toda

alteração no curso natural, fosse ela através do nascimento de indivíduos monstruosos ou

160
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 143.
161
BUFFON apud. GERBI, Antonello. O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750-1900). Tradução:
Bernardo Joffily. 1º ed. 1955. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 23.
162
GERBI, Antonello. Op. cit. p. 24.
102

então qualquer outro acontecimento incomum, como o prenúncio de catástrofes. Essas

explicações defendidas por Buffon geraram oposições e discordâncias, como por exemplo a

opinião expressa por Diderot, que não concordava com o emprego dos conceitos “grande” e

“pequeno”. Para ele, sua utilização era perigosa para a compreensão da realidade e, além

disso, a medição levava ao erro. Posteriormente, com o desenvolvimento de zoologia

moderna, e de nova classificação zoológica, desenvolvida por Georges Cuvier, a consideração

métrica dos animais foi considerada como um dos primeiros erros a serem superados.163

Na teoria de Buffon estava presente a tendência do século XVIII de estabelecer

relação rígida, casual, entre o vivente e o natural, a criatura e o ambiente. No entanto, ele não

se incluía no grupo dos “sistemáticos”, influenciados por Linné, contra os quais manifestava

sua desconfiança. Este grupo de estudiosos, em vez de observar o tronco, o aspecto, as folhas,

observava, “de microscópio em punho”, exclusivamente “os estames e, caso não se possa ver

os estames, nada se sabe, nada se viu.”164 Essa era a discordância de Buffon em relação ao

sistema de classificação desenvolvido por Linné. Isso não significa que o autor não partilhava,

como os seguidores de Linné, da exigência de classificar, ordenar, e “sistematizar” a natureza.

Os cientistas que pensavam a natureza também refletiam sobre os seres

humanos. Buffon, em 1749, publicou sua História Natural do Homem, parte que integra os

três primeiros volumes da Historia Natural, Geral e Particular. Nessa obra discutiu o lugar

ocupado pelo homem no mundo, e o posicionou no centro da natureza e do conhecimento. O

homem, entendido como ser único e superior, numa escala de importância, antecedia os

animais domesticados que, por sua vez, eram considerados superiores aos animais selvagens e

carnívoros, os quais se submetiam às leis da natureza. Para ele, a superioridade do ser humano

em relação aos outros animais lhe permitia ser o amo destes, uma vez que eram desprovidos

da capacidade de pensar. Partia de um princípio fundamental de que o homem era distinto das

163
Ibidem. pp. 33-37.
164
Buffon apud GERBI, Antonello. Op. cit. p. 31.
103

outras espécies e que possuía uma unidade fundamental que era a faculdade de pensar, de

produzir idéias. A partir da utilização dessa faculdade, Buffon fez sua distinção entre os

homens. Existiam os estúpidos, os selvagens e os civilizados. Em primeiro lugar estava o

homem civilizado que vivia em regiões de clima temperado. Para ele, os seres humanos eram

idênticos, faziam parte da mesma espécie, saíram do mesmo molde e as distinções existentes

eram devido às diferenças de clima, da alimentação e dos costumes. Esses podiam ser

divididos em europeus, chineses, negros e americanos, com suas respectivas variantes. As

variantes referiam-se à cor da pele, à forma e ao tamanho dos indivíduos, bem como a

maneira de ser dos diferentes povos.165 Buffon não foi o único a escrever sobre os seres

humanos, dando especial atenção aos americanos. Outros autores também se debruçaram

sobre esse tema. Segundo Michèle Duchet, o pensamento de Buffon fundamentava-se na

crença de que a história possuía um sentido que entendia o estado de civilização como seu fim

natural. A partir dessa perspectiva, a permanência do homem no estado selvagem remetia à

falha, à ausência essencial em relação aos outros seres humanos que já teriam percorrido este

processo.166

Seguindo as teses sobre a debilidade da América e dos americanos, no início da

segunda metade do século XVIII, foi publicado em Berlim a obra do Abade Corneille de

Pauw167, que radicalizou as teorias em voga sobre o tema. Típico enciclopedista, atacava os

jesuítas e a religião, tinha uma firme crença no progresso e “ausência completa de fé na

bondade natural do homem.”168 O homem somente tinha a possibilidade de se aperfeiçoar se

estivesse inserido na sociedade e, para ele, os homens americanos ainda se encontravam em

estado natural, ou seja, eram considerados brutos. No entanto, mais do que um animal
165
Para aprofundar as teorias do Conde de Buffon sobre os seres humanos ver: BUFFON, Georges Louis
Leclerc, Conde de. Del Hombre: escritos antropológicos. Tradução: Angelina Martín del Campo. México:
Fondo de Cultura Económica. 1986.
166
DUCHET, Michèle. Op. cit. 1995. p. 20.
167
De Pauw possuía cidadania francesa, mas sua origem é tema de discussões. Alguns autores dizem que nasceu
em Amsterdam, outros na região da Alsácia. Viveu durante algum tempo na corte de Frederico II, tendo morado
em Berlim e em Postdam.
168
GERBI, Antonello. Op. cit. pp. 59-60.
104

imaturo, os americanos eram degenerados e a natureza da América não era imperfeita, mas

decaída e decadente. Seu estado era selvagem, sem possibilidade de sair dele. Em seu furor

antiamericano, ele falava deles como crianças incorrigíveis e também como velhos precoces.

De Pauw retomou a tese sobre a fraqueza dos indígenas e os condenou como imorais, fracos,

ociosos e, desta forma, débeis e desfibrados.

Em seu ímpeto degenerador, De Pauw chegou a conclusões absurdas, como o

que falou sobre os Incas e suas cidades. Discordou e negou o que Garcilaso169 escreveu sobre

a cidade de Cuzco, dizendo que esta não passava de “um amontoado de pequenas cabanas”

que foi completamente destruída pelos espanhóis. Dos Incas, dizia que, enquanto alguns não

sabiam ler e escrever, outros não sabiam falar. Segundo ele, tudo enfraquecia na América, até

o ferro, o pouco que se achava por aqui era mole e não servia para nada.170 Mas se algo

degenera, é porque em algum momento foi melhor. O que levou a essa desgraça o próprio De

Pauw não conseguiu responder a contento. Recorreu a fatores naturais, como o clima, mas

também a catástrofes, como tremores de terra, inundações, entre outros flagelos. A tese do

dilúvio, baseada nos ensinamentos bíblicos, também foi utilizada por ele para explicar a

degeneração do Novo Mundo. Essa degeneração teria sido resultado de um dilúvio, não

aquele do Gênesis, mas um outro que ocorreu somente na América, e que de certa forma

historicizou a tese de Buffon sobre o continente encharcado. Seu sistema de explicação tinha

como base a relação clima/homem versus inanimado/animado. O homem americano não era

distinto apenas do homem do Velho Mundo. Por natureza, os homens americanos se

distinguiam entre si devido a sua estupidez e a uma ausência total de costumes que não eram

encontrados em nenhuma outra parte. Totalmente submetidos à influência do clima, os

costumes atrozes ou bizarros encontravam-se em todos as tribos: grosseria, superstições,

torturas e antropofagia. Para De Pauw o homem selvagem era um homem sem costumes, sem

169
Garcilaso de la Vega, o Inca. Escreveu Comentarios Reales de los Incas. Também escreveu o Prólogo da
Historia Generale del Peru publicada em 1617. De Pauw discordava de suas conclusões sobre os Incas.
170
GERBI, Antonello. Op. cit. p. 56.
105

modos e sem razão, sendo igual em todo lugar. Essa universalidade atestou sua estreita

dependência em relação ao meio físico e ao clima. A percepção de que alguns grupos de seres

humanos no interior da espécie eram degenerados “disfarça um racismo latente, mas de

aparência científica, que encontra, neste caso, na diferença máxima que separa o mundo

selvagem do mundo civilizado, uma aparência de justificação.”171

Segundo Michèle Duchet, a obra de De Pauw intitulada Les Recherches

philosophiques sur les Américains ocupa um lugar a parte no campo constituído pela história

natural ou moral e a ciência do homem na segunda metade do século XVIII. No centro do

sistema elaborado por De Pauw estava a relação dominante clima/homem versus

inanimado/animado. Os efeitos do clima sobre o físico e a moral da raça americana levavam à

degeneração, à depravação e ao reduzido crescimento populacional, o que acabou por

favorecer a conquista efetivada pelos europeus. No campo moral, salientou a preguiça, que

não permitia que os americanos inventassem ou empreendessem algo. Apesar de referir-se às

diferenças entre os tipos americanos, para De Pauw estas eram pouco importantes, não

chegando a colocar dúvida sobre suas conclusões: o novo mundo era outro mundo e seus

homens possuíam uma natureza diferente. Coletivamente, os americanos eram um “povo-

criança” que, despossuídos de inteligência e aperfeiçoamento, não poderiam percorrer os

diferentes estados de desenvolvimento e, desta forma, sair do estado de natureza em que se

encontravam. De Pauw encontra-se entre os estudiosos que rejeitam as informações dos

viajantes sobre os peruanos (incas) e os mexicanos (astecas). Ou seja, aos americanos era

negada a possibilidade de ser histórico. Ao contrário do Buffon, o estudioso optou por uma

história longa para a América, sendo a natureza a principal causa ativa. Em suma, a

degeneração do americano não era um processo, mas um estado original de onde eles não

sairiam. A natureza o condicionava a não ter outra “história”. Seu estado era o selvagem, sem

171
DUCHET, Michèle. Op. cit. 1995. p. 18.
106

possibilidade de sair dele.172 As teses de De Pauw contribuíram para o questionamento da tese

do bom selvagem, apesar de ter suscitado reações imediatas de inúmeros defensores da

missão civilizadora do cristianismo, dos avanços possibilitados pelo governo europeu e pelo

comércio no progresso da América e, consequentemente, da sua população.

Entre os opositores a essas teses, o mais enfático foi o abade beneditino

Antoine Joseph Pernetty. Utilizou como base de sua reflexão o fato de tanto De Pauw como

Buffon não terem estado na América e, portanto, não terem conhecido a realidade e a

população da qual eles estavam falando. Ele, ao contrário, havia visitado a América e

conhecera pessoalmente o tema em discussão. Segundo Gerbi, a obra de De Pauw, “de tom

por demais acre e sarcástico, deveria atingi-lo, seja em seu entusiasmo pelo bom selvagem e a

natureza virgem, seja em suas tendências religiosas e humanitárias.”173 Em 1769, Pernetty leu

sua primeira refutação na Academia de Berlim, publicando um ano depois sua Dissertation

sur l’Américains, contre les Recherches philosophiques de mr. De Pauw. Baseando-se na

teoria filosófica de Rousseau, salientou a bondade, a robustez, a sapiência e a laboriosidade

dos indígenas. Além disso, utilizou-se da autoridade de quem esteve na América e viu com

seus próprios olhos para recusar as teses que denegriam a América e seus habitantes. Citou

como exemplo os gigantes da Patagônia, para ele o argumento vivo contra a tese da

degeneração americana. Comentários sobre a existência de gigantes na América podem ser

encontrados em outros autores, como Américo Vespúcio, Pingafetta e o Padre Acosta. Apesar

de sua presença ser ridicularizada, estudiosos do século XVIII, como Rousseau, Voltaire e

mesmo Buffon, eram partidários na crença de que os patagônios eram detentores de uma

envergadura elevada, sendo considerados os gigantes da América. A presença deles era

172
DUCHET, Michèle. Le partage de savoirs: discours historique, discours ethnologique. Paris: Éditions la
découverte, 1985. pp. 82-104
173
GERBI, Antonello. Op. cit. p. 79.
107

recusada por estudiosos como Diderot e o abade Raynal, que diziam que gigantes existiam em

todos os lugares.174

Para defender a América dos ataques contra sua natureza, Pernetty citou

produtos que eram originários da América e que faziam sucesso na Europa, como o açúcar, o

cacau, as madeiras nobres etc.. Além disso, lembrou a existência de ursos enormes

encontrados no norte da América, das feras da selva do Brasil, dos tigres do Paraguai, tão

grandes quanto os do continente africano. Concordou que alguns animais domésticos haviam

degenerado em terras americanas, mas não aceitou que se generalizasse uma conclusão a

partir de um fato particular, como fazia De Pauw. Além disso, Pernetty viu na região do Prata

touros, cabras, ovelhas e cavalos do mesmo tamanho ou maiores do que os encontrados na

Europa. No entanto, no seu afã de defendê-los, acabou caindo no outro extremo, ou seja,

idealizar o selvagem denegrindo o europeu.175 A polêmica estendeu-se com a réplica de De

Pauw publicada em março de 1770 e a tréplica de Pernetty, publicada no ano seguinte, em

1771. Outros pensadores acabaram entrando no debate. Entre eles podemos citar La Doucer,

Paolo Frisi, Deslile de Sales, Abade Roubaud, Galiani, entre outros. O debate e as conclusões

exageradas defendidas por De Pauw acabaram influenciando em mudanças nas conclusões

defendidas por alguns estudiosos, como o próprio Buffon. Em 1777, ele publicou um estudo

no qual deixava de lado suas teses degenerativas e passava a defender que a América era um

continente jovem e, consequentemente, imaturo. Os americanos não eram ativos como os

europeus, mas, após os ataques de De Pauw, deixaram de ser impotentes e débeis.176

Devido a sua influência sobre os viajantes do século XIX, entre eles Auguste

de Saint-Hilaire e Louis Choris, é necessário falar sobre a posição de Alexander von

Humboldt na polêmica sobre a América e os americanos. Humboldt viajou pela América

174
Ibidem . pp. 79-81.
175
Para saber mais sobre esta polêmica que se estendeu por vários anos ver: GERBI, Antonello. O Novo
Mundo: história de uma polêmica (1750-1900). Tradução: Bernardo Joffily. 1º ed. 1955. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
176
GERBI, Antonello. Op. cit. pp. 130-131.
108

durante 5 anos, de 1799 a 1804. Suas viagens e os posteriores investimentos a fim de tornar

público seus estudos consumiram sua fortuna pessoal. Em 1807, publicou Quadros da

Natureza, o primeiro de muitos textos escritos após a viagem a América. Sua produção

estendeu-se até a sua morte, em 1859, totalizando 30 volumes, entre eles seu trabalho mais

importante, Kosmos. Nessa obra ele definiu sua doutrina sobre o cosmos, entendida como a

relação entre a terra e o céu, a ação conjunta das forças do universo. Essa compreensão o

levou a analisar o particular inserido no todo. Humboldt não fez comparações entre a América

e o Velho Mundo, mas investiu no aprofundamento do conhecimento dos organismos em sua

relação com os ambientes e com o universo. Foi o responsável pela difusão dos estudos sobre

a geografia das plantas, que estuda a distribuição das mesmas como um processo evolutivo.177

Suas idéias difundiram-se também através de palestras e devido a sua

influência entre os cientistas, tanto da França, onde morou por vários anos, como na Prússia.

Humboldt refutou a tese da juventude da América e enfatizou a harmonia, buscando

“compreender cada organismo e cada ambiente em si e em suas relações com o universo.”178

Diferentemente de Buffon e De Pauw, era um estudioso preocupado com a coleta e a

observação dos materiais. Diferia também de Linné ao valorizar a observação das espécies em

seu ambiente natural e em suas relações com as outras espécies que as cercam, na busca por

“uma visão orgânica do mundo”, muito influenciado por uma “ânsia romântica de

totalidade.”179 Segundo Gerbi, sua postura na polêmica sobre o Novo Mundo e seus habitantes

foi ambígua. Por um lado aceitava a tese da decadência, enquanto por outro rejeitava

totalmente as teses degenerativas de De Pauw. Para ele, o selvagem havia, por vários motivos,

embrutecido e se barbarizado. Discordava da tese de ser ele um primitivo, mas sim de que

177
As informações sobre Alexander von Humboldt foram extraídas dos seguinte livros: LISBOA, Karen
Macknow. A Nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na Viagem pelo Brasil (1817-1820).
São Paulo: Ed. Hucitec/FAPESP, 1997.; GERBI, Antonello. O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750-
1900). Tradução: Bernardo Joffily. 1º ed. 1955. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. pp. 130-131.
MOREIRA LEITE, Miriam Lifchitz. Livros de Viagem 1803/1900. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997.
178
GERBI, Antonello. Op. cit. p. 310.
179
Ibidem . p. 308.
109

havia ocorrido uma decadência a partir de uma condição mais elevada de civilização.

Devemos salientar que Humboldt, como os outros pensadores, estava se referindo aos povos

da América no século XVIII, ou seja, após mais de dois séculos de colonização européia. O

estudioso aproveitou para refutar a possibilidade de primitivismo e colocou dúvidas sobre o

valor da civilização. Seu objetivo não era fazer comparações, fossem estas quantitativas ou

qualitativas, entre os dois hemisférios, mas sim “compreender cada organismo e cada

ambiente em si e em suas relações com o universo.”180 Sua participação na disputa sobre a

natureza da América e dos americanos foi, segundo Gerbi, “algo marginal”, e seus escritos

não foram motivados, a priori, por este debate. No entanto, seus textos enalteciam a natureza

do novo continente, uma natureza que estava em constante movimento, dramática,

extraordinária, que fugia ao alcance do conhecimento e do intelecto dos seres humanos. Sua

grandeza apequenava o homem, incapacitando-o de torná-la acessível através do recurso da

coleta e classificação. Uma natureza tão exuberante que, ao mesmo tempo em que excitava as

paixões, dificultava a capacidade de percepção do homem. Segundo Mary Louise Pratt,

Humboldt foi o responsável pela reinvenção da América do Sul antes de tudo enquanto

natureza, descrevendo-a, como outros cronistas do século XVI, entre eles Colombo e

Vespúcio,

como um mundo primitivo de natureza, um espaço devoluto e atemporal


ocupado por plantas e criaturas (algumas delas humanas), mas não
organizado em sociedades e economias; um mundo cuja única história era
aquela prestes a se iniciar. Seus escritos também retratavam a América em
meio a um discurso de acúmulo, abundância e inocência.181

As discussões em relação a esta nova área do conhecimento - a História

Natural - e principalmente como seu método de estudo foi desenvolvido e delimitado, é

importante para analisarmos como os cientistas viajantes desenvolveram uma nova forma de

olhar para as coisas e de sistematizar os novos conhecimentos e objetos com os quais tiveram

180
Ibidem . p. 310.
181
PRATT, Mary Louise. Op. cit. pp. 220-221.
110

contato nas regiões para onde eles viajaram. No final do século XVIII e início do século XIX,

o olhar europeu para a “natureza profissionalizou-se, almejando legitimidade e precisão

científicas, e, ao mesmo tempo, proporcionou deleite, alimentando a curiosidade européia por

cenas exóticas.”182

182
MARTINS, Luciana de Lima. Op. cit. p. 9.
111

5. Descrevendo a Natureza de Santa Catarina

Os viajantes tinham como motivação para realizar suas viagens o estudo da

natureza local. Como ela foi descrita? De que maneira as concepções de natureza que estavam

sendo discutidas na Europa influenciaram na forma como a região do litoral de Santa Catarina

foi vista e traduzida posteriormente nos relatos publicados? A cultura e a formação

profissional fez com que esses viajantes tivessem uma forma distinta de olhar, como já

analisamos anteriormente. Além disso, temos a questão da viagem, que possibilitava aos

indivíduos nela envolvidos experiências de estranhamento. Mas esse estranhamento não

decorre somente da posição do viajante em relação ao meio em que ele se encontrava, ao seu

entorno, mas também pela interioridade que era marcada pelo tempo. Para Sérgio Cardoso, a

experiência do viajante

nos faz mais profundamente compreender é que, o “outro”, só o alcançamos


em nós mesmos, que o “estranho” está prefigurado no sentido aberto do
nosso próprio mundo, inscrito no fluxo e no movimento da sua
temporalidade. Compreendemos por ela que o “estrangeiro” está sempre já
delineado nas brechas da nossa identidade, na trilha aberta por nossa própria
indeterminação.183

As teses sobre a natureza e o homem americano foram amplamente discutidas

na Europa e contribuíram para a formação de um olhar prévio dos viajantes que vieram para a

Capitania de Santa Catarina. Além disso, essas imagens e representações não circulavam

somente entre os cientistas, mas, de certa forma, também chegavam ao restante da população.

O conhecimento prévio, adquirido pelas leituras de outros autores, acabava gerando

CARDOSO, Sérgio. O olhar viajante (do etnólogo). In: NOVAES, Adauto (org.). O Olhar. São Paulo:
183

Companhia das Letras, 1988. p. 360.


112

expectativas, como a demonstrada por Langsdorff quando esteve no Brasil pela primeira vez.

Deixou registrado que, antes de iniciar as explorações em terra firme, estava

excitado por tão belas imagens de minha fantasia, mal podia aguardar o
retorno do sol para visitar a região paradisíaca. Confesso que minhas idéias
eram exageradas e tensas, mas apesar disto, quanto mais eu me aproximava
da terra, a realidade excedia minha expectativa.184

A imagem da América que esse viajante tinha gravada em mente era de “uma

terra que foi agraciada pela natureza em todos os sentidos, uma terra onde tudo viceja com

inexcedível beleza e garbo imagináveis.”185 Outros viajantes também acreditavam que a

natureza do Novo Mundo era privilegiada, que nesse continente não era necessário trabalhar

como no Velho Mundo, que os alimentos cresciam por si mesmos, sem a intervenção do

homem, sem seu trabalho. Pernetty, após falar que os habitantes da Ilha de Santa Catarina

viviam na ociosidade, uma vez que o “pouco trabalho” era feito pelos escravos, concluiu que

“a terra produz quase tudo o que é necessário para viver, sem que se dêem ao trabalho de

cultivá-la.”186 Mesmo vendo e escrevendo sobre a presença e o trabalho dos escravos em

terras americanas, Pernetty afirmou que nesta região não era preciso trabalhar, devido a

generosidade da natureza. Esse aspecto foi salientado por Sérgio Buarque de Holanda em seu

estudo sobre a edenização do Brasil no período de seu descobrimento e colonização. O autor

mostra na pesquisa que a América foi retratada como uma cópia do Éden pelos primeiros

visitantes, mas esta imagem foi construída em oposição à imagem que os europeus tinham de

sua própria terra, a Europa:

Enquanto no Velho Mundo a natureza avaramente regateava suas dádivas,


repartindo-as por estações e só beneficiando os previdentes, os diligentes, os
pacientes, no paraíso americano ela se entregava de imediato em sua
plenitude, sem a dura necessidade - sinal de imperfeição - de ter de apelar
para o trabalho dos homens. Como nos primeiros dias da Criação, tudo aqui
era dom de Deus, não era obra do arador, do ceifador ou do moleiro. 187

184
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 162.
185
Ibidem. p. 162.
186
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 83.
187
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização
do Brasil. 5º ed. São Paulo: Brasiliense, 1992. Prefácio, p. X.
113

Outro aspecto que surpreendeu os viajantes foi a exuberância e a imponência

da natureza da América. Para Chamisso, “na Ilha de Santa Catarina, o europeu fica envolvido

em uma nova criação cuja abundância em tudo é gigantesca e deslumbrante.”188 Lesson

também salientou este aspecto:

Florestas espessas, frondosas, impenetráveis muitas vezes, atapetam as


montanhas; [...] o naturalista que visita este litoral com os olhos
exclusivamente habituado à criação das zonas temperadas da Europa, não se
pode furtar, à vista da produção brasileira, de uma emoção tanto mais forte,
que ela sobrepuja ainda à que sua imaginação lhe prometia, após as relações
de viagem que ele tivesse lido. Nos primeiros dias ele pode apenas se
familiarizar com esta pompa e esta grandeza que por toda a parte se mostra
ao olhar. Somente algum tempo depois é que ele se habitua a este luxo de
vegetação e ao brilhante adorno dos pássaros ou dos répteis que pululam
sobre este solo fecundo.189

A exuberância da natureza americana era entendida em contraposição à da

Europa. Nossa singularidade era vista e compreendida quando em relação com o conhecido, o

habitual, ou seja, a natureza européia. E muitas vezes, apesar de nossa riqueza e de nossa

imponência natural, a América saía perdendo nas comparações, como podemos observar na

fala de Chamisso: “ainda que a América não possa concorrer com as gigantescas espécies

animais do Velho Mundo, desde o elefante até a cobra Boa, na natureza brasileira é a

variedade e a quantidade que equilibram a falta.”190 Podemos relacionar a fala de Chamisso,

que esteve na América em 1815, com as teorias difundidas no século XVIII por Buffon, que

defendia que os animais maiores são superiores ao menores. A ausência de animais de grande

porte na América, sinal inegável da imaturidade de nossa natureza para os partidários das

teorias buffonianas, acrescenta-se a presença abundante de insetos, que faz com que “os

brasileiros sofrem das incomodidades de todos os países quentes, atormentados pelos insetos,

de cuja picada não podem evitar devido à pequenez de seus tamanhos.”191 A combinação,

ausência de grandes espécies de animais e excesso de insetos minúsculos, para os detratores

188
CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 232.
189
LESSON, René Primevère. In: Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos
XVIII e XIX. Op. cit. p. 271.
190
CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 232.
191
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 88.
114

da América, é a comprovação de sua imaturidade, quando não de sua degeneração, como já

comentamos anteriormente.

Os viajantes que aqui estiveram tinham contato com as discussões que

circulavam pela Europa sobre a América. A análise dos relatos dos viajantes possibilita

aprofundarmos como essas teorias os influenciaram. Auguste de Saint-Hilaire, por exemplo,

descreveu a natureza da Capitania de Santa Catarina de forma ambígua. Em alguns

momentos, ou regiões, o clima era agradável, a vegetação exuberante e a terra, fértil. Em

outros, a paisagem tornava-se monótona, com locais insalubres. No entanto, apesar de mostrar

que a natureza tropical não era homogênea e que havia regiões idílicas, mas também áreas

insalubres, Saint-Hilaire continuava pensando que, em um país localizado em “um clima tão

quente e em região tão fértil”, os seus habitantes não precisariam “trabalhar tanto quanto na

Europa.”192 Esses discursos eram muito comuns entre os viajantes. A dualidade presente nos

comentários dos viajantes remete as discussões sobre a América. Após séculos da chegada

dos primeiros europeus no Novo Mundo, não existia consenso entre os filósofos e estudiosos

quando se trata em definir a natureza da América e as características de seus habitantes.

Apesar de terem posições definidas antes de partirem da Europa, a experiência pela qual

estavam passando não lhes deixou imune. Uma experiência que foi relembrada quando da

escrita do relato, alguns anos após a viagem e já na Europa.

Georg von Langsdorff também acreditava que no Novo Mundo a “natureza

tudo dá, mesmo sem esforço ou assistência e trato.”193 Segundo ele, o pouco desenvolvimento

não era devido à geografia ou ao clima, mas sim à ausência de empenho do governo em

povoar melhor essas regiões. Dessa forma, “poder-se-ia formar aqui, através de seus produtos

que quase jorram livremente da cornucópia da livre natureza, em poucos anos, um dos centros

192
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 149.
193
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 163.
115

comerciais mais importantes do Brasil.”194 A riqueza, para esses viajantes, não era produzida

com o trabalho dos homens, geralmente com a utilização do trabalho escravo, mas “jorrava

livremente”.

A fim de melhor descrever o que viam em suas viagens por terras distantes e

desconhecidas, os viajantes utilizavam-se da relação entre o semelhante e o diferente,

normalmente sendo tomados como padrão o conhecido, o familiar, ou seja, a Europa e sua

cultura. Isso era feito tendo em vista que os relatos de viagens seriam lidos por pessoas

comuns. Não tão comuns se levarmos em consideração o número restrito de pessoas que

tinham acesso à instrução e à leitura na Europa do final do século XVIII e início do século

XIX. Essas pessoas não estavam vinculadas as instituições científicas, mas muitas delas se

dedicavam ao estudo da História Natural por diletantismo, moda muito difundida naquele

período. O discurso dos viajantes, ao mesmo tempo que tentava definir uma identidade para a

população e a sociedade americana, também reforçava, por oposição, uma identidade para a

Europa e seus habitantes.

Como analisamos no capítulo anterior existia uma dicotomia entre o Velho

Mundo e o Novo Mundo. Mas distinções não ocorriam somente entre a Europa e a América,

também estavam postas no interior do próprio continente europeu. A sociedade européia nos

fins do século XVIII e século XIX era vista como uma sociedade dividida entre “duas

nações”: de um lado os ricos-civilizados e no outro lado os pobres-selvagens. Nesse sentido,

alguns países, como a França, a Inglaterra e a Prússia se viam como superiores em relação aos

outros países, principalmente aqueles localizados às margens do Mar Mediterrâneo, como a

194
Ibidem. p. 163.
116

Itália, a Espanha e Portugal. Era corrente entre os letrados da época a divisão entre duas

formas de existência: a instintiva versus a racional. Existia a noção de que, quando mais se

desenvolvesse a razão, mais a parte instintiva tendia a recuar. Por essa concepção, o pobre,

devido às condições e ao meio em que vivia, era degradado física e moralmente.195 O

entendimento de que o avanço da civilização somente ocorreria com o recuo da natureza

selvagem também pode ser percebido nas falas dos viajantes que estiveram em Santa

Catarina. Para eles, a natureza da América era um dos fatores que não permitia, ou retardava o

“progresso” de seus habitantes, quando não era diretamente responsável pelo

desenvolvimento de homens doentes, uma vez que eles compartilhavam da noção de que o

meio e as condições no qual estavam inseridos os seres humanos contribuíam de forma

decisiva no seu desenvolvimento material e moral.

Pernetty iniciou a segunda parte do seu relato falando que “falta alguma coisa

para que a Ilha de Santa Catarina seja uma moradia encantadora”. A atmosfera carregada de

vapores que, com dificuldade, eram dissipados pelo sol e pelo vento, juntamente com os

odores fétidos e o ar que não circulava, tinham influências negativas sobre os habitantes

locais, que, independente de sua vontade, entregavam-se a inércia. Segundo ele,

o ar insalubre deste clima é verdadeiramente a causa da palidez dos brancos


que ali habitam. Destes bosques onde o sol jamais penetra, elevam-se
vapores densos que formam brumas eternas no alto das montanhas que
cercam a ilha. As partes baixas, muito alagadiças, estão igualmente cobertas
desde as seis ou sete da tarde até as oito horas do dia seguinte, quando o sol
as dissipa. Estes vapores possuem em geral um odor lodoso que, com a
circulação do ar fechada, parece dissiparem-se para dar lugar a outros que se
sucedem. Este ar insalubre é corrigido levemente pela quantidade de plantas
aromáticas, cujo perfume suave se faz sentir a três ou quatro léguas no mar,
levado pelo vento do mar.196

Apesar de todas as dificuldades e malefícios citados, Pernetty constatou que “a

ilha [de Santa Catarina] [...] é muito cara aos naturalistas.”197 Novamente era a variedade e a

195
BRESCIANI, Maria Stela. Metrópolis: as faces do monstro urbano. Revista Brasileira de História: Cultura
e cidades. nº 8/9. Rio de Janeiro: ANPUH/Marco Zero, 1985. pp. 39-40.
196
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 86.
197
Ibidem. p. 86.
117

riqueza natural que a redimia de seus pecados. Alguns anos depois, também durante o verão,

como o viajante acima citado, Langsdorff esteve visitando a Ilha de Santa Catarina e teve

outra impressão sobre o clima. Apesar de as noites serem úmidas, “parece que o clima não

tem influências perniciosas sobre os moradores”198, exceto na região norte da capitania, onde

existiam muitos mangues e águas paradas. John Mawe, que passou por Santa Catarina em

1807, constatou que existiam regiões insalubres, principalmente durante a estação das chuvas.

Nessa época o solo ficava, “em grande parte, inundado, e no verão é infestado por terríveis

enxames de moscas e borrachudos, que o tornam quase inabitável.”199 A insalubridade

poderia ser corrigida, através da drenagem e da limpeza da área, mas “tal empreendimento é

árduo, e requer um povo mais ativo e prático.”200 Para ele, além da insalubridade do lugar,

existia outro problema: os habitantes. Mas, apesar dos insetos e da umidade em regiões e em

épocas determinadas, a “profusão das mais belas flores atesta a amenidade do seu clima. A

rosa e o jasmim florescem o ano todo.”201 Aparentemente, o fato de aqui crescerem plantas

comuns em seu país de origem, a Inglaterra, era uma prova de que a região tinha aspectos

positivos. Encontrar pontos em comum entre as áreas visitadas e as áreas de onde eles vinham

era, para alguns viajantes, demonstração evidente do desenvolvimento ou não da natureza

local. Caso essas semelhanças se referissem à população, era a comprovação de sua

civilidade.

Além de falar sobre a natureza, os relatos continham informações sobre a saúde

das populações visitadas e sobre como os habitantes do Novo Mundo utilizavam plantas e

outros produtos da natureza para o tratamento das moléstias. A explicação dada pelos

viajantes para a maioria das doenças comuns entre os habitantes locais era devido aos

miasmas. Saint-Hilaire comentou que o hospital, a Santa Casa de Caridade dos Pobres, apesar

198
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 165.
199
MAWE, John. In: Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX.
Op. cit. p. 194.
200
Ibidem. p. 194.
201
Ibidem. p. 190.
118

de pequeno, tinha sido construído em uma região alta onde “os ventos renovam ali o ar

constantemente”. Isso, mais sua localização afastada da cidade, fazia com que os habitantes

estivessem “ao abrigo de todo contágio.”202

A escolha do lugar onde foi construído o hospital seguia os conhecimentos

médicos da época. No século XVIII e XIX, até o descobrimento das primeiras bactérias,

realizadas em 1882 e 1885, respectivamente por Robert Koch e Louis Pasteur, acreditava-se

que as infecções ocorriam devido à ação exercida pelos “miasmas mórbidos” ou “miasmas

odoríferos”. Na Europa do início do século XIX, o tifo grassava entre os soldados e também

entre os prisioneiros da justiça. Doença transmitida pelo piolho, na época acreditava-se,

devido à forma como ela se espalhava, que era por causa do odores que exalavam dos doentes

e mesmo das roupas que eles haviam utilizado. Exemplo disso foi a infecção das operárias

que trabalhavam numa manufatura localizada na cidade de Gand, Países Baixos, para onde

foram enviadas as tendas que haviam abrigado os soldados doentes da Remânia. Na

Inglaterra, os magistrados, após muitos casos de infecção de soldados e membros da corte

pelos “miasmas odoríferos”, tinham o hábito de usarem no colarinho um cravo, a fim de

dissipar os “odores venenosos”. Segundo os paradigmas médicos da época, acreditava-se que

a infecção propagava-se porque o indivíduo doente agia sobre o ambiente em torno de si,

alterando-o e, desta forma, permitindo que a doença se alastrasse.

No Brasil, as autoridades médicas, encarregadas de combater a epidemia de

febre amarela que se alastrou pela cidade do Rio de Janeiro em meados do século XIX,

preocupavam-se com a negligência em relação às condições sanitárias da cidade. Pântanos,

águas servidas e estagnadas, praias que exalavam odores devido às carcaças de animais

jogados, bem como outras imundícies, combinados com o calor sufocante e a falta de chuvas

não permitiam que o ar circulasse, fazendo com que partículas venenosas se desprendessem

202
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 171.
119

do solo e subissem em direção à atmosfera, segundo alguns doutores mais atentos.203 No que

se refere a Desterro, existe um documento da segunda metade do século XIX, escrito pelo Dr.

João Ribeiro de Almeida, médico que residiu em Santa Catarina por causa do serviço militar.

Para ele, um dos fatores que elevava a taxa de mortalidade da vila e a causa de algumas

doenças era

...a evaporação d-agua das fontes publicas, pelo excesso de calôr, determina
um augmento consideravel de densidade do liquido, que promptamente se
putrefaz, pois que contém sem duvida principios organicos em dissolução,
que existião no fundo mais ou menos lodoso destas aguas estagnadas. 204

Saint-Hilaire aprovou a escolha do local onde foi construído o estabelecimento

de saúde, uma vez que localizava-se afastado da vila. Além disso, os ventos constantes

contribuíam para evitar a propagação das moléstias. Mais do que um local de tratamento de

doenças, os hospitais eram locais onde as pessoas doentes eram isoladas ou deixadas pelos

familiares que não tinham condições de cuidá-las. A saúde dos habitantes de Nossa Senhora

do Desterro e do restante da província, segundo Langsdorff, estava aos cuidados do cirurgião

do regimento, que era o responsável pelos dois hospitais que existiam na vila, um civil e o

outro militar.

A primeira referência à existência de um hospital na Ilha de Santa Catarina foi

encontrada na Provisão Real de 19 de maio de 1753. Esse havia sido instalado para prestar

assistência aos militares, devido à exigência de um cirurgião e também de uma enfermaria

para atender os inúmeros casos de epidemias, comuns entre os soldados. Além do

atendimento às tropas, também eram atendidos os casais açorianos que se instalaram na Ilha

203
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996. pp. 64-66. Mais informações sobre este assunto ver também: LE GOFF, Jacques et. al. As doenças
tem história. Tradução: Laurinda Bom. 2ª ed. rev. Lisboa: Terramar, 1997.
204
ALMEIDA, João Ribeiro de. Ensaio sôbre a salubridade, estatística e pathologia da Ilha de Santa Catarina e
em particular da Cidade de Desterro. Apud. CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Medicina, médicos e charlatões do
passado. Florianópolis: Arquivo Catarinense de Medicina. Edição Cultural. 1977. p. 26.
120

de Santa Catarina e, até 1789, os pobres. Os casais tinham autorização para serem atendidos

às expensas do Estado Português durante os três primeiros anos após sua chegada.

O outro hospital que existia era a Santa Casa da Caridade dos Pobres, que

começou a receber seus primeiros pacientes no início de 1789. O hospital foi construído ao

lado da Capela do Menino Deus, com a ajuda de doações da comunidade, recolhidas pelo

Irmão Joaquim Francisco da Costa, e de uma pensão anual de 300 mil réis instituída pela

Rainha. Estava localizado na colina Menino Deus, próximo dos bairros da Toca e do Campo

do Manejo. A administração do hospital tornou-se encargo da Irmandade do Senhor Bom

Jesus dos Passos. Em 1856, o estabelecimento foi entregue aos cuidados de sete Irmãs de

Caridade, vindas da França, juntamente com dois padres Lazaristas. Após 8 anos, as irmãs

deixaram o hospital, que foi entregue aos cuidados de enfermeiros leigos. Esse hospital,

ampliado, hoje é conhecido como Hospital de Caridade. Quando da viagem de Saint-Hilaire,

em 1820, os militares estavam sendo atendidos nas suas dependências, que ele chamou de

Hospital do Menino Deus. Segundo o viajante, “as salas eram perfeitamente iluminadas, mas

o prédio tinha o inconveniente de ser muito baixo, e por causa disso as janelas não podem, em

certos casos, ser abertas sem risco para os doentes.”205 Naquela época já havia o projeto de

construir um hospital militar. O terreno, localizado no sopé do morro, ao lado do quartel, já

havia sido demarcado. 206

Em seu relato, Langsdorff, que era formado em medicina, registrou algumas

informações sobre a saúde local. Citou a ocorrência de epidemias, como a desinteria e a


205
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 183. Mais informações sobre a história do Hospital de Caridade
ver: COMERLATO, Fabiana. Espaços arquitetônicos do Hospital de Caridade. Florianópolis: TCC/UFSC,
1997.
206
Entre os anos de 1769 e 1796 o atendimento ficou a cargo do cirurgião de fragatas Paulo Lopes Falcão. Após
1777, devido a destruição do prédio onde estava instalado, o Hospital Real passou a ocupar o antigo Hospício
dos Jesuítas, que ficava localizado ao lado da Casa da Câmara. Em 1780, o Hospital Real deixa o prédio que
havia pertencido aos Jesuítas e é instalado num quartel. Onde se localizava este quartel não temos informações,
mas poderia ser no prédio dos Artigos Bélicos, localizado na praça, esquina com a Rua da Pedreira, conhecida
também como Rua dos Artigos Bélicos(atual Vítor Meireles). O outra possibilidade é ter sido instalado no
pequeno quartel que ficava ao lado do terreno onde hoje se localiza a Igreja de São Francisco. Já em 1841 tem-se
informações de que o Hospital Militar estava atendendo nas dependências do Forte Santa Bárbara e em 1872 o
Hospital Militar da Boa Vista foi construído nas proximidades do Hospital de Caridade. Ver: CABRAL,
Oswaldo. Nossa Senhora do Destêrro. Notícia I. Florianópolis: UFSC, 1971.
121

varíola, esta última muito prejudicial entre os escravos. Além dessas, eram comuns os

problemas de pele, como a sarna e o bicho-dos-pés. Outro problema eram as doenças

venéreas, muito difundidas devido aos contatos sexuais precoces. Quando de uma gravidez e

parto, registrou que não existia parteira ou médico que acompanhasse as parturientes. Nesse

momento a mulher era acompanhada por outras mulheres que já haviam dado a luz. Esse tema

era do interesse de Langsdorff que, sempre que possível, quando entre mulheres, desviava a

conversa para o assunto. Era crença popular que, para evitar nova gravidez, a mulher devia

estender o aleitamento materno, o que ocorria em média até os três ou quatro anos da criança.

Apesar disso, a fertilidade era grande, encontrando-se famílias com 15 a 20 filhos. Para o

tratamento aos doentes, além dos hospitais, existiam três estabelecimentos que vendiam

remédios, mas que, na opinião do viajante, deixavam muito a desejar, não possuindo um

estoque diversificado dos mesmos. Essas informações sobre as condições médicas

são, logicamente, pegadas a esmo, pois ninguém pode esperar um estudo


clínico relacionado com o clima, a economia, o modo de vida, usos e
costumes da terra, relacionados por um estrangeiro que passa apenas alguns
dias ou semanas neste lugar e que não obteve de imediato a confiança dos
moradores, podendo assim apresentar os fatos sob um falso prisma.207

Langsdorff, até mesmo por sua formação primeira, analisou com mais cuidado

o quadro clínico da Ilha de Santa Catarina, se o compararmos aos outros viajantes. Esses,

muitas vezes concluíram que o grande problema era o clima, a combinação de calor e

umidade. É o caso de Lesson, que diz que

esta umidade, que está sempre acompanhada de um grande calor durante o


verão, contribui para a insalubridade do ar, fazendo aparecer as disenterias e
os cólera-morbus [...] os eflúvios que se desprendem das vastas savanas
submersas resultam em febres intermitentes que acabam em entupimentos ou
em hidropisias. 208

207
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 179.
208
LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 273.
122

Felizmente, na opinião de Pernetty, a natureza foi generosa e ela própria

providenciou a cura para seus problemas, uma vez que “as florestas estão cobertas de arbustos

aromáticos e o perfume que se expande corrige um pouco a impureza atmosférica.”209

Outro interesse, como já comentamos, refere-se às plantas medicinais e às

maneiras como as populações locais as utilizavam. Pernetty conheceu a “avenca”, utilizada

para os males do estômago. Além disso, foi testemunha da utilização da “tisana”, “uma

cozedura das extremidades dos brotos sensíveis e dos pequenos frutos da goiaba que

começam a vingar”210, por um negro livre a fim de curar a dor no ventre de um dos membros

da expedição, já tratado sem sucesso pelos cirurgiões da fragata. O mesmo negro curou uma

mulher que tinha dores nos tornozelos utilizando-se de ervas fervidas da região, cujo líquido

resultante foi friccionado sobre a pele. A cura foi rápida, de seis a sete dias. A utilização de

ervas e plantas para a cura de doenças é do conhecimento do ser humano há muito tempo e é

proveniente da observação do comportamento dos animais e dos efeitos causados no

organismo humano quando da ingestão de determinadas plantas. Outras explicações remetem

à tradição e mesmo a lendas e intervenções divinas. Pela fala de Langsdorff podemos perceber

que o conhecimento dos afro-descendentes sobre doenças e tratamentos utilizando ervas e

plantas era utilizado pela população local. Um conhecimento que não era dispensado nem

mesmo pelo viajante. Ao mesmo tempo em que os viajantes vem para a América com uma

postura de pessoas que conhecem o que existe de mais avançado no estudo científico, por

outro lado eles são dependentes do conhecimento popular, que os habitantes locais possuíam

em decorrência da tradição e da observação. Neste sentido, o contato com os “nativos”, como

mostra a citação anterior, era valorizado, uma vez que permitia observar a utilidade prática

das plantas.

209
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 100.
210
Ibidem. p. 105.
123

A botânica pertenceu durante muito tempo à alçada de médicos, curandeiros e

boticários. Registros escritos da utilidade medicinal das plantas foram encontrados no Egito,

3.000 a. C., na China, 500 a. C., na Grécia e no Oriente Próximo, também antes de Cristo. No

período medieval desenvolveu-se a prática ervanária, principalmente nos mosteiros. Eram os

monges os responsáveis pela reprodução dos documentos médicos e fitoterapêuticos antigos.

O mais famoso foi a Abadia Beneditina de Monte-Cassino, que vinculou-se à escola de

medicina criada em Salerno no século IX, e que por mais de três séculos foi o berço da

renovação da medicina. Nessa escola eram tratados os cruzados que voltavam da Terra Santa

e acolhiam médicos de diferentes regiões, possibilitando a troca de conhecimentos. Foi

também em Salerno que veio à luz alguns tratados de medicina, como o Circa instans, de

1150, e que enumerava 229 plantas vegetais. Outras obras que surgiram posteriormente foram

o De Vegetalibus, o Grande Alberto e o Pequeno Alberto. Na França, a Escola de Montpellier

atuava desde o século XI. O conhecimento sobre ervas ampliou-se com a descoberta da

América e com a invenção da imprensa. Pouco a pouco a botânica afastou-se da ciência do

ervanário. Muitas cidades possuíam pequenos jardins que ficavam sob a responsabilidade de

médicos ou de boticários. Em Pádua, o jardim botânico, fundado em 1545, era vinculado à

escola de medicina. Em Paris, século XVI, existia um pequeno Jardim do Rei, localizado na

Ilha da Cité. A necessidade de um jardim de plantas medicinais a fim de socorrer a população

enferma, e também para servir de local de aprendizado para os futuros médicos, levou o Rei a

fundar, em 1633, o Jardim Real de Plantas Medicinais, ou Jardin du Roi, atualmente o Jardim

de Plantas, localizado na cidade de Paris. Na França, entre 1767 e 1941, existia a profissão do

ervanário, regulamentada pelo Estado, inclusive com exame de acesso para os futuros

profissionais. Por essas breves informações constatamos que o interesse e a utilização de

plantas e outros produtos naturais na cura de doenças era uma prática difundida e muito

utilizada pelos europeus.211


211
LE GOFF, Jacques. As plantas que curam. In: LE GOFF, Jacques et. al. As doenças tem história. Tradução:
124

Nos relatos podem ser encontrados inúmeras passagens onde são comentados

as utilidades práticas das plantas que estavam sendo coletadas e descritas. Essas eram

utilizadas tanto para o tratamento de doenças como para outros fins. Plantas desconhecidas

dos europeus, e que eram utilizadas pelos habitantes locais despertavam o interesse dos

viajantes, como no relato a seguir:

Em uma casa mais afastada, onde íamos tomar alguns refrigérios, a mulher
que nos serviu estava ocupada em rasgar folhas compridas e úmidas,
colocando-as às costas, uma espécie de cana muito comum ao longo dos
bosques e dos caminhos. Ela tirava uma espécie de filamento verde e muito
fino, quase como a seda descruada, tingido de um verde pálido. Ela nos disse
que fixava em seguida esta substância filamentosa, para fazer linhas e fios de
pesca, e que eles duravam muito tempo. Talvez pudéssemos empregá-los
também para outros usos.212

Entre os viajantes analisados, salientamos que Pernetty foi quem demonstrou

maior interesse pela utilização medicinal das plantas nativas. Mesmo no relato de Langsdorff,

que descreveu as condições de saúde na vila de Desterro, e que era médico, não encontramos

novas informações. No entanto, esse desinteresse não significava desconhecimento, uma vez

que, ao falar das farmácias, que somavam três na vila, salientou o pequeno estoque de

remédios e a ausência de produtos nativos, tais como o bálsamo de copaíba e o óleo de

rícino.213 Uma explicação possível para o interesse de Pernetty pode ser o próprio

desconhecimento em relação a essas plantas em sua época, meados do século XVIII. Os

outros viajantes estiveram na região já no início do século XIX, quando provavelmente as

utilidades medicinais de muitas das plantas nativas da América já eram difundidas na Europa.

A riqueza, muitas vezes oculta ou desconhecida, era outro dos interesses dos

viajantes quando saíam para realizar a coleta de material. A prioridade não era para o que os

homens tinham desenvolvido, o que eles tinham produzido, até porque o que eles

encontravam aqui era “menos civilizado” em relação à sociedade de onde eles vinham e com

Laurinda Bom. 2ª ed. rev. Lisboa: Terramar, 1997. pp. 343-357.


212
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 107.
213
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 180.
125

a qual eles estavam acostumados. Esse aspecto dos relatos dos viajantes será analisado de

maneira mais aprofundada nos capítulos 6 e 8. O olhar do viajante cientista estava preparado e

interessado em observar a natureza, como nos fala Saint-Hilaire: “apressemo-nos a desviar os

olhos de todas essas infelicidades para contemplarmos as belezas da região que lhes serve de

palco.”214 Era a natureza, sua flora e fauna, que interessava aos cientistas viajantes, este era o

seu objeto de estudo. No caso dos estudiosos da natureza que seguiam o sistema de

classificação de Linné, o interesse era direcionado para a flor, devido à necessidade de

conhecer o sistema reprodutivo a fim de classificar as plantas, como é salientado pelo seguinte

comentário: “em outra época do ano eu teria certamente recolhido uma grande variedade de

plantas; mas o tempo de floração tinha passado e só ficara o restolho.”215

A riqueza da flora brasileira já era do conhecimento dos europeus, fato

salientado por Adalbert von Chamisso ao citar vários estudiosos que estiveram pesquisando

no Brasil. No entanto, muito ainda existia a ser pesquisado, uma vez que

tudo era novidade para a ciência. O trabalho de tantos homens, no entanto, é


ainda fragmentário. Se alguém reexaminar alguma família que já foi
classificada por outrem, vai ter o que acrescentar sempre. 216

Podemos constatar pela citação que relatos de outros viajantes foram lidos por

Chamisso antes de escrever o seu próprio relato, ou mesmo antes de embarcar na viagem de

estudos. Os relatos, as concepções sobre a natureza e as opiniões do grupo de viajantes

formados por cientistas circulavam entre si, influenciando-se mutuamente. Outro ponto que

podemos constatar nessa fala é a busca pelo conhecimento e de como este ainda encontrava-se

fragmentado, num estágio inicial de desenvolvimento apesar de todos os esforços e

investimentos que estavam sendo empreendidos.

Nos relatos de viagem encontramos descrições de plantas, flores, frutos, insetos

e animais, alguns extremamente detalhados, mesmo naqueles cuja prioridade não era o estudo

214
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 168.
215
Ibidem. p. 190.
216
CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 233.
126

e descrição da História Natural, como no caso de Langsdorff, que apesar de estar numa

viagem de circunavegação e desenvolver o trabalho de coleta e estudos de espécies vegetais e

animais, principalmente borboletas, dizia que a “história natural não é o objetivo desta

descrição de viagem.”217 No entanto, em algumas passagens de seu texto encontramos

descrições da vegetação e animais:

a natureza viçosa, que aqui apresenta uma maior fertilidade e variedade de


cores, um esplendor da forma, da riqueza e plenitude que se possa sonhar,
povoou ainda esta floresta com uma infinidade de seres; minha atenção
voltou-se para os mamíferos, os pássaros, os insetos e anfíbios que nós,
europeus, só conseguimos ver, muito raramente, em coleções muito grandes
de ciências naturais, empalhados ou em álcool.218

Apesar de inúmeras descrições sobre a natureza de Santa Catarina, o interesse

maior do viajante era mesmo as borboletas, no que foi muito feliz, pois encontrou no

continente, na região que atualmente pertence ao município de São José, um morador que

dedicava-se à coleta destes insetos a anos e possuía uma extensa coleção. O contato com o

colecionador nativo foi de grande ajuda para o enriquecimento de sua coleção, uma vez que

ele conhecia os melhores lugares para encontrar insetos. Os locais pesquisados tinham tanto

insetos que

meu acompanhante não fazia mais do que alfinetar as heroínas caçadas.


Como não fora nossa intenção colecionar a esta distância espécies que
poderíamos conseguir junto à costa, procuramos caçar apenas nosso objetivo
principal, que eram as borboletas gigantes, pegas com uma grande rede
fixada de uma distância à outra, como se fosse um caçador à espera de sua
presa. Não demorou muito, apareceu a bela “Adonis” e a “P. Epistrophus
Weberi”.219

Nessa passagem temos uma descrição de como se desenvolvia o trabalho e a

coleta de insetos. Este viajante podia contar com a presença de um acompanhante, “um rapaz

português muito vivo” que foi contratado e que “carregava os caixotes e bebidas” enquanto

217
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 179.
218
Ibidem. p. 172.
219
Ibidem. p. 173.
127

Langsdorff “levava as redes, alçapões e receptáculos botânicos para insetos, facas e outras

ferramentas.”220

No que se refere aos outros animais, temos descrições detalhadas de alguns no

relato de Pernetty. Segundo ele, a singularidade dos animais e das plantas da região

compensavam de certa forma o abandono da natureza. O que mais lhe chamou a atenção foi a

enorme quantidade de espécies diferentes de pássaros, “onde a natureza parece ter ostentado

maior magnificência e variedade.”221 Percebe-se o cuidado de Pernetty em descrever os

diferentes animais e também as plantas, muitas vezes apelando para comparações com outros

animais, conhecidos do público europeu: “o tamanho do tucano é mais ou menos o do pombo

torcaz, com as penas mais compridas, de um cinza azulado, assim como os pés, armados de

unhas muito longas.”222 Continua descrevendo-o minuciosamente:

Sua cauda tem aproximadamente quatro polegadas, é às vezes negra e


arredondada na extremidade, mais comumente matizada de azul, púrpura e
amarelo, sobre um marrom escuro. As costas e as asas são desta última cor,
excetuando algumas plumas negras que guarnecem as asas. Sua cabeça é
muito grande, pequena em relação ao bico, que tem sete a oito polegadas da
raiz à ponta. A parte superior, perto da cabeça, tem quase duas polegadas de
base, formando no seu comprimento uma figura mais ou menos triangular e
convexa para cima, cujas superfícies laterais são um pouco levantadas e
arredondadas. 223

Além das plantas e dos animais, os viajantes também se interessavam nas

possíveis utilidades do que encontrassem no Novo Mundo e que poderiam vir a ser

comercializados. Foi o caso de Mawe quando encontrou conchas de murex genus, um

molusco que produz uma tinta vermelha, denominada pelos antigos de púrpura, e que os

nativos utilizavam para tingir o algodão. Apesar de cada molusco produzir uma quantidade

pequena da substância, o viajante não teve

“dúvidas de que se os apanhassem em maior quantidade, e dissolvessem,


pouco a pouco, a substância corante, quando extraída, em água gomada,

220
Ibidem. p. 172.
221
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 95.
222
Ibidem. p. 96.
223
Ibidem. p. 96.
128

obter-se-ia um artigo de comércio de grande valor. Ao menos, a tentativa é


digna de ser feita.”224

O interesse econômico estava presente no trabalho desenvolvido pelos

cientistas viajantes. Os investimentos para a organização de uma viagem de circunavegação,

ou mesmo para uma viagem individual, eram altos e não se justificam somente pelo interesse

científico. Além disso, a pesquisa científica e a comercialização dos resultados adquiridos

estavam estreitamente vinculados. Um dos objetivos do Jardin des Plants de Paris e que

envolvia inúmeros cientistas era o trabalho de aclimatação. As plantas e sementes trazidas

pelos viajantes do estrangeiro eram submetidas a modificações a fim de se adaptarem às

condições naturais diferentes de sua região de origem. Entre o final do século XVIII e o início

do século XIX, André Thouin trabalhou na instituição de pesquisa e foi o principal naturalista

francês a dedicar-se à aclimatação. Para ele, esse trabalho possibilitaria o desenvolvimento da

agricultura. Além de contribuir para o enriquecimento do país, multiplicando a quantidade de

plantas e árvores que poderiam vir a ser úteis à economia doméstica e rural, a aclimatação e a

domesticação de espécimes estrangeiras contribuiria para a riqueza e a felicidade do

homem.225 Em todas as viagens organizadas pelo Jardin des Plants que Thouin ajudou a

preparar tinham entre seus objetivos a coleta de sementes e de espécimes vegetais úteis para a

França e suas colônias.

224
MAWE, John. Op. cit. p. 195.
225
KURY, Lorelei. Op. cit. pp. 210-211.
129

5.1. A natureza entre a razão e a emoção

A partir das falas trabalhadas nas páginas anteriores podemos constatar que

existia uma representação de que na América a natureza era rica, farta, provedora. O homem

não precisava trabalhar tanto para garantir seu sustento como ocorria na Europa. Mas isso não

significava necessariamente um ponto positivo, já que essa fartura, essa facilidade foi

responsável pela criação de uma sociedade na qual o trabalho e a previdência não eram

valorizados. Outro ponto era que, ao mesmo tempo em que a natureza era farta de animais e

plantas úteis para o ser humano, era rica também em insetos perniciosos à sua saúde. A

natureza úmida enfraquecia a saúde, da mesma forma como a fartura enfraquecia o caráter dos

seres humanos que viviam na região. Apesar da maioria dos viajantes louvarem a natureza

americana, bem como outras características locais, em vários momentos eles reproduziram

concepções que circulavam há vários anos na Europa, principalmente as referentes à questão

da degeneração ou da inferioridade americana.

Não poderíamos encerrar este capítulo sem tentarmos trabalhar melhor a

concepção de natureza que está presente nos relatos dos viajantes. Apesar de termos

apresentado, no capítulo 4, os debates que circulavam na Europa e que influenciaram na

formação dos cientistas, achamos necessário aprofundarmos neste capítulo duas correntes

filosóficas, quais sejam o Iluminismo e o Romantismo. No entanto, antes de discutirmos as

concepções filosóficas do conceito de natureza, consideramos necessário saber o que os

viajantes falaram sobre o que encontraram no litoral de Santa Catarina, principalmente na Ilha

de Santa Catarina. Para isto selecionamos algumas falas:

A natureza tudo dá, mesmo sem esforço ou assistência e trato.226


226
Ibidem. p. 163.
130

Estes vapores possuem em geral um odor lodoso que, com a circulação do ar


fechada, parece dissiparem-se para dar lugar a outros que se sucedem. [...] A
ilha é amaldiçoada pelo homem rico que quer gozar, mas é muito cara aos
naturalistas.227

[...] ainda mais quando é o caso de uma terra que foi agraciada pela natureza
em todos os sentidos, uma terra onde tudo viceja com inexcedível beleza e
garbo imagináveis. 228

A natureza, apenas a gigantesca natureza, ficou impressa indelevelmente em


minhas impressões.229

Não se pode dizer que a natureza seja risonha no litoral do Brasil. As escuras
matas que cobrem as montanhas têm qualquer coisa que lembra os sombrios
versos de Ossian; entretanto, a beleza do céu e os brilhantes efeitos de luz
resultantes do fulgor do sol tiram à natureza o que ela tem de
demasiadamente austero e lhe dão uma majestade desconhecida nas nossas
regiões.230

Os discursos dos viajantes sobre a natureza local contemplavam diferentes

imagens. A natureza era “viçosa, gigantesca”, um lugar “onde tudo viceja” uma vez que esta

“terra foi agraciada”. Em contraposição, a região era “insalubre” para o homem que desejasse

gozar a vida, com matas “sombrias” e uma “majestade desconhecida” que somente se

mostrava com os raios de sol. No entanto, ela era muito “cara aos naturalistas”.

Como podemos perceber a partir da leitura desses fragmentos, os cientistas

viajantes não possuíam uma opinião consensual no que se referia a natureza encontrada na

região de Santa Catarina. Isso não chega a ser uma surpresa se levarmos em consideração os

intensos debates que circulavam na Europa em torno da natureza e do homem americano.

Outro ponto que podemos considerar são as diferentes concepções filosóficas, estéticas e

literárias do período que possuíam distintas imagens e concepções sobre o campo, a natureza

e a sua relação com o homem. No século XVIII e no início do século XIX devemos

considerar o Iluminismo e o Romantismo.

O Iluminismo teve como centro de irradiação a França do século XVII e XVIII.


227
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 86.
228
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 162.
229
CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 234.
230
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 141.
131

Mas, segundo Sérgio Paulo Rouanet, ele pode ser entendido como uma tendência não limitada

a nenhum período específico, caracterizando-se como uma atitude racional e crítica. Tem

como objetivo o uso da razão para construir uma nova sociedade e distingue o movimento da

Ilustração no interior do Iluminisno. A Ilustração é o movimento de idéias que resultou no

publicação da Encyclopédie no século XVIII. Organizada por D’Alembert, seu primeiro

volume foi publicado em 1751 e o último concluído em 1772. Os autores de seus verbetes

foram Rousseau, Voltaire, Condorcet, Buffon e Quesnay, entre outros.231

A Europa das Luzes compreendeu o período entre os anos de 1680 e 1780. No

entanto, suas influências mantiveram-se até a Revolução Industrial. Segundo Pierre Chaunu,

além do conhecimento ser desigualmente distribuído conforme a região, sua propagação

também era influenciava pela religião, a qual estavam vinculados os diferentes grupos

sociais. A “Europa dos cérebros” abrangia a região da França, da Inglaterra e do País de

Gales, do Sul da Escócia, dos Países Baixos, de uma parte da Alemanha Ocidental e

Meridional, da Suíça, de uma fração da Áustria alpina e Viena, da Itália do Pó e Veneza, das

Lowlands, da Renânia e de um pedaço do Peel irlandês. Além disso, “a Europa das Luzes só

existe no cume, um cume cada vez mais estreito à medida que se passa, no espaço, de oeste

para leste, quando se recua no tempo de 1770 para 1680.”232 No Iluminismo, a razão tornou-

se o cerne de sua filosofia, a faculdade policiadora da imaginação. Além disso, a análise era o

método utilizado para o desenvolvimento do conhecimento, um processo que seguia alguns

passos: distinguir os elementos que constituíam determinado objeto de estudo, colecioná-los e

por último, compará-los.233 Esses passos também eram seguidos pelos cientistas,

principalmente os de áreas vinculadas às ciências naturais. Inspirado na natureza, que era

expurgada das imperfeições, o Iluminismo, no entanto, viu-se diante de um dilema: sua

231
ROUANET, Sérgio Paulo. O olhar iluminista. In: NOVAES, Adauto (org.) Op. cit. p. 125.
232
CHAUNU, Pierre. A Civilização da Europa das Luzes. Volume I. Tradução: Manuel João Gomes. Lisboa:
Editorial Estampa, 1985. pp. 23-24 e 67-68.
233
MONGELLI, Lênia Márcia de Medeiros. Introdução. In: A Estética da Ilustração: textos doutrinários
comentados. São Paulo: Atlas, 1992. pp. 19-20.
132

incapacidade de obter respostas para os problemas do universo, uma vez que por um lado a

razão idealizava um mundo perfeito e, por outro lado, a experiência sensível mostrava uma

realidade injusta e cruel. Para resolver esse dilema recorreu-se ao conceito de providência.

Seria por meio dela que o homem superaria suas limitações, uma vez que a natureza dotou os

seres humanos dos princípios de justiça, o que lhes permitiria o bem comum e o progresso. A

bondade do homem era um legado da natureza. Através do diálogo com o natural, o

Iluminismo francês do século XVIII explicava racionalmente a Humanidade.234 Essas

concepções começaram a sofrer críticas, por volta de meados do setecentos. Na França, uma

dessas vozes pertencia a Jean-Jacques Rousseau, que entrou em conflito com o culto à

razão, defendendo os indivíduos da influência nociva da sociedade. Na Inglaterra e na

Alemanha, também surgiram movimentos que se opunham ao Iluminismo, entre eles o

Romantismo.

O Romantismo, enquanto um movimento literário e filosófico, iria redefinir o

lugar do homem no mundo e na sociedade, possibilitando espaço para o diferente. Em

algumas regiões da Europa difundiu-se entre a elite letrada o gosto romântico pela natureza

selvagem. No século XVIII, filósofos e curiosos distraiam-se com a botânica e a zoologia,

enquanto no século anterior o interesse esteve voltado para a matemática e a física. O conceito

de natureza passou a englobar o sentimento, o instinto, “cujas manifestações, subordinadas a

princípio, avultam ao ponto de promoverem, em literatura, explosões emocionais que

desmancham de todo a clara linha da razão.”235 Segundo Antônio Cândido, a natureza para os

românticos passa a ser considerada o cosmos, o mundo, cheio de graça e imprecisão. A partir

dessas mudanças o poeta romântico passa a ter novas posturas, tais como o isolamento e a

234
GOMES, Álvaro Cardoso & VECHI, Carlos Alberto. Introdução. In: A Estética Romântica: textos
doutrinários. São Paulo: Atlas, 1992. p. 13.
235
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. São Paulo: Martins
Livreiro. 1957, vol. 1. p. 59.
133

crença de possuir uma missão a cumprir. A palavra é entendida como incapaz de expressar

toda a grandeza da natureza, sendo feita de forma fragmentária.

A influência das concepções românticas foi destacada por Karen Lisboa em seu

estudo sobre os viajantes Spix e Martius. Inspirados em Rousseau, Goethe e também em

Humboldt, esses viajantes, como inúmeros outros, saíram das paisagens conhecidas da Europa

em busca de regiões estranhas e esquecidas, atrás de uma natureza original, onde o homem

ainda não havia tocado. O gosto por viagens longínquas estava ligado ao Naturgefühl, ou

sentimento da natureza. Era a busca por “sentir a natureza” que levou muitos viajantes para

regiões não européias. No entanto, o próprio Humboldt preocupava-se com o sentimento

exacerbado que a natureza poderia causar. O historiador da natureza, ao se deixar levar pela

emoção, prejudicaria o desenvolvimento do trabalho científico.236

Um relato que descreve a natureza numa linguagem onde estão combinadas

emoção e ciência encontra-se principalmente na escrita do viajante Chamisso. Nascido na

França, fez toda sua formação acadêmica na Alemanha, uma vez que ainda criança, mudou-se

para Berlim. Por causa disso, teve um contato mais estreito com o romantismo alemão. O

trecho abaixo nos mostra como a poesia, o pitoresco, o bucólico e a ciência muitas vezes

estavam entremeadas, como os cipós que ele descreve:

Cipós emaranhados erguem-se do chão ao cimo das árvores, de lá pendendo


para baixo; nos ramos mais altos situam-se alegres jardins de orquídeas e
bromeliáceas, etc, com as “Tillandsia usnoides”(“barba-de-velho”) cobrindo
as velhas árvores com seus cachos prateados. Aroídeas de folhas largas
vicejam junto aos regatos, cáctus gigantescos em forma de colunas compõem
grupos separados, esguios e rijos. Regiões arenosas e secas estão cobertas
por ervas, samambaias e líquens. Sobre as terras úmidas, alegres palmeiras
erguem suas coroas, as rizópodas (“Thizophora”) verdes de folhas largas
cobrem os pântanos inacessíveis que margeiam as enseadas do mar. 237

O quadro por ele descrito contém plantas típicas das regiões tropicais, como as

palmeiras, os cactos, as samambaias, as bromélias, orquídeas, etc. Eram os tipos básicos da

236
LISBOA, Karen Macknow. Op. cit. Ver Capítulo III.
237
CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 233.
134

natureza americana, definidos por Humboldt. Ao mesmo tempo, não deixa de colocar o nome

científico de algumas das plantas que formam tão idílico quadro. Tenta estabelecer a difícil

combinação entre ciência e poesia. Não esqueçamos que Chamisso, antes de dedicar-se ao

estudo da botânica, era poeta e filósofo. Além disso, recebeu influências de Goethe, um dos

autores do movimento Sturm und Drang, inspirado no pensamento de Rousseau e que foi um

dos precursores do romantismo alemão.238

Outro viajante que foi influenciado pela vertente romântica da História Natural

foi Saint-Hilaire. Essa concepção, fundada por Humboldt, baseava-se na concepção de que a

ciência teórica não estava separada da ciência prática, e sua finalidade era satisfazer as

necessidades humanas, neste caso, das populações européias, e fortalecer as nações que as

financiavam. Segundo Lorelei Kury, os viajantes europeus “sentem-se portadores de uma

espécie de missão. Sentem-se como irmãos mais velhos dos outros povos, a quem devem

ajudar e aconselhar. Para eles, seus interesses são os interesses da humanidade inteira.”239

Além de terem sido influenciados por concepções filosóficas, morais, estéticas,

entre outras, os viajantes eram homens urbanos que buscavam na natureza um contraponto à

imagem de cidade com a qual eles estavam habituados. No decorrer da história da sociedade

desenvolveram-se diferentes imagens referentes à terra e às realizações do ser humano, entre

as quais a cidade. Essas imagens são historicamente variadas, positivas ou negativas,

dependendo da época e do contexto sócio-econômico e político. O campo foi associado à paz,

à inocência, às virtudes simples, mas também ao atraso, à ignorância e à limitação. A cidade,

por sua vez, foi associada ao saber, à luz. Em outros momentos era o lugar do barulho, da

ambição e da mundanidade. No caso específico da Grã-Bretanha, imagens evocando um

passado feliz no campo foram desenvolvidas em períodos específicos: final do século XVI e

238
Sobre o Romantismo, sua história e suas características ver: GUINSBURG, J. (org.) O Romantismo. 3º ed.
São Paulo: Perspectiva, 1993.
239
Kury, Lorelai. Auguste de Saint-Hilaire, viajante exemplar. Disponível em:
http://www2.uerj.br/`intellectus/texto/Lorelei.pdf. Acesso em: 02.dezembro.2004
135

início do século XVII, final do século XVIII e início do XIX e no final do século XIX e início

do XX. Esses períodos correspondem às épocas em que ocorreram mudanças na economia

rural. A imagem da cidade também mudou: nos séculos XVI e XVII esteve associada à lei e

ao dinheiro; no século XVIII, à riqueza e ao luxo; no final do século XVIII e no XIX, à

imagem das massas e da turba, enquanto no séculos XIX e XX, à mobilidade e ao isolamento.

Essas imagens, além de serem encontradas em períodos históricos diferentes, diferenciam-se

conforme a classe social na qual são enunciadas. Dessa forma, uma imagem, aparentemente

semelhante, possui diferenças dependendo de quem a está utilizando: um pequeno

proprietário, um aristocrata ou um trabalhador sem terra.240 A partir das reflexões presentes no

trabalho de Raymond Williams podemos entender melhor o deslocamento do olhar de alguns

viajantes, sua busca pelo exótico, pelo bucólico.

Os viajantes europeus não saíam incólumes do contato com as regiões

tropicais, cujos ambientes eram tão diferentes da Europa. Muitos adquiriram doenças, alguns

retornavam constantemente, em novas excursões, enquanto outros viveram e morreram na

América. Muitos deles, vivendo na Europa, não conseguiam se desvincular do Novo Mundo.

Um exemplo é o caso de Humboldt. Muitos anos após o fim da viagem, quando vivia em

Paris, a temperatura em seu apartamento era mantida acima dos 30 graus, numa tentativa de

reproduzir os trópicos. Em suas obras a América é descrita como um mundo primitivo de

natureza, uma região ocupada por plantas e criaturas que não chega a ser organizada em

sociedades e economias. Seus interesses voltavam-se para o estudos das relações entre a

natureza e os seres humanos, e seus textos contribuíram para a construção de uma paisagem

americana onde o acúmulo e a abundância mistura-se com a inocência, construindo uma

natureza paradisíaca. Uma natureza que o marcou profundamente.

240
WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989. Capítulo 25: Cidades e Campos.
136

A geografia, enquanto área do conhecimento, aprofundou algumas discussões

em torno do tema. Esse interesse deve-se ao fato de que o conceito de paisagem, de natureza e

de cultura são temas caros à sociedade e polêmicos para os estudiosos da área. As

dificuldades em analisar as representações sobre as relações dos homens entre si e destes com

a natureza foi um dos aspectos que contribuiu para a polêmica entre os estudiosos da

geografia. Para Carl O. Sauer, a paisagem, apesar de sua individualidade, estabelecia relações

com outras paisagens. Além disso, seu processo de modelagem não era somente físico. Uma

área era composta por uma associação distinta de formas que eram físicas e culturais.241 Além

da questão cultural, Edvânia Gomes acrescenta outro aspecto, que se refere aos valores que

são atribuídos histórica e culturalmente aos elementos da natureza. São esses valores que

determinam suas posições hierárquicas. A paisagem constitui-se como uma representação e

reapresentação do mundo, uma vez que “resulta da apreensão do olhar do indivíduo, que, por

sua vez, é condicionado por filtros fisiológicos, psicológicos e econômicos, e da esfera da

rememoração e da lembrança recorrente.”242 Essas discussões podem ser remetidas para a

análise da representação plástica da natureza, de suas formas idealizadas. Além da evocação

do conteúdo, busca-se também capturar seu caráter “natural”. Nessas imagens a natureza pode

ser apresentada como uma instância selvagem mas também como bucólica, nostálgica,

remetendo à idéia de harmonia. Mais do que descrever a natureza da América e de outras

regiões do mundo, os viajantes do século XVIII e XIX, principalmente os cientistas, vão

construir uma nova paisagem. Uma paisagem onde vão se misturar aspectos racionais, do

pensamento científico, largamente difundido na Europa, e a emoção, a sensibilidade, que vai

aflorar nesses novos ambientes.

241
SAUER, Carl O. A morfologia da Paisagem. In: ROSENDAHL, Zeny & CORRÊA, Roberto Lobato.
Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998. pp. 23-24. Para entender melhor as discussões
correntes entre os estudiosos da geografia sobre paisagem ver as coletâneas organizadas por ROSENDAHL,
Zeny & CORRÊA, Roberto Lobato. Paisagem, tempo e cultura & Paisagem, imaginário e espaço. Foram
publicados em vários volumes pela Editora da UERJ, nos anos de 1998 e 2001, respectivamente.
242
GOMES, Edvânia Tôrres Aguiar. Op. cit. p. 56.
137

E os habitantes no Brasil, como eles viam a natureza, exaustivamente descrita

pelos viajantes? Segundo Nicolau Sevcenko, no contexto do processo de colonização podem

ser percebidas duas formas de percepção da natureza por parte dos colonizadores. O impulso

desejante e a intervenção colonizadora propriamente dita. O primeiro refere-se ao sentimento

de tudo ver, de sentir o novo, de penetrar no intocado, num ato sensorial de indivíduos que se

entregam aos sentidos, do olhar ao cheiro, do tato ao paladar. Jean de Léry é um exemplo de

indivíduo detentor desse tipo de percepção. Chamisso também insere-se nesse grupo. São

viajantes que transformam o que vêem em paisagem, algo a ser admirado e adorado. A outra

forma de percepção refere-se à prática colonizadora propriamente dita. O ato de extrair os

recursos naturais, fossem estes minerais ou vegetais, motivou a expansão marítima

implementada por muitas nações européias e implicava um contato direto com o meio. Para o

colonizador, a paisagem, a natureza intocada era um empecilho, quando não um perigo, na

forma de animais ferozes, insetos peçonhentos e também de índios bravios. Nesse sentido, o

verde da mata deveria ser eliminado para permitir a ocupação do território pelo europeu. Para

tanto foi largamente utilizado o fogo como uma forma de limpar terreno a fim de abrir o

caminho para as plantações e também para expurgar todos os perigos, fossem eles de forma

animal ou humana. A sensibilidade nativa em relação à natureza americana foi construída na

lógica da ocupação predatória, que transformou a paisagem em sertão, em uma região agreste.

A floresta deveria ser eliminada e tornar-se área útil ao cultivo.243

A prática das queimadas, muito difundidas entre os colonizadores, era criticada

pelos europeus que passavam pelo Brasil no século XIX, fossem eles cientistas ou não. Além

da destruição das florestas, criticava-se também o desperdício de madeira que, ao invés de ser

comercializada, era queimada no processo de abrir amplas áreas para o plantio. O fazendeiro

243
SEVCENKO, Nicolau. O front brasileiro na guerra verde: vegetais, colonialismo e cultura. In: Revista USP.
São Paulo: USP, nº 1 (mar./mai. 1989). pp. 110-112.
138

da região das Minas José Vieira Couto, que havia sido aluno de Domênico Vandelli244 na

Universidade de Coimbra, comenta que o agricultor brasileiro

olha para duas ou mais léguas de floresta como se elas não fossem nada, e
ele mal as reduziu a cinzas e já lança seu olhar ainda mais adiante para levar
a destruição a outras partes; não nutre nem afeição nem amor pela terra que
cultiva, tendo plena consciência de que ela provavelmente não irá durar para
seus filhos.245

Os fazendeiros da região de Minas Gerais viam a floresta como um entrave que

deveria ser eliminado, destruído. No litoral da Capitania de Santa Catarina e na Ilha de Santa

Catarina, na primeira metade do século XIX, com exceção de pequenos trechos desbravados a

beira do mar e em torno de alguns rios, todo o resto era ocupado por florestas, desconhecidas

e ainda não sondadas em suas profundezas. Louis François Leoncé Aubé, engenheiro francês

que visitou a província de Santa Catarina no ano de 1944, com a incumbência de escolher e

demarcar as terras dotais da Princesa de Joinville, posteriormente indicado para o cargo de

vice-cônsul da França a partir de 1849 e de diretor da colônia D. Francisca entre os anos de

1856 e 1860, redigiu um livro falando sobre a região. Segundo ele, era a floresta virgem,

com a vida exuberante que ela encerra e parece oculta-se no silêncio que a
envolve durante o dia, e só quebrado, noite dentro, pelos gritos e
movimentos dos hóspedes que alí se acolhem; é a floresta magnificante que,
às vezes, oculta o céu e a terra à vista de quem lhe penetra os umbrais e
parece fechar-se sôbre si mesma, como um túmulo. Dados alguns passos
nesta sombria solidão, o explorador incauto sentir-se-á como o marinheiro
sem bússola em meio do Oceano, ou como o viajante sem guia nas
catacumbas de Roma, e andará à roda, num círculo fatal, parecendo-lhe
246
nunca mais poder chega à orla que antes havia transposto.

Para Aubé, a mata era uma “cortina impenetrável” que deveria ser aberta a

golpes de facão, que ficava numa das mãos, enquanto na outra, carregava-se a bússola. A

sensação de estar perdido sem rumo também foi expressada por Saint-Hilaire, para quem a

244
Doutor da Universidade de Pádua e correspondente de Linné, foi indicado para o cargo de professor na
Universidade de Coimbra pelo Marquês de Pombal em 1764.
245
COUTO, José Vieira. Memória sobre a Capitania de Minas Gerais [1799]. Apud. DEAN, Warren. A Ferro e
Fogo: a história e a devastação da mata Atlântica Brasileira. Tradução: Cid Knipel Moreira. São Paulo:
Companhia das Letras. 1996. p. 155.
246
AUBÉ, Léonce. A Província de Santa Catarina e a Colonização do Brasil. In: Revista do Instituto Histórico
e Geográfico de Santa Catarina. Tradução: Carlos da Costa Pereira. Florianópolis, 2º Semestre de 1944. Vol.
XIII. p. 92.
139

visão das florestas virgens inspiravam “uma espécie de terror religioso”. Outros viajantes

também deixaram registrados em seus relatos seu desconforto com a natureza indomada

encontrada no Brasil. James Wells escreveu que a Mata Atlântica o fazia sentir “uma

imperceptível depressão”. Após passar horas andando pela floresta em busca de espécies,

Alfred Russel Wallace sentia “alívio por ver novamente o céu azul e sentir os raios

causticantes do sol”. Encantamento e deleite foi o que sentiu Saint-Hilaire ao ver, “após

passar diversas horas encerrado em um túnel de árvores”, a vila de São João da Barra, no

distrito dos diamantes, na província de Minas Gerais. Warren Dean concluiu que as criaturas e

a vegetação da floresta encantavam e fascinavam os viajantes e cientistas quando ordenados e

dispostos por categorias nos museus e gabinetes de história natural. No seu habitat natural,

dispersas e desordenadas, formavam um quadro intimidante e opressivo. Melhor era substitui-

las por paisagens abertas, banhadas pelo sol e antromorfizadas.247

Se para muitos viajantes a floresta virgem assustava e intimidava, para os

habitantes locais a mata, a vegetação abundante, significava perigo e muito trabalho. Perigo

devido aos animais selvagens e peçonhentos e, muitas vezes, por causa dos índios. Trabalho

porque era necessário destruir a floresta para poder plantar. Mas também significava alimento,

conseguido através da caça. Langsdorff comentou sobre a destreza dos moradores no uso da

betocca, uma espécie de arco que utilizava como munição pequenas pedras ou pelotas de

barro seco. Com ele até as crianças conseguiam abater de consideráveis distâncias aves de

todos os tamanhos que serviam para aumentar o cardápio. O mesmo viajante reparou a

admiração e o estranhamento que causava em seus guias seus constantes pedidos para parar

durante as incursões pela mata, a fim de melhor apreciar a beleza das árvores floridas, os

diferentes tons de verde e a variedade das samambaias.248

247
DEAN, Warren. Op. cit. pp. 156-157.
248
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. pp. 170-172.
140

Em 1824, chegou à fazenda Mandioca, de propriedade de Langsdorff,

localizada no atual município de Magé, um jovem oficial e agricultor chamado J. Friedrich v.

Weech, que recebeu do barão um lote de terra e escravos negros para cultivá-la. Após passar

alguns anos no Brasil e na Argentina, onde tentou estabelecer-se como agricultor, voltou para

a Baviera, onde aproveitou para escrever sobre sua experiência na América, publicada em

1831. Em um trecho de sua obra mostra como o barão von Langsdorff e seu trabalho de

cientista era visto pela população local. Segundo ele, os habitantes locais, fossem brasileiros

ou portugueses, “filhos do reino”, eram “ignorantes” e não conseguiam compreender o

objetivo das coleções de insetos que eram organizadas pelos cientistas estrangeiros e pelo

barão, que muitas vezes pagava a várias pessoas para que coletassem aves e insetos. Não

compreendendo a finalidade desse trabalho, achavam que era um divertimento e o chamavam

de “administrador de passarinhos e bichos”. Os botânicos eram chamados de “homens de

capim” e perguntavam se não havia capim em seus países. Apesar de considerá-los

ignorantes, Weech constatou que possuíam uma capacidade de compreensão que não os

deixou indiferentes às suas explicações sobre a utilidade das pesquisas científicas.249 Para os

habitantes locais da Ilha de Santa Catarina ou de outras regiões do Brasil, o trabalho dos

botânicos não era compreendido como uma possibilidade econômica, e a floresta, além de

significar trabalho e perigo, era sinônimo de dificuldade para a ocupação dos territórios, para

a produção agrícola que possibilitaria a riqueza do indivíduo e o desenvolvimento econômico

da região.

O termo natureza tem sua origem no latim nasci, que significa ‘nascer’,

homólogo do grego physein, que significa ‘ser gerado’. A partir daí o conceito geral de

natureza remete à totalidade, à essencialidade, ao nascimento. Os seres reais, na ciência

aristotélica, “surgem com características intrínsecas, mutáveis, mas de vez em quando,

249
WEECH, J. F. v. apud. BECHER, Hans. Op. cit. p. 65.
141

conceptualmente definidas de forma acabada.”250 Essa visão vai ser rompida a partir do

desenvolvimento das disciplinas científicas, da inadequabilidade da visão especulativa do

saber científico tradicional e também devido à aquisição de novos conhecimentos e fatos

observados que não puderam ser enquadrados nas explicações prévias. No século XVII,

Descartes transforma a teoria filosófica da natureza numa teoria científica. É o primeiro a

formular uma nova idéia de natureza, um sistema de leis, no qual o mundo é formado por

máquinas simples, o mecanicismo cartesiano. A natureza é reduzida a uma estrutura material

subdividida em partículas de várias dimensões em movimento. Segundo ele, não foram as

descobertas científicas que provocaram uma mudança na idéia de natureza, mas sim a

mudança na idéia de natureza que permitiu essas novas descobertas.251

Segundo o antropólogo Philippe Descola, Humboldt foi o primeiro estudioso a

estabelecer um vínculo entre a história natural do homem com a história humana da natureza.

Em sua obra Cosmos, tenta compreender a unidade humana a partir da diversidade do meio, a

fim de pensar o mundo como indissociável. Para o autor, a cultura ocidental é marcada por

uma antinomia entre o homem e a natureza. A natureza é caracterizada pela ausência do

homem enquanto o homem caracteriza-se pelo que ele soube dominar de natural em si. Em

muitos povos a natureza não existe como esfera autônoma. Nossa singularidade em relação ao

resto da existência é relativa, como é relativa nossa consciência do que nos faz humanos.252 A

partir das reflexões de Descola, podemos entender melhor o interesse dos viajantes, europeus,

cientistas, “civilizados”, pela nossa natureza intacta. Ao mesmo tempo que esse contato

gerava desconforto, um sentimento de opressão e mesmo depressão, quando muito

prolongado, gerava também um sentimento de prazer, de admiração, ou então, como dizia

250
MICHELI, Gianni. Natureza. In: Enciclopédia Einaudi. Vol. 18. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
1985. p. 38.
251
MERLEAU-PONTY, Maurice. A natureza: notas, cursos no Collège de France. Texto estabelecido e
anotado por Dominique Séglard. Tradução: Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2000. pp. 09-29.
252
DESCOLA, Philippe. L’anthropologie de la nature. In: ANNALES: histoire, sciences sociales. 57º année. Nº
1. Janvier-février 2002. pp. 9-25.
142

Rousseau, uma possibilidade de encontrar seu “não-eu”. Esta dualidade de sentimentos

refletia, de certa forma, as descrições diferenciadas e ambíguas encontradas nas descrições

dos viajantes. Abundância versus insalubridade, riqueza natural em contraponto com o

não aproveitamento que se refletia na natureza intocada. Se por um lado a natureza intacta,

rica em plantas e animais era importante para o desenvolvimento da ciência, por outro lado, o

objetivo, a meta idealizada de desenvolvimento, era a natureza domada, organizada, como os

campos e jardins europeus ou como os mostruários e os herbários encontrados nos gabinetes

de estudo e nos museus.


143

6. Núcleos urbanos em meio a natureza

6.1. Do espaço urbano

Chamisso comenta em uma parte de seu texto, após descrições deslumbradas

da natureza que, apesar de ter visitado a vila de Desterro inúmeras vezes, nenhuma lembrança

ficou registrada em sua memória. O mesmo ocorreu com relação às pessoas que ele conheceu.

Sua explicação para o esquecimento: a “gigantesca natureza”. A imagem e o contato com a

natureza americana foi tão impactante, tão forte que não lhe permitiu lembrar de outros

detalhes, a não ser os que se referiam a ela.253

Felizmente o mesmo não aconteceu com os outros cientistas viajantes, que em

poucas ou muitas linhas, descreveram o espaço urbano e seus arredores, suas características,

seus aspectos pitorescos. O primeiro que esteve na região foi Pernetty, em 1763. Na época a

vila era pequena, “composta de umas cento e cinqüenta casas, todas tendo somente o rés-do-

chão.”254 Alguns anos depois, em 1807, Mawe também iniciou sua descrição sobre a vila,

especificando o número aproximado de habitantes e as condições das moradias, sendo as

mesmas “bem construídas, com dois ou três andares, assoalhadas de madeira, jardins tratados,

apresentando excelente vegetação e flores”. A vila possuía “várias ruas” e contava com “cinco

253
CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 234.
254
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 82.
144

a seis mil habitantes.”255 A partir das informações deixadas pelos dois viajantes, separados por

mais de 44 anos, podemos constatar que a vila de Desterro sofreu mudanças consideráveis. As

moradias melhoraram, aparecendo construções assobradadas, que eram feitas de materiais

mais resistentes e algumas já contavam com melhorias, como assoalhos de madeira.

Oswaldo Rodrigues Cabral registra que no ano de 1829, a Câmara Municipal

proibiu que fossem construídas casas sem a devida licença e instituiu que as construções

seguissem regras pré-determinadas de altura e largura, tanto da moradia como das suas

aberturas (portas e janelas). Além de normatizar as novas construções, a fim de evitar a

edificação de moradias insalubres, a administração também preocupava-se com as velhas

casas que, de tão deterioradas, poderiam vir a desabar, causando acidentes e transtornos aos

habitantes de Desterro. Nessa época, existiam 29 quarteirões nos limites da cidade256 e 12

distribuídos pelas diferentes freguesias localizadas no interior da Ilha.257 Langsdorff comenta

que em 1803 viviam “aqui diversas pessoas abastadas mas poucas ou quase nenhuma delas é

rica”, e as moradias eram feitas “de pedra ou de barro seco”. O que chamou a atenção de

Lesson era que as casas eram assoalhadas e “seu interior é simples, asseado e elegante, mas

sem luxo.”258 Saint-Hilaire que, como Lesson, visitou a vila de Desterro na década de 20 do

século XIX, teve uma boa impressão sobre as condições das moradias, uma vez que

255
MAWE, John. Op. cit. p. 190.
256
A fundação de Nossa Senhora do Desterro ocorreu no ano de 1673 (ou 1675) por Francisco Dias Velho que,
juntamente com sua família, 2 padres jesuítas e quinhentos índios domesticados, deslocou-se de São Paulo para a
Ilha de Santa Catarina. Após a fundação da povoação, requereu ao governador da capitania duas léguas em
quadra onde já se encontrava erigida a igreja de Nossa Senhora do Desterro (1678). Em 1713 foi criada a
Freguesia de Nossa Senhora do Desterro, subordinada à vila de Laguna. Freguesia é um misto de organização
política e religiosa, que antecede a elevação para vila, em 23 de março de 1726. Nesse momento ocorreu a troca
de nome, de Santa Catarina para Nossa Senhora do Desterro. Por decreto de 24 de fevereiro de 1823, a vila de
Nossa Senhora do Desterro é elevada à categoria de cidade, passando a chamar-se somente Desterro,
conservando-o até 1894, quando mudou seu nome para Florianópolis. Ver: PAULI, Evaldo. A Fundação de
Florianópolis. 2 ed. Florianópolis: Lunardelli, 1987.
257
CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Destêrro. Notícia I. Op. cit. p. 235-236. Recorremos a
informações contidas na obra desse autor, apesar de não compartilharmos a mesma visão de história. Segundo
ele seu livro é uma obra “histórica, verídica, sincera e pitoresca” de Desterro, “é a crônica modesta e simples de
gente que não costuma freqüentar as páginas da História.” Apesar das críticas a muitas de suas opiniões e
conclusões, Cabral inovou ao recorrer a fontes e documentos pouco utilizados, bem como na escolha dos temas.
258
LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 274.
145

as casas, feitas comumente de tijolo ou de pedra, caiadas e cobertas com


telhas são em sua maioria bem conservadas. De um modo geral são maiores
do que as comumente encontradas nas cidades do interior, vendo-se muitas
de dois pavimentos, com vidraças nas janelas e construídas com bom gosto.
Visitei as dos principais moradores da cidade e as achei muito bem
mobiliadas. 259

A moradia, além de ter a função de dar abrigo a seus habitantes, é também o

local de sociabilidades e de trabalho. No seu interior se desenvolvem inúmeras atividades do

dia-a-dia. Nos três primeiros séculos da colonização, as moradias localizadas nas vilas eram

simples, onde moravam pessoas pobres e com poucos recursos, ou então serviam de abrigo

para visitas ocasionais de seus donos, proprietários de sítios e de fazendas. Em geral as

moradias eram pequenas, térreas, construídas com os materiais da região. Somente com a

diversificação das atividades urbanas é que vão surgir as moradias mais ricas, como sobrados

e vivendas, onde habitava a elite local.260

Apesar de alguns viajantes salientarem a presença de casas assobradadas em

Desterro, tendo inclusive alguns pequenos requintes como granito na soleira, como registra

Lesson, no geral as falas deixavam transparecer que a vila não era rica e próspera. No entanto,

passava uma impressão de “bem-estar geral sem que haja riqueza”261. No que se refere às

moradias de fora da vila, a opinião de Langsdorff é um pouco distinta. Em suas andanças pelo

interior da ilha e pelo região continental próxima, foi recebido por colonos, que lhe ofereciam

refeição ou pouso em suas casas. Estas eram

pequenas, bem instaladas e geralmente em lugar bastante bem situado. O


interior consiste quase sempre em uma sala de estar, um ou dois quartos e
uma cozinha. Esta, às vezes também pode estar situada a parte e ainda
provida de um quarto que serve para abrigar os escravos negros. Em casas de
pessoas mais abastadas, a sala é assoalhada, o que não acontece em casa de
pobres. Poucas são cobertas de telhas, pois a maior parte é com folhas de
palmeira, cuja espécie ainda é desconhecida.262

259
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 170.
260
ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e Vida Doméstica. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da
Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 90.
261
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 163.
262
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 176.
146

Pernetty comentou que as moradias que ele viu, localizadas na costa perto da

Ilha de Anhatomirim, onde seu barco ficou ancorado, eram

construções ao rés-do-chão, como as casas dos nossos paisanos franceses.


São ordinariamente cobertas de canas e folhas de bananeiras ou de uma outra
espécie de cana ou junco. Normalmente não se vêem chaminés. Os negros
escravos aprontam suas comidas sobre um fogo aceso ao meio do quarto e
ali vivem sem se incomodarem, no meio da fumaça.263

A partir dessas informações constatamos que as moradias, e as condições de

vida das pessoas que viviam na vila ou mesmo nas freguesias eram distintas daquelas em que

se encontravam os colonos que viviam no interior. Como Desterro era uma vila

estrategicamente importante devido à disputa pelos territórios ao sul, entre as coroas

portuguesa e espanhola, muitos milicianos ficavam ali assentados. Em 1737 foi instalada a

Guarnição Militar na Ilha de Santa Catarina. Militares, acompanhados de suas famílias,

mudaram-se de Santos para Desterro. Outro fato que estimulou o aumento populacional e

também uma melhoria nas condições gerais de vida na vila foi a criação da Capitania de Santa

Catarina, em 1738. No ano seguinte, com sua instalação, criaram-se vários cargos

administrativos. Alguns foram ocupados por pessoas que haviam nascido ou já viviam aqui.

No entanto, a maioria do postos foi ocupado por titulares vindos de fora. Essas mudanças,

juntamente com a imigração açoriana,264 contribuíram para o povoamento e os

melhoramentos da vila de Desterro.

Se tomarmos o esboço feito por José Custódio Sá e Faria em 1754 (Figura 1),

podemos constatar que a maior parte do que hoje se constitui o centro da atual cidade de

Florianópolis encontrava-se ainda tomada por matas nativas ou então por plantações. O

“Plano da Villa de Nossa Senhora do Desterro da Ilha de Santa Catarina” foi feito com o

263
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 80.
264
Entre os anos de 1748 e 1756, transferiram-se para o sul da colônia portuguesa na América, em torno de
6.000 pessoas, vindos das ilhas dos Açores e em menor quantidade da ilha da Madeira. Essa emigração não foi
espontânea, mas incentiva pela Coroa, que tinha como objetivo garantir seus domínios no sul da América do Sul,
região disputada também pela Coroa da Espanha.
147

Figura 1- Plano da Villa de N. S. do Desterro – José Custódio de Sá e Faria, 1754. In: Reis, Nestor
Goulart. Imagens pde vilas e cidades do Brasil Colonial. São Paulo: Editora da USP/Imprensa
Oficial/Fapesp, 2000. p. 225.

objetivo de agenciamento do sítio, e desta forma, segundo Eliane Veras da Veiga, a execução

do projeto pode não ter seguido o traçado elaborado por Sá e Faria. Podemos perceber no

esboço a provável localização dos edifícios que ocupariam o centro da vila. Destaca-se o

espaço reservado para a praça central, ou Largo da Matriz, contornada pela Igreja Matriz no

lado contrário ao mar, pela residência do governador em umas das laterais e, no outro, pela
148

Casa de Câmara e outras construções. Na beira do mar, um “trem” da Marinha e o porto de

embarque e desembarque. Além desses prédios, outros estão assinalados, alguns já

construídos, outros como projeto para futuras construções. O plano também assinala algumas

das fortificações projetadas pelo Brigadeiro José da Silva Paes, como o Forte de São

Francisco e as construções no morro Boa Vista, onde foi construída a Capela Menino Deus,

no ano de 1762, e posteriormente o Hospital de Caridade dos Pobres. Estão assinalados

também dois rios, o rio da Bulha265 e outro localizado entre o centro e o bairro da Figueira,

iniciando na Fonte dos Ramos e correndo em direção ao mar.266 A partir desse plano podemos

constatar que a vila de Desterro tinha uma função fortemente militar e administrativa, e suas

principais construções eram de cunho militar ou político. Destacam-se o pelourinho, a casa do

Governador, a Casa de Câmara, os quartéis e os fortes. Além dessas, estão também

representadas as construções religiosas.267

A vila de Desterro, no início da segunda metade do século XVIII, era descrita

por Pernetty como “pequena”, e a maior parte da ilha era uma “vasta floresta”, com “algumas

pequenas casas espalhadas pela costa”. Além disso, “na vila não se viu quase nenhuma tenda

de mercador. Só [...] uma marcenaria e um boticário.”268 Os viajantes que aqui estiveram no

início do século XIX encontraram outra situação, muito diferente da relatada por Pernetty. O

comércio já havia se desenvolvido e a população local já podia contar com

comerciantes ou mascates e artesões de toda a espécie e muitos gêneros


alimentícios são trazidos de todas as partes, diariamente, para o mercado.
Nas inúmeras e pequenas lojas encontram-se quase todas as mercadorias,
vindas da Europa, necessárias para as comodidades da vida: por exemplo, o
ferro, vidros, porcelanas, fazendas de seda e algodão, espelho, lustres, papel,
etc. Mas, tudo isto é muito caro como bem se pode supor. 269

265
Também conhecido como córrego da Fonte Grande. Com o processo de saneamento no início do século XX o
rio foi canalizado e passou a fazer parte da Avenida do Saneamento, atualmente Avenida Hercílio Luz,
inaugurada em 1922.
266
Atualmente totalmente desaparecido, nas proximidades da atual rua 7 de setembro e do Largo Fagundes.
267
VEIGA, Eliane Veras da. Florianópolis: Memória Urbana. Florianópolis: Editora da UFSC/Fundação
Franklin Cascaes, 1993. p. 40.
268
PERNETTY, Antoine Joseph. Op cit. pp. 85 e 83.
269
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 163.
149

Todos os viajantes que visitaram Desterro falavam de sua praça central ou

Largo da Matriz. Seguindo orientações pré-determinadas, o traçado da praça foi definido a

partir da linha do mar. Como no local escolhido a linha do mar fazia uma ligeira curva, as

laterais da praça foram se alargando conforme subiam a encosta, onde foi construída a Igreja

Matriz. Medindo mais ou menos noventa passos de largura por trezentos de comprimento, em

torno dela foram construídos os principais prédios da cidade, como o Palácio do Governador e

a Câmara Municipal, além da Igreja da padroeira que dá nome à vila.270 Na época de Saint-

Hilaire a praça era “coberta por uma fina relva.”271 Esse espaço, a praça central, era o ponto

de partida de muitas cidades coloniais portuguesas e espanholas. Foi também por ela que

Paulo Joze Miguel de Brito iniciou sua descrição da vila: “com huma grande praça de figura

rectangular, em cujo lado do norte está edificada a Igreja Matriz.”272 Quando da fundação de

uma vila pelo Estado Português em sua colônia na América, eram erigidos dois símbolos: o

pelourinho e a Câmara Municipal. O pelourinho era a representação física do poder judiciário

e o instrumento no qual eram cumpridas muitas das punições estabelecidas pela justiça. Além

dessas construções, “está também situado nesta praça o mercado, que funciona uma vez por

semana, aos domingos. Ao centro desta praça está um patíbulo em madeira, onde são presos e

castigados os negros puníveis.”273 Em Santa Catarina, foram erigidos pelourinhos nas vilas de

São Francisco, Desterro e Laguna. A praça era local de múltiplas atividades: de punição, de

procissões, de comércio e outras atividades diversas. Segundo Lisabete Coradini, a praça é o

marco central do núcleo urbano, uma vez que é a partir dela que a vila é inventada.274 Era

também motivo de disputas, como o que ocorreu por causa da visita do Imperador D. Pedro II,

em 1845. Com a visita, a Câmara Municipal conseguiu remover da praça as barraquinhas


270
VEIGA, Eliane Veras da. Op. cit. p. 56.
271
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 170.
272
BRITO, Paulo Joze Miguel de. Memória Política sobre a Capitania de Santa Catharina escripta no Rio
de Janeiro em o Anno de 1816. Lisboa: na Typografia da mesma Academia. 1826. Reimpressa pela Sociedade
Literaria Biblioteca Catarinense, 1932. p.38.
273
LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 274.
274
CORADINI, Lisabete. Praça XV: espaço e sociabilidade. Florianópolis: Fundação Franklin Cascaes/Letras
Contemporâneas. 1995. p. 17.
150

onde eram comercializados peixes e outros gêneros alimentícios. Além da questão estética, o

outro motivo para sua remoção era a concentração de comerciantes, de indivíduos pobres e de

escravos em torno da praça, gerando balbúrdia e atos impróprios à moral e aos bons costumes.

Após a partida de Vossa Majestade, retomou-se a discussão sobre o local onde deveriam ficar

as barraquinhas. Essa discussão encerrou-se em 1851, com a construção do mercado público

na beira do mar, numa das pontas da praça. Em 1896, foi construído um novo mercado

público e a praça teve novamente liberado o seu acesso ao mar.

Além das casas que serviam como moradias e para o comércio, os principais

prédios públicos da vila foram construídos em torno da Praça da Matriz, como o Palácio do

Governo, ou Casa do Governo, e a Câmara Municipal. Lesson chama esses dois prédios de

Palácio da Administração da Vila e de Palácio da Justiça. Equívocos em relação às

denominações dos prédios públicos nos remete à questão de como o que os viajantes viam

eram traduzidos para códigos conhecidos. As estruturas políticas e administrativas

portuguesas não correspondiam ao do Estado Francês, de onde vinha Lesson. A Câmara

Municipal era mais do que o espaço jurídico, como dá a entender o nome utilizado pelo

viajante francês. Além de ser uma prisão, com as celas localizadas no térreo ou no porão,

comportava também o poder administrativo da vila. Era nesse espaço que se reuniam os

“homens bons”, indivíduos que, em decorrência de suas posses e de seu prestígio social, eram

eleitos para ocupar as cadeiras da câmara municipal. O poder político em Desterro era

dividido entre a Câmara Municipal e o Governo da Capitania até a Independência do Brasil e

a outorgação da Constituição do Império de 1824, que criou nas províncias os cargos de

Presidente, Secretário e Comandante das Armas, designados pelo Imperador e pelos

Conselhos Gerais, com funções legislativas. As funções das Câmaras Municipais estavam

relacionadas à administração da vila, como a aplicação das rendas e outras atribuições, entre
151

elas a elaboração das posturas municipais. Seus membros eram eleitos e o mais votado

assumia o cargo de Presidente da Câmara.

Além de concentrar os prédios administrativos, era na Praça da Matriz que

erguia-se o principal prédio religioso, a Igreja dedicada a padroeira da vila. Saint-Hilaire

descreve-a com sendo

grande e tem duas torres, mas não me pareceu que tivesse uma largura
proporcional à sua altura. Sobe-se até ela por uma rampa margeada por dois
muros de arrimo, a qual vai desembocar numa pequena plataforma em meia-
lua. Na base dessa elevação há uma alta palmeira, cuja elegante folhagem,
que se agita à mais leve brisa, contrasta com a imobilidade do prédio ao qual
ela serve de ornamento. No seu interior, a igreja tem forro e é bem
iluminada, mas achei-a menos limpa do que em geral são as igrejas no
Brasil. Medi cerca de quarenta e dois passos desde o altar da capela-mor até
a porta. O altar é pouco ornamentado, sendo mais enfeitados os dois outros
que o ladeiam obliquamente. Afora esses, há ainda mais dois altares dos
lados da igreja, além de duas capelas bastante ricas. 275

O local para a construção da primeira capela, que depois foi reformada e

aumentada, marcou o futuro núcleo urbano. Francisco Dias Velho erigiu um oratório dedicado

à Nossa Senhora do Desterro, onde os habitantes reuniam-se para as rezas. Com a vinda do

Brigadeiro Silva Paes para a vila de Desterro, como primeiro governador da Capitania de

Santa Catarina, a igreja foi reformada devido à sua “pequenez [...], feita pelo primeiro

povoador de pedra e barro e de muy pequena capacidade e cimitria.”276 Na mesma

correspondência em que descreve a igreja, solicita sua derrubada e a construção de uma nova,

maior, a fim de abrigar todo o povo nos dias de festa. Em 1748, dois anos após a solicitação,

foi concedida autorização para sua construção, que somente iniciou no ano de 1753,

estendendo-se até o ano de 1772.

Da praça central partiam as ruas, para ambos os lados. Eram estreitas,

geralmente retas, alinhadas e regulares. Saint-Hilaire, o único dos viajantes analisados que

havia viajado por outras cidades de Santa Catarina e do país, comenta que

275
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. pp. 170-171.
276
Silva Paes. Apud. CABRAL, Oswaldo. Nossa Senhora do Destêrro. Notícia I. Op. cit. p. 42.
152

comparadas com as outras cidades do Brasil, suas ruas são estreitas, mas em
geral bem alinhadas. Só são calçadas defronte das casas, e no entanto, como
ocorre com as de Paranaguá e São Francisco, nunca há lama nelas porque o
terreno é muito arenoso. 277

Eliane Veras faz um contraponto a esse viajante utilizando dois documentos

administrativos. Em 1846, o Presidente da Província solicitou ao Presidente da Câmara que

fossem tomadas providências a fim de resolver o problema das águas estagnadas nas ruas da

cidade. E o mesmo problema continuava em 1889. O presidente da Província José Ferreira de

Mello registrou, em seu relatório, a situação precária do escoamento das águas pluviais na

cidade de Desterro.278

Oswaldo Cabral desenvolveu uma pesquisa sobre as vielas e ruas da antiga

Desterro. Utilizando documentos administrativos, entre eles planos urbanos, relatos de

viajantes, estrangeiros ou não, fotos antigas e outros documentos iconográficos, o médico e

historiador descreveu a implantação e desenvolvimento das ruas, ruelas e becos da cidade.

Utilizou também um croqui encontrado nos Arquivos da Prefeitura Municipal de

Florianópolis, no qual está representado um plano da vila de Desterro no ano de 1819 (Figura

2). Segundo Eliane Veras, o estudo de Cabral é “uma contribuição valiosa para o estudo da

paisagem urbana desterrense”. No entanto, em sua pesquisa histórica-urbanística-

arquitetônica da cidade de Desterro/Florianópolis, constatou equívocos em relação ao traçado,

nomes e direções de algumas das ruas.279 Apesar dos erros cometidos por Cabral na análise do

mapa, optamos por apresentá-lo por ser útil para visualizarmos como a cidade cresceu e se

organizou, em relação ao plano traçado em 1754 por Sá e Faria.

277
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 170.
278
VEIGA, Eliane Veras da. Op. cit. p. 74. (Nota de Rodapé nº 67)
279
Eliane Veras cita que a Rua da Pedreira no mapa não parte da praça, enquanto no texto, o autor a coloca
como partindo da praça entre o prédio dos Artigos Bélicos e a casa do futuro quartel da Polícia. Pelo texto, ela
corresponderia a atual Vitor Meirelles. Outros equívocos e erros são melhor analisados pela autora em seu livro
Florianópolis: Memória Urbana. Florianópolis: Editora da UFSC/Fundação Franklin Cascaes, 1993. pp. 68-73
e mapa nº 7.
153

Figura 2 – Mapa da Vila de Desterro em 1819 - In: CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do
Desterro: notícia I. Florianópolis: Editora da UFSC, 1971. p. 123.

Além dos aspectos urbanos anteriormente descritos pelos viajantes que os

antecederam, Saint-Hilaire e Lesson acrescentaram um tema novo quando da descrição da

vila: a condição do porto. Os outros viajantes falavam da facilidade de conseguir água,

mantimentos e madeira para os navios. Langsdorff disse que a província foi beneficiada com

“várias liberalidades; assim, por exemplo, os navios que aqui entram ou saem do porto, pagam

muito menos - sejam estrangeiros ou nacionais, do que em outros portos brasileiros.”280

Lesson comentou que o porto é localizado “numa enseada onde fornecem água somente para

as embarcações do porto, cerca de cinqüenta pipas.”281 Saint-Hilaire afirmou que a capacidade

do porto era restrita, pois somente comportava barcos pequenos, mas para esta descrição citou

280
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 163.
281
LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 274.
154

o que havia escrito o capitão Duperrey. Talvez os cientistas viajantes não se referissem às

condições portuárias e de navegação por ser este um tema tratado nos relatórios e diários dos

comandantes e capitães dos barcos.

Mawe comentou que “assim que entramos na cidade, distinguimos, no seu

aspecto geral e nas maneiras dos habitantes, superioridade acentuada sobre os que

deixáramos”282, no caso, os habitantes de Montevidéu. Sua boa impressão em relação a

Desterro é facilmente explicável, uma vez que haviam sidos obrigados a fugir da capital da

Colônia Cisplatina, devido às disputas locais, pois os grupos que haviam sido apoiados pelos

ingleses foram derrotados. Mas e os outros viajantes, qual o motivo que os levou a salientar os

aspectos positivos da pequena vila? Mesmo considerando que os viajantes foram recebidos

pela elite, como nos mostram os jantares no Palácio do Governador, para os quais foram

convidados Pernetty e Saint-Hilaire, eles também visitaram e conheceram casas mais

modestas, com piso de chão batido, nas quais seus habitantes contavam somente com esteiras

de palha para se acomodar no momento das refeições, compostas geralmente por farinha,

peixe e laranjas, como eles mesmos descreveram. Esse encobrimento, ou melhor, essa

suavização das condições econômicas da vila teria se dado como uma retribuição da

hospitalidade recebida? Nesta época, não se negava pouso aos forasteiros que chegavam de

surpresa. As distâncias, o povoamento escasso e a ausência de estalagens transformaram a

hospitalidade numa necessidade no Brasil colonial.283

O que constatamos é que as falas dos viajantes são contraditórias. Descrevem

positivamente alguns aspectos e negativamente outros. De um modo geral, o que eles

encontram aqui não supera o que eles tinham em seus países de origem, exceto a riqueza e a

abundância natural. Lesson, por exemplo, não teve uma boa impressão das cidades coloniais

portuguesas, uma vez que “encontra-se várias tendas de revendedores, espécies de tavernas

282
MAWE, John. Op. cit. p. 190.
283
ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e Vida Doméstica. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.). Op. cit. p. 93.
155

onde se dão a beber e a comer, e onde a ralé e os negros vêm se regalar com peixe seco e

araque”, mas não tem a oferecer “aos estrangeiros nem hotel, nem restaurante, nem café.”284

Na Inglaterra, país de origem de Mawe, os primeiros cafés foram criados no século XVIII,

espaços inicialmente de apoio as estações de coches, tornaram-se posteriormente

independentes. Eram locais freqüentados pela classe média e alta, que se encontravam para

conversar e discutir questões políticas.285 Em Desterro, os locais públicos de sociabilidade

eram, segundo esse viajante, as tavernas. Mas, ao contrário dos cafés, não eram freqüentados

pela elite, mas sim pela população pobre. Não eram locais de discussões políticas, uma vez

que em 1807 não havia eleições nas quais a população pobre e os escravos participavam. As

tavernas, ou tendas de revendedores, eram locais onde os trabalhadores, livres ou escravos,

poderiam encontrar comida e bebida. Também eram nesses locais onde resolviam suas

diferenças, resultando muitas vezes em balbúrdia e brigas. Outro problema, era a

concentração de escravos, muitas vezes até tarde da noite, extrapolando o horário de recolher.

A ausência de alguns espaços de sociabilidade comuns em seu país de origem, seria, na

opinião deste viajante, uma mostra do atraso em que se encontrava a cidade? Provavelmente,

pior do que a ausência de restaurantes e cafés onde as pessoas pudessem se encontrar, era a

constatação de que os locais que os substituíam na América eram as tavernas, locais

impróprios, já que eram freqüentados pela “ralé” e pelos “negros” para comer e beber.

A elite possuía outros espaços de sociabilidade. Espaços privados, em

ambientes restritos, como os jantares e bailes. Oferecidos pelo governo em homenagem aos

viajantes, foram prestigiados por membros do governo, civis e militares, e também por

membros da Igreja e pelas famílias locais. Foram nos bailes que as mulheres locais

surpreenderam alguns viajantes devido ao luxo e a elegância da indumentária. Saint-Hilaire

comentou que a beleza das mulheres de Desterro, com seus cabelos negros, sua pele clara e

LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 274.


284
285
SENNETT, Richard. Carne e Pedra: o corpo e a cidade na Civilização Ocidental. Tradução: Marcos
Aarão Reis. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003. pp. 277-278.
156

rosada, seus olhos bonitos, era salientada devido a sua desenvoltura e o fato delas não se

esconderem dos estranhos, como as mulheres de outras regiões do Brasil.286 Deduzimos que

esses jantares e bailes, espaços mais restritos, foram prestigiados por um número reduzido e

seleto de convidados. Além de Lesson, que deu a entender que existiam locais específicos

para determinados grupos sociais, Pernetty, ainda no século XVIII, salientou uma divisão

entre os habitantes da pequena vila. Ele escreveu que passou “em seguida pela vila, que me

pareceu, a guarnição ocupa uma parte e a outra é ocupada pelos brancos de um lado e os

negros ou mulatos do outro.”287 O viajante percebeu uma separação espacial. Primeiro uma

divisão entre o lado militar e o lado civil da vila e depois uma distinção que se dava em

decorrência da cor dos seu moradores. Num lado viviam os brancos, e no outro os negros ou

mulatos.

A vila de Desterro, como muitas outras vilas, tinha ruas e bairros que se

caracterizavam conforme as condições sociais e atividades econômicas de seus moradores.

Em torno da Praça da Matriz estavam localizados, além dos prédios públicos, as moradias da

população mais abastada e as casas de comércio. A Rua Augusta (atual Rua João Pinto) e a

Rua da Cadeia (atual Rua Tiradentes) também era área de comércio e de moradia de uma

parcela da população mais favorecida. Próximo ao Rio da Bulha e da Ponte do Sabão,

localizava-se o Beco Sujo (imediações da atual Avenida Hercílio Luz). Mais acima, ficava o

bairro da Pedreira (altos da Rua Saldanha Marinho, onde se localiza o prédio da

FAED/UDESC) e após o bairro da Tronqueira (atual Rua Artista Bittencourt). Também

existia o bairro da Toca, na base do morro onde foi construído a capela Menino Deus e o

Hospital de Caridade. Todas essas regiões, Beco Sujo, Pedreira, Tronqueira e Toca,

localizadas ao leste da praça, eram locais de moradia das populações pobres, trabalhadores

livres e escravizados, estes últimos caso tivessem autorização para morar só. As lavadeiras

286
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 173.
287
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 82.
157

concentravam-se nas regiões próximas às bicas d’água e nas margens do rio da Bulha. No

outro lado da cidade, a oeste da praça e na beira do mar, localizava-se a zona portuária e, mais

adiante, em direção ao Estreito (onde foi construída a Ponte Hercílio Luz), o bairro da

Figueira, área de moradia e freqüentado por marinheiros, estivadores, soldados. Esta área

também era a zona de prostituição da cidade.288

As cidades na América tinham características próprias, que poderiam variar

devido a alguns fatores, como por exemplo, a orientação urbanística definida pela metrópole.

Sérgio Buarque de Holanda, em seu texto sobre as cidades coloniais na América Portuguesa e

Espanhola, utiliza o termo “semeador” para explicar a forma como os portugueses

implantaram suas vilas no litoral do Brasil. Elas haviam nascido e crescido sem um plano

definido, sem desenho preestabelecido, espalhando-se conforme os acidentes geográficos que

foram sendo encontrados pelo caminho e que deveriam ser contornados. Cidades como

Salvador e São Vicente cresceram em desalinho. No entanto, o autor chama a atenção para

casos como o Rio de Janeiro, onde o esquema retangular esteve presente, muito mais em

decorrência da ausência de empecilhos naturais do que pela ação de uma vontade construtora.

No caso da vila de Desterro também podemos perceber um plano pré-traçado que tem ao

centro a praça, de onde partem ruas retas formando o clássico desenho de grade. A poucos

passos do centro da vila estas ruas dão lugar as ruas curvas e aos becos.

Por outro lado, Sérgio Buarque de Holanda utiliza a expressão “ladrilhador”

para pensar a construção das cidades coloniais espanholas, as quais seguiam um plano pré-

estabelecido e orientações que definiam a escolha do sítio onde a vila seria construída, o

tamanho ideal da praça a fim de melhor cumprir com suas funções, o arruamento a ser aberto,

entre outros pontos que eram contemplados na legislação espanhola relacionada ao tema. O

288
Para aprofundar sobre a distribuição populacional na Desterro do século XIX ver: PEDRO, Joana. Mulheres
Honestas e Mulheres Faladas: uma questão de classe. Florianópolis: UFSC, 1994; CABRAL, Oswaldo.
Nossa Senhora do Destêrro. Notícia I. Florianópolis: EdUFSC, 1971; MORTARI, Cláudia. Os Homens Pretos
do Desterro: um estudo sobre a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (1841-1860). Porto Alegre:
Dissertação Mestrado PUC/RS, 2000.
158

traçado dessas cidades mostra o esforço do homem em redesenhar a paisagem. Na opinião de

Sérgio Buarque de Holanda, esse esforço não parece ter sido a principal preocupação dos

colonizadores do Brasil, uma vez que “a cidade que os portugueses construíram na América

não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça

na linha da paisagem.”289

As vilas, povoados e outros tipos de concentrações urbanas que foram

desenvolvidas pelo ser humano não podem ser entendidas somente como um traçado regular

ou não no interior de um determinado espaço. Mais do que um conjunto de edifícios que

possuem função pública ou privada, o espaço urbano também comporta os seus interiores. São

a Igreja, os hospitais, as lojas, as tavernas, as barraquinhas onde são vendidos os alimentos.

Por interior se incluem as residências particulares com seus quartos e até as vestimentas das

pessoas. Esses aspectos são importantes, uma vez que contribuem para definir o espaço das

pessoas na “dimensão cênica da cidade”. Além disso, outros espaços também ocupam áreas

que ficam sob a influência da cidade: a zona rural. Dela vem os mantimentos, que serão

comercializados no mercado da praça. Nela muitos dos que vivem na cidade possuem seus

sítios com suas criações e suas lavouras. O espaço rural está estreitamente vinculado com o

espaço urbano, quando não complementar a este.290 Nesse sentido, quando falamos na vila de

Desterro, temos em mente não somente as poucas ruas em torno da praça central e da Igreja

Matriz, mas também o seu entorno, indefinido geograficamente, mas econômica, social e

culturalmente vinculado, e que formava uma comunidade.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras. 1995. p. 110.
289

ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como História da Cidade. Tradução: Pier Luigi Cabra. São Paulo:
290

Martins Fontes, 1993. p. 43.


159

6.2. Da população

Antes de aprofundarmos as descrições dos viajantes sobre as populações que

viviam na região, fossem elas de origem açoriana, portuguesa ou africana, achamos

importante mapear o número de habitantes do local. Se considerarmos as informações

contidas na Memória Política sobre a Capitania de Santa Catharina escripta no Rio de

Janeiro em o ano de 1816, escrita pelo ajudante de ordens do governador, Paulo Joze Miguel

de Brito, a população da capitania não havia aumentado o projetado a partir das análises do

crescimento da população entre os anos de 1774 a 1813. Segundo ele, nesse período a

população deixou de crescer em pelo menos 5.609 habitantes, sem que houvessem para isso

motivos, como por exemplo, fome, guerras, epidemias, terremotos ou qualquer outro flagelo.

Esse número não se refere somente à vila de Desterro, mas a toda capitania, que naquela

época abrangia basicamente o litoral do atual estado de Santa Catarina, uma vez que a vila de

Lages e todo o território que a compreendia somente foi incorporada à capitania de Santa

Catarina no ano de 1820. Para chegar a essa conclusão, o autor analisou o crescimento

populacional utilizando os mapas de população que as Capitanias remetiam anualmente ao

Ministério. Segundo ele, a “Statistica” no Brasil estava muito atrasada. Poucas capitanias

tinham a preocupação de enviar para o governo os mapas de população, e os que eram

enviados continham omissões, como a proporção de população em relação ao território, bem

como dados referentes ao sexo dos indivíduos, se eram livres ou escravos, óbitos, filhos
160

naturais e legítimos, recrutamentos, causas das mortes prematuras, atividades econômicas,

etc.291

Langsdorff falou que, em 1803, a população da capitania girava em torno de 25

a 30 mil almas, enquanto que na Ilha de Santa Catarina, era de mais ou menos 10 mil

habitantes. Além da vila de Nossa Senhora de Desterro, existiam as localidades no interior da

ilha, como as freguesias292 de Santo Antônio de Lisboa, de Nossa Senhora da Lapa do

Ribeirão da Ilha e de Nossa Senhora da Conceição da Lagoa. No continente, existiam as

freguesias de São Miguel, São José e Enseada do Brito, todas subordinadas à vila-capital,

Desterro. Além de Desterro, a Capitania de Santa Catarina era composta por outras duas vilas,

Laguna e São Francisco. Essa era a divisão política e administrativa no ano de 1810.

Saint-Hilaire cita dois números diferentes para a população. Um tomando

como base os dados oficiais, o outro segundo “pessoas que, por sua posição, deviam estar

mais bem informadas.”293 O primeiro fala que a população da Ilha de Santa Catarina era de 12

mil, enquanto o outro fala em 14 mil habitantes. Essa diferença, segundo ele, ocorria por

causa das guerras. Para fugir ao recrutamento, muitas famílias escondiam seus homens, dando

informações falsas e evitando, desta forma, que fossem convocados para integrarem as tropas

que lutavam no sul da Colônia Portuguesa. A pouca confiabilidade nos números e estatísticas

oficiais que tratavam da população também foi motivo de reclamação de alguns Presidentes

da Província de Santa Catarina. João José Coutinho constatou que, no ano de 1853, “os mapas

de população não me merecem confiança alguma, são a meu ver inteiramente imaginários.”294

Alguns anos antes, em 1840, outro Presidente de Província, Francisco José de Andrade,

291
BRITO, Paulo Joze Miguel de. Op. cit. pp. 48 e 52-53. O autor cita a Invasão Espanhola de 1777, mas não a
considera um guerra, nem muito menos a vê como uma possível causa na diminuição do crescimento
populacional previsto.
292
Freguesia é um misto de organização religiosa e política que antecede a elevação à vila. Geralmente as
freguesias tomam o nome da igreja local.
293
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 167.
294
COUTINHO, Dr. João José. Falla que o Presidente da Província de Santa Catharina, dirigio á
Assembléa Legislativa da mesma Província, por occasião da abertura de sua Sessão ordinaria em 1 de
março de 1853. Desterro, 1853. p. 20
161

também já havia constatado a impossibilidade de poder contar com mapas estatísticos

precisos sobre as povoações. Segundo ele, os motivos principais eram dois: o primeiro era a

dificuldade de conseguir informações junto às famílias que tinham medo de informar a

presença de filhos varões, bem como sua idade, uma vez que estes podiam ser convocados a

assentarem praça. O segundo motivo era a pouca dedicação de alguns dos empregados

encarregados de elaborar as listas estatísticas e os mapas parciais.295

Mesmo tendo conhecimento das críticas às informações e dados obtidos sobre

a população, optamos por reproduzir duas tabelas. A primeira refere-se à população da

Capitania de Santa Catarina. Os números referem-se aos anos de 1810 e 1820 e trazem dados

sobre a população no continente e na Ilha de Santa Catarina, que foram citados pelo

governador João Vieira Tovar e Albuquerque, no ano de 1821.

Quadro I -1.
População da Capitania de Santa Catarina: 1810-1820
1810 1820
Ilha de Santa Catarina 8.864 11.217
(incluso a vila capital)
Continente 21.448 27.005
TOTAL 30.448* 28.222**
FONTE: Resumo Geral da população da Capitania de Santa Catarina
extraído dos mapas dos comandantes dos Distritos. B.N./RJ. Pasta I
- 31,29,18. Documentos Nºs. 9,28 e 29.
In: BALDIN, Nelma. A Intendência da Marinha da Santa Catarina e a Questão da
Cisplatina. Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura, 1980. p. 11.
* Total: 30.312
** Total: 38.222 - A soma total que consta na tabela está incorreta.

A população da Capitania não era muito numerosa. Espalhava-se pelo litoral,

concentrando-se na vila de Desterro, capital administrativa, e também pelas outras vilas e

freguesias, localizadas no litoral. Na tabela acima os dados apresentados são gerais, sem

distinção entre sexo e cor. Na obra de Paulo Joze Miguel de Brito, Memória Política..., são
295
ANDRADE, Francisco José de. Relatório apresentado pelo Presidente da Província aos deputados
Provinciais de Santa Catarina à Assembléia de Santa Catharina em 1º de março. Desterro, 1840. p. 30.
162

citados dados mais detalhados, como a cor e o sexo da população. No ano de ano de 1810, a

Capitania de Santa Catarina tinha uma população de 30.339 indivíduos. Desses 11.173 eram

homens e 12.507 eram mulheres, todos brancos. Entre as populações de “differente côr”, 293

eram homens libertos e 358 eram mulheres libertas, enquanto que 4.633 eram homens

escravizados e 2.570 eram mulheres escravizadas.

A segunda tabela refere-se à população do ano de 1849. Apesar de se referir a

alguns anos após o nosso período de análise, preferimos reproduzi-la porque traz dados

importantes que nos possibilitam analisar a distribuição populacional pela Ilha de Santa

Catarina. Outro ponto importante nesta tabela é que ela mostra dados sobre as freguesias do

interior da ilha, sua população, inclusive com informações sobre a quantidade de escravos.

1849 Desterro Ribeirão Lagoa Santo Canasvieiras Rio


Antônio Vermelho
Brasileiros 5.283 1.769 2.573 2.243 1.787 975
Estrangeiros 354 11 31 10 25 9
Pretos 635 163 172 84 41 68
Livres 77, 85% 72, 2% 78, 8% 83% 84% 64%
Escravos 1.784 748 747 477 355 593
Escravos 22, 15% 21, 8% 21, 2% 17% 16% 36%
Total 13.737

Fonte: Arquivo Público do Estado de Santa Catarina In: REBELATTO, Martha. “Nem todos gostavam da
escravidão”: fugas de escravos em Desterro na década de 50. UFSC: TCC em História, 2004. p. 22.

Infelizmente os dados referem-se à população de um período posterior ao ano

de 1822, data em que o último viajante analisado, Lesson, esteve na Capitania. No entanto,

optamos por utilizar os dados, uma vez que muitos relatos eram escritos posteriormente,

alguns vários anos após a viagem, como por exemplo o relato de Saint-Hilaire, escrito após o

ano de 1847, como mostram as fontes nas quais ele pesquisou e que estão citadas em seu

texto. O objetivo, ao apresentarmos esses dados, não é propriamente sabermos a quantidade


163

de pessoas que aqui viviam, mas sim sua distribuição entre livres e escravos, descendentes de

europeus ou de africanos. Nesse sentido, esses dados nos permitem verificar que, mesmo não

tendo uma população escrava que se equiparasse às regiões do norte do país, os indivíduos

escravizados compreendiam em torno de ¼ da população. Em algumas freguesias, como a do

Rio Vermelho, essa população era muito significativa. Os viajantes falavam normalmente em

“negros”, não fazendo uma distinção entre os que eram livres e os que eram escravos. Se aos

escravos acrescentarmos os pretos livres, a população “de cor”, ou “negra”, torna-se maior. É

essa diversidade populacional que surpreendeu os viajantes, principalmente quando este porto

era a primeira parada fora da Europa.

Essa população, com a qual os viajantes travaram contato, mesmo que breve,

foi tema de inúmeras falas e considerações. Segundo Saint-Hilaire, “a população da Ilha de

Santa Catarina e mesmo a do resto da província é em grande parte originária das Ilhas dos

Açores.”296 O litoral sul do Império Português foi o local para onde foram encaminhadas,

entre os anos de 1748 e 1756, mais de 6.000 pessoas vindas das Ilhas dos Açores. Na

Capitania de Santa Catarina foram assentadas na vila de Desterro e de Laguna e em várias

outras localidades como Nossa Senhora da Conceição da Lagoa, São José, Santo Antônio,

Nossa Senhora do Rosário da Enseada do Brito, São Miguel, Nossa Senhora das Necessidades

e Vila Nova. Algumas já eram habitadas, outras foram fundadas pelos próprios açorianos. No

“Continente do Rio Grande” estabeleceram-se inicialmente na vila de Rio Grande e suas

proximidades. Posteriormente deslocaram-se para as margens do rio Jacuí e das lagoas dos

Patos e Quadros e para os Campos de Viamão.297 Esses imigrantes vieram para cá com o

296
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 173.
Sobre as condições e as características dos grupos que se deslocaram das Ilhas Atlânticas para ocupar o Brasil
297

Meridional no século XVIII ver: PIAZZA, Walter. A Epopéia Açórico-Madeirense. 1748-1756. Florianópolis:
Ed. da UFSC, 1992; CABRAL, Oswaldo R. História de Santa Catarina. Rio de Janeiro: Ed. Laudes, 1970;
AREND, Silvia M. F. & WAGNER, Ana Paula. A Família Açoriana na América Portuguesa: novos olhares. In:
Fronteiras: Revista de História. nº 7. Florianópolis: Imprensa Universitária, 1999. pp. 167-183.
164

objetivo de ocupar os territórios a fim de garantir sua posse ao governo português. Além

disso, fugiam do problemas gerado pela superpopulação nas Ilhas dos Açores.

O mesmo viajante fez uma descrição das características físicas dos homens.

Acostumado a descrever plantas e insetos, Saint-Hilaire comenta que

os homens não são corpulentos e sim magros, de um modo geral, e os do


campo têm a pele morena. Tanto estes quanto os citadinos nascidos na ilha
têm geralmente os ossos malares muito salientes, mas seu rosto afilado, seu
nariz comprido e a finura de seus cabelos provam suficientemente que eles
não devem sua origem a uma mistura de sangue indígena e caucásico. 298

Saint-Hilaire comentou que na Ilha de Santa Catarina, como já não havia mais

índios quando aqui chegaram os açorianos, não ocorreu miscigenação entre os dois grupos, o

que, em sua opinião, era a explicação para a grande quantidade de descendentes de açorianos

que compunham a maioria da população na província. Descendentes que conservaram “sem

alteração as características da raça européia.”299 Contraditoriamente, todo o parágrafo anterior

a esse comentário foi utilizado para apresentar uma elaborada teoria sobre como a natureza,

na qual estavam inseridos, influenciou no desenvolvimento físico desses mesmos

descendentes de açorianos. Sua análise comparativa dos habitantes do Rio Grande do Sul e de

Santa Catarina merece ser citado na íntegra:

Podemos verificar a importância desse último fator se compararmos os


habitantes do Rio Grande do Sul com os de Santa Catarina. Tanto uns quanto
os outros são oriundos das Ilhas dos Açores, tendo emigrado mais ou menos
na mesma época. Lançados em imensos campos cobertos de capim, os
primeiros se tornaram criadores de gado; os outros foram levados para uma
região coberta de matas e situada à beira do mar; não podiam espalhar-se
para muito longe sem muito esforço e trabalho, e então se tornaram
pescadores. Obrigados a correr sempre atrás de suas vacas e touros, os
colonos do Rio Grande se habituaram a andar a cavalo; já os colonos de
Santa Catarina passam a vida em cima de uma canoa. Os primeiros,
respirando sempre o ar puro, galopando sem cessar pelos campos,
alimentando-se abundantemente da carne de seus rebanhos, adquiriram uma
força e uma intrepidez notáveis; sua tez se coloriu de um belo tom rosado.
Os outros, que não têm por alimento senão peixes, moluscos e farinha de
mandioca, e que muitas vezes respiram os miasmas de um solo pantanoso300,
298
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 173.
299
Ibidem. p. 135.
300
O solo pantanoso ao qual se refere Saint-Hilaire são os mangues, encontrados em várias regiões da Ilha de
Santa Catarina, e que posteriormente foram drenados, permitindo sua ocupação.
165

estão longe de ter uma aparência robusta e comumente apresentam uma tez
amarelada e um aspecto macilento. 301

A explicação para as diferenças entre os habitantes dos campos do Rio Grande

do Sul e os homens do litoral de Santa Catarina era a geografia, a alimentação. Em meados do

século XIX, difundiu-se na Europa as idéias de Buckle e Ratzel, maiores representantes das

idéias da escola determinista geográfica, que defendia a tese de que o meio condicionava o

desenvolvimento cultural de uma nação. Henry Thomas Buckle (1821-1862) publicou, em

1845, na Inglaterra, a obra History of the English civilization, na qual tentou demonstrar como

as causas físico-climáticas pesavam sobre o homem, mantendo-o miserável e selvagem,

debilitando e enfraquecendo sua razão ao mesmo tempo em que exaltava sua imaginação.

Com exceção da Europa, centro do universo e berço da civilização, a América e as outras

partes do mundo permaneciam à sombra da civilização. Mesmo sem conhecer pessoalmente o

Brasil, o autor dedicou algumas páginas para explicar as causas da degeneração do país e de

sua população. Grandiosidade do mundo externo e pequenez do mundo interno. O contraste

motivado pela pujança da vegetação acovardava a mente humana e a tornava incapaz de

avançar. Sua situação só não regrediu devido à contribuição que recebeu do estrangeiro.

Segundo ele, o problema nas regiões fora da Europa, e no Brasil, era que uma natureza tão

abundante não incentivava o homem a produzir suas obras, pelo contrário, o inibia. 302 Saint-

Hilaire escreveu seu relato alguns anos após ter voltado para a França, entre os anos de 1847

(data da última fonte citada por ele no relato) e 1853 (ano em que veio a falecer). Como ele lia

em inglês, a probabilidade de ter tido contato com as teorias de Buckle é grande. Além disso,

ele elaborou essas conclusões sobre o clima, a vegetação e os açorianos no capítulo intitulado

“Esboço Geral da Província de Santa Catarina”. Nessa parte da obra ele se permite analisar e

301
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 135.
302
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil
1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras,1993. p. 36. Sobre as doutrinas científicas que surgiram no século
XIX ver o capítulo II.
166

discutir com outras fontes aspectos como a história, a geografia, os costumes, a colonização,

entre outros temas relacionados à Capitania de Santa Catarina. Enquanto no restante do relato

ele segue um roteiro de escrita que era determinado pelo transcorrer da viagem, onde a

descrição do que via era mais importante do que a análise, no capítulo inicial ele se permitiu

analisar os aspectos que considerava mais significativos sobre a Capitania.

Em vários trechos nos relatos dos cientistas viajantes podemos constatar a

influência das teorias sobre a América, discutidas no capítulo 4. A explicação de Lesson para

a palidez dos brancos era em decorrência do “ar insalubre deste clima.”303 O mesmo repete

Saint-Hilaire em outro trecho de sua obra, onde diz que “este local é bastante insalubre, e

vários habitantes que visitei apresentavam uma constituição enfraquecida pelas doenças das

regiões pantanosas.”304 Constituição fraca e palidez foram algumas das características dos

habitantes locais salientadas pelos cientistas viajantes. A natureza na qual estavam inseridos

era diretamente responsável pelas condições físicas dos indivíduos, quando não pela sua

degeneração, segundo De Pauw, ou pela sua inferioridade, segundo Buffon. Saint-Hilaire

sugere que uma das formas que poderiam ser empregadas a fim de amenizar os problemas que

existiam nessas regiões era através do contato com colonos estrangeiros. A outra possibilidade

era o curso normal da vida: “e se algum melhoramento chegar a ocorrer, será devido apenas

ao passar do tempo ou ao exemplo dos colonos estrangeiros [...] os estrangeiros só terão a

perder, e os nativos a ganhar com isso.”305 Ao mesmo tempo em que acreditava no

melhoramento inexorável que adviria com o passar do tempo, Saint-Hilaire colocou que o

deslocamento de indivíduos para a América, e seu contato com nativos inevitavelmente os

modificaria para pior. Já os nativos sairiam ganhando, uma vez que teriam a possibilidade de

melhorar através do contato com povos superiores.

303
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 86.
304
LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 269.
305
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 149.
167

Segundo Pernetty, “vêem-se na Ilha de Santa Catarina homens de todo o tipo

de pele, do negro até o branco.”306 Sobre a presença de populações de origem africana,

escrava ou liberta, encontramos falas contraditórias: enquanto Langsdorff surpreendeu-se,

uma vez que “a quantidade de escravos negros de ambos os sexos que se vêm aqui é estranha

aos olhos desacostumados de um europeu qualquer”307, para Saint-Hilaire o número de negros

é reduzido, mais ainda o de mulatos. Seriam essas opiniões contrárias somente em decorrência

do roteiro seguido pelo viajante? Os que vinham pela primeira vez à América, da Europa

direto para Desterro, sem passar por outras regiões do Brasil, como por exemplo a capital, Rio

de Janeiro, tinham uma imagem diferenciada dos outros viajantes? Ou como disse o próprio

Langsdorff, seria uma questão de se “acostumar” com essa prática? Se for esse o caso, Saint-

Hilaire estava tão habituado com a presença da escravidão e de suas implicações na população

que concluiu que aqui eles eram em pequena quantidade, principalmente tendo como

parâmetro de comparação outras regiões do Brasil que ele já havia visitado. Como já

mostramos anteriormente, em 1849, a população da Ilha de Santa Catarina era composta de

mais ou menos ¼ de escravos, espalhados pela cidade de Desterro e pelo interior da ilha, em

suas várias freguesias. Outra hipótese que podemos considerar é de que, entre 1803 e 1820,

respectivamente anos das visitas de Langsdorff e de Saint-Hilaire, a população desses grupos

tenha diminuído. No entanto, como o tráfico internacional de escravos somente cessou vários

anos depois, em 1850, não temos nada que nos leva a considerar essa explicação viável

historicamente. Retornaremos a esse tema quando discutirmos o que os viajantes escreveram

sobre a escravidão.

Em relação às características da população de Desterro, podemos dividir os

discursos dos viajantes em duas vertentes, que não se excluem: por um lado eles elogiam a

306
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 82.
307
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 165.
168

hospitalidade, a gentileza da população local para com os estrangeiros, por outro lado, os

habitantes da região não são muito dedicados ao trabalho.

Neste primeiro aspecto, o mais expansivo em seus elogios aos habitantes locais

foi Langsdorff. Dois aspectos positivos foram salientados por ele, a hospitalidade e a higiene.

Como o viajante já havia residido em Portugal, aproveitou para traçar um paralelo entre os

dois povos, no qual diz que “os costumes e hábitos da terra diferenciam-se, em geral, muito

pouco dos de Portugal; o clima é diferente, bem como os produtos consumidos, fatores que

causam um modo de viver e usos próprios.”308 Um dos pontos que Langsdorff considerou

distinto foi a questão a higiene. Aqui, os moradores andavam melhor trajados, não só usando

roupas finas e boas, “mas também no seu comportamento geral são muito limpos”, no que se

diferenciavam “acentuadamente dos sujos portugueses.”309

Outro aspecto que, provavelmente por ser do interesse pessoal do viajante,

recebeu muitos comentários, foi sobre as manifestações musicais encontradas na ilha. Como

ele presenciou a passagem do ano de 1803/1804, pôde participar de várias momentos festivos,

inclusive uma festa dos “negros” que, segundo ele, recebiam alguns dias de liberdade para se

divertirem. Aproveitavam então para dançar ao som de suas músicas nos terreiros montados

em “míseras choupanas ou bodegas públicas”. Vencido pela curiosidade, Langsdorff foi

testemunha de uma dessas festas, onde acompanhou suas danças e sua música, “digo música,

mesmo que não ouvisse um só dos nossos instrumentos europeus de som ou de corda.”310

Diferente foi sua reação ao ser despertado por uma serenata na véspera da festa de reis: a

“encantadora apresentação” constituía-se em uma “suave e calma harmonia de cantos

melódicos, acompanhados de flautas e guitarras.”311 Nesses poucos dias em que ficou em

Desterro, Langsdorff concluiu que a música estava muito presente no cotidiano dos habitantes

308
Ibidem. p. 165.
309
Ibidem. p. 164.
310
Ibidem. p. 169.
311
Ibidem. p. 170.
169

locais, fossem eles descendentes de açorianos ou de africanos. O que os distinguia era o tipo

de música, mais refinada no caso dos primeiros, enquanto que a dos escravos era uma

“gritaria monótona, uma marcação barulhenta e selvagem do compasso, com as batidas dos

chocalhos e palmas indicando à distância o lugar da reunião.”312 Por outro lado, os

descendentes de açorianos

à noite, reúnem-se em grupos de pequenas famílias onde, segundo o costume


português, dançam, riem, fazem gracejos, cantam e brincam. Os
instrumentos mais comuns são a guitarra e o saltério. A música é expressiva,
agradável e contagiante, as canções por seu conteúdo, são as costumeiras e
falam geralmente do amor e da moça, das saudades e suspiros do coração.313

Outro viajante que elogiou a hospitalidade local foi Chamisso. Essas

demonstrações ocorreram principalmente na ocasião de suas excursões por terra em busca de

plantas, quando “éramos recebidos com toda hospitalidade pelos habitantes do lugar, que nos

convidavam às suas choupanas e nos ofereciam frutas ou qualquer coisa que dispunham em

casa”314, sem cobrar nada em troca dos alimentos consumidos.

Lesson escreveu que encontrou os habitantes “quase sempre afáveis,

atenciosos, solícitos a [...] oferecer refrescos” mas, ao mesmo tempo, salientou que “tudo,

nestas choças, anuncia o pouco cuidado em que vivem as famílias que as habitam, ou mais

ainda, indica a carência de recursos em que se encontram estes habitantes.”315 Apesar do

pouco cuidado e da falta de recursos, os agricultores locais ainda eram mais industriosos do

que os de outras regiões do Brasil, mas obviamente não se igualavam aos da França e da

Alemanha. Em comparações com os europeus, saímos perdendo, uma vez que somos mais

indolentes, uma conseqüência de natureza tão copiosa, mas se fôssemos comparados com os

habitantes das regiões norte (sudeste) do país, estaríamos em melhores condições. Numa

escala que marcasse a preguiça e a indolência, fomos colocados no centro, entre dois
312
Ibidem. p. 169. Pelo código de posturas de 1845 da cidade de Desterro foram proibidos os ajuntamentos de
escravos, ou libertos para fazerem batuques, ou qualquer outro tipo de reuniões, como os reinados africanos.
Desterro. Código de Posturas. Lei 222 - 10.maio.1845.
313
Ibidem. p. 163.
314
CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 235.
315
LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 267.
170

extremos: os senhores do sudeste, que viviam do trabalho de seus escravos e os europeus,

industriosos e trabalhadores.

Viajantes ingleses, franceses e alemães que visitaram a Itália durante os séculos

XVII, XVIII e XIX também tendiam a ver nos nativos, os “italianos”, o mito do nativo

preguiçoso, numa versão européia. Eram recorrentes as descrições dos lazzaroni de Nápoles,

homens fortes e sadios deitados ao sol sem fazer nada, num dolce far niente que tornou-se

parte integrante da imagem que os europeus do norte tinham dos italianos e de sua dolce vita.

Inicialmente a Itália era vista como o centro da civilização devido a sua herança artística da

Antiguidade, o que motivou as viagens do Grand Tour, enquanto que no decorrer do século

XVIII esta imagem transformou-se. Segundo Peter Burke, os viajantes ingleses que

escreveram sobre suas experiências na Itália foram influenciados pelo “mito” da Itália, que

tornou-se mais agudo no século XIX, e que a viam como parte integrante da distinção

norte/sul. O norte visto como o local da cultura e da civilização e o sul como o espaço da

natureza e da selvageria.316 O “mito do nativo preguiçoso” expandiu-se, adaptando-se para

populações de outras regiões do mundo, de fora da Europa.

Falas nas quais os habitantes locais eram considerados inertes, poucos ativos e

ociosos apareciam nos relatos de Pernetty, que esteve aqui em 1763, de Mawe, em 1807, e de

Saint-Hilaire, em 1820.

A inércia característica dos nativos e os perigos que se corre pela presença


dos animais ferozes e das serpentes, impediam os oficiais da guarnição e os
moradores da região de ir à caça e nos estimulavam a imitá-los. 317

Pode-se corrigir a insalubridade deste lugar limpando e drenando o solo, mas


tal empreendimento é árduo, e requer um povo mais ativo e prático. 318

De qualquer forma, o dinheiro que eles ganhavam não trazia proveito para a
região, já que após cada pescaria eles caíam na ociosidade e negligenciam as

316
BURKE, Peter. O discreto charme de Milão: viajantes ingleses no século XVII. In: Variedades de História
Cultural. Tradução: Alda Porto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2000. pp. 140-146.
317
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 83.
318
MAWE, John. Op. cit. p. 194.
171

suas terras. Agora eles se vêem forçados a cultivá-las, o que está longe de
constituir um mal.319

A inércia os impedia de caçar, de drenar os pântanos, e de cultivar os campos.

Também era a explicação para sua pobreza, uma vez que, quando tinham dinheiro,

entregavam-se à ociosidade ao invés de economizar e se prevenirem para os percalços futuros.

Na opinião de alguns viajantes, era a inércia, a preguiça, o espírito pouco prático e inativo da

população local o que atravancava o desenvolvimento da região. Apesar de não utilizarem o

termo civilizado ou incivilizado para descrever os habitantes locais, os viajantes davam a

entender que sua inatividade, sua preguiça, os aproximava dos “selvagens”, dos incivilizados,

inclusive copiando algumas de suas técnicas agrícolas, como a queimada. Por outro lado, para

virem a alcançar o patamar de desenvolvimento dos europeus, teriam que desenvolver

algumas características, como ser previdente, econômico e trabalhador.

O conceito de civilização foi trabalhado pelo sociólogo Norbert Elias. No

primeiro volume de sua obra, O Processo Civilizador, o autor distingue os conceitos de

“kultur” e “civilização” para a sociedade alemã e as sociedades francesa e inglesa. Ele coloca

que, apesar das diferenças entre esses dois conceitos, um aspecto os aproxima: ambos

representam uma “auto-imagem nacional” e cada sociedade considera “axiomático que a sua é

a maneira como o mundo dos homens, como um todo, quer ser visto e julgado.”320 Sobre o

conceito de civilização, ele expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo. Além

disso, resume tudo aquilo que uma sociedade possui e que faz com que ela se considere

superior as sociedades antigas ou às sociedades contemporâneas “mais primitivas”.

Civilização não significa a mesma coisa para franceses/ingleses e alemães. Para os primeiros,

ela representa o orgulho pela importância de suas nações no progresso do Ocidente e na

humanidade: as realizações políticas e econômicas, as realizações técnicas, as concepções

319
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 163.
320
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Volume 1: Uma história dos costumes. Tradução: Ruy Jungmann.
2º ed. (1º ed. Suíça, 1939) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. p. 25.
172

morais, as idéias religiosas e a organização social. Significa também as atitudes e

comportamentos. Descreve um processo ou seu resultado. Enfatiza o que é comum ou deveria

vir a ser na sociedade, de maneira que estabelece uma distinção entre uma forma “civilizada”

e “incivilizada” de fazer as coisas e se comportar. Além disso, refere-se a algo que está

sempre em movimento, “para frente”. Ao mesmo tempo que delimita distinções entre os que

são civilizados e os que não são, também contribui para minimizar as diferenças nacionais

entre os povos, enfatizando o que é comum aos seres humanos, entre aqueles que

incorporaram os aspectos que delimitam o que é ser civilizado. Já para os alemães, civilização

refere-se à aparência externa dos seres humanos. Para ele é o termo kultur que expressa o

orgulho por suas realizações, sejam estas intelectuais, artísticas ou religiosas. Não se refere ao

comportamento, uma vez que, para os alemães, as atitudes desvinculadas das realizações

tornam-se secundárias. Remete aos produtos humanos nos quais está expressa a

individualidade de um povo. A kultur delimita as diferenças nacionais, a identidade de cada

grupo.321

Essas concepções, civilização e kultur, são melhor compreendidas a partir da

análise das diferenças entre as sociedades francesa e alemã no século XVIII, no Antigo

Regime. É nesse período histórico que são definidas as fronteiras, o papel da classe média e

da burguesia nessas sociedades e suas relações com a corte, com a aristocracia. Após o fim do

período do terror (1794), quando a revolução torna-se mais moderada, a França considera que

o processo de civilização em seu país está encerrado. Seu papel passa a ser o de transmitir aos

outros - povos e sociedades atrasadas e/ou selvagens - uma civilização existente e acabada. A

consciência da superioridade de sua civilização torna-se a justificativa para a conquista de

colônias e seu domínio.322 É com essa crença na superioridade da sua civilização que os

viajantes empreendem suas viagens de estudos para as “regiões periféricas” e as descrevem.

321
Ibidem. pp. 24-25.
322
Ibidem. p. 64.
173

Essas descrições compõem um quadro sobre a Capitania de Santa Catarina. Enquanto Choris

pintou nossa região, os outros viajantes vão utilizar a escrita para construir uma paisagem,

onde estarão representados as pessoas que aqui viviam e a cultura que desenvolveram. Para

isso vão recorrer a comparações e paralelos, estabelendo relações. A Europa era tomada como

o padrão a ser seguido. Sua organização econômica e política, os hábitos de sua população,

sua música etc., eram considerados como os mais civilizados e melhores. A partir de seus

relatos, podemos perceber como determinados aspectos são considerados mais importantes,

uma vez que são indícios de que as populações locais aproximavam-se do que para eles era

considerado como mais civilizado. Segundo Edward Said, foi no século XIX, ou mais

precisamente na era do imperialismo, que os europeus se constituíram a partir de uma noção

estática de identidade. A partir do início do contato entre os europeus e os não-europeus, “a

única idéia que quase não variou foi a de que existe um ‘nós’ e um ‘eles’, cada qual muito

bem definido, claro, intocavelmente auto-suficiente.”323

Um fator que colocava as populações locais em um patamar “menos

civilizado” do que os europeus era o fato de que, ao invés de transformarem a natureza, eles

se adaptavam a ela, muitas vezes incorporando atitudes e práticas dos indígenas. Saint-Hilaire

comentou que “a rotina, ajudada por uma culposa indolência, vem-se opondo até agora a esses

pequenos melhoramentos, e os agricultores preferem emigrar a abandonar as práticas que

herdaram dos selvagens.”324 Segundo Karen Lisboa

o processo civilizador define-se pela oposição entre a história da


humanidade e a natureza física, que tem como ponto de partida e justificativa
a crença de que o ser humano é a criatura mais perfeita da natureza. E,
quanto mais civilizada, mais fortemente a humanidade se opõe à vida das
plantas e dos animais.325

323
SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. Tradução: Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras,
1995. p. 27.
324
SAINT-HILAIRE, Auguste. Op. cit. p. 178
325
LISBOA, Karen Macknow. Op cit. p. 203.
174

Civilizar, civilização, para esses viajantes, era a natureza transformada pelo

homem. Apesar de seres estudiosos da natureza e de necessitarem de áreas intocadas para

realizar suas pesquisas e para coletar material, a cultura opunha-se e era superior à natureza.

Mas mesmo nos locais onde encontraram a natureza transformada, lavouras e campos

cultivados, construções e vilas, estas não reproduziam, muito menos se igualavam com o que

eles estavam habituados a ver em seus países de origem. Além de uma diferença espacial,

europeus falando da América, temos também uma diferença cultural. Eram europeus não-

portugueses. Como Peter Burke mostrou em seu trabalho sobre os viajantes ingleses na Itália,

existia uma diferenciação interna na própria Europa. Uma distinção que opunha o sul ao

norte. Portugal, país detentor de extensos territórios na América, que o abastecia com

inúmeros produtos, não fazia parte do grupo de países que teve primazia nas inovações

científicas e tecnológicas no século XVIII e XIX.


175

7. Populações de origem africana

Os viajantes estrangeiros que visitavam o Brasil, em sua maioria no século

XIX, se deparavam surpresos, alguns chocados, com a presença do trabalho escravo e de uma

imensa população “de cor” no Brasil. Mesmo sabendo que o trabalho escravo africano e

crioulo era largamente utilizado no país, uma vez que tinham contato com outros viajantes,

pessoalmente ou através da leitura de seus relatos, o impacto inicial era grande. Entre os

viajantes analisados, todos falaram em algum momento sobre as populações de origem

africana. Louis Choris, em uma de suas litografias reproduziu “negros” dançando após um dia

de trabalho.

Em seus relatos os viajantes utilizavam diversas denominações quando

mencionavam essas populações. As mais freqüentes eram “negros”, “escravos negros” ou

somente “escravos”. Outros termos utilizados eram: “mulatos”, “habitantes nativos da

África”. Entre os viajantes, o termo negro era utilizado como sinônimo de escravo. Saint-

Hilaire, ao descrever um incidente ocorrido na localidade do Ribeirão, ao sul da Ilha de Santa

Catarina, utilizou o termo “negro liberto”. Para fazermos um contraponto as falas dos

viajantes sobre as populações afro-descendentes utilizaremos estudos historiográficos

recentes, sejam eles sobre Santa Catarina ou sobre outras regiões do Brasil. As denominações

para se referir às populações de origem africana no Brasil alteraram-se a partir da segunda

metade do século XIX, em decorrência das mudanças326 que ocorreram após a proibição do

tráfico de escravos da África para o Brasil. Nos processos crimes com os quais trabalhou,

326
Uma dessas mudanças foi o aumento da população de negros e mestiços livres, o que obrigou a utilização de
termos diferentes que dessem conta de condições jurídicas distintas, encontradas entre as populações de origem
africana.
176

constatou que, até meados do século XIX, estas populações eram definidas pela sua “cor”. A

cor “negra” era sinônimo de escravo ou de liberto (preto forro). “Pardos”327 referia-se a

mestiços. Esses poderiam ser cativos, forros ou livres.328 Enquanto a utilização da

denominação pardo, utilizada para denominar um indivíduo de ascendência africana que havia

nascido livre, indicava sua condição de não-branco, ao ser utilizada para qualificar um

escravo ou um forro, reduzia-se ao sentido de mulato ou mestiço. O estudo de Hebe Mattos

tenta demonstrar que a noção de cor, que era uma herança do período colonial, não mais

designava matizes de pigmentação da pele ou diferentes níveis de mestiçagem, mas sim era

utilizado como uma forma para “definir lugares sociais, nos quais etnia e condição estavam

indissociavelmente ligados.”329 Nos processos crimes, eram as próprias testemunhas arroladas

que, muitas vezes, se declaravam pertencentes a um determinado grupo, se autodenominavam.

Nos relatos dos viajantes, ocorria o contrário. O viajante era quem definia, denominando

dessa forma a origem e a situação jurídica das populações descritas.

Entre os viajantes analisados, Pernetty e Mawe foram os que menos espaço

dedicaram ao tema. O último, no relato de sua viagem para Minas Gerais, também não

dedicou muito espaço para falar dessas populações.330 Como nessa região a população escrava

era numericamente maior do que na Ilha de Santa Catarina, podemos concluir que esse

silenciamento deu-se em decorrência de seu desinteresse pelo tema e não propriamente devido

à quantidade maior ou menor de populações de origem africana, fossem estas escravizadas ou

327
Pardo foi uma categoria que se estruturou na sociedade colonial brasileira, resultado do raciocínio de
hierarquização social. Seu significado foi ampliado para dar conta de uma população cada vez maior que não
poderia ser classificada como “preto” (escravo ou ex-escravo de origem africana) ou de “crioulo”(escravo ou ex-
escravo nascido no Brasil). Pardo, a partir da segunda metade do século XIX, era a “população livre de
ascendência africana, não necessariamente mestiça, mas necessariamente dissociada já por algumas gerações da
experiência mais direta do cativeiro”. Ver: MATTOS, Hebe Maria. A Escravidão moderna nos quadros do
Império português: o Antigo Regime em perspectiva atlântica. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria
Fernanda Baptista & GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial
portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. pp. 154-155.
328
Livre é diferente de forro. O primeiro refere-se a um indivíduo de ascendência africana que nasceu livre,
nunca foi escravo, enquanto que forro remete a seu passado de escravo. Na legislação portuguesa um ex-escravo
poderia ter sua alforria revogada. Ver: MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio: Os significados da
liberdade no sudeste escravista, Brasil, séc. XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 154.
329
MATTOS, Hebe Maria. Op. cit. p. 98.
330
LEITE, Ilka Boaventura. Op. cit. p. 107.
177

livres. No entanto, os outros viajantes deixaram registros que nos permitem visualizar a

presença desses indivíduos e sua inserção na sociedade local.

A reação dos viajantes à presença e à condição de vida dos escravos foi

distinta. Langsdorff, ao andar pela vila de Desterro, ficou chocado com o

grande número destas criaturas abandonadas, nuas, deitadas frente às portas


de ruas laterais e oferecidas à venda. Apenas as regiões púbias estavam
cobertas com um velho pano rasgado que após alguns dias eram substituídos
por um grosseiro tecido azulado. 331

Segundo ele, um “europeu qualquer” desacostumado com tantos “escravos

negros”, estranhava sua presença. Mas o pior, o que lhe causou revolta, foram as condições

em que se encontravam os que estavam à venda, a forma como se dava o comércio dessas

“pobres criaturas”. Após o choque inicial, Langsdorff teceu algumas críticas ao

aproveitamento irracional dessa mão-de-obra, como a utilização de escravos em trabalhos que

na Europa eram feitos por animais e o tratamento rigoroso e muitas vezes cruel que lhes era

administrado. Segundo ele, a necessidade de povoar as costas brasileiras, incrementando a

produção e o comércio, deveria ser motivo suficiente para que o governo aconselhasse “o bom

tratamento” aos escravos. No entanto, o que ele constatou é que o próprio governo não estava

interessado na “melhoria das condições dos escravos, pois justamente aqueles que estão a

serviço da Coroa, nos engenhos de açúcar, na pesca a baleia e nas minas, são tratados com

mais rigor e maior crueldade.”332 Sua crítica não teve com alvo a utilização do trabalho

escravo, mas sim a forma como era feito o comércio dos indivíduos escravizados, uma vez

que se encontravam à venda escravos velhos, doentes ou fracos. Além disso, outra coisa que o

chocou foi a preocupação, por parte dos compradores, em saber se o escravo já havia

contraído varíola, fator de valorização do mesmo, uma vez que ele tornava-se imune a esta

doença.

331
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 165.
332
Ibidem . p. 166.
178

Esse viajante, como muitos outros europeus que estiveram no Brasil no século

XVIII e XIX, não se posicionou contra a utilização do trabalho escravo. A historiografia sobre

a escravidão possui diferentes visões sobre os fatores que levaram à implantação e à

legitimação desta instituição. Enquanto alguns pesquisadores defendem a predominância dos

fatores econômicos, em decorrência da expansão comercial, outros enfatizam a importância

do pensamento religioso.333 Hebe Mattos considera que a “existência prévia e legítima da

escravidão no Império português foi a condição básica para a constituição de uma sociedade

católica e escravista no Brasil colonial.”334 O pensamento teológico-jurídico português que

naturalizava a escravidão no Império Português era centrado na noção de cativeiro e guerra

justa. O cativeiro dos gentios africanos e seu comércio em nome da conversão e da

evangelização foi estabelecido pela bula Romanus Pontifex, de 1455. A justeza de uma guerra

era decidida pelo soberano e poderia ser baseada em vários fatores, tais como a legítima

defesa, a garantia de liberdade para a pregação do evangelho e, até mesmo, em nome da

liberdade de comércio.335

Langsdorff não se posicionou contra a escravidão, mas para ele a utilização

desta mão-de-obra poderia ser melhor aproveitada. Ao mesmo tempo, considerava que um

melhor tratamento da parte dos proprietários para com seus escravos evitaria problemas, tais

como fugas e outros tipos de vingança, como por exemplo, os atentados contra a vida dos

donos de escravos. Um caso de assassinato, praticado por um escravo contra seu dono, havia

ocorrido pouco antes da chegada de Langsdorff à Ilha de Santa Catarina. Alguns anos depois,
333
Sobre este tema ver: NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial. 1777-
1808. São Paulo: Hucitec, 1986; SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na
sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras/CNPq, 1988; VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e
Escravidão: os letrados e a sociedade escravista no Brasil colonial. Petrópolis: Vozes, 1986;
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
334
MATTOS, Hebe Maria. A Escravidão moderna nos quadros do Império português: o Antigo Regime em
perspectiva atlântica. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista & GOUVÊA, Maria de Fátima
Silva. Op. cit. p. 143.
335
Para aprofundar esta questão, ver MATTOS, Hebe Maria. A Escravidão moderna nos quadros do Império
português: o Antigo Regime em perspectiva atlântica. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda
Baptista & GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial
portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. pp. 141-162.
179

o viajante retornou ao Brasil, fixando-se numa fazenda no estado do Rio de Janeiro. Nos

documentos sobre a expedição Langsdorff, realizada entre os anos de 1822 e 1829, estão

apontadas a presença de 6 “pretos” e 1 “mulatto” entre os carregadores. Além disso,

Langsdorff possuía um escravo, de nome Alexandre, que foi assassinado.336 Apesar de ser

proprietário de escravos, em sua viagem para o Brasil, para sua terceira estada (1822-1830),

Langsdorff investiu grande parte de sua fortuna para trazer imigrantes alemães que seriam

empregados em sua fazenda, onde pretendia fundar uma colônia agrícola. Ao todo vieram

para o Brasil 85 colonos, hábeis em diversos ofícios, juntamente com 9 pessoas, membros da

família ou a serviço de Langsdorff. Partiram de Bremen, a bordo do navio Doris, fretado

especialmente para a viagem, e chegaram ao Rio de Janeiro no início de 1822. A utilização do

trabalho escravo não significava necessariamente a crença de que esta era a mão-de-obra mais

eficaz. Pelo dinheiro investido, o viajante acreditava que seus compatriotas seriam mais

eficientes para trabalharem em seu projeto de implantar uma comunidade agrícola. A crença

na superioridade dos colonos europeus seria devido a quais fatores: étnica, condição jurídica,

ou desenvolvimento cultural? Ou seria devido à combinação de todos esses fatores? Os

estudos sobre esse viajante não trazem uma posição definida, mas Langsdorff de certa forma

antecedeu em vários anos uma discussão sobre a convivência conjunta, e posterior

substituição, dos trabalhadores de origem africana escravizados pelos trabalhadores europeus

livres.

Ainda segundo o viajante, na Ilha de Santa Catarina, no final do ano de 1803,

um escravo que fosse jovem e sadio custava em torno de 150 táleres espanhóis. O preço

elevava-se caso tivesse um ofício ou então fosse experiente no trabalho da lavoura. Outro item

que contava positivamente era dominar a língua portuguesa. O sexo também era um fator de

diferenciação no preço dos escravos. Enquanto “um homem, na flor da idade, comportava

336
Ver documentos fac-símile publicados em anexo na obra de BECHER, Hans. Op. cit. (sem paginação)
180

entre 200 e 300 piastras, a mulher tinha menor valor.”337 Como os viajantes eram de nações

diferentes, vieram em épocas distintas e escreviam para um público europeu, utilizaram

referências monetárias díspares, o que inviabiliza calcular os preços praticados no comércio

local de escravos. Mas, independente do preço, o investimento inicial tendia a ser recuperado,

pois se deve considerar que tudo o que estes escravos ganham como diaristas
ou operários pertence não a eles, mas a seu patrão, e que podem ser alugados
por seus donos para serviços na lavoura, para remar, pescar, construir, etc.,
por um preço de acordo com seu trabalho bem semelhante ao que se faz na
Europa com os animais.338

A mão-de-obra escrava era utilizada nas mais diferentes atividades. Além de

atender às necessidades de seus senhores e dar conta das exigências de funcionamento dos

mercados urbanos, outro fator que levava à aquisição de um escravo era o difundido

menosprezo ao trabalho manual na sociedade colonial. Segundo Maria Cristina Wissenbach, a

visibilidade dessas populações não decorre necessariamente da quantidade numérica, mas sim

de sua inserção nas diferentes atividades, dos “atributos que lhes eram conferidos pela

organização do trabalho e da vida social.”339 As áreas rurais também demandavam escravos

especializados, uma vez que existia uma diversificação de atividades que extrapolava a

atividade na lavoura, tais como as atividades domésticas, os trabalhos nas oficinas e no

transporte de mercadorias para as vilas e cidades. Também devemos considerar que os

núcleos urbanos irradiavam sua ação por um espaço muito maior do que aquele ocupado pela

vila propriamente dita. Antes da construção do mercado público, em 1851, em um dos lados

da praça da matriz, os produtos alimentícios, como peixes, verduras e outros gêneros, eram

vendidos na praia. Os produtos que abasteciam a vila eram expostos em esteiras ou nas

próprias canoas que os transportavam de diferentes localidades da ilha e mesmo do

continente. 340

337
CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 235.
338
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 166.
339
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos Africanos, Vivências Ladinas: escravos e forros em São
Paulo (1850-1880). São Paulo: Hucitec, 1998. p. 64.
340
CABRAL, Oswaldo. Nossa Senhora do Destêrro. Notícia I. Op. cit. p. 78-80.
181

Segundo Chamisso, os escravos eram importados das colônias portuguesas no

Congo e em Moçambique. O tráfico prosperava, devido às necessidades locais, que

necessitava anualmente “uma quantidade de cinco a sete navios negreiros, cada um com uma

média de cem negros; eram usados em substituição aos que morriam cada ano nos serviços da

lavoura.”341 Esse viajante ouviu comentários de plantadores que diziam preferir consumir as

forças de seus escravos o mais rápido possível e investir na compra de um novo escravo do

que preservá-los por mais tempo. Sabendo que seus leitores ficariam surpresos com tal

prática, preocupou-se em explicar que sua fonte de informação tinha sido fidedigna: “Tais

palavras podem soar alheias aos vossos ouvidos europeus, mas foram pronunciadas por um

plantador do Novo Mundo!”342

O tráfico de escravos não era feito diretamente entre as costas africanas e o

porto de Desterro. Eles vinham dos mercados do norte, principalmente do Rio de Janeiro, e

em menor quantidade de outros portos mais ao sul. O porto do Rio de Janeiro tinha um papel

central na distribuição de escravos para a região sudeste e para o sul, enquanto o de Salvador

abastecia os mercados do norte. Segundo informações veiculadas pela “Gazeta do Rio de

Janeiro” referentes à movimentação portuária no ano de 1812, dos barcos que saíram do porto

do Rio de Janeiro em direção a Santa Catarina, 12% deles vinham carregados com escravos.

Segundo a mesma fonte, no ano de 1817, essa percentagem caiu para 5%.343 A maioria das

populações de origem africana encontradas em Desterro pertenciam ao grupo Banto (estes

eram identificados pelo seu porto de origem: Cabindas, Congos, Moçambiques, Cassanges,

Benguelas e outros). Também haviam outros grupos, em menor número, originários da região

Sehelo-Sudanesa, conhecidos no Brasil como Minas, Cabo-verdes e Songas. No Livro de


341
CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 235.
342
Ibidem. p. 235.
343
A variação na quantidade de escravos comercializados era influenciada por vários fatores. O ano de 1812 foi
um ano de expansão econômica, enquanto que o de 1817 foi de retração. Ocorreu uma aceleração no tráfico após
1808, que estendeu-se até o ano de 1825. A partir de 1826 registra-se uma compra desenfreada de escravos
devido à negociação com a Inglaterra, para o fim do tráfico atlântico de escravos. FLORENTINO, Manolo. Em
costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro: séculos XVIII e XIX.
São Paulo: Companhia das Letras, 1997. pp. 38-49.
182

Registros de Óbitos da Matriz de Desterro, entre os anos de 1779 a 1811, foram registrados

776 falecimentos de escravos. Juntamente com as informações sobre o óbito, consta o grupo,

ou nação, ao qual pertenciam os falecidos. Estavam assim distribuídos:

Angolas, 24; Benguelas, 21; Congos, 15; Camundás, 8; Cassangas, 7;


Rebolos, 5; Minas, 4; e 1 de cada um dos seguintes: Quissamãs, Guinés,
Mojubes, Moçambiques, Mohumbes. Crioulos, filhos da terra, 55; e novos,
isto é, recém-chegados, 2. Com a designação de “da Costa”, isto é, africanos,
284; com a “de nação”, também africanos, mas de procedência ignorada,
292. Dos mestiços, 47 eram pardos e 2 apenas eram cabras, isto é, filhos de
negros e de bugre. 344

Na ocasião de sua passagem por Santa Catarina, Saint-Hilaire constatou que

havia uma “grande desproporção entre o número de negros e negras”. Explica essa

disparidade populacional a partir de um fator econômico, a pobreza dos habitantes da Ilha de

Santa Catarina. As terras estavam nas mãos de agricultores pobres, que possuíam pequenas

extensões de terras, o que lhes dificultava o acúmulo de bens. Dessa forma

quando um proprietário conseguia juntar dinheiro suficiente para comprar


um negro, muito tempo se passava antes que voltasse a reunir novas
economias, e quando isso acontecia ele preferia comprar outro escravo do
sexo masculino e não uma negra, cujos trabalhos sua própria mulher e seus
filhos podiam fazer. 345

Sobre esse aspecto da escravidão, Jacob Gorender defendeu a tese de que esta

desproporção deu-se em decorrência do exercício de uma lógica empresarial que visava

maximizar os lucros. Como existia a possibilidade de substituição imediata e a baixos preços

de braços escravos, os senhores brasileiros não tinham a preocupação em preservar este

trabalhador. Isso somente iria ocorrer com o aumento geral dos preços, após 1850. Era esta

lógica que iria orientar o interesse dos senhores brasileiros por escravos dos sexo masculino,

já adultos, mais adequados para as tarefas numa propriedade agroexportadora.346 Herbert

Klein considera que a disparidade sexual era determinada pela oferta africana e não

344
CABRAL, Oswaldo. Nossa Senhora do Destêrro. Memória II Florianópolis: EdUFSC, 1972. p. 88.
345
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 168.
346
GORENDER, Jacob. O Escravismo colonial. 5 ed. São Paulo: Ática, 1988. pp. 335-336.
183

propriamente pela demanda americana. Apesar do diferencial no preço, isto não era suficiente

para explicar uma desproporção tão grande, até porque as escravas também estavam presentes

nas plantações de açúcar, café e algodão. Para ele, a menor oferta de mulheres para venda nos

portos africanos é explicada pela demanda interna por escravas do sexo feminino na própria

África. Livres ou escravas, elas eram mais valorizadas na maioria das sociedades africanas, o

que explica o menor número de mulheres que ingressavam no tráfico atlântico de escravos.347

Esses fatores, somados à precariedade das relações afetivas e o desinteresse em incentivar a

reprodução natural dos escravos, levou ao desequilíbrio sexual entre os escravos. O

desequilíbrio não era somente sexual, mas também etário. Era grande a importação de

escravos entre dez e catorze anos e, a cada dez cativos, nove tinham entre dez e 34 anos. A

porcentagem de indivíduos menores de dez anos era de 4%. Esses números referem-se à

entrada de cativos no porto do Rio de Janeiro na segunda metade do século XVIII.348

A diferença numérica entre os sexos, combinada com a diferença de idade, vai

ser um dos fatores que influirá nas relações afetivas e matrimonias entre os escravos. Saint-

Hilaire, ao comentar sobre o casamento entre os cativos, diz que

entre os 2.535 escravos que havia na Ilha de Santa Catarina em 1841,


somente 10 eram casados, sendo que na cidade de Santa Catarina [Desterro],
particularmente, cujo número de escravos chegava a 1.019 não havia um
único que fosse casado.349

Devemos considerar que, para os viajantes, bem como para a elite local e seus

representantes políticos e religiosos, somente eram consideradas as relações familiares

regulamentadas pela Igreja. Nesse sentido, outros tipos de relações, como o concubinato,

estabelecidas entre os cativos, ou destes com indivíduos livres ou libertos, por fugirem ao

padrão estabelecido, não eram visibilizadas. Por outro lado, quando relatadas, as relações não

347
Sobre os fatores desta valorização ver: KLEIN, Herbert S. A Escravidão Africana: América Latina e
Caribe. Tradução: José Eduardo de Mendonça. São Paulo: Brasiliense, 1987. pp. 166-167.
348
FLORENTINO, Manolo. Op. cit. p. 59.
349
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 168. Saint-Hilaire este na Ilha de Santa Catarina em 1820, mas
escreveu seu relato após o ano de 1847. As informações sobre o número de escravos casados foram retiradas de
outras fontes consultadas, como relatórios de governo e relatos de outros viajantes.
184

regulamentadas eram descritas como uma amostra da imoralidade que grassava entre as

populações de origem africana, ou então como um exemplo da frouxidão moral de seus

senhores. Para Saint-Hilaire, o número reduzido de casamentos legais contribuía para “provar,

infelizmente, que os habitantes dessa região não são dotados de uma moral muito elevada.”350

Os estudos recentes sobre a família escrava, utilizando documentos como

livros de batizados e casamentos de escravos, inventários post-mortem e processos-crimes,

têm permitido conclusões distintas sobre os relacionamentos familiares entre os escravos.

Robert Slenes salienta que as pesquisas realizados até este momento no Brasil possuem um

caráter fragmentário, referindo-se a regiões restritas, muitas vezes a um município, ou mesmo

a uma única fazenda, e abarcando um período curto de tempo. Apesar das dificuldades, esses

estudos são importantes porque permitem observar sob novo enfoque as relações amorosas e

familiares que os escravos estabeleceram entre si. Essas pesquisas tem mostrado que “durante

os períodos e nas áreas onde eram comuns os casamentos legais, regulamentados pela Igreja

Católica, essa foi uma possibilidade de relacionamento que a maioria das mulheres cativas

realizava, principalmente nos plantéis que tinham mais de 10 escravos.”351

Mesmo em casos de plantéis menores, podiam ser encontrados casos de

famílias legalmente constituídas, apesar dos índices mais reduzidos. Os estudos em plantéis

onde o casamento não era freqüente têm mostrado que isto não significava a ausência de

relacionamento estáveis, muitos vezes longos, o que é comprovado pela idade dos filhos em

comum.352 Segundo Manolo Florentino e José Roberto Góes, a socialização entre os cativos

ocorria através das famílias. Enquanto a análise dos inventários mostra somente as relações

consangüíneas e matrimoniais sancionadas pela Igreja, os processos crimes mostram que o

350
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 168.
351
MATTOS, Hebe Maria. Op. cit. p. 125.
352
Ibidem. p. 126.
185

amasiamento, uma relação não-sancionada pela instituição religiosa e, muitas vezes, nem

pelos senhores, era respeitada entre os ‘parceiros’, entre os companheiros de infortúnio.353

Para Slenes a organização nos grandes complexos cafeeiros e açucareiros da

região de Campinas, mesmo criando empecilhos para a formação de grupos de parentela,

durante todo o século XIX, não conseguiram evitar a formação de famílias conjugais. Em

alguns casos, redes de parentesco extensas foram constituídas, em maior número do que nas

propriedades com plantéis menores. Na opinião deste autor,

a família cativa - nuclear, extensa, intergeracional - contribuiu decisivamente


para a criação de uma “comunidade” escrava, dividida até certo ponto pela
política de incentivos dos senhores, que instaurava a competição por
recursos limitados, mas ainda assim unida em torno de experiências, valores
e memórias compartilhadas. Nesse sentido, a família minava constantemente
a hegemonia dos senhores, criando condições para a subversão e a rebelião,
por mais que parecesse reforçar seu domínio na rotina cotidiana. 354

Chamisso comentou que os escravos, quando junto de famílias mais pobres,

eram melhor tratados do que quando em estabelecimentos maiores: “os escravos que estão nas

casas dos senhores ou mesmo junto às famílias mais modestas, têm melhor aspecto humano

que os usados unicamente como força motora.”355 Os estudos referentes aos grandes plantéis,

localizados no Rio de Janeiro e em São Paulo, mostram que a presença de um maior número

de escravos concentrados num mesmo local de trabalho facilitava a constituição das relações

familiares, muitas destas consentidas pelos proprietários e regulamentadas pela Igreja. Nas

grandes lavouras de café como nas de açúcar, principalmente naquelas que possuíam mais de

10 cativos, os escravos possuíam maiores possibilidades de casar, constituir famílias, e

principalmente, mantê-las, inclusive formando redes de parentesco extensas. Essa

353
FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico,
rio de Janeiro, c. 1790-c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. pp. 80-92.
354
SLENES, Robert W. Na Senzala, uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava,
Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 48.
355
CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 235.
186

possibilidade era mais freqüente nessas unidades produtivas do que naquelas que se

dedicavam a outras atividades.356

Nos anúncios de vendas de escravos, publicados nas décadas de 50 e 60 do

século XIX, nos jornais de Desterro, aparecem casos de crianças que eram disponibilizadas

para o comércio. A maioria tinha entre 4 a 12 anos de idade, mas em alguns anúncios eram

menores, não tendo mais do que 3 anos de idade. Dos 15 anúncios citados por Cabral, em 2 as

crianças eram vendidas junto com suas mães. Nos outros, não existem referências ao que

havia ocorrido as mães. Em nenhum desses anúncios cita-se a presença do pai das referidas

crianças.357 Duas notícias, uma publicada no jornal “O Mensageiro” do dia 13 de agosto de

1856 e a outra no jornal “O Constitucional” no ano de 1868, falam de famílias escravas que

estavam na eminência serem separadas, não fosse a interferência de alguns indivíduos que,

compadecidos, evitaram seu desmantelamento. O primeiro anúncio fala de uma escrava e seus

6 filhos menores, colocada à venda em leilão, uma vez que seu dono falecera sem deixar

herdeiros. A mãe e 2 filhos foram arrematados pelo comendador Martinho José Callado que,

compadecendo-se com seu sofrimento, providenciou a compra dos outros 4 filhos, a fim de

evitar a separação. A segunda notícia trata do acontecido no dia 29 de outubro de 1867,

quando vários cidadãos de Desterro promoveram uma subscrição a fim de libertarem uma

mãe, suas 3 filhas e sua sobrinha, que estavam à venda em praça pública. Assim, as pardas

Clemência, Maria, Francisca, Inocência e outra ainda não batizada, tornaram-se livres.358

A partir dessas notícias, publicadas em jornais, podemos constatar que famílias

constituídas durante a escravidão poderiam ser separadas pelo comércio escravo. Não foi o

destino das duas famílias citadas nos jornais, mas era o de muitas outras, como podemos

constatar pelos anúncios de venda de crianças escravas. Para obtermos maiores informações e

análises conclusivas sobre famílias escravas em Santa Catarina, somente com a ampliação de

356
SLENES, Robert W. Op. cit. p. 47.
357
CABRAL, Oswaldo. Nossa Senhora do Destêrro. Memória II. Op. cit. p. 105.
358
Ibidem. pp. 108-109.
187

pesquisas que aprofundem o tema, utilizando fontes diversas e uma metodologia que permita

o cruzamento das parcas e esparsas informações sobre estas populações. As pesquisas

realizadas nos últimos anos no Brasil tiveram o importante papel de romper com uma visão

etnocêntrica e racista sobre os cativos e suas relações afetivas, que foi corrente na produção

historiográfica sobre a escravidão durante várias décadas.359

Deixando de lado o tema da organização familiar dos cativos e passando para

suas condições gerais de vida, retornamos as falas dos viajantes. Lesson constatou que a

situação dos escravos não era das melhores, não necessariamente por causa de sua situação

jurídica, de trabalhadores destituídos da liberdade, mas por causa das condições financeiras de

seus donos. Como seus proprietários eram “senhores pouco ricos”, os escravos eram “mal

alimentados, mal vestidos e seu aspecto é de uma profunda miséria e um embrutecimento

completo.”360 Saint-Hilaire, em sua visita à vila de São Francisco, também constatou que,

apesar da presença de escravos, um dos indícios de riqueza no Brasil, a vila havia

permanecido pobre. Quando de sua estada na freguesia do Ribeirão da Ilha, foi recebido pelo

vigário da paróquia de Nossa Senhora da Lapa que lhe informou que seu rebanho era

composto de 1.900 indivíduos; destes, 400 eram escravos do sexo masculino e 100 eram

escravas do sexo feminino. Nessa localidade existiam vários engenhos que produziam açúcar

e também uma armação de caça de baleia. A posse de escravos era difundida e,

como ocorria no resto da ilha, não havia ali nenhuma família que possuísse
mais de um ou dois escravos, mas o desejo de todos os agricultores era estar
de posse de algo que satisfizesse ao mesmo tempo sua vaidade e sua
indolência.361

Na opinião de Saint-Hilaire, a aquisição de escravos era mais um item que

comprovava a indolência dos habitantes locais. Sua análise não passava pela compreensão da

359
Sobre a historiografia da escravidão no Brasil ver: QUEIRÓZ, Suely Robles Reis de. Escravidão negra em
debate. In: FREITAS, Marcos Cezar (org.). Historiografia Brasileira em Perspectiva. 4. ed. São Paulo:
Contexto, 2001. Robert Slenes analisou a historiografia brasileira e norte-americana referente a família escrava
em SLENES, Robert W. Na Senzala, uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava,
Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. Capítulo I.
360
LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 268.
361
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 188.
188

estrutura econômica colonial, na qual o trabalho estava assentado sobre a mão de obra cativa.

Em Desterro, como em outras regiões do país, a difusão da posse de escravos nos leva a

concluir que a escravidão era amplamente aceita pela sociedade. No quadro populacional de

Desterro, a população escrava chegou em torno de 40% da população no ano de 1831. Em

relação à Capitania de Santa Catarina, a percentagem é menor. Para o ano de 1810 era de

22,83%. No ano de 1831, 23,99% da população era composta por escravos.362 Como a região

que fazia parte da Capitania de Santa Catarina limitava-se ao litoral, e a maior parte da

população concentrava-se principalmente na Ilha de Santa Catarina, onde estava localizada a

capital da província, Desterro, a presença da população escrava não pode ser negada, ou

invisibilizada.363 Além disso, essa população torna-se mais visível uma vez que estava

inserida em todas as esferas produtivas da sociedade local, fosse no interior das moradias

como domésticas, amas, pagens, etc., fosse na rua, como quitandeiras, artífices, jornaleiros,

carregadores, marinheiros, entre outras atividades.

Pelo recenseamento de 1872, podemos ter uma noção de como eram

distribuídos os escravos por atividade na Ilha de Santa Catarina. Devemos salientar que esse

período é posterior a 1850, quando houve um descréscimo numérico dessa população devido

ao tráfico interno, que roubou braços do sul do Brasil em favor da região central,

principalmente São Paulo. Entre os 3.978 cativos, 1.072 estavam envolvidos com os serviços

domésticos, e desses 915 eram escravos do sexo feminino. Na atividade agrícola, 699 eram

homens e somente 26 eram mulheres, totalizando 725 escravos que foram recenseados como

lavradores. Os escravos também eram utilizados em atividades diversas como marítimos (35

escravos), operários de edificações (56 escravos), pescadores (25 escravos), artistas (21

362
MORTARI, Cláudia. Os Homens Pretos do Desterro: um estudo sobre a Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário (1841-1860). Porto Alegre: Dissertação de Mestrado/PUC. 2000. pp. 43-44.
363
Sobre o discurso político e historiográfico que invisibilizou as populações de origem africana no sul do Brasil,
principalmente em Santa Catarina ver: LEITE, Ilka Boaventura (org.). Negros no Sul do Brasil: invisibilidade
e territorialidade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1996. Principalmente os artigos Descendentes de
Africanos em Santa Catarina: invisibilidade histórica e segregação e Escravidão e Preconceito em Santa
Catarina: história e historiografia.
189

escravos), costureiras (57 escravas), operárias em tecidos (46 escravas), etc. Ao todo foram

citadas 15 atividades diferentes nas quais era utilizado o trabalho escravo. Além desses, 713

(381 escravos e 322 escravas) foram citados como sem profissão 364, o que não significa que

não estavam envolvidos em algum trabalho produtivo. Devemos salientar que na segunda

metade do século XIX, a vila de Desterro aumentou sua população e sua estrutura social

diversificou-se, o que contribuiu para o surgimento de novas atividades, que provavelmente

não existiam no final do século XVIII e início do século XIX, período no qual está centrada

nossa pesquisa. Optamos por utilizar esses dados a fim de mostrar como a população escrava

estava inserida nas diferentes atividades econômicas da cidade.

Saint-Hilaire salientou que

enquanto que nas regiões auríferas e mesmo naquelas onde a cana-de-açúcar


constitui sua única riqueza o número de escravos iguala ou ultrapassa o de
homens livres, na Província de Santa Catarina, onde não existem minas de
ouro em exploração nem grandes engenhos de açúcar, essa proporção é no
máximo de 1 escravo para 5 homens livres. Essa diferença não é
evidentemente um sinal de riqueza [...] mas indica um grande progresso no
que se refere à moral pública.365

Apesar de citar que o número de escravos nesta região era menor do que em

outras regiões do Brasil, Saint-Hilaire, como outros viajantes, ressaltou que sua distribuição

entre os proprietários era muito difundida na Capitania de Santa Catarina. Um número maior

de famílias tinha poucos escravos, de um a dois escravos. A posse de grande número de

escravos por um mesmo proprietário era a exceção e não a regra em Santa Catarina,

principalmente no litoral, onde a ocupação foi feita através da imigração de famílias de

açorianos que receberam porções de terras menores do que em outras regiões do Brasil. O que

as falas dos viajantes dão a entender é que, apesar do número menor de escravos, estes

estavam inseridos na sociedade, uma vez que a posse era mais difundida. Através da análise

do Livro de Óbitos de Escravos da Matriz referente aos anos de 1804 a 1811, Cabral levantou

364
CARDOSO, Fernando Henrique. Negros em Florianópolis: relações sociais e econômicas. Florianópolis:
Insular, 2000. pp. 108-109.
365
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 163.
190

os nomes de alguns habitantes da Ilha de Santa Catarina que eram proprietários de um número

relativamente alto de escravos. José Luís do Livramento, Irmão da Ordem Terceira e da

Irmandade dos Passos, um dos fundadores do Hospital de Caridade, proprietário de uma loja

de tecidos e de uma casa de molhados na vila, enterrou no período citado, 34 escravos. No

mesmo período de 8 anos, outros moradores da vila também perderam um número

considerável de escravos, vitimados provavelmente por uma epidemia de sarampo e

varíola.366

Outra grande proprietária de escravos foi a Armação de Nossa Senhora da

Piedade, localizada em São Miguel, na parte continental da província, próxima à Ilha de

Anhatomirim. Criada em 1745 para a caça da baleia e seu beneficiamento, foi administrada,

entre os anos de 1801 e 1816, pela Real Administração da Pesca de Baleia. Em 1836, sua

administração foi repassada pelo governo à Marinha e, em 1847, passou a abrigar uma colônia

de alemães. Nos outros períodos (1745-1815/ 1817-1835) a armação foi administrada por

particulares, através de concessão. No ano de 1816, o empreendimento mantinha 125 escravos

ativos, mas 45 estavam na condição de “encostados”, por causa de alguma doença ou então

por outros motivos. Além disso, na temporada de caça, entre os meses de julho a outubro,

eram alugados escravos de pequenos proprietários da região. Durante a temporada de 1816,

32 escravos estavam vinculados à armação nessa condição. Além da armação de Nossa

Senhora da Piedade, existiram outras 4 armações de caça de baleias no litoral de Santa

Catarina.

Saint-Hilaire observou que havia uma distribuição de atividades entre os

trabalhadores da armação: “Os homens empregados na fabricação do óleo eram escravos, mas

na pesca utilizavam-se homens livres, que mereciam mais confiança.”367 Entre os livres, o

pagamento era diferenciado conforme a atividade exercida, mais ou menos perigosa, e

366
CABRAL, Oswaldo. Nossa Senhora do Destêrro. Memória II. Op. cit. pp. 102-103.
367
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 129.
191

conforme o número de baleias abatidas. Assim, os arpoadores recebiam mais do que os

timoneiros que, por sua vez, recebiam mais do que os que trabalhavam nos barcos de socorro.

Os trabalhadores envolvidos nessa atividade econômica eram escravos e trabalhadores livres,

lavradores pobres. O estudo de Fábio Campos sobre o trabalho escravo na armação de Nossa

Senhora da Piedade acrescenta dados diferenciados. Mostra-nos que os escravos trabalhavam

em várias atividades e não somente nas caldeiras. Além disso, os escravos alugados, e não

somente os homens livres, eram utilizados para realizar a função de remeiros. Essa atividade

era perigosa e por isso, ou pela pressão dos mesmos, era recusada pelos escravos pertencentes

à armação.368 A atividade de caça à baleia, e seu beneficiamento, era uma atividade bastante

rentável para Santa Catarina. O óleo era o principal produto, e destinava-se à venda para fora

da Capitania. Também se aproveitavam várias outras partes do animal, como as barbatanas, os

ossos e a própria carne, que era seca e consumida na comunidade.

Para Saint-Hilaire, Santa Catarina possuía um ponto positivo em relação às

outras regiões do país que ele havia visitado. Aqui o trabalho não era aviltado, uma vez que

havia menos escravos, o que obrigava muitos colonos a trabalharem suas terras, hábito que

não era comum no norte do Brasil. Quando os viajantes falam dos escravos, o tema da

preguiça e da indolência também estava presente. A imagem que suas falas transmitem é que

essas características, inerentes aos que viviam na América, além de influenciar os colonos,

também contaminavam seus escravos, como se o clima e a natureza fossem mais fortes do que

os homens. Lesson comentou que o trabalho dos escravos na terra limitava-se à capina da

superfície. Quando iam desbravar um terreno restringiam-se a cortar as árvores e atear fogo.

Após a queima, semeavam entre os espaços vazios. Segundo ele, a agricultura colonial para

exportação “ainda está por surgir” uma vez que não havia uma demanda externa que

justificasse o investimento na produção.

CAMPOS, Fábio Israel Vieira de. O trabalho utilizado para a caça da baleia no litoral catarinense -
368

Armação Grande ou de Nossa Senhora da Piedade 1746-1836. Florianópolis: TCC em História/ UFSC. 2002.
192

Os viajantes também salientaram a existência de “mulatos” entre a população

local. Pernetty, em 1763, diz que “os mulatos são em maior número, geralmente feios, com

um ar selvagem, como se fossem uma mistura de brasileiros com negros.”369 Lesson, em

1822, dividiu a população local em “três classes de habitantes: os brancos, os mulatos e os

negros”370, porém os “mulatos” eram mais numerosos e muitas vezes se confundiam com os

brancos. O viajante não especificou se esses eram livres ou escravos. Os “negros”, segundo

ele, eram majoritariamente escravos. Como já foi comentado no início do capítulo, os

viajantes utilizam indistintamente algumas nomenclaturas, não coincidindo com as formas de

denominação que as populações de origem africana utilizavam para se auto-identificarem.

“Negros” e “escravos” eram as formas mais utilizadas, separadas, mas muitas vezes juntas. O

tempo de permanência, e as dificuldades de comunicação, não permitiram a esses

‘estrangeiros’371 perceberem características peculiares do sistema escravista e das populações

que haviam sido submetidas ao trabalho escravo.

Alguns discursos dos viajantes contribuíram para criar estereótipos, como o do

liberto arrogante. É o caso do comentário de Saint-Hilaire sobre Manuel, um dos

trabalhadores que ele contratou para transportar sua bagagem.

Nada se igualava à arrogância desse homem; na verdade, nada se iguala à


arrogância dos negros libertos. Uma vez que a sua cor pode fazer com que
sejam tomados, a qualquer momento, por escravos, sua maior preocupação
está em desmentir essa condição, e eles se recusam a fazer uma porção de
coisas que nenhum homem branco dotado de bom-senso consideraria
humilhante. 372

A partir de falas dos viajantes podemos perceber determinadas práticas locais,

que regulavam as relações entre os escravos e os seus proprietários. Um exemplo é o hábito

de alguns proprietários cederem momentos de folga, devido às festividades de final de ano.

369
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 82.
370
LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 274.
371
Estrangeiro nesse contexto não significa somente ter nascido em outro país, mas principalmente ser
estrangeiro à cultura e às peculiaridades da sociedade que eles estavam descrevendo. O olhar de fora permite
perceber o peculiar, o diferente, mas não se aprofunda a ponto de distinguir algumas características. Muitas
vezes esse olhar homogeniza e generaliza aspectos da sociedade local.
372
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 189.
193

Os escravos negros, presos energicamente ao trabalho durante todo o ano,


recebem nestas festas de ano novo, apenas por alguns dias, a sua liberdade.
Divertem-se então à sua maneira, praticando durante esta época suas danças
nativas, às quais observa-se com grande interesse. Apesar de que a melhor
descrição que se faça destas danças não represente mais que uma imagem
incompleta, vou procurar descrever, com muito esforço, algumas destas
cenas.373

Langsdorff continuou seu relato descrevendo uma festa na qual participavam as

populações de origem africana, com suas músicas e suas danças. Além dele, Chamisso

também comentou que o Natal era considerado a festa das crianças e dos negros. Nessa época

eles saíam pelas ruas, dançando, brincando e cantando. Outra prática era ir de casa em casa,

em grupos, fantasiados, em busca de pequenos presentes. Não se sabe se essas brincadeiras

eram as praticadas pelas crianças ou pelos negros, ou então por ambos. O viajante não

especificou, dando a entender que ambos comportavam-se da mesma forma, igualando-os, ou

seja, infantilizando os negros. Além dessas festas, havia também as danças realizadas no final

do ano, descritas por Langsdorff, e os batuques, que na opinião de Saint-Hilaire era uma

“dança obscena”. Festas onde participavam escravos eram aceitas, principalmente os

folguedos dos Ternos de Reis, tanto que, em 1843, a Câmara Municipal de Desterro negou o

requerimento de Manoel do Nascimento Gomes, no qual ele pedia a proibição destas festas,

que eram realizadas pelas ruas da cidade. No entendimento da Câmara, as festas, bem como

os ajuntamentos de escravos “em horas mortas” eram “prática comum.”374

Outro aspecto tratado nos relatos refere-se à “liberdade”. Lesson assinalou que

existiam poucos indivíduos de origem africana que conseguiram adquirir sua alforria.

Segundo ele, “o pequeno número de negros livres deve sua liberdade unicamente ao

arrependimento e à superstição; não é senão sobre o leito da morte que, sentindo remorso pelo

medo da justiça divina, o branco religioso é capaz de uma ação generosa.”375 Essas liberdades

373
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 169.
374
AHMF. Livro de Registro da Correspondência da Câmara Municipal. Apud. MORTARI, Cláudia. Op. cit. p.
53.
375
LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 274.
194

eram motivadas não pela crença de que a escravidão era uma injustiça, mas sim devido ao

medo, ao arrependimento que alguns senhores sentiam no momento da morte.

Em estudo realizado tendo como tema as alforrias de escravos no Rio de

Janeiro, Manolo Florentino constatou que no final do século XVIII libertava-se mais do que

no início do século XIX. Os meios para conseguir uma carta de alforria eram três: a alforria

pela compra, a alforria gratuita e a alforria sob condição. Na documentação analisada entre os

anos de 1789 e 1840, o maior número de alforrias foi conquistado através da compra, em

segundo lugar ficou a alforria gratuita e em terceiro a alforria sob condição. Essa distribuição

pode ser explicada pelo baixo preço dos escravos praticados no período, principalmente antes

de 1808, e pelas características do mercado de trabalho na cidade do Rio de Janeiro, que

permitia o acúmulo de pecúlio por parte dos escravos, que era revertido para a compra de sua

liberdade ou de terceiros. O segundo período, corresponde aos anos 1840-1864. Nesse

momento a alforria gratuita suplantou a alforria por compra entre as formas de um escravo

alcançar sua liberdade. Em terceiro lugar ficou a alforria sob condição, como no primeiro

período analisado. O fator que levou à modificação foi a elevação do preço dos escravos no

mercado, o que tornou mais difícil o acúmulo do dinheiro necessário para a realização do

negócio. Outro aspecto que o autor analisou é a questão da etnia dos que conquistaram a carta

de alforria. Entre os anos de 1840 e 1860, 52% a 55% dos que recebiam alforrias gratuitas

eram africanos. Esses dados modificaram-se no período seguinte, de 1860 a 1864, quando os

africanos passaram a ser 45% dos alforriados gratuitamente. Com o fim do tráfico, diminuiu a

alforria de africanos, o que remete à conclusão de que os números referentes ao acesso à

liberdade estavam vinculados à participação demográfica dos escravos africanos e crioulos na

população do município do Rio de Janeiro.376 Esses dados dizem respeito à capital da colônia,

e depois ao Império do Brasil, e um dos principais portos de entrada de escravos vindos da

376
FLORENTINO, Manolo. Alforrias e etnicidade no Rio de Janeiro oitocentista: notas de pesquisa. Topoi. Rio
de Janeiro, set. 2002, pp. 9-40.
195

África. Não podem ser considerados para a vila de Desterro, mas servem para levantarmos

alguns questionamentos ao discurso de Lesson. Seria a alforria gratuita a única, ou mesmo a

mais freqüente das formas dos escravos alcançarem a liberdade em Desterro? E até que ponto

a religiosidade influenciou nas concessões de alforrias gratuitas? Essas e outras perguntas

sobre o tema somente poderão ser respondidos através de pesquisas empíricas.

Outra forma de livrar-se da escravidão era através das fugas ou mesmo dos

suicídios. Lesson, em suas andanças pelo interior da Ilha de Santa Catarina, relatou que

“várias vezes encontramos montes de terras removidas, sustentando uma pequena cruz de

madeira: era o último marco dos sofrimentos de um pobre escravo negro, o refúgio onde ele

quebrara seus grilhões.”377 A fuga era uma das formas de livrar-se da escravidão. Quem a

utilizava era principalmente os escravos do sexo masculino, como constatou a pesquisa de

Martha Rebelatto, na qual utilizou como fonte os anúncios de fugas de escravos publicados

entre os anos 1849 e 1860, nos jornais que circulavam em Desterro. Outro aspecto que

concluiu era que a maior parte dos anúncios, além de descrever características dos escravos

fugitivos, oferecia recompensas. Elas tiveram seus valores aumentados durante a década de

50, acompanhando o aumento no valor do escravo no mercado, em decorrência do fim do

tráfico internacional. Outra característica que os anúncios deixavam entrever era que muitos

dos escravos que haviam fugido tinham sido recém-adquiridos, uma vez que em vários

anúncios eram citados o nome e o endereço dos antigos proprietários do fugitivo.378 Isso nos

leva a outra questão: os laços afetivos e familiares que os escravos estabeleciam nas

propriedades onde eles viviam. Esses relacionamentos, muitas vezes, eram os motivos que

levavam a fuga, já que possibilitariam o retorno à convivência com seus entes queridos. Os

377
LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 267.
378
REBELATTO, Martha. “Nem todos gostavam da escravidão”: fugas de escravos em Desterro na década
de 50. Florianópolis: TCC em História, UFSC. 2004. pp.
196

jornais de Desterro também noticiaram casos de suicídios, alguns bem sucedidos e outros não.

A maior parte dos casos ocorreu nas décadas de 50 e 60. Os motivos citados foram loucura

(doença mental), delírio em decorrência da “febre das bexigas”, e também a recusa em

embarcar para ser vendido para fora da província.379

As falas dos viajantes, que descreviam características da sociedade com a qual

tiveram contato, ou então emitiam opiniões sobre a escravidão, podem ser tomadas como uma

porta de entrada para vislumbrarmos aspectos de nosso passado. No entanto, como outras

fontes, não permitem apreendermos a totalidade de uma sociedade, de um grupo, ou de sua

cultura. Apesar de muitos viajantes, em seus relatos, deixarem transparecer um olhar que

tentava abarcar o todo do que ele estava vendo e vivendo, suas descrições eram marcadas por

recortes e limitações. Outro aspecto a ser considerado: até que ponto as informações que os

viajantes citaram em seus relatos não foram adquiridas a partir da convivência com os

próprios proprietários de escravos? Saint-Hilaire, por exemplo, utilizou várias fontes que

foram produzidas pela elite local. No entanto, os relatos de viajantes, a partir de uma leitura

minuciosa e do cruzamento com outras fontes, permitem perceber aspectos da sociedade local

e, até certo ponto, aspectos da cultura e do cotidiano que as populações de origem africana

criaram na terra para onde eles foram trazidos.

379
CABRAL, Oswaldo. Nossa Senhora do Destêrro. Memória II. Op. cit. pp. 136-137.
197

8. Trabalho e indolência: uma outra cultura

Os indivíduos que habitavam a Ilha de Santa Catarina na segunda metade do

século XVIII e na primeira metade do século XIX dedicavam-se a inúmeras atividades

econômicas. A principal era a agricultura que, muitas vezes, era combinada com outras

atividades como o trabalho nas armações de caça à baleia, a pesca, o fabrico de tecidos no

tear, entre outras atividades. Podemos enumerar algumas das atividades desenvolvidas na

região a partir dos produtos exportados pelo porto da vila de Desterro, que no ano de 1820

foram

a farinha de mandioca, o arroz, o óleo de baleia, o cal, o feijão, o milho, o


amendoim (arachis hypogea), o melado, a madeira para a construção e
carpintaria, couros, potes de barro, peixe salgado, tecidos de linho e tecidos
feitos com uma mistura de cânhamo e algodão (riscados).380

A lista acima foi elaborada por Saint-Hilaire, a partir de dados coletados na

ocasião de sua passagem pela vila de Desterro no ano de 1820. É importante lembrar que ele

redigiu seu relato anos depois, quando já estava na França, e utilizando como material de

apoio outros relatos e também documentos administrativos e memórias históricas. Essas

informações precisariam ser confrontadas com outras fontes. O problema é que, quando elas

existem, não se referem ao mesmo período histórico. Para fazermos essas análises, o primeiro

material que pensamos foi os livros onde era registrado o movimento do porto de Desterro,

tais como os Livros da Alfândega. Mas esse material, da mesma forma como os Livros do

Thesouro Provincial, as Falas e Relatórios dos Presidentes de Província, que encontram-se no

380
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 172.
198

Arquivo Público do Estado de Santa Catarina, não permitem elaborar uma série de dados que

possibilitariam o acompanhamento do que foi produzido e comercializado na Capitania,

depois Província de Santa Catarina. As fontes são esparsas e não se referem a períodos

longos.381 Além disso, a maioria dessas fontes dizem respeito a um período posterior ao da

passagem dos viajantes, entre os anos de 1840 e 1889. Esse é o período contemplado pela

historiadora Laura Machado Hübener em seu estudo sobre o comércio na cidade de Desterro

no século XIX, com ênfase na década de 60, período de maior atividade comercial. Mesmo

tendo presente a incompatibilidade temporal entre esta pesquisa e as falas dos viajantes que

pesquisamos, utilizaremos algumas das suas informações para entendermos a realidade

econômica na qual estavam envolvidos os habitantes de Desterro e da Província. Tomando

como base a lista citada anteriormente, elaborada por Saint-Hilaire poucos anos antes do

processo de Independência do Brasil, podemos constatar que a província dedicava-se à

atividades variadas. Além da agricultura, dedicava-se à pesca, à produção de utensílios em

barro, ao fabrico de tecidos, bem como ao trabalho com madeira e com couro. Na listagem

não são encontrados aqueles produtos nos quais o país havia se especializado, como por

exemplo o açúcar, e que tinha como objetivo o abastecimento do mercado externo,

principalmente o europeu.

O trabalho de Darcy Pacheco sobre a Junta da Real Fazenda de Santa Catarina,

apesar de contemplar o período de 1817 a 1831, traz um quadro comparativo mostrando a

produção e exportação nos anos de 1796 e 1810 na Capitania de Santa Catarina. Para isso ele

381
Segundo Walter Piazza conjuntos de documentos sobre o período colonial e imperial referentes à Santa
Catarina encontram-se dispersos em vários arquivos, entre eles o Arquivo Histórico Ultramarino, a Biblioteca
Nacional de Lisboa, o Arquivo Histórico Militar, todos localizados em Portugal. Também no exterior, o National
Archives de Washington (EUA) possui correspondências referentes à Província, enviadas entre os anos de 1834
e 1874 pelo consulado sediado em Desterro. No Brasil, ele cita o Arquivo Nacional, a Biblioteca Nacional, os
Arquivos dos estados de São Paulo, da Bahia, do Rio Grande do Sul, do Paraná e de Santa Catarina. Vários
outros arquivos são citados por possuírem pequenas coleções de documentos interessantes para a História de
Santa Catarina deste período. Ver: PIAZZA, Walter Fernando. Fontes Arquivais para a História de Santa
Catarina. In: SOARES, Iaponan (org.) Arquivos & Documentos em Santa Catarina. Florianópolis: IOESC,
1985. pp. 35-42.
199

utilizou os dados citados nas obras do Governador Miranda Ribeiro e de Paulo Joze Miguel de

Brito.382 A partir dos dados encontrados, foi possível determinar que produtos tiveram um

crescimento em sua produção e exportação e quais os que, ao contrário, tiveram redução.

Alguns dos produtos não puderam ter sua taxa de crescimento determinada porque os dados

foram citados com medidas diferentes. Entre os produtos que tiveram aumento na produção e

na exportação estavam a farinha, o feijão, o trigo, a cebola e o peixe seco. O único que teve

um decréscimo, tanto na produção como na exportação, foi o gravatá, um tipo de fibra. As

favas e a aguardente obtiveram um aumento na exportação, mas sua produção diminuiu.

Alguns produtos tiveram um crescimento em sua produção, mas como não existem dados

sobre a exportação no ano de 1796, não foi possível estabelecer se seu crescimento foi devido

à demanda externa, ou se esta produção era voltada para as necessidades internas. Estes

produtos são os couros, as tábuas de madeira, o melado, o algodão, o café, e o fumo. Todos

esses produtos eram exportados no ano de 1810, alguns em grandes quantidades como o

café.383

Langsdorff também fez uma listagem do que poderia ser encontrado na Ilha de

Santa Catarina. Além de algumas plantações que ele estava habituado a ver, como “coqueiros

e bananeiras, plantações de café, açúcar, arroz e algodão”, pode admirar também outras

árvores, como “a Peroba, o Óleo, a Figueira, a Garabisi, a Garaberi, a Garaxuba, a Garabrura,

o Cedro, etc.”384 Não especificou se todos esses produtos eram comercializados

regularmente com outras regiões ou se sua extração era voltada para o consumo interno. O

que Langsdorff especificou foi que

382
Os dados para a elaboração da tabela foram retirados do Relatório do Governador Miranda Ribeiro. In:
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 1959. Volume 245 e de BRITO, Paulo
Joze Miguel de. Memória Política da Capitania de Santa Catarina. Florianópolis: Sociedade
Literária/Biblioteca Catarinense, 1932.
383
Na tabela elaborada por Darcy Pacheco podem ser encontrados dados sobre outros produtos não citados, além
dos números relativos dos produtos citados. Ver: PACHECO, Darcy. Um estudo sobre a junta da Real
Fazenda de Santa Catarina. Período 1817-1831. Florianópolis: Dissertação de mestrado/UFSC. 1979. p. 32.
384
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 172.
200

os produtos desta terra são muito variados e podem ser usados como fontes
inesgotáveis de um rico comércio, se este não fosse tão limitado e
dependente do Rio de Janeiro, pois, os moradores daqui só podem vender
seus produtos para esta cidade. 385

Langsdorff esteve em Santa Catarina no ano de 1803. Em 1807, Mawe passou

pela região e registrou que o comércio não era tão restrito assim, uma vez que os produtos da

terra eram exportados não só para o Rio de Janeiro, mas também para o Prata. Entre esses

produtos estavam os potes de barro, e outros utensílios de cozinha feitos com argila vermelha.

O contrabando de mercadorias entre as regiões foi citado por vários autores que escreveram

sobre história econômica, tais como Caio Prado Júnior, Oswaldo Cabral e Laura Hübener.

Alguns dos fatores que facilitavam e muitas vezes incentivavam estas contravenções foram o

monopólio das empresas de comércio na época pombalina386, as taxas impostas sobre vários

produtos, como por exemplo o sal, os impostos de importação e exportação, a obrigatoriedade

de comerciar somente com a metrópole, além de inúmeras regras impostas a fim de garantir a

cobrança das taxas. Esses fatores dificultavam o comércio entre as regiões coloniais que não

estavam inseridas no comércio externo de grande monta, voltado para o abastecimento da

metrópole. Além disso, os portos “periféricos” enfrentavam outras dificuldades, uma vez que

suas instalações eram precárias, com poucos fiscais e recursos materiais, tais como

embarcações, guindastes, balanças, pesos e medidas. Até o final do Império existiam quatro

ancoradouros em Desterro. Estavam localizados na Praia de Fora, na Ilha de Santa Cruz, onde

está localizada a Fortaleza de Anhatomirim, e os outros dois em frente a região central da

cidade. Somente os dois últimos tinham condições de fazer a devida fiscalização. A

385
Ibidem. p. 166.
386
Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal, foi ministro entre os anos de 1750 e 1777, durante o
reinado de Dom José I. Sua administração teve como objetivo tornar mais eficiente a administração portuguesa,
modificando o relacionamento entre a metrópole e suas colônias. Criou as Companhias Gerais de Comércio do
Estado do Grão-Pará e do Maranhão (1755-1778) e de Pernambuco e Paraíba (1759-1779) que possuíam o
monopólio nestas regiões. Estabeleceu privilégios que prejudicaram outros setores comerciais, coibiu o
contrabando de ouro e diamantes, expulsou os jesuítas de Portugal e das colônias, entre outras medidas.
201

proximidade com a região do Prata, de colonização espanhola, combinada com a fiscalização

precária por parte do governo português, facilitava o comércio ilegal.387

O comércio praticado entre o Brasil e a região do Prata foi incrementado em

decorrência da União Ibérica (1580-1640), e manteve-se posteriormente durante o governo de

D. João IV. O Estado Português, a fim de fortalecer sua independência após a restauração,

precisava contar com o apoio de outras potências européias. Dessa forma, teve que ceder às

exigências internacionais relacionadas ao comércio, permitindo-o sob reservas. Os

negociantes ingleses foram os mais favorecidos, principalmente os que já viviam em Portugal.

Autorizou-se a instalação de famílias de comerciantes ingleses em portos do Brasil, como

Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Suas mercadorias tinham um regime de tributação

diferenciado em relação aos comerciantes de outras nacionalidades. Em relação à Espanha,

mantiveram-se os tratados anteriores, que liberava o comércio entre os dois países, com a

exigência de que os navios obtivessem uma permissão, expedida pelo monarca. Exceção aos

barcos que viessem da região do Prata trazendo metais preciosos. Eles poderiam comerciar

livremente nos portos da colônia brasileira, pagando em moeda e adquirindo os produtos e

gêneros necessários. Apesar de Portugal criar obstáculos ao intercâmbio com os vizinhos na

América, o comércio com a região do Prata continuou e em alguns momentos foi incentivado,

já que era do interesse de ambas as partes. Em 1711, com o intuito de reprimir os abusos que

ocorriam por parte dos navios estrangeiros, baixaram-se ordens proibindo sua aceitação nos

portos, a menos que tivessem vindo junto com as frotas de Portugal, ou então que houvessem

chegado devido às tempestades, a falta de água e de alimentos. Após receber a ajuda

necessária, deveriam prosseguir viagem, sem autorização para fazer negócios. Apesar do

esforço do governo metropolitano, o comércio clandestino continuou existindo, em algumas

HÜBENER, Laura Machado. O comércio da cidade do Desterro no século XIX. Florianópolis: Ed. da
387

UFSC, 1981. pp. 20-21.


202

regiões mais intenso do que em outras. As dificuldades de controle por parte da Coroa

Portuguesa acarretou grandes perdas para seus cofres.388

Feliciano Nunes Pires389, presidente da província de Santa Catarina de agosto

de 1831 a novembro de 1835, registrou em seu relatório de governo que, no ano de 1834, os

portos de Desterro, Laguna e São Francisco receberam 408 embarcações, e dentre estas, 45

eram estrangeiras. O montante importado pela província foi de 132:615$241 réis, enquanto

que a exportação foi de 57:262$038 réis para portos de fora do Império e de 287:293$330 réis

para portos do Império Brasileiro. Acrescentou, no mesmo relatório, que esses números só

não eram maiores devido ao “atrazo da nossa industria agricola”, principal fator por “não

termos em maior cópia generos em que façamos com o estrangeiro hua permuta mais ampla e

mais directa ...”390

Entre as atividades desenvolvidas na Ilha de Santa Catarina e regiões

continentais próximas, estava a fabricação de peças de barro, uma vez que eram encontradas

na região continental, “esplêndida argila vermelha, com a qual se fabricam jarros, utensílios

de cozinha, grandes potes para água, etc., exportados em quantidades consideráveis para o

Prata e para o Rio de Janeiro.”391 Segundo Mawe, a quantidade de terras utilizadas no plantio

havia aumentado nos últimos tempos, devido ao corte de árvores que eram utilizadas em

inúmeros produtos, inclusive para a construção de navios, tanto que madeira de boa qualidade

escasseava no início do século XIX. Os habitantes locais dedicavam-se também ao cultivo do

linho, utilizado para fazer linhas, redes e cordames pelos pescadores, pois “no mar, em redor,

388
HOLANDA, Sérgio Buarque de. O comércio colonial e as companhias privilegiadas. In: História Geral da
Civilização Brasileira. A Época Colonial, t. I, v. 2, São Paulo: Difel, 1968. pp. 311-316.
389
Feliciano Nunes Pires nasceu em 21 de dezembro de 1775. Natural da Ilha de Santa Catarina, era filho de
Antônio Nunes Ramos, intérprete de inglês e lavrador, e de Maria Joaquina de Jesus Pires. Foi professor de
primeiras letras na vila de Desterro. Aos 35 anos foi nomeado professor público de latim em Rio Grande, onde
desenvolveu também a atividade como advogado provisionado. Foi eleito deputado por Santa Catarina, e
nomeado em 5 de maio de 1831 presidente da Província de SC. Empossou-se em 6 de agosto de 1831 e governou
até 4 de novembro de 1835. Exerceu posteriormente o cargo de Inspetor da Alfândega da cidade do Rio de
Janeiro e foi presidente da província do Rio Grande do Sul entre 06 de junho de 1837 e 03 de novembro de 1837.
390
PIRES, Feliciano Nunes. Relatório e fala no Governo de Santa Catarina 1833/1835. São Paulo: Arquivo
Público do Estado de São Paulo/Florianópolis: Arquivo Público do Estado de Santa Catarina, 1985. pp. 36-37.
391
MAWE, John. Op. cit. p. 190.
203

há abundante variedade de ótimo peixe e saborosas lagostas; o suprimento do mercado é tal

que se obtém por um shilling quantidade de peixe suficiente para alimentar doze pessoas.”392

Outros alimentos que Mawe encontrou com facilidade e baratos foram a carne,

mais ou menos da mesma qualidade da de Montevidéu, mais dura e magra


[...] porcos, perus, patos, galinhas e ovos, bem como viçosas hortaliças e
excelentes batatas encontram-se com fartura e baratos. 393

Se esses produtos eram consumidos regularmente pela população ou

reservados para o comércio, principalmente com os barcos que passavam pela região, não

temos condições de especificar. Podemos, no entanto, comparar a relação de produtos feito

em 1807 por Mawe com outra listagem, esta do ano de 1803 feita por Urey Lisiansky, capitão

do navio “Neva”. Além dos produtos e da quantidade adquirida, ele registrou também os

preços, uma vez que os estava comprando para abastecer o navio. Segue abaixo a listagem:

um porco grande 8.000 réis


de tamanho médio 4.000 réis
recém-nascido 1.000 réis
um boi de corte 7.000 réis
ave doméstica 320 réis
um pato 480 réis
uma réstia de cebola 60 réis
mil limões 1.000 réis
uma libra de açúcar grosso 75 réis
cinqüenta e oito abóboras 3.480 réis
um peru 480 réis
um cacho de bananas 60 réis
144 libras de arroz 4.000 réis
144 libras de trigo 1.600 réis
1 alqueire ou
72 libras de milho indiano 640 réis
1 arroba ou
32 libras de café 1.600 réis
1 medida ou
4 garrafas de rum 320 réis
1 alqueire de mandioca 480 réis394

O que podemos constatar é que os produtos adquiridos eram bastante variados,

alguns comprados em grandes quantidades, como o caso dos limões, provavelmente devido às

392
Ibidem. p. 190.
393
Ibidem. p. 190.
394
LISIANSKY, Urey. In: Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e
XIX. Op. cit. p. 153.
204

doenças que atacavam os marinheiros, como o escorbuto, motivado pela falta de vitamina C.

Muitos produtos, principalmente frutas e verduras, podiam ter sido adquiridas em maior ou

menor quantidade devido à época e a oferta destes para a compra. Os animais eram

normalmente comprados e transportados vivos, devido às dificuldades de conservação da

carne. Podemos constatar que o capitão do navio deu preferência à aquisição de produtos

frescos, tanto os de origem animal como os de origem vegetal. Exceção para os cereais e para

o rum.

Além do trabalho na terra, as outras atividades as quais os homens dedicavam-

se eram a pesca e o serviço militar. Sobre o primeiro, Saint-Hilaire comentou que dois fatores

os levavam a ser pescadores, vivendo a maior parte do tempo no mar: o pendor natural, uma

vez que estavam habituados “desde a infância a enfrentar um mar agitado em suas frágeis

canoas”, e o temor do serviço militar. Esses dois fatores acabavam causando uma

desproporção populacional entre homens e mulheres, com um número maior destas.395 Pelo

que podemos constatar pelas falas de Saint-Hilaire e de Lesson, o trabalho como miliciano era

combinado com a atividade de agricultor. O primeiro, que participou das festividades de

comemoração do aniversário do rei D. João VI em Desterro, comentou que

os milicianos - todos eles agricultores - que estavam na cidade havia vários


dias, gastando dinheiro e sem trabalhar, apressaram-se a voltar para suas
terras tão logo terminou a cerimônia, e durante toda a tarde dezenas de
canoas atravessavam velozmente o canal.396

Além dos milicianos, que eram convocados em momentos específicos, como

festas cívicas, batalhas e guerras, havia os soldados que estavam locados nos quartéis e na

guarda das fortalezas e dos fortes. Lesson chamava esses indivíduos de “soldados-cidadãos”.

Em função da falta de regularidade no pagamento dos soldos feito pelo governo, eles

cultivam ao redor de suas moradias, hortas que fornecem o sustento a suas


famílias. Criam alguns animais de terreiro, e galinheiros com aves

395
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 175.
396
Ibidem. p. 184.
205

domésticas, que eles vendem aos navios que passam, em troca de algum
lucro.397

Em 1738 foi criada a Capitania de Santa Catarina e nomeado o brigadeiro José

da Silva Paes como capitão-mor. Silva Paes tinha como função criar um sistema defensivo

para a Ilha de Santa Catarina, ponto estratégico na ocupação da região meridional da Colônia

Portuguesa na América, pois ficava a meio caminho entre o Rio de Janeiro e a foz do Rio da

Prata, onde localizava-se a Colônia do Sacramento. Mas as fortificações e o deslocamento de

militares não foram suficientes para garantir a posse dessa região. Era necessário povoá-la

com uma população que ao mesmo tempo a defendesse e produzisse os alimentos necessários

para o sustento dos soldados. O edital do Rei de 8 de agosto de 1746 especificava seus

objetivos ao incentivar a emigração de famílias açorianas para a região sul de sua colônia na

América. A vinda de famílias jovens e numerosas visava a ocupação, e desta forma a posse

desses territórios, garantindo assim sua defesa e seu desenvolvimento econômico. O edital

também especificava as regras: homens com menos de 40 anos e mulheres com menos de 30

anos. Também davam preferência às famílias com filhos e que fossem experientes com o

trabalho na terra e no trato de animais. Já as mulheres deveriam, além de conhecerem as lidas

domésticas, ser hábeis na arte da fiação.398

Ao chegarem às novas terras, os que haviam se aventurado na travessia do

Atlântico eram recebidos pelas autoridades locais que deveriam assentá-los e suprir suas

necessidades iniciais, cumprindo as promessas feitas antes do embarque. As famílias recebiam

terras, que deveriam ser limpas das matas e cultivadas, e também os utensílios necessários

para o início da nova vida: uma espingarda, que não poderia ser vendida, instrumentos de

trabalho, como enxada, enxó, martelo, facão, entre outros, alguns animais, como vaca e égua,

e farinha em quantidades que variavam conforme o número de membros da família. A doação

397
LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 268.
398
FLORES, Maria Bernardete Ramos. Povoadores da Fronteira: os casais açorianos rumo ao Sul do Brasil.
Florianópolis: Ed. da UFSC, 2000. pp.38-41.
206

de uma espingarda para cada família era para ser utilizada na defesa pessoal, devido aos

ataques dos animais bravos e dos indígenas, mas também para ser utilizada em caso de

invasões de estrangeiros, principalmente espanhóis.

As mulheres que viviam na região também se dedicavam a alguns trabalhos

específicos, entre eles o trabalho com o algodão e o fabrico de tecidos. Pernetty, em 1763,

descreveu as portuguesas dedicadas ao trabalho de separar o algodão das sementes

manualmente, algo que nas Antilhas era feito com máquinas. Deduziu que “as portuguesas

que vi ocupadas neste trabalho faziam disto uma pura diversão, pois, elas o separavam pouco

a pouco, pinçando-os somente com os dedos.”399 Após essa etapa, o algodão era fiado e

tecido. Era uma atividade desenvolvida em muitas casas. O algodão, antes de ser fiado,

deveria ser separado das sementes, pinçando-as como falou Pernetty, ou então batendo-o com

martelos, como presenciou Mawe, em uma de suas excursões pelo interior da ilha. Saint-

Hilaire encontrou em todos os sítios a presença de teares, com os quais eram fabricados

panos, um “tipo de trabalho que é comum a todas as famílias.”400 Mais do que providenciar o

tecido necessário para a família, muitas “mulheres procuram ganhar algum dinheiro com o

seu trabalho. Quem passa diante de suas casas ouve-as batendo o algodão; elas fiam e

tecem.”401 Como ocorre também em outras passagens do relato de Saint-Hilaire, ele

generalizou suas informações. Não falou que encontrou teares nos sítios que visitou, mas em

“todos” os sítios. Não eram algumas, ou a maioria das famílias que se dedicavam à produção

de tecidos, mas “todas” as famílias.

Mawe comentou que os habitantes de Desterro eram muito urbanos e corteses

com os estrangeiros, e que aqui se encontravam todos os tipos de artífices, tais como alfaiates,

sapateiros, funileiros, marceneiros e ferreiros. Também encontrou mulheres que se dedicavam

399
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 106.
400
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 173.
401
Ibidem. p. 174.
207

ao trabalho de fazer renda.402 Descreveu de forma muito positiva a ilha, dizendo que o clima é

ótimo, que tudo o que é plantado produz, sendo inclusive conhecida pelas “deliciosas frutas”.

O algodão, utilizado nas roupas, era por eles mesmo plantado, fiado e tecido. Construíam suas

próprias casas, bem como as canoas com as quais se deslocam pela região em busca do peixe.

Em suma, “pode-se dizer, em verdade, que todo homem é mais ou menos um artesão.”403 Esse

foi o relato de uma viagem realizada no ano de 1807. Menos de quatro anos antes, Langsdorff

afirmou que

os teares estão em estado nascente, os moinhos são escassos; mas, com todas
estas imperfeições, não devo me esquecer de que em Nossa Senhora do
Desterro são fabricados excelentes objetos de barro [...] e chegam a exportar
para o Rio Grande e até para o Rio de Janeiro. Existem aqui ótimas
olarias.404

Mawe também constatou a atividade de oleiros em outras regiões da Província

de Santa Catarina. Segundo ele, na vila de São José, localizada no continente, seus habitantes,

“se ocupam principalmente em serrar madeira, reduzindo-a a pranchas, fabricar tijolos e

plantar arroz”. O ganho com esse trabalho não era muito elevado, mas o padrão de vida local

não exigia grandes somas de dinheiro.

Um dos produtos mais exportados durante o século XIX pelo porto de Desterro

foi a farinha de mandioca. Vários viajantes comentaram que na região era plantada mandioca,

juntamente com outros produtos como café, cana de açúcar, trigo e arroz. Tudo em pequenas

quantidades que normalmente eram consumidas na própria localidade ou então se prestavam

para uma exportação em pequena escala para a cidade do Rio de Janeiro. No caso da farinha

de mandioca, foi produzida em grandes quantidades e com o objetivo de exportá-la para

outras regiões do Brasil. Esse produto também era produzido em outras regiões do país, e

Santa Catarina sofria a concorrência com o Rio Grande do Sul e o Espírito Santo na disputa

402
MAWE, John. Op. cit. p. 190-191.
403
Ibidem. p. 195.
404
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 178.
208

pelo abastecimento do principal mercado, o Rio de Janeiro.405 Pernetty registrou uma

descrição do trabalho de produzir a farinha e outros produtos extraídos da mandioca.

Os portugueses, nascidos ou simplesmente estabelecidos na Ilha de Santa


Catarina e nas costas da terra firme ao redor, empregam para este fim uma
grande roda de madeira cujos aros, têm sua superfície extrema cavada em
forma de um canal. Este canal está coberto por um ralador de ferro.
Aproxima-se a raiz deste ralador, apoiando um pouco em cima, enquanto
uma outra pessoa vira a roda, produzindo o efeito de um ralador de tabaco.
Esta manobra adianta bastante o trabalho, expelindo em pouco tempo muitas
raízes. O sumo branco que goteja das raízes, à medida que se rala, não é
conservado. Este sumo se perde num pequeno fosso e escorre pela terra. Faz-
se, em seguida, secar estas raízes para reduzi-las a farinha e fazer a caçava.
Servem também aos brasileiros para a composição de suas bebidas. Esta
operação é muito desagradável, assim como a própria bebida, sabendo-se a
maneira com que é feita. São as mulheres que estão encarregadas deste
trabalho, sobretudo as mais idosas.406

O pão de fermento, encontrado em geral somente na casa do governador, era

substituído nas outras habitações pela caçava, que era feita com a pasta da mandioca cozida.

Esse método rudimentar de ralar a mandioca, produzindo a pasta que depois seria seca ou

cozida, conforme o produto para o qual seria destinada, era utilizado na segunda metade do

século XVIII. Com o passar do tempo, e com a demanda pelo produto, a tecnologia

aprimorou-se. Construíram-se engenhos de farinha, espalhados por várias localidades do

interior da ilha e no litoral da Capitania.

Quando os viajantes tratavam do trabalho e das atividades desenvolvidas na

Capitania de Santa Catarina, de um modo em geral falavam da pouca tecnologia existente, da

diversidade de produtos que a região produzia e da dificuldade de comercialização. Outro

aspecto que chama a atenção são os discursos que transformam o trabalho em diversão, como

na fala de Pernetty. Ao invés de falar da dificuldade e do tempo gasto no trabalho de retirar as

sementes do algodão, afirmou que as mulheres transformavam a atividade numa diversão. Os

trabalhos coletivos, em mutirão, onde várias pessoas estavam envolvidas, muitas vezes

cantando, pode ter confundido a percepção dos viajantes.

405
HÜBENER, Laura Machado. Op. cit. p.77.
406
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 103.
209

8.1. Natureza exuberante versus a pobreza e a indolência dos habitantes locais

As descrições de encantamento com a natureza exuberante intercalavam-se

com outras nas quais era salientada a insalubridade da área devido às águas estagnadas. As

representações de que os trópicos eram uma região de fartura e abundância natural eram

intercaladas com falas nas quais os viajantes salientavam sua pobreza. Essa combinação entre

fartura natural e pobreza humana ajudou a propagar uma imagem de preguiça e de indolência

de seus habitantes, uma vez que na região, por causa da abundância, não era necessário

trabalhar tanto como na Europa para garantir o sustento.

Langsdorff, em seus inúmeros passeios, conheceu alguns sítios, nos quais era

recebido e lhe ofereciam algo para beber e para comer. Essas casas, de propriedade dos

colonos, eram bem situadas, mas geralmente pequenas. Langsdorff reparou na ausência de

aldeias, ao moldes das que existiam na Europa. No entorno das “choupanas”, os agricultores

possuíam suas terras, o que fazia com que as moradias estivessem distantes umas das outras.

Ainda segundo o viajante, “a maior parte das casas está ao longo da costa, com plantações de

laranja, café, bananas e algodão em sua volta. Nas proximidades de cada choupana encontra-

se, geralmente à sombra dos pés de laranjas, uma fonte de águas cristalinas.”407

Alguns anos depois, também por causa de seus passeios para coletar plantas,

Saint-Hilaire conheceu o interior da ilha. Descreveu os inúmeros caminhos que levavam aos

sítios, “de casas muito pequenas, feitas de barro e madeira, cobertas de telhas e em mau

estado de conservação, ao redor delas vêem-se laranjeiras e bananeiras e uma plantação de

mandioca.”408 Uma das casas onde ele esteve pertencia a uma viúva, que passava

407
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 176.
408
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 150.
210

necessidades. Como seus filhos eram pequenos e seus familiares moravam longe, não tinha

como conseguir o peixe para alimentar sua família. Os únicos utensílios que encontrou na

casa da pobre senhora foram alguns utensílios de barro.

Lesson escreveu sobre a pobreza das moradias encontradas no interior, que

“anuncia o pouco cuidado em que vivem as famílias que as habitam, ou mais ainda, indica a

carência de recursos em que se encontram estes habitantes por não possuírem alguns destes

pequenos luxos que permitem maior conforto e bem-estar.”409 As casas tinham “paredes de

estuque”, a porta era uma “abertura para a rua”, o telhado era feito com “barrotes de madeira”

que sustentava uma cobertura de “folhagens”, o chão, “sem assoalho” e coberto de

“imundícies”, junto com os “objetos grosseiros de uso diário” completavam o quadro descrito

por Lesson. Um quadro onde se misturavam a pobreza e o descuido. No entanto, na mesma

descrição, ele descreveu o aposento da dona da casa que, “por sua limpeza e pelos simples

arranjos que o decoram, tais como alguns utensílios de cobre, uma estampa colorida ou uma

madona”, era utilizado para receber. Em pequenos detalhes como esse, constatamos como as

populações que eram descritas pelos viajantes, no caso Lesson, escapavam ao estereótipo pré-

construído sobre elas. Num lapso do discurso, surgia uma imagem estranha àquela construída

e reproduzida sistematicamente sobre as populações locais. A imagem de desleixo, associada

algumas vezes à pobreza, outras não, era momentaneamente substituída por outra, a de uma

dona de casa que, apesar da pobreza, mantinha seu aposento asseado, inclusive enfeitado com

objetos, alguns de culto religioso, outros de trabalho.

Mawe, que esteve na região alguns anos antes de Lesson, comentou que os

habitantes não eram ricos. Como a produção local não era superior ao consumo, o “comércio

nesta praça é insignificante”. Os quadros de produção e exportação da Capitania elaborados

por Darcy Pacheco nos mostram o contrário. A produção de alguns produtos era superior à

necessidade local, o que gerava um comércio com outras regiões da colônia e inclusive com
409
LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 267.
211

portos do Prata. Continuando as descrições, Mawe salientou que as dificuldades não eram

maiores porque, apesar do ganho líquido de uma família ser baixo, suas necessidades e seu

consumo também eram reduzidos. Além disso, os habitantes locais não tinham “incentivos

para reduzir os entretenimentos do presente, na expectativa de aumentarem as futuras

fortunas”410, o que significava que a região continuaria, na previsão desse viajante, muitos

anos ainda entregue a inércia econômica. Num outro trecho de seu relato, retomou uma

representação recorrente quando se trata dos habitantes locais:

os habitantes cultivam arroz em grande quantidade, assim como café e cana-


de-açúcar, mas sua indolência e pobreza são tais que só empregam, na
fabricação do açúcar, moendas a mão, formadas por dois rolos horizontais.411

Em poucas linhas podemos constatar como algumas imagens são fortes. Ao

mesmo tempo em que citou os vários produtos que eram cultivados “em grande quantidade”

pelos agricultores locais e que eram beneficiados com máquinas mais antigas e menos

eficientes do que as utilizadas na Europa, o que nos faz deduzir que era empregado mais

trabalho humano, o viajante concluiu que os habitantes eram indolentes. Indolência e pobreza.

O não fazer nada, o não trabalho, somente é um problema quando está vinculado com a

pobreza. A fala do viajante, quando afirmou que o ganho de uma família era baixo, mas que

isto não era um problema pois as necessidades também eram reduzidas, nos permite uma

reflexão: qual era o parâmetro de riqueza utilizado pelos viajantes? Como em outras

comparações, sua referência era européia. Mawe nos dá a entender que uma vila desenvolvida

era aquela que tinha uma vida urbana movimentada. A ausência de cafés, de hotéis, de um

comércio movimentado e sortido foi um dos aspectos comentados. Para um indivíduo nascido

na Grã-Bretanha e que havia conhecido o movimento e a agitação de sua capital, Londres,

Desterro era uma pequena vila. Em alguns aspectos encontrava-se em piores condições do que

410
MAWE, John. Op. cit. p. 191.
411
Ibidem. p. 194.
212

as vilas do interior da Inglaterra, devido às dificuldades de transporte e de intercâmbio com

uma cidade maior.

Saint-Hilaire também reproduziu o discurso, no qual a indolência e a pobreza

estão estreitamente vinculadas. No entanto, em algumas passagens de seu relato, preocupou-

se em buscar outras explicações para a situação econômica em que vivia a população local.

Uma delas era o abandono ao qual foi submetida a região pelo governo português. Segundo

ele

os colonos que ali se estabeleceram em diferentes épocas não receberam


ajuda, e a tirania do governo português pesou por muito tempo sobre eles.
Essas são as causas mais antigas da pobreza da região, ajudadas mais tarde
pela paixão das mulheres pelo luxo, bem como pelo sistema de agricultura
adotado em quase todo o Brasil e pelas dificuldade de comunicação.412

Para ele, eram vários os motivos da pobreza na região. Apesar da viagem de

Saint-Hilaire ter contado com a ajuda do governo português no Brasil para se realizar, através

de autorizações e cartas de recomendação, o que lhe facilitava o livre trânsito pelo interior,

seu relato foi escrito alguns anos depois, já na França e com o Brasil independente de sua

antiga metrópole. Nesse contexto era mais fácil expressar sua opinião sobre a atuação da

Coroa Portuguesa no que se refere a suas colônias. Outro motivo elencado por ele seria

engraçado, se não contivesse um tom tão misógino. As mulheres e seu gosto exagerado pelos

enfeites também contribuía para a pobreza, uma vez que tudo o que elas ganhavam (ao menos

ele reconhece o trabalho feminino) de “um modo geral empregam [...] unicamente para

satisfazer o seu gosto pelas roupas bonitas.”413 Se as mulheres eram coquetes, levianas a

ponto de gastar tudo o que ganhavam com enfeites, os homens pobres também não tinham o

hábito de guardar, de economizar. Quando conseguiam algum dinheiro com o trabalho na

caça da baleia, ao invés de guardar para o futuro, e cultivar suas terras nos momentos de

folga, “eles ficavam à toa quando terminava a pesca e passavam a vida bebendo cachaça,

412
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 134.
413
Ibidem. p. 174.
213

cantando e tocando violão até que o dinheiro acabasse.”414 Esse estereótipo que recai sobre os

pescadores manteve-se e aprofundou-se na segunda metade do século XIX, com o incentivo à

ocupação de outras regiões da província a partir da imigração de populações européias,

majoritariamente de alemães e italianos. Segundo Vilson Farias, entre os vários estereótipos

correntes entre os ítalo-germânicos sobre o homem do litoral, o mais comum é que este é

malandro, preguiçoso e que não quer trabalhar. O autor não analisa em que momento e como

esses discursos foram construídos, em contraposição à imagem do italiano e alemão

trabalhador, mas vai por outro caminho, no qual busca mostrar a inverdade desse juízo de

valor. Segundo ele, os pescadores-agricultores, descendentes de açorianos, por causa de sua

atividade no mar, tinham outro ritmo de trabalho, que não coincidia com os horários

comerciais e industriais dos centros urbanos, ou mesmo com o horário de atividade dos

agricultores. Acordavam antes do amanhecer, por volta da 4 ou 5 horas da madrugada,

dependendo da estação do ano, para preparar a canoa e os apetrechos de pesca. Trabalhavam

sem interrupção até o meio da tarde, almoçando no próprio barco. Como acordavam cedo,

encerravam o trabalho mais cedo e recolhiam-se também mais cedo. Dessa forma, o horário

que podiam freqüentar o boteco, ou a venda, quando aproveitavam para encontrar os amigos

era ao final do trabalho, por volta das 4 ou 5 horas da tarde. No mesmo horário em que um

pescador estava terminando sua jornada de trabalho, que havia iniciado de madrugada, um

agricultor ainda teria muitas horas de labuta.415

Essa representação que recaiu sobre o homem do litoral, principalmente na

segunda metade dos século XIX e durante o século XX (e que, remodelada, ainda persiste na

atualidade), era corrente também nos discursos dos viajantes. De Pernetty (1763) a Lesson

(1822), todos falaram que os habitantes locais, independente de serem pescadores ou

agricultores, viviam na ociosidade, na indolência. Como mostramos anteriormente, no

414
Ibidem. p. 163.
415
FARIAS, Vilson Francisco de. Dos Açores ao Brasil Meridional: uma viagem no tempo: 500 anos, litoral
catarinense. 2 ed. Florianópolis: Ed. do Autor, 2000. p. 105.
214

capítulo 5, Peter Burke constatou que a imagem de indolente também era utilizada para

descrever os lazzaroni, habitantes das cidades italianas descritas pelos viajantes ingleses do

século XVIII e XIX. Os nativos da América também receberam essa pecha, como as

populações nativas de outras regiões do mundo. A prática de ver o outro a partir de conceitos

e de concepções de sua própria cultura não está restrita aos relatos dos viajantes. O

etnocentrismo extrapola o texto e fundamenta-se nas relações que são estabelecidas entre os

indivíduos, que podem ser de uma mesma região ou de uma mesma etnia. Os viajantes

construíram um discurso, no qual salientavam a diferença, não com o objetivo de analisá-la ou

mesmo compreendê-la, mas de uma forma que reforçasse seus valores e sua cultura como os

valores, a cultura, que deveria ser difundida e seguida pelos outros.

Muito mais do que interpretar essas passagens, interessa-nos discutir uma

postura teórico-metodológica que lhes dê suporte. Podemos tomar os relatos de viagem como

representações européias sobre a cultura visitada. O conceito de representação foi incorporado

pelos historiadores a partir das formulações desenvolvidas por Marcel Mauss e Émile

Durkheim sobre as mentalidades coletivas. Outros estudiosos também se apropriaram do

conceito, entre eles Foucault, que na obra As palavras e as Coisas, publicado em 1966,

utilizou-o com o objetivo de caracterizar o regime de verdade na episteme clássica. A

representação coloca em cena o mundo dos signos, ordenando-os em quadro. Louis Marin

também o utilizou, em 1975, no seu estudo sobre a lógica de Port-Royal e o pensamento de

Pascal. No entanto, ele valorizou o sentido político do conceito, articulando a representação

classificatória e as técnicas de poder.416 A contribuição de Marin, um estudioso que trabalhou

com a iconografia e o estudo das imagens, foi de obrigar os historiadores a repensar as

relações que mantém as modalidades de exibição do ser social ou do poder político com as

BOUREAU, Alain. La compétence inductive. Um modèle d’analyse des représentations rares. In: LEPETIT,
416

Bernard (org.) Les formes de l’expérience: une autre histoire sociale. Paris: Albin Michel, 1999. p. 26.
215

representações mentais. Outra preocupação era compreender como os enfrentamentos, os

poderes fundados sobre a violência e a força bruta, se transmutavam em lutas simbólicas.417

Tomando a noção de representação como a relação entre uma imagem presente

e um objeto ausente, os lógicos de Port-Royal desenvolvem a teoria do signo. O que

interessava para Chartier é uma questão histórica colocada por esse grupo que remete à

variabilidade e à pluralidade de entendimento das representações do mundo social e natural

proposto pelos textos e imagens antigos. Além disso, as formas de teatralização da vida social

do Antigo Regime pervertiam as distinções entre representação e representado, entre signo e

significado.418 Para exemplificar, ele recorre à crença de que a aparência vale pelo real, como

por exemplo o aparato de juízes e médicos. Esse não seria necessário se eles fossem realmente

portadores da justiça e do conhecimento de curar. Essa teatralização, onde a “representação é

confundida pela ação da imaginação”, leva a uma representação deturpada que é utilizada

como “máquina de fabrico de respeito e de submissão”. No mundo antigo, somente os

homens de guerra não precisavam afirmar sua força através de representações, uma vez que

seu papel era realmente essencial. As lutas de representações adquirem uma importância cada

vez maior na longa duração, no processo que tem como objetivo erradicar e monopolizar a

violência. Nesse processo, o que está sendo disputado é poder de ordenação e de

hierarquização das estruturas sociais.419

Para pensar o conceito de representação, Chartier retorna às sociedades do

Antigo Regime, nas quais a noção de representação ocupava um lugar central e era entendido

com um duplo sentido. Numa primeira definição, a representação como dando a ver algo

ausente, como, por exemplo, os bonecos de cera, madeira ou couro, que eram colocados sob o

féretro real durante os funerais dos soberanos ingleses e franceses. Por outro lado pode ser

417
CHARTIER, Roger. Pouvoirs et limites de la représentation: sur l’oeuvre de Louis Marin. ANNALES HSS,
Mars-avril 1994, nº 2, p. 411.
418
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Op. cit. p. 20-21.
419
Ibidem. p. 23.
216

entendida “como a exibição de uma presença, como apresentação pública de algo ou de

alguém.”420 Além dessas duas definições, outra também era utilizada: a relação simbólica que

leva a representação de uma qualidade moral a partir de propriedades naturais, como por

exemplo: o leão é o símbolo do valor.

Esse autor assinala que as determinações que envolvem as percepções do social

e suas representações, apesar de aspirarem ser universais, uma vez que se entendem como

fundamentadas sobre a razão, na verdade são sempre determinadas pelos grupos sociais, e

pelos interesses, nos quais são forjados. Desse modo cada caso, cada discurso, deve ser

analisado a partir do grupo que os proferiu, verificando os interesses nos quais estão

envolvidos. As representações não são discursos neutros, assim como as estruturas do mundo

social não são dados objetivos, mas

são historicamente produzidas pelas práticas articuladas (políticas, sociais,


discursivas) que constróem as suas figuras. São essas demarcações, e os
esquemas que as modelam, que constituem o objecto de uma história
cultural, levada a repensar completamente a relação tradicionalmente
postulada entre o social - identificado com um real bem real, existindo por si
próprio - e as representações, supostas como reflectindo-o ou dele se
desviando.421

Uma preocupação de Chartier refere-se à clivagem, que atravessa a história,

entre a objetividade das estruturas e a subjetividade das representações. Enquanto a primeira

seria o campo da história mais segura, que através de documentos seriais, quantificáveis, tenta

reconstruir o passado, a segunda estaria ligada ao terreno das ilusões projetadas pelos

discursos e afastadas do real. Essa divisão não marcou somente a história, mas também a

sociologia e a etnologia, e para superá-la é necessário analisar os esquemas que produzem as

classificações e as formas de percepção da realidade social, que são próprios de cada grupo,

420
Ibidem. p. 20.
421
Ibidem. p. 27.
217

“como verdadeiras instituições sociais, incorporando sob a forma de categorias mentais e de

representações coletivas as demarcações da própria organização social.”422

Essas enunciações sobre a relação entre representação/mundo social levantam

alguns questionamentos: o sentido das representações pode ser apreendido em si mesmo ou

deve ser relacionado com o social? Existe a possibilidade de dissociar representação e

realidade social? Para Francisco Falcon, as representações podem ser pensadas a partir da

noção de diferença e de identidade. A reflexão a partir da noção de diferença, um conceito-

chave do discurso histórico, indica a dimensão ou função cognitiva da representação. Por

outro lado, a representação pode ser pensada a partir da noção de identidade, que remete para

o caráter textual e para a dimensão lingüística do discurso histórico.423 Existe na obra de

Chartier, mais especificamente nos textos que integram a coletânea A História Cultural: Entre

práticas e representações, uma tendência dupla: por um lado, a realidade é analisada através

de suas representações, sendo estas consideradas com múltiplos sentidos, enquanto que, por

outro lado, constata-se a existência de práticas que possuem uma lógica própria e que não

podem ser reduzida às representações.424

A discussão de representação desenvolvida por Chartier nos permite pensarmos

como os europeus construíram uma imagem sobre a América e os americanos. Imagens que se

modificavam dependendo do contexto histórico e das relações estabelecidas entre estas duas

regiões que não tinham uma relação de igualdade. Os discursos produzidos pelos viajantes

contribuíram para reforçar a superioridade dos europeus em contraponto a inferioridade dos

americanos. Uma inferioridade que, segundo os relatos dos viajantes, tinha como base a

indolência dos americanos. Esta representação tem que ser pensada no contexto da expansão

colonial e imperial, que precisava de justificativas para sua atividade, vista como retentora.

422
Ibidem. p. 18.
423
FALCON, Francisco J. Calazans. História e Representação. In: Representações: Contribuição a um Debate
Transdisciplinar. Campinas: Papirus Editora, 2000. p. 41.
424
CHARTIER, Roger. Op. cit. p. 11. Nota de apresentação.
218

Além disso, no século XIX temos que inserir outro aspecto, qual seja, a lógica do liberalismo

econômico que estava difundido uma nova relação do homem com o trabalho e com o tempo.

Neste sentido, sociedades que desenvolviam atividades de subsistência eram vistas como

incapazes de se desenvolverem de forma autônoma.

Retornando as falas dos viajantes, Saint-Hilaire salientou a pobreza dos

sitiantes quando comentou que eles alimentavam-se normalmente de farinha de mandioca,

peixe cozido na água e de laranjas, uma fruta muito comum na ilha. Concluiu sua explicação

com a seguinte frase:

de acordo com o que já foi dito acima sobre a Ilha de Santa Catarina, tudo
indica que essa ilha tende a empobrecer cada vez mais, uma vez que sua
população cresce sem parar e que, devido ao errôneo sistema de agricultura
adotado na região, assim como em todo o Brasil, as terras produzem cada
vez menos. Além do mais, o dinheiro obtido com as exportações é logo
gasto, seja em objetos de luxo que são trazidos de fora e têm de ser sempre
renovados, seja na aquisição de escravos, que também vêm de fora e que, em
425
sua maior parte, não se multiplica.

Os gastos com coisas supérfluas, a ausência do hábito de economizar, a pouca

propensão para o trabalho, o crescimento populacional, o sistema agrícola implantado que

diminui a produtividade das terras, a aquisição de produtos externos, entre eles os escravos, a

falta de meios de transporte eficientes, etc., todos estes são fatores que, na opinião de Saint-

Hilaire, não permitiam o desenvolvimento da região.

Um aspecto que chama a atenção na leitura dos relatos é que os viajantes

qualificavam os habitantes locais de indolentes, de preguiçosos, mas não de vadios. Uma das

explicações remete ao fato do termo vadio carregar um sentido de marginalidade, de

indivíduos criminosos, ladrões, degredados. Era uma denominação utilizada para qualificar

pessoas que se recusavam a inserir-se na sociedade. Laura de Mello e Souza, em seu trabalho

sobre a mineração no século XVIII, discute como a estrutura econômica desenvolvida na

colônia, numa região de mineração, propiciou o surgimento de uma sociedade na qual muitos

425
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 177.
219

indivíduos eram jogadas à marginalidade devido à desclassificação social. Eram homens

livres, mas pobres. Como não tinham acesso à terra e às lavras, tinham que submeter seu

trabalho a outro. Nesse caso teriam que concorrer com o trabalho escravo, sujeitando-se

a exercer os trabalhos que não eram executados pelos cativos. Caso esse homem livre tivesse

acesso à terra, muitas vezes acabava perdendo suas lavras e sendo empurrado para a pobreza,

devido à cobrança dos impostos e o controle exercido pelo poder metropolitano. O que a

autora discute em seu trabalho é que essa marginalidade se constituiu numa situação

específica, numa sociedade cuja maior riqueza vinha da mineração e não da agricultura como

em outras regiões da colônia. Além disso, era uma área que, por causa da febre do ouro, atraiu

muitos indivíduos livres, solteiros ou sozinhos (os casados deixavam suas famílias em sua

região de origem, fosse esta a metrópole ou outras áreas da colônia), que iam para as Minas

Gerais em busca do enriquecimento rápido. Para a elite local, os homens livres, despossuídos

e marginalizados eram vadios, inúteis, e passaram as ser tratados como se não existissem. Ou

melhor, existiam para o aparato policial que os perseguia e os jogava nos cárceres coloniais.

Eram desclassificados que não eram vistos, a ponto de não serem considerados membros da

sociedade e a quem era negado o direito de ser cidadão.426

Devemos salientar que a pobreza nem sempre esteve vinculada à

marginalidade. A própria Laura de Mello e Souza desenvolve uma discussão na qual analisa

como a pobreza e os pobres eram vistos em diferentes contextos históricos.427 No caso dos

habitantes do litoral de Santa Catarina, os viajantes davam a entender que a pobreza que

grassava entre eles era causada pela indolência e preguiça aos quais os próprios habitantes

haviam se entregado. Mas o que era ser rico no Brasil colônia? Nas regiões de mineração,

426
MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do Ouro: a pobreza mineira no século XVIII. 3. ed. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1990. pp. 215-222.
427
Para aprofundar esta questão ver: MOLLAT, Michel. Os pobres na Idade Média. Rio de Janeiro: Campus,
1989; GEREMEK, Bronislaw. Os filhos de Caim: vagabundos e miseráveis na literatura européia (1400-
1700). São paulo: Companhia das Letras, 1995; HIMMELFARB, Gertrude. La idea de la pobreza: Inglaterra
a principios de la era industrial. México: Fondo de cultura económica, 1988.
220

riqueza significava ser proprietário de lavras e de escravos para explorá-las. Na região de

criação de gado no Rio Grande do Sul, a riqueza era medida pela quantidade de cabeças de

gado. Em várias regiões do Brasil, rico era quem tinha grandes extensões de terra e escravos

que a cultivassem.

No litoral de Santa Catarina, a distribuição de terras aos açorianos privilegiou a

pequena propriedade. Não por uma questão de política de ocupação, mas porque os próprios

colonos optaram por pequenas áreas, para não ficarem afastados de seus vizinhos. Com o

passar do tempo e os constantes desmembramentos, algumas propriedades tornaram-se tão

pequenas que seus donos não conseguiam mais garantir o sustento da família. A posse de

escravos era outro item que demonstrava riqueza. Mas como vimos no capítulo 6, não havia

grandes plantéis de escravos na vila de Desterro. Segundo Saint-Hilaire, a maioria das

famílias tinha um ou dois escravos. Esse aspecto mostra muito mais a aceitação da escravidão

do que a riqueza de seus donos.

A situação econômica na qual estavam inseridos os habitantes locais, as

dificuldades enfrentadas para ocupar o território, tendo que enfrentar o pesado trabalho de

limpar o terreno para iniciar o plantio de alimentos, a natureza insalubre devido às águas

estagnadas que enfraqueciam o corpo, associados à utilização do trabalho escravo foram os

fatores que contribuíram, na opinião dos cientistas viajantes, para a indolência dos

descendentes de portugueses e açorianos que haviam se estabelecido na região. Para Saint-

Hilaire, essa realidade somente se modificaria com o passar do tempo e com a vinda de

imigrantes europeus mais laboriosos, os quais acabariam influenciando positivamente as

populações locais. A partir da conclusão de Saint-Hilaire, constata-se que já existia um

discurso que inferia maior laboriosidade e eficiência no trabalho de algumas etnias européias,

quando em comparação aos habitantes da América. Esse discurso, difundido nos relatos dos
221

viajantes, reproduziu-se e foi utilizado para incentivar a imigração de europeus a partir da

segunda metade do século XIX.

Mesmo percebendo a pobreza e as dificuldades enfrentadas no dia-a-dia pelos

habitantes da Capitania, os viajantes mantiveram o discurso da natureza provedora, que não

necessitava do trabalho humano para gerar riqueza. Enquanto os viajantes viam essa região

como tendo sido agraciada “pela natureza em todos os sentidos, uma terra onde tudo viceja

com inexcedível beleza e garbo imagináveis”428, José de Souza Azeredo Pizarro e Araújo429,

insere outras explicações para a decadência da região. Segundo ele, muitas das dificuldades

enfrentadas eram ocasionadas pela política do estado português. A decadência da Capitania

foi decorrência dos seguintes fatores:

1º) falta de estradas; 2º) o serviço militar que os membros da Guarda


Nacional eram obrigados a prestar e que os obrigava a deixar no abandono
suas lavouras e suas famílias; 3º) o costume que tinha o governo de apossar-
se das colheitas dos agricultores sem nada lhes pagar.430

No relatório de 1836, o presidente da província, José Mariano de Albuquerque,

escreveu que o problema maior era a falta de braços para ocupar a terra, cultivando-a. Sugeriu

a importação de trabalhadores da Europa, pois desta forma também resolveriam outro

problema: o desenvolvimento das “artes”, neste caso, os instrumentos e máquinas que

facilitam o trabalho humano. Através da importação, combinada com a natureza, que “entre

os dons de que foi prodiga com este paiz abençoado o favoreceu com hum clima, alem de

benigno, próprio para quasi todas as producções de ambos os hemispherios”, seria possível

desenvolver a região, substituindo por homens livres os escravos, “esses inertes e aviltados

pelos ferros da escravidão que nos fornecia o abominavel trafico de carne humana.”431 José

428
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. Cit. p. 162.
429
Citado por Auguste de Saint-Hilaire. Escreveu Memórias Histórias.
430
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. Cit. p. 178.
431
CAVALCANTI, José Mariano de Albuquerque. Relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial.
Desterro, 5 de abril de 1836. In: Ágora. Transcrição Paleográfica: Neusa Maria Schmitz. Florianópolis/SC. Ano
XV. Nº 32. 2º semestre. 2000. p. 33.
222

Mariano de Albuquerque, como Pizarro e Araújo, era um habitante local. Letrados, membros

da elite, vinculados à administração da Província, deixaram registradas outras explicações

para as dificuldades enfrentadas para desenvolver a região. Dificuldades que não se

vinculavam nem à natureza local e tampouco se referiam às características físicas e morais

dos descendentes de açorianos e de africanos. O que constatamos é que, de um modo geral,

para todos os viajantes, os habitantes locais eram considerados preguiçosos e indolentes, sem

fazer distinção entre escravos, livres, pobres ou abastados.


223

9. Louis Choris: um artista viajante

Além dos relatos escritos, também foram produzidas pinturas que tinham como

tema a Ilha de Santa Catarina. Entre os viajantes analisados, Louis Choris é o único artista

viajante. Outros viajantes, como Pernetty, também desenhavam, mas seu objetivo era

acrescentar informações ao que estava sendo relatado nos diários de viagem e ao que estava

sendo coletado. Seus desenhos eram voltados para o trabalho científico e não com objetivos

artísticos. Nos trabalhos dos viajantes artistas acontecia o contrário: a escrita acrescentava

informações ao que era pintado pelo viajante. No livro de viagem de Choris, cada prancha é

acompanhada por uma explicação escrita do que foi retratado.

Louis Choris era pintor, desenhista e litógrafo russo. Nasceu em 22 de março

de 1795, em uma família alemã que morava em Iekaterinoslav. Foi enviado para estudar no

ginásio de Kharkov, onde seu talento para o desenho aflorou. Seus primeiros ensaios

chamavam a atenção do naturalista Marschall de Biberstein que, em 1813, o levou para sua

primeira viagem de estudos ao Cáucaso, quando tinha apenas 18 anos. Foi convidado a fazer

parte da expedição “Rurick”, organizada pelo conde de Romanzov(1754-1826), chanceler do

Império Russo, entre os anos de 1815 e 1818. A expedição tinha como meta principal

descobrir uma passagem entre o Pacífico e o Atlântico pelo caminho do Estreito de Bering.

Comandada por Otto von Kotzebue, tal expedição teve uma grande importância do ponto de

vista geográfico, pois permitiu um melhor conhecimento do Pacífico. O “Rurick” visitou

sucessivamente Tenerife, a Ilha de Santa Catarina, no Brasil, Talcahuanha, na costa do Chile,

a Ilha de Páscoa, bem como outras ilhas no Pacífico até o Estreito de Behring. O trajeto feito
224

pelo navio explorou também a costa da Ásia e a costa oeste da América do Norte. Entre as

inúmeras pranchas e desenhos que produziu, encontram-se quatro pranchas que retratam

paisagens da Ilha de Santa Catarina, que foram publicadas em 1826 com o título de Vues et

paysages des regions équinoxiales recueillis dans un voyage autour du monde com

introdução, texto explicativo e imagens em cores no formato in-fol., impressas pela editora

Paul Renouard, de Paris. O tempo de permanência na Ilha de Santa Catarina foi pequeno,

entre o dia 29 de novembro de 1815 e o dia 16 de dezembro do mesmo ano (ou 11 a 28 de

dezembro).432

Em 1819, um ano após o término da expedição, partiu para Paris, onde

conviveu com outros artistas e cientistas. Estudou e trabalhou com Jean Baptiste Regnault e

no ateliê de M. Gérard, com os quais aprendeu a técnica da litografia. Em 1827 deixou a

França para visitar o México e outras regiões da América. Morreu de forma trágica na cidade

de Vera Cruz, México, em 22 de março de 1828, ferido por um golpe de sabre e atingido por

uma bala, ao tentar se livrar de assaltantes. Seus trabalhos começaram a ser publicados em

Paris a partir do ano de 1819. Além da obra citada acima, trabalhos seus podem ser

encontrados em Voyage pittoresque autour du monde, accompagné de descriptions de

mammifères par M. le baron Cuvier et d’observations sur les crânes humains par M. le

docteur Gall, publicado em Paris no ano de 1820, em formato in-fol., com figuras e mapas.

Em 1822 surgiu outra edição com o título levemente modificado: Voyage pittoresque autour

du monde, avec des portraits de sauvages d’Amérique, d”Ásie, d’Áfrique, et des iles du

Grand Ocean; des paysages, des vues maritimes et plusiers objets d’histoire naturelle. Esse

trabalho é acompanhado por descrições e observações do Barão Cuvier, de Adalbert von

Chamisso e do doutor Gall. Foi impresso pela editora Firmin Didot, de Paris. Essas edições

possuíam vários fascículos e eram relativamente caras, por isso muitas somente eram

432
A existência de duas datas deve-se, provavelmente, ao fato do Império Russo, onde nasceu Choris, utilizar o
calendário Juliano e não o calendário Gregoriano, como no Ocidente. O primeiro tem um atraso de 13 dias em
relação ao segundo, o que se manteve até janeiro de 1918.
225

publicadas com a venda antecipada de um número mínimo de obras, de maneira que a venda

pagasse a impressão das pranchas. As pessoas que adquiriam os álbuns, muitas vezes os

desmembravam a fim de emoldurar as pranchas.

No Brasil não são encontradas traduções completas dessas obras. É possível

encontrar partes específicas que foram traduzidas e publicadas em coletâneas, como as quatro

pranchas, acompanhadas dos respectivos textos explicativos publicados em Ilha de Santa

Catarina: relato de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX. Na biblioteca do Instituto

de Estudos Brasileiros da USP há uma cópia do Vues et paysages des régions équinoxiales

recueillis dans un voyage autour du monde, publicado em Paris pela editora P. Renouard, no

ano de 1826. A Biblioteca Mário de Andrade/SP possuí uma cópia do Voyage pittoresque

autour du monde, publicado em Paris no ano de 1822 pela editora Firmin Didot. Além desse

material impresso, Afonso d’Escragnolle Taunay cita a existência de uma aquarela que

reproduz o cenário da prancha V, com pequenas diferenças no ambiente natural retratado e

sem a presença dos bailarinos africanos, adquirida por Almeida Prado na Europa.433

No final do século XVIII e na primeira metade do século XIX a América foi

tema de inúmeras imagens, reproduzidas em desenhos, pinturas, xilogravuras, litogravuras,

etc.. Dessa forma, as paisagens e as populações do Novo Mundo tornaram-se acessíveis a um

maior número de pessoas na Europa. A litografia, técnica utilizada para reproduzir as imagens

de Choris, difundiu-se no início do século XIX. O procedimento, que utilizava a pedra para a

confecção da matriz, era mais preciso do que a xilogravura. Além de permitir a reprodução

em massa, possibilitava a confecção de novas criações.434

A utilização de artistas para a produção de imagens sobre regiões pouco

conhecidas do Velho Mundo remonta ao período das grandes descobertas. Um exemplo são as

433
TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. Cinco peças da velha Iconografia Catarinense. In: Anais do Primeiro
Congresso de História Catarinense. Florianópolis: Imprensa Oficial, 1950. Vol. II. pp. 124-139.
434
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e
política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994. p. 166.
226

imagens produzidas por Franz Post que, juntamente com Albert Eckhout, acompanhou o

governador holandês Maurício de Nassau durante o período do domínio holandês no nordeste

brasileiro (1630-1654). Inicialmente, a utilização desses artistas tinha como objetivos mapear

o relevo, os portos e a geografia das novas regiões. Foi somente no final do século XVIII que

as missões científicas se multiplicaram, e os artistas que participavam destas missões

passaram a ter outras funções. Continuavam retratando a topografia, mas também dedicavam-

se às cidades, aos tipos humanos e os seus costumes etnográficos.435 Marcos Vinicius de

Freitas coloca que no período colonial e imperial brasileiro existiram três diferentes influxos

no que se refere à pintura e ao desenho de paisagens. O primeiro foi com a vinda de artistas e

cientistas da missão de Maurício de Nassau. Franz Post, Albert Eckhout e Georg Marcgraf

foram os artistas que, no século XVII, produziram imagens sobre o Brasil holandês. Post foi

quem estabeleceu a palmeira como um dos símbolos do paisagismo tropical. O segundo

localizou-se na primeira metade do século XIX e foi marcado por três eventos: a vinda da

Missão Artística Francesa em 1816, a vinda da Missão Científica Austríaca em 1817 e a

Expedição Langsdorff, realizada entre os anos de 1822 e 1825. O terceiro e último influxo foi

marcado pela presença do professor Johann Georg Grimm na Academia de Belas Artes, entre

os anos de 1882 e 1884. Ele levou seus alunos para fora dos ateliês, para terem contato com a

natureza, o que influiria nos padrões acadêmicos da pintura das paisagens. 436

O trabalho de Louis Choris recebeu influências, ou vinculou-se, aos dois

primeiros momentos. Apesar de não podermos afirmar com certeza se ele teve ou não contato

com certos artistas, ou seus trabalhos, podemos levantar algumas considerações. Os trabalhos

dos artistas que acompanharam Nassau foram doados a Frederico Guilherme de Brandeburgo.

No ano de 1664 foram publicados em Berlim sob o título de Theatrum rerum naturalium

435
CHENET, Françoise. L’artiste chargé de mission. Le rôle de l’artiste dans quelques missions scientifiques. In:
MOUREAU, François (org.) L’oeil aux aguets ou l’artiste en voyage. Paris: Klincksieck, 1995. pp. 136-137.
436
FREITAS, Marcus Vinicius de. Charles Frederick Hartt, um naturalista no Império de Pedro II. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2002. pp. 120-124.
227

brasiliae. A obra compreende 1460 trabalhos editados em 4 volumes. Em 1814, um estudioso

chamado Lichtenstein dedicou vários estudos a essa obra, após localizá-la na Biblioteca de

Berlim. Além disso, Maurício de Nassau presenteou o rei da França, Luís XIV, com 4 quadros

de Franz Post. Esses trabalhos realizados pelos artistas holandeses ou estavam na França, em

sua capital Paris, ou então estavam sendo objetos de estudo na mesma época que Choris

estava fazendo sua formação de artista viajante, o que aumenta as possibilidades dele tê-los

analisado. Além disso, Choris provavelmente teve contato com diversos artistas e cientistas de

sua época, uma vez que mantinha relações com Alexander von Humboldt, que congregava ao

seu redor cientistas, viajantes e artistas, entre eles Rugendas. Artistas e cientistas ou moravam

na capital da França, ou então mantinham contato com suas instituições, como por exemplo o

Muséum National d’Histoire Naturelle. Um ano após o término da viagem no “Rurick” (1815-

1818), Choris mudou-se para Paris, e permaneceu na cidade até o ano de 1827, quando deixou

a França rumo ao México, onde veio a falecer.

As imagens que tem como motivo a América podem ser divididas em dois

tipos. Uma das formas mais freqüentes era a pintura de vistas sobre as cidades da América

Colonial, onde podemos perceber a preocupação dos artistas em registrar o entorno das vilas e

seu aspecto geral, inserindo ou não os indivíduos que viviam no local. A outra forma era a

produção de imagens da natureza, fosse ela no seu conjunto, como o pregado por Alexander

von Humboldt, fosse ela compartimentada, onde animais ou plantas eram pintadas

individualmente, em detalhes. No primeiro tipo de imagem, o interesse estava voltado para o

que o homem produziu, principalmente as cidades. No outro, o olhar estava voltado para a

natureza, em decorrência principalmente do desenvolvimento das ciências naturais.

As cidades da América eram pintadas inicialmente por cima e paulatinamente

passaram a ser retratadas de frente e em detalhes, num movimento contrário às vistas das

cidades européias, que eram retratadas de frente e posteriormente por cima. As cidades
228

retratadas por cima437, de forma perspectivada, nos mapas em escala reduzida, substituíram as

representações de perfil e/ou idealizadas do início da ocupação da América pelos europeus.

Posteriormente, os viajantes passaram a retratar as cidades de frente, a partir do mar, nos

conhecidos perfis urbanos. Retrataram os morros e as construções, normalmente capelas,

igrejas e construções militares.438 Entre as imagens das cidades existiam os panoramas e as

vistas ou vedutas. O panorama tinha o objetivo de mostrar uma visão do todo. Essa moda,

inaugurada na Inglaterra pelos irmãos Baker, tornou-se popular no século XIX. Pintura

ilusionista, circular e contínua, foi adotada para mostrar o alcance amplo de um campo

perceptivo.439 A vista não rompia com a idéia de quadro, nem criava o efeito ilusionista de um

olhar que conseguia ver o espaço em 390º como o panorama, onde o observador posicionava-

se no centro.

O interesse europeu em retratar as cidades surgiu no século XV, relacionado

com a expansão comercial, a secularização da arte e o progresso da imprensa. As primeiras

vistas das cidades surgiram nos atlas, onde arte e geografia estavam unidos. No século XVI a

produção de vistas e mapas foi ampliada. As cidades eram representadas do ponto de vista de

um pássaro (vôo-de-pássaro ou vol d’oiseau), numa tomada globalizante do espaço. Além

disso, os mapas eram decorados com produtos da cidade retratada, chamando a atenção para

suas riquezas. Nas pinturas do nordeste brasileiro, produzidas por artistas holandeses durante

o governo de Nassau, são identificados produtos tropicais, como frutas e animais. Esse tipo de

produto, vistas de regiões distantes como a Ásia e a África, tornou-se sucesso na Europa entre

437
Segundo Michel de Certeau “as pinturas medievais ou renascentistas representavam a cidade vista em
perspectiva por um olho que no entanto jamais existira até então. Elas inventavam ao mesmo tempo a visão do
alto da cidade e o panorama que ela possibilitava. Essa ficção já transformava o espectador medieval em olho
celeste.” CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano; 1. Artes de fazer. Tradução: Ephraim Ferreira
Alves. Petrópolis/RJ: Vozes, 1996. p. 170.
438
MARX, Murillo. Olhando de cima e de frente. Revista USP. São Paulo: USP, nº 1 (mar./mai. 1989) p. 173-
174.
439
Sobre os panoramas e sua inserção na sociedade francesa do século XIX ver: BENJAMIN, Walter. Paris,
capital do século XIX. In: Walter Benjamin: sociologia. São Paulo: Ática, 1991. pp. 30-43.
229

os anos de 1785 e 1860. As vistas que tinham a América como tema começaram a ser

publicadas no início do século XIX.440 Valéria Salgueiro salienta que

sendo o álbum de vistas urbanas produzidas pelos viajantes europeus


expressão ao mesmo tempo da cultura latino-americana (quanto ao objeto
retratado: a cidade) e da cultura européia (quanto à natureza do produto: o
álbum ilustrado de vistas), sua história não pode estar divorciada da história
mais ampla das vistas urbanas da própria Europa, já que estas compõem sua
matriz de origem. 441

Devido aos interesses marítimos e comerciais, que somaram-se à difusão de um

conhecimento científico baseado na História Natural, difundiu-se a preocupação de registrar

de forma mais fidedigna possível as regiões não-européias. Além desses interesses, devemos

salientar o aumento na procura e difusão de vistas e pinturas por uma crescente classe média

letrada, que utilizava as reproduções na decoração de suas residências. Somou-se a isso a

difusão do mercado editorial, conseqüência do maior poder aquisitivo e do aprimoramento

técnico, que possibilitava produzir em larga escala gravuras baseadas nas pinturas e aquarelas

feitas pelos artistas viajantes, vendidas como álbuns ilustrados.

Madeleine Pinault classifica as obras dedicadas à História Natural em duas

categorias: a tendência pitoresca e as coleções iconográficas sobre pergaminho. A tendência

pitoresca refere-se à pintura com sujeitos diversos destinados aos gabinetes ou a decoração de

construções reais. Essas obras reproduziam imagens de plantas, animais e paisagens, que eram

do interesse dos colecionadores, normalmente feitas por artistas renomados que recriavam a

ilusão de natureza. Já as coleções iconográficas sobre pergaminho permitiam que as espécies

animais e vegetais fossem classificadas e preservadas através da imagem. Além disso, a

difusão desse conhecimento científico seria ampliada, principalmente entre os amadores.

Outro aspecto que a autora salienta é a utilização econômica desse tipo de produção

iconográfica. Muitos dos desenhos eram utilizados para o estudo da História Natural e da

440
SALGUEIRO, Valéria. Vistas Urbanas nos Álbuns Ilustrados por Viajantes Europeus do Século XIX.
Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 4, 1997, p. 103-123.
441
Ibidem. p. 103.
230

anatomia, mas outros eram destinados às manufaturas de tecidos e porcelanas, sendo

reproduzidos pelos artesãos. A natureza oferecia inúmeras possibilidades, pois seus temas

poderiam ser utilizados nas artes e também nos ofícios.442

Os artistas viajantes que trabalhavam em expedições científicas tinham a

função de produzir um material que iria ser utilizado como material de pesquisa e estudo,

principalmente quando o tema era científico-natural, como, por exemplo, desenhos da flora e

da fauna. Com a expansão do conhecimento científico nos séculos XVII e XVIII houve um

estreitamento da relação entre o artista e o cientista na busca de uma representação mais exata

e confiável do objeto, fosse ele uma cidade ou aspectos da natureza. Nesse período, devido à

expansão da ciência, a arte gráfica passou a ser utilizada como ilustração do conhecimento.

Criou-se uma tensão entre o gosto estético e a demanda por um trabalho que tivesse a

preocupação com a exatidão das formas e das cores, já que essas imagens seriam utilizadas

para a difusão do conhecimento científico. Por outro lado, difundia-se na Europa uma estética

que valorizava o passado, as paisagens naturais, onde era cultivado o gosto pelo pitoresco e

pelo sublime numa visão estetizada da natureza, no momento em que na Europa a paisagem

estava sendo profundamente transformada devido à Revolução Industrial.443

É nesse contexto que difundiu-se o gosto pelos álbuns e pelos livros de viagens

ilustrados, principalmente de paisagens. A natureza passou a ser valorizada por si mesma, ela

era a artista. Mas essas paisagens exóticas eram retratadas a partir de lugares-comuns444, o que

fazia com que a natureza de lugares distantes fosse ajustada ao gosto europeu, tornando-se

assimilável ao público a quem eram destinadas. Entre as pinturas, cujo motivo era a natureza,

442
PINAULT, Madeleine. Le peintre et l’histoire naturelle. Paris: Flammarion, 1990. p. 10.
443
SALGUEIRO, Valéria. Op. cit. p. 109.
444
“Dentre estes lugares-comuns destaca-se a divisão tripartite do espaço pictórico, convenção herdada da arte
de paisagem do norte europeu, com suas distâncias bem marcadas em planos - plano da frente, plano do meio,
plano do fundo -, cujo primeiro plano foram abordados os aspectos de singularidade e localidade também de
nossas paisagens, esquema figurativo que tão bem serviu ao sentido cênico da paisagem do viajante.”
SALGUEIRO, Valéria. Op. Cit. p. 116.
231

podemos perceber dois tipos de representação, influenciados respectivamente por Conrad

Gessner e por Alexander von Humboldt.

Conrad Gessner (1516-1565), naturalista e desenhista de talento, produziu no

final da vida um estudo sobre dois tipos de Iris, a Iris Gramínea e a Iris da Sibéria (Figura 3).

A última foi desenhada em detalhes e continha anotações explicativas. Sua obra marcou uma

ruptura entre uma ilustração botânica puramente artística, onde flores, frutos e animais faziam

parte do cenário ou então compunham uma natureza-morta e encaminhou-se para um estudo

das plantas, descrevendo-as cientificamente, pressagiando desta forma as futuras pesquisas

dos cientistas.

Figura 3 – Íris Gramínea –


Conrad Gessner, 1643.
Historia Plantarum. In:
www.amo-bulbi .it/tav_ Iris_
Gec. htm. Acesso em: 10. jan.
2005 (detalhe)

Essa forma de retratar a natureza foi ao encontro da teoria científica de Carl

von Linné, difundida na primeira metade do século XVIII. No modelo de representação

artística influenciada por Linné, o conhecimento era compartimentado e ordenado. O

fundamento da ciência clássica era o desenho matemático e o sentido da visão. O melhor

exemplo desse gênero de arte eram as reproduções de espécies vegetais (Figura 4). Essas

eram recortadas, pintadas em seus detalhes, a partir de vários ângulos, ou seja,


232

individualizadas e posteriormente comparadas e classificadas pelas regras estabelecidas pela

História Natural.

Figura 4: Lophostachys publiflora lindau –


Hercule Florence, 1828. In: Expedição
Langsdorff ao Brasil 1821-1829. Iconografia
do Arquivo da Academia de Ciências da União
Soviética. Rio de Janeiro: Edições
Alumbramento/Livroarte Editora, 1988, vol. 3.
p. 21.

Por outro lado, a concepção artística difundida por Humboldt enfatizava uma

visão pictórica que tinha a intenção de abraçar o todo, onde as diversas formas de vida eram

consideradas interdependentes. Ele solicitava aos artistas que, em seu trabalho de representar

a natureza, não se utilizassem das espécies trazidas das viagens ou então as que se

encontravam nas estufas, o que fatalmente remeteria a uma reprodução das plantas deslocadas

de seu ambiente de origem. Para ele, as plantas deveriam ser representadas em seu ambiente

natural, no que ele denominava de “o grande teatro da natureza tropical.”445 Os interesses de

Humboldt estavam voltados para o estudo das relações entre os seres humanos e a natureza e
445
BELLUZZO, Ana Maria. Op. cit. p. 18.
233

como estas contribuem para a formação da paisagem. Em sua obra Cosmos, a paisagem é

entendida como a “representação mental de um espaço real cujo conteúdo é, por excelência,

diversificado.”446

Nas litogravuras referentes à Ilha de Santa Catarina, elaboradas por Louis

Choris, a partir de sua passagem por estas paragens no ano de 1815, podemos perceber a

influência de Humboldt. O álbum no qual elas foram publicadas, Vues et paysages des

régions équinoxiales... foi dedicado a ele. As litografias foram produzidas durante sua estada

em Paris, após a viagem e publicadas no ano de 1826. Como artista contratado, muitos dos

trabalhos produzidos durante a viagem provavelmente foram desenhos voltados para os

estudos científicos e pertenciam aos órgãos que organizaram e financiaram a viagem.

Infelizmente não tivemos acesso a esses trabalhos. As imagens que fazem parte do álbum

devem ter sido feitas após seu retorno a Europa, a partir de esboços.

Na obra que estamos utilizando em nossa pesquisa estão reproduzidas 4

pranchas referentes ao Brasil, mais especificamente à Ilha de Santa Catarina, uma vez que a

expedição da qual ele participava não parou em outras regiões do Reino Português. O porto

do Rio de Janeiro foi evitado por causa do medo de doenças, comuns devido à insalubridade

da cidade. A sujeira e a falta de condições de higiene foi retratada por viajantes estrangeiros

que permaneceram no Rio de Janeiro, como Charles Expilly. A primeira impressão, quando o

barco entrou na baía “após os sofrimentos e privações da longa travessia, fica-se

deliciosamente comovido com o esplendor do panorama que se estende diante dos olhos”. A

decepção no entanto, não tarda: “Que decepção, meu Deus, quando se sai do ancoradouro!

[...] As casas do Rio, construídas em terreno úmido, não têm fossas. Todos os detritos

domésticos são atirados de qualquer maneira em barris que de noite os escravos despejam no

GOMES, Edvânia Tôrres Aguiar. Natureza e Cultura: representações na paisagem. In: ROSENDAHL, Zeny
446

& CORRÊA, Roberto Lobato. Paisagem, imaginário e espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001. p. 66.
234

mar.”447 Era através da leitura e da troca de informações entre os viajantes que muitas das

expedições eram organizadas.

A primeira coisa que chama a atenção nas pranchas é o espaço ocupado pela

natureza. Ela é representada grande e exuberante, enquanto os seres humanos e sua produção

cultural, como por exemplo as casas, aparecem de forma marginal, em segundo plano, apesar

de algumas vezes centralizadas. Isso ocorre na prancha II e IV.448 Na prancha III (Figura 6) a

moradia ocupa um plano intermediário, localizado no lado direto, “sombreada por laranjeiras

e bananeiras”. Já o indivíduo que é reproduzido enquanto trabalha, carregando cachos de

banana, está localizado no primeiro plano, mas sua imagem quase passa despercebida devido

à grandeza das espécimes vegetais que são retratadas, neste caso duas espécies de cactus, o

“opúncia” e o “colosssal”, e os pés de “ananases”. Nos textos explicativos que acompanham

as pranchas, Choris afirmou que, em suas andanças pelo interior da Ilha, “fica-se tomado de

admiração vendo-se a variedade, a força e as dimensões gigantescas dos vegetais que, num

espaço bastante restrito, recobrem o solo.”449 A riqueza e a variedade de espécies vegetais

encontradas na flora tropical encantava e surpreendia os viajantes, fossem eles cientistas ou

não.

As mudanças científicas que ocorreram na segunda metade do século XVIII

iriam influenciar também a sensibilidade dos artistas em relação a natureza. A partir desse

momento os cientistas saíram dos gabinetes onde estavam encerrados, estudando as espécies

deslocadas de seu contexto natural e passaram a percorrer o mundo, acompanhados de

desenhistas e artistas a fim de estudar a natureza ao ar livre. Ao mesmo tempo que estavam

447
EXPILLY, Charles. Apud. MAURO, Frédéric. O Brasil no tempo de dom Pedro II: 1831-1889. Tradução:
Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. pp 14-15.
448
Optamos por manter a numeração original do álbum, feita em números romanos. A prancha I retrata uma cena
que se passa no convés do barco.
449
CHORIS, Louis. Op. cit. p. 245.
235

Figura 5 – Brèsil – desenho de Louis Choris – (20,7 cm x 26 cm) In: CHORIS, Louis. Vues et paysages de
regions équinoxiales recueillis dans um Voyage autour du monde. Paris: Paul Renourd, 1826. Prancha
II.

interessados em descobrir, estudar e analisar a natureza, dedicavam-se também às questões

históricas, geográficas e etnológicas das regiões visitadas. Além das transformações

científicas, escritores e poetas como Jean-Jacques Rousseau e Salomon Gessner450 também

tiveram um papel importante na formação do gosto dos artistas e dos amadores pelo paisagens

e fenômenos naturais.451

Na prancha II (Figura 5), a primeira que retrata as regiões tropicais, nomeada como

“Brèsil”, as cores e a exuberância da natureza estão colocadas em primeiro plano. Helicônias,

philodendrum (popularmente conhecida como costela-de-adão), cactus, bromélias e outras

plantas são pintadas ao lado de alguns animais, como o tucano. Apesar de não ser possível

identificar as espécies botânicas, somente as famílias, e na reprodução do tucano constatarmos

450
Salomon Gessner .foi escritor, desenhista, pintor e editor de Zurique. Contribuiu para a redescoberta da
natureza, combinando tradição bucólica literária ao modo de sentir moderno, à sensibilidade do século XVIII que
valorizava a fraternidade, a solidariedade e o desejo de harmonia. Ver: www.letras.up.pt/upi/ilc/vilasboas6.pdf
Acesso em: 18.novembro.2004.
451
PINAULT, Madeleine. Op. cit. pp. 245-246.
236

Figura 6 – Vue dans l´interieur de l´Ile de Stª Catherine (Brèsil) – desenho de Louis Choris – (21cm x
26,6 cm) In: CHORIS, Louis. Vues et paysages de regions équinoxiales recueillis dans um Voyage
autour du monde. Paris: Paul Renourd, 1826. Prancha III.

imprecisões na pintura da plumagem, Choris pintou uma imagem dessa região da América

que vai ao encontro das representações que se tinha dos trópicos: plantas e animais coloridos,

natureza exuberante e exótica e a presença reduzida do ser humano.

No século XVIII, e principalmente na primeira década do século XIX,

desenvolveu-se, na História Natural, estudos do que mais tarde seriam chamados de

biogeografia, paralelamente à classificação. Humboldt, que viajou pela América Espanhola,

desenvolveu estudos sobre a geografia das plantas que influenciaram seus contemporâneos.

De suas conclusões, dois aspectos nos interessam particularmente. Um é o entendimento de

que os seres vivos só podiam ser compreendidos quando relacionados com os lugares onde se
237

desenvolveram e com os outros seres vivos com os quais estavam relacionados. O outro

aspecto refere-se às impressões estéticas que eram sentidas pelo viajante em cada região por

onde passava. Para ele, essas impressões eram parte integrante do trabalho científico, e não

podiam ser substituídas por estudos de amostras ou descrições feitas em gabinetes. Foram

essas concepções de Humboldt que iriam contribuir para justificar a utilização de artistas

viajantes nas expedições.

A arte vinculava-se estreitamente ao trabalho científico. Exemplos dessa

vinculação podem ser encontradas em várias expedições, inclusive entre as que transitaram

pelo Brasil, e que contaram com artistas, tais como Johann Moritz Rugendas, Hercule

Florence e Thomas Ender.452 Podemos perceber que, em seus trabalhos, Choris seguiu as

recomendações feitas por Humboldt. Os esboços, e mesmo alguma pintura mais elaborada,

eram feitos tendo a natureza como modelo. O trabalho de reprodução em litografia foi

elaborado posteriormente, quando já se encontrava na Europa, mas tendo como base os

inúmeros trabalhos realizados durante a viagem. Além de pintor e viajante, Choris também

era litógrafo, o que contribuiu na qualidade de suas pranchas, uma vez que ele conhecia as

possibilidades de reprodução de seus esboços. Além do contato direto com a natureza que

seria o objeto de estudo, Humboldt também estabeleceu o que se denominou o estudo das

“fisionomias das paisagens”. Segundo ele, existiam vegetais sociais e vegetais associais. As

plantas que compunham a natureza tropical eram do grupo associal, ou seja, conviviam

espécies de tipos diferentes entre si. Era esse, inclusive, um dos aspectos que impressionava

os viajantes europeus, acostumados com os bosques europeus, onde havia várias plantas das

mesmas espécies, como pinheiros e carvalhos. O grande número de espécies diferentes

convivendo juntas, entrelaçando seus galhos e constituindo um colorido composto por vários

tons de verde era um espetáculo que os impressionava. A natureza tropical, com seu colorido

452
KURY, Lorelei. Os três reinos da natureza. In: MARTINS, Carlos (org.) O Brasil Redescoberto. Rio de
Janeiro: Paço Imperial/Minc IPHAN, setembro/novembro de 1999. p. 30.
238

exuberante nas flores e nos pássaros também foi reproduzido por Choris. A fisionomia da

paisagem dos trópicos era composta de algumas espécies básicas, que são encontradas em

suas pranchas. Temos a presença de coqueiros, cactos, bananeiras, bromélias e helicônias

entre as plantas, e de pássaros coloridos como os tucanos e as araras azuis. Os pássaros típicos

dos trópicos são vistos nas pranchas II, III e IV (Figura 7). No caso do pássaro azul e amarelo

que aparece nessas pranchas, sua reprodução não corresponde a nenhum tipo de pássaro

conhecido, segundo João de Deus Medeiros, professor de botânica da Universidade Federal

de Santa Catarina. Somente temos certeza de que o animal que ele desenhou é uma arara, ao

lermos o texto que acompanha todas a pranchas. Ainda segundo o professor, as quatro

imagens reproduzidas nesse álbum não são úteis para os estudos de taxonomia. Tal fato não

ocorre com os desenhos de plantas feitas pelo viajante Martius, que ainda são utilizados nos

estudos de botânica. Isso explica-se porque esses desenhos seguiam os preceitos indicados por

Linné, como os feitos por Hercules Florence (ver figura 4). As imagens de Choris são úteis

para identificar a paisagem, as transformações causadas pela ocupação humana. Nas obras de

Spix e Martius também são encontradas imagens de paisagens, como a intitulada “Lagoa de

aves à margem do Rio São Francisco”. Como nas pranchas de Choris, essas paisagens eram

acompanhadas por textos explicativos que citavam as plantas e os animais retratados, alguns

sendo nomeados “cientificamente”.


239

Figura 7 – Ile de Stª Catherine (Brèsil) – desenho de Louis Choris – (21,8 cm x 26,8 cm) In: CHORIS,
Louis. Vues et paysages de regions équinoxiales recueillis dans um Voyage autour du monde. Paris:
Paul Renourd, 1826. Prancha IV.

Na prancha V (Figura 8) a natureza está presente em toda sua grandiosidade,

através de altas árvores, como o coqueiro e o mamoeiro (que alcança quase a mesma altura do

coqueiro) e de outras espécies como as bananeiras, os cactos e os ananases. Ao fundo

aparecem os morros e, à direita, a praia e o mar. O que diferencia essa prancha das outras é a

presença de cenas de costumbrismo, que são descrições da vida popular. Em todas as

pranchas são reproduzidos indivíduos ou então moradias, mas nessa o tema central desloca-se

da natureza para o ser humano. Um grupo posicionado em roda, a sombra de uma

jabuticabeira, onde um indivíduo dança e toca um pandeiro, enquanto outro toca um

tamborim, mulheres dançam e outros dois encontram-se fora da roda, observando. Segundo

Choris, “pelo fim do dia os negros, para se distraírem de seus trabalhos penosos, reunem-se e
240

dançam: por toda a parte onde esta raça de gente habita, ela se entrega com paixão a este

divertimento.”453

Figura 8 – Vue de la cöte du Brèsil vis à vis de l`Ile de Stª Catherine (Brèsil) – desenho de Louis Choris –
(20,9 cm x 26,3 cm) In: CHORIS, Louis. Vues et paysages de regions équinoxiales recueillis dans um
Voyage autour du monde. Paris: Paul Renourd, 1826. Prancha V.

No momento podemos levantar dois aspectos. Primeiramente o fato de que,

como outros viajantes, Choris utilizava o termo “negros”, sem fazer distinção se estes eram

livres ou escravos. O outro aspecto foi sua generalização, dizendo que a dança era um

divertimento ao qual se entregavam os indivíduos de toda uma “raça”. Seria essa uma

conclusão inconseqüente, já que Choris não conhecia tantas regiões onde a presença negra era

freqüente, ou ela fora baseada em leituras prévias de outros viajantes? Langsdorff, em seu

relato, dedicou um grande espaço para descrever as danças dos negros e sua música, que ele

considerava um barulho ensurdecedor. Um dos itens na preparação de um viajante era a


453
CHORIS, Louis. Op. cit. p. 246.
241

leitura de outros relatos, que haviam sido publicados na Europa. Além disso, muitos dos

viajantes trocavam correspondências entre si, ou mesmo eram amigos ou colegas nas

academias de ciência e museus de História Natural. Essas questões nos remetem à

representação sobre a América, sua natureza e seus habitantes que circulavam pela Europa, e

que iriam direcionar o olhar do viajante, fosse este um marinheiro, um cientista ou um artista.

Voltando à análise da prancha V, num segundo plano, quase encoberto pelas

plantas, encontra-se um casal, descendentes de europeus, provavelmente proprietário de

terras, trajado com apuro. O texto explicativo não se refere a eles, como também não comenta

sobre o barco representado à direita da prancha. Fala rapidamente sobre as habitações

humanas, descrevendo-as como “sítios que a imaginação mais brilhante não poderia crê-las

mais agradáveis do que elas são na verdade.”454 Em resumo, pinta um quadro pitoresco,

formado por casas envoltas por uma vegetação exuberante, com muitas árvores frutíferas,

como bananeiras, mamoeiros e mais afastadas, plantações de milho. Apesar de escrever no

texto que a dança era uma distração após o trabalho penoso do dia, o que ele salientou na

pintura foram grupos de indivíduos desocupados, reforçando assim o estereótipo dos

habitantes locais.

Um outro tipo de pintura produzida pelos artistas viajantes eram as vistas de

cidades, como, por exemplo, a “Vista da vila de Desterro a partir do hospital” pintada por

Jean Baptiste Debret. Esse artista não acompanhava uma expedição científica, tal qual Louis

Choris, e suas obras tinham outras finalidades, o que influenciou em sua produção final.

Nosso interesse nessa obra justifica-se pela possibilidade de trabalharmos comparando dois

tipos de imagens que tomaram como referência a mesma região. Ambos eram indivíduos

europeus, tinham a mesma profissão, produziram essas imagens em períodos relativamente

454
Ibidem. p. 246.
242

próximos455, mas, no entanto, o resultado que emergiu de seus pincéis é distinto, apesar de

possuírem alguns pontos em comum. Enquanto para um o central é a vila e o homem que nela

habita, para o outro é a natureza. O homem e o resultado de sua cultura torna-se periférico

frente à grandeza de uma “natureza ainda selvagem.”456

Figura 9 – Vista da vila de Desterro a partir do Hospital – Aquarela de Jean Baptiste Debret – (37 cm x 10,5
cm) In: DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Paris: R. de Castro Maya, 1954.
Prancha 70 – Laguna (nomeado incorretamente)

Essas pinturas, como a “Vista da vila de Desterro a partir do Hospital”457

(Figura 9), eram feitas a partir de um ponto alto e com um ângulo aberto, visando dessa

forma representar uma visão geral da cidade e de seu entorno. Nessa vista, pintada na primeira

metade do século XIX, podemos perceber que não existia uma preocupação em detalhar as

construções. Salientavam-se os prédios maiores, como por exemplo a Igreja Matriz, mas
455
Debret produziu sua vista de Desterro entre os anos de 1819 e 1826. Choris produziu entre os anos de 1815,
quando esteve na região sul do Brasil e 1822, quando foi publicado o trabalho onde estão reproduzidas as
pranchas. Sobre Debret, não existem dados que confirmem sua vinda a Desterro. A pintura foi provavelmente
produzida a partir de relatos tomados de outros viajantes.
456
CHORIS, Louis. Op. cit. p. 244.
457
As pranchas 69 e 70 estão com as legendas erradas. Por isso não sabemos qual foi a denominação dada por
Debret ou pela editora que as publicou. Escolhemos esse nome por ser o que melhor descreve a imagem
reproduzida.
243

devido ao ponto de observação ser distante, outras construções menores não eram percebidas

em sua individualidade. O olhar era de longe, sem perceber as particularidades da cidade, de

suas construções e de seus habitantes. Uma metáfora da visão dos viajantes em relação à

América. O que era retratado era o que, de certa forma, já fazia parte da imagem européia da

região. Uma paisagem idílica, onde a maior parte era tomada pela natureza, tão grandiosa que

o trabalho do ser humano, no caso a cidade, ocupava uma espaço reduzido.

O ponto de observação do pintor é o pátio do hospital, atual Hospital de

Caridade, localizado no morro denominado Boa Vista. No primeiro plano da vista podemos

perceber alguns temas comuns que são retratados em vistas de outras cidades brasileiras: dois

negros carregando um doente, um indivíduo caminhando com a ajuda de muletas e na

companhia de uma criança, e outros indivíduos, que pelas roupas parecem ser religiosos.

Debret fazia parte de uma expedição artística que foi financiada pelo governo português, e

esteve no Brasil com o objetivo de ministrar aulas na Escola de Belas Artes (que não teve um

prédio próprio durante sua permanência no país). Pintou muitas obras a pedido do governo,

português e do Império do Brasil, após a Independência, e também muitas cenas urbanas, nas

quais retratou o trabalho e o cotidiano de vida dos escravos. Após sua mudança para o Brasil,

mudou o estilo e os temas de suas pinturas, influenciado pela experiência e pelo contato com a

sociedade colonial. Apesar de ter se dedicado a diversos temas, também foi influenciado pelos

interesses do mercado consumidor, neste caso, o europeu. No início do século XIX, vistas de

cidades estavam na moda, e Debret reproduziu várias delas, de diferentes cidades, como

Laguna, São Paulo, Santos, São Vicente, entre outras.

Na vista de Desterro, podemos constatar o gosto pelo diferente, pelo pitoresco.

Grande parte da pintura é tomada pelo tema da natureza: vegetação, onde podemos constatar a

presença de coqueiros, pelos suaves contornos dos morros ao fundo e pelo mar. O interesse
244

pelo “exótico”, pelo “tropical”, pelo “pitoresco” continua presente, mesmo com o

desenvolvimento de um olhar classificador e científico sobre a América e as regiões tropicais.

Mesmo os artistas que, como Debret, não pintavam com o objetivo de produzir

um material que iria complementar o trabalho científico, eram influenciados pelos métodos

utilizados pelos cientistas para a observação de um país e uma cultura estranha. Na obra que

estamos analisando, Debret preocupou-se em retratar a mata e nela incluir as palmeiras, um

dos tipos básicos da natureza do Brasil. No entanto, essa natureza é a moldura para a vila,

para o que o homem havia produzido. Em outras obras suas, que retratam os escravos no Rio

de Janeiro, também incluiu aspectos da natureza local, como na prancha em que retrata os

ajudantes dos naturalistas, ou então os negros de ganho vendendo frutas típicas na cidade do

Rio de Janeiro. Mas, apesar de sofrer influências e retratar aspectos que interessavam aos

estudiosos, seu objetivo era distinto. Segundo Ana Belluzzo

a atenção de Debret não se dirige para construção da idéia de natureza, nem


para o reconhecimento das riquezas naturais, nem de uma humanidade em
estado natural. Debret trata de centrar a atenção no estado geral da
sociedade, buscando apreendê-la com base no entendimento da
transformação da natureza em cultura, do natural em civilizado. A
concepção procede da Ilustração francesa, acrescida do interesse pelas
particularidades dos povos.458

Jean Baptiste Debret nasceu em Paris no dia 18 de abril de 1768, filho de um

escrivão do Parlamento de Paris. Seu pai tinha parentesco com o arquiteto Demaison e os

pintores François Boucher e Louis David. Após os estudos básicos, aprofundou-se no

conhecimento do desenho e da pintura na escola do célebre pintor Louis David, inclusive

acompanhando-o em uma viagem de estudos à Itália. Retornou no ano de 1785 a Paris e

apresentou trabalhos na Escola da Academia de Paris. Após vencer o Salão de 1798, tornou-se

conhecido, aumentando os convites para executar trabalhos, como pinturas e decorações em

casas particulares, cujos temas versavam sobre a História Antiga e fatos militares. Recebeu

458
BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. Vol. 3: A Construção da Paisagem. São
Paulo: Metalivros; Salvador: Fundação Emílio Odebrecht, 1994. p. 83.
245

várias encomendas do governo francês, e em 1815, após a morte de seu único filho de 19

anos, resolveu aceitar o convite de Lebreton, o qual estava organizando a Expedição Artística

Francesa a pedido do Marquês de Marialva. Aos 47 anos embarcou em uma viagem para o

Brasil, chegando no Rio de Janeiro em 25 de março de 1816, onde viveu e montou seu ateliê,

numa casa no bairro do Catumbi. Permaneceu no país por 15 anos, com a atribuição de

desenhar e pintar cenas oficiais e produzir retratos da nobreza, sendo um dos responsáveis

pela construção da imagem e da simbologia da corte portuguesa, posteriormente, brasileira.

Após sua chegada ao Brasil, abandonou os canônes do neoclassicismo, procurando adequá-lo

ao cenário brasileiro. A partir de 1821, passou a registrar aspectos das cidades, principalmente

do Rio de Janeiro, desenhos da paisagem e de costumes locais, como as festas religiosas, a

relação entre senhores e escravos, os usos e costumes do país, etc. Teve vários discípulos,

apesar dos contratempos sofridos pela Escola de Belas Artes. Entre os anos de 1826 e 1830

realizou diversas exposições. Retornou a Paris em 25 de julho de 1831, onde veio a

falecer no ano de 1849, aos 80 anos de idade.459

Para trabalharmos com essas pinturas existe a necessidade de definirmos o que

é iconografia, um termo muito utilizado pelos estudiosos para definir as imagens produzidas

pelos artistas, fossem estes viajantes ou não. Erwin Panofsky define iconografia a partir do

termo ‘grafia’, que vem do grego grafhein e significa escrever. Para ele, iconografia “é a

descrição e classificação das imagens”, sendo um “ramo da história da arte que trata do tema

ou mensagem das obras de arte em contraposição à sua forma.”460 Essa área de estudo possui

seus limites, uma vez que ela fornece os dados e informações imprescindíveis para a análise,

mas não faz as interpretações. Essa é realizada pela iconologia, que é um método de
459
Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil reproduz várias das imagens produzidas pelo artista. Foi publicada
numa edição de luxo, sob os auspícios de Raimundo Castro Maya, detentor dos direitos de reprodução de seus
desenhos, litografias e aquarelas. Nessa obra estão reproduzidas as imagens referentes à Capitania de Santa
Catarina, que foram produzidas, provavelmente, entre os anos de 1819/1826. Uma cópia desta edição encontra-
se na Seção de Obras Raras da Biblioteca Pública Estadual de Santa Catarina, em Florianópolis. Ver: DEBRET,
Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Paris: R. de Castro Maya, 1954.
460
PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. Tradução: Maria Clara F. Kneese e J. Guinsburg.1º ed.
1955. São Paulo: Perspectiva, 1991. p. 47.
246

interpretação dos valores simbólicos que estão vinculados à época em que determinada obra

foi produzida.461

As definições de Panofsky nos remetem às discussões de E. H. Gombrich,

quando ele salienta a importância dos lugares-comuns e também do poder das convenções e

das tradições de determinada época e cultura sobre a forma que as obras assumem. Segundo

ele, “toda representação se funda em convenções.”462 Devemos salientar que as imagens

servem de suporte às representações. No nosso entendimento, não podemos utilizar as

imagens produzidas pelos viajantes como registros do real, mas sim como uma construção

discursiva que foi influenciada pela cultura na qual estes artistas viajantes estavam inseridos,

bem como as convenções estéticas e as possibilidades técnicas disponíveis na época. Isso

não significa dizer que essas obras não podem ser utilizadas como fontes, mas sim que elas

não podem ser tomadas como o real, como uma imagem fidedigna que possui um caráter

comprobatório. Outro ponto que gostaríamos de chamar a atenção é que todos os documentos

devem ser inseridos e problematizados no seu contexto de produção, e isto também se aplica

às imagens produzidas pelos artistas viajantes.463

Ao analisarmos uma imagem produzida por artistas viajantes, devemos

considerar vários aspectos, tais como a formação do artista viajante, a forma como ele

produziu seu trabalho e as possibilidades técnicas com as quais podia contar, as influências

estéticas européias, bem como outras influências, que podiam ser científicas ou morais. Louis

Choris optou por um tipo de representação artística da Ilha de Santa Catarina e de seus

habitantes. Sua escolha priorizou a representação da natureza, com seus tipos específicos que

melhor representavam a flora e a fauna da região. Mas, ao mesmo tempo, seus trabalhos

reproduzem, de forma marginal em algumas das imagens e no centro das atenções noutras, os

461
Ibidem. p. 53.
462
GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão. Um estudo da psicologia da representação pictórica. Tradução: Raul de Sá
Barbosa. 1º ed. 1959. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 26.
463
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Morfologia das cidades brasileiras. Introdução ao estudo histórico da
iconografia urbana. Revista USP. São Paulo: USP, nº 1 (mar./mai. 1989). pp. 152-153.
247

tipos humanos que viviam na região. Esses foram representados de forma estereotipada,

reforçando uma imagem já existente na Europa sobre os mesmos. O viajante empreendia sua

viagem por regiões desconhecidas portando uma postura ambígua: êxtase diante da beleza e

do diferente e temor quanto ao desconhecido e os perigos que iria enfrentar. Esses

sentimentos confluem para formar experiências mentais que influenciam de certa forma o

olhar, uma vez que este sentido não é mecânico, objetivo, mas subjetivo e fluido. Plínio, autor

grego, já chamava a atenção para essa característica do olhar: “a mente é o verdadeiro

instrumento da visão e da observação, os olhos funcionam como uma espécie de veículo, que

recebe e transmite a porção visível da consciência.”464 Desse modo, para analisarmos uma

imagem, seja ela uma pintura, uma fotografia, ou um filme, não podemos nos ater somente ao

que estamos vendo, ao que estamos enxergando. Precisamos analisar o momento de produção

dessa imagem, as influências sofridas pelo artista, os interesses estéticos do período, as

possibilidades técnicas disponíveis e também o público para quem o produto artístico era

direcionado. Em resumo, não podemos considerar a obra como isolada do contexto em que a

mesma foi produzida.

464
Plínio apud PANOFSKY, Erwin. Op. cit. p.15.
248

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atualmente a venda de obras classificadas como livros de viagem encontra-se

em alta. As livrarias oferecem títulos para todos os gostos e bolsos, em encadernações de luxo

ou populares. Mesmo competindo com outros meios de informação, como revistas

especializadas e canais com programas voltados para o tema, os livros de viagem continuam

atraindo compradores. Para comprovar, basta ver o espaço dedicado a eles nas estantes das

livrarias. Pela oferta cada vez maior de material disponível sobre esse assunto, constata-se que

o interesse em viajar aumentou, e aumenta cada vez mais na sociedade atual. A popularização

das viagens contribuiu para difundir o interesse por obras que falam sobre regiões distantes.

Os turistas dos séculos XX e XXI distinguem-se em vários aspectos dos viajantes da Época

Moderna, e mais ainda dos cientistas viajantes. O leitor de obras sobre viagens também não

tem mais os mesmos interesses. Uma diferença é que quem adquire esse tipo de livro

atualmente é alguém que já viajou ou então está organizando uma viagem para o local sobre o

qual trata o livro.

Durante os séculos XVIII e XIX, os leitores de livros de viagens eram pessoas

que não iriam para muito longe. No entanto eram leitores de livros que falavam sobre regiões

distantes, como a América, o interior da África ou as Ilhas do Pacífico. Os relatos de viagens

no século XVI eram utilizados por muitos de seus autores para refletir sobre as características

da Europa. A partir do relato sobre povos de outras regiões do mundo, principalmente dos

nativos da América, alguns autores aproveitavam para criticar a desigualdade, a corrupção e a


249

falsidade de sua sociedade de origem. No século XIX, os autores de livros de viagens

utilizavam essa mesma experiência do contato com o outro para referendar o desenvolvimento

e a superioridade da civilização européia. Independente das reflexões resultantes, a viagem e

todas as suas consequências, como, por exemplo, o contato com sociedades distintas e o

sentimento de não pertencimento, possibilitavam a reflexão sobre o outro, mas principalmente

sobre si mesmo.

O outro descrito pelos cientistas viajantes, neste caso os habitantes da

Capitania de Santa Catarina, não formavam um grupo homogêneo. Eram indivíduos que se

inseriam em diferentes patamares da sociedade local, que possuíam hábitos e costumes

distintos daqueles com os quais os viajantes estavam habituados. O olhar do viajante sobre

essas populações era um olhar complexo e muitas vezes contraditório. Além das contradições

entre os relatos de diferentes viajantes, constatamos contradições no interior do discurso de

um mesmo viajante. Seria uma consequência do fato de as teorias sobre a América,

elaboradas e amplamente discutidas na Europa, não conseguirem dar conta dos inúmeros

aspectos da sociedade local?

Podemos traçar um paralelo entre a descrição do viajante com o trabalho do

historiador. O viajante, tal como o historiador, tem a pretensão de dar conta de uma

determinada realidade. O primeiro possui uma formação social distinta, devido às diferenças

geográficas e culturais. O historiador também tem como objetivo explicar uma sociedade que

encontra-se distante, neste caso no tempo, e com características culturais tão distintas que

muitas vezes não conseguimos compreender seus códigos. Uma diferença é que, enquanto o

viajante possui a pretensão de dar conta do que está observando, do outro, o historidor (pelo

menos esta historiadora) acredita que este distante, este outro que está sendo analisado, neste
250

caso o viajante, e as suas falas, não podem ser apreendidos em toda sua complexidade. O que

podemos é construir um outro discurso sobre o objeto de nosso estudo, ou seja, os cientistas

viajantes e seus relatos.

Mais difícil do que tentar entender como esses indivíduos elaboraram seus

discursos, foi buscar um contraponto às informações contidas nos relatos. Descrições da

natureza, dos habitantes locais, de sua cultura do trabalho, das condições de vida, e de vários

outros aspectos foram analisados tendo como referência estudos historiográficos sobre o

assunto, com o objetivo de acrescentar um outro olhar para os temas tratados nos relatos dos

viajantes. Quando não podemos contar com estudos específicos sobre Santa Catarina,

recorremos a estudos sobre outras regiões do Brasil. Temos claro as especificidades entre as

diferentes áreas de ocupação no país, mas, mais do que tentar contruir um quadro explicativo

que dê conta da sociedade colonial da Capitania de Santa Catarina, nosso objetivo foi mostrar

as características dos discursos dos viajantes, suas contradições e as representações

construídas sobre a região.

Nos três primeiros capítulos restringimo-nos a analisar como as viagens

científicas inseriam-se no contexto das viagens e quais eram os viajantes que selecionamos

para o estudo de seus relatos. Os cientistas viajantes são um grupo específico dentro do

imenso conjunto de viajantes. Pela sua formação, pelos objetivos de suas viagens e pela sua

inserção na sociedade européia. Escreveram sobre a natureza local, falaram sobre as

especifidades e dificuldades do trabalho que estavam realizando, descreveram as vilas, os

homens e mulheres que viviam na região, a forma como a sociedade se organizava e muitos

outros aspectos. Uma das dificuldades dessa fonte, o relato de viagem, é contraditoriamente a

riqueza e a quantidade de informações registradas pelos viajantes sobre os mais diversos

temas. Os seus olhares percorriam, encantados, surpresos, chocados ou indignados, inúmeros


251

aspectos da região que estava sendo explorada. Mesmo quando o relato foi escrito muitos

anos após a viagem, sua escrita acompanhava o olhar disperso que buscava contemplar a

totalidade do que era visto e sentido. Os viajantes escreveram relatos onde estão registradas

suas impressões e seu testemunho sobre a região visitada. Um testemunho matizado por

coisas lidas, moldado pela distância social e cultural, que muitas vezes diz mais sobre quem

escreveu do que propriamente nos permite desvelar as características do grupo que estava

sendo o objeto da descrição. O testemunho dos viajantes é marcado por distâncias temporais e

culturais - viajante, estrangeiro, cientista, citadino, seja nobre ou burguês. Além disso, o

viajante encontra-se na postura do observador que lança seu olhar sobre o observado,

indivíduos de outras nacionalidades, com outras formas de se relacionar entre si e com o

trabalho, e que vão desenvolver outras manifestações culturais e práticas cotidianas.

Um dos aspectos que gostaria de salientar refere-se a forma como os relatos

foram estruturados. As diferenças entre eles são inúmeras, devido ao período em que foram

escritos - alguns no final do século XVIII outros durante o século XIX -, a estrutura

lingüistica no qual foram redigidos e também as características do público que iria consumir

estes relatos, ou seja, os leitores. No entanto, apesar dessas diferenças, alguns aspectos podem

ser salientados. Em primeiro lugar, os viajantes, em seus textos, reproduziam as discussões

que circulavam pela Europa em relação as características da natureza e do homem americano.

Deixavam explícito sua concepção sobre a natureza, apesar de muitas vezes traçarem

comentários que entravam em contradição com seus referenciais. Em segundo lugar, a escrita

do relato seguia uma ordem cronológica, o que permite que o leitor acompanhe os passos do

viajante, dando a impressão de vivenciar com ele o contato com esta nova região. Mesmo em

textos escritos anos após o final da viagem, a forma utilizada era a de um diário. Esta forma
252

dá a falsa impressão de veracidade e cientificidade, como se o autor dissesse: estou

descrevendo o que vi, foi assim que se passou. Reforça desta forma uma intenção de verdade

do relato e consequentemente de tudo o que é relatado. Esses relatos foram escritos sobre

informações colhidas na viagem, muitas vezes no contato do viajante com a elite local, fosse

ela administrativa, militar ou eclesiástica, que eram seus principais interlocutores. Outra

forma de conseguir informações era através da leitura de textos de outros viajantes ou mesmo

de documentos oficiais, como no caso específico de Saint-Hilaire.

No capítulo 4 e 5 aprofundamos o tema da natureza. As discussões que

circulavam pela Europa e que influenciaram os viajantes não eram consensuais. Grandeza

natural e insalubridade. Degeneração e inferioridade humana. Essas divergências nas teses

aparecem nos relatos resultantes das viagens à Capitania. Outro aspecto é a relação do

viajante com a natureza que estava sendo descrita. Apesar de ter feito uma longa viagem em

busca de espécimes vegetais e animais, e de se deslumbrar com a mata nativa, com sua

riqueza, o viajante incomodava-se com a ausência dos confortos urbanos. Muitas vezes o

incomôdo era com a própria natureza, com seus excessos, que se manifestavam em forma de

insetos e outros inconvenientes. Quando partiam em suas viagens de estudos, os viajantes já

conheciam e de certa forma já haviam formado uma opinião sobre o que iriam encontrar, já

vinham imbuídos de um padrão sobre o que era melhor, o que era superior. Estes padrões vão

se mostrar presentes quando do contato com os habitantes da região da Capitania de Santa

Catarina e vão definir o que vai ser relatado como positivo ou negativo.

No capítulo 6, 7 e 8 voltamos nossa análise para as descrições dos viajantes

sobre as vilas, principalmente a de Desterro, seus habitantes e seu trabalho. A presença de

padrões podem melhor ser percebidos quando da descrição das vilas. Optei por aprofundar o
253

estudo sobre a Vila de Senhora do Desterro devido a maior quantidade de descrições feitas

pelos viajantes e por ter sido a única visitada por todos eles. Suas condições físicas, a forma

como foi organizada, a ausência de espaços públicos aos moldes dos países de origem dos

viajantes foram alguns dos aspectos salientados. Os viajantes a descreviam seguindo uma

certa ordenação: mostrar as principais construções, principalmente as públicas, salientar os

benefícios e modificações que o ser humano implantou na região e descrever as características

da população. Apesar de algumas características, como a hospitalidade e a higiene serem

salientadas como positivas, seus discursos reforçavam o atraso econômico e a inferioridade

cultural. Mesmo quando não estava explícito no texto, as referências eram as cidades

européias. Essa característica dos relatos, de tomar o que viam a partir de suas referências e

explicitá-las, era mais presente quando se referiam à relação dos habitantes locais com o

trabalho. Segundo os viajantes, não tinham interesse em economizar, em enriquecer, o que se

refletia na relação do homem com a natureza. Não era o homem que transformava a natureza,

mas o inverso. A natureza americana havia influenciado negativamente os europeus e seus

descendentes, transformando-os em homens que se adaptavam ao meio, como os nativos da

América. Os discursos sobre o trabalho e seu inverso, a indolência dos “nativos”, exemplifica

como os relatos vão reforçar uma imagem pré-existente dos americanos. Os habitantes locais

tinham outro ritmo de trabalho e de desenvolvimento material que era tomado como

indolência. Representações em que o outro é menos laborioso, não aproveitando o que a

natureza lhe oferecia não são encontrados somente em relação aos americanos, como nos

mostra o trabalho de Peter Burke sobre os relatos de viagens para a Itália escritos por ingleses.

Também eles, o italianos, eram vistos como exóticos e indolentes. Nos relatos dos viajantes

europeus do século XVIII e XIX, principalmente daqueles da Europa setentrional,

percebemos
254

a repetição de algumas imagens que vai incluir ou excluir os grupos de uma nova

representacão sobre o trabalho, qual seja, o trabalho ordenado, economicamente produtivo e

que tem como objetivo a transformação da natureza. Mesmo os cientistas, teoricamente mais

interessados em encontrar uma natureza intacta a fim de realizar suas pesquisas,

menosprezavam a inoperância dos habitantes de Santa Catarina. Saint-Hilaire, o único que

conhecia outras regiões do Brasil, reconhecia a “superioridade” dos habitantes locais,

principalmente descendentes de acorianos, em relação aos fazendeiros do norte. Mas, ainda

segundo esse viajante, sua dedicação ao trabalho não chegava aos pés dos trabalhadores

europeus. Na sua opinião isto devia-se a vários fatores, como a escravidão, a atuação do

governo português, a influência da natureza, entre outros. Entre os habitantes locais, os

viajantes ocuparam-se em registrar aspectos das populações de origem africana. Suas

informações foram marcadas por dois aspectos: o olhar europeu e o preconceito que havia em

relação a esses indivíduos. As informações registradas eram obtidas junto às elites locais ou

então com indivíduos não escravizados. Dessa forma, além de reproduzirem os estereótipos

europeus sobre os africanos, também reproduziam os dos proprietários sobre seus escravos.

O capítulo 9 trata de um outro tipo de fonte: as pinturas sobre a região. Louis

Choris produziu, utilizando tintas e cores, uma imagem iconográfica da Ilha de Santa

Catarina. Natureza exuberante e paisagem bucólica. A análise das pranchas feitas por

Choris nos permitem retomar um aspecto que está presente tanto nos relatos de viagens

escritos, como nas pinturas produzidas. Mais do que reproduzir o desconhecido, estas obras

reproduzem o “já-conhecido”. O diferente vai ser trabalhado nos relatos de uma forma a

serem incorporados aos padrões europeus. Nas pranchas, onde os artistas viajantes poderiam

mostrar o que era novo, o não conhecido, devido ao fato de trabalhar com a imagem

desenhada e pintada, isto não ocorria. O que era pintado e como era pintado, as regras de
255

composição das imagens já haviam sido estabelecidas. Choris reproduzia em suas pinturas o

que já era conhecido como representativo do Brasil e dos trópicos. As palmeiras, as araras, as

bromélias, as heliconias, todas estas plantas e animais faziam parte da imagem que já havia

sido construída sobre as regiões tropicais. Franz Post e Alexander Humboldt foram alguns

entre os artistas e cientistas que contribuíram para estabelecer essas espécimes como

representativas da natureza das regiões tropicais. Em todas as pranchas, além das espécies

tropicais que representavam a natureza da América, reproduziu também a presença do ser

humano. Desenhou indivíduos que estão trabalhando ou dançando e moradias entre as plantas.

O que constatamos é que as imagens fazem parte de um padrão de representação das

paisagens exóticas que se difundiu na Europa e que era voltado para satisfazer os interesses de

um mercado consumidor.

A sociedade e a cultura européia incentivavam as viagens, muito mais do que

outras culturas. Um exemplo é o caso das sociedades orientais, entre elas a chinesa. Enquanto

os europeus foram aos milhares para a China entre os séculos XVI ao XVIII, pouquíssimos

chineses fizeram o caminho inverso. Isso ocorria devido a vários fatores, entre eles a

concepção que circulava entre as autoridades de que a China era o umbigo do mundo e de que

tinham tudo o que precisavam. Dessa forma não tinham interesse em obter informações sobre

os “bárbaros”. Os poucos viajantes chineses estavam vinculados a missionários e não

exerciam o papel de informantes aos seus compatriotas, bem como não tinham influência nos

círculos letrados. Os viajantes europeus diferenciavam-se dos viajantes chineses pela sua

inserção na sociedade e pelo papel de divulgadores das informações sobre os habitantes das

terras distantes. A representação que os europeus construíram sobre si e sobre sua própria

cultura foi tributária do contato estabelecido internamente entre os diferentes países, mas

também a partir do contato com os de fora, com os povos das regiões não européias.
256

Seguindo por essa mesma linha de reflexão, o homem define sua cultura em

relação a uma outra cultura, da mesma forma como estabelece seu grau de humanidade a

partir de seu distanciamento da natureza, da dominação e do nível de transformação que

estabelece sobre o meio ambiente. Muitas das críticas às populações locais fundamentavam-se

no fato dos indivíduos se adaptarem à natureza local, ao invés de domá-la. Os cientistas

viajantes decreveram a natureza ao mesmo tempo que falavam de sua exuberância e de suas

possibilidades de exploração. Para eles o estado natural não compensava o desconforto e a

ausência dos avanços que existiam na Europa. De certa forma, a concepção dos viajantes era a

concepção bíblica de que a natureza existia em função do homem, e que ele deveria explorá-

la. A diferença era que os cientistas percebiam outras possibilidades para seu aproveitamento,

além do desmatamento para a abertura de plantações. As pesquisas e o mapeamento das

espécies possibilitaria descobrir outras utilidades, muitas delas desconhecidas a olho nu.
257

INFORMAÇÕES GERAIS SOBRE OS VIAJANTES

Nome Início da estada em SC Partida de SC

Joseph Antoine Pernetty 23.11.1763 15.12.1763

Georg H. Von Langsdorff 20.12.1803 04.02.1803

John Mawe 29.09.1807 ?

Adalbert von Chamisso 12.12.1815 27.12.1815

Louis Choris 12.12.1815 27.12.1815

Auguste de Saint-Hilaire 07.04.1820 06.06.1820

Rene Primevère Lesson 16.10.1822 30.10.1822


258

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bibliotecas e Arquivos Consultados

Bibliothèque Centrale du Muséum National d’Histoire Naturelle - Paris.


Bibliothèque Sainte-Geneviève - Paris
Bibliothèque Centrale de la Sorbonne - Paris.
Maison des Sciences de l’Homme/EHESS - Paris.
Bibliotèque du Collège de France - Paris.
Biblioteca Nacional - Rio de Janeiro.
Biblioteca da Universidade Federal Fluminense - Niterói.
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Biblioteca da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/ USP - São Paulo.
Biblioteca Pública Mário de Andrade - São Paulo.
Biblioteca José Mindlin - São Paulo.
Biblioteca Pública de Porto Alegre - Porto Alegre.
Biblioteca Setorial de Ciências Sociais e Humanidades/UFRGS - Porto Alegre.
Biblioteca Central da Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre/PUC - Porto Alegre.
Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina - Florianópolis.
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