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Ricardo B. Santos
Terminada a dinâmica, entrou o diretor. O borbúrio que ainda persistia na casa do saber
rapidamente se esvaiu. O diretor, Laércio, 40 anos, caminhou lentamente com passos
firmes até a junção de dois semi-cículos de professores que permaneciam abertos a
menos de uma carteira, que repousava na posição em que o círculo se completava. Ali
ele sentou. A expectativa aumentava, conforme ele remexia aqueles papéis sobre sua
mesa. As pedagogas o olhavam como se confiassem na sua destreza. Ele, por sua vez,
registrava com os olhos a presença dos professores presentes. Frisou a testa e disse:
Não quero cansar o leitor contando tudo o que aconteceu. O fato é que houve
alguns desentendimentos entre o diretor e os professores. Esse era o dia “D”, de
resolver o conflito.
Valkíria olhou para minha mãe como que sem entender o diálogo. Eu fiz a mesma
expressão aguardando que minha mãe tomasse a iniciativa de explicar. Não queria
admitir a minha displicência com relação ao estepe em frente a todos os professores.
Laércio, que estava sentado na mesa próxima abocanhando seu cachorro quente, fingia
não estar prestando a atenção.
– Ontem o pneu do carro furou bem aqui em frente – disse minha mãe com bom
humor. Os professores escutavam com atenção. Eu, discreto, observava as reações,
tentando também achar, naquilo tudo, alguma graça, não fosse o fato de minhas pernas
ainda latejarem pela maratona do dia.
Num dado momento o diretor, que estava até então em silencio, se manifestou:
– Eu passei por um carro piscando com o pneu na lona ontem! – Eram vocês –
exclamou como se tivesse algo para revelar.
Não conseguia imaginar o que teria acontecido com ele. Será que também ele tivera
infortúnio parecido? E será que coincidentemente também estava sem estepe? Não, isso
era muito pouco provável. Organizado e precavido, com uma caminhonete daquele
tamanho, ele não poderia se dar ao luxo destes desvarios. Não descartei a hipótese.
Neste momento tive uma intuição. Para mim estava claro que, como filósofo, ele
poderia estar se referindo a algo muito mais subjetivo. A luz do alerta piscando;
emergência; ele tem um insight de alguma coisa urgente que precisa resolver. Fica
agradecido pelo carro que o fez lembrar, embora não tivesse a mínima idéia de quem
estava no automóvel. A partir dali, sua noite já programada, muda completamente. Não
aconteceu algo muito diferente comigo: o pneu furado me fez pensar em coisas que
nada tinham a ver com carros e borracha...
– Dá licença um minuto.
O diretor saiu a passos largos da sala em direção a secretaria.
Todos voltaram a conversar. Eu, porém, estava atormentado pela curiosidade de saber o
que se passara no dia anterior. Se estivesse certo, em nosso infortúnio, eu minha mãe
faríamos parte de algo muito maior, que nem sequer desconfiávamos em nossa
medíocre percepção da realidade. Não conseguia pensar noutra coisa. Mas uma dúvida
me fez parar: Será que ele estaria falando sério? Ele gostava de fazer das suas também.
Por várias vezes fizera um suspense que havia terminado com um frustante “viu como é
fácil manipular a mente das pessoas?”. Não poderia ser o caso. Ele de fato estava
mudado. Eu havia reparado no seu comportamento antes dele comentar qualquer coisa.
Por um momento hesitei lembrando-me da ilusão de ótica que tivera no momento da
reunião. Não fora uma ilusão de ótica. Enxerguei escrito no texto da pedagoga
“Borracharia – pneu novos e usados”. Minha mente havia criado aquelas palavras,
devido o dia exaustivo que tivera. Vivi meu drama com pneus e só enxergava pneus. A
nossa vida é quem determina o nosso mundo. Será que o Laércio estava diferente
mesmo, ou eu é que estava? Não seria tudo fruto de uma mente cansada em plena dez
horas da noite de sexta-feira, depois de uma semana inteira de trabalho cheia de
surpresas? Existiria realmente alguma relação objetiva entre o pneu furado e o suposto
incidente que fez o Laércio mudar de atitude, ou sua consciência apenas usou o nosso
carro para conseguir uma audiência com ele, assim como a minha usou o pneu furado
para conseguir uma audiência comigo?
Não havia como responder todas aquelas perguntas. O jeito era esperar.