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LIVRO 7 – BRASIL I
LIVRO 8 – BRASIL II
OUTROS TEXTOS
OUTROS POEMAS
1
O LIVRO DE EMÍLIO LUCIANO
49 POEMAS
2
Proclamação: A ÁGUIA
Custa-me crer que seja preciso fustigar a alma com os dardos de sempre imbuídos de
algum suco que sabemos pertencer ao passado mas que também desconfiamos pertencer
ao futuro como uma dessas desconfianças que se tem a propósito de se ter perdido a
chave de casa ou de quem chega atrasado ao emprego e desconfia do relógio do capataz
apenas por descargo de consciência.
Eu presentemente não estou certificado de nada do que posso ver com os olhos da
minha paixão nem com os olhos da minha cara sem vergonha ou anseio alguns de que
os seus olhos olhem e de que quando olham vejam aquilo que está às claras mesmo para
ser visto pelos que olham para ver e encoberto aos que procuram discernir para depois
poderem afirmar.
Quando por algum tempo deixa de existir o suporte do real é que é vê-los a afirmar e
depois durante algum tempo já não se pode afirmar e então é que é bom afirmar porque
aquele que afirma só afirma o que já foi por ele afirmado ou foi afirmado por outro que
também é ele embora não saiba a tragédia da afirmação nunca ocorre embora a sua
preponderância seja permanente e a ideia da tragédia seja ilusória como ilusória é a
ideia da sua dimensão os que a aumentam dão-se mal porque vivem tristes e os que a
atrofiam também se dão mal por outras razões que no fundo são as mesmas os que
procuram afirmar com plena consciência são os mais grosseiros e lamentável é a sua
sina ridícula pois o que afirmam com tanta consciência parece pouco depois palha seca
na fogueira endiabrada da inconsciência e prova cabal da grande inconsciência.
Antes o homem fosse como a águia que nunca afirma nada mas cuja presença é bastante
afirmativa antes o homem tivesse penas a cobri-lo em vez de ter vergonha como tem em
vez das penas que lhe escapam ou que por uma ou outra razão entende mal se ao menos
não entendesse nada já não era mau ou pelo menos não era tão mau como entendê-las
mal que é tê-las cravadas na carne e com grande desgosto e grande dor arrancá-las para
não ser como a águia superior e afirmativa e ser apenas um animal nu e flácido
encolhido com temor da própria grandeza precariamente equilibrada no mal-entendido
da sua superioridade.
3
(1)
Este livro tem três chaves
Uma de ouro outra de prata
E outra que como tu sabes
É de lata
(2)
O LEÃO E O PÁSSARO
4
(3)
Alta e bela a madrugada fez-se
Há um esquilo e um rato e um rio que desce
Há um feto silvestre e uma roxa flor
Há uma espécie muito estranha de calor
Com um rio que desce e um ribeiro que corre
E um gigante verde a suspirar de amor
E um mistério sideral de fuga e dor
Como um vazio que cresce
Uma fera linda que respira e que se mexe.
5
Mundos mais distantes deste mundo
Distantes tanto à superfície como a fundo
E próximos do fundo e à tona até
Fora dos limites em que a coisa é
Só o que está dentro dos limites
Onde chafurda a maioria da ralé
Numa zona em que o mar já não dá pé
E só navega o marinheiro meditabundo
Que ao mar atira imagens do seu ser imundo.
(4)
Ah! Meu amor se tu soubesses
A malha imensa que teces
Dentro do meu pobre ser
Talvez tu te arrependesses
Das vezes em que apareces
Só p’ra me fazeres sofrer.
6
Meu amor como fazer
P’ra te fazer compreender
Este enlevo desmedido
Que de impossível parecer
E de humilhante só ser
Eu tenho que ter escondido.
(5)
INTERMEZZO
7
E tu morrias de lonjura e esquecimento
Morrias lentamente nos meus braços vazios
Eu olhava-te e ria e depois no momento
Eu olhava-te e via já só via sombreados tardios.
8
Pequenas fontes diárias de orgulho e fantasia
Pobres enganos miseráveis feitos de nada
Que logo é tão só cinza inerte e fria
Restos do nada pairando adormecidos na alma desgraçada.
9
Rondava ronceiro os limites da morte
À noite e de manhã adormecido e calmo
À tarde ao fim da tarde num limite mais forte
O cansaço o enorme cansaço a ideia da morte
Às vezes o delírio de medir a cova lamacenta palmo a palmo.
10
(6)
O meu amor é um silêncio sem tristeza
Sem palavras demoras não me esperam
O meu amor já não é nada além da fortaleza
Vazia toda muda e cega na beleza
Das coisas que de dentro a dilaceram.
(7)
A esperança dança envolve
Debruando a oiro o escuro poço
As almas dizem adeus ao mundo
E vão olhando o seu não existir
Mas resta o ser e triste vai
Como errantes peregrinos do amor
Ouvir ainda o salmo roxo
Do que contem toda a atribulação
Espera a esperança espera e vai
Sozinha alimentando-se de si
Roída e maltratada vai e ri
Sonhando o dia de amanhã
Manhã que se adivinha rir
Do sonho que sonhou.
(8)
Moiras que no meu ser habitam
Nos recantos frescos do meu ser
Emudecidas a vibrar
Pétala de quina a enrubescer
Forma vadia dos que no ar transitam.
11
Restos do paraíso por haver
Restos de um nada que ficou no ar
Olhos meigos e distantes que me fitam
Sombras de um sonho que ficou no mar
Dado o seu destino superior de morrer.
(9)
Ao infinito que prolonga as mãos
Quando num gesto de derradeiro adeus
Traem a esperança do reencontro
Mais palavras de nada ao infinito
E simples como simplesmente arder
Palavras meu amor p’ra dar a quem
As possa ouvir
Coração contigo meu desastre
Em palpitações vitoriosas e dúbias do ser
Um pouco de um fragor
Do qual o Sol foi testemunha e carrasco
E do qual há-de vir a ser sombra
Quando a alegria de um refresco
Fizer rejubilar no ar a calma tropical
E o ar caliente ondear no ar
Na amável perspectiva de oculta praia do Brasil
E sob o véu das terceiras intenções do momento
Tão invisível sombra em manifestação
– o amor – meu doce amor aspergido
Por a relva abundante do mundo
Desperdiçado enfim por finalidade
Ausente e fixo.
(10)
Sendo o que de ti já não sou mais
Meu amor dissolvido entre mil caras
Meu barco sem mar e sem arrais
Brinquedo inanimado.
12
Ser o meu amor um convencido
Um esgar de desalívio superior
Um eco só de uivo constrangido
Ser o ciúme o amor do meu amor
Anátema finado.
(11)
Falo do alto de um penedo azul e terra
Balanço os olhos e a imagem que resulta
É uma ira calma uma surdez divina
O vício erra
O mestre exulta
E triste se reveste de folhagens a menina.
Ou seja:
Mais por nuvens do que por vicissitudes.
(12)
Densos anéis de espuma fluida
Que se desprendem de uma filigrana
Perdem-se os ares
Pesam no seu peso os pesares
E dançam sobre salmos de fria chama
Sob a doce vista alma se cuida.
13
Inventa a luz a força que lhe resta
Não estávamos já em parte alguma
Pobres perdidas
Desencontradas no patamar das despedidas
Choradas em silêncio a uma e uma
E outra e outra que não presta.
(13)
Começa uma era de pura aldrabice
De contínuo engasgar do artigo
Sem saber onde guardar de uma vez a trafulhice
Para poder enfim coçar no umbigo.
(14)
Fugazes os tempos que entrelaçam a vida
E rudes os momentos de a viver sem graça
Sem o púrpura e a ave branca que esvoaça
Sem deixar de ser branca e vil e encolhida.
14
Recordo a virgem de verdura que se julga traída
Distingo as ratazanas e os vestígios da traça
E reconto a mentira inteira e despida.
(15)
Mais que aconteça agora
Posso bem dizer que é nada
Possa agora eu cantar a dor amargurada
Como um pássaro pousado que chora.
(16)
Foram nuas as ruas e de escuro
O primeiro anel foi de laranja
Doce de Espanha quando ainda
Era a primeira vera inverno era
E a primeira festa as ruas nuas
Lembro que não era de tristeza
Como sempre as almas mais ali
Vivem de festa tornando-se tortura
E foi assim que as horas se passaram
Nesse passo que primeiro dei
Amor eu não chorei nem choro
As lágrimas secaram-se de ver
E correm-me agora nebulosas
Densas por dentro do amargo peito
E fora deixo-as tristes não correr
Mas já bem fora digo mal sentindo
Que outra vez ainda me despindo
Quisera ser criança e chorar
Oh! Amor se fosse fácil amar
Tão como é fácil sofrer
Se o céu fosse fácil de alcançar
Como é fácil o negro de descer
Não teria sido em vão um dia
Ter tido a ilusão de te pedir
Apenas luz e mais não querer
E vendo o quanto que se fez de negro
E pelo negro ser o mais além
Melhor seria nada querer
Melhor teria sido suspender
15
Do ar o sonho e desta vida
Sem um adeus a mais me despedir
E nua disse a meia-lua roxa
Folha rasgada chuva inocente
Já choveu.
(17)
É com certeza loucura ir assim rasgando
Com palavras inúteis a tira do tempo
E com elas rendilhando a paciência
Compondo insano o fim de serem elas
E sendo-se serem-no e ser isso interessante
Porque no fim é ser que interessa
Mesmo as palavras ditas
Inutilmente
Ditas inúteis talvez
E mastigadas
Até perderem inteiras o sabor
E por fim serem
Histericamente alçadas
E em frenesi deglutidas.
(18)
No dia primeiro que fui à escola bem me lembro
Desenhei um barco e parti nele pelo mar
Da ilusão e naveguei por rota sempre incerta
Até chegar ao porto da idade de homem.
16
Mas a seguir à tempestade vem a calma
O mar da ilusão sucede ao da desilusão
A ilusão faz da tristeza uma boneca
E a vida é a menina que com ela brinca.
(19)
Sujo e abandonado
Encolhido no passeio
Faminto e desesperado
Dividido pelo meio.
Na paz do meridião
Não há paz para quem ama
Não há luz no coração
E é por ela que ele chama.
(20)
Visto o que já foi visto ser de vera lá
Linguagem que te canto por ti e o nome eu
Não sei ainda exactamente o que é
Aquela risca é mais bonita e vê-la vou
Rosto na pedra se que animada vida
Dois de uns e doutros de diferença não se tem
Oh! Rouca oh! Louca vem me dizer quem sou
No frio que passa o bem esvoaça e troca de sinal
Vem o cão do berro berra e o sinal que foi
A ameaça também passa e com desdém
Traça os motores do mundo e gira tudo
Como que partido
Algures se cruzará este sinal com outro
E o mundo todo estala em desarranjo
O líquido evapora e depois se espalha e molha
Tudo parece estranho e é como parece
Leva a louca estrada da loucura a estrada estranha
A noite se debruça e lagos pálidos reflectem frouxa luz
No céu as nuvens formam brasas
E os pássaros piam outros gritam outros chamam.
17
(21)
Quando o ser está estendido
Vem a bicha e amarra-o
Sorte que dele nada se mexe
Às vezes é preciso rememorizar
E ninguém morre de taquicardia
E está tudo pronto para reviver
Alguns retratos de tempos que já lá vão
Lavá-los ainda mais uma vez
Ressuscitar os mortos sem oração
Renunciando à vez de orar por eles.
(22)
A mim o que me invade
É a evasão
Melhor a deserção
De ter que ser alguma coisa o que me invade.
(23)
Por um momento a saudade me desfaz o coração
Daquela vida de viver no céu doirado
Do oiro que o verdete corroeu como se fora cobre
E do vermelho o negro que de cinza se tornou
Nessas cinzas em que uma vez mais ainda da prisão
18
Nesse momento o coração se arrebatou desfeito
Um sonho de muitos que se ouviram na noite
No sono de alguém que eu já morei
Naqueles sonhos de alguém que eu já morri
Naqueles gestos de loucura que matei.
(24)
A vida pára e depois
Vem um lamento
Que é o eco do momento
Em que a vida se foi
O corpo vegeta e dá
Lenha que arde devagar
A chama já morreu
A brasa consome o resto
Do que ficou de ser eu
Não me revolto nem protesto
Ergo na mão o facho
E digo adeus.
(25)
Até fica mal pensar
Certas coisas em que eu penso
Neste delírio imenso
Que nunca pode parar
Mas pior é ficar tenso
Na intenção de evitar
O pensamento suspenso
Só serve p’ra se cansar
O pobre do corpo denso
E o pensamento ficar
Escondido por trás de um lenço
Transparente e exemplar
Do engano que é o bom senso.
19
(26)
Tanto amor esgotado se derrama
Nessa rua cinzenta fim da tarde
Onde entre a chuva corre a lama
E corre o amor que se mantém da chama
Que de desejo arde.
(27)
Passa a vela da noite muda
Manhã e tarde se esconjuram
No mal é mel o que lhe acuda
O bem que a dor lhe iluda
Além por ser além perduram.
20
Quanto melhor seria não jogar
Quão bom seria só permanecer
Na branda quietude do olhar
Na atitude de nada se esperar
Nem nada desejar ou querer.
(28)
Como é faminto o tempo
Das emoções do sangue
Das cenas do teatro da vida
Essa fatia cheia de rir
Ele a devora e essa água
Correndo saltitante e livre
O dessedenta
Essa água que lava a dor dos seres
E mata a sede ao tempo
Como é sedento o tempo
Do licor em que fermenta
A fantasia.
(29)
CARNAVAL
21
Porém hoje é o dia
Em que todo o homem pode ser palhaço
A palhaçada comum da cobardia
Está interrompida para estardalhaço
E isto fica tudo uma enxovia.
(30)
O FERROVIÁRIO
22
(31)
Altos convénios astrais
Despedaçai-me este palhaço
Incapaz de fazer rir as crianças
De dar pinotes desastrados
Que suscitam a perplexidade
Despedaçai-me todo
Altos confábulos nocturnos
Se tem de ser
Fazei de mim a erva
Fazei de mim estrume
Deixai crescer a erva
Feita de mim esperança que foi
De ser ilusão
Dai-me mais uma
Entre mil caras que já tive
E uma noite para viver
Altos convénios dai-me a canção
Trazei-me a glória de edificar
De boa fé e sã vontade
A estátua eterna
De um deus irmão
Dai-me a ternura para sorrir
Cruel viver seja candura
A amargura do meu viver
Dai-me a divisa
Altos convénios astrais
Remurulhais na noite
Sei que aí estais
Insectos dos abismos
Contra os quais
Será inútil a minha submissão.
(32)
Os olhos remexem incessantes procurando
Um canto a outro nada que se esgueira
Olhos que são só sombra
Sombras que se esfumam de um olhar
A fama paraíso se desliga
Era doirado o sol e se desfez
Mas logo resta o céu e interposto
Vem vermelho sanguinar o já.
23
Quanta corrente passa devagar aos olhos
Depressa lá barca desliza
É louca a vida no rio em que deriva
E quanto o esquecimento que no mar…
(33)
A chuva não parece tão forte
E se ela é forte lá fora
E cá dentro a queda enorme
Que se começa a prever
Ainda a paulada sobe
Uma subida ao contrário
Sobe em queda flecha enorme
E a flecha cai em vertigem
E desafia a imagem
Da forte chuva lá fora
Cá dentro sempre é de noite
Cá sempre está morto e só
Sobe e desce noite e dia
Mas permanece no vago
Onde a chuva não se precipita.
(34)
Gostava de saber de uma certeza certa
O que me faz cantar
E confundir as vozes que ouço a vozear
Com uma voz maior
Única e superior e que me faz cantar
A ilusão heróica
24
De uma agonia lenta que se prolongava
Inútil iludindo
A busca do momento que parado
Faz prolongar um som.
(35)
Quanto melhor é não saber do que saber
Não tem medida
Poder sonhar e não ter medo de dizer
O que é a vida
Como é enorme e forte esse saber
Que esmaga a vida
Quanta ilusão desfeita
Numa certeza
Quanta incerteza
Nesse saber que se avizinha
Que se soubera era
Já não lembrar o tempo breve
Que o tempo apaga.
Camisas ao vento
Cabelos longos
Curtas instâncias
Permanentes
Que o vento quente
Aquece num instar
Luar distante
Instante lua
Nau que navega
Sem pensamento.
25
(36)
Parece não ser ninguém
Dele nunca nada vem
E no entanto é maior.
No ar forma um labirinto
Que é às vezes o que sinto
Quando em que pensar não sei.
(37)
Sentai-vos em frente das praias
E não vos aperte nenhuma saudade
Nem um pensamento a cabeça
O mar sim
Em frente do Clousiot
Branco como cal ide além
Da praia que é mero suporte
Chorai o que regressa lá
E não o que partiu
Não deixeis cair as lágrimas
Que não vale a pena
O sortilégio as fará vapor
Interior vapor do olhar
Vede o mar sim
E olhai p’ra ele.
26
(38)
Pode um poema morrer
Outro virá
Pode um morrer na ideia que vai já
No rio que para baixo vai
Sobem as vozes para o céu
E o poema que morreu
Será.
(39)
Chega a meia-noite
E o sono não vem
Passa a meia-noite
E a noite também.
A caneta liberta
Risca a folha ligeira
E parte à descoberta
De uma nova bandeira.
27
E eu sou uma estrela
Cadente no céu
Mas impossível vê-la
Encoberta no véu.
Da sua inexistência
E do meu desencanto
Desta incontinência
Com que em vão me acalanto.
Madrugada demora
Meia noite é passada
Consumida hora a hora
Devagar mastigada.
28
Um cigarro conforta
Na noite a solidão
Faz fechar-se-me a porta
E mal ao coração.
(40)
Imponente sempre aqui onde estar seja além
Sábia presença invisível
No meu sono vigília de um deus
Propósito eterno e divino do sonho
Do sonho estar lá ôôhh!
(41)
Rosto arrojado em viagem eu bem
Cerce é a malha que se faz bem e vem
Redividir os esparsos e sempre poucos partos de virgem
Que ninguém
Pode ver que padecer só p’ra criar aquém além
Seja também
Sagrar o tempo que passou e assaz no vento que já vem
Deixar flanar as flores amadas do bem.
29
(42)
Sonho que voa entre dois mundos
Sonho que voa entre dois mundos
Sonho que voa entre dois mundos
Mundos virão ver o que eu sonho
Entre mil mundos que não sei
Sonho emoção do meu lembrar
Que amei.
30
Quero olhar o Sol
Das varandas do meu sonho
Quero ver a luz
De encontro aos patamares
Quero beber nos bares
E ver o meu amor a despedir-se
Acenando com a mão vazia
Que tão logo que acordar
Seja p’ra mim já não acreditar
Que ela esteja a pedir-me p’ra voltar
Quero ver tudo assim no impossível
E não correr para a manhã
Porque é terrível.
31
Mas já não canto
É pena
Era uma canção bonita
Era a morena
Dos olhos d’água que sequei
Era uma fita
Nos cabelos que eu troquei
Por uma pipa cheia de não sei.
O tempo passa
Eu sou
O tempo voa
Eu vou.
É só um momento
Depois passa
Tudo na vida é um momento
Que se passa
E o sofrimento
Esse é uma graça
Para o que a vida num momento
Devassa.
32
(43)
BELO POEMA INÚTIL
(44)
Os dias são o que parecem ser
Longos e difíceis depois já não
O que são os dias comparados com
Os anos longos e difíceis de passar
Dos quais só fica uma recordação
Os meses também passam
E minuto a minuto as horas
Tudo se dissipa como denso ferro
No alto forno da imaginação.
33
Indesejáveis
Mártires langores de uma amada
Qualquer de que sequer seja uma
Amada e deusa estulta
Vivificando a hora adormecida
Em que se procura
A hora adulta
E a deusa escuta e deixa.
(45)
O DESCANSO DO ACTOR
34
É o actor
Está nu já não actua
Descansa.
(46)
O gesto se macula no momento
Apócrifo de ribamar presente
Às vezes como sempre ausente
Essa glória instante e presente
De um mesmo sofrimento.
35
(47)
Ah! Imagens que eu deixei
Como me encanta não me lembrar delas
Senão pelas imagens que eu criei
Só p’ra lhes fazerem sombra a elas
E não me lembrar delas
Senão quando irresistível o destino enfim
Se cumpre e se serve de mim
Que em tantos poemas já fui o benjamim
Que em tantos chora
E nalguns… rim.
(48)
A tempestade arroja à terra o cepo
E na malha o bicho se afastou
O olhar meigo já se desviou
E de se usar assim se tornou crespo
E no cabelo o vento transplantou
Alguma imagem que desapareceu
Alguém que desligou e se perdeu
No rumo de difícil continuar.
(49)
O Sol se está pondo
Do lado inverso ao que nasce
E eu estou o olhando não
Só o vendo sem querer
Sai-me das veias o Sol
E vejo tudo a tremer
Mas agora infelizmente
Nada mais tenho a dizer.
36
O CAOS
9 POEMAS
e um post scriptum
37
O CAOS – Poema psicológico e seus sucedâneos (obra póstuma de Emílio Luciano)
(1)
O MÉTODO ESFÉRICO
38
Pode ser vil a ingénua criança
Pode a inocência ser tida por torpe e chã
Simples é a ave que voa e morre
Sem saber que está inocente
Do crime de ter aberto os olhos
Para aquilo que não merece ser visto
Para o que choram os olhos das moças
– que são como os pássaros –
Já sem inocência
As próprias crianças
Incriminadas por terem aberto os olhos
Para o que fede antes de se ver
Para olhar sem ver como eu
E ver que não estou a ver nada
E então ver o que não vejo
E a minha alma rolando por uma cascata abaixo
Adeus minha doce ingenuidade
Adeus minha adorada virgindade
Devassada ante os olhos toldados dos homens
Desnudada para gáudio dos olhos podres
Dos olhos que nada merecem
A não ser o sangue que os banha
Olhos que não merecem ver
Porque vendo só vêem o que está à vista
E o que está à vista é o sangue
É tudo o que não merece ser visto
Mas todos olham para lá
Ávidos como insectos mergulhando no incompatível.
Teria gostado de pintar a palidez
A brancura sem brilhos
Eu próprio dentro da palidez
…a grasnar
Infelizmente a grasnar
Apenas porque enxovalhar a mesa
Onde tantas vezes me deram de comer
Ou porque a avidez do fim do filme
Pode ser o sereno brotar de uma ráfia de paz
Entrelaçando a pálida lembrança
De uma vasta aridez antes de tudo.
39
Foram-se as horas enchendo com tudo
Enredos populares
A trama profunda dos abismos
Até com o raciocínio
– decerto obliterado pela falta de hábito de raciocinar
E de espasmos de ironia
A nova ironia em vez da velha ingenuidade
Como um vagão de entulho
Encobrindo um pequeno charco de sangue.
40
E se desvanecessem no ar
E me envolvessem
– eu que já estou tão envolvido
Mais nuvens cor de sangue
Desvanecendo-se no ar pulverizado
Pudesse eu talvez abrir as portas
Há tanto tempo fechadas
Inacessíveis pontos de partida para o nada.
41
E a música a agonizar no meu fim
É uma dura cruz que eu arrasto lentamente
Antes de deixar crucificar-me nela
E vejo que também não existe
E o próprio destino em que transito desconhecendo-lhe o percurso
Olho o meu caminho como se olhasse a história da humanidade
Contemplo o meu destino e vejo-o
E vejo que também não existe.
42
Penso nas ideias e vejo como se tornam esféricas
E vejo que em mim que já não existo
Tudo é muito bonito e esférico
O infinito que parte de mim para toda a parte
É uma esfera de distância
O nada que está dentro de mim
O nada que converge para mim
É uma esfera infinita toda vazia
E o mundo o indizível mundo
Que está entre o nada e o infinito
É uma esfera também
Não este mundinho achatado
Mas o indizível mundo que permanece para além de tudo
Porque é esférico
De tal maneira que a ideia
A própria ideia de o fazer desaparecer
É uma ideia esférica.
Compilo o que existe e o que não existe
E vejo que me cabe a parte que não existe.
43
E seja apenas a nuvem
Ela que está tão longe e praticamente não existe
E os momentos quase um nada esbatido
Que uma miragem etérica.
44
Um capítulo insignificante do meu sofrimento
São momentos em que me sinto trespassado por uma nuvem
Opaca.
E eu afinal eu?
Eu que sou o que se pressupõe que seja
O centro de todo o sistema esférico
Eu o próprio sintoma da degenerescência do meu século e da arrogância da
[minha raça
Eu a sombra midriática
Que sou eu senão uma esfera canónica
A pútrida flâmula de um ancestral
Nutrido de um agora
Destituído de qualquer amanhã.
(2)
O RETRATO LÓGICO
45
Os céus mais brilhantes que pudesse riscar
De pouco espanto entristeciam a limalha
A agrura da paz do esquecimento
A liquidez da vida vivida
E a própria liquidez da vida imaginada
Rigor absoluto
Fantasma dissoluto.
46
Foi um castelo de desejos enjoados
Foi um delito na ordem passional
Foi o que foi e é
Um castigo na carne do corpo
Uma ferida na cor da minha alma
De insecto chafurdante
Sentindo no meu corpo
De canoila vadia
O aroma envolvente da lama
Poisando na lama levemente
Insecto atrevido erro um.
47
Intenso martírio dos sentidos
A rima fechada dos sonhos com a morte
Conjecturando sobre a chuva
À espera de mais uma réstia de nostalgia
Na saudade presente e comum
Uma vereda estreita para o estado morto
À espera olhando a chuva
O verdadeiro retrato da morte em vida
No enlace do corpo com o espírito
Uma alucinação rasgada que sangra
Rasgada subtilmente por um espinho do real
Quase uma carícia
Sangrando uma pequena gota
Onde vejo e me distingo perfeitamente
Sou eu
Flanar intenso – ódio manso
Aos poucos resfriando a pele
Construindo a moldura duradoura
A decifrar com paciência
O daguerreótipo perdido nas profundas
Decifrando como a um puzzle – nunca completo
Pedaços de estrume da memória
Adubando a sangue essa cultura
Sem perdão para mim que a cultivo
Sem perdão para os que esquecem
Sem paz e sem perdão para os que riem
Cultivo a desordem das minhas ideias
A harmonia invisível da desordem
O escarro impiedoso da desordem
Estou farto de salitre
Pergunto-me diante de vós
Se estarei suficientemente aborrecido
Pergunto-me e respondo-me que sim.
48
(3)
O PROCESSO CAÓTICO
Ai rouquidão rouquidão
Quando sobrevier a inevitável deserção
Escapa-se por entre os dedos
Humilha-se aos cantos das ruas
Troca-se por pouco e padece
Padece enormemente
Rouquidão salivar sócio-crónica
De muitos cachimbos envolvidos no barulho
A rouquidão urbana grave e permanente
A rouquidão sempre
Tudo pela rouquidão nada contra a rouquidão
Delitos ocultos mordazes silêncios
A ironia feminil afável
A inefável ironia dos idiotas
Uma luzinha nos olhos dessas ferazinhas
Escondidas atrás dos mitos da era contemporânea
Os meus adoráveis contemporâneos
Gente de bem na moral e melhor no porte
Tudo pessoal fixe tudo gente honrada
Tudo dentro do quadro social
Do quadro familiar dentro do quarto
Na cama tudo social
Tudo compatível nada de incompatível
Ovelhas asmáticas sobre as suas almas
A chupar-lhes o espírito
Araras brônquicas no chão a sugar-lhes o corpo
O tutano vital até ao entorpecimento
Até à deformação
Até à senilidade
Até à insalubridade mental
Em que todos se encontram com a morte
Quanta diferença faz um homem civilizado de um selvagem
No momento da morte.
49
Furor de cascas sobre o conteúdo
Exuberante e nu.
50
Amor vidrado no delírio permanente da saudade
Amor ruidoso e abstracto no clamor da confusão
Arrobo de vaidade distante
Eis o meu amor morto.
Entusiasmo delirante
No meio da rua da confusão do lixo
No meio da enorme draga psico-mecânica
Num delírio perene
Um ruído distante a preencher
O fundo escurecido da sucata
Eu passo sentindo levemente os pés
Passo pendurado nos olhos das pessoas
Passo
Passo para cá passo para lá
Tudo sempre igual
Mesmo quando é diferente é igual
Passo rastejante esfregando-me na lama.
51
Sempre a mesma tragédia
Vida simples e sem assunto
Pequeno teatro sórdido e malcheiroso.
O rumor da sensação
A extravasar dos sonhos para a vida
Os outros morrem em mim
Uns depois dos outros morrem em mim
Como flores a murchar
A murchar lentamente
Até tocar o chão.
52
Confundido o que vêem com o que não vêem
Por aí sem saber porquê
Palavras chamadas ao momento
Por designações do momento
Epistemologias flácidas
Palavras doces para tanto agreste
Palavras das maiores
E das mais vulgares
Sempre numa mesma união
De inexistir para nada.
Com o tempo
Irei ficando também cansado e emudecido
Cada vez mais envolvido
Já depois interpenetrado
Completamente estarrecido
Cansado e mudo.
53
Todos a contribuir
Todos a colaborar
Para a boa saúde e conservação do caos
E eu sem um meio de fugir
Sem sequer uma genuína vontade de fugir
Começo lentamente a folhear
Os anais da minha podridão.
(4)
O CAOS
54
Cansado ou se calhar morto
Pouco importa se estiver morto
o meu coração
Parece que está vivo
Mas pouco adianta estar vivo
É como estar morto
Alguma coisa sempre adianta
Mas pouco
Pouco que se esvai
para o quase tudo
que se esvai
nada que é tudo
pouco de nada que se esvai.
55
Nada me dói
Dói-me é o que não está em mim
O que não existe
Nem dentro nem fora de mim
O que é só impressão minha
Sem se poder definir
Nem se poder indefinir
Isso sim é o que me dói
Muito mais ainda me dói às vezes
Mas é por pouco tempo
O que é humano
é desumano
Não sei bem o que é
E é por isso que me dói.
56
À tarde os casais descem a rua
Vêm da escola
Eu gosto de os ver
Recordo-me de quando era como eles
Os namorados
Aí às seis e meia
Descem pela rua
Abraçados
ou de mão dada
Vêm a conversar
Não sei sobre o que é que conversam
É muito longe
Sobre coisas da escola
Dos outros
Das coisas que conversam os namorados
Depois deixo de os ver
Fico a pensar
Já não é a mesma coisa
Vejo outro par
Penso nas mesmas coisas
Eles também vêm a conversar
Com certeza das mesmas coisas
E também desaparecem
No dobrar da esquina
Outro pensamento a nascer
Numa madrugada ao fim da tarde.
O desmando imortal
É o meu que leve permanece
Exaltação do orvalho
Na lividez do espaço
Às vezes povoado
Às vezes nu
Permanece o eu inconfundível
Onde estão os namorados
que passam
estão os que passam
E lentamente o que já lá estava
E o que estava já
E era eu inconfundivelmente
Lágrima de orvalho
Já completamente no espaço
A fluir devagar
Sem nenhuma exaltação
Sem qualquer aparência
Eu inconfundivelmente
Onde estão os namorados
Onde estão as crianças
E os homens e as mulheres
E a maltinha
57
Onde estão as árvores
As ervinhas dos montes e dos vales
Onde estão os montes e os vales
E as planícies
E estou eu inconfundivelmente
Está lá tudo
Sem tirar nem pôr
Inclusive os namorados
Que passam ao fim da tarde
E dobram a esquina
a conversar
E eu deixo de os ver
Reconstituído pela dor
A fim de me guardar
E de os ser.
Aproximo-me de um ponto
De onde tenho que partir
Para outro ponto
Quase a chegar
Para partir outra vez
Como os namorados
Que desaparecem
quando vão para casa
Para o esquecimento
De que se compõe indubitavelmente
O meu eu inconfundível
Que abarca tudo
O que está morto e existe
E dentro por de dentro de mim
É já só o que está vivo
Ou o que sempre esteve
Ou o que nunca estará
Mas todavia sobreviverá
E que eu já esqueci
E ao mesmo tempo não esqueci
Que me vem
Me transborda em recordações
Que existem
E ao mesmo tempo não existem.
Nasce-me no esgoto
O que me dá mais alegria
A ilusão
Pouco importa que tudo esteja dito
Seja a flor mais bela
Igual às que lhe são iguais
E em todas elas ela é a mais bela
E a mais bela flor
É a que provem da lama
58
E o que paira em volta dela e a faz pairar
É o vapor da lama
E as raízes delicadas
Que lhe alimentam tal beleza
É na lama que mergulham
Esta flor tão bela
Não parece a mesma
Como a dizem tantos e de tantas maneiras
É por ser a mais bela que é sempre a mesma
A bela flor
Que está oculta – a flor oculta
Entre as folhagens
Sozinha
Igual a tantas outras
Que são ela também
As vozes que se ouvem dentro da flor
São como ela
Filhas dilectas da lama
Sobem-lhe esfusiantes no corpo
Envolvem-na de cor
Fazem-na vibrar
E é quando ela vibra que é mais bela
É bela muito bela
Quando as gotas lhe escorrem sobre a pele
Sem lhe tocar
A água com o tempo
Gota a gota
Vai encharcando a flor
A água com o tempo
Vai fervendo na lama
E a flor
– a mais bela flor
Apodrecendo aos poucos
Deixando-se curvar
Será lama também
E dela crescerá
Muito mais fresca e bela
A nova flor.
59
Apenas o bafo
– a pesar
Sem ter peso nenhum
Contrai-se-me o ventre
Quando o sinto a invadir-me
E o que me invade
Não é já nada que eu possa sentir
Nasce-me no esgoto
O que me dá mais alegria
A ilusão.
(5)
O FRIO
60
E todos os passos perdidos
E todos os impulsos domesticados
E algum desejo contido
De me rir de qualquer coisa despontante
Que não sei o que é
E que é – digamos
A faceta desconhecida da minha alma.
61
A verdade é que todos desertámos um dia
Para fora de nós em qualquer direcção
Para fora dos difusos limites
Do percurso previamente delineado
Todos renunciámos a alguma coisa
Por outra
De dúvida em renúncia
Ando pelo mundo como se estivesse de visita a um museu
A alma que se foi lascando com o uso
Os olhos estirados para a ilusão
As coisas bizarras expostas como num sonho
Uma visão sombria da cor indefinível da estranheza
Às vezes da cor da repugnância.
62
Despedida silenciosa estação enevoada
Dois soluços ou três – beijos longínquos
No vão de um corredor enegrecido
O adeus lacónico de uma grande viagem irreversível
Para os braços do infinito.
(6)
A HERA
63
Ser sem força para ser
De ser demais – por demais belo
Belo em extremo
Ser que não existe
Rasgo obsessivamente o meu ser
Mesmo quando durmo
O meu ser belo então
Como nunca ninguém o viu
Já não está onde está a sua substância
Nem sequer nas proximidades
Aí tão doce ele divaga
Nas proximidades
Como uma criança à sombra de uma casa
Nas proximidades
Quando está acordado
Belo também – porem
Por vezes feio
Nesse esgar de quem se encolhe
Fealdade da máxima candura
Bela também – porem
Por vezes incompreendida
Confundida com o trânsito permanente
Confundida com a vida
Ela sim a vida a própria
A fealdade contingente
Que é de onde provém toda a beleza
Toda essa beleza
A beleza feia que está viva
E a outra que é mais – que é póstuma
A outra que é a maior
Que é a mais heróica e inútil beleza
Mais a outra beleza feia
Tudo isso eu rasgo no meu ser
Rasgo também com o meu ser
O que me sobra do quinhão
A côdea seca
A minha côdea de humano
Como todos
Cada um com a sua
E eu com a minha
E o que me sobra dela
Que é em máxima verdade
O que é verdadeira e unicamente meu
Exclusivamente meu
E não há mesmo possibilidade
De o dar a ninguém
Por caridade ou por desdém
Ou apenas por estar de sobra
Isso é uma dádiva
Mas esta não me corroe
64
Se me corroesse eu não a rasgava
Esta ofusca-me e dilata-me
Por isso rasgo-a também
Com o meu ser
Mesmo as flores que são belas
Mesmo as raparigas que são bonitas
Eu rasgo com o meu ser
Não fica nada dentro de mim
A não ser o coração a bater
Lentamente a bater o coração
Músculo apenas já
Nada de hipocrisias
O meu coração azul
Que transpirava quando fazia sol
Que batia descompassadamente
Quando lhe faziam cócegas no sentimento
O meu coração apaixonado e inexistente
É o que era todo o meu ser
Antes de eu o rasgar
O outro
O meu coração vermelho
Músculo ardente e contínuo
Esse não – faz-me falta
Faz-me falta para morrer a cada instante
E eu estar morto
E o meu coração continuar a bater
Às vezes até muito baixinho
Mas sempre a bater
Às vezes forte – o meu coração
Qual panela de escape da inteligência
A bater dentro de mim
Sozinho
Tudo o resto rasgo com o meu ser
O que o meu coração sente
É ser rasgado com força
É ser maltratado sem piedade
Como uma boneca de cartão esmaltado
Cheia de buracos a ver-se o cartão
Sem nenhum brilho
Como quando era uma bela boneca de esmalte
Sim que o que o meu coração sente
É ser uma boneca muito linda
Toda velha já
Do que o meu coração sente
Me despeço
Rasgo o meu ser
E projecto-o no vazio
Nada a contabilizar
Apenas vazio para estar
Vazio imóvel para continuar
65
Para preencher e continuar
Vazio e eterno
Sem limites
É fácil abolir os limites
É fácil falar do infinito
Tudo isso é eventualmente fácil
Contudo
Rasgo obsessivamente o meu ser
Rasgo-o com toda a força
E em quanta oportunidade tenha
Esvaziando tudo
Preenchendo tudo de vazio
Das coisas que o preenchem
Mas já lá não estão
Ou das coisas que nunca hão-de lá estar
Ou se alguma vez estiverem
Eu rasgarei também
Venham quando venham
Venham quando vierem
Sejam quantas forem
Rastos invisíveis de pureza
Rostos sempre mal imaginados
Outrora como a divina hera
Força da desilusão
Fogueira apagada.
(7)
POEMAS ESFÉRICOS
1
Nada há como o desprezo com que os gatos olham para as coisas
Não só esse como o desprezo em geral
Em boa verdade não me preocupo com os outros
Ao ponto de os desprezar
Verdade também é que não desprezo as coisas
Ao ponto de me preocupar com elas
Apenas um quase que não sentir
O mundo nos seus ritmos.
Há coisas que reduzo a significados
Porque reduzir é um bom exercício para o raciocínio
E outras que resumo a sentimentos
Porque resumir é um bom treino para a imaginação.
2
Talvez alguma vez tenha pensado
Em colher os frutos da imaginação
E depois pendurá-los
Como um camponês pendura as abóboras
– com umas canas
Da mesma maneira que me arranjo com o mundo
66
Procurando por essas ruas sujas
Fingindo aceitar o pó dos anos
Sem conseguir sequer tomar o peso
Das abóboras que me procedem da imaginação.
3
A memória dos cepos é curta
Como é curta a vida dos poetas
E os dias são longos
E as coisas todas são tristes
É curta
É porque tem que ser porque é assim
É curta.
4
Preciso de arrotar poesia
Para lavar a nódoa da minha espécie
A vergonha e o desconsolo de estar vivo perante tudo o que existe
E em ulterior pairar
Na inutilidade de estar vivo.
5
O suicídio é um acto inferior
Comandado pela fraqueza e pela demência
O auto-assassinato é uma lenta compreensão
Não é um acto mas um estado de espírito
Não é uma conquista nem uma resposta
É apenas um prolongado prescindir de si
Para poder estar consigo.
6
Rumino a necessidade do presente
E consigo discernir com dificuldade
O meu passado é uma anémona num gás diurno
Sofro essa constante inútil
E é como se estivesse parado
No meio da brevidade do caminho
Cercado de cardos flamejantes
Aparentes
Rumino essa sarjeta húmida
Ouço os rumores todos e o ruído
A estrumeira longamente acumulada
A fumegar na maior lentidão
67
Como se o hálito sereno que me envolve
Fosse o lento exalar da podridão.
7
A fase descendente é que deve ser evitada
Porque é o lado imperfeito
O lado humano e real de tudo
O lado que não é poético
Porque tudo o que não é poético deve ser evitado
E as coisas que estão paradas
E que não são cristais
Devem ser evitadas
E o que é duro e o que é agreste
E o que é opaco e pesado
E o que é brutal
E está parado
Deve ser evitado.
Sendo um cristal
O que é pessoal e intransmissível
Deve ser preservado.
O resto dá-se aos porcos
Para engordarem a íntima incompreensão.
8
Entre eles tudo está estipulado
Tudo está previamente delineado
Tudo está coligido
Tal como se a vida fosse nos acasos e nos actos
O preencher de um impresso do serviço público
Depois disso talvez o seu sonho atabafado
Talvez o seu pensamento obscuro
Uma imagem esporádica e tardia
No entardecer de todas as suas ilusões
E eu na confusão
Já nem sequer distingo bem as caras
E quando me cruzo com eles
Embora eles passem ao meu lado
Embora os olhe e eles me olhem
Vê-se bem que não pisamos o mesmo chão.
9
Procurava-o agora como se nunca o houvesse visto
Antes era o caos e a vil tragédia
Horror do coelho pom-pom.
68
Os mitos do meu passado esquecido
Procuro-os numa nova fantasia
Horror e paz história mortuária
Que antes era o caos
E agora continua a sê-lo.
10
O meu quarto cheira como nos piores dias do Inverno
Assisto à decadência de tudo o que me rodeia
Em volta do acanhado jazigo
Tudo a cair
Primeiro lentamente
Depois freneticamente
No meio de tudo isto que cai
Apenas a minha alma fica quieta
Transparente sentada no passado
Contemplando sem precisar de olhar
O velho piano eternamente desafinado
As coisas mortas que são ainda a plácida lembrança da vida
Tudo a ruir à minha volta num lento esboroar
Depois trepidante
11
É preciso ser genuinamente inconformado
Para poder recusar o duelo da vida
Depois de ter digerido a ingratidão humana
Ruminando-a lentamente como um boi
Ou como uma serpente
Mais como um boi do que como uma serpente
Mastigando avidamente a broa escura
Essa mistela esférica que me dão de comida
Mastigando lentamente o coração
Dentada após dentada
Uma brecha outra já cicatrizada
Mastigando primeiro avidamente
Depois lentamente.
12
Hoje finalmente
Após tanto tempo de marasmo caótico
Sinto de facto vontade de dizer alguma coisa
Qualquer coisa diferente
Das coisas que há tanto tempo
Imagino e penso que devo dizer
Dá-me a ideia de rejubilar sem uma razão evidente
Apenas aparente.
69
A morte é a única força da natureza que me prende à vida
Estou hoje tão certo disso e tão seguro
Que assisto abúlico e perplexo
Ao bulício exterior
Sem nada medir
Sem saber quem está perto e quem está longe
Recordo os ausentes e os distantes
Como se estivéssemos juntos num depois
Que não existe para estes que vejo agitarem-se na rua
A evidência esperada manifestou-se
O fascínio de sempre é hoje uma estranheza abúlica
O desencanto é uma certeza aguda
O caos assiste-me
Estou perplexo
Ante tudo o que para mim sempre foi evidente.
70
13
Esquemazinhos hidráulicos
Sórdida onda
Poemas insaciáveis
Que corroem o chão que lhes dá vida
Postura ingrata para o corpo
Solidão
Rostos inconfundíveis confundidos
Sonho – traição da verdade
Fim da ilusão
Sórdida onda.
(8)
RETORNO
71
II
III
IV
72
E sobem comigo
Até onde eu puder chegar
Eu venho tirar a contra-partida
Cá em cima estou eu à espera
Cadáver que me espera
Sonho ilusionista que me espera
A boiar no meio do oceano
Eu venho ter com ele junto à praia
Regresso das trevas cheio de musgo
Sonho atirado pelas ondas contra as rochas
E eu inerte esperando-me na praia.
73
Volto à aldeia pelas veredas
Ao fim do dia meia-luz
Já não sou o poeta
Sou o afogado que ressuscitou
Irmão do mar que o fez
Irmão do céu que o viu
Na terra que o bafeja com ternura
Irmão da praia e dos rochedos
Das algas
E das pedras que chocalham na rebentação
VI
VII
74
Quando a gente o vê da praia
É tão inalcançável
E no entanto pode-se ouvir o barulho do motor
E até o que diz o capitão
Mas para isso já é preciso um bocado de ouvido
Ouvem-se as vozes
Albergam ainda o velho travo
O testemunho indesmentível que transparece
Após séculos de sobrevivência
Igual ao que nunca fôra.
VIII
IX
75
Apenas uma rede encharcada e cheia de limos
Que ele arrastará pela praia até que um dia
Não podendo mais arrastar-se sequer a si próprio
Ficará esperando sentado ou de pé
Num flanco recuado da praia
Os pescadores que voltam do mar
Com os seus barcos e as suas redes
E os peixes claro.
XI
76
Toda a vida eu poderia passar
Até elas se casarem as duas
E o cão da minha outra vizinha morrer
E o dono também porque já é velho
E eu passaria sempre respeitosamente
Incriminando as minhas vizinhas
Lamentando a morte do cão e do dono e do pescador
E haveria sempre flores lilases nos jacarandás
E crianças na escola
Para me acordarem de manhã com a sua guincharia
E eu regressar à fantasia
Em que sítio estranho e obscuro eu a deixara
Vinda de tão longe e tão crescida
Mas talvez eu não fique aqui
E que importância tem isso…?
XII
(9)
AGONIA E FIM
Fascina-me a vacuidade
Encontro cheiro na vacuidade
E som na vacuidade
Mas não me dá prazer
Não me conforta
Antes me agride
Fustiga-me
77
Emociona-me
Especifica-me
Paralisa-me
No silêncio aberto em que se alarga
A magia dessa imagem
Sem forma nem tamanho
Que é a vacuidade
Encher-me e esvaziar-me
Correr e depois parar
Eis o que me fascina.
Em prol da objectividade
Posso dizer que estou morto
Pressinto tudo a funcionar num ronrom
Tudo muito leve e muito frio
Uma espécie de vida transparente
A formação desmembrada de todo o ser
Indiferenciado nas formas por que é
Sem ser a forma
Mas o objecto que a ostenta
Em prol da objectividade
O desmembrado ser envolto
Em formas de ser que não existem não são.
78
Minha vida tão cheia de imperfeição
Recortada em ângulos
Exposta à intempérie ácida
Às vis maquinações do exterior
Destinada como coisa insignificante a ter um fim
Um auge e uma decadência
Como um moinho de café
Ou um banco de jardim
Como uma coisa
E as coisas que derivam da minha vida
Tão cheias elas de rude imperfeição
Um esguicho de desordem
Um gemido agoniante e contínuo
Com um fiozinho de sangue esquadrinhando tudo
O mesmo fiozinho de sangue
Como uma sombra de eficácia
Sobre a mancha melíflua por toda a parte
A sujidade acumulada pelos anos
Pelo trânsito abusivo do mundo
Constantemente encalhando
Prosseguindo encalhando prosseguindo… …
Entre o vapor promíscuo das pessoas
E tanta coisa que deviam saber e não sabem
E tão pouco desejo de aprender.
79
O que está ali calado não pode dizer
Está calado não pode falar
Está inerte e inabalado
E nada alem dele está seguro
Onde estiver ou fora
Está apenas calado despedido.
80
Sem processo arrumado no ser
Sem uma luz que lhe sirva de guia
Sem nada que valha já realmente a pena
Sem uma ilusão que se desfaça
Noutra ilusão que se desfaça
Numa ilusão maior que se desfaz.
A dor coitada é que ainda há-de ter pena de ser sofrida por mim.
81
POST SCRIPTUM – 1
POST SCRIPTUM – 2
POST SCRIPTUM – 3
82
O LIVRO DE LÚCIO CONSTANTE
56 POEMAS
83
(1)
Teria de haver aqui
Pelo menos uma folha
Que fizesse a distinção
Entre as letras desta folha
E as outras folhas de então.
(2)
CANÇÃO DO DESTINO
II
84
III
IV
VI
85
Cafés fechando mesas e cadeiras
«White noise» entre os ouvidos somos da noite
Sorriso franco olhar distante cabelos longos
Lembrança ainda de uma noite assim
Lembrança ainda sim de um tempo
Em que a dor tinha um nome.
VII
VIII
86
IX
XI
XII
87
Vendo outras mesas dispostas a seguir
E entre as mesas pessoas a sorrir e a conversar
Novos e velhos velhos e moços gordos e magros
Até à porta lá ao fundo onde entra a luz
E tudo me parece pouco e sem significado
Tudo parece estranho e fictício
Porque por distracção sobre as palavras
Os olhos leram distraídos
O nome por que se chama a minha dor
E volto ao nome e à recordação
Em círculos viajo neste mar meu barco
Já fez um remoinho
E a si próprio se sorveu foi ele
O seu naufrágio
Agora está ali bebendo água
Esperando o dia vendo a manhã
Que se levanta.
XIII
88
E fosse dada a paz aos passarinhos
Para que pudessem voar
E fosse dada a Tristão a sua Isolda
E fosse dado a Julieta o seu Romeu
E fossem dadas a Dom João todas as donzelas
E sem preçário oculto culpa ou arrependimento fossem dadas
Ao homem comum todas as putas
Mesmo que fosse mentira
Mesmo que só fosse.
(3)
LA NÔ AMÔ
1
Lá nô amô será talvez um espaço morto
Um seduzir parado.
2
Lá nô amô não sei que nome nunca dito
Não sei porquê ainda o medo de
O pronunciar.
3
Lá nô amô tanta doçura que eu vou enfim buscar
E bem guardada a paz que só por um momento se retém
Um prólogo que faz de si próprio o fim
Que eu vou finalizar.
4
Lá nô amô eu vou ficar um pouco a serenar
De tantos desvarios que tenho alimentado
De tantas correrias amplas estádios repletos
Tanta louca imaginária inútil o cansaço
Que eu vou descansar.
5
Lá nô amô espero o meu amor e acho que ele vem
E nas suas árvores e calma estou a ver
O que manso se desenha no horizonte do meu ser
E um momento mais da minha história que se vai preencher
E os belos poemas que eu vou escrever e as histórias
Que eu vou inventar.
6
Lá nô amô tantas e tantas vezes ante visto
Sinto que um novo noivo que delira vem
E aquela água beberei sofregamente desta vez
Como antes há muito tempo já bebi
89
E lá cumprindo o que se ajeita bem
Ao dito de que não há duas sem três
Eu vou provar.
7
Lá nô amô espera-me a linha limite do amor
A que separa o que é do que não sendo tem que ser
E como sempre eu vou em equilíbrio caminhar por ela
Já a caminho eu olho os meus sapatos pontiagudos
E a gabardine que esqueci em casa no passado ano
E que já estava velha para continuar a abrigar-me da chuva
Eu lembro que me dava um ar de clochard
Que nunca mais vou ter.
8
Lá nô amô conheço o chão e sei um ninho
Onde jovens namorados se abraçam e beijam
Eu sei árvores enormes e riachos
De rápidos trajectos saltitantes
Cascatas onde a água salpica o corpo todo o ano
Molhando pedras devassando leitos
Pedras onde uma vez sentado eu mergulhei também
Na água meus pés ‘inda inocentes
A baptizar.
9
Lá nô amô o andamento é lento muito lento
E o meu rosto repuxado sente-se lá tranquilo
Todas as fibras se deixam relaxar e os olhos doce olhar
Deixam-se espalhar onde calhar
E o coração deixa-se convencer de que tudo vai acabar
Como num romance dos antigos em que a heroína
Depois de muito sofrer e penar
Por fim o seu herói vai encontrar
E em contrapartida do sofrer e do amar
Iria ser feliz.
10
Lá nô amô ainda me lembro bem
Quando em pequeno eu via fascinado e comovido
As peças de teatro na televisão
Desse tempo me vem esta lembrança
Que me ficou p’ra sempre presa nos ouvidos
E dos ouvidos rápida foi matreira se aninhar
Num abrigo ali de sentimento e nostalgia
E lá ficou poeira acumulando como uma velha mala
Que se esqueceu num sótão cheio de recordações
Dum tempo que se viveu intensamente
E com algum prazer.
90
11
Lá nô amô vida já esqueci que tenha lá vivido
Não me admira a mim que tanto esqueço
De nada me esquecer ou me passar do pensamento
Aquilo que por aqui tenho penando vivido
Mas esqueci o amor e aquela foto favorita
E aquele desenho que eu próprio tracei num jornal
Tão lindo e quase lá porque tem uma árvore
Que é o meu amor sentado a escrevinhar no colo
Ah! Se ele me visse agora assim vestido à linha
Sapatinho de bico calcinha a condizer camisa colarinho
A gravata de seda brilhante e uma jaqueta fora de estação
Ia gostar.
12
Lá nô amô bem perto já eu estou
E vou andando cada vez mais me aproximando
Quando chegar não vai lá estar ninguém à minha espera
E eu vou ficar um pouco olhando em volta
E quando descobrir para onde tenho que ir
Irei andando devagar sem pressa de chegar
Porque onde vou eu vou chegar sempre bem a tempo
E toda a pressa me atrasa ainda mais
E atrasando ou não com pressa ou sem
Eu quero mesmo é ver a hora de chegar
E espero manso mas ansioso por essa hora
Hora que é mágica certeza louca que me tem
Prisioneiro.
13
Lá nô amô sou a ideia natural e a união
Lá bate o meu coração o ritmo das pedras
E entre as pedras o meu sangue
Agita-se ligeiro como se agitam as ervas
E respiro longamente no compasso em que respiram as árvores
E todas as minhas veias se abrem como sulcos
E rasgam-se em mim como os riachos entre as pedras
E todo o meu organismo é uma montanha
E a minha vontade é um vulcão
Ensurdecido dentro da montanha
E o meu amor é a sua chama
Ardendo sempre mais ardentemente
Escondida dentro da montanha do meu ser
Tumultuoso.
14
Lá nô amô a água vai louvando
Enquanto dos pássaros o canto entoa hinos e louva
E até a humidade que nas árvores brilha de manhã
É um louvor do amor que sinto
91
E da dor e da ausência não há choro
Porque são elas as primeiras a louvar
O que tão generosamente lhes dá o existir
Pois que seria do amante sem a dor
O que seria do amor sem a ausência
E que seriam a dor e a ausência sem o amor?
Não seriam coisa alguma ou o que fossem
Nada seria senão um abstracto inexistir
Por isso os hinos se levantam assim como sirenes
Naqueles tons que só a dor tempera
E enlouquece.
15
Lá nô amô quero que tudo esteja bem
Quero que seja o paraíso condenado
E quero muito que a condenação seja paradisíaca
Lá sei que me espera um destino mais outro
Uma meta diferente da que almejo hoje
Lá não se distrai a mente nem o olhar
Nem se prende a nada que não seja o doce recordar
E o refazer de toda a trama urdida devagar
A medo de perder todo o bordado
E mais bordar nó contra nó de encontro ao coração
Esse bordado sublime do amor
Tantas vezes esgotado e repetido
Tantas desanimado e iludido regressando triste
Como que vencido mas por detrás
Da aparência vil e orgulhosa
Vencedor.
16
Lá nô amô distantes estão meus passos
Errantes a errar desatinados
Procurando o que se encontra por acaso
Errando em diatribe de inútil procurar
Somente os olhos pairando desvairados
Dançando inebriados bailando dentro da cabeça
Pousando aqui ali e em nenhum lugar
Como os olhos dos cegos se vissem
Ou como palavras que nunca foram ditas
Bailando como insectos antes de pousar
Partir para outro alvo do olhar
E após olhar não alvejar fugir
Para o vazio do espaço onde se fixa
O olhar de quem quer encontrar o que procura
E lá depois de muito encontra
Em vez de procurar.
92
17
Lá nô amô a página repleta o olhar adia
Porquê dizer que tanto é indizível
Porquê olhar e ainda repetir
Mais uma vez o que o olhar desencontrou
E o que roubou aos olhos uma lágrima
O que ficou lento por dentro do peito bafejando
E naquele momento de cru afastamento
Se deixou escorrer pela face inabalável
E esborratou até ao fundo a carne nua
E sem sal se decompôs em pranto
Porquê ainda aquele azul interrogando
E aquela eterna excitação interrogante
À qual qualquer resposta satisfaz
Tanto quanto pergunta alguma é satisfeita
Porquê viver ainda preso à página
E nas linhas da página esconder
Do próprio peito o mal que se traduz
Pelo amor.
18
Lá nô amô eu vou esquecer enfim
Que todo o homem tem a sua cruz
E aprender enfim que não há cruz
Que seja outra do que o homem é
E lá quero esquecer que sou um homem
Arrastando curvado a sua cruz
E leve ficar como que murmurando
Um dialecto de música inaudível
Toda tocada num compasso impossível
Que só os anjos compreendem e ouvem
E só os loucos em sua fúria santa através dela
Aos céus projectam épica a loucura
Do oito não há seis o doze encurta
P’ra todos os balanços tramitados
Sã sementeira e vã a santidade
Que sejam todos e sempre ainda assim
Mesmo indeléveis infatigados e sãos
Os que se fazem e dizem vãos milagres
Das mãos.
93
(4)
As palavras consomem-se inúteis
Todas armadas da mesma razão
Afinal todas elas são de amor
Todas as páginas só um destino têm
Todas as canções uma só nota são
E nessa nota todas são além da escala em que se tocam
Todas as músicas feitas num só tom
Que é o tom em que se vive e morre uma paixão
E em que se afina e desafina o coração.
(5)
O GORDO
94
Mais uma vez eu tento apaziguar
A imagem do tempo que passou
E reviver agora a hora em que eu fui
Esse não ser que mora na ideia
Que brinca e adivinha e simplesmente intui.
95
De um lado a selva exuberante da paixão
Cresce e vibra respira resfolega e remurulha
Do outro a rendição deserto imenso
Que longo não tem fim o fim é bruma
Entre um e outro eu estou e estando penso.
(6)
O MAR
96
Mar tão longo
Distantes estão os olhos que te viram
Olhos que em mim já foram
Tão lindo ver o lindo mar
97
E a ideia voa na palhinha
E uma vez mais perdoa.
Eu digo coisas e coisas e traz-me o vento
As coisas que eu que sem saber o quê
Digo como que só por obrigação
As vozes que ouço a falar baixo
E as que baixinho ao longe eu ouço a falar alto
Ressalto sobre um dedo o que lhes sinto
E delas deixo o som preso no ar
Eu só quero um canto onde me amalhe
E um coração batendo devagar
E esse coração que sentir vibrando
E nunca batendo depressa demais
Eu quero as vozes dos homens e o riso
Das mulheres eu quero que sorriam
E tristes desfaçam suas tranças
Em danças de amor já esquecidas
E nas esquinas encostadas raparigas
Que por barato mostrem as coxas
E nas praias o Sol e a gente nua
Que ria brincando na areia
E no mar as ondas pequeninas
Uma e outra se desfaçam bem
E devagar como que sorrindo
Dancem também.
(7)
Árvores gigantes e lenta vida
O dia e a noite são para elas
Como uma só respiração
E longa a sua vida vai
Respirando inspiração após expiração
As noites e os dias longos de uma vida
Gigantes mansos batidos pelo Sol
Areia plana serve-lhes de chão.
98
Que se dilata e estende
O que vale esse olhar longo e breve
Se o meu amor está ausente.
(8)
Quem é esta figura que figura nos arquétipos
Quem é esta sombra ensombrando a paisagem
Que silhueta é esta que resta do antes
Duma outra era quimera de estudantes.
99
Quem sou eu silhueta escura pictórica
Sou o aventureiro banhado em vento
E tu miragem do meu sonho
Dor de cabeça ventania em minha vida
Morte súbita do meu crescer doirado
Quem és tu mistério desumano?
Tu és a aventura
– a aventura humana.
(9)
Vejo-te na estrada tremeluzir
Vens de vestido manga descai
Vejo-te encoberta és só um ai!
Doida na letra vens ainda.
(10)
Deixo-te lânguida no leito
Adormecendo ainda na manhã
Pousada a mão tangendo o peito
O corpo envolvido em fofa lã.
100
(11)
No mar das ilusões perdi o meu amor
No mar tenebro eu o achei
Fantasmas levaram o meu amor
E agora dele já não sei.
E do meu amor
Já nem sei.
(12)
Meu amor distante já
Lembrou-me assim de repente
Talvez por pensar em mim
Talvez por nada sei lá.
(13)
Moça da saia amarela
E chapeleta na mão
O vento na saia dela
E a erva no chão.
101
Cavalos comendo a erva
E para lá pasto e mata
Tudo envolto se conserva
Numa bruma numa nata.
(14)
Já passou metade desta tempestade
E o navio partiu os mastros pelo meio
E na verdade mais parece que morreu
Mas continua neste mar a flutuar.
102
(15)
Os sonhos todos sonhados
Escondidos e amordaçados
Roubados à noite são
E com desgosto deixados
Pela noite arrebatados
Ficam só recordação.
Os sonhos de madrugada
Por uma mão bem mandada
Parecem ser recolhidos
E aquela imagem sonhada
Fica p’ra sempre guardada
Nos pensamentos esquecidos.
Antigamente pensava
Que tudo o que se sonhava
Um dia aconteceria
E do sonho procurava
Saber se significava
Aquilo que acontecia.
(16)
Aquilo que eu quero dizer
Já toda a gente sabe
Mesmo assim eu vou dizendo
Mesmo sabendo bem
Que toda a gente sabe
E que valor tem o que eu digo
Se toda a gente sabe?
Não importa o valor que também eu apenas valho
O que toda a gente sabe
E como eu não valho sequer tudo o que sei
E que toda a gente sabe
Bem me espanta da gente que sabendo
Parece que não sabe.
103
Talvez um dia
Quanto se pode esperar
Um dia
Que talvez venha ou não
Talvez um dia então
Se venha dizer uma nova ideia
Que valha a pena ou não
O que é que vale
Que valor tem… uma ideia?
Comparada com uma realidade
Não vale nada
Ou talvez tenha o valor de não valer nada
E o que será ser uma ideia?
Não é nada
Ou talvez seja essa confusa população do nada
Povo do nada carne e sangue
Do nada
Do nada então que é a ideia
Que é a função entre o ar e o halo
Do hálito e da imagem que o tributa
Da força e da ideia… a própria ideia
Que de si próprio se constata o nada.
Faço-me vivo
E a ideia é quem me mortifica.
(17)
O poeta caminha só os pés descalços
Cansados doloridos resvalando nos calhaus
Caminha e vai vivendo o seu nigredo.
104
A queda o espreita e tarda aquela interminável hora
Em que caído o tem a treva aprisionado
No ar asas de luz o seu cavalo ainda dança.
(18)
Ah! meu doce amor fossem os raios do Sol que de manhã indicam que vai nascer o dia
Tingindo a cores o céu a estabelecer a aurora em toda a terra da campina
E tu meu doce amor fosses a bruma que acinzentando o verde torna as ervas luz
E mansa espera o Sol que chegará em breve e bem suavemente beijará os montes
Lento se abrindo atrás do horizonte para sem rasgo vir tanger as copas
Das árvores que respiram ‘inda em sono o teu sabor ainda húmido de bruma
Ténue e branca branca e mágica para vibrar nos olhos ardendo sequiosos de uma
[madrugada
Se eu fosse um raio de Sol e tu a bruma da manhã raiava o dia em metade do mundo.
Ah! Meu doce amor se tu fosses uma nuvem como um dia quis que fosses
Eu queria ser apenas outra nuvem relampejando em ti
Se fosses chuva eu queria ser o chão que te retém
E ensopado se desdobra em múltiplas e tenras germinações.
Ah! Amor grande demais se tu fosses a terra eu queria ser o rio correndo sobre a terra
[até ao mar
Se o meu amor tão longo fosse um barco eu queria meu amor que tu fosses as ondas
E que no mastro grande desse barco solta flâmula te chamasse do balançar sem fim em
[que te agitas
A cor do pavilhão bailando em ti te retivesse o ritmo e fizesse em espuma todo o mar
Suspenso o barco como se a viagem fosse do barco para as ondas como um eterno beijo.
(19)
O PASSARINHO MORTO
Ave una canta e brilha além muito além canta ela una e vária
Um canto doce como uma doce voz que canta o seu estribilho
E repetidas vezes o canto dessa ave que muito alto voa
Vem até mim como uma nuvem que dissipa a bruma e a clareia
Magicamente a humidade leve e branda soa como uma asa
Levando-me a voar no dentro do seu voo.
Foi a ave além na sua asa indo e voltou e volteou no ar e quando viu
O chão a rebrilhar as ervas e a água em pequeninas gotas e as margaridas
E as violetas todas no chão esvaídas como um véu que quando o Sol nasceu
Se viu ali plantado entre a verdura a calma mansa das ervas
105
Atrás do véu o Sol desceu atrás da terra se escondeu e noite veio atrás do sol o céu
Também se escureceu
E fria a noite no seu beijo atroz tangeu e aquela luz que havia
Na pétala da flor se protegeu e sobre si própria se apertou como um abraço quente
Que o frio da noite com o seu grande manto enfim fez seu
E o Sol nasceu
Brilhou bateu no chão queimou rodou e atrás da nova noite se escondeu
Anoiteceu
Mansa e cansada a ave adormeceu.
(20)
O CAOS SINTÉTICO primeira página:
106
A dor é ter a alma escrava
A dor é ser um corpo e estar de fora
A dor é não querer sofrer
Sem uma explicação
Porque o que quer o sofrimento
Não o tem
E o que não quer ele o desfaz
A dor é não sentir
Ou é sentir demais.
segunda página:
107
A roda manca move-se
E o mesmo ser se espanta ainda e redescobre
Uma vez mais ainda a técnica
Vamos jogar.
terceira página:
108
fora da página:
(21)
EU VI O OLHO… NA MANHÃZINHA
109
Vi o pescoço do rapaz entre os seus ombros
E a cabeça
Mas desviei o olhar e uma vez mais
Eu vi as nuvens no Outono desenhando longes.
Como outro que cantou antes de mim
Eu vi um passarinho
E quis que ele poisasse sobre mim
E não é querer dramatizar com isso
Mas a verdade do que se passou
É que o passarinho que eu vi morreu
E já agora então
Eu vi o passarinho morto
Que um raio de Sol esculpiu em porcelana
E um outro raio pintou de cores
Como se fosse ainda esse
Um passarinho vivo
Eu vi-o numa loja e lentamente
Fui-me perdendo nele
E amorosamente um dia fui comprá-lo
De lindas cores o passarinho
Estava contudo morto
Cabeça para trás asa caída
Passou a fazer parte da minha colecção
Eu vi os olhos cintilando de encontro às tentações
Promessas de vontades irrealizáveis
Apenas um pequeno gesto e uma grande escolha
Definitiva e lúcida mas enganosa e triste
Eu vi o Sol amarelecendo alaranjado
Um disco inerte e opaco flamejando
E os atletas cavalgando espaços
Cortinas ocas e altas cavalgando o ar
Eu vi a Espanha raiar na aurora como uma estrela
E vi a estrela da manhã desaparecer
Senti na nuca de volta ao vale o Sol picar-me
Sol do meio-dia junto de um ribeiro
Ribeiro seco suor do Estio estalando as ervas
Pudera eu imagens inventar todas as que visse
Fazer do céu a tela do pintor.
110
(22)
O ALBATROZ
111
O pássaro do bico encarnado é outro género
Não sei se é um periquito se é um papagaio
Se é um rouxinol se é um tucano ou um albatroz
Talvez seja um albatroz que é um pássaro bonito
Um pássaro literário e importante
E tem um bico encarnado
Talvez seja mesmo um albatroz
Mas para albatroz parece-me pequeno
Embora o bico seja bastante grande e encarnado
O Sol está quente e o pombo ainda não conseguiu voar
É um ídolo que se tem nas mãos
Mãos de criança que se contêm nas penas fofas
Do pássaro sem destino que as guia
Como um estandarte na procissão
…
O outro …o do bico encarnado ali está
Sem compreender o que está ali a fazer
E o pombo finalmente voou
Pouco voou mas voou e agora já voa
O outro não voa porque é um pássaro pintado
E por ser pintado tem um belo bico encarnado.
(23)
Grito contido o cão castanho o olho morto em vão a fé
Tirada de mil dedos de esperança que um dia anoiteceu
Tem sua rima o ar que pulsa e não se ausenta e mexe
Também a dor tem sua dor e ela é viva
Qual é o dia em que cinzento o ar se torna chumbo
E sendo assim o que questão se põe e vale a pena
Se vale a pena porque pena assim quem tem
O bem de saber ser o véu para alem do véu
Deus que perdura e jaz envolto em carne
Véus de ironia que se atiram tiras de vale
Vãs perspectivas omissas nunca mais paisagens
Leões doirados onde aninhados destino além
Ruído surdo sonha em segredo aberta a boca.
(24)
Como vou eu dizer um ditirambo
Destes filhos de Deus que para mim são essa espuma
Espuma suja nata sobra a rama
Todos consagrados no seu tempo de flutuação
Meus irmãos todos filhos do Pai
Eles encantam com seu lume
A poeira seca que esvoaça em mim
E o meu coração é neles que se poisa
Quando a verdade que pressinto neles toca
Não porque a possuam não que a tenham
Mas porque a ouviram dizer
A tia tal que tem não se sabe quantos anos
112
O António poeta que tem mais dez
E ela dizia quê e ela que sim
E ela também que sim e que mais.
113
A noite é mãe do que o dia afoga
A luz que vibra nas coisas todas que existem
E tudo na noite se transforma e sendo dia
Morre o que a noite carinho maternal acariciou
E tão assim o dia se impõe com o seu Sol
Lindo astro de cores variadas
Já no ar se agitam todas as finuras
Rendilhados se esfumam lindos no céu
E uma esperança espera ainda que no dia
Exista o sonho que dócil se retira
Na pira se esmorece na areia frente à noite
Que lenta lenta lentamente roda de oriente
Para ocidente.
E o dia nasce lindo com as suas cores habituais
E o Sol subindo faz das cores outras cores e o céu azul
Aquece o corpo e sua a noite suor amargo
E o dia vê que claro o dia é já meio
E passa como um rio.
(25)
Cá estou eu outra vez compondo os laços
Do meu desarranjado fato de poeta
Desarranjado fado aqui sentado
Numa mesa lateral de um café do passado.
114
Esquecida em brilhos que ficaram baços
Ela esqueceu os traços delicados do poeta
A juventude doida endoideceu e agora
Nessa cidade essa poesia já não mora.
(26)
O cansaço vem com a noite ser
O fim do dia ainda se vislumbra
Há que morrer um dia como um dia
A acabar-se por não haver mais luz.
(27)
Um raio de sol passa através
Do espaço mole que enrijeceu
Tornou-se opaca a trama no céu
E uma brisa chã me beija os pés.
115
Aqui vou vendo resumir-se o ar
Em coisas que se dissimulam
À minha volta se enrodilham
A minha avó ainda cava morta.
(28)
A mar enleva o destino
Na primeira onda vaga
Rasga a tralha
Faz miséria e agasalha
O inferno saturnino
Estraga estralha e almareia
Olhar o longe
Quem roga ao ar o sal
Vê que ser monge
Não dá trabalho.
Outros propósitos
Seriam próprios
Encher depósitos
De rasgos óbvios.
Obumbramentos
Desses momentos em que o dia
Faz de si próprio
Quando se esconde
O fim.
(29)
Esperança é a espera que prolonga
O momento que antecede a despedida
E aguarda ansioso a hora longa
Que passa devagar por sobre a vida
E no fim dessa espera é que fica
A esperança que fugaz se manteve
Finalmente na dor se gratifica
Alongando a hora que ferve.
(30)
Ervinhas daninhas fáceis de escolher
Florezitas finas fáceis de colher
Relvinha virgem meu corpo em ti se deita
E se adormece na cama que se ajeita
116
Afoita a erva cresce-lhe nas faces
E em volta do seu corpo forma enlaces
Como flores os olhos sonham abertos
E brilham como pétalas despertos
De flores banhadas pelo orvalho.
(31)
Ai caderninho caderninho
Ai caderninho meu
Deixo-te assim por acabar
E ao pegar-te depois
Dás-me lições de pasmar
Ensinas-me como é falso
O que se sente no quente
Forno aceso das paixões
E falso quanto se escreve
Quando sob as emoções
O coração se ornamenta
Com sentimentos totais
Radicais e fatais
Como o destino…
(32)
Como se diz que vai acontecer
O que não se sabe se vai
Também acontece suceder
Algo que nunca se esperou
E a surpresa do que se espantou
Leva a supor que se esperava ser
Outra coisa o que aconteceria
Se antes o tempo a pudesse surpreender.
117
Tudo igualmente se perde e reproduz
E se mantém atento o movimento
Apenas essa coisa eterna nos conduz
E parece imutável e grande
Nada que a regule ou que a abrande
Aproxima-se de nós procurando-nos
Mostrando como o Sol nos dá sustento
E generosa nos oferecendo luz.
(33)
Um homem vê a luz na vida
E pensa que é uma dádiva
Conquista a vida numa luta
E é na morte que se congratula.
(34)
A dor se mancha e deixa-se aviltar
E o ser se deixa dócil inspirar
E longe ruge quem se deixa ver
Por quem portanto o vê desaparecer
É engraçada esta mandinga
A fonte de onde a poesia pinga
E quando jorra em formas se elabora
Sem nunca se notar onde ela mora
E no entanto é tanto o seu poder
Que por um poema se pode morrer.
(35)
Quantas coisinhas pequenininhas se alinham nessa linha
Umas atrás das outras todas direitinhas
As crianças riem dessas coisas lindas
E parecem no céu mais as estrelinhas
Minhas coisinhas coitadinhas todas seguidas
Seguidas todas como criancinhas educadinhas
Cantando indo para a escola dando as mãozinhas.
118
Situa no limite o teu olhar deixa vogar
O ser no que o olhar se quer fazer acreditar
E no distar entre o olhar e o seu limite
Encontra o entre encontra o entre encontra o entre.
(36)
A tempestade arroja à terra o cepo
E na malha o bicho se afastou
O olhar meigo já se desviou
E de se usar assim se tornou crespo
E no cabelo o vento transplantou
Alguma imagem que desapareceu
Alguém que desligou e se perdeu
No rumo de difícil continuar.
(37)
As horas difíceis passam lentas
Agora estáticas dançam mortas
E passam mortas preenchendo o tempo
Transforma-se trágica a hora que lenta
Transfigura a face que transida se ausenta.
(38)
Caras e coisas ao longe
Parecem outras parecidas
Das ilusões e das dores
Há as que desiludidas
Vão em mãos vão em mãos.
Enlouquecidas e frouxas
Eu imagino as pessoas
Roucas e dorminhocas
Andando à toa.
119
(39)
Humanamente de acordo
Abanamos a cabeça
Dizemos que sim que sim
Que não que não não senhor
Mas que é mesmo é evidente
As nossas feições chocalham
E somos humanos bons
Estamos de acordo e felizes
Esperamos o dia de amanhã.
(40)
Dificilmente eu posso compreender
Como se pode a beleza confundir
Num esgar de ridículo e afrouxar
A coesão do belo que se fez
Adiante se desfaz todo o contorno
E se contorna de novo o horizonte
Ali nesse recorte é que se acha
A lágrima que vem redimir
Belos contornos se acham nas montanhas
E outros se perdem no céu
A imagem se distingue na face
E a sombra desenha a imagem
A mensagem torna iguais as faces
O ébrio e o sábio têm o mesmo olhar.
(41)
Como contar essa prisão onde livremente tenho de morar
Donde em delírio me liberto por momentos
Que imposição tão sem finalidade eu me atirei
A desbravar e me impus na frente da palavra
Uma ideia que encoberta se oculta.
(42)
No ar imagem sobre imagem se dilui
Confunde-se a visão
Lá em baixo uma nuvem de poeira
Se levantou e paira ainda agora
Ora baixando ora se levantando
Sempre junto ao chão
Da imagem a paisagem não existe
Existe apenas a imagem
Tudo isto são imagens sucessivas
Fotografias ou pinturas exibidas
Como num álbum de coisas impossíveis
Em imagens sobre imagens se propaga e continua
Por debaixo de uma outra figura
E a figura de uma outra que não figura lá
E subtil se reformula das outras.
120
(43)
Desde o dia em que eu tão triste
Esperava por ti ali
Naquela estação iluminada
Tantas coisas pensei e escrevi
Coisas que não são nada
Há bem de que o tempo passa
E nada se consolida
Antes tudo se dilui e se trespassa
Confundindo-se na vida.
(44)
É verdade que um dia tive a esperança
Enchendo-me a alma por inteiro
E deixei-a pelos bancos dos jardins
Pelos degraus das escadarias das igrejas
Por aí numa fértil sementeira
Da qual germinaram numerosas flores.
(45)
Àquilo que falta um fim
Uma voz se precipita
Não se resolve se assim
Os desejos à compita
Formam no céu um carmim
Inconfundível carmim
Os pés em pontas palpita
O coração no palamquim.
121
(46)
No coração do bom mora o mau
Como um criminoso numa prisão
No coração do mau mora o bom
Como uma criança órfã.
(47)
Quando observo bem parece-me que a vida
Se compõe de poucas coisas diferentes
As situações repetem-se incessantes
Iguais umas às outras enquanto colorida
A vida vai somando as situações
Quase ninguém repara nas repetições
Ou então não lhes dá a importância devida
Enquanto a vida ao passar torna em sinais
Os acontecimentos mais banais.
(48)
Quando eu era pequeno
Tudo parecia bem feito
Eu era muito pequeno
E tudo muito bem feito
Mas certas coisas porém
Já me pereciam diferentes
Umas das outras diferentes
Mesmo que fossem bem feitas
Não suportava a diferença
Eram diferentes – doía
Irritava-me com isso
Eu era muito pequeno
Coitado de mim não sei
Fazia tudo bem feito
E agora que já sei
Distinguir melhor as coisas
Poucas são as que parecem
Ao meu pequeno juízo
Feitas como deve ser
Já não me dói a diferença
Doem-me as coisas em si
E vê-las faz-me lembrar
As outras que eu então via
Não me lembro como as via
Mas a vida é mesmo assim
Vemos as coisas bem feitas
Até esquecê-las um dia.
122
(49)
Contaram-me uma vez uma estória
Sobre os braços peludos de Esaú
Da estória já não me lembro
Nem sequer quem ma contou
Quem ma contou talvez me lembre
Mas a estória mesmo bela estória
Essa já esqueci.
(50)
O árabe tem panos que o cobrem totalmente
E totalmente ausente ele olha
Profundamente o ar aquecido
Ele penetra o ar como um amante lento
Fazendo amor assediado entorpecido
As moscas rondam o árabe
As moscas pousam no árabe
Ele não afasta as moscas
Permanece à sombra olhando o espaço
Fumando compassadamente o seu cachimbo
Chamado também o narguillé.
123
(51)
O EMPREGADO DE MESA
Os comes e os bebes
Os fumos e os tótius
Que se ingerem que se inalam
Que se morfam e se deglutem
Os copázios e os acepipes
Os cigarrinhos que se fumam
Tudo o que se ingurgita e consome
Tudo o que entra em nós pela boca
Nos é dado
Mesmo quando pagamos
Mesmo quando não temos dinheiro
Para pagar nos é dado
Pela boca e o fazemos
Parte de nós.
E os inefáveis seres
Que no-lo dão
São homens e mulheres
Geralmente homens que se entregam
À sua profissão
Ao pé de quem os sacerdotes
São só imitação
(52)
A jovem gingando dando a anca a um e ao outro lado
Lembrando distante a sua terra tropical
Vassourando parou vai almoçar gingando
Morena foi gingando andando levou nas mãos
A vassoura
Mas não se nota neste chão
Não se repara
Que tenha sido
Varrido
Talvez ela só tenha na vassoura
Se apoiado
E tenha só gingado.
124
Mais lentamente como quem sabe
Fazer render
O sacrifício
Pausadamente indo almoçar
Alfaias dentro do carrinho
Atrás dos jovens jardineiros
Que deixam o jardim.
(53)
Linhas e linhas arranjo
Na esperança de ver louvado
O que dentro de mim tanjo
E pouco vejo arranjado.
125
Agora estou aqui só
E tu de mim estás ausente
Sinto saudades do Sol
Que me deixa dormente
Sinto saudades do beijo
Que eu prolongo e desejo
E por fim se desvanece.
(54)
Ficou o absurdo das repetições
Em que tentei guardar outro momento
E nestes momentos que se seguem
Vou ainda sentir o que senti
E sentindo vou esgotando o ser
No que houver a lembrar e a sentir
E recordando vou esgotando esse lembrar
Que já se definiu por perdição.
(55)
Porque todas as coisas são iguais
Para um que não as sabe distinguir
Encontrarei o espinho da roseira
De uma só e única maneira
Que já há muito está delineada
Confusamente embaraçada como uma linha lassa
Que sobretudo importa não partir.
126
(56)
Fica na sombra o verdadeiro Sol
Enquanto o dia brilha o Sol ardente
Só leva ali tão loucamente a mente
Aonde só a mente leve bole.
127
O LIVRO DE VERA LÚCIA
com Prefácio e alguns poemas de
Joaquim Morgado
42 POEMAS
128
nunca estive numa só linha a tão vertiginosa altura,
oh Anjo Príapo, oh Nossa Senhora Côna!
quando nos vimos nus um em frente ao outro,
em nossa primeira noite nos começos do mundo
numa pensão rasca de um bairro de quinta ordem,
o putedo sai que entra pelos quartos em volta
– peço por isso que um qualquer erro de ortografia ou sentido
seja um grão de sal aberto na boca do bom leitor impuro.
Herberto Helder
129
Prefácio:
(1)
DIZES QUE ME AMAS
1.
Dizes que me amas
E espalhas rosas de ouro
Nas asas do caminho
Rectilíneo imaginário a caminho
De uma ilusão perdida em Pontevedra
Algures da Espanha vem o Sol…
vem o Oriente.
130
De verdade eu nunca estive em Pontevedra
É um lugar imaginário
É um sítio amado dentro
Dentro do corpo mole
Do corpo que lascivo molha de desejo
Dentro das tripas e das pregas
Mais dentro ainda…
dentro
Dentro do escuro
Onde a distância tem o seu lugar
O lugar lídimo e distante
Onde se encontra o bater do coração
Não o coração – o seu bater
O lugar escuro
Tão grande como a distância e tão profundo
Longínquo que possa ser o longe
Distante como tudo o que os olhos podem alcançar
Quando vêem
Toda a curva da Terra que se estende
Para onde os olhos não alcançam
A curva que contínua continua
A vida nua
Que se insinua
Na tua boca quando dizes que me amas.
2.
Dizes que me amas
Talvez seja mentira
Quantas vezes
Se dirigem às fêmeas galanteios
Às vezes verdadeiros
Outras menos
Que um motivo inocente de ter ritmo
Ou de um riso
Perdido a declatar no ar do colectivo
Às vezes pelo preço assedutivo de um sorriso
Ter-me-ão dito em vão que acreditasse
Por um momento
Ou num momento de grandeza
Acreditasse – para toda a vida
Nessa verdade enorme
Que existe em todos os momentos
Ainda que cada um desses momentos seja
«Cheio de inferno e céu»
Como um poeta disse um dia…
na Bahia
131
Ou num qualquer lugar diria
Por ser aquele outro momento ou dia
Grande demais para conter
No espaço de um lugar
No tempo de um momento
Essa verdade enorme.
132
Meu deus afinal eu amo tanto
E tão intensamente
Nunca sei dizer o quanto amo
Nem isso é importante
O importante é ser volátil e fugaz
E acreditar
Mesmo na fímbria do tempo
Que a luz é doce.
3.
Agora vem o desgosto e o não ser
Vem o choro
A lágrima guardada para ti
Há muito tempo…
vendo bem não há o tempo
Tu não tens tempo
Tu és maior que o tempo
Todo este tempo
Não é senão
O tempo que levou a aprender
A penetrar o mundo e a saber
Esperar por ti.
Saberei eu um dia
Cantar a verdadeira sina
Cantar com dor e lírios
A cor e o som
O número e a medida
A dor de responder…
– Já vou
Com força e convicção
Como quem canta
Na sua voz roufenha
133
Como uma lira
Como uma grafonola
E com a tacha arreganhada no estafermo
Mas se condói
Por arreganho e fim…
em holocausto
Do seu mistério a canção
Que se nomeia bem quando se diz
A quem o sabe entender
E o ouve…
e o sente
Como se do seu próprio peito se tratasse
No coração
Bater o ocaso da vida
O banho de jamais
O nunca mais
Que se traduz na última palavra que se ouviu
Dizer ao mesmo ouvido que sentiu
O fim anunciado desse amor
Canção como que do destino
Que se anunciou
Sem mesmo acreditar que se encontrou
Por fim aquela flor amarga
Por quem intensa e amorosamente sempre se procurou.
4.
Afinal todos nos encontramos
Na mesma estupidez impenitente
Nas maiores incongruências
Nas monomanias
Nos malentendidos
E nós caímos na real
No quente…
hum!!…
no seco
No mais quente…
no frio…
no tépido
No intrépido
No incrível
No que não dá para acreditar
É mentira de certeza
No cinco afinal todos nos encontramos.
5.
Todas as coisas alguém disse têm ânsia
De toda a pressa que temos de saber
De toda a vertigem que nos dá morrer
Essa última gota que nos dá de beber
O cálice da vida.
134
A dor se faz vibrar como uma cor
Que ninguém de entre nós pode dizer
Mas todos a sabemos bem
E cremos…
e amamos.
6.
Na universal diversidade das pessoas
São como sempre
Umas difíceis outras fáceis
Umas dizem facilmente…
– Eu amo
Outras mais fáceis mais difíceis
Dizem às vezes que não amam…
– Não te amo
Coisa pavorosa e sinistra de dizer
Quando se diz
E que se diz
Pavorosa e sinistramente
Quase banal e sobranceiramente
135
Diz-se banal com toda a força e superficialidade
Se diz…
– Não te amo… não te amo
Mas a maior parte das vezes é mentira.
7.
O amor é por natureza
Uma ânsia absoluta de irrealizável
Mesmo quando tudo parece
E mesmo consegue chegar a estar…
bem
O amor é o que nunca chega
O que quer sempre mais
É o que tudo resolve e apazigua
Mas nunca chega
Nunca pára
Nunca se detém
Tem um dia lindo em que começa
E nunca acaba.
(2)
PROCUREI-TE NAS MONTANHAS
136
E até nas manhãs impossíveis te entrevi
Talvez insinuando falsas aparências
Entre as arquitecturas desusadas dos cafés
Mas mesmo aí sempre te afugentei
Com a minha arrogância
E a minha desconfiança intolerável.
(3)
POR TODOS OS QUINTAIS
Os passarinhos
Ficam nas divisórias
Põem-se a debicar na expectativa
Esquadrinham os quintais
E aventuram-se
No escuro dos saguões
À procura de migalhas
Que as pessoas deitam fora
Pela janela.
137
(4)
SE OS MONSTROS FOSSEM VISÍVEIS
(5)
DEVERIA EU TER-ME ATRASADO
138
Eu por mim esperaria ali toda a vida
Toda a vida e mais seis meses
Eu esperaria ali
Ou aqui
Neste lugar para tantos insuportável e lúgubre
Não para mim
De quem o coração
Já tantas vezes espezinhado
Pelo clamor que o ar estremece quando passas
Tantas vezes rasgado e tantas mais
Despedaçado em mantrams
De ilusão que a vida não cumpriu
E fantasias que a ilusão deixou por colorir
Eu esperaria
Aqui ou lá no episódico e fugaz
Pressentimento de ser lugar algum.
(6)
TER-TE-EI EU VISTO AS ASAS?
139
Desencontrados nos marasmos de um olhar nublado
Teria eu chegado a ver
Através da escuridão daquele turbilhão
Que é a visão de um coração cego?
(7)
COMO UMA TÉNUE CONFISSÃO DE TRESLOUCADAS
140
Confessio:
(8)
Passo lento
Do sonho a viagem
Na fímbria do tempo
Da margem.
Longa espera
Faz muito tempo
Que a manhã bela
Se faz esperar.
Volta depressa
Para o meu peito
Pousa com jeito
No meu coração.
Alma pura
Cândida flôr
Sem estrutura
Ou cor.
Obra sempre
Inacabada
Retemperada
Na solidão.
Contas ao vento
Do meu rosário
Sem polimento
E cruz ao contrário.
Folhas d’ erva
Estrada comprida
Larga e aberta
Na vida.
141
Livro aberto
Mensagem rara
Branco e desperto
E ideia clara.
Traça-me a rota
Beija-me a flôr
Do meu perfeito
Amigo e amor.
Livro da vida
Lido com calma
Calha-me a forma
Do corpo e da alma.
(9)
O meu amado me espreita
Numa janela me olha
E a cada olhar que me deita
Naquela janela estreita
Todo o regaço me molha
Deixa-me nua
Como uma folha
Que a sua paixão escorreita
Transforma em água e mergulha.
142
Doce mas crespo como um lamento
Rasgado e ferido
Suado e tido
Portal doirado bem prometido
Fim respigado e fugaz intento
De um solitário caminhamento.
(10)
Meu namorado vem brando
Me aconselhando
E quando vem assim e me aconselha
Minha alma que se agita fica calma
E se ajoelha
E chora um choro de prazer todo ao contrário
De sentir
As rezas que produz no meu rosário.
(11)
Eu digo sim mal mereço
A dor que por mim resvala
Ai meu senhor meu deus que eu enlouqueço
Ele é a luz e o ar
Que me inebria e resvala
Pelo que resta de mim
Ele é a luz desta sala
E se me toca na corda
Do meu amor verdadeiro
Fico pensando e cruendo
Chorando por um momento
Por sentindo
Querendo
E dando
Me vejo apertada entre os seus laços
Atenta e louca
Me desespero
Me sinto rouca
Aguardando o momento em que serei
Inteira e sua por inteiro.
143
(12)
Se essa estrela que azul brilha no azul do céu
Que à noite negro é
Se essa minha estrela azul me pertencesse
Eu dava.
144
SONETOS DE VERA LÚCIA
II
145
III
IV
146
V
VI
147
VII
VIII
148
IX
149
XI
XII
150
XIII
XIV
151
XV
XVI
152
XVII
XVIII
153
XIX
XX
154
XXI
XXII
155
XXIII
XXIV
156
XXV
XXVI
157
XXVII
XXVIII
158
XXIX
E na verdade singela
Dessa paixão sem medida
Ser das putas a mais bela.
XXX
159
CANÇÕES INTACTAS
50 POEMAS
160
(1)
AOS PATRIARCAS:
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente
(2)
Talvez a minha dor seja diferente
Mas eu prefiro que não
No meu teatro vazio
A dor é a de toda a gente
É a dor normal
Que toda a gente sente
E essa dor é igual
À dor que sente quem sente
E quem não sente.
161
(3)
AS CANÇÕES
(4)
A CHAVALITA
162
Aberto o pano já quase no fim
Olhos ansiosos
Os carros da bófia tinòninòni
Muito tenebrosos
E ali ficou o pai da humanidade
No chão sangrando lento
E nos outros cantos da cidade
Nada de novo até ao momento.
(5)
A UM CHARRINHO
No ar forma um labirinto
Que é às vezes o que sinto
Quando em que pensar não sei.
(6)
A ESTRELA, A ROSA, A LUA E UMA OUTRA FLÔR
163
Ah se essa flor sem cheiro ou cor
Seu nome eu pudesse dizer
Eu procurava por ela num jardim
Eu roubava-a e trazia-a junto a mim
Para te dar.
(7)
ESTRELA DOIDA
(8)
FLÔR D’AMENDOEIRA
164
Ouço o som do mar
Aves canoras no arabal
Chama por mim o Sol
E eu quero ir.
(9)
AS SEIS GARÇAS
(10)
OS MOÇOS
165
(11)
MAS P’RA QUÊ SOFRER O SOFRIMENTO
(12)
A PRINCESA DA CHINA
(13)
SE HOUVESSE UM MAPA
Se houvesse um mapa
Para poder percorrer a existência
Como quem vai
De automóvel pela estrada
Numas férias
Já há muito planeadas
166
Pelas estradas
A percorrer a Espanha.
Se houvesse um mapa
Para poder desenhar as emoções
Montes e vales
Todas as sinas alegrias depressões
Como num mapa
Todas as curvas da estrada
Planeada
Ao pormenor.
Se houvesse um mapa
Onde marcada a tracejado e lado a lado
Com o traçado
A auto-estrada do amor
Era mais certo
Eu me perder no emaranhado
Trajecto e fim em que por fim
Eu me perdi
P’ra te encontrar.
(14)
AMOR E DOR
167
(15)
O MAIOR AMOR DO MUNDO
(16)
QUANDO EU CASAR (a uma garota que afirmou «quando eu casar há-de ser com um
poeta»)
Fosse eu poeta
Compunha-te uma ode
Chorava-te um poema
Onde quem rir não pode
Sorrir da sombra que se estende algures no mundo
E brilha
Algures no fundo escuro
Algures no fundo azul
Da gema
Fosse eu poeta
Escrevia-te um poema
Onde eu ardesse como o fogo quando arde numa pira
E onde gentil e amorosamente
Se desfaz
De ser o não ser e não ser nada que possa ser
Mentira
Fosse eu poeta
Comprava-te uma lira.
168
(17)
SOBRE UM MOTE (de Jacinto Palma Dias)
(18)
OUTRAS VEZES
169
E cantando essa canção
Por fim sinto voltar a esperança
D’que um dia tu me tragas
No brilhho desse olhar
O rir de uma criança.
................................................................................................ variante:
170
E vejo o lugar onde
A tua lua dança.
(19)
CANÇÃO DO SEDUTOR FIEL
Apesar da tentação
Do seduzente torpor
Que derrama do olhar
De um antigo sedutor
…que
Tendo nas mãos ‘inda quente
O coração do esplendor
Exaltando incandescente
A sanha do predador
Que apesar de manso e ferido
Mas preferindo ser fiel
Mesmo sentindo o rancor
De um animal ofendido
Deixei de barato a dor
Porque se fosse cruel
E de ondulante punhal
Matasse o meu grande amor
No momento em que sangrando
A adaga trespassasse
Aqueles dois corações
E o assassino enlaçasse
A chispa dos seus trovões
Eu já teria ter morrido.
(20)
CORAÇÃO NA LATA
171
Já duende e druida se afastavam rindo
Do saltitiritar de um Saci Pererê
(21)
SENTIMENTAL
(22)
ROSA DELS VENTS
172
(23)
CANÇÃO DA MEIA-IDADE
(24)
LUA CHEIA
173
Fica nua preguiçosa
Deslumbrante e maravilhosa
Como uma deusa
Sensualizada
Quer brincadeira ritualizada
E eu me desfaço eterno e imenso
…só de vê-la.
(25)
O MEU FADO (ou o «Fado da brasileira»)
Eu te amo tanto
Tanto… tanto.
(26)
SONHO
174
Me visses vir chegando e me abraçasses
Em sonhos tuas pernas terna abrindo
E então tão fortemente me apertasses
(27)
FADO DO ALQUIMISTA
(28)
SONETOS (fado do Vinicius)
175
(29)
DESPEDIDA
(30)
É TRISTE SER-SE CRESCIDO
Já não há lamentação
Que possa dizer o quanto
Essas saudades do Verão
Se transformaram em pranto
Secaram de chorar tanto
O coração.
176
Pobre coração cantante
Que noutros tempos cantou
Era imparmente arrogante
Era às vezes diletante
E até amou.
(31)
FADO DA GALINHA
(32)
CRIME E CASTIGO
177
A podridão do mundo já me enjoa
Não quero parte nessa fidalguia
Só quero uma mulher bonita e boa
Que me exorcize as marcas do prazer
Do carro aonde eu vou já nada importa
Só quero repetir que amei e amo.
(33)
FADO DA ROTINA
Os delírios da saudade
Têm voz mas não tem q’rer
E a essência da verdade… é
Tão difícil de dizer
178
(34)
CAI A NOITE
(35)
PODE SER
(36)
PARTOS TARDIOS
179
Um rosário de amor
Que a música não possa parar.
Todas as canções
Imagens imortais
Fulguradas da dor
De poetas errados
Serão partos tardios
De erradas emoções
De alguém que há-de morrer amando.
(37)
BLUES DA VIOLENCIA DOMÉSTICA
É formigar é sofrer
Sem nunca ver o horror
Que se esconde atrás do ser
Por quem se diz ter amor.
A feroz iniquidade
Que provoca essa macaca
Vai transformando em saudade
E corta como uma faca.
O coração em pedaços
Acumula os desenganos
Ficam só subtis os traços
De grandes perdas e danos.
180
Demora dias ou anos
Até desfazer os laços
Com que infelizes atamos
Os nossos próprios braços.
Falaciosa ritmia
Que encontra os braços vazios
E o corpo todo assedia
De sentimentos ínvios.
(38)
POETAS E ASSASSINOS
181
(39)
CORAÇÃO TOLO
E a madrugada
Sempre aparece
Apaixonada
Alma desperta
Faz o que eu mando
Coração tolo
A tua rua
Não está deserta.
(40)
CANÇÃO CONFUSA
182
Mas muitas canções cantando
Coração sempre sangrando
De um sofrimento sem nome
(41)
ORAÇÃO MÍSTICA
183
Traz-me uma recordação
Do sonho que eu deixei
Preso à tua ilusão
(42)
FADO DO OTÁRIO
184
(43) ENCANTOS IDOS
(44)
SOU UM SUJEITO ESCREVENTE
É difuso é impreciso
Às vezes banal ou liso
Quase sempre de improviso
Nem vulgar nem não conciso
Nada exalto ou preconizo. (Nem necessário ou preciso)
(Digo diz disse não diso)
185
É difuso é impreciso
Não importa que se entenda.
(45)
KADÊ VOCÊ
Você passou
E nem ligou
Kadê você
Só você tem
Esse capricho que vem
Como se fosse
Da viagem o regresso
E vem também
Olhar meu peito que confesso
Se abre p'ra ti
Se alegra e ri
E é como que da vida um novo recomeço
186
(46)
EU TE AMO
Eu te amo
Eu te adoro
Eu te venero
Eu me dilacero e apareço na varanda
Da clara fantasia que alucina
Meus olhos
Vejo mais.
Minha amòrinha
Minha rainha
Minha aventura
Minha afro-rainha minha flor da formusura
O sol te doura a cor e te ilumina
A alma
Que é de lua.
(47)
MINHA ISIS
187
Daquel’ outra maneira singular
Capaz de encher o céu
De infinitas noites de luar.
(48)
FADO DOS SONHOS
Os sonhos de madrugada
Por uma mão bem mandada
Parecem ser recolhidos
E aquela imagem sonhada
Fica p’ra sempre guardada
Nos pensamentos esquecidos
Antigamente pensava
Que tudo o que se sonhava
Um dia aconteceria
E do sonho procurava
188
Saber se significava
Aquilo que acontecia
(49)
PASSO
Passo lento
Do sonho a viagem
Na fímbria do tempo
Da margem.
Longa espera
Faz muito tempo
Que a manhã bela
Se faz esperar.
Volta depressa
Para o meu peito
Pousa com jeito
No meu coração.
Alma pura
Cândida flôr
Sem muita estrutura
Ou cor.
Obra sempre
Inacabada
Retemperada
Na solidão.
189
Rola por dentro
Esfera abaulada
Do pensamento
Não resta mais nada.
Contas ao vento
Do meu rosário
Sem polimento
E cruz ao contrário.
Folhas d’ erva
Estrada comprida
Larga e aberta
Na vida.
Livro aberto
Mensagem rara
Branco e desperto
E ideia clara.
Traça-me a rota
Rega-me a flôr
Do meu perfeito
Amigo e amor.
Livro da vida
Lido com calma
Rasga-me a forma
Do corpo e da alma.
(50)
ELM (olmo)
190
Andei a ver… fui, quis encontrar… esse lugar
Por onde andei… vi esse sonho brilhar… no ar
Por fim duvidei
Do meu terno acreditar que o sonho vem sempre à medida da inocência e do prazer de
[olhar.
191
O LIVRO DO ESCOAMENTO DO
TEMPO
40 POEMAS
192
(1)
OS DIAS PASSADOS
Tudo isso
Os dias carregaram como uma bagagem alheia
O esconderijo e a pronunciação absurda da passagem
E nem por isso alguma vez se manifestaram
Na sua consistência desmaterializada de ser tempo
Como meros dias passando inimputáveis
Na inocuidade de uma existência vaga
Acumulando segundos e momentos
Minutos meios minutos quartos de hora
Horas
Por vezes perfidamente suando a sua sombra
E a coberto de um dia que ficou esquecido
De maneira culposa e com perverso intuito
Acumulando os anos.
193
E foi assim que todos esses dias
Perversos e incongruentes
Se tornaram um passado histórico
A respeito do qual se pode maldizer
Dizer e desdizer como se a desdita
Desses dias feitos vítimas minhas inocentes
Da minha polissemia obsessiva
Tenha sido não ter sido e apesar disso não
Terem sido esquecidos.
(2)
NO MUNDO INTEIRO EXISTE UM SÓ POETA
194
Impercetível ao tempo
Ânsias e oiro parece até
De um outro tempo um outro dia
Na vida de um poeta já esquecido
Que morreu jovem.
195
E as palavras
Ficam para sempre no universo como uma ideia
Perdidas e infatigáveis
Na dimensão impalpável do eletromagnetismo.
196
Num número errado
Determinado por dados viciados
Numa roleta avariada e russa
Escravo de uma vontade de superar o ser
Jockey de uma montada coxa
Apostador sobre um cavalo morto
Um segundo antes de cruzar a linha de chegada
Compondo em escuridão os padrões
Matizados de uma seda indefetível
Destinada a ser vestida por rainhas
De reinos há muito subjugados
197
Outros as escrevem ou as pensam
Existem os poetas de um só livro
E obras curtas mas significativas
Existem os populares e os repentistas
Os eruditos e os épicos
Existem até nos dias de hoje
Poetas cibernéticos
E a poesia corre solta e eletrizada
Nos impulsos chispados e ultra-rápidos
Do ciberespaço
Houve o Camões e o Walt Whitman
Houve Pessoa e Milton
Houve os Andrades e os plurais
Vinicius de Moraes
Todos humanos e terríveis
E cada um
Bandeira de um país insaciável
Houve Rimbaud
Terá havido Baudelaire
Centenas de centenas de poetas
Em línguas mortas e vivas
De todos eles guardamos uma frase
Um verso eloquente ou grácil
De alguns sabemos um soneto decorado
E de outros que inventaram uma mitologia
Mas isso nada é senão cultura
Empoeirada cultura
Sempre guardada no lugar da casa onde nunca se vai
E por isso mesmo vai guardando o pó
Mas o gesto inútil continua
E continua inútil como se a si próprio
Lhe fosse apenas dado existir
Através desse idear vertical
Determinando em cada momento as suas vítimas
Vítimas dóceis de uma grande hidra
Que se manifesta por não existir.
198
Para deixar as veias livres e vazias
E num momento de êxtase
Total e transfigurador
Deixar correr por elas a poesia.
199
(3)
UMA JANELA EM FRENTE AO MAR
200
Mas voa e venta dentro dela
E entoa, firme e renascente
A sua proa sempre e avante
A força de mudar e a mudança.
Cheguei aqui
Não como um qualquer Martim Afonso
Que por qualquer edulcorada fantasia viesse p’ra ficar
Estou e é aqui
Estou realmente aqui
Longe de casa
Nesta janela oblíqua e fatal
Que me permite olhar o mar de enviesado
Vejo passar os navios que entram no porto
Nem perto nem longe nem distantes
São mais pequenos do que os que eu via antes
Mais pequenos até do que os que via
O Fernando Pessoa quando os via
Entrar pedantes e promissores
Poéticos e futuristas
Monumentais e lentos no porto de Lisboa
São tão reais como os que ele obliquamente via
Mas mais pequenos
Porque o porto de Santos é maior
E os navios ficam no mar
Ao largo esperando a sua vez
Para lá dos navios que esperam vejo o mar
E para lá do mar e dos navios que ordeiramente entram
À vez no seu porto de abrigo e ficam para trás
P’ra lá do horizonte e da bruma vejo as naus
Do Pedro Álvares Cabral.
201
Agora vejo o Sol maior que o mundo
E o mundo dentro do sol envolto em bruma
Fica no fundo
E às vezes entra como um ladrão
Que súbito se esgueira
Antes do fim do dia e se incendeia
Batendo um fogo no mar em que se esbate
Deixando o ar visível
E o coração.
202
Mas com os olhos do santo
Que estáticos navegam
O pensamento místico
Esse meu ícone não tem nenhum santo nem tão pouco
Nenhuma doce figura feminina
Tem apenas a base de uma torre
Uma enorme torre inclinada e fálica
Tem a natureza e tem o mar
E tem as naus
Que eu num momento de ternura vejo vir
Num sonho iconográfico e total
Do qual um dia eu gostaria de acordar
P’ra ver enfim chegar as naus
Do Pedro Álvares Cabral.
203
E essa ilusão faz nascer outra ilusão maior
Que é já uma coisa próxima da realidade
Mas não existe realidade
A realidade é não haver realidade
Do âmago profundo dos instintos e dos sonhos
Vem um tesouro que é lindo e precioso
É grande como um Deus
É total e absoluto
Mas irremediável e intransigentemente inútil
Tudo isso e muito mais eu vejo
Quando através desta janela vejo o Sol
Brincar batendo nas caras das pessoas
Mesmo as pessoas não brincando
O Sol brinca sozinho
E as pessoas existirem e o Sol
Salpicar de ilusões as suas caras
É já uma enorme brincadeira
Definitiva e transcendental.
204
E mais rica
Mas eu estou nesta praia
Onde uma neblina se instala devagar
Antes do pôr-do-sol
E volto para casa
Para o conforto de ter uma janela por onde olhar o mundo
E um poema
Para descontar no karma dos meus dias
Na praia
Ficam os pássaros como no mar os barcos
205
Não é importante o nome do capitão
O capitão sou eu e não navego
São importantes as naus e a navegação
É importante o dia em que se partiu
Mesmo que tenha sido pra nunca acabar por chegar
É importante o índio
O que ficou sentado e sem trejeitos nem parcimónias
Decidiu indolente e deslumbrado
Não ir avisar os outros
Deixar as naus onde elas estavam
Como se elas fossem uma epifania
Em vez de as transformar num fato
É importante o Bartolomeu Dias
Que era capitão de outro navio
O qual já navegara a mesma rota
E que
Embasbacado e mudo
Escutando o som das ondas
Passadas e enfurecidas de um mar distante
Assistiu a tudo
Mas não disse nada
Olhando apenas com a alma
Presa no tempo das suas aventuras
O desenrolar dos acontecimentos.
206
Tentando fazer dela um castelo invisível
Que ela não pode ser
Que ela nunca será
Tenho jogado fora a minha vida
Como se a janela fosse um Cristo
Envidraçado no altar da consciência.
207
Só tem areia escura que nunca se esboroa
Tem o vazio e a chuva
Tem um lago de mar e umas naus
As naus do Pedro Álvares Cabral
Mas como se quisessem dar meia-volta e partir
E desistir de descobrir o Brasil.
II
É verdade
Eu estou aqui numa janela em frente ao mar
Desta janela vê-se uma fortaleza colonial
Coisa tardia e banal
Para quem já viu muitos monumentos
A fortaleza antiga ao longe
Parece um barco em que se quer embarcar
Barcos são média
Meios que transportam quereres
Vontades e desejos
Dádivas e saudades
Coisas que se venderam
Ou que se vão vender
Os barcos nunca transportam
Coisas que se compraram e venderam
E nunca foram entregues
Não levam dúvidas nem dívidas
Porque essas não têm para onde ir
Vão para o mar
Para o esquecimento do presente
E os barcos vão para o seu destino
Chegam de origens inacreditáveis
E embora parados na imaginação mítica
Sempre estão indo e vindo
Alguns ficam parados
Como se por um momento tivessem desistido de chegar
Eles não chegam
Só vêm
É essa a sua natureza eu já o disse.
208
Mas não
Elas estão ali
Paradas na congestão de um gesto imóvel
Imóveis
Esperando um desenlace do destino
Configurando o mar que nunca se cumpriu.
209
Talvez esta janela seja uma lente
Talvez o além da janela seja o que está p’ra cá
E o ponto confluente em que a luz se torna flor
Não esteja na janela
Nem na solidão do quarto escuro
Nem na ilusão da obscuridade
Nem na luminosa incandescência do ar
Talvez esta janela seja um lar
De onde uma saudade singular p’ra sempre chama
E quer chegar.
210
Nesta janela postiça
Onde eu duvido até que eu próprio exista
Estou em verdade aqui em frente ao mar
De frente para o perigo
E a ondulação.
211
É bem pequena esta janela e bem diferente
De outras janelas que eu vi descrever fogosamente
Mas o que eu vejo por ela
É um mundo todo aberto e multiplano
Raiado de eletricidade até ao âmago
Interpenetrado em géneros e espaços
Com todas as potências
Todas as amperagens
Todos os choques e conflagrações
Amassado e total na sua indomesticada beleza
Que em compaixão divina e parvoíce
Nos permite andar nele como se não existisse
Eletricidade nenhuma.
212
Em toda a sua majestade e imponência
As fabulosas naus
A que temos eufemisticamente chamado
Do Pedro Álvares Cabral.
213
Daqueles que não entra nunca
No interior dos crudelíssimos critérios de uma antologia
Achei-o mais tarde numa mala cintilando glorioso e só
Todo o seu poder premonitório
E na praia
Como eu escrevi inocentemente
Oculta porque quase não se vê quando avistada do mar
Cinzenta e triste outros dias alegre e solarenga
Para onde jorra de ilusões
A janela onde eu fico em frente ao tempo
Estou sentado
Na mágica quietude de um refresco
Vendo irisar o ar
E olhando o mar.
214
Por isso espero
Atento e flébil
Por essas naus
Sejam quais forem tanto faz
Seja a do meio
Que desaparece na bruma do fugaz
Seja a que fica
P’ra sempre contumaz
De um amor louco eterno e surreal
Mas realista e em paradoxo
Perfeito e imortal
Como o amor que um dia viu nascer a luz
E revelou aos homens que aguardavam nus
Uma visão quase transcendental
Não interessa se foram as do Colombo do Cortez ou do Cabral
Foram as mesmas naus
Nenhuma como aquela imponente e fatal
Que eu vi no outro dia navegar
Vinha do oriente
E era sem dúvida raciocínio ou interrogação
Uma das naus do Pedro Álvares Cabral
III
Nesses momentos
Parece que o encantamento de ter uma janela sobre o mar
Se desvanece
E acontece
Num último congestionamento
Do coração e da dor
Fechar a janela para não ver mais nada
Mas helas
É no momento em que ela parece estar fechada
Que o seu ecran
Se abre como uma tela gigantesca
215
Para o que o espelho sempre diz a qualquer pessoa
O espelho diz que ela ama aquela imagem
Que ela se ama apesar de tudo
E eu olho para mim pela janela
E vejo que também me amo
Amo também uma mulher
Nunca passou um dia
Em que eu não tivesse amado uma mulher
Mas o que eu queria mesmo era amar todos os seres
Como eu me amo quando me olho e sonho
Mas isso é para os cristãos bons
Velhos ou novos
Para os protestantes e para os huguenotes
Para os alegres e para os tristes
Para os espirituais e para os pobres
De espírito ou de bolsa
De corpo e alma
Eu amo
Amo-me todos os dias
E todos os dias amo uma mulher
Imaginada e cantada desde o fundo da ilusão
E inúmeras vezes configurada na vida
Tatuada e embutida na vida
Para tentar desafiar a ilusão perdida.
216
Virá-la para dentro
E ver a casa
Para onde enfim acabamos sempre por voltar.
217
Esta janela não tem nem o encanto
Ou a peculiaridade
De ser minha
É uma mensagem que é ao mesmo tempo o mensageiro
Vai e volta sem se despedir ou se fazer anunciar
Ou se anunciar ela mesma
Não me pertence
Só a mensagem lhe interessa
E nela como em mim também
Não tem nada de especial que eu possa dizer dela
Nada que eu possa ver através
Que não estivesse lá para ser visto de viés
Mesmo que seja difícil de definir
Janela amada gostosa de descrever mesmo sabendo
Mesmo quando aninhada no peito como um filho
Ainda que ilusoriamente individual e possuída
O que ela é não tem medida.
218
E de os ver passar todos os dias
Me parece que eles já não estão lá
Mas mesmo que eles não estivessem
Ou se tivessem por esquecimento tornado invisíveis
Estariam lá as pequenas vigias como o fim de um óculo
Pelo qual se olha para dentro
E lá dentro alguém também invisível e interrogativo
Que poderia estar lá ou não
Olhando para fora
Mesmo as dos aviões
Por onde nunca se olha para nada
Porque na maior parte das vezes é de noite
E o mundo corre ou dorme
Existe até uma doença configurada e médica
Em que o paciente não pode estar ali
Se ali não existir uma janela
Janelas vertiginosas são precisas
Como as dos carros e as dos trens
Nas quais a estrada e a natureza
Passam correndo quase transidas
E de quem numa náusea o meu olhar
Recorrentemente quer se desviar
Naquela vertigem quase insuportável
Que faz a minha alma não poder ficar.
E eu fecho a janela
Fecho-a desgostoso e arrependido
Como se uma mão imperiosa de um destino estranho
A fechasse por mim
E mesmo assim
Fechada
A minha janela continua a brilhar
Mas eu estou de costas
Não a vejo
Mas vejo que ela brilha e continua lá
Bondosa e doce
E é a janela mais bonita e mais importante do mundo
Porque é o lugar incólume e brando
Por onde sai a minha sede de ilusão.
219
Quando se retira da fervura
Das biológicas e caóticas podridões
A ilusória marca de uma essência.
Mas ainda aí
Por muito sincera e inebriante que a janela seja
Ela só se redime quando aberta para o mundo
Se reconhece nele e a comunhão
Dos seres das coisas das luzes e das sombras
Tudo o que verdadeira e hipoteticamente existe
Se funde num único olhar dentro do qual
A coisa mais insignificante e banal
Se torna transcendental
E o momento em que o olhar que fita manso e distendido
Se esquece da janela e fica espelhado no universo
Esse é quando a janela está aberta
Mais que de par em par
Mais que devassada como se fosse a janela outra
De uma ruína
De uma grande catedral que tendo sobrevivido a uma guerra
E da estrutura fustigada
Apenas as cantarias das janelas tivessem conseguido
Se sustentar
Consentindo ver através delas
O céu de outro lugar.
220
Através dela vê-se uma praia acinzentada
Que as cores do pôr-do-sol tingem de eternidade
Onde pequenas ondas quase só chegam sem mesmo rebentar
No lago que o mar forma nessa hora mágica
Vem um navio
Parece lento e pesado é um cargueiro
Carregado de contentores sobre a estrutura flutuante
Mas não é lento
É como a vida
Que se move a uma velocidade atomicamente alucinante
E faz parecer que o tempo passa devagar
Vem do oriente esse navio que é como a vida
Quase parece parado
E no entanto
Por um momento que se prende de um pensamento
Que se teve
Já percorreu uma distancia ligeira e inflete a marcha
Se aprestando para seguir o caminho do meio
Certamente vai para o sul mas de repente
Assume imperioso a marcha do oriente mas para fora
Vai procurar o mar de fora e o caminho certo
Por onde se sai desta enseada
O ocidente evapora ainda a luz que o carro
De Apolo quer levar
E o norte como eu disse não se vê
Vê-se o navio diminuindo com o afastamento
Em direcção ao oriente para onde
Se presume que terão ido as naus
Do Pedro Álvares Cabral.
221
Como os navios a minha alma vai e vem
Quando está sol e o céu limpo
Brilha no ar esse raro contentamento
Que é ir
A alma também gosta de voltar
Voltar a casa e ver a casa do pai
Mas tem além
Tem para lá do que eu consigo ver
Quando olho aquela névoa líquida
De uma janela ofuscada onde aparecem
As naus do Pedro Álvares Cabral
Ficaram presas
De uma saudade singular do sol dos mares do sul
Um verso repetido
Uma emoção
Indefinida e branda
Sair do mundo para um destino outro
Não as estrelas
Não os confins do universo
Apenas o lugar
Lídimo e fresco
Dentro do coração. ___________________
PÉRIPLO INCOMUM
(4)
É PRIMAVERA E JÁ FLORIU
É Primavera e já floriu
A árvore das pitangas
Em frente ao Palhacinho
Onde o palhacinho já morreu
E o filho também já o vendeu
E com ele o que restava da velha tradição
Da imperial e do café.
O palhacinho mesmo
O que dá o nome a toda a área
Ainda lá está cobrando o pó
Dos anos em que ninguém reparou nele
E no entanto
Ele
Era o que dava o nome
A toda a área do café
Onde a cerveja era tirada a copo
E o copo onde era derramada a espuma
A tão doidamente apreciada espuma
Abaulado no meio como um barril
E do barril era arrancada aquela espuma
E em cima do barril
Pedras de gelo.
222
Naquela altura quase de certeza
Não havia ainda a árvore das pitangas
Praticamente nada havia nem o chão
Ainda que no chão houvesse os ossos
Que nessa altura seriam a alegria de outros cães.
(5)
A AMPULHETA
223
Traída ainda
Por uma sede
Uma intenção primeira e nunca saciada de ficar no cais
Em que uma barca espera
Que passageiros livres e desprendidos
Roupas de linho amarrotadas
Limpas e soltas no vento
Aquela barca adentrem
P’ra que ela possa
Velas ao vento e enfunando os panos
Embandeirar em arco
P’ra navegar garbosa o mar do amor
Corpo inefável que transforma o barco em porto
Porto implacável que transforma o corpo em barco
Navegação e fé
Na barca do amor zarpa de novo
O coração plangente dos naufrágios
Rasgando o tempo breve
Da maré
Por outra correnteza deu à costa
Num esgar de chocalhadas ilusões
De ondas e degredos rebentar
Areia e tempo corredor
Ponta maior leste de praia
Onde vem dar o mar
Bater e rebater
Todas as ilusões nunca acabadas
Todas as milhas navegadas e sofridas
Onde os corais se encostam
E os recifes moem
Antes de ser areia
Fútil areia branca
Branca areia
Que vejo saltitar dentro da ampulheta antiga
Como se escorresse imparcial por entre os dedos.
(6)
SINTO SAUDADES DOS POEMAS QUE EU PERDI
224
Existirão talvez amordaçados
Num lugar escuro onde ninguém os lê.
(7)
NA MINHA CASA NÃO TEM QUADROS
(8)
TROUXE UM LIVRO DO BRASIL MAS NUNCA O LI
(9)
A SAUDADE
225
E que ante a eminente anunciação da tempestade
Pararam mudos
Dos gritos que calados ficaram como um eco
Que se escuta.
E dedos tímidos
Tocam a água que preenche e abraça o mundo
E é então que uma pequena gota se desprende
Como uma lágrima chorada antes do tempo
E cai no mar num gesto de infinita adoração
Que o mar recebe e leva omnivolante.
Lá
Onde o azul do mar é mais profundo
Quase rosa
Onde se cruza o plano que é o mar
Com o espaço aberto e tridimensional
Que nos parece o céu
Lá
Onde uma linha prescreve e cruza todas as dimensões
É que se encontra essa agonia que dista
Não é uma distância nem uma saudade
É uma angústia por ser longe
O aqui e o agora.
226
Como um relógio indiferente
O tempo que parece impenitentemente ter deixado de existir
E se compraz em repetir
Um momento que indiferente mas persistentemente
Se reproduz no tempo para sempre.
227
Faz recuar o tempo
Faz distender a dor
Rasga efetivamente essa dissipante muralha
A que em outro dia já chamei fímbria do tempo
E mesmo quando dói escrever
Alguma coisa aquece num coração distante
E nunca esquece
O fibrilar constante
O passo vazio que galga o tempo
No coração errante.
(10)
A VERDADE
228
A verdade é tantas vezes
Tão difícil de dizer
Mesmo a si próprio ela tenta
Em vão escapar
De uma qualquer cruel confrontação
Mas tem momentos na vida
Nem pensamentos nem atos
Que o coração não consegue
Iludir fugir querer
E ao coração que sentir
A verdade não engana.
(11)
O PRESÉPIO QUE EU CONSTRUIA EM PEQUENINO
229
Escondendo e decifrando humanas as paixões
Três figuras em paz de animais e mais
Três vezes três humanas representações
Nove alegorias de humanas aflições
Auridas de doze emanações horizontais.
230
Mais perto a moleira carregando
Na cabeça à maneira o pão futuro
Simétrico o soldado em armas só faltando
Um tiquinho afastado soletrando
Palavras de um dialecto prematuro.
231
(12)
ÀS VEZES CHORA-ME O SONHO
De todas as implicações
Que o sofrimento provoca
O animal na sua toca
Imagina soluções.
Continua e afinal
Tudo se resume em mansidão
Acalma a tempestade no limite
E fica só pulsando o coração.
232
E quando chama essa ilusão doce
É como de sereias o cantar
Que a realidade vã que fosse
Teria ainda existência real.
(13)
VENHO FINCANDO A PAISAGEM
Fica no ar o balanço
Desse fiel equilíbrio
Onde paira onde dança
A cava origem do frio.
(14)
O MEU COMPUTADOR
233
Esse computador velho e cansado
Não foi inventado pra sentir
Não foi para delírios que ele foi criado
E todavia é a ele que eu recorro p’ra sorrir.
(15)
APOSTASIA E MITO
234
A caixa... a caixa das esmolas da igreja
Que nunca foi roubada por critérios
Nem por ladrão algum que sendo seja
Pretexto ou sede de argumentos sérios.
Tudo é mentira tudo são gritos sufocados
Moedas falsas de metal sem liga
Ilhargas sólidas de limites compactados
Tombados no adeus de uma harmonia amiga.
(16)
A MULHER QUE VOCÊ AMA
Aparece luminosa
Uma graça ainda o chama
Fatal e preponderosa
Da mulher que você ama.
(17)
QUADRAS DE GOSTO IMPOPULAR
235
É formigar é sofrer
Sem nunca ver o horror
Que se esconde atrás do ser
Por quem se diz ter amor.
A feroz iniquidade
Que provoca essa macaca
Vai transformando em saudade
E corta como uma faca.
O coração em pedaços
Acumula os desenganos
Ficam só subtis os traços
De grandes perdas e danos.
Falaciosa ritmia
Que encontra os braços vazios
E o corpo todo assedia
De sentimentos ínvios.
(18)
TODO O AMOR QUE UM CORAÇÃO SENTE
236
Todas as coisas que o amor sempre interpreta
Que são de muitas vidas os prazeres
São afinal uma alegria incompleta
E num momento um desalento achado em quereres
(19)
SONO NÃO HÁ
Sono não há
Há uma nevralgia pontiaguda
Que permanece interrompendo o olhar
A consciência parece ficar muda
E o que sobeja esgueira-se para algum lugar
Lugar sem nome onde se planeja
Renascer das cinzas e cantar.
(20)
AS PESSOAS
237
Outras pessoas insistem em se lembrar delas
E as pessoas continuam então a existir
E a resistir existindo
Nos corações e nas cabeças
Dessas outras pessoas.
238
As pessoas prometem coisas que sabem que não vão cumprir
Acreditam em promessas que sabem impossíveis de concretizar
Desconfiam ou crêem
Sempre com a mesma esperança
De um amanhã ligeiro
E não muito longínquo
Quando o amanhã se alonga
Perdem a esperança
Todas acreditam que têm uma origem
Que acreditam ser
Existe então nesse momento um elástico
Que puxa as pessoas violentamente para trás
Para essa origem que imaginam ser a sua
Mas ao contrário do que se imaginam
A origem que tão briosa e orgulhosamente procuram
Está muito antes
Num lugar que não existe neste mundo
Mas que brilha incessantemente sem nunca definir o objetivo
Que está no centro do coração das pessoas.
239
(21)
PARA LÁ DA MORTE NÃO HÁ NADA
(22)
POEMA DA VIAGEM
240
Dizem-nos: - Brilha
Se ainda fores capaz.
Territórios inóspitos
Desertos
Foi para onde se esgueirou o patateso
O monstruoso e pérfido imortal
Que de si próprio separou a essência abrupta
Rangendo os dentes e cuspindo a culpa.
241
Majestades nunca completamente abertas
E a certeza de uma motivação
Que se quer nunca adiada
Que se conhece
De um destino prevalecendo sobre o drama
Corrompido e interrompendo o fio dos dias.
242
Vemos países e cidades
Entreolhamos naturezas
Colecionamos certezas
Que o movimento lento do devir
E a incerteza do parar
Vão lentamente nos fazendo desacreditar.
(23)
PÉRIPLO INCOMUM
243
É que no mundo só se vira a madrugada sem dormir
Quando se tem um ente querido que morreu
E se vela
Ou em ocasiões motivos ou funções muito particulares
O resto é boémia e aniquilamento
Daquele pouco que você ainda pensa que é.
Périplo incomum
Previsto e analisado às vezes anos antes
Plasmado em poemas pensamentos e boutades
Que nunca careceram de grande explicação
Permaneceram
Como casulos de uma condição última
À qual você sempre se sentiu obrigado
Mas que era impossível decifrar
Antes de o corpo chegar
Na anunciação do seu limite.
244
Que você sente de acordar do pesadelo
Que é ser ao mesmo tempo sonho e realidade
Essa espécie de filme de terror
Em que você transformou a sua vida.
Périplo incomum…
Quando você decidiu escrever este poema
Acreditava toscamente
De uma inocência vã
Que algum trajeto
Empolgantemente iniciado
Do qual delineados os caminhos nunca foram
Teria dos seus berços imprevistos
245
Das paisagens e mais queridos episódios saudosos
Poderia dos infaustos
Tortuosos e ínvios repetidos
Cruéis e devassados calcorreamentos
Poderia se diria suspicioso enfim
Ter acabado
Mas não
A fé insana continua
Mesmo quando você pensa insano e belo
Jamais poder acreditar em nada.
(24)
DIÁRIO
1
Um dia a acabar de terminar
É como um livro a terminar de se fechar
Quando ainda não se leu a última página
E em carícias literárias circunstanciais
Se decide que não precisa já do marcador.
2
Se uma ideia alguma vez foi produzida
Ela vai ficar presa no espaço
E se arrastando mansa pela vida
É de meses e de anos o pasto
E mesmo quando o tempo a empalideceu
Ela perdura e continua viva.
3
Quando se afirma uma ideia e o que acontece
Se transforma mansamente em ideias
E essas ideias se convertem em palavras
Que ditas se produzem em ideais
246
Num campo santo de aparentes
Irrealidades
Imagens soltas vogam no tempo e esperam
Que num momento por um momento sejam.
4
Os dias passam não se contam
Mas quando um dia passa e outro vem
Despontar do lado esquerdo
De um horizonte qualquer
Fica a vertigem
De ser possível o que parece impossível
E impossível o que um dia é.
(25)
NOS CORAÇÕES DOS AMANTES
247
(26)
DESENHAR UM BARCO
Desenhar um barco
Que ficou seco
De uma maré que vazou
Compelir as sombras
Que se aconchegam
Ao baixo ventre
Das suas formas redondas
Curvas oblongas
Equilíbrios conhecidos
De uma suave
Arquitetura naval
Emocionantes
Contrastes e iluminações
Excitantes luzes
De uma realidade contrastante
Recordação
De uma imaginação
Delirante
Prima do sonho
E navegante
Pluricontinental.
Ficou no seco
Grande ou pequeno
Mesmo um saveiro
‘inda que seja
Uma pequena chata
Ou um navio
Ficam tombados
Os barcos
Sem a água
E aquele ali
Que ficou esperando outra maré
Quando tombou
Poderia ser qualquer barco
Era diferente
De todos
Seria todos e um
Mas sombreado
E desenhá-lo em papel
Faz tempo que a maré vem
E vai
Volta e é preia
Escorre e se atrasa
Flui e reflui e é cheia
Sempre
Maravilhosa e global.
248
(27)
BARRIGADA DE EMOÇÕES
Pantagruel e Simões
Juntos e separados
Sofreram juntos
Ficaram parvos em seus
Partos sem dor
Subjugados
E sem amor
Fizeram simulações
Impessoais
Tiveram saídas líricas
Uma das quais
Foi prenhe de emoções
Idas e vindas
E recaídas brutais
Em sensações
Fontes de decisões
Fatais
Coisas plagais
De às vezes esbugalhadas dimensões
Descomunais.
Pérolas indescritíveis
Anunciadas em manhãs
Noites inteiras
De fluxo ininterrupto
Podeis dizer
De asneira
E considerar corrupto
Esse anunciado e inflamável fluxo
Por revelar.
Invadiram o Brasil
Por uma passagem estreita
Nesga imperfeita
Rasgada ao sul
Por uma hipotética e senil
Cordilheira inteira na fronteira do Chile.
249
(28)
O LUTO
250
(29)
O GARIMPO
251
Ainda que esgotado do ser a jovem alma se revela
De um novo noivo aceso facho alegra o dia
Despido enfim e o espírito alisado.
(30)
CAI A TARDE PARA FORA
1.
O caminho é pedregoso e difícil
E no fim tem sempre uma festa
Para a qual você não foi convidado
Onde estão pessoas que você não conhece
Vestidas com cores que você nunca viu
Amanhece num sorriso ou num desejo
Mas no essencial tudo é de noite
Na festa todos se divertem… você procura
Quereria ter chegado mas quando entra
Você só lembra o desconforto e o martírio
Das ribanceiras escorregadias e mentirosas
Em que aquele caminho promissor e bonito
Há muito muito tempo começou.
252
A massa em que você trabalha é langonhenta
E todas as figuras muito abjectas
Num tom geral
A luminosidade é reduzida
Mas embora
Nada daquilo seja animador ou empolgante
E nem por um segundo
Você se sinta motivado para prosseguir
Do íntimo do ser que amargamente
Escorrega avança ou deambula
E que com sacrifício aceita aquele estranho desafio
Vem a verdade
De que aquele momento é importante.
253
E uma voz rouca
Que ao mesmo tempo sem se distinguir como
Implora e grita acusa e indigita
Uma pessoa que você não é
Por um nome que não se sabe ainda de onde vem
Mas que não é o seu
Nunca se sabe
Você só sabe que quer sair daquele tribunal despovoado e súbito.
Você pergunta
Tenta encontrar uma resposta
Um eco de uma alma amiga que confirme
Aquilo que você já sabe.
254
Porque quando a conta zera
Quando zera e por momentos
Você pode começar
Um novo recomeçar
Que prolonga os pagamentos
Você vai outra vez pedir à vida
E ela vai outra vez emprestar
Nada é seu você recebe
O que terá de pagar
É uma roda infinita
Não tem saída nem fim
E há quem diga que o total
Se converte em carmim.
255
Quando você tenta não pensar
Pensar no que seria melhor
As coisas acontecem sempre como você pensou
E não como você gostaria que pensadas
Elas acontecessem diferentes
Você sabia mas não adiantou
E fica apenas o sabor acrisolado de uma dúvida
Em que você não sabe se adivinhou o que aconteceria
Ou se pressentindo e pensando
Você provocou o que aconteceu.
256
Naqueles segmentos fugidios
Em que o caminho é bonito e apaziguador
E lhe são dadas as coisas que você pediu
A luz emana de cada átomo do ar
E você fica como que eletrizado
Mas depressa percebe que essas coisas
São uma carga afinal muito maior
De um peso e de um poder
Que você não poderia nunca ter imaginado
E você tem que caminhar
Tem que continuar caminhando
Mesmo que seja difícil e pedregosamente.
Então alguém lhe diz que você pode deixar aquelas pedras ali
Aqueles pedregulhos que você carregava
E nos quais caminhou durante tanto tempo
Por um momento
Você se sente livre
Mas assim que respira aquele ar subtil e leve
Você percebe que aquilo tudo que tão difícil e pedregosamente
Você se esforçou por aprender
Não serve para nada
Você olha o pôr-do-sol
De um dia que nunca começou
E tudo lhe parece vazio
Mesmo que você quisesse ajudar outras pessoas
Depressa compreende que as pedras que você carregou
Começam a pesar na mochila daqueles que você ajuda
E aí tudo parece impossível
E você é possuído por um grande senso de inutilidade
Agora já não tem nem dia anterior nem dia seguinte
Você caminha no agora
E percebe que está indo para lugar nenhum.
257
Porém mais leve
Mas em compensação você agora sabe
Que esse caminho é interminável
E que você na realidade não caminha
É a paisagem que passa por você
Como se você nem sequer estivesse ali.
258
E seduzido
Acaba traindo o seu amor
A velha senhora se torna vingativa
E você se vê enredado numa trama
Em que lhe são atiradas à cara
Todas as suas presunções
Você é cruelmente assaltado
Cinco facas afiadas e brilhantes
Picam você nos rins
E você é desapossado de todos os seus bens
E quando quer sair dali
Vê que afinal a velha senhora já não está
E você está vestido com o seu fato branco predileto
Próprio para ocasiões em que realmente faz calor
Você ainda tenta interagir com as pessoas
Mas naquele momento
Parece que todo o mundo quer a sua pele
Você é salvo
E num momento extremo
Se sente protegido
Mas tem que prestar contas
E aderir a falsas amizades
No fundo você tem medo da polícia
Um medo acumulado durante anos
Décadas de incongruências e peregrinações
Mas você ainda persiste
Não tem uma alma de guerreiro fascina-o a viagem
E você segue
Precisa de um salvo-conduto que você já não tem
E é então
Quando encontra outro que você sempre teve
Que você descobre aquela nota escrita
Que lhe dá passagem livre e arbitrária
Para qualquer lugar
A velha senhora já se afasta
Pintada de vermelho ou cor-de-rosa
Para uma outra festa
Uma festa popular e tumultuada
Onde você não quer ir
Mas generosa
Diz p’ra você onde se encontra a chave
Que lhe permite por fim voltar p’ra casa
Amigos antigos e verdadeiros
Tiram você das garras da polícia
E você segue liberto e juvenil
Por uma rua abaixo
Onde o sol brilha e você tem por momentos
A vaga noção de ser feliz.
259
Passa muito tempo
Você fabrica para depois vender
E quando finalmente você consegue vender alguma coisa
Nem sempre é garantido que você receba
E o que recebe não é realmente seu
Então depois de passado muito tempo
De haver caminhado e sentido
Você descobre que não chegou a lugar nenhum.
260
E agora apenas se confronta
A sua vontade com a dela
Lentamente
A sua mão começa a se cobrir de estrelas
De uma luz fria
Você nem sabe se venceu
Mas tensas e subtis alterações no rosto
Daquela figura antes impiedosa e altaneira
Acabam revelando a verdadeira face
E você sai dali aliviado
Mas precisa ainda expurgar o conteúdo
E procura
E o que encontra
Não é mais do que um pequeno mas bonito
Viveiro de palmeiras em um país distante
Você indaga
Precisa continuar e permanecer procurando uma saída
E um bando de crianças como pássaros
Submerge o seu orgulho
E uma verdade atroz se instala no seu âmago
De uma maneira ou de outra
Você não é mais criança
Agora está sempre consciente
E um aroma quente se evade para sempre do seu ser.
261
Mas antes que possa ficar com ele frente a frente
Interagir e sentir a nata da natureza dele
Já tudo lhe aconteceu das coisas que algum dia você poderia ter temido
Foi até sodomizado por um cão
O qual carrega
Um curioso chapéu de judeu cor-de-laranja
E é então
Depois de um estranho ritual de recortes primitivos
Que todas as coisas lhe são expostas
E ficam claras p’ra você
Embora não lhe sejam diretamente explicadas
Mas sim ao demiurgo que ali parece humano.
262
E procura
Todos aqueles amigos com quem você chegou
Uns ainda estão lá
Alcandorados nos seus postos e paramentados
Outros entregues a métiers que lhes são simpáticos
Mas é aí que você toma a decisão
Mesmo que seja por entre riscos e vicissitudes
E sem sequer saber bem porque o faz você decide
Seguir sozinho
Já é de dia
E apenas mais uma etapa foi cumprida
De um caminho que você nem lembra já
Quando é que começou
Mas que em momento algum deixou de ser
Nem pedregoso nem difícil.
263
Essa voragem incomum da natureza humana
Não adianta
Independentemente da sua vontade ou sabedoria
Ela p’ra sempre o chama
Para o lugar para onde você não quer ir.
2.
O caminho é ainda mais pedregoso e mais difícil
Quando você decide caminhar
Ao contrário do mapa que tem nas mãos
O caminho que você um dia começou
Ataviado de desenhos
Mapas e inscrições antigas
Pequenos dísticos
Que sinceros pareciam resolúveis
Foram ficando inócuos
Ao desmembrado chão no qual você navega
E quando num rasgo de fé e claridade
Lhe foi oferecido um gps
Você insiste
Não se sabe se por infantilidade ou desespero
264
Em caminhar sempre ao contrário
Do que os sinais avulsos
Perene e longinquamente emitidos
Parecem indicar.
Visualizando tudo
Imagens paradas que se movem
Acontecimentos indefectivelmente reais
Que você vê cobertos por uma névoa lúcida
265
De uma nitidez irreal
Que se traduzem por eventos
Que você sabe inevitáveis
Mesmo de vez em quando tendo medo
Que eles nunca venham a acontecer.
266
Sabe que ficou parado na beira de um abismo
Fazendo gestos impróprios e ridículos
Em vez do passo que se adivinha fatal
Um malabarismo estéril
Que imita opaco e transido
O voo que naquela hora de intensa negação
Você sonhou que quereria voar.
267
A consciência.
Formas caminham
Culpas e erros
Três danças mortas
De uma fútil e impessoal arqueologia
Sabor a sangue
Subitamente esgravatado na sua própria cara
Rosto civil
Engravatado
Marca de um nome ensanguentado
Que você não reconhece mais
Nem sequer como
Um dia tendo mesmo que existisse
Sido o seu.
268
Que você precisava resolutamente não perder
Onde o padrão amado
O signo e o nome que prematuro você amou
Todos os destinos claros delineados
Dos quais você
Dolorosamente insistiu em se afastar
Ainda ternamente eram representados
E copiosos ante essa doce fotossíntese
Seus olhos choraram de tristeza
Na hora crua do afastamento
Uma triste mas genuína forma de verdade
Agora era já só de uma impotência surda
O ridículo esgar de compaixão postiça
Com que você tentou em vão impressionar
O que o seu balbuciamento de terror
E a sua estupidez impenitente
Conseguiam repugnantes e toscos arrancar
Das entranhas causticadas do seu ser.
Parcimoniosamente endividada
Em todas as medidas diluída e ausente
Sua alma segreda com voz doce
Os ecos de um exílio que a devora
Você mesmo a entregou ao holocausto
Em que toda a ilusão perece e principia
E você espera
No lugar que fôra combinado
Que renascida e tonta
Ainda assim mansa e feliz
Ela se recupere
E nessa espera uma estranha afinidade se produz.
269
Todos os trecos que você carrega
São desagregados em componentes inúteis
Não servem já qualquer finalidade
Muito menos aquela para a qual
Você julgava possuí-los
Uma vez mais você fala uma língua ultrapassada
E não entende o que as pessoas dizem
Uma vez mais ainda está na festa
Mas todo aquele inconfundível bulício iniciador
Não passa já de uma vulgar e anquilosada instituição.
270
Como se fosse a inocente
Virginal vítima de um estranho autodafé
Negro e honoris causa ensanguentando a noite
Lhe cobrindo a cabeça com a sombra
Em que você desesperado quer permanecer
Sinistra procissão de guizos
Que se resume em uma
Sentença breve sem apelo
E sintetiza implacável e última
Todos os devaneios da sua intemporal ignorantria.
Sobrecarregada e muda
Sua alma age como se não mais ela fosse sua e você dela
Parece até que nenhum elo mais os liga
Você e sua alma caminham como um só
Mas tristemente em direcções contrárias.
Famílias esfrangalhadas
Doces ideias
Sonhos desfeitos e gente empertigada
Um velho amigo confessa p’ra você que sente o mesmo
E são aqueles afinal
Que você conhece bem desde criança
Quem mostra p’ra você que o sentimento
Jamais compreendido ou dominado
Indefinido nas causas e abstrato
Mora ainda em um recanto postiço do seu peito.
Agora sim
Você tem razão para ter medo
Não sabe mais quem você é
Sua alma anda dispersa
271
Amarrada em dívidas que foi você quem criou
E uma vez mais você vê como em um filme
Todas as atrocidades que você fez
E mesmo assim
Ainda lhe custa acreditar
Que todas elas
Tenham sido realmente praticadas
E estreita a consciência ideal de quem as praticou.
272
Gorda e pacata devorada pelas águas
Sem que você possa realmente fazer nada
A não ser ficar ao longe
Vendo e gesticulando
A silhueta equilibrada e frágil
Da sua pueril progenitura.
Você se encontra
Não ainda naquele olhar substantivo sobre o qual você tanto indagou e queria
Você se encontra no lugar em que percebe
Que não é mais você quem manipula os fios
Aqueles mesmos que em verdade você nunca manipulou
Mas cujo brilho decantado de rústico entrançado
Um macramé pouco cuidado e étnico
Aqueles fios dos quais agora você sente
Dolorosa e tensa a presença infatigável que suspende
A estúpida e ingénua marionete
Que p’ra lá e para cá em passos certos
Você bacocamente foi se esforçando por ser
E que
Querendo ou não sabendo sim mas nunca bem
Nos dias e nas noites
Nos gestos invisíveis e tensos da inocuidade
De um jeito ou menos
Assim ou bem
Ou mal e de qualquer maneira você foi.
273
São agora definitivas e por fim
Empurradas juntamente com os poucos
Restos das personagens que você insiste em habitar
Ainda que à ilusão reflexa lhe pareça
Pelo contrário serem elas que o habitam
Aos poucos você perde um verbo popular e sólido
Um vernáculo grato que lhe foi simpático
E vê cruel e brando
O aparente impasse em que se converteu
O beco indefinível
Fim agastado e falso
Do que você supôs que fosse o seu caminho
Mas que humilhação extrema
De uma humildade que você sempre recusou
Percebe que afinal
Nem mesmo é seu.
Todos os inimigos
Impessoais e pessoais
Que você julgou erradamente
Acumular e ter
São representados sem sofismas
E mesmo a pouca ajuda que vem
É ríspida
E apenas vem voltar a reclamar do seu já exaurido exercício
Uma vontade que você já não tem
E lentamente
Obrigado rendido e a contragosto
Vai descobrindo que nunca teve
Uma a uma
Lentas e rápidas chispas de singular lugar
No firmamento da iluminação
São agora tão evidente quanto inutilmente
Expostas ao sol da sua noite informe
Enquanto restos apodrecidos dos aliados
Que em momentos de fraqueza e impreparação
Foram seus cúmplices
Se consomem na guerra de vontades
Da qual você apenas é o campo de batalha
E em que entrincheirados nas feridas que masoquisticamente
Você se infligiu a você mesmo
Exércitos de irreal obstinação
Se degladiam em desespero de causa
Esperando consumir os restos
Vencidos do fatal destino
Que desiludido você insiste em consumar.
274
O que resta afinal quando você revê
Sinais e fatos
Presságios e rituais que se confirmaram
E seguiram
Peça a peça
Numa escolar repartição revista da matéria dada
É menos que quase nada
Como num infantil e implacável jogo da glória
Você é remetido para o início da contagem
Na casa zero
Do seu já escafiado tabuleiro.
3.
O caminho pode realmente ser muito pedregoso e muito difícil
E no entanto se caminha
Tudo se filtra cai um fio
Tudo se coa
Por um farrapo divago e inefável
Feito de tempo
Os passos com que realmente se caminha
São os que passam nesse crivo
Que sendo denso inteiro e amarrado em sóis e luas
É de difuso e opaco infausto e tresnotívago.
275
Tudo o que você sente
Mas quando fala triste você descobre
Que ainda que dentro de uma multidão pudesse estar
Não tem ninguém.
276
Mas quando e onde
Chega o momento e o lugar em que você
Realmente precisa de fugir
Percebe que fugindo
Estará sempre indo parar em outro sonho ‘inda pior.
277
Você sabe que existe uma estrada
Lembra ainda
Acredita que pode prosseguir
O que você já não consegue distinguir é o caminho
O qual você sempre assaz soube
Ser pedregoso e difícil.
278
Mesmo quando acontece você dormir de dia
Tudo o que processa e se processa
No seu desavisado infausto e acidentado caminho
Tudo o que afinal efectiva e propriamente acontece
Tudo o que acidentalmente suas desfeitas calçadas
Tudo o que surpreso e tolo você vê
No rôr dos episódios em que você se retrata
Aí onde você voga sem vontade ou intenção
Aí
Tudo é de noite
Você possui
Excelentes razões para chorar
Mas instado
Dividido entre o que você é hoje
E o menino inocente que você um dia foi
Quando instado e por rasões plausíveis a chorar
Você não chora
Você não sabe e já não é capaz de chorar
Nem pelo mal
Nem pela injustiça de um mundo
Em que você há muito deixou paulatinamente de habitar.
279
O tempo passa
O seu coração bate
E aparentemente
Como resulta lógico
Parece que você continua vivo.
280
Olha para os olhos fechados
Da criança que mobilizou durante tanto tempo
Sua ternura
E uma insuportável dúvida se instala
A de que aquela tão terna e preciosa criança
Possa na verdade estar morta
E finalmente você ter agora irremediavelmente
Que caminhar só.
Faz tempo
Que você anda separado da sua alma
Às vezes você nem repara
Só a vê muito espaçadamente
De tempos a tempos lá a encontra
Nem sabe sequer muito bem onde
Mas aí sim repara
281
Que sem a sua alma você está sempre em cheque
Tem sempre alguma coisa sobre a qual
Você é questionado
E invariavelmente você sente
A maior dificuldade em responder
Os sons ecoam
Dentro da sua cabeça como avisos
Sirenes da polícia
Ou como aqueles lancinantes sons
Que chamam os bombeiros para um incêndio
E você vai
Ainda uma vez mais acorre
Na tentativa vã
De se socorrer naquele inominável vazio
Que você sente
Desde que a sua alma voga
Por caminhos que você desconhece e nem entende
Enquanto você amargamente sobrevive
Vegeta e como que se arrasta
Não cresce e nem não vive
Não se desmembra em hálitos que são
O respirar etéreo da vida
Fica ripado inerte e amolgado
Em coagulados bolbos de corpo aglutinado
Apenas uma cópia tépida e penumbrática
Do ser que você foi e quando está
Dela apartado e só.
282
Papéis que você não sabe nem
Onde deverão ser apresentados
E desconfia que incauta possa ser
Ao inimigo que ela quer apresentar
Suas credenciais
Não é sequer que nada de intencional ou consistente
Ela tenha
Ou queira fazer contra você
É você mesmo
Ainda e só
Mais uma vez arrepiantemente devorado pela dúvida
Quem trai ainda aquele casamento que como um matrimônio perfeito
Deveria
Simples e natural de acentos claros
Ser eterno.
Mesmo os cavalos
Que antes pareciam
Ser o sinal do grau do seu poder
São agora já bichos de cheiro e temperaturas
Às quais você não está sequer acostumado
E que precisam
Atravessados numa nesga de uma rua
Por trás de uma cortina da qual você já nem distingue a cor
Desesperadamente ser
Ultrapassados.
283
Os tempos e os momentos confundidos
Em que você regressa
À pátria que um dia foi a sua
Mãe e casa
Ardor e fé
Conjugação de todos os destinos
Da qual você mal reconhece os contornos e vãs sutis paisagens
Servem p’ra você ver
O quanto heróis estrangeiros
Maliciosas tramas
Afogam derribam ameaçam
A bem amada flor de uma inocência
Perdida.
É lá
Definitivamente em paz com a vida
Que a sua alma pode regressar
Como de ser você sonhou um dia
E você quer.
De um modo ou de outro
Quer você queira quer não queira
O caminho é finito e tem um mapa
Mas esse mapa
É que é exactamente
O que você já não tem
Por alguma razão que por enquanto
Você ainda desconhece
Já não o tem
Você perdeu
Inexplicavelmente
A coisa mais importante e preciosa
Que você tinha
Perdeu
Ou pelo menos
De momento você não sabe mais onde é que está.
284
Uma normal e convencida criatura
Que inconsciente e automática
Predestinada e simples conjugava
A sua vida
Numa primeira e natural
Inocente amarelada e sobretudo
Encarnadíssima pessoa.
E mesmo assim
De todos os recantos onde você já esteve terá uns
Que são mais do que outros detentores
Do grande acréscimo que do credo do ser vivo e gostar
Você reclama
Recanto escuro como o poeta canta
Recantos húmidos e escuros como canta
Aquele outro poeta que você gostava tanto
Do qual você amou cada palavra
Que tantas vezes confundiu com você mesmo
Como se fossem suas as palavras
Que ele disse.
285
Desses recantos todos
Húmidos e sombrios onde você andou
Por onde enfim adquiriu o à vontade
De caminhar por eles confortavelmente
Como se da sua própria casa se tratasse
E sua aquela vida fosse
E seria
E era
Sempre sabendo
Que navegava e fluía
Em território estranho
Profundamente adverso e de uma perversa
Arrepiante ou vil perigosidade
Você foi intuindo
Por fim que o que no fundo mais temia
Não possuía afinal significado
Era só símbolo
Atrás do qual você andou
E que de tanto andar e perseguir virou
O que você pensava ser
O objecto.
286
Que dos seus iguais você recebe
Supremo ato de amor
Perdão e liberdade
Que você sente há tanto tempo precisar.
Um mantram seu
Profundamente desenhado no seu ser
Inculcado nas entranhas do crer
Inexpugnável
As dúvidas questões
Refinamentos ou tergiversações
Do pensamento.
Você hesita
Sempre hesitou em frente da verdade
Hesita entre o medo e a fascinação
Que você sente por tudo o que é impuro
Tudo resolvido você parte
Levando nas mãos a prova espúria
Definitivo pão de toda a dor
Remorso enfim das horas
Inúteis que você perdeu
Das ruas estreitas
Urbanas e calcorreadas
Numa incansável cosmopolita e épica
Tragédia pouco grega.
287
Dessas ruas reconhecidas
Pela intimidade do baixo das cidades
Você sobe então
Reencontrados os cúmplices
Em que se escuda
O pouco que restou da sua consciência
Nos lugares íntimos
Pontos de encontro de uma rotina oca
Você vai
Sobe ao encontro
De uma mais pura arquitectura
De uma colina edificada antes das hortas
Onde trabalham os obreiros
Que são no fundo
As criaturas que você mais sinceramente respeita
As únicas que mesmo ainda sem saber
Você ante inocente ainda ama
E em quem inabalavelmente e em rigor
Você confia.
288
Para esconder aquela prova embaraçante
Da qual a qualquer custo
Você precisa e quer
De uma vez por todas se livrar.
Mas ao contrário
Do que aparências fúteis prefiguram
Você vai precisar esperar
Ainda mais um tempo
Que todas as frágeis evidências
Venham consolidar
O que apesar de tudo
Nada mais irá poder evitar.
289
Por baixo de um tampão
Uma campânula que parece um sino
Mal você adivinha
O que de sino ou plim vem por aí
Você está perto
De uma estrutura que parece um poço baixo
O gargalo do poço
Um pedestal térreo sobre o qual
Muito maior se apoia uma campana semiesférica
Como as que tinham as antigas campainhas
De bicicleta.
Aí no interstício
Entre a base de pedra e a campainha
Do tamanho que teria um poço largo
Você introduz o embrulhinho
Que é o penhor
O clausular ridículo e banal
Do seu segredo.
O lugar fresco
A pura arquitectura na colina
Onde você chegara
Antes de se tornar imperioso
Você se desfazer da prova crua
Parece agora definir os traços
290
De um espaço nem exterior nem interior
Sombrio mas arejado
De altíssimo e finito pé direito.
291
Você adia
Nem sabe o quê
Agora de repente perplexo e constrangido
Fica com medo do que possa de fato acontecer.
Você errou.
292
Tudo o que existe
Existe e funciona coordenadamente
Por um rigor mecânico que momentaneamente
Fruto daquele simples e quase
Imperceptível gesto
Foi alterado interrompido
Prejudicado na perfeição do seu rigor
E de repente
Fora da hora certa
Num momento em que não era para acontecer coisa nenhuma
Todos os pressupostos
O que deveria estar certo estando errado
O todo exato
Sendo perfeito demais para caber em si o desarranjo
Se move lento
Se dando o tempo
De tudo perceber em face ao erro.
Poderia sim
Mas não imaginou
Não se deu ao trabalho
E mandingou
Tirou às sortes
Brincou de sorte e pouca sorte
Até que ali chegado toda aquela
Arquitectura imensa e pura
Se mexendo em um ritmo ordenado
Quase sadicamente lento
Todos os sinos e figuras
Se mostrando e hesitantes
Se prefigurando à hora errada.
293
Mostram na hora certa p’ra quem passa
E não se sabe
Nem é preciso
O que acontece entre os minutos
Com as simpáticas figuras
Um passarinho
Nos modestos e domésticos de cuco
Dois namorados
Ou bodes como têm
Alguns desses relógios no norte da europa.
Ali porém
O caso era mais grave
Muito mais grave
E a trama
Mais perfeita decidida e mais completa
As figurinhas
Eram todas
Antes do mais em tamanho natural
E de momento
Não tinham aparecido
E onde estivessem
Estariam com certeza
Fora do lugar.
294
Do apogeu
Do infindável mecanismo se tratar
Não só eram reais mas estavam vivas
E eram tão só os aldeões que em seu horário
Desde manhã estavam no campo
Plenos de afã e cordiais
A trabalhar.
Sinceramente
Obedientes mansos e voluntários
Daquelas hortas que do vale
Agrícolas cercavam a cidade
Talvez aldeia
Repositório dos infaustos urbanismos
Em que você sempre insistiu em circular
Desses outeiros
Que de fecundos pareciam respirar
Aquela amena biologia alimentar
Você agora via a passos lentos
Enérgicos mas comedidos avançar
Garbosos os natais trabalhadores
Em passos naturais mas decididos
Vindo p’ra figurar
Cada um no seu preciso lugar
Na hora em que certos os sinos
Do engenho pendular
Marcasse a hora
Eles imóveis deveriam estar
E como autómatos vivos cada um
Criteriosamente ocupar o seu lugar
Prefigurando a única maneira de salvar
Você dos resultados do seu erro
295
E libertar
Você para descer e se deixar inebriar
Da luz e da perfeita
Reconfiguração desse lugar.
Desde os campos
Das colinas dos outeiros
Das várzeas generosas fertilíneas
Aos vales que se estendem as planícies
Sem fim
Desde as montanhas ao mar
Inumeráveis grãos
Que constituem as areias
Toda a natureza que se espraia
Nas rochas nos desertos e nas praias
Você repara
Nas formações iguais
Os padrões que você vê sempre repetidos
Seja no mar
Seja nas extensões intermináveis
Que de outra inácia era enruga a terra
Nas formas ondulantes que a maré
Escorrida deixa nas areias das praias
Você vê
Sempre o mesmo padrão
E conhecido lhe parece que lhe quer indicar
Que a vida é mesmo assim
Feitas de altos o baixos
Sempre supostos
Ainda inesperados
Sempre adivinhados
Intocadas brechas
Mesmo se quando
Em algum detalhe enunciado a quente
E de repente
Assim assimilado como um golpe
Assim cortante e súbito
Olhado a frio no seu conjunto
É no resgate
Daquele padrão imaculado
296
Que a vida se descreve e continua
E uma nova esquina se prefigura na paisagem
De uma cidade de vidro
Um uma colina esconde
Ainda que por pouco tempo
Um jovem vale.
4.
Pese embora ser de fato pedregoso e difícil
E dito com propriedade
Muito pedregoso e muito difícil
O caminho é de modo a que possa ser percorrido
Uns dias vão e outros vêm
Outros terminam e outros se iniciam
E tudo isso acontece
Enquanto você caminha
E afinal
Parece que tudo é normal.
297
Penhascos ou precipícios
Você caminha inteirado
D’ que a vida foi feita assim
E o gosto desidratado
Que o caminho às vezes tem
Quando você vai além
Parece apaziguado
E a boca de quem vem
Tão ímpar enunciado
Revestida de silêncio
Entoando hinos à Lua
Reveste do corpo o ser
Revigora a alma inteira
Destila licor de mel
E ainda que impessoal
Parece doce.
298
Sensitivo ou não
Eventual ou clara e directamente intuitivo
Discretos que sejam os desvios
Desenhados no mapa que em verdade nunca ninguém desenhou
Rasgada a estrada em secundários sentidos
Ou escancarada em sortes em claros símbolos
A verdade do que são
Foram sentidos confundida a sua jura.
Você percorre
As mais inusitadas situações
Embora disponha de um transporte
Que um velho amigo seu de infância e o irmão providenciaram
Foi você
Quem inconscientemente decidiu
Ir a pé pelo caminho mais difícil
Onde se encontram as multidões de deserdados
Negros e brancos
Jovens mulatos que você conhece de outras guerras
A festa e a revolta se misturam
E as multidões se manifestam
Numa demonstração do que parece ser
A forma de uma fúria musical.
299
De uma observação curiosa
Esse duende que você conhece
Mas em quem por intuição jamais confiou
Lhe aparece travestido de uma doce menina
Trajada no preceito
Com uma curta saia plissada de colegial
E uma boca que se apraz teleguiada para encontrar a sua
Desse incidente então começa um jogo de perseguição
De bate e foge
De repulsão e atração intempestiva
Sem que você mesmo perceba o que acontece
Com e de onde veio essa atração indumentária
Que se desencadeia no seu corpo
Você beija mas acredita que não quer beijar
Sente o corpo daquele ente uma menina quase impúbere
E quer mais
O seu caminho parece então agora
Querer ser caminhado
Pelos prados indeléveis da mais franca
Reconhecida e sã sexualidade
Mas em momento algum você esquece
Que está interagindo com um ente
O tal duende que você conhece sim
Mas não confia nele.
300
Fica plasmado
Incorporado ao seu próprio mundo
E que retorna
Aos olhos cruzados e vazios dessas pessoas
Que por um momento encaixam nos seus os olhos delas
É uma tômbola
Uma roda gigante
Da sorte que os seus dias decidiram que seria
O seu regresso.
301
À franca derrocada da matéria
E mesmo o mais precioso dos seus bens
Dos seus parcos haveres o mais querido
O que é mais necessário
Fica comprometido
E a sua tão instante e benfazeja utilidade
Cruel e totalmente inviável
Mas mesmo assim você resiste
Pede a ajuda dos mais novos
Gente que vive da ilusão da comunicação
Garotos vivos e inteligentes
Que se foram transformando em escravos da tecnologia
Algo que você abomina
Mas para cujos valores
Tem vindo a ser
Consecutiva e paulatinamente conquistado.
302
Todas as figuras pouco recomendáveis
Que você alguma vez cruzou na vida
Voltam mancomunadas
Para tentar fazer a sua pele
Ainda e sempre
Chegam até a confinar o seu caminho
A um exíguo canto do qual você não vê e que parece
Não ter saída.
303
A mais dileta e pura em sua vida
Mas o seu telefone celular não funciona
O telemóvel
Como rezava já de antanho a sua antiga língua
São vãs as tentativas inocentes
Que você faz de concertar o que está desconcertado
Até os poucos aliados que você ainda tem
Falam linguagens que você não compreende
E mesmo dos lugares onde por norma
Se recebem bem os peregrinos
Você sai sempre com impressão
De que algo em seu caminho está minado
E que você
Terá que penar muito ainda
Até que alegre possa voltar a caminhar
Pelas estradas de terra ensolaradas.
304
Agora essas figuras súcias que você afinal sabe quem são
Mesmo por trás da subcapa da pintura que lhes realça o rosto
Querem interagir
Mas estão frias
E de agressivos modos temerários
Ainda que de maneira ínvia
Mostram que gostariam da sua companhia
Mas você nunca reagiu bem à intimidação
E reconhece que o caminho
Que você ardoroso pesquisava
E que tantas e tantas vezes encontrou
E outras tantas dele amargamente
Se perdeu e se desencontrou
Só acontece à luz do dia
No vento e no calor das emoções.
5.
Ainda que seja difícil e pedregosamente
O caminho é pedregosa e sempre mais dificilmente
Escancarado na sua frente para que você veja.
305
Você não quer escrever no seu caderno
Nada que não seja verdade
Nada que seja o que seja
Não seja a verdade mais pura
Busca e rebusca palavras
Concatenadas em ritmos
No interior dos quais parece que a verdade poderia estar oculta
Mas quando estuda
O conteúdo esquálido e exíguo das lições
Você percebe que andou entendendo a coisa errada
E que quando
Alguém encontra coisa errada
Talvez seja
Porque não andou procurando a coisa certa.
306
Em sucessivas vezes você entra
Divaga e participa
Não tem mais o seu lugar patenteado
E vê-se ali na contingência
De ter que procurar uma cadeira
Um banco árabe
Talvez mais consentâneo
Com a exótica clausura do lugar.
É tudo igual
Mas você demora para aprender.
307
Nem escutar
Ou que escutando e de ouvindo não ligou
E que não quis escutar o que escutou
Ou não ouviu
Escutou mas não quis definir nem definiu
O que ouviu
Quando afinal
Todas as mensagens queriam apenas nem que você visse
Nem que ouvisse
Que percebesse que tudo é realmente
Resumo resumido e afinal
Cantado e resumindo
O mesmo.
308
Pelas pessoas que inocente ou involuntariamente
Você fascina
Você precisa um dia abrir mão delas
Deixá-las ir
E que não tem talvez dor mais amarga como seja
Aquele em que o ser evanescente perde os filhos
Filhos diletos do amor
Que você brincando e rindo
Espalhou em volta
E que delapidou sem medir gastos nem consequências
Tão só amou
E com amor tão só feliz e abundantemente
Quis aspergir o mundo.
309
Falta de amor ou dinheiro
Nem russos nem francoceltas
Dessa guerra a arte imensa
É pouca p’ra dizer quem
Mas se a dor a fuga alerta
E deixa os sentidos sem
Meus cataplasmas de lírios
Meus andrómacos ritons
Namoram-me a paixão zanza
E eu sinto-me o bardo autor
De uma lenga lenga tansa
Que um exército sincero
De palhaços e acrobatas
Trapezistas e faquires
De sopradores de petróleo
De mastigadores de vidro
Dispara em altifalantes
Contra a tropa do inimigo.
310
Um cada pulso apertando
Mais dois para os tornozelos
Quatro lenços quatro cantos
De dois pés e duas mãos
E nos olhos o romance
Ilegível mas trovante
De uma venda a escuridão
Só ficarão dos encantos
Os balanços quem os der
Dessa guerra quem vencer
Terá esquecido os primórdios
Ficará sem se mover
Todo atado de nós górdios
O militante do ser
Mesmo sem se dar por isso
Dá pinotes de prazer
Se contorcendo amolgado
Todo quase todo atado
Começando a enlouquecer.
311
Você não atinava mais nem por um segundo
Com os fantasmas de uma vã tecnologia
Que posta ao seu dispor se amancebava
Com o gosto de carpir a sua dor.
312
Vem então na direcção da rua
Não sem que no caminho
Passe naquele cocktail
Que é oferecido no fim do espectáculo
Comemorativamente por ter corrido bem
Também de agradecimento aos artistas produtores e directores
E onde um serviçal particularmente estúpido
Pretende tratar você como se fosse lixo
E aí
Você não tem outro remédio
Do que confrontá-lo e sair
Não sem que ao começar
No escuro da noite a descer a rua
O estúpido e os colegas se reúnam
Aí a rua resplandece
Em toda a sua antiga e calcetada indecência
Velhas promessas de salvação
Que você conhece há muito tempo
Vãs literaturas
E outras vaidades que você não tem
Nem mais dificuldade em recusar
Apenas um último pagamento mais lhe é exigido
Quiçá dívida antiga
Esquecida nas derivas do caminho
Em algum canto dos seus nós mais pedregosos
E você paga
Contrariado mas paga
Ainda que
Como todos os indevidos pagamentos
Este tenha que ser feito
À custa de recursos recrutados
Em plano e condições muito difíceis
Mas enfim humilde e respeitoso você paga
E resgatado acorda para a vida.
6.
O que somos não passa na verdade
De um espermatozóide que cresceu
Da forma como o vemos representado
Nas imagens que reproduzem o que se pode ver num microscópio
Aquela cabecinha que é o cérebro
313
E a pequenina cauda
Que depois de crescida é a medula espinal
Nem um nem outra de somenos importância
Para a tarefa a que chamamos ser.
É na verdade um tirano
Que desde o início só quis ser
Invadiu o primeiro óvulo que encontrou
Furou-lhe a pele
E desde aí só se ocupou em existir
Criou o corpo em volta de si mesmo
Uma arquitetura mecânica
Somente destinada a mantê-lo
O tirano
Continuando existindo
Manter sentir e dar reprodução
Àquele ser insólito
Eis a singular finalidade para a qual fomos criados.
314
Seguiu assim esse tirano
Que me sufoca e me explora os fluidos
Martirizando a minha débil existência
Com os ditames que desenhavam seu projecto
Comi inúmeros cadáveres
Que não encontrei repugnantes
Envenenei o sangue
Consistentemente
Dobrei-me e desdobrei-me em empreendimentos
Fodi o mais que pude
E revelado
O que ficou por parecer ser a vã finalidade
Me vi suspenso um pouco acima
Do que também me pareceu
Ser o limite das águas
E ainda que me fosse tão apetecível mergulhar
Permaneci atento.
Mas o caminho
O qual difícil e pedregosamente eu tenho andado
Foi ‘inda jovem noivo assassinado
Dado ao prazer desse tirano incauto.
________________________
LITURGIA E MISTICISMO
(32)
A MULHER
315
O tempo pára e tem um gosto a ferro
E finalmente
O corpo descansado e por um momento quase morto
Fica em contemplação.
316
Todos os músculos e fibras
Todas as linfas
Inebriados por aromas que não são de flores
Cantam e dóceis
Se compadecem
E então
Quando a missa termina vêm p’rá rua
Revigorados e felizes
Porque uma vez mais teve lugar e hora
Teve inocência e momento
O milagre do pão.
(33)
TOMAI E MAMAI TODOS
317
No meu cofrinho sagrado
Mamai como bebés
Doces e esfomeados
Mamai carinhosamente e orando
Puros de toda a maldição do ciúme
Ou mesmo da dor do desamor
Mamai como inocentes
Todo o sabor do meu prazer
Que vos farei brilhar
E vos farei crescer
Na luz do meu eterno incandescer
Mamai do meu cálice sagrado
Beijai-lhe as bordas antes
De copiosamente
Lhes beberdes o vinho
Ide então puros
Livres e limpos das maldades
Com que vos tem a vida amordaçado
Mamai da minha hóstia sagrada
Que eu vos farei sentir
Todo o santo cristal sexualizado
Santo dos santos
Sagrado entumescido e edulcurado
Sabor do meu mistério.
(34)
AS IGREJAS
318
Não deixaram jamais de produzir
Da sua vocação imaterial
A sugestão inolvidável de uma longínqua fé.
Lembram outroras
E são de uma outra missa
O sedutor ainda.
319
1ª
A primeira igrejinha onde eu rezei
Era pequena e branca
Caiada docemente pelo povo
Com uma pele branca e quase transparente
Por fora era apenas uma ermida
Mas por dentro
Ah por dentro…
Era faraónica era total
Era babilónica e definitiva
Quem entrasse nessa igreja inconfundível
Tomado seria por uma adoração mística
Tal e tão forte
Que seria para sempre possuído
Pela devoção e fé de lá voltar
E enquanto eu tive fé e andei perto
Voltei
Muitas e muitas vezes
Até que a minha igrejinha pequenina
Popular e exótica
Por ser tão bonita e insaciável
Deixou de poder conter em si os seus fiéis.
320
Em que a missa tem o seu lugar
O mavioso som com que se pronuncia a liturgia
O tenro sabor dos lábios que articulam
O ritual volátil e cerimonioso
Que nenhuma palavra consegue definir
E o indefinível paladar da hóstia
Que os corações higienizados pela confissão
Podem beijar
Podem configurar o rito
Que se desenha num anseio por uma prova ainda breve
Ou numa certeza inconsciente e inexplicável
Que uma igrejinha quase rural e indecisa
Podem proporcionar.
321
Do mesmo indefectível mistério
A nossa igreja é sempre a mais bonita.
2ª
Uma igreja é um lugar onde se reza
Às vezes sozinho no fundo da capela
Para onde temeroso e tateante
O crente em dias de uma nuvem mística
Sentindo o peso e a tristeza dos seus passos
Sutil e maternalmente é atraído
3ª
Nem sempre a fé é tanta
Ou a igreja tão santa
Que ali se reze e que a reza
Seja retemperadora.
322
Porém a fé sendo pouca não compensa
E o olhar mais que de misticismo santo
Se desfigura em crítica e sulfídrica paixão.
4ª
Tem horas em que pelos afãs da fé
Somos levados a rezar
Não porque uma mística intenção
Nos mobilize a vontade
Mas porque ou o horário do culto
Ou mesmo a devoção dos outros crentes
P’ra dentro da igreja nos atrai.
5ª
No mais tempestuoso e dolorido
Acidulento conflagrar do meu fragor
Aconteceu-me um dia possuir
Um salvo-conduto para entrar
Em uma igreja de um país distante
Distante e próximo como se invulgar
Tivesse há muito
Depois de terramotos e de guerras
E já diminuída de um pilar
Perdido o hábito de que fervorosos crentes
Entrassem nela para orar.
323
Foi-me indicada por um velho peregrino
Que circulava só pelos caminhos
Radicando todos os seus passos
Numa vertigem que corria
Maravilhosa ao invés do chão
E aquele sinal prometedor
De divinos e suaves misticismos
Foi desde logo
Por mim seguido em oração
E despropositada nunciatura.
6ª
De outros países foram muitas as igrejas
Que ao seu culto chamaram os fiéis
Vinham de longe e ao contrário
Da santa imaculada fé dos peregrinos
Eram dos cultos antigos perdição.
Cultos breves
Compactados num êxtase lisérgico
Desmesuradamente aberto e visionário
À imprudente aurora dos sentidos
Às vezes só fingidos os seus hinos
Só transposto e assessorado o adro
Nem tanto nem por isso aos olhos puros
Menos sagrados.
324
7ª
Também já rezei em lojas
No final de um dia de trabalho
Em igreja de pequenas dimensões
Igreja vadia sem tecto nem fundo
No deslumbramento da azáfama
E das transparências
Igreja perdida na intenção da sua fé
Reconduzida a casa por uma paternal forma de liturgia.
8ª
De suaves encantos juvenis
Ricas bibliotecas decifradas
Guardadas em familiar sacristia
Decifradas e expurgadas de impurezas
Pela redenção das escrituras
Os mantos de penumbra ainda vivos
Toldando equivocadas plataformas.
9ª
Em horas de fanáticas andanças
De hinos e empolgadas homilias
Quando já ajudava à missa
E em ocasiões particulares
Me era dada já a oportunidade de cantar
Quando entoada em duo a santa missa
Era perene e bela
Muitas vezes celebrada em pleno ar
Livre de noites estreladas e amenas
Entrei alegremente numa igreja
Transladada de um lugar distante
Que muitos conhecem por Holanda.
325
10ª
Pequena ermida construída no deserto
Cercada de ventos
De urzes rolantes
Camelos e beduínos
É daquelas igrejas onde como às vezes acontece
Rezamos uma única vez
Eu tinha até passado à sua porta
Uns anos antes
Num momento em que a minha alma mística
Carecia particularmente de fé
Por isso e tanto
Não havia ainda entrado ali para rezar
Foi uma missa breve
Sem paramentos e em que a liturgia
Fica reduzida ao ritual fundamental
E cá fora afinal depois da missa
O deserto continua
E venta.
Sente-se o mesmo
E mesmo que seja por momentos
Quase ilusórios como gotas
Perdidas no incomensurável mar da vida
Fica uma marca
Nunca apagada e da fé
Os crentes quando saem para a rua
É paternais
Carregando docilmente e rendidos
Mais luminoso e franco que pequeno
Um Menino Jesus de porcelana
Que um ano e dia
Num ápice eterno ou noutra hora
Tomará vida
326
Na sacristia em que se paramentam
Os sacerdotes de todas as igrejas
Um outro Cristo difundido e imperioso
Que brilha no topo como um íman
De todos os altares.
11ª
Foi de uma vez a vez primeira
Porém anunciadora e tensa
Que uma outra igreja de envoltura preta
Abrigasse também a minha fé.
Porém surpreso
Assisti manso ao invulgar propósito
De estando o crente inteiro varando o templo
Ser na verdade
O edifício quem reza por ele.
12ª
Já nas igrejas das cidades corre um culto
Que se foi tornando fácil de seguir
Qualquer pessoa pode ali rezar
E mesmo os hinos são sempre adivinhados.
327
Mas tem quem passe
E sinta devoção curiosidade
Por tão insólita alusão ao templo
Que a todos toca quase dada antes de dar
E é por isso
Que nesses singulares lugares
Também sincera e quase
Devotamente se reza.
13ª
A primeira vez que a vi
Aquela igreja me pareceu
A mais bonita do mundo
A mais terna e acolhedora
De todas as que eu já houvesse visto
Ia sozinho
Quando não estava lá ninguém
Ficava olhando
Os belos retábulos da nave principal
Mas nunca ficava para a missa
Havia nessa igreja alguma coisa
Que me fascinava
Mas que ao mesmo tempo me oprimia.
328
De tal maneira eu era apaixonado por aquela igreja
Que decidi nunca mais
Assistir missa em outra
Culpava-me a mim mesmo
E à minha falta de fé
E durante anos
Entrava na igreja e orava.
329
Na paliçada feita á pressa
Continuava com afã a catequização
E a estranha igreja em que a missa foi interrompida
Depois da eucaristia extemporaneamente
De forma inesperada e totalmente incomum
Quando todos os crentes esperavam a entrada
De uma procissão decorativa e bela
Aquele espaço sagrado
E até aí sincero e inexpugnável
Foi invadido por membros enfurecidos e possessos
De uma seita
Que em hora aprazada e criteriosamente cumprida
Viriam a se tornar por causas duvidosas
Intensa proclamada e desumanamente
Particularmente violentos.
14ª
Todas as igrejas são feitas para serem belas
Embora haja umas mais belas do que as outras
E a beleza esteja longe de ser coisa improcedente ou fortuita
Por ser inócua ou casual
É das igrejas critério fundamental
Centro fulcral da devoção e do serviço
E uma causa primeira e instrumental
De uma forma superior de inteligência.
330
É então que ao crente é dada a conhecer
Qual é a verdadeira vocação
A transcendente e vital
Quanto maravilhosa intenção
De todo o serviço eclesial.
Aí depois de um tempo
Em que a igreja se reveste
De uma missão ambulatória e campal
Vem ao de cima
O superior mistério causal.
15ª
Há igrejas evangélicas em que se cobra
Onde uma cobra se prefigura
No lugar onde deveria estar um altar-mor.
Nessas igrejas
Nunca em verdade
Me foi realmente dado rezar
Apenas uma ou outra confissão.
E no crescente
E inocentemente ébrio desconsolo
Da viuvez
Tirar um sarro
Na beira de uma estrada.
16ª
Não é o tamanho da igreja
Que determina a profissão
Da sua abençoada função.
Na vida calcorreamos
Estradas ruas e caminhos
E há vezes em que passamos
331
Distraídos por portais
Floridos e bem tratados
Inocentes e benévolos
À nossa passagem não menos inocente.
E é assim
Que de tantas e tantas vezes passar
Há sempre um dia
Em que por qualquer razão
Que não é p’ra’qui chamado perguntar
Em que calados acabamos por entrar
E rezamos.
17ª
Prepassados e mantidos os lutos
De que o desmoronamento de uma igreja sempre chama
É nas alfombras de maternais naves
Outros altares abertos e epifânicos
Que a alma retempera as suas fés
E os pergaminhos mais antigos são lançados
Para um cálido e doce esquecimento.
332
Ainda que parcas em vitrais
De pálidos enfeites
E curtas dimensões
Essas igrejas são pura e singular-
mente evidentes
Na forma como asseguram que a função
Maravilhosa função à qual são destinadas
Se exerça com total capacidade
A ponto de em momentos de rigor
Serem da sua confissão total penhor.
18ª
Em todas as igrejas em que se entra
Fatal seria que uma vez ou outra
Por algum enevoado ou incontido
Desses incontáveis desígnios da fé
Se entrasse mais uma vez
Ainda que cada igreja seja muito mais votiva
Quando é adentrada pela primeira vez
E então em repetidas e mais devotas vezes
Se reza nela.
19ª
Existem igrejas imponentes
A que chamamos catedrais
Elas são lindas
Por vezes são austeras
Construídas laboriosamente
Por operários livres
Muito qualificados.
333
Tão maravilhoso e sólido
Que nos parece indiferente
Mas somos nós afinal que estamos cegos
Por uma luz muito rara e racional
Que emana permanente e natural
Da aparente frieza do lugar
São vitrais feitos de olhos humanos
Que como sóis
Nos iluminam a alma.
334
Que transformam cada momento da vida
Cada respiração dos sentidos
Em missas procissões e homilias
Sermões inteiros confissões
Cada pensamento em uma epifania
E a vida em geral numa oração.
20ª
No caminho inusitado e quase desumano
De um peregrino
Nunca se sabe qual será a última parada
Antes da última sabemos
Que existe uma penúltima vez
Sim talvez saibamos mas depois
Como poderemos saber o que vem depois da última
Se nem sequer uma palavra possuímos
Para dizer tal coisa infausta e atrevida.
335
Colunas sumptuosas que me fascinavam
E onde rezei piedoso e brando
Aquela me pareceu pobre e a minha fé
Foi finalmente ali
Triste e clamorosamente posta em causa.
21ª
Por onde em périplos e agonias
Me foi dado visitar igrejas
As visitei em todas as semânticas
Todas as paisagens todas as latitudes
De norte a sul indaguei o penhor da minha fé
Orações orei de agrestes dialectos e tons
Francófonas e bávaras
Espanholas africanas transcaucásicas
De continentes longínquos
Feitas de pedras sólidas ou barros
De cores diversas e iluminadas
E de tanta singular diversidade
Me doeu
Entrar igrejas em que não queria estar
Adentrar naves devassar altares
Insípidos e esguios
Como uma tropa
De ariana e voluntária qualidade.
336
Mas mesmo quando amarga
Mesmo que falsa e descrente a oração
O corpo mais que à vida há pertinência
Que o pensamento aprenda a dizer não.
(35)
UMA IGREJA IMAGINÁRIA
1.
A Anémona
337
É um calor real
Fora da temperatura
Possui mil olhos eternos a piscar
E a sua forma de existir é pulsar
E pulsando se sentir existir
E existindo se dar.
É evangelho
É boa nova
Uma verdade jovem
E eterna.
A anémona
A anèmoninha
Se se lhe toca ela sente
E eu nem sei o que sinto
Quando ela sente que eu sinto
O que ela sente.
2.
A Sereia
338
Da solidão mundana
Vive a sereia
Esquecida e encantada
Dos pescadores esculpida
A alma em pensamentos só distância e maresia
De um ritual cantado em versos cavos
Que a razão pura iguala
Escrava e porfíria
Cantando se compraz em não ouvir
Escutando os ecos do salmo em que se encanta
Encanta se encantando
Sujeita sujeitando
Escrava e senhora
Fautora e serva
Escrava de si e do que é mais
Um violento e singular encantamento.
339
A Iara quente das tépidas águas outonais
Brilhos dançantes
Fragmentos de mitologias antes
Cantadas em odes cintilantes
Que ao deslumbrado ouvinte nem deixam respirar
Águas passadas
Tépidas fortes
Zodiacais
Madrasta das bastardas imponências
Derrama e leva as vítimas mortais
Plasmada de imprudências
Em transe esfomeada e exaurida
Da lua hipotecada vida vem lamber.
3.
A Onça pintada
Onça pintada
Jaguar jaguaretê
Canguçu acanguçu
Onça pintada a onça
Por todos conhecida por pintada
P’ra poucos ou nenhuns
Jaguarapinima
A onça
Um esgar inconfundível
Uma assanhada risada
Uma ousadia
Que me comove
Me traz uma surpresa
Mas não me assusta
Que surpreende sim
Mas que me entesa
Que me seduz…
Clamor em doido
Sombras quentes
Calor em ânsia
Saltos no dentro
Interiores voluptuosidades
Recanto escuro
De uma interábil ciência
Águas paradas e
Clareiras muito densas
Humidade
Sabedoria
De lugares frescos
Em transe havidos
Mesmerizados
Na selva.
340
Salve cadê
Me olha lá
Onde eu não estou
Não sei em qual momento
Sei ficar e fico quieto
Sinto que vou fugir
A minha ânsia quer fugir
É o meu medo
Virado em ânsia que me assusta
Mas não…
Quero ficar
Socar o grito
Fazer muito ser ficar silêncio
Cerrar os dentes e sentir
No centro interelétrico do peito
Sentir no tempo
Esse durar do olhar.
Então é frega
Mundo virado
Suado e franco
Pára o sentido
Intenso e manso
Que da maior
Mais bela e sã
Caçada e luta natural folia
É uma fera
Vai me comer.
341
4.
Cavalos de Corrida
5.
A égua
Tem e terá
Agora e sempre tudo
Tem e terá e para sempre
Certo que existirá
Ter outras coisas no mundo
Mas tem a égua
A negra poldra
Da qual um garanhão ter sido o pai
Casta o castigo
Que ela arreganha presos arreios nos dentes
Dos beiços hirtos
Dos olhos cavos
Dos tresloucados uivos que ela grita
Tem a égua
A negra poldra
Acreditai oh incrédulos
Tem sim.
342
6.
A Cobra e a Paca
7.
A Ostra
343
Na calorosa base
Do ventre
Amante que enlouquece ao toque amado
E se derrete
À espetativa demente e molhada da tarefa
Que alarga as águas livres e revoltas
No fundo escuro da gruta
Que é de onde brotam os eflúvios
Os caudalosos rios do mais sagrado e lúcido desejo
O claro delírio do clamor
De ao ver a tarefa executada
Fazer o que faz o tarefeiro
Ver os riachos e as cachoeiras convertendo-se em prazer
Quando os peixinhos saltam
Dentro da sua barriga
E a zagaia colorida toca o fundo
O fundo insaciável
O indecente e delicado interior profundo
Enclausurado e sensível que você tem como ninguém.
8.
A Manga Rosa
344
9.
O pardal mascarado
(36)
AS MULHERES
Mulheres existem
Como se diz há muitas
Incontáveis
É nelas que me leio
Nelas me viro
Inverso do avesso dos seus beijos
Na transparência das virtudes e das propriedades
De seus peculiares comportamentos.
345
Há mulheres que olham para mim
Pensando que sou eu
Quem
Ou por desmando ou por desejo
Olha p‘ra elas.
Dessas mulheres
Algumas por educação ou timidez
Desviam o olhar e ficam a pensar
Pensam que sou atrevido
Ou que se pudesse
As quereria seduzir
Outras
Elas próprias
Por sentimento ou dúvida
Fixam em mim o seu olhar e resistindo
Me pedem para ser eu a desviar
O meu olhar
Ou então me perguntam
Porquê
Saber não sei
Mas seja fé
São essas que me atraem
As que eu desejo
Aquelas em que eu me acho e espelho
E que em horas
Por imperiosidade ou inocência
Tenho tendência para inocente amar.
346
Que de uma igreja
Onde se tenha ativa e efetivamente rezado
Nunca se sai
Nunca se sairá
Apenas esquecemos o encanto
Com que em um dia obnubilado e difuso ali rezámos.
(37)
DEVOÇÃO
(38)
AS SANTAS
Mulher é dar
É dito ser
Que santas são mulheres fazem milagres
São extasiáticas e glicerinas
E algumas dão nomes a igrejas.
347
Conheci santas na vida
E das quais
Inquestionável é
A pureza dos milagres que fizeram
Poderia sem pudor dizer seus nomes
Stª Cristina Stª Ana Stª Paula
Nossa senhora
Aparecida ou a de Fátima como a filha do profeta
De qualquer nome seriam
E para todas elas
Haveria um nomeado ser
Relevando-lhes na tépida inocência
A glabra santidade e o viver
Para todas as santas teria e tem um nome
E para todos os nomes uma santa tem também
Não me cabe a mim porém julgar
Da santidade delas
Julgar é o que fazem as igrejas
Em que as mulheres que eu julgo não são santas.
348
Entre santas e beatas
Aconteceu acontece
Uma coisa inesperada
Ou muito querida
Fiz promessas paguei coisas
Dei presentes interessados
Mas o colo dessa moça
Eu não pedi foi-me dado
Não interessa quanto é grande
Nem pequena interessa tanto
É sempre bela
Mas a beleza é sabido
Está nos olhos de quem vê
Nos olhos de quem implora
Mais ainda se esses olhos
Não estão implorando nada
Terezas Anas Rafaelas
Todos os nomes do mundo
De olhos vorazes ou puros
Que apenas imploram nuas
Serem um milagre vivo.
Quando ela dá
Sublime e transcendental
Aquela da qual foi dito
Que foi incontáveis vezes
Configurada na vida
Vira santa e dá o nome
A uma total igreja
Beata primeiro e santa
Depois de reconstituída
349
A força dos seus milagres
Das bases até ao topo
Vira templo vira igreja
E o mundo brilha e extasia
Quando em dias de recanto e maravilha
Em noites maravilhosas
Noites e noites a fio
Dias e noites seguidos
De uma vida
Entra nela amante e mágica
A graça esplendorosa
De todas a mais garbosa
A mais sublime e carnal
A mais total
De todas as profissões
Que da fé são prova viva
Entra nela aos empurrões
Sem cerimónias nem ritos
Alegre intensa e festiva
Sem preconceitos nem mitos
A graça subtil e breve
Das procissões.
(39)
O MONASTÉRIO
1.
O Deserto
350
A euforia e os desmandos
Da fé em uma igreja aberta ao culto
E paradigmáticos seu altar e colunatas
Haviam sido agora postergados
Ao mais inconsistente esquecimento
E em seu lugar se estabelecia agora
Indefinível e tépida
Uma medíocre sonolência
Uma estrutura mole e sustentada
Por morna ladainha filha
De uma bizarra e narcótica crendice
Por liturgias e práticas
De uma abjeta e vã inocuidade.
351
2.
A Peregrinação
Se precisava aí da verdadeira fé
Uma improvável já e incomparável manifestação
Daquela vocação religiosa
Que só a verdadeira e genuína santidade
Providencia
E apenas a sincera devoção
Pode dar nome
De anátemas e crenças libertária
Ser a palavra
A força viva
A cândida paixão
E da veraz e pura salvação
A intenção
Da mais pura nudez que da alma faça prova
A alimentação
E do alimento a nutriente chama
Ser providenciada.
352
A pouco e pouco e com algum pudor
Foram os velhos símbolos vieiras e cajados
Os alfarrábios
Os pergaminhos
Os doentios besouros da obscurantícia
Sendo refeitos por eléctricos desígnios
E de distâncias antes inimagináveis
Chegava agora a pertinência dos atos.
3.
O Monastério
O monastério
É uma prática
Uma atitude viva
Que se pratica num mosteiro
O monastério é uma igreja permanente
Em que se mora lá dentro
Um culto enfático e sincero
Um mosteiro inteiro que se constrói
No alto de uma montanha sobranceira à vida
É uma igreja
Onde o sacerdote se funde com o templo
E tem em volta
Casas e dormitórios
Hortas e prados
E a alma sente-se lá bem.
353
Quando a igreja se converte
Na máxima ambição de humanidade
Quer-se morar dentro dela
E em volta construímos uma casa
É o mosteiro
E nele se pratica o Monastério
São campos e vales que regurgitam primavera
E primaveras inteiras de inteira e verdadeira felicidade
Todos e cada um dos monges sabem
Os lugares onde se come e bebe
As horas em que os músculos se distendem e se reza
Aquelas em que os nervos uivam
E a paixão religiosa se espalha pelo sangue
Dias e dias de repetidos dias
Em que a devoção parece ainda querer oprimir o peito
Mas que um sorriso de clara beatitude transforma em conjunção.
3.1.
A epifania
354
Em temperaturas nunca antes suportadas
Como se de uma retorta de alquimista fosse a massa
Meu ser inteiro desvanecido em maravilha
Minha alma em luz
Perante a imensidão e congruência
O mar de espaço todo certo
Tudo arranjado em linhas
De uma geometria feita de arte e de coincidência.
3.2.
A devoção sincera
355
Todas as formas se tornaram para mim
Invisíveis aos olhos e ao espírito
Só as da santa da minha devoção
A que houvera sem mapa decifrado o meu mistério
Me iluminavam agora as veredas da procura
Busca infinita e nunca terminada
Em que a meu lado para sempre e doravante
Uma deusa feita de carne e cor testemunhava.
3.3.
A ascensão de nossa senhora
Eu vi
Aquela mulher imaculada
Alçada aos céus envolta em flâmulas de delirante ardor
Farrapos de vapor
Senti
Calores corpóreos decantados
De uma volúpia sagrada e ao mesmo tempo
Profana
Coisas maiores que a vida
Que a alma
Coisas maiores que os nervos e que as fibras
Que do interior da carne
Chamam os crentes para a oração.
356
Transportando com ela tudo o que se lhe chegasse ou fosse próximo
Brilhando nas alturas
Fluindo nas fissuras em que se esgueiram emoção e sentimento
E sobranceira
Espalhando luz sobre a essência da fé.
357
Eu e os meus nervos
Todos os mistérios
Todos os místicos anseios
E à saída da missa
Fomos ao campo trabalhar
Na nossa santa e fina agricultura
Plantámos couves e limões
E junto de uma pedra me senti
Uma vez que nela me sentei
Possuído por um estranho e poderoso afã
Como se aquele lugar me pertencesse e eu pertencesse a ele
E fosse até mais ele do que eu quem pretendesse
Que eu ali rezasse
Que ali ficasse
Que ali voltasse
E eu voltei todos os dias
Aí então rezei como jamais…
epílogo
(40)
SE EU SOUBESSE O QUE SEI HOJE
358
Das mesmas coisas passadas
Em dias de horas perdidas
Que jamais as horas tidas
As que foram com sabor
Efectivas concludentes
Inutilmente vividas
Teria eu
Perguntando
Mesmo impossíveis e tolas
Querido vivê-las diferentes.
II
Vivê-las tolas
Todas essas coisas tidas
Por erradas em vividas
Que deram mau resultado
Passada a transformação
Que transfigura ligeiras
Causas em consequências
E por um critério vago
Analisadas medidas
Por valores…
Esses valores não discuto
Nem não as decisões julgo
Só me interrogo
Se as lições que permitiram
Julgar erradas as causas
Dadas por adquiridas
Teriam sido possíveis
Sem terem sido sofridas
As consequências ditas
Ou se os medos
Os preconceitos e credos
Gargalhadas congeladas
De uma existência postiça
Cegos e impenitentes
Julgam tementes
As sombras de encantos idos
Intensamente vividos
Mas doentes.
III
359
As dúvidas as patranhas
Idas prò céu
Dos pardalitos vitorinos
Das virgens puras
Aminoácidas
De que me arrependeria
Afinal eu se pudesse
Dos erros ultrapassados
Dos passados conjuntivos
E em que tempo
Em que tempo eu poderia
Perguntando
Arrepender-me dos erros
Se houvesse querido fazê-lo
Não existe um tempo assim
Existe apenas agora
E já passou.
IV
360
BRASIL I
CANTOS BRASILEIROS
361
Cresceu-me o pelo das bruxas numa ilharga
Noutra o meu selo perdeu ventura
Triturando o silencio que perdura
Revejo (olhando) o céu a derramar a carga
362
VERA CRUZ
(ou o verdadeiro homem)
Ainda assim
Quando depois de tanto mar e céu
Dormentes e curiosos como de uma sede
Deslumbrados e inocentes como de uma travessura de crianças
Quando por fim depois de tanta luta
Aos nossos pés quase insensíveis e cruéis
363
Brutais e indecisos
Foi dado enfim pisar a terra
Já era tarde
E ficámos um momento em que parados
Aguardámos silentes pelo dia.
Fomos e imos
Imos e fomos
Numa permanente e insaciável
Apetência pelo novo
Mas demorámos
E por um prolongado instante horror e dúvida
Habitaram o morno em nossos corações
Parece fácil
Largar de ovelhas
Doces pastagens
Correr vorazes
Entre matilhas
De outras paragens
Mas as viagens
São sempre o ir que nunca se despede
Vai
E deixa ser a saudade do ser que nunca foi.
364
Fizemos sementes que mais tarde
Plantámos abundantemente na terra
E então as coisas vistas nos pareceram
De um só olhar banais e deslumbrantes
Um morro quase redondo
Todo toucadinho de vegetação
Árvores enormes
De longe não mais do que um tricot
Como nós amámos essa terra
Invisível quando abraçada perto
Como nos debruçámos nela até queimá-la
Marcada e possuída como uma mulher
Que não se trabalhou para conquistar
Como poderíamos nós não tê-la amado?
Se ela nos engoliu inteiros até ao escroto
E nos fez seus e devagar
Foi digerindo os nossos ossos e nos fez dela emergir
Antes de nos vomitar.
365
E os olhos encheram-se de nuvens
E um dia em que caminhámos indiferentes
Arrancámos do peito a epifania.
Da ida ao ir
Voltar ao sol
Cavando claras as distâncias cavas
Certezas que de ser nunca souberam.
AS BANDEIRAS
Quis o acaso
O apogeu da fama
O vão destino
O inefável selo da história
O imponderável
E que de muitos humanos o sangrento
E negro fado
Fosse o de levar à terra sutil forma
De coração andante
P’ra lá das latitudes definidas
O chão foi desenhado
Por elas mesmas
Essas
Armadas de vorazes vaticínios
Amadas intenções
Desesperadas brenhas esquecidas.
366
1ª
Doze bandeiras flutuaram no ocaso
De um giro inteiro que se deu voltando ao mundo
A primeira que chegou húmida e fria
Era de um templo invisível que flutua
E tinha ainda a marca indelével de um sonho
Que se sonhou numa terra árida e estranha
Onde não existia nada
Renascendo com energia inexplicável
P’ra despertar numa em que havia tudo
Singrando nela desde os alvores da madrugada.
2ª
As naus eram do rei
Antes do santo os construtores talharam
Uma arquitetura indestrutível mas leve
Era o filho do rei quem comandava
De longe o sonho que o mar cuspiu
E as naus do engenheiro irmão do santo e pai da pátria
Indistintiva alegoria em que se arquitetou o mundo
Vogando sempre adiante e sem destino
O destino encoberto que vogavam
As naus em tempestade e calmaria eram contudo
Do rei
Quem as mandava e pagava e conhecia
Fazia transportar na sua ilharga
A marca dos castelos e das quinas
E nas esquinas do mundo então reconhecido
As marcas do poder e do dinheiro.
3ª
Donatários de um reino impositivo
Relegados de longe p’ra nenhures
Quando chegámos nada disso nos foi dito
A vida era normal e a cruzada
Já estava há muito tempo arruinada
O templo três vezes destruído e três erguido
Navegava agora em direcção ao nunca
Nossos irmãos de antanho
Expulsos traídos
Esventrados e vendidos a vontades estrangeiras
Deambulando aflitos em estranhas terras
Onde depois e antes se confundem
A vontade e o ser que nunca erra
Eram de bodos as bandeiras
E a terceira
Já era só do rei não tinha cruz.
367
Na sórdida penumbra dos palácios
Que da longínqua europa ousavam a distância
Da sinagoga grande os construtores
Haveriam do mar a operação
Financiar apoderados crivos
As mercenárias torres flutuantes
Mobilizadas entre hordas maltrapilhas
Tordesilhamente carentes de paixão
Poucos mas logo eretos aos milhões
Formados de vontades fermentadas
Em tórridas ferventes colossais decantações
De pobres de ladrões e de toureiros
Que às antigas invejas vão propor.
4ª
Um estranho rei de estranha lábia e espúria geração
Fruto de uma intrincada e não sã genealogia
Que a nós farpas errantes pouco ou nada
Longe ou veladamente já dizia
Fomos das mãos de antanho judiciais e independentes.
368
De uma encomenda ao Pernambuco olhada
O vão desdém
Estirada a terra
Chupada estarrecida e guerreada
Saqueada
Entre franceses e filhos de holandeses dirimida
A mentirosa garra dos castelos
Dos castelhanos
Mais que a papal justiça os desenganos
Açucarados trilhos bolsa rasa
Fez perigosa e grave a luzidia gente
Que a fama do cristal mais que a certeza
Do mando a consciência clara obnubilou.
369
A pura a que a ganância não sustenta
E nessa voz
Fez retinir a valsa da vingança
E aos doutores da lei e da finança
Aos diplomatas
Lhes fez cair a máscara e à justiça
A venda da cegueira e a balança.
5ª
Restaurada a pátria dor longínqua
Esquecida de seus filhos sem memória
Diluída nas fráguas de uma lei
Que imperturbável ao clamor razão havida
Havia a vida havida a noite e seduzida
E os sortilégios da palavra em que era dita
Mas não da de outro rei havia ainda
De ser a vida não cumprida
A vida inteira de uma lei longe perdida.
370
Desse destino a fama ainda entoa
Em éclogas cantadas e delírios
Sonhadas honras delirantes hinos
Interiores e vistas fantasias
De um superior destino
Uma missão
Enobrecida a raça multitudinária da razão
De toda a humana miscigenação
O super homem nascido em frescas folhas
De erva da forte e vibrante
Imaculada e sensacional forma
Do descarnado humano coração.
6ª
Cento e quarenta anos cinco enxutos
De uma ultra outra terra «deslumbrante e bela»
Crescente e forte em frente aos nossos olhos
Que o sol do esquecimento a alma frita
Olhos de passarinhos
Passo adiante
Os cravos sanguinários da desdita
Incumprimento ausente
Traição estreita
Do mundo emancipado é já presente
A escrita
O escudo que o futuro não libertou
Ainda ardente
O facho insaciado da clausura
Ostenta e breve
Reamaciando da forma a mais escorreita
Clamando ao ar sem vento
Sentindo aos peitos e dizendo
Agora é que começa a história verdadeira.
371
Do outro rei sabíamos que assim
Como uma puta gorda e cheia de vontades
Só queria mesmo já
Comer adiantar o pagamento e ser fodida
Como querem e são todas as putas
Fazia contas
E desenhava planos
Terceirizava
Entregando aos brutos e aos invejosos
Tesouros paraísos e em ilhas
De imaginárias lendas cavalheiras
O cálido regaço das filhas.
7ª
Barros Palheta e Sá entontecidos
Por enseadas largo inusitadas
De um imperial e feliz deslumbramento
Rasgos de crase
E de dramática e parácleta noção
De dimensão
Subiram sem subir um rio imenso
Foram subindo
Mergulhando no espanto sempre e mais
Na boca de uma funda e misteriosa ausência
De uma fatal e feroz incongruência
Que aos olhos e aos mapas deu e dá distância
Faz dos homens formigas de uma ânsia
Que os continentes faz parecer pequenos.
372
De outros engodos os reis acreditaram
Ser das entradas virgem santa a compensada
Martirizada rota repetida
Na sombra de uma luz inviolada
Vivida e revivida em sonhos mergulhada
A massa amorfa do âmago da terra.
Escavada em ângulos
Escavados sulcos de agressivas torres
Rasgadas as falhas na muralha
Para os canhões
Como de vedras pontes vedras torres
Vértices astronómicos tidos quatro
Que a rosa desenhou na ventania
E um maior que a terra desenhou ao norte insólito
Que quer saber
Que sempre sabe
Que o mal que nos ataca
O crer que nos perturba
Pode não vir do mar.
373
Pode ser que nem venha do olhar
Que não nos deixa ver por entre as frestas
De uma guarita aberta à sentinela
O ângulo escuro
Não somos nós aqui historiador
Nem nossas lavras estas vademecum
Mas tem nesta parede uma verdade
E tem nesta guarita um ângulo cego
Um feio fascinante e imprefixo animal exótico
Que mede e gerencia comigo os territórios.
374
Nos luminários postiços
De épocas ‘inda vindouras
Despedaçados em trilhos
Aberrações e fráguas recalendarizadas
Fora do tempo e do ritmo
Que fôra combinado.
São passacalhas
Que o tempo mata
E de alegrias futuras
As bombardas.
375
Do mais os passos dos canhões jovem muralha
São de morar no coração a cruz da guerra.
8ª
Bandeiras são pedaços
De roupa arquivalendo os corpos nus
Bandeiras bandeiradas bandeirantes
Ou como outrora a sina clara
A custosa vontade e a coragem
De desbravar e ir p’ro interior bandeirar.
Bandeiras e caprichos
Protelados
De a lei nunca cumprir e ser do senhorio
Algoz e refratário.
9ª
Raiados de uma esperança nunca tida
Volvidos aos ensejos
De cálidos desejos sensuais
Multiplicadas formas de apanágios
Da harmonia final nunca esquecidos
Uma canção de ecos e anseios meridionais
Da algarvia fama repetição tardia
Da música das ondas
Em cantorias
E ritmos de vértebras sadias
Que a maré da aventura inflama
E que potentemente
Foram p’ra sempre exultados jamais mudos
Os cantos e os cantores
Os percursores dessa tão doce melodia
De que em toadas francas a maneira abrupta
Toldada nunca mais repetiria.
10ª
Talvez um ano seja curto na medida
Em que se mede o tempo nos anais da história
A chuva cai encharca a terra revivifica a flôr
E pode durar só cinco minutos.
376
Augúrios tantos de uma lei se constitui
O que a beleza adeja flutuando ao vento
Soprando o cheiro de uma inconstituida morte lenta
Prova cabal de uma intuição já muito antiga
Que é ser a alma deslumbrada e reperdida.
11ª
Castro Alves na Bahia
Gonçalves no Maranhão
Ditos e cantos forjados
Nas chamas da combustão
De uma fogueira sagrada
Das almas dos homens puros
Dos impuros das mulheres
Dos mulatos dos cristãos
Dos animistas dos gonzos
Dos que não sabem que o são
Dos revoltados dos sãos
Dos que sempiternamente
Procuram a solução
Se faz o pão da ideia
Do que seja uma nação.
377
Do resto reza a lógica intelecta
Que são interesses
De poder e de dinheiro
De cupidez de impostos impropérios
De insidiosa e anglo magna inveja
Que mar nunca será profundo o suficiente
P’ra resgatar do fundo ao louco altar
A infusão insólita
A ironia implícita
A imperfeita clama
De que se fez
O despregado e cru
Exílio inaudito
Do nobre e puro coração do imperador.
12ª
Ai América América
Ai América
Quanto tempo ao norte os negros livres
E a promessa
De um templo que afinal não tem saída
Da fama testemunhos viu chegarem
Ao fim dos seus patrícios a medida.
378
Como configurar o tempo
Em que um destino
Maior e avassalador terá tamanho e condução
Destino de pulsar o coração da humanidade
E ser o coração do homem nnovo
O útero das pátrias diluídas
E a soma genital do superhomem
Em boa mente
P’ra tão grande destino o tempo é curto.
A DÉCIMA TERCEIRA
HINOS
I
379
Ainda que em horrores encarniçados
Sujeitos e no tronco da cruz por fim testados
Mais que de um cálice refeitos
De uma baixela inteira
À força da bruteza sem razão
Fizeram da dor sofrida em pena
O mantram da humana condição
E das entranhas gritos ainda sufocados
Silêncios sub-surdos
Com estalidos
De cantos inauditos e sagrados.
Ecoam hinos
Faltam pedaços
De um negro fado ao tempo
Nunca resgatado
E a história continua impenitente
Rangendo os dentes à dor e á desdita
Sem penitência
Trajando na decência
Os alvos vivos da dor da paciência.
II
De um rei o mar
E do seu príncipe
A terra.
De um voo claro o ar
E do seu arco
O céu.
De um adultério o bem
De um amor casto
O fim.
380
Fazer doces augúrios ao porvir
Ter a ciência e a arte
De tocar.
III
IV
381
V
Parece um minuete
Uma dança
Palaciana mas na mata
Nas margens e paisagens de uma esperança.
A Pátria
Berço de amores e de amantes
Mesmo quando vária
Amada como nunca antes.
382
ÁGUAS ZODIACAIS
II
383
Os sentidos todos juntos
Ouvidos olhos nariz
Na boca o gosto do sangue
De uma existência feliz.
A frescura da humidade
O cheiro da casca das árvores
Na ponta aguda dos dedos
No arrepiar dos pelos
A sensibilidade.
III
384
Nem nos do coração
Em nenhum outro lugar
Com nenhuns olhos que eu tenha
Eu vi jamais
De longe a íngreme penha
De perto o selo e a senha
Visto a distância ou clausura
Com olhos vivos e quietos
Remanescendo de mim
Por serem certos
Eu vi em dias ‘stivais
Em invernos tropicais
A força remanescente
Das águas zodiacais.
II
385
Passado tanto tempo e tão distante
Quis recompor os laços ‘sfarrapados
Recomeçar essa paixão cantante
III
IV
A emoção já vivida
Que a dor não deixou esquecer
Ei-la de novo trazida
386
V
VI
387
VII
VIII
388
IX
389
XI
XII
390
XIII
XIV
391
XV
XVI
392
XVII
POEMA INCOMPLETO
1.
Atar e desatar nós
Tarefa de marinheiro
Na calmaria do barco
Enlaçar os sentimentos
Segundo traços eternos
Que provaram eficácia
Repetindo a operação
De cada vez apertada
Com mais força e energia
Depois de atar desatar
Ficar com as fibras lassas
Para voltar a enlaçá-las
Noutra corda de outra nau
Uma embarcação perdida
No vazio de um mar parado
Logo vem a tempestade
A operação se repete
E essa fugaz atadura
Vai se tornando uma gaze
De um cordame esfarelado e putrefacto.
393
2.
Passa nas águas um cheiro
Forma-se no céu um arco
Parece que por momentos
Doces abraços maternos
Como cor de flores de acácia
Envolvem o coração
Numa forma mais namorada
De juvenil alegria
Dada à ventura de amar
Por atos cantos e graças
Nunca se pode alcançá-las
Sensíveis até um grau
Desconhecido na vida
O sonho enfim libertado
Na torpe realidade
Nenhuma dor submete
Nenhuma ânsia tortura
E mesmo sendo só quase
Impercetível ao tacto
E os corações amantes nunca ficam sós.
3.
Fundem-se ali a comarca e o comarco
Lânguidos braços lentos
Olhos ternos
Que antes olhavam o sol com pertinácia
Rangem sem dentes uma inútil oração
Por outros decorada
Como se fosse uma alegoria
De uma outra verdadeira e singular
Que um dia uniu e inspirou todas as raças
Nessa alegoria antes de separá-las
E entre as costas e o pau
Essa oração já esquecida
Num sacrário violado
Vai fingindo a vã sinceridade
De um dia que se promete
Ser o da alegria da aventura
A qual se reconhece ser a base
De toda a inspiração do jovem acto
E a aventura se torna uma tragédia atroz
Quando o mar desnorteia o aventureiro.
4.
No mar entre o fragor dos ventos
Céus e infernos
Deixam a dor doer com contumácia
E num último ribombar do vil trovão
Deixam a calma estarrecer parada
394
A alma mia
Em volta a barca ‘inda quer navegar
Mas está longe muitas braças
E ondas quem pudesse abraçá-las
Subi-las uma a uma como líquido degrau
Que a débil ajuda de uma vara partida
Tornasse inútil e o farnel molhado
Remanescesse da inutilidade
E a farda imaculada do grumete
Ficasse roxa de desenvoltura
Singrando ali mais uma fase
Daquele destino sente o impacto
P’rà vida toda e antes e após
O ato definiu como atroz e traiçoeiro
Conforme anunciou Gonçalves Zarco.
5.
Bailes modernos
De vento e perspicácia
Ainda parafraseiam a canção
Tentando decifrar o nada
A forma e a simpatia
Indefinível de um quasar
Perdido entre infinitas massas
Não no universo mas nas valas
Onde um feiticeiro atormentado e mau
Foi condenado p’ra sempre à despedida
Remando um barco acrisolado
Numa inútil e vã procura da idoneidade
Que lhe pudesse impor outro ferrete
Que não fizesse dele a escrava criatura
Toldando irreversivelmente aquele quase
Transforma-o em um rato
Sequer as lesmas lhe ouvem a voz
Esquecida a canção do carpinteiro
Só se sente o dentro muito parco
E a vida o abandona entre vapores nojentos.
6.
Poderia até parecer audácia
Mas infeliz é comiseração
E à mentira muito aparentada
Essa forma peculiar de anemia
Uma dor fraca e dolente que não quer lutar
Bebendo vinho em lúgubres devassas
O corpo todo suportado em talas
E na boca um gosto de cacau
Do caroço de uma fruta já espremida
Roído e amargado
Até ao sumo de uma eternidade
395
Já sem graça fulgor nem sainete
Já sem verniz já sem pintura
Nem paradigma algum com que se case
O coração timorato
Uma ainda débil e fatal casca de noz
Que o navegante agora de um ribeiro
Ainda sustentava como um marco
Dos seus anteriores caminhamentos
E que afinal o conduziu a estes desgovernos.
7.
Aquela estranha opção
Um dia tida e assaz amada
De uma impulsão vadia
Destituída da função de respirar
Feita de frágeis ameaças
E do medo enfim de suportá-las
Medo da palmatória do quinau
Em que se consegue medir toda a medida
Por escolha própria beber um leite já toldado
E postergando a fímbria da verdade
Vai de arrecuas finge que pinta o sete
Mas na verdade já mal se segura
Gordo e disforme amassa a base
Cobarde e finalmente faz um trato
Então lhe aperta a laringe um gesto mais feroz
Que uma velha canção de viandeiro
Reincarnando em si mais um plutarco
Que de si próprio solta seus lamentos
Biografando os tons dos seus olhares hodiernos
Na casca transparente da falácia.
8.
Da sua vela faz tempo já rasgada
Sente-se ainda uma impressão sadia
Uma última esperança permite acreditar
Que se deixa vislumbrar entre caraças
De monstros de cadáveres negras salas
Comuns aos pesadelos e ao escambau
Com que se armou a mão do fratricida
Um quase imperceptível recanto iluminado
De uma fugaz e estranha luminosidade
A qual deseja um olho que interprete
Daquela mensagem a lisura
A forma pura de uma frase
Que por agora lhe sirva de contrato
De uma jornada alegre e reinadia
Borda uma estrela no esburacado albornoz
E segue o seu caminho prazenteiro
Ainda trôpego do seu eixo narco
396
Enfeitiçado por dúbios sedimentos
Mornos engodos de antigos colos avernos
Que fazem do amor uma farmácia
Onde se dispensam remédios de antemão.
9.
Da sua louca ilusão não se desvia
Irá até onde o ardor aguentar
Como uma ave enganada por negaças
Deambulando em avenidas entre alas
Canções de noa noa e tupapao…
Esparramadas nas ilusões da ida
Faróis acesos em largo céu estrelado
Rasgando ao rosto o sal da liberdade
Onde nem um pensamento se intromete
Uma impressão maior uma frescura
Uma indefinição que para lá de um quase
Sem anúncio sem alarde ou aparato
Esquece-se a alma perdida das avós
Sente-se uma aragem que abana o corpo inteiro
Quase sem sangue e dependendo de apossarco
O magro e exaurido marinheiro uivos sedentos
Marítimos e húmidos salgados sempiternos
Penhores obscuros dessa mortal audácia
Que mantém viva a funcional transmigração
Em que se tem a vida transviada.
10.
Pesadelo e morte ir e voltar
Ter dor e sentir frio passar as passas
As do Algarve e essas aumentá-las
Nunca exigindo mais ao escravo jau
Que a curta esmola e a ladainha repetida
Ao seu senhor fiel e ao trato dado
Para o Camões a curta caridade
Que para ele luz como um banquete
Uma prebenda ou uma sinecura
Uma aparente sensação de crase
Isolando a tragédia como um extracto
Que com a elegância de um bago de arroz
Invade o sangue ao sopro derradeiro
Uma espécie extinta rara forma de anarco-
-sindical-auto-gestão dos condicionamentos
Laboriosamente anotados em cadernos
Trágica lira de flor campanulácea
Tágica forma de adoração
Ninfa impropéria e sacramentada
Da comédia que aquela dor adia.
397
11.
Há quem ao horror vixe desgraças
Anteveja ao desfazer das malas
Antes de ter voltado de Macau
Parcos haveres de uma maré vencida
Espalhados pelo mar encapelado
Do esbracejo a rara e própria virilidade
De permitir ao mar em que se mete
Devolver-lhe os papéis da literatura
E sugar-lhe a adorada candidíase
Calor de um outro dia… transacto
De dias idos velhos voando pós
Tempo fugindo sempre e agoureiro
Sempre se dando aos vícios do desmarco
Colhendo as horas de lentos andamentos
Degustando o esquecimento de anteriores invernos
À sombra de uma acácia
Em dolorosa memorização
Saudades… como a forma é incensada
A dor sandia
De quem almeja na vida se encontrar.
12.
Pudera a vida e a morte e mais amá-las
Em trôpegas ideias lançadas ao
Vento que do mar sopra sempre a lida
A lenta manha de varar a noite ao fado
De lentamente deixar a mocidade
Bramir contra o destino como um ariete
Para depois fazer doirar a formosura
Em concordância pura e paráfrase
Mesmo já morto e renascido como um gato
Liberto já enfim do seu algoz
Alforriado desse velho trapaceiro
Aposentado e já senil navarco
Delido em vãos murmúrios bentos
De intuitos e processos muito internos
Flamulando ainda a cor de uma cultura herbácea
Votada aos mandos e valores da humilhação
Já estando da pá virada
Dado o pescoço à corda corredia
Para que além da morte se possa agigantar
Salivadas digeridas e cagadas todas as trapaças.
398
13.
Recitaste para o amado rei em um sarau
De tudo a tua lira mostrou estar embebida
Não do que à antiga lira deu agrado
Mas de uma nova e distintiva qualidade
Como uma caravela que sonha ser paquete
Ou uma tradição que sonha ser cultura
Insistindo contumaz na perífrase
Malbaratando o verbo ao desbarato
P’ra quem já foi adorador de faraós
De pouco vale ter abraçado um imbondeiro
Ter visto o arco-íris em um pequeno charco
Chegam da história os seus consolamentos
Pelo consolo dos gamos fraternos
Armada a voz com crença e acurácia
De uma cultura que quer ser tradição
Com que se mancha e humilha é arrastada
E agora já não vê só cheira a via
E é por ela que quer ainda se arrastar
Passar por lá devanear fazer fumaças
Às musas e à lira exaltá-las.
14.
Se em tanto amor a dor fosse nascida
E formigasse nela ainda todo o brado
Trazido de repente à alteridade
De uma fugaz fortuna bandelete
E de outra fama insana forma pura
Tal que nem fosse dos pés elefantíase
O pedestal insólito da queda feito fato
Movendo-se no mundo assim meio calhastroz
Dado às notícias e ao sânscrito tinteiro
Por fim entregue ao severo aristarco
P’ra que lhe conte as sílabas e vigie os tentos
À cossa amargurada de vergões alternos
Fica por fim a calmaria uma malácia
E do mar fica não mais do que a recordação
De águas para paradas agora é feita a estrada
E da piroga catraia ou almadia
Canoa boa para se adentrar
Da mata os rios parados de águas baças
Nem sinal visto nem como atravessá-las
Nem um lugar onde passar a vau.
399
15.
Lugar tão ermo e tão desconsolado
Tão afinal idêntico à saudade
Que por um dia breve pareceu ter o topete
De ter inspiração à sua altura
E como sempre se converte em salutar homeostase
Do espírito que ao tempo se revela ingrato
Levado por um rio longe da foz
De onde o langor do mar fluiu primeiro
Resta ao sinédrio a dose de aposarco
Que faz crescer da ferida a carne os unguentos
Com que se animam os vapores do seu governo
E mesmo quando dado ao sangue alsácia
Ficam gentis os cumes dessa inspiração
E uma confusa melopeia mal engendrada
Lançada ao calvo mais do que podia
A sórdida intenção de em pé se equilibrar
De se manter à sobrevida das carcaças
Vai titubeando os gestos e as falas
Redondo e bem polido como um bom calhau
Silêncio só e escuro e a cabeça bem polida.
16.
É muito tarde nunca é cedo e a idade
Já lhe pesa aonde a lua filete
Esticado no céu da desmesura
Já desarmado o ênfase
Vago e translato
Não mais inquieto não mais eu não mais veloz
Dado aos cuidados de um gentil pegureiro
Desapossado do divino aerobarco
Em que podia navegar portentos
Beber de vinhos muito antigos de falernos
E ter-se revelado ao desafio da perspicácia
Uma figura de grande representação
Em vestes de leão paramentada
Pedindo humilde o pão de cada dia
Regado com o ranço de dos dias o passar
Nas horas o afã de muitas caças
E nesse o de se querer superá-las
Vir ao burgau
Em busca de uma pedra já delida
Que trouxe o coração alvoroçado.
400
17.
Sentindo as tripas retraçadas em dor por um estilete
P’ra pouca solução de um mal que não tem cura
Quase uma forma herbertina de hanseníase
Desfigurando os dedos e do pato
As membranas vivas e as guelras ao caboz
Os pés ‘inda engelhados da água do ribeiro
A fé jogada aos pés do antiarco
E o hierofante despojado dos seus luxuosos paramentos
Tudo inútil fatal danos internos e externos
Visíveis e invisíveis há humana suspicácia
Ao olhar firme e sem contestação
À observação imparcial e despojada
Que nunca trai nem não se negocia
Apenas sente uma certa vontade de cantar
De de estudantes recitar chalaças
De viajantes as entranhas viajá-las
Dos rituais esquecidos as unhas de lacrau
Asas de passarinho beijos de margarida
Tudo num caldeirão ao qual falta um bocado
E a cujo conteúdo mais maldade.
18.
Dessa prisão antiga ao preito de uma jura
De nunca desmentir a metafrase
Filhos do mato
Sete dias viajamos nós
Mais sete eu viajei o meu carreiro
Sem ver a desejada carta de nearco
Assim tomo aventuras navego em sofrimentos
Como uma hidra que galgasse fins supernos
E por virtudes galasse a
Corte de um rei já sonolento então
E iludisse desse a guarda armada
Vulgar que fosse essa maior valia
Ainda assim seria bom de se sonhar
Galgar ligeiro desse castelo as praças
E voá-las
Ver chegar a princesa num landau
Saindo inteira de uma casca falida
No fim de todo o percurso ultrapassado
Ganho à doença e à imobilidade
Que despedaça o trapo a canivete.
401
19.
Calmamente e terna a hipóstase
Clama a mente por um delírio crato
Que dessa pomba branca dos avós
Seja a terceira chama do terceiro
Anel de ouro que solitário marco
Com a marca inconfundível dos tormentos
Suaves como um vento e dos galernos
Que sopra manso mas imune à pervicácia
Sei do mar o regresso ao seu torrão
Falo dos anjos a língua edulcorada
E ainda não me cansei da cantoria
Nem de palavras com que me atormentar
Votado às traças
Argamassa de infortúnios de cabalas
Morto e epitetado de marau
Lodo infecto de uma maré escorrida
Despedaçado
E dividido o corpo à variedade
Como o de um deus no centro do ramalhete
Da divindade oculta que perdura.
20.
A efeito de mui raro incauto extracto
Ingurgitados os venenos de centenas de cipós
Imune aos óbitos pretéritos brasileiro
Reincarnado e andante desembarco
De muitas almas a infinitos eternos e vãos aditamentos
Matéria mais provada aos cernos
Fiel à violácea
Espada afiada que lhe arrancou o cascarrão
E o deixou à beira dor anunciada
De uma estranhíssima orografia
Montanhas impossíveis de ultrapassar
Cândidas balas pesando as biomassas
De quem se atrevesse a ultrapassá-las
E na vertigem do imenso cau
Fortes presságios de uma noiva compelida
Ao lugar mais fundo e menos profanado
Do profano fundo da bondade
Fundindo o ouro que nunca se derrete
Numa massa confusa de loucura
Inerte e insensível à metástase.
402
21.
Atar e desatar nós
Sentindo o mar pelo cheiro
No horizonte onde parco
O mar se engole nos ventos
Os bailados sempiternos
Demandam de mais audácia
Outra opção
A de uma canção rasgada
Uma ilusão que nunca se desvia
Daquele sonho imortal de ir e voltar
Fazendo o peito aberto às vis desgraças
Até ao ponto de poder amá-las
Como quem visse cortesãs em um sarau
E nesse amor a dor fosse nascida
No interior do manso coração desconsolado
Coisas de idade
Quando a saudade fura os pés como um estilete
E se esconjura a jura
Comprometida a vida à hipóstase
E já do alambique destilado o extracto.
________
epílogo:
O poema inacabado
Síntese do périplo
Razão e cenário
Nada interessa
Na vida têm-se quando muito
Duas ou três
Relativamente boas ideias literárias
E ainda assim
Como na vida
É realmente inócuo
Se terão sido
Mal ou bem
Incerto o onde
Inócuo é verdadeiramente
Se foram concluídas ou não.
403
BRASIL II
POEMAS BRASILEIROS
404
A MINHA PRETINHA TEM
405
A MINHA PRETINHA TEM
406
O VERSO GALHO
407
ORAÇÃO DA CABRA PRETA
De todas as variantes
Que pode ter a canção
Só é mar onde se amarram
Os corações dos amantes
Os sonhos dos estudantes
E a loucura mais dileta
Porto de consolação
Quando ela vira oração
E é quando ela é mais direta
Canção de roda e de reza
Ritual nobre e pagão
Que todas a fibras pega
Faz parar o coração
E as rosas da vida rega
Todas as flores propaga
E nunca nega
A sua intenção mais reta
Oração da cabra preta
Santa Bárbara são Longuinho
São Cosme são Damião
São Menezes andarilho
De Manaus a Mazagão
De Belém ao Grão Pará
Na terra do açaí
Onde a dor tudo consome
Ninguém ficará com fome
De amor de transe ou paixão
Quem amar bem e direito
Exactamente do jeito
Que se canta essa oração.
ZAGAIAS DE PERDIÇÃO
408
Sonhadas e dormidas
Amadas mas destruídas
Sem piedade
Cantadas como quem canta
Uma saudade.
409
Desminlinguirmo-nos em sal e em calor
Morrer da sede de beber esse suor
Alimentarmo-nos no e em e do
Clamor com que ribomba o êxtase
Dos sexos febris ao peito nu
E com fragor
Viver um dia inteiro contra o sol
Sentindo apenas
A carne que entre as mãos
Ferve de cor e de prazer
Alimentar o corpo só de se querer
E se querer demais e sempre mais
E ser
Insaciáveis escravos do dever
O único que para tanto nos foi dado
Nascer
Suprir de fome e sede a consciência
Supri-la integral paradigmática
Com as chamas dos ramos dos cabelos
E das cabeças
Deixarmo-nos queimar os pensamentos
Com o barulho singular do crepitar
De laços cratos
De uvas brancas e pretas
Vinhos de embriaguez algarves de sonhar
De olhos paralíticos e transidos
De bocas e de esgares
De fogos míticos
E no calor da luta alimentar
De opalas vivas os momentos
De cristalinas águas os desejos
De improfanados líquidos
Unguentos sãos
Venéreos corrimentos
De esparramados fluídos e de amorosa origem os secretos
Santos secretos
Impetuosas e vãs iniciativas
De apaixonada compleição retardatária
Química fórmula
De totalmente rara
E nunca fatigada
Hiperestesia
Uma vulgar e morna sensação
De plenitude e de paixão
Sã histeria
Doente salvação das horas mortas
Em que os amantes
Se entredevoram enquanto o mundo dorme
Cega demência
Maior e mais determinada ânsia
410
Sempre causal
Sempre indecência
Fruta sadia
Imaturada fruta sempre mel
Doce vertigem que quer morrer
De uma intensa e sensual epifania.
411
Chorarão as mães
Madrastas sogras ternas cunhadas e maridos
De todas as famílias jorrarão vorazes manhas
Em forma de perversos vaticínios
E nos presságios dos doentes
Nos gritos das crianças e no esgar dos loucos
A cobra viva dormirá na preia-mar
Envolta em fumo a terra toda inalará o seu odor
De negra bruma águas passadas temporãs virão à tona.
MARRAZES DO PECADO
Sardónicos olhares
Quarenta e tantos
Em forma de tecidos acordados.
412
Vagazes trigas de tramóias gagas
Quarenta sagas
Planas profundas horizontais.
Quanta loucos
Maledicência todas
As mentiras.
De Apolo os negros
Cavalos com que puxa
Para ocidente o carro cai a prumo.
ABERTA A BOCA
E quero mais
Minha pretinha de querer e eu tudo lhe dar
Para no auge do furor mais franco ser capaz
De ser seu dono e servo pertinaz
De ser seu Az
413
Seu príncipe azul envolto em gaz
De dar meu peito à tentação mordaz
Aos dedos e ao espírito da paz
Ser o transfigurado em plácido rapaz
Que muito sua muito ama e muito faz
Para ser sempre e não fugaz à sua dama
Estar lá presente e sempre que ela o chama
Nunca o ausente
Nunca ser pouco nunca menos nunca morno
Sempre indecente e quente
Que tudo quer que tudo dá e muito ama.
414
Correr e percorrer
Quilómetros e quilómetros em teu corpo
Passear meus dedos minha pele em tua pele
Voarmos juntos juntos ver o dia
Em todos os segundos viver vidas inteiras
Como se pudéssemos em partos naturais
Revivescer e ser
Ser muito louco muito amante e muito cão
Sermos cachorros da paixão e renascer
Nascer e renascer de novo em cada ideia.
415
No fogo retemperadas
E curtidas
Às temperaturas cálidas
Cozidas
Dos meus desmandos de amor
Foram sangradas.
416
E dessa sã consciência
Ter o mais belo retorno
Ser fervente e à ausência
Nunca morno.
PAIXÃO FERVENTE
417
Naturalmente o tempo vai e vem o tempo
Da saudade
Das nossas mais diletas horas e da vida
A morte dos amores e dos martírios
A verdade.
Param folículos
Bamboleantes na árvore dos desejos
Por um momento cuja flor e dimensão
São passamentos
De momentos tão intensos que o sensor
Que do fundo da nossa consciência mede o tempo
Fica parado
Bêbado e silenciado
Como um rio
Que nos momentos mágicos do dia
Quando o clamor do sol ainda tinge o céu
Ou a manhã
Irmã da primavera o despertar
Medrosa se anuncia
Fica à luz mudo
Espelho pesado de águas mansas mar de chumbo
Onde a matéria
De que são feitos
Em nocturnas cãs todos os sonhos
Se narcotiza
E numa nuvem de calor morno imprecisa
Morrem para o mundo os sonhos transformados
Em alma pura
Realidade em que o amor a vida
Transfigura.
418
Prouvesse a fala da poesia à letra morta
Às horas desses dias dar figura
Prouvera às mansas
Doces imagens guardadas na memória
Em cintilantes elegantes décadas
Que ao mundo amasse tanto as frágeis horas
Como se amaram corpos nus desses amantes
Como de fumo anéis do tempo desse ao mundo
E dessas letras que a distância não merece
Fizesse em laço de luminosas tranças
Que por magia desse aos versos dimensão
Que surdo claro ouvisse
Desse amor ao mundo o amor louco o peito aberto
Se oferecesse
Que gritos de harmonia ainda impura
Feliz desse ou calasse
E mudo se encantasse de cantar
Fizesse jus ao universo inteiro
E ao monumento da mulher que eu tanto amo
Iluminasse
Se contariam versos e de muitos que escrevesse
De todos claro e mais irradiante que uma luz
Brilhasse de valor o serem dela
Serem por ela
Serem inteiros cada letra e cada som de quem
Me rosa a vida e me evapora o sangue
Essa mulher que me ilumina a vida
Quem a visse
Na sua nua fragorosa e deslumbrante
Leve e distinta flor de ouro
A sua crua nua e mor magnificência
Que me atrofia a dor e explode a alma
Haveria de cantar quem isso visse
Na voz autorizada de um qualquer
Universal e permanente hierofante
Todas as línguas
Todas as mais sagradas liturgias
Todas as ânsias só gemidas e uivadas
Em quarentenas loucas
De fábulas e versos cento e vinte.
A FERRO E FOGO
419
Já transviado e pasto de mentiras
Que houveram dito por motivos diversos e frugais
Motivações.
Churrasco de mentiras
E desditosos falsos mandamentos
Mas compelido
Ao mais harmonioso irradiante e belo
Destino e anunciação.
E mesmo quando
Do menstrual período seja o dia
Em que dos dias calha ser a lua nova
Naquela negra aparição nunca aparente
Vê-se mansa
A sepultura calada de uma dúvida
E das entranhas se arreganha uma certeza
Que é a de saber
Dentro do coração que habita os meus murmúrios
Estar o seu nome escrito a ferro e fogo em letras de ouro.
EPÍLOGO
420
OS BOIS DO CURIAÚ
A CAPIVARA MANSA
A CASA DA CABA
421
Se diria
Assim se se quisesse exagerar
E de tão negra
De ser tão violenta
Tão tenebrosa e bela
A caba fosse
Não só mais enigmática
Mas outrossim mais digna e mais altiva
Mais pleonástica
E outro que outrossim mais mágica
Faz meia-dúzia de favos
Não são bem meia-dúzia
Serão mais uma dúzia ou mesmo duas
Duas dúzias ou nem tanto
De casinhas assim hexagonais
Com uma caba em cada uma
Um templo iluminado que é a sua casa
A casa da caba
Mas sobre esses favinhos quantos forem
Tem uma espécie de telhado
Como um alpendre
Para a chuva talvez
E que faz sombra
Nas horas em que o sol impera a dor.
O CATITU…
422
E O JABUTI
GALINHAS DO CURIAÚ
423
Os pintainhos
No chão do Curiaú na verdade dá de tudo
Dá pinto dá pato bravo
Dá papagaio dá anum
Dá até do periquito
A fêmea o macho e o neném
O colibri os insectos
Tudo dá no Curiaú
Até essa que põe ovo
Que não é de ouro
É azul
Mas das galinhas que tem
A rainha é a picota
Como chama seu José
Essa toda pintadinha
A que se chama d’ Angola
Que a gente chama pedrês
Ou do mato
Porque é
De toda a consignação
Ser galinha quilombola
Essa que tem
Não a que põe ovo azul
Mas que também
Poderia muito bem
Pôr ovos de ouro.
O ANUM
Adeus americano
Do melro pássaro preto
Pássaro preto tem um
Que aparece quando chove
Bica debica e vai
Bate as asas voa curto
Desse adeus americano
Que o melro canta ao cantor
Vem aos dois
Às vezes mais
Quando está para chover
Um pássaro que é preto e vem
Que tem um rabo comprido
Que não gosta de ser visto
Não fica tempo nenhum
Pássaro preto
Bico laranja
Debicando a baga loira
De uma árvore muito estranha
Pássaro preto tem um…
É o anum.
424
O BODE DA MAÇONARIA
A estrela virada
O corpo suado de quem puxa
A carroça de cabeça para baixo
O homem xingando o outro
O outro entendendo nada
E o homem suando as tripas
Assoando os lábios de quem mente
Quem diz a verdade diz que sente
Diz que se sente
Cada um se engana como pode
Isso eu não sei
Isso talvez por certo eu nunca soube
Ou se esqueci
Isso é o bode
E ele grita
Mais do que diz insulta
Coloca viral e violenta
A súmula dourada da questão
Talvez ele nem saiba exatamente
O que diz
Talvez só queira
Xingar outro infeliz
Que que nem ele
Providencia o crédito de estar
Onde nesse momento
Instituído ou dado
É perigoso estar
E onde alguém tem que grita e que é gritado.
O BOI DO CURIAÚ
425
Apenas um boi que vem
Que vem e passa
Pastando no quintal da minha casa.
UH!
426
Mais pachorrentamente ainda se afastava
O maior
O que na verdade embora de início não parecesse
Era o primeiro
Focava em mim agora os olhos lassos
De boi
Que o pouco brilho
E a estranha luminosidade
Da luz própria da noite
Creditavam a ele e para mim
Que eu o olhasse com respeito.
427
O BOI DA NOITE
No céu do Curiaú
É o mesmo boi
Não traz lastros nem arreios
Não tem definidas horas
Não tem encontros marcados
Não reconhece demoras
Nem cercados
Passa no Curiaú
E quando calha
Vem de noite e transparece nas ramagens
Da vida adora o céu e mil imagens
Desenha quando cresce
Para o mundo que me aquece
O sol o coração quando aparece
E roça-se indiferente nas ramagens.
O BOI CORREDIO
428
O encantado e fabuloso
O propalado e charmoso
Boi voador
Voa nas asas do vento
Um encantamento assaz desconhecido o prende ao chão
Mas atrás dele
Mesmerizado pelo ritmo dos seus cascos
Pelo som das suas pernas
Pelo jeito obnubilante do seu corpo que levita
Vem outro boi
E mais atrás os outros dois
Vêm três bois
Atrás daquele
São afinal agora quatro
E o pedaço de papel que nunca ardeu
Vem outro boi ainda
O de papai
E agora já são cinco os bois
Todos os bois
Atrás daquele que voou.
O BOI DE PAPAI
De quem é o boi?
…é do papai
O boi que corre não pára
Nem ao grito nem à faca
Fome de briga não tem
Só quer chão
Só quer estrada
Estrada não tem na fazenda
Ele alcança o alcatrão
Que é um chão regado a sangue
Ferido e sacramentado
Que os homens dize’ que é
O asfaltado.
429
Respira ofegantemente
E segue o boi
O boi é grande e viril
É de papai.
O FILOCOLO E O FILOSTRATO
1.
De Dante e de Petrarca meu mestre zarolho
Me mandou que copiasse a biografia
De Bocaccio me disse pouca coisa
E de latim.
2.
Não sei não aprendi não soube nunca
Por quê o sentimento enfeitiçado e transmedido do amor
Para que fosse da transcendência a dimensão plus ultra
Da dimensão poética a grandeza suma
Da devoção a fulgurância quase mística
Ou para mim que sou de extremos pura mística
Tivesse que viver desapossado
Em verdade maior despossuído
Dos azougados e frenéticos fulgores incandescentes
Os decantados clamores irresistíveis
Os dons sensíveis
Que do sexo e da carne são os sãos mistérios
E que por isso
Tivessem que ser sempre metafóricos
E contrários ao mesmo misticismo.
430
3.
No topo azul do meu caderno
Desse em que escrevo agora os desencantos
Os pensamentos que mais tarde virão a ser meus cantos
E onde brilhará p’ra sempre e tanto
A sempre inspiradora chama da mulher amada
Sinto o novelo dos crespos e ditosos
Fios do cabelo da minha namorada.
É realmente azul
O topo singular dos meus cadernos
E neles eu escrevo sempre a oiro
Sobre azul
Relatos de um amor ou desventuras
Que o dia viu e a noite abençoou
E nesse topo azul dos meus cadernos
É onde agora tenho os seus cabelos
Os fios suaves e sagrados dos cabelos
Da minha idolatrada namorada.
O TEMPO
431
E ao mesmo tempo o que o faz ir
Fá-lo ir e depois vir
E ao mesmo tempo
É ele mesmo quem vai e vem
Vai-e-vem em que se empresta à vida
O movimento do seu eterno despertar
E se desperta a cada dia nova hora
Que já carrega o céu
No seu mágico afã de tudo ver.
A chuva
Algumas vezes fraca e benfazeja
Outras torrencial e assassina
Barulhenta
Mesmo em lugares em que seria
De todo inesperado que chovesse
Mas como sempre
Inesperada ou não tem sempre alguém
Que simpaticamente e numa língua estranha
Informa gentilmente sobre o tempo
Esse que se diz meteorológico
E que fará no céu desses lugares
Aonde você chega
«Clowdy and windy»
Como se fala na língua em que se fala e em que falam
Os aviões.
432
Lentas ou longas breves ou curtas as viagens
Tem sempre duas que se contam ao devir dos patrocínios
Em todas as viagens que fazemos
A que pagamos e em que a palmo palmilhamos
A terra
E a que vivemos
Indo e voltando
Para destinos entrevistos que tivemos
Em outros patamares anunciados
É a viagem do tempo em que estivemos
Suspensos da miragem
Em que a vertigem da ideia é viajada
E que fazemos outorgar à grande roda
Em que a espuma da vida é triturada.
Mas esses
Que de tão pequenos
E duvidosa até ser a cabal
Verdade de que existem
Tais cristais
Sejam eles translúcidos o’ opacos
Sem tom ou coloridos
Como os rubis que se contavam
Para aferir da infalível
Certeza inviolável e burguesa
Dos mecânicos
São diferentes
Até da qualidade
E da burguesa quanto infinita precisão
Falta o encanto
O respirar pausado e lento da matriz.
433
Do que teria se tivesse
Por não ter tido nunca
Nem eventual discreta nem regularmente o dinheiro
Do que seria a primeira prestação
Das muitas que tornariam possível eu comprar o que seria
O meu Patek Philippe?
Doce questionamento
Para um sujeito que se dando ao desplante de ser eu
Do tempo diz que não existe
E que não sabe nunca a quantas anda.
434
Que obre em quem o olha uma viagem
Para um tempo em que o tempo não existe
Por alguns momentos cessa de existir
Preso de um tempo que se tem aglutinado
Em uma caixa de emoções tidas por nós
E a que nós chamamos de comuns
Recordações.
435
Pode medir-se o tempo como eu faço
Pelo tempo que demora a desgastar-se um lápis
Entre feliz e amorosamente comprá-lo numa loja
E consumi-lo pau e pedra de desenhar palavras
Pau e grafite de desenhar saudades em palavras
E desenhos
Fazia tempo até que eu não fazia
Desenhos em cadernos pequeninos
Desses que se usam no bolso e obsoletos
Lembram um tempo em que não existia
Registo áudio nem se tiravam fotografias com tel’fone
«tufone» como ouviria uma pessoa no Brasil
A palavra falada se ela fosse dita
Na suave e pouco articulada vulgar pronunciação
Que tem correntemente o português de Portugal
Uma prosódia
Que afinal se diz apenas «celulá»
Esse «tufonizinho» que faz fotografias e outras coisas mais
Uma viagem linguística que fazem corações
Uma viagem longa e demorada
Uma assaz longa e demorada viagem de palavras
Que endossam doces cantos e carregam
No bojo dos seus líricos navios
Semânticos os corações.
436
Mas com paixão paixão comum loucura e sanha
Partilhada
Em que é comum a dor feliz a carne solta
A pele arde o corpo sua
A ânsia aberta nos consome e a alma fica nua.
Tal é o reino
A soberana hora
Em que se faz presente
O poderio fatal e o fascínio do agora
Mesmo que o tempo pare
Se é que pára
Como dizem
Mesmo que não se sinta não se ache não exista
Mesmo que alguém contasse
Por impulsos vergados de energia
A insana fragrância que de dois seres emana
Nessa hora
Teria que ser o deus maior
O mais bondoso e poderoso bem
A força luminosa que se manifesta
Por não se perceber que está havendo
E que dos quatro Força Amor Poder e Luz
É o maior.
O meu amor
Longamente dissecado até ao fundo
Olhado e querido de todas as maneiras
Facetado de dor como um brilhante
Por mil facetas olhado e transparente
Por fim como um rubi transfigurado
O meu amor
Resplandecente em luz
Iluminando sempre a minha alma aziaga
Repousa breve
Por um momento
Feito uma alma só
De amor e complacência.
II
437
Todo um frémito no corpo
Que mesmo depois de ver-te
Encanta empolga e persiste
Até se alojar ronceiro
Dominando o corpo inteiro
No lugar do coração.
E se porventura houver
Mais coração p’ra vibrar
Naquele longo acenar
De um coração p’ro seu par
Que é o acto de beijar
Num abraço grande e quente
Há-de o coração saber
Interior e omnipresente
Todo o doce envolvimento
Que o amor sabe embalar.
438
III
Da distância e da ausência
Se alimenta o sofrimento
A dor da separação
Viver torna-se um tormento
Mas quando por fim se augura
O fim dessa atroz tortura
E o amor por um momento
Triunfa do sofrimento
E o momento de beijar
…Quente e solto
…Eterno e louco
Já se está a aproximar
O meu coração exulta
E segreda ao meu ouvido
«Meu amor já falta pouco»
IV
439
Parasse de soprar e o teu sangue
De fluir
Ainda assim
Os meus desejos satisfeitos e as ânsias
Da lonjura e do frio do teu calor ausente
A falta a fome e as vontades saciadas
Seria nada
Haveria de ser como uma sede
Dessedentada apenas de água morna
Eu haveria de querer ficar gritando
Como um possesso grita no segredo
Dos confinados cafundós dos manicómios
Que eu te amo tanto
Seria assim
Como arrancado
Das escuridões do ser profundo
Estridente e forte aos infinitos ecos voz distante
Forte rasgada e lancinante como só
Da alma um grito
Eu amo eu amo eu amo eu vou eu amo
E embora tudo
Fossem ainda pouco essas ideias
De mil e uma trinta e tantas infinitas formas
De te dizer suave e puro
Enlouquecido e trespassado de cúpidas lanças
De encarniçadas flechas de desejo
Do mais cruel tesão insaciado
Do mel dos meus «recuerdos» da ternura
Dos beijos matinais a orfandade
E não diria tudo se dissesse
Mais mil e uma vezes que te quero
E simples mesmo que inútil e doce
Que eu te amo tanto.
440
Ou míopes
Ao que chora nos meus egos
O queixume.
441
A música mais amada
Do seu mágico gemer
Das vontades dos desejos
Da gozada
Daquela puta assanhada
Que só ela sabe ser
Ficar à míngua
E dos seus olhos espertos
Dos seus sorrisos abertos
Não os ver.
VI
442
Desde a mais funda raiz
Do meu ser que o teu reclama
Com toda a força do ser
Meu peito chama por ti
E o meu corpo também chama
O manso afago do teu
E desse laço infinito
Que não tem nós nem amarras
Indefinido e sagrado
Como um laço espiritual
Que é no corpo que se faz
Mais perto que mãos e pés
Nos músculos relaxados
Nos nervos tensos ou não
Na carne erecta enxugados
Todos os líquidos sãos
No teu corpo se imacula
Pernas abraços e mãos
Enleado ao meu que exulta
Um nó que só nós sabemos
Atar e desatar bem.
II
443
Desenhadas de desejos
De maravilhas e beijos.
Tu és a súmula pura
A dimensão e estatura.
Se contorcendo esfalfado
Do teu ardente e suado.
Liquidifica-me as ânsias
Solta-me as protuberâncias.
444
E no que ela sem falar
Me faz sentir e gritar.
Em momentos de tesão
Transe escaldante e paixão.
III
E cantamos em uníssono
Todas as noites da vida
Das formas a mais querida.
E invariavelmente
Quando amanhece outro dia
Já começa outra folia.
445
Já nos achamos unidos
Quando a luz do amanhecer
Nos chama para viver.
Gosto de te cutucar
De te dizer que te quero
Sem tangas nem lerolero
446
Vejo chegar a manhã
De um dia tão diferente
Vejo a vida pela frente.
Tu és o meu talismã
O filtro dos meus amores
E o ópio das minhas dores.
Falaciosas ideias
Não me fustigam a mente
Quando o teu corpo está quente.
IV
447
Amo os desejos que sinto
Quando a silhueta rara
E o teu tom de pele tinto
Meus olhos todos escancara.
O dinamismo nervoso
Das tuas curvas e linhas
Firme e voluptuoso
Vibra e se enlaça nas minhas.
448
Amo-te toda se brilhas
Tua sensibilidade
E todas as maravilhas
Que a deusa em ti faz verdade.
Tão resplandecentemente
A vida se agita e vira
Tão feliz e indecente
Que a boca toda suspira.
449
Ser imperfeito e total
Por você perfeccionar
A transmutação do mal
Na forma pura de amar.
Na madrugada encantada
De uma noite longa e louca
Na tua gruta molhada
Plasmar quente a minha boca.
Não há simbolização
Não há rata não há rosa
Que sustente a proporção
De uma xereca gostosa.
450
V
451
Foder o espaço o papel
Fazer minetes aos versos
Erradicar leite e mel
Roubar no voo de um corcel
A distância dos teus passos.
452
Tu és o Brasil inteiro
Tudo o que nele fascina
Tu és meu amor primeiro
De um renascer verdadeiro
Que o meu destino domina.
Tu és todo o incentivo
P’ra Terra inteira girar
O universo se expandir
A natureza existir
E para eu respirar.
453
Meu bem ultrapassa tudo
Tudo o que eu invente ou diga
Meu coração fica mudo
Tua pele é um veludo
Que um doce mistério abriga.
VI
454
Quero escrever no teu corpo
Quero ser o teu calor po-
tencializado em luz
Imprimir em corpos nus
Gravuras e tatuagens
Do prazer fazer mensagens.
455
Minha doce afro rainha
Onde o meu sonho se aninha
E os meus halos resplandecem
Malhas de mistérios tecem
Meus mais flébeis pensamentos
Meus movimentos mais lentos.
Imaginário febril
Repertório feminil
No seu mais fino recorte
Animal de altivo porte
Tu és a marca do dia
Que a minha noite incendeia.
O destino os alfarrábios
Todos os crentes e sábios
Os oráculos antigos
Os conselhos dos amigos
Tudo parece vazio
Perto do cheiro do cio.
Arde sublimemente
Depois fica incandescente
E perene se consome
De uma inesgotável fome
Que anseia por ser capaz
De ser tudo o que lhe apraz.
456
Sublima o fugaz presente
Quer ser sempre eternamente
Ser sem tempo só paixão
Exorcismo anunciação
Quer ser maior do que nós
Quer ser amor e ter voz.
Você é graciosamente
Gostosa infantil e ardente
Quem me afugenta os fantasmas
Os poeirentos miasmas
De outras obstinações
Musa das minhas canções.
457
Tu és quem ilumina tudo
Com teu corpo de veludo
Tua pele escancara a luz
Me libertando da cruz
Onde eu vivia pregado
E tanto me tem sangrado.
Só tu o podes fazer
Neste mundo acontecer
Esse milagre profundo
Que é fazer nascer no mundo
Das cinzas de um sofredor
Um novo servo do amor.
De carícias de vontade
De suma cumplicidade
De transparência e verdade
Em tudo o que se apresente
Todos os dias diferente
Ser fraco valentemente.
458
Inventando a cada dia
A essência da alegria
De uma dor que eu não sabia
Ser a concreta saudade
Não de um passado que havia
Mas de um «é» que se anuncia
Para toda a eternidade.
VII
Redondilhas pequeninas
Das mais ternas das mais finas
Das minhas dores assassinas
Escreverei para ti
Mais cedo do que imaginas
Serão tantas as tercinas
Das quadras que não escrevi.
459
De ti quero deixar prova
Da grande consolação
Que é ter os teus uivos mansos
Quando em transe de tesão
Em repetidos balanços
Do teu corpo a uva a ova
Se intumesce em minha mão.
No balanço entrecortado
A dois tempos comandado
Em dois impulsos dif’rentes
Que me deixam extasiado
Um primeiro prudentemente
Natural mas atentado
E o outro profundamente.
460
De cada vez mais ao fundo
Até atingir a boca
Na hora pareces louca
Boca mais louca do mundo
Pernas e braços eléctricos
Ventres tensos magnéticos
Pulsando cada segundo.
461
Sendo somos o que é mais
De amores mansos invejosos
Dos transes mais poderosos
Somos amantes brutais
Queremos sempre foder
Queremos olhar e ver
Do prazer os rituais.
Tu és o meu testemunho
Da minha dúvida ação
Da pura conflagração
E o estandarte que eu empunho
Todos os dias e horas
Semanas meses agoras
Seja Outubro ou seja Junho.
462
Não me queima não me dói
Essa chama eterna e doce
Toda a luz que você trouxe
E que a minh’alma constrói
De cada vez que te pego
E o meu carvão fica cego
À dor que às vezes me mói.
Magia e sanguinidade
De felicidade pura
Intensa forma de cura
De toda a desigualdade
Da indif’rença e da dor
Das ausências do torpor
Das nuances da verdade.
463
O teu corpo é suprimento
Da música do encantamento
Que canta no sentimento
Das harmonias maiores
Às vezes dos tons menores
Que modulam a canção
Em que dança o coração
Seja qual for o andamento.
VIII
464
Se tem dias em que o frio
A tristeza vira moda
Queima como gelo é phoda
A sensação do vazio
A saudade interestelar
A dor da separação
Me dissolve o coração
Dos teus olhos o brilhar.
465
Só p’ra que aquele momento
Me parasse de doer
Para que eu pudesse ter
Você no meu pensamento
E no meu pensar e crer
Nesse suave lamento
Não pudesse o sentimento
Jamais parar de crescer.
Franqueza e brasilidade
Todos os teus devaneios
Teu entrecoxas e seios
E a rara sensualidade
Que derrama a tua boca
Quero teus beijos teus ais
Teus delírios sensuais
Que nem de uma deusa louca.
466
Tudo isso eu quero e mais
Quero coisas que nem sei
Quero ser o teu «meu rei»
E bíblicos esponsais
Casar contigo na mata
Fodermos na contramão
Atar em nós um cordão
Que nem mágico desata.
467
Do que aprendi nada serve
O que sei serve p’ra nada
Mesmo quando a minha verve
Me possui desembestada
Os instintos se embelezam
E é quando a minh’alma ferve
E os meus nervos se retesam
Sem que o meu corpo se enerve.
468
Parece um bocejo agudo
Para o qual não se abre a boca
E aquele momento é tudo
Sinto-te sempre mais louca
E nessa loucura toda
Uma música constante
Anima a infinita boda
De amar teu corpo elegante.
469
E se orgulha do que é seu
Pouco consola lembrar
A canção do amor demais
Porque maior é o meu.
IX
470
Quando sinto a sua pele
Tocar-me as fibras do ser
O seu peso suspendido
Em movimentos eternos
O livro da minha vida
Em portfólios modernos
De um falar desconhecido
Que eu nem preciso entender
Se o meu se descansa nele.
471
E desse momento mágico
Que fácil seria ser
Aquele do qual se augura
Ser a perfeita razão
De uma epopeia feliz
Rasgando o meu coração
Eu renego a literatura
Não tenho nada a dizer
E produzo um drama trágico.
Voluptuosa e sã
É a boca quando beija
O ventre quando se encosta
No ventre que encosta junto
E é da maior vertigem
Inesgotável assunto
Quando o corpo dá resposta
Na porta daquela igreja
Toda a lit’ratura é vã.
472
É mesmo a maior vertigem
Quatro coxas que se tocam
Quatro joelhos chocalham
E os pés suspensos parecem
Querer levantar do chão
A teia que os olhos tecem
Semicerrados espalham
Pelo ar onde desfocam
Langores de uma doce origem.
Em beijos e corrupio
Colecciono os meus dias
Rodamos corpo e cabeça
Sempre no mesmo sentido
Como duas almas gémeas
No eixo que é repartido
Entre sentido e promessa
Entre sonhos e folias
De um amor estranho e vadio.
473
Sente-se a cada minuto
A pulsação inconstante
Do ser materializado
Contra o relógio andando
Como quem quer ganhar tempo
No tempo não se encontrando
Só no momento parado
Em que a vibração constante
Parece penetrar tudo.
Única e capitulina
Como são as heroínas
Dos Machados dos Bandeiras
Dos poetas inconstantes
Das gregas antologias
Faz-me sentir trepidantes
E de todas as maneiras
As sensações uterinas
Da sua loucura fina.
474
Das gregas mitologias
A heroína sagrada
A deusa que lá faltava
Dona da minha cultura
Dos meus velhos pergaminhos
A sua imagem mais pura
É a da deusa de aljava
Ungida e paramentada
Para dar brilho aos meus dias.
Em versos monumentais
Quereria eu cantá-la
Mas arquiteto não sou
Nem da cabala sou rei
Não sou nada de além ser
Sou apenas eu e sei
Apenas dizer já vou
E desta forma incensá-la
Amar sempre e querer mais.
475
O amor é a mais bela
Forma das formas da vida
É dela a sublime tela
Em que se pinta e é lida
A luminosa aguarela
A poesia mais querida
Lá não se pinta com tinta
Pinta-se a cor indistinta
A luz intensa e singela
Com que a vida é colorida.
As águas do Amazonas
Batem nos barcos por baixo
No Curiaú de noite
Se batuca o Marabaixo
Já começou a viagem
Vai p’ra cima vai p’ra baixo
Já se sonha a comissão
Como é em cima é em baixo
E de noite o meu amor
Perfumada de alto a baixo
Me lerá sua «leção»
Ela por cima eu por baixo.
476
É da carne a pele a cor
Que tudo augura
E a morna forma da cor
É a loucura.
UM BEIJO ME IDENTIFICA
Um beijo me identifica
Que abraça o mundo inteirinho
Na fulgurância do beijo
Na paixão com que é trocado
E na penumbra que fica
Desse beijo apaixonado
Fica a ternura e o carinho
De um amor desmesurado
Muito curtido e suado
Intensamente vivido
Adorado e incontido
Nas entre faldas do ninho
Na mais sã consolação
Feita loucura e paixão
Transe e desejo.
477
O GATO TEM SETE VIDAS
(ou: o poema primo)
II
III
478
IV
VI
479
VII
VIII
IX
480
X
XI
XII
481
XIII
XIV
XV
482
XVI
XVII
483
BRASIL III
484
Antetítulo:
485
EU SOU A FLORESTA DA CHUVA
486
No mato não tem baratas
Tem carochas tem abelhas
Tem outros bichos também
Mas no mato a sujidade
Se recicla a cada instante.
OCASO
487
VEM A NOITE
AMAZONAS/AMAZÔNIA
488
VENTO
489
E mesmo quando é de noite
No início altas horas ou no meio
Mesmo na humidade fria das antemanhãs
Se ouve um silvo
Um som aguado e retroverso
Como um assobio gravado numa fita
E tocado ao contrário
Não é nada de extraordinário
É apenas um som
São vários sons
Interminavelmente produzidos uns a seguir aos outros
Como silvos de balas numa guerra.
490
A água corrói as rochas
Deslocaliza a areia
E da criação parece
Ter sido a melhor ideia.
491
LUGAR PROFUNDO
UM LUGAR NO MUNDO
GALINHA CAIPIRA
492
Pára na chuva
E procura um lugar p’ra se abrigar
E então se pára a chuva ela anda
E quando anda
É com um porte de quem está comandando o caminho
E as outras galinhas vão atrás
Poderia ser o da rainha das galinhas
E é sinal de uma antiga e cotadíssima genealogia.
Pára no sol
Consegue até dormir em pé
E sabe bem
Quando é gulosamente transformada em caldo
Não é por ser caipira
É por ser forte
E ter esse tal porte de rainha.
ORIENTAÇÃO SUL
493
Sentimental
Que a gente o ama
E mesmo da dor ausente
Mesmo do bem e do mal
Cuidadoso impenitente
Para lá de bem e mal
Está o real
O pluricontinental
O ser «tudo em tudo» ideal
E ser igual…
Quando se vê à distância
Já postergado
De uma assaz longínqua dança
Deserdado
O coração puro de quem ama
Desapossado
Da sua mui’ dileta preciosa e querida herança
O coração partido ganha olhos
E vê os que os seus olhos sempre viram
Vê-se que o que em vulgar geografia dos liceus
Verdadeiramente conta ali
É o alcatrão
Que derrete à violência
Do calor
E mesmo que fosse apenas
O centro conceptual
Dos tórridos altos fornos
Infernais
Ou das antárticas gélidas paisagens
Queimadura
Não queimaria a alma como faz
Ver-se da chama
De tão sublime amor
Já despedido
E dos calores morenos da amada
Os doces mandos
Dos seus fulgores e do sorrir feliz da sua boca
Ver-se apartado.
494
O COLIBRI
Todos os dias
Quando eu estou fumando o meu cigarro
Ali no pátio da casa
Vem um colibri
Voando
Fica suspenso de bico esticado
Sugando umas pequenas flores
Que tem no jardim que existe em frente
O que serve de limite ao pátio da casa
E eu o vejo
Ele não me diz nada
Não fala só distribui o bico pelas pequenas flores
Para se alimentar
E eu também
Apenas o vejo levitar
Não conversamos
Mas sempre que eu estou ali ele aparece
Dá-me até a sensação de que esse fosse
Um colibri inteligente
E como deve ser pequena a sua máquina pensante
Muito pequeno as asas nem se vêem de tanto esvoaçar
É sempre o mesmo
E sempre me vem cumprimentar
Me cumprimenta de longe
Beija nas flores e vai-se embora
Às vezes depois volta
Pouco depois
E depois vai
É uma relação silenciosa e branda
Carinhosa
Que deixa ficar em mim a sensação
De que fazemos parte de uma mesma coisa
Eu e ele
Uma coisa total que nos transcende
A mim e a ele
E quando acaba esse momento
Que atravessa brando as nossas existências
Ele vai-se embora
E depois de um pouco
Eu vou também.
495
PÁSSAROS PRETOS
(segundo uma ideia de Brasil II)
Adeus americano
Do melro pássaro preto
Pássaro preto tem um
Que aparece quando chove
Bica debica e vai
Bate as asas voa curto
Desse adeus americano
Que o melro canta ao cantor
Vem aos dois
Às vezes mais
Quando está para chover
Um pássaro que é preto e vem
Que tem um rabo comprido
Que não gosta de ser visto
Não fica tempo nenhum
Pássaro preto
Bico laranja
Debicando a baga loira
De uma árvore muito estranha
Pássaro preto tem um…
É o anum.
PÁSSAROS PRETOS I
496
É nobre e contemplativo
Pela cor enobrecido
E passa lateralmente
Mas reticente
Só se for bem convencido.
O URUBU
OS URUBUS
497
Estraçalham animais mortos
Ou que estão para morrer
Rasgam sacos picam lixo
Na ponta dos bicos tortos.
OUÇO O BATUQUE
498
Vem de antes
Vem de longe
Mas permanece novo
E encantador.
A GALINHA PRETA
PÁSSAROS PRETOS II
499
Umas vezes cor de cobre
Outras de canela pura
Outras a pele reflete
Luzes douradas no rosto
E tudo isso é assim
Porque ela é preta.
São bonitos
Imponentes
E cantam enquanto voam
São positivos impõem
Na paisagem
A sua mancha inequívoca
Mas se tem pássaros pretos
Também tem e amiúde
Como na história do jazz
Desses pretos que são pássaros
E como cantam…
E voam
Cantam árias soltam gritos
Mesmo quando amordaçados
De negritude e orgulho
De serem pretos
Mas como já antes vimos
Não são pretos
Só têm a pele boa
E mais resistente ao sol.
500
A GALINHA
WORK IN PROGRESS
18 poemas e um antefacto
Antefacto:
Identificado o espírito e a raça
A alma da nação
Esquecida ao deus dará por entre flores
E brados exaltados
Eivados de ilusão e desconcórdia
Identificado o homem com a raça
E a nação
Restabelecidos aos palcos dos desvãos
Em que a alma se mede e se bafeja
Restava ao ser antigo ser-se mais
E foi
Foi o que foi
E quem pensa que esse rosto anquilosado
Com que a Europa olha para o mar
E o fita
É Portugal
Talvez possa até desconfiar
Que tem no Sacro Promontório aquele ponto
Para onde os pugilistas costumam apontar o «uppercut»
E que é suposto produzir um instantâneo «knockout»
Que muito faz exultar a multidão dos assistentes
E quem assim pensa vê e também pensa
E sabe
Que existe uma infinita sucessão organizada de rectângulos de ouro
Que se projectam perpendicularmente
Cada um dentro do anterior
Sustentados em serras que são eixos
Que desde os Urais aos Alpes depois aos Pirinéus
Vêm cruzando infatigáveis e decisos
O corpo antes placebo e flácido
Do que se vê ser a Europa inteira
501
Esse princípio telúrico
Que não se esgota nas íngremes escarpas
Que são visíveis nas praias de Algezur
Vem mais p’ra baixo
Afunda-se no mar
E hoje em dia trafega eletrizado
Nas fibras ópticas dos cabos submarinos.
1.
Ainda sinto prazer
Lendo os poemas do Fernando Pessoa
E tenho-os lido toda a vida
Lendo-me nas sensações
Nos pensamentos dele
Dele que para sempre foi meu mestre
Daquela espécie singular de anti-herói
Que foi e é não se viver a vida
Mas a ideia que futura vai viver
Como eu mesmo assim escrevi um dia
Ser o viver imaculado e tenso do poeta.
502
Sempre a primeira vez
É de saber a dor e a certeza
De que a cultura não serve para nada
E que a poesia… ah! A poesia
É coisa de gente fraca
2.
Tenho trabalhado pouco
Progresso não é nenhum
E já estou ficando velho
Meus músculos diminuindo
Já vivi ao que parece
Quase dez anos a mais
Do que o meu cirrótico e amado mestre
Muitos cigarrinhos
Muitos bagacinhos
Vinhos
Tudo em flagrante delito hepático
Tudo aos litros
E ele
Que falava e escrevia em inglês tão competentemente
Deveria já «d’avantage» saber
Que fígado se diz «liver» o vivente
503
E que com o vivente não se brinca
Mas provavelmente também desconfiou
De que as doenças têm comandos outros
Mais astrais
E não importa muito o que fazemos
Ou deixamos de fazer.
3.
Se incessantemente sentimos e vivemos
E mesmo sem querer o vamos sendo
E o que sentimos são sempre as mesmas coisas
Talvez de cada vez um brilho a mais
Como o daquela peculiar reverberação que tem no eco
Então talvez por fim seja verdade
O que se quer dizer quando se diz
«no mundo inteiro existe um só poeta»
Ecos de sombras que sopramos aos ouvidos uns dos outros
E que anunciam que há-de vir o dia
Em que a poesia vibrará no espaço em volta
Do lugar onde
Antes havia um ser humano.
504
Mesmo quando na Terra não houver mais homens nem mulheres
Posto que o Sol continue a existir
E queira continuar a explodir
Haverá manhãs e pores-do-sol
Noites e dias a fio
Relâmpagos e matéria em vibração.
4.
Eu sei que existe juta
Mas não sei em detalhe exatamente o que é
A juta
Sei que existe tanta coisa que eu não sei
Mas o que me pesa verdadeiramente
É o que eu julgo que sei
Coisas que durante tanto tempo e tão sofrido
Julguei saber.
Indagamos
Indagamos mas a verdade é que não sabemos
O que sabemos é sempre transitório
E é transitório até um ponto
Em que parece não fazer mais muito sentido que algum dia
Venhamos a saber
Viver para saber isso sabemos
Que não irá nunca nos levar
A lugar algum em que queiramos estar
Então nos resta continuar a procurar
O Ser
E ser até ao osso
Essa indagação insaciável.
505
5.
Às vezes lembro o poeta ainda jovem
Com aquela cara de quem não faz mal a uma mosca
De uma solenidade atrás da qual
Se podem divisar as mais comuns perversidades
Outras vezes vejo-o já quase obumbrático
Conservado em bagaço e em tabaco
Do ópio acredito que era mais
Uma figura de estilo
Do que uma intolerância efetivamente vivida
Vejo-o sentado
Também tem vezes em que o vejo
Jantando no primeiro andar
Da pensão onde terá premeditado
Inúmeros desassossegos
Vejo-o na Brasileira e no Chiado
Descendo a rua caindo para trás
Ou inclinado
Caindo para a frente
Como agora o penduraram nas naves do aeroporto
Logo ele
Que tinha aquela fixação dos cais
Vejo-o em tantos lugares
Que se um amigo muito querido mo dissesse
Eu acreditaria que ele estava vivo.
6.
Há muito tempo
Parece
Está consignado
O que acontece é o que acontece
Não é o que não acontece
506
É uma bonita frase
E um sagaz pensamento
Talvez fosse
Se ficasse por aqui
Mas o que não acontece
Como seria se fosse
Como o brilho de uma estrela
Dessas que brilham no céu
Mas no lugar em que existem
Já não estão
Mas também não são ficção
São o brilho
De uma existência futura
E não tem nisso qualquer forma de ilusão
É uma pergunta
Que fica para além dos limites da ciência.
507
7.
Na minha vida ao que parece
Estou consecutivamente condenado a ver navios
Primeiro os de Lisboa achando o Tejo
Odes marítimas eternas refuturas
Os de Santos depois
Indo direitos ao Oriente
Agora são os que entram no Amazonas
E que certamente esperam um piloto
Que os leve p’ra Manaus.
8.
Ainda jovem tive que decidir
Como seriam arrumados
Que forma iriam ter
Os gatafunhos sagrados
Que eu ‘inda iria escrever
Os hieróglifos que haveriam de pintar
As paredes da minha construção
Os castelos aéreos do meu sonho
Ou a minha casinha de sapê
A cabana dos amores imaginados
Palácios de uma existência irreal
Ou tendas construídas com bandeiras
508
Derrubadas de exércitos vencidos
Templos de um rito profano
E libertário.
9.
Gostaria de ter olhos maiores
Não é para ver mais
Que o que se vê passa depressa
É para ver melhor
As coisas que se vêem poucas vezes
E as sombras das paisagens incomuns.
509
10.
De todas as ilusões que se tem
A candura é a maior e a mais pura
Define de um ser humano a estatura
E é a marca indelével de um bem.
11.
Como o Cristo do Alberto Caeiro
Uma invenção do Fernando Pessoa
Capaz de enternecer qualquer pessoa
Que o leia enternecido como eu leio.
12.
O que é que tem a chuva ser oblíqua
Deve ser do vento que dá de lado
Deve ser ela ser reta e no entanto
Oblíqua
Mas não é essa a questão
A questão é a de saber
Por que é que a chuva direta e vertical
É tão plebeia
Enquanto a outra
A oblíqua é tão charmosa e sensacionista
Será por ser oblíqua
510
Não ser apenas água
Caindo
Mesmo que olhada de um lugar protegido e confortável
Se ela não fosse oblíqua não teria a graça
Que lhe encontrou o nosso distintíssimo poeta
Ao ponto de chamar a um poema «Chuva Oblíqua»
Um lindo e esmagador poema
Eventualmente
Mas onde nem sequer fala de chuva
E muito menos de ela ser oblíqua
Mas toda a gente entende e acha natural
Que ele se chame «Chuva Oblíqua»
E o porquê.
13.
Passei a manhã na biblioteca
Tantos livros…
Tantas bibliotecas no mundo
Em tantas línguas
As públicas as secretas as privadas
As vendidas as compradas
Sebos e alfarrabistas
Livros jornais e revistas
Antigas e atuais
Tantas letras de diferentes alfabetos
Vírgulas pontos finais
Romances sem pontuação
Poetas transcendentais
Tanta dimensão humana
Mesmo só contando esta
Em que passei a manhã
E mesmo assim
Era eu o único leitor
As portas estavam fechadas
Ou não se via ninguém
E esta história eu afinal
Nem sei bem que moral tem.
14.
Cheguei a Lisboa e não vi o Tejo
Nem o mar
Vim por trás.
511
Mas posso apanhar o sol
Que bate de enviesado
E pensar que poderia
Reler a ode marítima
Em vez de escrever de cor
Versos quebrados.
15.
Às vezes fico macio
Como eu sempre tenho sido
Passa-me na alma um frio
Que é uma espécie de cio
Que me deixa estarrecido.
Popularmente cantando
Sinto insuficientemente
O regular contrabando
Que a roda mantém andando
E canta popularmente.
512
16.
Tenho nos meus bastidores
Uma antiga bonomia
Que me vem de não ler nada
De poder escrever às cegas
E de gostar de escrever
As palavras que aparecem
Na minha mente vazia.
É um princípio ativo
Que se forma nas entranhas
Que se desvia do ser
Para a zona indefinida
Que existe entre ser e estar
E estando pensa sentir
Sensações que me são ‘stranhas.
Só depois de resumida
Pobremente analisada
A conta corrente havida
A barganha realizada
Nos edifícios da mente
É que se percebe a história
Seja mal ou bem contada.
É um caso singular
Parece um caso perdido
Mas permanece indagando
Do fim o fio condutor
Seja moderno ou rimado
Seja franco ou decassílabo
O verso que está escondido.
513
Talvez possa ser de azeite
Esse fio que se procura
Talvez escorregue nos lírios
Que sente ao pensar em nada
São sentimentos profundos
Superfícies extasiáticas
Talvez seja só loucura.
17.
Toda a vida o que conheço
São sete sílabas vãs
Não vale a pena ser alma
E ser pequena
A voz que da alma vem
Ser ofuscada
Pelas coisas que da alma
Se desprendem.
514
18.
Talvez eu sinta vaidade
Em ter escrito este poema
Que parece e é dedicado
Ao meu amado poeta
Tão incensado
Tão lido e querido
E estudado.
PULSAÇÃO INTERMITENTE
515
E volto a pensar em ontem
Hoje que já é outro dia
E a manhã já nem está fria.
Ou em sentido contrário
Do Brasil para o Algarve
Esse tempo extraordinário
Voltar e ir.
516
Quero ver logo o lugar
Onde eu esteja sempre quente
E o par do par do meu par
Não adoeça.
Em volta um aeroporto
E só você
Brilhando fulgurante ao meu olhar absorto.
517
*
518
*
519
A Lua está quase meia
Perfilando-se no céu
Mesmo já não estando cheia
Grã candeia
As nuvens fazem-lhe um véu
Tem um chapéu
Farrapo de um credo incréu
Restos flébeis de uma ideia
Triste labéu
De uma antiga apostasia.
520
Parece quase deitada
Redonda ou sapateada
Se pronuncia
Até chega quando nova
A ser por ser invisível
Diferente do que é
Quando está lá
Em quartos evidencia
A sua dupla razão
De seguir sua questão
Ser indiferentemente
E por nunca ser igual
O que ela é.
Anoitece lentamente
O céu vai perdendo a cor
Daqui a pouco é de noite
E não há dor.
Há só um leve mal-estar
Uma saudade real
Que se anicha nas entranhas
E quer ficar.
Espécie de serenidade
Do dia que a luz esquece
Nasce a lua acende a alma
Quando anoitece.
521
*
Embrulham-se os sentimentos
Nas asas do rouxinol
Nos tons frios e nos lamentos
Do pôr-do-sol.
522
TERCEIRO POEMA DA VIAGEM
523
E ainda assim ‘nevoado
Sempre imagens irei vendo
Entre o futuro e o passado
Dos dias que vão correndo.
II
Só me int’ressa a novidade
Só me fascina o porvir
E uma suprema vontade
De tudo ver deglutir.
524
Ver-me sorrir para o mundo
Ver a terra tão bonita
Ver a brisa ver o quando
E a magia que o habita.
III
E todavia persisto
Nessa dúvida inconstante
Saber se sou eu que assisto
Ou me assiste a vida errante.
525
Uma falsa progressão
Desde o velho até ao novo
Em permanente tensão
De que nunca me absolvo.
Ao me encostar ao cajado
Eu que fui agricultor
Já não tenho nem arado
Nem vocação p’ra pastor.
IV
526
Apenas demora lenta
Dos meus dias que não chegam
Quando o ser experimenta
Ser tudo o que os olhos negam.
Já dormi em aeroportos
Já virei noites a fio
No passar dos tempos mortos
Vê-se ali do tempo o rio.
527
O que vemos não existe
É ilusão dos sentidos
Um pouco de talvez triste
Nos incomoda os ouvidos.
Se produz e reproduz
Tudo flui e se compõe
Tem o tempo tem a luz
Tem a sina e se propõe.
1.
Dançam borras no café
Que acabei de beber à hora certa
Ou um minuto antes da hora combinada
Para o eterno encontro do amante
Com a amada.
528
2.
Marcas que tenho no corpo
Todas são sinistras vozes
De uma estranha teimosia
Lateralizada.
3.
Tenho o meu corpo fechado
Meu coração é uma flor
No meu ser está misturado
Prazer consciência e dor.
De forma transcendental
Morre e nasce indiferente
Sofre e sonha sempre ausente
Uma verdade banal.
529
Dezasseis versos em quatro
Quadras de apresentação
De um inefável teatro
Que ocorre no coração.
4.
O que eu aprendi na vida
Não vale um tostão furado
Nada sei do ser humano
Nada sei do seu traçado
Reto e curvo ao mesmo tempo
Todo torto e emaranhado
Apenas da natureza
Sei que aprendi um bocado
Ao resto não dou valor
São verdades mentirosas
Que aprendi alucinado
Deslumbrado das pinturas
Dos quadros surrealistas
Que os meus olhos de menino
Nunca contemplaram bem
Dos delírios dos artistas
Dos mágicos ilusionistas
Dos palhaços intriguistas
Minha vida foi um circo
Que agora contabilizo
Da soma tudo dá nada
Nada que eu possa dizer
A sério ter aprendido
Só em momentos translúcidos
Eu creio ter compreendido
Que as leis que regem o mundo
Se encontram descritas nele
Bem visíveis p’ra quem veja
Dele o sentido profundo
Que junta num só olhar
Do universo um segundo
Como diz outro cantor
Que canta de forma clara
É isso que int’ressa ver
Não só o que está à vista
Isso sim que veja bem
Mesmo que seja filtrado
Pelos olhos de um artista
Ouvi músicas canções
530
Vibrei poemas vi coisas
E tive alucinações
Mas tudo tudo o que vi
Não vale um tostão furado
Não tem valor para mim
Nem bem nem mal comparado
Nem presente nem passado
Do futuro nada sei
Nem muito quero saber
Apenas quero viver
Contemplando a luz da vida
Fazendo a revolução
Nas entranhas do meu ser
Respirar vibrar e ter
Do que a vida ao ser reclama
Ter a sã conformidade
Uma forma de prazer
Tão serena e natural
Como um rio fluindo lento
E tudo o que possa ter
Aprendido contemplando
Vivendo ou simples amando
Quero esquecer.
5.
Nunca dei na minha vida
Muito valor ao dinheiro
Verdade aqui seja dita
Nunca dei valor nenhum
E como no formigueiro
Que é o mundo em que vivemos
Tudo o que compreendemos
Tem com dinheiro relação
Não é p’ra ninguém mistério
O dinheiro é o critério
Com que nos valorizamos.
531
Põe à prova a paciência
De quem tem a consciência (d’)
Que as coisas são como são
E essa louca impertinência
De ao dinheiro não dar valor
Acaba sendo sentida
Pelas pessoas que dão
Como um crime abusador
Que corrompe a sociedade
A compostura da vida
E o que lhe dá sentido
Mas mesmo compreendendo
O que essas pessoas sentem
Não dou valor ao dinheiro
E não estou arrependido.
6.
Não leiam estas coisas
Ou se as lerem
Esqueçam-nas o mais depressa que puderem
Porque o que nelas procura se expressar
Não existem palavras que o digam
O tudo é nada e a ilusão
A que pudesse ser de todas a mais bela
A que nem precisasse de ser transcendental
Seria não haverem as palavras
E não existir nada
Que fosse necessário dizer.
532
7.
Se eu fosse um homem honesto
Bom rapaz e bom estudante
Teria olhar penetrante
Teria anel de brilhante
Talvez me chamasse Ernesto.
Venderia canivetes
Escovas de dentes talvez
Talvez trabalhasse em Fez
Com salário todo o mês
Talvez fosse a Marraquexe.
E passada a marcação
Que ao destino fez meus erros
Vou titubeando aos berros
Por descantes e desterros
Enquanto tiver canção.
533
8.
Às vezes o coração
Trabalha para que o corpo
Nem o corpo nem o espírito
Sintam emoção nenhuma
E a dor devassa o momento
Imponente e racional.
É um transe objetivo
Em que a alma se divide
Em dor e compreensão
Não é que a dor não se sinta
Sente-se a dor e a culpa
A culpa de não sentir.
9.
Não sei se é a minha alma que eu procuro sintonizar
Ou se é a alma das coisas que me escapa e eu insisto em procurar
Se é isto que pressinto como uma interrogação omnipresente
Ou uma pena mansa e resolvida de não ser contente
De procurar ainda e entre tantos desencontros os encontros
Ou se é apenas o vapor fluido e condensado dos meus prantos.
10.
Vejo passar o passo
Das fugidias gentes
Nos palcos onde posso
Meu eu representar
Aos deuses circunstantes
Nunca pedi licença
534
Na fé da minha crença
Assisto ao meu passar
Penumbra e indiferença
É a fugaz passagem
Dos entes.
11.
Esta coisa das datas tem um peso
Embora leve é forte a sua amarra
Que nos conduz como um farol aceso
No mistério do mar que o tempo encerra
Como os trastes luzios de uma guitarra
Como os botões de um colete obeso
Relógios calendários tempo leso
No fio do tempo o tempo o tempo ‘sbarra
E o pensamento ao nada fica preso
E o coração vazio pega indefeso
Do contrabaixo o braço que se agarra
E dedos finos tocam o intermezzo.
535
Não se desnuda a alma não tem tempo
Nem calendário o mar que o tempo voa
Tem apenas a canção em que se entoa
O tom que o tempo tem e que ressoa.
12.
De passar a vida à pesca
De uma presa imaginária
Foram-me as fibras tangendo
Formas de uma ordem vária
Acumulada no tempo
Em que a memória se atasca
Olhares perdidos no vento
Sincronias movimento
De uma vida sempre airada
E os olhos com que a contemplo
Fixos no nada.
13.
De uma tristeza minaz
Me assalta às vezes a fama
Do que ficou lá p’ra trás
E dói a quem muito ama.
536
Seus dias se consumindo
Em vertigens passageiras
Livros e livros abrindo
De todas as brincadeiras.
14.
Muitas andanças vivi
De todas guardei um pouco
Mil paisagens entrevi
Cheguei quase a ficar louco.
No mar do deslumbramento
Vi as coisas improváveis
Nada do que vi lamento
Nem mesmo as insuportáveis.
537
Fui ao abismo e voltei
Tive tentações e sede
Tive ilusões e sarei
E já dormi numa rede.
Só desejos impropérios
Só erotismos perfeitos
Que a verdade dos mistérios
Anda e trafega nos leitos.
Toda a vã compreensão
Toda a paixão desmedida
A tristeza sem noção
Que me tem fodido a vida.
538
A SOMA DOS DIAS
539
A SOMA DOS DIAS
540
Mesmo quando trabalhava
Era sempre de improviso
P’ra falar mesmo a verdade
Só fingi que trabalhei
Todos os dias que o fiz
Contrariado ou feliz
Dissimulei.
Mesmo antes
Quando de castigo por ter ido
Longe demais
Em coisas perigosas nas quais
Não se podia ir
O meu pai me mandou ir trabalhar
Para o escritório de um amigo rico que ele tinha
E eu fui
Tentar fingir que trabalhava de empregado de escritório
Mesmo aí
Também passava o dia todo
Especulando
Esperando a hora em que algum dever
Algum serviço no exterior
Me levasse para fora do martírio
Do escritório
E nessas horas fazer
O que sabia que tinha que fazer.
541
Rasgar debates
Sabatinar ideias
Acumular acções e coisas
Que alimentassem o delírio
Em que eu me consumia.
542
Aquele maço que abraçava quase concupiscentemente
Coloquei lá os discos
Grosso maço de discos de vinil
E praticamente ninguém do pessoal reparou
Talvez o Estrela
Que era mais vivo.
543
Esbarrado em mim
Como duas pequenas guitarrinhas
Que por um tempo ainda foram minhas
Mas que coitadinhas
Não serviram nunca para nada
Eram adereços da ópera
(Provavelmente do «Barbeiro de Sevilha»
Quiçá d’«As Bodas de Fígaro»)
Da qual eu tinha com outros companheiros
Rapazes aventureiros
Assaltado o sòtão poeirento e abandonado
Onde existia um depósito esquecido
Do que outrora em outro dia haviam sido
Os dias felizes e endinheirados
De uma cidade perdida
E nas instalações do que teria sido
O lugar de arrecadação dos guarda-roupas
Dos cenários
E de às vezes mais insólitos pertences
Do que teria sido
Flagrante e magnífico
O seu teatro de ópera
A ópera de uma cidade repentinamente endinheirada
Pela demanda geral e desesperada
De uma cura para a sífilis que um doutor
Médico italiano que teria a ela vindo p’ra casar
E de boca em boca se espalhou pela Europa
Que ele poderia providenciar.
544
Nem a intuição nem a mais vulgar curiosidade
De lhes descortinar os conteúdos
Excepto um mui’ santo livro muito antigo
De cantochão
Esse vendi mais tarde
A um antiquário meu amigo.
545
De possuir por sendo minha e verdadeira
Que pudesse compensar e dar consolo àquela perda
Não que tivesse disso consciência
Mas foi o que parece ter acontecido
Tão imperante e forte essa vontade
De ter entre os meus dedos de cantor uma guitarra
Que descobri depois ser da viola o nome
E dele ser
Um não tão simples objecto de madeira
Que o vulgo uso nesse tempo me encantava.
546
Aquela recuperei-a depois quando parti
Para Lisboa com ela e com um saco
Da tropa cheio de livros e de coisas
Inúteis
Levei-a comigo dentro de uma caixa
Por lá ficou e se perdeu
Ao que imagino
Levada por uns moços
De Olhão.
547
E o senhor João era um homem bom e que sabia
Mas que provavelmente gostava de crianças
E aos preços que ele praticava
Os pequenos cadernos de desenhos que a gente roubava
Não lhe davam em verdade um grande prejuízo.
548
O aiatolah Khomeini
Na voz do Zé
E o cornetim estava lá
Entre outras coisas
Como o meu trompete em dó
Um piano belga antigo
Armado sobre madeira
Flautas diversas de pan
Ou de buracos
Feitas da mesma madeira
Tudo o que estivesse à mão
Até o meu violão
E tamborins.
Automóveis
Utensílios
Objectos menos nobres
Ou inúteis
Toda uma procissão interminável
De que alguma vez sentimos o poder de ter
E eu senti
A presença inadiável dessas coisas
Presença intensa que eu pude sentir
Como sinto às vezes a dor de não as ter
E a fatalidade de as haver perdido.
549
A primeira foi como já vimos
Uma de livros marxistas e revolucionários
Todos os itens aparentados
Tudo o que fosse mesmo que vagamente aparentado
Psicanalistas de esquerda
Erich Fromm Herbert Marcuse
Tinha de tudo
Até o mini-manual do Marighela
E o Estaline e o Enver Hocha
O Ho chi-minh
Gostava particularmente de um livrinho
Com pensamentos e aforismos do Ho chi-minh
E do da defesa advogada pelo Fidel Castro
Em uma circunstância em que foi preso
Se bem me lembro
Pelo assalto ao quartel Moncada
Como o diário do Che Guevara na Bolívia
Todas essas coisas me impressionavam muito
Os outros eram chatos
Muito massudos para a minha idade
Mas como eu era um rapazinho triste
E muito precoce
Levava com aquilo tudo
Ainda que muita coisa nem chegasse mesmo a compreender
E compreendia isso
Gostava mais de coisas simples
Como o Estaline
Que não era propriamente um intelectual
Ou do Lenine o «O estado e a revolução»
Algumas coisas do Engels
Mas do Marx ficava longe
Geralmente nunca lia o livro até ao fim.
550
E indo cada um para seu lado
Eu acabei me vendo já nem sei bem como
Zeloso guardador daquele tesouro efervescente
Levei-o para Lisboa
Juntamente com um monte de papéis
Desde simples comunicados impressos
Em rudimentares impressoras manuais
A que chamávamos «vietnamitas»
Até livros inteiros copiados à mão
Por serem de difícil acesso
Havia de tudo
Propaganda de uma organização sediada em um país distante
Mas afinal até bem próximo
Que uns amigos haviam deixado em meu poder
Antes de terem roubado um avião
E partido para esse país distante e próximo
Deixando para trás
O rasto de uma actividade.
551
Coisas passadas e estéreis
Mas vejo o saco
E percebo que tive um igual àquele
Não de couro
Ou cor de couro
Mas branco
Sempre branco e que parecia ser inerte à chuva…
E à sujidade
Acho que o tinha herdado da Dadinha
Minha primeira ama
E que foi um dos que serviu agora lembro
P’ra resgatar como um tesouro
A minha biblioteca de livros comunistas
Pesados sacos
Esse e outros
Pesados livros uns dos quais eu nunca li.
552
Que fez mais uma vez tornar da minha aluna
O trabalho que se suporia ter que ser eu a fazer
O de saber o que dizia ali…
Em alemão.
553
E um dia
Em meio a uma despedida dramática
Foi-me pedido que o desse
E eu dei
Assim como que em uma espécie de holocausto
Contra a propriedade dos livros.
É verdade
E é certamente legítimo
Que eu confesse
E é sincero
Roubei também dois quissanjes
554
Um mais escurinho que o outro
Na madeira
Com um ainda toquei alguma coisa
Esse de madeira mais escura
Não eram como as kalimbas que agora se fabricam
Com caixa de ressonância
E até eléctrico um furinho
P’ra se ligar numa caixa
De som
Eram só a tábua rasa
Os chocalhinhos
E as varas que vibravam
Sedutora e africanamente
Estavam numa sala que existia no liceu
Ao lado do pequeno anfiteatro
Onde se passava o episódio regular do canto coral
Canções fascistas e a sala
Sempre fechada
Dava por ser dita e inscrito sobre a porta
Sempre fechada
A sala de Angola
Testemunho educativo de uma época ainda colonial
Era um quadrado escuro
Cheio de ídolos e máscaras
Estatuetas
E instrumentos de música
E eu entrava lá
Por curiosidade e aventura
Até que um dia
Resolvi trazer alguma coisa
E trouxe
Os dois quissanges e um pequeno batuque.
Lembro-me bem
Que por essa mesma altura
Possui também duas melódicas
E duas flautas de bisel de muito boa qualidade
Moeck
Uma marca que então eu nem sabia
O tão muito boa que era
Todas elas me foram oferecidas
Por um amigo na cidade conhecido como bruxo
E com quem eu conversava muito
E das quais sabia exatamente a proveniência
Eram de alguma forma instrumentos escolares
Também roubados
Mas esses felizmente não por mim
555
As primeiras eu desmontei numa das minhas primeiras tentativas
De inventar coisas já inventadas
E das segundas nem sei mais
Deixaram de ocupar-me a paciência.
556
Não se saber de todo e com exactidão
Se somos nós que as possuímos
Ou se incautos
Embora amadas e queridas
Com uma volúpia quase sexual
Serão afinal elas
Quem na sua imaculada solidão erotizada
Nos possuem.
557
Do outro fiz até uma pequena tradução
Coisa deveras inútil e difícil
Canção do meu próprio eu
Eu mesmo
A bonita e empolgante Song of myself
Que nunca cheguei a terminar
Tinha-o comprado na livraria inglesa
Em França
Uma edição simplória
Livros de bolso muito compactados
Como os ingleses fazem
Para fingir que aprenderam alguma coisa com os americanos
E um título insípido mas peremptório
Works
Que mais tarde adoptei para mim mesmo.
558
Um dia regressado
Ao caldo eterno da doce cidade original
E passeando
Pisando entrechos das suas pedras mais antigas
Descobri uma pequena loja
Dessas que se chamam antiquários
Frequentei bastante
Essa em particular e uma outra
Essas e outras que depois.
559
Queria aprender tudo
Na busca de uma voz
Que fosse mais afirmativa que a voz roufenha
Das minhas viòlinhas
Caixas amenas com que eu sem esforço
Acompanhava hinos e baladas
Mas para o jazz
Fazia-se imperiosa outra necessidade
A de uma voz potente
E que atraísse com charme e atitude
A graça que o discurso
Forte já era o clamor dos clarins e eu havia já
Experimentado o brado das cornetas
Mas foi crescendo em mim algo como um desejo
Como uma sedução ou um fascínio
De me ver a tocar um saxofone
E quando uma pessoa se imagina
E quer ver-se a tocar um saxofone
Não pode simplesmente pedir um emprestado
Porque é um objeto onde se põe a boca
E onde na boquilha se acumulam pequenos e malcheirosos
Depósitos de cuspe evaporado
Então se uma pessoa pretende realmente tocar saxofone
A via mais viável e com certeza a indicada
Será a de comprar o saxofone.
560
Fiquei então professor
E agora com dinheiro
Dinheiro que mensal e responsavelmente faziam cair na minha conta
Em recompensa de eu ficar lá e ir ensinando as crianças
Pude comprar mais coisas
E foi assim que já decerto consciente
Dos malefícios da posse
As fui comprando
Sem remorso
E até por vezes com paixão.
Desta maneira
E de tantos instrumentos possuir
Foi-se na mente das pessoas construindo
A ideia não sei se errónea se dúbia
De que eu
Embora fosse professor
Seria músico
Devo dizer que eu mesmo
Terei contribuído bastante
Para que esse indecifrável fenómeno
Se fosse assim sedimentando nos espíritos
A tal ponto
Que em algum momento eu próprio
Estabeleci que passaria a acreditar nisso.
561
E os músicos são pobres
E precisam absolutamente dos instrumentos
Posso dizê-lo hoje sem o constrangimento de uma delação
Porque o meu bom amigo Tino já morreu.
562
Passado um tempo
Um poderoso traficante estando preso
Me mandou a casa a mulher para que reclamasse
Das congas o dinheiro do qual eram penhor
Não havendo já nem congas nem dinheiro
Lá tive que vender o saxofone
Para manter a paz com os insanos.
563
É como um saxofone
Inspiramos mas é só
Quando sopramos o vento que o faz tocar
Que soa a música.
564
Todos os da Berkeley
E muitos instrumentos brilhantes
Comprei um alto
Da Yamaha
Mas o que eu gostava mesmo era de um Buffet Crampon
Que parecia mesmo feito em ouro
Ou desses em que se podia acreditar
Que houvesse algum na liga
Mas esse era mais caro.
565
De outras coisas que um dia possui
Tenho saudades e são sinceras
Mesmo daquelas das quais já nem me lembro
Ou de que não me lembro o que lhes aconteceu
Sinto saudades
Dos quadros que eu pintei e que vendi
Dos que não vendi e já não sei onde é que estão
Das tintas e dos pincéis
Do cheiro
Tenho saudades das noites
Que eu virava pintando e que depois
Ao ver o quadro de manhã
Me parecia demasiado amarelo
Mas eu compunha
Durante o dia
E de noite
Virava de novo a madrugada pintando
Às vezes desesperadamente
Para poder entregar no outro dia
E aí já dava nos olhos um desconto
Ao amarelo.
566
Perfeitas
Que se adaptavam aos meus pés como uma luva
Só que naquela manhã
(Naquele tempo eu acordava cedo)
Eu me tinha esquecido de calçar as meias
E à noite
Depois de chegar a casa e já me ter passado
Todo o entusiasmo revolucionário
Verifiquei que tinha ficado com os pés cheios de bolhas
E doendo
Da utilidade dessas botas nunca sequer me ocorreu duvidar
Mesmo considerando os flagelos desse dia
Do gosto de as ter ainda menos
Posso dizer que gostava e que gostei muito e muito delas
Mas perdia-as
Nem consigo lembrar-me onde ficaram.
Perdi coisas
Que tive e que deixei de ter
Perdi a minha tuberculose
Que ao contrário das botas transportei
Junto com os livros
Quando voltei ao meu torrão natal
Depois da revolução
Com que a história me brindou num raro privilégio
A mim e a outros da minha geração
Mas que também ao atascarmo-nos nela trouxe junto
A proverbial moléstia que em geral
Em abono da verdade nessa altura já bem menos
Dizimava os pobres os poetas e os comunistas
Foi assim
Passados alguns meses sobre o benigno regresso
Aos primeiros sinais de sul e de calor
A terrível presença do bacilo foi detectada
E logo prontamente combatida
Com os meios disponíveis ao competente e ágil
Sistema de combate àquela devastadora ameaça
Que ainda poucos anos antes grassava predadora entre os gentios
Agora já nem tanto
Mas só de ouvir-lhe o nome a pessoa se enojava
E aos amigos e próximos assustava
E eu
Mesmo que não a sentisse ela lá estava
Eu via-a
Como uma medalha instituída no meu peito
Mas por dentro
Anos depois fui informado
Por um atento e competente servidor que a dita tinha lá deixado
A cicatriz
Coisa que eu nem então nem antes suporia que existisse
567
E que a partir daí fiquei sabendo que existia
Mas em verdade só restou a cicatriz
Depois de um mês e meio de tratamentos
A que eu faltava mais do aconselhariam os cuidados médicos
E algumas vezes tenha tido que ser repreendido
Pelo meu bom doutor
Constatou-se que eu estava «negativo»
Só por si era uma coisa natural
Eu realmente nessa altura
E nessa altura até mais do que nunca
Era em geral bastante negativo
Mas todavia
Quando encarado do ponto vista da química médica
Era uma ocorrência assaz surpreendente e incomum
Mandaram-se chamar os outros médicos
Para verem a cura tão precoce e improvável
E nos baixos fundos da cidade atribuiu-se a cura
A umas ervas que eu e os meus amigos fumávamos
Foi assim
Perdi a minha tuberculose
E dela só recuperei a cicatriz anos mais tarde.
568
Igual mas mais pequena
Com uma representação em latão do templo de Diana
Que provavelmente a minha mãe terá trazido de Évora
Como recordação
Existiam as duas lá em casa
A casa dos meus pais
E da casa
Também frequentemente me lembro
E tenho saudades dela.
569
Comecei a coleccionar mais tarde
Como forma de lucrar com um modesto tráfico de antiguidades
Muitas linhas e agulhas
Carruagens
De passageiros e de carga
De comboios inusitados
De França e até da China
E vários transformadores
Tive também outras coisas
Milhares de quinquilharias
Que contá-las em minúcias
Ou mesmo só pelos números
Demoraria incontáveis e absurdos
Serviços de eternidade.
Mais tarde
Quando o meu pai morreu
E eu adquiri poder de compra
Comprei um melhor
Armado em ferro
Onde toquei e aprendi
Até os ratos lhe comerem os couros do mecanismo
Era um piano bom
De japonês
Mas que troquei por outro
Ainda cedo.
570
Dessas coisas todas
Que um dia possui
Tenho uma recordação
Que não é a mágoa de não mais as possuir
Nem é decerto a saudade de as ter possuído
É um enlevo delas me terem sido queridas.
571
Imagina só se me desse p’ra falar
Das resmas de dinheiro que já me usaram as mãos…
As imagens que eu vi
Essas ainda as possuo
Mesmo aquelas que esqueci
Ficam guardadas em mim
Sempre me acompanharão
E os pensamentos que tive
E todos os sentimentos
Que alguma vez alberguei
No coração
Para sempre ficarão.
O CHAPÉU
572
Na cadeira de um café
Onde o havia pousado
Para comer
Porque nunca se come de chapéu
E em ambientes fechados
Deve tirar-se o chapéu
E esse chapéu
Que era tão nobre e tão bonito
Feltro macio e castanho
Que me ficava tão bem
Ficou lá e se perdeu
Esqueci
Esqueci naquele momento
Mas não esqueci o chapéu
Nem alguns dos pensamentos
Que ele generosamente
Conservava para mim
Pensamentos que eu só tinha
Quando dentro do chapéu
Os ventos da caixa córnea
Ferviam de petulância pensante.
573
Cheguei mesmo a ter chapéus
De que nem soube a origem
Que me esqueci de quem mos deu
Ou se os comprei
Como um que tive e usei
De camponês
Sem a fita
Que me assentava bem
Na cabeça
E do qual eu gostava muito
Em serviço na cabeça
Ou pendurado no quarto
Na parede
Onde um prego sustentava
A velha cartucheira do meu pai
Toda de couro
E por cima como se fosse um comentário irónico
O chapéu
Que era cor de azeitona
Cor de azeite
Mas baço.
Caetano Veloso
574
Dedicado ao excelentíssimo senhor Caetano Veloso
575
Estou sempre nu no meu quarto de hotel
Ou quase sempre
As horas aqui passam mas não as do meu relógio interior
Só no de pulso que é de bolso
E fica esquecido na algibeira das calças
Que despi para deixar
A minha pele respirar a atmosfera semilivre deste quarto
Onde apesar de tudo existe uma nesga onde entra a luz
E o ar
É o que se chama tecnicamente um saguão
É aliás exatamente um saguão
Em toda a propriedade da palavra
Estreito e comprido
Na altura
A luz é pouca e o ar também
E no que resta dessa semiobscuridade
É que eu me decidi por ficar nu
E fiquei
Tirei tudo
Não deixei nada
Só as meias
Mas isso foi de tarde porque à noite
Tomei banho e fiquei nu
Integralmente.
576
Parece uma mansarda de artista
Ou o atelier de um pintor impressionista
Sem meios para alugar um armazém
Que oficiasse agora em um hotel
Onde fingisse ter-se esquecido de pagar a renda
O que em todo o caso não é o meu caso
Paguei logo à cabeça
Pagámos eu e a Joaquina
Pelo menos a luz já não me falta
E o modelo
E até ver
Estou sempre nu no meu quarto de hotel.
577
A própria turba
A turba ela mesma
Que muitas vezes se concentra num olhar
Num só olhar de um único indivíduo
Mas isso até agora nunca aconteceu
Não que eu tivesse dado por isso
Então eu tiro aquela última peça de roupa que ainda tinha
E fico nu
Nu e com a janela aberta
Deixando entrar a luz
E a sombra
E o barulho imenso que corre lá em baixo
Onde se agita a turba
E se cozinham as vergonhas que as minhas últimas vergonhas
Pudessem eventualmente causar
E eu permaneço nu
Agarrado a esta forma de caneta
Que me serve para digitar letra após letra este poema já não nem limpo
Nem sujo nem a rosa
Nem do povo nem do rei nem das vergonhas
Que o vento e o tempo já levaram.
578
Parece muito
Mas tudo isso acontece porque eu estou nu
E permaneço.
579
Tudo o que se quer dizer
E ninguém duvida do que é dito
Ser e estar se confundem se interpretam
Se interpenetram
Em um só gesto de querer
E imaginar
Que se é o onde se está
E o como
E que já se está melhor
Eu por mim estou sempre nu.
580
Difícil é ver as coisas feias
E descortinar-lhes a beleza
Sentir a transcendência da feiura
Não tanto a transcendência ela mesma
Mas a das coisas feias serem feias
E existir nelas a feiura
E ao mesmo tempo a beleza de serem transcendentes
Difícil até talvez seja
Mas depois de praticada
Essa arte
A arte da transcendência da feiura
Torna-se repetitiva
E a beleza da feiura aborrecida
E então as coisas belas e as feias ficam iguais
Umas belas outras feias
Umas transcendentes
Outras menos
Como este hotel em que estou
Sempre nu
Vetusto antigo bicudo
Por fora é até bonito cor-de-rosa
Vira o bico para a praça da estação
É mais bonito porém por fora do que por dentro
Em dois versos alinhados
De sete sílabas puras
Como eu disse logo no primeiro dia em que aqui cheguei
Não é que por dentro seja feio
Tem aquela transcendência sim
Mas é por fora
A transcendência do tempo
Das coisas que parecem pertencer a outro tempo
E o estarem aqui ainda poder parecer ser um milagre
Faz dar-lhes uma aparência
Que diria como quem o ousaria dizer
Ser especial
Uma aparência toda especial
Como uma frase na qual me simpatizei um dia
E ainda me simpatizo
Quando nu
Quando mais nu
Que uma alma caminhando em direção ao além
Como ao neófito foi dito pessoanamente e que parece ser
Como viver eternamente
Em acto preparatório
Preparado p’ra partir
Como eu vivo aqui agora
Nu no meu quarto de hotel
Com o meu violão ainda encasquetado da viagem
Como diz outra canção
Dessas canções que na vida
581
Quando ouvidas
Jamais consentem
Serem passadas ao dom das coisas esquecidas
E me devassam
Perante as quais eu fico nu
E mesmo assim
Estando aqui
Não estou ainda bem nu
Porque acabei de chegar
À pressa para escrever
E versejar
No meu ponto de miragem
P’ra onde sempre regresso insaciado
De vertigem
De Contagem
Da Pampulha ou do acesso de coragem
Que tenho de decidir
Outra viagem
Como se a minha fome de ideais se alimentasse de cidades
E nas cidades os pontos cruciais
Se atravessassem nos meus
E os hotéis
Pendurassem nos anéis
O que resta dos meus dedos.
582
Estou sempre nu no meu quarto de hotel
Fotografando o ar
Os momentos
E o trepidar dos acontecimentos
Todas as dimensões de tudo o que acontece
Vou-me despir
E o mundo despe-se comigo e vem dormir
E eu durmo também
Como que embalado naquela infantil suposição
De a noite ser quieta e o silêncio imperar na confusão
Lá fora a vida segue
Noite e dia encadeados na sucessão dos dias
Ainda há pouco fez uma semana que aqui estamos
Faz três dias
Eu e a Joaquina
E os dias não pararam de passar
Mas nós estamos em paz
E eu fico contente e nu
Nu e contente no meu quarto de hotel
Onde a Joaquina digita os seus trabalhos
E nós
Ficamos nus e contentes
Junto às nossas maquininhas
Que coisa maravilhosa
Poder desligar os fios
Poder calar os botões
E dar silêncio ao barulho que vem de fora
Damos instância ao acontecimento
E os momentos acontecem dentro de nós
Insaciáveis
Contínuos
Feitos de mudanças suaves
De delírios repentinos
No meu quarto de hotel acordo nu
Sinto que o quarto começa a clarear
Com a luz que entra pelas frinchas que resistem às empenas da janela
São muitas porque é uma janela grande
E quando o sol se levanta a oriente dos prédios
E porque os prédios são altos
Já aparece brilhando
Intensamente
Do lado esquerdo
Mais uma vez a janela do meu quarto está virada ao sul
E eu vejo o sol se levantar
Atrás de um horizonte já alto e recortado
Ainda assim belo
Como são todos os horizontes
E porque é o nome da cidade
583
E não seria
Nem lógico nem aceitável que não fosse
Belo o Horizonte
Que belo nome para se dar a uma cidade
Para uma cidade ter nome
Como as pessoas
Que de início são pequenas
E depois crescem
E ficam sempre sendo mais que as ruas
Mais que as casas e os eventos
A história e os arquivos
Os pergaminhos de orgulho e de sucesso
Aquele nome
Aquele indulto
Que viram do avesso e das entranhas
E prenham filhos que lhes saem dos recantos
Nem sempre belos
Nem sempre sãos
Nem sempre bons
Nem sempre então
São o santo e a senha das viagens
Os santuários
De uma peregrinação interminável
De uma demanda sem fim
De um lugar dentro.
584
Onde o sol já se empanturrou de bater
Aí
Fica talvez um meio frio
Para ficar nu e de janela aberta
Na meia-luz da interior escuridão semi-clara
De um dia que passou sem pensamentos
Nem estúpidos nem grandiosos
Apenas uma náusea febril
E lenta.
585
Lá não tem prossecução da fé
Só tem a fé
Lá de onde ecoa eterna e breve essa canção
Mesmo descrendo da intenção profunda do que sinto
Eu insisto
Insistirei mais uma vez e permanente
Que permaneço nu
Tentando ainda que inutilmente
Redimir o silêncio que me habita
E um ruído que persiste
De um soluço profundo e já esquecido
De ter sido
De o mundo ser perfeito
E tudo poder ter sido diferente
E não adiantar lamentar
E de tudo isso ser muito sofrido e lentamente
Como se esse doer fosse um prazer
E esse sentimento uma tortura
Gostosa.
586
Interrogando ao meu olhar profundo
Que estarei eu fazendo aqui
Em minas tão gerais
Cumprindo um trato
Pagando um preço
Deixo a pergunta repercutir no ar
E peço calma e «paz nos desaventos»
Ainda tenho em mim uma aventura
Que nunca se descobre realizada
Fica no quarto escuro do esquecimento
Sempre lembrada com algum encanto
Sempre esquecida do encantamento
Sempre encantada por nenhum quebranto
Sempre ideal
Sempre impossível por natureza e santo
Que possa ser esse lugar de antanho
Virado ao mundo o dentro que arde em espanto
Ressoa vivo no seu ser sem tamanho
E mesmo quando
A vida retoma o seu pulsar insano
E se desmanda
No árduo batimento das vãs repetições
Meu ser inteiro
Que se despede e despe
Sente-se então a borboleta louca
Que voando solta volteia irregular e labiríntica
Num espaço aberto
Que logo se descobre ser um claustro
Largo e profundo
Profusamente embora decorado de figuras
E sem saída plausível que não seja
Esse mergulho ao contrário que encontra o céu em fundo.
587
Mas a vida sempre segue e continua
Formando lagos
Delineando rios
Pântanos de pensamentos inúteis
De sensações desprezíveis
Sobre as quais e a respeito
Muito se tem dito e lido
Muitos artigos e livros
Bibliotecas de livros
Muitas formas muitos géneros
Estilos
Que por mais vidas que houvesse
Ninguém quereria ler
Nem poderia
Em moldes razoavelmente aceitáveis
Mas como existem
As longas horas de pântano e sentimentos lacustres
Que passam
Entre esse vai e vem da liturgia
Eu também vou com meus ridículos devaneios
Desinfectando o pântano
Como quem quisesse dominar com unguentos
Uma praga de insectos purulentos
Aspergindo essa mistura inócua
Na pestilência imunda da realidade
Que permanece opaca
Baça
Intransparente
Como uma vitrine de uma loja cara
Muito suja
Mas eu nem vejo
Só quando vou à janela
Ou se circulo na rua
E mesmo aí
Sempre me distraio
Com as pessoas
Com a paisagem
Com a ideia
De que estou em um lugar diferente
E onde não acontece nada
E os sentimentos humanos
São todos bons
E prazenteiros.
588
Dessa minha razão descalibrada
Que a ilusão aumenta
E faz mais nítida e mais lúcida
Mas que louca
Permanece intransigente e indisponível
Para nenhuma outra coisa que não seja
A total transparência o total brilho
A total luz
E então por fim quando regresso
Ao meu obscuro quartinho de hotel
Dispo displicentemente a roupa
Como um prisioneiro atirado para o castigo
De uma cela solitária nos fundos de uma prisão
Onde a minha abjecta inocência não me permite sequer
O alcaloide ilusório da expiação da culpa
E aí invejo o criminoso
Mas é por pouco tempo e logo passa
Ou a Joaquina chega
E quando chega eu estou nu ainda vivo
E rezamos devotamente a oração que nos foi dada viver
Ou então saímos
E vamos para a rua espalhar felicidade
Como petizes
Saltitando de alegria
Mas caminhando serenos
Com um brilho irradiante de intensidade profana
Sem que a poeira oleosa que se acumula nas ruas nos toque
Nem a trepidação que vibra essa frequência cava
Que se confunde com os motores dos automóveis
Mesmo aqui no meu quarto de hotel
Nu e intrépido
Sinto a solidão das ruas
Onde passam as pessoas
Muitas pessoas que não se tocam
Não se vêem
Que apenas se olham fugidiamente
Temendo que os seus olhares se encontrem
E que elas fiquem nuas
Sinto o ruído surdo
Das sombras que se aninham nos lugares pouco recomendáveis
E é por isso talvez que tiro a roupa
Para me despir definitivamente
De tudo o que me atinge quando passo e eu não penso
Penso depois
Nu no meu quarto de hotel.
589
Que nu posso integrar o tempo inteiro
Perante a página em branco
Nua também
Comigo estabelecendo uma invulgar cumplicidade
Em que me oferece a especial e rara simpatia
Que é a oportunidade singular de me dizer
E aí eu digo e sou
O eu ser o quando e como estou
E eu
Estou sempre nu no meu quarto de hotel.
590
Quem sabe para mostrar a mim mesmo que não estou confinado
Que não temo o mundo que acontece
Lá fora
Nada do que acontece na minha cápsula privada
O meu quarto de hotel
Onde nada acontece
Ou o que acontece é de uma outra ordem
De uma espécie e tipo de acontecimentos
Outra
Talvez eu sinta esse impulso irresistível
Para abrir a janela a qualquer hora do dia
Ou da noite
Só pela mera curiosidade de saber
De onde vem o barulho que ouço vir de lá de fora
Permanentemente
Opondo-se conceptual e ontologicamente
Ao silêncio que impera no meu quarto
Onde o barulho resvala na minha nudez sem me atingir
E eu o ouço
Se me lembrar disso e se ficar atento
Mas nu no meu quarto de hotel
Estou mais atento ao silêncio
Esse silêncio impropriamente chamado de interior
Não é um silêncio interior
É um silêncio que vem do estar
Do onde e do como
Aqui e nu
Como uma larva em metamorfose dentro do casulo
Que tivesse por alguma extensão da mutação
Começado a fundir-se com o próprio invólucro
O casulo
Ou uma concha em que bicho e casca
Tivessem virado de repente
Uma coisa só
O que chamamos casulo é já por referência o conjunto
Do bicho e do seu invólucro
Como no caso dos bichos-da-seda
Que se dão às crianças para pastorear
E tudo isso
Esse processo insólito acontece
Precisamente por se saber que é um lugar transitório
Este quarto de hotel
No caso
Não um solar de família
Ou mesmo uma casa pequena
Mas que atravessa gerações
E em que as pessoas vão ficando lá dentro
Não
É num quarto de hotel
Feito para passar
591
Para passantes
Que não daqui a muito irei deixar sem pena
E que se irá juntar a tantos outros
Na negra catacumba da memória
Onde apesar de tudo e de tempos a tempos
Uma luz se acende
Na transparência indulgente da nudez
Em que me envolvo quando estou
Nu e no meu quarto… de hotel.
592
Moram ou passam
Vivem ou morrem
Ou reconhecem nos hotéis alguma utilidade social
A mim interessa o estar
O dormir e o acordar em um lugar estranho
E estar
O valor epistemológico do estar
E o momento
O declive demorado e súbito em que o estar se torna ser.
593
Estou sempre nu no meu quarto de hotel
Ou quase sempre.
II
594
Contudo nu
Sinto apenas que as paredes estão um pouco
Mais afastadas do centro da minha nudez
Para lá das paredes a cidade
Mas muito mais calada quando à noite
Os urubus descansam.
595
Orações muito devotas
Muito poucas distracções
E ainda menos
Águas paradas
Só correntes e vapor
Muito vapor
Para afastar a secura
Que este tempo há-de passar
P’ra outra banda
Eu esperarei pacientemente que isto passe
Encolhido como um bicho
Que conclama para junto de si algumas palhas
Posso até ficar vestido
De uma maneira precária
Às vezes um dia inteiro
Porque afinal
Sempre tem uma excepção como já vimos
Em todas as regras que acreditamos poder cumprir
Como eu
Que de um modo geral
Sempre acredito que vou poder e conseguir cumprir.
596
Comprimindo o espaço até formar a gruta
Onde no fundo
O animal chamou para junto de si algumas palhas
E num delírio febril
Sonha uma saída fresca e volátil
Para breve.
597
Cheia de pessoas apressadas
Que colectivamente não vão para lado nenhum
Só individualmente acham que estão
Indo e voltando de ou para algum lugar
Não só estão
Estão uma forma de estar que é indo
Ou vindo
Durante o dia e incessantemente
Vem até mim a gritaria dos pregões
E o ruído surdo das pessoas indo e vindo
Lembrando-me que o mundo existe
E eu vou silente e obedientemente
Até à sacada do meu quarto
Olhar a babilónia
De cima
Como uma obrigação ou uma pena
De eu não pertencer
E do movimento passar macio e inconsequente
Através do meu silêncio dinâmico
E fico a ver
De longe
De cima
Onde a inocência do meu olhar
E a nudez
São inexpugnáveis
Talvez a nudez nem tanto assim
Mas é sobre isso que temos vindo a reflectir
Quando a noite desce a babilónia acalma
Lentamente
Os mercadores um a um levantam os precários arraiais
E vão p’ra casa
Seja lá o que for que isso possa significar
Vão embora
Um a um
Não vão em longas caravanas como os mercadores do deserto
Nos camelos
Vão sozinhos
E outros vão ficando por ali
Até a noite esconder algum recanto
Onde eles possam dormir
Em todo o caso
Quando a noite desce eles calam-se
Só se ouve o imperceptível zumbido
Das televisões.
598
Despertar no ínterim que há enquanto eu adormeço
Depois
Enquanto eu durmo
Ela toma conta de mim
É quando durmo afinal que estou mais nu
E como se comenta no ramo
É para isso que servem os hotéis
Para dormir
Mas apesar de servirem para isso
Há sempre pessoas nos hotéis
E que não dormem
Umas porque não querem
Outras porque não podem
Por insónia
Ou porque têm que se levantar cedo no dia seguinte
Graças a deus não é o meu caso
Eu durmo
E é quando durmo que fico mais nu
E recupero as forças despendidas na resistência ao barulho
Para continuar trabalhando no silêncio do meu corpo
Que é quando ele fica quieto e nu
Mas acordado.
599
Ninguém nota
Porque de contrário atrair-lhes-ia a vã curiosidade
Alguém diria
Está um homem nu naquele quarto de hotel
O que dito assim parece até uma coisa natural
Mas na janela
Estando visível mereceria uma arruaça da turba
Eu por mim
Nada mereço
De mim nada se tira
A mim resta-me sempre esperar
E eu espero
Que nada aconteça de desagradável.
600
Vou permanecendo na minha indómita tarefa
De ficar nu e no meu quarto de hotel
Mesmo ao domingo
Quando o mundo e quase tudo o que ele contém fica mais calmo
A minha alma nunca se distrai
Vou até mesmo fumar um cigarro na varanda que dá para a rua
Confiante
Aos domingos não tem quase ninguém na rua
Os poucos que passam não me vêem
E eu posso ficar serenamente
Desafiando a pudícia da cidade
Catapultando a polpa sem vergonha da minha alma clara
Para lá dos muros
Onde cinzenta se confina a ânsia de uma ordem
Estou sempre nu e sem conflito
Mesmo quando nas ruas lá em baixo passa o carro da polícia militar
Brigada comunitária móvel
Ou algo assim que eu imagino
Quem sabe
Foi alguém que os chamou
Tem um homem nu no quarto andar
Sou eu.
601
Estou sempre nu no meu quarto de hotel
Deambulando ideias
E ideais
Como um general regressado de uma guerra
Derrotado
Que com serenidade estranha e compassadamente
Depusesse a espada
As medalhas
E num ritual fardamentário executado ao contrário
Desapertasse os botões
Desatasse os atacadores dos sapatos
Coisa que aliás eu nunca faço
E arrumasse a farda como se estivesse seguindo para uma viagem
Coisa que aliás eu também não posso propriamente dizer que faça
E por fim
Numa inexplicável indefinição da consciência
Como eu às vezes faço
Deixasse as meias
Como se quisesse acreditar
Que aquela guerra não tivesse verdadeiramente acabado
E a verdade
Ainda assim e apesar tudo
Fosse reversível
E questionável o sentido de se vestir uma roupa
E trafegar o mundo.
602
Desses em que o corpo encarquilhado
Parece pedir que uma borracha da humana compaixão
O apague
Eu ficaria nu ressentindo o barulho
Do que nas ruas faz a roupa necessária.
603
Estou sempre nu no meu quarto de hotel
Daqui a pouco já vou fazer sessenta anos
E estou aqui nu
Exatamente como quando nasci
Mas este quarto não se parece nada com o útero da minha mãe
É mais quadrado
E vendo bem nem tão quadrado assim
É anguloso
E um dia destes eu vou fazer aqui sessenta anos
Que é uma conta redonda
Não sei ainda
Talvez me mude
Para o hotel onde eu ficava antes sempre nu
No meu quarto de hotel
O Sulamérica
Vetusto e triangular
Talvez faça os sessenta anos lá
Ou esteja em trânsito
Mas seja como for é impossível e inútil
Tentar rebobinar a história
Mesmo quando chega a idade dos balanços
E em que se começa a preparar a morte
Com dignidade
Afinal estou sempre nu
Sempre estive
Mesmo por baixo da roupa é o que existe
Uma máquina corpórea que sou eu
E apenas aquele pequeno destacamento de células
A que chamamos memória
Sabe que houve um antes e um depois
E acumula palavras e experiências
Dúvidas e mitos
Insaciáveis.
604
Que existe entre o passado e o futuro
O antes e o depois
E que está lá
No tempo e no lugar em que a epopeia termina
E já não há mais nada
O caminho é sempre em frente
Na direcção desse abismo final
E lá no fim sem paisagem nem distância
É o vazio
Que foi o que entre tempos e através dos dias
Sempre quisemos encontrar
Trafegando o tempo
Indo p’rò espaço
Desafiando os confins do universo
Todos os limites
Enquanto dentro
O espaço esquadrinhado de uma cidade invisível
Serviu sempre de chão a um caminho absurdo
Feito de se ir para lugar nenhum
É triste viver numa cidade
Principalmente quando é uma dessas a que chamamos grandes
Onde o espaço está realmente todo
Esquadrinhado dividido e preenchido e não aleatoriamente
Tem uma ordem nisso tudo
Uma ordem incompreensível
Ao pensamento e a toda a teologia
De qualquer índole
Por qualquer esforço
Compreendê-la é ser seu prisioneiro
Tanto quanto renunciar à existência dela é a liberdade
Não preciso dessa ordem barulhenta
Ainda menos quando os meus vícios racionais
Me fazem especular
Andar e indagar
Iludir e lutar
Escutar cânticos surdos
Cantados numa imensa catedral onde os crentes estão aos gritos
E ecoam misturados com o ruído das cadeiras e dos púlpitos
Os sons articulados da imersão do chão
Na irrespirável fossa cíclica da guerra
A escura e infatigável desdicção
Que se agasalha na injustiça e no dever.
605
E quando
Cair nu como um profeta
Desamparado
Na inevitabilidade das suas profecias
Descontraído
Na certeza final de serem da desgraça
Que os filtros ao ruído
Os colchões de ar
Os camuflados dos soldados dessa guerra fratricida
Que nos confundem os conceitos
E nos fazem aceitar por não termos outra alternativa
As regras clamorosas que temos que cumprir
Para existir
E sem as quais
A existência nos faria por um ápice
Insuportável
Cair
Mas ao contrário
Olhando pelo ângulo do silêncio
São essas regras que são insuportáveis
E a sua aceitação
Inexplicável
De que adianta então eu ficar nu
Se não for para cair no mundo
Fluindo imaterial no desamparo?
Não adianta
Mais vale que seja por preguiça
Preguiça de sentir
Sequer o peso da roupa
Sequer o toque
Mesmo quando a roupa é leve
Porque os pensamentos e os conceitos pesam mais
E desses não é tão fácil a gente se livrar
Quanto da roupa
Se ao menos eu pudesse
Despir-me do por dentro
Com a facilidade com que no meu quarto de hotel
Eu tiro a roupa
Não sairia mais
Eu ficaria em casa para sempre
Voando
Porque sem o peso da roupa
Corpo e espírito se fundem em algo que me parece
Anterior
Já não nem interior nem exterior
Um antes sem depois
Que se coagula no agora
Em que os meus gnomos levitam
E a que os duendes assistem
Impassíveis
606
E ali
Naquele espaço indizível
Ou que quando se diz se diz que é impossível
Todos dançam
Nas veias
Por onde o sangue passa
Parece haver um ardor
Mas não é uma coisa física
É mental
Mas também não é mental
É diferente
De ser física ou de ser mental
É apenas um ardor
Imperceptível
Que se mastiga no lento passar das horas
E na volúpia dos dias
Que ao contrário das horas
Passam numa vertigem febril
E inexorável
O tempo…
Passa
De dia
Durante a noite
No lusco-fusco
Na madrugada
Quando bate insolente o sol do meio-dia
Ou quanto cose a existência às dez da manhã
Ou às quatro da tarde
Ou às outras horas do dia
Ou da noite
Mesmo quando parece que não existe
Ou se percebe
Que não existe
Passa…
O tempo passa
E nós passamos com ele
E é a isso que chamamos o milagre do agora
E para cada agora existe um milagre que acontece
Ou que pode acontecer
Nos infinitos agoras em que não acontece nenhum milagre
E é aí que o tempo passa
Na ausência de milagre existe o tempo
E passa.
607
A tempo
Como se diz em música
Não se sabendo bem se estamos a falar do ritmo
Ou daquela imaginária página em branco em que ele acontece
Ou de nenhum deles
Ou da interacção dos dois
Mais rápido
Mais lento
Mas sempre encostado para trás
Vendo o tempo chegar
Atento
Vendo-o partir
Para o lago calmo e fatal
Do esquecimento
E tento apanhar o passo
E o andamento
Desta sinfonia de anátemas e prestos fortíssimos
Barulho
E dos largos dos silêncios dos domingos
Dos adágios
E da espectativa oca das segundas-feiras
Para nós interessa pouco
Porque às segundas-feiras a Joaquina não tem aulas
E o fim-de-semana se prolonga preguiçoso por três dias
Em que andamos nus dentro do quarto
Ou nas minúsculas dependências que emolduram o quarto
Num delicado parêntesis
Arquitectónico
Andamos nus o dia inteiro
Três dias
Mais o fim da tarde e a noite do anterior
E a manhã do que virá depois
Andamos nus para cá e para lá
E frequentemente nesse vai-e-vem encalhamos um no outro
E nos enganchamos por um longo momento
E aí nos reconhecemos
Nus
Mesmo que fôssemos cegos
O que considerada a beleza extrema
Da Joaquina seria um desperdício
Nos reconheceríamos
Na beleza morna e dolente dos momentos
Que como gotas de frescura condensada
Ficam no ar do quarto
608
Calados
Dispersos
Em melodias de luz
E ficamos nus por mais um tempo
Até que a vida lá fora
Ou alguma coisa que precisamos de fazer
Nos obrigue a vestirmos uma roupa e sair.
609
Milhares de anos
Dependendo da distância
Não sei se é real
Ou se já foi
Nem se será depois
Ou antes não
Ou sim
Quando eu a vejo
Os meus pensamentos voam
Para ela
Estão lá
No lugar onde ela já brilhou há muito tempo
E a noite engole a cidade
Todos os versos da vida
Se derretem
Em letras invisíveis que a escuridão abraça
Nas oitavas sombras da sombra
Onde se esconde a luz que bate nas fachadas da cidade
Onde é de dia
É de noite e depois é de dia
E depois é de noite outra vez
E é de dia de novo
Quando eu abro a janela do terraço para ver a luz
Que já se derrama pelas ruas
Mas não tem crianças passando
Nem pela mão de um adulto
Nem tão pouco
Saltando ou correndo
Nas ruas onde não passam carros
Parece que o mundo desistiu das crianças
Ou as crianças desistiram do mundo
Ou apenas
Os pais não as deixam temerosos
De algum mal que lhes possa acontecer
Que seja
Mesmo que seja pelos melhores motivos
Não há crianças na rua
E nas casas não as vendo
É como se não existisse o melhor que o mundo poderia ter
Restam então as crianças
Que dentro de cada ser
No interior profundo de cada um de nós
Espreitam nos entretempos que se formam
Nos interstícios das coisas importantes
O olhar feroz e inocente
Da solidão
Ou a candura de um riso
De mulher.
610
Estou sempre nu no meu quarto de hotel
Onde se desvanece o erro e a incongruência
E tudo parece original e certo
Mesmo que não seja
Ou que uma ou outra imperfeição na estrutura do hotel
Me faça lembrar o peso e a dureza
Fatal da realidade
Mas aí a Joaquina sorri
E já fica tudo bem outra vez
É sempre ao cair da tarde
E é já de há muito tempo
Que essa quietude no mundo
Me provoca uma impressão
Palavras ditas
Como elas ecoam nesses momentos
Em que o espírito se abrasa
De existir
De ser
De qualquer coisa vazia que está dentro
Mas que só o fora consegue desnudar
Como eu estar nu
E mesmo se faz frio e a roupa me estabiliza a temperatura
Eu estou.
611
Improvisadas
E aprendesse umas escalas
Bonitas
Tudo de uma forma descontraída e despretensiosa
Como deve ser
A atitude criativa
Ser um artista
Ser um cantor de canções e ladainhas
Intermináveis
Quem sabe eu ainda encontro
Uma que seja bonita
E com bom som
Por agora tenho a minha
Que às vezes toco e as cordas
Vibram
Vibram intensamente em mim e eu ouço
Mas antes de ouvir sinto
Mas mais que antes
Antes de ouvir e sentir
Eu adivinho
O que elas querem dizer
E porque as toco
Com as unhas procurando o som mais doce
E as harmonias mais singelas
As quase ingénuas
As mais bonitas.
612
E eu gosto de as ouvir
Embora o som às vezes me pareça
Baço e cansado
Mas provavelmente são apenas as cordas que estão velhas.
613
De o ser ser sólido e inteiro
Possa ainda que seja por só mais um momento
Ser manso e completo
E desanuviado poder mais uma vez
Ficar e reflectir a luz
A luz em que de há muito tempo se atirou
À dor sem fundo de decifrar as ocorrências
E compreender o mundo
E de tirar a roupa peça a peça
Ficar nu
E ainda assim querer despir-se mais
E vivo
Raiar o fundo do abismo inconformado
Onde brilha o fragor do infinito existencial.
614
É tudo igual
Num arraial de sons e brilho intenso
Ou na infinita quietude do silêncio
Onde brilham os farrapos capitais da minha alma
E o que que resta de ser o que eu já fui
E o que serei
Quando de nada mais tiver do que ter compenetração.
615
Faço o que posso
O que me dá na cabeça
Fecho a porta da varanda
E fico nu e pensando
Na confusão
Em que a minha vida anda
Gostava de me despir
Dos pensamentos
Mas nem sempre tenho a via aberta à concentração
Disperso-me
Respiro e me diluo num abraço em que por mais um tempo
Muito espero
E vou cantando
Nessa espera que é indo
E voltando
Estando e sendo
Sempre febril e atento
Sempre cansado e indolente
Eu vou
Numa tarefa interminável
De uma atitude desmedida e incansável
Que sempre se apresenta como sendo
O doce imperativo do destino
Mas o destino ele mesmo
É o que acontece
E só se sabe depois que era o destino
É uma realidade que se manifesta sempre
Pela dor imaginária
Que se alberga no destino
Que transcorre.
616
No pranto que se diz que como o tempo
Passa
Como o tempo os dias passam
Engolidos pela noite
E renascem rotativos
Se renovam nas manhãs
Castas banhadas de sol
Ou de chuva
Ou de poalha
Ou de cacimba
Céus enevoados
Catálogos intermináveis em que se consome o mundo
E a minha nudez permanece
Resistente às rugosidades do tempo
E indiferente
Incólume e sã
Triste e perversa
Livre da placenta renitente
Independente
Solta dos véus que lhe revestem os pudores
Glabra e feliz.
617
É para o que serve um quarto de hotel
Ter uma cama e dormir
Ou ficar nele a viver
Eu por mim já vou dormir e até lá
Quem poderá dizer?
ESTUDO
618
RANÇO
619
O dia passa e não se tem uma ideia
Nenhuma ideia
Nem que seja a de se ter
A dor de ideias não ter
Fica uma espécie de ranço
Um ranço
De um toucinho que comido
Resta podre.
VEIA
620
Ter acabado
Transfigurado em modelos
Electrónicos
Desfigurada a ilusão
Do pensamento
Não me alcança a propensão
De perdidos
Lhe procurar os sentidos.
ÁGUAS E MINAS
JÁ PASSA DA HORA
Já passa da hora
Cheguei atrasado
A esse evento fatal
Que tinha marcado.
Agora sentindo
O tempo fugir
Já nem sequer sei
Bem se quero ir.
Posso-me encontrar
Livre em movimento
Amplo o dia solto
Do meu próprio tempo.
621
BANCO DE VERSOS
622
Propriedades em notas
Notas de culpa chamadas
A serem notificadas
As pessoas envolvidas
Temos notas anotadas
Em variados cadernos
E notas de pé de página
Em livros lidos ou não
E todas elas serão
Plenas de significado
Ás vezes surgem-me as frases
Feitas de nexos causais
Outras vezes flutuantes
Sem nexo ou acidentais
Para que haja reportório
Tudo junto e embaralhado
O jeito seria o mesmo
E a sequência divina
Tudo dá samba de côco
Ou ira da Paraíba
Pertinência não tem preço
Nem a ira nem o dia
Nem o cavalo do seixo
Nem o camião do lixo
Mesmo que fosse Viterbo
Valdomiro ou Valagão
Teria que ser miúdo
Teria que ser grandão
Plutocrata homem de mão
De bandido infame ou não
De polícia e de ladrão
Ref’rente à mentalidade
Todos têm seu quinhão
Fui uma vez avisado
Indo de rota batida
Nas linhas de Cabo Verde
Onde fiz ‘scala na Praia
Das bundas das negras gordas
Corpos e almas cansadas
Confinados em cadeiras
Apertadas de avião
Procuram no seu cansaço
Achar refastelação
E quem já está apertado
De esqueleto e coração
‘spremido exausto e perplexo
Caminhando mal sentado
Em um esquife aparelhado
Redobrado e vertical
Onde pode sentir frio
623
Quem viaja descoberto
Vinhos de torna viagem
Carregados contra os dias
Em recatados barris
De carne a alma e o vinho
Descontrolados no passo
De passadiços postiços
Todos os dias passados
Fazem falta ao património
Ao inventário comum
Dos perdidos e achados
Aos nunca contaminados
Pergaminhos de outras horas
Aos relatos dos naufrágios
Imaginários… talvez
Outras viagens porém
Cheias de esperança e porvir
São uma porta de vidro
Por onde passa ligeiro
O pensamento abstrato
Porque se passa já visto
O lugar ‘onde se vai
Viu-se o destino traçado
E só se preenche a rota
Os corpos são transportados
A matéria se desloca
Mas o que voa é o espírito
Instantâneo e panteísta
Entre concreto e abstrato
Coisas ditas e pensadas
Presumidas de verdades
Intensamente vividas
Ou recusadas viver
Sempre sentindo intenção
Depois de ser concluído
O espaço da caminhada
E a realização
Do tempo da despedida
Haverá poetas gordos
Uns melhores outros piores
Conhecidos gordalhufos
Ou impenitentes práticos
Havendo magros também
E outros assim assim
Poetas contabilistas
Bêbados empedernidos
Sem abrigo sem tostão
Videntes alucinados
Drogados e psicopatas
Haverá ricos também
624
Até nobres sei que os há
De todos só o que fica
Como herança e inventário
É de tudo o que sentiram
Se fartarem muito cedo
É preciso compr’ender
Todos os encadeamentos
Não ter dúvidas nenhumas
Só ter restos duvidosos
De uma certeza perdida
Esse é o contão do fado
Esse é o fado da vida
Já sant’Amália escreveu
E se escreveu bem cantou
Já mestre Alfredo calou
Para que a diva cantasse
E bem assim o Caetano
Podia dizer aqui
Onde a rua é um jardim
Todas as coisas que fiz
As que não fiz as deleite
Todas as minhas demandas
As carnes das minhas amas
E as de noite e as de dia
Todas elas poderia
Dizer sem nenhum remorso
Tenho remorsos dos dias
Que queria ter vivido
E que deixei de viver
Mas nem mesmo isso adianta
Quando a roda se atravanca
Saudades leva-as o vento
E aos remorsos também
Mesmo só e sem ninguém
Jamais ficarei sòzinho
Este verso já o disse
Mesmo assim fica aqui bem
Todos os outros que eu disse
Quereria repeti-los
Dizê-los de outras maneiras
Mas sempre nesta toada
Essa única soprada
Por uma qualquer magia
Não direi que ela é maior
Não tem maior nem menor
Só me toca a verdadeira
E nem sei se boa ou má
Nem se tem finalidade
É só p’ra juntar os ossos
Como a vida junta os dias.
625
CONTA CORRENTE
626
Que se aproxima do fim
Vive sempre no limite
Mas não se consome nunca
Não cai na inadimplência
Quando parece morrer
Se se cala quase morta
Volta circunstanciada
E ainda que fugaz
Muitas vezes esquecida
Vive a crédito falida
Dá cambalhotas e assaz
Pratica malabarismos
Para resgatar a vida
Foi dever de antigamente
Projectado no devir
A água teimando em ir
Sempre para o lad’de baixo
Deixa lá vamos embora
Que a moléstia se desmembre
Salta aos olhos que não mente
Quem diz a verdade toda
Mas aos olhos enxugados
De alguém que percebe a vida
Vê que a conta está mal feita
E a dívida dividida
Por quem não conhece a vida
Que a volta que tem no s
Já foi dito algumas vezes
Nem todo o mundo conhece
Lá debaixo é que se sente
O peso à condenação
Cobra permanentemente
Não se dobra nem desmente
Fica reduzindo a juros
Análoga constrição
Mas só morre de repente
Quando aperta a solidão
Fica suspenso no pente
Um fio de cabelo então
De onde pende inconsequente
Toda essa consternação
Pernoitado o vendaval
Exauridos bons conselhos
Tudo o que fica do mal
Que se fez quis ou sofreu
São os desejos benquistos
Os afazeres não cumpridos
Tudo o que se inventaria
O que se inventa e plagia
Que também se homenageia
627
Na transcorrência dos dias
Dependendo dos momentos
Tudo tem a sua hora
Quando a vida me tortura
Não sei mais o que fazer
Faço versos quebrantados
Faço anéis de imaginário
E mesmo quando refeito
Da minha imaginação
Escapa-me ainda o efeito
Da reza que tenho à mão
Gostava de ser moderno
Ter as mão nas algibeiras
Passar nos ‘spaços eternos
Sem me sentar nas cadeiras
Sem me apoiar nas varandas
Nem me cobrir nos umbrais
Passar nas voltas das tranças
Nas danças dos carnavais.
628
JAMAIS FICAREI SÒZINHO
629
Essa é a minha mulher
Quando está e quando ausente
Quando sabe e quando sente
Que eu sinto o que ela me quer
E que dos dias a vida
Des’ que ela esteja presente
Na vida fala somente
Da língua viva a doçura
Mais que uma ref’rência pura
Essa é a minha mulher.
630
E eu acredito e vou
Transferindo atenção e sina
Para o lado da bonança.
631
poemas de «A MINHA CIDADE» e
de «PÁTRIA» (incompleto)
A MINHA CIDADE
632
Amados para sempre os seus recantos
Medidos os passos dos seus erros
Os espaços
Seus dias abertos
Seus dias claros e promissores
Suas medidas ténues
Suas esquinas tensas
Sua pacífica e fatal indecisão.
Vou à cidade
Ver as pessoas e retomar o fio emaranhado e indescrito
Dos acontecimentos
Mesmo naqueles dias em que já sei que nada acontece
Nem existe qualquer fundada espectativa de que vá acontecer
Vou ver a minha cidade
Mais uma vez como que querendo conhecê-la
Depois de a ter conhecido
633
De a ter sondado
Ter-me enlevado nela
E ter seguido
Ardente e estúpido o meu caminho
Sem que jamais a tenha ternamente amado
Ou que ela me tenha carinhosamente dito que gostava de mim.
634
Que lugar é este onde eu retorno
Da minha impenitente e vã circulação?
Sempre
Lugar do qual eternamente indago o estilo e a razão de ser
O rumo e a razão de eu aqui vir e de eu aqui voltar
Ou até da real motivação por que me terão feito aqui nascer
Lugar insólito indeterminação
Que por ser determinantemente inócua
Se revela abstracta embora grande.
635
No fundo essa é que é mesmo a interrogação
Se é ela que me identifica a mim
Ou se sou eu que a identifico a ela.
636
Em latitudes mais da minha natureza
E outras paisagens que os meus olhos bebem
Como sedentos tuaregues sem oásis
Sem património nem benesses consignadas
Tudo eu revelo aos pavores da minha noite
Mas é quando regresso àquele abraço
Sufocante e frio do meu antanho
Que vejo relativo o seu tamanho
E dos meus ócios citadinos e vulgares
A lenta pasmaceira em que mergulha
A minha complacente paz
Aborrecida.
637
Esse dourado que se diz ser o da vida
Livro da vida em que a vida se consome
Inútil e parada como se não existissem
Nem dias nem momentos nem anos nem decénios
Nem aflitos os nervos reclamassem
Desse fascínio o tédio
De serem os dias vividos remissíveis
E de se poder enfim fazer parar o tempo.
638
Eu como-a assim mesmo
Porque a fome em que me arrastam os sentidos
Assim obriga e no entanto
Jamais lhe frequentei o aeroporto.
639
E dos clamores da crueldade do saque
Da timidez das filhas
E dos brios
Das posses das pessoas
Da vontade
Laboriosa e tenaz de uma cidade
E no incêndio que se lhe seguiu
Tenha ficado das pessoas
A alma chamuscada.
640
E certamente também
Restauradores
Artesanatos vários de outras eras
De humanas e viris monomanias.
641
São reformados
Da marinha quem sabe
Ou do exército.
642
Não é preciso muito afinalmente
Para que seja um purgatório esta passagem
Por esta cidade em que afinal
Eu nem deveria ter nascido.
CAI A TARDE
A BAIXA
Vamos à baixa
À baixa da cidade
A parte mais baixa
Da cidade.
Vamos à baixa
Sempre descendo
Por ruas mais ou menos inclinadas
Mas sempre pouco
Como se fôssemos água
643
E corrêssemos
Para baixo onde se encontra a doca
Mais além.
CASAS GRANDES
644
Havia casas
Grandes
Pertencentes a senhores muito tenentes
Casas senhoriais
Reserva de famílias muito antigas
E cujos descendentes com raras excepções desertaram da cidade
E os que ficaram ficaram por paixão
Ou por herança.
Na verdade antigamente
Tudo pertencia aos mesmos donos
Mas as imagens os trabalhos
E desses e daquelas os sonhos
Viviam na alma da cidade
Davam-lhe cor e vida.
É PRIMAVERA E JÁ FLORIU
É Primavera e já floriu
A árvore das pitangas
Em frente ao Palhacinho
Onde o palhacinho já morreu
E o filho também já o vendeu
E com ele o que restava da velha tradição
Da imperial e do café.
O palhacinho mesmo
O que dá o nome a toda a área
Ainda lá está cobrando o pó
Dos anos em que ninguém reparou nele
E no entanto
Ele
Era o que dava o nome
A toda a área do café
Onde a cerveja era tirada a copo
E o copo onde era derramada a espuma
A tão doidamente apreciada espuma
Abaulado no meio como um barril
E do barril era arrancada aquela espuma
E em cima do barril
Pedras de gelo.
645
Naquela altura quase de certeza
Não havia ainda a árvore das pitangas
Praticamente nada havia nem o chão
Ainda que no chão houvesse os ossos
Que nessa altura seriam a alegria de outros cães.
Naquele tempo
Parecia ter sido há dez mil anos
Um anteontem
Fantasiado entre memórias canto e lírios
Articulando
De príncipes palácios encantados
Lugares queridos
De encantos idos
Desaparecidos
Mutantes sentimentos seres humanos.
646
Lírica vem
De um antes que os meus olhos viram bela
Florida e clara
Nesse lugar que então chamei de praça aberta
Fui aprendendo
A despenhar-me livre em movimentos
Arder paixões
Quebrar milhões
De corações
Imaginários e felizes.
Nessa pracinha
Havia então um pitangueiro
Ou pitangueira não sei bem como se diz
Mas para mim
Eivado de antigos relatos de aventuras
Evocador
Era como um dileto companheiro
Um mago um monge
Vindo de longe
Que a alma tange
Nos vãos desvios daquele olhar distante.
Quando arrancaram
Inútil e inconsideradamente
Tão grande arbítrio
Quando são dele olhos cansados e distantes
A minha árvore
Aquela que eu sonhava através dela
Todas as ilhas
As maravilhas
Fragas e milhas
De caminhos sonhados e perdidos
Terei sofrido
Não tanto de saudade ou de perdão
Talvez de raciocínio.
647
E então enquanto
Dos meus olhos se espraia um fluido manso
Um olhar quente
Que me procura medroso e imaginário
Constante e lento
O som sereno de uma voz distante
Que me segreda
Me toma e leva
Uma alameda
De palmeiras e de mangueiras grandes.
Mas é então…
Então que tudo muda de repente
E se ilumina
A cova escura em que agachado eu me carpia
E a harpa muda
A clave exorta e a pura lira
Volta a cantar
Supera a dor
Mói a distância
Liberta um nó
O que da vida ficou por desatar.
O JARDIM DA ALAMEDA
O jardim da alameda
É a coisa mais parecida
Que tem na minha cidade
Com a selva
Tem árvores centenárias
De várias proveniências
E batem nelas os ritmos
Dos tempos que já lá vão
Tem namorados sentados
Que já lá não estão
E artistas inspirados
Por botânicas visões
Tem passos tem corações
De gerações de estudantes
Tem sentimentos perdidos
Tem ambições esquecidas
De sonhos divagações
Embalados em destinos
Nunca cumpridos
Plasmados na eterna idade
Das ternas liricidades
Da tenra idade
Em que abertas e vivas lá resistem
Todas as possibilidades.
648
LISBOA
ESTANTES
649
SUMIDOURO
Só me quero é ir embora
Passar logo essa aflição
Já chega de impertinência
Dessa amarga incongruência
Que me apaga o coração
Que tive feliz outrora.
650
DEMÉTRIO & SALGÚRIO
651
E não me digas
Nunca por que ponte hei-de passar
Vou naquela em que sei estar
O meu grato coração do outro lado
Separado e cantochão
Esgalgado à fogueira brava
Do desnorte
Não me façais mais perguntas
Façam-me um broche.
PÁTRIA
PRIMEIRO CANTO:
Acabrunha-me o ser
Rasga-me o espírito assistir
Ao lamaçal sombrio em que se arrasta.
II
652
Talvez a pátria amada nunca ‘squeça
A singular matriz que se promove
Tempos afora só e sem cuidado.
III
IV
653
Anjos pretéritos cantos nevralgias
Hiperestasiáticas luxúrias
Ventos e climas de um lugar amigo.
654
VI
VII
655
Perde-se o rastro de um destino bom
Enquanto olhando-nos os nossos ficam
Cantando suas óp’ras atonais.
VII
VIII
656
Nada tenho contra nenhum dos dois
São povos que há muito escolheram suas liras
Mas eu de pena e indecisão pendente.
IX
657
Agora que o final está de passagem
E que o limite nunca se encontrou
Resta permanecer nesse buscar.
XI
XII
658
De uma planura e longe circunspecto
Há muito devassados pela tropa
Restam ideias restam risos restam farpas.
XIII
659
XIV
XV
660
Esse desdém que me mantém atado à grade
Da ordem estranha com que me fascino
Mas que desacredito nem também.
XVI
XVII
661
Fazer então da volta o nunca mais
Fazer das tripas coração e dar
Ao mundo tudo o que não for preciso.
XVIII
XIX
Gela-me a alma
Em lojas sórdidas de ganhar dinheiro
Desconjunta-me o ser e a medida.
662
Ao fundo em escuro não se vê vivalma
Longe o ocaso à contra-luz um embondeiro
Rasga o contorno da paisagem exaurida.
XX
XXI
663
Dando lugar a uma outra grata
E dolorida sensação azul
Como o Pessoa um dia fez saber.
XXII
XXIII
664
Cantando as penas que o erro me mande
E o tempo passa e se transforma lento
Enquanto de erros meus o saco enfuna o ar.
Chegar-te-ão intérpret'esquisitos
Com vozes de veneno edulcorado
E por fim arrancar-te-ão o coração.
XXIV
665
XXV
XXVI
666
Ter da mão da viola as unhas rentes
Calar no coração a atitude nobre
Não se saber que a alma pura nunca mente.
XXVII
XXVIII
667
Se dessas tristes e profanas beberagens
Alguma me levar em vãos engodos
Ainda beberei santos bagaços.
XXIX
XXX
668
Esgotado o chão o salto o mar é vário
Esgotado o mar o drama e o olvido
Fica do sul o som de um tom dolente.
XXXI
XXXIII
669
Sons de um destino quente e ornamental
Que se expressou instante tanto como
Eloquente em sua determinação.
XXXIV
XXXV
670
De discernir seu logo e indagar
Ressequei as voltas dos cantos das meninges
Mas no momento vê-las não as vi.
XXXVI
671
XXXVII
XXXVIII
672
Nas palavras com que se entoa um rito
Nas vozes de comando de uma guerra
Ou nos simples sotaques populares.
XXXIX
XL
673
Dourar o coração ao sol de uma cidade
Anunciar ao mundo uma canção
E ser dos azimutes vagabundo.
SEGUNDO CANTO:
De verso qualificado
Na popular cantoria
Ressoa a voz do destino.
II
674
Total configuração
Ritmo som e pensamento
Que da vida leva os dias.
III
Bocejava no deleite
Da dobra dos seus encantos
Fez até isso comigo.
IV
Pataxós e guarani
Urucubaca bacaba
Caba cã carapanã.
Mandurucu tucuxi
Sucupira monhangaba
Yara caipora tupã.
675
Jurupari anhangá
Açaí do curiaú
Uaiampi e aimoré.
Jabuticaba gambá
Catapora yamandú
Ava avaí evoé.
Os sentidos perceber
Das vocações o sabor
Sem pontos nem et cet’ras.
E brilham no firmamento
Delas os significados
Em que as ideias se exortam.
No respirar de um segundo
Respira garbosa a cor
Nas mentes que elas amaram.
VI
676
Segue no universo pura
Para um tempo que há-de vir
Envolto em bruma lilás.
VII
677
VIII
Exaltação sentimento
Remorso desgosto e ira
Destilados em discurso.
Lamentação testamento
Tudo vazado na pira
De uma pena sem recurso.
E na distância imprecisa
Que se alberga no devir
De ouro e consciência alvar.
IX
Só a ideia organiza
O que é desorganizado
E ao futuro interior.
678
Mas o que se realiza
Nesse mágico passado
O tempo irá recompor.
IX
É impossível contudo
Sabemos que o rio não morre
Mas que a fonte não nos cabe.
679
E eu só percebo mais tarde
Eu escutei-os eu ouvi-os
Mas não me disseram nada.
XI
De o martírio compr’ender
Da perfeita locução
Autofagia e direito.
XII
Há ventos preponderantes
Há o amok há a rosa
Desmaiada do levante.
E há no vento as poeiras
Que ressecam as paisagens
Os tubos respiratórios.
680
Regras e boas maneiras
Canículas e friagens
Termos datas relatórios.
XIII
XIV
No rio da contemplação
Diurna e apaixonada
Uma miragem flutua.
681
Parece uma letra morta
Adaga torta e partida
Cravada e roendo em mim.
XV
Quentes e pronunciadas
Búdicas e impossíveis
Como um reflexo narciso.
É um velho catecismo
Que eu sempre levei a peito
Se faz caminho ao andar.
XVI
682
Onde bebi e fumei
Enquanto pude fumar
Álcool e canabinol.
XVII
Exaurido e nauseabundo
Padeci nem me lavei
Passei fome e comi cru.
683
XVIII
Desejar felicidades
Dar bom dia ver palmeiras
Inflamar pituitárias.
XIX
684
Haverá outro bater
De uma maré muito amada
Que nos ama onda a onda.
XX
XXI
Só pensadas só sentidas
Só pueril provocação
De asas e bocas desnudas.
685
E no mar das inconstâncias
Nas lamas nos batatais
Nos ventos no corrupio.
XXII
XXIII
686
Ouvi tudo e não cansei
De ouvir as notas sensíveis
Quando as tónicas me ‘scapam.
No ocaso do martírio
‘spera um palhaço que ri
Que parece o meu avô.
XXIV
XXV
687
Na outra furei um brinco
Quando vi o equador
P’ra lá da ilha barbuda.
Um arquétipo fundado
Em muitas complicações
Esse do esquerdo direito.
XXVI
688
XXVII
De prolongar o olhar
Até ao laço fatal
Que a rota é perdida já.
Palermices encolhidas
Já fizeram mal maior
Medo de ser amanhã.
XXVIII
Lalações ‘sperlinguitins
Palafitas pés de lã
Óleo luz almotolia.
Platonismos insensatos
Plácidas tardes de Outono
Num lugar que esse não tem.
689
Não receberemos nada
Arpoado o coração
Ficaremos suspendidos.
XXIX
Vaticínio e compromisso
Das batalhas das batidas
As palavras ficarão.
XXX
690
Só restam por fim plausíveis
As lembranças emotivas
Que nos assaltam às vezes.
As quimeras impossíveis
As doces prerrogativas
Dos azares e dos revezes.
XXXI
XXXII
691
De tão invulgar tribuna
Proclamaremos poder
Produzir impugnação.
Acompanhamento e solo
Em todas as tessituras
Rasgaremos sinfonias.
Regalaremos o colo
De muitas mulher’s futuras
‘spalharemos simpatias.
XXXIII
XXXIV
692
Nas ilustrações antigas
Adivinha-se a beleza
Pelo que não consta lá.
XXXV
É apenas latitude
Lato feito qualidade
A longitude é igual.
A quintessência do chão
Mais longe que o chão andar
Ser o caminho bonito.
XXXVI
693
Sempre existirá virtude
Solicitude imprevista
Vento quente de levante.
XXXVII
694
XXXVIII
XXXIX
695
Existe um lugar no mundo
Bem perto da imensidão
Que é o lugar onde eu nasci.
XL
TERCEIRO CANTO
696
Poses amaneiradas sempre tantas
Quem sabe original pederastia
Medos e sonhos ânsias de negros presságios.
II
III
697
Seja o que for do que seja o vir a ser
E sendo sê-lo esclarecidamente
Para o caso pouco interessa o que é que eu acho.
IV
XXXIX
XL
698
A decisão tão fácil de tomar
Fica sempre suspensa da preguiça
Que aos fiéis da desilusão tudo destrói.
QUARTO CANTO
II
QUINTO CANTO
699
SEXTO CANTO
De um lilaz acinzentado
As florzitas já maduras
Da côr já não são capazes.
De um azul já desmaiado
Caligrafadas e puras
Caem dos jacarandazes.
II
E no clamor vegetal
De um ciclo que chega ao fim
Já aparecem as nozes.
XL
700
Não é de coisas passadas
Nem de acender acendalhas
Nem de poesia barata.
CÂNTICO FINAL
701
Nas entretelas das manhas
Nas ‘stranhas nas ribombásticas
Nas manhãs imprevisíveis
Das tentações piroclásticas.
Mastigando o subsolo
Aproveitando o momento
Chegaremos ao miolo
Solo e acompanhamento.
No concerto da paisagem
Cavarão fossas e minas
E nas distâncias da noite
Acenderão lamparinas.
II
III
Despudoradamente verdadeira
Vista sem trajes na sua pureza
Despiu os guizos com que foi à feira
Despiu por junto a dúvid’e a certeza
702
Quando enfim toda a vã filosofia
Se misturar por fim com os circuitos
Não caberão em si de aleivosia
Nem bobos nem palhaços mais que muitos.
703
POEMAS ERÓTICOS
1.
P’RA COMEÇAR ME BEIJE
704
Esfregando aquele grelinho onde você se sente louca
Entrando por fim em você mais uma vez até ao fundo
Beijando a sua boca
Como fariam dois namorados apaixonados pela primeira vez
E ficar
Já sem fúria
Só o momento de sentir aquele calor molhado
Que faz da minha pele a sua pele
Beijar o sal da sua pele
E insistir
Nos bicos duros dos seus seios
Quase até à dor
E de repente morder na sua carne anestesiada de prazer uma mordida que não dói
Você nem sente
Você só se sente voar e ser pegada no ar
E novamente fodida até mais não poder
Agora com vontade
De pressa de meter e tirar e sempre mais
Levados por aquela vertigem
De viver
Aquele momento em que se quer
Mais e mais
Sentindo a carne estalar das minhas pernas contra as suas pernas
Com uma força que a gente nem sabe que tem
Não sabe de onde vem
Mas que se sente
E que se quer
E aí você vem novamente
E deus ajudando a gente se vem ao mesmo tempo
Então você descansa docemente encostada no meu ombro
E eu afago com ternura os seus cabelos
Fazendo um cafuné e agradecendo por você existir e ser tão bonita e ser minha.
705
É isso aí
E a gente parte para a terceira
E a terceira é ainda melhor do que a segunda e a primeira
Mais intensa
Mais demorada e gostosa
Aí parece que foder foi a única coisa que a gente fez na vida
E que o fizémos juntos toda a vida
Eu deixo o meu pau dentro de você quieto
E você só sente que pequenas contrações que você tem por dentro
Sentem que ele está duro
E você vê
Com os olhos fechados e de dentro do seu corpo mole
Que o pau também vibra e se contrai dentro de você
É uma coisa lenta
Quase parada
Entrecortada em beijos
Que começam aos poucos a fazer ferver o sangue
E aí não dá mais para ficar assim parado
E começa de novo o mete mete mete mete
Você pede mais e começa a perder a vergonha
Eu quero te comer
Comer você inteira e te pego pela cintura
A gente balança num ritmo inventado para nós e só para aquele momento
Você sente vontade de me morder a carne
E aquele vai e vem tem um momento em que parece uma luta
Que logo um montão de beijos transformam numa agourada e doce paz
E tudo recomeça de novo
E aumenta
Aumenta aí rapidamente
Cresce o meu pau ainda dentro de você
E eu puxo as suas pernas para cima
Por baixo dos joelhos
Você fica com as coxas contra a barriga como se estivesse a ser comida por um cavalo
E sente o meu corpo a bater no seu
Ritmadamente
E um pau mais duro ainda esfrega a sua carne
Então você não aguenta mais
Respira pela boca e sente vontade de gritar
Me abraça como quem quisesse parar mas não tivesse coragem de pedir
Porque no fundo quer
Você quer mais
E quando os olhos se arregalam e você abre a boca já sem ar
No mais profundo do seu ser você sente a porra se espalhar no seu regaço.
2.
De carinhosa manhã
Manhosa dengosa gostosa
Das coisas que você é
Gosta de fazer carinho
E gosta de receber
706
É gostoso fazer rimas
Rima com rosa e fazer
Eu nunca que vou esquecer
Que nem você me falou
Dormindo e acordando junto
Toda aquela voz de cama
Que vibra no corpo inteiro
Quando se acabou de despertar
Se abriu o olho
E se acordou devagar
Como se ainda de um sonho
Estivesse chegando o fim
E se acordasse já fazendo assim
Amor gostoso com você
Eu em você você em mim
Suspensa e silentemente
Entre dormindo e contente
Gostoso tom da minha voz em seu ouvido
Parecendo vibrar seu corpo inteiro
Beijar primeiro
E se sentir no calor morno de pele se tocando
Os corpos se ajeitando
Numa coisa gostosa e meio que preguiçosa
Preguiçosa assim como dengosa
Gostosa e carinhosa
Manhosa espledorosa
Manhozinha no jeito de colocar a perna
Numa vertigem molhada e já ciosa
Que quer ser preenchida
Coisa maravilhosa
Seu corpo reagindo
O seu sangue fervendo
E o meu
O nosso como um mesmo
Ficando enlouquecido a cada toque
O pau
Sentir que você o sente duro
E louco por você
Desenhar todo o seu corpo com jeito de quem molda
Um barro electrizado e tenso ao criador
Sentir na língua o gosto fermentado
Da sua pele que acende se arrepia
O sal do seu suor
Porque na emoção a gente sua
Fininho
Levemente
Você destila ardor salgado e animal
Com o sabor indefinível que tem quando está nua
E antes que o movimento comece a nos sugar nessa vertigem
Vem a loucura de se entredevorar
707
De enlouquecer de dar
De se oferecer a um beijo maior
Mais molhado
Mais sedento
Enquanto o pau duro e pulsando entra em você
Ah! que coisa boa
Nessa doçura a fina pele do seu sexo
Quente e molhado
O dentro do seu sexo
Momento sem igual em que eu me sinto e sinto
Você sentindo e fico
Extasiado
Meu sexo volumoso e cheio de veias
Escorrega a cada vez que entra em você
Inteiro
Com um impulso enérgico e total
Eu sinto a curva da espinha em as suas costas
Se contorcendo em um arco de prazer
E eu levanto seu torso a cada impulso
Você sente aquele vai e vem vertiginoso
E uiva como uma fera extasiada
E grita quando loucos os meus dedos
Quase cantando se cravando em sua carne
E a força de minhas mãos te agarrando
Te puxando de doida para mim
Encaixando em você
Profundamente e mais
A cada vez mais fundo
E quando eu pego o seu sexo num abraço
Eu sinto ali você inteira
Colado em suas costas te enlaçando
Enquanto entregue você escorre
Se derrete
Me enlouquece
Me arranca um esforço ainda
Se abre toda de tesão
Molhando as pernas
O mole em suas coxas
Por dentro
Nesse momento parece o nosso corpo ser um só
Não há mais divisão
Não há separação
Não há mais dois
Há um em permanente interação
E a boca procura sua boca uma só boca uma vez mais
Com muitos beijos
Longos interrompidos
Finos e sôfregos sãos sofregamente procurados
Roubados
Muito de tanto e tão antessentidos
708
Fortes arreganhados
Carinhosos
E fatais
De fantasia e de prazer subliminar
Em emoção
Você é toda coração
Eu também sou
Eu também vou
Eu quero ir
Vibrar e ser
Você
Maravilhosa
A forma que em você age comigo
E acredita
Que o que você faz envolta em fogo
Tem um efeito em mim
E tem
O pode ser que é um talvez possa parecer
Que ser assim
Que não se sabe o que é
Que é inacreditável
Mas redondo
Que simplesmente é
É só por ser
É círculo é espiral
É infinito e não tem onde
Não tem como
Não tem jeito de poder parar
E devagar
Quando parece ser
Amor sem fim
Respiração
Que vai parar encher
E de vazar
E ter
Continuação
De novo vem e sem parar
Tudo vai começar
De novo
Como se a gente fosse o fim e o princípio
E não tivesse
Nem princípio nem fim nem quem nem mesmo o quê
Só mais um traço
Um novo impulso
Total e esmagador
Mas um degrau acima
Mais intenso
Quase a tocar o céu
Mas mais além
Mais demorado e sentido
709
Restos ainda de um orgasmo na garganta
E de uma forma agora mais safada
Mais ardente
De repetida e quente
Mas contida
Misturado no seu
Aquele gosto a sexo
Indefinível e forte
Que nos abraça
Como se fosse um fogo
E a sua boca
Entreaberta
Numa expressão indefinida de prazer e de vontade
De querer tudo e tanto
De perdição
Toda a voluptuosa força da paixão
Você enfrenta
Me puxa e quer
Indecidida e branda
Em toda a sua sanha de mulher
Tremendo um pouco
Dizendo o que se fosse
Dizível se diria
Poder ser dito em loucos uivos
Num dialeto de nervos
Que soubesse
Pronunciar sem mais
Arquétipo articulação
O quero
Quero ser
Quero mais
Quero maior
Quero- te imenso intensamente em mim
Quero você
Meus pulsos contra os seus
Esmagando as suas veias
Como se o sangue
O meu corresse dentro de você e o seu em mim
Em veias transparentes e abertas
Em estradas largas
E eu pegando uma de suas pernas
Abrir você um pouco mais
A cada vez
Ficar mais dentro
Mais dentro e duro
Transtornado
Possuído
De tesão automatizado
Louco e feliz
Passando além
710
Com um pequeno impulso mais intenso
Curto mas forte
Batendo um ritmo
Que você sente
Que a gente bate em nós e ao mesmo tempo
Em cada ponto do seu corpo
Você é som
E é tambor
Agora geme
Agora grita
A sua voz estremece
E acompanha cada impulso
Agora não consegue mais parar
É sua própria voz que você faz
Quase querer se arrebentar de tesão
Você se ouve me ouve e nos sentimos
E nossa carne se ultrapassa
Quer se vaporizar
Como se nós
Fôssemos voláteis duas asas
De um ser e nesse ser
Quiséssemos voar
Quiséssemos querer
Queremos
E voamos
Sua perna cruzada no meu braço
Cada vez mais
Numa vertigem delirante e total
Quase brutal
Que só termina quando
Sua barriga se contrai
E você sente que mesmo que parasse
Seu corpo de repente
Seria em frenesi em vez de gente
Um boneco de corda a delirar
Que vibra e pulsa
Interminavelmente
Gente não pára
É animal
Não pode mais
Mas quer poder
E quando vai parar respira e sente
Que não é mais nem mais a gente quem comanda
E não se quer
Não pode nem querer
Nem sem querer
Não quer parar
Quer morder
Eu mordo sua boca
E você sabe
711
Eu sinto e você sente
Vai rebentar
E começar a se sentir explodir
Dentro do ventre
O seu impulso é forte
Sentimos sem correr que a carne faz estalar meu corpo contra o seu
Momento que parece prolongar o infinito
Que delícia sentir você escorrer
Quente ofegante e frouxa
Cansada mas ainda sequiosa
Como quem está incandescente
Se recarregando de energia
Para o que vem depois
P’ro que vier
Que quero é ver
No quieto e manso
Infinito espaço que embalando
Nós dois você e eu
Abraçando você ainda com um braço
E com o outro ir
Deixar dengosa a minha mão
A procurar o mapa do teu sexo
E devagar chegar
Chegando
Ao mesmo tempo que a minha língua chega em sua orelha
Dedos tímidos devassam por fim sua xereca
Acariciando
Ali onde você mais gosta
E te beijando voluptuosamente
Então você se sente penetrada uma vez mais
Seus braços caem e se agitam
Mas eu seguro você
Pego os seus seios
Me dobro um pouco mais sobre você
Como que te querendo devorar inteira
E você quer
Ser devorada inteira
Seu corpo balança de novo naquele mesmo ritmo que é só seu e meu
Que só nossos dois corpos feitos um souberam aprender
E vibram
Como uma só respiração
Uma só alma
E uma ânsia delirante que intercruza
Todas as fibras do corpo
Todos os músculos e nervos
Num só balanço
Redondo e inesgotável
De salutar loucura
Só nós dois
Num vorticismo intenso e bom
712
Seu esgar é de tesão e de prazer
Mas dentro e assim
Você sorri
Fica gostosa
Rara e divina
Expressão insaciada
E de mulher fogosa.
3.
Começa no dedão
O grande do seu pé
Devagarzinho
Mais devagarinho
Devagarinho ainda
Amassando amassando
Amassando amassando
Amassando todo o pé nas duas mãos
Com força
Com mais força
Docemente
Depois os outros dedos
A um de cada vez
E o espacinho
Que existe entre cada dedo
Tem beijinhos nos dedinhos nas pontinhas
Parecem ervilhinhas as pontinhas
Dos seu dedinhos do pé
Uma chupadinha gostosa em cada um
Todas as ervilhinhas dos dedinhos
E na sola do pé quase uma cósquinha com a ponta da língua
Depois se pega a perna acima do tornozelo
E se faz rodar o pé
Para ficar bem relaxado
Bem descontraído
Relaxado
Depois o outro
E aí você se coloca barriga para cima
E eu faço balançar a pantorrilha
Que fica meio que pendurada
E dança
E sacoleja
Então as mãos vão ficando impregnadas de eletricidade
Amassando o músculo e dando um ritmo
Que você sente
Você sente a energia que sobe pela perna
Aí se vira para baixo
Quase instintivamente
Cedendo mansa a um pequeno toque
De solicitação
Você reage e gosta
713
E a massagem lentamente
Se passeando em suas coxas
As minhas mãos como um artista
De visita a um museu transcendental
Onde cada pedacinho me fascina
E os olhos em meus dedos
Bebem você
Sem deixar que nem um tendãozinho fique sem ser
Sentido visto e devorado
Todas as pernas
Numa massagem como se você fosse um desportista
Todos os músculos tudo ao longo
Esfregando as coxas para cima
Para baixo
Depois para cima e para baixo
Sempre sentindo
Sempre tocando
Quase uma música
No tom da sua pele
Sempre com ritmo
E sempre o mesmo ritmo
Uma energia
Depois passando a mão do lado
Perto das ancas
Às vezes arranhando um pouco com as unhas
Para tonificar esse lugar sensível
E vai subindo
Aí chega nos glúteos
Glúteos é como se chama o músculo avantajado do bumbum
O musculão
E esses a gente massageia os dois ao mesmo tempo
Em círculos
Nas duas mãos
Primeiro rodando para fora
Depois rodando para dentro
E vai esquentando
Então aí quando se roda para dentro
Você vai se abrindo e se fechando com um som
Naturalmente
Vai se esquentando
E esquentando
Esquentando
Esquentando
Cada vez mais
Cada vez melhor
Mais e melhor
Num movimento mais redondo
E aí quando começa a se sentir molhada
Faz um sonzinho
Shack shack shlak shlak shlak shlak
714
Shlak shlak shlak shlak
De cada vez que vai e vem
Aí se passa para a parte logo depois da bunda
E se massaja um pouco na cintura
Como se estivesse enrolando um cinto ou uma faixa no seu corpo
E se está na hora de virar você de novo
Para cima
É uma coisa séria
Vou sentar no seu colo
Num lugar que encaixa perfeitinho
Nas suas pernas o seu sexo
Antes da sua barriga
E se massageiam os ombros
Depois um braço
De cada vez
Até chegar nas mãos
Se colocam os dedos assim como se fosse de mão dada
Como os namorados
E se rodam as mãos
A pessoa aí já está muito estimulada
E sente as ondas correrem pelo corpo conforme as mãos ficam rodando
E os dedos entre os dedos
A roda é calma
Tranquila
Está quase
Porque a seguir
Chega no peito
Por cima dos seios
Entre aquele osso da saboneteira e os seios mesmo
Essa zona é erógena
Ela já faz crescer o tesão da pessoa
E então daí se pegam os seios fazendo uma concha com as mãos
Primeiro ao de leve
E se rodam os bicos entre os dedos
E se rodam os bicos entre os dedos
Aí é hora de eu me inclinar um pouco sim
E beijar você gostoso
Na boca
E começar massageando o seu pescoço
Com as duas mãos ao mesmo tempo
Levantando o seu cangote
Para você deixar a cabeça caída para trás
Se abandonando
Meus dedos roçam de leve a sua orelha
E eu sussurro umas palavras
Baixinho e grave em seu ouvido
Você sente a vibração da voz
Até ao fundo da barriga
E a partir daí
O resto da massagem é feito com a boca
715
Primeiro nos seus seios como um bebé
Chupando os seus mamilos
Como se tivessem leite e se pudesse beber
Depois devagarinho
Entre as costelas
Mordendo com os lábios
Puxando a sua pele
Dando uma mordida safadinha na barriga
Você vai lentamente abrindo as pernas
E a minha boca chega no seu sexo
Quente
Molhado
Inchado e vermelho
Intumescido de sangue
E a boca quer chegar no seu clitóris
Seu grelinho
Os meus dedos esticando a sua pele
Para ele sair e ficar brincado
Elétrico na ponta da língua que o sacode
Quase frenética
E você não pode parar de se mexer
Se contorcer
E se desfaz em sucos
Langorosos
Apertando
Minha cabeça entre as suas pernas
Eu quero seu sabor na minha boca
Chupar você inteira
Você virando puta
Se desmilinguindo em ais
Ficar em transe
E então aí esfregar meu rosto em você toda
Aberta
Toda molhada
Se contraindo na barriga de tesão
E veja bem
A gente ainda está só no início
Sério mesmo ainda nem mesmo começou
E eu preciso do seu corpo
Sentir seus músculos vibrando em minha carne
Fazer você sentir
Sentir meu corpo
Colado no seu corpo
O volume crescer
Você sentir pulsar meu sexo
Enlouquecido por você
Louco por você
Encher você de mais vontade de saber
De pegar
De sentir nós dois pele com pele
716
Se trocando
Trocando
Transidos beijos
De calor
Pegar sua cintura
Como se você fosse bailarina
E ficar balançando com você
Sentindo seu ritmo em meus dedos
Depois pegando um dos seus seios
Ficar com ele em minha mão
Acariciar
Me erguer até beijá-lo
Um depois do outro
Enquanto você joga a cabeça para trás
E se balança
Se rebola
Vai e vem
Entra sai e entra e sai
Cada vez mais energética e doidona
Abrindo a boca para respirar mais
Então eu vou pego você pelos cabelos
Cravando e arranhando
As unhas de leve em sua nuca
De um jeito q você vai ficar toda arrepiada
Não é gostoso?
É quase o céu
Pode não ser logo à primeira
Mas depois devagar se chega lá
Os corpos vão se conhecendo
E um ao outro se entregando
Com muito amor
Trepando
E com inteligência e sensualidade
Dançar você
Como se fosse tirar peça por peça
Uma roupa invisível que você já nem tem
Você está nua
E eu quero mexer em você
Mas toda e tanto
Que você vai dobrar as pernas
E eu curvado
Beijar muito e mais a sua boca
Pegar as suas coxas
E fazer amor pra você
E se prepara
Porque você vai ficar acordada é uma semana
E eu não vou nem deixar você sair do quarto
717
É
E de gostoso
E de delicia
Eu vou estar beijando a sua boca toda a hora.
4.
Podemos ir agora tomar banho
Juntos
Deliciosamente fresco e deliquescente
Que como palavra lembra assim água correndo
Livre e cantante sobre corpos nus
Pele escorregando
Deslisando lisa e vez em quando se encalhando
Sentindo em tempo
Protuberâncias rígidas
Mamilos
Caralho tenso
Entumescido
E água
De muita água lavando beijos.
5.
Você me quer entrando na cama pelo fundo
Fazendo uma massagem nos teus pés
Deixa que eu deixe você se relaxar
Rode o seu calcanhar
Amasse o seu tendão de aquiles
E cada um dos seus dedinhos
Seus dedinhos
O dedão
O chocalhar da sua pantorrilha
A sua perna dobrada mas descontraída
Deixada assim
Ligeiramente aberta para o lado
Meio aberta
E fazer tudo igualzinho
No outro pé
Na outra perna
Cada dedinho
Depois das mãos vamos na boca
Chupar os seus dedinhos do pé
Você vai sentir uma coceirinha gostosa
Que parece subir as suas pernas
A sua pantorrilha amassada ainda um pouco mais
E as suas pernas afastadas
Vamos massagear as suas coxas
Como se você fosse um desportista antes da competição
Uma primeiro
Enquanto você afasta um pouco mais a outra
Para eu poder caber no meio
718
Os seus músculos começam então a relaxar
E você sente que a minha mão treme
Quase impercetivelmente
Quando se aproxima da virilha
Agora a gente vai massagear a outra perna
A que ficou
E ela abre então bem do jeitinho que a outra estava
E se sente um calor quando você se mexe
Se sente esse calor subir
Na outra perna a gente faz tudo igualzinho
Mas se percebe que em momentos
A sua outra coxa toca as minhas costas
E quando essa massagem termina
Eu peço gentilmente p’ra você se virar
P’ra massagear ainda as suas coxas
Mas atrás
É uma coisa sugestiva
Mas quase profissional
E ao mesmo tempo feita com muito amor
Tudo começa nas curvas dos joelhos
Com ternura
São músculos diferentes
A gente massageia pegando
Agarrando forte
Depois correndo as mãos
Ao longo todo da perna
Para cima e para baixo
Parece que os músculos gostam desse movimento
E quando se chega na parte alta das coxas
Tem um movimento que roda para fora
Estamos nos glúteos
Sua bunda gostosa
Seu formidável bumbum
P’ra esses tem um movimento circular
Que massageia os dois ao mesmo tempo
E lentamente a mão não mais resiste
Àquele calor molhado
Que vem do entre
Entre as suas pernas
Relaxadas e semi-abertas
E a mão afaga docemente
Lentamente
Os dedos querem entrar
E eu abro um pouco as suas nádegas
Para poder beijar
Seu rego
E você sente o meu cabelo
Que toca as suas pernas pelo lado de dentro
Lentamente então você se vira
Para deixar a minha boca procurar seu ponto
719
Seu centro
Sua conquilha gostosa
Seu ponto de ordem unida
Toda a vã filosofia
Do seu corpo em agonia
Que se sente
E você escorre
A minha língua massageia em círculos
E em volta
E os meus lábios te chupam como um beijo
Eu fico como que abraçado em suas coxas
Sua boceta vira todo o meu desmando
O centro do meu mundo
Que você guarda entre as suas pernas
Que você abre para mim
Que você dá
Oferece ao meu tesão
Que te devora
Se demora
Minha língua como se fosse de serpente
Bífida e infatigável
Estimula te estimula
Agita e se te agita semidentro
Enlouquece e louca te electriza o grelo
Ele começa cada vez mais a saber a sangue
Incha
E eu sinto seu sabor em minha boca
Sinto ou invento
Que estou sentindo
Você se mexe
Se contorce
Se inteiriça e se distorce
A espaços o seu corpo serpenteia
E sua barriga se contrai
Você se sente abençoada
Por possuir uma coisa assim deliciosa
E a minha língua esfrega agora como um cão
Que lambe uma ferida jamais cicatrizada
Você levanta as pernas e sente essa vertigem chegando
Mas eu aperto a sua carne
Minha cabeça também roda
Você está inteira em minha boca
Quente e gostosa
Se desfazendo em suco.
6.
Eu quereria encher você inteira de carinho
E de beijinho
Tocar as suas coxas levemente
E logo logo ficar todo agarrado em você
720
Como que de conchinha
Respirando em sua nuca
Mergulhando os meus dedos e o nariz no seu cabelo
Afagando sua cabeça com doçura
E puxando você mais para mim
Sentir sua barriga se encolher
Se contrair
E mais em baixo
Começar a molhar de prazer
Falar bobagens perto do seu ouvido
Baixinho
Reverberando a voz
E pouco a pouco
Pouco um pouquinho mais perto
Gemer baixinho
Exactamente antes de morder a sua orelha
Beijar o seu pescoço
Beijar muito
Até você virar a cabeça para trás para eu poder
Beijar a sua boca
Te devorar então como se fosse
Comer teus lábios
Mastigar tua língua
No beijo mais molhado e apaixonado
Que tem
E que você
Sentiu jamais
Nos dias prazerosos que tem na sua vida.
7.
Devorava
Mordia
Beijava muito
Desenhava seus lábios com a ponta da língua
Dava muitos beijinhos
Em toda a volta
E depois ficava prendendo seu lábio com meus lábios
Beijava de novo
Até você abrir
E então beijava mais ainda
Sugava você
De dentro pela boca
Chupava sua língua
Mordia seus lábios
Enchia minha boca de você
E te beijava
Sôfrego e apaixonado
Até você inteira se sentir beijada
Você tem orgulho no seu beijo
Beijo longo
721
Assim como que se você estivesse
Beijando com o corpo todo
Sim sim
E que o corpo vai no ritmo do beijo
Colado
Se contorcendo e sentindo
Cada vibração
Cada fibra
Cada nervo
Beijo bom é por aí
Quando quanto mais beija mais excitada
Vai ficando
E mais excitado você me vai deixando
Esse beijo é muito bom
E aí você sente o volume crescendo
E de repente uma mordida leve
Em cima
E um pulsar em baixo
Que quando você percebe
Está escorrendo
Quente e molhada
Cheirando a sexo
E numa vertigem galopante
Quase transe
E aí diz pára
É isso aí
É quando chega no momento
Em que mais você pede pra parar
Mais excitada fica
E de repente
Não sabe mais se está pedindo p’ra parar
Ou se está falando
Não pára
Não pára
Ou então você diz pára
Sim
Mas pensa
Não pára.
8.
Eu queria estar fazendo um cafuné nos seus caxinhos
Beijando você inteirinha
Tirando a sua roupa devagar
E desenhando a sua pele com beijinho
Aqui e ali uma lambida
Uma mordida gostosa
E você serpenteando o corpo
Sentindo mais desejo
Do que você pode suportar
E eu sentir a sua carne
722
E sua pele toda se arrepiar
Do jeito que eu não conseguir mais resistir
Sentir as suas pernas entre
E você me apertando sempre
Quente e molhada
Cheirosa e rebentando de tesão
Nossos corpos se entrelaçando as pernas
Os braços e as bocas
Se devorando loucas
Mal tendo ocasião pra respirar
De tanto se querer
E tanto querer se dar
Eu quero você
Magia deliciosa
Você é tudo o q eu quero
Quero você inteira
P’ra eu ficar num êxtase
E virar santo
Mas um santo tipo exu
Com pensamentos safados
Eu vou beber você
Deixar você delirando
Escorrendo de prazer
Eletrizar as suas coxas
Por dentro
Lamber suas virilhas
E esfregar meu rosto
Em você
Minha cabeça se esbaldando
Dentro das suas pernas
Abertas
Fazer você balançar
Pegar a sua bunda e levantar
Para entrar em você até no fundo
Entrar mais
Entrar gostoso
E sentir você me apertando
E rebolando louca e quente
Com a boca seca de gemer e respirar
Ficar com seus mamilos tensos e duros em minha boca.
9.
Mete mete mete
Mete
Mete
Me fode
Me fode
Me come
Você dando p’ra mim
Olhos nos olhos
723
E eu metendo devagar
Te beijando gostoso ao mesmo tempo.
10.
Você de camisola
Pequenina
‘Tá gostosa
Pernas de fora
Sem calcinha
Que loucura
‘Tá tomando ar na bocetinha
Deixa meter meu dedo
Esfregar um pouco… no ponto
Circulando
Carregando um pouco quando pulsa
Deixa eu meter um dedinho
Só pra excitar você um pouco mais
E depois dois
Para você sentir
Devagarinho
Todo o carinho… do mundo
Seria dizer pouco
Aí depois
Como se você fosse uma santa
E eu quisesse rezar para você
Pedir promessa
Devoto e alucinado
De joelhos
Dentro das suas pernas
Lambendo você toda
E afastando suas pernas
Levantando seus joelhos
Para você ficar aberta
Toda…
Aberta como uma flor
E colocar as pernas em volta dos meus ombros
Gritando não
Eu segurando a sua bunda gostosa
Me lambuzando todo no seu suco
Apertando você na minha cara
Até ficar asfixiado de você
Você ainda tenta se soltar
Mas não consegue
Jogo você na cama
E te abraço
Apertado
Apaixonado e gostoso
Entrelaçando as suas pernas com as minhas
Roçando o meu peito nos seus seios
Sentindo a sua pele arrepiar
724
Até que finalmente você cede
Tem que gemer p’ra não gritar
E eu pego seu braço
Levando a sua mão a segurar meu pau
E quando você sente
Como ele fica duro e grande
Mete gostoso
Todo ele inteiro dentro de você
E a gente fica…
Colados se beijando
Fodendo de gostoso
Se contorcendo em desejo e de tesão
Como uma dança lenta
Que você abre a boca
Quer mais beijo
A gente se enlouquece olhos nos olhos
Se aperta forte
Rodeio sua cintura
Você me aperta também
Aperta gostoso no quente meio de suas pernas
No quase dentro
No ardente enleio
A gente respira ao mesmo tempo
Ofegantemente
O mesmo ritmo
Sempre mais certo
Aumentando de volume e acelerando
Você diz que me quer e continua
Rápido e com mais força
Sentindo o entra e sai
E quando o pau chega no fundo
Eu forço ainda um pouco
Como se pudesse entrar inteiro
Todo o meu ser
O músculo e o prazer
Todo o sentir pudesse entrar
Em você
E aí você se enrosca em mim
Como uma cobra
Que se agita
Se contorce
Se rebola
Que se desdobra em pernas
E que esbraceja em asas
Dança e se enche
De uma vertigem voadora de prazer
Enquanto eu
Electrizado e bêbado
Sentindo o cheiro a sexo
Que emana de você
725
E te bebendo toda
Meu amor
Te acariciando
E te sentindo os seios
No côncavo das mãos
Os bicos duros
Roçando as palmas
No peito o sobe e desce de te sentir arfar
O batimento surdo do teu corpo
Clamante e pélvico dançando
No sintonizar das tuas coxas
Sentindo você dar mais te querer
E te fazendo uivar
Enlouquecer
Num último momento quase um pranto
Por ser tão bom sentir tanto prazer
Ser mais intenso então
Ser tão imenso
O espanto e o louco desmedir
De foder tanto.
11.
Dando beijinhos
Em você toda
Todinha
Todinha mesmo
Nas pernas
No pé
Na barriga
Na cintura
Na cinturinha
Nos seus ombros
Nos seus seios
Como se eu fosse um bebé
No seu umbigo
De novo na sua barriguinha
E depois naquele risquinho que tem
Que segue do umbigo
Para baixo
Eu fico abraçado em você
Entre as suas pernas
Beijando você muito
Cada vez mais sofregamente
E você sente minha respiração
Meu coração que bate mais forte
Vai sentir os meus cabelos entre as suas pernas
E aí eu vou beijar você ainda mais
Abraçando você
E abrindo mais as suas pernas
Sentindo o seu sabor ficando quente
726
Como se chupar fosse um longo gostoso e intenso beijo
E eu ficando cada vez mais louco
Para ter você
E sentindo o seu calor molhado
Por fim beijar você assim
Amorosamente
Na boca
E entrando em você devagarinho
Sentir você apertar
Depois mais forte
Olhando você nos olhos e sorrindo entreabrindo seus lábios
E sem parar de entrar e de sair
Beijar você intensamente
Muito
Sempre aumentando o ritmo
Até chegar num ritmo perfeito
Só nosso
Que a gente nem controla mais
Que dança
Sozinho
A gente apenas sabe que se ama que se beija
E geme de prazer.
12.
Um beijo
Um simples beijo
Na parte recuada do seu rosto
Que faz você ficar
Num frémito antevisto de prazer
A mão direita na parte recuada da cintura
Você recua
Quando se sente inopinadamente nua
A uma subtil discreta mas intencional pressão dos dedos
Faz você sentir dobrada a voz do querer
Você ainda diz que é tímida
Mas quando as bocas se procuram
E se mergulham
Há uma coisa que lhe sobe pela espinha
E você dobra as pernas
É um momento em que as bocas se devoram
Numa mastigação impessoal e semi-líquida.
727
Deixa inocente escorregar a alça do vestido
Você ‘inda fingiu que reagiu
Mas a outra alça já caiu
E o vestido
Desnudando os seios
Tocando a sua pele
Levemente
Antecipa o toque que logo logo vai se produzir
Você sente os sulcos da impressão digital
É impossível
Mas você sente
Enquanto eu começo lentamente a voar
Na carne mansa e mole da sua mama
Percebo os seus mamilos
Na pele imaculada da palma da mão
E fico
Sentindo eles ficarem duros
Pedindo para serem chupados
E beijados
Sentindo ao mesmo tempo
O calor da boca o húmido da língua e o roçar dos dentes.
13.
Não é impressão minha
Olho você
Penso em seu colo
Dá pra sentir seu cheiro
Luminosa
Irradiante
Muito muito bonita
Como você só você é.
Vejo você
E é como se você fosse mil ao mesmo tempo
Tem mais imagens um instante
Numa pessoa viva
Do que em uma bibliotecas inteiras de poemas e fotografias
Quem dera eu fosse um mago
E no instante em que sinto e sinto ver-te
Pudesse estar aí
Fazendo um cafuné no seu cabelo
Fazer assim
Como eu te vejo agora
Com olhinhos de febre
Piscando super infinitamente sensual
Carinhos
Denguinhos
Palavrinhas quentes e docinhas
P’ra minha menina
Mais querida
728
Mais gostosa
Mais bonita
Que eu adoro
E que me deixa louco
Só de pensar nela
E que me faz estremecer
Todo o ser
E enlouquecer
Só com o jeito de colocar as pernas.
Eu quero saber
Quero talvez adivinhar
Ver se eu não vejo
O que eu só vejo
Quando beijo
E quando beijo vejo
O que eu só vejo
Quando vejo o que não vejo.
Fico pensando
Só imaginação
Querer tocar
Fazer carícia
Sentindo o calorzinho
Vindo de dentro da calcinha
E de bobeira ir colocando o dedo
Do lado
Afastando um pouco
Tirando para o lado
Ficar rodando o ponto
Daí por cima
Meter a mão
Pegar inteira
Sentir aos poucos toda você ficar molhada.
729
Mais e mais
Sem desistir
Até você ficar toda molhada
E eu meter dois dedos dentro de sua gruta
E você
Com um gemido de prazer
Pedir p’ra eu tirar a sua roupa
Eu vou tirar
Devagar
Beijando você muito
Chupando os seus seios devorador
Até seus mamilos duros ficarem cheios de biquinhos mais pequenos
Em volta
E suas pernas se entrelaçando em mim
Você se contorcendo e se esfregando
Deixando eu perceber que você está sentindo
Vontade de foder
E aí meio q às pressas
A gente começa cada um
Querendo tirar a roupa do outro
E você acaba puxando
Rasgando
Numa loucura só
De respiração descompassada
E de tesão desenfreada
E num momento
Eu beijo você com muita força
Muita intenção
Mordendo seus lábios
Lambendo a sua língua
Enquanto o meu pau entra em você
Desembestado
E você me aperta
De cada vez que ele entra e sai
E entra de novo até ao fundo
E a gente fica dançando
Num balanço unívoco e fatal
Semte-se a pele escorregar já de suada
E a carne estalar
A sua contra a minha
A minha contra a sua
Sempre com cada vez mais energia
Com mais força e mais depressa
A gente perde até noção do tempo
Eu puxo suas pernas para cima
E pego a sua bunda
Levantando um pouco
Para meter em você
Mais
Mais
730
Mais
Mais um pouco
De cada a vez a gente quer chegar mais fundo
Mergulhar um no outro
Até quase parar de respirar.
14.
Se eu pudesse te ter deusa indizível
A sua pele macia ainda fresca iria me alucinar
As nossas bocas coladas num beijo voluptuoso e bom
E as minhas mãos pegando a sua carne
Todo o seu corpo
Uma pegando a sua nuca
Outra apertando você pela cintura
E arranhando um pouco as suas costas
Como uma massagem
Subindo a sua espinha
E descendo
Descendo mais para puxar você p’ra mim
Seu coração ficando acelerado
E você sentir como eu estou te desejando
Meu amor
Pulsar contra você de desejo
E sentir as suas pernas se abrir
Tocar seu sexo com doçura
Em pequenos movimentos circulares
É
Ouvir você gemer um pouco
E abafar esse gemido com um beijo
Maior e mais molhado
Sem nunca deixar de te acariciar
Beijar seus seios
Beijar cada centímetro quadrado do seu corpo
Pegar e morder as suas coxas
E deixar a minha boca encontrar seu sexo
Você pode fazer o barulho que quizer
Eu vou beijar você
Muito
Muito
Até você ficar molhada
E eu sentir o seu sabor
Sabor gostoso
Gosto de amor e de loucura
Minha lingua não deixará descansar seu ponto
Quase frenética
E aí sim
Você deixaria sair gemendo de prazer
Toda a delícia
De se sentir chupada com sofreguidão
Você é tão bonita
731
Meu pau rebenta de desejo
Quero que sinta como está duro de desejo por você
Quero que pegue e sinta
E eu afastando as suas pernas
Sentir o calor que você tem por dentro
Tatear seu sexo como um cego com o meu
E entrar
Em você devastadoramente
Como um exército que invade uma cidade
Sentir você na palma da minha mão
Pegar seus seios
Um… depois o outro
Sem nunca parar de meter
Abraçar você e num momento de tesão que parece que vai nos sufocar
Entrar em você até ao fundo
Sentir seus pelosse emaranhar nos meus
Meu sexo ganhando novas veias
Está tenso e parece ainda querer crescer dentro de você
Beijo você pegando forte a sua nuca
E você sente a minha carne se tornando igual a sua carne
A mesma carne
Que se choca
E nossos corpos dançam
Eu puxo os seus joelhos
E suas pernas abertas para cima
Parecem querer dizer p’ra eu te penetrar ainda mais e mais
Seus seios lindos demais em minha boca
Eu sinto enrijecer os seus mamilos
E eles ficarem cheios de pequeninos bicos em volta
Eu beijo
Eu lambo
Eu mordo
E você grita quando dói
Eu me lambuzo de saliva misturada com loucura
Chupo você como um bebé com fome
Gostoso sentir que você gosta
Mas o melhor é ver você gozar
Quando você não pode mais e grita
E eu quero fazer e vou fazer
Você gritar um pouco mais ainda
E pego a sua boca
Faço você chupar meus dedos
Até sentir vontade de morder
Não paro nunca de entrar em você
Sair voltar entrar puxar e ir
Você começa a se movimentar
Mais forte e mais ritmado
E eu sinto que você
Não consegue mais ficar parada
Não fica quieta um só segundo até gozar.
732
15.
Se você acordasse do meu lado
Aqui bem do meu lado
A primeira coisa que eu faria
Seria dar um beijo carinhoso
Em você
E depois outro
E outro e outro
E ainda outro
Outros
Até seus lábios se entreabrirem
E abertos
Pedindo um beijo mais longo e mais gostoso.
E então
Sim
Eu iria agora então mexer
Com você
Muito
Mexer muito em você
Toda.
Então depois
Bocas coladas olhos que se fecham
O corpo sente
E a pele nervosa toca a pele
Os pelos
As coxas se entrelaçam
E um frémito percorre todo o corpo.
733
Quase que se tocando
Hesitando entre palavra e beijo
Como se beijar fosse dizer
Amor
Beijando e repetindo mais
Eu te amo
Eu te amo
Mas como se você estivesse aqui.
Então aí você
Iria poder ter a certeza
Suas pernas enroscando nas minhas
Nossas barrigas coladas
E uma ondulação ligeira
Se modulando de pequenos beijos
No seu pescoço
No seu peito
Nos seus seios
Toda você
Eu beijaria mais ainda
Sua boca
Os seus olhos
Seus doces seios
Salgados de repente
Suados abundantes vivos em minha boca
Na palma rija e tremente
Da minha mão
Eles teriam a perfeita dimensão
E só você
Senhora e cróia
Se encontraria
Magicamente
Apertando meu caralho em sua mão
Indicando o caminho
Que ele deve seguir
E ele segue.
Depois então
Parece que o beijo é infinito
Um beijando o corpo inteiro
Beijado a cada impulso
De cada vez mais terno e forte dentro de você
Como dois corpos feitos p’ra estar juntos
E que nunca deveriam ter sido separados.
Esqueço do tempo
Não sei o tempo
Não tenho tempo
Talvez o tempo seja um deus
Mas e daí…?
734
Aí meu deus
Não tem mais tempo
Fica só essa fantasia
Doce e exótica aromática e intensa
Que sabe e sente apenas
Que você existe e está presente
Olhos fechados olhando o seu sorriso
Entrecortado por um esgar de ganas e prazer
Que me inebria quando sua voz se solta em grito
Meio grito meio gemido
E eu sei que você gosta
Vamos passando lentamente
P’ro lado da loucura
O corpo agora balança e ofegante
Respira
Soltando um ai a cada vez que se desprende
Se entrega só para aquele momento eterno
Aquele andante
De um andamento
O fogo ardendo
De um movimento divino
Uma rima de impulsos
Um ritmo infinito
Um ciclo inesgotável
Que vai e vem
E aí o beijo beijado é um beijo mais intenso
Adulto e mais
Maior
Eu te amo mais
Te falo
E me confesso
Entregue ao holocausto
De me perder
E te adorar
Por você ser gostosa
Por ser linda
Por querer
Por querer mais
Por não querer parar
Nunca querer
E por em um lugar recôndito do seu mais doce ser
Você ser animal
Ser puta e radical
Ser natural
E gostar
E me apertar com força
Contendo quente meu sexo intumescido
De sangue e veias
No seu que molha e incha
Saindo
735
E repetidamente entrando
Saindo
Para de novo entrar
E sair
De você
Numa vertigem interminável e louca
Você sente seu peito
Como que rebentando de se abrir
Respira e grita
Quase uma espécie de vertigem
Como um pânico
Uma agonia
Uma aflição que não assusta
E quando a sua barriga se contrai
Você percebe que está perto de gozar
E quer mais força
Quer mais rápido
Quer se deixar levar para o seio do impossível
E aí realmente você goza
Gostoso
Você me sente dentro
E mais ao fundo.
16.
Deixa eu dividir seu hidratante
Deixa eu colar em suas costas
Deixa eu beijar o seu pescoço
Lamber a sua orelha
Correr minha mão desde o seu ventre
Até ficar com seus seios em minhas mãos
A lhes tomar o peso
As mãos escorregam
E puxam levemente até soltar os bicos
Eu rodos os dedos sobre eles
E eles reagem
Então seus seios parecem caber nas minhas mãos
Eu os apalpo
Aperto um pouco
736
Eu os sinto
Como se eles fossem uma fruta sensual
Uma manga rosa
Madura
Ou uma laranja sumarenta
E volto pra rodar meus dedos nos seus bicos
Agora duros
Repletos de biquinhos pequeninos
E não resisto à vontade de chupar
Como uma fruta
Como um pêssego
Desses que tem pele macia
E amarela.
737
E quer gozar na minha boca
Eu quero engolir o ponto onde você mais sente
E as minhas mãos afastam mais as suas pernas
Meus dedos dois já dentro acariciando
Você está encharcada
E eu sinto o quente nas paredes da sua rata gostosa
Por dentro
A minha língua não pára
Ao contrário
Ela acelera
Toda a minha boca está chupando
Aberta
Slhap shlap shlap shlap shlap
Cavando uma mina dentro de você
Donde vai logo logo sair ouro
Todo o seu corpo se contorce e suas pernas tremem
Sua boca se aperta numa inútil tentativa
P’ra não deixar sair aquele grito cavo
Que parece vir do interior
Não do seu corpo mas do mundo
E você vem…
Goza gostoso e repetidamente.
17.
Diz que me mata
Mata nada
Eu não posso mais esperar
Quero devorar a sua boca
De beijar você tanto
De perder a respiração
De esquecer o tempo
De mergulhar em você
De me perder em seu corpo
De arrancar a sua roupa
Para sentir a sua pele arrepiar
E beijar cada pelinho arrepiado
Deixar você toda arrebitadinha
Sentindo meus lábios te chuparem
Minha língua molhada
Lamber você inteira
E lá no eixo
Bem lá no centro do mundo do seu corpo
Puxar seu clítoris p’ra dentro da minha boca
Fazer ele dançar em minha língua como um sino
Mas rápido demais
Até você ficar sentindo ele rebentar
Ficar inchado
Pulsando e contraindo
Sem que mesmo você queira
E gritar
738
Meus dedos abrindo você toda
Minhas mãos separando as suas pernas
E uma lambida
Gostosa e tensa
Passar sua buceta de alto a baixo
Entrando um pouco
Só um pouquinho
P’ra dentro de você
E logo a minha boca aberta
Abocanhando sôfrega seu sexo
Deixando você louca pra beijar e nesse beijo
Penetrar você gostoso
Quero fazer mil vezes
Milhões de vezes
Fazer amor pra você
E te amar muito
Te enchendo de ternura e de tesão
De cada vez que o meu pau ficar se entumescendo
Dentro de você
Quero te sentir
Me apertando
Como se fosse
Sua buceta mesmo quem quisesse me dizer
Que eu te pertenço
E que você me quer
P’ra sempre dentro de você
E então foder você com força
Descontrolado de loucura e de prazer
Meter em você como um cachorro
Sempre mais forte e mais rápido
Com mais energia e com mais ritmo
E de cada vez q você sente
Meu pau inteiro dentro de você até a base
Pele na pele
Esfregando a púbis
E rodando
Rodando o meu corpo entre as suas pernas
O pau inteiro dentro de você
Como se você quisesse engolir ele com sua vagina
Ficar vermelha
Ficar possessa de tesão e de vontade
Abrir as pernas ficar de louca
Jogando a cara para um lado e para o outro quase urrando
Um gemido vindo do fundo quente
De suas entranhas
Como um vulcão
Prestes a explodir
739
Até ser preciso eu te pegar a nuca
Te segurar pelo cangote
P’ra te parar e eu te beijar
Intensa e apaixonadamente.
18.
A gente não ama quem a gente quer
Ninguém ama quem quer
Ama quem o amor lhe escolhe para amar
Quem tiver coração
Quem tiver pernas
Tem que ter alegria
Tem que gostar de dar
Aquela outra boca
Sequiosa e húmida
Como se fosse a boca de um vulcão incandescente
Mas tépida e molhada
Como uma poça na maré vazia do Adriático
Se agoniando lenta
Numa longa e prazerosa tarde de prazer em fogo e chuva
Ou uma boca apenas
Toda sentimento
E intenção
Tesão com que se faz
Carinho e tempo
Nada que se faça de repente
Tudo se faz sem pressa
Beijar
Cada pelo eléctrico da pele
Cada prega
Tem qualquer coisa que se agita dentro
Não tem nada e nada há de mais divino
Nem mais transcendental
Do que sentir uma mulher ficar irada
Desmantelada de tesão
Sentir seus lábios tremerem na barriga
A ponta da lingua no umbigo
Descer e dar… ahhhh!
Coisa gostosa
Devagar…
E muito
Abrindo os lábios
Expondo a pele fina
Lubrificada mais que lúbrica
Emoldurando aquele adorno que incha incendeando
Desde o topo os lábios da xoxota
Sentir o seu sabor com a língua
Da ponta para os lados
Arremessando as sensações ao infinito
Deliciosamente.
740
E recomeçar mantendo o ritmo
Depois acelerando
Redescobrindo o jeito
De um gosto mais intenso
Comer sua boceta inteira e voltar
Sentindo no sabor que ela está vermelha e tensa
Que ela me quer
E você abre ainda mais as suas pernas
E eu quero ficar com você dentro da boca
E quando você diz
Que quer chupar-me também
Eu sinto o meu pau na sua boca
Sinto a saliva sinto meu corpo
Tocando no seu corpo
Você quer engoli-lo todo
E eu começo lentamente a querer ficar dentro de você
Num mete e tira gostoso
Um quero mais
Primeiro devagar
Mais
Depois de um impulso até ao fundo
E ficar
Ficar ali enterrado até tocar você por dentro
Por um momento
Ganhar um encaixe ainda mais perfeito em sua pélvis
Todo tesão
E quando o pau fica mais duro até à dor
Foder
Com muita força
Foder muito
Até você parar de respirar
Para respirar intensamente depois
Fundo e com vontade
Querer mais
Sentir o suor escorregando sobre a pele
E a loucura corre solta
E o sangue se agita na cabeça
Tem tempo ainda para beijar você na boca
E enterrar mais uma vez até ao fundo
Ficar ali mais um momento
Apertando você pela cintura
E começar de novo
Devagar
A cabeça do pau
Titilando os lábios quentes e inchados da sua outra boca agora inchada
E sem você esperar meter
Meter mais
Meter uma outra vez
Meter muitas vezes e depressa
741
Num ritmo que você já não consegue aguentar
E você respira ofegante e dramática
No mesmo ritmo em que sente
O meu pau quase a rebentar
Entrar no seu corpo até ao fundo
Uma e outra vez
E de repente
Você sente aquela coisa a explodir
Como uma onda que vem por dentro
E não consegue calar um grito de prazer
É quase um urro
Uma coisa que você precisa em desespero fazer sair
«Mais…
Estás me deixando louca!»
Você diz ainda com voz rouca.
19.
Me sente apertando sua carne em minhas mãos
Porque a minha boca está aberta e ofegante
No langoroso quente do seu sexo
E você sente o quente da respiração
E a vertigem da língua que te agita
Sente a sofreguidão dos lábios que te chupam
E fica trânsida de tesão e de prazer
E forte
Eu pego suas ancas
E quero entrar em você
De cada vez mais fundo
Quero te pegar
Abraçando você pela cintura
Dividir nossos copos em dois
Em baixo um candomblé de gritos e batuques
Em cima nossos olhos dois a dois
Se deglutindo e entre hipnotizando
Você respira mas sente que a cada inspiração
Seu corpo queima como um vulcão
E o pau não cessa de penetrar você
Sempre mais fundo
De cada vez mais forte
Você sente o impacto no seu corpo todo
Seu coração dispara
E parece que quer sair pela boca
E você abre a boca
E um berro surdo e doce parece vir do fundo do seu ser
Você se agita e treme
E as suas pernas se esticam de tesão
Você as abre e quer se levantar
De encontro ao pau que entra e sai e entra e sai
E entra
E sai
742
E entra
E sai
E tonto de prazer volta a entrar
Você deseja mais e com mais força
Impulsiona seu corpo contra o meu
E esse choque você sente
Bem dentro de você
As veias saltam no meu pau
Sinto vontade de pegar você pela bunda
Meus dedos espalhados
Enterram sua carne
Você sente os meus dedos
Um primeiro
Leve e entra
Roda brinca
Depois outro
Dois dedos dentro da sua greta
Sentindo a pele
O mole inchado das pregas quentes
Daquela gruta escura
Fina e molhada.
20.
Sinto vontade de despentear o seu cabelo
De começar a te tirar a roupa
De entrar no banho junto com você
Faz tempo que o meu pénis está ereto
E você fica brincando com ele
Enquanto eu vou sentindo a temperatura
Da água no seu corpo
Todo o seu corpo…
Molhado
Às vezes tenso
E nos beijamos sentindo a água nos cair no rosto
Vou começar a passar o sabonete
Todo o seu corpo…
Você delira
Fico nas suas costas
Junto
E você sente o meu pau que não resiste
A procurar lugar no entre de entre as suas pernas
Minhas mãos escorregam de sabão
Apertam
Percorrem seu corpo em todas as direções
Esperam mais um pouco
Um pouco mais
Meus dedos percebem seus mamilos
Estão duros
E você pede para eu não parar
E ainda mais um pouco
743
Eu fico neles
Escorregando
Prendendo-os entre os dedos
Pegando
Rodando os dedos para sentir melhor
Como quem quisesse mesmo sentir o que você sente
E você encosta a cabeça para trás
Estamos colados
E nossa pele parece se reconhecer
Você solta um gemido
E aí eu não resisto
Pego sua barriga
A água sempre nos molhando a pele
Correndo quente pelo corpo abaixo
E de repente
Lentamente
Eu me dou um tempo
Então fico brincando com seus músculos
E você sente que os meus dedos estão procurando a zona do seu sexo
Sinto os seus pelos
E quero ficar com sua vagina em minha mão
Como se você estivesse ali toda inteirinha
Ela não pára de mexer
E eu vejo que você está gostando
Vou massageando de leve
Rodando
Meus dedos sentem você por dentro
Sinto vontade de lavar suas pernas
Suas formidáveis pernas
Agarro forte seus músculos que se arrepiam ao toque
E ficam tensos
Suas coxas
Suas nádegas que eu sinto em minhas pernas
O seu bumbum redondo
Sua cintura que modelo com a ternura trânsida
De um artesão do barro
E beijo você na barriga
De joelhos
Você vai ficando enlouquecida
Agora queremos ambos que esse banho acabe logo
Mas antes disso ainda
Você quer tempo para lavar meu pau
E dar-lhe um beijo
Sente vontade de senti-lo em sua boca
Tiramos o que resta do sabão
Vamos secar você
Passa a toalha passa a mão
A outra mão
As mãos
Meu pau te quer
744
E nossos corpos
‘inda molhados
Não conseguem parar de se tocar
Sua vagina escorre
Então não tem mais jeito
Eu encosto em você
Contra a porta fechada do banheiro
Você quer… insiste p’ra meter
Em pé
Eu pego você pela cintura
E você fica com as pernas me apertando e sente
Pela primeira vez
Por dentro
Meu pau se agitar dentro de você
Eu te seguro
Vamos p’ra cama
Sempre sem sair de dentro você e te beijando
Com um ligeiro jeito
A minha mão em sua bunda
Segurando
Amparando você para o que vem
Preparando e sustendo
Um desejo que faz ranger os dentes
Um beijo curto como que de passagem
Para uma etapa mais intensa
Para uma massa
Jogo você na cama
E te beijo o corpo todo
Te agarro na cabeça
Seguro o seu pescoço
Você respira forte
E a minha boca não pára de zanzar
Todo o seu corpo
De te morder de leve
Eu chupo os seus seios
Agora sugo mesmo
E antes que você peça
Entro em você de novo
E começamos a foder numa loucura só
E durante um tempo é só aquele ritmo
Vam... vam... vam... vammm
A gente nem sente que o tempo passa
Parece que parou
A gente sente que ele não passa mais
Só sente que é cada vez mais e cada vez melhor
Incrédulo procuro seus olhos
Vou desenhando beijos leves em seus lábios
Querendo virar desenho
Dentro querendo ser a sua boca
Diminuindo um pouco a ânsia que temos de nos ter
745
Queremos prolongar ainda mais esse momento
Mais um pouco
Agora devagar
Sentindo tudo
Como uma obra genial inacabada.
21.
Meu amor
Fica quietinha
Assim como se eu pudesse marcar as suas têmporas todas de beijinho
Naquele lugar em que o osso da cabeça é mais fininho
E parece que só tem a pele sobre o cérebro
E se depois eu pudesse quase sem mudar de ângulo
Ficar beijando seus olhos
Devagarzinho
Leve e profundo
E a lateral do seu nariz
E lentamente
Fosse você quem inclinasse um pouco para trás sua cabeça
E abrisse entreabrindo a sua boca
E de uma vez então
Eu e você
Nos afogássemos no transe irreversível do beijo
Gostoso e sensual
O beijo
Mais terno e mais bonito
Do mundo.
22.
Suas pernas são tão inspiradoras
Feitas um sonho de carne
Forma
Eu começo a pensar
Sinto até cada pelinho
Daqueles pequeninhos
Nem se sentem nem se vêem
Mas nos meus lábios nervosos
Que da sua boca quente
Vieram magnetizados
Feitos loucura e delírio
De sentir a sua pele
A ficar arrepiada
Quando você sente o toque
Leve dos dentes na pele
Na gordurinha gostosa
Que a minha boca manhosa
Procura no interior
Mais liso e quente
Mais junto ao entre
Do seu corpo que se ajeita
746
Abrindo um pouco
Sugerindo nesse gesto
Que quer mais
Que me quer perto
Mais dentro e tanto
No maior bem
Mais valioso
Que você tem.
23.
Quero virar você
Colocar de joelhos no sofá
Ficar em pé
Metendo em você com jeito e força
Fazendo você gemer como cachorra
Pegar sua cintura segurar você puxar pra mim
Encostar no meu corpo
Eu vou
Com maior força ainda
Espeto em você até ao fundo
E sinto a minha pele
Quebrar contra você.
Eu te amo tanto
Você é minha menina
Menina mais gostosa e tesuda do mundo
Entro em você desmesurado
Está quente dentro
E o seu grelo inchado
Vermelho e inchado de tesão
Super sensível
747
Toco você
E vou metendo
Um pouco mais
E sempre mais
Um pouco mais
Mais dentro
Mais forte
E aumentando.
24.
Um beijo
Longo e apaixonado
Depois tirar sua roupa devagar
Depois já não depois sofregamente
P’ra descobrir você
E sentir o toque de veludo da sua pele
Mergulhar inteiro no seu calor
E beber o seu tesouro morno e molhado
Nossos corpos nus se encontrando
Num devaneio delicioso
Quero encher você de beijos
Abrir as suas pernas e deixar a minha boca se perder
Meu rosto se esfregar em você
E te deixar também louca de prazer
Pegar as suas coxas e beijar seu sexo
Até você se transformar em suco
E te beber inteira
Te beijar com loucura
Acariciando
Apertando
E entrar em você num ritmo tresloucado
748
Pulsando
Que delícia louca ficar dentro de você
Entrando e saindo
Nossos corpos se entrelaçando
Se confundindo
Nossas pernas virando um nó
E nossas bocas um novelo
Sentir teu gosto
Quero sentir o calor da sua boca
E te afagar os seios
E o calor molhado de ficar inteiro dentro da sua boca
Como se eu estivesse puxando você pra mim com força
Suspendendo você e te fazendo voar
Delícia
Sentir você gozar
Em cima de você
Quero sentir seu gozo quente
Eu vou adorar sentir o seu clítoris mudando de sabor
Jorrando em mim
Naquela hora em que começa a pulsar e a saber a sangue
Seu clítoris
Pulsando
Dançando sob a minha língua
E os meus lábios que chupam você com energia
Quero ficar em você mais um pouco
E devagar
Começar tudo de novo
Devagarzinho
Entrando em você
Até ao fundo
E beijando sua boca ao mesmo tempo
Realizar todo esse momento
E que dure muito
Quero fazer amor com você todos os dias
Acordar com você do meu lado e te encher de beijos ao mesmo tempo q vc acorda
Como se você viesse chegando de um sonho
Gostoso
Lindo
Safado
Delirante
E colar no seu corpo
Naquela bruta ereção que tem de madrugada
E encher você de amor mais uma vez.
25.
Um cheiro já é uma coisa perigosa
Porque você começa sentindo o cheiro
Do cabelo
Do cangote
O cheiro que vem do peito
749
E vai beijando
E vai cheirando mais
Vai ficando bêbado daquele cheiro
Aí já vai tirando a blusa
Sempre beijando
Mordendo os braços
Chupando os seios
Os bicos e descendo
Fica de joelhos
Beijando na barriga
Metendo a língua no umbigo
E cheirando
Aquele vapor intenso que sobe debaixo da saia
E aí você não resiste
E mete a mão
E pega suas coxas
Você cheirando a sexo
Ficando arrepiada
Molhada
E pego a sua bunda
E levanto você
E você me abraça e me aperta com as pernas
Em volta da cintura
Me beijando a boca
Muito
E mais
E mais sofregamente
Falando palavras incompreensíveis
E gemendo
Enquanto beija
Aí encosto você contra a parede
E dou uma prensa em você
Sua saia e a calcinha já voaram
Você está nua
Doida pra dar
Eu entro em você
E meto
Meto uma e outra vez
Empurrando você contra a parede
Mordendo o seu pescoço
Lambendo a sua boca
Pegando no seu rosto
E mergulhando os dedos
Dentro da sua boca
E fico inteiro dentro de você
Meu pau pulsando
E você sente
E chupa os dedos que entra e sai
Da sua boca
Então você se enche de vontade
750
E fica louca de tesão
Dá o impulso
Se meter
Quer sentir o pau furar você
E sua carne estalar
A carne da suas coxas chocalhar e você quer
Quer mais
Quer com mais energia
E mais tesão.
26.
O que você tem de lugar pra ser beijado
Tanto e de tantas maneiras
Terna e dengosamente
Aflorando apenas sua pele com os lábios
Sentindo e ao mesmo tempo
Fazendo você sentir
Um leve tremor
Um frémito de sonho e de desejo
Ou mais sofregamente
Como se antes esses beijos
Estivessem desenhando no seu corpo
Todas as curvas entrevistas
As nuances
Mais pronunciadas
Adivinhando os nervos e as fibras
Os nós onde você se sente arrepiar
E depois então desse desenho
Um beijo mais intenso
Fosse pintar de cores o seu desenho
Te devorando a carne
Deixando aqui ou ali por um momento
Os pontos sensíveis do seu corpo
Sentir o leve mas insinuante
Roçar de dentes fragorosos e famintos
Mais sequiosos e ternos
No morno do seu colo
A minha língua rebrilhasse o seu prazer
Até você se transformar em nhanha doce
E eu te beber
Como um viajante a uma miragem no deserto
E num entreolhar sedento
De desejos e intenções comprometidas e cúmplices
Te mordesse os seios
Como um bébé
Os nosso corpos se fundindo e emaranhando
Entrelaçando as pernas
Com o se fôssemos no momento logo depois
Virar um nó.
751
OUTROS TEXTOS
A FÍFIA:
A MENINA DO BALLET
A menina do ballet já não sabia nem os via a todos na escuridão com as luzes apagadas
na sala e as luzes tão brilhantes só a iluminá-la a ela a sua inocência a sua beleza
desconhecida que depois da música parecia apenas uma pena tão frágil que qualquer
sopro a faria voar e onde cairia do seu voo a linda menina do ballet sem nenhum gesto
subtil já toda estampada no lixo sem subtileza nenhuma sem ballet e já sem música até
apenas o esgar da dor e a cor do sangue sobre a pele do corpo já inexistente contra o
lixo.
Voltaria mais tarde a dançar depois da manhã mais à tarde depois do almoço voltaria a
dançar uma bela dança de fantasia mas a dança que agora dançava a menina do ballet
era uma vaga sombra que só fazia lembrar a outra como era uma verdadeira fantasia e
como estava a linda menina do ballet estatelada no lixo.
Adensa-se e alisa-se a paisagem embora umas vezes por outras tenha que se dizer que a
vida me dói e que talvez um dia possa vir a regozijar-me de ter visto a clara flor e ligar a
chauffage e correr pelo desatino da ignorância e da incompreensão sem tão pouco
desligar a chauffage e correr novamente até nunca chegar um dia em que a manhã
tivesse uma jangada de loucuras para malbaratar dizendo que não gostava repetindo até
que não gostava mas na mais despercebida perfídia gostava… gostava muito gostava
bem talvez bastante mas de nenhum modo podia com o tributo que pagava por gostar
ainda que depois pudesse regozijar-me.
Mesmo que dissesse por palavras o que por meio algum se pode dizer a menos que se
perca toda a vergonha e a vergonha é que é a base do entendimento de tudo isto e mais
do que não se sabe que é mas é e também faz parte de tudo isto e de muito mais que é
ocultado pela vergonha e pela ignorância de tudo o que está para além disto e que é uma
pouca vergonha impossível de dizer por palavras ou por qualquer outro meio sujeito a
escrutínio e como tudo a erro a imprecisão demasiado sofisticada para a contextura
rigorosa da actual ordem de ideias justas e outras que não sendo justas são injustas ou
utópicas e sem qualquer fundamento aqui ou em qualquer parte onde seja fundamental
alguma coisa ter um fundamento.
752
O IMBOIM
É como se eu andasse a voar num grande espaço ilimitado e de repente ficasse resumido
a um canto duas paredes e um chão um canto já sem poder voar.
Seja o que for é bem achado e sendo dito melhor o é de três que de um que não tenha
maneira viável de prosseguir tal objectivo sem ficar pendurado no subjectivo que é onde
qualquer um está pendurado mesmo que não se aperceba da sua condição de pendurado
no dilema do pacto inato da vida quer ele tenha tendência para a objectivação quer tenha
inclinação para a subjectividade o que sendo só de um eram ao fim da noite três ao fim
de uma já longa noite sem sentir quase nada de um inteiro que era só seu.
Aí onde o desejo pode conquistar uma vitória está o instinto a rir-se do desejo e é aí que
está o imboim.
POEMAS INTRAVENOSOS
Era raro viver no sentido direito e progressivo ou ilusório era misterioso o rugir da terra
sob os nossos pés que era o rugido da nossa própria imaginação apavorada com a
grandeza do deserto em frente deserto que era para tantos a vida e o viver autentico sem
transístor nem pilhas nem música nem corpo nem tão pouco destino ou cabeça.
Mas mais forte que o destino era a recusa do destino e o caminhar sempre em recta e em
respeito pela lei universal da gravidade nas alturas era o irascível e o insondável e no
chão dos nossos corações apenas a podridão da terra que nos parecia inerte e quieta
inerte como um relógio de igreja e quieta como uma puta envelhecida pelos anos e
depois comida pelas baratas do bordel.
Era o rigor que amordaçada a vida corria possesso pelo deserto sem limites prováveis a
morte era a causa e o fim e o consumo dos dias sem azul no céu cheios de frio e de
cinzento depois era o pulsar motor acelerado e taquicárdico e o cinzento a ser sempre
mais preto que cinzento e muito cheio de musgo consistente de ranho verde escuro e
larvas submúndicas e estéreis e eternas.
Costumava chamar-lhe pássaro distante e negro antes de estar nas asas de um pássaro
bem mais negro que voava insólito no sentido da queda inesgotável nutrida apenas da
sede de cair e era o mesmo buraco em que D. João caíra na eternidade e foi sagrado no
mal e na abundância do cinismo mais digno e arrepiante e na verdade inspirador do
único respeito – o medo.
753
De medo se formavam as orgias e de rigor se fardavam nos triunfos os soldados para
que o vinho os saudasse em sua imponência de devastadores de rigor se vestiam os
bravos soldados e de medo que era o nosso medo – nós senhores e escravos e soldados e
generais mas nunca subalternos e em caso algum sargentos.
Era a esfinge altiva e incompreensível era a mágica irrealizável era o bem e o mal a
afogarem-se na pia da inconsciência era o corpo a crescer por dentro da alma asmática e
grande de desejo e imensidão eram as portas que se abriam para a grotesca paisagem
eram as pulgas que fodiam umas com as outras dentro das minhas veias estanques era a
loucura que é o que era e o que é.
POEMAS INTRANSITÁVEIS
Por maldizer outras instituições mais obsessivas das massas trabalhadoras de covas
profundas e sinistras e sinuosas e saltitantes de um sítio para o outro sem que realmente
a nuvem se dissipe por qualquer obra de magia física ou epidémica.
POEMAS INTROVERTIDOS
Aparece e desaparece:
Quando aparece é uma festa depois desaparece é uma tristeza e as mais hipotéticas
desgraças podem acontecer derivadas do seu desaparecimento inigualável a qualquer
outro desaparecimento excepto um que é o desaparecimento por excelência através da
perda da memória com saudação ritual própria das vezes em que aparece para amenizar
a ideia do desaparecimento por excelência.
Quanto ao aparecimento é sempre breve e alem de breve distante para com os que estão
presentes para assistir ao seu aparecimento ausente e breve logo seguido do
desaparecimento.
754
aparecimento porque este é breve e ausente e aquele total e definitivo ou melhor
infinitivo visto que quando realmente desaparece é difícil encontrá-lo é mesmo muito
difícil para não dizer impossível e a sua extensão não tem limites e a maior vicissitude é
a que provém desta razão.
O princípio e o fim:
Quando finalmente chega ao fim lembra-se sempre o princípio vê-se que se transformou
no fim e que o fim não podia ser outro senão o princípio que começou tal como acabou
sem nunca existir a mais prudente e sábia ignorância que é o que digeriu o próprio
tempo que é sempre sequioso do fim e quere-o sangrento e exótico e o código do seu
transitar apaga-se ante os olhos abertos e iluminados e ilumina-se para os que estão
fechados antes de ter começado já existia a fuzilaria das acusações seria mais um gemer
de dor animalesca quanto o fim fora sereno e calmo.
Agitação:
Quero que o modo seja sempre outro diferente do que é a seguir ao que é seja sempre
outro que já é e então já não possa ser senão outro que venha depois
A imagem:
Já era tempo de se descansar um pouco sobre a imagem que se procura e também sobre
aquela que se possui por dentro para onde se olha quando se está só e que se olha pouco
e quase sempre apressadamente aquela que pode ser a mais doce imagem que se
procura.
É bonito ver a imagem que se procura porque ela aparece só para ser vista e para nada
mais pois desaparece logo que deixa de ser vista e só quer ser vista não quer ser despida
da sua aparência de imagem para ser observada detalhadamente no que ela já não é uma
imagem mas uma suprema congestão de uma matéria e a doce imagem se foi vista
mesmo que por pouco tempo ainda bem.
JASS
(dedicado a charlie parker eric dolphy e albert ayler)
Dos catres e dos anjos que a concebem já que por outros meios impossível se torna falar
dela sem incorrer em vastos e laboriosos riscos de êxtase e triste complacência de tão
inócua e curiosamente igual a todas as outras mas diferente.
Dos filhos da noite com que se nutre e lhes bebe o desgosto e os caga em grossas e
inusitadas pastas moles e densas e portanto fugazes e rebarbativas e essencialmente
musculares.
Do enlaçado harmónico da anémona que inspira e retira de tão imenso dever de viver
por dentro do arcaboiço e de modo algum fora dele.
Do rigor analítico infausto e ridículo que diz ser essa a certeza da medida na rigidez dos
espaços vedados a principiantes explodentes de efusões orgásmicas mais do que de
certezas míticas e quanto ao fundo de si paranóicas.
755
Duns porque são pretos e dos outros porque são brancos e até de alguns que são azuis e
por sua própria natureza indecifráveis mas compreensíveis a média altitude.
Dos restantes outras memórias descreveram como se de bichos se tratasse mas fósseis
irrecuperáveis embora o Sol cantasse dentro das suas veias como uma bola de claridade
no fundo escuro do esgoto.
A JANELA
Valeria a pena pintar essa janela num quadro. Uma janela dando luz a uma escada
interior, escura, interior, com degraus de pedra já suficientemente pisados para terem
adquirido brilho e profundidade – a profundidade a que os anos, quando são muitos dão
sentido. Seria muito simbólico. Mas é apenas uma escada com dois lanços e entre os
lanços um patamar de lajes grandes, de pedra. Numa das lajes uma inscrição faz crer
que a pedra tenha sido antes a tampa de uma tumba de um bispo ou de outra pessoa.
Uma pedra tumular que agora serve de chão a quem, depois de subir o primeiro lanço,
transita para o segundo. Do primeiro lanço vê-se a janela de baixo e de esguelha, sobre a
esquerda, e vê-se a luz que a janela deita de manhã, quando o Sol está de frente e a
pessoa que sobe a escada é atraída pela luz até ao patamar e, no patamar, fica com a
janela acima da cabeça. Bem acima o tamanho de um gigante. No patamar forma-se
uma espécie de obscuridade por baixo do jorro de luz que jorra da janela e passa acima
da cabeça. Aí mergulha-se numa massa inexistente e quase opaca, densa e intensamente
iluminada. Depois, ao começar a subir o segundo lanço, viram-se as costas à janela e
sobe-se dentro do espaço iluminado e intenso para uma nova escuridão mais escura e
mais interior no fim da escada. Para quem passa a janela não tem importância e pode-se
passar sem dar por ela, mas é impossível não a ver. Pode-se não dar por ela por estar tão
alta e quem passa, passar por baixo. Mas quem desce vê-a com certeza, de frente, dando
lonjura ao espaço, mas num lugar insólito para uma janela, quase colada ao tecto e a
moldura confundindo-se com o canto que se prolonga até ao chão. É uma janela altiva
embora não se imponha pela sua altivez.
Já me tem acontecido ficar sentado no último degrau, com os pés deixados inocuamente
repousados no penúltimo, discretamente encostado à parede, com os olhos
esbugalhados, levemente abaixo do corrimão grosso e de cantaria arredondada, que não
me deixa ver nada para o lado de onde a escada sobe. É então que me distraio a olhar
para a janela. É um olhar oblíquo. Mesmo estando no cimo da escada, a janela continua
a ser mais alta, pendurada ao tecto e encostada à esquerda. Quando se desce a escada
apanha-se a janela de frente, pela cara. É um olhar dinâmico e a impressão resulta mais
frontal. Estando sentado, e usufruindo de uma comodidade possível, é diferente. O
corpo fica arrumado à forma lógica das pedras e não se abandona pesadamente à solidez
do suporte, antes é suportado pela pesada solidez da massa compacta da construção, que
é ancestral, e parece flutuar por ser, comparativamente, muito leve. Não existe uma
ideia de chão. O chão são os degraus, cada um um palmo mais abaixo que o anterior,
sempre descendo até ao patamar, e para cima muito espaço de ambos os lados do
corrimão. O corrimão limita o espaço, mas pressente-se que do outro lado não há nada,
que a escada continua para baixo, (e em frente a janela com a sua moldura…) na
sequencia diagonal do corrimão que se afunda no espaço inferior em direcção ao centro
do patamar, que mal se vê porque fica no escuro. O corrimão feito de parede é mais um
plano tangente à bola do meu ombro, que se encosta, sem exageros lascivos, ao umbral
756
no fim da escada e todo o espaço é cortado por ideias oblíquas. Só a janela em frente é
positiva, directa e perfeitamente enquadrada com a sua moldura.
O QUARTEIRÃO
É uma parede amarela sobre uma base de pedra ligeiramente oblíqua rectificando a base
da superfície lisa do ocre porque a rua é ligeiramente descendente. A parede acima é
amarela – amarelo ocre – como se usava antigamente mas não é completamente ocre.
Quando chove a cor tende para café-com-leite e os caixilhos das janelas que já não são
pintados há muito tempo ficam mais parecidos com a casa. Entre as janelas com o pó
que se acumula sobre os vidros e lá dentro sobre as madeiras os bolores que
transparecem entre a parede e a tinta estabelece-se um estranho mimetismo. Os
caixilhos já não estão inteiramente no seu lugar e já não são pintados há muito tempo.
Ainda que velhos e mal estimados estes caixilhos enquadram três belas janelas à moda
antiga – a do meio com três vidrilhos coloridos na parte de cima e as outras duas
encimadas por um arco romano formando um semicírculo todo dividido em sectores
através de pedacinhos de madeira e preenchidos por pequenos pedaços de vidro
martelado mas branco. Não se pode dizer que sejam transparentes porque o pó já lhes
roubou a transparência. Embora velha a casa não está em ruínas ainda que ao que se
pode ver não viva lá ninguém e como é sabido as casas onde não mora ninguém
evoluem com rapidez para a ruína – com uma rapidez vertiginosa tendo em conta o
ritmo de vida das casas principalmente as que são como esta de sólida construção. Vejo
tudo isto a partir de um ponto de observação relativamente próximo – digo
relativamente às dimensões da casa – mas no entanto suficientemente afastado para que
a proximidade não perturbe a observação. Mesmo em frente do meu ponto de
observação está portanto uma casa que nunca foi habitada tanto quanto eu me lembro
nunca foi habitada. Possivelmente foi habitada no passado mas eu nunca percebi para
mim é como se nunca tivesse sido habitada nunca vi lá ninguém é apenas uma parede
757
amarela sobre uma base de pedra com um portal achinesado tudo pertencendo a uma
casa onde ninguém habita. Habituei-me a acreditar que a casa era habitada por macacos
– pequenos macacos tipo sagui – muitos mas não exageradamente – talvez uma família.
Agora entrou para lá uma velhota certamente para tratar dos macacos. Depois voltou a
sair não porém ao fim do tempo suficiente. Foi por pouco tempo não sei até se chegaria
a ter lá estado dentro. Voltou a sair e ficou titubeando em frente da porta sem entrar nem
sair como se quisesse tomar uma decisão. Não se consegue imaginar o que possa haver
dentro da casa. Deve ser tudo escuro visto que as janelas estão fechadas e dentro se há
mobília deve estar tudo coberto com lençóis como se costuma fazer para os móveis não
apanharem pó. Lá dentro eventualmente os macacos permanecerão invisíveis de quando
em quando visíveis talvez só de vez em quando – meio corpo de um a cabeça e uma
pata de outro – por trás do muro que delimita a varanda. Não é propriamente um muro é
uma cercadura de rectângulos cruzados por duas diagonais e uma altura – como se fosse
uma bandeira da Grã-Bretanha – enquadrados por uma estrutura caiada de cinzento que
serve de resolução à superfície amarela do ocre. Ora esta prolonga-se para além do
próprio corpo da casa que termina numa fachada curta onde fica a porta formando assim
o topo do quarteirão antes do bico onde se ergue o tal portal apagodado. É uma parede
que continua mais baixa do que o corpo da casa e acaba numa espécie de castelinho que
serve de entrada da entrada com dois pilares rematados por uma viga e outros dois atrás
daqueles também rematados por vigas mais pequenas que terminam como a outra já
fora dos pilares numa forma meio encaracolada dando de facto a vaga sugestão de um
pagode chinês. Como a estrutura parece vazia depreende-se que a ideia fosse a de enlear
trepadeiras à volta dos pilares e fazê-las sustentar pelas vigas mas estas trepadeiras não
estão lá. Tudo isto está assente em dois ou três poiais de pedra acinzentada já muito
gastos que no Verão aquecem com o Sol e onde as crianças gostam de se vir sentar no
intervalo das suas brincadeiras. Ao fim da tarde todas as cores tendem para o azul ou
como os macacos para o cinzento. De dia meio acastanhados nem sei se de facto os
macacos estão lá pois eles nunca aparecem mas se aparecessem seria aquela a hora mais
propícia para aparecerem – nem de noite nem de dia – vagamente cinzentos seria a
melhor maneira de passarem despercebidos e continuaria a não se poder discernir se
realmente estariam lá ou não. Mas não aparecem a não ser quando eu não estou a olhar
para lá. Cinzento cinzento só realmente os poiais onde as crianças se vêm sentar quando
estão quentes. Partindo destes poiais e seguindo ao longo da base de pedra a rua sobe
ligeiramente. Depois da casa amarela está outra mais sólida e que é branca e tem um
grande portão e por cima janelas verdes. Dos poiais até à esquina são por aí uns 52
passos e quando se volta para a direita a rua já é outra. Se não fosse uma pequena porta
preta quase não se dava pela existência da casa por causa da sua parede branca sempre
regular e bem apoiada em cima da sua base de pedra e assim por um momento fica-se
embalado pela brancura da parede mas logo começam as lojas e os vidros reflexos de
pessoas e automóveis e para lá das montras reflexos dos desejos das pessoas que param
e olham para as montras virando as costas à constante passagem dos automóveis que se
movem numa rua mais movimentada. Para trás ficou a solidez idosa da alvenaria e após
a fugaz impertinência dos vidros vem a esquina exactamente 49 passos depois da outra
– passos como que dados num tapete rolante de andar para trás por causa da passagem
constante dos automóveis no sentido único da rua. Ao virar da esquina os automóveis
seguem o seu caminho e para baixo vai uma passagem ladrilhada que mergulha num
pequeno espaço ajardinado e que as crianças utilizam para dar balanço aos seus skates e
pequenas bicicletas e às vezes mesmo a elas próprias e que já tem provocado alguns
cuidados quando as mais pequenas procuram utilizá-la como rampa de lançamento dos
seus triciclos. Sòmente as crianças finalmente assimilaram a essência do dinamismo
758
desta pequena porção de urbanizado. Do prédio das lojas quase desaparecem então os
vidros e tem-se a sensação de que o chão vai ficando suspenso acima da cabeça e quase
não se dá pela presença da parede que terminada a rampa descendente acaba por trazer o
chão à sua altura normal isto certamente porque a parede é pardacenta e os olhos não se
sentem atraídos por ela. Depois há um recanto e é novamente a casa e é novamente a
casa amarela com o seu ocre agora mais interessante quando comparado com o tom
indefinível do lazarento prédio moderno – a mesma casa amarela mas agora do outro
lado. Deste lado duas pequenas janelas de cave dão colorido à casa e ao lado uma porta
estreita onde as pessoas entram em frente sobre o recanto cordas que as pessoas usam
para pendurar a roupa. Lá dentro mas ainda no que seja um quintalzinho meio
alcandorado numa escadaria e penduradas numa parede mais interior gaiolas e dentro
das gaiolas pássaros coloridos que fazem frequentemente a alegria das crianças. Tudo
isto porque está tudo fechado e os macacos persistem em não aparecer e mesmo que
aparecessem seria lá no alto e como deste lado a rua é mais baixa e a casa mais alta eles
não poderiam ser vistos. Quando se é surpreendido pelo recanto e a rua fica de súbito
mais larga e deixa de ser rua para passar a ser jardim mesmo que nunca tivesse sido rua
mas sim rampa nem se percebe que a porta tem uma parede que não acaba ou que acaba
antes de acabar e que por trás desta parede que não acaba há o que seria um ante-
quintalzinho donde uma escada parte para cima para o verdadeiro – pequeno embora
verdadeiro – quintal. Vários volumes num espaço apertado dão novamente a impressão
de um castelo em miniatura e na parede onde está a porta estreita ainda o rebordo
cinzento com umas barras penduradas que sugerem ameias de cabeça para baixo.
Depois é que vêm as janelas e é como se a parte de cima não existisse. Quando se chega
de novo aos poiais deram-se para lá de 150 passos e está-se de novo em frente do meu
ponto de observação. Para ficar mesmo no meu ponto de observação é preciso deixar o
quarteirão e passar para o outro quarteirão para entrar no café e ficar atrás do vidro a
observar este quarteirão. Se tivesse um avião poderia vê-lo de cima com a sua forma
triangular levemente escalena arredondado no ângulo mais bicudo pelos degraus de
pedra que ficam quentes porque o Sol lhes bate a tarde inteira sem me aperceber da sua
forma rômbica causada pela inclinação desigual das ruas e talvez me apercebesse da
definitiva existência dos macacos ou me convencesse por fim de que não existem – e
nas varandas sempre se passa qualquer coisa que de baixo para cima não se vê. Só
quando por meio de elevadores ou íngremes escadas escuribundas se sobe a um prédio
mais alto são vistas as varandas dos outros mais pequenos que parecem então cubos
arrumados como caixotes num armazém onde os depositaram e em cima geralmente
abandonadas coisas sem valor como pneus mesas velhas ou caixotes de fruta meio
desfeitos por apanharem chuva e depois sol indistintamente ou coisas que foram
guardadas para serem utilizadas mas que nunca o foram – às vezes pombais que
parecem ser o prolongamento das casas e que não se distinguem muito sensivelmente
das coisas empilhadas e esquecidas por ter passado a oportunidade da sua utilização.
Olhando bem de cima nada disso se poderia distinguir seriam apenas coisas ou nem
mesmo isso seriam apenas pontos de um esquadrinhado confuso e inexplicável. Só o
triângulo escaleno de bico arredondado seria eficazmente visível – na parte mais larga
os dois blocos mais compactos e mais pesados e na parte inferior a casa amarela
afunilando aos degraus de pedra. A casa já não seria sequer amarela ou o amarelo não
seria já mais do que uma impressão periférica mas isso só seria possível a partir de um
ponto de observação muito mais acima lá muito acima entre a humidade e a rarificação
do ar. O melhor seria mesmo estar parado no ar para após algum tempo me abstrair da
existência circundante e me concentrar só no triângulo com a ponta mais aguda
arredondada e quase imperceptível por de longe se confundir com o chão. O ideal era
759
um helicóptero porque esses podem ficar parados no ar como os insectos mas tal como
eles não estão aptos a ganhar altitude. Em todo o caso a grande altura os macacos
ficariam ainda mais pequenos e impossíveis. Seria mais fácil ver as crianças que
brincam horizontalmente as suas brincadeiras antes de se virem sentar nos degraus de
pedra que ficam quentes quando no Verão o Sol lhes bate com muita energia e
prolongadamente. Talvez eu tenha sonhado com os macacos mas não me lembro. De
certeza foi num desses dias em que me levanto e vou para o café ainda a dormir embora
já não o suficiente para continuar a sonhar e nessas circunstâncias acidentalmente coisas
que sonhei torno a sonhar sem perceber que já estou acordado. Em todo o caso os
macacos mesmo vistos de cima não seriam visíveis. Eles vêem-se é sobretudo de baixo
como num teatro de robertos em vias de estar a ser desmontado no fim de um dia que
não existiu.
NEXUS MUNDI
760
NO TRUST das bananas do Peru e do Equador
Comam depressa
Vivam depressa
Fodam depressa
Morram depressa
Tragam manteiga
Conservem frio
Traguem a pastilha
…e sobretudo
Não parem de reciclar esta merda.
Quando por fim um dia tudo estiver irremediavelmente exaurido aí tudo esgotado já
sem Iraque já sem petróleo para fazer arder as suas máquinas sem energia nem
sustentada nem reciclável p’ra produzir os desajeitados milagres da sua boba tecnologia,
ele olhará para dentro e aí encontrará apenas o vazio imenso da sua própria
incompreensão de si mesmo – uma gargalhada congelada e um arco-íris blindado.
761
Eu sou a gaia animal e assombrosa
A Terra divinal juramentada
Mesmo que diversa e vária
No meu coração atómico de mãe
Todos os seres têm seu colo
E no meu rosto doce e sagrado
Nexo no mundo meu terno encanto
Será meu filho
Belo e gigante.
As pessoas não existem, o que existe é o que se manifesta por dentro das pessoas.
Feliz não é a pessoa que nunca está triste, feliz é a pessoa que quando está triste percebe
porquê e conta uma piada a si própria.
- os outros, salvo quiçá alguma excepção, falam a um eco de si próprios que será
talvez a inocência das pessoas – os políticos, os fazedores de opinião, os
762
professores é como falam
- …e continua.
PENSAMENTOS E IDEIAS:
É evidente que extraterrestres existem. Apenas o nosso entendimento das coisas físicas
torna impraticável que tais seres viagem pelo universo e se visitem mutuamente, uma
vez que residem a incontáveis anos luz de distância, distâncias essas que se revelam
incompatíveis com a nossa noção física do tempo-espaço. É bastante mais credível que
tais visitas sejam na verdade dobras no espaço-tempo que permitem que seres humanos
de diferentes épocas e graus de desenvolvimento possam entrar momentaneamente em
contacto nos chamados encontros imediatos do 3º grau.
O super-homem (ou Homem Novo) será evidentemente mulato – quando tiver sido
atingido o máximo grau de miscigenação. Ele aparecerá quando nascer o primeiro
homem que reúna em si a totalidade do património genético da humanidade.
Todos os seres são o centro do mundo porque o mundo é infinito partindo de qualquer
lugar. A qualidade do «mundo» é a projecção lógica, proporcional e direta da qualidade
dos seres humanos.
De cima não vem nada (só a chuva) porque o universo está em expansão e cada corpo
celeste, cada ser e, em última instância, cada átomo do mesmo modo se expressa por
uma existência irradiante e por conseguinte «em expansão». Curiosamente expande-se
no sentido inverso do que se manifesta através da gravidade i.e. o universo expande-se
do centro para fora, mas tudo o que nele existe atrai para o seu centro respectivo. Deve
ser por isso que há tanto tempo se diz que o que está em cima é igual ao que está em
baixo.
763
Aquilo a que, antigamente, chamávamos raças, representa, na realidade do universo
simbólico, as várias idades da humanidade. Assim, o homem africano representa a
infância da humanidade, o árabe a adolescência, o europeu a idade adulta, o oriental a
velhice e o ameríndio representa os que já morreram.
«Os sentidos do amor, o primeiro por certo á ver» era o primeiro verso de uma canção
que ouvi uma vez numa peça de teatro. «A poesia não é a arte (…) é o que eu penso das
coisas quando as vejo» eu mesmo disse e escrevi. Ver. Mais do que um dos meus
amigos mais chegados o disse alguma vez, em se questionando sobre o que seria
finalmente, de tudo, o que mais gostava no mundo… na vida. Quando vemos, olhando
uma paisagem, uma imagem, uma pessoa numa fotografia, súbito nos apaixonamos por
algo que vislumbramos e que está para lá até do que possamos ver. É a poesia que nos
entra pela janela da alma e nós sentimos.
A poesia inclui em si mesma algumas formas de arte, além de estar presente como
«poética» em todas as outras artes. As chamadas 7ª arte e os seus sucedâneos, como o
cinema e a fotografia, são na verdade formas tecnológicas de exercitar a poesia a um
nível (superior na fotografia porque dispensa as palavras) em que a fotografia está para
a poesia como o cinema está para a literatura.
A escrita poética se assemelha peculiarmente à escrita chinesa, uma vez que como esta,
aquela é de dinamismo vertical. Ao contrário do texto em prosa, que se lê seguindo as
764
ideias dispostas numa sequência horizontal, na poesia as ideias estão organizadas
segundo uma lógica formal em que, tendencialmente, uma ideia corresponde a um verso
e estando os versos sequencialmente dispostos uns abaixo dos outros, a sequência das
ideias e, consequentemente, a da sua apreensão processa-se verticalmente – como na
escrita chinesa.
Não sei porque é que chamam deus a deus, se deus não tem nome ou se tem é
impronunciável.
Penso que o mal do comunismo não é o comunismo, são os comunistas! Penso que o
problema do comunismo é ter que ser posto em prática pelas pessoas! Não é porque
uma ideia seja impraticável que ela deve ser abandonada – ela só é impraticável porque
são as pessoas que têm que colocá-la em prática!
Tenho andado ultimamente passando por um daqueles períodos em que parece que já
não há mais nada que valha realmente a pena ser dito certamente porque não se
consegue descortinar nada em que valha realmente a pena reparar. É uma coisa que vai
e vem de tempos a tempos. Ainda assim consigo aprender algumas coisas – coisas sem
importância como fazer a barba com tesoura que é muito confortável e me alimenta pelo
menos aquele espírito de contradição que obriga as coisas a valerem a pena além de que
me confere que ar provecto e sensual dito da barba de dois ou três dias e me habilita ao
supremo orgulho de poder dizer que jamais usarei aqueles horríveis dispositivos que
produzem na cara uma sensação de raspagem que lembra o tempo em que aborto ainda
era proibido – tempos de barbárie – e mesmo nos lugares em que o aborto ainda é
proibido embora eu acredite que ninguém mais estará usando um método tão
horrivelmente clamoroso jamais alguém nem não ninguém me verá raspando a cara.
Tive na juventude, como todos os poetas do sécº XX, a tentação de criar heterónimos. O
advento do modernismo trouxe consigo o fim do poeta singular e a vulgarização da
multiplicidade das expressões sediadas numa só pessoa. A par com a percepção de que a
nomeação da autoria é um problema menor, apercebi-me de que a sua diversificação só
realmente se justifica (?) quando a utilização de nomes fictícios configura, ela própria,
uma metáfora criativa ou uma carga conceptual conscientemente emitida. Optei assim
por não ver nenhum problema em que a multiplicidade de formas, expressões e estados
de espírito que resultam dos processos que permitem a intenção criativa, fossem
considerados como um dado adquirido para a condição do poeta moderno e a sua
manifestação ser natural na produção poética de um mesmo indivíduo. Foi por essa
razão que, embora mantendo a ficção onomástica que procura descrever um trajeto
orientado para a «luz» (Emílio Luciano – o amigo da luz; Lúcio Constante – o que
permanece na luz; Vera Lúcia – a verdadeira luz), deve entender-se a atribuição dessas
765
autorias como uma narrativa poética que descreve as vicissitudes discentes da juventude
do poeta ortónimo.
Isto é tudo na verdade uma grande confusão, porque as coisas que eu mais gosto de
fazer na vida, tirando foder, são tocar violão e escrever poemas. Tocar violão, fazer
canções, de certo modo me alivia. Escrever poemas é uma história completamente
diferente. Para escrever um poema, eu preciso de aceder a um estado que é muito
parecido com a tristeza mais profunda que se possa imaginar
E, depois de escrever, não me sinto aliviado – durante um certo período antes pelo
contrário. É claro que eu queria ser feliz como toda a gente. Nunca me interroguei
muito sobre felicidade. Sempre aceitei budicamente os momentos felizes e infelizes. Na
verdade já nem acredito muito que isto que eu faço, seja propriamente atividade poética
– estou mais inclinado a pensar que seja uma forma peculiar e estranha de psicografia, a
que eu pomposamente chamo se auto-psicanálise, enquanto à música chamo auto-
psicoterapia cognitivo-comportamental.
Alberto Caeiro ser o mestre dos outros heterónimos pressupõe que um registo
autopsicanalítico no fluxo criativo do poeta, pode ser convertido no eixo director da
jornada de autoconhecimento e conhecimento do mundo e da vida de qualquer ser
humano, desde que ele configure e pratique alguma forma de registo dessa actividade
interior.
De futuro (relativamente ao início do séc. XX) nenhum artista poderá jamais limitar-se à
construção de uma única personalidade artística. Isso pressupõe, no sentido mais vasto
de atitude psíquica de fronte da vida, a união dos conceitos de divisão personalidade e
do de cultura da personalidade num único processo e numa só pessoa.
DO SILÊNCIO
Uma vez ouvi um índio falando do silêncio. Antes ele falava sobre o barulho, como se
não se pudesse conceber o silêncio sem antes reconhecer o barulho. Mais tarde fiquei
pensando e experimentei, como tantas vezes pedi aos meus alunos que fizessem, ouvir,
real e objetivamente, os sons que se escutam na cidade. Nós andamos no meio deles
como se não existissem. É difícil estar em algum lugar, público ou em casa, sem que
haja uma televisão tocando, automóveis que buzinam, motocicletas, camiões – e nós
andamos no meio desse barulho, mas não ouvimos – escutamos mas não ouvimos,
ouvimos mas não escutamos.
766
árvores, a rebentação das cachoeiras ou um eco, uma reverberação que é característica
da floresta tropical – não existe, na verdade, qualquer silêncio.
O único lugar onde, realmente, existe o silêncio, talvez além do longínquo espaço
sideral, é dentro de nós, quando conseguimos esvaziar a mente de palavras ou de outros
pensamentos, e o barulho das nossas obrigações mentais, as nossas ambições
inconsoláveis, é que não nos deixam perceber que na cidade existe permanentemente
uma quantidade de barulho que, razoavelmente, qualquer pessoa consideraria
insuportável (ainda que fosse um surdo) – andamos no meio dele como se não existisse,
como se fosse apenas um ruído de fundo que fizesse parte natural da existência.
Mas enfim… acho que era isso que aquele índio, que na verdade não era bem um índio,
aquele escritor indígena que era afinal um indígena escritor, queria dizer.
O HOMO SAPIENS
BRASIL
Como se o Brasil fosse a pátria onde todos os arquétipos houvessem ganhado vida.
Não sei como irá terminar a atual crise política brasileira e dos pressupostos nem
adianta mais comentar, é como diz o Monsueto - o «caso não é de ver p'ra crer, 'tá na
cara». Uma coisa porém me atrai - o swing: enquanto a direita estúpida e reaccionária,
rígida e anquilosada, repete um tuuuum,tuuuum,tum,tum,tuuuum, quadrado e militarista
767
(«a nossa bandeira jamais será vermelha» assunto que, que eu saiba, jamais esteve em
questão), a palavra de ordem da esquerda - «não vai ter golpe, vai ter luta» - é de uma
rara elegância rítmica (em se tratando de política...) acentuada no 1, no 2 e meio, no 4 e
meio e, depois, no 2 e no 3 para finalizar - parece um samba... eu sei que esta conversa é
mais para músicos, mas o tema
releva da importância estética de se ter razão...
OS SENTIMENTOS HUMANOS
Para mim os sentimentos são como uma cebola, organizados em camadas em que umas
incluem as outras e bem assim os sentimentos se se justapõem em sucessivos anéis em
que cada qual inclui todos os anteriores.
Assim você tem o sentimento da autoconservação, por exemplo, o qual você partilha
com a generalidade da espécie – humana no caso. Todo o mundo tem. Depois vem a
solidariedade, que você partilha com os outros num sentido social e humanitário, e esse
já inclui o outro. Depois tem o sentimento de pertença, que você partilha com as pessoas
que são da sua terra, do seu país, e esse também inclui o da solidariedade e o da
conservação da espécie. Depois, vamos supor, tem o da amizade, que inclui todos os
anteriores e que você partilha com as pessoas que têm essa afinidade afectiva que faz
com que você as chame de amigos. depois tem o sentimento de pertença especializada
que está associado aos laços familiares, as afinidades do sangue, o qual inclui todos os
também todos os anteriores, e que você partilha só com as pessoas que são da sua
família, ou que por qualquer razão é aceite para entrar nesse grupo, como é o caso dos
filhos adoptivos, por exemplo, ou das pessoas que têm com a família laços de natureza
laboral durante muito tempo e em áreas muito íntimas como a criação dos filhos ou a
confecção da alimentação.
Simplificando, por fim tem o sentimento do Amor que sintetiza a expressão última de
todas as afinidades electivas, mas que nem por isso, todavia, deixa de incluir em si
todos os outros, nomeadamente inclui as afinidades do sangue, porque os amantes ficam
768
misturando o sangue o tempo todo através dos seus comportamentos sexuais e
frequentemente a ligação amorosa se converte em uma ligação familiar, inclui o da
amizade, o da pertença, o da solidariedade (a que é de natureza humanitária que, por sua
vez inclui aquela outra que é de natureza meramente social) e o da conservação da
espécie, que é uma extensão colectiva da autoconservação e por isso mesmo,
provavelmente, o mais egoísta dos sentimentos.
Basta reparar que de cada vez que o espírito humano é banhado e embebido na vibração
potente e encantatória do Amor, o seu apego à vida, aos ritmos e propulsões da natureza
se potencia e cresce, também qualitativamente, de forma que a repetição dos ciclos
afectivos nos quais se configuram todos os sentimentos humanos, com a natural
passagem do tempo, vai fazendo crescer em intensidade e especialização todos e cada
um dos seus registos.
Se a vida é toda essa incongruência, então não vale a pena, mesmo que ela nos dê esses
iniludíveis sinais de que não se pode fugir, acreditar. Talvez ela não fosse tão
desprezível nem o mundo tão definitivamente mau, se não fosse possível alguém causar
tanta dor e não sentir nada de retorno.
Eu sinto assim – sinto o meu destino como se fosse um combóio desgovernado que se
encaminha desesperadamente para o descarrilamento, mas que por milagre, alguém
pode sempre milagrosamente salvar – sinto isso com essa luz, essa matéria de que se
fazem os milagres, que é a mais essencialmente contrária ao ferro desmandado de que é
constituído o comboio – a coisa difusa e imponderável que é o amor.
769
SEMÂNTICA E GRAMÁTICA
Chegar «a» chama a atenção para o percurso; chegar «em» chama a atenção para o
ponto de chegada – exatamente como «ao» encontro «de» e «de» encontro «a».
Estabelecer o campo semântico que resulta da reprodução em várias línguas do conceito
definido por uma determinada palavra, pode ajudar bastante a compreender melhor esse
mesmo conceito.
O critério último para se poder avaliar o domínio de uma língua, seria a capacidade de
escrever e entender a sua poesia. Por razões óbvias: poder-se-á ter o domínio da
linguagem técnica em um campo específico muito complexo, como em ciência ou em
história, dominar até todas as geometrias e associações (lógicas ou ilógicas) do
pensamento racional, do filosófico, mas só a poesia permite alçar o pensamento e a
significância das palavras até às regiões mais subtis da significação metafórica, às
subtilezas dos ritmos e do seu impacto na natureza do discurso, às delicadezas do estilo
ou às categorias emotivas que nem mesmo a literatura romanesca permite condensar.
AS PALAVRAS
Quando se trata de misturar imagens com palavras, a primeira ideia que nos cai na
cabeça é aquela tão repetida e disseminada, e que conta com a rara unanimidade das
coisas universalmente aceites, que reporta a que «uma imagem vale por mil palavras».
Todavia, se começássemos o raciocínio pelo lado das palavras, seria improvável que
chegássemos à mesma proporção. Na verdade, se fosse esse o caso, o raciocínio não
seria tanto de natureza quantitativa (ainda que se trate de uma quantidade simbólica)
mas outrossim de projeção mais abertamente qualitativa – i.e. as palavras (e as que são
escritas ainda mais do que as faladas) deixam sempre em aberto, seja um apelo por
desenvolvimento, seja uma ânsia de uma anterioridade, uma sugestão de outra emoção
maior, a qual deixa ela mesma implícito não serem as palavras, elas mesmas só por
si, capazes de se sentirem completas sem o concurso de alguma outra forma de
expressão. De um modo geral são as imagens ou a música, as primeiras a ser
mobilizadas pela imaginação para a consecução de tal necessidade.
Em geral é preciso ter apenas uma boa ideia para se encontrar sucesso perante os outros.
Quando se tem muitas ideias, existe o risco de elas não serem boas e a certeza de que
jamais serão objeto de algum sucesso.
770
LUIS SÁ DUARTE:
1.
A DUNA
771
deitar abaixo as casas clandestinas que ainda existem – entretanto os problemas não são
na zona das casas clandestinas, são na zona em que as casas são legais. E todavia a duna
apenas quer mudar de sítio, as casas é que querem ficar no mesmo lugar, o que gera
uma incompatibilidade.
Muitos se ufanam da sua sabedoria e outros, até gostam de ver a ilha na
televisão… a desaparecer. Nos dias de hoje tornou-se banal anunciar o fim do mundo e
tornou-se banal ouvi-lo e ficar na mesma. Com incomparável rigor dizem-nos que daqui
a cem anos vai acontecer tal ou tal se não deixarmos de fazer isso ou isso. E nós, que
nunca havíamos pensado nisso, continuamos a não pensar. Na verdade, há muito que
perdemos a ilha. Algures no tempo da nossa ânsia de saber e de ter, desaprendemos de
sentir a terra como a nossa mãe e, como é sabido, quem tem uma mãe tem tudo, quem
não tem mãe não tem nada. E nós já fizemos mais buracos na nossa do que o Arrabal
fez na dele.
Quando o mar invade a cidadela dos humanos, como tem acontecido agora na
praia, é natural que as pessoas que possuem lá interesses fiquem aflitas. E as pessoas
que só lá vão à praia talvez comecem agora a habituar-se à ideia de que, daqui para o
futuro, a praia deve ser consumida em spray – o que é uma ideia inteligente porque para
ir lá apanhar os raios ultra-violeta na pele também não vale a pena. Agora quando as
pessoas ouvem o sumo cientista dizer que quando os nossos filhos forem avós nada do
nosso mundo existirá nos seis metros imediatamente acima do actual nível das águas do
mar e que o mais certo é as pessoas estarem todas doentes de cancro, deveria gerar-se
uma verdadeira histeria colectiva, as pessoas deviam ficar todas malucas e abandonarem
os seus afazeres actuais para se dedicarem à construção de grandes barcas como a de
Noé, exercitarem-se na natação e na respiração submarina e, posto isto, fazer amizade
com os peixes. Mas não. Nós sabemos que quem nos avisa nosso amigo é, temos é o
péssimo hábito de tratar mal os amigos. Milénio após milénio temos sido avisados -
«olhem que o mundo vai acabar» - mas a gente nunca acredita.
(publicado in O MERIDIONAL)
2.
O CAVALO DE XADREX
772
um verdadeiro cavalo de xadrez – no nosso meio, isso é indispensável. Não podemos
deixar de sentir a asfixia de estar numa área não estratégica do tabuleiro (mesmo quando
estamos no centro da estratégia do jogo) e sucumbirmos aquela aridez híper-planificada
que transforma o xadrez em um regular e limitado jogo de damas – e quase sempre
damas que não são mais do que sofrivelmente belas «damas de companhia». Aí ficamos
todos chatos e iguais como as pedras do jogo das damas, movemo-nos pouco e sempre
no mesmo sentido, indefinidamente nem em frente nem para o lado, sempre em
diagonal e uma casinha de cada vez. As pedras desse jogo melancólico e simplista só se
empolgam, quando se comem umas às outras ou chegando no fim do tabuleiro, perto do
precipício, se monta uma pedra sobre a outra e acontece o que se chama «fazer dama».
Então ficam desaustinadas as pedrinhas – andam para trás e para a frente, as casas que
quiserem, numa euforia postiça e descontrolada.
O cavalo de xadrez é de outra natureza e faz de acordo com a sua natureza mais
intrínseca – salta. Se o rei fosse no jogo o marido da rainha então o cavalo seria o
amante com certeza. É com ele que a rainha prepara os seus ataques, desenha suas
cumplicidades e juntos são uma dupla mortal, mesmo quando o que fazem se destina a
proteger o rei. Nas áreas periféricas do vasto tabuleiro, ele procura a universalidade dos
movimentos míticos modelando os seus mitos no grés de uma poeira local. Num meio
cultural e social tendencialmente dormente como tem, persistentemente e ao longo dos
anos teimado em ser o nosso, pode por vezes tornar-se difícil seleccionar exemplos que
ilustrem cabalmente este ponto de vista. Deparamo-nos recorrentemente com a
aceitação passiva do que se diz ser o condicionamento regional. Por ser intelectualmente
mais fácil, aceita-se como bom que os interlocutores desse diálogo cultural e social se
exprimam, não em função de si mesmos e do espaço do qual são os agentes ativos
(quando o são), mas como função de um outro espaço, centralista e não inclusivo,
relativamente ao qual os predicados da nossa linguagem natural precisam de ser
constantemente reafirmados – é preciso colocar lá uma chaminé, um símbolo que nos
identifique como cultura periférica e não como cultura apenas, pura e simples. Ou então,
triste alternativa, somos submersos por uma vida cultural que nada tem a ver connosco,
que se serve do Algarve como plataforma de transacções que passam sempre «far
away» acima da nossa cabeça, por mais esticado que esteja o pescoço do nosso cavalo
de xadrez.
Por isso nos dá a nós muito mais trabalho sermos nós mesmos. Precisamos de
dar imensas cambalhotas. Precisamos de não sermos nós para podermos ser o que
somos, e ser o que nós somos é como qualquer outra coisa, e ser outra coisa qualquer é
poder ser tudo e isso é exactamente do que nós precisamos.
Quando se presta atenção, pode surpreender-se na obra de um artista criador essa
capacidade de cavalgar o xadrez hierarquizado das diferentes esferas culturais, se
sentimos nele a voz própria e a emissão adequada ao seu filtro de imagens. Esta
qualidade de ter luz própria, que é única e inconfundível, quando se expressa livremente
é o que faz a obrar virar uma coisa importante, não a tentativa vã e calculada de ser
original ou a procura inútil de afirmar ou negar uma identidade, que que sempre
transparecem na aparência final da obra e a deixam pálida e visivelmente doente. Este
momento é aquele em que a obra deixa de ser original para ser genuína (não é mais nem
importante se ela é mais ou menos original) e é nesse momento que a terra,
convenientemente adubada, pode dar vida ao artista para que ele torne a sua obra genial.
(publicado in O MERIDIONAL)
773
3.
FARO – CAPITAL «NACIONAL» DE CULTURA
774
Nem mesmo por força dessa sanha centrífuga que sempre lhes dá com o
anunciar do Verão, os portugueses conseguiram encher aquela cova no dente que resta
na boca ressequida que um dia mordeu o paposseco da idolatria nacionalista.
Infelizmente, todos já nos habituámos a que nada queira dizer propriamente o que diz,
tanto quanto acabámos por nos habituar a que o que se diz não queira dizer nada.
“Outramente”, quando se fala de «Capital de Cultura», isso deveria querer dizer que,
durante um certo período, ainda que limitado, um certo espaço social e comunitário
sujeito ao condicionamento da existência periférica, poderia dispor dos meios para se
afirmar, segundo a sua identidade e característica, como núcleo central, difusor e
irradiante de consciência e de cultura. Assim, ainda que limitada no tempo, a iniciativa
teria impacto nos comportamentos e perenidade na vida cultural e, em ulterior, na
consciência própria dessa comunidade. Mas não.
A verdade é que este ponto de vista, conquanto pudesse até congregar a simpatia
dos intelectuais, não deixa de ser delirante. À evidência a tal Capital Portuguesa de
Cultura, a qual não se chegou a saber em definitivo ou com exatidão quando começou
ou deixou de começar a ter começado ou sequer se existiu ou terminou, e isto porque
não é dispicienda a questão do enquanto efectivamente durou, foi, para aqueles que
deveriam ser os verdadeiros sujeitos da operação, apenas mais um frenesim como outros
a que tantos anos de turismos trôpegos nos habituaram a presenciar de vez em quando –
algo que com rigôr no “timing” e voluptuoso “panache”, os portugueses ofereceram a si
próprios, algo que se passou no Verão passado, algumas vezes mesmo pelas praias, algo
que passou sem deixar rasto, mas não algo que aconteceu, nem menos nunca algo que
fez acontecer.
Numa cidade a considerar-se e a ser considerada como capital, sem, no entanto,
verdadeiramente se sentir como tal, a instituição da «Capital Nacional de Cultura»
passou, como que sobre brasas, sem que a capital, a do Algarve, quase que tivesse dado
por isso.
O desfile da cosmopolita “nomenklatura”, em poses mais ou menos
espectaculares, passou realmente sobre a “passerelle” das brasas estivais, dos dias de
luxúria e vanidade dos lisboetas remediados, pelo painel da ociosidade das
esperguiçadeiras, mas não sob o olhar nem sobre as consciências, não pelas vidas
opacas dos algarvios exauridos pela inesgotável voracidade da carraça periférica, não
pelas obliteradas existências dos artistas algarvios, destinados ao equívoco privilégio de
existirem no «Ocidente Perfeito».
Nem mesmo por força dessa sanha centrífuga que sempre lhes dá com o
anunciar do Verão, os portugueses conseguiram encher aquela cova no dente que resta
na boca ressequida que um dia mordeu o paposseco da idolatria nacionalista.
Infelizmente, todos já nos habituámos a que nada queira dizer propriamente o que diz,
tanto quanto acabámos por nos habituar a que o que se diz não queira dizer nada.
“Outramente”, quando se fala de «Capital de Cultura», isso deveria querer dizer que,
durante um certo período, ainda que limitado, um certo espaço social e comunitário
sujeito ao condicionamento da existência periférica, poderia dispor dos meios para se
afirmar, segundo a sua identidade e característica, como núcleo central, difusor e
irradiante de consciência e de cultura. Assim, ainda que limitada no tempo, a iniciativa
teria impacto nos comportamentos e perenidade na vida cultural e, em ulterior, na
consciência própria dessa comunidade. Mas não.
A verdade é que este ponto de vista, conquanto pudesse até congregar a simpatia
dos intelectuais, não deixa de ser delirante. À evidência a tal Capital Portuguesa de
Cultura, a qual não se chegou a saber em definitivo ou com exatidão quando começou
ou deixou de começar a ter começado ou sequer se existiu ou terminou, e isto porque
775
não é dispicienda a questão do enquanto efectivamente durou, foi, para aqueles que
deveriam ser os verdadeiros sujeitos da operação, apenas mais um frenesim como outros
a que tantos anos de turismos trôpegos nos habituaram a presenciar de vez em quando –
algo que com rigôr no “timing” e voluptuoso “panache”, os portugueses ofereceram a si
próprios, algo que se passou no Verão passado, algumas vezes mesmo pelas praias, algo
que passou sem deixar rasto, mas não algo que aconteceu, nem menos nunca algo que
fez acontecer.
4.
CULTURA EM PORTUGAL
Uma nação que não valoriza a sua cultura, a vida e a actividade dos seus artistas
e pensadores, é uma nação sem alma. Países deveriam corresponder a nações –
entidades que resultam da interacção cooperativa de grupos humanos que partilham uma
língua, um território e um imaginário. Portugal seria então um país em que a alma da
nação se dissolveu ou transladou para lugar incerto, que não o território onde habita o
povo e a sua língua é pensada, falada ou imaginada, cantada ou escrita, pelos homens e
mulheres que o constituem.
Em Portugal a mais possível e clara manifestação do que é a evidência de tal
alma, transformou-se em uma íngua incómoda, atravessada na consciência de atavismos
destituídos da mais elementar ancestralidade – emigrou… A tanto foi conduzida pelas
vicissitudes que os conflitos que configuram a história propiciaram, mas muito
particularmente pela lamentável quebra do princípio da criatividade, como propulsor do
dinamismo mental que se revela naquilo a que chamamos cultura, a favor do princípio
do erro e da imitação.
Muito cedo as diversas elites nacionais, incapazes de dar resposta às
transformações decorrentes do que ficou convencionado referenciar à revolução
francesa, optaram por hipotecar a sua autonomia criativa, passando a partir daí a correr
atrás de outros padrões, sempre mais avançados, sempre mais modernos, sempre mais
eficazes, sempre mais bonitos. Fatalmente, os agentes culturais, os fazedores e os
críticos, se deixaram débeis conduzir para o falso conforto de festejarem os seus pares
com «introdutores em Portugal» disto e daquilo, e vesgos confundiram isso com o que
deveria ser uma vanguarda da camada superestrutural da sociedade.
Mais fatalmente ainda, o terrível vício escorreu para a restante sociedade e em
todos os seus níveis e funções se considera hoje sempre mais óbvio que se imite alguma
maneira já conhecida de fazer as coisas e resolver os problemas, do que, o que seria
essa assim a atitude óbvia, resolver com soluções próprias os próprios problemas – isto
acontece, tristemente, desde as coisas mais simples às mais complexas, das mais
pequenas às maiores, em toda a extensão dos funcionamentos sociais – técnicos ou
humanísticos – e já se plasmou na forma como, naturalmente, todas as soluções são
procuradas.
Não é assim de estranhar que na cultura – e em particular na arte e ideias que a
alimentam e povoam – o estado das coisas acompanhe o que nas culturas dominantes
no que resta da nossa infausta civilização, vem sendo desenhado desde as décadas finais
do sécº XX, a saber: como em outros registos da produção que resulta da criatividade
humana, a actividade artística com que actualmente convivemos se me afigura como um
grande e lustroso super-mercado onde podemos ver, brilhantes e alinhadinhas muitas
embalagens, todas normalizadas e arrumadinhas, mas nunca vemos os produtos, nunca
776
os conteúdos, como se quanto mais acética e tecnicamente perfeita fosse apresentação
mais imperiosamente vazio tivesse que ser o conteúdo – como se ao tirar os micróbios
das unhas do artista lhe tivessem definitivamente levado a sanha da loucura que lhe
habitava as garras, e que, como sabemos, nunca deixou de ser a prima irmã da
criatividade.
Mais que os poemas, são os poetas que configuram a obra. A obra não depende
deles, a obra escreve-se neles porque ela quer ser escrita e, de uma maneira ou de outra
eles a escreveriam. É a dimensão do poeta que determina a dimensão da obra.
Nos dias de hoje existem cada vez mais e melhores poetas – quem sabe o mundo
será por isso menos pior – serão com certeza todos bons, embora, como sempre, uns
melhores do que outros. D.C.L. vive e escreve à flor da pele, sonha no fio da navalha.
Nisso, como todos, tantos e cada um dos poetas, ele é único.
Pode compulsar-se a intensidade que jaz interior a uma obra, seja por
aproximação académica seja por intuição auto-didacta, mas só se pode conhecer
genuinameº~.nte uma poesia quando se entra em unidade com ela. Os recursos podem
ser variados e o seu uso sábio na dose e na maneira, equilibrado e tenso na medida. E
esta tem disso a parte inteira – uma pontuação criativa... significante; imagens que são,
às vezes, de uma penetração quase cinematográfica; a poética de brincar com a escrita, e
o que é mais, a de brincar com a língua; a decomposição da fala à dimensão do patético,
no sentido em que se pode atribuir essa característica a uma sensação ou a uma música,
e que confere aos objectos, coisas ou animais, astros ou eventos meteorológicos, forças
da natureza, a qualidade de entes. E os símbolos... sempre. Até quando o poeta se despe
deles quando quer.
Como os poetas, também os poemas são todos bons e necessários, uns melhores
outros nem tanto, outros mais uns outros menos. Mas todos valem a pena e são a seu
modo surpreendentes. São como soldados de uma guerra que se trava no silêncio das
consciências entre ideias inconstantes e em que os poetas insistem em permanecer
redimindo e mitificando a existência – a própria e a que, através de uma névoa toda
particular, conseguimos ver.
A poesia não é escrita para os contemporâneos, nem tão pouco para os
vindouros, é escrita para nada, e porque tem que ser. Acontece por vezes que nacos de
boa poesia possam ser lidos (ou escutados) por outros, que irmanados num mesmo
sofrimento a usam como um bálsamo de reconhecimento.
Todos aqueles que procuram o consolamento da alma poderão encontrar nestes
versos, que li como se fossem meus, o júbilo raro e impreciso de uma palavra irmã.
777
um lugar onde se sente subliminarmente a presença de António Aleixo (até porque lá
lhe puseram uma estátua, sentado a uma mesa à qual, em vida, certamente ele nunca se
sentou), e que, por sinal, não vem mencionado no ALGARVE (MANIFESTO), talvez
porque a sua manifestação seja tão completamente esmagadora, que não gera nem
consente, em si, qualquer controvérsia. Ouvi então o Jacinto Palma Dias explanar o
assunto da obra e vi explicada com discernimento, a importância da sua publicação.
Enternecido porque conheço o Jacinto há muito tempo e tive, ao longo desse
tempo, o privilégio de ser seu amigo. Desde cedo percebi na sua produção e pontos de
vista uma afinidade profunda com ideias que eu próprio alimentava e em torno das quais
o espaço ideológico da minha geração procurava estruturar-se. Foi logo numa das
primeiras concomitâncias em que os nossos respectivos percursos se encontraram, que
tive a feliz oportunidade de conhecer o texto chamado «O Império do Sal», o qual,
acompanhado de alguma literatura que o próprio Jacinto me aconselhou que lesse, me
descortinou todo um novo horizonte de compreensão e avaliação da história e da
essencial importância da forma de ela ser contada – com especial interesse para quem
como eu por essa época procurava a nitidez dos contornos de uma identidade a que
pudesse chamar de efectivamente minha.
Entusiasta porque o lançamento do ALGARVE (MANIFESTO) vem pôr fim a
uma situação caricata em que a afirmação das verdades essenciais da cultura algarvia se
resumia a uma circunstancial mobilização de episódios exóticos cuja colação não se
furtava muitas vezes à humilhante condição de se afirmar o relevo da sua identidade
mediante a respectiva representação perante um sistema de valores pertencente a outra.
Pelo contrário, Jacinto Palma Dias estabelece e elenca um conjunto de factos cujo relato
se constitui pela primeira vez num quadro de referência para todos os que argumentam
em prol do espírito algarvio e num formidável suporte para os que procurarem produzir
um pensamento algarvio dotado da capacidade de influenciar.
Desde a época em que, como referi, tomei contacto com «O Império do Sal»
ficou clara para mim a existência de um eixo segundo o qual os eventos, sejam
políticos, económicos, culturais, militares, antropológicos, etc., cujo relato se constitui
no que chamamos história, é susceptível de ser contado de acordo com o ponto de vista
de quem está produzindo esse relato – no sentido Norte-Sul (como é o caso da história
oficial) como no inverso. Isso é da maior importância para a interpretação dos mesmos
eventos e consequentemente na forma como isso se constitui num discurso que passa a
codificar os instrumentos de auto-reconhecimento de uma comunidade ou de um povo.
Jacinto Palma Dias chama a atenção precisamente para as consequências de se
desapossar um povo da sua própria história, dotando-o de uma «ladainha» em que ele
aparece sempre como desgraçado e vencido, com temor da estigmatização e do ridículo,
que vai adquirindo a auto-condescedência de se conjugar a si mesmo na terceira pessoa.
Isto é verdadeiro para o eixo Norte-Sul como o será certamente também para o eixo
Este-Oeste. Seja como fôr, ficou desde aí claro para mim que se carecia de uma história
que fosse contada de Sul para Norte.
ALGARVE (MANIFESTO) relata a história de um roubo, descreve e analisa um
roubo prolongado. Analisa acontecimentos e factos políticos de uma forma
independente daquela em que eles aparecem implantados na história que nos é contada
pelo olhar setentrional, que tudo vê em função dos interesses e conflitos sediados a
Norte, onde se gera e se processa o saque a que, ao longo dos séculos, foram sujeitos os
povos meridionais e a partir do qual (do saque e da sua confitura intelectual) foi
construída a pastilha pseudo-identitária com que foram premiados alentejanos e
algarvios. Há uma afinidade natural entre alentejanos e algarvios que por vezes se
traduz numa dialética opositiva, mas que não esconde nunca a determinação trágica de
778
um calvário comum. Os alentejanos que supostamente são preguiçosos, os algarvios que
são malandros e vigaristas, ainda que uns possam ser bom cantores e outros alegres
dançarinos. Faz-se como nas Américas aos africanos escravizados – reconhecem-se-lhes
as qualidades no que é aparentemente supérfluo para legitimar a sua destituição de tudo
o que é essencial. É o se poderia caracterizar como o artifício do «Pai Tomás» tão
frequentemente identificado no contexto dos conflitos raciais norte-americanos. É um
processo de julgamento a priori que configura o lento assassinato de carácter desses
povos e mina irreversivelmente o amor próprio com relação às suas características mais
distintivas e o orgulho da sua existência colectiva e da sua história. Em qualquer
momento em que, a partir de agora, estas verdades sejam produzidas, é forçoso remeter
a consulta para o livro de Jacinto Palma Dias porque aí estão em detalhe e evidência as
bases de como este roubo se produziu. E como o próprio manifesto começa por mostrar,
não existe maior roubo do que o que consiste em espoliar um povo da sua própria
história.
Vivemos agora um tempo em que num mesmo momento ou episódio, parecem
confundir-se vários tempos. Passados e futuros de narrativas diversas confundem-se
numa vertigem que parece escorar-se em nada mais do que uma insustentável
preplexidade. É por isso tão importante conhecer o que nos trouxe até aqui, porque aí
estão indeléveis as linhas por onde o sortilégio dos destinos que confluem no espírito
algarvio nos irá levar. Existe, independente dos processos como cada grupo humano
administra e resolve os problemas básicos da sua sobrevivência, uma unidade
transcendental que confere a cada um deles um ritmo e uma clave exclusivas que lhe
determinam a natureza do espírito.
A configuração actual em que se movimentam o mundo e as sociedades
humanas, mostra a coexistência de dois planos de decisão – o que determina os fluxos
globais e apenas permite efectividade às decisões que se possam tornar válidas em
espaços, no mínimo, continentais por um lado e, por outro, o que permite realizar e
desenvolver os dinamismos locais onde se podem gerir à dimensão humana os
equilíbrios necessários à optimização das condições da vida concreta das pessoas. Estes
têm incidência particular nos aspectos culturais e nas escolhas económicas, políticas e
sociais que garantem a saúde material e psíquica das comunidades e dos seus
indivíduos. É um contexto em que os estados nacionais, formados ao longo de séculos
pelo prevalecimento e domínio dos piores instintos da natureza humana, deixaram não
só de ter utilidade, como se tornaram fonte de atavismos e vícios que não prenunciam
nada de particularmente edificante para o devir da humanidade. Pelo menos enquanto a
sua lei continuar a interferir numa lógica estratégica em que eles já não cabem.
É por isso o tempo actual prenhe das mais criativas e inesperadas possibilidades
e o livro de Jacinto Palma Dias tem uma importância decisiva e se constitui num sinal
definidor. Constitui-se o ALGARVE (MANIFESTO) em uma esquina, uma pedra, um
marco na terra do tempo, um ápice do tempo que a terra respira. Traz a base para uma
nova consistência e unidade capaz de criar um pensamento que alimente o corpo da
pátria imaterial, que se expressa ao nível da ideia, mas que mergulha as suas raízes na
terra como uma árvore rara.
Sempre intui no Jacinto essa visão de um Algarve sentido como uma terra que,
mesmo nas vicissitudes hiperbólicas dos seus périplos, ele acariciou intensamente ao
longo da vida. Um Algarve enorme na sua melodia maternal, na delicadeza profunda
das suas consonâncias geográficas, mas sobretudo o Algarve como uma ideia, imaterial
e ágil, como uma fecundação eterna – um Algarve imortal e transcendente.
779
AFORISMOS E DITIRAMBOS SOBRE O ALGARVE
O Algarve é um estado de consciência que muitas vezes tem sido revelado através da
experiência de se estar «longe de casa». É um caso evidente de uma identidade que
extravasa o espaço da sua afirmação territorial e em que o imaginário transcende
largamente o real.
*
As sílabas abertas e as cores vivas são um excelente exemplo da propensão à
mediocridade e aos sentimentos pouco claros. Não é bem visto que uma pessoa ostente
roupas vermelho vivo ou amarelo brilhante, do mesmo modo que os nomes com sílabas
sonoras e abertas, principalmente se na última sílaba, como Laró ou Barnabé, são em
geral objeto de chacota da massa incomodada pela excessiva sonoridade e caráter
afirmativo desses nomes como daquelas cores.
*
Ser português é um gesto antropológico indefinido que se situa entre ser algarvio e ser
galego.
*
...«indefinidamente» por conta do equívoco alentejano - se olharmos por forma a ver a
Serra Algarvia como uma espinha dorsal do que seria o Algarve original e a margem
norte do Tejo como as suas extensões anteriores ao expansionismo borgonhês, não será
difícil sentir o absurdo da designação «além-tejo» quando pronunciada por alguém que
efectivamente se situa «Aquém».
*
Alguns percursores do espírito algarvio, desde as mais longínquas antenas, deixaram
que a tentação de uma voz culturalmente maior, os seduzisse para a ilusão de que seriam
parte da cultura portuguesa. Isso, porém, apenas resulta do equívoco de que fosse a
cultura algarvia subsidiária da cultura portuguesa, o que decididamente não é o caso.
Apenas um tempo curto de observação, que não excede os 4 ou 5 séculos, sugere essa
780
relação de dependência –seja linguística, seja agrícola (económica e alimentar), seja
tecnológica, o que é realmente diminuto perante a extensão temporal em que se
manifesta a existência de uma forma peculiar de ser e sentir que se reporta à área
sudoeste da península ibérica.
*
Sobre a propecção petrolífera no Algarve:
quanto à associação com os índios, ela só revela o que esta fauna teutónica realmente
pensa a respeito dos algarvios antes (e depois) da colonização de que foram objecto as
suas terras e a sua cultura (primeiro aproveitada em benefício de uma expansão
predatória e genocida e depois remetida ao opróbrio da aculturação)
781
da Guiné, de Angola ou de Moçambique (haveria talvez uma hipócrita quanto cruel
condescendência com o negro cabo-verdiano e as suas músicas, por este ser considerado
não completamente negro, mas originário de um interessante e sensível processo de
criolização – na herança genética como na língua e na música). Assim e num rpimeiro
arrebique de resistência ao maneirismo reinante, de minuete palaciaciano quando não de
crispação hipnótica, que ainda marcava a atitude corporal dos portugueses, os mais
jovens começaram a fazer circular uma produção musical em que o jazz, por se tratar de
uma música sobretudo instrumental, representava a essência mais intelectualizada, mas
que vinha de um grande campo que incluía os blues, o rock ‘n roll e o ressurgimento
ainda incipiente de algumas expressões étnicas mais longínquas, isto à mistura, é claro,
com as tradições populares europeias até aí remetidas à clausura exclusiva do folclore.
Por aqui, entretando, o fenómeno resumia-se a uns rapazes que passavam férias no
Montenegro, os pouquíssimos disk-jockeys das raras discoteques que apareceram por
imperativo turístico e alguns intelectuais de esquerda. Essa rede de apreciadores de jazz
numa cidade de Faro que teria por essa época pouco mais ou pouco menos de quarenta
mil habitantes, resumir-se-ia então a uma escassa meia dúzia de pessoas. Eram no
entanto, felizmente, pessoas amantes da polémica e da sabatinagem das ideias, o que
estimulou a expansão e a divulgação viva daquela forma peculiar de gosto musical que,
por via da apreciação das virtudes improvisatórias emanentes ao jazz, desenvolve,
naqueles que consomem essa arte, uma atitude criativa.
Na passagem da década de sessenta para a de setenta, apareceu em Faro, numa rua até
pouco habitualmente votada a grandes actividades comerciais, uma pequena casa de
discos que, quer pelos preços económicos que praticava, quer pelo facto de oferecer
discos provenientes de uma única etiqueta – a Savoy/Musidisque – parecia ter sido
destinada a alguma forma de liquidação de um património, tanto mais que a própria
etiqueta já teria por essa altura cessado a sua actividade comerrcial. Ora, a
Savoy/Musidisque havia sido responsável, através da sua actividade editorial, pela
considerável expansão do jazz em França e nos mercados europeus adjacentes ao espaço
cultural francês e oferecia um catálogo espectacular que abrangia todo o período de
desenvolvimento do jazz desde o Dixieland até ao Bebop e algumas das continuidades
que se consubstanciariam mais tarde no que viria a dar o Free Jazz. Isto para além de
um considerável acervo de música clássica europeia.
Para além do autor destas linhas, na magra medida da sua capacidade de investimento, e
de mais um ou outro curioso, tornaram-se utentes proverbiais da pequena loja, dois dos
mais frenéticos apreciadores de jaz que me vem à memória ter conhecido. Falo do Arqº
Eduardo Coutinho, que pela época fazia brilhar a sua loquacidade nas tertúlias
intelectuais da pastelaria mundana da cidade e que mais tarde haveria de influenciar o
ambiente cinéfilo através da sua participação numa equipa directiva particularmente
influente na longa vida do Cine-Clube de Faro e do inesquecível e saudoso Rui Cuinha
– «a Pombinha» - que, como disk-jockey, primeiro, e depois como bon vivant e
empresário, foi paulatinamente influenciando o campo do entretenimento que é a alma
mater do jazz e o o que torna uma coisa viva e criadora (ainda que hoje adoptado pela
universidade, a sua verdadeira mãe biológica são os speak easy,os lunpanares, os
cabarés e outros «lugares de perdição«). Organizou concertos com grupos portugueses
de jazz, calcorreou as casas dos amigos com os «disquinhos» debaixo do braço, onde
chegava anunciando a mais recente e difícil aquisição que podia ir de uma raridade do
Earl Hines a uma diatribe do Archi Shep – o «amigue Cunha» era um indefectível, tanto
do Leonel Hampton quanto do Yussef Latef. Na sua «play list» apareciam clássicos
como Louis Armstrong Hot Five engastados no meio da vertigem do Funky já tendendo
alegremente para Disco Sound. Pouco a pouco foi fermentando o que, um tempo antes,
782
seria para muitos impensável – uma oferta criativa original e local. Foi a confluência de
movimentos diversos e de diversa ordem que tornou possível esta transformação. Nos
tempos primitivos em que Eps e LPs, pequenas e grandes redondelas de vinil preto,
circulavam nos pratos das vitrolas quase como o «Avante» circulava nos saguões das
casas clandestinas dos comunistas, como se apreciá-los fosse um perigoso vício
diletante, baseado em conspícuas sensibilidades, quase sempre associadas a devaneios
de legalidade duvidosa para fazer tocar uma banda de jazz ao vivo nas ribanceiras
descendentes do Caldeirão, era preciso recorrer à importação de uma oferta
extremamente exígua do que se conseguia ir fazendo em Lisboa ou, ainda mais
residualmente, no Porto. Mesmo assim foi possível ouvir em primeira mão a segunda
formação dos Plexus – grupo que procurava reagir a um certo elitismo anquilosado que
pontificava no HCP.
Agora porém os tempos eram outros e as pessoas tinham outra mobilidade. Em Lisboa
tinha já eclodido a Banda Girassol – a primeira Big Band genuína e inteiramente
formada por músicos portugueses numa operação «home made» montada por Zé
Eduardo (a primeira, não considerando alguns episódios pré-históricos levados a cabo
pela iniciativa e paixão do maestro Tavares Belo – um entre tantos outros farenses que
tiveram que fazer carreira em Lisboa); o HCP fervilhava de ideias e de gente que queria
marmelada a sério: agora aqueles moços, que iam e vinham entre Lisboa e o Algarve,
tinham-se tornado uns contrabaixistas, outros saxofonistas, outros que aueriam tocar
saxofone, uns que outros tocavam instrumentos mas em tempo de free jazz, jazz off, off
limit, cabia tudo e mais alguma coisa e uma que outra coisa de alguma coisa... era boa.
Era tempo de nôa nôa e de tupapau...
Talvez por causa de as latitudes serem mais frias por lá, enquanto uns se desdobravam
em actividades organizativas, educacionais ou criativas para expandir o ambiente do
jazz, outros esforçavam-se por mantê-lo espartilhado no circulozinho apipocado de uma
elite deslumbrada mas em caso algum deslumbrante. De tal forma que, dos músicos
algarvios que se aproximaram do ambiente jazzístico lisboeta por essa época, de
barlavento a sotavento, todos voltavam desiludidos, que não desalentados, com um
meio que tinha mais de medíocre mundaneidade que de genuína criatividade e que
aspergia e catalizava os seus melhores filhos para longe e para nunca mais voltar.
Talvez a excepção que confirma a regra seja o guitarrista de Tavira Telmo Palma – o
«Marroquino» (cognome que lhe provinha do facto de ser filho de emigrantes em
Marrocos de onde regressou ainda com um acentuado sotaque afrancesado e a tradição
da guitarra manouche incorporada nos dedos – mas esse sim, graças a uma índole
singularmente humilde e a uma proverbial paciência se manteve até ao fim da sua vida
sob o pesado jugo da emigração interna. De um modo geral todos os outros acabavam
por concluir que, mal por mal, mais valia respirar no Algarve do que asfixiar em Lisboa.
Foi neste contexto que regressou às origens um saxofonista que era nessa altura
conhecido como Moço Severino, não sem antes ter aproveitado o arejamento da
primeira escola de jazz do Hot e todas aquelaspossibilidades de aprendisagem que
dificilmente oderiam ser encontradas aqui. No seu regresso viria, como saxofonista,
pianista e criativo, a ter também alguma influência, principalmente ao nível do
estabelecimento de pontes entre músicos de diferentes filiações e linguagens e na
propaganda de uma atitude estética mais séria, mais moderna, tecnicamente mais
apoiada e mais comprometida com a música. Outro tanto já havia feito ou viria a fazer
pouco depois a título definitivo outro saxofonista (esse de Ferragudo aldeia piscatória
situada em frente a Portimão) Manuel Guerreiro e esse com grande influência no que foi
a extraordinária evolução desta linguagem criativa no barlavento algarvio.
783
Ao mesmo tempo, no qudro da grande movimentação de pessoas que ocorreu na
sequência do fim das guerras coloniais e consequente independência das antigas
colónias, estabeleceram-se no Algarve um conjunto de músicos, ou bem que africanos,
ou bem que fortemente influenciados pela vivência africana, que transportaram para a
sua actividade musical aqui os resultados dessa vivência, o que se tornou de inestimável
valor para uma transformação criativa que arrastou uma belo número de músicos
algarvios, de residência ou de nascimento. Notoriamente, um grupo de músicos
angolanos que se instalaram na praia do Carvoeiro, que evoluia entre um afro-rock (tipo
Osibissa) e uma sedução ao Free que eles chamavam de Jazz Off. A designação era
interessante, a música, é claro, tinha momentos, mas a inspiração é que era de altíssima
qualidade. Quer pela atitude libertária com relação à música quer pelo modo de vida que
praticavam, a sua aldeia (instalada num estaleiro de obras de uma das muitas
construções que pararam com o 25 de Abril) tornou-se escala obrigatória da música e
dos músicos que naquela época procuravam soluções que levassem o processo criativo
para «fora» das barreiras convencionais.
A conjugação deste tipo de acontecimentos com o amadurecimento cultural do próprio
meio, remanescente à democratização do país, iria inevitavelmente conduzir ao apelo
criativo que semeava nuns a convicção de que era possível promover uma atitude
estética independente e noutros o apelo insaciável de se tornarem músicos. Elementos
oriundos dos mais diversos registos da expressão musical, manifestavam então um
interesse novo e todo especial pela linguagem universalista e aberta do jazz e novos
conceitos penetravam o léxico e o domínio cognitivo da ciência musical. O próprio jaz
se abria e se transformava ao mesmo tempo, de fenómeno artístico exclusivamente
americano e estreitamente ligado às ideossincrasias peculiares à realidade socio-cultural
americana e ao seu contexto afrodescendente, num outro fenómeno muito mais global,
que Charlie Haden defini eufemisticamente como «essa música criativa a que
chamamos jazz» e que ficaria particularmente ligada à actividade do produtor alemão
Manfred Eicher e ao catálogo da sua editora de discos – a ECM. Era uma nova atitude,
mais definitivamente universal, que integrava as aproximações de Coltrane e de outros
post-bop a culturas musicais originárias das vastas regiões e áreas civilizacionais cujas
nações vinham, a partir da segunda metade do século XX, acedendo à independência
política e cujas culturas ganhavam em visibilidade e afirmação e cada vez mais
beneficiavam do interesse e da curiosidade da parte da velha Europa – quer da Europa
europeia, quer da Europa emigrada nas américas.
Localmente, o próprio desenvolvimento do modo de vida superveniente à
implantação da democracia, não só tornou o Algarve como destino turístico, como
incrementou bastante a mobilidade dos portugueses, tornando viável e comum a opção
de vir viver e morar no Algarve. Eram tempos de prenhe entusiasmo em torno das
coisas menos óbvias. Músicos de diferentes áreas de gosto e formação aproximavam-se
dessa expressão cuja arte reverbera seriadade e voo, liberdade e commitment. O meio
estava a ficar maduro e José «Boots» Eduardo (antonomásia usada por Zé Eduardo nos
primeiros discos de jazz tocado por portugueses) resolve, após a aventura catalã que o
havia colocado definitivamente no catálogo do jazz europeu, fixar-se em Faro e
continuar aqui o seu trabalho recorrente de ensinar jazz, construir orquestras e organizar
festivais.
Com o desenvolvimento do ambiente jazzístico local, notava-se nos músicos o
apelo à necessidade de uma maior proficiência técnica e uma maior abertura a
horizontes estilísticos antes considerados pura especulação ou pretenciosismo. A nova
situação exigia condições quer para o desenvolvimento do estudo, quer para o
aparecimento de espaços em que a confrontação das sensibilidades pudesse manifestar-
784
se na sua diversidade. Já se tinha notícia do aparecimento de uma excelente escola de
jazz no Porto, com excelente reputação e sentia-se que a oferta formativa era cada vez
mais necessária para que um novo passo no sentido do desenvolvimento da p´ratica
jazzística pudesse ser dado. Foi, de um certo ponto de vista, como se o problema tivesse
atraído a solução. Realmente ter o Zé Eduardo «à porta de casa» a fazer workshops, a
criar orquestras, mesmo tão simplesmente a dar concertos ou aulas particulares era
definitivamente um sinal de que algo tinha mudado e era para melhor.
Tudo começou com um concerto dado no Teatro Lethes pela «Companhia da
Música Imaginária – um projecto que Zé Eduardo montara com 13 músicos de 5
nacionalidades e cujo formato configurava já o conjunto de características estéticas e
conceptuais da fusão absoluta e total. Na verdade, a expansão do fenómeno jazzístico à
escala planetária transformou o jazz, tanto do ponto de vista dos que o consomem como
do dos que o produzem, na primeira forma de arte verdadeiramente universal. Mais uma
vez e desta feita relativamente à globalização dos sistemas, a arte revelou ser a
vanguarda da consciência.
Num primeiro momento com a colaboração de Luís Monteiro (um baterista que
aparecera uns anos anos no Algarve do pós-25 de Abril, que como tantos outros
regressava de um exílio forçado, mas nem por isso menos dourado em termos de
oportunidades musicais, em Paris e que transportava também uma experiência africana
que havia vivido intensamente no início dos anos 70) conseguiu estabelecer-se um
contacto entre Zé Eduardo e a estrutura directiva da Filarmónica de Faro, que levou à
realização de um primeiro workshop a partir do qual se puderam convocar músico
algarvios de barlavento a sotavento, numa interacção entre as filarmónicas e os nichos
de interesse jazzístico dispersos pelo Algarve ou até músicos exilados e entretanto
entregues a actividades outras, num anel deveras extraordinário. Extraordinário pela rara
possibilidade de encontro entre o ambiente das filarmónicas, o dos músicos que
trabalhavam na esfera do entretenimento associado ao turismo e até dos simples
estudantes que se encontravam também entre a população heterogénea que tinha
acedido a esse workshop. Um anel que incluia músicos profissionais, músicos
amadores, músicos mais velhos, músicos mais novos, músicos locais, músicos
estrangeiros residentes no Algarve, unidos numa pirueta que só o apreço pelo jazz
permitia configurar.
Antes mesmo que o workshop tivesse terminado, já era dado como certo que se
seguiria a formação de uma «Big Band» a que se chamou, num primeiro momento,
«Estaleiro da Música» (acredito que numa tradução assaz literal do que tinha sido a casa
do Zé Eduardo em Barcelona – o «Taller de Musics») e num outro momento, depois de
passados os primeiros «enjoos da viagem», definitivamente «Jazz na Filarmónica» (o
que não deixava de ser ao mesmo tempo uma homenagem a uma marca marcante na
história do jazz americano e uma homenagem à própria Filarmónica de Faro que
albergava a Big Band e à ideia filarmónica em geral, uma vez que a própria Big Band
ficou a dever a sua estrutura básica à generosa participação de um bom lote de músicos
que pertenciam à Filarmónica de Lagos e se deslocavam expressamente para cada
ensaio em Faro, para que a banda pudesse funcionar. Na verdade a banda incluia
músicos de Faro, de Lagos evidentemente, mas também de Tavira, de Portimão, de
Silves, de Montegordo, de Boliqueime, do Livramento, do Barão de São João, e por aí
vai descrevendo um mapa que ficará certamente ainda incompleto. Havia um
trombonista - Helder Ferreira – que já havia feito parte da Orquestra Girassol, quase
trinta anos antes, como que a escrever esse traço de união entre um momento iniciador
do jazz português e um outro momento iniciador, este do jazz algarvio, ambos ligados
ao labor, à criatividade e à competência do mesmo músico – o Zé Eduardo. Lá
785
acorreram elementos das mais diversas e inesperadas proveniências, desde o outro
Helder, o Vicente, que vinha da banda da P.S.P. até ao Edward, filho de emigrantes
portugueses no Canadá que tentava com a família a sua sorte na terra de origem dos pais
– isto para falar apenas dos trombones.
Daí em diante tudo seria diferente. Existiria a partir um campo generativo auto-
alimentado e em permanente crescimento, ao qual, inclusivamente, outros géneros
musicais vão recrutar executantes que se perfilam pela sua competência e
disponibilidade para a expressão de qualquer sentimento musical, qualquer que seja a
linguagem em que se expresse.
Post Scriptum:
Seria não só inexacto como injusto, deixar de nomear dois músicos que, pela sua
acção, haveriam de ter, directa ou indirectamente, influência notável, não só na forma
como o jazz foi ressentido no espaço cultural da cidade de Faro,como pela afirmação do
impacto nacional da sua acção – Manuel Guerreiro e Diamantino Pereir (o Tino),
curiosamente os dois saxofonistas e pertencentes à mesma geração. Do primeiro
começaram a chegar, a partir de meados dos anos 70, os ecos das jam sessions que ele
promovia no seu restaurante em Ferragudo e, um momento depois, a repercussão das
suas apresentações em Lisboa e da sua parceria com Rão Kiao; ao segundo, regressado
da África do Sul (onde havia prosseguido uma carreira de músico profissional como
acordeonista primeiro e saxofonista depois) a partir da fase final da década de 70, ficou
a dever-se, para além de uma certa democratização dos instrumentos de música (nessa
época sijeitos a uma absurda taxação como artigos de luxo), designadamente saxofones,
muito particularmente a disponibilização aos estudiosos do jazz, de literatura didáctica
originária do Berkeley Institute of Music em edições quase enciclopédicas que fizeram
da sua casa um lugar de peregrinação para a maior parte dos músicos de jazz da
península.
786
chuva, mas já não me lembro nem de ter chegado na porta da Lúcia nem de ter entrado.
Para falar verdade, talvez me lembre de antes estar sentado, já de noite, tomando um
grande copo de leite quente – um copo muito grande para o meu tamanho – e de isso ser
motivo de grande entusiasmo dos meus familiares, aliás poucos – apenas minha mãe,
mais o meu pai e uma moça que trabalhava lá em casa e a quem eu era extremamente
dedicado. Lembro-me da geografia da cozinha e da iluminação peculiar, lembro de que
o fogão era daqueles a petróleo e com uma só boca. Mas, sinceramente, não me lembro
se isso foi antes ou depois do episódio da fuga. Provavelmente foi depois, tanto que
desde sempre me recordo desse como sendo de fato a primeira de todas as minhas
recordações. Lembro que na continuação da parede onde estava encostado esse sofá, em
que eu tomava esse enorme copo de leite nesse dia, corria um corredor, o qual dava
direto na porta – a porta da rua – essa porta que eu naquela manhã chuvosa e em me
encontrando sozinho em casa, decidi desafiar e abrir, tal como descrevi, através do
artifício de me empoleirar numa cadeira.
Também me lembro, talvez não mais do que apenas alguns dias mais tarde, de
estar em pé, no passeio à frente da casa, esperando o carro do petróleo, uma carroça
puxada por um cavalo invulgarmente bem aparelhado, com arreios lindíssimos e
coloridos, que servia de suporte a um depósito construído em cobre e na ilharga do qual
várias medidas pendiam alinhadas, ordenadas de acordo com as respectivas medidas,
que determinavam os sucessivos tamanhos dos púcaros. Tudo isso – depósito e medidas
– estava brilhante e cuidadosamente polido e limpo, o que dava a essa híbrida unidade
um aspecto de coisa do outro mundo, cheia de brilho e cor, como essas imagens que só
em certos sonhos aparecem. Vinha vender petróleo, de porta em porta, para alimentar os
fogões como aqueles de uma boca, mas sobretudo os candeeiros, candeeiros a petróleo,
porque a distribuição de eletricidade nessa época era ainda muito incipiente. Esse
momento era sempre muito alegremente esperado e vivido, por ser a rua e se respirar o
espaço aberto, mas sobretudo pelo entusiasmo delirante que me despertavam as cores do
carro do petróleo. Era também nesse lugar do passeio em frente da casa que eu via o
meu pai a afastar-se na sua motocicleta, quando, pela manhã, ia para o quartel. Por
vezes a motocicleta não pegava – estava fria, dizia ele – e a rua que descia levemente,
quase na frente da casa da Lúcia, servia à maravilha, para que a velha e cansada
motocicleta do meu pai, depois de embalada pela descida da rua e já em movimento,
disparasse o seu arrefecido motor e o meu pai contornasse aquele quarteirão
descendente e reaparecesse no prolongamento da rua, lá mais à frente, como uma
aparição que era para nós a certeza de que estava tudo bem e a consolação da despedida.
Tudo isto acontecia em Beja, uma cidade não tão longe da Espanha e que
funcionava como capital da metade meridional do Alentejo, uma província que naquele
tempo era apresentada ao povo como sendo o celeiro de Portugal, por lá ser produzido
muito trigo e onde existia esse quartel, em que o meu pai era sargento, e que se tornou
muito conhecido, anos mais tarde, por lá ter ocorrido uma infortunada hipótese de
revolução contra a ditadura que então se manifestava violentamente no país, e também
uma base aérea, ao que parece patrocinada por alemães, que mais tarde permitiu a
construção de um aeroporto. Nesta peculiar cidade existia então (e acredito que continue
existindo) um jardim chamado «do Bacalhau» – o Jardim do Bacalhau – e nesse jardim
uns também peculiares balouços, que muito atraiam as crianças e para o uso dos quais
me levariam lá algumas vezes. Em todo o caso, desses passeios só guardo uma
recordação, que é a de eu estar sendo correado a um desses balouços. Jamais voltei a ver
outro igual. Era como que uma cadeirinha em que um pequeno semicilindro perfazia o
apoio para as costas, enquanto uma base mais dura servia de assento. Por fim umas
correias dotadas de fivelas metálicas garantiam que o utente não fosse projectado para
787
fora do dispositivo e o mais curioso nesse original utensílio de lazer era o fato de ser
totalmente construído em couro – um couro duro, consistente, mas cuja natureza animal
conferia àquele brinquedo uma toda especial ideia de conforto.
Esta foi definitivamente a última das poucas recordações que guardo dessa
cidade onde ocorreram os meus primeiros quase três anos de vida. Essa província do
Alentejo que já corresponde à metade mais meridional do país é, na verdade, uma
extensa planície pautada a Sul por uma cordilheira de montanhas que atravessa o
território do país de lado a lado, paralelamente ao sentido Este-Oeste, e que separa então
esse dito Alentejo do que em outros tempos (nomeadamente antes da revolução
republicana) era denominado o Reino do Algarve. Esse nome de Alentejo é, em boa
verdade, proveniente do fato de serem esses os territórios para Sul do Tejo e mostra
como em Portugal as coisas sempre foram olhadas de Norte para Sul, porque,
obviamente, para quem os olhasse a partir do Sul, esses territórios seriam sim o aquém e
não o além… Tejo. Para cá dessas montanhas é que existe o Reino do Algarve (ou como
hoje é dito, o Algarve) e nele, numa pequena ponta que desenha a geografia da costa Sul
do que hoje é Portugal, mais ou menos ao meio, existe o Cabo de Stª Maria e em frente
dele a cidade chamada Faro – Stª Maria de Harum, como era chamada em tempos
anteriores à tardia reconquista desta parte extrema da península ibérica por parte dos
guerreiros cristãos e mesmo depois dessa dita reconquista. Foi para essa cidade que os
meus pais se mudaram no início de 1959, pois foi nela que completei o meu terceiro
aniversário e onde tive os meus primeiros amigos. Aliás eu havia já nascido aí, mas só
porque nesses tempos não existia um sistema público de maternidades e, em geral, as
mulheres tinham os filhos em casa ou na casa de familiares, com o auxílio de parteiras.
Foi o que aconteceu com a minha mãe, que resolveu sujeitar-se aos imponderáveis do
parto, na casa da cunhada e portanto, em Faro. Mas foi apenas uma deslocação utilitária
e de conveniência que afinal determinou a minha cidade de origem. Por qualquer razão
nunca me senti, em essência, muito ligado a ela. Talvez sentisse uma espécie de
nostalgia daquela outra cidade, onde me pareceria mais lógico que eu tivesse nascido.
Em todo o caso lá fomos todos para Faro, morar num antigo solar que pertencia a um
abastado comerciante de carnes, situado na parte alta da cidade e que entretanto havia
sido já engolido pela natural expansão urbanística, mas que ainda conservava o nome do
seu antigo proprietário – «antigo prédio do Rodolfo» – era o insólito endereço por que
chegavam as cartas lá a casa. O nome de uma rua, que não era nem aquela em que a
casa efetivamente ficava, e a referência ao que a casa tinha sido – nem o nome da rua,
ela própria, nem um número da porta, nada, apenas a esperança de que a cultura local do
carteiro encaminhasse a carta ao seu destino, ou as virtudes do vox populit alguém que
que quisesse demandar a porta.
Afinal tudo funcionava na paz paroquial desses tempos hoje em dia já distantes e
a casa, embora antiga e atingida por um endémico problema de salitre nas paredes
(coisa que se atribuía à existência de antigas salgadeiras que haviam sido soterradas) era
enorme e o quintal, que incluía as dependências anteriormente destinadas à manutenção
de uma população bovina, com manjedouras, argolas de ferro e toda uma edificação
contígua à casa de habitação, era maior ainda. Rodeava toda uma das partes laterais e a
parte traseira da casa e abrangia o que era para mim, nessa época, uma área imensa, a
qual somava ao quintal propriamente dito, um jardim com quatro canteiros e um
pequeno lago em forma de estrela octogonal, onde a minha mãe cultivava amores-
perfeitos e o meu pai ensaiava o plantio de algumas árvores, e um grande espaço com
uma entrada larga e, na parede em frente as tais manjedouras, onde muitas vacas já
tinham com certeza alimentado e transcorrido a sua triste existência. Este, o meu pai
usava como oficina de carpintaria (uma arte que ele desenvolvia e em que se aplicava
788
com real prazer) ou para guardar coisas cujas dimensões não permitiriam que fossem
guardadas senão num espaço de avantajadas dimensões como aquele era. Por cima, no
que formava o que seria um primeiro andar, existia um grande armazém com as mesmas
dimensões do antigo estábulo que ficava por baixo e que, estando completamente vazio,
eu usei em sucessivas fases para as mais diversas finalidades, desde um campo de ténis
a um atelier de pintura, passando por um pequeno laboratório de química ou um
diminuto casino, que o canto mais próximo da porta albergou enquanto essas
brincadeiras não foram substituídas por outras mais dotadas de novidade. Nesta
dependência existiam também duas janelas assaz difíceis de abrir e que davam
diretamente para a parte superior de um caramanchão que sustentava uma enorme
parreira que cobria toda uma parte do quintal – a que se abria ao acesso de um grande
portão da qual essa antiga área de serviço era dotada.
Só por si esse portão já representava todo um imaginário, quer pelas dimensões
– de uma altura e larguras enormes quando aberto, quer pela espectacular grossura dos
barrotes de madeira em que era construído. Tinha porém uma pequena porta, integrada
na estrutura e da mesma cor de vinho em que todo o portão era pintado com o que
acredito ser a tinta antigamente usada para a conservação dos barcos de madeira. Entre a
esquina dessa edificação (a oficina e o armazém) e o portão é que existia a escada que
dava acesso ao piso superior e que daí continuava para um pequeno terraço por cima do
portão, dotado de uma balaustrada que dava para essa parte do quintal, a qual se
prolongava abaixo da grande parreira que a cobria completamente. Desse pequeno
terraço partia então a escada que, finalmente, dava acesso à varanda – uma açoteia
grande, exatamente do tamanho da oficina e do armazém e que era rodeada por um
muro, que com o tamanho que eu tinha nessa altura, me dava, mais ou menos, pelo
peito.
Tinha realmente esse portão grande, que raramente era aberto e que, portanto,
não servia para dar passagem a nada, porque por essa época já só entravam no quintal
da casa coisas pequenas para as quais de nenhum modo se fazia necessário um portão
daquele tamanho. Era um mastodonte, grande e, na verdade, não tão sólido. A sua maior
virtualidade era, afinal, ser o fim, ou o princípio, do quintal. Esse corredor, largo como
uma rua, dava então já para um espaço aberto, bem mais largo. Tão largo que se podia
até jogar nele futebol. E outro ainda, quase tão grande como aquele, onde durante muito
tempo, vedado por uma rede alta, funcionou um galinheiro com duas galinhas brancas,
um galo, também completamente branco e particularmente feroz e possessivo
relativamente ao que deveria considerar serem as «suas» galinhas, e onde nasceram e
morreram pintos, degolados ainda jovens, quando atingiam a condição de frangos, e
todos os dias eram recolhidos ovos que, ordeira e persistentemente, as galinhas
depositavam em dois casinhotos de madeira cuja base era mantida um palmo acima do
chão por uma espécie de estrutura palafítica e umas palhas garantiam que os ovos não se
partiriam ao serem desovados pelas suas progenitoras. Para mim, por ingenuidade
infantil, essas palhas destinavam-se a dotar de algum conforto a casa das galinhas – o
galo esse parecia preferir sempre o relento de um poleiro que o meu pai havia
improvisado no canto oposto do vasto galinheiro. Este galo era realmente tão feroz e
cioso dos seus domínios, que uma vez bicou a cauda de um cachorro perdigueiro ainda
juvenil chamado Nero, de quem eu gostava muito e mesmo eu encarava com bastante
reserva qualquer incursão no espaço interior do galinheiro. Seja como for, acho que em
algum momento, ficaram desta história apenas as galinhas e mesmo essas, bem como a
rede e a instituição do galinheiro, acabariam em algum momento por desaparecer.
No extremo oposto, entre o início da escadaria e o portão, existia ainda um
pequeno canteiro de terra muito preta com algumas plantas e, num recanto, uma
789
pequena casa de banho situada, como era costume nessa época, fora da casa, certamente
por se considerar mais higiénico que assim fosse. Durante muito tempo não existia um
esquentador de água e a minha mãe, ou a Dadinha, aqueciam pacientemente várias
panelas de água, quando fazia frio e era preciso tomar banho. Este costume tornava
muito incómoda usar desta comodidade quando esse uso tinha que ocorrer durante a
noite e isso estabelecia, naturalmente, que se fizesse necessária a instituição do uso de
um utensílio hoje praticamente inexistente – o penico – e a sua não pouco frequente
utilização. O penico, enorme xícara de porcelana, destinada a receber fezes (líquidas ou
sólidas mas mais comumente líquidas), também chamado de bacio (como se fosse de
alguma forma o macho da bacia) era, portanto, uma presença constante por baixo das
camas, em geral na região dos pés. Como eu era mais pequeno, havia para mim um
penico mais pequeno, mais ou menos na mesma proporção que distingue as chávenas de
chá e de café.
Lembro-me de que uma noite devem ter-se esquecido de devolver o peniquinho
ao seu lugar útil, por baixo, aos pés da cama, e eu fui obrigado a deslocar-me, noite
cerrada, com a urina a recusar-se a adiar mais a hora mágica e consoladora da libertação
e, mesmo assim, tendo que atravessar todo o comprimento do quintal, na sua parte mais
comprida onde no fim, ao cabo de uma interminável jornada de terror, se encontrava
enfim a já citada casa de banho exterior. Para piorar as coisas, alguma luz projectava na
parede do fundo do quintal, uma parede alta que se erguia no lado exatamente oposto
àquele outro onde existia a casa de banho, o que seria a sombra do recorte dos ramos da
parreira que cobria totalmente a parte do quintal que devia atravessar e que, tomado por
um medo indefinido e inexplicável, eu efetivamente atravessei. Eu era criança e,
certamente, foi medo do escuro. Mas havia qualquer coisa de, exatamente, indefinido,
que eu temia que me acontecesse. Apenas não sabia ainda o quê ou o porquê.
***
Como sempre, esta coisa de datar acontecimentos passados é muito relativa. Começa
logo pelo nosso amado Deus Nosso Senhor Jesus Cristo, que não se sabe mesmo se
existiu como pessoa física, e se prolonga, ao ponto de não se saber ao certo se o poeta
realmente exalou o último suspiro, o que seria suposto ser aquele em que a alma se
liberta, efetivamente morreu no dia 10 de Junho. Mas perante tamanha e tão gritante
coincidência, seria até pecado duvidar…
***
Há uma estrela, um átomo que brilha, um ser que quer reencarnar, e que, como
os cupidos da Roma antiga ou o Eros da mais antiga ainda lenda grega, procura um
casal no qual desperta amor e atração, até que possuídos de desejos, os dois se entregam
afanosamente para a tarefa da procriação. É uma nova oportunidade para viver, para
voltar e acumular experiências, para ser. A alma então fica pairando (na verdade esse é
um momento de raro e único regozijo para ela – não é ainda o salto, mas ela sabe que
vai saltar) vibrando em uma frequência toda particular, parecida com a esperança ou
com a fé, e vendo que o arranjo, que a partir daí é providenciado pelo impulso natural
da biologia, naturalmente se propiciou, sente a vontade de incorporar, e sutilmente
incorpora, o pequeníssimo feto. Então noventa dias depois que, por via da singular
inoculação, começou a divisão das células do que virá a ser essa nova pessoa, aquela
pequeníssima e invisível estrela entra no coração do feto, o qual jamais irá parar de
bater enquanto essa pessoa viver. Não fica porém tão fortemente agarrada àquela débil
estrutura, ainda paira. Vai visitando a mãe, a espaços, durante os seis meses que se
790
seguem, podendo assim acontecer que no momento em que a criança nasce, ela não
esteja presente.
***
Nunca me senti verdadeiramente empolgado a dirigir a minha aventura de
conhecer o mundo para o Norte. O lugar em que eu nasci não poderia ser mais
meridional, na verdade a cidade mais meridional, que desde a sua colina mais subida,
inconclusiva e nostálgica, contempla o mar, todos os meus devaneios pela ideia futurista
da viagem foram invariavelmente virados ao Sul, na direção de um mar que, de onde eu
estava, se via ainda como longínqua fantasia imaginada.
***
O ídolo
Quando o meu pai voltou de Moçambique, nós fomos esperá-lo a Lisboa, eu e a minha
mãe. A minha mãe nesse tempo ainda era magra, super-magra, incrivelmente magra –
não deveria pesar mais do que quarenta e poucos quilos. Parece até que a longa
separação, e as preocupações dela provenientes, haviam incrementado ainda mais a já
proverbial compleição franzina que fazia dela uma figurinha que parecia, a quem olhava
os seus olhos de um azul quase irreal, ser de uma transparência total.
***
O Kito
Conheci ao longo desse tempo inumeráveis pessoas, algumas notoriamente notáveis, se
me for perdoado o pleonasmo – umas por razões fúteis, outras por razões
extraordinárias, outras nem sempre pelas melhores razões – pessoas extraordinárias.
***
Tinha pensado mil vezes em deixá-la. No último momento, mandar inclusivamente as
malas para o porão do avião, fazer check in, tudo na maior cara-de-pau, ir para o cais de
embarque, seguir hipócrita todo o ritual de procurar a porta que se atravessa para entrar
no avião, e só então, dizer de forma fria e seca, «não, eu vou ficar, você vai sozinha».
Todo o desamor em que eu tinha vivido nesses meses, toda a dor que me parecia
insuportável, seriam ressarcidos por aquele gesto de irreversível descontinuidade e
aquele belo sonho, sonho desfeito, de um destino brasileiro, anunciado, e de um amor
feliz, desencontrado, por tanto tempo alimentado, apascentado como se fosse o mais
dileto cordeirinho entre as ovelhas e carneiros pardacentos com que habitara essa
ternura pastoril, ficaria ali irremediavelmente adiado e aquele outro destino tantas vezes
entrevisto, gorado antes sequer de dar, tímido, o primeiro pio.
791
OUTROS POEMAS
1.
Gosto dos poetas sempre
Talvez não constantemente
Gosto deles quando sinto
Que o que dizem simplesmente
É o que eu profundamente
Penso e por vezes não digo.
2.
Infleti subitamente o meu percurso
Pensando encontrar o inesperado
Ofegantemente iludi a esperança
Abrigando em meu ser a ilusão e o fado
E tendo ainda um sopro em mim guardado
Para um momento em que fizesse falta
Roguei ao mais
Infinitamente pessoal e intransmissível
Que me fizesse praticar um passe
De mágica inocente e insofismável.
3.
TRADUÇÃO E REESCRITA Não tive além do amor outro companheiro
Nem houve nem primeiro nem último princípio para mim
Cá de dentro da vida alma me chama
Prouvera a essa ignorância esse caminho do amor abrir-se-me essa porta.
792
Infelizmente eu não sei turco nem chinês
Como poderei medir então
A corda dos versos recitados
Como poderei viver sem recitar
Os versos impassíveis e suspensos
Que se desenham nos versos
Em que empastado aparece
O coração do coração do verso breve
Mas infinitamente verdadeiro
Verdade intensa e infinita
Capaz de ser aquele
Do qual se diz que é
O Tao
Porque não é
O Tao
Como no Tao
Teh King onde se diz
Que o Tao do qual se diz que é
O Tao
Não é o Tao.
Diz-se em chinês
Em português se diz
Em outras línguas
Se diz em inglês
Brítico ou vulgar
Americano
Em qualquer língua se diz
O que se quer.
793
E que
Possa parecer
Quem sabe talvez ser
Razão e conteúdo
Ser
Mas não é nada
Jamais poderá ser
O que se possa dizer
Que é.
É ser apenas
Sendo que o ser
É o que é
E sendo é ser
O que não é.
794
4.
JALALUDIN - a majestade e a religião
Tu és o livre espírito
Armadilhado em condicionamentos
O sol sob o eclipse.
795
Dormimos na inconsciência de deus
Despertamos na divina mão estendida.
O céu é azul
O mundo um homem cego acocorado numa estrada
Mas quem conseguir ver o teu vazio
Verá p’ra lá do azul e para lá do homem cego.
Esta poesia
Nunca sei o que é que vou dizer
Nunca o planeio
Quando estou fora da dizedura disto tudo
Fico tranquilo e raramente falo.
796
Pensas que eu sei o que é que estou fazendo?
Que por uma só respiração ou meia respiração eu me pertenço?
Tanto quanto uma caneta sabe o que está escrevendo
Ou uma esfera sabe onde irá depois.
Dança
Quando te sentires em ferida aberta
Dança
Quando tiveres rasgado as ligaduras
Dança no meio da luta
Dança no teu sangue
Dança
Quando fores perfeitamente livre.
797
No amor não existe alto nem baixo
Nem bom nem mau comportamento
Nem chefe nem prosélito ou devoto
Apenas igualdade tolerância e cedência.
798
Contudo agora és homem
Conheces e deduzes tua fé
E podes ver em ti o teu contorno
Contendo em si o pó que aral te constitui
E sabes-te perfeito enfim e tanto.
799
Ainda ontem disse a um velho sábio
Que me escondesse nada dos segredos deste mundo
E ele docemente disse ao meu ouvido
Que me calasse
Porque podemos entender mas não exprimir.
800
Vivi no limite da loucura
Querendo saber das coisas os porquês
Batendo a uma porta
Ela porém aberta
Havia estado a bater do lado de dentro.
5.
Amo você com paixão
Com devoção e em transe
Sem anéis nem sacramentos
Só com coração e fé.
(…)
6.
Ao que consta nos anais da internet
Na entrerede da má-língua dos áugures
Rede internacional de uma suposta maledicência
Na indecência mundana das vaidades
O poeta morreu de estriquinina
Arsenicato ao que dizem
De estriquinina
Nem sequer daquela que os sucedâneos dos hippies
Calcavam nas misturas
De L.S.D. falsificado
(…)
7.
Naquele tépido prazer do toxicoma
Eu vi as formas onde não existia nada
E vi o nada consumindo as formas
Sem nunca aprender p’ra que servia
Permanecer no nada atado e vil
Se alguma coisa aprendi nessa jornada
Foi que de fato não servia para nada
Mas quero ainda saber como sorrir
Não quero ainda tirar férias de existir
Quero comer da amarga broa até ao fim
E persistir em dizer não
Ao que pareceria óbvio dizer sim.
801
A primeira grande amiga que perdi
Era uma garota singular
Única em vida e de quem foi também
Como que por acréscimo e conclusão óbvia e natural
Singular o fim.
Depois só a notícia
De um destemperado inesperado e insólito destino
O de morrer queimada
Nas chamas da roupa que a cobria
O de morrer deitada
Quem sabe amolecida pelo sonho
Da última e definitiva vez que a vi
Teria pouco mais que quinze anos
Chamava-se Maria…
De Jesus.
E definitivamente morreu.
802
E relativamente pequenas em que então
Se costumava escrever
Eu desenhei os hieróglifos onde dizia querer
Que a minha avó não morresse
Mas tristemente a minha escrita
Não tinha por esses dias como hoje nenhum poder.
9.
Te amo camaradinha
Minha formosa rainha
Minha gostosa pretinha
Te amo e te chamo minha
Mulher
Tenho muita saudadinha
Era o que eu queria dizer
Desde a tenra manhãzinha
Até ao entardecer
Todo o santo dia sonho
Penso e sonho sonho e penso
Te ter.
10.
Há lugares aonde eu fui
Só porque era preciso que eu estivesse lá nesse momento
Por vezes mesmo que entre milhares de outras pessoas
Eu senti a imperiosidade de estar ali presente
Foi assim durante a revolução dos cravos em Lisboa
803
Ou dias depois
No bairro da Boavista ou em grandes
Em descontrolados e espontâneos quanto belos
Acontecimentos e vertigens de massas.
11.
PROVÉRBIOS
804
Albardaria à vontade
Burro que fosse dono de metade…
12.
QUADRAS SOLTAS
805
De todos os corações
Que a vida tinha p’ra mim
Eu devotei às paixões
O que era assim.
13.
Estou retomando agora
Autografado e cândido
Um património vivido
Outro momento
Um périplo incomum já desgastado
Escrito e descrito
Como se fosse uma medalha
Alcandorada no peito
De quem já
Sucederia antes de mim mesmo
Imaginadamente e longe
Em tempo e espaço
Memória própria e em comiseração
Ter sido eu.
806
14.
Chuva na cabeça fria
Onde que batia
Onde que devia
Bater.
Trânsito de um dia
Saudade e adeus
Brilho secular
Do adeus.
1
Há-de estancar um céu na pólvora caída das palavras a sombra
Na sombra das palavras que caem do céu sem explodir
Porque amamos despertas as pálpebras de todas as sobras
Amamos acordados
As demoras
Os dias e as noites que varamos
Na lonjura dos anos feitos ramos fora de pandora.
Sobe o universo todo numa frieza pela espinha acima de um futuro afagado
Vem devagar primeiro depois em torvelinhos em tropel
Depois em espinhos depois na pétala de papel
Nas linhas alastradas do nosso sangue nu aguçado
Sangue pisado emudecido pelas lamacentas botas de guerra da emoção
Fermentando nos pés a força aérea de uma canção.
807
2
Deveria eu dizer botas cardadas? Não
Ninguém sabe mais o que são botas cardadas.
Até ao dia de ir apanhar as espigas abertas, até saciar a beleza dos cabelos
E fazer das memórias suspensas o esculpir das mortes condensadas em castelo.
3
Caminhos caminhados caminhantes
Alforriados trilhos insondados
Almas vadias de aluados e estudantes
808
16.
A IDEIA É UM PEDERASTA
A ideia
Como dizia o meu amigo
É um pederasta
Vai com todos
Mas como uma mulher
A mais bonita
Atrai mais do que a vida a luz ofusca
E quando atrai
Vai só com um
De cada vez.
809
17.
Amo você com paixão
Com devoção e em transe
Sem anéis nem sacramentos
Só com coração e fé.
18.
Gostava de ser moderno
Ter as mãos nas algibeiras
Virar à esquina da vida
As dobras de uma avenida
Gostava de ser eterno
No momento de não ser
Ter um impasse no centro
Entardecer
E ruminando ou fugindo
Ser vivente não sentindo
Sentir a dor de viver
Ter sonhos fazer asneiras
Resgatar ruas inteiras
De livre flanar errante
E sendo sempre estudante
Permanecer.
19.
A CARPA
810
20.
O que seria da poesia sem os poetas
Será que a poesia vive quando os poetas morrem?
Talvez então fosse o tempo
Das meias verdades perguntadas em silêncio
E das coisas serem normais
Por fim
Se dissolverem no ar todas as esquizofrenias
Em direção ao cosmos
De o céu estar todo limpinho
Apenas a distância e o azul
E tudo ser.
O que seria da poesia sem os poetas
Será que a poesia vive quando os poetas morrem?
Talvez então fosse o tempo
Das meias verdades perguntadas em silêncio
E das coisas serem normais
Por fim
Se dissolverem no ar todas as esquizofrenias
Em direção ao cosmos
De o céu estar todo limpinho
Apenas a distância e o azul
E tudo ser.
21.
Será que este meu olho ainda vê?
Este meu olho que chora e queima
Que arde quando no meu cérebro
A luminotécnica se acende
E se percebe
Que dreams rima com New Orleans
E o sangue escoa
Mais uma emoção avulsa
Na corrente de um rio maior e mais comprido
Comprido e caudaloso
Que o Amazonas e o Mississippi juntos
Será que ainda brilha?
Esse meu olho
Será que ainda chora?
22.
Um momento mais de grátis emoções
Um de soar canções
Em que a poesia dos seres se possa ver
E se enlaçar
No ar lá onde deus derrama a luz
E o voo seduz
Ter asas e voar
O salto em cruz
E que tivesse ou tenha
811
E que voasse
Lá onde a fantasia risca o céu
Mais lá onde a geometria quer
Bater as asas e cantar
E ali
Algures entre horizonte e areal
Entre atenção e ar
Entre vapor e brilhos
Entre mar
O céu espelhando o mar que espelha o céu
E o mar espalhando o sal que espalha a dor
E quer pousar.
23.
Do Santa-Rita pintor
Santa-Rita jogador
De futebol extremo esquerdo
Santana Santa Maria
Santa Bárbara ou Sant’Iria
Homem com nome de santa
Muito engana ou muito encanta.
24.
O YPSILON
Um ípsilon
Letrinha gaga e indecisa
Que se produz e reproduz
Atrás de cada decisão
De cada vez que algum de nós
Decide ou acredita
Ter decidido
Entre duas soluções de uma opção
A melhor
Ou a que nesse momento invariável e preciso
Parece ser a melhor
Ou a que não tinha outra alternativa ou a que tinha
Não era portanto viável
Mil ideias
Mil ponderações
Intuição e cálculo
Para uma afinal simples decisão
Simples talvez porque dual
Mas depois
812
Vai-se formando uma teia
Dos sucessivos impulsos
Emitidos em cada decisão
Mais ou menos
Positivo ou negativo
Norte ou sul
Escuro ou claro
Luz ou escuridão
Noite ou dia
Perto ou longe
Infindável argamassa de decisões eléctricas
Deixadas livres nos cavos interstícios
Em que se rasga e se define o espaço-tempo.
Um ípsilon
Nem uma letra é
Uma vogal inteira
E no entanto
Nela se pode resumir
Plasmar e ser
A própria vida.
25.
Vi sair ano após ano
Gerações de raparigas
Acabadas de sair da puberdade
Ou quase
Um pouco mais crescidas
Dando os bons dias para o despertar da vida
E aprendendo
Devagar e inocentemente
A sentir os cúpidos olhares
E os dos homens
Olhares concupiscentes e lascivos
Derramando desejos incontidos
Por esses corpos juvenis ainda puros
Ou quase…
813
Tive também eu em meu devido tempo
Ideias espetativas
Até determinadas intenções
Ou mesmo intenções determinadas
E algumas vezes voguei nos devaneios
Dessas delirantes determinações
Da vida.
Agora
Ouvindo-as passar nos anais da minha história
Compreendo a natureza
Da sua invulgar e ínclita missão
São como pássaros
Trazem à vida dos entes
O singular colorido do cantar.
26.
Guardei a imagem como
Se guardam as coisas nos computadores
Há quanto tempo a não via
Como a balada do Gil
E que saudades teria
De outras visões de algum dia
Que som de encantamentos mil
Dispersei em cantos e amores
Guardei a imagem como
A guardaria e guardei
Colada à tampa da mala
De couro em que viajei
Guardei-a no coração
E nos arquivos sinceros
Do meu amigo electrónico
E do coração vadio
De onde ela jamais saiu
São os esmeros.
27.
MARABAIXO
Ela e eu.
De fazer.
814
Eu me dar.
E eu também.
28.
Nas canções que foram feitas
Com corações estilhaçados
Amarrados aos feitiços
De amantes descompassados
Mesmo olhadas com desdém
Essas canções
Encantam fazem vibrar
No peito uma nota solta
Que mesmo sem se saber
Às vezes nem mesmo a letra
Nem o nome da canção
O coração quer lembrar.
29.
Olhando longe a distância
Dos meus fados apartado
Vem ao meu peito a fragrância
Do teu jeito apaixonado
De seres minha e eu ser teu
E de estar predestinado
Em algum canto do céu
Eu ser o teu namorado.
30.
Sempre usarei acentos
Circunflexos
Gosto deles
Gosto do nome
E da circular flexão que eles carregam
Tornam mais doce a estridência
Cada um é o que é
E como este
É um acento querido
O meu acento
Fiz até um panegírico uma vez
Sobre a forma que ele tem
O chapèuzinho
Como em pequeno me ensinaram
De forma carinhosa a conhecê-lo
E eu me lembro.
815
31.
COMO SE FOSSE VINICIUS
816
Que amar ou viver valesse
E a vontade de existir
Se explicasse.
32.
A lua está quase cheia
Já está bem p’ra lá de meia
E o meu amor anda longe
E eu aqui armado em monge
Qu’rendo ver nascer o dia
Qual eu juro não queria.
33.
Amar amando assim p’ra lá das horas
Em que o tempo me reparte os pensamentos
Das sinistras penumbras das demoras
Que insistentes fatigam sentimentos
E que a desoras o meu clamor descansa
Meu louco amor os dias não alcança.
34.
Às vezes minha voz percorre o céu
Procurando por ti ‘inda calada
Para que em outro canto do universo
Por tu’ alma desperta seja ouvida.
817
Canta baixinho a dor que lhe dissolve
Os palpos de cansaço a desventura
De ser longe o encanto que a comove
E lhe traz doce a lira quase pura.
35.
Dentro de mim ela existe
Como se fosse a menina
De todas as que histórias e canções
Das que em poemas em versos em exortações
Sempre será
A que há-de ser
A mais bonita do mundo
Que é a princesa das histórias de encantar
A musa das vãs e não vãs mitologias
Sacerdotisa e maga de cruéis heterodoxias
De implacáveis e cruéis religiões
A puta de todos os bordéis
Mãe e criança
Mulher da vida e do prazer a moça
Todas as cores
De todas as flores em todos os jardins
E dentro dela
O ser que se diz e que se é
O que inocente gosta de ser eu
Talvez exista também.
36.
Espero você aqui
Quietinho
Como um soldado espera e guarda
Sua rainha
E um cavaleiro aguarda o sono enfeitiçado
De sua princesa
Todos os dias em que o sol nasce no mundo
Espero você
E da minha vida abençoada em maternais anunciações
Todos os dias em que ebriamente vivi
Esperei você
Bêbedo da espera alucinado de saber
Que um dia envolta em bruma
Nas asas luminosas desse dia
Você viria
Contra todas as tolas evidências
Contra presságios e bruxedos
Fiquei esperando
Você
E nas manhãs que tépidas o sol faz despontar
Eu espero
Infatigável e brando por você
Esperarei sempre
Todos os dias que me for dado viver
Ao sol caliente de tropicais meios-dias
818
Todas as tardes no pôr e no nascer do sol
Na noite escura
Sairei do sonho mais florido
E incubarei seus ais
Para esperar você
No caldo ternurento das manhãs
Todos os dias
Todos os dias da vida
Esperarei indefectível você
E até na morte
Eu sentarei na beira do caminho
Triste mas não cansado
Dessa fatal e formidável viagem
E mansamente
Doce e amoroso
Eu ficarei suspenso e fluido
Na imortal recordação radiosa
Florida e branda desses leais momentos
Em que eu feliz nem infeliz
Espero você.
37.
Eu quero arder em febre nos seus lábios
Ser essa febre ardendo em mim que você queima
À força de misturar os sangues
À sanha insana de confundir as bocas
E de as palavras mesmas não terem mais significado
De serem
Mas não significarem mais nada
Então quando se sabe que todas dizem só
O que sabemos e cremos
O que queremos e somos
E que se diz
Na quente chama que o desejo inflama
E pronuncia
Com a ternura leal e singular
Que tem um beijo.
38.
Meus olhos fotomatons
Dos tons que os teus olhos fletem
Do que nos meus são os tons
Que o teu coração reflectem
E adoram
Ficar dos olhos que os olham
Pendurados
Suspensos de encantamentos desvairados
Rasgados e possuídos
Por rasgos de adoração
Por brilhos tão refulgentes de paixão
Que dos sentidos
Aos olhos ser só visão
819
Nunca estarão os meus dos teus subtraídos
São olhos teus os meus
São meus os sentidos teus
E são do sol do céu o mar e o infinito
Do meu contentamento o sal de um deus.
39.
Quem é essa mulher ligeira e linda
Donzela maliciosa
Sereníssima princesa
E rainha poderosa Anoiteceu no meu quintal
Não há estrelas nos meus olhos
Nada cintila nada mexe
Só anoiteceu
Anoiteceu no meu quintal
Mesmo junto à janela do meu quarto
Só anoiteceu
Nada cintila nada mexe
Apenas uma lágrima
Uma serena e vagarosa lágrima.
820
Não tem flor que seja mais airosa
Não a vê
Não sabe a mulher formosa
Cheirosa
Deliciosa
Muito mais que mais dengosa
Que a rosa
Não sabe a moça manhosa
Finge não saber que sabe
Que é ela a mata frondosa
Onde cresce brilha e sê
A rosa.
40.
Te encantar me encanta quanto
Tanto me encanta cantar
E o meu canto encanta tanto
Se encantamento encantar
Meu amor meu bem meu pranto
De sorrir e de jorrar
Meu rir de felicidade
Meu amor meu monumento
Meu canto enquanto cantar
P'ra ti cantarei então
E se o meu canto encantar
Nunca mais será lamento
Será sempre harmonioso
Aos teus ouvidos gostoso
Ao meu coração delícia
Quero o teu corpo inventando e balançar
Quero chegar
Quero tuas pernas se enlaçando em mim
E os teus olhos encantar
A tua boca morder
Teu fogo intenso acender
E depois de encanto e lírios
Dentro de ti me queimar.
41.
Anoiteceu no meu quintal
Não há estrelas nos meus olhos
Nada cintila nada mexe
Só anoiteceu
Anoiteceu no meu quintal
Mesmo junto à janela do meu quarto
Só anoiteceu
Nada cintila nada mexe
Apenas uma lágrima
Uma serena e vagarosa lágrima.
821
Posso escrever uns quantos versos
Entristecer a noite azul
Com cardos sangrentos
Cardos lilases que há nos campos
Que quando eu era criança não sabia o que eram
E julgava lilases
Sem saber que eram também sangrentos
Como no Verão passado os malmequeres do meu jardim
Que enchiam de amarelo os sonhos lindos
E de brancura a minha alma preta
Igual como os vivazes malmequeres do meu jardim
Que eu cria possuir no Verão passado
E que secaram
Secaram enquanto eu acreditava possui-los
Igual aos suspiros discretos das mulheres
Que eu também julgava possuir
Como se eles não fossem tão só volúveis e discretos sorrisos
E as imagens sem carinho imaginadas
Sem ternura sem azul algum
Os sons imaginados sem calor
E os sonhos que eu queria ter sonhado
E não sonhei
Igual à noite que se fez no meu quintal
Onde no Verão floriram as paixões
E que ficou imóvel
Mesmo junto à janela do meu quarto.
42.
Doce cruzamento
De flores de acácia
E pétalas de rosa
Separadas
Princesa
Da glória inumerável
Menina
De mil prendas e sorrisos
Vários
Pássaro contente
Que esvoaça
Na primavera ribaltina
Deusa da loucura
E da humildade
Sereia do oitavo mar
Das luzes.
822
43.
Entre nós a planície longa do beijo amordaçado
Da espuma do delírio e da moral obesa
Que como a ave ténue que esvoaça estando presa
Liberta para os astros o meu peito aprisionado
Descobrindo um sonho de riso e de beleza
Entre os astros brilhantes do meu céu rasgado
Corro entre as estrelas do meu riso enclausurado
E o brilho dos teus lábios como uma chama acesa
Dos píncaros dos astros contemplo-te ao meu lado
Distante o olhar tão perto dos teus olhos de princesa
Ante os meus olhos de pássaro parado
Contemplo-te e embalo-te no meu berço de tristeza
Os meus olhos percorrem-te e eu corro desvairado
Entre as borbulhas da tua cascata de beleza.
44.
És uma branca flor do meu jardim de almas e canções
A espuma do meu mar a rosa frágil o meu peito
Onde a luz imensa dos teus olhos semeia vozes turbilhões
És o meu silencio e dos meus amores o mais perfeito
És o calor das noites que suspiro sozinho no meu leito
E o fogo que incendeia a minha febre o céu das minhas ilusões
És fulgor dos dias que resvalam sem céu sem cor sem jeito
És a estrela mais brilhante do festival das minhas sensações
Assim me tolhem me encandeiam os teus olhos dois clarões
E o teu corpo de princesa requebrando ondulações
Assim alastra a queima o teu incêndio no meu peito
Onde as vozes do meu sono ecoam lancinantes se me deito
Sonhando ‘inda acordado com o mar imenso de tristezas feito
Que é o preço injusto desmedido a força bruta das paixões.
45.
Estamos nus sobre o abismo que nos bebe
Estamos sós e nus
Não nos envergonhamos cismamos
Sobre nós sós e nus o abismo que bebemos.
823
Fibra mordente
O corpo é a finalidade urgente
É a ideia e o cheiro ardente
É… será talvez a pústula constante
A medalha de ouro do deus omnipresente.
46.
Foi a vida a começou com o conflito
Foi a Rosa que disparatou com o namorado
Foi o lenho que caiu sobre o príncipe encantado
Foi a guerra que realizou a eternidade e o infinito.
Era uma cascata e um lilipútico mestrado
Era o sintoma da lepra contra o mito
Era Vénus contra Vénus Dionisos contra o rito
Era o careta público que olhava empertigado.
O mistério aconteceu no poço amaldiçoado
O poço foi incómodo fantástico e maldito
Foi abatido benzido vendido e tapado
Mas a moura soprou do seu fumo erudito
E deixou-o pairando ondulando pese embora parado
Só por querer que o que era importante dizer fosse dito.
47.
O raro o imortal e o pontilíneo
O excesso o colapso e o raquítico
O viscoso o complexo e o curvilíneo
O sombrio o bolor e o medo mítico
O cadáver o idêntico e o rectilíneo
O físico e o real e sifilítico
O rasto do juízo e o hiperlíneo
O justo e o sábio e o pícnico
Equilíbrio sobre as esferas do inlíneo
Poses estáticas do surdo e do abúlico
Rigorosas arquitecturas teatrais de Plínio
Rancorosas misturas do deus único
Com o rigor geométrico euclíneo
Mas indomável e sórdido e líquido.
48.
Os perigosos destinos vivos e de longe impostos
Por sobre as pastas de riqueza fétida
Por monstros de bizarra natureza mórbida
E rasgos de espanto de tristeza e desgostos
E noivas e cardos e a marcha negra e húmida
Dos cidadãos azuis sempre muito bem dispostos
Por geométrica fileira consoante os gostos
Ou as vocações da alma escura e flácida
Mas indiferentes e humildes nos seus postos
Como obeliscos de cimento entre a enorme massa líquida
Vagos e marmóreos estão dispostos
824
E dentro deles feroz imensa e pálida
A razão de ser dos loucos desencostos
Sempre rigorosa aborrecida e pútrida.
49.
Quando o vento fustiga as fracas folhas
Que estão presas nos rebentos frágeis
Parece que a força brutal do vento
É uma enorme inexistência
E parece o inocente balançar das folhas
Uma nascente de bailarinas ágeis
Enlouquecidas de luz de cor e movimento
Bailando em saltos de louca impertinência.
50.
Resultou doméstica a pujança materna
Rios de suor raro sonho de mística febril
Melancolia distante de casta e varonil
Paixão solvente e mortal e grosseira e eterna
Jamais as manhãs serão astros brancos e raro anil
Visto que a sorte é distante mas interna
É uma senhora respeitável no rocio a dar à perna
É o desvario na cegueira do sol nas manhãs de Abril
É a riqueza que mata a triste luzerna
É a volúpia do corpo ondulante e juvenil
O amor uma cabana um girassol e uma lanterna
Um rio cheio de desejo de sair do carril
Muito melhor que destruir a casa paterna
Ou liquidar por sapiências o lapso estudantil.
51.
As figuras não se toldam
Com a passagem dos anos
Agreste é ela a permanência
Oculta e obsessiva das imagens
Os sons que se prolongam
E ainda ouvimos claros no tempo
Tolhidos mas sempre adiante
825
Um outro ao seu igual
Atrai e atraindo ainda sou
Voa na asa do tempo
Se especando em frente do invisível
E lá ouvindo-se passar
Arrosta com o hábito de ser
Demonstrador e provador da vida
Aquele que se recusa a aceitar
O que já feito e concluído se afigura.
52.
Centelha carcomida osso cru
Apenas a sóbria e derradeira podridão
Apenas o vazio que a compõe
Se deixa penetrar e depois envolver
Por essas brumas essas ténues brumas
Que são opacas sem ser densas
Que são a própria essência carismática
Que são o traçado à noite no céu
Essas brumas essas ténues brumas
Que sinto penetrar no vazio da imobilidade
Essas brumas essas ténues brumas
Que são os licores do mel
Que são a própria hidra
Que são o sonho claro das manhãs de anil
Que são esta viscosidade interior do fel
O próprio fel que fermenta todo o conteúdo
Essas brumas essas ténues brumas
Elas próprias o irresistível fel do sofrimento
Essas brumas essas ténues brumas…
53.
E um dia tudo parece diferente do que sempre foi
Foi claro o dia
Mas cinzento o céu
Nuvens pesadas ondulando como
Eterna sanha de parar
Sagrada chama de loucura e louca
Movimentação
Pássaros ninho já perdidos
Piando breves e zunindo o ar
Pássaros que um dia mortos de frio e logo
O esvoaçar
De um dia que em tudo era já outro.
54.
O limite do que já foi e disse
Dizer o seu dever cumprido
Até ao limite das forças
E diz sobre o imenso mar e vê
826
Não treme porque a vaga o beija
E lágrimas nele o olham ausentes
Ficou seu coração no caminho
E hoje é espezinhado com desdém
No seu caminho.
55.
Sempre a lei e a ordem me foram estranhas
Me foi longínqua e inacessível
A minha saudade do futuro possível
A minha honra despojada em fáceis manhas
A sanha vital do meu gemido horrível
Longo e arrepiante de dentro das entranhas
Do fundo do covil das teias das aranhas
O rasto do presente marchando para o longe irreversível
O senso e a seriedade como o suor e as banhas
São como a lei e a ordem e o rigor risível
Dos funcionários públicos e do seu medo imóvel
Interminável procissão das mais grossas patranhas.
56.
Sonhei
Tristes nos passos névuos da manhã
Os sonhos tristes
Os pássaros que te dei
Os que se olhavam branco e negro
Os pássaros da manhã.
Olhei
Entre as silvas e o vento
O pilar que sustenta o céu
O pulmão
O vasto pulmão enegrecido
E a terra que é senhora e mãe.
827
57.
Esta coisa inteira que nos move
Esta inteira e sã conformidade
Esta inútil liberdade
Esta prisão perpétua
Mora nos enormes desertos
Lá no vago deles
Mora em mim esta lira
Ou nada.
58.
Pode ser a casa de um bicho
Pode ser a cama de um só
Além pode ser o universo
E aqui o universo também.
59.
A lágrima secreta mostra o brilho
E deixa-se escorrer pela face
Num último alento ainda dá
Vida ao que é morto e só.
60.
A noite amiga como uma longa noite que não tivesse fim
Mas tão só portas limiares da estrada
Onde o caminho se afasta mais de mim
Como se as pedras que o caminho tem
Como algo que se aproxima e que se afasta e vai e vem
Fossem ramagens floridas de jasmim
E fosse manhã de vez a noite amada
Em vez de negritude estéril e ruim.
61.
Alcoutim do Guadiana
Adeus que me vou embora
Vou para a cona da mana
Alegre deitar-me fora.
828
62.
Algumas linhas na linha
Enviesada da vida
Que depois de em vão vivida
Só merece ser esquecida.
63.
(versão original do intróito a«O LIVRO DE EMÍLIO LUCIANO»)
64.
Estes dias cinzentos
São um presente do céu
Para os poetas de deus
Que sofrem sem dor a alma
Dos dias que soma a vida
São meio sem cor esses dias
Os olhos não se distraem
São música de linda cor
E de reflexos calmos
Saudades são esses dias
Que o ano passado houve iguais.
65.
Ficam os sulcos marcados
Do carro que a mula puxou
De manhã cedo na geada ele passou
829
E a marca no chão deixou
No caminho onde andou
Logo cedo de manhã
E à tarde o dia já passou
E o vento remexendo o pó
As marcas apagou
Do sol a lama já secou
E os sulcos misturam-se também
Agora são um rego que uma gota
De água lenta escorre abaixo
O carro não voltou nem a mula
Foi no caminho dar a outro lado
E repentino o sol se acobertou
Num monte de verde enegrecendo
Que o dia se esvaindo
Com paciência espera
Ver desaparecer.
66.
Meus irmãos amanhã é outro dia
Limpemos as nossas vísceras
E tudo acabará em bem
Mesmo sem nós sabermos como
Mas só se nós quisermos.
67.
Ontem ainda ou talvez não
Talvez fosse antes ou talvez mais
Não sei talvez fosse há um mês
Ou há um ano ou se calhar
Há dois ou três.
68.
«Amava-te eternamente
Se eterno pudesse ser
Assim como não sou eterno
Amo-te até morrer.»
830
Sabe-o desde ante nascer
Porque ele vem com a carne
Mas tem por razão de ser
Outro ser que antes da carne
Era um amor de ninguém
Sem amador nem amada
Nem ciúme nem sequer
Luz alguma além do nada
Que a tudo e todos inclui
E ama por ser da vida
A vida em que leve flui.
69.
Parece que o dia claro
Esmoreceu e choveu
O que era bonito e raro
Em água se converteu.
831
Parece haver neles mais
Do que aparece no facto
E nas imagens reais
Aparece um estranho pacto.
E o outro é já só dor
É só tristeza e tormenta
É agonia ou pior
Num coração que rebenta.
Do coração se alimenta
O peito todo consome
E por fim ainda ostenta
A boca aberta de fome.
A chuva já cá choveu
Já no chão tudo molhou
E violenta bateu
E quase que já secou.
Ou se amou se arrependeu
E o amor se lhe esgotou
Como água que escorreu
Da chuva que já parou
De um dia que esmoreceu
E em noite se transformou.
832
70.
Onde está a minha salvação
Onde ela mora
Tal está como se nunca fôra
Ópera eterna do fim da criação
Que vem soando d’além da eternidade
Por dentro dessa força imorredoira
Sede de ir embora
Luz inquieta da surda tempestade
Onde ela vive como uma senhora
Tal majestade
Tal atitude de força e de vontade
Que é toda esta que me falta agora
E que renasce como se a razão
Meu coração
Fosse a de vê-la reinar sobre a idade
Sobre a razão como uma divindade
Com toda a força da minha convicção.
71.
A vida é uma roda viva
Pelas forças em cadeia
Movimento que se enleia
E engana a alma cativa.
Se o coração se incendeia
Pela brasa de uma diva
Outra a ele se adesiva
E entre uma e outra medeia
O coração do amante
Que às duas não pode dar-se.
72.
Água densa água em que se esvai o meu tormento
Permanente ternura de romance que se esvai num momento
Passa como se fosse água densa água em que me esvaio
E eu todo em mim no meu tormento e um papagaio
A gritar-me por dentro a lição desde sempre sabida de cor
E eu todo em mim a gritar-lhe outro grito maior
E eu todo em mim que me calo que estarreço e que aguento
Faço-me desta outra maneira ser em que também me esvaio
P’ra ser líquida água densa água em que se rasga a minha dor.
833
73.
Do porto alto da terra
Chegam os barcos e partem
Para um destino não ser
Senão chegar e partir
Senão partir e morrer
E depois nascer um dia
Num outro porto da terra
Portos no céu lá em cima
São como as asas de um deus
Passarinhos a voar
Vê-se de cima o que é bom
Plano de mar imersão
No mundo por navegar
Risos de ver e voar
Das aves de arribação.
74.
Meu amor quando te vejo
Vejo que a vida me dá
O que me tira o enjoo
Dos dias que correm lá
Onde a vida mole e má
Vive onde vive o desejo
Sem dias de mais ensejo
Nem esperanças que os haverá.
834
75.
Não sei se gosto de ti
Ou se te tenho rancor
Nem sequer se estou aqui
Ou noutro sítio melhor
Ou talvez só a sonhar
Com o prazer de te amar.
76.
Se à noite eu morro por ti
Já de dia não te vejo
E se te vejo não sei
Como dizer-te o desejo
De ter-te toda p’ra mim
De ter-me dentro de ti
Ter-te a ti também assim
Como dizer-te não sei
Sei que te quero sei bem
Quero-te assim…
835
77.
À sombra de umas árvores
O mundo se está poisando
E o mal que me fizeste
Se exorcizando
Eu vou tentar refazer
O que em pedaços parti
Em parte por não saber
Noutra parte porque vi
E vendo quis surpreender
Aquilo que senti.
78.
Ah! Loucura insaciável esboroada em vento
Azul do céu ainda por brilhar cinzento
Imagem que se decompõe e se repete
E fica vazada no metal das recordações
Os sonhos são mil as cores são sete
E dois unidos dois os corações
E todavia no adeus não há langor
E sem sentido parece ser a dor
E mais normal ainda o não doer
Quando doce se evola a esperança de rever.
79.
A força que existe enlaçando o doce amor
E o laço que se lança louco em correria
Sempre frouxo suave junto aos corpos
Se a distância parece separá-los.
80.
Desde o dia em que eu tão triste
Esperava por ti ali
Naquela estação iluminada
Tantas coisas pensei e escrevi
Coisas que não são nada
Há bem de que o tempo passa
E nada se consolida
Antes tudo se dilui e se trespassa
Confundindo-se na vida.
836
81.
Linhas e linhas arranjo
Na esperança de ver louvado
O que dentro de mim tanjo
E pouco vejo arranjado.
82.
Muito do que sinto é verdadeiro
Algo do que vejo é ilusório
E treme-me o ser inteiro
Só de pensar que é provisório
O que me acostumei a ver certeiro.
83.
O meu bem já está dormindo
Voando para não sei
Onde se esconde o que sinto
E se lhe perde o que dei
Dormindo se embala ela
Nos sonhos que não sonhou
E embalando o sono dela
Vai levando o que passou
Eu olhando para ela
Sinto saudades daquela
Que mansamente me olhou
837
E o olhar brilhando e rindo
Agora vendo-a dormindo
Com nostalgia lembrei.
84.
Passam páginas no tempo
E vou pensando o que escrevo
E olhar passado o tempo
Não sei porquê não me atrevo.
85.
Todos me perguntam sorrindo
Pelo nome que eles não conhecem
E com esse outros nomes confundindo
Louca teia de saudade tecem.
838
86.
Um beijo apócrifo e civil
No desfiar inconsolável das ilusões perdidas
Como se fosse a brasa lenta dentro da cinza inerte
De uma fogueira apagada
Um beijo ignóbil de que num esgar se tira a boca
E a madrugada
Mais fria ainda
Ainda que aquecida pelo sol
Vapor do sol nascente de uma aurora
De um dia que tivesse
Ficado por amanhecer.
Nada de belo
Só a espessura do ar
Mais nada
Apenas o salitre
O cheiro e o sabor a gasolina e vomitado
O da urina
Dos bêbados da noite que acabou
E tão indefinido quanto instável
O inconfundível querer ficar da despedida.
O ar irrespirável
Por segundos querer
Desafiar a decisão já sufragada do destino
Uma ali mesmo última e definitiva vez
Contra a parede e os papelões
Em que pernoitam vagabundos e mendigos
Ficar dizendo adeus
Partir não indo
Dizer adeus
E ser para sempre.
Escrever um livro
Uma recordação refém de encantos idos
Poemas e cantares ainda vivos
Dado quando pedido
Contrariado e constrangido.
839
Pode acontecer
Acontecer alguma coisa
Que nunca aconteceu.
Os olhos fogem
Da imagem a paisagem não se vê
Trespassa-me o gesto de não ver
Vejo não vendo
Sei que acontece
Mas não acredito que esteja acontecendo
No tempo que parou ainda a sinto
Sombra vazia de um destino imperial
Que deixa para trás
A sombra de um império sonolento.
Ainda a vejo
Olhos vazios o meu retrato de domingo.
Olha p’ra trás
Na tarde e na manhã o mundo roda
Ainda penso como pode ser indefinido
Cravado de ilusão o último olhar
Amplexo amistoso trespassando o ar
Pairando
O tempo ainda adia a dor anafiláctico.
87.
ITENERÁRIO MÉTRICO
Foi
Viveu
E não quis
Se aborreceu
Entristeceu de dor
Rogou pragas a si mesmo
Mas sempre o todo lhe escapou
Sem reparar permaneceu feliz
E nunca compreendeu o que lhe aconteceu.
88.
Não há nada mais triste do que a refeição nua
Em que a boca mastiga os pensamentos
É como pagar um jantar p’ra um mendigo
Não porque ele necessariamente tenha fome
Mas apenas p’ra não ficar sozinho a comer
Com os pensamentos devorando a própria carne.
840
89.
Fonte de prazer líquen colorido que se forma
Na casca humedecida do tronco não da cana
Na Terra não na Lua onde nada ou voa
Ou se poisa a tarântula a carpa e o tamboril
Há a baleia na terra não na lua
Há os lagos que sossegados reflectem os líquenes coloridos
Licores inferidos
Da novela a vida prosseguinte
Ano após ano e dia
Faz do novelo em que se enleia a vida
E dessa liberdade é ânsia.
90.
A força que existe enlaça o doce amor
E o laço se lança louco em correria
Sempre frouxo suave junto aos corpos
Quando a distância parece separá-los.
91.
A minha vida esfera esburacada
Toda ela está mudada e vagueia em desatino
Ela é o barco ao qual falta a maré
É um comboio ao qual faltam os carris e as estações
A minha vida é um barco e um comboio
Nos quais o capitão e o maquinista adormeceram
E sonham apenas que o barco cruza as vagas
E o comboio os ventos da noite e andam
Faz lá um barco e um comboio
Dizia-me o Diniz ao saxofone
E eu fazia
O que ele queria mas daquela vida já nem lembro
A minha vida é estar sentado no leito da ribeira
Onde uma vez banhei os pés
Nus os banhei nessa ribeira mas agora
841
Já na ribeira não tem água
E a minha vida é estar aqui sentado
É estar aqui sem nem tão pouco viver
Porque a vida és tu e eu sem ti
É como se tudo parasse no momento
Em que em recordação o olhar de dentro
Se pousa no teu rosto que não está
E é como se o Sol tivesse envergonhado
O haver sem ti claridade
E na escuridão e no silêncio houvesse só
Restos dispersos do som da tua voz
Manchas da tua pele recortes dos teus lábios
E ao afagar meu corpo eu encontrasse o teu
Só para me impelir ainda mais
A desejar-te loucamente a voltear na noite
A acordar vazio e sem teu beijo nem o meu
A minha vida é não ter o teu beijo
Porque tê-lo era p’ra mim nascer
E já nascido o teu amor cresceu-me
E dentro se fez grande o que cresceu
E viveu louco intenso e delirou
Mas desta ausência atroz adoeceu
E a minha vida se acaso não morreu
É de ter esperança ao beijo que lhe deu
Um dia a vez de ser
Uma vida ainda e dessa vida
Renascer.
92.
A pequena pausa pauta a folha
Ao lado da ternura imagem foi
Toda uma vez e outra que nenhuma foi
E a excitação do momento
E a inspiração positiva
Ideias ainda as junto que depois não sei dizer
Ideias sim que agora não sei mais.
93.
Ah! Se eu pudesse lembrar
Sem saber nada mais que lembrar
Esses momentos que passei sentindo
Distante o momento de viver
Talvez a vida tivesse um porquê
E valesse a pena vivê-la
Talvez assim
Pudesse enfim
Talvez perdê-la.
842
94.
Amor há quanto espero que o dia seja calmo
Que não haja mais nada a entravar o Sol
Que o brilho seja quieto e que o olhar
Manso e direito seja quente e louco
E vá voando entre nós como um enorme bando
Que voa e cruza a névoa como se todo ele
Fosse composto de um só pássaro
Ondulando e indo evoluindo
Num céu sem horizonte e cheio
De mil brilhos brancos e de água.
95.
Aquele caderno do campino
Tinha escritos tão bonitos
De um amor antigamente
Que lentamente morreu
Mas enquanto não findou
Deixou quanto foi o que sofreu.
843
Aquele tom popular já frouxo
Aquela ingenuidade já ridícula
Aquele sofrimento já podre
Aquela amarga já digerida e assimilada
Nada
Sobrou nada desse enlevo jovem
E dessa juventude que se esboroou
Desperdiçada e diluída em fumo
De uma queimada
Alguém que amou.
96.
Aqui ninguém se chega
Uma lembrança vem
Uma figura além
Há bem o tempo
Há bem o sofrimento
E lembro esse momento.
97.
Aromas há que eu amo e amor eu sei
Que um dia o meu amor eu troco e trovas
Tocarei na harpa avariada que eu sou.
844
98.
As amargas lembranças que vêm
À lembrança que lembra distante
O bucólico pátio florido
Os artistas do Parque Mayer
Nessas ruas vou deixando o ser
Que em pedaços perdidos perdi
E agora quero mesmo é ver-
-te a ti.
99.
As raparigas vêm e vão passam-me na frente
Nada me dizem os seus olhares medrosos de desejo
Como se oferecem à minha indiferença
Como são fáceis quando não as quero
Como adormecem só de tentar
E quando o tentam por pouco o fazem
Eu não estou cá estou muito longe
E as raparigas curiosas não percebem
Que vêem uma sombra – a minha
Mas a mim esquece-me quem
Me vê porque me tem.
100.
Céus outra vez azuis
Montes e quintas pequenas
Paraíso afundado «al andaluz
casa mia guapa macarena
malagueña me voy a Sevilla»
laranjeiras e sobreiros
cantinho de saudade saudades sim
que eu me esqueci de ter
«al andaluz el chorro»
Flamenco ai guitarra
Estamos parados outra vez
Agora vamos andar – vamos de comboio
«una campana» - dblong
«una amarilla pintilla tierra madre
Voy a Sevilla por esta calle
Adios a Malaga
Adios adios...»
845
Rasguei o céu do olhar
As mãos um dia abri
Oh! Terra quem te rasga
Assim em pedra crua…
Oh! Em pedra nua.
101.
Como a imagem que se escoa
A minha alma se dissolve
Em nuvem
Eu sou a nuvem
Eu sou a lava
Que incandescente te incendeia
Oh! Terra que nasceste
Para me ver nascer
Ah! O tom
Esse é o tom em que se canta
A dor com que se canta
O tom.
102.
Como são tristes as caras das pessoas que passam
Sem ilusão sem um ideal sem uma mentira
Que guardado seja o limão que azeda
Toda a salada salteada das emoções da vida
Como são sem fé e sem esperança os corações
E indiferentes os que passam tristes
Como são tristes as pessoas sem a ilusão
Sem uma mentira que lhes fermente o mal
Como são raros os sorrisos que se oferecem
Sem ser por nada e os risos despropositados
Como são loucas todas essas pessoas correndo
846
Preocupadas com coisas que não sabem
Mas que talvez nem sequer existam
Ou se existem são apenas ilusão
Dura ilusão que não serve para iludir
E que tristeza uma ilusão não iludir
Que triste uma mentira não mentir
Que triste sim e engraçado até.
103.
De manhã minutos nunca mais
De tarde ainda vem longe
A noite é infinito que chegar
Amanhã não sei se existirá.
104.
Desde o dia em que eu tão triste
Esperava por ti ali
Naquela estação iluminada
Tantas coisas pensei e escrevi
Coisas que não são nada
Há bem de que o tempo passa
E nada se consolida
Antes tudo se dilui e se trespassa
Confundindo-se na vida.
105.
É verdade que um dia tive a esperança
Enchendo-me a alma por inteiro
E deixei-a pelos bancos dos jardins
Pelos degraus das escadarias das igrejas
Por aí numa fértil sementeira
Da qual germinaram numerosas flores.
847
A minha alma sonhando queria mais
Como uma grande ânfora a quem enchessem
Com uma gota apenas.
106.
Eu sei que sei certas coisas
Mais valia não sabê-las
Mas já não posso esquecê-las
Posso somente carregá-las
Na vida até consumi-las
Para poder transformá-las
Noutras coisas e fazê-las
Iguais a estas coisas.
107.
Ficou o absurdo das repetições
Em que tentei guardar outro momento
E nestes momentos que se seguem
Vou ainda sentir o que senti
E sentindo vou esgotando o ser
No que houver a lembrar e a sentir
E recordando vou esgotando esse lembrar
Que já se definiu por perdição.
108.
Forma a forma na visão
Não se vê
Ilude-se a verdade
É o desejo que se quer ver
Vê-se a verdade no desejo
E a verdade não o é
São os olhos da ilusão
São esses olhos que vêem.
109.
Fui e voltei e da ida ainda guardo o fel
Meu coração de mel o fel danou e estou
Pensando em quando eu tinha no tam-tam
Alguma coisa que dizia ser assim a vida
E tudo isso é uma causa perdida.
848
110.
Insectos mistério que se pousa
Confundem destinos no seu voo
E onde pousam pousa a vida do que é
Antes do que já era
Insectos que procuram o bailado dos olhos
E não se vêem onde são vistos os ventos
Empurrando as tramas seres alados
Suspensos de um outro viver diferente
Alguém que desconhece ser vida.
111.
Mais um que se resolveu pelo ir
Se desvestir da farda ridícula do civil
A sorrir entro na caserna
E toda a tropa do exército vencido me vê
A gargalhada seca entre o vozeio
Acorda do meu sono o que confunde
Olhares de espanto com delícias
Esquecimento do tempo de meninos.
112.
Manhã o Sol levanta-se
Numa aldeia perdida na montanha
Onde aos pássaros chilreando madrugada
Se junta o som dos altifalantes da feira.
849
E no entanto olham para mim
Como se eu estivesse acordado
Talvez por eu ter uma gravata
E uns sapatos pretos.
A manhã é agradável
Mas as verdades
Brutais e interiores não me deixam ver
Esta linda manhã no campo
Parece que há uma feira e vou lá ver
O que se passa.
113.
Não há nada no cosmos habitado
Que possa confundir-me
Nada há aqui ou lá que esteja longe
De uma verdade aqui
Vem do sofrer esse idear sem fim
Que aqui se torna só.
114.
Nos braços o torpor se escorre e deixam-se cair
Pegam as mãos quase que sem pegar
E os insectos já pousam curiosos
Sem saber nem no que estão a poisar
E no entanto tudo está certo e parece bem.
115.
O cansaço vem com a noite ser
O fim do dia ainda se vislumbra
Há que morrer um dia como um dia
A acabar-se por não haver mais luz.
850
Os dias não têm fim
E a vida são esses dias
Quando na vida anoitece
É p’ra nascer outro dia
Depois da noite passar.
116.
Porque todas as coisas são iguais
Para um que não as sabe distinguir
Encontrarei o espinho da roseira
De uma só e única maneira
Que já há muito está delineada
Confusamente embaraçada como uma linha lassa
Que sobretudo importa não partir.
117.
A vida chega ao fim o que ela é
Doce chegar aí
A outra é já maior e vem
Em demorando a águia
Pousa devagar
As asas sobre si já recolheu.
118.
O meu bem já está dormindo
Voando para não sei
Onde se esconde o que sinto
E se lhe perde o que dei
Dormindo se embala ela
Nos sonhos que não sonhou
E embalando o sono dela
Vai levando o que passou
Eu olhando para ela
851
Sinto saudades daquela
Que mansamente me olhou
E o olhar brilhando e rindo
Agora vendo-a dormindo
Com nostalgia lembrei.
119.
O meu bem já está dormindo
Voando para não sei
Onde se esconde o que sinto
E se lhe perde o que dei
Dormindo se embala ela
Nos sonhos que não sonhou
E embalando o sono dela
Vai levando o que passou
Eu olhando para ela
Sinto saudades daquela
Que mansamente me olhou
E o olhar brilhando e rindo
Agora vendo-a dormindo
Com nostalgia lembrei.
O meu bem já está dormindo
Voando para não sei
Onde se esconde o que sinto
E se lhe perde o que dei
Dormindo se embala ela
Nos sonhos que não sonhou
E embalando o sono dela
Vai levando o que passou
Eu olhando para ela
Sinto saudades daquela
Que mansamente me olhou
E o olhar brilhando e rindo
Agora vendo-a dormindo
Com nostalgia lembrei.
120.
Os lustres brilhando frouxos
Os tetos tintos de fumo
Os ramos de flores enegrecidas
São lá em cima
Olhos revirados na fímbria retinta
Outrora ainda que molhados
Viram-se enxutos.
852
As platibandas dos escaparates
São talvez a arte de um bom homem
Cestinhas e jarrinhas
Com ar de coisa meio imperial
Sobre as garrafas onde rebrilham
Os lustres.
121.
Páginas marcadas amargadas e relidas
Domadas as palavras e as sílabas
As letras do estigma que impõe
O fel do meu sofrer
Há muito que elas fizeram
De mim não mais que um escravo seu.
122.
Parece-me este eterno abrir do livro
Ao contrário do sentido da escrita
Uma dor que me mitiga o desejo
E um outro que me faz esquecer a dor
As rimas que me traz o vento
São ainda um débil recomeço
De tudo assim contrariado
Loucura deixo ir estendendo os braços
E vendo exprimo o que se quer
Eu quero
E o que se quer é tanto quanto eu quero
Eu faço fé de que de mim se vão as páginas
E mais de mil pensamentos desiludo
E todos os sinais desiludidos
O são
Na minha louca esperança suicida.
123.
Quanta gente se esbate contra o fundo
Já esbatido do mundo que vislumbro
Quanta escuridão envolve densamente
Toda essa gente que se move lenta
No quadro leitoso do cinema.
124.
Quantas vezes ainda para mim terá de ser
A despedida o mel de outro sofrer e ele
Esse sofrer ser o que dá a vida ao sonho
E o sonho ser ainda o de um regresso
Ao que o destino deixou por acabar.
853
De tanto procurar uma verdade
Quantas verdades feitas de mentira
Eu encontrei
E quantas verdadeiras já abandonei
Numa ilusão de ser alguma coisa
Que não sei
Essa verdade pela qual sempre ansiei.
125.
Quantas vezes um coração
Atina e desatina na vida
Para ver a vida a se escoar
E assim sentir o que é o amor
Quantas vezes se rasga o coração
Por quem não tem
Um coração para rasgar por nada
E quantas vezes o tempo despedaça
Em bocados o coração rasgado
E quantas o amor consola e cola
Os bocados rasgados desse coração
Despedaçado
Quantas vezes o coração se cala
Na lágrima seca da vergonha
Para não ver no dia claro
O que é o amor…
126.
Quanto amor eu derramo entre estas pedras
Estas árvores e ervas já reguei com meu amor
A minha dor o meu sofrer saudade louca
De agonizar já fez estalar as pedras
E olho e vejo ainda e choro seco
Porquê um amor assim ausente e louco?!
854
127.
Sei que não vens
Não sei só sei que sou
O teu chegar e ir
E no que há entre o ir e o retornar
Há tudo o que eu não sou.
128.
Só nos sentidos vem devagar
Mistura tantas boas e más horas
De espanto pendurando as cabeças
E ouvindo vigorosa a noite
Troar no céu sentindo o todo
Vazio e vago língua estranha.
129.
Súmula da hipótese descrita
Não se diz que seja explícita
Balcão corrido copo de água
Relato do jogo na telefonia
Água líquida súmula do cristal
Análise ocular do foco de luz
Possibilidade ainda raro é
Dos meus poemas o que não tem um ainda
Mas mesmo assim eu ainda insisto
E repito ainda essa mesma lengalenga
Com que desde pequeno me acalento
A janela debruada de azul
A luz lá fora a terminar de brilhar
E aquele brilho na garrafa a tremeluzir
E a noite rural igual
A aproximar-se lenta.
130.
Todos me perguntam sorrindo
Pelo nome que eles não conhecem
E com esse outros nomes confundindo
Louca teia de saudade tecem.
855
Inocente o meu amor se amarra
Com as cordas que eu fiz dos teus cabelos
Dos teus sorrisos nós dos olhos garra
E dos beijos sangro a dor de tê-los.
131.
Em baixo da janela dela
Chove sempre devagar
Às vezes a pensar nela
Fico ali até escampar.
856
132.
I
O meu amor
Longamente dissecado até ao fundo
Olhado e querido de todas as maneiras
Facetado de dor como um brilhante
Por mil facetas olhado e transparente
Por fim como um rubi
Transfigurando o meu amor
Resplandecente em sua luz
Na minha alma aziaga
Feito uma alma só
De amor e complacência.
II
III
857
Espera um momento
E aguenta
P’ra aquela ânsia tão louca
Num longo beijo se dar
E o frenesi da saudade
E a vontade de beijar
Se fundirem e com fragor
Se dissolverem no ar.
IV
E se porventura houver
Mais coração p’ra vibrar
Naquele longo acenar
De um coração p’ro seu par
Que é o acto de beijar
Num abraço grande e quente
Há-de o coração saber
Interior e omnipresente
Todo o doce envolvimento
Que o amor sabe esconder.
Da distancia e da ausência
Se alimenta o sofrimento
A dor da separação
Viver torna-se um tormento
Mas quando por fim se augura
O fim dessa atroz tortura
E o amor por um momento
Triunfa do sofrimento
E o momento de beijar
…Quente e solto
…Eterno e louco
Já se está a aproximar
O meu coração exulta
E segreda ao meu ouvido
«Meu amor já falta pouco»
133.
Quando passo à tua porta
Tremem-me os dedos dos pés
Quebrantam-se-me os joelhos
Roçam-me as ânsias o peito
Rasgam-se as veias no corpo
O sangue salta irrequieto
E sonham todas as fibras
Aquele sonho impossível
Que tanto me faz viver.
858
134.
Tu és a nossa senhora
És a rainha do mundo
És da dor triunfadora
Das minhas entranhas a Pandora
És todo o toque e todo o fundo
De uma caixa misteriosa
Feita de oiro alumbrabundo
Que encanta total e sedutora
E faz da miséria a rosa.
135.
Dos outros eu pergunto ainda assim
Que coisa bebem
Que piadas contam
Que flores e frutos vêem p’la manhã
Todas as pessoas têm os mesmos sonhos
Olham distantes
Contam piadas umas às outras
E fazem disso
Essa fascinante actividade
A que chamamos viver.
136.
É preciso que alguns
Porventura mais fracos
Sofram a desventura da derrota
Assiduamente a sofram
Para que saibam
859
E continuamente aprendam
A descrevê-la
A conhecê-la
A compreendê-la e a superá-la
Para que as almas
Sensíveis dos que sofrem as derrotas
Se fortaleçam e as derrotas
Não os destruam.
137.
Os sicários se são otários velam melhor
Para que o tédio de todo o prédio dure
Os lacaios bem ensinados estão
Expunham castiçais nos castelos
Simbolizando um que já então existia
E actualmente continua existindo.
138.
Nos dias de refluxo
É que se lembram as velhas oficinas
Onde sob o fogo e a rigidez dos malhos
Os nobres sentimentos se temperam.
860
E nas praças e espaços de desejo
Em que desejos ligeiros tomam forma
Têm lugar danças e rituais
Que nunca chegarão a existir.
139.
«Eu não sou não sou eu nem o outro»
«Não sou o único»
Mas sinceramente preferia ser o outro
Quando acordei para o mundo
Estava já irremediavelmente aborrecido
E daí para cá continuei
Sempre me aborrecendo mais
E aborrecido duvidei
Daquilo que simplesmente intuí
E me arrastei na lama do aborrecimento
Até sem querer perceber
Que a verdade é simples
Mas o que eu sinto
É a vontade de ir para cima de uma ponte e gritar
Gritar que o mundo está todo errado
E eu já nem sinto
Tanta vontade de estar deitado
O que eu mais sinto
É uma vontade que não resolve
Mas ainda assim apazigua
De sentir o calor de um ser humano
Mas até isso às vezes me é negado
Por eu ser preguiçoso
E substantivamente
Ficar o tempo todo a não pensar em nada
Só os monges têm esse direito
Mas esses não têm mulher ou quando têm
É uma monja.
861
Eu queria nesses dias tomar vida
E ser o outro
Por outros processos já tentei
Mas também fiquei a meio caminho
Sem ser nem um pilar nem uma ponte nem o tédio
Apenas o afogado que se atirou ao rio
E não sabia nadar.
140.
Formas são trânsitos da vista
Como a forma desse acento
Sinal de frémito
Seco e sedento
Que sugere dessedentação
A escrita é ela própria um trânsito
Da vista para o pensamento
Do papel para a acção
Faz do coração um púlpito
De silêncio e adoração.
141.
O GATO TEM SETE VIDAS (versão em 7 estrofes)
II
862
E quando chega afinal
O lar da primeira morte
Não se percebe que o mal
Repudia a própria sorte.
III
IV
863
Haveria num impasse
De arrancar todas do peito.
VI
VII
142.
Nunca que eu vou conseguir dizer-te tudo
Mas terá um momento em que o silêncio
Só a beleza infinita do silêncio
Eu vou ficar olhando
E para acompanhar nesse momento a devoção
Sem palavras
Talvez depois de um beijo
Ou antes
Possa dizer o que eu não vou mais poder falar
Porque não existem palavras para tanto.
864
De cada vez que eu fico contemplando
Tem uma coisa mais que mais me surpreende
Algo que eu nunca havia visto antes
Ou que eu não tinha ainda reparado
Ou não tinha reparado o suficiente
Às vezes é apenas a elegância fina de uma posição
Um jeito grácil
De se apoiar em nada
Uma maneira descontraída de posar
Ou uma ondulação no seu cabelo
Mas sempre
Sempre
Olhar sua figura
Traz qualquer coisa de novo
Alguma coisa de diferente
E inesperado
Qualquer coisa parecida com o que se sente
Quando estamos vendo alguém pela primeira vez
E se sente
Aquilo a que inocentemente costumamos
Chamar de amor à primeira vista
Provavelmente eu não serei o único
Nem o mais interessante
Tampouco o mais dotado
Dos homens todos que você conhece
Mas sou com certeza o que mais gosta de você
E em se dando tempo e oportunidade
O que te ama mais
E quem te ama
E se eu te amo
O importante é se saber que eu posso amar você mais do que tudo na vida
Amar você como se ama a deusa
A quem se reza
Alguém a quem se tem devoção
Adoração total
E se não fosse assim
Nem valeria a pena
Não se ama pela metade
Ou fica quase apaixonado
E mesmo quando vem a hora do sofrimento
E as coisas querem terminar
Ou não dão certo
Feliz nunca é esse momento
Mas eu aprendi a aceitar
Que isso também faz parte
Que talvez seja o preço
De viver tudo
Febril e intensamente
De procurar incessantemente
O mais belo
865
O mais sublime
O amor mais puro
A paixão mais quente e mais gostosa
Porque senão a vida passa
E não deve existir coisa pior
Do que se ter a sensação ter vivido sem viver
Essa sensação pelo menos eu não terei
Posso até ter que sofrer
Posso em algum momento ficar inconsolável
Mas não será nunca por não ter tentado ser feliz
E levado toda a força do amor
A um lugar imenso e luminoso
Cheio de energia e de prazer
Uma coisa sagrada e profana ao mesmo tempo
Como se fosse misturados um filme erótico e um conto de fadas.
143.
Quando você não vem
O mundo em que eu habito
Parece mais pequeno.
144.
Salvo o encontro a vida marcha e coincide
No movimento encantamento que passando
Que nunca é que nunca fica nem será
É o presente que você me dá
Quando eu me sinto ser você rindo e dançando.
866
Quero ser eu quero ser outro sempre quis
Ser de mim mesmo um pouco mais sem mas nem voz
Me segredando que eu apenas sou em nós
Quando meu eu encontra a marca da raiz.
145.
Se o meu coração pudesse
Dos seus encantos e amores
Falar ao teu que adormece
Diria como quem entre vapores
Ser uma nuvem quisesse
Palavras ternas de perfumes e de flores
De uma alegria tão doce
Que ao passar no ar fizesse
Acender todas as cores.
146.
Sobre uma dica de Quintana falando de quem rima vento com lamento:
147.
Tem uma forma de melancolia
Uma tristeza profunda
Que toca em nós uma coisa
Que se transforma em poder.
É um abismo
É um lugar sem nome
Que atrai os outros seres
Que se transformam
Em um vazio maior que nós
E do que eles.
148.
Tudo começa um dia quando acaba
Qualquer coisa que existia antes
E como uma falha magmática
A vida faz nascer novas formas
Que com o tempo se tornam a paisagem
Que ninguém supunha que existisse.
867
Até à separação dos continentes
Desde as nascentes que arrancam a raiz
Até à formação dos oceanos
Tudo se encontra num momento
Recreador e total.
149.
Se tem dias em que o frio
A tristeza vira moda
Queima como gelo é phoda
A sensação do vazio
A saudade interestelar
A dor da separação
Me dissolve o coração
Dos seus olhos o brilhar.
868
E o brilho deles sentir
As centelhas de alegria
Que derramam todo o dia
Por sobre o meu ir e vir
Como uma chuva de estrelas
Que me banha o ser inteiro
Que me faz virar carteiro
Só de senti-las e vê-las.
869
Todos os dias eu rego
Muitos mais quero regar
Quero ver frutificar
Nestas mãos em que te pego
Todos os frutos gostosos
Que dois corpos podem dar
Se entrelaçando no ar
Dos seus ramos ‘splendorosos.
Franqueza e brasilidade
Todos os teus devaneios
Teu entrecoxas e seios
E a rara sensualidade
Que derrama a tua boca
Quero teus beijos teus ais
Teus delírios sensuais
Que nem de uma deusa louca.
870
150.
A HERA E O PAPIRO
151.
A mulher superlativa
Que me aquece o coração
Exercendo o seu «métier»
Diz-me do fundo do ser
Que a verdade mais profunda
O sentimento mais puro
Vem da profana oração
Do dar que quer que se dê
De quem reclama o prazer
De a alma ser vagabunda
Nunca nada prematuro
Apenas vã espectativa
Apenas eu e você.
152.
Eu tenho muita vaidade
Em ter a mulher que eu tenho
Desfilar sempre com ela
Traçar no céu seu desenho
871
153.
Que poesia escreveríamos
Se não pensássemos em nada?
Bom é não pensar em nada
Mas eu
Que tenho passado a vida a dizer que é bom não pensar em nada
Que poesia escreveria?
154.
Quando me falta a coragem
Para olhar o meu destino
Fico fitando a paisagem
Onde a luz canta seu hino.
872
Para lugar indiscreto
Onde o olhar é todo recto
Para olhar o meu destino.
155.
TRÊS
156.
Amo-te quando estás longe
Amo-te mais se estás perto
Às vezes amo-te muito
Quando de olhar-te me sumo
Vejo-te a meia distância
Percebo-te a silhueta
Olho-te a beleza pura
Fico-me ali a pensar
873
Que és muito mais linda ainda
Do que eu pudesse cantar-te
E decanta-se uma dor
De não te poder pegar
Amo-te então quase a chorar
De me despir do pavor
Que é ter-te em mim imbuída
Sem te poder alcançar
Para mim estás sempre nua
Revestida de vapor
Eu fervo p’ra decantar-te
E em mim uma coisa enorme
Vai-me explodindo o ser
Na boca quer-se dizer
Teu beijo o meu acarinha
Evaporo-me de amor
E quando quero esvair-me
E quase rebento em pranto
Do meu coração ser teu
E tu minha
Mulher maior do que céu
Amo-te tanto…
157.
Eu que sou o Joaquino
O macho da Joaquina
Sei me comportamentar.
158.
Já disse há um tempo atrás
Que ainda sinto prazer
Em ler os versos do Fernando Pessoa
E até em reescrevê-los com palavras minhas
Outro tanto eu poderia dizer
Que ainda sinto prazer
Em tocar as músicas do Bach
E uma do Charlie Parker que aprendi há muito tempo
Aprendi nada
Continuo tentando aprender
E não desisto
Porque aquilo tudo é muito
874
É mais que muito
Muito atraente
Muito exigente
E em todas as coisas que possamos dizer a tal respeito
Aquilo é muito.
159.
Observando pessoas alegres e vivas
Penso no túnel escuro
Do fundo do meu espírito
Vejo campeões
Observando pessoas alegres e vivas
Penso no túnel escuro
Do fundo do meu espírito
Vejo campeões
160.
Pelos caminhos tortos andei
Não vi.
Ânsias e passes cegos puxei
Que ardi.
161.
Recordo que se diz lembro
De um mês que se diz dezembro
Em que em lilás me desmembro
Em loendros em meimendro
Em que me obumbro.
162.
Vem cantando o colibri
Chupar o doce da flor.
(...)
875
163.
TEATRO
Bª:
Eu no meio destes brinquedos
Como um maio
Nem sei se isto são brinquedos
Se são espantalhos
Aposentados dos milhos
E eu aqui semi-sentado
Estarrecido e enquadrado
Olhando os vivos
Espalhando brilhos furtivos
Os que param e os que vão
Os que nem tocam no chão
Os que ficam deslumbrados
Ilusionados perdidos
Eles mesmos ‘starrecidos
Do momento deserdados
Destituídos da graça
Da vida que neles passa
Como um raio.
É um prodígio...
Banco de versos:
876
164.
A tristeza me consome
Por não ter o meu amor
Minha alma está com fome
De não ter o seu abraço
E do seu doce regaço
Me faltar o aconchego.
165.
AS PEDRAS DA RUA
877