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Revista USP • São Paulo • n. 119 • p. 103-114 • outubro/novembro/dezembro 2018 101


Suicídio: do desalojamento do
ser ao desertor de si mesmo

O
Karina Okajima Fukumitsu

manejo do comportamento suicida depende


da definição que se atribui ao fenômeno
multifatorial. Concebo o suicídio como “a
confirmação concreta da descontinuidade
do sentido de vida” (Fukumitsu, 2013,
p. 19). Nesse contexto, a autoaniquilação
pode ser compreendida tanto como um
ato humano que escancara o desampa-
ro, o desespero e a desesperança quanto
como um processo acumulativo e intenso
de sofrimento existencial.

KARINA OKAJIMA FUKUMITSU é psicóloga


e psicoterapeuta, pós-doutoranda pelo
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Escolar e do Desenvolvimento Humano
pela USP e bolsista PNPD/Capes.

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O sofrimento existencial é um fenô- uma questão fundamental: como acolher a


meno individual e coletivo. Há de se re- pessoa que vê no suicídio o alívio de seu
fletir, portanto, que a evasão da própria sofrimento? São contemplados os fatores
existência pode ter sido desencadeada pela de risco desesperança, desespero e desam-
sobrecarga, estresse, sofrimento e falta paro, apontados pela cartilha da Associa-
de crença em si mesmo. Por esse ângulo, ção Brasileira de Psiquiatria (2014) e as
levantam-se as questões: qual é o lugar três características principais do compor-
ocupado pelo sofrimento existencial e pela tamento suicida apresentadas pela Orga-
fragilidade humana nas vidas dos indiví- nização Mundial da Saúde (WHO, 2014):
duos?; qual seria o lugar para aquele cuja ambivalência, impulsividade e constrição
morte não foi consumada e que, por um de pensamento.
ato de desesperança, tenta se matar por Desde a graduação em Psicologia (1989
acreditar que seria essa uma maneira de a 1993), nunca tive alguma aula na qual
se libertar do sofrimento? pudesse aprender a lidar com um cliente
Existem condições humanas que de- com potencial suicida ou uma orientação
bilitam a existência e tornam a morte que oferecesse subsídios para a instrumen-
mais interessante do que a vida. Este talização quando pessoas tentavam suicí-
ensaio teve sua origem pelo fato de eu dio. Motivada pelas vivências infantis de
ser administradora do grupo e das pá- ter uma mãe que tentou várias vezes se
ginas do Facebook “Suicídio: prevenção matar, direcionei meu desenvolvimento
e posvenção no Brasil” e “Enlutamento profissional em busca da compreensão
pelo suicídio no Brasil”, nos quais recebo desta situação-limite, que confronta o
mensagens de pessoas do país inteiro que senso de preservação da vida humana.
compartilham suas preocupações em rela- Dessa maneira, em estudos anteriores
ção aos comportamentos suicidas de seus (Fukumitsu, 2005; 2012), foi incentiva-
entes queridos ou sua própria vontade de do para que faculdades, universidades
se autoaniquilar. As páginas e o grupo e centros de formação de profissionais
também são procurados por pessoas que de saúde ofertassem aulas e/ou informa-
compartilham seu sofrimento por serem ções sobre o manejo do comportamento
sobreviventes do suicídio, tendo suas vi- suicida, utilizando o argumento de que
das avassaladas pela morte autoinfligida “nunca recebi treinamento para lidar com
de uma pessoa amada. um cliente que pensa na morte como pos-
Apesar de se identificar a ampliação sibilidade que oferecesse subsídios para
das discussões sobre o suicídio e sua pre- instrumentalização, quando clientes tentam
venção, bem como a ampliação da atenção efetivamente o suicídio”. O profissional
ao problema de saúde pública no mundo, da saúde recebe orientações para lidar
ainda se percebe que a oferta de cursos com os assuntos da vida, porém, dificil-
sobre a temática é escassa, principalmente mente recebe orientações sobre o mane-
no Brasil. Consequentemente, estabeleço, jo do comportamento suicida, bem como
no presente artigo, relação entre o sui- sobre como acolher o luto por suicídio.
cídio e a bioética a ser direcionada por A comunicação interdita é manifestada,

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portanto, tanto na prevenção do suicídio ra que vivem ou do que fazem ou não
quanto na posvenção, conjunto de ativi- vislumbram sentido para suas vidas.
dades que se realizam após o suicídio A necessidade de se sentir pertencente
acontecer (Shneidman, 1996; 2001). passa a ser uma experiência pela qual a
As definições do suicídio foram cons- pessoa se desaloja de quem é. Por não
truídas, ao longo do tempo, histórica, cul- conseguir cumprir as exigências fantasio-
tural, econômica, social e cientificamente sas de ser um exímio profissional e uma
(Puentes, 2008; Bertolote, 2012; Botega, pessoa perfeita, entra em “processo de
2015). Nós, profissionais da saúde, não morrência”, termo que criei para designar
devemos nos colocar a serviço para salvar o definhar existencial “[...] que acontece
vidas, pois não somos salvadores nem oni- gradualmente. A palavra ‘gradualmente’
potentes. Sobre esse quesito, utilizo como foi realçada em itálico porque meu intuito
uma das principais intervenções psicote- é o de elucidar que o processo de morrên-
rapêuticas o argumento de que não ajudo cia exibe uma complexidade de compor-
quem não deseja ser ajudado e digo aos tamentos autodestrutivos que, de maneira
meus clientes em sofrimento que devem gradativa, provocam o esvaziamento de
“me ajudar a ajudá-los”. Ciente das mi- quem somos” (Fukumitsu, 2016, p. 166).
nhas limitações como profissional e ser Assim, inicia-se um processo de co-
humano, sei que posso ser educadora para branças, culpa e autoacusações por não
que meu cliente compreenda que nenhum conquistar os sucessos almejados. Quanto
ser humano pode dar conta de tudo. As- maior a expectativa, maior será sua frus-
sim, a exigência de sermos onipotentes tração, que acarretará a percepção errônea
cai por terra, evidenciando apenas um ser de que é um ser inútil, fracassado e que
humano que se disponibiliza a acompa- não pertence ao mundo “dos fortes” (como
nhar e a não deixar sozinho aquele que se fortaleza e fraqueza se vinculassem à
já se sente em solidão. produção!). Nessa perspectiva, viver em
Como psicoterapeuta, habilitei-me a um contexto cujas alterações sociais e
acolher o sofrimento humano. Dentre os culturais são velozes pode desencadear
vários tipos de sofrimentos, percebo que um sentimento de estar perdido dentro
as dores se relacionam a uma multiplici- de si e de desalojamento do ser.
dade de fatores que deixam as pessoas O ser desalojado de si mesmo, em pro-
exauridas, desamparadas e, por vezes, des- cesso de morrência, já se sente morto em
crentes de que viverão harmonicamente vida, triste e cético dele mesmo. Não en-
suas existências. Alguns não se sentem contra mais sentido na vida e não acredita
pertencentes aos grupos que gostariam na perspectiva que outrora vislumbrou para
de pertencer ou se sentem oprimidos si: uma vida potente, repleta de felicidade
pela pressão para se tornarem bem- e de prazer que pudesse completá-lo su-
sucedidos. Tentam se encaixar ao que o ficientemente para continuar, apesar dos
outro considera como “bom” e perdem obstáculos. Mas ninguém contou para esse
a noção do que lhes faz sentido. Outras ser, que é humano, que a vida potente, fe-
pessoas não encontram significado do pa- liz e prazerosa se tratava apenas de uma

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expectativa fantasiosa. Ou, se contaram, o individualismo e o avanço tecnológico


talvez esta pessoa não quis acordar de seu podem ser elementos que sufocarão ainda
sono bom e da fantasia utópica de que a mais o indivíduo. Além disso, aprendemos
vida não incluiria sofrimento. que devemos nos responsabilizar por nosso
Seja por ausência de aprendizagem ou bem-estar, felicidade e pela maneira como
por negação da realidade, o ser humano nos apresentamos como seres civilizados,
busca na vida mundana, promíscua e sem conscientes e dotados de discernimento
sentido o preenchimento da ausência de para assumir várias responsabilidades que
si e do desalojamento de seu ser. Vive o nos conduzem a uma roda-viva desenfre-
tédio existencial, justamente pela neces- ada. Em outras palavras, a exigência de
sidade suprema que não é saciada com que devemos ser bem-sucedidos, funcio-
o que ele tem. Esforça-se freneticamente nais e sãos pode massacrar a serenidade
para atingir metas extenuantes de bele- existencial e atordoar a alma humana.
za, produtividade e perfeição. Com isso, O desalojamento do ser acontece quan-
deixa-se invadir por más energias, acredita do a pessoa se percebe sem forças para
que é um fracassado e seu pensamento continuar e apresenta o pensamento rígido,
enrijece, antecipando que a experiência uma das características do comportamento
não passará e que suas forças sucumbirão suicida (WHO, 2014), pelo qual o tunnel
antes do desfecho da situação complicada. vision (Shneidman, 1993) se torna sua
Perde a esperança para continuar. principal linha de pensamento: a morte
Ao se desalojar de si, a existência passa se torna mais interessante que a vida.
a assumir um papel mercadológico e con- Sendo assim, pela constrição de seu pen-
sumista, sendo que o indivíduo confunde samento, a pessoa não acredita em si e,
existir com ter e passa a acreditar que no mesmo compasso, desacredita que o
deve conquistar títulos. Assim, os bens outro possa auxiliá-lo em sua trajetória
essenciais passam a ser somente validados de resgatar luz em sua total escuridão.
quando conquistados os bens materiais. A pessoa deseja eliminar uma parte de
A pessoa se exige e é exigida para que e em si ainda em vida. A parte vira o todo
tenha uma atuação produtiva, engana-se e não consegue compreender que é a res-
e se permite ser enganada, e a vida passa ponsável por satisfazer suas necessidades.
a ser uma incógnita a ser desvendada de Em contrapartida, assume a responsabili-
forma caótica. A inospitalidade passa a dade por todos os infortúnios, desavenças,
habitar regularmente seu dia a dia e os conflitos e fracassos. Não compreende
fragmentos entre seu nascimento e sua que seria o único que poderia assumir
morte formam um grande quebra-cabeça sua própria vida, como afirma Beauvoir
cujas peças se perderam. (2005, p. 88):“[...] apenas um sujeito pode
Se não explode, implode. O caos se ins- justificar sua própria existência; nenhum
tala, podendo piorar quando se depara com sujeito estrangeiro, nenhum objeto saberia
a constatação de que, nos tempos atuais, lhe trazer de fora a salvação”. Apresenta,
somos compelidos a viver na competição e portanto, a ambivalência, outra caracte-
na comparação. A vaidade, o consumismo, rística do comportamento suicida (OMS,

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2014), entre querer matar uma parte que fragmentos que fazem com que a pessoa
lhe causa sofrimento e se manter vivo, abrevie sua morte. Mesmo sabendo que a
sem o sofrimento que o aflige. morte é a única certeza que temos, deseja
Mata a parte que o faz sofrer porque antecipá-la para matar o que a está matando.
estava faminto e desejoso de amor, aco- O desertor de si mesmo é o transgres-
lhimento e, sobretudo, de respeito legi- sor social, biológico e espiritual, pois
timado e de confirmação de que pode afronta os conceitos de preservação da
sentir e pensar. Nesse quesito, cabe uma vida e do viver. “Gostaria de estar morto”;
compreensão a respeito dos sentimentos “sou um fardo para todos”; “logo você
e pensamentos: ninguém pode se culpar não precisará mais se preocupar comi-
pelo que sente ou pensa. Apenas podemos go”; “estou cansado da vida, não quero
ser responsabilizados pelo que fazemos continuar” – são alguns dos sinais ver-
com nossos sentimentos e pensamentos. bais diretos e indiretos apresentados por
Em outras palavras, se tivermos raiva e Popenhagen e Roxanne (1998). Contudo,
matarmos a pessoa que provocou a rai- quando a pessoa não sinaliza verbalmente
va, seremos evidentemente punidos pela que se matará, faz-se necessária a ob-
ação de matar. servação dos sinais comportamentais di-
Ao se sentir impossibilitada de trans- retos e indiretos, tais como desfazer-se
mitir sua raiva para o outro que a feriu, de objetos importantes; despedir-se de
a pessoa direciona-a para si mesma e se parentes e amigos; mudar abruptamente
autoaniquila. Nessa acepção, há de se afir- seu comportamento, etc. (Popenhagen &
mar que a comunicação interdita e não Roxanne, 1998; SPRC, 2016). Em outras
legitimada fere quem já está machucado palavras, caso haja algum indício, verbal
e, às vezes, pode transformar a vítima no ou comportamental, será preciso investigar
próprio algoz de sua ação autodestrutiva. o que, supostamente, a morte resolveria.
Morta concreta ou existencialmente, há Além disso, acolher a dor do outro signi-
a denúncia de sofrimento. fica oferecer abertura para a proposição
A pessoa busca nas adições (drogas e ál- de um diálogo, para que a pessoa que
cool) recursos para lidar com as reduções de apresenta comportamento suicida possa
sua vida; abusa das dependências químicas compartilhar seus sentimentos e pensa-
talvez para contrabalancear as carências das mentos a respeito do que deseja desertar
dependências emocionais; procura em mo- ao pensar em sua morte.
mentos prazerosos o preenchimento daquilo Exatamente pela concordância da com-
que nunca pôde sentir como próprio. Por preensão supramencionada, todas as vezes
consequência, inicia, como dito, seu proces- que leio uma notícia de que uma pessoa
so de morrência cujo ápice será o suicídio. se matou, meu coração se aperta e mi-
Ao tentar o suicídio, sairá da condição do nha impotência grita para que as forças
desalojamento do ser para assumir o papel divinas e terrestres possam acolher cada
de ser o desertor de si mesmo. vez mais o sofrimento humano.
O desertor de si mesmo é invadido pela A pessoa se matou por escolha, adoeci-
anedonia. A ausência de prazer desvela os mento, impulsividade ou desespero? Nun-

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ca saberemos a resposta correta, pois a Por ser o suicídio um fenômeno mul-


verdade se foi juntamente com a pessoa tifatorial no qual há a exigência de se
que se matou, mas talvez a resposta seja a trabalhar em conjunto, demandando a
composição de todas as alternativas ante- atenção interdisciplinar de vários pro-
riores e mais tantas outras elucubrações a fissionais da saúde, devemos manter a
respeito dos fatores que motivaram a ani- interlocução entre eles para que formemos
quilação alheia. O fato é, como apontado redes de apoio para lidar com a sensa-
por Fukumitsu & Kovács (2015, p. 42), ção de impotência. Quando assumimos
que “os suicídios representam as várias o papel de cuidadores, aqueles que cui-
histórias de pessoas que se mataram e dam da dor, adotamos a perspectiva de
talvez tenham aniquilado suas vidas para que cuidar é um ato de desvelo que deve
finalizar um sofrimento ou para comunicar ser simétrico, pois, ao mesmo tempo em
algo”. Sejam quais forem os argumen- que cuidamos do outro, devemos cuidar
tos que provocaram o suicídio, o ponto de nós mesmos. Cuidar na ação de pre-
a ser destacado é que as pessoas sofrem. venir o suicídio significa compreender
Diante do sofrimento humano, nada po- que o suicídio é uma comunicação pela
de ser explicado, mensurado, comparado, qual a pessoa direciona sua capacidade
tampouco compreendido por apenas um de escolha e autonomia para destruir o
viés. Cada qual com sua idiossincrasia que sente estar lhe destruindo. A rede de
traz uma história, uma carga genética e apoio, portanto, serve para partilhar com,
uma tarefa existencial de ser quem é. Cada para sorrir e chorar junto e para se criar
ser humano tem a incumbência de tornar compaixão e descobrir o melhor remédio
sua história o hábitat mais acolhedor de para curar as feridas existenciais. Nesse
sua morada existencial. sentido, o outro não seria o salvador, mas
Respaldados pela crença de que é por sim aquele que poderia encontrar maneiras
meio do contato “horizontal” que deve- para, juntamente com a pessoa em sofri-
mos lidar com pessoas com comporta- mento, procurar uma saída do seu limbo
mento suicida, o acolhimento, a presen- existencial. Dessa maneira, o que se pre-
ça, a escuta e a manifestação genuína tende neste estudo é promover reflexões
de compaixão para com o outro são as acerca do suicídio, pelo qual matador e
tarefas primordiais e serão os objetivos vítima são a mesma pessoa.
principais para quem assume a tarefa da No contexto da palavra “matador”,
prevenção ao suicídio, lembrando que “a o suicídio que se pretende compreen-
prevenção não oferece garantias de que a der é aquele cuja pessoa deseja “matar
pessoa não tentará novamente se matar” a dor” e, por isso, em uma tentativa de
(Fukumitsu, 2013, p. 59). eliminar o que lhe provocava dor, eli-
Destarte, o ideal para a prevenção seria mina sua totalidade. Trata-se da auto-
se a pessoa pudesse comunicar e receber aniquilação provocada pelo sofrimento
acolhimento das pessoas a quem deseja psíquico intenso, conforme ensinamento
comunicar seus sentimentos inóspitos e de Shneidman (1993), que aponta que o
desagradáveis em vida. suicídio revela o psychache, o que, para

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mim, é compreendido como a expressão sua dignidade. Será que uma pessoa pode
e o ponto culminante do sofrimento exis- ser obrigada a viver?”. Lembro-me de um
tencial. Nessa perspectiva, a correlação cliente que ficou cinco anos com meu
entre suicídio, escolhas relacionadas ao cartão de visitas antes de marcar a pri-
sofrimento humano, ética e bioética devem meira sessão, pois leu em meu livro Sui-
surgir como aspectos relevantes para as cídio e Gestalt-terapia (Fukumitsu, 2012)
discussões sobre a temática, pois o artigo a informação de que eu “sou amante da
se propõe a incentivar a reflexão sobre vida”. Disse que titubeou pois tinha re-
as possíveis maneiras de se conquistar a ceio de que eu tentasse convencê-lo a
dignidade em vida. continuar vivo quando optasse pelo sui-
Como instilar a esperança naquele que cídio. O impasse acontecia quando dizia
sente que nada vale a pena? Segundo Cor- que, caso não saísse do trabalho, que por
tella (2014), a esperança deve vir do verbo sinal odiava e o fazia sentir-se enclausu-
“esperançar” e não do verbo “esperar”. rado pela boa condição financeira que
Então, como possibilitar que a vida se lhe promovia, matar-se-ia. Apercebia-se
torne mais importante que a morte? De- extremamente infeliz e insatisfeito, pois
vo assumir o papel de ser a salvadora, alegava sentir-se todos os dias vendido
aquela que “salva a dor dos outros”? Ou e vivendo uma vida promíscua somente
sou, também, além de uma profissional pela questão financeira.
da saúde, um ser humano que sofre e que Talvez a partir da ideia suicida, procu-
por vocação escolheu adotar uma postura rava por aquilo que ainda não fora capaz
de facilitadora da dor humana? Essas são de encontrar: respeito, autonomia e dig-
questões que não tenho a pretensão de nidade em sua vida. Disse isso para ele,
responder neste artigo, mas são as ques- ao que concordou, e quando investiguei
tões que servem como escopo para que aquilo que ele faria caso pudesse escolher
ampliemos a compreensão do significado e se libertasse do trabalho, afirmou que
da prevenção ao suicídio. seu sonho seria o de percorrer a Europa
Segundo Safra (2004, p. 26), “mochilando”. O cliente trazia um pensa-
mento maniqueísta segundo o qual ou ele
“A etimologia da palavra ethos remete sairia do emprego ou se mataria. Como
a dois sentidos: [...] Práxis, costume, e trabalho com a premissa de que tudo o
como [...] morada e pátria. [...]. Decorre que um cliente coloca como ação no futuro
que a fragmentação do ethos morada leva do pretérito pode ser efetuado no aqui e
a um tipo de sofrimento que, apesar de agora, tivemos sessões nas quais dizia para
alcançar registro psíquico, não tem sua ele: “Por que fala como se não houvesse
origem no psíquico. São os sofrimentos a possibilidade de você viver o que tem
que acontecem em registro ontológico!”. vontade de viver no aqui e agora?”. Em
outras palavras: “Por que está deixando
Kovács (2015, p. 75) afirma: “[...] a para depois o que pode fazer hoje?”.
pessoa é juiz de sua vida. É seu olhar Após algum tempo de processo, o
e não o dos outros que define o que é cliente disse: “Está na hora de eu pa-

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rar o processo”. Uma vez que ele não dia me procurou para ajudá-lo em seu
tinha pedido demissão, lembrei do nosso sofrimento.
combinado inicial e experimentei-me com Um mês depois, ele deixou um recado
minhas mãos atadas, extremamente im- na secretária eletrônica dizendo que esta-
potente e emocionada. Explanei: “Como va no aeroporto, “partindo para a Europa
sou mulher de palavra, terei de honrar para mochilar”. Imediatamente, após ouvir
um combinado que realizei com você seu recado, emocionada, liguei para ele
inicialmente, mas confesso que não está e, como ele não me atendeu, deixei um
sendo nada fácil. Nosso acordo foi o de recado em sua caixa postal: “Que bom
que não tentaria convencê-lo a continuar que está vivo! Que alívio saber que vo-
vivo, e uma vez que você não saiu do seu cê optou por realizar o seu sonho. Boa
trabalho, meu sentimento é de extrema Europa!”.
impotência e tristeza ao saber que sua O que mais aprendi com esse cliente
opção seria a de se matar. Respeitá-lo-ei foi o exercício da tolerância com a falta de
acima de tudo”. Ao que replicou: “Seu sentido de vida do outro. Nessa direção, há
respeito é crucial para minha escolha. de se considerar outra característica do com-
Você saberá de mim. Confie em mim, portamento suicida, a impulsividade (WHO,
eu ficarei bem”. Eu (aflita ainda): “Mas 2014), sobre a qual discorrerei a seguir.
você vai se matar? Eu gostaria de saber Algumas pessoas cujas mortes foram
se eu posso fazer algo por você. Posso consumadas não deram o devido tempo
falar com alguém da sua família?”. Ele: para que encontrassem outra solução para
“Confie em mim. Farei valer tudo o que seu sufoco, nem deram ao outro a chan-
falamos e o que aprendi aqui no proces- ce de serem auxiliadas. O ato suicida é
so com você. Lembra do nosso acordo?”. impulsivo e, por esse motivo, precisamos
Ele foi embora e eu fiquei com a sen- “ganhar tempo” e estimular que a pessoa
sação amarga de querer, ao mesmo tempo, “dê tempo” até que seu desespero passe.
fazer jus à minha combinação com ele e, Sua impulsividade e pressa de se livrar
por outro lado, colocá-lo em uma redoma do enorme incômodo andam na contramão
de vidro para que eu pudesse protegê-lo e das sensações que exigiriam maior tempo
me assegurar de que não o perderia pelo para reconquistar mais sabor, cor e prazer.
suicídio. Aguentei firme. Recorri a várias O desamparo abala o indivíduo, por
sessões de psicoterapia pessoal para li- estar machucado demais para crer. Além
dar com o angustiante sentimento de que disso, ele não acredita mais que o outro
deveria respeitá-lo em sua decisão e em poderia lhe fornecer o bálsamo necessário.
sua autonomia. Como supramencionado, a morte autoin-
Como o dito popular reza que notícia fligida pode ser percebida como uma via
ruim normalmente chega rápido, duran- de comunicação que a pessoa encontrou
te uma semana vivi o luto antecipatório para dar conta daquilo que deveria ser
de um possível suicídio de meu cliente. comunicado ao outro ainda em vida. Os
Um luto gerado pelo desconhecimento do outros passam a ter somente a função
que aconteceria com essa pessoa que um de cumplicidade nula ou parcial de seus

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sonhos. Da mesma maneira que sente que ta a fim de ressignificar a dor que se
o outro não fez parte de seus anseios e torna pungente e dilacera sua alma. É
respectiva satisfação, a pessoa se perde também recomendável ofertar educação
em suas partes. Seus comportamentos por que inclua a morte e os aspectos neces-
vezes agressivos atordoam os outros, pois sários para lidar com a vulnerabilidade
está atordoado. Grita com o outro, pois e fragilidade humanas. Dessa maneira, a
grita por socorro. Manda o outro embora preocupação com as mortes autoinfligidas
e provoca abandonos porque já se aban- percorre uma trajetória pela qual as ques-
donou. Não se sente amado, tampouco tões sobre a vulnerabilidade existencial
respeitado e, por fim, entrega-se por não se tornam destaque na compreensão do
confiar que tudo é passageiro, inclusive bem-estar humano.
seu sofrimento. O antídoto do processo de morrência
Quem se aniquila, transmite sua men- é extrair flores de pedras, processo no
sagem, mas não permite mais, em virtude qual, a partir de um solo árido é possí-
de sua morte, conhecer sua transcendên- vel se surpreender com as belezas que
cia, ou seja, sua capacidade de ir além a vida oferta, tal como Rilke (2007, p.
daquilo que conhecia sobre si mesmo. 64) apontou: “[...] a vida foi verdadeira-
Morto, não conseguirá fazer mais nada. mente feita para nos surpreender (e isso
Não conseguirá sequer perceber que seria não nos espanta de jeito nenhum)”. Ao
capaz de se superar e de conquistar novas extrair flores de pedras, apercebemo-nos
formas de se perceber e de se comunicar. das toxicidades e discriminamos o que
Talvez pudesse descobrir que poderia rir é nutritivo e tóxico, e aprendemos o que
de si e da situação caótica que o avas- realmente é essencial para nossas vidas
salava momentaneamente. Vivo, poderia sem a exigência de sermos absolutamente
comprovar que seria capaz de se sobrepor perfeitos e bem-sucedidos. À vista disso,
àquilo a que outrora acreditou ser impos- no processo de extrair flores, a compreen-
sível sobreviver. Vivo, teria condições de são sobre a efemeridade da vida assume
se superar, mas, morto, perdeu a chance a dianteira de nossas ações, bem como
de sorrir mais uma vez e de descobrir a flexibilidade de nossos sentimentos e
que sua vida valeria a pena ser vivida. pensamentos surge como proposta prin-
Desse modo, o que se pretende trazer cipal para a conquista da tolerância exis-
à tona nesta reflexão é o fato de que, tencial. Cabe ressaltar o fato de que o
se quisermos preservar a vida, devemos desespero surge pela falta de reflexão de
ampliar recursos para o enfrentamento que tudo é passageiro na vida. Assim, a
dos embates diários, assim como as ma- impotência é expressa pela falta de ação
neiras de acolhimento das feridas que le- e os fragmentos se acentuam. Mas, em se
vam um ser a acreditar que a morte seja tratando de vida, tudo ainda é possível.
a solução para qualquer dissabor a que Quem disse que todos os quebra-ca-
foi acometido. Nessa lógica, seria neces- beças das histórias cujas peças foram
sária a revisão das formas de a pessoa perdidas serão montados e que, somente
responder ao que o mundo lhe apresen- quando montados, servirão? Quem disse

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que todos os fragmentos devem ser pre- e de se desertar completamente. Perdo-


enchidos? Não, a vida não acontece na ando-se e perdoando aos outros para que
completude absoluta de todas as coisas. se possa continuar. Fechando etapas que
É preciso o vazio. No vazio é que há a impedem de ir para frente. Aparando as
possibilidade vindoura de preenchimento. arestas, buscando luz onde sentirmos que
Constatação que aprendi desde pequena, ela nos invade, fazendo aquilo que nos
quando assimilava o pensamento oriental: faz bem. Observando aquilo que temos.
“em uma sala cheia de móveis não cabe Se estamos aqui e nossa hora não
mais nada”. Completude absoluta é impos- chegou, por que não viver de maneira
sível para o humano.Somente no mundo melhor, tornando nossa casa uma mora-
da fantasia podemos ser quem quisermos, da existencial? Todos têm direito de ser
mas no mundo real a liberdade é limitada quem são, mas cada um deve descobrir
e nossas escolhas, restritas. seu melhor estilo até que a morte o se-
É necessário descobrir maneiras para pare de sua vida.
não mais nos preocuparmos com nossa O acolhimento é uma conquista da relação
reputação e com a exigência de perfeição entre os seres humanos para que se possa
que prejudica a alma. Somos imperfeitos auxiliar a pessoa na construção da tríade
demais para uma vida perfeita. É preci- respeito, autonomia e dignidade. Há sempre
so ampliar a awareness de si mesmo, de a chance de integração das partes que estão
nossos comportamentos disfuncionais e fragmentadas a fim de se construir alter-
do que faz com que nos acostumemos nativas para que a reforma e a construção
com o que não deveríamos nos acostu- existencial aconteçam em partilha.
mar. A vida é valiosa demais para per- Pessini (2010, p. 459) afirma que “as
der a oportunidade de assumirmos quem pessoas desejam ser tratadas com digni-
somos. Sendo assim, o confortável não é dade e como gente e não simplesmente
o que não vivemos, mas sim o como en- identificadas como doenças ou partes do
caramos e enfrentamos o que vivemos. O corpo doente. Acredita-se que ambientes
essencial se torna aquilo que se vive na humanizados são fatores de saúde e cura”.
simplicidade e no dia a dia. O essencial Sendo assim, acredito que dignidade não
é o que torna nossa realidade o nosso significa ausência de ordem, mas sim pre-
próprio sonho. sença de respeito às escolhas pessoais e de
É preciso chegar ao seu próprio lugar. outrem. Dignidade significa afastamento
Trazer-se de volta para seu lar existencial. de opressão e tormenta na conquista de
O peregrino de si deve recuperar aque- sentido de vida.
le que se esqueceu e aquele que um dia A tarefa existencial de um suicidolo-
confiou e que teve esperança. gista precisa fornecer atenção ao sofri-
Como recomeçar? Como continuar a mento alheio, disponibilizando-se afetiva
viver apesar das adversidades? Buscando o e teoricamente para encontrar expansão e
que é essencial e construindo a tolerância, ampliação das maneiras de enfrentamento
que implica lançar mão do desativar-se dos infortúnios e para acolher cada vez
temporariamente em vez de se desativar mais a fragilidade humana, bem como para

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promover respeito pela condição existen- os projetos existenciais para que a pessoa
cial independentemente de suas escolhas. não antecipe sua morte, ou seja, a fase
Porém, cabe salientar que acredito não ser final do desenvolvimento humano. Apesar
fácil viver. No entanto, é possível sobre- da restrição existencial daquele que não
pujar as dificuldades e adversidades por consegue vislumbrar horizontes, as possibi-
meio da generosidade e amor, oferta de lidades não se extinguiram. Não é porque
esperança, acolhimento e presença. Isto a pessoa não vislumbra ainda seu sentido
posto, é preciso resgatar a esperança e de vida, que ele, o sentido de vida, não
os sonhos mais significativos; recuperar existe. As possibilidades ainda continuam...

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