Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
Resumo
Neste artigo pretende-se refletir sobre os efeitos produzidos pelo
empresariamento urbano no patrimônio cultural edificado, pois se observa
que as contradições urbanas produzidas pela mercantilização das cidades
incorrem em profundas alterações na paisagem e em impactos no
patrimônio que comprometem a significância do bem, identidade e a
memória coletiva. Movimentos de resistência emergem buscando alcançar
mudanças nessa lógica, a partir da reivindicação do direito de participação
dos cidadãos nos processos de renovação urbana.
No âmbito dessa discussão tem-se o caso da construção de duas torres
residenciais, erguidas no Cais de Santa Rita, na cidade do Recife/PE. No
objeto estudado destaca-se a evidência não somente da carência, mas as
conseqüências da ausência de participação social nas políticas de
preservação do patrimônio, que priva os cidadãos do processo de
conhecimento, fruição e valorização desses bens o que impacta na forma de
apropriação dos mesmos, tornando-a desigual e marcada pela hegemonia
tecnocrática.
Abstract
In this article intends to reflect on effects of urban
entrepreneurship on built heritage, because it’s observed that the
urban contradictions produced by commodifications of cities incur deep
transformations to landscape and impacts to heritage impairing its
significance, identity and collective memory. Resistance movements
rise seeking to achieve changes in this logic by claiming for citizens
participation right on urban renovation processes.
In the scope of this discussion comes up the case of the two
residential towers built in Cais de Santa Rita, city of
Recife/PE. In this case is highlighted the evidences not only the lack,
but the consequences of social participation absence in heritage
preservation policies, dismissing citizens of cultural property
knowledge, enjoying and valorization processes what
impacts in its appropriation, becoming it inequitable and marked
by technocratic dominance.
Introdução
No presente artigo, pretende-se refletir sobre os efeitos produzidos pelo
empresariamento urbano, a partir de David Harvey (1996), no patrimônio
cultural, pois se observa que as contradições produzidas pela
mercantilização das cidades incorrem em profundas alterações na paisagem
urbana e em impactos patrimoniais que comprometem a significância do
bem, a identidade e a memória coletiva.
No contexto do empresariamento urbano surge uma ambiguidade entre: a
necessidade em se proteger determinados bens culturais contra a ação
renovadora de espaços urbanos que favorece os empreendimentos
imobiliários em detrimento de valores sociais, culturais e ambientais; e a
exploração desses mesmos bens culturais pelo uso da máquina de
crescimento, estimulada pela competição interurbana, aqui exemplificada
pela promoção de classificação do patrimônio mundial pela Unesco – quem
detém mais e melhor patrimônio para consumo.
A noção de patrimônio, ampliada nos anos 1980, passa a considerar,
conforme Canclini (1994) não apenas monumentos históricos, o desenho
urbanístico e outros bens físicos, mas a experiência vivida que também se
dá através de linguagens, conhecimentos, tradições imateriais, modos de
usar os bens e os espaços físicos. A seleção do que se preserva e a
maneira de fazê-lo devem ser decididas através de um processo
democrático em que os interessados intervenham trazendo para o debate
seus hábitos e opiniões. A participação social tornar-se, portanto, o recurso-
chave para se evitar os efeitos mais freqüentes decorrentes do
empresariamento urbano.
No âmbito dessa discussão emerge o caso da construção das duas torres
residenciais no Cais de Santa Rita no bairro de São José no Recife, Estado
de Pernambuco, sendo um dos bairros mais antigos da cidade. Certamente,
esse episódio deu origem a razões e condições para a intensa mobilização
social que se seguiu em torno do polêmico Projeto Novo Recife, para o Cais
José Estelita, localizado naquele mesmo bairro, ao término da construção
das torres.
Trata-se de um lugar cobiçado pelo mercado imobiliário, em razão de estar
em área central próxima ao bairro nobre de Boa Viagem, junto à borda
d’água e a diversos bens culturais, constituindo-se, portanto, em uma
paisagem relevante para a cidade (Fig. 01).
Fig. 01 – Bairro de São José com os principais bens tombados e área aproximada
do terreno. Fonte: Da autora, com base no Google Maps, 2016.
1
Convenção sobre a salvaguarda do patrimônio mundial, cultural e natural. Unesco –
17ª sessão, Paris, 1972.
2
Conceito apresentado por Scifoni (2015).
3
Fonte: IBGE, Censo Demográfico, 2010.
4
Empresa comercial que atuava no Brasil.
5
Fonte: anúncios em www.pe.olx.com.br e www.expoimovel.com, dez/2016.
6
De acordo com o MPF em Pernambuco a ACP foi impetrada em 2005
contra a construtora Moura Dubeux responsável pelo empreendimento e o
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan pelo
entendimento de que as torres, de altura gigantesca, por localizarem-se na
vizinhança de diversos bens tombados federais interfeririam negativamente
na visibilidade e ambiência desses bens inseridos em três bairros da região
do centro – São José, Santo Antônio e Recife. As obras foram finalizadas
em 2009 sem que o processo judicial fosse totalmente concluído. O MPF
obteve ganho de causa, após decisão unânime do Superior Tribunal de
Justiça. Contudo, as obras tiveram continuidade e as torres foram entregues
aos seus compradores e estão habitadas até hoje.
As torres começaram a ser erguidas sem a prévia autorização do Iphan-PE.
A querela que se deu foi em razão de diferentes interpretações da poligonal
de entorno dos bens tombados por esse Instituto. Através de perícia
topográfica, o MPF comprovou no âmbito do processo judicial que as obras
se encontravam, em sua maior parte, dentro do perímetro de entorno dos
bens tombados pelo Iphan, ao contrário do indicado por este e também pela
Prefeitura do Recife, portanto, para o órgão de preservação do patrimônio o
empreendimento estaria fora da área de entorno com fins de proteção.
6
Disponível em: http://www.prpe.mpf.mp.br/internet/index.php/internet/Casos/Duas-
Torres-Cais-de-Santa-Rita. ACP n.º2005.83.00.004462-1.
inclusão dos três bairros, considerando “que um dos condicionantes para o
tombamento é a preservação das visadas dos sítios históricos tombados”.
Corroboram também professores especialistas da Universidade Federal de
Pernambuco cujos testemunhos foram considerados na Ação. Por fim, o
MPF solicitou ao Juízo o encaminhamento de cópia do laudo da perícia
topográfica ao Iphan-PE para a adoção de providências para revisão do
7
traçado da poligonal de proteção do entorno dos bens tombados na região .
7
Idem.
8
Consórcio Novo Recife. Disponível em: http://www.novorecife.com.br/o-projeto.
Acessado em dez/2016.
9
Idem.
manutenção. Desde então o Iphan avalia dentro de todo o espólio quais os
10
bens são detentores de valor histórico, artístico e cultural .
A partir daí, a mobilização social ganhou uma outra dimensão. Formou-se o
Movimento Ocupe Estelita que ocupou fisicamente o terreno junto aos
armazéns por aproximadamente 27 dias, conquistando cada vez mais
pessoas que levaram barracas de dormir e doações, expandindo-se pelas
redes sociais e demais mídias, e assim ultrapassaram as fronteiras da
cidade do Recife, ganhando não somente repercussão nacional, mas a
adesão de outros movimentos sociais e pessoas sensibilizadas com a
causa.
Após as ocupações, audiências públicas, liminares, reuniões a porta
fechada realizadas pela prefeitura, e o recebimento de 297 propostas
encaminhadas pela sociedade civil, a Prefeitura do Recife apresentou, em
setembro de 2014, um redesenho do projeto com a permanência dos 12
edifícios, porém com as alturas reduzidas em 42 metros, além de outras
mudanças.
Em março de 2015, conforme reportagem do jornal Diário de Pernambuco,
integrantes do Movimento Ocupe Estelita realizaram uma caminhada rumo à
sede do Iphan-PE para a entrega de documento solicitando o tombamento
do pátio ferroviário do Cais José Estelita, tratando-se da segunda linha
férrea mais antiga do país, com cerca de 11 mil assinaturas da sociedade
civil e aval de mais de 100 instituições e movimentos sociais, entre elas o
11
MPF . Dois meses depois, representantes do Movimento e da Universidade
Federal de Pernambuco reuniram-se com a Presidência do Iphan e o
Ministro da Cultura para discutir a situação do Cais Estelita e entregar nova
solicitação do tombamento no intuito de preservar a paisagem do centro da
12
cidade .
10
Disponível em: http://portal.iphan.gov.br. Acessado em dez/2016.
11
Disponível em: http://www.diariodepernambuco.com.br. Publicado em 26/03/2015.
12
Disponível em: http://defender.org.br/noticias/nacional/cais-estelita-e-tema-de-
encontro-do-minc-com-ativistas-sociais-de-recife-pe/. Acessado em dez/ 2016.
13
Disponível em: http://www.prpe.mpf.mp.br/internet/Ascom/Noticias/2015/MPF-.
Acessado em dez/ 2016.
Em decisão judicial de novembro de 2015, foi determinada a anulação do
leilão do terreno do Cais José Estelita pela Justiça Federal em Pernambuco.
Atualmente as obras permanecem suspensas e embargadas pelo Iphan-PE.
Conclusões
Lançamos aqui alguns aspectos fundamentais sobre a construção das duas
torres. Trata-se de empreendimento de altíssimo padrão implantado em sítio
histórico, que abriga uma população de baixa renda. A intenção de
transformação e elitização do bairro definida pelo empresariamento urbano,
conforme apresentamos é visível. A paisagem foi modificada para uso e
benefício de poucas pessoas que dispunham de capital financeiro suficiente
para adquirem os imóveis, e para satisfazer a máquina de crescimento da
cidade e acumular riqueza. Intervenção acupuntural para requalificar uma
área abandonada e degradada cujo efeito foi a ampliação da desigualdade
social utilizando os atributos ambientais que são bens coletivos, além do
impacto negativo na paisagem.
O Iphan-PE, ao declarar que o empreendimento estava fora da delimitação
estipulada, ou seja, fora de sua jurisdição, se eximiu da responsabilidade
dos efeitos dos impactos dos edifícios na paisagem e sobre os bens
tombados, no cumprimento de uma rotina burocrática, sendo que durante o
curso da ACP, foi considerada a existência de interferência negativa.
Depreende-se que a questão da delimitação exata da poligonal é menor
dado ao vulto da intervenção e a sua condição de implantação junto à borda
d’água e próxima a diversos bens tombados, não importando sua exata
localização, pois os impactos na paisagem, na visibilidade e na ambiência
desses bens serão os mesmos, cuja análise é de responsabilidade do órgão
de preservação do patrimônio.
Não houve participação social para o debate da intervenção, considerando
não somente o impacto na paisagem, mas a introdução de uma expectativa
na área pelo mercado imobiliário no sentido de valorizar o uso do solo,
atraindo pessoas de altíssima renda em desfavorecimento da população de
baixa-renda residente no local.
Evidenciou-se que a política de preservação do patrimônio encerra-se em si
mesma, não prevendo em seus instrumentos a realização de debates
públicos para análise de projetos, sobretudo aqueles de grande porte e
impacto e tão pouco insere a participação social nas questões fundantes da
constituição do patrimônio na cidade.
Evidenciou-se a prevalência do domínio técnico pelos intelectuais do
patrimônio que discutem sua visão e entendimento de cidade próprios,
quando um dos maiores impactos apontados é o prejuízo que tais edifícios
causariam na ambição de pleitear um registro de patrimônio da humanidade
pela Unesco. Voltamos assim as questões aqui apresentadas: o que se
deseja da cidade? Para quem é a cidade? Qual a condição do patrimônio a
ser preservado?
Por outro lado, a construção das torres ensinou uma importante lição, o que
levou a emergência de uma intensa mobilização social na luta pela
modificação do Projeto Novo Recife, para o Cais José Estelita a fim de que
não ocorresse a continuidade dos impactos já anteriormente deflagrados.
Ambos os casos demonstraram a relação do desequilíbrio de forças que há
na cidade. O Movimento Ocupe Estelita já ciente das disputas político-
econômicas que se davam no local, reivindicou o direito de participação dos
cidadãos recifenses nos processos de renovação urbana e também na
preservação do patrimônio, acabando por expor o jogo marcado entre o
poder público e a iniciativa privada, que se sobrepunha ao interesse coletivo
da cidade.
Ficou evidente não somente a carência, mas as consequências da ausência
de participação social nas políticas de preservação patrimônio, que priva os
cidadãos do processo de conhecimento, fruição e valorização desses bens
o que impacta na forma de apropriação dos mesmos, tornando-a desigual e
marcada pela hegemonia tecnocrática.
Bibliografia
ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Uma estratégia fatal. A cultura nas novas
gestões urbanas. In: A cidade do pensamento único. Desmanchando
consensos. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
BRASIL 247. Manifestantes deixam área do Cais José Estelita.
Reportagem de 11/07/2014. Disponível em: <http://www.brasil247.com/pt/
247/pernambuco247/146383/Manifestantes-deixam-%C3%A1rea-do-Cais-
Jos%C3%A9-Estelita.htm> Acessado em dezembro de 2016.
CAMPELLO, Antônio Carlos de V. C. B. Razões Finais. Duas Torres. ACP
2005.83.004462-1-0. Ministério Público Federal, Procuradoria de
Pernambuco, 2007. Disponível em: <http://www.prpe.mpf.mp.br/ internet/
index.php/internet/Casos/Duas-Torres-Cais-de-Santa-Rita>. Acessado em
dezembro de 2016.
CAMPELLO, Antônio Carlos de V. C. B; MENGE, Mabel Seixas. Réplica
n.º13/2005. ACP 2005.83.004462-1-0. Ministério Público Federal,
Procuradoria de Pernambuco, 2005. Disponível em: <http:// www.
prpe.mpf.mp.br/ internet/ index.php/ internet/Casos/Duas-Torres-Cais-de-
Santa-Rita>Acessado em dezembro de 2016.
CANCLINI, Néstor Garcia. O patrimônio cultural e a construção
imaginária do nacional. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, n.°23, 1994, p. 94-116.
CHOAY, Françoise. As questões do patrimônio. Antologia para um
combate. Edições 70: Lisboa, 2015.
DEFENDER. Cais Estelita é tema de encontro do Minc com ativistas
sociais de Recife (PE). Reportagem de 25/05/2015. Fonte original da
notícia: Ministério da Cultura. Disponível em: <http://defender.org.br/noticias
/nacional/cais-estelita-e-tema-de-encontro-do-minc-com-ativistas-sociais-de-
recife-pe/>. Acessado em dezembro de 2016.
DIÁRIO DE PERNAMBUCO. Justiça Federal mantém anulação do leilão
do Pátio Ferroviário no Cais José Estelita. Reportagem de 16/06/2016.
Disponível em: <http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/vida-
urbana/2016/06/16/interna_vidaurbana,650809/justica-federal-mantem-
anulacao-do-leilao-do-patio-ferroviario-no-cais.shtml>. Acessado em
dezembro de 2016.
HARVEY, David. Do gerenciamento ao empresariamento: a
transformação da administração urbana no capitalismo tardio. In:
Espaço & Debates n.°39, 1996.
KALB, Christiane Heloisa. Em busca da originalidade do patrimônio
cultural na cidade-espetáculo: o caso da Casa Boehm em Joinville/SC.
In: Anais do XXVIII Simpósio Nacional de História, Florianópolis/SC, 2015.
MARTINS, Luciana M. Ação Civil Pública 04/2005, inicial. ACP
2005.83.004462-1-0. Ministério Público Federal, Procuradoria de
Pernambuco, 2005. Disponível em: <http://www.prpe.mpf.mp.br/ internet/
index.php/internet/Casos/Duas-Torres-Cais-de-Santa-Rita>. Acessado em
dezembro de 2016.
SÁVIO, Domingo. Ocupe Estelita entrega petição pedindo tombamento
do Pátio Ferroviário do Cais José Estelita ao Iphan. In: Jornal Diário de
Pernambuco, em 26/03/2015. Disponível em: <http://www.
diariodepernambuco.com.br/app/noticia/vida-urbana/2015/03/26 /interna_
vidaurbana,568271/ocupe-estelita-entrega-peticao-pedindo tombamento-do-
patio-ferroviario-do-cais-jose-estelita-ao-iphan.shtml>. Acessado em
dezembro de 2016.
SCIFONI, Simone (2015). Cultura e problemática urbana. In: CARLOS,
Ana Fani Alessandri (org.). Crise Urbana. São Paulo: Contexto.
VAREJÃO, Luana et al. A disputa entre o Novo Recife e o Recife que
queremos: a trajetória do conflito pelo Cais Estelita. In: OLIVEIRA,
Fabrício (org. et al). Planejamento e conflitos urbanos. Experiência de luta.
Rio de Janeiro: Letra Capital, 2016.