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No presente trabalho abordaremos uma leitura sobre a obra do poeta Trajano Margarida,
tendo como intuito relacioná-la com os textos da disciplina de Filosofia Hermenêutica
trabalhados em sala de aula. O personagem escolhido, o poeta e transeunte da Florianópolis dos
anos 20 e 30, Trajano Margarida, mulato pobre e neto de uma ex-escrava, poeta que versava e
cantava sobre a cidade de Florianópolis. Em sua obra e vida, ambos nos mostram indícios para
compreender o cruzamento entre história e literatura na qual se misturavam o poeta e sua obra,
o cidadão e seu contexto social daquela época.
Também versou em sua obra a expressão dos atores sociais locais, compôs sambas que
foram cantados nos carnavais da cidade, criou hinos como o da construção da ponte Hercílio
Luz e o da fundação do Figueirense Futebol Clube.
Trajano foi rejeitado pela academia de letras catarinense, por ser considerado um poeta
coloquial, do povo, tendo seus escritos de forma a não obedecerem à normas cultas até então
vigente naquela época. Fato também denunciado pelo seu tom de sátira expresso nas suas
crônicas urbanas, as quais tinham um tom de tristeza, dos não enxergados, da revolta sobre um
ambiente excludente denunciado no seu fazer poesia. Versando sobre mendigos, benzedeiras,
órfãos, velhos e prostitutas, além de si mesmo, todos misturados ao cotidiano conflituoso que
se desenrolava naquele momento, através de seus poemas ele pôde registrar as visões e
expectativas de um povo pobre e sofrido, os quais tinham suas batalhas fadadas ao insucesso
por antemão, drama que recaia sobre seus personagens e sobre si próprio, vitimas das pressões
sociais daquele tempo.
Mirando a cidade pelo um prisma desiludido, ele confrontava a fantasia progressista das
elites da década de 30, projetando olhares aos esquecidos por estas mesmas, com sensibilidade
apurada para tais compreensões da realidade objetiva dos sujeitos sociais que construíam o
viver e os modos de ser da cidade. Assim dessa forma conhecendo os personagens, suas
condições e trazendo para o foco o que estava fora de visão, mostrando o cotidiano desses atores
sociais. Trajano se orientava na observação das vivências da população e dos transeuntes da
cidade, fermento o qual precisava para fazer ascender do fundo do esquecimento a maior parte
da população da Florianópolis de 1930.
Um tom de inconformismo, aliado a uma criatividade, sua obra reflete as tensões as
quais ocorriam na forma dos diferentes projetos de transformação social dos anos 30 em
Florianópolis. Buscar o sentido destes personagens e seus “nexos”, com a realidade a suas
voltas, era essa a tarefa de seu ato ao poetizar sobre uma cidade envolvida em sombras e
esquecimento. Nessas “descrições” destes atores sociais, Trajano talvez não estava fazendo um
julgamento desses personagens, mas sim estava a revelar uma cidade que não condizia com os
anseios pensados pelas elites locais, uma cidade desajustada que agonizava na ânsia de seus
próprios atores sociais, os quais em sua grande maioria, eram pessoas comuns, gerando uma
espécie de resistência ao que foi oculto nos planos das pessoas mais politicamente influentes da
cidade naquele momento.
Em sua obra intitulada Reminiscências, o poeta narra um pouco do que fora sua infância
abordando problemas como a situação de pobreza material e a perspectiva de incerteza futura,
tendo juntamente com outras crianças a rua, usando-a como fonte de renda através de diversos
trabalhos, pondo como pano de fundo a relação entre o indivíduo, o poeta e a sua cidade que
foi cenário de sua vida e que inspirou sua obra.
Escrevendo sobre o cotidiano dessa cidade ambígua, Trajano reporta a si mesmo
individualmente o ar de desilusão coletivo das massas que iam e viam na contramão dos
projetos das elites locais. Seus poemas expressam perspectivas que misturam o indivíduo
juntamente com sua obra e a visão coletiva de uma massa esquecida pelas autoridades oficiais
e seus discursos que não andavam na mesma direção e sentido.
Todo esse modo de se expressar do poeta, nos faz pensar em conjunto com os conteúdos
da disciplina, a questão do sentido e a relação com a hermenêutica no plano filosófico, no
propósito das expressões, na cultura do legado que Trajano deixou para posteridade em seus
escritos, além de nos fazer pensar um ou mais sentidos possíveis para uma mesma realidade,
uma leitura sobre nós mesmos ao interpretar sua obra, a qual ao mesmo tempo ele próprio se
inseria e se compreendia.
Compreendendo-nos em uma obra que não criamos, mas a qual interpretamos através
de nosso entendimento, um ato de um outro interpretar, acabamos sendo tentados a nos inserir
no fazer sentido do autor no ato de tentar compreender os sentidos de sua obra ao qual a história
veio nos contar, a história de uma cultura, de uma instituição, um conjunto de leis as quais
estamos inseridos ou não, vindo antes de nosso nascimento, assim herdando modos de
compreensão, modos de esquemas já montados anteriormente aos quais somos frutos como
instituição, como grupo étnico, comunidade, sociedade e nação. Nos parece ser um jogo entre
natureza humana e o seu aspecto social, o biológico, o político e o hereditário se entrecruzando
em linhas. Diversas maneiras de se expressar surgem no decorrer da história se for pensarmos
a relação entre natureza humana e o ambiente político, podendo então enxergarmos vários
“nexos” possivelmente contraditórios entre si.
Estamos diante de sentidos que são dados através de coisas feitas por agentes? Não são
dados de formas naturais quando insurgimos no ato de interpretar a vida num dado momento?
O que se diz não está nas escrituras? Talvez ele se dá no nosso modo de enxergar e interpretar
as possíveis realidades as quais são dados os sentidos de nossa existência? Isto é fazer uma
hermenêutica dos sentidos e das expressões, e das formas de agir de um determinado povo, de
como tentar compreender uma dada obra literária de uma época, uma tentativa de compreender
uma comunidade em análise com seus costumes, suas vivências e hábitos, no ato de tentar fazer
submergir a origem de determinados sentidos que se dão na história dos homens. Assim
pensando a cultura através da filosofia hermenêutica, parece que vemos o agente como um
devir, ao qual não tem um fundo significativo pronto, uma ousia no sentido de substância.
“Não há nos versos meus o sufocado da dor. Da dor que lentamente nos crucia. Não há
nem o lamento apaixonado, Nem mesmo a queixa ideal da poesia. Não há esse desejo insaciado
De não possuir o que possuir queria. Jamais um verso meu vibrou magoado Por dores que em
si mesmo não sentia. Amigo, em cada rima do meu verso. Em todo o seu conjunto e na expressão
Que do real lhe dá sentido inverso. Somente, hás de notar e com verdade, Que existe em cada
rima uma ilusão, Santificando em pranto uma saudade. ” (Trajano Margarida, Soneto).
Quando o poeta diz que jamais um verso seu vibrou magoado por dores que em si
mesmo não sentia, vemos claramente a inserção do indivíduo em sua própria obra ao tentar
compreender a realidade que lhe dava sentido totalmente inverso aos seus afetos e suas
prospecções sobre sua própria realidade tal como indivíduo jogando com o poeta em seu ato de
ser e não ser ilusório sobre suas rimas, ora verdades internas, ora meras ilusões. É como se
criasse um jogo de perspectivas entre o mesmo agente interpretativo, de um lado o indivíduo
objetivo e sua própria experiência de mundo, de outro o lado subjetivo como o expressar da
poesia, fazendo os “ventos mudarem os sentidos”.
"Pelo morro do Hospital Mocotó subindo vai Mocotó é duro e forte Mocotó sobe e não
cai”
Nessa passagem breve temos a ideia do que poderia ser a vida do povo da comunidade
do morro do Mocotó, dizendo que apesar das diversidades sofridas por esta camada da
sociedade de Florianópolis o “mocotó é duro e forte” numa apreensão de que as pessoas a qual
compõem dada comunidade resistem firmes e fortes do alto do morro as imposições da cidade
de baixo e seus projetos excludentes em um dado sentido ao ir contra os interesses desses atores
sociais descritos pelo poeta e moradores deste local. O sentido dado pelo poeta nos mostra que
sua expressão é um ato relacional entre dois modos de ver uma mesma realidade, uma base
“oculta” do fenômeno de tais pessoas “inseridas” numa tipologia que habitam aquele local,
entre uma exclusão que agora é vista do alto do morro em contraposição a compreensão que as
camadas políticas veem dessas próprias pessoas em questão, moradoras da comunidade do
Mocotó.
Assim a atividade reflexiva do poeta nos mostra uma dada compreensão presente nos
discursos e nas vozes oficiais daquele tempo, na qual podemos também inferir uma via contrária
a qual Trajano tenta explicitar no ato de sua obra, como cronista de uma realidade na qual uma
não quer enxergar a outra, impondo seus modos de ser através de instituições, preconceitos no
ato de classificar a existência desses personagens da cidade das sombras, numa tipologia
excludente de atores sociais daquele certo momento ao qual a “cidade atravessava”.
Diversos sentidos podem estar embutidos numa mesma expressão linguística. E buscar
seu sentido não é procurar pela essência dessa expressão. Seria muito mais se perguntar “o que
está dito? ”, “o que não está dito? ”. Uma atitude de buscar o sentido de entendimento fora do
objeto também, num jogo relacional e construtivo entre agentes interpretativos diversos. Buscar
o sentido relacional entre a expressão e a compreensão é a tarefa da filosofia hermenêutica.
Seria uma forma de significar uma vivência de uma atividade humana e buscar o que está na
base desta atividade.
O poeta faz uso da filosofia hermenêutica quando procura o sentido relacional entre a
atividade de expressar e compreender a base “oculta” num fenômeno, em um evento, um
personagem que ele vê, numa expressão cultural. Também pode ele estar fazendo parte de uma
compreensão coletiva na qual há um compartilhamento de perspectiva e interpretação afetiva
comuns. Exemplos como a história, a tradição, formação, educação, cultura e moral nos
remetem ao que foi dito acima, no que Nietzsche chamaria de um “horizonte de sentido já
compartilhado”. Então colocamos a questão de qual o sentido de nossa educação? Para
Nietzsche a resposta é nenhum, o que interessa para ele reside no saber qual é a força dominante
que impera em dada situação. A potência é a dinamis que é anterior e fundante de todo o ato,
de todo o ser. Não há nada fora do tempo e do devir que se possa ser expressado e imediatizado.
Ele tem como conceito de vida como uma livre atividade concreta dentro de um contexto dado
e mediatizado.
Ao tentar entender o que o poeta tenta expressar eu acabo por ver que não tenho acesso
ao seu ato praticado no passado, por isso é importante fazer um esforço de tentar compreender
o que o agente quis expressar naquele passado através de seus versos de forma mais cautelosa
ainda. A linguagem não é uma ideia universal platônica nesse raciocínio, ela é mais um trabalho
no sentido de Aristóteles, de um ser agente, um ato no sentido de atividade de uma ação, ela
não é um produto morto e paralisado. Ela é um modo do pensamento se tornar efetivo no
espaço-tempo. Ela trabalha com a noção de transitoriedade do ser sem se apoderar dos fatos,
num dilema de tentar se expressar e compreender da mesma maneira.
O solo da desigualdade era narrado por Trajano. Em seus versos trona-se claro como
seus personagens estão a mercê do acaso, mergulhados num profundo desalento sobre a
realidade, como um ser para morte niilista de heidegger. Cada indivíduo se torna sua própria
encruzilhada;
“... Pelas ruas meu filho a mendigar; da burguesia imunda ouvindo ralhos, sem nunca um
coração amigo achar”. (Amanhã. Trajano Margarida)
Passagens sofridas como esta tentam mostrar as conexões para o desenrolar desses
indivíduos da Florianópolis antiga. Pensemos aqui nesse ponto a ideia do niilismo de Nietzsche,
sobre a história da tradição metafisica do domínio das formas sobre a vida, as formas que
querem subjugar a vida, cristalizando-as em categorias antinaturais.
A luta entre a tradição e o progresso que se esbarram sob um mesmo território, uma luta
de impor um ritmo de vida sobre outro, numa mesma cidade. Penso na modernidade Europeia
produzindo a colonialidade da América Latina. Segundo Nietzsche o sentido é relacional no
jogo de forças da vontade, o conceito ontológico que funda o conceito de interpretação e de
perspectiva é o de necessidade. A necessidade de o progresso avançar sobre a história da
humanidade e alterando diversas modos de ser ao longo da história. O problema que aqui se
coloca é trabalhar a questão de que o ato de compreender é o caráter ontológico original da
própria vida humana e todo compreender acaba sendo um compreender-se.
Nossa perspectiva sobre o mundo desta maneira se torna finita como nossas vidas, nosso
conhecimento como indivíduo se torna finito. Ao interpretar através da minha própria
compreensão, preciso “ver” a necessidade, o ocorrer de um ato em um certo momento para ele
poder se adequar a um esquema lógico no qual compreendo uma certa ação, um modo de ser,
gerando um sentido, sendo comunicável através da linguagem ou da própria ação, ambas como
comunicação das necessidades ontológicas constituintes de um ser, de uma sociedade num todo.
Somos todos lançados ao mundo e já estamos atrasados em relação a ele. A oposição entre uma
linha de pensamento platônico hegeliano nos diz que a história se movimenta para um absoluto.
Ao contrário disso Nietzsche afirma que não podemos saber para onde a história irá se
movimentar sendo seres finitos. Os modos de ser não são imutáveis dentro do historicismo.
Eles estão em constante movimentação no ato de se compreender e se constituir.
Nos submetemos a linguagem para dar sentido a experiência e trazer uma subjetivação
da experiência de sentido, abdicando da posição soberana no ato de dar sentido à experiência.