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POESIA (in)COMPLETA

LIVRO 1 – EMÍLIO LUCIANO

LIVRO 2 – O CAOS (obra póstuma de Emílio Luciano)

LIVRO 3 – LÚCIO CONSTANTE

LIVRO 4 – VERA LÚCIA

LIVRO 5 – CANÇÕES INTACTAS

LIVRO 6 – O LIVRO DO ESCOAMENTO DO TEMPO

LIVRO 7 – BRASIL I

LIVRO 8 – BRASIL II

LIVRO 9 – BRASIL III

LIVRO 10 – A SOMA DOS DIAS

Poemas para «A MINHA CIDADE» e «PÁTRIA» (incompleto)

OUTROS TEXTOS

OUTROS POEMAS

Tal & Tal

1
O LIVRO DE EMÍLIO LUCIANO

49 POEMAS

2
Proclamação: A ÁGUIA

Custa-me crer que seja preciso fustigar a alma com os dardos de sempre imbuídos de
algum suco que sabemos pertencer ao passado mas que também desconfiamos pertencer
ao futuro como uma dessas desconfianças que se tem a propósito de se ter perdido a
chave de casa ou de quem chega atrasado ao emprego e desconfia do relógio do capataz
apenas por descargo de consciência.

Eu presentemente não estou certificado de nada do que posso ver com os olhos da
minha paixão nem com os olhos da minha cara sem vergonha ou anseio alguns de que
os seus olhos olhem e de que quando olham vejam aquilo que está às claras mesmo para
ser visto pelos que olham para ver e encoberto aos que procuram discernir para depois
poderem afirmar.

Quando por algum tempo deixa de existir o suporte do real é que é vê-los a afirmar e
depois durante algum tempo já não se pode afirmar e então é que é bom afirmar porque
aquele que afirma só afirma o que já foi por ele afirmado ou foi afirmado por outro que
também é ele embora não saiba a tragédia da afirmação nunca ocorre embora a sua
preponderância seja permanente e a ideia da tragédia seja ilusória como ilusória é a
ideia da sua dimensão os que a aumentam dão-se mal porque vivem tristes e os que a
atrofiam também se dão mal por outras razões que no fundo são as mesmas os que
procuram afirmar com plena consciência são os mais grosseiros e lamentável é a sua
sina ridícula pois o que afirmam com tanta consciência parece pouco depois palha seca
na fogueira endiabrada da inconsciência e prova cabal da grande inconsciência.

Antes o homem fosse como a águia que nunca afirma nada mas cuja presença é bastante
afirmativa antes o homem tivesse penas a cobri-lo em vez de ter vergonha como tem em
vez das penas que lhe escapam ou que por uma ou outra razão entende mal se ao menos
não entendesse nada já não era mau ou pelo menos não era tão mau como entendê-las
mal que é tê-las cravadas na carne e com grande desgosto e grande dor arrancá-las para
não ser como a águia superior e afirmativa e ser apenas um animal nu e flácido
encolhido com temor da própria grandeza precariamente equilibrada no mal-entendido
da sua superioridade.

3
(1)
Este livro tem três chaves
Uma de ouro outra de prata
E outra que como tu sabes
É de lata

Uma é a paixão timorata


Nos seus contornos suaves
E a outra como tu sabes
É a poesia barata

A que era d’ouro derreteu


A de prata enegreceu
Sem outros danos mais graves

Graças a deus pelo menos


Resta o consolo aos pequenos
De abri-lo com a de lata.

(2)
O LEÃO E O PÁSSARO

Um pequeno leão vivia amedrontado por um pequeno pássaro que o


sobrevoava e só de vez em quando, durante o seu sono exausto, poisava.
O pequeno leão rugia muito e da forma que é peculiar ao leão, enquanto
o pássaro pouco piava mas, em contrapartida, esvoaçava muito. Mas
quando pousava cantava…

O pequeno leão dormia


Dormindo não acordava
Antes sonhava embalado
Com o que o pássaro cantava
De uma doce melodia
Que o leão
Julgando-se acordado
Dormia
E dormindo julgava que dançava
Enternecido e hipnotizado
Com aquela música que ouvia
E ouvindo nela se entusiasmava
E ouvia dormindo até acordar
Tudo o que o pássaro cantava
Mas acordando rugia
E o pássaro deixava de cantar.

4
(3)
Alta e bela a madrugada fez-se
Há um esquilo e um rato e um rio que desce
Há um feto silvestre e uma roxa flor
Há uma espécie muito estranha de calor
Com um rio que desce e um ribeiro que corre
E um gigante verde a suspirar de amor
E um mistério sideral de fuga e dor
Como um vazio que cresce
Uma fera linda que respira e que se mexe.

Na pele dessa loba a amamentar


Os filhos envolvidos no delírio de chupar
Ferem-lhe os bicos e ela mal sente
Parece que não sente o que sente vagamente
E jorra abundante para os filhos
Para todos chuparem simultaneamente
E se babarem do seu leite quente
Sem darem por ela que os está a alimentar
A resguardar desde que nascem a embalar.

Mesmo em cima de si enquanto são pequenos


Respiram-lhe o vapor dos seus vapores terrenos
Aprendem-lhe a maneira de sentir-se dela
A sentir-lhe a força sem quase dar por ela
Sem apartar-se dela um só instante
Sorvendo-lhe a vaga sensação de conhecê-la
Apenas sensação tão vaga e tão singela
Que envolve os músculos no cheiro das árvores das pedras e dos fenos
E deixa tudo precisamente igual ou mais ou menos.

Embriagados de luz de cor e de prazer


Respondem-lhe os músculos até mais não poder
Até que a carne empapada de suor
Aspira inebriada e louca o seu vapor
E a vida que ela dá é paga com outra vida
E a moeda dessa paga é o amor
E o que a mantém e continua é o calor
Que exala do momento de dar e receber
Do gozo e do orgulho de à terra pertencer.

Depois é o imenso desejo de saltar


Para cima onde a terra já é ar
Correr por onde a terra proibiu
Traçando nos caminhos do sonho o desvario
Um mundo sonhador que é mais que um mundo
Um conseguir mais do que antes conseguiu
Vai descobrir o tridimensional baldio
Aquele para quem viver for conquistar
Não tanto o conseguir – tão só o desejar.

5
Mundos mais distantes deste mundo
Distantes tanto à superfície como a fundo
E próximos do fundo e à tona até
Fora dos limites em que a coisa é
Só o que está dentro dos limites
Onde chafurda a maioria da ralé
Numa zona em que o mar já não dá pé
E só navega o marinheiro meditabundo
Que ao mar atira imagens do seu ser imundo.

Divaga o pensamento nas fragas opalinas


Afoita-se o delírio em palhas finas
Desse deserto onde nem palhas há
Do qual depois à frente não se sabe o que será
Nem importa por agora que se saiba
De mitos de fantasmas e de deuses bastam já
Os que estão no que na terra escrito está
Quer sejam a moda dos saiotes das meninas
Ou um fatal salto mortal de outro Pamplinas.

O mundo vive então de um mistério que se diz absurdo e louco


É um pulsar feroz como se fosse um grito rouco
Mas não se ouve nem se vê porque está nu
E rijo e adverso padece imenso e cru
Minado e vivo mas grosso e imponente
Sobre os seus ombros planos um índio do México e um velho pasthu
Uma águia e uma serpente e um pardal e um canguru
E ideias e vacuidades no seu imenso oco
Como réstias de nada num aranhol bacoco.

(4)
Ah! Meu amor se tu soubesses
A malha imensa que teces
Dentro do meu pobre ser
Talvez tu te arrependesses
Das vezes em que apareces
Só p’ra me fazeres sofrer.

Talvez aparecesses mais


E os teus olhares fatais
Não me ferissem mas antes
Fossem p’ra mim carnavais
E não tristes funerais
Os teus sorrisos pedantes.

6
Meu amor como fazer
P’ra te fazer compreender
Este enlevo desmedido
Que de impossível parecer
E de humilhante só ser
Eu tenho que ter escondido.

Não vale a pena contar


Que nada pode igualar
Este desgosto no mundo
Mesmo que seja a cantar
Mais vale saber calar
Um dissabor tão profundo.

Mas só cala quem consente


Só silencia quem mente
Ao seu próprio coração
Bate monotonamente
E é um encanto aparente
Que desilude a canção.

Meu amor mesmo calado


Mergulha no mesmo fado
Ama como nunca amou
O silêncio o faz dobrado
Incha como um afogado
De quem o mar se apossou.

(5)
INTERMEZZO

Ficava sereno nos limites das tardes


Resvalava por morros de intensa paixão
Corria nas chamas do fogo abrasão
Percorria e ardia e tu ardias e ardes.

Sonhava que ardias no fulgor dos meus braços


Crepitavas gemias sob o sol e suavas
E brilhavas no chão ao sabor dos meus passos
Ao sabor das estrelas que havia no céu cintilavas.

Sonhava os teus olhos e sonhando perdia


O lembrar tão distante dos manás de prazer
Os oásis de angústia e a luz da fantasia
O mistério do fogo a carpir a arder.

Enchia-me de febre rebentava de dor


Corria a estepe inteira como a hábil gazela
Em saltos no ar de miragem e cor
Uma fonte uma corça uma mancha na tela.

7
E tu morrias de lonjura e esquecimento
Morrias lentamente nos meus braços vazios
Eu olhava-te e ria e depois no momento
Eu olhava-te e via já só via sombreados tardios.

E depois a sombra e a febre fria


Ruminante e latente no breu da escuridão
Onde um dia fecharam meus olhos tal dia
Em que a luz nos aqueceu e nos cegou com seu clarão.

E do que nos cegou se extinguiu e se perdeu


Infinito no céu que só o sonho alcança
Palhas finíssimas que o vento e o calor embalou e adormeceu
E se esfumou qual acorde sonante de música de dança.

Dançando se foi e se embalou e se afastou de mim


O sol que outrora brilhava nos meus olhos de manhã
Apenas a escuridão e a febre fria erva ruim
Alma daninha turvada e seca licor veneno de hortelã.

A morte a mostrar-se e a esconder-se o manto escuro


A sombra húmida gotas de terna palidez
Cinzas do caminho esmeraldas de musgo no muro
A vida a encharcar-se de veneno de espanto e sordidez

A saudade do vento e do calor ess’outra luz


Pilhas de baças recordações paradas sós perdidas
Na bruma imóvel pancada que me esmaga e me seduz
E se me mata me dá vida aos éteres de outras vidas

O inocente insulto dos jardins de Outono os namorados


Os olhos vazios dos namorados a lisura de tudo
Desencanto do encanto bucólico dos poetas passados
Sentados no jardim do seu tempo cruel e agudo.

Das folhas que caíam e das pétalas os céus caíam


Caía eu próprio com as folhas e os céus
Sanguessugas do mal que me sugavam e me atraíam
E num só tempo me torturavam e cobriam
De rosas de espaços puros silêncios rasgos meus.

Sombrios destinos os do poeta tolhido de surpresa


Húmidas calçadas alegrias breves uma em cada esquina
Cópulas frias encharcadas de suor e de vileza
Tão longe da paixão etérea doce amarga leve e fina.

8
Pequenas fontes diárias de orgulho e fantasia
Pobres enganos miseráveis feitos de nada
Que logo é tão só cinza inerte e fria
Restos do nada pairando adormecidos na alma desgraçada.

Os corais imensos de barulho estranhas trombetas


Que a massa bruta filtra na sua cor cinzenta
E deixa sobre a terra nas esquinas nas sarjetas
A lata urrante e a lama roxa humana e pestilenta.

A nódoa roxa mancha do mal na fresca carne


A nódoa humana tão inútil tão fria tão parada
Tão a mesma que se encontra sempre no cerne
Da pútrida ameaça crua e desarmada
Que é ela própria a própria história da carne.

Pequenas fontes diárias de prazer de calor e de gordura


As pregas quentes na humidade fria da manhã
E os gestos fluidos na agonia ténue da brandura
Os lençóis rasgados encardidos amarrotados no divã.

Quanto esquecimento que eu soubera perdido


E que perdido se tornara grande e azul
E que era já um doer constante expandido
Uma saudade singular do sol dos mares do sul.

De novo no tugúrio onde sempre chafurdara


As ruas cobertas de vapor às vezes de nevoeiro
As falsas virgens tudo o que lhe mantivera e repugnara
Construindo edifícios de vapor ligeiro.

A recordação o sentimento e a chuva pouca


A arcada da tristeza chaga da alma degradada
Já um suave ruído distância da voz rouca
As vozes do silêncio e em volta a bruma lenta estagnada.

Daquilo que fora da bruma imaginara se poder passar


Não importava já o que havia a passar passado estava
Entre o cinzento o nevoeiro e a paixão longínqua a vontade de cantar
O nevoeiro e a paixão e o esquecimento da voz com que cantava.

O que antes fora parque de alegria inumerável


Era agora apenas sombra sob o manto escuro
A magia do sítio a agrura impalpável
De saber curto o tempo e o fim prematuro.

9
Rondava ronceiro os limites da morte
À noite e de manhã adormecido e calmo
À tarde ao fim da tarde num limite mais forte
O cansaço o enorme cansaço a ideia da morte
Às vezes o delírio de medir a cova lamacenta palmo a palmo.

Fugia-me o teu rosto no enorme trovão


Do desgosto de ser ou ter sido o maior
E por ser grande fácil ser perdê-lo na ilusão
De que perdido se eterniza e vive o mais sublime amor.

Não sonhava já ter-te nos braços delirante


Basta-me agora a alegria do sonho que deixaste
Que a própria erva nasceu mais verde e mais brilhante
Precisamente lá na marca do sítio em que a pisaste.

E ficava por fim numa espécie de caldo


De memórias de líricas e as mais taciturnas
Uma espécie de excesso uma espécie de saldo
Assombrando-se em espasmos de imensas mágoas nocturnas.

Quando adormecia sonhava sonhos escuros desvarios


Quando sonhava acordado sonhava e acordado adormecia
E o meu sono eram só cardos bravios
E o teu amor uma roseira enorme que arranhava e que crescia.

O calor em que ardia esse Agosto algarvio


Essa chama em que ardia o meu peito
Esse Verão que secou todo o cheiro a bafio
Em que a chuva abafara o meu sonho desfeito
Era ele por ti a razão deste cantar macio.

Era ele esse Agosto a tristeza da própria escuridão


Sem a luz que lhe podia divertir e iluminar
Sem o acaso feliz ao alcance da mão
Que eu por saber longe e impossível quisera acreditar.

Ficava sereno nos limites das tardes


A brisa do mar temperando o calor soalhão
As flores e as ervas secando em castanho de Verão
A solta labareda em que eu ardia e tu ardias e ardes.

Falava de um Agosto esquecido quase morto


E de um Algarve que eu quisera cantar em versos mais floridos
Se o que brilhasse dentro do meu olhar absorto
Não fosse a cicatriz aberta dos meus passos perdidos.

10
(6)
O meu amor é um silêncio sem tristeza
Sem palavras demoras não me esperam
O meu amor já não é nada além da fortaleza
Vazia toda muda e cega na beleza
Das coisas que de dentro a dilaceram.

É só pedra nua já delida


Mar que se vê ao longe inalcançável
Razão que se adivinha perdida.

O meu amor já não precisa de existir


Já não precisa de viver na claridade
É um silencio de nada a confluir
P’ra nada algum que está p’ra vir
P’ra nada algum que se afasta sem saudade.

Antigo como a terra morrerá


Velho de ser o que nunca foi
P’ra ser silenciosamente o que nunca será.

(7)
A esperança dança envolve
Debruando a oiro o escuro poço
As almas dizem adeus ao mundo
E vão olhando o seu não existir
Mas resta o ser e triste vai
Como errantes peregrinos do amor
Ouvir ainda o salmo roxo
Do que contem toda a atribulação
Espera a esperança espera e vai
Sozinha alimentando-se de si
Roída e maltratada vai e ri
Sonhando o dia de amanhã
Manhã que se adivinha rir
Do sonho que sonhou.

(8)
Moiras que no meu ser habitam
Nos recantos frescos do meu ser
Emudecidas a vibrar
Pétala de quina a enrubescer
Forma vadia dos que no ar transitam.

Moiras do meu penar


Novel carmim nos campos que se agitam
Sereias que emergem ao amanhecer
E no meu lento acordar se estreitam
Antes que eu veja o Sol brilhar.

11
Restos do paraíso por haver
Restos de um nada que ficou no ar
Olhos meigos e distantes que me fitam
Sombras de um sonho que ficou no mar
Dado o seu destino superior de morrer.

(9)
Ao infinito que prolonga as mãos
Quando num gesto de derradeiro adeus
Traem a esperança do reencontro
Mais palavras de nada ao infinito
E simples como simplesmente arder
Palavras meu amor p’ra dar a quem
As possa ouvir
Coração contigo meu desastre
Em palpitações vitoriosas e dúbias do ser
Um pouco de um fragor
Do qual o Sol foi testemunha e carrasco
E do qual há-de vir a ser sombra
Quando a alegria de um refresco
Fizer rejubilar no ar a calma tropical
E o ar caliente ondear no ar
Na amável perspectiva de oculta praia do Brasil
E sob o véu das terceiras intenções do momento
Tão invisível sombra em manifestação
– o amor – meu doce amor aspergido
Por a relva abundante do mundo
Desperdiçado enfim por finalidade
Ausente e fixo.

(10)
Sendo o que de ti já não sou mais
Meu amor dissolvido entre mil caras
Meu barco sem mar e sem arrais
Brinquedo inanimado.

Colecção de coisas raras mas banais


Arrumadas em monte entre a poeira
Meu amor que não verei jamais
Brincar contente nos carrinhos da feira
Pateta amordaçado.

Meu amor que jaz no meu olvido


Criança que nasceu sempre a chorar
Brincando no planalto ressequido
O sem sabor de não saber amar
Amante imaginado.

12
Ser o meu amor um convencido
Um esgar de desalívio superior
Um eco só de uivo constrangido
Ser o ciúme o amor do meu amor
Anátema finado.

Sendo o que de ti já não sou mais


Amor que lento e delirante amaste
Meu amor difundido entre os umbrais
Sou um pouco daquilo que não foste
Palanquim doirado.

(11)
Falo do alto de um penedo azul e terra
Balanço os olhos e a imagem que resulta
É uma ira calma uma surdez divina
O vício erra
O mestre exulta
E triste se reveste de folhagens a menina.

A pássara abundante abraçou-me de frutos


Corri entre o ruído o mundo em minha mão
Nos olhos de cristal da hidra azul
Restos de putos
Desatenção
Refinaria imensa das ideias do sul.

Corri como quem joga e ganha e perde


Procurei no delírio asas astutas
Para cortar o vento das castas altitudes
Rios de vinho verde
Carrosséis de putas
Falsas amarras imaginadas e rudes

Ou seja:
Mais por nuvens do que por vicissitudes.

(12)
Densos anéis de espuma fluida
Que se desprendem de uma filigrana
Perdem-se os ares
Pesam no seu peso os pesares
E dançam sobre salmos de fria chama
Sob a doce vista alma se cuida.

13
Inventa a luz a força que lhe resta
Não estávamos já em parte alguma
Pobres perdidas
Desencontradas no patamar das despedidas
Choradas em silêncio a uma e uma
E outra e outra que não presta.

Tudo junto infelizmente não dá nada


Dará talvez um nada que enche tudo
E apaga o rasto
Que denuncia a rota de outro rasto
Que deixa na areia enquanto mudo
O velho da montanha a traça errada.

(13)
Começa uma era de pura aldrabice
De contínuo engasgar do artigo
Sem saber onde guardar de uma vez a trafulhice
Para poder enfim coçar no umbigo.

Começa a continuar esta mesma meiguice


De um puro olhar por detrás do postigo
Um puríssimo esgar na boca de um mendigo
No eterno entreolhar entre tanta imundície.

Rimas é que eles gostam rimas é que é bom


Eu coço-lhes o cu
Eles riem-se de mim mas eu é que sou bom.

Que pena não haver luz p’ra ver a olho nu


A longínqua verdade do magneton
E rir de tanta luz no mar de Onolulu.

(14)
Fugazes os tempos que entrelaçam a vida
E rudes os momentos de a viver sem graça
Sem o púrpura e a ave branca que esvoaça
Sem deixar de ser branca e vil e encolhida.

E a morbidez dos lagos onde podre e baça


Flutua a pedra preciosa fácil mas perdida
E a rosa por sobre os céus demais erguida
Para humilhar os recantos imundos da desgraça.

Cercado de mosquitos de valsas e fumaça


Rondado por negra paz impávida e esquecida
Virado p’rà janela onde o vento espreita mas não passa.

14
Recordo a virgem de verdura que se julga traída
Distingo as ratazanas e os vestígios da traça
E reconto a mentira inteira e despida.

(15)
Mais que aconteça agora
Posso bem dizer que é nada
Possa agora eu cantar a dor amargurada
Como um pássaro pousado que chora.

Como a cigarra sob o Sol queimada


Amarelecida entregue toda ao canto que adora
Seco como um galho quero cantar como quem chora
Os versos secos que não dizem nada.

Não tardará que a chuva caia lá fora


Não tardará a cair sobre os telhados prateada
E a forma um dia ternamente imaginada
Acabará por dissolver-se evaporar e ir-se embora.

(16)
Foram nuas as ruas e de escuro
O primeiro anel foi de laranja
Doce de Espanha quando ainda
Era a primeira vera inverno era
E a primeira festa as ruas nuas
Lembro que não era de tristeza
Como sempre as almas mais ali
Vivem de festa tornando-se tortura
E foi assim que as horas se passaram
Nesse passo que primeiro dei
Amor eu não chorei nem choro
As lágrimas secaram-se de ver
E correm-me agora nebulosas
Densas por dentro do amargo peito
E fora deixo-as tristes não correr
Mas já bem fora digo mal sentindo
Que outra vez ainda me despindo
Quisera ser criança e chorar
Oh! Amor se fosse fácil amar
Tão como é fácil sofrer
Se o céu fosse fácil de alcançar
Como é fácil o negro de descer
Não teria sido em vão um dia
Ter tido a ilusão de te pedir
Apenas luz e mais não querer
E vendo o quanto que se fez de negro
E pelo negro ser o mais além
Melhor seria nada querer
Melhor teria sido suspender

15
Do ar o sonho e desta vida
Sem um adeus a mais me despedir
E nua disse a meia-lua roxa
Folha rasgada chuva inocente
Já choveu.

(17)
É com certeza loucura ir assim rasgando
Com palavras inúteis a tira do tempo
E com elas rendilhando a paciência
Compondo insano o fim de serem elas
E sendo-se serem-no e ser isso interessante
Porque no fim é ser que interessa
Mesmo as palavras ditas
Inutilmente
Ditas inúteis talvez
E mastigadas
Até perderem inteiras o sabor
E por fim serem
Histericamente alçadas
E em frenesi deglutidas.

(18)
No dia primeiro que fui à escola bem me lembro
Desenhei um barco e parti nele pelo mar
Da ilusão e naveguei por rota sempre incerta
Até chegar ao porto da idade de homem.

Não procurei mas desejei ardentemente ver o porto


E quando o vi quis inutilmente fugir dele
Mas a corrente arrastou-me até tão perto
E com tal força que tive que segui-la e atraquei.

O meu barco embateu com violência na muralha


Estatelou-se e mais rangeram os seus madeiramentos
Nesse dia do que na tempestade que afunda tantos barcos
Quando navegam desorientados no mar da desilusão.

O comandante sem fé se atira ao mar


E grita para tentar afogar a água do mar
Mas desde a amurada até ao mar
O grito se desfaz e é inútil esgar.

O barco navega então sem comandante


E afunda-se na onda do desgosto
E a tristeza original suga-o para o fundo
E nessa hora só Deus o poderá salvar.

16
Mas a seguir à tempestade vem a calma
O mar da ilusão sucede ao da desilusão
A ilusão faz da tristeza uma boneca
E a vida é a menina que com ela brinca.

(19)
Sujo e abandonado
Encolhido no passeio
Faminto e desesperado
Dividido pelo meio.

De um lado vendo o contorno


Do outro a coisa real
Retorcido como um corno
De cabra setentrional.

Na paz do meridião
Não há paz para quem ama
Não há luz no coração
E é por ela que ele chama.

Se é preciso sofrer tanto


Para jamais ser feliz
Então chorai o encanto
Destas manhãs primaveris.

Chorai e suai o Verão


E deixai que se amole o coração.

(20)
Visto o que já foi visto ser de vera lá
Linguagem que te canto por ti e o nome eu
Não sei ainda exactamente o que é
Aquela risca é mais bonita e vê-la vou
Rosto na pedra se que animada vida
Dois de uns e doutros de diferença não se tem
Oh! Rouca oh! Louca vem me dizer quem sou
No frio que passa o bem esvoaça e troca de sinal
Vem o cão do berro berra e o sinal que foi
A ameaça também passa e com desdém
Traça os motores do mundo e gira tudo
Como que partido
Algures se cruzará este sinal com outro
E o mundo todo estala em desarranjo
O líquido evapora e depois se espalha e molha
Tudo parece estranho e é como parece
Leva a louca estrada da loucura a estrada estranha
A noite se debruça e lagos pálidos reflectem frouxa luz
No céu as nuvens formam brasas
E os pássaros piam outros gritam outros chamam.

17
(21)
Quando o ser está estendido
Vem a bicha e amarra-o
Sorte que dele nada se mexe
Às vezes é preciso rememorizar
E ninguém morre de taquicardia
E está tudo pronto para reviver
Alguns retratos de tempos que já lá vão
Lavá-los ainda mais uma vez
Ressuscitar os mortos sem oração
Renunciando à vez de orar por eles.

Ficam os corpos estendidos no deserto


Quando os exércitos abandonam a batalha
Esses heróis que ficam
Não agradecem ao rei que os mandou combater
Estes poemas criados para morrer nas batalhas do ser
São verdadeiros heróis serão melhores heróis
Apenas porque a tropa do inimigo
Tem o mesmo rei.

(22)
A mim o que me invade
É a evasão
Melhor a deserção
De ter que ser alguma coisa o que me invade.

A mim o que me invade


Não é nenhum desejo
Não é nenhum amor
Não é nenhum lampejo
Nem nenhum fulgor
A mim o que me invade é o lazer
Melhor
É o jazer
Nenhum
Outro que seja algum qualquer
Me invade.

(23)
Por um momento a saudade me desfaz o coração
Daquela vida de viver no céu doirado
Do oiro que o verdete corroeu como se fora cobre
E do vermelho o negro que de cinza se tornou
Nessas cinzas em que uma vez mais ainda da prisão

18
Nesse momento o coração se arrebatou desfeito
Um sonho de muitos que se ouviram na noite
No sono de alguém que eu já morei
Naqueles sonhos de alguém que eu já morri
Naqueles gestos de loucura que matei.

(24)
A vida pára e depois
Vem um lamento
Que é o eco do momento
Em que a vida se foi
O corpo vegeta e dá
Lenha que arde devagar
A chama já morreu
A brasa consome o resto
Do que ficou de ser eu
Não me revolto nem protesto
Ergo na mão o facho
E digo adeus.

Talvez o sonho ameríndio


Venha fazer-me lembrar
Que apesar de nisto estar
Pese embora o que passou
O momento não chegou
E até sinto admiração
Pela triste situação
Em que me retrato aqui
Pelo que eu nunca senti
P’lo tanto que já sofri
Por esses anos aí
E ainda não morri.

(25)
Até fica mal pensar
Certas coisas em que eu penso
Neste delírio imenso
Que nunca pode parar
Mas pior é ficar tenso
Na intenção de evitar
O pensamento suspenso
Só serve p’ra se cansar
O pobre do corpo denso
E o pensamento ficar
Escondido por trás de um lenço
Transparente e exemplar
Do engano que é o bom senso.

19
(26)
Tanto amor esgotado se derrama
Nessa rua cinzenta fim da tarde
Onde entre a chuva corre a lama
E corre o amor que se mantém da chama
Que de desejo arde.

Uma ternura chama doidamente


Entre os sulcos molhados prisionais
E se percorre recordando docilmente
Quem a comanda longe e já ausente
No país das noites estivais.

Lá se desfaz o manto escuro


E se assemelha à vida
Roendo a base sólida do muro
A estreita via em vão procuro
Enquanto sinto latejando a ferida.

Se penso no seu doce vir


Logo se liga a veia delirante
E num minuto deixa-se esvair
E fazendo-me sorrir
Deixa-se errar errante.

Longe no chão distância


Perto no ar que se distrai
Aroma azul fragrância
Rosto calado em ânsia
Num esgar se mancha e se contrai.

(27)
Passa a vela da noite muda
Manhã e tarde se esconjuram
No mal é mel o que lhe acuda
O bem que a dor lhe iluda
Além por ser além perduram.

A mancha imunda sempre tenta


Manchar a pureza do leite
Mas a brancura frágil se sustenta
Equilibrando-se se heróica se aguenta
E em ouro por fim se entrega aceite.

Todas as pitas e os cardos vão


Desenhar sangue na sua pele
E joga o risco comedido então
Segura sempre de se ter na mão
Olhando livre o vento que a impele.

20
Quanto melhor seria não jogar
Quão bom seria só permanecer
Na branda quietude do olhar
Na atitude de nada se esperar
Nem nada desejar ou querer.

Mas também isso é jogo


E por sinal não há melhor
Do que tal forma de servir o jogo
De jogar sem se queimar no fogo
Que arde sob os pés do jogador.

(28)
Como é faminto o tempo
Das emoções do sangue
Das cenas do teatro da vida
Essa fatia cheia de rir
Ele a devora e essa água
Correndo saltitante e livre
O dessedenta
Essa água que lava a dor dos seres
E mata a sede ao tempo
Como é sedento o tempo
Do licor em que fermenta
A fantasia.

(29)
CARNAVAL

Acordei de um sono incomodado


Sonhei um pouco antes de acordar
Sem perceber que já estava acordado
Depois ergui-me na cama p’ra tocar
E toquei algo que já antes havia tocado.

Mas a melodia que deveria ter tocado


Não a toquei porque não me ocorreu
Ocorreu-me só quando já estava levantado
E foi mais outra manhã que se perdeu
Uma bela manhã de um dia feriado.

A minha máscara diurna encandeada


Com o Sol a bater às três da tarde
Na máscara ainda estremunhada
Com os olhos por demais a dar alarde
De uma noite anterior muito mal passada.

21
Porém hoje é o dia
Em que todo o homem pode ser palhaço
A palhaçada comum da cobardia
Está interrompida para estardalhaço
E isto fica tudo uma enxovia.

Alucinei um pouco entre a enxovia


Sem trepidar com a trepidação
E depois vim-me estender nesta cama vadia
Distante já do meu próprio coração
Distante até do que seria o pretexto da poesia.

(30)
O FERROVIÁRIO

Há-de vir o dia


Aqui por onde passa o comboio
Brilhará a impressão fugidia
E o Sol em seu apoio
Brilhará para fazer brilhar
Uma agonia
Dor que se acoita atrás do olhar
Que brilhará também quando for de dia
Nas ervas que estão secas e nos charcos
Nas hortas nos montes e no mar
Nas ondas que fazem balançar os barcos
Em tudo há-de brilhar o meu olhar
E a minha ardente instância de partir
Brilhará na vida que se estende por aí
E o meu sorriso apenas na vontade de sorrir
E na certeza de que não parti
Brilhará no que existe e no que não
Nas estrelas que vão adormecer
E na toada fina da canção
Que anuncia docemente o amanhecer
Triste e cinzento o horizonte brilhará
E depois dele o céu que brilha mais além
E a estrela da manhã despontará
E nela os meus olhos brilharão também
Na terra no recanto mais escondido
Brilhará o que morre mansamente
P’ra renascer ainda mais fortalecido
Dentro do coração de toda a gente.

Na luz que já desapareceu


Não brilhará o ferroviário
Porque está todo sujo de breu
E não faz parte deste calendário.

22
(31)
Altos convénios astrais
Despedaçai-me este palhaço
Incapaz de fazer rir as crianças
De dar pinotes desastrados
Que suscitam a perplexidade
Despedaçai-me todo
Altos confábulos nocturnos
Se tem de ser
Fazei de mim a erva
Fazei de mim estrume
Deixai crescer a erva
Feita de mim esperança que foi
De ser ilusão
Dai-me mais uma
Entre mil caras que já tive
E uma noite para viver
Altos convénios dai-me a canção
Trazei-me a glória de edificar
De boa fé e sã vontade
A estátua eterna
De um deus irmão
Dai-me a ternura para sorrir
Cruel viver seja candura
A amargura do meu viver
Dai-me a divisa
Altos convénios astrais
Remurulhais na noite
Sei que aí estais
Insectos dos abismos
Contra os quais
Será inútil a minha submissão.

(32)
Os olhos remexem incessantes procurando
Um canto a outro nada que se esgueira
Olhos que são só sombra
Sombras que se esfumam de um olhar
A fama paraíso se desliga
Era doirado o sol e se desfez
Mas logo resta o céu e interposto
Vem vermelho sanguinar o já.

Se a fantasia é tê-la em baixo encarniçando


Quando ao cimo se levanta de outra cor
Virá o sol a ser a flor que o rio levou
E só a erva brilhará secando
Que a flor morrendo
Leva-a o rio já.

23
Quanta corrente passa devagar aos olhos
Depressa lá barca desliza
É louca a vida no rio em que deriva
E quanto o esquecimento que no mar…

(33)
A chuva não parece tão forte
E se ela é forte lá fora
E cá dentro a queda enorme
Que se começa a prever
Ainda a paulada sobe
Uma subida ao contrário
Sobe em queda flecha enorme
E a flecha cai em vertigem
E desafia a imagem
Da forte chuva lá fora
Cá dentro sempre é de noite
Cá sempre está morto e só
Sobe e desce noite e dia
Mas permanece no vago
Onde a chuva não se precipita.

Amaina então lá fora a chuva


É fraca agora é insignificante
E pára
Só nos sulcos molhados dos telhados
Pingue-pingue pinga para o chão
E pára completamente.

Sinto o impacto da queda prolongadamente


Quedo-me em mim mesmo e a queda fica
Dentro de mim que a sinto anuviado
E nela procuro me desanuviar
Numa nova maneira de ficar aviado.

Apodrecido eu que jaz conforme


Emurchecido rasto
Arcanjo imaculado que dorme
No que de dia finge viver
E a vida dia a dia faz enorme
E perde-se-lhe o rasto
Sem querer.

(34)
Gostava de saber de uma certeza certa
O que me faz cantar
E confundir as vozes que ouço a vozear
Com uma voz maior
Única e superior e que me faz cantar
A ilusão heróica

24
De uma agonia lenta que se prolongava
Inútil iludindo
A busca do momento que parado
Faz prolongar um som.

Gostava de saber o céu caindo


O som vibrando
A canção se construindo e destruindo
Sem construção
E tudo se desmoronando na quietude
Do chão que eu ando.

Gostava de saber dizer por que razão


Sem razão me cruzo pelas ruas
Tendo a recordação
De ter nas ruas nuas um sonho passeando
E sobretudo sim
P’ra quê sonhar
Gostava de saber.

(35)
Quanto melhor é não saber do que saber
Não tem medida
Poder sonhar e não ter medo de dizer
O que é a vida
Como é enorme e forte esse saber
Que esmaga a vida
Quanta ilusão desfeita
Numa certeza
Quanta incerteza
Nesse saber que se avizinha
Que se soubera era
Já não lembrar o tempo breve
Que o tempo apaga.

Camisas ao vento
Cabelos longos
Curtas instâncias
Permanentes
Que o vento quente
Aquece num instar
Luar distante
Instante lua
Nau que navega
Sem pensamento.

25
(36)
Parece não ser ninguém
Dele nunca nada vem
E no entanto é maior.

Tem o poder de suspender


E às suas garras prender
As almas em suspensão.

No ar forma um labirinto
Que é às vezes o que sinto
Quando em que pensar não sei.

Mas depois de perceber


Que nada vou receber
Que ele a ninguém nada dá.

Já ele foi nada é


E eu escorrida a maré
Sou o que ele nunca foi.

(37)
Sentai-vos em frente das praias
E não vos aperte nenhuma saudade
Nem um pensamento a cabeça
O mar sim
Em frente do Clousiot
Branco como cal ide além
Da praia que é mero suporte
Chorai o que regressa lá
E não o que partiu
Não deixeis cair as lágrimas
Que não vale a pena
O sortilégio as fará vapor
Interior vapor do olhar
Vede o mar sim
E olhai p’ra ele.

Não há muralha nem passaporte


Ide no ar
Passai além do vento que as divaga
Pronome de princesas em voo
Lento e belo sobre a terra
D’além nos vem
Onde se quedam paradas as princesas
O seu lento bailado nos vem
O mero olhar tende a ninguém
Só ele a si dará sustento.

26
(38)
Pode um poema morrer
Outro virá
Pode um morrer na ideia que vai já
No rio que para baixo vai
Sobem as vozes para o céu
E o poema que morreu
Será.

Talvez seja outra a sua vez


E esperança há
Não pode o poema ir no fim
Projecta-se no fim
De quem o fez
E aí um dia viverá.

Uma e outra ideia vem e se desliga


No espaço outras ideias esperam
Quem as diga
Quem um dia à terra as faça vir
Viver só em ideia nas cabeças
Dar uma mão ao coração que as sentir
Até um dia morrer de ser antiga
E é por isso certamente que há quem diga
Ser o poeta o bem amado de deus
Porque nele não se vive a vida
Mas a ideia que depois dele vai viver.

(39)
Chega a meia-noite
E o sono não vem
Passa a meia-noite
E a noite também.

Fica o mesmo torpor


Das antigas faienas
Mas sem ter o calor
Das pedrinhas pequenas.

A caneta liberta
Risca a folha ligeira
E parte à descoberta
De uma nova bandeira.

Corre pelo papel


Como sendo um patim
E a alma em tropel
Sai de mim para mim.

27
E eu sou uma estrela
Cadente no céu
Mas impossível vê-la
Encoberta no véu.

Da sua inexistência
E do meu desencanto
Desta incontinência
Com que em vão me acalanto.

Sempre a noite sobeja


P’ra quem queira vivê-la
Nova manhã se almeja
No brilho de uma estrela.

Rimas fáceis eu sei


Tudo é fácil na vida
Difícil é ser rei
De uma pátria perdida.

Tudo é fácil na vida


Difícil é viver
Numa reconhecida
Vontade de morrer.

Madrugada demora
Meia noite é passada
Consumida hora a hora
Devagar mastigada.

Fica o cheiro do tabaco


E a náusea da saliva
E o sem fundo do saco
Onde entra a comitiva.

Os meus sonhos primeiro


A insónia depois
O relógio e o ponteiro
Entram juntos os dois.

E depois entra a morte


Que estava lá no fim
E junta-se co’a sorte
Que anda ausente de mim.

E não se vê mais nada


A nordeste do mundo
Porque a noite é pesada
E o saco não tem fundo.

28
Um cigarro conforta
Na noite a solidão
Faz fechar-se-me a porta
E mal ao coração.

Mas enfim há-de ser


O meu próprio devir
Como Deus o quizer
E a vida o permitir.

(40)
Imponente sempre aqui onde estar seja além
Sábia presença invisível
No meu sono vigília de um deus
Propósito eterno e divino do sonho
Do sonho estar lá ôôhh!

Dia após dia tece o sonho a cadeia da vida


Como uma aranha a tece e talvez mais lentamente
Arduamente sonhando
E a fantasia se derrama inesgotavelmente
Como a luz sobre as suas cabeças
A fama ideia que acalenta as cabeças
E a fugidia rama
Dia a dia a incerteza cava a cova
Onde a morte estaca informe espera um dia.

A água sem cheiro parece doce


Àquela boca esbranquiçada e seca
Auto-apodrecida pós-escorbútica
Muitas e longas vezes aberta em esgoto
E trespassada acidamente pelo vómito
Cena cheia de um tudo incomodar
Que cria o amor do nojo
E o nojo da repugnância
E ela só origem de si própria
Tira-a o actor da sua tristeza
Nojo de um dia que ainda não veio
Bola sinistra pára o rodopio.

(41)
Rosto arrojado em viagem eu bem
Cerce é a malha que se faz bem e vem
Redividir os esparsos e sempre poucos partos de virgem
Que ninguém
Pode ver que padecer só p’ra criar aquém além
Seja também
Sagrar o tempo que passou e assaz no vento que já vem
Deixar flanar as flores amadas do bem.

29
(42)
Sonho que voa entre dois mundos
Sonho que voa entre dois mundos
Sonho que voa entre dois mundos
Mundos virão ver o que eu sonho
Entre mil mundos que não sei
Sonho emoção do meu lembrar
Que amei.

Quero ficar junto do cais


Ser a lua a crescer sobre mim
Quer’ delirar toda a noite
Até que o desgosto me renasça enfim
Numa manhã de primavera
Noite sombria iluminada
A lua reflectindo-se na água
O monte é o fantasma que me espreita e
Assiste à minha mágoa.

Cada verso que escrever deste poema


É um fio da mortalha em que me envolverei
Um simples fio assim como uma amarra
Que vida sobre quem me traz pesada
A dor que jamais confessarei.

Se o peito me ceder a força


Eu escreverei versos para amortalhar
Confesso a parte mais estreita
E deixarei livre o grande amor
Soluço de uma dor que não é dor
Escreverei versos para amortalhar
A vida que de dor não poderei matar.

As páginas voam como asas


De loucos passarinhos sem ninho
A água borra a tinta e ela perpassa
Numa réstia de sonho passarinho.

Algum dia vi o Sol a rir


Como ele sempre ri – o Sol
Acompanhei-o sempre o meu destino
E sou o que o Sol deixou cobrir
As nuvens não o deixam já brilhar
E eu que o não posso procurar
Jamais deixei de amar.

Sempre me olho com o mesmo olhar


E já não sei olhar sem ser assim
Já não quero mais que o meu olhar
Venha apiedar-se de mim

30
Quero olhar o Sol
Das varandas do meu sonho
Quero ver a luz
De encontro aos patamares
Quero beber nos bares
E ver o meu amor a despedir-se
Acenando com a mão vazia
Que tão logo que acordar
Seja p’ra mim já não acreditar
Que ela esteja a pedir-me p’ra voltar
Quero ver tudo assim no impossível
E não correr para a manhã
Porque é terrível.

O meu cachimbo o meu cigarro


Desperdiçado
O meu amor transado
À esquina num subúrbio
Numa rua escura
Nalgum beco esquecido
Meu drama consumido
É tudo muito fixe enquanto dura
Depois desaparece
É esquecido.

O meu saxofone enquanto soa


Esquece-me a dor e outra exala
O meu cachimbo requeimado sofre e só
Abala
E o Charlie Mingus na vitrola
Dum bdum bdum deitei-a fora
Já não canta canto eu
E a viola
E o fluido da memória
É que me traz a história
E a minha chama de outro dia
Já vai embora
Canções
Cantarei eu ainda
Milhões
Nenhuma como uma que cantei outrora
Mais que cantar chorei
E ainda a sei

31
Mas já não canto
É pena
Era uma canção bonita
Era a morena
Dos olhos d’água que sequei
Era uma fita
Nos cabelos que eu troquei
Por uma pipa cheia de não sei.

O tempo passa
Eu sou
O tempo voa
Eu vou.

Leves cabelos que eu toquei


Trémulas mãos ternura
Eu duvidei
Carícia escura
Cega de alegria
Luz que brilhou toda a doçura
Da luz que não havia
E que perdura.

A mim podem-me dar


Tesouros em baús
Podem-me confiar
As vossas filhas
Que lhes farei mil maravilhas
Quando estivermos nus
A mim podem-me esquecer
Que eu nunca esquecerei
Podem-me bater
Não me defenderei
Podem-me prender
Porque não há razão
Para eu sofrer
O meu quinhão.

É só um momento
Depois passa
Tudo na vida é um momento
Que se passa
E o sofrimento
Esse é uma graça
Para o que a vida num momento
Devassa.

32
(43)
BELO POEMA INÚTIL

Os meus cadernos enchem-se e vazam depois


E de uns para os outros vão permanecendo incompletos
Mas a minha obra está sempre terminada
Ontem com a coxa hoje nas nuvens com a valquíria
Entre a terra e o céu há uma nuvem de realidade
E os sonhos também eles terminam extemporaneamente.

O dia mesmo em que eu morrer é esse e pronto


Mesmo que não haja tempo para apor-lhe um «fim»
Mesmo que não tenha assunto o dia nem irisados no ar
Nem haja vontade ou imaginação para dizer a frase grave
Que seja a última e tenha essa fascinação
De se dizer precisamente antes de morrer.

Entretanto a vida enche-se e vaza outra vez


E os dias são enfim todos iguais
E os meus cadernos estão todos bem conservados
E a minha vida real a verdadeira está ali
Está toda ali como ela é ao acordar do sonho
Como uma pena inútil do sonho ter acabado.

Maiores e mais pequenas penas vão pela vida fora


Saudades leva-as o vento embora para longe
E o que o vento deixa é que se calhar sou eu
Fulcro da paranóia de isto ser tudo um sonho
De até parecer uma ilusão isto ser tão verdade
E de ser eu o centro desta eternidade esquizóide.

(44)
Os dias são o que parecem ser
Longos e difíceis depois já não
O que são os dias comparados com
Os anos longos e difíceis de passar
Dos quais só fica uma recordação
Os meses também passam
E minuto a minuto as horas
Tudo se dissipa como denso ferro
No alto forno da imaginação.

Passai horas mortas por mim


Passai quartos de hora
Passai por mim
Dias e dias passai por mim
Até que um dia
Naturalmente chegue a minha hora
Chorai horas mortas passadas
Paradas nesta hora

33
Indesejáveis
Mártires langores de uma amada
Qualquer de que sequer seja uma
Amada e deusa estulta
Vivificando a hora adormecida
Em que se procura
A hora adulta
E a deusa escuta e deixa.

Momentos meus irmãos d’além


Momentozinhos
Escorreguem sempre por mim
Não me façais esperar
Vinde até aqui
Vós que do outro mundo
Sois fatal espera
Momentos idos
Momentos idos e vindos
Virai a esquina do meu esperar
Virai a esquina p’ra nunca mais
Eu poder vê-los passar passar
E nunca nunca ficar
E que tudo seja só esperar e ser
A voz
E com ternura vê-los passar.

(45)
O DESCANSO DO ACTOR

Ateu alcandorado ao altar


Máscara branca em desligamento
Retornas do mausoléu das brumas
Mais uma vez o público aplaudiu a tragédia
E o actor pôde morrer em paz
Nas rimas que a sua voa entrelaçou
E que na rede musical dos laços
O suspendeu de alma e coração nos astros
E o tornou apenas leve música
Encantada – os seus suspiros –
…num longínquo adeus personalizado.

Agora ele está a descansar


A sua beleza de actor serviu e maravilhou
As personagens foram belas nele
Mas agora ele está a descansar
A sua alma não descansa
De actor a sua alma não descansa
Mas ele está a descansar
Está nu a descansar

34
É o actor
Está nu já não actua
Descansa.

A sua alma é que não descansa nunca.


Um dia já cansado o actor descansará para sempre
E a sua alma irá actuando
Alma de actor
Nos palcos consecutivos da vida

Sem os pesados adereços da companhia


Nem a semi-obscuridade da comedia del’arte
Nem tão pouco a sua máscara de poeta
Da tragédia del’mundo
Irá por aí sendo uma alma
Irá irá
Irá irá
Irá até.

Irá por aí fazendo brilhar os corações


O actor e a sua alma e a sua máscara
Temente no cansaço e pousada já no descanso
Emoções
Agitação de nada
O actor – árbitro das emoções
Juízo em sua alma plástica.

Óptimo desenlace o daquela zarzuela


Tanto júbilo entre os crentes
Dou-te a minha alma – dá-me o teu coração
Dou-te o meu – dá-me o teu riso
Óptimo riso despropositado
Riso eterno dentro de mim
Dá-me que eu te dou
Salão festa animada troca-te por mim
Nada me dás porque és o que eu te dei
Apaga as tuas luzes – já é tarde
Deixa-me brilhar.

(46)
O gesto se macula no momento
Apócrifo de ribamar presente
Às vezes como sempre ausente
Essa glória instante e presente
De um mesmo sofrimento.

Ou a flor que se aninha no lago


Onde é perdido
Um raro sentimento.

35
(47)
Ah! Imagens que eu deixei
Como me encanta não me lembrar delas
Senão pelas imagens que eu criei
Só p’ra lhes fazerem sombra a elas
E não me lembrar delas
Senão quando irresistível o destino enfim
Se cumpre e se serve de mim
Que em tantos poemas já fui o benjamim
Que em tantos chora
E nalguns… rim.

(48)
A tempestade arroja à terra o cepo
E na malha o bicho se afastou
O olhar meigo já se desviou
E de se usar assim se tornou crespo
E no cabelo o vento transplantou
Alguma imagem que desapareceu
Alguém que desligou e se perdeu
No rumo de difícil continuar.

(49)
O Sol se está pondo
Do lado inverso ao que nasce
E eu estou o olhando não
Só o vendo sem querer
Sai-me das veias o Sol
E vejo tudo a tremer
Mas agora infelizmente
Nada mais tenho a dizer.

36
O CAOS

9 POEMAS
e um post scriptum

37
O CAOS – Poema psicológico e seus sucedâneos (obra póstuma de Emílio Luciano)

(1)
O MÉTODO ESFÉRICO

Não sei mais se das horas das pancadas


Que já não sinto que se diluem
As pancadas surdas que se diluem nas horas
E o que eu sempre procuro sem achar
E do que eu sempre encontro sem procurar
Diluído nas horas vago na existência e no ser.

Como uma nuvem de fumo invisível


O mundo invisível com as coisas visíveis
Por cima da estrutura brutal
As frágeis coisas como bolas de cristal
Como a atmosfera opiácea
Como tudo o que é invisível e impalpável
Mas desesperadamente perceptível.

Não sei se me esqueço


Sei que me depuro do que não me faz falta
Mas o vazio que põe e tira
Que muda a cor da minha alma
Compulsando a peso o erro inicial
O vazio irresponsável
Que é tão grande como a minha alma
E por ser tão grande não lhe cabem dentro
As pastas de que se nutre permanecendo vazio
Está também a mais dentro de mim
E é como uma flor no imponderável.

Quando amanhece o meu peito enche-se de luz


Mas logo verifico que está vazio
E assim continua a esvaziar-se
Até que fique completamente ressequido
Por dentro do débil envolvente
Mesmo quando ouço o vento e o procuro interpretar
E as coisas lambidas pelo vento
Lavadas como se não existissem
As coisas duras pura ilusão obsessiva
Coisas desprezíveis como os débeis arquibolbos que as concebem
Todas as coisas aquilo que realmente dizemos coisas
Não passam de brutalidades fictícias
Angulosos destinos que a matéria desenha e percorre
Enquanto a fútil aparência
Circula ao invés das coisas
E é apenas fútil aparência
Vil recado da ingenuidade
Segredado ao ouvido grosseiro da estupidez.

38
Pode ser vil a ingénua criança
Pode a inocência ser tida por torpe e chã
Simples é a ave que voa e morre
Sem saber que está inocente
Do crime de ter aberto os olhos
Para aquilo que não merece ser visto
Para o que choram os olhos das moças
– que são como os pássaros –
Já sem inocência
As próprias crianças
Incriminadas por terem aberto os olhos
Para o que fede antes de se ver
Para olhar sem ver como eu
E ver que não estou a ver nada
E então ver o que não vejo
E a minha alma rolando por uma cascata abaixo
Adeus minha doce ingenuidade
Adeus minha adorada virgindade
Devassada ante os olhos toldados dos homens
Desnudada para gáudio dos olhos podres
Dos olhos que nada merecem
A não ser o sangue que os banha
Olhos que não merecem ver
Porque vendo só vêem o que está à vista
E o que está à vista é o sangue
É tudo o que não merece ser visto
Mas todos olham para lá
Ávidos como insectos mergulhando no incompatível.
Teria gostado de pintar a palidez
A brancura sem brilhos
Eu próprio dentro da palidez
…a grasnar
Infelizmente a grasnar
Apenas porque enxovalhar a mesa
Onde tantas vezes me deram de comer
Ou porque a avidez do fim do filme
Pode ser o sereno brotar de uma ráfia de paz
Entrelaçando a pálida lembrança
De uma vasta aridez antes de tudo.

As horas podiam ter sido passadas de outra maneira


As horas que estavam vazias
Áleas de amplas perspectivas
Desta ou daquela maneira
Foram enchendo de uma certa maneira
E a minha alma foi-se atulhando de recordações
Saudades do futuro como dissera
Como que a dizer que hoje o diria

39
Foram-se as horas enchendo com tudo
Enredos populares
A trama profunda dos abismos
Até com o raciocínio
– decerto obliterado pela falta de hábito de raciocinar
E de espasmos de ironia
A nova ironia em vez da velha ingenuidade
Como um vagão de entulho
Encobrindo um pequeno charco de sangue.

Mais uma vez o lento tronitroar dos delírios ocultos


Por dentro da pluma midriática
A sombra emudecida
Delírios ocultos como saudades
Do nada acariciador
Do não ter saudades de coisa nenhuma
– delírios ocultos
Caruma dos asilos urbanizados
Em que vou perder o final épico
Do espectáculo civilisatório
O deslavado apodrecimento
De toda a arquivalência embrutecedora
A máquina aberrante
A ruir ofegante e infecta.

De qualquer dos modos – assista ou não assista –


Que fique nítido e em um só capítulo
– qualquer comprometimento
Com esta cáfila que são os meus antepassados e os meus contemporâneos.

Dentro da minha casa é sempre o suor tépido


O mesmo que sempre foi
O destino obstaculizante como sempre o é
E de regresso à minha velha casa
Ele outra vez revestido de invisível
Investido de presente – o agreste
Dentro do pequeno círculo calcorreante
Dentro do presente agoniante e só.

Dentro da minha casa muitos séculos


Afrontando a ausência
Digerindo mansamente a peste do real
Mas o corpo pasto do castigo
A farpa de ternura que é o meu corpo
Sangrando devagar
De pequenos rasgõezitos
Pequenas brechas para o fundo escuro da alma
Sangrando devagar fazendo um fio
Depois outro fio …um fiozinho
Como veias que corressem fora da pele

40
E se desvanecessem no ar
E me envolvessem
– eu que já estou tão envolvido
Mais nuvens cor de sangue
Desvanecendo-se no ar pulverizado
Pudesse eu talvez abrir as portas
Há tanto tempo fechadas
Inacessíveis pontos de partida para o nada.

Já tenho discernido bastante sobre o silêncio


E vejo que também não existe.

Aquilo que eu vejo


Acredito realmente que vejo
Mas não acredito que exista.

Apenas o meu amor que é grande


E se dirige a tudo e deseja tudo
O meu amor que sofre a compaixão
O saltimbanco envelhecido
O meu amor que ergue a cabeça entristecido
Entre os milénios subtérreos
O meu amor que é grande como uma bola
E é generoso demais e perfeito
Apenas ele que é de antes do que eu sou
Serenamente exala
Mesmo aos que me voltam a cara
Eu o endereço generoso e grande
E ao ténue passarinho que ainda hoje me voltou a cara
Eu endereço o meu enorme azul
Que é uma sombra pálida de um outro amor maior
E alucinante
A todos eu o endereço como testemunho
Da minha enorme compaixão
Amanhã quando tiverem passado de moda as calças com pregas
Tudo voltará à palidez constante
E o meu amor sobreviverá
Já sem o calor e a ternura do passado
Já sem existir
O meu imenso amor generoso e amarelo
Consinto-o no peito e sangro-o
Como se fosse o meu próprio sangue
O meu amor perdido
O meu amor volatilizado
O meu amor diluído
Como se eu tivesse morrido
E amar fosse já só uma suave recordação póstuma
O meu amor sangrando em mim
Olho-o e vejo que também não existe
Morreu comigo envolto em ranho e sangue

41
E a música a agonizar no meu fim
É uma dura cruz que eu arrasto lentamente
Antes de deixar crucificar-me nela
E vejo que também não existe
E o próprio destino em que transito desconhecendo-lhe o percurso
Olho o meu caminho como se olhasse a história da humanidade
Contemplo o meu destino e vejo-o
E vejo que também não existe.

Nem aos fenómenos pura ligação imaterial


Eixo invisível das coisas
Eu dou concessão de existir
Passam-se e eu vejo-os passarem-se
Outros não vejo
Uns com um desfecho feliz outros lastimoso
Outros sem desfecho nenhum
Mas eu rodeado de esferas
Vejo-os e é como se não os visse
A minha sombra asmática
Estampada em qualquer irrealidade
Cova abandonada e deserta
Também ela não existe.

Mas então afinal o que é que existe?

O que existe é o método esférico – ou seja –


O método através do qual todas as coisas são esféricas
O método esférico é muito simples
E bastante experimentado pela longa permanência no êxtase
É a única existência e não tem fim
É a espiral tridimensional
No êxtase de finalmente existir
Após ter sempre existido
O método esférico está dividido em duas partes
Em que a primeira é uma lição sobre não importa o quê
E a segunda é o mesmo que a primeira
mas aumentado.
Já não sou sensível às vicissitudes da vida
Só sou sensível aos destinos divinos
Preciso mais de água do que de salitre na barriga
Eu sou apenas uma pluma midriática
Uma farpa de ternura pelas ruas
Entre os outros.

Regresso a casa deito-me


Depois fico a pensar
Penso em mim nos meus pulmões enegrecidos
Penso na minha fútil aparência
É o marasmo circundando o novelo
E as ideias que se distinguem

42
Penso nas ideias e vejo como se tornam esféricas
E vejo que em mim que já não existo
Tudo é muito bonito e esférico
O infinito que parte de mim para toda a parte
É uma esfera de distância
O nada que está dentro de mim
O nada que converge para mim
É uma esfera infinita toda vazia
E o mundo o indizível mundo
Que está entre o nada e o infinito
É uma esfera também
Não este mundinho achatado
Mas o indizível mundo que permanece para além de tudo
Porque é esférico
De tal maneira que a ideia
A própria ideia de o fazer desaparecer
É uma ideia esférica.
Compilo o que existe e o que não existe
E vejo que me cabe a parte que não existe.

As coisas no perpétuo vibrar a vibrar


Dando a ilusão de que estão fixas
Delas apenas conheço a ilusão da sua imobilidade
E a ilusão que tenho de existirem é só essa ilusão
Delas resta-me o prazer de pensar nelas
E o gozo de saber que o pensamento
Não vai alterar nada e nunca vai acabar
Uma esfera lisa sem atrito nem finalidade
Rolando a alta velocidade por dentro e por fora do corpo
Não somos nada além dessa esfera rolante
Enorme e pequenina
Apenas o silencio sem tamanho.

Meu rosário espasmódico meu risoma


Meu cilindro de pena
Arrastando-me nos dias
De pé como numa guerra
Outras vezes como num velório
Meu pobre coração estoirante
Meu rosto civil descoberto
No carrossel em volta do coração
E na cabeça uma estrela de neblina
Que quando brilha suspende a flor e a asa.

Estou de novo sentado no pairante


Quase me esquecia de estar sentado
Esquecera-a isto é
Posso lembrar-me dela como de uma esquecida
Para que ela não exista lá
Nem exista dissimulada nos meus versos prosaicos

43
E seja apenas a nuvem
Ela que está tão longe e praticamente não existe
E os momentos quase um nada esbatido
Que uma miragem etérica.

Amei e amo com o meu amor eterno


O meu amor sem razão de ser
Rua vazia coração alcatroado
Tudo se perdeu e se desencontrou
Tudo mergulhou silenciosamente
No charco alucinado e oleoso
Pequenas estórias grandes dramas
Cadáveres pútridos boiando na minha imaginação
E eu contemplando a fétida abundância
Sou uma metade de qualquer coisa que existiu.

Já estou convenientemente anestesiado


Para me dedicar ao meu extenso amor
Que deixei suspenso no tempo
E que ocupa todo o espaço morto
Como uma esfera de granito dentro de mim
E maior do que eu.

Encontro-me de forma inesperada


Roendo o taloco temporal
O temporal inevitável necessário
Do qual eu sempre estive à espera
O temporal definitivo
A hecatombe desabante.

Eu sou um partidário da auto-história.

Toda a minha bondade provém do elixir agoniante


O calor e a cor da minha terra
E da terra que lhe fica em frente
Quando os meus olhos se deslumbram
E mergulham na incompreensão
Os meus olhos deslumbrados e incompreendidos
Rebaixados à condição de cana de pesca
É uma tristeza de onde provém igualmente
Toda a minha bondade.

E o meu ódio semi-divino


Sem razão de se conter ou se expandir
Sem razão de odiar
Todas as coisas que me vêm por fora
Excepto as que me agridem
E me alimentam a ferida latejante
Odeio-as com toda a força
Mas o meu ódio é em boa verdade

44
Um capítulo insignificante do meu sofrimento
São momentos em que me sinto trespassado por uma nuvem
Opaca.

Resta-me a calma pungente


De saber por uns momentos
O diáfano esplendor arrítmico-harmónico
E algumas forças me restam também
Para flanar inútil
No esplendor e na própria morte
Sempre o mesmo desperdício
A minha modéstia e a minha arrogância
Uma esfera rolando veloz
E outra por dentro a rolar ao contrário.

E eu afinal eu?
Eu que sou o que se pressupõe que seja
O centro de todo o sistema esférico
Eu o próprio sintoma da degenerescência do meu século e da arrogância da
[minha raça
Eu a sombra midriática
Que sou eu senão uma esfera canónica
A pútrida flâmula de um ancestral
Nutrido de um agora
Destituído de qualquer amanhã.

A verdadeira vocação de uma esfera é rolar.

(2)
O RETRATO LÓGICO

Eu sou eu e tudo o que me completa


Incandescência atroz de gestos que me possuem
Amortalhando em vida o meu eu incompleto.

A poesia é uma torrente infinita


Nós somos as suas margens
Umas antes outras agora outras depois
Esse rio que corre entre essas margens que o comprimem
Não fossem os poetas
Seria um mar imenso
Que é o que eu penso das coisas quando as vejo
A poesia não é a arte
É a dor e o desconsolo de estar vivo
O que eu era e o que eu sou
Pouco importa.

Noites e noites a fio


Sonhando com o amor desconhecido
Jovem noivo assassinado.

45
Os céus mais brilhantes que pudesse riscar
De pouco espanto entristeciam a limalha
A agrura da paz do esquecimento
A liquidez da vida vivida
E a própria liquidez da vida imaginada
Rigor absoluto
Fantasma dissoluto.

Arrancando a paz a quantos sacrifícios


Arrancando-a aos pedaços da própria alma
A quantas humilhações preço absurdo
De uma paz rarefeita
Sem existência real no que domina
O concílio comum das trocas das almas
Sem fascínio aparente
Apenas sombra ausente.

Rótula giratória eixo um


Que difunde a aridez no prado
Um entreolhar dos ramos da árvore
A melhor posição de observação
Ou o mais apetecível silêncio
Nos outros a distancia e a espessura
O mais ou menos rendilhado tecnocrático
Que ao princípio cada um descobre o seu
E que depois é igual para todos
Rasgando o próprio invólucro com o pensamento
Sem ter em conta a maravilha
Rigor mortis.

Deste proscénio arrebatado


Descrevo para ti a sólida postura
Dos astros e dos deuses ao redor de mim
Apenas para ti
– crisálida doirada.

Junto aos porcos também me descrevo


Descrevo como se de súbito chovesse
Água e fogo torpedeasse a doce imagem
Do sal púlvico e líquido
Junto aos porcos é que eu me descrevo.

A vida é simples e sem assunto


Voa …voa sem nunca parar.

Miragem absurda esquecida na prontidão do erro


Longamente elaborado
Pudera ser premeditado
Mas não foi

46
Foi um castelo de desejos enjoados
Foi um delito na ordem passional
Foi o que foi e é
Um castigo na carne do corpo
Uma ferida na cor da minha alma
De insecto chafurdante
Sentindo no meu corpo
De canoila vadia
O aroma envolvente da lama
Poisando na lama levemente
Insecto atrevido erro um.

Da custosa delapidação sistemática


Restou o nada que é o homem
A pulsão vital destituída de existência real
Uma força muda
Dentro do buraco escuro
Delineando o percurso interior
E a forma exterior que se lhe adapta
Lentamente erigida como uma estátua cândida
Esculpida a golpes de eterna fluidez
No espaço privado da mais elementar eternidade.

O maior prejuízo dissolve-se no mar do esquecimento


Esquece-se a infância e a viuvez
Esquece-se a dor e a vida
Esquece-se tudo na mesma voragem
Esquece-se até a dívida da maternidade
Tudo se esquece com o tempo
Apagam-se os fantasmas da memória
Secam as feridas com o sol
Mesmo as humilhações se esquecem
As feridas desumanas
As honras e as confianças despojadas
Tudo isso passa depressa
Fica o envenenamento solidário
O rascunho visível do afastamento
A morte enfim de todas as recordações.

Um dia tive a impressão


De ver o meu destino no dobrar de uma esquina
Nos baixios dos prédios vendo a chuva cair
À espera da simples resolução
À espera do que tudo resolve e apazigua
Olhando as montras como se estivessem vazias
Depois de costas para as montras
Olhando a chuva
À espera do tótil
Mais um rimar dos sonhos
Um segundo secular de martírio

47
Intenso martírio dos sentidos
A rima fechada dos sonhos com a morte
Conjecturando sobre a chuva
À espera de mais uma réstia de nostalgia
Na saudade presente e comum
Uma vereda estreita para o estado morto
À espera olhando a chuva
O verdadeiro retrato da morte em vida
No enlace do corpo com o espírito
Uma alucinação rasgada que sangra
Rasgada subtilmente por um espinho do real
Quase uma carícia
Sangrando uma pequena gota
Onde vejo e me distingo perfeitamente
Sou eu
Flanar intenso – ódio manso
Aos poucos resfriando a pele
Construindo a moldura duradoura
A decifrar com paciência
O daguerreótipo perdido nas profundas
Decifrando como a um puzzle – nunca completo
Pedaços de estrume da memória
Adubando a sangue essa cultura
Sem perdão para mim que a cultivo
Sem perdão para os que esquecem
Sem paz e sem perdão para os que riem
Cultivo a desordem das minhas ideias
A harmonia invisível da desordem
O escarro impiedoso da desordem
Estou farto de salitre
Pergunto-me diante de vós
Se estarei suficientemente aborrecido
Pergunto-me e respondo-me que sim.

A esmeralda arfante na humidade


Engastada a frio na massa ressequida
A frio na carne mole
A pútrida aparência sub-pálida
A sombra inútil
Rememorando um dia a chama antiga
Pendurada na parede húmida
Envolvendo com soberba e emoldurando
O velho retrato lógico.

48
(3)
O PROCESSO CAÓTICO

Ai rouquidão rouquidão
Quando sobrevier a inevitável deserção
Escapa-se por entre os dedos
Humilha-se aos cantos das ruas
Troca-se por pouco e padece
Padece enormemente
Rouquidão salivar sócio-crónica
De muitos cachimbos envolvidos no barulho
A rouquidão urbana grave e permanente
A rouquidão sempre
Tudo pela rouquidão nada contra a rouquidão
Delitos ocultos mordazes silêncios
A ironia feminil afável
A inefável ironia dos idiotas
Uma luzinha nos olhos dessas ferazinhas
Escondidas atrás dos mitos da era contemporânea
Os meus adoráveis contemporâneos
Gente de bem na moral e melhor no porte
Tudo pessoal fixe tudo gente honrada
Tudo dentro do quadro social
Do quadro familiar dentro do quarto
Na cama tudo social
Tudo compatível nada de incompatível
Ovelhas asmáticas sobre as suas almas
A chupar-lhes o espírito
Araras brônquicas no chão a sugar-lhes o corpo
O tutano vital até ao entorpecimento
Até à deformação
Até à senilidade
Até à insalubridade mental
Em que todos se encontram com a morte
Quanta diferença faz um homem civilizado de um selvagem
No momento da morte.

Poder-se-á rir com naturalidade


Com a boca cheia de dentes
Dentes a rir tudo a rir
Poder-se-á dizer outra coisa
Ou fazer outra coisa
Insuflar massas de fresco humor
Nas massas entristecidas pela fome
Fazer da rouquidão um contra-baixo
Como se faz nas cavernas profundas
Da invenção do sonho
A pobre natureza rústica dos sonhos
Fazendo soar na ambiência ruidosa
A estridência vibrante

49
Furor de cascas sobre o conteúdo
Exuberante e nu.

Todos uns por cima dos outros


Também em extensão
Espezinhando a paciência
Batendo com os pés na pavimentação
No tecto do vizinho
Todos afobados uns com os outros
A comerem os cadáveres
Bichos
Uns matam outros comem
Os que matam também comem
Tudo cheio de pressa a andar na vida
Civilização de apressados comedores de cadáveres
De militares licenciados
Por um pequeno impasse na guerra
Temos os carros e as motocicletas
Temos os aviões e naves espaciais
Temos colchões
Temos muito ouro nos cofres
E o seu representante na terra a céu aberto
O dinheiro ungido do autentico deus material
Portador dos milagres e dos benefícios
E também grande veículo de ignorância
E de todas as malformações em geral
O dinheiro é o deus vivo
Andam todos atrás dele como formigas
A miséria imanente do meu século
Esparramada na calçada dos passeios
Nos bares e nos cartazes dos cinemas
A civilização da cerveja aos tombos
De bar em bar
Frio na noite e agonia lenta
O abraçar constante da desgraça
A civilização do tabaco
A civilização da neurose
Ante os nossos olhos vazios
Ser-se mortal ser-se mortal
Suprema ternura tão ironia da criação.

Na esfinge sombria em que mergulho


Donde venho a extrair o doce suco
Que mantém sobrecarregado
De miasmas finados pelo tempo
O meu recanto de ser como houvera querido
De ser um namorado no anunciar do Verão
De ser um pássaro fitante
Um pássaro embalsamado
Olhos de vidro no amor ausente

50
Amor vidrado no delírio permanente da saudade
Amor ruidoso e abstracto no clamor da confusão
Arrobo de vaidade distante
Eis o meu amor morto.

Entusiasmo delirante
No meio da rua da confusão do lixo
No meio da enorme draga psico-mecânica
Num delírio perene
Um ruído distante a preencher
O fundo escurecido da sucata
Eu passo sentindo levemente os pés
Passo pendurado nos olhos das pessoas
Passo
Passo para cá passo para lá
Tudo sempre igual
Mesmo quando é diferente é igual
Passo rastejante esfregando-me na lama.

Dar ouvidos a barrigudos?


Esperar melhoras?
Aí onde se mastigam os cadáveres
Brilham os talheres brilham os olhos
Mas a arte está na rua
Nos olhos desmaiados dos indigentes
No meio do caos
Arrastando a poesia pelo chão
Inventando a verve para um novo adiamento
Humilhando as palavras
À vil condição de moeda de troca.

Dar ouvidos a máscaras irrisórias?


Aí onde se agitam os espantalhos
Aí onde se sangra
Aí onde nunca dói mas sangra.

Eu não quero eclodir para coisa nenhuma


Eu quero é estar parado
Eu rejeito a tutela da obesidade
Eu rio-me dos monumentos à obesidade
Eu escarro para a obesidade
Vou por aí destilando a flâmula
Arrastando o cadáver espiritualizado.

A síndrome da raiva não é da minha época


A ruína é que é da minha época
A ruína lenta inevitável e sem esperança
O ballet transido de uma situação para outra situação
De um palco para outro e outras personagens
Uma cena e outra e outra

51
Sempre a mesma tragédia
Vida simples e sem assunto
Pequeno teatro sórdido e malcheiroso.

O rumor da sensação
A extravasar dos sonhos para a vida
Os outros morrem em mim
Uns depois dos outros morrem em mim
Como flores a murchar
A murchar lentamente
Até tocar o chão.

De mim pouco resta


Algo parecia ter acabado
Recomeçando de novo
Como um sempre fim
Um acabar parado
Cristalizado em forma pura
Em tipo um
Tudo parecia enfim encerrado
O tempo finalmente resolvido
O tempo resolvido a esperar
Deus é ao mesmo tempo
Um ilusionista e um matemático
Quando tudo parecia quieto
Uma nuvem de pó ‘inda a pairar
Depois a assentar
Devagar
O fraco choro ainda oculto no silêncio da quietude
Depois a aumentar
Um gemido claro
Depois arranhado
Um grito já
Que então se transformou em autêntica bestialidade
A massa encarquilhada mexeu-se um pouco
Ondulando emaranhando o pó
Depois em convulsão
Até que o espasmo gutural do grito
Arrancou da terra o sangue cristalino
Brotou a água da terra
Mas a massa humedecida
Começou lentamente a apodrecer.

Quantas vezes pernoito no astral


Sem saber que a miragem se executa
Ao fundo a rigidez do mistério
Não sei bem como defini-lo
Sei de umas quantas maneiras de não saber defini-lo
É como uma algazarra de primatas
Demasiado impressionados com o que vêem

52
Confundido o que vêem com o que não vêem
Por aí sem saber porquê
Palavras chamadas ao momento
Por designações do momento
Epistemologias flácidas
Palavras doces para tanto agreste
Palavras das maiores
E das mais vulgares
Sempre numa mesma união
De inexistir para nada.

Palavras por palavras antes as opacas.

Se o raticida não for suficiente


Podem dar-lhes tabaco ou álcool
Podem dar-lhes droga
Que já não adianta
É como um barco que atravessa o rio
E de uma margem para a outra
Sempre deixa alguns em terra
Aqui alguns são quase todos
Em terra gesticulando
Um filme mudo de gestos impotentes
Enfurecidos por qualquer coisa
Uma desculpa para dar à fúria animal
Vendo os quase nenhuns
A afastarem-se da praia
Para a outra margem…

Eu não sou o arauto da minha geração


Sou a vergonha da minha espécie.

Com o tempo
Irei ficando também cansado e emudecido
Cada vez mais envolvido
Já depois interpenetrado
Completamente estarrecido
Cansado e mudo.

O meu universo é todo transparente e vazio.

O caos é imenso e opaco


E toda a minha voz
É um auto de acusação contra a humanidade
Mas a minha voz é uma flor rouca
Reformulando o caos
O caos que não tem forma
O caos que é a própria prisão
Que é a mordaça gigantesca
Os humanos eles também parte do caos

53
Todos a contribuir
Todos a colaborar
Para a boa saúde e conservação do caos
E eu sem um meio de fugir
Sem sequer uma genuína vontade de fugir
Começo lentamente a folhear
Os anais da minha podridão.

O caos não tem absolutamente nada de belo


Nem de animador.

(4)
O CAOS

Eis o que está consagrado


Emerge como a fala do animal
Como uma formiga emerge da terra
E uma baleia do mar
É como isto que emerge o que está consagrado.

A gana de mitigar a carne


De esburacar a carne
O já não poder mais para poder sempre
Vento que se esvai
No interior da carne.

Tudo que se esvai


– nada fica
Imóvel como o que já de si
Nada que se esvai
e fica
Romance do meu colar de pedras do mar
Para contar
colar por fazer
Corpo que se esvai
sem coração
Alisado para a palidez diurna
Por vezes nocturna
Sede que se esvai
Multidão póstuma exibida
Nas bermas da realidade
A densidade impregnada
De prosápia
Mas nenhuma prosódia
Sede que se esvai
nada que fica
Encostado ao coração
Encostado a um nada que está ali
Está p’ràli
Quase que não se mexe

54
Cansado ou se calhar morto
Pouco importa se estiver morto
o meu coração
Parece que está vivo
Mas pouco adianta estar vivo
É como estar morto
Alguma coisa sempre adianta
Mas pouco
Pouco que se esvai
para o quase tudo
que se esvai
nada que é tudo
pouco de nada que se esvai.

Condensada a dor e a substância


Envenenada para melhor doer
Quase sem sentir a substância
Para melhor sentir a dor
Sem a sentir
Os meus pergaminhos empoeirados no sótão
Arrombado à pressa
É o que me dói
São os meus presságios vácuos
(vagos e vazios)
Os meus mais lindos sonhos
Que me dizem à pressa que vá
Mas não me dizem para onde ir
Só que me valha
O que me dói.

O que me dói é a partida


Quando é assim
Que o próprio momento que chega
É o que parte
E assim todos são momentos de partida
E isso sim é o que me dói
E quando a partida se consuma
É verdade que tudo permanece
Como se sempre tivesse sido assim
E já não é a partida que me dói
É outra coisa
o que me dói.

O que me dói é o impasse


O vazio que sobeja da partida
Essa partida que antes já o era
Era partida antes ainda da partida
Isso é que é o que me dói
Junto de mim já não há nada
Fora de mim à minha volta

55
Nada me dói
Dói-me é o que não está em mim
O que não existe
Nem dentro nem fora de mim
O que é só impressão minha
Sem se poder definir
Nem se poder indefinir
Isso sim é o que me dói
Muito mais ainda me dói às vezes
Mas é por pouco tempo
O que é humano
é desumano
Não sei bem o que é
E é por isso que me dói.

A dádiva que me corroe


É benévola na sua essência
E rude no seu conjunto
É isto que sou quando aceito
Dentro de mim
O que não é meu
Está para alem das horas
Para alem de tudo
O que eu sou em espírito
E na carne
Que é o meu corpo
Também
Adormecido para nunca mais
O já que se avizinha
Nunca mais.

Para onde se saiba


Não há lugar
Onde eu queira ficar
O meu lugar é entre as ervas
Num jardim
Onde eu estou com as ervas
Sem nenhuma justificação
Só a existir
Ali
A meio gás
No meio das ervas
Como uma ervinha branca
Já sem vida
Bamboleando ao vento
Ali como numa cama
A sonhar estar ali deitado.

56
À tarde os casais descem a rua
Vêm da escola
Eu gosto de os ver
Recordo-me de quando era como eles
Os namorados
Aí às seis e meia
Descem pela rua
Abraçados
ou de mão dada
Vêm a conversar
Não sei sobre o que é que conversam
É muito longe
Sobre coisas da escola
Dos outros
Das coisas que conversam os namorados
Depois deixo de os ver
Fico a pensar
Já não é a mesma coisa
Vejo outro par
Penso nas mesmas coisas
Eles também vêm a conversar
Com certeza das mesmas coisas
E também desaparecem
No dobrar da esquina
Outro pensamento a nascer
Numa madrugada ao fim da tarde.

O desmando imortal
É o meu que leve permanece
Exaltação do orvalho
Na lividez do espaço
Às vezes povoado
Às vezes nu
Permanece o eu inconfundível
Onde estão os namorados
que passam
estão os que passam
E lentamente o que já lá estava
E o que estava já
E era eu inconfundivelmente
Lágrima de orvalho
Já completamente no espaço
A fluir devagar
Sem nenhuma exaltação
Sem qualquer aparência
Eu inconfundivelmente
Onde estão os namorados
Onde estão as crianças
E os homens e as mulheres
E a maltinha

57
Onde estão as árvores
As ervinhas dos montes e dos vales
Onde estão os montes e os vales
E as planícies
E estou eu inconfundivelmente
Está lá tudo
Sem tirar nem pôr
Inclusive os namorados
Que passam ao fim da tarde
E dobram a esquina
a conversar
E eu deixo de os ver
Reconstituído pela dor
A fim de me guardar
E de os ser.

Aproximo-me de um ponto
De onde tenho que partir
Para outro ponto
Quase a chegar
Para partir outra vez
Como os namorados
Que desaparecem
quando vão para casa
Para o esquecimento
De que se compõe indubitavelmente
O meu eu inconfundível
Que abarca tudo
O que está morto e existe
E dentro por de dentro de mim
É já só o que está vivo
Ou o que sempre esteve
Ou o que nunca estará
Mas todavia sobreviverá
E que eu já esqueci
E ao mesmo tempo não esqueci
Que me vem
Me transborda em recordações
Que existem
E ao mesmo tempo não existem.

Nasce-me no esgoto
O que me dá mais alegria
A ilusão
Pouco importa que tudo esteja dito
Seja a flor mais bela
Igual às que lhe são iguais
E em todas elas ela é a mais bela
E a mais bela flor
É a que provem da lama

58
E o que paira em volta dela e a faz pairar
É o vapor da lama
E as raízes delicadas
Que lhe alimentam tal beleza
É na lama que mergulham
Esta flor tão bela
Não parece a mesma
Como a dizem tantos e de tantas maneiras
É por ser a mais bela que é sempre a mesma
A bela flor
Que está oculta – a flor oculta
Entre as folhagens
Sozinha
Igual a tantas outras
Que são ela também
As vozes que se ouvem dentro da flor
São como ela
Filhas dilectas da lama
Sobem-lhe esfusiantes no corpo
Envolvem-na de cor
Fazem-na vibrar
E é quando ela vibra que é mais bela
É bela muito bela
Quando as gotas lhe escorrem sobre a pele
Sem lhe tocar
A água com o tempo
Gota a gota
Vai encharcando a flor
A água com o tempo
Vai fervendo na lama
E a flor
– a mais bela flor
Apodrecendo aos poucos
Deixando-se curvar
Será lama também
E dela crescerá
Muito mais fresca e bela
A nova flor.

Pouco importa que já tudo esteja dito


Seja a flor mais bela
Igual ao pássaro distante
A ave extinta
Que renasce.
E para o ser inexistente
O que se esbate no vazio
O peso inexistente do bafo
Da ebulição da lama
Nenhuma cor
Nenhum aroma

59
Apenas o bafo
– a pesar
Sem ter peso nenhum
Contrai-se-me o ventre
Quando o sinto a invadir-me
E o que me invade
Não é já nada que eu possa sentir
Nasce-me no esgoto
O que me dá mais alegria
A ilusão.

(5)
O FRIO

Às vezes tenho frio


No frio está o calabouço
Que me atrai e me ofusca com a sua escuridão
E me domina nos momentos de silêncio
E mesmo quando me calo digo ruidosamente
Toda a imundície que me está na alma
Aquilo que eu já nem sei bem o que é
A minha alma que é da cor das nuvens
Uma nuvem é o que é a minha alma
Uma nuvem sem limites
Que imagino esbranquiçada
Por dentro do invólucro imprestável
Que posso eu imaginar da minha alma
Quando sinto o frio trespassar-me e atingi-la
Imagino-a resumida a um pontinho
Uma estrelinha tão longe tão longe que não se vê
E quando o frio me trespassa
Vindo de dentro
É a própria alma que se expande
De dentro para fora de mim
Como uma luz dilacerante
Da cor das nuvens – fria.

A minha alma coitada


É feita de figuras mortas
Figuras gélidas sobrepostas umas às outras
Sem volume sem corpo
Apenas alma branca e gelada
E dela própria do que já vinha de antes
Do que depois nunca deixou de ser o que sempre fôra antes
Minha alma recoberta já
De muitas camadas de tristeza
Minha alma sangrando uma linfa repugnante
Que é toda a compaixão
E todo o amor
E todo o risco corrido

60
E todos os passos perdidos
E todos os impulsos domesticados
E algum desejo contido
De me rir de qualquer coisa despontante
Que não sei o que é
E que é – digamos
A faceta desconhecida da minha alma.

A compaixão entornada pelas ruas


Na sujeira das pedras da calçada
O meu amor arrancado como um pedaço de carne do próprio peito
Em Coimbra a estudar como um doutor
E por que mares terá feito navegar já o meu ciúme
A minha viuvez inconsolável
E os riscos que não foram nenhuns
E os passos perdidos que já não são passos de elefante
Mas uma batida cava no céu da catacumba
Mascarrando a cal da consciência.

Um tugúrio ruinoso ecoando a vazio


Cheio de ratos a viver no sub-chão
Covil de artistas moribundos
Vejo que sou eu
A minha enorme ausência
Uma ausência que carrego por dentro
Que é a soma do justo preço
De todas as minhas presenças falsas
A minha casa de sempre
Onde a minha alma longamente analisada
Cabe como a mão cabe na luva
A minha casa é uma distância ausente
A minha alma moribunda
Amando levemente sem querer
Numa agonia que dilata
Que se agarra nas escarpas do passado
Essa ausência distante.

Essa luz invisível emanante


Nem de fora para dentro
Nem de dentro para fora
Mas loucamente embriagada
Pelo circuito infinito do novelo
Do centro para fora
Depois para dentro
Em todos os sentidos
E sem nunca acabar.

61
A verdade é que todos desertámos um dia
Para fora de nós em qualquer direcção
Para fora dos difusos limites
Do percurso previamente delineado
Todos renunciámos a alguma coisa
Por outra
De dúvida em renúncia
Ando pelo mundo como se estivesse de visita a um museu
A alma que se foi lascando com o uso
Os olhos estirados para a ilusão
As coisas bizarras expostas como num sonho
Uma visão sombria da cor indefinível da estranheza
Às vezes da cor da repugnância.

A minha alma lascada à flor do rosto


Rosto esculpido pela própria vontade
Depois pela espera abúlica
De qualquer desenlace no fio da natureza
A espera inata do momento a seguir
Da hora a seguir do dia a seguir
Com um novo desenlace
Uma nova razão para continuar a sofrer
A esperar
Construindo demoradamente peça a peça
A maior e mais trágica renúncia
A renúncia vital de uma espera que se arrasta
De uma vida a seguir
Tal e qual o momento a seguir
O mais próximo
Essa sede nunca saciada
Seca de esperar.

Também tenho muita pena dos meus semelhantes


Mas principalmente tenho pena de mim
Porque tenho que sofrer a minha dor própria
E a dor que eles recusam
Quando ficam contentes
A troco de comida e meia dúzia de coisas bizarras e úteis
Essa dor proclamo-a aos berros
Para que ela me doa ainda mais
E seja a brasa lenta
Do meu penoso dever de existir
Entre a esperança desgastada de uma vida
E a agonizante falta de tempo
Para cumprir umas quantas prescrições sentimentais
Rizomas apodrecidos
Dos quais um dia no passado
Remoto ou morto
Me despedi sem um último gesto de grandeza
Sem um arrebatamento da paixão

62
Despedida silenciosa estação enevoada
Dois soluços ou três – beijos longínquos
No vão de um corredor enegrecido
O adeus lacónico de uma grande viagem irreversível
Para os braços do infinito.

(6)
A HERA

Rastos invisíveis de pureza


Rostos sempre mal imaginados
Outrora como a divina hera
Sendo sempre mais além
Que se expande a luz
Sempre mais além
Como a luz
Rastos do que é pura imaginação
Rostos mal imaginados
Enorme desolação
De olhos desalojados
Força da desilusão
Fogueira apagada.

Rasgo o meu ser


Não me revolto
A ausência adia-me a passagem
Rasgo o meu ser
Mas não me revolto
Silencio nas entranhas
Lá irá lá vem eis
Morrerá um dia
Em silêncio
Esta chama imortal
Morrerá ela?
Morrerá para nascer e ser imortal
Da morte para cá
Da morte para lá
Tudo se desfaz no imortal
Que é este ser tudo tal e qual como é
Tão diferente do que parece ser
Rasgo o meu ser sem substância
Rasgo todo o meu ser
O resto fica imóvel
Fica admirável
Pálido – um pouco
Especialmente pálido
Luminoso até
Nos momentos de maior beleza
Alvor da mais cândida – mais arrebatada e ingénua beleza
Ser que não existe

63
Ser sem força para ser
De ser demais – por demais belo
Belo em extremo
Ser que não existe
Rasgo obsessivamente o meu ser
Mesmo quando durmo
O meu ser belo então
Como nunca ninguém o viu
Já não está onde está a sua substância
Nem sequer nas proximidades
Aí tão doce ele divaga
Nas proximidades
Como uma criança à sombra de uma casa
Nas proximidades
Quando está acordado
Belo também – porem
Por vezes feio
Nesse esgar de quem se encolhe
Fealdade da máxima candura
Bela também – porem
Por vezes incompreendida
Confundida com o trânsito permanente
Confundida com a vida
Ela sim a vida a própria
A fealdade contingente
Que é de onde provém toda a beleza
Toda essa beleza
A beleza feia que está viva
E a outra que é mais – que é póstuma
A outra que é a maior
Que é a mais heróica e inútil beleza
Mais a outra beleza feia
Tudo isso eu rasgo no meu ser
Rasgo também com o meu ser
O que me sobra do quinhão
A côdea seca
A minha côdea de humano
Como todos
Cada um com a sua
E eu com a minha
E o que me sobra dela
Que é em máxima verdade
O que é verdadeira e unicamente meu
Exclusivamente meu
E não há mesmo possibilidade
De o dar a ninguém
Por caridade ou por desdém
Ou apenas por estar de sobra
Isso é uma dádiva
Mas esta não me corroe

64
Se me corroesse eu não a rasgava
Esta ofusca-me e dilata-me
Por isso rasgo-a também
Com o meu ser
Mesmo as flores que são belas
Mesmo as raparigas que são bonitas
Eu rasgo com o meu ser
Não fica nada dentro de mim
A não ser o coração a bater
Lentamente a bater o coração
Músculo apenas já
Nada de hipocrisias
O meu coração azul
Que transpirava quando fazia sol
Que batia descompassadamente
Quando lhe faziam cócegas no sentimento
O meu coração apaixonado e inexistente
É o que era todo o meu ser
Antes de eu o rasgar
O outro
O meu coração vermelho
Músculo ardente e contínuo
Esse não – faz-me falta
Faz-me falta para morrer a cada instante
E eu estar morto
E o meu coração continuar a bater
Às vezes até muito baixinho
Mas sempre a bater
Às vezes forte – o meu coração
Qual panela de escape da inteligência
A bater dentro de mim
Sozinho
Tudo o resto rasgo com o meu ser
O que o meu coração sente
É ser rasgado com força
É ser maltratado sem piedade
Como uma boneca de cartão esmaltado
Cheia de buracos a ver-se o cartão
Sem nenhum brilho
Como quando era uma bela boneca de esmalte
Sim que o que o meu coração sente
É ser uma boneca muito linda
Toda velha já
Do que o meu coração sente
Me despeço
Rasgo o meu ser
E projecto-o no vazio
Nada a contabilizar
Apenas vazio para estar
Vazio imóvel para continuar

65
Para preencher e continuar
Vazio e eterno
Sem limites
É fácil abolir os limites
É fácil falar do infinito
Tudo isso é eventualmente fácil
Contudo
Rasgo obsessivamente o meu ser
Rasgo-o com toda a força
E em quanta oportunidade tenha
Esvaziando tudo
Preenchendo tudo de vazio
Das coisas que o preenchem
Mas já lá não estão
Ou das coisas que nunca hão-de lá estar
Ou se alguma vez estiverem
Eu rasgarei também
Venham quando venham
Venham quando vierem
Sejam quantas forem
Rastos invisíveis de pureza
Rostos sempre mal imaginados
Outrora como a divina hera
Força da desilusão
Fogueira apagada.

(7)
POEMAS ESFÉRICOS

1
Nada há como o desprezo com que os gatos olham para as coisas
Não só esse como o desprezo em geral
Em boa verdade não me preocupo com os outros
Ao ponto de os desprezar
Verdade também é que não desprezo as coisas
Ao ponto de me preocupar com elas
Apenas um quase que não sentir
O mundo nos seus ritmos.
Há coisas que reduzo a significados
Porque reduzir é um bom exercício para o raciocínio
E outras que resumo a sentimentos
Porque resumir é um bom treino para a imaginação.

2
Talvez alguma vez tenha pensado
Em colher os frutos da imaginação
E depois pendurá-los
Como um camponês pendura as abóboras
– com umas canas
Da mesma maneira que me arranjo com o mundo

66
Procurando por essas ruas sujas
Fingindo aceitar o pó dos anos
Sem conseguir sequer tomar o peso
Das abóboras que me procedem da imaginação.

3
A memória dos cepos é curta
Como é curta a vida dos poetas
E os dias são longos
E as coisas todas são tristes
É curta
É porque tem que ser porque é assim
É curta.

A memória do mundo é vasta


É precisa e universal
E parece não existir.

A memória da minha vida


É um frio agoniante na avidez do fim.

4
Preciso de arrotar poesia
Para lavar a nódoa da minha espécie
A vergonha e o desconsolo de estar vivo perante tudo o que existe
E em ulterior pairar
Na inutilidade de estar vivo.

5
O suicídio é um acto inferior
Comandado pela fraqueza e pela demência
O auto-assassinato é uma lenta compreensão
Não é um acto mas um estado de espírito
Não é uma conquista nem uma resposta
É apenas um prolongado prescindir de si
Para poder estar consigo.

6
Rumino a necessidade do presente
E consigo discernir com dificuldade
O meu passado é uma anémona num gás diurno
Sofro essa constante inútil
E é como se estivesse parado
No meio da brevidade do caminho
Cercado de cardos flamejantes
Aparentes
Rumino essa sarjeta húmida
Ouço os rumores todos e o ruído
A estrumeira longamente acumulada
A fumegar na maior lentidão

67
Como se o hálito sereno que me envolve
Fosse o lento exalar da podridão.

7
A fase descendente é que deve ser evitada
Porque é o lado imperfeito
O lado humano e real de tudo
O lado que não é poético
Porque tudo o que não é poético deve ser evitado
E as coisas que estão paradas
E que não são cristais
Devem ser evitadas
E o que é duro e o que é agreste
E o que é opaco e pesado
E o que é brutal
E está parado
Deve ser evitado.

Sendo um cristal
O que é pessoal e intransmissível
Deve ser preservado.
O resto dá-se aos porcos
Para engordarem a íntima incompreensão.

8
Entre eles tudo está estipulado
Tudo está previamente delineado
Tudo está coligido
Tal como se a vida fosse nos acasos e nos actos
O preencher de um impresso do serviço público
Depois disso talvez o seu sonho atabafado
Talvez o seu pensamento obscuro
Uma imagem esporádica e tardia
No entardecer de todas as suas ilusões
E eu na confusão
Já nem sequer distingo bem as caras
E quando me cruzo com eles
Embora eles passem ao meu lado
Embora os olhe e eles me olhem
Vê-se bem que não pisamos o mesmo chão.

9
Procurava-o agora como se nunca o houvesse visto
Antes era o caos e a vil tragédia
Horror do coelho pom-pom.

68
Os mitos do meu passado esquecido
Procuro-os numa nova fantasia
Horror e paz história mortuária
Que antes era o caos
E agora continua a sê-lo.

10
O meu quarto cheira como nos piores dias do Inverno
Assisto à decadência de tudo o que me rodeia
Em volta do acanhado jazigo
Tudo a cair
Primeiro lentamente
Depois freneticamente
No meio de tudo isto que cai
Apenas a minha alma fica quieta
Transparente sentada no passado
Contemplando sem precisar de olhar
O velho piano eternamente desafinado
As coisas mortas que são ainda a plácida lembrança da vida
Tudo a ruir à minha volta num lento esboroar
Depois trepidante

11
É preciso ser genuinamente inconformado
Para poder recusar o duelo da vida
Depois de ter digerido a ingratidão humana
Ruminando-a lentamente como um boi
Ou como uma serpente
Mais como um boi do que como uma serpente
Mastigando avidamente a broa escura
Essa mistela esférica que me dão de comida
Mastigando lentamente o coração
Dentada após dentada
Uma brecha outra já cicatrizada
Mastigando primeiro avidamente
Depois lentamente.

12
Hoje finalmente
Após tanto tempo de marasmo caótico
Sinto de facto vontade de dizer alguma coisa
Qualquer coisa diferente
Das coisas que há tanto tempo
Imagino e penso que devo dizer
Dá-me a ideia de rejubilar sem uma razão evidente
Apenas aparente.

69
A morte é a única força da natureza que me prende à vida
Estou hoje tão certo disso e tão seguro
Que assisto abúlico e perplexo
Ao bulício exterior
Sem nada medir
Sem saber quem está perto e quem está longe
Recordo os ausentes e os distantes
Como se estivéssemos juntos num depois
Que não existe para estes que vejo agitarem-se na rua
A evidência esperada manifestou-se
O fascínio de sempre é hoje uma estranheza abúlica
O desencanto é uma certeza aguda
O caos assiste-me
Estou perplexo
Ante tudo o que para mim sempre foi evidente.

Mas a minha rosa permanece murcha


A minha vida está morta
A minha angústia é uma lagoa
Uma fada boa que acompanha
Que dilata a dimensão da morte
Ao triste levar da vida
Outras vezes murmurei entre os dentes
Outras vezes terei talvez sorrido
Mas hoje choro dos olhos secos
O sangue ilíquido
O sangue inebriático
0 sangue abstracto
Do fundo da secura dos olhos
Da magra réstia do que foi
O meu olhar de esperança
Na moléstia encoberta da natureza humana.

Foi um belo trajecto nos bosques verdejantes da alma


Não foi tempo perdido
Dos momentos que resultam em coisas
Desses sim
Desses se pode dizer que foi tempo perdido
Dos outros que se dizem perdidos
Desses sim
Podemos aproveitar alguma coisa
Ter a ilusão de percorrer
Ter a missão de flanar e de sofrer
Ilusória missão nunca cumprida
À espera do momento da rude amputação
Desses momentos que passo esperando ingenuamente
Guardo todo o calor que me incendeia a alma fria.

70
13
Esquemazinhos hidráulicos
Sórdida onda
Poemas insaciáveis
Que corroem o chão que lhes dá vida
Postura ingrata para o corpo
Solidão
Rostos inconfundíveis confundidos
Sonho – traição da verdade
Fim da ilusão
Sórdida onda.

(8)
RETORNO

Fixo um ponto no universo


Fixo dentro de mim também
O mesmo ponto
Apenas um ponto no universo
Fixo no além
Donde vem derivando todo o elan
Arriscado na alma
Um ponto fixo todo fixo
Dentro de mim
Aqui ou depois
Seja onde for será
Para mim o que é para toda a gente
Esta imensidade assim
Que a vontade não importa já
O que ela seja nesse momento
Não importa
Tão grande é ali
A superior determinação.

Deito as amarras ao mar


Como atirei as pedras
Que o que eu atiro ao mar
É sempre a mesma alma
Sempre a mesma pessoa
Corpo que se afoga
Assassino que o atira ao mar
Anjo que a tudo assiste.

71
II

De que serve chorar por sofrer


Mesmo sofrer de que serve
Misto de um ser que o foi
Com um outro que o ser será
Nenhum que é
Não pode sofrer
Isto é certo é verdade
E não se pode desmentir
Certamente é poético
E não há nada a dizer.

III

Respondo ao mar para que ele me responda também


Para ele me ouvir
E eu ter a certeza
Que o poeta destes versos está morto
E eu que já o disse
Estou meio morto também
E isto é verdade
Como tudo o resto é verdade também
O mar é que sabe de mim
Onde é que eu estou
Estou no fundo do mar
Não sei de nada
Uma coisa a boiar
Lá em cima do mar
Não sei o que é
Está lá muito em cima
E eu estou a ver tudo de baixo para cima
Como no cinema
À transparência das águas.

IV

Eu estou só a ver à transparência das águas


Tudo tal qual é
Lá em cima está a boiar
Cá em baixo estou eu agarrado às algas
Lá em cima é longe e difícil de chegar
Mas eu solto as garras de dentro de mim
E comigo vem tudo o que está no fundo do mar
Coisas pequeníssimas em suspensão
Pequenas dádivas
Dívidas
Deus que me premeia
Por eu estar sozinho
Lá no fundo do mar

72
E sobem comigo
Até onde eu puder chegar
Eu venho tirar a contra-partida
Cá em cima estou eu à espera
Cadáver que me espera
Sonho ilusionista que me espera
A boiar no meio do oceano
Eu venho ter com ele junto à praia
Regresso das trevas cheio de musgo
Sonho atirado pelas ondas contra as rochas
E eu inerte esperando-me na praia.

Venho à procura do mar antigo


Que está gravado nas ondas
Esse mar que bate contra a praia
E volta a bater ritmadamente
E a maré que o leva é a maré que o traz
E com ele venho eu à procura
Do que vem com o mar
Venho à procura dos sonhos que o mar viu
Porque os quero ver também
Quero que o mar me mostre
Eu venho do fundo e cheguei à tona
Agora quero saber o que o mar sabe
Bater na praia
Estatelar-se consecutivamente na praia
Em cima da areia
Na ribombante rebentação
Estou eu que vi o mar por dentro
Afogado no que ele tem de mais azul
Envolvido nas sirenes do mar
No que ele tem de mais negro
Sentado num rochedo a ver-me mergulhar
Sem ter pena nenhuma
Por trás de mim a praia
Para me ver morrer
E por cima o céu
Para me ver matar
Na praia à espera de me ver emergir
O vento de abanar-me o corpo
De levar-me a roupa
Eu estou à espera de me salvar
Viro as costas ao mar
Deixo-lhe no fundo o que ele quer
E trago para mim
O que em seguida ele me irá tirar.

73
Volto à aldeia pelas veredas
Ao fim do dia meia-luz
Já não sou o poeta
Sou o afogado que ressuscitou
Irmão do mar que o fez
Irmão do céu que o viu
Na terra que o bafeja com ternura
Irmão da praia e dos rochedos
Das algas
E das pedras que chocalham na rebentação

VI

Vai-se o vapor sensível com o vento


Vai-se descobrindo a pedra nua
Vai-se o vento
O calor é o que fica
Acumulando-se na pedra.

Consecutivamente o calor e o vento


O mar que vai e vem consecutivamente
As ditas andorinhas que vão e vêm
O Sol e tudo o mais
Majestade intemporal do enorme
Que eu posso sentir imensamente em mim
Dentro de mim exactamente
De mim que sou tão pequeno e frágil
E também vou e venho consecutivamente.

Vejo as luzes do mar já lusco-fusco


Não me inspiram grande coisa
Vejo-as com os meus olhos d’água
Mas no meu coração a pedra cumulativa
Não consente
E no entanto é uma bela imagem
Não a imagem que se vê
Mas a que é vista pelo olhar inspirado
É esse que me inspira muito mais
Olhar inspirador que nada vê
Nada é
Quem é e quem vê sou eu
E a mim as luzes não me inspiram grande coisa.

VII

As vozes albergam ainda o velho travo


As vozes humanas com o sotaque peculiar
Com a música monossónica engraçada
Velho travo ainda
Ah! Distante como um barco no alto mar

74
Quando a gente o vê da praia
É tão inalcançável
E no entanto pode-se ouvir o barulho do motor
E até o que diz o capitão
Mas para isso já é preciso um bocado de ouvido
Ouvem-se as vozes
Albergam ainda o velho travo
O testemunho indesmentível que transparece
Após séculos de sobrevivência
Igual ao que nunca fôra.

VIII

Espero ansiosamente o momento de me sentar


Numa cadeira à sombra de uma casa
E ficar serenamente olhando a natureza
Como que anestesiado por uma morfina existencial
Definitivo ópio da madura idade
Destilado todo o meu amor
A minha semente difundida talvez malbaratada
As recordações finalmente pousadas já além
Aquém do que está inerte e frio
Todo o meu descontentamento enfim consumado
No lento esboroar de uma vida
Para o renascer de mais uma que começa
À sombra de uma casa
Não importa o tempo em que isso seja
Mas talvez gostasse que fosse assim a minha morte
Sentado numa cadeira à sombra de uma casa
Olhando a natureza que revibra
Como uma pedra arredondada pela erosão
Um amor estarrecido a renascer
Para nova e superior paixão
Espero o que consumo do espaço que aí está
A minha ânsia é o que me guia
O espaço é o que me alimenta
Eu posso esperar o suficiente
É fácil
O suficiente é toda a vida.

IX

Toda uma vida o pescador vai e volta do mar


Sempre vai e volta do mar durante toda a vida
Até ser velho e sábio
E o que é que ele é?
Tem os cabelos cristalizados pelo sal
A barba dele o que é?
É apenas uma barba queimada pelo tabaco e pelo Sol e nada mais
E o que traz o velho e sábio pescador que volta do mar?

75
Apenas uma rede encharcada e cheia de limos
Que ele arrastará pela praia até que um dia
Não podendo mais arrastar-se sequer a si próprio
Ficará esperando sentado ou de pé
Num flanco recuado da praia
Os pescadores que voltam do mar
Com os seus barcos e as suas redes
E os peixes claro.

Regresso Outono triste Primavera seca


Reflexos reflexos tudo isto são meros reflexos
Oh! Mil paisagens amarrotadas
Sono difícil entre os arrozais
Esquecido do que foi antigamente
Sonho que não morre
Esquecimento que perdurará pela vida
Valor que interpenetra as coisas
E se deixa escoar sob os olhos
E foge da reacção comum da vida foge
Para nunca mais se ver
Praias não virão mais entardecer ao meu olhar
Luar não brilhará tão lindo
Cascatas nunca mais serão testemunhas da minha alma
Ribeiros jamais correrão sempre calmos para mim
Vejo o chão debaixo de mim seco
Olho a nova paisagem reconhecida
Regresso de uma longa viagem para que nunca parti
Estou presente a todos estes acontecimentos
Estou inequivocamente presente
Há desde logo uma coisa que me apraz
E eu vê-la-ei
Sentirei toda a sua presença
E desfrutá-la-ei aprazivelmente.

XI

Toda a vida eu poderia passar sentado


Apanhando a fresquinha da tarde
Ou a fresquinha da noite
Depois do sol-posto ou antes do Sol se pôr
Sentado a ver passar os automóveis
E as minhas vizinhas de enviesado
A fazerem-me sinais
A mais bonita a mais morena a que gosta mais de mim
Deita-se cedo e eu fico sentado
Fecha a janela e eu continuo a ver passar os carros
À noite não há conversinha
Conversinha só à tarde

76
Toda a vida eu poderia passar
Até elas se casarem as duas
E o cão da minha outra vizinha morrer
E o dono também porque já é velho
E eu passaria sempre respeitosamente
Incriminando as minhas vizinhas
Lamentando a morte do cão e do dono e do pescador
E haveria sempre flores lilases nos jacarandás
E crianças na escola
Para me acordarem de manhã com a sua guincharia
E eu regressar à fantasia
Em que sítio estranho e obscuro eu a deixara
Vinda de tão longe e tão crescida
Mas talvez eu não fique aqui
E que importância tem isso…?

XII

Vidas que parecem predestinadas para o erro


Noites inteiras fruto inexorável do erro
Hóspedes somos de uma tempestade
Gritamos ingenuamente por salvação
Mas nada nos ouve os gritos
Dias nus noites nuas adeus até um amanhã
Veremos o dia juntos ou talvez não
Partiremos pelas estradas que se estendem ao sol
Jamais voltaremos aqui
É o que nos dizem os sinais
Sinais muitos aparecem e desaparecem
O tempo é que nos mata e nos transforma em líquido
Escorregamos para dentro da fogueira
Tempestade alterosa no mar em fogo
Jamais os nossos olhos brilharão assim
Mas talvez um dia este lugar nos pareça conhecido
E então a labareda será maior
E parecerá a mesma
Errónea destilada
Vida amadurada
Que permanece à espera.

(9)
AGONIA E FIM

Fascina-me a vacuidade
Encontro cheiro na vacuidade
E som na vacuidade
Mas não me dá prazer
Não me conforta
Antes me agride
Fustiga-me

77
Emociona-me
Especifica-me
Paralisa-me
No silêncio aberto em que se alarga
A magia dessa imagem
Sem forma nem tamanho
Que é a vacuidade
Encher-me e esvaziar-me
Correr e depois parar
Eis o que me fascina.

Olho-me e vejo que a minha paisagem mudou


Não sei se é bom ou mau
É mais do que antes
Melhor ou pior
A seguir ao que era antes
Alegria do animatógrafo
Oh! Vilania
Paisagem sedenta e amarelada
Oh! Seca
Paisagem inverosímil
Apenas ocupada em maldizer-me
Paisagem assustada
Que sou mas está fora de mim
Estampada na minha consciência
Alvo predilecto
Da minha auto-ignomínia
Postal ilustrado do infinito
Imagem discreta e adicional
Parada e invisível
Imagem rara e destituída
Paisagem predilecta
Mais amada quanto mais terrível
Rosa podre
Rosa todavia.

Em prol da objectividade
Posso dizer que estou morto
Pressinto tudo a funcionar num ronrom
Tudo muito leve e muito frio
Uma espécie de vida transparente
A formação desmembrada de todo o ser
Indiferenciado nas formas por que é
Sem ser a forma
Mas o objecto que a ostenta
Em prol da objectividade
O desmembrado ser envolto
Em formas de ser que não existem não são.

78
Minha vida tão cheia de imperfeição
Recortada em ângulos
Exposta à intempérie ácida
Às vis maquinações do exterior
Destinada como coisa insignificante a ter um fim
Um auge e uma decadência
Como um moinho de café
Ou um banco de jardim
Como uma coisa
E as coisas que derivam da minha vida
Tão cheias elas de rude imperfeição
Um esguicho de desordem
Um gemido agoniante e contínuo
Com um fiozinho de sangue esquadrinhando tudo
O mesmo fiozinho de sangue
Como uma sombra de eficácia
Sobre a mancha melíflua por toda a parte
A sujidade acumulada pelos anos
Pelo trânsito abusivo do mundo
Constantemente encalhando
Prosseguindo encalhando prosseguindo… …
Entre o vapor promíscuo das pessoas
E tanta coisa que deviam saber e não sabem
E tão pouco desejo de aprender.

A trágica ocorrência final


O desfiar de todo o novelo caótico
O processo vital da agonia presente
A justiçagem divina
De tanto sofrimento para nada
A justificação
A resolução
Como ela é solene
E sinistra
Não a desejo nem a temo
Mas quando a desejo temo-a.

Para quem dedicar esse poema lancinante


Que é o único que é autêntico
De resto o que poderia eu dedicar-lhes
Senão a lama com que encheram a minha alma
Eu que tenho a memória cheia de poetas
Que se deixaram matar inutilmente
Em vez de escreverem estrofes sobre a vida.

Um dia me vou outro me torno


Vou e volto nos pássaros nas nuvens
Um dia voando outro caindo
Até o mesmo que voa e cai.

79
O que está ali calado não pode dizer
Está calado não pode falar
Está inerte e inabalado
E nada alem dele está seguro
Onde estiver ou fora
Está apenas calado despedido.

É preciso que a minha vida seja uma turbulência


É preciso que o mar nunca fique tranquilo
É preciso que eu morra a cada instante
É muito preciso que o mar nunca me deixe só
Mesmo quando no crepúsculo fica tranquilo
E não agita a minha dor de estar
Não fustiga a minha ânsia de partir
Que é viver morrendo a cada instante
A minha dor azul
Que morre a cada instante
Feita de sal e tradição
Sal que a não deixa apodrecer
Morte que a tradição deixa ficar viva.

Enquanto o mar espumando me disser


Que eu sou água sem forma onde mergulha
A podridão humana que vai a afogar
Eu serei como a sereia exilada no mar
Sou como a rocha que está submersa
E quando for sereia hei-de ser mar
E rocha nunca mais serei
Serei a sombra por detrás da fútil aparência
E a mulher que me traz ao colo
A máscara que esconde o meu mistério
O crucifixo onde agoniza a minha tradição
A reza pagã que me protege
Do olhar endiabrado e flamejante
Serei o corpo que morre e ressuscita
Serei a alma que divaga e existe
Em trânsito do que sou para o que serei.

O vento leva-me onde eu me deixar ir


No encalço do tempo p’ra gastar
A vela insigne da perdição.

Riso das mulheres mundo que se derrete


Fátuo peso que não se vê
Onda maior leste da praia
Rocha viva que se desfaz.

Movimento da massa encarquilhada


Razão que está por trás não sei
Massa que vai sem saber porquê

80
Sem processo arrumado no ser
Sem uma luz que lhe sirva de guia
Sem nada que valha já realmente a pena
Sem uma ilusão que se desfaça
Noutra ilusão que se desfaça
Numa ilusão maior que se desfaz.

Levo nas nuvens uma flor dourada


Como as que tinha dantes
E vou com ela nos lábios
Ou entre os dedos
No céu que brilha nesse lugar
Levo uma flor distante que abraço entre as nuvens
E o esquecimento que flutua em mim
Rosa desdentada tem o seu lugar
No buraco sem nome algures no céu
Na terra não interessa onde
Pelas praias bebendo vinho
Olhando as bifas e as pessoas
Pelas praias comprando haxe aos boches
Estarrecendo ao sol e à sombra
Invólucro desnaturado
Brilho decifrado e consumido.

Delírio que me arrebata longe de mim não sei


Forja que me dói
Rara vida abstracta e vaga
Rosa vadia ainda assim toda molhada
Pendente do caule apodrecido
Rara rosa para mim outros matagais
Triste raposa enramelada na toca.

A dor coitada é que ainda há-de ter pena de ser sofrida por mim.

81
POST SCRIPTUM – 1

Era uma bonita carta de amor


O que eu deixei pelas páginas
Se eu adorei as páginas
Até deixar-me seduzir
Deixar-me adorar por elas.

POST SCRIPTUM – 2

Agora era a angústia mais serena


Como no princípio dos doirados sonhos
Os desbotados princípios de uma estrada de luz.

POST SCRIPTUM – 3

Meu coração pulsando distante e abafado


Mal se ouvindo do seu lado de lá
Estrelas um dia o verão sereno e calmo
Assistindo ao imortal desfecho
Como no cinema – we’ll meet again.

82
O LIVRO DE LÚCIO CONSTANTE

56 POEMAS

83
(1)
Teria de haver aqui
Pelo menos uma folha
Que fizesse a distinção
Entre as letras desta folha
E as outras folhas de então.

É tudo uma só corrente


É tudo uma só ideia
Que não se diz nem se sente
E quem a vê de repente
Facilmente a compreende.

(2)
CANÇÃO DO DESTINO

Não falo do destino apodrecido


Nem daquele amor que não veio
Eu falo da mulher encantada
A paixão feiticeira que me arrasta
No transe abusivo da dor
Eu sou o assassinato e o assassino
O amor e o amante
Eu sou o alucinado que divaga errante
O que queima de febre delirante
Mas não o assassinado
Não o que amado
Goza calado as delícias do prazer
Eu gozo a dor de ter
Eu rimo por acaso
Eu vou amando triste
E digo ainda ouvindo por quem chamo
Eu vou eu amo.

II

O que escrevo não tem data


São sentimentos confundidos
São visões sete anos separadas
Que a dor me mostra e vejo
Não há um dia que não tenha
Nas situações sua poesia
Uma tontura sempre espreita
O sentimento ausente que a sustenta
E o coração que entontecido sente
Algo que se vendo deixa ser
Imagem que a visão da ilusão desenhe.

84
III

As casas de janelas sufocadas


Pessoas esperando conformadas
Vazios os olhos caras pálidas
Estranheza nos lábios esbranquiçados
As árvores também negras da noite
E candeeiros esparramando a luz
Cortando a custo o ar se enovelando
Em volta numa roda amarelada
O céu esquecido céu negro também
Tudo se envolvendo em existir
Sem história e sem moral justificando
A história do que por si existe.

IV

O olhar trágico com que antes feria a noite


De nada me valeu inútil se perdeu
E só de recordar me deu
Vontade de nunca mais olhar.

Mais uma etapa no caminho em que nos vamos


Tanta ilusão meu doce amor lá vamos nós
Lançamos soltos cordas soltas enlaçando-nos
Aperta-nos o nó se dando
Olhando em frente luzes brilhando
Sobre a flanela baça
A noite se moldando na medida
Em que se lança dentro de mim minha negrura.

VI

Cafés se esvaziando hora tardia


O coração teme o presságio já sem jeito
Tantas e tantas vezes enganados
Engana a alma assim quem quer desenganar-se
Café esfumando espelhos de mim
Nos outros os olhos procuram a resposta
O estranho movimenta-se em mistério
O misterioso afasta-se de medo
Um minuto mais
Ainda se prolonga a vida
Uma ideia mais navega o pensamento
Tudo quer um mistério em que se prenda
E recordar um outro olhar
Que me prendeu

85
Cafés fechando mesas e cadeiras
«White noise» entre os ouvidos somos da noite
Sorriso franco olhar distante cabelos longos
Lembrança ainda de uma noite assim
Lembrança ainda sim de um tempo
Em que a dor tinha um nome.

VII

Cheirando as rosas proibidas


À noite me aconchego só
Eu e a poesia e aquele que existindo
Só no meu peito tem abrigo e ser
E um pouco triste ainda distraindo
A tristeza numa esperança vã
Que num destino se compraz a sorte
De trocar destinos nessa vida
Procuro encher a noite com aquele
Que em suas mãos rasgou o seu destino
E só permaneço acreditando
Que rasgando o meu eu vou.

VIII

Na ponta do pontão vejo o destino


Rasgar-se como o sol
Rasga a manhã a bruma sobre o rio
Caminho em direcção ao fim extremo
Não deixo que o vento corra mais
Água suja do cais lixo se arrasta
Por sobre as águas os vejo navegando
E no céu a nódoa sobre os barcos
Envolve a existência de outra bruma
Tudo está confuso e diluído
Imprecisas as formas da distancia
Mas claro o voo rectilíneo da ave
Cruzando o espaço em que se passa a vida
O sol persiste em brilhar em tudo isso
Seus raios irradiando
Como um fantasma ao longe insinuando
Um navio esbranquiçado assiste a tudo
Leitoso e independente
Tudo se completa finalmente na manhã
E sobra ainda algo de um dia anterior
Recordo ainda o amargo nó
E parto nessa nuvem que se evaporou.

86
IX

Respiro lento o ar que se levanta


Entre o fumo e o cheiro poeirento da cidade
Os fios cortam o espaço paralelos
E carros pesados cruzam lentos o baixo
Tudo se passa devagar porque é ainda cedo
E todos estão com sono seres humanos
Apressados correm em direcção ao mar
Onde se imerge o sonho que acordaram
Frenéticos avançam contra o ar e lenta
A realidade vê-os passar.

Os cafés voltaram a abrir


E regurgitam de gente com pressa
Este café é bom e estou saboreando
Sem nenhuma pressa e gostando
Olhando as pessoas que passando
Engolem o café e vão andando
Parece que é histórico este sítio escuro
E nas paredes qualquer estória se conta
Ao fundo a luz bem actual é igual
E a esquina lá à frente é a mesma
Historicamente não percebo bem
Parece que o Fernando Pessoa já bebeu aqui o seu café
Mas nesse tempo
Todos se vestiam de preto ou quando muito
De cinzento.

XI

Aqui estou respiro o ar vazio


E no vazio do ar respiro o tempo que passou
Se ele assim o quer eu quero-o como ele
Aqui também escreverei meus versos.

XII

Outra faceta tão loucura sã


Tão já vertigem louca vibrando
Sinto no coração não sei o que é
Que me faz vir andar entrar ficar
Que me faz ver partir adeus
Como saber o que o destino é?
É o que é ou o que faz não ser?
É o que era para ser ou o fazer não ser?
Fico pensando aqui ao fundo no meu canto
Extremo canto onde por fim me arrumo

87
Vendo outras mesas dispostas a seguir
E entre as mesas pessoas a sorrir e a conversar
Novos e velhos velhos e moços gordos e magros
Até à porta lá ao fundo onde entra a luz
E tudo me parece pouco e sem significado
Tudo parece estranho e fictício
Porque por distracção sobre as palavras
Os olhos leram distraídos
O nome por que se chama a minha dor
E volto ao nome e à recordação
Em círculos viajo neste mar meu barco
Já fez um remoinho
E a si próprio se sorveu foi ele
O seu naufrágio
Agora está ali bebendo água
Esperando o dia vendo a manhã
Que se levanta.

XIII

Volta lentamente tudo a ser normal


A rua iluminada homens e mulheres
Moças sem graça
No rouco mover dos camiões
A luz do sol já bate em toda a rua
E alguns homens andam em camisa
Grande intenção em cada mundo
Pequeno mundo mapa do caminho
E em cada mapa no seu traçado lá
Qualquer coisa que seja apenas seu
Um numa calma olhando vago
Outro a espetar o dedo indicador
Mexendo muito as mãos arrazoando
E cada um com as suas razões
E nas razões de cada um ser ele e não o outro
Antes fôssemos nós todos não nós mesmos
Mas outros
Antes não fosse este o nosso mundo
Mas neste sermos de outro
Antes o sol não iluminasse toda a rua
E na rua tanta tristeza e desconsolo
Risos e dor gestos e esgar aí
Antes isto tudo fosse mentira
E sendo que o fosse para todos
E a cada um por qualquer graça
Fosse dada uma mentira diferente
E fosse dado ao cego o seu olho
E ao que chora sua alegria
E ao que ri sua consolação
E fosse dada a calma ao que se agita

88
E fosse dada a paz aos passarinhos
Para que pudessem voar
E fosse dada a Tristão a sua Isolda
E fosse dado a Julieta o seu Romeu
E fossem dadas a Dom João todas as donzelas
E sem preçário oculto culpa ou arrependimento fossem dadas
Ao homem comum todas as putas
Mesmo que fosse mentira
Mesmo que só fosse.

(3)
LA NÔ AMÔ

1
Lá nô amô será talvez um espaço morto
Um seduzir parado.

2
Lá nô amô não sei que nome nunca dito
Não sei porquê ainda o medo de
O pronunciar.

3
Lá nô amô tanta doçura que eu vou enfim buscar
E bem guardada a paz que só por um momento se retém
Um prólogo que faz de si próprio o fim
Que eu vou finalizar.

4
Lá nô amô eu vou ficar um pouco a serenar
De tantos desvarios que tenho alimentado
De tantas correrias amplas estádios repletos
Tanta louca imaginária inútil o cansaço
Que eu vou descansar.

5
Lá nô amô espero o meu amor e acho que ele vem
E nas suas árvores e calma estou a ver
O que manso se desenha no horizonte do meu ser
E um momento mais da minha história que se vai preencher
E os belos poemas que eu vou escrever e as histórias
Que eu vou inventar.

6
Lá nô amô tantas e tantas vezes ante visto
Sinto que um novo noivo que delira vem
E aquela água beberei sofregamente desta vez
Como antes há muito tempo já bebi

89
E lá cumprindo o que se ajeita bem
Ao dito de que não há duas sem três
Eu vou provar.

7
Lá nô amô espera-me a linha limite do amor
A que separa o que é do que não sendo tem que ser
E como sempre eu vou em equilíbrio caminhar por ela
Já a caminho eu olho os meus sapatos pontiagudos
E a gabardine que esqueci em casa no passado ano
E que já estava velha para continuar a abrigar-me da chuva
Eu lembro que me dava um ar de clochard
Que nunca mais vou ter.

8
Lá nô amô conheço o chão e sei um ninho
Onde jovens namorados se abraçam e beijam
Eu sei árvores enormes e riachos
De rápidos trajectos saltitantes
Cascatas onde a água salpica o corpo todo o ano
Molhando pedras devassando leitos
Pedras onde uma vez sentado eu mergulhei também
Na água meus pés ‘inda inocentes
A baptizar.

9
Lá nô amô o andamento é lento muito lento
E o meu rosto repuxado sente-se lá tranquilo
Todas as fibras se deixam relaxar e os olhos doce olhar
Deixam-se espalhar onde calhar
E o coração deixa-se convencer de que tudo vai acabar
Como num romance dos antigos em que a heroína
Depois de muito sofrer e penar
Por fim o seu herói vai encontrar
E em contrapartida do sofrer e do amar
Iria ser feliz.

10
Lá nô amô ainda me lembro bem
Quando em pequeno eu via fascinado e comovido
As peças de teatro na televisão
Desse tempo me vem esta lembrança
Que me ficou p’ra sempre presa nos ouvidos
E dos ouvidos rápida foi matreira se aninhar
Num abrigo ali de sentimento e nostalgia
E lá ficou poeira acumulando como uma velha mala
Que se esqueceu num sótão cheio de recordações
Dum tempo que se viveu intensamente
E com algum prazer.

90
11
Lá nô amô vida já esqueci que tenha lá vivido
Não me admira a mim que tanto esqueço
De nada me esquecer ou me passar do pensamento
Aquilo que por aqui tenho penando vivido
Mas esqueci o amor e aquela foto favorita
E aquele desenho que eu próprio tracei num jornal
Tão lindo e quase lá porque tem uma árvore
Que é o meu amor sentado a escrevinhar no colo
Ah! Se ele me visse agora assim vestido à linha
Sapatinho de bico calcinha a condizer camisa colarinho
A gravata de seda brilhante e uma jaqueta fora de estação
Ia gostar.

12
Lá nô amô bem perto já eu estou
E vou andando cada vez mais me aproximando
Quando chegar não vai lá estar ninguém à minha espera
E eu vou ficar um pouco olhando em volta
E quando descobrir para onde tenho que ir
Irei andando devagar sem pressa de chegar
Porque onde vou eu vou chegar sempre bem a tempo
E toda a pressa me atrasa ainda mais
E atrasando ou não com pressa ou sem
Eu quero mesmo é ver a hora de chegar
E espero manso mas ansioso por essa hora
Hora que é mágica certeza louca que me tem
Prisioneiro.

13
Lá nô amô sou a ideia natural e a união
Lá bate o meu coração o ritmo das pedras
E entre as pedras o meu sangue
Agita-se ligeiro como se agitam as ervas
E respiro longamente no compasso em que respiram as árvores
E todas as minhas veias se abrem como sulcos
E rasgam-se em mim como os riachos entre as pedras
E todo o meu organismo é uma montanha
E a minha vontade é um vulcão
Ensurdecido dentro da montanha
E o meu amor é a sua chama
Ardendo sempre mais ardentemente
Escondida dentro da montanha do meu ser
Tumultuoso.

14
Lá nô amô a água vai louvando
Enquanto dos pássaros o canto entoa hinos e louva
E até a humidade que nas árvores brilha de manhã
É um louvor do amor que sinto

91
E da dor e da ausência não há choro
Porque são elas as primeiras a louvar
O que tão generosamente lhes dá o existir
Pois que seria do amante sem a dor
O que seria do amor sem a ausência
E que seriam a dor e a ausência sem o amor?
Não seriam coisa alguma ou o que fossem
Nada seria senão um abstracto inexistir
Por isso os hinos se levantam assim como sirenes
Naqueles tons que só a dor tempera
E enlouquece.

15
Lá nô amô quero que tudo esteja bem
Quero que seja o paraíso condenado
E quero muito que a condenação seja paradisíaca
Lá sei que me espera um destino mais outro
Uma meta diferente da que almejo hoje
Lá não se distrai a mente nem o olhar
Nem se prende a nada que não seja o doce recordar
E o refazer de toda a trama urdida devagar
A medo de perder todo o bordado
E mais bordar nó contra nó de encontro ao coração
Esse bordado sublime do amor
Tantas vezes esgotado e repetido
Tantas desanimado e iludido regressando triste
Como que vencido mas por detrás
Da aparência vil e orgulhosa
Vencedor.

16
Lá nô amô distantes estão meus passos
Errantes a errar desatinados
Procurando o que se encontra por acaso
Errando em diatribe de inútil procurar
Somente os olhos pairando desvairados
Dançando inebriados bailando dentro da cabeça
Pousando aqui ali e em nenhum lugar
Como os olhos dos cegos se vissem
Ou como palavras que nunca foram ditas
Bailando como insectos antes de pousar
Partir para outro alvo do olhar
E após olhar não alvejar fugir
Para o vazio do espaço onde se fixa
O olhar de quem quer encontrar o que procura
E lá depois de muito encontra
Em vez de procurar.

92
17
Lá nô amô a página repleta o olhar adia
Porquê dizer que tanto é indizível
Porquê olhar e ainda repetir
Mais uma vez o que o olhar desencontrou
E o que roubou aos olhos uma lágrima
O que ficou lento por dentro do peito bafejando
E naquele momento de cru afastamento
Se deixou escorrer pela face inabalável
E esborratou até ao fundo a carne nua
E sem sal se decompôs em pranto
Porquê ainda aquele azul interrogando
E aquela eterna excitação interrogante
À qual qualquer resposta satisfaz
Tanto quanto pergunta alguma é satisfeita
Porquê viver ainda preso à página
E nas linhas da página esconder
Do próprio peito o mal que se traduz
Pelo amor.

18
Lá nô amô eu vou esquecer enfim
Que todo o homem tem a sua cruz
E aprender enfim que não há cruz
Que seja outra do que o homem é
E lá quero esquecer que sou um homem
Arrastando curvado a sua cruz
E leve ficar como que murmurando
Um dialecto de música inaudível
Toda tocada num compasso impossível
Que só os anjos compreendem e ouvem
E só os loucos em sua fúria santa através dela
Aos céus projectam épica a loucura
Do oito não há seis o doze encurta
P’ra todos os balanços tramitados
Sã sementeira e vã a santidade
Que sejam todos e sempre ainda assim
Mesmo indeléveis infatigados e sãos
Os que se fazem e dizem vãos milagres
Das mãos.

93
(4)
As palavras consomem-se inúteis
Todas armadas da mesma razão
Afinal todas elas são de amor
Todas as páginas só um destino têm
Todas as canções uma só nota são
E nessa nota todas são além da escala em que se tocam
Todas as músicas feitas num só tom
Que é o tom em que se vive e morre uma paixão
E em que se afina e desafina o coração.

(5)
O GORDO

Na noite anónima venho ver um verso


Pergunto onde perdi a pedra branca
Em dia que diáfano esqueci
Em esquecimento mendiguei por ela
E nela me encontrei e me traí.

Tão longe está o dia em que te vi


E que sorrisos tão gentis trocámos
Venho vender por pouco a minha noite
Ouvir cantar um cantor rouco cuja voz de louco
Brande ao chegar em mim como um açoite.

O homem que me olha gentilmente


Vejo-o de longe tem cabelos brancos
Brancos e pretos o seu olhar quer seduzir
Conheço-o bem desde criança
Os marinheiros estórias recordo-me de ouvir.

Ao encontrar agora essa distante imagem


Fico a pensar em quão distante eu estou
Quantos pensamentos tão destino errante
Recordo assim e quase que sentindo
Suave e leve a brisa de um passado diferente.

Procuro alguma coisa mais que alguém


Procuro e vejo como estou sozinho
E longe ensejo pela esperança viva
Que me traz preso assim por mais um tempo
E pelo chão me arrasta como uma cativa.

E desse chão que doce em menino acariciei


Um vapor de memória se levanta
Vem um cheiro cheio de mais de mil recordações
Vem o vento que traz chuva ainda
E num repente faz ferver o chão das ilusões.

94
Mais uma vez eu tento apaziguar
A imagem do tempo que passou
E reviver agora a hora em que eu fui
Esse não ser que mora na ideia
Que brinca e adivinha e simplesmente intui.

Chuva miúda já salpica o chão


Enquanto quieta a ante chuva lá no alto
Esperando certa a queda acinzenta o céu
Noite e manhã são o ror do mundo
E entre sonos nesse mundo nada é meu.

Apenas um destino que eu mesmo vou


E quero traçar com garras de paixão
Meu amor louco louca vertigem no ar
Temor de ser muito mais forte do que eu
Esse destino que apaixonado vou rasgar.

Ainda quero ver o dia que dizia


Ser o da salvação o do senhor
Em sonhos ele também espera por mim
Como uma noiva esse dia aguarda
E guarda sua honra desejosa só de dizer sim.

Ardendo aqui em medos e de dúvidas


Eu vejo longe o dia e cedo a hora
Que se diz que é a da perdição
Mas mais me assusta a perda que perder-me
E mais me prende ainda a maldição.

Entre uma e outra danço aqui e lá


Vivo das ondas que o mar agita
E espero espero espero e dilacero
O ser que em agonia se despede
A espada peço que empunhando espero.

Talvez um cavaleiro já do cavalo derrubado


Seja a cruel caricatura do que eu sou
E ainda da queda tonto e cego
Ziguezagueia à toa no caminho
Não vê as bermas porque cego ele só vê o ego.

E amoroso temeroso e brando vejo a fímbria


Em que confina o meu amor com a loucura
E louco me equilibro e vendo vejo
Que a fímbria esse limite sou eu mesmo
E por essa linha que há em mim é que desejo.

95
De um lado a selva exuberante da paixão
Cresce e vibra respira resfolega e remurulha
Do outro a rendição deserto imenso
Que longo não tem fim o fim é bruma
Entre um e outro eu estou e estando penso.

Na corda bamba do destino eu danço estranha dança


Diabólica dança do fogo e ardo eu
O gordo cá em baixo coça a pança colorido
E lá em cima eu esgano o equilíbrio periclitante
E no meu medo engorda o gordo rindo divertido.

Não sei se muda a música quando a dança muda


Ou se muda a música já cessou há muito
Ou se vem de tão longe e como nuvem
Só se ouve tão ténue e tão distante
Quando os ouvidos distraídos não a ouvem.

Penso nisso como a pensar em nada


E vejo o circo e vejo a multidão
Ruidosa multidão eu sou que aplaudindo
Presta homenagem à personagem que eu sou
Na corda bamba o colorido se exibindo.

P’ra lá já de caminho bosque e circo


Maresia louca eu sou cavaleiro e acrobata
Vidente e cego eu quero ver o dia
Herói do circo palhaço da contenda
Juiz e réu julgado à revelia.

Agora é hora de encontrar o mar


A chuva contra as faces já me acorda
E quero o mero olhar que se desfolha
Em torno do farol esvoaça e passa
E depois fica olhar profundo apenas olha.

(6)
O MAR

Há muito tempo já que eu quero


Dizer as coisas que me afloram
Os porquês e quês que são
A alma das coisas que eu não sei
Mas que mastigo infinitamente até que enfim
Ruminando o mundo e eu no fim
O fim me traga como traga a areia o mar
O doce mar do amor.

96
Mar tão longo
Distantes estão os olhos que te viram
Olhos que em mim já foram
Tão lindo ver o lindo mar

Ar tão louco que revolto arranca


Ao areal a areia branca areia
Areia solta que o mar esboroa
À toa voa o meu olhar no areal
Meu coração que esboroando ando a dar.

Vejo o mar bater no mundo


E o mundo conter o mar
E no balanço do ar
O astro comanda o mar
E o mar é maré e vem
E vai e vem balança
Maré-cheia maré vaza é rasa
Arrasa o pensamento que debruça
E pensa nesse mar
É preia-mar – «’tá chê’»
Oh! Mar que olhos me dás para trair-te
Surpreender-te o brilho em que desmandas
O lago calmo que vem chegando
E logo a areia o brilha e desmanchando
O transforma em forma de ondulado
Brilhozinhos sempre se movendo
Encontrando e desencontrando os outros brilhos
E guerreando sempre fugindo e tocando
E logo reflectindo.

Vejo o novo e o velho se fundindo e alguém


A quem a surpresa não deixa ver
O espanto do que tanto se dilui no ar
É ver o que esse ver não deixa ver e que é sentir
Vejo o que não é e sinto-o
E acho então neste ver sentindo o fim
Que um dia a ver eu pressenti.

Alguma coisa que se derrete e se dilui


Coisa que flui onde não há mais nada
Que se arrosta à tira da razão total
Se derrete nela e assim se espraia
Derrete lentamente como um corpo
E dilui no corpo o corpo que já foi.

No pântano que pútrido borbulha


Apenas o que é sujo se enamora
Todavia a palha que se agita
Do pântano rouba a negra imagem

97
E a ideia voa na palhinha
E uma vez mais perdoa.
Eu digo coisas e coisas e traz-me o vento
As coisas que eu que sem saber o quê
Digo como que só por obrigação
As vozes que ouço a falar baixo
E as que baixinho ao longe eu ouço a falar alto
Ressalto sobre um dedo o que lhes sinto
E delas deixo o som preso no ar
Eu só quero um canto onde me amalhe
E um coração batendo devagar
E esse coração que sentir vibrando
E nunca batendo depressa demais
Eu quero as vozes dos homens e o riso
Das mulheres eu quero que sorriam
E tristes desfaçam suas tranças
Em danças de amor já esquecidas
E nas esquinas encostadas raparigas
Que por barato mostrem as coxas
E nas praias o Sol e a gente nua
Que ria brincando na areia
E no mar as ondas pequeninas
Uma e outra se desfaçam bem
E devagar como que sorrindo
Dancem também.

(7)
Árvores gigantes e lenta vida
O dia e a noite são para elas
Como uma só respiração
E longa a sua vida vai
Respirando inspiração após expiração
As noites e os dias longos de uma vida
Gigantes mansos batidos pelo Sol
Areia plana serve-lhes de chão.

De que servem as árvores claras e grandes


As mesas e o povo ao Sol
As raparigas e os rapazes gargalhando
Os guardas e os turistas dando a tudo
A aparência de quadro impressionista
De que serve esse momento
Que em tudo parece que parece doce
Se o meu amor está ausente.

O que são esses matos em frente


Essas casas de pedra escorregando pelos montes
Os recantos que escondem os regatos
E as fontes que brilham invisíveis
Bolbos de verde opiando a vista

98
Que se dilata e estende
O que vale esse olhar longo e breve
Se o meu amor está ausente.

E essa tarde que se passa


Inocente deixando-se escorrer
E essa esperança de que o tempo volte a melhorar
Esse bocado de céu de novo azul
E a vontade ainda mole
E aquela sede que não foi saciada
?O que são essas coisas vagas que se escoam
Ante a miragem ausente da amada.

Para mim um só dos seus olhares


Estugando-me o dentro e revirando
As brasas da paixão que dentro estão
Tão feito de acre mel de fruta brava
Negras amoras de grude
Feitas de vidro e água
É nos seus olhos que se espelha a minha dor
Quando ela está ausente.

Eu por mim era lá dentro que estaria


Aninhado num canto do seu ser
Dormindo sempre no seu quente seio
Bem perto de cada um dos seus suspiros
Eu queria era ficar sempre mansinho
Respirando o ar da sua boca
E diluir-me no caldo do carinho
Onde a paixão a santidade toca.

(8)
Quem é esta figura que figura nos arquétipos
Quem é esta sombra ensombrando a paisagem
Que silhueta é esta que resta do antes
Duma outra era quimera de estudantes.

Nesta razão desarrazoa o coração pensante


E o pensamento agoniante arrasta-se silente
Uma mesma argamassa traça a nova rota
Onde não se sabe a partir de onde ou para
Que é que se destina é descoberta
É aventura.

99
Quem sou eu silhueta escura pictórica
Sou o aventureiro banhado em vento
E tu miragem do meu sonho
Dor de cabeça ventania em minha vida
Morte súbita do meu crescer doirado
Quem és tu mistério desumano?
Tu és a aventura
– a aventura humana.

(9)
Vejo-te na estrada tremeluzir
Vens de vestido manga descai
Vejo-te encoberta és só um ai!
Doida na letra vens ainda.

As muitas vezes sentidas


Saudades do predizer
São hoje verdades esquecidas
Pela sanha de viver.

Depois da vaga nuvem que esvaída


Se encontra contra o céu e se desfaz
Música doce e sabiamente construída
É uma forma e para além de tudo jaz(z).

Fixo o seu nome e vou cantando


Cantando por aí ao deus dará
Nas ruas entre as gentes murmurando
Essas canções bonitas que há.

(10)
Deixo-te lânguida no leito
Adormecendo ainda na manhã
Pousada a mão tangendo o peito
O corpo envolvido em fofa lã.

A cabeça desabrocha luminosa


Os olhos fitam mansos do sono
Os cabelos formam uma rosa
Ondulando húmida de Outono.

Ainda a boca um pouco entreaberta


Os lábios frouxos como geleia
De ver assim o peito se me aperta
E a imagem dá-me uma ideia.

Agora já dormindo deve estar


Sonhando com quem sabe que loucura
Delirando nas pregas da manhã
Voando entregue aos braços da ternura.

100
(11)
No mar das ilusões perdi o meu amor
No mar tenebro eu o achei
Fantasmas levaram o meu amor
E agora dele já não sei.

Se eu encontrar de novo o meu amor


De novo correrei pelas esferas – correrei
Sem espora o meu cavalo de invisível
Como um donzel cavalgarei
O meu amor esvoaça na garupa
Do meu cavalo feito de nada
Eu não sei eu não sei
…da última vez que o abracei
Oh! O meu cavalo voa
O meu amor esvoaça
Os sonhos se desvanecem no além
E sou e me desfaço em voo… também.

E do meu amor
Já nem sei.

(12)
Meu amor distante já
Lembrou-me assim de repente
Talvez por pensar em mim
Talvez por nada sei lá.

Esta estação é bonita


Cheia de sombras e luz
E tem sons e lá bem longe
O mar ruge.

Esta estranha rima rouca


Vai-se formando do nada
Vai ficando muito louca
E muito pouco ordenada

Talvez por ser já distante


Talvez por estar de partida
Me lembrou tão de repente
A luz da vida.

(13)
Moça da saia amarela
E chapeleta na mão
O vento na saia dela
E a erva no chão.

101
Cavalos comendo a erva
E para lá pasto e mata
Tudo envolto se conserva
Numa bruma numa nata.

E o céu azul por fim


Aquilo tudo contém
E a moça olha-o assim
Como quem sabe olhar bem.

(14)
Já passou metade desta tempestade
E o navio partiu os mastros pelo meio
E na verdade mais parece que morreu
Mas continua neste mar a flutuar.

Não sei bem que rota é que o navio navega


Perdeu-se a carta morreu o capitão
As velas rasgadas servem de coberta
Aos marinheiros que se amontoam no porão.

Uma música breve e repetida ecoa


Paira e se alarga sobre a calmaria
A tempestade acabou e o barco arruinado
Navega à deriva sem mastros nem capitão.

Ninguém ouve essa música quase sem melodia


Pois os marinheiros não estão no porão
São apenas imaginação
Do autor desta canção.

Lá no fundo do mar jaz o tesouro


Espalhadas pedras preciosas broches e gargantilhas
Fica para trás esse mundo de brilhos
Na água que o vento agitou.

No fundo foi um erro de cálculo


A carta estava errada e cheirava mal
No porão os ratos eram mais rápidos
E os marinheiros eram boa alimentação.

Não é simpático ser rato mas é-se


Num navio o rato tem razão de ser
E estranho é que se perca tempo
Sendo outra coisa
Como marinheiro ou capitão.

102
(15)
Os sonhos todos sonhados
Escondidos e amordaçados
Roubados à noite são
E com desgosto deixados
Pela noite arrebatados
Ficam só recordação.

Os sonhos de madrugada
Por uma mão bem mandada
Parecem ser recolhidos
E aquela imagem sonhada
Fica p’ra sempre guardada
Nos pensamentos esquecidos.

Antigamente pensava
Que tudo o que se sonhava
Um dia aconteceria
E do sonho procurava
Saber se significava
Aquilo que acontecia.

Mas muitos sonhos sonhando


Aos poucos fui reparando
Que nem todos são iguais
Uns são medos ameaçando
Outros desejos que ando
Querendo tornar reais.

Mas há sonhos bem diferentes


Feitos de imagens presentes
Que não se pode iludir
E esses sonhos são sementes
De vidas inconscientes
Que querem à vida vir.

(16)
Aquilo que eu quero dizer
Já toda a gente sabe
Mesmo assim eu vou dizendo
Mesmo sabendo bem
Que toda a gente sabe
E que valor tem o que eu digo
Se toda a gente sabe?
Não importa o valor que também eu apenas valho
O que toda a gente sabe
E como eu não valho sequer tudo o que sei
E que toda a gente sabe
Bem me espanta da gente que sabendo
Parece que não sabe.

103
Talvez um dia
Quanto se pode esperar
Um dia
Que talvez venha ou não
Talvez um dia então
Se venha dizer uma nova ideia
Que valha a pena ou não
O que é que vale
Que valor tem… uma ideia?
Comparada com uma realidade
Não vale nada
Ou talvez tenha o valor de não valer nada
E o que será ser uma ideia?
Não é nada
Ou talvez seja essa confusa população do nada
Povo do nada carne e sangue
Do nada
Do nada então que é a ideia
Que é a função entre o ar e o halo
Do hálito e da imagem que o tributa
Da força e da ideia… a própria ideia
Que de si próprio se constata o nada.

Vítima do nada cai a ideia


E vítima da ideia caio eu
Cair por si é bem assim
A ideia que eu faço da ideia.

Se um dia eu escrevi estrofes sobre a ideia


Já nem me lembro bem
Foi já há tempo e o amor
Já tinha vindo a mim bem antes da ideia.

Faço-me vivo
E a ideia é quem me mortifica.

(17)
O poeta caminha só os pés descalços
Cansados doloridos resvalando nos calhaus
Caminha e vai vivendo o seu nigredo.

Rasgando a massa onde se esfuma e se confunde o caos


Arrancando em dor do coração os seus destinos falsos
As asas abre à noite e voa cavalgando o medo.

Vai o poeta cavalgando o seu cavalo branco e alado


Ainda longe o dealbar da aurora
No prado o espera quieta a quieta esperança.

104
A queda o espreita e tarda aquela interminável hora
Em que caído o tem a treva aprisionado
No ar asas de luz o seu cavalo ainda dança.

(18)
Ah! meu doce amor fossem os raios do Sol que de manhã indicam que vai nascer o dia
Tingindo a cores o céu a estabelecer a aurora em toda a terra da campina
E tu meu doce amor fosses a bruma que acinzentando o verde torna as ervas luz
E mansa espera o Sol que chegará em breve e bem suavemente beijará os montes
Lento se abrindo atrás do horizonte para sem rasgo vir tanger as copas
Das árvores que respiram ‘inda em sono o teu sabor ainda húmido de bruma
Ténue e branca branca e mágica para vibrar nos olhos ardendo sequiosos de uma
[madrugada
Se eu fosse um raio de Sol e tu a bruma da manhã raiava o dia em metade do mundo.

E se tu fosses da madrugada a luz e eu o céu inteiro que tu queimando iluminavas


O ar se semeava de doidas mil e muitas estrelas por todo o espaço me exaltando o ser
Tornando sem rival o azul e a luz endoidecida de brilhar ficar aspergida contra o céu
E da fusão total de céu e luz ficar apenas essa imensa felicidade a que chamamos dia
O meu amor como um raio de Sol tangendo o chão
A leve bruma se dissipando a transformar-se em luz tangendo o céu
Assim o dia alto manhã alta era o amor eterno e terno o dia.

Ah! Meu doce amor se tu fosses uma nuvem como um dia quis que fosses
Eu queria ser apenas outra nuvem relampejando em ti
Se fosses chuva eu queria ser o chão que te retém
E ensopado se desdobra em múltiplas e tenras germinações.

Ah! Amor grande demais se tu fosses a terra eu queria ser o rio correndo sobre a terra
[até ao mar
Se o meu amor tão longo fosse um barco eu queria meu amor que tu fosses as ondas
E que no mastro grande desse barco solta flâmula te chamasse do balançar sem fim em
[que te agitas
A cor do pavilhão bailando em ti te retivesse o ritmo e fizesse em espuma todo o mar
Suspenso o barco como se a viagem fosse do barco para as ondas como um eterno beijo.

(19)
O PASSARINHO MORTO

Ave una canta e brilha além muito além canta ela una e vária
Um canto doce como uma doce voz que canta o seu estribilho
E repetidas vezes o canto dessa ave que muito alto voa
Vem até mim como uma nuvem que dissipa a bruma e a clareia
Magicamente a humidade leve e branda soa como uma asa
Levando-me a voar no dentro do seu voo.

Foi a ave além na sua asa indo e voltou e volteou no ar e quando viu
O chão a rebrilhar as ervas e a água em pequeninas gotas e as margaridas
E as violetas todas no chão esvaídas como um véu que quando o Sol nasceu
Se viu ali plantado entre a verdura a calma mansa das ervas

105
Atrás do véu o Sol desceu atrás da terra se escondeu e noite veio atrás do sol o céu
Também se escureceu
E fria a noite no seu beijo atroz tangeu e aquela luz que havia
Na pétala da flor se protegeu e sobre si própria se apertou como um abraço quente
Que o frio da noite com o seu grande manto enfim fez seu
E o Sol nasceu
Brilhou bateu no chão queimou rodou e atrás da nova noite se escondeu
Anoiteceu
Mansa e cansada a ave adormeceu.

Dentro da noite branca nuvem de prata iluminada estrela longe brilha


Voando como uma ave louca a borboleta cega – a escura
Acordada e súbita
A ave dorme fria e afastada.

(20)
O CAOS SINTÉTICO primeira página:

Na contrafeita saudade do presente um dia inteiro


Se prende de um momento de emoção
Que não é um dia nem é um momento
Nem um presente que não existe
Nem um passado que se esqueceu
É um futuro que se adivinhou
Numa vertigem que se esquece
E que se vive
É uma febre que se sua e uma dor que se sangra
Nas canções que já não estão na moda
E na febre dos viajantes e dos loucos que são a seu modo
Viajantes
Essa saudade são os olhos que se fixam distantes
Uma inocência que jamais será simples
Um movimento que não corre mas que se enovela
E nas novelas brinca ao sonhar e em timidez ainda
Uma vez mais se sonha
É um artista que se pesca a si próprio do mar
Se um arco-íris a água fez espelhar na sua rede
Um pescador o é um peixe sim o é um barco
Tudo isso ele é nessa saudade e mais
Ele é o mar e o naufrágio
E de ser tanta coisa e se se lembra ainda
Poder porque não ser também o náufrago e logo mais
Será rasgado e pobre o que regressa miserável
Como um sobrevivente e não tem tempo
Ou não se dá o tempo de descansar estirado sobre a praia
Vai e caminha viajante e louco
Porque a saudade é lá onde encontrar
O que nenhum dia viu mas algum dia foi
Antes da divisão dos dias
Da ilusão da dor.

106
A dor é ter a alma escrava
A dor é ser um corpo e estar de fora
A dor é não querer sofrer
Sem uma explicação
Porque o que quer o sofrimento
Não o tem
E o que não quer ele o desfaz
A dor é não sentir
Ou é sentir demais.
segunda página:

A vida me procura numa nuvem e doce ilusão me submerge


A morte gela a noite e seca a pradaria
A longa extensão que se perde e se procura
O limite onde se encontra o frio que queima.

Tudo começa bem foi sempre assim


Todas as recordações são de um princípio bom
Que lentamente insinuando o fim se aproximou
E se viu finalidade extrema
Tudo o que é belo esconde o horrível
Nada tudo vida morte em branco e preto todas as cores
E nenhuma.

A fada que tinha a saia prenhe


Uma ninhada de bichos
E a varinha mágica.
Com quantas letras se escreve um sofrimento banal
Com quantas labaredas arde uma paixão
Com quantas mãos se abraça este cruel destino
E contudo não é a morte que responde à vida
Não é o corpo que responde à ânsia
É a saudade de uma despedida que nunca se despede
E despe-se do estar e fica nua e invisível
Mas sendo está e fica indo
E ausente se afigura cheia e sendo se esvazia.

As casas da fortuna estão a abarrotar


Os homens e as mulheres se enlaçam
Mas os seus beijos são frios e circunstanciais
Aquilo que uns procuram outros têm
O que se tem é uma miragem
Não se vê
E o que se vê é a miragem da miragem
E dentro da imagem a figura e na figura
O movimento passa.

107
A roda manca move-se
E o mesmo ser se espanta ainda e redescobre
Uma vez mais ainda a técnica
Vamos jogar.
terceira página:

Um dois três… já está


Aquilo está ali e não se vai embora
Porque é que está ali?
Porque se move? Não se move
Contudo sendo a arte já se foi
E sendo apenas nada que se viu
Desapareceu.

A arte essa palavra mágica


É negra toda suja
A mão sinistra jaz arrecadada
E nos cadernos nos ouvidos e nas telas
E nos cabelos das musas escorre a lama
Tocado pelas musas?
- talvez sim
Mas com que pena.

Uma verdade deste mundo é que quanto mais prisões se fazem


Mais assassinos há
Quanto mais missas se cantam mais fundo o abismo cai
Quanto mais medo têm os soldados
Mais medo eles inspiram nos outros soldados que também são corajosos
E mais inspiram medo aos corajosos soldados que lhes inspiram medo
E uma verdade que é verdade
É que quanto mais forte brilha a luz
Maior se torna a consciência que se tem da escuridão
E quanto mais quente é o adormecer
Mais frio e inexorável será o acordar.

Feliz é o palhaço que chora


E triste é não poder fazer
Rir as crianças de felicidade.

Alegre e triste são a mesma coisa


E isto sente-se com o coração
E o que o coração sente é sempre a mesma coisa
Variam os motivos e confundem-se
As causas e os efeitos
Depois há não sentir ser manso e finalmente
Entrar no reino.

108
fora da página:

Agora que o dia terminou e já não há mais tempo p’ra gastar


A vela que o poeta em mim um dia desfraldou
Pode se recolher e enrolar.

(21)
EU VI O OLHO… NA MANHÃZINHA

Eu vi as garças levantando voo …lá


No prado arado o céu o ar em transparente
A nuvem nua lá no alto em água e brisa
Eu vi as ruas os caminhos as saídas
Vi as vielas sem saída vi o impasse
Eu vi o negro nas paredes e nas casas
E nos lugares vazios o negro
Como num filme errado em outra sala
Negra sala onde eu entrei por engano
Eu vi os ratos no húmido do poço
Correndo na poeira
Vi-os às ninhadas correndo nos rodapés das igrejas
Vi as suas barrigas cor de pele
Barrigas de bicho senti o seu calor
Nas catedrais da sombra
O Sol batendo contra a muralha espessa
De um isolamento antigo que me foi imposto
Todas as coisas eu vi iluminadas
Tornando-se húmidas e escuras como celas
Vi uma árvore junto da estrada
E um telhado cor de ouro
Meu coração fotografando tudo
Eu vi em mim a chama
E um calor maior me devorando
Em mim eu vi o nada e vi
Fora de mim o mundo espelhando a escuridão
Com os meus olhos tanta coisa vi
Debruçado da janela da ilusão
Olhando longe e sem objectivo
Eu fui o filme e o disparo
Meu coração uivando ou rindo
O disparou.
E de todas as coisas que eu sem conta vi
Nunca me esqueci.
Eu vi os cães com as cabeças cheias
Na escuridão
Vi o artista apodrecendo nu
E não me causou nojo
Vi um cavalo montado por um jovem
Que tinha acabado de sair da tropa
Vinha lavado e energético

109
Vi o pescoço do rapaz entre os seus ombros
E a cabeça
Mas desviei o olhar e uma vez mais
Eu vi as nuvens no Outono desenhando longes.
Como outro que cantou antes de mim
Eu vi um passarinho
E quis que ele poisasse sobre mim
E não é querer dramatizar com isso
Mas a verdade do que se passou
É que o passarinho que eu vi morreu
E já agora então
Eu vi o passarinho morto
Que um raio de Sol esculpiu em porcelana
E um outro raio pintou de cores
Como se fosse ainda esse
Um passarinho vivo
Eu vi-o numa loja e lentamente
Fui-me perdendo nele
E amorosamente um dia fui comprá-lo
De lindas cores o passarinho
Estava contudo morto
Cabeça para trás asa caída
Passou a fazer parte da minha colecção
Eu vi os olhos cintilando de encontro às tentações
Promessas de vontades irrealizáveis
Apenas um pequeno gesto e uma grande escolha
Definitiva e lúcida mas enganosa e triste
Eu vi o Sol amarelecendo alaranjado
Um disco inerte e opaco flamejando
E os atletas cavalgando espaços
Cortinas ocas e altas cavalgando o ar
Eu vi a Espanha raiar na aurora como uma estrela
E vi a estrela da manhã desaparecer
Senti na nuca de volta ao vale o Sol picar-me
Sol do meio-dia junto de um ribeiro
Ribeiro seco suor do Estio estalando as ervas
Pudera eu imagens inventar todas as que visse
Fazer do céu a tela do pintor.

110
(22)
O ALBATROZ

Contra a janela ao longe vejo o céu


E antes do céu vejo o arvoredo e casas
Antes das casas vejo o espaço e o terreiro
Por baixo vejo o pó do chão
E o pássaro do bico encarnado está ouvindo
O canto dos que cantam lá fora
É mera ilustração e não canta
Se calhar também não ouve
Ou talvez ouça.

Coisa engraçada o Sol batendo no telhado


As telhas todas ali iluminadas
Uma telha sobre a outra telha
Algumas brilhando outras na sombra
Todas certinhas como são as telhas de um telhado
Parece estranho como um telhado pode ser tão engraçado
E no peito do que o vê assim iluminado
Iluminar qualquer recanto que escondido
Quase esquecido se esquece de sentir
E não o amor e não a alegria
E não o riso ou a tristeza fazem brilhar
Aquele canto recolhido agora escancarado
É engraçado
Toda a minúcia
Com que uma imagem tão casual pode afinar
A harpa louca e o carrilhão do coração
Sentir o tom na afinação do som.

Agora a sombra já mudou


E o pássaro continua com o seu bico encarnado
Ouvindo imaginário
Também tem uma asa levantada
Com um ar de quem acabou de voar
E umas crianças brincam com um pombo
Cada uma querendo mexer o máximo no bicho
E por fim deixando-o livre ele não voa
Tímido passeia descrevendo círculos
E volta de cabeça baixa
Às mãos cheias de carinho das crianças
Agora ruidosas o seguem e ele perplexo
Nas mãos da que vai à frente
Tudo isso por ser um pombo que apareceu
Um pombo cinzento com uma quilha.

111
O pássaro do bico encarnado é outro género
Não sei se é um periquito se é um papagaio
Se é um rouxinol se é um tucano ou um albatroz
Talvez seja um albatroz que é um pássaro bonito
Um pássaro literário e importante
E tem um bico encarnado
Talvez seja mesmo um albatroz
Mas para albatroz parece-me pequeno
Embora o bico seja bastante grande e encarnado
O Sol está quente e o pombo ainda não conseguiu voar
É um ídolo que se tem nas mãos
Mãos de criança que se contêm nas penas fofas
Do pássaro sem destino que as guia
Como um estandarte na procissão

O outro …o do bico encarnado ali está
Sem compreender o que está ali a fazer
E o pombo finalmente voou
Pouco voou mas voou e agora já voa
O outro não voa porque é um pássaro pintado
E por ser pintado tem um belo bico encarnado.

(23)
Grito contido o cão castanho o olho morto em vão a fé
Tirada de mil dedos de esperança que um dia anoiteceu
Tem sua rima o ar que pulsa e não se ausenta e mexe
Também a dor tem sua dor e ela é viva
Qual é o dia em que cinzento o ar se torna chumbo
E sendo assim o que questão se põe e vale a pena
Se vale a pena porque pena assim quem tem
O bem de saber ser o véu para alem do véu
Deus que perdura e jaz envolto em carne
Véus de ironia que se atiram tiras de vale
Vãs perspectivas omissas nunca mais paisagens
Leões doirados onde aninhados destino além
Ruído surdo sonha em segredo aberta a boca.

(24)
Como vou eu dizer um ditirambo
Destes filhos de Deus que para mim são essa espuma
Espuma suja nata sobra a rama
Todos consagrados no seu tempo de flutuação
Meus irmãos todos filhos do Pai
Eles encantam com seu lume
A poeira seca que esvoaça em mim
E o meu coração é neles que se poisa
Quando a verdade que pressinto neles toca
Não porque a possuam não que a tenham
Mas porque a ouviram dizer
A tia tal que tem não se sabe quantos anos

112
O António poeta que tem mais dez
E ela dizia quê e ela que sim
E ela também que sim e que mais.

Ainda ontem eu vi as nuvens sobre o mar


E os vultos que apareciam e desapareciam
Eu e elas de mim até eu lhes chegar
Tanta doçura que nem aos sonhos lembra
Luzes na Lua que se projectam no mar
Luzes na areia que se repetem no céu
Tanta alucinária irradiando solta na noite
E na fina tira de mar bóia dançando
De tudo isso o reflexo que é mais.

A noite o mar e a luz que há para além da noite


Embalam a espera que corroe e faz
Eu espero o coração partindo-se de amor
O vulto conhecido navega pelo ar
Meu corpo espera e eu parto-me em olhos
Vendo o vulto do corpo que se afasta
A espera eterna espera agora
Que o sonho traga a noite mais distante
E nos seus atalhos de miragem
Vão redimir em imagem a noite que morreu.
Em volta do fogo um e outro tronco se transmuta
De chama em luz a chama morre em brasa
E a brasa morre em cinza lentamente
O tempo passa inexoravelmente desigual
A hora morre na fogueira e o minuto longo
Traz tempo demais…

Para a sombra do mundo fecho os olhos


Nesse cair de pálpebras pesadas que é a desilusão
Descem as cortinas na cena encobrindo os fins
Que assim escondidos dos meus olhos acredito.

O sonho que transcorre livre


Liberta a alegria doida de encontrar
Na praia finalmente frente ao mar
É loucura a loucura que se vê aí
E encontramo-nos rindo de nos encontrarmos lá
Um o outro – o outro a si e lá
E lá porque não se contém em nada esse desejo
Nem se confina a um limite esse prazer
E é sempre proibido ter e então por ser
É impossível proibir e é bom é bom
Talvez demais.

113
A noite é mãe do que o dia afoga
A luz que vibra nas coisas todas que existem
E tudo na noite se transforma e sendo dia
Morre o que a noite carinho maternal acariciou
E tão assim o dia se impõe com o seu Sol
Lindo astro de cores variadas
Já no ar se agitam todas as finuras
Rendilhados se esfumam lindos no céu
E uma esperança espera ainda que no dia
Exista o sonho que dócil se retira
Na pira se esmorece na areia frente à noite
Que lenta lenta lentamente roda de oriente
Para ocidente.
E o dia nasce lindo com as suas cores habituais
E o Sol subindo faz das cores outras cores e o céu azul
Aquece o corpo e sua a noite suor amargo
E o dia vê que claro o dia é já meio
E passa como um rio.

Perto do mar já pouco se vê


E aqueles homens que bebiam e falavam
Divertidos beberam e falaram e se foram
E de tudo o que disseram não sei se sei
Se alguma coisa se prendeu no meu pensar
A tia tal e o poeta que se chamava António
E a vaga recordação que de repente vem
De um António que não deve ser poeta
E a verdade da tal tia que eu já sabia
É deus que é pai de todos
Até do diabo.

(25)
Cá estou eu outra vez compondo os laços
Do meu desarranjado fato de poeta
Desarranjado fado aqui sentado
Numa mesa lateral de um café do passado.

Guiou-me até aqui o acaso dos passos


Iludindo o encontro encontro a minha meta
E desencontro o rasto perdido de uma amada
Sentado num cantinho do «Martinho da Arcada».

Meu amor que o fado fez em mil pedaços


Cupido negro desferindo lindo a sua seta
Nuvem no mar do céu da tempestade
Lembra brilhando o nome que lembrado traz saudade.

114
Esquecida em brilhos que ficaram baços
Ela esqueceu os traços delicados do poeta
A juventude doida endoideceu e agora
Nessa cidade essa poesia já não mora.

(26)
O cansaço vem com a noite ser
O fim do dia ainda se vislumbra
Há que morrer um dia como um dia
A acabar-se por não haver mais luz.

Há que viver ainda mais um dia


E ver como será aquele que virá
E somá-los aos que passaram antes dele vir
E ver o que ele tem de igual aos outros
É o ser mais um dia a renascer
Na expectante uniformidade dos dias.

O ritmo vem de noite e dia


Transformado vestido de evidente
E resta-nos esperá-lo e ser por dentro
O que ele sem ser é em toda a parte.

É dividir as coisas que nós temos


Em outras coisas iguais
É reviver os anos em que os dias foram passados
Só para ver o dia que virá depois
E depois… depois assistir-lhe ao fim.

Os dias não têm fim


E a vida são esses dias
Quando na vida anoitece
É p’ra nascer outro dia
Depois da noite passar.

(27)
Um raio de sol passa através
Do espaço mole que enrijeceu
Tornou-se opaca a trama no céu
E uma brisa chã me beija os pés.

Esta impressão de estar não estando


O céu e o chão num só olhar
Loucura a cor que de se impressionar
O céu no chão se vai consolidando.

Atento de repente o olhar ausente


Se prende no presente que alucina
A voz rendida à linha se ilumina
E a linha lida é já diferente.

115
Aqui vou vendo resumir-se o ar
Em coisas que se dissimulam
À minha volta se enrodilham
A minha avó ainda cava morta.

Se alguma coisa se quizer dizer


Virá aqui p’ra que se diga
E eu que o digo pela segunda vez
Talvez ainda venha a queixar-me que ela venha.

(28)
A mar enleva o destino
Na primeira onda vaga
Rasga a tralha
Faz miséria e agasalha
O inferno saturnino
Estraga estralha e almareia
Olhar o longe
Quem roga ao ar o sal
Vê que ser monge
Não dá trabalho.

Outros propósitos
Seriam próprios
Encher depósitos
De rasgos óbvios.

Obumbramentos
Desses momentos em que o dia
Faz de si próprio
Quando se esconde
O fim.

(29)
Esperança é a espera que prolonga
O momento que antecede a despedida
E aguarda ansioso a hora longa
Que passa devagar por sobre a vida
E no fim dessa espera é que fica
A esperança que fugaz se manteve
Finalmente na dor se gratifica
Alongando a hora que ferve.

(30)
Ervinhas daninhas fáceis de escolher
Florezitas finas fáceis de colher
Relvinha virgem meu corpo em ti se deita
E se adormece na cama que se ajeita

116
Afoita a erva cresce-lhe nas faces
E em volta do seu corpo forma enlaces
Como flores os olhos sonham abertos
E brilham como pétalas despertos
De flores banhadas pelo orvalho.

(31)
Ai caderninho caderninho
Ai caderninho meu
Deixo-te assim por acabar
E ao pegar-te depois
Dás-me lições de pasmar
Ensinas-me como é falso
O que se sente no quente
Forno aceso das paixões
E falso quanto se escreve
Quando sob as emoções
O coração se ornamenta
Com sentimentos totais
Radicais e fatais
Como o destino…

(32)
Como se diz que vai acontecer
O que não se sabe se vai
Também acontece suceder
Algo que nunca se esperou
E a surpresa do que se espantou
Leva a supor que se esperava ser
Outra coisa o que aconteceria
Se antes o tempo a pudesse surpreender.

Parece isto ser assim muito banal


E nem se merece a pena dizer
Mas tanta coisa é dita que afinal
Nalguma coisa há-de estar a chave
Na frase doce que se diz suave
E no grito que se arranca animal
E tudo existe em espelho e por assim dizer
Tudo é aborrecido e sempre igual.

Quando algo não parece no momento


O mesmo que se diz a toda a hora
É impressão do ouvido e certamente
Pouco depois é coisa sem valor
E o real transmuta a sua cor
E aquilo que era grande de repente
Aquele brilho que tinha vai embora
E perde-se no tempo o sentimento.

117
Tudo igualmente se perde e reproduz
E se mantém atento o movimento
Apenas essa coisa eterna nos conduz
E parece imutável e grande
Nada que a regule ou que a abrande
Aproxima-se de nós procurando-nos
Mostrando como o Sol nos dá sustento
E generosa nos oferecendo luz.

(33)
Um homem vê a luz na vida
E pensa que é uma dádiva
Conquista a vida numa luta
E é na morte que se congratula.

É estranha assim a vida que se leva


Pensando que naquela a vida se revela
Da vela a cera queimando chama
A rama ardendo em fumo o ar se mancha.

(34)
A dor se mancha e deixa-se aviltar
E o ser se deixa dócil inspirar
E longe ruge quem se deixa ver
Por quem portanto o vê desaparecer
É engraçada esta mandinga
A fonte de onde a poesia pinga
E quando jorra em formas se elabora
Sem nunca se notar onde ela mora
E no entanto é tanto o seu poder
Que por um poema se pode morrer.

(35)
Quantas coisinhas pequenininhas se alinham nessa linha
Umas atrás das outras todas direitinhas
As crianças riem dessas coisas lindas
E parecem no céu mais as estrelinhas
Minhas coisinhas coitadinhas todas seguidas
Seguidas todas como criancinhas educadinhas
Cantando indo para a escola dando as mãozinhas.

Vão a caminho pelo caminho mãozinhas dadas


E eu vou sozinho vendo as crianças no ar paradas
E outras crianças já mais crescidas no ar dançar
As três partidas do céu extraídas traídas são
E há tanto tempo guardadas bem cá dentro estão
E entretanto já liberadas pelo céu vão
Em vão viveram foram tiveram seu lugar.

118
Situa no limite o teu olhar deixa vogar
O ser no que o olhar se quer fazer acreditar
E no distar entre o olhar e o seu limite
Encontra o entre encontra o entre encontra o entre.

(36)
A tempestade arroja à terra o cepo
E na malha o bicho se afastou
O olhar meigo já se desviou
E de se usar assim se tornou crespo
E no cabelo o vento transplantou
Alguma imagem que desapareceu
Alguém que desligou e se perdeu
No rumo de difícil continuar.

(37)
As horas difíceis passam lentas
Agora estáticas dançam mortas
E passam mortas preenchendo o tempo
Transforma-se trágica a hora que lenta
Transfigura a face que transida se ausenta.

Para sempre fixa no infinito


P’ra sempre se fixa infinita
Sempre p’ra onde infinita tende
A infinita tarde do sempre.

(38)
Caras e coisas ao longe
Parecem outras parecidas
Das ilusões e das dores
Há as que desiludidas
Vão em mãos vão em mãos.

Gostava de ter o dom


De ver nas caras humanas
Atrás do rouge e do baton
Formas de rosas brancas
Gostava de ver nas mãos
As ilusões dos corações.

Enlouquecidas e frouxas
Eu imagino as pessoas
Roucas e dorminhocas
Andando à toa.

119
(39)
Humanamente de acordo
Abanamos a cabeça
Dizemos que sim que sim
Que não que não não senhor
Mas que é mesmo é evidente
As nossas feições chocalham
E somos humanos bons
Estamos de acordo e felizes
Esperamos o dia de amanhã.

(40)
Dificilmente eu posso compreender
Como se pode a beleza confundir
Num esgar de ridículo e afrouxar
A coesão do belo que se fez
Adiante se desfaz todo o contorno
E se contorna de novo o horizonte
Ali nesse recorte é que se acha
A lágrima que vem redimir
Belos contornos se acham nas montanhas
E outros se perdem no céu
A imagem se distingue na face
E a sombra desenha a imagem
A mensagem torna iguais as faces
O ébrio e o sábio têm o mesmo olhar.

(41)
Como contar essa prisão onde livremente tenho de morar
Donde em delírio me liberto por momentos
Que imposição tão sem finalidade eu me atirei
A desbravar e me impus na frente da palavra
Uma ideia que encoberta se oculta.

(42)
No ar imagem sobre imagem se dilui
Confunde-se a visão
Lá em baixo uma nuvem de poeira
Se levantou e paira ainda agora
Ora baixando ora se levantando
Sempre junto ao chão
Da imagem a paisagem não existe
Existe apenas a imagem
Tudo isto são imagens sucessivas
Fotografias ou pinturas exibidas
Como num álbum de coisas impossíveis
Em imagens sobre imagens se propaga e continua
Por debaixo de uma outra figura
E a figura de uma outra que não figura lá
E subtil se reformula das outras.

120
(43)
Desde o dia em que eu tão triste
Esperava por ti ali
Naquela estação iluminada
Tantas coisas pensei e escrevi
Coisas que não são nada
Há bem de que o tempo passa
E nada se consolida
Antes tudo se dilui e se trespassa
Confundindo-se na vida.

(44)
É verdade que um dia tive a esperança
Enchendo-me a alma por inteiro
E deixei-a pelos bancos dos jardins
Pelos degraus das escadarias das igrejas
Por aí numa fértil sementeira
Da qual germinaram numerosas flores.

Também nas escadarias dos jardins


Sentado nos bancos encantado
Eu vi nascer uma outra esperança
Se ser de novo um namorado.

Paixões que eu tive todas esqueci


Por uma só que a noite me deu
E com o tempo correndo nela vi
Destino e fim elanguescendo
Tremi senti temor e tive medo
E por vezes estive também desiludido
Mas esse amor escolhi e escorregadio
O seu caminho quis percorrer
E quando beijei foi dentro de mim
E quando fiz amor julgando penetrar
Fui penetrado
Mas ainda assim foi pouco para tanto
A minha alma sonhando queria mais
Como uma grande ânfora a quem enchessem
Com uma gota apenas.

(45)
Àquilo que falta um fim
Uma voz se precipita
Não se resolve se assim
Os desejos à compita
Formam no céu um carmim
Inconfundível carmim
Os pés em pontas palpita
O coração no palamquim.

121
(46)
No coração do bom mora o mau
Como um criminoso numa prisão
No coração do mau mora o bom
Como uma criança órfã.

(47)
Quando observo bem parece-me que a vida
Se compõe de poucas coisas diferentes
As situações repetem-se incessantes
Iguais umas às outras enquanto colorida
A vida vai somando as situações
Quase ninguém repara nas repetições
Ou então não lhes dá a importância devida
Enquanto a vida ao passar torna em sinais
Os acontecimentos mais banais.

(48)
Quando eu era pequeno
Tudo parecia bem feito
Eu era muito pequeno
E tudo muito bem feito
Mas certas coisas porém
Já me pereciam diferentes
Umas das outras diferentes
Mesmo que fossem bem feitas
Não suportava a diferença
Eram diferentes – doía
Irritava-me com isso
Eu era muito pequeno
Coitado de mim não sei
Fazia tudo bem feito
E agora que já sei
Distinguir melhor as coisas
Poucas são as que parecem
Ao meu pequeno juízo
Feitas como deve ser
Já não me dói a diferença
Doem-me as coisas em si
E vê-las faz-me lembrar
As outras que eu então via
Não me lembro como as via
Mas a vida é mesmo assim
Vemos as coisas bem feitas
Até esquecê-las um dia.

122
(49)
Contaram-me uma vez uma estória
Sobre os braços peludos de Esaú
Da estória já não me lembro
Nem sequer quem ma contou
Quem ma contou talvez me lembre
Mas a estória mesmo bela estória
Essa já esqueci.

Também na minha família


Havia muitas pessoas
Umas ainda me lembro
Outras com dificuldade
A minha vida é bem curta
Mas muitas coisas já vi
Que com o tempo esqueci.

Se outrora já soube o nome


Daquelas flores ali
Foi decerto por acaso
E a prova é que o esqueci.

Das outras flores além


Sei que nunca soube o nome
Mas vendo bem são iguais
Às outras que já falei
E se falei já falei foi por falar
O que falei está falado e já esqueci.

(50)
O árabe tem panos que o cobrem totalmente
E totalmente ausente ele olha
Profundamente o ar aquecido
Ele penetra o ar como um amante lento
Fazendo amor assediado entorpecido
As moscas rondam o árabe
As moscas pousam no árabe
Ele não afasta as moscas
Permanece à sombra olhando o espaço
Fumando compassadamente o seu cachimbo
Chamado também o narguillé.

123
(51)
O EMPREGADO DE MESA

Os comes e os bebes
Os fumos e os tótius
Que se ingerem que se inalam
Que se morfam e se deglutem
Os copázios e os acepipes
Os cigarrinhos que se fumam
Tudo o que se ingurgita e consome
Tudo o que entra em nós pela boca
Nos é dado
Mesmo quando pagamos
Mesmo quando não temos dinheiro
Para pagar nos é dado
Pela boca e o fazemos
Parte de nós.

E os inefáveis seres
Que no-lo dão
São homens e mulheres
Geralmente homens que se entregam
À sua profissão
Ao pé de quem os sacerdotes
São só imitação

(52)
A jovem gingando dando a anca a um e ao outro lado
Lembrando distante a sua terra tropical
Vassourando parou vai almoçar gingando
Morena foi gingando andando levou nas mãos
A vassoura
Mas não se nota neste chão
Não se repara
Que tenha sido
Varrido
Talvez ela só tenha na vassoura
Se apoiado
E tenha só gingado.

Isso foi antes


De eu ter aqui chegado
E de me ter sentado
Neste banco de jardim
Olhando
E respirando e escrevendo
Ela já foi morena com seus morenos
Jovens ainda no seu ofício
Atrás os outros mais antigos
No seu serviço

124
Mais lentamente como quem sabe
Fazer render
O sacrifício
Pausadamente indo almoçar
Alfaias dentro do carrinho
Atrás dos jovens jardineiros
Que deixam o jardim.

Agora vêm as pessoas


E as crianças brincar
Faz tempo que eu estou aqui
Brincam na relva e inventam
As brincadeiras
Duas quase iguais vêm para mim e vêem-me sorrir
Nas suas sortes são divertidas
E vão
Já vão
Agora vão
Em vão
Outras ainda estão
E brincam
Com um cão
Umas sozinhas outras não
Ou então
Umas com as outras
No chão
Outras brincam com os que já não são
Nem mais crianças nem brincam
Ou se calhar ainda são
E mansamente se esqueceram de brincar
Ou talvez não
Talvez estejam apenas a ver
E sem eu perceber
Alegremente brinquem com a vida
Que passa por eles sem os ver.

(53)
Linhas e linhas arranjo
Na esperança de ver louvado
O que dentro de mim tanjo
E pouco vejo arranjado.

Há pouco ainda te via


E te tocava ao de leve
Linda sonhava e sorria
E ria um riso breve.

125
Agora estou aqui só
E tu de mim estás ausente
Sinto saudades do Sol
Que me deixa dormente
Sinto saudades do beijo
Que eu prolongo e desejo
E por fim se desvanece.

(54)
Ficou o absurdo das repetições
Em que tentei guardar outro momento
E nestes momentos que se seguem
Vou ainda sentir o que senti
E sentindo vou esgotando o ser
No que houver a lembrar e a sentir
E recordando vou esgotando esse lembrar
Que já se definiu por perdição.

(55)
Porque todas as coisas são iguais
Para um que não as sabe distinguir
Encontrarei o espinho da roseira
De uma só e única maneira
Que já há muito está delineada
Confusamente embaraçada como uma linha lassa
Que sobretudo importa não partir.

E todavia o que eu procuro


Não é o espinho e o que procuro
Talvez não seja bem evidente que procuro
Talvez eu não procure
Talvez apenas tenha vago e renitente
Um grande desejo de encontrar.

Tudo isto é sem sal e sem sabor


Apetece exceder o entendimento
Ficar empanzinado de pensar
E não pensar em mais nada
E morrer
Apetece morrer e afinal
Antes morrer do que viver
Na escravidão.

126
(56)
Fica na sombra o verdadeiro Sol
Enquanto o dia brilha o Sol ardente
Só leva ali tão loucamente a mente
Aonde só a mente leve bole.

E lá brilha outra luz bem diferente


Dessa luz que de dia se irradia
E forma-se na terra essa folia
Só de provar aquele bafo quente.

E o que a toca e a vê somente sente


Ser uma gota que o mar engole
E gota a gota o grande mar se torna enchente

E cheio dela o velho ser se torna ausente


E esquece aquele Sol que aparecia
Vestindo de real o aparente.

127
O LIVRO DE VERA LÚCIA
com Prefácio e alguns poemas de
Joaquim Morgado

42 POEMAS

128
nunca estive numa só linha a tão vertiginosa altura,
oh Anjo Príapo, oh Nossa Senhora Côna!
quando nos vimos nus um em frente ao outro,
em nossa primeira noite nos começos do mundo
numa pensão rasca de um bairro de quinta ordem,
o putedo sai que entra pelos quartos em volta
– peço por isso que um qualquer erro de ortografia ou sentido
seja um grão de sal aberto na boca do bom leitor impuro.

Herberto Helder

129
Prefácio:

(1)
DIZES QUE ME AMAS

1.
Dizes que me amas
E espalhas rosas de ouro
Nas asas do caminho
Rectilíneo imaginário a caminho
De uma ilusão perdida em Pontevedra
Algures da Espanha vem o Sol…
vem o Oriente.

Dizes que me amas


É verdade
E doira o Sol nas pampas dessa Espanha
Que se prepara e espera
Há muitos dias pelo dia
Amanhecendo solarengo de uma festa.
Talvez nesse dia a palavra tenha peso
Mais que de uma vida
Assim vivida
Com arte e rindo
Mais que de não ter rei
E que de ter nascido rei da ilusão…
imperador do tédio
E como um Cristo rei dos pobres
Profeta do azul e de todo o púrpura…
da dor do mundo
Com um nome e uma estrela
Que tivesse do destino o jus
De ter nascido com um nome
Intenso e manso
O nome inteiro de um Deus…
e de menino…
que é o menino Jesus
E eu ouvindo é como ouvir
A tua voz chamar por mim.

Dizes-me coisas como sítios


Onde eu nunca fui
Lugares que eu nunca vi
Lugares onde eu não estive
E de repente me parecem conhecidos
Como amores que eu já senti
E uma vez mais me querem visitar.

130
De verdade eu nunca estive em Pontevedra
É um lugar imaginário
É um sítio amado dentro
Dentro do corpo mole
Do corpo que lascivo molha de desejo
Dentro das tripas e das pregas
Mais dentro ainda…
dentro
Dentro do escuro
Onde a distância tem o seu lugar
O lugar lídimo e distante
Onde se encontra o bater do coração
Não o coração – o seu bater
O lugar escuro
Tão grande como a distância e tão profundo
Longínquo que possa ser o longe
Distante como tudo o que os olhos podem alcançar
Quando vêem
Toda a curva da Terra que se estende
Para onde os olhos não alcançam
A curva que contínua continua
A vida nua
Que se insinua
Na tua boca quando dizes que me amas.

2.
Dizes que me amas
Talvez seja mentira
Quantas vezes
Se dirigem às fêmeas galanteios
Às vezes verdadeiros
Outras menos
Que um motivo inocente de ter ritmo
Ou de um riso
Perdido a declatar no ar do colectivo
Às vezes pelo preço assedutivo de um sorriso
Ter-me-ão dito em vão que acreditasse
Por um momento
Ou num momento de grandeza
Acreditasse – para toda a vida
Nessa verdade enorme
Que existe em todos os momentos
Ainda que cada um desses momentos seja
«Cheio de inferno e céu»
Como um poeta disse um dia…
na Bahia

131
Ou num qualquer lugar diria
Por ser aquele outro momento ou dia
Grande demais para conter
No espaço de um lugar
No tempo de um momento
Essa verdade enorme.

Dizes que me amas e talvez


Naquele momento tão singelo e longo
Que nem mesmo a memória já contém
Seja verdade mas…
é mentira
Se pode ser tão simples o amor
Se pode ser
Tão logicamente verdade ou mentira
Se o é agora ou não
Se o é depois ou mais…
afinal tão simples não.

Dizes que me amas…


talvez me ames
Mas eu não acredito
Acredito naquele momento
Fugaz e tenso
Breve e infinito
Inesgotavelmente fugidio
Intenso e inalienável
Maravilhoso e sólido
Momento tão fugaz e lindo
Em que tu és inteira e leve
Flutuas quase sem existir
Molhando o ar
A cada pulsação da tua pele
Redonda e breve
E dizes sem loucura ou desencanto
E sem sentir o peso do momento
Eu vou eu amo.

Em Pontevedra amamo-nos assim todos os dias


Na noite e na manhã
Na Catalunha
Ama-se em Barcelona
No umbigo exorcizado e branco do mundo…
no cu do mundo…
de Judas…
o Iscariote…
traição total e fama…
fraternitatis.

132
Meu deus afinal eu amo tanto
E tão intensamente
Nunca sei dizer o quanto amo
Nem isso é importante
O importante é ser volátil e fugaz
E acreditar
Mesmo na fímbria do tempo
Que a luz é doce.

Cada momento em que tudo o que se vê


Seja verdade…
tudo o que existe
E não há tempo
Não se pode perder esse momento
Em que tudo parece ser verdade
Em que tudo pode ser maior que a natureza
Das coisas e dos seres…
em seu expandir e na medida
Ausente e impossível do amor
Razão e vento
Olhar e crer
Que é ser por fim
Aquele indescritível momento…
em que tu dizes…
que me amas.

3.
Agora vem o desgosto e o não ser
Vem o choro
A lágrima guardada para ti
Há muito tempo…
vendo bem não há o tempo
Tu não tens tempo
Tu és maior que o tempo
Todo este tempo
Não é senão
O tempo que levou a aprender
A penetrar o mundo e a saber
Esperar por ti.

Saberei eu um dia
Cantar a verdadeira sina
Cantar com dor e lírios
A cor e o som
O número e a medida
A dor de responder…
– Já vou
Com força e convicção
Como quem canta
Na sua voz roufenha

133
Como uma lira
Como uma grafonola
E com a tacha arreganhada no estafermo
Mas se condói
Por arreganho e fim…
em holocausto
Do seu mistério a canção
Que se nomeia bem quando se diz
A quem o sabe entender
E o ouve…
e o sente
Como se do seu próprio peito se tratasse
No coração
Bater o ocaso da vida
O banho de jamais
O nunca mais
Que se traduz na última palavra que se ouviu
Dizer ao mesmo ouvido que sentiu
O fim anunciado desse amor
Canção como que do destino
Que se anunciou
Sem mesmo acreditar que se encontrou
Por fim aquela flor amarga
Por quem intensa e amorosamente sempre se procurou.

4.
Afinal todos nos encontramos
Na mesma estupidez impenitente
Nas maiores incongruências
Nas monomanias
Nos malentendidos
E nós caímos na real
No quente…
hum!!…
no seco
No mais quente…
no frio…
no tépido
No intrépido
No incrível
No que não dá para acreditar
É mentira de certeza
No cinco afinal todos nos encontramos.

5.
Todas as coisas alguém disse têm ânsia
De toda a pressa que temos de saber
De toda a vertigem que nos dá morrer
Essa última gota que nos dá de beber
O cálice da vida.

134
A dor se faz vibrar como uma cor
Que ninguém de entre nós pode dizer
Mas todos a sabemos bem
E cremos…
e amamos.

Mas não sabemos


Nunca podemos ter a certeza
Algo que queremos comprovar
é-nos vedado.

E quando queremos realmente perguntar


Alguém nos tolhe a voz
E alquebrantar fora do tom
Em que se escuta o coração
Quantos poemas terão sido já imaginados…
e escritos
Quantos poderão ter sido já sentidos
Sem ser ditos
Quantos terão por um momento
Ainda que inventados e vividos
Ainda que sangrados…
longamente até às lágrimas
Mesmo que por um momento apercebidos
Por um ápice indizível
Ainda que desfeitos
Os sonhos e os amores amarrotados
Como a idade dos poetas
Linda também…
e invejável
Mas sofrida até um ponto inexplicável.

6.
Na universal diversidade das pessoas
São como sempre
Umas difíceis outras fáceis
Umas dizem facilmente…
– Eu amo
Outras mais fáceis mais difíceis
Dizem às vezes que não amam…
– Não te amo
Coisa pavorosa e sinistra de dizer
Quando se diz
E que se diz
Pavorosa e sinistramente
Quase banal e sobranceiramente

135
Diz-se banal com toda a força e superficialidade
Se diz…
– Não te amo… não te amo
Mas a maior parte das vezes é mentira.

7.
O amor é por natureza
Uma ânsia absoluta de irrealizável
Mesmo quando tudo parece
E mesmo consegue chegar a estar…
bem
O amor é o que nunca chega
O que quer sempre mais
É o que tudo resolve e apazigua
Mas nunca chega
Nunca pára
Nunca se detém
Tem um dia lindo em que começa
E nunca acaba.

(2)
PROCUREI-TE NAS MONTANHAS

Procurei-te nas montanhas


Mas nunca subi para ver se estavas lá
Também nos vales e junto dos ribeiros
Nos caminhos e nos matagais
Por cima dos valados ou entre as plantações
Nos espaços abertos eu andei
À tua procura.

Não há poema que diga como eu te procurei


Na minha aflição
Nem a vontade e a precisão
Que eu tinha de te encontrar

Não há imagem que possa recriar


O que eu sentia quando te procurava
E nunca te encontrei.

Não estavas onde eu ia


E eu nunca fui onde tu estavas
Nas cidades vislumbrei-te fugidiamente
E segui-te pelas ruas estreitas
Escuras
Tristes e nocturnas

136
E até nas manhãs impossíveis te entrevi
Talvez insinuando falsas aparências
Entre as arquitecturas desusadas dos cafés
Mas mesmo aí sempre te afugentei
Com a minha arrogância
E a minha desconfiança intolerável.

Perdi-te numa rua junto de um ribeiro


Atrás de uma montanha
Sabia-te lá e não te fui buscar
Porque naquele momento eras invisível.

(3)
POR TODOS OS QUINTAIS

Por todos os quintais


Andam passarinhos
Procurando grãos
Perdidos na cidade
Como pombos
Ardem nas ruas
E nas praças das cidades
Os passarinhos
Andam nos telhados
E nos quintais
Descem do céu para comer
As migalhas que ficam
Nas toalhas
E são deitadas porta fora
Nos quintais.

Os passarinhos
Ficam nas divisórias
Põem-se a debicar na expectativa
Esquadrinham os quintais
E aventuram-se
No escuro dos saguões
À procura de migalhas
Que as pessoas deitam fora
Pela janela.

137
(4)
SE OS MONSTROS FOSSEM VISÍVEIS

Se os monstros fossem visíveis


Quando a olho nu sondáveis
E se as mensagens inúteis
Dos seus mestres inefáveis
Esses monstros intangíveis
Por um momento sofríveis
Transmissores de anelos tácteis
Se transformassem em móbeis
Por detrás dos seus falíveis
Desígnios inconfessáveis
Em rastos imperecíveis
Dos seus destinos prováveis
A verdade desses níveis
Em policromos solváveis
Os seus contornos credíveis
Iriam tornar imóveis.

(5)
DEVERIA EU TER-ME ATRASADO

Deveria eu talvez ter-me atrasado


Mas não teria querido
Não é o noivo que espera
- Todo confiança e fé – a noiva
Mesmo quando ela não vem
Ele a espera
E espera
Espera ainda por um momento mais
– um longo ápice
Uma fracção inominável de não tempo
Por um longo momento
De um instantâneo infinito
Ele sabe já que ela não vem
Mas finge acreditar que virá
E num mesmo momento
Longo momento de uma dor sem nome
Ele confunde
Saber e crer com estar e ter já ido
E mesmo quando dos pés
Os passos o levam para longe
Daquele lugar indizível de tortura
O coração como que arpoado
Fica arrancado
Dilacerado e preso àquele lugar que sólido
Se apresta para ser o do infortúnio.

138
Eu por mim esperaria ali toda a vida
Toda a vida e mais seis meses
Eu esperaria ali
Ou aqui
Neste lugar para tantos insuportável e lúgubre
Não para mim
De quem o coração
Já tantas vezes espezinhado
Pelo clamor que o ar estremece quando passas
Tantas vezes rasgado e tantas mais
Despedaçado em mantrams
De ilusão que a vida não cumpriu
E fantasias que a ilusão deixou por colorir
Eu esperaria
Aqui ou lá no episódico e fugaz
Pressentimento de ser lugar algum.

«Vem sentar-te comigo (…) à beira do rio»


Onde haverá de certeza muitas pedras
Que atiraremos medida e calmamente
Até encontrarmos no vago azul
Mate do cristal da água
Aquele círculo mais afastado e ténue
Que nos sugere da perfeição
A perfeição medida.

Vem sentar-te então comigo à beira do rio


E quem sabe molhar na água os pés do cio
Arrefecidos lá onde por um momento
A alma de si própria se desprende
E às águas múltiplas se confia confundindo o pé
Em que se procurou ao atirar as pedras com que se desprendeu.

(6)
TER-TE-EI EU VISTO AS ASAS?

Ter-te-ia eu visto as asas


Com os meus olhos de ver o que não existe
Teria eu visto o teu pulsar
Como os pássaros deixam sentir
O som vertiginoso dos seus coraçõezinhos
E seria ele inconstante
Voluptuoso no desenho dos seus ritmos
Teria podido ser claro e ver
O espaço que se enche de brilhos
Quando os corações encontram o compasso
Na divisão constante e repetida
E mesmo que assim fosse
Seriam esses brilhos da melhor qualidade
Teria eu sido capaz de os distinguir

139
Desencontrados nos marasmos de um olhar nublado
Teria eu chegado a ver
Através da escuridão daquele turbilhão
Que é a visão de um coração cego?

Se fosses livre teria visto as tuas asas


Ou tê-las-ei eu visto escondidas e caladas
E por alguma infeliz e despropositada obstinação
Não querido vê-las?

(7)
COMO UMA TÉNUE CONFISSÃO DE TRESLOUCADAS

Como uma ténue confissão de tresloucadas


Assim como um marfim
Antigo e amarelado da patine
Dos dias carcomidos no país do verão
Como uma prestação
Vencida protestada e nunca recebida
Pela casa emissora do empréstimo com que se goza a vida
Vida emprestada
A juros incalculáveis nunca negociados
De limites nunca estabelecidos
Como um marfim usado
De uma boca nunca mais beijada
Assim eu vejo essas palavras
Presumidas de ideias nunca tidas
Assim como uma louca que gritasse
Sozinha pelas ruas
À noite interpelando os transeuntes
Assim como uma água
Apodrecida
Morna e cansada de não ser bebida
Essas tesouras que me cortam
A silhueta bolorenta e estéril
Eu vejo o ténue brilho
Com que as palavras ainda me cortam a impaciência
Como cortes de espadas ferrugentas
Assim eu vejo
O meu amor por ser o que eu ainda sou
A podridão dos dias transviados
Como uma ténue confissão de tresloucadas.

140
Confessio:

(8)
Passo lento
Do sonho a viagem
Na fímbria do tempo
Da margem.

Longa espera
Faz muito tempo
Que a manhã bela
Se faz esperar.

Corre por ela


Alma difusa
Que o meu amante
Está quase a morrer.

Volta depressa
Para o meu peito
Pousa com jeito
No meu coração.

Alma pura
Cândida flôr
Sem estrutura
Ou cor.

Obra sempre
Inacabada
Retemperada
Na solidão.

Rola por dentro


Esfera abaulada
Do pensamento
Não resta mais nada.

Contas ao vento
Do meu rosário
Sem polimento
E cruz ao contrário.

Folhas d’ erva
Estrada comprida
Larga e aberta
Na vida.

141
Livro aberto
Mensagem rara
Branco e desperto
E ideia clara.

Traça-me a rota
Beija-me a flôr
Do meu perfeito
Amigo e amor.

Livro da vida
Lido com calma
Calha-me a forma
Do corpo e da alma.

(9)
O meu amado me espreita
Numa janela me olha
E a cada olhar que me deita
Naquela janela estreita
Todo o regaço me molha
Deixa-me nua
Como uma folha
Que a sua paixão escorreita
Transforma em água e mergulha.

Por esta janela crua


Quem me dera ver o dia
Em que eu louca de paixão
Invadisse a imensidão
Do seu ser que em mim se escoa
E se fica no meu que em oração
Se faz e desfaz em agonia
E enfim nos restos do dia
Rebordando céus e mares
Dissipasse a solidão.

Raios que passam


Passarão na estratosfera
Raios que carregam
Tragam meu querido
Minha quimera
Meu amor louco p’ra ser sincera
Que amo e adoro amo e jumento
Meu credo mudo
Meu quem meu tudo

142
Doce mas crespo como um lamento
Rasgado e ferido
Suado e tido
Portal doirado bem prometido
Fim respigado e fugaz intento
De um solitário caminhamento.

Mãos que entrelaçam


Braços que amassam
Famas e lamas que passam
Para lá do sofrimento
Rasgam dissipam e grassam
Todas as tímidas flamas que esvoaçam
No pensamento.

(10)
Meu namorado vem brando
Me aconselhando
E quando vem assim e me aconselha
Minha alma que se agita fica calma
E se ajoelha
E chora um choro de prazer todo ao contrário
De sentir
As rezas que produz no meu rosário.

(11)
Eu digo sim mal mereço
A dor que por mim resvala
Ai meu senhor meu deus que eu enlouqueço
Ele é a luz e o ar
Que me inebria e resvala
Pelo que resta de mim
Ele é a luz desta sala
E se me toca na corda
Do meu amor verdadeiro
Fico pensando e cruendo
Chorando por um momento
Por sentindo
Querendo
E dando
Me vejo apertada entre os seus laços
Atenta e louca
Me desespero
Me sinto rouca
Aguardando o momento em que serei
Inteira e sua por inteiro.

143
(12)
Se essa estrela que azul brilha no azul do céu
Que à noite negro é
Se essa minha estrela azul me pertencesse
Eu dava.

E essa rosa que louca me faz louca e vai


No ar se desfazer em pétalas de mim
Se essa rosa tão linda e louca fosse eu
Eu dava.

Ah se essa flor sem cheiro ou cor


Seu nome eu pudesse dizer
Eu procurava por ela num jardim
Eu roubava-a e trazia-a junto a mim
Para te dar.

E se depois a estrela a rosa e essa flor


Num bailado louco bailassem no teu sono
Eu roubava a lua
P’ra tu sonhares.

E então de manhã ao acordar


A estrela partia devagar
A rosa se desfazia no ar
A lua ia nascer noutro lugar
E um coração
Botão de flor
Parava de chorar.

144
SONETOS DE VERA LÚCIA

Fibra extrema da harpa o ser conclui


Que de uma música soa ainda o brilho
Vibra-me o corpo e o corpo como um filho
Do meu amado quando me possui.

Os nervos do meu corpo que partilho


Enlaçam-se nos dele e o todo flui
Os brilhos tensos que me a alma intui
Descrevem-me o percurso do meu trilho.

Em transe tenho medo de morrer


Rejuvenesço aí desfalecida
Onde me tem esvaída todo o ser.

Seu ser eu quero ser mais que da vida


Que todo o ser almeja renascer
Quando regressa ao lar da despedida.

II

Quero sentir teu cheiro em minha boca


Teus lânguidos sabores em minha pele
Teus músculos a graça que me impele
A ser mais puta mais asa mais louca.

Das noites ser alma que me vele


Quando me afogas e me deixas rouca
E sendo do teu corpo a voz é pouca
Para que ao teu meu corpo se revele.

Refeita de uma morte antecipada


Estarreço e sonho ainda que acordada
E nesse sonho somos dois amantes.

Ainda ardendo de espasmos delirantes


Quero ser mais e como nunca antes
Da carne das mulher’s a mais amada.

145
III

Meu amado conhece o meu ardor


Minha vontade inesgotável ser
Conhece-me os recantos do prazer
Me toca e me chupa com amor.

Seu êxtase e impulsos quero ver


Que nem uma voyeuse sem pudor
De todos seus langores quero o clamor
Me enlouquecer do seu licor beber.

Faz-me vibrar quando me toca leve


Elétrica na ponta dos seus dedos
Da pele o toque místico e suave.

Faz-me brilhar de ser sem dor nem medos


Ser toda ser total tórrida neve
Faz-me ferver inteira e sem segredos.

IV

Se amor é fogo que arde sem se ver


O meu arde nas horas noite inteira
Dessa única e singular maneira
Que faz ferver em mim o meu prazer.

Sinto que o sangue em mim todo se esgueira


Para o lugar que o meu corpo quer ser
E aquele membro que sinto crescer
Me chama para a vida verdadeira.

Quero sentir-lhe o sangue em minha boca


Pulsar e me fazer pulsar o dentro
Sentir o transe que me deixa louca.

No singular momento do encontro


E se a minha garganta fica rouca
Senti-lo entrar em mim como num antro.

146
V

Sente-se a dor que navega na distância


Quando o meu namorado não me espreita
Uma dor que é que nem paixão desfeita
Que se arruma no peito como ânsia.

Não sara não se cura não se aceita


Aquela atroz e tão profunda ausência
Aquela contumaz impertinência
Do corpo que a meu lado não se deita.

Só passa quando a pele contra a pele


Resgata do meu corpo a sensação
Que se arrepia inteiro de tesão.

E assim se me dispara o coração


Todo o meu ser querendo me compele
À sôfrega canção da alma dele.

VI

Na escuridão das minhas profundezas


Um único farol se faz prazer e guia
Penetra em mim logo ao nascer do dia
Ferra em meu corpo as ânsias como presas.

De certa fera esfomeada e reinadia


Que me acompanha todo o dia as inteirezas
Para depois à noite mansa e sem defesas
Fitar em transe esse farol que desafia.

Quem me procura à noite e eu procuro ardente


Pavor e tempestade ao mar que engole a vida
E toda me desfaz o ser em calmaria quente.

Quando se amou tanto aquela imagem querida


Quando adornado é já o barco e a dor ausente
Meu corpo o dele fita manso eu exaurida.

147
VII

Sinto os seus líquidos escorrerem-me no entre


Meu monte de Vénus ainda tumefacto
Inchado hipersensível canta-me no ventre
Em ritmos húmidos sensíveis ao seu tacto.

Em mim trepida uma agonia solta dentre


Todas as sensações azuis com que me bato
Procuro em vão um novo centro em que me centre
Como se dentro em mim se debatesse um rato.

Volvida então aos meus vaivéns respiratórios


Vejo a viagem que de mim para mim parte
Ouço cantares cantochão e responsórios.

Meu coração como um batuque de outra arte


Enche-me a boca de sabores transitórios
E só desejo que o meu corpo nunca farte.

VIII

Esse corpo que quero manietado


Olhos vendados coração aos saltos
De quem quero emoções e sobressaltos
Do meu amante o coração alado.

Numa orgia de gritos sempre incautos


Quero uma e outra vez ouvir seu brado
Acordar dengosa sempre ao seu lado
Lambendo em mim os seus langores infaustos.

Viver sempre em sofreguidão maior


Maior que o mundo ver seus olhos lassos
Fitarem-me no ser interior.

E nesse então doces afagos crassos


Falarem aos meus olhos com amor
Me derramando e confundindo os passos.

148
IX

Atordoar-me de prazer e de delírios


Quero ser tua à força de encontrar
Nua conquista inteira que de dar
Meu corpo ao teu mar e impérios.

Conchas no fundo e pássaros no ar


Da natureza os mansos consistórios
Na sanha amante dos carnais mistérios
Farei meus dotes luz irradiar.

E então assim entumescido e louco


Na minha boca te farei explodir
Entregue ao transe do teu grito rouco.

De um prazer novo ainda por sentir


Já te farei sentir que muito é pouco
Será para ti nada o tudo que eu pedir.

No meu respira o teu suave instinto


Nas minhas veias rasga a seiva tensa
Rios de ignição cascatas que nem sinto
Me desnudando mais do que se pensa.

Nas minhas carnes vogam sem licença


Gritos de feras ecos de labirinto
Sombras de noite respirando a crença
Rindo vontades que nunca desminto.

Na selva franca sempre entoa a hora


Que ferve no vapor que me respira
E o meu cavalo não conhece espora.

A água vira fogo a terra vira


Ar que transforma a vida em ‘terno agora
Dentro de mim molhada canta a lira.

149
XI

Quando sinto que em mim pulsam as partes


E do meu corpo o tino fica langue
Como um rio que corresse em quente mangue
Rasgado p’lo canhão dos baluartes.

São os húmidos instintos no meu sangue


Que cavalgam em mim as nobres artes
Anunciando ao corpo com estandartes
Que aos ventos do amor nunca se zangue.

Fica-me então banal o vão desejo


Fica-me a alma exaltada e louca
O coração floresce-me na boca.

Toda a vontade ali parece pouca


E nessa doce calma em que latejo
Sinto o meu ser inteiro ser um beijo.

XII

Quero os teus músculos o teu nervo tenso


Teu esgar mais lancinante e pervertido
Quero-te atado imóvel todo entregue
Aos meus instintos carne e nunca manso.

Quero-te o tempo todo que eu carregue


Sangrando nas entranhas lato senso
As vidas da loucura que eu abraço
Pernas e mãos suor e desvario.

Quero-te manso e de ânimo lavado


Te quero quero queira te querer e o
Querer do transe em que te tenho atado.

E então por fim achado o meu mistério


Quero que grites como um porco assado
Redefinindo o mundo em desidério.

150
XIII

Primeiro chupa-me a gruta pressuroso


Mede-me o tempo rega-me o destino
E quando sente que me falta o tino
Devassa-me as entranhas poderoso.

Toca-me e faz com que me toque o sino


Conhece todos os sabores do gozo
Acocorado ao meu instante pegajoso
Abre-me o entre ao seu cantar mais fino.

Entra-me dentro então e desfaleço


De quase ou tanto me sentir esvair
Para lugares intensos que conheço.

Forma-se em mim irresistível ir


E vir que se comanda ao meu apreço
E que obedece só ao meu sentir.

XIV

Essa vertigem que me sobe pelas pernas


Alexandrina e nem não só pela medida
Transportadora de verdades sempre eternas
Que já a inúmeros moleques deram vida.

Fala-me em ânsias da mensagem ressentida


Suja e acossada como a fêmea das cavernas
Cheiro do macho que me arrasta numa lida
Que me invade as narinas de lembranças ternas.

Imagens azougadas que em folia a mente


Aumenta com fragor o vil significado
O manto do furor ali se torna ausente.

E o esgar que colhe do prazer mais descarado


Sinto que quer o meu tesão tornar presente
Intumescendo o são esporão do meu amado.

151
XV

Música e som não poderiam ser


Tão belas vozes das minhas entranhas
As melodias sãs do meu gemer
São dessas sinfonias gáspias ganhas.

Até da castidade canto as manhas


Se for para me dar maior prazer
Na minha cama as árias são tamanhas
Odes corais de transe e de poder.

Por fim na sombra do meu corpo exausto


No membro inerte de explodir em mim
Do homem que me fez ser seu repasto.

Dessa ópera heróica quero o fausto


Ser para sempre o fim do não o sim
Do fio do frio o entanto e o holocausto.

XVI

O meu amado é fraco na sua fortaleza


É forte quando eu sou sua fragilidade
E de ser sua assim tão firme e à vontade
Faz-me brilhar atenta ao fio de tal beleza.

Procura-me as entranhas com curiosidade


Logo me treme o corpo ao centro da certeza
E sua boca é só sutil delicadeza
Deliquescendo um mel de rara qualidade.

Ah! Se eu pudesse ser com ele uma só cousa


Carne e fluido fosse elétrico tesão
Fibras e músculos que o sentir não ousa.

Tudo no meu amado é alimento e pão


Que eu com e faço na ânsia de ser rosa
E sermos tresloucados um só coração.

152
XVII

Formado no castigo dos meus nervos


Esse meu tempo de esperar seu phalo
Me tem suspensa em mágicos acervos
Que me crescem por dentro de esperá-lo.

Suda-me o corpo e presa do seu halo


Se me recorda e luz quero acender-vos
Sentindo o tempo quente e de passá-lo
Ser-me soprado e confessar dever-vos.

Dessa impressão elucidária e pura


Toda a candura de uma hora mágica
E ainda mais a decisão rara ternura.

A força que daquela hora trágica


Que se prolonga em quatro e mais e dura
Paralisando o tempo sem nenhuma lógica.

XVIII

Com o meu ar de serafim plausível


Faço-me tonta parecer cansada
As asas fecho irradiação guardada
O canto mudo o som inacessível.

Ao ver-me assim de amor toda fechada


De uma maneira torta e impossível
Calado e lento mas nunca irrascível
O meu amante diz-me sussurrada

A palavra grave que me põe louca


Vibra-me no estômago como um nó
E lento e leve beija-me na boca.

Me nomeia mulher esgravata o pó


E vem p’ra mim na minha cova oca
Ter todas as mulheres numa só.

153
XIX

E quando os meus encantos já deliram


Certos de querer tê-lo dentro em mim
Troco num ápice o ar de serafim
P’la máscara dos anjos que respiram.

Procuro então em mim setas que o firam


Das asas esvoaçando o bergantim
Navega agora dócil para o sim
Desfraldo as velas soltas que suspiram.

Assim de respirar fico animal


Igual aos que procriam livremente
Na espasmódica forma natural.

Na pele uma vertigem de repente


Que me arrepia enorme e gutural
Faz-me cutânea a dimensão da mente.

XX

Ficar de gosto e ser atoladinha


Pantaleônicamente escarchada
Langorosa mordida e devassada
Por dentes que me molham a grainha.

Sempre disposta sempre arrebitada


Só doente sossego a passarinha
Minutos de manhã ou à tardinha
Vejo passar correndo afogueada.

Quando por fim desejo e mando vem


Meu corpo é testemunha dos meus ais
Suspiros ânsias sei que fazem bem.

Tenho fibras e centros principais


Pontos de luz que no meu corpo tem
Vibram e se acendem transcendentais.

154
XXI

Tomado por delírios que me escapam


O meu amigo ausenta-se de mim
Enquanto as entranhas se me empapam
E a espera rói-me o corpo qual cupim.

Quero depressa perceber o meu delfim


Anseio ter seus braços que me alapam
Seu corpo que me serve de coxim
Seus dedos que o meu corpo todo mapam.

Então quando ele vem meu ser exulta


De dentro para fora todo inflama
Incendiando em mim e em por quem chama.

O fogo vem a mim em forma adulta


Na forma de menino que é oculta
Aí eu sei então quanto me ama.

XXII

Caligrafada a vida a dedos puros


Sinto escritas em mim as sensações
Músculos um instante ainda duros
E certos no compasso os corações.

Depois de um rio de muitas transgressões


Que me procuram em todos os furos
Em arreganhos caos e turbilhões
Que me revolvem nus medos futuros.

Na minha pele frouxa ecoa o gongue


E então quando me entrego temo o fim
Quero que aquela hora se prolongue.

Mas ela me rebenta e fica assim


E essa fervura lenta no meu sangue
Gosto que fique ali morrendo em mim.

155
XXIII

Sou cativa de um perverso amoroso


Que me fustiga o corpo com balanços
Num êxtase feroz e corajoso
A cada vez que me perfura os ranços.

Com a fúria animal dos manipansos


Castiga-me no centro langoroso
Para onde me correm os remansos
De um ideal de exaltação e gozo.

Espera por mim nos vãos do meu sonhar


Surpreende-me o escuro em que deliro
Faz-me sentir vontade de gritar.

Na masmorra p’ra onde me retiro


O indecente carrasco me faz dar
Todo o halo gostoso em que respiro.

XXIV

Que delícia que são as tuas mãos


Tua boca o teu pau que maravilha
Como uma nau da qual eu fosse a ilha
Encantada por gestos não tão vãos.

Catarineta esbelta Iria e filha


Que da barcaça orgasmos temporãos
Reclama ao desembarque os dois irmãos
Que são os dois vizinhos da virilha.

Nessa rebentação viril desejo


Roça-me a praia e eu areia arquejo
E resto tonta e nua de cansaço.

Às vezes sinto a falta desse laço


O vento que me envolve nesse abraço
E lembro-me do afã com que o manejo.

156
XXV

Acordo de manhã leda e cansada


E logo ele me chama do cansaço
Toca-me a pele agarra-me o cachaço
Eu sentindo-me ainda estremunhada.

Nesse calor que é um torpor falso


Sinto o seu peito nas costas e parada
Do que sobrou de uma noite passada
De tantas noites que em seu calor passo.

Enfim desperta e por fim acordada


Finjo que o dia ‘inda não é chegado
Nas pernas e a loja ‘inda fechada.

Sinto tépido o sangue e o melaço


Escorrendo à sua mão bem ensinada
Que insiste em afagar-me no regaço.

XXVI

Então o dia acorda e acordando


Me toma essa vontade insaciável
De querer tomada e de bom grado
Recebê-lo directo e implacável

Dobro de lado o meu inviolável


Segredo agora aberto escancarado
Aponto-lhe o caminho do inefável
Prazer que em mim fica consagrado.

E ele vem primeiro manso e discreto


Sinto-o entrar assim depois mais dentro
Cevar-me a cona e apertar-me o reto.

Sinto na boca um aroma de coentro


Ervas pinheiro manjericão abeto
Penumbras grandes apontando ao centro.

157
XXVII

Com os meus olhos lânguidos de dôr


E uma expressão de amor na boca aberta
Espero risos regresso à hora certa
Desejo que me prende e é maior.

Maior que a minha sanha descoberta


Maior que os meus antanhos em clamor
Maior que o rio que se desfaz em cor
Na hora louca em que o prazer me aperta.

Faz-me pensar longe dos meus desvãos


Se não terei com ele parte inteira
Sinto-me atada e mole pés e mãos.

E no meu peito em festa corre a feira


Dos meus sentidos sempre meus irmãos
Risos e canto luminar maneira.

XXVIII

Pois muito bem compenetradamente


Dos meus cateterismos dor nefanda
Faço aos ouvidos uma prece urgente
Seja como vossa excelência manda.

Da hora mágica o instante quente


Que de esvair-me o ser todo me embanda
De o meu amante decidido e ardente
Ser do meu movimento a propaganda.

Faz revirar o mundo ser de dia


Quando no mundo cai a noite escura
Faz renascer aquela luz que havia.

Forma-se da manhã em sua alvura


Uma garganta aberta de folia
E uma iguaria rara clara e pura.

158
XXIX

Vivi sempre no limite


Entre gritos e gemidos
Tive trezentos maridos
E um rosário de grafite.

Os ecos de encantos idos


Explodi com dinamite
Todos os passos do cite
Foram por mim dirimidos.

Agora quero a partida


Quero a luz e ver-me nela
Na paixão mais que na vida.

E na verdade singela
Dessa paixão sem medida
Ser das putas a mais bela.

XXX

Fartei-me de desvãos e classicismos


De ver florir a dor em artimanhas
De ressentir em mim folhagens estranhas
De festas bacanais e exorcismos.

Todas as bestas tive nas entranhas


Da carne a alma a trama dos abismos
Sem sofismas nem grandes eufemismos
Fiz minhas de viver todas as manhas.

Quando por fim meus salmos se acabarem


Cantarei hinos em louvor apenas
Dos meus desejos e dos que se amarem.

Rezarei só as orações profanas


Que do meu corpo dóceis se exalarem
Rios de pecado mantrams e novenas.

159
CANÇÕES INTACTAS

50 POEMAS

160
(1)
AOS PATRIARCAS:

a cuadra tem pouco espaço


mas eu fico satisfeito
quando numa cuadra faço
alguma coisa de jeito

tento fazer com que o verso


seja um mar onde se escoa
o rio que corre perverso
sem destino indo à toa
sobre o mar que submerso
se esvazia a alma voa

tento fazer dele um laço


que seja feito à medida
da filigrana do aço
forte no que é construída
fraca se o laço desfaço
emaranhada e confundida

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente

(2)
Talvez a minha dor seja diferente
Mas eu prefiro que não
No meu teatro vazio
A dor é a de toda a gente

É a dor normal
Que toda a gente sente
E essa dor é igual
À dor que sente quem sente
E quem não sente.

161
(3)
AS CANÇÕES

Do coração se soltam as canções


Pela vida
E vão iluminando os corações
E a coisa mais bonita que há na vida
É ter o coração cheio de luz
E brilhar
Brilhar como uma estrela no céu.

E quando penso nisso até me rio


Do meu ar
E quero dar a vida por isso
Partir por uma estrada sem fim
E não pensar em mais nada
E morrer
Apetece morrer e afinal
Antes morrer do que viver
Na escuridão.

(4)
A CHAVALITA

A história começa quando a chavalita


A pinta do seu olhar
O vício da coca e da dolce vita
Minando devagar
Foi encontrar aquele benjamim
Que já flipara há muito com a cena
E com os olhos de sangue e de marfim
Olhava o espectáculo cheio de pena

E por ter entrado já fora da hora


O pai da mocidade
Ao ver a garota já tão fora
Oh flor da idade
Tira do blusão uma ferramenta
A fita aqui está partida ao meio
E depois do escuro ninguém o aguenta
Parte-lhe a cabeça e esburaca-lhe um seio

Sem raiva ou dor a prostituta aguenta


Faz parte da vida
Vomita duas vezes e por fim rebenta
Sem ser aplaudida
Mas quando o homem já alçava a perna
Algo o fez olhar surpreendido
Pois o criado em vez da lanterna
Trazia um sinistro facalhão comprido

162
Aberto o pano já quase no fim
Olhos ansiosos
Os carros da bófia tinòninòni
Muito tenebrosos
E ali ficou o pai da humanidade
No chão sangrando lento
E nos outros cantos da cidade
Nada de novo até ao momento.

(5)
A UM CHARRINHO

Parece não ser ninguém


Dele nunca nada vem
E no entanto é maior.

Tem o poder de suspender


E às suas garras prender
As almas em suspensão.

No ar forma um labirinto
Que é às vezes o que sinto
Quando em que pensar não sei.

Mas depois de perceber


Que nada vou receber
Que ele a ninguém nada dá.

Já ele foi nada é


E eu escorrida a maré
Sou o que ele nunca foi.

(6)
A ESTRELA, A ROSA, A LUA E UMA OUTRA FLÔR

Se essa estrela que azul brilha no azul do céu


Que à noite negro é
Se essa estrela azul pertencesse a mim
Eu dava.

E essa rosa que louca me faz louco e vai


No ar se desfazer em pétalas de mim
Se essa rosa tão linda e louca fosse eu
Eu dava.

163
Ah se essa flor sem cheiro ou cor
Seu nome eu pudesse dizer
Eu procurava por ela num jardim
Eu roubava-a e trazia-a junto a mim
Para te dar.

E se depois a estrela a rosa e essa flor


Num bailado louco bailassem no teu sono
Eu roubava a lua
P’ra tu sonhares.

E então de manhã ao acordar


A estrela partia devagar
A rosa se desfazia no ar
A lua ia nascer noutro lugar
E um coração
Botão de flor
Parava de chorar.

(7)
ESTRELA DOIDA

Estrela doida em que me queimo


O brilho do teu fogo a tua cor
Sou eu que ardo
Oh! Estrela tão acesa
Princesa do príncipe do céu
O fogo do teu brilho sou eu
Que ardo à noite sonhando
Pela noite adentro cantando
Tocando a harpa do destino
Estrela que de madrugada
Brilhas…
E é noite ainda no coração de quem te ama.

(8)
FLÔR D’AMENDOEIRA

Cinco pétalas na flor


D’amendoeira
Branca e cor de luz
Cinco pontas na estrela do mar
Cinco rotas para a Alma navegar.

Sete mares de lonjura e sal


Ondas e vidas
Procurar
Sete cores numa só luz
Sete vidas p’ra tentar viver.

164
Ouço o som do mar
Aves canoras no arabal
Chama por mim o Sol
E eu quero ir.

(9)
AS SEIS GARÇAS

Três garças brancas


Levantam voo
Vão brancas voam
E são um bando
À ida vão levantando
À volta levantam voo
Alevantando e indo já são seis
Ao ir são seis
Ao voltar não
Jamais voltaram
Voaram brancas
As seis garças.

(10)
OS MOÇOS

Nesse momento todos os corações


Estalam seus ritmos …ritmos
E os moços como os peixes
Abrem as bocas …as bocas.

Quando um encanto que se figura


Nesse momento dançando vem vindo
Param ainda e um instante mais
Ficam sorrindo …sorrindo.

Vem esse encanto já chegando


Todos os corações parados
Batendo ainda um pouco …descompassadamente
Como os corações dos namorados.

Esse momento vem sereno


Buscar as vidas perdidas na vida
E quando a vida vem o coração a sente
Assim vindo também.

165
(11)
MAS P’RA QUÊ SOFRER O SOFRIMENTO

Mas p’ra quê sofrer o sofrimento


Se a vida inteira
É prasenteira
E os momentos vividos
São lidos no livro esquecido
Da vida que passou.

Tudp acaba por cair


No mar do esquecimento
Mesmo a maior paixão
Um grande amor
Uma ilusão...

Mas p’ra quê sofrer o sofrimento...

(12)
A PRINCESA DA CHINA

Encontrei uma menina


Que tem um ar
De princesa oriental.

Qualquer coisa nela tem


Um quê que faz
A fantasia voar.

Como ela para mim


Não tem um nome ainda
Talvez lhe vá chamar
A princesa da China.

Será que ela vai voltar


Quando é que eu a vou ver
Gostava de a encontrar
P’ra lhe dizer
Eu sou o Fu manchu
E tu... e tu... e tu iururururu...

(13)
SE HOUVESSE UM MAPA

Se houvesse um mapa
Para poder percorrer a existência
Como quem vai
De automóvel pela estrada
Numas férias
Já há muito planeadas

166
Pelas estradas
A percorrer a Espanha.

Se houvesse um mapa
Para poder desenhar as emoções
Montes e vales
Todas as sinas alegrias depressões
Como num mapa
Todas as curvas da estrada
Planeada
Ao pormenor.

Se houvesse um mapa
Onde marcada a tracejado e lado a lado
Com o traçado
A auto-estrada do amor
Era mais certo
Eu me perder no emaranhado
Trajecto e fim em que por fim
Eu me perdi
P’ra te encontrar.

(14)
AMOR E DOR

Ali foi o amor maior que a dor


Foi minha a dor amor o teu
E como sempre tu
Foste melhor do que eu.

Foi grande a luz no canto escuro


Onde se aninha a alma minha
E se reduz como uma zinha
E se faz oiro que refulge
E mesmo assim sempre se entrega
Ao holocausto de uma guerra
E como sempre sangra a dor
De ser a dor o sangue e a ferida e o que lhe ferra.

Faz um buraco onde se aninha


Sofre e lamenta o seu destino
Mas uma vez mais se acarinha
Sem se importar da dor que encerra
Aquela guerra em que no fim
Sangrando e triste encosta e esconde
A sua dor cruel e infinda
Ao manto duro do colo escuro de uma rainha.

167
(15)
O MAIOR AMOR DO MUNDO

Havia na terra um homem


Que nada tinha de seu
A não ser seu nome escrito
Numa estrelinha do céu…

Tinha também invisível


Uma asa de neblina
Uma sombra de mistério
No coração tinha um lírio
E como que de areia fina
Tinha também um castelo
Todo feito de impossível.

Mas sobretudo no fundo


De tudo o que possuía
O seu bem mais precioso
Era ter silencioso
No seu ser o mais profundo
Por uma moça que havia
O maior amor do mundo.

(16)
QUANDO EU CASAR (a uma garota que afirmou «quando eu casar há-de ser com um
poeta»)

Fosse eu poeta
Compunha-te uma ode
Chorava-te um poema
Onde quem rir não pode
Sorrir da sombra que se estende algures no mundo
E brilha
Algures no fundo escuro
Algures no fundo azul
Da gema
Fosse eu poeta
Escrevia-te um poema
Onde eu ardesse como o fogo quando arde numa pira
E onde gentil e amorosamente
Se desfaz
De ser o não ser e não ser nada que possa ser
Mentira
Fosse eu poeta
Comprava-te uma lira.

168
(17)
SOBRE UM MOTE (de Jacinto Palma Dias)

O meu amor é um palhaço


Que rodopia e espinoteia
Respira uma alegria alheia
E rir provoca-lhe embaraço.

Quando ri da própria dor


Arreganha e maravilha
Dá cambalhotas desajeitadas
Sangra por todas as feridas.

Tinha um coração de ouro


Que era um brinquedo partido
Arrancaram-lho a torto
«Por nunca ter mentido».

(18)
OUTRAS VEZES

Às vezes estou contente porque tu


Fazes da vida a minha festa
E quente o caldo da ternura.

Outras vezes estou triste porque tu


Não apareces e eu já não
Te vejo há muito tempo.

E então penso nesse outro amor maior


E corro para pôr
Um verso a mais no tempo.

Outras vezes penso em quem


Por fim enrolará a minha trança
E faço desse tempo
O tempo sorridente
Do rir de uma criança.

Às vezes também penso que o melhor


Era não ter amor nenhum
E o tempo ser sem essa amargura.

Mas logo o coração pensa também


Que o amor dói a toda a gente
E o meu não é diferente.

E quando dou por mim cantando


És tu que estás brincando
Dentro do meu refrão.

169
E cantando essa canção
Por fim sinto voltar a esperança
D’que um dia tu me tragas
No brilhho desse olhar
O rir de uma criança.

Às vezes fico mesmo tão contente


Que acredito nas loucuras
Da minha imaginação.

Outras vezes estou triste e não aguento


A dor de não te ter ao pé de mim
Invento o amor e faço uma canção.

Então já não me dói a dor


E canto com fervor
Aquele amor maior.

E aí então sim eu já sei quem


Por fim há-de enrolar a minha trança
Que espera doce e mansa
Feliz e amorosa por
Uns dedos de criança.

................................................................................................ variante:

Às vezes estou contente porque tu


Quando apareces iluminas
E fazes parar o mundo.

Outras vezes estou triste porque tu


Não apareces e eu já não
Te vejo há muito tempo.

Outras vezes penso em quem


Por fim enrolará a minha trança
Como se o teu sorriso
Feliz fizesse o tempo
Voltar a ser criança.

E cantando essa canção


Todo o meu ser se afoga e encanta
É quando o teu regaço
Amigo e manso enlaça
O nó da minha trança.

E é de encanto amor e dor


O nó que há-des atar a minha trança
Todo o meu céu balança

170
E vejo o lugar onde
A tua lua dança.

(19)
CANÇÃO DO SEDUTOR FIEL

Apesar da tentação
Do seduzente torpor
Que derrama do olhar
De um antigo sedutor
…que
Tendo nas mãos ‘inda quente
O coração do esplendor
Exaltando incandescente
A sanha do predador
Que apesar de manso e ferido
Mas preferindo ser fiel
Mesmo sentindo o rancor
De um animal ofendido
Deixei de barato a dor
Porque se fosse cruel
E de ondulante punhal
Matasse o meu grande amor
No momento em que sangrando
A adaga trespassasse
Aqueles dois corações
E o assassino enlaçasse
A chispa dos seus trovões
Eu já teria ter morrido.

(20)
CORAÇÃO NA LATA

Um druida escarchou meu zimbro numa lata


Em vez do coração me pôs um esparadrapo
E deixou-me à noite à beira de uma estrada
Procurando a estrela da manhã.

Um duende que por ali pagava o estorno


De uma conta mal paga à noite e à madrugada
Fez menção de contar-me uma história que dizia
Ser a própria daquele que a ouvia.

Rapaz loiro gentil e amorável


Um arbusto ardejando esconde a tua mãe
Ela vem de um outro conto antigo
E o tom da sua pele é bem marron

Quando o sol enfim cozeu minha jornada


Já o dia ia alto e governava

171
Já duende e druida se afastavam rindo
Do saltitiritar de um Saci Pererê

Sobre o fim por fim colorido e polaroid


Conheci essa mãe de quem fiz minha mulata
E foi ela quem me faz olhar bem p’ra essa estrada
Onde passam a rir todas as cores.

(21)
SENTIMENTAL

Já me disseram que arrumaste um namorado


Não me tinha ainda visto
A sangrar por esse lado
Por essa ferida que amanhece
Sangrando luz
E passa o dia acumulando a escuridão.

Já me avisaram que essa dor não tem igual


Às entranhas faz dar gritos
De um fragor sentimental
Deixa na boca um gosto
Amarga o mel
Os lábios beija
Como um licor o fel da solidão.

(22)
ROSA DELS VENTS

Rosa dos ventos talhada em uma


Pedra trilhada e uma escada oblíqua
Que vai afundar os meus sonhos sozinho
Arrancados à carne
Afeição e feitiço
Aposta fé que rasga a solidão
Como uma hera fazendo sombra no jardim.

Rasgo de luz que a matéria impune


Talha na pedra uma rosa vã
Que parte a boneca que dança no vento
Em pedaços já perto
De uma rosa que seja
Louca ré da maldição do mundo
E vê o sonho abrigar o amor até ao fim.

172
(23)
CANÇÃO DA MEIA-IDADE

Vem beber um café


Me dá teu telefone
Nessa rua tão escura
Saudade ainda encobre
Faz frio por entre as sombras
Gente é que já não mora

Fica bonita a rua


Cruzada por ninguém
Não és quem eu procuro
Mas tens ao que se vem
Se me der p’rà ternura
Diz logo quanto é

Do sim o não talvez


Vez se proporcione
Talvez beba o café
Talvez te telefone
Pode ser que o boneco
‘inda se ponha em pé.

(24)
LUA CHEIA

Lua cheia prazerosa


Minha amante poderosa
Fina e gostosa
Linda e formosa
Cheira a fina flor de laranjeira
Incrivelmente como uma rosa

Lua bola feiticeira


Minha eterna companheira
Namoradeira
Suave inteira
Minha estrela guia e namorada
Minha mulher iluminadeira

Criatura mais amada


Toda fresca perfumada
Fica abalada
Embriagada
Fica ansiosa e assuntadeira
Se eu a invoco como uma fada

173
Fica nua preguiçosa
Deslumbrante e maravilhosa
Como uma deusa
Sensualizada
Quer brincadeira ritualizada
E eu me desfaço eterno e imenso
…só de vê-la.

(25)
O MEU FADO (ou o «Fado da brasileira»)

Você é minha âncora


Você é minha pedra
Angular
Minha pirâmide
De prazer.

Você é o meu canto


Você é meu desejo
Meu espanto
Você é.

Eu te amo tanto
Tanto… tanto.

Você é meu amor


Meu facho tricolor
Você é minha fama
Minha flâmula e pudor
Desanuviado
Roto e tresloucado
Você é meu bocado
Apaixonado
Você é…
Você é…
Você é…
…o meu fado.

(26)
SONHO

Vai e vem como um encanto


Essa nuvem de sombra confusão
Todo o meu ser mergulha em escuridão
E pára-me o sentir dentro do espanto

Se ao menos um instante de ilusão


Ficasse no vazio suspenso enquanto
Em pensamentos eu voasse tanto
Que onde tu estás só em recordação

174
Me visses vir chegando e me abraçasses
Em sonhos tuas pernas terna abrindo
E então tão fortemente me apertasses

Que eu doido de amor me diluindo


Quando perto dos meus lábios me beijasses
Eu acordasse rindo.

(27)
FADO DO ALQUIMISTA

Cresceu-me o pelo das bruxas numa ilharga


Noutra o meu selo perdeu ventura
Triturando o silêncio que perdura
Revejo o céu a derramar a carga.

Aprimorado o véu p’rà sepultura


O sangue em pão vestido e sarda amarga
Da noiva abandonada a voz embarga
Redefinindo o verde e a temperatura.

Pudera o posto porta ser tão belo


Como carrega o seu mar de ilusão
A vida que se vive e com desvelo.

Se entoa com clamor numa canção


Se arrima ao peito o amor «e com tal zelo»
Que a dor nunca mais larga o coração.

(28)
SONETOS (fado do Vinicius)

Os do Vinicius de Moraes também são bons


E o verso alexandrino de paredes nuas
As casas brancas de uma cidade sem ruas
Que o sol do meio-dia tinge de mil tons.

Fortes verdascas de canções que não são suas


Fizeram fados alucinados e bons
Que nas almas dos homens pisaram os sons
Harpas espirituais e nos teatros tábuas.

Surrealismos impensados e banais


Foram cantando essa verdade irracional
Sempre em sonho sangrando e pedindo mais.

Nos patamares de uma oração transcendental


Rasgaram cantos regurgitados no cais
E ainda assaram no orgulho nacional.

175
(29)
DESPEDIDA

Custa tanto a despedida


É como matar um filho
É morrer e ficar vivo
Despedir-se da matilha
Vê-la de longe e num uivo
Deixá-la ir.

(30)
É TRISTE SER-SE CRESCIDO

É triste ser-se crescido


Ser preciso ter cuidado
Não ficar embevecido
Com o coração esquecido
Do outro lado.

Já ter perdido a idade


De viver o dia-a-dia
De beber a realidade
E respirar fantasia
Da vida ter alegria
E ser verdade.

Mas mansamente passando


O tempo sem dar por isso
A inocência foi roubando
E seco como um caniço
Foi deixando o ser omisso
Foi causticando.

Já não há lamentação
Que possa dizer o quanto
Essas saudades do Verão
Se transformaram em pranto
Secaram de chorar tanto
O coração.

E agora do outro lado


Quando lá fica esquecido
Sente-se desambientado
Não reconhece o traçado
Fica perdido.

176
Pobre coração cantante
Que noutros tempos cantou
Era imparmente arrogante
Era às vezes diletante
E até amou.

Amou e ama somente


Já não se arca ao devaneio
De outros delírios ausente
Vive só e independente
É o recheio.

É o miolo que descasca


O seu roer taralhoco
Divaga de tasca em tasca
Até ser só sangue e vasca
E ficar oco.

(31)
FADO DA GALINHA

A minha era dizer toda a mensagem


Sem nunca procurar mensagem minha
Fazer da pena a mão e a escrivaninha
O braço o coração e a carnagem
Dos sonhos navegantes que antes tinha
E foram engolidos na voragem
Ser apenas o porto de viagem

E não o barco que nele se aninha


Queria ser a ave que mergulha
E ver voando alto a doce imagem
Do ovo que se mexe e remurulha
Bom é viver a vida como seja
Não ser como a pacaça ou a galinha
Que só choca debica e cacareja.

(32)
CRIME E CASTIGO

A minha confissão mais verdadeira


É muito uma agonia que se esvai
De uma ilusão que um dia foi inteira
De um crime e de um castigo inexplicáveis
Se eu soubesse chorar não cantaria
Apenas quero dizer que amei e amo

177
A podridão do mundo já me enjoa
Não quero parte nessa fidalguia
Só quero uma mulher bonita e boa
Que me exorcize as marcas do prazer
Do carro aonde eu vou já nada importa
Só quero repetir que amei e amo.

O dia em que eu morrer é esse e pronto


Não peço nem perdão nem alforria
Talvez que fosse bom morrer fodendo
Mas seja como for já disse um dia
Que o mundo não foi feito p’ra sonhar
E apenas quero repetir que amei e amo.

(33)
FADO DA ROTINA

Os delírios da saudade
Têm voz mas não tem q’rer
E a essência da verdade… é
Tão difícil de dizer

Se eu pudesse olhar p’ra trás


E ver o sol trabalhar
No meu peito contumaz
Aquele amor a brilhar

Solta a vara grit’a boca


Que o pensamento não deixa
Só a voz e quando é rouca
Pode o que o coração beija

Se o mundo fosse acabar


Nesta minha solidão
Talvez fosse acelerar
Uma boa solução

Mas não tem rosa nem folha


Não tem espinho nem botão
A dor que os meus olhos molha
É o chão do meu próprio chão

Vou criar uma rotina


P’ra te poder esquecer
Minha adorada menina
Volta aqui p’ra eu te ver.

178
(34)
CAI A NOITE

Cai a noite em Portugal


É de dia no Brasil
A minh’ alma perdida quer ficar
Naquele imaculado arco de anil
Que é o nem lá nem cá em que medeia
A chama que os meus olhos incendeia

Aqui é onde as aves não gorjeiam


Aqui é onde o transe se faz fé
De infinita vertigem onde se espraia
O ser que já se foi e ainda não é
Encontra contra o muro a sua sanha
Mas remanesce e grita alma tamanha.

À noite quando a paz parece estranha


E o mistério do mundo se engrandece
A alma se desperta e não se sonha
E a vida com a morte se parece
A chama com que arde o sonho então
Não deixa descansar o coração.

(35)
PODE SER

Pode ser que um dia a alma viva


Pode ser que o ser que se desmaia
Troque a solidão pela inventiva
Numa roda viva de cambraia

Pode ser que o dia se detenha


Pode ser que a nuvem nunca chegue
Pode ser que a forma de quem sonha
Seja uma ilusão que a alma enxergue

Ainda assim um dia há-de encontrar


No túnel uma luz e não ao fundo
Que seja o doce alento de chegar
Ao fim do fim do fim da dor do mundo.

(36)
PARTOS TARDIOS

Cata para mim


Um verso embriagado
Faz essa melan-
colia passar
Forma para mim

179
Um rosário de amor
Que a música não possa parar.

Abre as minhas asas


Brilha o teu luar
Pega uma estrela
Para eu brincar
Sonha nos meus sonhos
Como um velho samba-
-canção que me faz vibrar.

Todas as canções
Imagens imortais
Fulguradas da dor
De poetas errados
Serão partos tardios
De erradas emoções
De alguém que há-de morrer amando.

(37)
BLUES DA VIOLENCIA DOMÉSTICA

É uma espécie de dor


Mas não é como doer
Já tanta gente falou
O que se diz não é querer.

É formigar é sofrer
Sem nunca ver o horror
Que se esconde atrás do ser
Por quem se diz ter amor.

E mesmo quando se ataca


A fonte dessa impiedade
Esquece-se logo a ressaca
E a cruel fatalidade.

A feroz iniquidade
Que provoca essa macaca
Vai transformando em saudade
E corta como uma faca.

O coração em pedaços
Acumula os desenganos
Ficam só subtis os traços
De grandes perdas e danos.

180
Demora dias ou anos
Até desfazer os laços
Com que infelizes atamos
Os nossos próprios braços.

Falaciosa ritmia
Que encontra os braços vazios
E o corpo todo assedia
De sentimentos ínvios.

Não são aromas sadios


O que da dor se inicia
É comandada por fios
A sombra dessa agonia.

(38)
POETAS E ASSASSINOS

Para todos os destinos


Partem comboios e aviões
Nalguns seguem ilusões
Que no meio das multidões
Formam laços muito finos
Que entoam eternos hinos
Com que embalam corações
Poetas e assassinos.

Onde se quer procurá-los


Voltam sempre à outra banda
Onde quem manda é quem manda
Navegam na corda bamba
E quem quiser encontrá-los
Pode vê-los e marcá-los
Em carrazedas de sombra
Puni-los e castigá-los

E mesmo quando fluídos


Se devaneiam nas horas
Suas virtudes são raras
Grasnam gritam como araras
De gorjeios entupidos
De tucanos travestidos (de bemóis e sustenidos)
Nas noites trocando as caras
Fortes mas diminuídos.

181
(39)
CORAÇÃO TOLO

P’ra toda a parte


Partem destinos
Nunca se sabe
O que vão ser
Só pela linha
Vai o sentido
Que é o caminho
Do bem querer.

E a madrugada
Sempre aparece
Apaixonada
Alma desperta
Faz o que eu mando
Coração tolo
A tua rua
Não está deserta.

Passa uma moça


Do outro lado
Olha os seus olhos
Como estão perto
Quando ela passa
O mundo entontece
E é dia largo
No espaço aberto.

Colhe essa moça


Como uma flor
Guarda ela perto
Do coração
E o paraíso
Seja onde for
Fica ao alcance
Da tua mão.

(40)
CANÇÃO CONFUSA

Não tem qualquer confusão


A própria rosa era chão
E misticismo da glória

O meu princípio era bom


E a natureza do tom
Mitigava a emoção

182
Mas muitas canções cantando
Coração sempre sangrando
De um sofrimento sem nome

Fiz um pacto e esse sigo


De nunca ser o que digo
Palavra que ando pensando

Tudo sai do improviso


Não tem razão nem tem sizo
Me sai do lugar do umbigo

E vem por aí a causticar


Tudo o que o ser puder dar
Da sua triste ilusão

Não tem qualquer confusão


Passa uma coisa no ar
E eu sinto vontade de cantar.

(41)
ORAÇÃO MÍSTICA

Olha para mim mais uma vez


Não penses na distância
Ela não é de ver

Tece uma manta de flores


E cobre esse caminho
Que há entre nós dois

Com cuidado põe o pé


Vem caminhando então
E chega à minha beira solidinha
Cheia de graça e minha
Como eu sempre te quis.

Vem pelo caminho breve


Teus passos sempre alerta
Farão jornada leve

Chega depressa e sem que eu saiba


Dos sonhos e caminhos
Que andou a tua estrada

Eu não posso esperar mais


Falha-me o coração
Quando penso em ti apaixonado
Fraco e crucificado
Mas para sempre teu.

183
Traz-me uma recordação
Do sonho que eu deixei
Preso à tua ilusão

Corre a vida ainda pode ser


Bonita como é
A cada amanhecer

Vem meu peito não cansou


Ficou à tua espera
Transfigurando a dor de te perder
Chorar sonhar querer
P’ra sempre ser feliz.

(42)
FADO DO OTÁRIO

O meu amor deu à costa


Numa manhã de neblina
Eu sei bem do que ela gosta
Posso fazer uma aposta
Gosta de prata argentina.

Gosta também de chouriço


E de dentadas nas mamas
Gosta de morder o piço
De não se importar com isso
E de alternar pelas camas.

O meu amor é esquisito


Mas vibra com qualquer um
Des’que tenha um pirolito
Dá-lhe a comichão no pito
Que igual ao seu há nenhum.

Nenhum há que seja assim


Tão dengoso como o seu
Tão de uma ânsia sem fim
Que me dá prazer a mim
Ser de todos o que é meu.

Amor que a vida marcou


Com marca de ferro em brasa
E que até hoje perdurou
Viveu sofreu e amou
E as forças todas arrasa
Como quem nunca chorou
E de novo se alambasa
Das lágrimas que já secou.

184
(43) ENCANTOS IDOS

Quando penso em meu coração aprisionado


Trambolho que eu arrasto pela estrada
E o meu olho de vidro sempre só fitando o chão

Uma flor carinhosa se desenha então


Como alguém que quisesse dar-me a mão
E marejados de vapor meus olhos querem ver

Prisão que ao próprio prisioneiro parece ser


Parque de encantos idos que anoitece
No lusco-fusco azul e sombra de um dia a terminar

Desse cativo amor que a vida trespassou


A noite tece os fios de um novo amor
E desses fios luzios a vida continua.

(44)
SOU UM SUJEITO ESCREVENTE

Sou um sujeito escrevente


Escrevo impenitentemente
Quer chova troveje ou vente
Cá a mim é-me indiferente
Escrevo ou lavro impermanente.

Toda a vida tenho escrito


Lavrado suado e dito
E mesmo ficando aflito
Quando a mim mesmo me cito
Não me parece esquisito.

Não me importa que se entenda


Por parvoíce o que eu digo
O meu mal não tem emenda
Já chutei o pau à tenda
O que é meu trago comigo.

É difuso é impreciso
Às vezes banal ou liso
Quase sempre de improviso
Nem vulgar nem não conciso
Nada exalto ou preconizo. (Nem necessário ou preciso)
(Digo diz disse não diso)

Sou um sujeito escrevente


Toda a vida tenho escrito
O que eu escrevo é-me indiferente

185
É difuso é impreciso
Não importa que se entenda.

Só a mim mesmo me afago


Quando no vazio indago
Da uva o vinho ou o bago
Tudo bebo tudo pago
Tudo engulo de um só trago

Na verdade é muito vago


O que dessa nuvem trago
Como o prestígio de um mago
É de um vinho o preço aziago
Tudo como tudo cago.

(45)
KADÊ VOCÊ

Você passou
E nem ligou
Kadê você

Meu olhar triste


Finge que assiste
E faz que nem te vê

Só você tem
Esse capricho que vem
Como se fosse

Da viagem o regresso
E vem também
Olhar meu peito que confesso

Se abre p'ra ti
Se alegra e ri
E é como que da vida um novo recomeço

Não aprendeu jamais


Esqueceu não sabe mais
Viver sem ti.
Alternativo:
Não aprendeu
Já s’ esqueceu
Como viver sem ti.

186
(46)
EU TE AMO

Eu te amo
Eu te adoro
Eu te venero
Eu me dilacero e apareço na varanda
Da clara fantasia que alucina
Meus olhos
Vejo mais.

Meu coração se abrindo


Apaixonado e tonto
Mais do que pode a voz
Fala o que não pode silenciar
Cala
O amor.

Minha amòrinha
Minha rainha
Minha aventura
Minha afro-rainha minha flor da formusura
O sol te doura a cor e te ilumina
A alma
Que é de lua.

Meu espírito embrulhado


Teus olhos não segura
Teu corpo me fascina
Todo o meu ser rima de te ter
Nua
E cheia.

(47)
MINHA ISIS

Você é minha deusa minha isis


Minha flor
De lótus adorada com amor.

Você é mais que a forma de uma deusa


Muito amada
Desvirginada e pura
Como uma escultural nossa senhora.

Maria madalena do meu cristo


De jesus
Você é a igreja onde me dá
Gosto rezar.

187
Daquel’ outra maneira singular
Capaz de encher o céu
De infinitas noites de luar.

Que enche e apaga todo o firmamento


Sempre e tanto
De amorosamente
Querer molhar seu colo todo o dia.

Minha lua-cheia lua-nova


Lua plena
Lua que não pára de brilhar
E de me iluminar.

Não tem nem mais medida o que eu te amo


Não tem como
Viver sem ter você na minha vida.

Eu gritaria aos ventos e oceanos


Às estrelas
O tanto que eu te amo
Se tanto minha voz aguentasse.

E mesmo rouco então sussurraria


Ao teu ouvido
Cantando essa magia que me tem
E que se diz
Te amo e tu és tudo para mim.

(48)
FADO DOS SONHOS

Os sonhos todos sonhados


Escondidos e amordaçados
Roubados à noite são
E com desgosto deixados
Pela noite arrebatados
Ficam só recordação

Os sonhos de madrugada
Por uma mão bem mandada
Parecem ser recolhidos
E aquela imagem sonhada
Fica p’ra sempre guardada
Nos pensamentos esquecidos

Antigamente pensava
Que tudo o que se sonhava
Um dia aconteceria
E do sonho procurava

188
Saber se significava
Aquilo que acontecia

Mas muitos sonhos sonhando


Aos poucos fui reparando
Que nem todos são iguais
Uns são medos ameaçando
Outros desejos que ando
Querendo tornar reais

Mas há sonhos bem diferentes


Feitos de imagens presentes
Que não se pode iludir
E esses sonhos são sementes
De vidas inconscientes
Que querem à vida vir.

(49)
PASSO

Passo lento
Do sonho a viagem
Na fímbria do tempo
Da margem.

Longa espera
Faz muito tempo
Que a manhã bela
Se faz esperar.

Corre por ela


Alma difusa
Que o meu amante
Está quase a morrer.

Volta depressa
Para o meu peito
Pousa com jeito
No meu coração.

Alma pura
Cândida flôr
Sem muita estrutura
Ou cor.

Obra sempre
Inacabada
Retemperada
Na solidão.

189
Rola por dentro
Esfera abaulada
Do pensamento
Não resta mais nada.

Contas ao vento
Do meu rosário
Sem polimento
E cruz ao contrário.

Folhas d’ erva
Estrada comprida
Larga e aberta
Na vida.

Livro aberto
Mensagem rara
Branco e desperto
E ideia clara.

Traça-me a rota
Rega-me a flôr
Do meu perfeito
Amigo e amor.

Livro da vida
Lido com calma
Rasga-me a forma
Do corpo e da alma.

(50)
ELM (olmo)

Com certeza tem… parece ter


Tem com certeza essa ilha no mar
Eu também a vi
Numa manhã… Ah! Só de a lembrar
Já não sei se ainda lembro bem… ou se esqueci.

Sei que existe além, mar e navios


Mesmo que já só naveguem no ar
Para mim também
Passou alguma bruma… e cheguei a pensar
Que a ilha fosse um sonho… real.

190
Andei a ver… fui, quis encontrar… esse lugar
Por onde andei… vi esse sonho brilhar… no ar
Por fim duvidei
Do meu terno acreditar que o sonho vem sempre à medida da inocência e do prazer de
[olhar.

Descobri que o prazer


Não se encontra no ter
Está p’ra lá do que é ser
Prefigura uma coisa maior
Ainda assim quero encontrar
Essa ilha onde se esconde o meu tesouro e só fadado àquele que souber ter a audácia de
[nunca o procurar.

Com certeza tem… parece ter


Terá talvez essa ilha em mim
Quereria ver
Entre a neblina e os cristais
O que há… tudo o que tem… p’ra lá do mar… sim!

191
O LIVRO DO ESCOAMENTO DO
TEMPO

40 POEMAS

192
(1)
OS DIAS PASSADOS

Os dias que não se esqueceram … escondidos


Só de mim se desviaram no «em jogo»
Dos dias que desvairando eu deixei que se escoassem
Enjoando as horas e os minutos transitados
Muitas vezes em transe transcorridos
Escondidos de uma incómoda mudança
Tão ilusória quanto a realidade
Que nunca se leva a sério … que oculta
Na nuvem acinzentada do mistério
Se presume que afinal como se nega
Se tenha escondido e ocultado sub-repticiamente
Como alguém que tenha ido esquecer-se de si próprio
Na casa do ópio ou talvez
De benévola vontade e piedosa do próprio desconforto
Nalgum lugar indefinido
Discreto e recuado algures no tempo
Dir-se-ia que
Instalado ou definitivamente estabelecido
Em o templo do esquecimento.

Mesmo sem querer todos esses dias foram passando


Porque é próprio dos dias passarem e eles passam
E possivelmente fui eu que me escondi deles
E mesmo as horas e os minutos … bem mais pequenos
E incomparavelmente mais suportáveis que os dias
Foram passando e absolutamente passaram
Como é inevitável e próprio dos dias
… Passam inexoravelmente
Como se não tivesse acontecido nada.

Tudo isso
Os dias carregaram como uma bagagem alheia
O esconderijo e a pronunciação absurda da passagem
E nem por isso alguma vez se manifestaram
Na sua consistência desmaterializada de ser tempo
Como meros dias passando inimputáveis
Na inocuidade de uma existência vaga
Acumulando segundos e momentos
Minutos meios minutos quartos de hora
Horas
Por vezes perfidamente suando a sua sombra
E a coberto de um dia que ficou esquecido
De maneira culposa e com perverso intuito
Acumulando os anos.

193
E foi assim que todos esses dias
Perversos e incongruentes
Se tornaram um passado histórico
A respeito do qual se pode maldizer
Dizer e desdizer como se a desdita
Desses dias feitos vítimas minhas inocentes
Da minha polissemia obsessiva
Tenha sido não ter sido e apesar disso não
Terem sido esquecidos.

(2)
NO MUNDO INTEIRO EXISTE UM SÓ POETA

No mundo inteiro existe um só poeta


Todos os homens e mulheres são imagens
Projectadas e descendentes
Atrapalhadas e ensombrecidas
Desse poeta imortal que remanesce
No deslumbramento gutural da comunicação.

A poesia é um gesto suicida como a fala


Que começa inocente um caminho
E se deslumbra com os acidentes da paisagem
Morrendo a contragosto nas bermas do impossível.

Aquele sentimento tão bonito e deslumbrante


Que surpreende os seres no alvor da vida
Indescritível surpresa jamais apropriada
Único e exclusivo objecto da poesia
Aquela inquietação surpreendente
…amachucada e nunca digerida
Perdura pela vida como uma ânsia
Seja num amor pelo acento circunflexo
Seja no rôr de palavras com que se decifra o mundo
Seja no espanto mudo perante o mundo indecifrável
E quando o mundo imenso fica grande dentro
E pequeno o luxo a que chamamos real
E a vaidade mundana se decompõem em vã compreensão
A fala imerge incompleta
E só o silêncio redime.

Não é o amor pelas palavras


Nem os amores que a vida desvendou impossíveis
Nem os destinos que o amor desencontrou
Nem tão pouco o diluído senso da inutilidade
Que faz a alegria reflexa das palavras retornar à vida
É sim aquela ânsia juvenil que como chumbo inerte
Sujeita à luz de uma pedra filosofal desconhecida
Regressa ao ouro da eterna juventude
E numa nuvem

194
Impercetível ao tempo
Ânsias e oiro parece até
De um outro tempo um outro dia
Na vida de um poeta já esquecido
Que morreu jovem.

Mas tudo isso emana do impossível


Parece tolo perseguir essa miragem volátil
Descrever uma coisa indescritível
Procurar uma beleza impalpável
Na flor de uma ilusão imperecível.

Também eu gastei meu dia e meu dinheiro


Tive mãos brancas e anunciei o fim do mundo
Anunciei-o com clamor e fé
Aos meus e aos outros numa sementeira imensa
Mas o mundo não acabou vai acabando
Como um poeta envelhecido e eterno ainda em vida
A quem a verdade sempre foi impercetível.

Feitas de silêncio também as palavras redimem


Lidas e mastigadas até à exaustão da paciência
Escritas e reescritas
Ideias virginais reincarnadas
Num ciclo interminável e inutilmente infinito
Louvando o fim próximo e fatal
De todas as ilusões nunca acabadas
Nunca definitivamente esfumadas
Ainda que intensamente vividas.

Como uma imponderável sede de novidade


Se mastigam contínuas as palavras
Mesmo as que foram escritas ou ditas
Há muito tempo
Mesmo as que nunca foram ditas
Parecem nunca ter sido engolidas
Parecem ir e vir intensa e renovadamente
Numa infindável regurgitação
Mesmo as que foram vomitadas
Mesmo as que foram assimiladas mas nunca digeridas
Voltam determinadas e medrosas
P’ra fermentar diversas
Numa orgia química e elétrica.

A força irremediável e fatal das palavras


Quando são ditas e ficam
Quando são escritas e se fixam para sempre
Mesmo quando são só pensadas
Mesmo quando são escritas num computador e depois apagadas
Nunca se extingue

195
E as palavras
Ficam para sempre no universo como uma ideia
Perdidas e infatigáveis
Na dimensão impalpável do eletromagnetismo.

Existe uma pulsação indefinida e geral


Num mundo outro
No escuro para onde se esgueiram as indefinições
Um ritmo perfeito e inacessível
Ao qual nem os músicos conseguem aceder
Embora tentem
E bate insaciável
O tempo ausente
De um compasso irregular mas infinito.

Nada sei do poeta que eu fui nem do que eu sou


Muito menos ainda do que serei depois
E mesmo que soubesse
Faria tudo
Para alterá-lo
Para esquecê-lo
Para fazer diferente
Só nos procura o resultado
E mesmo assim
Nem sempre temos a simplicidade ou a clarividência
Para interpretar ou compreender
Que é ele que nos faz
Ser o que nos sequer sabemos ser.

Poeta é um padre que fode


Não como um luterano ou um judeu
Talvez tenha alguma coisa de parecido com um judeu
É um homem que está sempre na dúvida
Fode mas pensa que não deveria foder
Pode ser uma mulher
Também há mulheres que fazem versos
E sabem
E temem
Que exista uma magia sexual
É um monge que foi expulso do mosteiro
Depois de ter violentado repugnantemente
Uma cabra
O poeta é um sujeito
Que podia ter tido tudo na vida
Que por vezes mesmo teve tudo
E se absteve
Para virar um predicado
Da própria oração de sapiência
Um jogador que perdeu tudo
Na cor indefinível de uma carta

196
Num número errado
Determinado por dados viciados
Numa roleta avariada e russa
Escravo de uma vontade de superar o ser
Jockey de uma montada coxa
Apostador sobre um cavalo morto
Um segundo antes de cruzar a linha de chegada
Compondo em escuridão os padrões
Matizados de uma seda indefetível
Destinada a ser vestida por rainhas
De reinos há muito subjugados

Apóstolo de um profeta confuso


Que foi excluído do panteão
E cujas profecias nunca se confirmaram
Poderia ser que um dia cuja alvorada não chegou ainda
Fosse uma hora cujo primeiro segundo
Foi arrancado do relógio confundindo o tempo
E como tudo o que afinal é grande e eterno
Não chegasse sequer mesmo a ter existido
Ainda assim
Como do alfaiate as roupas do rei nu
O poeta tê-las-ia visto
Por vaidade talvez mas sobretudo
Por ser criança
Dentro de um corpo acumulado de experiencias
Demasiado fraco para tamanha voz
Perdido de ilusão no espaço de uma letra
Conglomerando em si todas as frases
Que arranca em desespero a marca amarga do destino
Impotente contra a marcha inexorável da fatalidade
E paradoxalmente fodido
Por ignaras e enfurecidas hordas de ruído
Assim é o poeta
Que todos nós psicografamos
Na doce tentação da liberdade.

Paráfrase de um mundo subterrâneo


Feito de sombras e verdades translúcidas
A clara almotolia da palavra
Que rouba ao pensamento a sua força
E compra uma emoção pelo preço da paga
Paga com lírios o que custa rosas
E nunca recebe a flor em pagamento
Dos descontos feitos em ilusão e sofrimento
Depositados no banco a contragosto
Em dor suados
P’ra redimir o mundo.
Existem poetas enormes
Que escreveram incontáveis obras

197
Outros as escrevem ou as pensam
Existem os poetas de um só livro
E obras curtas mas significativas
Existem os populares e os repentistas
Os eruditos e os épicos
Existem até nos dias de hoje
Poetas cibernéticos
E a poesia corre solta e eletrizada
Nos impulsos chispados e ultra-rápidos
Do ciberespaço
Houve o Camões e o Walt Whitman
Houve Pessoa e Milton
Houve os Andrades e os plurais
Vinicius de Moraes
Todos humanos e terríveis
E cada um
Bandeira de um país insaciável
Houve Rimbaud
Terá havido Baudelaire
Centenas de centenas de poetas
Em línguas mortas e vivas
De todos eles guardamos uma frase
Um verso eloquente ou grácil
De alguns sabemos um soneto decorado
E de outros que inventaram uma mitologia
Mas isso nada é senão cultura
Empoeirada cultura
Sempre guardada no lugar da casa onde nunca se vai
E por isso mesmo vai guardando o pó
Mas o gesto inútil continua
E continua inútil como se a si próprio
Lhe fosse apenas dado existir
Através desse idear vertical
Determinando em cada momento as suas vítimas
Vítimas dóceis de uma grande hidra
Que se manifesta por não existir.

Um poeta errático na vida


É uma pilha que se carrega
Que se deixa carregar com sangue e feridas
Para que se dilua o mandamento
E bem mandado ele atua individual
Sempre sereno e outras vezes tumultuado
Vivendo no seu sangue a incongruência
Daquele sangue estranho que o carrega
Ainda que quisesse aliviar a carga
O seu sangue infralíquido beber
Escravo do mundo em que se forma e brilha a ideia
Ele desistiria
Antes beber golfando do seu próprio sangue

198
Para deixar as veias livres e vazias
E num momento de êxtase
Total e transfigurador
Deixar correr por elas a poesia.

O doce compromisso da verdade


Pesa na alma e parece frouxo
Quando o martírio fica maior
Toda a fronteira é uma imaginação
Que o delineamento da viagem
Chega a fazer com que pareça etéreo
Não é sequer
Que eu tenha realmente alguma coisa a dizer
Eu disse tudo no princípio
Talvez pareça estranho
Mas eu preferiria não existir

Não ser nada concreto nem devasso


Talvez eu fosse feliz se não existissem as palavras
Mas infeliz
Se não houvesse a poesia
E mesmo que a poesia não existisse
Não houvesse coisas
Para terem como os dias vividos e sonhados
A sua poesia incorporada
E não precisasse de existir a incorporação.

Tem dias em que eu escrevo em outros não


E nesses em que eu não escrevo
Não é porque a poesia tenha cessado de existir
Nos olhos mil sóis eternamente brilham
E tem uma espessura no ar
Uma senhora gorda e pequenina
Carrega uns sacos que balançam
E inúmeras pessoas se deslocam
No espaço diafragmado e colorido de uma praça aberta
É o mundo que existe e continua
Mesmo nos dias em que eu não escrevo nada.

199
(3)
UMA JANELA EM FRENTE AO MAR

Estou aqui numa janela em frente ao mar


A ver se chegam as naus
Do Pedro Álvares Cabral
Pergunto como que sem querer perguntar
Sem mesmo ter a quem por quem esperar
Ou ter
Sequer a ‘sperança que o sabor do mar do sal
Me queira responder
Estou só olhando o azul medindo o ar
Trezentas milhas duas braças vinte graus
De algum lugar que seja longe e marear
E desse vão que há entre mim e a distância
Interrogar.

Eu sei que as naus nunca vão vir passaram antes


Pode ser que antigamente
Pode mesmo ser que não
Eu quero e ainda posso esperar mais uns instantes
Infinitos instantes escorregando
P’ra ser
O dia que morrendo azul fica cinzento
E brilha no espaço que se distende
Será que ainda existe esse lugar
Para onde a vontade que se torna ânsia
De um amanhã que é hoje feito de ontem
Infinita tende?

Não sei esqueci talvez tenha esquecido que esqueci


O céu cinza no mar a prata em flor
De pessegueiro presa do ar
Da dor
Eu estou aqui numa janela olhando o mar
De um novo dia que não quer chegar
Esperando secretas umas naus que não querem vir
Achar-me no final e o meu poema
Desconjuntar.

E é desta janela de onde sempre vejo tudo


Que me deslumbro e amanheço
Incólume ao mundo.

Quero ver se o mundo abarca


A barca tola da esperança
Não tem vela
Não tem asa

200
Mas voa e venta dentro dela
E entoa, firme e renascente
A sua proa sempre e avante
A força de mudar e a mudança.

Cheguei aqui
Não como um qualquer Martim Afonso
Que por qualquer edulcorada fantasia viesse p’ra ficar
Estou e é aqui
Estou realmente aqui
Longe de casa
Nesta janela oblíqua e fatal
Que me permite olhar o mar de enviesado
Vejo passar os navios que entram no porto
Nem perto nem longe nem distantes
São mais pequenos do que os que eu via antes
Mais pequenos até do que os que via
O Fernando Pessoa quando os via
Entrar pedantes e promissores
Poéticos e futuristas
Monumentais e lentos no porto de Lisboa
São tão reais como os que ele obliquamente via
Mas mais pequenos
Porque o porto de Santos é maior
E os navios ficam no mar
Ao largo esperando a sua vez
Para lá dos navios que esperam vejo o mar
E para lá do mar e dos navios que ordeiramente entram
À vez no seu porto de abrigo e ficam para trás
P’ra lá do horizonte e da bruma vejo as naus
Do Pedro Álvares Cabral.

Sei que aqui onde eu estou já não se chega só se vem


Não fôra isto tudo tão real
Talvez o mar…
E tal e qual como os navios que esperam sua vez
Também as naus aguardam presas no ar
Que sobrou de quando eu era imprudente
E como tudo o que é novo e fugaz
Qu’ria partir
Mas afinal indo e voltando
Fiquei sonhando
Com o que então uma canção
Me distraiu
E em vez de vogar abaixo o rio
Fiquei esperando
O doce frio impalpe e brando
Do que não quer chegar.

201
Agora vejo o Sol maior que o mundo
E o mundo dentro do sol envolto em bruma
Fica no fundo
E às vezes entra como um ladrão
Que súbito se esgueira
Antes do fim do dia e se incendeia
Batendo um fogo no mar em que se esbate
Deixando o ar visível
E o coração.

Para lá dessa bruma que às vezes pisa o ar


É que aparecem as naus mas eu ainda não as vi
Só as vi dentro
Como uma antevisão que se quer desejar
E se deseja tanto que se quer ver
E sem saber
O coração acaba vendo.

Desta janela virada para o Sul


Emoldurada por montanhas que impertinentemente
Mergulham abruptas no mar
Desta janela por onde eu olho como quem olhara
Através de uma mansarda estreita
Vejo os navios
Uns virados para Ocidente outros para Oriente
Outro já vai embora para o Sul
O maior é o que vai para o Oriente
Vai para o porto para o que não se vê
O mar que eu vejo
Não tem navios virados para o Norte
O Norte fica atrás
Nunca se vê
O que se vê são os navios que parecem parados
Insistentemente
Mas quando eu olho eles já não estão lá
Quem está agora são as naus
Eu não as vejo mas sei onde elas estão
E imagino
Como um índio o Bartolomeu Dias
O que ficou calado
Como um índio que não tivesse ido avisar os outros
Eu me imagino irmanado com esse outro
No silêncio.

Essa janela é como um ícone


Daqueles bizantinos pequeninos
Que as pessoas trazem junto ao peito
E olham o mundo por ali
Do Oriente o olham
Não o olham com os seus olhos

202
Mas com os olhos do santo
Que estáticos navegam
O pensamento místico
Esse meu ícone não tem nenhum santo nem tão pouco
Nenhuma doce figura feminina
Tem apenas a base de uma torre
Uma enorme torre inclinada e fálica
Tem a natureza e tem o mar
E tem as naus
Que eu num momento de ternura vejo vir
Num sonho iconográfico e total
Do qual um dia eu gostaria de acordar
P’ra ver enfim chegar as naus
Do Pedro Álvares Cabral.

Sensações e sentimentos maravilha


Imagens e destinos entrevistos
Saudades e apaziguamentos
Futuros imprevistos e audácias
De momentos enfim petrificados
Plácidas tardes de chuva
Que embrulham diurno o céu refletindo
No ícone rasgado sobre o peito
O rarefeito imóvel e imaginado
Recorte amado e luminoso de uma ilha.

Não um destino proclamado aos gritos


Nem uma coisa que se previu
Nem uma ideia que se apodera de quem a idealizou
Mas sim uma loucura longínqua
Mastigada e refeita
Pelo momento fugaz e infinito
Da lucidez.

Na minha janela não há nada eu já vi tudo


Tudo o que eu poderia ver numa janela
Na janela nada existe
É só o espaço
Por onde passa tudo o que eu sonhando
Quereria ver
Mas não sonhando
Não quereria ver sentindo
Talvez vivendo um dia eu ainda gostasse de ver isso
Que posso ver desta janela em frente ao mar
Quando me sonho.

Desta minha janela vejo o Sol


Como saltita nas pessoas e nas coisas
Numa intensa ilusão impressionista
É uma ilusão que forma outra ilusão

203
E essa ilusão faz nascer outra ilusão maior
Que é já uma coisa próxima da realidade
Mas não existe realidade
A realidade é não haver realidade
Do âmago profundo dos instintos e dos sonhos
Vem um tesouro que é lindo e precioso
É grande como um Deus
É total e absoluto
Mas irremediável e intransigentemente inútil
Tudo isso e muito mais eu vejo
Quando através desta janela vejo o Sol
Brincar batendo nas caras das pessoas
Mesmo as pessoas não brincando
O Sol brinca sozinho
E as pessoas existirem e o Sol
Salpicar de ilusões as suas caras
É já uma enorme brincadeira
Definitiva e transcendental.

Quando a janela se fecha


Parece que o mundo acaba
E tudo fica diferente
A minha alma quer voar e não tem asa
Eu preciso de luz e não de vento
Mas fechada a janela a casa não tem ar
E a minha alma pára de respirar
Só a janela a chama e me acorda
Para olhar o mar que se agita prenunciando a tempestade
Na verdade ela nunca se fecha
Apenas dorme
No coração que sofre parece estar fechada
Mas não está
Está aberta
Aberta de par em par como deve estar
Uma janela
E o vento entra clamorosamente.

Às vezes salto através dela


E vou para a praia de olhos nus a ver o mar
Praia vazia sem ninguém
Praia cinzenta de uma tarde em que o sol se esqueceu de brilhar
Onde os pássaros vêm debicar a areia
Em busca de comida
Praia definitiva e abandonada
Onde só vêm
Pombos doentes e passarinhos esfomeados
Em outra praia mais além
Voam garças
Rondam nas alturas urubus e albatrozes
É uma praia mais perigosa

204
E mais rica
Mas eu estou nesta praia
Onde uma neblina se instala devagar
Antes do pôr-do-sol
E volto para casa
Para o conforto de ter uma janela por onde olhar o mundo
E um poema
Para descontar no karma dos meus dias
Na praia
Ficam os pássaros como no mar os barcos

Parados na ilusão da sua movimentação


Distingue-se um motor na distância
Embora eu já esteja a ficar surdo
Como parece
Ouço distintivamente o motor
É um rebocador
E vem como se navegasse ao contrário
Em direcção a mim
Como se viesse me buscar
Para uma viagem sem volta
Longa e definitiva
Imperiosa e fatal
Não quero ir ainda
Quero ficar aqui olhando Sol que se despede
A ver se chegam as naus
Do Pedro Álvares Cabral.

Existem dias em que a minha janela dá para a tempestade


Que acaba sempre por chegar
Mas nem por isso os barcos deixam de navegar
Nem os meus olhos de ver
Mesmo que o céu esteja cinzento e o mar revolto
Mesmo que a praia esteja deserta e o ar vazio
E a tempestade possa parecer engolir o céu e o mundo
Mesmo que a chuva
Venha bater obliquamente contra as vidraças
Inexpugnáveis e fatais da minha janela
Eu continuo
Garbosa e obedientemente
Como um soldado perfilado e tenso
Aguardando um dia de outro mês
Uma semana de outro calendário
De um ano que pertence a outro século
Uma década oculta que se movimenta
Independente do tempo
E aparente
Navega numas naus
Que eu insisto e quero acreditar que sejam
As naus do Pedro Álvares Cabral.

205
Não é importante o nome do capitão
O capitão sou eu e não navego
São importantes as naus e a navegação
É importante o dia em que se partiu
Mesmo que tenha sido pra nunca acabar por chegar
É importante o índio
O que ficou sentado e sem trejeitos nem parcimónias
Decidiu indolente e deslumbrado
Não ir avisar os outros
Deixar as naus onde elas estavam
Como se elas fossem uma epifania
Em vez de as transformar num fato
É importante o Bartolomeu Dias
Que era capitão de outro navio
O qual já navegara a mesma rota
E que
Embasbacado e mudo
Escutando o som das ondas
Passadas e enfurecidas de um mar distante
Assistiu a tudo
Mas não disse nada
Olhando apenas com a alma
Presa no tempo das suas aventuras
O desenrolar dos acontecimentos.

Para que serve uma janela


Além de iluminar uma casa
Senão para assistir ao desenrolar dos acontecimentos
De longe ou de perto
Mas sempre de uma posição confortável
Mesmo que seja uma janela estreita
Por ela se pode ver o mundo aberto
E mesmo quando está fechada
O mundo continua lá
Como ele sempre é quando eu o vejo
Quando espreito temeroso e crédulo
Por esta janela onde eu fico olhando o céu
Mesmo quando os dias são escuros
E há tempestade no mar
Mesmo quando chove na rua
E a janela que deveria estar fechada
Preguiçosamente deixa entrar a chuva
E eu deixo a minha alma que navega longe e indistinta
Ficar molhada.

Janelas também servem


P’ra se jogarem coisas fora
Pela janela
Como eu que tenho jogado a minha vida

206
Tentando fazer dela um castelo invisível
Que ela não pode ser
Que ela nunca será
Tenho jogado fora a minha vida
Como se a janela fosse um Cristo
Envidraçado no altar da consciência.

Tem dias também acolhedores


Em que o mundo parece apaziguado
E no âmago estridente das emoções humanas
Se forma um mar de calma e entendimento
No mar como um lençol dourado
O espírito não cessa de brilhar
Então a janela me parece um fotograma
E é aí que num momento de distância e fé
Não me fascina tanto
O que me fascina são as naus
Essas terríveis e adoradas naus
Que pairam invisíveis no meu sonho
Despojado e direto
Prenunciando o fim de uma jornada
Que parece nunca terminar
Naus que navegam inertes e refulgentes
Uma viagem que começou sem emoção
Mas que foi intensamente pronunciada e vivida
Na procura de um destino inesperado
As naus que eu nunca vi ou terei visto
Não é por isso
Nem porque sei que elas existem
Nem porque evidentemente não existem
Que aguardo indolentes elas se deixarem ver
Não é por isso que as espero
Não é por elas existirem nem por não existirem
É por serem
É por eu ser quando elas aparecem
O que eu não sou
Não sequer por eu ser
É por eu ser a espera de umas naus que não vão vir
Espera desesperada e material do nunca
Como a barca de um ídolo sobre a terra
Onde se move impiedosa e lenta
A ópera surda e impercetível das emoções humanas.

Janela estreita onde eu nunca sinto emoção nenhuma


Debruçada enviesadamente sobre a praia
Onde o meu coração estilhaçado e empedernido se despedaça
E só descansa quando a praia fica habitada apenas
Pelas gotas de chuva que o vento faz oblíqua
Como a do Fernando Pessoa mas aqui
E aqui não tem nem cavalo azul nem jockey amarelo

207
Só tem areia escura que nunca se esboroa
Tem o vazio e a chuva
Tem um lago de mar e umas naus
As naus do Pedro Álvares Cabral
Mas como se quisessem dar meia-volta e partir
E desistir de descobrir o Brasil.

II

É verdade
Eu estou aqui numa janela em frente ao mar
Desta janela vê-se uma fortaleza colonial
Coisa tardia e banal
Para quem já viu muitos monumentos
A fortaleza antiga ao longe
Parece um barco em que se quer embarcar
Barcos são média
Meios que transportam quereres
Vontades e desejos
Dádivas e saudades
Coisas que se venderam
Ou que se vão vender
Os barcos nunca transportam
Coisas que se compraram e venderam
E nunca foram entregues
Não levam dúvidas nem dívidas
Porque essas não têm para onde ir
Vão para o mar
Para o esquecimento do presente
E os barcos vão para o seu destino
Chegam de origens inacreditáveis
E embora parados na imaginação mítica
Sempre estão indo e vindo
Alguns ficam parados
Como se por um momento tivessem desistido de chegar
Eles não chegam
Só vêm
É essa a sua natureza eu já o disse.

As naus do Pedro Álvares Cabral


Essas nunca chegam nem vêm
Vieram faz muito tempo e ficaram
Há quem diga que daqui continuaram para a Índia
A Índia
Sonho importante e transcendentalizado pela fama

208
Mas não
Elas estão ali
Paradas na congestão de um gesto imóvel
Imóveis
Esperando um desenlace do destino
Configurando o mar que nunca se cumpriu.

Ontem a proa de uma nau despontou no céu do meu olhar


Navegando de ocidente para oriente
Quase a vi
Viram-na com certeza os olhos do meu coração puro
Era certamente uma das naus
Do Pedro Álvares Cabral
Tentando sintonizar a paisagem
Talvez a do Bartolomeu Dias outro dos capitães
O que ficou calado
Olhando o patamar
O raro e sedutor momento
Inesperado do deslumbramento.

Nesta janela ambulante que eu sou


Vejo passar a vida
Tudo o que parece evidentemente existir
E as vidas individuais
Que eu vejo passar como em um filme mudo
Apressado e nervoso
A menos de vinte e quatro imagens por segundo
São palavras de um dialeto incompreensível
Cada vez mais indecifrável
Pela pouquíssima acuidade das retinas
Olhos cansados de ver
Que procuram incessantemente o que não está lá
O mais belo
O sumamente belo
Como se fosse Raquel
Enquanto o arquiteto insaciável do mundo
Insiste em Lia
Indiferente aos olhos que procuram
E pintam ânsias na madrugada das vidraças
De uma janela que fosca filtra a luz
Esta janela onde me encontro em frente ao mar

Fixando longe o céu do olhar


Mais do que se possa crer
Muitas braças
Para além do infinito onde é suposto
Que os olhos não vejam nada.

209
Talvez esta janela seja uma lente
Talvez o além da janela seja o que está p’ra cá
E o ponto confluente em que a luz se torna flor
Não esteja na janela
Nem na solidão do quarto escuro
Nem na ilusão da obscuridade
Nem na luminosa incandescência do ar
Talvez esta janela seja um lar
De onde uma saudade singular p’ra sempre chama
E quer chegar.

Apenas as naus do Pedro Álvares Cabral


Paradas no mar um pouco acima
Do plano em que se distingue o horizonte
Nunca chegam
Paradas no tempo eterno de um sonho
Escravas do episódio fugaz e delirante
De um sonhador
Navegam sempre com vento de feição
Cortam as águas
Ouvem-se os estalidos que ficam daquele movimento
E brilham as gotas da água salpicada em volta
No sítio onde navegam essas naus
Nunca é noite
Nem existe qualquer obscuridade
Está além
Muito além
Para lá de haver luz e escuridão
Para além de haver movimento ou imobilidade
Num lugar onde tudo está parado e no entanto
Se move.

Esta janela não é minha


Mas eu olho por ela como se fosse
Sem preconceito ou dissimulação
Vejo a paisagem e o ar e toda a gente
E de repente
Me dá uma vontade irresistível de rir
Eu gosto
Gosto de rir feliz
E sinto felicidade quando sinto
As pessoas existirem de verdade
Todas com as suas pequenas estórias
Todas com a sua história
Presente e inadiável como uma determinação
Eu sei
Todo o poder que tem a criação
E um momento de conexão
Com o tramal contínuo da existência.

210
Nesta janela postiça
Onde eu duvido até que eu próprio exista
Estou em verdade aqui em frente ao mar
De frente para o perigo
E a ondulação.

De todas as janelas por onde eu já olhei a existência


Esta é a que eu amo mais
Amo-a com todo o fragor da minha alma
Feita de restos fermentados de uma dor
Que já há muito parou de doer
Ficou latejando como um molusco moribundo
Inteiramente suportável
Como um cordeiro que tivesse concordado
Em ser abatido
Para alegria dos convivas do jantar
Em que ele iria ser comido
Devorado com sanha e gula
De uma gente esfomeada e difícil
Como uma moeda a terminar de cair no chão
Volteando em círculos de uma falsa espiral
De ilusão.

Sem pena vou deixar esta janela


Por onde um dia vi os mares do sul
A minha alma perdida qu’ria abraçar o mundo
E viver nos braços encantados de uma musa
O doce sono da inspiração
Mas o mundo é real e cruelmente
Redondo e pequenino
O que é grande não vemos
Está longe
Só vemos com telescópios muito bons
Mas tudo o que é possível existir
Mesmo o que é impossível
O sonhamos
Ou simplesmente intuímos
Mesmo quando estamos acordados
Como as naus do Pedro Álvares Cabral
Que eu nunca vi
Senão em pequenas e rudimentares miniaturas

Vi uma delas uma vez e só a proa


Saindo das nuvens imperial e navegante
Mais proeminente que um padrão
Mais presente e real que a existência
Apenas e só porque vinda da direita
Se dirigia imponentemente bela
Para o lado onde bate o coração.

211
É bem pequena esta janela e bem diferente
De outras janelas que eu vi descrever fogosamente
Mas o que eu vejo por ela
É um mundo todo aberto e multiplano
Raiado de eletricidade até ao âmago
Interpenetrado em géneros e espaços
Com todas as potências
Todas as amperagens
Todos os choques e conflagrações
Amassado e total na sua indomesticada beleza
Que em compaixão divina e parvoíce
Nos permite andar nele como se não existisse
Eletricidade nenhuma.

Agora não estou na janela estou na praia


Onde se movem os garis com suas capas amarelas
E uma pequena folha
Já seca
Esvoaça com a traquinice de uma criança
Vejo o gari não se confunde
Parece que ele foi feito
Apenas para transportar a sua capa
E dar ao mundo essa recordação alegre
De haver vermelho
E amarelo
Como um girassol ou um tomate
Enquanto eu
No meu inefável delírio eletrizante
Imagino violetas na janela.

Nesta janela que seria


A minha janela sobre o mar
Eu vejo a solidão dos seres
Embalar-se na suma identidade
De serem todos parte de uma mesma coisa
Coisa nenhuma
Pois não se dá pela existência dela
Só pela lente evidente da janela
Quando se abre
O mundo fica junto o riso e o sofrimento
A alegria e o choro
Que são o alfa e o ómega de todas as emoções
Eu não as sinto
Por vezes reajo com desdém
Outras vezes digo que não sei
Debruçado eternamente desta janela mística
Deslumbrado pela praia e pelo mar
E desatento
Espero com fervor a paz do esquecimento
P’ra poder ver então

212
Em toda a sua majestade e imponência
As fabulosas naus
A que temos eufemisticamente chamado
Do Pedro Álvares Cabral.

Quando venta numa janela como essa


Parece que o mundo inteiro quer entrar dentro de mim
E então numa vontade refletida de sentir
Eu quero esparramar-me no mundo
E uma vez mais caminhar de encontro ao vento
Mas ainda não é hora de sair quero sair mais tarde
Para afrontar tudo o que existe
Para lá desta janela e que é o mar
O salgado e tumultuoso mar da vida
Eu que dei a minha vida pelo mar
E navegar.

Hoje o céu está mais azul


E a minha janela virada para o sul
Parece aberta de par em par
As naus do Pedro Álvares Cabral estão nas montanhas
Até aquela da qual eu vi a proa
E que de tão imperiosa e ufana
Parece um galeão
Não me abraça nenhum ímpeto
Não me soam trombetas nos ouvidos
Mas existe um redobrar de esperança
E uma esperança renovada no que parece ser
O meu amor pela terra

Que muda a cada instante de inspeção


Cada momento de decifração
Cada respiração do mundo e dos pulmões
Que inspira ao corpo o ritmo da terra
Amar é imitar é ser igual
E ainda que em amargura entoando a esperança
Eu aspiro ao amor e à mudança
Como se fosse a minha última vontade
A salvação direta e principal
Chegada indesmentível e eterna
Das naus
Inconfundíveis e fraternas
Do Pedro Álvares Cabral.

Nesta praia oculta


Eu vi faz muitos anos um amor e estava longe
Eu escrevi isso num poema e esqueci
O refresco a tarde e o amor
Esqueci também o poema e mesmo o papel em que foi escrito
Um pequeno poema insignificante e difícil

213
Daqueles que não entra nunca
No interior dos crudelíssimos critérios de uma antologia
Achei-o mais tarde numa mala cintilando glorioso e só
Todo o seu poder premonitório
E na praia
Como eu escrevi inocentemente
Oculta porque quase não se vê quando avistada do mar
Cinzenta e triste outros dias alegre e solarenga
Para onde jorra de ilusões
A janela onde eu fico em frente ao tempo
Estou sentado
Na mágica quietude de um refresco
Vendo irisar o ar
E olhando o mar.

O barquinho à vela do meu amor


Voa ligeiro cortando as ondas
É uma barca quando o vento
Lhe enfuna as velas pardacentas
Velas que já navegaram muito
Que foram por vezes rasgadas pelo vento
Mas que são como asas marítimas
Como um peixe voador ou uma fragata
Só sabem voar
Trabalham loucas
Na insanidade da sua convicção
O meu barquinho à vela
Navega como uma nau
Uma dessas naus que eu tanto espero
Não quero só vê-las
Quero entrar nelas
E partir definitivamente
Para uma viagem sem fim
Para o fim do mundo
Já não é longe
Está logo ali detrás
Atrás daquele morro fosco
Onde o meu olhar encontra as naus
Logo a seguir ao horizonte
Onde um dia
Um momento perdido na vertigem do tempo
Foi o Diogo Cão
Se não me falha a história
Que decidiu que a rota tem que ser marcada
Mas que mais importante que o padrão
É a ideia
De para diante navegar
Como o outro que ali parou
E para diante navegou
Eu vou

214
Por isso espero
Atento e flébil
Por essas naus
Sejam quais forem tanto faz
Seja a do meio
Que desaparece na bruma do fugaz
Seja a que fica
P’ra sempre contumaz
De um amor louco eterno e surreal
Mas realista e em paradoxo
Perfeito e imortal
Como o amor que um dia viu nascer a luz
E revelou aos homens que aguardavam nus
Uma visão quase transcendental
Não interessa se foram as do Colombo do Cortez ou do Cabral
Foram as mesmas naus
Nenhuma como aquela imponente e fatal
Que eu vi no outro dia navegar
Vinha do oriente
E era sem dúvida raciocínio ou interrogação
Uma das naus do Pedro Álvares Cabral

III

Esta janela é como um espelho


Para onde eu olho sem me ver
Igual a todas as janelas que há no mundo
Ela reflete
Umas refletem só para fora
Porque dentro está mais escuro e não se vê
Mas também há outras janelas como esta
Que refletem para dentro
Quando o que está fora já não interessa
E o coração fica pequeno e sem alvores
Nem sentimentos
Nem um desejo claramente definido
Que lhe alimente a ânsia de olhar pela janela
Para fora.

Nesses momentos
Parece que o encantamento de ter uma janela sobre o mar
Se desvanece
E acontece
Num último congestionamento
Do coração e da dor
Fechar a janela para não ver mais nada
Mas helas
É no momento em que ela parece estar fechada
Que o seu ecran
Se abre como uma tela gigantesca

215
Para o que o espelho sempre diz a qualquer pessoa
O espelho diz que ela ama aquela imagem
Que ela se ama apesar de tudo
E eu olho para mim pela janela
E vejo que também me amo
Amo também uma mulher
Nunca passou um dia
Em que eu não tivesse amado uma mulher
Mas o que eu queria mesmo era amar todos os seres
Como eu me amo quando me olho e sonho
Mas isso é para os cristãos bons
Velhos ou novos
Para os protestantes e para os huguenotes
Para os alegres e para os tristes
Para os espirituais e para os pobres
De espírito ou de bolsa
De corpo e alma
Eu amo
Amo-me todos os dias
E todos os dias amo uma mulher
Imaginada e cantada desde o fundo da ilusão
E inúmeras vezes configurada na vida
Tatuada e embutida na vida
Para tentar desafiar a ilusão perdida.

Uma janela sobre o mar é como um consolamentum


Que nos faz acreditar que a vida é boa
Uma janela sobre o mar é ver o sol brilhar
Mesmo nos dias de chuva quando o céu
Ameaça cair e para lá
Das nuvens cinzentas que escurecem
Na nossa consciência a dor da consciência
Navegar esbracejar morrer mil vezes
No mar ilimitado do ser inconsciente
Ter uma janela sobre o mar
É ter ainda mais um dia para viver
Para gritar e reclamar a esperança
De navegar para diante e chegar.

Por todos os caminhos há-de andar


Essa janela acobertada atrás do olhar
Nos dias tristes e nos que são contentes
Vibrantes como o sol
Que bate nos vidros da janela
Tem dias de todos os sabores
No imenso bazar da existência
E no anseio por um lugar ideal
Onde a vida é doce
E se pode morrer porvenientemente
Amar apaixonadamente a janela

216
Virá-la para dentro
E ver a casa
Para onde enfim acabamos sempre por voltar.

Vista por dentro a janela parece tão sem graça


A casa escura e a humidade na vidraça
Mas é então aí nesse lugar do sentimento
Que ela se abre exuberante para a vida
Mesmo silenciosa e ténue
Consoladora permanece aberta
Abre-se uma fenda na montanha
Contam-se as pepitas do tesouro
E tenta-se saber se realmente é ouro.

Janela de ouro atravessada e móvel


Que corre indecisa pela vida
Esquecida e fechada para o mundo
Umas vezes
Outras aberta e imortal rejubilante
O véu que lhe faz de reposteiro
Não é todo o querer que pode abrir
Não é sequer um desejo puro que consegue dissipar
Ou mesmo por momentos entreabrir
É uma janela independente
Que se abre e se fecha quando quer.

Nesta janela em que eu estou fitando o mar


Pode soprar um vento
E vinda do lado de fora
Uma humidade incómoda
É nesses dias que sinto aquele apelo
Para pisar a terra e cortar o mato
E ir para o interior bandeirar
Mas a janela prende-me aqui mais um momento
Cruzando em mim muitos momentos
Em que fluí na vida a contemplar
E eu fico
Fico de lado olhando a natureza que se agita
E o mar agitado no canto do olhar
A paz é breve
A calmaria e o sol
Aquela nau da qual um dia eu vi a proa
Já vai zarpar.

Esta minha janela é plural


São outras onde eu estive e hei-de estar
Deixando o sonho trespassar-me a alma
São aquelas outras das quais alguma vez ouvi falar
E até as que eu ouvi descrever
As que eu ouvi cantar

217
Esta janela não tem nem o encanto
Ou a peculiaridade
De ser minha
É uma mensagem que é ao mesmo tempo o mensageiro
Vai e volta sem se despedir ou se fazer anunciar
Ou se anunciar ela mesma
Não me pertence
Só a mensagem lhe interessa
E nela como em mim também
Não tem nada de especial que eu possa dizer dela
Nada que eu possa ver através
Que não estivesse lá para ser visto de viés
Mesmo que seja difícil de definir
Janela amada gostosa de descrever mesmo sabendo
Mesmo quando aninhada no peito como um filho
Ainda que ilusoriamente individual e possuída
O que ela é não tem medida.

O que esta janela é é ser todas as janelas do mundo


Que existem nas cidades e nos campos
Se vêem de longe como uma imagem bucólica
De uma casinha perdida numa noite
Rural e uma candeia
Que deixa a luz sair pela janela
Amarelada
Todas as janelas do mundo
As incontáveis janelas dos prédios das cidades
Impessoais e perfiladas
Quadradas ou retangulares
Em ordens geométricas como que de um exército
Composto de ilusões robotizadas
Aspirações de irrealizável
Dentro de apartamentos vazios
Que são o último e definitivo
Lugar impossível e profundo
Pelo qual se pode fugir da solidão
Por todas as janelas sai um sonho
Que se dispersa e se dissolve no mundo
Mesmo daquelas que dão para um saguão
E para fora só se vê uma parede
Pode passar sempre um rato
Lá em baixo
Janelas por onde só se olha para baixo
E mesmo assim
Em cima tem sempre nem que seja
Um pequeno triângulo de céu e nuvens passam
Mesmo as dos barcos que são redondas
As dos antigos navios de passageiros
As pequenas vigias dos cargueiros
Que eu vejo passar no mar envolto em bruma

218
E de os ver passar todos os dias
Me parece que eles já não estão lá
Mas mesmo que eles não estivessem
Ou se tivessem por esquecimento tornado invisíveis
Estariam lá as pequenas vigias como o fim de um óculo
Pelo qual se olha para dentro
E lá dentro alguém também invisível e interrogativo
Que poderia estar lá ou não
Olhando para fora
Mesmo as dos aviões
Por onde nunca se olha para nada
Porque na maior parte das vezes é de noite
E o mundo corre ou dorme
Existe até uma doença configurada e médica
Em que o paciente não pode estar ali
Se ali não existir uma janela
Janelas vertiginosas são precisas
Como as dos carros e as dos trens
Nas quais a estrada e a natureza
Passam correndo quase transidas
E de quem numa náusea o meu olhar
Recorrentemente quer se desviar
Naquela vertigem quase insuportável
Que faz a minha alma não poder ficar.

E eu fecho a janela
Fecho-a desgostoso e arrependido
Como se uma mão imperiosa de um destino estranho
A fechasse por mim
E mesmo assim
Fechada
A minha janela continua a brilhar
Mas eu estou de costas
Não a vejo
Mas vejo que ela brilha e continua lá
Bondosa e doce
E é a janela mais bonita e mais importante do mundo
Porque é o lugar incólume e brando
Por onde sai a minha sede de ilusão.

No espaço que está entre fora e dentro da janela


É que existe esta janela singular
Que é ser todas as janelas do mundo
Em todas as latitudes e países
Indiferente às meteorologias
Aqui faz sempre um tempo morno
Enquanto lá fora se esquartejam
Todas as conflagrações da temperatura
Aqui é como se fosse a serpentina
Do suave esfriamento dos vapores

219
Quando se retira da fervura
Das biológicas e caóticas podridões
A ilusória marca de uma essência.

Mas ainda aí
Por muito sincera e inebriante que a janela seja
Ela só se redime quando aberta para o mundo
Se reconhece nele e a comunhão
Dos seres das coisas das luzes e das sombras
Tudo o que verdadeira e hipoteticamente existe
Se funde num único olhar dentro do qual
A coisa mais insignificante e banal
Se torna transcendental
E o momento em que o olhar que fita manso e distendido
Se esquece da janela e fica espelhado no universo
Esse é quando a janela está aberta
Mais que de par em par
Mais que devassada como se fosse a janela outra
De uma ruína
De uma grande catedral que tendo sobrevivido a uma guerra
E da estrutura fustigada
Apenas as cantarias das janelas tivessem conseguido
Se sustentar
Consentindo ver através delas
O céu de outro lugar.

Nesta janela onde eu fico olhando o mar


Vejo escoar-se o tempo
A vida passando devagar
E quando interrogo o meu olhar
Ainda é para descortinar do tempo o emaranhado
De todas as bifurcações do caminho
A rede inóspita que o destino tece
E que nunca aparece
A rosa pura de uma finalidade
E uma dúvida
Que permanece viva e açoita o mar
Cinzento e calmo do entardecer
Provavelmente não serve para nada
Editar ideias em papel
Eventualmente a vida não se explica
Vive-se o presente como um animal
E além de tudo um gosto de vidro ainda espera
Um olhar doce que se detém.

Esta janela única e fatal


É uma janela para o mundo
Mesmo que fosse uma janela como qualquer outra
Seria única
Porque através dela são os meus olhos que vêem

220
Através dela vê-se uma praia acinzentada
Que as cores do pôr-do-sol tingem de eternidade
Onde pequenas ondas quase só chegam sem mesmo rebentar
No lago que o mar forma nessa hora mágica
Vem um navio
Parece lento e pesado é um cargueiro
Carregado de contentores sobre a estrutura flutuante
Mas não é lento
É como a vida
Que se move a uma velocidade atomicamente alucinante
E faz parecer que o tempo passa devagar
Vem do oriente esse navio que é como a vida
Quase parece parado
E no entanto
Por um momento que se prende de um pensamento
Que se teve
Já percorreu uma distancia ligeira e inflete a marcha
Se aprestando para seguir o caminho do meio
Certamente vai para o sul mas de repente
Assume imperioso a marcha do oriente mas para fora
Vai procurar o mar de fora e o caminho certo
Por onde se sai desta enseada
O ocidente evapora ainda a luz que o carro
De Apolo quer levar
E o norte como eu disse não se vê
Vê-se o navio diminuindo com o afastamento
Em direcção ao oriente para onde
Se presume que terão ido as naus
Do Pedro Álvares Cabral.

221
Como os navios a minha alma vai e vem
Quando está sol e o céu limpo
Brilha no ar esse raro contentamento
Que é ir
A alma também gosta de voltar
Voltar a casa e ver a casa do pai
Mas tem além
Tem para lá do que eu consigo ver
Quando olho aquela névoa líquida
De uma janela ofuscada onde aparecem
As naus do Pedro Álvares Cabral
Ficaram presas
De uma saudade singular do sol dos mares do sul
Um verso repetido
Uma emoção
Indefinida e branda
Sair do mundo para um destino outro
Não as estrelas
Não os confins do universo
Apenas o lugar
Lídimo e fresco
Dentro do coração. ___________________
PÉRIPLO INCOMUM
(4)
É PRIMAVERA E JÁ FLORIU

É Primavera e já floriu
A árvore das pitangas
Em frente ao Palhacinho
Onde o palhacinho já morreu
E o filho também já o vendeu
E com ele o que restava da velha tradição
Da imperial e do café.

O palhacinho mesmo
O que dá o nome a toda a área
Ainda lá está cobrando o pó
Dos anos em que ninguém reparou nele
E no entanto
Ele
Era o que dava o nome
A toda a área do café
Onde a cerveja era tirada a copo
E o copo onde era derramada a espuma
A tão doidamente apreciada espuma
Abaulado no meio como um barril
E do barril era arrancada aquela espuma
E em cima do barril
Pedras de gelo.

222
Naquela altura quase de certeza
Não havia ainda a árvore das pitangas
Praticamente nada havia nem o chão
Ainda que no chão houvesse os ossos
Que nessa altura seriam a alegria de outros cães.

Eu já tinha esquecido que a poesia


Ainda é o que eu penso das coisas quando as vejo
Talvez que com o tempo cada vez
Eu veja mais coisas
E que dos olhos se irem esvaziando com o tempo
Pense menos.
Todavia noutro dia em que o meu pai morreu
Ainda eu mal disso nem sabia
Já nem sei bem se foi um frémito
Que me trouxe de repente
À bandeira incólume e franca da memória
Aquele canto ainda igual e o lugar
Onde antes no topo do barril
O gelo arrefecia a imperial.

Talvez fosse antes a memória do lugar


Onde em criança eu ia com o meu pai
Quando era de manhã e ao domingo
Que desbragou aquele frémito
Que de prazer é quase choro
E que me fez começar ali a perceber
Que um dia como as folhas
Que das plantas secam no Outono
Também noutra estação secam as lágrimas
Às pessoas.

(5)
A AMPULHETA

No entreolhar de duas sombras


Numa esquina ausente e fluida
Em mim ou em qualquer lugar
Onde acordada ou acordando devagar
Minha alma sonha
Por um tempo
Escasso momento que de prazer me acorda
Infinito e longo esse momento
Já presente
Que é de onde vem cantando o som de tua voz
Momento que mesmo que fugaz encanta o céu
Transformando em madrugada o dia que começa
Anunciando breves ainda as cores da aurora
Ecoando o grito de uma vontade animal e indomável de partir

223
Traída ainda
Por uma sede
Uma intenção primeira e nunca saciada de ficar no cais
Em que uma barca espera
Que passageiros livres e desprendidos
Roupas de linho amarrotadas
Limpas e soltas no vento
Aquela barca adentrem
P’ra que ela possa
Velas ao vento e enfunando os panos
Embandeirar em arco
P’ra navegar garbosa o mar do amor
Corpo inefável que transforma o barco em porto
Porto implacável que transforma o corpo em barco
Navegação e fé
Na barca do amor zarpa de novo
O coração plangente dos naufrágios
Rasgando o tempo breve
Da maré
Por outra correnteza deu à costa
Num esgar de chocalhadas ilusões
De ondas e degredos rebentar
Areia e tempo corredor
Ponta maior leste de praia
Onde vem dar o mar

Bater e rebater
Todas as ilusões nunca acabadas
Todas as milhas navegadas e sofridas
Onde os corais se encostam
E os recifes moem
Antes de ser areia
Fútil areia branca
Branca areia
Que vejo saltitar dentro da ampulheta antiga
Como se escorresse imparcial por entre os dedos.

(6)
SINTO SAUDADES DOS POEMAS QUE EU PERDI

Sinto saudades dos poemas que eu perdi


Porque eram lindos e eu quase nem lembro das palavras
Talvez um verso aqui um verso ali
Mas as maiores para sempre se perderam e amargas
Foram cantando suas penas p’ra lugares que eu não domino.

Esses poemas que eu guardei junto de uns cheques


Numa carteira que hoje nem mais se usa já
Outros que escrevi em cartões breves
Em restaurantes em papéis ou em jornais

224
Existirão talvez amordaçados
Num lugar escuro onde ninguém os lê.

Eu escrevi-os e li-os muitas vezes


São como filhos perdidos numa guerra
E essa saudade que finjo sentir deles
É apenas a dor e o desconsolo de perdê-los.

(7)
NA MINHA CASA NÃO TEM QUADROS

Na minha casa não tem quadros


Vendi todos
Para comprar não sei o quê
Já esqueci
Agora tem paredes mal pintadas
E um retrato
Da minha mãe adolescente com um galo
E um crucifixo
Que é uma irónica homenagem ao senhor.

(8)
TROUXE UM LIVRO DO BRASIL MAS NUNCA O LI

Trouxe um livro do Brasil mas nunca o li


Quando comecei a lê-lo descobri
Que tudo o que havia impregnado ou escrito ali
Eu já sabia ou vi
Dentro de mim pairar e refluí
Senti a tentação de o ler mais tarde
Mas desisti
Preferi escrever este poema parvo
Que apenas serve p’ra provar que confundi
A água com a fonte e o rio que arde
Em um lugar profundo que sorri
Dentro de um bosque cujas veredas já esqueci.

(9)
A SAUDADE

Se o mar está calmo


E o meu coração serena como o mar
Vejo que o mundo que muito longe dobra
A cadeia infinita da distância
E o longe que um dia me pareceu
Insaciável
São como um som saído do sonho que esse dia um dia viu
Brotar no sono de desatentos e alumbrados marinheiros
Temerosos e surpresos
Tensos

225
E que ante a eminente anunciação da tempestade
Pararam mudos
Dos gritos que calados ficaram como um eco
Que se escuta.

Não há longe nem distância já foi dito


Débil imagem de um coração parado
Só o mar
Quando está calmo e os seus brilhos
Que há muito tempo eu deixei que se imprimissem nos meus
[olhos
Me mostram do mundo o movimento
Indefinido e eterno movimento dos olhos sobre o mar
Que nunca acaba
Que é como um ritmo
O ritmo interminável e redondo
De uma canção amada
Pulsando docemente sobre o mundo
Que o mar liga.

Há um limite aonde todo o ser se tinge em forma


Existe um ponto
Onde extremo o corpo se transforma e parece querer partir
Quer ser a alma e ir
Como que se desprender do ser

E dedos tímidos
Tocam a água que preenche e abraça o mundo
E é então que uma pequena gota se desprende
Como uma lágrima chorada antes do tempo
E cai no mar num gesto de infinita adoração
Que o mar recebe e leva omnivolante.


Onde o azul do mar é mais profundo
Quase rosa
Onde se cruza o plano que é o mar
Com o espaço aberto e tridimensional
Que nos parece o céu

Onde uma linha prescreve e cruza todas as dimensões
É que se encontra essa agonia que dista
Não é uma distância nem uma saudade
É uma angústia por ser longe
O aqui e o agora.

A sensação de poder estar no limite


Principalmente se no limite resta um marco incólume
Para onde o destino quis um dia confluir
Tem o encanto de poder me titilar

226
Como um relógio indiferente
O tempo que parece impenitentemente ter deixado de existir
E se compraz em repetir
Um momento que indiferente mas persistentemente
Se reproduz no tempo para sempre.

Escrever por vezes é difícil e custa


Como uma despedida
Não porque o coração haja parado de brilhar
Mas sim porque a caneta
Que antes corria no papel
Como uma fita amarela solta no vento
Insiste em não riscar ou falta a tinta
Que de uma outra dor
O amor
Falsificou
Feroz e taxativo.

Já não tem gaivotas no azul


Só tem pardais
Tem um amor perdido quase bruma
Longínquo e fugaz.

Das saudades que sinto nada pode já ser dito


Apenas um gesto de vontade pode ainda
Redimensionar o mundo
E ter do albatroz o voo lento
Com que se olha a dimensão da vida.

Nas margens do que acreditamos impossível


Todas as cartas esgotadas e perdidas
Resta a saudade de um futuro entrevisto
Em brilhos cintilando em meio ao erro
Forte no mundo a luz habita por instantes
Corações apaixonados e servis
Que se entregam amordaçados e felizes
A um holocausto de prazer
E afinal que coisa é essa… ser feliz
Que essa vertigem que a distância ignora
E se compraz num sofrimento indescritível
Respostas boas não servem para nada
Nem dúvidas ainda que metódicas
Só o momento existe em que se forma
Um mar de inutilmente e abstrato.

Esse feroz sentimento que o mar liga


Do tamanho de um mundo imaginado
Tantas vezes cantado e compelido
Para um mar de grátis esquecimento

227
Faz recuar o tempo
Faz distender a dor
Rasga efetivamente essa dissipante muralha
A que em outro dia já chamei fímbria do tempo
E mesmo quando dói escrever
Alguma coisa aquece num coração distante
E nunca esquece
O fibrilar constante
O passo vazio que galga o tempo
No coração errante.

(10)
A VERDADE

De manhã quando eu acordo


A minha verdade é sólida
Mas quando o sol se levanta
E aquece a natureza
Aquela verdade enorme
Que parece intransponível
Começa lentamente a derreter
E quando enfim finalmente
Se apresenta o fim do dia
À noite quando me deito
A minha verdade é líquida.

Quando a verdade me assalta


Às vezes quando me minto
Não sei nem bem o que sinto
É uma tristeza tão vaga
Tão sem pavor nem remédio
Que quando a verdade encanta
Me sinto todo tomado
Pelo tédio.

Como outras coisas na vida


A verdade é relativa
O que um momento trespassa
De ilusão desamor e agonia
Outro momento incendeia
E em cada momento fica
Uma verdade total
Que se desnuda e franqueia
Absoluta e rica
Mas transitória e passiva.

228
A verdade é tantas vezes
Tão difícil de dizer
Mesmo a si próprio ela tenta
Em vão escapar
De uma qualquer cruel confrontação
Mas tem momentos na vida
Nem pensamentos nem atos
Que o coração não consegue
Iludir fugir querer
E ao coração que sentir
A verdade não engana.

Até pode ser que um dia


Uma verdade mais fria
Possa da mentira ser o que sobeja
E dessa mentira tola
Com que a nós mesmos rezamos
Saia frágil mas definitiva
Suave e viva
Uma loucura indefinida e branda
Que o coração veja.

(11)
O PRESÉPIO QUE EU CONSTRUIA EM PEQUENINO

No presépio que eu construía em pequenino


Havia umas amáveis figurinhas
Três a três como se fosse de um menino
Apenas da ternura o toque fino
Com que parecia levitar entre as palhinhas.

De iluminura compaixonada e clara


Cor de cetim do céu da noite escura
Essa calenda decisiva e cara
Dias e dias se repete e se prepara
P’ra ser do tempo de um momento imagem pura.

Números exatos da paisagem doce pão


Da liberdade de se poder fingir
Da natureza o caos e a exactidão
Do ser ser a diversa dimensão
Do que do ser o ser puder sentir.

229
Escondendo e decifrando humanas as paixões
Três figuras em paz de animais e mais
Três vezes três humanas representações
Nove alegorias de humanas aflições
Auridas de doze emanações horizontais.

Flamejante hiperestasiática indicação astral


Nunca do barro remanescente austera
Ligadura extrema da função real
Essa figura de poder fundamental
Inspira anunciadora a mágica quimera.

Décima terceira compleição inteira


Da ordem que reclama ao drama a mística cabala
Resgata do enredo a condição rasteira
P’ra superior paixão rasgada e verdadeira
Que o coração exalta e a boca cala.

A estrela guia que se anuncia plena


P’ras três humanas reais figuras
Acesa no clamor da condição terrena
Onde nenhuma outra luz amiga acena
Vem cativar de amor luas futuras.

O ouro o incenso e a mirra necessária


Gaspar Baltasar e Belchior carregam
A cavalo de camelo a pé miragem ária
Que humilde da discreta origem vária
Renasce em paz da dor para os que erram.

Na verdade dois camelos bestas puras


Um montado outro trazido de arreata
Para bem da bonomia das estruturas
Outro invisível suspenso das alturas
Em que o pendura o que vem só feito hierofante e pantocrata.

Aqueles reis eu colocava juntos um no alto


Olhando longe o longe por cumprir
Iam andando sem ânsia ou sobressalto
Medindo os dias por um pequeno salto
Que lhes simbolizava o tempo do devir.

De um se evidenciando claramente a tez


Escura retrato original de antigas vidas
Vindas de Harare Dar-es-Salam ou Fez
Paradas perto em semicírculo três
Profissões humanas bem escolhidas.

230
Mais perto a moleira carregando
Na cabeça à maneira o pão futuro
Simétrico o soldado em armas só faltando
Um tiquinho afastado soletrando
Palavras de um dialecto prematuro.

João o percursor investido de pastor


Carregando nas costas um cordeiro
Vinha de todos os delírios já senhor
Dançando ainda morno o seu amor
Caminhando humildemente num carreiro.

Era porém desse amor imagem bem simbólica


Humilhado e maltrapilho carregando um animal
Por entre frestas de uma paisagem bucólica
Ainda que sangrando restos de uma paixão heróica
Tem por direito direito ao movimento real.

Como um cavaleiro dupla figura tem


É dois em um humano e bicho num só fado
Figurinha de barro ao nascimento vem
Assistir pasmado do primo que lhe vai passar além
Como ele mesmo havia anunciado.

Do cordeirinho os companheiros chegaram antes


Guardam aquecem e precedem imóveis toda a trama
E para aqueles que do rigor do número são amantes
Prestam-se as invernias do solstício aos frios instantes
Ao bafo quente que ao menino burro e boi aquece a cama.

Sentidas essas inocentes cabalísticas figuras


Em palcos e imagens retábulos cartões e monumentos
Vastamente expendidas resgatadas e de intenções puras
Das significações ter em herméticas procuras
Extraído delas cada signo e sem comedimentos.

Foi ter assim da inocência a graça que a criança


Que em figurinhas monta a montra da verdade
E faz da catequese uma verdade em dança
E reza dos mistérios imaginada herança
Que ao mundo vem em forma de vontade.

231
(12)
ÀS VEZES CHORA-ME O SONHO

Às vezes chora-me o sonho


Perdido no mar profundo
Onde a luz não entra nunca
E a vida é só dor e sono.

De todas as implicações
Que o sofrimento provoca
O animal na sua toca
Imagina soluções.

Mas pura e doce ironia


Quando a vida se convoca
A si mesma lá do fundo
Responde-lhe a maresia.

É vento e sal diluído


É só a voz que se esgueira
Para um lugar impreciso
Que atravessa a vida inteira.

E nunca chega fatal


A cruel módica espuma
Espera agora mais um nunca
Do tempo que passa sempre igual.

Continua e afinal
Tudo se resume em mansidão
Acalma a tempestade no limite
E fica só pulsando o coração.

Máquina extrema que o mar engole


E ainda parece resistir
Porque perder dói até na inútil alma
Mas pior que perder é desistir.

Esse seria sim suave engano


E de enganos se faz tudo o que existe
Aparente o sal vai causticando
A existência mesmo quando é triste.

Tudo é aparência e revestida


De real a realidade espera
Transitória espera desmedida
Que doce ilusão chame por ela.

232
E quando chama essa ilusão doce
É como de sereias o cantar
Que a realidade vã que fosse
Teria ainda existência real.

(13)
VENHO FINCANDO A PAISAGEM

Venho fincando a paisagem


No chão me sentindo entrar
Enquanto a pele esvoaça
Diluída pelo olhar.

Fica no ar o balanço
Desse fiel equilíbrio
Onde paira onde dança
A cava origem do frio.

Onde se espalma na cor


O universo aparente
Nas retinas a nascente
De uma distância uma flor.

Nunca do seu gineceu


Florida afastada ou querida
Da qual só eu
Tenho a partida.

Simpático passarinho flutuando


O colibri ou beija-flor ausente
Raia no sol a sua cor ardente
Regresso eterno primavera quente
Do meu esperando.

(14)
O MEU COMPUTADOR

Tenho um velho computador


Que herdei da minha filha
E me acompanha no horror
E me transporta para a maravilha.

Não sentindo é como se sentisse


As minhas falhas e os meus prazeres
Não me daria o céu se eu lho pedisse
Mas me disse não descanses até veres.

233
Esse computador velho e cansado
Não foi inventado pra sentir
Não foi para delírios que ele foi criado
E todavia é a ele que eu recorro p’ra sorrir.

Quando eu não sinto nada ele sente por mim


E muito raramente me abandona
Ele apenas sabe dizer não e sim
É apenas uma máquina que funciona.

Faz as vezes de caneta


Reage aos meus devaneios
E mesmo quando eu só lhe dou treta
Ele transforma urros em gorjeios.

O meu computador é como do Camões


O que ele chamava o seu «tão certo secretário»
Gere e controla as minhas emoções
É um amigo um confidente um correligionário.

(15)
APOSTASIA E MITO

A caixa transportada em pranto e fuga


Sem esmero mas antes timoratamente
Sempre imbuído do medo onde figura
Com que apodrece o fundo escuro e ausente.

Da triturante caixa cujo conteúdo


Omnisciente e interrogativo
Tremendo sobre as mãos e o coração mudo
Irreversível o destino permanece vivo.

É uma caixa se tem utilidade


Transporta ou guarda coisas dentro
Tudo o que guarda ou leva deveria ser verdade
E ser de toda a infante vida o centro.

Fora arrastado em pèriclito equilíbrio


Insanado e vão intrépido conflito
Sóbrio ou ébrio o estrépito sombrio
Troando da caixa o interior paráclito.

234
A caixa... a caixa das esmolas da igreja
Que nunca foi roubada por critérios
Nem por ladrão algum que sendo seja
Pretexto ou sede de argumentos sérios.
Tudo é mentira tudo são gritos sufocados
Moedas falsas de metal sem liga
Ilhargas sólidas de limites compactados
Tombados no adeus de uma harmonia amiga.

De uma diferente condição aparas loucas


Intensa agrura podridão augusta
Da caixa imaginária as culpas restam poucas
E da lustrosa gama despedida muito custa.

Destrambelhadamente essa tal caixa


Vai desconjuntando as frágeis dobradiças
Da infantil herança pouco acha
Só lhe restam avós e sub-missas.

(16)
A MULHER QUE VOCÊ AMA

Quando uma canção vadia


Procura você na cama
Todas as cartas pertencem
À mulher que você ama.

No seu coração translúcido


Uma pequenina chama
Vibra o cristal brilha e súbito
A mulher que você ama.

Aparece luminosa
Uma graça ainda o chama
Fatal e preponderosa
Da mulher que você ama.

Eleita usada e traída


Arrastada pela lama
Posa nua inesquecida
A mulher que você ama.

(17)
QUADRAS DE GOSTO IMPOPULAR

É uma espécie de dor


Mas não é como doer
Já tanta gente falou
O que se diz não é querer.

235
É formigar é sofrer
Sem nunca ver o horror
Que se esconde atrás do ser
Por quem se diz ter amor.

E mesmo quando se ataca


A fonte dessa impiedade
Esquece-se logo a ressaca
E a cruel fatalidade.

A feroz iniquidade
Que provoca essa macaca
Vai transformando em saudade
E corta como uma faca.

O coração em pedaços
Acumula os desenganos
Ficam só subtis os traços
De grandes perdas e danos.

Demora dias ou anos


Até desfazer os laços
Com que infelizes atamos
Os nossos próprios braços.

Falaciosa ritmia
Que encontra os braços vazios
E o corpo todo assedia
De sentimentos ínvios.

Não são aromas sadios


O que da dor se inicia
É comandada por fios
A sombra dessa agonia.

(18)
TODO O AMOR QUE UM CORAÇÃO SENTE

Todo o amor que um coração sente


Sempre querendo possuir a quem se ama
Seu travesseiro está sujo com o meu sangue
E eu já não suporto o cheiro da sua cama.

Essa dileta imagem que se crê


Ser a da redenção do sofrimento
Quem ama é possuído e não se vê
Da redenção sonhada um só momento.

236
Todas as coisas que o amor sempre interpreta
Que são de muitas vidas os prazeres
São afinal uma alegria incompleta
E num momento um desalento achado em quereres

Nunca completos nunca satisfeitos


Jamais inteiros e para sempre sós
Feitos de muitos e fugazes sentimentos
Que atam a vida como um bordado de nós.

Não tem saída é cruel constatação


Que de amor feitos todos os enlaces
Na paciência feitos e desfeitos são
Todos os encantos todos os fins todos os passes.

(19)
SONO NÃO HÁ

Sono não há
Há uma nevralgia pontiaguda
Que permanece interrompendo o olhar
A consciência parece ficar muda
E o que sobeja esgueira-se para algum lugar
Lugar sem nome onde se planeja
Renascer das cinzas e cantar.

(20)
AS PESSOAS

As pessoas são em si todas iguais


Umas são gordas outras magras
Outras são muito gordas e outras muito magras
É o meu caso que também sou uma pessoa
Altas e baixas gordas e magras
Bonitas e sorridentes outras menos
São assim as pessoas
Todas iguais e diferentes.

As pessoas vivem amam e são amadas


Respiram e andam pela rua
Olham-se
Umas amedrontadas outras esclarecidas
Seduzem-se e repelem-se incansavelmente
E escorregam interminavelmente umas pelas outras.

São tão resistentes as pessoas


Mesmo as que são fracas
Principalmente as que são mais fracas
Resistem a tudo e mesmo quando morrem
Alguém se lembra delas

237
Outras pessoas insistem em se lembrar delas
E as pessoas continuam então a existir
E a resistir existindo
Nos corações e nas cabeças
Dessas outras pessoas.

As pessoas são infatigáveis


Nunca se cansam de ser pessoas
E de fazerem as coisas mais abomináveis
Mesmo quando acreditam que são pessoas boas.

As pessoas vivem exiladas no sangue


No código do ácido desoxido ribonucleico
Refugiadas e encolhidas nos meandros da genética
Até que um dia se revoltam e gritam
Possuídas do hábito de desamar a paz
E de cada vez que a raiva lhes incendeia a alma
Os olhos queimam
E as pessoas se destroem
Vítimas e algozes umas das outras
Esmagam inocentes e culpadas
As flores altivas do seu mundo
Transformam-se em bestas intratáveis
E quando ficam tristes arrependem-se.

As pessoas no fundo não existem


O que existe é o que vive
Por dentro e por fora das pessoas
Se manifesta
Se não fosse isso as pessoas não seriam pessoas
Seriam outra coisa muito diferente
Mas como afinal embora não existam
São pessoas
São uma coisa diferente
De qualquer outra que exista.

As pessoas são a coisa mais interessante e bela


Que pode ser vista neste mundo
São de um fascínio absoluto
E se fascinam
Com outras coisas admiráveis e as mais diversas
As pessoas fascinam-se com tudo
Tudo as fascina
Em grupos ou isoladamente
Todas se fascinam com coisas muito diferentes
Mas o fascínio com que se fascinam
É sempre o mesmo
Um fascinante consolo que redime
Apaixonadamente.

238
As pessoas prometem coisas que sabem que não vão cumprir
Acreditam em promessas que sabem impossíveis de concretizar
Desconfiam ou crêem
Sempre com a mesma esperança
De um amanhã ligeiro
E não muito longínquo
Quando o amanhã se alonga
Perdem a esperança
Todas acreditam que têm uma origem
Que acreditam ser
Existe então nesse momento um elástico
Que puxa as pessoas violentamente para trás
Para essa origem que imaginam ser a sua
Mas ao contrário do que se imaginam
A origem que tão briosa e orgulhosamente procuram
Está muito antes
Num lugar que não existe neste mundo
Mas que brilha incessantemente sem nunca definir o objetivo
Que está no centro do coração das pessoas.

As pessoas são como crianças de uma existência maior


Que com o passar do tempo
Lhes faz perder o cabelo
Ficam então umas carecas outras menos outras não
Mulheres têm tendência para não ficar carecas
Mas homens e mulheres
Pessoas em geral
Carecas ou não ou menos
Transportam na cabeça postiça
Uma peruca que na maior parte das vezes não se vê
Outras vezes a peruca
Escorre-lhes pelos ombros e algumas
Mais espertas mais atentas ou mais descontraídas
Sacodem com as costas da mão.

As pessoas são estacas onde se amarra


A solidão de outras pessoas
Vivem juntas
E quanto mais juntas mais felizes.

E são assim também a síntese de tudo


O que parece existir e o que existe
No universo que existe.

239
(21)
PARA LÁ DA MORTE NÃO HÁ NADA

P’ra lá da morte não há nada


E se houver
Que seja breve e infinito
Todos pensamos que um dia
Havemos de morrer
Em algum momento da vida o pensamos
E cremos
Convencidos de uma alquimia pura
Que de um destino nos persegue
E recusamos
Esse destino lindo que nos foi proposto
Porque temos medo de morrer
Mas morreremos
Queiramos ou não um dia morreremos
E nesse dia
Seria o dia em que a nossa fugaz e insignificante inexistência
Teria um fim
Parece ser uma coisa lógica
E no entanto
De uma existência fugaz e infinita
Temos o jus o prémio de saber
Que um dia
Nunca sabemos qual ou quando
Vamos morrer
Abraçamos conscientes essa finalidade
Como se a vida fosse uma miragem
E quando a toca nos parece escura
Pensamos nisso.

(22)
POEMA DA VIAGEM

Quando nascemos já sabemos tudo


Mas acreditamos que não sabemos nada
Crescemos inocentes ou sagazes
E queremos
Queremos desesperadamente saber mais
Mas quando vem finalmente aquele dia
Que é o do conhecimento
Esse dia é tão fugaz
Que a vida se transforma em arrependimento
E arrependidos olhamos para trás
A barca do amor já se perdeu
Dias felizes ficaram sem lamento
Engolidos vogando para nada
No rio do tempo que tudo escoa
A estrela de neblina e a asa já sem vento

240
Dizem-nos: - Brilha
Se ainda fores capaz.

Paisagens entrevistas que hoje vejo


Madrugadas de penumbra anunciadas
Por uma inspiração de origem outra
Que aqui se revelou não duradoura
Eu mistificado e trafulhento
Que não quer reconhecer o que já sabe
E promete para um próximo futuro
A redenção inusitada do presente.

Viagens começam e acabam


Como acabam os dias e as noites
A única viagem que não termina nunca
É a viagem interior
Em que pirogas astrais imaculadas
Se movem
Em rios de metal líquido e doirado.

No terreno invertebrado do ocaso


Onde as palavras batem sem significado
Ficam provas de um crime antigo
Nunca castigado
Nunca assinado nem assumido
Um crime do qual nunca se encontrou o criminoso
E que acabou julgado à revelia da alma
Enquanto para gáudio do público assistente
Parece ter sido condenado um inocente.

Territórios inóspitos
Desertos
Foi para onde se esgueirou o patateso
O monstruoso e pérfido imortal
Que de si próprio separou a essência abrupta
Rangendo os dentes e cuspindo a culpa.

Nessa viagem aparente e real


Também se bate com a cabeça na parede
Mas a culpa não cessa nem no sangue
Que escorre pelas pedras e na cara
E a viagem continua azul e indiferente
E aparente
Aquela ânsia de ir mais longe e de conhecer mais
Nunca nos deixa.

Sede de imenso e intemporal se esbate


No que ficou de uma recordação
Lugares sem nome
Visitados em sonhos e visões

241
Majestades nunca completamente abertas
E a certeza de uma motivação
Que se quer nunca adiada
Que se conhece
De um destino prevalecendo sobre o drama
Corrompido e interrompendo o fio dos dias.

Todos os dias se parte para uma


Dessas viagens feitas de gestos banais
Lugares amigos ou desconhecidos
Nos quais se fotografam monumentos
Se passa por hotéis aeroportos aviões
Trens ou carretas onde se respira
Um ar amável ou cosmopolita
Sentem-se os cheiros
De todos os lugares
Para onde parte sempre ufanamente
Um incontável número de pessoas.

E essas pessoas reconhecem-se ao passar


São viajantes
Olham a vida devagar
Devoram a paisagem
E mesmo quando não saem do lugar
Ficam bebendo a forma pura da realidade
E não se prendem nunca
A nenhuma forma concreta de estar
São a viagem
Que em alguns casos se torna
Em uma forma peculiar de migrar.

Inúmeras viagens se desencadeiam


Todos os dias
Em todas as horas e minutos
Tem aviões partindo e chegando
E neles sonhos
Lugares de indescritível fantasia
Mas aquela viagem imortal
Que todos deveriam recordar
É a primeira que se fez
E como humanamente é natural
Invariavelmente se esqueceu.

Por toda a vida o gesto se repete


Partir para depois voltar
É a viagem
Em que afinal nos sentimos crescer.

242
Vemos países e cidades
Entreolhamos naturezas
Colecionamos certezas
Que o movimento lento do devir
E a incerteza do parar
Vão lentamente nos fazendo desacreditar.

E a viagem começa de novo


Não pára nunca
Mesmo no momento atarefado e sólido
Em que ficamos arrumando a bagagem
Já estamos na viagem
Cujo destino muitas vezes
Nem sequer sabemos qual é.

Muitas acontecem por acaso


Outras por vontades que nos são alheias
Mas de todas ficam alguns rastros
Traços de um sonho que é nunca deixar de ir
E jamais ter medo de voltar.

(23)
PÉRIPLO INCOMUM

Depois de oitenta horas sem dormir


Em transe erotizado e possuído
De uma vertigem de tragar o tempo
Desgovernado
Em modo de aceleração espontânea
O corpo como que eletrizado
O coração dispara ao menor esforço e vai ganhando
Um ritmo que o sistema fica prestes
A não conseguir acompanhar
Parece ser o fim de um episódio
Um périplo incomum que começou bem antes
Quando você ainda não sabia
Nem poderia saber
Aonde levaria e o que realmente iria
Acontecer.

Quando se vira a madrugada sem dormir


Coisas extraordinárias acontecem
Coisas que você não sabe realmente se acontecem
Mas que inexoravelmente deixam o seu rastro
O que você sabe é que esse périplo
É apenas uma pequena parte de outra coisa
De um episódio maior
Muito maior e que você conhece
E reconhece com facilidade
Mas a verdade

243
É que no mundo só se vira a madrugada sem dormir
Quando se tem um ente querido que morreu
E se vela
Ou em ocasiões motivos ou funções muito particulares
O resto é boémia e aniquilamento
Daquele pouco que você ainda pensa que é.

Périplo incomum
Previsto e analisado às vezes anos antes
Plasmado em poemas pensamentos e boutades
Que nunca careceram de grande explicação
Permaneceram
Como casulos de uma condição última
À qual você sempre se sentiu obrigado
Mas que era impossível decifrar
Antes de o corpo chegar
Na anunciação do seu limite.

Primeiro você partiu atrás de um sonho


Seguindo sempre os passos já marcados
Desse sonho que só algumas vezes
Você acredita ter sonhado
Mas demarcado
O território até um dia inexpugnado do sonho
Os limites impossíveis
Os sedutores marcos visíveis que lhe guiam
Os passos e seus trôpegos
Balbuciamentos
Você vê que afinal por incomum
Que o seu périplo possa ter parecido
Você andou em voltas
E é trazido
Sempre ao lugar onde tudo começou.

Parafernálias que soam aos ouvidos


Desatentos e sempre descuidados dos homens
Parecem não ter fim indecifráveis
Você regista o âmago
E profundo
O seu olhar de alento se desperta
Numa outra vida que parece separada
Num sentimento de que não foi p’ra isso
Que você nasceu viveu e resistiu.

Quanto mais bêbado está o boneco


O roberto impertinente que você é
Quanto mais a vida lhe parece boa e suportável
Mais acordado está aquele sonho
Que você um dia inocentemente sonhou
E é então que vem essa vontade

244
Que você sente de acordar do pesadelo
Que é ser ao mesmo tempo sonho e realidade
Essa espécie de filme de terror
Em que você transformou a sua vida.

E aparentemente não é de nenhum filme que se trata


É a sua vida que dos dias
Você perdeu o tino e a conta
E dias que o tempo deglutiu voraz e breve
Como se não passassem
Ou sequer você tivesse visto
Que alguma vez tivessem passado
Para depois de tudo o que você sofreu
Amou descortinou viu e aprendeu
Ficar apenas ainda fumegando em sua mão
Um resto inútil
Carbonizado e só
Que é o seu coração empedernido
Para trás nada
Apenas o sol que você viu milhares de vezes
Nascer e pôr brilhar e ser
E em todos os minutos desses dias
Jamais parar
De continuar a explodir.

Em algum canto indecifrado do universo


Jaz o buraco
Ponto invisível e longínquo de onde emana
Todo o princípio
Para onde afinal o universo tende
Que nenhum arquiteto desenhou
Que não tem forma
É apenas um ponto imenso e infinito
Igual ao qual
O universo é
Não é um nada
E quase não é tudo
Mas é um pouco
Desse ponto inacessível do universo
Que ainda arde
No seu empedernido e esburacado coração.

Périplo incomum…
Quando você decidiu escrever este poema
Acreditava toscamente
De uma inocência vã
Que algum trajeto
Empolgantemente iniciado
Do qual delineados os caminhos nunca foram
Teria dos seus berços imprevistos

245
Das paisagens e mais queridos episódios saudosos
Poderia dos infaustos
Tortuosos e ínvios repetidos
Cruéis e devassados calcorreamentos
Poderia se diria suspicioso enfim
Ter acabado
Mas não
A fé insana continua
Mesmo quando você pensa insano e belo
Jamais poder acreditar em nada.

(24)
DIÁRIO

1
Um dia a acabar de terminar
É como um livro a terminar de se fechar
Quando ainda não se leu a última página
E em carícias literárias circunstanciais
Se decide que não precisa já do marcador.

A acusação de incongruência produzida


Pela constante imprecatória já ouvida
Silenciada na boca e nos ouvidos
De uma sã mas fatigada consciência
É o definitivo pronunciar imaculado
De uma sentença há muito conhecida
De que aquela página fatal
Não precisa de todo de ser lida.

2
Se uma ideia alguma vez foi produzida
Ela vai ficar presa no espaço
E se arrastando mansa pela vida
É de meses e de anos o pasto
E mesmo quando o tempo a empalideceu
Ela perdura e continua viva.

Não se percebe a finalidade


Parece que aquele dia afinal nunca termina
E de cada dia a súmula indecisa
É a de que todos os dias são o mesmo fado
Alegres ou tristes vivem no infinito
Do que um dia virá a ser do seu agrado.

3
Quando se afirma uma ideia e o que acontece
Se transforma mansamente em ideias
E essas ideias se convertem em palavras
Que ditas se produzem em ideais

246
Num campo santo de aparentes
Irrealidades
Imagens soltas vogam no tempo e esperam
Que num momento por um momento sejam.

Então morte e vida se convocam


E juntas dançam
No chão do mundo dissimuladas e gratuitas
Uma assaz peculiar espécie de tango
Que é património imaterial da humanidade.

4
Os dias passam não se contam
Mas quando um dia passa e outro vem
Despontar do lado esquerdo
De um horizonte qualquer
Fica a vertigem
De ser possível o que parece impossível
E impossível o que um dia é.

Meu calendário impresso


Que eu desenhei me esmerando
Tem dias meses e anos
Tem meios-dias minutos
Tem horários tem momentos
Mas muitos números em branco
Tem outros escritos a tinta
De indelével dourado
Escritos a ouro e esses são
Os dias em que parece
Que o amor vem.

(25)
NOS CORAÇÕES DOS AMANTES

Nos corações dos amantes nem que seja


No firmamento do céu das ilusões
Onde uma grande lua sempre brilha
Brilha uma outra luz que aquece e queima
No centro incandescente desses eternos corações
Todo o ardor e fé que se deseja
Poder de ternos beijos ter as emoções
Viver em tresloucadas horas numa ilha
Encantada o canto das canções
Com que se embalam infantis e duradouras todas as paixões.

247
(26)
DESENHAR UM BARCO

Desenhar um barco
Que ficou seco
De uma maré que vazou
Compelir as sombras
Que se aconchegam
Ao baixo ventre
Das suas formas redondas
Curvas oblongas
Equilíbrios conhecidos
De uma suave
Arquitetura naval
Emocionantes
Contrastes e iluminações
Excitantes luzes
De uma realidade contrastante
Recordação
De uma imaginação
Delirante
Prima do sonho
E navegante
Pluricontinental.

Ficou no seco
Grande ou pequeno
Mesmo um saveiro
‘inda que seja
Uma pequena chata
Ou um navio
Ficam tombados
Os barcos
Sem a água
E aquele ali
Que ficou esperando outra maré
Quando tombou
Poderia ser qualquer barco
Era diferente
De todos
Seria todos e um
Mas sombreado
E desenhá-lo em papel
Faz tempo que a maré vem
E vai
Volta e é preia
Escorre e se atrasa
Flui e reflui e é cheia
Sempre
Maravilhosa e global.

248
(27)
BARRIGADA DE EMOÇÕES

Pantagruel e Simões
Juntos e separados
Sofreram juntos
Ficaram parvos em seus
Partos sem dor
Subjugados
E sem amor
Fizeram simulações
Impessoais
Tiveram saídas líricas
Uma das quais
Foi prenhe de emoções
Idas e vindas
E recaídas brutais
Em sensações
Fontes de decisões
Fatais
Coisas plagais
De às vezes esbugalhadas dimensões
Descomunais.

Pérolas indescritíveis
Anunciadas em manhãs
Noites inteiras
De fluxo ininterrupto
Podeis dizer
De asneira
E considerar corrupto
Esse anunciado e inflamável fluxo
Por revelar.

Invadiram o Brasil
Por uma passagem estreita
Nesga imperfeita
Rasgada ao sul
Por uma hipotética e senil
Cordilheira inteira na fronteira do Chile.

249
(28)
O LUTO

Quando eu penso em cada transe que vivi quando me lembro


Dos cheiros dos rostos dos amores
Sinto uma tristeza tão triste e tão profunda
Que parecem ser todos os amores que eu tive
Comprimidos assim para caber
Numa caixinha pequenina de recordações
Outrora queridas.

Sempre que alguém passou na minha vida


E mansamente falou que ia ficar
Achei que sim mas não assim
Tão sempre e tanto
Tão sem saber ninguém chorando ausência
Tão sem ninguém poder secar meu pranto
Pelas ruas entoando a canção da paciência
Só e sonhando.

E mastigada a dor bebida a carne


Massacrada de dor sangrada em noites
De escuridão de alma perdida e brancas nuvens
Doirando o pátio ensolarado das memórias
Fixas no mais insuportável dos momentos
Que é o da crua nunca querida e mais cruel
Separação.

Tem doses gordas e fatais de sofrimento


Numa só dose de overdose esse momento
Ramos de símbolos de morte roxas saudades
De um funeral nunca dos passos ser pisado
Saudade imensa é como é o que se chama
Por esse nome que não tem nunca igual martírio
Apenas custa.

Apenas custa custa muito custa tanto


Deixar p’ra trás a doce flor de quem se amou
E quando vem aquela triste e fugaz recordação
Não custa tanto quase nem dói o amor aumenta
E terna crê quem ama ser sua tristeza
Encantamento suave encanto de sereias
Canto perdidas.

250
(29)
O GARIMPO

Às vezes é preciso ir para um lugar onde não há nada


Um lugar onde não haja nada
Para onde se vá
Embora lá não haja nada
Mas para onde mesmo assim é preciso ir
Às vezes é preciso
E se vai
Embora esse lugar
Esse lugar onde não há nem haja nem pudesse haver
Nada de nada
Esteja sempre lá
E nunca haja lá nada.

Depois então de estar nesse lugar


Estar e se constatar que não tem nada
É que começa a inflamada infatigável e infausta
Tarefa
Esgravatar a dor infatigavelmente
Como se fosse ouro em uma mina
E mergulhar na escuridão amarga
No mar de casca e agreste sub-chão
Sangrando as falangetas
Fustigando as fibras do corpo
Das peles os tendões
Da consciência os traços
Para tirar dos cascos sujos da areia informe
Com que se calca a dor
Um fio estilingue
Clamando as profundezas ao castigo
O esquiço condenado
De uma pessoa grande e resolvida
Habilitada
De uma visão alvar clarificada
Um andrajoso
Encarvoado e malcheiroso
Enfim entregue e manso
Sofrido e não sereno
Manso e cobarde
Achando ainda que merece a pena
Com que o traz o seu delírio prisioneiro.

Dessa cova onde se guardam todos os tesouros


Desconhecidos e de difícil acesso
Onde se erra e se esgravata a dor
P’ra extrair dela um fio de líquida poesia
Sai um homem
Retemperado e são

251
Ainda que esgotado do ser a jovem alma se revela
De um novo noivo aceso facho alegra o dia
Despido enfim e o espírito alisado.

(30)
CAI A TARDE PARA FORA

‘inda voltarei a ver-vos oh águas


Brilhando esperanças loucas na tarde
E fora e para onde o longe se encaminha
Nas horas que tardam sem caminhos
Nas tardes em que jovens corações se multiunem
Reformulando a história
De pátrias apartadas mas felizes
Filhos de tios irmãos e primas afastadas
Claves de incestos sãos e contidos catartizados
Onde em um sonho de imparciais diversidades
Dançam ainda claras e capitosas
Almas que recordam de um lugar ter sido idades.
_____________________________________
O CAMINHO É PERDREGOSO E DIFÍCIL
(31)
O CAMINHO É PEDREGOSO E DIFÍCIL

1.
O caminho é pedregoso e difícil
E no fim tem sempre uma festa
Para a qual você não foi convidado
Onde estão pessoas que você não conhece
Vestidas com cores que você nunca viu
Amanhece num sorriso ou num desejo
Mas no essencial tudo é de noite
Na festa todos se divertem… você procura
Quereria ter chegado mas quando entra
Você só lembra o desconforto e o martírio
Das ribanceiras escorregadias e mentirosas
Em que aquele caminho promissor e bonito
Há muito muito tempo começou.

No chão tem sempre alguma coisa irresistível


Que você não sabe exatamente o que é
Move-se em uma forma às vezes repugnante
E não se percebe realmente o que quer
Só uma insuportável sensação de desconforto
Arrasta você para o caminho
Que se ergue a uma meia altura do chão
Como as divisórias de salinas
Ressequidas e escuras onde você olhou um dia
As cores filtradas pelos cristais do sal.

252
A massa em que você trabalha é langonhenta
E todas as figuras muito abjectas
Num tom geral
A luminosidade é reduzida
Mas embora
Nada daquilo seja animador ou empolgante
E nem por um segundo
Você se sinta motivado para prosseguir
Do íntimo do ser que amargamente
Escorrega avança ou deambula
E que com sacrifício aceita aquele estranho desafio
Vem a verdade
De que aquele momento é importante.

Então quando se chega no frontão que serve de portal


E você se apresta para ver a porta
Você descobre que não pode entrar
Fica por um inexplicável e longo momento
Parado sobre o muro
Até que sem saber como
Você já está lá dentro
Está em um jardim e mais acima
Pelas janelas abertas de um palácio
Deixa-se escorrer uma música
Você já não está no caminho está na festa.

Agora você quer entrar no palácio


Mas múltiplas peripécias vão mantendo você no jardim
São coisas que você viu
Pessoas impalpáveis e coloridas
Acções que você teme
Emoções que você nunca viveu
Então você percebe que está ali
Mas não é você
Não é a pessoa que chegou no portal e se aprestava a entrar
Não era ela nem era você
Mas de algum modo aquelas coisas acontecem
Em algum lugar profundo e escuro
De uma consciência que não é a sua.

Os fatos da vida imploram ainda por um minuto


De uma atenção que você já não tem
Na escuridão da noite
De uma cidade abandonada e esquecida
Uma pessoa louca que você já não é
Quer o seu braço
Quer caminhar cumplicemente o seu caminho
Numa ternura como se fosse a doce esperança de um afago
Uma candura desmascarada no momento
Em que você rejeita aquela mão estendida

253
E uma voz rouca
Que ao mesmo tempo sem se distinguir como
Implora e grita acusa e indigita
Uma pessoa que você não é
Por um nome que não se sabe ainda de onde vem
Mas que não é o seu
Nunca se sabe
Você só sabe que quer sair daquele tribunal despovoado e súbito.

Você fica no escuro


Só vê os dentes de homens negros que você andava procurando há muito tempo
Na escuridão
E não é deles que você tem medo
Eles apenas estão querendo ensinar a você como se ri
Rir verdadeiramente e de uma forma
Que você sempre quis aprender
Mas nunca teve a coragem de pedir
P’ra quem sabia e poderia sem esforço lhe ensinar
Não são eles não de quem você tem medo
É do escuro
Do escuro e das aranhas
Dos estranhos insectos que se movem sobre os seus ombros
E se dispersam pelas suas espáduas
As carochas
Sabe o que querem
Mas o que você quer você não sabe
Tem medo de ter medo e quer fugir
Quer acordar
Daquele pesadelo para se libertar
Do que lhe faz aquele momento de terror
E você passa sem querer
Esquece aquele infeliz sabor amargo
Como que de transição
E a vida continua devagar.

Você pergunta
Tenta encontrar uma resposta
Um eco de uma alma amiga que confirme
Aquilo que você já sabe.

Você percebe que a vida


É uma conta corrente
Tudo o que você recebe
Paga depois e com juro
E como num grande banco
Insolvente e universal
Tudo o que entra não sai
E o que sai é pago a peso
De dor tristeza e sofrimento
Mas pagar é importante

254
Porque quando a conta zera
Quando zera e por momentos
Você pode começar
Um novo recomeçar
Que prolonga os pagamentos
Você vai outra vez pedir à vida
E ela vai outra vez emprestar
Nada é seu você recebe
O que terá de pagar
É uma roda infinita
Não tem saída nem fim
E há quem diga que o total
Se converte em carmim.

Certas coisas são-lhe passadas num ritmo


Como se você não existisse
Como se você não fizesse falta
E nem mesmo estivesse ali
E são-lhe dadas
Para você pagar depois
Uma por uma
E no entanto
Nem sequer é você que está ali
Algumas nem foi você que pediu
Mas tem que pagar do mesmo jeito
Com que se pagam as dívidas aos bancos
Ou aos mafiosos
Vendendo a sua vontade
Aniquilando as suas crenças
E destruindo tudo o que você gostava.

O mundo onde parece que o mapa do caminho acontece


Não é nem pedregoso nem difícil
Antes pelo contrário
São dificuldades e pedregulhos que de um modo ou de outro
Você tentaria tanger e calcorrear
Não é você quem toma a decisão eficaz
A iniciativa que conduz ao lugar onde você quer ir
Pedregoso e difícil é o caminho
Do qual você desconhece qual possa ser o percurso
O qual não é de todo você quem decide
E que parece já estar todo planeado
Independentemente da sua vontade
Outras vezes parece que mesmo que você quisesse decidir
A vida é como um carro
Em que você vai no banco de trás
E o carro parece não ter ninguém dirigindo
E mesmo que você quisesse desistir
Você está dentro do carro e indo
E é tarde demais.

255
Quando você tenta não pensar
Pensar no que seria melhor
As coisas acontecem sempre como você pensou
E não como você gostaria que pensadas
Elas acontecessem diferentes
Você sabia mas não adiantou
E fica apenas o sabor acrisolado de uma dúvida
Em que você não sabe se adivinhou o que aconteceria
Ou se pressentindo e pensando
Você provocou o que aconteceu.

O que você sente é comandado de fora


Você se sente vivido e quer viver
Executa gestos de vontade
Constrói e desconstrói coisas e situações
Pequenos e grandes gestos
Que lhe dão a ilusão de que é você quem decide
E a sua vida converte-se no nada
Não pode olhar p’ra trás nem caminhar em frente
Olha para os lados mas tudo parece deserto
Você está caminhando
Só que o caminho não tem chão.

As coisas que você aprende e pensa que sabe


Em procura das quais você partiu um dia
Não servem para nada
O seu caminho não conduz a lugar nenhum
E o caminhamento não produz cansaço
Nem resultado
Você está procurando sempre alguma coisa
Algumas coisas já faz tempo que você procura
Soluções e evidencias que você quer confirmar
Que se situam sempre depois do que você já encontrou.

Para lá desse caminho para o qual você partiu um dia


Carregando uma mochila de ilusões
Não existe realmente finalidade alguma
É no durante que você caminha
E é também aí que da sua sacola de ilusões
Elas são paulatina e sub-repticiamente arrancadas
E quase sem que você dê por isso
Substituídas pelas pedras que foram sendo encontradas no caminho
E aquela sacolinha que você tinha
Se converte numa carga tão pesada
Que chega sempre um ponto de viragem em que você descobre
Que afinal não está caminhando nem por atalhos
Nem por veredas muito menos numa estrada aberta
Alcandorada em hinos
Você está caminhando na sua própria carga.

256
Naqueles segmentos fugidios
Em que o caminho é bonito e apaziguador
E lhe são dadas as coisas que você pediu
A luz emana de cada átomo do ar
E você fica como que eletrizado
Mas depressa percebe que essas coisas
São uma carga afinal muito maior
De um peso e de um poder
Que você não poderia nunca ter imaginado
E você tem que caminhar
Tem que continuar caminhando
Mesmo que seja difícil e pedregosamente.

Então alguém lhe diz que você pode deixar aquelas pedras ali
Aqueles pedregulhos que você carregava
E nos quais caminhou durante tanto tempo
Por um momento
Você se sente livre
Mas assim que respira aquele ar subtil e leve
Você percebe que aquilo tudo que tão difícil e pedregosamente
Você se esforçou por aprender
Não serve para nada
Você olha o pôr-do-sol
De um dia que nunca começou
E tudo lhe parece vazio
Mesmo que você quisesse ajudar outras pessoas
Depressa compreende que as pedras que você carregou
Começam a pesar na mochila daqueles que você ajuda
E aí tudo parece impossível
E você é possuído por um grande senso de inutilidade
Agora já não tem nem dia anterior nem dia seguinte
Você caminha no agora
E percebe que está indo para lugar nenhum.

Todas as coisas que você aprendeu


Lhe são então dadas de volta
Purificadas e resumidas numa verdade só
Que é você poder viver como se não existisse
Nem pensando que existe
Nem que não existe
Mastigando o pão que foi amassado pelos seus erros.

Agora então você já não carrega pedras


Na realidade você já não carrega nada
Está vazio
Mas alguma coisa lhe diz
Que você ainda tem muito que aprender
E o caminho continua
Pedregoso e difícil como ele sempre foi desde o princípio

257
Porém mais leve
Mas em compensação você agora sabe
Que esse caminho é interminável
E que você na realidade não caminha
É a paisagem que passa por você
Como se você nem sequer estivesse ali.

Você apenas sabe que um dia vai morrer


E que todas as coisas parecem convergir
Para esse momento
E passam
Passam inexoravelmente por você
Mesmo quando você não as vê
Umas acontecem outras não
Umas são evidentes outras menos
Mas em algum lugar da consciência
Você conhece e cala
O significado de tudo o que acontece.

Então em mais uma encruzilhada da sua vida


Você começa a encontrar respostas
Coisas que afinal você sempre soube
E nunca quis acreditar que fossem verdade
No seu coração dilacerado
Você vê passar como num filme
Os seus gestos medos e atitudes
E agora pelo menos você sabe como reagir
Você se envolve como uma senhora idosa
De quem você afinal amava a filha
Nos palcos onde a vida se mantém
Você visita
E acaba chegando na beira do mar
Mas aí ratos enormes deslavados e brancos
Mas sujos e terrivelmente ascorosos
Disputam a curiosidade e a inocência das pessoas
Curioso e inocente você presta atenção
E é inevitavelmente mordido
Na mão direita de lado a lado
E acaba por ser aquela criatura que você amava
Que em esforço e nojo
Ajuda você a retirar os dentes repugnantes
Da sua carne ainda jovem
Nesse momento você já só quer sair dali
Mas tem que atravessar a água
Industriais correntes
Que você vence na ânsia de chegar naquela doce companhia
E chega
Então você está de novo numa festa
Num lugar onde há muito tempo não entrava
Mas mais uma vez não se comporta direito

258
E seduzido
Acaba traindo o seu amor
A velha senhora se torna vingativa
E você se vê enredado numa trama
Em que lhe são atiradas à cara
Todas as suas presunções
Você é cruelmente assaltado
Cinco facas afiadas e brilhantes
Picam você nos rins
E você é desapossado de todos os seus bens
E quando quer sair dali
Vê que afinal a velha senhora já não está
E você está vestido com o seu fato branco predileto
Próprio para ocasiões em que realmente faz calor
Você ainda tenta interagir com as pessoas
Mas naquele momento
Parece que todo o mundo quer a sua pele
Você é salvo
E num momento extremo
Se sente protegido
Mas tem que prestar contas
E aderir a falsas amizades
No fundo você tem medo da polícia
Um medo acumulado durante anos
Décadas de incongruências e peregrinações
Mas você ainda persiste
Não tem uma alma de guerreiro fascina-o a viagem
E você segue
Precisa de um salvo-conduto que você já não tem
E é então
Quando encontra outro que você sempre teve
Que você descobre aquela nota escrita
Que lhe dá passagem livre e arbitrária
Para qualquer lugar
A velha senhora já se afasta
Pintada de vermelho ou cor-de-rosa
Para uma outra festa
Uma festa popular e tumultuada
Onde você não quer ir
Mas generosa
Diz p’ra você onde se encontra a chave
Que lhe permite por fim voltar p’ra casa
Amigos antigos e verdadeiros
Tiram você das garras da polícia
E você segue liberto e juvenil
Por uma rua abaixo
Onde o sol brilha e você tem por momentos
A vaga noção de ser feliz.

259
Passa muito tempo
Você fabrica para depois vender
E quando finalmente você consegue vender alguma coisa
Nem sempre é garantido que você receba
E o que recebe não é realmente seu
Então depois de passado muito tempo
De haver caminhado e sentido
Você descobre que não chegou a lugar nenhum.

Você sempre volta ao palácio


Onde se fala um idioma amargo
Que você não conhece
Tem gente de todas as condições
E as matérias inertes tomam vida
Mas só você percebe
A injustiça sem nome ou qualidade
Do estranho enredo que por ali se processa
Tem uma criança que você acaba compreendendo
Que como você percebe os movimentos
Você percebe os riscos que ela está correndo
E quer salvá-la
Mas para isso
Você precisa confrontar
Aquela que aparenta ser
A nova dona do palácio
Uma velha senhora sim
Mas não aquela
De quem você um dia amou a filha
Alta e de preto
Ela se tem sentada
Na contra-luz de uma janela alta
E é sob uma luz
Baça e fluida
Flutuante e não motivadora
Que você se vê
Obrigado como em um tribunal
A explicar o caso da criança
Ela é aquela que confiou em você
Para quem as estátuas nunca param
Mas a mulher não se detém não se comove
E você quer tirar aquela criança dali
E o inevitável acontece
A sua mão direita encontra palma contra palma
A mão dessa mulher que você abomina

260
E agora apenas se confronta
A sua vontade com a dela
Lentamente
A sua mão começa a se cobrir de estrelas
De uma luz fria
Você nem sabe se venceu
Mas tensas e subtis alterações no rosto
Daquela figura antes impiedosa e altaneira
Acabam revelando a verdadeira face
E você sai dali aliviado
Mas precisa ainda expurgar o conteúdo
E procura
E o que encontra
Não é mais do que um pequeno mas bonito
Viveiro de palmeiras em um país distante
Você indaga
Precisa continuar e permanecer procurando uma saída
E um bando de crianças como pássaros
Submerge o seu orgulho
E uma verdade atroz se instala no seu âmago
De uma maneira ou de outra
Você não é mais criança
Agora está sempre consciente
E um aroma quente se evade para sempre do seu ser.

Depois uma ténue esperança se aparece


De que você possa vencer seu inimigo
Que é você mesmo
E após múltiplas e quase impercetíveis peripécias
Você percebe que aquilo
Que tanto o entontecia e atormentava
Era afinal um bicho dócil
E fatal.

Mal ou bem você sempre volta na festa


Levado por amigos que o convidam para entrar
Porque são conhecidos do anfitrião
Por um momento você não sabe nem ao que vai
Mas depressa percebe que a festa acontece em outro país
Mas que desta vez se trata inopinadamente
De um país próximo
Onde se fala uma língua que você entende.

É uma festa onde você sempre quis ir


Num jardim grande
Onde pululam convidados que você nem conhece
Só o dono
E você vê que os seus amigos o conhecem também
É um demiurgo que você afanosamente induziu em você mesmo
E que muito admira e respeita

261
Mas antes que possa ficar com ele frente a frente
Interagir e sentir a nata da natureza dele
Já tudo lhe aconteceu das coisas que algum dia você poderia ter temido
Foi até sodomizado por um cão
O qual carrega
Um curioso chapéu de judeu cor-de-laranja
E é então
Depois de um estranho ritual de recortes primitivos
Que todas as coisas lhe são expostas
E ficam claras p’ra você
Embora não lhe sejam diretamente explicadas
Mas sim ao demiurgo que ali parece humano.

Como de costume a festa é animada e colorida


Mas desta vez você conhece a língua
É apenas a língua de um país vizinho
Em que você não é versado
Mas que pode compreender facilmente
E você entende essas pessoas todas
Que transitam estão ou se divertem
Nas inúmeras dependências do palácio
E nos infindáveis arruamentos do jardim
As que fazem parte da festa
As que estão apenas de visita
As que estão para fazer comércio
E quando tudo
O que você algum dia possuiu
Parece querer uma vez mais ser-lhe tirado
Mais uma vez
Por abuso e impertinência sua
Depois de esgotados todos os argumentos
E recorridas todas as peripécias
Ocorre um momento único e fugaz
Em que já nada mais interessa
Tudo o que você teme está agora sob o seu domínio
E no último instante até ao qual você ainda resiste
É salvo por um cuco
Um animal pouco estimado ou querido
Um pássaro ridículo
Mas de importante e singular significado.

Por momentos você fica inexplicavelmente


Do lado de fora da festa
E compreende como são difíceis as coisas
Quando se está de fora e é de noite
Afinal você apenas queria
Prolongar mais um pouco aquele vício
Que estupidamente carrega faz tanto tempo
E percebe que isso tem consequências
Você entra de novo sim mas como um clandestino

262
E procura
Todos aqueles amigos com quem você chegou
Uns ainda estão lá
Alcandorados nos seus postos e paramentados
Outros entregues a métiers que lhes são simpáticos
Mas é aí que você toma a decisão
Mesmo que seja por entre riscos e vicissitudes
E sem sequer saber bem porque o faz você decide
Seguir sozinho
Já é de dia
E apenas mais uma etapa foi cumprida
De um caminho que você nem lembra já
Quando é que começou
Mas que em momento algum deixou de ser
Nem pedregoso nem difícil.

Talvez fazendo um esforço


Fosse possível lembrar
Talvez fosse até útil
Que você lembrasse o momento
Em que perdeu o ser que você era
Quando nasceu
Porque foi aí que o seu caminho começou
Nem antes nem depois
E aí alguma coisa se perdeu
Que você jamais viria a encontrar
Um momento absurdo e distante
Perdido no que você um dia chamou
A bruma
Expressão que sendo de outro
Você tomou como boa para si
A bruma do tempo e do esquecimento
Momento sem magia ou transcendentalidade
Sem memória nem recordação
Sem nenhuma ocorrência significativa
E a partir do qual você só fez asneiras
Quase só
Porque as poucas coisas acertadas e boas que você fez
Só viriam a tornar o seu caminho
Mais pedregoso e mais difícil.

Tem sempre um lugar onde você regressa


Mesmo quando não tem vontade de voltar
Uma memória o chama
Só que você não sabe definir exatamente o que é
Talvez seja o karma ou outra coisa
Um chamamento cavo e sombrio dos seus parentes
Você pode até ter aprendido
Com algum discernimento a determinar

263
Essa voragem incomum da natureza humana
Não adianta
Independentemente da sua vontade ou sabedoria
Ela p’ra sempre o chama
Para o lugar para onde você não quer ir.

O caminho afinal é todo reto


Você é que insiste em caminhar em curvas
E dias se sucedem e acabam
No começo de outros dias sempre iguais
Quando você por uma vez caminha em linha reta
Então por um momento tudo pára
De ser aquilo que sempre foi
Você avança
E uma vez mais por encontrar encontra
Tudo o que quereria em vão deixar p’ra trás.

Aquele doce amor que você tanto queria


Tinha afinal um filho
Enjeitado ainda que legítimo
Criatura abjeta
Espécie de homúnculo atrasado mental
Embora sedutor e credor de alguma compaixão
Com quem você se vê por simpatia obrigado a interagir
Que rouba e que deprime
As fracas posses do seu dileto e doce amor
Ao qual você ainda beija os pés
E a quem ainda que irado
Revoltado pela dor e pelo desconsolo
Afinal você entende
É a sua alma que você ama
E que carrega
Mesmo que gorda
Pelo jardim florido das suas ilusões.

2.
O caminho é ainda mais pedregoso e mais difícil
Quando você decide caminhar
Ao contrário do mapa que tem nas mãos
O caminho que você um dia começou
Ataviado de desenhos
Mapas e inscrições antigas
Pequenos dísticos
Que sinceros pareciam resolúveis
Foram ficando inócuos
Ao desmembrado chão no qual você navega
E quando num rasgo de fé e claridade
Lhe foi oferecido um gps
Você insiste
Não se sabe se por infantilidade ou desespero

264
Em caminhar sempre ao contrário
Do que os sinais avulsos
Perene e longinquamente emitidos
Parecem indicar.

Como um carro desgovernado ou uma trotinete


O corpo que lhe serve de transporte
Se revela incapaz de caminhar sozinho
Só mesmo quando o caminho é a descer
Você desfruta a débil ilusão
De que se move sem motor sem empurrão
Nenhum impulso que fizesse você acreditar
No movimento inevitável que o carrega
E você vai
Descendo uma colina que mais tarde
Ou cedo que possa se deter
A imponderável eminência do abismo
Você terá amargamente que subir
Carregando pedras e restos de uma água
Que agora ainda que existindo
E embora parecendo vivo
Você já nem tem.

Incessantemente noite e dia


Você assiste a tudo
Está sempre presente no que parece ser
Aquilo que você chama a existência
Nunca descansa
Nunca se ausenta de si mesmo para poder parar
Você não pode parar e assiste a tudo
Sabe que agora está caminhando ao contrário
Do sentido que é o caminho que você deveria seguir
Olha em redor
E lhe parece
Estar caminhando dentro de uma fotografia
Só de cores frias processada
Por um programa que gerencia imagens
Apodrecidas de um gélido futuro
Mas povoado de imagens amigas de um passado
Que você persiste sem teimosia ou dor
Em não esquecer.

Visualizando tudo
Imagens paradas que se movem
Acontecimentos indefectivelmente reais
Que você vê cobertos por uma névoa lúcida

265
De uma nitidez irreal
Que se traduzem por eventos
Que você sabe inevitáveis
Mesmo de vez em quando tendo medo
Que eles nunca venham a acontecer.

Parece então que a única


Determinante coisa definitiva que você precisa
É exata e pura precisamente aquela
Que você jamais quereria ver acontecer
E como desde há muito você sabe
Tudo acontece enquanto o invólucro imprestável que o transporta
Exausto e manso desiste de lutar
E adormece.

Faz tanto tempo que você


Deseja e teme esse momento ímpar
Desde a longínqua hora
Em que coladas no seu rosto
Barrigas cor-de-rosa de animal
Inocularam em você
No seu despreparado invólucro
O infausto início que você recorda
De um trajeto que em algum momento poderá ter sido o seu
E mesmo assim quando duvida
Faz um trejeito angustiado e fraco
Para tenter que alguém faça por pena
O que você não é capaz de positivamente
Mandar fazer.

Aqueles que embora à revelia do que inocente você queria


Alguma vez equivocados amaram sua sombra
Parecem querer agora perceber até que ponto
Você é realmente verdade
E mais uma vez dar p’ra você para que prove
O infausto calor com que algum dia
Foram eles mesmos também incinerados.

Você afinal ainda tem medo


Daquele bafo quente que o devora
Um terror inconfundível e fraco
Medroso até ao âmago e tão fraco
Que nem mesmo chorar você consegue
Você finge que chora
Faz um trejeito angustiado e incompleto
Desajeitado e mal fingido
Com que tenta que alguém faça por pena
O que você quisera impor mandando à lua
A sua fúria.

266
Sabe que ficou parado na beira de um abismo
Fazendo gestos impróprios e ridículos
Em vez do passo que se adivinha fatal
Um malabarismo estéril
Que imita opaco e transido
O voo que naquela hora de intensa negação
Você sonhou que quereria voar.

Se um dia ainda que já enfraquecido e pusilânime


Você tentou em vão simbolizar a vida
Numa estufa alegre e bem tratada
Iluminada e espaçosa organizada e pura
De proporções infatigáveis e limites
Brumosamente indefinidos
Onde o seu padrão amado
O signo e o nome que você amou e quer deixar
Eternizado ao som do eterno adeus
Com que uma alma intolerável se despediu da vida
E você quer
Ainda ali num espaço errado
Entre o que seu você deixou escapar
E o que jamais poderá lhe pertencer
Todos os destinos claros como se fossem escritos
Delineados numa inextricável teia de acasos impalpáveis
Lhe eram ternamente apresentados.

Uma saudade inóspita


De sinais
Dos quais você se afastou
Faziam você chorar copiosamente de tristeza
Na hora crua do afastamento
Uma triste mas genuína forma de verdade
Agora era já só um ridículo esgar de autocomiseração
Com que você quis em vão impressionar
O que o seu medo surdo e a sua estupidez impenitente
Conseguem toscamente arrancar
Das entranhas causticadas do seu ser.

Você já era e quer permanecer


Naquilo que o seu ser ainda é.

De sumptuosos mosaicos o chão


Do palácio onde você frequentou
Não menos sumptuosas festas
Está agora despido e é de terra
Batida
Vermelha terra batida onde apesar de tudo
Acontecimentos de impávida beleza
Descrevem danças
No fundo daquilo que em outros dias pareceu ser

267
A consciência.

Você parece andar em círculos


Nem sabe bem se anda
Na verdade parece que não anda mas se andasse
Seria como
Se sentindo sentir você sentisse se sentindo
Andando em círculos
E dá porque quer dar
Grande importância a isso
Foi-lhe soprada essa angustiante sensação
Uma fala sem voz que lhe serena
Um pretérito e desorganizado coração
Onde você parece já não conseguir sentir mais nada
Que não seja a sugestão desse sussurro
De uma longínqua e vaga
Desesperada e vã recordação.

Você só anda em círculos


Sempre andou
E como uma galinha você debica tudo
Quer afastar-se para um canto
Mas as lembranças de um amor antigo
Respigado nos claustros solarengos
De uma existência outra
Canta nos vãos
Passados e presentes de uma incompreensão inatacável.

Formas caminham
Culpas e erros
Três danças mortas
De uma fútil e impessoal arqueologia
Sabor a sangue
Subitamente esgravatado na sua própria cara
Rosto civil
Engravatado
Marca de um nome ensanguentado
Que você não reconhece mais
Nem sequer como
Um dia tendo mesmo que existisse
Sido o seu.

Aquela estufa de reminiscências


Por mãos cuidada
De proporções infatigáveis e limites
Brumosamente indefinidos e tropicalizados
Com que você simbolizava a vida
Aquela estufa húmida e morna onde você
Enfraquecido e pusilânime
Tentava relançar a busca incalculada fio perdido

268
Que você precisava resolutamente não perder
Onde o padrão amado
O signo e o nome que prematuro você amou
Todos os destinos claros delineados
Dos quais você
Dolorosamente insistiu em se afastar
Ainda ternamente eram representados
E copiosos ante essa doce fotossíntese
Seus olhos choraram de tristeza
Na hora crua do afastamento
Uma triste mas genuína forma de verdade
Agora era já só de uma impotência surda
O ridículo esgar de compaixão postiça
Com que você tentou em vão impressionar
O que o seu balbuciamento de terror
E a sua estupidez impenitente
Conseguiam repugnantes e toscos arrancar
Das entranhas causticadas do seu ser.

Deslumbrante e fragmentada sua alma


Ainda o leva onde você quer ir
A festa anunciada e feliz
Onde todas as coisas se revelam
E acontece até você ser convidado e se sentir em casa
Como se estivesse folgazão dançando
E bebendo na praça principal
De uma cidade que um dia foi a sua
E em sucessivas vestes nunca como antes
Quase inocente ela se revela e parece querer ser
Sua melhor amiga
Porém está estropiada e gasta
Prejudicada e quase morta
Cansada dos martírios
Que a sua loucura imperdoada a fez passar
E mesmo assim
Faz de você por fim um confidente.

Parcimoniosamente endividada
Em todas as medidas diluída e ausente
Sua alma segreda com voz doce
Os ecos de um exílio que a devora
Você mesmo a entregou ao holocausto
Em que toda a ilusão perece e principia
E você espera
No lugar que fôra combinado
Que renascida e tonta
Ainda assim mansa e feliz
Ela se recupere
E nessa espera uma estranha afinidade se produz.

269
Todos os trecos que você carrega
São desagregados em componentes inúteis
Não servem já qualquer finalidade
Muito menos aquela para a qual
Você julgava possuí-los
Uma vez mais você fala uma língua ultrapassada
E não entende o que as pessoas dizem
Uma vez mais ainda está na festa
Mas todo aquele inconfundível bulício iniciador
Não passa já de uma vulgar e anquilosada instituição.

Pisados e repisados os caminhos


Que tão difícil e pedregosamente
Você pisou
Em sucessivas vagas de não tempo
À evidência real da crueldade
Você identifica crua e flagrante
Flácida e displicentemente
Todas as vezes em que inexplicada e indubitavelmente
Involuntária e inútil presa de uma curvilínea lógica
Mais pedregoso ainda e mais difícil
Por intermináveis e negros segmentos
Inteiramente estéreis e ausentes
Do brilho que seria o rasto imperecível
Do gesto original de caminhar foi o caminho
Usurpando ao caminhante o título sujeito
Fosco e impuro
Reprobatório caminhado ao contrário.

Para desgraça da sua alma condenada


Envergando por vezes nada mais
Que miseráveis andrajos com que intoleravelmente
Destituído de querer você a veste
Repetidamente parece querer matá-la
Dentro de igrejas
Nos arrabaldes de estações sombrias
E mal frequentadas
Entregue à sanha fratricida dos seus vícios
Você insiste
Ela persiste
E de cada vez em que você a mata
Ela renasce revigorada e titular
De ter de toda a cana
A primazia.

Quando insidiosamente interrogada


Por um instante em que você se crê
E a si mesmo atribui ser titular da verdade
E quer saber
Ela aparece

270
Como se fosse a inocente
Virginal vítima de um estranho autodafé
Negro e honoris causa ensanguentando a noite
Lhe cobrindo a cabeça com a sombra
Em que você desesperado quer permanecer
Sinistra procissão de guizos
Que se resume em uma
Sentença breve sem apelo
E sintetiza implacável e última
Todos os devaneios da sua intemporal ignorantria.

De mil caras ela se divide


Executada a sorte outra existência a espera
Como que querendo dar um fim breve
Ela mesma instiga a dor com que você quer exauri-la
Incompreendida voga abismática
Em meio aos rolos compressores ruído e medo
Que omitem de você sei ideário
Não sabe mais
Apenas tem noção
Uma noção vaga e assustadora
Que contra tudo
O que seria hipoteticamente impossível
Você continua rasgado imóvel e infame
Caminhando ao contrário
Cada vez mais difícil
Indescritivelmente
Cada vez mais absurda e pedregosamente.

Sobrecarregada e muda
Sua alma age como se não mais ela fosse sua e você dela
Parece até que nenhum elo mais os liga
Você e sua alma caminham como um só
Mas tristemente em direcções contrárias.

Famílias esfrangalhadas
Doces ideias
Sonhos desfeitos e gente empertigada
Um velho amigo confessa p’ra você que sente o mesmo
E são aqueles afinal
Que você conhece bem desde criança
Quem mostra p’ra você que o sentimento
Jamais compreendido ou dominado
Indefinido nas causas e abstrato
Mora ainda em um recanto postiço do seu peito.

Agora sim
Você tem razão para ter medo
Não sabe mais quem você é
Sua alma anda dispersa

271
Amarrada em dívidas que foi você quem criou
E uma vez mais você vê como em um filme
Todas as atrocidades que você fez
E mesmo assim
Ainda lhe custa acreditar
Que todas elas
Tenham sido realmente praticadas
E estreita a consciência ideal de quem as praticou.

Você encontra os territórios reais que sempre foram


Temidos e repugnados
Nunca evitados nem queridos
Suavemente descritos
Em benévolos e hiperbólicos panegíricos
Resumos tácitos
De manjedouras largas
Onde famintas e sujas
Almas perdidas e magras se alimentam
No subsolo de patamares acéticos
Navegação e trânsito
Onde se encontra a verdadeira raça dos seus filhos
E você sente
Se sente invulgarmente perto do que parece ser
O decantado reduto que é chamado
O fim do caminho
Você sabe que está longe
Que não é nada disso
Que se encontra agora mais distante
Do que nunca
Arrancado e suspenso
Do que você procura
Tudo é sombra e você sai
Não mais de uma festa essa já era
Mas de um casebre obscuro
Extremo destino de uma laguna pútrida
Onde as águas exalam de uma tarde encapelada
O gemido profundo de um bicho abandonado
Desesperadamente você tenta salvar
Essa alimária insólita
Cujo destino inóspito se desconhece até por que razão
Lhe terá sido confiado
É uma cabra
Por um momento você sente ainda uma ternura
Que se compara a um amor familiar residual
Mas mais crescida consistente e encorpada
Mais pesada
A cabra
Que você olha num adeus sem emoção ou glória
Ainda ali
Ei-la por fim lenta e pressaz

272
Gorda e pacata devorada pelas águas
Sem que você possa realmente fazer nada
A não ser ficar ao longe
Vendo e gesticulando
A silhueta equilibrada e frágil
Da sua pueril progenitura.

Começou faz muito tempo essa peregrinação


Mas só recentemente você está caminhando ao contrário
Lhe são mostrados os quadros que você já viu
Como se fossem pintados da sua própria mão
Cada vez mais tudo parece estar ligado
E se arrasta
Você tem a certeza
Caminhando ao contrário sofrendo
Perdendo o tino
É você mesmo quem se arrasta
Sanguinolenta e dolorosamente
Ainda mais difícil e pedregosamente
Que sempre que nunca que de todas as maneiras sempre soube
E continua indo
Sabendo e sendo alguma coisa que você já não é
Distante apodrecida e gasta sua alma quer voltar
Como uma esposa
Morar na casa que afinal sempre lhe pertenceu.

Você se encontra
Não ainda naquele olhar substantivo sobre o qual você tanto indagou e queria
Você se encontra no lugar em que percebe
Que não é mais você quem manipula os fios
Aqueles mesmos que em verdade você nunca manipulou
Mas cujo brilho decantado de rústico entrançado
Um macramé pouco cuidado e étnico
Aqueles fios dos quais agora você sente
Dolorosa e tensa a presença infatigável que suspende
A estúpida e ingénua marionete
Que p’ra lá e para cá em passos certos
Você bacocamente foi se esforçando por ser
E que
Querendo ou não sabendo sim mas nunca bem
Nos dias e nas noites
Nos gestos invisíveis e tensos da inocuidade
De um jeito ou menos
Assim ou bem
Ou mal e de qualquer maneira você foi.

Umas quantas e derradeiras portas


Que no seu caminho inflexo
Abuso e dor
Ainda lhe faltava fechar

273
São agora definitivas e por fim
Empurradas juntamente com os poucos
Restos das personagens que você insiste em habitar
Ainda que à ilusão reflexa lhe pareça
Pelo contrário serem elas que o habitam
Aos poucos você perde um verbo popular e sólido
Um vernáculo grato que lhe foi simpático
E vê cruel e brando
O aparente impasse em que se converteu
O beco indefinível
Fim agastado e falso
Do que você supôs que fosse o seu caminho
Mas que humilhação extrema
De uma humildade que você sempre recusou
Percebe que afinal
Nem mesmo é seu.

Todos os inimigos
Impessoais e pessoais
Que você julgou erradamente
Acumular e ter
São representados sem sofismas
E mesmo a pouca ajuda que vem
É ríspida
E apenas vem voltar a reclamar do seu já exaurido exercício
Uma vontade que você já não tem
E lentamente
Obrigado rendido e a contragosto
Vai descobrindo que nunca teve
Uma a uma
Lentas e rápidas chispas de singular lugar
No firmamento da iluminação
São agora tão evidente quanto inutilmente
Expostas ao sol da sua noite informe
Enquanto restos apodrecidos dos aliados
Que em momentos de fraqueza e impreparação
Foram seus cúmplices
Se consomem na guerra de vontades
Da qual você apenas é o campo de batalha
E em que entrincheirados nas feridas que masoquisticamente
Você se infligiu a você mesmo
Exércitos de irreal obstinação
Se degladiam em desespero de causa
Esperando consumir os restos
Vencidos do fatal destino
Que desiludido você insiste em consumar.

274
O que resta afinal quando você revê
Sinais e fatos
Presságios e rituais que se confirmaram
E seguiram
Peça a peça
Numa escolar repartição revista da matéria dada
É menos que quase nada
Como num infantil e implacável jogo da glória
Você é remetido para o início da contagem
Na casa zero
Do seu já escafiado tabuleiro.

3.
O caminho pode realmente ser muito pedregoso e muito difícil
E no entanto se caminha
Tudo se filtra cai um fio
Tudo se coa
Por um farrapo divago e inefável
Feito de tempo
Os passos com que realmente se caminha
São os que passam nesse crivo
Que sendo denso inteiro e amarrado em sóis e luas
É de difuso e opaco infausto e tresnotívago.

Mas se apesar de ter cheia de borras a garganta


O caminhante insiste em não acumular as lições
Que de uma e outra vez são decantadas no seu ser
Então elas lhe são ministradas por um tubo
Como se dá aos presos a comida
Quando decidem fazer greve de fome
E embora inúteis intratáveis e cativos
Não é de todo conveniente que morram.

Esfregam os és em areias movediças


Perdem o chão
E em ambientes sombrios e malcheirosos
Você se descobre confundido com eles
O pão que lhes é dado
E insistentemente você parece recusar
Foge de você
Voa pra longe
E mesmo quando em sonhos você inocente o persegue
Ele se esconde e fala p’ra você com uma voz ridícula
Tudo o que você não quer ouvir.

Agora você sente o corpo dos que você ama


Como se do seu próprio corpo se tratasse
Manso e humilde você se afasta
Para um ligar que sem ser distante seja confortável
Você apenas quer explicar para os outros

275
Tudo o que você sente
Mas quando fala triste você descobre
Que ainda que dentro de uma multidão pudesse estar
Não tem ninguém.

Aquela festa interminável


Para a qual você foi consecutivamente arrastado
Não tem fim nem princípio
Está sempre lá
No sítio onde você era suposto chegar
Para além do bem e do mal
De todos os parâmetros reais
Seus pensamentos fluem
Mas nada pode já fazer sentido
Existe uma dívida antiga
Uma criancice inocente mas inolvidável
Pela qual você terá que responder
Não adianta fugir
Patamar após patamar
Você continua descendo
Agora está fundo já bem fundo
No fundo escuro das tentações e dos erros
Que mesmo no passado ou inocentemente
Que porventura tenham sido
Você um dia teve ou cometeu
Tudo implacavelmente
Está agora por fim sendo cobrado.

Numa medina labiríntica


De atalhos e ruas toscamente
Empedrados como se de uma pré-história
Da calçada portuguesa se tratasse
Em lugares tantas vezes visitados
Nocturnamente ou de dia iluminados
Por uma luz estranha e irreal
Hordas de d brutos oleosos
Engordurados por negro castanho e esverdeados óleos
Deambulam vão e vêm se entre batem
Se roçam se seduzem se insinuam
Sabendo sempre claro a que destina vão
Enquanto você foge amedrontado
Por alguma coisa que acredita ser
Contra você que se dirige e age.

A certo ponto você descobre até


Que voluntário a qualquer momento
Pode sair
Pode esquecer e se esgueirar no ar
Sair do sonho furtar-se ao pesadelo

276
Mas quando e onde
Chega o momento e o lugar em que você
Realmente precisa de fugir
Percebe que fugindo
Estará sempre indo parar em outro sonho ‘inda pior.

Naquela estranha e obumbrada


Mistura de vielas estreitas
À luz da lua iluminadas por luzes de diferentes consistências
Todos os fins são sempre o mesmo fim
Que só interessa ir e não sozinho
De um lugar para outro e evitar
Que a insanidade máxima que sobre si se abate
Perturbe a caminhada que você sonhou florida.

Máxima demência porém organizada


Negra rigorosa intransitável fria
Perturbadora
Dotada de uma lei da qual a própria lei já se excluiu
Que sem lei divaga sem justiça
Sem sofismas bentos sem audácias
Apenas se movendo impenetrável
De tudo o que uma ordem tornasse menos feio
Desumano violento ou menos
Amargurado torturante e abissal
Brutal desordenada e assaz
Impenetrável.

A vida é cheia de altos e baixos


Coisas que acontecem
E se acumulam
São acontecimentos
Que você tem (a) impressão de viver
Mas o que você vive é o caminho
E esse
É agora incomparavelmente pedregoso e difícil
Mais pedregoso e mais difícil do que nunca
Quando você fica separado
Dos acontecimentos que antes pareciam ser a sua vida.

Você parece agora estar sentado


Na beira de uma estrada
Esperando o momento
Mais indicado e propício
Para se levantar e começar a andar
Fazer aquilo que você antes chamava caminhar
Mas quanto mais você olha para a estrada
Menos vê
São pedras apenas
Pedras lascadas e dificuldades passivas

277
Você sabe que existe uma estrada
Lembra ainda
Acredita que pode prosseguir
O que você já não consegue distinguir é o caminho
O qual você sempre assaz soube
Ser pedregoso e difícil.

A ordem que prevalece das coisas


Ainda que grosseira e imperfeita
Gera consensos adequados aos estados
De categóricas razões insuflasmadas
Você leva e traz como um correio
As novidades que se apresentam totais
Como um carteiro antigo
Agora você tem uma farda
Não tem a dignidade que poderia ser conferida
Por um uniforme militar
Não tem patentes nem condecorações
Não tem a graça nem a candura branca
De um uniforme da marinha
Daquele exército você nunca será
Soldado ou almirante
Não está armado nem participa de nenhuma guerra
A sua arma
A compostura que lhe define e guarda
A condição em que você navega
Lhe é dada apenas pelo que você transporta
Que é a carta
E lhe confere
Sem rituais cerimoniais nem honrarias tolas
O nome que é a marca do seu erro
Você é o carteiro e heroicamente
Seja qual for a intempérie sol ou chuva
Calma ou tragédia música ou teatro
Mesmo que seja por caminhos pedregosos e difíceis
Você leva o correio
Transporta as novidades
E outras vezes como que de uma mercadoria ilícita se tratasse
Você é o correio
Não quer nem mesmo já ser entendido
As cartas vão fechadas
E o que dizem não lhe diz respeito
Você apenas sabe que precisa
Por entre agruras dissabores e dores
Indescritíveis e improcedentes
Entregar inatacada e pura
A infinita verdade da mensagem.

278
Mesmo quando acontece você dormir de dia
Tudo o que processa e se processa
No seu desavisado infausto e acidentado caminho
Tudo o que afinal efectiva e propriamente acontece
Tudo o que acidentalmente suas desfeitas calçadas
Tudo o que surpreso e tolo você vê
No rôr dos episódios em que você se retrata
Aí onde você voga sem vontade ou intenção

Tudo é de noite
Você possui
Excelentes razões para chorar
Mas instado
Dividido entre o que você é hoje
E o menino inocente que você um dia foi
Quando instado e por rasões plausíveis a chorar
Você não chora
Você não sabe e já não é capaz de chorar
Nem pelo mal
Nem pela injustiça de um mundo
Em que você há muito deixou paulatinamente de habitar.

É aí então que finalmente


O que você tem insistido em apelidar de caminho
Pode se tornar excepcionalmente pedregoso
E ao seu turvado olhar
Não só invulgar como aliás
Rotunda e singularmente difícil.

A alma regressa agora


Como sempre
Só que agora ela regressa misturada
Com os fantasmas
De múltiplas e incontáveis mortes
Anteriores
Longínquas
Mas todavia presentes
Agora mais presentes do que nunca
Porém agora
Mais viva do que nunca antes
Ainda que distante e alquebrada
Você sente a ternura de saber
Que ainda interage com você
E que é apenas e só
Por essa simples razão
Que você pode ainda caminhar
Vai manco
Mas entre os balanços e as recordações
Que você faz… que você tem

279
O tempo passa
O seu coração bate
E aparentemente
Como resulta lógico
Parece que você continua vivo.

Novos projectos estão em marcha


Ainda que alquebrado e doente
Você ainda confabula
Quer recusar o fim da triste história
Que foi delineada p’ra você
Por algum roteirista sem escrúpulos
E que você tem representado escrupulosamente
E ao detalhe
Faz tempo que você não via
Seu velho mestre e juntos confabulam
Sempre por perto
O filho primogénito do guru que você escolheu
E que você trouxe sempre ternamente ao colo
Pulula e brinca
Enquanto humanos os mortais
Rejubilam à espetativa de uma pequeno lucro
Uma pequena vereda
Que faça virar fácil
O que é na verdade e na essência
Por natureza e muito
Muito muito difícil
E por um momento
De espera frouxa da qual nem se percebe bem a utilidade
Quando os seus cúmplices estão ocupados na frente
Você espera
E vê impotente aproximar-se lento
Um pesadíssimo trem
Máquinas e carruagens
Uma usina móvel avançando
Lenta mas inexorável
Atropelando tanto mais horrível quanto lentamente
A criança que você faz muito tempo traz ao colo
Você assiste a tudo
Acreditando que o pior é ainda eventualmente evitável
E corre por debaixo das arquitecturas negras
Da pesadíssima estrutura imprópria
Vendo a criança que parece sempre ser salva in extremis
Tangencialmente
E vem com ela ao colo sentar-se à beira do hangar
Onde aquela infausta representação teve lugar
Então o pai vem e toma conta
Pede ainda para que você sinta o cheiro
É um cheiro indefinível de criança
Não é indiscutivelmente o cheiro que você teme

280
Olha para os olhos fechados
Da criança que mobilizou durante tanto tempo
Sua ternura
E uma insuportável dúvida se instala
A de que aquela tão terna e preciosa criança
Possa na verdade estar morta
E finalmente você ter agora irremediavelmente
Que caminhar só.

É muito inóspita a estrada


Quando se caminha solitário
Você adia
E adia
E adia
O momento de encarar a solidão
Fazer o quê?
Parece que o seu erro afinal não tem perdão
E quando por fim você descansa
E uma espetativa de conclusão lógica
Dois mais dois serem simples
E naturalmente quatro
Sem culpa e cabalmente serem quatro
Quando você parece estar enfim dignificado
Na assunção causal e útil da sua condição
Apenas fica aquela dúvida
Corporizada em uma criança que você cheira
E não consegue decidir se é viva ou morta
Olha perplexo
Mas sem horror os olhos fechados
A pálpebras inchadas
A tez amarelada da criança
Que mil e cem constatações como mentiras
Gritadas desbragadamente dentro de você
Estão evidenciando que
É de um cadáver que se trata
E você vê
É tudo triste
Mas sem choro
Tudo intenso
Mas sem drama
Tudo iluminado e brilhante
Mas nocturno.

Faz tempo
Que você anda separado da sua alma
Às vezes você nem repara
Só a vê muito espaçadamente
De tempos a tempos lá a encontra
Nem sabe sequer muito bem onde
Mas aí sim repara

281
Que sem a sua alma você está sempre em cheque
Tem sempre alguma coisa sobre a qual
Você é questionado
E invariavelmente você sente
A maior dificuldade em responder
Os sons ecoam
Dentro da sua cabeça como avisos
Sirenes da polícia
Ou como aqueles lancinantes sons
Que chamam os bombeiros para um incêndio
E você vai
Ainda uma vez mais acorre
Na tentativa vã
De se socorrer naquele inominável vazio
Que você sente
Desde que a sua alma voga
Por caminhos que você desconhece e nem entende
Enquanto você amargamente sobrevive
Vegeta e como que se arrasta
Não cresce e nem não vive
Não se desmembra em hálitos que são
O respirar etéreo da vida
Fica ripado inerte e amolgado
Em coagulados bolbos de corpo aglutinado
Apenas uma cópia tépida e penumbrática
Do ser que você foi e quando está
Dela apartado e só.

Quando você a vê e se vê dela


Desapossado e saudoso
Vê que o que carrega é já só uma sombra
Dessa alma luminosa e varonil que você antes foi
Unido e inteiro
Como uma coisa só.

É sempre onde ela gosta de viver


Onde ela respira inteira e franca
Num jardim
Ou na montanha agreste e doce
Onde você singrou tantas e tantas vezes
Procurando.

Devorado ainda pela dúvida contudo você sente


O doce afago de uma presença amiga
Sente saudade
E desafio
Mas tristemente a sua alma se dissolve
Em tristes e vãs burocracias
Que você não entende
Que você um dia abominou

282
Papéis que você não sabe nem
Onde deverão ser apresentados
E desconfia que incauta possa ser
Ao inimigo que ela quer apresentar
Suas credenciais
Não é sequer que nada de intencional ou consistente
Ela tenha
Ou queira fazer contra você
É você mesmo
Ainda e só
Mais uma vez arrepiantemente devorado pela dúvida
Quem trai ainda aquele casamento que como um matrimônio perfeito
Deveria
Simples e natural de acentos claros
Ser eterno.

Petrificado em um canto oblíquo e escuro


Você é rudemente posta à prova
Não se percebe afinal o que você queria
Nem o que serviam
As desusadas armaduras que você
Postiçamente carrega
Talvez apenas você tenha
Que de um ou de outro modo
Carregar
E já que nem não carrega mais a sua alma
Carrega trajes
Alfaias ademanes
E você mesmo parece agora feito
De um material só concebido e criado
Para ser mais pesado
Tudo p’ra ver
Até que ponto você ainda quer
Você ainda aguenta
Você ainda faz por merecer
Aquela louca flor que você ama.

Mesmo os cavalos
Que antes pareciam
Ser o sinal do grau do seu poder
São agora já bichos de cheiro e temperaturas
Às quais você não está sequer acostumado
E que precisam
Atravessados numa nesga de uma rua
Por trás de uma cortina da qual você já nem distingue a cor
Desesperadamente ser
Ultrapassados.

283
Os tempos e os momentos confundidos
Em que você regressa
À pátria que um dia foi a sua
Mãe e casa
Ardor e fé
Conjugação de todos os destinos
Da qual você mal reconhece os contornos e vãs sutis paisagens
Servem p’ra você ver
O quanto heróis estrangeiros
Maliciosas tramas
Afogam derribam ameaçam
A bem amada flor de uma inocência
Perdida.

É lá
Definitivamente em paz com a vida
Que a sua alma pode regressar
Como de ser você sonhou um dia
E você quer.

De um modo ou de outro
Quer você queira quer não queira
O caminho é finito e tem um mapa
Mas esse mapa
É que é exactamente
O que você já não tem
Por alguma razão que por enquanto
Você ainda desconhece
Já não o tem
Você perdeu
Inexplicavelmente
A coisa mais importante e preciosa
Que você tinha
Perdeu
Ou pelo menos
De momento você não sabe mais onde é que está.

Mas nada disso é aliás


Novidade nenhuma p’ra você
Mais do que nunca e como sabe desde antanho
Você está num caminho
Do qual o percurso desconhece
Apenas antes
Nesse outrora que você não sabe já
Nem mesmo se terá mesmo existido
Tudo parecia ser vivido
Na mais frugal opaca e lógica
Primeira mão
E você era
Exactamente como todo o mundo

284
Uma normal e convencida criatura
Que inconsciente e automática
Predestinada e simples conjugava
A sua vida
Numa primeira e natural
Inocente amarelada e sobretudo
Encarnadíssima pessoa.

E mesmo assim
De todos os recantos onde você já esteve terá uns
Que são mais do que outros detentores
Do grande acréscimo que do credo do ser vivo e gostar
Você reclama
Recanto escuro como o poeta canta
Recantos húmidos e escuros como canta
Aquele outro poeta que você gostava tanto
Do qual você amou cada palavra
Que tantas vezes confundiu com você mesmo
Como se fossem suas as palavras
Que ele disse.

Não é nem porque você era criança


Depois você cresceu
E continuou amando essas palavras
Outras páginas
Outras palavras
E nunca desistiu de persegui-las
Nunca parou de amar dizê-las
E numa emanescência extasiática
Numa assunção coríntia
Assaz cantá-las
Você as disse
As mastigou
As digeriu
E em uma escatológica quanto solitária apoteose
Quis significar cada qual delas
Descobrir uma
Chafurdar
Na papa surda
E ensurdecedora das palavras
Indagar uma que fosse de todas a mais bela
Transformar
Latitudes em palavras
E atitudes em significados
Até mendigo e nu
Ficar vazio
Sem palavra nenhuma que te habite
Sem nada enfim
Do que você
Incansavelmente procurou nunca encontrar.

285
Desses recantos todos
Húmidos e sombrios onde você andou
Por onde enfim adquiriu o à vontade
De caminhar por eles confortavelmente
Como se da sua própria casa se tratasse
E sua aquela vida fosse
E seria
E era
Sempre sabendo
Que navegava e fluía
Em território estranho
Profundamente adverso e de uma perversa
Arrepiante ou vil perigosidade
Você foi intuindo
Por fim que o que no fundo mais temia
Não possuía afinal significado
Era só símbolo
Atrás do qual você andou
E que de tanto andar e perseguir virou
O que você pensava ser
O objecto.

Fugaz engano e fugidia chama


Eram cartas marcadas de uma aposta
Em que do grande casino em que você
Romantizando transformou a sua vida
A carta do amor em que você
Candidamente apostaria tudo
Não estava lá
Estava encoberta
Sempre esteve armadilhado o jogo
Ausente enquanto
Você apostava em cartas falsas
E levou tempo
P’ra que chorando
Você pudesse enfim entender isso.

Talvez você ainda possa possuir imagens


Mapas cifrados
Das cidades por onde um dia andou
Mas é numa pequena aldeia
Um lugarejo rural
Perdido no centro de uma europa
Que não existe mais
E que você conhece mal
Mas que de modo igual
Conserva uma suave e natural recordação

286
Que dos seus iguais você recebe
Supremo ato de amor
Perdão e liberdade
Que você sente há tanto tempo precisar.

Você leva nas mãos o quinhão do seu penhor


Suas ideias tresloucadas alcalóides
De uma longínqua função de uma miragem
Uma magia anunciada que inocente
Ingénua e francamente
Nunca compreendeu.

E é quando tudo enfim parece perto


De se desmoronar
Sobre a sua paupérrima e inutilizada cabeça
Que se desenha uma sincera e quieta
Vontade de sorrir
Mais uma vez
Há uma paz
Que do íntimo impalpável do seu ser
Vem derivando
Da recitação quase infantil
Daquela ultra decorada e bem sabida
Forma de oração
Que tem na sua confiança o seu poder
E o encanto
De ter sido a primeira
Que você aprendeu

Um mantram seu
Profundamente desenhado no seu ser
Inculcado nas entranhas do crer
Inexpugnável
As dúvidas questões
Refinamentos ou tergiversações
Do pensamento.

Você hesita
Sempre hesitou em frente da verdade
Hesita entre o medo e a fascinação
Que você sente por tudo o que é impuro
Tudo resolvido você parte
Levando nas mãos a prova espúria
Definitivo pão de toda a dor
Remorso enfim das horas
Inúteis que você perdeu
Das ruas estreitas
Urbanas e calcorreadas
Numa incansável cosmopolita e épica
Tragédia pouco grega.

287
Dessas ruas reconhecidas
Pela intimidade do baixo das cidades
Você sobe então
Reencontrados os cúmplices
Em que se escuda
O pouco que restou da sua consciência
Nos lugares íntimos
Pontos de encontro de uma rotina oca
Você vai
Sobe ao encontro
De uma mais pura arquitectura
De uma colina edificada antes das hortas
Onde trabalham os obreiros
Que são no fundo
As criaturas que você mais sinceramente respeita
As únicas que mesmo ainda sem saber
Você ante inocente ainda ama
E em quem inabalavelmente e em rigor
Você confia.

Prevendo o calmo dealbar


Em que sua alma (ámen) muda de cor
E consciente de que o pequeno embrulho
Que por instantes
Você pegou e permitiu
Que permanecesse em sua posse
E que ainda que inocente você sabe
Poder ser muito comprometedor
Você sobe a colina tranquilo
Não sente nem fadiga nem remorso
Apenas sabe
Que aquela prova irrefutável do seu erro
Precisa ser dissimulada e se possível
Escondida.

Nas sombras frescas


De uma desusada e já foi dito
Pura arquitectura
Você sente a consolidação
De um destino antigo que o consola
E com óbvio a propósito
Logicamente
Tranquilo até
Para a tensão
Do que poderia ser um gesto clandestino
Você encontra
O pareceria ser se algum houvesse
O indiscutível
Lugar ideal

288
Para esconder aquela prova embaraçante
Da qual a qualquer custo
Você precisa e quer
De uma vez por todas se livrar.

Mas ao contrário
Do que aparências fúteis prefiguram
Você vai precisar esperar
Ainda mais um tempo
Que todas as frágeis evidências
Venham consolidar
O que apesar de tudo
Nada mais irá poder evitar.

Você ainda esconde aquilo


Algum pedaço
De uma cocaína estúpida e irreal
Que lhe fustiga o ser
Como o cadastro
De um velho cárcere
Imundo e há muito
Desativado
Do qual com ironia e perversidade
Empoeirado e escuro só o arquivo
Sobrou.

Assumir a verdade ainda custa


Você não quer
Como seria confortável esconder
Em algum recanto escuro do seu ser
Tudo o que pesa
Na sua consciência e que você
Não tem mais condição de transportar
Demora p’ra dizer
Essa mágica palavra que seu peito
Lavado e são
Vai libertar
E que não era
Definitivamente
Nenhuma daquelas que em momentos
De inspiração e fé você pensou
Que fosse poder ser.

Você sempre foi atrás das rimas


Uma Maria
Vai com as outras
Como dizia a sua mãe
Você recorda com prazer
E agachado
Resolve esconder mais uma vez

289
Por baixo de um tampão
Uma campânula que parece um sino
Mal você adivinha
O que de sino ou plim vem por aí
Você está perto
De uma estrutura que parece um poço baixo
O gargalo do poço
Um pedestal térreo sobre o qual
Muito maior se apoia uma campana semiesférica
Como as que tinham as antigas campainhas
De bicicleta.

Aí no interstício
Entre a base de pedra e a campainha
Do tamanho que teria um poço largo
Você introduz o embrulhinho
Que é o penhor
O clausular ridículo e banal
Do seu segredo.

E por um momento você fica extasiado


Convencido de que tudo o que deveras afligia
O seu parco entender
Tenha ficado por agora resolvido
E sem mais ver
Caminha decidido para onde
Nem você nem ninguém sabe supor
Ser o para onde que se vai.

Eis senão quando


Você chega a sorrir
Dessa matéria ingénua e benfazeja
De que são feitas as novelas
Que se contam para moças e rapazes
Sedentos de aventura e fantasia
Indo você até já se afastando
Percebe que aquilo
Que inocentemente julgou ser
A campainha da sua infantil bicicleta
Era afinal o mecanismo de um relógio
Um imenso relógio
Desses de corda mas maior
Como os que costuma haver nas catedrais.

O lugar fresco
A pura arquitectura na colina
Onde você chegara
Antes de se tornar imperioso
Você se desfazer da prova crua
Parece agora definir os traços

290
De um espaço nem exterior nem interior
Sombrio mas arejado
De altíssimo e finito pé direito.

Assim que a prova é colocada no lugar


Discreto e aconselhável que você escolheu
O imenso mecanismo começa lentamente a se movimentar
E o que a princípio lhe parece ser
O mecanismo imenso de um relógio
Desses de que a horas certas saem bonecos
E estão altivos decorando o campanário central
De uma bonita e formidável catedral
O movimento encobre
Ainda que sem ser assustadora
A verdadeira dimensão da realidade
Que dentro em pouco irá se revelar.

Primeiro logo de início


Você percebe que do alto
Enormes sinos
Esses sim
Sinos de bronze de verdade
Começam a tocar
Com estrépito e do jeito
Que é próprio dos sinos
Badalar
P’ra lá e para cá
Num arco imenso
Toda a extensão da nave
E de um diâmetro
Colossal.

Você recorda que em momentos


Vividos mas de súbito albergados
Em rarefeitas incolores e diluídas
Recordações de antanho
Antigamente
Você gostou de trabalhar.

Você ainda gosta


E tem um paladar de simpatia
Tudo o que se prenuncia
E que de modo inexplicável e fatal
Você percebe que se vai passar.

291
Você adia
Nem sabe o quê
Agora de repente perplexo e constrangido
Fica com medo do que possa de fato acontecer.

Você percebe que está dentro


De um universo achado em consequências
De uma ordem que você mesmo deslanchou.

Está dito e feito


Já nada pode mais voltar atrás.

Você errou.

Então você percebe que afinal


O mecanismo do relógio
Que o seu gesto imprudente
Havia colocado inexoravelmente
P’ra funcionar
Não era mecanismo nenhum
Nem de um relógio
E nem tão pouco
O dito relógio pertencia
A catedral nenhuma
Você está começando a perceber
Que o que você embaraçado
Embaraçosamente desencadeou
É sim um mecanismo
É de um relógio sim
E tem figuras
E a dadas horas certas sinos tocam
Mas é toda a estrutura que se abala
A pura arquitectura que se movimenta
E logo mais um pouco você vai
Compreender que o comprimento
Que vai do gesto imponderado que foi seu
À última das suas resultantes
É de uma dimensão incalculável
E que aliás
Nem adianta interessa ou é possível calcular.

Simplificando o que você percebe é ser


O mecanismo e o relógio a catedral e a aldeia
Que por enquanto ainda só pressente
Existir do lado descendente
E da colina
A pura arquitectura
E mais p’ra lá
Nas várzeas frescas
E nos terrenos férteis e primaveris do vale

292
Tudo o que existe
Existe e funciona coordenadamente
Por um rigor mecânico que momentaneamente
Fruto daquele simples e quase
Imperceptível gesto
Foi alterado interrompido
Prejudicado na perfeição do seu rigor
E de repente
Fora da hora certa
Num momento em que não era para acontecer coisa nenhuma
Todos os pressupostos
O que deveria estar certo estando errado
O todo exato
Sendo perfeito demais para caber em si o desarranjo
Se move lento
Se dando o tempo
De tudo perceber em face ao erro.

Você desacertou o relógio


Mas o relógio
É incomensuravelmente maior
Do que você jamais pudesse imaginar.

Poderia sim
Mas não imaginou
Não se deu ao trabalho
E mandingou
Tirou às sortes
Brincou de sorte e pouca sorte
Até que ali chegado toda aquela
Arquitectura imensa e pura
Se mexendo em um ritmo ordenado
Quase sadicamente lento
Todos os sinos e figuras
Se mostrando e hesitantes
Se prefigurando à hora errada.

E todo o desarranjo provocado


Unicamente e só pelo desleixo
E pela insensatez ignorante
De você ter mexido num relógio
Que nem sabia
Sequer que o era ou que hora dava.

Sabia agora porém que aquela hora


Que deveria ser outra e não aquela
Deveriam estar ali prontas e tensas
Todas perfiladas e fiéis
As tais figuras
Que todos esses relógios que adornam campanários

293
Mostram na hora certa p’ra quem passa
E não se sabe
Nem é preciso
O que acontece entre os minutos
Com as simpáticas figuras
Um passarinho
Nos modestos e domésticos de cuco
Dois namorados
Ou bodes como têm
Alguns desses relógios no norte da europa.

Ali porém
O caso era mais grave
Muito mais grave
E a trama
Mais perfeita decidida e mais completa

As figurinhas
Eram todas
Antes do mais em tamanho natural
E de momento
Não tinham aparecido
E onde estivessem
Estariam com certeza
Fora do lugar.

Onde estavam então


E como iria resolver-se
Aquele impasse
Que embora impasse
Nem por um momento parava de se movimentar
Sinos na cúspide
Chegando ao apogeu até tocar
Paredes colunatas
Asnas e anteparas
Bases e fustes de capitéis inalcançáveis
Rodando um movimento seguro e irreversível.

Como um relógio atrapalhado


Batendo um tempo errado
Toda a sofisticação do mecanismo
Parecia agora congregar uma verdade fatal
E essa verdade
Simples e natural
Era a de que aquelas figurinhas invisíveis
Até ao momento só supostas

294
Do apogeu
Do infindável mecanismo se tratar
Não só eram reais mas estavam vivas
E eram tão só os aldeões que em seu horário
Desde manhã estavam no campo
Plenos de afã e cordiais
A trabalhar.

Que nem apocalipse irreal


De imaginários coloridos estrangeiros
Entre bucólicas cadências de harmonia
E por detrás
Talvez secreta dor insuspeitada
Reinos do sul ferrões envenenados
Da bávara província escorpião
Campestre e belo
O marcador das horas seu rigor ocluso

Você não tinha como


Remediar o mal outrora feito
E agora nada
Do que você fizesse poderia
E se fizesse
De por ou para ou a você
Vir salvar.

Sinceramente
Obedientes mansos e voluntários
Daquelas hortas que do vale
Agrícolas cercavam a cidade
Talvez aldeia
Repositório dos infaustos urbanismos
Em que você sempre insistiu em circular
Desses outeiros
Que de fecundos pareciam respirar
Aquela amena biologia alimentar
Você agora via a passos lentos
Enérgicos mas comedidos avançar
Garbosos os natais trabalhadores
Em passos naturais mas decididos
Vindo p’ra figurar
Cada um no seu preciso lugar
Na hora em que certos os sinos
Do engenho pendular
Marcasse a hora
Eles imóveis deveriam estar
E como autómatos vivos cada um
Criteriosamente ocupar o seu lugar
Prefigurando a única maneira de salvar
Você dos resultados do seu erro

295
E libertar
Você para descer e se deixar inebriar
Da luz e da perfeita
Reconfiguração desse lugar.

Parece agora ser


Uma singela paisagem pastoril
E você desce
Avança prazerosamente
Despreocupadamente
Para um deambular que se anuncia.

Desde os campos
Das colinas dos outeiros
Das várzeas generosas fertilíneas
Aos vales que se estendem as planícies
Sem fim
Desde as montanhas ao mar
Inumeráveis grãos
Que constituem as areias
Toda a natureza que se espraia
Nas rochas nos desertos e nas praias
Você repara
Nas formações iguais
Os padrões que você vê sempre repetidos
Seja no mar
Seja nas extensões intermináveis
Que de outra inácia era enruga a terra
Nas formas ondulantes que a maré
Escorrida deixa nas areias das praias
Você vê
Sempre o mesmo padrão
E conhecido lhe parece que lhe quer indicar
Que a vida é mesmo assim
Feitas de altos o baixos
Sempre supostos
Ainda inesperados
Sempre adivinhados
Intocadas brechas
Mesmo se quando
Em algum detalhe enunciado a quente
E de repente
Assim assimilado como um golpe
Assim cortante e súbito
Olhado a frio no seu conjunto
É no resgate
Daquele padrão imaculado

296
Que a vida se descreve e continua
E uma nova esquina se prefigura na paisagem
De uma cidade de vidro
Um uma colina esconde
Ainda que por pouco tempo
Um jovem vale.

4.
Pese embora ser de fato pedregoso e difícil
E dito com propriedade
Muito pedregoso e muito difícil
O caminho é de modo a que possa ser percorrido
Uns dias vão e outros vêm
Outros terminam e outros se iniciam
E tudo isso acontece
Enquanto você caminha
E afinal
Parece que tudo é normal.

Ainda que todavia possa ser


Objectivamente anunciado e tido
Mesmo reverenciado e vivido
Sofrido até
Como ele é
Muito pedregoso e difícil
O caminho nunca acaba ou se percorre
E uma vez aqui outra ali
Outra mais adiante ou uma mais além
Você percebe que cresce enquanto anda
Só não cresce enquanto está parado
Mas na verdade nunca se está parado
E bem assim
Jamais se pára de crescer
Às vezes para dentro
Às vezes para fora
Altos e baixos subidas e descidas
É assim
Que ternamente
Ainda que ele seja
Como se diz que é
Pedregoso e difícil
O seu caminho é você.

Embora sendo realmente


Muito pedregoso e difícil
Você sente que foi feito
P’ra poder ser percorrido
Mesmo nas partes mais íngremes
Subindo e descendo às vezes
Configurando a paisagem

297
Penhascos ou precipícios
Você caminha inteirado
D’ que a vida foi feita assim
E o gosto desidratado
Que o caminho às vezes tem
Quando você vai além
Parece apaziguado
E a boca de quem vem
Tão ímpar enunciado
Revestida de silêncio
Entoando hinos à Lua
Reveste do corpo o ser
Revigora a alma inteira
Destila licor de mel
E ainda que impessoal
Parece doce.

Dessas nocturnas batalhas


Em que das imagens se conjuga um estrato ainda impuro
Impulsionado por escolhas que não é você quem faz
Não quem pelo menos você julga ou imagina que é
Mas mesmo sendo-lhe alheio
O fulcro da decisão
Você sabe bem demais
Que aquela escolha que alguém algo ou alguma coisa
Fez por você
É inequívoca
Sólida e estranha
Definitiva
Agora e sempre de sua única e exclusiva
Responsabilidade
E então aí você aceita.

Você aceita como bons


Paradigmas dos quais antes sem nenhuma reflexão
Duvidaria
Aceita o caos
Aceita o que não sendo
Nem de raiz nem na essência
Nem na deduzida rede de causas
E amargas consequências
Que você
Nem por nenhum modo
Intui ou raciocina
Está em você e governa.

Mesmo quando só em símbolos vagos


Que outrora você quis aprender
E do seu significado
Lógico ou emotivo

298
Sensitivo ou não
Eventual ou clara e directamente intuitivo
Discretos que sejam os desvios
Desenhados no mapa que em verdade nunca ninguém desenhou
Rasgada a estrada em secundários sentidos
Ou escancarada em sortes em claros símbolos
A verdade do que são
Foram sentidos confundida a sua jura.

Você beija num impulso


A cávida e húmida evidência de uma boca estranha
A boca de uma jovem professora de ballet
Que é um duende que você conhece
Faz tempo
Mas em quem nunca realmente confiou
Você precisa entregar uma encomenda
Três artigos de vaga e duvidosa precisão
A respeito dos quais exactamente
Nada se sabe
Apenas que o maior
São desproporcionais cartazes de uma antiga propaganda
Enrolados num cilindro comprido como um tubo
De encanação coletiva
Um cilindro de pena de assinaláveis dimensões.

Você percorre
As mais inusitadas situações
Embora disponha de um transporte
Que um velho amigo seu de infância e o irmão providenciaram
Foi você
Quem inconscientemente decidiu
Ir a pé pelo caminho mais difícil
Onde se encontram as multidões de deserdados
Negros e brancos
Jovens mulatos que você conhece de outras guerras
A festa e a revolta se misturam
E as multidões se manifestam
Numa demonstração do que parece ser
A forma de uma fúria musical.

Por ruelas escuras você procura abrigo


Que é o que acaba por achar num edifício sede
De alguma dessas organizações comunitárias
Onde crianças pobres mas muito criativas
Aprendem uma dança que de fato
Esteticamente não lhes diz respeito
Um professor crê estar ali dinamizando
Uma aula de dúbias solicitações
Enquanto em pausa espetativa

299
De uma observação curiosa
Esse duende que você conhece
Mas em quem por intuição jamais confiou
Lhe aparece travestido de uma doce menina
Trajada no preceito
Com uma curta saia plissada de colegial
E uma boca que se apraz teleguiada para encontrar a sua
Desse incidente então começa um jogo de perseguição
De bate e foge
De repulsão e atração intempestiva
Sem que você mesmo perceba o que acontece
Com e de onde veio essa atração indumentária
Que se desencadeia no seu corpo
Você beija mas acredita que não quer beijar
Sente o corpo daquele ente uma menina quase impúbere
E quer mais
O seu caminho parece então agora
Querer ser caminhado
Pelos prados indeléveis da mais franca
Reconhecida e sã sexualidade
Mas em momento algum você esquece
Que está interagindo com um ente
O tal duende que você conhece sim
Mas não confia nele.

Depois de peripécias imaturas


Jogos pueris
De sedução e reconquista
Você fica perdido numa rua
Uma movimentada rua principal de uma cidade
Outrora capital em um país distante.

Você está finalmente acordado


E acredita que por um dado momento vê o chão
Onde o caminho em que real você caminha
Clama o seu dia.

De todas as pessoas que vagueiam


E cruzam com você o seu olhar
Você parece ser a única que realmente existe
Que reage e que se importa
Cada uma delas passando deixa o vago dos seus olhos
Refletido no que você é
E um pouco do que sabem e são
Do que viveram e sentem
Fica nesse momento sendo seu
Você existe e se apropria
Do que leves e desinteressadas
Essas pessoas são
O mundo que cada uma delas vê

300
Fica plasmado
Incorporado ao seu próprio mundo
E que retorna
Aos olhos cruzados e vazios dessas pessoas
Que por um momento encaixam nos seus os olhos delas
É uma tômbola
Uma roda gigante
Da sorte que os seus dias decidiram que seria
O seu regresso.

Vagueia em círculos incautérios


Largos lances de um destino impraticável
De início impossível
E fim ainda menos improvável
Algo que dito
Em nenhum momento poderia alguma vez ter sido visto
Preliminar ou antedito
E muito menos
Predito ou intuído de ter sido
Sentido.

Você tem a alma cansada


De tantas almas gastas
Que já se confundiram com a sua
Mas impotente
Segue direto
Não pode nem quisera olhar p’ra trás
Somente vai
Agora vai
E agora você sabe
Sabe que sempre está vivendo no agora
E que o seu agora é sempre para sempre.

E sempre você volta


Você acaba voltando
Aos tristes calcorreamentos
E às ruelas sórdidas
Às formas de se delapidar e promover
Tudo o que você sabe que dentro em breve
Não mais irá poder continuar a carregar.

Entre vielas tropicais


Carentes de passeios ou pavimento
De uma arquitectura que não foi planificada
E uma totalmente inexistente engenharia
Faz perigar a rigidez do chão
Você se vê surpreendido por um desabamento
Com todos os seus bens danificados
Até aqueles que você não possuía ainda
São jogados

301
À franca derrocada da matéria
E mesmo o mais precioso dos seus bens
Dos seus parcos haveres o mais querido
O que é mais necessário
Fica comprometido
E a sua tão instante e benfazeja utilidade
Cruel e totalmente inviável
Mas mesmo assim você resiste
Pede a ajuda dos mais novos
Gente que vive da ilusão da comunicação
Garotos vivos e inteligentes
Que se foram transformando em escravos da tecnologia
Algo que você abomina
Mas para cujos valores
Tem vindo a ser
Consecutiva e paulatinamente conquistado.

Mas não tem jeito


Por mais artificiosos que sejam os seus modos
E cativante sua persuasão
O poder dos decibéis é limitado
E você sente saudade dos tempos do transístor.

Você vai com a sua tribo


Assistir alguma missa profana
E de onde jamais podia ter esperado é de onde vem
O mavioso e dúbio convite ao prolegómeno
Está entre a espada e a parede
Apetecer-lhe-ia recusar
Aquele cigarro de duvidosa chama
Mas a recusa contém riscos que você não pode dominar
E que não quer correr
Fica parado e frágil
Na crua indecisão de uma resposta
Mas no entanto
Sai dali com uma ideia clara do que quer.

Ainda que você


Desdiga maldiga tresdiga o seu caminho
Ele acaba sempre por mostrar que uma cruel mas tentadora
Verdade prevalece
O seu caminho nunca acaba
Mesmo quando parece ter chegado
A hora do inevitável e fatal
Acerto de contas
Você isola-se do mundo
Mas ele sempre insiste em passar inexorável
Pelo lugar onde inocente e despojado você dorme
Inquieta-se
Todos os bandidos

302
Todas as figuras pouco recomendáveis
Que você alguma vez cruzou na vida
Voltam mancomunadas
Para tentar fazer a sua pele
Ainda e sempre
Chegam até a confinar o seu caminho
A um exíguo canto do qual você não vê e que parece
Não ter saída.

Você que queria ser perfeito


Que achava consolo nas paisagens
E procurava a luz em casas claras
Vê o quanto o seu caminho pode ser titubeante
E tíbias as decisões que você toma
Você procura protecção
Nos badulaques de um velho métier que você teve
Mas deixa-os esquecidos
Num cagadouro
Em que triste e vergonhosamente
Teve que aliviar-se
Procura-a na sua velha profissão
A que da qual você nunca chegou
A professar a fé
E se arranjou numa linguística indefinição
Entre métier e profissão
Vagando em eufemismos
Entre trabalho e emprego
Para tentar inutilmente continuar fugindo
Da carga mais pesada que era a sua.

Não olha agora mais para o terreno com os filtros


Da sua habitual condescendência
Encara essa partida com denodo
E desce dos abrigos montanhosos
À flor de uma cidade pelas veredas
Você atravessa na entrada
Um lindo casamento ritual
Que tem lugar em um castelo móvel
Que serpenteia entre canais inexistentes
São ricos esponsais ritualizados
Em que noivos e convivas se apresentam
Com trajes de cuidado e recortado
Gosto e qualidade orientalista
São talvez árabes ou persas que se movem
Numa cidade antiga
Que é o lugar de origem
Dos seus desaparecidos ancestrais
E volta a querer então comunicar-se
Contar a todos
Essa verdade que se tornou

303
A mais dileta e pura em sua vida
Mas o seu telefone celular não funciona
O telemóvel
Como rezava já de antanho a sua antiga língua
São vãs as tentativas inocentes
Que você faz de concertar o que está desconcertado
Até os poucos aliados que você ainda tem
Falam linguagens que você não compreende
E mesmo dos lugares onde por norma
Se recebem bem os peregrinos
Você sai sempre com impressão
De que algo em seu caminho está minado
E que você
Terá que penar muito ainda
Até que alegre possa voltar a caminhar
Pelas estradas de terra ensolaradas.

E uma vez mais ainda decide que o melhor


É caminhar em frente
E caminha
Por ruas que você conhece bem
Estradas inóspitas que vão dar a lugares ermos
Estradas que você escolhe apenas porque são
A única saída
E onde se cruza com figuras súcias
Finados mascarados de uma agressividade
Que não conjuga
Com o que parece ser a uma heterodoxa sexualidade.

Tem momentos dessa ingrata estrada


Em que você mergulha em escuridão
Sobe por ruas
De uma íngreme inconstância
De uma aridez nocturna
Em que você dificilmente
Consegue distinguir os passantes
Embora saiba que em caso algum
Se pode permitir
Confundir seu rastro com o deles
E que é a hora
Para uma corajosa decisão
Porque o caminho mais à frente não tem chão.

Você resolve então retroceder


Para o que foi
O vale dos verdejantes esponsais
Em que você noivo singelo
Trabalhou p’ra merecer a prometida.

304
Agora essas figuras súcias que você afinal sabe quem são
Mesmo por trás da subcapa da pintura que lhes realça o rosto
Querem interagir
Mas estão frias
E de agressivos modos temerários
Ainda que de maneira ínvia
Mostram que gostariam da sua companhia
Mas você nunca reagiu bem à intimidação
E reconhece que o caminho
Que você ardoroso pesquisava
E que tantas e tantas vezes encontrou
E outras tantas dele amargamente
Se perdeu e se desencontrou
Só acontece à luz do dia
No vento e no calor das emoções.

5.
Ainda que seja difícil e pedregosamente
O caminho é pedregosa e sempre mais dificilmente
Escancarado na sua frente para que você veja.

Você aprende uma lição


Da qual não se extrai uma resposta
Respostas que consolem seus anseios
Ninguém as diz
Ninguém nem não segreda p’ra você sequer um pio
Você tem que aprender perigosamente
É para isso que o caminho se produz em sequência
E a sequência dos seus atos se apresenta
Para que você veja e se perceba
A verdadeira essência do que aquilo é
É uma lição em que só dúvidas
Hesitações vulgares e incertezas
São dadas ao lente universal para que leia
É isso que lhe é dado p’ra que ouvindo
Nos ecos do seu eco aos quatro ventos
A tal infatigável mensagem
P’ra que o vogal preencha com vontade o conteúdo
Mal picotado e sórdido
Das incongruências e esgares que você escreve
Nos seus famosos caderninhos de notas
Como se por uma lei superior e imperiosa
Uma abrangente e totalitária proporção
Fizesse encolher o seu caderno
À medida que cresce o que você
Seria suposto escrever nele.

305
Você não quer escrever no seu caderno
Nada que não seja verdade
Nada que seja o que seja
Não seja a verdade mais pura
Busca e rebusca palavras
Concatenadas em ritmos
No interior dos quais parece que a verdade poderia estar oculta
Mas quando estuda
O conteúdo esquálido e exíguo das lições
Você percebe que andou entendendo a coisa errada
E que quando
Alguém encontra coisa errada
Talvez seja
Porque não andou procurando a coisa certa.

Algumas coisas você nem sabe bem


Se acontecem mesmo realmente
Ou se apenas
Como em um telão gigante
Onde se plasmam as transacções inconclusas
Todas as mãos confusas
Que remexem e mexem nos cordéis
Da sua fatigada consciência
Estéreis eventos
Ramificadas sugestões cataclismáticas
Fontes de medos vagos
Temores confusos e pouco iluminados

Sugestões mórbidas de que se formam


Refazem recompõem e produzem os receios
Fatos e planos de que você não tem completamente
A verdadeira certeza de que existam.

Você sabe apenas que está naquele velho carro


Onde costuma prestar serviços complicados
E onde até
Bandidos perseguidos e perigosos
Têm entrada
Você vai e volta
Mas tudo continua igual e transparente.

Lugares onde você não entra há muito tempo


São agora reabertos e transitoriamente destinados
A albergar oficiosas formas de pudor degenerado
De um jogo já contado e conhecido
Pelo nome de o das contas de vidro.

306
Em sucessivas vezes você entra
Divaga e participa
Não tem mais o seu lugar patenteado
E vê-se ali na contingência
De ter que procurar uma cadeira
Um banco árabe
Talvez mais consentâneo
Com a exótica clausura do lugar.

Mas sai com a impressão amarga


De que as regras
Dos jogos e festejos que ali são produzidos
Estão falseadas
E muito particularmente lhe incomoda
Saber que não existe
Divisão de escalões no campeonato.

É tudo igual
Mas você demora para aprender.

Num primeiro momento parece que você nem que perceba


Quer perceber
E nem que percebesse
Perceberia a evidência que se aguarda
Instante puro de um invulgar fulgor eterno
Um contrabsurdo e frugal prolongamento
Que você olha com o banal deslumbramento
Com que se olha o ventre de uma deusa
Olha-a arrogante e displicentemente
E confinado ao seu horror cobardemente
Olha sentindo que esse olhar
Fosse dos olhos
Com que você terá preferido não a ver.

Todas as coisas vivas


Mensagens amorosas que durante
A sua vida toda nem por um só momento
Cessaram de soar e foram emitidas
Cabal e generosamente
Apenas para que frugal banal cabal você ouvisse
Que como um coral estranho que vibrasse
Vindo do fundo de um mar de águas paradas
Atravessadas por um som inconfundível
Que você mesmo permitiu
Aos seus ouvidos auscultarem a razão
E dessa vibração errar a dimensão
Do que pudesse ser a sua nítida audição
E você sempre ouviu
Mas umas vezes não escutou
Outras ouviu e fingiu que não estava querendo ouvir

307
Nem escutar
Ou que escutando e de ouvindo não ligou
E que não quis escutar o que escutou
Ou não ouviu
Escutou mas não quis definir nem definiu
O que ouviu
Quando afinal
Todas as mensagens queriam apenas nem que você visse
Nem que ouvisse
Que percebesse que tudo é realmente
Resumo resumido e afinal
Cantado e resumindo
O mesmo.

Afinal de olhos fechados


A escuridão se confina
Ao catastrófico cenário em que se alberga
A fama do fantasma triste e absurdo
Das dobras dos epílogos
Das casas devolutas e vazias
Desse afirmativo sim mas pusilânime fantasma
Catarse enfatuada de um mistério
Catálogo de fantasmas em forma de presságio
De personagens que você nunca quis ser
Mas que temia
Antes que abandonada a cena
Ficasse apenas a negra incandescência de um vazio
Feroz omnipresença omnipresente de uma tela
Imensa plenitude asas ausentes
Onde se grava a marca
E se desenha augusta
A sombra sonolenta que como pó de ouro
Faz refulgir aos olhos fulminados
Breve e potente
Ausente
Se assemelhando a uma iluminura antiga
Tela comprida
Em que se plasma
No plasma do arrego o seu arrasto
O surdo e mudo sonoplasto emplastro de televisão
Ou deusa fria que faz reverberar nos olhos lânguidos
O som confuso mas nunca confundido
De uma calada maldição nunca cumprida.

Você recorda do tempo em que aprendeu


Que «ingratidão é ter tudo na mão e jogar fora»
E em que pela tão inocente e lírica primeiríssima vez
Descobriu que se pode ser abandonado
Você o descobriu amargamente e aprendeu
Que fascinado

308
Pelas pessoas que inocente ou involuntariamente
Você fascina
Você precisa um dia abrir mão delas
Deixá-las ir
E que não tem talvez dor mais amarga como seja
Aquele em que o ser evanescente perde os filhos
Filhos diletos do amor
Que você brincando e rindo
Espalhou em volta
E que delapidou sem medir gastos nem consequências
Tão só amou
E com amor tão só feliz e abundantemente
Quis aspergir o mundo.

O palácio onde desde sempre


Afanosamente você anelou por entrar
E onde algumas vezes meio que ou mesmo clandestinamente
Efetivamente e cheio de espetativas entrou
Estava agora ocupado por uma estranha seita
De embora muito místicos
Feios e andrajosos indivíduos
Como que sem-abrigo de longa data
Mesmo leprosos e outros desfeiteados da vida
Que organizavam visitas ao domingo
Durante as quais convidavam os numerosos visitantes
A participar nos seus estranhos rituais de purificação
Ao mesmo tempo que promoviam para fins de vulgar proselitismo
Episódios de alteração da consciência.

Existe uma guerra surda


Patente aos olhos de todos
Mas que só alguns enxergam
E que ainda menos sentem
Porém dos que lutam mesmo
Nessa guerra cega e surda
São somados ‘inda menos
Os que no calor da luta
Vêem seus olhos furados
Pela maldade infinita
Pela sanha podre e bruta
Que brota dos tons mal feitos
Dessa sinfonia louca
Nem Stockausen nem Stravinsky
Chegaram perto de tanto
Nada de passos nem saltos
Nem de dois nem solitários
Nem corais nem Nureyev
Nem tão pouco Balanchine
Nijinsky nem Prokofiev
Bela Bartok ou Saint-Sainz

309
Falta de amor ou dinheiro
Nem russos nem francoceltas
Dessa guerra a arte imensa
É pouca p’ra dizer quem
Mas se a dor a fuga alerta
E deixa os sentidos sem
Meus cataplasmas de lírios
Meus andrómacos ritons
Namoram-me a paixão zanza
E eu sinto-me o bardo autor
De uma lenga lenga tansa
Que um exército sincero
De palhaços e acrobatas
Trapezistas e faquires
De sopradores de petróleo
De mastigadores de vidro
Dispara em altifalantes
Contra a tropa do inimigo.

Pode ser que a serenata


Em fuga seja mais canto
De Ossanha que hinos à Lua
Mas da nossa quinta manha
Nem deus nem o outro assinam
Qualquer tratado de paz
E os prazeres do armistício
São dados aos barrigudos
Aos obesos e aos brutos
Que da guerra nada sabem
Nada dizem só reclamam
E quem faz do sacrifício
Frugal alimentação
Ou como as freiras antigas
Do crucifixo brinquedo
De sacra masturbação
Diz aos donos do perdão
Que se fodam as algemas
A não ser que sejam penas
De algum sadomasoquista
Que a fruta do alquimista
‘inda agora começou
E vai se desenvolver
Com vagar tenso e paixão
Do rodapé p’ro telhado
Da chaminé p’ro fogão
Respirando alegremente
Como toda a plantação
Marcas deixando na terra
E havendo clorofila
Em vez de algemas um lenço

310
Um cada pulso apertando
Mais dois para os tornozelos
Quatro lenços quatro cantos
De dois pés e duas mãos
E nos olhos o romance
Ilegível mas trovante
De uma venda a escuridão
Só ficarão dos encantos
Os balanços quem os der
Dessa guerra quem vencer
Terá esquecido os primórdios
Ficará sem se mover
Todo atado de nós górdios
O militante do ser
Mesmo sem se dar por isso
Dá pinotes de prazer
Se contorcendo amolgado
Todo quase todo atado
Começando a enlouquecer.

É dessas coisas que às vezes


Como você compreendeu e afirmou desde o início
São passadas p’ra você
Num ritmo cataplasmático
Como se fosse a bronquite
O mal de alma que ele cura
E continua
Não se sabe se é você quem possui o ritmo
Ou se é o ritmo quem possui você
É dessa dúvida
Dúvida que na verdade são duas
Que se faz a lamentável sina
Que querendo ou não você escolheu
Esse quem que sendo um ritmo
É como quem fosse uma pessoa
Não outra pessoa que você pudesse conhecer
Ou não
Mas sim uma pessoa outra
Que pode apenas ser um outro eu que você é
E de igual modo
Desse destino que imagina ser o seu
Você se embrulha
Na tenebrosa dúvida de poder ter sido
Também ele que o escolheu
Escolheu você
Casualmente
Porque você estava feliz e afanosamente
Disponível.

311
Você não atinava mais nem por um segundo
Com os fantasmas de uma vã tecnologia
Que posta ao seu dispor se amancebava
Com o gosto de carpir a sua dor.

Agora queria apenas como um homem ser feliz


E olhar o mundo.

Quando finalmente alguém por apreço ou atração


Ou por um mero acesso da vaidade
Desses que você gosta de provocar nas pessoas
Resolve convidá-lo para a ópera
O formidável espectáculo ao qual todos adorariam assistir
Você está bêbado
Já vem do mercado onde confluem homens e mulheres
Bebem e riem
E conflituam leve e alegremente
E onde o comércio corre solto
Numa hipócrita e vil iniquidade
Maravilhosa
A sua nova alma aparece intensa e bela
Com novas vestes
Simples e sedutora
E você vê a clara luz do amanhecer.

Quando então chega


A sua presença é imediatamente notada
E um inconfundível sopro de censura
Perpassa entre os distintos emproados e arrogantes
Embora surdos assistentes
Você ainda tenta
Ajudar na arrumação das cadeiras
E num primeiro momento de simpatia breve
Parece que você vai ser aceite
Mas logo se revela que é preciso estar acostumado
E conhecer minimamente o sistema
E todo o seu voluntarismo e intenção sincera
Não parecem ser ali suficientes.

O espectáculo é em si muito bonito


Se desenvolve numa sala esplendorosa
E acontece em três palcos simultaneamente
Mas contém decerto uma certa complexidade
E aqui e ali você confunde os planos
E quando enfim termina
Suas energias comecem já a ficar sobrecarregadas
E você tenso e esgotado.

312
Vem então na direcção da rua
Não sem que no caminho
Passe naquele cocktail
Que é oferecido no fim do espectáculo
Comemorativamente por ter corrido bem
Também de agradecimento aos artistas produtores e directores
E onde um serviçal particularmente estúpido
Pretende tratar você como se fosse lixo
E aí
Você não tem outro remédio
Do que confrontá-lo e sair
Não sem que ao começar
No escuro da noite a descer a rua
O estúpido e os colegas se reúnam

P’ra providenciar a você


Uma agressão que se prevê violenta
Mas que apesar de tudo
Não chega a efetivamente acontecer.

Aí a rua resplandece
Em toda a sua antiga e calcetada indecência
Velhas promessas de salvação
Que você conhece há muito tempo
Vãs literaturas
E outras vaidades que você não tem
Nem mais dificuldade em recusar
Apenas um último pagamento mais lhe é exigido
Quiçá dívida antiga
Esquecida nas derivas do caminho
Em algum canto dos seus nós mais pedregosos
E você paga
Contrariado mas paga
Ainda que
Como todos os indevidos pagamentos
Este tenha que ser feito
À custa de recursos recrutados
Em plano e condições muito difíceis
Mas enfim humilde e respeitoso você paga
E resgatado acorda para a vida.

6.
O que somos não passa na verdade
De um espermatozóide que cresceu
Da forma como o vemos representado
Nas imagens que reproduzem o que se pode ver num microscópio
Aquela cabecinha que é o cérebro

313
E a pequenina cauda
Que depois de crescida é a medula espinal
Nem um nem outra de somenos importância
Para a tarefa a que chamamos ser.

É na verdade um tirano
Que desde o início só quis ser
Invadiu o primeiro óvulo que encontrou
Furou-lhe a pele
E desde aí só se ocupou em existir
Criou o corpo em volta de si mesmo
Uma arquitetura mecânica
Somente destinada a mantê-lo
O tirano
Continuando existindo
Manter sentir e dar reprodução
Àquele ser insólito
Eis a singular finalidade para a qual fomos criados.

Como é que foi possível separar


O criador da criação
Como seria possível
Dirigir um carro ao arrepio da intenção do motorista.

Tive uns parafusos soltos na cabeça


Que foram com o tempo e os maus tratos
Ficando muito folgados
Até que uns amigos distantes me ajudaram a apertar bem apertados
Os poucos que eu ainda tinha conservado
E generosamente
Me ofereceram outros
Que eu nunca tinha tido.

Agora que o veículo


O que se diz ser o propriamente físico
Vai como que assim se degradando
Acho que não acho nem as porcas
E desses parafusos tão fiéis perdi o rasto
Só lembro assaz timidamente
Que eram parafusos muito bons
Inoxidáveis
E que até hoje me encaixam a cabeça entre as orelhas.

Mas o tirano não permitiu que os meus augúrios


Os mais cândidos e santos que já tive
Se confirmassem num futuro efetivamente vivido
E o meu corpo foi pasto dos desmandos
A que me obrigaram sonhos desvarios
Preguiças e luxúrias
Gulas e formas de todos os pecados.

314
Seguiu assim esse tirano
Que me sufoca e me explora os fluidos
Martirizando a minha débil existência
Com os ditames que desenhavam seu projecto
Comi inúmeros cadáveres
Que não encontrei repugnantes
Envenenei o sangue
Consistentemente
Dobrei-me e desdobrei-me em empreendimentos
Fodi o mais que pude
E revelado
O que ficou por parecer ser a vã finalidade
Me vi suspenso um pouco acima
Do que também me pareceu
Ser o limite das águas
E ainda que me fosse tão apetecível mergulhar
Permaneci atento.

Mas o caminho
O qual difícil e pedregosamente eu tenho andado
Foi ‘inda jovem noivo assassinado
Dado ao prazer desse tirano incauto.
________________________
LITURGIA E MISTICISMO

(32)
A MULHER

A minha igreja é uma mulher


E a sua vagina é o meu altar
A minha hóstia é o seu clítoris
Que eu devoro cheio de adoração
Recebendo deus com o êxtase de um santo
E embora outras igrejas possam achar que é pecado
Eu acho esse pecado divino
E essa volúpia uma transfiguração.

Quando a porta do seu corpo está aberta


E chama para dentro os seus fiéis
Todos os meus neurónios se despertam
E tensos de tesão ficam alerta.

Como uma adorada sublimação


As coisas que essa deusa me provoca
Estão para lá da imaginação
Todos os músculos do corpo se retesam
E uma vontade insaciável de praticar o bem
Pelo menos por um momento se me apossa
A vida ela mesma parece ali maior

315
O tempo pára e tem um gosto a ferro
E finalmente
O corpo descansado e por um momento quase morto
Fica em contemplação.

A beleza da mulher é infinita


E olhá-la é como uma oração
Uma novena nunca terminada
Nunca suficientemente rezada
É uma oração que se reza a uma deusa física
E que não precisa de palavras nem de ritmos
Oração nunca acabada ou repetida
Cujos mantrams se repetem em silencio
No derramar dos olhos
Emocionados e tontos pela devoção.

O torso da mulher é como um púlpito


Onde um perverso sacerdote empolga e canta
E os anjos que pendurados e barrocos
Ganham textura e cor
Parecem então ficar num êxtase
De espiritual iluminação.

Pela igreja dentro pela porta principal


Entra a procissão dos meus sentidos
Como dois pilares de uma construção gótica
As pernas da mulher são a entrada
E é aos seus pés
Delicado recorte de ossos nus
Que os mendigos colocam as caixinhas
Com que imploram extasiados uma esmola.

Adentrada a nave principal


Todo o meu corpo exulta
Porque está perto e para breve o exercício da missa
E o estandarte que num paroxismo da fé
Se ergue
Com a sua águia romana e impiedosa
Brilhando e apontando as cúpulas
Se dirigindo paranormal e estigmática
Para o altar
Funde-se no mistério e exulta ali
Onde é derramado e liquefeito o sangue
De um cristo impessoal e transcendentalizado.

Pelos cantos aguardam os fiéis


Que chegue a hora mágica da eucaristia
Ficam ali
Como se tivessem cessado de existir
Todos os neurónios do meu corpo

316
Todos os músculos e fibras
Todas as linfas
Inebriados por aromas que não são de flores
Cantam e dóceis
Se compadecem
E então
Quando a missa termina vêm p’rá rua
Revigorados e felizes
Porque uma vez mais teve lugar e hora
Teve inocência e momento
O milagre do pão.

Como outras e tantas igrejas que existem


Uns dias esta minha igreja é mãe outras madrasta
Mas não é por isso que eu a amo menos
Independente da fé com que a adoro
Ela se impõe e me cumula de consolação
Carismática e perigosa
Me faz por vezes engolir meu medo
E imponente e bela como só
Uma catedral de mármore e cristal
Quando eu a vejo o meu coração sente
Que é dentro dela que quereria estar
E quando eu sinto vejo
Que ela é tudo para mim.

Será que ainda existem Marílias


Entoando adoradas seus Dirceus
E entrando elegantes nas batalhas
Dando seu colo para os guerreiros exaustos
Descansarem as pesadíssimas cabeças?
Não sei se ainda há essa batalha
Ou se as Marílias são as namoradas dos rappers
Eu sei que existe o mar e a distância
Desenhada e perdida
Num quadro nunca exposto ou conhecido
Numa forma desusada e final
De arte infantil.

(33)
TOMAI E MAMAI TODOS

Tomai e mamai todos


Esta é a minha teta
E dela vos darei afagos a beber
Bebei então sofregamente
Bebei e adorai
Porque este é o meu orgasmo mais gostoso
O pão guardado
No custódio entrecoxas

317
No meu cofrinho sagrado
Mamai como bebés
Doces e esfomeados
Mamai carinhosamente e orando
Puros de toda a maldição do ciúme
Ou mesmo da dor do desamor
Mamai como inocentes
Todo o sabor do meu prazer
Que vos farei brilhar
E vos farei crescer
Na luz do meu eterno incandescer
Mamai do meu cálice sagrado
Beijai-lhe as bordas antes
De copiosamente
Lhes beberdes o vinho
Ide então puros
Livres e limpos das maldades
Com que vos tem a vida amordaçado
Mamai da minha hóstia sagrada
Que eu vos farei sentir
Todo o santo cristal sexualizado
Santo dos santos
Sagrado entumescido e edulcurado
Sabor do meu mistério.

(34)
AS IGREJAS

Igrejas houve onde eu só estive de visita


Muito criança ainda
Que de imemoriais anunciações
A minha sede de ilusão nunca esqueceu
Igrejas lindas
Claras e luminosas
Como são claras e puras as crianças loiras
Outras eu visitei em dias coloridos
Fazendo o que fazem as crianças nas igrejas
Antes da primeira comunhão
Brincam e sentem
Coisas inexplicáveis
Como se tivessem sido
Crismadas antes do tempo.

Outras eu visitei como turista


Apenas reparando nos contornos
Infatigáveis e límpidos
Em cada uma
Da sua peculiar arquitetura
Lindas e por momentos tais igrejas

318
Não deixaram jamais de produzir
Da sua vocação imaterial
A sugestão inolvidável de uma longínqua fé.

Houve uma igreja de um dia que me deslumbrou


E que eu amei com devoção inaudita
Embora nunca a tenha visto ou entrado nela
De um continente distante seus contornos
Só em fotografias conheci
Filmada em vídeos
De rudimentar resolução.

Essas igrejas longínquas


Habitadas por fés indefinidas
Ainda que poderosas e anunciadoras
Mesmo que breves e imateriais na sua anunciação
Foram indício loiro
Refinado e constante de que a vida
É uma peregrinação.

Sem muito alarido ficam breves


Esperando suas portas de anteparas
Abertas num vaivém de espetativas
Uma visita curta mas intensa
E mesmo quando nelas não se reza
Nem nelas entra a alegria de uma procissão
Podem ser pólo
Suave e revivificador
De devoção e fé.

Lembram outroras
E são de uma outra missa
O sedutor ainda.

Confluindo para o nada em que se esmagam


Tais alucinações
São da mercadoria o preço por que pagam
Todas as orações.

Depois é na crueza da pedra


Na crueldade das mortificações
Passado o tempo e seduzido o encanto
De incontáveis e incontadas
Idas e vindas ao altar do agnus dei
Que os corações demoram
Para sangrar mais uma gota
Que cai placentamente
No feroz vaso baptismal
Da redenção.

319

A primeira igrejinha onde eu rezei
Era pequena e branca
Caiada docemente pelo povo
Com uma pele branca e quase transparente
Por fora era apenas uma ermida
Mas por dentro
Ah por dentro…
Era faraónica era total
Era babilónica e definitiva
Quem entrasse nessa igreja inconfundível
Tomado seria por uma adoração mística
Tal e tão forte
Que seria para sempre possuído
Pela devoção e fé de lá voltar
E enquanto eu tive fé e andei perto
Voltei
Muitas e muitas vezes
Até que a minha igrejinha pequenina
Popular e exótica
Por ser tão bonita e insaciável
Deixou de poder conter em si os seus fiéis.

Mas rezei tanto


E tão devotamente
De frente para o altar incomparável
Dessa pequenina igreja inicial
Descomunal por dentro e calorosa
Que possuído
Por sentimentos e desejos
De me sentir em unidade e absoluta
Fusão com deus
De tal maneira e tão irresistivelmente
Que uma intenção ainda então desconhecida
Jamais viria a permitir
Ao meu coração descansar um só momento
Meu corpo derreteu ligado
Em êxtase
Definitivamente unido ao seu altar
Eu aprendi
Ou comecei lentamente a aprender
A dimensão imperiosa e mansa da palavra
Religião.

Só a visão deliquescente e doce


Daquele pequeno mas indelével altar
Suas velas em volta e o cheiro
Que se desprende do seu doce vibrar
O pleníssimo calor daquela água
Com que se benzem os momentos

320
Em que a missa tem o seu lugar
O mavioso som com que se pronuncia a liturgia
O tenro sabor dos lábios que articulam
O ritual volátil e cerimonioso
Que nenhuma palavra consegue definir
E o indefinível paladar da hóstia
Que os corações higienizados pela confissão
Podem beijar
Podem configurar o rito
Que se desenha num anseio por uma prova ainda breve
Ou numa certeza inconsciente e inexplicável
Que uma igrejinha quase rural e indecisa
Podem proporcionar.

A princípio era apenas um caminho


Onde eu passava todos os dias
No alto de um outeiro aquela ermida
Parecia me chamar
E houve um dia
Em que cansado dos trabalhos que eu fazia
Ela me deu seu colo a descansar
Minha cabeça ficou por uns momentos entornada no portal
E descansado meu coração e meu corpo
Singelamente ela me convidou para entrar.

E foi assim que de uma caminhada interminável


Eu dei tímido e quase impercetível e fugaz
O primeiro passo sem o qual
Nunca se poderia começar a caminhar
Ainda receoso como um missionário
Que inventa uma igrejinha na selva
Eu procurava povoar cada homilia
P’ra contornar um medo que às vezes nem sentia
Com todas as sinceras e puras intenções
Que nos permitem
Acreditar e ser.

Parece um barco que navega e corta as águas imponente


E de repente
Se vê sentindo mais e irreversivelmente
Que está navegando para o outro lado
Passou um ano sem que eu voltasse a penetrar um templo
Talvez por desgosto ou desconsolo
Talvez porque a primeira igreja
Em que efetivamente rezamos uma missa
Seja aos nossos olhos tão bela
Que é difícil compará-la com as outras
E embora seja vero
Que todas as igrejas se destinam
À consecução maravilhosa e pura

321
Do mesmo indefectível mistério
A nossa igreja é sempre a mais bonita.


Uma igreja é um lugar onde se reza
Às vezes sozinho no fundo da capela
Para onde temeroso e tateante
O crente em dias de uma nuvem mística
Sentindo o peso e a tristeza dos seus passos
Sutil e maternalmente é atraído

E manso se aproxima devagar


Incrédulo e cego pela dor
Quase beijando o chão que pisa.

No limiar desse momento de oração


Interiormente erguido
Por uma inspiração natural
Aquecido por uma manta de retalhos
Paciente e doce de aconchegos místicos
Próximo então da vocação de orar
Ele circunda hesitante antes de entrar.

Olhos cansados e tímidos


Sonham ainda com a beleza singular do lugar
Lugar antigo
Reconstruído e a cada vez embelezado
Pela fé e adoração de sucessivos cultos
Uma igreja singular outrora dólmen
Mesquita sinagoga catedral imensa
De uma beleza e construção inatacáveis.


Nem sempre a fé é tanta
Ou a igreja tão santa
Que ali se reze e que a reza
Seja retemperadora.

Pode até ser que a igreja


Seja singela porém
Decoradinha a preceito
E mais além
Seja por ser exótica ou regional
Uma atração quase fatal
Impele o crente a fazer dela um lar
E aí rezar.

322
Porém a fé sendo pouca não compensa
E o olhar mais que de misticismo santo
Se desfigura em crítica e sulfídrica paixão.

Quando ajoelha o crente


Apenas sente a rispidez
Com que lhe fere a fé
Cada degrau do altar.

E então a oração é pobre


O crente sofre
A própria igreja sente
E a oração torna-se banal.


Tem horas em que pelos afãs da fé
Somos levados a rezar
Não porque uma mística intenção
Nos mobilize a vontade
Mas porque ou o horário do culto
Ou mesmo a devoção dos outros crentes
P’ra dentro da igreja nos atrai.

Então rezamos despojados


E insensíveis aos insustentáveis devires
Que podem assolar uma paróquia
Ficamos como que insensíveis
Às dores próprias e assim
Às dores alheias.

São dias sobre dias de inútil oração


Até que um dia
Naturalmente e sem consternação
Mudamos de cidade p’ra rezar.


No mais tempestuoso e dolorido
Acidulento conflagrar do meu fragor
Aconteceu-me um dia possuir
Um salvo-conduto para entrar
Em uma igreja de um país distante
Distante e próximo como se invulgar
Tivesse há muito
Depois de terramotos e de guerras
E já diminuída de um pilar
Perdido o hábito de que fervorosos crentes
Entrassem nela para orar.

323
Foi-me indicada por um velho peregrino
Que circulava só pelos caminhos
Radicando todos os seus passos
Numa vertigem que corria
Maravilhosa ao invés do chão
E aquele sinal prometedor
De divinos e suaves misticismos
Foi desde logo
Por mim seguido em oração
E despropositada nunciatura.

Logo à entrada era uma igreja


Assaz invulgar
Não era como todas simetria
Lugar por onde
Uma guerra poderia passar
Mas antes que eu pudesse perceber
Todas as singularidades
Da sua peculiar arquitetura
O meu estandarte foi ali a benzer
E em folhetos e pagelas produzido
Foi uma vez mais obrigado a sonhar.


De outros países foram muitas as igrejas
Que ao seu culto chamaram os fiéis
Vinham de longe e ao contrário
Da santa imaculada fé dos peregrinos
Eram dos cultos antigos perdição.

Cultos breves
Compactados num êxtase lisérgico
Desmesuradamente aberto e visionário
À imprudente aurora dos sentidos
Às vezes só fingidos os seus hinos
Só transposto e assessorado o adro
Nem tanto nem por isso aos olhos puros
Menos sagrados.

Como que fossem de catárticos epílogos


Mortais enganos
Tinham nos mantos dos seus santos muito esmero.

324

Também já rezei em lojas
No final de um dia de trabalho
Em igreja de pequenas dimensões
Igreja vadia sem tecto nem fundo
No deslumbramento da azáfama
E das transparências
Igreja perdida na intenção da sua fé
Reconduzida a casa por uma paternal forma de liturgia.


De suaves encantos juvenis
Ricas bibliotecas decifradas
Guardadas em familiar sacristia
Decifradas e expurgadas de impurezas
Pela redenção das escrituras
Os mantos de penumbra ainda vivos
Toldando equivocadas plataformas.

Nessas igrejas de ricos contrafortes


Em que a história espalmou suas matérias
É difícil permanecer incólume
E lá ficar
Cantando a missa até ao fim.


Em horas de fanáticas andanças
De hinos e empolgadas homilias
Quando já ajudava à missa
E em ocasiões particulares
Me era dada já a oportunidade de cantar
Quando entoada em duo a santa missa
Era perene e bela
Muitas vezes celebrada em pleno ar
Livre de noites estreladas e amenas
Entrei alegremente numa igreja
Transladada de um lugar distante
Que muitos conhecem por Holanda.

De construção recente a igrejinha


Não soube ou eu não quis
Que de olhos e nariz não me encantei
Que fosse a minha fé retemperada
Aos cálidos apelos
Das praias e do mar.

325
10ª
Pequena ermida construída no deserto
Cercada de ventos
De urzes rolantes
Camelos e beduínos
É daquelas igrejas onde como às vezes acontece
Rezamos uma única vez
Eu tinha até passado à sua porta
Uns anos antes
Num momento em que a minha alma mística
Carecia particularmente de fé
Por isso e tanto
Não havia ainda entrado ali para rezar
Foi uma missa breve
Sem paramentos e em que a liturgia
Fica reduzida ao ritual fundamental
E cá fora afinal depois da missa
O deserto continua
E venta.

Mas leva-se dali uma lição


Da qual o tempo e a repetição
Traduzirão na vida mais tarde
De uma intenção sua confirmação.

Um ano e dia se confirma certa


Como pode ser bela uma igrejinha no deserto
Parece impaciente a sua dor macia
E nela se decanta uma sede
Não de promessas nem de benzeduras
Mas de verdade cristã.

Sente-se o mesmo
E mesmo que seja por momentos
Quase ilusórios como gotas
Perdidas no incomensurável mar da vida
Fica uma marca
Nunca apagada e da fé
Os crentes quando saem para a rua
É paternais
Carregando docilmente e rendidos
Mais luminoso e franco que pequeno
Um Menino Jesus de porcelana
Que um ano e dia
Num ápice eterno ou noutra hora
Tomará vida

326
Na sacristia em que se paramentam
Os sacerdotes de todas as igrejas
Um outro Cristo difundido e imperioso
Que brilha no topo como um íman
De todos os altares.

11ª
Foi de uma vez a vez primeira
Porém anunciadora e tensa
Que uma outra igreja de envoltura preta
Abrigasse também a minha fé.

Já vinha rezando complacente


Ao tempo em que uma porta entreaberta
Se fez apelativa em meu caminho.

Porém surpreso
Assisti manso ao invulgar propósito
De estando o crente inteiro varando o templo
Ser na verdade
O edifício quem reza por ele.

Numa empolgante quanto colorida


Terrena e forte alegoria
Foi das janelas à nocturna luz da lua
Que foram dadas catequeses imortais.

12ª
Já nas igrejas das cidades corre um culto
Que se foi tornando fácil de seguir
Qualquer pessoa pode ali rezar
E mesmo os hinos são sempre adivinhados.

Nem sempre são grandes tais igrejas


Mas o seu púlpito é delineado
Sob medida para o sacerdote
Que ali souber cantar.

Às vezes são apenas


Uns nichos com a figura da santa
Na beira de uma estrada ou numa rua
Dissimuladas nas fachadas das casas.

E as pessoas que passam nem reparam


Seguem o seu caminho e na verdade esquecem
O que por vezes
Só os seus olhos viram periférico.

327
Mas tem quem passe
E sinta devoção curiosidade
Por tão insólita alusão ao templo
Que a todos toca quase dada antes de dar
E é por isso
Que nesses singulares lugares
Também sincera e quase
Devotamente se reza.

13ª
A primeira vez que a vi
Aquela igreja me pareceu
A mais bonita do mundo
A mais terna e acolhedora
De todas as que eu já houvesse visto

Sua fachada era esplendorosa


E ao contrário de outras
Em que era eu quem se aproximava
E que eu já havia visitado
Essa igreja parecia incompreensivelmente
Ser ela quem voluntária se aproximava de mim.

Só muito raramente eu ia àquela igreja


Fui lá muitas vezes
Em diferentes momentos da vida
Era uma igreja a que eu sempre voltava
Uma igreja de certo modo vistosa e imponente
Somente frequentada por cristãos muito bons
E que eu achava sumptuosa demais p’ra mim
Mas onde a minha alma se sentia aconchegada.

Ia sozinho
Quando não estava lá ninguém
Ficava olhando
Os belos retábulos da nave principal
Mas nunca ficava para a missa
Havia nessa igreja alguma coisa
Que me fascinava
Mas que ao mesmo tempo me oprimia.

Sempre que havia terramotos na cidade


E algum campanário se desmoronava
Eu corria em solicitude e paixão
A ajudar os pedreiros
Que livremente sempre a reconstruíam
E algumas vezes assistia
Ao singelo mas eloquente serviço
De acção de graças
Mas nunca naqueles dias em que havia procissão.

328
De tal maneira eu era apaixonado por aquela igreja
Que decidi nunca mais
Assistir missa em outra
Culpava-me a mim mesmo
E à minha falta de fé
E durante anos
Entrava na igreja e orava.

Até que um dia


Ocorreu inesperado e fatal
Um grande terramoto
Numa cidade próxima
Mas cujas ondas de choque
Se espalharam
Atingindo sem dó nem piedade
A minha adorada igrejinha
Que embora bela e imponente
Era p’ra mim como se fosse uma ermida
Já não podia entrar nela
Eram só escombros
E comecei então a frequentar outras igrejas
De outros lugares
Onde se celebravam lindas missas
E grandes procissões desembarcavam
Nos seus altares.

No lugar onde antes existia


Aquela bela e imponente igreja
Foi construída uma vulgar e baça paliçada
Onde ainda assim de vez em quando
Eram rezadas umas missas
Mas nada com o vigor e a opulência de outros tempos
E por graça milagre ou coincidência
Essa fase lúgubre e tediosa
Me foi poupada
E a esse ocaso previsível
Triste e sombrio
De um templo outrora invejado e refulgente
Eu já não assisti.

Mesmo que me sobrasse


Um recôndito e perene desejo
De a ver reconstruída
Não tinha já tino ou vontade
Para carregar as pedras
Do que antes me poderia ter parecido
O mais belo templo construído sob o sol
E de todas as igrejas a rainha.

329
Na paliçada feita á pressa
Continuava com afã a catequização
E a estranha igreja em que a missa foi interrompida
Depois da eucaristia extemporaneamente
De forma inesperada e totalmente incomum
Quando todos os crentes esperavam a entrada
De uma procissão decorativa e bela
Aquele espaço sagrado
E até aí sincero e inexpugnável
Foi invadido por membros enfurecidos e possessos
De uma seita
Que em hora aprazada e criteriosamente cumprida
Viriam a se tornar por causas duvidosas
Intensa proclamada e desumanamente
Particularmente violentos.

A igreja depois de profanada


Parecia ter perdido a sua cor
Nas naves onde antes refulgiam
Lindas imagens de uma santificada iconografia
Como Giocondas prometidas
Em ascensão içadas ao senhor
Estavam agora enegrecidas e baças
Placas delidas e esburacadas
E os crentes infelizes mas mais ainda estranhamente
Resignados
Nessas vezes em que já pouco lá entravam
Saíam antes
E quase sempre
A santa missa era cancelada antes de começar.

14ª
Todas as igrejas são feitas para serem belas
Embora haja umas mais belas do que as outras
E a beleza esteja longe de ser coisa improcedente ou fortuita
Por ser inócua ou casual
É das igrejas critério fundamental
Centro fulcral da devoção e do serviço
E uma causa primeira e instrumental
De uma forma superior de inteligência.

Às vezes é preciso dar à fé


Um impulso energético e viril
Não ficar pelos cantos em murmúrios
Nem se esconder nos abrigados vãos da sacristia.

330
É então que ao crente é dada a conhecer
Qual é a verdadeira vocação
A transcendente e vital
Quanto maravilhosa intenção
De todo o serviço eclesial.

Aí depois de um tempo
Em que a igreja se reveste
De uma missão ambulatória e campal
Vem ao de cima
O superior mistério causal.

De toda a reza é a expansão do ser que se deriva


E reproduz em novos frutos e assim
O que lhe dá vigor e fama ao culto
É essa certeza de que amando
Orando muito e com adoração
Mais seres serão trazidos ao mundo
E o mundo em si fica maior.

15ª
Há igrejas evangélicas em que se cobra
Onde uma cobra se prefigura
No lugar onde deveria estar um altar-mor.

Nessas igrejas
Nunca em verdade
Me foi realmente dado rezar
Apenas uma ou outra confissão.

E no crescente
E inocentemente ébrio desconsolo
Da viuvez
Tirar um sarro
Na beira de uma estrada.

Mas seja dito também e em verdade


Que em outras horas e só por amizade
Me foi pedido que rezasse
E aí rezei
Sem que tivesse impropriamente que pagar.

16ª
Não é o tamanho da igreja
Que determina a profissão
Da sua abençoada função.

Na vida calcorreamos
Estradas ruas e caminhos
E há vezes em que passamos

331
Distraídos por portais
Floridos e bem tratados
Inocentes e benévolos
À nossa passagem não menos inocente.

E todavia nem reparamos


Que ali poderá estar uma igreja
Onde vemos apenas uma casa numa rua
Mas lá dentro talvez pudesse ser
Que fosse intenso e aprazível rezar.

E é assim
Que de tantas e tantas vezes passar
Há sempre um dia
Em que por qualquer razão
Que não é p’ra’qui chamado perguntar
Em que calados acabamos por entrar
E rezamos.

17ª
Prepassados e mantidos os lutos
De que o desmoronamento de uma igreja sempre chama
É nas alfombras de maternais naves
Outros altares abertos e epifânicos
Que a alma retempera as suas fés
E os pergaminhos mais antigos são lançados
Para um cálido e doce esquecimento.

Depois de muitas rezas


Orando em muitas línguas
Catalizando o sonho de uma igreja universal
Aprende-se a sonhar
E reza-se melhor
Enormes procissões costumam ser então
Pelo povo cristão organizadas
E os estandartes
De tão usados no seu fulgor devocional
Podem até
Aqui e ali aparecerem rasgados.

São marcas de uma fé poderosíssima


Que reclama dos fiéis total empenho
E nos embargos da profana vida
Parecem perecer
Os mais convictos e seguros
Dos alvítrios carismáticos.

332
Ainda que parcas em vitrais
De pálidos enfeites
E curtas dimensões
Essas igrejas são pura e singular-
mente evidentes
Na forma como asseguram que a função
Maravilhosa função à qual são destinadas
Se exerça com total capacidade
A ponto de em momentos de rigor
Serem da sua confissão total penhor.

18ª
Em todas as igrejas em que se entra
Fatal seria que uma vez ou outra
Por algum enevoado ou incontido
Desses incontáveis desígnios da fé
Se entrasse mais uma vez
Ainda que cada igreja seja muito mais votiva
Quando é adentrada pela primeira vez
E então em repetidas e mais devotas vezes
Se reza nela.

A fé então se torna inebriática


E rezar entre crentes e templo vira quase um vício
Principalmente se no momento
Em que tem lugar a comunhão
O pão e o vinho em desigual proporção
São aos crentes dados em pródigas quantias
E o serviço
Regado com os inflamados éteres
Da redenção.

19ª
Existem igrejas imponentes
A que chamamos catedrais
Elas são lindas
Por vezes são austeras
Construídas laboriosamente
Por operários livres
Muito qualificados.

P’ra conhecer essas igrejas


É às vezes
Necessário percorrer longas distâncias
E se conseguimos conhecer uma na vida
Valeu a pena porque ali
A missa é sempre cantada
É uma missa diferente
Rezada num lugar magnificente
Tão bonito

333
Tão maravilhoso e sólido
Que nos parece indiferente
Mas somos nós afinal que estamos cegos
Por uma luz muito rara e racional
Que emana permanente e natural
Da aparente frieza do lugar
São vitrais feitos de olhos humanos
Que como sóis
Nos iluminam a alma.

Lugar de todos os lugares


Onde vamos mais que adorando ou crendo
Apaixonadamente
Levados entregues e suspensos por um ar
Que é quase impossível respirar
E onde todos os dias acontecem milagres.

Mais querida do que nenhuma outra


Alguma vez antes rezada ou tida
Naquela igreja tão despojada e sóbria
Onde a fé me pareceu fria e racional
A devoção foi desejada e ferida
Como que de uma ave antiga
Que presa numa gaiola imprópria
Pedisse aos seus algozes de partida
Um último voo de despedida.

Também a mim me foi dado


Por uma vez entrar
Numa dessas imensas catedrais
E rezar
Como era bela aquela igreja
Que templo extraordinário
‘inda que nos seus traços românicos e rústicos
Como em nenhuma outra
Sente-se sempre a vontade de voltar
De rezar sempre e quando
Se sente essa vontade intensa e sublimada
Inadiada e pura
Mesmo depois de terminado o serviço
Quando os crentes já foram para casa
A missa continua
E nela exulta tanto a fé e a atitude
Que foi nela que um dia decidi
Me tornar padre
E a minha fé
Ainda que duramente posta à prova
Remanesceu intacta
P’ra uma total e carinhosa vocação
Feita de salmos silenciosos

334
Que transformam cada momento da vida
Cada respiração dos sentidos
Em missas procissões e homilias
Sermões inteiros confissões
Cada pensamento em uma epifania
E a vida em geral numa oração.

20ª
No caminho inusitado e quase desumano
De um peregrino
Nunca se sabe qual será a última parada
Antes da última sabemos
Que existe uma penúltima vez
Sim talvez saibamos mas depois
Como poderemos saber o que vem depois da última
Se nem sequer uma palavra possuímos
Para dizer tal coisa infausta e atrevida.

Depois de tantas e tantas igrejas visitadas


Depois de mil eucaristias profanadas
Depois de tantas missas tão queridas
Em vão rezadas
Inutilmente desejadas e tidas
A fé mil vezes questionada
Por raciocínios obtusamente erróneos
E despropositados medos
Ainda que vencidos e passados
Comprovados em dúvidas
Das quais é impossível libertar um ser humano
Ainda que com os pés em sangue e do caminho
Já cansado
Inadiável e presente no horizonte
Eu vi uma pequena igreja se aproximar de mim
E num pequeno e descolorido altar
Senti uma vez mais intrépido o apelo
De uma anterior votiva vontade de rezar.

Mas uma vez chegado


A esse inusitado lugar
Que não tem palavra que possa definir
Aquela igreja afinal me pareceu
Ainda mais pequena do que quando
No horizonte eu entrevi ao longe seus doces campanários
E de perto
A porta carcomida as velas apagadas
Seu púlpito ataviado e rômbico
Que quando comparada
Com outras igrejas onde eu já tinha entrado
De esplendorosos pórticos
Deslumbrantes altares

335
Colunas sumptuosas que me fascinavam
E onde rezei piedoso e brando
Aquela me pareceu pobre e a minha fé
Foi finalmente ali
Triste e clamorosamente posta em causa.

Pode até ecoar estrepidamente


A voz com que se entoam os salmos
Fazer vibrar ao som dos sons
Colunas e paredes na igreja
Mas mesmo preparado p’ra
Se necessário cantar missa na rua
Eu que já era padre embora humilde
Percebi
Que sacerdote e templo
São uma coisa só
Grande ou pequeno
Suave ou esgalgado
Tem um momento
Que é o divino interagir da liturgia
Com a alma e a natureza do templo.

21ª
Por onde em périplos e agonias
Me foi dado visitar igrejas
As visitei em todas as semânticas
Todas as paisagens todas as latitudes
De norte a sul indaguei o penhor da minha fé
Orações orei de agrestes dialectos e tons
Francófonas e bávaras
Espanholas africanas transcaucásicas
De continentes longínquos
Feitas de pedras sólidas ou barros
De cores diversas e iluminadas
E de tanta singular diversidade
Me doeu
Entrar igrejas em que não queria estar
Adentrar naves devassar altares
Insípidos e esguios
Como uma tropa
De ariana e voluntária qualidade.

Adentrei uma vez uma capela


No centro de Munique a desmedida
Ingrata é a hora do engano
Da romano-germânica mentira.

336
Mas mesmo quando amarga
Mesmo que falsa e descrente a oração
O corpo mais que à vida há pertinência
Que o pensamento aprenda a dizer não.

(35)
UMA IGREJA IMAGINÁRIA

Igreja imaginária toda feita


De rituais eméritos inatos ancestrais
De uma quietude intensa entrecortada
Por movimentos divinos
Originais de uma sagrada propulsão
Originada em sãs genealogias de animais
E entidades femininas imortais
Suspensa de um apoio pluricausal
Repleta de galantes clamores espirituais
Gigantes colossais de uma escultura
Assente em bases
Jamais adivinhadas ou requeridas
Como se fosse de sátiros vergonhas
Mágoas cantando
De faunos a decência
Num mar de flutuante consciência
Rasgada em fulgurosas ânsias
De paralelismo e de cadência

1.
A Anémona

A anémona é doce como a luz


Macia como o que fosse um feltro
De seda
Tem movimentos suaves
Sutis
Harmoniosos e leves
Parece ondular se contraindo
Distraindo os peixes que passam no lugar
A anémona ah a anémona
A anémona está sempre molhada
Respira continuamente
Num relaxante contínuo
E pulsa
Mas nunca se repete
Nunca suspira igual
Nunca geme o gemido que geme em movimento
No mesmo movimento
É sempre diferente a cada vez
Que se contrai
Nunca se deixa fria ou se retrai

337
É um calor real
Fora da temperatura
Possui mil olhos eternos a piscar
E a sua forma de existir é pulsar
E pulsando se sentir existir
E existindo se dar.

É evangelho
É boa nova
Uma verdade jovem
E eterna.

Quando pequena e maternal


Tendo saído dela os peixes que habitam no recife
Tendo efetivamente
Dela saído todos os peixes que existem
Buscam para sempre nela entrar
E às vezes entram
E então quando ela pulsa sobrenatural
Mais do que panteísta e lúcida
É imortal
A molhadinha
Como em alguns compêndios é chamada
Cheia de graça
Lânguida e abissal
No fundo surreal dos oceanos
Ela é invertebrada e doce aos seus sabores
Única e pluricontinental.

A anémona
A anèmoninha
Se se lhe toca ela sente
E eu nem sei o que sinto
Quando ela sente que eu sinto
O que ela sente.

2.
A Sereia

Na paz silenciosa e ressonante


Na luz
De uma ofuscada sombra
Reverberada e tensa
Imaginária e trágica embolia
Do que seria um conto antigo
Contado e recontado à agonia
De jovens marinheiros desavisados
No fundo desses mares multicantados
Agrilhoada ao vão romanticismo de uma ideia
Imune às vagas

338
Da solidão mundana
Vive a sereia
Esquecida e encantada
Dos pescadores esculpida
A alma em pensamentos só distância e maresia
De um ritual cantado em versos cavos
Que a razão pura iguala
Escrava e porfíria
Cantando se compraz em não ouvir
Escutando os ecos do salmo em que se encanta
Encanta se encantando
Sujeita sujeitando
Escrava e senhora
Fautora e serva
Escrava de si e do que é mais
Um violento e singular encantamento.

Senhora e madrasta de um só rio


Todos os rios
Suave entrecho de muitas lendas
Subalternos relatos
De nórdicas paisagens
Loralei ternas e dramáticas
Multiplicada em graças
Imorredouras e imparciais ninfas do Reno
Como do Tejo ou de outro rio
Um’ outra ninfa
Dourada e fria
De outra quimera
Douradora das águas prateadas
Igual fatal e intempestiva
Órfã e sequiosa de outras temperaturas
Onde em doiradas águas já chamadas
Em versos calculados e febris
De todas as que foram mais cantadas a maior
A comparcida
A inventiva transcaucásica e desnuda
Puta molhada
Abandonada
Esgotada de vontades incumpridas
Esperando o trânsido escutar de um navegante imerso
Em lânguidos audazes devaneios
É essa deusa amante e seminua
Que ondula as barbatanas e as eriçadas mamas
Faz que flutua
Mora nos rios
Mora no rio o mar
Do mar em que oceanam já todos os rios
Aquela que os irmãos ensimesmaram
Solta no vento

339
A Iara quente das tépidas águas outonais
Brilhos dançantes
Fragmentos de mitologias antes
Cantadas em odes cintilantes
Que ao deslumbrado ouvinte nem deixam respirar
Águas passadas
Tépidas fortes
Zodiacais
Madrasta das bastardas imponências
Derrama e leva as vítimas mortais
Plasmada de imprudências
Em transe esfomeada e exaurida
Da lua hipotecada vida vem lamber.

3.
A Onça pintada

Onça pintada
Jaguar jaguaretê
Canguçu acanguçu
Onça pintada a onça
Por todos conhecida por pintada
P’ra poucos ou nenhuns
Jaguarapinima
A onça
Um esgar inconfundível
Uma assanhada risada
Uma ousadia
Que me comove
Me traz uma surpresa
Mas não me assusta
Que surpreende sim
Mas que me entesa
Que me seduz…

Clamor em doido
Sombras quentes
Calor em ânsia
Saltos no dentro
Interiores voluptuosidades
Recanto escuro
De uma interábil ciência
Águas paradas e
Clareiras muito densas
Humidade
Sabedoria
De lugares frescos
Em transe havidos
Mesmerizados
Na selva.

340
Salve cadê
Me olha lá
Onde eu não estou
Não sei em qual momento
Sei ficar e fico quieto
Sinto que vou fugir
A minha ânsia quer fugir
É o meu medo
Virado em ânsia que me assusta
Mas não…
Quero ficar
Socar o grito
Fazer muito ser ficar silêncio
Cerrar os dentes e sentir
No centro interelétrico do peito
Sentir no tempo
Esse durar do olhar.

No olhar lúcido da fera


A carta branca
A translúcida forma de uma ordem
Vinda do centro do universo vivente
Impossível ceder à tentação
De a incumprir
De a desobedecer
Sucede a ganha clavinal contrapartida
A voluntária transparência quase súbita
Que faz a presa ceder a vez à fera
Deslumbrante
E à sanha predadora incandescer
A manha de saber da presa a clave
A sintonia à ordem
«Fica quieto!».

Então é frega
Mundo virado
Suado e franco
Pára o sentido
Intenso e manso
Que da maior
Mais bela e sã
Caçada e luta natural folia
É uma fera
Vai me comer.

341
4.
Cavalos de Corrida

Como cavalos de corrida


Homens e mulheres se compaginam
São identificados por um número
Como se o número indicasse a sua cor
Ou o seu nome
Um nome e uma cifra que é a idade
Como os cavalos quando são anunciados nos leilões
Ou nos jornais
São indicados por um código
Em que só alguns traduzem e decifram
As perspetivas do que possa vir a ser
O seu comportamento na corrida
Uma corrida em que alguns
Como cavalos demasiado instáveis e nervosos
Não conseguem sequer tomar a sua posição na casa de partida
O páreo
Ficam zanzando
Menos ainda
Participar alegres
No desenfado dessa fugaz empolgação.

5.
A égua

Tem e terá
Agora e sempre tudo
Tem e terá e para sempre
Certo que existirá
Ter outras coisas no mundo
Mas tem a égua
A negra poldra
Da qual um garanhão ter sido o pai
Casta o castigo
Que ela arreganha presos arreios nos dentes
Dos beiços hirtos
Dos olhos cavos
Dos tresloucados uivos que ela grita
Tem a égua
A negra poldra
Acreditai oh incrédulos
Tem sim.

342
6.
A Cobra e a Paca

No buraco vive a paca


A cobra vive na paca
A paca é peluda e molha
A cobra escorrega e cai
É comprida e como a paca
Se encolhe quando tem frio.

A paca é rata manhosa


Mas maior
E mora em silêncio numa toca
Mora em silêncio escuro e mornidão
E a cobra que é fria e nunca ausente
Que dança e que encanta quando olha
Mora no morno da paca.

Na toca tem três buracos


Por um se entra por um se sai
O outro que a toca tem
Esse que nem disse alguém
É só engano
Não tem ninguém
Mas tem
A cobra vivendo ali
Olha o buraco e sorri
E é o que atrai.

Aos viventes dá saúde


Esta amizade
Que existe entre cobra e paca
De verdade.

7.
A Ostra

Cada ostra tem sua pérola


E o caçador de pérolas aprende muito bem
O delicado jeito inteligente
Macio suave e fino
De se abrir a ostra
De perceber o ondular das pregas
A densidade dos lábios
Os folhos divinilúcidos fantásticos
Para conseguir chegar na pérola mais preciosa
Na jóia rara
Quem educa o tarefeiro é a tarefa
E isso vibra na cabeça
No coração

343
Na calorosa base
Do ventre
Amante que enlouquece ao toque amado
E se derrete
À espetativa demente e molhada da tarefa
Que alarga as águas livres e revoltas
No fundo escuro da gruta
Que é de onde brotam os eflúvios
Os caudalosos rios do mais sagrado e lúcido desejo
O claro delírio do clamor
De ao ver a tarefa executada
Fazer o que faz o tarefeiro
Ver os riachos e as cachoeiras convertendo-se em prazer
Quando os peixinhos saltam
Dentro da sua barriga
E a zagaia colorida toca o fundo
O fundo insaciável
O indecente e delicado interior profundo
Enclausurado e sensível que você tem como ninguém.

8.
A Manga Rosa

A Manga Rosa é uma fruta que se chupa


Deliciosa
A gente fica ali chupando manga
A Manga Rosa
E pode chupar a vida inteira
Porque o suco e o sabor nunca termina
Ela fica ali pendurada a meia altura da mangueira
Árvore frondosa e feminina
Que se afirma e determina por ser bela
E dar
A Manga Rosa
Fica deitada com seus ramos abertos como braços
De uma mulher deitada
Que espera ardentemente gozar
E é então que a Manga Rosa
Como que aberta e inchada
Chupada afanosamente
Se torna deliciosa.

344
9.
O pardal mascarado

Uma mancha preta sobre o peito


Subida e recuada do pescoço aos olhos
E p’ra trás
Onde seriam se se vissem os ouvidos
Assim é o cinzento pardalito e esfomeado
Que vem me visitar todos os dias.

Parece um ser ideal


Real na sua sã conformidade
E aquela mancha preta sobre o peito
A traça esvoaçante
É que lhe dá de ser real e da vertigem dimensão.

Mas não não é real o meu pardal


É a miragem
De uma outra boca
Que negra me devora.

(36)
AS MULHERES

Mulheres existem
Como se diz há muitas
Incontáveis
É nelas que me leio
Nelas me viro
Inverso do avesso dos seus beijos
Na transparência das virtudes e das propriedades
De seus peculiares comportamentos.

As feias olham para mim com cobiça


Porque eu sou magrinho mas sexy
As bonitas olham para mim com um desafio
Porque eu tenho a mania e me acho
As princesas olham para mim e fingem que não me vêem
Porque eu lhes lembro o que são
As muito belas…
Nem sequer olham para mim.

Mas as rainhas paradoxalmente


As deusas
Todas as filhas de Isis desse mundo
Ao contrário do que seria de supor
Olham para mim
Ainda que por vezes
Nem me vejam.

345
Há mulheres que olham para mim
Pensando que sou eu
Quem
Ou por desmando ou por desejo
Olha p‘ra elas.

Dessas mulheres
Algumas por educação ou timidez
Desviam o olhar e ficam a pensar
Pensam que sou atrevido
Ou que se pudesse
As quereria seduzir
Outras
Elas próprias
Por sentimento ou dúvida
Fixam em mim o seu olhar e resistindo
Me pedem para ser eu a desviar
O meu olhar
Ou então me perguntam
Porquê
Saber não sei
Mas seja fé
São essas que me atraem
As que eu desejo
Aquelas em que eu me acho e espelho
E que em horas
Por imperiosidade ou inocência
Tenho tendência para inocente amar.

Das mulheres afinal eu não sei nada


E é por isso talvez que grosso modo
Todas revestem ao meu clamor e canto
A flôr essência
De uma existência
Sagrada…
como as igrejas
Igrejas são como mulheres
Lugares onde se entra
Para rezar
Mas de onde por encanto
Maior
Ou por menor que seja
O seu encanto tem
Encantos tais

346
Que de uma igreja
Onde se tenha ativa e efetivamente rezado
Nunca se sai
Nunca se sairá
Apenas esquecemos o encanto
Com que em um dia obnubilado e difuso ali rezámos.

(37)
DEVOÇÃO

Será que és a nossa senhora da minha capelinha


Uma santa de altar em carne e osso
Em luz e tranças
Em cordas de uma indestrutível e sutil amarração
Será que a procissão do meu olhar
Revela ainda longe o som sublime do trinar
Do sino que soa nos teus sonhos
E brilha ao sol
Pelas entradas aéreas e totais
Do teu campanário de medos e de ais.

Clama por teu doce olhar todo o meu ser


Em arroubos inflamados ideais
Perfeitos mares de misticismos raros
Que em todas as auroras são arrais
Das tábuas estilhaçadas que o meu barco arroba e quer
Parecer
Quando ajoelha e reza
Quando o que eu sou navega
No sentimento o vento encanto e paz.

(38)
AS SANTAS

Santas são mulheres


Mulheres que fazem milagres
Cada dia tal milagre
É formatado no mundo
E nunca amanhece um dia
Desde o princípio do mundo
Nem um só dia
Em que um milagre não seja
Por corpo de mulher executado
E aconteça.

Mulher é dar
É dito ser
Que santas são mulheres fazem milagres
São extasiáticas e glicerinas
E algumas dão nomes a igrejas.

347
Conheci santas na vida
E das quais
Inquestionável é
A pureza dos milagres que fizeram
Poderia sem pudor dizer seus nomes
Stª Cristina Stª Ana Stª Paula
Nossa senhora
Aparecida ou a de Fátima como a filha do profeta
De qualquer nome seriam
E para todas elas
Haveria um nomeado ser
Relevando-lhes na tépida inocência
A glabra santidade e o viver
Para todas as santas teria e tem um nome
E para todos os nomes uma santa tem também
Não me cabe a mim porém julgar
Da santidade delas
Julgar é o que fazem as igrejas
Em que as mulheres que eu julgo não são santas.

Há fome no mundo existem pobres


Mas de toda a miséria e carência que há no mundo
É afinal de amor a maior parte
E mesmo que por um momento
Ainda que fosse um só momento
Fosse esse dado momento o do consolo
Dado em carinho e com ternura
Mesmo que só ainda e só
Por condescendência fosse dado
Ficaria havendo menos fome e aí
Dado com fé
Pelo amor e incomparável
Desmesurada bondade e ironia de deus
Ele seria dado.

Dado é com abundância e fé e é da ordem


Do milagre esse momento
Em que a paixão
Como foi dito há muito tempo em outro canto
A santidade toca.

Mais do que uma vez na vida toda a vida


Esse milagre acontece
No meu descanso
No meu consolo
No meu cansaço da guerra
Alguma mulher me deu seu colo
Para que ele nesse dia
Fosse p’ra mim travesseiro

348
Entre santas e beatas
Aconteceu acontece
Uma coisa inesperada
Ou muito querida
Fiz promessas paguei coisas
Dei presentes interessados
Mas o colo dessa moça
Eu não pedi foi-me dado
Não interessa quanto é grande
Nem pequena interessa tanto
É sempre bela
Mas a beleza é sabido
Está nos olhos de quem vê
Nos olhos de quem implora
Mais ainda se esses olhos
Não estão implorando nada
Terezas Anas Rafaelas
Todos os nomes do mundo
De olhos vorazes ou puros
Que apenas imploram nuas
Serem um milagre vivo.

Cada vez de cada vez


Que a vida dá
Seu consolo ao peregrino
Despertar se torna um hino
De consonâncias brutais
Tão claras sonoridades
E uma música de sons
Tão caprichosos e bons
Tão sinceros tão suaves
Que o universo inteirinho
Parece inteiro o pontinho
Que o centro do sol habita
Todos os centros que houver
Parecem vogar e ser
Dormindo ou sonhando aflita
Acordada ou de visita
Resumidos no suave respirar
De uma mulher.

Quando ela dá
Sublime e transcendental
Aquela da qual foi dito
Que foi incontáveis vezes
Configurada na vida
Vira santa e dá o nome
A uma total igreja
Beata primeiro e santa
Depois de reconstituída

349
A força dos seus milagres
Das bases até ao topo
Vira templo vira igreja
E o mundo brilha e extasia
Quando em dias de recanto e maravilha
Em noites maravilhosas
Noites e noites a fio
Dias e noites seguidos
De uma vida
Entra nela amante e mágica
A graça esplendorosa
De todas a mais garbosa
A mais sublime e carnal
A mais total
De todas as profissões
Que da fé são prova viva
Entra nela aos empurrões
Sem cerimónias nem ritos
Alegre intensa e festiva
Sem preconceitos nem mitos
A graça subtil e breve
Das procissões.

(39)
O MONASTÉRIO

1.
O Deserto

Na cidade em que quase miserável e burguês


Ainda ensaiava habitar
O sentimento mais terno
O apelo mesmo da singular religião
Que desde sempre ou pelo menos
Desde as auroras subsequentes aos delírios
Com que se compraz autónoma a inspiração
Religiosa dos infantes
A fé que depois de em pequeno professara
Ia-se diluindo
E a própria fé
Aquela vontade inquebrantável que sempre me habitara
Amolecendo.

Ninguém mais me convidava


P’às luxuosas quermesses
Que tinham lugar naquela formidável e plural congregação
Onde antes me sentia como em casa.

350
A euforia e os desmandos
Da fé em uma igreja aberta ao culto
E paradigmáticos seu altar e colunatas
Haviam sido agora postergados
Ao mais inconsistente esquecimento
E em seu lugar se estabelecia agora
Indefinível e tépida
Uma medíocre sonolência
Uma estrutura mole e sustentada
Por morna ladainha filha
De uma bizarra e narcótica crendice
Por liturgias e práticas
De uma abjeta e vã inocuidade.

A vida havia agora quase se transformado


Numa ignara lei de abstinência e silêncios sem sentido
Sem sombras nem desmandos
E de cada vez cada vez mais longínquas
As solicitações perenes
Que em todo o caso havia todavia
De uma memória luminosa e bela.

Sabia com o que recordava ainda


Existirem prados e florestas
Em um lugar distante e abençoado
Mas eram ignotos ou ficavam longe
Mais do que o mar
Que atravessá-lo
Se atravessava com coragem e dinheiro
Havia que
Para chegar a tais fertilidades e luxúrias
De bons augúrios tão cantados
Como em outros leite e mel
Atravessar sim e antes um deserto inóspito e calcário
Uma distância imensa de desespero e aniquilação
Rigor meteorológico
Onde todos os limites extremados
Indicariam a qualquer um que se encontrasse
Menos desesperado
E intransitabilidade absoluta e incomparável
Já nem falando no terror das noites
Das fúlgidas serpentes e lagartos
Dos insectos que no vulgo empeçonham o deserto
Interior.

351
2.
A Peregrinação

Se precisava aí da verdadeira fé
Uma improvável já e incomparável manifestação
Daquela vocação religiosa
Que só a verdadeira e genuína santidade
Providencia
E apenas a sincera devoção
Pode dar nome
De anátemas e crenças libertária
Ser a palavra
A força viva
A cândida paixão
E da veraz e pura salvação
A intenção
Da mais pura nudez que da alma faça prova
A alimentação
E do alimento a nutriente chama
Ser providenciada.

Então partiu a busca abençoada


Lida e corrida em estradas de papel
Em cartas de alforria anunciadas
Destinada às almas
Desenhadas em erros que pecaram tanta vez
Não por se repetirem mas por serem
Fracos vestígios
Gestos traídos
Não poucas vezes apoucados
Dos mais gemidos e salutares instintos.

Partiu em estradas de papel


Sangrou em tinta
Até poeiras de grafite alguma vez
E em pensamentos tantas
E uma e outra de todas se encontraram
Em confluências íntimas
Albergarias foscas de passantes
Onde mansos e gentis esfacelamentos
Aguardam peregrinos extenuados
Que de tão singular caminhamento
Chegam a ver seus dias serem escorço.

352
A pouco e pouco e com algum pudor
Foram os velhos símbolos vieiras e cajados
Os alfarrábios
Os pergaminhos
Os doentios besouros da obscurantícia
Sendo refeitos por eléctricos desígnios
E de distâncias antes inimagináveis
Chegava agora a pertinência dos atos.

Uma após outra foram essas novas estradas demandadas


E novos santuários erigidos
Onde antes só existia sono e descaminho
E então ainda que esgotado e consumido
Por uma vertigem claudicante
A fé e o abismo
Eu vi na vida a luz inteira e dirigida
A ida pura
Uma viagem incessante
Que não se esgota nunca
Nem da qual
Jamais se há-de repetir o itinerário.

Daí que devotado


A esta singular peregrinação
Tenha encontrado
Já nos alvores da desconsolação
O Monastério.

3.
O Monastério

O monastério
É uma prática
Uma atitude viva
Que se pratica num mosteiro
O monastério é uma igreja permanente
Em que se mora lá dentro
Um culto enfático e sincero
Um mosteiro inteiro que se constrói
No alto de uma montanha sobranceira à vida
É uma igreja
Onde o sacerdote se funde com o templo
E tem em volta
Casas e dormitórios
Hortas e prados
E a alma sente-se lá bem.

353
Quando a igreja se converte
Na máxima ambição de humanidade
Quer-se morar dentro dela
E em volta construímos uma casa
É o mosteiro
E nele se pratica o Monastério
São campos e vales que regurgitam primavera
E primaveras inteiras de inteira e verdadeira felicidade
Todos e cada um dos monges sabem
Os lugares onde se come e bebe
As horas em que os músculos se distendem e se reza
Aquelas em que os nervos uivam
E a paixão religiosa se espalha pelo sangue
Dias e dias de repetidos dias
Em que a devoção parece ainda querer oprimir o peito
Mas que um sorriso de clara beatitude transforma em conjunção.

Gosto de ver a paisagem


Que se desenha nos olhos de quem a vê
A perfeição das formas e dos ritmos
Quando se sai da igreja
Ou quando se caminha pelos campos
E se vê a igreja de longe
Na magnificência das suas proporções.

3.1.
A epifania

Encontrei em minha vida


Muitos e santos lugares
Lugares santos de indubitável fama
E outros que achei de questionável santidade
Mas navegando
Em mares já conhecidos por terem sido antes navegados
Foi-me dado chegar a um lugar
Lugar humano de inquestionável fé
No seio do qual todo o meu ser foi levantado
Do chão como uma pena
Que houvesse sido pegada pelo vento
E em rodopios de mansas contorções
Abriram benfazejos à minha alma amarga
Os doces mistérios de um concerto tal
Como um relógio divino
De amor transcendental
De conjunção astral e de memória explícita
De maravilha múndica e global.

354
Em temperaturas nunca antes suportadas
Como se de uma retorta de alquimista fosse a massa
Meu ser inteiro desvanecido em maravilha
Minha alma em luz
Perante a imensidão e congruência
O mar de espaço todo certo
Tudo arranjado em linhas
De uma geometria feita de arte e de coincidência.

No desmedido afã desta visão iluminada


Vi elevar-se no espaço em clara luz
Solta magnificência
Mais luminosa agora que a luz que eu antes via
Aparecida
Nos ares brilhando
Em pura e levitante flutuação
Aos meus olhos baços e incrédulos
A imagem
De uma feliz nossa senhora negra
Gigante e bela.

Não foi contudo o seu tamanho ou a beleza


De tudo o que mais me impressionou
Foi a ternura
A compaixão e a sabedoria
Com que à humana condição se devotou
E aos meus mais íntimos anseios
Mais deslumbrante respondeu.

3.2.
A devoção sincera

Tamanha devoção já me era claro


Vogar-me nas entranhas a percorrer-me o sangue
Que de todas as maneiras fui rezando
Em oração intensa e merecida
Às vezes entoando
Outras cantando em uma nota só
A maravilha
Algumas vezes só pensando
Ou não pensando
Levado sem delírios
Ao mar sem nome
Ao território vasto onde se encontra
Doce vertigem da
Meditação profunda.

355
Todas as formas se tornaram para mim
Invisíveis aos olhos e ao espírito
Só as da santa da minha devoção
A que houvera sem mapa decifrado o meu mistério
Me iluminavam agora as veredas da procura
Busca infinita e nunca terminada
Em que a meu lado para sempre e doravante
Uma deusa feita de carne e cor testemunhava.

3.3.
A ascensão de nossa senhora

Eu vi
Aquela mulher imaculada
Alçada aos céus envolta em flâmulas de delirante ardor
Farrapos de vapor
Senti
Calores corpóreos decantados
De uma volúpia sagrada e ao mesmo tempo
Profana
Coisas maiores que a vida
Que a alma
Coisas maiores que os nervos e que as fibras
Que do interior da carne
Chamam os crentes para a oração.

Nessa montanha sagrada onde vivi


E onde dia após dia rezei
Muitas vezes várias vezes ao dia
Nas vésperas nas matinas
E nas horas
Rezei nas horas
Antes e depois das refeições
Nas horas próprias e impróprias
Mantendo-me quase permanentemente
Possuído por um êxtase
Meditativo
Me consagrando então inteiramente
E a partir daí
A uma total contemplação
De tal maneira que mesmo que fechasse os olhos
Continuava contemplando
E vendo envolta em luz
Cercada dos seus anjos benfeitores
Que na verdade mais que benfeitores eram bem feitos
E ela a pura e singular benfeitoria
Içada aos céus

356
Transportando com ela tudo o que se lhe chegasse ou fosse próximo
Brilhando nas alturas
Fluindo nas fissuras em que se esgueiram emoção e sentimento
E sobranceira
Espalhando luz sobre a essência da fé.

Aquela epifania diária


Aquela vida plena
Aquela permanente empolgação
Cheia de graça de intenção e de desejo
Foi para mim vontade e emoção
Vontade de ficar
Para sempre em devotada e natural contemplação
Como emoção de ter chegado
No alto daquela invulgar montanha sobranceira ao mundo
A um porto de abrigo
Que do meu mar revolto e falso para sempre
Me protegeria
E fui ficando
Fiquei três meses
Depois ainda mais um dia
E cada dia me parecia novo e prenhe
De vontade de ficar ali
Rezando para sempre
Depois fiquei seis meses
E quando me encontrei
Longe daquela
Mágica montanha em cujos céus
Nossa senhora em dor velava o mundo
Reparei que para onde quer que fosse
Levava intacto e permanente o Monastério
Dentro de mim.

Quando efetivamente aí me recolhi


Encontrei a fama e o proveito
A liquidez sublime do acerto
O amor imenso e doce de uma deusa
Maternal e fraterna
Marsupial e cheia
De virtude sensual
Cujos derrames me lambuzaram a alma como rosas
Quotidianamente.

Começámos então a construir um templo


De tábuas arrancadas duramente da floresta dos sentidos nobres
Que ali ficava situada perto
E com as mãos
Desenhámos felizes cada curva
Daquela divinal arquitetura
E quando ficou pronto rezámos dentro dele

357
Eu e os meus nervos
Todos os mistérios
Todos os místicos anseios
E à saída da missa
Fomos ao campo trabalhar
Na nossa santa e fina agricultura
Plantámos couves e limões
E junto de uma pedra me senti
Uma vez que nela me sentei
Possuído por um estranho e poderoso afã
Como se aquele lugar me pertencesse e eu pertencesse a ele
E fosse até mais ele do que eu quem pretendesse
Que eu ali rezasse
Que ali ficasse
Que ali voltasse
E eu voltei todos os dias
Aí então rezei como jamais…
epílogo

(40)
SE EU SOUBESSE O QUE SEI HOJE

Se eu soubesse o que sei hoje


Teria feito outras coisas
Incorrido em outras causas
Ter posto as coisas
Que se tornaram razão
De ser o fado das horas
Da vida que arrasta os dias
Distribuídas as horas
E razões e consequências
De outras coisas justapostas
Funcionalmente contidas
Na sequência da história
Se eu soubesse o que sei hoje
Essas coisas
Pela mão de deus plasmadas
Cataplasmadas e tidas
Por definidas
No lugar onde ele as pôs
Tê-las-ia eu aprendido
Ou teria como sempre
Por mania
Por ignara teimosia
E inconsciente ousadia
Repetido
Toda a vã filosofia

358
Das mesmas coisas passadas
Em dias de horas perdidas
Que jamais as horas tidas
As que foram com sabor
Efectivas concludentes
Inutilmente vividas
Teria eu
Perguntando
Mesmo impossíveis e tolas
Querido vivê-las diferentes.

II

Vivê-las tolas
Todas essas coisas tidas
Por erradas em vividas
Que deram mau resultado
Passada a transformação
Que transfigura ligeiras
Causas em consequências
E por um critério vago
Analisadas medidas
Por valores…
Esses valores não discuto
Nem não as decisões julgo
Só me interrogo
Se as lições que permitiram
Julgar erradas as causas
Dadas por adquiridas
Teriam sido possíveis
Sem terem sido sofridas
As consequências ditas
Ou se os medos
Os preconceitos e credos
Gargalhadas congeladas
De uma existência postiça
Cegos e impenitentes
Julgam tementes
As sombras de encantos idos
Intensamente vividos
Mas doentes.

III

Não não mudaria nada


Nem um pentelho sequer
Ou talvez mudasse tudo
Ou somente algumas coisas
As menos dignificantes
As que envergonham o eu

359
As dúvidas as patranhas
Idas prò céu
Dos pardalitos vitorinos
Das virgens puras
Aminoácidas
De que me arrependeria
Afinal eu se pudesse
Dos erros ultrapassados
Dos passados conjuntivos
E em que tempo
Em que tempo eu poderia
Perguntando
Arrepender-me dos erros
Se houvesse querido fazê-lo
Não existe um tempo assim
Existe apenas agora
E já passou.

IV

Mesmo se me dói o corpo


Fibras e disenteria
Se tudo desconjugado
Faz duvidar
Que algo havido por passado
Poderia ‘m algum momento
Na corrente dos caminhos
Ter sido melhor pensado
Essa dor que agora sinto
Melhor ainda suporto
Resgato um preço aprazado
E ser justo o pagamento
Me faz crer
Que há uma justiça nisso
O meu corpo encontra o zero
E vem p’rà rua dizer
Que o processo concluído
O corpo paga o seu juro
E se reconhece puro
Religado e renascido
É uma papa
Não fôra esse assaz curioso
Processo intestino e sujo
Talvez fosse
Mais difícil e fatal
A despedida.

360
BRASIL I

CANTOS BRASILEIROS

361
Cresceu-me o pelo das bruxas numa ilharga
Noutra o meu selo perdeu ventura
Triturando o silencio que perdura
Revejo (olhando) o céu a derramar a carga

Aprimorado o véu p’rà sepultura


O sangue em pão vestido e sarda amarga
Da noiva abandonada a voz embarga
Redefinindo o verde e a temperatura

Pudera o posto porta ser tão belo


Como anuncia o seu mar de ilusão
A vida que se vive e com desvelo

Se entoa com clamor uma canção


Se arrima ao peito o amor «e com tal zelo»
Que a dor nunca mais larga o coração

(dedicado a Vinicius de Moraes)

362
VERA CRUZ
(ou o verdadeiro homem)

Tal como a rosa que remanesce e cresce sobre o homem


Assim o homem se implanta e marcha sobre a terra
E igualmente
Onde a rosa nasce em cada homem
O novo homem nasce ao coração da terra
Que é o Brasil.

«Quando saímos de Belém» o casario


Difuso a que chamamos Lisboa lentamente
Escorregando das colinas até aos monumentos
A mergulhar no Tejo
… o Tejo … envolto em bruma de um dia que acabando
Se prepara p’ra mergulhar na escuridão
O rio ainda inquieto mas já frio
Morrendo em chumbo em vão se recusando
A refletir o céu porém no mar
Indefinidamente talvez rio
Imaginariamente aberto talvez foz
Se esparramando doce e promissora
Resgatando o sol de um outro céu
Maravilhosa e forte – intensa e linda
Uma grande luz.

Viemos então por sobre o mar


Longe e longo mar que fomos abraçando
Em sucessivas vagas o abraçámos
E nunca olhámos para trás.

Viemos de todos os lugares e vimos


De alguns lugares o sol nascer duas vezes
Viemos da Holanda e da Abissínia
Viemos da Síria e em Fez parámos uma vez
Por um compasso
Um sedutor compasso na espera de um destino inadiável.

Também abraçámos o céu


Aberto de umas asas que nos deram
Em sono o abraçámos e cobrimos
E não pareceu tão longo.

Ainda assim
Quando depois de tanto mar e céu
Dormentes e curiosos como de uma sede
Deslumbrados e inocentes como de uma travessura de crianças
Quando por fim depois de tanta luta
Aos nossos pés quase insensíveis e cruéis

363
Brutais e indecisos
Foi dado enfim pisar a terra
Já era tarde
E ficámos um momento em que parados
Aguardámos silentes pelo dia.

Fomos e imos
Imos e fomos
Numa permanente e insaciável
Apetência pelo novo
Mas demorámos
E por um prolongado instante horror e dúvida
Habitaram o morno em nossos corações
Parece fácil
Largar de ovelhas
Doces pastagens
Correr vorazes
Entre matilhas
De outras paragens
Mas as viagens
São sempre o ir que nunca se despede
Vai
E deixa ser a saudade do ser que nunca foi.

O que fizemos nós afinal daquele homem


Que não quis o carneiro nem a galinha
Que não gostou do vinho nem da água
A quem só encantaram as contas do rosário?
Nunca o tínhamos visto e como é natural
Não o reconhecemos
Mesmo que o conhecêssemos
Mesmo que o recordássemos
Ainda que em sonhos nossos olhos
O tivessem visto iluminado
Imperioso e bom no seu espanto
Ainda que o imaginássemos e ele nos aparecesse
Belo e gigante
Não o teríamos visto.

Vimos também as mulheres correndo nuas pela praia


E uma vez mais ainda mas como nunca antes
O nosso olhar se deslumbrou de uma mulher encantada
Vimos tantas coisas que não nos couberam nos olhos
Coisas deslumbrantes e inauditas
Jamais vistas por olhos de homens
O espanto abriu os nossos peitos descarnados
E arrancou de dentro os corações
E desses corações descoroçoados

364
Fizemos sementes que mais tarde
Plantámos abundantemente na terra
E então as coisas vistas nos pareceram
De um só olhar banais e deslumbrantes
Um morro quase redondo
Todo toucadinho de vegetação
Árvores enormes
De longe não mais do que um tricot
Como nós amámos essa terra
Invisível quando abraçada perto
Como nos debruçámos nela até queimá-la
Marcada e possuída como uma mulher
Que não se trabalhou para conquistar
Como poderíamos nós não tê-la amado?
Se ela nos engoliu inteiros até ao escroto
E nos fez seus e devagar
Foi digerindo os nossos ossos e nos fez dela emergir
Antes de nos vomitar.

Mas mesmo assim nunca perdemos a esperança


Nunca desistimos de encontrar o nunca
Que nos pareceu ali tão objetivo
Ficava para lá de uma montanha
Numa escarpa difícil
Mas uma força maior que decifrámos
E nos pegou o jeito de subindo
Singrar à vela
Ainda uma vez mais nos impeliu em frente
E fomos indo
Sem nunca olhar p’ra trás
Como todos nossos pais haviam feito.

Fomos adicionando coisas ao ir


E aprendendo
Que mais que amar mais do que navegar
É preciso amar mais
Amar ainda mais um dia
Mesmo que seja dolorosamente
Mesmo que seja em sangue
E rugir
Como um leão americano
Seja ele da floresta ou da savana do matagal ou da caatinga
Esse amor tanto tempo elanguescido como uma lágrima
Em um fragor continental e transfigurador.

Para muito mais nos preparou a mãe da terra


E o mar que nunca nos sufocou
Também do ar receberíamos alento
E do éter e do cruzeiro do sul
Ao mar do espírito fechámos nossas vozes

365
E os olhos encheram-se de nuvens
E um dia em que caminhámos indiferentes
Arrancámos do peito a epifania.

Sentimos os desgostos a saudade


E quando nos rasgámos foi por amor e sanha
Mas nunca desistimos de encontrar
A felicidade de viver
Que nos foi prometida na entrada
Da entrada de um templo arquitetado
Para ser aberto em fundo e dar passagem
Para uma longa e luminosa estrada.

Encontrámos de tudo no caminho e no regresso


Tudo parecia diferente
Mas ainda que encoberto à nossa falta de atenção
Tudo inexorável
Irremediavelmente igual
Contudo só.

Da ida ao ir
Voltar ao sol
Cavando claras as distâncias cavas
Certezas que de ser nunca souberam.

Forte no ser dessa certeza recobrar


A ida e ser da volta o lugar nem.

AS BANDEIRAS

Quis o acaso
O apogeu da fama
O vão destino
O inefável selo da história
O imponderável
E que de muitos humanos o sangrento
E negro fado
Fosse o de levar à terra sutil forma
De coração andante
P’ra lá das latitudes definidas
O chão foi desenhado
Por elas mesmas
Essas
Armadas de vorazes vaticínios
Amadas intenções
Desesperadas brenhas esquecidas.

366

Doze bandeiras flutuaram no ocaso
De um giro inteiro que se deu voltando ao mundo
A primeira que chegou húmida e fria
Era de um templo invisível que flutua
E tinha ainda a marca indelével de um sonho
Que se sonhou numa terra árida e estranha
Onde não existia nada
Renascendo com energia inexplicável
P’ra despertar numa em que havia tudo
Singrando nela desde os alvores da madrugada.


As naus eram do rei
Antes do santo os construtores talharam
Uma arquitetura indestrutível mas leve
Era o filho do rei quem comandava
De longe o sonho que o mar cuspiu
E as naus do engenheiro irmão do santo e pai da pátria
Indistintiva alegoria em que se arquitetou o mundo
Vogando sempre adiante e sem destino
O destino encoberto que vogavam
As naus em tempestade e calmaria eram contudo
Do rei
Quem as mandava e pagava e conhecia
Fazia transportar na sua ilharga
A marca dos castelos e das quinas
E nas esquinas do mundo então reconhecido
As marcas do poder e do dinheiro.


Donatários de um reino impositivo
Relegados de longe p’ra nenhures
Quando chegámos nada disso nos foi dito
A vida era normal e a cruzada
Já estava há muito tempo arruinada
O templo três vezes destruído e três erguido
Navegava agora em direcção ao nunca
Nossos irmãos de antanho
Expulsos traídos
Esventrados e vendidos a vontades estrangeiras
Deambulando aflitos em estranhas terras
Onde depois e antes se confundem
A vontade e o ser que nunca erra
Eram de bodos as bandeiras
E a terceira
Já era só do rei não tinha cruz.

367
Na sórdida penumbra dos palácios
Que da longínqua europa ousavam a distância
Da sinagoga grande os construtores
Haveriam do mar a operação
Financiar apoderados crivos
As mercenárias torres flutuantes
Mobilizadas entre hordas maltrapilhas
Tordesilhamente carentes de paixão
Poucos mas logo eretos aos milhões
Formados de vontades fermentadas
Em tórridas ferventes colossais decantações
De pobres de ladrões e de toureiros
Que às antigas invejas vão propor.

Inquisidoras leis negócios muito escuros


Irão ditar dos puros a negra sorte.

Doce regaço em gosto e forma


De vicioso paladar
Industriosa ideia
Assaz suspicioso engenho.


Um estranho rei de estranha lábia e espúria geração
Fruto de uma intrincada e não sã genealogia
Que a nós farpas errantes pouco ou nada
Longe ou veladamente já dizia
Fomos das mãos de antanho judiciais e independentes.

Levados por vontades inocentes


Ao inocente engano que os perdeu
Crédulas tíbias
A quarta foi p’ra nós então tão dolorosa
Tão dolorida e estranha que se fora
De uma madrasta pátria mais prouvera
Ter fome e sede quarent’anos
A dor menos doera.

Morre o poeta morrem-lhe as entranhas


E numa pátria longa os desenganos
Rasgos de holandas invejosas fazem danos
Mas dos seus filhos sãos
Se orgulha a terra se se entrosam
Fanáticos e rijos na miragem
Virão ainda das angulosas glosas doces cantos
Mas nunca mais apagarão desse vil canto os seus enganos.

368
De uma encomenda ao Pernambuco olhada
O vão desdém
Estirada a terra
Chupada estarrecida e guerreada
Saqueada
Entre franceses e filhos de holandeses dirimida
A mentirosa garra dos castelos
Dos castelhanos
Mais que a papal justiça os desenganos
Açucarados trilhos bolsa rasa
Fez perigosa e grave a luzidia gente
Que a fama do cristal mais que a certeza
Do mando a consciência clara obnubilou.

Mulatos dos teus filhos oh! infame


Nobreza parasita Portugal doirado
Que os fios da ignomínia dos venais baltérios
Na filigrana pura dos desmandos esponsais
Deixou já cozinhada a fama da mortalha
Em que se havia de embrulhar a mãe dos entes.

Mulatos de mulatos sangue ‘inda escorrendo


Dos corpos sensuais das tuas vítimas
Amalgamados fritos nunca castos
Paridos em mosteiros antes que em matas
Filhos de negras deslumbrantes
Padres gagos
De monges missionários indolentes
Consagrados ao mistério novo
Içados ao milagre incandescente

Do corpo curvo azul


Dos olhos quentes
Das índias que do rio saiam nuas
E das vergonhas bíblicas maduras
Viravam às palavras cabisbaixas
De luz e de promessa as costas largas.

Capaz de uma então nova


Formidável e sã diversidade
Tomando em suas mãos o rasgo antanho
O corte insaciável e critério
Do imparcial fio da espada dos heróis
Foi a morena gente
Do sol carpindo em atos as esgrimas
Quem fez tremer o chão
Soar nos ares
A formidável tuna de outra voz
E aos ímpios detractores da santa lei
A verdadeira

369
A pura a que a ganância não sustenta
E nessa voz
Fez retinir a valsa da vingança
E aos doutores da lei e da finança
Aos diplomatas
Lhes fez cair a máscara e à justiça
A venda da cegueira e a balança.

De uma outra voz então soou na mata


Da voz dos brasileiros resistência e fama
Escuta Nassau oh! Breve
O teatral e sério troar dos meus canhões.


Restaurada a pátria dor longínqua
Esquecida de seus filhos sem memória
Diluída nas fráguas de uma lei
Que imperturbável ao clamor razão havida
Havia a vida havida a noite e seduzida
E os sortilégios da palavra em que era dita
Mas não da de outro rei havia ainda
De ser a vida não cumprida
A vida inteira de uma lei longe perdida.

Regozijados pais viam agora


Para seus filhos desnudar tamanha terra
De sedução encantos e precatos tais
Que eles jamais
Iriam ser capazes de esventrá-la sem sentir
Com tão intensa indefinível pena
Dramática e serena de se ser plangente
Maternal
Ainda assim
Precisaria continuar na vera cruz
Precisaria muito
‘inda precisa
Precisa muito
Precisaria mais
Absolutamente
Insistir continuar e persistir
Perseverar
Em divagar e ter… continuação
Precisaria ainda terminar
Da voz do missionário inconvertido
O último presságio
Da rima ante causal do sapateiro
Religar
Paráfrase imortal
Et concordantia.

370
Desse destino a fama ainda entoa
Em éclogas cantadas e delírios
Sonhadas honras delirantes hinos
Interiores e vistas fantasias
De um superior destino
Uma missão
Enobrecida a raça multitudinária da razão
De toda a humana miscigenação
O super homem nascido em frescas folhas
De erva da forte e vibrante
Imaculada e sensacional forma
Do descarnado humano coração.


Cento e quarenta anos cinco enxutos
De uma ultra outra terra «deslumbrante e bela»
Crescente e forte em frente aos nossos olhos
Que o sol do esquecimento a alma frita
Olhos de passarinhos
Passo adiante
Os cravos sanguinários da desdita
Incumprimento ausente
Traição estreita
Do mundo emancipado é já presente
A escrita
O escudo que o futuro não libertou
Ainda ardente
O facho insaciado da clausura
Ostenta e breve
Reamaciando da forma a mais escorreita
Clamando ao ar sem vento
Sentindo aos peitos e dizendo
Agora é que começa a história verdadeira.

Um príncipe revela ao sol guardado


Uma terra um povo um rei uma nação
Só o futuro
O colo traz guardado em seus licores
Da fama de uma raça o brado retumbante
Reverberando
Desenhado ardil e amorosamente
Rasgado e construído em um destino puro
Imaginado e belo
Mas futuro.

Mas um destino errante feito de horas


Teria aindo muito tempo que esperar
As ganas cruas
E as invejas sórdidas
Haveriam ainda e muito de chegar.

371
Do outro rei sabíamos que assim
Como uma puta gorda e cheia de vontades
Só queria mesmo já
Comer adiantar o pagamento e ser fodida
Como querem e são todas as putas
Fazia contas
E desenhava planos
Terceirizava
Entregando aos brutos e aos invejosos
Tesouros paraísos e em ilhas
De imaginárias lendas cavalheiras
O cálido regaço das filhas.

Fomos então ao interior a garimpar o ouro do rei


Na esperança de que o rei nos desse as suas filhas
Na praia deixámos um vigia
Para que pudesse vê-las ao chegar
E seguimos cortando em frente e a direito
Daqueles braços abertos para nós
Entre aventuras peripécias e inesperados brados
Essas filhas do rei nunca chegaram
E o ouro acabou mesmo por cegar-nos
E queimou nas nossas mãos tanta cobiça
Nos pés o rio ainda por um pouco aliviou
Das feridas azuladas a dor e a injustiça
Mas mastigando
De tanto desencanto o coração sangrando ‘inda cantou
O sobre humano esforço da conquista.


Barros Palheta e Sá entontecidos
Por enseadas largo inusitadas
De um imperial e feliz deslumbramento
Rasgos de crase
E de dramática e parácleta noção
De dimensão
Subiram sem subir um rio imenso
Foram subindo
Mergulhando no espanto sempre e mais
Na boca de uma funda e misteriosa ausência
De uma fatal e feroz incongruência
Que aos olhos e aos mapas deu e dá distância
Faz dos homens formigas de uma ânsia
Que os continentes faz parecer pequenos.

372
De outros engodos os reis acreditaram
Ser das entradas virgem santa a compensada
Martirizada rota repetida
Na sombra de uma luz inviolada
Vivida e revivida em sonhos mergulhada
A massa amorfa do âmago da terra.

Porém ali tem uma hora


Em que a sombra celeste de uma coisa
É o que segura pela base a mesma coisa
E dizer que faz calor não é real
Quando se tem do mando o sinal breve
A alma vai
E do calor o corpo não tem o senso
Quando ele se permite e a alma quer
Pode-se acreditar nessa mensagem sensitiva
Com os nervos todos engromidos e atados à palavra
Mas se a alma que devora essa verdade não a quer
Então melhor pedir perdão p’ra deus
Porque é agora que a coisa vai esquentar
E esperança há e haverá ainda que se cuide.

Que seja ardente e furioso esse cuidar


Que chão sumiço dê aos que enganados
Não tendo do porvir nobres costados
Reviverão ao sol
E um voto claro ouvido ecoando nas chapadas
Lançado ao vento.

Mensagens honestas e verazes


Vindas vogando
Sólidas acompanhando
O passo afrancesado de iluminista crença
Fazem ainda do poder uma pirraça
E do desmando a sã progenitura.

Escavada em ângulos
Escavados sulcos de agressivas torres
Rasgadas as falhas na muralha
Para os canhões
Como de vedras pontes vedras torres
Vértices astronómicos tidos quatro
Que a rosa desenhou na ventania
E um maior que a terra desenhou ao norte insólito
Que quer saber
Que sempre sabe
Que o mal que nos ataca
O crer que nos perturba
Pode não vir do mar.

373
Pode ser que nem venha do olhar
Que não nos deixa ver por entre as frestas
De uma guarita aberta à sentinela
O ângulo escuro
Não somos nós aqui historiador
Nem nossas lavras estas vademecum
Mas tem nesta parede uma verdade
E tem nesta guarita um ângulo cego
Um feio fascinante e imprefixo animal exótico
Que mede e gerencia comigo os territórios.

Em uma outra guarita mais além


Onde o resguardo da saudade enfim descansa
Quase sem vida o animal sou eu
E o ângulo morto abarca o mar inteiro
Indecisas águas imperiosa chama
Fazem guardar singelo seu recato em mar aberto
Pasmo o seu curso.

Contrários ao tamanho da jornada


Vorazes invisíveis inimigos
Devoradores
Fomos e somos contínua e docemente devorados
Continuamos sendo
Mas ao culto entediados não morremos
Debicam-nos os braços só avisos
Que nos alcançam cantados os ouvidos
Votado ao mar o vértice profundo
Resta no sol a sombra dos canhões
Lá onde o homem disse um dia já depois
Em literaturas profanas
Mas imparavelmente difundidas
Ao mergulhar seus pés
‘Inda inocentes que sentou e que chorou.

Ficámos ali hirtos de pavor e deslumbrância


Sem ver o dia
Tem mesmo um ângulo morto escuro e cego
No vértice de um rio iluminado
Vê-se o horizonte que em pedaços
Entrecortados de sonho e de real
Desenham estranhas
Arquiteturas de aranhas de papel.

Também ali tem uns ventos


Que sopram presságios vagos
Inteirados e cinzentos
Inteiriçados navios
De náufragos sedentos
É quando os urubus pousando

374
Nos luminários postiços
De épocas ‘inda vindouras
Despedaçados em trilhos
Aberrações e fráguas recalendarizadas
Fora do tempo e do ritmo
Que fôra combinado.

São passacalhas
Que o tempo mata
E de alegrias futuras
As bombardas.

Dos baluartes sagrados


Fortes levadas a norte
Dos calabouços da morte
Foram salvos.

Dezoito anos finitos


Dezoito anos
Vencidos amassados de tragédia e sangue
De vãos e vis horrores
Credores
De loucas impiedades desumanas.

Uma vez e outra a maré vaza


E vem outra maré que também vaza
Depois sobe
Sempre sobe a maré dos vencedores
E dos vencidos
A maré dos puros sobe devagar
Dos puros e inocentes de jesus
Vem a maré
Dezoito anos puros
Passando devagar
E lá por fim
Desembargada a cruz
O fim reclama.

Do formidável coro de uma missão


Espalhada por nenhures em que se calha
O querer ao ser da loira e fria chama
Com o sonhar de uma criança índia
Só ficará daquele dia o sonho
De uma infernal e jesuítica barganha
Imperial e tédio de vestidos
Romas pavias babilónias índias
Que o mundo por um dia terá querido
Mas que o orgulho humano jamais quererá ver.

375
Do mais os passos dos canhões jovem muralha
São de morar no coração a cruz da guerra.


Bandeiras são pedaços
De roupa arquivalendo os corpos nus
Bandeiras bandeiradas bandeirantes
Ou como outrora a sina clara
A custosa vontade e a coragem
De desbravar e ir p’ro interior bandeirar.

Bandeiras e caprichos
Protelados
De a lei nunca cumprir e ser do senhorio
Algoz e refratário.

Passos rasgados em dor e ebolição dentro das matas


Dos ditos bandeirantes que chegaram
Onde era tido por legal não se chegar
Para depois em solidão ficar
Por mais noventa anos sem bandeira
Ou coisa que a bandeira se assemelhe.


Raiados de uma esperança nunca tida
Volvidos aos ensejos
De cálidos desejos sensuais
Multiplicadas formas de apanágios
Da harmonia final nunca esquecidos
Uma canção de ecos e anseios meridionais
Da algarvia fama repetição tardia
Da música das ondas
Em cantorias
E ritmos de vértebras sadias
Que a maré da aventura inflama
E que potentemente
Foram p’ra sempre exultados jamais mudos
Os cantos e os cantores
Os percursores dessa tão doce melodia
De que em toadas francas a maneira abrupta
Toldada nunca mais repetiria.

10ª
Talvez um ano seja curto na medida
Em que se mede o tempo nos anais da história
A chuva cai encharca a terra revivifica a flôr
E pode durar só cinco minutos.

376
Augúrios tantos de uma lei se constitui
O que a beleza adeja flutuando ao vento
Soprando o cheiro de uma inconstituida morte lenta
Prova cabal de uma intuição já muito antiga
Que é ser a alma deslumbrada e reperdida.

Da luminosa ideia em chão sedimentada


E da garbosa lei do mando dessa gente azul
Foi afinal a última bandeira
E brilha ao sol de latitudes mais a sul.

11ª
Castro Alves na Bahia
Gonçalves no Maranhão
Ditos e cantos forjados
Nas chamas da combustão
De uma fogueira sagrada
Das almas dos homens puros
Dos impuros das mulheres
Dos mulatos dos cristãos
Dos animistas dos gonzos
Dos que não sabem que o são
Dos revoltados dos sãos
Dos que sempiternamente
Procuram a solução
Se faz o pão da ideia
Do que seja uma nação.

Do rei as naus já vão à vela


E a parasita corte acompanhando os passos
Caixas e cofres barricas de ganâncias
E cupidez verrínia das gorduras
Juntas à pressa
Rendas e badulaques
As régias possidências
As jóias e a coroa
Do intrépido caíque de olhanenses
Ainde se ouve o grito ao mano rei
Juntas as coisas
Coleta feita aos bens
Ficará dessa longínqua pátria
Profanada e traída
Abandonada e tida por regenerada
A alma da nação esquecida para trás.

Contada ou mal contada em hinos e palestras


Em histórias e em livros de aprender
Do grito às margens da ribeira do Ipiranga
Será de mais um nobiliático subviril orgasmo
Refastelando o colo da duquesa.

377
Do resto reza a lógica intelecta
Que são interesses
De poder e de dinheiro
De cupidez de impostos impropérios
De insidiosa e anglo magna inveja
Que mar nunca será profundo o suficiente
P’ra resgatar do fundo ao louco altar
A infusão insólita
A ironia implícita
A imperfeita clama
De que se fez
O despregado e cru
Exílio inaudito
Do nobre e puro coração do imperador.

Insólita paisagem mais à frente


Categorizada em tom como de inútil
Real condenação tão desumana
Jamais apropriada ou conseguida
Rasgada dúvida de impérios e catarzes
Depositada em brancas mãos
De juvenis futuras inocências.

Atrás dos panos


Dos brocados e das sombras
Dos faustos cortinados da parasita corte
Ainda os desmandos da inveja
E a sulfurosa intriga
Será viçosa
Nos sorrisos feminis
Perdidos nas penumbras dos palácios.

12ª
Ai América América
Ai América
Quanto tempo ao norte os negros livres
E a promessa
De um templo que afinal não tem saída
Da fama testemunhos viu chegarem
Ao fim dos seus patrícios a medida.

378
Como configurar o tempo
Em que um destino
Maior e avassalador terá tamanho e condução
Destino de pulsar o coração da humanidade
E ser o coração do homem nnovo
O útero das pátrias diluídas
E a soma genital do superhomem
Em boa mente
P’ra tão grande destino o tempo é curto.

A DÉCIMA TERCEIRA

Não era de uma cruz mas coração em pontas


A forma dessa anunciada fama
Como de um cristo o número
Geológico e fraterno em água e espírito
Fraternidade impura e decantada
De uma feliz e promissora nunciatura
Verde no pano como a folha da mangueira
E amarela na sua subcapa seca e espúria
Portentosa
De uma verdade mil vezes renegada
Virá ao mundo de uma madrugada clara
O céu estrelado a alma e dela a prometida chama
A paz espiritual nunca varada
Em rasgos de perdão malhos eternos
Informe e pura
Líquida e sã como no subchão a água
Fresca e pudenda
A inocente e forte.

HINOS
I

Os últimos são os primeiros


Desde as bíblicas calendas já se sabe
Desde a aurora maternal em que da terra
Os homens caminharam sobre o chão
Selvas e prados
Savanas e desertos
Bosques sombrios
Sempre de pés nus
Por fim navios imundos
E do ocaso a longitude infatigável
E mais além
Sempre na dobra de um destino que futuro há-de cantar.

379
Ainda que em horrores encarniçados
Sujeitos e no tronco da cruz por fim testados
Mais que de um cálice refeitos
De uma baixela inteira
À força da bruteza sem razão
Fizeram da dor sofrida em pena
O mantram da humana condição
E das entranhas gritos ainda sufocados
Silêncios sub-surdos
Com estalidos
De cantos inauditos e sagrados.

Ecoam hinos
Faltam pedaços
De um negro fado ao tempo
Nunca resgatado
E a história continua impenitente
Rangendo os dentes à dor e á desdita
Sem penitência
Trajando na decência
Os alvos vivos da dor da paciência.

De Houssá o Yorubá cintila ainda


Nas sombras de sombrios validos antros
A sombra de uma antiga amante transformada em rio
Cardas imaculadas em ferrúgeas águas claras
No líquido mais puro amniótico
Da mãe extremosa das águas a primeira
A graça e tanto da deusa feminil
E a lança guerreira da pedra que se atira
Obah Koso
O rei que não se irrita.

II

De um rei o mar
E do seu príncipe
A terra.

De um voo claro o ar
E do seu arco
O céu.

De um adultério o bem
De um amor casto
O fim.

E por imaginar alguém


Que se transporta
E canta.

380
Fazer doces augúrios ao porvir
Ter a ciência e a arte
De tocar.

E acender a chama com que arde


O estro e da candente pátria amada
Ir e voltar.

III

Cantada em bocas de poeta a forma ausente


Do canto que esvoaça na simbologia
Dos grandes dos maiores que se apresente e vente
No ar o ar em que simbólica flutua
A alma viva e colorida que se canta.

Como fazer da vida maior fama


Como voar tão longe em doces liras
Como rasgar o sol e as entranhas
E ver sangrar desiludida a alma em tiras.

Só de sentida dimensão se aguenta


Tamanho amor que hirto seca ao sol
Malemolento vil e relaxado
Na sombra dessa flâmula divina
Não se procura nem justiça nem amor
Procura-se um destino superior
Escrito nas horas
E de intenção sublime.

IV

Prouvera a lua mar distante


Das que são suas trovas claras
Hinos postiços soam cavos
Povo perdido que não o canta.

Sonho imerecido dado às turbas


Forma de longes recobertos de intenção
Ainda a forma rejubila a graça
Mas o dizer postiço é já constante.

Sem outro rei que resta ao público resíduo


Que amaciar as formas e baixar os olhos
Servem os ditos aserado em actas
Os cânticos do mando e dos ciosos.

381
V

Tantas vezes tenho navegado este hino


Tantas o ouvi e o cantei
O hino do Brasil
A pátria prometida que encontrei.

Parece um minuete
Uma dança
Palaciana mas na mata
Nas margens e paisagens de uma esperança.

Serão então talvez


Plácidas essas outrora promissoras
Margens que ouviram
Ou já delidas pelas horas.

Serão ainda fúlgidos os raios


E do céu o mesmo instante ainda brilhe
Da igualdade todo o povo talvez sonhe
E a liberdade apontada ao horizonte outro caminho trilhe.

Novo horizonte sempre além sempre distante


Onde se encontra o ídolo indescrito
Salve a barca dos amantes inviolada
Em que dos dias o destino é definido.

A voz insiste ainda nessa esdrúxula miragem


Um sonho um raio de devaneio em tardes cálidas
Dada às calendas a crítica paisagem
Delírios astronómicos e lendas nunca lidas.

A Pátria
Berço de amores e de amantes
Mesmo quando vária
Amada como nunca antes.

382
ÁGUAS ZODIACAIS

Doze buracos no chão poços sagrados


Doze passagens para um outro lado
Doze categorias não aristotélicas
Doze tribos.

Doze bandeiras como já foi dito


Doze indulgências traficadas sujas
Doze pilares onde se sustenta o mundo
Doze ventos.

Doze divinas leis duas a mais


Doze acendalhas de uma eterna chama
Doze misericórdias de humana compaixão
Doze nervos.

Doze duplos nervos


Doze pares
Doze apóstololos transparentes em fragor de apostasia
Doze símbolos egípcios
Doze castas.

Rosa dos ventos traidora


Que me trouxeste enganada
Princesa moura
Desencatada.

De outros santos os milagres são passados


Dos áugures os ditos desmentidos
Tudo ao contrário tudo aos molhos
Tudo aos gritos.

II

Dentro da mata é de noite


Mesmo se fora é de dia
No jogo de luz e sombras
Impera a clorofila.

Tem dentro da mata um eco


Inconfundível aos olhos
Que se desnudam das sombras
Sem sentidos nem engulhos.

383
Os sentidos todos juntos
Ouvidos olhos nariz
Na boca o gosto do sangue
De uma existência feliz.

Ter visto e sentido a mata


Ter respirado o que é seu
Os vapores que ela contém
É um prémio p’ra quem viveu.

A frescura da humidade
O cheiro da casca das árvores
Na ponta aguda dos dedos
No arrepiar dos pelos
A sensibilidade.

Ter visto o sentido à mata


Ter percebido a razão
É ter visto a Terra toda
Numa única visão
E ter fauno e folgazão
Participado da boda
Que lhe anima o coração.

III

De tudo os meus olhos viram


Chuva regatos e fontes
Águas paradas moinhos
Águas vivas em nascentes
Olhos de água nas praias
Fora e de dentro do mar
Vi fontes de água fervendo
Senti vapores de água quente
Na garganta dos vulcões
Águas sagradas que curam
Águas que cheiram a podre
Profanas medicinais
Que também curam
Vi rios lagoas salinas
Desenhadas em quadrados
Onde a água de l’o mar
Reflete os vidros sagrados
Do sal
Porém em nenhum lugar
Em nenhum tempo ou paixão
Nem sonho nem ilusão
Nem nos meus olhos de vidro
Nem nos da cara vidrada
P’ra não fazer confusão

384
Nem nos do coração
Em nenhum outro lugar
Com nenhuns olhos que eu tenha
Eu vi jamais
De longe a íngreme penha
De perto o selo e a senha
Visto a distância ou clausura
Com olhos vivos e quietos
Remanescendo de mim
Por serem certos
Eu vi em dias ‘stivais
Em invernos tropicais
A força remanescente
Das águas zodiacais.

A FORMA AMBICIONADA E APLAUDIDA

A forma ambicionada e aplaudida


Que dos arcanos resistiu ao tempo
Plana e diversa como as flores num campo
Semeada no coração da vida

Presa do espaço por um fio de espanto


Qual fruta pronta para ser colhida
Filigranada em dúvida e relida
P’ra ser no fim da dor a flor do intento

Uma vez mais procura entrelaçar


Nos fios a maravilha de uma ideia
Um pensamento forma ou um altar

Onde se sacrifica o sangue à veia


Que da querida vã glória de cantar
A alma amarga já se encontra cheia.

II

Outras vezes quebrada e distorcida


Comandada de fora e clandestina
Foi ainda que aleijada e intestina
Apreciada cultivada e qu ’rida

Um dia abandonada numa esquina


A forma quase dada por perdida
Doce voltou p’ra casa arrependida
Cansada e triste como uma menina

385
Passado tanto tempo e tão distante
Quis recompor os laços ‘sfarrapados
Recomeçar essa paixão cantante

Que se acoita aos corações apaixonados


E se resume a uma forma errante
Que os corações anseiam quando errados.

III

Algumas vezes uma canção veio


Aninhar-se no peito como um grito
Indomável e frio de um ser aflito
Que a escuridão abraça sem receio

Os mágicos afãs desse conflito


Deixam na bagagem preço e esteio
Racham a doce imagem pelo meio
E tudo se torna muito esquisito

Não se pode dormir nem um segundo


Nessa pantomima prodigiosa
Ou a imagem mergulha até ao fundo

Do fundo vem então mais vigorosa


Dos seus tombos e talhes pelo mundo
E a forma aparece como uma rosa.

IV

O fogo consome a vida


Como a dor consome o ser
E a vida depois de ardida
É como um corpo a sofrer

Uma dor já d’esquecida


Que a saudade faz viver
E o sangue imensa avenida
Faz o corpo suspender

A emoção já vivida
Que a dor não deixou esquecer
Ei-la de novo trazida

P’ra um novo fogo acender


E a dor ficar concebida
Nas asas de uma mulher.

386
V

De quebra popular também se faz


A forma até aqui tão incensada
Que falta fazem três sílabas fugazes
Numa coisa que já nasce acabada

Quando o motivo é bom e boa a estrada


Faz-se o caminho sem olhar p’ra trás
E quando é perto o ponto de chegada
O olhar só sobre a forma se compraz

Então se a forma é fina mas grosseiro


O compasso que bate o coração
Mais vale olhar a dor com compaixão

E não julgar a sina pela mão


Pois quem nunca aprendeu a ser caixeiro
Sabe sentir a forma pelo cheiro.

VI

Os do Vinicius de Moraes também são bons


E o verso alexandrino de paredes nuas
As casas brancas de uma cidade sem ruas
Que o sol do meio dia tinge de mil tons

Fortes verdascas de canções que não são suas


Fizeram fados alucinados e bons
Que nas almas dos homens pisaram os sons
Harpas espirituais e nos teatros tábuas

Surrealismos impensados e banais


Foram cantando essa verdade irracional
Sempre em sonho sangrando e pedindo mais

Nos patamares de uma oração transcendental


Rasgaram cantos regurgitados no cais
E ainda assaram no orgulho nacional.

387
VII

Irmanados no coração do erro


Navegam corações o mar da vida
Desconsolados como num desterro
Imaginam saudosos a partida

Chorando ao mesmo tempo a despedida


‘inda indecisos não levantam ferro
Barca boia chamando a voz de ida
Roncando um motor civil e perro

E os desesperados como num enterro


Cantam a dor de uma viagem qu ’rida
Amordaçados na solidão de um berro

P’r’ò que seria a terra prometida


Vestem a pele de ouro de um bezerro
Como conta uma lenda já esquecida.

VIII

A vida é mesmo assim e não tem dor


A dor só dói a quem não vê a vida
Inteira e forte alegre e desmedida
Que se confunde muito com amor

E o que se sente quando pára a vida


Em todo o caso é avassalador
Chega a ser lindo é grande e é maior
O que por trás da dor se desvalida

Desvela e vela a vela quando à noite


Se sonha o peito já sem dor nem nada
E o coração não tem mais onde se acoite

Então a noite é longa e a madrugada


Como se fosse um sal ou um açoite
Traz uma luz nunc’ antes contemplada.

388
IX

A minha era dizer toda a mensagem


Sem nunca procurar mensagem minha
Fazer da pena a mão e a escrivaninha
O braço o coração e a carnagem

Dos sonhos navegantes que antes tinha


E foram engolidos na voragem
Ser apenas o porto de viagem
E não o barco que nele se aninha

Queria ser a ave que mergulha


E ver voando alto a doce imagem
Do ovo que se mexe e remurulha

Bom é viver a vida como seja


Não ser como a pacaça ou a galinha
Que só choca debica e cacareja.

Quando definha o ser que a dor abraça


E a tristeza s’ instala no horizonte
O dia é um abismo e não tem ponte
No caminho onde a vida já não passa

Vê-se no fundo aquele mastodonte


Informe como um animal sem raça
De boca aberta esperando uma mordaça
Com que um herói de luz o amedronte

Mas mesmo assim fica a recordação


Do dia em que a infancia se perdeu
Da ferida que arrancou do coração

As marcas bem amadas… do eu


Nem dor nem pena ou mesmo compaixão
Trarão de volta o que se viveu.

389
XI

Tem dias que parecem anos tem


Anos que parecem horas semanas
Que parecem meses e tem também
O vento que faz balançar as canas

Instantes que parecem durar anos


De dias consciencia não sei bem
Como por vezes passam em segundos
Dos momentos a vida fica sem

Talvez a morte possa resgatar o tempo


Mas isso não sabemos e é por bem
Porque sair do tempo só amando

Um ápice infinito revelando


A infinita gratidão que vem
Da fugaz essencia viva dançando.

XII

Se a vida fosse assim tão delicada


Esgotar-se-ia no momento uno
Em que eu quase em delírio a vela enfuno
E parto em busca de uma flor amada

Não tenho as qualidades de um tribuno


Nem canto as proeminências de uma estrada
Tensa e fugaz mesmo dilacerada
A minha vid’ é a nuvem nunca é Juno

Se por um dia a flor do mar começa


Numa canção que um dia foi cantada
Logo a espada da dor a atravessa

E se comove por tud’ e por nada


Como um escritor que canta e se confessa
A uma dor transcendentalizada.

390
XIII

Para parte nenhuma segue a fraga


Que se desprendeu do horizonte
Já atravessou um rio um monte
Subiu uma montanha e segue gaga

Daquele outro oceano inteiro e grande


Fez um momento que a dor esmaga
E à dor maior e louca que o mar traga
Fez dela e de si mesma suave ponte

Vaga e difusa como uma aguarela


Por onde passam acontecimentos
Onde confluem todos os momentos

E dos longinquos ecos seus lamentos


Cantam na porta da janela dela
Que a música não pode ser mais bela.

XIV

As dores e as cicatrizes desta vida


Secam por dentro mais devagar ainda
Por fora vai ficando ressequida
Por dentro para sempre cruel e infinda

Cruza-se o tempo de uma coisa linda


Quando o que dói no corpo é uma ferida
Um braço em pranto e dor ao ar se guinda
Crendo que a guerra ‘inda não está perdida

Acreditando em vão que a vida é bela


Mas que é por dentro que ela está doendo
Prolonga a dor e deixa uma sequela

E o corpo marcha mesmo não podendo


Flutua ainda a sua caravela
No doce aconchegar de um inuendo.

391
XV

De todas as memórias que passadas


Você não sabe já nem se existiram
Resta um bolor que cínico o amarra
A doces lembranças que aí fluíram

São coisas simples que nunc’ ocorreram


Mas que ficaram tristes olvidadas
No patamar do sonho em que sorriram
Para um destino de cartas marcadas

No doce encanto fica a vida breve


Para uma tarefa grande demais
E carga que carrega torna leve

O peso da memória dos umbrais


Em que num longo ápice se esteve
Aguardando a luz para nunca mais.

XVI

De outrora ainda um raio de luz se evola


Suspende e dança (a alma também dança)
Como um farol no mar da consciência
Que ao mar e ao marinheiro o mar consola.

Ternos lírios vontade de mudança


Do punho até à ponta a faca amola
O corte imaculado de uma escola
Antiga fundação de sapiência

Há porque indagar há de que se ser


Sempre tremendo e de temor e crer
Sagaz provocador da paciência

Das vezes em que o mestre apareceu


Uma assintosa dúvida correu
Da consciência a luz ainda dança.

392
XVII

Essa mulher encantada e estonteante


Que me cruza nas ruas e na cama
Que eu não tenho a certeza se me ama
E faz de mim um eterno estudante

É a resposta a tudo o que ’ alma clama


O certo e o errado o próximo e o distante
O percurso do coração errante
Que me faz indagar em dor e fama

Seu mistério desisti de entender


Mas a doce ilusão me chama ainda
O amor é lindo sim a vida é linda

Não sei se há outra coisa mais benvinda


Só sei que é preciso compreender
E ensinar muitas crianças a ler.

POEMA INCOMPLETO

1.
Atar e desatar nós
Tarefa de marinheiro
Na calmaria do barco
Enlaçar os sentimentos
Segundo traços eternos
Que provaram eficácia
Repetindo a operação
De cada vez apertada
Com mais força e energia
Depois de atar desatar
Ficar com as fibras lassas
Para voltar a enlaçá-las
Noutra corda de outra nau
Uma embarcação perdida
No vazio de um mar parado
Logo vem a tempestade
A operação se repete
E essa fugaz atadura
Vai se tornando uma gaze
De um cordame esfarelado e putrefacto.

393
2.
Passa nas águas um cheiro
Forma-se no céu um arco
Parece que por momentos
Doces abraços maternos
Como cor de flores de acácia
Envolvem o coração
Numa forma mais namorada
De juvenil alegria
Dada à ventura de amar
Por atos cantos e graças
Nunca se pode alcançá-las
Sensíveis até um grau
Desconhecido na vida
O sonho enfim libertado
Na torpe realidade
Nenhuma dor submete
Nenhuma ânsia tortura
E mesmo sendo só quase
Impercetível ao tacto
E os corações amantes nunca ficam sós.

3.
Fundem-se ali a comarca e o comarco
Lânguidos braços lentos
Olhos ternos
Que antes olhavam o sol com pertinácia
Rangem sem dentes uma inútil oração
Por outros decorada
Como se fosse uma alegoria
De uma outra verdadeira e singular
Que um dia uniu e inspirou todas as raças
Nessa alegoria antes de separá-las
E entre as costas e o pau
Essa oração já esquecida
Num sacrário violado
Vai fingindo a vã sinceridade
De um dia que se promete
Ser o da alegria da aventura
A qual se reconhece ser a base
De toda a inspiração do jovem acto
E a aventura se torna uma tragédia atroz
Quando o mar desnorteia o aventureiro.

4.
No mar entre o fragor dos ventos
Céus e infernos
Deixam a dor doer com contumácia
E num último ribombar do vil trovão
Deixam a calma estarrecer parada

394
A alma mia
Em volta a barca ‘inda quer navegar
Mas está longe muitas braças
E ondas quem pudesse abraçá-las
Subi-las uma a uma como líquido degrau
Que a débil ajuda de uma vara partida
Tornasse inútil e o farnel molhado
Remanescesse da inutilidade
E a farda imaculada do grumete
Ficasse roxa de desenvoltura
Singrando ali mais uma fase
Daquele destino sente o impacto
P’rà vida toda e antes e após
O ato definiu como atroz e traiçoeiro
Conforme anunciou Gonçalves Zarco.

5.
Bailes modernos
De vento e perspicácia
Ainda parafraseiam a canção
Tentando decifrar o nada
A forma e a simpatia
Indefinível de um quasar
Perdido entre infinitas massas
Não no universo mas nas valas
Onde um feiticeiro atormentado e mau
Foi condenado p’ra sempre à despedida
Remando um barco acrisolado
Numa inútil e vã procura da idoneidade
Que lhe pudesse impor outro ferrete
Que não fizesse dele a escrava criatura
Toldando irreversivelmente aquele quase
Transforma-o em um rato
Sequer as lesmas lhe ouvem a voz
Esquecida a canção do carpinteiro
Só se sente o dentro muito parco
E a vida o abandona entre vapores nojentos.

6.
Poderia até parecer audácia
Mas infeliz é comiseração
E à mentira muito aparentada
Essa forma peculiar de anemia
Uma dor fraca e dolente que não quer lutar
Bebendo vinho em lúgubres devassas
O corpo todo suportado em talas
E na boca um gosto de cacau
Do caroço de uma fruta já espremida
Roído e amargado
Até ao sumo de uma eternidade

395
Já sem graça fulgor nem sainete
Já sem verniz já sem pintura
Nem paradigma algum com que se case
O coração timorato
Uma ainda débil e fatal casca de noz
Que o navegante agora de um ribeiro
Ainda sustentava como um marco
Dos seus anteriores caminhamentos
E que afinal o conduziu a estes desgovernos.

7.
Aquela estranha opção
Um dia tida e assaz amada
De uma impulsão vadia
Destituída da função de respirar
Feita de frágeis ameaças
E do medo enfim de suportá-las
Medo da palmatória do quinau
Em que se consegue medir toda a medida
Por escolha própria beber um leite já toldado
E postergando a fímbria da verdade
Vai de arrecuas finge que pinta o sete
Mas na verdade já mal se segura
Gordo e disforme amassa a base
Cobarde e finalmente faz um trato
Então lhe aperta a laringe um gesto mais feroz
Que uma velha canção de viandeiro
Reincarnando em si mais um plutarco
Que de si próprio solta seus lamentos
Biografando os tons dos seus olhares hodiernos
Na casca transparente da falácia.

8.
Da sua vela faz tempo já rasgada
Sente-se ainda uma impressão sadia
Uma última esperança permite acreditar
Que se deixa vislumbrar entre caraças
De monstros de cadáveres negras salas
Comuns aos pesadelos e ao escambau
Com que se armou a mão do fratricida
Um quase imperceptível recanto iluminado
De uma fugaz e estranha luminosidade
A qual deseja um olho que interprete
Daquela mensagem a lisura
A forma pura de uma frase
Que por agora lhe sirva de contrato
De uma jornada alegre e reinadia
Borda uma estrela no esburacado albornoz
E segue o seu caminho prazenteiro
Ainda trôpego do seu eixo narco

396
Enfeitiçado por dúbios sedimentos
Mornos engodos de antigos colos avernos
Que fazem do amor uma farmácia
Onde se dispensam remédios de antemão.

9.
Da sua louca ilusão não se desvia
Irá até onde o ardor aguentar
Como uma ave enganada por negaças
Deambulando em avenidas entre alas
Canções de noa noa e tupapao…
Esparramadas nas ilusões da ida
Faróis acesos em largo céu estrelado
Rasgando ao rosto o sal da liberdade
Onde nem um pensamento se intromete
Uma impressão maior uma frescura
Uma indefinição que para lá de um quase
Sem anúncio sem alarde ou aparato
Esquece-se a alma perdida das avós
Sente-se uma aragem que abana o corpo inteiro
Quase sem sangue e dependendo de apossarco
O magro e exaurido marinheiro uivos sedentos
Marítimos e húmidos salgados sempiternos
Penhores obscuros dessa mortal audácia
Que mantém viva a funcional transmigração
Em que se tem a vida transviada.

10.
Pesadelo e morte ir e voltar
Ter dor e sentir frio passar as passas
As do Algarve e essas aumentá-las
Nunca exigindo mais ao escravo jau
Que a curta esmola e a ladainha repetida
Ao seu senhor fiel e ao trato dado
Para o Camões a curta caridade
Que para ele luz como um banquete
Uma prebenda ou uma sinecura
Uma aparente sensação de crase
Isolando a tragédia como um extracto
Que com a elegância de um bago de arroz
Invade o sangue ao sopro derradeiro
Uma espécie extinta rara forma de anarco-
-sindical-auto-gestão dos condicionamentos
Laboriosamente anotados em cadernos
Trágica lira de flor campanulácea
Tágica forma de adoração
Ninfa impropéria e sacramentada
Da comédia que aquela dor adia.

397
11.
Há quem ao horror vixe desgraças
Anteveja ao desfazer das malas
Antes de ter voltado de Macau
Parcos haveres de uma maré vencida
Espalhados pelo mar encapelado
Do esbracejo a rara e própria virilidade
De permitir ao mar em que se mete
Devolver-lhe os papéis da literatura
E sugar-lhe a adorada candidíase
Calor de um outro dia… transacto
De dias idos velhos voando pós
Tempo fugindo sempre e agoureiro
Sempre se dando aos vícios do desmarco
Colhendo as horas de lentos andamentos
Degustando o esquecimento de anteriores invernos
À sombra de uma acácia
Em dolorosa memorização
Saudades… como a forma é incensada
A dor sandia
De quem almeja na vida se encontrar.

12.
Pudera a vida e a morte e mais amá-las
Em trôpegas ideias lançadas ao
Vento que do mar sopra sempre a lida
A lenta manha de varar a noite ao fado
De lentamente deixar a mocidade
Bramir contra o destino como um ariete
Para depois fazer doirar a formosura
Em concordância pura e paráfrase
Mesmo já morto e renascido como um gato
Liberto já enfim do seu algoz
Alforriado desse velho trapaceiro
Aposentado e já senil navarco
Delido em vãos murmúrios bentos
De intuitos e processos muito internos
Flamulando ainda a cor de uma cultura herbácea
Votada aos mandos e valores da humilhação
Já estando da pá virada
Dado o pescoço à corda corredia
Para que além da morte se possa agigantar
Salivadas digeridas e cagadas todas as trapaças.

398
13.
Recitaste para o amado rei em um sarau
De tudo a tua lira mostrou estar embebida
Não do que à antiga lira deu agrado
Mas de uma nova e distintiva qualidade
Como uma caravela que sonha ser paquete
Ou uma tradição que sonha ser cultura
Insistindo contumaz na perífrase
Malbaratando o verbo ao desbarato
P’ra quem já foi adorador de faraós
De pouco vale ter abraçado um imbondeiro
Ter visto o arco-íris em um pequeno charco
Chegam da história os seus consolamentos
Pelo consolo dos gamos fraternos
Armada a voz com crença e acurácia
De uma cultura que quer ser tradição
Com que se mancha e humilha é arrastada
E agora já não vê só cheira a via
E é por ela que quer ainda se arrastar
Passar por lá devanear fazer fumaças
Às musas e à lira exaltá-las.

14.
Se em tanto amor a dor fosse nascida
E formigasse nela ainda todo o brado
Trazido de repente à alteridade
De uma fugaz fortuna bandelete
E de outra fama insana forma pura
Tal que nem fosse dos pés elefantíase
O pedestal insólito da queda feito fato
Movendo-se no mundo assim meio calhastroz
Dado às notícias e ao sânscrito tinteiro
Por fim entregue ao severo aristarco
P’ra que lhe conte as sílabas e vigie os tentos
À cossa amargurada de vergões alternos
Fica por fim a calmaria uma malácia
E do mar fica não mais do que a recordação
De águas para paradas agora é feita a estrada
E da piroga catraia ou almadia
Canoa boa para se adentrar
Da mata os rios parados de águas baças
Nem sinal visto nem como atravessá-las
Nem um lugar onde passar a vau.

399
15.
Lugar tão ermo e tão desconsolado
Tão afinal idêntico à saudade
Que por um dia breve pareceu ter o topete
De ter inspiração à sua altura
E como sempre se converte em salutar homeostase
Do espírito que ao tempo se revela ingrato
Levado por um rio longe da foz
De onde o langor do mar fluiu primeiro
Resta ao sinédrio a dose de aposarco
Que faz crescer da ferida a carne os unguentos
Com que se animam os vapores do seu governo
E mesmo quando dado ao sangue alsácia
Ficam gentis os cumes dessa inspiração
E uma confusa melopeia mal engendrada
Lançada ao calvo mais do que podia
A sórdida intenção de em pé se equilibrar
De se manter à sobrevida das carcaças
Vai titubeando os gestos e as falas
Redondo e bem polido como um bom calhau
Silêncio só e escuro e a cabeça bem polida.

16.
É muito tarde nunca é cedo e a idade
Já lhe pesa aonde a lua filete
Esticado no céu da desmesura
Já desarmado o ênfase
Vago e translato
Não mais inquieto não mais eu não mais veloz
Dado aos cuidados de um gentil pegureiro
Desapossado do divino aerobarco
Em que podia navegar portentos
Beber de vinhos muito antigos de falernos
E ter-se revelado ao desafio da perspicácia
Uma figura de grande representação
Em vestes de leão paramentada
Pedindo humilde o pão de cada dia
Regado com o ranço de dos dias o passar
Nas horas o afã de muitas caças
E nesse o de se querer superá-las
Vir ao burgau
Em busca de uma pedra já delida
Que trouxe o coração alvoroçado.

400
17.
Sentindo as tripas retraçadas em dor por um estilete
P’ra pouca solução de um mal que não tem cura
Quase uma forma herbertina de hanseníase
Desfigurando os dedos e do pato
As membranas vivas e as guelras ao caboz
Os pés ‘inda engelhados da água do ribeiro
A fé jogada aos pés do antiarco
E o hierofante despojado dos seus luxuosos paramentos
Tudo inútil fatal danos internos e externos
Visíveis e invisíveis há humana suspicácia
Ao olhar firme e sem contestação
À observação imparcial e despojada
Que nunca trai nem não se negocia
Apenas sente uma certa vontade de cantar
De de estudantes recitar chalaças
De viajantes as entranhas viajá-las
Dos rituais esquecidos as unhas de lacrau
Asas de passarinho beijos de margarida
Tudo num caldeirão ao qual falta um bocado
E a cujo conteúdo mais maldade.

18.
Dessa prisão antiga ao preito de uma jura
De nunca desmentir a metafrase
Filhos do mato
Sete dias viajamos nós
Mais sete eu viajei o meu carreiro
Sem ver a desejada carta de nearco
Assim tomo aventuras navego em sofrimentos
Como uma hidra que galgasse fins supernos
E por virtudes galasse a
Corte de um rei já sonolento então
E iludisse desse a guarda armada
Vulgar que fosse essa maior valia
Ainda assim seria bom de se sonhar
Galgar ligeiro desse castelo as praças
E voá-las
Ver chegar a princesa num landau
Saindo inteira de uma casca falida
No fim de todo o percurso ultrapassado
Ganho à doença e à imobilidade
Que despedaça o trapo a canivete.

401
19.
Calmamente e terna a hipóstase
Clama a mente por um delírio crato
Que dessa pomba branca dos avós
Seja a terceira chama do terceiro
Anel de ouro que solitário marco
Com a marca inconfundível dos tormentos
Suaves como um vento e dos galernos
Que sopra manso mas imune à pervicácia
Sei do mar o regresso ao seu torrão
Falo dos anjos a língua edulcorada
E ainda não me cansei da cantoria
Nem de palavras com que me atormentar
Votado às traças
Argamassa de infortúnios de cabalas
Morto e epitetado de marau
Lodo infecto de uma maré escorrida
Despedaçado
E dividido o corpo à variedade
Como o de um deus no centro do ramalhete
Da divindade oculta que perdura.

20.
A efeito de mui raro incauto extracto
Ingurgitados os venenos de centenas de cipós
Imune aos óbitos pretéritos brasileiro
Reincarnado e andante desembarco
De muitas almas a infinitos eternos e vãos aditamentos
Matéria mais provada aos cernos
Fiel à violácea
Espada afiada que lhe arrancou o cascarrão
E o deixou à beira dor anunciada
De uma estranhíssima orografia
Montanhas impossíveis de ultrapassar
Cândidas balas pesando as biomassas
De quem se atrevesse a ultrapassá-las
E na vertigem do imenso cau
Fortes presságios de uma noiva compelida
Ao lugar mais fundo e menos profanado
Do profano fundo da bondade
Fundindo o ouro que nunca se derrete
Numa massa confusa de loucura
Inerte e insensível à metástase.

402
21.
Atar e desatar nós
Sentindo o mar pelo cheiro
No horizonte onde parco
O mar se engole nos ventos
Os bailados sempiternos
Demandam de mais audácia
Outra opção
A de uma canção rasgada
Uma ilusão que nunca se desvia
Daquele sonho imortal de ir e voltar
Fazendo o peito aberto às vis desgraças
Até ao ponto de poder amá-las
Como quem visse cortesãs em um sarau
E nesse amor a dor fosse nascida
No interior do manso coração desconsolado
Coisas de idade
Quando a saudade fura os pés como um estilete
E se esconjura a jura
Comprometida a vida à hipóstase
E já do alambique destilado o extracto.

________
epílogo:
O poema inacabado
Síntese do périplo
Razão e cenário
Nada interessa
Na vida têm-se quando muito
Duas ou três
Relativamente boas ideias literárias
E ainda assim
Como na vida
É realmente inócuo
Se terão sido
Mal ou bem
Incerto o onde
Inócuo é verdadeiramente
Se foram concluídas ou não.

403
BRASIL II

POEMAS BRASILEIROS

404
A MINHA PRETINHA TEM

(doze poemas de intenção e vaticínio)

SOU FACTOTUM DA RAINHA

Sou factótum da rainha


De sinhàzinha criado
Sou da moça servidor
Da mulher sou impedido
Como um soldado ou um rei
De uma princesa estrangeira
De uma nobre prisioneira
Sou de uma deusa guerreiro
De uma louca carcereiro
Escravo e senhor de uma fêmea
Desse encanto alucinante
Penhorado delirante
Ofuscado no esplendor
Amante adão prisioneiro
Do seu amor companheiro
Sou um servo cumpridor.

Nunca discuto o encanto


De tão louco encantamento
Tão esplendorosa raiz
Tão linda é minha rainha
Boca olhos e nariz
E sobrancelhas
Todo o seu rosto sorri
Seus olhos rindo
Os lábios
A testa o queixo as orelhas
Tudo brilha de alegria
De um brilho que queimaria
Milhões de milhões de sóis
Queimariam de querer
Continuariam a arder
E não brilhariam tanto.

405
A MINHA PRETINHA TEM

A pretinha tem as pernas


E entre as pernas tem o sol
Tem umas bocas que faz
Quando lhe dá mais vontade
O corpo todo lhe treme
E a pele do corpo tem
Uma doçura que toca
Sem que pareça tocar
Os seus lábios sabe dar
Esticados para a frente
Como que q’rendo pegar
Agarrar o mundo ardente
Inteiro naquele esgar
Que pede… que quer beijar
E então beija alegremente
Beija tanto e faz tão bem
Beijando sofregamente
Não meus lábios mas também
A minha língua as bochechas
Por dentro da boca aberta
E do interior da carne
Chama-me a carne p’ra dentro
- faz delirar
Toda a carne me sufoca
O sangue ferve nas veias
Como a lava de um vulcão
Dá vontade de engolir
Aquele corpo suado
Aquele suor salgado
Todos os líquidos sãos
Que da buceta lhe correm
Sabem a Índias a mar
Sabor de especiarias
Cheira-me a caril vermelho
O entre das suas pernas
Onde no fundo das pernas
Tem o mundo tem o sol
E no sol que encanta o mundo
Tem um laço envidraçado
Que a minha boca comove
E o meu laço faz ousado.

406
O VERSO GALHO

Quarenta versos direitos


E um catuto verso galho
Que fazem estreitos perfeitos
Os caminhos do caralho.

Quarenta versos inteiros


De santa verdade insana
De saúde e de prazer
De uma tesão desumana
Que tresloucada chegando
Se entre dentes devorando
Duas loucuras irmana.

De tesão ser um ou uma


Não chega a ser necessário
Verificar a pureza
Consultar o dicionário
A litúrgica mensagem
Pode ser na sua imagem
Da doutrina o seminário.

Não chega a ser português


O tesão da brasileira
Nem brasileira a tesão
Que do português se abeira
Só fica acesa e se inflama
Do espírito puro a chama
Que o mundo quer que se queira.

Essa minha pitonisa


Que se besunta de azeite
Que se unta que se unge
Mar de sonhos e deleite
Que longinquamente ruge
Que goza e grita de noite
E do mais fundo dos olhos
Com que transida me olha
Exala luz.

Dança torpe o verso galho


Nos pensamentos vadios
Nos tão clamorosos cios
Que deixam a alma puta
Fazem-me ao peito agasalho
As ganas com que me chupa
A cabeça do caralho.

407
ORAÇÃO DA CABRA PRETA

De todas as variantes
Que pode ter a canção
Só é mar onde se amarram
Os corações dos amantes
Os sonhos dos estudantes
E a loucura mais dileta
Porto de consolação
Quando ela vira oração
E é quando ela é mais direta
Canção de roda e de reza
Ritual nobre e pagão
Que todas a fibras pega
Faz parar o coração
E as rosas da vida rega
Todas as flores propaga
E nunca nega
A sua intenção mais reta
Oração da cabra preta
Santa Bárbara são Longuinho
São Cosme são Damião
São Menezes andarilho
De Manaus a Mazagão
De Belém ao Grão Pará
Na terra do açaí
Onde a dor tudo consome
Ninguém ficará com fome
De amor de transe ou paixão
Quem amar bem e direito
Exactamente do jeito
Que se canta essa oração.

ZAGAIAS DE PERDIÇÃO

Trinta vidas inseridas


Numa intenção
Com que se dança uma dança
Quebrada
Palavras e frases lidas
Estrofes e ideias tidas
Cruxificadas
Contadas e recontadas
Mal contadas
E por fim patrocinadas
Trabalhadas e paridas
Criadas amadur’cidas
Mais que criadas

408
Sonhadas e dormidas
Amadas mas destruídas
Sem piedade
Cantadas como quem canta
Uma saudade.

Lindas frases anoitecem


No coração de outras vidas
Já vividas
E se merecem em todas
As que se dão viram bodas
As que não viram zagaias
De perdição
E de todas a canção
Aquela que se diz e se recita
A que se canta e se reza
E se entoa quando a voz a pronuncia
É a que canta
É a que conta
Desses amores aquele que há-de ver o dia.

Zagaias e de perdição sempre aparecem


Quando a virtude anda distante e a sede é tanta
Mais uma vez quarenta são zagais e puros
Todos os santos da verdade dada ao mundo.

Verdade impura traça lírios linho dura


Que da verdade a estranha forma é forma pura
E a doce força mãe de augúrios clamorosos
Soa aos volúveis com trinados luminosos.

PÃO NOSSO DE CADA DIA


(…nos dai hoje)

E nos dai assim todos os dias


Porque o pão que nos sacia
O pão da vida
O pão
Que verdadeiramente nos sacia
É mais sentir
Mais ser
É mais querer ficar
E ser o dentro de outro ser
E não se importar com viver
Morrer de falta de ar
Alimentar-se de amor
E de foder
E sermos um do outro o afã devorador
Que vive da vontade e do desejo
De se perder

409
Desminlinguirmo-nos em sal e em calor
Morrer da sede de beber esse suor
Alimentarmo-nos no e em e do
Clamor com que ribomba o êxtase
Dos sexos febris ao peito nu
E com fragor
Viver um dia inteiro contra o sol
Sentindo apenas
A carne que entre as mãos
Ferve de cor e de prazer
Alimentar o corpo só de se querer
E se querer demais e sempre mais
E ser
Insaciáveis escravos do dever
O único que para tanto nos foi dado
Nascer
Suprir de fome e sede a consciência
Supri-la integral paradigmática
Com as chamas dos ramos dos cabelos
E das cabeças
Deixarmo-nos queimar os pensamentos
Com o barulho singular do crepitar
De laços cratos
De uvas brancas e pretas
Vinhos de embriaguez algarves de sonhar
De olhos paralíticos e transidos
De bocas e de esgares
De fogos míticos
E no calor da luta alimentar
De opalas vivas os momentos
De cristalinas águas os desejos
De improfanados líquidos
Unguentos sãos
Venéreos corrimentos
De esparramados fluídos e de amorosa origem os secretos
Santos secretos
Impetuosas e vãs iniciativas
De apaixonada compleição retardatária
Química fórmula
De totalmente rara
E nunca fatigada
Hiperestesia
Uma vulgar e morna sensação
De plenitude e de paixão
Sã histeria
Doente salvação das horas mortas
Em que os amantes
Se entredevoram enquanto o mundo dorme
Cega demência
Maior e mais determinada ânsia

410
Sempre causal
Sempre indecência
Fruta sadia
Imaturada fruta sempre mel
Doce vertigem que quer morrer
De uma intensa e sensual epifania.

Malbaratadas horas entre as mãos


De mais vogais e desmedidas bocas
Gândaras loucas
Que os olhos queimam como faróis
Astros pagãos
E dessas mãos caboclas
De mui artificiosos artesãos
Saem garbosas quarentenas duplas.

IGARAPÉ DAS MULHERES

Igarapé das mulheres


O perpétuo socorro dos descrentes
Saboreando a vida em águas claras
Ferventes dos delírios mais auridos
Mais desejados e tidos
Que minas de ouro
Cem anos de alquebrantada bastardia
E bélicos propósitos
Rasgos auríferos e dislates de ócios
Não de roçarem ânsias
Mas de ópios
Cem anos puros
De bastardia inócua
Vila mais nobre a que se arma
A que envergonha
Do santo o nome da cidade
Onde a vergonha sem nome corre solta.

Não te envergonhes oh! Macapá profana das mulheres


Não te enganes
Qu’ ‘inda há-de vir o manto da cigana
Repudiar a fé dos mentirosos.

Metade são meus erros


Outra metade é dos meus erros o pecado
Que infamante é ter dos filhos a vergonha
E dor é ter dos pais o sofrimento.

Todos os anos se cumprirá um dia


Em que semanas quatro meses e trimestres
Verão os dias que passarem indecentes
Calar as noras

411
Chorarão as mães
Madrastas sogras ternas cunhadas e maridos
De todas as famílias jorrarão vorazes manhas
Em forma de perversos vaticínios
E nos presságios dos doentes
Nos gritos das crianças e no esgar dos loucos
A cobra viva dormirá na preia-mar
Envolta em fumo a terra toda inalará o seu odor
De negra bruma águas passadas temporãs virão à tona.

Nas divisórias delícias belicosas


Espreitando ao vento viverão almas passadas
Verão as águas repassar as ímpias leis.

MARRAZES DO PECADO

Quarenta Marrazes do pecado e um mais velho


Todas as vezes
Imaginadas ânsias fáceis creres.

Quarenta chibatadas clave infame


Das chibatas.

Quarenta doses puras e vincadas na seleta.

Quarenta imaginárias noites mil e uma


Ladrões de versos
Rit(i)mos ca(n)tárticos e raiadas vozes
Do Marabaixo.

Sardónicos olhares
Quarenta e tantos
Em forma de tecidos acordados.

Quarenta acordes fios cruzados


De sons subentendidos.

Quarenta anuns voando.

Quarenta negros como negros


Anuns voando iguais a dois
Calmos de si dissemelhantes
Mas revoltados e viris
Em passos bons andando.

Todas as fibras do corpo


Todos os ossos e manhas
Do fio quarenta vezes morto
Que arranca ao ouro a prata das entranhas.

412
Vagazes trigas de tramóias gagas
Quarenta sagas
Planas profundas horizontais.

Quarenta dias contados


De uma quaresma marraz.

Quarenta ladrões de seixo os que vieram.

Dar mil e uma trigas e de intrigas mar e rio abaixo


De ali mas não do baba os feitos nus
Foram de olhar os carros.

Quanta loucos
Maledicência todas
As mentiras.

De Apolo os negros
Cavalos com que puxa
Para ocidente o carro cai a prumo.

ABERTA A BOCA

Está tudo dito à vã compreensão


Pórticos loiros se desenham francos
Não se desdenham nem conselhos brancos
Nem vaticínios… propugnemos
Tiremos vários tirocínios e de algemas
Lenços echarpes de avantajadas lides
Que aos negros vimes ainda desejamos
De adoçar-lhes a boca
De lhes bebermos o vinho
Que a prosa louca
Os cratos néscios
Os engaços dos braços solta a mão
Raios raiando os dentes solta a voz
Da reza e mais do canto
Na noite iluminada a lua
Prata ao ar a voz ficando rouca.

Quero entrever voando azuis vinhazes campos


Quero criar meus filhos na luz
Quero dos meus cantos ver sagazes
Os mantos com que cobrem-se os nus.

E quero mais
Minha pretinha de querer e eu tudo lhe dar
Para no auge do furor mais franco ser capaz
De ser seu dono e servo pertinaz
De ser seu Az

413
Seu príncipe azul envolto em gaz
De dar meu peito à tentação mordaz
Aos dedos e ao espírito da paz
Ser o transfigurado em plácido rapaz
Que muito sua muito ama e muito faz
Para ser sempre e não fugaz à sua dama
Estar lá presente e sempre que ela o chama
Nunca o ausente
Nunca ser pouco nunca menos nunca morno
Sempre indecente e quente
Que tudo quer que tudo dá e muito ama.

Ser disso tudo a sina mais que a fama


Ser do meu sonho a chama
Ser o divino fogo
Em que se casta purifica e queima toda a lama.

DOS VALES DO SOFRIMENTO AOS ANAIS DA CARREGAÇÃO

Dos vales do sofrimento aos anais da carregação


Vamos passar aprendendo
A passar
Como uma gata elegante
Passa correndo e sem queixume
Sobre brasas
Como um faquir passa descalço sobre vidros
E nas ruas onde passam negras sombras
Do ciúme
Aprenderemos a passar sem sermos nós
Desataremos nós nos vãos de escada
Onde a malícia sempre espera os amorosos
E das invejas
Que se masturbam escondidas nos baixos das igrejas
Faremos barcos
Enfunaremos velas
Em direcção às latitudes onde se dão às flores
Nomes gostosos
E de delícia as horas são compostas.

Ah! Navegar sempre


Sempre vir
Do mando sentir leve o dever
De voar
E sempre de outra vez mais uma vez de novo
Insaciado e sem querer
Surpreender
Calcorrear e ver
Dos horizontes fins
De infindas caminhadas de prazer
Fazer

414
Correr e percorrer
Quilómetros e quilómetros em teu corpo
Passear meus dedos minha pele em tua pele
Voarmos juntos juntos ver o dia
Em todos os segundos viver vidas inteiras
Como se pudéssemos em partos naturais
Revivescer e ser
Ser muito louco muito amante e muito cão
Sermos cachorros da paixão e renascer
Nascer e renascer de novo em cada ideia.

DÉCADAS DE PAZ E DRAMAS… QUADRAS E FAMAS

Dos quarenta paradigmas


Que vão sendo
Revigorados nas ânsias
Dos dias
Vão décadas de paz e dramas
Vão macias
As palavras invertidas
Das topias
Calcorreadas em vento
As pás indignas.

Dos meus amores são o canto


E o corrupio
Os desmandos que me têm
Vadio
Ao lar do meu doce amor
Nunca arredio
Sangrando os mansos delírios
O desvario
Que do vento faz lembrar
O assovio.

Mais que fossem meus desejos


Prisioneiros
Meus encantos e meus dotes
Nunca inteiros
Fossem de mim o penhor
E os tinteiros
E eu escrevesse para sempre
Versos lindos
No corpo da amada é que são escritos
Os verdadeiros.

E então contadas às hordas


Mal amadas
As canções dos capitães
Cantadas

415
No fogo retemperadas
E curtidas
Às temperaturas cálidas
Cozidas
Dos meus desmandos de amor
Foram sangradas.

Sou uma fera enjaulada


Não sinto calor nem frio
Sinto escoar-se-me a vida
Como um rio.

Faz da vida um corrupio


A vertigem da mudança
Que se equilibra num fio
Em que se dança.

A minha vida balança


Numa corda que parece
Fazer crer que é contradança
O que acontece.

Mas a malha que se tece


Daquele destino infausto
É da dor que remanesce
O contraste.

Da bandeira cor e haste


Para a minha condição
De ser fiel parafraste
Da paixão.

Rima sempre coração


Rima doce e calmamente
Com as linhas dessa mão
Que apaga a mente.

De quem à vida não mente


Nem volta a cara
A quem generosamente
A sorte ampara.

É uma coisa muito rara


Tão bela coincidência
Do amor que o destino amara
Ter ciência.

416
E dessa sã consciência
Ter o mais belo retorno
Ser fervente e à ausência
Nunca morno.

Da dor devolver o estorno


Às negras marcas da sorte
Não ter medo de ser corno
Face à morte.

PAIXÃO FERVENTE

Quanto bela e grandíssima que fosse


Que desse mais
Ao coração um arco-íris
Que dos céus aos olhos meus fosse maior
Muito maior
Por infinita que pudesse ser a energética e doce inspiração
Por ser mansa
Mas a si mesma empolgante e a quem for
Por tão maviosa lira
Por inviáveis pecados
Perdoado
E ouvir
Escutando se encante e ame
Bem e imprudentemente o seu amor.

Todas as curvas do tempo


Todos os danos
Que fazemos a nós mesmos e ao mal
Que indecentes nos queixamos
De sofrer
São perdoados
Branqueados e esquecidos
Sem detergente
No momento em que o prazer
Nos clama as fibras do corpo
E na alma nos faz ver
O que é o amor
E se então amamos bem
Lânguida e sofregamente
Nos entregamos inteiros
Nus de roupa e preconceitos
O tempo vem para nós
Os amantes
Como se não nos quisesse
E passa fluida e mansamente
Aonde nós não estamos.

417
Naturalmente o tempo vai e vem o tempo
Da saudade
Das nossas mais diletas horas e da vida
A morte dos amores e dos martírios
A verdade.

Ficam dos tércios aventuras indescritas


A coisa fria que se abeira à boca aberta
É a saudade
Mas a mais imaginária casta e cândida aventura
Contra a batalha do amor se prefigura
Cantando ainda o céu ditou já o seu ritmo
E faz da dor miragens coloridas
Que se enraízam em virtudes já passadas
De muito amadas epopeias vividas.

Param momentos e suspensos da candura


Em que vividos numa fúria de animais e tresloucada
Quase pura
Foram os dias passados e as horas presas
Paradas em relógios indecisos
De um mecanismo de carretos lisos.

Param folículos
Bamboleantes na árvore dos desejos
Por um momento cuja flor e dimensão
São passamentos
De momentos tão intensos que o sensor
Que do fundo da nossa consciência mede o tempo
Fica parado
Bêbado e silenciado
Como um rio
Que nos momentos mágicos do dia
Quando o clamor do sol ainda tinge o céu
Ou a manhã
Irmã da primavera o despertar
Medrosa se anuncia
Fica à luz mudo
Espelho pesado de águas mansas mar de chumbo
Onde a matéria
De que são feitos
Em nocturnas cãs todos os sonhos
Se narcotiza
E numa nuvem de calor morno imprecisa
Morrem para o mundo os sonhos transformados
Em alma pura
Realidade em que o amor a vida
Transfigura.

418
Prouvesse a fala da poesia à letra morta
Às horas desses dias dar figura
Prouvera às mansas
Doces imagens guardadas na memória
Em cintilantes elegantes décadas
Que ao mundo amasse tanto as frágeis horas
Como se amaram corpos nus desses amantes
Como de fumo anéis do tempo desse ao mundo
E dessas letras que a distância não merece
Fizesse em laço de luminosas tranças
Que por magia desse aos versos dimensão
Que surdo claro ouvisse
Desse amor ao mundo o amor louco o peito aberto
Se oferecesse
Que gritos de harmonia ainda impura
Feliz desse ou calasse
E mudo se encantasse de cantar
Fizesse jus ao universo inteiro
E ao monumento da mulher que eu tanto amo
Iluminasse
Se contariam versos e de muitos que escrevesse
De todos claro e mais irradiante que uma luz
Brilhasse de valor o serem dela
Serem por ela
Serem inteiros cada letra e cada som de quem
Me rosa a vida e me evapora o sangue
Essa mulher que me ilumina a vida
Quem a visse
Na sua nua fragorosa e deslumbrante
Leve e distinta flor de ouro
A sua crua nua e mor magnificência
Que me atrofia a dor e explode a alma
Haveria de cantar quem isso visse
Na voz autorizada de um qualquer
Universal e permanente hierofante
Todas as línguas
Todas as mais sagradas liturgias
Todas as ânsias só gemidas e uivadas
Em quarentenas loucas
De fábulas e versos cento e vinte.

A FERRO E FOGO

Treze dias seguidos queimei o meu destino


Traçado a ferro e fogo
Num visionário corte
Feito a desoras
Na palma da minha mão
Queimei-o no meu corpo a ferro e fogo
Esse destino que eu mesmo quis traçar um dia

419
Já transviado e pasto de mentiras
Que houveram dito por motivos diversos e frugais
Motivações.

Mas treze dias


Passados sobre a estranha decisão
De em mim repercutir meus erros
Assando em ancestrais fogueiras o meu espanto
Voltei ao mundo chamuscado e frito

Churrasco de mentiras
E desditosos falsos mandamentos
Mas compelido
Ao mais harmonioso irradiante e belo
Destino e anunciação.

As estrelas que eu vejo são diferentes


Das ‘strelas que contempla a minha musa
Eu sofro nelas a distância que não vejo
E do seu colo os meus anseios querem que eu veja
Mas na quietude das mil noites que padeço
Quando a contemplo
Na escuridão da noite olhando o céu
No ritmo menstrual do firmamento
Eu vejo a lua
Essa é será e sempre e tanto ser do meu amor a mesma lua.

E mesmo quando
Do menstrual período seja o dia
Em que dos dias calha ser a lua nova
Naquela negra aparição nunca aparente
Vê-se mansa
A sepultura calada de uma dúvida
E das entranhas se arreganha uma certeza
Que é a de saber
Dentro do coração que habita os meus murmúrios
Estar o seu nome escrito a ferro e fogo em letras de ouro.

EPÍLOGO

Todas as luzes do mundo


Todos os místicos búzios
Todo o mar o mais profundo
Do fundo dos meus mistérios
Os aromas desses lírios deletérios
Toda a cor do desconsolo
Hão-de trazer-me em tropicais delírios
Da minha rainha o colo.

420
OS BOIS DO CURIAÚ

(12 poemas de um amor manso)

A CAPIVARA MANSA

Pode o selvagem ser manso?


Pode
Pode o manso ser selvagem?
Também pode
Pode o outro ser quem é e ser diferente?
Talvez também
Todavia ser selvagem
É ser do mato o senhor
Ser da luta o intemporal
Ser da tragédia o licor
E ser a asa.

Ser manso é ser solitário


Ser pior
Não se estranhar
Mesmo quando o ser reclama
É ser o mundo uma cama
Que se parece
Com a trampa de uma paca
Que apodrece.

Pode-se ficar quietinho


Feliz e alimentadinho
Lavado e despoluído
Mas não se pode do outro
Ser resgatado o respeito
Ser manso e olhar direito
Só se for santo.

A CASA DA CABA

A caba faz uma casa


Sempre virada para o nascer do sol
Tem uns alvéolos
Como um favo de mel
Aquelas construções hexagonais
Que as abelhas fazem nas colmeias
Onde alimentam filhotes
De abelha
Na verdade a caba é mais escura
Quase preta
E pica
E quando pica a sua picada dói
Dói dolorosamente

421
Se diria
Assim se se quisesse exagerar
E de tão negra
De ser tão violenta
Tão tenebrosa e bela
A caba fosse
Não só mais enigmática
Mas outrossim mais digna e mais altiva
Mais pleonástica
E outro que outrossim mais mágica
Faz meia-dúzia de favos
Não são bem meia-dúzia
Serão mais uma dúzia ou mesmo duas
Duas dúzias ou nem tanto
De casinhas assim hexagonais
Com uma caba em cada uma
Um templo iluminado que é a sua casa
A casa da caba
Mas sobre esses favinhos quantos forem
Tem uma espécie de telhado
Como um alpendre
Para a chuva talvez
E que faz sombra
Nas horas em que o sol impera a dor.

O CATITU…

Porco selvagem… o Catitu


Tem também porco doméstico
Um que vive na casa das pessoas
Outro que livre
Chafurda nas lamas de um ribeiro
Um ribeiro
Um pouco maior do que um ribeiro
Uma ribeira
O igarapé do igarapé
E para lá
Mesmo quando chove e se patina
Nas lamas das margens inclinadas
Na oblíqua crua e imparcial
Desigualdade infausta de uma selva
O Catitu sabe o que navega
Nas águas ou nas lamas de um ribeiro.

Em casa não sabe nada


Apenas come de tudo
E sobretudo
Triste do mundo
Enerva-se.

422
E O JABUTI

Já o Jabuti é bem diferente


É como um homem velho e sabedor
Quando os mais jovens pescadores o interrogam
Se vai dar peixe
Se vai chover
Ou se aparecem
Ou mesmo quando não
Que nem o Jabuti
Na selva adivinha quando chove
O homem velho
Possui a clara agulha do higrómetro estrutural
Que dos seus ossos o tutano manda-lhe a mensagem
E certo disso
Da mesma forma que a gentil tartaruguinha
Três dias antes de chover no Amazonas
Procura das terras onde vive outras mais altas
O homem velho
Curtido e sábio
Carpido de outros dias tormentosos
Quando é pelos seus netos questionado
A tal respeito
Sabe que vai chover.

GALINHAS DO CURIAÚ

No Curiaú em certa parte tem galinhas


Muitas galinhas
Uma vez fugiram duas
Mas dona Maria achou
Porque ela é ciosa e sabe
Do que correm do que fazem
As galinhas
Suas galinhas
Mas tem no Curiaú
Outras galinhas
Uma que põe ovo azul
Tem as da dona Maria
Tem uma preta
Uma galinha preta
Mas vive em boa harmonia
Com as galinhas cristãs
Que na areia
Do chão do Curiaú
Vivem debicam e chocam
Que se entrechocam e chocam
Os ovos que darão em pintainhos
E depois esquentam e cuidam

423
Os pintainhos
No chão do Curiaú na verdade dá de tudo
Dá pinto dá pato bravo
Dá papagaio dá anum
Dá até do periquito
A fêmea o macho e o neném
O colibri os insectos
Tudo dá no Curiaú
Até essa que põe ovo
Que não é de ouro
É azul
Mas das galinhas que tem
A rainha é a picota
Como chama seu José
Essa toda pintadinha
A que se chama d’ Angola
Que a gente chama pedrês
Ou do mato
Porque é
De toda a consignação
Ser galinha quilombola
Essa que tem
Não a que põe ovo azul
Mas que também
Poderia muito bem
Pôr ovos de ouro.

O ANUM

Adeus americano
Do melro pássaro preto
Pássaro preto tem um
Que aparece quando chove
Bica debica e vai
Bate as asas voa curto
Desse adeus americano
Que o melro canta ao cantor
Vem aos dois
Às vezes mais
Quando está para chover
Um pássaro que é preto e vem
Que tem um rabo comprido
Que não gosta de ser visto
Não fica tempo nenhum
Pássaro preto
Bico laranja
Debicando a baga loira
De uma árvore muito estranha
Pássaro preto tem um…
É o anum.

424
O BODE DA MAÇONARIA

A estrela virada
O corpo suado de quem puxa
A carroça de cabeça para baixo
O homem xingando o outro
O outro entendendo nada
E o homem suando as tripas
Assoando os lábios de quem mente
Quem diz a verdade diz que sente
Diz que se sente
Cada um se engana como pode
Isso eu não sei
Isso talvez por certo eu nunca soube
Ou se esqueci
Isso é o bode
E ele grita
Mais do que diz insulta
Coloca viral e violenta
A súmula dourada da questão
Talvez ele nem saiba exatamente
O que diz
Talvez só queira
Xingar outro infeliz
Que que nem ele
Providencia o crédito de estar
Onde nesse momento
Instituído ou dado
É perigoso estar
E onde alguém tem que grita e que é gritado.

O BOI DO CURIAÚ

Tem um boi que todas as manhãs


Passa pastando no meu quintal
Todo o dia todo o dia não é bem
Mas poeta que se preza é assim mesmo
Nem o quintal do que ser é mesmo meu
Nem o boi passa pastando todo o dia
Passa de vez em quando
Tem passado ultimamente por aqui…

Tem um boi que pasta manso


Às vezes vem com mais bois
Vêm dois
Não tantos que se possa ver nisso uma boiada
Apenas alguns bois e muitos dias
Outros bois

425
Apenas um boi que vem
Que vem e passa
Pastando no quintal da minha casa.

Dos outros se tem a sombra


E às vezes a lembrança
Passa uma sombra às vezes na lembrança
Mas não passa pastando como o boi
Que todo o dia passa no quintal aqui atrás
Pastam como a vaca
Aquela vaca outra que do Zé Manel
Pastava à sombra da sombra da vaca
Mas na verdade passam longe
Muito longe do quintal da minha casa.

UH!

Eram três os bois na noite escura


Na calada da noite amazonense
Na calada quente de uma estrada
Alta e comprida e mal iluminada
Três bois na beira de uma estrada
Insólitas figuras que pastavam
E eu fui ver
Um dois bois
O que estava mais próximo
Logo se agitou nervosamente
O outro
O maior
O mais enorme
O corpulento
Fingiu ficar desinteressado
Desinteressado mas atento
Enquanto o magro
Mais nervoso
Se agitava
Mas se agitando optava
Por se afastar saltitando
Esse então
Agora
Fingindo não ser nervosamente
Enquanto o outro…

Decidi então me aproximar


Já o terceiro boi
O que tinha sempre permanecido
Como se não fizesse parte da história
E pachorrentamente ficado
A pastar
Já então esse terceiro boi

426
Mais pachorrentamente ainda se afastava
O maior
O que na verdade embora de início não parecesse
Era o primeiro
Focava em mim agora os olhos lassos
De boi
Que o pouco brilho
E a estranha luminosidade
Da luz própria da noite
Creditavam a ele e para mim
Que eu o olhasse com respeito.

E optei então por avançar mais alguns passos


Não porque achasse que fosse o melhor
E nem tão pouco
Porque quisesse incomodar a pachorrenta pastagem
Muito menos ainda
Porque tivesse a intenção de confrontar o boi
Esse
O maior
O que desde o princípio deveria
Ter sido considerado e eu sabia
Ser o primeiro
Avancei
Para poder provar para mim mesmo
Que não tinha medo de avançar.

Aí já o primeiro que na verdade


Estamos convindo aqui ser o segundo
Entre andar e correr
Patrocinava a fuga saltitante
E o maior
Com o mesmo desprezo atencioso e sóbrio
Com que p’ra mim
Logo de início nem olhara
Olhava agora para mim medindo o ar
Que se adensava mais
No espaço que se desalongava
Na distância agora curta que distava
Desnivelada um pouco
Entre mim e ele.

Entre ele e eu o nada


Um uh!
Nem mesmo um muh! de boi
O nada
Silêncio escuridão e nada mais
Como citava sempre
Desconsoladamente o meu doutor.

427
O BOI DA NOITE

Vem de noite o boi nocturno


No céu do Curiaú
Forte na noite e pesado
O boi vem nu.

Passa na noite indeciso


Mexe as ramagens
Parece que come os trilhos
E na noite
Não tem razões nem destino
Não tem norte
Não tem filhos
É livre de regateios
Faz de tudo o que é preciso
Na canga tem mil imagens
Aquele boi
Que carrega no seu dorso inexpugnável
Negra europa.

No céu do Curiaú
É o mesmo boi
Não traz lastros nem arreios
Não tem definidas horas
Não tem encontros marcados
Não reconhece demoras
Nem cercados
Passa no Curiaú
E quando calha
Vem de noite e transparece nas ramagens
Da vida adora o céu e mil imagens
Desenha quando cresce
Para o mundo que me aquece
O sol o coração quando aparece
E roça-se indiferente nas ramagens.

O BOI CORREDIO

Vai o boi no seu engenho de correr sacrificado


Perseguido
Pelo homem figurado e impiedoso
Vem o outro cerca o boi era o patrão
E o boi queria ser e já não foi
Em bosta mergulhado
Em merda emudecido e fermentado
E vil despudorado e infiel
Bêbado e cru
Fugindo ao chão
Agora voa e vira o decantado

428
O encantado e fabuloso
O propalado e charmoso
Boi voador
Voa nas asas do vento
Um encantamento assaz desconhecido o prende ao chão
Mas atrás dele
Mesmerizado pelo ritmo dos seus cascos
Pelo som das suas pernas
Pelo jeito obnubilante do seu corpo que levita
Vem outro boi
E mais atrás os outros dois
Vêm três bois
Atrás daquele
São afinal agora quatro
E o pedaço de papel que nunca ardeu
Vem outro boi ainda
O de papai
E agora já são cinco os bois
Todos os bois
Atrás daquele que voou.

O BOI DE PAPAI

De quem é o boi?
…é do papai
O boi que corre não pára
Nem ao grito nem à faca
Fome de briga não tem
Só quer chão
Só quer estrada
Estrada não tem na fazenda
Ele alcança o alcatrão
Que é um chão regado a sangue
Ferido e sacramentado
Que os homens dize’ que é
O asfaltado.

Cruzado na sua dor


O boi alcança o asfalto
E o homem que corre atrás
Não tem funda não tem laço
Tem um facão de mercado
E uma barriga de bicho
Nem não corre atrás do boi
Só balbucia gemidos
De passos que atabalhoa
Os pés trocados no chão
E a grande barriga sua
Suada se bamboleia
Deixa as pernas penduradas

429
Respira ofegantemente
E segue o boi
O boi é grande e viril
É de papai.

O FILOCOLO E O FILOSTRATO

(três poemas breves no reencontro com o Decameron)

1.
De Dante e de Petrarca meu mestre zarolho
Me mandou que copiasse a biografia
De Bocaccio me disse pouca coisa
E de latim.

Poucas aulas tive realmente


Que me dessem ao gosto paciência
Mas do geral nunca me arrependi
De nada do pouco que aprendi.

2.
Não sei não aprendi não soube nunca
Por quê o sentimento enfeitiçado e transmedido do amor
Para que fosse da transcendência a dimensão plus ultra
Da dimensão poética a grandeza suma
Da devoção a fulgurância quase mística
Ou para mim que sou de extremos pura mística
Tivesse que viver desapossado
Em verdade maior despossuído
Dos azougados e frenéticos fulgores incandescentes
Os decantados clamores irresistíveis
Os dons sensíveis
Que do sexo e da carne são os sãos mistérios
E que por isso
Tivessem que ser sempre metafóricos
E contrários ao mesmo misticismo.

Muitos poemas são cantados


Parcimoniosamente em nove cantos
E o décimo
O que por fim em conclusão diria tudo
É o que não está lá
É o que fica em muitos deles por cantar
E as coisas que diria por dizer.

430
3.
No topo azul do meu caderno
Desse em que escrevo agora os desencantos
Os pensamentos que mais tarde virão a ser meus cantos
E onde brilhará p’ra sempre e tanto
A sempre inspiradora chama da mulher amada
Sinto o novelo dos crespos e ditosos
Fios do cabelo da minha namorada.

É realmente azul
O topo singular dos meus cadernos
E neles eu escrevo sempre a oiro
Sobre azul
Relatos de um amor ou desventuras
Que o dia viu e a noite abençoou
E nesse topo azul dos meus cadernos
É onde agora tenho os seus cabelos
Os fios suaves e sagrados dos cabelos
Da minha idolatrada namorada.

É dessa musa de cabeleira fofa carne e osso


Que na essência funda e que no fundo são feitos os poemas
De nada mais se fazem as canções
E mesmo nos corações
É do desejo a carne que se sente
…a brotoeja.

É dessa deusa que desejo a pele escura


Os brilhos cúpreos que aos meus olhos são faróis
As mansas curvas
Luares ebúrneos
Os olhos plúmbeos
Que se dão aos meus como dois sóis
De mil galáxias de delírios contra espúrios
Infinitas cachoeiras derramantes
Que dão aos sóis dos universos mais distantes
A luz palrilha em que se banham os amantes.

O TEMPO

(segundo «Poema da viagem»)

Se você partiu um dia


A viagem de volta você tem garantida.

Como nos pêndulos a força com que vai


Já leva em si e acumula
A força que o trará
Ele é do objecto a força estranha
É o que vai

431
E ao mesmo tempo o que o faz ir
Fá-lo ir e depois vir
E ao mesmo tempo
É ele mesmo quem vai e vem
Vai-e-vem em que se empresta à vida
O movimento do seu eterno despertar
E se desperta a cada dia nova hora
Que já carrega o céu
No seu mágico afã de tudo ver.

Umas vezes vê-se o dia ser de noite


Outras a noite adormecer e ser amanhecer
Umas a noite despertar asas no ser
Outras a dor e a manhã em brancas ou bancos
Nuvens ou de nevoeiro de se estender
Umas e outros tantas vezes o sol brilha contra as faces
Pelas vidraças das janelas sempre amigas
Ovóides e pequenas sempre espessas
Dos aviões
Outras ainda que de forma inesperada
Será chuva
Um magistério lânguido e sagaz
A chuva miudinha sobre a qual
Tantos poemas bucolíricos terão já sido escritos
Será essa bendita e imaculada chuva quem estará
Esperando por você no aeroporto.

A chuva
Algumas vezes fraca e benfazeja
Outras torrencial e assassina
Barulhenta
Mesmo em lugares em que seria
De todo inesperado que chovesse
Mas como sempre
Inesperada ou não tem sempre alguém
Que simpaticamente e numa língua estranha
Informa gentilmente sobre o tempo
Esse que se diz meteorológico
E que fará no céu desses lugares
Aonde você chega
«Clowdy and windy»
Como se fala na língua em que se fala e em que falam
Os aviões.

Nos barcos as viagens são mais lentas


E só se vai para lugares muito longínquos
Mas mesmo que dependa das marés
Todas têm sagradas uma volta.

432
Lentas ou longas breves ou curtas as viagens
Tem sempre duas que se contam ao devir dos patrocínios
Em todas as viagens que fazemos
A que pagamos e em que a palmo palmilhamos
A terra
E a que vivemos
Indo e voltando
Para destinos entrevistos que tivemos
Em outros patamares anunciados
É a viagem do tempo em que estivemos
Suspensos da miragem
Em que a vertigem da ideia é viajada
E que fazemos outorgar à grande roda
Em que a espuma da vida é triturada.

Você pode medir a existência


Pelos impulsos regulares mas invisíveis
Dos que por nunca vistos não se sabe nem se existem
Cristais de quartzo rigorosos e que vivem
Escondidos no interior dos relógios japoneses.

Modernamente também alguns suíços


Abandonada à crua ditadura do dinheiro
A desusada e inútil pantomima
Das marcas dos carretos infalíveis
Do prestígio dos fabricos familiares
Das tradições e famas seculares
Que se mantinham por várias gerações.

Mas esses
Que de tão pequenos
E duvidosa até ser a cabal
Verdade de que existem
Tais cristais
Sejam eles translúcidos o’ opacos
Sem tom ou coloridos
Como os rubis que se contavam
Para aferir da infalível
Certeza inviolável e burguesa
Dos mecânicos
São diferentes
Até da qualidade
E da burguesa quanto infinita precisão
Falta o encanto
O respirar pausado e lento da matriz.

Eu deveria talvez ter muita pena


De ter vendido num momento de aflição
O meu relógio Tissot
Mas deveria eu talvez ter ‘inda mais pena

433
Do que teria se tivesse
Por não ter tido nunca
Nem eventual discreta nem regularmente o dinheiro
Do que seria a primeira prestação
Das muitas que tornariam possível eu comprar o que seria
O meu Patek Philippe?
Doce questionamento
Para um sujeito que se dando ao desplante de ser eu
Do tempo diz que não existe
E que não sabe nunca a quantas anda.

Ainda que na verdade dos cálculos filosóficos


Das conclamadas e mais sediciosas
Conspícuas intenções especulativas
O tempo realmente não exista
A existência imagem que da vida
Se vê plasmada em uma ordem conexa e variável
Em uma inapagável sucessão insucedida
Dos incontáveis eventos que acontecem
Que se nomeiam e dizem
Ser o que crentes e crédulos chamamos
Os acontecimentos
E estes é fato que acontecem
E dotam de existir a existência
Essa de fato pode-se medi-la
E é com frequência e grande atribuição
De regular significado que se mede.

De muitas maneiras se pode medir a existência


Você pode medi-la assaz tranquilamente
Pela elegância discreta e silenciosa do vai-e-vem de um pêndulo
Pecinha mágica e que existe
Em múltiplos tamanhos
Tão bem ou como em infinitamente variadas formas
O pêndulo
Dos quais o que é talvez mais conhecido
O de Foucault enorme e arrasador
E todavia nem por isso menos silencioso
Com ele só compete imaginário o pêndulo
Dos hipnotizadores
Pode ser qualquer um
Não é importante a peça nem o seu tamanho
É importante o uso
Que se faz dela
Por isso a peça não existe é imaginária
Materialmente pode ser qualquer uma
O que existe é a ideia
Que se faz dela e do para que serve
Pode medir-se o tempo que se apaga
Com o vai-e-vem desse objecto imaginário

434
Que obre em quem o olha uma viagem
Para um tempo em que o tempo não existe
Por alguns momentos cessa de existir
Preso de um tempo que se tem aglutinado
Em uma caixa de emoções tidas por nós
E a que nós chamamos de comuns
Recordações.

O que não cessa de existir é a vertigem


Voraz e infinita da viagem.

Olhar voando de Paris os verdes prados


O Google faz melhor e mais cuidados
Planos e contra planos coloridos
Do Rio a chuva ardente inesperada
Das ruas os nomes conhecidos
Não podemos tristemente das saudades
Das vontades dos desejos que vivemos
Das doidas deidades que inventamos
Dessas jamais
Alegre ou tristemente poderemos
Ter as imagens registadas em fotografias
E quase como que por uma amável ironia
Dessas nada temos nem no Google
A não ser misticamente o que vivemos
E em momentos inefáveis nos sentimos.

Poderemos afinal medir o tempo


Também com esses tais relógios muito bons
De corda
Molas e carretinhos manuais ou automática-
mente mantidos a trabalhar
Eixos de rodas de rubis
Rodinhas dentadinhas muito finas
Cabelo e cabelinhos todos engatadinhos
Uns nos outros
Eixos e rodas cabelos e rubis
Tudo envolvido numa trama complicada
Erros conceituais já descontados
Daquelas coisas que mesmo só chinês teria sido
Capaz de por si próprio inventar
Para medir o tempo
Saber que estou aqui não estou ali e quando
E quando eu penso que estarei depois
E onde
Existe o antes… (?)
Existe estar e não estar lá você e isso ser
Ter terminado de existir do tempo a vida
A alegria de viver ter acabado
E o tempo de existir ser agora ter o não por existência.

435
Pode medir-se o tempo como eu faço
Pelo tempo que demora a desgastar-se um lápis
Entre feliz e amorosamente comprá-lo numa loja
E consumi-lo pau e pedra de desenhar palavras
Pau e grafite de desenhar saudades em palavras
E desenhos
Fazia tempo até que eu não fazia
Desenhos em cadernos pequeninos
Desses que se usam no bolso e obsoletos
Lembram um tempo em que não existia
Registo áudio nem se tiravam fotografias com tel’fone
«tufone» como ouviria uma pessoa no Brasil
A palavra falada se ela fosse dita
Na suave e pouco articulada vulgar pronunciação
Que tem correntemente o português de Portugal
Uma prosódia
Que afinal se diz apenas «celulá»
Esse «tufonizinho» que faz fotografias e outras coisas mais
Uma viagem linguística que fazem corações
Uma viagem longa e demorada
Uma assaz longa e demorada viagem de palavras
Que endossam doces cantos e carregam
No bojo dos seus líricos navios
Semânticos os corações.

Podem contar-se os anos


Mas não o tempo que demoram ir e vir
Ainda mais se o tempo é mar
Menos se é céu
E mar e céu o mesmo mar e o mesmo céu
É sempre o mesmo o tempo da viagem
Aquela sempre dita meditada e querida
Aquela há muito mais sonhada e delirantemente tida
Aquela mesma
Em que o coração parte feliz em direcção ao nunca.

Pode medir-se o tempo


Talvez possa
Mas não o tempo da saudade que é infinita
Como é infinito o tempo que atravessa
Os tempos transmigrados vida em vida
Que por si só atravessa várias vidas
Épocas vidas várias gentes universos inteiros
Várias matérias pulsações de origem vária
Tudo isso é tão pequeno e parco o seu significado
Perto do tempo
O tempo breve o pouco tempo
Em que se deixa ver brilhar a compaixão
Não essa tola assimilada à caridade

436
Mas com paixão paixão comum loucura e sanha
Partilhada
Em que é comum a dor feliz a carne solta
A pele arde o corpo sua
A ânsia aberta nos consome e a alma fica nua.

Tal é o reino
A soberana hora
Em que se faz presente
O poderio fatal e o fascínio do agora
Mesmo que o tempo pare
Se é que pára
Como dizem
Mesmo que não se sinta não se ache não exista
Mesmo que alguém contasse
Por impulsos vergados de energia
A insana fragrância que de dois seres emana
Nessa hora
Teria que ser o deus maior
O mais bondoso e poderoso bem
A força luminosa que se manifesta
Por não se perceber que está havendo
E que dos quatro Força Amor Poder e Luz
É o maior.

AINDA E SEMPRE O AMOR

O meu amor
Longamente dissecado até ao fundo
Olhado e querido de todas as maneiras
Facetado de dor como um brilhante
Por mil facetas olhado e transparente
Por fim como um rubi transfigurado
O meu amor
Resplandecente em luz
Iluminando sempre a minha alma aziaga
Repousa breve
Por um momento
Feito uma alma só
De amor e complacência.

II

Meu amor quando eu te vejo


Todo eu me transformo em lunaparque
Sinto da cabeça aos calcanhares
Desde a hora em que partiste
À hora de tu chegares

437
Todo um frémito no corpo
Que mesmo depois de ver-te
Encanta empolga e persiste
Até se alojar ronceiro
Dominando o corpo inteiro
No lugar do coração.

Como um bonsai assustado


Sai do tempo alvoroçado
Vai para um tempo diferente
E muito desajeitado
Delirante e apaixonado
Jamais desanuviado
Aquele frémito antigo
Vibrando muito e doendo
Se foi tornando inseguro
Do coração um amigo.

Quando tu chegas enfim


O meu coração palpita
Como é próprio e comum
Dos corações palpitar
E quando por fim tu estás
Já mesmo quase a chegar
O meu coração rebenta
Quase rebenta feliz
Mas antes de rebentar
Espera um momento
E aguenta
P’ra aquela ânsia tão louca
Num longo beijo se dar
E o frenesi da saudade
E a vontade de beijar
Se fundirem e com fragor
Se dissolverem no ar.

E se porventura houver
Mais coração p’ra vibrar
Naquele longo acenar
De um coração p’ro seu par
Que é o acto de beijar
Num abraço grande e quente
Há-de o coração saber
Interior e omnipresente
Todo o doce envolvimento
Que o amor sabe embalar.

438
III

Da distância e da ausência
Se alimenta o sofrimento
A dor da separação
Viver torna-se um tormento
Mas quando por fim se augura
O fim dessa atroz tortura
E o amor por um momento
Triunfa do sofrimento
E o momento de beijar
…Quente e solto
…Eterno e louco
Já se está a aproximar
O meu coração exulta
E segreda ao meu ouvido
«Meu amor já falta pouco»

IV

Já não sei dizer mais nada


Tudo me parece pouco
Mais e mais palavreado inútil
Pequenino
E estas letras e teclados
Diminutos
Estes computadores e toda a dura
Inexpugnada e vã tecnologia
Mesmo que fosse apenas que eles fossem
Úteis só
Para dizer não mais do que essas três
Vãs palavrinhas
Tanto são a tal desmesurado ponto tão
Inúteis
Que me arreganha os nervos de saber
Me arranca das entranhas não te ter
E me parece
Tudo pequeno e búzio
Tudo em vão
Como os palhaços sanguinários de uma guerra.

Ainda que eu tivesse a tua boca


Você me desse inteira
A sua gruta
Molhada e de tesão inchada de tossir
Gemer gritar de espanto e de loucura
Mesmo que fosse preferível te engolir
Te vomitar p’ra te engolir de novo
Te esmigalhar os ossos de tanto te abraçar
E te abraçar tão forte que o teu ar

439
Parasse de soprar e o teu sangue
De fluir
Ainda assim
Os meus desejos satisfeitos e as ânsias
Da lonjura e do frio do teu calor ausente
A falta a fome e as vontades saciadas
Seria nada
Haveria de ser como uma sede
Dessedentada apenas de água morna
Eu haveria de querer ficar gritando
Como um possesso grita no segredo
Dos confinados cafundós dos manicómios
Que eu te amo tanto
Seria assim
Como arrancado
Das escuridões do ser profundo
Estridente e forte aos infinitos ecos voz distante
Forte rasgada e lancinante como só
Da alma um grito
Eu amo eu amo eu amo eu vou eu amo
E embora tudo
Fossem ainda pouco essas ideias
De mil e uma trinta e tantas infinitas formas
De te dizer suave e puro
Enlouquecido e trespassado de cúpidas lanças
De encarniçadas flechas de desejo
Do mais cruel tesão insaciado
Do mel dos meus «recuerdos» da ternura
Dos beijos matinais a orfandade
E não diria tudo se dissesse
Mais mil e uma vezes que te quero
E simples mesmo que inútil e doce
Que eu te amo tanto.

Os deuses estão doentes


Do desgosto
Do meu amor tão longe
E eu quase morto
Da saudade que provoca
Não ter perto
O leito da nossa toca
E a minha musa.

Os deuses devem estar loucos


Era um filme
Mas o meu coração geme
Do ciúme
Se não estão loucos estão cegos

440
Ou míopes
Ao que chora nos meus egos
O queixume.

Não é sequer que eu tenha


Uma razão
P’ra duvidar de que moro
No coração
Da pretinha mais bonita
Que há noção
E a de cor mais afrodita
Que o mundo tem.

O mau é que só bonita


Não é bem
É mais a mais bela e qu’rida
E é também
A mais gostosa que a vida
Também tem
E que a vida quis que fosse
O meu bem.

Quando se ama tanto alguém


Já é fatal
É impossível não ter
No principal
Inveja daquele ser
O animal
Até do ar que respira
Até das roupas que tira
P’ra dormir.

Mas o amor que a tudo obriga


Me faz crer
Faz sofrer e eu que o diga
O que é ter
Do meu amor a longínqua
Frustração
Das pernas da boca a língua
Ah! Coração.

Dos lábios bem desenhados


Dos gritos e dos suspiros
E das bocas que ela faz
Quando está para gozar
Dessa lista mais que fosse
Tudo o que nela me apraz
O que me acende a paixão
E tendo ter dela a doce
Consolação.

441
A música mais amada
Do seu mágico gemer
Das vontades dos desejos
Da gozada
Daquela puta assanhada
Que só ela sabe ser
Ficar à míngua
E dos seus olhos espertos
Dos seus sorrisos abertos
Não os ver.

VI

Não tem moça mais bonita


Do lado de cá do sol
Sobre a terra ou nos confins
Da intermitência do ar
P’ra lá da nuvem estrelada
Ou dentro do coração
Do que a minha namorada
Mais formosa não tem não
Mais adorada e querida
Do lado aceso da cor

Não existe alma na vida


Mais clara que o meu amor
Mais jubilosa e na boca
Aos lábios que o beijo aflora
Mais morna que húmida e louca
Que pudesse tê-la agora.

AMO O TEU CORPO ELEGANTE

(Poema em 9 cantos dedicado à Excelentíssima Senhora Dª. Joaquina de Jesus)

Amo o teu corpo elegante


Todas as suas bondades
Que sendo bondades tuas
São do teu corpo vontades
São desejos em que ardes
E em que me vejo arder
De tanto te desejar
E tanto mais te querer
De tanto te amar e ter
A voz se me alquebra e diz

442
Desde a mais funda raiz
Do meu ser que o teu reclama
Com toda a força do ser
Meu peito chama por ti
E o meu corpo também chama
O manso afago do teu
E desse laço infinito
Que não tem nós nem amarras
Indefinido e sagrado
Como um laço espiritual
Que é no corpo que se faz
Mais perto que mãos e pés
Nos músculos relaxados
Nos nervos tensos ou não
Na carne erecta enxugados
Todos os líquidos sãos
No teu corpo se imacula
Pernas abraços e mãos
Enleado ao meu que exulta
Um nó que só nós sabemos
Atar e desatar bem.

II

Faço meus os teus amores


Aromas gestos e cores.

Tudo o que tu representas


E a força com que o sustentas.

Amo os tão doces segredos.


Que escorregam dos teus dedos.

Para mim que tanto amo


Tu és o broto do ramo.

És a flor mais colorida


Do jardim da minha vida.

Os teus passos vão atrás


Das lendas tupinambás.

Dos contos dos portugueses


Deslumbrados das nudezes.

Dessas índias que nas praias


Lhes deram suas papaias.

Suas coxas e tapadas


De vento as faces marcadas.

443
Desenhadas de desejos
De maravilhas e beijos.

Tu és a súmula pura
A dimensão e estatura.

Das negras monumentais


Que aos mulatos deram pais.

Tua pele tom marron


É p’ra mim tudo de bom.

Tudo o que desejo e quero


Com meu ardor mais sincero.

Dos cantos com que me embalas


Me vem o cio das senzalas.

Chega-me em doses maciças


Transforma a carne em cobiças.

Que o meu corpo diz que ama


Se enrolando em ti na cama.

Se contorcendo esfalfado
Do teu ardente e suado.

E esse teu corpo elegante


No seu prazer mais flagrante.

Liquidifica-me as ânsias
Solta-me as protuberâncias.

Deixa-me louco e feliz


Faz-me sentir aprendiz.

Dos teus encantos e sanha


Das tuas graças e manha.

E nos vinhos do teu cio


Eu me envolvo e inebrio.

Até que a noite me engula


Na carne que entesa e pula.

Nos delírios nos prazeres


Na boca dos teus quereres.

444
E no que ela sem falar
Me faz sentir e gritar.

Em momentos de tesão
Transe escaldante e paixão.

Que nossa carne consome


E nunca alimenta a fome.

Com que nos qu’remos comer


Sempre mais a paixão quer.

E o amor que nela tem


E a música que dela vem
Tu e eu cantamos bem.

III

A paixão que nos devora


Sempre mais nós lhe daremos
Sempre dela mais teremos.

Vinda de dentro p’ra fora


Molha o corpo de cansaço
Não lhe sobeja pedaço.

Tudo damos do que somos


E cansados conhecemos
Dessa paixão que vivemos.

Delirantes como gnomos


Uma dimensão maior
Que o que chamamos amor.

E cantamos em uníssono
Todas as noites da vida
Das formas a mais querida.

Nosso delírio mais íntimo


Nossos fulgores e anseios
Nossos lençóis ficam cheios.

Depois a noite dormente


Nos embala e descansados
Acordamos abraçados.

E invariavelmente
Quando amanhece outro dia
Já começa outra folia.

445
Já nos achamos unidos
Quando a luz do amanhecer
Nos chama para viver.

Entre beijos e gemidos


O meu corpo diz querer
Do teu o amanhecer.

Gosto de te cutucar
De te dizer que te quero
Sem tangas nem lerolero

Tu não me deixas pensar


Minha estremunhada chama
Já nos incendeia a cama.

E desse incêndio gostoso


Em que o teu dia começa
A minha intenção é essa.

Ser do teu ser fabuloso


Todo o dia uma promessa
Que tu aceitas sem pressa.

Sabes bem que eu te desejo


Adias-me a sensação
Fazes crescer o tesão.

Entre um beijo e um bocejo


O nosso dia começa
E o desejo nunca cessa.

Vai crescendo como o sol


No horizonte levanta
E todo o mundo acalanta.

Mas no meu corpo ‘inda mole


É o teu corpo elegante
Que me faz seguir adiante.

É o que me faz viver


O que faz com que me lembre
Que o teu corpo me quer sempre.

E que eu adoro ao te ter


Que o teu corpo me deslumbre
E seja o tom do meu timbre.

446
Vejo chegar a manhã
De um dia tão diferente
Vejo a vida pela frente.

Tu és o meu talismã
O filtro dos meus amores
E o ópio das minhas dores.

És a prata mais querida


Precioso diamante
Néctar tão inebriante.

Haja luz e reflectida


Em sete cores dividida
Nesse teu corpo elegante.

Repetirei sem descanso


No mesmo certo balanço
Que o teu corpo faz constante.

E nessa aposta importante


Ser sempre o teu terno amante
Azougado porém manso.

Falaciosas ideias
Não me fustigam a mente
Quando o teu corpo está quente.

E o sangue corre nas veias


O meu nas tuas dolente
O teu nas minhas tremente.

E no momento mais belo


Que o teu ser electrifica
Fica a mistura mais rica.

Sinto a luz a percorrê-lo


Um encolhe o outro estica
E o teu do meu corpo fica
Enrolado num novelo.

IV

Amo o teu corpo elegante


Amo o teu claro sorrir
Tua alegria flagrante
E o que ela me faz sentir.

447
Amo os desejos que sinto
Quando a silhueta rara
E o teu tom de pele tinto
Meus olhos todos escancara.

O dinamismo nervoso
Das tuas curvas e linhas
Firme e voluptuoso
Vibra e se enlaça nas minhas.

Eu quero o teu ser inteiro


Os teus pezinhos minúsculos
Quero o teu jeito faceiro
Todos teus nervos e músculos.

Quero o olhar curioso


Que os teus olhos jogam fora
E do teu rosto anguloso
Quero a boca a toda a hora.

Sinto lúbricos desejos


Chocalha-me a alma inteira
Quando os vejo pedem beijos
Pescoço e saboneteira.

Mas tudo em você me encanta


Todas as coisas que sente
Tanta beleza mas tanta
Que eu me descubro indecente.

Eu gosto da mama doce


Tão na medida perfeita
Mais perfeita que se fosse
Para a mão que afaga feita.

Cada dia eu te amo mais


Eu te quero meu amor
Todos os dias iguais
Mais que no dia anterior.

Te adoro os ossos delgados


Os artelhos os tendões
Os dedos entrelaçados
Nos anéis das ilusões.

Dos teus braços amo a arte


De ondular quando tu danças
O jeito de balançar-te
Do teu cabelo amo as tranças.

448
Amo-te toda se brilhas
Tua sensibilidade
E todas as maravilhas
Que a deusa em ti faz verdade.

Tua magia derrama


Pelo teu corpo uma luz
Abraça inebria e chama
Acorda alerta e seduz.

Dispara a flecha inflamada


Vem direta ao coração
E eu sinto a carne empolgada
De desejo de tesão.

Tuas pernas alongadas


Tuas coxas teu bumbum
Duas almas abraçadas
Dois corpos q’rendo ser um.

Tão resplandecentemente
A vida se agita e vira
Tão feliz e indecente
Que a boca toda suspira.

Traços e sons que somente


De uma imaginária lira
Tangida indolentemente
Todo o céu desinibira.

E dessa lira constante


Música geme e respira
Faz de mim ser um estudante
Da ciência que me inspira.

Faz de mim ficar contente


Virar matuto caipira
Apalhaçado ser gente
Ser Saci ser Curupira.

Ser amoroso e perverso


Viver virtudes impuras
E ser o verso do inverso
De todas as criaturas.

Tudo isso faz de mim


E eu quero ser tudo e mais
Preto velho serafim
Da barca do amor arrais.

449
Ser imperfeito e total
Por você perfeccionar
A transmutação do mal
Na forma pura de amar.

E a forma dos meus impulsos


Transmutar em labaredas
Sem preconceitos avulsos
Queimar em linhos e sedas.

E quando cansada e tonta


Pedires descanso e paz
No raio de sol que desponta
Ser da noite contumaz.

Que o teu ventre afaga e quer


Que as tuas pernas abraça
Que te chama p’ra fazer
O qu’ o amor quer que se faça.

Na madrugada encantada
De uma noite longa e louca
Na tua gruta molhada
Plasmar quente a minha boca.

Nos ouvidos a tarouca


Das coxas aberta em flor
De carne a mais bela boca
Gosto de fruta e suor.

Não há simbolização
Não há rata não há rosa
Que sustente a proporção
De uma xereca gostosa.

Não é qualquer é só uma


De quem a dona se ama
De quem se adora o aroma
E que o corpo todo chama.

Não uma nem não aquela


Só tem a tua no mundo
Uma só caliente e bela
Que muito me encanta e apela
P’ro meu caldo mais profundo.

450
V

Se uma só frase bastasse


P’ra dizer o que eu não sei
Nem uma letra que fosse
‘inda que a musa mandasse
Eu escreveria… direi.

Mas é muito é mais que eu posso


É mais até que adivinho
A maré do mar que é nosso
Cravado como um caroço
Tenho na voz caladinho.

Estrafego as palavras todas


Procur‘ outras que não vi
Não quero saber de modas
Já sonhei todas as fodas
De olhar-te e pensar em ti.

Quando andas pára o mundo


Quando danças bigbang
O meu langor é profundo
O teu nome já diz tudo
Teu movimento o meu sangue.

Agita ferve atrapalha


O que eu quero dizer
Teus gestos são uma malha
Mesmo o meu coração falha
Suspenso de te qu’rer ver.

Respirar já nem sei bem


Olhar parece-me imenso
Para mim estás sempre além
E o que eu digo sempre tem
Por onde ser mais intenso.

Mais verdade mais real


Maior total infinito
Três palavras afinal
Resumiriam igual
Tudo o que eu deixo aqui dito.

Mas é preciso dizer


Não tem jeito é compulsão
É força compreender
É fatal ter que fazer
Das palavras margalhão.

451
Foder o espaço o papel
Fazer minetes aos versos
Erradicar leite e mel
Roubar no voo de um corcel
A distância dos teus passos.

Cavalo alado que voa


Anjos com asas já fomos
Já voámos em Lisboa
E a vertigem não se escoa
Nunca esquecemos quem somos.

Quando não estás arrebenta


Esfia-se o ar de saudade
Amor e dor só aumenta
E essa dor nunca se ausenta
Vira ardor vira vontade.

Ah! se eu te tivesse perto


Se o nosso fragor mandasse
Se o dia alegre e desperto
Virasse o errado em certo
Nosso amor se alambazasse.

Ficaria tudo azul


Nos pastos dariam flores
Como nas ilhas do sul
Uma aragem muito cool
Pintaria a alma em cores.

Vermelhas todas as ânsias


As vontades mais carnais
Os instintos as fragrâncias
Libidinosas substâncias
Das pulsões sentimentais.

Eu te amo meu Brasil ver-


de amarelo azul anil
Sempre te amei sem saber
Que o meu destino era ter
No teu coração um til.

Ondulando sutis graças


Mulata sambando solta
Fundindo todas as raças
Navegando muitas braças
Toda a dor em graça envolta.

452
Tu és o Brasil inteiro
Tudo o que nele fascina
Tu és meu amor primeiro
De um renascer verdadeiro
Que o meu destino domina.

Tudo vejo em ti se abrir


Flôr de lótus manga rosa
Vejo onça vejo tapir
Vejo anaconda sorrir
Selva rir ser poderosa.

Tudo isso eu vejo em ti


Símbolo imaginação
Fantástica sucuri
Flutuante colibri
Frondosa iluminação.

Mas quando olho o que eu vejo


Tudo o que consigo ver
É o centro do meu desejo
O teu corpo o teu molejo
Meu anseio recrudescer.

Nos teus olhos transparece


Seu sorriso me devolve
Toda a dor se desvanece
Impressão parece prece
E a sua luz tudo envolve.

Tu és todo o incentivo
P’ra Terra inteira girar
O universo se expandir
A natureza existir
E para eu respirar.

Tu és mais que um hino à vida


Um convite p´ra loucura
Uma atração desmedida
De corpo e alma despida
De tesão e gostosura.

No teu corpo aceso e nu


Alma nua e transparente
Nos teus ossos de bambu
Teu jeitinho jururu
Eu me sinto incandescente.

453
Meu bem ultrapassa tudo
Tudo o que eu invente ou diga
Meu coração fica mudo
Tua pele é um veludo
Que um doce mistério abriga.

Mistério verdade e sonho


Felicidade total
Luz e ser com que componho
Um destino mais risonho
De um amor transcendental.

P’ra lá de imagens e hinos


Mais do que endechas ou odes
Quero mais é dar-te mimos
Descompor teus figurinos
Levar-te onde tu não podes.

Tantas palavras já disse


Tantas mais posso escrever
Mas ‘inda que não se ouvisse
Ou que nunca ninguém lesse
De amor cantarei teu ser.

Palavras no mundo estalam


Amo-te em todas a línguas
Nas que beijam nas que falam
Nas que cantam nas que calam
Seja fortunas ou mínguas.

E mesmo nas línguas mudas


Dos cabalistas dos budas
Nas línguas transcendentais
Nos falares dos animais
Do analfabeto ao doutor
Eu te amo meu amor.

VI

Minha gatinha adorada


Princesinha mais cantada
Eu quero a tua vontade
Tua direta bondade
Quero ser teu prisioneiro
Ser a tinta em teu tinteiro.

454
Quero escrever no teu corpo
Quero ser o teu calor po-
tencializado em luz
Imprimir em corpos nus
Gravuras e tatuagens
Do prazer fazer mensagens.

E nas imagens mais ternas


Desenhar nas tuas pernas
Interiores contemplações
Ler no teu ventre emoções
Que nem de vulcão um magma
Contrair teu diafragma.

Te fazer sentir portentos


Reinventar movimentos
Todos os dias do ano
Ser cada vez mais humano
Mais verdadeiro e igual
Ser santo e ser animal.

Ser tudo o que a alma implora


Desde o palhaço que chora
Fingindo abafar o riso
Perder o chão e o juízo
Viver sempre num balanço
Entre ser feroz e manso.

E por fim corresponder


Ao bem que é teu amor ter
Na paz na sensualidade
E em toda a cumplicidade
Que dois amantes se dão
Ser dos teus passos o chão.

Não sei mais o que fazer


Não posso aguentar viver
Quando você me abandona
Quero emergir vir à tona
Parvo que nem caranguejo
Como afogado esbracejo.

Minha atiradiça corça


Minha fonte minha força
Minha panterinha louca
Minha loba minha côca
Minha gata assanhadinha
Minha minha minha minha.

455
Minha doce afro rainha
Onde o meu sonho se aninha
E os meus halos resplandecem
Malhas de mistérios tecem
Meus mais flébeis pensamentos
Meus movimentos mais lentos.

Imaginário febril
Repertório feminil
No seu mais fino recorte
Animal de altivo porte
Tu és a marca do dia
Que a minha noite incendeia.

O destino os alfarrábios
Todos os crentes e sábios
Os oráculos antigos
Os conselhos dos amigos
Tudo parece vazio
Perto do cheiro do cio.

Perto do calor da chama


Da mulher a quem se ama
Que se traz no coração
Toda a imaginação
Ela mesma chama viva
É mais imaginativa.

Mas se essa mulher és tu


Meu imaginário cru
Devassa os próprios limites
Jamais nos achamos quites
Quando encantas me devassas
Se eu vou além me ultrapassas.

Nunca tem fim nem princípio


Foi assim desde o início
Nossa doce trajectória
De futuro e de memória
Se funde amorosamente
Brilha momentaneamente.

Arde sublimemente
Depois fica incandescente
E perene se consome
De uma inesgotável fome
Que anseia por ser capaz
De ser tudo o que lhe apraz.

456
Sublima o fugaz presente
Quer ser sempre eternamente
Ser sem tempo só paixão
Exorcismo anunciação
Quer ser maior do que nós
Quer ser amor e ter voz.

E eu quero o que ele me quer


Quero-te a cor de mulher
As ancas a boca o pito
Ter fome ficar aflito
Ser canzana ser tesão
Ter ânsias ser sem noção.

E então no maior fragor


Mergulhar no teu amor
Dar mais vida à natureza
E sem temor ou estranheza
Encontrar no prejuízo
Redenção no teu sorriso.

O que eu quero terás teu


No teu canto do meu céu
A tua aurora contemplo
Do teu sol sou mero exemplo
Do teu mote eu sou a glosa
E dos teus versos a prosa.

Nada sei dizer sem ti


Nem tudo o que eu digo aqui
Ainda que o proclamasse
Que em vez de dizer gritasse
Pedisse eu o teu favor
Nada teria valor.

Só por ti se ergue e canta


Nunca se dói ou quebranta
Minha voz quando te entoa
O meu barco sobe a proa
Penetra do mar as ondas
Faz luz onde existem sombras.

Você é graciosamente
Gostosa infantil e ardente
Quem me afugenta os fantasmas
Os poeirentos miasmas
De outras obstinações
Musa das minhas canções.

457
Tu és quem ilumina tudo
Com teu corpo de veludo
Tua pele escancara a luz
Me libertando da cruz
Onde eu vivia pregado
E tanto me tem sangrado.

Se um amor em outra era


Eu recordasse ou tivera
Grato e franco o esqueceria
Nem que fosse por um dia
Preferiria no mundo
Seu amor por um segundo.

Todos os ‘stados de espírito


Que tem num espírito indómito
Que nem o flanal bambu
Queria ser simples e nu
Ser sempre a feliz criança
Cuja alma brilha e dança.

Só tu o podes fazer
Neste mundo acontecer
Esse milagre profundo
Que é fazer nascer no mundo
Das cinzas de um sofredor
Um novo servo do amor.

Servir teus olhos teu colo


Tocar duetos a solo
Como se fôssemos um
Não ter anseio nenhum
Que não seja o que se diz
Por qu’rer te fazer feliz.

Lavar as mãos dos enganos


Dos pesadelos humanos
Viver dentro de uma flor
Para a qual tu deste cor
Viver num céu de bondade
De amor e sensualidade.

De carícias de vontade
De suma cumplicidade
De transparência e verdade
Em tudo o que se apresente
Todos os dias diferente
Ser fraco valentemente.

458
Inventando a cada dia
A essência da alegria
De uma dor que eu não sabia
Ser a concreta saudade
Não de um passado que havia
Mas de um «é» que se anuncia
Para toda a eternidade.

VII

Redondilhas pequeninas
Das mais ternas das mais finas
Das minhas dores assassinas
Escreverei para ti
Mais cedo do que imaginas
Serão tantas as tercinas
Das quadras que não escrevi.

Tantas serão as saudades


As cantigas as verdades
Que em todos os tons direi
Que de gosto cantarei
As mentiras as vontades
Os gritos as ansiedades
De tudo eu versos farei.

E se ainda assim fizeres


Dos gritos dos meus quereres
De tudo o que tu quiseres
Regressarei sempre cão
Voluntarioso e são
Pressuroso à mansidão
Do colo dos teus prazeres.

Quero ter sempre na boca


O sabor da tua paca
Toda a volúpia barroca
Com que a tua boca mata
A sede da nhânha louca
A voz mansa quente e rouca
Que a razão toda me ata.

Tudo o que o teu ser inflama


O que repete e proclama
Com gritos de sexos túmidos
Do que acontece na cama
Nos entre pregas mais húmidos
Que a boca enlouquece e chama
Com trejeitos e tons lépidos.

459
De ti quero deixar prova
Da grande consolação
Que é ter os teus uivos mansos
Quando em transe de tesão
Em repetidos balanços
Do teu corpo a uva a ova
Se intumesce em minha mão.

Desce ao meu corpo o teu sangue


Concentrado no que a carne
Tem de mais impressionante
Veias nervos tudo langue
Boca molhada e ofegante
De toda a fúria em que arde
Até ficar morto exangue.

E quando parece ser


O fim daquela jornada
O jeito de agradecer
Essa hora abençoada
Deixa o corpo parecer
Não ambicionar mais nada
Do que beijar e foder.

E o membro do teu prazer


‘inda que mole e dormente
Já vem rejuvenescer
Já quer viver quando sente
Inchada e deliquescente
Das tuas pernas o entre
Quer de novo ensandecer.

No balanço entrecortado
A dois tempos comandado
Em dois impulsos dif’rentes
Que me deixam extasiado
Um primeiro prudentemente
Natural mas atentado
E o outro profundamente.

Muito mais claro e ousado


Este segundo é ardente
Quase espiritualizado
Porém muito temperado
Apimentado indecente
Sensualisticamente
Potente e carnalizado.

460
De cada vez mais ao fundo
Até atingir a boca
Na hora pareces louca
Boca mais louca do mundo
Pernas e braços eléctricos
Ventres tensos magnéticos
Pulsando cada segundo.

Muitas repetidas vezes


Cada uma mais intensa
Mais inteira e mais imensa
Berros e beijos franceses
Portugueses brasileiros
Sempre como nos primeiros
Dados sem pedir licença.

Dados chupados sorvidos


Mastigados e violentos
Enlouqueces por momentos
Deixas-me os lábios doídos
E o mundo parece belo
No molhado do teu colo
Os meus delírios são lidos.

Deliro então de vontade


Parece-me sempre pouco
Quero-te mais como louco
Exorto a sexualidade
Perco o tino perco o norte
Vejo-me o centro da sorte
E em ti vejo uma deidade.

Uma forma superior


Uma mulher transcendente
A forma de humanamente
Transcender destino e dor
Ultrapassar a questão
Ser todo só coração
E à morte não dar valor.

Veste-se a vida de brilhos


De cada vez que fodemos
E o pacto que nós vivemos
Tesão de que somos filhos
Irmãos amantes escravos
Soldados heróis e bravos
Viajantes andarilhos.

461
Sendo somos o que é mais
De amores mansos invejosos
Dos transes mais poderosos
Somos amantes brutais
Queremos sempre foder
Queremos olhar e ver
Do prazer os rituais.

E dos momentos vividos


Fora do tempo e do espaço
Fica-nos sempre um amasso
Em que ficar envolvidos
Fica-nos sempre um langor
Uma magia um torpor
Ficamos horas ‘stendidos.

E logo pela manhã


‘Inda mal desponta o dia
Já o corpo desafia
De uma sonolência cã
Os langores deliquescentes
Dos corpos lentos e quentes
Procurando o seu afã.

Tu és o meu testemunho
Da minha dúvida ação
Da pura conflagração
E o estandarte que eu empunho
Todos os dias e horas
Semanas meses agoras
Seja Outubro ou seja Junho.

Quando estás quando não estás


Tanto que eu sempre te sinto
Todas as cores em que pinto
O meu delírio fugaz
Faço das tripas vazio
Sinto trespassar-me um frio
Sempre sempre que não estás.

E nessa doida aflição


Reparto-me em mil bocados
Os meus fios ficam trocados
E os meus nervos em fusão
Quando estás é diferente
Meu ser fica incandescente
De uma eterna combustão.

462
Não me queima não me dói
Essa chama eterna e doce
Toda a luz que você trouxe
E que a minh’alma constrói
De cada vez que te pego
E o meu carvão fica cego
À dor que às vezes me mói.

Os dentes do teu sorriso


Cravam-me até ao tutano
Iluminam o humano
Acendem fragor e riso
Nos recantos mais ‘scondidos
Nos pensamentos esquecidos
Entre fantasia e siso.

Tu és minha fada boa


Minha puta minha dona
Poderosa comilona
A canção que a alma entoa
És o meu amor perfeito
O lírio que há no meu peito
O meu barco para Goa.

Minha crioula bendita


Minha ode minha ilha
Minha doce maravilha
Ar em que o vento se agita
E em que a minha alma voa
Foz onde o meu rio escoa
E a minha paixão grita.

Magia e sanguinidade
De felicidade pura
Intensa forma de cura
De toda a desigualdade
Da indif’rença e da dor
Das ausências do torpor
Das nuances da verdade.

A tua alma diversa


Conversa-me inteligente
Diz-me o que o silêncio sente
Nos silêncios da conversa
No fim deste teu amante
É o teu corpo elegante
Em que o divino se expressa.

463
O teu corpo é suprimento
Da música do encantamento
Que canta no sentimento
Das harmonias maiores
Às vezes dos tons menores
Que modulam a canção
Em que dança o coração
Seja qual for o andamento.

VIII

Agora já não te tenho


E a minha alma sofre
Nem Cristo nem santo Onofre
Podem desfranzir-me o cenho
Nada tem seja remédio
Seja auto complacência
Que possa da tua ausência
Curar-me as mágoas do tédio.

É mais que tédio saudade


Não te ter é mais que dor
Não ter do teu qu’rido amor
Da tua cumplicidade
Da nossa comum vontade
De ser perfeitos amantes
De ser amigos constantes
O ser d’isso ser verdade.

Olhando o cruzeiro do sul


De um céu onde ele não está
Escurece-me o fundo azul
Minha estrela onde estará
Onde será que foi já
Despejar o meu ciúme
Delirante de quiçá
Maltratar o meu queixume.

Nos fundos negros da noite


Nas primazias da sorte
Onde o meu barco se afoite
E fique p’ra trás meu norte
Quero estar lá sem que m’ importe
Das asas das minhas velas
Seja qual for o seu corte
Ser do vento o sonho delas.

464
Se tem dias em que o frio
A tristeza vira moda
Queima como gelo é phoda
A sensação do vazio
A saudade interestelar
A dor da separação
Me dissolve o coração
Dos teus olhos o brilhar.

Pode ser que as rimas sejam


Fáceis pobres infantis
Sejam delírios febris
Que só os meus olhos vejam
Mas eu não quero saber
Quero sonhar acordado
Nesse sonho apaixonado
Que só teus olhos quer ver.

E o brilho deles sentir


As centelhas de alegria
Que derramam todo o dia
Por sobre o meu ir e vir
Como uma chuva de estrelas
Que me banha o ser inteiro
Que me faz virar carteiro
Só de senti-las e vê-las.

Cartas de amor infinito


Do meu peito saem escritas
Palavras que sem ser ditas
Consegue’ abafar meu grito
E de doçura formar
No mar que a maré escorreu
Um espelho espelhando o céu
Que é o céu do teu olhar.

Se cartas de amor escrever


Comovesse corações
Eu escreveria canções
Que talvez pudesses ler
Rimava mil emoções
Versos simples de cantar
Entregaria no ar
Repetiria refrões.

465
Só p’ra que aquele momento
Me parasse de doer
Para que eu pudesse ter
Você no meu pensamento
E no meu pensar e crer
Nesse suave lamento
Não pudesse o sentimento
Jamais parar de crescer.

Tem um ninho no meu peito


Que é feito à tua medida
Onde a flor da minha vida
Cresce do único jeito
Que pode crescer a flor
Muito querida e cuidada
Sempre muito bem regada
Co’a água do meu amor.

Todos os dias eu rego


Muitos mais quero regar
Quero ver frutificar
Nestas mãos em que te pego
Todos os frutos gostosos
Que dois corpos podem dar
Se entrelaçando no ar
Dos seus ramos ‘splendorosos.

Nunca mais quero sofrer


Por te ter longe de mim
Essa dor terá um fim
Bom então será viver
Cantarola a fantasia
Que todo o meu ser reclama
Corpo e alma fogo e chama
Desejo e sabedoria.

Franqueza e brasilidade
Todos os teus devaneios
Teu entrecoxas e seios
E a rara sensualidade
Que derrama a tua boca
Quero teus beijos teus ais
Teus delírios sensuais
Que nem de uma deusa louca.

466
Tudo isso eu quero e mais
Quero coisas que nem sei
Quero ser o teu «meu rei»
E bíblicos esponsais
Casar contigo na mata
Fodermos na contramão
Atar em nós um cordão
Que nem mágico desata.

Ser salomão do teu canto


Dos cânticos mais sagrados
Dos pensamentos safados
Do teu axé ser o santo
O pai a mãe a avó
Quero ser velho e neném
Mas sobretudo meu bem
De ti jamais ficar só.

E assim quando o tempo venha


Contar nossa linda história
Ser do tempo só memória
Com que o povo se entretenha
Ficará escrito nas horas
Uma mensagem ufana
Edulcorada e profana
Sem talvezes nem emboras.

Trazidos nossos governos


Ao ponto em que começaram
Já voltaremos a ver-nos
Como os oráculos cantaram
Como adivinhos disseram
Há tantos anos atrás
E essa mensagem nos deram
Fazer nossa a sua paz.

Pelos tempos propulsiona


Essa canção que sabemos
Que tanto nos emociona
Ao perceber o que temos
Porque tu és tu e eu
E eu e tu somos nós
E nós é muito mais eu
Do que pode a minha voz.

467
Do que aprendi nada serve
O que sei serve p’ra nada
Mesmo quando a minha verve
Me possui desembestada
Os instintos se embelezam
E é quando a minh’alma ferve
E os meus nervos se retesam
Sem que o meu corpo se enerve.

Saltam-me as unhas dos dedos


Os nervos se eletrificam
Vão-se de mim os meus medos
E só os desejos ficam
Se renovam e se abraçam
Nos teus que os meus amplificam
E todos juntos amassam
Nossos corpos vivificam.

E mesmo quando o instinto


Quer fazer coisas erradas
De tudo o que eu mesmo sinto
São duas cartas fechadas
Dizendo a mesma mensagem
De envelopes transparentes
Sobrepostas à paisagem
Dos nossos amores ardentes.

Tudo sempre por mim passa


Como se eu mesmo não visse
Que esse passar em mim traça
Como eu outras vezes disse
Um traço de santidade
Feito da prata mais fina
Da mais sã sensualidade
Como água afroditina.

Nas tuas pernas me encontro


No centro da natureza
Fico louco por estar dentro
Tocando tanta beleza
Mesmo cobertas são belas
Como um poço de elegância
Que eu ao ver-me perto delas
Sobe por mim uma ânsia.

468
Parece um bocejo agudo
Para o qual não se abre a boca
E aquele momento é tudo
Sinto-te sempre mais louca
E nessa loucura toda
Uma música constante
Anima a infinita boda
De amar teu corpo elegante.

Tuas ancas tuas pernas


Tua cintura perfeita
São partituras eternas
Que eu ouço quando te deitas
E o teu corpo toca o meu
E eu sinto todas as formas
Que saltam do meu p’ro teu
Corpo sem regras nem normas.

Se as tuas pernas se enlaçam


Nas minhas que te seguram
As leis da física lassam
Paralelas se procuram
Os ângulos impensáveis
Passam naquela vertigem
E órgãos interpenetráveis
Encontram a sua origem.

Tudo se amassa e segura


O próximo e o distante
Na singular quadratura
Que é o teu corpo elegante
Enlaçado ao meu em transe
Em agonia e loucura
Intensa que o cenho franze
Até à expressão mais pura.

É no teu corpo que eu sonho


Acordado entregue e bom
É nas tuas mão que ponho
A harmonia do tom
Na brandura dos teus olhos
Pus o jeito de voar
As asas não têm escolhos
Batem sempre e devagar.

Às vezes fico a pensar


Nas fodas descomunais
Todas que a gente já deu
Fica-me o corpo a vibrar
Como quem quer muitas mais

469
E se orgulha do que é seu
Pouco consola lembrar
A canção do amor demais
Porque maior é o meu.

IX

A minha moça é formosa


Tem duas rosas no rosto
Aqui eu disse-lhe tudo
O que eu tanto estou querendo
Agora vou falar dela
Sinceramente dizendo
Do que é feito o conteúdo
Desse amor em que eu aposto
De uma aposta grandiosa.

Vou agora falar dela


Ao mundo quero dizer
Tudo o que eu em tu lhe disse
Só entre mim e o mundo
Vou deixar na natureza
Desde o âmago profundo
Sem palavrosa mesmice
Desde o mais fundo do ser
Porquê tanto amor por ela.

Vou deixar que a natureza


Faça o seu santo trabalho
E diga em toda a extensão
Da poderosa e bonita
Paixão que eu sinto no peito
Da saudade e da desdita
Que é a sua ausentação
Do consolo do agasalho
Que é ter dela a luz acesa.

Paixão que sinto no peito


Sempre me parece pouca
Quase me explodem as veias
De vê-la ou de tocá-la
De sentir a sua pele
Poder acariciá-la
Suas pernas dão-me ideias
Que me galopam na boca
No seu colo tão perfeito.

470
Quando sinto a sua pele
Tocar-me as fibras do ser
O seu peso suspendido
Em movimentos eternos
O livro da minha vida
Em portfólios modernos
De um falar desconhecido
Que eu nem preciso entender
Se o meu se descansa nele.

Esse livro minha vida


Escrito em versos e imagens
Poderosas sinfonias
De notas edulcoradas
Escrito em sensações intensas
Raias categorizadas
De várias categorias
Vai contando em tais mensagens
A força com que é vivida.

E essas sensações intensas


Escritas no corpo mais lindo
Sentidas e amplificadas
Pela poderosa chama
Que do seu corpo realça
São alento p’ra quem ama
Sentidas e sublimadas
Numa viagem que indo
Rasga distâncias imensas.

Do seu corpo é que realça


Toda a mística carnal
Que a natureza produz
Todo o dia se sustenta
De poderosas faenas
E desse amor se alimenta
Faz alçar além da luz
Divina e transcendental
Outra animal e devassa.

Das poderosas faenas


Que me transpiram na carne
Eu já dei prova e penhor
Tantas rimas já compus
Sobre esse momento mágico
Doce alento de ser luz
O que ultrapassa o pudor
A forma a cor e o cerne
Das temp‘raturas amenas.

471
E desse momento mágico
Que fácil seria ser
Aquele do qual se augura
Ser a perfeita razão
De uma epopeia feliz
Rasgando o meu coração
Eu renego a literatura
Não tenho nada a dizer
E produzo um drama trágico.

Uma epopeia feliz


Feita só de uivos e cores
De sensações pirotécnicas
De sopros transcendentais
Que a alma inteira libertam
O corpo sempre quer mais
São emoções multiétnicas
Paradoxos e rumores
Que a língua viva não diz.

A alma inteira libertam


Essas langorosas sanhas
De todos os cataclismas
Das tramas inexplicáveis
De que vida está repleta
Mesmo os destinos prováveis
Os mais potentes carismas
Atam da pele às entranhas
As cordas que nos apertam.

E a vida fica repleta


De uma doçura infantil
De uma coisa quase mansa
Mas feroz e animal
Voluptuosa e sã
De uma matriz sem igual
Que as fibras do corpo alcança
Poderosa e feminil
Que torna a vida completa.

Voluptuosa e sã
É a boca quando beija
O ventre quando se encosta
No ventre que encosta junto
E é da maior vertigem
Inesgotável assunto
Quando o corpo dá resposta
Na porta daquela igreja
Toda a lit’ratura é vã.

472
É mesmo a maior vertigem
Quatro coxas que se tocam
Quatro joelhos chocalham
E os pés suspensos parecem
Querer levantar do chão
A teia que os olhos tecem
Semicerrados espalham
Pelo ar onde desfocam
Langores de uma doce origem.

Querem levantar do chão


Esses dois corpos amantes
E por momentos conseguem
Levitar numa folia
De beijos e corrupio
Música e taquicardia
Os seus beijos vão e seguem
‘inda mais loucos que antes
Suspensos do coração.

Em beijos e corrupio
Colecciono os meus dias
Rodamos corpo e cabeça
Sempre no mesmo sentido
Como duas almas gémeas
No eixo que é repartido
Entre sentido e promessa
Entre sonhos e folias
De um amor estranho e vadio.

Como duas almas gémeas


Eu e a moça de quem falo
Singramos vales ribanceiras
Desta vida e outras quem sabe
A nossa história deriva
De uma gesta que não cabe
Em duas vidas inteiras
Mas é os ecos do halo
De muitos machos e fêmeas.

Essa história que deriva


De alguma coisa mais funda
Escrita no corpo e na pele
Nas fibras nos nervos duros
Sente-se a cada minuto
Nos sentimentos mais puros
Na luz que a sombra repele
Desde o coração inunda
Toda a vida que se viva.

473
Sente-se a cada minuto
A pulsação inconstante
Do ser materializado
Contra o relógio andando
Como quem quer ganhar tempo
No tempo não se encontrando
Só no momento parado
Em que a vibração constante
Parece penetrar tudo.

Quem quer ganhar tempo ao tempo


Só se o seu tempo parar
Tem a mais mínima chance
E mesmo essa só quando
O sem tempo colabora
Em esses dois seres se amando
Forma-se certa nuance
Como se aquele lugar
Não desse ao tempo sustento.

E o sem tempo colabora


Feliz e alegremente
Naquela empresa maluca
De ganhar ao tempo a vida
E os instantes os segundos
É uma coisa sabida
Na escola em que o ser se educa
Viram luz eternamente
Onde o tempo mora agora.

Meu amor é mais sublime


Que todos os classicismos
Mais poderosa e perfeita
Intensa e descomunal
Única e capitulina
Garbosa e transcendental
Resoluta sã escorreita
Sem falsos filantropismos
Sem pudores sem ciúme.

Única e capitulina
Como são as heroínas
Dos Machados dos Bandeiras
Dos poetas inconstantes
Das gregas antologias
Faz-me sentir trepidantes
E de todas as maneiras
As sensações uterinas
Da sua loucura fina.

474
Das gregas mitologias
A heroína sagrada
A deusa que lá faltava
Dona da minha cultura
Dos meus velhos pergaminhos
A sua imagem mais pura
É a da deusa de aljava
Ungida e paramentada
Para dar brilho aos meus dias.

Nos meus velhos pergaminhos


Nas histórias de embalar
Poetas contaram já
Sua beleza fatal
Em versos monumentais
Superior ou igual
À rainha do Sabá
Mais que eu pudesse contar
Tivesse eu filtros e vinhos.

Em versos monumentais
Quereria eu cantá-la
Mas arquiteto não sou
Nem da cabala sou rei
Não sou nada de além ser
Sou apenas eu e sei
Apenas dizer já vou
E desta forma incensá-la
Amar sempre e querer mais.

Não sou nada de além ser


Faltam-me até as palavras
Só sei que quando ela passa
Quando a vejo manear
Cresce uma coisa de dentro
O meu ser quer rebentar
Em uma orgia devassa
As palavras ficam parvas
E sinto-me entontecer.

Cresce-me uma coisa dentro


Poderosa e infinita
Brilha majestosa e linda
Mas de todas as quimeras
É o amor a mais bela
É uma música de esferas
Mais delicada e ainda
Mais prazerosa e bonita
Que da minha vida o centro.

475
O amor é a mais bela
Forma das formas da vida
É dela a sublime tela
Em que se pinta e é lida
A luminosa aguarela
A poesia mais querida
Lá não se pinta com tinta
Pinta-se a cor indistinta
A luz intensa e singela
Com que a vida é colorida.

«O QUE ESTÁ EM BAIXO»

As águas do Amazonas
Batem nos barcos por baixo
No Curiaú de noite
Se batuca o Marabaixo
Já começou a viagem
Vai p’ra cima vai p’ra baixo
Já se sonha a comissão
Como é em cima é em baixo
E de noite o meu amor
Perfumada de alto a baixo
Me lerá sua «leção»
Ela por cima eu por baixo.

Por cima dá-se a fusão


Das águas que se misturam
As de cima são mais leves
Turvam nos olhos o erro
De cima não se vê nada
No seu perfeito desenho
Em si martiriza o bem
O que por baixo se dá
Em cima foi desenhado
Em traços de negra cor
O que em si manda o destino
Que em baixo se cumpra eterno.

Em cima e por baixo vem


Uma mistura
Que prova tudo o que tem
É quase pura
O que no ser manifesta
E se desenha
Para o sangue é uma festa
Com que se sonha

476
É da carne a pele a cor
Que tudo augura
E a morna forma da cor
É a loucura.

UM BEIJO ME IDENTIFICA

Um beijo me identifica
Que abraça o mundo inteirinho
Na fulgurância do beijo
Na paixão com que é trocado
E na penumbra que fica
Desse beijo apaixonado
Fica a ternura e o carinho
De um amor desmesurado
Muito curtido e suado
Intensamente vivido
Adorado e incontido
Nas entre faldas do ninho
Na mais sã consolação
Feita loucura e paixão
Transe e desejo.

Quadras mil que eu escrevesse


Redondilhas em papel
Odes no computador
Cantigas que compusesse
Nos timbres do violão
Sonetos versos sem rima
Contos em prosa ou cordel
O que descrever pudesse
Esse beijo que me anima
Sempre faltaria o mel
Sempre faltaria o clima
Sempre faltaria acima
De toda a especulação
O calor do coração
Do meu amor.

477
O GATO TEM SETE VIDAS
(ou: o poema primo)

Tantas vezes já morri


Isto ninguém me acredita
Tenho dito e repetido
Aos mais íntimos aos lassos
Aos que me prezam ou não
Tenho tentado explicar
Mas mesmo sendo sincero
Ninguém me acredita não
Mas é verdade total
Das vezes todas que vi
Uma luz remanescer
Mais adiante morri
Do que se chama morrer.

II

Uma vida quando nasce


Logo de início começa
Sem dar por isso a correr
P’ro lado que corre o rio
E águas lentas ainda
Vão correndo inelutáveis
Para um abismo primeiro
Que não se percebe ainda
Só se percebe que é sal
E quando chega afinal
O lar da primeira morte
Não se percebe que o mal
Repudia a própria sorte.

III

Fica igual chega no fim


Todo o casto lado impuro
Guardado escondido e mel
Se recusando a jorrar
‘inda mal sabe que o ser
Dividido se quer dar
Pintalgado de venéreo
Feliz valido há-de ser
Sorumbático cristal
De arquitecturas banais
De esferas de geometrias
E coisas transcendentais
Vai tomar em doses frias.

478
IV

Vai ficando tudo absurdo


Mas devagar paulatino
O centro daquele olhar
Que era puro o de menino
Nunca mais se vai esquecer
Que se esqueceu de lembrar
Vai torcer suave inteiro
Como se fosse esquecer
Aquela fase fatal
Toda a loquaz companhia
Haveria de estrugir
Numa fritura angular
Da qual pudesse fugir.

Morre inteiro ainda jovem


O dia parece ambrósio
Quando ao dia sexto e tanto
Se acabou o que era dia
O que era dia morreu
Não se enfeita com fitinhas
Nem com suco de tinteiro
Nem do que a lira morreu
Fitas florzitas e tintas
Se a magia adiantasse
Quem quisesse tê-la feito
Haveria num impasse
De arrancar todas do peito.

VI

Mas a vida continua


Não se coíbe da dança
Nem se aborrece à primeira
Nem à segunda tão pouco
Jamais se dá por vencida
A audaz proeminência
De um palavroso guerreiro
Uma e outra vez vencida
No terreiro a ignomínia
Se a dor eterno aconchego
Evocasse com audácia
Falasse latim ou grego
Feriria de falácia.

479
VII

O gato tem sete vidas


Sete sílabas um verso
Sete bocados de nada
Na boca de um espaço aberto
E no entanto evidente
O povo não me acredita
Quer ver provado primeiro
E só o que é evidente
Mesmo evidente por ser
Eu proclamo ou acredito
E é por isso que morrendo
Tudo o que eu deixo aqui dito
Vou como o gato vivendo.

VIII

Se acabou o que era dia


O que era dia morreu
Fica aqui dito e traçado
De tudo o que se insinua
Nos meandros da saudade
Nas sombras e nas penumbras
E em toda a feroz verdade
Que se insinua nas sombras
Meus carros irei tocando
Mesmo morrendo amiúde
Mais que tocando cantando
Que cantando falarei
Toda a vida irei morrendo.

IX

Marcado para morrer


Já eu venho sendo há muito
Não tenho medo das pragas
Nem me assustam impropérios
Só me revoltam as falsas
Palavras e desidérios
Ditas de corações mortos
De intenções ruins e sujas
De gente que leva dentro
A morte em todas as fibras
Mas que vivendo não morre
Como eu morro em cada dia
Dos dias que a vida cria.

480
X

Sete vidas separadas


Por sete súbitas mortes
Sete pedaços de nada
Que a vida inteira reclama
P’ra consumir na fogueira
Que alimenta a fria chama
Com que a morte a vida chama
E a vontade ajusta à beira
De um caminho em dor imerso
Lento amor e tempo lento
Porque ao que a verdade inflama
Marcado para morrer
Já eu sou faz muito tempo.

XI

Todos os dias me chama


P’ra novo caminhamento
O coração de quem ama
Nunca fica preso à chama
Nunca queima muito tempo
Arde assim como uma flama
Que se consome por dentro
Mas no mesmo tempo lento
Se renova e revigora
Agora feito momento
Refeito no movimento
Em que o tempo lento ausente
Se ausenta p’ra outro tempo.

XII

Todos os dias do ano


Morre a manhã e a tarde
Morre a noite num só sono
Morre o dia sem alarde
Sem distonias sem grades
Morre em cores roxo e escarlate
Todos os dias se morre
Morre o ar água e alfaces
E tomates em saladas
Morrem os olhos nas lágrimas
Dos andares das despedidas
Só não morrem os amores
Em que eu queimo e que tu ardes.

481
XIII

Sete vidas tem o gato


E outras sete mais teria
Teria uma de mais
Ou de menos morreria
Caindo nas quatro patas
Que se morre a cada dia
No chão que os meus olhos pisam
Se os teus olhos não me vêem
Morre-se de te não ver
De não te ter se adoece
Não te ter é já morrer
De ser teu se vive e dá
A vida morrer por ti.

XIV

Por falta da sorte injusta


Muitas justiças padecem
Faltam aos números tranças
E ideias nas cabeças
Quando se dizem balanças
Dos destinos que acontecem
Mas entre mortos e vivos
Felizes e escapatórias
Fazem felizes as primas
Irmãs madrinhas e sogras
As controvérsias banais
E as princesas das histórias
Núm’ros de sorte tem mais.

XV

Em dias da minha vida


Raramente me tem visto
A vida felizes dias
Como os que vivo eu agora
E ainda que fosse a hora
De eu morrer mais uma vez
Da vida mortes teriam
Que vir mais de vinte mil
Soldados espada empunhada
Afiada e luzidia
Pronta para me matar
Qu’ indo feliz eu iria
P’rà morte de amor me dar.

482
XVI

Mesmo que a morte nos custe


Mesmo que o ser se dissipe
No momento do ajuste
Das contas de cada vida
Todas as contas saldadas
Sofridas e amarguradas
Serão todas bem bem-vindas
No coração suturadas
Todas as feridas abertas
Respirarão livremente
Mesmo que ao princípio doa
Depois das mudanças certas
De que a morte se povoa.

XVII

E quando o livro da vida


Se abre e se dá às páginas
Ficam dessas horas mágicas
Destinos compreendidos
Em mortes renascimentos
Em puras aritméticas
De um rigor absoluto
Como já foi antes dito
É tudo uma só corrente
E a mudança se consuma
De consecutivamente
Morrermos e sermos vivos
Muitas vidas uma a uma.

483
BRASIL III

NOVOS POEMAS BRASILEIROS

484
Antetítulo:

Eu sou a página em branco


Em que a vida escreve quadras soltas
Riscos e gatafunhos
Desenha às vezes imagens indeléveis
Que há muito me acompanham falsos trilhos
De um mapa que me diz onde não ir.

EU SOU A ALTA MONTANHA

Eu sou a alta montanha


Sou a Serra do Navio
A escarpa nua e direta
A pedra viva que corta
E o interior de cristal
Sou a pedra que se prende
Numa nesga de terra
Sou o penedo
De formas agigantadas
Com que nas noites de antanho
Se assustavam as crianças
Sou a areia no vento
Sou a extensão dos desertos
E os lamentos
Da selva de concreto
Tudo sou na cicatriz
Da terra senhora e mãe
Que vemos do alto porto
Dos penhascos inconstantes
Impossíveis de subir
Inacessíveis
Eu sou a alta montanha
Nasci p’ra permanecer
E ser
De outra vida a maior fama
Sou a lava dos vulcões
Os granitos os basaltos
E de todas as pedreiras
Com o coração aos saltos
Sou das pedras a calçada
Dos brancos cristais calcários
Sou a forma
Das estátuas irreais
Que me transtornam.

485
EU SOU A FLORESTA DA CHUVA

Eu sou a floresta da chuva


As gotas batem em mim
E a minha pele sente
Então meus ramos começam a crescer
A rebentar em uma florescência
Gentil e luminosa
E de colorida anunciação
Sou a floresta da chuva
Algumas vezes as gotas não me molham
Porque tem árvores frondosas
Acima de mim
E muito maiores do que eu
Na sombra dessas aguadas florestais
Dos tropicais dilúvios clamorosos
Minha alma descansa alegremente
Nas mais venais e sãs inspirações
Eu sou a floresta
Que os anglófonos dizem ser da chuva

Todo o meu corpo remanesce em ramos
Mas é do meu peito que brotam as flores mais luminosas
Quando a chuva choca no meu rosto
E o tempo quente ainda sente um tépido vapor ainda vivo
Eu estou e não me molho
Floresço afagos
De naturais evanescências
Broto de mim
E a natureza que em mim mesmo configura
O seu modelo eterno de unívoca expansão
Faz-me sentir ainda
Que mesmo quando errado ou duvidoso
No meu recanto abissal mais amoroso
Pertenço ao mundo.

EU SOU OS BICHOS DO MATO

Sou a paca sou a onça


Sou as pequenas lagartas
Sou as formigas
E ás vezes sou as baratas
Fico nos cantos no escuro
Onde a vida cheira mal
Me desiludo
O ludo é ser tudo igual.

486
No mato não tem baratas
Tem carochas tem abelhas
Tem outros bichos também
Mas no mato a sujidade
Se recicla a cada instante.

Eu sou os bichos do mato


Tenho um buraco só meu
Ás vezes vem a enchente
E sou só eu.

OCASO

A luz despede-se da vida


E fica a escuridão iluminada côr torna-se então visível
A luz divide-se e nunca está parada
Na fímbria que divide o mar do céu
Gotas de nada despedem-se da luz
E num último ao lugar onde nasceu
O sol brilha a levante a luz refletida
Passando rápida em exposição policromática
Como se o céu fosse por um momento longo
De uma loja de tintas mostruário
Catalogando a côr.

Arde então mais forte no ocaso


E queima ainda uma última vez
Como se quisesse em cada dia repetir
Antevisão daquele derradeiro momento
Em que uma estrela irá parar de brilhar
E é o pôr-do-sol.

Todos os dias se repete e é diferente


Num dia parece que o sol quer devorar o céu
Em outros dias fica azul e côr-de-rosa
Todos os dias se despede num derradeiro adeus
De um violeta que a muitos parece ser cinzento
Mas não é.

No céu nunca há cinzento tudo é luz


E na luz tudo é côr e não se vê
Durante o dia a luz é tanta não se repara nela
Mas quando chega essa hora em que o dia quer morrer
A luz despede-se da vida em holocausto
E em côr
Se dá p’rà vida.

487
VEM A NOITE

Chega o fim da tarde


Tudo parece amainar
Já não faz tanto calor
E um pássaro cruza lento
O esbranquiçado do céu
A paciência renova-se
Se renova o ir e vir
Dessa chama imorredoira
Que doira o nosso sentir
Faz falta de vez em quando
Ter uma luz nessa vida
Que se vive curtamente
No ir e vir da manhã
Mas se chega o fim do dia
Que o tempo estende
É como uma madrugada
Que anuncia pressurosa
Que decidida e gostosa
A noite vem.

AMAZONAS/AMAZÔNIA

A Amazônia cai direta


Direto no Amazonas
Outras vezes tem bocados
Ramos soltos de Amazônia
Que se desprendem da mata
Escorregam margem afora
Ganham rápidos o largo
Do meio do rio Amazonas
Flutuam na correnteza
E navegam rio abaixo
P’ra jusante.

Nas águas vivas do rio


Voam peixes submersos
No verde cinza marron
Que lá mais p’ra cima é preto
Voam cegos e respiram
Longe da fimbria do mar
No mar que de lado a lado
Esse rio lhes sabe dar
Sabem de cor o caminho
Da correnteza o chegar
Do vizinho.

488
VENTO

Em lugares com muito vento


Vem sempre um dia em que não tem vento
Por muito vento que faça
Vem sempre esse dia
Sem vento
E nas pessoas que passam
De tanto o vento apanhar
Parece que o mundo pára
Ou fica quase a parar.

Mas se no céu a ante chuva


Se concentra em negras nuvens
Então o mundo parado
Fica assim como que ainda mais parado
Parece esperar
Uma chuva que há-de vir
Talvez venha
Virá.

Mas que entretanto não vem


Precisamente porque não tem vento
As nuvens ficam paradas
E a alma parece acinzentar
Tudo parece
Nada é
É apenas um momento
Numa assaz peculiar meteorologia.

O PAÍS ONDE OS SAPOS ASSOBIAM

Existe um país onde os sapos assobiam


Assim que começa a ser de noite
Não é um país no sentido político e cabal
É uma terra
É um lugar
País em que se sonha e vê
Mesmo quando é de noite
E as sombras estão sempre iluminadas
E brilham nas sombrias conflagrações da consciência.

É um país total e estarrecedor


Que esmaga as minhas ânsias
E onde o calor evapora os meus devaneios
É ele todo feito de verdades evidentes
Sem simbologia nem significados
E inteiramente preenchido por realidade
Onde não tem nenhuma fantasia
Nem delírios…

489
E mesmo quando é de noite
No início altas horas ou no meio
Mesmo na humidade fria das antemanhãs
Se ouve um silvo
Um som aguado e retroverso
Como um assobio gravado numa fita
E tocado ao contrário
Não é nada de extraordinário
É apenas um som
São vários sons
Interminavelmente produzidos uns a seguir aos outros
Como silvos de balas numa guerra.

Nesse país existe uma vontade


Que se resgata de si mesma quando é dia
Recolhe-se ao silêncio que se adia
Para voltar de noite à saciedade.

Dessas estrépitas intrépidas mensagens


Fica o sabor de uma impressão estranha
Que preenche de estranheza a claridade
E faz a noite parecer elétrica.

No país onde os sapos assobiam


Nunca é de noite
Porque a escuridão fica iluminada por sons
Abertos e agudos
De uma nitidez que é quase visual
Elétrica
Como que nem de Kirlian a fotografia
Mas são apenas
Os sapos chamando-se uns aos outros
E o silvo com que chamam
É da simples compleição de um chamamento.

A ÁGUA SOBE AO CALOR

A água sobe ao calor


Fica mais leve que o ar
Junta nuvens forma imagens
Nunca pára de dançar.

Quando se junta demais


Cai a chuva molha o chão
Cai no rio e cai no mar
Forma-se o aluvião.

490
A água corrói as rochas
Deslocaliza a areia
E da criação parece
Ter sido a melhor ideia.

Com água benzem as velhas


Os bispos aspergem crentes
Baptizam recém-nascidos
Lavam pés aos indigentes.

Lavam os pés e as mãos


Em outras partes do mundo
Pela África na Ásia
E no deserto profundo.

Mesmo onde parece seco


Vem dessas profundidades
Que no interior da terra
Concentram as humidades.

Sobe e dança chove e cai


Corre sempre descendente
Sai até do próprio ar
Que respira toda a gente.

Quando o Sol aquece o chão


Se o chão é água evapora
É sem cor é transparente
E dizem que é inodora.

Quando vapor não se vê


Mas a roda nunca pára
E é essa roda infinita
Uma coisa muito rara.

Chama-se ciclo da água


E ensina-se às crianças
Dele se pode esperar
Grandes bem-aventuranças.

É por isso muito estranha


Essa ideia peregrina
De que um dia faltará
Água na boca e na tina.

Mais vale estar prevenido


Para o que der e vier
Porque sem água há-de ser
Mesmo impossível viver.

491
LUGAR PROFUNDO

Em algum canto de um lugar profundo


Tem ruas que parecem mangueirais
Sóis siderúrgicos algures no meio do mundo
Desses que em Mercúrio derretem os metais
Fundem o alcatrão das asfaltagens
Que no meio-dia assam as entranhas verticais
E indiferentes trepidam as paisagens
Cansando as nuvens que dançam colossais
No ar em permanente e lógica evaporação
Onde as brigas e as transas sexuais
Se sucedem como uma compulsão
Apenas porque tem calor a mais.

UM LUGAR NO MUNDO

O que é um lugar no mundo?


Um ponto onde acontece um universo
Um pequeníssimo ponto
Como são os pontos luminosos
Que no céu indicam a existência dos planetas
Mesmo as estrelas que são grandes
E ao que parece não se cansam de explodir
São pontos assim que vemos rebrilhar
Distantes no céu quando é de noite.

E se esse ponto algures no mundo


É o lugar mais importante do universo
A casa dos felizes vaticínios
Ou o vórtice sagrado de todas as quimeras
E é de todos os universos que existem
O único em que apetece estar
E se por livre escolha das vontades
Aquele em que efetivamente estamos
É porque existem no mundo as emoções
E as sentimos.

GALINHA CAIPIRA

A galinha caipira é um animal de respeito


É uma figura ereta
Mais do que um tiranossauro
Quase como uma pessoa
Tem patas fortes
Com as quais segura o corpo
E se implanta no chão.

492
Pára na chuva
E procura um lugar p’ra se abrigar
E então se pára a chuva ela anda
E quando anda
É com um porte de quem está comandando o caminho
E as outras galinhas vão atrás
Poderia ser o da rainha das galinhas
E é sinal de uma antiga e cotadíssima genealogia.

Pára no sol
Consegue até dormir em pé
E sabe bem
Quando é gulosamente transformada em caldo
Não é por ser caipira
É por ser forte
E ter esse tal porte de rainha.

TEM UM COCO AMARELINHO

Tem um coco amarelinho


Coco verde tem também
Mas esse verde que tem
Se toma no canudinho.

O outro também se toma


No canudinho o suquinho
Seja verde ou amarelinho
Só fica do suco a goma.

E se não tiver colher


Mas tiver o que se coma
Você pega e você toma
Da casca raspa o que der.

ORIENTAÇÃO SUL

Seria o centro do mundo


O meio do mundo
Como gostam de dizer
Os que aqui vivem
Pode ser o fim do mundo
Pode ser um
Mas o mundo é mesmo assim
Pode ser tudo
Pode ser no centro o fim
E no fim ser o início
É de ser o mundo assim
Redondo e continental
Feliz e impessoal
Dos artifícios da dor

493
Sentimental
Que a gente o ama
E mesmo da dor ausente
Mesmo do bem e do mal
Cuidadoso impenitente
Para lá de bem e mal
Está o real
O pluricontinental
O ser «tudo em tudo» ideal
E ser igual…

Quando se vê à distância
Já postergado
De uma assaz longínqua dança
Deserdado
O coração puro de quem ama
Desapossado
Da sua mui’ dileta preciosa e querida herança
O coração partido ganha olhos
E vê os que os seus olhos sempre viram
Vê-se que o que em vulgar geografia dos liceus
Verdadeiramente conta ali
É o alcatrão
Que derrete à violência
Do calor
E mesmo que fosse apenas
O centro conceptual
Dos tórridos altos fornos
Infernais
Ou das antárticas gélidas paisagens
Queimadura
Não queimaria a alma como faz
Ver-se da chama
De tão sublime amor
Já despedido
E dos calores morenos da amada
Os doces mandos
Dos seus fulgores e do sorrir feliz da sua boca
Ver-se apartado.

Essa dita siderurgia


As feridas insaráveis desses gelos
Os extremos de todas as cabais ecologias
Lâminas frias de passados impropérios
E de falsas soluções
Insustentáveis...

494
O COLIBRI

Todos os dias
Quando eu estou fumando o meu cigarro
Ali no pátio da casa
Vem um colibri
Voando
Fica suspenso de bico esticado
Sugando umas pequenas flores
Que tem no jardim que existe em frente
O que serve de limite ao pátio da casa
E eu o vejo
Ele não me diz nada
Não fala só distribui o bico pelas pequenas flores
Para se alimentar
E eu também
Apenas o vejo levitar
Não conversamos
Mas sempre que eu estou ali ele aparece
Dá-me até a sensação de que esse fosse
Um colibri inteligente
E como deve ser pequena a sua máquina pensante
Muito pequeno as asas nem se vêem de tanto esvoaçar
É sempre o mesmo
E sempre me vem cumprimentar
Me cumprimenta de longe
Beija nas flores e vai-se embora
Às vezes depois volta
Pouco depois
E depois vai
É uma relação silenciosa e branda
Carinhosa
Que deixa ficar em mim a sensação
De que fazemos parte de uma mesma coisa
Eu e ele
Uma coisa total que nos transcende
A mim e a ele
E quando acaba esse momento
Que atravessa brando as nossas existências
Ele vai-se embora
E depois de um pouco
Eu vou também.

495
PÁSSAROS PRETOS
(segundo uma ideia de Brasil II)

Adeus americano
Do melro pássaro preto
Pássaro preto tem um
Que aparece quando chove
Bica debica e vai
Bate as asas voa curto
Desse adeus americano
Que o melro canta ao cantor
Vem aos dois
Às vezes mais
Quando está para chover
Um pássaro que é preto e vem
Que tem um rabo comprido
Que não gosta de ser visto
Não fica tempo nenhum
Pássaro preto
Bico laranja
Debicando a baga loira
De uma árvore muito estranha
Pássaro preto tem um…
É o anum.

PÁSSAROS PRETOS I

Pássaros pretos são aves


São aves de mau agouro
Dizem os ‘speculativos
E os supersticiosos
São corvos são urubus
São também galinhas pretas
Gatos pretos são mamíf’ros
Mas se tivesse de haver
Dos mamíf’ros um que fosse
Das qualidades do pássaro
Esse sim seria o gato
Animal limpo e selvagem
Chei’ de personalidade
Que se apresenta nas ruas
Sem ter de pedir licença
E sem nem contemplações
Nos atravessa o caminho
E se atiçado responde
Sem sequer mudar de rumo

496
É nobre e contemplativo
Pela cor enobrecido
E passa lateralmente
Mas reticente
Só se for bem convencido.

O URUBU

Quem ache urubu imundo


Que repare na podridão
Que existiria no mundo
Se não tivesse a função
E o cheiro nauseabundo
Que exalaria do chão
Das coisas apodrecendo
Dos restos dos animais
Que esses urubus devoram
Que procuram e frugais
Comem transformam e cagam.

É outro pássaro preto


Esse urubu de quem falo
Tão preto como um anum
Como um corvo ou como um melro
Como uma galinha preta
Como um galo ou um peru
Como urubu não há um
Que até o pescoço e bico
E aquelas peles que tem
Só p’ra ter uma noção
São negras como carvão.

OS URUBUS

Vejo um urubu andando


Parece um pato marreco
Bica debica e reage
A outro urubu chegando.

Andam em bandos no chão


Voam um de cada vez
É quando voam que são
Pássaros nobres talvez.

Em terra são ascorosos


Comem só o que está podre
São animais corajosos
Ficam com tudo o que sobre.

497
Estraçalham animais mortos
Ou que estão para morrer
Rasgam sacos picam lixo
Na ponta dos bicos tortos.

Na verdade são abutres


Primos de condores e grifos
São em outras latitudes
Conhecidos como vultos.

Vistos de perto horrorosos


De longe ao ganhar altura
Parecem águias de luto
Esquadrinhando a rapadura.

OUÇO O BATUQUE

Ouço o batuque que vem da maloca da tia Chiquinha


Deve ser o Pedro e os meninos
O Pedro é o filho da Tia Chiquinha
E a Tia Chiquinha é a pessoa de outro mundo
Vem até nós pra nos fazer acreditar que existe vida
Ouço o Batuque
A pele das mãos crespas
Cantando o tom das peles
Vibrando o som do couro
Peles que vibram
Nas mãos e nos tambores
Ouço o Batuque
Conheço bem o som
E a divisão das notas cavas da batida
É a mensagem do interior da Terra
Nos corações humanos
É a canção dos corações dos ancestrais nunca esquecida
África mãe a prometida
Dos homens pretos irmanados no tan-tan dos seus tambores
Ouço o Batuque
Bate também em mim e sem medida
Eu ouço vozes
Que cantam sombras na distância
Luares de andaime
Que o tempo engole
Salmos de louvores
Pratos e dores
E de amores
Sem tamanho
Ouço o batuque
Vem da maloca da Tia Chiquinha ali defronte

498
Vem de antes
Vem de longe
Mas permanece novo
E encantador.

A GALINHA PRETA

Entrevi o sol do encanto


De um calor de sufocar
Ainda hesitei a manso
Resgatar a cor
Vi um vulto alma vazia
De que já estava avisado
Três galinhas que fugia
Dessas de dona Maria
Que eu já havia cantado
Mas estas particulares
Três pretas noutro quintal
Veio um vento que amainou
O tamanho do calor
Acordei de um sono estranho
Abri a porta e no sol
Tinha essa galinha preta
Não foi morta p’ra macumba
Nem tingiu de sangue o chão
Não agourou
Olhou parva e ainda cedo
Mas já com sol muito quente
O olho imaterial
De um olhar impessoal
Plasmado em plano quintal
E pleno de luz e cor
Vi no vento que soprou
A galinha passear.

PÁSSAROS PRETOS II

Porque é que se chama pretos


Aos pretos
Porque será
Que aos pretos se chama pretos
Quando eles na verdade não são pretos
São castanhos
Ou marron como se diz no Brasil
Que no Brasil gostam de dizer as coisas
Em francês
Mas não importa
Seja marron cor de canela
Talvez
A minha preta é assim

499
Umas vezes cor de cobre
Outras de canela pura
Outras a pele reflete
Luzes douradas no rosto
E tudo isso é assim
Porque ela é preta.

Também se diz deles serem afro…


Descendentes
Seria essa a ideia
Afro
Também está certo
Mas todavia
(?) Seja de origem remota
Seja de recente estirpe
Afro afinal não somos todos.

Tem porém pássaros pretos


Mas esses são mesmo pretos
Completamente
Não se distingue uma cor
Na cobertura do corpo
Só nos olhos ou nos bicos
E às vezes também nas patas.

São bonitos
Imponentes
E cantam enquanto voam
São positivos impõem
Na paisagem
A sua mancha inequívoca
Mas se tem pássaros pretos
Também tem e amiúde
Como na história do jazz
Desses pretos que são pássaros
E como cantam…
E voam
Cantam árias soltam gritos
Mesmo quando amordaçados
De negritude e orgulho
De serem pretos
Mas como já antes vimos
Não são pretos
Só têm a pele boa
E mais resistente ao sol.

500
A GALINHA

Tem uma galinha preta


Que faz milagres potentes
Não mate a galinha
Nem lhe chame coitadinha
Ponha a galinha a voar
Não a coma no jantar
Sopre-lhe junto do ouvidinho
Que a galinhita não tem
Vai voar minha pretinha
No ar.

WORK IN PROGRESS
18 poemas e um antefacto

(dedicado ao Exmº Sr. Fernando Pessoas)

Antefacto:
Identificado o espírito e a raça
A alma da nação
Esquecida ao deus dará por entre flores
E brados exaltados
Eivados de ilusão e desconcórdia
Identificado o homem com a raça
E a nação
Restabelecidos aos palcos dos desvãos
Em que a alma se mede e se bafeja
Restava ao ser antigo ser-se mais
E foi
Foi o que foi
E quem pensa que esse rosto anquilosado
Com que a Europa olha para o mar
E o fita
É Portugal
Talvez possa até desconfiar
Que tem no Sacro Promontório aquele ponto
Para onde os pugilistas costumam apontar o «uppercut»
E que é suposto produzir um instantâneo «knockout»
Que muito faz exultar a multidão dos assistentes
E quem assim pensa vê e também pensa
E sabe
Que existe uma infinita sucessão organizada de rectângulos de ouro
Que se projectam perpendicularmente
Cada um dentro do anterior
Sustentados em serras que são eixos
Que desde os Urais aos Alpes depois aos Pirinéus
Vêm cruzando infatigáveis e decisos
O corpo antes placebo e flácido
Do que se vê ser a Europa inteira

501
Esse princípio telúrico
Que não se esgota nas íngremes escarpas
Que são visíveis nas praias de Algezur
Vem mais p’ra baixo
Afunda-se no mar
E hoje em dia trafega eletrizado
Nas fibras ópticas dos cabos submarinos.

1.
Ainda sinto prazer
Lendo os poemas do Fernando Pessoa
E tenho-os lido toda a vida
Lendo-me nas sensações
Nos pensamentos dele
Dele que para sempre foi meu mestre
Daquela espécie singular de anti-herói
Que foi e é não se viver a vida
Mas a ideia que futura vai viver
Como eu mesmo assim escrevi um dia
Ser o viver imaculado e tenso do poeta.

Quanto de mim será ainda esse fascínio


Eu que pertenço ao mundo e quero viver.

Mas afinal olhar o mundo e só sentir


Articular palavras e sentir
Mesmo que seja só com o pensamento
Talvez afinal seja viver
Esse um pouco que existe para lá de respirar
E respira «para lá de outro oceano».

Contrário ao meu mestre eu tive namoradas


E não me achei culpado
Fui algumas vezes trapalhão
Mas afinal ele também e até fez disso gala
Outras deixei-me hipnotizar
Pelo estribilho sedutor de uma canção
Por um refrão
Que o ritmo das ideias faz perfeito
Há poesia
Quando as pessoas aprendem a ler e a escrever
E o mundo existe.

Já li estes poemas tantas vezes


De todos só ficaram as imagens
Doces imagens que eu guardei como ícones sagrados
De uma rara religião da liberdade
E os bocados
Em que senti serem eles os meus fados
E agora quando os leio enfim mais uma vez

502
Sempre a primeira vez
É de saber a dor e a certeza
De que a cultura não serve para nada
E que a poesia… ah! A poesia
É coisa de gente fraca

Mas não existe certeza em ser-se outro


Nem dúvida
Existe o mundo
Existe essa impressão diáfana de haver mundo
E de haver nele
Uma outra coisa qualquer.

Numa outra cidade talvez mítica


Onde lendo ou meditando descobri o estranho laço
Em que me amarram essas luzes
Que o poeta deixou presas no ar
Também eu escrevi poemas e meditando ou lendo
Li os seus versos
Como quimeras enfim pacificadas
Gravadas na patine das pedras das calçadas
Ou no negrume das paredes sórdidas
Nas cantarias ou nas pedras lisas de vetustos prédios
Pelas ruas
Dessa hipotética e mítica cidade
Onde acordei varei e adormeci
Numa odisseia prematura e breve
Vivi horrores angústias e prazeres
Atei e desatei nós corredios
E lá deixei meus dias de desejo e anunciação
Meus laços desatados
De poeta.

2.
Tenho trabalhado pouco
Progresso não é nenhum
E já estou ficando velho
Meus músculos diminuindo
Já vivi ao que parece
Quase dez anos a mais
Do que o meu cirrótico e amado mestre
Muitos cigarrinhos
Muitos bagacinhos
Vinhos
Tudo em flagrante delito hepático
Tudo aos litros
E ele
Que falava e escrevia em inglês tão competentemente
Deveria já «d’avantage» saber
Que fígado se diz «liver» o vivente

503
E que com o vivente não se brinca
Mas provavelmente também desconfiou
De que as doenças têm comandos outros
Mais astrais
E não importa muito o que fazemos
Ou deixamos de fazer.

Essa determinação que em jovem me acometi


De fingir que a minha dor
Era uma psicografia
Já deu o que tinha a dar
E é certamente por isso
Que agora faço o balanço
Era jovem não sabia
O preço que as coisas têm
Somos novos e temos espectativas
Sobre coisas que nunca vimos e que podemos ver
Depois
Quando as vimos uma vez
Queremos vê-las de novo
E assim vamos ficando novos
Permanecendo atentos
Ainda que cansados
Gastos e desgastados
Querendo ver as coisas outra vez
Mas o que nos mantém
Vivos e indagando é o amor
Os desejos que queremos ver satisfeitos
E os que desencadeiam mais desejos
E outros ainda que por vezes
Sequer jamais poderíamos saber
Que existiriam.

3.
Se incessantemente sentimos e vivemos
E mesmo sem querer o vamos sendo
E o que sentimos são sempre as mesmas coisas
Talvez de cada vez um brilho a mais
Como o daquela peculiar reverberação que tem no eco
Então talvez por fim seja verdade
O que se quer dizer quando se diz
«no mundo inteiro existe um só poeta»
Ecos de sombras que sopramos aos ouvidos uns dos outros
E que anunciam que há-de vir o dia
Em que a poesia vibrará no espaço em volta
Do lugar onde
Antes havia um ser humano.

504
Mesmo quando na Terra não houver mais homens nem mulheres
Posto que o Sol continue a existir
E queira continuar a explodir
Haverá manhãs e pores-do-sol
Noites e dias a fio
Relâmpagos e matéria em vibração.

Também eu poderia passar toda a vida


Repetindo os versos do Fernando Pessoa
E não precisar de escrever mais nada
Todas as obras nascem já terminadas
Tão certo como fim e princípio serem a mesma coisa
Mas fazer isso seria não ter lido os versos do Fernando Pessoa
Ou tendo lido não ter nada entendido.

4.
Eu sei que existe juta
Mas não sei em detalhe exatamente o que é
A juta
Sei que existe tanta coisa que eu não sei
Mas o que me pesa verdadeiramente
É o que eu julgo que sei
Coisas que durante tanto tempo e tão sofrido
Julguei saber.

Para mim era melhor tudo o que eu sei


Ser como a juta
Que eu sei que existe
Mas o que mesmo realmente seja
Como dizer em detalhe
Não sei bem.

Indagamos
Indagamos mas a verdade é que não sabemos
O que sabemos é sempre transitório
E é transitório até um ponto
Em que parece não fazer mais muito sentido que algum dia
Venhamos a saber
Viver para saber isso sabemos
Que não irá nunca nos levar
A lugar algum em que queiramos estar
Então nos resta continuar a procurar
O Ser
E ser até ao osso
Essa indagação insaciável.

505
5.
Às vezes lembro o poeta ainda jovem
Com aquela cara de quem não faz mal a uma mosca
De uma solenidade atrás da qual
Se podem divisar as mais comuns perversidades
Outras vezes vejo-o já quase obumbrático
Conservado em bagaço e em tabaco
Do ópio acredito que era mais
Uma figura de estilo
Do que uma intolerância efetivamente vivida
Vejo-o sentado
Também tem vezes em que o vejo
Jantando no primeiro andar
Da pensão onde terá premeditado
Inúmeros desassossegos
Vejo-o na Brasileira e no Chiado
Descendo a rua caindo para trás
Ou inclinado
Caindo para a frente
Como agora o penduraram nas naves do aeroporto
Logo ele
Que tinha aquela fixação dos cais
Vejo-o em tantos lugares
Que se um amigo muito querido mo dissesse
Eu acreditaria que ele estava vivo.

Hoje as pessoas vão ao Martinho da Arcada


Mesmo de longe
Vejo-as entrar e sair
As pessoas entram e veem lá os retratos do Fernando Pessoa
Retratos lógicos
Porque foram os que ficaram e os que seria lógico
Que ficassem
Vejo as pessoas
Mesmo de longe
As pessoas os turistas e os retratos
E todos parecem fazer parte de uma penumbra una
Uma coisa translúcida que me trespassa
E faz lembrar
Que lhe dividem as orações nos cursos do liceu
Como dizia antigamente outro poeta amigo meu
Que poucas poesias escreveu
Mas que plantou morangos e os comeu.

6.
Há muito tempo
Parece
Está consignado
O que acontece é o que acontece
Não é o que não acontece

506
É uma bonita frase
E um sagaz pensamento
Talvez fosse
Se ficasse por aqui
Mas o que não acontece
Como seria se fosse
Como o brilho de uma estrela
Dessas que brilham no céu
Mas no lugar em que existem
Já não estão
Mas também não são ficção
São o brilho
De uma existência futura
E não tem nisso qualquer forma de ilusão
É uma pergunta
Que fica para além dos limites da ciência.

Se se pudesse afinal contar a história


De tudo o que poderia ter sido
Talvez por um momento os oráculos deste mundo
Se calassem nas cabeças dos sonhadores de sonhos
E nas dos contadores de histórias impossíveis
E essas histórias que poderiam ter sido
Fossem apenas afinal o que sobrou
De tudo o que já foi.

Mas não interessa


A verdade é que bem vistas as coisas
Passado um tempo
O que quer que efetivamente tenha sido
Não é por fim assim tão diferente
Do que pudesse ter sido
Mesmo que fosse
Só hipoteticamente.

Resta uma luta


Por um lugar no panteão em que se esfumam
As cores da perfeição
E uma ilusão às vezes permanece
De alguma coisa que efetivamente
Possa ter sido
Perfeita.

Quem contará então a história


De todas essas ilusões de perfeição
Ah! Quem contará
Será preciso
Não estarão elas afinal todas contidas
Nessas que parece que acontecem.

507
7.
Na minha vida ao que parece
Estou consecutivamente condenado a ver navios
Primeiro os de Lisboa achando o Tejo
Odes marítimas eternas refuturas
Os de Santos depois
Indo direitos ao Oriente
Agora são os que entram no Amazonas
E que certamente esperam um piloto
Que os leve p’ra Manaus.

Mas na verdade ainda hoje


Quando vislumbro um navio
Quer eu o descreva ou não
São ainda os do Fernando Pessoa
Que eu esquadrinho
Que eu vejo desenharem-se no horizonte
Já não me parecem futuristas
São mais monstros atávicos
Cansados e desbotados
Desiludidos
De um sonho de import/export
Que infelizmente não deu certo.

Levaram já todas as cargas


Para todos os lugares
Movem-se lentos
E a sua visão não leva a nada de empolgante
Apesar disso
Sua imponência pesada
Pode ainda impressionar almas sensíveis
E refazer um bordado inacabado
Imaterial
Nas infinitas noites do país
Onde vivem transparentes e se criam
Nascem e morrem os símbolos.

8.
Ainda jovem tive que decidir
Como seriam arrumados
Que forma iriam ter
Os gatafunhos sagrados
Que eu ‘inda iria escrever
Os hieróglifos que haveriam de pintar
As paredes da minha construção
Os castelos aéreos do meu sonho
Ou a minha casinha de sapê
A cabana dos amores imaginados
Palácios de uma existência irreal
Ou tendas construídas com bandeiras

508
Derrubadas de exércitos vencidos
Templos de um rito profano
E libertário.

Tudo isso eu fui pintando com ideias


Laboriosamente desenhadas em papel
E mesmo quando as letras eletrónicas dos computadores
Substituíram a forma tradicional de se escrever
Continuei compondo
Como uma renda que repete o seu padrão
Essas ideias que um momento ou um ritmo perfeito
Que se busca
Fazem luminosas por um instante.

Fui desenhando letras como um escriba


Que conta os grãos do celeiro do faraó
Não tanto como os egípcios decoravam as pirâmides
Não tanto assim
Mais como uma escrita chinesa
Que se lê de cima para baixo
Uma única ideia
Depois a outra
Às vezes duas ideias
Às vezes duas ou três.

9.
Gostaria de ter olhos maiores
Não é para ver mais
Que o que se vê passa depressa
É para ver melhor
As coisas que se vêem poucas vezes
E as sombras das paisagens incomuns.

Não sei já nem se é por hábito


Que olho o mundo querendo ver
Não o que está lá para ser visto
Mas sim o que vê-lo me provoca
Às vezes também vejo pelos olhos
De alguém em quem minh’alma se desdobra
E é o caso
De que depois de tantas sensações pensadas e sentidas
Falsamente sentidas
Ou mesmo sentidas verdadeiramente
Me pergunto
Constante e penitentemente
Para que serve olhar o mundo e querer ver.

509
10.
De todas as ilusões que se tem
A candura é a maior e a mais pura
Define de um ser humano a estatura
E é a marca indelével de um bem.

Criança que em nós vive e se detém


E dorme na vida a noite escura
Acorda para nós nessa candura
Se na vida acontece amar alguém.

E mesmo se o amor nos é tirado


Por culpa própria ou injustiça atroz
Fica uma música o canto de uma voz.

E quando o ser se sente acorrentado


Por nervos e por fios manietado
Espírito e alma nunca ficam sós.

11.
Como o Cristo do Alberto Caeiro
Uma invenção do Fernando Pessoa
Capaz de enternecer qualquer pessoa
Que o leia enternecido como eu leio.

No momento a pessoa fica boa


Mesmo que esqueça o poema inteiro
Unidas a mensagem e o mensageiro
Por um fugaz momento a alma voa.

E tal mensagem mesmo que se esqueça


Fica esquecida quieta mas presente
Aninhada num nicho que se sente.

Perto do coração num lugar quente


Mesmo quando a candura desfaleça
Ela jamais sairá da cabeça.

12.
O que é que tem a chuva ser oblíqua
Deve ser do vento que dá de lado
Deve ser ela ser reta e no entanto
Oblíqua
Mas não é essa a questão
A questão é a de saber
Por que é que a chuva direta e vertical
É tão plebeia
Enquanto a outra
A oblíqua é tão charmosa e sensacionista
Será por ser oblíqua

510
Não ser apenas água
Caindo
Mesmo que olhada de um lugar protegido e confortável
Se ela não fosse oblíqua não teria a graça
Que lhe encontrou o nosso distintíssimo poeta
Ao ponto de chamar a um poema «Chuva Oblíqua»
Um lindo e esmagador poema
Eventualmente
Mas onde nem sequer fala de chuva
E muito menos de ela ser oblíqua
Mas toda a gente entende e acha natural
Que ele se chame «Chuva Oblíqua»
E o porquê.

13.
Passei a manhã na biblioteca
Tantos livros…
Tantas bibliotecas no mundo
Em tantas línguas
As públicas as secretas as privadas
As vendidas as compradas
Sebos e alfarrabistas
Livros jornais e revistas
Antigas e atuais
Tantas letras de diferentes alfabetos
Vírgulas pontos finais
Romances sem pontuação
Poetas transcendentais
Tanta dimensão humana
Mesmo só contando esta
Em que passei a manhã
E mesmo assim
Era eu o único leitor
As portas estavam fechadas
Ou não se via ninguém
E esta história eu afinal
Nem sei bem que moral tem.

14.
Cheguei a Lisboa e não vi o Tejo
Nem o mar
Vim por trás.

Faz muito tempo já que eu não via o sol nascer


Tempo demais
Começar um novo dia sentir frio
E respirar.

511
Mas posso apanhar o sol
Que bate de enviesado
E pensar que poderia
Reler a ode marítima
Em vez de escrever de cor
Versos quebrados.

15.
Às vezes fico macio
Como eu sempre tenho sido
Passa-me na alma um frio
Que é uma espécie de cio
Que me deixa estarrecido.

É uma coisa inexplicável


Que fala dentro de mim
Deixa uma marca indelével
Uma sede insaciável
Uma dor que não tem fim.

Faço minhas nuvens ‘stranhas


Falo-me em dif’rentes línguas
São mentiras são patranhas
Que me rasgam as entranhas
Minhas angústias e mínguas.

Tudo reto e soletrado


Não chega a ser ilusão
O fado desse meu fado
Depois de escalpelizado
Só me resta o coração.

E esse por muito que o diga


Tem sempre o fino recorte
De uma lenda muito antiga
Que mais olhos que barriga
Foi ser minha a própria sorte.

Popularmente cantando
Sinto insuficientemente
O regular contrabando
Que a roda mantém andando
E canta popularmente.

Mas enfim já que acontece


Que seja o que enfim parece.

512
16.
Tenho nos meus bastidores
Uma antiga bonomia
Que me vem de não ler nada
De poder escrever às cegas
E de gostar de escrever
As palavras que aparecem
Na minha mente vazia.

É um princípio ativo
Que se forma nas entranhas
Que se desvia do ser
Para a zona indefinida
Que existe entre ser e estar
E estando pensa sentir
Sensações que me são ‘stranhas.

Só depois de resumida
Pobremente analisada
A conta corrente havida
A barganha realizada
Nos edifícios da mente
É que se percebe a história
Seja mal ou bem contada.

Sem qualquer investimento


Caneta papel e tinta
É um negócio da China
Uma história das Arábias
Um caminho para as Índias
Distantes e orientais
Sem final que se pressinta.

Vai na vela muito ao largo


Dentro de um barco afundado
Girando circularmente
Em muitas voltas ao mundo
Sempre no mesmo sentido
Sem cais nem porto de abrigo
Sem partida nem chegada.

É um caso singular
Parece um caso perdido
Mas permanece indagando
Do fim o fio condutor
Seja moderno ou rimado
Seja franco ou decassílabo
O verso que está escondido.

513
Talvez possa ser de azeite
Esse fio que se procura
Talvez escorregue nos lírios
Que sente ao pensar em nada
São sentimentos profundos
Superfícies extasiáticas
Talvez seja só loucura.

Seja afinal o que for


Nem isso é p’ràqui chamado
É uma forma de amor
Outras vezes de terror
Outras de sensualidade
O certo é que me a alma tem
Dançando de lado a lado.

17.
Toda a vida o que conheço
São sete sílabas vãs
Não vale a pena ser alma
E ser pequena
A voz que da alma vem
Ser ofuscada
Pelas coisas que da alma
Se desprendem.

Seria a alma das coisas


E as coisas elas mesmas
Não seria
Delas ter conhecimento
Gnose pura e impalpável
Belo que eu fosse
Me daria suprimento
Das coisas que eu soubesse
Conhecendo.

Mas se eu conhecesse as coisas


Deixaria de ser eu
Seria o outro
Ou o que fosse
Não quereria falar
«Prudente e sábio»
Seria ser o meu senso
E do que à vida me houvesse
Calaria.

514
18.
Talvez eu sinta vaidade
Em ter escrito este poema
Que parece e é dedicado
Ao meu amado poeta
Tão incensado
Tão lido e querido
E estudado.

Como ele também eu comecei


Onde todos os outros já tinham terminado
Não acabei o que outros haviam começado
Juntei
E dispersei selos no vento.

Mas vendo o tempo chegado


De já não ter mais por quem mentir
Digo a verdade e o digo
Que ainda sinto prazer
Quando leio os versos imortais
Do único poeta a quem permito
Que me devasse as veias
E me conte as mentiras do que eu sou
Verdades translúcidas
Da lucidez dele
Que há muito muito tempo
Eu fiz minhas também.

Então é uma alegria


Quando o vejo esparramado e aos seus versos
Pelas esquinas do mundo
Versos que sinto
Como se fossem meus tambémMesmo que seja um pouco
E sinto-me orgulhoso
Ainda que esse orgulho possa ser
Parente da vaidade
De «a minha pátria ser a língua portuguesa».

PULSAÇÃO INTERMITENTE

Quando eu fui para o Brasil


O meu amigo Jòrinho
Ofereceu-me um caderninho.

Já está todo preenchido


Com versos e pensamentos
Protoplasmas e lamentos.

515
E volto a pensar em ontem
Hoje que já é outro dia
E a manhã já nem está fria.

E sinto ainda o conforto


De um cigarro brasileiro
Que comprei no aeroporto.

Agora não fumo mais


Que a minha preta não deixa
Vou escrever versos banais.

Sentir seus olhos de gueixa


Afro-piro-causticada
Viver da Arte sagrada
Em que minh’alma se enfeixa.

Como era dif’rente o tempo


Que antigamente existia
Desse tempo do presente
Tão trepidante.

Sete meses para ir


Outros sete para vir
Do Algarve p’rò Brasil
Ir e voltar.

Ou em sentido contrário
Do Brasil para o Algarve
Esse tempo extraordinário
Voltar e ir.

Agora é bem diferente


Nove ou dez horas apenas
Neste tempo intermitente
Que me domina.

Sou o meu voltar constante


Do pensamento um segredo
P’ròs braços da minha amante
E para as pernas.

Pernas e braços cabeça


Corpo feliz ou ausente
De um olhar que permaneça
Não distante.

516
Quero ver logo o lugar
Onde eu esteja sempre quente
E o par do par do meu par
Não adoeça.

Sonhei que você estava dando


Uma entrevista
Para uma televisão.

Um moço com ar de jornalista


Ou de estudante
E você de diletante ou d’artista.

Não sei do assunto ali constante


O conteúdo
Mas você estava deslumbrante.

Meu coração palco de tudo


E eu todo torto
Abazurdido e com olhos de barrigudo.

Em volta um aeroporto
E só você
Brilhando fulgurante ao meu olhar absorto.

Partimos dali muito abraçados


Muito amorosos
Como compete aos namorados.

Como dois entes pressurosos


Que se amavam
Trocando beijos tão gostosos.

Mas aí meus olhos já estavam


Bem acordados
Já devagar do sonho se afastavam.

E eu vim escrever estes quadrados


Versos esquisitos
Pensando em nossos visuais trinados
…apaixonados.

Do sonho afinal guardei o quanto


Você é bela
E do nosso amor o seu encanto
…que eu amo tanto.

517
*

Não tenho escrito nada


Tem dessas fases…
É como se uma parte de mim tivesse morrido
Ou querendo morrer
E no entanto
O sonho me leva onde a dor não
E o castigo é a recordação
Uma saudade de um futuro há muito prometido
Onde na casa de um país florido
Como nas odes de um testamento antigo
Correm o leite e o mel
Correm líquidos e fluidos
Desse sonho interrompido
Vivo e eterno
Ainda que muito esparso e distendido
Pelo tempo.

Estas pessoas que chegam


No terminal das partidas
São diferentes das que partem
No terminal das chegadas
Estas partem nos táxis para o âmago
Feroz e barulhento das cidades
Aquelas chegam felizes
À luz do patamar das despedidas
Abraçam os que ficam e vão
Já os que chegam
Às vezes acontece e não são poucas
Olharem estremunhados o que vêem.

Ao claro anúncio do dia


Que o meu coração matou
Vi o dia amanhecer
P’ra quem amou.

Meus desbocados bocados


Espalhados no labirinto
Vi na noite amontoados
Ao que sinto.

E eu que quase nunca minto


Apeteceu-me mentir
Por ter medo do que sinto
E não sentir.

518
*

Esta noite era noite de Lua Cheia


Eu vi a Lua
Preso à miragem de que você estava na linha
E quando em meus momentos me afogava
Eu fui à rua
Primeiro a Lua estava entre os prédios
Na frente da casa onde tem uma casa em construção
Depois mais tarde eu via-a lá como se fosse para lá
A continuação
Da nossa rua iluminada como uma aberta divindade
Eu via da rua a continuação e a Lua Cheia
A nossa Lua
Cheia de esperança de um futuro bom.

Por fim eu vi brilhar a Lua lá no fundo da rua


E pensei em vir p'ra casa escrever este poema
Que é feito p'ra você e eu dou a toda a gente
Porque a Lua que brilha para todos os que a vêem
Brilha diferente quando olhando sentimos e pensamos em alguém.

A lua estava portentosa


Tão brilhante
Tão resoluta e difícil
Tão perto
Dava vontade de dizer
Por que é que temos um deus
Em vez de termos uma deusa
Eu tenho
Tenho uma deusa negra
Que brilha mais do que a lua
E essa deusa é tão imensa
Tão justa e tão poderosa
Tão intensa
Como a lua estava agora
Quanta magnificência
Nessa lua
E quanta paixão sentida
Tão generosa e vivida
Com verdade
Nítida como a luz da lua
Escarrapachada no céu
Tão distante e no entanto
Ali à mão.

519
A Lua está quase meia
Perfilando-se no céu
Mesmo já não estando cheia
Grã candeia
As nuvens fazem-lhe um véu
Tem um chapéu
Farrapo de um credo incréu
Restos flébeis de uma ideia
Triste labéu
De uma antiga apostasia.

A Lua está meia quase


Vai diminuindo aos poucos
Nos degraus de Varanase
Desde a base
Vê-se a Lua luz dos loucos
E de alguns santos
Que avaranda a alma em escombros
Mesmo mudando de fase
Em versos brancos
Trôpegos de frase em frase.

Rimas de luares perfeitos


De amores perfeitos o ritmo
Unindo longes e peitos
Vão direitos
Aos corações sem arrimo
Que querem mimo
E é nestes lugares que eu rimo
Tocando aos olhos afeitos
Qual pantomimo
No funeral dos conceitos.

A lua está quase meia


Aquela mesma que há dias
Era cheia.

A lua está quase cheia


Já está bem p’ra lá de meia
E o meu amor anda longe
E eu aqui armado em monge
Qu’rendo ver nascer o dia
Qual eu juro não queria.

A lua que é sempre a mesma


Ao que parece
Todavia é diferente
Todos os dias

520
Parece quase deitada
Redonda ou sapateada
Se pronuncia
Até chega quando nova
A ser por ser invisível
Diferente do que é
Quando está lá
Em quartos evidencia
A sua dupla razão
De seguir sua questão
Ser indiferentemente
E por nunca ser igual
O que ela é.

Anoitece lentamente
O céu vai perdendo a cor
Daqui a pouco é de noite
E não há dor.

Há só um leve mal-estar
Uma saudade real
Que se anicha nas entranhas
E quer ficar.

A claridade que resta


Já não faz brilhar o ser
Instala a melancolia
Anoitecer.

À medida que escurece


E a natureza consome
O resto do que era o dia
Vem uma fome.

Uma tristeza diferente


Daquela que a gente tem
Quando tem causa ou motivo
Mas ela vem.

Mesmo sem razão de ser


Só porque o dia termina
Com a lenta escuridão
Ela assassina.

Espécie de serenidade
Do dia que a luz esquece
Nasce a lua acende a alma
Quando anoitece.

521
*

O vento assobia a tarde


Agravando o destempero
Corta a carne da saudade
O muito esmero.

Com que faz bater as portas


Ritmicamente afinadas
Antes que cheguem fatais as horas mortas.

Embrulham-se os sentimentos
Nas asas do rouxinol
Nos tons frios e nos lamentos
Do pôr-do-sol.

Quando amaina a ventania


E fica o silêncio nu
Um pensamento voa por magia.

Rasga o céu da minha dor


Leva o meu corpo suspenso
E plasma num mar de amor
Tudo o que eu penso.

Vento então não sopra mais


Nem saudades nem tristeza
Canta canções promete rituais.

Largo galga para lá


Nos muitos ventos que há
E leva-me o ser inteiro
Namorado e companheiro
P’ra onde a minha princesinha está.

522
TERCEIRO POEMA DA VIAGEM

As nuvens da minha terra


São fixas no céu sem fim
Sobre algo entre o mar e a serra
Do lugar onde nasci.

Vejo-as já há muito tempo


Na verdade sempre as vi
Da praia à cidade ao campo
Nelas me desvaneci.

Olho-as ainda com gosto


Ainda que sem apego
Olho o mar e o sol-posto
A saudades não me chego.

Mesmo quando canto o fado


Das minhas idas e vindas
Em busca do «el dorado»
É de ver imagens lindas.

Sempre sonhei estar aqui


Divagando e entendendo
Como se tudo o que vi
Fosse um filme… e não me rendo.

‘Inda quero ver a hora


De toda a revelação
Em que se amarra o agora
E exulta o coração.

Já verei outras paisagens


Lá terei um grande amor
No ir e vir das viagens
É que se fermenta a dor.

Mas como eu já disse um dia


Amor e dor já não rimam
Vem o sol volta a alegria
E as minhas fibras animam.

Lá tenho um amor maior


Para mim desconhecido
Que eu quero guardar melhor
No meu âmago mais qu’rido.

523
E ainda assim ‘nevoado
Sempre imagens irei vendo
Entre o futuro e o passado
Dos dias que vão correndo.

II

Encanta-me essa poesia


Poesia que o povo encanta
Que liga pouco à ideia
De uma ideia sacrossanta.

Na verdade é uma veia


Onde corre sangue novo
E o pão de uma outra ceia
Que alimenta e agrada ao povo.

Nas paisagens tem as casas


Dentro das casas pessoas
E nos cemitérios rasas
Campas de pessoas boas.

Todas são boas já mortas


Não fazem mal a ninguém
Passam campos passam hortas
E cemitérios também.

Tudo passa na paisagem


Que corre andando p’ra trás
Onde de perde a contagem
Das ações boas e más.

Boas são as da Mobil


As dos bancos da BP
Ao meu olhar infantil
Tudo se confunde e vê.

Vejo coisas movimento


Ando na vida sem ter
Nem nenhum pressentimento
Das coisas qu’ ‘inda irei ver.

Só me int’ressa a novidade
Só me fascina o porvir
E uma suprema vontade
De tudo ver deglutir.

524
Ver-me sorrir para o mundo
Ver a terra tão bonita
Ver a brisa ver o quando
E a magia que o habita.

Mas mais que qualquer desejo


Desejo ver quando possa
O brilho ímpar que eu vejo
Nos olhos da minha moça.

III

Tantas viagens já fiz


E nunca saí de mim
Ou assim como quem diz
Saí meio assim assim.

E todavia persisto
Nessa dúvida inconstante
Saber se sou eu que assisto
Ou me assiste a vida errante.

Também não serve p’ra nada


Desvanecer a questão
Viagem certa ou errada
Int’ressa mesmo é o chão.

Esse não tem solavancos


Nem partes ‘scorregadias
Vou sempre nos meus tamancos
Engolindo as fantasias.

Já naveguei nas marés


Em outros versos mais velhos
Rios em que molhei os pés
Só me deram bons conselhos.

Virei páginas ao léu


Decifrei alguns mistérios
Mas ‘inda olho p’ro céu
E ainda solto impropérios.

Talvez esteja envelhecendo


Qualquer dia estou senil
Mas isso mesmo eu entendo
Ser ironia sutil.

525
Uma falsa progressão
Desde o velho até ao novo
Em permanente tensão
De que nunca me absolvo.

Mesmo quando vou direito


Feliz e descontraído
Tenho uma nódoa no peito
De algum dia ter caído.

Ao me encostar ao cajado
Eu que fui agricultor
Já não tenho nem arado
Nem vocação p’ra pastor.

IV

Faz tempo nasceu o dia


Do sol nem rastro visível
Não existe fantasia
Nem sentido do impossível.

Existe o útil o sério


Existe o passo das horas
E um perene desidério
Diluindo-s’ em demoras.

Antes não houvesse tempo


Tudo fosse um só momento
E mesmo que houvesse tempo
‘Inda assim que fosse lento.

Mas bom era não haver


Nem devagar nem depressa
Ser cada instante do ser
O instante em que se expressa.

A magia desse instante


E cada instante infinito
Distendendo-se durante
O espaço o tempo e o mito.

Todo misturado enfim


Numa nuvem de esperança
De ‘spaço nem não nem sim
Sem passado nem lembrança.

526
Apenas demora lenta
Dos meus dias que não chegam
Quando o ser experimenta
Ser tudo o que os olhos negam.

Estremunhado acordo e sonho


Um pouco mais acordado
Já vi o dia risonho
Já vejo o céu enublado.

Já dormi em aeroportos
Já virei noites a fio
No passar dos tempos mortos
Vê-se ali do tempo o rio.

O rio corre sem parar


Mas quem se senta na margem
Vê a paisagem ficar…
Ser o tempo da viagem.

Tantas vezes já corri


P’ros braços da minha amada
Indo daqui para ali
Onde a festa está guardada.

Para quem chega cansado


P’ra quem o cansaço vence
E ao destino enfeitiçado
De gosto e riso pertence.

Quando se passa na vida


Risonho para o que passa
Fica a vida possuída
De toda a divina graça.

Que existe no movimento


E que é essa nuvem clara
Em que o sol brilha um momento
Que a luz parece que pára.

Mentira ela nunca cessa


De se refluproduzir
A grande verdade é essa
Nada vemos ao sentir.

527
O que vemos não existe
É ilusão dos sentidos
Um pouco de talvez triste
Nos incomoda os ouvidos.

Se produz e reproduz
Tudo flui e se compõe
Tem o tempo tem a luz
Tem a sina e se propõe.

Ao ser que as virtudes ama


Da alma a recordação
Uma voz constante chama
E essa voz nunca é em vão.

Toda a vida se propaga


Do centro total e fundo
P’ra cada canto que afaga
Em qualquer lugar do mundo.

E a vida vai… afinal


É a vida quem viaja
E nós p’ra cá e p’ra lá
Luz e sol noite… bem haja.

POEMAS DE MIM MESMO


14 poemas simples

1.
Dançam borras no café
Que acabei de beber à hora certa
Ou um minuto antes da hora combinada
Para o eterno encontro do amante
Com a amada.

Dançam as borras no fundo da taça


Para não dizer xícara nem chávena
Tudo o que eu sei desse momento eterno
É que uma pétala de infinitude e graça
Por mim passa.

Dançam as borras de um café já terminado


Bebido e degustado com prazer
Numa ansiedade que se engole a cada passo
Que o tempo dá em mim sempre infinito
E eu nem grito.

528
2.
Marcas que tenho no corpo
Todas são sinistras vozes
De uma estranha teimosia
Lateralizada.

Cada uma conta a história


De um traumatismo qualquer
Mais longínquo ou mais recente
Simbolizada.

Toda a dor desses desenhos


De padrões inconfundíveis
Aliás um só padrão
Cicatrizada.

E muitos nem me doeram


Nos momentos das feridas
Fogem da mente os momentos
Hipnotizada.

Pela chegada eminente


Do horror
Da dor só ficam as marcas
E não doem.

3.
Tenho o meu corpo fechado
Meu coração é uma flor
No meu ser está misturado
Prazer consciência e dor.

Tudo o que eu tenho louvado


Em orgias ao senhor
Sai do peito trespassado
Por setas de luz e horror.

Contas feitas afinal


É tudo uma só corrente
Uma veia principal
Que em mim se torna presente.

De forma transcendental
Morre e nasce indiferente
Sofre e sonha sempre ausente
Uma verdade banal.

529
Dezasseis versos em quatro
Quadras de apresentação
De um inefável teatro
Que ocorre no coração.

Vinte e quatro como as rosas


Daquela antiga canção
Se me faltarem as glosas
Fica assinado o padrão.

4.
O que eu aprendi na vida
Não vale um tostão furado
Nada sei do ser humano
Nada sei do seu traçado
Reto e curvo ao mesmo tempo
Todo torto e emaranhado
Apenas da natureza
Sei que aprendi um bocado
Ao resto não dou valor
São verdades mentirosas
Que aprendi alucinado
Deslumbrado das pinturas
Dos quadros surrealistas
Que os meus olhos de menino
Nunca contemplaram bem
Dos delírios dos artistas
Dos mágicos ilusionistas
Dos palhaços intriguistas
Minha vida foi um circo
Que agora contabilizo
Da soma tudo dá nada
Nada que eu possa dizer
A sério ter aprendido
Só em momentos translúcidos
Eu creio ter compreendido
Que as leis que regem o mundo
Se encontram descritas nele
Bem visíveis p’ra quem veja
Dele o sentido profundo
Que junta num só olhar
Do universo um segundo
Como diz outro cantor
Que canta de forma clara
É isso que int’ressa ver
Não só o que está à vista
Isso sim que veja bem
Mesmo que seja filtrado
Pelos olhos de um artista
Ouvi músicas canções

530
Vibrei poemas vi coisas
E tive alucinações
Mas tudo tudo o que vi
Não vale um tostão furado
Não tem valor para mim
Nem bem nem mal comparado
Nem presente nem passado
Do futuro nada sei
Nem muito quero saber
Apenas quero viver
Contemplando a luz da vida
Fazendo a revolução
Nas entranhas do meu ser
Respirar vibrar e ter
Do que a vida ao ser reclama
Ter a sã conformidade
Uma forma de prazer
Tão serena e natural
Como um rio fluindo lento
E tudo o que possa ter
Aprendido contemplando
Vivendo ou simples amando
Quero esquecer.

Se alguma coisa aprendi


Foi olhar manso dez palmos
Um pouco acima do chão
E a fazê-lo simplesmente
Usando sempre e somente
Os olhos do coração.

5.
Nunca dei na minha vida
Muito valor ao dinheiro
Verdade aqui seja dita
Nunca dei valor nenhum
E como no formigueiro
Que é o mundo em que vivemos
Tudo o que compreendemos
Tem com dinheiro relação
Não é p’ra ninguém mistério
O dinheiro é o critério
Com que nos valorizamos.

Não dando ao dinheiro valor


A pessoa vai ficando
Ela mesma sem valor
E o caso é muito sério
Porque há uma consequência
Nessa estranha orientação

531
Põe à prova a paciência
De quem tem a consciência (d’)
Que as coisas são como são
E essa louca impertinência
De ao dinheiro não dar valor
Acaba sendo sentida
Pelas pessoas que dão
Como um crime abusador
Que corrompe a sociedade
A compostura da vida
E o que lhe dá sentido
Mas mesmo compreendendo
O que essas pessoas sentem
Não dou valor ao dinheiro
E não estou arrependido.

6.
Não leiam estas coisas
Ou se as lerem
Esqueçam-nas o mais depressa que puderem
Porque o que nelas procura se expressar
Não existem palavras que o digam
O tudo é nada e a ilusão
A que pudesse ser de todas a mais bela
A que nem precisasse de ser transcendental
Seria não haverem as palavras
E não existir nada
Que fosse necessário dizer.

Quem vive não escreve nada


Vive e sonha viver mais
Só escreve quem ama ideais
E a vida mesmo não ama
Ama a coisa desejada
Não a coisa que é amada
Essa mesma a quem se chama
Que não tem como escrever
E que se chama viver
Isso sim é ser sagaz.

Enquanto penso não vivo


Só vivo enquanto não penso
E sinto um desejo imenso
De não pensar em mais nada
Sentir sem nenhum motivo
De um modo superlativo
De forma despudorada
Viver nu de corpo e alma
Olhar as coisas com calma
E depois morrer em paz.

532
7.
Se eu fosse um homem honesto
Bom rapaz e bom estudante
Teria olhar penetrante
Teria anel de brilhante
Talvez me chamasse Ernesto.

Venderia canivetes
Escovas de dentes talvez
Talvez trabalhasse em Fez
Com salário todo o mês
Talvez fosse a Marraquexe.

Teria estudado os livros


Sabido a minha lição
Já tive tudo na mão
Por destino ou vocação
Cooptei danos supérfluos.

Contei tudo em versos lisos


Nestas minhas ladainhas
Alinhei linhas e linhas
Bonitas e redondinhas
Chocalhei centos de guizos.

E passada a marcação
Que ao destino fez meus erros
Vou titubeando aos berros
Por descantes e desterros
Enquanto tiver canção.

Ouço as coisas pela rua


Viajo em águas passadas
Percorro pontes e ‘stradas
Em rodas recauchutadas
Na minha paisagem nua.

Vistas nuas lábios nus


Recantos de houvera querido
Canto música de ouvido
Num dialeto esquecido
Que não restitui o jus
Das minhas múltiplas penas
Vibram as minhas antenas
Do que cobro sei apenas
Que a tomada não dá luz.

533
8.
Às vezes o coração
Trabalha para que o corpo
Nem o corpo nem o espírito
Sintam emoção nenhuma
E a dor devassa o momento
Imponente e racional.

É um transe objetivo
Em que a alma se divide
Em dor e compreensão
Não é que a dor não se sinta
Sente-se a dor e a culpa
A culpa de não sentir.

Tenho reparado nisso


Nos momentos em que a dor
Me devassa o coração
E essa dor é maior
Que a dor que eu já sempre sinto
E às vezes me emociona.

O espaço interior do ser


Preenche-se de vazio
Triste embora olho p’ra mim
Interrogo o meu sentir
E ainda que fosse lógico
Não sinto emoção nenhuma.

9.
Não sei se é a minha alma que eu procuro sintonizar
Ou se é a alma das coisas que me escapa e eu insisto em procurar
Se é isto que pressinto como uma interrogação omnipresente
Ou uma pena mansa e resolvida de não ser contente
De procurar ainda e entre tantos desencontros os encontros
Ou se é apenas o vapor fluido e condensado dos meus prantos.

Talvez a dor tenha comido a minha alma vaga


E seja agora só a tal alma das coisas que propaga
Em mim doces eflúvios antigos e modernos
Que a dor instituída em alma faz eternos.

10.
Vejo passar o passo
Das fugidias gentes
Nos palcos onde posso
Meu eu representar
Aos deuses circunstantes
Nunca pedi licença

534
Na fé da minha crença
Assisto ao meu passar
Penumbra e indiferença
É a fugaz passagem
Dos entes.

11.
Esta coisa das datas tem um peso
Embora leve é forte a sua amarra
Que nos conduz como um farol aceso
No mistério do mar que o tempo encerra
Como os trastes luzios de uma guitarra
Como os botões de um colete obeso
Relógios calendários tempo leso
No fio do tempo o tempo o tempo ‘sbarra
E o pensamento ao nada fica preso
E o coração vazio pega indefeso
Do contrabaixo o braço que se agarra
E dedos finos tocam o intermezzo.

Da gordura do tempo soltam-se os botões


Da bela guitarra ressoam notas soltas
Tentando em vão medir ao fio do tempo as voltas
E quando um dia acordamos desse sonho
Por fim feitas as contas ao tempo vazio
O tempo já passou e um devir risonho
Se anuncia doce no corte desse fio
É o presente em que todas as liras estão envoltas
E que se anima e anima aos dias corações.

O tempo passa é certo


Aos modos gregos cronos
Meses semanas anos
E não tão perto
Milénios e instantes
Brumas recalcitrantes
Espaço aberto
De uma necessidade
Humana
De uma realidade
Insana
Se é verdade
Que implacavelmente
E necessariamente
Passa
Passaria ele se insensatos
Mesmo que o víssemos
Gordo e presente como um mar de calma
Não o medíssemos?

535
Não se desnuda a alma não tem tempo
Nem calendário o mar que o tempo voa
Tem apenas a canção em que se entoa
O tom que o tempo tem e que ressoa.

12.
De passar a vida à pesca
De uma presa imaginária
Foram-me as fibras tangendo
Formas de uma ordem vária
Acumulada no tempo
Em que a memória se atasca
Olhares perdidos no vento
Sincronias movimento
De uma vida sempre airada
E os olhos com que a contemplo
Fixos no nada.

De fazer coisa nenhuma


Nem útil nem construtiva
De não ter força na vida
Nem ânsia locomotiva
P’ra correr nessa corrida
Que da vida rasga a bruma
Senti a vida perdida
A energia exaurida
E as coisas todas enfim
Chegarem na minha vida
Perto do fim.

E então uma nuvem clara


Me iluminando o semblante
Fustigando-me o destino
Que em criança ou em estudante
De permanecer menino
Me foi atirado à cara
O meu destino ilumino
Mais fino que o fio fino
De ser o que a vida manda
Quebra e corre em desatino
Por onde anda.

13.
De uma tristeza minaz
Me assalta às vezes a fama
Do que ficou lá p’ra trás
E dói a quem muito ama.

536
Seus dias se consumindo
Em vertigens passageiras
Livros e livros abrindo
De todas as brincadeiras.

Porém chega um dia manso


Que tudo colhe e congrega
Em que se faz o balanço
À luz de uma fé cega.

14.
Muitas andanças vivi
De todas guardei um pouco
Mil paisagens entrevi
Cheguei quase a ficar louco.

Brinquei minhas brincadeiras


Despreocupado e infante
Fui até de baboseiras
Um razoável estudante.

Andei nos bailes da vida


Dancei com muitas garotas
Percorri muita avenida
Gastei dezenas de botas.

Virei mesas bebi copos


Andei em praças abertas
Vi a beleza dos corpos
Em muitas praias desertas.

Tomei drogas e poções


Montei barraca no campo
Tive febres e sezões
E bexigas e sarampo.

No mar do deslumbramento
Vi as coisas improváveis
Nada do que vi lamento
Nem mesmo as insuportáveis.

Aprendi que do que vemos


Nem tudo podemos ver
Mas aquilo que aprendemos
Fica gravado no ser.

O resto esquecemos logo


Fica gravado no espírito
Parece gravado a fogo
Mesmo sem ser muito explícito.

537
Fui ao abismo e voltei
Tive tentações e sede
Tive ilusões e sarei
E já dormi numa rede.

Nunca me faltou motivo


P’ra tanto fazer asneira
Consegui manter-me vivo
E vou de qualquer maneira.

Respiro as públicas ânsias


Vejo o meu tempo passar
E fruto das circunstâncias
Estou na luta estou no ar.

E agora para acalanto


Do que foram minhas liras
Só faço versos e canto
Meias verdades mentiras.

Não me culpo nem me ausento


Das responsabilidades
Nessa estrada vou no vento
Sem delírios nem vontades.

Só desejos impropérios
Só erotismos perfeitos
Que a verdade dos mistérios
Anda e trafega nos leitos.

Nas camas das abadias


Passa verdade mais funda
Que nas novenas das tias
É o fim em que redunda.

Toda a vã compreensão
Toda a paixão desmedida
A tristeza sem noção
Que me tem fodido a vida.

De tudo e sem paciência


Tive até não poder mais
Vi no mar da consciência
As coisas transcendentais.

De tudo provei um pouco


Tomei da nata mais fina
Mas o que me deixa louco
É a cama da Joaquina.

538
A SOMA DOS DIAS

NOVOS POEMAS LUSO-AMERICANOS

539
A SOMA DOS DIAS

Posso fazer pelos dias


Uma soma
Dos dias que foram bem
Aproveitados
E desses dias fazer
Uma pamonha
Desembrulhada das folhas
Da saudade.

Todos os dias se passam


Sem celeuma
E é desses que as palavras
São esquecidas
Ficam dos erros os acasos
As mentiras
Das palavras aproveitam-se
As cantadas.

Sinto saudades dos poemas que eu perdi


Porque eram lindos e eu nem bem já mesmo lembro das palavras
Talvez um verso aqui um verso ali
Mas para sempre se perderam e amargas
Foram cantando suas penas p’ra lugares que eu não domino.

Esses poemas que eu guardei junto de uns cheques


Numa carteira que hoje nem mais se usa
Outros que escrevi em cartões breves
Em restaurantes em papéis ou em jornais
Existirão talvez amordaçados
Num lugar escuro onde ninguém os lê.

Eu escrevi-os e li-os muitas vezes


São como filhos perdidos numa guerra
E essa saudade que finjo sentir deles
É apenas a dor e o desconsolo de perdê-los.

(in «O LIVRO DO ESCOAMENTO DO TEMPO»)

Agora já não trabalho


Antes ‘inda trabalhava
E tinha a alegria vez em quando
De decidir que não iria trabalhar
Talvez fosse por preguiça
Talvez por algum padrão
Que se formou por engano
Porque um dia no passado
Decidi que não iria trabalhar
E houve uma revolução.

540
Mesmo quando trabalhava
Era sempre de improviso
P’ra falar mesmo a verdade
Só fingi que trabalhei
Todos os dias que o fiz
Contrariado ou feliz
Dissimulei.

Como operário sonhava


Com as épicas imagens
Dos cartazes amarelos
Do que então lá se chamava
Realismo socialista
Na verdade uma ficção
Que eu jovem alimentava
De que poderia ser
Alguma coisa que então
Eu já não era.

Mesmo antes
Quando de castigo por ter ido
Longe demais
Em coisas perigosas nas quais
Não se podia ir
O meu pai me mandou ir trabalhar
Para o escritório de um amigo rico que ele tinha
E eu fui
Tentar fingir que trabalhava de empregado de escritório
Mesmo aí
Também passava o dia todo
Especulando
Esperando a hora em que algum dever
Algum serviço no exterior
Me levasse para fora do martírio
Do escritório
E nessas horas fazer
O que sabia que tinha que fazer.

Mesmo enquanto lá estava


Lá dentro
No que seria o meu posto de trabalho
Sempre estava fingindo p’ra mim mesmo
Que o trabalho que fazia era outra coisa
Com outro significado
Sonhava que era outro sonho
O sonho que em vão sonhava
E aguardava
Pela hora de fazer
O que eu realmente gostava de fazer
E achava que era útil e determinante que eu fizesse

541
Rasgar debates
Sabatinar ideias
Acumular acções e coisas
Que alimentassem o delírio
Em que eu me consumia.

Foi numa dessas saídas


Que fui num movimento medido
E antes longamente e bem premeditado
Sensivelmente
O que no léxico militar se chama um raid
Buscar uma inteira colecção
De discos do Zeca Afonso
Do Adriano Correia de Oliveira
E de tudo quanto fossem cantos de protesto
Uma inteira colecção dos Chant du monde
Que eu laboriosamente havia juntado
Num pequeno molho
Na mesma prateleira
O que aliás não tinha sido difícil
Porque essa loja de discos
Eu frequentava muito
Quase todos os dias
Estava sempre lá
E os empregados eram geralmente meus amigos
E naquele dia eu estava «trabalhando»…
Já havia combinado
Com o meu amigo mais dilecto
Mais próximo e por isso o mais leal
Que ele entraria primeiro
Clamaria que queria ver uns posters
Coisa muito em voga nessa época
Na verdade a gente conhecia
E já sabia
Que se encontravam na cave
E compelida a moça desceria
E planeada ao segundo a roubalheira
Eu entraria como um foguete e sairia
Como efetivamente saí
Com uns doze ou quinze discos debaixo do braço
Que levei para o escritório
E guardei conspicuamente
Na dependência inferior de um armário inútil
Que ficava exatamente por baixo
Do lugar onde eu accionava o PBX.

Era a primeira coisa que se encontrava


Diretamente à direita
Da porta por que se entrava no escritório
Não me arriscaria a que me perguntassem o que era

542
Aquele maço que abraçava quase concupiscentemente
Coloquei lá os discos
Grosso maço de discos de vinil
E praticamente ninguém do pessoal reparou
Talvez o Estrela
Que era mais vivo.

Desses perdi-lhes o rasto


Acho que foram com uns amigos de Olhão
Serem inúteis para outro lado
Para que eu ratificasse
E em algum modo se exorcizasse
A minha vertigem voluntária de possuir as coisas
E de tê-las.

E as coisas que eu consegui


Comprei recomprei vendi
Ainda que fossem minhas
Nunca mesmo as possui
Só as usei
Pelo tempo precioso
Pelo detalhe preciso
Em que delas precisei
Mas tenho pena
Dos dias e da ideia
De as ter tido
E de agora então já não as ter.

Eram em geral na maior parte


Instrumentos musicais
Que pretendia tocar
E que toquei
Mal ou bem e que me deram
Indescritível prazer
Ao serem meus
Por eu os haver comprado
Ou mos terem dado
Ou eu os ter achado
Ou mesmo numa linguagem
Em que certas aproximações
São toleradas
Eu os ter roubado
Não naquele sentido mais óbvio e venal
De expropriar alguém que antes os possuísse
Mas mais num outro
O deles terem como que por assim dizer
Encalhado comigo
E decerto
Como só quem em certos e definidos momentos tivesse estado lá e sentido
Teria dito

543
Esbarrado em mim
Como duas pequenas guitarrinhas
Que por um tempo ainda foram minhas
Mas que coitadinhas
Não serviram nunca para nada
Eram adereços da ópera
(Provavelmente do «Barbeiro de Sevilha»
Quiçá d’«As Bodas de Fígaro»)
Da qual eu tinha com outros companheiros
Rapazes aventureiros
Assaltado o sòtão poeirento e abandonado
Onde existia um depósito esquecido
Do que outrora em outro dia haviam sido
Os dias felizes e endinheirados
De uma cidade perdida
E nas instalações do que teria sido
O lugar de arrecadação dos guarda-roupas
Dos cenários
E de às vezes mais insólitos pertences
Do que teria sido
Flagrante e magnífico
O seu teatro de ópera
A ópera de uma cidade repentinamente endinheirada
Pela demanda geral e desesperada
De uma cura para a sífilis que um doutor
Médico italiano que teria a ela vindo p’ra casar
E de boca em boca se espalhou pela Europa
Que ele poderia providenciar.

Conheci bem esse teatro


Antes e depois de restaurado
Onde roubei momentos e tremendos
Instantes de emoção exacerbada
Mas não aí
Dessa outra vez
Dessa outra vez só roubei as guitarrinhas
Que afinal nunca serviram para nada
E alguns livros…
Antigos
Não foram feitas p’ra tocar as guitarrinhas
Só para ver
Mas eram até ainda assim
De uma aparência muito realista
E de madeira boa
E dessa vez
Mesmo que só pela aventura fosse
Que eu ali estivesse
Pareceu-me boa ideia levá-las para casa
E quanto aos livros
Tive-os por anos sem que houvesse

544
Nem a intuição nem a mais vulgar curiosidade
De lhes descortinar os conteúdos
Excepto um mui’ santo livro muito antigo
De cantochão
Esse vendi mais tarde
A um antiquário meu amigo.

Como é das clássicas vitrines


No vidro os brilhos
Da clepsidra encapsulada
Nas togas dos filósofos
Que ao tempo abriram esses antes
Em que o tempo mergulha os pensamentos
E dos constantes
É da ordem ser bela o vão proveito
Que a lista que comece conto aprume
E a dúvida no peito corte a eito
Das fendas e dos rasgos o betume
Seja segura e se inicie pelo primeiro
Onde a vertigem nasce sem pretéritas gangorras
E se consomem as vertigens que conheço.

Mesmo um passado antigo ao largo se divisa


Concreto e vivo
Que o primeiro
A mais antiga
Das liras com que povoei meu ludo
Foi a voz
Que na infância me foi dada em abundância
Em qualidade e timbre
Aberta e clara e à distância
Terei também perdido e sem ciência
Quando como é normal infante e lindo
Veio apossar-se de mim a adolescência

Muda de voz dizia-se


O mancebo
Quando começa a lhe aparecer a pintelheira
Ainda antes já se nota engasganada
A voz que do infante já se foi.

E a mim veio como a todos vem


O inevitável e hormónico processo
Salva-se às vezes uma sombra aos que cultivam o falsete
Ou aos castrati
E a mim como era e é e o foi natural
E assim no tempo em que devia vir
Veio
Veio aninhar-se no meu peito uma vontade
Imaginada em múltiplos delírios

545
De possuir por sendo minha e verdadeira
Que pudesse compensar e dar consolo àquela perda
Não que tivesse disso consciência
Mas foi o que parece ter acontecido
Tão imperante e forte essa vontade
De ter entre os meus dedos de cantor uma guitarra
Que descobri depois ser da viola o nome
E dele ser
Um não tão simples objecto de madeira
Que o vulgo uso nesse tempo me encantava.

Já tinha então passeado os meus dedos de aprendiz


Por inúmeras violas emprestadas
Até possuir uma
Que muito a contragosto o meu pai me ofereceu
Pedindo encarecidamente a um amigo
Que ma trouxesse da Espanha
Era branquinha de um pinho claro
O braço e as ilhargas quase rosa
Era leve e a escala clara
Era rara
Pois quase sempre as escalas são de ébano
E sobretudo tinha a inqualificável qualidade de ser minha
Sabia tudo sobre ela
Que tinha sido feita em Málaga
Por mãos de gente – artesanía – como dizem «à mão» em castelhano
Tinha um verniz p’ra baço e quebradiço
Que eu raspei como mais tarde fiz a algumas outras.

Quando fui expulso do liceu


Por com ela cantar canções que estavam proibidas
Meu pai tirou-ma
Cortou-lhe as cordas cruel e transversalmente
E mandou que a colocassem por cima do guarda-roupa
Num lugar simbolicamente inacessível
Mas onde eu pudesse vê-la
Não sei com que intenção perversa
Nem por isso
Tão capaz que eu não tivesse
Tão logo tomado de empréstimo uma outra
Que «sagazmente» escondi
Por baixo da cama onde dormia
Essa era de um amigo meu que pouco usava
Também clara era no entanto mais pesada
Mas em compensação
Tinha a elevadíssima virtualidade
De ter sido emprestada uma vez ao Zeca Afonso
Que era o meu ídolo
E de quem eu conhecia todas as canções.

546
Aquela recuperei-a depois quando parti
Para Lisboa com ela e com um saco
Da tropa cheio de livros e de coisas
Inúteis
Levei-a comigo dentro de uma caixa
Por lá ficou e se perdeu
Ao que imagino
Levada por uns moços
De Olhão.

Também não demorou eu comprei outra


Fraquinha
Mas que servia p’ra tocar
Comprei também ao mesmo tempo uma flauta muito boa
De madeira
Com uma chave para fazer o dó
Uma nota mais grave onde o dedo mais pequeno não chegava
Não deixava de ser uma vulgar flauta de bisel
Mas maior
Era o que se chama comumente uma flauta… tenor
E com ela eu toquei até à exaustão uma moda alentejana
Que havia antes aprendido
De ouvido
Porque a cantava o Vitorino e eu ouvia
Na telefonia
«vou-me embora vou partir mas tenho esp’rança
de correr o mundo inteiro quero ir…»
e assim ia.

Essa outra viola a bem dizer


Essa fraquinha
Não me serviu p’ra grande coisa
A não ser para manter essa ilusão
Que era bem viva «de viver e de cantar».

Já antes tinha tido uma corneta


Um cornetim como aprendi mais tarde
Que se chamava e eu comprei
Numa cantina uma pequena venda
A venda do senhor João
Era um lugar onde se podia comprar tudo
Vinhos e aguardentes… mercearias
Podiam-se comprar e até trocar
Livrinhos de cow-boys em segunda mão
Às vezes podíamos até – nem quero dizer – roubá-los
Porque estavam num recanto escuro atrás da porta
Para onde começava a contra-loja

547
E o senhor João era um homem bom e que sabia
Mas que provavelmente gostava de crianças
E aos preços que ele praticava
Os pequenos cadernos de desenhos que a gente roubava
Não lhe davam em verdade um grande prejuízo.

Atrás do balcão no escaparate


Pendurado num prego
Espetado à face de uma prateleira
Estava desde que me lembro o cornetim
Um cornetim antigo de latão
Com toda a cor e a patine de uma provecta idade
Não tão antigo que não fizesse os seus cem anos já na minha mão.

Um dia quando saía da explicação


Entrei como era de costume na venda do senhor João
E perguntei-lhe «quanto custa essa corneta senhor João?»
«Duzentos escudos» eu fiquei surpreendido
Duzentos escudos mesmo para uma criança
Um pré-adolescente que eu seria nessa altura
Não era já muito dinheiro
E aí depois de um tempo fui comprá-lo
E ficou por muito tempo em minha casa
Antes que decidisse que mais do que a beleza
Do tom do metal e da patine
Mais do que os botões perdidos dos pistons
Mais do que a data decifrada a custo numa marca
Que identificava o Conservatório de Paris
Aquele curioso e retorcidíssimo objecto
Falava
E laboriosamente poderia ser tocado
E então um dia
Comecei a tentar produzir nele
As notas simples de uma música que eu conhecia do Armstrong
How ain’t the saints
E resultou.

Toquei-o muito mais tarde


E com o Zé
Fizemos concertos longos
E curtos
De indefinível free jazz
E até gravámos
Uma noite com o Victor
Uma cassete
Com música improvisada
A que chamámos
Ópera tribal algarvia
E onde soava
Num registo cavo e fundo

548
O aiatolah Khomeini
Na voz do Zé
E o cornetim estava lá
Entre outras coisas
Como o meu trompete em dó
Um piano belga antigo
Armado sobre madeira
Flautas diversas de pan
Ou de buracos
Feitas da mesma madeira
Tudo o que estivesse à mão
Até o meu violão
E tamborins.

Se houve coisas que eu sempre senti


Uma vontade insaciável de ter
Foi livros e instrumentos de música
Porque será?
Perguntaria irónico o boneco sorridente
Dentro da minha boca
Trocando pelo sarcasmo
A tristeza da visão da procissão inexorável das coisas
Para trás
Para antes
Para já não existirem mais
Ou estarem perto
E da noção
Das verdadeiras razões por que se vão.

Automóveis
Utensílios
Objectos menos nobres
Ou inúteis
Toda uma procissão interminável
De que alguma vez sentimos o poder de ter
E eu senti
A presença inadiável dessas coisas
Presença intensa que eu pude sentir
Como sinto às vezes a dor de não as ter
E a fatalidade de as haver perdido.

Voltemos então aos livros – possui muitos


Em separado pelo menos quatro bibliotecas
Uma após outra construídas
Coleccionadas
Constituídas e depois vendidas
Ou desbaratadas.

549
A primeira foi como já vimos
Uma de livros marxistas e revolucionários
Todos os itens aparentados
Tudo o que fosse mesmo que vagamente aparentado
Psicanalistas de esquerda
Erich Fromm Herbert Marcuse
Tinha de tudo
Até o mini-manual do Marighela
E o Estaline e o Enver Hocha
O Ho chi-minh
Gostava particularmente de um livrinho
Com pensamentos e aforismos do Ho chi-minh
E do da defesa advogada pelo Fidel Castro
Em uma circunstância em que foi preso
Se bem me lembro
Pelo assalto ao quartel Moncada
Como o diário do Che Guevara na Bolívia
Todas essas coisas me impressionavam muito
Os outros eram chatos
Muito massudos para a minha idade
Mas como eu era um rapazinho triste
E muito precoce
Levava com aquilo tudo
Ainda que muita coisa nem chegasse mesmo a compreender
E compreendia isso
Gostava mais de coisas simples
Como o Estaline
Que não era propriamente um intelectual
Ou do Lenine o «O estado e a revolução»
Algumas coisas do Engels
Mas do Marx ficava longe
Geralmente nunca lia o livro até ao fim.

Começámos a juntá-la eu e o Godinho


Um condiscípulo
Que fez até um pequeno carimbo de cortiça
Para que os livros fossem marcados como inviolável
Propriedade colectiva
Depois convidámos o Cabrita e o Socorro
E alguns mais
P’ra fazer parte
Todos os dias nos juntávamos numa cervejaria da cidade
Conspirávamos e partíamos
Como um comando rapace
Pelas livrarias da cidade
Com a intenção específica e determinada
De ampliar o património da biblioteca
Uma verdadeira biblioteca revolucionária
E os livros giravam de mão em mão
Até que terminado o Liceu

550
E indo cada um para seu lado
Eu acabei me vendo já nem sei bem como
Zeloso guardador daquele tesouro efervescente
Levei-o para Lisboa
Juntamente com um monte de papéis
Desde simples comunicados impressos
Em rudimentares impressoras manuais
A que chamávamos «vietnamitas»
Até livros inteiros copiados à mão
Por serem de difícil acesso
Havia de tudo
Propaganda de uma organização sediada em um país distante
Mas afinal até bem próximo
Que uns amigos haviam deixado em meu poder
Antes de terem roubado um avião
E partido para esse país distante e próximo
Deixando para trás
O rasto de uma actividade.

Tudo eu guardei religiosamente


Embora à época pensasse que o melhor
Era não ter religião
E como é próprio dos religiosos
Mantive perto
E mesmo quando abandonei a cidade
Onde tinha lutado e presenciado em primeiríssima mão
Uma revolução
E me afastei
Esgotado e tuberculoso
O peso que inumanamente carreguei para o comboio
Era ainda o desses livros cujo número
Depois desses anos de martírio tinha sido
Já consideravelmente aumentado
Tinha então já as obras completas de quase toda a gente
Em edições de luxo de Moscovo ou de Pequim
Até do Kim Il Sung
Mas esse nunca li
Ou raramente
Uma inteira biblioteca de livros marxistas
Que carreguei copiosamente e guardei numa cave durante anos
Antes de por definitivamente eu afastado e ela obsoleta
A ter vendido inteirinha como estava ao senhor Simões
O alfarrabista Simões.

Às vezes volto a ver num filme antigo


O saco da garota do Wim Wenders
Eu gostava mais talvez até
Que em outro filme ela pudesse ser
A garota do Fassbinder
Novo cinema alemão

551
Coisas passadas e estéreis
Mas vejo o saco
E percebo que tive um igual àquele
Não de couro
Ou cor de couro
Mas branco
Sempre branco e que parecia ser inerte à chuva…
E à sujidade
Acho que o tinha herdado da Dadinha
Minha primeira ama
E que foi um dos que serviu agora lembro
P’ra resgatar como um tesouro
A minha biblioteca de livros comunistas
Pesados sacos
Esse e outros
Pesados livros uns dos quais eu nunca li.

Do saco já não sei o que foi feito


Do filme sei que acaba num hotel
Em rock ‘n roll
E que café se diz café em alemão
Nada restou
Como se viu
Do conteúdo e do saco.

Já tinha nessa época começado a constituir uma segunda


Que a contra-loja da loja do senhor Simões
Um alfarrabista lá da minha terra
Frequentemente abastecia
Agora os volumes principais eram sobre música
E aí havia também
Algumas preciosidades
Como o Oxford companion of music
E por essa altura era já visível
A olho nu
Que iria ter sempre uma maior capacidade de coleccionar livros
Do que a verdadeira intenção de os ler
Alguns eram livros de consulta
Outros versavam assuntos tão complicados
Música atonal
The Craft of composition
Muitos em inglês ou em francês
Só não tinha livros em alemão porque não sabia alemão
E ainda bem
E mesmo assim ainda me dei ao trabalho de mandar traduzir
Aproveitando um pequeno período em que dei aulas de português para estrangeiros
E determinando-o como trabalho prático a uma aluna
O encarte de um disco de vinil
Com músicas do Bach
Foi a curiosidade de saber o que lá estava

552
Que fez mais uma vez tornar da minha aluna
O trabalho que se suporia ter que ser eu a fazer
O de saber o que dizia ali…
Em alemão.

Era afinal uma vetusta prelecção


A respeito da escrita figural.

Também tive e já não tenho


Desses discos de vinil
E também já quase ninguém tem
A voz da Elis Regina
Que eu tinha numa cassete de fita
Gravada dos dois lados
Com um álbum duplo
Que passava sem cessar
De um lado e de outro da fita
Sempre ouvindo
E dessas canções tem uma
Que era a da casa no campo
Onde dizia ela
Guardaria seus livros seus discos
Sempre me lembro dessa canção
Quando penso nos meus discos
E nos meus livros
Discos também possui muitos
Não tantos como livros
Mas alguns
Uns tantos
Também esses em diferentes fases e contextos
Disseminados pelas veredas de uma atribulada biografia possidente.

Primeiro os do Zeca Afonso


E sucedâneos
Depois os do Charlie Parker os do Jazz
E os dos Blues
Até de óperas e missas eu tive discos
E de músicas esquisitas
Música russa flamenco
E tudo vendi ou dei
E nunca me arrependi.

Tive um livro do qual gostava muito


Gostava tanto que dele propalava
A mais desbragada propaganda

553
E um dia
Em meio a uma despedida dramática
Foi-me pedido que o desse
E eu dei
Assim como que em uma espécie de holocausto
Contra a propriedade dos livros.

Na verdade esses livros eram dois


Uma edição rara
Das obras do meu poeta preferido
Em verso
E em prosa
Esse que era da prosa eu já havia vendido
Numa situação e num momento
Em que a necessidade era maior
Do que o gosto de o ter
E como era o da prosa
Nem me custou vender
Não me custou assim tanto
Custou-me mais desfazer
Aquela bela paridade
Os dois livros quase iguais
Um em verso e outro em prosa
De capas duras
E por dentro de papel bíblia
Não interessa tanto quais
Interessa que possuímos
Coisas que amamos
E outras vezes amamos
As coisas que possuímos
Outras apenas amamos
E as coisas parecem menos
Importantes.

Amor e possuir coisas


São duas coisas contrárias
Parecem ser
Como uma respiração
Enchemos o peito de ar
Colecionamos e temos
Mas quando amamos sentimos
O irreprimível sentido
Da grandeza do infinito
E aí damos.

É verdade
E é certamente legítimo
Que eu confesse
E é sincero
Roubei também dois quissanjes

554
Um mais escurinho que o outro
Na madeira
Com um ainda toquei alguma coisa
Esse de madeira mais escura
Não eram como as kalimbas que agora se fabricam
Com caixa de ressonância
E até eléctrico um furinho
P’ra se ligar numa caixa
De som
Eram só a tábua rasa
Os chocalhinhos
E as varas que vibravam
Sedutora e africanamente
Estavam numa sala que existia no liceu
Ao lado do pequeno anfiteatro
Onde se passava o episódio regular do canto coral
Canções fascistas e a sala
Sempre fechada
Dava por ser dita e inscrito sobre a porta
Sempre fechada
A sala de Angola
Testemunho educativo de uma época ainda colonial
Era um quadrado escuro
Cheio de ídolos e máscaras
Estatuetas
E instrumentos de música
E eu entrava lá
Por curiosidade e aventura
Até que um dia
Resolvi trazer alguma coisa
E trouxe
Os dois quissanges e um pequeno batuque.

Lembro-me bem
Que por essa mesma altura
Possui também duas melódicas
E duas flautas de bisel de muito boa qualidade
Moeck
Uma marca que então eu nem sabia
O tão muito boa que era
Todas elas me foram oferecidas
Por um amigo na cidade conhecido como bruxo
E com quem eu conversava muito
E das quais sabia exatamente a proveniência
Eram de alguma forma instrumentos escolares
Também roubados
Mas esses felizmente não por mim

555
As primeiras eu desmontei numa das minhas primeiras tentativas
De inventar coisas já inventadas
E das segundas nem sei mais
Deixaram de ocupar-me a paciência.

Antes dessas tive com certeza uma outra


Que levei para Lisboa
Com a minha viòlinha
Costumava tocá-la no quintal
Enquanto o arroz do meu almoço
Uma frugal refeição de maoista em reeducação
Demorava p’ra cozer
Essa então perdi-lhe o rasto e nem sei como
Mas sei que a tinha raspado
Talvez porque privada do verniz
Me parecesse ser mais proletária.

Roubei muitos livros


Em livrarias
Em bibliotecas
Cheguei a roubá-los organizadamente
Com amigos
Especialmente recrutados para essa finalidade
E juntá-los
Para serem juntos
Uma biblioteca clandestina
E aí depois
Quando a estrutura organizativa se desfez
Roubei-os à própria biblioteca
Para que ficassem sendo meus
E os transportei arrumei carreguei e servi
Até que os vendi
Por as ideias que defendiam e almejavam divulgar
Terem passado de moda.

Vem-me às vezes à memória


Uma candidíssima saudade
Uma nostalgia indescritível e bela
Um sentimento
Por essas coisas que eu um dia possuí
E que não mais possuo
Ou porque as vendi
Ou porque muito simplesmente
Desapareceram de casa.

Vem-me essa memória acompanhada


De laivos de uma culpa já esquecida
Uma culpa ideológica e sofrida
De se possuírem as coisas
E de ao se possuírem

556
Não se saber de todo e com exactidão
Se somos nós que as possuímos
Ou se incautos
Embora amadas e queridas
Com uma volúpia quase sexual
Serão afinal elas
Quem na sua imaculada solidão erotizada
Nos possuem.

Tenho pena de tê-las possuído


E já não ter
Delas a visão ou mesmo o uso
Nem dos sentidos
As mais subtis lembranças dos afagos.

Recordo às vezes desse livro que já tive


Fiel ao tacto
O toque ao couro que lhe cobria a capa
Do interior a prensa e o papel
E o ser um livro muito antigo
De cantochão
Cheio de responsórios e antífonas
E todo um cheiro a padres
Um livro muito antigo que eu perdi
Porque o vendi
Num momento de falta e precisão
Recordo as obras os trabalhos do Walt Whitman
Que já possui por duas vezes
Ambas em inglês como convém
Se se quer ler e entender o que se diz
Quando o que é dito
São as palavras sempre vivas de um poeta
Intraduzíveis
Vivendo em singulares respirações
Nuances ludicismos peculiaridades
Do som e do que cantam numa língua as suas sílabas
Sonoridades
De uma vertigem musical ideográfica
Que encobre o canto do que cantam os poetas
E sendo um
Logo ser um daquele inigualável tamanho
Desses um dei outro vendi
Dei-o ao meu amigo e confrade Pedro Afonso
Leaves of grass em uma pequena mas lindíssima encadernação
Em tons de verde como convém a um livro com um título desses
E pelo menos de um então
Me resta da ternura e da eloquência
Que sempre me enverniza os grandes gestos
Uma breve porém consoladora
Terna recordação

557
Do outro fiz até uma pequena tradução
Coisa deveras inútil e difícil
Canção do meu próprio eu
Eu mesmo
A bonita e empolgante Song of myself
Que nunca cheguei a terminar
Tinha-o comprado na livraria inglesa
Em França
Uma edição simplória
Livros de bolso muito compactados
Como os ingleses fazem
Para fingir que aprenderam alguma coisa com os americanos
E um título insípido mas peremptório
Works
Que mais tarde adoptei para mim mesmo.

Às vezes a saudade é tão profunda


O quanto pode ser uma saudade
Que mesmo inútil a posse viril dos objectos
Já tenho recomprado os que perdi
Mas não os mesmos
Outros iguais ou parecidos.

De muitos objectos possuídos


A duras penas conseguidos
Fica p’ra sempre o licor de uma imprecisão
Imprecisa porque já não estão
Imprecisão porque não são precisos.

De livros já falei mas de instrumentos


De música peso então
Do peso de os ter tido a dimensão
E tantas vezes
Colecionei eu já listas enormes
De cordofones e de sopros
De brinquedos
De instrumentos exóticos
De artefactos
De líricas viagens percussão.

Possuí de tais objectos o corpo


Porque me pareceu de utilidade
O que seria para mim ter deles usufruto
E com prazer
Retirar lindas melodias
Harmonias ritmos assaz composições
Desses tão belos
Tantos e tão mui compenetrantes utensílios
Doce música.

558
Um dia regressado
Ao caldo eterno da doce cidade original
E passeando
Pisando entrechos das suas pedras mais antigas
Descobri uma pequena loja
Dessas que se chamam antiquários
Frequentei bastante
Essa em particular e uma outra
Essas e outras que depois.

Mas dessa primeira a mais antiga


Lembro-me que lá vi
E adorei e comprei um passarinho
Mas também
Como que como asas coadjuvantes
Dois instrumentos antigos um saltério
E um violino
Desses que não tendo o benefício de um construtor reconhecido
São sempre Stradivarius
Um velho violino com dois arcos muito bons
Que me serviu como pretexto
Para adentrar os patamares e os corredores
As aulas e o ar
De um singular conservatório.

Não aprendi o violino


Nem a tocar nem a ter por ele a devoção
Essa que deve ter pelo instrumento o instrumentista
Cedo comecei a traí-lo
Com um trompete em Dó
Que me tinha vendido um professor cego
Que me havia sido aconselhado
E que efectivamente me ensinou
Guardei o violino
Mas o professor ficou-me com os arcos
E eu deixei crescer em mim o adultério
Do jazz
Essa música de bandidos
Como se o violino fosse a esposa de um casamento espúrio
E o trompete a amante com que a vertigem ameaça a placidez
E todavia
O professor de violino é que me roubou
Os arcos
E da outra
A música que achavam ser deliquescência de putas e bandidos
Tão sedutora
Que ainda hoje a ando a aprender.

559
Queria aprender tudo
Na busca de uma voz
Que fosse mais afirmativa que a voz roufenha
Das minhas viòlinhas
Caixas amenas com que eu sem esforço
Acompanhava hinos e baladas
Mas para o jazz
Fazia-se imperiosa outra necessidade
A de uma voz potente
E que atraísse com charme e atitude
A graça que o discurso
Forte já era o clamor dos clarins e eu havia já
Experimentado o brado das cornetas
Mas foi crescendo em mim algo como um desejo
Como uma sedução ou um fascínio
De me ver a tocar um saxofone
E quando uma pessoa se imagina
E quer ver-se a tocar um saxofone
Não pode simplesmente pedir um emprestado
Porque é um objeto onde se põe a boca
E onde na boquilha se acumulam pequenos e malcheirosos
Depósitos de cuspe evaporado
Então se uma pessoa pretende realmente tocar saxofone
A via mais viável e com certeza a indicada
Será a de comprar o saxofone.

Comprei um que o meu pai deu-me o dinheiro


Que eu fui buscar depois de ter-me aconselhado com amigos
Entendidos e já iniciados
Na arte de tocar o saxofone
Podia ter comprado o Yanagisawa
Havia uma oferta quase inesgotável
O Alto da Yamaha tinha até uma boa reputação
E afinal eu estava começando
Mas do que eu gostava mesmo era do Buffet Crampon
Parecia feito em ouro
Todo brilhante mas com um brilho mais profundo
Que o fazia parecer de cor de fogo
Não se pode amar demais um objecto
Porque o tempo
Acontece mostrar-nos quanto é simples
E tanto ou mais do quanto é certo
Que a vida dá muitas voltas
E eu queria muito possuir o meu saxofone
Comprei o Yamaha
Com aquele dinheiro que o meu pai me deu
Por prémio de eu ter concluído
Um curso honesto e responsável
De professor.

560
Fiquei então professor
E agora com dinheiro
Dinheiro que mensal e responsavelmente faziam cair na minha conta
Em recompensa de eu ficar lá e ir ensinando as crianças
Pude comprar mais coisas
E foi assim que já decerto consciente
Dos malefícios da posse
As fui comprando
Sem remorso
E até por vezes com paixão.

Desta maneira
E de tantos instrumentos possuir
Foi-se na mente das pessoas construindo
A ideia não sei se errónea se dúbia
De que eu
Embora fosse professor
Seria músico
Devo dizer que eu mesmo
Terei contribuído bastante
Para que esse indecifrável fenómeno
Se fosse assim sedimentando nos espíritos
A tal ponto
Que em algum momento eu próprio
Estabeleci que passaria a acreditar nisso.

Mas vale pena dizer que uma paixão


É uma vibração do coração
Que de uma maneira ou de outra
Sempre traz consequências
E fosse por ironia
Fosse por magia ou por acaso
Que para o caso é a mesma coisa
De forma retorcida e censurável
Me veio a cair nas mãos aquele saxofone que eu gostava
O da Buffet Crampon
Que parecia feito de ouro
E tinha sido
Durante anos
Soprado pelo Tino
No casino
Um homem bom que além de acordeonista
Saxofonista
Louro e vadio
Era também contrabandista
De coisas que compradas
Pelos canais normais
Seriam muito caras

561
E os músicos são pobres
E precisam absolutamente dos instrumentos
Posso dizê-lo hoje sem o constrangimento de uma delação
Porque o meu bom amigo Tino já morreu.

Foi uma história arrevesada


A que me fez por algum tempo detentor
Da guarda desse já algo escafiado
Mas indelevelmente belo pedaço de metal
Metal sonoro e quente
Que tocado me fazia quase acreditar
Ser a projecção do Charlie Parker.

Veio-me parar às mãos por uma troca


Com umas congas cubanas
Elas mesmas me tendo sido depositadas em casa
Em resultado de um confuso acerto de contas
Devido à transação de uns consumíveis
Dos quais nem vale aqui a pena falar
Coisa havida entre uns amigos próximos
De quem eu em certa época andava muito próximo.

Até que essas congas ficavam bem na minha sala


Embora eu não tivesse propensão para tocá-las
Eram mais os meus amigos africanos que lá iam
E um outro
Um amigo baterista
Que em certo momento ficou sem bateria
E que por necessidade ou intuição
Me propôs que trocássemos
As congas pelo saxofone
O tal
O do Tino
Que gasto e amputado
Da chave do Dó sustenido
O Tino havia vendido
A esse meu amigo baterista.

Foi então dessa maneira espúria


Que esse saxofone
O que eu gostava
O que parecia feito de ouro
O que soava quente o charme da sua marca
A melhor da tradição dos clarinetes
Me fosse dado a possuir por algum tempo.

Afinal não é sem ironia a forma deletéria


Como acabou por mansamente regressar
À posse do seu dono original
Das mãos de quem provavelmente jamais deveria ter saído

562
Passado um tempo
Um poderoso traficante estando preso
Me mandou a casa a mulher para que reclamasse
Das congas o dinheiro do qual eram penhor
Não havendo já nem congas nem dinheiro
Lá tive que vender o saxofone
Para manter a paz com os insanos.

Mas isso foi mais tarde


Porque primeiro
Fui ser professor
Para uma terra nas montanhas
Na base das montanhas
Junto de um rio
Levei os meus pertences
O saxofone que ganhei por ser professor
Uma pequena viòlinha já velhinha de três quartos
Que me deram e que depois ardeu
Quando eu a emprestei a um amigo desvalido
E um livro
Desses que possuem
Impressas nas páginas
Mensagens muito especiais e importantes
Um livro raro
Que havia encontrado numa livraria antiga
E de maneira muito extraordinária
Em que eu passando
Ao ladear a porta vi brilhando
Alguma coisa que estava em exposição
Aí entrei
E era o livro
Esse livro que eu procurava já fazia tempo
E que depois
Li com a maior e melhor intencionada curiosidade do mundo
Levei essas coisas para lá
E fui começar a fingir que trabalhava
E então nas horas em que não estava fingindo trabalhar
Tocava saxofone
Às vezes a viola para ter uma noção da harmonia
De noite lia o livro
E nos momentos intensos que sobravam
Contava a história.

Livros raros violas saxofones


Coisas que se possuem ou se inventam
Que laboriosamente se constroem
Para depois irem na fímbria do tempo.

563
É como um saxofone
Inspiramos mas é só
Quando sopramos o vento que o faz tocar
Que soa a música.

Saxofones certamente possuí alguns


E deles tive o prazer
De os possuir e tocar
Mesmo porque
Um saxofone é um objecto caro e sofisticado
Feito de uma liga
Metálica
Onde às vezes se dizia haver até
Ouro
E disso ter importância no som
Enfim
Tive vários que comprei troquei barganhei
E por fim
Vendi
Fiquei apenas com o único que não era meu
E que por alguma estranha ironia das possidências
Continua dormindo no seu estojo
Em minha casa
Ou no que resta
De haver uma recordação do que pudesse
Ter sido a minha casa…
Estou distante
E agora a minha casa é em nenhum lugar
Ou em todos
Mas acima de qualquer que seja alguma outra coisa
Não é minha.

Saxofones então como eu disse tive muitos


Não tantos assim
Que desse para se fazer uma orquestra só de saxofones
Pensando bem tive apenas
Três altos e um soprano
Não contando com aquele que falei que não é meu.

O primeiro fui comprá-lo entusiasmadíssimo


Com um amigo que já tocava outro maior
O tenor
Fui comprá-lo a um senhor
Que tinha acabado de chegar da África do Sul
E tinha muitos instrumentos e livros sobre o jazz
Eu ia lá p’ra casa e ficava fascinado
Com as coisas que poderia aprender
Se tivesse aqueles livros
Jazz and the improvisided line
Ou algo assim parecido

564
Todos os da Berkeley
E muitos instrumentos brilhantes
Comprei um alto
Da Yamaha
Mas o que eu gostava mesmo era de um Buffet Crampon
Que parecia mesmo feito em ouro
Ou desses em que se podia acreditar
Que houvesse algum na liga
Mas esse era mais caro.

Veio a ser meu mais tarde por um tempo


Numa troca de contornos obscuros
Recortes de uma época sombria
Em que as coisas entravam e saiam
Da minha casa como chapa antiga
De moedas desvalorizadas e vazias
De qualquer significado arqueológico.

Não posso nem dizer que o tenha tocado muito


Foi mais uma mania
Uma obstinação
Tanto que desse
Que seria em teoria o que teria mais valor
Não tenho pena.

Tenho mais pena de umas congas


As que serviram de moeda
De troca estranha e injusta
Porque quem as levou precisava muito delas
E eu não queria dá-las assim sem ser por nada
Falha minha
Estranhos negócios dos quais eu era ausente
Que em geral como é normal nesse tipo de negócios
Terminaram mal
Afinal
Dessas congas lembro-me do prazer
De ver tocar nelas um negro meu amigo.

Nem das congas nem do saxofone ficaram grandes temas


Só azedume e tristes recordações
Menos a do João esse negro meu amigo
Do resto o fio levou
Do tempo envolto em bruma
Ficou o nome também
E de prestígio
Buffet Crampon
Tanto que uns anos mais tarde eu tive um
Novinho em folha
Que num gesto de amor me ofereceu minha mulher.

565
De outras coisas que um dia possui
Tenho saudades e são sinceras
Mesmo daquelas das quais já nem me lembro
Ou de que não me lembro o que lhes aconteceu
Sinto saudades
Dos quadros que eu pintei e que vendi
Dos que não vendi e já não sei onde é que estão
Das tintas e dos pincéis
Do cheiro
Tenho saudades das noites
Que eu virava pintando e que depois
Ao ver o quadro de manhã
Me parecia demasiado amarelo
Mas eu compunha
Durante o dia
E de noite
Virava de novo a madrugada pintando
Às vezes desesperadamente
Para poder entregar no outro dia
E aí já dava nos olhos um desconto
Ao amarelo.

Possui coisas úteis e inúteis


Sem distinguir entre elas grande coisa
Nem sentir ou assinar grande diferença
Umas botas que o meu pai tinha mandado fazer por medida
E como os meus pés eram iguais aos dele
Apropriei-me delas quando fugi de casa
Eram-me extremamente confortáveis
Um dia saí com elas
Em plena revolução
Para assistir e ir atrás
De uma grande manifestação de operários da Lisnave
Uns grandes estaleiros de construção naval que havia nesse tempo
Em que ainda existiam operários
Que coisa impressionante
Oito mil almas
E corpos fortes todos vestidos de igual
Galgando o chão das ruas como se fosse um tsunami
A passar
Andando e gritando como se fossem um só
E já não contentes de passar em andamento começaram a correr
Todos à uma e ritmadamente
No que nos pareceu ser uma tremenda afirmação de poder
E nós os que íamos atrás
Tivemos que correr também
E eu tinha calçadas aquelas botas
Umas botas lindas
Da tropa mas elegantes

566
Perfeitas
Que se adaptavam aos meus pés como uma luva
Só que naquela manhã
(Naquele tempo eu acordava cedo)
Eu me tinha esquecido de calçar as meias
E à noite
Depois de chegar a casa e já me ter passado
Todo o entusiasmo revolucionário
Verifiquei que tinha ficado com os pés cheios de bolhas
E doendo
Da utilidade dessas botas nunca sequer me ocorreu duvidar
Mesmo considerando os flagelos desse dia
Do gosto de as ter ainda menos
Posso dizer que gostava e que gostei muito e muito delas
Mas perdia-as
Nem consigo lembrar-me onde ficaram.

Perdi coisas
Que tive e que deixei de ter
Perdi a minha tuberculose
Que ao contrário das botas transportei
Junto com os livros
Quando voltei ao meu torrão natal
Depois da revolução
Com que a história me brindou num raro privilégio
A mim e a outros da minha geração
Mas que também ao atascarmo-nos nela trouxe junto
A proverbial moléstia que em geral
Em abono da verdade nessa altura já bem menos
Dizimava os pobres os poetas e os comunistas
Foi assim
Passados alguns meses sobre o benigno regresso
Aos primeiros sinais de sul e de calor
A terrível presença do bacilo foi detectada
E logo prontamente combatida
Com os meios disponíveis ao competente e ágil
Sistema de combate àquela devastadora ameaça
Que ainda poucos anos antes grassava predadora entre os gentios
Agora já nem tanto
Mas só de ouvir-lhe o nome a pessoa se enojava
E aos amigos e próximos assustava
E eu
Mesmo que não a sentisse ela lá estava
Eu via-a
Como uma medalha instituída no meu peito
Mas por dentro
Anos depois fui informado
Por um atento e competente servidor que a dita tinha lá deixado
A cicatriz
Coisa que eu nem então nem antes suporia que existisse

567
E que a partir daí fiquei sabendo que existia
Mas em verdade só restou a cicatriz
Depois de um mês e meio de tratamentos
A que eu faltava mais do aconselhariam os cuidados médicos
E algumas vezes tenha tido que ser repreendido
Pelo meu bom doutor
Constatou-se que eu estava «negativo»
Só por si era uma coisa natural
Eu realmente nessa altura
E nessa altura até mais do que nunca
Era em geral bastante negativo
Mas todavia
Quando encarado do ponto vista da química médica
Era uma ocorrência assaz surpreendente e incomum
Mandaram-se chamar os outros médicos
Para verem a cura tão precoce e improvável
E nos baixos fundos da cidade atribuiu-se a cura
A umas ervas que eu e os meus amigos fumávamos
Foi assim
Perdi a minha tuberculose
E dela só recuperei a cicatriz anos mais tarde.

Sinto saudades também


De outras coisas que já tive
Mas lembro-me mais vezes de umas que de outras
Coisas materiais e imateriais
Umas visíveis e outras invisíveis
Sinto de ritmos
Sinto de sonhos
Sinto até saudade de ter fome
E de comer
Ou de fumar até ao fim
O conteúdo de uma caixa de cortiça
Tradicional e muito adaptada
Para guardar algo que não queremos que evapore
O conteúdo
Uma erva angolana muito aromática
Eu evaporei tudo convertido em pequenos cigarrinhos
E a caixa
Depois de vazia guardei
Até que sem eu saber como
Desapareceu
Quase como se tivesse morrido
Mas eu lembro-me dela e do seu toque
Macio e seco
Como se existisse fora da temperatura
É próprio da cortiça
E por isso ela é tão apreciada
Mas é por mais do que isso que eu sinto saudades dela
Era também porque parecia uma ampliação de uma outra

568
Igual mas mais pequena
Com uma representação em latão do templo de Diana
Que provavelmente a minha mãe terá trazido de Évora
Como recordação
Existiam as duas lá em casa
A casa dos meus pais
E da casa
Também frequentemente me lembro
E tenho saudades dela.

Às vezes lembro-me até


Das coisas que nunca cheguei a ter
E tenho também saudades
De não as ter tido
E nunca tive
Ou da vontade que tinha de poder tê-las
Como uma bola de cauchu
Verdadeira
Como as com que jogavam os jogadores profissionais
Pesadíssima
Com a qual eu até teria uma eventualmente grande dificuldade em jogar
Mas eu queria
Não por ser pesada
Mas por ser verdadeira
Eu gostava de carrinhos e tive alguns
Da Corgy Toys
Já os da Matchbox
Que também tive
Irritavam-me um bocado
Por serem mais pequenos
E por alguma qualquer idiossincrasia
Isso me ser insuportável
Eram de uma escala diferente
E mais pequenos
De qualquer modo eu gostava mesmo era dos da Corgy Toys
Tive alguns
Como um mercedes vermelho
Daqueles quase redondos
180
Tive um Mini azulzinho
Cor de céu
E um Rover que me ofereceu um amigo
E do qual acabei tirando a tinta
Ficou um monobloco de metal
Mas tinha molas nas rodas
Depois foi comboios eléctricos
Que talvez por nostalgia
De em criança nunca os ter tido
Por serem muito caros
Brinquedos de menino rico

569
Comecei a coleccionar mais tarde
Como forma de lucrar com um modesto tráfico de antiguidades
Muitas linhas e agulhas
Carruagens
De passageiros e de carga
De comboios inusitados
De França e até da China
E vários transformadores
Tive também outras coisas
Milhares de quinquilharias
Que contá-las em minúcias
Ou mesmo só pelos números
Demoraria incontáveis e absurdos
Serviços de eternidade.

Brinquedos imitações coisas reais


Mas de responsabilidade limitada
Antes das obras duras e quantas vezes cruéis
Das idades mais adultas
Uma vez quis comprar um piano
Um de verdade
E comprei
Enfim… o meu pai comprou
Até barato
Um piano de madeira
Verdadeiro mas de madeira
Todo de madeira
Menos as cordas e as cravelhas
Era um piano de origem
Acho que belga
Onde eu me empanturrei de delirar
Mas em que o item afinação
Não estava de todo em todo garantido
Desse não tenho saudades
Acabei por oferecê-lo
A sonhadores delirantes.

Mais tarde
Quando o meu pai morreu
E eu adquiri poder de compra
Comprei um melhor
Armado em ferro
Onde toquei e aprendi
Até os ratos lhe comerem os couros do mecanismo
Era um piano bom
De japonês
Mas que troquei por outro
Ainda cedo.

570
Dessas coisas todas
Que um dia possui
Tenho uma recordação
Que não é a mágoa de não mais as possuir
Nem é decerto a saudade de as ter possuído
É um enlevo delas me terem sido queridas.

A minha bela viola


A melhor que jamais tive
Comprei-a a um brasileiro
Bom amigo e guitarrista
Quando estava precisando
Mas tinha a sina marcada
Guitarra de artesania
Do construtor Caballero
Foi a Paris e voltou
Sempre tocada por mim
Com muito esmero
Fiz nela lindas canções
Mas como disse
Já tinha a sina marcada
De ser vendida em horas
De pura necessidade
E um dia fui vendê-la
Ao meu rico amigo Ervilha
Traficante de instrumentos
E o dinheiro
Foi dado a outros comércios
Sem muita pena.

Já de início eu tive para a comprar


De vir a transacionar
Uns aparelhos de som
Muito potentes
Que já nem sei como me tinham vindo
Parar às mãos
Andava longe de casa
E as coisas que eu tinha
Mesmo quando eu as usava
Era que nem fossem minhas
O que sentia
E então lá foi a aparelhagenzinha
Technics
Muito boa
P’ra comprar a viòlinha
E depois a viòlinha
Não sei se p’ra comprar algo
Ou se apenas porque precisava do dinheiro.

571
Imagina só se me desse p’ra falar
Das resmas de dinheiro que já me usaram as mãos…

Tive dinheiro que gastei


Em coisas que me apraziam
Que depois vendi ou dei
Ou troquei
Ou sei lá bem
Desapareceram da vista
E como se diz
E não se pode negar
A verdade é amiúde
Longe da vista
Longe do coração.

Tive outras coisas


Várias guitarras elétricas
Aparelhos
Sedução
Tudo me marcou um dia
Tudo me deixou crismado
Por nunca ter apagado
As marcas da possessão
É por isso que hoje penso
Recordo as coisas que tive
E ainda em mim sobrevive
Terem-me elas possuído.

As imagens que eu vi
Essas ainda as possuo
Mesmo aquelas que esqueci
Ficam guardadas em mim
Sempre me acompanharão
E os pensamentos que tive
E todos os sentimentos
Que alguma vez alberguei
No coração
Para sempre ficarão.

O CHAPÉU

Um homem deve ter sempre um chapéu


Deve ter sempre um chapéu
Como se quisesse guardar os pensamentos dentro do chapéu
Uma vez a minha filha deu-me de presente um chapéu
Pelo meu aniversário
Mas eu
Depois de usá-lo e tê-lo
Chei’zinho de pensamentos
Perdi-o

572
Na cadeira de um café
Onde o havia pousado
Para comer
Porque nunca se come de chapéu
E em ambientes fechados
Deve tirar-se o chapéu
E esse chapéu
Que era tão nobre e tão bonito
Feltro macio e castanho
Que me ficava tão bem
Ficou lá e se perdeu
Esqueci
Esqueci naquele momento
Mas não esqueci o chapéu
Nem alguns dos pensamentos
Que ele generosamente
Conservava para mim
Pensamentos que eu só tinha
Quando dentro do chapéu
Os ventos da caixa córnea
Ferviam de petulância pensante.

É um artefacto simbólico e ritualístico


Cuj’aparência simbólica
Transcende em muito a sua utilidade
Tem uma copa e uma aba
Ou como o fez
Sem aba
Desses tive um pequenino
Apenas decorativo
Mais tarde então um amigo
Ofereceu-me um verdadeiro
Que ainda tenho
E eu muito lho invejava e queria ter
Um daqueles
Menos alto que dos sufis
Dervixes
E que são mais democráticos
E qualquer um pode ter
E usar
Guardou-me alguns pensamentos
Mas raros
Islamizados e lentos
Que me remetiam ao cinema ou ás medinas
Do oriente médio de ondem propagam delírios
Rotativos.

573
Cheguei mesmo a ter chapéus
De que nem soube a origem
Que me esqueci de quem mos deu
Ou se os comprei
Como um que tive e usei
De camponês
Sem a fita
Que me assentava bem
Na cabeça
E do qual eu gostava muito
Em serviço na cabeça
Ou pendurado no quarto
Na parede
Onde um prego sustentava
A velha cartucheira do meu pai
Toda de couro
E por cima como se fosse um comentário irónico
O chapéu
Que era cor de azeitona
Cor de azeite
Mas baço.

Nu com a minha música

Penso em ficar quieto um pouquinho lá no meio do som


Peço salamaleikum carinho bênção axé shalom
Passo devagarinho o caminho que vai de tom a tom
Posso ficar pensando no que é bom.

Vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor


Vertigem visionária que não carece de seguidor
Nu com a minha música e afora isso somente amor
Vislumbro certas coisas de onde estou.

Nu com meu violão, madrugada nesse quarto de hotel


Logo mais sai o ônibus pela estrada em baixo do céu
O estado de São Paulo é bonito penso em você e eu
Cheio dessa esperança que Deus deu.

Quando eu cantar pra turba de Araçatuba verei você


Já em Barretos eu só via os operários do ABC
Quando chegar em Americana não sei o que vai ser
Ás vezes é solitário viver.

Deixo fluir tranqüilo naquilo tudo que não tem fim


Eu que existindo tudo comigo, dependi só de mim
Vaca manaca nuvem saudade cana café capim
Coragem grande é poder dizer sim.

Caetano Veloso

574
Dedicado ao excelentíssimo senhor Caetano Veloso

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


É um hotel como aqueles que aparecem nos filmes do Wim Wenders
Ou nos do Fassbinder tanto faz
É sempre o mesmo hotel
Um edifício vetusto
Onde o quarto é pequeno não tem ar condicionado e a ventoinha não trabalha
Então eu fico nu
No meu quarto de hotel
O quarto não é meu
É do hotel
Mas estou cá eu e a Joaquina
E às vezes fico só
Quando a Joaquina vai para as aulas
Fico só eu e a televisão e esta caneta electrónica
Com que eu escrevo sem a roupa padrões significantes
Do que me parece bem e de registo
Fico nu
Só com as meias
Os pés descansados dos sapatos
Ficam felizes
Livres das minhas ideias
Que em mim às vezes se confundem com a roupa.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


E todos os dias me evado
P’ra outra realidade
Sempre me acaba fugindo
A boca para a verdade
Para um ritmo conhecido definido
De corridinho
Que eu confundo para tentar disfarçar
A paisagem que mudou
E se tornou luminosa
Imprecisa e graciosa onde a nudez
Não se destina a lutar contra o calor
Nem contra o peso da roupa
Ou sequer
Alguma arranhadura do toque
Aflorando a pele
Mas sim sentir
Dessa nudez o calor
Que se evapora
Neste meu parcimonioso e estreito quarto de hotel
Onde eu estou sempre nu
Ou quase nu.

575
Estou sempre nu no meu quarto de hotel
Ou quase sempre
As horas aqui passam mas não as do meu relógio interior
Só no de pulso que é de bolso
E fica esquecido na algibeira das calças
Que despi para deixar
A minha pele respirar a atmosfera semilivre deste quarto
Onde apesar de tudo existe uma nesga onde entra a luz
E o ar
É o que se chama tecnicamente um saguão
É aliás exatamente um saguão
Em toda a propriedade da palavra
Estreito e comprido
Na altura
A luz é pouca e o ar também
E no que resta dessa semiobscuridade
É que eu me decidi por ficar nu
E fiquei
Tirei tudo
Não deixei nada
Só as meias
Mas isso foi de tarde porque à noite
Tomei banho e fiquei nu
Integralmente.

Estou sempre nu neste meu quarto de hotel


Às vezes estou vestido
Mas é sempre por pouco tempo
Mesmo quando não é só o suficiente
Para que impacientemente tire a roupa e fique nu
Agora é mais difícil
Porque mudei de quarto
Para melhor
Este para onde agora me mudei
Tem uma grande janela
O que torna mais problemática a minha intenção de ficar nu
Porque aqui levam em elevadíssima consideração o crime de atentado ao pudor
Talvez porque a nudez seja institucional e histórica
Seja climática
Mas a janela compensa todo e qualquer constrangimento
É larga
Tem quatro portas e várias anteparas
E o topo é sobre o redondo como um arco romano
Abrindo ao quarto toda a largura de uma parede inteira
Deixando ver de dentro a rama de uma palmeira
Imperial
O quarto
Fica no último andar

576
Parece uma mansarda de artista
Ou o atelier de um pintor impressionista
Sem meios para alugar um armazém
Que oficiasse agora em um hotel
Onde fingisse ter-se esquecido de pagar a renda
O que em todo o caso não é o meu caso
Paguei logo à cabeça
Pagámos eu e a Joaquina
Pelo menos a luz já não me falta
E o modelo
E até ver
Estou sempre nu no meu quarto de hotel.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Posso até deixar as meias
Assim não ficarei pelado
Como aqui chamam à condição da nudez
Contudo nu
Posso até ir à janela conferir o bulício do exterior
Porque não se vê o que fica por detrás da balaustrada
Mas não interessa
O que interessa é a pessoa ficar à vontade
Principalmente quando faz calor
De manhã
Quando o sol bate na janela
E é bom abri-la ao sol que sobe
Sentir aquele bombardeamento das partículas de luz
Que aquece e pica na pele
Como só o sol do hemisfério sul
E a manhã iluminada vira uma coisa épica de facto
É um fato novo que veste a pessoa
Um terno de luz como esses que se usavam nas cidades pequenas
Ou nas aldeias lá do meu lugar
Para ir à missa
A pessoa acorda e já sente vontade de cruzar o dia
Mesmo que graças a normas e leis que não por frio
Ela tenha previamente que se vestir
Para não ficar nua
Como eu
Aqui pegando o sol perto do céu
Porque o meu quarto fica no último andar
E eu estou nu.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Mesmo quando não estou
Mesmo quando alguma roupa ainda cobre
As últimas vergonhas
Ou a falta de vontade de afrontar
Todos os mesmo que distantes pudores da turba
E muito principalmente é claro

577
A própria turba
A turba ela mesma
Que muitas vezes se concentra num olhar
Num só olhar de um único indivíduo
Mas isso até agora nunca aconteceu
Não que eu tivesse dado por isso
Então eu tiro aquela última peça de roupa que ainda tinha
E fico nu
Nu e com a janela aberta
Deixando entrar a luz
E a sombra
E o barulho imenso que corre lá em baixo
Onde se agita a turba
E se cozinham as vergonhas que as minhas últimas vergonhas
Pudessem eventualmente causar
E eu permaneço nu
Agarrado a esta forma de caneta
Que me serve para digitar letra após letra este poema já não nem limpo
Nem sujo nem a rosa
Nem do povo nem do rei nem das vergonhas
Que o vento e o tempo já levaram.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Procurando um dia diferente de todos os que estão no calendário
E que alguma coisa que não sei nem nunca soube o que é
Como se diz em boa poesia me anuncia
E nega
Não é que eu seja propriamente algum macaco
De imitação
Sou só um bicho nu e que se agrega
A uma árvore antiga e muito e já há tempo enraizada no nada que se agrega
Ao nada que se é e que está nu
O ser ou o não ser do que se é
Transforma-se em coisa bem pequena se se é
O que se é estando nu
E é por isso que eu gosto de estar assim como em um despojamento final
E ficar não só sem a roupa
Mas quase sem a pele
De alma à vista e desfraldada
Como uma bandeira
Não como a fralda da camisa que ela já não tem
Não tem mais
Como também se diz porque afinal
Em francês é tudo mais bonito
Até a alma
Que se desfralda na falda escorrida da montanha
E feito uma bandeira
Sai pela janela pelo ar e sendo leve
Voa inefável para lá de onde se sente a humidade fresca do ar
Dissolve-se no ar

578
Parece muito
Mas tudo isso acontece porque eu estou nu
E permaneço.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Permanecendo atento ao que não há
Ao que é maior do que o haver ou não haver alguma coisa
De qualquer modo
Como eu repito vezes sem conta a esta caneta inteligente
Para que ela nunca esqueça
Vamos guardar o que está que o resto logo se vê.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Às vezes penso que é o quarto de outro hotel
De outros hotéis onde já estive ou em que virei a estar
Vivendo onde canções são sempre claras e bem-vindas
E a vida é a vida e é apenas a vida
Aqui
Neste quarto de hotel
Onde a Joaquina também está sempre nua
Pelo menos quando volta da escola
Quando vai p’rà escola vai vestida
Mas assim que volta fica nua
Como eu
Ficamos nus de corpo e alma
E aí fechamos a janela
Porque lá fora está muito barulho.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


E não me canso de estar
Porque entre estar e ser existe uma finalidade
Que se traduz em uma afinidade
Sinto-a
Conheço essa estância que de se prolongar estando
Acaba sendo
O estar transforma-se no ser
Quando se está por muito tempo
Quando se fica
Como eu fico no meu quarto de hotel
E de tanto estar e assim continuar estando
Aspiro a ser
Ser nu como uma água corrente
Feita de som e frescor
De estalidos musicais
E transparência
É bem por isso afinal
Que em línguas menos especializadas
Ser e estar se falam com uma só palavra
E assim se escrevem
E dizem

579
Tudo o que se quer dizer
E ninguém duvida do que é dito
Ser e estar se confundem se interpretam
Se interpenetram
Em um só gesto de querer
E imaginar
Que se é o onde se está
E o como
E que já se está melhor
Eu por mim estou sempre nu.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Tenho uma mesa
Onde fico encriptando ideias e ausência
E nessa mesa
Onde um buraco rugoso me distrai
Um buraco negro
Um pouco à direita do meio
Na mesa
Onde eu talvez
Ainda quisesse pintar umas inquietações
Não porque esteja cansado de escrever
Ou porque sejam quietudes o que eu escrevo
Mas porque é fácil perceber o significado das palavras
Mesmo as confusas
E eu não estou cansado de as escrever
Mas estou cansado de elas terem significado
Às vezes não é o significado da palavra
Mas a palavra ela mesma
É mais fácil escrever coisas sem significado
Quando se desenha ou se pinta
As coisas não significam nada
Não querem significar nada
A não ser o verem-se e o serem vistas
Eu fico pensando nisso
Olho em volta e vejo as coisas
Que fazem parte
De uma mesma minha forma
De Monastério andante
Assim escrito em letra grande
P’ra muito significar
E de se ler
Lhe concorrer os passos caminhados
E andar
Como um comboio num túnel de papel
É fácil ver as coisas belas
Mas o que é fácil e belo
Tende sempre a ver-se repetido
E repetidas
As coisas fáceis tendem a tornar-se aborrecidas

580
Difícil é ver as coisas feias
E descortinar-lhes a beleza
Sentir a transcendência da feiura
Não tanto a transcendência ela mesma
Mas a das coisas feias serem feias
E existir nelas a feiura
E ao mesmo tempo a beleza de serem transcendentes
Difícil até talvez seja
Mas depois de praticada
Essa arte
A arte da transcendência da feiura
Torna-se repetitiva
E a beleza da feiura aborrecida
E então as coisas belas e as feias ficam iguais
Umas belas outras feias
Umas transcendentes
Outras menos
Como este hotel em que estou
Sempre nu
Vetusto antigo bicudo
Por fora é até bonito cor-de-rosa
Vira o bico para a praça da estação
É mais bonito porém por fora do que por dentro
Em dois versos alinhados
De sete sílabas puras
Como eu disse logo no primeiro dia em que aqui cheguei
Não é que por dentro seja feio
Tem aquela transcendência sim
Mas é por fora
A transcendência do tempo
Das coisas que parecem pertencer a outro tempo
E o estarem aqui ainda poder parecer ser um milagre
Faz dar-lhes uma aparência
Que diria como quem o ousaria dizer
Ser especial
Uma aparência toda especial
Como uma frase na qual me simpatizei um dia
E ainda me simpatizo
Quando nu
Quando mais nu
Que uma alma caminhando em direção ao além
Como ao neófito foi dito pessoanamente e que parece ser
Como viver eternamente
Em acto preparatório
Preparado p’ra partir
Como eu vivo aqui agora
Nu no meu quarto de hotel
Com o meu violão ainda encasquetado da viagem
Como diz outra canção
Dessas canções que na vida

581
Quando ouvidas
Jamais consentem
Serem passadas ao dom das coisas esquecidas
E me devassam
Perante as quais eu fico nu
E mesmo assim
Estando aqui
Não estou ainda bem nu
Porque acabei de chegar
À pressa para escrever
E versejar
No meu ponto de miragem
P’ra onde sempre regresso insaciado
De vertigem
De Contagem
Da Pampulha ou do acesso de coragem
Que tenho de decidir
Outra viagem
Como se a minha fome de ideais se alimentasse de cidades
E nas cidades os pontos cruciais
Se atravessassem nos meus
E os hotéis
Pendurassem nos anéis
O que resta dos meus dedos.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Aqui tenho um verdadeiro compromisso
Com a verdade
A querida e imaginada
E a outra quando é
A verdadeira
Porque nem sempre a verdade é verdadeira
Às vezes é paralela
Parece ser a verdade mas não é
Tenho esse compromisso
E tem alguma coisa na nudez que me consola
Que me faz acreditar no que vejo
Mesmo quando é grandioso
E quando não o é
Quando é e quando não é
Que tudo vai dar no mesmo
E o fosso asséptico que existe entre mim e a verdade
Diminui de tamanho quando a nudez me consagra
Então aí
Vejo as coisas mais como elas são
Tudo na primeira pessoa
Sem sair do meu foco
Nem alterar a iluminação
Tudo se encaixa
No ideal de luz e sombra da minha fotografia da existência.

582
Estou sempre nu no meu quarto de hotel
Fotografando o ar
Os momentos
E o trepidar dos acontecimentos
Todas as dimensões de tudo o que acontece
Vou-me despir
E o mundo despe-se comigo e vem dormir
E eu durmo também
Como que embalado naquela infantil suposição
De a noite ser quieta e o silêncio imperar na confusão
Lá fora a vida segue
Noite e dia encadeados na sucessão dos dias
Ainda há pouco fez uma semana que aqui estamos
Faz três dias
Eu e a Joaquina
E os dias não pararam de passar
Mas nós estamos em paz
E eu fico contente e nu
Nu e contente no meu quarto de hotel
Onde a Joaquina digita os seus trabalhos
E nós
Ficamos nus e contentes
Junto às nossas maquininhas
Que coisa maravilhosa
Poder desligar os fios
Poder calar os botões
E dar silêncio ao barulho que vem de fora
Damos instância ao acontecimento
E os momentos acontecem dentro de nós
Insaciáveis
Contínuos
Feitos de mudanças suaves
De delírios repentinos
No meu quarto de hotel acordo nu
Sinto que o quarto começa a clarear
Com a luz que entra pelas frinchas que resistem às empenas da janela
São muitas porque é uma janela grande
E quando o sol se levanta a oriente dos prédios
E porque os prédios são altos
Já aparece brilhando
Intensamente
Do lado esquerdo
Mais uma vez a janela do meu quarto está virada ao sul
E eu vejo o sol se levantar
Atrás de um horizonte já alto e recortado
Ainda assim belo
Como são todos os horizontes
E porque é o nome da cidade

583
E não seria
Nem lógico nem aceitável que não fosse
Belo o Horizonte
Que belo nome para se dar a uma cidade
Para uma cidade ter nome
Como as pessoas
Que de início são pequenas
E depois crescem
E ficam sempre sendo mais que as ruas
Mais que as casas e os eventos
A história e os arquivos
Os pergaminhos de orgulho e de sucesso
Aquele nome
Aquele indulto
Que viram do avesso e das entranhas
E prenham filhos que lhes saem dos recantos
Nem sempre belos
Nem sempre sãos
Nem sempre bons
Nem sempre então
São o santo e a senha das viagens
Os santuários
De uma peregrinação interminável
De uma demanda sem fim
De um lugar dentro.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


E o dia nasce para a vida recorrente
À distância de um dedo de poesia
Em jejum
Daqui a pouco já vou
Tomar café da manhã
Mas agora a minha fome
É outra fome
É uma ânsia
Vinda de uma outra fonte
Diferente da vontade de comer
Ess’outra forma de fome
Não se sacia
Nunca se pode dizer que esteja farta
Quer sempre mais
Quando a pessoa está nua
Quer arrancar-lhe a pele
E frequentemente lha arranca
Sem dor nem contemplações
Antes que seja meio-dia
Antes que o sol lhe adormeça
Nos cabelos
E chegue em dor esbatida o fim da tarde
Nesta cidade interior

584
Onde o sol já se empanturrou de bater

Fica talvez um meio frio
Para ficar nu e de janela aberta
Na meia-luz da interior escuridão semi-clara
De um dia que passou sem pensamentos
Nem estúpidos nem grandiosos
Apenas uma náusea febril
E lenta.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Excepto nos dias em que não estou
P’àí virado
Ou me esqueço da roupa no corpo
E ainda assim ela é incómoda
Como deveriam ser ao que me é dado supor
Aqueles trapos ásperos e alvos que os jesuítas obrigavam os índios a vestir
Como deveriam ser irritantes para a pele
E para a alma
Essas almas naturais ainda puras
Que ficaram como o meu quarto de hotel
Lentamente escurecendo com a janela aberta
Uma janela inócua por onde já não entra o sol
Nem não
Mesmo no silêncio da escuridão
Ou da penumbra
Com ou sem roupa eu prefiro então escurecer nu
E para isso tendo
Todos os dias mais um pouco
Onde possa retratar o que me diz
O que dizem as palavras numa voz
E essa voz
Ainda vindo de um lugar profundo de onde ecoa
Lá do fundo
Lá do interior do mato
Na mata
Lá onde habitam as formigas
E onde nunca é questão de se ficar nu ou vestido
Onde não tem ninguém para acusar ninguém de atentado ao pudor
Só tem formigas
E borboletas
E macaquinhos
E muito poucas pessoas
E o que lá está por natureza e que é tudo
O que deveria por natureza lá estar
E existir
Lá não tem coisas
Ou tem imensamente poucas coisas
Lá não tem intenções
Nem más nem piedosas

585
Lá não tem prossecução da fé
Só tem a fé
Lá de onde ecoa eterna e breve essa canção
Mesmo descrendo da intenção profunda do que sinto
Eu insisto
Insistirei mais uma vez e permanente
Que permaneço nu
Tentando ainda que inutilmente
Redimir o silêncio que me habita
E um ruído que persiste
De um soluço profundo e já esquecido
De ter sido
De o mundo ser perfeito
E tudo poder ter sido diferente
E não adiantar lamentar
E de tudo isso ser muito sofrido e lentamente
Como se esse doer fosse um prazer
E esse sentimento uma tortura
Gostosa.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Mesmo quando o tempo confirma que é outono
E o céu fica de um cinza leitoso
O ar afaga a pele como uma vaga
Que se repete a espaços
Quase que não se sente
Só se sente quando o vento
Um vento carinhoso e dócil
Sugere a vaga sensação de um frio que ainda
É só a ténue sugestão de um frio maior
Que não se sente
O corpo cobre-se de tépidos anseios
Que anseiam o devir de um outro tempo
E o tempo que não pára de passar
No cinza claro do céu que se despede
Parece imóvel
Mas lá em baixo
No mundo que se move e continua
Ausente em fundo
Permanece o ror dos automóveis
E o tilintar dos passos das pessoas
Que apressadas vão para os empregos
Para afazeres inconclusivos e geralmente sistemáticos
Células ínvias de uma sistémica falta de propósito.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Presente a tudo
Preponderante
À destemida ausência de mim mesmo
Fitando a distância que me abarca

586
Interrogando ao meu olhar profundo
Que estarei eu fazendo aqui
Em minas tão gerais
Cumprindo um trato
Pagando um preço
Deixo a pergunta repercutir no ar
E peço calma e «paz nos desaventos»
Ainda tenho em mim uma aventura
Que nunca se descobre realizada
Fica no quarto escuro do esquecimento
Sempre lembrada com algum encanto
Sempre esquecida do encantamento
Sempre encantada por nenhum quebranto
Sempre ideal
Sempre impossível por natureza e santo
Que possa ser esse lugar de antanho
Virado ao mundo o dentro que arde em espanto
Ressoa vivo no seu ser sem tamanho
E mesmo quando
A vida retoma o seu pulsar insano
E se desmanda
No árduo batimento das vãs repetições
Meu ser inteiro
Que se despede e despe
Sente-se então a borboleta louca
Que voando solta volteia irregular e labiríntica
Num espaço aberto
Que logo se descobre ser um claustro
Largo e profundo
Profusamente embora decorado de figuras
E sem saída plausível que não seja
Esse mergulho ao contrário que encontra o céu em fundo.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Nos dias em que não há aulas
Ficamos nus
Eu e a Joaquina
E fodemos que nem coelhos
O meu quartel transforma-se numa igreja
Uma verdadeira Eclésia de um rito inigualável
Todas as partículas do ar
Vibram num som particular
E nas paredes reverberam hinos
De uma musicalidade inexplicável
Da qual nem vale a pena falar
Mesmo que já me tenha parecido noutros momentos
Ser essa a única coisa sobre a qual
Vale realmente a pena dizer alguma coisa
Como se em algum momento parecesse e fosse
Essa a única coisa verdadeira e importante da vida

587
Mas a vida sempre segue e continua
Formando lagos
Delineando rios
Pântanos de pensamentos inúteis
De sensações desprezíveis
Sobre as quais e a respeito
Muito se tem dito e lido
Muitos artigos e livros
Bibliotecas de livros
Muitas formas muitos géneros
Estilos
Que por mais vidas que houvesse
Ninguém quereria ler
Nem poderia
Em moldes razoavelmente aceitáveis
Mas como existem
As longas horas de pântano e sentimentos lacustres
Que passam
Entre esse vai e vem da liturgia
Eu também vou com meus ridículos devaneios
Desinfectando o pântano
Como quem quisesse dominar com unguentos
Uma praga de insectos purulentos
Aspergindo essa mistura inócua
Na pestilência imunda da realidade
Que permanece opaca
Baça
Intransparente
Como uma vitrine de uma loja cara
Muito suja
Mas eu nem vejo
Só quando vou à janela
Ou se circulo na rua
E mesmo aí
Sempre me distraio
Com as pessoas
Com a paisagem
Com a ideia
De que estou em um lugar diferente
E onde não acontece nada
E os sentimentos humanos
São todos bons
E prazenteiros.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


E quando saio
Vou nu por entre as fibras
Da roupa
E tenso
Até às fibras mais profundas

588
Dessa minha razão descalibrada
Que a ilusão aumenta
E faz mais nítida e mais lúcida
Mas que louca
Permanece intransigente e indisponível
Para nenhuma outra coisa que não seja
A total transparência o total brilho
A total luz
E então por fim quando regresso
Ao meu obscuro quartinho de hotel
Dispo displicentemente a roupa
Como um prisioneiro atirado para o castigo
De uma cela solitária nos fundos de uma prisão
Onde a minha abjecta inocência não me permite sequer
O alcaloide ilusório da expiação da culpa
E aí invejo o criminoso
Mas é por pouco tempo e logo passa
Ou a Joaquina chega
E quando chega eu estou nu ainda vivo
E rezamos devotamente a oração que nos foi dada viver
Ou então saímos
E vamos para a rua espalhar felicidade
Como petizes
Saltitando de alegria
Mas caminhando serenos
Com um brilho irradiante de intensidade profana
Sem que a poeira oleosa que se acumula nas ruas nos toque
Nem a trepidação que vibra essa frequência cava
Que se confunde com os motores dos automóveis
Mesmo aqui no meu quarto de hotel
Nu e intrépido
Sinto a solidão das ruas
Onde passam as pessoas
Muitas pessoas que não se tocam
Não se vêem
Que apenas se olham fugidiamente
Temendo que os seus olhares se encontrem
E que elas fiquem nuas
Sinto o ruído surdo
Das sombras que se aninham nos lugares pouco recomendáveis
E é por isso talvez que tiro a roupa
Para me despir definitivamente
De tudo o que me atinge quando passo e eu não penso
Penso depois
Nu no meu quarto de hotel.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Esperando a marcha heroica da mudança
Nesse ínterim incorporando e sendo
A mudança

589
Que nu posso integrar o tempo inteiro
Perante a página em branco
Nua também
Comigo estabelecendo uma invulgar cumplicidade
Em que me oferece a especial e rara simpatia
Que é a oportunidade singular de me dizer
E aí eu digo e sou
O eu ser o quando e como estou
E eu
Estou sempre nu no meu quarto de hotel.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Repito isto para que fique bem vincado
Que é isto que eu quero dizer
Que fico nu
No meu quarto de hotel
Por longo tempo
Tempo que eu gasto escrevendo palermices
Substância oca
Inocuidades
Às vezes fico até tarde
Depois de a Joaquina adormecer
Sem perturbar o seu sono
Com o barulho dos meus pensamentos
Fico escrevendo quase que só com os dedos
De modo a que os pensamentos não possam fazer barulho
Ou façam pouco barulho
Que a gente não quer acordar a Joaquina
Nem eu nem os meus pensamentos
E chega sempre uma altura em que os momentos
Como que se subdividem
E em que já só se anseia por momentos
Desejar que os pensamentos
Se calem
E que os momentos
Não fossem habitados
Por pensamentos nenhuns
Mas mesmo assim a Joaquina acorda
E conversamos.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


De manhã e à tardinha
De noite
De madrugada
A meio da tarde
A hora não é importante
Ou a temperatura
Nem o tempo que faz lá fora
Sempre abro a janela para ver o dia
Ou a noite

590
Quem sabe para mostrar a mim mesmo que não estou confinado
Que não temo o mundo que acontece
Lá fora
Nada do que acontece na minha cápsula privada
O meu quarto de hotel
Onde nada acontece
Ou o que acontece é de uma outra ordem
De uma espécie e tipo de acontecimentos
Outra
Talvez eu sinta esse impulso irresistível
Para abrir a janela a qualquer hora do dia
Ou da noite
Só pela mera curiosidade de saber
De onde vem o barulho que ouço vir de lá de fora
Permanentemente
Opondo-se conceptual e ontologicamente
Ao silêncio que impera no meu quarto
Onde o barulho resvala na minha nudez sem me atingir
E eu o ouço
Se me lembrar disso e se ficar atento
Mas nu no meu quarto de hotel
Estou mais atento ao silêncio
Esse silêncio impropriamente chamado de interior
Não é um silêncio interior
É um silêncio que vem do estar
Do onde e do como
Aqui e nu
Como uma larva em metamorfose dentro do casulo
Que tivesse por alguma extensão da mutação
Começado a fundir-se com o próprio invólucro
O casulo
Ou uma concha em que bicho e casca
Tivessem virado de repente
Uma coisa só
O que chamamos casulo é já por referência o conjunto
Do bicho e do seu invólucro
Como no caso dos bichos-da-seda
Que se dão às crianças para pastorear
E tudo isso
Esse processo insólito acontece
Precisamente por se saber que é um lugar transitório
Este quarto de hotel
No caso
Não um solar de família
Ou mesmo uma casa pequena
Mas que atravessa gerações
E em que as pessoas vão ficando lá dentro
Não
É num quarto de hotel
Feito para passar

591
Para passantes
Que não daqui a muito irei deixar sem pena
E que se irá juntar a tantos outros
Na negra catacumba da memória
Onde apesar de tudo e de tempos a tempos
Uma luz se acende
Na transparência indulgente da nudez
Em que me envolvo quando estou
Nu e no meu quarto… de hotel.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Chego a sentir-me um feto
Dentro de um útero
Onde a temperatura está sempre temperada
Biologicamente acertada para o acesso
A um estado ideal de permanência
E no entanto
É esse um estado que de si mesmo é transitório
Como o é a permanência num hotel
Fica-se por uns dias
Quando muito por um mês
E só em casos excepcionais essa existência se prolonga
São mesmo lugares cujo encanto
Deriva muito da sua essência efémera
Mas para isso
Como toda a regra vale a regra
De que toda a regra tem sua excepção
Faz-se excepção a regra
E regra da excepção
E esses casos são aqueles em que se mora no hotel
Mas é pequena
A lista das pessoas que se sabe
Moraram em hotéis
E mais pequena ainda
A dos que morreram lá
Isso não sendo um viajante normal
Daqueles que ficam pouco tempo
E que por algum acaso
Infelizmente morreu
O que aliás
Também frequentemente acontece
Não é que eu domine essa estatística
Ou que o assunto me interesse de modo particular
Ou seja assunto ao qual eu reconheça
Algum interesse geral
São os hotéis
Que neste caso me interessam
Não as pessoas
Que lá existem
Trabalham e recebem

592
Moram ou passam
Vivem ou morrem
Ou reconhecem nos hotéis alguma utilidade social
A mim interessa o estar
O dormir e o acordar em um lugar estranho
E estar
O valor epistemológico do estar
E o momento
O declive demorado e súbito em que o estar se torna ser.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


E os dias passam
Vem o ocaso
O sol poente
O céu escurece
E de repente é de noite
E no indolente tempo que se arrasta
Sinto que sou uma pessoa nua
Não uma pessoa que está nua
Mas uma pessoa nua
No seu quarto de hotel
Paredes de um reduto exíguo
Rodeado de outros quartos onde jamais se sabe quem está
Quem entra ou sai
Todos ligados por corredores
Labirintos de vãos e corredores
Pátios e patamares
Elevadores
No coração de tudo isso um lobby
A recepção
A porta e a fachada
As paredes
Às quais por vezes
A cidade assiste durante anos
Até parar de reparar que elas estão lá
Enquanto elas
A olham com seus olhos de janelas
E por dentro
Atrás dessas janelas oculares
Umas acesas outras apagadas
As luzes de mundos e de vidas ignorados
Que pulsam díspares
Na mais completa ignorância uns dos outros
É assim a vida nos hotéis
Ninguém tem nada a ver com nada
A não ser quando se fica por mais tempo
E se formam laços aparentes
E quanto ao resto irreais.

593
Estou sempre nu no meu quarto de hotel
Ou quase sempre.

II

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Ou quase nu
Agora estou noutro hotel
Mas o meu quarto continua o mesmo
É um quarto de hotel
Onde eu estou sempre nu
O mesmo quarto
Mas mais espaçoso
Lá no outro ficaram os coqueiros
Não daqueles que dão cocos
Mas outros
É como no seu linguajar profissional
Os taxistas chamam ao lugar
Um entroncamento entre cinco ruas e uma praça
Uma praça grande
Onde as palmeiras chegam até à altura dos prédios
Na que sobe
Na que evidente e definitivamente sobe
Uma avenida
Palmeiras imperiais
Como se chamam essas que não dão cocos
Mas em compensação são mais bonitas
E mais altas
E cujo nome
Antigo e pretensioso
Recorda um tempo que já foi e não é mais
O que nunca eventualmente terá chegado a ser
Um tempo antigo
Um antes
Que não deixou saudade
Nem sentimentos duradouros
Serão então quatro ruas uma praça e essa avenida
Que sobe
Mas o lugar para quem sabe trafegar é conhecido e se nomeia
O dos coqueiros
E quando se quer dizer o quê ou quem está lá
É nos coqueiros
Um deles até lhe conhecia a rama
Porque ficava mesmo em frente da janela
Agora estou mais p’ra cima
Numa atitude mais independente
Num quarto de hotel mas mais espaçoso
Desses que se contratam por um mês inteiro
Numa modalidade que se diz
De residencial

594
Contudo nu
Sinto apenas que as paredes estão um pouco
Mais afastadas do centro da minha nudez
Para lá das paredes a cidade
Mas muito mais calada quando à noite
Os urubus descansam.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


E às vezes vou olhar
O cruzamento de ruas para o qual
A minha janela dá
Se ainda tem pessoas recolho-me ao meu espaço
Como se diria numa linguagem psicoterapêutica
A minha zona de conforto
Onde a minha nudez não é conflitual
De qualquer forma mesmo nu
Umas vezes estou mais nu e outras menos
Principalmente quando algum empecilho inflamatório
Faz com que me doa a cabeça
Ou tenha febre
São assim os hotéis
A gente tem que se adaptar
À promiscuidade e às bichezas que os habitam
É inevitável
Todos os hotéis têm um ranço
Uma coisa que não se vê
Que se desvia do olhar de quem chega
E só aos poucos
Lentamente
Vai tomando conta da saúde do cliente
Mas passado pouco tempo já nos sentimos em casa
E se ficamos pouco tempo nem sequer chega a pegar
É uma chaga indelével
Nem tão difícil de suportar
Então eu fico nu perante os imponderáveis da vida
E reparo que estando nu
Tudo parece mais fácil
E mais leve
Ficarei nu até isto me passar
Qualquer coisa meio estranha
Que está no ar
Ou que parece estar
Ou que está embora não pareça
É muito seco
Segundo dizem os meteorologistas
E os propedêuticos
Eu prefiro obedecer
À alma que me comanda
E não vou me arrepender
Vou fazendo as abluções

595
Orações muito devotas
Muito poucas distracções
E ainda menos
Águas paradas
Só correntes e vapor
Muito vapor
Para afastar a secura
Que este tempo há-de passar
P’ra outra banda
Eu esperarei pacientemente que isto passe
Encolhido como um bicho
Que conclama para junto de si algumas palhas
Posso até ficar vestido
De uma maneira precária
Às vezes um dia inteiro
Porque afinal
Sempre tem uma excepção como já vimos
Em todas as regras que acreditamos poder cumprir
Como eu
Que de um modo geral
Sempre acredito que vou poder e conseguir cumprir.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Menos nos dias em que não me sinto totalmente bem
É por causa da secura ao que parece
Não é nada de importante
Muito menos de transcendental
É climático
Mas é o suficiente para que o corpo me pese
E como o corpo de um bicho
Fragilizado
Assustado
Pensando que a vida lhe vai faltar
Fica encolhido num canto
E chama para si algumas palhas
E espera mansamente o anoitecer
Envolto na penumbra da sua cova escura
As paredes amolecem e decompõem a forma
As formas rígidas das gerais arquitecturas humanas
E se aproximam voluptuosamente das arquitecturas dos bichos
Dos ninhos das aves mais laboriosas
Ou mesmo
Das geometrias mais elaboradas que tecem alguns insectos
Mas é transitório
O que elas querem é chegar à consistência lenta
Dos minerais
Num ponto médio entre as lavas incandescentes e as pedras solidificadas
Quando está mole
Mas lento

596
Comprimindo o espaço até formar a gruta
Onde no fundo
O animal chamou para junto de si algumas palhas
E num delírio febril
Sonha uma saída fresca e volátil
Para breve.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


E o vapor vai cintilando no ar
Cria um frescor
E amolece-me os brônquios
Já não me dói
Tanto
Posso sentir vontade de escarrar
Porque o meu corpo embora nu
Pode estar como que estando vestido
Por dentro
Então preciso de me despir do que ainda me veste
De tudo
Porque estar nu é uma tarefa contínua
E interminável
Até que seja tão perfeita e invisível a nudez
Que se torne por fim e então mais uma vez
Imperceptível
Respeitável
Como o que sempre foi e é
A coisa mais natural do mundo
Não uma atitude naturista
Mas um comportamento natural
É uma teoria
Mas natural e nu
É isso ser uma prática
Que se transporta no peito
Como uma conclusão em que se preza
O que se adia
No meu quarto porém só junto letras
Neste de hotel então não ando nem pratico nada
Não transporto
Sou uma rede ou o muro de uma represa
Sou o filtro do que passa na corrente e que eu retenho.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Trancafiando as sensações voláteis
Que se suspendem no mundo
De lá de baixo
Sobe o barulho dos pregões
É uma babilónia

597
Cheia de pessoas apressadas
Que colectivamente não vão para lado nenhum
Só individualmente acham que estão
Indo e voltando de ou para algum lugar
Não só estão
Estão uma forma de estar que é indo
Ou vindo
Durante o dia e incessantemente
Vem até mim a gritaria dos pregões
E o ruído surdo das pessoas indo e vindo
Lembrando-me que o mundo existe
E eu vou silente e obedientemente
Até à sacada do meu quarto
Olhar a babilónia
De cima
Como uma obrigação ou uma pena
De eu não pertencer
E do movimento passar macio e inconsequente
Através do meu silêncio dinâmico
E fico a ver
De longe
De cima
Onde a inocência do meu olhar
E a nudez
São inexpugnáveis
Talvez a nudez nem tanto assim
Mas é sobre isso que temos vindo a reflectir
Quando a noite desce a babilónia acalma
Lentamente
Os mercadores um a um levantam os precários arraiais
E vão p’ra casa
Seja lá o que for que isso possa significar
Vão embora
Um a um
Não vão em longas caravanas como os mercadores do deserto
Nos camelos
Vão sozinhos
E outros vão ficando por ali
Até a noite esconder algum recanto
Onde eles possam dormir
Em todo o caso
Quando a noite desce eles calam-se
Só se ouve o imperceptível zumbido
Das televisões.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


E quando anoitece
Fico mais nu
Para dormir
E a minha alma real

598
Despertar no ínterim que há enquanto eu adormeço
Depois
Enquanto eu durmo
Ela toma conta de mim
É quando durmo afinal que estou mais nu
E como se comenta no ramo
É para isso que servem os hotéis
Para dormir
Mas apesar de servirem para isso
Há sempre pessoas nos hotéis
E que não dormem
Umas porque não querem
Outras porque não podem
Por insónia
Ou porque têm que se levantar cedo no dia seguinte
Graças a deus não é o meu caso
Eu durmo
E é quando durmo que fico mais nu
E recupero as forças despendidas na resistência ao barulho
Para continuar trabalhando no silêncio do meu corpo
Que é quando ele fica quieto e nu
Mas acordado.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Embora neste a amurada da janela seja mais baixa
Um pequeno muro com um varão de ferro
Não uma balaustrada como no outro hotel em que estávamos antes
Que era vetusto
Este também é vetusto
Mas mais moderno
Então
Embora a amurada da janela seja baixa
Não é tão arriscado ir lá e contemplar o fora
Nu
Principalmente se é cedo e de manhã
Todas as pessoas estão ainda sonolentas
E só delas é que poderia vir alguma conflitualidade
Entre ser dia claro
Janela aberta
Céu azul
Brilhos no ar
E eu estar nu
E ir para a janela olhar o fora
Fico ali
Pela manhã
Visível
Como aquelas garotas de Amsterdão ficam na montra
Como se ninguém estivesse olhando para elas
A única diferença é que para mim
Ninguém realmente está olhando

599
Ninguém nota
Porque de contrário atrair-lhes-ia a vã curiosidade
Alguém diria
Está um homem nu naquele quarto de hotel
O que dito assim parece até uma coisa natural
Mas na janela
Estando visível mereceria uma arruaça da turba
Eu por mim
Nada mereço
De mim nada se tira
A mim resta-me sempre esperar
E eu espero
Que nada aconteça de desagradável.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


E às vezes de manhã sinto vontade
De receber o dia
À janela
E recebo-o prazerosamente
E vivo-o
Depois o tempo passa e acontece
Eu estar em casa na hora em que o dia acaba
E cai a noite no meu quarto de hotel
E eu vou vê-la cair
Na janela
A paisagem escurece devagar
E uma silhueta confunde-me a visão
Gostava de vir aqui contar
As aventuras do dia que passou
Mas foi um dia como todos os outros
Ou quase todos
Tratei de algumas burocracias necessárias
Falei palavras mansas
Vociferei algumas inutilidades
Convencido de que fossem grandes coisas
Pensamentos épicos
Cujo único encanto é o de serem produzidos em palavras
Sonoras e encadeadas
De maneira a poderem ser compreendidas
O que aliás
Nem sequer é sempre que acontece
O que acontece
É que o dia nasce
A manhã clareia
O sol sobe quase imperceptivelmente
Brilha no alto do céu e depois cai
E passado um bocado a noite desce
Lentamente
Os dias passam
E eu

600
Vou permanecendo na minha indómita tarefa
De ficar nu e no meu quarto de hotel
Mesmo ao domingo
Quando o mundo e quase tudo o que ele contém fica mais calmo
A minha alma nunca se distrai
Vou até mesmo fumar um cigarro na varanda que dá para a rua
Confiante
Aos domingos não tem quase ninguém na rua
Os poucos que passam não me vêem
E eu posso ficar serenamente
Desafiando a pudícia da cidade
Catapultando a polpa sem vergonha da minha alma clara
Para lá dos muros
Onde cinzenta se confina a ânsia de uma ordem
Estou sempre nu e sem conflito
Mesmo quando nas ruas lá em baixo passa o carro da polícia militar
Brigada comunitária móvel
Ou algo assim que eu imagino
Quem sabe
Foi alguém que os chamou
Tem um homem nu no quarto andar
Sou eu.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Que como já se percebeu fica no quarto andar
Mas eu vou nu fumar um cigarro na varanda
E naquele momento o meu desprezo e desafio
É mais p’ra cima
Fico no topo do mundo em que me vejo
Despir todas as sombras e desejos
Soltar todas as peias
E sorrir
Sorrio todos os dias para o novo dia
Para a eterna sucessão dos dias
Para o dia que há muito começou
Enchendo as ruas de pessoas
É outro dia
Um desses que se chamam de semana
Em que homens e mulheres têm que trabalhar
E andam todo o dia pelas ruas
Para cá e para lá
Numa agitação inexplicável e constante
Que eu raramente consigo compreender
Vejo-os da janela do terraço
Mas eles não me vêem
Estou nu
E como se sabe não existo.

601
Estou sempre nu no meu quarto de hotel
Deambulando ideias
E ideais
Como um general regressado de uma guerra
Derrotado
Que com serenidade estranha e compassadamente
Depusesse a espada
As medalhas
E num ritual fardamentário executado ao contrário
Desapertasse os botões
Desatasse os atacadores dos sapatos
Coisa que aliás eu nunca faço
E arrumasse a farda como se estivesse seguindo para uma viagem
Coisa que aliás eu também não posso propriamente dizer que faça
E por fim
Numa inexplicável indefinição da consciência
Como eu às vezes faço
Deixasse as meias
Como se quisesse acreditar
Que aquela guerra não tivesse verdadeiramente acabado
E a verdade
Ainda assim e apesar tudo
Fosse reversível
E questionável o sentido de se vestir uma roupa
E trafegar o mundo.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Para sentir que o mundo continua e que eu estou fora
Eu sei que existe lá fora
A loucura fascinante
Como existe a fascinante multiplicidade
Das caras de uma pessoa viva
E mesmo quando o tempo arrefece
E o frio me faz sentir necessidade da roupa
Todo o calor de um olhar que me distrai
Dos meus aborrecimentos
Tudo soma
Enche o meu copo de vivências e me incha
De pensamentos repetidos o ser correlativo
Sinto o seu impacto na carne
Por dentro da nudez
Às vezes chego a sentir
Lugares do corpo que me surpreendem
Dores que me querem
E me rasgam o papel de fantasia enfraquecido
Pelo hábito de ser amarrotado
Mas ainda que o meu quarto
De hotel visto por dentro fosse
Não o de um hotel de filme
Mas o de um desenho do Shielle

602
Desses em que o corpo encarquilhado
Parece pedir que uma borracha da humana compaixão
O apague
Eu ficaria nu ressentindo o barulho
Do que nas ruas faz a roupa necessária.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Ele é afinal o reduto necessário
Onde os extremos do ofício de existir
Os meus prazeres
O êxtase e a dor
Se tocam numa unidade total
Em que o barulho da rua se evapora
Toda a doçura e toda a crueldade
Que fazem do mundo ele ser
O que ele é
E para o qual nem armadura
De ferro ou de titânio que ela fosse
Me manteria a salvo do colapso
O lapso infinito
Que a estrutura toda desconjunta
Por isso eu tiro as peças
As cotoveleiras e o peitoral
Tiro os sapatos de chumbo que me agarram
A esta sórdida ditadura da gravidade
Que faz andar e desandar os elevadores
E que no fundo
Mantém parados os que estão avariados
Eu subo e desço
Eu vou e venho
Eu catalogo todas as minhas desventuras
E abafo em mim o grito
Que tantas vezes
Eu vi os loucos gritarem aos sensatos
E a mim
Que nunca tive medo da loucura
O grito que poderia gritar
Assusta-me
Divaga-me
Campeia-me no sangue os preconceitos
E de despir-me
Resta-me a tentação da piedade
Que um antigo herói me disse ser terrível
Tudo não passa de uma engasgada desculpa
Uma comiseração retroactiva
Plasmada em figurinhas coloridas
Que como gnomos me suspendem
Acima da dimensão da realidade
E me fazem renitente ansiar pelo vazio
Que é tudo.

603
Estou sempre nu no meu quarto de hotel
Daqui a pouco já vou fazer sessenta anos
E estou aqui nu
Exatamente como quando nasci
Mas este quarto não se parece nada com o útero da minha mãe
É mais quadrado
E vendo bem nem tão quadrado assim
É anguloso
E um dia destes eu vou fazer aqui sessenta anos
Que é uma conta redonda
Não sei ainda
Talvez me mude
Para o hotel onde eu ficava antes sempre nu
No meu quarto de hotel
O Sulamérica
Vetusto e triangular
Talvez faça os sessenta anos lá
Ou esteja em trânsito
Mas seja como for é impossível e inútil
Tentar rebobinar a história
Mesmo quando chega a idade dos balanços
E em que se começa a preparar a morte
Com dignidade
Afinal estou sempre nu
Sempre estive
Mesmo por baixo da roupa é o que existe
Uma máquina corpórea que sou eu
E apenas aquele pequeno destacamento de células
A que chamamos memória
Sabe que houve um antes e um depois
E acumula palavras e experiências
Dúvidas e mitos
Insaciáveis.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Aqui ou lá
Indo ou voltando
Independentemente da idade
Dos dias ou do sarro
Que os dias me cravaram
Ou venham a cravar-me na pele
Tenho que levar esta epopeia até ao fim
E o fim
É como o presente
Um ápice infinito

604
Que existe entre o passado e o futuro
O antes e o depois
E que está lá
No tempo e no lugar em que a epopeia termina
E já não há mais nada
O caminho é sempre em frente
Na direcção desse abismo final
E lá no fim sem paisagem nem distância
É o vazio
Que foi o que entre tempos e através dos dias
Sempre quisemos encontrar
Trafegando o tempo
Indo p’rò espaço
Desafiando os confins do universo
Todos os limites
Enquanto dentro
O espaço esquadrinhado de uma cidade invisível
Serviu sempre de chão a um caminho absurdo
Feito de se ir para lugar nenhum
É triste viver numa cidade
Principalmente quando é uma dessas a que chamamos grandes
Onde o espaço está realmente todo
Esquadrinhado dividido e preenchido e não aleatoriamente
Tem uma ordem nisso tudo
Uma ordem incompreensível
Ao pensamento e a toda a teologia
De qualquer índole
Por qualquer esforço
Compreendê-la é ser seu prisioneiro
Tanto quanto renunciar à existência dela é a liberdade
Não preciso dessa ordem barulhenta
Ainda menos quando os meus vícios racionais
Me fazem especular
Andar e indagar
Iludir e lutar
Escutar cânticos surdos
Cantados numa imensa catedral onde os crentes estão aos gritos
E ecoam misturados com o ruído das cadeiras e dos púlpitos
Os sons articulados da imersão do chão
Na irrespirável fossa cíclica da guerra
A escura e infatigável desdicção
Que se agasalha na injustiça e no dever.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


P’ra não cair
Lá em baixo onde se abatem
As vigas e as cúpulas da minha total arquitectura
Onde os meus pilares começam a tremer
E se avizinha o cavo som de um terramoto
E se cair

605
E quando
Cair nu como um profeta
Desamparado
Na inevitabilidade das suas profecias
Descontraído
Na certeza final de serem da desgraça
Que os filtros ao ruído
Os colchões de ar
Os camuflados dos soldados dessa guerra fratricida
Que nos confundem os conceitos
E nos fazem aceitar por não termos outra alternativa
As regras clamorosas que temos que cumprir
Para existir
E sem as quais
A existência nos faria por um ápice
Insuportável
Cair
Mas ao contrário
Olhando pelo ângulo do silêncio
São essas regras que são insuportáveis
E a sua aceitação
Inexplicável
De que adianta então eu ficar nu
Se não for para cair no mundo
Fluindo imaterial no desamparo?
Não adianta
Mais vale que seja por preguiça
Preguiça de sentir
Sequer o peso da roupa
Sequer o toque
Mesmo quando a roupa é leve
Porque os pensamentos e os conceitos pesam mais
E desses não é tão fácil a gente se livrar
Quanto da roupa
Se ao menos eu pudesse
Despir-me do por dentro
Com a facilidade com que no meu quarto de hotel
Eu tiro a roupa
Não sairia mais
Eu ficaria em casa para sempre
Voando
Porque sem o peso da roupa
Corpo e espírito se fundem em algo que me parece
Anterior
Já não nem interior nem exterior
Um antes sem depois
Que se coagula no agora
Em que os meus gnomos levitam
E a que os duendes assistem
Impassíveis

606
E ali
Naquele espaço indizível
Ou que quando se diz se diz que é impossível
Todos dançam
Nas veias
Por onde o sangue passa
Parece haver um ardor
Mas não é uma coisa física
É mental
Mas também não é mental
É diferente
De ser física ou de ser mental
É apenas um ardor
Imperceptível
Que se mastiga no lento passar das horas
E na volúpia dos dias
Que ao contrário das horas
Passam numa vertigem febril
E inexorável
O tempo…
Passa
De dia
Durante a noite
No lusco-fusco
Na madrugada
Quando bate insolente o sol do meio-dia
Ou quanto cose a existência às dez da manhã
Ou às quatro da tarde
Ou às outras horas do dia
Ou da noite
Mesmo quando parece que não existe
Ou se percebe
Que não existe
Passa…
O tempo passa
E nós passamos com ele
E é a isso que chamamos o milagre do agora
E para cada agora existe um milagre que acontece
Ou que pode acontecer
Nos infinitos agoras em que não acontece nenhum milagre
E é aí que o tempo passa
Na ausência de milagre existe o tempo
E passa.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Passando com o tempo
Tentando surpreender-lhe os crescendos
E os ralentandos
Mais do que ele me surpreenda a mim
Ou antes

607
A tempo
Como se diz em música
Não se sabendo bem se estamos a falar do ritmo
Ou daquela imaginária página em branco em que ele acontece
Ou de nenhum deles
Ou da interacção dos dois
Mais rápido
Mais lento
Mas sempre encostado para trás
Vendo o tempo chegar
Atento
Vendo-o partir
Para o lago calmo e fatal
Do esquecimento
E tento apanhar o passo
E o andamento
Desta sinfonia de anátemas e prestos fortíssimos
Barulho
E dos largos dos silêncios dos domingos
Dos adágios
E da espectativa oca das segundas-feiras
Para nós interessa pouco
Porque às segundas-feiras a Joaquina não tem aulas
E o fim-de-semana se prolonga preguiçoso por três dias
Em que andamos nus dentro do quarto
Ou nas minúsculas dependências que emolduram o quarto
Num delicado parêntesis
Arquitectónico
Andamos nus o dia inteiro
Três dias
Mais o fim da tarde e a noite do anterior
E a manhã do que virá depois
Andamos nus para cá e para lá
E frequentemente nesse vai-e-vem encalhamos um no outro
E nos enganchamos por um longo momento
E aí nos reconhecemos
Nus
Mesmo que fôssemos cegos
O que considerada a beleza extrema
Da Joaquina seria um desperdício
Nos reconheceríamos
Na beleza morna e dolente dos momentos
Que como gotas de frescura condensada
Ficam no ar do quarto

608
Calados
Dispersos
Em melodias de luz
E ficamos nus por mais um tempo
Até que a vida lá fora
Ou alguma coisa que precisamos de fazer
Nos obrigue a vestirmos uma roupa e sair.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Estamos
Eu e a Joaquina
Como se nada mais existisse
Sempre e quando
Desde sempre quando até
Chegam os dias em que se tem que encarar o real
A fantasia irrevogável para onde todo o mundo corre
Corre-se atrás
Das ilusões infatigáveis como o amor e o dinheiro
Mais geralmente o dinheiro
Esse que se diz até real de nome próprio
No Brasil
Como um dia outrora também já se disse em Portugal
É o de que todas estas pessoas estão atrás
Atrás da ilusão do seu real
Pedacinhos de papel muito bem desenhados
Pequenos discos de metal quando em quantidades pequenas
Pequeninos discos gravados
Pequenos círculos
Em alguns casos engastados dentro de um círculo maior
E de um metal diferente
E isso é que é o real
Uma ideia
De alguma coisa que poderia ser
Uma outra
As duas sem conteúdo
Real
Só distância e desempenho
De uma coisa que não há
De dia estou sempre nu
No barulho
À noite vou à janela
E aquela estrelinha está sempre lá
Uns dias está mais p’ra cima
Outros dias mais p’ra baixo
Mas brilha regularmente
Já a vi há muito tempo
Ela brilha
Mas o brilho com que ela brilha e eu vejo
Já brilhou antes
Faz parece muito tempo

609
Milhares de anos
Dependendo da distância
Não sei se é real
Ou se já foi
Nem se será depois
Ou antes não
Ou sim
Quando eu a vejo
Os meus pensamentos voam
Para ela
Estão lá
No lugar onde ela já brilhou há muito tempo
E a noite engole a cidade
Todos os versos da vida
Se derretem
Em letras invisíveis que a escuridão abraça
Nas oitavas sombras da sombra
Onde se esconde a luz que bate nas fachadas da cidade
Onde é de dia
É de noite e depois é de dia
E depois é de noite outra vez
E é de dia de novo
Quando eu abro a janela do terraço para ver a luz
Que já se derrama pelas ruas
Mas não tem crianças passando
Nem pela mão de um adulto
Nem tão pouco
Saltando ou correndo
Nas ruas onde não passam carros
Parece que o mundo desistiu das crianças
Ou as crianças desistiram do mundo
Ou apenas
Os pais não as deixam temerosos
De algum mal que lhes possa acontecer
Que seja
Mesmo que seja pelos melhores motivos
Não há crianças na rua
E nas casas não as vendo
É como se não existisse o melhor que o mundo poderia ter
Restam então as crianças
Que dentro de cada ser
No interior profundo de cada um de nós
Espreitam nos entretempos que se formam
Nos interstícios das coisas importantes
O olhar feroz e inocente
Da solidão
Ou a candura de um riso
De mulher.

610
Estou sempre nu no meu quarto de hotel
Onde se desvanece o erro e a incongruência
E tudo parece original e certo
Mesmo que não seja
Ou que uma ou outra imperfeição na estrutura do hotel
Me faça lembrar o peso e a dureza
Fatal da realidade
Mas aí a Joaquina sorri
E já fica tudo bem outra vez
É sempre ao cair da tarde
E é já de há muito tempo
Que essa quietude no mundo
Me provoca uma impressão
Palavras ditas
Como elas ecoam nesses momentos
Em que o espírito se abrasa
De existir
De ser
De qualquer coisa vazia que está dentro
Mas que só o fora consegue desnudar
Como eu estar nu
E mesmo se faz frio e a roupa me estabiliza a temperatura
Eu estou.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Onde estar é ser
O que eu sou
Estou sempre aqui
Neste lugar vazio e repleto
Onde ferve e borbulha a plenitude
E onde nunca tem lugar a abundância
A não ser a dos sentidos e a das coisas
A que até os sentidos são às vezes refractários
Dessas tem um maná que nunca acaba
Em todos os recantos escondidos
Todas as dobras do tempo
Que eu insisto em tentar perceber que não existe
E nunca me canso de tentar
Mesmo sabendo que desse nunca se cansar não tem descanso
Canso-me é de existir e de ser
Nunca de procurar
E eu procuro sincera e incansavelmente
Ainda penso em comprar uma viola
De uma madeira bonita
De nogueira
Quem sabe talvez sim
Ou de uma outra madeira
Uma viola maneira
E boa de tocar
Com que eu fizesse canções

611
Improvisadas
E aprendesse umas escalas
Bonitas
Tudo de uma forma descontraída e despretensiosa
Como deve ser
A atitude criativa
Ser um artista
Ser um cantor de canções e ladainhas
Intermináveis
Quem sabe eu ainda encontro
Uma que seja bonita
E com bom som
Por agora tenho a minha
Que às vezes toco e as cordas
Vibram
Vibram intensamente em mim e eu ouço
Mas antes de ouvir sinto
Mas mais que antes
Antes de ouvir e sentir
Eu adivinho
O que elas querem dizer
E porque as toco
Com as unhas procurando o som mais doce
E as harmonias mais singelas
As quase ingénuas
As mais bonitas.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


E às vezes sinto
A madeira do meu violão do qual raspei o verniz
Vibrar em mim
Sinto o cheiro da cera
Com que encerei a madeira
E a viola parece-me uma pessoa viva
Como se fosse
Talvez uma daquelas que embora tenham morrido
Permanecem incorruptíveis
E sempre alguém alimenta a espectativa de que ressuscitem
Toca-me as canções
Mesmo as das quais eu já esqueci a letra
Chega mesmo a recordar-me as letras
De que eu já não me lembro
E até quando a música é instrumental
Ele toca melhor se eu não tiver no conjunto do processo
Quase nenhuma participação
A menor possível
Ele lembra-se das músicas sozinho
E eu sinto um indescritível prazer em as tocar
Ainda que saiba que é ele
Quem as está tocando para mim

612
E eu gosto de as ouvir
Embora o som às vezes me pareça
Baço e cansado
Mas provavelmente são apenas as cordas que estão velhas.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


O vento sopra
Como o vento sempre sopra nas esquinas
Para uma direcção inexpressiva
Em várias direcções
Canalizando e desencanando as velocidades
O ar aqui é seco
Parece até mais leve
Mas não tanto que se deixe de sentir a direcção do vento
Mas aqui
Do alto da varanda do meu quarto de hotel
Ele parece não ter nenhuma direcção
Nem vale a pena perguntar para onde vai o vento
Porque ele não vai para lugar algum
Ele apenas volteia inacessível
Irredutível
E sujo
De poluição e de poeira preta
Passa apenas sobe o mundo
Procurando insaciável um lugar
Não nem sequer algum lugar aprazível
Ou agradável
É sempre para aí que vai o vento
Para um lugar imundo
Gazes e cheiros
De inenarrável incomodidade respiratória
Insalubre
Onde a sobrevivência é penosa
E pior
Tem sempre um dia em que o ar se apresenta sem vento
E nesse dia é pior
Nos outros menos pior
Tenho saudades do mar
Como ouvi numa canção
Quem vive perto do mar
Toda a vida quer voltar
E umas volta outras não
Das vezes que quer viver
Chega sempre um dia em que afogado
O ser quer voltar à vida
À praia
Para se rever
Se tudo é afinal nada que se aterra e recompõe
No forno onde se fundem as forças do bem e do mal
Então que o ser o ser

613
De o ser ser sólido e inteiro
Possa ainda que seja por só mais um momento
Ser manso e completo
E desanuviado poder mais uma vez
Ficar e reflectir a luz
A luz em que de há muito tempo se atirou
À dor sem fundo de decifrar as ocorrências
E compreender o mundo
E de tirar a roupa peça a peça
Ficar nu
E ainda assim querer despir-se mais
E vivo
Raiar o fundo do abismo inconformado
Onde brilha o fragor do infinito existencial.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


E mesmo assim sinto a vertigem
De querer ficar mais um momento
Na ânsia inacessível de querer fitar o sol
Cegar p’rà luz do mundo
Revigorar a esperança
E a fé
Somando os dias ao destino
Aquele que se diz para onde vai
Ser ir
Mesmo que seja para lugar nenhum
Estar sempre indo
Mesmo no momento de maior estratificação do impasse
No momento parado que se arrasta na indecisão da paciência
Na imobilidade
Na pulsação lenta da indefinição
Indo
Estando
Indo estando
Sendo estar indo
E ir ficando
Nu…
Aqui o tempo é muito seco
Do ponto de vista da meteorologia
É bom para os pianos
O mecanismo fica mais solto
Mas a pessoa fica seca
Como as canas
E as tripas fabricam gaz em abundância
Eu sou tudo o que fica
Dessa peculiar conflagração bioquímica
E assisto
A tudo o que me traz o dia e a noite esconde
E outras vezes
Vejo o que a noite mostra e o dia oculta

614
É tudo igual
Num arraial de sons e brilho intenso
Ou na infinita quietude do silêncio
Onde brilham os farrapos capitais da minha alma
E o que que resta de ser o que eu já fui
E o que serei
Quando de nada mais tiver do que ter compenetração.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Aqui me escuto e me agradeço
O estar
E de estar sendo a dimensão do ser
Que se liberta
Do que lhe resta de ser o que ainda é
O ser que é além de mim
E o ser ser em mim o que ele nunca foi
Tanto maior em mim quanto menor eu sou
E o ser eu tudo
O tudo que não sou
E o tudo que é fora de mim
Estou sempre nu
Estando ou não estando
Ficando ou indo
Ou voltando
Despindo ou vestindo a roupa
E sem contemplações
Os preconceitos
Fico
Com o sabor da Joaquina ainda nas peles
Saciando todo o fragor do mundo
A vida que se cruza pelas ruas
Olhando
Do alto do meu campanário
A turba em altercação
Hoje teve polícia na babilónia
Confusão no cruzamento
Óculos de sol pelo chão
E nem há sol
Corre corre pela rua
E tudo volta ao normal
Passou uma mulher nua
No cenário principal
E o dia acaba depois
Sem qualquer recordação
Daquela confusão toda
A que assisti
É a passagem dos dias
E eu
Ainda que faça frio
Lá fora onde a noite cai

615
Faço o que posso
O que me dá na cabeça
Fecho a porta da varanda
E fico nu e pensando
Na confusão
Em que a minha vida anda
Gostava de me despir
Dos pensamentos
Mas nem sempre tenho a via aberta à concentração
Disperso-me
Respiro e me diluo num abraço em que por mais um tempo
Muito espero
E vou cantando
Nessa espera que é indo
E voltando
Estando e sendo
Sempre febril e atento
Sempre cansado e indolente
Eu vou
Numa tarefa interminável
De uma atitude desmedida e incansável
Que sempre se apresenta como sendo
O doce imperativo do destino
Mas o destino ele mesmo
É o que acontece
E só se sabe depois que era o destino
É uma realidade que se manifesta sempre
Pela dor imaginária
Que se alberga no destino
Que transcorre.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


A intempérie que ainda há pouco parecia anunciar-se
Acabou por não ocorrer
Só se verga a temperatura que é mais baixa
Mas há sol
Neste recanto do mundo
Em que me é dado viver
E onde apesar da minha impertinência fundamentalista
E contra a minha vontade
Preciso de admitir
Que me apetece colocar uma roupa sobre o corpo
Mesmo porque nesta meridional parte do mundo
Aquecimento central soa a blasfémia
E então
Pode apetecer-me mas resisto
O frio há-de passar e com o tempo
Virem os dias felizes
Que como todos os dias da vida e cada dia
Se escoam e se acumulam intangíveis

616
No pranto que se diz que como o tempo
Passa
Como o tempo os dias passam
Engolidos pela noite
E renascem rotativos
Se renovam nas manhãs
Castas banhadas de sol
Ou de chuva
Ou de poalha
Ou de cacimba
Céus enevoados
Catálogos intermináveis em que se consome o mundo
E a minha nudez permanece
Resistente às rugosidades do tempo
E indiferente
Incólume e sã
Triste e perversa
Livre da placenta renitente
Independente
Solta dos véus que lhe revestem os pudores
Glabra e feliz.

Estou sempre nu no meu quarto de hotel


Não fiz a barba
O frio beija-me a pele
Mas eu só me sinto mais no fundo
Onde o coração fiel abastece o corpo de calor
O tempo seca o destino
Amadurece na flôr
A passa tomba no chão
E fermenta com a dor
O cálice onde é vertido
Esse licor
É o coração
E a bebedeira de luz
Desse generoso néctar
Esparrama-se na vida e enche
O copo de felicidade
Nua a alma então reclama
Mais um pouco da bebida
E a embriaguez da vida
Parece eterna
Nunca sei o que vai acontecer
Sei que anoitece no baixo
No céu é sempre de dia
E nos confins do universo
Brilham luzes
Anda uma mulher nua pelo meu quarto de hotel
É a Joaquina
Preciso ir

617
É para o que serve um quarto de hotel
Ter uma cama e dormir
Ou ficar nele a viver
Eu por mim já vou dormir e até lá
Quem poderá dizer?

ESTUDO

Já ando estudando esta assumpto há tanto tempo


Mas tenho sido um mau estudante
Mesmo apesar da minha persistência em estudá-lo
Tenho dito e redito as conclusões do meu estudo
Mas também me tenho perguntado muitas vezes
Se existe realmente utilidade em estudar
Uma verdadeira utilidade.

AS PESSOAS QUE ESPERAM OS COMBOIOS

As pessoas que esperam os comboios


Diferentes das que esperam aviões
Parecem ver o ar mais mansamente
Quando os seus olhos ficam presos no vazio.

Vêem chegar o comboio devagarinho


Sentem-lhe o cheiro a ferro engordurado
Catapultando a cada instante ultrapassado
O tempo para o mundo mais adiante.

E as pessoas sufocadas sob o peso


Daquela arquitetura em movimento
São pessoas idosas antigas congruentes
Com o conceito que informou a invenção da máquina a vapor.

Viajam lentas em um confessionário de recordações


Despidas da vertigem das viagens atuais
Como navios parados em oceanos de antigas emoções
Que fazem parte de uma hora já sem chão.

Vidradas na incompletude acre e vazia do cais


Quando o comboio ainda não chegou
Na gare da vida em adiadas luas
São as pessoas que esperam os comboios.

618
RANÇO

Há dias em que me sinto burro


Sinto-me tão burro
Dias em que transcorrem longas horas de burrice
De pura burrice
Em que só tenho pensamentos estúpidos
Muito estúpidos
Ou em que luto desesperadamente para não ter nenhum
E em que não acho divertimento em nada.

Deve ser por eu ser burro


Muito burro
Ou por estar aborrecido
Quando fico aborrecido
Deixo passar as horas sem querer
E nem é por eu querer
É por não haver limite
Na ilusão.

Com mais ou menos embalo


Ou sem embalo
Vou embalando o destino
E o meu destino
Nos braços de quem navego
Ou mesmo nesse em que em dias não navego
Ficam-me presos no goto
Não os engulo.

Os engulhos dessas coisas


Todas as coisas
Que na vida temos que engolir
Que passamos a vida a engolir
Vão-se somando e um dia que depois
Muito depois
Vemos chegar
Diz-nos o preço de todas essas coisas que passam.

Reiteramos as razões e o propósito


Mesmo sem ser de propósito
Categorizamos imbecilidades vãs
E como vãs
Emaranhadas malhas que se tecem
Em vão se tecem
As malhas vis e mentirosas
Da inocência.

619
O dia passa e não se tem uma ideia
Nenhuma ideia
Nem que seja a de se ter
A dor de ideias não ter
Fica uma espécie de ranço
Um ranço
De um toucinho que comido
Resta podre.

Fermenta a fruta cose a cera no soalho


Mesmo se não há soalho
Só o vento não se estraga só sopra como uma flauta
E ás vezes falta uma flauta
Nos dias passando iguais
Noites iguais
Aos impulsos desiguais da melodia
Com que o dia canta bem.

VEIA

Às vezes penso na veia


Quando me falta
Ando sempre de sandálias
Chulé ao léu
Calcorreando os caminhos
Que se apresentam
Quantos livros já escrevi
E caderninhos
E coisas que antigamente
Se chamavam
Blocos ou blocos de cartas
Nunca escritas
Resmas e resmas e resmas
De papel
Pontos de interrogação
Que ficaram
Em coisas ditas e frases
Inacabadas
Num equilíbrio instável
Periclitante
Débeis encadeamentos
De ideias
E ainda me pergunto
E desabafo
Em portas inacessíveis
Para o nada
Dessas mensagens inócuas
Que ressoam
Mesmo depois de o papel

620
Ter acabado
Transfigurado em modelos
Electrónicos
Desfigurada a ilusão
Do pensamento
Não me alcança a propensão
De perdidos
Lhe procurar os sentidos.

ÁGUAS E MINAS

Qual o meu amado mestre


Não apascento rebanhos
Apascento hordas incríveis
De sãos animais selvagens
Guardo os pastos indizíveis
Das minhas vacas sagradas
Dos rios as águas correntes
Dos prados a humidade
Onde sonho ervas daninhas
E de raízes profundas
Águas e minas.

JÁ PASSA DA HORA

Já passa da hora
Cheguei atrasado
A esse evento fatal
Que tinha marcado.

Agora sentindo
O tempo fugir
Já nem sequer sei
Bem se quero ir.

Posso-me encontrar
Livre em movimento
Amplo o dia solto
Do meu próprio tempo.

Sem nem calendário


Sem horas marcadas
Só espaço infinito
E horas passadas.

621
BANCO DE VERSOS

É preciso abrir os olhos


Quando a luz nos atrapalha
Criar ventos ver arestas
Azúis de brancas varandas
Fico parvo com a vida
Tudo me parece bem
Mesmo o que evidentemente
Me parece que está mal
Estafermo me considero
E é por alguma razão
Foi provado muitas vezes
Não adianta negar
O que é mesm’uma evidência
P’ra poder testemunhar
Basta existir convicção
E aprender a confiar
Nos delírios da razão
Já cortei o meu cabelo
Já fiz mil patifarias
Não me desgosta o engodo
Nem não as pérolas frias
Nem versos de quatro patas
Nem causais anomalias
Só as tias me desunem
As cordas da doce lira
Quero sempre muita dança
Na minha quadra vazia
Muitas ânsias quando mansas
Que me dêem luz ao dia
Trago comigo uma bíblia
Que é um livro de poemas
Que eu lei’ como se de salmos
Fosse a sua ladainha
Fossem do rei Salomão
Ou dos profetas antigos
Profetas poetas são
E poetas são profetas
De profecias modernas
Ou de antigas heresias
Tanto dá é tudo igual
O importante é a fé
Temos aqui umas notas
Notas de música quântica
Temos notas de dinheiro
Temos perdas notas soltas
Notas perdidas a esmo
Temos notas de notário
Temos cartórios de notas

622
Propriedades em notas
Notas de culpa chamadas
A serem notificadas
As pessoas envolvidas
Temos notas anotadas
Em variados cadernos
E notas de pé de página
Em livros lidos ou não
E todas elas serão
Plenas de significado
Ás vezes surgem-me as frases
Feitas de nexos causais
Outras vezes flutuantes
Sem nexo ou acidentais
Para que haja reportório
Tudo junto e embaralhado
O jeito seria o mesmo
E a sequência divina
Tudo dá samba de côco
Ou ira da Paraíba
Pertinência não tem preço
Nem a ira nem o dia
Nem o cavalo do seixo
Nem o camião do lixo
Mesmo que fosse Viterbo
Valdomiro ou Valagão
Teria que ser miúdo
Teria que ser grandão
Plutocrata homem de mão
De bandido infame ou não
De polícia e de ladrão
Ref’rente à mentalidade
Todos têm seu quinhão
Fui uma vez avisado
Indo de rota batida
Nas linhas de Cabo Verde
Onde fiz ‘scala na Praia
Das bundas das negras gordas
Corpos e almas cansadas
Confinados em cadeiras
Apertadas de avião
Procuram no seu cansaço
Achar refastelação
E quem já está apertado
De esqueleto e coração
‘spremido exausto e perplexo
Caminhando mal sentado
Em um esquife aparelhado
Redobrado e vertical
Onde pode sentir frio

623
Quem viaja descoberto
Vinhos de torna viagem
Carregados contra os dias
Em recatados barris
De carne a alma e o vinho
Descontrolados no passo
De passadiços postiços
Todos os dias passados
Fazem falta ao património
Ao inventário comum
Dos perdidos e achados
Aos nunca contaminados
Pergaminhos de outras horas
Aos relatos dos naufrágios
Imaginários… talvez
Outras viagens porém
Cheias de esperança e porvir
São uma porta de vidro
Por onde passa ligeiro
O pensamento abstrato
Porque se passa já visto
O lugar ‘onde se vai
Viu-se o destino traçado
E só se preenche a rota
Os corpos são transportados
A matéria se desloca
Mas o que voa é o espírito
Instantâneo e panteísta
Entre concreto e abstrato
Coisas ditas e pensadas
Presumidas de verdades
Intensamente vividas
Ou recusadas viver
Sempre sentindo intenção
Depois de ser concluído
O espaço da caminhada
E a realização
Do tempo da despedida
Haverá poetas gordos
Uns melhores outros piores
Conhecidos gordalhufos
Ou impenitentes práticos
Havendo magros também
E outros assim assim
Poetas contabilistas
Bêbados empedernidos
Sem abrigo sem tostão
Videntes alucinados
Drogados e psicopatas
Haverá ricos também

624
Até nobres sei que os há
De todos só o que fica
Como herança e inventário
É de tudo o que sentiram
Se fartarem muito cedo
É preciso compr’ender
Todos os encadeamentos
Não ter dúvidas nenhumas
Só ter restos duvidosos
De uma certeza perdida
Esse é o contão do fado
Esse é o fado da vida
Já sant’Amália escreveu
E se escreveu bem cantou
Já mestre Alfredo calou
Para que a diva cantasse
E bem assim o Caetano
Podia dizer aqui
Onde a rua é um jardim
Todas as coisas que fiz
As que não fiz as deleite
Todas as minhas demandas
As carnes das minhas amas
E as de noite e as de dia
Todas elas poderia
Dizer sem nenhum remorso
Tenho remorsos dos dias
Que queria ter vivido
E que deixei de viver
Mas nem mesmo isso adianta
Quando a roda se atravanca
Saudades leva-as o vento
E aos remorsos também
Mesmo só e sem ninguém
Jamais ficarei sòzinho
Este verso já o disse
Mesmo assim fica aqui bem
Todos os outros que eu disse
Quereria repeti-los
Dizê-los de outras maneiras
Mas sempre nesta toada
Essa única soprada
Por uma qualquer magia
Não direi que ela é maior
Não tem maior nem menor
Só me toca a verdadeira
E nem sei se boa ou má
Nem se tem finalidade
É só p’ra juntar os ossos
Como a vida junta os dias.

625
CONTA CORRENTE

Essa lista é muito longa


P’ra poder ser dividida
É uma coisa brilhante
De extrema coincidência
No caminho percorrido
O que se vê é saber
Entra na fila do haver
Entra na sombra não há
No deve entra o esquecimento
Entra tudo o que se quis
Do que ficou por fazer
E a vida ficou devendo
São ativos duvidosos
E ninguém os pagará
Este é um tema batido
E os cheques fora de moda
Quatro entradas sem saída
Duas saídas sem fim
E uma só conflagração
Que a boca aberta permite
Esta vida passa rápido
Tudo passa num foguete
À velocidade nua
De um raio lazer no vácuo
Melhor lazer no vazio
Concordar em aparecer
Ao sumo contabilista
Com ares de bom pagador
Sem trejeitos de anarquista
De retinto comunista
Ou de qualquer refractária
Índole ou boa razão
Que o senhor tem paciência
Mas sua vasta exp’riência
Não é dada a exageros
Tenho repetido versos
Mesmo sem e propósito
Mas só quando fica bem
E parece indispensável
Quando rimam é melhor
Mas difícil p’ra valer
É dizer as mesmas coisas
Repetindo a mesma ideia
De uma maneira diferente
Indo zurzindo a ideia
Sem nunca a matar de vez
É uma conta-corrente

626
Que se aproxima do fim
Vive sempre no limite
Mas não se consome nunca
Não cai na inadimplência
Quando parece morrer
Se se cala quase morta
Volta circunstanciada
E ainda que fugaz
Muitas vezes esquecida
Vive a crédito falida
Dá cambalhotas e assaz
Pratica malabarismos
Para resgatar a vida
Foi dever de antigamente
Projectado no devir
A água teimando em ir
Sempre para o lad’de baixo
Deixa lá vamos embora
Que a moléstia se desmembre
Salta aos olhos que não mente
Quem diz a verdade toda
Mas aos olhos enxugados
De alguém que percebe a vida
Vê que a conta está mal feita
E a dívida dividida
Por quem não conhece a vida
Que a volta que tem no s
Já foi dito algumas vezes
Nem todo o mundo conhece
Lá debaixo é que se sente
O peso à condenação
Cobra permanentemente
Não se dobra nem desmente
Fica reduzindo a juros
Análoga constrição
Mas só morre de repente
Quando aperta a solidão
Fica suspenso no pente
Um fio de cabelo então
De onde pende inconsequente
Toda essa consternação
Pernoitado o vendaval
Exauridos bons conselhos
Tudo o que fica do mal
Que se fez quis ou sofreu
São os desejos benquistos
Os afazeres não cumpridos
Tudo o que se inventaria
O que se inventa e plagia
Que também se homenageia

627
Na transcorrência dos dias
Dependendo dos momentos
Tudo tem a sua hora
Quando a vida me tortura
Não sei mais o que fazer
Faço versos quebrantados
Faço anéis de imaginário
E mesmo quando refeito
Da minha imaginação
Escapa-me ainda o efeito
Da reza que tenho à mão
Gostava de ser moderno
Ter as mão nas algibeiras
Passar nos ‘spaços eternos
Sem me sentar nas cadeiras
Sem me apoiar nas varandas
Nem me cobrir nos umbrais
Passar nas voltas das tranças
Nas danças dos carnavais.

QUALQUER DIA MORRE O GIL

Qualquer dia morre o Gil


O Cartola e o Pixinguinha
Também já foram
Há quem diga que os pretos duram mais
Quando não são apagados na infância
E ficam sem saber o que seria ser grande
Qualquer dia morre o Gil e mesmo sendo mais novo
O Seu Jorge há-de ir também
O Zeca Afonso já era
Quando morrer o Caetano
P’ra quem é que eu vou rezar
De quem irei aprender
E copiar
Quem sabe as canções do Chico
Talvez aprenda a aprender
As do outro também Chico
Mas César de sua graça
Talvez aprenda as do Tom
Que eu entretanto esqueci
Talvez aprenda da rua
Por fim o significado
Nem mesmo à noite eu já saio
E do dia o que me resta
Saber respirar e ser
Quero aprender.

628
JAMAIS FICAREI SÒZINHO

Jamais ficarei sozinho


Nem no ‘scuro nem no silêncio
Todos os dias que eu viva
Sempre tirarei cativa
Da alma uma nuvem clara
De uma pureza mais funda
Que trezentas negras virgens
Onde me levem voláteis… as vertigens
Jamais ficarei sozinho.

Em vez de Invernos calor


Nas Índias Ocidentais
Idas e vindas fatais
Delirismos tropicais
No pino do equador
Delirante evocador
Deliquescente de amor
Chegando alegre no ninho
Como um feliz passarinho
Jamais ficarei sozinho.

Nem nos dias obtusos


Nem nas horas aziagas
Nem sequer nas partes gagas
Que a vida nos prega às vezes
Mesmo que seja dos drusos
Dos turcos dos otomanos
Dos meus irmãos seres humanos
Jamais ficarei sozinho.

Tudo isso porque em frente


No seguir de cada dia
Tem uma graça diferente
Que muito me contagia
Que me dá muita alegria
E vibra presentemente
Nos sinos dos meus ouvidos
E no resto dos sentidos
Colorida de pintura
Uma negra iluminura
Pintada no meu destino
Que me diz e assegura
Que para a vida futura
Jamais ficarei sozinho.

629
Essa é a minha mulher
Quando está e quando ausente
Quando sabe e quando sente
Que eu sinto o que ela me quer
E que dos dias a vida
Des’ que ela esteja presente
Na vida fala somente
Da língua viva a doçura
Mais que uma ref’rência pura
Essa é a minha mulher.

Quando a hora se aproxima


De eu a encontrar de novo
A minha alma revibra
Reverbera uma emoção
Repercute a vibração
Do mesmo instante a paixão
Com que um dia começou
E de todas as maneiras
Abraços e brincadeiras
Sorrisos de bem-me-quer
O encanto de sorrir
E desse sorriso o ser
Dessa que é minha mulher.

Para todas as fronteiras


Para os caminhos mais loucos
Para a dança das cadeiras
Todos os risos são poucos
E de todas as que eu passo
E para tudo o que eu faço
Tem uma razão primeira
Que é tê-la sempre contente
Satisfeita e companheira
Do modo que a gente quer
Essa é a minha mulher.

E é por ela que eu existo


Que eu respiro e que resisto
Mesmo quando ser me cansa
E me parece que a dança
Carece de ritmo… e não balança
Mesmo assim nunca desisto
Vou olhando o mar e rindo
Só porque ela me acompanha
E na boca não se acanha
De me dizer o que quer
Essa é a minha mulher.

630
E eu acredito e vou
Transferindo atenção e sina
Para o lado da bonança.

ESTÁ CHEGANDO O FIM DO DIA

Está chegando o fim do dia


Minha injecção de alegria
Já desponta no horizonte
‘Inda não fecho a janela
Enquanto espero por ela
E aguardo que ela desponte
Do lado inverso da morte
Iluminando-me a sorte
De toda a luz ela é fonte
Rega as bermas do caminho
Nunca me deixa sozinho
E o caminho é sempre avante.

O sol morre atrás do monte


Da minha imensa saudade
E essa vénus sem idade
Assiste ao final desmonte
Do meu mundo estilhaçado
Sem futuro nem passado
Meu dia corre p’ra onde
O dia é sempre singelo
E um estribilho doce e belo
Canta ao coração amante
Esperando que aquele colo
Venha amansar-me o bisonte.

631
poemas de «A MINHA CIDADE» e
de «PÁTRIA» (incompleto)
A MINHA CIDADE

A minha cidade é muito antiga


Quem me dera vê-la um dia transformada
Em nave espacial lenta e pausada
Desapartando os fogos do seu chão imemorial
Estremecer içando-se e completa
Levitar
Vogar no céu por nuvens ocultada
Como o meu dilecto amigo Fernando Manuel
A viu e desenhou há muitos anos
Num papel.

A minha cidade é tão antiga que os seus folhos


Se desnudaram em olhos suas pedras
Foram polidas nas ruas e pisadas
Por gerações e gerações de viajantes
Almas andantes que deixaram na cidade
Sonhos e liras que até hoje restam inscritos
Nos delírios das pessoas que a caminham.

Calo os meus olhos ao brilho


Com que se houveram os dias de dizer
Lindos os contornos os detalhes
Lindos os fundos e as lembranças
Calo os mil olhos que me vêem
Partindo de um longínquo e translúcido mirante
E os longos trilhos
De uma memória antiga que o tempo já esfumou
Ajo e reajo aos meus impulsos seus
Acreditando ainda que são puros.

Já se fizeram mil retratos e tractos concebidos


Para serem respeitados e rompidos
Traídos ou levados pela fé ou apenas
Por uma simples e rudimentar obstinação
Até ao fim
Até ao nunca

632
Amados para sempre os seus recantos
Medidos os passos dos seus erros
Os espaços
Seus dias abertos
Seus dias claros e promissores
Suas medidas ténues
Suas esquinas tensas
Sua pacífica e fatal indecisão.

Quer fosse antigo ou o novo


Quer fosse o ignoto ou lírico
O pacto inequívoco
De insofismável estar
Provado e sólido
Que alguma coisa me une
E volta e meia me insiste em reunir
A este hipotético lugar em que duvido
Estar nele enquanto estou e para onde
Quando não estou
Surda e impertinentemente acredito que desejo retornar
E quando venho
E quando depois fico
Vou começando a sentir entre penumbras
Uma fluida vontade de ficar
Uma vontade inconsistente
Como eu eduquei minhas vontades para serem
E mesmo essa
Algures entre estrelada e nebulosa a sinto
Antes de saber ou decidir
Que decididamente é hora de partir.

É um pacto de amor e de desprezo


É um síndroma
Como se fosse o de Estocolmo que me tem trazido seduzido
Desfigurado
E em muitos momentos encantado
Hipnotizado pelas sombras
Das suas ruas nocturnas
Ou deslumbrado pelos sóis depois de almoço
Em tardes de Verão ou dias de Inverno solarengos
Descendo das mansas colinas para a baixa.

Vou à cidade
Ver as pessoas e retomar o fio emaranhado e indescrito
Dos acontecimentos
Mesmo naqueles dias em que já sei que nada acontece
Nem existe qualquer fundada espectativa de que vá acontecer
Vou ver a minha cidade
Mais uma vez como que querendo conhecê-la
Depois de a ter conhecido

633
De a ter sondado
Ter-me enlevado nela
E ter seguido
Ardente e estúpido o meu caminho
Sem que jamais a tenha ternamente amado
Ou que ela me tenha carinhosamente dito que gostava de mim.

E quando vou e venho


Quando volto
Encontro-a quieta e silenciosa
Como ela é nos dias de domingo
Nos feriados
Ou nesses em que é grande
O apelo de Verão para ir à praia
Fica deserta
Passa a espaços longos de vez em quando um automóvel
E os edifícios aproveitam essa pausa para brilhar ao sol.

Mesmo nos dias de semana o movimento é pouco


É uma cidade meio parada
No tempo
Meio afanosa da sua impertinente e vã
Modernidade
Fica no sol evaporando as sombras
Durante o dia
Que durante a noite a assombraram de viver.

Fica-me o dia testemunha de uma dúvida


Que como sempre se acoita atrás de muitas muito mastigadas
Falsas certezas
Será destino?
Será acaso?
Será tudo isso junto e mais o caso
De ser até por ser mera coincidência
O caos que se define por essa a superior vontade
E o cansaço
Com que os meus olhos sempre olham a cidade
Todas as cidades
Mas em particular e propriamente afinco
Esta cidade
A minha cidade.

634
Que lugar é este onde eu retorno
Da minha impenitente e vã circulação?
Sempre
Lugar do qual eternamente indago o estilo e a razão de ser
O rumo e a razão de eu aqui vir e de eu aqui voltar
Ou até da real motivação por que me terão feito aqui nascer
Lugar insólito indeterminação
Que por ser determinantemente inócua
Se revela abstracta embora grande.

Já tenho em rigor sido levado


A perguntar-me o que me faz
Chamar a esta em especial
Particular e carinhosamente
De a minha cidade
Pode ser que só por si a circunstância
De ter nela vivido por mais tempo do que em qualquer outra
Ou o que ela representa para mim
Ou por ser a cidade onde cresci… onde fui criança
E depois rapaz e homem
Podendo entretanto já ter porventura nessa altura
Escolhido outra
Para ser a minha cidade
Ou por ser então inteira a cidade da minha mãe
Ou por o meu pai ter vindo de uma aldeia perto
Estabelecer-se aqui
Ou até por ser tão simplesmente
A cidade em que eu nasci
Ainda que por mera determinação circunstancial
Ou mesmo tanto mais ainda
Por isso
Tenho perguntado e me pergunto consecutivamente e através do tempo
E não encontro resposta
Não encontro uma resposta concludente
E muito menos uma que seja conclusiva
E é por isso
Que continuo mantendo essa paixão
Resplandecente e interrogativa
Ataca-me a espaços
Umas vezes frustrante outras activa
Sacudindo-me o senso de identificação
Não com o espaço
Porque esse é o mesmo e infinito
Nem com o tempo
Que já há muito se cansou de passar por mim
Mas com a minha própria alma e com o lugar
Que ela procuraria se não andasse sempre
Agarrada a mim.

635
No fundo essa é que é mesmo a interrogação
Se é ela que me identifica a mim
Ou se sou eu que a identifico a ela.

Não sei o que ela é nem por quem ela foi


O que é
Sinto-a chamar-me de dentro
E quando passo
Nas suas ruas curtas e me deixo
Fluir no que delas se desprende como ideia
Vejo-me dentro
De um imenso trilho do qual se desconhece o fim
E o princípio.

A minha cidade é um buraco


Onde a alma mergulha sem augúrios
De cada vez que regresso
E é de algum dos meus múltiplos desnortes
O receptáculo caldo de uma sopa
Onde me sinto mergulhar devagarmente
Cova da piedade como consta
Ser o nome de uma outra invulgaríssima cidade
Poderia ser o nome desta em que padeço
É um buraco na cor do devaneio
Por ser a cova
De todos os maiores e mais pequenos devaneios da minha alma
E por ser pia
Tanto em concreto no sentido utilitário da palavra
Como sempre foi e tanto o mais ainda canónico sentido
O pio sentido de causar tanta piedade
Aos seus tão pouco numerosos circunstantes
E por ser mais
Mais uma vez e como sempre
Dos males de uma canção perdida
Dos prantos de um amor desencontrado
Ou dos tépidos anseios ao vil descaso
Me tem suado e tido refém minha cidade
De uma prisão à qual fui condenado
Sem que porém jamais tenha existido julgamento
Sentença e muito menos ou sequer
Condenação.

Quando aqui regresso alçado do meu sonho


Sinto-me separado
Do mundo em que me vejo em florescência
Esquecido da figura e sem ciência
Dos périplos asmáticos que eu vou
Rasgando nos martírios desse tédio
Com que me prende o senso do a esmo
E que me levam para onde a minha alma clara chama

636
Em latitudes mais da minha natureza
E outras paisagens que os meus olhos bebem
Como sedentos tuaregues sem oásis
Sem património nem benesses consignadas
Tudo eu revelo aos pavores da minha noite
Mas é quando regresso àquele abraço
Sufocante e frio do meu antanho
Que vejo relativo o seu tamanho
E dos meus ócios citadinos e vulgares
A lenta pasmaceira em que mergulha
A minha complacente paz
Aborrecida.

Fosfatos e estrelinhas também vejo


Na ilha do farol ali defronte
Nas noites em que a luz é benfazeja
Não essa amarela de eléctricas fontes
Mas a do olhar puro e do mais são
Deslumbramento
Em que bem perto
Posso olhar sereno e não muito distante
A silhueta como uma corola vegetante
Dessa cidade inteira e esparramada no horizonte.

A minha cidade tem esquinas vãs nos edifícios


Definindo um contorno ensolarado
De um céu que outros mais notáveis têm dito
Ser de um único azul muito bonito
E onde as esparsas nuvens que se formam
Da humanitária e natural respiração
Criam imagens que ao meu olhar são recorrentes
De todos esses dias que não conto
Mas em que vejo
A sombra dos pintores renascentistas
E essa cor
Deixa a dever o sal da perfeição
Aos meus antigos
Que no chão esgravatam complacentes as salinas
Talvez alguns desses desenhos do Leonardo
Chegassem perto de fazer lembrar alguns recortes desses céus
Em que eu costumo descansar o meu olhar
Quando estou farto do barulho da cidade
A minha cidade
Onde tem dias assazmente insuportáveis
Mas como foi ditado em solução maior
Que o suicídio não é a solução
Não uma que credível se apresente pelo menos
Eu os suporto
Impassível à passagem dos momentos
Que passam implacáveis no meu livro

637
Esse dourado que se diz ser o da vida
Livro da vida em que a vida se consome
Inútil e parada como se não existissem
Nem dias nem momentos nem anos nem decénios
Nem aflitos os nervos reclamassem
Desse fascínio o tédio
De serem os dias vividos remissíveis
E de se poder enfim fazer parar o tempo.

Como já terá ficado atrás bem demonstrado


Da minha cidade pouco ou nada há p’ra se dizer
E do pouco que teria merecimento
Os meus amigos historiadores já se encarregaram
Do seu astral leitoso é que me interessa especular
E em versos trucidados devolver
Dos meus delírios e imóveis devaneios
Repesada com juros e correção
A justa paga.

A minha cidade é onde encontro


Do meu diverso e multíplice sofrimento
O que seria o não tão merecido
Repouso de uma zona de conforto
Onde o conforto não é ainda assim
O que eu visualizo como estágio completo e acabado do conforto
Mas é em todo o caso uma miragem
Que se parece por momentos ao descanso
E é com certeza por isso e certamente
Que quando sou virada a mesa
Ou a página de um livro postergado
Ao humilhante e sempre eivado
De intolerável má vontade
A isso constrangido pela universal intolerância dos meios
Com que a minha vida é apreçada
Obrigado à vileza do regresso
O mais que sinto
É uma vergonhosa e quase estéril
Vontade de dormir.

Em nada edificante e animador


É nada do que eu sinto quando estou
Em letargia remoendo os anos
Na sopa morna e penumbrosa
Desta minha cidade de equinócios
Os solstícios são para outros voos
Com que enquadro o tépido azedume
De uma sopa que não houve o cuidado de guardar no frigorífico

638
Eu como-a assim mesmo
Porque a fome em que me arrastam os sentidos
Assim obriga e no entanto
Jamais lhe frequentei o aeroporto.

Na minha cidade todavia tem recantos


Aprazíveis recantos de lazer
Onde jovens estudantes vêm namorar
Os reformados matam horas e horas de recordações
Os desempregados obrigados a comprarem o jornal
Mostram aos outros desempregados que o compraram
Os trabalhadores em horas funcionais picam o ponto
E adolescentes aproveitam cabisbaixos
P’ra se beijarem côncava e furtivamente
Nesses lugares onde a sua ainda tenra idade
Aconselha vivamente que se beijem
E os reformados obrigados a ver esses furtivos beijos
Fingem então furtivamente não os ver
E ficam aparentes compilando
Quantas cartas de copas já saíram
E se as manilhas como eles estão secas
E no caso de o baralho não ter cinco
Ou se podem descontraídos e cansados
Impermanentes e tensos no momento
Da decisão que reperspectiva a mão
Jogar o ás.

Mas a verdade é que não sou eu o único a dizer


Nem não sequer o único a sentir
Que esta cidade não tem alma
Ou então anda esquecida de a alimentar.

Convém então aqui raciocinar


Se não tem alma certamente é que a perdeu
Em algum périplo invejoso
Ou em alguma cobardia inexplicável
Das estúpidas elites que atravessam
As vidas das pessoas que subjugam
Ao mando inconsistente da comida
Ou a esqueceu…
Talvez
Talvez daquela vez do roubo infame
Dos trinta e seis volumes diletantes
Da tão estranhamente diminuta
Colecção de livros do bispado
Levada por corsário não tão culto
Que de riquezas literárias fosse arauto
Onde constava ter presença e arquivamento
A bíblia do Gacón judeu errante
Levada em mãos

639
E dos clamores da crueldade do saque
Da timidez das filhas
E dos brios
Das posses das pessoas
Da vontade
Laboriosa e tenaz de uma cidade
E no incêndio que se lhe seguiu
Tenha ficado das pessoas
A alma chamuscada.

Os deliciosos estudiosos do pranto virão constatar


Que era p’ra norte que o augúrio se visava
E dessa pertinaz mas desapercebida incongruência
Muitas cãs de péssimo entendido foram feitas.

Na minha cidade tem ruas de casas baixas


Portas e janelas…
Baixas
Onde se passa com os olhos diluídos
À distância de um soluço
Das vidas que se encostam resumidas
Entre as paredes dessas casas baixas
Casas antigas
Onde ninguém ri faz muito tempo
E onde a luz tem dificuldade em entrar.

São ruas estreitas às vezes sinuosas


Ruas antigas
Que falam aos corações especulativos
De uma hora que insiste em não passar
E as horas passam como anos
Rápidas e translúcidas
Ou longas e intermináveis
Passam como os anos e os meses
Acumulando os séculos como o pó no chão
Rebatem sensações há muito embaraçadas
Nas sombras bafientas dessas casas.

Na minha cidade não se faz nada


Nunca se faz nada
Ninguém faz nada
Compra-se tudo já feito
E no entanto já foi parque
De inumerável frenesi de inolvidáveis artesãos
Construtores e incansáveis criadores
De criaturas várias em artes imortais
Artífices
Talvez de artes já pretéritas
P’ra cujas competências ninguém liga mais
A não ser os raros estudiosos e os apaixonados da história

640
E certamente também
Restauradores
Artesanatos vários de outras eras
De humanas e viris monomanias.

Na minha cidade tem é claro a minha rua


E na minha rua a minha casa
E na casa tem à porta o que seria
Se ela fosse como antigamente eram as casas
Um poial
Nesse poial eu fico às vezes sentado ao fim da tarde
Olhando o céu e vendo passar os automóveis
E as pessoas que de um lado e de outro nos passeios
Vêm andando devagar
As pessoas da minha cidade
E é nesse reduto
O mais localizado e pessoal da urbanidade
Que eu penso nas pessoas
Os meus conterrâneos
Os que vivem ou nasceram ou estão
Comigo aqui nesta cidade
Onde eu nem deveria ter nascido
Deveria ter nascido em outra igual a esta
Ou apesar de tudo
Diferente.

Eles serão afinal o que devesse ser


A alma da cidade
Ou o seu suporte
Essa alma que tantas vezes me parece
Que a minha cidade já não tem
Ou que eu nem noto
Por ela ser parte de mim
E eu parte dela.

São pessoas boas e normais.

Nesta cidade os domingos são desertos


As pessoas parecem ter-se evaporado
Seria o que parece ser o que seria
Uma cidade fantasma
Se aqui ou outro ali ou um
Um ou outro reformado
Não aparecesse transportando uns sacos
Cheios de nada
Mas não vazios
Cheios de um nada onde alguma coisa
Pode parecer ter-se perdido
No afundar balançante e gravítico dos sacos
Esses… de plástico.

641
São reformados
Da marinha quem sabe
Ou do exército.

Nesses domingos à tarde


Quando o dia parece ter tombado de um marasmo
Em que a ausência das pessoas o deixou ficar estiolando
Aparecem então outras pessoas
Que se aprumaram p’ra sair
Depois de terem feito a digestão
Essas estão aproveitando o sol que ainda há
E passeando nos passeios o seu passeio
De domingo.

É uma cidade em que se fixa


Numa penumbra apagada
Uma luz discreta
Uma luz tímida que brilha
Dentro da luz
E flores lilases que flutuam
Sobranceiras aos prédios mais antigos
Como perdida que tivesse sido
Interrompido o fio da história
Esta cidade tem miasmas que respiram
Como se a vida quando acontece nela
Fosse um passeio um pouco ou nada acidentado
Pelas sombrias e abandonadas
Raríssimas e esquecidas
Transparecidas sombras de uma cidade fantasma
E acontece
Por qualquer razão que o meu delírio
Minha razão desconhece
Ser essa a massa clara que se afirma
Por ser a minha cidade
Uma cidade onde lilases florescem
Quando a estação é a propícia
As bonitinhas flores
Do jacarandá da Bahia.

A minha cidade quando chove é natural fica molhada


E nessa húmida aparência de realce as suas cores
Ficam cinzentas mas mais significantes
São dobras de trajetos resolvidos
Pedras de um brilho que só os anos dão
E pressurizam com a patine da aceitação
As mágoas em que os dias foram lidos

642
Não é preciso muito afinalmente
Para que seja um purgatório esta passagem
Por esta cidade em que afinal
Eu nem deveria ter nascido.

CAI A TARDE

Na minha cidade tem todos os dias uma tarde


Uma tarde que cai
E eu penso cai a tarde
Cai a tarde na minha cidade
E vejo aquela luz fosca e irradiante
Que me tinge a alma de prazer
Um prazer melancólico e difuso
Mas benfazejo e são.

Não tenho outros pensamentos


Naquele momento em que parado o tempo parece querer parar
Não penso em sóis nem luas
Nem em ontens
Nem em amanhãs
Penso quase inocente e contemplativo
Que a tarde cai
Como eu escutei centos de vezes em canções
E então aí
Vêm-me à cabeça as melodias.

A BAIXA

Vamos à baixa
À baixa da cidade
A parte mais baixa
Da cidade.

É baixa porque fica


Em baixo
Nos socalcos
Das ruas das árvores dos jardins
Canteiros casas
Que escorregam mansamente para o baixo
Do céu
Do mar a praça em trio.

Vamos à baixa
Sempre descendo
Por ruas mais ou menos inclinadas
Mas sempre pouco
Como se fôssemos água

643
E corrêssemos
Para baixo onde se encontra a doca
Mais além.

Passamos pelas ruas e paramos


Nas esquinas para conversar
Mesmo quando as esplanadas estão repletas
E já se decidiu não ir ao restaurante
Comeu-se em casa
Mas na baixa
Vai-se ao Amaro e come-se uma pizza.

Na baixa tem as lojas


Onde se pretende que os turistas entrem
Tem as calçadas lisas
Que ao fim de muitos anos e de muito
Serem pisadas
Adquiriram já aquele brilho a que se chama
De patine.

E depois de se pisar muita calçada


É que se encontra o Amaro
E o Aliança
E então sim a verdadeira baixa
E os barcos e a doca
Para lá tem a linha do combóio
Mas para lá já não é baixa
É a ria.

Vamos sempre à baixa


Mesmo que seja só na passagem do ano
Ou que nem isso
Vamos à baixa porque é em baixo
E para baixo ao que parece
Todos os santos ajudam
Então descemos
Mas não o suficiente para cair na ria
Onde é bonito
E a cada ano
No último dia do ano
À meia-noite
Reluzem e rebentam os fogos de artifício.

CASAS GRANDES

Na minha cidade havia casas grandes


Onde abundavam estritas e laboriosas
As pessoas produtivas das indústrias
Que já não há.

644
Havia casas
Grandes
Pertencentes a senhores muito tenentes
Casas senhoriais
Reserva de famílias muito antigas
E cujos descendentes com raras excepções desertaram da cidade
E os que ficaram ficaram por paixão
Ou por herança.

Na verdade antigamente
Tudo pertencia aos mesmos donos
Mas as imagens os trabalhos
E desses e daquelas os sonhos
Viviam na alma da cidade
Davam-lhe cor e vida.

Tudo mudou e desses restos


Remanescem os sonhos dos seus sonhos de pedra e cantaria
Dos rasgos de grandeza idos afora
Em barcas e vapores de outra ternura.

É PRIMAVERA E JÁ FLORIU

É Primavera e já floriu
A árvore das pitangas
Em frente ao Palhacinho
Onde o palhacinho já morreu
E o filho também já o vendeu
E com ele o que restava da velha tradição
Da imperial e do café.

O palhacinho mesmo
O que dá o nome a toda a área
Ainda lá está cobrando o pó
Dos anos em que ninguém reparou nele
E no entanto
Ele
Era o que dava o nome
A toda a área do café
Onde a cerveja era tirada a copo
E o copo onde era derramada a espuma
A tão doidamente apreciada espuma
Abaulado no meio como um barril
E do barril era arrancada aquela espuma
E em cima do barril
Pedras de gelo.

645
Naquela altura quase de certeza
Não havia ainda a árvore das pitangas
Praticamente nada havia nem o chão
Ainda que no chão houvesse os ossos
Que nessa altura seriam a alegria de outros cães.

Eu já tinha esquecido que a poesia


Ainda era o que eu penso das coisas quando as vejo
Talvez que com o tempo cada vez
Eu veja mais coisas
E que dos olhos se irem esvaziando com o tempo
Pense menos.

Todavia noutro dia em que o meu pai morreu


Ainda eu mal disso nem sabia
Já nem sei bem se foi um frémito
Que me trouxe de repente
À bandeira esvoaçante da memória
Aquele canto ainda igual e o lugar
Onde antes no topo do barril
O gelo arrefecia a imperial.

Talvez fosse antes a memória do lugar


Onde em criança eu ia com o meu pai
Quando era de manhã e ao domingo
Que desbragou aquele frémito
Que de prazer é quase choro
E que me fez começar ali a perceber
Que um dia como as folhas
Que das plantas secam no Outono
Também noutra estação secam as lágrimas
Às pessoas.

A ÁRVORE DAS PITANGAS

Naquele tempo
Parecia ter sido há dez mil anos
Um anteontem
Fantasiado entre memórias canto e lírios
Articulando
De príncipes palácios encantados
Lugares queridos
De encantos idos
Desaparecidos
Mutantes sentimentos seres humanos.

646
Lírica vem
De um antes que os meus olhos viram bela
Florida e clara
Nesse lugar que então chamei de praça aberta
Fui aprendendo
A despenhar-me livre em movimentos
Arder paixões
Quebrar milhões
De corações
Imaginários e felizes.

Nessa pracinha
Havia então um pitangueiro
Ou pitangueira não sei bem como se diz
Mas para mim
Eivado de antigos relatos de aventuras
Evocador
Era como um dileto companheiro
Um mago um monge
Vindo de longe
Que a alma tange
Nos vãos desvios daquele olhar distante.

Quando arrancaram
Inútil e inconsideradamente
Tão grande arbítrio
Quando são dele olhos cansados e distantes
A minha árvore
Aquela que eu sonhava através dela
Todas as ilhas
As maravilhas
Fragas e milhas
De caminhos sonhados e perdidos
Terei sofrido
Não tanto de saudade ou de perdão
Talvez de raciocínio.

Mas vinda a hora


De todas as saudades nunca tidas
É p’ra você
No colorido avarandado do meu sonho
Nas platibandas
Clarabóias de enlevo em que me amarro
Suave encanto
Risos e pranto
Que eu amo tanto
P’ra onde o meu delírio vai voando.

647
E então enquanto
Dos meus olhos se espraia um fluido manso
Um olhar quente
Que me procura medroso e imaginário
Constante e lento
O som sereno de uma voz distante
Que me segreda
Me toma e leva
Uma alameda
De palmeiras e de mangueiras grandes.

Mas é então…
Então que tudo muda de repente
E se ilumina
A cova escura em que agachado eu me carpia
E a harpa muda
A clave exorta e a pura lira
Volta a cantar
Supera a dor
Mói a distância
Liberta um nó
O que da vida ficou por desatar.

O JARDIM DA ALAMEDA

O jardim da alameda
É a coisa mais parecida
Que tem na minha cidade
Com a selva
Tem árvores centenárias
De várias proveniências
E batem nelas os ritmos
Dos tempos que já lá vão
Tem namorados sentados
Que já lá não estão
E artistas inspirados
Por botânicas visões
Tem passos tem corações
De gerações de estudantes
Tem sentimentos perdidos
Tem ambições esquecidas
De sonhos divagações
Embalados em destinos
Nunca cumpridos
Plasmados na eterna idade
Das ternas liricidades
Da tenra idade
Em que abertas e vivas lá resistem
Todas as possibilidades.

648
LISBOA

Lisboa já está perto e nunca tão


Longe do lado ensolarado de si mesma
Relampejada abastardada e inocente
Reconstruída em dor para ser nada
E de saudades incontida e amalgamada
Onde uma vez deixei os cravos crus
Da minha juventude em vão vivida
Saudades dos rios sós e comprida
As aldeias e lugares que lhe são queridos
A lonjura em que se estende o Alentejo
E que ela ignora gorda e indecente
Passada já como uma uva passa a vida
Do romance das ruas e dos fados
Amarfanhada e destituída
Cidade que já foi berço de sonhos
E que hoje provavelmente ainda é
Mas não sonhados nem vividos não cantados
Arrebanhados à babuja da maré.

ESTANTES

Estantes são quem está ou os que estão enquanto estão


Na estante os livros estão enquanto não são lidos ou pelo menos folheados
E os que se arrumam depois de lidos ou abandonados sem continuação
Então os circunstantes seriam os que estando parados ou em circulação
Assistem à passagem do tempo extasiados
Desatentos e meio desnorteados… são as pessoas
São as pessoas boas que vivem e que estão… na cidade
As pessoas deveriam ser todas boas como as árvores pintadas de lilaz
Deveriam abrigar e fazer sombra nas pessoas boas e más
E tudo certa e infelizmente teria um nexo
E pareceria ter por fim uma explicação… mas não
Mesmo que porfiadamente içada ao lugar onde se embalam e brilham as inspirações
Não se distingue nem se crê. [místicas

649
SUMIDOURO

Aqui é meu sumidouro


Minha anunciada espera
Um adiamento gago
De um preço que já foi pago
De onde não se encontrou hera
Nem europa atrás ou touro.

Tudo o que é bom se me suga


Se abre me engole e digere
Fico só fico perdido
Meu estro de mim escondido
E minha alma que espere
O tempo que em mim transfuga.

Passo doble esquerdireito


De uma tropa mal fadada
De perfil galaz e tonho
Toda a proa que em mim ponho
Parece desadequada
E o que é perfeito imperfeito.

Só me quero é ir embora
Passar logo essa aflição
Já chega de impertinência
Dessa amarga incongruência
Que me apaga o coração
Que tive feliz outrora.

Mas esse que agora tenho


Grita em surdina por baixo
Quer ver-se livre do jugo
Em que a mim mesmo me sugo
E em que o sonho não encaixo
No sonho que em mim desenho.

Toda a dúbia falsa paz


Que eu julgo sentir em mim
Não me tira do vazio
Todo o meu sangue extravio
E esse preâmbulo do fim
Não me empolga nem me apraz.

Quero ir para o Brasil


Quero ir enquanto é tempo
Lá tenho um amor ausente
Que quero tornar presente
Nas malhas do espaçotempo
Em espirais de azul anil.

650
DEMÉTRIO & SALGÚRIO

Demétrio foi sem culpa


Sem a mais pequena pena
Postergado varrido e inventado pela mãe
Foi Salgúrio esquartejado em praça pública
E sumariamente constrangido
Desobedeceu ao pai
Nos enormes entrechos dos barbantes
Foram os bardos tomados por berrantes
E os estudantes apúlios transformados
Em bois coadjuvantes.

Calconitratos inventários de mudança


Em conturbada dança falsa e mentirosa
De uma rosa as pétalas caídas
E as folhas em lamúrias descantadas
Soaram no cu das abastanças
Moratórias
A se perder do prazo das conquistas
Mal vistas as caganças
E as valquírias.

De dar de reclamar e de sofrer


Tem mais em ânsias
Que o pátio das fragrâncias
Alamedas
Atribuladas confianças
Que mistérios.

Não me partais a cabeça


Que a loucura já me chama
Apartai-me sim da chama
Que não me devora o peito
Que faça soar perfeito
O que é infame.

Que se foda a madressilva


Trompique-se a madrepérola
Tudo o que as musas maldivas
Cantem ou façam cantar
Aos ourives

651
E não me digas
Nunca por que ponte hei-de passar
Vou naquela em que sei estar
O meu grato coração do outro lado
Separado e cantochão
Esgalgado à fogueira brava
Do desnorte
Não me façais mais perguntas
Façam-me um broche.

PÁTRIA

PRIMEIRO CANTO:

A mim gela-me a alma só de ver


A terra outrora querida se extinguir
A pátria mãe tão doce que se afasta.

Acabrunha-me o ser
Rasga-me o espírito assistir
Ao lamaçal sombrio em que se arrasta.

Meu estro que se qu’ria luminoso


Fantástico apogeu da primavera
Padece em tons de cinza já sem cor.

Das lindas cores da natureza saudoso


Da moça alegre o riso e a quimera
Foge-me a luz e dos seus brilhos o esplendor.

Nas sombras dos ocasos é mais forte


O tom de carne e sangue da desgraça
E o espesso véu em bruma catatónico.

Atiram-se impropérios contra a sorte


Mas para ver triste e sombrio o fim à raça
Mais valeria na verdade ser daltónico.

II

De longe o ar em bruma se consome


A ténue compaixão é já perdida
Numa dif’rente e rasa latitude.

Vem a saudade como de uma fome


De uma carniça seca e consumida
A vorazes dentadas de atitude.

652
Talvez a pátria amada nunca ‘squeça
A singular matriz que se promove
Tempos afora só e sem cuidado.

Nos labirintos surdos da cabeça


Passa uma sombra que o peito comove
Recordações saudades e o fado.

A toda a pressa sai do promontório


Um último palhaço esbaforido
P’ra sudoeste alçado ao ar agora.

Do espírito mais puro o responsório


Lhe clama a vela apóstata e bandido
O santo inconsciente que é a Hora.

III

Eu sou a minha pátria que se esgueira


P’ra um destino agudo em outra parte
Parte-se a bússola fica o astrolábio.

Mapas puídos numa arrumadeira


Pintados de delírios sonho e arte
Ganham o pó e o cheiro a alfarrábio.

Que restará então da inspiração exótica


Que um dia me fez pisar os passos
Dos meus antigos e dos seus presságios?

Não foi nenhuma vertigem semiótica


Não foi a indolência dos meus braços
Foram os ecos dos gritos dos naufrágios.

E se depois para contar a história


O esquecimento foi o que restou
Deixem-me agora larguem-me o passado.

Contos antigos rimam com memória


Mas na fachada que desmoronou
Só resta o resto de um Brazão quebrado.

IV

Ainda que embalado em alquimias


Embalsamado com poções espúrias
Senti no peito o chamamento antigo.

653
Anjos pretéritos cantos nevralgias
Hiperestasiáticas luxúrias
Ventos e climas de um lugar amigo.

De tudo conclamei ao meu delírio


Ao devaneio insano e persistente
Com que dourei a pílula da vida.

Mas regressado ao lar à mesa ao círio


Que débil me alumia inconsistente
Vi sombra a luz da ideia outrora tida.

E recalcados os desgostos tidos


As frustrações e as ilusões passadas
Fiquei à toa em mar nem sempre calmo.

Vi atletas no ar ser consumidos


Vi gigantes heróis cabras aladas
Não distante da besta mais que um palmo.

Vaguei no mar doente e malcheiroso


Plantei canalhas pelo mundo afora
Teria preferido a tudo rir.

De ficar tonto o profanado gozo


De um amor louco a noiva ainda chora
Jamais se pode o triste fado redimir.

Voga não arde só sem direcção


Aos portais nobres despedida a sorte
Vai e eu com ela cantaremos juntos.

Creio que já azul a morta mão


Se agita ao ritmo que lhe sopra a morte
Mas é melhor calar esses assumptos.

Já bate o sol nas pedras da muralha


Já no terreiro flanam os cambistas
E o mercado de escravos nunca dorme.

Na dor da consciência de um canalha


Na patética fleuma dos sacristas
Gemem os gritos de uma infâmia enorme.

654
VI

E às vezes dá vontade de gritar


A tanta iniquidade que fizemos
Nem é questão que tenha sido eu.

Nem ao sangue que o sangue é fogo e ar


Nem ao coração que nunca pudemos
Arrancar do santo horror ao gesto ateu.

Lavadas as mãos por gravatinhas


Atadas ao pescoço com vergonha
Das vergonhas jamais vimos o fim.

Sentimo-las gravadas nas entranhas


Eu sim as sinto e delas a peçonha
Sou o que sou por quem o fez por mim.

Mas as imagens não se dissiparam


Sal e horror descomunal traição
Sentida e ressentida no ser mesmo.

De corpos que destinos amarraram


Ao sal e sonho de uma tradição
As peles transformadas em torresmo.

VII

Não há-de a vida inteira e o futuro


‘duzir dos dias o valor profundo
Do que da história ficou por contar.

Senti mais fundo o vício prematuro


Quando parei em mim olhando o mundo
E todos os fantasmas quis amar.

Mas a verdade pura e cristalina


É que de amável alguns não têm nada
Mas afinal todos são parte e grito.

E estridem nos vãos da hemoglobina


Armadilhando bermas na encruzilhada
Em que se cruza o ar com o atricto.

Quando o som do horror dita o seu tom


E deles só se escutam os que gritam
Numa orquestra de gritos guturais.

655
Perde-se o rastro de um destino bom
Enquanto olhando-nos os nossos ficam
Cantando suas óp’ras atonais.

VII

Quando se ouvem tais lamentações


E se conhece ao certo de onde vem
O que se semeou cresceu floriu.

Quando se medem as tribulações


E se procura um fio que ela não tem
A vida quer voltar ao colo do seu cio.

No longo peregrinar de uma alma


Plasmada de diversos colectivos
Há sempre o dia triste do regresso.

E vindo à tona a consciência calma


Do que foram os caminhos recorridos
Imperioso e grande é o recesso.

É uma pausa que se forma então


Para que a pátria possa descansar
Para se dar e se reconhecer.

Separa os braços do estado-nação


Para a consciência-raça se encontrar
No espaço informe do seu proceder.

VIII

Mas nada disso é por ser evidente


Ser a hora sombria multilúdica
É por ser vã e ser imaginária.

É por ser quase que por ser demente


Ser nunca ser jamais a virgem púdica
Que se masturba na catilinária.

E se eu a sinto em mim tão pervertida


Vendida aos borbotões golfando o sangue
Para morrer de solidão em terra estranha.

Vejo-a tão derramada e exaurida


Vibra-me a corda solta que em mim langue
Vê-la curvada assim a Espanha e Alemanha.

656
Nada tenho contra nenhum dos dois
São povos que há muito escolheram suas liras
Mas eu de pena e indecisão pendente.

Nunca adivinho o que virá depois


Não me dão emoção chulas e viras
E mesmo o fado é aparentemente.

IX

Não sei se a voz me dói mais na guitarra


Se sempre se converte ao saxofone
Ou se me dói qu’rer ser de outras maneiras.

Arranho a viòlinha de cigarra


Deixo à formiga os outros cordofones
E canto melodias brasileiras.

Da música indiana já esqueci


A melódica cor espiritual
Os sons fanhosos de gaitas e cítaras.

Que um dia jovem extasiado ouvi


Mas de que não guardei sonho real
Imerso em fantasias e atitudes pícaras.

Tudo isso me custa ver perdido


Na alma da pátria que em mim geme
E já só ri quando eu ouço o batuque.

Que é ainda o que diz que o fim cumprido


Não é a dor que a consciência treme
Mas o prestígio que deslinda o truque.

Falta ao vidente estro e atenção


Falta atenção ao estro do artista
P’ra prolongar aos olhos a distância.

A minha pátria vai de mão em mão


Vejo-a espraiar-se em luz ilusionista
Imune aos desvarios da arrogância.

Diluída no mar de uma viagem


Que nunca começou nem acabou
Foi sendo a ida p’ra nenhum lugar.

657
Agora que o final está de passagem
E que o limite nunca se encontrou
Resta permanecer nesse buscar.

Resta avançar até ao infinito


E lá nem sequer qu’rer nada encontrar
Só fado e lira só recordação.

Só loucas brisas de um olhar distinto


Feitas de azul de nada recordar
De nada ser ou ter só coração.

XI

E mesmo esse dissolvido pelo mundo


Sem importar o quando ou onde ou se
Ou o de quê se quer resplandecer.

Bate na noite o negro mais profundo


Batuca o negro a noite inteira se
Não vem o capitão para o prender.

Já não tem outra essa ambição querida


Que de ser bom e jovial crescer
Na doce compleição da mocidade.

Ou de que modo se há-de dar à vida


A morte que ela tanto quer viver
E que resposta tem p’ra dar à eternidade.

É isto que esse negro que em mim pensa


Pergunta a mim o quê que de si mesmo
E eu não lhe sei sorver os pensamentos.

Só o batuque noite adentro me compensa


Da dor de me ter sido tão cruel
A travessia o mar e a maré.

De tanto mal que a luz do dia me contempla


Só fica a impressão de um bem real
Real porque de um rei e pelo que é.

XII

As mais variadas formas de insectos


Os bichos nunca vistos na Europa
As árvores gigantes as escarpas.

658
De uma planura e longe circunspecto
Há muito devassados pela tropa
Restam ideias restam risos restam farpas.

De uma aventura incomum e bela


Que é património fluido mas pertença
Do coração que errante se divaga.

Já foi descrito o aroma da canela


E da pimenta o gosto e a recompensa
Mas a posse do mundo resta gaga.

Podemos ver imagens espaciais


Pode-se até sentir do ser uma grandeza
Mas pode ainda alguém ser quem não é?

Ser tudo ser todos e ainda ser iguais


Aos mais que sempre procuraram a beleza
Que tem no chão onde se pousa o pé.

XIII

Da pátria amada imaterial e linda


Rasgada a ocidente e projectada ao sul
De paralelo em paralelo humano.

Circula o rasgo de uma coisa infinda


Desafiando a vibração do azul
Dentro de um só delírio multiplano.

Falta-lhe já o chão falta-lhe a berma


Falta-lhe a rota e falta-lhe a corrente
Já só lhe resta o vento e o sem fim.

Dobrada a esquina da paisagem erma


Que do papel um mapa incontinente
Rompeu sulcos seu roto borzeguim.

Falta-lhe agora ainda um final alento


Para que o infinito projectado
Se redesenhe enfim em nova lenda.

Prefigurada antes em cada momento


Regressa agora ao halo suspirado
Do último palhaço da contenda.

659
XIV

Imagem já muito amada e querida


De um heroísmo épico insanável
Plasmado em mim como uma marca de água.

Ridículo patético da vida


Que a dimensão poética inflamável
Resgata à sina à dor à fé e à mágoa.

De propensão de início vertical


Mais tarde meridiana lés a lés
Se fez oblíqua e da obliquidade.

Antanhos ganhos na sanha total


Que a morte encara sempre sem revés
Sem nunca se deter ante a verdade.

Na chuva quente aos ácidos plagais


Na funda selva onde se perde a tez
Ou nas planícies áridas do mal.

O bem que aos homens devera ser mais


Foi meu por hora curta de uma vez
E a vida nunca mais ficou igual.

XV

Flanar sem fim em que me exprimo e tenho


Por fios puxados firme porém lassos
Para que meu caminho vá direito.

Mesmo quando essa confusão em que me embrenho


Me diz que devo duvidar desses meus passos
Vem a certeza que o destino corta a eito.

Alongo-me ao clamor desse universo


Que longo me desenha no vazio
De ir em frente de repente me obliquo.

Vou oblíquo curvado e controverso


A força da corrente do meu rio
Só muito raramente me atribuo.

E vou cantando desunido da vontade


De ser maior que o meu próprio destino
Tremendo em sais vibrantes o desdém.

660
Esse desdém que me mantém atado à grade
Da ordem estranha com que me fascino
Mas que desacredito nem também.

XVI

Também eu fui no périplo atirado


Às garras da vontade de voltar
Mas a saudade não se fez presente.

Nem o martírio nem o desleixado


Sono se revelou em corpo ou ar
Em dose que ali fosse suficiente.

Ficou por ser essa matriz constante


Azeda ideia de antecipação
Que sempre encontra o antes no depois.

Parti de uma península exaltante


E acabei um dia por ir a Mazagão
Onde me ouvi a entoar canções.

De lírica saudade aventureira


De vontade de ir quando a saudade atrai
E a música transporta a dor da alma.

Dos esqueletos fica a terra inteira


Mas da canção a alma nunca sai
Eterna fica inteira doce e calma.

XVII

Mazagão Velho a história sei contar


E já a recontei algumas vezes
Em situações de prazer narrativo.

Foi lá que vi os porcos chafurdar


Nas margens dos delírios portugueses
No fim do fio de um tempo ainda vivo.

No fim por fim da corda desse fio


É que se encontra o cálido do sonho
Que nos faz ir para diante e ser.

Ser a vontade conhecer o rio


Manso e atento ao trovejar medonho
Que o fim do dia tem p’ra of’recer.

661
Fazer então da volta o nunca mais
Fazer das tripas coração e dar
Ao mundo tudo o que não for preciso.

Cavalguemos o Sol nos arraiais


Do ‘espírito que qu’remos exaltar
Indomável manso puro e conciso.

XVIII

Parte à guarda do alcaide de Marim


A cavalgada enorme da descrença
Caiu ao mar o desbragado absorto.

Vem às narinas um cheiro ruim


De aborrecida e vã indiferença
E o ser de antanho é encontrado morto.

Fortes abraços de uma despedida


Estalam ainda os ossos do ofício
Os dedos tensos de um afago nobre.

Fiéis aos olhos em peso e medida


Paixões delírio carpináceo vício
Que os movimentos vendo o fim encontra pobre.

Não tem nos benefícios descaminho


Quem só perseverou intenção pura
Vai desnudando a carne em ânsia e luz.

Regresso à pátria onde fiquei sòzinho


Fervido em pavorosas desventuras
Chás e unguentos de malva e alcaçuz.

XIX

Escavando a talha de madeiras raras


Em que imagens dispersas são retidas
Índicas formas de elefantezinhos.

Deuses e deusas macacos araras


Pantominas líricas incontidas
Aves exóticas em delicados ninhos.

Gela-me a alma
Em lojas sórdidas de ganhar dinheiro
Desconjunta-me o ser e a medida.

662
Ao fundo em escuro não se vê vivalma
Longe o ocaso à contra-luz um embondeiro
Rasga o contorno da paisagem exaurida.

É vazia a paisagem que se arrasta


No tempo é já sem vento a ilusão
Bamboleando ainda a folha que depende.

Flagrante o transparente que contrasta


Com a espessura a densidade e o cheiro
De uma secura que se compreende.

XX

Vi os naufrágios da memória obscura


Em lídimos desenhos surrealistas
Da erosão do tempo imunizados.

De um sofrimento atroz a nata pura


Reproduziu-se em formas imprevistas
De cabos retorcidos e dobrados.

Em pontos de um calor abrasador


Os sonhos evaporados em cantos
O coração e as canelas bambas.

Fui afagado pelo mais sublime amor


De quem a quem timidamente sequei prantos
Ao som de batucadas e de sambas.

Fui lá da minha pátria o redentor


Lá resgatei o ódio do meu povo
Guardando em mim a culpa do que me era alheio.

Com amor se cura a dor do sangue e do horror


Com palmos doces e vinagre novo
E aí com vinho fiz cantar aquele anseio.

XXI

Cantei do fim do mundo as pitorescas


Paisagens de prazer e de calor
Dourei ao sol a pílula da vida.

Por fim reencontrado em poses simiescas


Fui recozido em decantado amor
E a dor foi para sempre redimida.

663
Dando lugar a uma outra grata
E dolorida sensação azul
Como o Pessoa um dia fez saber.

Fui das minhas invejas burocrata


Fui do meu ódio xícara e bule
Do chá às seis da tarde o parecer.

Fui de Anto e de Gil super-Junqueiro


Fui de todos ser eles e ser mais
Como me anunciou o mestre que fizesse.

E dessa heroica tarde o dia inteiro


Foi de não ter às coisas principais
Nem deus nem mestre em que me refizesse.

XXII

É duro perderem-se as ilusões


É tão triste saber que se as tem e sentir
Que não as podemos ter.

Repetir rimas somar emoções


E tudo redundar no ir e vir
Que nos desenha a fogo a luz do ser.

E então do que se foi e quer voltar


Como a alma do bicho do Jobim
Ser a conversa queimada sobre o couro.

Por um lapso de eterno acreditar


Poder ter a enorme coragem do sim
E deixá-lo exaltado em letras de ouro.

Não se deixar aí nem apesar de tudo


Vencer pelas ideias iludidas
De uma desilusão final e absoluta.

Mesmo que malcheiroso cego e mudo


Nó de vinganças ranhosas e mal urdidas
Em panos limpos talhar a vela astuta.

XXIII

Isso sim será ter coragem grande


Para dizer de si e a si e ao mesmo tempo
Não quero ir não vou quero ficar.

664
Cantando as penas que o erro me mande
E o tempo passa e se transforma lento
Enquanto de erros meus o saco enfuna o ar.

Tarde ou cedo o calor e os mosquitos


Secarão teus ardores de príncipe encantado
Serás dado aos calores de amor mais são.

Chegar-te-ão intérpret'esquisitos
Com vozes de veneno edulcorado
E por fim arrancar-te-ão o coração.

Mas nada temas príncipe do nada


Que nada mais te pode ser tirado
Que possa realmente fazer falta.

Alçado ao alto da montanha alada


Verás dourar ao sol emancipado
O espírito da cúspide mais alta.

XXIV

Verás das catedrais as naturais


E das antigas sórdidas venturas
Talvez de mergulhar no esquecimento.

Conhecerás portais e o que é mais


Sentirás que passaste e das agruras
Nem sentirás a dor do passamento.

Das amplas cores ainda sentirás o cheiro


Antes que tudo se desanuvie
Ao mar e ao vento o ar que te beijou.

Se forem os teus pés ter que passar primeiro


Canta a canção que o vento te assobie
Despede-te sorrindo de quem te deixou.

Morrer em mansa nuvem é a graça


A única e nem essa pedirás
Apenas que te esqueçam ou te amem.

Fica o cantar que a voz desembaraça


Virás de muito longe e por fim a paz
Abraçar-te-á em forma de homem.

665
XXV

Mesmo aqui onde a sombra é pequenina


E as coisas todas aquecem para lá
Do que é humanamente suportável.

Aqui onde o calor parece uma morfina


E tem o uirapuru e o tracajá
A natureza cresce insaciável.

Quantas vezes rimei palavras vãs


Destinadas a ser noutro lugar
Quantas vezes me confundi com elas.

Tive entre mim padres e barregãs


Fui terçado e tiro em luta exemplar
Fui degredado e vi paisagens belas.

Mas chegado ao lugar em que a viela


Se esgueira para o lado do rapé
E o fado da ralé se canta quente.

Às vezes quero a coisa bem singela


Fumo bastante café
Faço-o há anos mesmo que seja interrompidamente.

XXVI

Eu sou a consciência e o tributo


Sou o preço incomportável da dívida
Nunca assumida nunca aceite nunca paga.

Sou a vergonha de uma raça em luto


A verdadeira dor de uma coisa vívida
Que se apresenta à história e não se nega.

Não quero permanentes circunstâncias


Nem quero repetir paisagens bobas
Não me situo em nenhuma escola.

Quero viver de amor quero fluir em ânsias


Colecionar vivências às arrobas
No movimento que ao pecado não se cola.

Pecados são matar almas viventes


Viver do medo de se ficar pobre
Não andar nu profícuo e contente.

666
Ter da mão da viola as unhas rentes
Calar no coração a atitude nobre
Não se saber que a alma pura nunca mente.

XXVII

Ando pagando aquela dívida de gosto


E não é de hoje que a sinto no balanço
Do meu deve e haver de ser um dia.

De há muito tempo pago aquele imposto


Pagarei sempre de pagar nunca me canso
O que é devido à dor e à alegria.

Ainda que a pagasse toda a vida


E fosse do remanescente perdoado
O remorso da dor que se provoca.

Havia de arrastar larga e comprida


A dor do desconsolo do pecado
Que a ladainha santa nunca invoca.

Havida até testar a dor sem mágoa


A vida transcorrida e acidentada
Vi renascer a força da maré.

Plaguei à vida ser uma só água


E uma vez mais rimei a rima já rimada
P’ra vir parar ao lar de São José.

XXVIII

Podia ter rezado na capela


Da fortaleza antiga do marquês
Essa de São José de Macapá.

A minha fé já foi de barco à vela


O vento me a levou daquela vez
E dela agora substância já não há.

Misturo os versos e peço perdão


Por não ser mais do rigoroso trilho
Que aos grandes faz ter certas as medidas.

Não transporto custódia nem pendão


Nem conheço dos cálices o brilho
Só bebo por cucharras corrompidas.

667
Se dessas tristes e profanas beberagens
Alguma me levar em vãos engodos
Ainda beberei santos bagaços.

A todos os rigores das paisagens


Aos fumos aos calores pedirei bodos
Que me venham desapertar os laços.

XXIX

Poderia ter feito tanta coisa


Tantas outras que poderia não
Mas como quem terá se perguntado um dia.

Fazer ou não fazer ao ar se poisa


Em ramo fraco e preso ao coração
Ter sido não se sabe poderia.

Quem contará então a história breve


Disso que poderia ter havido
Só loucos diletantes e poetas.

Mas resta ainda a margem que se deve


Dar de reserva à dúvida e ao lido
Nos sonhos e nas laudas dos profetas.

Só a partida só a taça do adeus


Bebida até ao fim do amargor
Do vinho que sobrou de outra viagem.

Só a vertigem incomum dos europeus


Os desamores e a fadiga do amor
Mais que aventura repintaram a paisagem.

XXX

A pátria augusta atónita inconstante


Da qual memória antiga não se tem
É de futuro feita e de presságio.

De saudade feroz e penetrante


De sede de devir e passar bem
A ponte que nos leva a outro estágio.

De território escasso e imaginário


De crenças sem tamanho definido
Cantadas de oriente a ocidente.

668
Esgotado o chão o salto o mar é vário
Esgotado o mar o drama e o olvido
Fica do sul o som de um tom dolente.

Doces lunduns de um blues e platibandas


Com ritmos de harmonias tropicais
Passarinho pousou no fio elétrico.

De melodia azouga eu fico em brandas


Voltas ambíguas e ascensionais
Gargalhando feliz e apoplético.

XXXI

Pátria não é o povo nem o chão


Não são catastrofismos ideais
Nem doira sóis de antigas compleições.

Não é tão pouco uma recordação


De alguma coisa interpretada por heróis
Nem as ceroulas de um poeta de calções.

Será talvez de um outro o vesgo olhar


Que impenetrante ao vão da transparência
Dos òculinhos lhe atravessa o vidro.

E mesmo desse há que desconfiar


Das intenções processos e ciência
Tudo tem que ser visto com um filtro.

Que resta então p’ra contemplar ali


Onde se esbate o azul do infinito
Que não as cavalgadas de vapor.

Que resta do largar ao mar de si


O que outros pretendiam ser esqüisito
Que resta ali que não o sol e o amor.

XXXIII

Teve uma pátria antanho amilongada


A qual caiu ao mar como é sabido
Tem sido todavia mal ‘xplicado.

Da fímbria que restava ao barrocal


Ficou só a toada dos lunduns
E algum corridinho de tom amazurkado.

669
Sons de um destino quente e ornamental
Que se expressou instante tanto como
Eloquente em sua determinação.

Das determinações a principal


Foi dar anúncio do salto do pomo
Numa tropicalíssima afeição.

Que se determinou total e grande


Aos olhos de quem viu tamanho encanto
No som dos estribilhos mais banais.

Aos passos de quem seu caminho ande


Há-de se apresentar e no entanto
Nada de grandes episódios estruturais.

XXXIV

Nada de grandiloquências remotas


De ritos nem de sombras nem de nada
Só o espaço impenetrável e mortal.

Nada de cantos heroicos só derrotas


Só vertigens de um bem anunciado
E rebrilhos de resplendor fatal.

Da pátria pouco resta é um indivíduo


Que quer como procura afirmação
Na tola presunção de ser maior.

De se representar em corte e vidro


E se oblongar em forma de canção
Para atingir a dimensão do horror.

Saí um dia procurando às cegas


Por uma congruente teologia
E por uma liturgia do ir.

Uma pequena conjunção de regras


Que me pudesse dar a alegria
Em que se pode a vida resumir.

XXXV

De tudo vi sem nunca acreditar


Pensei todas as coisas vi imagens
Nem sempre o seu sentido percebi.

670
De discernir seu logo e indagar
Ressequei as voltas dos cantos das meninges
Mas no momento vê-las não as vi.

Bisbilhotei acordos redundâncias


Compactuei com dúvidas e métodos
Fiz exercícios desfundei sofismas.

Mas foi aos olhos que deixei distâncias


E a esses dei de mim todos os créditos
Da final solução dos meus enigmas.

Das rimas dessa sorte não me queixo


Nem de queixumes foi o meu penar
Foi de ter visto tanto e nada ser.

Parar ou ir atrás já não me deixo


O que vi cavalgando o meu olhar
Já não vejo nem quero perceber.

XXXVI

Borboletas pretas do tamanho de pássaros


De asas brilhantes com texturas raras
Que nem fossem de ricos um brocado.

Como almas sós na solidão dos pântanos


Para viverem só por umas horas
Vestem de luto o seu cordão dourado.

Parecem dizer olhem a estação das chuvas


Olhem dos bichos e do tempo o tino
Olhem dos ciclos o que significam.

Olhai da distância e do tempo as curvas


Deste meu sonho e tropical destino
Em que perjúrios e mentiras se edificam.

O meu destino foi da vida ser artista


Nunca vi nem naufrágios nem batalhas
Nem epopeias nem delírios empolgantes.

Não vi do sangue os dentes da conquista


Nem das conquistas gestos grandes e canalhas
Não vi visagens de apanágios delirantes.

671
XXXVII

Vi as borboletas azuis da Amazónia


Voando em torno das árv’’es
Suspensas em um arco de elegância.

Ritual de idílica cerimónia


Muitas e muitas coloridas aves
Vi pousar e partir no céu da inconstância.

Paisagens indiretamente ausentes


Outras presentes vi diretamente
Ao pôr-do-sol em dias de lazer.

Pronunciei os nomes dos parentes


Todos os tios inconsistentemente
Até o sol a paciência me cozer.

De esse sol me bater na moleirinha


Fui questionando as asas do desejo
Para saber do mal qual a origem.

Era afinal uma intenção mesquinha


Uma falta de chão e de molejo
Uma dança macabra uma vertigem.

XXXVIII

E os ecos me chegaram de uma música


Com que partilho os fados de uma fala
Que é essa que me deram por materna.

Sangues e trechos de uma pátria acústica


Que a força emerge e a saudade cala
E a arte de dizer quer ser eterna.

Calcada em livros em papéis de seda


Falada por milhões em doces laudas
Vociferada aos gritos ou cantada.

Mesmo na dor que o pensamento enreda


Se espelha e vive a essência dessas pautas
Que é o corpo da pátria minha amada.

Em tudo existe o espírito infinito


E dele o elo que se liga à terra
Nos ditos nos provérbios nos cantares.

672
Nas palavras com que se entoa um rito
Nas vozes de comando de uma guerra
Ou nos simples sotaques populares.

XXXIX

Será preciso nascer outra vez


Para invocar essa aurora perdida
Uma ilusão causticada na espera.

Ir e voltar dez mil vezes talvez


Ter dos dias o espaço de uma vida
Na luz que só a solidão tempera.

Viver a vida inteira num só dia


E ter de cada dia muitas vidas
Ser de uma pátria toda interior.

E daquela ideia tribal que havia


Enfim todas as rixas dirimidas
Sobrar por fim apenas um licor.

A pátria é uma coisa mastigada


No adeus definitivo ainda ao longe
Enfim todas as raças misturadas.

E nenhuma coisa amarga ou calada


No peito oprime o coração do monge
Herói de guerras nunca guerreadas.

XL

Será futuro então será saudade


Ser desse futuro antecipação
Viver todo esse agora em todo o mundo.

Ter uma ideia de felicidade


Ser tudo em uma só respiração
E naquele agora respirar fundo.

Praticamente então é tudo isso


E já ser tudo isso não é pouco
Embora seja menos que parece.

Ser de um padrão volátil compromisso


De um palácio invisível o cabouco
Um pátio onde a virtude resplandece.

673
Dourar o coração ao sol de uma cidade
Anunciar ao mundo uma canção
E ser dos azimutes vagabundo.

Ser da vida e do mundo ubiquidade


Na poderosa configuração
Que transfigura a lei do eu profundo.

SEGUNDO CANTO:

Não interessa o tamanho


Não se é grande nem pequeno
Senão no halo que exala.

Vibração ritmo arreganho


De um amor forte e sereno
Pela língua que se fala.

E dessa língua o embalo


Maternal de profetiza
Fica a doce emanescência.

É disso que agora falo


Realmente não precisa
De uma grande eloquência.

De verso qualificado
Na popular cantoria
Ressoa a voz do destino.

Não int’ressa se tem estado


Polícia ou burocracia
Na pátria que eu imagino.

II

Int’ressa que tem um som


Em que se acumula e canta
Nos interstícios da história.

Desse canto vem o tom


Que nesse tempo levanta
Uma linha divisória.

Entre o que é plácido e chão


E o que se espalha no vento
Violetas malvasias.

674
Total configuração
Ritmo som e pensamento
Que da vida leva os dias.

Assim se faz a memória


Sonhos mordaças apelos
Que ficam tingindo o ar.

Tudo o mais é da vanglória


Dos horror’s e desmazelos
Em que se qu’ria mandar.

III

Minha avó fazia azeite


Colecionava quebrantos
Catava amêndoas e figo.

Bocejava no deleite
Da dobra dos seus encantos
Fez até isso comigo.

Passei pelos calendários


Dos anos que a vida passa
Sempre gostei do Setembro.

De alguns Agostos de vários


Tinha sempre muita pressa
E dos outros não me lembro.

Tudo é encanto e lira


Tudo se arruma por fim
O que fica é só o tento.

A semente que se atira


Ao vento que existe em mim
Dissolvendo o pensamento.

IV

Pataxós e guarani
Urucubaca bacaba
Caba cã carapanã.

Mandurucu tucuxi
Sucupira monhangaba
Yara caipora tupã.

675
Jurupari anhangá
Açaí do curiaú
Uaiampi e aimoré.

Jabuticaba gambá
Catapora yamandú
Ava avaí evoé.

Também gostava de ser


Jesuíta tradutor
Tirar medidas às letras.

Os sentidos perceber
Das vocações o sabor
Sem pontos nem et cet’ras.

Todas as palavras têm


O seu deus particular
Deuses reais e perfeitos.

Até as que não se entendem


De as poder pronunciar
Nascem os certos preceitos.

No mesmo exacto momento


Em que são pronunciados
Os deuses que elas transportam.

E brilham no firmamento
Delas os significados
Em que as ideias se exortam.

Ficam suspensas no mundo


Nunca se extingue o fulgor
Que elas desencadearam.

No respirar de um segundo
Respira garbosa a cor
Nas mentes que elas amaram.

VI

É uma chama que perdura


Nunca se pode extinguir
Nunca volta para trás.

676
Segue no universo pura
Para um tempo que há-de vir
Envolto em bruma lilás.

Dessa música inaudita


Se fazem os sonhos claros
Que antecipam a vitória.

Cantada falada ou escrita


Exumada em livros raros
Nas esquinas da memória.

São esses rasgos de outrora


Que rasgam da lavra os regos
Dos destinos das nações.

Faz clamorosa e sonora


Prenhe de desassossegos
A verdade aos campeões.

VII

Ou das raças ancestrais


Do que falando viveram
Dos desejos das misérias.

Dos brados monumentais


E das coisas que aprenderam
Das proclamações das lérias.

Com que a si próprios mentiram


E das coisas que fizeram
E das que não foram feitas.

Do que choraram e riram


Ao ver-se como quem eram
Das plantações das colheitas.

Das ilusões acabadas


Que não se complementaram
Das surdas das esquecidas.

Dos modelos das pernadas


Que os humildes aceitaram
Separações despedidas.

677
VIII

Exaltação sentimento
Remorso desgosto e ira
Destilados em discurso.

Lamentação testamento
Tudo vazado na pira
De uma pena sem recurso.

Injustiças que ficaram


Presas aos lábios de quem
Por patrões foi oprimido.

Que se ergueram e cantaram


E que outras vezes também
Se segredou ao ouvido.

Com voz doce e alma lisa


Para quem as quis ouvir
Foram ficando no ar.

E na distância imprecisa
Que se alberga no devir
De ouro e consciência alvar.

IX

Palavras palavras ocas


Porém prenhes de sentido
Brilham de um parto futuro.

Vibram no vácuo das bocas


E onde bate o seu estampido
Brilha um brilho prematuro.

Juntam antes e depois


Agora e eternidade
E o tempo confunde os tons.

Agora e depois os dois


Dançam ruído e verdade
O som de todos os sons.

Só a ideia organiza
O que é desorganizado
E ao futuro interior.

678
Mas o que se realiza
Nesse mágico passado
O tempo irá recompor.

IX

Com o som desses padrões


O ser do que foi e é
Sempre se reformulando.

Indo sempre aos trambolhões


Sempre voando ou a pé
Sempre mas nunca se achando.

Encontrar é perder tudo


É conter o rio que corre
Coisa que como se sabe.

É impossível contudo
Sabemos que o rio não morre
Mas que a fonte não nos cabe.

Não nos assiste dizer


De onde vem porque nasceu
Essa nascente de vida

Nem o que é que a faz correr


Nem qual é o apogeu
Em que essa água gravita.

Nem qual o manancial


Que se presume sem fim
Ninguém sabe nem eu sei.

Sei que vou num carnaval


Que vai sempre antes de mim
Todas as coisas que amei.

Todas são prefiguradas


Todas parecem dizer
Espera por mim mais à frente.

As coisas que me são dadas


E eu quereria saber
Ficam num estado pendente.

679
E eu só percebo mais tarde
Eu escutei-os eu ouvi-os
Mas não me disseram nada.

Não para ser avant-garde


Não p’ra títulos vazios
De uma preguiça sagrada.

XI

Pode até ser canibal


Este ofício de fazer
Poesia se alimentar.

Do seu mesmo mat’rial


Do ser do seu próprio ser
Das palavras se adornar.

Como tempo assunto e tema


E disso qu’rer ser maior
Do que a vida em que elas vivem.

Mas não tem nenhum problema


Para o mundo em seu redor
Para os que com elas privem.

Para todos há-de haver


Assunto e contemplação
Há-de se arranjar um jeito.

De o martírio compr’ender
Da perfeita locução
Autofagia e direito.

XII

Nunca seremos bastantes


A burrice é poderosa
E a estupidez galopante.

Há ventos preponderantes
Há o amok há a rosa
Desmaiada do levante.

E há no vento as poeiras
Que ressecam as paisagens
Os tubos respiratórios.

680
Regras e boas maneiras
Canículas e friagens
Termos datas relatórios.

Nada esconde a violência


Que é quando a voz fica muda
Como se a boca cosida.

Nos empurrasse a indecência


Para a garganta e desnuda
E a mágoa fosse engolida.

XIII

Sem palavras haveria


O eterno sono dos mortos
E esses mesmos acordados.

Ainda assim soaria’


Nos ecos dos nervos tortos
Vocábulos sublimados.

Seria como num sonho


Sonhado cedo na noite
Que pela manhã se esquece.

Nesse intervalo medonho


Qualquer alma que se deite
Sentirá que permanece.

Pelas palavras que ouvidas


Muito muito tempo antes
Restarão eletrotécnicas.

Por sinusoidais plangidas


Memórias dilacerantes
Mais do que nunca frenéticas.

XIV

E vamos em frente então


Para a próxima parada
Em que a visagem recua.

No rio da contemplação
Diurna e apaixonada
Uma miragem flutua.

681
Parece uma letra morta
Adaga torta e partida
Cravada e roendo em mim.

Que ainda dói quando corta


Linguagem comprometida
Que aprendeu tudo em latim.

De tudo o que vi e sei


Esqueci ou se organizou
Resta muito que aprender.

Todas as coisas que amei


Estão no caminho em que vou
Já disse e volto a dizer.

XV

Todas elas penduradas


Presas por fios invisíveis
Aos lábios do meu sorriso.

Quentes e pronunciadas
Búdicas e impossíveis
Como um reflexo narciso.

E o caminho é sempre o mesmo


Vai-me levando a direito
Vai curvando devagar.

É um velho catecismo
Que eu sempre levei a peito
Se faz caminho ao andar.

E quando às vezes desmaia


No meu lento esboroar
A lembrança desses dias.

Recordo-me de uma praia


Fazem-me rir e chorar
Minhas idiossincrasias.

XVI

Uma praia onde deixei


Meu destino a bronzear
Corpo estatelado ao sol.

682
Onde bebi e fumei
Enquanto pude fumar
Álcool e canabinol.

Tinha então um caderninho


Que sempre andava comigo
Como se fosse uma Bíblia.

Com amor e com carinho


Esse foi meu grande amigo
Tisana de sal e tília.

E foi-me sempre fiel


Na minha sanha daninha
Nos salmos que eu lhe escrevi.

Nunca me faltou papel


Fiz dele uma ladainha
Que recitei e reli.

XVII

Deixei praias pelo mundo


Onde algum dia cheguei
E de onde parti mais nu.

Exaurido e nauseabundo
Padeci nem me lavei
Passei fome e comi cru.

Fui pelas rotas perdidas


Sem saber onde chegar
Nem chegando nem partindo.

Nas sagas de muitas vidas


Por um porto onde atracar
Fui navegando fui indo.

Ser homem falar direito


Chegar onde nunca antes
Foi desse meu barco o rumo.

Chegado ao amor perfeito


Operários e estudantes
Vejo o mar e não me aprumo.

683
XVIII

Se quem inventa as palavras


É que diz com’ é que é
A gente fica sabendo.

O que são ideias parvas


O que é um barnabé
O que é um sino rangendo.

O que são promiscuidades


Dadas ao mundo em fronteiras
Em linhas imaginárias.

Desejar felicidades
Dar bom dia ver palmeiras
Inflamar pituitárias.

Dos discursos já esqueci


As próprias implicações
Ficaram só as mensagens.

Portas que entreabri


Delírios e emoções
Sentimentos e paisagens.

XIX

Se um dia regresso à pátria


Pelas v’redas incomuns
Como regressei à praia.

Esbaforido pela xátria


Caçado pelos oguns
Perdida a minha azagaia.

Porque o mar foi minha casa


O canto do mar sem fundo
No canto do ser humano.

Pino do sol não me abrasa


Nem o sal me rouba ao mundo
Perdido no oceano.

Só me arrasa não saber


Se no fim desta jornada
Depois da volta redonda.

684
Haverá outro bater
De uma maré muito amada
Que nos ama onda a onda.

XX

É um rítimo sem fim


Uma balada esquecida
Que embala a criança em nós.

Cansei de viver em mim


Vivo na rota batida
Da minha casca de noz.

E quando me lembra o dia


De uma noite que já foi
De um sempre eterno devir.

Regresso à praia vazia


E que deus não me perdoe
Me faça voltar e ir.

Quero ir noutro caminho


Chegar além das auroras
Pelas montanhas douradas.

Da águia saber o ninho


Como um soldado das horas
Em brancas vestes sonhadas.

XXI

Ser do sonho mar e casa


Ser da vida petulância
Nunca negar a verdade.

Ser a virtude e a asa


Leve da inconsistência
Poder mentir à vontade.

Verdade e mentira unidas


Numa só proclamação
Feita de palavras mudas.

Só pensadas só sentidas
Só pueril provocação
De asas e bocas desnudas.

685
E no mar das inconstâncias
Nas lamas nos batatais
Nos ventos no corrupio.

No burburinho das ânsias


Nos lodos de muitos cais
Aportar o meu navio.

XXII

Ficará sempre um aroma


Muito amado muito qu’rido
Por um momento exalado.

Flôr entreaberta rizoma


Que de um peito dolorido
Se soltou desmascarado.

Desses em momento algum


Nem o aroma nem o peito
Jamais me esqueci um dia.

Não me esqueci de nenhum


Nem da flôr de amor perfeito
Nem das cores que nela havia;

Mas também não as retive


Segui na vida empolgado
Por onde a poesia vive.

E quando a vida cansei


E preenchi o caderno
Com marcas de coisas vivas.

Dos dias que a mim roubei


Trouxe a mim p’ra ser eterno
Minhas paixões primitivas.

XXIII

Confundo-me com o que quero


Transformo-me no que amo
E foi-me moldando os traços.

Vontades desejo e esmero


Vi caminhos não reclamo
Desolei campos e espaços.

686
Ouvi tudo e não cansei
De ouvir as notas sensíveis
Quando as tónicas me ‘scapam.

Desdobrei o agnus dei


Em partes imprevisíveis
Que me cantam e me apalpam.

Em tudo encontrei delírio


E delirante parti
Para dentro do que sou.

No ocaso do martírio
‘spera um palhaço que ri
Que parece o meu avô.

XXIV

Eu tenho duas orelhas


Uma a esquerda outra a direita
Isto é uma mitologia.

Uma história muito velha


Que se apresenta perfeita
Não sem alguma ironia.

Não é com elas que eu ouço


São só amplificação
Ouço dentro da cabeça.

Antes quando era mais moço


Processava informação
E ia vivendo sem pressa.

Mas agora já estou velho


E nessa orelha que é dextra
Vão-me crescendo uns cabelos.

Fico na frente do espelho


O meu rosto é uma orquestra
Vejo a verdade nos pelos.

XXV

Tesourando com afinco


Reponho o jovem fulgor
Nessa orelha cabeluda.

687
Na outra furei um brinco
Quando vi o equador
P’ra lá da ilha barbuda.

Nessa não tem pelo algum


Só lisura juvenil
Na minha sinistra orelha.

Não tenho pelo nenhum


Nessa amorosa e gentil
Que a cabeça me aparelha.

Um arquétipo fundado
Em muitas complicações
Esse do esquerdo direito.

Num envelheço e cansado


Pratico depilações
No outro não tem defeito.

XXVI

Saí e dobrei à esquerda


Para uma pátria mais jovem
Mais ousada mais cantada.

Que me lembre só fiz merda


Sem que as sementes renovem
A viagem está parada.

Só resta na manhã clara


Rever as marcas da história
Onde ela se dissipou.

A chama que me foi cara


Arde apagada e inglória
E ela nunca se apagou.

Ficou para o outro lado


Criando pelos e estevas
Uma paisagem bucólica.

Crenças de mortos e fado


Assombrações castros trevas
Pragas de uma bruxa alcoólica.

688
XXVII

É um mal sem solução


Apodrece e ganha gás
Engole e mastiga o tempo.

Na mais vil resignação


Sob uma sombra lilás
Vai-se dissolvendo ao vento.

Lembra ainda o ar do mar


De sentir o cheiro a sal
De cheirar pimenta e chá.

De prolongar o olhar
Até ao laço fatal
Que a rota é perdida já.

Palermices encolhidas
Já fizeram mal maior
Medo de ser amanhã.

Nunca ser hoje hesitar


Trair o primeiro amor
E por fim ficar tan-tan.

XXVIII

Dos trava-línguas afins


Não se tirou grande afã
Nem deram filosofia.

Lalações ‘sperlinguitins
Palafitas pés de lã
Óleo luz almotolia.

Platonismos insensatos
Plácidas tardes de Outono
Num lugar que esse não tem.

Daremos corda aos sapatos


Aos saltos que nem um mono
Para o dia acabar bem.

E no fim dessa jornada


Como diz uma canção
Seremos por fim traídos.

689
Não receberemos nada
Arpoado o coração
Ficaremos suspendidos.

XXIX

Parvos de corpo e de alma


Entendidos em passado
Distantes das intenções.

Nas margens em que se espalma


O clamor mitificado
De armas dinheiro e barões.

E apesar de tudo isso


Palavras que foram ditas
De grande proclamação.

Vaticínio e compromisso
Das batalhas das batidas
As palavras ficarão.

Do resto miséria e ranho


Escondidos em papéis
‘scritos pelos poderosos.

E desses heróis de antanho


Possessos nos seus batéis
Só ficarão os famosos.

XXX

Ter visto muitas paisagens


Não me faz melhor pessoa
Talvez me aguce o engenho.

Também vi muitas miragens


Mas o que a vida coroa
São os traços do desenho.

Que a vida vai desenhando


Involuntários e tanto
Tão tanto paradigmático.

Mesmo sempre mesmo quando


As malhas do seu encanto
São de um ardor enigmático.

690
Só restam por fim plausíveis
As lembranças emotivas
Que nos assaltam às vezes.

As quimeras impossíveis
As doces prerrogativas
Dos azares e dos revezes.

XXXI

Mas de tudo o que eu já vi


Não me pesa a consciência
De nenhuma improntidão.

Só das normas que inferi


De toda a reminiscência
De muita observação.

Conto sílabas fingindo


Não perceber a contagem
E das normas disse nada.

Só me int’ressa que fugindo


Desta bizarra menagem
Cante a voz almiscarada.

Gosto de pimenta e sal


Gosto de sal e gengibre
Gosto de gosto a mostarda.

Gosto de sol e de cal


De armas de vário calibre
Da sanha da ribombarda.

XXXII

De tudo isso darei


Testemunho e aflição
Aos vindouros ao depois.

De tudo eu mesmo serei


Eu e a minha confissão
Repousaremos os dois.

Faremos própria fortuna


Do que ao mundo prouver ser
Sem muita ponderação.

691
De tão invulgar tribuna
Proclamaremos poder
Produzir impugnação.

Acompanhamento e solo
Em todas as tessituras
Rasgaremos sinfonias.

Regalaremos o colo
De muitas mulher’s futuras
‘spalharemos simpatias.

XXXIII

A conversa já vai longa


E está sempre tudo dito
Quando não se disse nada.

É sempre a mesma moenga


Que o peito me traz ‘squisito
E a alma alvoroçada.

Toda a vida vejo andar


Para trás e para a frente
Caminhando para o fim.

Enquanto a roda rodar


Deixo-me ficar contente
Tento lembrar-me de mim.

Segue corrida a viagem


E seguem em mim marcadas
As miragens dos escolhos.

Vejo beleza e paisagem


Em coisas insuspeitadas
Que me aparecem aos olhos.

XXXIV

A chuva cai no terreno


Em quantidade amazónica
Os montes na minha frente.

Fazem lembrar uma cena


Dessa pintura nipónica
Que se vê frequentemente.

692
Nas ilustrações antigas
Adivinha-se a beleza
Pelo que não consta lá.

Fala das almas amigas


Que sentem a subtileza
De tudo o que lá não está.

Uma paisagem bucólica


De um lugar todo vazio
Seja onde for situado.

De uma maneira hiperbólica


Sempre dita ao arrepio
Do seu próprio fraseado.

XXXV

É apenas latitude
Lato feito qualidade
A longitude é igual.

É sempre a mesma atitude


A mesma fria igualdade
É um conceito naval.

Mais aqui ou mais ali


Sempre prolongando o som
Que sonoramente soa.

Eu que o vento persegui


E que achei navegar bom
Nas vagas que o ser entoa.

Talvez me diga que então


Ser da estrada calcanhar
Faz o caminho infinito.

A quintessência do chão
Mais longe que o chão andar
Ser o caminho bonito.

XXXVI

Não interessa a latitude


Em que esse lugar exista
Ou que seja interessante.

693
Sempre existirá virtude
Solicitude imprevista
Vento quente de levante.

Não importa se é bonito


Nem rico nem glamoroso
Nem como se encontra o rumo.

Não existe manuscrito


Nem mapa nem é forçoso
Que se lhe saiba o resumo.

Sempre se está dentro dele


Indo p’ra lá ou em volta
Sentindo o rebatimento.

Vibrando dentro daquele


Em que a saudade se solta
Com todo o seu sentimento.

XXXVII

Um lugar que permanece


E o lugar é sempre esse
Plantado como um cipó.

Onde tudo o que acontece


É como se acontecesse
Na casa da minha avó.

Onde a rua larga é estreita


E a estreita é pavimentada
E o adro da igreja.

P’ra que da pessoa inteira


Quando acesa e empolgada
A inteireza se veja.

Existe um lugar assim


Onde o que se diz atinge
Os confins do universo.

Uma torre de marfim


Um labirinto uma esfinge
Em que o sonho vive imerso.

694
XXXVIII

E onde tudo o que se faz


Se diz acontece ou há
É maior que o pensamento.

Nada mais a vida traz


E a alma quer mais quiçá
Mais augúrio mais momento.

Rói do tempo as engrenagens


Procurando uma resposta
P’ra perguntas já esquecidas.

Mais distâncias mais paisagens


Navegando costa a costa
As rotas de muitas vidas.

E quando a saudade assalta


Reminiscência ou vontade
Lembra-se o lugar dilecto.

Onde existe toda a malta


E gargalhada e verdade
Dessa que eu já tenho dito.

XXXIX

Existe esse lugar onde


Um patamar se imagina
Delirante e iconoclasta.

Se diz que já tem avonde


Onde se vive da sina
De a vida lhe ser madrasta.

Sempre estando agora e indo


Nesse lugar perifrástico
Onde onde se torna quando.

Onde o sol vive sorrindo


E o céu de um azul fantástico
Adormece se encantando.

De clamor forte e fecundo


Tem um sol no coração
Tem cobra tem javali.

695
Existe um lugar no mundo
Bem perto da imensidão
Que é o lugar onde eu nasci.

XL

A pátria é um eco cavo


São da praia ainda os limos
De uma pesca generosa.

A pátria que aqui descrevo


São as palavras que ouvimos
Da boca da mãe extremosa.

Vogando sobre os compassos


De uma canção infinita
E de bem-aventurança.

Num desenho em cujos traços


A cor da loucura grita
E onde a dor é sempre mansa.

Para chão um promontório


Fome e vontade de ser
De uma existência longínqua.

Mar e céu por território


Se mais pátria não houver
A minha pátria é a língua.

TERCEIRO CANTO

Com a língua se faz tudo na vida


Pode ir-se a Roma lambem-se mucosas
Pode falar-se ao coração das meretrizes.

Língua de trapos já língua comprida


Daqueles que por obras «valerosas»
Quiseram acrescentar à cor outros matizes.

Pintores de imagens lambedores de cus


Fulambòzeiros com línguas de fogo
Marchando pelas ruas tensos desvairados.

Macacos pendurados em bambus


Filias de um discurso demagogo
Elefantes em salas imobilizados.

696
Poses amaneiradas sempre tantas
Quem sabe original pederastia
Medos e sonhos ânsias de negros presságios.

Ressentidos na alma como dantes


‘scondidos nas sombras da sacristia
Flâmulas lânguidas de pérfidos adágios.

II

Línguas mortas e vivas dialectos


Todas as línguas de papa-formigas
Patrocinadas em revistas e maneiras.

Línguas e lábios sorrisos discretos


Bocas sumidas frustrações antigas
No quarto escuro dos brinquedos brincadeiras.

Lá dentro quase em câimbra anquilosada


A língua sangra os cravos do silêncio
Nos laivos agridoces nas ácidas margens.

E de fome em saliva mergulhada


Regurgita o sabor do mal e vence-o
Sonha as vertigens das antigas beberagens.

Engolidor’s de cuspe esmaecidos


Máquina antínoma recalcitrante
Palavras entarameladas de beber.

Deixa os cantos à boca humedecidos


Deixa encarnado o pálido semblante
Aos pátrios desejos a forma da mulher.

III

Quisera ser da forma a sua essência


Quisera ter da sã maternidade
A dor da virtude e do prazer aplicado.

Ser mátria terá sido incandescência


Atenta e fulminante qualidade
Com que ao sabor do vento o sul foi inventado.

Fico indecisamente sem saber


Se sendo pai é femininamente
Ou se é a materna prorrogação do macho.

697
Seja o que for do que seja o vir a ser
E sendo sê-lo esclarecidamente
Para o caso pouco interessa o que é que eu acho.

Nada aprendemos do que foi vivido


Nem o estudado ou lido nada instrui
E o que aprendemos não nos serve de perdão.

Propagamos distâncias e olvido


Nas margens do destino um tempo flui
Em que reproduzimos o mesmo padrão.

IV

(... ... ... ...)

XXXIX

De tanto sofrimento haver cantado


Por descantadas vãs revoluções
A Pátria te chegou um dia intransigente.

Fez de ti jovem noivo assassinado


O sangue refluindo aos borbotões
Um escravo gordo amolecendo paciente.

Viste a mulher furada lado a lado


Chorar o ventre da terra e tombar
No chão fertilizado com suor

Viu-se o sangue crescer embandeirado


Nos arcos de uma festa popular
E o operário alado em voo num céu maior.

Mas nada viu do afã trabalhador


Das negras que aos mulatos deram pais
Como já disse em outra hora em outro chão.

Esmagou-te o ser em transe de pavor


Chamou-te à dor danos colaterais
Pediu-te um dia de trabalho p’rà nação.

XL

A voz enrouquecida de gritar


Arrepiam-se os pelos de injustiça
E mesmo assim pobre coitado ainda dói.

698
A decisão tão fácil de tomar
Fica sempre suspensa da preguiça
Que aos fiéis da desilusão tudo destrói.

(... ... ... ...)

QUARTO CANTO

Que pátria enfim existe se se é pobre


E ela de noite vem pedir-te o sangue
Seria ainda amada a mãe vampira.

Farta por fim de líquido tão nobre


Mais negra e suja que o lodo do mangue
Podre vapor que a terra não transpira.

É dos seus ‘spúrios filhos que se exala


A fétida peçonha que envenena
Todo o devir tranquilo que ela tinha.

Tão cedo da noite o chicote estala


Brandindo como já dizia o Sena
Nem ditosa nem amada nem minha.

Esta e outras coisas bem explicadas


Merecem que se diga é mais que inveja
A última palavra dos Lusíadas.

Histórias sempre muito mal contadas


Mentiras consagradas numa igreja
Sonhos cativos cavaleir’s omíadas.

II

Quando a pátria enfim descansa da fome


E por um ápice parece amiga
Deus e família espreitam-te o destino.

(... ... ... ... )

QUINTO CANTO

(... ... ... ...)

699
SEXTO CANTO

De um lilaz acinzentado
As florzitas já maduras
Da côr já não são capazes.

De um azul já desmaiado
Caligrafadas e puras
Caem dos jacarandazes.

Longe da terra e da vida


A que elas pertenceriam
Se a pátria fosse uma horta.

Vindas da rota comprida


Do destino se almar’iam
De crescer à minha porta.

E aí então elas caem


Fica atapetado o chão
Da rua onde eu moro agora.

As das árvores esmaiem


Como saudades que são
Da árvor’ que agora chora.

II

Por fim vai formando uns cachos


Com flor’s que querem secar
Vão ficando mais pesadas.

Umas fêmeas outras machos


Param de se fecundar
Como ilhas abandonadas.

E no clamor vegetal
De um ciclo que chega ao fim
Já aparecem as nozes.

(... ... ... ...)

XL

Não é de história ou cantatas


Nem de padrões ou muralhas
A história que aqui se trata.

700
Não é de coisas passadas
Nem de acender acendalhas
Nem de poesia barata.

CÂNTICO FINAL

Parece que a noite nasce


Do lado em que o sol nasceu
Foi assim que me ensinaram
Quando andava no liceu.

É porque a terra é redonda


E porque os astros rebolam
Como berlindes suspensos
E os ser’s neles também rolam.

Rola tudo tudo junto


Numa mesma rotação
Que não se sente rodar
Só a movimentação.

Então a terra que roda


Parecendo estar parada
Roda da noite p’rò dia
Rugosa e arredondada.

E o sol que se movimenta


Ainda que imóvel seja
Roda do dia p’rà noite
Numa rota carangueja.

Parado também não está


Anda no espaço ao contrário
Do movimento da terra
Definindo o calendário.

E nós que o vemos brilhar


Sempre parado ou andando
Acreditamos viver
No tempo do seu fandango.

Vamos daqui para lá


Resultando em parte alguma
O que a roda tem de bom
É não ter rota nenhuma.

701
Nas entretelas das manhas
Nas ‘stranhas nas ribombásticas
Nas manhãs imprevisíveis
Das tentações piroclásticas.

Vem a raia vem a cria


À beirinha da maré
Fica tudo besuntado
E a praia e o “chiribondé”.

Mastigando o subsolo
Aproveitando o momento
Chegaremos ao miolo
Solo e acompanhamento.

No concerto da paisagem
Cavarão fossas e minas
E nas distâncias da noite
Acenderão lamparinas.

II

A toda a brida da divina v’locidade


Vão as catástrofes e as prevaricações
De metade de alma perdida e sem vontade
Clamam ainda por verdade os corações.

(... ... ... ...)

III

Tudo se cria nada se transforma


Em tempo providência e reciclagem
Reflete-se no espelho de outra norma
Em que se espalma a sua própria imagem.

Despudoradamente verdadeira
Vista sem trajes na sua pureza
Despiu os guizos com que foi à feira
Despiu por junto a dúvid’e a certeza

(... ... ... ...)

Aos simplórios vejo arrebatamentos


Pusilânimes gritos cibernéticos
Imersos em gemidos e lamentos
Mergulhados em transes neuralépticos.

(... ... ... ...)

702
Quando enfim toda a vã filosofia
Se misturar por fim com os circuitos
Não caberão em si de aleivosia
Nem bobos nem palhaços mais que muitos.

(... ... ... ...)

Já tenho a alma toda congelada


Mas não me aperta o peito o climatério
Vejo a minh’alma ida esparramada
Nos palácios de luz do quinto império.

703
POEMAS ERÓTICOS
1.
P’RA COMEÇAR ME BEIJE

A sua boca parece feita só para ser beijada


Em pequenos beijos
Leves sobre os lábios e em volta
E logo devorada como se quiséssemos mergulhar um no outro
Abraçando você e na vertigem
Já sentindo o volume que aumenta e enlouquece
Tirando os seus cabelos do pescoço e pegando você pela nuca
Mordiscando aquela zona entre a orelha e os cabelos
Chupando de leve sua orelha
E começando a sentir você vibrar
Aí sentir o doce afago nos seus ombros
E lentamente indo tirando o seu vestido
Com pequenas mordidas nos seus seios e beijos sempre
Sempre muitos beijos
Na barriga no umbigo como se língua fosse entrar por você dentro
E lentamente num abraço a enlaçar sua cintura
Procurar as virilhas com a boca
E mergulhar no seu ponto mais gostoso
E então chupar aquele ponto até você se desfazer em suco
Pegar a sua bunda com força
E puxar você para mim até quase sentirmos ser só um
Voltar a morder a sua boca
E pedir para ser você a meter o meu pau naquela entrada
Da sua gruta molhada e sequiosa
E sermos só aquele momento de ritmo energético
Em que se respira ofegantemente e ao mesmo tempo
E por um longo momento de prazer esquecer o tempo
E nos dar o tempo do prazer
Abrir as suas pernas para chegar mais fundo
Ir e vir muitas vezes
Meter com força e carinhosamente
E antes de cansar fazer mais devagar
Virar você de quatro e lhe segurar entre as pernas
E foder
Foder copiosamente até você uivar.

Aí por um momento descansar


Depois voltar a beijar o seu corpo suado e tenso
E lentamente despertar em nós a vontade de recomeçar
A segunda é sempre melhor do que primeira
A gente começa lentamente
Brincando com a cabecinha nos lábios da xoxota
Entra e sai de brincadeira

704
Esfregando aquele grelinho onde você se sente louca
Entrando por fim em você mais uma vez até ao fundo
Beijando a sua boca
Como fariam dois namorados apaixonados pela primeira vez
E ficar
Já sem fúria
Só o momento de sentir aquele calor molhado
Que faz da minha pele a sua pele
Beijar o sal da sua pele
E insistir
Nos bicos duros dos seus seios
Quase até à dor
E de repente morder na sua carne anestesiada de prazer uma mordida que não dói
Você nem sente
Você só se sente voar e ser pegada no ar
E novamente fodida até mais não poder
Agora com vontade
De pressa de meter e tirar e sempre mais
Levados por aquela vertigem
De viver
Aquele momento em que se quer
Mais e mais
Sentindo a carne estalar das minhas pernas contra as suas pernas
Com uma força que a gente nem sabe que tem
Não sabe de onde vem
Mas que se sente
E que se quer
E aí você vem novamente
E deus ajudando a gente se vem ao mesmo tempo
Então você descansa docemente encostada no meu ombro
E eu afago com ternura os seus cabelos
Fazendo um cafuné e agradecendo por você existir e ser tão bonita e ser minha.

Às vezes também gosto de ficar deitado e deixar você a trabalhar


Aquele santo trabalho de sentir prazer
Ser você a procurar seu ritmo
E a se banquetear
Gosto que você sinta a dureza do pau e não resista à vontade de chupar
Eu afagando levemente os seus cabelos
E você beijando aquela massa de carne que lhe faz tão feliz
Outras vezes gosto de brincar com o calor entre as suas pernas
Tocar e mesmo lamber o seu cofrinho
E tocar
Tocar como que querendo te masturbar
Sentir e ver como a sua boca se abre
Com a saliva a escorrer pelo seu queixo quando o momento chega
E você goza
Abraçar mais uma vez e fazer você se sentir minha
Dominada e mansa como uma menina que espera e quer apenas
Mais uma vez

705
É isso aí
E a gente parte para a terceira
E a terceira é ainda melhor do que a segunda e a primeira
Mais intensa
Mais demorada e gostosa
Aí parece que foder foi a única coisa que a gente fez na vida
E que o fizémos juntos toda a vida
Eu deixo o meu pau dentro de você quieto
E você só sente que pequenas contrações que você tem por dentro
Sentem que ele está duro
E você vê
Com os olhos fechados e de dentro do seu corpo mole
Que o pau também vibra e se contrai dentro de você
É uma coisa lenta
Quase parada
Entrecortada em beijos
Que começam aos poucos a fazer ferver o sangue
E aí não dá mais para ficar assim parado
E começa de novo o mete mete mete mete
Você pede mais e começa a perder a vergonha
Eu quero te comer
Comer você inteira e te pego pela cintura
A gente balança num ritmo inventado para nós e só para aquele momento
Você sente vontade de me morder a carne
E aquele vai e vem tem um momento em que parece uma luta
Que logo um montão de beijos transformam numa agourada e doce paz
E tudo recomeça de novo
E aumenta
Aumenta aí rapidamente
Cresce o meu pau ainda dentro de você
E eu puxo as suas pernas para cima
Por baixo dos joelhos
Você fica com as coxas contra a barriga como se estivesse a ser comida por um cavalo
E sente o meu corpo a bater no seu
Ritmadamente
E um pau mais duro ainda esfrega a sua carne
Então você não aguenta mais
Respira pela boca e sente vontade de gritar
Me abraça como quem quisesse parar mas não tivesse coragem de pedir
Porque no fundo quer
Você quer mais
E quando os olhos se arregalam e você abre a boca já sem ar
No mais profundo do seu ser você sente a porra se espalhar no seu regaço.

2.
De carinhosa manhã
Manhosa dengosa gostosa
Das coisas que você é
Gosta de fazer carinho
E gosta de receber

706
É gostoso fazer rimas
Rima com rosa e fazer
Eu nunca que vou esquecer
Que nem você me falou
Dormindo e acordando junto
Toda aquela voz de cama
Que vibra no corpo inteiro
Quando se acabou de despertar
Se abriu o olho
E se acordou devagar
Como se ainda de um sonho
Estivesse chegando o fim
E se acordasse já fazendo assim
Amor gostoso com você
Eu em você você em mim
Suspensa e silentemente
Entre dormindo e contente
Gostoso tom da minha voz em seu ouvido
Parecendo vibrar seu corpo inteiro
Beijar primeiro
E se sentir no calor morno de pele se tocando
Os corpos se ajeitando
Numa coisa gostosa e meio que preguiçosa
Preguiçosa assim como dengosa
Gostosa e carinhosa
Manhosa espledorosa
Manhozinha no jeito de colocar a perna
Numa vertigem molhada e já ciosa
Que quer ser preenchida
Coisa maravilhosa
Seu corpo reagindo
O seu sangue fervendo
E o meu
O nosso como um mesmo
Ficando enlouquecido a cada toque
O pau
Sentir que você o sente duro
E louco por você
Desenhar todo o seu corpo com jeito de quem molda
Um barro electrizado e tenso ao criador
Sentir na língua o gosto fermentado
Da sua pele que acende se arrepia
O sal do seu suor
Porque na emoção a gente sua
Fininho
Levemente
Você destila ardor salgado e animal
Com o sabor indefinível que tem quando está nua
E antes que o movimento comece a nos sugar nessa vertigem
Vem a loucura de se entredevorar

707
De enlouquecer de dar
De se oferecer a um beijo maior
Mais molhado
Mais sedento
Enquanto o pau duro e pulsando entra em você
Ah! que coisa boa
Nessa doçura a fina pele do seu sexo
Quente e molhado
O dentro do seu sexo
Momento sem igual em que eu me sinto e sinto
Você sentindo e fico
Extasiado
Meu sexo volumoso e cheio de veias
Escorrega a cada vez que entra em você
Inteiro
Com um impulso enérgico e total
Eu sinto a curva da espinha em as suas costas
Se contorcendo em um arco de prazer
E eu levanto seu torso a cada impulso
Você sente aquele vai e vem vertiginoso
E uiva como uma fera extasiada
E grita quando loucos os meus dedos
Quase cantando se cravando em sua carne
E a força de minhas mãos te agarrando
Te puxando de doida para mim
Encaixando em você
Profundamente e mais
A cada vez mais fundo
E quando eu pego o seu sexo num abraço
Eu sinto ali você inteira
Colado em suas costas te enlaçando
Enquanto entregue você escorre
Se derrete
Me enlouquece
Me arranca um esforço ainda
Se abre toda de tesão
Molhando as pernas
O mole em suas coxas
Por dentro
Nesse momento parece o nosso corpo ser um só
Não há mais divisão
Não há separação
Não há mais dois
Há um em permanente interação
E a boca procura sua boca uma só boca uma vez mais
Com muitos beijos
Longos interrompidos
Finos e sôfregos sãos sofregamente procurados
Roubados
Muito de tanto e tão antessentidos

708
Fortes arreganhados
Carinhosos
E fatais
De fantasia e de prazer subliminar
Em emoção
Você é toda coração
Eu também sou
Eu também vou
Eu quero ir
Vibrar e ser
Você
Maravilhosa
A forma que em você age comigo
E acredita
Que o que você faz envolta em fogo
Tem um efeito em mim
E tem
O pode ser que é um talvez possa parecer
Que ser assim
Que não se sabe o que é
Que é inacreditável
Mas redondo
Que simplesmente é
É só por ser
É círculo é espiral
É infinito e não tem onde
Não tem como
Não tem jeito de poder parar
E devagar
Quando parece ser
Amor sem fim
Respiração
Que vai parar encher
E de vazar
E ter
Continuação
De novo vem e sem parar
Tudo vai começar
De novo
Como se a gente fosse o fim e o princípio
E não tivesse
Nem princípio nem fim nem quem nem mesmo o quê
Só mais um traço
Um novo impulso
Total e esmagador
Mas um degrau acima
Mais intenso
Quase a tocar o céu
Mas mais além
Mais demorado e sentido

709
Restos ainda de um orgasmo na garganta
E de uma forma agora mais safada
Mais ardente
De repetida e quente
Mas contida
Misturado no seu
Aquele gosto a sexo
Indefinível e forte
Que nos abraça
Como se fosse um fogo
E a sua boca
Entreaberta
Numa expressão indefinida de prazer e de vontade
De querer tudo e tanto
De perdição
Toda a voluptuosa força da paixão
Você enfrenta
Me puxa e quer
Indecidida e branda
Em toda a sua sanha de mulher
Tremendo um pouco
Dizendo o que se fosse
Dizível se diria
Poder ser dito em loucos uivos
Num dialeto de nervos
Que soubesse
Pronunciar sem mais
Arquétipo articulação
O quero
Quero ser
Quero mais
Quero maior
Quero- te imenso intensamente em mim
Quero você
Meus pulsos contra os seus
Esmagando as suas veias
Como se o sangue
O meu corresse dentro de você e o seu em mim
Em veias transparentes e abertas
Em estradas largas
E eu pegando uma de suas pernas
Abrir você um pouco mais
A cada vez
Ficar mais dentro
Mais dentro e duro
Transtornado
Possuído
De tesão automatizado
Louco e feliz
Passando além

710
Com um pequeno impulso mais intenso
Curto mas forte
Batendo um ritmo
Que você sente
Que a gente bate em nós e ao mesmo tempo
Em cada ponto do seu corpo
Você é som
E é tambor
Agora geme
Agora grita
A sua voz estremece
E acompanha cada impulso
Agora não consegue mais parar
É sua própria voz que você faz
Quase querer se arrebentar de tesão
Você se ouve me ouve e nos sentimos
E nossa carne se ultrapassa
Quer se vaporizar
Como se nós
Fôssemos voláteis duas asas
De um ser e nesse ser
Quiséssemos voar
Quiséssemos querer
Queremos
E voamos
Sua perna cruzada no meu braço
Cada vez mais
Numa vertigem delirante e total
Quase brutal
Que só termina quando
Sua barriga se contrai
E você sente que mesmo que parasse
Seu corpo de repente
Seria em frenesi em vez de gente
Um boneco de corda a delirar
Que vibra e pulsa
Interminavelmente
Gente não pára
É animal
Não pode mais
Mas quer poder
E quando vai parar respira e sente
Que não é mais nem mais a gente quem comanda
E não se quer
Não pode nem querer
Nem sem querer
Não quer parar
Quer morder
Eu mordo sua boca
E você sabe

711
Eu sinto e você sente
Vai rebentar
E começar a se sentir explodir
Dentro do ventre
O seu impulso é forte
Sentimos sem correr que a carne faz estalar meu corpo contra o seu
Momento que parece prolongar o infinito
Que delícia sentir você escorrer
Quente ofegante e frouxa
Cansada mas ainda sequiosa
Como quem está incandescente
Se recarregando de energia
Para o que vem depois
P’ro que vier
Que quero é ver
No quieto e manso
Infinito espaço que embalando
Nós dois você e eu
Abraçando você ainda com um braço
E com o outro ir
Deixar dengosa a minha mão
A procurar o mapa do teu sexo
E devagar chegar
Chegando
Ao mesmo tempo que a minha língua chega em sua orelha
Dedos tímidos devassam por fim sua xereca
Acariciando
Ali onde você mais gosta
E te beijando voluptuosamente
Então você se sente penetrada uma vez mais
Seus braços caem e se agitam
Mas eu seguro você
Pego os seus seios
Me dobro um pouco mais sobre você
Como que te querendo devorar inteira
E você quer
Ser devorada inteira
Seu corpo balança de novo naquele mesmo ritmo que é só seu e meu
Que só nossos dois corpos feitos um souberam aprender
E vibram
Como uma só respiração
Uma só alma
E uma ânsia delirante que intercruza
Todas as fibras do corpo
Todos os músculos e nervos
Num só balanço
Redondo e inesgotável
De salutar loucura
Só nós dois
Num vorticismo intenso e bom

712
Seu esgar é de tesão e de prazer
Mas dentro e assim
Você sorri
Fica gostosa
Rara e divina
Expressão insaciada
E de mulher fogosa.

3.
Começa no dedão
O grande do seu pé
Devagarzinho
Mais devagarinho
Devagarinho ainda
Amassando amassando
Amassando amassando
Amassando todo o pé nas duas mãos
Com força
Com mais força
Docemente
Depois os outros dedos
A um de cada vez
E o espacinho
Que existe entre cada dedo
Tem beijinhos nos dedinhos nas pontinhas
Parecem ervilhinhas as pontinhas
Dos seu dedinhos do pé
Uma chupadinha gostosa em cada um
Todas as ervilhinhas dos dedinhos
E na sola do pé quase uma cósquinha com a ponta da língua
Depois se pega a perna acima do tornozelo
E se faz rodar o pé
Para ficar bem relaxado
Bem descontraído
Relaxado
Depois o outro
E aí você se coloca barriga para cima
E eu faço balançar a pantorrilha
Que fica meio que pendurada
E dança
E sacoleja
Então as mãos vão ficando impregnadas de eletricidade
Amassando o músculo e dando um ritmo
Que você sente
Você sente a energia que sobe pela perna
Aí se vira para baixo
Quase instintivamente
Cedendo mansa a um pequeno toque
De solicitação
Você reage e gosta

713
E a massagem lentamente
Se passeando em suas coxas
As minhas mãos como um artista
De visita a um museu transcendental
Onde cada pedacinho me fascina
E os olhos em meus dedos
Bebem você
Sem deixar que nem um tendãozinho fique sem ser
Sentido visto e devorado
Todas as pernas
Numa massagem como se você fosse um desportista
Todos os músculos tudo ao longo
Esfregando as coxas para cima
Para baixo
Depois para cima e para baixo
Sempre sentindo
Sempre tocando
Quase uma música
No tom da sua pele
Sempre com ritmo
E sempre o mesmo ritmo
Uma energia
Depois passando a mão do lado
Perto das ancas
Às vezes arranhando um pouco com as unhas
Para tonificar esse lugar sensível
E vai subindo
Aí chega nos glúteos
Glúteos é como se chama o músculo avantajado do bumbum
O musculão
E esses a gente massageia os dois ao mesmo tempo
Em círculos
Nas duas mãos
Primeiro rodando para fora
Depois rodando para dentro
E vai esquentando
Então aí quando se roda para dentro
Você vai se abrindo e se fechando com um som
Naturalmente
Vai se esquentando
E esquentando
Esquentando
Esquentando
Cada vez mais
Cada vez melhor
Mais e melhor
Num movimento mais redondo
E aí quando começa a se sentir molhada
Faz um sonzinho
Shack shack shlak shlak shlak shlak

714
Shlak shlak shlak shlak
De cada vez que vai e vem
Aí se passa para a parte logo depois da bunda
E se massaja um pouco na cintura
Como se estivesse enrolando um cinto ou uma faixa no seu corpo
E se está na hora de virar você de novo
Para cima
É uma coisa séria
Vou sentar no seu colo
Num lugar que encaixa perfeitinho
Nas suas pernas o seu sexo
Antes da sua barriga
E se massageiam os ombros
Depois um braço
De cada vez
Até chegar nas mãos
Se colocam os dedos assim como se fosse de mão dada
Como os namorados
E se rodam as mãos
A pessoa aí já está muito estimulada
E sente as ondas correrem pelo corpo conforme as mãos ficam rodando
E os dedos entre os dedos
A roda é calma
Tranquila
Está quase
Porque a seguir
Chega no peito
Por cima dos seios
Entre aquele osso da saboneteira e os seios mesmo
Essa zona é erógena
Ela já faz crescer o tesão da pessoa
E então daí se pegam os seios fazendo uma concha com as mãos
Primeiro ao de leve
E se rodam os bicos entre os dedos
E se rodam os bicos entre os dedos
Aí é hora de eu me inclinar um pouco sim
E beijar você gostoso
Na boca
E começar massageando o seu pescoço
Com as duas mãos ao mesmo tempo
Levantando o seu cangote
Para você deixar a cabeça caída para trás
Se abandonando
Meus dedos roçam de leve a sua orelha
E eu sussurro umas palavras
Baixinho e grave em seu ouvido
Você sente a vibração da voz
Até ao fundo da barriga
E a partir daí
O resto da massagem é feito com a boca

715
Primeiro nos seus seios como um bebé
Chupando os seus mamilos
Como se tivessem leite e se pudesse beber
Depois devagarinho
Entre as costelas
Mordendo com os lábios
Puxando a sua pele
Dando uma mordida safadinha na barriga
Você vai lentamente abrindo as pernas
E a minha boca chega no seu sexo
Quente
Molhado
Inchado e vermelho
Intumescido de sangue
E a boca quer chegar no seu clitóris
Seu grelinho
Os meus dedos esticando a sua pele
Para ele sair e ficar brincado
Elétrico na ponta da língua que o sacode
Quase frenética
E você não pode parar de se mexer
Se contorcer
E se desfaz em sucos
Langorosos
Apertando
Minha cabeça entre as suas pernas
Eu quero seu sabor na minha boca
Chupar você inteira
Você virando puta
Se desmilinguindo em ais
Ficar em transe
E então aí esfregar meu rosto em você toda
Aberta
Toda molhada
Se contraindo na barriga de tesão
E veja bem
A gente ainda está só no início
Sério mesmo ainda nem mesmo começou
E eu preciso do seu corpo
Sentir seus músculos vibrando em minha carne
Fazer você sentir
Sentir meu corpo
Colado no seu corpo
O volume crescer
Você sentir pulsar meu sexo
Enlouquecido por você
Louco por você
Encher você de mais vontade de saber
De pegar
De sentir nós dois pele com pele

716
Se trocando
Trocando
Transidos beijos
De calor
Pegar sua cintura
Como se você fosse bailarina
E ficar balançando com você
Sentindo seu ritmo em meus dedos
Depois pegando um dos seus seios
Ficar com ele em minha mão
Acariciar
Me erguer até beijá-lo
Um depois do outro
Enquanto você joga a cabeça para trás
E se balança
Se rebola
Vai e vem
Entra sai e entra e sai
Cada vez mais energética e doidona
Abrindo a boca para respirar mais
Então eu vou pego você pelos cabelos
Cravando e arranhando
As unhas de leve em sua nuca
De um jeito q você vai ficar toda arrepiada
Não é gostoso?
É quase o céu
Pode não ser logo à primeira
Mas depois devagar se chega lá
Os corpos vão se conhecendo
E um ao outro se entregando
Com muito amor
Trepando
E com inteligência e sensualidade
Dançar você
Como se fosse tirar peça por peça
Uma roupa invisível que você já nem tem
Você está nua
E eu quero mexer em você
Mas toda e tanto
Que você vai dobrar as pernas
E eu curvado
Beijar muito e mais a sua boca
Pegar as suas coxas
E fazer amor pra você
E se prepara
Porque você vai ficar acordada é uma semana
E eu não vou nem deixar você sair do quarto

717
É
E de gostoso
E de delicia
Eu vou estar beijando a sua boca toda a hora.

4.
Podemos ir agora tomar banho
Juntos
Deliciosamente fresco e deliquescente
Que como palavra lembra assim água correndo
Livre e cantante sobre corpos nus
Pele escorregando
Deslisando lisa e vez em quando se encalhando
Sentindo em tempo
Protuberâncias rígidas
Mamilos
Caralho tenso
Entumescido
E água
De muita água lavando beijos.

5.
Você me quer entrando na cama pelo fundo
Fazendo uma massagem nos teus pés
Deixa que eu deixe você se relaxar
Rode o seu calcanhar
Amasse o seu tendão de aquiles
E cada um dos seus dedinhos
Seus dedinhos
O dedão
O chocalhar da sua pantorrilha
A sua perna dobrada mas descontraída
Deixada assim
Ligeiramente aberta para o lado
Meio aberta
E fazer tudo igualzinho
No outro pé
Na outra perna
Cada dedinho
Depois das mãos vamos na boca
Chupar os seus dedinhos do pé
Você vai sentir uma coceirinha gostosa
Que parece subir as suas pernas
A sua pantorrilha amassada ainda um pouco mais
E as suas pernas afastadas
Vamos massagear as suas coxas
Como se você fosse um desportista antes da competição
Uma primeiro
Enquanto você afasta um pouco mais a outra
Para eu poder caber no meio

718
Os seus músculos começam então a relaxar
E você sente que a minha mão treme
Quase impercetivelmente
Quando se aproxima da virilha
Agora a gente vai massagear a outra perna
A que ficou
E ela abre então bem do jeitinho que a outra estava
E se sente um calor quando você se mexe
Se sente esse calor subir
Na outra perna a gente faz tudo igualzinho
Mas se percebe que em momentos
A sua outra coxa toca as minhas costas
E quando essa massagem termina
Eu peço gentilmente p’ra você se virar
P’ra massagear ainda as suas coxas
Mas atrás
É uma coisa sugestiva
Mas quase profissional
E ao mesmo tempo feita com muito amor
Tudo começa nas curvas dos joelhos
Com ternura
São músculos diferentes
A gente massageia pegando
Agarrando forte
Depois correndo as mãos
Ao longo todo da perna
Para cima e para baixo
Parece que os músculos gostam desse movimento
E quando se chega na parte alta das coxas
Tem um movimento que roda para fora
Estamos nos glúteos
Sua bunda gostosa
Seu formidável bumbum
P’ra esses tem um movimento circular
Que massageia os dois ao mesmo tempo
E lentamente a mão não mais resiste
Àquele calor molhado
Que vem do entre
Entre as suas pernas
Relaxadas e semi-abertas
E a mão afaga docemente
Lentamente
Os dedos querem entrar
E eu abro um pouco as suas nádegas
Para poder beijar
Seu rego
E você sente o meu cabelo
Que toca as suas pernas pelo lado de dentro
Lentamente então você se vira
Para deixar a minha boca procurar seu ponto

719
Seu centro
Sua conquilha gostosa
Seu ponto de ordem unida
Toda a vã filosofia
Do seu corpo em agonia
Que se sente
E você escorre
A minha língua massageia em círculos
E em volta
E os meus lábios te chupam como um beijo
Eu fico como que abraçado em suas coxas
Sua boceta vira todo o meu desmando
O centro do meu mundo
Que você guarda entre as suas pernas
Que você abre para mim
Que você dá
Oferece ao meu tesão
Que te devora
Se demora
Minha língua como se fosse de serpente
Bífida e infatigável
Estimula te estimula
Agita e se te agita semidentro
Enlouquece e louca te electriza o grelo
Ele começa cada vez mais a saber a sangue
Incha
E eu sinto seu sabor em minha boca
Sinto ou invento
Que estou sentindo
Você se mexe
Se contorce
Se inteiriça e se distorce
A espaços o seu corpo serpenteia
E sua barriga se contrai
Você se sente abençoada
Por possuir uma coisa assim deliciosa
E a minha língua esfrega agora como um cão
Que lambe uma ferida jamais cicatrizada
Você levanta as pernas e sente essa vertigem chegando
Mas eu aperto a sua carne
Minha cabeça também roda
Você está inteira em minha boca
Quente e gostosa
Se desfazendo em suco.

6.
Eu quereria encher você inteira de carinho
E de beijinho
Tocar as suas coxas levemente
E logo logo ficar todo agarrado em você

720
Como que de conchinha
Respirando em sua nuca
Mergulhando os meus dedos e o nariz no seu cabelo
Afagando sua cabeça com doçura
E puxando você mais para mim
Sentir sua barriga se encolher
Se contrair
E mais em baixo
Começar a molhar de prazer
Falar bobagens perto do seu ouvido
Baixinho
Reverberando a voz
E pouco a pouco
Pouco um pouquinho mais perto
Gemer baixinho
Exactamente antes de morder a sua orelha
Beijar o seu pescoço
Beijar muito
Até você virar a cabeça para trás para eu poder
Beijar a sua boca
Te devorar então como se fosse
Comer teus lábios
Mastigar tua língua
No beijo mais molhado e apaixonado
Que tem
E que você
Sentiu jamais
Nos dias prazerosos que tem na sua vida.

7.
Devorava
Mordia
Beijava muito
Desenhava seus lábios com a ponta da língua
Dava muitos beijinhos
Em toda a volta
E depois ficava prendendo seu lábio com meus lábios
Beijava de novo
Até você abrir
E então beijava mais ainda
Sugava você
De dentro pela boca
Chupava sua língua
Mordia seus lábios
Enchia minha boca de você
E te beijava
Sôfrego e apaixonado
Até você inteira se sentir beijada
Você tem orgulho no seu beijo
Beijo longo

721
Assim como que se você estivesse
Beijando com o corpo todo
Sim sim
E que o corpo vai no ritmo do beijo
Colado
Se contorcendo e sentindo
Cada vibração
Cada fibra
Cada nervo
Beijo bom é por aí
Quando quanto mais beija mais excitada
Vai ficando
E mais excitado você me vai deixando
Esse beijo é muito bom
E aí você sente o volume crescendo
E de repente uma mordida leve
Em cima
E um pulsar em baixo
Que quando você percebe
Está escorrendo
Quente e molhada
Cheirando a sexo
E numa vertigem galopante
Quase transe
E aí diz pára
É isso aí
É quando chega no momento
Em que mais você pede pra parar
Mais excitada fica
E de repente
Não sabe mais se está pedindo p’ra parar
Ou se está falando
Não pára
Não pára
Ou então você diz pára
Sim
Mas pensa
Não pára.

8.
Eu queria estar fazendo um cafuné nos seus caxinhos
Beijando você inteirinha
Tirando a sua roupa devagar
E desenhando a sua pele com beijinho
Aqui e ali uma lambida
Uma mordida gostosa
E você serpenteando o corpo
Sentindo mais desejo
Do que você pode suportar
E eu sentir a sua carne

722
E sua pele toda se arrepiar
Do jeito que eu não conseguir mais resistir
Sentir as suas pernas entre
E você me apertando sempre
Quente e molhada
Cheirosa e rebentando de tesão
Nossos corpos se entrelaçando as pernas
Os braços e as bocas
Se devorando loucas
Mal tendo ocasião pra respirar
De tanto se querer
E tanto querer se dar
Eu quero você
Magia deliciosa
Você é tudo o q eu quero
Quero você inteira
P’ra eu ficar num êxtase
E virar santo
Mas um santo tipo exu
Com pensamentos safados
Eu vou beber você
Deixar você delirando
Escorrendo de prazer
Eletrizar as suas coxas
Por dentro
Lamber suas virilhas
E esfregar meu rosto
Em você
Minha cabeça se esbaldando
Dentro das suas pernas
Abertas
Fazer você balançar
Pegar a sua bunda e levantar
Para entrar em você até no fundo
Entrar mais
Entrar gostoso
E sentir você me apertando
E rebolando louca e quente
Com a boca seca de gemer e respirar
Ficar com seus mamilos tensos e duros em minha boca.

9.
Mete mete mete
Mete
Mete
Me fode
Me fode
Me come
Você dando p’ra mim
Olhos nos olhos

723
E eu metendo devagar
Te beijando gostoso ao mesmo tempo.

10.
Você de camisola
Pequenina
‘Tá gostosa
Pernas de fora
Sem calcinha
Que loucura
‘Tá tomando ar na bocetinha
Deixa meter meu dedo
Esfregar um pouco… no ponto
Circulando
Carregando um pouco quando pulsa
Deixa eu meter um dedinho
Só pra excitar você um pouco mais
E depois dois
Para você sentir
Devagarinho
Todo o carinho… do mundo
Seria dizer pouco
Aí depois
Como se você fosse uma santa
E eu quisesse rezar para você
Pedir promessa
Devoto e alucinado
De joelhos
Dentro das suas pernas
Lambendo você toda
E afastando suas pernas
Levantando seus joelhos
Para você ficar aberta
Toda…
Aberta como uma flor
E colocar as pernas em volta dos meus ombros
Gritando não
Eu segurando a sua bunda gostosa
Me lambuzando todo no seu suco
Apertando você na minha cara
Até ficar asfixiado de você
Você ainda tenta se soltar
Mas não consegue
Jogo você na cama
E te abraço
Apertado
Apaixonado e gostoso
Entrelaçando as suas pernas com as minhas
Roçando o meu peito nos seus seios
Sentindo a sua pele arrepiar

724
Até que finalmente você cede
Tem que gemer p’ra não gritar
E eu pego seu braço
Levando a sua mão a segurar meu pau
E quando você sente
Como ele fica duro e grande
Mete gostoso
Todo ele inteiro dentro de você
E a gente fica…
Colados se beijando
Fodendo de gostoso
Se contorcendo em desejo e de tesão
Como uma dança lenta
Que você abre a boca
Quer mais beijo
A gente se enlouquece olhos nos olhos
Se aperta forte
Rodeio sua cintura
Você me aperta também
Aperta gostoso no quente meio de suas pernas
No quase dentro
No ardente enleio
A gente respira ao mesmo tempo
Ofegantemente
O mesmo ritmo
Sempre mais certo
Aumentando de volume e acelerando
Você diz que me quer e continua
Rápido e com mais força
Sentindo o entra e sai
E quando o pau chega no fundo
Eu forço ainda um pouco
Como se pudesse entrar inteiro
Todo o meu ser
O músculo e o prazer
Todo o sentir pudesse entrar
Em você
E aí você se enrosca em mim
Como uma cobra
Que se agita
Se contorce
Se rebola
Que se desdobra em pernas
E que esbraceja em asas
Dança e se enche
De uma vertigem voadora de prazer
Enquanto eu
Electrizado e bêbado
Sentindo o cheiro a sexo
Que emana de você

725
E te bebendo toda
Meu amor
Te acariciando
E te sentindo os seios
No côncavo das mãos
Os bicos duros
Roçando as palmas
No peito o sobe e desce de te sentir arfar
O batimento surdo do teu corpo
Clamante e pélvico dançando
No sintonizar das tuas coxas
Sentindo você dar mais te querer
E te fazendo uivar
Enlouquecer
Num último momento quase um pranto
Por ser tão bom sentir tanto prazer
Ser mais intenso então
Ser tão imenso
O espanto e o louco desmedir
De foder tanto.

11.
Dando beijinhos
Em você toda
Todinha
Todinha mesmo
Nas pernas
No pé
Na barriga
Na cintura
Na cinturinha
Nos seus ombros
Nos seus seios
Como se eu fosse um bebé
No seu umbigo
De novo na sua barriguinha
E depois naquele risquinho que tem
Que segue do umbigo
Para baixo
Eu fico abraçado em você
Entre as suas pernas
Beijando você muito
Cada vez mais sofregamente
E você sente minha respiração
Meu coração que bate mais forte
Vai sentir os meus cabelos entre as suas pernas
E aí eu vou beijar você ainda mais
Abraçando você
E abrindo mais as suas pernas
Sentindo o seu sabor ficando quente

726
Como se chupar fosse um longo gostoso e intenso beijo
E eu ficando cada vez mais louco
Para ter você
E sentindo o seu calor molhado
Por fim beijar você assim
Amorosamente
Na boca
E entrando em você devagarinho
Sentir você apertar
Depois mais forte
Olhando você nos olhos e sorrindo entreabrindo seus lábios
E sem parar de entrar e de sair
Beijar você intensamente
Muito
Sempre aumentando o ritmo
Até chegar num ritmo perfeito
Só nosso
Que a gente nem controla mais
Que dança
Sozinho
A gente apenas sabe que se ama que se beija
E geme de prazer.

12.
Um beijo
Um simples beijo
Na parte recuada do seu rosto
Que faz você ficar
Num frémito antevisto de prazer
A mão direita na parte recuada da cintura
Você recua
Quando se sente inopinadamente nua
A uma subtil discreta mas intencional pressão dos dedos
Faz você sentir dobrada a voz do querer
Você ainda diz que é tímida
Mas quando as bocas se procuram
E se mergulham
Há uma coisa que lhe sobe pela espinha
E você dobra as pernas
É um momento em que as bocas se devoram
Numa mastigação impessoal e semi-líquida.

Nos seus cabelos


Onde os meus dedos mergulham como os pés de um tropical aventureiro
Revibra um arrepio que lhe subiu até à nuca
E os ombros
Por um momento ainda tensos
Contrariados ficam encolhidos
Então em seu pescoço você sente o calor da mão que lhe apavora os nervos
Enquanto o ombro mais macio e doce

727
Deixa inocente escorregar a alça do vestido
Você ‘inda fingiu que reagiu
Mas a outra alça já caiu
E o vestido
Desnudando os seios
Tocando a sua pele
Levemente
Antecipa o toque que logo logo vai se produzir
Você sente os sulcos da impressão digital
É impossível
Mas você sente
Enquanto eu começo lentamente a voar
Na carne mansa e mole da sua mama
Percebo os seus mamilos
Na pele imaculada da palma da mão
E fico
Sentindo eles ficarem duros
Pedindo para serem chupados
E beijados
Sentindo ao mesmo tempo
O calor da boca o húmido da língua e o roçar dos dentes.

13.
Não é impressão minha
Olho você
Penso em seu colo
Dá pra sentir seu cheiro
Luminosa
Irradiante
Muito muito bonita
Como você só você é.

Vejo você
E é como se você fosse mil ao mesmo tempo
Tem mais imagens um instante
Numa pessoa viva
Do que em uma bibliotecas inteiras de poemas e fotografias
Quem dera eu fosse um mago
E no instante em que sinto e sinto ver-te
Pudesse estar aí
Fazendo um cafuné no seu cabelo
Fazer assim
Como eu te vejo agora
Com olhinhos de febre
Piscando super infinitamente sensual
Carinhos
Denguinhos
Palavrinhas quentes e docinhas
P’ra minha menina
Mais querida

728
Mais gostosa
Mais bonita
Que eu adoro
E que me deixa louco
Só de pensar nela
E que me faz estremecer
Todo o ser
E enlouquecer
Só com o jeito de colocar as pernas.

Eu quero saber
Quero talvez adivinhar
Ver se eu não vejo
O que eu só vejo
Quando beijo
E quando beijo vejo
O que eu só vejo
Quando vejo o que não vejo.
Fico pensando
Só imaginação
Querer tocar
Fazer carícia
Sentindo o calorzinho
Vindo de dentro da calcinha
E de bobeira ir colocando o dedo
Do lado
Afastando um pouco
Tirando para o lado
Ficar rodando o ponto
Daí por cima
Meter a mão
Pegar inteira
Sentir aos poucos toda você ficar molhada.

E afastar um pouco as suas pernas


Sentir-me enlouquecer só de pensar
Que eu poderia estar estendido do seu lado
Beijando o seu pescoço
Acariciando você dentro da roupa
E quando você começa a ficar louca também
Sentir seu coração bater mais forte
Sua respiração descompassar
E sua boca procurar a minha boca
E te beijar
Como se a gente quisesse se entredevorar
E os meus dedos dentro da calcinha
Minha mão afastando as suas pernas
Mais energia
Mais ritmo
Sempre fazendo você ficar excitada

729
Mais e mais
Sem desistir
Até você ficar toda molhada
E eu meter dois dedos dentro de sua gruta
E você
Com um gemido de prazer
Pedir p’ra eu tirar a sua roupa
Eu vou tirar
Devagar
Beijando você muito
Chupando os seus seios devorador
Até seus mamilos duros ficarem cheios de biquinhos mais pequenos
Em volta
E suas pernas se entrelaçando em mim
Você se contorcendo e se esfregando
Deixando eu perceber que você está sentindo
Vontade de foder
E aí meio q às pressas
A gente começa cada um
Querendo tirar a roupa do outro
E você acaba puxando
Rasgando
Numa loucura só
De respiração descompassada
E de tesão desenfreada
E num momento
Eu beijo você com muita força
Muita intenção
Mordendo seus lábios
Lambendo a sua língua
Enquanto o meu pau entra em você
Desembestado
E você me aperta
De cada vez que ele entra e sai
E entra de novo até ao fundo
E a gente fica dançando
Num balanço unívoco e fatal
Semte-se a pele escorregar já de suada
E a carne estalar
A sua contra a minha
A minha contra a sua
Sempre com cada vez mais energia
Com mais força e mais depressa
A gente perde até noção do tempo
Eu puxo suas pernas para cima
E pego a sua bunda
Levantando um pouco
Para meter em você
Mais
Mais

730
Mais
Mais um pouco
De cada a vez a gente quer chegar mais fundo
Mergulhar um no outro
Até quase parar de respirar.

14.
Se eu pudesse te ter deusa indizível
A sua pele macia ainda fresca iria me alucinar
As nossas bocas coladas num beijo voluptuoso e bom
E as minhas mãos pegando a sua carne
Todo o seu corpo
Uma pegando a sua nuca
Outra apertando você pela cintura
E arranhando um pouco as suas costas
Como uma massagem
Subindo a sua espinha
E descendo
Descendo mais para puxar você p’ra mim
Seu coração ficando acelerado
E você sentir como eu estou te desejando
Meu amor
Pulsar contra você de desejo
E sentir as suas pernas se abrir
Tocar seu sexo com doçura
Em pequenos movimentos circulares
É
Ouvir você gemer um pouco
E abafar esse gemido com um beijo
Maior e mais molhado
Sem nunca deixar de te acariciar
Beijar seus seios
Beijar cada centímetro quadrado do seu corpo
Pegar e morder as suas coxas
E deixar a minha boca encontrar seu sexo
Você pode fazer o barulho que quizer
Eu vou beijar você
Muito
Muito
Até você ficar molhada
E eu sentir o seu sabor
Sabor gostoso
Gosto de amor e de loucura
Minha lingua não deixará descansar seu ponto
Quase frenética
E aí sim
Você deixaria sair gemendo de prazer
Toda a delícia
De se sentir chupada com sofreguidão
Você é tão bonita

731
Meu pau rebenta de desejo
Quero que sinta como está duro de desejo por você
Quero que pegue e sinta
E eu afastando as suas pernas
Sentir o calor que você tem por dentro
Tatear seu sexo como um cego com o meu
E entrar
Em você devastadoramente
Como um exército que invade uma cidade
Sentir você na palma da minha mão
Pegar seus seios
Um… depois o outro
Sem nunca parar de meter
Abraçar você e num momento de tesão que parece que vai nos sufocar
Entrar em você até ao fundo
Sentir seus pelosse emaranhar nos meus
Meu sexo ganhando novas veias
Está tenso e parece ainda querer crescer dentro de você
Beijo você pegando forte a sua nuca
E você sente a minha carne se tornando igual a sua carne
A mesma carne
Que se choca
E nossos corpos dançam
Eu puxo os seus joelhos
E suas pernas abertas para cima
Parecem querer dizer p’ra eu te penetrar ainda mais e mais
Seus seios lindos demais em minha boca
Eu sinto enrijecer os seus mamilos
E eles ficarem cheios de pequeninos bicos em volta
Eu beijo
Eu lambo
Eu mordo
E você grita quando dói
Eu me lambuzo de saliva misturada com loucura
Chupo você como um bebé com fome
Gostoso sentir que você gosta
Mas o melhor é ver você gozar
Quando você não pode mais e grita
E eu quero fazer e vou fazer
Você gritar um pouco mais ainda
E pego a sua boca
Faço você chupar meus dedos
Até sentir vontade de morder
Não paro nunca de entrar em você
Sair voltar entrar puxar e ir
Você começa a se movimentar
Mais forte e mais ritmado
E eu sinto que você
Não consegue mais ficar parada
Não fica quieta um só segundo até gozar.

732
15.
Se você acordasse do meu lado
Aqui bem do meu lado
A primeira coisa que eu faria
Seria dar um beijo carinhoso
Em você
E depois outro
E outro e outro
E ainda outro
Outros
Até seus lábios se entreabrirem
E abertos
Pedindo um beijo mais longo e mais gostoso.

E então
Sim
Eu iria agora então mexer
Com você
Muito
Mexer muito em você
Toda.

Então depois
Bocas coladas olhos que se fecham
O corpo sente
E a pele nervosa toca a pele
Os pelos
As coxas se entrelaçam
E um frémito percorre todo o corpo.

Um impulso invade o corpo inteiro


Que quer encaixar em cada curva
Do outro
A boca quer ler a sua carne
Sentir delirante o sabor morno
Da sua pele
E a voz ainda rouca
Da cama segredando ao seu ouvido
Langorosamente que você é doce.
Aí agora é que você vai começar a molhar
Um calor ardente de perversidade se desprende do seu colo
E a sua barriga se contrai.

Cada gesto em um milhão de enlaces


Que você sente dentro do coração
Bocas e nós
Paradas
Apertados
Entreabertas

733
Quase que se tocando
Hesitando entre palavra e beijo
Como se beijar fosse dizer
Amor
Beijando e repetindo mais
Eu te amo
Eu te amo
Mas como se você estivesse aqui.

Então aí você
Iria poder ter a certeza
Suas pernas enroscando nas minhas
Nossas barrigas coladas
E uma ondulação ligeira
Se modulando de pequenos beijos
No seu pescoço
No seu peito
Nos seus seios
Toda você
Eu beijaria mais ainda
Sua boca
Os seus olhos
Seus doces seios
Salgados de repente
Suados abundantes vivos em minha boca
Na palma rija e tremente
Da minha mão
Eles teriam a perfeita dimensão
E só você
Senhora e cróia
Se encontraria
Magicamente
Apertando meu caralho em sua mão
Indicando o caminho
Que ele deve seguir
E ele segue.

Depois então
Parece que o beijo é infinito
Um beijando o corpo inteiro
Beijado a cada impulso
De cada vez mais terno e forte dentro de você
Como dois corpos feitos p’ra estar juntos
E que nunca deveriam ter sido separados.

Esqueço do tempo
Não sei o tempo
Não tenho tempo
Talvez o tempo seja um deus
Mas e daí…?

734
Aí meu deus
Não tem mais tempo
Fica só essa fantasia
Doce e exótica aromática e intensa
Que sabe e sente apenas
Que você existe e está presente
Olhos fechados olhando o seu sorriso
Entrecortado por um esgar de ganas e prazer
Que me inebria quando sua voz se solta em grito
Meio grito meio gemido
E eu sei que você gosta
Vamos passando lentamente
P’ro lado da loucura
O corpo agora balança e ofegante
Respira
Soltando um ai a cada vez que se desprende
Se entrega só para aquele momento eterno
Aquele andante
De um andamento
O fogo ardendo
De um movimento divino
Uma rima de impulsos
Um ritmo infinito
Um ciclo inesgotável
Que vai e vem
E aí o beijo beijado é um beijo mais intenso
Adulto e mais
Maior
Eu te amo mais
Te falo
E me confesso
Entregue ao holocausto
De me perder
E te adorar
Por você ser gostosa
Por ser linda
Por querer
Por querer mais
Por não querer parar
Nunca querer
E por em um lugar recôndito do seu mais doce ser
Você ser animal
Ser puta e radical
Ser natural
E gostar
E me apertar com força
Contendo quente meu sexo intumescido
De sangue e veias
No seu que molha e incha
Saindo

735
E repetidamente entrando
Saindo
Para de novo entrar
E sair
De você
Numa vertigem interminável e louca
Você sente seu peito
Como que rebentando de se abrir
Respira e grita
Quase uma espécie de vertigem
Como um pânico
Uma agonia
Uma aflição que não assusta
E quando a sua barriga se contrai
Você percebe que está perto de gozar
E quer mais força
Quer mais rápido
Quer se deixar levar para o seio do impossível
E aí realmente você goza
Gostoso
Você me sente dentro
E mais ao fundo.

Depois eu não sei como


É plano é paz
Alguma coisa parece evaporar
E no ar
Algures onde se encontra a alma quando voa
Eu e você sem tempo
Sem vontade
Sem mais nada que se queira querer
Ficamos lentos
Somos só alma
E vogamos.

16.
Deixa eu dividir seu hidratante
Deixa eu colar em suas costas
Deixa eu beijar o seu pescoço
Lamber a sua orelha
Correr minha mão desde o seu ventre
Até ficar com seus seios em minhas mãos
A lhes tomar o peso
As mãos escorregam
E puxam levemente até soltar os bicos
Eu rodos os dedos sobre eles
E eles reagem
Então seus seios parecem caber nas minhas mãos
Eu os apalpo
Aperto um pouco

736
Eu os sinto
Como se eles fossem uma fruta sensual
Uma manga rosa
Madura
Ou uma laranja sumarenta
E volto pra rodar meus dedos nos seus bicos
Agora duros
Repletos de biquinhos pequeninos
E não resisto à vontade de chupar
Como uma fruta
Como um pêssego
Desses que tem pele macia
E amarela.

Deito você na cama


Minha cintura
No meio das suas pernas
E mordo levemente
Massageando o peito
Esticando a sua pele
Chupo os seus bicos
Como um bebé que mama.

Então eu vou lamber sua barriga


Onde o seu odor de fêmea
Se mistura com um sabor salgado
Você sua
Está quente
E aperta o meu tronco com as pernas
Pensa que vai gozar
Minha boca já mordeu suas virilhas
E aguarda de boca entreaberta
O momento em que ela vai chegar
Ali onde você quer minha língua
Te inebriando e te fazendo delirar
Você quer
A minha boca no seu sexo
E a minha língua dentro de você
Como um imenso beijo
Que nem deus inventou.

E eu vou beijando em volta


Sentindo o cheiro que ela respira
E de repente
Rápida e forte
A minha língua esticada para fora
De baixo a cima
E para baixo em volta dentro
Você sente ela passar no seu clítoris
Se abre inteira

737
E quer gozar na minha boca
Eu quero engolir o ponto onde você mais sente
E as minhas mãos afastam mais as suas pernas
Meus dedos dois já dentro acariciando
Você está encharcada
E eu sinto o quente nas paredes da sua rata gostosa
Por dentro
A minha língua não pára
Ao contrário
Ela acelera
Toda a minha boca está chupando
Aberta
Slhap shlap shlap shlap shlap
Cavando uma mina dentro de você
Donde vai logo logo sair ouro
Todo o seu corpo se contorce e suas pernas tremem
Sua boca se aperta numa inútil tentativa
P’ra não deixar sair aquele grito cavo
Que parece vir do interior
Não do seu corpo mas do mundo
E você vem…
Goza gostoso e repetidamente.

17.
Diz que me mata
Mata nada
Eu não posso mais esperar
Quero devorar a sua boca
De beijar você tanto
De perder a respiração
De esquecer o tempo
De mergulhar em você
De me perder em seu corpo
De arrancar a sua roupa
Para sentir a sua pele arrepiar
E beijar cada pelinho arrepiado
Deixar você toda arrebitadinha
Sentindo meus lábios te chuparem
Minha língua molhada
Lamber você inteira
E lá no eixo
Bem lá no centro do mundo do seu corpo
Puxar seu clítoris p’ra dentro da minha boca
Fazer ele dançar em minha língua como um sino
Mas rápido demais
Até você ficar sentindo ele rebentar
Ficar inchado
Pulsando e contraindo
Sem que mesmo você queira
E gritar

738
Meus dedos abrindo você toda
Minhas mãos separando as suas pernas
E uma lambida
Gostosa e tensa
Passar sua buceta de alto a baixo
Entrando um pouco
Só um pouquinho
P’ra dentro de você
E logo a minha boca aberta
Abocanhando sôfrega seu sexo
Deixando você louca pra beijar e nesse beijo
Penetrar você gostoso
Quero fazer mil vezes
Milhões de vezes
Fazer amor pra você
E te amar muito
Te enchendo de ternura e de tesão
De cada vez que o meu pau ficar se entumescendo
Dentro de você
Quero te sentir
Me apertando
Como se fosse
Sua buceta mesmo quem quisesse me dizer
Que eu te pertenço
E que você me quer
P’ra sempre dentro de você
E então foder você com força
Descontrolado de loucura e de prazer
Meter em você como um cachorro
Sempre mais forte e mais rápido
Com mais energia e com mais ritmo
E de cada vez q você sente
Meu pau inteiro dentro de você até a base
Pele na pele
Esfregando a púbis
E rodando
Rodando o meu corpo entre as suas pernas
O pau inteiro dentro de você
Como se você quisesse engolir ele com sua vagina
Ficar vermelha
Ficar possessa de tesão e de vontade
Abrir as pernas ficar de louca
Jogando a cara para um lado e para o outro quase urrando
Um gemido vindo do fundo quente
De suas entranhas
Como um vulcão
Prestes a explodir

739
Até ser preciso eu te pegar a nuca
Te segurar pelo cangote
P’ra te parar e eu te beijar
Intensa e apaixonadamente.

18.
A gente não ama quem a gente quer
Ninguém ama quem quer
Ama quem o amor lhe escolhe para amar
Quem tiver coração
Quem tiver pernas
Tem que ter alegria
Tem que gostar de dar
Aquela outra boca
Sequiosa e húmida
Como se fosse a boca de um vulcão incandescente
Mas tépida e molhada
Como uma poça na maré vazia do Adriático
Se agoniando lenta
Numa longa e prazerosa tarde de prazer em fogo e chuva
Ou uma boca apenas
Toda sentimento
E intenção
Tesão com que se faz
Carinho e tempo
Nada que se faça de repente
Tudo se faz sem pressa
Beijar
Cada pelo eléctrico da pele
Cada prega
Tem qualquer coisa que se agita dentro
Não tem nada e nada há de mais divino
Nem mais transcendental
Do que sentir uma mulher ficar irada
Desmantelada de tesão
Sentir seus lábios tremerem na barriga
A ponta da lingua no umbigo
Descer e dar… ahhhh!
Coisa gostosa
Devagar…
E muito
Abrindo os lábios
Expondo a pele fina
Lubrificada mais que lúbrica
Emoldurando aquele adorno que incha incendeando
Desde o topo os lábios da xoxota
Sentir o seu sabor com a língua
Da ponta para os lados
Arremessando as sensações ao infinito
Deliciosamente.

740
E recomeçar mantendo o ritmo
Depois acelerando
Redescobrindo o jeito
De um gosto mais intenso
Comer sua boceta inteira e voltar
Sentindo no sabor que ela está vermelha e tensa
Que ela me quer
E você abre ainda mais as suas pernas
E eu quero ficar com você dentro da boca
E quando você diz
Que quer chupar-me também
Eu sinto o meu pau na sua boca
Sinto a saliva sinto meu corpo
Tocando no seu corpo
Você quer engoli-lo todo
E eu começo lentamente a querer ficar dentro de você
Num mete e tira gostoso
Um quero mais
Primeiro devagar
Mais
Depois de um impulso até ao fundo
E ficar
Ficar ali enterrado até tocar você por dentro
Por um momento
Ganhar um encaixe ainda mais perfeito em sua pélvis
Todo tesão
E quando o pau fica mais duro até à dor
Foder
Com muita força
Foder muito
Até você parar de respirar
Para respirar intensamente depois
Fundo e com vontade
Querer mais
Sentir o suor escorregando sobre a pele
E a loucura corre solta
E o sangue se agita na cabeça
Tem tempo ainda para beijar você na boca
E enterrar mais uma vez até ao fundo
Ficar ali mais um momento
Apertando você pela cintura
E começar de novo
Devagar
A cabeça do pau
Titilando os lábios quentes e inchados da sua outra boca agora inchada
E sem você esperar meter
Meter mais
Meter uma outra vez
Meter muitas vezes e depressa

741
Num ritmo que você já não consegue aguentar
E você respira ofegante e dramática
No mesmo ritmo em que sente
O meu pau quase a rebentar
Entrar no seu corpo até ao fundo
Uma e outra vez
E de repente
Você sente aquela coisa a explodir
Como uma onda que vem por dentro
E não consegue calar um grito de prazer
É quase um urro
Uma coisa que você precisa em desespero fazer sair
«Mais…
Estás me deixando louca!»
Você diz ainda com voz rouca.

19.
Me sente apertando sua carne em minhas mãos
Porque a minha boca está aberta e ofegante
No langoroso quente do seu sexo
E você sente o quente da respiração
E a vertigem da língua que te agita
Sente a sofreguidão dos lábios que te chupam
E fica trânsida de tesão e de prazer
E forte
Eu pego suas ancas
E quero entrar em você
De cada vez mais fundo
Quero te pegar
Abraçando você pela cintura
Dividir nossos copos em dois
Em baixo um candomblé de gritos e batuques
Em cima nossos olhos dois a dois
Se deglutindo e entre hipnotizando
Você respira mas sente que a cada inspiração
Seu corpo queima como um vulcão
E o pau não cessa de penetrar você
Sempre mais fundo
De cada vez mais forte
Você sente o impacto no seu corpo todo
Seu coração dispara
E parece que quer sair pela boca
E você abre a boca
E um berro surdo e doce parece vir do fundo do seu ser
Você se agita e treme
E as suas pernas se esticam de tesão
Você as abre e quer se levantar
De encontro ao pau que entra e sai e entra e sai
E entra
E sai

742
E entra
E sai
E tonto de prazer volta a entrar
Você deseja mais e com mais força
Impulsiona seu corpo contra o meu
E esse choque você sente
Bem dentro de você
As veias saltam no meu pau
Sinto vontade de pegar você pela bunda
Meus dedos espalhados
Enterram sua carne
Você sente os meus dedos
Um primeiro
Leve e entra
Roda brinca
Depois outro
Dois dedos dentro da sua greta
Sentindo a pele
O mole inchado das pregas quentes
Daquela gruta escura
Fina e molhada.

20.
Sinto vontade de despentear o seu cabelo
De começar a te tirar a roupa
De entrar no banho junto com você
Faz tempo que o meu pénis está ereto
E você fica brincando com ele
Enquanto eu vou sentindo a temperatura
Da água no seu corpo
Todo o seu corpo…
Molhado
Às vezes tenso
E nos beijamos sentindo a água nos cair no rosto
Vou começar a passar o sabonete
Todo o seu corpo…
Você delira
Fico nas suas costas
Junto
E você sente o meu pau que não resiste
A procurar lugar no entre de entre as suas pernas
Minhas mãos escorregam de sabão
Apertam
Percorrem seu corpo em todas as direções
Esperam mais um pouco
Um pouco mais
Meus dedos percebem seus mamilos
Estão duros
E você pede para eu não parar
E ainda mais um pouco

743
Eu fico neles
Escorregando
Prendendo-os entre os dedos
Pegando
Rodando os dedos para sentir melhor
Como quem quisesse mesmo sentir o que você sente
E você encosta a cabeça para trás
Estamos colados
E nossa pele parece se reconhecer
Você solta um gemido
E aí eu não resisto
Pego sua barriga
A água sempre nos molhando a pele
Correndo quente pelo corpo abaixo
E de repente
Lentamente
Eu me dou um tempo
Então fico brincando com seus músculos
E você sente que os meus dedos estão procurando a zona do seu sexo
Sinto os seus pelos
E quero ficar com sua vagina em minha mão
Como se você estivesse ali toda inteirinha
Ela não pára de mexer
E eu vejo que você está gostando
Vou massageando de leve
Rodando
Meus dedos sentem você por dentro
Sinto vontade de lavar suas pernas
Suas formidáveis pernas
Agarro forte seus músculos que se arrepiam ao toque
E ficam tensos
Suas coxas
Suas nádegas que eu sinto em minhas pernas
O seu bumbum redondo
Sua cintura que modelo com a ternura trânsida
De um artesão do barro
E beijo você na barriga
De joelhos
Você vai ficando enlouquecida
Agora queremos ambos que esse banho acabe logo
Mas antes disso ainda
Você quer tempo para lavar meu pau
E dar-lhe um beijo
Sente vontade de senti-lo em sua boca
Tiramos o que resta do sabão
Vamos secar você
Passa a toalha passa a mão
A outra mão
As mãos
Meu pau te quer

744
E nossos corpos
‘inda molhados
Não conseguem parar de se tocar
Sua vagina escorre
Então não tem mais jeito
Eu encosto em você
Contra a porta fechada do banheiro
Você quer… insiste p’ra meter
Em pé
Eu pego você pela cintura
E você fica com as pernas me apertando e sente
Pela primeira vez
Por dentro
Meu pau se agitar dentro de você
Eu te seguro
Vamos p’ra cama
Sempre sem sair de dentro você e te beijando
Com um ligeiro jeito
A minha mão em sua bunda
Segurando
Amparando você para o que vem
Preparando e sustendo
Um desejo que faz ranger os dentes
Um beijo curto como que de passagem
Para uma etapa mais intensa
Para uma massa
Jogo você na cama
E te beijo o corpo todo
Te agarro na cabeça
Seguro o seu pescoço
Você respira forte
E a minha boca não pára de zanzar
Todo o seu corpo
De te morder de leve
Eu chupo os seus seios
Agora sugo mesmo
E antes que você peça
Entro em você de novo
E começamos a foder numa loucura só
E durante um tempo é só aquele ritmo
Vam... vam... vam... vammm
A gente nem sente que o tempo passa
Parece que parou
A gente sente que ele não passa mais
Só sente que é cada vez mais e cada vez melhor
Incrédulo procuro seus olhos
Vou desenhando beijos leves em seus lábios
Querendo virar desenho
Dentro querendo ser a sua boca
Diminuindo um pouco a ânsia que temos de nos ter

745
Queremos prolongar ainda mais esse momento
Mais um pouco
Agora devagar
Sentindo tudo
Como uma obra genial inacabada.

21.
Meu amor
Fica quietinha
Assim como se eu pudesse marcar as suas têmporas todas de beijinho
Naquele lugar em que o osso da cabeça é mais fininho
E parece que só tem a pele sobre o cérebro
E se depois eu pudesse quase sem mudar de ângulo
Ficar beijando seus olhos
Devagarzinho
Leve e profundo
E a lateral do seu nariz
E lentamente
Fosse você quem inclinasse um pouco para trás sua cabeça
E abrisse entreabrindo a sua boca
E de uma vez então
Eu e você
Nos afogássemos no transe irreversível do beijo
Gostoso e sensual
O beijo
Mais terno e mais bonito
Do mundo.

22.
Suas pernas são tão inspiradoras
Feitas um sonho de carne
Forma
Eu começo a pensar
Sinto até cada pelinho
Daqueles pequeninhos
Nem se sentem nem se vêem
Mas nos meus lábios nervosos
Que da sua boca quente
Vieram magnetizados
Feitos loucura e delírio
De sentir a sua pele
A ficar arrepiada
Quando você sente o toque
Leve dos dentes na pele
Na gordurinha gostosa
Que a minha boca manhosa
Procura no interior
Mais liso e quente
Mais junto ao entre
Do seu corpo que se ajeita

746
Abrindo um pouco
Sugerindo nesse gesto
Que quer mais
Que me quer perto
Mais dentro e tanto
No maior bem
Mais valioso
Que você tem.

23.
Quero virar você
Colocar de joelhos no sofá
Ficar em pé
Metendo em você com jeito e força
Fazendo você gemer como cachorra
Pegar sua cintura segurar você puxar pra mim
Encostar no meu corpo
Eu vou
Com maior força ainda
Espeto em você até ao fundo
E sinto a minha pele
Quebrar contra você.

Afasto a sua bunda pra entrar fundo


Beijando o seu pescoço
Sua orelha
E você vira a cabeça para eu beijar a sua boca
Entre seus uiiiiiiiiis e aiiiis
Depois eu vou levar você p‘ro chão
Te amo...
Levanto as suas pernas
Puxando os seus joelhos para trás
E metendo compassadamente em você
Balanceando
Só a cabecinha
Você já toda inchada de tesão
Sente roçar e se arrepia
Está doida de tesão e tem
A sua boca aberta
Apetece te beijar
Enquanto você geme baixinho.

Eu te amo tanto
Você é minha menina
Menina mais gostosa e tesuda do mundo
Entro em você desmesurado
Está quente dentro
E o seu grelo inchado
Vermelho e inchado de tesão
Super sensível

747
Toco você
E vou metendo
Um pouco mais
E sempre mais
Um pouco mais
Mais dentro
Mais forte
E aumentando.

Pego você por baixo e te levanto


Levanto a sua bunda
E toco o seu cofrinho
Massageando ele
Rodando mexendo metendo
Eu todo eu dentro
E colo
Colo no seu colo
E sinto a sua pele
Molhada de suor
Vermelha de tesão
Intensa de vontade
E beijo você muito
E você mole…
Sua vagina ardendo,,,
Toda molhada,,,
Pegando fogo
Cega visão do paraíso.

24.
Um beijo
Longo e apaixonado
Depois tirar sua roupa devagar
Depois já não depois sofregamente
P’ra descobrir você
E sentir o toque de veludo da sua pele
Mergulhar inteiro no seu calor
E beber o seu tesouro morno e molhado
Nossos corpos nus se encontrando
Num devaneio delicioso
Quero encher você de beijos
Abrir as suas pernas e deixar a minha boca se perder
Meu rosto se esfregar em você
E te deixar também louca de prazer
Pegar as suas coxas e beijar seu sexo
Até você se transformar em suco
E te beber inteira
Te beijar com loucura
Acariciando
Apertando
E entrar em você num ritmo tresloucado

748
Pulsando
Que delícia louca ficar dentro de você
Entrando e saindo
Nossos corpos se entrelaçando
Se confundindo
Nossas pernas virando um nó
E nossas bocas um novelo
Sentir teu gosto
Quero sentir o calor da sua boca
E te afagar os seios
E o calor molhado de ficar inteiro dentro da sua boca
Como se eu estivesse puxando você pra mim com força
Suspendendo você e te fazendo voar
Delícia
Sentir você gozar
Em cima de você
Quero sentir seu gozo quente
Eu vou adorar sentir o seu clítoris mudando de sabor
Jorrando em mim
Naquela hora em que começa a pulsar e a saber a sangue
Seu clítoris
Pulsando
Dançando sob a minha língua
E os meus lábios que chupam você com energia
Quero ficar em você mais um pouco
E devagar
Começar tudo de novo
Devagarzinho
Entrando em você
Até ao fundo
E beijando sua boca ao mesmo tempo
Realizar todo esse momento
E que dure muito
Quero fazer amor com você todos os dias
Acordar com você do meu lado e te encher de beijos ao mesmo tempo q vc acorda
Como se você viesse chegando de um sonho
Gostoso
Lindo
Safado
Delirante
E colar no seu corpo
Naquela bruta ereção que tem de madrugada
E encher você de amor mais uma vez.

25.
Um cheiro já é uma coisa perigosa
Porque você começa sentindo o cheiro
Do cabelo
Do cangote
O cheiro que vem do peito

749
E vai beijando
E vai cheirando mais
Vai ficando bêbado daquele cheiro
Aí já vai tirando a blusa
Sempre beijando
Mordendo os braços
Chupando os seios
Os bicos e descendo
Fica de joelhos
Beijando na barriga
Metendo a língua no umbigo
E cheirando
Aquele vapor intenso que sobe debaixo da saia
E aí você não resiste
E mete a mão
E pega suas coxas
Você cheirando a sexo
Ficando arrepiada
Molhada
E pego a sua bunda
E levanto você
E você me abraça e me aperta com as pernas
Em volta da cintura
Me beijando a boca
Muito
E mais
E mais sofregamente
Falando palavras incompreensíveis
E gemendo
Enquanto beija
Aí encosto você contra a parede
E dou uma prensa em você
Sua saia e a calcinha já voaram
Você está nua
Doida pra dar
Eu entro em você
E meto
Meto uma e outra vez
Empurrando você contra a parede
Mordendo o seu pescoço
Lambendo a sua boca
Pegando no seu rosto
E mergulhando os dedos
Dentro da sua boca
E fico inteiro dentro de você
Meu pau pulsando
E você sente
E chupa os dedos que entra e sai
Da sua boca
Então você se enche de vontade

750
E fica louca de tesão
Dá o impulso
Se meter
Quer sentir o pau furar você
E sua carne estalar
A carne da suas coxas chocalhar e você quer
Quer mais
Quer com mais energia
E mais tesão.

26.
O que você tem de lugar pra ser beijado
Tanto e de tantas maneiras
Terna e dengosamente
Aflorando apenas sua pele com os lábios
Sentindo e ao mesmo tempo
Fazendo você sentir
Um leve tremor
Um frémito de sonho e de desejo
Ou mais sofregamente
Como se antes esses beijos
Estivessem desenhando no seu corpo
Todas as curvas entrevistas
As nuances
Mais pronunciadas
Adivinhando os nervos e as fibras
Os nós onde você se sente arrepiar
E depois então desse desenho
Um beijo mais intenso
Fosse pintar de cores o seu desenho
Te devorando a carne
Deixando aqui ou ali por um momento
Os pontos sensíveis do seu corpo
Sentir o leve mas insinuante
Roçar de dentes fragorosos e famintos
Mais sequiosos e ternos
No morno do seu colo
A minha língua rebrilhasse o seu prazer
Até você se transformar em nhanha doce
E eu te beber
Como um viajante a uma miragem no deserto
E num entreolhar sedento
De desejos e intenções comprometidas e cúmplices
Te mordesse os seios
Como um bébé
Os nosso corpos se fundindo e emaranhando
Entrelaçando as pernas
Com o se fôssemos no momento logo depois
Virar um nó.

751
OUTROS TEXTOS

A FÍFIA:

A MENINA DO BALLET

A menina do ballet já não sabia nem os via a todos na escuridão com as luzes apagadas
na sala e as luzes tão brilhantes só a iluminá-la a ela a sua inocência a sua beleza
desconhecida que depois da música parecia apenas uma pena tão frágil que qualquer
sopro a faria voar e onde cairia do seu voo a linda menina do ballet sem nenhum gesto
subtil já toda estampada no lixo sem subtileza nenhuma sem ballet e já sem música até
apenas o esgar da dor e a cor do sangue sobre a pele do corpo já inexistente contra o
lixo.

Voltaria mais tarde a dançar depois da manhã mais à tarde depois do almoço voltaria a
dançar uma bela dança de fantasia mas a dança que agora dançava a menina do ballet
era uma vaga sombra que só fazia lembrar a outra como era uma verdadeira fantasia e
como estava a linda menina do ballet estatelada no lixo.

ESSENCIALMENTE DO QUE NASCE E MORRE SEM CHEGAR A VIVER

Adensa-se e alisa-se a paisagem embora umas vezes por outras tenha que se dizer que a
vida me dói e que talvez um dia possa vir a regozijar-me de ter visto a clara flor e ligar a
chauffage e correr pelo desatino da ignorância e da incompreensão sem tão pouco
desligar a chauffage e correr novamente até nunca chegar um dia em que a manhã
tivesse uma jangada de loucuras para malbaratar dizendo que não gostava repetindo até
que não gostava mas na mais despercebida perfídia gostava… gostava muito gostava
bem talvez bastante mas de nenhum modo podia com o tributo que pagava por gostar
ainda que depois pudesse regozijar-me.

Mesmo que dissesse por palavras o que por meio algum se pode dizer a menos que se
perca toda a vergonha e a vergonha é que é a base do entendimento de tudo isto e mais
do que não se sabe que é mas é e também faz parte de tudo isto e de muito mais que é
ocultado pela vergonha e pela ignorância de tudo o que está para além disto e que é uma
pouca vergonha impossível de dizer por palavras ou por qualquer outro meio sujeito a
escrutínio e como tudo a erro a imprecisão demasiado sofisticada para a contextura
rigorosa da actual ordem de ideias justas e outras que não sendo justas são injustas ou
utópicas e sem qualquer fundamento aqui ou em qualquer parte onde seja fundamental
alguma coisa ter um fundamento.

752
O IMBOIM

É como se eu andasse a voar num grande espaço ilimitado e de repente ficasse resumido
a um canto duas paredes e um chão um canto já sem poder voar.

Seja o que for é bem achado e sendo dito melhor o é de três que de um que não tenha
maneira viável de prosseguir tal objectivo sem ficar pendurado no subjectivo que é onde
qualquer um está pendurado mesmo que não se aperceba da sua condição de pendurado
no dilema do pacto inato da vida quer ele tenha tendência para a objectivação quer tenha
inclinação para a subjectividade o que sendo só de um eram ao fim da noite três ao fim
de uma já longa noite sem sentir quase nada de um inteiro que era só seu.

Deveras possuindo o anacrónico retábulo guardado com cuidado através do tempo


imortal em relação ao tempo e fatal no seu desaparecimento que sendo dividido podia
ser guardado como o mais precioso dos bens sem ser um bem que aquece e enternece a
alma antes a espicaça e a tortura numa aventura complexa e maquiavélica que não tem
um limite não tem uma certeza não tem um fim e é uma constante agonia a espicaçar a
alma com o tremendo aguilhão do desejo e a torturá-la com a inconformidade da dúvida
a dúvida que está em todo o imboim a dúvida que está sempre presente a dúvida que
sempre prevalece.

Aí onde o desejo pode conquistar uma vitória está o instinto a rir-se do desejo e é aí que
está o imboim.

POEMAS INTRAVENOSOS

Era raro viver no sentido direito e progressivo ou ilusório era misterioso o rugir da terra
sob os nossos pés que era o rugido da nossa própria imaginação apavorada com a
grandeza do deserto em frente deserto que era para tantos a vida e o viver autentico sem
transístor nem pilhas nem música nem corpo nem tão pouco destino ou cabeça.

Mas mais forte que o destino era a recusa do destino e o caminhar sempre em recta e em
respeito pela lei universal da gravidade nas alturas era o irascível e o insondável e no
chão dos nossos corações apenas a podridão da terra que nos parecia inerte e quieta
inerte como um relógio de igreja e quieta como uma puta envelhecida pelos anos e
depois comida pelas baratas do bordel.

Era o rigor que amordaçada a vida corria possesso pelo deserto sem limites prováveis a
morte era a causa e o fim e o consumo dos dias sem azul no céu cheios de frio e de
cinzento depois era o pulsar motor acelerado e taquicárdico e o cinzento a ser sempre
mais preto que cinzento e muito cheio de musgo consistente de ranho verde escuro e
larvas submúndicas e estéreis e eternas.

Costumava chamar-lhe pássaro distante e negro antes de estar nas asas de um pássaro
bem mais negro que voava insólito no sentido da queda inesgotável nutrida apenas da
sede de cair e era o mesmo buraco em que D. João caíra na eternidade e foi sagrado no
mal e na abundância do cinismo mais digno e arrepiante e na verdade inspirador do
único respeito – o medo.

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De medo se formavam as orgias e de rigor se fardavam nos triunfos os soldados para
que o vinho os saudasse em sua imponência de devastadores de rigor se vestiam os
bravos soldados e de medo que era o nosso medo – nós senhores e escravos e soldados e
generais mas nunca subalternos e em caso algum sargentos.

Era a esfinge altiva e incompreensível era a mágica irrealizável era o bem e o mal a
afogarem-se na pia da inconsciência era o corpo a crescer por dentro da alma asmática e
grande de desejo e imensidão eram as portas que se abriam para a grotesca paisagem
eram as pulgas que fodiam umas com as outras dentro das minhas veias estanques era a
loucura que é o que era e o que é.

POEMAS INTRANSITÁVEIS

Por maldizer outras instituições mais obsessivas das massas trabalhadoras de covas
profundas e sinistras e sinuosas e saltitantes de um sítio para o outro sem que realmente
a nuvem se dissipe por qualquer obra de magia física ou epidémica.

Curvar-se circularmente no chão da terra coberta de tacos e pedras e fluidos demoníacos


e verdes de mistura com entulhos detríticos e fósseis relativamente recentes e limpos de
tal maneira que possam caminhar pela rua sem baixar a cabeça com arrependimentos
líquidos e curiosamente numismáticos plásticos ou implícitos incham em grossas pipas
de desgraças e imprecações encharcadas de seiva desluzida de maquinal e parva tudo
envolvido no conluio para a liquidação total da sensibilidade.

Compilam-se em garras sanguinárias esses obeliscos estáticos da octogésima segunda


repartição da mórbida existência terrena de gravata de sapatos a gravata a separar a
gravata dos sapatos o resto adormecido de calçada de estradas nacionais e municipais e
camarárias e estreitas e longas e umas com desenhos e outras sem desenhos e lixam-se
os detritos com água e vereis mármore quase branco encardido e negro escuro e mortal
e padres e metalúrgicos e canalizadores e muito particularmente leiteiros.

Cavem as profundas catacumbas que por meios possíveis e impossíveis transplantais


para outros civis e vivos.

POEMAS INTROVERTIDOS

Aparece e desaparece:

Quando aparece é uma festa depois desaparece é uma tristeza e as mais hipotéticas
desgraças podem acontecer derivadas do seu desaparecimento inigualável a qualquer
outro desaparecimento excepto um que é o desaparecimento por excelência através da
perda da memória com saudação ritual própria das vezes em que aparece para amenizar
a ideia do desaparecimento por excelência.

Quanto ao aparecimento é sempre breve e alem de breve distante para com os que estão
presentes para assistir ao seu aparecimento ausente e breve logo seguido do
desaparecimento.

Para atenuar o desaparecimento só um novo aparecimento mas se o desaparecimento for


o desaparecimento por excelência é difícil de atenuar por meio de qualquer

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aparecimento porque este é breve e ausente e aquele total e definitivo ou melhor
infinitivo visto que quando realmente desaparece é difícil encontrá-lo é mesmo muito
difícil para não dizer impossível e a sua extensão não tem limites e a maior vicissitude é
a que provém desta razão.

O princípio e o fim:

Quando finalmente chega ao fim lembra-se sempre o princípio vê-se que se transformou
no fim e que o fim não podia ser outro senão o princípio que começou tal como acabou
sem nunca existir a mais prudente e sábia ignorância que é o que digeriu o próprio
tempo que é sempre sequioso do fim e quere-o sangrento e exótico e o código do seu
transitar apaga-se ante os olhos abertos e iluminados e ilumina-se para os que estão
fechados antes de ter começado já existia a fuzilaria das acusações seria mais um gemer
de dor animalesca quanto o fim fora sereno e calmo.

Agitação:

Quero que o modo seja sempre outro diferente do que é a seguir ao que é seja sempre
outro que já é e então já não possa ser senão outro que venha depois

A imagem:

Já era tempo de se descansar um pouco sobre a imagem que se procura e também sobre
aquela que se possui por dentro para onde se olha quando se está só e que se olha pouco
e quase sempre apressadamente aquela que pode ser a mais doce imagem que se
procura.

É bonito ver a imagem que se procura porque ela aparece só para ser vista e para nada
mais pois desaparece logo que deixa de ser vista e só quer ser vista não quer ser despida
da sua aparência de imagem para ser observada detalhadamente no que ela já não é uma
imagem mas uma suprema congestão de uma matéria e a doce imagem se foi vista
mesmo que por pouco tempo ainda bem.

JASS
(dedicado a charlie parker eric dolphy e albert ayler)

Dos catres e dos anjos que a concebem já que por outros meios impossível se torna falar
dela sem incorrer em vastos e laboriosos riscos de êxtase e triste complacência de tão
inócua e curiosamente igual a todas as outras mas diferente.

Dos filhos da noite com que se nutre e lhes bebe o desgosto e os caga em grossas e
inusitadas pastas moles e densas e portanto fugazes e rebarbativas e essencialmente
musculares.

Do enlaçado harmónico da anémona que inspira e retira de tão imenso dever de viver
por dentro do arcaboiço e de modo algum fora dele.

Do rigor analítico infausto e ridículo que diz ser essa a certeza da medida na rigidez dos
espaços vedados a principiantes explodentes de efusões orgásmicas mais do que de
certezas míticas e quanto ao fundo de si paranóicas.

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Duns porque são pretos e dos outros porque são brancos e até de alguns que são azuis e
por sua própria natureza indecifráveis mas compreensíveis a média altitude.

Dos restantes outras memórias descreveram como se de bichos se tratasse mas fósseis
irrecuperáveis embora o Sol cantasse dentro das suas veias como uma bola de claridade
no fundo escuro do esgoto.

A JANELA

Valeria a pena pintar essa janela num quadro. Uma janela dando luz a uma escada
interior, escura, interior, com degraus de pedra já suficientemente pisados para terem
adquirido brilho e profundidade – a profundidade a que os anos, quando são muitos dão
sentido. Seria muito simbólico. Mas é apenas uma escada com dois lanços e entre os
lanços um patamar de lajes grandes, de pedra. Numa das lajes uma inscrição faz crer
que a pedra tenha sido antes a tampa de uma tumba de um bispo ou de outra pessoa.
Uma pedra tumular que agora serve de chão a quem, depois de subir o primeiro lanço,
transita para o segundo. Do primeiro lanço vê-se a janela de baixo e de esguelha, sobre a
esquerda, e vê-se a luz que a janela deita de manhã, quando o Sol está de frente e a
pessoa que sobe a escada é atraída pela luz até ao patamar e, no patamar, fica com a
janela acima da cabeça. Bem acima o tamanho de um gigante. No patamar forma-se
uma espécie de obscuridade por baixo do jorro de luz que jorra da janela e passa acima
da cabeça. Aí mergulha-se numa massa inexistente e quase opaca, densa e intensamente
iluminada. Depois, ao começar a subir o segundo lanço, viram-se as costas à janela e
sobe-se dentro do espaço iluminado e intenso para uma nova escuridão mais escura e
mais interior no fim da escada. Para quem passa a janela não tem importância e pode-se
passar sem dar por ela, mas é impossível não a ver. Pode-se não dar por ela por estar tão
alta e quem passa, passar por baixo. Mas quem desce vê-a com certeza, de frente, dando
lonjura ao espaço, mas num lugar insólito para uma janela, quase colada ao tecto e a
moldura confundindo-se com o canto que se prolonga até ao chão. É uma janela altiva
embora não se imponha pela sua altivez.

Já me tem acontecido ficar sentado no último degrau, com os pés deixados inocuamente
repousados no penúltimo, discretamente encostado à parede, com os olhos
esbugalhados, levemente abaixo do corrimão grosso e de cantaria arredondada, que não
me deixa ver nada para o lado de onde a escada sobe. É então que me distraio a olhar
para a janela. É um olhar oblíquo. Mesmo estando no cimo da escada, a janela continua
a ser mais alta, pendurada ao tecto e encostada à esquerda. Quando se desce a escada
apanha-se a janela de frente, pela cara. É um olhar dinâmico e a impressão resulta mais
frontal. Estando sentado, e usufruindo de uma comodidade possível, é diferente. O
corpo fica arrumado à forma lógica das pedras e não se abandona pesadamente à solidez
do suporte, antes é suportado pela pesada solidez da massa compacta da construção, que
é ancestral, e parece flutuar por ser, comparativamente, muito leve. Não existe uma
ideia de chão. O chão são os degraus, cada um um palmo mais abaixo que o anterior,
sempre descendo até ao patamar, e para cima muito espaço de ambos os lados do
corrimão. O corrimão limita o espaço, mas pressente-se que do outro lado não há nada,
que a escada continua para baixo, (e em frente a janela com a sua moldura…) na
sequencia diagonal do corrimão que se afunda no espaço inferior em direcção ao centro
do patamar, que mal se vê porque fica no escuro. O corrimão feito de parede é mais um
plano tangente à bola do meu ombro, que se encosta, sem exageros lascivos, ao umbral

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no fim da escada e todo o espaço é cortado por ideias oblíquas. Só a janela em frente é
positiva, directa e perfeitamente enquadrada com a sua moldura.

Parece um quadro pregado no alto da parede – a janela com os seus 16 vidros


rectangulares proporcionalmente iguais ao rectângulo da moldura. Na verdade um dos
vidros já não está lá e outro só está parcialmente, mas isso nota-se mais quando se olha
a janela pelo lado de fora. Por dentro vê-se a luz a entrar dividida pelo cruzamento de 3
linhas verticais com outras 3 horizontais – para fora não se vê nada. É uma janela que só
existe de fora para dentro. Não é como aquelas janelas que se justificam pela paisagem
que se vê através delas, como se fossem quadros hiper-realistas com a distância pintada
de neblina, nem como as outras que parece litogravuras e se comprazem no que os
vidros reflectem das proximidades fronteiras e que servem mais para serem olhadas a
partir do exterior – esta não. De fora não se dá por ela – é apenas mais um quadrado
rectangular na uniformidade linear da parede. Mas por dentro também não serve para
colmatar nenhuma saudade existencial ou para analgésico de claustrofobias. Na
realidade não serve para nada. Representa-se tão-somente a si própria, à sua superfície
empoeirada e profunda. A sua profundidade não advém porém de nenhum romantismo
inerente, mas do facto de estar instalada à face de uma parede grossíssima. Vista de
dentro parece um poço de animatógrafo, mas no fundo não há imagem. Só 16
rectângulos por onde entra a luz. De frente nem se vê a luz entrar. Só quando se vem a
subir e se chega ao patamar, se vê o jorro de luz a despejar partículas na metade inferior
do segundo lanço. Parado, a olhar para ela, a janela não serve para nada. E no entanto
tem uma moldura que parece estar lá para mostrar que a ideia de pintá-la, e fazer dela
uma janela útil e cerimonial, não valeria a pena.

O QUARTEIRÃO

É uma parede amarela sobre uma base de pedra ligeiramente oblíqua rectificando a base
da superfície lisa do ocre porque a rua é ligeiramente descendente. A parede acima é
amarela – amarelo ocre – como se usava antigamente mas não é completamente ocre.
Quando chove a cor tende para café-com-leite e os caixilhos das janelas que já não são
pintados há muito tempo ficam mais parecidos com a casa. Entre as janelas com o pó
que se acumula sobre os vidros e lá dentro sobre as madeiras os bolores que
transparecem entre a parede e a tinta estabelece-se um estranho mimetismo. Os
caixilhos já não estão inteiramente no seu lugar e já não são pintados há muito tempo.
Ainda que velhos e mal estimados estes caixilhos enquadram três belas janelas à moda
antiga – a do meio com três vidrilhos coloridos na parte de cima e as outras duas
encimadas por um arco romano formando um semicírculo todo dividido em sectores
através de pedacinhos de madeira e preenchidos por pequenos pedaços de vidro
martelado mas branco. Não se pode dizer que sejam transparentes porque o pó já lhes
roubou a transparência. Embora velha a casa não está em ruínas ainda que ao que se
pode ver não viva lá ninguém e como é sabido as casas onde não mora ninguém
evoluem com rapidez para a ruína – com uma rapidez vertiginosa tendo em conta o
ritmo de vida das casas principalmente as que são como esta de sólida construção. Vejo
tudo isto a partir de um ponto de observação relativamente próximo – digo
relativamente às dimensões da casa – mas no entanto suficientemente afastado para que
a proximidade não perturbe a observação. Mesmo em frente do meu ponto de
observação está portanto uma casa que nunca foi habitada tanto quanto eu me lembro
nunca foi habitada. Possivelmente foi habitada no passado mas eu nunca percebi para
mim é como se nunca tivesse sido habitada nunca vi lá ninguém é apenas uma parede

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amarela sobre uma base de pedra com um portal achinesado tudo pertencendo a uma
casa onde ninguém habita. Habituei-me a acreditar que a casa era habitada por macacos
– pequenos macacos tipo sagui – muitos mas não exageradamente – talvez uma família.
Agora entrou para lá uma velhota certamente para tratar dos macacos. Depois voltou a
sair não porém ao fim do tempo suficiente. Foi por pouco tempo não sei até se chegaria
a ter lá estado dentro. Voltou a sair e ficou titubeando em frente da porta sem entrar nem
sair como se quisesse tomar uma decisão. Não se consegue imaginar o que possa haver
dentro da casa. Deve ser tudo escuro visto que as janelas estão fechadas e dentro se há
mobília deve estar tudo coberto com lençóis como se costuma fazer para os móveis não
apanharem pó. Lá dentro eventualmente os macacos permanecerão invisíveis de quando
em quando visíveis talvez só de vez em quando – meio corpo de um a cabeça e uma
pata de outro – por trás do muro que delimita a varanda. Não é propriamente um muro é
uma cercadura de rectângulos cruzados por duas diagonais e uma altura – como se fosse
uma bandeira da Grã-Bretanha – enquadrados por uma estrutura caiada de cinzento que
serve de resolução à superfície amarela do ocre. Ora esta prolonga-se para além do
próprio corpo da casa que termina numa fachada curta onde fica a porta formando assim
o topo do quarteirão antes do bico onde se ergue o tal portal apagodado. É uma parede
que continua mais baixa do que o corpo da casa e acaba numa espécie de castelinho que
serve de entrada da entrada com dois pilares rematados por uma viga e outros dois atrás
daqueles também rematados por vigas mais pequenas que terminam como a outra já
fora dos pilares numa forma meio encaracolada dando de facto a vaga sugestão de um
pagode chinês. Como a estrutura parece vazia depreende-se que a ideia fosse a de enlear
trepadeiras à volta dos pilares e fazê-las sustentar pelas vigas mas estas trepadeiras não
estão lá. Tudo isto está assente em dois ou três poiais de pedra acinzentada já muito
gastos que no Verão aquecem com o Sol e onde as crianças gostam de se vir sentar no
intervalo das suas brincadeiras. Ao fim da tarde todas as cores tendem para o azul ou
como os macacos para o cinzento. De dia meio acastanhados nem sei se de facto os
macacos estão lá pois eles nunca aparecem mas se aparecessem seria aquela a hora mais
propícia para aparecerem – nem de noite nem de dia – vagamente cinzentos seria a
melhor maneira de passarem despercebidos e continuaria a não se poder discernir se
realmente estariam lá ou não. Mas não aparecem a não ser quando eu não estou a olhar
para lá. Cinzento cinzento só realmente os poiais onde as crianças se vêm sentar quando
estão quentes. Partindo destes poiais e seguindo ao longo da base de pedra a rua sobe
ligeiramente. Depois da casa amarela está outra mais sólida e que é branca e tem um
grande portão e por cima janelas verdes. Dos poiais até à esquina são por aí uns 52
passos e quando se volta para a direita a rua já é outra. Se não fosse uma pequena porta
preta quase não se dava pela existência da casa por causa da sua parede branca sempre
regular e bem apoiada em cima da sua base de pedra e assim por um momento fica-se
embalado pela brancura da parede mas logo começam as lojas e os vidros reflexos de
pessoas e automóveis e para lá das montras reflexos dos desejos das pessoas que param
e olham para as montras virando as costas à constante passagem dos automóveis que se
movem numa rua mais movimentada. Para trás ficou a solidez idosa da alvenaria e após
a fugaz impertinência dos vidros vem a esquina exactamente 49 passos depois da outra
– passos como que dados num tapete rolante de andar para trás por causa da passagem
constante dos automóveis no sentido único da rua. Ao virar da esquina os automóveis
seguem o seu caminho e para baixo vai uma passagem ladrilhada que mergulha num
pequeno espaço ajardinado e que as crianças utilizam para dar balanço aos seus skates e
pequenas bicicletas e às vezes mesmo a elas próprias e que já tem provocado alguns
cuidados quando as mais pequenas procuram utilizá-la como rampa de lançamento dos
seus triciclos. Sòmente as crianças finalmente assimilaram a essência do dinamismo

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desta pequena porção de urbanizado. Do prédio das lojas quase desaparecem então os
vidros e tem-se a sensação de que o chão vai ficando suspenso acima da cabeça e quase
não se dá pela presença da parede que terminada a rampa descendente acaba por trazer o
chão à sua altura normal isto certamente porque a parede é pardacenta e os olhos não se
sentem atraídos por ela. Depois há um recanto e é novamente a casa e é novamente a
casa amarela com o seu ocre agora mais interessante quando comparado com o tom
indefinível do lazarento prédio moderno – a mesma casa amarela mas agora do outro
lado. Deste lado duas pequenas janelas de cave dão colorido à casa e ao lado uma porta
estreita onde as pessoas entram em frente sobre o recanto cordas que as pessoas usam
para pendurar a roupa. Lá dentro mas ainda no que seja um quintalzinho meio
alcandorado numa escadaria e penduradas numa parede mais interior gaiolas e dentro
das gaiolas pássaros coloridos que fazem frequentemente a alegria das crianças. Tudo
isto porque está tudo fechado e os macacos persistem em não aparecer e mesmo que
aparecessem seria lá no alto e como deste lado a rua é mais baixa e a casa mais alta eles
não poderiam ser vistos. Quando se é surpreendido pelo recanto e a rua fica de súbito
mais larga e deixa de ser rua para passar a ser jardim mesmo que nunca tivesse sido rua
mas sim rampa nem se percebe que a porta tem uma parede que não acaba ou que acaba
antes de acabar e que por trás desta parede que não acaba há o que seria um ante-
quintalzinho donde uma escada parte para cima para o verdadeiro – pequeno embora
verdadeiro – quintal. Vários volumes num espaço apertado dão novamente a impressão
de um castelo em miniatura e na parede onde está a porta estreita ainda o rebordo
cinzento com umas barras penduradas que sugerem ameias de cabeça para baixo.
Depois é que vêm as janelas e é como se a parte de cima não existisse. Quando se chega
de novo aos poiais deram-se para lá de 150 passos e está-se de novo em frente do meu
ponto de observação. Para ficar mesmo no meu ponto de observação é preciso deixar o
quarteirão e passar para o outro quarteirão para entrar no café e ficar atrás do vidro a
observar este quarteirão. Se tivesse um avião poderia vê-lo de cima com a sua forma
triangular levemente escalena arredondado no ângulo mais bicudo pelos degraus de
pedra que ficam quentes porque o Sol lhes bate a tarde inteira sem me aperceber da sua
forma rômbica causada pela inclinação desigual das ruas e talvez me apercebesse da
definitiva existência dos macacos ou me convencesse por fim de que não existem – e
nas varandas sempre se passa qualquer coisa que de baixo para cima não se vê. Só
quando por meio de elevadores ou íngremes escadas escuribundas se sobe a um prédio
mais alto são vistas as varandas dos outros mais pequenos que parecem então cubos
arrumados como caixotes num armazém onde os depositaram e em cima geralmente
abandonadas coisas sem valor como pneus mesas velhas ou caixotes de fruta meio
desfeitos por apanharem chuva e depois sol indistintamente ou coisas que foram
guardadas para serem utilizadas mas que nunca o foram – às vezes pombais que
parecem ser o prolongamento das casas e que não se distinguem muito sensivelmente
das coisas empilhadas e esquecidas por ter passado a oportunidade da sua utilização.
Olhando bem de cima nada disso se poderia distinguir seriam apenas coisas ou nem
mesmo isso seriam apenas pontos de um esquadrinhado confuso e inexplicável. Só o
triângulo escaleno de bico arredondado seria eficazmente visível – na parte mais larga
os dois blocos mais compactos e mais pesados e na parte inferior a casa amarela
afunilando aos degraus de pedra. A casa já não seria sequer amarela ou o amarelo não
seria já mais do que uma impressão periférica mas isso só seria possível a partir de um
ponto de observação muito mais acima lá muito acima entre a humidade e a rarificação
do ar. O melhor seria mesmo estar parado no ar para após algum tempo me abstrair da
existência circundante e me concentrar só no triângulo com a ponta mais aguda
arredondada e quase imperceptível por de longe se confundir com o chão. O ideal era

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um helicóptero porque esses podem ficar parados no ar como os insectos mas tal como
eles não estão aptos a ganhar altitude. Em todo o caso a grande altura os macacos
ficariam ainda mais pequenos e impossíveis. Seria mais fácil ver as crianças que
brincam horizontalmente as suas brincadeiras antes de se virem sentar nos degraus de
pedra que ficam quentes quando no Verão o Sol lhes bate com muita energia e
prolongadamente. Talvez eu tenha sonhado com os macacos mas não me lembro. De
certeza foi num desses dias em que me levanto e vou para o café ainda a dormir embora
já não o suficiente para continuar a sonhar e nessas circunstâncias acidentalmente coisas
que sonhei torno a sonhar sem perceber que já estou acordado. Em todo o caso os
macacos mesmo vistos de cima não seriam visíveis. Eles vêem-se é sobretudo de baixo
como num teatro de robertos em vias de estar a ser desmontado no fim de um dia que
não existiu.

NEXUS MUNDI

Antes a Terra era “redonda e pequenina”


Antes da “aldeia global”
Eram selvagens as florestas e os bichos
Eram vastas savanas e pradarias
E fabulosos seres emprenhavam
Na roda animada e eterna da bio-diversidade.

A terra era uma espécie de jardim zoológico dos europeus


DOCTOR LINVINGSTON, I PRESUME!
Massai CONNECTING PEOPLE índios
Mongóis e aborígenes C’EST QUA AN ABORIGÉNE?
Nós somos de outra matéria
…de outra estirpe
Temos um sentido práctico globalizado e aldeão
Um planeta todo urbanizado
Com uma taberna, uma igreja e uma mercearia
Todas inteiramente globais e ON-LINE.

Mais global que um urinol divino


Merda de branco vai chover em temporal abjecto
Em cima da savana ódio de preto aquece e não no Sol
Ferve na estufa do aquecimento global
TOTIUS TERRARUM ardendo em febre
Já no pacífico a França eterna
Deflagrou a bomba atomicida
fodeu mais um atol.

Eterna América GOD IS against


Tragam as bananas do Equador
Tragam manteiga
Conservem frio
…vende frigoríficos verdes
…DEUTSH MARK
EURO QUEBRA D’OXIGÉNEO TRÊS
IN GOD WE TRUST

760
NO TRUST das bananas do Peru e do Equador
Comam depressa
Vivam depressa
Fodam depressa
Morram depressa
Tragam manteiga
Conservem frio
Traguem a pastilha
…e sobretudo
Não parem de reciclar esta merda.

Deus é grande o homem é pequeno


Mais que pequeno é deformado e búzio:

- porque só toma em conta a existência material


em vez do todo material e imaterial
que é a forma de viver humana;

- porque desenvolveu brutal e sôfrego


aspectos da existência inúteis e lascivos
atrofiando criminoso outros mais belos;

- porque a capacidade de realização práctica do homem


é muito superior à sua compreensão do que faz
a sua obra transcende-o;

- porque o desenvolvimento humano se regula


por factores exteriores ao HOMEM e esmaga
os aspectos interiores que em maior ou menor parte desconhece;

Porque o homem actual dispõe da capacidade de esconder dos outros e de si próprio a


maior parte do que compõe o seu estado de espírito, emoções e intenções a actual
existência do homem é a expressão de toda a terrível incompreensão da sua natureza e
da natureza do mundo.

É um escravo da matéria, da sua própria sobrevivência e dos mecanismos dessa


sobrevivência. Ao mesmo tempo o homem considera-se a mais elevada entidade
existente no Universo. Nada concebe que o transcenda nem deseja qualquer relação com
a transcendência. Perdeu de vista o mundo além da sua mente inábil p’ra lá do seu
pequeno coração ignóbil nada vê a não ser o que possa ser alcançado pela sua mão
habilidosa ou pisado pelo seu pé trambuco.

Quando por fim um dia tudo estiver irremediavelmente exaurido aí tudo esgotado já
sem Iraque já sem petróleo para fazer arder as suas máquinas sem energia nem
sustentada nem reciclável p’ra produzir os desajeitados milagres da sua boba tecnologia,
ele olhará para dentro e aí encontrará apenas o vazio imenso da sua própria
incompreensão de si mesmo – uma gargalhada congelada e um arco-íris blindado.

761
Eu sou a gaia animal e assombrosa
A Terra divinal juramentada
Mesmo que diversa e vária
No meu coração atómico de mãe
Todos os seres têm seu colo
E no meu rosto doce e sagrado
Nexo no mundo meu terno encanto
Será meu filho
Belo e gigante.

AFORISMOS, PENSAMENTOS E DITIRAMBOS:

Cultura é a capacidade de compreender aquilo de que se não gosta.

A luz apaga a escuridão, mas a escuridão não apaga a luz.

Eu acredito no que é evidente, no que não é evidente não acredito.

O que acontece é o que acontece, não é o que não acontece.

Antes errar que hesitar.

Cada um come do que gosta e leva no que é seu.

Deus é um princípio, algures no universo, o qual instituiu a si próprio a determinação de


existir.

Sexo é a forma como, à escala humana, sentimos a presença de deus e o orgasmo a


prova de que ele existe..

As pessoas não existem, o que existe é o que se manifesta por dentro das pessoas.

Feliz não é a pessoa que nunca está triste, feliz é a pessoa que quando está triste percebe
porquê e conta uma piada a si própria.

Amai-vos uns aos outros que não haveides de envelhecer.

A tragédia da pessoa é muitas vezes a miséria do tempo histórico em que é obrigada a


viver.

- o poeta fala ao coração das pessoas

- o filósofo fala à inteligência das pessoas

- o artista fala ao gosto das pessoas

- o historiador e o esoterista falam ao imaginário das pessoas

- os outros, salvo quiçá alguma excepção, falam a um eco de si próprios que será
talvez a inocência das pessoas – os políticos, os fazedores de opinião, os

762
professores é como falam

- alguns falam também à ignorância das pessoas agentes religiosos, publicitários


e, de um modo particular, hipnotizadores

- à cobiça e à ganância das pessoas falam os vendedores e os vigaristas

- …e continua.

Os alarves, os javardos e os alambazes somos todos nós quando falamos.

PENSAMENTOS E IDEIAS:

É evidente que extraterrestres existem. Apenas o nosso entendimento das coisas físicas
torna impraticável que tais seres viagem pelo universo e se visitem mutuamente, uma
vez que residem a incontáveis anos luz de distância, distâncias essas que se revelam
incompatíveis com a nossa noção física do tempo-espaço. É bastante mais credível que
tais visitas sejam na verdade dobras no espaço-tempo que permitem que seres humanos
de diferentes épocas e graus de desenvolvimento possam entrar momentaneamente em
contacto nos chamados encontros imediatos do 3º grau.

O super-homem (ou Homem Novo) será evidentemente mulato – quando tiver sido
atingido o máximo grau de miscigenação. Ele aparecerá quando nascer o primeiro
homem que reúna em si a totalidade do património genético da humanidade.

A humanidade partiu de um tronco comum, geralmente conhecido como homo sapiens


sapiens e subdividiu-se geneticamente segundo os seus percursos e os ambientes
vigorantes nas latitudes a que foi tendo que se adaptar. Depois de completado o giro do
planeta desenrola-se actualmente o processo de reunificação de todo esse património
genético entretanto alcançado.

Aquilo a que, antigamente, chamávamos raças, representa, na realidade do universo


simbólico, as várias idades da humanidade. Assim, o homem africano representa a
infância da humanidade, o árabe a adolescência, o europeu a idade adulta, o oriental a
velhice e o ameríndio representa os que já morreram.

Todos os seres são o centro do mundo porque o mundo é infinito partindo de qualquer
lugar. A qualidade do «mundo» é a projecção lógica, proporcional e direta da qualidade
dos seres humanos.

De cima não vem nada (só a chuva) porque o universo está em expansão e cada corpo
celeste, cada ser e, em última instância, cada átomo do mesmo modo se expressa por
uma existência irradiante e por conseguinte «em expansão». Curiosamente expande-se
no sentido inverso do que se manifesta através da gravidade i.e. o universo expande-se
do centro para fora, mas tudo o que nele existe atrai para o seu centro respectivo. Deve
ser por isso que há tanto tempo se diz que o que está em cima é igual ao que está em
baixo.

763
Aquilo a que, antigamente, chamávamos raças, representa, na realidade do universo
simbólico, as várias idades da humanidade. Assim, o homem africano representa a
infância da humanidade, o árabe a adolescência, o europeu a idade adulta, o oriental a
velhice e o ameríndio representa os que já morreram.

Sintonizamos várias frequências. Tal como um aparelho receptor de telefonia – um


rádio – existem bandas de frequência tais como a da arte, a da dedução lógica, a do
sonho, a do sono profundo, variadas formas de transe e outras. Dentro de cada uma
delas sintonizamos várias frequências particulares – daí as várias categorias de transe, as
várias formas peculiares de inspiração artística, os vários tipos de sonhos, etc.. Existem
em nós órgãos que captam essas frequências, outros que as convertem em sensações,
emoções e percepções particulares e outros que as emitem também, estejam esses
órgãos ativos ou em actividade latente.

«Os sentidos do amor, o primeiro por certo á ver» era o primeiro verso de uma canção
que ouvi uma vez numa peça de teatro. «A poesia não é a arte (…) é o que eu penso das
coisas quando as vejo» eu mesmo disse e escrevi. Ver. Mais do que um dos meus
amigos mais chegados o disse alguma vez, em se questionando sobre o que seria
finalmente, de tudo, o que mais gostava no mundo… na vida. Quando vemos, olhando
uma paisagem, uma imagem, uma pessoa numa fotografia, súbito nos apaixonamos por
algo que vislumbramos e que está para lá até do que possamos ver. É a poesia que nos
entra pela janela da alma e nós sentimos.

A COR DAS VOGAIS:

A – azul, vermelho ou branco


E – verde
I – amarelo limão
Y – amarelo fogo
O – castanho escuro
U– “ claro
W – lilás

Ordenamento das frequências inerentes à inspiração artística:

(da mais subtil para a mais densa) – a música


a poesia
a dança
o teatro
a pintura
a escultura

A poesia inclui em si mesma algumas formas de arte, além de estar presente como
«poética» em todas as outras artes. As chamadas 7ª arte e os seus sucedâneos, como o
cinema e a fotografia, são na verdade formas tecnológicas de exercitar a poesia a um
nível (superior na fotografia porque dispensa as palavras) em que a fotografia está para
a poesia como o cinema está para a literatura.

A escrita poética se assemelha peculiarmente à escrita chinesa, uma vez que como esta,
aquela é de dinamismo vertical. Ao contrário do texto em prosa, que se lê seguindo as

764
ideias dispostas numa sequência horizontal, na poesia as ideias estão organizadas
segundo uma lógica formal em que, tendencialmente, uma ideia corresponde a um verso
e estando os versos sequencialmente dispostos uns abaixo dos outros, a sequência das
ideias e, consequentemente, a da sua apreensão processa-se verticalmente – como na
escrita chinesa.

A única coisa rigorosamente reta que encontramos no cosmos é a luz. Na natureza a


única formação que é rigorosamente reta pode ser encontrada nos cristais.

Deus é um princípio, algures no universo, o qual instituiu a si próprio a determinação de


existir.

Não sei porque é que chamam deus a deus, se deus não tem nome ou se tem é
impronunciável.

Penso que o mal do comunismo não é o comunismo, são os comunistas! Penso que o
problema do comunismo é ter que ser posto em prática pelas pessoas! Não é porque
uma ideia seja impraticável que ela deve ser abandonada – ela só é impraticável porque
são as pessoas que têm que colocá-la em prática!

AUTO PSICANÁLISE E AUTO PSICO TERAPIA COGNITIVO


COMPORTAMENTAL

Tenho andado ultimamente passando por um daqueles períodos em que parece que já
não há mais nada que valha realmente a pena ser dito certamente porque não se
consegue descortinar nada em que valha realmente a pena reparar. É uma coisa que vai
e vem de tempos a tempos. Ainda assim consigo aprender algumas coisas – coisas sem
importância como fazer a barba com tesoura que é muito confortável e me alimenta pelo
menos aquele espírito de contradição que obriga as coisas a valerem a pena além de que
me confere que ar provecto e sensual dito da barba de dois ou três dias e me habilita ao
supremo orgulho de poder dizer que jamais usarei aqueles horríveis dispositivos que
produzem na cara uma sensação de raspagem que lembra o tempo em que aborto ainda
era proibido – tempos de barbárie – e mesmo nos lugares em que o aborto ainda é
proibido embora eu acredite que ninguém mais estará usando um método tão
horrivelmente clamoroso jamais alguém nem não ninguém me verá raspando a cara.

Tive na juventude, como todos os poetas do sécº XX, a tentação de criar heterónimos. O
advento do modernismo trouxe consigo o fim do poeta singular e a vulgarização da
multiplicidade das expressões sediadas numa só pessoa. A par com a percepção de que a
nomeação da autoria é um problema menor, apercebi-me de que a sua diversificação só
realmente se justifica (?) quando a utilização de nomes fictícios configura, ela própria,
uma metáfora criativa ou uma carga conceptual conscientemente emitida. Optei assim
por não ver nenhum problema em que a multiplicidade de formas, expressões e estados
de espírito que resultam dos processos que permitem a intenção criativa, fossem
considerados como um dado adquirido para a condição do poeta moderno e a sua
manifestação ser natural na produção poética de um mesmo indivíduo. Foi por essa
razão que, embora mantendo a ficção onomástica que procura descrever um trajeto
orientado para a «luz» (Emílio Luciano – o amigo da luz; Lúcio Constante – o que
permanece na luz; Vera Lúcia – a verdadeira luz), deve entender-se a atribuição dessas

765
autorias como uma narrativa poética que descreve as vicissitudes discentes da juventude
do poeta ortónimo.

Isto é tudo na verdade uma grande confusão, porque as coisas que eu mais gosto de
fazer na vida, tirando foder, são tocar violão e escrever poemas. Tocar violão, fazer
canções, de certo modo me alivia. Escrever poemas é uma história completamente
diferente. Para escrever um poema, eu preciso de aceder a um estado que é muito
parecido com a tristeza mais profunda que se possa imaginar
E, depois de escrever, não me sinto aliviado – durante um certo período antes pelo
contrário. É claro que eu queria ser feliz como toda a gente. Nunca me interroguei
muito sobre felicidade. Sempre aceitei budicamente os momentos felizes e infelizes. Na
verdade já nem acredito muito que isto que eu faço, seja propriamente atividade poética
– estou mais inclinado a pensar que seja uma forma peculiar e estranha de psicografia, a
que eu pomposamente chamo se auto-psicanálise, enquanto à música chamo auto-
psicoterapia cognitivo-comportamental.

CONCEITOS DE F.P. SUSCETÍVEIS DE SEREM APLICADOS E SEGUIDOS


COMO INDICADORES DE COMPORTAMENTO PESSOAL E ARTÍSTICO

Alberto Caeiro ser o mestre dos outros heterónimos pressupõe que um registo
autopsicanalítico no fluxo criativo do poeta, pode ser convertido no eixo director da
jornada de autoconhecimento e conhecimento do mundo e da vida de qualquer ser
humano, desde que ele configure e pratique alguma forma de registo dessa actividade
interior.

De futuro (relativamente ao início do séc. XX) nenhum artista poderá jamais limitar-se à
construção de uma única personalidade artística. Isso pressupõe, no sentido mais vasto
de atitude psíquica de fronte da vida, a união dos conceitos de divisão personalidade e
do de cultura da personalidade num único processo e numa só pessoa.

«Autopsicografia» ou «não meu é quanto escrevo…», entre outros, deixam entrever a


assunção do terceiro dos 3 métodos classicamente enunciados como conducentes ao
processo de iniciação ou o que, no universo yunguiano, é denominado de
«individuação».

Herostratus – no seu conjunto.

DO SILÊNCIO

Uma vez ouvi um índio falando do silêncio. Antes ele falava sobre o barulho, como se
não se pudesse conceber o silêncio sem antes reconhecer o barulho. Mais tarde fiquei
pensando e experimentei, como tantas vezes pedi aos meus alunos que fizessem, ouvir,
real e objetivamente, os sons que se escutam na cidade. Nós andamos no meio deles
como se não existissem. É difícil estar em algum lugar, público ou em casa, sem que
haja uma televisão tocando, automóveis que buzinam, motocicletas, camiões – e nós
andamos no meio desse barulho, mas não ouvimos – escutamos mas não ouvimos,
ouvimos mas não escutamos.

As nossas cabeças estão cheias do barulho de palavras, sentimentos, vontades e desejos.


Mesmo na floresta existem os pássaros, o vento agitando os ramos e as folhagens das

766
árvores, a rebentação das cachoeiras ou um eco, uma reverberação que é característica
da floresta tropical – não existe, na verdade, qualquer silêncio.

O único lugar onde, realmente, existe o silêncio, talvez além do longínquo espaço
sideral, é dentro de nós, quando conseguimos esvaziar a mente de palavras ou de outros
pensamentos, e o barulho das nossas obrigações mentais, as nossas ambições
inconsoláveis, é que não nos deixam perceber que na cidade existe permanentemente
uma quantidade de barulho que, razoavelmente, qualquer pessoa consideraria
insuportável (ainda que fosse um surdo) – andamos no meio dele como se não existisse,
como se fosse apenas um ruído de fundo que fizesse parte natural da existência.

Mas enfim… acho que era isso que aquele índio, que na verdade não era bem um índio,
aquele escritor indígena que era afinal um indígena escritor, queria dizer.

O HOMO SAPIENS

O homo sapiens sapiens partiu do ângulo nordeste da África, se dividindo em duas


migrações povoadoras – uma para oriente, outra pra ocidente. Dessa que veio para
ocidente se formaram os povos da Europa, que sucessivamente se tornaram no que
viriam a ser os russos, os eslavos, os germanos os gregos ou os francos, os espanhóis…
Os portugueses, chegando ao extremo Sul, são os que caíram ao mar.

BRASIL

Se há um lugar no mundo, em que a palavra multiculturalidade faz um sentido, esse


lugar é o Brasil. Múltiplas razões me levaram, desde cedo a pensar, que se houvesse um
país ao qual estivesse atribuído um papel, particularmente significativo ou especial, na
história da humanidade, esse lugar, esse país, essa nação (se acaso nação significar a
união mística e funcional entre uma terra e a colectividade que a habita) esse lugar,
dizia, seria o Brasil. Mas de todas as teorias e místicas razões que, ao longo do tempo e
com variados a propósitos, me foram ocorrendo, a mais importante será, sem nenhuma
dúvida, a de que o conjunto de seres humanos que povoa o país e ao qual com
propriedade chamamos «povo brasileiro», é o grupo humano actualmente existente que
evidencia em maior índice e grau a mistura étnica, a miscigenação e a interculturalidade
ativa, i. e. uma condição multicultural que se tornou criativa por si mesma.

Ao contrário do que imaginavam os inspiradores do nazismo, a superioridade genética


não advém de nenhuma espécie de apuramento da raça (seja lá o que for que isso possa
significar), mas outrossim da mistura generalizada e completa de todas as heranças
genéticas presentes na terra – interpretadas em particular e neste caso, pela diversidade
presente na manifestação humana. Daí é que, no meu modesto entendimento, poderá vir
a ocorrer o «Homem Novo», revestido de toda a beleza ideal e multi-étnica que está
presente no mito do seu aparecimento.

Como se o Brasil fosse a pátria onde todos os arquétipos houvessem ganhado vida.

Não sei como irá terminar a atual crise política brasileira e dos pressupostos nem
adianta mais comentar, é como diz o Monsueto - o «caso não é de ver p'ra crer, 'tá na
cara». Uma coisa porém me atrai - o swing: enquanto a direita estúpida e reaccionária,
rígida e anquilosada, repete um tuuuum,tuuuum,tum,tum,tuuuum, quadrado e militarista

767
(«a nossa bandeira jamais será vermelha» assunto que, que eu saiba, jamais esteve em
questão), a palavra de ordem da esquerda - «não vai ter golpe, vai ter luta» - é de uma
rara elegância rítmica (em se tratando de política...) acentuada no 1, no 2 e meio, no 4 e
meio e, depois, no 2 e no 3 para finalizar - parece um samba... eu sei que esta conversa é
mais para músicos, mas o tema
releva da importância estética de se ter razão...

SOBRE O REFERENDO DA CATALUNHA


Nos tempos que correm tem-se consolidado um aparente autismo relativamente à
história e aos factos históricos – são os entusiastas dos descobrimentos que esquecem a
escravatura e os crimes do colonialismo, são os moços do quinto império que esquecem
a mercearia por baixo dos buréis dos jesuítas e até do ilustrado Vieira que se desunhou a
defender os índios, mas nunca disse uma palavra sobre os negros. Seriam bom que
alguns palrantes que emitem opiniões flatulentes sobre as pretensões do povo catalão à
sua independência, pudessem recordar que o levantamento dos restauradores
portugueses de 1640 só teve um desfecho tão fácil porque os expansionistas castelhanos
tiveram que concentrar as suas forças para conter uma revolta que teve lugar na
Catalunha nesse mesmo momento e que, de certo modo, Portugal deve a sua
independência aos catalães.
Alguns dizem que os catalões são ingratos e mesquinhos por não querem partilhar as
suas supostas riquezas com as outras regiões mais pobres e que fazem parte da Espanha.
Sou sensível a essas moralidades. Mas imaginemos o seguinte quadro – a Suíça é um
país muito rico e estaria sendo organizado um referendo para se saber se o país deveria
entrar para a União Europeia ou não. Passará pela cabeça de alguém ser razoável que
em um tal referendo votassem todos os europeus e não apenas os suíços?

OS SENTIMENTOS HUMANOS

Para mim os sentimentos são como uma cebola, organizados em camadas em que umas
incluem as outras e bem assim os sentimentos se se justapõem em sucessivos anéis em
que cada qual inclui todos os anteriores.

Assim você tem o sentimento da autoconservação, por exemplo, o qual você partilha
com a generalidade da espécie – humana no caso. Todo o mundo tem. Depois vem a
solidariedade, que você partilha com os outros num sentido social e humanitário, e esse
já inclui o outro. Depois tem o sentimento de pertença, que você partilha com as pessoas
que são da sua terra, do seu país, e esse também inclui o da solidariedade e o da
conservação da espécie. Depois, vamos supor, tem o da amizade, que inclui todos os
anteriores e que você partilha com as pessoas que têm essa afinidade afectiva que faz
com que você as chame de amigos. depois tem o sentimento de pertença especializada
que está associado aos laços familiares, as afinidades do sangue, o qual inclui todos os
também todos os anteriores, e que você partilha só com as pessoas que são da sua
família, ou que por qualquer razão é aceite para entrar nesse grupo, como é o caso dos
filhos adoptivos, por exemplo, ou das pessoas que têm com a família laços de natureza
laboral durante muito tempo e em áreas muito íntimas como a criação dos filhos ou a
confecção da alimentação.

Simplificando, por fim tem o sentimento do Amor que sintetiza a expressão última de
todas as afinidades electivas, mas que nem por isso, todavia, deixa de incluir em si
todos os outros, nomeadamente inclui as afinidades do sangue, porque os amantes ficam

768
misturando o sangue o tempo todo através dos seus comportamentos sexuais e
frequentemente a ligação amorosa se converte em uma ligação familiar, inclui o da
amizade, o da pertença, o da solidariedade (a que é de natureza humanitária que, por sua
vez inclui aquela outra que é de natureza meramente social) e o da conservação da
espécie, que é uma extensão colectiva da autoconservação e por isso mesmo,
provavelmente, o mais egoísta dos sentimentos.

Paradoxalmente o sentimento do Amor, numa aparente projecção reflexa da sua


extensão epistemológica, é aquele único sentimento que, geralmente, você partilha com
uma só pessoa. Na verdade, se fizéssemos o caminho em sentido contrário, começando
pelo Amor, iríamos sucessivamente encontrando campos de aplicação e
direccionalidade cada vez mais vastos, até que chegaríamos ao primeiro que foi
nomeado (o da conservação da espécie) que se aplica e dirige a, praticamente, toda a
humanidade. Mas a contradição é apenas aparente, i.e. o sentimento mais
intrinsecamente abrangente é o que se aplica e dirige ao menor número de pessoas,
enquanto o sentimento menos especializado e, basicamente, inerente à própria e mera
condição do ser vivo, é o que se aplica e dirige a toda a gente generalizadamente.

Assim se configura e procede o funcionamento dos sentimentos humanos e a forma


como eles estão organizados. Acontece que uma tal configuração não se processa de
todo segundo um modelo linear, que começaria aqui e terminaria ali, mas antes sim,
suscita no desenvolvimento do sustentáculo afectivo da personalidade e no crescimento
do campo de possibilidades da inteligência emocional e sua adaptação à vida, um
modelo circular, que as sucessivas repetições fenoménicas induzem cabalmente à
espiral como modelo estrutural da forma como se desenvolvem e interagem os ditos
sentimentos humanos.

Basta reparar que de cada vez que o espírito humano é banhado e embebido na vibração
potente e encantatória do Amor, o seu apego à vida, aos ritmos e propulsões da natureza
se potencia e cresce, também qualitativamente, de forma que a repetição dos ciclos
afectivos nos quais se configuram todos os sentimentos humanos, com a natural
passagem do tempo, vai fazendo crescer em intensidade e especialização todos e cada
um dos seus registos.

Se a vida é toda essa incongruência, então não vale a pena, mesmo que ela nos dê esses
iniludíveis sinais de que não se pode fugir, acreditar. Talvez ela não fosse tão
desprezível nem o mundo tão definitivamente mau, se não fosse possível alguém causar
tanta dor e não sentir nada de retorno.
Eu sinto assim – sinto o meu destino como se fosse um combóio desgovernado que se
encaminha desesperadamente para o descarrilamento, mas que por milagre, alguém
pode sempre milagrosamente salvar – sinto isso com essa luz, essa matéria de que se
fazem os milagres, que é a mais essencialmente contrária ao ferro desmandado de que é
constituído o comboio – a coisa difusa e imponderável que é o amor.

769
SEMÂNTICA E GRAMÁTICA

Chegar «a» chama a atenção para o percurso; chegar «em» chama a atenção para o
ponto de chegada – exatamente como «ao» encontro «de» e «de» encontro «a».
Estabelecer o campo semântico que resulta da reprodução em várias línguas do conceito
definido por uma determinada palavra, pode ajudar bastante a compreender melhor esse
mesmo conceito.

O critério último para se poder avaliar o domínio de uma língua, seria a capacidade de
escrever e entender a sua poesia. Por razões óbvias: poder-se-á ter o domínio da
linguagem técnica em um campo específico muito complexo, como em ciência ou em
história, dominar até todas as geometrias e associações (lógicas ou ilógicas) do
pensamento racional, do filosófico, mas só a poesia permite alçar o pensamento e a
significância das palavras até às regiões mais subtis da significação metafórica, às
subtilezas dos ritmos e do seu impacto na natureza do discurso, às delicadezas do estilo
ou às categorias emotivas que nem mesmo a literatura romanesca permite condensar.

AS PALAVRAS

Quando se trata de misturar imagens com palavras, a primeira ideia que nos cai na
cabeça é aquela tão repetida e disseminada, e que conta com a rara unanimidade das
coisas universalmente aceites, que reporta a que «uma imagem vale por mil palavras».
Todavia, se começássemos o raciocínio pelo lado das palavras, seria improvável que
chegássemos à mesma proporção. Na verdade, se fosse esse o caso, o raciocínio não
seria tanto de natureza quantitativa (ainda que se trate de uma quantidade simbólica)
mas outrossim de projeção mais abertamente qualitativa – i.e. as palavras (e as que são
escritas ainda mais do que as faladas) deixam sempre em aberto, seja um apelo por
desenvolvimento, seja uma ânsia de uma anterioridade, uma sugestão de outra emoção
maior, a qual deixa ela mesma implícito não serem as palavras, elas mesmas só por
si, capazes de se sentirem completas sem o concurso de alguma outra forma de
expressão. De um modo geral são as imagens ou a música, as primeiras a ser
mobilizadas pela imaginação para a consecução de tal necessidade.

TEORIA DO EQUILÍBRIO GLOBAL ENTRE O PRAZER E O SOFRIMENTO E DA


UTILIDADE SOCIAL DOS POETAS

A teoria do equilíbrio global entre o prazer e o sofrimento, enquanto emoções humanas


negativas, é baseado no estabelecimento de um paralelismo entre o prazer e a dor, por
um lado, e o calor e o frio por outro e respectivamente.

Da mesma forma que em diferentes lugares do mundo se registam diferentes


temperaturas, susceptíveis de serem assimiladas aos qualificativos de calor ou frio, são
descarregadas na atmosfera determinadas quantidades de fluxo eletromagnético
resultante das vivências dos seres humanos, as quais são comumente assimiladas aos
qualificativos de prazer ou sofrimento.

Em geral é preciso ter apenas uma boa ideia para se encontrar sucesso perante os outros.
Quando se tem muitas ideias, existe o risco de elas não serem boas e a certeza de que
jamais serão objeto de algum sucesso.

770
LUIS SÁ DUARTE:

1.
A DUNA

Em tempos havia em Faro dois vendedores de gelados (sorvete como


chamavam) que representavam cada um a sua marca, marcas de origem local que
respondiam pelos nomes dos seus fabricantes. Os fabricantes eram o Madeira e o
Baleizão e os vendedores eram o Madeira, que vestiu a identidade do seu produto, e o
Coelhinho – personagem toda particular. Essas figuras sobreviveram às marcas que
representavam.
O Coelhinho possuía um bigode e um perfil egípcio bem como uma aura de
misticismo que lhe vinha mais dos pinhões do que dos sorvetes. Anunciava a sua
mercadoria com um sonoro e nasalado «frutóóóscolate» e o resto deixava à simpatia que
a sua clientela tinha por ele. Quanto ao outro tinha de ir buscar ao slogan o que lhe
faltava em carisma, e com a intuição que é peculiar aos vendedores natos, versejava
insistentemente à boa maneira dos antigos negociadores árabes: «é chocolat’óóó
baunilha / p’á mãe e p’a filha / estenderem a perna na ilha».
Embora, como se viu, eu não fosse cliente do Madeira, aquela estória da mãe e
da filha estenderem a perna na ilha não me passava despercebida. E agora, passados
tantos anos, foi preciso acontecer essa desgraça que está a acontecer na Ilha de Faro
para eu começar a pensar no que realmente quereria o Madeira dizer com aquilo.
A ilha era uma fantasia que nos fazia apetecer comprar o gelado, era o estar de
férias a apanhar sol, era toda a malícia de não estar vestido e de brincar na praia, de
estender a perna – na ilha. E quando sentimos a possibilidade de perdê-la, sentimos que
não estamos a perder apenas o lazer sociológico que os noticiários televisivos nos
lamentam – estamos a perder um pouco da nossa fantasia. Talvez não tão pouco.
Agora a ilha está a ficar sem areia e mesmo o alcatrão já lá não está todo, o que
quer dizer que já não se podem montar lá mais casinhas daquelas que vendem gelados
sem pregão e mesmo outras construções mais sólidas estão ameaçadas de ficar sem
chão. Agora estamos a ver diminuir a lata em que nos deixamos ensardinhar aos
sábados e domingos e seria talvez tempo de nos lembrarmos de que a Terra, mesmo
quando é só uma estreita língua de areia rodeada de água por todos os lados menos por
um, não existe só para ser usufruída, existe também para ser compreendida e respeitada
como qualquer outro ser vivo.
Esta inexatidão geográfica da ilha não ser mesmo uma ilha que talvez fosse, nos
mostra que tudo é também assim e de repente não é. Ainda estão à vista os vestígios da
existência de uma barra entre a praia de Faro e a Quinta do Lago que há não muito fazia
da ilha uma ilha mesmo. Outras barras não existiam antes e passaram a existir depois e
bancos de areia se criaram e recriaram ou auto-desapareceram onde existiam antes de
irem existir noutro lado. É assim a forma de existir de uma duna.
Duvido de que as pessoas pensem que a natureza teria alguma razão para não
abrir barras nos sítios onde as pessoas acham que elas não deveriam existir. E então as
pessoas temem que isso aconteça, o que é normal e legítimo. Mas tristemente parecem
não querer compreender a natureza. Revoltam-se contra o mar, revoltam-se umas contra
as outras, revoltam-se contra os do poder, cujo poder sobre estas coisas é bem pequeno,
e o que é triste e já assaz revoltante, algumas procuram aproveitar a desgraça e o medo
de outros para tentar fazer prevalecer os seus pontos de vista sobre a realidade. Os
barões da ecologia dizem que a calamidade é por causa das casas – toda a gente sabe
que sempre abriram barras onde não havia casas. O governo diz que vai aproveitar para

771
deitar abaixo as casas clandestinas que ainda existem – entretanto os problemas não são
na zona das casas clandestinas, são na zona em que as casas são legais. E todavia a duna
apenas quer mudar de sítio, as casas é que querem ficar no mesmo lugar, o que gera
uma incompatibilidade.
Muitos se ufanam da sua sabedoria e outros, até gostam de ver a ilha na
televisão… a desaparecer. Nos dias de hoje tornou-se banal anunciar o fim do mundo e
tornou-se banal ouvi-lo e ficar na mesma. Com incomparável rigor dizem-nos que daqui
a cem anos vai acontecer tal ou tal se não deixarmos de fazer isso ou isso. E nós, que
nunca havíamos pensado nisso, continuamos a não pensar. Na verdade, há muito que
perdemos a ilha. Algures no tempo da nossa ânsia de saber e de ter, desaprendemos de
sentir a terra como a nossa mãe e, como é sabido, quem tem uma mãe tem tudo, quem
não tem mãe não tem nada. E nós já fizemos mais buracos na nossa do que o Arrabal
fez na dele.
Quando o mar invade a cidadela dos humanos, como tem acontecido agora na
praia, é natural que as pessoas que possuem lá interesses fiquem aflitas. E as pessoas
que só lá vão à praia talvez comecem agora a habituar-se à ideia de que, daqui para o
futuro, a praia deve ser consumida em spray – o que é uma ideia inteligente porque para
ir lá apanhar os raios ultra-violeta na pele também não vale a pena. Agora quando as
pessoas ouvem o sumo cientista dizer que quando os nossos filhos forem avós nada do
nosso mundo existirá nos seis metros imediatamente acima do actual nível das águas do
mar e que o mais certo é as pessoas estarem todas doentes de cancro, deveria gerar-se
uma verdadeira histeria colectiva, as pessoas deviam ficar todas malucas e abandonarem
os seus afazeres actuais para se dedicarem à construção de grandes barcas como a de
Noé, exercitarem-se na natação e na respiração submarina e, posto isto, fazer amizade
com os peixes. Mas não. Nós sabemos que quem nos avisa nosso amigo é, temos é o
péssimo hábito de tratar mal os amigos. Milénio após milénio temos sido avisados -
«olhem que o mundo vai acabar» - mas a gente nunca acredita.

(publicado in O MERIDIONAL)

2.
O CAVALO DE XADREX

Simpática peça do maravilhoso jogo, facilmente reconhecida mesmo pelos


menos familiarizados, por ser a única que é completamente figurativa, o cavalo tem a
singular particularidade de ser também a única que pode saltar por cima das outras.
Focaliza a casa onde quer chegar e está imediatamente lá, num movimento
dinamicamente lateralizado, como um automóvel cuja imagem fica bem mais sugestiva,
quando o deixamos com as rodas ligeiramente direccionadas para a esquerda ou a
direita, consoante seja o ponto de partida da nossa obliquidade.
O cavalo não se move linearmente mas sim em L. Tão pouco limita ao plano do
tabuleiro o seu movimento, mas, sem deixar de fazer parte da trama quadricular e
horizontal do tabuleiro, evolui também verticalmente. É uma peça cheia de qualidades
e, embora não possa por si só chegar ao xeque-mate, o seu ataque é insidioso e
corrosivo. Por outro lado tem uma defesa ágil e torna-se frequentemente difícil de
comer. Ele, porém, come com displicência e facilidade, embora, pela delicadeza dos
seus movimentos e pelas particularidades do sistema em que se enquadra seja visto
como o artista do jogo de xadrez.
É preciso ter aquela base torneada que assenta no tabuleiro e o pescoço que se
diz que é esguio ou que se esgalga para cima em direcção ao ar, para poder respirar e ser

772
um verdadeiro cavalo de xadrez – no nosso meio, isso é indispensável. Não podemos
deixar de sentir a asfixia de estar numa área não estratégica do tabuleiro (mesmo quando
estamos no centro da estratégia do jogo) e sucumbirmos aquela aridez híper-planificada
que transforma o xadrez em um regular e limitado jogo de damas – e quase sempre
damas que não são mais do que sofrivelmente belas «damas de companhia». Aí ficamos
todos chatos e iguais como as pedras do jogo das damas, movemo-nos pouco e sempre
no mesmo sentido, indefinidamente nem em frente nem para o lado, sempre em
diagonal e uma casinha de cada vez. As pedras desse jogo melancólico e simplista só se
empolgam, quando se comem umas às outras ou chegando no fim do tabuleiro, perto do
precipício, se monta uma pedra sobre a outra e acontece o que se chama «fazer dama».
Então ficam desaustinadas as pedrinhas – andam para trás e para a frente, as casas que
quiserem, numa euforia postiça e descontrolada.
O cavalo de xadrez é de outra natureza e faz de acordo com a sua natureza mais
intrínseca – salta. Se o rei fosse no jogo o marido da rainha então o cavalo seria o
amante com certeza. É com ele que a rainha prepara os seus ataques, desenha suas
cumplicidades e juntos são uma dupla mortal, mesmo quando o que fazem se destina a
proteger o rei. Nas áreas periféricas do vasto tabuleiro, ele procura a universalidade dos
movimentos míticos modelando os seus mitos no grés de uma poeira local. Num meio
cultural e social tendencialmente dormente como tem, persistentemente e ao longo dos
anos teimado em ser o nosso, pode por vezes tornar-se difícil seleccionar exemplos que
ilustrem cabalmente este ponto de vista. Deparamo-nos recorrentemente com a
aceitação passiva do que se diz ser o condicionamento regional. Por ser intelectualmente
mais fácil, aceita-se como bom que os interlocutores desse diálogo cultural e social se
exprimam, não em função de si mesmos e do espaço do qual são os agentes ativos
(quando o são), mas como função de um outro espaço, centralista e não inclusivo,
relativamente ao qual os predicados da nossa linguagem natural precisam de ser
constantemente reafirmados – é preciso colocar lá uma chaminé, um símbolo que nos
identifique como cultura periférica e não como cultura apenas, pura e simples. Ou então,
triste alternativa, somos submersos por uma vida cultural que nada tem a ver connosco,
que se serve do Algarve como plataforma de transacções que passam sempre «far
away» acima da nossa cabeça, por mais esticado que esteja o pescoço do nosso cavalo
de xadrez.
Por isso nos dá a nós muito mais trabalho sermos nós mesmos. Precisamos de
dar imensas cambalhotas. Precisamos de não sermos nós para podermos ser o que
somos, e ser o que nós somos é como qualquer outra coisa, e ser outra coisa qualquer é
poder ser tudo e isso é exactamente do que nós precisamos.
Quando se presta atenção, pode surpreender-se na obra de um artista criador essa
capacidade de cavalgar o xadrez hierarquizado das diferentes esferas culturais, se
sentimos nele a voz própria e a emissão adequada ao seu filtro de imagens. Esta
qualidade de ter luz própria, que é única e inconfundível, quando se expressa livremente
é o que faz a obrar virar uma coisa importante, não a tentativa vã e calculada de ser
original ou a procura inútil de afirmar ou negar uma identidade, que que sempre
transparecem na aparência final da obra e a deixam pálida e visivelmente doente. Este
momento é aquele em que a obra deixa de ser original para ser genuína (não é mais nem
importante se ela é mais ou menos original) e é nesse momento que a terra,
convenientemente adubada, pode dar vida ao artista para que ele torne a sua obra genial.

(publicado in O MERIDIONAL)

773
3.
FARO – CAPITAL «NACIONAL» DE CULTURA

Numa cidade a considerar-se e a ser considerada como capital, sem, no entanto,


verdadeiramente se sentir como tal, a instituição da «Capital Nacional de Cultura»
passou, como que sobre brasas, sem que a capital, a do Algarve, quase que tivesse dado
por isso.
O desfile da cosmopolita “nomenklatura”, em poses mais ou menos
espectaculares, passou realmente sobre a “passerelle” das brasas estivais, dos dias de
luxúria e vanidade dos lisboetas remediados, pelo painel da ociosidade das
esperguiçadeiras, mas não sob o olhar nem sobre as consciências, não pelas vidas
opacas dos algarvios exauridos pela inesgotável voracidade da carraça periférica, não
pelas obliteradas existências dos artistas algarvios, destinados ao equívoco privilégio de
existirem no «Ocidente Perfeito».
Nem mesmo por força dessa sanha centrífuga que sempre lhes dá com o
anunciar do Verão, os portugueses conseguiram encher aquela cova no dente que resta
na boca ressequida que um dia mordeu o paposseco da idolatria nacionalista.
Infelizmente, todos já nos habituámos a que nada queira dizer propriamente o que diz,
tanto quanto acabámos por nos habituar a que o que se diz não queira dizer nada.
“Outramente”, quando se fala de «Capital de Cultura», isso deveria querer dizer que,
durante um certo período, ainda que limitado, um certo espaço social e comunitário
sujeito ao condicionamento da existência periférica, poderia dispor dos meios para se
afirmar, segundo a sua identidade e característica, como núcleo central, difusor e
irradiante de consciência e de cultura. Assim, ainda que limitada no tempo, a iniciativa
teria impacto nos comportamentos e perenidade na vida cultural e, em ulterior, na
consciência própria dessa comunidade. Mas não.
A verdade é que este ponto de vista, conquanto pudesse até congregar a simpatia
dos intelectuais, não deixa de ser delirante. À evidência a tal Capital Portuguesa de
Cultura, a qual não se chegou a saber em definitivo ou com exatidão quando começou
ou deixou de começar a ter começado ou sequer se existiu ou terminou, e isto porque
não é dispicienda a questão do enquanto efectivamente durou, foi, para aqueles que
deveriam ser os verdadeiros sujeitos da operação, apenas mais um frenesim como outros
a que tantos anos de turismos trôpegos nos habituaram a presenciar de vez em quando –
algo que com rigôr no “timing” e voluptuoso “panache”, os portugueses ofereceram a si
próprios, algo que se passou no Verão passado, algumas vezes mesmo pelas praias, algo
que passou sem deixar rasto, mas não algo que aconteceu, nem menos nunca algo que
fez acontecer.
Numa cidade a considerar-se e a ser considerada como capital, sem, no entanto,
verdadeiramente se sentir como tal, a instituição da «Capital Nacional de Cultura»
passou, como que sobre brasas, sem que a capital, a do Algarve, quase que tivesse dado
por isso.
O desfile da cosmopolita “nomenklatura”, em poses mais ou menos
espectaculares, passou realmente sobre a “passerelle” das brasas estivais, dos dias de
luxúria e vanidade dos lisboetas remediados, pelo painel da ociosidade das
esperguiçadeiras, mas não sob o olhar nem sobre as consciências, não pelas vidas
opacas dos algarvios exauridos pela inesgotável voracidade da carraça periférica, não
pelas obliteradas existências dos artistas algarvios, destinados ao equívoco privilégio de
existirem no «Ocidente Perfeito».

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Nem mesmo por força dessa sanha centrífuga que sempre lhes dá com o
anunciar do Verão, os portugueses conseguiram encher aquela cova no dente que resta
na boca ressequida que um dia mordeu o paposseco da idolatria nacionalista.
Infelizmente, todos já nos habituámos a que nada queira dizer propriamente o que diz,
tanto quanto acabámos por nos habituar a que o que se diz não queira dizer nada.
“Outramente”, quando se fala de «Capital de Cultura», isso deveria querer dizer que,
durante um certo período, ainda que limitado, um certo espaço social e comunitário
sujeito ao condicionamento da existência periférica, poderia dispor dos meios para se
afirmar, segundo a sua identidade e característica, como núcleo central, difusor e
irradiante de consciência e de cultura. Assim, ainda que limitada no tempo, a iniciativa
teria impacto nos comportamentos e perenidade na vida cultural e, em ulterior, na
consciência própria dessa comunidade. Mas não.
A verdade é que este ponto de vista, conquanto pudesse até congregar a simpatia
dos intelectuais, não deixa de ser delirante. À evidência a tal Capital Portuguesa de
Cultura, a qual não se chegou a saber em definitivo ou com exatidão quando começou
ou deixou de começar a ter começado ou sequer se existiu ou terminou, e isto porque
não é dispicienda a questão do enquanto efectivamente durou, foi, para aqueles que
deveriam ser os verdadeiros sujeitos da operação, apenas mais um frenesim como outros
a que tantos anos de turismos trôpegos nos habituaram a presenciar de vez em quando –
algo que com rigôr no “timing” e voluptuoso “panache”, os portugueses ofereceram a si
próprios, algo que se passou no Verão passado, algumas vezes mesmo pelas praias, algo
que passou sem deixar rasto, mas não algo que aconteceu, nem menos nunca algo que
fez acontecer.
Numa cidade a considerar-se e a ser considerada como capital, sem, no entanto,
verdadeiramente se sentir como tal, a instituição da «Capital Nacional de Cultura»
passou, como que sobre brasas, sem que a capital, a do Algarve, quase que tivesse dado
por isso.
O desfile da cosmopolita “nomenklatura”, em poses mais ou menos
espectaculares, passou realmente sobre a “passerelle” das brasas estivais, dos dias de
luxúria e vanidade dos lisboetas remediados, pelo painel da ociosidade das
esperguiçadeiras, mas não sob o olhar nem sobre as consciências, não pelas vidas
opacas dos algarvios exauridos pela inesgotável voracidade da carraça periférica, não
pelas obliteradas existências dos artistas algarvios, destinados ao equívoco privilégio de
existirem no «Ocidente Perfeito».
Nem mesmo por força dessa sanha centrífuga que sempre lhes dá com o
anunciar do Verão, os portugueses conseguiram encher aquela cova no dente que resta
na boca ressequida que um dia mordeu o paposseco da idolatria nacionalista.
Infelizmente, todos já nos habituámos a que nada queira dizer propriamente o que diz,
tanto quanto acabámos por nos habituar a que o que se diz não queira dizer nada.
“Outramente”, quando se fala de «Capital de Cultura», isso deveria querer dizer que,
durante um certo período, ainda que limitado, um certo espaço social e comunitário
sujeito ao condicionamento da existência periférica, poderia dispor dos meios para se
afirmar, segundo a sua identidade e característica, como núcleo central, difusor e
irradiante de consciência e de cultura. Assim, ainda que limitada no tempo, a iniciativa
teria impacto nos comportamentos e perenidade na vida cultural e, em ulterior, na
consciência própria dessa comunidade. Mas não.
A verdade é que este ponto de vista, conquanto pudesse até congregar a simpatia
dos intelectuais, não deixa de ser delirante. À evidência a tal Capital Portuguesa de
Cultura, a qual não se chegou a saber em definitivo ou com exatidão quando começou
ou deixou de começar a ter começado ou sequer se existiu ou terminou, e isto porque

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não é dispicienda a questão do enquanto efectivamente durou, foi, para aqueles que
deveriam ser os verdadeiros sujeitos da operação, apenas mais um frenesim como outros
a que tantos anos de turismos trôpegos nos habituaram a presenciar de vez em quando –
algo que com rigôr no “timing” e voluptuoso “panache”, os portugueses ofereceram a si
próprios, algo que se passou no Verão passado, algumas vezes mesmo pelas praias, algo
que passou sem deixar rasto, mas não algo que aconteceu, nem menos nunca algo que
fez acontecer.

(publicado in O FIM DA PICADA)

4.
CULTURA EM PORTUGAL

Uma nação que não valoriza a sua cultura, a vida e a actividade dos seus artistas
e pensadores, é uma nação sem alma. Países deveriam corresponder a nações –
entidades que resultam da interacção cooperativa de grupos humanos que partilham uma
língua, um território e um imaginário. Portugal seria então um país em que a alma da
nação se dissolveu ou transladou para lugar incerto, que não o território onde habita o
povo e a sua língua é pensada, falada ou imaginada, cantada ou escrita, pelos homens e
mulheres que o constituem.
Em Portugal a mais possível e clara manifestação do que é a evidência de tal
alma, transformou-se em uma íngua incómoda, atravessada na consciência de atavismos
destituídos da mais elementar ancestralidade – emigrou… A tanto foi conduzida pelas
vicissitudes que os conflitos que configuram a história propiciaram, mas muito
particularmente pela lamentável quebra do princípio da criatividade, como propulsor do
dinamismo mental que se revela naquilo a que chamamos cultura, a favor do princípio
do erro e da imitação.
Muito cedo as diversas elites nacionais, incapazes de dar resposta às
transformações decorrentes do que ficou convencionado referenciar à revolução
francesa, optaram por hipotecar a sua autonomia criativa, passando a partir daí a correr
atrás de outros padrões, sempre mais avançados, sempre mais modernos, sempre mais
eficazes, sempre mais bonitos. Fatalmente, os agentes culturais, os fazedores e os
críticos, se deixaram débeis conduzir para o falso conforto de festejarem os seus pares
com «introdutores em Portugal» disto e daquilo, e vesgos confundiram isso com o que
deveria ser uma vanguarda da camada superestrutural da sociedade.
Mais fatalmente ainda, o terrível vício escorreu para a restante sociedade e em
todos os seus níveis e funções se considera hoje sempre mais óbvio que se imite alguma
maneira já conhecida de fazer as coisas e resolver os problemas, do que, o que seria
essa assim a atitude óbvia, resolver com soluções próprias os próprios problemas – isto
acontece, tristemente, desde as coisas mais simples às mais complexas, das mais
pequenas às maiores, em toda a extensão dos funcionamentos sociais – técnicos ou
humanísticos – e já se plasmou na forma como, naturalmente, todas as soluções são
procuradas.
Não é assim de estranhar que na cultura – e em particular na arte e ideias que a
alimentam e povoam – o estado das coisas acompanhe o que nas culturas dominantes
no que resta da nossa infausta civilização, vem sendo desenhado desde as décadas finais
do sécº XX, a saber: como em outros registos da produção que resulta da criatividade
humana, a actividade artística com que actualmente convivemos se me afigura como um
grande e lustroso super-mercado onde podemos ver, brilhantes e alinhadinhas muitas
embalagens, todas normalizadas e arrumadinhas, mas nunca vemos os produtos, nunca

776
os conteúdos, como se quanto mais acética e tecnicamente perfeita fosse apresentação
mais imperiosamente vazio tivesse que ser o conteúdo – como se ao tirar os micróbios
das unhas do artista lhe tivessem definitivamente levado a sanha da loucura que lhe
habitava as garras, e que, como sabemos, nunca deixou de ser a prima irmã da
criatividade.

(publicado in O FIM DA PICADA)

PREFÁCIO (para o livro de Diogo Costa Leal)

Mais que os poemas, são os poetas que configuram a obra. A obra não depende
deles, a obra escreve-se neles porque ela quer ser escrita e, de uma maneira ou de outra
eles a escreveriam. É a dimensão do poeta que determina a dimensão da obra.
Nos dias de hoje existem cada vez mais e melhores poetas – quem sabe o mundo
será por isso menos pior – serão com certeza todos bons, embora, como sempre, uns
melhores do que outros. D.C.L. vive e escreve à flor da pele, sonha no fio da navalha.
Nisso, como todos, tantos e cada um dos poetas, ele é único.
Pode compulsar-se a intensidade que jaz interior a uma obra, seja por
aproximação académica seja por intuição auto-didacta, mas só se pode conhecer
genuinameº~.nte uma poesia quando se entra em unidade com ela. Os recursos podem
ser variados e o seu uso sábio na dose e na maneira, equilibrado e tenso na medida. E
esta tem disso a parte inteira – uma pontuação criativa... significante; imagens que são,
às vezes, de uma penetração quase cinematográfica; a poética de brincar com a escrita, e
o que é mais, a de brincar com a língua; a decomposição da fala à dimensão do patético,
no sentido em que se pode atribuir essa característica a uma sensação ou a uma música,
e que confere aos objectos, coisas ou animais, astros ou eventos meteorológicos, forças
da natureza, a qualidade de entes. E os símbolos... sempre. Até quando o poeta se despe
deles quando quer.
Como os poetas, também os poemas são todos bons e necessários, uns melhores
outros nem tanto, outros mais uns outros menos. Mas todos valem a pena e são a seu
modo surpreendentes. São como soldados de uma guerra que se trava no silêncio das
consciências entre ideias inconstantes e em que os poetas insistem em permanecer
redimindo e mitificando a existência – a própria e a que, através de uma névoa toda
particular, conseguimos ver.
A poesia não é escrita para os contemporâneos, nem tão pouco para os
vindouros, é escrita para nada, e porque tem que ser. Acontece por vezes que nacos de
boa poesia possam ser lidos (ou escutados) por outros, que irmanados num mesmo
sofrimento a usam como um bálsamo de reconhecimento.
Todos aqueles que procuram o consolamento da alma poderão encontrar nestes
versos, que li como se fossem meus, o júbilo raro e impreciso de uma palavra irmã.

O ALGARVE (MANIFESTO) de JACINTO PALMA DIAS

Assisti com ternura e entusiasmo à apresentação pública do ALGARVE


(MANIFESTO) de Jacinto Palma Dias. Uma incomparável manifestação que teve lugar
no elegantíssimo Café Calcinha na cidade de Loulé. Dificilmente poderia tal evento ter
ocorrido em local mais apropriado, pelo seu carácter clássico e intemporal tanto como
pela plena congruência simbólica entre o imaginário que se configura na sua história e
nos seus frequentadores (expressão de um Algarve outrora primário e directo porque
criador e próspero) e o próprio conteúdo da obra ali apresentada. Ainda mesmo porque é

777
um lugar onde se sente subliminarmente a presença de António Aleixo (até porque lá
lhe puseram uma estátua, sentado a uma mesa à qual, em vida, certamente ele nunca se
sentou), e que, por sinal, não vem mencionado no ALGARVE (MANIFESTO), talvez
porque a sua manifestação seja tão completamente esmagadora, que não gera nem
consente, em si, qualquer controvérsia. Ouvi então o Jacinto Palma Dias explanar o
assunto da obra e vi explicada com discernimento, a importância da sua publicação.
Enternecido porque conheço o Jacinto há muito tempo e tive, ao longo desse
tempo, o privilégio de ser seu amigo. Desde cedo percebi na sua produção e pontos de
vista uma afinidade profunda com ideias que eu próprio alimentava e em torno das quais
o espaço ideológico da minha geração procurava estruturar-se. Foi logo numa das
primeiras concomitâncias em que os nossos respectivos percursos se encontraram, que
tive a feliz oportunidade de conhecer o texto chamado «O Império do Sal», o qual,
acompanhado de alguma literatura que o próprio Jacinto me aconselhou que lesse, me
descortinou todo um novo horizonte de compreensão e avaliação da história e da
essencial importância da forma de ela ser contada – com especial interesse para quem
como eu por essa época procurava a nitidez dos contornos de uma identidade a que
pudesse chamar de efectivamente minha.
Entusiasta porque o lançamento do ALGARVE (MANIFESTO) vem pôr fim a
uma situação caricata em que a afirmação das verdades essenciais da cultura algarvia se
resumia a uma circunstancial mobilização de episódios exóticos cuja colação não se
furtava muitas vezes à humilhante condição de se afirmar o relevo da sua identidade
mediante a respectiva representação perante um sistema de valores pertencente a outra.
Pelo contrário, Jacinto Palma Dias estabelece e elenca um conjunto de factos cujo relato
se constitui pela primeira vez num quadro de referência para todos os que argumentam
em prol do espírito algarvio e num formidável suporte para os que procurarem produzir
um pensamento algarvio dotado da capacidade de influenciar.
Desde a época em que, como referi, tomei contacto com «O Império do Sal»
ficou clara para mim a existência de um eixo segundo o qual os eventos, sejam
políticos, económicos, culturais, militares, antropológicos, etc., cujo relato se constitui
no que chamamos história, é susceptível de ser contado de acordo com o ponto de vista
de quem está produzindo esse relato – no sentido Norte-Sul (como é o caso da história
oficial) como no inverso. Isso é da maior importância para a interpretação dos mesmos
eventos e consequentemente na forma como isso se constitui num discurso que passa a
codificar os instrumentos de auto-reconhecimento de uma comunidade ou de um povo.
Jacinto Palma Dias chama a atenção precisamente para as consequências de se
desapossar um povo da sua própria história, dotando-o de uma «ladainha» em que ele
aparece sempre como desgraçado e vencido, com temor da estigmatização e do ridículo,
que vai adquirindo a auto-condescedência de se conjugar a si mesmo na terceira pessoa.
Isto é verdadeiro para o eixo Norte-Sul como o será certamente também para o eixo
Este-Oeste. Seja como fôr, ficou desde aí claro para mim que se carecia de uma história
que fosse contada de Sul para Norte.
ALGARVE (MANIFESTO) relata a história de um roubo, descreve e analisa um
roubo prolongado. Analisa acontecimentos e factos políticos de uma forma
independente daquela em que eles aparecem implantados na história que nos é contada
pelo olhar setentrional, que tudo vê em função dos interesses e conflitos sediados a
Norte, onde se gera e se processa o saque a que, ao longo dos séculos, foram sujeitos os
povos meridionais e a partir do qual (do saque e da sua confitura intelectual) foi
construída a pastilha pseudo-identitária com que foram premiados alentejanos e
algarvios. Há uma afinidade natural entre alentejanos e algarvios que por vezes se
traduz numa dialética opositiva, mas que não esconde nunca a determinação trágica de

778
um calvário comum. Os alentejanos que supostamente são preguiçosos, os algarvios que
são malandros e vigaristas, ainda que uns possam ser bom cantores e outros alegres
dançarinos. Faz-se como nas Américas aos africanos escravizados – reconhecem-se-lhes
as qualidades no que é aparentemente supérfluo para legitimar a sua destituição de tudo
o que é essencial. É o se poderia caracterizar como o artifício do «Pai Tomás» tão
frequentemente identificado no contexto dos conflitos raciais norte-americanos. É um
processo de julgamento a priori que configura o lento assassinato de carácter desses
povos e mina irreversivelmente o amor próprio com relação às suas características mais
distintivas e o orgulho da sua existência colectiva e da sua história. Em qualquer
momento em que, a partir de agora, estas verdades sejam produzidas, é forçoso remeter
a consulta para o livro de Jacinto Palma Dias porque aí estão em detalhe e evidência as
bases de como este roubo se produziu. E como o próprio manifesto começa por mostrar,
não existe maior roubo do que o que consiste em espoliar um povo da sua própria
história.
Vivemos agora um tempo em que num mesmo momento ou episódio, parecem
confundir-se vários tempos. Passados e futuros de narrativas diversas confundem-se
numa vertigem que parece escorar-se em nada mais do que uma insustentável
preplexidade. É por isso tão importante conhecer o que nos trouxe até aqui, porque aí
estão indeléveis as linhas por onde o sortilégio dos destinos que confluem no espírito
algarvio nos irá levar. Existe, independente dos processos como cada grupo humano
administra e resolve os problemas básicos da sua sobrevivência, uma unidade
transcendental que confere a cada um deles um ritmo e uma clave exclusivas que lhe
determinam a natureza do espírito.
A configuração actual em que se movimentam o mundo e as sociedades
humanas, mostra a coexistência de dois planos de decisão – o que determina os fluxos
globais e apenas permite efectividade às decisões que se possam tornar válidas em
espaços, no mínimo, continentais por um lado e, por outro, o que permite realizar e
desenvolver os dinamismos locais onde se podem gerir à dimensão humana os
equilíbrios necessários à optimização das condições da vida concreta das pessoas. Estes
têm incidência particular nos aspectos culturais e nas escolhas económicas, políticas e
sociais que garantem a saúde material e psíquica das comunidades e dos seus
indivíduos. É um contexto em que os estados nacionais, formados ao longo de séculos
pelo prevalecimento e domínio dos piores instintos da natureza humana, deixaram não
só de ter utilidade, como se tornaram fonte de atavismos e vícios que não prenunciam
nada de particularmente edificante para o devir da humanidade. Pelo menos enquanto a
sua lei continuar a interferir numa lógica estratégica em que eles já não cabem.
É por isso o tempo actual prenhe das mais criativas e inesperadas possibilidades
e o livro de Jacinto Palma Dias tem uma importância decisiva e se constitui num sinal
definidor. Constitui-se o ALGARVE (MANIFESTO) em uma esquina, uma pedra, um
marco na terra do tempo, um ápice do tempo que a terra respira. Traz a base para uma
nova consistência e unidade capaz de criar um pensamento que alimente o corpo da
pátria imaterial, que se expressa ao nível da ideia, mas que mergulha as suas raízes na
terra como uma árvore rara.
Sempre intui no Jacinto essa visão de um Algarve sentido como uma terra que,
mesmo nas vicissitudes hiperbólicas dos seus périplos, ele acariciou intensamente ao
longo da vida. Um Algarve enorme na sua melodia maternal, na delicadeza profunda
das suas consonâncias geográficas, mas sobretudo o Algarve como uma ideia, imaterial
e ágil, como uma fecundação eterna – um Algarve imortal e transcendente.

779
AFORISMOS E DITIRAMBOS SOBRE O ALGARVE

O Algarve é um estado de consciência que muitas vezes tem sido revelado através da
experiência de se estar «longe de casa». É um caso evidente de uma identidade que
extravasa o espaço da sua afirmação territorial e em que o imaginário transcende
largamente o real.

Historicamente, a sua dimensão geográfica foi diminuindo à medida que aumentava a


sua concentração de significado. Remetido ao seu reduto territorial mínimo (na
sequência de contratos entre europeus bárbaros e recém-cristianizados), começou, em
sentido oposto, a sua expansão conceptual, passando, daí a pouco, a designar, não só o
espaço material da sua revelação geográfica (o ocidente, perfeito ou extremo, do mundo
conhecido) mas, agora já, territórios outros – desconhecidos, distantes, exóticos ou de
difícil acesso e aos quais a continuidade da marcha terrestre não permitia chegar. É a
época dos Algarves de aquém e de além-mar – um limite, na verdade, muito próximo do
terreno do imaginário em que hoje se expressa e que durante séculos alimentou
literaturas de várias índoles e origens linguísticas. Todo esse potencial imaginário
continua a manifestar-se nos dias de hoje, ainda que ancorado, por vezes
longinquamente, no espaço material desse seu reduto mínimo, que reconhecemos com o
Algarve propriamente dito, no sentido político, económico, administrativo e territorial -
na sua dimensão corpórea tripla de serra, fímbria marítima e barrocal. Separado de
Portugal e do mundo material por dois mares (um de água e outro de terra), ele se
prolonga para norte pelo passado e para sul pelo futuro e a sua essência permanece
universal.

*
As sílabas abertas e as cores vivas são um excelente exemplo da propensão à
mediocridade e aos sentimentos pouco claros. Não é bem visto que uma pessoa ostente
roupas vermelho vivo ou amarelo brilhante, do mesmo modo que os nomes com sílabas
sonoras e abertas, principalmente se na última sílaba, como Laró ou Barnabé, são em
geral objeto de chacota da massa incomodada pela excessiva sonoridade e caráter
afirmativo desses nomes como daquelas cores.

*
Ser português é um gesto antropológico indefinido que se situa entre ser algarvio e ser
galego.

*
...«indefinidamente» por conta do equívoco alentejano - se olharmos por forma a ver a
Serra Algarvia como uma espinha dorsal do que seria o Algarve original e a margem
norte do Tejo como as suas extensões anteriores ao expansionismo borgonhês, não será
difícil sentir o absurdo da designação «além-tejo» quando pronunciada por alguém que
efectivamente se situa «Aquém».

*
Alguns percursores do espírito algarvio, desde as mais longínquas antenas, deixaram
que a tentação de uma voz culturalmente maior, os seduzisse para a ilusão de que seriam
parte da cultura portuguesa. Isso, porém, apenas resulta do equívoco de que fosse a
cultura algarvia subsidiária da cultura portuguesa, o que decididamente não é o caso.
Apenas um tempo curto de observação, que não excede os 4 ou 5 séculos, sugere essa

780
relação de dependência –seja linguística, seja agrícola (económica e alimentar), seja
tecnológica, o que é realmente diminuto perante a extensão temporal em que se
manifesta a existência de uma forma peculiar de ser e sentir que se reporta à área
sudoeste da península ibérica.

*
Sobre a propecção petrolífera no Algarve:

esse dito «desenvolvimento» é igual ao do chamado desenvolvimento turístico e


imobiliário que destruiu o Algarve e transformou os algarvios numa «raça» de escravos
e empregados de mesa sazonais, privando-os da sua essência cultural e da sua ligação
com a terra. Finalmente, o que poderia parecer não tão evidente, fica agora
escarrapachado nas ventas de todos os observadores, a saber: a atitude dos portugueses
relativamente ao Algarve sempre foi e continuará sendo... EXTRACTIVISTA!!!

quanto à associação com os índios, ela só revela o que esta fauna teutónica realmente
pensa a respeito dos algarvios antes (e depois) da colonização de que foram objecto as
suas terras e a sua cultura (primeiro aproveitada em benefício de uma expansão
predatória e genocida e depois remetida ao opróbrio da aculturação)

A HISTÓRIA DO JAZZ QUE EU CONHEÇO (artigo publicado na revista «Em Cena»


sobre a história do jazz no Algarve)

No dobrar da primeira metade do século XX para a segunda, a atmosfera que se vivia no


espaço cultural português era de tal maneira obscura que, no que à música diz respeito,
mais sugeria um quase silêncio bucólico, pantanoso e gorgolejante de putrefacção, aqui
e ali interrompido por uns ruídos inóspitos provenientes da actividade mundana de uma
burguesia pouco desenvolvida como classe, culturalmente pobre e internacionalmente
isolada. Habituada ainda a uma francofonodependência e manietada por uma ruralidade
feudal, a sociedade portuguesa só em raros cadilhos, que sequer franjas, tinha reagido à
americanização subsequente ao final da segunda grande guerra mundial. Mesmo a
pequena reacção verificada, foi-o num grau mais diminuto – assaz mais diminuto – do
que a que se tinha registado em relação às movimentações culturais da chamda Belle
Epoque, as quais terão marcado a chegada dos primeiros ecos dos clarins de New
Orleans aos soalos chiques da velha e atávica Europa, na sequência do final da primeira
das grandes guerras.
Até nas suas camadas mais sensíveis, como a juventude e os intelectuais, a sociedade
existente nessas épocas obscuras era essencialmente marcada pela fobia do novo e por
um auto-ostracismo inflicto, que se tornou o útero de alguns traços divergentes em
relação aos autoritarismos alemão e italiano e, através da união estratégica entre a classe
dominante e a igreja católica, condição da sua perenidade. Associada a esta fobia do
novo, não deixaria de estar, com certeza, ligada uma fobia do negro, já que Portugal
resvalava a grande velocidade para um drama colonial de natureza insolúvel, que viria a
remeter a oligarquia então dominante para o caixote do lixo da história e esse Portugal
dominado para um atraso endémico de carácter político, económico, social e cultural
que, à data do 25 de Abril de 1974 se cifraria em mais de trinta anos. Em todo o caso,
àqueles sectores sensíveis sempre era mais fácil interessarem-se pela produção musical
do negro americano do que questionar as próprias origens e os seus laços com o preto

781
da Guiné, de Angola ou de Moçambique (haveria talvez uma hipócrita quanto cruel
condescendência com o negro cabo-verdiano e as suas músicas, por este ser considerado
não completamente negro, mas originário de um interessante e sensível processo de
criolização – na herança genética como na língua e na música). Assim e num rpimeiro
arrebique de resistência ao maneirismo reinante, de minuete palaciaciano quando não de
crispação hipnótica, que ainda marcava a atitude corporal dos portugueses, os mais
jovens começaram a fazer circular uma produção musical em que o jazz, por se tratar de
uma música sobretudo instrumental, representava a essência mais intelectualizada, mas
que vinha de um grande campo que incluía os blues, o rock ‘n roll e o ressurgimento
ainda incipiente de algumas expressões étnicas mais longínquas, isto à mistura, é claro,
com as tradições populares europeias até aí remetidas à clausura exclusiva do folclore.
Por aqui, entretando, o fenómeno resumia-se a uns rapazes que passavam férias no
Montenegro, os pouquíssimos disk-jockeys das raras discoteques que apareceram por
imperativo turístico e alguns intelectuais de esquerda. Essa rede de apreciadores de jazz
numa cidade de Faro que teria por essa época pouco mais ou pouco menos de quarenta
mil habitantes, resumir-se-ia então a uma escassa meia dúzia de pessoas. Eram no
entanto, felizmente, pessoas amantes da polémica e da sabatinagem das ideias, o que
estimulou a expansão e a divulgação viva daquela forma peculiar de gosto musical que,
por via da apreciação das virtudes improvisatórias emanentes ao jazz, desenvolve,
naqueles que consomem essa arte, uma atitude criativa.
Na passagem da década de sessenta para a de setenta, apareceu em Faro, numa rua até
pouco habitualmente votada a grandes actividades comerciais, uma pequena casa de
discos que, quer pelos preços económicos que praticava, quer pelo facto de oferecer
discos provenientes de uma única etiqueta – a Savoy/Musidisque – parecia ter sido
destinada a alguma forma de liquidação de um património, tanto mais que a própria
etiqueta já teria por essa altura cessado a sua actividade comerrcial. Ora, a
Savoy/Musidisque havia sido responsável, através da sua actividade editorial, pela
considerável expansão do jazz em França e nos mercados europeus adjacentes ao espaço
cultural francês e oferecia um catálogo espectacular que abrangia todo o período de
desenvolvimento do jazz desde o Dixieland até ao Bebop e algumas das continuidades
que se consubstanciariam mais tarde no que viria a dar o Free Jazz. Isto para além de
um considerável acervo de música clássica europeia.
Para além do autor destas linhas, na magra medida da sua capacidade de investimento, e
de mais um ou outro curioso, tornaram-se utentes proverbiais da pequena loja, dois dos
mais frenéticos apreciadores de jaz que me vem à memória ter conhecido. Falo do Arqº
Eduardo Coutinho, que pela época fazia brilhar a sua loquacidade nas tertúlias
intelectuais da pastelaria mundana da cidade e que mais tarde haveria de influenciar o
ambiente cinéfilo através da sua participação numa equipa directiva particularmente
influente na longa vida do Cine-Clube de Faro e do inesquecível e saudoso Rui Cuinha
– «a Pombinha» - que, como disk-jockey, primeiro, e depois como bon vivant e
empresário, foi paulatinamente influenciando o campo do entretenimento que é a alma
mater do jazz e o o que torna uma coisa viva e criadora (ainda que hoje adoptado pela
universidade, a sua verdadeira mãe biológica são os speak easy,os lunpanares, os
cabarés e outros «lugares de perdição«). Organizou concertos com grupos portugueses
de jazz, calcorreou as casas dos amigos com os «disquinhos» debaixo do braço, onde
chegava anunciando a mais recente e difícil aquisição que podia ir de uma raridade do
Earl Hines a uma diatribe do Archi Shep – o «amigue Cunha» era um indefectível, tanto
do Leonel Hampton quanto do Yussef Latef. Na sua «play list» apareciam clássicos
como Louis Armstrong Hot Five engastados no meio da vertigem do Funky já tendendo
alegremente para Disco Sound. Pouco a pouco foi fermentando o que, um tempo antes,

782
seria para muitos impensável – uma oferta criativa original e local. Foi a confluência de
movimentos diversos e de diversa ordem que tornou possível esta transformação. Nos
tempos primitivos em que Eps e LPs, pequenas e grandes redondelas de vinil preto,
circulavam nos pratos das vitrolas quase como o «Avante» circulava nos saguões das
casas clandestinas dos comunistas, como se apreciá-los fosse um perigoso vício
diletante, baseado em conspícuas sensibilidades, quase sempre associadas a devaneios
de legalidade duvidosa para fazer tocar uma banda de jazz ao vivo nas ribanceiras
descendentes do Caldeirão, era preciso recorrer à importação de uma oferta
extremamente exígua do que se conseguia ir fazendo em Lisboa ou, ainda mais
residualmente, no Porto. Mesmo assim foi possível ouvir em primeira mão a segunda
formação dos Plexus – grupo que procurava reagir a um certo elitismo anquilosado que
pontificava no HCP.
Agora porém os tempos eram outros e as pessoas tinham outra mobilidade. Em Lisboa
tinha já eclodido a Banda Girassol – a primeira Big Band genuína e inteiramente
formada por músicos portugueses numa operação «home made» montada por Zé
Eduardo (a primeira, não considerando alguns episódios pré-históricos levados a cabo
pela iniciativa e paixão do maestro Tavares Belo – um entre tantos outros farenses que
tiveram que fazer carreira em Lisboa); o HCP fervilhava de ideias e de gente que queria
marmelada a sério: agora aqueles moços, que iam e vinham entre Lisboa e o Algarve,
tinham-se tornado uns contrabaixistas, outros saxofonistas, outros que aueriam tocar
saxofone, uns que outros tocavam instrumentos mas em tempo de free jazz, jazz off, off
limit, cabia tudo e mais alguma coisa e uma que outra coisa de alguma coisa... era boa.
Era tempo de nôa nôa e de tupapau...
Talvez por causa de as latitudes serem mais frias por lá, enquanto uns se desdobravam
em actividades organizativas, educacionais ou criativas para expandir o ambiente do
jazz, outros esforçavam-se por mantê-lo espartilhado no circulozinho apipocado de uma
elite deslumbrada mas em caso algum deslumbrante. De tal forma que, dos músicos
algarvios que se aproximaram do ambiente jazzístico lisboeta por essa época, de
barlavento a sotavento, todos voltavam desiludidos, que não desalentados, com um
meio que tinha mais de medíocre mundaneidade que de genuína criatividade e que
aspergia e catalizava os seus melhores filhos para longe e para nunca mais voltar.
Talvez a excepção que confirma a regra seja o guitarrista de Tavira Telmo Palma – o
«Marroquino» (cognome que lhe provinha do facto de ser filho de emigrantes em
Marrocos de onde regressou ainda com um acentuado sotaque afrancesado e a tradição
da guitarra manouche incorporada nos dedos – mas esse sim, graças a uma índole
singularmente humilde e a uma proverbial paciência se manteve até ao fim da sua vida
sob o pesado jugo da emigração interna. De um modo geral todos os outros acabavam
por concluir que, mal por mal, mais valia respirar no Algarve do que asfixiar em Lisboa.
Foi neste contexto que regressou às origens um saxofonista que era nessa altura
conhecido como Moço Severino, não sem antes ter aproveitado o arejamento da
primeira escola de jazz do Hot e todas aquelaspossibilidades de aprendisagem que
dificilmente oderiam ser encontradas aqui. No seu regresso viria, como saxofonista,
pianista e criativo, a ter também alguma influência, principalmente ao nível do
estabelecimento de pontes entre músicos de diferentes filiações e linguagens e na
propaganda de uma atitude estética mais séria, mais moderna, tecnicamente mais
apoiada e mais comprometida com a música. Outro tanto já havia feito ou viria a fazer
pouco depois a título definitivo outro saxofonista (esse de Ferragudo aldeia piscatória
situada em frente a Portimão) Manuel Guerreiro e esse com grande influência no que foi
a extraordinária evolução desta linguagem criativa no barlavento algarvio.

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Ao mesmo tempo, no qudro da grande movimentação de pessoas que ocorreu na
sequência do fim das guerras coloniais e consequente independência das antigas
colónias, estabeleceram-se no Algarve um conjunto de músicos, ou bem que africanos,
ou bem que fortemente influenciados pela vivência africana, que transportaram para a
sua actividade musical aqui os resultados dessa vivência, o que se tornou de inestimável
valor para uma transformação criativa que arrastou uma belo número de músicos
algarvios, de residência ou de nascimento. Notoriamente, um grupo de músicos
angolanos que se instalaram na praia do Carvoeiro, que evoluia entre um afro-rock (tipo
Osibissa) e uma sedução ao Free que eles chamavam de Jazz Off. A designação era
interessante, a música, é claro, tinha momentos, mas a inspiração é que era de altíssima
qualidade. Quer pela atitude libertária com relação à música quer pelo modo de vida que
praticavam, a sua aldeia (instalada num estaleiro de obras de uma das muitas
construções que pararam com o 25 de Abril) tornou-se escala obrigatória da música e
dos músicos que naquela época procuravam soluções que levassem o processo criativo
para «fora» das barreiras convencionais.
A conjugação deste tipo de acontecimentos com o amadurecimento cultural do próprio
meio, remanescente à democratização do país, iria inevitavelmente conduzir ao apelo
criativo que semeava nuns a convicção de que era possível promover uma atitude
estética independente e noutros o apelo insaciável de se tornarem músicos. Elementos
oriundos dos mais diversos registos da expressão musical, manifestavam então um
interesse novo e todo especial pela linguagem universalista e aberta do jazz e novos
conceitos penetravam o léxico e o domínio cognitivo da ciência musical. O próprio jaz
se abria e se transformava ao mesmo tempo, de fenómeno artístico exclusivamente
americano e estreitamente ligado às ideossincrasias peculiares à realidade socio-cultural
americana e ao seu contexto afrodescendente, num outro fenómeno muito mais global,
que Charlie Haden defini eufemisticamente como «essa música criativa a que
chamamos jazz» e que ficaria particularmente ligada à actividade do produtor alemão
Manfred Eicher e ao catálogo da sua editora de discos – a ECM. Era uma nova atitude,
mais definitivamente universal, que integrava as aproximações de Coltrane e de outros
post-bop a culturas musicais originárias das vastas regiões e áreas civilizacionais cujas
nações vinham, a partir da segunda metade do século XX, acedendo à independência
política e cujas culturas ganhavam em visibilidade e afirmação e cada vez mais
beneficiavam do interesse e da curiosidade da parte da velha Europa – quer da Europa
europeia, quer da Europa emigrada nas américas.
Localmente, o próprio desenvolvimento do modo de vida superveniente à
implantação da democracia, não só tornou o Algarve como destino turístico, como
incrementou bastante a mobilidade dos portugueses, tornando viável e comum a opção
de vir viver e morar no Algarve. Eram tempos de prenhe entusiasmo em torno das
coisas menos óbvias. Músicos de diferentes áreas de gosto e formação aproximavam-se
dessa expressão cuja arte reverbera seriadade e voo, liberdade e commitment. O meio
estava a ficar maduro e José «Boots» Eduardo (antonomásia usada por Zé Eduardo nos
primeiros discos de jazz tocado por portugueses) resolve, após a aventura catalã que o
havia colocado definitivamente no catálogo do jazz europeu, fixar-se em Faro e
continuar aqui o seu trabalho recorrente de ensinar jazz, construir orquestras e organizar
festivais.
Com o desenvolvimento do ambiente jazzístico local, notava-se nos músicos o
apelo à necessidade de uma maior proficiência técnica e uma maior abertura a
horizontes estilísticos antes considerados pura especulação ou pretenciosismo. A nova
situação exigia condições quer para o desenvolvimento do estudo, quer para o
aparecimento de espaços em que a confrontação das sensibilidades pudesse manifestar-

784
se na sua diversidade. Já se tinha notícia do aparecimento de uma excelente escola de
jazz no Porto, com excelente reputação e sentia-se que a oferta formativa era cada vez
mais necessária para que um novo passo no sentido do desenvolvimento da p´ratica
jazzística pudesse ser dado. Foi, de um certo ponto de vista, como se o problema tivesse
atraído a solução. Realmente ter o Zé Eduardo «à porta de casa» a fazer workshops, a
criar orquestras, mesmo tão simplesmente a dar concertos ou aulas particulares era
definitivamente um sinal de que algo tinha mudado e era para melhor.
Tudo começou com um concerto dado no Teatro Lethes pela «Companhia da
Música Imaginária – um projecto que Zé Eduardo montara com 13 músicos de 5
nacionalidades e cujo formato configurava já o conjunto de características estéticas e
conceptuais da fusão absoluta e total. Na verdade, a expansão do fenómeno jazzístico à
escala planetária transformou o jazz, tanto do ponto de vista dos que o consomem como
do dos que o produzem, na primeira forma de arte verdadeiramente universal. Mais uma
vez e desta feita relativamente à globalização dos sistemas, a arte revelou ser a
vanguarda da consciência.
Num primeiro momento com a colaboração de Luís Monteiro (um baterista que
aparecera uns anos anos no Algarve do pós-25 de Abril, que como tantos outros
regressava de um exílio forçado, mas nem por isso menos dourado em termos de
oportunidades musicais, em Paris e que transportava também uma experiência africana
que havia vivido intensamente no início dos anos 70) conseguiu estabelecer-se um
contacto entre Zé Eduardo e a estrutura directiva da Filarmónica de Faro, que levou à
realização de um primeiro workshop a partir do qual se puderam convocar músico
algarvios de barlavento a sotavento, numa interacção entre as filarmónicas e os nichos
de interesse jazzístico dispersos pelo Algarve ou até músicos exilados e entretanto
entregues a actividades outras, num anel deveras extraordinário. Extraordinário pela rara
possibilidade de encontro entre o ambiente das filarmónicas, o dos músicos que
trabalhavam na esfera do entretenimento associado ao turismo e até dos simples
estudantes que se encontravam também entre a população heterogénea que tinha
acedido a esse workshop. Um anel que incluia músicos profissionais, músicos
amadores, músicos mais velhos, músicos mais novos, músicos locais, músicos
estrangeiros residentes no Algarve, unidos numa pirueta que só o apreço pelo jazz
permitia configurar.
Antes mesmo que o workshop tivesse terminado, já era dado como certo que se
seguiria a formação de uma «Big Band» a que se chamou, num primeiro momento,
«Estaleiro da Música» (acredito que numa tradução assaz literal do que tinha sido a casa
do Zé Eduardo em Barcelona – o «Taller de Musics») e num outro momento, depois de
passados os primeiros «enjoos da viagem», definitivamente «Jazz na Filarmónica» (o
que não deixava de ser ao mesmo tempo uma homenagem a uma marca marcante na
história do jazz americano e uma homenagem à própria Filarmónica de Faro que
albergava a Big Band e à ideia filarmónica em geral, uma vez que a própria Big Band
ficou a dever a sua estrutura básica à generosa participação de um bom lote de músicos
que pertenciam à Filarmónica de Lagos e se deslocavam expressamente para cada
ensaio em Faro, para que a banda pudesse funcionar. Na verdade a banda incluia
músicos de Faro, de Lagos evidentemente, mas também de Tavira, de Portimão, de
Silves, de Montegordo, de Boliqueime, do Livramento, do Barão de São João, e por aí
vai descrevendo um mapa que ficará certamente ainda incompleto. Havia um
trombonista - Helder Ferreira – que já havia feito parte da Orquestra Girassol, quase
trinta anos antes, como que a escrever esse traço de união entre um momento iniciador
do jazz português e um outro momento iniciador, este do jazz algarvio, ambos ligados
ao labor, à criatividade e à competência do mesmo músico – o Zé Eduardo. Lá

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acorreram elementos das mais diversas e inesperadas proveniências, desde o outro
Helder, o Vicente, que vinha da banda da P.S.P. até ao Edward, filho de emigrantes
portugueses no Canadá que tentava com a família a sua sorte na terra de origem dos pais
– isto para falar apenas dos trombones.
Daí em diante tudo seria diferente. Existiria a partir um campo generativo auto-
alimentado e em permanente crescimento, ao qual, inclusivamente, outros géneros
musicais vão recrutar executantes que se perfilam pela sua competência e
disponibilidade para a expressão de qualquer sentimento musical, qualquer que seja a
linguagem em que se expresse.
Post Scriptum:
Seria não só inexacto como injusto, deixar de nomear dois músicos que, pela sua
acção, haveriam de ter, directa ou indirectamente, influência notável, não só na forma
como o jazz foi ressentido no espaço cultural da cidade de Faro,como pela afirmação do
impacto nacional da sua acção – Manuel Guerreiro e Diamantino Pereir (o Tino),
curiosamente os dois saxofonistas e pertencentes à mesma geração. Do primeiro
começaram a chegar, a partir de meados dos anos 70, os ecos das jam sessions que ele
promovia no seu restaurante em Ferragudo e, um momento depois, a repercussão das
suas apresentações em Lisboa e da sua parceria com Rão Kiao; ao segundo, regressado
da África do Sul (onde havia prosseguido uma carreira de músico profissional como
acordeonista primeiro e saxofonista depois) a partir da fase final da década de 70, ficou
a dever-se, para além de uma certa democratização dos instrumentos de música (nessa
época sijeitos a uma absurda taxação como artigos de luxo), designadamente saxofones,
muito particularmente a disponibilização aos estudiosos do jazz, de literatura didáctica
originária do Berkeley Institute of Music em edições quase enciclopédicas que fizeram
da sua casa um lugar de peregrinação para a maior parte dos músicos de jazz da
península.

O HOMEM SEM ALMA

A primeira coisa de que eu clara e efetivamente me lembro não é a de estar por


baixo de nenhuma mesa, nem a de estar deitado em nenhuma cama, é a de estar
empoleirado numa cadeira, todo esticado, tentando abrir a porta da rua. Era um dia de
chuva, uma chuva miúda, miúda o suficiente para não incomodar uma criança com
menos de dois anos. Lembro-me da decisão de sair, após haver constatado que estava
sòzinho em casa, e que depois de verificada a impossibilidade de a minha altura
perfazer a distância entre o chão e a fechadura da porta, ter optado por trazer uma
pequena cadeira de atabua que existia lá em casa. Uma vez na rua, percorri, saltitando,
os poucos passos que separavam a porta da casa onde eu morava, da porta da vizinha.
Ainda hoje sinto o pouco peso que o meu corpo tinha nessa altura – era mais pequeno e,
definitivamente, mais leve. Não me lembro do que aconteceu depois. Devem ter ido
buscar-me a casa da vizinha. Lembro-me de estar lá a comer sopa, quando a minha mãe,
ou a moça que cuidava de mim, levavam a sopa para que eu acreditasse que era a sopa
da vizinha, porque eu me recusava a comer em casa… a sopa. Lembro-me, vagamente,
da vizinha, a Lúcia, que tinha três filhas – moças vistosas e bonitas, que na altura me
pareciam enormes e tinham assim um ar de espanholas morenas e espalhafatosas. Mas
não sei se isso da sopa foi no mesmo dia. Lembro-me do clamor familiar que a minha
iniciativa desencadeou e imagino o susto que deve ter provocado e é provavelmente por
ter sido entusiasticamente comentado que eu me lembro de tudo com tanta nitidez –
tudo é afinal apenas ter tomado a decisão de sair, ter ido buscar a cadeirinha para me
empoleirar nela e assim chegar ao trinco, da caminhada saltitante e da calçada, da

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chuva, mas já não me lembro nem de ter chegado na porta da Lúcia nem de ter entrado.
Para falar verdade, talvez me lembre de antes estar sentado, já de noite, tomando um
grande copo de leite quente – um copo muito grande para o meu tamanho – e de isso ser
motivo de grande entusiasmo dos meus familiares, aliás poucos – apenas minha mãe,
mais o meu pai e uma moça que trabalhava lá em casa e a quem eu era extremamente
dedicado. Lembro-me da geografia da cozinha e da iluminação peculiar, lembro de que
o fogão era daqueles a petróleo e com uma só boca. Mas, sinceramente, não me lembro
se isso foi antes ou depois do episódio da fuga. Provavelmente foi depois, tanto que
desde sempre me recordo desse como sendo de fato a primeira de todas as minhas
recordações. Lembro que na continuação da parede onde estava encostado esse sofá, em
que eu tomava esse enorme copo de leite nesse dia, corria um corredor, o qual dava
direto na porta – a porta da rua – essa porta que eu naquela manhã chuvosa e em me
encontrando sozinho em casa, decidi desafiar e abrir, tal como descrevi, através do
artifício de me empoleirar numa cadeira.
Também me lembro, talvez não mais do que apenas alguns dias mais tarde, de
estar em pé, no passeio à frente da casa, esperando o carro do petróleo, uma carroça
puxada por um cavalo invulgarmente bem aparelhado, com arreios lindíssimos e
coloridos, que servia de suporte a um depósito construído em cobre e na ilharga do qual
várias medidas pendiam alinhadas, ordenadas de acordo com as respectivas medidas,
que determinavam os sucessivos tamanhos dos púcaros. Tudo isso – depósito e medidas
– estava brilhante e cuidadosamente polido e limpo, o que dava a essa híbrida unidade
um aspecto de coisa do outro mundo, cheia de brilho e cor, como essas imagens que só
em certos sonhos aparecem. Vinha vender petróleo, de porta em porta, para alimentar os
fogões como aqueles de uma boca, mas sobretudo os candeeiros, candeeiros a petróleo,
porque a distribuição de eletricidade nessa época era ainda muito incipiente. Esse
momento era sempre muito alegremente esperado e vivido, por ser a rua e se respirar o
espaço aberto, mas sobretudo pelo entusiasmo delirante que me despertavam as cores do
carro do petróleo. Era também nesse lugar do passeio em frente da casa que eu via o
meu pai a afastar-se na sua motocicleta, quando, pela manhã, ia para o quartel. Por
vezes a motocicleta não pegava – estava fria, dizia ele – e a rua que descia levemente,
quase na frente da casa da Lúcia, servia à maravilha, para que a velha e cansada
motocicleta do meu pai, depois de embalada pela descida da rua e já em movimento,
disparasse o seu arrefecido motor e o meu pai contornasse aquele quarteirão
descendente e reaparecesse no prolongamento da rua, lá mais à frente, como uma
aparição que era para nós a certeza de que estava tudo bem e a consolação da despedida.
Tudo isto acontecia em Beja, uma cidade não tão longe da Espanha e que
funcionava como capital da metade meridional do Alentejo, uma província que naquele
tempo era apresentada ao povo como sendo o celeiro de Portugal, por lá ser produzido
muito trigo e onde existia esse quartel, em que o meu pai era sargento, e que se tornou
muito conhecido, anos mais tarde, por lá ter ocorrido uma infortunada hipótese de
revolução contra a ditadura que então se manifestava violentamente no país, e também
uma base aérea, ao que parece patrocinada por alemães, que mais tarde permitiu a
construção de um aeroporto. Nesta peculiar cidade existia então (e acredito que continue
existindo) um jardim chamado «do Bacalhau» – o Jardim do Bacalhau – e nesse jardim
uns também peculiares balouços, que muito atraiam as crianças e para o uso dos quais
me levariam lá algumas vezes. Em todo o caso, desses passeios só guardo uma
recordação, que é a de eu estar sendo correado a um desses balouços. Jamais voltei a ver
outro igual. Era como que uma cadeirinha em que um pequeno semicilindro perfazia o
apoio para as costas, enquanto uma base mais dura servia de assento. Por fim umas
correias dotadas de fivelas metálicas garantiam que o utente não fosse projectado para

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fora do dispositivo e o mais curioso nesse original utensílio de lazer era o fato de ser
totalmente construído em couro – um couro duro, consistente, mas cuja natureza animal
conferia àquele brinquedo uma toda especial ideia de conforto.
Esta foi definitivamente a última das poucas recordações que guardo dessa
cidade onde ocorreram os meus primeiros quase três anos de vida. Essa província do
Alentejo que já corresponde à metade mais meridional do país é, na verdade, uma
extensa planície pautada a Sul por uma cordilheira de montanhas que atravessa o
território do país de lado a lado, paralelamente ao sentido Este-Oeste, e que separa então
esse dito Alentejo do que em outros tempos (nomeadamente antes da revolução
republicana) era denominado o Reino do Algarve. Esse nome de Alentejo é, em boa
verdade, proveniente do fato de serem esses os territórios para Sul do Tejo e mostra
como em Portugal as coisas sempre foram olhadas de Norte para Sul, porque,
obviamente, para quem os olhasse a partir do Sul, esses territórios seriam sim o aquém e
não o além… Tejo. Para cá dessas montanhas é que existe o Reino do Algarve (ou como
hoje é dito, o Algarve) e nele, numa pequena ponta que desenha a geografia da costa Sul
do que hoje é Portugal, mais ou menos ao meio, existe o Cabo de Stª Maria e em frente
dele a cidade chamada Faro – Stª Maria de Harum, como era chamada em tempos
anteriores à tardia reconquista desta parte extrema da península ibérica por parte dos
guerreiros cristãos e mesmo depois dessa dita reconquista. Foi para essa cidade que os
meus pais se mudaram no início de 1959, pois foi nela que completei o meu terceiro
aniversário e onde tive os meus primeiros amigos. Aliás eu havia já nascido aí, mas só
porque nesses tempos não existia um sistema público de maternidades e, em geral, as
mulheres tinham os filhos em casa ou na casa de familiares, com o auxílio de parteiras.
Foi o que aconteceu com a minha mãe, que resolveu sujeitar-se aos imponderáveis do
parto, na casa da cunhada e portanto, em Faro. Mas foi apenas uma deslocação utilitária
e de conveniência que afinal determinou a minha cidade de origem. Por qualquer razão
nunca me senti, em essência, muito ligado a ela. Talvez sentisse uma espécie de
nostalgia daquela outra cidade, onde me pareceria mais lógico que eu tivesse nascido.
Em todo o caso lá fomos todos para Faro, morar num antigo solar que pertencia a um
abastado comerciante de carnes, situado na parte alta da cidade e que entretanto havia
sido já engolido pela natural expansão urbanística, mas que ainda conservava o nome do
seu antigo proprietário – «antigo prédio do Rodolfo» – era o insólito endereço por que
chegavam as cartas lá a casa. O nome de uma rua, que não era nem aquela em que a
casa efetivamente ficava, e a referência ao que a casa tinha sido – nem o nome da rua,
ela própria, nem um número da porta, nada, apenas a esperança de que a cultura local do
carteiro encaminhasse a carta ao seu destino, ou as virtudes do vox populit alguém que
que quisesse demandar a porta.
Afinal tudo funcionava na paz paroquial desses tempos hoje em dia já distantes e
a casa, embora antiga e atingida por um endémico problema de salitre nas paredes
(coisa que se atribuía à existência de antigas salgadeiras que haviam sido soterradas) era
enorme e o quintal, que incluía as dependências anteriormente destinadas à manutenção
de uma população bovina, com manjedouras, argolas de ferro e toda uma edificação
contígua à casa de habitação, era maior ainda. Rodeava toda uma das partes laterais e a
parte traseira da casa e abrangia o que era para mim, nessa época, uma área imensa, a
qual somava ao quintal propriamente dito, um jardim com quatro canteiros e um
pequeno lago em forma de estrela octogonal, onde a minha mãe cultivava amores-
perfeitos e o meu pai ensaiava o plantio de algumas árvores, e um grande espaço com
uma entrada larga e, na parede em frente as tais manjedouras, onde muitas vacas já
tinham com certeza alimentado e transcorrido a sua triste existência. Este, o meu pai
usava como oficina de carpintaria (uma arte que ele desenvolvia e em que se aplicava

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com real prazer) ou para guardar coisas cujas dimensões não permitiriam que fossem
guardadas senão num espaço de avantajadas dimensões como aquele era. Por cima, no
que formava o que seria um primeiro andar, existia um grande armazém com as mesmas
dimensões do antigo estábulo que ficava por baixo e que, estando completamente vazio,
eu usei em sucessivas fases para as mais diversas finalidades, desde um campo de ténis
a um atelier de pintura, passando por um pequeno laboratório de química ou um
diminuto casino, que o canto mais próximo da porta albergou enquanto essas
brincadeiras não foram substituídas por outras mais dotadas de novidade. Nesta
dependência existiam também duas janelas assaz difíceis de abrir e que davam
diretamente para a parte superior de um caramanchão que sustentava uma enorme
parreira que cobria toda uma parte do quintal – a que se abria ao acesso de um grande
portão da qual essa antiga área de serviço era dotada.
Só por si esse portão já representava todo um imaginário, quer pelas dimensões
– de uma altura e larguras enormes quando aberto, quer pela espectacular grossura dos
barrotes de madeira em que era construído. Tinha porém uma pequena porta, integrada
na estrutura e da mesma cor de vinho em que todo o portão era pintado com o que
acredito ser a tinta antigamente usada para a conservação dos barcos de madeira. Entre a
esquina dessa edificação (a oficina e o armazém) e o portão é que existia a escada que
dava acesso ao piso superior e que daí continuava para um pequeno terraço por cima do
portão, dotado de uma balaustrada que dava para essa parte do quintal, a qual se
prolongava abaixo da grande parreira que a cobria completamente. Desse pequeno
terraço partia então a escada que, finalmente, dava acesso à varanda – uma açoteia
grande, exatamente do tamanho da oficina e do armazém e que era rodeada por um
muro, que com o tamanho que eu tinha nessa altura, me dava, mais ou menos, pelo
peito.
Tinha realmente esse portão grande, que raramente era aberto e que, portanto,
não servia para dar passagem a nada, porque por essa época já só entravam no quintal
da casa coisas pequenas para as quais de nenhum modo se fazia necessário um portão
daquele tamanho. Era um mastodonte, grande e, na verdade, não tão sólido. A sua maior
virtualidade era, afinal, ser o fim, ou o princípio, do quintal. Esse corredor, largo como
uma rua, dava então já para um espaço aberto, bem mais largo. Tão largo que se podia
até jogar nele futebol. E outro ainda, quase tão grande como aquele, onde durante muito
tempo, vedado por uma rede alta, funcionou um galinheiro com duas galinhas brancas,
um galo, também completamente branco e particularmente feroz e possessivo
relativamente ao que deveria considerar serem as «suas» galinhas, e onde nasceram e
morreram pintos, degolados ainda jovens, quando atingiam a condição de frangos, e
todos os dias eram recolhidos ovos que, ordeira e persistentemente, as galinhas
depositavam em dois casinhotos de madeira cuja base era mantida um palmo acima do
chão por uma espécie de estrutura palafítica e umas palhas garantiam que os ovos não se
partiriam ao serem desovados pelas suas progenitoras. Para mim, por ingenuidade
infantil, essas palhas destinavam-se a dotar de algum conforto a casa das galinhas – o
galo esse parecia preferir sempre o relento de um poleiro que o meu pai havia
improvisado no canto oposto do vasto galinheiro. Este galo era realmente tão feroz e
cioso dos seus domínios, que uma vez bicou a cauda de um cachorro perdigueiro ainda
juvenil chamado Nero, de quem eu gostava muito e mesmo eu encarava com bastante
reserva qualquer incursão no espaço interior do galinheiro. Seja como for, acho que em
algum momento, ficaram desta história apenas as galinhas e mesmo essas, bem como a
rede e a instituição do galinheiro, acabariam em algum momento por desaparecer.
No extremo oposto, entre o início da escadaria e o portão, existia ainda um
pequeno canteiro de terra muito preta com algumas plantas e, num recanto, uma

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pequena casa de banho situada, como era costume nessa época, fora da casa, certamente
por se considerar mais higiénico que assim fosse. Durante muito tempo não existia um
esquentador de água e a minha mãe, ou a Dadinha, aqueciam pacientemente várias
panelas de água, quando fazia frio e era preciso tomar banho. Este costume tornava
muito incómoda usar desta comodidade quando esse uso tinha que ocorrer durante a
noite e isso estabelecia, naturalmente, que se fizesse necessária a instituição do uso de
um utensílio hoje praticamente inexistente – o penico – e a sua não pouco frequente
utilização. O penico, enorme xícara de porcelana, destinada a receber fezes (líquidas ou
sólidas mas mais comumente líquidas), também chamado de bacio (como se fosse de
alguma forma o macho da bacia) era, portanto, uma presença constante por baixo das
camas, em geral na região dos pés. Como eu era mais pequeno, havia para mim um
penico mais pequeno, mais ou menos na mesma proporção que distingue as chávenas de
chá e de café.
Lembro-me de que uma noite devem ter-se esquecido de devolver o peniquinho
ao seu lugar útil, por baixo, aos pés da cama, e eu fui obrigado a deslocar-me, noite
cerrada, com a urina a recusar-se a adiar mais a hora mágica e consoladora da libertação
e, mesmo assim, tendo que atravessar todo o comprimento do quintal, na sua parte mais
comprida onde no fim, ao cabo de uma interminável jornada de terror, se encontrava
enfim a já citada casa de banho exterior. Para piorar as coisas, alguma luz projectava na
parede do fundo do quintal, uma parede alta que se erguia no lado exatamente oposto
àquele outro onde existia a casa de banho, o que seria a sombra do recorte dos ramos da
parreira que cobria totalmente a parte do quintal que devia atravessar e que, tomado por
um medo indefinido e inexplicável, eu efetivamente atravessei. Eu era criança e,
certamente, foi medo do escuro. Mas havia qualquer coisa de, exatamente, indefinido,
que eu temia que me acontecesse. Apenas não sabia ainda o quê ou o porquê.

***
Como sempre, esta coisa de datar acontecimentos passados é muito relativa. Começa
logo pelo nosso amado Deus Nosso Senhor Jesus Cristo, que não se sabe mesmo se
existiu como pessoa física, e se prolonga, ao ponto de não se saber ao certo se o poeta
realmente exalou o último suspiro, o que seria suposto ser aquele em que a alma se
liberta, efetivamente morreu no dia 10 de Junho. Mas perante tamanha e tão gritante
coincidência, seria até pecado duvidar…

***
Há uma estrela, um átomo que brilha, um ser que quer reencarnar, e que, como
os cupidos da Roma antiga ou o Eros da mais antiga ainda lenda grega, procura um
casal no qual desperta amor e atração, até que possuídos de desejos, os dois se entregam
afanosamente para a tarefa da procriação. É uma nova oportunidade para viver, para
voltar e acumular experiências, para ser. A alma então fica pairando (na verdade esse é
um momento de raro e único regozijo para ela – não é ainda o salto, mas ela sabe que
vai saltar) vibrando em uma frequência toda particular, parecida com a esperança ou
com a fé, e vendo que o arranjo, que a partir daí é providenciado pelo impulso natural
da biologia, naturalmente se propiciou, sente a vontade de incorporar, e sutilmente
incorpora, o pequeníssimo feto. Então noventa dias depois que, por via da singular
inoculação, começou a divisão das células do que virá a ser essa nova pessoa, aquela
pequeníssima e invisível estrela entra no coração do feto, o qual jamais irá parar de
bater enquanto essa pessoa viver. Não fica porém tão fortemente agarrada àquela débil
estrutura, ainda paira. Vai visitando a mãe, a espaços, durante os seis meses que se

790
seguem, podendo assim acontecer que no momento em que a criança nasce, ela não
esteja presente.

***
Nunca me senti verdadeiramente empolgado a dirigir a minha aventura de
conhecer o mundo para o Norte. O lugar em que eu nasci não poderia ser mais
meridional, na verdade a cidade mais meridional, que desde a sua colina mais subida,
inconclusiva e nostálgica, contempla o mar, todos os meus devaneios pela ideia futurista
da viagem foram invariavelmente virados ao Sul, na direção de um mar que, de onde eu
estava, se via ainda como longínqua fantasia imaginada.

***
O ídolo
Quando o meu pai voltou de Moçambique, nós fomos esperá-lo a Lisboa, eu e a minha
mãe. A minha mãe nesse tempo ainda era magra, super-magra, incrivelmente magra –
não deveria pesar mais do que quarenta e poucos quilos. Parece até que a longa
separação, e as preocupações dela provenientes, haviam incrementado ainda mais a já
proverbial compleição franzina que fazia dela uma figurinha que parecia, a quem olhava
os seus olhos de um azul quase irreal, ser de uma transparência total.

***
O Kito
Conheci ao longo desse tempo inumeráveis pessoas, algumas notoriamente notáveis, se
me for perdoado o pleonasmo – umas por razões fúteis, outras por razões
extraordinárias, outras nem sempre pelas melhores razões – pessoas extraordinárias.

***
Tinha pensado mil vezes em deixá-la. No último momento, mandar inclusivamente as
malas para o porão do avião, fazer check in, tudo na maior cara-de-pau, ir para o cais de
embarque, seguir hipócrita todo o ritual de procurar a porta que se atravessa para entrar
no avião, e só então, dizer de forma fria e seca, «não, eu vou ficar, você vai sozinha».
Todo o desamor em que eu tinha vivido nesses meses, toda a dor que me parecia
insuportável, seriam ressarcidos por aquele gesto de irreversível descontinuidade e
aquele belo sonho, sonho desfeito, de um destino brasileiro, anunciado, e de um amor
feliz, desencontrado, por tanto tempo alimentado, apascentado como se fosse o mais
dileto cordeirinho entre as ovelhas e carneiros pardacentos com que habitara essa
ternura pastoril, ficaria ali irremediavelmente adiado e aquele outro destino tantas vezes
entrevisto, gorado antes sequer de dar, tímido, o primeiro pio.

791
OUTROS POEMAS
1.
Gosto dos poetas sempre
Talvez não constantemente
Gosto deles quando sinto
Que o que dizem simplesmente
É o que eu profundamente
Penso e por vezes não digo.

2.
Infleti subitamente o meu percurso
Pensando encontrar o inesperado
Ofegantemente iludi a esperança
Abrigando em meu ser a ilusão e o fado
E tendo ainda um sopro em mim guardado
Para um momento em que fizesse falta
Roguei ao mais
Infinitamente pessoal e intransmissível
Que me fizesse praticar um passe
De mágica inocente e insofismável.

De tudo ao meu amor permaneci atento


E quanto o quis o fado e a ilusão
Quisera ser ainda mais perdão
Que dos encantos a miséria fuja tanto.

E de uma lua nova se acendeu a chama


Que houvera sido hipotecada
Ganhei do lastro uma alma nova
E uma lua e estrela emoldurada
Nos cravos do que fôra indignação.

3.
TRADUÇÃO E REESCRITA Não tive além do amor outro companheiro
Nem houve nem primeiro nem último princípio para mim
Cá de dentro da vida alma me chama
Prouvera a essa ignorância esse caminho do amor abrir-se-me essa porta.

Sobre um poema apenas


Às vezes apenas um só verso
Uma palavra solitária
Um nome
Às vezes só um ar que se respira
É habitado embora…
De ideais.

792
Infelizmente eu não sei turco nem chinês
Como poderei medir então
A corda dos versos recitados
Como poderei viver sem recitar
Os versos impassíveis e suspensos
Que se desenham nos versos
Em que empastado aparece
O coração do coração do verso breve
Mas infinitamente verdadeiro
Verdade intensa e infinita
Capaz de ser aquele
Do qual se diz que é
O Tao
Porque não é
O Tao
Como no Tao
Teh King onde se diz
Que o Tao do qual se diz que é
O Tao
Não é o Tao.

Diz-se em chinês
Em português se diz
Em outras línguas
Se diz em inglês
Brítico ou vulgar
Americano
Em qualquer língua se diz
O que se quer.

Em turco ou em chinês se diz


Em árabe ou em pahlavi
Canta-se em odes
Ressoa em vozes de ameríndios
Soa nos corações humanos
Ou nos tambores do Marabaixo
Nos de Minas nas dumbas nos tantãs
Nas congas nos uivos das cuícas
Em todos os tambores
Nas peles ricas
Esticadas calibradas dos timbales
Nos surdos
Nos falantes
Nas patas dos cavalos dos mongóis
Será talvez um ritmo
Talvez viva na música ou nos ecos
De uma pulsão estelar desproporcionadamente antiga
Talvez seja isso o que se quer
Talvez seja
De tudo isso que se diz que é

793
E que
Possa parecer
Quem sabe talvez ser
Razão e conteúdo
Ser
Mas não é nada
Jamais poderá ser
O que se possa dizer
Que é.

É ser apenas
Sendo que o ser
É o que é
E sendo é ser
O que não é.

É tudo em tudo como sagaz alguém já disse um dia


Antes de mim ou antes de ter sido
O tudo para mim
E esse tudo em tudo é um
Que sendo tanto
Não necessitaria sequer de tradução
E todavia somos nós
Nós que tão imaginariamente queremos ser
O que seria a pátria da língua portuguesa
Até para o Camões até para o Pessoas
Até p’ro Hélder o Herberto
Até para o Drummond
E para os outros
Os que gostamos mais
Os que gostamos de gostar de quem gostamos
Gostamos todos de uma hipotética
Uma hipócrita e «chique» tradução
De uma torraz traição
Que nos redima os ódios.

Mas traduzir a fama não sustenta


Trair a massa da manhã que se acalenta
Quem ama não traduz
Não é preciso
Não sabe amar quem trai
Mente quem tenta
Quem ama reescreve e redefine
A cândida palavra que seduz.

794
4.
JALALUDIN - a majestade e a religião

Nestas páginas muitos mistérios se insinuam


Que bom seria poderes compreender apenas um.

As palavras trazem a água do que ainda não foi visto


Vem oceano infinito até aqui na forma de energia
Para o moribundo e mesmo para o morto.

Observadores aborrecidos e ausentes


Mas com tanta luz nos vossos olhos
À medida que lemos este livro.

Não sou cristão judeu ou muçulmano


Não hindu
Nem budista nem sufi nem não zen
Não de nenhuma religião nem de qualquer
Sistema cultural
Não sou do leste nem do ocidente
Não vim do oceano nem do chão
Nem natural tão pouco etérico
De todo sou composto de elementos
Eu não existo
Não sou uma entidade neste mundo nem naquele que há-de vir
Não descendo nem de Adão e Eva
Nem de nenhuma história das origens
O meu lugar é a ausência de lugar
Meu rastro o rastro de não haver o rastro
Nem corpo nem alma
Eu pertenço a minha amada
Vi os dois mundos num só
E esse que chama e sabe
Primeiro último exterior interior e única
Respiração do ser humano que respira.

Tu és o livre espírito
Armadilhado em condicionamentos
O sol sob o eclipse.

Existe uma semente de luz por dentro


Ou a preenches de ti mesmo ou ela morre.

Fui apanhado nesta energia encaracolada… o teu cabelo


Quem quer que esteja calmo e sensível é maluco.

A ignorância é o presídio divino


Conhecer é o palácio de deus.

795
Dormimos na inconsciência de deus
Despertamos na divina mão estendida.

Eu tu ele ela nós


No jardim dos místicos amantes
Estas não são verdadeiras distinções.

O céu é azul
O mundo um homem cego acocorado numa estrada
Mas quem conseguir ver o teu vazio
Verá p’ra lá do azul e para lá do homem cego.

Aprende sim sobre o teu ser interior


Daqueles que conhecem essas coisas
Mas nunca papagueies o que eles dizem.

Será que o pôr-do-sol às vezes se parece com a aurora?


Saberás tu o que é o amor sincero?
Choras
Dizes que te queimaste
Mas poderás tu pensar em alguém a quem o fumo não tenha enevoado?

Durante todo o dia penso nisso e então de noite o digo


De onde vim e o que sou suposto estar fazendo
Não faço ideia
A minha alma vem de algum lugar disso estou certo
E é lá que eu tenho a intenção de terminar.

Esta bebedeira começou em alguma outra taberna


Quando porém retornar àquele lugar
Já estarei sóbrio
Completamente
Entretanto
Sou como um pássaro de outro continente sentado nesta horta
E está chegando o dia em que me irei embora voando
Mas quem ouve agora por mim a minha voz no meu ouvido?
Que diz as palavras que fala a minha boca?
Quem olha de dentro dos meus olhos? O que é a alma?
Eu não consigo parar de perguntar
Se eu pudesse provar que fosse um gole de uma resposta
Poderia me evadir desta prisão de bêbados
Eu não vim aqui por minha vontade nem esse é o caminho pelo qual posso ir-me
Quem quer que tenha me trazido até aqui terá também que me levar embora. [embora

Esta poesia
Nunca sei o que é que vou dizer
Nunca o planeio
Quando estou fora da dizedura disto tudo
Fico tranquilo e raramente falo.

796
Pensas que eu sei o que é que estou fazendo?
Que por uma só respiração ou meia respiração eu me pertenço?
Tanto quanto uma caneta sabe o que está escrevendo
Ou uma esfera sabe onde irá depois.

Dança
Quando te sentires em ferida aberta
Dança
Quando tiveres rasgado as ligaduras
Dança no meio da luta
Dança no teu sangue
Dança
Quando fores perfeitamente livre.

Escuta as presenças dentro dos poemas


E deixa que te levem aonde elas quiserem
Segue essas pistas deixadas para ti
E nunca abandones as premissas
Existe um mar que não está longe de nós
Que é oculto mas que não está escondido
É proibido falar dele
Ainda que ao mesmo tempo
Seja um pecado e um sinal de ingratidão
Não o fazer.

Ouve o latir do cão pelo seu dono


Esse lamento é a ligação.

Existem cães amorosos


Dos quais ninguém sabe o nome.

Podes dar a tua vida


Para ser um desses.

No instante em que ouvi pela primeira vez uma história de amor


Comecei de imediato a procurar-te
Sem saber o quanto eu era cego.

Amantes não se encontram finalmente em algum lugar


Eles estão um no outro todo o tempo.

Deixai que o amante seja desgraçado e louco


Deixai que tenha o pensamento ausente
Alguém que fosse sóbrio temeria pela possibilidade
De as coisas correrem mal.

Deixai que o amante… seja.

797
No amor não existe alto nem baixo
Nem bom nem mau comportamento
Nem chefe nem prosélito ou devoto
Apenas igualdade tolerância e cedência.

Não temos nada a não ser o amor


Nem futuro nem princípio ou fim.

A alma berra e guincha dentro de nós


«Oh! Preguiçoso este é o caminho do amor
Alcança-me alcança-me vem até mim»

Se procuras o que realidade visível pode dar


És um subalterno.

Se procuras o mundo nunca visto


Não estarás vivendo a tua verdade.

Ambos os desejos são loucura


Mas serás perdoado por esquecer
Que o que verdadeiramente buscas
É a alegria confusa do amor.

Vem que eu te direi então da dança e onde leva


Olha as estrelas no ar que também dançam
E os grãos de areia que o vento faz dançar
Como um amante apaixonado cada ponto
Uno de luz se faz alegre ou triste em torno a tudo
Um carrossel que faz do Sol tirano eixo.

Quando me falo é calado


Somos o mesmo
O silêncio nos redime
O que a alma quer os corpos sabem
E dos seus eméritos confábulos
De todos os destinos passo a passo a alma cala
Vem a meus olhos se me queres posso mostrar-te.

Desde que o ser foi dado ao mundo


Sempre tiveste diante do teu sonho
A escada que te guia ao céu sem rumo.

Já foste um dia pedra fria


Foste bosque árvore e erva
E por fim foste do esgar de horror o animal
Tudo isto está em ti e todavia
Ficaste entorpecido em esquecimento.

798
Contudo agora és homem
Conheces e deduzes tua fé
E podes ver em ti o teu contorno
Contendo em si o pó que aral te constitui
E sabes-te perfeito enfim e tanto.

E então no fim de toda a luta


Quando serenamente fores um anjo
A terra irás olhar distante e bela
Mas será o eterno céu vazio a tua casa.

Não cedas nunca ao sono


Procura os teus iguais.

Na escuridão encontrarás a água viva


Então sem pressa indaga pelo escuro.

Cheios de luz são os que cruzam a escuridão da noite


Fica então perto daqueles que te amam.

Se te faltam os pés para viajar


Viaja dentro de ti mesmo
E como uma mina de rubis
Reflete a luz de dentro para fora.

Essa viagem levar-te-á ao centro do teu ser


Transmutando o pó que és em ouro puro.

Sofreste por demais


As marcas da tua ignorância
Passeaste aqui e por ali os teus farrapos
Agora fica aqui.

Pois na verdade somos a mesma alma tu e eu


Jogamos um jogo de escondidas tu em mim e eu em ti
Esse é o sentido mais profundo do que somos
Porque não existe em ti comigo
Nem eu nem tu.

Desperta o claro dia


E todos os átomos dançam luminosos
As almas dançam loucas desse êxtase
E todo o céu dança por causa deste ser
Eu te sussurrarei junto ao ouvido
Aonde leva e conduz a sua dança.

799
Ainda ontem disse a um velho sábio
Que me escondesse nada dos segredos deste mundo
E ele docemente disse ao meu ouvido
Que me calasse
Porque podemos entender mas não exprimir.

Quero evadir-me p’ra longe da razão


Do que faz presente bem e mal me libertar
Atrás do véu onde a beleza é tanta está meu ser
Quero tombar amoroso de mim mesmo oh! desatentos.

Por fim eu sei que eu e o amor estamos unidos


Quando seguro em minhas mãos estas mil tranças
Ainda que ontem fosse eu quem estava bêbedo do cálice
Hoje sou de tal maneira que é o cálice
Quem se embriaga de mim.

Acabou de chegar o que jamais partiu


Jamais a sua água faltou nesta ribeira
Ele é o corpo do almíscar e nós o seu aroma
Jamais o corpo e seu aroma se podem separar.

Se o meu coração procuro encontro-o no teu quintal


Se procuro a minha alma só consigo vislumbrá-la em teu cabelo enrolado
Se bebo água quando tenho sede
Vejo nela a tua imagem refletida.

A fé religiosa do amor é diferente


O êxtase do vinho é diferente
Tudo o que aprendes numa escola é diferente
Tudo o que aprendes do amor é diferente.

Vem ao jardim da primavera convidaste


Onde estão todas as belezas e o vinho e a luz
Mas de que serve tudo isso se não tiver a ti
E se estiveres aqui para que posso eu querer tudo isso?

Nas montanhas num riacho meio gelado


Com grossas placas de gelo
Um amigo pôs-me uma vez na mão uma gota de orvalho congelada
Eu segurei-a junto do meu olho como uma lente
A cicuta e o rododendro e o riacho
Estavam de súbito de cabeça para baixo acima de mim
O mundo invertido numa lágrima.

Ser não é o que parece


Nem não ser. Do mundo
A existência não é
No mundo.

800
Vivi no limite da loucura
Querendo saber das coisas os porquês
Batendo a uma porta
Ela porém aberta
Havia estado a bater do lado de dentro.

EZRA POUND – a libra que te ajuda

5.
Amo você com paixão
Com devoção e em transe
Sem anéis nem sacramentos
Só com coração e fé.
(…)

6.
Ao que consta nos anais da internet
Na entrerede da má-língua dos áugures
Rede internacional de uma suposta maledicência
Na indecência mundana das vaidades
O poeta morreu de estriquinina
Arsenicato ao que dizem
De estriquinina
Nem sequer daquela que os sucedâneos dos hippies
Calcavam nas misturas
De L.S.D. falsificado
(…)

7.
Naquele tépido prazer do toxicoma
Eu vi as formas onde não existia nada
E vi o nada consumindo as formas
Sem nunca aprender p’ra que servia
Permanecer no nada atado e vil
Se alguma coisa aprendi nessa jornada
Foi que de fato não servia para nada
Mas quero ainda saber como sorrir
Não quero ainda tirar férias de existir
Quero comer da amarga broa até ao fim
E persistir em dizer não
Ao que pareceria óbvio dizer sim.

8. Para os meus amigos que morreram


Como a todo o mundo
A mim me começaram a morrer
Cedo os amigos
Nem eu talvez tivesse quinze anos
Pouco mais.

801
A primeira grande amiga que perdi
Era uma garota singular
Única em vida e de quem foi também
Como que por acréscimo e conclusão óbvia e natural
Singular o fim.

Daquelas que se encontra se calhar


Havendo sorte e oportunidade
Por uma vez na vida
E assim mesmo mesmo assim somente apenas
Em algumas vidas acontece.

Juntou-se a um motard (br - motoqueiro)


Mal tinha ainda se feito fazer moça
E assim partiu com ele para Angola
Quase como quem pega
Boleia na garupa de um tuaregue
Apenas não
Só porque tem o mar
E os cavalos não nadam
Nem as motas
Longas distâncias.

Depois só a notícia
De um destemperado inesperado e insólito destino
O de morrer queimada
Nas chamas da roupa que a cobria
O de morrer deitada
Quem sabe amolecida pelo sonho
Da última e definitiva vez que a vi
Teria pouco mais que quinze anos
Chamava-se Maria…
De Jesus.

E definitivamente morreu.

Até aí que eu soubesse


Só me tinha morrido a minha avó
E como é natural eu não sabia
Que ocorrem para os vivos
Quando estão menos preparados
Peculiares eventos quando incautos
Lhes morrem as pessoas da família.

Ainda assim e como


Eu realmente gostava muito da minha avó
E já por essa altura escrevia alguns poemas
Escrevi
Desenhei em folhas de papel de blocos
Folhas em branco

802
E relativamente pequenas em que então
Se costumava escrever
Eu desenhei os hieróglifos onde dizia querer
Que a minha avó não morresse
Mas tristemente a minha escrita
Não tinha por esses dias como hoje nenhum poder.

Se tinha algum e só o vi mais tarde


Era o de prever coisas que iriam de fato acontecer
Depois
Mas isso era quando eu não as pensava
Quando não era eu quem queria
Mas a coisa se escrevia e parecia
Ter uma vontade que me ultrapassava
E apenas minha mão dileta e diligente
Acompanhava.

O certo é que a minha avó morreu mesmo


Ainda que mais tarde eu percebesse
O quanto ela ainda continuava cavando
Os barros vermelhos da sua agricultura
Os caliços brancos dos caminhos
Que em criança
Eu calcorreava com ela
E a burra
E na aldeia em casa ainda infatigável
Rezava os seus quebrantos
Tecendo em luz e sombra.
(…)

9.
Te amo camaradinha
Minha formosa rainha
Minha gostosa pretinha
Te amo e te chamo minha
Mulher
Tenho muita saudadinha
Era o que eu queria dizer
Desde a tenra manhãzinha
Até ao entardecer
Todo o santo dia sonho
Penso e sonho sonho e penso
Te ter.

10.
Há lugares aonde eu fui
Só porque era preciso que eu estivesse lá nesse momento
Por vezes mesmo que entre milhares de outras pessoas
Eu senti a imperiosidade de estar ali presente
Foi assim durante a revolução dos cravos em Lisboa

803
Ou dias depois
No bairro da Boavista ou em grandes
Em descontrolados e espontâneos quanto belos
Acontecimentos e vertigens de massas.

Para que conste dos anais da carregação


Também estive abandonado e só entre as cortinas
De uma esquecida máquina dita photomaton
Então moderna
Tuberculoso e cilindrado pelos delírios incautérios
Da desbragada luta ideológica do grupo de maoistas ao qual eu pertencia
E que passadas
As horas de chorar e de sofrer quimicamente
O doloroso adeus de uma ilusão perdida
Percebi que aquilo que de fato me doía eram os erros
As injustiças
A súbita ascensão dos abrilistas
Em detrimento dos rapazes que inteiriços
Haviam dado o corpo ao manifesto
A vã cobiça
Que esboroava celerado
Aquele vão sentido de pertença.

Em todo o caso entre uma e outra para mim


Era evidente o auto
De que a revolução tinha acabado.

Não duram muito as ilusões o soube cedo


Quando não são de dentro vindos os momentos
Em que simbólicos atamos os desejos
De muitas almas desejosas e sinceras
À nossa própria história de indivíduos.

Mas também em lugares mais selectivos


Como na festa do sol anos mais tarde
No monte do moinho do Malhão
A minha insignificante e improvável presença foi registada
Se não pelos olhos sequiosos
Dos lentos anais da natureza
Pelos olhares profanos casuais
De uma hoje acidental promiscuidade.

11.
PROVÉRBIOS

Poesia tem que também


É só pedir de boca que ela vem...

Quem me dera ser zarolho


Nesta terra de cegos ser um rei…

804
Albardaria à vontade
Burro que fosse dono de metade…

12.
QUADRAS SOLTAS

Algumas linhas na linha


Enviesada da vida
Que depois de em vão vivida
Só merece ser esquecida.

São já demais os meus versos


Para o que eu tenho a dizer
E os pensamentos imersos
Sempre se agitam no ser.

As muitas vezes sentidas


Saudades do predizer
São hoje verdades esquecidas
Pela sanha de viver.

Às vezes não encontramos


Tudo o que amamos e queremos
Sentimos que em vão louvamos
Que somos o que morremos.

Morremos dias e horas


Semanas de sofrimento
P’ra ressuscitar agoras
De franco amadur’cimento.

Só quando mandamos vir


O futuro encomendado
É que vemos imergir
Os naufrágios do passado.

805
De todos os corações
Que a vida tinha p’ra mim
Eu devotei às paixões
O que era assim.

Faz-me viver a coisa dita assim


Nem haveria bem de la dizer
Outra que fosse inteira para mim
Pela palavra que se diz foder.

Não há longe nem distância


No coração de quem ama
Há na tranquila constância
Do desejo e do amor... a chama.

As muitas vezes sentidas


Saudades do predizer
São hoje verdades esquecidas
Pela sanha de viver.

13.
Estou retomando agora
Autografado e cândido
Um património vivido
Outro momento
Um périplo incomum já desgastado
Escrito e descrito
Como se fosse uma medalha
Alcandorada no peito
De quem já
Sucederia antes de mim mesmo
Imaginadamente e longe
Em tempo e espaço
Memória própria e em comiseração
Ter sido eu.

806
14.
Chuva na cabeça fria
Onde que batia
Onde que devia
Bater.

Trânsito de um dia
Saudade e adeus
Brilho secular
Do adeus.

15. (poema a 4 mãos com Diogo da Costa Leal)

1
Há-de estancar um céu na pólvora caída das palavras a sombra
Na sombra das palavras que caem do céu sem explodir
Porque amamos despertas as pálpebras de todas as sobras
Amamos acordados
As demoras
Os dias e as noites que varamos
Na lonjura dos anos feitos ramos fora de pandora.

Caminhamos vertebrados para lugares infinitos


Muito mais depressa que a memória
Na tensão subtraída na dor
E muito mais devagar que o sol
Na fruta dividida no amor
Calamos coisas pensando que em silêncio nos movemos
E gritamos coisas sentindo que no ruído nos paramos
Vamos parados aonde o silêncio não nos leva
E cantamos apurados o tempo que nos carrega
Fascinados os tímpanos da alma.

O nosso coração sempre a descoberto na audiência insaciável dos olhos


É como um relógio ou um computador - mudo ao trucidar das emoções
É como um contágio ou um pescador - rendido ao acaso das relações
É como é tanto é só é sempre ainda
É como é pranto é só ficar de pé suspenso na vinda
É largo o entardecer da despedida.

Sobe o universo todo numa frieza pela espinha acima de um futuro afagado
Vem devagar primeiro depois em torvelinhos em tropel
Depois em espinhos depois na pétala de papel
Nas linhas alastradas do nosso sangue nu aguçado
Sangue pisado emudecido pelas lamacentas botas de guerra da emoção
Fermentando nos pés a força aérea de uma canção.

807
2
Deveria eu dizer botas cardadas? Não
Ninguém sabe mais o que são botas cardadas.

Deveria eu procurar as manhãs claras? Não


Ninguém sabe mais o que é o amor.

Tangem as horas o bordado dos dias


E nos dias tecem os dedos a filigrana dos instantes.

Porque rangem graves as peles nos corpos dilatantes


Se nas noites excitantes, a estadia é sempre nua?

Agem e reagem severos os modelos


Parada e instantânea nas horas lentas a excitação das ruas.

Até ao dia de ir apanhar as espigas abertas, até saciar a beleza dos cabelos
E fazer das memórias suspensas o esculpir das mortes condensadas em castelo.

Dias longos odes longas longo carnaval


Títeres púdicos talvez jamais quaresmas entrançadas de cruas despedidas.

Noites dilatadas pela limpeza no amor das máscaras caídas


E as cordas cortadas nas memórias déspotas pela solidão mais pura.

Para que serve afinal tanta desdita?


Corações e manhas de anoiteceres eternos…

Deveria eu dizer rotas marcadas? Não


Ninguém sabe mais fazer os mapas.

3
Caminhos caminhados caminhantes
Alforriados trilhos insondados
Almas vadias de aluados e estudantes

Contração dilatação contração dilatação


Memória dilatação ânsia contração
Amor contração e agora dilatação?

Câmara e via lugar do sono imenso


Onde o cosmos descobre ser quem é
O lugar onde o ser indefinido é tenso

808
16.
A IDEIA É UM PEDERASTA

Nunca na vida chamei por uma ideia


Nunca a forcei a vir
Como dizia um meu amigo em outros tempos
«A ideia é um pederasta»
Mais do que isso
É como uma mulher que fica mais bonita
Quando encoberta
E por uma nesga aberta do vestido
Deixa e sugere aos olhos
Adivinhar-lhe as formas
Seduz
Antes de se entregar.

Mesmo que quando nua


Ela seja incomparável e sumamente bela
É quando se adivinha que seduz
Olhos e imaginação
E a ideia é como ela e como a luz
Que por um momento
Se esgueira por detrás da mansa distração
Do esquecimento
Mas depois de acolhida poderosa e bela
Brilha e inunda o mundo de prazer.

Jamais em minha vida chamei por uma ou outra


Ideias e mulheres
Todas me chegaram já chamadas
Mas ondulando em mim sua beleza utópica
Fizeram-me sonhar
Fizeram-me viver
E respirar os doces aromas do destino
E então aí
Uma mulher ungiu em mim a sublime ideia
Em que se forma a fonte eterna e ideal
Da juventude.

A ideia
Como dizia o meu amigo
É um pederasta
Vai com todos
Mas como uma mulher
A mais bonita
Atrai mais do que a vida a luz ofusca
E quando atrai
Vai só com um
De cada vez.

809
17.
Amo você com paixão
Com devoção e em transe
Sem anéis nem sacramentos
Só com coração e fé.

18.
Gostava de ser moderno
Ter as mãos nas algibeiras
Virar à esquina da vida
As dobras de uma avenida
Gostava de ser eterno
No momento de não ser
Ter um impasse no centro
Entardecer
E ruminando ou fugindo
Ser vivente não sentindo
Sentir a dor de viver
Ter sonhos fazer asneiras
Resgatar ruas inteiras
De livre flanar errante
E sendo sempre estudante
Permanecer.

19.
A CARPA

No jardim japonês vêm quatro folhas flutuando


Muito organizadinhas na corrente
Que se formou na superfície do lago
Onde uma carpa exercita um salto
E um peixe enorme
A espaços
Permite que se perceba que ele existe
Vindo à superfície onde parece engolir uma impossível golfada de ar.

As quatro folhas encaminharam-se para o destino inevitável da separação


Vão lentamente mergulhando no vórtice que se forma na água
Sob o impacto inexorável do repuxo.

Nos olhos do mundo aparece uma distância


Em qualquer lugar tudo é verdade
Mas raramente se vê
Porém quando visível
Pode ser vista abundante e generosamente.

810
20.
O que seria da poesia sem os poetas
Será que a poesia vive quando os poetas morrem?
Talvez então fosse o tempo
Das meias verdades perguntadas em silêncio
E das coisas serem normais
Por fim
Se dissolverem no ar todas as esquizofrenias
Em direção ao cosmos
De o céu estar todo limpinho
Apenas a distância e o azul
E tudo ser.
O que seria da poesia sem os poetas
Será que a poesia vive quando os poetas morrem?
Talvez então fosse o tempo
Das meias verdades perguntadas em silêncio
E das coisas serem normais
Por fim
Se dissolverem no ar todas as esquizofrenias
Em direção ao cosmos
De o céu estar todo limpinho
Apenas a distância e o azul
E tudo ser.

21.
Será que este meu olho ainda vê?
Este meu olho que chora e queima
Que arde quando no meu cérebro
A luminotécnica se acende
E se percebe
Que dreams rima com New Orleans
E o sangue escoa
Mais uma emoção avulsa
Na corrente de um rio maior e mais comprido
Comprido e caudaloso
Que o Amazonas e o Mississippi juntos
Será que ainda brilha?
Esse meu olho
Será que ainda chora?

22.
Um momento mais de grátis emoções
Um de soar canções
Em que a poesia dos seres se possa ver
E se enlaçar
No ar lá onde deus derrama a luz
E o voo seduz
Ter asas e voar
O salto em cruz
E que tivesse ou tenha

811
E que voasse
Lá onde a fantasia risca o céu
Mais lá onde a geometria quer
Bater as asas e cantar
E ali
Algures entre horizonte e areal
Entre atenção e ar
Entre vapor e brilhos
Entre mar
O céu espelhando o mar que espelha o céu
E o mar espalhando o sal que espalha a dor
E quer pousar.

23.
Do Santa-Rita pintor
Santa-Rita jogador
De futebol extremo esquerdo
Santana Santa Maria
Santa Bárbara ou Sant’Iria
Homem com nome de santa
Muito engana ou muito encanta.

24.
O YPSILON

A vida é como um ípsilon sei há muito


Um cálice de dúvida nunca repleto
Uma bifurcação constante que nos dá
Pela constante imperiosidade da escolha e de escolher
Uma vaga sensação de independência.

Um ípsilon
Letrinha gaga e indecisa
Que se produz e reproduz
Atrás de cada decisão
De cada vez que algum de nós
Decide ou acredita
Ter decidido
Entre duas soluções de uma opção
A melhor
Ou a que nesse momento invariável e preciso
Parece ser a melhor
Ou a que não tinha outra alternativa ou a que tinha
Não era portanto viável
Mil ideias
Mil ponderações
Intuição e cálculo
Para uma afinal simples decisão
Simples talvez porque dual
Mas depois

812
Vai-se formando uma teia
Dos sucessivos impulsos
Emitidos em cada decisão
Mais ou menos
Positivo ou negativo
Norte ou sul
Escuro ou claro
Luz ou escuridão
Noite ou dia
Perto ou longe
Infindável argamassa de decisões eléctricas
Deixadas livres nos cavos interstícios
Em que se rasga e se define o espaço-tempo.

Um ípsilon
Nem uma letra é
Uma vogal inteira
E no entanto
Nela se pode resumir
Plasmar e ser
A própria vida.

25.
Vi sair ano após ano
Gerações de raparigas
Acabadas de sair da puberdade
Ou quase
Um pouco mais crescidas
Dando os bons dias para o despertar da vida
E aprendendo
Devagar e inocentemente
A sentir os cúpidos olhares
E os dos homens
Olhares concupiscentes e lascivos
Derramando desejos incontidos
Por esses corpos juvenis ainda puros
Ou quase…

Como revoadas de pássaros


Aves de arribação
Só que de geração local
Vi-as aparecer nos lugares públicos
Como se pode ver numa cidade pequena
Iniciando um êxtase
De sedução e erotismo social
Sob os olhares paternalistas dos mais velhos.

813
Tive também eu em meu devido tempo
Ideias espetativas
Até determinadas intenções
Ou mesmo intenções determinadas
E algumas vezes voguei nos devaneios
Dessas delirantes determinações
Da vida.

Agora
Ouvindo-as passar nos anais da minha história
Compreendo a natureza
Da sua invulgar e ínclita missão
São como pássaros
Trazem à vida dos entes
O singular colorido do cantar.

26.
Guardei a imagem como
Se guardam as coisas nos computadores
Há quanto tempo a não via
Como a balada do Gil
E que saudades teria
De outras visões de algum dia
Que som de encantamentos mil
Dispersei em cantos e amores
Guardei a imagem como
A guardaria e guardei
Colada à tampa da mala
De couro em que viajei
Guardei-a no coração
E nos arquivos sinceros
Do meu amigo electrónico
E do coração vadio
De onde ela jamais saiu
São os esmeros.

27.
MARABAIXO

Tenho o caminho leve


Que a minha gatinha encanta e me apraz.

Ela e eu.

Passo o fugaz momento


De ser o que a vida quer e é capaz.

De fazer.

Dou tudo o que eu puder


Para dar tudo o que ela quer e que é.

814
Eu me dar.

Nessa agonia breve


Que a minha gatinha tem e que quer.

E eu também.

28.
Nas canções que foram feitas
Com corações estilhaçados
Amarrados aos feitiços
De amantes descompassados
Mesmo olhadas com desdém
Essas canções
Encantam fazem vibrar
No peito uma nota solta
Que mesmo sem se saber
Às vezes nem mesmo a letra
Nem o nome da canção
O coração quer lembrar.

29.
Olhando longe a distância
Dos meus fados apartado
Vem ao meu peito a fragrância
Do teu jeito apaixonado
De seres minha e eu ser teu
E de estar predestinado
Em algum canto do céu
Eu ser o teu namorado.

30.
Sempre usarei acentos
Circunflexos
Gosto deles
Gosto do nome
E da circular flexão que eles carregam
Tornam mais doce a estridência
Cada um é o que é
E como este
É um acento querido
O meu acento
Fiz até um panegírico uma vez
Sobre a forma que ele tem
O chapèuzinho
Como em pequeno me ensinaram
De forma carinhosa a conhecê-lo
E eu me lembro.

815
31.
COMO SE FOSSE VINICIUS

E por falar em saudade


Já nem precisa saber
Por onde é que anda você
Porque em você a saudade
É invisível e crê
Porque emana inflama e vê
Viaja em raios em fotões
P’ra todas as direções
Para o passado longínquo
Para o futuro
Para o passado recente
Para o futuro entrevisto
P’r’o que foi anunciado
Vai p’r’os lugares mais distantes
Para os próximos momentos
Por instantes
Para os lados do presente
Em todas as direcções
Vai de louca ou de contida
P’ros interstícios da mente
Deslumbrante e convencida
E nunca mente.

Que nem incrível gás envenenado


Você preenche os momentos
De um veneno saboroso
As sombras das entrefaldas
Regatos desfiladeiros
Os dos entrepensamentos
Dos anteriores pensamentos
Subtidos
E quando enfim um momento
A mente ausente divaga
Pelo espaço impermanente
Sem pensamento nenhum
É sua imagem que espreita
Desatenta e curiosa
E desse pensamento o espaço enche
Se desenha agora e então
Eu sou o que eu sou e quero
Eu chamo e queimo
E dessa saudade cujo nome eu não imploro
Todas as coisas que eu penso e assim sendo
Tudo o que eu quero quereria
Que ser fosse
Apenas o que é ser
E eu só pensasse

816
Que amar ou viver valesse
E a vontade de existir
Se explicasse.

32.
A lua está quase cheia
Já está bem p’ra lá de meia
E o meu amor anda longe
E eu aqui armado em monge
Qu’rendo ver nascer o dia
Qual eu juro não queria.

33.
Amar amando assim p’ra lá das horas
Em que o tempo me reparte os pensamentos
Das sinistras penumbras das demoras
Que insistentes fatigam sentimentos
E que a desoras o meu clamor descansa
Meu louco amor os dias não alcança.

Certo que logo houvera ser agora


Meus desidérios mansos hora mansa
Vir ao meu pranto agora e de ora afora
Dar-me doce canteiro e consolança
Onde as despetaladas flores dos meus lamentos
Possam guardar a sombra desses dias lentos.

Se a hora for de ao meu amor achar melhora


Muitos ainda possam ser os sofrimentos
Em que a distância o meu conflito só piora
Conclamo aqui aos deuses vencimentos
Para os anseios em que vela a minha esperança
E onde se guarda inteira a confiança.

34.
Às vezes minha voz percorre o céu
Procurando por ti ‘inda calada
Para que em outro canto do universo
Por tu’ alma desperta seja ouvida.

E assim todo o imenso dia passo


Prefigurando em de ti minha vontade
E corpo morto ou senegral estendido
Flutuo nas beiradas do teu canto.

Mas fragorosas liras nunca avança


A multitudinária compleição
Dos bancos nevoentos da manhã
A clara madrugada já desponta.

817
Canta baixinho a dor que lhe dissolve
Os palpos de cansaço a desventura
De ser longe o encanto que a comove
E lhe traz doce a lira quase pura.

35.
Dentro de mim ela existe
Como se fosse a menina
De todas as que histórias e canções
Das que em poemas em versos em exortações
Sempre será
A que há-de ser
A mais bonita do mundo
Que é a princesa das histórias de encantar
A musa das vãs e não vãs mitologias
Sacerdotisa e maga de cruéis heterodoxias
De implacáveis e cruéis religiões
A puta de todos os bordéis
Mãe e criança
Mulher da vida e do prazer a moça
Todas as cores
De todas as flores em todos os jardins
E dentro dela
O ser que se diz e que se é
O que inocente gosta de ser eu
Talvez exista também.

36.
Espero você aqui
Quietinho
Como um soldado espera e guarda
Sua rainha
E um cavaleiro aguarda o sono enfeitiçado
De sua princesa
Todos os dias em que o sol nasce no mundo
Espero você
E da minha vida abençoada em maternais anunciações
Todos os dias em que ebriamente vivi
Esperei você
Bêbedo da espera alucinado de saber
Que um dia envolta em bruma
Nas asas luminosas desse dia
Você viria
Contra todas as tolas evidências
Contra presságios e bruxedos
Fiquei esperando
Você
E nas manhãs que tépidas o sol faz despontar
Eu espero
Infatigável e brando por você
Esperarei sempre
Todos os dias que me for dado viver
Ao sol caliente de tropicais meios-dias

818
Todas as tardes no pôr e no nascer do sol
Na noite escura
Sairei do sonho mais florido
E incubarei seus ais
Para esperar você
No caldo ternurento das manhãs
Todos os dias
Todos os dias da vida
Esperarei indefectível você
E até na morte
Eu sentarei na beira do caminho
Triste mas não cansado
Dessa fatal e formidável viagem
E mansamente
Doce e amoroso
Eu ficarei suspenso e fluido
Na imortal recordação radiosa
Florida e branda desses leais momentos
Em que eu feliz nem infeliz
Espero você.

37.
Eu quero arder em febre nos seus lábios
Ser essa febre ardendo em mim que você queima
À força de misturar os sangues
À sanha insana de confundir as bocas
E de as palavras mesmas não terem mais significado
De serem
Mas não significarem mais nada
Então quando se sabe que todas dizem só
O que sabemos e cremos
O que queremos e somos
E que se diz
Na quente chama que o desejo inflama
E pronuncia
Com a ternura leal e singular
Que tem um beijo.

38.
Meus olhos fotomatons
Dos tons que os teus olhos fletem
Do que nos meus são os tons
Que o teu coração reflectem
E adoram
Ficar dos olhos que os olham
Pendurados
Suspensos de encantamentos desvairados
Rasgados e possuídos
Por rasgos de adoração
Por brilhos tão refulgentes de paixão
Que dos sentidos
Aos olhos ser só visão

819
Nunca estarão os meus dos teus subtraídos
São olhos teus os meus
São meus os sentidos teus
E são do sol do céu o mar e o infinito
Do meu contentamento o sal de um deus.

39.
Quem é essa mulher ligeira e linda
Donzela maliciosa
Sereníssima princesa
E rainha poderosa Anoiteceu no meu quintal
Não há estrelas nos meus olhos
Nada cintila nada mexe
Só anoiteceu
Anoiteceu no meu quintal
Mesmo junto à janela do meu quarto
Só anoiteceu
Nada cintila nada mexe
Apenas uma lágrima
Uma serena e vagarosa lágrima.

Posso escrever uns quantos versos


Entristecer a noite azul
Com cardos sangrentos
Cardos lilases que há nos campos
Que quando eu era criança não sabia o que eram
E julgava lilases
Sem saber que eram também sangrentos
Como no Verão passado os malmequeres do meu jardim
Que enchiam de amarelo os sonhos lindos
E de brancura a minha alma preta
Igual como os vivazes malmequeres do meu jardim
Que eu cria possuir no Verão passado
E que secaram
Secaram enquanto eu acreditava possui-los
Igual aos suspiros discretos das mulheres
Que eu também julgava possuir
Como se eles não fossem tão só volúveis e discretos sorrisos
E as imagens sem carinho imaginadas
Sem ternura sem azul algum
Os sons imaginados sem calor
E os sonhos que eu queria ter sonhado
E não sonhei
Igual à noite que se fez no meu quintal
Onde no Verão floriram as paixões
E que ficou imóvel
Mesmo junto à janela do meu quarto.
Gostosa
Onde anda colhendo a rosa?
Não vê que no meu jardim

820
Não tem flor que seja mais airosa
Não a vê
Não sabe a mulher formosa
Cheirosa
Deliciosa
Muito mais que mais dengosa
Que a rosa
Não sabe a moça manhosa
Finge não saber que sabe
Que é ela a mata frondosa
Onde cresce brilha e sê
A rosa.

40.
Te encantar me encanta quanto
Tanto me encanta cantar
E o meu canto encanta tanto
Se encantamento encantar
Meu amor meu bem meu pranto
De sorrir e de jorrar
Meu rir de felicidade
Meu amor meu monumento
Meu canto enquanto cantar
P'ra ti cantarei então
E se o meu canto encantar
Nunca mais será lamento
Será sempre harmonioso
Aos teus ouvidos gostoso
Ao meu coração delícia
Quero o teu corpo inventando e balançar
Quero chegar
Quero tuas pernas se enlaçando em mim
E os teus olhos encantar
A tua boca morder
Teu fogo intenso acender
E depois de encanto e lírios
Dentro de ti me queimar.

41.
Anoiteceu no meu quintal
Não há estrelas nos meus olhos
Nada cintila nada mexe
Só anoiteceu
Anoiteceu no meu quintal
Mesmo junto à janela do meu quarto
Só anoiteceu
Nada cintila nada mexe
Apenas uma lágrima
Uma serena e vagarosa lágrima.

821
Posso escrever uns quantos versos
Entristecer a noite azul
Com cardos sangrentos
Cardos lilases que há nos campos
Que quando eu era criança não sabia o que eram
E julgava lilases
Sem saber que eram também sangrentos
Como no Verão passado os malmequeres do meu jardim
Que enchiam de amarelo os sonhos lindos
E de brancura a minha alma preta
Igual como os vivazes malmequeres do meu jardim
Que eu cria possuir no Verão passado
E que secaram
Secaram enquanto eu acreditava possui-los
Igual aos suspiros discretos das mulheres
Que eu também julgava possuir
Como se eles não fossem tão só volúveis e discretos sorrisos
E as imagens sem carinho imaginadas
Sem ternura sem azul algum
Os sons imaginados sem calor
E os sonhos que eu queria ter sonhado
E não sonhei
Igual à noite que se fez no meu quintal
Onde no Verão floriram as paixões
E que ficou imóvel
Mesmo junto à janela do meu quarto.

42.
Doce cruzamento
De flores de acácia
E pétalas de rosa
Separadas
Princesa
Da glória inumerável
Menina
De mil prendas e sorrisos
Vários
Pássaro contente
Que esvoaça
Na primavera ribaltina
Deusa da loucura
E da humildade
Sereia do oitavo mar
Das luzes.

822
43.
Entre nós a planície longa do beijo amordaçado
Da espuma do delírio e da moral obesa
Que como a ave ténue que esvoaça estando presa
Liberta para os astros o meu peito aprisionado
Descobrindo um sonho de riso e de beleza
Entre os astros brilhantes do meu céu rasgado
Corro entre as estrelas do meu riso enclausurado
E o brilho dos teus lábios como uma chama acesa
Dos píncaros dos astros contemplo-te ao meu lado
Distante o olhar tão perto dos teus olhos de princesa
Ante os meus olhos de pássaro parado
Contemplo-te e embalo-te no meu berço de tristeza
Os meus olhos percorrem-te e eu corro desvairado
Entre as borbulhas da tua cascata de beleza.

44.
És uma branca flor do meu jardim de almas e canções
A espuma do meu mar a rosa frágil o meu peito
Onde a luz imensa dos teus olhos semeia vozes turbilhões
És o meu silencio e dos meus amores o mais perfeito
És o calor das noites que suspiro sozinho no meu leito
E o fogo que incendeia a minha febre o céu das minhas ilusões
És fulgor dos dias que resvalam sem céu sem cor sem jeito
És a estrela mais brilhante do festival das minhas sensações
Assim me tolhem me encandeiam os teus olhos dois clarões
E o teu corpo de princesa requebrando ondulações
Assim alastra a queima o teu incêndio no meu peito
Onde as vozes do meu sono ecoam lancinantes se me deito
Sonhando ‘inda acordado com o mar imenso de tristezas feito
Que é o preço injusto desmedido a força bruta das paixões.

45.
Estamos nus sobre o abismo que nos bebe
Estamos sós e nus
Não nos envergonhamos cismamos
Sobre nós sós e nus o abismo que bebemos.

O corpo é uma adição de asteriscos luzidios


É um sinónimo misturado
Uma carga dinâmica
É a destilação das flores divinas
Um cardo visível à distância
O corpo é a realização do projecto satânico
É uma bola de ferro macio
O corpo é o que torce o que grita o que uiva
É o que dói
A mística ondulante
É a verdade bastante
A força vital arrepiante

823
Fibra mordente
O corpo é a finalidade urgente
É a ideia e o cheiro ardente
É… será talvez a pústula constante
A medalha de ouro do deus omnipresente.

46.
Foi a vida a começou com o conflito
Foi a Rosa que disparatou com o namorado
Foi o lenho que caiu sobre o príncipe encantado
Foi a guerra que realizou a eternidade e o infinito.
Era uma cascata e um lilipútico mestrado
Era o sintoma da lepra contra o mito
Era Vénus contra Vénus Dionisos contra o rito
Era o careta público que olhava empertigado.
O mistério aconteceu no poço amaldiçoado
O poço foi incómodo fantástico e maldito
Foi abatido benzido vendido e tapado
Mas a moura soprou do seu fumo erudito
E deixou-o pairando ondulando pese embora parado
Só por querer que o que era importante dizer fosse dito.

47.
O raro o imortal e o pontilíneo
O excesso o colapso e o raquítico
O viscoso o complexo e o curvilíneo
O sombrio o bolor e o medo mítico
O cadáver o idêntico e o rectilíneo
O físico e o real e sifilítico
O rasto do juízo e o hiperlíneo
O justo e o sábio e o pícnico
Equilíbrio sobre as esferas do inlíneo
Poses estáticas do surdo e do abúlico
Rigorosas arquitecturas teatrais de Plínio
Rancorosas misturas do deus único
Com o rigor geométrico euclíneo
Mas indomável e sórdido e líquido.

48.
Os perigosos destinos vivos e de longe impostos
Por sobre as pastas de riqueza fétida
Por monstros de bizarra natureza mórbida
E rasgos de espanto de tristeza e desgostos
E noivas e cardos e a marcha negra e húmida
Dos cidadãos azuis sempre muito bem dispostos
Por geométrica fileira consoante os gostos
Ou as vocações da alma escura e flácida
Mas indiferentes e humildes nos seus postos
Como obeliscos de cimento entre a enorme massa líquida
Vagos e marmóreos estão dispostos

824
E dentro deles feroz imensa e pálida
A razão de ser dos loucos desencostos
Sempre rigorosa aborrecida e pútrida.

49.
Quando o vento fustiga as fracas folhas
Que estão presas nos rebentos frágeis
Parece que a força brutal do vento
É uma enorme inexistência
E parece o inocente balançar das folhas
Uma nascente de bailarinas ágeis
Enlouquecidas de luz de cor e movimento
Bailando em saltos de louca impertinência.

Tal como o vento fustigando as folhas


Assim a dor fustiga o coração
Mas eu estou quieto no meu tugúrio escuro
E o meu coração dança entre as flores lilases
Do esterco
Com o balanço triste do balançar das folhas
Perdido nos cristais pulsando a ténue vibração
À tarde quando o vento sopra forte e puro
Baila o meu coração tonto de encontro ao muro
Do cerco
Mas eu estou quieto olhando as fracas folhas.

50.
Resultou doméstica a pujança materna
Rios de suor raro sonho de mística febril
Melancolia distante de casta e varonil
Paixão solvente e mortal e grosseira e eterna
Jamais as manhãs serão astros brancos e raro anil
Visto que a sorte é distante mas interna
É uma senhora respeitável no rocio a dar à perna
É o desvario na cegueira do sol nas manhãs de Abril
É a riqueza que mata a triste luzerna
É a volúpia do corpo ondulante e juvenil
O amor uma cabana um girassol e uma lanterna
Um rio cheio de desejo de sair do carril
Muito melhor que destruir a casa paterna
Ou liquidar por sapiências o lapso estudantil.

51.
As figuras não se toldam
Com a passagem dos anos
Agreste é ela a permanência
Oculta e obsessiva das imagens
Os sons que se prolongam
E ainda ouvimos claros no tempo
Tolhidos mas sempre adiante

825
Um outro ao seu igual
Atrai e atraindo ainda sou
Voa na asa do tempo
Se especando em frente do invisível
E lá ouvindo-se passar
Arrosta com o hábito de ser
Demonstrador e provador da vida
Aquele que se recusa a aceitar
O que já feito e concluído se afigura.

52.
Centelha carcomida osso cru
Apenas a sóbria e derradeira podridão
Apenas o vazio que a compõe
Se deixa penetrar e depois envolver
Por essas brumas essas ténues brumas
Que são opacas sem ser densas
Que são a própria essência carismática
Que são o traçado à noite no céu
Essas brumas essas ténues brumas
Que sinto penetrar no vazio da imobilidade
Essas brumas essas ténues brumas
Que são os licores do mel
Que são a própria hidra
Que são o sonho claro das manhãs de anil
Que são esta viscosidade interior do fel
O próprio fel que fermenta todo o conteúdo
Essas brumas essas ténues brumas
Elas próprias o irresistível fel do sofrimento
Essas brumas essas ténues brumas…

53.
E um dia tudo parece diferente do que sempre foi
Foi claro o dia
Mas cinzento o céu
Nuvens pesadas ondulando como
Eterna sanha de parar
Sagrada chama de loucura e louca
Movimentação
Pássaros ninho já perdidos
Piando breves e zunindo o ar
Pássaros que um dia mortos de frio e logo
O esvoaçar
De um dia que em tudo era já outro.

54.
O limite do que já foi e disse
Dizer o seu dever cumprido
Até ao limite das forças
E diz sobre o imenso mar e vê

826
Não treme porque a vaga o beija
E lágrimas nele o olham ausentes
Ficou seu coração no caminho
E hoje é espezinhado com desdém
No seu caminho.

Dentro dele pode rugir a fera


Pode rebentar a vaga que rebentou
E a vaga que a seguir rebentará
E ferida a fera pode estar
Mas onde o berro que ela der se ouvir
Haverá um menino a nascer outra vez
E uma velha avó pode expirar
E ver.

Dele se extinguirá a fera


O mar é já ele rugindo
Cantando à toa um dia
Levado às costas por um deus
Que a avó disse que não havia
E haja ou não é ele que o dirá.

55.
Sempre a lei e a ordem me foram estranhas
Me foi longínqua e inacessível
A minha saudade do futuro possível
A minha honra despojada em fáceis manhas
A sanha vital do meu gemido horrível
Longo e arrepiante de dentro das entranhas
Do fundo do covil das teias das aranhas
O rasto do presente marchando para o longe irreversível
O senso e a seriedade como o suor e as banhas
São como a lei e a ordem e o rigor risível
Dos funcionários públicos e do seu medo imóvel
Interminável procissão das mais grossas patranhas.

56.
Sonhei
Tristes nos passos névuos da manhã
Os sonhos tristes
Os pássaros que te dei
Os que se olhavam branco e negro
Os pássaros da manhã.

Olhei
Entre as silvas e o vento
O pilar que sustenta o céu
O pulmão
O vasto pulmão enegrecido
E a terra que é senhora e mãe.

827
57.
Esta coisa inteira que nos move
Esta inteira e sã conformidade
Esta inútil liberdade
Esta prisão perpétua
Mora nos enormes desertos
Lá no vago deles
Mora em mim esta lira
Ou nada.

58.
Pode ser a casa de um bicho
Pode ser a cama de um só
Além pode ser o universo
E aqui o universo também.

No alto da colina pode ser


A ave que sem ninho passa e não se vê
Não é – ficou
A velha árvore já não tem buraco
Onde o bichinho seu ninho tem.

Teus olhos vão te iludir


Tuas mãos vão te enganar
Avança um pé outro pé
E assim não há que enganar.

59.
A lágrima secreta mostra o brilho
E deixa-se escorrer pela face
Num último alento ainda dá
Vida ao que é morto e só.

60.
A noite amiga como uma longa noite que não tivesse fim
Mas tão só portas limiares da estrada
Onde o caminho se afasta mais de mim
Como se as pedras que o caminho tem
Como algo que se aproxima e que se afasta e vai e vem
Fossem ramagens floridas de jasmim
E fosse manhã de vez a noite amada
Em vez de negritude estéril e ruim.

61.
Alcoutim do Guadiana
Adeus que me vou embora
Vou para a cona da mana
Alegre deitar-me fora.

828
62.
Algumas linhas na linha
Enviesada da vida
Que depois de em vão vivida
Só merece ser esquecida.

São já demais os meus versos


Para o que eu tenho a dizer
E os pensamentos imersos
Sempre se agitam no ser.

63.
(versão original do intróito a«O LIVRO DE EMÍLIO LUCIANO»)

Este livro tem três chaves


Uma de ouro outra de prata
E a outra como tu sabes
É de lata.

Uma é o canto das aves


Outra é a bruma parada
E a terceira como sabes
É a poesia barata.

Uma a paixão timorata


Nos seus contornos suaves
Outra um delírio que mata

Desprezo das formas graves


Delírio psicopata
Da agonia das aves.

64.
Estes dias cinzentos
São um presente do céu
Para os poetas de deus
Que sofrem sem dor a alma
Dos dias que soma a vida
São meio sem cor esses dias
Os olhos não se distraem
São música de linda cor
E de reflexos calmos
Saudades são esses dias
Que o ano passado houve iguais.

65.
Ficam os sulcos marcados
Do carro que a mula puxou
De manhã cedo na geada ele passou

829
E a marca no chão deixou
No caminho onde andou
Logo cedo de manhã
E à tarde o dia já passou
E o vento remexendo o pó
As marcas apagou
Do sol a lama já secou
E os sulcos misturam-se também
Agora são um rego que uma gota
De água lenta escorre abaixo
O carro não voltou nem a mula
Foi no caminho dar a outro lado
E repentino o sol se acobertou
Num monte de verde enegrecendo
Que o dia se esvaindo
Com paciência espera
Ver desaparecer.

66.
Meus irmãos amanhã é outro dia
Limpemos as nossas vísceras
E tudo acabará em bem
Mesmo sem nós sabermos como
Mas só se nós quisermos.

Este é um princípio que adiante


Veremos erguer na grande via
Depois saberemos o caminho
Que agora só que é nosso
Acreditamos.

67.
Ontem ainda ou talvez não
Talvez fosse antes ou talvez mais
Não sei talvez fosse há um mês
Ou há um ano ou se calhar
Há dois ou três.

68.
«Amava-te eternamente
Se eterno pudesse ser
Assim como não sou eterno
Amo-te até morrer.»

Esta menina feiuxa


Que se chama igual a ti
Sabe um amor que não morre
E que ela já sente em si
Sabe-o de um outro saber

830
Sabe-o desde ante nascer
Porque ele vem com a carne
Mas tem por razão de ser
Outro ser que antes da carne
Era um amor de ninguém
Sem amador nem amada
Nem ciúme nem sequer
Luz alguma além do nada
Que a tudo e todos inclui
E ama por ser da vida
A vida em que leve flui.

De uma vida à outra esquece


O que a vida tanto amou
E a nova vida enriquece
A chama que assim durou
Faz dela um elo maior
Que se anela no amor
Que eterno só pode ser
E é mais enternecedor
Dado que a vida o faz ser
Eterno no esquecimento
Em que a noite engole o mar
Onde navega essa dor
Essa saudade sem par
Que como a hera que cresce
Por sobre a parede nua
Só brilha quando renasce.

No seu caminho infernal


Ele às chamas lança quem
Por ser modesto mortal
Não pode ver de onde vem
Amor tão enorme e puro
Que num corpo inerte e duro
Já não pode ser quem é
A morte é que cobra o juro
E o amor vivo ‘inda é.

69.
Parece que o dia claro
Esmoreceu e choveu
O que era bonito e raro
Em água se converteu.

Pelos sulcos se escorreu


Escorregou pelos canais
Os rios do que aconteceu
No mar se fazem rivais.

831
Parece haver neles mais
Do que aparece no facto
E nas imagens reais
Aparece um estranho pacto.

Amor se torna no acto


Rival de outro amor maior
Que por ser muito mais lato
Se torna o único amor.

E o outro é já só dor
É só tristeza e tormenta
É agonia ou pior
Num coração que rebenta.

Do coração se alimenta
O peito todo consome
E por fim ainda ostenta
A boca aberta de fome.

E espera mais essa fome


Que nada vai saciar
E só de dizer-lhe o nome
Os dentes acariciar.

Dessa fome sustentar


A ânsia voraz aumenta
Ela quer amamentar
Ela de dor se alimenta.

A chuva já cá choveu
Já no chão tudo molhou
E violenta bateu
E quase que já secou.

Nos sítios onde escorreu


Subtil marca deixou
E vendo isto ‘inda eu
Amo quem nunca me amou.

Ou se amou se arrependeu
E o amor se lhe esgotou
Como água que escorreu
Da chuva que já parou
De um dia que esmoreceu
E em noite se transformou.

832
70.
Onde está a minha salvação
Onde ela mora
Tal está como se nunca fôra
Ópera eterna do fim da criação
Que vem soando d’além da eternidade
Por dentro dessa força imorredoira
Sede de ir embora
Luz inquieta da surda tempestade
Onde ela vive como uma senhora
Tal majestade
Tal atitude de força e de vontade
Que é toda esta que me falta agora
E que renasce como se a razão
Meu coração
Fosse a de vê-la reinar sobre a idade
Sobre a razão como uma divindade
Com toda a força da minha convicção.

71.
A vida é uma roda viva
Pelas forças em cadeia
Movimento que se enleia
E engana a alma cativa.

Se o coração se incendeia
Pela brasa de uma diva
Outra a ele se adesiva
E entre uma e outra medeia
O coração do amante
Que às duas não pode dar-se.

Uma o procura ofegante


A outra o faz desalmar-se
E a roda da vida errante
Não tem paz com que aquietar-se.

72.
Água densa água em que se esvai o meu tormento
Permanente ternura de romance que se esvai num momento
Passa como se fosse água densa água em que me esvaio
E eu todo em mim no meu tormento e um papagaio
A gritar-me por dentro a lição desde sempre sabida de cor
E eu todo em mim a gritar-lhe outro grito maior
E eu todo em mim que me calo que estarreço e que aguento
Faço-me desta outra maneira ser em que também me esvaio
P’ra ser líquida água densa água em que se rasga a minha dor.

833
73.
Do porto alto da terra
Chegam os barcos e partem
Para um destino não ser
Senão chegar e partir
Senão partir e morrer
E depois nascer um dia
Num outro porto da terra
Portos no céu lá em cima
São como as asas de um deus
Passarinhos a voar
Vê-se de cima o que é bom
Plano de mar imersão
No mundo por navegar
Risos de ver e voar
Das aves de arribação.

74.
Meu amor quando te vejo
Vejo que a vida me dá
O que me tira o enjoo
Dos dias que correm lá
Onde a vida mole e má
Vive onde vive o desejo
Sem dias de mais ensejo
Nem esperanças que os haverá.

Raros dias meu amor


São esses em que te vejo
Tão perto que a minha dor
Me dói do sítio onde venho
Ver-me passar sem esplendor
Mero actor em desempenho
De um personagem menor
De uma história de amor.

Porém se sonho te toco


Mesmo sem teu corpo ter
E numa ânsia sufoco
Quando chega o amanhecer
Vejo o meu amor crescer
E a vida pelo sonho troco
Por sonhar mais não poder
E sofrendo ao sonho invoco
Mais imagens p’ra sofrer.

834
75.
Não sei se gosto de ti
Ou se te tenho rancor
Nem sequer se estou aqui
Ou noutro sítio melhor
Ou talvez só a sonhar
Com o prazer de te amar.

Não penso bem no que sou


Quando te lembro distante
Neste delírio em que estou
Brandindo a espada trovante
Sobre um corpo que não há
Nesta arena que aqui está.

Gosto de ti sem querer


É sempre assim que se gosta
E assim gostar faz doer
Àquele que à dor se mostra
P’ra esquecer o dissabor
Que é amar sem ter amor.

Os cães lá fora a ladrar


Fazem-me a noite mais lassa
E procuro em vão achar
A caravana que passa
Mas se ela não se mostrou
Não existe ou já passou.

76.
Se à noite eu morro por ti
Já de dia não te vejo
E se te vejo não sei
Como dizer-te o desejo
De ter-te toda p’ra mim
De ter-me dentro de ti
Ter-te a ti também assim
Como dizer-te não sei
Sei que te quero sei bem
Quero-te assim…

835
77.
À sombra de umas árvores
O mundo se está poisando
E o mal que me fizeste
Se exorcizando
Eu vou tentar refazer
O que em pedaços parti
Em parte por não saber
Noutra parte porque vi
E vendo quis surpreender
Aquilo que senti.

78.
Ah! Loucura insaciável esboroada em vento
Azul do céu ainda por brilhar cinzento
Imagem que se decompõe e se repete
E fica vazada no metal das recordações
Os sonhos são mil as cores são sete
E dois unidos dois os corações
E todavia no adeus não há langor
E sem sentido parece ser a dor
E mais normal ainda o não doer
Quando doce se evola a esperança de rever.

79.
A força que existe enlaçando o doce amor
E o laço que se lança louco em correria
Sempre frouxo suave junto aos corpos
Se a distância parece separá-los.

Eu quero uma visão de sonho aqui e já


Quero ver e viver um dia a fantasia
E nesse dia refazer os dias
Nas horas reviver todos os dias.

Eu quero um sonho passando-se diurno


E um suor de febre à noite delirando
No forno do amor encarniçar a pele
Infinitamente momentâneo e logo o fogo.

80.
Desde o dia em que eu tão triste
Esperava por ti ali
Naquela estação iluminada
Tantas coisas pensei e escrevi
Coisas que não são nada
Há bem de que o tempo passa
E nada se consolida
Antes tudo se dilui e se trespassa
Confundindo-se na vida.

836
81.
Linhas e linhas arranjo
Na esperança de ver louvado
O que dentro de mim tanjo
E pouco vejo arranjado.

Há pouco ainda lhe via


E lhe tocava ao de leve
Linda sonhava e sorria
E ria um riso breve.

Agora estou aqui só


E tu de mim estás ausente
Sinto saudades do Sol
Que me deixa dormente
Sinto saudades do beijo
Que eu prolongo e desejo
E por fim se desvanece.

82.
Muito do que sinto é verdadeiro
Algo do que vejo é ilusório
E treme-me o ser inteiro
Só de pensar que é provisório
O que me acostumei a ver certeiro.

Um dia que não sei se há-de trocar


Esta por outra luz eu sei
E o que então se há-de manifestar
Será o que eu sempre esperei
Esperando na esperança de encontrar.

Na tríade insistir eu vou


Já sinto imensa a dor vibrando
O vento em rodopio já me apanhou
E no tornado vou rodopiando
Meu eu no vento esvoaçou.

83.
O meu bem já está dormindo
Voando para não sei
Onde se esconde o que sinto
E se lhe perde o que dei
Dormindo se embala ela
Nos sonhos que não sonhou
E embalando o sono dela
Vai levando o que passou
Eu olhando para ela
Sinto saudades daquela
Que mansamente me olhou

837
E o olhar brilhando e rindo
Agora vendo-a dormindo
Com nostalgia lembrei.

84.
Passam páginas no tempo
E vou pensando o que escrevo
E olhar passado o tempo
Não sei porquê não me atrevo.

Pisei repisei ideias


E tantas tantas esqueci
Que me envolvi em ideias
Que nunca compreendi.

Com esperança pedi a luz


Com afã a procurei
E ao aquecer-me na luz
Dela me desencontrei.

Encontrei contra a muralha


Uma pedra de vida
E ao esbarrar contra a muralha
Encontrei-a destruída.

85.
Todos me perguntam sorrindo
Pelo nome que eles não conhecem
E com esse outros nomes confundindo
Louca teia de saudade tecem.

Ao lembrar o teu olhar distante


Me vem um nome conhecido
O do destino que eu desbravo errante
E outro me lembra o som querido.

Inocente o meu amor se amarra


Com as cordas que eu fiz dos teus cabelos
Dos teus sorrisos nós dos olhos garra
E dos beijos sangro a dor de tê-los.

Aquela canção tão crua


Invade o coração em agonia
Ao qual já falta o pedaço
Que em ti procura moradia.

E do que resta uma estrada nua


Onde cambaleio ao Sol é o que faço
Estarreço nas bermas de cansaço
Suando ardendo o Sol do meio-dia.

838
86.
Um beijo apócrifo e civil
No desfiar inconsolável das ilusões perdidas
Como se fosse a brasa lenta dentro da cinza inerte
De uma fogueira apagada
Um beijo ignóbil de que num esgar se tira a boca
E a madrugada
Mais fria ainda
Ainda que aquecida pelo sol
Vapor do sol nascente de uma aurora
De um dia que tivesse
Ficado por amanhecer.

Nada de belo
Só a espessura do ar
Mais nada
Apenas o salitre
O cheiro e o sabor a gasolina e vomitado
O da urina
Dos bêbados da noite que acabou
E tão indefinido quanto instável
O inconfundível querer ficar da despedida.

O ar irrespirável
Por segundos querer
Desafiar a decisão já sufragada do destino
Uma ali mesmo última e definitiva vez
Contra a parede e os papelões
Em que pernoitam vagabundos e mendigos
Ficar dizendo adeus
Partir não indo
Dizer adeus
E ser para sempre.

Escrever um livro
Uma recordação refém de encantos idos
Poemas e cantares ainda vivos
Dado quando pedido
Contrariado e constrangido.

O ônibus já vai e eu vou nele


Entrar entrei
Da marcha lenta da janela que ficou
Imagem móvel
Imóvel na imagem da paisagem
Parece irreal o que é inevitável
Parece imóvel
Deve lá estar ainda
É como o negativo de um retrato
Ou uma quimera

839
Pode acontecer
Acontecer alguma coisa
Que nunca aconteceu.

Os olhos fogem
Da imagem a paisagem não se vê
Trespassa-me o gesto de não ver
Vejo não vendo
Sei que acontece
Mas não acredito que esteja acontecendo
No tempo que parou ainda a sinto
Sombra vazia de um destino imperial
Que deixa para trás
A sombra de um império sonolento.

Ainda a vejo
Olhos vazios o meu retrato de domingo.
Olha p’ra trás
Na tarde e na manhã o mundo roda
Ainda penso como pode ser indefinido
Cravado de ilusão o último olhar
Amplexo amistoso trespassando o ar
Pairando
O tempo ainda adia a dor anafiláctico.

87.
ITENERÁRIO MÉTRICO

Foi
Viveu
E não quis
Se aborreceu
Entristeceu de dor
Rogou pragas a si mesmo
Mas sempre o todo lhe escapou
Sem reparar permaneceu feliz
E nunca compreendeu o que lhe aconteceu.

88.
Não há nada mais triste do que a refeição nua
Em que a boca mastiga os pensamentos
É como pagar um jantar p’ra um mendigo
Não porque ele necessariamente tenha fome
Mas apenas p’ra não ficar sozinho a comer
Com os pensamentos devorando a própria carne.

840
89.
Fonte de prazer líquen colorido que se forma
Na casca humedecida do tronco não da cana
Na Terra não na Lua onde nada ou voa
Ou se poisa a tarântula a carpa e o tamboril
Há a baleia na terra não na lua
Há os lagos que sossegados reflectem os líquenes coloridos
Licores inferidos
Da novela a vida prosseguinte
Ano após ano e dia
Faz do novelo em que se enleia a vida
E dessa liberdade é ânsia.

A vida é uma cabeça de baleia


Que é uma besta de estatura boa
E esta loucura que a gente apregoa
É como uma pessoa que está na praia

90.
A força que existe enlaça o doce amor
E o laço se lança louco em correria
Sempre frouxo suave junto aos corpos
Quando a distância parece separá-los.

Eu almejo uma visão de sonho já


Quero ver viver um dia a fantasia
E nesse dia refazer os dias consumidos
E nas horas reviver todos os dias.

Eu quero um sonho passando-se diurno


E um suor de febre à noite delirando
No forno do amor encarniçar a pele
Infinitamente momentâneo e logo o fogo.

91.
A minha vida esfera esburacada
Toda ela está mudada e vagueia em desatino
Ela é o barco ao qual falta a maré
É um comboio ao qual faltam os carris e as estações
A minha vida é um barco e um comboio
Nos quais o capitão e o maquinista adormeceram
E sonham apenas que o barco cruza as vagas
E o comboio os ventos da noite e andam
Faz lá um barco e um comboio
Dizia-me o Diniz ao saxofone
E eu fazia
O que ele queria mas daquela vida já nem lembro
A minha vida é estar sentado no leito da ribeira
Onde uma vez banhei os pés
Nus os banhei nessa ribeira mas agora

841
Já na ribeira não tem água
E a minha vida é estar aqui sentado
É estar aqui sem nem tão pouco viver
Porque a vida és tu e eu sem ti
É como se tudo parasse no momento
Em que em recordação o olhar de dentro
Se pousa no teu rosto que não está
E é como se o Sol tivesse envergonhado
O haver sem ti claridade
E na escuridão e no silêncio houvesse só
Restos dispersos do som da tua voz
Manchas da tua pele recortes dos teus lábios
E ao afagar meu corpo eu encontrasse o teu
Só para me impelir ainda mais
A desejar-te loucamente a voltear na noite
A acordar vazio e sem teu beijo nem o meu
A minha vida é não ter o teu beijo
Porque tê-lo era p’ra mim nascer
E já nascido o teu amor cresceu-me
E dentro se fez grande o que cresceu
E viveu louco intenso e delirou
Mas desta ausência atroz adoeceu
E a minha vida se acaso não morreu
É de ter esperança ao beijo que lhe deu
Um dia a vez de ser
Uma vida ainda e dessa vida
Renascer.

92.
A pequena pausa pauta a folha
Ao lado da ternura imagem foi
Toda uma vez e outra que nenhuma foi
E a excitação do momento
E a inspiração positiva
Ideias ainda as junto que depois não sei dizer
Ideias sim que agora não sei mais.

93.
Ah! Se eu pudesse lembrar
Sem saber nada mais que lembrar
Esses momentos que passei sentindo
Distante o momento de viver
Talvez a vida tivesse um porquê
E valesse a pena vivê-la
Talvez assim
Pudesse enfim
Talvez perdê-la.

842
94.
Amor há quanto espero que o dia seja calmo
Que não haja mais nada a entravar o Sol
Que o brilho seja quieto e que o olhar
Manso e direito seja quente e louco
E vá voando entre nós como um enorme bando
Que voa e cruza a névoa como se todo ele
Fosse composto de um só pássaro
Ondulando e indo evoluindo
Num céu sem horizonte e cheio
De mil brilhos brancos e de água.

Quanto tempo ainda amargará o coração


O travo acre dessa dúvida que vem
Do que há-de vir … do estar partindo
Por quantas vezes minha mão acenará ainda
A saudação da despedida e quantas ânsias
Albergará meu peito à expectativa do tarde
Que se faz na hora feliz do reencontro
Ah meu amor se tudo fosse um só chegar
Um eterno chegar e um jamais partir
Os momentos se multiplicando em beijos
Longos e sempre achando em tudo
Uma razão para te amar ainda mais
Palavras para nada eu as diria
E ditas só aquelas que enormes ficam
Os nossos corações parados no instante
O silencio de ouro emoldurando
Calada a minha boca só ternura
Eu beijava leve os lábios teus e nesse beijo
Beijava ardente em ti a eternidade

95.
Aquele caderno do campino
Tinha escritos tão bonitos
De um amor antigamente
Que lentamente morreu
Mas enquanto não findou
Deixou quanto foi o que sofreu.

Uma vez deixei-o lá


Esquecido num baú
E depois fui encontrá-lo
E folheei-o
Já não lhe via a beleza
Dos tempos em que o escrevi
E foi com grande tristeza
Que o reli.

843
Aquele tom popular já frouxo
Aquela ingenuidade já ridícula
Aquele sofrimento já podre
Aquela amarga já digerida e assimilada
Nada
Sobrou nada desse enlevo jovem
E dessa juventude que se esboroou
Desperdiçada e diluída em fumo
De uma queimada
Alguém que amou.

Agora um outro amor se aninha


No coração que sobrevive à dor
E que cantando a mais amor se dá
Heroicamente grita ou canta
Ou grita.

96.
Aqui ninguém se chega
Uma lembrança vem
Uma figura além
Há bem o tempo
Há bem o sofrimento
E lembro esse momento.

97.
Aromas há que eu amo e amor eu sei
Que um dia o meu amor eu troco e trovas
Tocarei na harpa avariada que eu sou.

E no aroma desse amor que vai eu vou


Buscar o ar que eu sei que há
Ai! Há no ar que há lá p’ra onde eu vou.

Eu sei que eu vou e no caminho para lá


Sofrer é nada e ser é ver o dia que não há
Onde o que é se vai e se desfaz na lei.

Nesse cantinho onde se aninha a minha voz


Solidão me dão em vez do amor que eu quis
E lá na solidão onde eu ficar é que é a minha voz.

E se ao voltar a ter a voz que se perdeu


O nome que a voz traz ainda for o teu
A voz dirá onde é perdido o que perdi.

844
98.
As amargas lembranças que vêm
À lembrança que lembra distante
O bucólico pátio florido
Os artistas do Parque Mayer
Nessas ruas vou deixando o ser
Que em pedaços perdidos perdi
E agora quero mesmo é ver-
-te a ti.

99.
As raparigas vêm e vão passam-me na frente
Nada me dizem os seus olhares medrosos de desejo
Como se oferecem à minha indiferença
Como são fáceis quando não as quero
Como adormecem só de tentar
E quando o tentam por pouco o fazem
Eu não estou cá estou muito longe
E as raparigas curiosas não percebem
Que vêem uma sombra – a minha
Mas a mim esquece-me quem
Me vê porque me tem.

100.
Céus outra vez azuis
Montes e quintas pequenas
Paraíso afundado «al andaluz
casa mia guapa macarena
malagueña me voy a Sevilla»
laranjeiras e sobreiros
cantinho de saudade saudades sim
que eu me esqueci de ter
«al andaluz el chorro»
Flamenco ai guitarra
Estamos parados outra vez
Agora vamos andar – vamos de comboio
«una campana» - dblong
«una amarilla pintilla tierra madre
Voy a Sevilla por esta calle
Adios a Malaga
Adios adios...»

Málaga já vai no mapa só ideia


Tenho de caminhar
Sentado no comboio.

845
Rasguei o céu do olhar
As mãos um dia abri
Oh! Terra quem te rasga
Assim em pedra crua…
Oh! Em pedra nua.

«bocadillo cerveza bocadillo»


Quem te constrói e te destrói…
Oh! Terra
A senhora a branco o rapaz a preto
Acendem um cigarro
Quem te consome oh! Terra…
Devagar.

Já o comboio andou já desandou


E já a ideia foi…
Antes do momento
Agora a estrada torna a desandar
A vila branca vai-se
Já pequena e longe o seu sabor
Se perde e para lhe chegar
Novo torpor já vem
Doce torpor que se desvanece.

101.
Como a imagem que se escoa
A minha alma se dissolve
Em nuvem
Eu sou a nuvem
Eu sou a lava
Que incandescente te incendeia
Oh! Terra que nasceste
Para me ver nascer
Ah! O tom
Esse é o tom em que se canta
A dor com que se canta
O tom.

102.
Como são tristes as caras das pessoas que passam
Sem ilusão sem um ideal sem uma mentira
Que guardado seja o limão que azeda
Toda a salada salteada das emoções da vida
Como são sem fé e sem esperança os corações
E indiferentes os que passam tristes
Como são tristes as pessoas sem a ilusão
Sem uma mentira que lhes fermente o mal
Como são raros os sorrisos que se oferecem
Sem ser por nada e os risos despropositados
Como são loucas todas essas pessoas correndo

846
Preocupadas com coisas que não sabem
Mas que talvez nem sequer existam
Ou se existem são apenas ilusão
Dura ilusão que não serve para iludir
E que tristeza uma ilusão não iludir
Que triste uma mentira não mentir
Que triste sim e engraçado até.

103.
De manhã minutos nunca mais
De tarde ainda vem longe
A noite é infinito que chegar
Amanhã não sei se existirá.

104.
Desde o dia em que eu tão triste
Esperava por ti ali
Naquela estação iluminada
Tantas coisas pensei e escrevi
Coisas que não são nada
Há bem de que o tempo passa
E nada se consolida
Antes tudo se dilui e se trespassa
Confundindo-se na vida.

105.
É verdade que um dia tive a esperança
Enchendo-me a alma por inteiro
E deixei-a pelos bancos dos jardins
Pelos degraus das escadarias das igrejas
Por aí numa fértil sementeira
Da qual germinaram numerosas flores.

Também nas escadarias dos jardins


Sentado nos bancos encantado
Eu vi nascer uma outra esperança
Se ser de novo um namorado.

Paixões que eu tive todas esqueci


Por uma só que a noite me deu
E com o tempo correndo nela vi
Destino e fim elanguescendo
Tremi senti temor e tive medo
E por vezes estive também desiludido
Mas esse amor escolhi e escorregadio
O seu caminho quis percorrer
E quando beijei foi dentro de mim
E quando fiz amor julgando penetrar
Fui penetrado
Mas ainda assim foi pouco para tanto

847
A minha alma sonhando queria mais
Como uma grande ânfora a quem enchessem
Com uma gota apenas.

106.
Eu sei que sei certas coisas
Mais valia não sabê-las
Mas já não posso esquecê-las
Posso somente carregá-las
Na vida até consumi-las
Para poder transformá-las
Noutras coisas e fazê-las
Iguais a estas coisas.

107.
Ficou o absurdo das repetições
Em que tentei guardar outro momento
E nestes momentos que se seguem
Vou ainda sentir o que senti
E sentindo vou esgotando o ser
No que houver a lembrar e a sentir
E recordando vou esgotando esse lembrar
Que já se definiu por perdição.

108.
Forma a forma na visão
Não se vê
Ilude-se a verdade
É o desejo que se quer ver
Vê-se a verdade no desejo
E a verdade não o é
São os olhos da ilusão
São esses olhos que vêem.

109.
Fui e voltei e da ida ainda guardo o fel
Meu coração de mel o fel danou e estou
Pensando em quando eu tinha no tam-tam
Alguma coisa que dizia ser assim a vida
E tudo isso é uma causa perdida.

Agora outra triste vem e eu aguardo calmo


Que ela embata bruta contra mim
A flor que eu sou já se desfolha já se desfolhou
Mas pedra dura ainda tenho em mim
Que se emoldura.

848
110.
Insectos mistério que se pousa
Confundem destinos no seu voo
E onde pousam pousa a vida do que é
Antes do que já era
Insectos que procuram o bailado dos olhos
E não se vêem onde são vistos os ventos
Empurrando as tramas seres alados
Suspensos de um outro viver diferente
Alguém que desconhece ser vida.

111.
Mais um que se resolveu pelo ir
Se desvestir da farda ridícula do civil
A sorrir entro na caserna
E toda a tropa do exército vencido me vê
A gargalhada seca entre o vozeio
Acorda do meu sono o que confunde
Olhares de espanto com delícias
Esquecimento do tempo de meninos.

O tempo que passado se foi


E nada deixa que se diga
Tudo valendo um sorrir de espanto
E um olhar indefinível e estranho
Não sei se é ou se não é mas há
Nesta poeira alguma coisa activa
Que se desmente e envolve de verdade os seres
E torna as caras máscaras horríveis
Às quais não falta nem sequer
A pintura adequada.

112.
Manhã o Sol levanta-se
Numa aldeia perdida na montanha
Onde aos pássaros chilreando madrugada
Se junta o som dos altifalantes da feira.

As pessoas referidas a aldeãos


Procuram parecer reais e ao olhar
Para mim olham com os olhos normais
Mas eu estou sendo enganado
Terrivelmente enganado nesta aldeia confiante
Não paro de riscar as letras
No meu caderno obsessivo
E tudo o que eles me viram fazer até agora
Foi escrever e beber café

849
E no entanto olham para mim
Como se eu estivesse acordado
Talvez por eu ter uma gravata
E uns sapatos pretos.

A manhã é agradável
Mas as verdades
Brutais e interiores não me deixam ver
Esta linda manhã no campo
Parece que há uma feira e vou lá ver
O que se passa.

113.
Não há nada no cosmos habitado
Que possa confundir-me
Nada há aqui ou lá que esteja longe
De uma verdade aqui
Vem do sofrer esse idear sem fim
Que aqui se torna só.

114.
Nos braços o torpor se escorre e deixam-se cair
Pegam as mãos quase que sem pegar
E os insectos já pousam curiosos
Sem saber nem no que estão a poisar
E no entanto tudo está certo e parece bem.

115.
O cansaço vem com a noite ser
O fim do dia ainda se vislumbra
Há que morrer um dia como um dia
A acabar-se por não haver mais luz.

Há que viver ainda mais um dia


E ver como será aquele que virá
E somá-los aos que passaram antes dele vir
E ver o que ele tem de igual aos outros
É o ser mais um dia a renascer
Na expectante uniformidade dos dias.

O ritmo vem de noite e dia


Transformado vestido de evidente
E resta-nos esperá-lo e ser por dentro
O que ele sem ser é em toda a parte.

É dividir as coisas que nós temos


Em outras coisas iguais
É reviver os anos em que os dias foram passados
Só para ver o dia que virá depois
E depois… depois assistir-lhe ao fim.

850
Os dias não têm fim
E a vida são esses dias
Quando na vida anoitece
É p’ra nascer outro dia
Depois da noite passar.

116.
Porque todas as coisas são iguais
Para um que não as sabe distinguir
Encontrarei o espinho da roseira
De uma só e única maneira
Que já há muito está delineada
Confusamente embaraçada como uma linha lassa
Que sobretudo importa não partir.

E todavia o que eu procuro


Não é o espinho e o que procuro
Talvez não seja bem evidente que procuro
Talvez eu não procure
Talvez apenas tenha vago e renitente
Um grande desejo de encontrar.

Tudo isto é sem sal e sem sabor


Apetece exceder o entendimento
Ficar empanzinado de pensar
E não pensar em mais nada
E morrer
Apetece morrer e afinal
Antes morrer do que viver
Na escravidão.

117.
A vida chega ao fim o que ela é
Doce chegar aí
A outra é já maior e vem
Em demorando a águia
Pousa devagar
As asas sobre si já recolheu.

118.
O meu bem já está dormindo
Voando para não sei
Onde se esconde o que sinto
E se lhe perde o que dei
Dormindo se embala ela
Nos sonhos que não sonhou
E embalando o sono dela
Vai levando o que passou
Eu olhando para ela

851
Sinto saudades daquela
Que mansamente me olhou
E o olhar brilhando e rindo
Agora vendo-a dormindo
Com nostalgia lembrei.

119.
O meu bem já está dormindo
Voando para não sei
Onde se esconde o que sinto
E se lhe perde o que dei
Dormindo se embala ela
Nos sonhos que não sonhou
E embalando o sono dela
Vai levando o que passou
Eu olhando para ela
Sinto saudades daquela
Que mansamente me olhou
E o olhar brilhando e rindo
Agora vendo-a dormindo
Com nostalgia lembrei.
O meu bem já está dormindo
Voando para não sei
Onde se esconde o que sinto
E se lhe perde o que dei
Dormindo se embala ela
Nos sonhos que não sonhou
E embalando o sono dela
Vai levando o que passou
Eu olhando para ela
Sinto saudades daquela
Que mansamente me olhou
E o olhar brilhando e rindo
Agora vendo-a dormindo
Com nostalgia lembrei.

120.
Os lustres brilhando frouxos
Os tetos tintos de fumo
Os ramos de flores enegrecidas
São lá em cima
Olhos revirados na fímbria retinta
Outrora ainda que molhados
Viram-se enxutos.

852
As platibandas dos escaparates
São talvez a arte de um bom homem
Cestinhas e jarrinhas
Com ar de coisa meio imperial
Sobre as garrafas onde rebrilham
Os lustres.

121.
Páginas marcadas amargadas e relidas
Domadas as palavras e as sílabas
As letras do estigma que impõe
O fel do meu sofrer
Há muito que elas fizeram
De mim não mais que um escravo seu.

122.
Parece-me este eterno abrir do livro
Ao contrário do sentido da escrita
Uma dor que me mitiga o desejo
E um outro que me faz esquecer a dor
As rimas que me traz o vento
São ainda um débil recomeço
De tudo assim contrariado
Loucura deixo ir estendendo os braços
E vendo exprimo o que se quer
Eu quero
E o que se quer é tanto quanto eu quero
Eu faço fé de que de mim se vão as páginas
E mais de mil pensamentos desiludo
E todos os sinais desiludidos
O são
Na minha louca esperança suicida.
123.
Quanta gente se esbate contra o fundo
Já esbatido do mundo que vislumbro
Quanta escuridão envolve densamente
Toda essa gente que se move lenta
No quadro leitoso do cinema.

124.
Quantas vezes ainda para mim terá de ser
A despedida o mel de outro sofrer e ele
Esse sofrer ser o que dá a vida ao sonho
E o sonho ser ainda o de um regresso
Ao que o destino deixou por acabar.

Quantas coisas eu digo numa só


E variantes de coisas estão lá ditas
Quantas são as verdades escondidas
Nessa atroz verdade que é uma só.

853
De tanto procurar uma verdade
Quantas verdades feitas de mentira
Eu encontrei
E quantas verdadeiras já abandonei
Numa ilusão de ser alguma coisa
Que não sei
Essa verdade pela qual sempre ansiei.

125.
Quantas vezes um coração
Atina e desatina na vida
Para ver a vida a se escoar
E assim sentir o que é o amor
Quantas vezes se rasga o coração
Por quem não tem
Um coração para rasgar por nada
E quantas vezes o tempo despedaça
Em bocados o coração rasgado
E quantas o amor consola e cola
Os bocados rasgados desse coração
Despedaçado
Quantas vezes o coração se cala
Na lágrima seca da vergonha
Para não ver no dia claro
O que é o amor…

Ah! Meu amigo


A madrugada é como o Sol nos ama
Quantas manhãs virão ainda ver
Os nossos corações despedaçados
Esperando cálidas manhãs
Clamando doidas o caldo da ternura
E esta amargura
Que nos devora
Cozer ao Sol
Que nos adora
E o coração
Chorar em vão
Uma canção
Que já não chora.

126.
Quanto amor eu derramo entre estas pedras
Estas árvores e ervas já reguei com meu amor
A minha dor o meu sofrer saudade louca
De agonizar já fez estalar as pedras
E olho e vejo ainda e choro seco
Porquê um amor assim ausente e louco?!

854
127.
Sei que não vens
Não sei só sei que sou
O teu chegar e ir
E no que há entre o ir e o retornar
Há tudo o que eu não sou.

128.
Só nos sentidos vem devagar
Mistura tantas boas e más horas
De espanto pendurando as cabeças
E ouvindo vigorosa a noite
Troar no céu sentindo o todo
Vazio e vago língua estranha.

Apenas a doçura tem voz


Humanos em penúria de ser
Sentem-na como que já era
E só fugindo por vezes fugidia
Ela vem bater no ombro
Caído do homem que se esquece.

129.
Súmula da hipótese descrita
Não se diz que seja explícita
Balcão corrido copo de água
Relato do jogo na telefonia
Água líquida súmula do cristal
Análise ocular do foco de luz
Possibilidade ainda raro é
Dos meus poemas o que não tem um ainda
Mas mesmo assim eu ainda insisto
E repito ainda essa mesma lengalenga
Com que desde pequeno me acalento
A janela debruada de azul
A luz lá fora a terminar de brilhar
E aquele brilho na garrafa a tremeluzir
E a noite rural igual
A aproximar-se lenta.

130.
Todos me perguntam sorrindo
Pelo nome que eles não conhecem
E com esse outros nomes confundindo
Louca teia de saudade tecem.

Ao lembrar o teu olhar distante


Me vem um nome conhecido
O do destino que eu desbravo errante
E outro me lembra o som querido.

855
Inocente o meu amor se amarra
Com as cordas que eu fiz dos teus cabelos
Dos teus sorrisos nós dos olhos garra
E dos beijos sangro a dor de tê-los.

Aquela canção tão crua


Invade o coração em agonia
Ao qual já falta o pedaço
Que em ti procura moradia.

E do que resta uma estrada nua


Onde cambaleio ao Sol é o que faço
Estarreço nas bermas de cansaço
Suando ardendo o Sol do meio-dia.

E sinto já no peito aquela pua.

131.
Em baixo da janela dela
Chove sempre devagar
Às vezes a pensar nela
Fico ali até escampar.

Quando a lua está chinela


E a noite custa a passar
Vou p’ra baixo da janela
E fico ali a sonhar.

Essa janela é tão bela


Mesmo o dia a faz brilhar
Olha de cima a viela
Que a alma quer espreitar.

Com quem quina quina e quim


O que me sonha a desdita
Que me faz sonhar a mim
O que o sonho dela imita.

Toda a história tem um fim


Toda a dor é ser maldita
E o meu mal é ser assim
De uma ambição infinita.

Quero tudo sempre bem


Uma flor da cor da fita
O meu sonho é ser refém
Dela ser a mais bonita.

856
132.
I
O meu amor
Longamente dissecado até ao fundo
Olhado e querido de todas as maneiras
Facetado de dor como um brilhante
Por mil facetas olhado e transparente
Por fim como um rubi
Transfigurando o meu amor
Resplandecente em sua luz
Na minha alma aziaga
Feito uma alma só
De amor e complacência.

II

Meu amor quando eu te vejo


Todo eu me transformo em lunaparque
Sinto da cabeça aos calcanhares
Desde a hora em que partiste
À hora de tu chegares
Todo um frémito no corpo
Que mesmo depois de ver-te
Encanta empolga e persiste
Até se alojar ronceiro
Dominando o corpo inteiro
No lugar do coração.

III

Como um bom sai assustado


Sai do tempo alvoroçado
Vai para um tempo diferente
E muito desajeitado
Delirante e apaixonado
Jamais desanuviado
Aquele frémito antigo
Vibrando muito e doendo
Se foi tornando inseguro
Do coração um amigo.
Quando tu chegas enfim
O meu coração palpita
Como é próprio e comum
Dos corações palpitar
E quando por fim tu estás
Já mesmo quase a chegar
O meu coração rebenta
Quase rebenta feliz
Mas antes de rebentar

857
Espera um momento
E aguenta
P’ra aquela ânsia tão louca
Num longo beijo se dar
E o frenesi da saudade
E a vontade de beijar
Se fundirem e com fragor
Se dissolverem no ar.

IV

E se porventura houver
Mais coração p’ra vibrar
Naquele longo acenar
De um coração p’ro seu par
Que é o acto de beijar
Num abraço grande e quente
Há-de o coração saber
Interior e omnipresente
Todo o doce envolvimento
Que o amor sabe esconder.

Da distancia e da ausência
Se alimenta o sofrimento
A dor da separação
Viver torna-se um tormento
Mas quando por fim se augura
O fim dessa atroz tortura
E o amor por um momento
Triunfa do sofrimento
E o momento de beijar
…Quente e solto
…Eterno e louco
Já se está a aproximar
O meu coração exulta
E segreda ao meu ouvido
«Meu amor já falta pouco»

133.
Quando passo à tua porta
Tremem-me os dedos dos pés
Quebrantam-se-me os joelhos
Roçam-me as ânsias o peito
Rasgam-se as veias no corpo
O sangue salta irrequieto
E sonham todas as fibras
Aquele sonho impossível
Que tanto me faz viver.

858
134.
Tu és a nossa senhora
És a rainha do mundo
És da dor triunfadora
Das minhas entranhas a Pandora
És todo o toque e todo o fundo
De uma caixa misteriosa
Feita de oiro alumbrabundo
Que encanta total e sedutora
E faz da miséria a rosa.

Faz da rosa luminosa a luz


Faz da incerteza a mansidão
No peito arranha e produz
Aquela inconfundível impressão
Que parece electrizar o coração
Quando lá chega o som da tua voz.

135.
Dos outros eu pergunto ainda assim
Que coisa bebem
Que piadas contam
Que flores e frutos vêem p’la manhã
Todas as pessoas têm os mesmos sonhos
Olham distantes
Contam piadas umas às outras
E fazem disso
Essa fascinante actividade
A que chamamos viver.

Já somos tantos e às vezes discutimos


Em todos os que nascem há um sonho
E desse sonho
Outros sonhos que com o nascimento
Se vão subdividindo em outros sonhos
E tantos sonhos p’ra tão pouca
…agricultura
Já somos tantos
…e comemos
Noutros lugares comemos menos
Mas somos sempre nós
Os grandes senhores do universo.

136.
É preciso que alguns
Porventura mais fracos
Sofram a desventura da derrota
Assiduamente a sofram
Para que saibam

859
E continuamente aprendam
A descrevê-la
A conhecê-la
A compreendê-la e a superá-la
Para que as almas
Sensíveis dos que sofrem as derrotas
Se fortaleçam e as derrotas
Não os destruam.

137.
Os sicários se são otários velam melhor
Para que o tédio de todo o prédio dure
Os lacaios bem ensinados estão
Expunham castiçais nos castelos
Simbolizando um que já então existia
E actualmente continua existindo.

Aos lacaios quase que dão desmaios


Só por uma pessoa se distrair
Mas tornam-se nos maus
Se acaso alguém por eles se distrai
Com a curiosidade de existir.

Os empregados bem educados gostam de sorrir


Discretamente como quem mente nesse sorrir
Gostam também de se afastar devagar
E de passar sem se notar.

Quando um lacaio outro lacaio olha de soslaio


Não é por mal é natural porque em Portugal
Todos somos lacaios.

138.
Nos dias de refluxo
É que se lembram as velhas oficinas
Onde sob o fogo e a rigidez dos malhos
Os nobres sentimentos se temperam.

Alfobres de sensacionais imagens


Essas casas de paredes indefinidas
Onde habitam recordações e medos
Visitadas em sonhos e vividas
Por momentos instantâneos e ternos
De ânsias incomodativas
Também nesses dias são lembrados.

860
E nas praças e espaços de desejo
Em que desejos ligeiros tomam forma
Têm lugar danças e rituais
Que nunca chegarão a existir.

139.
«Eu não sou não sou eu nem o outro»
«Não sou o único»
Mas sinceramente preferia ser o outro
Quando acordei para o mundo
Estava já irremediavelmente aborrecido
E daí para cá continuei
Sempre me aborrecendo mais
E aborrecido duvidei
Daquilo que simplesmente intuí
E me arrastei na lama do aborrecimento
Até sem querer perceber
Que a verdade é simples
Mas o que eu sinto
É a vontade de ir para cima de uma ponte e gritar
Gritar que o mundo está todo errado
E eu já nem sinto
Tanta vontade de estar deitado
O que eu mais sinto
É uma vontade que não resolve
Mas ainda assim apazigua
De sentir o calor de um ser humano
Mas até isso às vezes me é negado
Por eu ser preguiçoso
E substantivamente
Ficar o tempo todo a não pensar em nada
Só os monges têm esse direito
Mas esses não têm mulher ou quando têm
É uma monja.

Eu queria ficar quieto olhando o mundo


Viver por mim
Tudo o que eu quereria ser
Um boneco articulado e velho
Daqueles com que as crianças não querem mais brincar
E em que borboletas metamorfoses da traça
De vez em quando vão pousar na escuridão do sótão
Escaramalhando o pó.

861
Eu queria nesses dias tomar vida
E ser o outro
Por outros processos já tentei
Mas também fiquei a meio caminho
Sem ser nem um pilar nem uma ponte nem o tédio
Apenas o afogado que se atirou ao rio
E não sabia nadar.

140.
Formas são trânsitos da vista
Como a forma desse acento
Sinal de frémito
Seco e sedento
Que sugere dessedentação
A escrita é ela própria um trânsito
Da vista para o pensamento
Do papel para a acção
Faz do coração um púlpito
De silêncio e adoração.

141.
O GATO TEM SETE VIDAS (versão em 7 estrofes)

Tantas vezes já morri


Isto ninguém me acredita
Tenho dito repetido
Aos mais íntimos aos lassos
Aos que me prezam ou não
Tenho tentado explicar
Mas mesmo sendo sincero
Ninguém me acredita não
Mas é verdade total
Das vezes todas que vi
Uma luz remanescer
Mais adiante morri
Do que se chama morrer.

II

Uma vida quando nasce


Logo de início começa
Sem dar por isso a correr
P’ro lado que corre o rio
E águas lentas ainda
Vão correndo inelutáveis
Para um abismo primeiro
Que não se percebe ainda
Só se percebe que é sal

862
E quando chega afinal
O lar da primeira morte
Não se percebe que o mal
Repudia a própria sorte.

III

Fica igual chega no fim


Todo o casto lado impuro
Guardado escondido e mel
Se recusando a jorrar
‘inda mal sabe que o ser
Dividido se quer dar
Pintalgado de venéreo
Feliz valido há-de ser
Sorumbático cristal
De arquitecturas banais
De esferas de geometrias
E coisas transcendentais
Vai tomar em doses frias.

IV

Vai ficando tudo absurdo


Mas devagar paulatino
O centro daquele olhar
Que era puro o de menino
Nunca mais se vai esquecer
Que se esqueceu de lembrar
Vai torcer suave inteiro
Como se fosse esquecer
Aquela fase fatal
Toda a loquaz companhia
Haveria de esturgir
Numa fritura angular
Da qual pudesse fugir.

Morre inteiro ainda jovem


O dia parece ambrósio
Quando ao dia sexto e tanto
Se acabou o que era dia
O que era dia morreu
Não se enfeita com fitinhas
Nem com suco de tinteiro
Nem do que a lira morreu
Fitas florzitas e tintas
Se a magia adiantasse
Quem quisesse tê-la feito

863
Haveria num impasse
De arrancar todas do peito.

VI

Mas a vida continua


Não se coíbe da dança
Nem se aborrece à primeira
Nem à segunda tão pouco
Jamais se dá por vencida
A audaz proeminência
De um palavroso guerreiro
Uma e outra vez vencida
No terreiro a ignomínia
Se a dor eterno aconchego
Evocasse com audácia
Falasse latim ou grego
Feriria de falácia.

VII

O gato tem sete vidas


Sete sílabas um verso
Sete bocados de nada
Na boca de um espaço aberto
E no entanto evidente
O povo não me acredita
Quer ver provado primeiro
E só o que é evidente
Mesmo evidente por ser
Eu proclamo ou acredito
E é por isso que morrendo
Tudo o que eu deixo aqui dito
Vai como o gato vivendo.

142.
Nunca que eu vou conseguir dizer-te tudo
Mas terá um momento em que o silêncio
Só a beleza infinita do silêncio
Eu vou ficar olhando
E para acompanhar nesse momento a devoção
Sem palavras
Talvez depois de um beijo
Ou antes
Possa dizer o que eu não vou mais poder falar
Porque não existem palavras para tanto.

864
De cada vez que eu fico contemplando
Tem uma coisa mais que mais me surpreende
Algo que eu nunca havia visto antes
Ou que eu não tinha ainda reparado
Ou não tinha reparado o suficiente
Às vezes é apenas a elegância fina de uma posição
Um jeito grácil
De se apoiar em nada
Uma maneira descontraída de posar
Ou uma ondulação no seu cabelo
Mas sempre
Sempre
Olhar sua figura
Traz qualquer coisa de novo
Alguma coisa de diferente
E inesperado
Qualquer coisa parecida com o que se sente
Quando estamos vendo alguém pela primeira vez
E se sente
Aquilo a que inocentemente costumamos
Chamar de amor à primeira vista
Provavelmente eu não serei o único
Nem o mais interessante
Tampouco o mais dotado
Dos homens todos que você conhece
Mas sou com certeza o que mais gosta de você
E em se dando tempo e oportunidade
O que te ama mais
E quem te ama
E se eu te amo
O importante é se saber que eu posso amar você mais do que tudo na vida
Amar você como se ama a deusa
A quem se reza
Alguém a quem se tem devoção
Adoração total
E se não fosse assim
Nem valeria a pena
Não se ama pela metade
Ou fica quase apaixonado
E mesmo quando vem a hora do sofrimento
E as coisas querem terminar
Ou não dão certo
Feliz nunca é esse momento
Mas eu aprendi a aceitar
Que isso também faz parte
Que talvez seja o preço
De viver tudo
Febril e intensamente
De procurar incessantemente
O mais belo

865
O mais sublime
O amor mais puro
A paixão mais quente e mais gostosa
Porque senão a vida passa
E não deve existir coisa pior
Do que se ter a sensação ter vivido sem viver
Essa sensação pelo menos eu não terei
Posso até ter que sofrer
Posso em algum momento ficar inconsolável
Mas não será nunca por não ter tentado ser feliz
E levado toda a força do amor
A um lugar imenso e luminoso
Cheio de energia e de prazer
Uma coisa sagrada e profana ao mesmo tempo
Como se fosse misturados um filme erótico e um conto de fadas.

143.
Quando você não vem
O mundo em que eu habito
Parece mais pequeno.

Da luz a minha vida fica sem


E parece que escurece no momento
O meu olhar sereno.

Meu olho vai e vem


Num indagar esquisito
A sombra de um aceno.

Minh’alma sabe bem


Meu coração aflito
Que há mar há oceano.

Mas tem o ar também


No chão onde eu transito
E tem um vento ameno.

Delírios também tem


E mesmo nunca dito
Tem cor num «arco baleno»
Como se diz em italiano.

144.
Salvo o encontro a vida marcha e coincide
No movimento encantamento que passando
Que nunca é que nunca fica nem será
É o presente que você me dá
Quando eu me sinto ser você rindo e dançando.

866
Quero ser eu quero ser outro sempre quis
Ser de mim mesmo um pouco mais sem mas nem voz
Me segredando que eu apenas sou em nós
Quando meu eu encontra a marca da raiz.

145.
Se o meu coração pudesse
Dos seus encantos e amores
Falar ao teu que adormece
Diria como quem entre vapores
Ser uma nuvem quisesse
Palavras ternas de perfumes e de flores
De uma alegria tão doce
Que ao passar no ar fizesse
Acender todas as cores.

146.
Sobre uma dica de Quintana falando de quem rima vento com lamento:

Que não rima com sustento


Mas rima com acalanto
Se a rima estiver por dentro
Do que não for no entanto...

147.
Tem uma forma de melancolia
Uma tristeza profunda
Que toca em nós uma coisa
Que se transforma em poder.

É um abismo
É um lugar sem nome
Que atrai os outros seres
Que se transformam
Em um vazio maior que nós
E do que eles.

148.
Tudo começa um dia quando acaba
Qualquer coisa que existia antes
E como uma falha magmática
A vida faz nascer novas formas
Que com o tempo se tornam a paisagem
Que ninguém supunha que existisse.

Todos os dias pequenas e grandes ocorrências


Têm lugar no cosmos habitado
Dando origem a novas situações
Sempre diferentes e originais
Desde o seixo que se desprende na falésia

867
Até à separação dos continentes
Desde as nascentes que arrancam a raiz
Até à formação dos oceanos
Tudo se encontra num momento
Recreador e total.

Todas as coisas que pequenas e grandes acontecem


Apenas e só porque acontecem
Se projectam na vida dos seres
Onde sujeitas a uma lógica
De explicações inexplicáveis
Compõem as vidas que acontecem.

E decisões são tomadas e destinos


São percorridos inexoravelmente
E tudo o que nos faz e sabemos
Se encaminha relativamente
Depressa ou em tropel
Para a inutilidade do sempre.

A inútil mensagem emitida


Num ponto inacessível do universo
Remotamente impulsionada no vazio
Atravessada em flecha
Nos espaços imensamente ausentes
E interpenetrantes.

149.
Se tem dias em que o frio
A tristeza vira moda
Queima como gelo é phoda
A sensação do vazio
A saudade interestelar
A dor da separação
Me dissolve o coração
Dos seus olhos o brilhar.

Pode ser que as rimas sejam


Fáceis pobres infantis
Sejam delírios febris
Que só os meus olhos vejam
Mas eu não quero saber
Quero sonhar acordado
Nesse sonho apaixonado
Que só teus olhos quer ver.

868
E o brilho deles sentir
As centelhas de alegria
Que derramam todo o dia
Por sobre o meu ir e vir
Como uma chuva de estrelas
Que me banha o ser inteiro
Que me faz virar carteiro
Só de senti-las e vê-las.

Cartas de amor infinito


Do meu peito saem escritas
Palavras que sem ser ditas
Consegue’ abafar meu grito
E de doçura formar
No mar que a maré escorreu
Um espelho espelhando o céu
Que é o céu do teu olhar.

Se cartas de amor escrever


Comovesse corações
Eu escreveria canções
Que talvez pudesses ler
Rimava mil emoções
Versos simples de cantar
Entregaria no ar
Repetiria refrões.

Só p’ra que aquele momento


Me parasse de doer
Para que eu pudesse ter
Você no meu pensamento
E no meu pensar e crer
Nesse suave lamento
Não pudesse o sentimento
Jamais parar de crescer.

Tem um ninho no meu peito


Que é feito à sua medida
Onde a flor da minha vida
Cresce do único jeito
Que pode crescer a flor
Muito querida e cuidada
Sempre muito bem regada
Co’a água de meu amor.

869
Todos os dias eu rego
Muitos mais quero regar
Quero ver frutificar
Nestas mãos em que te pego
Todos os frutos gostosos
Que dois corpos podem dar
Se entrelaçando no ar
Dos seus ramos ‘splendorosos.

Nunca mais quero sofrer


Por você longe de mim
Essa dor terá um fim
Bom então será viver
Cantarola a fantasia
Que todo o meu ser reclama
Corpo e alma fogo e chama
Desejo e sabedoria.

Franqueza e brasilidade
Todos os teus devaneios
Teu entrecoxas e seios
E a rara sensualidade
Que derrama a tua boca
Quero teus beijos teus ais
Teus delírios sensuais
Que nem de uma deusa louca.

Tudo isso eu quero e mais


Quero coisas que nem sei
Quero ser o teu «meu rei»
E bíblicos esponsais
Casar contigo na mata
Fodermos na contramão
Atar em nós um cordão
Que nem mágico desata.

Ser salomão do teu canto


Dos cânticos mais sagrados
Dos pensamentos safados
Do teu axé ser o santo
O pai a mãe a avó
Quero ser velho e neném
Mas sobretudo meu bem
De ti jamais ficar só.

870
150.
A HERA E O PAPIRO

É um barulho cavo como o de um avião


E escuro por de dentro das imagens
Iluminadas
Nada que seja nada do que se possa ser
Conquanto seja um demorado momento
E seja eterna a sensação de realidade
Numa semente ou numa poda
Incitando a terra à vida
Desde o mais fundo do interior do esterco

151.
A mulher superlativa
Que me aquece o coração
Exercendo o seu «métier»
Diz-me do fundo do ser
Que a verdade mais profunda
O sentimento mais puro
Vem da profana oração
Do dar que quer que se dê
De quem reclama o prazer
De a alma ser vagabunda
Nunca nada prematuro
Apenas vã espectativa
Apenas eu e você.

152.
Eu tenho muita vaidade
Em ter a mulher que eu tenho
Desfilar sempre com ela
Traçar no céu seu desenho

Traço em mim as suas formas


Vejo em mim devir igual
E muito fora das normas
Gostava de ser normal

Casar no altar da igreja


Ser um cristão procedente
Ser tudo o que o ser almeja
Foder permanentemente (foder feliz e contente)

871
153.
Que poesia escreveríamos
Se não pensássemos em nada?
Bom é não pensar em nada
Mas eu
Que tenho passado a vida a dizer que é bom não pensar em nada
Que poesia escreveria?

Bom mesmo é pensar em nada


Pensar sim mas ser em nada
E do que houver a dizer
O melhor é que se diga
Não pensar no que fazer
Melhor mesmo é não fazer
Porque fazer dá trabalho
Depois de se ser está feito
O melhor é não fazer
Faça-se luz no prazer
Deixar correr o marfim
E que o manto do não ser
Cubra o que resta.

Poesia é quando gente simples e rude


Arranja um nome bonito
Para uma aldeia ou para um barco.

154.
Quando me falta a coragem
Para olhar o meu destino
Fico fitando a paisagem
Onde a luz canta seu hino.

Dados lançados então


Sombras e brilhos assim
Justapostos junto a mim
Tão perto do coração
Cartas na mesa e na mão
Precisa muita rodagem
Concreta quilometragem
Muita milha muita estrada
Par’ aguentar a camada
Quando me falta a coragem.

Parece que o mundo acaba


Parece que tudo gira
Que sem nervosismo ou ira
Sem nem da figueira a baba
De quem do licor se gaba
Antes de saber-lhe o tino
Me esgueiro assaz aquilino

872
Para lugar indiscreto
Onde o olhar é todo recto
Para olhar o meu destino.

Se toda a gente soubesse


Andar direita na vida
Na hora da despedida
Ou quando a hora soasse
Quem por atitude houvesse
Estrafegar uma contagem
Talvez perdesse a viagem
Com todas essas demandas
Como eu quando em bolandas
Fico fitando a paisagem.

Foco e desfoco os mil tons


Nos meus olhos nesse instante
E o meu olhar penetrante
Os meus sentimentos bons
Do meu coração os dons
O meu recorte mais fino
Ressoa em mim como um sino
E aquele ritmo direito
É que é o espaço perfeito
Onde a luz canta seu hino.

155.
TRÊS

Caminhos caminhados caminhantes


Alforriados trilhos insondados
Vadios e aluados e estudantes.

Gente comum em andas eldorados


Mitos florescentes andando em círculos
Tudo isso e mais nós vimos deslumbrados.

São centuriões da sombra ridículos


Espantalhos empalhados sorridentes
Que ficam rindo nas bermas dos séculos.

156.
Amo-te quando estás longe
Amo-te mais se estás perto
Às vezes amo-te muito
Quando de olhar-te me sumo
Vejo-te a meia distância
Percebo-te a silhueta
Olho-te a beleza pura
Fico-me ali a pensar

873
Que és muito mais linda ainda
Do que eu pudesse cantar-te
E decanta-se uma dor
De não te poder pegar
Amo-te então quase a chorar
De me despir do pavor
Que é ter-te em mim imbuída
Sem te poder alcançar
Para mim estás sempre nua
Revestida de vapor
Eu fervo p’ra decantar-te
E em mim uma coisa enorme
Vai-me explodindo o ser
Na boca quer-se dizer
Teu beijo o meu acarinha
Evaporo-me de amor
E quando quero esvair-me
E quase rebento em pranto
Do meu coração ser teu
E tu minha
Mulher maior do que céu
Amo-te tanto…

157.
Eu que sou o Joaquino
O macho da Joaquina
Sei me comportamentar.

Pode haver mulheres no mundo


Podem estar todas a dar
Que eu quero é sorrir profundo.

Ser sempre novo e estudante


Regressar a casa andante
…e radiante
Ficar a joaquinar.

158.
Já disse há um tempo atrás
Que ainda sinto prazer
Em ler os versos do Fernando Pessoa
E até em reescrevê-los com palavras minhas
Outro tanto eu poderia dizer
Que ainda sinto prazer
Em tocar as músicas do Bach
E uma do Charlie Parker que aprendi há muito tempo
Aprendi nada
Continuo tentando aprender
E não desisto
Porque aquilo tudo é muito

874
É mais que muito
Muito atraente
Muito exigente
E em todas as coisas que possamos dizer a tal respeito
Aquilo é muito.

Não quer dizer que eu não me entretenha com as outras


E com outras coisas diferentes
Mas atraem-me as coisas exigentes
E exijo de mim mesmo
A obsessão de completá-las
Sei que é um esforço inútil mas fazê-lo
É o que me faz sentir que ainda vale a pena respirar
E respirar afinal
É uma coisa que eu faço já faz muito mais tempo
E insisto
E densamente persisto
Em respirar.

159.
Observando pessoas alegres e vivas
Penso no túnel escuro
Do fundo do meu espírito
Vejo campeões
Observando pessoas alegres e vivas
Penso no túnel escuro
Do fundo do meu espírito
Vejo campeões

160.
Pelos caminhos tortos andei
Não vi.
Ânsias e passes cegos puxei
Que ardi.

161.
Recordo que se diz lembro
De um mês que se diz dezembro
Em que em lilás me desmembro
Em loendros em meimendro
Em que me obumbro.

162.
Vem cantando o colibri
Chupar o doce da flor.

Não é que eu esteja mentindo


Porque o colibri não canta...

(...)

875
163.
TEATRO

Bª:
Eu no meio destes brinquedos
Como um maio
Nem sei se isto são brinquedos
Se são espantalhos
Aposentados dos milhos
E eu aqui semi-sentado
Estarrecido e enquadrado
Olhando os vivos
Espalhando brilhos furtivos
Os que param e os que vão
Os que nem tocam no chão
Os que ficam deslumbrados
Ilusionados perdidos
Eles mesmos ‘starrecidos
Do momento deserdados
Destituídos da graça
Da vida que neles passa
Como um raio.

Que estou eu fazendo aqui (?)


Abananado
Abasurdido e intrigado
Por esse tom matizado
Que me abranje
Entra no vidro e estilhaça
A luz que cá deste lado
Se espalha atrás da vidraça
E eu fico muito empolgado
Sentindo o calor e a graça
Que me tange.

É um prodígio...

Banco de versos:

Dos mais diversos anelos


Tantos items e totems
Tanta vã parafrenália
Grafenolas gramofones
Cabedais vertigoformes
Castanheiros araucárias
Que as formiguinhas consomem
Rectilíneos paralelos
Entalhados espiralíneos
Mesas redondas e baixas
Com finos contornamentos.

876
164.
A tristeza me consome
Por não ter o meu amor
Minha alma está com fome
De não ter o seu abraço
E do seu doce regaço
Me faltar o aconchego.

165.
AS PEDRAS DA RUA

Pedras baças ou brilhantes,


Bonitas e cintilantes,
Tão bonitas que a beleza
Descai com sua lindeza.
Traz a senhora ao pescoço
Redondinho como um poço
Um mui’ bonito colar,
Colar de pedras do mar.

Oh! Pobres pedras das ruas


São tão minhas como tuas
De toda a gente elas são
Mas são as pedras do chão
Não são criadas nos mares
Nem servem para colares!
São pedras que eu tenho em mente
Pisadas por toda a gente.

Mas há pedras mais felizes


Que brincam com os petizes
E quando estes as atiram
Elas fingem que não viram
E mudam assim o sentido
P’ra não haver ninguém ferido.

São pedras sem importância


Olhadas com arrogância
Criadas p’la natureza
E tratadas com bruteza.
Oh! Pobres pedras das ruas
São tão minhas como tuas
São pedras que eu tenho em mente
Pisadas por toda a gente.

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