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A LUPA E O DIÁRIO:
HISTÓRIA NATURAL, VIAGENS CIENTÍFICAS E RELATOS SOBRE
A CAPITANIA DE SANTA CATARINA (1763-1822)
PORTO ALEGRE
2005
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LUCIANA ROSSATO
A LUPA E O DIÁRIO:
HISTÓRIA NATURAL, VIAGENS CIENTÍFICAS E RELATOS SOBRE
A CAPITANIA DE SANTA CATARINA (1763-1822)
Porto Alegre
2005
3
SUMÁRIO
Índice de Gravuras 4
Resumo 5
Resume 6
Agradecimentos 8
Introdução 9
ÍNDICE DE GRAVURAS
Fig. 8 - Vue de la côte du Brèsil vis à vis de l’ile de Stª Catherine 240
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo analisar os discursos elaborados pelos cientistas viajantes sobre
a Capitania de Santa Catarina, no período que compreende a segunda metade do século XVIII
e a primeira metade do século XIX. Esse período é marcado pelo desenvolvimento científico,
representações sobre a América e seus habitantes. Entre os anos de 1763 e 1822, sete viajantes
europeus passaram pelo litoral catarinense. Seis deles estavam vinculados aos estudos da
História Natural (botânica, zoologia e mineralogia) e o sétimo era artista viajante, que
integrava uma viagem marítima de estudos. A partir do estudo dos relatos de viagens,
analisamos como os viajantes construíram seus discursos. Nesses relatos é descrita a natureza
da região, suas características e seu aproveitamento pelas populações locais. Além disso, os
cientistas viajantes tinham um olhar voltado para o todo, o que significa que se dedicaram a
relações de trabalho, entre outros aspectos. Nosso objetivo é perceber como essas descrições
estão inseridas no contexto sócio-cultural de quem as produziu, neste caso, os viajantes, que
industrialização. Outro aspecto trabalhado foi a produção pictórica sobre a região, de autoria
de Louis Choris, que, como outros que retrataram nossas paisagens, criou imagens que se
caracterizam por estereótipos e lugares comuns. Esse é um aspecto que se aplica a todos os
viajantes: seus relatos são marcados por representações, que de certa forma mostram muito
mais sobre a cultura de quem os escreveu do que sobre a região que está sendo descrita.
RESUME
Ce travail a pour objectif d’analyser les discours élaborés par les scientifiques-voyageurs dans
XVIIIème siècle et la première du XIXème siècle. Cette période est marquée par le
sept voyageurs européens sont passés sur le littoral du Santa Catarina. Six d’entre-eux étaient
liés aux études de l’Histoire Naturelle (botanique, zoologie et minéralogie) et le septième était
un artiste-voyageur qui faisait partie d’un voyage maritime d’études. A partir de l’étude des
récits de voyages, nous analysons comment les voyageurs ont construit leurs discours. Dans
ces récits, la nature de la région, ses caractéristiques et ce dont les populations locales en ont
tiré sont décrits. De plus, les scientifiques-voyageurs portaient un regard sur le tout, ce qui
signifie qu’ils se sont aussi consacrés à rapporter les caractéristiques de la population locale,
son développement technologique, ses rapports de travail, parmi d’autres aspects. Notre
objectif est de voir comment ces descriptions sont insérées dans le contexte socio-culturel de
ceux qui les ont produites, dans ce cas, les voyageurs qui étaient des scientifiques européens,
a été la production picturale sur la région, de la part de Louis Choris. Ce peintre, comme
d’autres qui ont peint nos paysages, a créé des images qui sont caractérisées par des
stéréotypes et des lieux communs. Ceci est un aspect qui s’applique à tous les voyageurs :
leurs récits sont marqués par des représentations qui, d’une certaine façon, en montrent
beaucoup plus en ce qui concerne la culture de celui qui les a écrits que sur le région à l’étude.
Ao Aldonei
com quem compartilho o pão e os sonhos
8
AGRADECIMENTOS
Inicialmente gostaria de registrar que, para desenvolver este trabalho, contei com o
financiamento governamental, através da CAPES, que me concedeu bolsa durante o período
de três anos, e também financiou o estágio de quatro meses junto a EHESS/França. Além
disso, saliento que minha formação educacional, desde as primeiras letras até a conclusão do
doutorado, somente foi possível devido ao ensino público e gratuito.
À Profª Dr.ª Suzana Bleil de Souza pela orientação.
Ao Paulo Rogério, amigo de tantos anos, que pacientemente me ajudou, lendo idéias
Aos amigos que ajudaram a tornar esta caminhada menos penosa. Em especial: Kátia
Renck, Vanderlei Machado, Carla Rodeghero, Viviani Poyer, Maria das Graças Maria,
angústias da escrita.
contribuíram tornando acessível livros e outros materiais, bem como prestando informações.
INTRODUÇÃO
século XVIII. Munido de uma lupa e de um manual contendo as denominações científicas das
plantas, poderia se distrair com algo que lhe possibilitaria um contato mais profundo com a
natureza, e desta forma, com o seu eu interior. Para o cientista viajante, além da lupa (e de
outros instrumentos), o diário também era fundamental. Além de coletar espécimes, precisava
visitados, as coisas e as pessoas que conheceu, bem como comentava sobre os mais diferentes
temas, que iam desde as plantas, borboletas e minerais até a vestimenta usada pelas mulheres
desenvolveria outros textos, tais como os relatórios, apresentados para seus pares em reuniões
nas instituições científicas, e os relatos de viagens, que eram escritos para o público em geral.
A lupa, mais do que um instrumento de trabalho, pode ser entendida como uma metáfora do
olhar do viajante. Um olhar que tinha a pretensão de tudo ver, em seus mínimos detalhes, mas
Colombo vê com os olhos da Europa.”1 Esse trocadilho do olhar exprime a relação entre o
Velho Mundo e os viajantes, que são seus olhos e ouvidos em terras distantes. A América,
bem como outras regiões descobertas pela Europa, foram visitadas e observadas em diferentes
momentos por viajantes europeus, os quais eram exploradores comerciais, membros de ordens
1
PIERINI, Margarita. La Mirada y el discurso: la literatura de viagens. In: PIZARRO, Ana (org.). América
Latina: Palavra, literatura e cultura. São Paulo: Memorial/Ed. da Unicamp, 1993. p. 163.
10
descrevendo o que tinham visto e vivido nestas regiões “exóticas” e completamente distintas
daquilo que constituía a sua realidade. O viajante pode ser entendido como um elo de ligação
entre dois mundos diferentes, o europeu, seu continente de origem, e o Novo Mundo. Esses
viajantes, fossem cientistas do século XIX ou colonizadores do século XVI, possuíam algo em
regiões que eram alvo de suas investidas. Os relatos de viagens eram uma leitura útil,
Segundo Daniel Roche, a “Europa letrada é leitora de viagens.”2 Leitores que aumentavam a
cada edição, da mesma forma como aumentava o número de títulos publicados. De 5.562
títulos publicados nos séculos XVI, XVII e XVIII, relacionados com viagens, 456 foram
publicados no século XVI, 1.566 no século XVII e 3.540 no século XVIII e na primeira
década do século XIX. Do total de livros elencados como relatos de viagens, 794 tinham
atualidade, inúmeros estrangeiros que por aqui passaram escreveram sobre a experiência do
contato com uma cultura diferente e sobre o “outro” que fazia parte dessa realidade. Entre
esses relatos, que podem se apresentar como cartas, diários, memórias, testemunhos, etc.,
podemos citar a Carta de Pero Vaz de Caminha; A verdadeira história dos selvagens, nus e
ferozes devoradores de homens, de Hans Staden e os relatos dos cientistas viajantes, como por
exemplo, Spix e Martius. Essas três obras, escritas em períodos históricos diferenciados,
constituem-se como relatos escritos por estrangeiros a partir de um fator motivador, ou seja,
uma viagem, que os confrontou com uma realidade distinta daquela com a qual eles estavam
2
ROCHE, Daniel. Humeurs Vagabondes: de la circulation des hommes et de l’utilité des voyages. Paris:
Fayard, 2003. p. 40.
11
Mundo e seus habitantes, motivou-os a registrarem o que viram e viveram. Mas, apesar disso,
as diferenças entre esses três documentos e seus autores são inúmeras, como por exemplo, a
público a quem eram destinados esses relatos e, principalmente, o contexto social e cultural da
época que motivou e influenciou a forma como esses viajantes observaram a cultura local e
que foi posteriormente descrita.3 As diferenças entre cada relato contribuem para a
importância dessas fontes, bem como das informações que podem ser obtidas através de sua
leitura e análise.
Os relatos dos viajantes estrangeiros foram e ainda são muito utilizados como
fontes nos estudos de várias áreas, como a História, a Sociologia e a Antropologia. Até a
década de 1970, essa documentação foi usada sem maiores análises críticas, sem a
Ilka Boaventura Leite percebeu que os viajantes são citados por determinados autores, como
Gilberto Freyre para “enfatizar o caráter democrático das relações raciais da sociedade
brasileira”, enquanto outros os utilizam para dizer justamente o contrário, ou seja, que as
relações sociais no Brasil são marcadas por forte racismo. Entre esses últimos podemos citar
Esses textos, os relatos de viagens, não podem ser tomadas como insuspeitos
ou neutros, o que significa que devemos historicizá-los, uma vez que se inserem em uma
época e uma cultura. Para Eni P. Orlandi é fundamental relacionar os sujeitos enunciadores e
3
Análises sobre esses viajantes e seus relatos: PEREIRA, Paulo Roberto (org.). Os três únicos testemunhos do
Descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 1999. FAGUNDES, Marcelo G. B. Viagens reais a um
mundo imaginado: A “História Verídica” de Hans Staden no contexto do século XVI. Florianópolis:
TCC/UDESC, 2001. LISBOA, Karen Macknow. A Nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização
na Viagem pelo Brasil (1817-1820). São Paulo: Ed. Hucitec/FAPESP, 1997.
4
LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia da Viagem: escravos e libertos em Minas Gerais no século XIX.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996. p. 13.
12
os sentidos que são produzidos pelo discurso.5 Salienta também que, para atingir a
além dos textos em si, é necessário compreender sua discursividade, ou seja, a trama
discursiva que estabelece os sentidos. Nessa perspectiva, o papel ocupado pelo sujeito é
descentrado, deixando de ser considerado como o único responsável pelos sentidos que são
silenciamento de inúmeras vozes. Segundo a autora, os “discursos sobre” é uma das formas de
desenvolvidas por Michel Foucault. Seu método parte da análise das condições de
possibilidades dos discursos, para o estudo dos enunciados que precedem, encerram e tornam
possível a emergência de um discurso, uma vez que estes se “inscrevem dentro de uma série
sistema de normas e tipos de classificações que dão conta deles.”7 Foucault estabelece as
relações entre as práticas discursivas e as práticas não discursivas. Seu método de análise
postula a necessidade de sair do discurso, da semântica, para dar conta das condições de como
este discurso se forma. Para Regine Robin, a contribuição de Foucault é limitada, pois as
relações entre as práticas discursivas e as não discursivas são justapostas, sem hierarquia, sem
dominância, sem que o nível discursivo seja relacionado ao “conjunto articulado de uma
5
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Texto e Discurso. Cópia mimeografada. pp. 2-3.
6
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Terra à Vista!: Discurso do Confronto: velho e novo mundo. São Paulo:
Cortez/Campinas: Editora da Unicamp, 1990. pp. 18-37.
7
GOLDMAN, Noemí. El discurso como objeto de la historia. In: GOLDMAN, Noemí et. al. El discurso como
objeto de la historia/ El discurso de Mariano Moreno. Buenos Aires: Hachette, 1989. p. 24.
8
ROBIN, Regine. História e Lingüística. São Paulo: Cultrix, 1977. p. 95
13
faz uma distinção. A proposta de análise do discurso de Foucault é diferenciada nos dois
trabalhos nos quais ele aprofundou o tema: A Arqueologia do Saber e A Ordem do Discurso.
Enquanto no primeiro o seu interesse volta-se mais para as condições de possibilidade dos
discursos e não tanto para os discursos em si, no segundo a abordagem centra-se mais no
discurso e coloca de maneira menos central as relações entre as práticas discursivas e não-
discursivas.9
Para Foucault, o discurso não é somente aquilo que “manifesta (ou oculta) o
desejo” e não pode ser visto simplesmente como “aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de
dominação”, uma vez que é o poder pelo qual se luta, o poder do qual desejamos nos
externos, e que funcionam como sistemas de exclusão são três: a palavra proibida e a
distribuição. Um desses princípios é o que Foucault denomina como comentário, que pode ser
representado como as narrativas maiores que todas as sociedades possuem e que se repetem,
discursos. Fazem parte de nosso sistema de cultura, nos textos jurídicos e religiosos, mas
também nos textos “literários” e de certa forma nos textos científicos.11 Outro aspecto é a
questão da autoria. Essa não é entendida somente como o indivíduo que falou ou escreveu o
texto, mas como o princípio que unifica e significa os discursos, que lhe dá coerência. Nos
discursos científicos, a autoria vem se enfraquecendo a partir do século XVII. Já nos discursos
9
Ibidem. pp. 96-97.
10
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso: aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de
dezembro de 1970. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. 7º ed. São Paulo: Edições Loyola, 2001. p. 10.
11
Ibidem. pp. 21-22.
14
literários está acontecendo o contrário, uma vez que a autoria se fortaleceu e continua se
disciplinas, que se opõe ao comentário e à autoria, uma vez que o que define uma disciplina
sistema anônimo que está à disposição de quem quiser utilizá-lo se opõe à autoria, enquanto a
já dado e que deve ser redescoberto. Mas o conhecimento das disciplinas não é a soma de
tudo o que pode ser verdadeiro sobre determinada coisa, uma vez que os erros também fazem
parte dessas áreas do conhecimento. Uma disciplina não comporta tudo o que pode ser aceito,
proposição pertença a uma área do conhecimento, ela precisa corresponder a certas condições.
Para que uma proposição fosse aceita como “botânica” no fim do século XVII, ela precisava
versar sobre a estrutura visível da planta e suas qualidades intrínsecas e não mais seus valores
Para Foucault
Para analisar as condições dos discursos, seus jogos e seus efeitos, Foucault
propõe um método, que compreende 4 exigências que devem ser aprofundadas e que ele
12
Ibidem. pp. 30-32.
13
Ibidem. pp. 38-39.
15
contínuo e silencioso que está à espera de alguém que venha lhe restituir a palavra. Para ele,
“os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas
deve entender os discursos como se fossem parte de um jogo de significações prévias. Ele
deve ser entendido como uma violência que fazemos com as coisas, como uma prática
imposta e que contribui para sua regulamentação. E, por fim, o princípio de exterioridade, que
propõe que o movimento seja do interior dos discursos, de seus princípios de aparição e de
fronteiras. Além desses quatro princípios que definem seu método de análise dos discursos,
Foucault enumera outras quatro noções que servem como princípio regulador da análise: a
viajantes são delimitados, modelados por parâmetros que são seguidos pelos seus autores, que
conhecimento que devem ser seguidos. Esses são distintos em um literato ou mesmo em um
indivíduo que viaja e resolve descrever em texto as experiências pelas quais passou. Ao
mesmo tempo, apesar dos aspectos que os unem, isto não significa uma homogeneidade no
discurso desses viajantes. A despeito da autoria ser nomeada, constata-se a repetição de idéias
14
Ibidem. pp. 52-53.
15
Ibidem. pp. 51-54.
16
em comentários sobre determinada região que, numa outra área de conhecimento, poderia ser
opiniões sobre o outro constitui um aspecto que contribui para reforçar a veracidade do texto
leitura desse tipo de documentação nos reserva várias armadilhas, uma vez que as falas dos
inseriam-se diferentes atores, que não possuíam as mesmas posições sociais e nem as mesmas
funções intelectuais. Além disso, essa diferenciação também significava formas distintas de
países de origem.16 Apesar de todos serem denominados pelo mesmo nome, não existe uma
unidade entre eles. A maioria dos viajantes era originária do continente europeu, mas alguns
aspectos os diferenciavam, como, por exemplo, a forma como seus relatos foram organizados.
Para Mary Louise Pratt, tais relatos podem ser divididos em dois tipos, de acordo com a sua
imperialistas, enquanto o sujeito viajante que emerge a partir de meados do século XVIII é
16
OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. Elementos para uma Sociologia dos Viajantes. In: Sociedades
Indígenas e Indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro: Marco Zero/UFRJ. 1987. p.92.
17
Conceito utilizado por Mary Louise Pratt que consiste em “paradigmas narrativos onde o sujeito europeu é
mais passivo e reacionário do que agressivo e pró-ativo”. PRATT, Mary Louise. Pós-colonialidade: projeto
incompleto ou irrelevante? In: VÉSCIO, Luiz Eugênio & SANTOS, Pedro Brum. Literatura & História.
Perspectivas e Convergências. Bauru, SP: EDUSC, 1999. p. 25.
17
naturalista sueco Carl von Linné18, intitulada Systema Naturae (1735), e a exploração do
específico, o de cientistas viajantes. A motivação para sair da Europa não era o interesse
comercial ou a busca de riquezas materiais, como muitos dos viajantes que os antecederam ou
perfil descrito por Charles Darwin: “o amor à ciência; uma paciência ilimitada para refletir
longamente sobre qualquer assunto; zelo para observar e colecionar dados; e uma porção de
invenção e senso comum.”19 Viajante, qualquer um podia ser, bastava ter gosto pela aventura
ou necessidade econômica. Para ser um cientista viajante, no entanto, era necessário estudo,
modo de olhar a natureza. Essa não deveria mais ser simplesmente descrita, mas classificada,
ordenada e organizada segundo os esquemas criados para a classificação global das plantas,
dos animais e dos minerais, conhecidos ou não pelos europeus. A ciência forneceria aos
visitadas a partir de meados do século XVIII e durante todo o século XIX. A maioria desses
viajantes eram cientistas que saíam da Europa para coletar espécimes de plantas e animais
para as coleções dos museus de História Natural ou para os Jardins Botânicos. Para a
definição do período de estudo e do conjunto de fontes, tomamos como base dois aspectos: o
18
Carl von Linné, ou Linnaeus nasceu em 23 de maio de 1707 na Suécia e morreu em 10 de janeiro de 1778.
Formou-se em medicina, mas preferiu dedicar-se ao estudo da botânica.
19
DARWIN, Charles apud. MOREIRA LEITE, Miriam Lifchitz. Livros de Viagem 1803/1900. Rio de Janeiro:
Editora da UFRJ, 1997. p. 209.
18
região geográfica que decidimos estudar, neste caso a área que atualmente compreende o
1858. Em 1758 Carl von Linné publicou a 2º edição de sua obra, Systema Naturae. Nessa
edição Linné generaliza a nomenclatura e seu sistema de classificação para todo o reino
animal, juntamente com o reino vegetal. Além disso, a partir das contribuições de outros
em 1.300 na segunda edição. Apesar das críticas e dos limites de seu método, o estudo marca
sistema de classificação para as novas descobertas. Sua concepção considera que cada espécie
desenvolvidos por Charles Darwin e por Alfred Russel Wallace sobre a evolução das
espécies, na Linnean Society de Londres. Nos dois estudos e na obra A Origem das Espécies,
publicada um ano depois, em 1859, foi apresentada a tese de que as espécies animais e
vegetais não eram fixas, invariáveis, como se acreditava até então, mas que elas se
deveram-se em grande parte à descoberta de novas espécies, que chegavam à Europa de todas
as partes do mundo pelas mãos de viajantes, fossem cientistas ou não. No final do século
XVII, Tournefort citava a existência de pouco mais de dez mil plantas conhecidas pela ciência
que eram conhecidas mais de cinqüenta mil plantas. O aumento no conhecimento foi
19
decorrente das inúmeras viagens científicas, que tiveram seu apogeu entre o final do século
de viajantes que descrevem a região que tínhamos nos proposto a analisar. Entre os vários
relatos disponíveis, selecionamos seis cientistas viajantes, que podem ser enquadrados como
científicos. São eles Antoine Joseph Pernetty, Georg Heinrich von Langsdorff, John Mawe,
Adalbert von Chamisso, Auguste de Saint-Hilaire, René Primevère Lesson e o artista Louis
Choris. Entre os anos de 1763 e 1822, esses viajantes europeus conheceram e registraram
salientar que a maior parte deles conheceu somente a Ilha de Santa Catarina e o continente
próximo. Saint-Hilaire foi o único que esteve em outras vilas da Capitania. Outro aspecto é
que, no período estudado, a Capitania de Santa Catarina compreendia uma estreita faixa
litorânea, com suas ilhas, entre elas aquela onde estava localizada a administração da
Atualmente, a maioria dos relatos dos viajantes que estiveram no Brasil nos
pelos estrangeiros que por aqui passaram. No entanto, no nosso entendimento, devemos ir
além da publicação desses relatos. Devemos aprofundar os estudos sobre essa produção
filiações científicas desses viajantes, uma vez que o conhecimento intelectual articula-se com
Sobre estas mudanças ver: DROUIN, Jean-Marc. De Lineu a Darwin: os viajantes naturalistas. In: SERRES,
20
Michel (org.) Elementos para uma História das Ciências. Vol. 2. Lisboa: Terramar, 1996. pp. 149-166.
20
com essas fontes. Durante muito tempo postulou-se o caráter insuspeito e a isenção dos
historicidade dos relatos é, no entanto, a forma de compreender como eles produzem sentidos,
Os textos, e entre eles os relatos de viajantes, têm que ser apreendidos em suas
nas práticas que os produziam, uma vez que estas “determinam as operações de construção do
sentido.”21 As imagens projetadas por esses viajantes sobre a Ilha de Santa Catarina e o litoral
próximo constituíram-se a partir de coisas vistas e lidas, lugares comuns em voga que,
lugares visitados e suas relações sociais. Pensar os relatos de viagem a partir da perspectiva da
história cultural pressupõe que sua produção e sua circulação estão inseridas num campo de
Um dos pontos que chama a atenção quando lemos esses relatos é a profusão
de temas. Apesar de estarem realizando viagens por regiões desconhecidas com o objetivo
principal de coletar e analisar plantas e animais que deveriam ser enviados para instituições
científicas européias, esses viajantes escreviam sobre vários assuntos. Descreviam plantas e
animais, mas também debruçavam-se sobre assuntos econômicos, políticos, sociais, históricos
e etnográficos. Como o homem fazia parte da natureza, tudo o que o envolvia era também do
21
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução: Maria Manuela
Galhardo. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Ed. Bertrand Brasil, 1991. p. 27.
22
CHARTIER, Roger. Op. Cit. p. 17.
21
estiveram na Capitania de Santa Catarina durante o período de 1763 a 1822. Esta análise parte
do conhecimento de quem era o viajante, de onde ele vinha e quais eram suas influências
sócio-culturais. Esses dados são importantes, uma vez que irão influenciar na forma de
escrever o relato, na seleção dos temas que serão descritos e das teorias as quais irão recorrer
para explicar o que foi visto na região visitada. Como não quisemos nos restringir a salientar
como o viajante elaborou seu discurso, em muitos dos temas tratados nos relatos recorremos a
pelos viajantes anteriormente citados. O capítulo 1 trata das viagens. Essa breve discussão
justifica-se, uma vez que as viagens não podem ser consideradas de uma forma geral.
selecionado para este estudo. Além de informações sobre nascimento, filiação e formação,
acrescentamos também dados sobre sua inserção na sociedade científica, sobre as obras
publicadas, incluindo edições e traduções. Esses viajantes eram cientistas que estavam
Sciences foi fundada em 1666, durante o reinado dos Bourbons. Era um exemplo de
uma revolução cultural. Para Bacon e muitos pensadores puritanos, a ciência tinha o papel de
terra.23 No século XVII e XVIII, a ciência estava estreitamente vinculada com as guerras,
comum que, em muitos momentos, suplantava as diferenças entre as nações. Com a fundação
de academias científicas em vários países europeus, financiadas pelas famílias nobres, como a
Universidade de Göttingen, que era mantida pela casa Hanovre, no final do século XVIII o
“homme de science” entra definitivamente na moda. A ciência triunfa e se legitima aos olhos
do estudo desses textos, fizemos uma análise da retórica de cada autor, ou seja, de como cada
viajante construiu sua obra, as suas partes, a maneira de descrever e a forma de descrição do
que era visto, bem como a relação do texto com as representações produzidas. Em suma,
analisamos como era estruturado o trabalho intelectual do viajante e como ele organizou o seu
campo de pesquisa. Do que eles falavam? Qual a relação entre a viagem, o relato e a produção
discussões sobre a natureza e o homem que vivia na América. Os viajantes estavam inseridos
num ambiente cultural e científico que se encontrava envolvido em intensas discussões sobre
23
FERRONE, Vincenzo. L’homme de science. In: VOVELLE, Michel. L’homme des Lumières. Paris: Éd. du
Seuil, 1996. p. 212.
24
Ibidem. pp. 220-232.
23
ou não do ser humano era visto como estreitamente vinculado com a natureza onde estava
arcabouços téoricos que seriam utilizados para explicar a América, contribuíam na forma
como os cientistas viajantes analisariam o mundo novo que eles estavam conhecendo.
de Santa Catarina. Relatos sobre as matas, as plantas, os animais que existiam nesta região
são analisados a fim de percebermos como os viajantes descreveram a região e de que forma
viviam na região entendiam esta mesma natureza. Para isto recorremos a outros textos, de
vilas, os homens e mulheres que viviam na região, a forma como a sociedade se organizou, e
muitos outros aspectos. Uma das dificuldades dessa fonte, o relato de viagem, é
indignados, inúmeros aspectos da região que estava sendo explorada. Mesmo quando o relato
foi escrito muitos anos após a viagem, sua escrita acompanhava o olhar disperso que buscava
foram escolhidos após a leitura de todos os relatos e a constatação de que alguns assuntos
eram tratados pela maioria dos viajantes. Apesar da diferença temporal entre os viajantes
selecionados para análise, cuja primeira viagem foi realizada na segunda metade do século
XVIII por Pernetty, que esteve nesta região em 1763, até a última delas, realizada por Lesson,
Entre esses viajantes, Saint-Hilaire, pelo próprio tamanho de seu relato, que
compreende 90 páginas de texto, foi o que mais falas dedicou aos temas selecionados. No
entanto, outros autores, mesmo em textos de poucas páginas, como Langsdorff e Mawe,
características do povo, tema também do interesse de Lesson, que num texto pequeno, de
somente 9 páginas, dedicou muitas linhas para descrever os habitantes locais, fossem estes
cada viajante dedicou aos diferentes temas selecionados, constatamos que o interesse
individual influenciou na escolha dos temas que iriam ser descritos no relato de viagem.
Mesmo sendo todos cientistas viajantes, com um objetivo em comum, isso não significava
dança que ele conheceu na Ilha de Santa Catarina, enquanto Pernetty descreveu a comida que
desconhecidos, como a banana.25 O relato de viagem, por ser um texto que se diferenciava dos
relatórios científicos que eram feitos, muitas vezes coletivamente, junto com os outros
25
Os cálculos de páginas tiveram como base as seguintes edições: SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem a
Curitiba e Província de Santa Catarina. Prefácio Mário G. Ferri; tradução Regina Regis Junqueira. Belo
Horizonte: Ed. Itatiaia/São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1978. PALMA DE HARO, Martim Afonso
(org.) Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX. 4º ed.
Florianópolis: Editora da UFSC, Editora Lunardelli, 1996.
25
viagens, permitia que seu autor extrapolasse os objetivos puramente científicos. O público
leitor, a quem eram voltados esses textos, tinha um interesse distinto dos colegas cientistas.
Os textos falam sobre uma região da América da Sul que atualmente faz parte
do estado de Santa Catarina, Brasil. No entanto, não engloba todo o estado, mas somente a
população de origem africana. Além desses grupos étnicos que formavam a maioria da
população, também foi citada pelos viajantes a presença de nativos da América e de europeus
descritas pelos viajantes, mas construir, a partir desses discursos e das recentes análises
sociedade e da população que vivia na região litorânea de Santa Catarina, mais precisamente
na área que se estende da vila de Nossa Senhora da Graça do rio São Francisco até Santo
Natural contribuiu para formar uma nova forma de pintar as paisagens, principalmente de
regiões não européias. Além disso, buscamos mapear as influências que Choris recebeu, sua
formação e quem era o público consumidor dos álbuns ilustrados publicados na Europa e que
testemunho sobre a região visitada. Seu testemunho, além de ser matizado por coisas lidas, era
citadino, seja nobre ou burguês. Além disso, o viajante encontra-se na postura do observador
que lança seu olhar sobre o observado, indivíduos de outras nacionalidades, com outras
formas de se relacionar entre si e com o trabalho, e que vão desenvolver outras manifestações
culturais e práticas cotidianas. Além da distância entre o viajante e o que ele observa, outro
aspecto que precisamos considerar é o próprio texto. Esses relatos foram escritos a partir de
informações colhidas na viagem, muitas vezes no contato do viajante com a elite local, fosse
ela administrativa, militar ou eclesiástica, que eram seus principais interlocutores. Outra
forma de conseguir informações era através da leitura de textos de outros viajantes ou mesmo
viajante e o que ele vai descrever contribuiu para a escrita de relatos marcados pela
uma descrição física do mundo.26 Muitos viajantes e mesmo nações, como a França, a Grã-
mundo e seus habitantes ou, muitas vezes, em prol do avanço científico. No entanto, elas
continentes, sobretudo do africano. O Brasil, por fazer parte de uma região “desconhecida”
para os europeus, foi alvo de inúmeras expedições científicas, principalmente a partir de 1808.
Antes da transferência da corte portuguesa de Lisboa para o Brasil, a entrada de viajantes era
evitando assim a cobiça de outras potências. Alexander von Humboldt, em sua viagem à
América do Sul, realizada no final do século XVIII, foi expulso do Brasil devido à suspeita
das autoridades coloniais de que fosse espião. No entanto, mesmo antes de 180827, era
permitido que navios, de diferentes bandeiras, atracassem para fazer escala, principalmente no
XVII que permitiam a utilização dos portos do Rio de Janeiro, Salvador e Recife aos barcos
de bandeira inglesa.
26
Entre elas podemos citar as expedições comandadas por: Louis Antoine de Bougainville (1767-1771), Jean-
François de La Pérouse (1785-1789), George Anson (1740-1744), entre outras. O próprio Bougainville, em sua
obra Voyage autor du monde, enumera treze viagens. Destas, quatro ocorreram no século XVI, quatro no século
XVII, e quatro no século XVIII, sendo a sua a décima terceira. Para mais informações ver MOREIRA LEITE,
Miriam Lifchitz. Livros de Viagens: 1803-1900. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997 e MOLLAT, Michel &
TAILLEMITE, Étienne. L’importance de l’exploration marítime au siècle des lumières: à propos du voyage
de Bougainville. Paris: Editions du CNRS. 1978. pp. 17-40.
27
Sobre as mudanças que ocorreram a partir desta data, ver: LEITE, Ilka Boaventura. Op. cit. Cap. 1: O Brasil
sob o olhar estrangeiro.
28
ato de viajar por regiões pouco conhecidas ou distantes. Viagens e viajantes existiram muito
antes do período que nos propomos a estudar. Entretanto, conforme o contexto histórico no
qual seus protagonistas estão inseridos, os sentidos e as finalidades das viagens são distintos.
histórico nos quais estavam inseridas, discutiremos os relatos das viagens elaborados por
pelos europeus, a partir do século XV, marcam também uma mudança no tipo de relação
estabelecida entre o viajante e os povos visitados. Estas mudanças também são reproduzidas
serviço dos Estados Nacionais que, motivados pelo lucro, financiavam expedições que tinham
ouro. Quando lemos os Diários da Descoberta da América escrito por Cristovão Colombo, a
primeira viagem. Trechos onde aparecem referências à palavra ouro são salientados por
Tzvetan Todorov em sua obra A Conquista da América: a questão do outro. Nesse trabalho,
que toma a descoberta e a conquista da América a fim de desenvolver uma reflexão sobre o
acalmar tanto os marinheiros, que estavam assustados pela longa viagem e pelo medo de não
retornarem a sua terra, quanto os próprios reis da Espanha, uma vez que foi a expectativa de
Ainda segundo Todorov, o que impulsionou Cristovão Colombo foi a “vitória universal do
cristianismo”, uma vez que sua expansão era “muito mais importante do que o ouro.” Esses
29
a implementação do outro.28
Outro exemplo de relato de viagem é o que foi escrito por Hans Staden.
Nascido no principado de Hessen, viajou para a América portuguesa entre os anos de 1548 e
segunda à de São Vicente. Foi nessa última que aconteceu o naufrágio e seu aprisionamento
triste destino de ser devorado motivou a escrita de seu relato intitulado História Verídica29.
Staden não era um viajante como os outros. Suas motivações não eram nem a busca da
Carlos V, que teve, entre outros motivos, a questão religiosa, nesse período marcado pela
inusitado de sua experiência de prisioneiro que conseguiu escapar de ser devorado por índios
agradecer a Deus, que o salvou, levou-o a relatar por escrito sua experiência. Staden viveu
nove meses como prisioneiro entre os Tupinambá e seu objetivo, como salienta o próprio
título do relato, é descrever uma história verídica. Dessa maneira, ele privilegia uma escrita
onde o que viveu é descrito de forma narrativa. Além disso, enfatiza os acontecimentos e
28
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. Tradução: Beatriz Perrone Moisés. 3º
ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988. pp. 8-9.
29
O relato foi publicado em 1557 com o título de “História Verídica e descrição de uma terra de selvagens, nus e
cruéis comedores de seres humanos, situada no Novo Mundo da América, desconhecida antes e depois de Jesus
Cristo nas terras de Hessen até os dois últimos anos, visto que Hans Staden, de Homberg, em Hessen, a conheceu
por experiência própria, e que agora traz a público com essa impressão”. Deste viajante estão publicados em
português as seguintes obras: STADEN, Hans. Hans Staden: os primeiros registros escritos e ilustrados
sobre o Brasil e seus habitantes. Tradução: Angel Bojadsen. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 1999;
STADEN, Hans. A verdadeira história dos selvagens, nus e ferozes devoradores de homens (1548-1555).
Tradução: Pedro Süssekind. 2º ed. Rio de Janeiro: Dantes, 1999.
30
texto. Seu relato afasta-se das descrições fantasiosas de outros viajantes da época. Segundo
francês Jean de Léry partia para a França Antártica. Nascido na região da Borgonha em 1534,
francesa implantada na Baía de Guanabara, entre os anos de 1555 a 1567, Léry, juntamente
com outros quatorze protestantes, acompanhou os pastores Richier e Cartier e partiu para o
Brasil em 1557, onde permaneceu por um ano no Forte Coligny. Durante este período
onde é obrigado a partir devido às disputas entre católicos e protestantes. Morando novamente
em Genebra, dedica-se a escrever sobre o período em que viveu na América. Anos depois, em
1578, publicou a obra Histoire d’une Voyage fait en la terre du Brésil. Sucesso imediato, foi
traduzido para diversas línguas. No Brasil foi publicado em 1941 como Viagem à Terra do
O relato foi escrito com o material retirado do Brasil, a experiência vivida pelo
autor do texto. Segundo Michel de Certeau, o texto de Léry “joga com a relação entre a
30
GIUCCI, Guillermo. Viajantes do maravilhoso: o Novo Mundo. Tradução: Josely Vianna Baptista. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 215.
31
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Alegres Trópicos: Gonneville, Thevet e Léry. Revista USP. São Paulo: USP, nº
1 (mar./mai. 1989). pp. 84-93.
31
estrutura - que propõe a separação - e a operação - que a supera criando assim efeitos de
sentido.”32 Em sua escrita, este viajante estabelece um corte entre o Velho Mundo e o Novo
Mundo, e o que separa estes dois mundos é o Oceano Atlântico. Enquanto a França é o aqui, o
sociedade tupi, é apresentada como um quadro de “dissemelhanças”. Por este termo podemos
entender como o diferente de tudo o que pode ser encontrado na Europa, ou então o que é
mais comum, a combinação de formas ocidentais que, cortadas, seriam combinadas de uma
forma insólita. Além disso, Léry apresenta o mundo selvagem dividido entre a natureza e a
em seus relatos ocorreram de maneira distinta. Colombo evoca o mito do paraíso terrestre,
Staden enfatiza as práticas antropofágicas dos índios e Léry passa a imagem de uma terra
agradável, citando inclusive casos de franceses que, seduzidos pela vida nos trópicos, por aqui
seus conceitos éticos, políticos, pedagógicos, etc. Influências e referências podem ser
Cristovão Colombo, Hans Staden e Jean de Léry são alguns do extenso grupo
de viajantes que, por diferentes motivos, escreveram os relatos de suas experiências em terras
realizada, bem como valorizar seu trabalho em prol da ciência. Já o motivo que levava os
32
DE CERTEAU, Michel. A escrita da história. Tradução: Maria de Lourdes Menezes. 2 ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2000. p. 219.
33
Ibidem. pp. 220-221.
34
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Op. cit. p. 90.
35
Sobre a influência americana no pensamento francês ver: FRANCO, Affonso Arinos de Mello. O índio
brasileiro e a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937.
32
outros tipos de viajantes a escreverem relatos eram os mais diversos, da mesma forma como
eram distintos os motivos de suas viagens. Hans Staden escreveu para agradecer a Deus pela
vida, enquanto Jean de Léry aproveita para discutir questões religiosas que agitavam seu país.
moderno. No entanto, nem todos os viajantes, bem como nem todas as viagens, possuíam o
mesmo objetivo ou o mesmo significado. Podemos tomar como exemplo as viagens que se
desenvolveram e tiveram seu auge na segunda metade do século XVIII e no século XIX, e que
estruturadas e organizadas segundo alguns parâmetros que as distinguiam das viagens que as
antecederam, mas isto não quer dizer que podemos inseri-las em um conjunto homogêneo.
Para Lorelai Kury, apesar da existência de diretrizes que preconizavam métodos rigorosos de
justificava os investimentos, fossem eles financeiros ou humanos, era a crença que a obtenção
europeus, entre eles a França, a Inglaterra, o Império Russo, caracterizando-se como viagens
oficiais. Além disso, ocorreram viagens que foram custeadas por famílias nobres ou pela
fortuna pessoal do próprio viajante, como por exemplo, a viagem realizada por Alexander von
Humboldt. Entre as viagens financiadas por instituições públicas ou pelos governos, podemos
fazer uma distinção entre expedições marítimas e expedições científicas. Enquanto o primeiro
36
KURY, Lorelei. Histoire naturelle et voyages scientifiques (1780-1830). Paris: L’Harmattan, 2001. p. 148.
37
SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador; a viagem. São Paulo: Companhia das Letras,
1990. p. 110.
33
envolvendo cientistas de vários países europeus que entrou pelo interior do continente
Essa expedição teve início em 1735 e tinha como objetivo responder o seguinte
questionamento: seria a terra uma esfera ou um esferóide achatado nos pólos? Para elucidar
essa questão, foi montada uma expedição formada por cientistas de diferentes nacionalidades,
que contou com o apoio inclusive do rei da Espanha, o qual permitiu a entrada de estrangeiros
proximidades de Quito, o outro era enviado para o norte, para a Lapônia. Durante o período
arrecadado e das anotações por causa das chuvas, instrumentos danificados, etc.. O grupo
francês se desintegrou e cada um teve que encontrar por conta própria a melhor forma de
retornar para casa. A expedição foi iniciada em 1735 e mais de uma década se passou antes
onde relata os inúmeros sofrimentos e privações dos quais foram vítimas e, ao mesmo tempo
trata das mensurações e análises meteorológicas que fizeram no Peru. La Condamine chegou
em 1744, após ter descido o Rio Amazonas. O naturalista Joseph de Jussieu permaneceu na
Nova Espanha até 1771, quando foi expulso, com graves problemas de saúde mental. Essa
expedição rendeu muitos relatórios e relatos de viagem. Além disso, nos possibilita refletir
PRATT, Mary Louise. Os Olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. Tradução: Jézio Hernani
38
científica internacional, passando por cima das rivalidades nacionais presentes na Europa,
decorrer das viagens, havia também outros obstáculos que não pertenciam ao campo da
ciência, mas sim da política. As disputas entre os países europeus interferiam nas viagens,
mesmas. Exemplo disto é a viagem de Alexander von Humboldt e Aimé Bonpland. Seus
planos de viajar para o Egito foram abortados após a ocupação daquela região pelas tropas de
Napoleão Bonaparte, obrigando-os a mudar o trajeto para a América Espanhola. Através dos
contatos e das boas relações de Humboldt com membros da corte em Madri, conseguiram
autorização para visitar as colônias espanholas. Também foram feitos contatos com a Coroa
Portuguesa com o intuito de conseguir autorização para entrar nos territórios coloniais
não conseguiram autorização devido ao medo por parte da Coroa Portuguesa de que
de 1808, com a transferência da Família Real Portuguesa para o Rio de Janeiro, passa a ser
autorizada a entrada de viajantes estrangeiros no Brasil. Antes dessa data, somente era
permitido que navios em trânsito fizessem escala para abastecimento. Os portos escolhidos
eram geralmente o do Rio de Janeiro e o da Ilha de Santa Catarina. Como essas paradas
duravam dias, algumas vezes meses, os estudiosos aproveitavam para realizar coletas de
No que se refere à Ilha de Santa Catarina, sua escolha era motivada pela
posição geográfica, estratégica para os barcos que se dirigiam à região do Rio da Prata e para
os que iriam fazer a travessia do Cabo Horn, no extremo sul da América. Alguns barcos
39
Sobre a organização e as disputas presentes na expedição La Condamine ver: PRATT, Mary Louise. Op. cit.
pp. 41-55.
35
também ancoravam na Ilha quando, por causa de doenças e epidemias, não era recomendado
parar no porto do Rio de Janeiro. Devido a esses fatores, na região ancoravam barcos, muitos
abastecidos com madeira, víveres e água potável, bem como fazer reparos na embarcação,
como nos mostra o relato escrito pelo capitão do navio “Nadeshda”, Adam J. von
abastecimento, e aproveitavam para escrever algumas poucas páginas, tivemos outros, que
foram além. Embrenharam-se nas matas e nos caminhos, segundo eles, péssimos, a fim de
terra, no sentido norte-sul. Na época de sua viagem, a Capitania de Santa Catarina era uma
das menores do Brasil. Tinha somente três vilas: Nossa Senhora da Graça do Rio de São
Francisco, Nossa Senhora do Destêrro e Santo Antônio dos Anjos da Laguna.41 Com exceção
40
KRUSENSTERN, Adam Johann von. In: Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos
séculos XVIII e XIX. Op. cit. p. 137. O nome correto do governador é Joaquim Xavier Curado, governou a
Província de 1800 a 1805.
41
São Francisco foi elevada à vila em 1660 e, em 1847, torna-se cidade. Desterro é elevada à condição de vila
em 1726. Em 1823 torna-se a capital da província. Troca de nome em 1894, quando passa a chamar-se
Florianópolis. Laguna torna-se vila em 1714 e comarca em 1856.
42
A cidade de Lages, localizada no Planalto Catarinense, foi fundada em 1766 por Antônio Correa Pinto, no
caminho que ligava os Campos de Viamão a São Paulo. Seu desenvolvimento foi em decorrência de seus
campos de pastagem, ponto de passagem e invernada das tropas de animais que eram levadas do Rio Grande do
Sul as regiões das Minas Gerais. Em 1771 foi elevada à categoria de vila como o nome de Nossa Senhora dos
Prazeres “das Lagens”. Em 1738, após a criação da Capitania de Santa Catarina, continuou fazendo parte da
Capitania de São Paulo até o ano de 1820.
36
rios “as terras ocupadas pelos colonos até 1822 não se estendiam a mais de três léguas do
litoral, e nada indica que a partir dessa época eles tenham avançado mais para o interior.”43
interior dos continentes, era que a maior parte constituíam-se como viagens de grupo, no qual
zoólogos, pintores, entre outros. Apesar de financiadas por seus países de origem, os viajantes
muitas vezes recebiam apoio dos governos locais. O governo colonial português e,
divulgação das pesquisas nas instituições científicas existentes no país. Este intercâmbio
expedição “Rurick”, comandada por Otto von Kotzebue, da qual fizeram parte o pintor Louis
Choris e o botânico Adalbert von Chamisso. Essa expedição partiu da Rússia em janeiro de
1815 e aportou na Ilha de Santa Catarina no final do ano, onde permaneceu durante vários
dias, com o objetivo de abastecer os navios, tratar os doentes e realizar estudos. Financiada
pelo governo da Rússia, tinha como objetivo concluir a exploração da parte norte do Pacífico.
Entre os anos de 1803 e 1806, o Império Russo havia financiado uma outra expedição naval
que iniciou a exploração do Pacífico Norte, estabelecendo relações diplomáticas com o Japão.
Nessa expedição estiveram envolvidos dois navios, “Neva”, sob a chefia do capitão Urey
43
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem a Curitiba e Província de Santa Catarina. Tradução Regina Regis
Junqueira. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1978. p. 127.
44
Sobre as relações entre viajantes estrangeiros e as instituições de pesquisas brasileiras ver: LOPES, Maria
Margaret. As ciências dos Museus: a história natural, os viajantes europeus e as diferentes concepções de
Museus no Brasil do século XIX. In: História da Ciência: o mapa do conhecimento. Rio de Janeiro: Expressão
e Cultura; São Paulo: Edusp, 1995. pp. 721-372.
37
Lisiansky e “Nadeshda”, cujo capitão era Adam Johann von Krusenstern, chefe também da
expedição. Tanto a primeira como a segunda expedição fizeram uma escala na Ilha de Santa
comentários sobre a sua natureza e sua população. Esses relatos e seus autores serão
tripulação ser composta por russos, pelo menos metade dos cientistas envolvidos no projeto
científico entre nações, ou então a presença de cientistas de diferentes países numa expedição
não era algo incomum, apesar da competitividade entre as nações européias no que se refere à
conhecimento científico. Segundo Mary Louise Pratt, durante a segunda metade do século
Langsdorff, em sua curta estadia na Ilha de Santa Catarina, teve seu trabalho facilitado por
causa desses contatos. Foi através do governador da província que ele soube da existência do
Sr. Matheos Cardoso Caldeira, que vivia na Fazenda São José, no continente.
Para mim foi surpresa das mais agradáveis, saber do governador que havia
aqui uma pessoa há muitos anos interessada e dedicada à coleção de insetos.
Procurei tirar proveito desta ocasião oportuna [...] meu maior pedido a ele foi
que me mostrasse as regiões mas ricas em insetos e que me levasse em suas
excursões, no que concordou imediatamente de modo cordial e prestativo.46
45
PRATT, Mary Louise. Op. cit. p. 52.
46
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. In: Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos
séculos XVIII e XIX. Op. cit. p. 170.
38
desprezado pelos viajantes europeus. Eles não eram detentores do conhecimento científico
que estava sendo desenvolvido na Europa, não conheciam a nomenclatura científica, mas
referia às plantas e suas utilidades práticas. No caso de Langsdorff, sua coleta de insetos foi
facilitada pelo fato de ter um guia experiente. Prestativo, cordial, adjetivos largamente
utilizados pelos estrangeiros para descrever os habitantes locais, também foram empregados
melhores locais para coletar espécimes animais importantes para o trabalho de um cientista.
Eram muitas vezes através das relações estabelecidas com os habitantes locais
que os viajantes conseguiam desenvolver o trabalho pelo qual haviam empreendido tão longa
e desgastante viagem. Langsdorff encontrou no litoral Sul do Brasil uma natureza rica e a
ajuda dos habitantes locais que lhe permitiu, em sua curta estadia de pouco mais de um mês,
fato da estadia na Ilha de Santa Catarina ter ocorrido durante o verão. Estes dois fatores eram
prejudiciais para o trabalho de um cientista que tivesse como atividade coletar plantas.
Segundo ele,
não consegui investigar mais do que o nome, pois para conseguir as folhas
ou pétalas deste feto, teria que arrancar cada caule. Um botânico que pudesse
permanecer aqui não apenas dias ou semanas, mas anos, e empreendendo
excursões com machadinhas e machados, haveria de se tornar
conhecidíssimo pelas descobertas de novos gêneros e novas espécies. 48
47
Ibidem. p. 171.
48
Ibidem. p. 172. Nota de rodapé.
39
endereçadas aos viajantes que iriam realizar expedições de coleta. O Museu de História
Natural de Paris redigiu e publicou seis edições (nos anos de 1818, 1824, 1827, 1829, 1845 e
1860) da Instruction pour les voyageurs et pour les employés dans les colonies sur la manière
de recueillir, de conserver et d’envoyer les objets d’histoire naturelle, rédigée sur l’invitation
naturais para os órgãos de pesquisas, como os Jardins Botânicos. Esse trabalho era realizado
muitas vezes por funcionários coloniais, sejam estes administrativos ou militares. Dessa forma
era necessário instruir sobre a melhor forma de realizar a coleta e como preservar as
espécimes. Linné, cientista que espalhou seus discípulos por várias partes do mundo, também
escreveu um texto, o Instructio Peregrinatoris, no qual instruía sobre a melhor forma de levar
financiados pelos estados europeus diferenciavam-se dos diletantes, uma vez que os
resultados de seus trabalhos eram de interesse de toda a Europa. Dessa forma, eles tinham que
seguir algumas instruções, tais como recolher produtos dos três reinos, vegetal, animal e
mineral, descrevendo com atenção suas utilidades. No que se refere às plantas, o interesse era
pelas sementes, uma vez que estas seriam utilizadas em trabalhos de aclimatação. Existia a
viajantes coletores.
49
Sobre as orientações de viagem e de coleta direcionadas aos viajantes coletores ver: KURY, Lorelei. Op. cit.
Cap. III: Les instructions de voyage: orienter le regard, former les gestes.
40
Para realizar uma viagem de coleta eram necessários alguns materiais, que
poderiam ser trazidos da Europa, ou então, caso fosse uma viagem longa e por terra, como
a realizada por Saint-Hilaire, poderiam ser adquiridos conforme a necessidade. Uma das
maiores dificuldades era a preservação do que era encontrado, o que era agravado pelas
animais ou vegetais. Além disso o que havia sido coletado poderia se perder durante as
viagens, devido a naufrágios ou incêndios nos navios, como o que destruiu todo o trabalho de
coleta realizado pelo viajante inglês Wallace durante sua viagem de retorno.
participou da viagem no “La Coquile”, entre os anos de 1822 e 1825, listou os materiais que
indispensáveis para a boa conservação do que era coletado, fossem planta ou animal, eram os
seguintes:
Esse era o material previsto para uma viagem realizada em um navio, durante
com outros cientistas. Os longos percursos em alto mar permitiam que o material coletado
fosse analisado durante a viagem. Além disso, muitas vezes o material poderia ser
lugares com grande dificuldade. Karen Macknow Lisboa, em seu trabalho sobre os viajantes
bávaros Spix e Martius, nos informa sobre alguns dos materiais necessários para uma
História Natural de Paris. Além disso, escreveu sobre inúmeros aspectos da sociedade
51
LESSON, René. Apud. DROUIN, Jean-Marc. Op. cit. p. 155.
52
LISBOA, Karen Macknow. Op. cit. p. 45.
42
brasileira que conheceu durante os sete anos em que viajou por diversas regiões do país, entre
elas a Capitania de Santa Catarina durante os meses de abril e maio de 1820. Em um de seus
relatos de viagem deixou registrada a seguinte fala: “Nesse dia não recolhi uma só planta. O
tempo estava magnífico, não havia uma nuvem no céu, mas a paisagem era de uma monotonia
sem par.”53 Gostaríamos de discutir um aspecto que é pouco trabalhado quando se fala sobre
motivava: o gosto pela História Natural o levara às viagens, após ter esgotado o estudo das
espécimes nas regiões próximas de onde havia se criado.54 Para muitas pessoas,
contemporâneas dos viajantes e mesmo estudiosos posteriores, a viagem por terras distantes e
pouco conhecidas era percebida como uma aventura. No entanto, os elogios dirigidos aos
viajantes que se aventuravam nestes empreendimentos nos mostra que essas viagens eram
muito mais do que uma aventura. Salientavam-se características como coragem, zelo e
abnegação em nome da ciência. Alguns biógrafos vão mais além e reforçam a imagem
de uma viagem, fosse a serviço de alguma instituição científica, fosse por meios próprios,
natureza da região visitada e dessa forma ascender na carreira. Além disso, o viajante adquiria
entre seus colegas uma ‘imagem’ de aventureiro, o que é revelador de como o exótico fazia
parte do imaginário dos cientistas e sábios do final do século XVIII e início do século XIX.56
53
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 195.
54
SÜSSEKIND, Flora. Op. cit. pp. 108-109. Este trabalho discute como, nas décadas de 30 e 40 do século XIX,
a prosa brasileira estabeleceu relações com os relatos de viagens e os desenhos e pranchas dos paisagistas-em-
trânsito a fim de constituir a figura do narrador de ficção.
55
Marcus Vinícius de Freitas, em sua pesquisa sobre o cientista viajante Hartt, comenta que se criou uma
imagem de doação e amor pela ciência da parte deste viajante, a ponto de seu principal biógrafo defini-lo como
um mártir da ciência. Ver: FREITAS, Marcus Vinícius de. Charles Frederick Hartt: um naturalista no
Império de Pedro II. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. p. 39.
56
KURY, Lorelei. Op. cit. p. 151.
43
A viagem empreendida por Saint-Hilaire pode ser inserida num contexto mais
amplo, ou seja, no conjunto das viagens de exploração que tinham como mote principal o
desenvolvimento da ciência. Saint-Hilaire não era um viajante qualquer, era um cientista que
estava a serviço de um órgão público francês e que tinha como objetivo fazer coleta de
plantas, animais e minerais, entre outros. Esses exemplares iriam enriquecer o acervo de uma
que essas viagens foram desenvolvidas a partir da segunda metade do século XVIII e em
países específicos, tais como a França, a Inglaterra, a Áustria, a Alemanha, a Rússia e, mais
tarde, os Estados Unidos. Outro aspecto era a escolha das regiões que seriam visitadas.
é a região amazônica, que durante o século XIX, encontrava-se no centro dos interesses dos
viajantes e da ciência. O litoral sul do Brasil não despertou maiores interesses por parte dos
estudiosos e viajantes, e os que aqui estiveram, em sua maioria, foi devido ao trajeto
regiões do mundo se inserem de forma periférica. Essas regiões são vistas como locais que
tinham a função de fornecer produtos para abastecer a Europa, fortalecendo assim seu
sentimento de superioridade.
44
tecermos uma breve biografia de cada um deles, que na falta de um critério melhor, será feito
segundo o ano em que cada um desses viajantes esteve em Santa Catarina. Para isso
Ancienne et Moderne editada em Paris no ano de 1854 pela Chez Madame C. Desplaces.
e 15 de dezembro de 1763. Era membro de uma expedição financiada por Louis Antoine de
Bougainville, o qual tinha a intenção de fundar uma colônia francesa nas Ilhas Malouines.
História Natural percorreu os entornos de Paris, e desenhou as plantas que recolheu durante
esses passeios. Em 1764, após o retorno da viagem, iniciou a escrita de suas memórias, que
seriam publicadas pela primeira vez em Berlim no ano de 1769, numa edição de dois volumes
contendo 16 pranchas. No que se refere à sua vida religiosa, tentou, juntamente com outros
partiu para a Rússia. Em 1783 retornou a Paris, lutou e conquistou o direito de não precisar
voltar para seu monastério. Durante este período dedicou-se à tradução e edição de inúmeras
obras. Envolveu-se em uma discussão pública com Corneille de Pauw sobre a questão da
45
polêmica dos americanos serem ou não uma raça degenerada. Durante a Revolução Francesa
foi preso, vindo a morrer em 1801 em Valence. Suas principais obras são Dictionnaire
portatif de peinture, sculpture et gravure, avec un traité pratique des différentes maniéres de
peintre, publicado em Paris no ano de 1757, no formato in-8º57. Foi traduzido para o alemão e
publicado em Berlim no ano de 1764. Dedicou-se ao estudo dos gregos e egípcios com a
in-12º. Publicou mais duas obras: Dictionnaire mytho-hermétique, em 1758, e Lettre à L’abbé
Villain sur l’histoire critique de Nicolas Flamel, em 1762, no tomo I da coletânea Année
Littéraire.
edição do texto que trata da viagem às Ilhas Malouines, publicada em Berlim em 2 volumes
no formato in-8º e intitulado Journal historique d’un voyage fait aux îles Malouines. Em
1770 essa obra foi traduzida para o inglês e publicada no formato in-4º. A 2ª edição,
modificada e aumentada com informações sobre história natural foi publicada em Paris, no
voyage aux îles Malouines, fait en 1763 et 1764. Essa edição também foi traduzida e
publicada em inglês no ano de 1794. O trecho sobre a à Ilha de Santa Catarina foi traduzida
para o português por Carmen Lucia Cruz Lima a partir da edição francesa de 1770 e publicada
na obra Ilha de Santa Catarina: relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX.
57
Segundo Manguel, o formato preferido para a edição de livros populares foi o in-octavo. Este formato foi
utilizado pela primeira vez pelo mestre-impressor Aldus Manutius, em 1501. O livro em in-octavo era a metade
do tamanho de um livro in-quarto. Os livros in-fólio eram do tamanho de uma folha inteira, sem dobras. No
formato in-quarto uma única folha resultava numa brochura de 8 páginas, enquanto no formato in-octavo uma
única folha resultava numa brochura de 16 páginas. No século XVIII, para produzir obras maiores, as folhas
foram dobradas em 12 partes, resultando em libretos de 24 páginas de brochura, o in-12º. Mais informações
sobre encadernações e tamanhos dos livros ver: MANGUEL, Alberto. Uma história do livro. Tradução: Pedro
Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras. 1997. pp. 149-174.
46
escreveu alguns textos em decorrência da polêmica com Corneille de Pauw: Dissertation sur
l’Amérique et les Américains contre les Recherches philosophiques de mr. de P***, publicado
Défense de cet ouvrage. Essas obras foram seguidas pela publicação das respostas de
moral par celle de l’homme physique em 3 volumes no formato in-8º. A discussão travada
mentais. Para Marcos Pinto Braga, “Langsdorff foi homem de um destino incomum, marcado
pela ânsia do conhecimento e frenética corrida contra o tempo.”58 Formado aos 23 anos,
perdeu a memória aos 54 anos e morreu aos 78 anos. Em relação à cidade de nascimento
nascido em Laisk, na obra Ilha de Santa Catarina: relatos de viajantes estrangeiros nos
séculos XVIII e XIX consta como tendo nascido em Wollstein (Hesse). Essa também é a
Internacional de Estudos Langsdorff em parceria com a Fiocruz. Era filho do intendente mor
ducado de Baden. Pela filiação, pelo título de barão e pela sua trajetória acadêmica,
Langsdorff era pertencente a um grupo privilegiado, cuja família estava vinculada aos
governantes de sua região de nascimento. Em 1797 viajou para Lisboa, onde exerceu sua
58
BRAGA, Marcos Pinto. Apresentação. In: BECHER, Hans. O Barão Georg Heinrich von Langsdorff:
pesquisas de um cientista alemão no século XIX. São Paulo: Edições diá; Brasília, DF: Editora Universidade
de Brasília, 1990. p. 8.
47
navegou ao redor do mundo sob o comando de Adam J. von Krusenstern, mas a abandonou
antes de seu término. Esteve na Ilha de Santa Catarina e no continente próximo entre 20 de
1812 com o título Bemerkungen auf einer Reise um die Welt in den Jahren 1803 bis 1807,
publicado em Frankfurt. É desta obra a versão para o português que utilizamos e que foi
traduzida por Dolores R. Simões de Almeida. Também sobre essa viagem foi publicado
Plantas recueillies pendant le voyage des Russes autour du monde em conjunto com F.
no Rio de Janeiro. Desde o final do século XVII, no governo de Pedro I, a Rússia estava
passando por reformas que contribuíram para sua ocidentalização. Elas continuaram durante
Sibéria, o Extremo Oriente, domina o Alasca e algumas ilhas próximas. Em 1799 é fundada a
cargo que Langsdorff assume no ano seguinte, criando uma rede de estabelecimentos
consulares pelo Brasil, inclusive em Nossa Senhora do Desterro, cujo cargo de vice-cônsul foi
ocupado por Duarte de Souza. Em 1815, Langsdorff foi substituído no cargo e no ano
estrangeiros que passaram pela região. No ano de 1818 foi à Rússia a fim de preparar a
expedição pelo interior do Brasil. Essa expedição durou de 1822 a 1829, e passou por regiões
que hoje compreendem os Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato
48
Grosso, seguindo pelos rios que levam à foz do Rio Amazonas. Além de Langsdorff, chefe da
expedição, participaram o astrônomo russo Rubzov, o botânico alemão Riedel, bem como o
pintor e geógrafo Hercules Florence e o pintor Adriano Amadey Taunay. Além desses
deste rico material os diários feitos pelo barão de Langsdorff. São 26 cadernos de diferentes
formatos que totalizam 1388 páginas escritas em alemão com ortografia arcaica, com palavras
em inglês, latim, francês e línguas indígenas. O trabalho de transcrição destes diários foram
iniciados em 1936 pelo filólogo V. A. Egerov, continuados nos anos 40 e 60 por Maria
Krutikova e finalizados nos anos 70 por Dimitrij E. Berthels. O material foi publicado em
a retornar à Europa. Também não pôde organizar o material, que havia sido duramente
coletado. Outra obra de interesse produzida pelo viajante foi a Memória sobre o Brasil para
servir de guia a’quelles que nelle se desejão estabellecer, traduzido para o português por A.
M. de Sam Paio, do Rio de Janeiro, e impresso na oficina de Silva Porto, no ano de 1822. É
uma obra pequena, de apenas 18 páginas, mas foi escrita com o objetivo de tranqüilizar os
possibilidades agrícolas. Em uma de suas viagens entre a Europa e o Brasil, Langsdorff trouxe
59
SILVA, Danuzio Gil Bernardino da (org.) Os Diários de Langsdorff. Tradução: Márcia Lyra Nascimento
Egg e outros. Editores: Bóris N. Komissarov e outros. Campinas: Associação Internacional de Estudos
Langsdorff; Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997. Vol. 1: Rio de Janeiro e Minas Gerais. Vol. 2: São Paulo. Vol. 3:
Mato Grosso e Amazônia.
49
colonos para trabalhar na Fazenda Mandioca. Em março de 1822 atraca no porto do Rio de
Janeiro um navio fretado em Bremen e que, além de pessoas pertencentes a sua família e
amigos, trazia 29 famílias de colonos alemães, o que totalizava 94 pessoas. O projeto era
assentá-los em sua fazenda, o que contou com o apoio do ministro José Bonifácio de Andrada
e Silva.
em 26 de outubro de 1829. A região onde nasceu e cresceu era rica em minérios. Após viajar
dedicou-se ao estudo e à escrita de trabalhos sobre minerais, entre eles The Mineralogy of
Derbyshire. No ano de 1804 partiu para a América Meridional a fim de explorar a região do
Rio da Prata. O desejo de empreender tal viagem surgiu em decorrência do trabalho realizado
acervo. Apesar do objetivo da viagem ser mais comercial do que propriamente científico,
devido à sua formação, bem como ao meio científico pelo qual circulava, podemos enquadrá-
lo no conjunto formado por homens de ciência, pelo interesse voltado para a coleta e pesquisa
de minerais. Sua vinda para o Brasil foi conseqüência dos impasses entre a Inglaterra e a
Espanha, que o impossibilitou de continuar na Região do Prata. Por isso, viajou para o Brasil,
do embaixador de Portugal em Londres, foi bem recebido pelo vice-rei do Brasil. Visitou São
Paulo e o Rio de Janeiro, de onde partiu em agosto de 1809, para conhecer as Minas Gerais,
acompanhado de uma escolta militar. Foi o primeiro estrangeiro que conseguiu autorização da
Coroa Portuguesa para percorrer as ricas regiões de minérios do Brasil. A edição portuguesa
foi feita na Impressão Régia, com licença e autorização do rei D. João VI, constando na capa
o brasão de Portugal. Sua gratidão ficou expressa na carta endereçada ao rei de Portugal e que
50
foi publicada no lado direito da primeira página em várias edições do relato, entre as quais a
in the interior of Brazil, particulary in the gold and diamond districts of that country ...
including a voyage to the Rio de la Plata, and an historical sketch of the revolution of Buenos
Ayres, no formato in-4º, acompanhado de ilustrações e figuras. Essa obra obtém grande
sucesso. Várias vezes reeditada na Inglaterra, foi traduzida para outras línguas, como
português, alemão, russo, sueco e francês. Também foi reimpressa nos Estados Unidos da
figuras representando o trabalho nas minas de ouro e diamantes e mapas, sendo um da região
apesar de reproduzir a carta endereçada ao rei D. João VI da edição portuguesa de 1819, não
possui o mesmo conteúdo. Enquanto a primeira contém uma parte referente à passagem por
Santa Catarina, na obra de 1819 não consta nada, sendo priorizada a descrição das Ilhas dos
tradução utilizada nesta tese é de Solena Benevides Viana sobre a edição londrina de 1822,
publicada no livro Ilha de Santa Catarina: relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII
e XIX.
60
MAWE, João. Viagem ao Interior do Brazil, com huma exacta descripção das Ilhas dos Açores por João
Mawe, inglez, authorizadas pelo Rei Fidelissimo D. João VI, Nosso Senhor. A benefício da Livraria do
Convento de S. Francisco da Cidade: obra promovida pelo R. P. M. Fr. Polidoro de N. S. da Lapa, Leitor
de Theologia e Bibliothecario da mesma. Lisboa: Na Impressão Regia, 1819. p. A2.
51
agosto de 1838. Sua família mudou-se da França no ano de 1792, exilando-se primeiro nos
Países Baixos, e posteriormente, fixando-se em Berlim, onde Louis-Charles, aos quinze anos
adotou o nome germânico Adalbert. Mesmo após o retorno de seus familiares à França,
e da literatura alemã. Juntamente com outros jovens, entre eles Wilhelm Neumann, Karl
Varnhagen von Ense e Louis de La Foye, formou um círculo de amizade e de discussões que,
filósofo, e também como poeta. Publicou em 1814 a obra Histoire merveilleuse de Pierre
Schlémihl, l’homme qui a vendu son ombre, muito bem recebida pela crítica e pelo público
leitor. No Brasil foi publicado com o título A singular história de Peter Schemihl, pela
Ediouro em 1993, e como A história maravilhosa de Peter Schemihl, em 2003, pela editora
Estação Liberdade. Sua paixão pela natureza manifestou-se desde a infância, como muitos
outros viajantes, mas somente passou a dedicar-se a ela após sua saída do exército. Em 1812,
após ter realizado viagens pelas montanhas, consideradas o jardim botânico da Europa,
financiada pelo governo Russo, deveu-se às suas relações e influências. Um amigo facilitou a
escolha de seu nome para integrar o grupo de cientistas que fizeram parte na expedição. Seu
interesse pela ciência foi, em grande parte, influenciado pela leitura dos relatos de viagens
escritos por Cook. Dedicou-se às ciências naturais, principalmente à botânica. Sua função no
“Rurick” era recolher plantas, insetos, sementes e outras amostras que interessassem a ciência.
52
Segundo ele, como estava integrado numa expedição de descoberta levada a cabo pela
marinha russa, seu trabalho era limitado pelo cronograma da expedição, o que dificultava seu
trabalho de observação, devido à brevidade das escalas. Isto também limitou seu trabalho
posterior, o da escritura do relato de viagem. Esse foi publicado numa edição conjunta, no ano
de 1819, no qual estavam relatos de vários dos membros da expedição. Após seu retorno da
viagem, foi nomeado diretor do Jardim Botânico de Berlim (1818). Somente 15 anos após o
originalmente Reise um die Welt 1815-1818. Foi traduzida para o francês com o título Voyage
autour du monde: 1815-1818. Infelizmente, não encontramos nenhuma edição brasileira dessa
obra. O que temos é a tradução de Dolores Simões de Almeida do fragmento que se refere a
Santa Catarina, publicado na coletânea de textos de viajantes que escreveram sobre a Ilha de
Santa Catarina. Além das obras citadas, Chamisso publicou comunicações científicas
especializadas e tratados, entre eles o Traité des plantes les plus nuisibles comme les plus
utiles, sauvages ou cultivées qui poussent en Allemagne du Nord. Em 1832 tornou-se diretor
cidade de Orléans, França, membro de uma família que possuía muitos domínios e de uma
considerável fortuna. Seus ancestrais serviram na marinha e seu pai foi preso durante a
para a Holanda para estudar comércio a fim de dirigir a refinaria de açúcar da família. Durante
o período revolucionário foi obrigado a viver no estrangeiro, o que permitiu que tivesse
contato com a língua alemã e inglesa. Após seu retorno à França, passou a dedicar-se
totalmente à botânica. Mudou-se para Paris onde travou contato com Laurent de Jussieu e
anatomia e os órgãos reprodutores das plantas, bem como para sua utilização na cura de
doenças. Através de contatos políticos conseguiu ser incluído como membro da comitiva
em 1º de abril de 1816 para o Brasil onde permaneceu durante 6 anos. Visitou o Rio de
Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Goiás, São Paulo, Santa Catarina e o Rio Grande do
Sul. Percorreu as bordas do Rio Paraíba e o entorno da cidade do Rio de Janeiro e de Belém.
para a Academia Francesa de Ciências, ocupando a cadeira deixada por Jean Baptiste de
Portugal. Era ligado a várias instituições científicas da Europa, como museus de História
maio (7 de abril a 6 de junho). Enquanto viajava, Saint-Hilaire fazia anotações em seu diário
foram trabalhados quando de seu retorno à França, resultando em diversas obras, como a que
quando de sua viagem, Santa Catarina era uma capitania, mas como Saint-Hilaire escreveu
1847, enquanto vivia e trabalhava em Paris, foi publicada pela primeira vez em 1851 sob o
título Voyage dans les provinces de Saint-Paul et de Sainte-Catherine. Integra a obra Voyage
61
Só para termos uma idéia, na folha de rosto de uma obra sua publicada em 1851 em Paris, consta sua biografia
e vínculos com instituições: “membre de l’académie des Sciences de L’institut de France, professeur a la faculté
des sciences de Paris, chevalier de la légion d’honneur, des Ordres du Christ et de la Croix du Sud, des
acadèmies de Berlin, S. Peterbourg, Lisbonne, C. L. C. de Curieux de la Nature, de la Société Linnéenne de
Londres, de L’institut historique et geographique Brésilien, de la société d’Histoire Naturelle de Boston, de celle
de Genève, Botanique d’Edimbourg, Medicale de Rio de Janeiro, philomatique de Paris, des sciences d’Orléans,
etc.”
54
Voyage dans la Province de Rio de Janeiro et Minas-Geraës, 2 volumes in-8º, Paris, 1830;
Voyage dans le district des diamants et sur le littoral du Brèsil, 2 volumes in-8º, Paris, 1833;
Voyage aux sources de San-Francisco et dans la province de Goyaz, 2 volumes, in-8º, Paris,
1847-48. Além desses, há um volume sobre o Rio Grande do Sul, a Província Cisplatina e as
realizada pelo Brasil, que foram reeditadas e traduzidas para outras línguas. Em 1928, durante
discurso, lamentava o fato desses textos ainda não estarem traduzidos para o português.62 Esse
problema foi sanado com sua publicação pela Editora Nacional, na década de 30.
artigos em revistas e anais, tais como: Memóries du Muséum, Annales des Sciences
Société d’Orléans. No Brasil é mais conhecido devido aos seus inúmeros relatos de viagens, a
maioria já traduzidos e publicados, alguns com mais de uma edição. No entanto, além de
entre os quais podemos citar Flora Brasiliae Meridionalis. Paris: Impr. A. Belin, 1825-1833,
3v.; Histoire des plantes plus remarquabels du Brèsil et du Paraguay. Paris: Impr. A. Belin,
1814-1826; Mémoire sur le système d’agriculture adopté par les Brésiliens, et les résultats
qu’il a eus dans la province de Minas Geraes Paris: Impr. A. Pilham de la Forest, 1827. A
lista é extensa, uma vez que Saint-Hilaire produziu muito, apesar dos problemas de saúde que
62
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem a Província de Santa Catharina (1820). São Paulo: Ed. Nacional,
1936. Prefácio.
55
fulminante de apoplexia. Seu herbário brasileiro foi legado ao Museu de História Natural de
Paris, seus desenhos originais da Flora do Brasil foram doados à cidade de Montpellier,
ano de 1812 a bordo do Regulus. Em 1816 assumiu o posto de oficial da saúde e pouco após o
pelo capitão Duperrey na condição de naturalista. Durante os anos de 1822 a 1825, tempo de
duração da viagem, foi encarregado das observações sobre todos os ramos da História
Natural. Em 1830 publicou um relato sobre essa expedição, com o título de Journal d’un
voyage pittoresque autour du monde, executé par la corvette la Coquille. Juntamente com M.
Garnot, o médico da expedição, redigiu a parte zoológica no relato oficial da mesma viagem,
sob o título de Voyage autour du Monde... publicada em 1829, 2 volumes em in-4º, Paris:
Arthur Bertrand, Librarie-Éditeur. Sob o mesmo título foi publicado em 1838 pela P. Pourrat
Frères Éditeurs. O trecho que estamos utilizando foi traduzido para o português por Gilberto
zoologia, com vários trabalhos publicados. Entre eles podemos citar: Manuel de mammalogia
d’ornithologie, 2 vol. in-18. Sobre o mesmo tema redigiu um tratado mais completo em in-8º
56
com atlas, publicado no ano de 1830-1831. Publicou também Histoire naturelle des oiseaux-
mouches, Paris, 1829-1830, no formato in-8º; Centurie zoologique, ou choix d’animaux rares,
com 100 pranchas originais desenhadas por Prêtre, 1830-1831; Histoire naturelle des
mammifères et des oiseaux découverts depuis la mort de Buffon, Paris: Livrarie Roret; Manuel
Encyclopédie des Manuels de Roret. Foi também o responsável pelo artigo “Taxidermie” no
sobre botânica e sobre medicina. Sobre esses últimos publicou Voyage médical autour du
monde exécuté par la corvette la Coquille. Paris, 1829; Manuel d’histoire naturelle médicale,
em 1833, 2 vol. em in-18. Em 1835 foi nomeado “premier pharmacien en chef de la marine”.
Em 1847 recebeu o título de oficial da Légion d’honneur. Morreu dois anos depois, em 1849,
na cidade onde nasceu e viveu, Rochefort. Seu irmão, Pierre-Adolphe, redigiu a parte de
botânica do Voyage de l’Astrolabe e publicou um Voyage aux îles Mangareva a partir das
realizado pelo artista viajante Louis Choris, que acompanhou a expedição de Kotzebue ao
redor do mundo e uma prancha produzida por Jean-Baptiste Debret, onde retrata uma vista de
Nossa Senhora do Desterro. Esse último não pode ser considerado como viajante vinculado ao
estudo científico. No entanto, sua obra será analisada a fim de perceber as semelhanças e as
diferenças em relação às pinturas de Louis Choris e também para analisarmos como o sistema
viagens com o objetivo de fazerem coleta de materiais para serem enviados para instituições
viajantes dos séculos XVIII e XIX possuem algumas singularidades, uma vez que estavam
espírito mais investigativo e científico, uma vez que eram herdeiros de uma tradição
vagabundo. Viajar para instruir-se é todavia um objetivo demasiado vago; a instrução que não
classificadores que organizavam tudo o que era coletado em herbários, caixas, gabinetes e
elaboravam catálogos. Para isso, utilizavam-se do sistema desenvolvido por Linné (1707-
1778). No entanto, o que mais distingue o viajante naturalista de outros viajantes é que seu
viajante no seu grupo de origem, acrescida por uma tradição iluminista, trabalhada e
defendida pela ciência do século XVIII.”64 Segundo a autora, naturalista é uma denominação
utilizada para definir um indivíduo que transitava por várias áreas do conhecimento científico,
Botânica respectivamente, são considerados como naturalistas, já que sua formação aprofunda
Jardin du Roi, mais tarde, Muséum National d’Histoire Naturelle, localizado em Paris.66 A
controvérsias, optamos por utilizar outro termo, o de cientista viajante. Antes de aventurar-se
63
ROUSSEAU, Jean-Jacques apud. PIERINI, Margarita. Op. cit. p. 166.
64
MOREIRA LEITE, Miriam Lifchitz. Op. cit. p. 163.
65
LISBOA, Karen Macknow. Op. cit. p. 33.
66
BOURGUET, Marie-Noëlle. L’explorateur. In: VOVELLE, Michel. L’Homme des Lumiéres. Paris: Ed. Du
Seuil, 1996. p. 286.
58
numa viagem, esses homens eram formados como cientistas, se consideravam e eram
população. Utilizamos aqui a definição mais simples de cientista, como um indivíduo que se
especializa em alguma ciência, no caso em questão, as ciências naturais. Aliás, foi o fato de
Além isso, outro aspecto que deve ser considerado é como são estabelecidos os
vínculos entre os viajantes e os habitantes das regiões com quem eles estão tendo contato e
que posteriormente serão descritos nos relatos. Ilka Boaventura Leite salienta que esses
vínculos irão influenciar na impressão tomada pelo viajante e que eles se caracterizavam pela
visitado uma relação que se baseava na transitoriedade. A convivência entre eles já estava
estabelecida: seria por um determinado número de dias, talvez meses, mas a priori já se sabia
que após algum tempo o viajante partiria, rompendo desta forma os vínculos com os que
ficariam. Essa característica, além do fato do viajante ser exterior ao grupo, possibilitava-lhe,
muitas vezes, ter acesso a informações que não necessariamente faziam parte de seu objeto de
estudo.67
dos relatos de viajantes estrangeiros como fonte histórica. Para ela, o fato de ser estrangeiro
ao grupo visitado, não somente por ter nascido em outro país, mas principalmente por não
compartilhar dos mesmos sistemas de orientação, como a linguagem e a etiqueta, além de não
forma diferenciada.68 As bases sobre as quais eram estabelecidas as relações entre o viajante e
os habitantes locais em alguns aspectos são consideradas positivas, enquanto que em outros
67
LEITE, Ilka Boaventura. Op. cit. pp. 96-97.
68
LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Op. cit. p. 162.
59
são vistas como negativas para a análise da sociedade. O fato do viajante “ser de fora” lhe
permitia perceber aspectos muitas vezes desconsiderados pelos habitantes locais, uma vez que
para esses eram corriqueiros. Por outro lado, não ser detentor dos códigos e normas do grupo
visitado poderia induzir a conclusões equivocadas por parte dos “estrangeiros”. Outra questão
salientada pela antropóloga Ilka Boaventura Leite é a indeterminação. O fato do viajante não
sociais, o que lhe permitia “ser aceito - ou não - a lugares onde, geralmente, a classe senhorial
com indivíduos de diferentes grupos sociais, o que lhe possibilitava o acesso a informações e
militares) como da população pobre e excluída, livre ou escrava, fossem eles descendentes de
europeus ou de africanos. Mas, por outro lado, também enfrentavam dificuldades. Estas
desconfiança gerada por sua atividade ou devido às questões políticas, o que suscitava
resistências por parte tanto da população como das autoridades locais. Um caso que ilustra os
cuidados tomados pelas autoridades locais foi a vistoria realizada pelo Chefe de Justiça
Foram interrogados sobre os motivos da viagem, bem como informações sobre o navio.
Segundo o naturalista, esses cuidados eram tomados pelo medo de espionagem. Outro caso foi
o relatado por Chamisso. Entre a população local existia a crença de que os russos eram
69
LEITE, Ilka Boaventura. Op. cit. p. 97.
CHAMISSO, Adalbert von. In: Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos
70
Ilka Boaventura Leite, e que dizem respeito às diferentes categorias de viajantes, devemos
análise, que engloba os viajantes que partiram da Europa a fim de realizar uma viagem
científica, vinculada ao estudo da História Natural, outro aspecto deve ser levado em
também estrangeiros devido à formação intelectual e social. Esses indivíduos vinham de uma
mesma região (a Europa), pertenciam a uma elite intelectual e, como viajantes que tinham a
função de fazer coleta de material para o desenvolvimento científico, eram detentores de uma
Apesar de todos esses fatores que aparentemente criam uma unidade entre esses indivíduos,
devemos salientar que nesse grupo estão envolvidos diferentes e distintos atores sociais. Para
Filho sobre o grupo de viajantes que desenvolveu coletas e pesquisas na região do Alto
Solimões durante o período que compreende os séculos XVII e XIX. Em seu texto, intitulado
Elementos para uma Sociologia dos Viajantes, o autor vai questionar a unidade dos viajantes,
uma vez que diferentes atores sociais fazem parte deste grupo, com funções intelectuais
diferenciadas, bem como possuem origens e circulação por esferas sociais distintas. Outro
aspecto que vai diferenciá-los é sua vinculação com a produção científica, o que significa
entre os estudiosos, dividindo-os entre os coletores, viajantes que tinham a função de recolher
existência dessa hierarquia não significa que não existiram viajantes que também eram
cientistas e que desenvolveram suas próprias análises sobre o material coletado. Só queremos
salientar que os cientistas, por estarem vinculados a instituições de pesquisa que financiavam
vários viajantes coletores, encontravam-se em uma posição privilegiada em relação aos outros
estudiosos.
parte da comitiva do embaixador francês no Brasil, duque de Luxemburgo, e sua viagem foi
financiada pelo governo de seu país, com a finalidade de fazer pesquisas e enviar coleções ao
Museu de História Natural de Paris. Percorreu, entre junho de 1816 a junho de 1822, as
Capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Província
Cisplatina (atual Uruguai), bem como as Missões Jesuíticas. Coletou 16.000 insetos, 2.005
aves, 129 mamíferos, e formou um herbário de 30.000 plantas contendo 7.000 espécies, mais
amostras de minerais e outros animais, como répteis e moluscos. No decorrer do período que
permaneceu no país, Saint-Hilaire fazia remessas freqüentes desse material para o Museu de
História Natural de Paris. O material botânico não foi submetido a um inventário taxonômico
ao local e data da coleta impossibilitou que especialistas pudessem utilizá-los.73 Como sua
viagem foi financiada pelo governo, e todo o material coletado pertencia ao Museu, outros
72
Ibidem. p. 118.
73
BUARQUE, Sérgio Buarque de (org.) História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II: O Brasil
Monárquico. v 3, 5. ed. São Paulo: Difel, 1985. p. 451.
62
estudiosos e cientistas tinham acesso a ele. Os anos após o retorno de sua viagem ao Brasil
poderia significar um impulso à sua carreira no mundo científico. No entanto, muitos não
chegavam a colher os louros da fama. Mais do que descobrir espécies era necessário
e isto poderia levar anos de estudos e pesquisas. Um exemplo disso foi a trajetória de Spix e
Martius após o retorno a Europa. Martius teve tempo para continuar os estudos do material
morreu logo após seu retorno, de uma doença contraída durante a viagem, o que não permitiu
que ele concluísse seus estudos e “silenciou sua importância no contexto da viagem.”74
científicas e faziam parte de expedições. Elas eram financiadas por instituições vinculadas a
algum país, recebendo subvenção estatal, como por exemplo a expedição comandada por Otto
von Kotzebue, financiada pela Rússia, que tinha como objetivo principal descobrir uma
expedição tinha como integrantes geógrafos, naturalistas e pintores, como por exemplo
Chamisso e Choris. O segundo grupo é formado por viajantes que realizam expedições
individuais, alguns com financiamento de instituições, como Saint-Hilaire, outros por conta
própria. A viagem poderia ser financiada pela fortuna pessoal ou então com recursos
adiantados que seriam pagos posteriormente, com a remessa de coleções e com a publicação
74
LISBOA, Karen Macknow. A Nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na Viagem pelo
Brasil (1817-1820). São Paulo: Ed. Hucitec/FAPESP, 1997. p. 51.
63
muito menos que estes fossem escritos de forma a atrair um público não científico como os
Pacheco não considera que a etnografia produzida pelos viajantes possa ser vista como
constituindo uma unidade, uma vez que “os diferentes tipos de viajantes obedecem a pressões
viagens, os cientistas viajantes possuem pontos de unidade, tais como o fato de serem
cientistas que possuem uma qualificação e passaram por um processo de preparação. Além
Outro aspecto que podemos utilizar para definir os viajantes é em relação aos
objetivos das viagens. Além do interesse pela coleta de exemplares da flora e da fauna, existia
dos costumes dos povos. Viajava-se para explorar o mundo físico, mas também o mundo
social e o mundo moral. Esse interesse amplo do olhar do viajante é sintetizado na fala de
Humboldt:
Meu relato de viagem [...] não conterá senão o que possa interessar a todo
homem culto: as observações físicas e morais, as condições gerais, as
características dos povos indígenas, as línguas, os costumes, o comércio das
colônias e as cidades, o aspecto do país, a agricultura, a altura das
montanhas, a meteorologia.77
Mas, entre todos esses interesses, o olhar dos viajantes naturalistas estava
voltado principalmente para a natureza americana, tema este marcado por inúmeras
75
OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. Op. cit. p. 134.
76
PRATT, Mary Louise. Op. cit. p. 72.
77
HUMBOLDT, Alexander von apud. PIERINI, Margarita. Op. cit. p. 166.
64
discussões. Os relatos de viagens não podem ser entendidos como uma peça discursiva
independente, mas como uma espécie de encruzilhada onde se encontram uma multiplicidade
sobre as quais ele formula seu próprio discurso. Esses viajantes partem da Europa com uma
formação e com leituras de outros estudiosos que os antecederam. Entre essas leituras, que
eram do conhecimento dos cientistas que trabalhavam com a História Natural, estão os
estudos desenvolvidos por Buffon, Linné, Humboldt, etc. Esses estudiosos travaram acirrados
debates sobre as características da América e sobre sua natureza, que influenciaram a forma e
pelos viajantes: cartas, relatórios científicos, diários e relatos de viagens. Além disso, caso o
viajante tivesse aptidão para o desenho, ou fosse um artista viajante, registraria sua passagem
pelas terras visitadas em pranchas ou em seu caderno de campo, podendo ser coloridas ou em
preto e branco.78
Nesta parte do texto iremos discutir algumas questões relativas aos relatos
produzidos pelos viajantes que estiveram na Capitania de Santa Catarina. Qual a importância
que os viajantes, ou seja, os autores dos relatos, davam à produção desses registros da
viagem? O que era relatado nestas obras? Esses relatos possuíam características comuns de
forma a definir um padrão ou cada viajante tinha uma forma de escrever diferenciada e única?
Já vimos que, conforme a época, as motivações dos indivíduos que empreendiam as viagens
eram distintas. A maneira de relatar as experiências vividas também eram distintas? Essas e
outras questões serão discutidas no decorrer do trabalho. Não temos a pretensão de respondê-
las, mas sim de iniciar algumas reflexões que nos permitam melhor trabalhar com esse tipo de
fonte.
viagem. Como o próprio nome estabelece, o relato de viagem torna-se possível a partir da
realização da própria viagem. Segundo Roland Le Huenen, “ver, fazer ver e fazer saber será
78
Essas pranchas poderiam ser desenhadas com lápis, ou então, o que é mais comum, pintadas utilizando
técnicas diversas, entre elas a da aquarela. A alusão colorida e preto e branco comumente remetem à fotografia.
Após a difusão da fotografia enquanto técnica de reprodução, esta também passou a ser utilizada pelos viajantes,
mas isto não significa que o desenho tenha sido descartado como instrumento de trabalho.
66
desde o início o programa do viajante.”79 Nem todos os relatos de viagem foram escritos ao
mesmo tempo em que a viagem estava sendo realizada. Muitos foram escritos posteriormente,
utilizando como referência as anotações feitas durante a viagem e também, em alguns casos,
pesquisando em relatos elaborados por outros viajantes que estiveram na mesma região. Não
podemos, no entanto, deixar de lembrar que foram publicados inúmeras relatos de viagens
imaginárias, onde o ato de viajar faz parte do esforço de evasão e de utopia. Num esforço de
fugir da realidade, vista como alienação, inferno e sofrimento, autores de ficção, poetas e
místicos escreveram obras nas quais a viagem é o tema principal e o texto está estruturado em
forma de relato. Nesses relatos de viagens imaginárias, a viagem não antecede a escrita do
relato. Entre as várias obras existentes, podemos citar as Viagens de Gulliver, de J. Swift,
escrita em 1722.80
literárias? Yasmine Marcil confessa sua dificuldade de definir o que é um relato de viagem.
Segundo ela, no século XVIII esse texto é um tipo de escritura que contempla ou então circula
Huenen salienta que “o relato de viagem apresenta portanto esta característica de constituir
um gênero sem lei.”82 Além disso, sua apresentação também pode ser diversa: diário de
viagem, cartas, autobiografias e ensaio antropológico. Mas são esses mesmos autores que
definem alguns aspectos comuns. Entre eles salienta-se que o relato tem uma função didática,
79
LE HUENEN, Roland. Qu’est-ce qu’un récit de voyage? In: LITTÉRALES. Nº 7: Les modèles du récit de
voyage. Centre de Recherches du Département de Français de Paris X - Nanterre. 1990. p. 16.
80
Fernando Cristovão salienta que “tão natural é a ligação do maravilhoso com a viagem que lhe dá acesso, que
também a viagem real dificilmente escapa a ser descrita em termos de ficção. Mas respeitando uma diferença
fundamental: na narrativa da viagem real, a estrutura assenta na verdade ou na verossimilhança, sendo os
elementos imaginários meros ornatos; na narrativa de viagem imaginária, é ao relato que cabe o papel de
ornamento.” CRISTOVÃO, Fernando. Para uma teoria da Literatura de Viagens. In: CRISTOVÃO, Fernando
(org.). Condicionantes culturais da Literatura de Viagens: estudos e bibliografias. Lisboa: Edições Cosmos,
1999. p. 51.
81
MARCIL, Yasmine. Recits de voyage et presse periodique au XVIII siècle de l’extrait a la critique. Paris:
École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2000. Thése de doctorat. p. 75
82
LE HUENEN, Roland. Op. cit. p. 14.
67
uma vez que ele tem a preocupação em ser um veículo de informações sobre outras regiões.83
Outros critérios comuns aos relatos de viagens produzidos nos séculos XVIII e XIX referem-
se à sua escritura. Os relatos são marcados pela alternância entre narração e descrição, a
um itinerário.84
Antoine Joseph Pernetty inicia seu relato com as seguintes palavras: “Foi a 23
(novembro 1763) que nos apercebemos pela primeira vez da terra do Brasil, cerca de 15
léguas de distância.”85 Aspectos semelhantes podem ser percebidos na forma como Adalbert
von Chamisso inicia o seu: “A 9 de dezembro (1815) observamos faixas de água esverdeadas,
menos largas do que outras de tonalidade cinza-amarelada. Exalam um cheiro podre muito
penetrante.”86 O início da parte referente a Santa Catarina nos dois relatos se dá pelo dia em
que a região é avistada. Como muitos outros autores de relatos de viagem, a forma escolhida
para iniciar foi a descrição da primeira impressão sobre a terra na qual eles estavam chegando.
e espacial em que a viagem se desenvolveu, muitas vezes com a citação do dia em que os
descrevendo a baía, os fortes e outros detalhes técnicos úteis à navegação. A primeira edição
de seu relato foi publicada em Berlim no ano de 1769, seis anos após ter passado pela Ilha de
Santa Catarina. Ele produziu um relato de viagem voltado para o estudo da História Natural.
Do total de páginas que escreveu sobre sua breve passagem pelo Sul do Brasil, ¾ foram
83
Ibidem. p. 19.
84
MARCIL, Yasmine. Op. cit. p. 71
85
PERNETTY, Antoine Joseph. In: Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos
XVIII e XIX. Op. cit. p. 78.
86
CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 232.
68
de Santa Catarina.87 No entanto, essa divisão não é estanque. O inventário das plantas e
animais encontrados, suas características físicas, sua utilidade prática são intercalados com
histórias do cotidiano das populações locais. Para fazermos uma breve comparação, na obra
de Chamisso, não se encontra essa divisão. Comentários pessoais sobre a região, sua
fato desses autores terem viajado em dois períodos distintos. Pernetty viajou durante os anos
durante os anos de 1815-1818. Mais de meio século separam as duas viagens, seus autores e
História Natural.
que em 1803 estava realizando sua primeira viagem à América. Segundo ele, “o panorama da
paisagem à nossa frente, coberta de flores multicolores, prometia-nos a todo instante o maior
prazer durante a nossa estada naquele lugar e o mais confortável bem-estar.”88 A beleza, a
exuberância da paisagem, nova para ele, foi o que mais lhe impressionou. A natureza, além de
campo de estudo, é fonte de prazer e deleite. Por causa da fiscalização alfandegária que
que viajava Langsdorff preferiu deslocar-se diretamente para a Ilha de Santa Catarina,
realizavam durante o período da viagem. Saint-Hilaire comenta que, ao final do dia, quando
87
Na edição que estamos utilizando como base para nosso estudo, 20 páginas foram dedicadas a História Natural
e 6 páginas para a descrição dos dias passados na Ilha de Santa Catarina. Ver: PERNETTY, Antoine Joseph. Op.
cit. pp. 80-108.
88
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 161. Para refletir sobre as mudanças na noção de conforto
durante os séculos XVIII e XIX, ver: SENNETT, Richard. Carne e Pedra: o corpo e a cidade na Civilização
Ocidental. Tradução: Marcos Aarão Reis. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003. pp. 273-277.
89
BECHER, Hans. Op. cit. p. 8.
69
paravam para dormir e após um dia de coleta, dedicava-se ao registro em seu diário: “minha
cama também foi armada dentro da carroça, sobre as canastras; foi também nela que o
prestimoso Laruotte guardou as plantas e que eu escrevi meu diário.”90 Pernetty, por sua vez,
registra o trabalho que teve para desenhar uma “mosca luminosa”. Enquanto estava na Ilha de
Santa Catarina ele havia coletado alguns exemplares do inseto, mas como os guardou, ainda
vivos, num cartucho de papel para desenhá-los no dia seguinte, os insetos conseguiram fugir
após furar o papel. Na região do Rio da Prata também foram surpreendidos pelos mesmos
insetos. Desta vez, Pernetty prendeu algumas das “moscas luminosas [...] em uma taça de
vidro coberta com uma outra [...] na manhã do dia seguinte tirei uma das taças e piquei-a com
um alfinete para fixá-la na madeira da mesa e fazer um desenho.”91 Como podemos deduzir a
partir das informações registradas nos relatos produzidos pelos viajantes, eles tinham a
preocupação de, além de coletar espécies vegetais e animais, fazer anotações sobre as
mesmas, fossem estas escritas ou desenhadas. Esse aspecto era de extrema importância para o
estudo científico, como salienta o relatório feito sobre a viagem de Saint-Hilaire e assinado
No relatório, lido numa sessão da Académie Royale de Sciences, Institut de France, consta
diário exato de sua viagem, anotou todas as informações que ele pode
adquirir sobre a estatística dos países visitados, sobre os costumes dos
habitantes, suas línguas, seu comércio, seus hábitos, etc. Viajando mais
especialmente para a pesquisa dos vegetais, ele fez a descrição das espécies
recolhidas, sobretudo daquelas que os brasileiros fazem uso para a medicina
e as artes. 92
viagem era valorizada, uma vez que possibilitaria a outros estudiosos obter informações
complementares que contribuiriam para o estudo científico do que havia sido coletado. Um
90
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 206.
91
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 21.
92
Rapport sur le voyage de M. Auguste de Saint-Hilaire dans le Brésil et les missions du Paraguay.
Elaborado e assinado por Geoffroy Saint-Hilaire, Desfontaines, Latreille, Brongniart, De Jussieu e o Barão
Cuvier. Paris, Imprimerie de J. Smith, 1823. p. 07.
70
exemplo de como o material coletado, juntamente com as anotações feitas durante a viagem,
renderiam vários anos de estudos, não somente do cientista viajante, mas também de colegas e
discípulos, é o caso de Spix e Martius. Logo após o retorno a Munique em dezembro de 1820,
trabalham em suas obras botânicas e zoológicas. Com a ajuda de seu assistente, Spix
conseguiu descrever cerca de 550 espécies desconhecidas da fauna do Brasil até 1826, ano em
que veio a falecer. A edição de seu trabalho, bem como de seus apontamentos, ficaram sob a
vem a falecer no ano de 1868. Após 48 anos dedicados ao estudo do material trazido do
Brasil, somente um terço do trabalho havia sido concluído. Foram necessários 66 anos, cerca
estruturam a partir do tempo cronológico, como muitos outros viajantes. Nesse ponto, os dois
relatos se assemelham, enquanto que em outros eles se diferenciam. Um dos aspectos é o que,
esse termo queremos salientar a presença do sujeito. O viajante, na redação de seu texto, se
coloca como um indivíduo que não só vivenciou a viagem, mas principalmente foi afetado
pela experiência do contato com o novo. Essa característica torna-se cada vez mais presente
nos relatos a partir do final do século XVIII. Na citação anterior, que inicia a descrição de
Chamisso sobre a Ilha de Santa Catarina, podemos perceber melhor essa questão quando o
autor diz que as águas da região litorânea “exalavam um cheiro podre muito penetrante”. O
autor utiliza-se de um sentido, neste caso, o olfato, a fim de acrescentar informações à busca
como critérios subjetivos interferem na redação de seu relato de viagem. Apesar de ser um
membro de uma viagem científica, os fatores que definem o que deve ser escrito não passam
necessariamente por critérios vinculados à ciência. Para ele, “somente aquilo que despertou
dentro do meu ser viva impressão é que transmito aos amigos, ainda que me faltem
palavras.”94
A presença do autor no texto pode ser constatada através dos tempos verbais.
ou, o que é mais comum, na primeira pessoa do plural, o que abarcaria também seus
companheiros de viagem: vimos, observamos são alguns dos mais usados. O viajante, apesar
narração, que é marcado pelo “eu” e pelo “nós”. Além disso, em alguns momentos os autores
dos relatos se colocam enquanto um indivíduo que, além de ter estado presente no local que
está descrevendo, foi afetado por tudo o que vivenciou. Chamisso, no início de seu texto
escreve: “quero ter a franqueza de dizer alguma coisa de útil sobre o Brasil.”95 É ele que vai
comentar sobre o país onde estão ancorados. Pernetty também relata, em alguns momentos,
opiniões e sensações pessoais, como quando descreve o sabor da banana: “tem também o
alimento muito bom. Eu não achei nada admirável; comi-a crua e cozida, madura e verde, sem
apreciar seu sabor.”96 Outro que não consegue abster-se em seu texto, talvez devido às fortes
impressões causadas pela paisagem que teria que reproduzir, foi o artista viajante Louis
Choris. Em seus breves comentários explicativos das pranchas que pintou, deixou registrado
94
CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 232.
95
Ibidem. p. 232.
96
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 104.
72
que na Ilha de Santa Catarina “descobrem-se sempre novas ocasiões para se extasiar ante a
algumas especificidades. Para Ana Maria Belluzzo, “o ver não é uma ocorrência natural e sim
um fato histórico, interligado aos critérios de valoração e aos modos operativos de que o
homem dispõe.”98 Salienta que as obras produzidas pelos viajantes constituem-se por ser uma
analisar a espessa camada da representação que se produziu a partir do olhar desses viajantes.
Essas fontes evidenciam versões, apontam a forma como as culturas se percebem e percebem
tanto do grupo visitado como das regiões de onde os viajantes vieram, ou seja, da Europa.99
possível, além da análise dos relatos, é compreendermos qual era a concepção de olhar para os
elaborada no século XVIII, entre as várias definições do verbo e substantivo olhar (regarder)
existe uma que é a relação entre o olhar e a visão. Essa preocupação não se encontra mais no
encontra-se o que diz que “não se vê sempre o que se olha, mas se olha sempre o que se vê.”
Para o viajante, influenciado pela ilustração, não era suficiente ver, era preciso ver tudo, e
para isso era necessário educar o olhar, adestrá-lo, dirigi-lo, para desta forma observar
97
CHORIS, Louis. In: Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX.
Op. cit. p. 245.
98
BELLUZZO, Ana Maria. A propósito D’o Brasil dos viajantes. Revista USP. São Paulo: USP, nº 1 (mar./mai.
1989). p. 18.
99
Ibidem. p. 10.
73
sobre o outro, enquanto um instrumento para reconstituir uma determinada visão do passado,
mas eles também são, bem como seus autores, parte do acontecer histórico. Nessa perspectiva,
entender o contexto que influenciou e formou este cientista viajante é imprescindível para
e sua formação científica, influenciava a forma como os cientistas iriam observar e descrever
as regiões visitadas. Segundo Michel Foucault, o principal fator que diferencia a forma de ver
dos viajantes europeus do final do século XVIII e início do século XIX em relação aos
viajantes que os antecederam foi o desenvolvimento da História Natural. Para ele a História
Natural nada mais é do que a nomeação do visível. Essa nova forma de olhar, no qual eram
exclusões e limitações. Por um lado é excluído o gosto, o sabor, o som, uma vez que estes
conhecimentos são marcados pela incerteza; por outro ado, a utilização do tato é limitada.
Mas nem tudo o que é percebido pelo olhar pode ser aproveitado, como por
exemplo as cores. Dessa forma, definem-se os objetos da História Natural: linhas, formas,
relevos, superfícies. Essa mudança de escala na observação torna-se possível com o uso do
100
ROUANET, Sérgio Paulo. O olhar iluminista. In: NOVAES, Adauto (org.). O Olhar. São Paulo: Companhia
das Letras, 1988. p. 128.
101
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. Tradutor: Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins
Fontes, 1992. p. 148.
74
outras formas de se alcançar o conhecimento, seja ele através dos outros sentidos ou através
do ouvir-dizer.102
Esse olhar, além de ser europeu, era também de um cientista, o que significa
para a grande maioria das pessoas e, principalmente, para aquelas que estavam sendo
observadas e que posteriormente seriam descritas nos relatos. Luciana de Lima Martins
alguém que a todo momento está negociando o que vê, as diferenças culturais com as quais se
depara. A partir de seu mundo, o viajante pensa o outro e o seu próprio mundo. A fim de
códigos. Isto não significa que o mundo “de fora”, o mundo que está sendo descrito pelo
viajante seja sempre passível de ser ordenado. Assim, existe uma brecha entre a intenção
oficial do viajante e o que realmente é produzido, uma vez que nem sempre o que escreve está
sob o seu domínio. As descrições de viagem comportam um espaço para a subjetividade, para
as vilas e as cidades onde se encontram, podemos perceber como o olhar, a visão, é utilizada
acompanhar o olhar do visitante sobre a cidade, enquanto este se desloca pelas suas ruas.
Desterro:
A cidade é dividida em duas partes desiguais por uma grande praça, que
ocupa quase toda a sua largura e vai em declive suave até a beira da água. A
praça é retangular e coberta por uma fina relva, medindo aproximadamente
102
Ibidem. p. 146-147.
103
MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos Viajantes: o olhar britânico (1800-1850). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. p. 36.
75
hospital, a Câmara Municipal, o Palácio do Governo, etc. Na seqüência, seu relato desloca-se
para a economia, para a população, para as mulheres, descrevendo-as fisicamente, bem como
seu comportamento diante de estranhos. Essas descrições são intercaladas por comparações
cidade num guia e que representa o viajante caminhando pela cidade. Pierre Berthiaume
uma cidade do Canadá) quando de sua viagem no ano de 1720. Essa forma de apresentar o
texto, como se, ao mesmo tempo em que está passeando pela cidade estivesse escrevendo,
segundo Pierre Berthiaume é “pura retórica”. Mesmo que Charlevoix tenha tomado notas
enquanto passeava, a redação da carta deu-se sobre uma mesa de trabalho e utilizando um
mapa da vila de Quebec feito pelo engenheiro Chaussegros de Léry. Segundo o estudioso, o
mundo passa a existir a partir do olhar, que lhe dá um sentido, investido pela subjetividade
Utilizando as reflexões de Paul Ricouer quando diz que o “fazer narrativo re-
significa o mundo na sua dimensão temporal, na medida em que contar, recitar, é refazer a
104
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 170.
105
BERTHIAUME, Pierre. L’aventure américaine au XVIII siècle. Du voyage à l’ecriture. Ottawa: Les
presses de l’université d’Ottawa, 1990. p. 351.
76
ação”106, podemos concluir que, no momento em que o viajante se utiliza da palavra escrita
para descrever ou narrar o que ocorreu durante sua viagem, seja através de cartas, diários ou
monografias, de certa forma ele está refazendo sua viagem, o que viu e sentiu. No entanto,
devemos também salientar que o relato, apesar da pretensão de restituir o que ocorreu, é um
texto que possui limites e cuja redação enfrenta dificuldades. Segundo Nicole Hafid-Martin,
para os cientistas viajantes, os relatos se opõem ao projeto puramente literário. Para eles, a
relação de viagem “é um suporte textual muito antes de ser o lugar de uma aventura; também
não são jamais a simples transposição dos diários redigidos durante a viagem.”107 Isto
significa que o trabalho da redação do relato passa por rever as anotações, ler outros relatos a
Entre os viajantes que analisamos, praticamente todos fazem, em algum momento, menção a
outros viajantes, mas o que mais se utiliza de referências e faz retificações, sem dúvida, é
Auguste de Saint-Hilaire.
Alguns recursos são largamente utilizados nos relatos. Entre eles encontram-se
o inventário do que foi encontrado e as comparações. Pernetty, na segunda parte de seu texto,
enumera os tipos de animais e plantas que encontrou na Ilha de Santa Catarina. Cada um é
acompanhado por sua respectiva descrição, na qual normalmente consta tamanho, formato,
cor e outras informações. Em alguns trechos consta o sabor, quando o que está sendo descrito
for comestível, e sua utilidade. O autor, em alguns momentos, utiliza comparações com
plantas e animais conhecidos dos europeus a fim de, através delas, possibilitar ao leitor ter
uma idéia mais precisa do que está sendo descrito. É o que ocorre quando ele descreve as
gralhas, nome “que os portugueses dão a uma espécie de ‘corneille’, cuja plumagem é de um
106
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Volume I. Tradução: Constança Marcondes Cesar. Campinas, SP:
Papirus, 1994. p. 124.
107
HAFID-MARTIN, Nicole. Voyage et connaissance au tournant des Lumières (1780-1820). Oxford:
Voltaire Foundation, 1995. p. 64.
77
belo azul terno. São, dizem eles, os corvos da região.”108 O inventário do que encontrou e a
comparação são recursos utilizados por Pernetty e por outros viajantes, entre eles Saint-
Hilaire, que se utiliza deles para descrever a população, ou então o nível de desenvolvimento
da região: “os agricultores da Ilha de Santa Catarina não são nem de longe tão ativos,
fazendeiros a quem ele se refere provavelmente são os que ele encontrou quando viajou pelo
interior das Províncias de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Georg von Langsdorff
“estas ‘cadeirinhas’ não são como as nossas, fechadas por portas e janelas de vidro; elas se
assemelham a uma poltrona provida de encosto bem vertical, coberta por um baldaquim
enfeitado [...].”110 Outros exemplos nos quais o viajante utiliza esse recurso se sucedem nos
textos pesquisados.
O que nos interessa é que essa forma de escrever foi utilizada por vários
ilusão de compreender e conhecer, uma vez que insere o novo em categorias mentais
conhecidas e largamente utilizadas, da mesma forma que inventariar o que foi coletado,
108
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 97.
109
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 174.
110
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 168.
111
LE HUENEN, Roland. Op. cit. p. 18.
112
BERTHIAUME, Pierre. Op. cit. p. 341.
78
descrevê-lo e posteriormente renomeá-lo com nomes em latim marca uma tomada de posse, a
estrutura que norteia a escrita do relato espelha, de certa forma, o mundo mental dos cientistas
‘bricolage’, na qual, para descrever um animal ou outra coisa desconhecida, é montada uma
viajantes que estão sendo estudados, este recurso não é muito utilizado. Provavelmente devido
decorrência da utilização entre os cientistas viajantes do desenho, recurso que foi mais
Avicennia nº 1665, a Escrofulariácea nº 1589.”113 Mais adiante ele também utiliza esse
com exceção de Pernetty. O método científico estabelecido por Carl Linné visava classificar
as plantas da terra, fossem elas conhecidas ou não, a partir de seu sistema reprodutivo. Este
método, que estabeleceu o latim como a língua a ser utilizada para a nomenclatura, se
difundiu por toda a Europa na segunda metade do século XVIII. Pernetty, como estudioso da
história natural, provavelmente conhecia o método, mas se absteve de utilizá-lo em seu relato.
Seria por que ele não concordava com este método ou por que ele ainda era restrito aos
113
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 175.
114
Ibidem. p. 199.
79
círculos científicos e seu texto tinha o objetivo de ser lido por pessoas que não faziam parte
botânica tornou-se a ciência mais representativa, uma vez que o “culto a natureza encetado
pelas Sociedades Lineanas que se difundiram pela Europa, inspiravam a idéia de uma
relação à numeração utilizada por Saint-Hilaire, não temos certeza, mas provavelmente os
textos, esses relatos de viagens eram escritos? Quem era o público leitor que motivava os
viajantes a redigir textos contando o que viram e vivenciaram? Alguns dados são importantes
para pensarmos sobre estas questões. No século XVII, o número de livros publicados cujo
tema versava sobre viagem somou 1.566 títulos. No século XVIII, esse número, entre títulos
franceses e estrangeiros, somou 3.540 obras. Segundo Yasmine Marcil, a prática de viajar
incentiva a leitura, a escrita e a publicação dos relatos de viagem.116 Durante o Siècle des
de um livro.”118 O relato de viagem permitia àqueles que não viajavam o acesso à regiões
115
CARNEIRO, Henrique. As influências culturais do sistema de classificação sexual da botânica de Lineu no
século XVIII. In: Atas Seminário Internacional Dimensões da História Cultural - Unicentro Newton Paiva,
BH. 1999. p. 7. Disponível em: < http: //kant.fafich.ufmg.br/~scientia/ art_carn.htm > Acesso em: 17 abr. 2002.
116
MARCIL, Yasmine. Op. cit. p. 4
117
Segundo Pierre Chaunu este período vai dos anos 1680 a 1780. No entanto esse autor comenta que esta
delimitação cronológica não se limita a esses anos, pois as idéias que integram o que é comumente conhecido
como período das Luzes não se difundiram de forma uniforme em todas as regiões e entre diferentes grupos
sociais.
118
BOURGUET, Marie-Noëlle. Le livre de voyage au siècle des Lumières. In: Encyclopaedia Universalis: le
grand atlas des littératures. Paris: Animex Productions, devenir studio. 1990. p. 307.
80
leitura, uma parcela da população européia tinha a sensação de viajar, de conhecer terras e
XVIII, o que deve ter significado também o aumento no número de leitores, o público
principal desse tipo de leitura era composto pelos “savants”119 e filósofos. Michèle Duchet,
bibliotecas. Entre os livros da coleção do barão d’Holbach, que foram vendidos em 1789,
geral, 7 viagens ao redor do mundo, 2 livros sobre as terras austrais, 26 sobre as Índias
Ocidentais (sendo que 13 eram sobre a América do Sul), 4 sobre a África, 1 sobre as
“Moluques”, 8 sobre as regiões do Norte e 70 títulos sobre as Índias Orientais (16 referiam-se
à China).120 Esse inventário mostra como a literatura sobre regiões não européias ocupava um
lugar importante na biblioteca de muitos estudiosos. No entanto, devemos lembrar que o gosto
filósofos e dos homens das ciências. Além disso, a análise de inventários de bibliotecas
particulares deixa lacunas, uma vez que seu número é muito limitado, bem como as
informações recolhidas. Mas, apesar das dificuldades, a autora conclui que a listagem dos
títulos permite acompanhar os debates que ocorreram entre 1750 e 1780, principalmente os
119
Savant pode ser traduzido por erudito ou por cientista, quando se refere as ciências.
120
DUCHET, Michèle. Anthropologie et histoire au siècle des Lumières. 1º ed. 1971. Paris: Albin Michel,
1995. pp. 68-71.
121
Ibidem. pp. 68-74.
81
Lumières é que, mesmo que seu interesse seja a singularidade e o insólito, o que o aproxima
do leitor da Idade Média e da Renascença, ele se caracteriza por ser menos crédulo e por
exigir uma garantia de autenticidade no que está sendo relatado.122 Carlo Ginzburg, em seu
estudo sobre Mennochio, um moleiro que viveu na região do Friuli durante o século XVI,
mostra como esse indivíduo leu e se apropriou dos textos aos quais teve acesso. Mais do que
ler, extraiu significado dos livros e construiu uma cosmologia que explicava o surgimento do
mundo e que se contrapunha às crenças da Igreja Católica. Outro aspecto que caracteriza esse
leitor é a leitura repetida. Durante sua vida, Mennochio teve acesso a poucos livros, mas esses
foram lidos várias vezes. Robert Darnton analisou outro leitor. Jean Ranson era um
comerciante na França setecentista, apaixonado por Rousseau. Entre os anos de 1774 e 1785
escreveu cartas à Société Typographique de Neuchâtel, editora suiça de livros franceses. Suas
cartas ao editor, de quem era amigo e antigo aluno, mostra um interesse em saber notícias de
l’ami Jean-Jacques. Rousseau vai estabelecer uma nova relação entre o autor e seu leitor. E
essa relação foi correspondida por Ranson, como mostram suas cartas ao editor. Comentários
sobre sua vida eram intercaladas com referências a Rousseau, com suas idéias sobre os
deveres entre maridos e esposas, de mães e pais com seus filhos bem como sobre
estabelecidas por Rousseau para tratar das coisas da vida. A banalidade foi substituída pela
Darnton, com a obra La Nouvelle Héloïse, Rousseau ensinou o público a digerir os livros, de
forma que a obra era absorvida pela vida. Seus leitores atiravam-se à leitura com uma paixão
122
HAFID-MARTIN, Nicole. Op. cit. pp. 61-62.
123
Ver GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela
inquisição. Tradução: Betania Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1987 e DARNTON, Robert. O
82
do geral com o particular. Mas como esses textos eram lidos pelos europeus? Tanto os
conjunto de referências que lhes permitia compreender ou recusar as diferenças, organizar sua
textos, em sua maioria religiosos, eram lidos em voz alta em serões onde participava a
corrompida encontrada nas cidades. Essas representações foram difundidas ao mesmo tempo
em que o campo, juntamente com seus habitantes, era visto como uma terra de preconceitos e
No que se refere ao serão, este era mencionado como um “lugar de trabalho em comum, do
jogo e da dança, dos contos e das canções, da confidência e dos mexericos, praticamente
nunca como espaço da leitura comunitária em voz alta.”126 Nesse sentido, as representações
dos serões camponeses revelam mais sobre as expectativas dos letrados do final do século
XVIII do que a própria realidade dos camponeses. As reflexões de Chartier sobre a leitura e o
grande massacre de gatos, e outros episódios da história cultural francesa. Tradução: Sonia Coutinho. São
Paulo: Companhia das Letras, 1986. Capítulo 6.
124
ROCHE, Daniel. Op. cit. pp. 30-37.
125
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Op. cit. p. 150.
126
Ibidem. p. 160.
83
interesse expresso pela quantidade de relatos de viagens encontrados nas bibliotecas de alguns
filósofos nos remetem a importância deste tipo de leitura na construção de uma imagem para a
própria Europa e sua cultura. Travar contato com a cultura de outros povos através dos relatos
vai estar presente no momento de estabelecer as bases das relações entre os grupos, sejam eles
étnicos ou nacionais.
Marcil, esse gênero literário se firmou no decorrer do século XVII como um meio de
e do mundo natural.127 A principal crítica feita aos relatos de viagens refere-se à sua
dos relatos são mal feitos e cheios de exageros e de contradições. No entanto, os relatos de
viagens são classificados pelas livrarias do século XVIII como história, o que confirma a
os viajantes que porventura desejassem escrever um relato e para que esse tivesse
credibilidade foram dados por Louis-Mayeul Chaudon na obra Nouvelle Bibliotheque d’un
Homme de Goût publicado em 1777. Para ele, uma escrita simples, sem excessos e frases
que contribuem para aumentar a credibilidade de um texto de viagem são o domínio da língua
e o tempo que o viajante permaneceu no local visitado. Entre os viajantes que estiveram no
morado em Portugal antes de sua viagem e o segundo já estava no Brasil desde 1816,
visitando e realizando estudos em outras regiões. Sobre os outros não temos informações
127
MARCIL, Yasmine. Op. cit. p. 36.
128
Ibidem. p. 41.
129
Apud. MARCIL, Yasmine. Op. cit. p. 47.
84
precisas. A Expedição de Bougainville, da qual fazia parte Antoine Joseph Pernetty, utilizou
como intérprete um português que havia permanecido em Paris durante 4 anos, como pajem
do embaixador de Portugal na França. Esse recurso era utilizado por muitos dos estrangeiros
que aqui chegavam, mas devemos salientar que o não conhecimento da língua local
conhecia o latim, mas sua tentativa de conversar nesta língua com um padre franciscano, que
estava presente no jantar oferecido pelo governador da Capitania de Santa Catarina130, não foi
bem sucedida. Segundo ele, “o bom padre ignorava esta língua, e acredito que este defeito é
cientistas viajantes. Enquanto para os primeiros ele é o resultado público da viagem, para os
segundos, seu papel limita-se a ser um comentário das observações feitas e dos resultados
alcançados no decorrer da viagem.132 Talvez isso explique o longo tempo entre a viagem e a
escritura do relato de muitos dos cientistas viajantes. Para estudiosos como Saint-Hilaire era
mais premente analisar o que foi coletado do que escrever um relato voltado para o público
leigo. Para Nicole Hafid-Martin, o que levava os viajantes que haviam empreendido viagens
científicas a escreverem seus relatos, durante o Siècle des Lumières, era uma combinação
entre o interesse das instituições em difundir o conhecimento e o interesse cada vez maior do
público por esse tipo de leitura. Para as instituições que haviam financiado a viagem, era
proveitoso divulgar os resultados, uma vez que poderiam reverter em mais investimentos,
130
A capitania de Santa Catarina compreendia a Ilha de Santa Catarina, atualmente pertencente ao município de
Florianópolis, vilas como Laguna e São Francisco e algumas regiões do continente, como São José da Terra
Firme, São Miguel, bem como outras áreas ocupadas a partir do final da década de 40 do século XVIII por
colonos açorianos.
131
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 82
132
BERTHIAUME, Pierre. Op. cit. p. 327.
133
HAFID-MARTIN, Nicole. Op. cit. p. 57.
85
dos viajantes garantiram para a literatura de viagem um grande sucesso e contribuíram para o
enriquecimento das diversas disciplinas constituídas. Além desses interesses, existiam outros,
como a divulgação das informações coletadas nas diferentes regiões por onde viajaram a fim
forma, é um conjunto de finalidades que vai permitir e sustentar a publicação dos relatos, e
conhecimento.
diário de campo e relato de viagem. Enquanto o primeiro era tido como “necessariamente
‘objetivo’ e, portanto, expurgado de tudo que possa cheirar a subjetividade”134, os outros dois
tipos de textos permitiam tratar de outros aspectos, como o cotidiano das expedições. A
autor fazia correções nas informações divulgadas por algum de seus antecessores. Já no que se
refere ao conhecimento dos habitantes locais este era re-elaborado de forma a se adaptar aos
Leite,
134
FIGUEIRÔA, Silvia. Apresentação. In: Os Diários de Langsdorff. Op. cit. p. XXXIX.
135
MOREIRA LEITE, Miriam. Prefácio. In: Os Diários de Langsdorff. Op. cit. p. XLV.
86
seus habitantes. Até este momento salientamos como a busca e a divulgação do conhecimento
influenciava e motivava a escrita dos relatos de viagens. Nosso interesse é analisar como as
discussões que estavam sendo travadas na Europa, entre cientistas e estudiosos, influenciou na
códigos e categorias mentais que mudam ou são modificadas conforme o contexto histórico.
Essas categorias são importantes, uma vez que é a partir delas que vemos, entendemos e
ordenamos o mundo ao nosso redor. Ao mesmo tempo que temos consciência que elas
existem, e que sociedades e culturas distintas possuem outras categorias, sabemos que uma
vez inseridos nelas, torna-se difícil percebermos de outra maneira o que nos cerca. Para Keith
Thomas “o sistema de classificação dominante toma posse de nós, moldando nossa percepção
ordenação e de compreensão do mundo que foi moldado numa época, o Siècle des Lumières,
jardins botânicos. Essas características comuns não significam, no entanto, que os discursos
proferidos, veiculados através de seus relatos de viagens, são homogêneos. Através deles
Europa sobre a natureza da América, uma vez que esta era entendida de maneira distinta pelos
cientistas e filósofos envolvidos nas discussões. Além disso, os debates que eram travados na
136
THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos
animais, 1500-1800. Tradução João Roberto Martins Filho. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 62
88
do ser humano.
abre espaço para uma outra visão sobre a relação homem/natureza. Essa visão tradicional era
Segundo essa, inicialmente, no Jardim do Éden, a convivência entre homens e animais era
pacífica. Com a expulsão do paraíso, a terra degenerou e o homem precisou lutar, através do
trabalho árduo, pela sua sobrevivência. Surgiram pestes, pulgas e outros insetos. Os animais
submissos através da força. Após o Dilúvio, a autoridade dos homens sobre os animais é
renovada. Segundo Thomas Keith, entre os pregadores ingleses dos séculos XV ao XVIII, era
corrente que as criaturas bestiais haviam sido criadas por Deus para servirem aos seres
humanos, para seu uso, e não por si mesmas. Essas necessidades poderiam ser práticas,
morais ou estéticas. Os pássaros e os macacos haviam sido criados para nosso contentamento,
o boi e o cavalo para labutar em nosso lugar, os cães para demonstrar lealdade e os piolhos
89
francesa do final do século XVIII e início do século XIX, o papel da natureza era central e, ao
mesmo tempo, origem primeira da felicidade social e o terreno onde o homem civilizado
exercia seu domínio, sua autoridade. É nesse período que o domínio da natureza aparece
Systema Naturae (O Sistema da Natureza). Na obra, publicada em latim, e que teve doze
edições entre 1735 e 1768, a sistemática de classificação era dividida em classe, ordem,
gênero e espécie. Os minerais eram divididos em pedras e fósseis, os animais em seis classes
em 1753, do estudo intitulado Species Plantarum. Em 1763, publica Genera Morborum, onde
os vegetais são ordenados em 11 classes e 325 gêneros. A partir desses estudos, difunde-se a
nomenclatura binária que denomina as plantas utilizando o nome do gênero seguido pelo
nome de sua espécie. É na botânica que seu sistema classificatório obtém melhores e
devido a sua reforma da nomenclatura das plantas, quando cria também uma nova língua para
137
Ibidem. pp. 21-30.
138
KURY, Lorelei. Op. cit. p. 10.
90
a descrição das plantas, distinta de tudo o que havia, e que descartava o conhecimento
acumulado.139
Carl von Linné serão descritos seguindo “os seguintes passos: nome, teoria, gênero, espécie,
atributos, uso e, para terminar, Litteraria.”140 Para ele a linguagem, as crenças, as histórias
que se tinha em relação à determinada planta deveriam ser deixadas em último plano, o que
possibilitaria que o próprio objeto analisado, com suas características, aparecesse. Segundo
Michel Foucault, na Idade Clássica (século XVII e parte do século XVIII), o estudo da
História passa a ser entendido de uma forma diferente: o estudioso deve pousar “um olhar
minucioso sobre as coisas” e “transcrever, em seguida, o que ele recolhe em palavras lisas,
neutralizadas e fiéis.”141 Esse novo significado, a partir do qual a História é entendida, passa a
influenciar também o entendimento da História Natural. A História passa a ser feita a partir de
uma nova vinculação das coisas ao olhar e ao discurso, e os documentos dessa nova ciência
tornam-se
utilização do Latim, língua nacional de ninguém, o que o colocava acima das rivalidades
nacionais. Este fator, combinado com o fato de seu autor ser de um país secundário na
139
DURIS, Pascal. Linné et la France (1780-1850). Genève: Droz, 1993. pp 28-34.
140
FOUCAULT, Michel. Op. cit. 1992. p. 144.
141
Ibidem. p. 145.
142
Ibidem. p. 145.
91
na Europa. Além disso, a abordagem de Linné, segundo Mary Louise Pratt, conseguiu
para Linné “o fio de Ariadne em Botânica é a classificação, sem a qual só existe o caos.”144
reordenadas segundo os critérios europeus de ordem e unidade global. Além disso, esse
sistema classificatório rompia com o conhecimento nativo, uma vez que os viajantes não
precisariam mais depender do saber local sobre as plantas, seus nomes e suas funções na
natureza.145
Keith Thomas salienta que uma das mudanças relacionadas com a difusão do
sistema lineano na Inglaterra, a partir de 1760, foi o aprofundamento do abismo entre “os
modos popular e erudito de ver o mundo da natureza”, principalmente devido à introdução das
terminologias em latim. Segundo ele, o que influenciou a implantação desse método único de
muitos dos nomes antigos possuírem conotação religiosa ou então serem considerados
grosseiros.146
1760. Entre seus divulgadores podemos salientar o avô de Charles Darwin, Erasmus Darwin,
que, em 1789, publicou um livro chamado “The loves of the plants”. A obra foi traduzida e
143
PRATT, Mary Louise. Op. cit. p. 56.
144
Linné apud PRATT, Mary Louise. Op. cit. p. 56.
145
Ibidem pp. 66-67.
146
THOMAS, Keith. Op. cit. pp 97-101.
92
analogias entre a fecundação das plantas a partir do número de estames e pistilos, a disposição
destes nas plantas e se os estames e pistilos são visíveis ou não.147 Linné descrevia flores cujo
estame e pistilo encontravam-se na mesma flor como “esposos que dormem na mesma cama”.
metáforas: o número de estames era considerado o número de machos, que poderiam ser
encontrados em quantidades variadas numa mesma flor; os estames inférteis eram chamados
flor. Na botânica, o sistema de classificação artificial criado por Linné era baseado nos
situação nas quais se dava a polinização, era carregada de conotações sexuais, o que acarretou
reações contrárias de setores da sociedade inglesa. Ao mesmo tempo que gerou reações
poderiam falar de um tema que se tornara tabu: a sexualidade. A partir de 1810, o sistema
lineano passa a perder espaço e a ser substituído por outros esquemas de classificação na
Linné. Seu principal contestador foi Georges Louis Leclerc, mais conhecido como Conde de
Buffon, nascido em 1707 em uma rica família burguesa e que ascendeu à nobreza. Iniciou
Em 1739, Buffon ocupou o cargo de intendente do Jardin du Roi, atualmente Jardin des
Plants, onde localiza-se o Museum d’Histoire Naturelle. Essa instituição, a partir do século
estabelecimento, esforçou-se para aumentar suas coleções através de contatos com estudiosos
147
Sobre este aspecto ver: CARNEIRO, Henrique. Op. cit. pp. 50-55.
93
de toda a Europa que lhe enviavam animais, plantas, minerais ou então informações sobre os
estudos que estavam sendo desenvolvidos. Ampliou o número de alas do Jardin du Roi e
conseguiu doações de coleções. Em 1748, Buffon anunciou seu plano de elaborar uma vasta
obra, intitulada História Natural, geral e particular. O estudo teria como objetivo descrever a
natureza inteira, desde os minerais até o homem. O plano previsto era escrever 15 volumes
entre os anos de 1749 a 1789. Apesar de contar com vários ajudantes, não conseguiu cumprir
o programa, uma vez que este exigia informações e conhecimentos não disponíveis na época.
Após sua morte foi publicado o sétimo e último volume. Os três primeiros volumes contaram
diferentes regimes teóricos: enquanto Linné sustentava que toda a natureza poderia ser
inserida numa taxonomia, Buffon a considerava muito rica, demasiadamente diversa, o que
características gerais que permitem determinar grandes conjuntos diferenciados (classes) onde
está inserida uma espécie, não em função de todas as suas propriedades, mas de algumas
delas, que estão presentes nas outras espécies. No que se refere aos vegetais, suas
características gerais são determinadas a partir dos órgãos de reprodução. Era sobre esse
que, para classificar, devia observar somente algumas partes específicas dos vegetais e
animais e não mais o conjunto. Além disso, Buffon defendia o princípio de que tudo o que
existia na natureza deveria servir para a classificação dos corpos naturais: sua reprodução, seu
nascimento, sua alimentação, seus costumes, o lugar de sua habitação, os serviços que eles
148
DEL CAMPO, Angelina Martín. Introducción. In: BUFFON. Del Hombre: escritos antropológicos. 1º ed.
francesa: 1749. Tradução: Angelina Martín Del Campo. México: Fondo de Cultura Econômica, 1986. pp.8-10.
149
FOUCAULT, Michel. Op. cit. 1992. p. 140.
94
Linné na França foi Antoine-Laurent de Jussieu. Em 1770 ele entrou no Jardin du Roi a fim
de desenvolver seus estudos. Dois anos depois tornou-se doutor em medicina e, em 1773,
Apoiando-se nos trabalhos de Linné, Bernard de Jussieu, seu tio, e de Adanson, Jussieu
propôs uma nova forma de classificar, no qual determinou seis características que eram
pertenceria o vegetal. Na França, os métodos que eram utilizados naquele momento eram o de
Tournefort, que apesar de precisar de reforma, tinha bastante espaço nos meios científicos
divisão em gênero e a nomenclatura de Linné. Nos anos de 1773-1774, o método foi adotado
pela École de Botanique de Paris. Por esse método, a semente, e não mais o órgãos sexuais da
plantas (pistilos e estames), passou a ser utilizada para definir o centro das divisões iniciais da
seu estudo intitulado Genera Plantarum, no qual estão estabelecidas 100 famílias (que ele
chama de ordem) e 1754 gêneros; destes, 76 até hoje são usados. Mas sua grande contribuição
foi a vulgarização do método natural na França. Além disso, apesar das críticas ao método de
Linné, também viu os pontos positivos que inclusive foram incorporados na criação de seu
BARSANTI, Giulio. Linné et Buffon: Deux visions différentes de la nature et de l’histoire naturelle. In:
150
Revue de Synthèse. III.ªS. Nºs 113-114, Janvier-juin 1984. Paris: CNRS. p. 97.
95
método. No entanto, independente do método, fosse ele artificial como o de Linné, ou natural
como o de Adanson e de Jussieu, todos eles supunham a fixidez das espécies. Isso somente
conhecimento da história natural passou a ser marcado por uma mudança na forma de olhar,
são olhadas da linguagem, nomeando as coisas que são visíveis. A partir do século XVII, a
observação das coisas passou a ser vinculada com a renúncia e a exclusão de outros
tato. Como dizia Rousseau, para herborizar era necessário utilizar somente um instrumento, a
lupa. A partir da difusão do sistema classificatório linneano, as viagens e seus relatos foram
organizados de forma diversa. Fosse ou não um cientista, o viajante passou a ser influenciado
pelos métodos de coleta e de estudo das plantas, principalmente devido ao fato da pesquisa
científica ter se tornado mais popular, uma vez que qualquer um, após o estudo do sistema,
poderia inserir as plantas em sua ordem ou classe, ou mesmo em seu gênero. Ao mesmo
ocorreu a exclusão do conhecimento popular sobre as plantas e os animais, que era baseado
essencialmente nas utilidades práticas que a natureza oferecia aos seres humanos.
a história natural inseriam-se na sociedade francesa letrada, citaremos a obra escrita por Jean-
abril
151
DURIS, Pascal. Op. cit. pp. 139-155.
96
de 1778, com a Décima Caminhada. Em 2 de julho desse mesmo ano, Rousseau morre após
ter realizado um de seus passeios matinais, quando aproveitava para coletar e herborizar
plantas. Para ele, as caminhadas significavam um contato com o não-eu, a natureza, além de
contribuir como um estímulo à meditação. Além disso, elas também eram motivadas pela
busca interior do autor da plenitude de seu ser, “sem obstáculos e em que posso
verdadeiramente dizer que sou o que desejou a natureza.”152 Dos dez textos, é o sétimo que
nos interessa. Nesse texto, o tema são as observações e os relatos das atividades botânicas, às
quais voltara a dedicar-se nos últimos anos de vida, após ter se desfeito de todo seu material
de botânica.
solitários e ociosos, uma vez que, para observar as plantas, os únicos equipamentos
necessários são um estilete e uma lupa. Para o autor, o hábito de procurar nas plantas somente
drogas e remédios manteve afastada a atenção das pessoas de gosto do reino vegetal. O
trabalho de Linné “retirou um pouco a botânica das escolas de farmácia para devolvê-la à
história natural e aos empregos econômicos.”153 A coleta de espécimes vegetais ainda era
relacionada à cura de doenças. Rousseau comenta que as pessoas que ele encontrava em suas
andanças para coletar plantas o tomavam como ajudante de cirurgião e lhe solicitavam ervas
para tratar doenças, tanto em seres humanos ou em animais.154 Essa confusão, por parte da
região de Garopaba, litoral sul de Santa Catarina, Auguste de Saint-Hilaire foi tomado como
152
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os devaneios do caminhante solitário. Tradução: Fúlvia Maria Luiza Moretto.
2 ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1986. p. 31.
153
Ibidem . p. 94.
154
Ibidem. p. 94.
97
médico e forçado por uma mulher a ir até sua casa ver um doente, que se encontrava paralítico
há muitos meses.155
a botânica, conjugado com a política dos governos europeus de apropriar-se e controlar esse
enviado para formar Jardins Botânicos abertos ao público. O interesse pela História Natural
motivou uma maior demanda por obras que descrevessem as viagens empreendidas por países
e regiões distantes. Era através dessas obras que se estabelecia a relação entre a ciência e o
público em geral. Além da demanda do público europeu, outro motivo foi o interesse dos
terras para colonizar.”156 Um exemplo desse interesse, não tão inocente da busca de
conhecimento, fica explícito na citação a seguir, que mostra qual era o objetivo da viagem
Museu de Paris e descobrir plantas próprias à tintura para serem introduzidas na Guiana
Francesa.”157 Essa viagem, como as outras empreendidas no século XIX, tinha uma finalidade
155
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 192.
156
PRATT, Mary Louise. Op. cit. p. 65.
157
SAINT-HILAIRE apud. OLIVEIRA, Paulo Rogério Melo de. O Naturalista e os Selvagens: a visão de
Saint-Hilaire sobre os índios Guarani no Rio Grande do Sul. Florianópolis: Dissertação de Mestrado.
Programa de Pós-Graduação em História. CFH/UFSC. 1996. p. 25.
98
nomear as espécies naturais, outro fator foi a eclosão da Revolução Francesa, em 1789. Com
ela, a autoridade intelectual de Buffon, seu principal opositor e intendente do Jardin du Roi,
passou a ser questionada pelo poder instituído, devido a sua vinculação com o antigo regime.
O método desenvolvido por Linné é divulgado como uma alternativa a Buffon. Conseguiu
Bienne a utilizava a fim de descrever as plantas encontradas em seus passeios matinais pela
ilha.159 Entre os cientistas que utilizavam o Systema Naturae em seus estudos e no trabalho de
Coroa Portuguesa de realizar uma expedição científica pela região do Rio Amazonas. Entre os
anos de 1783 e 1793, estudou a flora e a fauna da colônia portuguesa na América do Sul,
coletou material a fim de montar uma coleção de espécimes naturais, depositada na Academia
de Lisboa. Além disso, fez importantes anotações sobre os costumes e hábitos da população
da região. Suas anotações de viagem foram publicadas com o título Viagem Filosófica pelas
coletado na viagem foi furtado pelas tropas de Napoleão Bonaparte quando estas invadiram
Portugal, e levadas para o Museu de História Natural de Paris. É importante lembrar que o
158
DURIS, Pascal. Op. cit. pp. 28-30.
159
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Op. cit. p. 73.
99
porque a região era protegida pela Coroa, que, com raras exceções, limitava a entrada de
referia-se à imagem, fosse ela negativa ou positiva, que foi construída sobre o Continente
dos primeiros contatos dos europeus com a nova região. Entre elas, salienta-se os escritos de
Gonzalo Fernández de Oviedo, Padre Acosta, Herrera e Padre Cobo, que vieram a público nos
séculos XVI e XVII. O tema, no entanto, continuou gerando discussão, na qual estiveram
intensa entre os anos de 1750 e 1900. Nela estiveram envolvidos, diretamente ou não,
cientistas, religiosos, filósofos, literatos, entre outros. Muito material foi escrito, muitos
debates foram travados, com direito à réplica e até tréplica, como foi o embate entre De Pauw
estudioso italiano Antonello Gerbi, editado em português com o título de O Novo Mundo:
história de uma polêmica (1750 - 1900). Uma primeira versão desse trabalho foi publicado
em 1943, em Lima. Posteriormente, em 1955, foi publicada na Itália uma outra edição, com
inúmeros acréscimos e com outro título: La disputa del Nuovo Mondo: storia di una
polemica: 1750-1900. Novas edições, novos acréscimos e, em 1996, o livro foi traduzido e
100
editado no Brasil. Tomando como base esse trabalho discutiremos, na seqüência do texto, as
idéias e teses que eram debatidas nos meios científicos europeus sobre a América e os
americanos. Esta discussão justifica-se, uma vez que nos relatos dos viajantes que estão sendo
anteriormente, os viajantes estavam inseridos num meio intelectual e seu olhar é determinado
por uma infinidade de referências, de teorias, sobre as quais ele formula seu próprio discurso.
Dessa forma, os relatos de viagens não podem ser entendidos como uma peça discursiva
independente, mas como uma espécie de encruzilhada onde se cruzam uma multiplicidade de
discursos.
“imaturidade” das Américas. Segundo Antonello Gerbi, a tese nasceu com Buffon, a partir de
sua leitura dos relatos de viajantes que haviam visitado a América, uma vez que ele nunca
havia empreendido esta viagem. O estudioso defendia que não existiam espécies que
possuíam cidadania americana. Para ele, os animais que aqui viviam eram formas
degeneradas dos animais que existiam no Velho Mundo. Entre eles, cita como exemplo, a
puma e a anta. Enquanto a puma era entendida como uma degeneração do leão, uma vez que
era desprovida da juba, a anta era considerada como uma forma debilitada do elefante. Em sua
opinião, a experiência mais conclusiva era o que ocorria com os animais domésticos que,
exceção do porco. Outros pontos que utiliza para referendar sua tese sobre a América é a
encharcado difundiu-se e pode ser encontrada na fala de viajantes do século XIX, como
101
Auguste de Saint-Hilaire. Segundo ele, a cidade de São Francisco do Sul, localizada ao norte
da Capitania de Santa Catarina, era infestada de mosquitos por causa das matas que a
umidade, o clima quente, a vegetação espessa, tudo isto contribuía para a proliferação de
répteis, insetos e outros animais de sangue frio. Esses últimos são “as espécies de animais que
se arrastam no lodo, cujo sangue é água, e que pululam em meio a podridão” e que “são mais
Para ele, a natureza da América era possuidora de répteis e insetos em demasia, o que ocorria
natureza, resultava numa paisagem que, “úmida e prolífica mãe de animaizinhos minúsculos e
malvados, privada de feras magnânimas, devia apresentar aos olhos de Buffon todos os
Outro aspecto de sua teoria é a tese de que as espécies grandes eram mais
perfeitas e estáveis do que as espécies pequenas. Buffon partia do princípio de que o grande
era “melhor” do que o pequeno, que os animais maiores eram superiores e que a força física
era um atributo das espécies mais perfeitas. Essa visão aponta para os motivos do estudioso
desqualificar os índios devido a sua debilidade física. Além do grande ser superior ao
pequeno, o fixo era superior ao mutável e o grande era mais fixo do que o pequeno. Para ele,
“alterar-se equivale a decair”, o que significava que o estável, o fixo, era superior ao variável.
Buffon é herdeiro de um pensamento tão antigo como Aristóteles, que dizia que a espécie não
muda, e que tem algumas relações com o pensamento corrente na Idade Média, que via toda
160
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 143.
161
BUFFON apud. GERBI, Antonello. O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750-1900). Tradução:
Bernardo Joffily. 1º ed. 1955. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 23.
162
GERBI, Antonello. Op. cit. p. 24.
102
explicações defendidas por Buffon geraram oposições e discordâncias, como por exemplo a
opinião expressa por Diderot, que não concordava com o emprego dos conceitos “grande” e
“pequeno”. Para ele, sua utilização era perigosa para a compreensão da realidade e, além
métrica dos animais foi considerada como um dos primeiros erros a serem superados.163
relação rígida, casual, entre o vivente e o natural, a criatura e o ambiente. No entanto, ele não
se incluía no grupo dos “sistemáticos”, influenciados por Linné, contra os quais manifestava
sua desconfiança. Este grupo de estudiosos, em vez de observar o tronco, o aspecto, as folhas,
observava, “de microscópio em punho”, exclusivamente “os estames e, caso não se possa ver
os estames, nada se sabe, nada se viu.”164 Essa era a discordância de Buffon em relação ao
sistema de classificação desenvolvido por Linné. Isso não significa que o autor não partilhava,
humanos. Buffon, em 1749, publicou sua História Natural do Homem, parte que integra os
três primeiros volumes da Historia Natural, Geral e Particular. Nessa obra discutiu o lugar
homem, entendido como ser único e superior, numa escala de importância, antecedia os
animais domesticados que, por sua vez, eram considerados superiores aos animais selvagens e
carnívoros, os quais se submetiam às leis da natureza. Para ele, a superioridade do ser humano
em relação aos outros animais lhe permitia ser o amo destes, uma vez que eram desprovidos
da capacidade de pensar. Partia de um princípio fundamental de que o homem era distinto das
163
Ibidem. pp. 33-37.
164
Buffon apud GERBI, Antonello. Op. cit. p. 31.
103
outras espécies e que possuía uma unidade fundamental que era a faculdade de pensar, de
produzir idéias. A partir da utilização dessa faculdade, Buffon fez sua distinção entre os
homem civilizado que vivia em regiões de clima temperado. Para ele, os seres humanos eram
idênticos, faziam parte da mesma espécie, saíram do mesmo molde e as distinções existentes
eram devido às diferenças de clima, da alimentação e dos costumes. Esses podiam ser
variantes referiam-se à cor da pele, à forma e ao tamanho dos indivíduos, bem como a
maneira de ser dos diferentes povos.165 Buffon não foi o único a escrever sobre os seres
humanos, dando especial atenção aos americanos. Outros autores também se debruçaram
crença de que a história possuía um sentido que entendia o estado de civilização como seu fim
falha, à ausência essencial em relação aos outros seres humanos que já teriam percorrido este
processo.166
segunda metade do século XVIII, foi publicado em Berlim a obra do Abade Corneille de
Pauw167, que radicalizou as teorias em voga sobre o tema. Típico enciclopedista, atacava os
estado natural, ou seja, eram considerados brutos. No entanto, mais do que um animal
165
Para aprofundar as teorias do Conde de Buffon sobre os seres humanos ver: BUFFON, Georges Louis
Leclerc, Conde de. Del Hombre: escritos antropológicos. Tradução: Angelina Martín del Campo. México:
Fondo de Cultura Económica. 1986.
166
DUCHET, Michèle. Op. cit. 1995. p. 20.
167
De Pauw possuía cidadania francesa, mas sua origem é tema de discussões. Alguns autores dizem que nasceu
em Amsterdam, outros na região da Alsácia. Viveu durante algum tempo na corte de Frederico II, tendo morado
em Berlim e em Postdam.
168
GERBI, Antonello. Op. cit. pp. 59-60.
104
imaturo, os americanos eram degenerados e a natureza da América não era imperfeita, mas
decaída e decadente. Seu estado era selvagem, sem possibilidade de sair dele. Em seu furor
antiamericano, ele falava deles como crianças incorrigíveis e também como velhos precoces.
De Pauw retomou a tese sobre a fraqueza dos indígenas e os condenou como imorais, fracos,
que falou sobre os Incas e suas cidades. Discordou e negou o que Garcilaso169 escreveu sobre
a cidade de Cuzco, dizendo que esta não passava de “um amontoado de pequenas cabanas”
que foi completamente destruída pelos espanhóis. Dos Incas, dizia que, enquanto alguns não
sabiam ler e escrever, outros não sabiam falar. Segundo ele, tudo enfraquecia na América, até
o ferro, o pouco que se achava por aqui era mole e não servia para nada.170 Mas se algo
degenera, é porque em algum momento foi melhor. O que levou a essa desgraça o próprio De
Pauw não conseguiu responder a contento. Recorreu a fatores naturais, como o clima, mas
também a catástrofes, como tremores de terra, inundações, entre outros flagelos. A tese do
dilúvio, baseada nos ensinamentos bíblicos, também foi utilizada por ele para explicar a
degeneração do Novo Mundo. Essa degeneração teria sido resultado de um dilúvio, não
aquele do Gênesis, mas um outro que ocorreu somente na América, e que de certa forma
historicizou a tese de Buffon sobre o continente encharcado. Seu sistema de explicação tinha
como base a relação clima/homem versus inanimado/animado. O homem americano não era
distinguiam entre si devido a sua estupidez e a uma ausência total de costumes que não eram
torturas e antropofagia. Para De Pauw o homem selvagem era um homem sem costumes, sem
169
Garcilaso de la Vega, o Inca. Escreveu Comentarios Reales de los Incas. Também escreveu o Prólogo da
Historia Generale del Peru publicada em 1617. De Pauw discordava de suas conclusões sobre os Incas.
170
GERBI, Antonello. Op. cit. p. 56.
105
modos e sem razão, sendo igual em todo lugar. Essa universalidade atestou sua estreita
dependência em relação ao meio físico e ao clima. A percepção de que alguns grupos de seres
aparência científica, que encontra, neste caso, na diferença máxima que separa o mundo
philosophiques sur les Américains ocupa um lugar a parte no campo constituído pela história
favorecer a conquista efetivada pelos europeus. No campo moral, salientou a preguiça, que
diferenças entre os tipos americanos, para De Pauw estas eram pouco importantes, não
chegando a colocar dúvida sobre suas conclusões: o novo mundo era outro mundo e seus
viajantes sobre os peruanos (incas) e os mexicanos (astecas). Ou seja, aos americanos era
negada a possibilidade de ser histórico. Ao contrário do Buffon, o estudioso optou por uma
história longa para a América, sendo a natureza a principal causa ativa. Em suma, a
degeneração do americano não era um processo, mas um estado original de onde eles não
sairiam. A natureza o condicionava a não ter outra “história”. Seu estado era o selvagem, sem
171
DUCHET, Michèle. Op. cit. 1995. p. 18.
106
missão civilizadora do cristianismo, dos avanços possibilitados pelo governo europeu e pelo
Antoine Joseph Pernetty. Utilizou como base de sua reflexão o fato de tanto De Pauw como
Buffon não terem estado na América e, portanto, não terem conhecido a realidade e a
população da qual eles estavam falando. Ele, ao contrário, havia visitado a América e
conhecera pessoalmente o tema em discussão. Segundo Gerbi, a obra de De Pauw, “de tom
por demais acre e sarcástico, deveria atingi-lo, seja em seu entusiasmo pelo bom selvagem e a
natureza virgem, seja em suas tendências religiosas e humanitárias.”173 Em 1769, Pernetty leu
sua primeira refutação na Academia de Berlim, publicando um ano depois sua Dissertation
dos indígenas. Além disso, utilizou-se da autoridade de quem esteve na América e viu com
seus próprios olhos para recusar as teses que denegriam a América e seus habitantes. Citou
como exemplo os gigantes da Patagônia, para ele o argumento vivo contra a tese da
encontrados em outros autores, como Américo Vespúcio, Pingafetta e o Padre Acosta. Apesar
de sua presença ser ridicularizada, estudiosos do século XVIII, como Rousseau, Voltaire e
mesmo Buffon, eram partidários na crença de que os patagônios eram detentores de uma
172
DUCHET, Michèle. Le partage de savoirs: discours historique, discours ethnologique. Paris: Éditions la
découverte, 1985. pp. 82-104
173
GERBI, Antonello. Op. cit. p. 79.
107
recusada por estudiosos como Diderot e o abade Raynal, que diziam que gigantes existiam em
todos os lugares.174
Para defender a América dos ataques contra sua natureza, Pernetty citou
produtos que eram originários da América e que faziam sucesso na Europa, como o açúcar, o
cacau, as madeiras nobres etc.. Além disso, lembrou a existência de ursos enormes
encontrados no norte da América, das feras da selva do Brasil, dos tigres do Paraguai, tão
grandes quanto os do continente africano. Concordou que alguns animais domésticos haviam
degenerado em terras americanas, mas não aceitou que se generalizasse uma conclusão a
partir de um fato particular, como fazia De Pauw. Além disso, Pernetty viu na região do Prata
Europa. No entanto, no seu afã de defendê-los, acabou caindo no outro extremo, ou seja,
1771. Outros pensadores acabaram entrando no debate. Entre eles podemos citar La Doucer,
Paolo Frisi, Deslile de Sales, Abade Roubaud, Galiani, entre outros. O debate e as conclusões
defendidas por alguns estudiosos, como o próprio Buffon. Em 1777, ele publicou um estudo
no qual deixava de lado suas teses degenerativas e passava a defender que a América era um
Devido a sua influência sobre os viajantes do século XIX, entre eles Auguste
174
Ibidem . pp. 79-81.
175
Para saber mais sobre esta polêmica que se estendeu por vários anos ver: GERBI, Antonello. O Novo
Mundo: história de uma polêmica (1750-1900). Tradução: Bernardo Joffily. 1º ed. 1955. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
176
GERBI, Antonello. Op. cit. pp. 130-131.
108
durante 5 anos, de 1799 a 1804. Suas viagens e os posteriores investimentos a fim de tornar
público seus estudos consumiram sua fortuna pessoal. Em 1807, publicou Quadros da
Natureza, o primeiro de muitos textos escritos após a viagem a América. Sua produção
estendeu-se até a sua morte, em 1859, totalizando 30 volumes, entre eles seu trabalho mais
importante, Kosmos. Nessa obra ele definiu sua doutrina sobre o cosmos, entendida como a
relação entre a terra e o céu, a ação conjunta das forças do universo. Essa compreensão o
levou a analisar o particular inserido no todo. Humboldt não fez comparações entre a América
relação com os ambientes e com o universo. Foi o responsável pela difusão dos estudos sobre
a geografia das plantas, que estuda a distribuição das mesmas como um processo evolutivo.177
influência entre os cientistas, tanto da França, onde morou por vários anos, como na Prússia.
observação dos materiais. Diferia também de Linné ao valorizar a observação das espécies em
seu ambiente natural e em suas relações com as outras espécies que as cercam, na busca por
“uma visão orgânica do mundo”, muito influenciado por uma “ânsia romântica de
totalidade.”179 Segundo Gerbi, sua postura na polêmica sobre o Novo Mundo e seus habitantes
foi ambígua. Por um lado aceitava a tese da decadência, enquanto por outro rejeitava
totalmente as teses degenerativas de De Pauw. Para ele, o selvagem havia, por vários motivos,
embrutecido e se barbarizado. Discordava da tese de ser ele um primitivo, mas sim de que
177
As informações sobre Alexander von Humboldt foram extraídas dos seguinte livros: LISBOA, Karen
Macknow. A Nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na Viagem pelo Brasil (1817-1820).
São Paulo: Ed. Hucitec/FAPESP, 1997.; GERBI, Antonello. O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750-
1900). Tradução: Bernardo Joffily. 1º ed. 1955. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. pp. 130-131.
MOREIRA LEITE, Miriam Lifchitz. Livros de Viagem 1803/1900. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997.
178
GERBI, Antonello. Op. cit. p. 310.
179
Ibidem . p. 308.
109
havia ocorrido uma decadência a partir de uma condição mais elevada de civilização.
Devemos salientar que Humboldt, como os outros pensadores, estava se referindo aos povos
da América no século XVIII, ou seja, após mais de dois séculos de colonização européia. O
valor da civilização. Seu objetivo não era fazer comparações, fossem estas quantitativas ou
qualitativas, entre os dois hemisférios, mas sim “compreender cada organismo e cada
natureza da América e dos americanos foi, segundo Gerbi, “algo marginal”, e seus escritos
não foram motivados, a priori, por este debate. No entanto, seus textos enalteciam a natureza
extraordinária, que fugia ao alcance do conhecimento e do intelecto dos seres humanos. Sua
coleta e classificação. Uma natureza tão exuberante que, ao mesmo tempo em que excitava as
Humboldt foi o responsável pela reinvenção da América do Sul antes de tudo enquanto
natureza, descrevendo-a, como outros cronistas do século XVI, entre eles Colombo e
Vespúcio,
importante para analisarmos como os cientistas viajantes desenvolveram uma nova forma de
olhar para as coisas e de sistematizar os novos conhecimentos e objetos com os quais tiveram
180
Ibidem . p. 310.
181
PRATT, Mary Louise. Op. cit. pp. 220-221.
110
contato nas regiões para onde eles viajaram. No final do século XVIII e início do século XIX,
cenas exóticas.”182
182
MARTINS, Luciana de Lima. Op. cit. p. 9.
111
natureza local. Como ela foi descrita? De que maneira as concepções de natureza que estavam
sendo discutidas na Europa influenciaram na forma como a região do litoral de Santa Catarina
profissional fez com que esses viajantes tivessem uma forma distinta de olhar, como já
analisamos anteriormente. Além disso, temos a questão da viagem, que possibilitava aos
decorre somente da posição do viajante em relação ao meio em que ele se encontrava, ao seu
entorno, mas também pela interioridade que era marcada pelo tempo. Para Sérgio Cardoso, a
experiência do viajante
na Europa e contribuíram para a formação de um olhar prévio dos viajantes que vieram para a
Capitania de Santa Catarina. Além disso, essas imagens e representações não circulavam
somente entre os cientistas, mas, de certa forma, também chegavam ao restante da população.
CARDOSO, Sérgio. O olhar viajante (do etnólogo). In: NOVAES, Adauto (org.). O Olhar. São Paulo:
183
expectativas, como a demonstrada por Langsdorff quando esteve no Brasil pela primeira vez.
excitado por tão belas imagens de minha fantasia, mal podia aguardar o
retorno do sol para visitar a região paradisíaca. Confesso que minhas idéias
eram exageradas e tensas, mas apesar disto, quanto mais eu me aproximava
da terra, a realidade excedia minha expectativa.184
A imagem da América que esse viajante tinha gravada em mente era de “uma
terra que foi agraciada pela natureza em todos os sentidos, uma terra onde tudo viceja com
natureza do Novo Mundo era privilegiada, que nesse continente não era necessário trabalhar
como no Velho Mundo, que os alimentos cresciam por si mesmos, sem a intervenção do
homem, sem seu trabalho. Pernetty, após falar que os habitantes da Ilha de Santa Catarina
viviam na ociosidade, uma vez que o “pouco trabalho” era feito pelos escravos, concluiu que
“a terra produz quase tudo o que é necessário para viver, sem que se dêem ao trabalho de
terras americanas, Pernetty afirmou que nesta região não era preciso trabalhar, devido a
generosidade da natureza. Esse aspecto foi salientado por Sérgio Buarque de Holanda em seu
mostra na pesquisa que a América foi retratada como uma cópia do Éden pelos primeiros
visitantes, mas esta imagem foi construída em oposição à imagem que os europeus tinham de
184
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 162.
185
Ibidem. p. 162.
186
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 83.
187
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização
do Brasil. 5º ed. São Paulo: Brasiliense, 1992. Prefácio, p. X.
113
da natureza da América. Para Chamisso, “na Ilha de Santa Catarina, o europeu fica envolvido
Europa. Nossa singularidade era vista e compreendida quando em relação com o conhecido, o
habitual, ou seja, a natureza européia. E muitas vezes, apesar de nossa riqueza e de nossa
imponência natural, a América saía perdendo nas comparações, como podemos observar na
fala de Chamisso: “ainda que a América não possa concorrer com as gigantescas espécies
animais do Velho Mundo, desde o elefante até a cobra Boa, na natureza brasileira é a
que esteve na América em 1815, com as teorias difundidas no século XVIII por Buffon, que
defendia que os animais maiores são superiores ao menores. A ausência de animais de grande
porte na América, sinal inegável da imaturidade de nossa natureza para os partidários das
teorias buffonianas, acrescenta-se a presença abundante de insetos, que faz com que “os
brasileiros sofrem das incomodidades de todos os países quentes, atormentados pelos insetos,
de cuja picada não podem evitar devido à pequenez de seus tamanhos.”191 A combinação,
188
CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 232.
189
LESSON, René Primevère. In: Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos
XVIII e XIX. Op. cit. p. 271.
190
CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 232.
191
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 88.
114
comentamos anteriormente.
circulavam pela Europa sobre a América. A análise dos relatos dos viajantes possibilita
outros, a paisagem tornava-se monótona, com locais insalubres. No entanto, apesar de mostrar
que a natureza tropical não era homogênea e que havia regiões idílicas, mas também áreas
insalubres, Saint-Hilaire continuava pensando que, em um país localizado em “um clima tão
quente e em região tão fértil”, os seus habitantes não precisariam “trabalhar tanto quanto na
Europa.”192 Esses discursos eram muito comuns entre os viajantes. A dualidade presente nos
comentários dos viajantes remete as discussões sobre a América. Após séculos da chegada
dos primeiros europeus no Novo Mundo, não existia consenso entre os filósofos e estudiosos
Apesar de terem posições definidas antes de partirem da Europa, a experiência pela qual
estavam passando não lhes deixou imune. Uma experiência que foi relembrada quando da
tudo dá, mesmo sem esforço ou assistência e trato.”193 Segundo ele, o pouco desenvolvimento
não era devido à geografia ou ao clima, mas sim à ausência de empenho do governo em
povoar melhor essas regiões. Dessa forma, “poder-se-ia formar aqui, através de seus produtos
que quase jorram livremente da cornucópia da livre natureza, em poucos anos, um dos centros
192
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 149.
193
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 163.
115
comerciais mais importantes do Brasil.”194 A riqueza, para esses viajantes, não era produzida
com o trabalho dos homens, geralmente com a utilização do trabalho escravo, mas “jorrava
livremente”.
A fim de melhor descrever o que viam em suas viagens por terras distantes e
normalmente sendo tomados como padrão o conhecido, o familiar, ou seja, a Europa e sua
cultura. Isso era feito tendo em vista que os relatos de viagens seriam lidos por pessoas
comuns. Não tão comuns se levarmos em consideração o número restrito de pessoas que
tinham acesso à instrução e à leitura na Europa do final do século XVIII e início do século
XIX. Essas pessoas não estavam vinculadas as instituições científicas, mas muitas delas se
dedicavam ao estudo da História Natural por diletantismo, moda muito difundida naquele
período. O discurso dos viajantes, ao mesmo tempo que tentava definir uma identidade para a
população e a sociedade americana, também reforçava, por oposição, uma identidade para a
Mundo e o Novo Mundo. Mas distinções não ocorriam somente entre a Europa e a América,
também estavam postas no interior do próprio continente europeu. A sociedade européia nos
fins do século XVIII e século XIX era vista como uma sociedade dividida entre “duas
alguns países, como a França, a Inglaterra e a Prússia se viam como superiores em relação aos
194
Ibidem. p. 163.
116
Itália, a Espanha e Portugal. Era corrente entre os letrados da época a divisão entre duas
formas de existência: a instintiva versus a racional. Existia a noção de que, quando mais se
desenvolvesse a razão, mais a parte instintiva tendia a recuar. Por essa concepção, o pobre,
selvagem também pode ser percebido nas falas dos viajantes que estiveram em Santa
Catarina. Para eles, a natureza da América era um dos fatores que não permitia, ou retardava o
desenvolvimento de homens doentes, uma vez que eles compartilhavam da noção de que o
Pernetty iniciou a segunda parte do seu relato falando que “falta alguma coisa
para que a Ilha de Santa Catarina seja uma moradia encantadora”. A atmosfera carregada de
vapores que, com dificuldade, eram dissipados pelo sol e pelo vento, juntamente com os
odores fétidos e o ar que não circulava, tinham influências negativas sobre os habitantes
ilha [de Santa Catarina] [...] é muito cara aos naturalistas.”197 Novamente era a variedade e a
195
BRESCIANI, Maria Stela. Metrópolis: as faces do monstro urbano. Revista Brasileira de História: Cultura
e cidades. nº 8/9. Rio de Janeiro: ANPUH/Marco Zero, 1985. pp. 39-40.
196
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 86.
197
Ibidem. p. 86.
117
riqueza natural que a redimia de seus pecados. Alguns anos depois, também durante o verão,
como o viajante acima citado, Langsdorff esteve visitando a Ilha de Santa Catarina e teve
outra impressão sobre o clima. Apesar de as noites serem úmidas, “parece que o clima não
tem influências perniciosas sobre os moradores”198, exceto na região norte da capitania, onde
existiam muitos mangues e águas paradas. John Mawe, que passou por Santa Catarina em
1807, constatou que existiam regiões insalubres, principalmente durante a estação das chuvas.
Nessa época o solo ficava, “em grande parte, inundado, e no verão é infestado por terríveis
poderia ser corrigida, através da drenagem e da limpeza da área, mas “tal empreendimento é
árduo, e requer um povo mais ativo e prático.”200 Para ele, além da insalubridade do lugar,
existia outro problema: os habitantes. Mas, apesar dos insetos e da umidade em regiões e em
épocas determinadas, a “profusão das mais belas flores atesta a amenidade do seu clima. A
rosa e o jasmim florescem o ano todo.”201 Aparentemente, o fato de aqui crescerem plantas
comuns em seu país de origem, a Inglaterra, era uma prova de que a região tinha aspectos
positivos. Encontrar pontos em comum entre as áreas visitadas e as áreas de onde eles vinham
civilidade.
das populações visitadas e sobre como os habitantes do Novo Mundo utilizavam plantas e
outros produtos da natureza para o tratamento das moléstias. A explicação dada pelos
viajantes para a maioria das doenças comuns entre os habitantes locais era devido aos
miasmas. Saint-Hilaire comentou que o hospital, a Santa Casa de Caridade dos Pobres, apesar
198
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 165.
199
MAWE, John. In: Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX.
Op. cit. p. 194.
200
Ibidem. p. 194.
201
Ibidem. p. 190.
118
de pequeno, tinha sido construído em uma região alta onde “os ventos renovam ali o ar
constantemente”. Isso, mais sua localização afastada da cidade, fazia com que os habitantes
médicos da época. No século XVIII e XIX, até o descobrimento das primeiras bactérias,
realizadas em 1882 e 1885, respectivamente por Robert Koch e Louis Pasteur, acreditava-se
que as infecções ocorriam devido à ação exercida pelos “miasmas mórbidos” ou “miasmas
odoríferos”. Na Europa do início do século XIX, o tifo grassava entre os soldados e também
devido à forma como ela se espalhava, que era por causa do odores que exalavam dos doentes
e mesmo das roupas que eles haviam utilizado. Exemplo disso foi a infecção das operárias
que trabalhavam numa manufatura localizada na cidade de Gand, Países Baixos, para onde
a infecção propagava-se porque o indivíduo doente agia sobre o ambiente em torno de si,
febre amarela que se alastrou pela cidade do Rio de Janeiro em meados do século XIX,
águas servidas e estagnadas, praias que exalavam odores devido às carcaças de animais
jogados, bem como outras imundícies, combinados com o calor sufocante e a falta de chuvas
não permitiam que o ar circulasse, fazendo com que partículas venenosas se desprendessem
202
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 171.
119
do solo e subissem em direção à atmosfera, segundo alguns doutores mais atentos.203 No que
se refere a Desterro, existe um documento da segunda metade do século XIX, escrito pelo Dr.
João Ribeiro de Almeida, médico que residiu em Santa Catarina por causa do serviço militar.
Para ele, um dos fatores que elevava a taxa de mortalidade da vila e a causa de algumas
doenças era
...a evaporação d-agua das fontes publicas, pelo excesso de calôr, determina
um augmento consideravel de densidade do liquido, que promptamente se
putrefaz, pois que contém sem duvida principios organicos em dissolução,
que existião no fundo mais ou menos lodoso destas aguas estagnadas. 204
de saúde, uma vez que localizava-se afastado da vila. Além disso, os ventos constantes
contribuíam para evitar a propagação das moléstias. Mais do que um local de tratamento de
doenças, os hospitais eram locais onde as pessoas doentes eram isoladas ou deixadas pelos
familiares que não tinham condições de cuidá-las. A saúde dos habitantes de Nossa Senhora
do regimento, que era o responsável pelos dois hospitais que existiam na vila, um civil e o
outro militar.
encontrada na Provisão Real de 19 de maio de 1753. Esse havia sido instalado para prestar
atendimento às tropas, também eram atendidos os casais açorianos que se instalaram na Ilha
203
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996. pp. 64-66. Mais informações sobre este assunto ver também: LE GOFF, Jacques et. al. As doenças
tem história. Tradução: Laurinda Bom. 2ª ed. rev. Lisboa: Terramar, 1997.
204
ALMEIDA, João Ribeiro de. Ensaio sôbre a salubridade, estatística e pathologia da Ilha de Santa Catarina e
em particular da Cidade de Desterro. Apud. CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Medicina, médicos e charlatões do
passado. Florianópolis: Arquivo Catarinense de Medicina. Edição Cultural. 1977. p. 26.
120
de Santa Catarina e, até 1789, os pobres. Os casais tinham autorização para serem atendidos
às expensas do Estado Português durante os três primeiros anos após sua chegada.
O outro hospital que existia era a Santa Casa da Caridade dos Pobres, que
começou a receber seus primeiros pacientes no início de 1789. O hospital foi construído ao
lado da Capela do Menino Deus, com a ajuda de doações da comunidade, recolhidas pelo
Irmão Joaquim Francisco da Costa, e de uma pensão anual de 300 mil réis instituída pela
Rainha. Estava localizado na colina Menino Deus, próximo dos bairros da Toca e do Campo
Jesus dos Passos. Em 1856, o estabelecimento foi entregue aos cuidados de sete Irmãs de
Caridade, vindas da França, juntamente com dois padres Lazaristas. Após 8 anos, as irmãs
deixaram o hospital, que foi entregue aos cuidados de enfermeiros leigos. Esse hospital,
em 1820, os militares estavam sendo atendidos nas suas dependências, que ele chamou de
Hospital do Menino Deus. Segundo o viajante, “as salas eram perfeitamente iluminadas, mas
o prédio tinha o inconveniente de ser muito baixo, e por causa disso as janelas não podem, em
certos casos, ser abertas sem risco para os doentes.”205 Naquela época já havia o projeto de
varíola, esta última muito prejudicial entre os escravos. Além dessas, eram comuns os
venéreas, muito difundidas devido aos contatos sexuais precoces. Quando de uma gravidez e
parto, registrou que não existia parteira ou médico que acompanhasse as parturientes. Nesse
momento a mulher era acompanhada por outras mulheres que já haviam dado a luz. Esse tema
era do interesse de Langsdorff que, sempre que possível, quando entre mulheres, desviava a
conversa para o assunto. Era crença popular que, para evitar nova gravidez, a mulher devia
estender o aleitamento materno, o que ocorria em média até os três ou quatro anos da criança.
Apesar disso, a fertilidade era grande, encontrando-se famílias com 15 a 20 filhos. Para o
tratamento aos doentes, além dos hospitais, existiam três estabelecimentos que vendiam
remédios, mas que, na opinião do viajante, deixavam muito a desejar, não possuindo um
Langsdorff, até mesmo por sua formação primeira, analisou com mais cuidado
o quadro clínico da Ilha de Santa Catarina, se o compararmos aos outros viajantes. Esses,
muitas vezes concluíram que o grande problema era o clima, a combinação de calor e
207
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 179.
208
LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 273.
122
providenciou a cura para seus problemas, uma vez que “as florestas estão cobertas de arbustos
para os males do estômago. Além disso, foi testemunha da utilização da “tisana”, “uma
cozedura das extremidades dos brotos sensíveis e dos pequenos frutos da goiaba que
começam a vingar”210, por um negro livre a fim de curar a dor no ventre de um dos membros
da expedição, já tratado sem sucesso pelos cirurgiões da fragata. O mesmo negro curou uma
mulher que tinha dores nos tornozelos utilizando-se de ervas fervidas da região, cujo líquido
resultante foi friccionado sobre a pele. A cura foi rápida, de seis a sete dias. A utilização de
ervas e plantas para a cura de doenças é do conhecimento do ser humano há muito tempo e é
à tradição e mesmo a lendas e intervenções divinas. Pela fala de Langsdorff podemos perceber
plantas era utilizado pela população local. Um conhecimento que não era dispensado nem
mesmo pelo viajante. Ao mesmo tempo em que os viajantes vem para a América com uma
postura de pessoas que conhecem o que existe de mais avançado no estudo científico, por
outro lado eles são dependentes do conhecimento popular, que os habitantes locais possuíam
mostra a citação anterior, era valorizado, uma vez que permitia observar a utilidade prática
das plantas.
209
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 100.
210
Ibidem. p. 105.
123
boticários. Registros escritos da utilidade medicinal das plantas foram encontrados no Egito,
3.000 a. C., na China, 500 a. C., na Grécia e no Oriente Próximo, também antes de Cristo. No
medicina criada em Salerno no século IX, e que por mais de três séculos foi o berço da
renovação da medicina. Nessa escola eram tratados os cruzados que voltavam da Terra Santa
também em Salerno que veio à luz alguns tratados de medicina, como o Circa instans, de
1150, e que enumerava 229 plantas vegetais. Outras obras que surgiram posteriormente foram
atuava desde o século XI. O conhecimento sobre ervas ampliou-se com a descoberta da
ervanário. Muitas cidades possuíam pequenos jardins que ficavam sob a responsabilidade de
escola de medicina. Em Paris, século XVI, existia um pequeno Jardim do Rei, localizado na
enferma, e também para servir de local de aprendizado para os futuros médicos, levou o Rei a
fundar, em 1633, o Jardim Real de Plantas Medicinais, ou Jardin du Roi, atualmente o Jardim
de Plantas, localizado na cidade de Paris. Na França, entre 1767 e 1941, existia a profissão do
ervanário, regulamentada pelo Estado, inclusive com exame de acesso para os futuros
plantas e outros produtos naturais na cura de doenças era uma prática difundida e muito
Nos relatos podem ser encontrados inúmeras passagens onde são comentados
as utilidades práticas das plantas que estavam sendo coletadas e descritas. Essas eram
utilizadas tanto para o tratamento de doenças como para outros fins. Plantas desconhecidas
dos europeus, e que eram utilizadas pelos habitantes locais despertavam o interesse dos
Em uma casa mais afastada, onde íamos tomar alguns refrigérios, a mulher
que nos serviu estava ocupada em rasgar folhas compridas e úmidas,
colocando-as às costas, uma espécie de cana muito comum ao longo dos
bosques e dos caminhos. Ela tirava uma espécie de filamento verde e muito
fino, quase como a seda descruada, tingido de um verde pálido. Ela nos disse
que fixava em seguida esta substância filamentosa, para fazer linhas e fios de
pesca, e que eles duravam muito tempo. Talvez pudéssemos empregá-los
também para outros usos.212
maior interesse pela utilização medicinal das plantas nativas. Mesmo no relato de Langsdorff,
que descreveu as condições de saúde na vila de Desterro, e que era médico, não encontramos
novas informações. No entanto, esse desinteresse não significava desconhecimento, uma vez
que, ao falar das farmácias, que somavam três na vila, salientou o pequeno estoque de
rícino.213 Uma explicação possível para o interesse de Pernetty pode ser o próprio
utilidades medicinais de muitas das plantas nativas da América já eram difundidas na Europa.
A riqueza, muitas vezes oculta ou desconhecida, era outro dos interesses dos
viajantes quando saíam para realizar a coleta de material. A prioridade não era para o que os
homens tinham desenvolvido, o que eles tinham produzido, até porque o que eles
encontravam aqui era “menos civilizado” em relação à sociedade de onde eles vinham e com
a qual eles estavam acostumados. Esse aspecto dos relatos dos viajantes será analisado de
maneira mais aprofundada nos capítulos 6 e 8. O olhar do viajante cientista estava preparado e
olhos de todas essas infelicidades para contemplarmos as belezas da região que lhes serve de
palco.”214 Era a natureza, sua flora e fauna, que interessava aos cientistas viajantes, este era o
seu objeto de estudo. No caso dos estudiosos da natureza que seguiam o sistema de
conhecer o sistema reprodutivo a fim de classificar as plantas, como é salientado pelo seguinte
comentário: “em outra época do ano eu teria certamente recolhido uma grande variedade de
salientado por Adalbert von Chamisso ao citar vários estudiosos que estiveram pesquisando
no Brasil. No entanto, muito ainda existia a ser pesquisado, uma vez que
Podemos constatar pela citação que relatos de outros viajantes foram lidos por
Chamisso antes de escrever o seu próprio relato, ou mesmo antes de embarcar na viagem de
formados por cientistas circulavam entre si, influenciando-se mutuamente. Outro ponto que
podemos constatar nessa fala é a busca pelo conhecimento e de como este ainda encontrava-se
e animais, alguns extremamente detalhados, mesmo naqueles cuja prioridade não era o estudo
214
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 168.
215
Ibidem. p. 190.
216
CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 233.
126
e descrição da História Natural, como no caso de Langsdorff, que apesar de estar numa
animais, principalmente borboletas, dizia que a “história natural não é o objetivo desta
maior do viajante era mesmo as borboletas, no que foi muito feliz, pois encontrou no
continente, na região que atualmente pertence ao município de São José, um morador que
dedicava-se à coleta destes insetos a anos e possuía uma extensa coleção. O contato com o
colecionador nativo foi de grande ajuda para o enriquecimento de sua coleção, uma vez que
ele conhecia os melhores lugares para encontrar insetos. Os locais pesquisados tinham tanto
insetos que
coleta de insetos. Este viajante podia contar com a presença de um acompanhante, “um rapaz
português muito vivo” que foi contratado e que “carregava os caixotes e bebidas” enquanto
217
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 179.
218
Ibidem. p. 172.
219
Ibidem. p. 173.
127
Langsdorff “levava as redes, alçapões e receptáculos botânicos para insetos, facas e outras
ferramentas.”220
relato de Pernetty. Segundo ele, a singularidade dos animais e das plantas da região
compensavam de certa forma o abandono da natureza. O que mais lhe chamou a atenção foi a
enorme quantidade de espécies diferentes de pássaros, “onde a natureza parece ter ostentado
diferentes animais e também as plantas, muitas vezes apelando para comparações com outros
torcaz, com as penas mais compridas, de um cinza azulado, assim como os pés, armados de
possíveis utilidades do que encontrassem no Novo Mundo e que poderiam vir a ser
molusco que produz uma tinta vermelha, denominada pelos antigos de púrpura, e que os
nativos utilizavam para tingir o algodão. Apesar de cada molusco produzir uma quantidade
220
Ibidem. p. 172.
221
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 95.
222
Ibidem. p. 96.
223
Ibidem. p. 96.
128
ou mesmo para uma viagem individual, eram altos e não se justificam somente pelo interesse
estavam estreitamente vinculados. Um dos objetivos do Jardin des Plants de Paris e que
condições naturais diferentes de sua região de origem. Entre o final do século XVIII e o início
do século XIX, André Thouin trabalhou na instituição de pesquisa e foi o principal naturalista
plantas e árvores que poderiam vir a ser úteis à economia doméstica e rural, a aclimatação e a
homem.225 Em todas as viagens organizadas pelo Jardin des Plants que Thouin ajudou a
preparar tinham entre seus objetivos a coleta de sementes e de espécimes vegetais úteis para a
224
MAWE, John. Op. cit. p. 195.
225
KURY, Lorelei. Op. cit. pp. 210-211.
129
A partir das falas trabalhadas nas páginas anteriores podemos constatar que
existia uma representação de que na América a natureza era rica, farta, provedora. O homem
não precisava trabalhar tanto para garantir seu sustento como ocorria na Europa. Mas isso não
significava necessariamente um ponto positivo, já que essa fartura, essa facilidade foi
responsável pela criação de uma sociedade na qual o trabalho e a previdência não eram
valorizados. Outro ponto era que, ao mesmo tempo em que a natureza era farta de animais e
plantas úteis para o ser humano, era rica também em insetos perniciosos à sua saúde. A
natureza úmida enfraquecia a saúde, da mesma forma como a fartura enfraquecia o caráter dos
seres humanos que viviam na região. Apesar da maioria dos viajantes louvarem a natureza
americana, bem como outras características locais, em vários momentos eles reproduziram
concepção de natureza que está presente nos relatos dos viajantes. Apesar de termos
formação dos cientistas, achamos necessário aprofundarmos neste capítulo duas correntes
viajantes falaram sobre o que encontraram no litoral de Santa Catarina, principalmente na Ilha
[...] ainda mais quando é o caso de uma terra que foi agraciada pela natureza
em todos os sentidos, uma terra onde tudo viceja com inexcedível beleza e
garbo imagináveis. 228
Não se pode dizer que a natureza seja risonha no litoral do Brasil. As escuras
matas que cobrem as montanhas têm qualquer coisa que lembra os sombrios
versos de Ossian; entretanto, a beleza do céu e os brilhantes efeitos de luz
resultantes do fulgor do sol tiram à natureza o que ela tem de
demasiadamente austero e lhe dão uma majestade desconhecida nas nossas
regiões.230
imagens. A natureza era “viçosa, gigantesca”, um lugar “onde tudo viceja” uma vez que esta
“terra foi agraciada”. Em contraposição, a região era “insalubre” para o homem que desejasse
gozar a vida, com matas “sombrias” e uma “majestade desconhecida” que somente se
mostrava com os raios de sol. No entanto, ela era muito “cara aos naturalistas”.
viajantes não possuíam uma opinião consensual no que se referia a natureza encontrada na
região de Santa Catarina. Isso não chega a ser uma surpresa se levarmos em consideração os
Outro ponto que podemos considerar são as diferentes concepções filosóficas, estéticas e
literárias do período que possuíam distintas imagens e concepções sobre o campo, a natureza
e a sua relação com o homem. No século XVIII e no início do século XIX devemos
Mas, segundo Sérgio Paulo Rouanet, ele pode ser entendido como uma tendência não limitada
a nenhum período específico, caracterizando-se como uma atitude racional e crítica. Tem
como objetivo o uso da razão para construir uma nova sociedade e distingue o movimento da
volume foi publicado em 1751 e o último concluído em 1772. Os autores de seus verbetes
entanto, suas influências mantiveram-se até a Revolução Industrial. Segundo Pierre Chaunu,
também era influenciava pela religião, a qual estavam vinculados os diferentes grupos
Gales, do Sul da Escócia, dos Países Baixos, de uma parte da Alemanha Ocidental e
Meridional, da Suíça, de uma fração da Áustria alpina e Viena, da Itália do Pó e Veneza, das
Lowlands, da Renânia e de um pedaço do Peel irlandês. Além disso, “a Europa das Luzes só
existe no cume, um cume cada vez mais estreito à medida que se passa, no espaço, de oeste
para leste, quando se recua no tempo de 1770 para 1680.”232 No Iluminismo, a razão tornou-
se o cerne de sua filosofia, a faculdade policiadora da imaginação. Além disso, a análise era o
por último, compará-los.233 Esses passos também eram seguidos pelos cientistas,
231
ROUANET, Sérgio Paulo. O olhar iluminista. In: NOVAES, Adauto (org.) Op. cit. p. 125.
232
CHAUNU, Pierre. A Civilização da Europa das Luzes. Volume I. Tradução: Manuel João Gomes. Lisboa:
Editorial Estampa, 1985. pp. 23-24 e 67-68.
233
MONGELLI, Lênia Márcia de Medeiros. Introdução. In: A Estética da Ilustração: textos doutrinários
comentados. São Paulo: Atlas, 1992. pp. 19-20.
132
incapacidade de obter respostas para os problemas do universo, uma vez que por um lado a
razão idealizava um mundo perfeito e, por outro lado, a experiência sensível mostrava uma
realidade injusta e cruel. Para resolver esse dilema recorreu-se ao conceito de providência.
Seria por meio dela que o homem superaria suas limitações, uma vez que a natureza dotou os
seres humanos dos princípios de justiça, o que lhes permitiria o bem comum e o progresso. A
concepções começaram a sofrer críticas, por volta de meados do setecentos. Na França, uma
dessas vozes pertencia a Jean-Jacques Rousseau, que entrou em conflito com o culto à
Romantismo.
algumas regiões da Europa difundiu-se entre a elite letrada o gosto romântico pela natureza
enquanto no século anterior o interesse esteve voltado para a matemática e a física. O conceito
desmancham de todo a clara linha da razão.”235 Segundo Antônio Cândido, a natureza para os
românticos passa a ser considerada o cosmos, o mundo, cheio de graça e imprecisão. A partir
dessas mudanças o poeta romântico passa a ter novas posturas, tais como o isolamento e a
234
GOMES, Álvaro Cardoso & VECHI, Carlos Alberto. Introdução. In: A Estética Romântica: textos
doutrinários. São Paulo: Atlas, 1992. p. 13.
235
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. São Paulo: Martins
Livreiro. 1957, vol. 1. p. 59.
133
crença de possuir uma missão a cumprir. A palavra é entendida como incapaz de expressar
A influência das concepções românticas foi destacada por Karen Lisboa em seu
Humboldt, esses viajantes, como inúmeros outros, saíram das paisagens conhecidas da Europa
em busca de regiões estranhas e esquecidas, atrás de uma natureza original, onde o homem
ainda não havia tocado. O gosto por viagens longínquas estava ligado ao Naturgefühl, ou
sentimento da natureza. Era a busca por “sentir a natureza” que levou muitos viajantes para
exacerbado que a natureza poderia causar. O historiador da natureza, ao se deixar levar pela
França, fez toda sua formação acadêmica na Alemanha, uma vez que ainda criança, mudou-se
para Berlim. Por causa disso, teve um contato mais estreito com o romantismo alemão. O
trecho abaixo nos mostra como a poesia, o pitoresco, o bucólico e a ciência muitas vezes
O quadro por ele descrito contém plantas típicas das regiões tropicais, como as
236
LISBOA, Karen Macknow. Op. cit. Ver Capítulo III.
237
CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 233.
134
natureza americana, definidos por Humboldt. Ao mesmo tempo, não deixa de colocar o nome
científico de algumas das plantas que formam tão idílico quadro. Tenta estabelecer a difícil
combinação entre ciência e poesia. Não esqueçamos que Chamisso, antes de dedicar-se ao
estudo da botânica, era poeta e filósofo. Além disso, recebeu influências de Goethe, um dos
autores do movimento Sturm und Drang, inspirado no pensamento de Rousseau e que foi um
Outro viajante que foi influenciado pela vertente romântica da História Natural
foi Saint-Hilaire. Essa concepção, fundada por Humboldt, baseava-se na concepção de que a
ciência teórica não estava separada da ciência prática, e sua finalidade era satisfazer as
necessidades humanas, neste caso, das populações européias, e fortalecer as nações que as
espécie de missão. Sentem-se como irmãos mais velhos dos outros povos, a quem devem
ajudar e aconselhar. Para eles, seus interesses são os interesses da humanidade inteira.”239
entre outras, os viajantes eram homens urbanos que buscavam na natureza um contraponto à
imagem de cidade com a qual eles estavam habituados. No decorrer da história da sociedade
por sua vez, foi associada ao saber, à luz. Em outros momentos era o lugar do barulho, da
passado feliz no campo foram desenvolvidas em períodos específicos: final do século XVI e
238
Sobre o Romantismo, sua história e suas características ver: GUINSBURG, J. (org.) O Romantismo. 3º ed.
São Paulo: Perspectiva, 1993.
239
Kury, Lorelai. Auguste de Saint-Hilaire, viajante exemplar. Disponível em:
http://www2.uerj.br/`intellectus/texto/Lorelei.pdf. Acesso em: 02.dezembro.2004
135
início do século XVII, final do século XVIII e início do XIX e no final do século XIX e início
rural. A imagem da cidade também mudou: nos séculos XVI e XVII esteve associada à lei e
imagem das massas e da turba, enquanto no séculos XIX e XX, à mobilidade e ao isolamento.
conforme a classe social na qual são enunciadas. Dessa forma, uma imagem, aparentemente
tropicais, cujos ambientes eram tão diferentes da Europa. Muitos adquiriram doenças, alguns
América. Muitos deles, vivendo na Europa, não conseguiam se desvincular do Novo Mundo.
Um exemplo é o caso de Humboldt. Muitos anos após o fim da viagem, quando vivia em
Paris, a temperatura em seu apartamento era mantida acima dos 30 graus, numa tentativa de
natureza, uma região ocupada por plantas e criaturas que não chega a ser organizada em
sociedades e economias. Seus interesses voltavam-se para o estudos das relações entre a
natureza e os seres humanos, e seus textos contribuíram para a construção de uma paisagem
240
WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989. Capítulo 25: Cidades e Campos.
136
em torno do tema. Esse interesse deve-se ao fato de que o conceito de paisagem, de natureza e
dificuldades em analisar as representações sobre as relações dos homens entre si e destes com
a natureza foi um dos aspectos que contribuiu para a polêmica entre os estudiosos da
geografia. Para Carl O. Sauer, a paisagem, apesar de sua individualidade, estabelecia relações
com outras paisagens. Além disso, seu processo de modelagem não era somente físico. Uma
área era composta por uma associação distinta de formas que eram físicas e culturais.241 Além
da questão cultural, Edvânia Gomes acrescenta outro aspecto, que se refere aos valores que
são atribuídos histórica e culturalmente aos elementos da natureza. São esses valores que
reapresentação do mundo, uma vez que “resulta da apreensão do olhar do indivíduo, que, por
do conteúdo, busca-se também capturar seu caráter “natural”. Nessas imagens a natureza pode
ser apresentada como uma instância selvagem mas também como bucólica, nostálgica,
construir uma nova paisagem. Uma paisagem onde vão se misturar aspectos racionais, do
241
SAUER, Carl O. A morfologia da Paisagem. In: ROSENDAHL, Zeny & CORRÊA, Roberto Lobato.
Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998. pp. 23-24. Para entender melhor as discussões
correntes entre os estudiosos da geografia sobre paisagem ver as coletâneas organizadas por ROSENDAHL,
Zeny & CORRÊA, Roberto Lobato. Paisagem, tempo e cultura & Paisagem, imaginário e espaço. Foram
publicados em vários volumes pela Editora da UERJ, nos anos de 1998 e 2001, respectivamente.
242
GOMES, Edvânia Tôrres Aguiar. Op. cit. p. 56.
137
ser percebidas duas formas de percepção da natureza por parte dos colonizadores. O impulso
de tudo ver, de sentir o novo, de penetrar no intocado, num ato sensorial de indivíduos que se
entregam aos sentidos, do olhar ao cheiro, do tato ao paladar. Jean de Léry é um exemplo de
indivíduo detentor desse tipo de percepção. Chamisso também insere-se nesse grupo. São
viajantes que transformam o que vêem em paisagem, algo a ser admirado e adorado. A outra
implementada por muitas nações européias e implicava um contato direto com o meio. Para o
forma de animais ferozes, insetos peçonhentos e também de índios bravios. Nesse sentido, o
verde da mata deveria ser eliminado para permitir a ocupação do território pelo europeu. Para
tanto foi largamente utilizado o fogo como uma forma de limpar terreno a fim de abrir o
caminho para as plantações e também para expurgar todos os perigos, fossem eles de forma
lógica da ocupação predatória, que transformou a paisagem em sertão, em uma região agreste.
pelos europeus que passavam pelo Brasil no século XIX, fossem eles cientistas ou não. Além
da destruição das florestas, criticava-se também o desperdício de madeira que, ao invés de ser
comercializada, era queimada no processo de abrir amplas áreas para o plantio. O fazendeiro
243
SEVCENKO, Nicolau. O front brasileiro na guerra verde: vegetais, colonialismo e cultura. In: Revista USP.
São Paulo: USP, nº 1 (mar./mai. 1989). pp. 110-112.
138
da região das Minas José Vieira Couto, que havia sido aluno de Domênico Vandelli244 na
olha para duas ou mais léguas de floresta como se elas não fossem nada, e
ele mal as reduziu a cinzas e já lança seu olhar ainda mais adiante para levar
a destruição a outras partes; não nutre nem afeição nem amor pela terra que
cultiva, tendo plena consciência de que ela provavelmente não irá durar para
seus filhos.245
deveria ser eliminado, destruído. No litoral da Capitania de Santa Catarina e na Ilha de Santa
Catarina, na primeira metade do século XIX, com exceção de pequenos trechos desbravados a
beira do mar e em torno de alguns rios, todo o resto era ocupado por florestas, desconhecidas
e ainda não sondadas em suas profundezas. Louis François Leoncé Aubé, engenheiro francês
que visitou a província de Santa Catarina no ano de 1944, com a incumbência de escolher e
1856 e 1860, redigiu um livro falando sobre a região. Segundo ele, era a floresta virgem,
com a vida exuberante que ela encerra e parece oculta-se no silêncio que a
envolve durante o dia, e só quebrado, noite dentro, pelos gritos e
movimentos dos hóspedes que alí se acolhem; é a floresta magnificante que,
às vezes, oculta o céu e a terra à vista de quem lhe penetra os umbrais e
parece fechar-se sôbre si mesma, como um túmulo. Dados alguns passos
nesta sombria solidão, o explorador incauto sentir-se-á como o marinheiro
sem bússola em meio do Oceano, ou como o viajante sem guia nas
catacumbas de Roma, e andará à roda, num círculo fatal, parecendo-lhe
246
nunca mais poder chega à orla que antes havia transposto.
Para Aubé, a mata era uma “cortina impenetrável” que deveria ser aberta a
golpes de facão, que ficava numa das mãos, enquanto na outra, carregava-se a bússola. A
sensação de estar perdido sem rumo também foi expressada por Saint-Hilaire, para quem a
244
Doutor da Universidade de Pádua e correspondente de Linné, foi indicado para o cargo de professor na
Universidade de Coimbra pelo Marquês de Pombal em 1764.
245
COUTO, José Vieira. Memória sobre a Capitania de Minas Gerais [1799]. Apud. DEAN, Warren. A Ferro e
Fogo: a história e a devastação da mata Atlântica Brasileira. Tradução: Cid Knipel Moreira. São Paulo:
Companhia das Letras. 1996. p. 155.
246
AUBÉ, Léonce. A Província de Santa Catarina e a Colonização do Brasil. In: Revista do Instituto Histórico
e Geográfico de Santa Catarina. Tradução: Carlos da Costa Pereira. Florianópolis, 2º Semestre de 1944. Vol.
XIII. p. 92.
139
visão das florestas virgens inspiravam “uma espécie de terror religioso”. Outros viajantes
também deixaram registrados em seus relatos seu desconforto com a natureza indomada
encontrada no Brasil. James Wells escreveu que a Mata Atlântica o fazia sentir “uma
imperceptível depressão”. Após passar horas andando pela floresta em busca de espécies,
Alfred Russel Wallace sentia “alívio por ver novamente o céu azul e sentir os raios
causticantes do sol”. Encantamento e deleite foi o que sentiu Saint-Hilaire ao ver, “após
passar diversas horas encerrado em um túnel de árvores”, a vila de São João da Barra, no
distrito dos diamantes, na província de Minas Gerais. Warren Dean concluiu que as criaturas e
dispostos por categorias nos museus e gabinetes de história natural. No seu habitat natural,
habitantes locais a mata, a vegetação abundante, significava perigo e muito trabalho. Perigo
devido aos animais selvagens e peçonhentos e, muitas vezes, por causa dos índios. Trabalho
porque era necessário destruir a floresta para poder plantar. Mas também significava alimento,
conseguido através da caça. Langsdorff comentou sobre a destreza dos moradores no uso da
betocca, uma espécie de arco que utilizava como munição pequenas pedras ou pelotas de
barro seco. Com ele até as crianças conseguiam abater de consideráveis distâncias aves de
todos os tamanhos que serviam para aumentar o cardápio. O mesmo viajante reparou a
admiração e o estranhamento que causava em seus guias seus constantes pedidos para parar
durante as incursões pela mata, a fim de melhor apreciar a beleza das árvores floridas, os
247
DEAN, Warren. Op. cit. pp. 156-157.
248
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. pp. 170-172.
140
Weech, que recebeu do barão um lote de terra e escravos negros para cultivá-la. Após passar
alguns anos no Brasil e na Argentina, onde tentou estabelecer-se como agricultor, voltou para
a Baviera, onde aproveitou para escrever sobre sua experiência na América, publicada em
1831. Em um trecho de sua obra mostra como o barão von Langsdorff e seu trabalho de
cientista era visto pela população local. Segundo ele, os habitantes locais, fossem brasileiros
objetivo das coleções de insetos que eram organizadas pelos cientistas estrangeiros e pelo
barão, que muitas vezes pagava a várias pessoas para que coletassem aves e insetos. Não
ignorantes, Weech constatou que possuíam uma capacidade de compreensão que não os
deixou indiferentes às suas explicações sobre a utilidade das pesquisas científicas.249 Para os
habitantes locais da Ilha de Santa Catarina ou de outras regiões do Brasil, o trabalho dos
botânicos não era compreendido como uma possibilidade econômica, e a floresta, além de
significar trabalho e perigo, era sinônimo de dificuldade para a ocupação dos territórios, para
da região.
O termo natureza tem sua origem no latim nasci, que significa ‘nascer’,
homólogo do grego physein, que significa ‘ser gerado’. A partir daí o conceito geral de
249
WEECH, J. F. v. apud. BECHER, Hans. Op. cit. p. 65.
141
conceptualmente definidas de forma acabada.”250 Essa visão vai ser rompida a partir do
observados que não puderam ser enquadrados nas explicações prévias. No século XVII,
formular uma nova idéia de natureza, um sistema de leis, no qual o mundo é formado por
descobertas científicas que provocaram uma mudança na idéia de natureza, mas sim a
estabelecer um vínculo entre a história natural do homem com a história humana da natureza.
Em sua obra Cosmos, tenta compreender a unidade humana a partir da diversidade do meio, a
fim de pensar o mundo como indissociável. Para o autor, a cultura ocidental é marcada por
homem enquanto o homem caracteriza-se pelo que ele soube dominar de natural em si. Em
muitos povos a natureza não existe como esfera autônoma. Nossa singularidade em relação ao
resto da existência é relativa, como é relativa nossa consciência do que nos faz humanos.252 A
partir das reflexões de Descola, podemos entender melhor o interesse dos viajantes, europeus,
cientistas, “civilizados”, pela nossa natureza intacta. Ao mesmo tempo que esse contato
250
MICHELI, Gianni. Natureza. In: Enciclopédia Einaudi. Vol. 18. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
1985. p. 38.
251
MERLEAU-PONTY, Maurice. A natureza: notas, cursos no Collège de France. Texto estabelecido e
anotado por Dominique Séglard. Tradução: Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2000. pp. 09-29.
252
DESCOLA, Philippe. L’anthropologie de la nature. In: ANNALES: histoire, sciences sociales. 57º année. Nº
1. Janvier-février 2002. pp. 9-25.
142
não aproveitamento que se refletia na natureza intocada. Se por um lado a natureza intacta,
rica em plantas e animais era importante para o desenvolvimento da ciência, por outro lado, o
da natureza que, apesar de ter visitado a vila de Desterro inúmeras vezes, nenhuma lembrança
ficou registrada em sua memória. O mesmo ocorreu com relação às pessoas que ele conheceu.
natureza americana foi tão impactante, tão forte que não lhe permitiu lembrar de outros
poucas ou muitas linhas, descreveram o espaço urbano e seus arredores, suas características,
seus aspectos pitorescos. O primeiro que esteve na região foi Pernetty, em 1763. Na época a
vila era pequena, “composta de umas cento e cinqüenta casas, todas tendo somente o rés-do-
chão.”254 Alguns anos depois, em 1807, Mawe também iniciou sua descrição sobre a vila,
mesmas “bem construídas, com dois ou três andares, assoalhadas de madeira, jardins tratados,
apresentando excelente vegetação e flores”. A vila possuía “várias ruas” e contava com “cinco
253
CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 234.
254
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 82.
144
a seis mil habitantes.”255 A partir das informações deixadas pelos dois viajantes, separados por
mais de 44 anos, podemos constatar que a vila de Desterro sofreu mudanças consideráveis. As
proibiu que fossem construídas casas sem a devida licença e instituiu que as construções
seguissem regras pré-determinadas de altura e largura, tanto da moradia como das suas
casas que, de tão deterioradas, poderiam vir a desabar, causando acidentes e transtornos aos
que em 1803 viviam “aqui diversas pessoas abastadas mas poucas ou quase nenhuma delas é
rica”, e as moradias eram feitas “de pedra ou de barro seco”. O que chamou a atenção de
Lesson era que as casas eram assoalhadas e “seu interior é simples, asseado e elegante, mas
sem luxo.”258 Saint-Hilaire que, como Lesson, visitou a vila de Desterro na década de 20 do
século XIX, teve uma boa impressão sobre as condições das moradias, uma vez que
255
MAWE, John. Op. cit. p. 190.
256
A fundação de Nossa Senhora do Desterro ocorreu no ano de 1673 (ou 1675) por Francisco Dias Velho que,
juntamente com sua família, 2 padres jesuítas e quinhentos índios domesticados, deslocou-se de São Paulo para a
Ilha de Santa Catarina. Após a fundação da povoação, requereu ao governador da capitania duas léguas em
quadra onde já se encontrava erigida a igreja de Nossa Senhora do Desterro (1678). Em 1713 foi criada a
Freguesia de Nossa Senhora do Desterro, subordinada à vila de Laguna. Freguesia é um misto de organização
política e religiosa, que antecede a elevação para vila, em 23 de março de 1726. Nesse momento ocorreu a troca
de nome, de Santa Catarina para Nossa Senhora do Desterro. Por decreto de 24 de fevereiro de 1823, a vila de
Nossa Senhora do Desterro é elevada à categoria de cidade, passando a chamar-se somente Desterro,
conservando-o até 1894, quando mudou seu nome para Florianópolis. Ver: PAULI, Evaldo. A Fundação de
Florianópolis. 2 ed. Florianópolis: Lunardelli, 1987.
257
CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Destêrro. Notícia I. Op. cit. p. 235-236. Recorremos a
informações contidas na obra desse autor, apesar de não compartilharmos a mesma visão de história. Segundo
ele seu livro é uma obra “histórica, verídica, sincera e pitoresca” de Desterro, “é a crônica modesta e simples de
gente que não costuma freqüentar as páginas da História.” Apesar das críticas a muitas de suas opiniões e
conclusões, Cabral inovou ao recorrer a fontes e documentos pouco utilizados, bem como na escolha dos temas.
258
LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 274.
145
dia-a-dia. Nos três primeiros séculos da colonização, as moradias localizadas nas vilas eram
simples, onde moravam pessoas pobres e com poucos recursos, ou então serviam de abrigo
moradias eram pequenas, térreas, construídas com os materiais da região. Somente com a
diversificação das atividades urbanas é que vão surgir as moradias mais ricas, como sobrados
Desterro, tendo inclusive alguns pequenos requintes como granito na soleira, como registra
Lesson, no geral as falas deixavam transparecer que a vila não era rica e próspera. No entanto,
passava uma impressão de “bem-estar geral sem que haja riqueza”261. No que se refere às
moradias de fora da vila, a opinião de Langsdorff é um pouco distinta. Em suas andanças pelo
interior da ilha e pelo região continental próxima, foi recebido por colonos, que lhe ofereciam
259
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 170.
260
ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e Vida Doméstica. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da
Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 90.
261
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 163.
262
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 176.
146
Pernetty comentou que as moradias que ele viu, localizadas na costa perto da
vida das pessoas que viviam na vila ou mesmo nas freguesias eram distintas daquelas em que
se encontravam os colonos que viviam no interior. Como Desterro era uma vila
portuguesa e espanhola, muitos milicianos ficavam ali assentados. Em 1737 foi instalada a
mudaram-se de Santos para Desterro. Outro fato que estimulou o aumento populacional e
também uma melhoria nas condições gerais de vida na vila foi a criação da Capitania de Santa
Catarina, em 1738. No ano seguinte, com sua instalação, criaram-se vários cargos
administrativos. Alguns foram ocupados por pessoas que haviam nascido ou já viviam aqui.
No entanto, a maioria do postos foi ocupado por titulares vindos de fora. Essas mudanças,
Se tomarmos o esboço feito por José Custódio Sá e Faria em 1754 (Figura 1),
podemos constatar que a maior parte do que hoje se constitui o centro da atual cidade de
Florianópolis encontrava-se ainda tomada por matas nativas ou então por plantações. O
“Plano da Villa de Nossa Senhora do Desterro da Ilha de Santa Catarina” foi feito com o
263
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 80.
264
Entre os anos de 1748 e 1756, transferiram-se para o sul da colônia portuguesa na América, em torno de
6.000 pessoas, vindos das ilhas dos Açores e em menor quantidade da ilha da Madeira. Essa emigração não foi
espontânea, mas incentiva pela Coroa, que tinha como objetivo garantir seus domínios no sul da América do Sul,
região disputada também pela Coroa da Espanha.
147
Figura 1- Plano da Villa de N. S. do Desterro – José Custódio de Sá e Faria, 1754. In: Reis, Nestor
Goulart. Imagens pde vilas e cidades do Brasil Colonial. São Paulo: Editora da USP/Imprensa
Oficial/Fapesp, 2000. p. 225.
objetivo de agenciamento do sítio, e desta forma, segundo Eliane Veras da Veiga, a execução
do projeto pode não ter seguido o traçado elaborado por Sá e Faria. Podemos perceber no
esboço a provável localização dos edifícios que ocupariam o centro da vila. Destaca-se o
espaço reservado para a praça central, ou Largo da Matriz, contornada pela Igreja Matriz no
lado contrário ao mar, pela residência do governador em umas das laterais e, no outro, pela
148
construídos, outros como projeto para futuras construções. O plano também assinala algumas
das fortificações projetadas pelo Brigadeiro José da Silva Paes, como o Forte de São
Francisco e as construções no morro Boa Vista, onde foi construída a Capela Menino Deus,
também dois rios, o rio da Bulha265 e outro localizado entre o centro e o bairro da Figueira,
iniciando na Fonte dos Ramos e correndo em direção ao mar.266 A partir desse plano podemos
constatar que a vila de Desterro tinha uma função fortemente militar e administrativa, e suas
por Pernetty como “pequena”, e a maior parte da ilha era uma “vasta floresta”, com “algumas
pequenas casas espalhadas pela costa”. Além disso, “na vila não se viu quase nenhuma tenda
início do século XIX encontraram outra situação, muito diferente da relatada por Pernetty. O
265
Também conhecido como córrego da Fonte Grande. Com o processo de saneamento no início do século XX o
rio foi canalizado e passou a fazer parte da Avenida do Saneamento, atualmente Avenida Hercílio Luz,
inaugurada em 1922.
266
Atualmente totalmente desaparecido, nas proximidades da atual rua 7 de setembro e do Largo Fagundes.
267
VEIGA, Eliane Veras da. Florianópolis: Memória Urbana. Florianópolis: Editora da UFSC/Fundação
Franklin Cascaes, 1993. p. 40.
268
PERNETTY, Antoine Joseph. Op cit. pp. 85 e 83.
269
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 163.
149
partir da linha do mar. Como no local escolhido a linha do mar fazia uma ligeira curva, as
laterais da praça foram se alargando conforme subiam a encosta, onde foi construída a Igreja
Matriz. Medindo mais ou menos noventa passos de largura por trezentos de comprimento, em
torno dela foram construídos os principais prédios da cidade, como o Palácio do Governador e
a Câmara Municipal, além da Igreja da padroeira que dá nome à vila.270 Na época de Saint-
Hilaire a praça era “coberta por uma fina relva.”271 Esse espaço, a praça central, era o ponto
de partida de muitas cidades coloniais portuguesas e espanholas. Foi também por ela que
Paulo Joze Miguel de Brito iniciou sua descrição da vila: “com huma grande praça de figura
rectangular, em cujo lado do norte está edificada a Igreja Matriz.”272 Quando da fundação de
uma vila pelo Estado Português em sua colônia na América, eram erigidos dois símbolos: o
e o instrumento no qual eram cumpridas muitas das punições estabelecidas pela justiça. Além
dessas construções, “está também situado nesta praça o mercado, que funciona uma vez por
semana, aos domingos. Ao centro desta praça está um patíbulo em madeira, onde são presos e
castigados os negros puníveis.”273 Em Santa Catarina, foram erigidos pelourinhos nas vilas de
São Francisco, Desterro e Laguna. A praça era local de múltiplas atividades: de punição, de
marco central do núcleo urbano, uma vez que é a partir dela que a vila é inventada.274 Era
também motivo de disputas, como o que ocorreu por causa da visita do Imperador D. Pedro II,
onde eram comercializados peixes e outros gêneros alimentícios. Além da questão estética, o
outro motivo para sua remoção era a concentração de comerciantes, de indivíduos pobres e de
escravos em torno da praça, gerando balbúrdia e atos impróprios à moral e aos bons costumes.
Após a partida de Vossa Majestade, retomou-se a discussão sobre o local onde deveriam ficar
na beira do mar, numa das pontas da praça. Em 1896, foi construído um novo mercado
Além das casas que serviam como moradias e para o comércio, os principais
prédios públicos da vila foram construídos em torno da Praça da Matriz, como o Palácio do
Governo, ou Casa do Governo, e a Câmara Municipal. Lesson chama esses dois prédios de
denominações dos prédios públicos nos remete à questão de como o que os viajantes viam
Municipal era mais do que o espaço jurídico, como dá a entender o nome utilizado pelo
viajante francês. Além de ser uma prisão, com as celas localizadas no térreo ou no porão,
comportava também o poder administrativo da vila. Era nesse espaço que se reuniam os
“homens bons”, indivíduos que, em decorrência de suas posses e de seu prestígio social, eram
eleitos para ocupar as cadeiras da câmara municipal. O poder político em Desterro era
Conselhos Gerais, com funções legislativas. As funções das Câmaras Municipais estavam
relacionadas à administração da vila, como a aplicação das rendas e outras atribuições, entre
151
elas a elaboração das posturas municipais. Seus membros eram eleitos e o mais votado
grande e tem duas torres, mas não me pareceu que tivesse uma largura
proporcional à sua altura. Sobe-se até ela por uma rampa margeada por dois
muros de arrimo, a qual vai desembocar numa pequena plataforma em meia-
lua. Na base dessa elevação há uma alta palmeira, cuja elegante folhagem,
que se agita à mais leve brisa, contrasta com a imobilidade do prédio ao qual
ela serve de ornamento. No seu interior, a igreja tem forro e é bem
iluminada, mas achei-a menos limpa do que em geral são as igrejas no
Brasil. Medi cerca de quarenta e dois passos desde o altar da capela-mor até
a porta. O altar é pouco ornamentado, sendo mais enfeitados os dois outros
que o ladeiam obliquamente. Afora esses, há ainda mais dois altares dos
lados da igreja, além de duas capelas bastante ricas. 275
aumentada, marcou o futuro núcleo urbano. Francisco Dias Velho erigiu um oratório dedicado
à Nossa Senhora do Desterro, onde os habitantes reuniam-se para as rezas. Com a vinda do
Brigadeiro Silva Paes para a vila de Desterro, como primeiro governador da Capitania de
Santa Catarina, a igreja foi reformada devido à sua “pequenez [...], feita pelo primeiro
correspondência em que descreve a igreja, solicita sua derrubada e a construção de uma nova,
maior, a fim de abrigar todo o povo nos dias de festa. Em 1748, dois anos após a solicitação,
foi concedida autorização para sua construção, que somente iniciou no ano de 1753,
geralmente retas, alinhadas e regulares. Saint-Hilaire, o único dos viajantes analisados que
havia viajado por outras cidades de Santa Catarina e do país, comenta que
275
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. pp. 170-171.
276
Silva Paes. Apud. CABRAL, Oswaldo. Nossa Senhora do Destêrro. Notícia I. Op. cit. p. 42.
152
comparadas com as outras cidades do Brasil, suas ruas são estreitas, mas em
geral bem alinhadas. Só são calçadas defronte das casas, e no entanto, como
ocorre com as de Paranaguá e São Francisco, nunca há lama nelas porque o
terreno é muito arenoso. 277
fossem tomadas providências a fim de resolver o problema das águas estagnadas nas ruas da
Mello registrou, em seu relatório, a situação precária do escoamento das águas pluviais na
cidade de Desterro.278
Florianópolis, no qual está representado um plano da vila de Desterro no ano de 1819 (Figura
2). Segundo Eliane Veras, o estudo de Cabral é “uma contribuição valiosa para o estudo da
nomes e direções de algumas das ruas.279 Apesar dos erros cometidos por Cabral na análise do
mapa, optamos por apresentá-lo por ser útil para visualizarmos como a cidade cresceu e se
277
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 170.
278
VEIGA, Eliane Veras da. Op. cit. p. 74. (Nota de Rodapé nº 67)
279
Eliane Veras cita que a Rua da Pedreira no mapa não parte da praça, enquanto no texto, o autor a coloca
como partindo da praça entre o prédio dos Artigos Bélicos e a casa do futuro quartel da Polícia. Pelo texto, ela
corresponderia a atual Vitor Meirelles. Outros equívocos e erros são melhor analisados pela autora em seu livro
Florianópolis: Memória Urbana. Florianópolis: Editora da UFSC/Fundação Franklin Cascaes, 1993. pp. 68-73
e mapa nº 7.
153
Figura 2 – Mapa da Vila de Desterro em 1819 - In: CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do
Desterro: notícia I. Florianópolis: Editora da UFSC, 1971. p. 123.
mantimentos e madeira para os navios. Langsdorff disse que a província foi beneficiada com
“várias liberalidades; assim, por exemplo, os navios que aqui entram ou saem do porto, pagam
Lesson comentou que o porto é localizado “numa enseada onde fornecem água somente para
do porto era restrita, pois somente comportava barcos pequenos, mas para esta descrição citou
280
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 163.
281
LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 274.
154
o que havia escrito o capitão Duperrey. Talvez os cientistas viajantes não se referissem às
condições portuárias e de navegação por ser este um tema tratado nos relatórios e diários dos
aspecto geral e nas maneiras dos habitantes, superioridade acentuada sobre os que
Desterro é facilmente explicável, uma vez que haviam sidos obrigados a fugir da capital da
Colônia Cisplatina, devido às disputas locais, pois os grupos que haviam sido apoiados pelos
ingleses foram derrotados. Mas e os outros viajantes, qual o motivo que os levou a salientar os
aspectos positivos da pequena vila? Mesmo considerando que os viajantes foram recebidos
pela elite, como nos mostram os jantares no Palácio do Governador, para os quais foram
modestas, com piso de chão batido, nas quais seus habitantes contavam somente com esteiras
de palha para se acomodar no momento das refeições, compostas geralmente por farinha,
peixe e laranjas, como eles mesmos descreveram. Esse encobrimento, ou melhor, essa
suavização das condições econômicas da vila teria se dado como uma retribuição da
hospitalidade recebida? Nesta época, não se negava pouso aos forasteiros que chegavam de
encontram aqui não supera o que eles tinham em seus países de origem, exceto a riqueza e a
abundância natural. Lesson, por exemplo, não teve uma boa impressão das cidades coloniais
portuguesas, uma vez que “encontra-se várias tendas de revendedores, espécies de tavernas
282
MAWE, John. Op. cit. p. 190.
283
ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e Vida Doméstica. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.). Op. cit. p. 93.
155
onde se dão a beber e a comer, e onde a ralé e os negros vêm se regalar com peixe seco e
araque”, mas não tem a oferecer “aos estrangeiros nem hotel, nem restaurante, nem café.”284
Na Inglaterra, país de origem de Mawe, os primeiros cafés foram criados no século XVIII,
independentes. Eram locais freqüentados pela classe média e alta, que se encontravam para
eram, segundo esse viajante, as tavernas. Mas, ao contrário dos cafés, não eram freqüentados
pela elite, mas sim pela população pobre. Não eram locais de discussões políticas, uma vez
que em 1807 não havia eleições nas quais a população pobre e os escravos participavam. As
poderiam encontrar comida e bebida. Também eram nesses locais onde resolviam suas
concentração de escravos, muitas vezes até tarde da noite, extrapolando o horário de recolher.
opinião deste viajante, uma mostra do atraso em que se encontrava a cidade? Provavelmente,
pior do que a ausência de restaurantes e cafés onde as pessoas pudessem se encontrar, era a
impróprios, já que eram freqüentados pela “ralé” e pelos “negros” para comer e beber.
ambientes restritos, como os jantares e bailes. Oferecidos pelo governo em homenagem aos
viajantes, foram prestigiados por membros do governo, civis e militares, e também por
membros da Igreja e pelas famílias locais. Foram nos bailes que as mulheres locais
comentou que a beleza das mulheres de Desterro, com seus cabelos negros, sua pele clara e
rosada, seus olhos bonitos, era salientada devido a sua desenvoltura e o fato delas não se
esconderem dos estranhos, como as mulheres de outras regiões do Brasil.286 Deduzimos que
esses jantares e bailes, espaços mais restritos, foram prestigiados por um número reduzido e
seleto de convidados. Além de Lesson, que deu a entender que existiam locais específicos
para determinados grupos sociais, Pernetty, ainda no século XVIII, salientou uma divisão
entre os habitantes da pequena vila. Ele escreveu que passou “em seguida pela vila, que me
pareceu, a guarnição ocupa uma parte e a outra é ocupada pelos brancos de um lado e os
negros ou mulatos do outro.”287 O viajante percebeu uma separação espacial. Primeiro uma
divisão entre o lado militar e o lado civil da vila e depois uma distinção que se dava em
decorrência da cor dos seu moradores. Num lado viviam os brancos, e no outro os negros ou
mulatos.
A vila de Desterro, como muitas outras vilas, tinha ruas e bairros que se
Em torno da Praça da Matriz estavam localizados, além dos prédios públicos, as moradias da
população mais abastada e as casas de comércio. A Rua Augusta (atual Rua João Pinto) e a
Rua da Cadeia (atual Rua Tiradentes) também era área de comércio e de moradia de uma
localizava-se o Beco Sujo (imediações da atual Avenida Hercílio Luz). Mais acima, ficava o
existia o bairro da Toca, na base do morro onde foi construído a capela Menino Deus e o
Hospital de Caridade. Todas essas regiões, Beco Sujo, Pedreira, Tronqueira e Toca,
localizadas ao leste da praça, eram locais de moradia das populações pobres, trabalhadores
livres e escravizados, estes últimos caso tivessem autorização para morar só. As lavadeiras
286
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 173.
287
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 82.
157
concentravam-se nas regiões próximas às bicas d’água e nas margens do rio da Bulha. No
outro lado da cidade, a oeste da praça e na beira do mar, localizava-se a zona portuária e, mais
adiante, em direção ao Estreito (onde foi construída a Ponte Hercílio Luz), o bairro da
Figueira, área de moradia e freqüentado por marinheiros, estivadores, soldados. Esta área
devido a alguns fatores, como por exemplo, a orientação urbanística definida pela metrópole.
Sérgio Buarque de Holanda, em seu texto sobre as cidades coloniais na América Portuguesa e
implantaram suas vilas no litoral do Brasil. Elas haviam nascido e crescido sem um plano
foram sendo encontrados pelo caminho e que deveriam ser contornados. Cidades como
Salvador e São Vicente cresceram em desalinho. No entanto, o autor chama a atenção para
casos como o Rio de Janeiro, onde o esquema retangular esteve presente, muito mais em
decorrência da ausência de empecilhos naturais do que pela ação de uma vontade construtora.
No caso da vila de Desterro também podemos perceber um plano pré-traçado que tem ao
centro a praça, de onde partem ruas retas formando o clássico desenho de grade. A poucos
passos do centro da vila estas ruas dão lugar as ruas curvas e aos becos.
para pensar a construção das cidades coloniais espanholas, as quais seguiam um plano pré-
estabelecido e orientações que definiam a escolha do sítio onde a vila seria construída, o
tamanho ideal da praça a fim de melhor cumprir com suas funções, o arruamento a ser aberto,
entre outros pontos que eram contemplados na legislação espanhola relacionada ao tema. O
288
Para aprofundar sobre a distribuição populacional na Desterro do século XIX ver: PEDRO, Joana. Mulheres
Honestas e Mulheres Faladas: uma questão de classe. Florianópolis: UFSC, 1994; CABRAL, Oswaldo.
Nossa Senhora do Destêrro. Notícia I. Florianópolis: EdUFSC, 1971; MORTARI, Cláudia. Os Homens Pretos
do Desterro: um estudo sobre a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (1841-1860). Porto Alegre:
Dissertação Mestrado PUC/RS, 2000.
158
Sérgio Buarque de Holanda, esse esforço não parece ter sido a principal preocupação dos
colonizadores do Brasil, uma vez que “a cidade que os portugueses construíram na América
não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça
na linha da paisagem.”289
desenvolvidas pelo ser humano não podem ser entendidas somente como um traçado regular
possuem função pública ou privada, o espaço urbano também comporta os seus interiores. São
Por interior se incluem as residências particulares com seus quartos e até as vestimentas das
pessoas. Esses aspectos são importantes, uma vez que contribuem para definir o espaço das
pessoas na “dimensão cênica da cidade”. Além disso, outros espaços também ocupam áreas
que ficam sob a influência da cidade: a zona rural. Dela vem os mantimentos, que serão
comercializados no mercado da praça. Nela muitos dos que vivem na cidade possuem seus
sítios com suas criações e suas lavouras. O espaço rural está estreitamente vinculado com o
espaço urbano, quando não complementar a este.290 Nesse sentido, quando falamos na vila de
Desterro, temos em mente não somente as poucas ruas em torno da praça central e da Igreja
Matriz, mas também o seu entorno, indefinido geograficamente, mas econômica, social e
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras. 1995. p. 110.
289
ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como História da Cidade. Tradução: Pier Luigi Cabra. São Paulo:
290
6.2. Da população
Janeiro em o ano de 1816, escrita pelo ajudante de ordens do governador, Paulo Joze Miguel
de Brito, a população da capitania não havia aumentado o projetado a partir das análises do
crescimento da população entre os anos de 1774 a 1813. Segundo ele, nesse período a
população deixou de crescer em pelo menos 5.609 habitantes, sem que houvessem para isso
motivos, como por exemplo, fome, guerras, epidemias, terremotos ou qualquer outro flagelo.
Esse número não se refere somente à vila de Desterro, mas a toda capitania, que naquela
época abrangia basicamente o litoral do atual estado de Santa Catarina, uma vez que a vila de
Lages e todo o território que a compreendia somente foi incorporada à capitania de Santa
Catarina no ano de 1820. Para chegar a essa conclusão, o autor analisou o crescimento
Ministério. Segundo ele, a “Statistica” no Brasil estava muito atrasada. Poucas capitanias
como dados referentes ao sexo dos indivíduos, se eram livres ou escravos, óbitos, filhos
160
etc.291
a 30 mil almas, enquanto que na Ilha de Santa Catarina, era de mais ou menos 10 mil
freguesias de São Miguel, São José e Enseada do Brito, todas subordinadas à vila-capital,
Desterro. Além de Desterro, a Capitania de Santa Catarina era composta por outras duas vilas,
Laguna e São Francisco. Essa era a divisão política e administrativa no ano de 1810.
como base os dados oficiais, o outro segundo “pessoas que, por sua posição, deviam estar
mais bem informadas.”293 O primeiro fala que a população da Ilha de Santa Catarina era de 12
mil, enquanto o outro fala em 14 mil habitantes. Essa diferença, segundo ele, ocorria por
causa das guerras. Para fugir ao recrutamento, muitas famílias escondiam seus homens, dando
informações falsas e evitando, desta forma, que fossem convocados para integrarem as tropas
que lutavam no sul da Colônia Portuguesa. A pouca confiabilidade nos números e estatísticas
oficiais que tratavam da população também foi motivo de reclamação de alguns Presidentes
da Província de Santa Catarina. João José Coutinho constatou que, no ano de 1853, “os mapas
de população não me merecem confiança alguma, são a meu ver inteiramente imaginários.”294
Alguns anos antes, em 1840, outro Presidente de Província, Francisco José de Andrade,
291
BRITO, Paulo Joze Miguel de. Op. cit. pp. 48 e 52-53. O autor cita a Invasão Espanhola de 1777, mas não a
considera um guerra, nem muito menos a vê como uma possível causa na diminuição do crescimento
populacional previsto.
292
Freguesia é um misto de organização religiosa e política que antecede a elevação à vila. Geralmente as
freguesias tomam o nome da igreja local.
293
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 167.
294
COUTINHO, Dr. João José. Falla que o Presidente da Província de Santa Catharina, dirigio á
Assembléa Legislativa da mesma Província, por occasião da abertura de sua Sessão ordinaria em 1 de
março de 1853. Desterro, 1853. p. 20
161
precisos sobre as povoações. Segundo ele, os motivos principais eram dois: o primeiro era a
presença de filhos varões, bem como sua idade, uma vez que estes podiam ser convocados a
assentarem praça. O segundo motivo era a pouca dedicação de alguns dos empregados
Capitania de Santa Catarina. Os números referem-se aos anos de 1810 e 1820 e trazem dados
sobre a população no continente e na Ilha de Santa Catarina, que foram citados pelo
Quadro I -1.
População da Capitania de Santa Catarina: 1810-1820
1810 1820
Ilha de Santa Catarina 8.864 11.217
(incluso a vila capital)
Continente 21.448 27.005
TOTAL 30.448* 28.222**
FONTE: Resumo Geral da população da Capitania de Santa Catarina
extraído dos mapas dos comandantes dos Distritos. B.N./RJ. Pasta I
- 31,29,18. Documentos Nºs. 9,28 e 29.
In: BALDIN, Nelma. A Intendência da Marinha da Santa Catarina e a Questão da
Cisplatina. Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura, 1980. p. 11.
* Total: 30.312
** Total: 38.222 - A soma total que consta na tabela está incorreta.
freguesias, localizadas no litoral. Na tabela acima os dados apresentados são gerais, sem
distinção entre sexo e cor. Na obra de Paulo Joze Miguel de Brito, Memória Política..., são
295
ANDRADE, Francisco José de. Relatório apresentado pelo Presidente da Província aos deputados
Provinciais de Santa Catarina à Assembléia de Santa Catharina em 1º de março. Desterro, 1840. p. 30.
162
citados dados mais detalhados, como a cor e o sexo da população. No ano de ano de 1810, a
Capitania de Santa Catarina tinha uma população de 30.339 indivíduos. Desses 11.173 eram
homens e 12.507 eram mulheres, todos brancos. Entre as populações de “differente côr”, 293
eram homens libertos e 358 eram mulheres libertas, enquanto que 4.633 eram homens
alguns anos após o nosso período de análise, preferimos reproduzi-la porque traz dados
importantes que nos possibilitam analisar a distribuição populacional pela Ilha de Santa
Catarina. Outro ponto importante nesta tabela é que ela mostra dados sobre as freguesias do
interior da ilha, sua população, inclusive com informações sobre a quantidade de escravos.
Fonte: Arquivo Público do Estado de Santa Catarina In: REBELATTO, Martha. “Nem todos gostavam da
escravidão”: fugas de escravos em Desterro na década de 50. UFSC: TCC em História, 2004. p. 22.
de 1822, data em que o último viajante analisado, Lesson, esteve na Capitania. No entanto,
optamos por utilizar os dados, uma vez que muitos relatos eram escritos posteriormente,
alguns vários anos após a viagem, como por exemplo o relato de Saint-Hilaire, escrito após o
ano de 1847, como mostram as fontes nas quais ele pesquisou e que estão citadas em seu
de pessoas que aqui viviam, mas sim sua distribuição entre livres e escravos, descendentes de
europeus ou de africanos. Nesse sentido, esses dados nos permitem verificar que, mesmo não
tendo uma população escrava que se equiparasse às regiões do norte do país, os indivíduos
Rio Vermelho, essa população era muito significativa. Os viajantes falavam normalmente em
“negros”, não fazendo uma distinção entre os que eram livres e os que eram escravos. Se aos
escravos acrescentarmos os pretos livres, a população “de cor”, ou “negra”, torna-se maior. É
essa diversidade populacional que surpreendeu os viajantes, principalmente quando este porto
Essa população, com a qual os viajantes travaram contato, mesmo que breve,
Santa Catarina e mesmo a do resto da província é em grande parte originária das Ilhas dos
Açores.”296 O litoral sul do Império Português foi o local para onde foram encaminhadas,
entre os anos de 1748 e 1756, mais de 6.000 pessoas vindas das Ilhas dos Açores. Na
outras localidades como Nossa Senhora da Conceição da Lagoa, São José, Santo Antônio,
Nossa Senhora do Rosário da Enseada do Brito, São Miguel, Nossa Senhora das Necessidades
e Vila Nova. Algumas já eram habitadas, outras foram fundadas pelos próprios açorianos. No
proximidades. Posteriormente deslocaram-se para as margens do rio Jacuí e das lagoas dos
Patos e Quadros e para os Campos de Viamão.297 Esses imigrantes vieram para cá com o
296
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 173.
Sobre as condições e as características dos grupos que se deslocaram das Ilhas Atlânticas para ocupar o Brasil
297
Meridional no século XVIII ver: PIAZZA, Walter. A Epopéia Açórico-Madeirense. 1748-1756. Florianópolis:
Ed. da UFSC, 1992; CABRAL, Oswaldo R. História de Santa Catarina. Rio de Janeiro: Ed. Laudes, 1970;
AREND, Silvia M. F. & WAGNER, Ana Paula. A Família Açoriana na América Portuguesa: novos olhares. In:
Fronteiras: Revista de História. nº 7. Florianópolis: Imprensa Universitária, 1999. pp. 167-183.
164
objetivo de ocupar os territórios a fim de garantir sua posse ao governo português. Além
disso, fugiam do problemas gerado pela superpopulação nas Ilhas dos Açores.
O mesmo viajante fez uma descrição das características físicas dos homens.
Saint-Hilaire comentou que na Ilha de Santa Catarina, como já não havia mais
índios quando aqui chegaram os açorianos, não ocorreu miscigenação entre os dois grupos, o
que, em sua opinião, era a explicação para a grande quantidade de descendentes de açorianos
a esse comentário foi utilizado para apresentar uma elaborada teoria sobre como a natureza,
descendentes de açorianos. Sua análise comparativa dos habitantes do Rio Grande do Sul e de
estão longe de ter uma aparência robusta e comumente apresentam uma tez
amarelada e um aspecto macilento. 301
século XIX, difundiu-se na Europa as idéias de Buckle e Ratzel, maiores representantes das
idéias da escola determinista geográfica, que defendia a tese de que o meio condicionava o
1845, na Inglaterra, a obra History of the English civilization, na qual tentou demonstrar como
debilitando e enfraquecendo sua razão ao mesmo tempo em que exaltava sua imaginação.
Brasil, o autor dedicou algumas páginas para explicar as causas da degeneração do país e de
avançar. Sua situação só não regrediu devido à contribuição que recebeu do estrangeiro.
Segundo ele, o problema nas regiões fora da Europa, e no Brasil, era que uma natureza tão
abundante não incentivava o homem a produzir suas obras, pelo contrário, o inibia. 302 Saint-
Hilaire escreveu seu relato alguns anos após ter voltado para a França, entre os anos de 1847
(data da última fonte citada por ele no relato) e 1853 (ano em que veio a falecer). Como ele lia
em inglês, a probabilidade de ter tido contato com as teorias de Buckle é grande. Além disso,
ele elaborou essas conclusões sobre o clima, a vegetação e os açorianos no capítulo intitulado
“Esboço Geral da Província de Santa Catarina”. Nessa parte da obra ele se permite analisar e
301
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 135.
302
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil
1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras,1993. p. 36. Sobre as doutrinas científicas que surgiram no século
XIX ver o capítulo II.
166
discutir com outras fontes aspectos como a história, a geografia, os costumes, a colonização,
entre outros temas relacionados à Capitania de Santa Catarina. Enquanto no restante do relato
ele segue um roteiro de escrita que era determinado pelo transcorrer da viagem, onde a
descrição do que via era mais importante do que a análise, no capítulo inicial ele se permitiu
influência das teorias sobre a América, discutidas no capítulo 4. A explicação de Lesson para
a palidez dos brancos era em decorrência do “ar insalubre deste clima.”303 O mesmo repete
Saint-Hilaire em outro trecho de sua obra, onde diz que “este local é bastante insalubre, e
vários habitantes que visitei apresentavam uma constituição enfraquecida pelas doenças das
regiões pantanosas.”304 Constituição fraca e palidez foram algumas das características dos
habitantes locais salientadas pelos cientistas viajantes. A natureza na qual estavam inseridos
era diretamente responsável pelas condições físicas dos indivíduos, quando não pela sua
sugere que uma das formas que poderiam ser empregadas a fim de amenizar os problemas que
existiam nessas regiões era através do contato com colonos estrangeiros. A outra possibilidade
era o curso normal da vida: “e se algum melhoramento chegar a ocorrer, será devido apenas
melhoramento inexorável que adviria com o passar do tempo, Saint-Hilaire colocou que o
modificaria para pior. Já os nativos sairiam ganhando, uma vez que teriam a possibilidade de
303
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 86.
304
LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 269.
305
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 149.
167
uma vez que “a quantidade de escravos negros de ambos os sexos que se vêm aqui é estranha
é reduzido, mais ainda o de mulatos. Seriam essas opiniões contrárias somente em decorrência
do roteiro seguido pelo viajante? Os que vinham pela primeira vez à América, da Europa
direto para Desterro, sem passar por outras regiões do Brasil, como por exemplo a capital, Rio
de Janeiro, tinham uma imagem diferenciada dos outros viajantes? Ou como disse o próprio
Langsdorff, seria uma questão de se “acostumar” com essa prática? Se for esse o caso, Saint-
Hilaire estava tão habituado com a presença da escravidão e de suas implicações na população
que concluiu que aqui eles eram em pequena quantidade, principalmente tendo como
parâmetro de comparação outras regiões do Brasil que ele já havia visitado. Como já
mais ou menos ¼ de escravos, espalhados pela cidade de Desterro e pelo interior da ilha, em
suas várias freguesias. Outra hipótese que podemos considerar é de que, entre 1803 e 1820,
tenha diminuído. No entanto, como o tráfico internacional de escravos somente cessou vários
anos depois, em 1850, não temos nada que nos leva a considerar essa explicação viável
sobre a escravidão.
discursos dos viajantes em duas vertentes, que não se excluem: por um lado eles elogiam a
306
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 82.
307
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 165.
168
hospitalidade, a gentileza da população local para com os estrangeiros, por outro lado, os
Neste primeiro aspecto, o mais expansivo em seus elogios aos habitantes locais
foi Langsdorff. Dois aspectos positivos foram salientados por ele, a hospitalidade e a higiene.
Como o viajante já havia residido em Portugal, aproveitou para traçar um paralelo entre os
dois povos, no qual diz que “os costumes e hábitos da terra diferenciam-se, em geral, muito
pouco dos de Portugal; o clima é diferente, bem como os produtos consumidos, fatores que
causam um modo de viver e usos próprios.”308 Um dos pontos que Langsdorff considerou
distinto foi a questão a higiene. Aqui, os moradores andavam melhor trajados, não só usando
roupas finas e boas, “mas também no seu comportamento geral são muito limpos”, no que se
recebeu muitos comentários, foi sobre as manifestações musicais encontradas na ilha. Como
ele presenciou a passagem do ano de 1803/1804, pôde participar de várias momentos festivos,
inclusive uma festa dos “negros” que, segundo ele, recebiam alguns dias de liberdade para se
divertirem. Aproveitavam então para dançar ao som de suas músicas nos terreiros montados
testemunha de uma dessas festas, onde acompanhou suas danças e sua música, “digo música,
mesmo que não ouvisse um só dos nossos instrumentos europeus de som ou de corda.”310
Diferente foi sua reação ao ser despertado por uma serenata na véspera da festa de reis: a
Desterro, Langsdorff concluiu que a música estava muito presente no cotidiano dos habitantes
308
Ibidem. p. 165.
309
Ibidem. p. 164.
310
Ibidem. p. 169.
311
Ibidem. p. 170.
169
locais, fossem eles descendentes de açorianos ou de africanos. O que os distinguia era o tipo
de música, mais refinada no caso dos primeiros, enquanto que a dos escravos era uma
“gritaria monótona, uma marcação barulhenta e selvagem do compasso, com as batidas dos
descendentes de açorianos
plantas, quando “éramos recebidos com toda hospitalidade pelos habitantes do lugar, que nos
convidavam às suas choupanas e nos ofereciam frutas ou qualquer coisa que dispunham em
atenciosos, solícitos a [...] oferecer refrescos” mas, ao mesmo tempo, salientou que “tudo,
nestas choças, anuncia o pouco cuidado em que vivem as famílias que as habitam, ou mais
pouco cuidado e da falta de recursos, os agricultores locais ainda eram mais industriosos do
que os de outras regiões do Brasil, mas obviamente não se igualavam aos da França e da
Alemanha. Em comparações com os europeus, saímos perdendo, uma vez que somos mais
indolentes, uma conseqüência de natureza tão copiosa, mas se fôssemos comparados com os
habitantes das regiões norte (sudeste) do país, estaríamos em melhores condições. Numa
escala que marcasse a preguiça e a indolência, fomos colocados no centro, entre dois
312
Ibidem. p. 169. Pelo código de posturas de 1845 da cidade de Desterro foram proibidos os ajuntamentos de
escravos, ou libertos para fazerem batuques, ou qualquer outro tipo de reuniões, como os reinados africanos.
Desterro. Código de Posturas. Lei 222 - 10.maio.1845.
313
Ibidem. p. 163.
314
CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 235.
315
LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 267.
170
industriosos e trabalhadores.
XVII, XVIII e XIX também tendiam a ver nos nativos, os “italianos”, o mito do nativo
preguiçoso, numa versão européia. Eram recorrentes as descrições dos lazzaroni de Nápoles,
homens fortes e sadios deitados ao sol sem fazer nada, num dolce far niente que tornou-se
parte integrante da imagem que os europeus do norte tinham dos italianos e de sua dolce vita.
Inicialmente a Itália era vista como o centro da civilização devido a sua herança artística da
Antiguidade, o que motivou as viagens do Grand Tour, enquanto que no decorrer do século
XVIII esta imagem transformou-se. Segundo Peter Burke, os viajantes ingleses que
escreveram sobre suas experiências na Itália foram influenciados pelo “mito” da Itália, que
tornou-se mais agudo no século XIX, e que a viam como parte integrante da distinção
norte/sul. O norte visto como o local da cultura e da civilização e o sul como o espaço da
Falas nas quais os habitantes locais eram considerados inertes, poucos ativos e
ociosos apareciam nos relatos de Pernetty, que esteve aqui em 1763, de Mawe, em 1807, e de
Saint-Hilaire, em 1820.
De qualquer forma, o dinheiro que eles ganhavam não trazia proveito para a
região, já que após cada pescaria eles caíam na ociosidade e negligenciam as
316
BURKE, Peter. O discreto charme de Milão: viajantes ingleses no século XVII. In: Variedades de História
Cultural. Tradução: Alda Porto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2000. pp. 140-146.
317
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 83.
318
MAWE, John. Op. cit. p. 194.
171
suas terras. Agora eles se vêem forçados a cultivá-las, o que está longe de
constituir um mal.319
Também era a explicação para sua pobreza, uma vez que, quando tinham dinheiro,
Na opinião de alguns viajantes, era a inércia, a preguiça, o espírito pouco prático e inativo da
entender que sua inatividade, sua preguiça, os aproximava dos “selvagens”, dos incivilizados,
inclusive copiando algumas de suas técnicas agrícolas, como a queimada. Por outro lado, para
“kultur” e “civilização” para a sociedade alemã e as sociedades francesa e inglesa. Ele coloca
que, apesar das diferenças entre esses dois conceitos, um aspecto os aproxima: ambos
representam uma “auto-imagem nacional” e cada sociedade considera “axiomático que a sua é
a maneira como o mundo dos homens, como um todo, quer ser visto e julgado.”320 Sobre o
conceito de civilização, ele expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo. Além
disso, resume tudo aquilo que uma sociedade possui e que faz com que ela se considere
Civilização não significa a mesma coisa para franceses/ingleses e alemães. Para os primeiros,
319
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 163.
320
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Volume 1: Uma história dos costumes. Tradução: Ruy Jungmann.
2º ed. (1º ed. Suíça, 1939) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. p. 25.
172
vir a ser na sociedade, de maneira que estabelece uma distinção entre uma forma “civilizada”
e “incivilizada” de fazer as coisas e se comportar. Além disso, refere-se a algo que está
sempre em movimento, “para frente”. Ao mesmo tempo que delimita distinções entre os que
são civilizados e os que não são, também contribui para minimizar as diferenças nacionais
entre os povos, enfatizando o que é comum aos seres humanos, entre aqueles que
incorporaram os aspectos que delimitam o que é ser civilizado. Já para os alemães, civilização
refere-se à aparência externa dos seres humanos. Para ele é o termo kultur que expressa o
orgulho por suas realizações, sejam estas intelectuais, artísticas ou religiosas. Não se refere ao
comportamento, uma vez que, para os alemães, as atitudes desvinculadas das realizações
tornam-se secundárias. Remete aos produtos humanos nos quais está expressa a
grupo.321
análise das diferenças entre as sociedades francesa e alemã no século XVIII, no Antigo
Regime. É nesse período histórico que são definidas as fronteiras, o papel da classe média e
da burguesia nessas sociedades e suas relações com a corte, com a aristocracia. Após o fim do
período do terror (1794), quando a revolução torna-se mais moderada, a França considera que
o processo de civilização em seu país está encerrado. Seu papel passa a ser o de transmitir aos
outros - povos e sociedades atrasadas e/ou selvagens - uma civilização existente e acabada. A
colônias e seu domínio.322 É com essa crença na superioridade da sua civilização que os
321
Ibidem. pp. 24-25.
322
Ibidem. p. 64.
173
Essas descrições compõem um quadro sobre a Capitania de Santa Catarina. Enquanto Choris
pintou nossa região, os outros viajantes vão utilizar a escrita para construir uma paisagem,
onde estarão representados as pessoas que aqui viviam e a cultura que desenvolveram. Para
isso vão recorrer a comparações e paralelos, estabelendo relações. A Europa era tomada como
o padrão a ser seguido. Sua organização econômica e política, os hábitos de sua população,
sua música etc., eram considerados como os mais civilizados e melhores. A partir de seus
relatos, podemos perceber como determinados aspectos são considerados mais importantes,
uma vez que são indícios de que as populações locais aproximavam-se do que para eles era
considerado como mais civilizado. Segundo Edward Said, foi no século XIX, ou mais
única idéia que quase não variou foi a de que existe um ‘nós’ e um ‘eles’, cada qual muito
civilizado” do que os europeus era o fato de que, ao invés de transformarem a natureza, eles
se adaptavam a ela, muitas vezes incorporando atitudes e práticas dos indígenas. Saint-Hilaire
comentou que “a rotina, ajudada por uma culposa indolência, vem-se opondo até agora a esses
323
SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. Tradução: Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras,
1995. p. 27.
324
SAINT-HILAIRE, Auguste. Op. cit. p. 178
325
LISBOA, Karen Macknow. Op cit. p. 203.
174
realizar suas pesquisas e para coletar material, a cultura opunha-se e era superior à natureza.
Mas mesmo nos locais onde encontraram a natureza transformada, lavouras e campos
cultivados, construções e vilas, estas não reproduziam, muito menos se igualavam com o que
eles estavam habituados a ver em seus países de origem. Além de uma diferença espacial,
europeus falando da América, temos também uma diferença cultural. Eram europeus não-
portugueses. Como Peter Burke mostrou em seu trabalho sobre os viajantes ingleses na Itália,
existia uma diferenciação interna na própria Europa. Uma distinção que opunha o sul ao
norte. Portugal, país detentor de extensos territórios na América, que o abastecia com
inúmeros produtos, não fazia parte do grupo de países que teve primazia nas inovações
XIX, se deparavam surpresos, alguns chocados, com a presença do trabalho escravo e de uma
imensa população “de cor” no Brasil. Mesmo sabendo que o trabalho escravo africano e
crioulo era largamente utilizado no país, uma vez que tinham contato com outros viajantes,
pessoalmente ou através da leitura de seus relatos, o impacto inicial era grande. Entre os
africana. Louis Choris, em uma de suas litografias reproduziu “negros” dançando após um dia
de trabalho.
África”. Entre os viajantes, o termo negro era utilizado como sinônimo de escravo. Saint-
Catarina, utilizou o termo “negro liberto”. Para fazermos um contraponto as falas dos
recentes, sejam eles sobre Santa Catarina ou sobre outras regiões do Brasil. As denominações
metade do século XIX, em decorrência das mudanças326 que ocorreram após a proibição do
tráfico de escravos da África para o Brasil. Nos processos crimes com os quais trabalhou,
326
Uma dessas mudanças foi o aumento da população de negros e mestiços livres, o que obrigou a utilização de
termos diferentes que dessem conta de condições jurídicas distintas, encontradas entre as populações de origem
africana.
176
constatou que, até meados do século XIX, estas populações eram definidas pela sua “cor”. A
cor “negra” era sinônimo de escravo ou de liberto (preto forro). “Pardos”327 referia-se a
denominação pardo, utilizada para denominar um indivíduo de ascendência africana que havia
nascido livre, indicava sua condição de não-branco, ao ser utilizada para qualificar um
tenta demonstrar que a noção de cor, que era uma herança do período colonial, não mais
designava matizes de pigmentação da pele ou diferentes níveis de mestiçagem, mas sim era
utilizado como uma forma para “definir lugares sociais, nos quais etnia e condição estavam
Nos relatos dos viajantes, ocorria o contrário. O viajante era quem definia, denominando
dedicaram ao tema. O último, no relato de sua viagem para Minas Gerais, também não
dedicou muito espaço para falar dessas populações.330 Como nessa região a população escrava
era numericamente maior do que na Ilha de Santa Catarina, podemos concluir que esse
silenciamento deu-se em decorrência de seu desinteresse pelo tema e não propriamente devido
327
Pardo foi uma categoria que se estruturou na sociedade colonial brasileira, resultado do raciocínio de
hierarquização social. Seu significado foi ampliado para dar conta de uma população cada vez maior que não
poderia ser classificada como “preto” (escravo ou ex-escravo de origem africana) ou de “crioulo”(escravo ou ex-
escravo nascido no Brasil). Pardo, a partir da segunda metade do século XIX, era a “população livre de
ascendência africana, não necessariamente mestiça, mas necessariamente dissociada já por algumas gerações da
experiência mais direta do cativeiro”. Ver: MATTOS, Hebe Maria. A Escravidão moderna nos quadros do
Império português: o Antigo Regime em perspectiva atlântica. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria
Fernanda Baptista & GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial
portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. pp. 154-155.
328
Livre é diferente de forro. O primeiro refere-se a um indivíduo de ascendência africana que nasceu livre,
nunca foi escravo, enquanto que forro remete a seu passado de escravo. Na legislação portuguesa um ex-escravo
poderia ter sua alforria revogada. Ver: MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio: Os significados da
liberdade no sudeste escravista, Brasil, séc. XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 154.
329
MATTOS, Hebe Maria. Op. cit. p. 98.
330
LEITE, Ilka Boaventura. Op. cit. p. 107.
177
livres. No entanto, os outros viajantes deixaram registros que nos permitem visualizar a
negros”, estranhava sua presença. Mas o pior, o que lhe causou revolta, foram as condições
em que se encontravam os que estavam à venda, a forma como se dava o comércio dessas
na Europa eram feitos por animais e o tratamento rigoroso e muitas vezes cruel que lhes era
produção e o comércio, deveria ser motivo suficiente para que o governo aconselhasse “o bom
tratamento” aos escravos. No entanto, o que ele constatou é que o próprio governo não estava
interessado na “melhoria das condições dos escravos, pois justamente aqueles que estão a
serviço da Coroa, nos engenhos de açúcar, na pesca a baleia e nas minas, são tratados com
mais rigor e maior crueldade.”332 Sua crítica não teve com alvo a utilização do trabalho
escravo, mas sim a forma como era feito o comércio dos indivíduos escravizados, uma vez
que se encontravam à venda escravos velhos, doentes ou fracos. Além disso, outra coisa que o
chocou foi a preocupação, por parte dos compradores, em saber se o escravo já havia
contraído varíola, fator de valorização do mesmo, uma vez que ele tornava-se imune a esta
doença.
331
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 165.
332
Ibidem . p. 166.
178
Esse viajante, como muitos outros europeus que estiveram no Brasil no século
XVIII e XIX, não se posicionou contra a utilização do trabalho escravo. A historiografia sobre
escravidão no Império português foi a condição básica para a constituição de uma sociedade
evangelização foi estabelecido pela bula Romanus Pontifex, de 1455. A justeza de uma guerra
era decidida pelo soberano e poderia ser baseada em vários fatores, tais como a legítima
liberdade de comércio.335
desta mão-de-obra poderia ser melhor aproveitada. Ao mesmo tempo, considerava que um
melhor tratamento da parte dos proprietários para com seus escravos evitaria problemas, tais
como fugas e outros tipos de vingança, como por exemplo, os atentados contra a vida dos
donos de escravos. Um caso de assassinato, praticado por um escravo contra seu dono, havia
ocorrido pouco antes da chegada de Langsdorff à Ilha de Santa Catarina. Alguns anos depois,
333
Sobre este tema ver: NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial. 1777-
1808. São Paulo: Hucitec, 1986; SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na
sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras/CNPq, 1988; VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e
Escravidão: os letrados e a sociedade escravista no Brasil colonial. Petrópolis: Vozes, 1986;
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
334
MATTOS, Hebe Maria. A Escravidão moderna nos quadros do Império português: o Antigo Regime em
perspectiva atlântica. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista & GOUVÊA, Maria de Fátima
Silva. Op. cit. p. 143.
335
Para aprofundar esta questão, ver MATTOS, Hebe Maria. A Escravidão moderna nos quadros do Império
português: o Antigo Regime em perspectiva atlântica. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda
Baptista & GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial
portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. pp. 141-162.
179
o viajante retornou ao Brasil, fixando-se numa fazenda no estado do Rio de Janeiro. Nos
documentos sobre a expedição Langsdorff, realizada entre os anos de 1822 e 1829, estão
Langsdorff possuía um escravo, de nome Alexandre, que foi assassinado.336 Apesar de ser
proprietário de escravos, em sua viagem para o Brasil, para sua terceira estada (1822-1830),
Langsdorff investiu grande parte de sua fortuna para trazer imigrantes alemães que seriam
empregados em sua fazenda, onde pretendia fundar uma colônia agrícola. Ao todo vieram
para o Brasil 85 colonos, hábeis em diversos ofícios, juntamente com 9 pessoas, membros da
trabalho escravo não significava necessariamente a crença de que esta era a mão-de-obra mais
eficaz. Pelo dinheiro investido, o viajante acreditava que seus compatriotas seriam mais
eficientes para trabalharem em seu projeto de implantar uma comunidade agrícola. A crença
na superioridade dos colonos europeus seria devido a quais fatores: étnica, condição jurídica,
estudos sobre esse viajante não trazem uma posição definida, mas Langsdorff de certa forma
livres.
um escravo que fosse jovem e sadio custava em torno de 150 táleres espanhóis. O preço
elevava-se caso tivesse um ofício ou então fosse experiente no trabalho da lavoura. Outro item
que contava positivamente era dominar a língua portuguesa. O sexo também era um fator de
diferenciação no preço dos escravos. Enquanto “um homem, na flor da idade, comportava
336
Ver documentos fac-símile publicados em anexo na obra de BECHER, Hans. Op. cit. (sem paginação)
180
entre 200 e 300 piastras, a mulher tinha menor valor.”337 Como os viajantes eram de nações
local de escravos. Mas, independente do preço, o investimento inicial tendia a ser recuperado,
pois se deve considerar que tudo o que estes escravos ganham como diaristas
ou operários pertence não a eles, mas a seu patrão, e que podem ser alugados
por seus donos para serviços na lavoura, para remar, pescar, construir, etc.,
por um preço de acordo com seu trabalho bem semelhante ao que se faz na
Europa com os animais.338
atender às necessidades de seus senhores e dar conta das exigências de funcionamento dos
mercados urbanos, outro fator que levava à aquisição de um escravo era o difundido
visibilidade dessas populações não decorre necessariamente da quantidade numérica, mas sim
de sua inserção nas diferentes atividades, dos “atributos que lhes eram conferidos pela
especializados, uma vez que existia uma diversificação de atividades que extrapolava a
núcleos urbanos irradiavam sua ação por um espaço muito maior do que aquele ocupado pela
vila propriamente dita. Antes da construção do mercado público, em 1851, em um dos lados
da praça da matriz, os produtos alimentícios, como peixes, verduras e outros gêneros, eram
vendidos na praia. Os produtos que abasteciam a vila eram expostos em esteiras ou nas
continente. 340
337
CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 235.
338
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 166.
339
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos Africanos, Vivências Ladinas: escravos e forros em São
Paulo (1850-1880). São Paulo: Hucitec, 1998. p. 64.
340
CABRAL, Oswaldo. Nossa Senhora do Destêrro. Notícia I. Op. cit. p. 78-80.
181
necessitava anualmente “uma quantidade de cinco a sete navios negreiros, cada um com uma
média de cem negros; eram usados em substituição aos que morriam cada ano nos serviços da
lavoura.”341 Esse viajante ouviu comentários de plantadores que diziam preferir consumir as
forças de seus escravos o mais rápido possível e investir na compra de um novo escravo do
que preservá-los por mais tempo. Sabendo que seus leitores ficariam surpresos com tal
prática, preocupou-se em explicar que sua fonte de informação tinha sido fidedigna: “Tais
palavras podem soar alheias aos vossos ouvidos europeus, mas foram pronunciadas por um
porto de Desterro. Eles vinham dos mercados do norte, principalmente do Rio de Janeiro, e
em menor quantidade de outros portos mais ao sul. O porto do Rio de Janeiro tinha um papel
central na distribuição de escravos para a região sudeste e para o sul, enquanto o de Salvador
Janeiro” referentes à movimentação portuária no ano de 1812, dos barcos que saíram do porto
do Rio de Janeiro em direção a Santa Catarina, 12% deles vinham carregados com escravos.
Segundo a mesma fonte, no ano de 1817, essa percentagem caiu para 5%.343 A maioria das
eram identificados pelo seu porto de origem: Cabindas, Congos, Moçambiques, Cassanges,
Benguelas e outros). Também haviam outros grupos, em menor número, originários da região
Registros de Óbitos da Matriz de Desterro, entre os anos de 1779 a 1811, foram registrados
776 falecimentos de escravos. Juntamente com as informações sobre o óbito, consta o grupo,
havia uma “grande desproporção entre o número de negros e negras”. Explica essa
Santa Catarina. As terras estavam nas mãos de agricultores pobres, que possuíam pequenas
Sobre esse aspecto da escravidão, Jacob Gorender defendeu a tese de que esta
trabalhador. Isso somente iria ocorrer com o aumento geral dos preços, após 1850. Era esta
lógica que iria orientar o interesse dos senhores brasileiros por escravos dos sexo masculino,
Klein considera que a disparidade sexual era determinada pela oferta africana e não
344
CABRAL, Oswaldo. Nossa Senhora do Destêrro. Memória II Florianópolis: EdUFSC, 1972. p. 88.
345
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 168.
346
GORENDER, Jacob. O Escravismo colonial. 5 ed. São Paulo: Ática, 1988. pp. 335-336.
183
propriamente pela demanda americana. Apesar do diferencial no preço, isto não era suficiente
para explicar uma desproporção tão grande, até porque as escravas também estavam presentes
nas plantações de açúcar, café e algodão. Para ele, a menor oferta de mulheres para venda nos
portos africanos é explicada pela demanda interna por escravas do sexo feminino na própria
África. Livres ou escravas, elas eram mais valorizadas na maioria das sociedades africanas, o
que explica o menor número de mulheres que ingressavam no tráfico atlântico de escravos.347
desequilíbrio não era somente sexual, mas também etário. Era grande a importação de
escravos entre dez e catorze anos e, a cada dez cativos, nove tinham entre dez e 34 anos. A
porcentagem de indivíduos menores de dez anos era de 4%. Esses números referem-se à
ser um dos fatores que influirá nas relações afetivas e matrimonias entre os escravos. Saint-
Devemos considerar que, para os viajantes, bem como para a elite local e seus
regulamentadas pela Igreja. Nesse sentido, outros tipos de relações, como o concubinato,
estabelecidas entre os cativos, ou destes com indivíduos livres ou libertos, por fugirem ao
padrão estabelecido, não eram visibilizadas. Por outro lado, quando relatadas, as relações não
347
Sobre os fatores desta valorização ver: KLEIN, Herbert S. A Escravidão Africana: América Latina e
Caribe. Tradução: José Eduardo de Mendonça. São Paulo: Brasiliense, 1987. pp. 166-167.
348
FLORENTINO, Manolo. Op. cit. p. 59.
349
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 168. Saint-Hilaire este na Ilha de Santa Catarina em 1820, mas
escreveu seu relato após o ano de 1847. As informações sobre o número de escravos casados foram retiradas de
outras fontes consultadas, como relatórios de governo e relatos de outros viajantes.
184
regulamentadas eram descritas como uma amostra da imoralidade que grassava entre as
senhores. Para Saint-Hilaire, o número reduzido de casamentos legais contribuía para “provar,
infelizmente, que os habitantes dessa região não são dotados de uma moral muito elevada.”350
Robert Slenes salienta que as pesquisas realizados até este momento no Brasil possuem um
a uma única fazenda, e abarcando um período curto de tempo. Apesar das dificuldades, esses
estudos são importantes porque permitem observar sob novo enfoque as relações amorosas e
familiares que os escravos estabeleceram entre si. Essas pesquisas tem mostrado que “durante
os períodos e nas áreas onde eram comuns os casamentos legais, regulamentados pela Igreja
Católica, essa foi uma possibilidade de relacionamento que a maioria das mulheres cativas
famílias legalmente constituídas, apesar dos índices mais reduzidos. Os estudos em plantéis
onde o casamento não era freqüente têm mostrado que isto não significava a ausência de
relacionamento estáveis, muitos vezes longos, o que é comprovado pela idade dos filhos em
comum.352 Segundo Manolo Florentino e José Roberto Góes, a socialização entre os cativos
ocorria através das famílias. Enquanto a análise dos inventários mostra somente as relações
350
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 168.
351
MATTOS, Hebe Maria. Op. cit. p. 125.
352
Ibidem. p. 126.
185
amasiamento, uma relação não-sancionada pela instituição religiosa e, muitas vezes, nem
durante todo o século XIX, não conseguiram evitar a formação de famílias conjugais. Em
alguns casos, redes de parentesco extensas foram constituídas, em maior número do que nas
eram melhor tratados do que quando em estabelecimentos maiores: “os escravos que estão nas
casas dos senhores ou mesmo junto às famílias mais modestas, têm melhor aspecto humano
que os usados unicamente como força motora.”355 Os estudos referentes aos grandes plantéis,
localizados no Rio de Janeiro e em São Paulo, mostram que a presença de um maior número
de escravos concentrados num mesmo local de trabalho facilitava a constituição das relações
familiares, muitas destas consentidas pelos proprietários e regulamentadas pela Igreja. Nas
grandes lavouras de café como nas de açúcar, principalmente naquelas que possuíam mais de
353
FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico,
rio de Janeiro, c. 1790-c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. pp. 80-92.
354
SLENES, Robert W. Na Senzala, uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava,
Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 48.
355
CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 235.
186
possibilidade era mais freqüente nessas unidades produtivas do que naquelas que se
século XIX, nos jornais de Desterro, aparecem casos de crianças que eram disponibilizadas
para o comércio. A maioria tinha entre 4 a 12 anos de idade, mas em alguns anúncios eram
menores, não tendo mais do que 3 anos de idade. Dos 15 anúncios citados por Cabral, em 2 as
crianças eram vendidas junto com suas mães. Nos outros, não existem referências ao que
havia ocorrido as mães. Em nenhum desses anúncios cita-se a presença do pai das referidas
1856 e a outra no jornal “O Constitucional” no ano de 1868, falam de famílias escravas que
estavam na eminência serem separadas, não fosse a interferência de alguns indivíduos que,
compadecidos, evitaram seu desmantelamento. O primeiro anúncio fala de uma escrava e seus
6 filhos menores, colocada à venda em leilão, uma vez que seu dono falecera sem deixar
herdeiros. A mãe e 2 filhos foram arrematados pelo comendador Martinho José Callado que,
compadecendo-se com seu sofrimento, providenciou a compra dos outros 4 filhos, a fim de
quando vários cidadãos de Desterro promoveram uma subscrição a fim de libertarem uma
mãe, suas 3 filhas e sua sobrinha, que estavam à venda em praça pública. Assim, as pardas
Clemência, Maria, Francisca, Inocência e outra ainda não batizada, tornaram-se livres.358
constituídas durante a escravidão poderiam ser separadas pelo comércio escravo. Não foi o
destino das duas famílias citadas nos jornais, mas era o de muitas outras, como podemos
constatar pelos anúncios de venda de crianças escravas. Para obtermos maiores informações e
análises conclusivas sobre famílias escravas em Santa Catarina, somente com a ampliação de
356
SLENES, Robert W. Op. cit. p. 47.
357
CABRAL, Oswaldo. Nossa Senhora do Destêrro. Memória II. Op. cit. p. 105.
358
Ibidem. pp. 108-109.
187
pesquisas que aprofundem o tema, utilizando fontes diversas e uma metodologia que permita
realizadas nos últimos anos no Brasil tiveram o importante papel de romper com uma visão
etnocêntrica e racista sobre os cativos e suas relações afetivas, que foi corrente na produção
suas condições gerais de vida, retornamos as falas dos viajantes. Lesson constatou que a
situação dos escravos não era das melhores, não necessariamente por causa de sua situação
jurídica, de trabalhadores destituídos da liberdade, mas por causa das condições financeiras de
seus donos. Como seus proprietários eram “senhores pouco ricos”, os escravos eram “mal
completo.”360 Saint-Hilaire, em sua visita à vila de São Francisco, também constatou que,
permanecido pobre. Quando de sua estada na freguesia do Ribeirão da Ilha, foi recebido pelo
vigário da paróquia de Nossa Senhora da Lapa que lhe informou que seu rebanho era
composto de 1.900 indivíduos; destes, 400 eram escravos do sexo masculino e 100 eram
escravas do sexo feminino. Nessa localidade existiam vários engenhos que produziam açúcar
como ocorria no resto da ilha, não havia ali nenhuma família que possuísse
mais de um ou dois escravos, mas o desejo de todos os agricultores era estar
de posse de algo que satisfizesse ao mesmo tempo sua vaidade e sua
indolência.361
comprovava a indolência dos habitantes locais. Sua análise não passava pela compreensão da
359
Sobre a historiografia da escravidão no Brasil ver: QUEIRÓZ, Suely Robles Reis de. Escravidão negra em
debate. In: FREITAS, Marcos Cezar (org.). Historiografia Brasileira em Perspectiva. 4. ed. São Paulo:
Contexto, 2001. Robert Slenes analisou a historiografia brasileira e norte-americana referente a família escrava
em SLENES, Robert W. Na Senzala, uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava,
Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. Capítulo I.
360
LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 268.
361
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 188.
188
estrutura econômica colonial, na qual o trabalho estava assentado sobre a mão de obra cativa.
Em Desterro, como em outras regiões do país, a difusão da posse de escravos nos leva a
concluir que a escravidão era amplamente aceita pela sociedade. No quadro populacional de
relação à Capitania de Santa Catarina, a percentagem é menor. Para o ano de 1810 era de
22,83%. No ano de 1831, 23,99% da população era composta por escravos.362 Como a região
que fazia parte da Capitania de Santa Catarina limitava-se ao litoral, e a maior parte da
capital da província, Desterro, a presença da população escrava não pode ser negada, ou
invisibilizada.363 Além disso, essa população torna-se mais visível uma vez que estava
inserida em todas as esferas produtivas da sociedade local, fosse no interior das moradias
como domésticas, amas, pagens, etc., fosse na rua, como quitandeiras, artífices, jornaleiros,
distribuídos os escravos por atividade na Ilha de Santa Catarina. Devemos salientar que esse
período é posterior a 1850, quando houve um descréscimo numérico dessa população devido
ao tráfico interno, que roubou braços do sul do Brasil em favor da região central,
principalmente São Paulo. Entre os 3.978 cativos, 1.072 estavam envolvidos com os serviços
domésticos, e desses 915 eram escravos do sexo feminino. Na atividade agrícola, 699 eram
homens e somente 26 eram mulheres, totalizando 725 escravos que foram recenseados como
lavradores. Os escravos também eram utilizados em atividades diversas como marítimos (35
escravos), operários de edificações (56 escravos), pescadores (25 escravos), artistas (21
362
MORTARI, Cláudia. Os Homens Pretos do Desterro: um estudo sobre a Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário (1841-1860). Porto Alegre: Dissertação de Mestrado/PUC. 2000. pp. 43-44.
363
Sobre o discurso político e historiográfico que invisibilizou as populações de origem africana no sul do Brasil,
principalmente em Santa Catarina ver: LEITE, Ilka Boaventura (org.). Negros no Sul do Brasil: invisibilidade
e territorialidade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1996. Principalmente os artigos Descendentes de
Africanos em Santa Catarina: invisibilidade histórica e segregação e Escravidão e Preconceito em Santa
Catarina: história e historiografia.
189
escravos), costureiras (57 escravas), operárias em tecidos (46 escravas), etc. Ao todo foram
citadas 15 atividades diferentes nas quais era utilizado o trabalho escravo. Além desses, 713
(381 escravos e 322 escravas) foram citados como sem profissão 364, o que não significa que
não estavam envolvidos em algum trabalho produtivo. Devemos salientar que na segunda
metade do século XIX, a vila de Desterro aumentou sua população e sua estrutura social
não existiam no final do século XVIII e início do século XIX, período no qual está centrada
nossa pesquisa. Optamos por utilizar esses dados a fim de mostrar como a população escrava
Apesar de citar que o número de escravos nesta região era menor do que em
outras regiões do Brasil, Saint-Hilaire, como outros viajantes, ressaltou que sua distribuição
entre os proprietários era muito difundida na Capitania de Santa Catarina. Um número maior
escravos por um mesmo proprietário era a exceção e não a regra em Santa Catarina,
açorianos que receberam porções de terras menores do que em outras regiões do Brasil. O que
as falas dos viajantes dão a entender é que, apesar do número menor de escravos, estes
estavam inseridos na sociedade, uma vez que a posse era mais difundida. Através da análise
do Livro de Óbitos de Escravos da Matriz referente aos anos de 1804 a 1811, Cabral levantou
364
CARDOSO, Fernando Henrique. Negros em Florianópolis: relações sociais e econômicas. Florianópolis:
Insular, 2000. pp. 108-109.
365
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 163.
190
os nomes de alguns habitantes da Ilha de Santa Catarina que eram proprietários de um número
Irmandade dos Passos, um dos fundadores do Hospital de Caridade, proprietário de uma loja
varíola.366
Anhatomirim. Criada em 1745 para a caça da baleia e seu beneficiamento, foi administrada,
entre os anos de 1801 e 1816, pela Real Administração da Pesca de Baleia. Em 1836, sua
administração foi repassada pelo governo à Marinha e, em 1847, passou a abrigar uma colônia
de alemães. Nos outros períodos (1745-1815/ 1817-1835) a armação foi administrada por
ativos, mas 45 estavam na condição de “encostados”, por causa de alguma doença ou então
por outros motivos. Além disso, na temporada de caça, entre os meses de julho a outubro,
Catarina.
trabalhadores da armação: “Os homens empregados na fabricação do óleo eram escravos, mas
na pesca utilizavam-se homens livres, que mereciam mais confiança.”367 Entre os livres, o
366
CABRAL, Oswaldo. Nossa Senhora do Destêrro. Memória II. Op. cit. pp. 102-103.
367
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 129.
191
timoneiros que, por sua vez, recebiam mais do que os que trabalhavam nos barcos de socorro.
lavradores pobres. O estudo de Fábio Campos sobre o trabalho escravo na armação de Nossa
em várias atividades e não somente nas caldeiras. Além disso, os escravos alugados, e não
somente os homens livres, eram utilizados para realizar a função de remeiros. Essa atividade
era perigosa e por isso, ou pela pressão dos mesmos, era recusada pelos escravos pertencentes
à armação.368 A atividade de caça à baleia, e seu beneficiamento, era uma atividade bastante
rentável para Santa Catarina. O óleo era o principal produto, e destinava-se à venda para fora
outras regiões do país que ele havia visitado. Aqui o trabalho não era aviltado, uma vez que
havia menos escravos, o que obrigava muitos colonos a trabalharem suas terras, hábito que
não era comum no norte do Brasil. Quando os viajantes falam dos escravos, o tema da
preguiça e da indolência também estava presente. A imagem que suas falas transmitem é que
essas características, inerentes aos que viviam na América, além de influenciar os colonos,
também contaminavam seus escravos, como se o clima e a natureza fossem mais fortes do que
os homens. Lesson comentou que o trabalho dos escravos na terra limitava-se à capina da
superfície. Quando iam desbravar um terreno restringiam-se a cortar as árvores e atear fogo.
Após a queima, semeavam entre os espaços vazios. Segundo ele, a agricultura colonial para
exportação “ainda está por surgir” uma vez que não havia uma demanda externa que
CAMPOS, Fábio Israel Vieira de. O trabalho utilizado para a caça da baleia no litoral catarinense -
368
Armação Grande ou de Nossa Senhora da Piedade 1746-1836. Florianópolis: TCC em História/ UFSC. 2002.
192
local. Pernetty, em 1763, diz que “os mulatos são em maior número, geralmente feios, com
negros”370, porém os “mulatos” eram mais numerosos e muitas vezes se confundiam com os
brancos. O viajante não especificou se esses eram livres ou escravos. Os “negros”, segundo
“Negros” e “escravos” eram as formas mais utilizadas, separadas, mas muitas vezes juntas. O
369
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 82.
370
LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 274.
371
Estrangeiro nesse contexto não significa somente ter nascido em outro país, mas principalmente ser
estrangeiro à cultura e às peculiaridades da sociedade que eles estavam descrevendo. O olhar de fora permite
perceber o peculiar, o diferente, mas não se aprofunda a ponto de distinguir algumas características. Muitas
vezes esse olhar homogeniza e generaliza aspectos da sociedade local.
372
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 189.
193
populações de origem africana, com suas músicas e suas danças. Além dele, Chamisso
também comentou que o Natal era considerado a festa das crianças e dos negros. Nessa época
eles saíam pelas ruas, dançando, brincando e cantando. Outra prática era ir de casa em casa,
eram as praticadas pelas crianças ou pelos negros, ou então por ambos. O viajante não
seja, infantilizando os negros. Além dessas festas, havia também as danças realizadas no final
do ano, descritas por Langsdorff, e os batuques, que na opinião de Saint-Hilaire era uma
folguedos dos Ternos de Reis, tanto que, em 1843, a Câmara Municipal de Desterro negou o
requerimento de Manoel do Nascimento Gomes, no qual ele pedia a proibição destas festas,
que eram realizadas pelas ruas da cidade. No entendimento da Câmara, as festas, bem como
Outro aspecto tratado nos relatos refere-se à “liberdade”. Lesson assinalou que
existiam poucos indivíduos de origem africana que conseguiram adquirir sua alforria.
Segundo ele, “o pequeno número de negros livres deve sua liberdade unicamente ao
arrependimento e à superstição; não é senão sobre o leito da morte que, sentindo remorso pelo
medo da justiça divina, o branco religioso é capaz de uma ação generosa.”375 Essas liberdades
373
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 169.
374
AHMF. Livro de Registro da Correspondência da Câmara Municipal. Apud. MORTARI, Cláudia. Op. cit. p.
53.
375
LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 274.
194
eram motivadas não pela crença de que a escravidão era uma injustiça, mas sim devido ao
Janeiro, Manolo Florentino constatou que no final do século XVIII libertava-se mais do que
no início do século XIX. Os meios para conseguir uma carta de alforria eram três: a alforria
pela compra, a alforria gratuita e a alforria sob condição. Na documentação analisada entre os
anos de 1789 e 1840, o maior número de alforrias foi conquistado através da compra, em
segundo lugar ficou a alforria gratuita e em terceiro a alforria sob condição. Essa distribuição
pode ser explicada pelo baixo preço dos escravos praticados no período, principalmente antes
permitia o acúmulo de pecúlio por parte dos escravos, que era revertido para a compra de sua
momento a alforria gratuita suplantou a alforria por compra entre as formas de um escravo
alcançar sua liberdade. Em terceiro lugar ficou a alforria sob condição, como no primeiro
período analisado. O fator que levou à modificação foi a elevação do preço dos escravos no
mercado, o que tornou mais difícil o acúmulo do dinheiro necessário para a realização do
negócio. Outro aspecto que o autor analisou é a questão da etnia dos que conquistaram a carta
de alforria. Entre os anos de 1840 e 1860, 52% a 55% dos que recebiam alforrias gratuitas
eram africanos. Esses dados modificaram-se no período seguinte, de 1860 a 1864, quando os
africanos passaram a ser 45% dos alforriados gratuitamente. Com o fim do tráfico, diminuiu a
população do município do Rio de Janeiro.376 Esses dados dizem respeito à capital da colônia,
376
FLORENTINO, Manolo. Alforrias e etnicidade no Rio de Janeiro oitocentista: notas de pesquisa. Topoi. Rio
de Janeiro, set. 2002, pp. 9-40.
195
África. Não podem ser considerados para a vila de Desterro, mas servem para levantarmos
mais freqüente das formas dos escravos alcançarem a liberdade em Desterro? E até que ponto
Outra forma de livrar-se da escravidão era através das fugas ou mesmo dos
suicídios. Lesson, em suas andanças pelo interior da Ilha de Santa Catarina, relatou que
“várias vezes encontramos montes de terras removidas, sustentando uma pequena cruz de
madeira: era o último marco dos sofrimentos de um pobre escravo negro, o refúgio onde ele
quebrara seus grilhões.”377 A fuga era uma das formas de livrar-se da escravidão. Quem a
Martha Rebelatto, na qual utilizou como fonte os anúncios de fugas de escravos publicados
entre os anos 1849 e 1860, nos jornais que circulavam em Desterro. Outro aspecto que
concluiu era que a maior parte dos anúncios, além de descrever características dos escravos
fugitivos, oferecia recompensas. Elas tiveram seus valores aumentados durante a década de
tráfico internacional. Outra característica que os anúncios deixavam entrever era que muitos
dos escravos que haviam fugido tinham sido recém-adquiridos, uma vez que em vários
anúncios eram citados o nome e o endereço dos antigos proprietários do fugitivo.378 Isso nos
leva a outra questão: os laços afetivos e familiares que os escravos estabeleciam nas
propriedades onde eles viviam. Esses relacionamentos, muitas vezes, eram os motivos que
levavam a fuga, já que possibilitariam o retorno à convivência com seus entes queridos. Os
377
LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 267.
378
REBELATTO, Martha. “Nem todos gostavam da escravidão”: fugas de escravos em Desterro na década
de 50. Florianópolis: TCC em História, UFSC. 2004. pp.
196
jornais de Desterro também noticiaram casos de suicídios, alguns bem sucedidos e outros não.
A maior parte dos casos ocorreu nas décadas de 50 e 60. Os motivos citados foram loucura
tiveram contato, ou então emitiam opiniões sobre a escravidão, podem ser tomadas como uma
porta de entrada para vislumbrarmos aspectos de nosso passado. No entanto, como outras
cultura. Apesar de muitos viajantes, em seus relatos, deixarem transparecer um olhar que
tentava abarcar o todo do que ele estava vendo e vivendo, suas descrições eram marcadas por
recortes e limitações. Outro aspecto a ser considerado: até que ponto as informações que os
viajantes citaram em seus relatos não foram adquiridas a partir da convivência com os
próprios proprietários de escravos? Saint-Hilaire, por exemplo, utilizou várias fontes que
foram produzidas pela elite local. No entanto, os relatos de viajantes, a partir de uma leitura
minuciosa e do cruzamento com outras fontes, permitem perceber aspectos da sociedade local
e, até certo ponto, aspectos da cultura e do cotidiano que as populações de origem africana
379
CABRAL, Oswaldo. Nossa Senhora do Destêrro. Memória II. Op. cit. pp. 136-137.
197
econômicas. A principal era a agricultura que, muitas vezes, era combinada com outras
atividades como o trabalho nas armações de caça à baleia, a pesca, o fabrico de tecidos no
tear, entre outras atividades. Podemos enumerar algumas das atividades desenvolvidas na
região a partir dos produtos exportados pelo porto da vila de Desterro, que no ano de 1820
foram
ocasião de sua passagem pela vila de Desterro no ano de 1820. É importante lembrar que ele
redigiu seu relato anos depois, quando já estava na França, e utilizando como material de
informações precisariam ser confrontadas com outras fontes. O problema é que, quando elas
existem, não se referem ao mesmo período histórico. Para fazermos essas análises, o primeiro
material que pensamos foi os livros onde era registrado o movimento do porto de Desterro,
tais como os Livros da Alfândega. Mas esse material, da mesma forma como os Livros do
380
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 172.
198
Arquivo Público do Estado de Santa Catarina, não permitem elaborar uma série de dados que
depois Província de Santa Catarina. As fontes são esparsas e não se referem a períodos
longos.381 Além disso, a maioria dessas fontes dizem respeito a um período posterior ao da
passagem dos viajantes, entre os anos de 1840 e 1889. Esse é o período contemplado pela
historiadora Laura Machado Hübener em seu estudo sobre o comércio na cidade de Desterro
no século XIX, com ênfase na década de 60, período de maior atividade comercial. Mesmo
tendo presente a incompatibilidade temporal entre esta pesquisa e as falas dos viajantes que
como base a lista citada anteriormente, elaborada por Saint-Hilaire poucos anos antes do
barro, ao fabrico de tecidos, bem como ao trabalho com madeira e com couro. Na listagem
não são encontrados aqueles produtos nos quais o país havia se especializado, como por
principalmente o europeu.
produção e exportação nos anos de 1796 e 1810 na Capitania de Santa Catarina. Para isso ele
381
Segundo Walter Piazza conjuntos de documentos sobre o período colonial e imperial referentes à Santa
Catarina encontram-se dispersos em vários arquivos, entre eles o Arquivo Histórico Ultramarino, a Biblioteca
Nacional de Lisboa, o Arquivo Histórico Militar, todos localizados em Portugal. Também no exterior, o National
Archives de Washington (EUA) possui correspondências referentes à Província, enviadas entre os anos de 1834
e 1874 pelo consulado sediado em Desterro. No Brasil, ele cita o Arquivo Nacional, a Biblioteca Nacional, os
Arquivos dos estados de São Paulo, da Bahia, do Rio Grande do Sul, do Paraná e de Santa Catarina. Vários
outros arquivos são citados por possuírem pequenas coleções de documentos interessantes para a História de
Santa Catarina deste período. Ver: PIAZZA, Walter Fernando. Fontes Arquivais para a História de Santa
Catarina. In: SOARES, Iaponan (org.) Arquivos & Documentos em Santa Catarina. Florianópolis: IOESC,
1985. pp. 35-42.
199
utilizou os dados citados nas obras do Governador Miranda Ribeiro e de Paulo Joze Miguel de
Brito.382 A partir dos dados encontrados, foi possível determinar que produtos tiveram um
Alguns dos produtos não puderam ter sua taxa de crescimento determinada porque os dados
foram citados com medidas diferentes. Entre os produtos que tiveram aumento na produção e
na exportação estavam a farinha, o feijão, o trigo, a cebola e o peixe seco. O único que teve
Alguns produtos tiveram um crescimento em sua produção, mas como não existem dados
sobre a exportação no ano de 1796, não foi possível estabelecer se seu crescimento foi devido
à demanda externa, ou se esta produção era voltada para as necessidades internas. Estes
produtos são os couros, as tábuas de madeira, o melado, o algodão, o café, e o fumo. Todos
esses produtos eram exportados no ano de 1810, alguns em grandes quantidades como o
café.383
Langsdorff também fez uma listagem do que poderia ser encontrado na Ilha de
Santa Catarina. Além de algumas plantações que ele estava habituado a ver, como “coqueiros
e bananeiras, plantações de café, açúcar, arroz e algodão”, pode admirar também outras
regularmente com outras regiões ou se sua extração era voltada para o consumo interno. O
382
Os dados para a elaboração da tabela foram retirados do Relatório do Governador Miranda Ribeiro. In:
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 1959. Volume 245 e de BRITO, Paulo
Joze Miguel de. Memória Política da Capitania de Santa Catarina. Florianópolis: Sociedade
Literária/Biblioteca Catarinense, 1932.
383
Na tabela elaborada por Darcy Pacheco podem ser encontrados dados sobre outros produtos não citados, além
dos números relativos dos produtos citados. Ver: PACHECO, Darcy. Um estudo sobre a junta da Real
Fazenda de Santa Catarina. Período 1817-1831. Florianópolis: Dissertação de mestrado/UFSC. 1979. p. 32.
384
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 172.
200
os produtos desta terra são muito variados e podem ser usados como fontes
inesgotáveis de um rico comércio, se este não fosse tão limitado e
dependente do Rio de Janeiro, pois, os moradores daqui só podem vender
seus produtos para esta cidade. 385
pela região e registrou que o comércio não era tão restrito assim, uma vez que os produtos da
terra eram exportados não só para o Rio de Janeiro, mas também para o Prata. Entre esses
produtos estavam os potes de barro, e outros utensílios de cozinha feitos com argila vermelha.
O contrabando de mercadorias entre as regiões foi citado por vários autores que escreveram
sobre história econômica, tais como Caio Prado Júnior, Oswaldo Cabral e Laura Hübener.
Alguns dos fatores que facilitavam e muitas vezes incentivavam estas contravenções foram o
monopólio das empresas de comércio na época pombalina386, as taxas impostas sobre vários
de comerciar somente com a metrópole, além de inúmeras regras impostas a fim de garantir a
cobrança das taxas. Esses fatores dificultavam o comércio entre as regiões coloniais que não
metrópole. Além disso, os portos “periféricos” enfrentavam outras dificuldades, uma vez que
suas instalações eram precárias, com poucos fiscais e recursos materiais, tais como
embarcações, guindastes, balanças, pesos e medidas. Até o final do Império existiam quatro
ancoradouros em Desterro. Estavam localizados na Praia de Fora, na Ilha de Santa Cruz, onde
385
Ibidem. p. 166.
386
Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal, foi ministro entre os anos de 1750 e 1777, durante o
reinado de Dom José I. Sua administração teve como objetivo tornar mais eficiente a administração portuguesa,
modificando o relacionamento entre a metrópole e suas colônias. Criou as Companhias Gerais de Comércio do
Estado do Grão-Pará e do Maranhão (1755-1778) e de Pernambuco e Paraíba (1759-1779) que possuíam o
monopólio nestas regiões. Estabeleceu privilégios que prejudicaram outros setores comerciais, coibiu o
contrabando de ouro e diamantes, expulsou os jesuítas de Portugal e das colônias, entre outras medidas.
201
D. João IV. O Estado Português, a fim de fortalecer sua independência após a restauração,
precisava contar com o apoio de outras potências européias. Dessa forma, teve que ceder às
mantiveram-se os tratados anteriores, que liberava o comércio entre os dois países, com a
exigência de que os navios obtivessem uma permissão, expedida pelo monarca. Exceção aos
barcos que viessem da região do Prata trazendo metais preciosos. Eles poderiam comerciar
América, o comércio com a região do Prata continuou e em alguns momentos foi incentivado,
já que era do interesse de ambas as partes. Em 1711, com o intuito de reprimir os abusos que
ocorriam por parte dos navios estrangeiros, baixaram-se ordens proibindo sua aceitação nos
portos, a menos que tivessem vindo junto com as frotas de Portugal, ou então que houvessem
necessária, deveriam prosseguir viagem, sem autorização para fazer negócios. Apesar do
HÜBENER, Laura Machado. O comércio da cidade do Desterro no século XIX. Florianópolis: Ed. da
387
regiões mais intenso do que em outras. As dificuldades de controle por parte da Coroa
de 1831 a novembro de 1835, registrou em seu relatório de governo que, no ano de 1834, os
portos de Desterro, Laguna e São Francisco receberam 408 embarcações, e dentre estas, 45
eram estrangeiras. O montante importado pela província foi de 132:615$241 réis, enquanto
que a exportação foi de 57:262$038 réis para portos de fora do Império e de 287:293$330 réis
para portos do Império Brasileiro. Acrescentou, no mesmo relatório, que esses números só
não eram maiores devido ao “atrazo da nossa industria agricola”, principal fator por “não
termos em maior cópia generos em que façamos com o estrangeiro hua permuta mais ampla e
continentais próximas, estava a fabricação de peças de barro, uma vez que eram encontradas
na região continental, “esplêndida argila vermelha, com a qual se fabricam jarros, utensílios
de cozinha, grandes potes para água, etc., exportados em quantidades consideráveis para o
Prata e para o Rio de Janeiro.”391 Segundo Mawe, a quantidade de terras utilizadas no plantio
havia aumentado nos últimos tempos, devido ao corte de árvores que eram utilizadas em
inúmeros produtos, inclusive para a construção de navios, tanto que madeira de boa qualidade
linho, utilizado para fazer linhas, redes e cordames pelos pescadores, pois “no mar, em redor,
388
HOLANDA, Sérgio Buarque de. O comércio colonial e as companhias privilegiadas. In: História Geral da
Civilização Brasileira. A Época Colonial, t. I, v. 2, São Paulo: Difel, 1968. pp. 311-316.
389
Feliciano Nunes Pires nasceu em 21 de dezembro de 1775. Natural da Ilha de Santa Catarina, era filho de
Antônio Nunes Ramos, intérprete de inglês e lavrador, e de Maria Joaquina de Jesus Pires. Foi professor de
primeiras letras na vila de Desterro. Aos 35 anos foi nomeado professor público de latim em Rio Grande, onde
desenvolveu também a atividade como advogado provisionado. Foi eleito deputado por Santa Catarina, e
nomeado em 5 de maio de 1831 presidente da Província de SC. Empossou-se em 6 de agosto de 1831 e governou
até 4 de novembro de 1835. Exerceu posteriormente o cargo de Inspetor da Alfândega da cidade do Rio de
Janeiro e foi presidente da província do Rio Grande do Sul entre 06 de junho de 1837 e 03 de novembro de 1837.
390
PIRES, Feliciano Nunes. Relatório e fala no Governo de Santa Catarina 1833/1835. São Paulo: Arquivo
Público do Estado de São Paulo/Florianópolis: Arquivo Público do Estado de Santa Catarina, 1985. pp. 36-37.
391
MAWE, John. Op. cit. p. 190.
203
que se obtém por um shilling quantidade de peixe suficiente para alimentar doze pessoas.”392
Outros alimentos que Mawe encontrou com facilidade e baratos foram a carne,
reservados para o comércio, principalmente com os barcos que passavam pela região, não
em 1807 por Mawe com outra listagem, esta do ano de 1803 feita por Urey Lisiansky, capitão
do navio “Neva”. Além dos produtos e da quantidade adquirida, ele registrou também os
preços, uma vez que os estava comprando para abastecer o navio. Segue abaixo a listagem:
alguns comprados em grandes quantidades, como o caso dos limões, provavelmente devido às
392
Ibidem. p. 190.
393
Ibidem. p. 190.
394
LISIANSKY, Urey. In: Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e
XIX. Op. cit. p. 153.
204
doenças que atacavam os marinheiros, como o escorbuto, motivado pela falta de vitamina C.
Muitos produtos, principalmente frutas e verduras, podiam ter sido adquiridas em maior ou
menor quantidade devido à época e a oferta destes para a compra. Os animais eram
carne. Podemos constatar que o capitão do navio deu preferência à aquisição de produtos
frescos, tanto os de origem animal como os de origem vegetal. Exceção para os cereais e para
o rum.
se eram a pesca e o serviço militar. Sobre o primeiro, Saint-Hilaire comentou que dois fatores
os levavam a ser pescadores, vivendo a maior parte do tempo no mar: o pendor natural, uma
vez que estavam habituados “desde a infância a enfrentar um mar agitado em suas frágeis
canoas”, e o temor do serviço militar. Esses dois fatores acabavam causando uma
desproporção populacional entre homens e mulheres, com um número maior destas.395 Pelo
que podemos constatar pelas falas de Saint-Hilaire e de Lesson, o trabalho como miliciano era
festas cívicas, batalhas e guerras, havia os soldados que estavam locados nos quartéis e na
guarda das fortalezas e dos fortes. Lesson chamava esses indivíduos de “soldados-cidadãos”.
Em função da falta de regularidade no pagamento dos soldos feito pelo governo, eles
395
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 175.
396
Ibidem. p. 184.
205
domésticas, que eles vendem aos navios que passam, em troca de algum
lucro.397
da Silva Paes como capitão-mor. Silva Paes tinha como função criar um sistema defensivo
para a Ilha de Santa Catarina, ponto estratégico na ocupação da região meridional da Colônia
Portuguesa na América, pois ficava a meio caminho entre o Rio de Janeiro e a foz do Rio da
militares não foram suficientes para garantir a posse dessa região. Era necessário povoá-la
com uma população que ao mesmo tempo a defendesse e produzisse os alimentos necessários
para o sustento dos soldados. O edital do Rei de 8 de agosto de 1746 especificava seus
objetivos ao incentivar a emigração de famílias açorianas para a região sul de sua colônia na
América. A vinda de famílias jovens e numerosas visava a ocupação, e desta forma a posse
desses territórios, garantindo assim sua defesa e seu desenvolvimento econômico. O edital
também especificava as regras: homens com menos de 40 anos e mulheres com menos de 30
anos. Também davam preferência às famílias com filhos e que fossem experientes com o
Atlântico eram recebidos pelas autoridades locais que deveriam assentá-los e suprir suas
terras, que deveriam ser limpas das matas e cultivadas, e também os utensílios necessários
para o início da nova vida: uma espingarda, que não poderia ser vendida, instrumentos de
trabalho, como enxada, enxó, martelo, facão, entre outros, alguns animais, como vaca e égua,
397
LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 268.
398
FLORES, Maria Bernardete Ramos. Povoadores da Fronteira: os casais açorianos rumo ao Sul do Brasil.
Florianópolis: Ed. da UFSC, 2000. pp.38-41.
206
de uma espingarda para cada família era para ser utilizada na defesa pessoal, devido aos
ataques dos animais bravos e dos indígenas, mas também para ser utilizada em caso de
específicos, entre eles o trabalho com o algodão e o fabrico de tecidos. Pernetty, em 1763,
manualmente, algo que nas Antilhas era feito com máquinas. Deduziu que “as portuguesas
que vi ocupadas neste trabalho faziam disto uma pura diversão, pois, elas o separavam pouco
a pouco, pinçando-os somente com os dedos.”399 Após essa etapa, o algodão era fiado e
tecido. Era uma atividade desenvolvida em muitas casas. O algodão, antes de ser fiado,
deveria ser separado das sementes, pinçando-as como falou Pernetty, ou então batendo-o com
martelos, como presenciou Mawe, em uma de suas excursões pelo interior da ilha. Saint-
Hilaire encontrou em todos os sítios a presença de teares, com os quais eram fabricados
panos, um “tipo de trabalho que é comum a todas as famílias.”400 Mais do que providenciar o
tecido necessário para a família, muitas “mulheres procuram ganhar algum dinheiro com o
seu trabalho. Quem passa diante de suas casas ouve-as batendo o algodão; elas fiam e
generalizou suas informações. Não falou que encontrou teares nos sítios que visitou, mas em
“todos” os sítios. Não eram algumas, ou a maioria das famílias que se dedicavam à produção
com os estrangeiros, e que aqui se encontravam todos os tipos de artífices, tais como alfaiates,
399
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 106.
400
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 173.
401
Ibidem. p. 174.
207
ao trabalho de fazer renda.402 Descreveu de forma muito positiva a ilha, dizendo que o clima é
ótimo, que tudo o que é plantado produz, sendo inclusive conhecida pelas “deliciosas frutas”.
O algodão, utilizado nas roupas, era por eles mesmo plantado, fiado e tecido. Construíam suas
próprias casas, bem como as canoas com as quais se deslocam pela região em busca do peixe.
Em suma, “pode-se dizer, em verdade, que todo homem é mais ou menos um artesão.”403 Esse
foi o relato de uma viagem realizada no ano de 1807. Menos de quatro anos antes, Langsdorff
afirmou que
os teares estão em estado nascente, os moinhos são escassos; mas, com todas
estas imperfeições, não devo me esquecer de que em Nossa Senhora do
Desterro são fabricados excelentes objetos de barro [...] e chegam a exportar
para o Rio Grande e até para o Rio de Janeiro. Existem aqui ótimas
olarias.404
de Santa Catarina. Segundo ele, na vila de São José, localizada no continente, seus habitantes,
plantar arroz”. O ganho com esse trabalho não era muito elevado, mas o padrão de vida local
Um dos produtos mais exportados durante o século XIX pelo porto de Desterro
foi a farinha de mandioca. Vários viajantes comentaram que na região era plantada mandioca,
juntamente com outros produtos como café, cana de açúcar, trigo e arroz. Tudo em pequenas
para uma exportação em pequena escala para a cidade do Rio de Janeiro. No caso da farinha
outras regiões do Brasil. Esse produto também era produzido em outras regiões do país, e
Santa Catarina sofria a concorrência com o Rio Grande do Sul e o Espírito Santo na disputa
402
MAWE, John. Op. cit. p. 190-191.
403
Ibidem. p. 195.
404
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 178.
208
substituído nas outras habitações pela caçava, que era feita com a pasta da mandioca cozida.
Esse método rudimentar de ralar a mandioca, produzindo a pasta que depois seria seca ou
cozida, conforme o produto para o qual seria destinada, era utilizado na segunda metade do
século XVIII. Com o passar do tempo, e com a demanda pelo produto, a tecnologia
aspecto que chama a atenção são os discursos que transformam o trabalho em diversão, como
trabalhos coletivos, em mutirão, onde várias pessoas estavam envolvidas, muitas vezes
405
HÜBENER, Laura Machado. Op. cit. p.77.
406
PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 103.
209
com outras nas quais era salientada a insalubridade da área devido às águas estagnadas. As
representações de que os trópicos eram uma região de fartura e abundância natural eram
intercaladas com falas nas quais os viajantes salientavam sua pobreza. Essa combinação entre
fartura natural e pobreza humana ajudou a propagar uma imagem de preguiça e de indolência
de seus habitantes, uma vez que na região, por causa da abundância, não era necessário
Langsdorff, em seus inúmeros passeios, conheceu alguns sítios, nos quais era
recebido e lhe ofereciam algo para beber e para comer. Essas casas, de propriedade dos
colonos, eram bem situadas, mas geralmente pequenas. Langsdorff reparou na ausência de
aldeias, ao moldes das que existiam na Europa. No entorno das “choupanas”, os agricultores
possuíam suas terras, o que fazia com que as moradias estivessem distantes umas das outras.
Ainda segundo o viajante, “a maior parte das casas está ao longo da costa, com plantações de
laranja, café, bananas e algodão em sua volta. Nas proximidades de cada choupana encontra-
se, geralmente à sombra dos pés de laranjas, uma fonte de águas cristalinas.”407
Alguns anos depois, também por causa de seus passeios para coletar plantas,
Saint-Hilaire conheceu o interior da ilha. Descreveu os inúmeros caminhos que levavam aos
sítios, “de casas muito pequenas, feitas de barro e madeira, cobertas de telhas e em mau
mandioca.”408 Uma das casas onde ele esteve pertencia a uma viúva, que passava
407
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 176.
408
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 150.
210
necessidades. Como seus filhos eram pequenos e seus familiares moravam longe, não tinha
como conseguir o peixe para alimentar sua família. Os únicos utensílios que encontrou na
“anuncia o pouco cuidado em que vivem as famílias que as habitam, ou mais ainda, indica a
carência de recursos em que se encontram estes habitantes por não possuírem alguns destes
pequenos luxos que permitem maior conforto e bem-estar.”409 As casas tinham “paredes de
estuque”, a porta era uma “abertura para a rua”, o telhado era feito com “barrotes de madeira”
“imundícies”, junto com os “objetos grosseiros de uso diário” completavam o quadro descrito
descrição, ele descreveu o aposento da dona da casa que, “por sua limpeza e pelos simples
arranjos que o decoram, tais como alguns utensílios de cobre, uma estampa colorida ou uma
madona”, era utilizado para receber. Em pequenos detalhes como esse, constatamos como as
populações que eram descritas pelos viajantes, no caso Lesson, escapavam ao estereótipo pré-
construído sobre elas. Num lapso do discurso, surgia uma imagem estranha àquela construída
algumas vezes à pobreza, outras não, era momentaneamente substituída por outra, a de uma
dona de casa que, apesar da pobreza, mantinha seu aposento asseado, inclusive enfeitado com
Mawe, que esteve na região alguns anos antes de Lesson, comentou que os
habitantes não eram ricos. Como a produção local não era superior ao consumo, o “comércio
por Darcy Pacheco nos mostram o contrário. A produção de alguns produtos era superior à
necessidade local, o que gerava um comércio com outras regiões da colônia e inclusive com
409
LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 267.
211
portos do Prata. Continuando as descrições, Mawe salientou que as dificuldades não eram
maiores porque, apesar do ganho líquido de uma família ser baixo, suas necessidades e seu
consumo também eram reduzidos. Além disso, os habitantes locais não tinham “incentivos
fortunas”410, o que significava que a região continuaria, na previsão desse viajante, muitos
anos ainda entregue a inércia econômica. Num outro trecho de seu relato, retomou uma
mesmo tempo em que citou os vários produtos que eram cultivados “em grande quantidade”
pelos agricultores locais e que eram beneficiados com máquinas mais antigas e menos
eficientes do que as utilizadas na Europa, o que nos faz deduzir que era empregado mais
trabalho humano, o viajante concluiu que os habitantes eram indolentes. Indolência e pobreza.
O não fazer nada, o não trabalho, somente é um problema quando está vinculado com a
pobreza. A fala do viajante, quando afirmou que o ganho de uma família era baixo, mas que
isto não era um problema pois as necessidades também eram reduzidas, nos permite uma
reflexão: qual era o parâmetro de riqueza utilizado pelos viajantes? Como em outras
comparações, sua referência era européia. Mawe nos dá a entender que uma vila desenvolvida
era aquela que tinha uma vida urbana movimentada. A ausência de cafés, de hotéis, de um
comércio movimentado e sortido foi um dos aspectos comentados. Para um indivíduo nascido
Desterro era uma pequena vila. Em alguns aspectos encontrava-se em piores condições do que
410
MAWE, John. Op. cit. p. 191.
411
Ibidem. p. 194.
212
se em buscar outras explicações para a situação econômica em que vivia a população local.
Uma delas era o abandono ao qual foi submetida a região pelo governo português. Segundo
ele
Saint-Hilaire ter contado com a ajuda do governo português no Brasil para se realizar, através
de autorizações e cartas de recomendação, o que lhe facilitava o livre trânsito pelo interior,
seu relato foi escrito alguns anos depois, já na França e com o Brasil independente de sua
antiga metrópole. Nesse contexto era mais fácil expressar sua opinião sobre a atuação da
Coroa Portuguesa no que se refere a suas colônias. Outro motivo elencado por ele seria
engraçado, se não contivesse um tom tão misógino. As mulheres e seu gosto exagerado pelos
enfeites também contribuía para a pobreza, uma vez que tudo o que elas ganhavam (ao menos
ele reconhece o trabalho feminino) de “um modo geral empregam [...] unicamente para
satisfazer o seu gosto pelas roupas bonitas.”413 Se as mulheres eram coquetes, levianas a
ponto de gastar tudo o que ganhavam com enfeites, os homens pobres também não tinham o
caça da baleia, ao invés de guardar para o futuro, e cultivar suas terras nos momentos de
folga, “eles ficavam à toa quando terminava a pesca e passavam a vida bebendo cachaça,
412
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 134.
413
Ibidem. p. 174.
213
cantando e tocando violão até que o dinheiro acabasse.”414 Esse estereótipo que recai sobre os
correntes entre os ítalo-germânicos sobre o homem do litoral, o mais comum é que este é
malandro, preguiçoso e que não quer trabalhar. O autor não analisa em que momento e como
trabalhador, mas vai por outro caminho, no qual busca mostrar a inverdade desse juízo de
atividade no mar, tinham outro ritmo de trabalho, que não coincidia com os horários
comerciais e industriais dos centros urbanos, ou mesmo com o horário de atividade dos
sem interrupção até o meio da tarde, almoçando no próprio barco. Como acordavam cedo,
encerravam o trabalho mais cedo e recolhiam-se também mais cedo. Dessa forma, o horário
que podiam freqüentar o boteco, ou a venda, quando aproveitavam para encontrar os amigos
era ao final do trabalho, por volta das 4 ou 5 horas da tarde. No mesmo horário em que um
pescador estava terminando sua jornada de trabalho, que havia iniciado de madrugada, um
segunda metade dos século XIX e durante o século XX (e que, remodelada, ainda persiste na
atualidade), era corrente também nos discursos dos viajantes. De Pernetty (1763) a Lesson
414
Ibidem. p. 163.
415
FARIAS, Vilson Francisco de. Dos Açores ao Brasil Meridional: uma viagem no tempo: 500 anos, litoral
catarinense. 2 ed. Florianópolis: Ed. do Autor, 2000. p. 105.
214
capítulo 5, Peter Burke constatou que a imagem de indolente também era utilizada para
descrever os lazzaroni, habitantes das cidades italianas descritas pelos viajantes ingleses do
século XVIII e XIX. Os nativos da América também receberam essa pecha, como as
populações nativas de outras regiões do mundo. A prática de ver o outro a partir de conceitos
e de concepções de sua própria cultura não está restrita aos relatos dos viajantes. O
etnocentrismo extrapola o texto e fundamenta-se nas relações que são estabelecidas entre os
indivíduos, que podem ser de uma mesma região ou de uma mesma etnia. Os viajantes
mesmo compreendê-la, mas de uma forma que reforçasse seus valores e sua cultura como os
postura teórico-metodológica que lhes dê suporte. Podemos tomar os relatos de viagem como
pelos historiadores a partir das formulações desenvolvidas por Marcel Mauss e Émile
conceito, entre eles Foucault, que na obra As palavras e as Coisas, publicado em 1966,
representação coloca em cena o mundo dos signos, ordenando-os em quadro. Louis Marin
relações que mantém as modalidades de exibição do ser social ou do poder político com as
BOUREAU, Alain. La compétence inductive. Um modèle d’analyse des représentations rares. In: LEPETIT,
416
Bernard (org.) Les formes de l’expérience: une autre histoire sociale. Paris: Albin Michel, 1999. p. 26.
215
interessava para Chartier é uma questão histórica colocada por esse grupo que remete à
proposto pelos textos e imagens antigos. Além disso, as formas de teatralização da vida social
significado.418 Para exemplificar, ele recorre à crença de que a aparência vale pelo real, como
por exemplo o aparato de juízes e médicos. Esse não seria necessário se eles fossem realmente
confundida pela ação da imaginação”, leva a uma representação deturpada que é utilizada
homens de guerra não precisavam afirmar sua força através de representações, uma vez que
seu papel era realmente essencial. As lutas de representações adquirem uma importância cada
vez maior na longa duração, no processo que tem como objetivo erradicar e monopolizar a
Antigo Regime, nas quais a noção de representação ocupava um lugar central e era entendido
com um duplo sentido. Numa primeira definição, a representação como dando a ver algo
ausente, como, por exemplo, os bonecos de cera, madeira ou couro, que eram colocados sob o
féretro real durante os funerais dos soberanos ingleses e franceses. Por outro lado pode ser
417
CHARTIER, Roger. Pouvoirs et limites de la représentation: sur l’oeuvre de Louis Marin. ANNALES HSS,
Mars-avril 1994, nº 2, p. 411.
418
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Op. cit. p. 20-21.
419
Ibidem. p. 23.
216
alguém.”420 Além dessas duas definições, outra também era utilizada: a relação simbólica que
leva a representação de uma qualidade moral a partir de propriedades naturais, como por
e suas representações, apesar de aspirarem ser universais, uma vez que se entendem como
fundamentadas sobre a razão, na verdade são sempre determinadas pelos grupos sociais, e
pelos interesses, nos quais são forjados. Desse modo cada caso, cada discurso, deve ser
analisado a partir do grupo que os proferiu, verificando os interesses nos quais estão
envolvidos. As representações não são discursos neutros, assim como as estruturas do mundo
seria o campo da história mais segura, que através de documentos seriais, quantificáveis, tenta
reconstruir o passado, a segunda estaria ligada ao terreno das ilusões projetadas pelos
discursos e afastadas do real. Essa divisão não marcou somente a história, mas também a
classificações e as formas de percepção da realidade social, que são próprios de cada grupo,
420
Ibidem. p. 20.
421
Ibidem. p. 27.
217
realidade social? Para Francisco Falcon, as representações podem ser pensadas a partir da
outro lado, a representação pode ser pensada a partir da noção de identidade, que remete para
Chartier, mais especificamente nos textos que integram a coletânea A História Cultural: Entre
práticas e representações, uma tendência dupla: por um lado, a realidade é analisada através
de suas representações, sendo estas consideradas com múltiplos sentidos, enquanto que, por
outro lado, constata-se a existência de práticas que possuem uma lógica própria e que não
como os europeus construíram uma imagem sobre a América e os americanos. Imagens que se
modificavam dependendo do contexto histórico e das relações estabelecidas entre estas duas
regiões que não tinham uma relação de igualdade. Os discursos produzidos pelos viajantes
americanos. Uma inferioridade que, segundo os relatos dos viajantes, tinha como base a
indolência dos americanos. Esta representação tem que ser pensada no contexto da expansão
colonial e imperial, que precisava de justificativas para sua atividade, vista como retentora.
422
Ibidem. p. 18.
423
FALCON, Francisco J. Calazans. História e Representação. In: Representações: Contribuição a um Debate
Transdisciplinar. Campinas: Papirus Editora, 2000. p. 41.
424
CHARTIER, Roger. Op. cit. p. 11. Nota de apresentação.
218
Além disso, no século XIX temos que inserir outro aspecto, qual seja, a lógica do liberalismo
econômico que estava difundido uma nova relação do homem com o trabalho e com o tempo.
Neste sentido, sociedades que desenvolviam atividades de subsistência eram vistas como
peixe cozido na água e de laranjas, uma fruta muito comum na ilha. Concluiu sua explicação
de acordo com o que já foi dito acima sobre a Ilha de Santa Catarina, tudo
indica que essa ilha tende a empobrecer cada vez mais, uma vez que sua
população cresce sem parar e que, devido ao errôneo sistema de agricultura
adotado na região, assim como em todo o Brasil, as terras produzem cada
vez menos. Além do mais, o dinheiro obtido com as exportações é logo
gasto, seja em objetos de luxo que são trazidos de fora e têm de ser sempre
renovados, seja na aquisição de escravos, que também vêm de fora e que, em
425
sua maior parte, não se multiplica.
diminui a produtividade das terras, a aquisição de produtos externos, entre eles os escravos, a
falta de meios de transporte eficientes, etc., todos estes são fatores que, na opinião de Saint-
qualificavam os habitantes locais de indolentes, de preguiçosos, mas não de vadios. Uma das
indivíduos criminosos, ladrões, degredados. Era uma denominação utilizada para qualificar
pessoas que se recusavam a inserir-se na sociedade. Laura de Mello e Souza, em seu trabalho
colônia, numa região de mineração, propiciou o surgimento de uma sociedade na qual muitos
425
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 177.
219
livres, mas pobres. Como não tinham acesso à terra e às lavras, tinham que submeter seu
trabalho a outro. Nesse caso teriam que concorrer com o trabalho escravo, sujeitando-se
a exercer os trabalhos que não eram executados pelos cativos. Caso esse homem livre tivesse
acesso à terra, muitas vezes acabava perdendo suas lavras e sendo empurrado para a pobreza,
devido à cobrança dos impostos e o controle exercido pelo poder metropolitano. O que a
autora discute em seu trabalho é que essa marginalidade se constituiu numa situação
específica, numa sociedade cuja maior riqueza vinha da mineração e não da agricultura como
em outras regiões da colônia. Além disso, era uma área que, por causa da febre do ouro, atraiu
muitos indivíduos livres, solteiros ou sozinhos (os casados deixavam suas famílias em sua
região de origem, fosse esta a metrópole ou outras áreas da colônia), que iam para as Minas
Gerais em busca do enriquecimento rápido. Para a elite local, os homens livres, despossuídos
e marginalizados eram vadios, inúteis, e passaram as ser tratados como se não existissem. Ou
melhor, existiam para o aparato policial que os perseguia e os jogava nos cárceres coloniais.
Eram desclassificados que não eram vistos, a ponto de não serem considerados membros da
marginalidade. A própria Laura de Mello e Souza desenvolve uma discussão na qual analisa
como a pobreza e os pobres eram vistos em diferentes contextos históricos.427 No caso dos
habitantes do litoral de Santa Catarina, os viajantes davam a entender que a pobreza que
grassava entre eles era causada pela indolência e preguiça aos quais os próprios habitantes
haviam se entregado. Mas o que era ser rico no Brasil colônia? Nas regiões de mineração,
426
MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do Ouro: a pobreza mineira no século XVIII. 3. ed. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1990. pp. 215-222.
427
Para aprofundar esta questão ver: MOLLAT, Michel. Os pobres na Idade Média. Rio de Janeiro: Campus,
1989; GEREMEK, Bronislaw. Os filhos de Caim: vagabundos e miseráveis na literatura européia (1400-
1700). São paulo: Companhia das Letras, 1995; HIMMELFARB, Gertrude. La idea de la pobreza: Inglaterra
a principios de la era industrial. México: Fondo de cultura económica, 1988.
220
criação de gado no Rio Grande do Sul, a riqueza era medida pela quantidade de cabeças de
gado. Em várias regiões do Brasil, rico era quem tinha grandes extensões de terra e escravos
que a cultivassem.
pequena propriedade. Não por uma questão de política de ocupação, mas porque os próprios
colonos optaram por pequenas áreas, para não ficarem afastados de seus vizinhos. Com o
pequenas que seus donos não conseguiam mais garantir o sustento da família. A posse de
escravos era outro item que demonstrava riqueza. Mas como vimos no capítulo 6, não havia
famílias tinha um ou dois escravos. Esse aspecto mostra muito mais a aceitação da escravidão
dificuldades enfrentadas para ocupar o território, tendo que enfrentar o pesado trabalho de
limpar o terreno para iniciar o plantio de alimentos, a natureza insalubre devido às águas
fatores que contribuíram, na opinião dos cientistas viajantes, para a indolência dos
Hilaire, essa realidade somente se modificaria com o passar do tempo e com a vinda de
discurso que inferia maior laboriosidade e eficiência no trabalho de algumas etnias européias,
quando em comparação aos habitantes da América. Esse discurso, difundido nos relatos dos
221
necessitava do trabalho humano para gerar riqueza. Enquanto os viajantes viam essa região
como tendo sido agraciada “pela natureza em todos os sentidos, uma terra onde tudo viceja
com inexcedível beleza e garbo imagináveis”428, José de Souza Azeredo Pizarro e Araújo429,
insere outras explicações para a decadência da região. Segundo ele, muitas das dificuldades
escreveu que o problema maior era a falta de braços para ocupar a terra, cultivando-a. Sugeriu
facilitam o trabalho humano. Através da importação, combinada com a natureza, que “entre
os dons de que foi prodiga com este paiz abençoado o favoreceu com hum clima, alem de
benigno, próprio para quasi todas as producções de ambos os hemispherios”, seria possível
desenvolver a região, substituindo por homens livres os escravos, “esses inertes e aviltados
pelos ferros da escravidão que nos fornecia o abominavel trafico de carne humana.”431 José
428
LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. Cit. p. 162.
429
Citado por Auguste de Saint-Hilaire. Escreveu Memórias Histórias.
430
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. Cit. p. 178.
431
CAVALCANTI, José Mariano de Albuquerque. Relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial.
Desterro, 5 de abril de 1836. In: Ágora. Transcrição Paleográfica: Neusa Maria Schmitz. Florianópolis/SC. Ano
XV. Nº 32. 2º semestre. 2000. p. 33.
222
Mariano de Albuquerque, como Pizarro e Araújo, era um habitante local. Letrados, membros
para todos os viajantes, os habitantes locais eram considerados preguiçosos e indolentes, sem
Além dos relatos escritos, também foram produzidas pinturas que tinham como
tema a Ilha de Santa Catarina. Entre os viajantes analisados, Louis Choris é o único artista
viajante. Outros viajantes, como Pernetty, também desenhavam, mas seu objetivo era
acrescentar informações ao que estava sendo relatado nos diários de viagem e ao que estava
sendo coletado. Seus desenhos eram voltados para o trabalho científico e não com objetivos
artísticos. Nos trabalhos dos viajantes artistas acontecia o contrário: a escrita acrescentava
informações ao que era pintado pelo viajante. No livro de viagem de Choris, cada prancha é
de 1795, em uma família alemã que morava em Iekaterinoslav. Foi enviado para estudar no
ginásio de Kharkov, onde seu talento para o desenho aflorou. Seus primeiros ensaios
chamavam a atenção do naturalista Marschall de Biberstein que, em 1813, o levou para sua
primeira viagem de estudos ao Cáucaso, quando tinha apenas 18 anos. Foi convidado a fazer
Império Russo, entre os anos de 1815 e 1818. A expedição tinha como meta principal
descobrir uma passagem entre o Pacífico e o Atlântico pelo caminho do Estreito de Bering.
Comandada por Otto von Kotzebue, tal expedição teve uma grande importância do ponto de
a Ilha de Páscoa, bem como outras ilhas no Pacífico até o Estreito de Behring. O trajeto feito
224
pelo navio explorou também a costa da Ásia e a costa oeste da América do Norte. Entre as
inúmeras pranchas e desenhos que produziu, encontram-se quatro pranchas que retratam
paisagens da Ilha de Santa Catarina, que foram publicadas em 1826 com o título de Vues et
paysages des regions équinoxiales recueillis dans un voyage autour du monde com
introdução, texto explicativo e imagens em cores no formato in-fol., impressas pela editora
Paul Renouard, de Paris. O tempo de permanência na Ilha de Santa Catarina foi pequeno,
dezembro).432
conviveu com outros artistas e cientistas. Estudou e trabalhou com Jean Baptiste Regnault e
França para visitar o México e outras regiões da América. Morreu de forma trágica na cidade
de Vera Cruz, México, em 22 de março de 1828, ferido por um golpe de sabre e atingido por
uma bala, ao tentar se livrar de assaltantes. Seus trabalhos começaram a ser publicados em
Paris a partir do ano de 1819. Além da obra citada acima, trabalhos seus podem ser
mammifères par M. le baron Cuvier et d’observations sur les crânes humains par M. le
docteur Gall, publicado em Paris no ano de 1820, em formato in-fol., com figuras e mapas.
Em 1822 surgiu outra edição com o título levemente modificado: Voyage pittoresque autour
du monde, avec des portraits de sauvages d’Amérique, d”Ásie, d’Áfrique, et des iles du
Grand Ocean; des paysages, des vues maritimes et plusiers objets d’histoire naturelle. Esse
Chamisso e do doutor Gall. Foi impresso pela editora Firmin Didot, de Paris. Essas edições
possuíam vários fascículos e eram relativamente caras, por isso muitas somente eram
432
A existência de duas datas deve-se, provavelmente, ao fato do Império Russo, onde nasceu Choris, utilizar o
calendário Juliano e não o calendário Gregoriano, como no Ocidente. O primeiro tem um atraso de 13 dias em
relação ao segundo, o que se manteve até janeiro de 1918.
225
publicadas com a venda antecipada de um número mínimo de obras, de maneira que a venda
pagasse a impressão das pranchas. As pessoas que adquiriam os álbuns, muitas vezes os
encontrar partes específicas que foram traduzidas e publicadas em coletâneas, como as quatro
Catarina: relato de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX. Na biblioteca do Instituto
de Estudos Brasileiros da USP há uma cópia do Vues et paysages des régions équinoxiales
recueillis dans un voyage autour du monde, publicado em Paris pela editora P. Renouard, no
ano de 1826. A Biblioteca Mário de Andrade/SP possuí uma cópia do Voyage pittoresque
autour du monde, publicado em Paris no ano de 1822 pela editora Firmin Didot. Além desse
material impresso, Afonso d’Escragnolle Taunay cita a existência de uma aquarela que
sem a presença dos bailarinos africanos, adquirida por Almeida Prado na Europa.433
maior número de pessoas na Europa. A litografia, técnica utilizada para reproduzir as imagens
de Choris, difundiu-se no início do século XIX. O procedimento, que utilizava a pedra para a
confecção da matriz, era mais preciso do que a xilogravura. Além de permitir a reprodução
conhecidas do Velho Mundo remonta ao período das grandes descobertas. Um exemplo são as
433
TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. Cinco peças da velha Iconografia Catarinense. In: Anais do Primeiro
Congresso de História Catarinense. Florianópolis: Imprensa Oficial, 1950. Vol. II. pp. 124-139.
434
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e
política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994. p. 166.
226
imagens produzidas por Franz Post que, juntamente com Albert Eckhout, acompanhou o
brasileiro (1630-1654). Inicialmente, a utilização desses artistas tinha como objetivos mapear
o relevo, os portos e a geografia das novas regiões. Foi somente no final do século XVIII que
passaram a ter outras funções. Continuavam retratando a topografia, mas também dedicavam-
Freitas coloca que no período colonial e imperial brasileiro existiram três diferentes influxos
no que se refere à pintura e ao desenho de paisagens. O primeiro foi com a vinda de artistas e
cientistas da missão de Maurício de Nassau. Franz Post, Albert Eckhout e Georg Marcgraf
foram os artistas que, no século XVII, produziram imagens sobre o Brasil holandês. Post foi
localizou-se na primeira metade do século XIX e foi marcado por três eventos: a vinda da
Expedição Langsdorff, realizada entre os anos de 1822 e 1825. O terceiro e último influxo foi
marcado pela presença do professor Johann Georg Grimm na Academia de Belas Artes, entre
os anos de 1882 e 1884. Ele levou seus alunos para fora dos ateliês, para terem contato com a
natureza, o que influiria nos padrões acadêmicos da pintura das paisagens. 436
primeiros momentos. Apesar de não podermos afirmar com certeza se ele teve ou não contato
com certos artistas, ou seus trabalhos, podemos levantar algumas considerações. Os trabalhos
dos artistas que acompanharam Nassau foram doados a Frederico Guilherme de Brandeburgo.
No ano de 1664 foram publicados em Berlim sob o título de Theatrum rerum naturalium
435
CHENET, Françoise. L’artiste chargé de mission. Le rôle de l’artiste dans quelques missions scientifiques. In:
MOUREAU, François (org.) L’oeil aux aguets ou l’artiste en voyage. Paris: Klincksieck, 1995. pp. 136-137.
436
FREITAS, Marcus Vinicius de. Charles Frederick Hartt, um naturalista no Império de Pedro II. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2002. pp. 120-124.
227
chamado Lichtenstein dedicou vários estudos a essa obra, após localizá-la na Biblioteca de
Berlim. Além disso, Maurício de Nassau presenteou o rei da França, Luís XIV, com 4 quadros
de Franz Post. Esses trabalhos realizados pelos artistas holandeses ou estavam na França, em
sua capital Paris, ou então estavam sendo objetos de estudo na mesma época que Choris
estava fazendo sua formação de artista viajante, o que aumenta as possibilidades dele tê-los
analisado. Além disso, Choris provavelmente teve contato com diversos artistas e cientistas de
sua época, uma vez que mantinha relações com Alexander von Humboldt, que congregava ao
seu redor cientistas, viajantes e artistas, entre eles Rugendas. Artistas e cientistas ou moravam
na capital da França, ou então mantinham contato com suas instituições, como por exemplo o
Muséum National d’Histoire Naturelle. Um ano após o término da viagem no “Rurick” (1815-
1818), Choris mudou-se para Paris, e permaneceu na cidade até o ano de 1827, quando deixou
As imagens que tem como motivo a América podem ser divididas em dois
tipos. Uma das formas mais freqüentes era a pintura de vistas sobre as cidades da América
Colonial, onde podemos perceber a preocupação dos artistas em registrar o entorno das vilas e
seu aspecto geral, inserindo ou não os indivíduos que viviam no local. A outra forma era a
produção de imagens da natureza, fosse ela no seu conjunto, como o pregado por Alexander
von Humboldt, fosse ela compartimentada, onde animais ou plantas eram pintadas
que o homem produziu, principalmente as cidades. No outro, o olhar estava voltado para a
passaram a ser retratadas de frente e em detalhes, num movimento contrário às vistas das
cidades européias, que eram retratadas de frente e posteriormente por cima. As cidades
228
retratadas por cima437, de forma perspectivada, nos mapas em escala reduzida, substituíram as
vistas ou vedutas. O panorama tinha o objetivo de mostrar uma visão do todo. Essa moda,
inaugurada na Inglaterra pelos irmãos Baker, tornou-se popular no século XIX. Pintura
ilusionista, circular e contínua, foi adotada para mostrar o alcance amplo de um campo
perceptivo.439 A vista não rompia com a idéia de quadro, nem criava o efeito ilusionista de um
olhar que conseguia ver o espaço em 390º como o panorama, onde o observador posicionava-
se no centro.
vistas das cidades surgiram nos atlas, onde arte e geografia estavam unidos. No século XVI a
produção de vistas e mapas foi ampliada. As cidades eram representadas do ponto de vista de
disso, os mapas eram decorados com produtos da cidade retratada, chamando a atenção para
suas riquezas. Nas pinturas do nordeste brasileiro, produzidas por artistas holandeses durante
o governo de Nassau, são identificados produtos tropicais, como frutas e animais. Esse tipo de
produto, vistas de regiões distantes como a Ásia e a África, tornou-se sucesso na Europa entre
437
Segundo Michel de Certeau “as pinturas medievais ou renascentistas representavam a cidade vista em
perspectiva por um olho que no entanto jamais existira até então. Elas inventavam ao mesmo tempo a visão do
alto da cidade e o panorama que ela possibilitava. Essa ficção já transformava o espectador medieval em olho
celeste.” CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano; 1. Artes de fazer. Tradução: Ephraim Ferreira
Alves. Petrópolis/RJ: Vozes, 1996. p. 170.
438
MARX, Murillo. Olhando de cima e de frente. Revista USP. São Paulo: USP, nº 1 (mar./mai. 1989) p. 173-
174.
439
Sobre os panoramas e sua inserção na sociedade francesa do século XIX ver: BENJAMIN, Walter. Paris,
capital do século XIX. In: Walter Benjamin: sociologia. São Paulo: Ática, 1991. pp. 30-43.
229
os anos de 1785 e 1860. As vistas que tinham a América como tema começaram a ser
de forma mais fidedigna possível as regiões não-européias. Além desses interesses, devemos
salientar o aumento na procura e difusão de vistas e pinturas por uma crescente classe média
técnico, que possibilitava produzir em larga escala gravuras baseadas nas pinturas e aquarelas
pitoresca refere-se à pintura com sujeitos diversos destinados aos gabinetes ou a decoração de
construções reais. Essas obras reproduziam imagens de plantas, animais e paisagens, que eram
do interesse dos colecionadores, normalmente feitas por artistas renomados que recriavam a
Outro aspecto que a autora salienta é a utilização econômica desse tipo de produção
iconográfica. Muitos dos desenhos eram utilizados para o estudo da História Natural e da
440
SALGUEIRO, Valéria. Vistas Urbanas nos Álbuns Ilustrados por Viajantes Europeus do Século XIX.
Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 4, 1997, p. 103-123.
441
Ibidem. p. 103.
230
reproduzidos pelos artesãos. A natureza oferecia inúmeras possibilidades, pois seus temas
função de produzir um material que iria ser utilizado como material de pesquisa e estudo,
principalmente quando o tema era científico-natural, como, por exemplo, desenhos da flora e
da fauna. Com a expansão do conhecimento científico nos séculos XVII e XVIII houve um
estreitamento da relação entre o artista e o cientista na busca de uma representação mais exata
e confiável do objeto, fosse ele uma cidade ou aspectos da natureza. Nesse período, devido à
expansão da ciência, a arte gráfica passou a ser utilizada como ilustração do conhecimento.
Criou-se uma tensão entre o gosto estético e a demanda por um trabalho que tivesse a
preocupação com a exatidão das formas e das cores, já que essas imagens seriam utilizadas
para a difusão do conhecimento científico. Por outro lado, difundia-se na Europa uma estética
que valorizava o passado, as paisagens naturais, onde era cultivado o gosto pelo pitoresco e
pelo sublime numa visão estetizada da natureza, no momento em que na Europa a paisagem
É nesse contexto que difundiu-se o gosto pelos álbuns e pelos livros de viagens
ilustrados, principalmente de paisagens. A natureza passou a ser valorizada por si mesma, ela
era a artista. Mas essas paisagens exóticas eram retratadas a partir de lugares-comuns444, o que
fazia com que a natureza de lugares distantes fosse ajustada ao gosto europeu, tornando-se
assimilável ao público a quem eram destinadas. Entre as pinturas, cujo motivo era a natureza,
442
PINAULT, Madeleine. Le peintre et l’histoire naturelle. Paris: Flammarion, 1990. p. 10.
443
SALGUEIRO, Valéria. Op. cit. p. 109.
444
“Dentre estes lugares-comuns destaca-se a divisão tripartite do espaço pictórico, convenção herdada da arte
de paisagem do norte europeu, com suas distâncias bem marcadas em planos - plano da frente, plano do meio,
plano do fundo -, cujo primeiro plano foram abordados os aspectos de singularidade e localidade também de
nossas paisagens, esquema figurativo que tão bem serviu ao sentido cênico da paisagem do viajante.”
SALGUEIRO, Valéria. Op. Cit. p. 116.
231
final da vida um estudo sobre dois tipos de Iris, a Iris Gramínea e a Iris da Sibéria (Figura 3).
A última foi desenhada em detalhes e continha anotações explicativas. Sua obra marcou uma
ruptura entre uma ilustração botânica puramente artística, onde flores, frutos e animais faziam
dos cientistas.
exemplo desse gênero de arte eram as reproduções de espécies vegetais (Figura 4). Essas
História Natural.
Por outro lado, a concepção artística difundida por Humboldt enfatizava uma
visão pictórica que tinha a intenção de abraçar o todo, onde as diversas formas de vida eram
consideradas interdependentes. Ele solicitava aos artistas que, em seu trabalho de representar
a natureza, não se utilizassem das espécies trazidas das viagens ou então as que se
encontravam nas estufas, o que fatalmente remeteria a uma reprodução das plantas deslocadas
de seu ambiente de origem. Para ele, as plantas deveriam ser representadas em seu ambiente
Humboldt estavam voltados para o estudo das relações entre os seres humanos e a natureza e
445
BELLUZZO, Ana Maria. Op. cit. p. 18.
233
como estas contribuem para a formação da paisagem. Em sua obra Cosmos, a paisagem é
entendida como a “representação mental de um espaço real cujo conteúdo é, por excelência,
diversificado.”446
Choris, a partir de sua passagem por estas paragens no ano de 1815, podemos perceber a
influência de Humboldt. O álbum no qual elas foram publicadas, Vues et paysages des
régions équinoxiales... foi dedicado a ele. As litografias foram produzidas durante sua estada
em Paris, após a viagem e publicadas no ano de 1826. Como artista contratado, muitos dos
Infelizmente não tivemos acesso a esses trabalhos. As imagens que fazem parte do álbum
devem ter sido feitas após seu retorno a Europa, a partir de esboços.
pranchas referentes ao Brasil, mais especificamente à Ilha de Santa Catarina, uma vez que a
expedição da qual ele participava não parou em outras regiões do Reino Português. O porto
do Rio de Janeiro foi evitado por causa do medo de doenças, comuns devido à insalubridade
da cidade. A sujeira e a falta de condições de higiene foi retratada por viajantes estrangeiros
que permaneceram no Rio de Janeiro, como Charles Expilly. A primeira impressão, quando o
deliciosamente comovido com o esplendor do panorama que se estende diante dos olhos”. A
decepção no entanto, não tarda: “Que decepção, meu Deus, quando se sai do ancoradouro!
[...] As casas do Rio, construídas em terreno úmido, não têm fossas. Todos os detritos
domésticos são atirados de qualquer maneira em barris que de noite os escravos despejam no
GOMES, Edvânia Tôrres Aguiar. Natureza e Cultura: representações na paisagem. In: ROSENDAHL, Zeny
446
& CORRÊA, Roberto Lobato. Paisagem, imaginário e espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001. p. 66.
234
mar.”447 Era através da leitura e da troca de informações entre os viajantes que muitas das
A primeira coisa que chama a atenção nas pranchas é o espaço ocupado pela
natureza. Ela é representada grande e exuberante, enquanto os seres humanos e sua produção
cultural, como por exemplo as casas, aparecem de forma marginal, em segundo plano, apesar
de algumas vezes centralizadas. Isso ocorre na prancha II e IV.448 Na prancha III (Figura 6) a
moradia ocupa um plano intermediário, localizado no lado direto, “sombreada por laranjeiras
banana, está localizado no primeiro plano, mas sua imagem quase passa despercebida devido
à grandeza das espécimes vegetais que são retratadas, neste caso duas espécies de cactus, o
as pranchas, Choris afirmou que, em suas andanças pelo interior da Ilha, “fica-se tomado de
admiração vendo-se a variedade, a força e as dimensões gigantescas dos vegetais que, num
não.
iriam influenciar também a sensibilidade dos artistas em relação a natureza. A partir desse
momento os cientistas saíram dos gabinetes onde estavam encerrados, estudando as espécies
desenhistas e artistas a fim de estudar a natureza ao ar livre. Ao mesmo tempo que estavam
447
EXPILLY, Charles. Apud. MAURO, Frédéric. O Brasil no tempo de dom Pedro II: 1831-1889. Tradução:
Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. pp 14-15.
448
Optamos por manter a numeração original do álbum, feita em números romanos. A prancha I retrata uma cena
que se passa no convés do barco.
449
CHORIS, Louis. Op. cit. p. 245.
235
Figura 5 – Brèsil – desenho de Louis Choris – (20,7 cm x 26 cm) In: CHORIS, Louis. Vues et paysages de
regions équinoxiales recueillis dans um Voyage autour du monde. Paris: Paul Renourd, 1826. Prancha
II.
tiveram um papel importante na formação do gosto dos artistas e dos amadores pelo paisagens
e fenômenos naturais.451
Na prancha II (Figura 5), a primeira que retrata as regiões tropicais, nomeada como
plantas são pintadas ao lado de alguns animais, como o tucano. Apesar de não ser possível
450
Salomon Gessner .foi escritor, desenhista, pintor e editor de Zurique. Contribuiu para a redescoberta da
natureza, combinando tradição bucólica literária ao modo de sentir moderno, à sensibilidade do século XVIII que
valorizava a fraternidade, a solidariedade e o desejo de harmonia. Ver: www.letras.up.pt/upi/ilc/vilasboas6.pdf
Acesso em: 18.novembro.2004.
451
PINAULT, Madeleine. Op. cit. pp. 245-246.
236
Figura 6 – Vue dans l´interieur de l´Ile de Stª Catherine (Brèsil) – desenho de Louis Choris – (21cm x
26,6 cm) In: CHORIS, Louis. Vues et paysages de regions équinoxiales recueillis dans um Voyage
autour du monde. Paris: Paul Renourd, 1826. Prancha III.
imprecisões na pintura da plumagem, Choris pintou uma imagem dessa região da América
que vai ao encontro das representações que se tinha dos trópicos: plantas e animais coloridos,
desenvolveu estudos sobre a geografia das plantas que influenciaram seus contemporâneos.
que os seres vivos só podiam ser compreendidos quando relacionados com os lugares onde se
237
desenvolveram e com os outros seres vivos com os quais estavam relacionados. O outro
aspecto refere-se às impressões estéticas que eram sentidas pelo viajante em cada região por
onde passava. Para ele, essas impressões eram parte integrante do trabalho científico, e não
podiam ser substituídas por estudos de amostras ou descrições feitas em gabinetes. Foram
essas concepções de Humboldt que iriam contribuir para justificar a utilização de artistas
vinculação podem ser encontradas em várias expedições, inclusive entre as que transitaram
pelo Brasil, e que contaram com artistas, tais como Johann Moritz Rugendas, Hercule
Florence e Thomas Ender.452 Podemos perceber que, em seus trabalhos, Choris seguiu as
recomendações feitas por Humboldt. Os esboços, e mesmo alguma pintura mais elaborada,
eram feitos tendo a natureza como modelo. O trabalho de reprodução em litografia foi
inúmeros trabalhos realizados durante a viagem. Além de pintor e viajante, Choris também
era litógrafo, o que contribuiu na qualidade de suas pranchas, uma vez que ele conhecia as
possibilidades de reprodução de seus esboços. Além do contato direto com a natureza que
seria o objeto de estudo, Humboldt também estabeleceu o que se denominou o estudo das
“fisionomias das paisagens”. Segundo ele, existiam vegetais sociais e vegetais associais. As
plantas que compunham a natureza tropical eram do grupo associal, ou seja, conviviam
espécies de tipos diferentes entre si. Era esse, inclusive, um dos aspectos que impressionava
os viajantes europeus, acostumados com os bosques europeus, onde havia várias plantas das
convivendo juntas, entrelaçando seus galhos e constituindo um colorido composto por vários
tons de verde era um espetáculo que os impressionava. A natureza tropical, com seu colorido
452
KURY, Lorelei. Os três reinos da natureza. In: MARTINS, Carlos (org.) O Brasil Redescoberto. Rio de
Janeiro: Paço Imperial/Minc IPHAN, setembro/novembro de 1999. p. 30.
238
exuberante nas flores e nos pássaros também foi reproduzido por Choris. A fisionomia da
paisagem dos trópicos era composta de algumas espécies básicas, que são encontradas em
entre as plantas, e de pássaros coloridos como os tucanos e as araras azuis. Os pássaros típicos
dos trópicos são vistos nas pranchas II, III e IV (Figura 7). No caso do pássaro azul e amarelo
que aparece nessas pranchas, sua reprodução não corresponde a nenhum tipo de pássaro
de Santa Catarina. Somente temos certeza de que o animal que ele desenhou é uma arara, ao
lermos o texto que acompanha todas a pranchas. Ainda segundo o professor, as quatro
imagens reproduzidas nesse álbum não são úteis para os estudos de taxonomia. Tal fato não
ocorre com os desenhos de plantas feitas pelo viajante Martius, que ainda são utilizados nos
estudos de botânica. Isso explica-se porque esses desenhos seguiam os preceitos indicados por
Linné, como os feitos por Hercules Florence (ver figura 4). As imagens de Choris são úteis
para identificar a paisagem, as transformações causadas pela ocupação humana. Nas obras de
Spix e Martius também são encontradas imagens de paisagens, como a intitulada “Lagoa de
aves à margem do Rio São Francisco”. Como nas pranchas de Choris, essas paisagens eram
acompanhadas por textos explicativos que citavam as plantas e os animais retratados, alguns
Figura 7 – Ile de Stª Catherine (Brèsil) – desenho de Louis Choris – (21,8 cm x 26,8 cm) In: CHORIS,
Louis. Vues et paysages de regions équinoxiales recueillis dans um Voyage autour du monde. Paris:
Paul Renourd, 1826. Prancha IV.
através de altas árvores, como o coqueiro e o mamoeiro (que alcança quase a mesma altura do
aparecem os morros e, à direita, a praia e o mar. O que diferencia essa prancha das outras é a
pranchas são reproduzidos indivíduos ou então moradias, mas nessa o tema central desloca-se
tamborim, mulheres dançam e outros dois encontram-se fora da roda, observando. Segundo
Choris, “pelo fim do dia os negros, para se distraírem de seus trabalhos penosos, reunem-se e
240
dançam: por toda a parte onde esta raça de gente habita, ela se entrega com paixão a este
divertimento.”453
Figura 8 – Vue de la cöte du Brèsil vis à vis de l`Ile de Stª Catherine (Brèsil) – desenho de Louis Choris –
(20,9 cm x 26,3 cm) In: CHORIS, Louis. Vues et paysages de regions équinoxiales recueillis dans um
Voyage autour du monde. Paris: Paul Renourd, 1826. Prancha V.
como outros viajantes, Choris utilizava o termo “negros”, sem fazer distinção se estes eram
livres ou escravos. O outro aspecto foi sua generalização, dizendo que a dança era um
divertimento ao qual se entregavam os indivíduos de toda uma “raça”. Seria essa uma
conclusão inconseqüente, já que Choris não conhecia tantas regiões onde a presença negra era
freqüente, ou ela fora baseada em leituras prévias de outros viajantes? Langsdorff, em seu
relato, dedicou um grande espaço para descrever as danças dos negros e sua música, que ele
leitura de outros relatos, que haviam sido publicados na Europa. Além disso, muitos dos
viajantes trocavam correspondências entre si, ou mesmo eram amigos ou colegas nas
representação sobre a América, sua natureza e seus habitantes que circulavam pela Europa, e
que iriam direcionar o olhar do viajante, fosse este um marinheiro, um cientista ou um artista.
terras, trajado com apuro. O texto explicativo não se refere a eles, como também não comenta
humanas, descrevendo-as como “sítios que a imaginação mais brilhante não poderia crê-las
mais agradáveis do que elas são na verdade.”454 Em resumo, pinta um quadro pitoresco,
formado por casas envoltas por uma vegetação exuberante, com muitas árvores frutíferas,
texto que a dança era uma distração após o trabalho penoso do dia, o que ele salientou na
habitantes locais.
cidades, como, por exemplo, a “Vista da vila de Desterro a partir do hospital” pintada por
Jean Baptiste Debret. Esse artista não acompanhava uma expedição científica, tal qual Louis
Choris, e suas obras tinham outras finalidades, o que influenciou em sua produção final.
Nosso interesse nessa obra justifica-se pela possibilidade de trabalharmos comparando dois
tipos de imagens que tomaram como referência a mesma região. Ambos eram indivíduos
454
Ibidem. p. 246.
242
próximos455, mas, no entanto, o resultado que emergiu de seus pincéis é distinto, apesar de
possuírem alguns pontos em comum. Enquanto para um o central é a vila e o homem que nela
habita, para o outro é a natureza. O homem e o resultado de sua cultura torna-se periférico
Figura 9 – Vista da vila de Desterro a partir do Hospital – Aquarela de Jean Baptiste Debret – (37 cm x 10,5
cm) In: DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Paris: R. de Castro Maya, 1954.
Prancha 70 – Laguna (nomeado incorretamente)
(Figura 9), eram feitas a partir de um ponto alto e com um ângulo aberto, visando dessa
forma representar uma visão geral da cidade e de seu entorno. Nessa vista, pintada na primeira
metade do século XIX, podemos perceber que não existia uma preocupação em detalhar as
construções. Salientavam-se os prédios maiores, como por exemplo a Igreja Matriz, mas
455
Debret produziu sua vista de Desterro entre os anos de 1819 e 1826. Choris produziu entre os anos de 1815,
quando esteve na região sul do Brasil e 1822, quando foi publicado o trabalho onde estão reproduzidas as
pranchas. Sobre Debret, não existem dados que confirmem sua vinda a Desterro. A pintura foi provavelmente
produzida a partir de relatos tomados de outros viajantes.
456
CHORIS, Louis. Op. cit. p. 244.
457
As pranchas 69 e 70 estão com as legendas erradas. Por isso não sabemos qual foi a denominação dada por
Debret ou pela editora que as publicou. Escolhemos esse nome por ser o que melhor descreve a imagem
reproduzida.
243
devido ao ponto de observação ser distante, outras construções menores não eram percebidas
suas construções e de seus habitantes. Uma metáfora da visão dos viajantes em relação à
América. O que era retratado era o que, de certa forma, já fazia parte da imagem européia da
região. Uma paisagem idílica, onde a maior parte era tomada pela natureza, tão grandiosa que
Caridade, localizado no morro denominado Boa Vista. No primeiro plano da vista podemos
perceber alguns temas comuns que são retratados em vistas de outras cidades brasileiras: dois
companhia de uma criança, e outros indivíduos, que pelas roupas parecem ser religiosos.
Debret fazia parte de uma expedição artística que foi financiada pelo governo português, e
esteve no Brasil com o objetivo de ministrar aulas na Escola de Belas Artes (que não teve um
prédio próprio durante sua permanência no país). Pintou muitas obras a pedido do governo,
português e do Império do Brasil, após a Independência, e também muitas cenas urbanas, nas
quais retratou o trabalho e o cotidiano de vida dos escravos. Após sua mudança para o Brasil,
mudou o estilo e os temas de suas pinturas, influenciado pela experiência e pelo contato com a
sociedade colonial. Apesar de ter se dedicado a diversos temas, também foi influenciado pelos
interesses do mercado consumidor, neste caso, o europeu. No início do século XIX, vistas de
cidades estavam na moda, e Debret reproduziu várias delas, de diferentes cidades, como
Grande parte da pintura é tomada pelo tema da natureza: vegetação, onde podemos constatar a
presença de coqueiros, pelos suaves contornos dos morros ao fundo e pelo mar. O interesse
244
pelo “exótico”, pelo “tropical”, pelo “pitoresco” continua presente, mesmo com o
Mesmo os artistas que, como Debret, não pintavam com o objetivo de produzir
um material que iria complementar o trabalho científico, eram influenciados pelos métodos
utilizados pelos cientistas para a observação de um país e uma cultura estranha. Na obra que
dos tipos básicos da natureza do Brasil. No entanto, essa natureza é a moldura para a vila,
para o que o homem havia produzido. Em outras obras suas, que retratam os escravos no Rio
de Janeiro, também incluiu aspectos da natureza local, como na prancha em que retrata os
ajudantes dos naturalistas, ou então os negros de ganho vendendo frutas típicas na cidade do
Rio de Janeiro. Mas, apesar de sofrer influências e retratar aspectos que interessavam aos
escrivão do Parlamento de Paris. Seu pai tinha parentesco com o arquiteto Demaison e os
apresentou trabalhos na Escola da Academia de Paris. Após vencer o Salão de 1798, tornou-se
casas particulares, cujos temas versavam sobre a História Antiga e fatos militares. Recebeu
458
BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. Vol. 3: A Construção da Paisagem. São
Paulo: Metalivros; Salvador: Fundação Emílio Odebrecht, 1994. p. 83.
245
várias encomendas do governo francês, e em 1815, após a morte de seu único filho de 19
anos, resolveu aceitar o convite de Lebreton, o qual estava organizando a Expedição Artística
Francesa a pedido do Marquês de Marialva. Aos 47 anos embarcou em uma viagem para o
Brasil, chegando no Rio de Janeiro em 25 de março de 1816, onde viveu e montou seu ateliê,
numa casa no bairro do Catumbi. Permaneceu no país por 15 anos, com a atribuição de
desenhar e pintar cenas oficiais e produzir retratos da nobreza, sendo um dos responsáveis
ao cenário brasileiro. A partir de 1821, passou a registrar aspectos das cidades, principalmente
relação entre senhores e escravos, os usos e costumes do país, etc. Teve vários discípulos,
apesar dos contratempos sofridos pela Escola de Belas Artes. Entre os anos de 1826 e 1830
é iconografia, um termo muito utilizado pelos estudiosos para definir as imagens produzidas
pelos artistas, fossem estes viajantes ou não. Erwin Panofsky define iconografia a partir do
termo ‘grafia’, que vem do grego grafhein e significa escrever. Para ele, iconografia “é a
descrição e classificação das imagens”, sendo um “ramo da história da arte que trata do tema
ou mensagem das obras de arte em contraposição à sua forma.”460 Essa área de estudo possui
seus limites, uma vez que ela fornece os dados e informações imprescindíveis para a análise,
mas não faz as interpretações. Essa é realizada pela iconologia, que é um método de
459
Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil reproduz várias das imagens produzidas pelo artista. Foi publicada
numa edição de luxo, sob os auspícios de Raimundo Castro Maya, detentor dos direitos de reprodução de seus
desenhos, litografias e aquarelas. Nessa obra estão reproduzidas as imagens referentes à Capitania de Santa
Catarina, que foram produzidas, provavelmente, entre os anos de 1819/1826. Uma cópia desta edição encontra-
se na Seção de Obras Raras da Biblioteca Pública Estadual de Santa Catarina, em Florianópolis. Ver: DEBRET,
Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Paris: R. de Castro Maya, 1954.
460
PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. Tradução: Maria Clara F. Kneese e J. Guinsburg.1º ed.
1955. São Paulo: Perspectiva, 1991. p. 47.
246
interpretação dos valores simbólicos que estão vinculados à época em que determinada obra
foi produzida.461
quando ele salienta a importância dos lugares-comuns e também do poder das convenções e
das tradições de determinada época e cultura sobre a forma que as obras assumem. Segundo
imagens produzidas pelos viajantes como registros do real, mas sim como uma construção
discursiva que foi influenciada pela cultura na qual estes artistas viajantes estavam inseridos,
não significa dizer que essas obras não podem ser utilizadas como fontes, mas sim que elas
não podem ser tomadas como o real, como uma imagem fidedigna que possui um caráter
comprobatório. Outro ponto que gostaríamos de chamar a atenção é que todos os documentos
devem ser inseridos e problematizados no seu contexto de produção, e isto também se aplica
considerar vários aspectos, tais como a formação do artista viajante, a forma como ele
produziu seu trabalho e as possibilidades técnicas com as quais podia contar, as influências
estéticas européias, bem como outras influências, que podiam ser científicas ou morais. Louis
Choris optou por um tipo de representação artística da Ilha de Santa Catarina e de seus
habitantes. Sua escolha priorizou a representação da natureza, com seus tipos específicos que
melhor representavam a flora e a fauna da região. Mas, ao mesmo tempo, seus trabalhos
reproduzem, de forma marginal em algumas das imagens e no centro das atenções noutras, os
461
Ibidem. p. 53.
462
GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão. Um estudo da psicologia da representação pictórica. Tradução: Raul de Sá
Barbosa. 1º ed. 1959. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 26.
463
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Morfologia das cidades brasileiras. Introdução ao estudo histórico da
iconografia urbana. Revista USP. São Paulo: USP, nº 1 (mar./mai. 1989). pp. 152-153.
247
tipos humanos que viviam na região. Esses foram representados de forma estereotipada,
reforçando uma imagem já existente na Europa sobre os mesmos. O viajante empreendia sua
viagem por regiões desconhecidas portando uma postura ambígua: êxtase diante da beleza e
sentimentos confluem para formar experiências mentais que influenciam de certa forma o
olhar, uma vez que este sentido não é mecânico, objetivo, mas subjetivo e fluido. Plínio, autor
instrumento da visão e da observação, os olhos funcionam como uma espécie de veículo, que
recebe e transmite a porção visível da consciência.”464 Desse modo, para analisarmos uma
imagem, seja ela uma pintura, uma fotografia, ou um filme, não podemos nos ater somente ao
que estamos vendo, ao que estamos enxergando. Precisamos analisar o momento de produção
possibilidades técnicas disponíveis e também o público para quem o produto artístico era
direcionado. Em resumo, não podemos considerar a obra como isolada do contexto em que a
464
Plínio apud PANOFSKY, Erwin. Op. cit. p.15.
248
CONSIDERAÇÕES FINAIS
em alta. As livrarias oferecem títulos para todos os gostos e bolsos, em encadernações de luxo
especializadas e canais com programas voltados para o tema, os livros de viagem continuam
atraindo compradores. Para comprovar, basta ver o espaço dedicado a eles nas estantes das
livrarias. Pela oferta cada vez maior de material disponível sobre esse assunto, constata-se que
o interesse em viajar aumentou, e aumenta cada vez mais na sociedade atual. A popularização
das viagens contribuiu para difundir o interesse por obras que falam sobre regiões distantes.
Os turistas dos séculos XX e XXI distinguem-se em vários aspectos dos viajantes da Época
Moderna, e mais ainda dos cientistas viajantes. O leitor de obras sobre viagens também não
tem mais os mesmos interesses. Uma diferença é que quem adquire esse tipo de livro
atualmente é alguém que já viajou ou então está organizando uma viagem para o local sobre o
que não iriam para muito longe. No entanto eram leitores de livros que falavam sobre regiões
no século XVI eram utilizados por muitos de seus autores para refletir sobre as características
da Europa. A partir do relato sobre povos de outras regiões do mundo, principalmente dos
utilizavam essa mesma experiência do contato com o outro para referendar o desenvolvimento
todas as suas consequências, como, por exemplo, o contato com sociedades distintas e o
sobre si mesmo.
Capitania de Santa Catarina, não formavam um grupo homogêneo. Eram indivíduos que se
distintos daqueles com os quais os viajantes estavam habituados. O olhar do viajante sobre
essas populações era um olhar complexo e muitas vezes contraditório. Além das contradições
elaboradas e amplamente discutidas na Europa, não conseguirem dar conta dos inúmeros
historiador. O viajante, tal como o historiador, tem a pretensão de dar conta de uma
determinada realidade. O primeiro possui uma formação social distinta, devido às diferenças
geográficas e culturais. O historiador também tem como objetivo explicar uma sociedade que
encontra-se distante, neste caso no tempo, e com características culturais tão distintas que
muitas vezes não conseguimos compreender seus códigos. Uma diferença é que, enquanto o
viajante possui a pretensão de dar conta do que está observando, do outro, o historidor (pelo
menos esta historiadora) acredita que este distante, este outro que está sendo analisado, neste
250
caso o viajante, e as suas falas, não podem ser apreendidos em toda sua complexidade. O que
podemos é construir um outro discurso sobre o objeto de nosso estudo, ou seja, os cientistas
Mais difícil do que tentar entender como esses indivíduos elaboraram seus
natureza, dos habitantes locais, de sua cultura do trabalho, das condições de vida, e de vários
outros aspectos foram analisados tendo como referência estudos historiográficos sobre o
assunto, com o objetivo de acrescentar um outro olhar para os temas tratados nos relatos dos
viajantes. Quando não podemos contar com estudos específicos sobre Santa Catarina,
recorremos a estudos sobre outras regiões do Brasil. Temos claro as especificidades entre as
diferentes áreas de ocupação no país, mas, mais do que tentar contruir um quadro explicativo
que dê conta da sociedade colonial da Capitania de Santa Catarina, nosso objetivo foi mostrar
científicas inseriam-se no contexto das viagens e quais eram os viajantes que selecionamos
para o estudo de seus relatos. Os cientistas viajantes são um grupo específico dentro do
imenso conjunto de viajantes. Pela sua formação, pelos objetivos de suas viagens e pela sua
homens e mulheres que viviam na região, a forma como a sociedade se organizava e muitos
outros aspectos. Uma das dificuldades dessa fonte, o relato de viagem, é contraditoriamente a
aspectos da região que estava sendo explorada. Mesmo quando o relato foi escrito muitos
anos após a viagem, sua escrita acompanhava o olhar disperso que buscava contemplar a
totalidade do que era visto e sentido. Os viajantes escreveram relatos onde estão registradas
suas impressões e seu testemunho sobre a região visitada. Um testemunho matizado por
coisas lidas, moldado pela distância social e cultural, que muitas vezes diz mais sobre quem
escreveu do que propriamente nos permite desvelar as características do grupo que estava
sendo o objeto da descrição. O testemunho dos viajantes é marcado por distâncias temporais e
culturais - viajante, estrangeiro, cientista, citadino, seja nobre ou burguês. Além disso, o
viajante encontra-se na postura do observador que lança seu olhar sobre o observado,
foram estruturados. As diferenças entre eles são inúmeras, devido ao período em que foram
escritos - alguns no final do século XVIII outros durante o século XIX -, a estrutura
lingüistica no qual foram redigidos e também as características do público que iria consumir
estes relatos, ou seja, os leitores. No entanto, apesar dessas diferenças, alguns aspectos podem
Deixavam explícito sua concepção sobre a natureza, apesar de muitas vezes traçarem
comentários que entravam em contradição com seus referenciais. Em segundo lugar, a escrita
do relato seguia uma ordem cronológica, o que permite que o leitor acompanhe os passos do
viajante, dando a impressão de vivenciar com ele o contato com esta nova região. Mesmo em
textos escritos anos após o final da viagem, a forma utilizada era a de um diário. Esta forma
252
descrevendo o que vi, foi assim que se passou. Reforça desta forma uma intenção de verdade
do relato e consequentemente de tudo o que é relatado. Esses relatos foram escritos sobre
informações colhidas na viagem, muitas vezes no contato do viajante com a elite local, fosse
ela administrativa, militar ou eclesiástica, que eram seus principais interlocutores. Outra
forma de conseguir informações era através da leitura de textos de outros viajantes ou mesmo
circulavam pela Europa e que influenciaram os viajantes não eram consensuais. Grandeza
aparecem nos relatos resultantes das viagens à Capitania. Outro aspecto é a relação do
viajante com a natureza que estava sendo descrita. Apesar de ter feito uma longa viagem em
busca de espécimes vegetais e animais, e de se deslumbrar com a mata nativa, com sua
riqueza, o viajante incomodava-se com a ausência dos confortos urbanos. Muitas vezes o
incomôdo era com a própria natureza, com seus excessos, que se manifestavam em forma de
conheciam e de certa forma já haviam formado uma opinião sobre o que iriam encontrar, já
vinham imbuídos de um padrão sobre o que era melhor, o que era superior. Estes padrões vão
Catarina e vão definir o que vai ser relatado como positivo ou negativo.
padrões podem melhor ser percebidos quando da descrição das vilas. Optei por aprofundar o
253
estudo sobre a Vila de Senhora do Desterro devido a maior quantidade de descrições feitas
pelos viajantes e por ter sido a única visitada por todos eles. Suas condições físicas, a forma
como foi organizada, a ausência de espaços públicos aos moldes dos países de origem dos
viajantes foram alguns dos aspectos salientados. Os viajantes a descreviam seguindo uma
cultural. Mesmo quando não estava explícito no texto, as referências eram as cidades
européias. Essa característica dos relatos, de tomar o que viam a partir de suas referências e
explicitá-las, era mais presente quando se referiam à relação dos habitantes locais com o
refletia na relação do homem com a natureza. Não era o homem que transformava a natureza,
América. Os discursos sobre o trabalho e seu inverso, a indolência dos “nativos”, exemplifica
como os relatos vão reforçar uma imagem pré-existente dos americanos. Os habitantes locais
tinham outro ritmo de trabalho e de desenvolvimento material que era tomado como
natureza lhe oferecia não são encontrados somente em relação aos americanos, como nos
mostra o trabalho de Peter Burke sobre os relatos de viagens para a Itália escritos por ingleses.
Também eles, o italianos, eram vistos como exóticos e indolentes. Nos relatos dos viajantes
percebemos
254
a repetição de algumas imagens que vai incluir ou excluir os grupos de uma nova
que tem como objetivo a transformação da natureza. Mesmo os cientistas, teoricamente mais
segundo esse viajante, sua dedicação ao trabalho não chegava aos pés dos trabalhadores
europeus. Na sua opinião isto devia-se a vários fatores, como a escravidão, a atuação do
informações foram marcadas por dois aspectos: o olhar europeu e o preconceito que havia em
relação a esses indivíduos. As informações registradas eram obtidas junto às elites locais ou
então com indivíduos não escravizados. Dessa forma, além de reproduzirem os estereótipos
europeus sobre os africanos, também reproduziam os dos proprietários sobre seus escravos.
Choris produziu, utilizando tintas e cores, uma imagem iconográfica da Ilha de Santa
Catarina. Natureza exuberante e paisagem bucólica. A análise das pranchas feitas por
Choris nos permitem retomar um aspecto que está presente tanto nos relatos de viagens
escritos, como nas pinturas produzidas. Mais do que reproduzir o desconhecido, estas obras
reproduzem o “já-conhecido”. O diferente vai ser trabalhado nos relatos de uma forma a
serem incorporados aos padrões europeus. Nas pranchas, onde os artistas viajantes poderiam
mostrar o que era novo, o não conhecido, devido ao fato de trabalhar com a imagem
desenhada e pintada, isto não ocorria. O que era pintado e como era pintado, as regras de
255
composição das imagens já haviam sido estabelecidas. Choris reproduzia em suas pinturas o
que já era conhecido como representativo do Brasil e dos trópicos. As palmeiras, as araras, as
bromélias, as heliconias, todas estas plantas e animais faziam parte da imagem que já havia
sido construída sobre as regiões tropicais. Franz Post e Alexander Humboldt foram alguns
entre os artistas e cientistas que contribuíram para estabelecer essas espécimes como
representativas da natureza das regiões tropicais. Em todas as pranchas, além das espécies
humano. Desenhou indivíduos que estão trabalhando ou dançando e moradias entre as plantas.
paisagens exóticas que se difundiu na Europa e que era voltado para satisfazer os interesses de
um mercado consumidor.
outras culturas. Um exemplo é o caso das sociedades orientais, entre elas a chinesa. Enquanto
os europeus foram aos milhares para a China entre os séculos XVI ao XVIII, pouquíssimos
chineses fizeram o caminho inverso. Isso ocorria devido a vários fatores, entre eles a
concepção que circulava entre as autoridades de que a China era o umbigo do mundo e de que
tinham tudo o que precisavam. Dessa forma não tinham interesse em obter informações sobre
exerciam o papel de informantes aos seus compatriotas, bem como não tinham influência nos
círculos letrados. Os viajantes europeus diferenciavam-se dos viajantes chineses pela sua
inserção na sociedade e pelo papel de divulgadores das informações sobre os habitantes das
terras distantes. A representação que os europeus construíram sobre si e sobre sua própria
cultura foi tributária do contato estabelecido internamente entre os diferentes países, mas
também a partir do contato com os de fora, com os povos das regiões não européias.
256
Seguindo por essa mesma linha de reflexão, o homem define sua cultura em
relação a uma outra cultura, da mesma forma como estabelece seu grau de humanidade a
estabelece sobre o meio ambiente. Muitas das críticas às populações locais fundamentavam-se
viajantes decreveram a natureza ao mesmo tempo que falavam de sua exuberância e de suas
ausência dos avanços que existiam na Europa. De certa forma, a concepção dos viajantes era a
concepção bíblica de que a natureza existia em função do homem, e que ele deveria explorá-
la. A diferença era que os cientistas percebiam outras possibilidades para seu aproveitamento,
espécies possibilitaria descobrir outras utilidades, muitas delas desconhecidas a olho nu.
257
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