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IELIUNICAMP
CAMPINAS
2004
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA
IEL - UN1CAMP
Moreschi, Marcelo Seravali.
M816i A inclusão de "barroco" no Brasil : o caso dos catálogos I Marcelo
Seravali Moreschi.- Campinas, SP: [s.n.], 2004.
ii
MARCELO SERAV ALI MORESCHI
Orientador:
Prof. Dr. Antonio Alcir Bemardez Pécora
Banca Examinadora:
João Adolfo Hansen (FFLCH/USP)
Lygia Arcuri Eluf (IA!Unicamp)
iii
Resumo
O propósito desta dissertação é o de estudar o emprego de uma determinada palavra em um
dado conjunto de textos. A palavra é "barroco", e o conjunto de textos é constituído pelos
catálogos das exposições de arte organizadas durante as comemorações dos 500 anos do
Brasil. Propõe-se a discussão de como se produz nacionalidade por meio do termo
"barroco" e de como se configura um objeto museológico num gênero específico de escrita:
o catálogo de exposição.
Abstract
This dissertation exammes how the specific word "baroque" is used throughout the
catalogues that accompanied the artwork exhibitions organized during the celebrations of
the Five-Hundredth Anniversary ofthe "discovery" ofBrazil. We attempt to show not only
how a specific writing genre, the exhibition catalogue, configures a museological object,
but also how certain uses of the term "baroque" can produce a nationality defmition
as well.
v
Para Caro!
vii
Agradeço à Fapesp, à CAPES, a Solange Lepreri, in memoriam, e a todos aqueles que
bravamente me toleraram durante a escrita deste trabalho.
!X
Both museums and mysteries (mystery noveis]
teach us how to solve things; how to think; and
how to put two and two together.
Donald Preziosi
xi
Sumário
Introdução .••..•••••....•...........••••••.•........•••...•..........•.•...•.......•...••••........••••.••••••.......•..••.•••••.•••••....•.•.•...•....••...... I
Parte I
CONDIÇÕES DE USO
xiii
Parte li
Usos ESPECÍFicos
3 Os prefácios: a exibição de "barroco" como evento cívico .............................................................. 81
3.1 Assinatura Ilustre .......................................................................................................................... 82
3.2 Argumentos de circunstância ........................................................................................................ 85
3.2.1 referências ao local e à data ..................................................................................................................... 85
3.2.2 Políticas diplomáticas .............................................................................................................................. 89
3.2.3 políticas institucionais de exibição ........................................................................................................... 90
3.2.4 políticas de difusão da cultura brasileira ................................................................................................... 91
3.3 Argumentos por 'barroco' ............................................................................................................ 92
3.4 Eventos cívicos de especificação global do nacional... ................................................................. 97
4 As introduções: a instrumentalização da leitura de "barroco" .................................................... 101
4 .I A instrumentalização da leitura das exposições .......................................................................... 10 I
4.1.1 Definições de "barroco" .......................................................................................................................... 102
4.1.2 Narrativas contextuais ............................................................................................................................. ! 05
4.1.3 Significação brasileira de "barroco" ........................................................................................................ ! 07
4.1.4 "Aleijadinho" como categoria de síntese, organização e hierarquização ................................................. 111
4.2 A particularização das exposições .............................................................................................. 112
4.2 .1 Universo Mágico do Barroco Brasileiro: a dupla especificação de um âmbito .................................. 114
4.2.2 Brasil Ba"oco, entre céu e terra: o transbordamento de qualquer âmbito específico ........................ 116
4.2.3 Arte Barroca, Mostra do Redescobrimento: a (re)descoberta de "barroco" ........................................ 118
4.2.4 Brazil: Body & Sou!: "barroco" como um dos fundamentos da perfonnática e antropofágica cultura
visual brasileira .................................................................................................................................................... 119
5 Os estudos: o museu do museu de "barroco" ••.•••.••••.••...•.•.•••••..••••••••••.•..•••••••.•..•..•.•••••.•••••••••••.•.••• 123
5.1 Classificação dos estudos quando à focalização dos textos ........................................................ 125
5 .!.I Estudos introdutórios ............................................................................................................................... 125
5 .1.2 Estudos Panorámicos ............................................................................................................................... 126
5.1.3 Estudos focalizados ................................................................................................................................. 127
5.2 Classificação dos estudos quanto à especialização discursiva .................................................... 129
5.3 Classificação dos textos quanto ao uso de "barroco" ................................................................. 130
5.4 Repertórios .................................................................................................................................. 132
5.4.1 A significação brasileira de "barroco" ..................................................................................................... 132
5.4.2 Narrativas acessórias e subsidiárias ......................................................................................................... l33
5.4.3 Estudos técnicos de "barroco" ................................................................................................................. 134
5.4.4 Fundamentação técnica da significação brasileira de "barroco" .............................................................. 135
5.4.5 Repertórios particulares ........................................................................................................................... l36
xiv
Introdução
1
cf. Gennain Bazin, "Barroco - Um Estado de Consciência" in Barroco - Teoria e Análise, org.
Afonso Á vila, São Paulo, Perspectiva, 1997.
2
cf. Severo Sarduy , "Por urna Ética do Desperdício" in Escrito sobre um Corpo, São Paulo,
Perspectiva, 1979
3
cf. Bolívar Echeverría, "La Compafiia de Jesús y la primeira modernidade de América Latina" in
Barrocos y Modernos - Nuevos Caminos en la investigación del Barroco iberoamericano, org.
Petra Schurnrn, Franfurt am Main, Vervuert Verlag; Madrid, Iberoamericana, 1998
4
cf. Idem, ibidem
5
cf. Florian Nelle, "Irnágenes maravillosas: el barroco y el cine mudo" in Barrocos y Modernos-
Nuevos Caminos en la investigación del Barroco iberoamericano, op. cit.
6
cf. Umberto Eco citado por Afonso Á vila em seu O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco I,
São Paulo, Perspectiva, 1994, p. 26
7
cf. Afonso Á vila, op. cit.
8
cf. Lidia Santos, "Kitsch y cultura de massas en la poética de la narrativa neobarroca" in Barrocos
y Modernos - Nuevos Caminos en la investigación del Barroco iberoamericano, op. cit.
9
cf. Lúcia Helena Costingan, "Barroco e pós-modernismo: A preocupação pelo meio ambiente nos
escritos de letrados do Brasil colonial" in Barrocos y Modernos- Nuevos Caminos en la
investigación dei Barroco iberoamericano, op. cit.
10
cf. Florian Nelle, op. cit.
11
cf. Serge Grunzinski, "Do Barroco ao Neobarroco: Fontes Coloniais dos Tempos Pós-modernos"
in Literatura e História na América Latina, orgs. Ligia Chiappini e Flávio Wolf de Aguiar, São
Paulo, Edusp, 1993
12
Karl Erik Schollharnrner os identifica no romance Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar (cf. "O
Cenário do Ambíguo: Traços Barrocos da Prosa Moderna" in Sociedade e Estado, vol. VIII);
Haroldo de Campos, por sua vez, os vislumbra em Lícofron, Li Shang-Yin, Góngora, Mallarmé,
Sousândrade, Lezarna Lima e Décio Pignatari (c f. "Uma Arquitextura do Barroco" in A Operação
do texto, São Paulo, Perspectiva, 1976); Severo Sarduy em Guimarães Rosa, Alejo Carpentier,
Pablo Neruda, Cabrera Infante, García Marques e em Haroldo de Campos (cf. "Por urna ética do
desperdício", op. cit.); e Augusto Tarnayo Vargas em Euclides da Cunha (cf. "Interpretações da
América Latina" in América Latina em sua Literatura, org. César Fernandes Moreno, São Paulo,
Perspectiva, 1979)
sobrepõem e se contradizem: práticas inscritas sob "barroco" podem ora ser um discurso
metropolitano carregado de ideologia colonialista, ora significar um conceito unificador da
identidade latino-americana 14• Além desses usos diversos, artistas contemporâneos se
intitulam "(neo)barrocos", e um passado "barroco", por vezes, é proposto como análogo
direto do presente 15 .
Ao mesmo tempo em que se vê um grande interesse em torno do termo e em que se
observa crescentes especulações teóricas, criticas e historiográficas decorrentes dele, nota-
se também que, muitas vezes, "barroco" é recusado como etiqueta apropriada a objetos do
século XVII ou XVIIl, como se a discussão em torno de "barroco" já não mais dissesse
respeito a apropriações ou a investigações criticas relativas aos objetos históricos ditos
"barrocos". Petra Schumm, por exemplo, se pergunta "si el concepto 'barroco' en e! sentido
de Ias teorias del siglo XX es realmente imprescindible para Ia investigación de Ia literatura
y cultura dei siglo XVII" 16 . João Adolfo Hansen é mais enfático: sobre práticas
seiscentistas, diz ele, "trata-se sempre de proporção, de decoro, de emulação, de agudeza,
de engenho - nunca de 'barroco', que não há. Só existe 'O Barroco', hoje, como uma
essência, uma hipóstase, uma síntese imaginária, um anacronismo- nada" 17•
Registra-se, portanto, de um lado, um crescente e contínuo interesse por "barroco"
e, de outro, uma desconfiança relativa à pertinência da aplicação histórica de tal palavra.
13
cf. Charles A. Perrone, "De Gregório de Matos a Caetano Velloso e 'Outras Palavras':
barroquismo na música popular brasileira contemporânea" in Barroco - Teoria e Análise, op. cit.
14
Sobre a primeira postulação, cf. John Berveley, "Nuevas vacilaciones sobre e! barroco" in
Revista de Critica Literaria Latinoamericana, num. 28. Sobre a segunda, a seguinte frase pode ser
tomada como exemplo: "América, continente de simbiosis, de mutaciones, de vibraciones, de
mestizajes, fue barroca desde siempre", Alejo Carpentier citado por Walter Mozer, "Du baroque
européen et colonial au baroque américain et post-colonial" in Barrocos y Modernos- Nuevos
Caminos en la investigación de/ Barroco iberoamericano, op. cit., p. 80
15
Afonso Á vila, por exemplo, afirma que" ... a atração exercida pelo barroco sobre a inteligência e a
sensibilidade modernas decorre, sem dúvida, das similitudes e afinidades que aproximam duas
épocas cronologicamente distanciadas entre si, dois instantes porém da civilização ocidental que
colocam em crise os mesmos valores, dois homens que experimentam com isso uma análoga
perplexidade existencial, duas artes que repercutem em sua linguagem uma bem parecida pressão de
historicidade e uma idêntica instabilidade de formas." (O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco
I, op. cit. p. 13). Ornar Ca!abrese, na mesma direção: "Mas existirá, e qual será ele, o gosto
predominante deste nosso tempo, aparentemente tão confuso, fragmentado, indecifrável? Creio tê-lo
encontrado, e também proponho para ele um nome, o do neobarroco." A Idade Neobarroca, Lisboa,
Ed. 70, 1987,p. 10
16
Petra Schurnm, "Nuevas Tendencias de la investigación sobre el barroco brasilefio" in Revista de
Critica Literaria Latinoamericana, num. 40, p. 55.
17
João Adolfo Hansen, "Pós-moderno e Barroco", Cadernos de Mestrado- Literatura, num 8.
2
No entanto, esse quadro de indefinição acerca da validade de "barroco", ao invés de
inviabilizar possíveis análises a respeito de como se usa tal palavra, pode contribuir para a
tipificação e para o mapeamento dos usos diversos de "barroco".
Certamente, como demonstram novos modelos de interpretação histórica das letras
seiscentistas 18 , o uso de "barroco" produz anacronismos 19 . No entanto, se não mais
avaliarmos a precisão histórica de "barroco", urna vez que provavelmente não haja mesmo
tal precisão quando a palavra é empregada, podemos tentar perceber como o uso do termo
visa constituir, segundo fins e interesses diversos, um tempo passado, seja ou não amparado
em provas históricas. Na medida em que a constituição de um passado "barroco" é
focalizada em detrimento da avaliação da precisão histórica desse passado, os interesses
heurísticos, pragmáticos, programáticos ou mesmo políticos que animam os diversos usos
de "barroco" podem ser explicitados analogamente à demonstração de como se constitui
alteridade histórica por meio de "barroco". Propomos operar, portanto, um duplo
deslocamento de "barroco", desnaturalizando os usos do termo tanto em nivel histórico
quanto em nivel heurístico. Acredita-se aqui que algo a respeito dos modos de apropriação
do passado e de proposição de identidades histórico-geográfico-culturais diversas em
contextos específicos pode ser sugerido pela explicitação do funcionamento dos usos de
"barroco".
18
Cf. , por exemplo, a respeito dos sermões do Padre Vieira, Alcir Pécora, Teatro do Sacramento,
SP, Edusp, Campinas, Ed. da Unicamp, 1994; a respeito da sátira atribuída a Gregório de Matos,
João Adolfo Hansen, A Sátira e o Engenho, SP, Cia das Letras, 1989.
19
A respeito, especificamente, do anacronismo produzido pelos diversos usos do termo "barroco",
cf. os artigos de João Adolfo Hansen, "Pós-moderno e Barroco", op cit., e "Barroco, neobarroco e
outras ruínas" in Teresa, Revista de Literatura, num. 2, SP, ed. 34/Edusp, 2001.
3
2000 - seja identificando nesse ''barroco" um marco importante dentro de um panorama
geral da arte produzida no Brasil - como é o caso da Mostra do Redescobrimento, que
ocupou três prédios do Parque do Ibirapuera em 2000, e de Brazil: Body & Sou!, exposição
sediada no Museu Guggenheim de Nova Iorque entre outubro de 2001 e janeiro de 2002.
Acompanhando essas quatro exposições, quatro grandes catálogos foram publicados. Além
da reprodução fotográfica das obras expostas, essas publicações trazem um grande número
de textos: prefácios, introduções e estudos a respeito das obras, dos periodos, dos artistas e
das regiões de produção. São esses textos que constituem o corpus de análise do presente
trabalho.
A escolha da análise do uso de tal palavra nesse conjunto de textos implicou
determinadas opções metodológicas que explicitaremos agora. Apesar de uma análise
cenográfica ou visual das exposições referidas ser possivelmente interessante, este estudo
ocupa-se apenas da análise dos textos dos catálogos da exposições referidas. Por isso, dois
movimentos de análise foram produzidos.
Na primeira parte da dissertação, procuramos delimitar condições gerais do uso de
tal palavra nesse dado conjunto de textos. Em primeiro lugar, levando em conta que tais
catálogos fazem parte de eventos de celebração nacional, buscamos, primeiramente, refletir
a respeito dos procedimentos argumentativos empregados na proposição do valor nacional
atribuído aos objetos rubricados por "barroco". O que se tentou delimitar nesse primeiro
momento, que corresponde ao primeiro capítulo do trabalho, é o que chamamos de
"significação brasileira de 'barroco"', isto é, a aplicação retroativa do significado nacional a
objetos coloniais tomados como ''barrocos".
Ainda nesse primeiro movimento analítico, uma segunda condição de uso foi levada
em consideração. Assumimos aqui que os textos que fazem parte dos catálogos de
exposição não apenas registram, de modo neutro, usos de ''barroco". Ao contrário, tais usos
diriam respeito ao propósito dessas publicações, isto é, a complementação discursiva das
exposições. O termo "barroco" é empregado, portanto, em conjuntos de textos que
cumprem alguma função na especificação de objetos museológicos propostos como
"barrocos". As exigências de verossimilhança dessa especificação, bem como o modo de
organização e funcionamento dos catálogos, o que certamente condiciona o uso de
"barroco", são assuntos do segundo capítulo do presente trabalho.
4
Na segunda parte da dissertação, esboçamos um segundo movimento analítico. Uma
vez delimitadas condições gerais do emprego do termo em questão, procuramos analisar
usos específicos de "barroco" em cada um dos três tipos de texto -prefácios, introduções e
estudos - encontrados nos catálogos. Essa análise, além de focalizar o modo pelo qual tal
palavra é empregada, investiga também o propósito de cada um desses três tipos de texto.
5
Parte I
CONDIÇÕES DE Uso
7
1. A significação brasileira de "barroco"
9
huge claws, bulging eyes, feelers, raised bumps of shell, knobbly joints, hairs that
extended out around them. It was placed at the comer of a case so that one could walk
around from the front to the size and take it in from another view: a smalish main
body delicatelly supported on improbably long legs, like the tines of some huge fork
or rake.20
A partir de considerações sobre a maneira pela qual aquele caranguejo foi exposto,
Alpers sistematiza dinâmicas próprias do museu relativamente às formas pelas quais
organiza ou realiza visualmente os objetos que expõe. Basicamente, argumenta que o efeito
geral do museu é estabelecer, através da seleção, da organização, do reforço, do isolamento
e de recursos cênicos, uma "maneira de ver":
I could attend to a crab in this way because it was still, exposed to view, dead. Its
habitat and habits of rest, eating, and moving were absent. I had no idea how it had
been caught. I am describing looking at it as an artifact and in that sense like a work of
art. The museum had transformed the crab - had heightened, by isolation, these
aspects, had encouraged one to look at it in this way. The museum had made it an
object ofvisual interest21
20
Svetlana Alpers, "The Museum as a Way ofSeeing", p. 25, in Ivan Karp e Stevn D. Lavine
(orgs.), Exihibiting Cultures: lhe Poetics and Politics ofMuseum Display, Smithsonian Institution
Press, Washington and London, 1991.
21
idem, ibidem.
!O
efeito criado pelo museus, que se crie, argumenta Alpers, "maneiras de ver" de modo mais
"fiel" quanto possível relativamente aos objetos expostos.
No entanto, interessada em distinguir "fidelidades" a respeito da forma de
gerenciamento visual, cênico e conceitual de objetos no espaço museológico, Alpers deixa
de lado questões que, derivadas das categorias que usa, poderiam ser bastante úteis para o
presente trabalho: quais seriam os mecanismos de apropriação, de leitura e de
reconhecimento estético e visual que agiriam na sedimentação de valores nos objetos, o que
ressaltaria ou mesmo criaria seu "interesse visual", ou seja, o que tornaria determinados
objetos "museum-viables"? Como operam as categorias que presidem a apresentação visual
desses objetos e como estabelecem uma "maneira de ver" específica, agregando e
atribuindo sentidos a eles?
Para formular hipóteses possíveis para responder a essas questões, continuaremos
usando o exemplo do caranguejo da memória de Alpers. O efeito visual da exposição do
animal é, em certa medida, criado pela própria forma através da qual o bicho foi exposto:
paralisado e isolado em um recipiente transparente e passível assim de ser visto de forma
panóptica. Na medida, então, que é suprimido o contexto típico do caranguejo, novas
"maneiras de ver" são sugeridas: o animal pode ser visto de todos os ângulos e cada detalhe
de seu corpo pode ser observado. Poderíamos, portanto, aduzir que o "interesse visual"
criado se estabelece quando o animal, exposto em um lugar onde se exercita o olhar, é
apresentado de modo a permitir uma contemplação visual interessada e interessante, típica
do lugar onde foi exposto, o museu.
Entretanto, como bem afirma Alpers, o objeto, a princípio, deve ter características
próprias passíveis do estabelecimento de um "interesse visual", ou seja, deve ser "museum-
viable". Assim, resta uma pergunta: o que há de "interesse visual" em um prosaico
caranguejo? A pergunta poderia ser respondida em termos visuais, referindo o aspecto
monstruoso de um caranguejo bem examinado ou visto de perto, um bicho cheio de patas
segmentadas e duas pinças frontais um pouco ameaçadoras. Porém, a despeito de sua
bizarrice, um caranguejo, por si só, no seu habitat natural, pouco pode fazer para otimizar e
realizar as exigências visuais que um museu pressupõe. No entanto, pode ser transformado
em objeto de "interesse visual" porque, quando visto da forma descrita, seu aspecto bizarro
pode servir de prova para uma tópica comum a museus de história natural, documentários
ll
da TV a cabo, agências de turismo e revistas de fotografia: a complexidade, a estranheza e a
beleza de um "mundo natural".
Essa é uma aplicação de uma das hipóteses de Sharon Macdonald a respeito do
museu, lugar onde se negocia, segundo ela, nexos entre conhecimento leigo e
especializado22 . O caranguejo assim seria "museum-viable" à medida que pode corroborar
tal negociação. Apresentado à maneira científica (classificado por uma taxonomia e isolado
em uma caixa transparente que permite que se veja, como prova visual, as características
típicas que o vinculam a um grupo específico de animais, por exemplo), o bicho comprova,
quase cientificamente, a tese genérica que gerencia sua própria exposição. Assim, a partir
do exemplo do caranguejo de Alpers, poderíamos elaborar a hipótese de que determinados
objetos podem se tornar "museum-viables", podem gerar um "efeito visual", quando são
interessantes na comprovação visual de teses genéricas e assentadas e na referência a
repertórios discursivos consensuais.
Dessa forma, é possível pensar na configuração discursiva do "interesse visual" de
objetos museológícos. Pensando assim, o caranguejo aparece interessante porque, ao
mesmo tempo, refere e resume dois conjuntos discursivos: a sua beleza estranha retoma, de
maneira espetacular, a exuberãncia da natureza enquanto lugar comum; sua caixa
transparente e a possibilidade de visão panóptica, objetiva, remetem às tópicas científicas e
aos discursos acerca dos mecanismo de controle e classificação da natureza.
1.2 A sobreposição consensual do "interesse visual" e dos "modos de ver" propostos para
'1>arroco"
22
Theorizing Museums: representing identity and diversity in a changing world, Sharon
Macdonald e Gordon Fyfe orgs. (Oxford, Cambridge: Blackwell Publishers e The Sociological
Review, 1996), p. 4
23
Salientamos, no entanto, que a exposição Brazil: Body and Sou! não se ocupa exclusivamente de
"barroco". Porém, "barroco" é conceito fundamental para a exposição. Além disso, a seção
"Baroque Brazil'' do catálogo da exposição organiza-se de forma bastante parecida com relação aos
12
anteriormente, devemos supor que o "interesse visual" de tal objeto, "barroco", se alicerça
em repertórios discursivos, provavelmente consensuais, a seu respeito.
As epígrafes que abrem esse capítulo são exemplares na referência a lugares comuns
capazes de discursivamente efetuarem o "interesse visual" de "barroco", como objeto
museológico e como produto de consumo cultural. Durante as comemorações dos 500 anos,
tópicas tais como a "relevância das raizes, a "miscigenação racial", a "apropriação crítica"
e o "hibridismo da cultura brasileira" foram constantemente utilizadas, como sintetizam os
prefácios dos catálogos cujos trechos nos serviram de epígrafe.
Juntamente a essas tópicas genéricas que balizaram a comemoração nacional
referida, as epígrafes normalizam e sedimentam ainda dois conjuntos, um pouco indistintos,
de textos acerca de "barroco". O primeiro, pressuposto pelas epígrafes, é aquele que reúne
tópicas que associam o termo "barroco" a um corpus de objetos ou a um período histórico
ou artístico. O segundo, explicitado e não apenas pressuposto, é aquele que interpreta esse
corpus de objetos ou esse período como significativo no entendimento do que seja "Brasil".
A sedimentação simultânea desses dois conjuntos de textos e as referências às tópicas
genéricas comemorativas permitem definir o "interesse visual" de "barroco", uma vez
delimitado e interpretado: assentado em tópicas compartilhadas, passíveis de serem
proferidas por autoridades, "barroco", ou o conjunto de objetos ou o momento histórico por
ele referidos, ganha interesse porque se poderia, segundo as epígrafes, ver nele "uma das
expressões mais marcantes da nacionalidade", um "primeiro ensaio de assimilação
cultural", uma "primeira expressão orgânica de uma identidade" e, enfim, "as raízes mais
profundas da identidade artístico-nacional do Brasil". Trata-se, portanto, de um elemento
que especifica" Brasil", uma especificação eficaz até mesmo como valor turístico, como
assinala Francisco Weffort.
Para continuar usando as categorias de Alpers, o curioso aqui é que os argumentos
que configuram o "interesse visual" de "barroco" coincidem com aqueles que gerenciam
uma "maneira de ver" proposta para ele. Dizendo de outra forma, o que faz com que
"barroco" seja "museum-viable", ou seja, passível de transformar-se em objeto de
investigação visual interessante em um museu, baliza, ao mesmo tempo, o modo como tal
l3
objeto é apresentado: é a referência a um tipo particular de nacionalidade - o que garante
que "barroco" seja digno de ser exibido - que gerencia a apresentação de tal objeto como
espetáculo de celebração da nacionalidade.
Paralelamente, é possível perceber um outra coincidência. O consenso referido pelas
24
epígrafes como exterior à própria arquitetura conceitual das exposições (a "significação
brasileira de 'barroco"' tida como dada) é observável somente nas exposições e no conjunto
de textos veiculados por seus catálogos. Evidentemente, não se quer dizer aqui que a
"significação brasileira de 'barroco'" seja invenção das exposições e de seus catálogos.
Como vimos insistindo, a configuração de "barroco" enquanto objeto museológico
subsidia-se em repertórios discursivos e em tópicas compartilhadas, dentre eles, sem
dúvida, tal "brasilidade" - um nexo entre textos especializados a respeito de "barroco" e o
valor cultural de tal termo, para usarmos novamente a hipótese de Macdonald. Mesmo a
organização das exposições, que necessitam de apoio financeiro e institucional, devem,
para garantir esse apoio, fundamentar-se em valores admitidos. O que as exposições criam
em profusão não é propriamente o valor nacional de "barroco", de alguma forma, anterior a
24
Nas epígrafes, a suposição de um consenso anterior é evidente e é reforçada ainda pelo
significado dos cargos daqueles que fazem tal suposição. O caso mais explícito é o trecho de
Fernando Henrique Cardoso. Como representante máximo do país, o então presidente do Brasil se
põe no lugar de gerente de urna memória nacional ao valer-se da expressão "nunca é demais
recordar". A expressão estabelece um consenso prévio, que deve ser relembrado, a respeito do
caráter antecipador que teria tido "barroco" com relação à "maioridade do Brasil". Deve-se notar
ainda que tal gerenciamento da memória nacional é executada pelo presidente da república que
também é um intelectual. A carga dupla, representativa ao mesmo tempo do poder estatal e da
universidade, corrobora ainda mais a eficácia da referência a um consenso acerca de "barroco".
Carlos Eduardo Ferreira, então presidente da FIESP, entidade que representa o empresariado
paulista, também supõe um consenso prévio ao propor a explicação apositiva "uma das expressões
mais marcantes da formação da nacionalidade", que esclarece a expressão "arte barroca brasileira".
Luiz Felipe Lampréia, então ministro das relações exteriores, supõe também o significado
consensual de "barroco" à medida que desdobra uma série de afirmações explicativas a respeito do
termo. Seu subordinado no corpo diplomático brasileiro, Rubens Antonio Barbosa, embaixador do
Brasil nos EUA, além de referir a significação supostamente aceita de "barroco", reforça-a quando
explica o termo através de um superlativo ("baroque art represents the deepest roots''). Por fim,
Francisco Weffort, na autoridade de ministro da cultura, faz valer seu lugar de representante cultural
do Brasil ao estabelecer uma comparação entre elementos supostamente típicos do país ("igrejas
traçadas pelo Aleijadinho", "floresta tropical", "samba" e "futebol"). A comparação, que prevê uma
equivalência entre o que é comparado, institui que tais elementos têm a mesma eficácia no
reconhecimento do Brasil. O que é interessante notar aqui é que todos eles, independentemente das
marcas lingüísticas que usam para supor um consenso anterior relativo a "barroco", sendo
autoridades representativas, devem, supõe-se, subsidiar seus discursos em argumentos comuns de
modo a referir o que é compartilhado por seus representados.
!4
elas, mas um consenso acerca desse valor, uma organização - museológica, cênica e
conceitual - que otimiza tal consenso. Assim, esse consenso ao mesmo tempo em que é
referido, tal como fazem as epígrafes, é criado, como fazem a seleção e a cenografia dos
objetos expostos e os numerosos textos veiculados pelos catálogos.
A primeira questão que gostariamos de propor, uma vez constatado esse jogo de
referência e de criação de consenso acerca de "barroco", que constitui seu "interesse visual"
e o "modo de ver" proposto para ele, seria relativa a como "barroco" é disponibilizado para
tal jogo: quais seriam os procedimentos argumentativos que possibilitam o consenso do
valor nacional de "barroco"?
Para responder a essa pergunta não seria o caso de tentar revelar algo em "barroco"
ou em "Brasil" que justifique ou inviabilize a associação entre esses dois termos pelos
trechos que usamos como epígrafes. Trata-se apenas de perguntar quais são as estratégias
de argumentação de que se v alem aqueles textos que executam a associação referida. A
identificação dessas estratégias, no limite, visa perceber quais seriam os procedimentos que
possibilitam a eficiência da associação, capaz de levar autoridades, obras artísticas, dinheiro
e multidões para dentro do museu.
Para responder a pergunta proposta, talvez não fosse interessante, recorrer agora às
exposições e a seus catálogos, posto que, nesses lugares, a "significação brasileira de
'barroco"', como vimos, já é dada a priori como consensuaL Talvez fosse o caso de, ao
invés disso e para desautomatizar o jogo de referência e de produção de consenso
supracitado, oferecermos uma história dos usos do termo "barroco" no Brasil, buscando
textos e momentos em que o valor nacional de "barroco" é recusado ou defendido25 ,
constituindo um alicerce histórico para a proposição da significação específica de "barroco"
de que se valem as exposições e seus catálogos. O que propomos, no entanto, é algo mais
modesto. Com a hipótese de que os procedimentos argumentativos que viabilizam a
associação entre "barroco" e "Brasil" estejam mais salientes e visíveis nos textos que
tratam dessa associação de modo polêmico, defendendo-a mais ostensivamente ao invés de
simplesmente referir um consenso suposto, trataremos da querela acerca da não inclusão de
"barroco" na F armação da Literatura Brasileira, de Antonio Candido. Para tentar
25
Um histórico desse tipo é proposto por Guilherme Simões Gomes Jr, Palavra Peregrina: Barroco
e o Pensamento sobre Artes e Letras no Brasil (SP, Edusp, 1998)
15
identificar procedimentos de proposição retroativa do nacional a serem aplicados nos textos
analisados, vamos contrapor ao texto de Candido duas respostas que ele teve, Conceito de
Literatura Brasileira, de Afrânio Coutinho, e O Seqüestro do Barroco na F armação da
Literatura Brasileira: o caso Gregório de Mattos, de Haroldo de Campos.
O estabelecimento do ponto de partida da discussão do valor uso de "barroco" por
meio da análise desses três textos tem algumas vantagens. A primeira é que, nesses textos,
"barroco", enquanto designação de período ou como valor nacional, está longe de ser
consensual. Como se trata de uma polêmica em que são confrontados concepções de
nacionalidade, de literatura e de história literária, os argumentos em tomo de "barroco"
podem ser interessantes como contraponto ao consenso referido e criado pelos catálogos.
Nunca é demais salientar que a Formação, até hoje, é tomada por muitos como uma espécie
de narrativa oficial do nacionalismo literário e, em certa medida, da subjetividade nacional.
Em tal narrativa, no entanto, "barroco" não participa. O que os polemistas de Candido
tentaram fazer foi propor uma narrativa alternativa em que "barroco" fizesse sentido. Nessa
discussão, portanto, a contundência da defesa de "barroco", quer o que se entenda pelo
termo, é decisiva, ao contrário da simples celebração nacional consensual através de
"barroco" proposta pelas exposições, que já partem do pressuposto de que o termo assinala
aspectos importantes da nacionalidade.
Além disso, há uma outra vantagem, decorrente do estabelecimento polêmico do
valor nacional de "barroco" executada por esses textos. Ainda que o uso de "barroco" pelos
catálogos das exposições não esteja circunscrito ao âmbito da história da literária, é
justamente nesse âmbito, mas não apenas nele, em que se produzem os dois repertórios
discursivos que as epígrafes do início deste capítulo se referem: tanto a definição de
períodos quanto o valor nacional com que tais períodos são preenchidos são decisivos como
exigência de verossimilhança da escrita da história literária. Por fim, ainda há um último
aspecto interessante da análise dessa polêmica como nosso ponto de partida. Os
antagonistas de Candido têm voz nos catálogos: Haroldo de Campos assina um dos estudos
de um dos catálogos, e Affonso Ávila, outro defensor do significado brasileiro de "barroco"
na literatura e nas artes, assina outros e é citado em muitos.
Antes da análise dos três textos referidos, cabe dizer que não se quer estabelecer
aqm uma causalidade entre a polêmica em tomo da aceitação de "barroco" na história
16
literária brasileira e as quatro exposições cujos catálogos analisaremos, tampouco se quer
afirmar que a polêmica em tomo do "seqüestro do "barroco", como designa Haroldo de
Campos, seja o subsídio conceitual das exposições. Apelaremos a essa polêmica com o
único propósito de explicitar mecanismos de proposição do valor nacional de "barroco" que
pode ser úteis para a análise de como o termo é usado pelos textos dos catálogos. Em outras
palavras, a polêmica em tomo da não-inclusão de "barroco" na Formação será tomada
apenas como parâmetro comparativo que empregaremos na análise da "significação
brasileira de 'barroco'" da qual se valem as exposições cujos catálogos analisaremos.
26
Nota à primeira página da introdução da F armação da Literatura Brasileira, i ed., São Paulo,
1964, (v, p 25
27
"Prefácio à i edição", Formação, op. cit., p. 15
17
repreende de forma dura essa tendência de avaliação do volume, referindo-se a ela como
prática sintomática de vícios:
Esse interesse pelo método talvez seja um sintoma de estarmos, no Brasil, preferindo
falar sobre a maneira de fazer crítica, ou traçar panoramas esquemáticos, a fazer
efetivamente crítica, revolvendo a intimidade das obras e as circunstâncias que as
rodeiam28 •
28
idem, ibidem
18
dizer que o que ocupa esse lugar residual é, conseqüentemente, como veremos, destituído
de valor e função. Ou, melhor dizendo, são esvaziadas as possibilidades de atribuição de
valor e função para os objetos que ocupam o lugar residual previsto no modelo
metodológico da Formação. Esse é o destino previsto para o excluído "barroco" que as
respostas à Formação tentaram alterar. Vejamos como ele está enunciado no livro de
Candido.
Os motivos dados por Candido para não incluir "barroco" na Formação são
conhecidos e estão enunciados claramente na introdução de seu livro de 1959. Grosso
modo, para construir a narrativa da subjetividade nacional representada na literatura,
pensada como "aspecto orgânico da civilização", Candido separa o que chama de
"manifestações literárias" de "literatura propriamente dita". Para esta última existir, seria
necessário detectar, como elemento definidor, o célebre triângulo autor-obra-público (que,
na introdução de 59, é definido por "um conjunto de produtores", "um conjunto de
receptores" e "um mecanismo transmissor"), cujos elementos devem estar integrados e
funcionando organicamente, através de um padrão de sociabilidade garantida com relativa
autoconsciência de seus agentes. Essa interação de obras, autores e público, configurando-
se como sistema, seria responsável por garantir continuidade literária, gerando assim uma
tradição.
Esses senam os pré-requisitos que, uma vez identificados, dariam conta de
caracterizar o que Candido chama de "literatura propriamente dita", ou seja, servem como
parâmetros de um corte epistemológico que constitui os objetos válidos para o método.
Dessa f onna, como opção metodológica, não está etiquetado com o rótulo de "literatura
propriamente dita" tudo aquilo em que não se identifica os elementos desse sistema literário
referido; para esses objetos residuais, isto é, fora da abrangência do rótulo "literatura
propriamente dita", Candido dá o nome de "manifestações literárias", ou, como os oferece
no prefácio à i edição, onde já se defende de possíveis criticas relativas a esse corte
epistemológico, "literatura em sentido amplo". Tal corte serve também como recorte
temporal, pois é ajustado no ano, convencionalmente determinado, como já dissemos, de
1750, quando ocorre a fundação das Academias dos Seletos e dos Renascidos e do
19
aparecimento das primeiras obras de Cláudio Manoel da Costa, o marco inicial postulado
para a configuração do "sistema literário" no Brasil. Antes disso, portanto, segundo
Candido, há apenas "manifestações literárias" isoladas, sem um integração dos agentes
sociais envolvidos no referido sistema e sem a articulação necessária de seus elementos
constitutivos; há, no máximo, um "esboço" desse sistema. A definição do que seja
"literatura", portanto, depende da corroboração dos pressupostos sociológicos desse
"sistema literário".
Deixando alguma especulação a respeito desse corte para depois, resta dizer agora o
óbvio: ficaram de fora desse sistema literário, dos "momentos decisivos" do processo
formativo da literatura brasileira (e de suas narrativas complementares) e mesmo da
abrangência de "literatura propriamente dita" os objetos letrados coloniais do XVI e XVII,
as quais chamamos hoje de "barrocos".
Esse "seqüestro do barroco", tal como foi denominada, por Haroldo de Campos, a
operação de não inclusão das produções anteriores a 1750 na Formação, guardou e ainda
guarda uma grande capacidade de gerar polêmica, como a própria denominação
provocativa do concretista aponta. Como estamos vendo, não estar previsto no modelo de
Candido, ou melhor, ocupar o lugar residual previsto por ele, já é significativo, e o que
significa tem uma conotação negativa, uma vez que não é possível, dentro do modelo da
Formação, vislumbrar a atribuição de valor literário, em sentido estrito, para as práticas
anteriores a 1750. Mesmo havendo, ao longo do texto da Formação, como aponta
Guilherme Simões Gomes Júnio~ 9 , um tom pouco amigável com relação às práticas
discursivas catalogadas por "barroco", Candido insiste, na introdução, em não destituir de
um possível valor as obras anteriores ao marco inicial do sistema. Entretanto, mesmo que
esse valor exista, ele não se deve a características literárias propriamente ditas, até porque
os objetos que ocupam o lugar residual não se constituem enquanto "literatura propriamente
dita":
29
Guilherme Simões Gomes Jr., na parte dedicada a Antonio Candido do seu Palavra Peregrina-
O Barroco e o Pensamento sobre Artes e Letras no Brasil ( SP: Edusp, 1998), rastreia a forma pela
qual o crítico usa o termo "cultismo". Se, de um lado, Candido, para se referir a Claudio Manuel da
Costa, declara urna disposição para "rever em sentido favorável o espírito cultista", de outro, essa
disposição não se realiza, o que muitas vezes leva a urna rejeição em bloco de estilemas "barrocos"
e "cultistas". cf. Palavra Peregrina, pp. 137-146.
20
Isto não impede que swjam obras de valor, - seja por força da inspiração individual,
seja pela influência de outras literaturas. Mas elas não são representativas de um
sistema, significando quando muito o seu esboço30
Assim, algum valor ao que é anterior ao início do sistema só pode ser atribuído, de
forma enviesada, através de critérios não literários, no sentido estrito; pode ser atribuído
pela valorização de uma inspiração criadora individual perdida no tempo e no espaço,
imersa na "imaturidade do meio, que dificulta a formação de grupos, a elaboração de uma
linguagem própria e o interesse pelas obras" 31 ; ou, na falta de um "sistema simbólico, por
meio do qual as veleidades mais profundas do indivíduo se transformam em elementos de
contato entre os homens, e de interpretação das diferentes esferas da realidade'm, pode ser
atribuído pela valorização da tentativa de importação de um desses sistemas prontos. Em
ambos os casos, porém, não se trata de valor literário, pois não se trata de literatura, esse
"aspecto orgânico da civilização". Isso não significa dizer que o modelo da Formação
implique depreciação pejorativa dos objetos anteriores a 1750; significa apenas dizer que,
nesse modelo, não há sequer categorias disponíveis para a atribuição de valor literário a
esses objetos.
Como dissemos, essa é uma operação polêmica. Primordialmente, porque retira,
mesmo que de forma particular, o estatuto de literatura de medalhões consensuais do
cãnone literário brasileiro já estabelecido na década de 50 - ressalta-se, nesse sentido, os
consagrados e "barrocos" sermões do Pe. Vieira e a talvez não tão consagrada mas
igualmente "barroca" poesia atribuída a Gregório de Matos. Não atentando para o caráter
ostensivo de sua própria operação e novamente queixando-se dos comentadores da
Formação, que insistiam em prestar atenção no que não deviam, Candido tenta, ao mesmo
tempo, desqualificar a crítica e se desvencilhar dessa polêmica no já citado prefácio à
segunda edição:
... desejo repisar o que diz a referida introdução, e parece nem sempre ter sido levado
em conta: jamais afirmei a inexistência de literatura no Brasil antes dos periodos
estudados. Seria tolice pura e simples, mesmo para um ginasiano. [... ] Elas [as
"manifestações literárias"] aumentam no século XVII, quando surgem na Bahia
escritores de porte... [grifo nosso] 33
30p ormaçao,
- op. cit.,
. p. 26
31
idem, p. 26
32
idem, pp. 25-26
33
idem, p. 15-16
21
Porém, quanto ao pomo de discórdia, continua irredutível:
No sentido amplo, houve literatura entre nós desde o século XVI; ralas e esparsas
manifestações sem ressonância [... ] [grifos nossos]34
Obviamente, não estamos querendo afirmar que Candido disse o que insiste em não dizer. É
claro que não se afirma, em nenhum momento da Formação, que não houve literatura no
Brasil antes do XVIII, mas também é igualmente claro, como já dissemos, que essa
literatura só pode ser caracterizada enquanto tal quando acompanhada do predicado "no
sentido amplo" ou quando denominada pelo seu correlato "manifestação literária". Por estar
nesse lugar residual, essa literatura em sentido amplo só pode ser enquanto esboço daquilo
que ainda não é. Assim, enquanto esboço do que não é, não pode ter o valor daquilo que é -
não sendo literatura propriamente dita não pode então ter valor literário propriamente dito.
Na perspectiva da Formação, fica impossibilitada, no limite, a atribuição de valor literário a
"barroco" ou às obras catalogadas pelo termo.
34
idem, p.l6
35
1"dem, p. 25
22
desfere um golpe talvez ainda mais grave: retira-as da narrativa. Elas são colocadas em um
momento anterior ao próprio início do enredo encenado na Formação, um momento que
praticamente nem lhe serve de intróito. Se são as narrativas encenadas em uma história
literária que, costurando as obras estudadas, atribuem-lhes função para o próprio
andamento da história, na Formação, as obras anteriores a 1750, como não estão
concatenadas em uma narrativa, não possuem função aparente. Os objetos contidos no lugar
residual, dessa forma, sobram e pouco podem servir para o processo formativo da literatura
brasileira, para a constituição progressiva de uma subjetividade nacional e para as outras
narrativas desenvolvidas pela Formação.
Essa impossibilidade de atribuição de função aos objetos que constam no lugar
residual é ainda agravada, segundo os pressupostos do livro de Candido, porque eles não
são funcionais - eles não só não funcionariam relativamente ao processo formativo que se
inicia depois deles como também não funcionam dentro de sua própria circunstãncia
particular. Lembremos que esses objetos não são "literatura propriamente dita" e, por isso,
não foram produzidos dentro de um sistema literário configurado. Lembremos também que
é esse sistema que garantiria uma produção ininterrupta de obras, fazendo com que
interajam entre si, ganhando organicidade. Dessa forma, tudo o que é anterior a 1750
aparece apenas como "manifestações isoladas", surgidas quase ao acaso, sem estarem
propriamente contidas num padrão de sociabilidade.
Assim, as práticas anteriores a 1 750, "barroco", enfim, ficam impossibilitadas de
exercer alguma função em 3 aspectos imbricados: não participam da história e, por isso,
não configuram nem geram influência ou direção para o presente; não operam continuidade
e, dessa forma, não transmitem regras de funcionamento para a história; e, finalmente,
como objetos sem funcionalidade em termos de configuração social orgãnica, seriam
apenas pura casualidade.
Esse é o lugar residual, onde estão contidas as produções anteriores a 1750,
decorrente do desenho teórico da Formação, como vimos. Detectá-lo não significa querer
denunciar um ímpeto excludente, como fazem os que tentam resgatar "barroco", mas tentar
perceber as decorrências do modelo da Formação com relação aos objetos que não ilumina
mas que são previstos, no entanto, residualmente nesse modelo.
23
A situação particular de resíduo pode ser exemplificada com o denominado "caso
Gregório de Mattos". A atribuição de valor nesse caso só pode ser enviesada, como vimos.
Na introdução da Formação algum valor só pode ser atribuído a "Gregório de Mattos" a
posteriori, quando enfim se detectam os elementos constituintes do sistema literário (autor-
obra-público), mas não pode ser feito em "perspectiva histórica", como prevê o
funcionamento do livro de Candido. Assim, enquanto objeto carente do estatuto de
"literatura propriamente dita", não possui, em sua particularidade histórica de inexistência
literária, procedimentos e critérios suficientemente capazes de atribuição de valor:
Com efeito, embora tenha permanecido na tradição local da Bahia, ele ["Gregório de
Mattos"] não existiu literariamente (em perspectiva histórica) até o Romantismo,
quando foi redescoberto, sobretudo graças a Varnhagen; e só depois de 1882 e da
edição Vale Cabral pode ser devidamente avaliado. [grifo nosso]'6
36
idem, p. 26
37
"d "b"d
tem,Item
24
guardariam com a ociosidade da corte, sua alienação, sua incapacidade de produzir uma
arte empenhada e seu ranço absolutista, religioso e jesuíta.
Porém, a partir de alguns trabalbos principalmente advindos, num pnme1ro
momento, da História da Arte - registra-se aqui, como exemplo, Renascença e Barroco de
Wõlfflin, publicado em 1888- e a partir de propostas vanguardistas de ruptura estética,
"barroco" começou a ser usado positivamente e como positividade para a valorização de
objetos então reinventados pela designação feita pelo termo. A reatualização de obras
etiquetadas por "barroco"- por exemplo, a dos metaphysical poets na Inglaterra e mesmo a
de Góngora na Espanha - começou a parecer interessante. De forma bastante rápida,
"barroco" então, de conotação negativa, passou a designar positivamente. Não só
características tomadas como "barrocas" começaram a ser valorizadas, como também
passaram a ser identificadas e atribuídas, no limite, a qualquer objeto cultural que tivesse
um certo tipo de forma considerada "excessiva". Esse processo de valorização agiu de
forma tão brutal que em 1954 um congresso de especialistas nos séculos XVI e XVII foi
organizado para deter os usos e abusos do termo 38 • O ato porém não surtiu efeito: as
literaturas nacionais passaram a querer identificar e valorizar períodos "barrocos" em suas
histórias e mesmo vanguardas autodenominadas "neobarrocas" começaram a surgir; trata-
se, portanto, de uma ânsia por barroco, chamada por alguns analistas de "retomo do
barroco"39 . Na América Latina, essa ânsia se tomou ainda maior, pois a discussão a respeito
de "barroco" envolvia também modos interessados de apropriação positiva da literatura e
artes coloniais, dando-lbes autonomia e pensando, através delas, formas de resistência e
emancipação cultural.
38
Esse foi o terna do ill Congresso Internazionale di Studi Umanistici, realizado em Veneza no ano
de 1954. (cf. em Retorica e Barocco. Atti del 111 Congresso di StudiUmanistici. Roma, Fratelli
Bocca Editori, 1955 citado por João Adolfo Hansen em "Pós-moderno e Barroco" in Cadernos do
Mestrado- Literatura, n. 8. RJ, Departamento de Letras da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, 1994.)
39
É dessa forma que Walter Moser denomina a valorização e a reatualização do que é etiquetado
pelo termo "barroco" em seu artigo "Versões do Barroco: moderno e pós-moderno" in Revista
Sociedade e Estado, vol. Vill, nums 1/2, 1993. Nesse texto, além de investigar por quais
procedimentos esse "retomo" se dá, especula algumas causas para ele- uma tentativa de se livrar de
alguns imperativos modernos na cultura. Em outro texto ("Du baroque européen et colonial au
baroque américain et post-colonial" in Barrocos y Modernos- Nuevos Caminos en la investigación
del Barroco iberoamericano, org. Petra Schumm, Franfurt am Main, Vervuert Verlag; Madrid,
Iberoamericana, 1998) analisa essa valorização de barroco como um tipo especial de "reciclagem
25
É nesse contexto que surge, em 1959, no Brasil, a Formação seqüestrando
"barroco" e adotando, de alguma forma, a posição ilustrada, então combatida, que retira
valor e função das práticas do XVII. Uma resposta a essa posição e a esse seqüestro não
tardou a aparecer. A primeira a surgir de forma programática e organizada foi o ensaio
Conceito de Literatura Brasileira publicado já em 1960 (um ano depois da publicação da
Formação, portanto) por Afrânio Coutinho. Em 1950, esse crítico já produzira sobre
"barroco" uma tese para a cátedra do colégio D. Pedro II, Aspectos da Literatura Barroca.
Em Conceito da Literatura Brasileira, Coutinho, de forma categórica, censura Candido por
não estar com os ponteiros ajustados com relação à valorização de "barroco" e aos então
novos modelos de análise estética e textual, fenômenos imbricados e simultâneos:
[o livro de Antonio Candido] é uma obra que surgiu atrasada. Deveria ter sido
publicada em 1945, quando elaborada. Então ficaria com o significado de obra de
transição entre a concepção crítico-historiográfica de Silvio Romero, a que se liga pela
sua conceituação, e as novas aspirações de critérios estéticos para o estudo do
fenômeno literário [...]40
cultural" e detecta também uma certa insistência particular de "barroco" na América Latina, o que o
faz propor um "barroco colonial" e um "barroco pós-colonial".
40
Afrânio Coutinho, Conceito de Literatura Brasileira- ensaio, RJ, Livraria Acadêmica, !960, pp.
75 e 76
41
idem, p. 18
26
representar o mundo novo. Segundo Coutinho, desde o início, os brasileiros estariam
conscientes e imbuídos de seu papel de construir um literatura brasileira, o que é uma
grande diferença com relação à proposta de Candido, que vislumbrava, ainda assim de
forma preliminar, esse aspecto apenas depois de 1750. Dessa forma, critica Candido por ter
podado a literatura brasileira, ao deixar alguns de seus períodos indistintamente no galho
mirrado da literatura portuguesa. Coutinho afirma que fazer isso equivaleria a adotar o
discurso do colonízador português e não valorizar o que deveria ser valorizado no Brasil
pelos brasileiros. Não identificar um sistema literário pronto e uma literatura já plenamente
nacional antes de 1750 seria, para Coutinho, reavivar o ponto de vista dos primeiros
historiadores estrangeiros aplicado à literatura do Brasil e, por isso, seria jogar contra os
interesses nacionais:
O que não se admite é que continuemos a repetir essa definição do problema
inteiramente contrária aos pontos de vista brasileiros.<'
Para reforçar sua acusação, recorre a críticos de outras literaturas que também foram
produzidas sob o jugo coloniaL Para esses críticos de outros países, tal como os apresenta
Coutinho, não haveria problemas em afirmar uma identidade e uma especificidade nacional
desde o início coloníal de suas literaturas; teriam, assim, superado a perspectiva do
colonizador.
Se a literatura no Brasil já nasce brasileira, ela também já nasce plena. Para
Coutinho, a escassa infra-estrutura para circulação I iterária na colônia j á s eria suficiente
para denornínar as produções de "literatura". Mesmo assim, ele julga esse problema como
meramente acessório, já que, segundo os modelos que defende, a literatura deve ser julgada
por categorias internas. Até reconhece que possa ter havido um processo de formação ao
longo do tempo, o que não impediria o nascimento de uma literatura brasileira própria
desde o início, pois seria produzida por um homem novo, por uma língua nova e por meios
próprios:
Formação da I iteratura brasileira ocorre desde o início da civilização. Considerar a
literatura da época colonial "um aspecto da literatura portuguesa, da qual não pode ser
destacada"; considerá-la "a literatura comum", ou "literatura luso-brasileira", parece
um posição absolutamente insustentável no atual estádio de evolução do pensamento
critico brasileiro. Considerá-la portuguesa só porque o Brasil era colônia de Portugal é
um critério político aplicada à definição dessa produção literària, já nitidamente
Brasileira, além disso abrindo mão de um patrimônio por todos os títulos apreciável;
42
idem, p. 58
27
E continua, já anunciando a valorização de "barroco" oferecida como contraponto ao
resíduo proposto pela F armação:
inclusive esteticamente em que pesem as tradicionais restrições à literatura hoje
chamada barroca do período. Restrições herdadas dos preconceitos e teorias críticas
neoclássicas e románticas, felizmente superados, mas que ainda repontam aqui e ali
nas páginas dessa obra [da Formação] 43
43
idem, p. 59
44
idem, p. 59
28
negar que já é uma literatura, que já se "formara", que não ~~via", mas já "existia".
Assim, o seu livro deveria denominar-se "Autonomia da Literatura Brasileíra", e não
"Formação". Formação deu-se na época barroca e os padrões barrocos então vígentes,
e que deram os fundamentos à nossa consciência, foram importantes na época a ponto
de plasmá-la, que ainda hoje repercutem em nossa alma e em nossa vída de maneira
profunda. Constituem muito mais vívências que os arcádicos e neoclássicos'"'5
45
idem, pp. 63-64
46
idem, ibidem
29
"barroco" é atribuir ao termo uma função na narrativa da nacionalidade que o modelo da
Formação não conseguiria registrar. Coutinho especifica duas funções de "barroco", a de
superação e a de emancipação. Segundo o crítico, ao escolher os "modelos barrocos de
expressão", o "brasileiro", recém-nascido, estaria contrariando Portugal porque os
procedimentos expressivos de "barroco", de acordo com Coutinho, são advindos do
colonizador do colonizador, isto é, da Espanha; com isso, o "brasileiro" estaria superando
seu algoz. Ao mesmo tempo, a adoção de "barroco" permitiria uma emancipação da
"consciência nacional", dotando aquele "novo homem" de formas de expressão e de
representação que não teriam sido importantes apenas nesse momento inicial como seriam
capazes de configurar, "de maneira profunda", um "ser brasileiro".
30
texto da Formação em dois níveis: o primeiro, que H. de Campos chama de "ideológico", e
o segundo, que chama de "semiológico". Quanto ao primeiro, usa Derrida para
desautomatizar as séries metafóricas empregadas por Candido na introdução de sua
Formação. Todas essas séries, segundo o poeta concretista, seriam indícios de uma postura
combinada de substancialismo e de organicismo relativa ao estabelecimento do "espírito do
ocidente" (eis a substância) no Brasil através de um processo progressivo e linear de
formação literária (eis o organismo). Essa postura operaria teleológica ou progressivamente
para encaminhar um "classicismo nacional", final, finalista e normativo. Para construir esse
encaminhamento, Candido teria se valido de uma "perspectiva histórica", que, para o poeta
concretista, seria, na verdade, uma "perspectiva ideológica", pois é oferecida, de forma
travestida, como verdadeira e objetiva, porém nada mais seria que a conversão em verdade
historiográfica dos interesses românticos relativos ao estabelecimento de uma literatura
empenhada, orgânica e nacional.
Essa crítica é reforçada através da leitura no segundo nível, o semiológico. Haroldo
de Campos, usando desta vez as funções da linguagem de Jakobson, analisa a proposta do
sistema literário de Candido e chega a conclusão de que ele privilegia as funções "emotiva"
e "referencial" (que seriam fundadas em uma "função comunicativo-expressiva", que
abrangeria tanto a expressão das "veleidades mais profundas", quanto a representação das
"diferentes esferas da realidade") com alguns elementos da "função conativa" (que, para o
sistema de Candido, deveria ser mais precisamente chamada de "função conscientizadora"
e daria conta do aspecto "empenhado" da literatura brasileira). Enquanto efeito de
aplicação, esse modelo de leitura baseado nessas funções, geraria, segundo H. de Campos,
um modelo de literatura: um modelo romântico com aspirações classicizantes, que teria
como ponto culminante, como te/os, o já citado "classicismo nacional", Machado de Assis
e o seu "instinto de nacionalidade".
A combinação das conseqüências observadas por esses dois níveis de leitura, fechar-
se-ia um círculo hermenêutica, que segundo o concretista, seria fruto de uma ideologia: o
modelo de explicação de Candido só teria olhos para os objetos dos quais extrai seus
próprios pressupostos; o modelo agiria apenas avaliando os objetos selecionados e
47
Haroldo de Campos, O seqüestro de barroco na formação da literatura brasileira: o caso
Gregório de Mattos, Salvador, Fundação Casa de Jorge Amado, 1989, p. 11
31
perfilando-os em uma série narrativa, segundo um grau de adequação com um objeto
semelhante e ideal. A orientação supostamente objetiva, histórica, que seqüestra "barroco",
seria, segundo Haroldo de Campos, uma tentativa de universalização do projeto literário
romãntico (e seus aspectos expressivos e empenhados), tomado de maneira normativa e
prescritiva, de modo, inclusive, a ditar as possibilidades de identificação do que seja
"literatura". Assim, não haveria espaço para "barroco" que, para o poeta concretista, além
de ser pautado por uma estética baseada nas funções poética e metalingüística, serra
estranho aos ideais romãnticos e à ideologia da individualidade nacional.
Depois dessa acusação e dessa critica, Haroldo de Campos passa grande parte do
texto tentando atribuir valor a "barroco". Vê, no trabalbo com as funções poética e
metalingüística, de que Candido insiste em avaliar de maneira negativa, um valor positivo
como produção de artefatos poéticos. Constrói, também para atribuir valor, uma certa
imagem de "Gregório de Matos", poeta de vanguarda, maldito e perseguido, que teve,
graças à força de sua obra e aos apógrafos cientes do valor poético e transgressor dela para
o futuro, seus poemas circulando clandestinamente por 150 anos à revelia do poder e
ideologias então dominantes dos quais Candido, na Formação, seria um porta voz
anacrônico. Ainda para atribuir valor a "barroco" e também para valorizar o resgate que ele
próprio opera, o poeta concretista cita operações parecidas em outros países, mostrando
que, devido a interesses poéticos e programáticos, seria interessante liberar "barroco" e
"Gregório de Matos".
Finaliza questionando o modelo historiográfico da Formação e propondo outro em
seu lugar, que vislumbraria uma função para "barroco" . A critica incide no modelo linear e
de ação continua do livro de Candido, que excluiria tudo o que não caíba em sua progressão
finalista baseada em um modelo normativo. Assim, resumindo as criticas que faz ao livro
de Antonio Candido, propõe um novo título à Formação: "História Evolutiva do
Romantismo no Brasil". Questiona a noção de público como noção integradora,
sociológica, e propõe um outro conceito de público advindo da estética da recepção, em que
seja considerado um horizonte de um sistema de referências que pressupõe a interlocução, a
partir do texto, de forma retroativa (dialogando com textos do passado) e progressiva
(dialogando com o futuro que antevê). Propõe também que a literatura brasileira teve um
inicio pronto, "vertiginoso"; ela já teria nascido madura, em termos estéticos, com
32
"barroco" e com "Gregório de Matos". Finalmente, discute a inexistência histórica de
"Gregório", pois, segundo a perspectiva de dois historiadores que cita, seus poemas
poderiam servir como fonte documental do XVII, e nesse caso, se existiria como fonte de
história, como poderia ele não existir na história?- pergunta-se o concretista.
O modelo de história literária esboçado por H. de Campos para fazer frente ao do
Candido da Fonnação preveria a não redução e a não exclusão do diferencial; no lugar de
"momentos decisivos" ("formativos numa acepção retilínea de escalonamento ontológico"),
"momentos de ruptura e transformação" ("índices sismógrafos de uma temporalidade
aberta, onde o futuro já se enuncia") 48 . Uma história dificil, construída por uma
historiografia não linear, não conclusiva, que daria conta de registrar rupturas de modo a
não retirar delas o seu potencial de transformação, enfim uma história que permitisse
rearranjos sucessivos no futuro. Uma anti-história, no sentido de ausência de narrativa
linear, para escrever um cânone anti-canônico, não investido de valor tradicional e não
encapsulado em sentidos tradicionalistas.
Essa história difícil proposta pelo concretista opera, no entanto, de forma similar à
narrativa nacional alternativa oferecida por Coutinho ou, ao menos, visa atingir resultados
parecidos. O objetivo aqui também é o de incluir aquilo que é proposto como resíduo por
Candido. Depois de desconstruir o modelo historiográfico da Fonnação, o que contribui
para questionar a própria eficácia persuasiva do 1ugar residual ao qual "barroco" estaria
condenado segundo esse modelo (caudatário, segundo o concretista, da metafísica da
presença e movido por uma ânsia integrativa anacrônica), Campos, assim como Coutinho,
tenta atribuir interesse ao que é proposto como resíduo.
Para tanto, insiste, como já vimos, num aspecto transgressivo de "barroco". Campos
oferece um grande repertório de citações, que inclui Severo Sarduy, Lezama Lima, W a!ter
Benjamim e outros, como argumento da ruptura transistoricamente causada pela "escrita
barroca". A "deturpação da ordem vigente" supostamente ocasionada por "barroco" ao
mesmo tempo agrega interesse ao resíduo e mesmo explica sua situação residual: "barroco"
proposto dessa forma não poderia mesmo ser incluído numa história linear,
homogeneizadora e integrativa, justamente porque relativizaria uma suposta ordem natural
48
idem, ibidem, p. 52
33
das coisas e do discurso - em qualquer narrativa linear na qual fosse inserido, sena o
contraste, o elemento que não aceitaria apaziguamento.
Proposta assim, a valorização de "barroco" se pautaria por uma espécie de elogio da
margem. No entanto, o lugar residual de "barroco" proposto por Candido continuaria ainda
operando de alguma forma. A atribuição de valor ao resíduo ainda levaria em conta a sua
condição residual: "barroco", como quer H. de Campos, surgiria interessante justamente
por ser o resíduo inexorável com o qual ideologias conservadoras e integrativas e anseios
totalizadores não conseguiriam lidar. Em outras palavras, poderiamos dizer que o
concretista aceita o lugar residual de "barroco" propondo, no entanto, esse lugar
positivamente como interessante. Evidentemente, nesse caso, mesmo que o referido lugar
seja aceito, ele é ressigníficado: não se trata mais do esboço daquilo que ainda não é, mas é
aquilo que não poderia ser. Aínda assim, o máximo que se pode obter é um elogio do
resíduo e não a sua inclusão definitiva.
Haroldo de Campos, contudo, não se contenta apenas com a valorização de
"barroco" enquanto margem transgressora. O seu modelo de história dificil referido visa
justamente a inclusão do resíduo, mesmo que de forma não integrativa ou
homogeneizadora. O curioso é que a apresentação desse modelo historiográfico é, ao
mesmo tempo, uma absolvição de Antonio Candido- não o da Formação, evidentemente,
mas o da "Dialética da Malandragem" e o da "Literatura de Dois Gumes". Esses dois textos
do critico são aprovados no modelo de história dificil, no "modo oximoresco de ler a
tradição", pregado pelo poeta. Esses dois textos são propostos como exemplares porque
partilhariam de um modelo de escrita historiográfica que permitiria a inclusão do
diferencial, isto é, a aceitação de "barroco" na proposição de alguma linha (descontínua,
evidentemente) relativa à "escrita barroca", capaz de transbordar a história e de se fazer
presente em momentos díspares. Através desse tipo de narrativa, seria possível registrar e
enfileirar as rupturas "barrocas" na literatura brasileira ("Gregório de Mattos",
Souzandrade, João Cabral, poesia concreta) sem empalidecer seu diferencial, seu aspecto
transgressivo, e mesmo sem confinar essas rupturas em um lugar residual.
É a aplicação de tal modelo com vistas à inclusão definitiva do resíduo que o leva a
conclusões parecidas com as de Coutinho. Se o autor de Conceito de Literatura Brasileira
tenta dissolver o lugar residual insistindo em um aspecto de originalidade "barroca" do
34
Brasil, quer em termos políticos de superação colonial, quer em termos expressivos de
emancipação artística e intelectual, H. de Campos propõe, amparado pela leitura que faz
dos dois textos de Candido aprovados, uma "congenialidade" de "barroco" no Brasil, uma
"ação duradoura do Barroco"49 . Com isso, Haroldo de Campos tenta destituir o lugar
residual determinado para "barroco" pelo Candido da Formação, combinando a valorização
de "barroco" já referida- o elogio da margem- com uma função de "barroco" no Brasil, a
especificação de algum aspecto brasileiro revelado pela "congenialidade" e pela "ação
duradoura do Barroco".
Em O Seqüestro, porém, essa especificação de Brasil, ou da literatura brasileira,
através de "barroco" não é muito desenvolvida, uma vez que Campos interessa-se muito
mais pela desconstrução do modelo historiográfico da F armação e pela atribuição de valor
a "barroco", por meio do recurso ao elogio da margem. Cruzando algumas referências,
contudo, é possível depreender o que seja essa associação entre "barroco" e Brasil. O
primeiro aspecto dela é relativa ao nascer pronto do Brasil, ou da literatura brasileira, o que
indicam ais um ponto em comum com Coutinho e seu "brasileiro" constituído "desde o
primeiro instante em que aqui pôs o pé". O "início vertiginoso" de Campos, assim como o
"brasileiro desde o primeiro instante" de Coutinho, rechaça a idéia de maturação
progressiva do nacional. A vantagem de se incluir o resíduo residiria, portanto, na
postulação de um início pronto, sem etapas de aperfeiçoamento progressivo. Nesse
perspectiva, a condição colonial ou uma posição subalterna do Brasil ou da literatura
brasileira (um segmento de um galho mirrado da árvore da literatura ocidental, segundo a
introdução da Formação) seria resolvida. Além disso, uma outra vantagem da inclusão do
resíduo, segundo o concretista, seria a postulação de uma identidade de diferença: além de
ter nascido pronto, Brasil, ou a literatura brasileira, teria em "barroco" uma especificação
não conclusa, autoquestionadora, vanguardista. Logo após defender que "Dialética da
Malandragem" produziria um contraponto autodesconstrutor da Formação, Haroldo de
Campos tenta demonstrar o que seria essa identidade difícil, antevista por Candido ao
incluir "Gregório de Matos" na "Malandragem", e o faz aludindo Mário de Andrade:
Nunca Mário de Andrade esteve tão certo, nunca foi (talvez involuntariamente)
melhor teórico do nacional, quando, no rastreio ontológico do "caráter do homem
49
idem, p. 78
35
brasileíro", chegou não à identidade conclusa, plena, mas à diferença: ao "descaráter"
irresolvido e questíonante de seu anti-herói macunaímico 50
50
1'dem,p.
73
51
Palavra Peregrina, op. cit., pp. 151-158
52
A Sátira e o Engenho. Gregório de Matos e a Bahia do século XVII, SP, Cia das Letras, 1989
36
que sena um completo disparate em termos históricos. A definição do público não é
necessária que seja postas equer em termos numéricos ou qualitativos. C orno demonstra
Hansen, mais uma vez, o público previsto por esses textos pode ser "o corpo místico do
império"; o "público", nesse caso, diria respeito à interlocução prevista por práticas
culturais históricas.
De qualquer forma, a impressão que temos é a de que escapa do texto de Candido a
observação de indícios que operam na determinação histórica dos discursos produzidos
antes de 1750. Candido não leva em consideração alguns dados históricos disponíveis
quando da confecção da Formação, como também nos mostra Guilherme Simões Gomes
Júnior. O ensino e a prática da retórica e da poética clássica nos colégios jesuítas formava e
informava tanto um público receptor quanto produtor de práticas discursivas e poéticas
regidas pelas mesmas poéticas e retóricas vigentes então. É o desprezo de dados como
esses, que produz conseqüências nada sutis na compreensão dessa literatura anterior a 1750.
Candido opera na Formação na escolha de um padrão de literatura, a do século XIX, que é
tomado como parâmetro transhistórico para tudo o que lhe é anterior. Não é por outro
motivo que a interpretação de Candido a respeito de" arcadismo" começa também a ser
questionada, o que aqui deixaremos de lado.
A visão de Candido, ao privilegiar o modelo de literatura do XIX, deixa sim de fora
o XVI e XVII. Não tanto em termos de valorização estética, menos ainda quanto à falta de
atribuição de nacionalidade formativa, seja ela organizada de forma linear ou não, como
insistem Haroldo de Campos e Afrânio Coutinho. Escapa do modelo historiográfico de
Candido a percepção de formas de sociabilidade e de racionalidade que regem as práticas
discursivas do XVI e XVII e que são exteriores e estranhas ás do XIX. Essas práticas
podem sim se articular em um sistema o qual podemos considerar menos literário do que
letrado, já que não há, nele, autonoruia do domínio estético.
Coutinho, por sua vez, faz a aplicação de suas teses quase sempre mediado por
petições de princípio. Por exemplo, só pode ser efetivamente brasileiro o europeu que põe
os pés no Brasil e efetivamente brasileira a literatura produzida então se, e somente se,
acreditarmos que o ato de pôr os pés em um território diferente pode, de maneira
instantânea, transformar por completo um indivíduo e fazê-lo produzir uma literatura
própria e autônoma; no entanto, para corroborar tal crença, não há argumentos em seu
37
texto. Não suportam o mesmo teste grande parte do restante de suas outras teses: "barroco"
como superação de Portugal, "barroco" como formador da consciência nacional, etc.
Coutinho também comete urna grave contradição que faz com que suas formulações
percam eficácia. Candido é repreendido pelo fato de usar critérios políticos para a avaliação
da literatura, o que os então novos métodos de Coutinho condenam. Porém, os critérios de
Candido certamente não são mais políticos do que a atribuição de brasilidade e o
patriotismo de Coutinho, que pouco se articulam com os tão inovadores métodos que alega
ter e que balizam toda a sua avaliação literária.
Haroldo de Campos também apresenta algumas incoerências. O modelo
historiográfico de Candido é criticado pelo concretista por ser excludente e totalizador, por
tomar urna proposta de literatura, a "romãntica com aspirações classicizantes", e torná-la
padrão prescritivo de todo o resto. A história não conclusiva do concretista, indo atrás de
"índices sismógrafos de urna temporalidade aberta", também deixa de fora tudo o que não
alcança, segundo a sua perspectiva, também ideológica, a !tos graus na escala Richter; é,
pois, tão prescritiva e excludente quanto a de Candido, a diferença reside apenas no
parâmetro usado para excluir. Essa história serve com contraponto à Formação na medida
em que, por vezes, exclui o que Candido inclui ou vice-versa:
[... ]Gregório de Mattos existiu e existe- viveu e pervive- mais do que, por exemplo,
um Casirniro de Abreu ("o maior poeta dos modos menores que o nosso Romantismo
teve', segundo a Formação, II, 194), e que hoje quase só pode ser lido corno kitsch
(veja-se a paródia osvaldiana dos "Meus oito anos"); o frouxo e quérulo Casirniro, que
tendo publicado As Primaveras em 1859, foi contemporãneo de Baudelaire e
Souzãndrade ... 53
53
Haroldo de Campos, O Seqüestro ... , op. cit., p. 66
38
tangentes notas de rodapé54 , o futuro para o qual aponta todo o material do passado
organizado de forma não conclusiva, segundo uma temporalidade aberta. O rearranjo
histórico proposto pelo concretista pressupõe algo que dê ao passado seu efetivo sentido,
que realize, enfim, toda a potencialidade presumida nele: esse algo que reorganiza o caos da
História e que lhe dá sentido, se não se trata de um "classicismo nacional", não deixa por
isso de existir: ele é agora a poesia concreta, da qual Haroldo de Campos é autor e
preceptista. É uma postura teleológica, portanto, pois tudo o que é separado do passado
pelo sismógrafo aguarda um fim triunfante, um telas, um final, finalista e normativo.
É curioso notar também uma semelhança entre "Gregório de Matos", poeta de
vanguarda e maldito, tal como proposto no Seqüestro, e o próprio Haroldo de Campos. A
forma de circulação dos poemas atribuídos a "Gregório de Mattos", proposta por Haroldo
de Campos, clandestina, persistente, de mão em mão e à revelia do poder constituído, nos
faz lembrar a forma como teriam circulado, durante algum tempo, os poemas concretistas.
Boicotados, segundo os cabeças do movimento, pelas editoras e pela universidade, esses
poemas, dadas também as dificuldades gráficas de impressão, só puderam ser organizados
em forma de livro anos depois de serem produzidos. Aliás, a analogia poesia
concreta/"barroco" é bastante cara aos irmãos Campos. Além da poesia concreta se
autodenominar "neobarroca" em alguns manifestos, a analogia entre as formas da recepção
e de revalorização de "barroco" e os procedimentos de valorização da vanguarda
concretista também é constantemente feita. Augusto de Campos, irmão de Haroldo, por
exemplo, prevê, ao mostrar como "barroco" demorara a ser digerido pelo status quo, um
futuro áureo para o movimento que encabeça:
[o 'barroco'] ... pode exemplificar o procedimento da vanguarda no passado e no
tempo, até em termos de assimilação porque foram necessários pelo menos três
séculos para que o 'barroco' deixasse a marginalidade de sua recepção para assumir
um lugar significativo no acervo das especulações artísticas da humanidade. 55
54
Logo após o trecho, citado acima, em que se refere a Casimiro de Abreu, Haroldo de Campos
tenta demonstrar com quem "Gregório de Mattos" dialoga e "se sincroniza". São enumerados João
Cabral de Melo Neto, Caetano Veloso e uma tal vanguarda que, ')á em 1955, propugnava por uma
'obra de arte aberta' e por um 'neobarroco"' (Seqüestro, p. 66). Depois disso, há uma nota de
rodapé que dá a referência a essa "vanguarda": "O termo 'neobarroco', para caracterizar as
'necessidades culturmorfológicas da expressão artística contemporânea', foi usado por mim no
artigo 'A obra de arte aberta', Diário de S Paulo, e de julho de 1955[ .. .]" (p. 119), um dos
manifestos da poesia concreta.
39
Além dessa espécie de teste de coerência das propostas de Candido, Coutinho e
Campos, poderíamos também contextualizar os textos dos três num quadro mais amplo dos
usos de "barroco" no Brasil, em particular, e na América Latina, no geral, relacionando-os
com outras propostas e recusas de autonomização cultural através de "barroco"56 .
Ainda seria possível, para continuar desdobrando a polêmica em torno da
Formação, conduzir a uma reflexão a respeito da história literária enquanto gênero de
escrita. A questão do "barroco", tal como apresentada pela contraposição desses três textos,
é um caso exemplar dos problemas da escrita da história literária. Essa questão poderia ser
desdobrada em duas. A primeira seria relativa à definição de "período", formulação
necessária para que tal gênero de escrita possa mobilizar e gerenciar grandes conjuntos de
objetos de forma a garantir verossimilhança da narrativa proposta. A segunda seria relativa
à ânsia de totalização, principalmente nacional, em que tal gênero se subsidia. Ambas
denotam a impossibilidade da história literária enquanto narrativa que não apresente falhas
de coerência, nos termos propostos por David Perkins 57 •
Por fim, seria ainda possível focalizar os diferentes propósitos programáticos e as
premissas teóricas e historiográficas de que se valem os três textos. Como se pode
depreender da apresentação que fizemos dos textos de Candido, Coutinho e Campos, não se
trata apenas de mn dissenso acerca de "barroco" ou do valor nacional de "barroco". Melhor
dizendo, tal dissenso se alimenta das diferentes posturas críticas e metodológicas em que se
alicerçam Candido, Coutinho e Campos. A apropriação de "barroco", ou dos objetos
literários imaginados como "barrocos", funciona como batalha final do embate dos modelos
partilhados pelos três críticos. Muito possivelmente eles não estejam sequer corroborando
pressupostos comuns e referindo-se às mesmas coisas quando se valem de "literatura
brasileira" e "barroco". Ainda que os três se disponham a propor narrativas que especificam
"literatura brasileira", o termo "literatura" só é objeto de consenso enquanto dispositivo de
nacionalidade: para Candido, "literatura" não pode ser entendida fora da noção sociológica
55
citado por Affonso Ávila na introdução de seu Barroco Teoria e Análise. SP: Perspectiva: 1997.
56
Uma amostra dessas propostas, por vezes contraditórias, é oferecida pelo mosaico de citações a
respeito de "barroco" introdução desse trabalho. Diante de tantos usos de "barroco", principalmente
na América Latina, seria possível estabelecer uma espécie de tradição de usos latino-americanos do
termo na proposição da autonomia cultural da região. Talvez os mais importantes usuários de
"barroco" que fundamentam essa tradição sejam os cubanos Lezama Lima e Severo Sarduy.
57
Is there líterary history possib[e? Baltimore, The John Hopkins UP, 1993
40
de "sistema literário"; para Coutinho, o caráter expressivo de "literatura" sobrepuja
qualquer definição sociológica; para Campos, a necessidade de experimentação sobrepõe-se
a qualquer outra definição de "literatura", seja posta em termos sociológicos seja
conceituada por um caráter expressivo. "Barroco" é objeto do mesmo dissenso. Candido
reaviva as tradicionais noções iluministas e românticas relativas ao termo e, se se mostra,
vez por outra, disposto a "rever em sentido favorável o espírito cultista", não leva a cabo tal
disposição. Coutinho, por sua vez, é o porta voz no Brasil da primeira onda de valorização
de "barroco". Essa valorização é feita por ele pelo repertório estilístico do New Criticism,
aclirnatada em termos expressivos. "Barroco", para Haroldo de Campos, é ponto
programático de ruptura estética.
No entanto, para sermos mais precisos, seria necessário dizer que, ainda que se
sustentem em diferentes modelos teóricos e historiográficos relativos à investigação
literária, Candido, Coutinho e Haroldo de Campos têm muito em comum. Mais
especificamente, o uso do pronome de primeira pessoa do plural, "nós", indica que o
conteúdo "Brasil" e a proposição da nacionalidade em literatura são decisivos nos três. É a
postulação da totalização "Brasil" que os move e, dependendo como essa totalização se
configura, sempre no entanto retroativa, "barroco" é previsto como resíduo ou é incluído.
O objetivo de Candido, Campos e Coutinho é o de construir uma narrativa a respeito
da especificidade da literatura brasileira, o que implica formular um maneira de apropriação
dos objetos letrados da colônia que sirva de prova histórica da especificidade proposta: a
apropriação da colônia é o teste da eficácia persuasiva da narrativa que se quer construir
porque pode provar a sua aplicação retroativa. Na verdade, esse é o objetivo de Candido; os
outros dois, descontentes com o modo de apropriação dos objetos coloniais e,
conseqüentemente, com a narrativa apresentada por Candido, esboçam narrativas
alternativas que prevêem outros modos de apropriação daqueles objetos coloniais. De
qualquer forma, os três se preocupam com a significação dos objetos provindos da colônia.
Candido, corno vimos, não exclui totalmente barroco porque isso significaria admitir um
41
momento histórico, ou um conjunto de objetos, em que a narrativa de totalização nacional
que quer propor não operaria, uma vez que ela se baseia no critério de identificação de um
sistema sociológico como base de produção do que entende por "literatura". O lugar
residual proposto possibilita a construção da narrativa nacional amparada, de um lado, pelo
sistema sociológico referido, e, de outro, pela metáfora da "formação".
Ambos os polemistas de Candido vão se contrapor à Formação insistindo que o que
é proposto como resíduo seria o mais fundamental na especificação do que seja ou do que
se quer que seja a "literatura brasileira" e mesmo "Brasil". Uma narrativa que especifique
essa literatura não poderia prescindir, insistem ambos, de "barroco". Segundo eles, o modo
de apropriação de "barroco", a maneira de incluí-lo nessa narrativa, seria decisivo na
especificação dessa literatura. Através de "barroco", Afrânio Coutinho propõe, de um lado
a superação da situação colonial e a emancipação da "consciência", do "ser'', "brasileiro".
Haroldo de Campos, por sua vez, supera essa condição pela proposta do inicio pronto,
possível com a inclusão de "barroco", pelo elogio da margem e pela proposta de identidade
diferencial não-conclusa. Ambos, valem-se de "barroco", portanto, para a proposição de
uma identidade não-conforme, uma especificidade em contraposição a uma situação que se
quer contornar: a posição de colonizado ou a situação marginal de produtor literário. Para
que tais propostas sejam possíveis, as duas premissas de Candido são questionadas. Os
modelos de avaliação literária de Coutinho e Campos rechaçam tanto a idéia de sistema
quanto a metáfora formativa.
No lugar da "formação sistemática", eles propõem o "inicio pronto". O interessante
é que a proposta de especificidade da literatura brasileira por meio do "inicio pronto"
pressupõe uma outra proposta: a da especificidade do Brasil5 8 • O argumento final dos
polemistas de Candido é o de que "barroco" não deve ser tratado como resíduo porque
através dele seria possível, de alguma forma, especificar Brasil, quer pela proposta de seu
"espírito barroco" quer pela detecção de uma "congenialidade b arroca". C orno elemento
primordial dessa especificação, "barroco" não apenas é incluído na narrativa nacional como
dita os elementos constituidores dessa narrativa. Portanto, o modo escolhido de apropriação
58
Abel Barros Baptista debate longamente essa questão na primeira parte de seu A Formação do
Nome (Campinas, Ed. Unicamp, 2003). A situação, entretanto, é diversa. Baptista encontra
problema similar (a indistinção entre as propostas de especificidade da literatura brasileira e as de
42
dos objetos coloniais ditos "barrocos" ao mesmo tempo reivindica, por assim dizer, uma
teoria do Brasil.
Talvez fosse possível mapear etapas sucessivas que dariam conta da transformação
das operações de inclusão do resíduo, isto é, a transformação da defesa do modo de
apropriação propício para a valorização desse resíduo em teoria do Brasil. No entanto, esse
procedimentos é mais complexo ou pelo menos não distinguível em termos de etapas
consecutivas. A defesa da inclusão de alguns objetos na narrativa da literatura nacional
amparada pela proposição de uma teoria do Brasil é construída de modo particularmente
interessante por Coutinho e Campos. Ostensivamente, os dois não operam limites entre os
dois aspectos defendidos. A brasilidade de "barroco", isto é, o traço brasileiro supostamente
identificável nos objetos designados pelo termo que justificaria a inclusão desses objetos na
narrativa nacional, é indistinta de um caráter "barroco" do Brasil: os fundamentos que
"barroco" teria dado à "nossa consciência", segundo Coutinho, ou a "congenialidade" de
"barroco", como quer Haroldo de Campos. Essa indistinção visa inviabilizar o desenho
teórico da Formação. Se esse desenho pode ser adequado na investigação da literatura
romântica brasileira, dizem ambos os polemistas embora com ressalvas, ele não pode ser
julgado adequado para a construção de uma narrativa nacional completa porque não
conseguiria perceber o suposto caráter "barroco" do Brasil. A indistinção que quer
inviabilizar o desenho da Formação dramatiza, portanto, como argumento final, uma
circularidade ostensiva: a aceitação de "barroco" viabiliza uma teoria "barroca" do Brasil (e
depende dela), que, por sua vez, viabiliza a aceitação de "barroco" (e depende dela). Tal
circularidade é uma espécie de decorrência lógica do início pronto e conseqüência da
proposição de um "nacional" mais antigo, identificável na colônia.
Melhor que dizer que as propostas dos polemistas de Candido sejam refutáveis
porque se assentam em uma argumentação circular, seria ressaltar que a verossimilhança
argumentativa de suas propostas alternativas à narrativa de Candido depende do uso
ostensivo de tal circularidade. Sem ela, não há argumento final contra o lugar residual
previsto para "barroco" pelo autor da Formação: se se parte do princípio do caráter
"barroco" do Brasil, deve-se aceitar "barroco"; se se aceita "barroco", a teoria do Brasil
43
"barroco" deve ser mobilizada. Talvez a única moral da história que se possa depreender
desse jogo é que a apropriação dos objetos coloniais ditos "barrocos" numa narrativa da
nacionalidade deve levar em conta uma teoria do Brasil para que se viabilize: a colônia
nesse caso é proposta como lugar privilegiado para a composição de uma teoria
especificadora do Brasil. Evidentemente, Candido também necessita de uma teoria do
Brasil que nasce no século XIX. Porém, a colônia "barroca", quando proposta como "início
pronto" da nacionalidade, reivindica tal teoria de modo que a "significação brasileira de
'barroco"' seja possível.
44
como elemento importante do Brasil prevê a postulação de um Brasil "barroco", que, por
sua vez, depende da exibição dos objetos propostos daquela forma. No registro discursivo
dos prefácios dos quais foram retiradas as epígrafes, que talvez seja o melbor exemplo da
tese de Macdonald (que defende que o museu estabelece uma negociação entre
conhecimento leigo e especializado), os dois elementos indistintos desse círculo são
sintetizados, segundo o trecho do ex -ministro da cultura, como símbolos turísticos do
Brasil.
Em segundo lugar, a idéia de "formação", a princípio, adversária da circularidade
referida, também é empregada. A proposição de um nacional mais antigo, nascido na
colônia, ressoa a proposta do "inicio pronto", uma vez que se dá na mesma chave circular
de indistinção entre "brasilidade de' barroco"' e "caráter' barroco' do Brasil". Talj ogo,
assim amparado, ao mesmo tempo, permite e reivindica uma teoria do Brasil através da
colônia ou, mais especificamente, a colônia enquanto lugar de celebração nacional.
Descrito dessa forma, o esquema geral a respeito do uso de "barroco" nas exposições
parece preterir Candido, uma vez que aquilo que é proposto como resíduo da fabricação da
narrativa nacional proposta pelo autor é escolhido como objeto primeiro da nacionalidade.
A princípio, portanto, o modelo da Formação de Candido parece estar albeio ao modo
oficial escolhido para celebrar as artes brasileiras nos 500 anos.
No entanto, a metáfora formativa cumpre um papel importante na constituição da
base operatória da "significação brasileira de 'barroco"' veiculada e vinculada às
exposições. Além de indicarem uma dupla e indistinta especificação de "barroco" e de
"Brasil", permitindo que os dois termos sejam associados com relativa liberdade, os trechos
extraídos dos prefácios dos catálogos empregam também o uso da metáfora da "formação".
"Barroco" é proposto como "uma das expressões mais marcantes da formação da
nacionalidade", como prova de que a "nação lubrida que se gestava [... ] já era
suficientemente madura", como "primeira expressão orgânica de uma identidade que
culminaria muito mais tarde na independência e na construção da nacionalidade" e,
finalmente, como ''the deepest roots of Brazil's national artistic identity".
Tomando a polêmica a respeito da não-inclusão de "barroco" no livro de Candido
como paradigma, é possível perceber que as exposições efetuam uma curiosa combinação
das propostas antagônicas acerca do valor nacional de "barroco". Ao mesmo tempo em que
45
empregam a circularidade decorrente do "início pronto", valem-se ainda da idéia que essa
mesma circularidade visa combater. Segundo as mostras, o Brasil nasce pronto com
"barroco", uma vez que as obras rubricadas por tal termo possuem "brasilidade" e que o
"Brasil" possui um "caráter barroco". De forma não-contraditória, no entanto, o "início
pronto" indica um processo de formação de nacionalidade.
As exposições, assim, combinam simultaneamente dois modos de proposição do
nacional de modo a produzir, por meio da exibição de objetos propostos como "barrocos",
celebração e especificação nacional. Em suma, essa combinação constitui a base operatória
da "significação brasileira de 'barroco"' e é empregada como a premissa que produz tanto o
"interesse visual" de "barroco" quanto os "modos de ver" propostos para os objetos
rubricados pelo termo.
A verossimilhança das exposições, do "interesse visual'' de "barroco" e do "modo
de ver" escolhido para ele, é garantida, num primeiro plano, desde que a circularidade
referida seja ostensivamente aplicada de modo que a postulação dupla (a brasilidade de
"barroco" e o caráter "barroco" do Brasil) permaneça indistinta e que os dois elementos
propostos sejam infinítamente intercambiáveis: a brasilidade dos objetos deve ser
justificada por "Brasil barroco", e esse, por sua vez, deve justificar a brasilidade dos
objetos. Num segundo plano, essa mesma circularidade, decorrência lógica do "início
pronto", deve coabitar com a idéia de "formação", e os objetos "barrocos", já brasileiros,
devem indicar um processo formativo que gera o presente.
Evidentemente, assim como nas respostas à Formação, tais procedimentos
argumentativos podem ser refutados. A refutação pode se dar pela própria crítica da
circularidade e da combinação dela com uma idéia a princípio antagônica. É possível ser
feita também através do questionamento dos dois elementos propostos como indistintos,
demonstrando, por exemplo, a impertinência do rótulo "barroco" ou de seu interesse
heurístico. A crítica pode ser feita ainda por meio de provas históricas ou de novos modelos
teóricos de interpretação dos objetos coloniais (nessa perspectiva, erroneamente totalizados
pelo termo) que não se preocupam nem com "barroco" e nem com a proposição de uma
narrativa da formação nacional. No entanto, devemos considerar que o tipo de discurso que
garante "barroco" nas exposições não é aquele que visa estabelecer novos paradigmas de
crítica da arte ou da literatura. As exposições não têm o propósito de apresentar a "última
46
palavra" a respeito de "barroco", ainda que textos de pesquisadores e de especialistas sejam
incluídos nos catálogos como provas que autorizam o "interesse visual" e o "modo de ver"
apresentados pelas mostras. O que as exposições e seus catálogos oferecem é mesmo uma
sedimentação, proposta como consensual, a respeito do assunto em torno do qual se
fundam; assunto que permita, nesse caso específico, uma celebração nacional.
A análise das respostas à Formação, além de ter nos explicitado o mecanismo de
argumentação circular - decorrência da postulação do "início pronto" do nacional na
colônia - e a coabitação dele com a metáfora formativa, também nos indica um repertório
59
compartilhado que é referido pela constituição do "interesse visual" de "barroco" • A
propósito do caranguejo de Alpers, deduzimos que seu "interesse visual" consistiria na
comprovação visual de determinados lugares-comuns a respeito da natureza e da ciência.
Os polemistas de Candido lançam luz sobre o possível lugar comum comprovado pelo
"barroco" das exposições, ou, pelo menos, sobre os repertórios prestes a tornarem-se
tópicas compartilhadas: a colônia como lugar privilegiado para a construção de uma teoria
do Brasil, uma especificação temporal da tópica da "relevância das raízes". A escolha da
colônia como lugar privilegiado para a postulação de "Brasil" talvez explicaria inclusive a
escolha de "barroco" pelas comemorações dos 500 anos. Aqui novamente há uma tradução,
uma sedimentação: o lugar privilegiado para a formulação de uma teoria do Brasil é
apropriado e proposto consensualmente como lugar adequado para a celebração do Brasil.
A constatação da tradução do lugar decisivo da teoria para o lugar perfeito da
celebração permite que se construa um novo projeto de identidade nacional. É possível
notar que as quatro exposições participam ativamente da construção de uma imagem do
Brasil. Guilherme Simões Gomes Jr., ao propor uma narrativa da aceitação, progressiva
59
A constituição de um repertório compartilhado a respeito de "barroco", evidentemente, não se
circunscreve à sedimentação dos textos de Candido, Campos e Coutinho. A bibliografia acerca de
"barroco" é extensa, e parte dela já se encontra de tal forma disseminada que talvez permita a
constituição de um reertório comum a respeito do termo, que já pode ser encontrado como adjetivo
de uso quotidiano. Essa bibliografia sedimentada incluiria desde Wõlfflin e D'Ors, os primeiros a
proporem a circulação do termo "barroco" seja como um estilo de arte ou uma constante, da história
da arte ou do espírito humano, até os textos a respeito do que se chama hoje de "barroco brasileiro",
"barroco mineiro", "barroco baiano", etc. Nessa última categoria, são fundamentais, por exemplo,
os conhecidos textos dos modernistas a respeito das cidades históricas mineiras (por exemplo, "O
Aleijadinho", de Mário de Andrade in Aspectos das Artes Plásticas no Brasil, SP, Martins, !965),
assim como os estudos de Lourival Gomes Machado, Germain Bazin, Affonso Ávila e Afrânio
Coutinho, que publicou inúmeros textos a respeito de "barroco" além de sua resposta à Formação.
47
mas dificil, de "barroco" nos circuitos intelectuais brasileiros dos séculos XIX e XX,
demonstra que as pessoas interessadas em fmjar grandes desdobramentos intelectuais de
projetos nacionais totalizantes desse período, tais como Araújo Porto Alegre, Mário de
Andrade e Antonio Candido, mantinham certa ojeriza com relação ao termo "barroco" e às
categorias analíticas decorrentes dele. Mesmo Mário de Andrade, apropriado pelos
catálogos como pioneiro na valorização de "barroco brasileiro", preferia referir
"Aleijadinho" como "expressionista" de modo a não usar o termo então pejorativo.
No entanto, hoje a circularidade ostensiva combinada à idéia de "formação" que
propõe a identificação de Brasil através de "barroco" e a colônia como lugar celebrativo da
nacionalidade demonstra que o termo não só permite como fundamenta projetos de
identidade nacional. Nesse novo projeto, o século XIX perde força com a entrada de
"barroco". O maior exemplo dessa readequação é a Mostra do Redescobrimento. A própria
cenografia da exposição já sugere a mudança desse projeto e do lugar que a colônia
ocuparia nele. Se a cenografia do módulo Arte Barroca foi o grande carro-chefe midiático
da exposição, com as imagens flutuando, ao som de batuques afro, em labirínticos mares de
rosas feitas por presidiários, a cenografia do módulo Arte do Século XIX consistia de uma
espécie de embuste neoclássico kitsch. A introdução do curador-geral da Mostra, Nelson
Aguilar, ao catálogo do módulo Arte Barroca explícita o que era apenas sugerido. O
curador aduz uma relação entre o prestígio contemporâneo de ''barroco" e o desprestígio do
XIX no cãnone atual das artes brasileiras. O interessante é que a valorização de "barroco" é
vinculada à própria aceitação consensual do "modernismo":
Com o choque cultural do modernismo, o barroco sai das profundezas onde o século
XIX o havia relegado, sobretudo a partir do advento do neoclassicismo. O sintagma
"barroco colonial" embutia uma idéia de atraso, de provincianismo, que o poder
sucessivamente real, imperial e republicano do Rio de Janeiro fazia questão de
confirmar (Redescobrimento, p. 32)
Esse novo desenho é confirmado de modo ainda mais contundente pela exposição
Brazil: Body and Sou!, que se propõe a apresentar um panorama significativo do que é
chamado pelo curador Edward Sullivan de "cultura visual brasileira". O panorama dessa
"cultura" sequer exibe obras do XIX e tem como núcleos "barroco" e o "modernismo".
No entanto, os termos genéricos desse novo projeto de identidade do Brasil através
de "barroco", que não se encontram circunscritos apenas á bolsa de valores das artes
brasileiras, é dado por Carlos Eduardo Moreira Ferreira. O presidente da FIESP, ao
48
prefaciar o catálogo da exposição que a sua instituição patrocinou, valoriza "barroco"
fazendo uma espécie de moral da história que possa interessar exportadores. "Barroco", que
serve de antídoto à desfiguração de nacionalidades, teria mostrado como foi possível
manipular "materiais da terra", através da criativa e miscigenada mão-de-obra local, mesmo
manipulada pela Igreja e pela metrópole, construindo com eles uma "expressão marcante".
Talvez "barroco" indique uma possibilidade para agregar valor a produtos brasileiros, na
medida em que permite a construção de uma nova genuinidade, valorizada no mercado
global.
Em suma, todas essas associações feitas a partir da "significação brasileira de
'barroco"' que garante o "interesse visual" e a verossimilhança celebratória da exibição de
objetos rubricados pelo termo, são possíveis através da combinação da argumentação
circular referida com a metáfora formativa. Porém, não podemos avançar mais em nossa
investigação acerca do uso de "barroco" pelos catálogos sem atentar para casos específicos
do uso do termo nos textos desses catálogos. Da mesma forma, essa investigação não se
fará completa sem que se atente para o modelo de estruturação dessas publicações.
49
2 Os catálogos e a ressonância de "barroco"
60
in Exhibiting Cultures, The poetics and politics of museum display, op. cit., pp. 42-56
51
estudo. Em Rethinking Art History: meditations on a coy sciencé1, Donald Preziosi repõe
essa questão como contradição primeira da história da disciplina que analisa. A História da
Arte, em particular, e a museografia, em geral (isto é, o conjunto de práticas discursivas
subsidiárias do museu, História da Arte incluída), postulariam um estatuto duplo e
contraditório de seu objeto: a obra de arte é proposta como objeto de caráter único e, ao
mesmo tempo, é tomada como tipo ou exemplar de uma classe. Essa postulação simultânea
indefiniria também o estatuto disciplinar da disciplina, uma vez que, se o caráter único
fosse unicamente admitido, não haveria prática discursiva regrada possível; se a idéia de
tipo e classe fosse o único pressuposto, entretanto, o termo "arte" não abrangeria um tipo de
objeto específico mas uma variedade morfológica de coisas distintas. Por isso, na
perspectiva de Preziosi, tratar-se-ia de um "coy science", uma ciência acanhada. A
distinção de um interesse museológíco produzido por "ressonância" e de um outro realizado
por "maravilhamento" seria subsidiária de uma postulação dupla e contraditória similar
àquela apontada por Preziosi, com a diferença de substituir o elemento classificatório
baseado na variação tipológíca por outro, de ordenação e de explicação por determinação
contextuaL A mesma indefmição do caráter único do objeto também se daria nesse caso, e a
"ressonância" e o "maravilhamento" seriam assim decididamente indistintos, tanto na
explicação especializada dos objetos quanto na exibição deles.
No entanto, com o objetivo apenas de descrever o uso da palvra "barroco" no nosso
corpus, usaremos o conceito de "ressonância" para assinalar que "barroco" engendra
repertórios abrangentes que podem ser mobilizados ou criados no seu uso discursivo-
museológíco. O termo ''barroco", apenas aparentemente designativo ou classificatório, tem
seu escopo de referência alargado quando é mobilizado no tipo de uso que descrevemos
aqui. Nesses usos, ''barroco" não engloba apenas objetos culturais históricos - como
etiqueta de um corpus- mas refere um panorama geral constituído para a interpretação
desses objetos. "Barroco", assim, não se refere apenas a esses objetos mas também ao
contexto proposto para eles, ampliado, como vimos no capítulo anterior, para a
identificação nacional e para a especificação de "mentalidades", de "brasilidades", de
situações históricas e transistóricas úteis para essas especificações. O termo ressoa,
portanto, tanto no que diz respeito ao que refere (não apenas os objetos designados por ele
61
New Haven e Londres, Yale UP, 1989
52
mas os repertórios discursivos que se valem dele) quanto no que significa (dependendo
corno é mobilizado, pode servir como resumo de urna nacionalidade). Tanto a circularidade
ostensiva, decorrência lógica do "inicio pronto" que indefine "barroco" de "Brasil", quanto
a proposição da "formação barroca" do país produzem essa ressonância, urna vez que
ampliam as condições de aplicação de "barroco".
62
"Museums, Artefacts, and Meaníngs" ín Peter Vergo (org.), The New Museology, Londres,
Reaktion Books, 1989, pp. 6-8
53
recontextualização que possibilitasse o uso público - democraticamente de acordo com os
pressupostos modernos que animavam a criação dessa nova instituição - de objetos antes
pertencentes a coleções privadas e destinadas ao consumo de poucos. Contudo, essa
recontextualização que os museus tentariam oferecer deveria atentar para dois tipos de pré-
requisitos. O primeiro seria relativo à não-arbitrariedade da recontextualização oferecida,
que deveria, de alguma forma, ser justificada tendo em vista o consumo público que
permitiria. O segunda pré-requisito seria pedagógico: a exibição dos objetos pelos museu,
agora aberta a um público amplo, deveria, como observa Smith, oferecer algum tipo de
beneficio educacional aos visitantes.
Seria interessante notar que essas dois pré-requisitos, uma vez cumpridos, se
satisfazem mutuamente. Se o fim pedagógico da exposição for aparente, a
recontextualização proposta certamente não surgirá arbitrária, tendo em vista que o
consumo público dos objetos pode ser garantido pelo beneficio educacional que eles
poderiam efetuar. Assim, supõe-se que, uma vez admitidos no museu, os objetos exibidos
devem ensinar algo de modo a justificar sua exposição. Por isso, esses dois pré-requisitos
podem ser fundidos numa mesma exigência pedagógica.
Visitas a museus e a exposições são tomadas como atos de enriquecimento cultural,
através dos quais, admite-se, algum tipo de conhecimento possa ser absorvido. A
ressonância de "barroco", apropriada na formatação de objetos que permitam esse tipo de
beneficio educacional, é traduzida aqui como repertório cultural a ser aprendido pelos
visitantes das mostras. O que seja esse repertório será especificado no quinto capítulo deste
trabalho; por ora, resta dizer que os objetos exibidos, especificados por "barroco", são
formatados para serem consumidos como indicativos de um repertório cultural tido como
válido. Apresentados como parte de um mundo de referências culturais e históricas, esses
objetos, formatados de tal forma, mobilizam a ressonância de "barroco" para que sua
fruição seja possível e interessante em termos pedagógicos.
54
ressonância, no que tange a sua mobilização como repertório cultural aprendido com
"barroco" no museu, produz primordialmente um tipo de conhecimento acerca dos objetos
"barrocos" exibidos: um conhecimento histórico. Como vimos, "barroco" não se esgota
enquanto designação de um determinado corpus; mais do que isso, o termo supre esse
corpus com uma série de repertórios interpretativos que motivam esses objetos. Esses
repertórios, por sua vez, atribuem historicidade aos objetos, o que permite que eles sejam
apropriados, por exemplo, pelas narrativas de especificação do nacional que operam
retroativamente, referidas no capítulo anterior. Mas apropriada pelas exposições, essa
ressonância constitui um contexto, um passado "barroco" de onde provêm os objetos
"barrocos" exibidos.
Assim, o uso do termo "barroco", que assinala, portanto, tanto os objetos quanto os
âmbitos de onde eles proviriam, bem como os modos pelos quais ambos devem ser
interpretados, atribui historicidade para os objetos exibidos, uma historicidade significativa
e verossímil: significativa porque acumula sentido histórico nos objetos, o que coincide
com o que se supõe aprender com sua exposição no museu; verossímil porque indica uma
especificidade histórica compreensível à medida que produz uma imagem consumível do
que seja o passado de onde esses objetos seriam selecionados.
Trata-se, portanto, de uma historicidade consumível, de uma passado museológico
sobreposto ao presente da exposição. Esse passado assim proposto, possibilitado pela
mobilização da ressonância de "barroco", indica, porém, ao mesmo tempo, uma alteridade
histórica e a desfaz, uma vez que pode tornar explícita, como veremos mais a frente, a ação
do presente projetada no passado. O díscurso que preside o uso comemorativo de "barroco"
é aquele que, como vimos no capítulo anterior, alega detectar no passado "barroco"
presumído traços que especificam o presente da nação. Sobrepondo, então, um passado no
presente, isto é, produzindo uma historicidade artificiosa e consumível, as exposições,
simultaneamente, justapõem esse passado ao presente, servindo como caso exemplar do
que afirma enfaticamente Donald Preziosi a respeito desse jogo de produção histórica no
museu:
Museums do not simply or passevely reveal or 'refer' to the past; rather they perform
the basic historical gesture of separating out of the present a certain specific 'past' so
as to collect and recompose (to re-member) íts displaced and dismembered relics as
elements in a genealogy of and for the present. The function of this museological past
sited within the space of the present is to signal alterity or otherness; to distinguish
55
from the present an Other which can be reformatted so as to be legible in some
plausible fashion as generationg or producing the present. What is superimposed
within the space ofthe present is imaginatively juxtaposed to it as its prologue63
63
"Art of Art History" inArt ofArt History, Donald Preziosi (ed.); Oxford, New York: Oxford UP,
1998; p. 511
64
idem, ibidem.
56
a museum is a non-profit making, permanent institution in lhe service of lhe society
and its development, and open to lhe public, which acquires, conserves, researches,
communicates, and exhibits, for purposes of study, education and enjoyment, material
evidence of man and his environment"66 [grifo nossoJ
Em 1989, a definição praticamente não sofreu alteração, exceto a substituição de "man" por
"people":
A museum is a non-profit making, permanent institution in the service of society and
its development, and open to the public which acquires, conserves, researches,
communicates and exhibits, for purposes of study, education and enjoyment, material
evidence ofpeople and their environment."67 (grifo nosso].
65
Website http://icom.museum!hist def eng.html, visitado em julho de 2003.
66
idem.
67
idem.
68
cf., por exemplo, a coletânea Exhibition Cultures, op. cit., dedicada exclusivamente a essa
questão
69
"Museums and Globalization" in Theorizing Museums, op. cit., pp. 21-43
57
A análise de como os objetos de rituais tribais são exibidos no museu é
acompanhada, no texto de Prõsler, por uma especulação acerca da evolução histórica da
idéia de "museu". Do theatrum mundi quinhentista ao museu nacional do XIX, as
diferentes concepções de "museu", simultâneas à invenção de técnicas de ordenação de
objetos diversos, teria servido ao longo do tempo para diferentes fins. De um modo geral, o
"museu", historicamente, seria um dos lugares primordiais para a produção das noções de
"mundo", de "nação" e de "identidade". O "museu" e a exposição museológica,
recentíssimas em suas acepções modernas, funcionariam como coroamento da inclusão
global de tempos e de culturas, disponibilizando-os como imagens e idéias em circulação
no mundo, como assinala a definição oficial do que seja um museu.
Portanto, é preciso ter em conta que "barroco", além de ser formatado para fins
pedagógicos e a de constituição de historicidade, também é condicionado, pelas exposições,
como evidência material de um modo de vida, preservada e posta em circulação num
sistema global de identificação antropológica do qual museus são peças-chaves.
A ressonância de "barroco", quando traduzida na criação de uma historicidade
consumível, opera dupla especificação. Primeiro, estabelece uma causalidade dos objetos
exibidos, denotando um contexto que os teria produzido. Além disso, a mobilização de
"barroco" transforma os objetos exibidos em evidência da nacionalidade ou do povo que os
teria produzido70 •
Como já se pode ver em Campos e em Coutinho, "barroco" pode especificar Brasil
e propor uma singularidade que, mesmo constatada em um periodo histórico específico,
unifica, transistoricamente, uma narrativa nacional. Procedimento similar é mobilizado
quando "barroco" é formatado em objeto museológico. No entanto, nas exposições, ele é
utilizado tendo em vista não apenas a proposição de uma narrativa nacional mas a exibição
fisica de objetos exemplares da especificação proposta. "Barroco", ao fundamentar essa
exposição, tem sua ressonância traduzida e fisicamente comprovada como especificação de
70
Em termos gerais, o campo discursivo chamado de "museografia", que abrengeria todos os
gêneros de escrita relativos à escrita dos objetos expostos no museu, da História da Arte ao catálogo
de exposição, operaria, enquanto produção de significado, segundo Preziosi, uma especificação
dupla do objeto de arte: "Art objects of ali kinds carne to have the status ofhistorical documents in
the dual sense that (I) each was presumed to provide significant, often unique and, on occasion,
profoundly revealing evidence for the character of an age, nation, person, or people; and that (2)
58
um modo de vida, documentado pelos objetos exibidos. Esse interesse antropológico que
corrobora "barroco" é referido pelos quatro catálogos analisados, mas mais fortemente é
proposto pelo catálogo Brazil: Body and Sou!, como veremos mais a frente.
their appearance was the result product of a historical milieu, however narrowly or broadly framed."
("Art History: Making the Visible Legible", in Art ofArt History, op. cit. p. 13)
" SP, iluminuras, 1999
59
particular do catálogo de exposição. Um paradoxo fundamental é constatado quando tal
tipo de arte é inserida no museu. De um lado, aduz Freire, o propósito primordial desse tipo
de produção artística seria o questionamento do lugar museológico, ironizado como lugar
autorizativo que definiria, em termos diversos (técnicos, criticos, imanentes,
transcendentes, etc.), o que seja "arte"; de outro, dadas as suas particularidades, porém, esse
tipo de arte só pode ser definido assim quando exposto no museu: o lugar museológico,
assim, ao mesmo tempo em que é questionado, é o que autoriza essa produção enquanto
arte, operando uma forma de "batismo". Nesse processo, o catálogo funcionaria como
procedimento complementar para dar relevância e estatuto de arte a essas produções, pois
serviria de certificado do batismo executado pela exposição, além de confirmação, escrita e
duradoura, do estatuto artístico desses objetos, garantido pela sua exposição no museu.
Evidentemente, por mais que as exposições que analisamos se esforcem em exibir os
objetos ditos "barrocos" por meio de procedimentos que lembram exposições de arte
contemporânea, a arte chamada "conceitual" e aquela proposta como "barroca", são,
possivelmente, incomparáveis. Não obstante, é possível anotar uma função similar dos
catálogos de exposição relativos a ambos tipos de objetos. Nos dois casos, os catálogos
funcionam como documento comprobatório da exibição: no primeiro caso, documento que
atesta o estatuto de objeto artístico; no segundo, atestado da ressonância proposta.
Os catálogos que constituem nosso corpus complementam as exposições, eventos
visuais e temporários, oferecendo uma contrapartida discursiva e duradoura do arranjo de
objetos exibidos. A ressonância de "barroco" é comprovada por eles de duas formas: eles
são a prova discursiva dela e, ao mesmo tempo, por si sós, constituem essa ressonância.
Isso pode ser comprovado, primeiramente, pela referência à primeira característica
verificada neles. Os catálogos de exposição estudados aqui afastam-se de uma imagem
mais convencional ou tradicional do que sejam catálogos de exposição, catálogos
completos de acervo ou mesmo catalogues raisonnés, na medida em que não lembram
essas publicações de caráter eminentemente técnico, que prevêem leitores especializados e
onde se registram as informações mínimas e necessárias, tendo em vista aquele caráter e
esse conjunto de interlocutores, a respeito das obras (nome da obra, nome do artista, técnica
empregada, ano da produção, acervo a que pertence a obra e, eventualmente, algum estudo
especializado a respeito dela). Antes de mais nada, os catálogos analisados aqui são
60
coletâneas de textos, em edições luxuosas, a respeito de "barroco" ou, ma1s
especificamente, do que se convencionou chamar de "barroco brasileiro". Os textos que
compõem essas coletâneas fundamentam-se em graus diferentes de especialização
discursiva. No entanto, a grande maioria deles não pressupõe, de antemão, urna instrução
muito especializada de seus leitores relativa, por exemplo, aos jargões típicos da História da
Arte, apesar de serem esses os jargões mais comumente empregados. Os catálogos dessa
forma serviriam como obras de iniciação ao estudo de "barroco" ou de "barroco brasileiro".
À primeira vista, os catálogos lembram as publicações, comuns no circuito de publicações
acadêmicas em língua inglesa, chamadas de readers. Poderiam ser republicados, sem
muítas modificações sob o título de Brazilian Baroque: a reader. Assim como os readers,
os catálogos se oferecem como urna representativa amostragem das produções intelectuais
a respeito de um determinado assunto. A falta de unidade conceitual ou mesmo
programática dos conjuntos de textos apresentados pelos catálogos r eforça a semelhança
com os readers, já que a intenção desse tipo de publicação, menos que propor um consenso
relativamente a o tema a que se dedica, é apresentar palavras-chaves e pontos de partida
para o estudo de determinado assunto, cobrindo diversas perspectivas teóricas e analíticas.
Esse caráter de coletânea refere e comprova a ressonância de "barroco", pois organiza, mais
ou menos livremente, textos relativos a sua exposição, ressaltando menos urna perspectiva
particular que pode ser aplicada aos objetos expostos do que inúmeras abordagens,
significações e repertórios motivados ou postos em relevo por esses objetos.
Essa ressonância de "barroco", assumida então no próprio modo pelo qual os
catálogos organizam e apresentam os textos de que se compõem, é ainda corroborada por
uma outra característica, de certa forma complementar ao caráter de coletânea referido,
apresentada por essas publicações. Chamar os catálogos de coletâneas não seria,
provavelmente, suficiente para caracterizá-los, urna vez que os textos veiculados
apresentam um grau de dispersão, relativo aos assuntos de que tratam, talvez não
admissível mesmo para uma coletânea. Para se ter noção dessa dispersão, cumpre dizer que,
muítas vezes, no conjunto de textos de um mesmo catálogo, sequer há coincidência com
relação ao significado da palavra "barroco". De um modo geral, o termo, que descreve o
tema geral das exposições, é tomado como etiqueta genérica para toda a produção artística
da colônia brasileira. No entanto, em muitos textos dos catálogos, "barroco" descreveria
61
apenas um dos estilos artísticos dessa produção, que é totalizada a partir do trio
"maneirismo"/"barroco"/"rococó". É certo que o formato de coletãnea suportaria tal
dispersão conceitual; no entanto, nesse caso, a ausência de unanimidade acerca do que
abrangeria "barroco" inviabilizaria as próprias exposições, uma vez que prometeriam a
exibição de "barroco", exibindo "maneirismo" ou "rococó". Além dessa falta de
coincidência com relação ao que descreve "barroco", a dispersão dos textos dos catálogos
ainda é verificada nos casos em que determinados artigos partem de temas muito
indiretamente relacionados com o tema das mostras (é o caso, por exemplo, dos textos mais
informativos, que veiculam informações diversas a respeito de assuntos variados, como a
"mineração no Brasil").
Ressalta-se ainda que há um certo destacamento dos textos dos catálogos com
relação às obras expostas, o que salienta ainda mais o caráter de coletãnea dispersa bem
como a ressonãncia de "barroco", tomando mesmo dispensável a referência aos objetos
específicos apresentados nas exposições. Há, por exemplo, textos que não tratam de
nenhuma obra (é o caso dos artigos que propõem uma espécie de comentário geral a
respeito de "barroco brasileiro" e dos que, de um modo geral, argumentam uma
"brasilidade" das produções catalogadas pela rubrica), bem como há textos que tratam de
obras que não fazem parte da exposição (por exemplo, nos artigos que tratam de um estilo
artístico ou arquitetônico específico, existem constantes referências a o bras consideradas
canônicas e fundamentais para a compreensão desse estilo, sem que, contudo, essas obras
referidas façam parte da mostra. O mesmo ocorre nos artigos mais monográficos a respeito
de determinados artistas, de escolas de produção e de outros conjuntos de obras,
organizados técnica, temática ou formalmente). Por fim, há mesmo textos que nem sequer
referem-se a "barroco" ou que tratam de objetos mesmo impossíveis de ser expostos (como
os textos sobre "literatura barroca" ou sobre "festa barroca", que só por indicias admitem
exposição).
Entretanto, a despeito dessa impressão inicial de independência desses volumes com
relação às exposições e às obras expostas, os catálogos não são apenas coletãneas. Além
das reproduções das obras expostas que constam dos volumes, há, neles, um outro elemento
que realiza, performaticamente, a especificidade dos catálogos. Toda ressonãncia produzida
pelo caráter de coletãnea dispersa e pelo aparente destacamento é acomodada nos
62
catálogos. Essa acomodação é verificada na tipologia evidente dos textos agrupados pelos
catálogos. Há, notadamente, três tipos de textos com caracteristicas e funções particulares.
Os dois primeiros tipos, necessariamente, referem-se às exposições, coletando, tendo em
vista a ilustração discursiva das mostras, toda ressonância distribuída à profusão.
Antecedendo os textos agrupados segundo o caráter de coletânea referido, há, nos quatro
catálogos, prefácios e introduções que constituem referência às exposições e que, ao
perfazer essa referência, redefinem o sentido dos textos que surgem em sua seqüência.
Os prefácios, de caráter mais epidítico, celebram a exposição, defendendo a
pertinência do evento e das obras rubricadas por "barroco". As introduções, mais analíticas
e acabadas em termos conceituais, expõem as diretivas mais básicas da exposição. A
explicitação dos projetos curatoriais realizada pelas introduções constitui molduras
interpretativas que enquadram as obras expostas e particularizam as exposições,
diferenciando-as entre si. Ambos, prefácios e introduções, circunscrevem os outros textos
que constam nos catálogos, aqueles que poderiam ser livremente agrupados em forma de
coletânea, que chamaremos de "estudos", tendo em vista o fornecimento de categorias de
legitimidade e de legibilidade para os objetos da exposição, constituindo o subsídio
ressonante de "barroco".
63
mais parecido com o que chamamos de coletânea dispersa. Essa impressão é constituída,
primeiramente, pelo caráter não inédito da maioria dos textos. O catálogo faz um apanhado
geral de artigos já publicados a respeito de "barroco brasileiro" em revistas especializadas,
nacionais e estrangeiras, e em outros catálogos de exposição. Há desde a já célebre
biografia de Aleijadinho escrita por Lúcio Costa e publicada em 1978 até textos de
colaboradores da revista Barroco, comandada por Affonso Ávila. Assim, é o catálogo que
apresenta a maior variedade de textos, tanto com relação ao grau de especialização
discursiva ( há artigos que usam vocabulário bem específico, como aqueles em que se
discute a atribuição de autoria de algumas obras tendo em vista a elaboração de um
catalogue raisonné de um determinado artista; ao mesmo tempo, há outros textos mais
genéricos, como "O Despertar da Terra", de Orlandino Seitas Fernandes, uma espécie de
narrativa histórica romanceada a respeito da colonização e do ciclo do ouro em Minas
Gerais), quanto com relação aos temas variados nos quais os textos se debruçam.
Os textos encontram-se assim distribuídos:
L a apresentação, constituída pelo texto do presidente da FIESP;
2. o texto do curador;
3. uma divisão, não nomeada no volume, que contempla os textos "O despertar da Terra",
de Orlandino Seitas Fernandes (que apresenta uma espécie de narrativa história que
contextualizaria a exposição e suas objetos); "Tropicalidade de Barroco", de Riccardo
Averini (em que se defende uma particularidade extra-européia, mais especificamente
tropical, na constituição do que se chama de "estilo barroco"); "Barroco: a arte da
fantasià', de Nicolau Sevcenko (em que se apresentam caracteristicas históricas e
culturais a respeito de "barroco" e em que se defende que "barroco" constitui elemento
fundamental de uma "alma brasileira");
4. a divisão chamada de "Arquitetura", que reúne os textos: "Barroco no Brasil", de
Augusto C. da Silva Telles (uma análise da bibliografia a respeito da produção
arquitetônica do Brasil colonial); "A arquitetura e as artes plásticas no século XVIIf',
de Myriam de Andrade Ribeiro de Oliveira (em que se apresentam uma descrição e uma
análise da produção arquitetônica e plástica do século XVIII no Brasil) e "Ornamentos
- Encantos do Barroco no Brasil", de Wolfagang Pfeiffer (em que se analisa a produção
de ornamentos para os templos durante o período colonial);
64
5. a divisão chamada de "Escultura", que se compõe dos artigos: "Escultura colonial do
Brasil", de dom Clemente Maria da Silva-Nigra (em que se registram obras e artistas
importantes e em que se dá particular atenção à produção de imagens sacras);
"Escultura no Brasil colonial", de Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira (em que se
analisam os estilos da produção escultórica); "Os escultores baianos Manoel Inácio da
Costa e Francisco das Chagas, 'O Cabra'", de Jacques Résimont (em que se discute a
atribuição de obras a esses artistas e em que se analisam os estilos pessoais deles);
"Antonio Francisco Lisboa, 'O Aleijadinho"', de Lúcio Costa (uma apresentação de um
perfil biográfico do artista); "A madeira como arte e fato", de Anna Maria Fausto
Monteiro de Carvalho, (em que analisa a produção do artista conhecido como Mestre
Valentim);
6. a divisão "Pintura", constituída pelos textos: "Notícia sobre a pintura religiosa
monumental no Brasil", de Clarival do Prado Valladares (em que se analisa o que o
autor do texto denomina de "pintura monumental"); "A corporação e as artes plásticas:
o pintor, de artesão a artista", de Jaelson Britan Trindade (em que se teoriza a respeito
do estatuto do artista na colônia);
7. as divisões "A Prata" e "O Ouro", com um só texto, "Notas sobre a prata e a mineração
no Brasil", de João Marino, inserido após a primeira chamada, que apresenta
informações a respeito da mineração na colônia;
8. a divisão "mobiliário", sem texto algum;
9. a divisão chamada de "Continuidade do Barroco", constituída pelos textos: "As tábuas
votivas no ciclo do ouro", de Márcia de Moura Castro (em que se analisa a produção de
ex-votos em Minas Gerais, no século XVIII); "A música barroca no Brasil", de Régis
Duprat (a respeito da m usica colonial brasileira);" O Barroco e a literatura", de Leo
Gilson Ribeiro (defesa do caráter "barroco" das produções de Gregório de Mattos e de
Padre Vieira); "Entre a vida comum e a arte: a festa barroca", de Maria Lúcia Montes
(que trata de uma "festa barroca");
10. por último, uma parte que, apesar de também não ser nomeada, chamamos de
"Referências", constituída por uma cronologia sobre "barroco" no Brasil, "Cronologia
do Barroco no Brasil", e por umas eJeção de referências bibliográficas a respeito do
tema da mostra, "Barroco Brasileiro: uma bibliografia seletiva".
65
A partir dessas divisões, poderíamos, a princípio, supor algum tipo de relação entre
os textos. Eles poderiam, por exemplo, ser uma aplicação de uma tese geral ou de um
conjunto comum de categorias a grupos específicos de objetos contemplados na exposição,
organizados segundo os tipos referidos pelas divisões (obras arquitetônicas, esculturas,
pinturas, etc.). No entanto, não é isso o que se verifica efetivamente depois da leitura atenta
dos textos. Possivelmente devido ao fato de serem textos não escritos especialmente para o
catálogo da exposição e, portanto, de terem sido organizados dentro dessa divisões a
posteriori, os artigos não constituem sequer uma unidade aparente. Não há tampouco
coincidência exata dos objetos referidos pelos artigos de cada uma das divisões; por
exemplo, na seção denominada "arquitetura", há artigos que não tratam apenas de obras
arquitetônicas.
A disposição das fotos das obras na publicação também sugere algo interessante a
respeito da constituição do catálogo. Muitas vezes, surgem como aspecto ornamental e
ilustrativo do volume, como é o caso exemplar das fotografias presentes nas páginas
iniciais que servem para enfeitar as listas que enumeram os integrantes da equipe técnica da
exposição, as instituições que emprestaram as obras e os colaboradores. De um modo geral,
as fotos não estão localizadas em uma parte específica do volume, como se suporia em um
catálogo; elas se encontram distribuidas ao longo de toda a publicação, às vezes
organizadas segundo as divisões do catálogo, trazendo objetos representativos de cada uma
dessas divisões. Nota-se que a opção do organizador do volume foi a de justamente
misturar textos e imagens, não criando divisões específicas para cada um deles. Há, assim,
uma interferência maior entre textos, ou seja, a produção intelectual a respeito dos objetos,
e os próprios objetos por esses textos constituidos. Essa disposição cria o efeito de que as
obras da exposição, reproduzidas pelas fotos, servem para ilustrar e para exemplificar os
textos dos catálogo, e não o inverso, ainda que haja algumas dessas divisões que são
constituídas apenas por imagens, e não por textos.
66
Primeiramente, devemos considerar o aspecto luxuoso da edição. A exposição foi
realizada na França, mais especificamente no Petit Palais, em Paris, sob a idealização da
União Latina e apoio do Governo do Brasil. Apesar de a exposição ter sido sediada no
exterior e haver uma edição francesa, houve também uma edição brasileira do catálogo.
Essa edição brasileira traz dois volumes dentro de uma caixa: o primeiro é a edição
francesa do catálogo, com textos em francês e fotos com as reproduções das obras; o
segundo, menor, contém a penas os mesmo textos do primeiro v olume traduzidos para o
português. Seria interessante notar que essa edição do catálogo vendida no Brasil insinua
que ele se insira na tradição de textos sobre o Brasil ou sobre "cultura brasileira" veiculados
no exterior e, depois, divulgados aqui. Poder-se-ia especular um pouco sobre isso,
acentuando a tópica de autorizar discursos sobre o país a partir do exterior.
A organização editorial dos volumes também tem suas particularidades. Ao
contrário do catálogo Universo Mágico, no qual as reproduções das obras se encontram
distribuídas ao longo dos textos, em Brasil Barroco elas ocupam um lugar próprio,
separadas dos artigos. Nota-se também que as divisões da exposição não coincidem com as
divisões do volume. O catálogo se divide nas seguíntes partes: prefácios, introduções,
estudos, imagens e legendas, notas sobre as obras, cronologia e bibliografia. Dentro da
seção "imagens e legendas", há algumas subdivisões que indicam quais seriam os
compartimentos visuais da exposição: "O céu", "A terra materna", "berço da eternidade",
"morte e ressurreição", "a litania dos santos", "a chama viva", "oratórios", "esplendor da
madeira e do ouro", "da natureza e dos homens", "fachadas", "à face do céu",
"documentos", "a prata", "o marfim e o ouro". No entanto, também há, como dissemos,
"notas sobre as obras", que comentam particularmente cada grupo de obras. De qualquer
forma, não há, entre os artigos, ou "estudos", e obras, relações diretas de ilustração e
comentário, como havia no Universo Mágico, dada a disposição das fotos das obras
expostas daquele volume.
Há também outras peculiaridades em relação à forma de combínar a estrutura básica
"prefácios/introdução/estudos". Primeiramente, não há propriamente a figura do curador ou
um texto do curador que concatene conceitualmente todos os textos apresentados. No
entanto, há três introduções que dotam de certa unidade, ainda que heterogênea, os artigos
constantes do catálogo, como veremos mais à frente. Os autores da introdução -
67
principalmente Edouard Pommier, que assina a maioria das notas sobre as obras - parecem
ter algum papel mais decisivo na organização da exposição e na arquitetura conceitual dela,
apesar de não serem creditados como "curadores".
Outra particularidade é a interlocução mais precisamente definida pelo catálogo,
apesar de não ser feita, muitas vezes, de modo explícito. Anotamos, quando tratamos do
formato de coletânea assumido pelos catálogos, que essas publicações preveriam um leitor
um pouco indistinto, sem formação específica, que gostasse de se aprofundar a respeito de
"barroco brasileiro". Nos prefácios e nas introduções de Brasil Barroco, a previsão de um
leitor é algo mais afunilado, não pelo grau de especialização proposto para ele, mas pela
distância efetiva que esse leitor suposto estaria de "Brasil" e de "barroco".
Isso, provavelmente, explique o destacamento maior, relativamente ao catálogo
Universo Mágico, entre textos e obras. Como se trata de um leitor, a princípio, pouco
familiarizado com os objetos expostos, faz-se necessário apresentar estudos mais gerais e,
principalmente, mais capazes de construírem contextualizações responsáveis por dotar de
maior significação as o bras. Porém, esse destacamento também poderia ser creditado a o
fato de h aver uma parte exclusiva do v olume em que se faz comentários a respeito das
obras particulares, o que permite que os "estudos" sejam mais gerais e abrangentes, sem
terem que focalizar, comentar ou mesmo ilustrar objetos específicos.
Outro fator condicionante do caráter gera! dos textos do catálogo, principalmente
com relação aos prefácios, é o seu tom oficial. Devemos lembrar que se trata de uma
exposição organizada também pelo Governo Brasileiro, mais precisamente, pelo Ministério
das Relações Exteriores. Esse caráter oficial é constituído primeiramente pelos nove
prefácios de autoridades brasileiras e francesas que abrem o volume. Esses prefácios
acabam por servir de moldura para tudo o que se segue, montando uma visão autorizada
sobre o que seja "barroco brasileiro" e da importância disso na constituição de "Brasil".
Mas mesmo que esses dois fatores condicionantes, interlocução estrangeira e tom
oficial, sejam de fato condicionantes também do restante dos textos, ainda é preciso anotar
algo a respeito da relação entre eles. Para tanto, reportaremo-nos às próprias seções do
catálogo. Depois da lista de patrocinadores, da comissão técnica envolvida no evento e do
aviso de que a exposição foi "realizada sob os auspícios de Jacques Chirac, Presidente da
República Francesa, e de Fernando Henrique Cardoso, Presidente da República Federativa
68
do Brasil", seguem-se os prefácios. Como já dissemos trata-se de nove prefácios assinados
por autoridades brasileiras e francesas de então (seguindo a ordem em que aparecem,
Fernando Henrique Cardoso; Jacques Chirac; Hebert Vedrine, Ministro das Relações
Exteriores da França; Luiz Felipe Lampreia, Ministro das Relações Exteriores do Brasil;
Francisco Corrêa Weffort, Ministro da Cultura do Brasil; Catherine Trautrnann, Ministra da
Cultura e Comunicação da França; Jean Tiberi, Prefeito de Paris; Geraldo Cavalcanti,
Secretário Geral da União Latina; e, por último, o prefácio, que não consta dos índices do
volume, dos editores do catálogo). Os prefácios saúdam a exposição e agradecem aos
organizadores e patrocinadores da mostra. Além disso, definem que se trata de gesto
diplomático e de política de relações exteriores e argumentam, de modo geral, que a
exposição se dá no momento certo (comemoração dos quinhentos anos do Brasil) e no lugar
certo (França, país com que o Brasil teria intenso diálogo cultural; Paris, capital mundial da
cultura; Petit Palaís, museu célebre de Paris, além de marco arquitetônico e cultural da
cidade). Seria interessante notar que o local da exposição é tomado tanto como indício da
importância do tema quanto tentativa de autorização do mesmo. Em linhas geraís, os
prefácios também argumentam a pertinência de "barroco" para a compreensão de algum
aspecto relativo ao Brasil.
Depois do prefácio, há três introduções: "Uma aventura histórica e cultural'', de
Gilles Chazal, diretor do Petit Palaís, em que se expõe a pauta de exposições do museu em
que a mostra se insere e em que se contextualiza de forma geral a ocorrência de "barroco"
no Brasil; "Uma arte fundadora de culturas", de Angelo Oswaldo de Araújo Santos,
secretário de Cultura do Estado de Minas Geraís, em que se expande a contextualização de
"barroco" e em que se propõe o que seja o termo: "um estilo de vida", capaz de dotar de
expressão a colônia brasileira; "Barroco Brasil Barroco", de Edouard Pommier, inspetor
geral honorário dos Museus da França e conselheiro de Belas Artes da União Latina, em
que se propõe etapas de um processo de assimilação de "barroco" no Brasil, além de se
defender determinadas qualidades de "barroco". Grosso modo, as introduções definem o
que seja "barroco", defendem o valor das obras catalogadas pelo termo através de uma
função suposta de "barroco", qual seja a capacidade de criar "expressão" na colônia e de
funcionar como alicerce da fundação de uma cultura.
69
Entre os "estudos", assrm como no outro catálogo, não há uma homogeneidade
aparente. Há artigos de cunho mais analítico a respeito de obra, região ou período
específico; em outros, há simplesmente um inventário de obras. No entanto, nota-se que se
concentra em Brasil Barroco textos mais "genéricos". Chamamos de "textos genéricos"
aqueles que não tratam de modo mais específico de uma obra ou de um autor particular, e
mesmo quando o fazem, ocupam-se mais de generalidades. Esse tipo de texto não elabora
discussões especializadas a respeito de atribuição de autoria ou de classificação estilística,
por exemplo, mas enuncia coordenadas gerais, contextuais, biográficas ou interpretativas.
Há claramente uma tentativa, mesmo se apresentando de forma um pouco diferente em
cada um dos textos, de fornecer essas coordenadas gerais a respeito de "barroco",
familiarizando o interlocutor estrangeiro previsto com maneiras de leitura autorizadas sobre
o que se chama de "arte colonial brasileira" (a propósito dessas coordenadas, vale notar
que, antecedendo os textos, o catálogo traz um mapa do Brasil com as "cidades barrocas"
assinaladas). Assim, "Encontro do novo mundo, 500 anos depois", de Ana Maria de
Moraes Belluzzo, analisa os padrões de construção da representação do novo mundo e as
decorrências psico-cognitivas desses padrões de representação; "Entre a ordem e o caos",
de Nicolau Sevcenko, oferece "barroco" como uma constante da mentalidade brasileira,
além de contextualizar a sua ocorrência na colônia; "Revisitando a escultura barroca
brasileira", de Maria Helena Ochi Flexor, repõe e repensa algumas categorias de
interpretação da escultura produzida no período colonial, tomada como "barroca"; "O
barroco no país do açúcar", de José Luiz Mota Menezes, propõe uma moldura contextual
para "barroco" baseada no ciclo da cana de açúcar; "Barroco, estilo de vida, estilo das
Minas Gerais", de Affonso Ávila, oferece "barroco" como um "estilo de vidà' típico de
Minas Gerais colonial; "Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho", de Myriam Andrade
Ribeiro de Oliveira, analisa, de forma panorãmica, vida e obra de Aleijadinho;
"Especulações em tomo da igreja São Francisco de Assis de Ouro Preto", de Lygia Martins
Costa, estabelece a classificação estilística mais adequada para a igreja executada por
Aleijadinho; "Barroco e o mundo contemporãneo", de Benedito Nunes, dá conta das fases
de recepção de "barroco brasileiro" no Brasil, fornecendo uma espécie de análise
bibliográfica de cada uma delas; "O barroco nas missões", de Armindo Trevisan, estuda a
escultura produzida nas "reduções" jesuíticas; "O barroco no Rio de Janeiro", de Augusto
70
Carlos de Silva Telles, faz um inventário de obras arquitetônicas remanescentes do período
colonial no Rio de Janeiro; "Poesia do barroco", de Haroldo de Campos, estabelece
características gerais da poesia dita "barroca" e a sua situação na historiografia literária
brasileira.
71
muito mais com os artigos que estamos chamando de estudos do que com as introduções
propriamente. Mesmo percebendo que esse texto possivelmente tenha tido uma função
instrumental na organização da mostra (nota-se, por exemplo, uma correspondência entre as
seções em que constam as reproduções das obras e as categorias classificatórias oferecidas
por Oliveira em seu texto), não há nele sequer referência à exposição. Trata-se, assim,
muito mais de uma apresentação de repertórios de termos autorizados para o tipo de objeto
que se ocupa a exposição do que propriamente uma apresentação específica dos
procedimentos curatoriais adotados. Por isso quando trataremos das tópicas comuns das três
partes dos catálogos, analisaremos o texto de Oliveira juntamente com os "estudos".
Mas se há uma economia de textos, há também menos diversidade de tipos de
objetos expostos. Nas outras exposições, além das esculturas, constavam pinturas, mapas,
documentos, mobiliário, etc. Em Arte Barroca, a predominância é mesmo das esculturas,
com exceção dos dois objetos de prataria exibidos. A economia de textos e de tipos de
objetos talvez possa ser explicada pelo fato de que a Mostra não foi exclusivamente
dedicada a obras "barrocas", e incluía, além do módulo Arte Barroca, outros 12 módulos a
respeito de temas ou épocas diferentes.
Porém, se são mais contidos tanto o catálogo (em que consta apenas um prefácio,
uma introdução e um estudo) quanto os tipos de objetos expostos (praticamente apenas
esculturas), a cenografia da exposição, e especialmente aquela empregada no módulo Arte
Barroca, difere radicalmente da empregadas nas outras exposições, que tentavam
reproduzir uma ambiente de igreja. A controversa cenografia do módulo destinado à arte
"barroca" na Mostra do Redescobrimento constituiu-se de algumas salas, dispostas de
modo labiríntico, particularmente aquela destinada às imagens processionais, que
flutuavam em um mar de flores de papel crepom confeccionadas por presidiários,
embaladas com sons de batuque que sugeriam um aspecto de sincretismo religioso.
Obviamente, nosso objeto de estudo aqui se restringe aos textos dos catálogos.
Porém, pensar no catálogo de Arte Barroca da Mostra do Redescobrimento tendo em vista
a cenografia da exposição pode nos sugerir algo a respeito da maneira como a organização
do evento se utiliza o gênero discursivo de escrita museográfica que nos interessa
particularmente aqui. Poderíamos dizer que há uma diferença nos estilos de organização, de
um lado, da pirotecnia cênica da exposição e, de outro, da sobriedade do catálogo, o que
72
talvez sugira que catálogo e exposição prevêem interlocutores não coincidentes ou mesmo
que cumpram diferentes papéis específicos. Para agregar valor midiático enquanto evento
espetacular e grandioso, a exposição se vale, em boa medida, além das próprias obras
expostas, da cenografia controversa que chama a atenção para o módulo. A cenografia do
módulo Arte Barroca realizou com eficiência a sua tarefa de diferenciar e de destacar o
módulo, angariando maior público. O catálogo, por sua vez, sem a mesma preocupação,
explicitando as diretrizes da curadoria e propondo categorias de legibilidade e de
contextualização para uma leitura mais autorizada das obras e, assim, baseando-se em
lugares discursivos já assentados sobre elas, apresenta-se de outra forma, mais sóbria e
convencional.
A diferença básica que a exposição Brazil: Body and Sou! apresentaria em relação
ás outras reside no fato de não se tratar exclusivamente de uma mostra a respeito de "arte
barroca" ou de "barroco brasileiro". Ainda que "barroco" não tenha sido o único tema da
Mostra do Redescobrimento, a exposição do Parque do Ibirapuera se constituiu por
módulos relativamente estanques, como se a Mostra fosse, na verdade, um grande conjunto
de exposições menores. O propósito de Body and Sou!, diferentemente, por exemplo, do
módulo Arte Barroca da Mostra do Redescobrimento, não é a apresentação de um "barroco
brasileiro", mas, tal como explicitado nas introduções e prefácios constantes no catálogo, o
reconhecimento e a identificação mais ampla de uma "cultura brasileira" da qual "barroco"
seria peça fundamental. Nesse sentido, "barroco" não encerraria em si a finalidade da
mostra, apesar de ser elemento decisivo dela, juntamente com o modernismo.
Como dissemos, a exposição não mostrou as obras em compartimentos; apresentou-
as indistintamente no grande prédio da sede do museu Guggenheim, em Nova Iorque,
projetada por Frank Lloyd Wright, que teve sua região mais nobre, a grande redoma
central, ocupada pelo retábulo do altar principal da Igreja de São Bento de Olinda, pintada
de preto, segundo cenografia do arquiteto francês Jean Nouvel. No catálogo, entretanto, os
objetos da exposição foram divididos em sete partes que se sucedem depois dos prefácios
de Edemar Cid Ferreira, presidente da Brasi!Connects; Rubens Antonio Barbosa,
embaixador do Brasil nos Estados Unidos; Flávio Miragala Perri, cônsul geral do Brasil em
73
Nova Iorque; Thomas Krens, do diretor do Museu Guggenheim; e, enfim, depois da
introdução do curador geral da mostra, Edward J. Sullivan.
Dentro das sete partes que sucedem os prefácios e a introdução, há estudos sobre o
período ou tema do capítulo e "catalogues overviews" (isto é, comentários específicos a
respeito das obras feitos pelo curador geral), que são seguidos pela reprodução fotográfica
das obras expostas (exceto os capítulos "Architecture" e "Cinema", que trazem apenas
estudos). Os capítulos do catálogo são: "The encounter", que inclui objetos de povos
indígenas e as telas dos holandeses F rans P ost e A lbert E ckhout; "Baroque B razil", que
concentra as peças "barrocas"; "Afro-Brazilian Culture", sobre "arte afro-brasileira";
"Modem Brazil", que inclui, além de obras modernistas, "arte concreta" e partes especiais
para os artistas Lygia Clark, Hélio Oiticica e Artur Bispo do Rosário, para os ex-votos de
"milagres" e para as "carrancas"; "Contemporary Brasil", que reúne e estuda projetos
contemporâneos; "Architecture" e, por fim, "Cinema".
Mesmo reconhecendo que "barroco", segundo o projeto da exposição, explicitado
pela introdução do curador, é posto em perspectiva da visão global da cultura brasileira e
deve ser entendido, no catálogo, como elemento não divisível de todo o conjunto de obras
exposto, destacamos, para a análise que faremos mais a f rente a respeito dos "estudos",
apenas os artigos que constam no capítulo "Baroque Brazil" ("The Baroque Culture of
Brazil", de Affonso Á vila, que propõe "dinâmicas complexas" do funcionamento de
"barroco"; "Brazilian Baroque Art", de Cristina Ávila, onde se destaca uma tipologia da
produção colonial de talha de madeira, estatuária e pintura de teto; "Brazilian Baroque
Architecture", de Augusto C. da Sila Telles, um inventário das obras arquitetônicas
"barrocas" do Brasil; "The Main Altar of São Bento de Olinda", do mesmo Augusto C. da
Silva Telles, em que se detém na análise desse altar) e, além deles, os textos "Toward a
Phenomenology of Brazil's Baroque Modemism", de David K. Underwood, constante no
capítulo "Architecture", e "The Baroque, the Modem, and Brazilian Cinema", de Robert
Stam e Ismail Xavier, constante de seção "Cinema". Isto será feito por dois motivos:
primeiro, para que não se perca o propósito de nossa investigação e, segundo, porque há
mesmo uma maior atenção dispensada a "barroco" na exposição, tanto em termos
conceituais, relativos a uma especificidade da cultura visual brasileira condicionada por ele,
quanto em termos da exibição em si - destaca-se, nesse sentido, a significativa proporção
74
de obras "barrocas" e a atenção dispensada a elas, especialmente ao altar da Igreja de São
bento, pela cenografia da mostra.
Ressalta-se, ainda, mais duas diferenças que o catálogo Body and Sou! guardaria em
relação aos demais já referidos. A primeira seria relativa a uma prática museográfica mais
profissional e auto-reflexiva. Isso é bem demonstrado pela introdução do curador, que se
vale inclusive dos próprios limites da escrita do catálogo - o destacamento da publicação
com relação à exposição e seus anseios totalizadores para refletir sobre as categorias
empregadas na organização da mostra. Isto não equivaleria a dizer que o catálogo Body and
Sou! seria superior aos outros, em termos de elaboração conceitual, mas apenas que
indicaria uma maior profissionalização museológica, perceptível no emprego, auto-
reflexivo e mesmo metalingüístico, do gênero de escrita museográfica "catálogo de
. - ".
expos1çao
A outra diferença, bastante marcante e decisiva, é o ponto de vista externo e
estrangeiro, com relação às artes ou à "cultura" brasileiras, muito mais marcado, por
exemplo, que o catálogo da outra exposição realizada no exterior que analisamos aqui,
Brasil Barroco, entre céu e terra. Mesmo que no catálogo da exposição francesa,
particularmente no texto de Edouard Pommier, haja também um ponto de vista externo
referido, essa perspectiva, grosso modo, não extrapola os limites do discurso diplomático e
do tom de celebração das artes do pais amigo. No catálogo Body and Sou!, diferentemente,
apesar dos textos de autoridades que abrem a publicação, nota-se uma tentativa deliberada e
programática de demonstrar alteridade, de apresentar o que o curador chama de "cultura
visual brasileira" de modo a a tentar p ara sua particularidade e diferença relativamente à
"arte" e "cultura" americanas ou dos países ricos do ocidente. Nessa direção, alguns
elementos do catálogo são exemplares. O primeiro deles seria o artigo "Brazil in Historie
Context", em que se propõe um resumo esquemático da história do Brasil que aponta para
problemas do país; são destacados, por exemplo, na conclusão do texto, os péssimos
indicadores sociais brasileiros. A a lteridade e a diferença que a arte brasileira teria com
relação às produções dos países desenvolvidos são insinuadas pelo diretor do museu
Guggenheim, Thomas Kren, em seu prefácio. Krens inclui a presente exposição no projeto
de exposições "globais" do museu, dedicado a representar as diferenças dos povos do
mundo que poderiam todos oferecer "culturas vibrantes". Outros elementos que demarcam
75
alteridade estão presentes na introdução do curador Edward Sullivan. A tela Samba, de Di
Cavalcanti, por exemplo, é tomada como ícone do desenvolvimento da "cultura visual
brasileira" no modernismo, porque ali se representa negros, além da dança-símbolo do
país,. Mesmo que essa representação tenha sido feita por uma pessoa branca, Sullivan
comenta que esse ato seria representativo da busca brasileira de uma "voz própria" em sua
arte. Porém, o mais importante com relação a esse ponto de vista externo em que se
posiciona a mostra seria o conjunto de categorias que Sullivan toma como linhas gerais da
proposta de "cultura visual brasileira". Nesse sentido, como veremos, a própria noção de
"visão externa" seria operante no sistema dessa cultura visual.
76
comportam-se como gêneros de sedimentação. Não importa que os textos sejam diversos,
que tratem de temas diversificados, que usem categorias analíticas diferentes, que partam
de perspectivas criticas antagônicas ou não-comparáveis, que apresentem, enfim, um
amálgama discursivo heteróclito, desde que se atente, num primeiro plano, para exigência
pedagógica, histórica e antropológica da museificação dos objetos apresentados e, num
segundo plano, que ofereçam um motivo genérico de celebração cultural-nacional. Dessa
forma, toda a heterogeneidade de textos é neutralizada, acomodada e pacificada. Essa
heterogeneidade não é sequer um problema a ser resolvido pelos catálogos, pois, quanto
mais ressonância alcançada, mais eficácia museográfica e, portanto, museológica se atinge.
Os catálogos formatam, assim, objetos para um consumo cultural: ao mesmo tempo que um
objeto desse tipo exige uma relevância cultura genérica, constituído pelo movimento
centrifugo, prevê um acabamento para o seu consumo imediato, garantido pela acomodação
gerada pelo movimento centripeto. No limite, o uso de "barroco" pelos catálogos, na
medida em que o termo resume tanto os objetos apresentados pelas exposições como os
diversos textos concatenados pelos catálogos, prevê a constituíção de um objeto cultural de
consumo em massa.
Esses movimentos gerais, no entanto, são complementados por marchas operatórias
específicas efetuadas pelos três tipos de texto apresentados pelos catálogos - os prefácios,
as introduções e os estudos. Propomos, nos próximos capítulos, a análise de todos os textos
dos catálogos a partir da tipologia assumida por eles. Essa análise visará investigar como se
valem de "barroco" cada um dos três tipos de texto referidos e como essa tipologia
corresponde a movimentos argumentativos específicos.
77
Parte II
USOS ESPECÍFICOS
79
3 Os prefácios: a exibição de "barroco" como evento cívico
81
antropológico e, principalmente, cívico das mostras e dos objetos exibidos que é referido
quando o convite a elas é feito.
De fato, a função primordial dos prefácios é a de constituir a relevância das
exposições como eventos cívicos relevantes. São três os tipos de argumentos usados a esse
respeito, que analisaremos a seguir.
72
Em Brasil Barroco, há ainda um nono prefácio, não creditado nos índices gerais do volume e
assinado coletivamente pelos "editores" do catálogo.
82
exposições, ao serem propostas, por esses prefácios assinados por tais autoridades, como
eventos de celebração dos 500 anos, definem e divulgam uma imagem oficial do Brasil, em
consonãncia com os projetos políticos e ideológicos dominantes. A propósito, segundo o
que se pode notar pela lista acima, quanto maior a participação governamental na
organização da exposição, maior é o número dos prefácios, o que indica a função oficial
cumprida por esses textos.
Porém, longe de ter a intenção de nos valermos desse conjunto de assinaturas para
efetuar uma denúncia da ideologia dominante representada nos catálogos, cumpre analisar
quais mecanismos persuasivos tais assinaturas engendram. Em primeiro lugar, é importante
assinalar que essas assinaturas garantem a importãncia dos eventos que prefaciam. Se,
como dissemos, a f unção dos prefácios é a de garantir a r elevãncia dos e ventos, a penas
essas assinaturas já são suficientes, por si sós, para que os prefácios cumpram a sua função.
Garantindo a relevãncia das exposições, essas assinaturas também têm uma função de
autorização, legitimando oficialmente os arranjos de objetos e os modos pelos quais são
propostos.
Além disso, as assinaturas formatam também o modo como os prefácios são
escritos. A primeira decorrência dessa formatação para o registro discursivo desses textos
diz respeito à forma como eles constróem seus argumentos a favor da relevãncia das
exposições: eles o fazem por meio da suposição de consenso. A justificativa do
envolvimento das autoridades referidas nas exposições se dá a partir da explicitação de
valores genéricos e públicos, supostamente consensuais, veiculados ou pressupostos pelos
eventos prefaciados, propostos como festas cívicas de celebração nacional.
A assinatura ilustre também garante a legitimidade dos textos, desobrigando-os da
apresentação de uma argumentação mais cerrada. Essa caracteristica do registro discursivo
dos prefácios permite inclusive a ocorrência de alguns arroubos supostamente poéticos,
ainda que em conformidade com um tom cívico:
Brazil: Body and Soul is an exhibition that honors Brazil and New York. It is an
exhibition with a sense.
What does sense sense?
Sense is the meaning of life. It is the most special power of OUI body through which
we are conscious ofthings. [... ]
Works of art brought from different parts of OUI country, arising from the ages, are
exhibited as OUI common sense. The sense to sense. This exhibitoin is about humanity.
(Flávio Miragala Perri, cônsul-geral do Brasil em Nova Iorque, Body and Sou!, p. ix)
83
Não será supresa para eles [os visitantes da exposição] se, diante de tantas mostras de
fina sensibilidade da alma brarroca brasileira, tiverem efetivamente a sensação de
flutuar entre o Céu e a Terra, enquanto se deixam tocar por esse sopro de genialidade
que vem do noite do tempo colonial para iluminar e abençoar, para inspirar e revelar,
sensibilizando o que há de eterno e universal na alma brasileira
(Luiz Felipe Lampreia, Brasil Barroco, p. 24)
84
direcionado ao passado, que se constitui por uma leitura histórica retroativa que investe de
valor e função os objetos expostos tendo em vista o cumprimento de expectativas
relacionadas à circunstância referida. A combinação das assinaturas e desses dois tipos de
argumentos constituem um ritual cívico logo no início dos catálogos: autoridades diversas,
cientes de seu compromisso público, referem-se a circunstâncias carregadas de simbologia
que geram anseios de celebração cívica satisfeitos pelos objetos expostos.
A referência ao local da exposição, além de servir como uma espécie de justificativa para a
organização da mostra, também argumenta a favor da importância do evento. Como se
percebe na citação acima: a exposição se daria num local que primaria pela qualidade do
que apresenta, segundo um compromisso público da instituição financiadora; logo,
pressupõe-se a qualidade da exposição prefaciada. Além de explorar a competência
exibitória da instituição responsável pela mostra, os prefácios, muitas vezes, reivindicam
uma importância simbólica do local da exposição, que é traduzido por eles como prova da
relevância do evento:
Somente um espaço prestigioso como esse [o Petit Palais] estaria à altura da honra que
nos fazem as mais altas autoridades brasileiras e da confiança depositada em nós pelas
personalidades e instituições solicitadas. ( Hubert Védrine, ministro francês das
Relações Exteriores, Brasil Barroco, p. 22)
Today, the Guggenheim Museum is set to bring the spirit of Brazil to a wilder, global
audience in its historie landmark, the Frank Lloyd Wright building on New York's
Fifth Avenue and in the Frank Gehry masterpiece in Bilbao, Spain (Edemar Cid
Ferreira, Body and Sou!, p. vii)
85
Além da referência ao local da exposição, a data do evento também é lembrada. No
entanto, nunca se trata de alguma data específica ou precisa, mas de data simbólica diante
da qual a exposição ganharia pleno significado. As datas simbólicas referidas exigem, como
veremos, que as exposições cumpram determinadas funções. A data simbólica escolhida
por todos os prefácios é o midiático aniversário de 500 anos do Brasil, que reforça o
compromisso cívico da exposição:
The year 2000 witnessed the celebrations of the five-hundredth anniversary of the first
contact between Brazil and Europe. This event, which commemorated the beginnigs
of the modem nation, was widely celebrated throughout the country. It was a time to
recai! the great importance of the diversity o f Brazil' s cultural, racial, and ethnics
components. (Rubens Antonio Barbosa, embaixador do Brasil nos Estados Unidos,
Body and Sou!, p. viii)
A celebração dos 500 anos é referida também como coincidente com a virada do milênio e
a constatação de um mundo em globalização:
Neste final de milênio, em que a proximidade dos 500 anos do Descobrimento nos
convoca a urna reflexão sobre o Brasil (... ] Nesta época de globalização, em que se
expandem os temores de desfiguração das nacionalidades, é fundamental que a nossa
cultura seja cada vez mais valorizada e, sobretudo, difundida para todos os públicos,
garantindo assim a afirmação dos referenciais básicos da alma brasileira. (Carlos
Eduardo Moreira, Universo Mágico, p. I)
86
Já o presidente da França, Jacques Chirac, cruzando as referências de local e data da
exposição Brasil Barroco, propõe, metaforicamente, que a mostra encerra uma espécie de
ciclo iniciado pelo descobrimento do Brasil:
Há cinco séculos, o navegador Pedro Álvares Cabral abordava às costas do Brasil. [... ]
Quinhentos anos depois, é o retomo das caravelas. Elas nos chegam carregadas do
bem mais precioso: uma emocionante e suntuosa imagem do Brasil, nascida da
admiração dos europeus, que acreditavam haver encontrado o paraíso, e do encontro,
tão fecundo até em sua dor, entre a América, a África e a Ásia. (Brasil Barroco, p. 21)
Brazil and United States share common traits and also have had complex relationships
with their indigenous peoples. The identities of both have been deeply shaped by the
legacy of the involuntary migration and servitude of Africans, and both rnay be
characterized as multiethnic societies that have assimilated immigrants from ali parts
of Europe and more recently Asia. Today, cultural diversity is a value shared by these
democracies (Thomas Krens, diretor da Solomon R. Guggenheim Foundation, Body
and Sou!, p. x)
87
uma relação cultural entre [estes] dois países cujas almas bebem da mesma fonte latina
e que se uniram, há muito tempo, através de fortes laços nas áreas das artes, das letras
e do saber. Relação cultural também pois tudo começa nos cumes da emoção e do
espírito: a atração, a sedução e finalmente o diálogo (Brasil Barroco, p. 21)
Catherine Trautmann, ministra francesa, também se refere a tal relação e, mais que isso,
propõe a exposição como elemento que faltava no relacionamentos entre os dois países:
Esta exposição se inscreve numa longa e rica tradição de relações culturais entre os
dois países. Sabemos do papel representado por alguns franceses na organização das
instituições artísticas no momento da independência; da ressonância dada pelo Brasil
ao nosso pensamento positivista; da tradicional cooperação entre os meios
universitários, dos percursos que os criadores dos dois países empreenderam juntos
nos caminhos da modernidade.
Mas a essa herança constantemente partilhada e enriquecida, faltava um elemento
essencial: nunca o público francês tivera a oportunidade de conhecer, em Paris, um
aspecto maior do patrimônio brasileiro, no sentido mais vasto do termo - a arte
barroca [... ] (Brasil Barroco, p. 27)
[... ] Em primeiro lugar, a escolha do tema não podia ser mais emblemática para
sinalizar a presença do Brasil em território francês na virada do milênio, data que para
os brasileiros se reveste e um significado especial: a comemoração do quinto
centenário do Descobrimento. [... ] Em segundo lugar, a dimensão do evento e a
escolha, para realizá-lo, do espaço que funciona como o Museu de Belas Artes da
88
Cidade de Paris, já constituem um reconhecimento, por parte da França, da
importância do tema. (Francisco Corrêa Weffort. p. 25)
O resgate desse passivo, assim, conduz a uma política de reforço da amizade entre países
amigos, o que, de alguma forma, contribui para a defesa da relevância do evento.
Ao apresentar os tesouros barrocos do Brasil, Paris presta homenagem especial a este
grande país. E é a amizade entre brasileiros e franceses que aumenta. (Jacques Chirac,
Brasil Barroco, p. 21)
São inúmeros os motivos que nos levam a acreditar que a realização da exposição
Brasil Barroco, entre Céu e Terra, [... ] se tornará um marco nas relações entre a
França e o Brasil (Francisco Corrêa Weffort, Brasil Barroco, p. 25)
[... ] desejo também que elas [ as obras expostas] sejam uma incitação a um
conhecimento mais profundo da riqueza e da diversidade de uma civilização rigorosa,
89
reforçando os laços de cooperação e amizade que unem Paris e o Brasil (Jean Tiberi,
Brasil Barroco, p. 28)
Mais específico, Geraldo Cavalcanti, secretário geral da União Latina, uma das entidades
responsáveis pela exposição Brasil Barroco, expõe, em seu prefácio ao catálogo, o projeto
da instituição que representa, vale dizer, o de divulgar o "barroco latino-americano" na
França:
Pela terceira vez nos últimos três anos, a União Latina apresenta ao público francês
uma exposição sobre a arte barroca na América Latina. A primeira, realizada em 1996,
na Chapelle de la Sorbonne, deu-lhe a oportunidade de conhecer uma arte refinada, e,
até agora, pouco divulgada: a pintura sacra boliviana do século XVII, com os
especatulares Anjos de Calamarca. A segunda exposição A Graça Barroca, exibida há
poucas semanas no Museu do Castelo dos Duques da Bretanha, em Nantes, que trouxe
à França uma arte não menos surpreendente: a estatuária sacra originária do Equador,
numa profusão de obras de requintada beleza. Agora é a vez do Brasil mostrar todas as
facetas de sua arte sacra barroca, na maior exposição jamais montada no exterior.
(Brasil Barroco, p. 29)
90
Portanto, além de corresponderem aos anseiOs que datas e locais simbólicos
representam, as exposições são propostas também de maneira a satisfazer as políticas
programáticas das instituições que as sediam. O cumprimento dessas políticas opera
também uma relevãncia. Nesse caso, a relevãncia da exposição é simultãnea à relevãncia do
lugar que sedia a mostra, ou mais do que isso, à da política de exibição desse lugar. Mais
precisamente, as exposições são apresentadas como prova da eficácia exibitória do lugar
que a sedia. Logo, o lugar qualifica a mostra, e a mostra demonstra a profissionalização do
lugar da exposição.
Nos prefácios do catálogo da exposição Brazil: Body & Sou!, o desejo manifesto é o de
tornar a cultura brasileira conhecida, o que ajudaria a compreender o Brasil e a reverter
estereótipos a respeito do pais:
The exhibition Brazil: Body and Sou[ has been organized with the intention of
conveying some of the salient points that distinguish our rich culture. We wish to
foster an understanding of the arts of Brazil in order to challenge some of the
stereotypes held by those less familiar with our country. As visitors to the exhibition
will quickly realize, Brazil is much more than Carnival or soccer. (Edemar Cid
Ferreira, Body & Sou/, p. vii)
91
Brazil: Body and Sou! is the largest and most comprehensive exhibition of Brazilian
art ever carried out abroad. It is with great pleasure that I congratulate the
Guggenheim Museum and BrasiiConnects on this excellent initiative, which will
contribute in a unique way to the dissemination of Brazilian culture in the United
States. (Rubens Antonio Brabosa, Body and Sou!, p. viii)
The cultural achivements of Brazil have been too litle known, especially in the
English-speaking world, and we hope this presentation will help rectify this situation.
By exhibition masterpieces o f Brazilian art that have sei dom been seen in such depth
outside of Brazil, Brazil: Body and Sou! has endeavored to capture the essential nature
o f an extraordinary country (Thomas Krens, Body and Sou!, p. xiii)
92
uma emocionante e suntuosa imagem do Brasil
primeira expressão orgãncia de uma identidade própria
património permamente do povo brasileiro
uma das mais extraordinárias expressões no campo da cultura
preciosa herança
símbolo do pais
embrião de uma nacionalidade
um aspecto maior do patrimônio bmsileiro
expressão privilegiada da identidade brasileira
estilo de vida inerente à personalidade do pais
93
As particularidades iniciais indicariam, segundo alguns, uma reelaboração
específica de matrizes estéticas internacionais surgidas num contexto particular, de mistura
étnica, e manifestadas tendo em vista a formação nacional:
Na trajetória da formação da nação brasileira, as manifestações culturais que aqui
floresceram sob o signo do Barroco constituem uma reelaboração dos padrões trazidos
de Portugal, seja nos materiais utilizados, na releitura de formas e temas e em uma
religiosidade que incorpora e se extravasa no popular, seja no caráter mestiço da
criação artística, que incorpora elementos africanos, indígenas e até mesmo do Oriente
(Francisco Corrêa Weffort, Brasil Barroco, p. 25)
Mas é a influência africana que sobressai na versão brasileira desse estilo europeu. As
figuras que ornamentam igrejas e oratórios domésticos têm, freqüentemente, nítidos
traços mulatos, como mulatos são muitos dos artífices[ ... ] (Francisco Correa Weffort,
Brasil Barroco, p. 25)
Por meio de "barroco", ter-se-ia operado ainda uma espécie de extravasamento anímico:
Graças a uma iluminada originalidade, verdadeiro milagre em meio aos desafios da
vida colonial, e a uma intensa criatividade, que pôde incorporar com liberdade as
tensões próprias da alma barroca às inquietações e particularidades da alma brasileira,
o Barroco brasileiro é uma singular combinação de sentimento religioso com um
sentido estético e profundamente humano da realidade concreta e da existência
espiritual. (Luiz Felipe Lampréia, Brasil Barroco, p. 23)
No entanto, durante todo esse processo de assimilação de "barroco", não se teria perdido de
vista o caráter universal do estilo:
Universal e ao mesmo tempo profundamente marcado pelos traços mestiços que
caracterizam a arte latino-americana em geral e a brasileira em particular, o Barroco
Brasileiro é a primeira grande manifestação estética do Brasil[ ... ] (idem)
94
Brasil. Aqui, a concentração se dá no segundo pólo da dupla postulação circular, o caráter
"barroco" do Brasil, proposto por meio da "formação barroca" do "Brasil barroco":
Nunca é demais recordar que o barroco antecipou no plano artístico a maioridade do
Brasil. Fez ver que a nação híbrida que se gestava nos trópicos já era suficientemente
madura para produzir soluções autóctones, para dialogar com diferentes matrizes
estéticas, para inovar sobre modelos que lhe eram impostos pela manifestação da fé,
para insinuar uma maneira própria de traduzir sua religiosidade, seu misticismo. O
barroco foi o nosso primeiro ensaio de assimilação culturaL [... ][os artistas barrocos]
esboçaram com mais de um século de antecedência a gramática de assimilação criativa
que a geração modernista viria a consagrar como traço distintivo da cultura nacional
(Fernando Henrique Cardoso, Brasil Barroco, p. 19)
95
capaz inclusive de corresponder aos aoseios de celebração cívica designada pelos prefácios.
Os procedimentos que viabilizam esse uso cívico de "barroco" já foram descritos e são
propostos agora nos prefácios como consenso: trata-se da postulação- circular e dupla- da
brasilidade de "barroco" e do caráter "barroco" do Brasil combinada à idéia da formação.
Outro procedimento também é evidente: a tradução da colônia como lugar celebrativo por
excelência.
As exposições, além de se basearem nessas proposições, tomadas como consenso
em torno de "barroco" enquaoto chave de leitura do Brasil, acabam também por reforçar
esse consenso. Um exemplo desse reforço é a própria exposição Brazil: Body and Sou!,
que, como já dissemos, não se ocupa apenas de "barroco", mas de um paoorama geral da
produção artística brasileira. Corno última da série das quatro graodes exposições
organizadas para a celebração dos 500 aoos, a mostra no Guggenheim parte de conceitos já
definidos pelas exposições aoteriores. Prova dísso são as citações dos catálogos aoteriores
nas listas de referência bibliográfica e a presença de nomes importaotes envolvidos na
organização das outras mostras nas listas das equipes responsáveis pelo evento. No
paoorama geral apresentado pela exposição de Nova Iorque, "barroco" é o pressuposto
inicial para o entendimento do que é chamado de "cultura visual brasileira" e um dos dois
momentos chaves primordiais dessa cultura, como atenta Rubens Antonio Barbosa em seu
prefácio:
Concieved by an intemational team of curators, it explores two of the key moments in
the development of the visual arts in the country: the Baroque and the Modem.
Baroque art represents the deepest roots of Brazil's national artistic identity while
Modem and contemporary art evidence the dynamism and constant growth of the
nation's visual culture. ( Brazil: Body and Sou/, p. viii)
96
3.4 Eventos cívicos de especificação global do nacional
97
nação, registrado em seus feitos artísticos. O uso cívico de tal justificação reside justamente
na revelação de algo desenvolvido acerca do país, no objeto artístico-museológico capaz
não apenas de sintetizar a nação que o teria produzido mas de demonstrar que esse objeto é
indicativo de um sofisticação civilizada do país, suficiente para alimentar o espaço
museológico. Museus usualmente são tomados como indicativos de um país desenvolvido.
A premissa é tão corrente que um dos relatórios do ICOM compara produto interno bruto
com o número de museus e propõe uma estratégia de desenvolvimento para países do
terceiro mundo, explicitando o valor cívico de taís instituições:
[...]developing countries will make great sacrificies in order do have museums, which
are needed both to reinforce and confrrm a sense of national identity and to give status
within the world community. To have no museums, in today's circumstances, isto
admit that one is below the mínimum levei of civilization required of a modem
state"75
Na mesma direção, Caro! Duncan, no artigo anteriormente citado, ressalta, através de
alguns exemplos, que "art museums in the Third World can rassure the West that one is
safe bet for econornic or military aid"76 • O mesmo prestígio acerca dos museus, sem
dúvida, é apropriado pelos discursos que propõe as exposições, c orno se pode notar nos
trechos já citados.
Nos prefácios, o que é decisivo é como "barroco" é empregado. Primeiramente,
"barroco", proposto consensualmente dentro da circularidade ostensiva já descrita, atende
às circunstâncias simbólicas que demandam uma especificação nacional para fins de
celebração cívica, quer seja executada interna ou externamente. Além disso, o modo como
o termo é proposto mostra-se capaz, como se pode depreender dos trechos citados, de
engendrar especificações culturais, artísticas, étnicas e antropológicas. Essa especificação
diversificada, pressupondo a ressonância de "barroco", serve de base para o uso do termo
como objeto museológico, isto é, "arte" em um sentido comum, otimizado pelo
atendimento ao mito da origem nacional, capaz de responder aos anseios celebrativos
circunstanciais.
"Barroco", empregado dessa forma, não apenas opera uma celebração nacional
como serve ainda para colocar em circulação a idéia de Brasil no circuito museológico
global, responsável, como assinala Martin Prõsler, pelo fornecimento de critérios visuais de
74
"Art Museums and the Ritual of Citizenship" in Exihibiting Cultures, op. cit., p. 88
75
apud Martin Prõsler, "Museusms and Globalizations", op. cit, p. 24
98
reconhecimento de identidades de povos diversos espalhados pelo mundo. A identidade
"barroca" do Brasil, proposta de forma cívica pelos prefácios, tem a vantagem de propor
uma especificação valendo-se de um termo comum à História da Arte e aos museus do
mundo. Ao mesmo tempo então que a identidade é proposta, parâmetros de
comensurabilidade e de tradução são propostas com ela, tomando a cultura do Brasil, como
insistem os catálogos, simultaneamente universal e particular. A disponibilização de uma
imagem museológica oficial do Brasil, através da proposição assim feita de "barroco"
segundo anseios circunstanciais de celebração cívica, é a primeira operação discursiva
operada pelos catálogos por meio de seus prefácios.
76
"Art Museums and the Ritual of Citizenship", op. cit., p. 89
99
4 As introduções: a instrumentalização da leitura de "barroco"
101
são praticamente defesas de tese, pois manifestam uma tomada de posição regrada e
embasada em um repertório específico; em outra direção, estabelecem o caminho
conceitual que deve percorrer o espectador da mostra na interpretação do que vê. As
introduções assim estabelecem dois percursos que são sobrepostos: o conceitual que preside
a exibição dos objetos e aquele que deveria ser seguido na interpretação desses objetos.
Elas prevêem assim o visitante ideal das mostras, aquele que acompanha passo a passo os
curadores que a organizaram.
Se os prefácios supõem um todo acabado ("barroco" e sua significação brasileira,
ambos propostos consensualmente), as introduções insinuam como esse todo é estruturado,
ainda que, para oferecer uma moldura interpretativa para as mostras, os textos introdutórios
referem, pressupõem ou realizam totalizações. O caráter mais sintético dos prefácios e a
disposição mais analítica das introduções são adequados, em justa medida, para as tarefas
que ambos visam cumprir: aqueles chamam a atenção para a importância, relevância e
pertinência cívica dos eventos que celebram, estas nos ensinam como as exposições
deveriam ser lidas, ou melhor, demonstram que as exposições foram organizadas de modo
que uma leitura regrada delas pode ser efetuada. Trocando em miúdos, os prefácios
convidam para a exposição; as exposições, por sua vez, sugerem o que se verá lá e como
devem ser consumidos os objetos lá expostos.
A instrumentalização da leitura das exposições é o primeiro papel que cumprem as
introduções. Esses textos indicam quais categorias de leitura devem ser mobilizadas para a
fruição das obras e demonstram as relações possíveis entre os objetos expostos. De um
modo geral, as introduções, em suma, procuram instruir, ao explicitarem a arquitetura
conceitual das mostras, as visitas às exposições. Vejamos quais são os mecanismos comuns
das introduções no que se refere a essa instrumentalização da leitura das exposições
!02
no alargamento do escopo de referência do termo; ora fundamentam-se na polissemia de
"barroco", ou seja, na referência aos diversos sentidos que o termo ganha em seus usos
correntes. Ambos os modos de defmição de "barroco", ao mesmo tempo em que referem a
ressonância e a po!issemia do termo, viabilizam-nas como subsídio tanto dos projetos
curatoriais que se embasam nessas definições quanto do oferecimento de categorias de
leitura para as obras expostas. As definições de "barroco" operam, pois, o primeiro
mecanismo de instrumentalização técnica e museográfica da leitura das exposições.
As definições amparadas na ressonância são aquelas que oferecem "barroco" como
uma espécie de "caldo de cultura" de onde emergem as "obras barrocas" expostas. Esse
modo de definição de "barroco" leva em conta a explicitação de modalidades expressivas,
de dramas existenciais, de estilos de vida, de mentalidades e de aspectos religiosos,
culturais, sociais e históricos diversos de modo a propor "barroco" como um "espírito de
época" operante na produção das obras. Vejamos alguns exemplos desse tipo de definição
de "barroco":
O Barroco é portanto essa arte que subverte os ditames do Concílio de T rento, na
explosão do movimento de triunfantes linhas curvas, dos grandes ornatos, dos claro-
escuros, arte feita para seduzir o homem e envolvê-lo, deixando perplexo diante de
Deus, tomado pelos sentidos (Universo Mágico, p. 18)
A arte barroca vem traduzir o drama do homem que se instala no centro do mundo, no
eixo principal dos acontecimentos, mas que ainda estremece ante a idéia avassaladora
do divino. (Brasil Barroco, p. 35)
!03
Esta vitalidade sem fronteiras do Barroco, sua d uctilidade e m aleabi!idade, que I he
permitem adaptar-se aos contextos sociais, políticos e geográficos mais diversos e às
tradições culturais e espirituais opostas, explicam-se, sem dúvida, por seu caráter de
arte sem doutrina. (Brasil Barroco, p. 42)
Insistindo na ausência de teoria de "barroco", essa teoria de "barroco" estabelece a ausência
de limites para a ressonància do termo:
[ ...] este vazio doutrinai, que destrói nossos esforços de definição, faz do Barroco uma
arte que não se opõe a nenhuma outra arte, mas que se adapta a todas as situações
(Idem)
Mais explícito, contudo, com relação à polissemia de "barroco" é o curador de Brazil: Body
& Sou!:
The use of the term "baroque" presents both semantic and conceptual problems. It ís
rife with Eurocentric references and clichés regarding overabundance and decoration.
104
[... ] "Baroque" has been employed in so many contexts that it has become virtually
void of specific meaníng, líke many other desígnatíon of artístic styles or
chronological periods. (Body & Soul, pp. 8-9)
Nelson Aguilar, curador da Mostra do Redescobrimento define "barroco" dentro desse jogo
de polissemia, referindo a mudança do valor dado a "barroco" na História da Arte
brasileira, como no trecho seguinte já citado no primeiro capítulo deste trabalho:
Com o choque cultural do modernismo, o barroco saí das profundezas onde o século
XIX o havia relegado, sobretudo a partir do advento do neoclassicismo. O sintagma
"barroco colonial" embutia uma idéia de atraso, de provincianismo, que o poder
sucessivamente real, imperial e republicano do Rio de Janeiro fazia questão de
confirmar (Redescobrimento, p. 32)
105
trazem sua marca, talvez seja tão contraditória quanto eloqüente, refletindo as
tumultuosas aproximações culturais e sociais que envolvem a colônia e a
metrópole portuguesa entre dois séculos. (Universo Mágico, p. 15, grifo nosso)
Dado o gancho, o curador apresenta urna série de elementos que serão desenvolvidos pela
narrativa que desenvolverá ao longo de sua introdução:
Os múltiplos aspectos que diferenciam ao longo do tempo as regiões brasileiras, entre
dois ciclos distintos de riquezas - a cana-de-açúcar no Nordeste, o ouro das Minas
Gerais. A transferência da capital do Brasil para o Rio de Janeiro em 1763. O trabalho
corporativo e as inúmeras restrições da coroa. Insurreições sociais. A lenta construção
de uma identidade nacional, marca do desejo de liberdade dos Inconfidentes mineiros
do final do século XVID. A abertura dos portos. A transmigração da Família Real para
o Brasil. E a grande ruptura do Neoclassicismo, pondo fim ao período colonial e aos
oficios, colocadas agora as novas regras da Academia. É esse cabedal cultural
construído por quase dois séculos de história que revisitamos nesta aventura estética,
envolvendo arquitetos, escultores e pintores, entalhadores e ourives, músicos e poetas
- anônimos muitos, outros com registro na história ou que, de certa maneira,
permanecem no imaginário popular, na Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo,
Pernambuco. (Universo Mágico, p. 15)
Em termos gerais, esses elementos apresentados por Araújo compõem a narrativa básica de
todas as introduções. Essa narrativa ainda é especificada por meio de periodizações que,
primeiramente, atentam para as diferentes regiões de produção das obras exibidas: num
primeiro momento, o Nordeste; num segundo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Nota-se
particular atenção dada à chamada produção mineira ou "barroco mineiro", quase sempre o
clímax da narrativa apresentada.
Além disso, as narrativas por vezes ainda são especificadas pela particularização de
ciclos estilísticos dessa produção, o que é definido pelo trio "maneirismo/barroco/rococó".
Esse último tipo de periodização pressupõe um uso duplo e simultâneo de "barroco"; o
termo assinalaria um dos estilos verificáveis no conjunto de objetos apresentados e, ao
mesmo tempo, serviria para designar a totalidade desses objetos:
Esta exposição se materializa assim pela reunião de obras de arte de escultura, pintura,
ourivesaria, talha, música e poesia produzidas já entre 1640 e 1700, como introdução
ao movimento estético anterior ao Barroco propriamente dito, mas que contextualizam
uma expressão que se afirma nacionalmente a partir dos Setecentos em suas diferentes
fases entre 1700-1730 e 1730-1750, no Nordeste, e que floresce, resplandescente,
entre 1750-1820, em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. (Universo Mágico, p. 19)
The !ater phases o f this period, after 1750 or so, should be more precisely delineated
by the term "Rococo", but generally speak:ing I will employ the word "baroque" to
indicate Brazilian art of the colonial period (Body and Sou[, p. 9)
106
O curador da exposição Brazil: Body & Sou!, no trecho acima, explícita o uso
designativo de "barroco" usado por todas as introduções na caracterização de suas
narrativas contextuais: é uma história a respeito da colônia luso-brasileira que as
introduções oferecem para localizar "barroco" e as obras expostas. O uso de "barroco"
como sinônimo de "Brasil-colônia" é mais acentuado, porém, nas introduções do catálogo
Brasil Barroco, que já referem "barroco" desde o descobrimento do Brasil, proposto como
"obra barroca".
Uma narrativa bastante particular, entretanto, é apresentada pela introdução do
catálogo Arte Barroca da Mostra do Redescobrimento. Como já dissemos, o curador
Nelson Aguilar trata apenas da mudança do valor dado à chamada "arte barroca" na
História da Arte brasileira a partir do modernismo. A narrativa apresentada por ele, diz
respeito, portanto, a essa mudança na avaliação de "barroco".
Depois de definir em linhas gerais o que seja "barroco" e de propor narrativas que
amparem essa definição e que localizem historicamente as obras expostas, as introduções
argumentam acerca do significado nacional de "barroco". Tanto as definições apresentadas
quanto as narrativas delineadas encaminham para a proposição desse significado, que é
ainda reforçado pela mobilização de uma série de elementos que o explicitam.
A argumentação, assim como a dos polemistas de Antonio Candido tratados no
primeiro capítulo deste trabalho, baseia-se no que chamamos de circularidade ostensiva, na
postulação simultânea e indistinta de duas assertivas: a brasilidade de "barroco" e o caráter
"barroco" do Brasil. Essa circularidade é combinada, entretanto, como observamos nos
prefácios, com a idéia de "formação". Com relação ao primeiro pólo do argumento circular,
as introduções primeiramente defendem a brasilidade de um certo "barroco" através de
alguns elementos contextuais dados pelas narrativas que elas apresentam. Os textos
introdutórios coletam uma série de elementos que são alinhados com o propósito da
produção de um núcleo brasileiro para "barroco".
Esses elementos, por vezes, dizem respeito à apropriação local de "barroco", que
seria transformado em cada região de produção:
107
É a arte barroca que dá forma aos sentimentos da casa grande e senzala. [ ...] O
Nordeste brasileiro redimensiona, nos conventos e nas capelas das ordens terceiras, o
destino do barroco americano. [ ... ] Na Amazônia, as igrejas de Belém do Grão-Pará
registram o encontro do fluxo barroco com a monumentalidade da floresta [... ] O
barroco está na bagagem dos sertanistas. vai escalar a Mantiqueira[ ... ]. E entroniza em
sua igreja matriz [ em Sabará] a arte luso-paulista dos retábulos em arquivoltas, com
talha profusa, douramento e chínoíseríes (Brasil Barroco, p. 36-37).
A apropriação local é reforçada com o suposto "caráter popular de barroco":
[ ... ] o Barroco é uma arte muito visível e legivel, pois apela, sobretudo, para os
sentidos, dirigindo-se tanto aos que possuem uma cultura quanto aos que não a
possuem. A predicação, a exortação, a profecia devem chegar a todos os homens, a
começar por aqueles que fazem parte do povo, por sua vocação para a salvação. [... ] A
espiritualidade do Barroco incarna-se num naturalismo sensual e apaixonado, que o
toma próximo de todos os homens. (Idem, p. 42)
[ ...] o número menos elevado de escravos e a mudança do poder da Igreja que, com a
proibição feita às ordens de fundar conventos, repousa na rede de paróquias e,
sobretudo, confrarias que asseguram a coesão da sociedade e organizam-se
espontaneamente em função dos caracteres sociais, profissionais e raciais. Esta
situação cria circunstáncias extremamente favoráveis ao desenvolvimento de uma arte
religiosa que foge completamente às diretivas mais rígidas das ordens e que responde
diretamente à sensibilidade e às aspirações dos fiéis. (Brasil Barroco, p. 44)
108
A configuração popular e religiosa de "barroco brasileiro" também daria conta da expressão
dos segmentos étnicos da colônia:
No Brasil, ela [a "expressão do Barroco"] se traduz em ressonância cultural de um
espírito mestiço, nas representações iconográficas dos santos de pura mulatice, santos
gordos, de olhos puxados e lábios sensuais, Nossas Senhoras esvoaçantes, navegando
pelo universo suspensas por anjos mulatinhos, de um sincretismo que vai
incorporando ludicamente o corpo e a alma, já que as mãos eram mestiças, brasileiras
(Universo Mágico, p. 22)
Aos africanos trazidos como escravos pela imensa demanda de mão de obra nas minas
de ouro e diamantes, o barroco serve como instrumento de adaptação cultural e
expressão artistica. [.,] a arte barroca preside seu processo de aculturação e neles
aguça e estimula a criatividade. Africanos e seus descendents têm um papel
preponderante na grande produção artistica - sobretudo nos campos plástico e musical
- que se assinala no ciclo de ouro e dos diamantes. E a linguagem barroca é a
primeira vitória no rumo da reconquista da liberdade. (Brasil Barroco, p. 38)
What makes Brazilian Baroque art Brazilian? [,.] there are certainly some
iconographic singularities in the Brazilian Baroque, such as the many carvings of
black saints. Another aspect that is particulary Brazilian about this art is the intensity,
even theatricality of faith and the directness of communication that is established
between the object and the beholder in so many instances (Body and Sou!, p. 1O)
Art historian Mariano Carneiro da Cunha states that African artisans participated in
the creation of the wood sculptures of Brazilian Baroque churches as early as the
sixteen century, and suggests that Brazilian Baroque sculpture o f !ater periods exhibits
"African" characteristics, as in eighteenth-century depictions of angels or the Virgin
Mary with dark skin. Some o f the outstanding artists of the Baroque phase of Brazilian
art were African descendent, including O Aleijadinho and Mestre Valentim. (Idem, p.
14)
Por meio de todos esses elementos, "barroco" emanaria brasilidade e funcionaria como
expressão do país em formação, a despeito das "raízes portuguesas" e do ambiente
repressivo da colônia:
Entretanto, é por isso também que, a despeito dessas raízes [portuguesas] e dos
próprios mestres portugueses que por aqui se estabeleceram, defendemos a existência
de uma estética própria a um Barroco brasileiro, recriado aqui por artistas mestiços,
congregados em confrarias e irmandades mestiças, à luz tropical da terra, sob o poder
de um povo em formação. (Universo Mágico, p. 18)
109
Devido a todas essas características "barroco" não só seria apenas plenamente brasileiro,
como também seria registro de brasilidade:
Essa extraordinária imaginária contém, além de sua poética, urna iconografia de
inconsteste valor sociológico e espiritual, registro da construção do povo brasileiro
onde a brasilidade se expressa, transbordante de criação e invenção. Essa arte popular
que deriva do Barroco se revela assim o imenso palco de urna expressividade tropical
carregada de ancestralidades, de heranças arcaicas e invenções novas eclodindo a um
só tempo, dando lugar à glorificação do indio, do negro, do mestiço [... ] (Universo
Mágico, p. 26)
110
definições referidas, sena capaz de oferecer um meiO expressivo e um mecanismo de
engajamento étnico, animico e religioso necessário para a formação do país. As definições
de "barroco" e as narrativas contextuais que o localizam articulam-se, dessa forma, para
propor uma aderência inescapável entre duas teorias: a teoria de "barroco" e a teoria de
Brasil, ambas verificáveis nos objetos produzidos na colônia. O mais interessante, contudo,
é que a teoria de Brasil por "barroco", ou a teoria de "barroco" por Brasil, ao ser
apresentada em um catálogo de exposição, é oferecida c orno conjuntos de c alegorias de
leitura mobilizáveis para fazer o visível legivel, isto é, para a intelecção dos objetos
expostos.
Explicitando o projeto curatorial adotado pela exposição e disponibilizando
categorias que devem ser empregadas na leitura das obras expostas, as introduções
propõem a significação brasileira de "barroco" como mecanismo que oferece um sentido
para as obras expostas de modo a atender as três exigências de verossimilhança
museológica já referidas. Primeiramente, a significação brasileira de "barroco" atenta para
a exigência pedagógica, pois oferece um repertório a ser aprendido com a exibição das
obras. Ao mesmo tempo, tal significação cria uma alteridade histórica, assinalando um
passado histórico compreensível e cheio de sentido porque posto em perspectiva do
presente: "barroco" é o resumo da formação do "povo brasileiro", configurado pelo
sentimento religioso popular e pela democracia racial; um povo original, como "barroco
brasileiro". Por fim, a significação brasileira de "barroco" atende ainda à exigência
antropológica, pois supõe um "estilo de vida" brasileiro, uma especificação cultural, étnica,
religiosa e artística dos brasileiros na colônia: os objetos "barrocos" constituiriam, segundo
as introduções, prova material da singularidade do povo que os teria produzido. As
introduções, assim, recolhendo alguns pressupostos já referidos pelos prefácios, operam a
formatação das obras exibidas, museificando-as.
lll
instruem a respeito dos objetos expostos. Alguns aspectos biográficos de "Aleijadinho" são
tomados como indícios da síntese que operaria da narrativa da colônia brasileira
apresentada:
Por sua personalidade extraordinariamente forte e seu temperamento ardente, encarna
as tensões, contradições e o dinamismo da sociedade colonial, em particular desta
sociedade mineira, nascida sob o signo da aventura e de uma paixão desenfreada
(Brasil Barroco, p. 46)
A biografia do artista não é apenas síntese da sociedade colonial mas, num arremate de
todas as questões anteriormente postas, de toda a arte "barroca":
Filho de um arquiteto e construtor português e de uma africana escravizada (como a
maioria dos grandes artistas plásticos e músicos do período), ele sintetiza, étnica e
culturalmente, o processo de nascimento de uma expressão genuína de arte brasileira
(Idem, p. 39)
O que o Aleijadinho, com sua formação, seu sofrimento, e sua genialidade, resume e
transcende é sobretudo o conjunto da cultura plástica e religiosa do Brasil colonial,
para transmitir, como uma flor maravilhosa, ao Brasil independente, do qual quase foi
contemporâneo. (Idem p. 47)
Funcionando, pois, como síntese, "Aleijadinho" opera também como parâmetro de
classificação e de interpretação para todos os outros "artistas barrocos":
E suas colocações [de Mário de Andrade] sobre o Aleijadinho não deixariam de valer
como referência para cada artista, para cada pintor ou escultor aqui apresentados: "O
caso dele é perfeitamente o de completamento e coroação duma fase. Ele transporta ao
seu clímax a tradição luso-colonial da nossa arquitetura, lhe dando uma solução quase
pessoal, e que se poderá ter por brasileira por isso" (Universo Mágico, pp. 26-27)
112
vimos, esses textos oferecem uma circunstância particular e propícia como justificativa de
cada exposição. Entretanto, os argumentos que constituem tal ocasião, como também já
vimos, não variam muito de um catálogo para outro: trata-se apenas de variações mínimas
das aplicações dos mesmos pressupostos gerais. Particularmente quando essas aplicações
dizem respeito à defesa dos objetos rubricados por "barroco", a diferença entre os prefácios
de um catálogo e de outro torna-se ainda menos perceptível - no limite hipotético que
estamos considerando, poderiam todos estar celebrando o mesmo evento. Com relação aos
estudos, o mesmo se daria. Ainda que seja notável alguma diferença quanto à forma como
os catálogos organizam os estudos que concatenam (por exemplo com relação aos graus
diferentes de variedade qualitativa e quantitativa dos textos), todos esses estudos, a
princípio, poderiam indiferenciadamente estar contidos em um ou em outro catálogo sem
que alguma diferença mais substantiva fosse notada. A exceção talvez fosse o catálogo
Body and Sou!, que traz estudos a respeito de outros períodos de produção artística além de
"barroco". No entanto, se se considerar apenas a seção "Baroque Brazil", essa permutação
hipotética de textos entre os catálogos poderia ocorrer sem implicar mudanças
significativas no modo como servem de amparo teórico às exposições ou mesmo na
constituição específica que fazem de cada urna delas, pois não há, nesses textos, um
endereçamento muito preciso.
Mas, se nem os prefácios nem os estudos dos diferentes catálogos guardam
particularidades suficientes para diferenciar urna exposição da outra, os conjuntos de obras
exibidos nas quatro mostras, muito menos, podem gerar tal diferenciação. A comparação
das listas de obras de cada exposição indica um número considerável de coincidências,
ainda que haja listas maiores e menores e alguma escolha mais diferenciadora (como o altar
exibido inteiro na Body and Sou!). O conjunto de objetos das exposições é tão parecido que
urna mesma obra (a imagem Santa Maria Madalena de Francisco Xavier Brito) foi
escolhida para ilustrar a capa de dois catálogos, Arte Barroca e Brasil Barroco, entre céu e
terra.
É óbvio, contudo, que se trata de quatro exposições diferentes. A cenografia de cada
urna delas, por exemplo, difere bastante. Nos catálogos, há diferenças mais gerais na
organização editorial que também particularizam, de alguma forma, cada evento, como já
foi apontado. No entanto, amplificamos a indiferenciação entre as exposições e seus
1!3
catálogos para chamar a atenção para o fato de que são as introduções, ao proporem uma
moldura interpretativa para as mostras, que especificam particularidades que as
diferenciam. Mesmo assim, convém anotar, contudo, que as introduções menos divergem
que convergem. Como deixamos pressuposto na apresentação das categorias de leitura
oferecidas, elas partem de um conjunto de tópicas comuns a respeito de "barroco" e da
função que a produção artística designada pelo termo na constituição do Brasil. Certamente,
fazem aplicações mais particulares dessas tópicas, porém todas partem, a princípio, da
apresentação de mecanismos comuns de leitura.
Explicitado já no que as introduções convergem e tentando destacar o segundo papel
que esses textos cumprem como uma das partes constitutivas dos catálogos, procuraremos
agora focalizar no que elas divergem, já que são justamente as introduções as responsáveis
por diferenciar as exposições ao sugerir uma moldura interpretativa própria para cada uma
delas.
A descrição dessa divergência pode ser iniciada através da análise dos títulos das
exposições, pois estes já contêm as premissas básicas que fundamentam as introduções. O
título da primeira exposição, Universo Mágico do Barroco Brasileiro, por exemplo, já
enuncia as duas premissas principais da introdução do curador Emanuel Araújo. A primeira
é a que se baseia na noção de um "barroco brasileiro", critério que, ao mesmo tempo,
identifica os objetos expostos e os dota de significação e de possibilidade de interpretação.
A expressão "barroco brasileiro" preside duas operações interpretativas: por meio de uma
categoria de organização, de cunho estilístico, a expressão funciona como identificador das
obras, que opera, apesar da origem do termo, não apenas estilistícamente, mas também
como categoria de interpretação das obras por meio das noções formais e interpretativas
decorrentes de "barroco". Segundo essa identificação geral das obras, a expressão "barroco
brasileiro" especifica uma singularidade essencial de "barroco", um que seja "brasileiro".
Parte-se então do princípio de que, dentro do conjunto suposto dos objetos organizados
através de "barroco", há um subgrupo identificável como "brasileiro". A expressão
"barroco brasileiro", portanto, rubrica e toma identificável os objetos da exposição,
aqueles, segundo o curador, produzidos no período definido pela colônia luso-brasileira
114
compreendido, com alguma relativização, entre 1640 e 1820. No entanto, a expressão opera
além de mera rubrica ou etiqueta de um corpus, pois oferece, como categorias de leitura
dos objetos expostos, primeiramente, "barroco" e suas decorrentes categorias analíticas e,
depois, "brasileiro", o que pressupõe uma especificidade local com relação à produção
desses objetos, assim como um ethos característico que opera nessa produção.
A segunda premissa enunciada no título aparece, no título da exposição e do
catálogo, sob a forma de qualificador da expressão "barroco brasileiro", isto é, o seu
suposto "universo mágico". Por meio desse qualificador, somos informados de que o
conjunto dos objetos apresentados, tipificados por "barroco brasileiro", encerram, ou são
provenientes de um "universo" tido como "mágico". Por "universo", primeiramente,
entende-se não apenas o âmbito específico de onde se originariam os objetos, mas ainda o
caráter totalizador dele, tomado como um todo e composto de partes harmonicamente
encadeadas. Portanto, "universo", tal como usado no título da exposição, além de prever
um mundo específico de onde surgem as obras expostas, denota o todo encadeado que as
obras encerram. Mas esse "universo", como dissemos, é tido com "mágico": é, pois, um
âmbito regido pelo sobrenatural, pelo misticismo, pelo fantástico e de efeito extraordinário.
São essas as duas premissas básicas desenvolvidas pela introdução de Emanuel
Araújo. De um lado, a especificidade de um estilo, "barroco", tomado como categoria
analítica, a partir de uma matriz local, "brasileiro"; de outro, um mundo autônomo e não-
heteróclito aludido pelo caráter místico atribuído às obras catalogadas por esse estilo, que
gera, como efeito geral, uma impressão de fantasia extraordinária. O caráter singular dessas
duas premissas é constituído pelo fato de elas circunscreverem o conjunto das obras
exibidas. Ainda que o curador argumente, em alguns trechos, que "barroco" transborda os
limites do período colonial, indicando uma brasilidade transistórica, o propósito básico da
introdução é o de apresentar essa dupla particularização dos objetos: uma releitura
brasileira de "barroco" e um âmbito onde ocorre tal releitura, a colônia brasileira e seus
aspectos propostos.
Essa dupla especificação se configura por uma combinação particular dos
mecanismos de disponibilização de categorias já descrita no inicio deste capítulo. Araújo,
para propor a dupla particularização, de um lado, oferece definições de cunho religioso de
"barroco" e, de outro, insiste nas narrativas contextuais que especificam um ambiente
115
sociocultural da colônia brasileira: com a combinação de ambos, sugere o "universo
mágico". As narrativas contextuais ainda são aproveitadas na especificação de um
"barroco" particularmente "brasileiro". A dita "arte barroca", dado o seu contexto brasileiro
particular, teria sido apropriada de modo original na colônia, o que é demonstrado pela
explicitação da brasilidade dessas obras, definida principalmente por caracteres étnicos: a
produção das obras, aduz Araújo, ficaria a cargo de "mãos mestiças" que imprimiriam suas
marcas características nos objetos produzidos.
4.2.2 Brasil Barroco, entre céu e terra: o transbordamento de qualquer âmbito específico
116
histórica de "barroco" e, conseqüentemente, a constituição do Brasil por "barroco". A
primeira introdução, que toma "barroco" como "um estilo de vida impregnado no mundo
ibero-americano", explica como esse "estilo de vida" estaria relacionado à descoberta e à
colonização do país, tomado como uma das "nações barrocas". Além de definir "barroco"
como um "estilo de vida" ibero-americano, Santos ainda estabelece o que seja "o homem
barroco", angustiado entre "o céu e a terra". Em seguida, para provar que "barroco"
operaria uma "maleabilidade a serviço da formação dos novos mundos", narra a ocupação
da América Espanhola e Portuguesa por esse "estilo de vida" e por esse "homem barroco".
No decorrer dos séculos XVI e XVII, "barroco" teria se espalhado pela costa do Brasil,
sendo apropriado de maneira particular em cada um dos lugares por onde teria passado. Por
fim, essa narrativa encontra seu clímax ("barroco", ainda, "vai explodir delirantemente na
aurora dos Setecentos, na grande saga de civilização e cultura das Minas Gerais") e sua
personificação ("Aleijadinho"), e "barroco" é proposto como elemento que se confunde
com Brasil.
A segunda introdução, assinada por Edouard Pommier, busca definir mrus
fortemente o que o texto de Santos conclui: Pommier visa esclarecer "a presença do Brasil
no mundo da cultura dos últimos cinco séculos" através da especificação dos "laços
indissolúveis e permanentes entre o Brasil e o Barroco". A especificação de tais laços é
constituído pela descrição de três ciclos de apropriação de "barroco", que corresponderiam
aos momentos históricos do país - sua descoberta, sua colonização e seu estabelecimento.
Esses ciclos são denominados "barroco recebido", "barroco assinalado" e "barroco
restituído".
Mesmo que tais teses acerca da aderência de "barroco" no Brasil, ou vice-versa, não
sejam completamente estranhas ao texto de Emanuel Araújo, nota-se que, na comparação
das introduções das duas exposições, há uma ligeira diferença de propósito, que definem
molduras interpretativas particulares: se Universo Mágico concentra-se na proposição de
uma brasilidade de "barroco", Brasil Barroco esforça-se em oferecer um caráter "barroco"
do Brasil. São notáveis também as diferenças relativas ao modo como definem "barroco".
Na introdução de Universo Mágico, por mais que haja indicações de padrões - de
mentalidade, de sociabilidade, de organização cultural - que sugerem um transbordamento
relativo a um âmbito especifico criado para "barroco", a aplicação do termo está, de alguma
117
forma, circunscrita: diz respeito a aspectos supostos de um tipo de arte religiosa herdada
pela colônia brasileira. As introduções de Brasil Barroco, em outra direção, definem
"barroco" como um conjunto de noções fluídas e sem endereçamento específico - um
"vazio doutrinai", nas palavras de Pommier, pronto a se manifestar, constituindo culturas e
nações, bem como fundamental no entendimento de Brasil. As duas exposições baseiam-se
na idéia de "formação". Contudo, a primeira insiste em uma "formação barroca e colonial
do Brasil", enquanto que a segunda assegura a formação do próprio em meio a uma cultura
global "barroca".
118
Anita Malfati testemunharia uma "transformação global do contato do homem com o
mundo". As conseqüências dessa transformação diriam respeito a um novo modo de
avaliação de objetos artísticos do passado: "uma série de obras tomada invisível pela
prevalência das normas clássicas descortina-se abruptamente pelo desvendamento de outra
percepção artística". Mas a desobstrução final do caminho seguido por "barroco" teria sido
executada por Mário de Andrade e possibilitada, segundo Aguilar, pela "consciência
inteiramente voltada para a formação nacional" que possuiria o autor modernista.
A introdução do catálogo supõe, como as outras dos demais catálogos, a
significação brasileira de "barroco". Porém, ao invés de apresentar indícios históricos dessa
significação, trata de demonstrar como tal sentido de "barroco" teria sido esquecido e, logo
em seguida, resgatado. A esse respeito, a introdução, em certa medida, aproxima-se dos
prefácios. Logo após a desobstrução final do caminho "aurora!" executada por Mário de
Andrade, Aguilar narra os desdobramentos de tal ação: a fundação de órgãos de
preservação do patrimônio e os estudos de autores estrangeiros a respeito de "barroco
brasileiro". Por fim, apresenta a curadora do módulo Arte Barroca, Myriam Andrade
Ribeiro de Oliveira, como continuadora desses estudos e, portanto, herdeira da retomada de
"barroco". Assim, Aguilar propõe certa pertinência cívica da própria exposição que
organiza: a Mostra seria a última etapa do processo de valorização de "barroco" iniciado
por uma "consciência inteiramente voltada para a formação cultural".
Contudo, a defesa da pertinência da relevância cívica do evento na introdução do
catálogo do módulo adquire funções diferentes daquelas que teria se fosse proposta por um
prefácio: a defesa dessa relevância na introdução, por um lado, disponibiliza mecanismos
de interpretação das obras, que devem ser tomadas como reencontro de objetos artísticos
pertinentes com um patrimônio cultural nacional; por outro lado, diferencia o módulo Arte
Barroca das outras exposições a respeito de "barroco", pois propõe o valor da redescoberta
como fundamento curatorial.
4.2.4 Brazil: Body & Sou/: "barroco" como um dos fundamentos da performática e
1!9
já referidas até aqui porque não se propõe enquadrar apenas os objetos catalogados por
"barroco". O texto do curador Edward J. Sullivan tem como propósito operar categorias de
leitura capazes de denotar rigor conceitual e metodológico na apresentação do grande
panorama apresentado acerca do que é chamado de "cultura visual brasileira", o que inclui
o uso de uma escrita museográfica auto-reflexiva. Tendo corpo e alma expostos, Brasil
teria, como períodos chaves de sua produção visual, o "modernismo" e "barroco".
O título da exposição indica os dois eixos conceituais trabalhados pelo curador. O
primeiro se baseia num jogo entre aparência e essência, entre estereótipo e auto-ímagem,
importação artística e originalidade, tomado como operante na dita "cultura visual
brasileira", cuja configuração, como se percebe, seria "antropofágica". A própria linha
curatorial adotada, baseada no pressuposto de que "resistance and acceptance, and the urge
to appropriate combined with flexibility and resilience shape the indivuality of Brazilian
cultural patterns" (Brazil: Body and Sou!, p. 7), daria conta de combinar, ao mesmo tempo,
o que seria uma visão externa sedimentada a respeito do país e uma auto-imagem criada por
brasileiros a partir de sua arte que visaria responder a essa visão externa. Assim, mais do
que usar a exposição para substituir clichês a respeito do Brasil (mostrando, por exemplo,
uma diversidade cultural e artística que os transbordaria), o curador propõe que os próprios
clichês, enquanto elementos de imaginário e tópicas estabelecidas sobre o país, seriam
categorias operantes na produção e na intelecção dos objetos artísticos representativos da
"cultura visual brasileira", constantes na exposição. Através desse jogo de mitificação e
desmitificação simultâneas, propostos como processos culturais operativos complexos,
Sullivan faz glosa dos módulos da exposição ("The Encounter", "Baroque Brazil", "Afro-
brazilian Culture", "Modem Brazil", "Contemporary Brazil", "Architecture" e "Cinema"),
além de contextualizar em termos geraís a "cultura visual brasileira"
A abordagem de tal "cultura visual", no entanto, ainda se dá por meio de um
segundo eixo conceitual, também previsto no título da exposição. Esse segundo eixo diz
respeito a um engajamento performático suposto como símultâneo de mundo fisico e
metafisico denotado na produção e recepção dos objetos contidos nessa cultura assinalada,
a um caráter teatral particular da cultura brasileira. Segundo Sullivan, seria característica de
uma sensibilidade brasileira uma tendência à teatralização; característica proposta, nos
objetos artísticos que analisa, por um aspecto performativo, tomado como necessário para
120
pleno entendimento desses objetos. Entende-se, portanto, a série proposta por Sullivan em
seu texto; série que se inicia com o manto tupinambá e finaliza com os mantos de Arthur
Bispo do Rosário e com os parangolés de Hélio Oiticica, passando pela procissão "barroca"
e sua fé teatralizada, pela alusão de rituais nas obras dos viajantes, pela tela Samba, de Di
Cavalcanti, pelos objetos relacionais de Lygia Clark, e por outras obras que preveriam a sua
realização performática e teatral.
"Barroco" seria fundamental para esses dois etxos conceituais propostos. Com
relação ao primeiro, a "arte barroca" serviria como uma espécie de ensaio de adaptação e
assimilação de um estilo artístico que conseguiria, ao mesmo tempo, representar e agregar
matrizes étnicas e sociais diversas. Porém, "barroco brasileiro" seria efetivamente brasileiro
não apenas pela combinação racial supostamente operada pelos objetos rubricados pelo
termo. "Barroco" seria reahnente brasileiro pela suposição de um fervor de fé performático
e ritualístico, o que alimentaria o segundo eixo conceitual da introdução.
Como se vê, os mecanismos de instrumentalização propostos para os objetos
"barrocos" exibidos não são muito diferentes daqueles utilizados pelas outras introduções: a
instrumentalização da leitura dos objetos "barrocos", assim como nos outros catálogos,
fundamenta-se, principalmente, pela siguificação brasileira de "barroco", proposta aqui
também como engajamento religioso, social e étnico - instrui-se aqui o mesmo: "barroco"
deve ser entendido como fundador da nacionalidade ou da "cultura visual" que a
fundamenta. A novidade, contudo, é que a narrativa apresentada por Sullivan, acerca do
grande panorama da "cultura visual brasileira", não prevê apenas o enquadramento e a
localização de "barroco", como nas outras introduções; "barroco", apesar de não especificar
todo o conjunto de objetos a ser enquadrado, alimenta esse enquadramento, já que é a partir
dos objetos "barrocos" que os dois eixos conceituais da exposição são explicitados. Se
"barroco" não engloba a narrativa apresentada, é o termo que a põe em funcionamento,
dotando-a de categorias pelas quais toda chamada "cultura visual brasileira" será
apresentada.
121
5 Os estudos: o museu do museu de "barroco"
123
No entanto, apesar de não articularem um conjunto homogêneo de pressupostos e
propósitos comuns, os estudos cumprem uma função importante nos catálogos: eles
conferem um lastro (teórico, analítico, documental, historio gráfico e interpretativo) das
exposições e das publicações que acompanham. Assinados por diversos especialistas, os
estudos fundamentam as categorias de leitura empregadas pelos prefácios e,
principalmente, pelas introduções, percorrendo uma parcela significativa da produção
intelectual e das diversas abordagens a respeito das obras expostas ou dos assuntos
mobilizados pelas exposições. A presença deles nos catálogos assinala que não basta
apenas explicitar o valor cívico dos eventos ou os projetos curatoriais que animam esses
eventos; para que as exposições se imponham como maneira autorizada de agrupar, exibir e
interpretar diversos objetos, deve ser necessário ainda que um arranjo bibliográfico seja
efetuado, concomitantemente aos arranjos de obras propostos. Os estudos são assim o
museu (textual) do museu (visual) onde se dá a exibição de "barroco".
Os catálogos através do agrupamento de estudos diversos acerca dos temas das
exposições deixam de ser apenas publicações de circunstância, um acessório editorial de
um evento temporário. Eles funcionam como obras de referência a respeito dos assuntos e
obras a que se dedicam as mostras e como confirmação técnica da qualidade delas. Por isso
mesmo, os catálogos parecem constituir um gênero de escrita que se auto-alimenta: nas
listagens bibliográficas dessas publicações, outros catálogos são citados como material de
referência obrigatória.
Dadas as particularidades dos estudos, não ofereceremos um fio analítico linear para
esquadrinhá-los, como fizemos com as introduções e estudos. Agir de tal modo com os
estudos seria o mesmo que oferecer uma introdução alternativa que os homogeneíze e os
sedimente, como fazem as introduções dos catálogos. Tentando, de outro modo, descrever
os estudos, bem como o modo pelo qual eles se valem de "barroco", propomos classificar
esses textos sucessivas vezes a partir de alguns critérios e mapear os repertórios
constituídos por tais textos. Agindo assim, buscaremos analisá-los sem desconsiderar o
caráter de coletânea dispersiva e um pouco caótica que o conjunto deles apresenta77 •
77
Além dessa classificação, descrevemos particularmente cada um dos estudos dos catálogos. Essas
descrições particulares se encontram nos apêndices do presente trabalho.
124
5.1 Classificação dos estudos quando à focalização dos textos
125
discussão a respeito de "barroco" (corno "O Barroco no Brasil, análise da bibliografia
critica e colocação de alguns pontos", de Augusto C. da Silva Telles, Universo Mágico, e
"Barroco e o mundo conternporãneo", de Benedito Nunes, Brasil Barroco); outros propõem
novas formas de entendimento da categoria ("A tropicalidade de Barroco", de Riccardo
A verini, Universo Mágico). Por fim, alguns dos estudos introdutórios que tratam de
"barroco" combinam, entretanto, mecanismos de todos esses textos já citados. Ordenando a
proposição de contextos, a análise sociológica ou antropológica dos períodos cobertos pelas
exposições, a informação do estado da discussão acerca de "barroco" e a assunção do
significado brasileiro das obras rubricadas pelo termo, esses textos engendram pontos de
partida para os ternas da exposição (corno as duplas de textos de mesma autoria: "Barroco:
a arte da fantasia", Universo Mágico, e "Entre a ordem e o caos. Colonialisrno, escravidão e
barroco", Brasil Barroco, ambos de Nicolau Sevcenko; "Barroco, estilo de vida, estilo das
Minas Gerais", Brasil Barroco, e "The baroque culture ofBrazil", Body & Sou!, de Affonso
Ávila). Esse último tipo de "estudo introdutório", ressonante e misto, organiza o núcleo
conceitual das exposições, mesmo sem focalizar nenhuma obra específica.
Outros estudos, além dos introdutórios, também propõem urna iniciação aos ternas
das exposições. Porém, diferentemente dos textos que chamamos de "introdutórios", esse
outro tipo de texto, que denominaremos "panorãrnico", refere obras ou grandes conjuntos
de obras. É o caso, por exemplo, de "A imagem religiosa no Brasil", de Myriam Andrade
Ribeiro de Oliveira, Redescobrimento, e "Brazilian Baroque Art", de Cristina Ávila, Body
& Sou!, que oferecem um grande panorama da produção artística da colônia brasileira, o
que inclui a enumeração e a discussão de escolas, regiões e períodos de produção, de
classificações estilísticas e de artífices importantes.
A maioria dos estudos panorâmicos, entretanto, focaliza conjuntos um pouco mais
restritos de obras, embora não se concentrem especificamente em um objeto particular. Os
conjuntos estabelecidos por esses textos ora p odern ser organizados segundo gêneros de
produção artística ("Escultura colonial do Brasil", de Dom Clemente Maria da Silva-nigra,
Universo Mágico; "Ornamentos - encantos do B arroco no Brasil", de W olfang Pfeiffer,
Universo Mágico; "Escultura no Brasil Colonial", Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira,
126
Universo Mágico; "Notícias sobre a pintura religiosa monumental no Brasil", Clarival
Prado Valladares, Universo Mágico; "As tábuas votivas do ciclo do ouro", Márcia Moura
Castro, Universo Mágico; "A música barroca no Brasil", Régis Duprat; Universo Mágico;
"O Barroco e a literatura", Leo Gilson Ribeiro, Universo Mágico; e "Revisitando a
escultura barroca brasileira", de Maria Helena Ochi Flexor, Brasil Barroco; "A Poesia do
Barroco", Haroldo de Campos, Brasil Barroco; "Brazilian Baroque Architecture", de
Augusto C. da Silva Telles, Body & Sou!; "Toward a Phenomenology ofBrazil's Baroque
Modernism", David K. Underwood, Body & Sou!; "The baroque, the Modem, and Brazilian
Cinema", de Robert Stam e Ismail Xavier, Body & Sou[), ora por critérios temporais ou
geográficos ("A arquitetura e as artes plásticas no século XVIII brasileiro", Myriam
Andrade Ribeiro de Oliveira, Universo Mágico; "O barroco nas Missões", de Armindo
Trevisan, Brasil Barroco; "Barroco no Rio de Janeiro", Augusto Carlos da Silva Telles,
Brasil Barroco).
Por fim, o último grupo de textos obtido por meiO da classificação segundo o
critério de focalização é constituído por aqueles que chamaremos de "focalizados". Menos
numeroso que os demais, apenas esse último grupo de estudos concentra textos que tratam
especificamente de obras particulares ou de conjuntos muito restritos de obras. Há, por
exemplo, os estudos dedicados a obras de determinados artistas ("Os escultores Manoel
Inácio da Costa e Francisco das Chagas, 'o Cabra'", de Jacques Résimont, Universo
Mágico; "Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho", de Lúcio Costa, Universo Mágico; "A
madeira como arte e fato (considerações sobre a escultura religiosa do Rio de Janeiro
colonial- em Mestre Valentim, um estudo de caso)", de Anna Maria Fausto Monteiro de
Carvalho, Universo Mágico; "Antônio Francisco Lisboa, O Aleijadinho. Misticismo
barroco e elegância rococó na arte religiosa do século das Luzes", Myriam Andrade Ribeiro
de Oliveira, Brasil Barroco), bem como estudos dedicados a uma só obra ("Especulações
em torno da igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto", de Lygia Martins Costa,
Brasil Barroco; e "The M ainda Altar of São Bento de Olinda", de Augusto C. da Silva
127
Telles, Body & Sou[) ou evento ("Entre a vida comum e a arte: a festa barroca", de Maria
Lúcia Montes, Universo Mágico).
Os diferentes graus de focalização dos estudos concatenados nos catálogos reforçam
a autonomia dessas publicações com relação aos eventos que acompanham. A princípio,
levando em conta uma subordinação total dos catálogos às exposições, poderíamos supor
que esses estudos tratariam pontualmente de cada obra exibida, uma vez que os textos
anteriores, isto é, prefácios e introduções, se preocupam menos com a análise específica das
obras expostas do que com a apresentação de molduras gerais que, se, de um lado, prevêem
a explicitação de pressupostos interpretativos aplicáveis a essas obras, por outro, não
operam análises particulares delas. Porém, tampouco essa análise de cada um dos objetos
exibidos é apresentada pelos estudos ou, pelo menos, pela maior parte deles. Trocando em
miúdos, as catálogos não são circunscritos pelos conjuntos de obras oferecidos pelas
exposições a que se referem.
O fato de os estudos, por vezes, referirem nenhuma obra da exposição ou,
contrariamente, referirem obras que não constam das exposições (é o caso dos estudos
panorâmicos, que, em busca de sistematizar a produção dos períodos a que se dedicam as
exposições, enumeram inúmeras obras que não constam das mostras) demonstra que a
exibição de arte proposta não se encerra nos objetos que exibe. As obras expostas
constituem apenas uma parte de um todo que é referido; elas referem outras obras, numa
"relação funéica", como diria Preziosi78 , e pressupõem um contexto em que foram
produzidas e de onde seriam retiradas. Mas, se essas relações das obras expostas com os
contextos produtores e com outras obras não exibidas são apenas supostas pelas exposições,
são os catálogos que efetivamente as constróem, por meio dos estudos. Complementando
virtualmente o que não pode ser exibido, porque as exposições têm limitações fisicas, os
estudos, por vezes, tratam de constituir um contexto para as obras, ainda que não as
refiram; em outras vezes, enumeram diversas obras com as quais aquelas exibidas
78
Preziosi, analisando como obras de arte são tomadas pela História da Arte, em particular, e pela
museografia, em geral, anota que se pressupõe dos objetos uma espécie de memória virtualmente
inesgotável: cada obra lembraria e dialogaria com uma série de outras. Essa relação é denominada
de "funéica" ou descrita como sintomática de uma concepção de tempo "historicamente inflectido".
O nome funéico é derivado do conto "Funes, o memorioso", de Jorge Luis Borges, a respeito de
uma personagem, Funes, que estaria condenada a lembrar-se de tudo. cf. Rethinldng Art History, op,
cit., pp. 21-24
128
dialogariam e, eventualmente, analisam alguma obra em particular. Esse jogo de
focalização e desfocalização, considerado o conjunto dos estudos é simultâneo entretanto.
129
leitor leigo e um especializado, os estudos escolhem falar para ambos. A combinação de
registros discursivos diversos insinua também que as obras exibidas podem ser objeto de
reflexão em campos disciplinares diversos.
130
circunscrito por circunstância alguma: "barroco" pode ser livremente empregado para
assinalar e interpretar mentalidades, culturas, estilos de vida e, fundamentalmente,
nacionalidade. Em segundo lugar, tal uso de "barroco" não se dá pela identificação de
algum elemento tomado como "barroco", diferentemente do que fazem os condensadores
de "barroco", mas pelas uposição a priori de elementos "barrocos" no que se debruçam
esses textos. Os espalhadores de "barroco" são primordialmente os textos introdutórios
mais analíticos. Nesses textos, a definição e a aplicação de "barroco" independem da
focalização de obras e, por isso, "barroco" é espalhado, geralmente numa abordagem mais
culturalista.
Enquanto que alguns textos podem ser facilmente classificados como condensadores
ou como espalhadores de "barroco", muitos outros compõem, por meio da combinação
desses dois modos de uso termo, maneiras mistas de emprego de "barroco". Mesmo nesses
casos, há a predominância de um dos dois modos de uso referidos. Dentre os textos
introdutórios e genéricos, o espalhamento de "barroco" pode se dar depois de algum
momento em que se condensa "barroco". Já os textos panorâmicos e focalizados de caráter
especializado tendem, em seus momentos finais, a espalhar o que foi condensado,
aduzindo, por exemplo, alguma essência "barroca" do Brasil no arremate das designações
regradas feitas por meio do termo.
Um caso bastante específico do emprego misto de "barroco" é constituído pelos
estudos do catálogo Body & Sou/. Na seção do catálogo dedicada a "barroco", são
encontrados estudos condensadores e espalhadores de "barroco". Mas o espalhamento de
"barroco" é executado mais fortemente pelas outras seções dos catálogos. Os estudos a
respeito de arquitetura contemporânea e de cinema brasileiros valem-se do termo para
explicitar a especificidade dos objetos de que tratam. Esses estudos, dessa forma, levam a
cabo o espalhamento de "barroco" insinuado nos diversos estudos dos outros catálogos,
pois tomam o termo como categoria interpretativa não apenas de um abstrato "caráter
barroco do Brasil" mas de diversos produtos culturais produzidos no Brasil até o século
XX.
Seria possível estabelecer urna analogia entre os dois modos de uso de "barroco"
verificados nos estudos e os diferentes graus de focalização e de especialização discursiva
nesses textos. Assim como há um jogo de focalização e desfocalização, de uso de
131
vocabulário especializado e leigo, há a condensação e o espalhamento de "barroco".
Espalhar "barroco" pressupõe, como ponto de partida ou referência, uma condensação em
algum objeto ou circunstância específica. A identificação localizada e regrada de "barroco",
realizada principalmente pelos estudos panorâmicos e focalizados, também especializados,
fixa um ponto de referência e de comparação que alicerça a postulação do caráter "barroco"
do BrasiL Inversamente, tal caráter, por sua vez, pressupõe a identificação de "barroco" em
algum objeto produzido por ele.
5.4 Repertórios
O principal repertório constituído pelo conjunto dos estudos diz respeito ao que
vimos chamando de "significação brasileira de 'barroco"'. Evidentemente, tal significação
não se encontra homogeneamente referida pelos estudos. Porém, o afunilamento de sentido
que prefácios e introduções produzem nos estudos estabelece esses textos como subsídios
de tal focalização, mesmo que não seja oferecida de forma similar em cada um deles. Esses
textos ocupam-se das duas postulações envolvidas em tal significação: alguns argumentam
a brasilidade de "barroco", demonstrando como os objetos denominados pelo termo e
produzidos no Brasil-colônia carregariam traços típicos desse local de produção; outros
insistem mais na segunda postulação, aduzindo que a brasilidade de "barroco" seria
explicada justamente pelo caráter "barroco" do BrasiL Em ambos, a idéia de "formação" é
pressuposta. Mas a grande maioria dos textos que se ocupam exclusivamente da
132
demonstração de tal significação de "barroco" trabalham indistintamente com as duas
postulações, oscilando entre uma e outra. Os estudos que mais fortemente explicitam o
valor nacional de "barroco" são os estudos introdutórios, genéricos e espalhadores de
"barroco". O núcleo conceitual das ignificação brasileira de "barroco" é oferecido pelos
textos "Barroco: a arte da fantasia", Universo Mágico, e "Entre a ordem e o caos:
colonialismo, escravidão e barroco no Brasil", Brasil Barroco, ambos de Nicolau
Sevcenko; "Encontro do Novo Mundo, 500 anos depois", de Ana Maria de Moraes, Brasil
Barroco; e "The Baroque Culture ofBrazil", de Affonso Áv lia, Body and Sou!.
133
de dúvidas", de Augusto C. da Silva Telles, Universo Mágico; "Barroco e o mundo
contemporâneo", de Benedito Nunes, Brasil Barroco; "Revisitando a escultura barroca
brasileira", de Maria Helena Ochi Flexor, Brasil Barroco; e, finalmente, "Toward a
Phenomenology of Brazil's Baroque Modemism", de David K. Underwood, Body and
Sou!, efetuam uma espécie de revisão bibliográfica do termo "barroco", propondo, por
vezes, novos significados para ele. Amparando o uso ressonante e polissêmico de
"barroco", esses estudos oferecem narrativas acerca dos usos do termo.
!34
religiosa no Brasil", de Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, Redescobrimento; e
"Brazilian Baroque Art", de Cristina Ávila, Body and Sou[).
No entanto, também não há homogeneidade no que diz respeito ao "estudo técnico
de 'barroco"': os métodos analíticos e descritivos não são os mesmos em todos os estudos
que se ocupam do oferecimento de tal tipo de estudo de "barroco", assim como há mesmo
textos que criticam os mecanismos de análise empregados por outros. Por exemplo, os
estudos "Tropicalidade do Barroco", de Ricardo Averini, Universo Mágico; "Entre a vida
comum e a arte: a festa barroca", de Maria Lúcia Montes, Universo Mágico; "O Barroco no
país do açúcar", de José Luiz Mota Menezes, Brasil Barroco; e, finalmente, "The Baroque
Culture of Brazil", de Affonso Ávila, Body and Sou!, relativizam o procedimento de
classificação estilística empregado em grande parte dos textos que se ocupam do "estudo
técnico de 'barroco"'.
Esse grande repertório constituído pelos "estudos técnicos" não são meramente
descrições no entanto. Mesmo quando esses estudos não espalham "barroco", eles
contribuem para a significação brasileira do termo, alicerçando-o em uma "base técnica".
Por exemplo, a distinção entre estilos regionais pode subsidiar a idéia do valor nacional de
"barroco", porque essa especificação regional pode ser interpretada em termos expressivos.
Da mesma forma, a identificação regrada de "barrocos brasileiros", longe de inviabilizar a
apresentação de um "barroco brasileiro" genérico, pode reforçar a postulação da brasilidade
desse "barroco", uma vez que possibilita a apresentação de apropriações particulares de
"barroco". Um caso exemplar da interpretação em termos expressivos de determinada
especificidade regional da produção é feita por "O barroco nas Missões", de Armindo
Trevisan, Brasil Barroco.
Mesmo os textos que procuram ser fundamentalmente técnicos pode ser tomados
como subsídios da significação brasileira de "barroco" devido ao afunilamento de sentido,
já referido, que produzem os prefácios e as introduções. Uma vez que os catálogos se
iniciam com esses textos que explicitam o valor nacional de "barroco", os textos que
surgem em seqüência podem ser tidos como base do que foi anteriormente afirmado.
135
5.4.5 Repertórios particulares
136
art", de Cristina Ávila, Body and Sou[). Os estudos introdutórios, genéricos e espalhadores
de "barroco" vão afirmar que a vida e a obra de Aleijadinho sintetizam não apenas os
estilemas "barrocos" diversos em circulação na colônia, mas resumem as próprias
características e contradições da história da colônia. Os estudos panorãmicos e focalizados,
especializados e condensadores de "barroco" procuram demonstrar o "estilo pessoal" de
Aleijadinho, o modo particular pelo qual o artista teria dado uma contribuição única a
''barroco".
Por fim, o último repertório particular criado pela redundância dos estudos diz
respeito a relações estabelecidas entre "modernismo" e ''barroco". Há freqüentes
referências feitas ao resgate de "barroco" que os modernistas teriam realizado. Essas
referências, longe de apenas historicizar a recepção critica de "barroco", estabelecem a
adequação da visão nacional defendida pelos modernistas, demonstrando como eles
estariam certos em resgatar "barroco" e colocá-lo em circulação nos debates sobre artes no
Brasil.
137
Conclusão
139
subsidiado pelo próprio jogo de criação e referência de consenso acerca de "barroco" nos
prefácios dos catálogos, analisamos textos, provenientes de um âmbito disciplinar
específico, a História Literária, nos quais a explicitação da "significação brasileira de
'barroco"' foi decisiva. Os textos analisados, Conceito de Literatura Brasileira, de Afrânio
Coutinho, e O Seqüestro de Barroco na Formação da Literatura Brasileira: o caso
Gregório de Mattos, de Haroldo de Campos, foram duas das respostas que teve o modelo
historiográfico da Formação da Literatura Brasileira, de Antonio Candido, reconhecido,
ao mesmo tempo, por fornecer critérios até há pouco capazes de formular uma narrativa da
subjetividade nacional e por não incluir os objetos tidos como "barrocos" nessa narrativa. A
partir desses três textos, usados por nós como parâmetros de comparação, procurou-se
delimitar procedimentos de atribuição de valor nacional a "barroco". O propósito não foi o
de propor uma causalidade entre a polêmica referida e as exposições. Procuramos, de outra
forma, isolar mecanismos argumentativos já empregados em torno da defesa do valor
nacional de "barroco" de modo a explicitar como se propõe nacionalidade através de
"barroco" nas exposições. O objetivo, portanto, foi o de analisar modelos que operam a
proposição retroativa do nacional.
Como vimos, Candido não apenas exclui "barroco" da narrativa que propõe, mas
oferece um modelo historio gráfico que prevê um lugar residual para "barroco", de modo a
não admitir que haja um momento histórico em que sua narrativa da "formação" não opere
e, portanto, de modo a neutralizar os objetos etiquetados pelo termo, propondo-os como
residuais. Coutinho e Campos respondem que o que é deixado como resíduo seria
justamente o mais importante na definição de "literatura brasileira". Além da valorização
literária e estética dos objetos ditos "barrocos", dentro do que entendem como "valor
estético" ou "literário", ambos oferecem, como argumento final contra Candido, uma
proposição circular. Tal como explicitam os dois polemistas de Candido, a postulação do
valor nacional de "barroco" é, na verdade, produzido por duas assunções simultâneas e
dependentes: a primeira seria a brasilidade de um "barroco", ou seja, a identificação de
elementos brasileiros no "barroco" produzido no Brasil; a segunda seria o caráter "barroco"
do Brasil, isto é, a pressuposição de que elementos "barrocos" comporiam a cultura, a
literatura, as artes e mesmo a mentalidade do país. Essas duas assunções, contudo, para
operarem o argumento último contra o modelo historiográfico de Candido, precisam ser
140
propostas indistintamente, uma vez que ambas se interrelacionam e se subsidiam de forma
mútua, de modo a defender o "irúcio pronto" através de "barroco" como alternativa à idéia
de "formação" defendida por Candido.
Valendo-se dos termos de tal polêmica como modelo de argumentação do nacional
retroativo sedimentado no museu, observamos que os catálogos propõem a "sigrúficação
brasileira de 'barroco'" de modo misto. De um lado, a proposição circular e dupla do valor
nacional de "barroco" é utilizada, pressupondo, para fins de comemoração e de
especificação nacionais, tanto a "brasilidade de 'barroco"' quanto o "caráter 'barroco' do
Brasil". De outro lado, longe, entretanto, de empregar tal circularidade para propor um
"irúcio pronto", os catálogos combinam a postulação circular e dupla com a idéia de
"formação". A confecção de "barroco" como objeto museológico prevê, assim, o uso
simultâneo de dois modelos, a princípio contraditórios, de proposição do nacional.
No segundo capítulo, ao mesmo tempo em que apresentamos os catálogos que
depois foram analisados, refletimos a respeito da transformação de "barroco" em objeto
museológico, cujos pressupostos ressonantes encontram-se reproduzidos nos catálogos em
uma relação estrutura/uso específica. Num primeiro plano, a "sigrúficação brasileira de
'barroco"', quer como circularidade ostensiva, quer como "formação barroca", prevê o que
chamamos de ressonância de "barroco", isto é, o alargamento do escopo de referência do
termo, que permite que tal palavra seja empregada tanto para designar determinados objetos
quanto para referir mecarúsmos de interpretação desses objetos. Amplificando e
conduzindo a ressonância de "barroco", premissa da sigrúficação brasileira do termo e,
portanto, subsídio primeiro das exposições, os catálogos estruturam-se em forma de
coletânea dispersa que apresenta uma tipologia evidente. Essa tipologia produz dois
movimentos da ressonância de "barroco": um movimento centrífugo, previsto nos
"estudos", que amplifica a ressonância referida; e um movimento centrípeto, constituído
por prefácios e introduções, que conduz essa ressonância à exibição de "barroco". É o jogo
entre esses dois movimentos que produz também uma certa urúdade nos catálogos, urúdade,
como dissemos, apenas performática porque se constitui na referência, realizada por
prefácios e introduções, às exposições.
Num segundo plano, a museificação de "barroco", ou melhor, a museificação da
ressonância de "barroco", atende, por meio do complemento discursivo das exposições
141
oferecido pelos catálogos, a uma tripla exigência de verossimilhança museológica:
"barroco" exibido atenta para uma exigência pedagógica, uma vez que constitui repertório
cultural tido como válido; para uma exigência histórica, uma vez que produz alteridade
temporal; e, finalmente, para uma exigência antropológica, uma vez que indica um modo de
vida particular preservado no museu. A disposição textual dos catálogos, como concluímos
então, não só amplifica e acomoda a ressonância de "barroco", como também produz
discursivamente um objeto museológico
Na segunda parte da dissertação, analisamos usos específicos de "barroco" em cada
um dos três tipos de texto encontrados nos catálogos, explicitando funções e modos de
organização desses textos. Os prefácios, que visam propor as exposições como eventos
cívicos relevantes, valem-se de três tipos de argumentos: assinatura ilustre, argumentos de
circunstância e argumentos por "barroco". Em linhas gerais, "barroco" é proposto pelos
prefácios como conjunto de objetos que, dados anseios específicos e circunstanciais do
presente, deve ser exposto de forma cívica. Supõe-se, nos prefácios, a significação
brasileira de "barroco", e, mais do que isso, essa significação é contextualizada e referida
por dever cívico.
As introduções são textos diferentes dos prefácios. Há tanto um maior acabamento
analítico e textual, como há uma especificação pormenorizada de "barroco", apenas
referido pelos prefácios. As introduções instrumentalizam tecnicamente a leitura
museográfica das mostras, combinando definições de "barroco" e narrativas contextuais
com a "significação brasileira de 'barroco"', além da referência à categorias de síntese e de
organização. O primeiro aspecto das introduções é instrutivo. A explicitação dos projetos
curatoriais é desenvolvida tendo em vista a instrução do visitante das exposições, de modo
que esse visitante seja o leitor ideal das mostras, isto é, um análogo do próprio curador.
Num segundo plano, as introduções apresentam uma segunda função: são elas que
particularizam cada exposição e, consequentemente, cada catálogo. O modo particular de
apropriação de "barroco" nos projetos curatoriais explicitados diferencia uma exposição da
outra, o que não é feito por nenhum dos outros textos encontrados nos catálogos. Em suma,
"barroco", nas introduções, é tomado como categoria de instrumentalização da leitura dos
objetos expostos e, ao mesmo tempo, apropriado em cada introdução de modo ligeiramente
diferente, particulariza os eventos.
142
Por fim, o conjunto do último tipo de texto verificado nos catálogos, ou seJa, o
conjunto dos estudos, constituí uma segunda exposição símultãnea à própria exposição de
arte que os catálogos complementam: os catálogos, por meio dos estudos, realizam por si
mesmos uma exposição de textos a respeito de "barroco". Assim como um grande museu, o
conjunto dos estudos é diversificado e constituído por objetos muito diferentes entre si. O
que propusemos, então, foi a classificação dos estudos segundo três critérios: a focalização,
a especialização discursiva e a delimitação de "barroco". Além dessa classificação, que
indica que o conjunto dos estudos reproduz, em pormenores, o jogo de amplificação e
acomodação da ressonãncia de "barroco" efetuado pelos catálogos como um todo,
esboçamos também quais são os repertórios constituídos por esses textos através da
repetição e redundãncia.
Os três tipos de texto correspondem a marchas operatórias particulares dos
catálogos tendo em vista a complementação discursiva das exposições. Os catálogos, por
meio dessas três marchas, servem como registro duradouro das exposições, eventos
temporários. A arquitetura conceitual das mostras é registrada por eles, o que inclui a
certificação do "significado brasileiro de 'barroco"' e seu subsídio, a ressonãncia de
"barroco".
143
Apêndices
145
descoberta, por parte dos europeus, de novas terras. Amplificando a suposta coincidência
temporal, Averini postula que o mundo novo, "exuberante" em sua tropicalidade, teria sido
tomado como fonte de inspiração de "barroco" na Europa. Justifica isso citando o gosto da
aristocracia européia do XVI e XVII pelo "exótico", além de elencar as características
estilísticas de "barroco" que só poderiam ser pensadas depois do contato com urna nova
terra, diferente e exuberante. Esse caráter extra-europeu, tomado como fonte de "barroco",
e a "situação espiritual" em que se gera "barroco" seriam responsáveis pela inauguração de
um mundo cultural vigente até os dias atuais, caracterizado por urna espécie de
multiculturalização multilateral, definida por "rotura do círculo fechado e vertical da
cultura clássica, alargamento horizontal dos conbecírnentos, aceitação progressiva de
temas, formas, sugestões e emoções provenientes de diversas direções; dilatação que
originará uma linguagem comum de grande força centrípeta em todas as comunidades de
nova formação cultural, espelhadas pelo mundo" (p. 53).
Esse mundo, definido então por essa universalidade diversificada referida, operaria
uma superação dos padrões clássicos vigentes antes de ''barroco", pois esses padrões não
previam a aceitação da diversidade. A universalidade diversificada também seria
possibilitada pela Igreja Católica, que via todos os povos do mundo írmanados em Cristo e
seria responsável pela conciliação entre a tradição cristã-européia e "formas de percepção e
sensibilidades das vastíssimas regiões". A Igreja seria capaz de executar essa conciliação
pois estaria sediada em Roma, cidade que já teria tido, devido ao passado glorioso e
reinante na antigüidade, experiência no remanejamento de urna universalidade
diversificada. Além disso, ao contrário dos protestantes, o catolicismo teria urna
"receptibilidade positiva", que possibilitaria tanto a aceitação de ''barroco" quanto a de suas
fontes extra-européias. Assim, "barroco" seria o indício de um mundo novo, urna "nova
civilização", em que se faria notar a presença e a aceitação das novas terras e povos
descobertos. Essa "nova civilização" também é caracterizada por Averíni através de
mudanças sociais que a navegação e o comércio com as novas terras teriam causado na
Europa.
Defendendo então esse caráter extra-europeu de "barroco", que seria também o
inicio de "uma nova civilização", Averíni alega criar uma perspectiva aberta para
reconhecer a chamada "expressão colonial", não mais tomada como periférica e marginal,
!46
mas como referência de "manifestações essenciais e determinantes de um espírito
substancialmente modificado". Depois de se colocar contrariamente à crítica negativa com
relação a "barroco", de fazer critica negativa aos "padrões clássicos" e de elogiar a
produção colonial citada, o historiador ainda faz algumas considerações sobre a
tropicalidade referida em "barroco". Segundo ele, "barroco" na Europa seria uma
ampliação fantástica e não verossímil do espaço, ao contrário do que ocorreria no Brasil,
onde "barroco" representaria de maneira realista a exuberãncia da natureza e a superaria.
Por fim, analisa brevemente os "substratos sobre os quais as manifestações artísticas
[coloniais] se apóiam", afirmando que, através de "barroco", os povos indígenas puderam
se reconstruir depois dos choques dos primeiros contatos com o homem branco. Essa
reconstrução se daria a partir das manifestações artísticas protegidas e motivadas pela
Igreja.
[Originalmente publicado em Barroco. Teoria e Análise. Affonso Ávilla. SP: Perspectiva,
1997]
147
que chama de período de decadência de Portugal no período após os descobrimentos
(tensão social, Reforma e a conseqüente instalação do Santo Oficio, enfim, "tudo consumia
a promessa da hegemonia portuguesa"). Depois desse longo período de crise, teria se dado
a restauração do trono português por D. João N. Para comemorar esse júbilo, "barroco"
teria sido criado: "A perda da independência havia sido uma punição coletiva: a cobiça das
conquistas afastara os portugueses de sua Fé e da missão de expandi-la pelo mundo,
enfrentando infiéis, apóstatas e heréticos. Mas chegara a salvação, o retorno ao estado de
graça. Era preciso agradecer confirmando a Fé e sáudando o Rei. Portugal foi tomado de
uma euforia epidêmica. Festas, procissões e celebrações irrompiam por toda parte. Esse foi
o momento inaugural do Barroco." (p. 59).
No Brasil, também haveria júbilos a serem comemorados, por exemplo, a expulsão
do invasor holandês. No entanto, o quadro econômico era sombrio. Sevcenko cita, como
exemplo, os acordos comerciais impostos pelos ingleses. A Coroa portuguesa, para gerar
divisas, teria agravado a exploração do Brasil, incentivando os paulistas a se embrenharem
em território brasileiro atrás de ouro. Daí, novo júbilo: "uma vez maís, a bênção dos céus
recaiu sobre a comunidade luso-brasileira; em fins do século XVII, é conhecida a maior
reserva jamais vista de ouro e diamantes. A imaginação barroca atinge então o paroxismo
da pujança" (p. 60).
Todo esse contexto é oferecido para que se perceba a "atmosfera emocional" que
constituiria a "matriz onde germina o ânimo barroco". Sevcenko passa então a apresentar
algumas características desse ânimo. "Barroco" engendraria uma arte da imaginação,
oposta à arte do intelecto da "cultura renascentista". Não seria uma arte para a elite, "mas
um empenho em ampla escala para arrebatar coletividades, exaltando espíritos pela miríade
dos estímulos sensoriais e choques de emoções". Essa arte também cumpriria uma função
no Brasil colônia: "Na sociedade colonial submetida a extremos de brutalidade e privação,
ela restitui a dimensão dos impulsos afetivos. Apontando para as desigualdades e os
privilégios espúrios, ela suscita estados de harmonia sensorial que recompõem os
fragmentos de um mundo sob tensões tão lancinantes que o ameaçam desintegrar" (p. 60).
Por fim, depois de algumas considerações a respeito do caráter "místico", "vertiginoso" e
"imaginativo" de "barroco", Sevcenko, propõe uma questão final: "Quem não reconhece o
Brasil na fantasia do Barroco? Ou quem não reconhece o Barroco na fantasia do Brasil?"
148
"O Barroco no Brasil. Análise da bibliografia crítica e colocação de pontos de consenso e
de dúvidas", Augusto C. da Silva Telles.
"A arquitetura e as artes plásticas no século XVIII brasileiro", Myriam Andrade Ribeiro
de Oliveira
O artigo trata da produção plástica e arquitetôníca do século XVIII na colônía luso-
brasileira. Mesmo alegando dificuldade em enquadrar, nos limites de um texto curto, toda
essa produção, Oliveira propõe, primeiro, um panorama geral que localiza essas obras
geográfica e historicamente, e, segundo, uma forma de periodização, organízada por ciclos
e baseada, ao mesmo tempo, em critérios estilísticos e cronológicos da produção
setecentista.
149
Com relação a o p anorama gera!, a estudiosa propõe que o X VIII brasileiro teria
assistido a um apogeu e a um coroamento da longa fase de maturação cultural e artística
elaborada nos séculos precedentes. A esse apogeu artístico, corresponderia uma
prosperidade econômica geral (fase áurea da mineração em Minas Gerais) e uma paz
relativa (fim das grandes invasões estrangeiras). As regiões de pujança econômica teriam
também grande produção artística e arquitetônica, e formariam centros culturais produtivos,
ainda que, isoladas entre si, devido ás dificuldades de comunicação e de deslocamento na
colônia. Uma dessas regiões é o nordeste que, apesar do declínio da cana-de-açúcar, tivera
sua estabilidade econômica restabelecida graças à Companhia Geral do Comércio de
Pernambuco e Paraíba, criada pelo Marquês de Pombal. Em Minas, a descoberta do ouro
teria engendrado um novo surto civilizatório e, no Rio de Janeiro, teria havido
enriquecimento graças às atividades portuárias em plena expansão e à mudança da sede do
governo dos vice-reis. Adiciona ainda à lista de regiões prósperas Belém do Pará, que
também teria um importante desenvolvimento na época devido à fundação de uma outra
companhia de comércio.
Antes ainda de apresentar os ciclos cronológico-estilísticos, Oliveira trata de
algumas características gerais a respeito do período. A Igreja teria tido o papel de principal
mecenas do XVIII. Porém, contrariamente ao que ocorreu no XVII, não seriam as ordens
religiosas as responsáveis pela confecção artística ou pela construção dos tempos, e sim as
associações leigas. Os artistas integrantes dessas associações, quase todos mestiços,
segundo a estudiosa, também contribuiriam para outra especificidade do período: como
teriam uma independência maior que os predecessores religiosos, eles estariam, a princípio,
mais abertos tanto à assimilação de novas tendências quanto à invenção de traços
autóctones e à adaptação de modelos europeus em situações locais, com base na mescla
racial. No XVIII, praticamente não teria havido, segundo Oliveira, novas fundações, e o
monumento típico do período seria a igreja da irmandade, de proporções e traços
arquitetônicos singelos, mas requintada em ornamentações no interior. A maior proliferação
desse tipo de construção teria se dado em Minas Gerais, região fundadaj á depois de as
ordens religiosas serem proibidas.
As eguir, Oliveira propõe e desenvolve a p eriodização em três ciclos estilísticos:
"primeiro ciclo barroco", "segundo ciclo barroco" e "ciclo rococó". Quanto ao "primeiro
150
ciclo barroco", que se daria entre 1700 e 1730, a estudiosa propõe que a arquitetura
religiosa se mantém ainda basicamente "maneirista" sem grandes inovações. Só haveria
propriamente uma "barroquização" da arquitetura a partir da quarta década do século.
Assim, as fachadas e as plantas continuariam simples; a igreja seria constituída com um
volume retangular, ligeiramente desigual dado o desnível dos terrenos, e seus cômodos
seriam encaixados de forma lógica nesse volume. A mudança que Oliveira aponta,
relativamente a "maneirismo", é o uso diferenciado desses volumes, que se tornariam
simplificados e elegantes. Porém, a despeito dessa simplicidade arquitetônica, nota uma
exuberância decorativa interna; particularmente chama a atenção para os retábulos,
construídos a partir do "estilo nacional português" e para o uso das colunas torsas,
profusamente decoradas, como elemento de suporte. Faz também considerações a respeito
da parte superior das colunas, interligadas por arquivoltas, que deixariam um amplo núcleo
central livre. Oliveira especifica essas características gerais desse ciclo a partir de
construções particulares.
Quanto ao "segundo ciclo barroco", que se estenderia de 1730 a 1700, Oliveira
aponta para modificações diferenciadas em cada uma das regiões já referidas. No entanto,
propõe algumas particularidades: a decoração tornar-se-ia ainda mais exuberante, seguindo
o preceito "barroco" de horror vacui; quanto à talha, haveria a substituição do "estilo
nacional português" pelo "estilo joanino", segundo o qual a estatuária integra-se na talha, e
as colunas salomônicas são usadas com freqüência; quanto aos tetos, os tradicionais
caixotões seriam substituídos por pinturas ilusionistas em trompe l'oeil, porém,
diferentemente da Europa, sem perspectiva no quadro centraL Oliveira indica também que
haveria uma sobreposição de estilos, o que seria creditado ao longo tempo de construção
dos templos, e enumera as igrejas mais importantes feitas nesse ciclo e as características
regionais de aplicação dele.
Por fim, quanto ao terceiro ciclo, o "rococó", compreendido entre 1760 e 1800, a
estudiosa afirma que se trata de um estilo mais ligado à decoração do que propriamente à
arquitetura, apesar de excetuar alguns casos específicos, como as igrejas projetadas por
Aleijadinho. Esse ciclo não apresentaria grandes inovações com relação ao período
anterior, tampouco haveria um padrão unitário de aplicação, exceto em Minas Gerais, onde
a ausência de ordens religiosas teria permitido o desenvolvimento pleno do estilo. Oliveira
151
se debruça, dentre as poucas inovações que cita, sobre o uso da luz natural, que enfatizaria
os padrões "rococós" de decoração, corno os motivos ornamentais destacados em ouro
sobre fundo branco ou tons pastéis. Registra também especificidade a respeito da pintura do
forro, que, no Rio de Janeiro, graças a urna maior proximidade com a corte de Lisboa, teria
se dado a partir do "estilo pornbalino".
[publicado em Gávea- Revista de História da Arte e Arquitetura, n. 2, RJ, 1985]
!52
tradição já antiga de construção de ornamentos e que, por isso, teriam plena aptidão e
interesse na ornamentação, o que possibilitaria a riqueza da "ornamentação barroca".
Após essa primeira conclusão e depois de alegar que as formas da ornamentação das
igrejas coloniais brasileiras (os altares com seus retábulos) já teriam sido suficientemente
estudadas (cita Lúcio Costa, Germain Bazin e Benedito Lima de Toledo), Pfeiffer retoma a
questão central do texto. Segundo ele, a "ornamentação barroca seria caracterizada por
"formas em detalhe que nos parecem significativas, apresentando singularidades que
caracterizam bem o espírito criativo aí presente e a sua evolução" (p. 84). Assim, discorre
longa e detalhadamente sobre particularidades da ornamentação das igrejas construídas no
Brasil até o inicio do século XIX, procurando demonstrar a premissa primeira do texto (a
crescente centralidade da ornamentação na constituição do espaço físico das igrejas), as
mudanças de estilo (de resquícios "maneiristas" a um início de "barroco"; do apogeu desse
estilo a influências de um "barroco tardio germânico") e a progressiva aculturação dos
modelos arquitetônicos e ornamentais portugueses.
Por fim, depois de apresentar inúmeros exemplares de ornamentos em igrejas do
XVI, XVII e XVIII, construídas no Rio de Janeiro, no nordeste e em Minas Geraís,
encaminha a conclusão de seu texto: "a imensidade de tesouros [... ] com tanta fé a nós
legados" teria tido a participação de "todas as camadas do povo e até dos escravos". Além
de ser exemplar de uma "dedicação que nem sempre podemos encontrar", corresponderia
"ao espírito criador dos homens da Contra-reforma e do Barroco no país". Assim, conclui o
texto respondendo à pergunta inicialmente proposta (se a ornamentação teria uma função
significativa ou se seria apenas elementos de decoração), destacando a "expressividade das
manifestações de fé" em elementos que exprimem "tradicionalmente apenas a beleza e a
riqueza de seu aspecto". Dessa forma, Pfeiffer constrói uma função significativa para a
ornamentação "barroca" no Brasil, pois, segundo ele, deve-se admirar as obras "barrocas"
"pelo seu valor tanto espiritual como artístico, neste país CUJO espírito é,
caracteristicamente, barroco".
153
colônia. O artigo se inicia defendendo que a "escultura ocupa o campo mais vasto e
generalizado" entre as belas-artes do Brasil Colonial (p. I OI). O estudioso propõe também
uma relação entre escultura e arquitetura colonial para mostrar como as imagens funcionam
como "arte própria e quase independente na decoração interna das igrejas coloniais".
Além disso, e numera a lgrunas anedotas f actuais, visando estabelecer uma relação
alegórica entre o culto de imagens no Brasil e a própria história do país e de sua
colonização. Para defender a idéia de que o culto à imagem no Brasil seria tão antigo
quanto a história do país e, por vezes, indistinto a ele, relata o caso da imagem de Nossa
Senhora da Boa Esperança, trazida na capela do navio de Pedro Álvares Cabral. Essa
imagem, segundo Dom Clemente, seria o "protótipo de todas as imagens que durante três
séculos iriam se transferir de Portugal para o Brasil, seja diretamente, seja indiretamente
pela vinda de mestres, que por sua vez iam ensinar a arte portuguesa de modelar e esculpir
a brasileiros: brancos, pretos e mulatos" (p. 10 I). Além do caso da imagem de Nossa
Senhora da Boa Esperança, Dom Clemente enumera alguns outros eventos pitorescos e
relacionados a imagens. Por exemplo, a imagem de Nossa Senhora da Graça, salva por
Diogo Álvares, o Caramuru, de um naufrágio na Bahia de todos os Santos em 1535, e
depois referida por padre Nóbrega, em 1549, quando da fundação da cidade de Salvador;
refere ainda a imagem de Nossa Senhora das Maravilhas, doada por Dom João ill a
Salvador, revestida de prata em 1628 por artistas baianos, diante da qual o jovem Antônio
Vieira teria tido seu famoso "estalo"; e, porfim, mencionaa Nossa Senhora da Penha
trazida, em 1558, por Frei Pedro Palácios à Capitania do Espírito Santo).
Dom Clemente atesta que um grande número de estátuas, principalmente as usadas
pelos padres jesuítas, teriam sido encomendadas e trazidas de Portugal. No entanto, destaca
também a grande produção local de esculturas e imagens, e aponta para a dificuldade em se
determinar a autoria precisa das obras produzidas antes de 1700 devido à escassez de
documentação antes de tal data. Dom Clemente também elenca imagens e artistas
importantes - todos, segundo ele, superados por Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.
Além dos imaginários e escultores c i vis que cita, lista também outros artífices ligados a
ordens religiosas e os divide em três escolas, correspondentes às ordens a que pertenceram:
Franciscana. Jesuítica e Beneditina. Focalizando a produção particular de cada uma dessas
três escolas, faz uma breve listagem dos principais mestres e obras.
154
[ texto originalmente publicado em Museu de Arte Sacra Mosteiro da Luz, SP: artes: Ltda.,
1987]
155
principalmente em Minas Gerais e em Pernambuco, teria favorecido uma maiOr
individualidade das escolas regionais dessas regiões. Por outro lado, observa que, no Rio de
Janeiro e em Belém do Pará, num primeiro plano, e Salvador, num segundo, as
diferenciações com relação a Portugal seriam menos acentuadas, pois o "rococó" teria
sofiido a concorrência, respectivamente, do "estilo pombalino" e do" estilo D. João V",
marcadamente portugueses. Oliveira enumera ainda outros estilos em voga na colônia,
dando destaque para a grande extensão cronológica de duração do "maneirismo" e da curta
duração de "barroco" e de "rococó". No entanto, a despeito da duração cronológica desses
estilos, "barroco" e "rococó" teriam legado mais aos períodos posteriores, já que se
conservaram conjuntos de excepcional qualidade, que nada deveriam aos da metrópole. Por
fim, afirma que, no Brasil, assim como em Portugal, diferentemente do mundo hispano-
americano, "os aspectos ornamentais, tanto do Barroco quanto do Rococó, sobrepujam
largamente os estruturais". Por meio de tal afirmação, defende que foram mantidas, à
exceção de alguns conjuntos, as construções em plantas retangulares de nave única, em
detrimento de plantas poligonais e curvilineas, com cúpulas e transeptos, comuns na
tradição hispânica e tidas como características de "barroco". Porém, essa simplicidade
estrutural, contrária aos ditames arquitetônicos "barrocos", "favoreceu a ação dos
decoradores que, pela conjugação dos efeitos escultóricos da talha dourada, aos
policrômicos, produzidos pelos azulejos e pinturas, freqüentemente transformaram espaços
estáticos em dinâmicas composições barrocas" (p. 129)
Após eleger essas caracteristicas gerais, Myriam de Oliveira trata especificamente
da escultura colonial, através da subdivisão já referida. Com relação, primeiramente, à
escultura monumental em pedra, a estudiosa visa demonstrar que a tradição luso-brasileira,
que teria como característica a decoração interna em detrimento da externa, ao contrário da
tradição hispano-americana, teria retardado a produção monumental em pedra autóctone.
Essa característica seria acentuada nas regiões litorâneas, dado ao contato mais estreito com
a metrópole, de onde provinham as peças monumentais necessárias aos conjuntos. Cita
alguns exemplos (como o de Salvador, onde eram importavam-se fachadas inteiras, e do
Rio de Janeiro, onde a importação se acentuou no XVIII) e algumas exceções (retábulos
remanescentes da antiga capela jesuítica de Nossa Senhora da Graça de Olinda, primeira
tentativa de aproveitamento da pedra calcária local). No XVII, no Nordeste, depois da
156
restauração do domínio português, teria surgido uma produção suficientemente particular,
uma "autêntica escola regional de escultura ornamental em pedra", segundo Olivera. Elenca
também mais algumas particularidades regionais e as analisa formalmente, além de
discorrer sobre o modo de produção de escultura ornamental no nordeste e em Minas
Gerais (particularmente Aleijadinho e seus "oficiais").
Ao tratar dos retábulos e dos conjuntos de talba, aponta para a importância dessa
produção na decoração religiosa luso-brasileira: "os retábulos, púlpitos, tribunas, painéis
parietais e outros elementos de 'talha' dourada e policromada formam um conjunto à parte,
pela sua íntima ligação com os espaços que simultaneamente decoram e dinamizam, em
relações de complexidade crescente, do Maneirismo ao Rococó" (p. 132). Esses conjuntos
seriam elementos fundamentais, pois funcionariam como "módulos reguladores, aos quais
se subordinam os demais elementos, incluindo os revestimentos azulejares e pictóricos".
Depois dessas considerações iniciais sobre a talha, inicia a análise desse tipo de
produção através de uma periodização estilística. Assim, faz considerações das fases
"maneiristas", "barrocas" e "rococós" pelas quais teria passado a produção de talhas e de
retábulos. Sobre a talba "maneirista", limita-se a dizer que, devido a alguns fatores
(mudança do gosto, invasões estrangeiras e a proibição das ordens religiosas), pouco se
conservou. Os poucos exemplares remanescentes teriam se dado por obra jesuítica. Se o
estilo "maneirista" estaria ligado aos jesuítas, o "barroco" estaria ligado aos franciscanos e
a outras ordens. Seguindo ainda o seu esquema de periodização estilística já referido,
Myriam de Oliveira divide a produção da talha "barroca" em dois subperiodos: o primeiro
(1690-1730) seria a reprodução do chamado "estilo nacional português" que teria como
características os retábulos "de colunas torsas e arquivoltas concêntricas, com intricada
decoração de pâmpanos" (p. 132). A respeito desse estilo cita um caso específico, já quase
"rococó" (o das "cavernas douradas", como o da igreja de São Francisco, de Salvador, na
qual a talba desenvolve-se livremente, invadindo todas as superficies disponíveis,
produzindo um efeito visual de "floresta tropical", povoada de figuras antropomórficas); o
segundo ciclo "barroco" da talba (1730-1760) seria típico do "estilo joanino" e teria como
fundamento a teatralidade visual, isto é, uma ordenação retórica do espaço própria para a
encenação do drama litúrgico. Cita, ainda, particularidades que esse último ciclo "barroco"
teria tido no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. Por fim, Myriam de Oliveira trata da última
!57
fase da talha, a "rococó", que teria sido produzida sob influência francesa e se destacaria
pela decoração - predominância de paredes brancas, alternância de dourado e branco na
talha dos retábulos e iluminação uniforme. Propõe que foi nesse ciclo que se assistiu a uma
maior diferenciação dos modelos regionais de talha e discorre sobre a especificidade,
originalidade e abrangência das produções de Minas Gerais.
Finalmente, a estudiosa passa a tratar da última categoria de escultura, a imaginária
sacra, apontando, de início, para a escassa pesquisa especializada a respeito da escultura
religiosa no Brasil e em Portugal. Para analisar essa última categoria de escultura, recorre
novamente ao seu esquema de períodos estilísticos. A produção "maneirista" seria advinda
de ordens religiosas, principalmente, da Companhia de Jesus e da Ordem de São Bento,
com padrões "estéticos" e "iconográficos convencionais". As características desse primeiro
período seriam: caráter monumental, posturas hieráticas, contenção de formas e expressões
severas, que pouco se diferenciariam das características da produção portuguesa do
período. Também não haveria uma diferenciação regional da produção colonial; haveria, no
máximo, alguma diferença entre as produções das diferentes ordens. Discorre sobre alguns
produtores exemplares (Frei Agostinho da Piedade e Frei Agostinho de Jesus) e supõe que
os artistas teriam maior liberdade na confecção das representações da virgem relativamente
ás imagens dos santos. Essa relativa liberdade, atesta Myriam de Oliveira, geraria a
produção de traços já "barrocos". O período "barroco" se destacaria pela dramaticidade
teatral das imagens e pouco se diferenciaria na evolução para o "rococó". Por fim, discorre
sobre casos específicos, escolas e escultores, destacando a excepcionalidade técnica e
artística de Aleijadinho e de Manuel Inácio da Costa, que souberam produzir sínteses
originais correspondentes a traços "brasileiros e mineiros" e "brasileiros e baianos",
respectivamente.
"Os escultores Manoel Inácio da Costa e Francisco das Chagas, "o Cabra", Jacques
Résimont
De cunho mais "técnico", o texto do especialista Jacques Résimont se assemelha ao
resultado de pesquisas preliminares para a constituição de um catalogue raisonné dos
escultores baianos Manoel Inácio da Costa e Francisco das Chagas, conhecido pelo epíteto
"o Cabra". Résimont reúne citações de outros autores, documentos e dados biográficos para
decidir a respeito da atribuição de autoria de obras normalmente relacionadas a esses
!58
escultores, de modo a definir, ainda que de modo esquemático e geral, o que seria o "estilo
pessoal" dos artistas em questão.
Sobre Manoel Inácio da Costa, o estudioso consegue reurur alguns dados
biográficos e documentos que comprovam, em certos casos, e desmentem, em outros, a
autoria de algumas obras atribuídas ao artista. A partir da análise das obras de autoria mais
confiável (Cristo Crucificado, da Santa Casa de Misericórdia; Conjunto de passos da
Ordem Terceira do Carmo; São domingos e outras imagens da Ordem Terceira de São
Francisco; Senhor do Bom Caminho (Cristo Crucificado), da Matriz do Pilar; Cristo
Flagelado e Cristo da Pedra F ria, do Museu de Arte Sacra; Cristo Ressuscitado e Maria
Madalena; Cristo Ressuscitado; Santa Maria Egypcíaca; Santa Maria Madalena; e Nossa
Senhora de Saúde e Glória), esboça o que seria o "estilo pessoal do artista", que teria certa
originalidade por executar uma "síntese pessoal" de dois estilos: de um lado, o
"neoclássico" e, de outro, "um barroquismo bastante nítido", característico de uma
"sensibilidade barroca nativa". Essa sensibilidade e essa síntese pessoal seriam
responsáveis por produzir urna grande emoção estética, como a produzida pela Nossa
Senhora da Saúde e Glória.
Já sobre Francisco das Chagas, a empreitada do critico não é tão produtiva.
Praticamente não obtém dados biográficos ou documentos que comprovem a autoria das
obras. Dentro do corpus comumente relacionado ao artista, Résimont só consegue perceber
alguma semelbança entre duas delas, o Cristo da Coluna e São Pedro Alcântara. Porém,
essas duas obras se assemelbam em um aspecto que afasta ainda mais a autoria suposta de
Francisco das Chagas, pois, segundo Résimont, essas obras teriam características nítidas de
uma tradição hispano-arnericana (como, por exemplo, um "sentimento patético
exacerbado"), e, sendo assim, é bem provável que teriam sido confeccionadas por algum
artista hispano ou mesmo importadas da Espanha. Dadas essas lacunas sobre "o Cabra", só
observa que, devido ao epíteto, deveria ser negro ou mulato, mas não julga possível
identificar um estilo pessoal.
[publicado em Barroco, n. 14, 1986-89, Belo Horizonte, 1989)
!59
Costa. Trata-se de um texto basicamente narrativo no qual se registram dados biográficos e
de personalidade e obras de Antônio Francisco Lisboa, bem como breves dados contextuais
sobre as Minas Gerais do período. De forma gerai, defende-se o caráter singular das obras
de Aleijadinho, que fariam "deste brasileiro das Minas Gerais a mais alta expressão
individualizada da arte portuguesa do período" (p. 177)
"A madeira como arte e fato (Considerações sobre a escultura religiosa do Rio de Janeiro
colonial - em Mestre Valentim, um estudo de caso)", Anna Maria Fausto Monteiro de
Carvalho
Trata-se de coordenadas gerais para a interpretação e análise dos trabalhos de
Mestre Valentim e, mais especificamente, da sua obra mais famosa, a talha da Igreja da
Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo. No inicio do texto, há
dois grandes movimentos de explicação contextual que visam localizar a produção de
Mestre Valentim. No primeiro, Carvalho faz algumas considerações sobre o oficio de
escultor no período colonial brasileiro. Segundo ela, as igrejas do Rio de Janeiro colonial
desconheciam o surto liberai que teria ocorrido nas artes plásticas portuguesas e que
coincidiria com o inicio do "maneirismo". Nesse período, em Portugal, teria havido uma
emancipação relativa dos pintores do rígido sistema de produção artesanal e mesteiral. Uma
"nobreza" da pintura destacava-se, e esse tipo de produção artística seria considerada uma
arte liberai, pois o artista se encontraria relativamente mais livre: não estaria sujeito, por
exemplo, ás rígidas regras dos grêmios de oficios, que controlavam produção, tributos e
formação dos artistas; o artista dedicado à pintura, não mais apenas artesão, seria, portanto,
"dono" de sua obra. Contrariamente a isso e apesar da legitimidade da escultura de madeira
na arte luso-brasileira, que seria inigualável em qualidade pela pintura, o escultor, o
taihador ou o imaginário tinham seus oficios ainda indefinidos na ambigüidade de
artistas/artesãos. Embora eles pudessem, segundo a estudiosa, constituir oficina própria, os
objetos produzidos estariam ainda sujeitos à administração dos grêmios de oficios.
Na colônia brasileira da época, no entanto, as categorias mestreiras não senam
suficientemente organizadas e, relativamente a Portugal, a submissão a grêmios de oficios
seria menos rigorosa. Para comprovar o que chama de "fluidez na especialização",
Carvalho cita trecho de Lorivai Gomes Machado, segundo o qual, essas características
fluidas de constituição do oficio de entaihador funcionariam como possibilidade de
160
"movimentação ascensorial na rígida estrutura escravista" e denotariam um novo grupo
social, "nem cativo, nem senhor, cuja tez é ignorada e cuja presença é indispensável" (p.
181). Essa indefinição estatutária a respeito do oficio sofreria ainda um agravante étnico: as
profissões ditas "mecãnicas" serem comumente exercidas por mestiços, que, por serem
mestiços, não poderiam abrir loja. É esse o contexto referido para localizar Mestre
Valentim, que se inseriria nesse estatuto ambíguo de artista/artesão, além de ser mulato e,
mesmo assim, possuir oficina própria.
No segundo movimento contextual do artigo, Carvalho discorre longamente, de
maneira narrativa, a respeito dos estilos em voga relativos à produção de escultura religiosa
nos séculos XVI, XVII e XVIII, bem como analisa casos específicos de manifestações
desses estilos na colônia e, mais especificamente, no Rio de Janeiro colonial, onde atuou
Mestre Valentim. Assim, trata das especificidades formais e técnicas do "maneirismo"
(XVD, do "barroco" (XVII), do "rococó" (XVIII), de suas apropriações particulares e de
subestilos construídos em determinados períodos.
Depois desses dois movimentos de localização contextual, que dariam coordenadas
básicas para o entendimento da produção de Valentim, Carvalho analisa detalhadamente "a
primeira obra que o distinguiu como o principal entalhador da cidade [do Rio de Janeiro] da
segunda metade do século XVII aos alvores do XIX" (p. 187): a talha da Igreja da
Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo. Encaminhando essa
análise, fornece alguns dados: a capela teria demorado vinte anos para ser executada e
apresentaria, a despeito de todo esse período de execução, uma grande unidade de estilo
(regional e individual) do artista, que tem a autoria comprovada documentalmente.
Enumera, então, detalhes da obra e persegue neles o que seria o estilo pessoal do artista,
comparando-os com outros de outras obras (por exemplo, os elementos decorativos na
coluna torsa berniniana, que "denunciam em seus pormenores, caraterísticas inconfundíveis
da grafia plástica valentiniana, uma vez que se repetem em outras obras", [p. 188]). Grsso
modo, propõe que os ditames do estilo "rococó" seriam apropriados e adaptados pelo estilo
pessoal de Valentim. Mais do que isso, Carvalho conclui que a obra desse artista denotaria
um estilo individual regido por um "hibridismo", no qual "tendências estéticas do século
XVIII estão amalgamadas, denunciando mecanismos de apropriação e de resistência que
caracterizaram o processo de aculturação da capital colonial" (p. 192)
161
[originalmente publicado em Gávea -Revista de História da Arte e Arquitetura, n. 1O, RJ:
PUC/RJ, Departamento de História, 1993]
162
caixotões: "muitas dessas pinturas são dominadas pelo fulgor da talha, pouco importando o
sentido narrativo das cenas que parecem mais servir ao caráter barroco de descontinuidade
linear, dentro das contenções formais das molduras"(p. 200). Valladares também subtipifica
esse primeiro "partido". Haveria casos específicos, de produção mais barata, em que se
simula a estrutura dos caixotões, através de moldura fingida, pintada, ou por simples trave
de enquadramento. Cita alguns exemplos e justifica a qualidade desse tipo específico de
obra dizendo que se trata mesmo de solução mais pobre, mas não inferior em termos
artísticos. Por fim, , diz que não há registro de caixotões reais ou fingidos no século XIX,
mas haveria evidência de que os de produção jesuítica seriam dos fins do XVII.
Quanto ao segundo "partido" de pintura monumental religiosa, o do painel
cenográfico, Valladares afirma que, além das pinturas sobre tabuadas do forro (ou os
caixotões), há, apesar de raras, abóbadas de capelas primitivamente pintadas a fresco, com
pigmento aplicado diretamente sobre o reboco, que também funcionariam como "pintura
monumental", pois configurariam todo o espaço dos templos. Cita alguns exemplos, como
o do mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro.
Além desses dois grandes tipos gerais de "pintura religiosa monumental", trata
também de alguns gêneros mais específicos de pintura, como a "pintura de perspectiva".
Porém, segundo o autor, muitos dos exemplares desse tipo de pintura não se configurariam
enquanto "pintura monumental", pois, muítas vezes, seriam simplesmente ornamentais, não
demonstrando o aspecto de organização espacial.
A seguir, Valladares apresenta a denominação convencional da pintura religiosa
monumental da colônia segundo os 1ugares geográficos de produção. Ter-se-ia, assim, a
escola pernambucana, a baiana, a fluminense e, por fim, a mineira. O autor relativiza um
pouco essa classificação, pois ela deixaria de lado, por exemplo, a produção paraense, que,
apesar do pouco número de obras e da má conservação delas, teria características
particulares. Depois dessa breve relativização, trata cada uma das escolas especificamente.
Sobre a primeira, a pernambucana, cita obras e autores; o melhor exemplar dessa escola, no
entanto, seria o forro da Conceição dos Militares, por ser "inventiva e de qualidade", mas
da qual não se conhece o autor. Cita também alguns exemplares de Alagoas, contida na
escola pernambucana, e excetua, pela qualidade, as igrejas conventuais franciscanas de
Santa Maria dos Anjos e a de Nossa Senhora da Corrente. Sobre o estilo de seus forros,
163
Valladares apresenta um conceito específico, já defendido por esse autor em outros textos:
o de "comportamento arcaico brasileiro". Segundo o estudioso, o forro dessa duas igrejas
seriam caracterizados por uma "prototipia barroca revertida, mediante arcaização, a um
desenho de linearismo bizantino"(p. 206). Seria como se os artífices dessas igrejas, mesmo
conhecendo superficialmente o estilo "barroco" então novo e em voga, optassem pelas
formas mais tradicionais e arcaicas. Disso surgiria uma mistura estilística, formas novas
contaminadas pela dicção arcaica, que seria observável também na imaginária escultórica
quando se converte tipologia "barroca" em figuras hieráticas. Valladares explica as
possíveis causas dessa mistura estilística através do isolamento de determinadas regiões e
dificuldades dos produtores em se adaptar a um estilo novo, mas isso, segundo o estudioso,
não seria indício de arte inferior: "ao contrário, temos verificado, na história do Brasil, que
as mais insuladas e distanciadas do processo civilizatório são as que supriram os acervos
mais notáveis, em termos de cultura genuína" (p. 210).
Mas são, enfim, nas escolas baiana, fluminense e mineira que o autor se concentra,
dedicando a elas as demais páginas de seu texto. Sobre a escola baiana, afirma que o
capítulo da pintura monumental no Brasil cresce tanto devido ao grande volume de obras
quanto à diversidade delas e enuncia uma explicação contextual para provar que, se a
produção baihana não é a melhor, seria, com certeza, segundo Valladares, a mais elaborada
e de domínio artesanal superior: "o fator político de ter sido até 1763 a metrópole da
colônia, A Cabeça da América Portuguesa, somado à continuidade de uma situação
econômica de expressivas riquezas, responde pelo fluxo do fausto de construção religiosa
que se manteve desde o testamento de Mem de Sá, de 1569, até a data de empobrecimento
em conseqüência da abolição da escravatura, em 1888" (p. 210). Além das obras já citadas
quando da classificação das particularidades e dos "partidos" da pintura monumental
religiosa no Brasil, enumera outras obras que seriam características desse esplendor baiano.
Em específico, detém-se no painel SAPIENTIA AEDIFICAVIT SIBI DOMUM da livraria do
primitivo colégio de Jesus. Essa obra seria um grande desafio para a crítica, pois
subverteria o entendimento cronológico da produção do período. Discute então a autoria, a
datação e as particularidades desse que seria o único forro de "perspectiva corrigida" no
Brasil. Elenca também os pilares sustentadores dessa escola baiana de pintura monumental
- o trio José Joaquim da Rocha, José Theophilo de Jesus e Antônio Joaquim Franco
164
V elasco - , analisa seus respectivos estilos individuais em suas obras e enumera seus
aprendizes e obras.
Sobre a escola fluminense, credita aos ensmos de Nair Batista a chave para se
entender a completude dessa escola. Inicia citando Frei Ricardo, um pintor beneditino,
como o inaugurador do que seria a escola fluminense de pintura monumental. Cita taJnbém
um pintor leigo importante, José de Oliveira Rosa, que seria discípulo de Frei Ricardo.
Além desses, faz um inventário numeroso das obras fluminenses, elencando pintores e
estilos empregados.
Por fim, V alladares finaliza seu texto tratando da produção de pintura monumental
em Minas Gerais. A esse respeito, porém, antes de tratar de autores e o bras, faz 1ongas
reflexões sobre a forma de se classificar e periodizar a produção mineira. Atesta ele que a
chaJnada "escola mineira" não seria a totalidade da produção regional, mas somente aquela
do momento áureo de um segundo período da produção de Minas Gerais; a classificação,
portanto, não abarcaria outras produções de pintura que Valladares identifica como
matrizes mineiras. O primeiro período dessa produção mineira, esquecido pela crítica
especializada, se constituiria como um "barroco sertanista" que teria se espalhado por
Goiás e Matogrosso e teria características similares das produções seiscentistas de
PernaJnbuco, porém cronologicaJnente tardias, no sertão mineiro, goiano e mato-grossense
do século XVIII. Depois desse ajuste nos critérios de periodização, Valladares passa então
à enumeração de obras e artistas dos dois períodos mineiros, o "barroco sertanista" e a
"escola mineira" propriaJnente dita. Finalizando o texto, Valladares analisa com detalhes as
pinturas monumentais de Manoel da Costa Ataide, pertencente ao período áureo mineiro e à
"escola mineira" propriaJnente dita, e as compara com outras soluções pictóricas da colônia
e da metrópole no período.
[in: BRACARA AUGUSTA. Actas do Congresso "A Arte em Portugal no século XVIII, 1o
t. Braga, Portugal, 1973]
165
caminha para a sedimentação da Academia e da pintura de corte, atentando para as
transformações estilísticas e sociais na arte produzida no Brasil durante o período referido.
Seria interessante notar que, mesmo tratando de objetos coloniais e, portanto, "barrocos", o
propósito final do artigo não se circunscreve à análise de objetos coloniais e "barrocos",
próprios da exposição. Seria também importante anotar aqui que o texto foi publicado
originalmente em um catálogo de uma outra exposição, também organizada por Emanuel
Araújo, sobre o século XIX ( Um olhar crítico sobre o acervo do século XIX: Reflexões
iconográficas, que se realizou na Pinacoteca do Estado em 1994). O recorte do artigo,
portanto, não é exatamente o mesmo da exposição Universo Mágico do Barroco Brasileiro.
O primeiro movimento do texto é o de fazer uma análise, de cunho sociológico, a
respeito do estatuto do artista na colônia e das decorrências desse estatuto para a produção
artística. Trindade inicia esse movimento procurando demonstrar que as b ases do artista
moderno no Brasil só teriam sido criadas no século XIX; mais precisamente, só depois das
três primeiras décadas do oitocentos que teriam se realizado mudanças significativas com
relação à criação e ao significado da pintura. Porém, na virada do XVIII para o XIX, os
artistas atuantes no Brasil, mais tardiamente que em Portugal, ainda estariam ligadas à
tradicional estrutura de oficinas, escolas e fábricas de oficios dirigidas por um artífice
mestre de oficio. Portanto, o "artista" do ínício do XIX seria ainda, na verdade, um artesão,
muito similar ao "artista'' dos séculos anteriores e coloniais. Uma mudança decisiva dessa
estrutura colonial de produção teria ocorrido apenas com a vinda da família Real e de seu
aparato ao Rio de Janeiro. A mudança radical teria sido a proibição das corporações de
oficio na constituição de 1824.
Enunciado esse estatuto peculiar, Trindade passa, então, a dar maiores detalhes a
respeito dele, apresentando algumas características sobre os oficios e artes desenvolvidos
"sob o signo da corporações". Estas seriam estruturas sociais tipicamente coloniais,
baseadas em uma hierarquia estamental, assim como a da sociedade escravista-estamental-
colonial, que mediaria os grupos sociais, os trabalhos artísticos e as trocas. Haveria
semelhanças, relativamente a essas corporações, com Portugal, porém, na metrópole, dados
alguns conflitos entre o poder público e as organizações corporativas, o status social do
artista começaria, no XVIII, a se elevar, principalmente no caso daqueles que trabalhavam
acima dos trabalhos mecânicos, ou seja, pintores e escultores, que executariam já uma "arte
166
liberal", mais elevada socialmente do que o simples trabalho manual das corporações. A
ascensão social do artista também estaria garantida por patrocínio, seja pela coroa, seja pelo
alto clero ou por algum grão-senhor. No entanto, a nobreza só seria garantida para alguns
pintores de imaginária de óleo que se dedicavam exclusivamente a esse tipo de produção.
Na colônia, entretanto, o mercado reduzido teria deixado difusas as fronteiras entre
artista/artesão e artista liberal e emancipado. Mesmo durante o XVII, quando se assistiria a
uma grande produção das corporações, não teria havido Corte ou nobres para nobilitar o
artista. Por fim, enuncia-se que as formas de organização dessas corporações refletiriam, de
certo modo, as formas de organização do conjunto da sociedade colonial: a necessidade da
agregação do trabalho escravo, a hierarquia rígida, a discriminação étnica como
componente na divisão técnica do trabalho.
Depois de apresentar essas características gerais a respeito das corporações, o autor
do texto começa a considerar algumas particularidades da produção pictórica do período
compreendido em seu artigo (fim do XVIII, inicio do XIX). A primeira dessas
particularidades a ser tratada é o chamado "Século de Ouro", isto é, a grande produção de
qualidade, segundo Trindade, da segunda metade do setecentos principalmente em Minas
Gerais e em entrepostos marítimos (Rio de Janeiro e Bahia). A predominância dessa
produção seria a arte religiosa. A esse propósito, Trindade observa também que a pintura só
começaria a ser considerada como um tipo autônomo de arte no século XIX a partir das
fundações das primeiras Academias de pintura; antes disso, e durante o "Século de Ouro", a
pintura seria apenas um aspecto subsidiado da arquitetura, basicamente da religiosa.
Mesmo assim, como decorrência do uso progressivo da talha dourada na decoração dos
templos, o interesse pela pintura religiosa, enquanto ornamento arquitetônico, teria caído
sensivelmente nesse período áureo.
Outra particularidade tratada pelo texto seria o anonimato do artista. A produção
artística se resumiria à arte de oficina, que seria, por sua vez, essencialmente anônima. Não
haveria assinatura das obras, mas, mesmo assim, grandes artistas seriam identificados
graças à tradição local. No entanto, a grande maioria deles ficaria completamente anônima,
sob a égide do contratado/diretor da oficina. Assim como a autoria das obras, a construção
de um estilo pessoal também ficaria, de certa forma, reduzido pelo espaço da oficina e
pelos padrões sociabilidade de tal espaço. O que ditaria a criação artística seria, na verdade,
167
a relação artista(oficina)Icliente; desse modo, seria a aceitação comercial de um estilo que
propiciaria o seu desenvolvimento. Nessa direção, a imitação de estilos de artistas já
conhecidos seria a pauta principal das oficinas. Trindade observa também que as
corporações, além de lugares de produção artística, constituiriam espaços dedicados ao
ensino das artes e oficios.
Depois de apresentadas essas particularidades, Trindade passa a tratar
especificamente de artistas, obras e estilos. Primeiramente, apresenta o que chama de
"herdeiros da cmporação", ou apenas "geração de I 760", vale dizer, o conjunto de artistas
que teriam dado as contribuições mais originais da arte no Brasil do último quartel do
XVIII. O estilo dessa geração seria um estilo novo, o "rococó", que impregnaria o "espírito
barroco" vigente. As obras da época se inseririam nos padrões estilísticos do "Rococó
internacional", em que pesavam o "racionalismo iluminista" e postulados "neoclássicos". O
autor desenvolve essa idéia e faz nuances a respeito da aplicação desse conceito de geração
e de estilo para outras partes da colônia. Essas obras seriam originais não porque elas "se
afastem de regras", mas porque não as seguiriam estritamente: "cometem infidelidades
artisticas. Infidelidades, contrariando normas de desenho e de composição. Ousadia
pictórica. Sintonia do artista com a terra, com a cultura artística do meio, com a
sensibilidade coletiva" (p. 255). No fim do XVIII e no inicio do XIX, Trindade nota
também um hibridismo formado por misturas de "barroco", "rococó", com grafias próprias.
Como exemplo, cita o Passeio Público do Rio de Janeiro projetado por mestre Valentim.
Nessa obra, o plano seria "barroco" com elementos escultóricos e arquitetônicos da estética
"barroca" e elementos no estilo "rococó". Trindade observa também uma certa "tendência
classicizante" na Corte e cita alguns pintores. Entre eles, presta particular atenção a Manoel
da Costa Ataide, que, além de compartilhar dessa tendência referida, também seria
responsável pela criação de modelos mestiços. A propósito desses modelos, atenta para a
existência de artistas mulatos, principalmente a partir de 1790, quando homens pardos e
livres passam a ser oficiais e mestres. Por fim, destaca o que seria a geração de transição do
modelo pictórico colonial, "barroco-rococó", para a "estética acadêmica" e "neoclássica"
das primeiras Academias de artes. Cita também as viagens francesas, com especial atenção
a Debret, e elenca a produção artística nas províncias, particularmente em São Paulo, longe
da Corte no início do XIX.
168
"Notas sobre a prata e a mineração no Brasil". João Marino.
De irúcio, Marino propõe uma pergunta que, segundo ele, seria relativa a um fato
que despertaria atenção de todos os que se interessam pelo assunto da prata no Brasil: como
seria possível a existência de tantos objetos feitos desse metal se não haveria descobertas de
minas de prata no Brasil durante os primeiros séculos da colônia? A resposta seria o tráfego
ilegal de prata para o Brasil, principalmente vinda do Peru. Mariano dá detalhes desse
comércio, citando pessoas, número e rotas envolvidos. Basicamente, a prata vinha da vila
peruana de Potosí, que a trocava por escravos que trabalhariam nas minas. Além de detalhar
as formas de organização desse comércio, elenca características gerais (data de descoberta
das jazidas, quantidade de metal, ourives e determinações legais sobre o comércio e
ourivesaria) a respeito da mineração e da produção de objetos de prata e ouro na Bahia, em
Pernambuco, em São Paulo, em Minas Gerais, no Rio de Janeiro, no Mato Grosso e em
Goiás.
(publicado originalmente em Marino, João. Coleção de Arte Brasileira. SP, 1983]
169
e conservado as mesmas características de arte popular e o mesmo sistema de pintura a
têmpera sobre madeira. Em Minas Gerais, essa tradição teria se aclimatado melhor,
segundo a autora.
Feito então esse histórico, Castro passa a reproduzir alguns relatos de literatos
conhecidos (cita Olavo Bilac e Artur de Azevedo) a respeito das tábuas votivas mineiras,
que também são contextualizadas: a descobertas das minas de ouro teria provocado uma
grande migração espontânea no Brasil; numa terra desconhecida e cheia de perigos, "a fé e
a devoção eram mais que nunca necessárias" (p. 341). Também aponta que, como ainda
haveria processos do Santo Oficio em Minas, a demonstração pública da fé, através das
tábuas votivas, que agradeciam a graça alcançada por meio dos santos, era interessante.
Ressalta ainda que, dado que os pintores eruditos do período se dedicavam à arte sacra e
que não haveria tradição de pinturas de retratos e de paisagens no Brasil de então, as tábuas
votivas seriam as responsáveis por transmitir imagens de hábitos, ambientes e vestuários do
XVIII.
Por fim, e lenca as características dos ex-votos mineiros: c ores primárias e fortes,
quadro em madeira de cedro em forma retangular, moldura saliente e dimensões pequenas
(nunca ultrapassariam "dois pahnos"). As imagens geralmente mostram, segundo a autora,
o ofertante acamado em um aposento, com o leito caracterizado com detalhes, o santo
protetor flutuando em nuvens convencionais e uma faixa inferior que onde haveria uma
inscrição na qual se descreveria o ocorrido, o nome do ofertante e a data do milagre. O
autor das tábuas seria, geralmente, um pintor autodidata advindo do povo que trabalharia
sob encomenda. Finaliza destacando que até hoje as tábuas votivas guardariam as mesmas
características "barrocas" do XVIII.
170
O texto se inicia desenvolvendo um panorama a propósito da aplicação do termo
"barroco", de um modo geral, à produção musical do XVII e, em específico, ao "conteúdo
musical do período colonial brasileiro". Duprat cita teóricos e historiadores da música que
aplicam diretamente o termo, segundo seu sentido wollfliniano, e outros que questionam
essa aplicação. Segundo o maestro, no entanto, a música colonial que teria chegado a nós
seria "indiscutível e plenamente barroca, com as características inconfundíveis e marcantes
da harmonia seqüencial e da verticalidade" (p. 349), características essas, tomadas por
Duprat, como típicas da "música barroca". Justificando a afirmação, faz um histórico do
que seria "música barroca", categoria que é tomada de maneira estilística, sem demarcação
temporal precisa, como um estilo de composição e execução musical, comparando-o ao do
"renascimento" e ao do "classicismo". Discorre longamente a respeito dessa diferenciação e
faz algumas nuances, perseguindo o que chama de "preservação de práticas barrocas na
música religiosa". Segundo o maestro, é justamente na música composta para fins litúrgicos
que as características de uma "música barroca" se desenvolveriam plenamente. Assim,
define essas características como "dramatização" e "representação musical da palavra".
Anota também outras características "barrocas" que teriam sido retomadas e desenvolvidas:
"simetria", "expansão e intensificação das seções melódicas"; arremata essas caraterísticas,
comparando-as com as do "classicismo" musical: "enquanto o Barroco cultua, cultiva e
pratica os ornamentos pesados e superdimensionados, o estilo galante que precede o
Classicismo transforma-os em beleza, que o Classicismo vai depurar ainda mais" (p. 350).
Ainda cita o "baixo contínuo", "figura barroca por excelência", que persistiria na música
religiosa até princípios do XIX. A esse propósito, cita compositores brasileiros do período
que usam o "baixo contínuo".
Especificamente com relação à música da colônia brasileira, Duprat cita esforços de
reconstituição das partituras. A isso, somar-se-iam pesquisas de arquivo que visam traçar o
perfil histórico, social, cultural e mesmo econômico da atividade musical do período.
Devido a essa necessidade ainda de pesquisa primária, não se teria desenvolvido uma
abordagem técnico-estilística que contribuísse para a definição tipológica da música
brasileira do XVIII. O autor enumera ainda especulações necessárias para definir os
parâmetros de interpretação da música colonial. Mesmo reconhecendo esses passos
necessários para entendimento dessa música, Duprat elenca algumas de suas características.
171
O gênero musical mais praticado sena o religioso, gênero essencialmente avesso às
inovações acenadas, por exemplo, na música de câmara e na de teatro, o que explicaria a
persistência de estilemas musicais tardios, por exemplo, do XVI, na música setecentista
praticada no Brasil. A música litúrgica ideal do período seria a vocal, a cappella,
notadamente construída a partir da polifonia vocal palestriana do XVI. A respeito
propriamente das formas de práticas musicais, apresenta alguns aspectos que poderiam ser
concluídos a partir das pesquisas históricas elementares já executadas (por exemplo, a
persistência do uso da notação branca e redonda, apesar de esse tipo de notação ter sido
progressivamente abandonado em outros lugares no princípio do XVIII).
Por fim, Duprat encerra o texto com um longo manifesto metodológico de pesquisa
musical. O maestro argumenta a respeito da necessidade de abordagem técnica da produção
cultural, o que, segundo ele, estaria em desuso no Brasil. Critica a cultura contemporânea e
defende a necessidade da pesquisa histórica tendo em vista a produção cultural no presente.
Também elabora um histórico da disciplina da Musicologia para continuar defendendo a
pertinência do estudo de práticas musicais históricas. Elabora também esse mesmo histórico
no Brasil e arremata defendendo uma prática sistemática de pesquisa histórica que poderia
efetivamente diferenciar e especificar a música feita no passado; essa prática seria
necessária para o estudo adequado da música colonial brasileira, dadas as dificuldades que
essa empresa apresentaria (como não se imprimiam partituras na colônia, o registro musical
seria essencialmente manuscrito, o que demandaria o estabelecimento crítico de partituras
remanescentes e a pesquisa de campo para a descoberta de outras).
172
autêntico, novo, do Brasil, mesmo no período colonial do obscurantismo mais sufocante"
(p.358).
Primeiramente, constrói o perfil de Gregório de Matos, "o único autor de uma
nacionalidade que se esboçava na literatura" (p. 358). Apesar do excessivo caráter
preconceituoso do poeta baiano, que Ribeiro censura ao mesmo tempo que afirma que esse
aspecto não desprestigia a sua obra, e a despeito de alguma dificuldade léxica, que, segundo
o autor do texto, deve ser dirimida com um dicionário, Gregório de Matos teria iniciado,
mesmo que de maneira paradoxal, uma ode a uma população francamente miscigenada. O
poeta teria registrado, mesmo quando faz escárnio, a diversidade de raças e gentes do Brasil
colônia - estaria atento, portanto, a especificidade do povo brasileiro, o que comprovaria
que a sua literatura não seria pura cópia de modelos importados. Também teria feito uma
literatura que daria conta da natureza tropical e que se f01jaria em uma língua brasileira, já
que teria incorporado termos do tupi-guarani em seus poemas. A isso, soma-se um gosto
pela sátira, o que, juntamente com as outras características da sua poesia já referidas, teria
inaugurado um estilo que só depois da revolução modernista de São Paulo seria enfim
sedimentado. Ribeiro propõe também que Gregório de Matos, ao se enxergar como
"náufrago erudito", isto é, um homem culto em uma terra bárbara, se tornaria um crítico
contundente e ostensivo dos vícios praticados pelas pessoas da colônia. Isso permitiria que
o poeta baiano desenvolvesse um retrato realista da pobreza e da perversão das elites no
Brasil de então. Esses vícios apontados seriam características coloniais que teríamos
herdado: "por trás da ironia racista, um quadro realista da imemorável miséria brasileira,
um quadro social de elites econômicas dominantes em nossa quase imutável pirâmide
social: abolida a escravidão racial, não continua, a mesma, a escravidão social?" (p. 359).
Por fim, Gregório de Matos teria também dado "conselhos" a respeito da brevidade e da
fugacidade da vida, e a sua literatura seria indício de uma "complexidade psicológica", pois
indicaria a sua progressiva aceitação da fé, dos poemas satíricos do início da obra até os
poemas religiosos do fim da vida.
Padre Vieira também teria construído "uma literatura autenticamente brasileira",
ass1m como Gregório de Matos, com a vantagem de não ser racista e preconceituoso.
Segundo Ribeiro, Vieira, além de nunca ter entrado em desavenças com a população local,
seria um defensor dos índios e dos interesses do Brasil que começa a se delinear. Registra
173
que o padre jesuíta teria amado os naturais da terra e tentava a todo custo impedir a sua
escravização, assim como entenderia os problemas da terra (Ribeiro cita como exemplo a
constante queixa quanto à falta de estradas e ao possível destino trágico que teriam os
índios se deixados à ganância dos portugueses e dos brancos da terra) e teria lutado para a
sua solução. Teria lutado também a favor da defesa da liberdade. Por tudo isso, Vieira teria
feito um diaguóstico dos problemas da colônia, que seria tratada pelo padre como "um
enfermo" que precisaria de cuidados básicos; assim, "ele tirou um luminoso e ainda válido
raio-x ou tomografia dos países pobres que compõem % da humanidade ainda hoje,
imutavelmente" (p. 361). Por fim, Vieira, ao escrever sermões com "sotaque brasileiro"
reconhecível, também teria trabalhado para a construção de uma literatura nacional, não só
no conteúdo, o que seria notável pelo seu interesse com relação aos problemas do Brasil
colônia, como também na forma.
Ribeiro encerra seu texto aproximando os dois autores (ambos, apesar de possuírem
uma "cultura erudita refinada", conseguiam falar bem aos incultos), e fazendo novamente
crítica negativa das obras do século XVI.
174
questões, Montes prevê que se volte à "própria vida social, em busca de um foco que nos
permita entender o universo de sentido que constitui o solo originário comum onde se
enraízam as diferentes formas de criação da arte", para que se possa compreender "a
importância e o significado que nela encontra a festa", que seria tomada como "lugar da
confluência da vida social" (p. 364). Esse lugar estabelecido pela festa, como "fenômeno
cultural de condensação", seria um índice privilegiado de "mentalidade": "documento vivo
da sociedade em que se produz, a festa nos fala a respeito dela através do próprio modo de
sua produção, dos grupos sociais que a promovem, dos símbolos e signos que mobiliza,
permitindo-nos entrever o processo social de construção dos significados com que se
impregna a experiência de vida de seres humanos que, nossos semelhantes nosso
antepassados- no entanto são outros, na distância histórica que deles nos separa" (p. 364).
Colocados então esses pressupostos teóricos e metodológicos, Montes executa uma
longa descrição da referida festa de Vila Rica tal como relatada pelo texto de Simão
Ferreira Machado, além de comparar essa festa com outras do Brasil colônia e de, também,
analisar o próprio relato em que sua descrição repousa. Resumindo a sua longa análise
sobre essa festa, tida como "barroca", poderíamos dizer que ela se ampara em dois
aspectos: o primeiro seria a característica da "cultura barroca", que Montes chama de
"cultura do espetáculo", na qual se teatraliza o poder e se repõe o lugar específico de cada
classe e grupo social num eixo do poder que preside toda a organização da festa; o segundo
seria o aspecto de "jogo lúdico" dessa festa "barroca", que se constrói a serviço da
experimentação criativa, reapropriando-se do velho, do arcaico, para produzir o novo.
Nesse dois aspectos, a mistura de registros, eruditos e populares, de classes, dominadores e
dominados, e de etnias se faz presente: "a festa (re)produz como forma de sociabilidade e
pedagogia de valores, ao mesmo tempo em que se organiza a vida da futura nação, no
cadinho onde se fundem raças etnias e culturas afro-ameríndias e européias, sob o império
colonial português que se estende no rastro da expansão mercantilista européia do século
XVI" (p. 372). Assim, as características dessa festa "barroca" são estendidas a um "mundo
barroco", a um tipo específico de experiência de "estar-no-mundo": "o termo Barroco
pretende significar a tradução de uma experiência de mundo marcada pela contradição que
cinde sem separar totalmente e integra de modo precário duas metades indissociáveis de
uma vivência histórica ao mesmo tempo moderna e arcaica: de um lado, o sentimento
175
moderno de poder criador do indivíduo, livre das amarras teológicas e sOCiaiS que em
outras eras restringiam sua capacidade infinita de experimentação e expressão; de outro, o
sentimento arcaico de sua limitação radical, frente a um mundo que, material e
espiritualmente, escapa ao seu controle" (p. 378). Seria por meio dessa "experiência
barroca" que a sociedade colonial ter-se-ia constituído enqumto mentalidade e enqumto
nação que se iniciava.
A partir disso, Montes detecta uma permmência dessa experiência "barroca" de
criação principalmente na produção popular brasileira (por exemplo, atribui "barroco" e
suas características ao carnaval e a outras festas populares), apesar de toda a vontade, que
teria se dado a partir do XIX, de se gestar um moderno modelo, advindo das elites, de
sociabilidade, de arte e de criação. Por isso, argumenta a estudiosa, "nossas hermças
barrocas" são mais visíveis até hoje no mundo popular do que na cultura erudita. No
entmto, seria a partir desses persistentes resíduos "barrocos" que se compreenderia a
sociedade brasileira e seus valores culturais: "em nosso universo marcado por uma
sensibilidade e uma visão de mundo de feições arcaicas, o ideal tipicamente moderno da
construção de uma sociedade que se quer democrática, fundada no primado da lei mas
tendo como contrapartida o isolamento do indivíduo, pareça algo tão difícil de
alcmçar"(p.382).
176
2. "Estudos" do catálogos Brasil Barroco, entre céu e terra
"Encontro do Novo Mundo, 500 anos depois", Ana Maria de Moraes Belluzzo
A historiadora da arte propõe, "antes de pousar os olhos sobre as peças em
exposição", "interrogar o próprio estatuto do olhar I ançado ao longo da histórias obre a
América". A premissa aplicada a esse estatuto teria como base a idéia de que
representações artísticas operam trocas culturais. A partir disso, analisa dois momentos do
que chama de produção de representações sobre o novo mundo: o primeiro, chamado de
"encontro do Novo Mundo", seria relativo à primeiras representações dos europeus a
respeito das terras recém-descobertas; o segundo, denominado "colonização da América",
compreenderia pela expressão dos já habitantes da América Portuguesa, feitas através das
artes religiosas e das "formas barrocas". Ambos movimentos, também denominados pelo
par "latência e subsistência", seriam constituídos por formas e figuras advindos do Velho
Mundo e são analisados por Belluzzo como movimentos de produção de imagens a respeito
da América que revelariam mecanismos de funcionamento psico-cognitivos.
Enunciado então o propósito do texto, Belluzzo propõe uma diferenciação geral
entre os dois movimentos já referidos para, depois, analisá-los mais individualmente. De
forma esquemática, poderíamos dizer que o primeiro movimento seria constitutivo da
identidade européia; a figuração da América, nesse sentido, seria uma, ao mesmo tempo,
atividade imaginativa e construção do desconhecido. Já o segundo, movimento de
mestiçagem, apontaria para a experiência artística da evangelização. Segundo Belluzzo, o
intuito seria o de colonizar o espírito, o que mediaria a produção de imagens e das
representações. Mas essas imagens e representações devem ser entendidas no conjunto dos
exercícios da crença religiosa cristã; para essa, a função da imagem não seria o de despertar
indignações, nem a de demonstrar verdades (como as representações do primeiro
movimento), mas invocar um mistério. A partir da atualização do "modelo barroco", a
produção de imagens, apesar de ser controlada pelo poder colonizador e evangelizador, não
seria propriamente imposta, mas assimilada; assim abrir-se-ia campo para a experiência
subjetiva na colônia.
Os dois movimentos de construção de representações são propostos e analisados de
forma mais detalhada, diferenciando-os como dois movimentos históricos distintos. Disso
seria importante registrar aqui que, desses movimentos, proviria uma sedimentação de
177
formas na construção de uma imagem do Brasil. Do primeiro movimento, principalmente
das imagens a respeito do Brasil feita por viajantes estrangeiros, seriam assimilados
determinados aspectos que os próprios brasileiros tomariam como constitutivos da
representação do país: "com o passar do tempo, o imaginário derivado da relação colonial
européia viria contribuir para a dimensão pré-consciente e para a memória nacional, sendo
introjetado pelos brasileiros como imagem do pais. Ao se tornar indissociável de nossa
experiência, a visão dos viajantes espelha a condição de nos vermos através de seus olhos"
(p. 53). Do segundo, a partir da produção de imagens e de propagação da fé, "a experiência
barroca pode ter favorecido certos modos de ser, reiterados no Brasil contemporâneo em
outras manifestações culturais marcadas pela mesma intensificação da atividade imediata e
sensível. Seja o apelo aos sentidos e à sensualidade. Seja o lugar consignado até hoje às
sensações e às imagens que desencadeia. Seja a disposição para perceber o mundo pela
sensibilidade e pelo afeto. Em suma, pela primazia do momento de exteriorização sensível
ou pela ênfase na visão fenômenica" (pp. 59-60)
178
podendo recompor o que se estilhaçou, o barroco dramatiza a alienação, o conflito e a dor,
expondo a hybris que corrói a sociedade no mesmo gesto com que expurga as forças
destrutivas (pp. 65-6)
179
A partir desses problemas levantados com relação a essas referências iniciais a
respeito da escultura "barroca", Flexor propõe alguns conceitos que deveriam ser levados
em consideração na análise das obras. O primeiro diria respeito à noção em voga de artista
no período compreendido entre os séculos XVI e XVIII. A noção se construiria a partir do
trabalho coletivo em oficinas, o que faz com que as obras, além de serem anônimas, sejam
também coletivas. Passa a dar mais detalhes sobre o modo de organização das oficinas,
citando documentos comprobatórios. A forma de organização do trabalho de produção
artística conduziria a uma noção diferente de autoria, o que seria agravado pelo fato de que
as obras seriam baseadas em modelos já reproduzidos anteriormente. Nesse sentido,
"mestre" seria considerado aquele que se aproximaria de um outro mestre já reconhecido.
Nesse sentido, não seriam válidos conceitos de "plágio" ou mesmo de "auto-plágio", muito
menos a noção de artista como gênio, já que o culto à personalidade individual seria
exclusiva à figura do Rei. Assim, a notoriedade individual que o conceito de artista do
século XIX não se aplicaria aos artífices "barrocos".
Além de problematizar a noção de autoria e de artista, Flexor também aponta
também para a dificuldade do estabelecimento da época precisa de produção das obras, já
que elementos adicionais iam sendo adicionados às imagens. Na mesma direção, aponta
para a impossibilidade de sistematização de um estilo regional de produção de obras, já que
muitas imagens teriam sido importadas de Portugal e, depois, reproduzidas no Brasil.
Flexor aponta também para a indistinção entre as formas de arte, principahnente no que
tange a diferenciação dos oficios de escultor, entalhador e imaginário.
Devido as todos esses conceitos levantados, Flexor afirma que a "produção barroca"
feita na colônia deveria ser considerada portuguesa, ainda que seja possível identificar um
"sotaque brasileiro" motivado pela adaptação de modelos, técnicas, materiais e mão-de-
obra disponíveis na colônia e ainda que seja possível perceber algum artista, como
Aleijadinho, que conseguiria produzir com autonomia um estilo pessoal. Por fim, conclui
que a escultura só poderia ser considerada no conjunto de outras produções (pintura, talha,
arquitetura e mesmo o espaço público). E, com José Alberto Gomes Machado, afirma que
"o barroco brasileiro foi simultaneamente o apogeu e a superação do barroco português" (p.
83)
180
"O Barroco no país do açúcar", José Luiz Mata Menezes
O texto se inicia com uma epígrafe (de um Pereira, 1995 -porém, como não há uma
bibliografia no final do artigo, não é possível conhecer de quem ela efetivamente seja) que
questiona os usos de "barroco" e a aplicação de adjetivos às obras rubricadas pelo termo.
Segundo a epígrafe, os artistas do XVII e do XVIII não fizeram arte para que ela fosse
chamada de "barroca", que seria uma noção historicamente estranho a eles. Assim, a
explicação dessa produção artística deveria se fazer à luz da cultura artística, isto é, a partir
da reconstrução de um sistemas onde textos e obras se explicariam mutuamente.
No entanto, a forma como o artigo se desenvolve demonstra que ele não leva, de
forma radicai, as propostas da epígrafe que o abre. Possivelmente, Menezes tenha
entendido "cultura artística" e "reconstrução de sistemas de textos e obras" como
necessidade de enumeração de dados contextuais, pois seu artigo desenvolve "barroco" de
forma absolutamente parecida dos outros textos contidos nos catálogos e advindos da
história da arte; apresenta apenas o diferencial de, vez por outra, elencar algum dado
econômico a respeito das regiões cujas produções artísticas analisa e dos encomendadores
dessas obras. No entanto, apesar do diferencial trazido por esses dados e de uma maior
discrição no uso de adjetivos qualificadores de "barroco", o conjunto do texto é muito
parecido com aqueles que possivelmente a epígrafe critique.
O artigo começa efetivamente com a definição da expressão "O Barroco no pais do
açúcar". Ela se referiria à região do Nordeste brasileiro, compreendido pela área hoje
compreendida entre Bahia e Rio Grande do Norte, e às obras, rubricadas por "barroco",
produzidas nessa região entre os séculos XVII e XVIII, mais precisamente, entre 1537 e
1800. O "no pais do açúcar" presente na expressão diria respeito à agroindústria açucareira
típica da região, tomada como propiciadora das obras, e indicaria a preponderância do
aspecto econômico usado por Menezes na explicação das obras e dos periodos de produção
delas. Assim, analisa caracteristicas econômicas do nordeste do periodo. A região teria
peculiaridades desde o XVI que o tomaria produtor de cultura e apontaria para perfis
determinados de encomendadores e artistas, apesar desse perfil não ser muito explorado no
texto.
Segundo Menezes as capitanias seriam desiguais em termos de crescimento
econômico. As principais e as mais desenvolvidas seriam as capitanias da Bahia e de
181
Pernambuco, as quais dedica maior atenção. Um outro diferenciador dessas capitanias seria
a presença de holandeses, que teria se dado de forma mais rápida na Bahia e que teria
perdurado por mais de vinte anos em Pernambuco. O resultado dessa presença seria uma
maior diversidade de formação étnica, com a fixação de luteranos, calvinistas e judeus.
Depois de elencar essas características mais gerais, trata de forma rápida de como
sena o perfil da sociedade da região. Segundo ele, trata-se de uma sociedade de
"dominadores e dominados", dividida, na área rural, entre proprietários de engenhos,
escravos e trabalhadores livres; nas áreas urbanas, seria composta também por comerciantes
e administradores públicos, religiosos, índios, localizados mais nas margens urbanas, e
cristãos-novos ( que, segundo Menezes teriam mantido, no íntimo, a fé original: mesmo
encomendando arte religiosa, eles não acreditariam no que patrocinariam). A partir desse
esquema geral da sociedade, traça também um rápido perfil da "formação cultural" dos
encomendadores das obras; "formação", possivelmente entendida por Menezes, apesar de
não deixar claro, como grau de instrução formal e não como horizonte cultural de recepção
e produção das práticas artísticas: os religiosos, seculares e coventuais (sendo que os
últimos, principalmente os jesuítas teriam "formação cultural" mais elevada); os judeus
conversos, "letrados e de formação invejável"; "gente do governo", "em geral cultos";
quantidade grande de analfabetos nos estratos mais numerosos da população, embora "não
sem sensibilidade"; e finalmente escravos e mulatos, que teriam nivel social inferior mas
excelente competência e sensibilidade. O esquema dessas "formações culturais" é referido
para "procurar o perfil dos encomendadores", o que, entretanto, não se faz.
Menezes traça também algumas diferenças entre os dois pólos principais da região
que analisa, isto é, Bahia e Pernambuco. Quanto à Bahia, propõe quatro periodos de
produção - a diferença entre esses periodos seria relativa à presença ou não de inquisidores,
o que garantiria maior ou menor liberdade de "ação e pensamento". Já em Pernambuco, há
uma interrupção na produção artística dados a invasão holandesa e o incêndio em Olinda
em 1631. No entanto, depois da expulsão dos holandeses, grande atividade de construção
teria se dado em virtude de reconstruir ou ampliar os templos variados.
Depois desse grande enquadramento contextual, passa a tratar dos estilos artísticos
em voga. Para tratar de "barroco", entendido principalmente no século XVII, alega ser
importante analisar o que teria vindo antes. Assim analisa particularidades dos estilos e
182
exemplifica com obras. Aponta principalmente para o despojamento arquitetônico e para o
destaque dado aos retábulos. Os modelos para a criação de ambos seriam muito próximos
dos portugueses. A partir disso, faz um grande quadro de estilos, que compreenderia
"renascimento", "maneirismo", "barroco" e "rococó", e analisa especificidades de cada um
levando em consideração obras particulares e diferentes tipos de produção (arquitetura,
talha, pintura e escultura). Por fim, conclui que "no país do país do açúcar um rico acervo
se construiu, às custas de uma gente que, detendo o poder e a culpa, patrocinou inúmeros
artistas e artesões na execução de casas-grandes, verdadeiros 'escuriais do nordeste', de
igrejas e casas conventuais, cumprindo assim uma tradição lusitana e fiel ao interesse de
realizar nos trópicos, mesmo sem compreender esteticamente, o que de melhor se tinha em
termos de criação artística" (p. 94)
183
religiosas senam, inicialmente, executadas por portugueses e depois por nativos,
"impregnados de uma nova sensibilidade criativa responsável pelo amadurecimento de uma
linguagem arquitetônica e artística de forte índole autônoma, que representaria mesmo a
grande contribuição original do Brasil para a cultura ocidental da época" (p. 97).
Mas a Igreja, além de fomentadora desse patrimônio artístico, também operava na
formatação da vida social da região no período com seus ritos, crenças e eventos que
funcionariam como padrões estabilizadores de comportamento e como integração das
diferentes classes sociais. Ávila aponta para uma peculiaridade do estabelecimento da
Igreja na região. Em 1874, com a criação do bispado de Mariana, a presença eclesiástica
teria se firmado e, assim, se consolidado socialmente. Ao mesmo tempo os abusos e o
aspecto coercitivo da Igreja na colonização do Brasil teriam sido neutralizados em Minas
devido à proibição das ordens religiosas na região. Como complemento da ação oficial da
Igreja, no lugar das ordens religiosas e na ausências de missões e conventos, teriam surgido
organizações laicas ligadas ao aparato eclesiástico -as Irmandades, as Ordens Terceiras, as
Confrarias e as Arquiconfrarias -, que extrapolavam o estatuto de meras agregações
religiosas, funcionando como representação social classista, corporativa e racial com
atribuições, além das tipicamente religiosas, assistenciais, mutuárias e de seguridade
funeral. Também dariam conta do que Ávila chama de uma expressão pluralista social e
racial. Se, no o trabalho de mineração, a exploração era cruel e evidente, na indústria de
construção e de produção de objetos artísticos e religiosos, haveria uma atenuação das
relações exploratórias por meio das associações leigas: nas festas, todos os estratos sociais
se uniam; na produção artística, o trabalho de negros e mestiços seria valorizado pela
peculiar criatividade.
Á vila trata também do aspecto "espetaculoso" das principais celebrações litúrgicas,
que seriam caracterizadas por um êxtase coletivo festivo e religioso da população das vilas,
"bem ao feitio de sua alma originalmente barroca" (p. 98). A partir da análise que faz das
festas, que são tratadas como "happening monumental", Ávila trata do que chama "estilo
de vida barroco", que seria motivado por um cenário constituído pelo "ambiente feérico dos
templos revestidos de ouro, entre os acordes da música sacra e as imagens rebuscad.1s dos
sermonistas" (p. 98).
!84
Além das festas, Ávila analisa também a "arquitetura barroca". Depois de fazer
alguns comentários a respeito de algumas obras, afirma que a arquitetura dos templos, de
urna simplicidade inicial até uma sofisticação maior e crescente, seria o palco para "o
fervor religioso das populações pioneiras e do gosto inato pela pompa ornamental do culto"
(p. 99). Após esses comentários, estabelece classificações cronológicas sobre os estilos
arquitetônicos empregados. Inicialmente, teria se dado o que chama de "primeiro barroco"
ou "estilo jesuítico", que se caracterizaria pela arquitetura pesada, fachada de linhas
modestas e ênfase ornamental no interior. Ao longo do tempo, modificações do risco da
fachada teriam ocorrido, assim como uma ênfase ainda maior na decoração interior,
principalmente no que tocaria à "elegante talha de ornamentação". Cita arquitetos e obras
dos dois estilos e se concentra em Manoel Francisco Lisboa. O filho desse arquiteto seria
Aleijadinho, que teria executado a Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto, obra que
corroboraria, "na plenitude, uma imaginação arquitetônica já de feição brasileira" (p. 100).
Os detalhes construtivos e ornamentais dessa igreja são analisados, e outros arquitetos
importantes são citados.
A partir da discussão que faz a respeito da decoração dos templos, Á vila trata da
escultura da região no período. Em madeira ou em pedra sabão, esse tipo de produção teria
alcançado uma "poderosa singularidade" no contexto da arte colonial em Minas. A esse
propósito, afirma que o "gênio do artista mineiro" teria sido perpetuado por Aleijadinho
através das esculturas monumentais dos Passos e dos Profetas em Congonhas. Trata
também de Manoel da Costa Ataíde, tomado companheiro de Aleijadinho na arte de
decoração dos templos e que, na pintura, teria alcançado também níveis de genialidade.
Por fim, terminando de fazer essa aproximação geral de "barroco" como estilo
artístico e de vida em Minas, diz que só seria possível perceber "a força da expressão
cultural e a grandeza artística da chamada civilização do ouro em Minas" se se analisassem
as próprias cidades onde essa civilização teria se constituído: a "atmosfera", o "ambiente" e
o "contexto peculiar" do período poderiam até hoje, segundo Ávila, ser visualizados nas
chamadas "cidades históricas de Minas Gerais". Cita dados demográficos das cidades no
período colonial, dados que denotariam, além de uma importância econômica, uma espécie
de circuito cultural ali vigente. Haveria nas cidades uma grande produção artística e
intelectual, que incluía "muitos homens de espírito refinado" e mesmo aqueles portadores
185
de "inteligências renovadoras". Finalmente, conclui o texto reforçando a importância das
Minas Gerais na produção artística do período colonial e aduzindo, através de breve análise
de formas de divertimento popular, que naquele local e época peculiaridades brasileiras
seriam sedimentadas - cita, por exemplo, o "batuque", tipo de música popular do período,
que é tomado por Ávila como precursor do samba.
186
impedimentos referidos funcionam, na narrativa construída para explicar Aleijadinho, como
peripécias a serem resolvidas pelo enredo e como argumentos que reforçariam a qualidade,
já tomada, das obras.
Oliveira afirma que essas duas perguntas vêm sendo respondidas por pesquisadores
desde 1920, quando, impulsionados pelo modernismo e pelo início dos "estudos
científicos" sobre "barroco coloníal", sucessivas gerações de estudiosos têm se formado.
Oliveira propõe uma resposta, principalmente á primeira pergunta, a partir da biografia,
feita em 1858, por Rodrigo José Ferreira Brêtas, tida como documento chave para o
entendimento de Aleijadinho. Depois de citar alguns trechos desse documento, que dizem
respeito a características fisicas e de personalidade do artista, assim como à doença e ao
modo de trabalho dele, a estudiosa afirmar que há inúmeras hipóteses sobre o diagnóstico
da doença de Aleijadinho. Entretanto, afirma também que o diagnóstico é menos relevante
que a influência que a doença teria tido sobre a obra. Citando obras e as datas de confecção
delas, diz que a maior concentração da produção artística teria se dado justamente no
momento dos primeiros sintomas da doença. Daí concluí que a doença, na verdade, teria
dado uma contribuição positiva ao desenvolvimento da carreira artística de Aleijadinho.
Além dessas datas de produção de obras citadas, Oliveira argumenta a favor dessa
conclusão também a partir do número escasso de obras que Aleijadinho teria feito sem a
doença e cita ainda o agravante de que a maioria dessas obras teria atribuição incerta. A
doença, segundo Oliveira, teria dado a sua contribuição positiva porque levaria o artista a
um abandono progressivo de outros interessas em prol de uma "dedicação total e exclusiva
ao universo da criação". Para reforçar essa idéia de dedicação, cita as longínquas distâncias,
dados os meios de transportes da época, que Aleijadinho teria percorrido para construir seu
legado em muitas cidades mineiras. Tudo isso levaria Aleijadinho a praticar um ritmo
a!ucinante de trabalho; esse ritmo, para Oliveira, seria "determinado talvez por um
sentimento de premoníção de precariedade do tempo de que dispunha diante da obra a
realizar ou de um inconsciente jogo de compensação substitutiva para driblar a doença e
seus percalços" (p. I 07)
Depois então de responder à primeira pergunta proposta, Oliveira passa à segunda, a
que se refere ao aparente impedimento que Aleijadinho teria em conhecer os estilos de arte
que tão bem utilizaria. Para tanto, começa por citar Germain Bazin, que, no primeiro
187
contato com a obra do artista mineiro, alegaria ter descoberto um gênio e o "último dos
grandes escultores barrocos". Desenvolvendo a descoberta d" B azin, Oliveira diz que se
trata de um artista religioso que estaria em sintonia com a "tradição cultural do barroco
contra-reformista", ainda que vivesse no "século das Luzes". Alinhando Aleijadinho a essa
tradição, afirma que o artista figuraria entre os melhores nomes da escultura religiosa
européia e, particularmente, espanhola (na portuguesa não haveria equivalente em
qualidade).No entanto, as únicas ligações com essas fontes européias seriam "as cenas
reproduzidas nas estampas de Bíblias e Missais usados pelo clero da Capitania de Minas
Gerais, bem como os Registros de Santos em publicação avulsa, essenciais para a
determinação da iconografia dos personagens sacros." (p. 108). Anota também uma
influência germânica (na tipologia fisionômica das imagens e nos planejamentos em sulcos
profundos e arestas vivas, características que seriam típicas de Aleijadinho) e analisa o que
seria a maior obra escultórica do artista: o conjunto de esculturas de Congonhas.
Aleijadinho também é tomado como gênio na arquitetura, além da escultura.
Oliveira cita obras e detém-se no que seria a obra prima arquitetônica do artista: a igreja de
São Francisco de Assis de Ouro Preto. Por fim, conclui que algumas qualidades de
Aleijadinho "identificam de imediato a produção de todo artista maior". Enumera então
essas qualidades, todas elas mostram que não haveria um real impedimento no contato com
as matrizes européias de sua arte: "o que impressiona é a adequação das escolhas de
modelos relativamente aos temas tratados, a sintonia com os movimentos artísticos
internacionais da época, e a profunda originalidade dessa obra, ao mesmo tempo universal e
plenamente inserida na cultura regional e local" (p. 11 O)
188
classificado a igreja como caudatária de um "estilo Aleijadinho". No entanto, insistindo em
"rococó", Costa faz uma análise da igreja visando uma forma de aplicar esse termo à obra.
Primeiramente trata de "aspectos formais" da igreja. Assinala, assim, "três fatores
imediatos e aparentemente simples [que] explicam boa parte de sua singularidade e
grandeza": sentido de harmonia, unidade múltipla e originalidade arquitetônica. Depois de
fazer alguns comentários sobre esses três fatores, analisa a igreja externa e internamente.
Sobre o exterior, tece considerações sobre a fachada e sobre a "modulação de curvas e
contra curvas" a qual são submetidas torres e frontispícios, além de focalizar o frontão, a
portada e as fachadas laterais. Em suma, a planta demonstraria duas seções efetivas (a
primeira relativa à articulação do frontispício e torres com a nave; a segunda a propósito da
dilatação em curva na altura do arco-cruzeiro), o que apontaria para inovações que
distinguiriam a igreja dos outros templos mineiros caracterizados pela planta em retângulo
regulador. Sobre o interior, em linhas gerais, Costa defende uma integração plástica, da
mesma forma como ocorre o exterior. Para afirmar isso, analisa a talha, o retábulos, os
altares laterais, as pinturas e as esculturas que fazem parte do conjunto do templo.
Após jogar luz sobre esses aspectos formais, Costa faz algumas "considerações
estéticas" sobre a obra, tomada c orno não tendo similar em seu tempo. Estilisticamente,
Aleijadinho refletiria o "rococó europeu", estilo tido como "fruto de uma sociedade
dominante não mais 'una"'. Indica também influências francesa, germânica e italiana na
decoração. Com relação ao que chama de "ajuste de leveza com a solidez", cita as soluções
que dos arquitetos da Europa Central, que teriam proposto arranjos inferiores ao que teria
feito Aleijadinho, pois estariam presos a pesados exteriores "barrocos" e ao mesmo tempo
se valeriam de algum elemento de origem recente, possivehnente "rococó". Aleijadinho,
"sem os compromissos de uma sociedade artística erudita", teria transposto o impasse da
dicotomia exterior/interior e teria consciência da necessidade de quebrar a solidez da
arquitetura anterior, possivehnente "barroca". Trabalhando supostamente com essas
questões formais de "seu tempo", Aleijadinho teria i do ainda mais I onge: "e foi além-
religioso como todo povo das Minas, deu-lhe ainda um sentido oculto de gravidade e
misticismo, não ocorrente no discurso erudito da arquitetura contemporanea européia" (p.
116).
189
Por fim, Costa tenta resolver o problema de classificação estilística proposto no
início do artigo. Diz ela que a igreja parece ser "a grande realização dos princípios estéticos
do 700" e atribui "rococó" à obra. Entretanto, afirma que, para essa classificação fazer
sentido, seria preciso abstrair de "rococó" o "veio mundano" e a conotação de frivolidade,
tão contrárias "ao sentido másculo de coesão, densidade e mistério que toda [... ] [a obra de
Aleijadinho] carreia" (p. 117). Não seria possível assim vincular a busca formal e espiritual
do artista à "volubilidade de um decorativismo faceiro", sintomático de "rococó", exceto se
esses aspectos "rococós", que Costa chama de "mundanos", sejam retirados. Finalizando,
conclui: "a rigor, Antônío Francisco Lisboa, em dia com a arte do mundo civilizado, nunca
aceitou limitações prescritas. Aos preceitos em moda sempre impôs sua personalidade, a
potência de sua inventiva, bem como os cambiantes da emoção do momento que vivia. Tal
qual os gêníos de todos os tempos" (p. 117)
190
teria sido feito por Olavo Bilac nos textos escritos por ocasião de sua viagem a Minas
Gerais. Mais caracteristicas dessa fase seriam os tons melancólicos usados para referir-se
aos resíduos do ciclo de ouro, tomados como indícios da riqueza em meio a decadência, e
da aversão à palavra "barroco" e das manifestações decorrentes do termo, o que Bílac,
devido ao seu "equilíbrio clássico", recusaria.
A segunda fase teria sido iniciada por "um ato paradoxal de turismo interno, à busca
do exótico e do novo, dentro do tradicional e velho". Nunes se refere à viagem do grupo do
modernismo paulista a Minas, acompanhando Blaise Cendras, tomada como manifestação
do que seria essa segunda fase de recepção de "barroco", de modo geral, e de "barroco
mineiro", em específico. Essa fase teria consagrado e ampliado "a palavra barroco,
conferindo-lhe a conotação de índice de originalidade nacional" (p. 120). Ao invés de
melancolia, "as ruínas disformes" de Minas seriam "tomadas como sugestão para uma arte
nova que se chamara pau-brasil nos quadros de Tarsila e nos poemas de Oswald do
periodo" (p. 121).
A partir da visita modernista, essa segunda fase de apropriação de "barroco" teria
como ponto culminante a criação do Patrimônio Histórico e Artístico N aciona! pleiteada
por Mário de Andrade e por Rodrigo de Melo Franco depois da referida viagem a Minas.
Também seria notável nessa fase o inicio de produção ensaística a respeito de "barroco", o
que corroboraria uma "ampliação conotativa da palavra barroco no sentido de um
designativo da originalidade artística brasileira" (p. 121). Como exemplo dessa produção
ensalstica, cita o célebre texto de Mário de Andrade a respeito de Aleijadinho e o analisa
mais detalhadamente.
A terceira fase de recepção de "barroco" teria sido propiciada pelo "alargamento da
conotação da palavra barroco", executada pela fase anterior e trataria, especificamente, da
rearticulação interna do conceito de "barroco" enquanto estilo artístico. Teria sido
possibilitada pelos estudos sobre "barroco" nas décadas de 50 e 60, principalmente
motivadas por uma apropriação das categorias de Wõlfflin na construção de um "estilo
barroco". No Brasil, a idéia de um "estilo barroco" já teria sido introduzida por Afrânio
Coutinho em 1959 através de sua periodologia da história literária.
Assim, a rearticulação do conceito de "barroco" executada pela essa última fase
seria constituída por elementos conceituais de várias ordens ( religiosas, políticas, hístóricas
191
e estéticas). Como elemento estético, cita a o uso das categorias de H. Wõlfflin. Como
elementos sócio-políticos, cita os estudos que relacionam "barroco" à ascese e catequese
católica, particularmente jesuítica. Na junção desses dois tipos de elementos ter-se-ia uma
paradoxo: uma liberdade criadora ao lado de uma repressão sócio-político-religiosa. Para a
aplicação de "barroco" na Brasil, ter-se-ia um outro problema: a identificação de um tipo de
arte tomada como típica do XVII pelos estudos referidos em pleno XVIII mineiro.
O turning point e a resolução desses dois problemas teria sido feita, segundo Nunes,
por Affonso Ávila em seu Resíduos Seiscentistas já referido. Primeiro, "barroco" no
setecentos mineiros não seria tomado como retardatário; tratar-se-ia de uma retomada, de
uma avivamento e de uma adaptação de modelos que já estariam esterilizados no continente
europeu. Essas adaptações seriam, na perspectiva de Ávila que Nunes cita, referentes à
construção de uma "barroco" tipicamente brasileiro e mineiro, através do uso dos materiais
disponíveis no meio e dos componentes da paisagem (luz, cores e topografias) , além da
religiosidade tomada como típica de Minas. Com relação ao paradoxo de "barroco" criado
pela combinação dos estudos estéticos com os sócio-políticos, Nunes afirma que Ávila
propõe que "entre o favorecimento da forma visual expansiva -e da forma verbal eloqüente
das imagens, ou da forma concertante dos sons, pois que a adaptação estendeu-se à poesia e
à música - e do desfavorecimento da conquista espiritual do apostolado jesuítico,
interpuseram a liberdade do jogo, a tendência lúdica manífesta naquele 'cozido coloníal de
música, teatro e religião' do qual já falara Mário de Andrade[ ...]" (p. 123).
As postulações de Ávila, segundo Nunes, elevariam a noção de "estilo barroco" "à
categoria de estilo de vida e o estilo de vida a uma forma de cultura". Nesse sentido, aponta
Nunes, Ávila estaria em sintonía com Lezama Lima e Severo Sarduy, pois proporia uma
"idade barroca mineira".
Por fim, Nunes aduz que essas idéias citadas senam a plataforma da revista
Barroco, criada por Ávila em 69 e tomada pelo estudioso como ponto culminante da
terceira fase de recepção de "barroco". Para finalizar, usa os tipos de História propostos por
Niestzche para classificar as três fases tratadas ao longo do texto: a primeira seria típico
caso de "história antiquária; a segunda, "história monumental"; a terceira, "crítica". Depois
de tratar em linhas gerias dos assuntos abordados pela revista referida, Nunes conclui que
"se é certo, como diz Lezama Lima, que as imagens são o que subsistem de uma cultura
192
quando ela falece, e o que pode a ela reconduzir-nos, estas que desfilam para o leitor da
revista de Affonso Ávila põem-no sob a sedução do barroco que há tantos anos atrás me
cativou" (p. 124)
193
Trevisan continua a buscar mais características desse tipo de arte. Afirma que a
maioria das estátuas eram talhadas na madeira, o que explicaria o motivo da arte
missioneira ser tomada, muitas vezes, como inabilidade técnica, dado que o material
(madeira) apresentava dificuldades próprias e que haveria uma precariedade dos
instrumentos usados nas missões para executar a talha. Outras características apontadas
seriam as imagens policromadas e a articulação de algumas peças, que sugeririam ser
produzidas tendo em vista uma série. Seria comum também encontrar cavidades nas
imagens de madeira, para o que haveria uma série de hipóteses. Segundo Trevisan,
entretanto, tais cavidades seriam motivadas por um motivo prático: diminuir o peso das
estátuas e impedir que elas rachassem devido ao ressecamento natural da madeira
empregada.
O pesquisador diz encontrar uma "coisa fascinante na pedagogia jesuítica": o uso de
cerimônias, nas quais as esculturas tinham um papel fundamental, e fato de os indios se
deixarem conquistar pelo esplendor das peças. Uma "coreografia barroca", utilizada em
danças, festas e outras manifestações coletivas das reduções, encantaria os indígenas, já que
essas encenações satisfariam um "sentido lúdico" próprio deles.
Quando trata dessa "coreografia", Trevisan se detém um pouco mais nas
conseqüências de "barroco" na catequese e na produção escultórica das reduções.
"Barroco" não seria apenas um estilo de produção artística, mas "uma espécie de
cosmovisão dentro de uma moldura católica mais ou menos variável" (p. 130). Enquanto
linguagem, "barroco" seria útil aos jesuítas pelos três aspectos que engendra, todos
interessantes para a catequese: um aspecto lúdico, outro visual e, por fim, um persuasório.
Dessa forma, o "triunfalismo jesuíta" teria encontrado em "barroco" as armas que carecia.
Trevisan anota que haveria inclusive uma certa tendência jesuítica a "barroco"; como prova
disso, cita os Exercícios de Santo Inácio, que previam, assim como "barroco", a
mobilização de todos os sentidos em favor do combate interior.
Além de "barroco", os jesuítas teriam transmitido outras características próprias à
imaginária das missões. Trevisan anota a recorrência do culto ao Cristo crucificado e à
Virgem assim como da devoção dos três principais santos da ordem: Santo Inácio, São
Francisco Xavier e São Francisco BOJ:ja. A tipologia da representação da santidade também
teria aspectos caros aos jesuítas. O modelo da imaginária seria o que seria proveniente do
194
século XVI, segundo o qual as imagens, ao invés de serem apresentados de forma hierática
e sóbria, seriam construídos para criar o efeito de êxtase espiritual principahnente a partir
da torsão do corpo das imagens, o que seria tomado como indício do contato com o divino.
Trevisan aínda investiga o que chama de "rosto indígena" na arte missioneira.
Depois de algumas especulações teóricas de cunho antropológico, define que existiria "uma
facies indígena, uma aura étnica razoavelmente qualificável". Essa facies poderia ser
identificada nas imagens produzidas pelos índios, o que ficaria visível na construção de
imagens do Cristo ou dos santos com traços guaranis. Isso seria explicado pela falta de
interesse que os índios teriam em produzir imagens de cunho apenas mimético. Os guaranis
gostariam, segundo Trevisan, encontrar uma expressão para o seu sentimento. Nesse
sentido, o pesquisador aponta que eles teriam encontrado essa expressão, "apesar do
movimento contrário do estilo que lhe foi incutido. Antibarroco por natureza, [o índio]
acabou barroquizando-se, principahnente nos últimos anos da existência das missões,
quando, ao adquirir um sentido maís claro de sua própria situação dentro do novo mundo
espiritual, chegou a entrever Cristo [... ], sua autêntica humanidade. É então que surgem as
primeiras peças de irrespondível acento étnico" (p. 135).
Por fim, Trevisan apresenta as suas conclusões a respeito da arte missioneira que
analisou. Para ele, essa arte pertenceria ao acervo nacional e latino-americano "na medida
em que os indígenas conseguiram se expressar através dela". Diz que não importa se essa
expressão tenha sido indireta precária ou clandestina, já que uma facies indígena teria se
instalado dentro de "barroco", tomado como "cerne da arte colonial da América Latina". E
aínda aponta: "pode-se sustentar que esse barroco é crioulo, uma vez que foi indigenízado
na sua expressão. Isso explica, entre outras razões, por que as suas produções são de
tendências arcaízantes [... ]. O barroco missioneiro, por si só, demonstra a criatividade dos
índios: é um barroco infeliz, saudosista, por tender à busca do tempo perdido. O da
mentalidade arcaica sempre presente nele". (p. 135)
195
holandeses no Nordeste. Anota também que a metrópole teria contratado alguns arquitetos,
principalmente italianos, para edificações de obras de defesa, civis e religiosas. Esses
arquitetos teriam trazido consigo um estilo "pós-renascentista" e "rococó". "Barroco",
propriamente, só seria notado no Rio de Janeiro no século XVIII. Telles também faz alguns
comentários a respeito da importância do Rio de Janeiro para a colônia, citando que a
cidade, por causa de sua baía, funcionava como base militar, e a transferência do governo
geral de Salvador.
Depois dessa breve moldura histórica, arrola as principais edificações do Rio de
Janeiro no periodo colonial, iniciando pelas construções religiosas. Segundo Telles, as
edificações mais antigas teriam se perdido. No entanto, alguns exemplares significativos
seriam remanescentes das sucessivas fases de modernização da cidade que destruíram o
acervo colonial numeroso. Como exemplares remanescentes, cita os retábulos maneiristas
da antiga igreja do Colégio dos jesuítas. Analisa e dá detalhes a respeito da construção do
conjunto monástico de São Bento, além de enumerar também o convento de Santo Antônio
e a igreja de São Francisco da Penitência. Afirma que a movimentação de paredes,
característica típica das "igrejas borromínicas", teriam pouca representação no Rio de
Janeiro, com exceção da igreja da Nossa Senhora da Glória do Outeiro (proposta como
"jóia barroca inserida na paisagem carioca") e da igreja de São Pedro dos Clérigos (que
teria sido demolida em 1940). Elenca também três igrejas de meados dos setecentos que
seriam organizadas com planos poligonais ou ovalados: Igreja de Nossa Senhora Mãe dos
Homens, de Nossa Senhora da Conceição e de Nossa Senhora da Boa Morte.
Analisa com mais detalhes a igreja de Nossa Senhora do Carmo (inicialmente, igreja
conventual carmelita, depois, Capela Real, Imperial e Catedral) e quatro capelas que são
tomadas como obras-primas de talhas "rococós": a Capela do Santíssimo Sacramento da
igreja de São Bento, Relíquias do Mosteiro de São Bento, a do Noviciado da Igreja da
Ordem Terceira do Carmo e a da Nossa Senhora das Vitórias da igreja de São Francisco de
Paula. As duas últimas são analisadas mais brevemente, pois teriam as talhas atribuídas ao
Mestre Valentim.
Além de fazer esse inventário da construção religiosa, Telles também enumera
alguns exemplares da arquitetura civil. Poucos exemplares, advindos do período colonial,
teriam sido mantidos. A partir do XVIII, com a transferência do Governo Geral, Telles
196
afirma que edifícios de vulto forma construídos. Cita alguns e se detém no mais importante
deles: a Residência dos Governadores, depois Paço Real e Imperial. Trata ainda do Passeio
Público e do chafariz do Largo do C armo, o bras de mestre Valentim executadas sob os
auspícios do vice-rei Luiz de Vasconcelos.
197
uma língua "trans-étnica". Haroldo de Campos aínda identifica um seguidor notável da
"sátira gregoriana" no século XIX, Luiz Gama e seu A Bodarrada e trata de um outro
"poeta barroco", Manuel Botelho de Oliveira, celebrado como "primeiro poeta brasileiro a
ser estampado".
Depois de tratar dessas dois escritores, Haroldo de Campos afirma que "barroco"
poderia ser considerado como "uma constante formal da sensibilidade brasileira" que
percorreria, ao longo de espaços e tempos, "o nosso espaço cultural": "no campo das artes
plásticas, isto fica bastante claro, quando um Sartre vê similitudes entre a arquitetura do
Aleijadinho e o construtivismo curvilíneo de Niemeyer; quando a crítica moderna detecta
traços expressionistas nas esculturas de madeira que encenam, em Congonhas, os passos da
paixão" (p. 146). Sustenta que o mesmo se daria na poesia e, para tanto cita Antonio
Candido, que teria "seqüestrado" "barroco" da Formação da Literatura Brasileira, mas
que, em L iteratura de Dois Gumes, teria se r edirnido, incluindo "barroco" em um outro
modelo historiográfico aplicado à literatura brasileira. Segundo o Candido que Haroldo de
Campos aprova, "o 'estilo barroco' passa então a ser percebido como característico de uma
'línguagem providencial' que, pelo 'senso de extremos e das oposições' (por sua
capacidade de adequar-se à 'realidade insólita ou desconhecida'), teria sido capaz de gerar
'modalidades tão tenazes de expressão, que, apesar da passagem das modas literárias, muito
delas permaneceu como algo congenial ao pais'" (p. 147).
Depois de apresentar essas duas posturas historiográficas distíntas de Candido,
Haroldo de Campos pondera que o que chama de "ideal romântico de literatura íntegrada"
só poderia ser sustententado com a exclusão ou mínimização do "contraste barroco". No
entanto, diz ele que hoje parece incontroverso que "barroco" teria atravessado o século
XVII e contaminaria "arcadismo". Mas "barroco", enquanto "marco transepocal",
transbordaria ainda além. Enfileira como "barroco" Odorico Mendes, Souzândrade, Cruz e
Souza e Affonso Á vila.
Por fim, sustenta que "parte extremamente relevante da produção literária
brasileira", assim como a hispano-americana, poderia ser encarada "sob a ótica do
Neobarroco". Finaliza dizendo que não seria por mera coincidência que Oswald de
Andrade e Lezama Lima teriam, cada um a sua maneira, elogiado o estilo.
!98
3. "Estudos" do catálogo Arte Barroca, Mostra do Redescobrimento
"A Imagem religiosa no Brasil", Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira
Oliveira, curadora do módulo Arte Barroca, faz um estudo das imagens religiosas
produzidas na colônia luso-brasileira que fazem parte da mostra, propondo uma grande
moldura a respeito do uso de imagens em cultos religiosos, primeiramente, de forma geral,
e, depois, especificamente, no âmbito do catolicismo da era "barroca". São analisadas
também as formas de produção de imagens na colônia, através, principalmente nos séculos
XVI e XVII, de oficinas conventuais das ordens religiosas estabelecidas no Brasil colônia,
que são tomadas individualmente, e, num segundo momento, já no século XVIII, das
confrarias leigas. A respeito desse segundo momento, Oliveira propõe escolas regionais de
produção.
Seu texto inicia-se pelo capítulo que tem o título de "A imagem religiosa na tradição
cristã e seu emprego na era barroca", em que se traça coordenadas geraís a respeito da arte
religiosa visando enquadrar a produzida na colônia durante o período de tempo dito
"barroco". Partindo do pressuposto de que o uso da imagem sagrada como suporte do culto
religioso seria algo universal, Oliveira propõe uma classificação das imagens religiosas a
partir de três categorias básicas que dariam conta das representações usadas nas religiões
históricas: a primeira categoria diria respeito a representações de deuses e divindades que
personificariam o sagrado pela própria natureza; a segunda seria relativa ao que chama de
"seres intermediários", o que englobaria as imagens de anjos e gênios; por fim, a terceira
diría respeito á representação de "homens e mulheres excepcionais", tomados como
modelos ou intercessores, taís como os santos cristãos e os bodhisattvas do budismo.
A partir dessas primeiras considerações, a curadora passa a tratar do uso de imagens
no cristianismo. Segundo ela, as comunidades cristãs primitivas, visando se diferenciar do
paganismo greco-romano, rejeitavam figuras antropomórficas. As primeiras figuras
humanas na simbologia visual cristã teriam surgido no século III, o que seria comprovado
pelas representações de cenas bíblicas encontradas nas catacumbas de cristãos do século
referido. No entanto, o que teria sido sedimentado pela tradição católica seria, como
figuração na imagem de culto, a representação da santidade. Os primeiros santos teriam
sido os mártires cristãos perseguidos pelo império romano.
199
Até a Idade Média, a atribuição de santidade seria, segundo Oliveira, informal e
espontânea, baseada principalmente em tradições e lendas locais. Somente a partir do
século XII haveria, por parte de Roma, o reconhecimento oficial dos santos para o culto, o
que, desde então, seria competência exclusiva do papa, que testaria o candidato a santo pelo
exercícios das virtudes teologais e cardinais, assim como pela confirmação de milagres
atribuídos a ele. Na ocasião da canonização, também seriam estabelecidas as linhas gerais
de iconografia que permitiriam o reconhecimento das imagens do novo santo. Essas linhas
gerais seriam definidas a partir das regras mais genéricas da representação de santidade,
como a auréola ou nimbo (comuns a todos os santos) e os outros elementos que
identificariam a classe do santo (palma do martírio, livro e lírio para, respectivamente,
mártires e confessores, doutores da igreja e virgens), assim como os traços que
determinariam a individualidade particular de cada santo.
A multiplicação das imagens no culto católico teria causado reações iconoclastas. A
segunda delas seria decorrente da reforma protestante, que teria ocasionado a destruição de
imagens na Alemanha e na Inglaterra. Combatendo a Reforma, o catolicismo teria, segundo
Oliveira, reafirmado o uso das imagens no concílio de Trento, em que foram defmidas
também diretivas a respeito do uso de imagens nos cultos.
Assim, tratando das diretrizes do uso de imagens na Contra-reforma, Oliveira
caminha para o que chama de "esculturas devocionais da Época Barroca", proposta como
uma "nova era da arte religiosa católica" que seria, a partir do Concílio de Trento, baseada
em uma série de escritos teóricos. Essas determinações teóricas previam o uso de imagens
tendo em vista a identificação dos santos pelos fiéis, o que seria melhor traduzido pela
escultura, que transformariam os conteúdos religiosos em "figurações vivas, passíveis de
serem percebidas e tocadas na sua realidade corpórea tridimensional". Essa produção
também se pautaria pelo o que Oliveira chama de "realismo" estabelecido pelo uso de
policromia, o que determinaria o uso de madeira como o material da "estatuária barroca".
Segundo a curadora, a "verdadeira pátria da escultura devocional barroca" seria a Espanha.
A esse respeito, dita centros produtores e escultores. Portugal também teria um papel
importante a desempenhar nessa estatuária, mas a produção portuguesa estaria imbuída do
que Oliveira chama de características lusitanas, tais como a maior sobriedade, serenidade e
melancolia.
200
A encomendadas imagens na" era barroca" partiria, segundo O liv eira, da Igreja,
inicialmente através das ordens religiosas e depois do dito "setor privado da Igreja", isto é,
as confrarias de leigos. A curadora propõe quatro funções da imagem religiosa no período:
as imagens serviriam para compor os retábulos dos templos, para serem levadas pelas
procissões, para constituírem conjuntos cenográficos (como presépios e vias sacras); e,
finalmente, para serem colocadas em oratórios de culto doméstico. Cada uma das funções
previstas para as imagens determinariam características formais e estilísticas das imagens.
Por exemplo, as imagens destinadas a comporem conjuntos retabulares, além de denotarem
"expressividade dramática", deveriam se adequar ao conjunto estilístico da composição em
que seriam inseridas; as imagens processionais seriam compostas através do que Oliveira
chama de "figurações vivas", o que preveria o uso de adereços nas esculturas.
Ainda elaborando um panorama geral a respeito da "escultura devocional barroca",
Oliveira também faz considerações a respeito da iconografia e dos estilos artísticos que as
imagens denotariam. Mesmo sendo as diretrizes de Trento bastante genéricas, segundo a
curadora, a Igreja teria mantido um controle eficaz e sistemático da arte religiosa produzida
no período. As representações de nudez, de temas profanos e de figurantes considerados
desnecessários seriam veementemente rejeitadas, por exemplo. Os temas religiosos
deveriam, assim, ser tratados pelas chaves de elevação, austeridade e nobreza para que as
imagens cumprissem a sua missão de "instruir o povo, confirmá-lo na fé cristã e suscitar
uma sensibilidade emotiva, favorável às práticas devocionais" (p. 43).
Entretanto, mesmo definindo as normas gerais de composição das imagens baseadas
nas decorrências de teorias de decoro, a Igreja não teria fixado uma opção estilística precisa
com relação à produção das esculturas. Assim, a preocupação básica do artista, segundo a
curadora, seria a de insuflar um autêntico espírito religioso que justificasse seus fins e
garantisse sua utilidade para a Igreja.
Com relação ao estilo das obras, Oliveira cita Weisbach, para quem toda a produção
escultórica da contra-reforma seria "barroca". Ainda que concordando em linhas gerais com
tal classificação, a curadora propõe a divisão dessa produção em três períodos distintos, que
são associados a contextos socioculturais específicos: "maneirismo", que concatenaria as
produções do século XVI e as do início do XVII; "barroco", que especificaria a produção
do XVII; e, por fim, "rococó", que englobaria as produções do final do XVII e de todo o
201
século XVIII O estilo "maneirista" do primeiro período traduziria um "espírito austero e
combativo" da Igreja contra-reformista. As imagens das santidades, além de transmitir as
idéias de ascese e de mística contemplativa, deveriam dar conta da ação combativa e
heróica a serviço da fé. Nesse sentido, novos santos formam estabelecidos, e os temas
favoritos das esculturas seriam as experiências místicas e as visões, o que,
conseqüentemente, preveria a representação de santos que teriam experimentado esse
êxtase religioso.
Por sua vez, o estilo dito "barroco" representaria a substituição da serenidade e da
austeridade pelo deleitamento e maravilhamento e também denotaria uma maior tolerância
eu m menor controle do campo artístico por parte da Igreja, o que t ería ocasionado um
"transbordamento retórico". Esse transbordamento também daria conta do otimismo
triunfal da Igreja, que teria ocupado as quatro partes do mundo. Dessa forma, também se
explicaria, segundo Oliveira, a monumentalidade e opulência das Igrejas e o fausto teatral
das cerimônias litúrgicas, o que as imagens refletiriam. Particularmente com relação à
escultura "barroca", a curadora aponta para uma "intensificação da expressão fisionômica"
das imagens. Mesmo Portugal, avesso, segundo Oliveira, a "exageros patéticos", também
teria exemplares típicos desse "transbordamento retórico" das imagens "barrocas",
principalmente no período de D. João V.
Por fim, o estilo "rococó" apontaria para um novo tipo de sensibilidade religiosa.
Essa sensibilidade teria como parâmetros uma visão mais tranqüila e suave do triunfo da
Igreja associada a um sentimento de confiança i limitada na graça divina e na vitória do
catolicismo. O estilo, segundo a curadora, seria mais "sensualista" e menos dogmático, o
que refletiria" iluminismo". Nessa direção, a experiência místicas eria tomada como um
gozo contemplativo, um sentimento de beatitude na união com Deus. Assim, a eloqüência
gestual de "barroco" cederia espaço para a elegância, o que teria tomado a representação da
graça em valor estético.
Depois de desenvolver um pouco mais as características desses três estilos e de
exemplificar com algumas obras, Oliveira abre o segundo capítulo de seu texto, que se
pauta pela produção escultórica das oficiais conventuais das ordens religiosas na colônia
brasileira do sé cu! o X VII. Antes de tratar especificamente da imaginária de cada ordem
religiosa, a curadora faz um panorama geral a respeito dessa produção. Segundo e la, os
202
colonizadores teriam trazido consigo o fervor religioso português, o que é exemplificado
com a denominação dos acidentes geográficos da colônia baseada no calendário litúrgico.
A tradição da imaginária religiosa também seria herança lusitana notada desde os primeiros
tempos da colonização. No entanto, do primeiro século de colônia luso-brasileiro pouco se
conservou. Oliveira trata mais detalhadamente das poucas imagens remanescentes do
século XVI e dá particular atenção às imagens da virgem com o menino e a Nossa Senhora
da Conceição das matrizes de Itanhaérn e São Vicente, que teriam "traços mamelucos", o
que faria com que fossem consideradas as "primeiras imagens autenticamente 'nacionais'
de nossa história" (p. 48).
A respeito, enfim, da produção do século XVII, Oliveira aponta para o predomínio
das oficias conventuaís, o que dotaria as imagens de urna mesma ordem de um "ar de
família" e de unidade estilística, mesmo quando produzidas em oficias separadas por
grande distância. O material preferido na confecção das esculturas seria o barro cozido,
excetuando-se os jesuítas, "cuja atividade missionária de caráter mais abrangente e
retórico" exigiria imagens de grande porte esculpidas em madeira. A curadora aponta
também para a prática corriqueira de i rnportação de i rnagens de Portugal, o que, c orn o
tempo, seria gradualmente substituída pela produção local.
Depois dessas primeiras considerações, Oliveira aborda especificamente, em
subcapítulos, a produção de cada ordem religiosa. A primeira a ser tratada é a produção
escultórica da O rdern de S ão Bento. A curadora reporta às p esquisas D orn C lernente da
Silva-Nigra que indicam três monges escultores beneditinos de alto nível: os ceramistas frei
Agostinho da Piedade e Frei Agostinho de Jesus e o escultor em madeira frei Domingos da
Conceição Silva. Oliveira faz um resumo da vida e da obra desses escultores e se detém em
alguns aspectos particulares de sua produção. Sobre o primeiro, o frei Agostinho da
Piedade, afirma que seu estilo pessoal teria influenciado a produção posterior. As imagens
confeccionadas por ele teriam corno caracteristica um pronunciado arcaísmo de tradição
renascentista, e a espiritualidade delas seria constituída através de formas visuais que
denotariam introspecção e silêncio.
Mas se, de um lado, Agostinho da Piedade apresentaria um hieratisrno e um
"silêncio introspectivo", de outro, Agostinho de Jesus, com urna "expressividade algo
ingênua", próxima de "barroco", teria feito com que houvesse urna interpelação direta da
203
imagem com o espectador, já as figuras olhariam, segundo Oliveira, diretamente nos olhos
dos fiéis. Ainda sobre frei Agostinho de Jesus, a curadora argumenta que, estando o
escultor preso ao isolamento de São Paulo do século XVII, ele teria conseguido introduzir
em sua produção "valores expressivos e estéticos de cunbo regional", originalidade que, nas
demais regiões, só seria notada no século XVIII. Já as imagens atribuídas ao frei Domingos
da Conceição são tomadas por Oliveira como reflexo, a partir de uma visão "barroca", do
mesmo tipo de "espiritualidade concentrada", que seria típica da ordem beneditina.
No subcapítulo seguinte, Oliveira trata das imagens franciscanas e carmelitas,
bastante populares na época segundo ela, pois estariam impregnadas no cotidiano das
populações brasileiras do período. Haveria uma presença maciça de franciscanos, seja
como conventuais, observantes ou capuchinhos. Ressalta-se também o maior números de
santos da ordem canonizados e mesmo a popularidade deles no imaginário cristão, já que
haveria, entre os santos advindos da ordem ou preferidos dela, inclusive santidades pardas e
negras. Depois de explicar brevemente como teria se dado o estabelecimentos das ordens
franciscana e carmelita no Brasil, Oliveira queixa-se que não há estudos e historiadores da
arte à altura da qualidade dos acervos sob a guarda dessas ordens, o que impossibilitaria
uma análise mais detalhada deles.
A próxima ordem cuja produção é abordada pela curadora é a Companhia de Jesus.
Oliveira aduz que, ao contrário das outras ordens, cujas instalações acompanhavam o
povoamento da colônia, os jesuítas teriam um projeto missionário definido que
freqüentemente engendraria conflitos com os interesses mais imediatistas dos
colonizadores. Como exemplo desses conflitos, a estudiosa cita a defesa dos índios
empreendida pelos jesuítas, o que seria conseqüência da meta prioritária da ordem, a
evangelização de todos os povos do mundo. Esse objetivo catequético básico teria também
se desdobrado em outros projetos pedagógicos-institucionais, como o estabelecimento dos
colégios jesuítas destinados aos colonos.
Oliveira aponta também para uma maior eficácia que a Companhia de Jesus teria
com relação às outras ordens, o que deveria ser creditado à organização centralizada e
disciplinada e aos métodos mais modernos de ensino e de evangelização usados pelos
jesuítas. Eles também seriam hábeis na capacidade de adaptação à natureza e conseguiam
dominar as línguas indígenas e valer-se da mão-de-obra indígena na confecção de
204
imaginária. Com relação às características das imagens, Oliveira as diferencia das
produzidas pelas outras ordens, que senam caraterizadas pela espiritualidade
contemplativa, afirmando que seriam programaticamente direcionadas ao ensino e ao
convencimento persuasivo. Anota também que as esculturas, no início do estabelecimento
da ordem no Brasil, seriam importadas de Portugal e que depois, conforme as necessidades
específicas de cada missão, seriam produzidas na colônia. Finaliza diferenciando obras
portuguesas e brasileiras, além de citar obras e artífices jesuítas mais importantes.
Ainda dentro do capítulo que trata da produção das ordens, Oliveira aborda
rapidamente a escultura missioneira do Rio Grande do Sul. Depois de dar coordenadas
gerais a respeito das reduções jesuíticas no sul do Brasil e do Paraguai e no norte da
Argentina e de contabilizar 300 peças remanescentes das reduções, afirma que haveria uma
diferença estilística entre as imagens das missões do século XVII e as do XVIII. Essa
diferença diria respeito aos "valores plásticos da cultura guarani" que teriam sido
assimilados pelas esculturas, o que a leva a concluir que haveria uma originalidade dessa
produção na medida em que se misturaria protótipos europeus com a traços de identidade
indígena. Essa mistura geraria "um dos casos mais singulares de fusão cultural da história
da arte ocidental" (p. 58).
Depois de tratar da produção das ordens, a curadora inicia um novo capítulo
chamado "As escolas regionais do século XVIII", em que analisa a produção de imaginária
pelas oficinas de leigos, o que seria típico dos setecentos, e em que propõe escolas
regionais de produção com características estilísticas próprias. O segundo ponto analisado
no capítulo é proposto como decorrência do primeiro: quando há a decadência das ordens,
que garantiam uma produção similar em termos estilísticos mesmo se os pólos produtores
fossem separados por grandes distâncias, e quando a produção leiga toma o espaço deixado
pelas ordens, os centros produtores começariam a se desenvolver de forma independente,
motivados, em grande parte, pelos especificidades e ciclos econômicos distintos e pelas
necessidades religiosas particulares das regiões em que se situam. Haveria também uma
maior diversidade dos responsáveis pela confecção das obras, que passariam a ser, dados o
declínio das ordens e a expulsão dos jesuítas em 1759, organizações leigas (confrarias,
irmandades e ordens terceiras) diversas. A diversidade dos produtores geraria também uma
205
grande diversidade de "expressão", como diz a curadora: como cada associação leiga teria
seu santo padroeiro, as imagens ganhariam em diversificação.
Oliveira afirma que também seria notável a mudança no estatuto do artífice, antes
religioso em oficina conventual, agora quase "profissional liberal", principalmente no que
diz respeito aos oficias mecânicos, ou seja, os pintores e entalbadores. Escultores e
imaginários fariam parte da mesma categoria dos entalbadores, com a diferença que o uso
dos termos na época denotariam que imaginário seria aquele que esculpia imagens em
madeira e que escultor tomaria pedra e metais como material. Ainda sobre a diferenciação
dos termos usados na referência dos produtores de imagens religiosas, a curadora aponta
ainda que a designação de estatuário seria aplicada para os escultores tidos como excelentes
e "santeiro" seria o termo popular para "oficial de fazer santos". Oliveira afirma também
que, entre os entalbadores, era numerosa a presença de mulatos e, em menor grau, negros
forros e libertos. Tanto os mulatos quantos os negros, mesmo quando demonstrassem
talento artístico, dificilmente teriam conseguido a qualificação de mestre, o que, segundo
Oliveira, "aumenta ainda mais o mérito de artistas excepcionaís oriundos de camadas
sociaís inferiores e que lograram alcançar essa distinção, como Valentim de Fonseca e
Silva, no Rio de Janeiro, e Antônio Francisco Lisboa, em Minas Gerais" (p. 60).
Depois desse enquadramento inicial, a curadora trata das "escolas regionais",
começando pela baíana, que, segundo ela, devido a um contexto sócio-religioso-político,
seria a maís abrangente em termos de produção de imaginária. Essa abrangência diria
respeito à qualidade das esculturas produzidas na região e ao fato de que essa produção
teria se dado em série, prevendo a exportação de peças para outras regiões da colônia. Com
relação às caracteristicas das imagens produzidas na Bahia, Oliveira aponta para um
refinamento de gestos e atitudes das figurações, movimentação erudita dos planejamentos e
policromia de cores vivas com douramento vibrante. Além se citar referências
bibliográficas a respeito dessa produção, elenca os escultores maís importantes, taís como
Félix Pereira Guimarães, Francisco das Chagas, conhecido como "o Cabra", e Manoel
Inácio da Costa, para o qual dá particular atenção.
Se nas imagens baianas, devido à produção em série, seria possível se notar uma
padronização, tanto em termos técnicos quanto em estilísticos, na mineira, em que a
produção seria mais artesanal e que, dado ao isolamento da região relativamente às regiões
206
litorâneas, um estilo próprio local teria sido construído, seria notável uma diversificação na
produção de imaginária. Oliveira aduz também que, em Minas Gerais, na ausência de
ordens religiosas, proibidas expressamente pela coroa desde o início da colonização da
região, a religião, ao invés de ser imposta, seria aspecto próprio mesmo da rotina dos
moradores, o que a tradição local dos santeiros e das festas comprovaria. Ainda sobre a
diversidade das peças, a curadora afirma que as peças mineiras seriam originais, em relação
à produção de esculturas do século XVIII, porque seriam fruto de um auto-didatismo não-
acadêmico que daria conta de criar soluções plásticas próprias tendo em vista a ausência de
modelos ou informações precisas a respeito da produção artística de outras regiões do
colônia e da metrópole.
Em termos estilísticos, as imagens mineiras seriam mais sóbrias, com uso mais
discreto de policromia de douramento, teriam uma uniformidade de cores e economia no
uso de ornatos nas padronagens. Oliveira destaca ainda as feições, que denotariam
ingenuidade, e as figurações de planejamento nem sempre lógico, apesar da
"movimentação barroca". Sobre os artífices mineiros, Oliveira afirma que a fama
avassaladora de Aleijadinho teria eclipsado estudos e reconhecimento de outros artistas.
Trata da vida e obra de Francisco Xavier de Brito, de Aleijadinho e seus sucessores, mestre
de Pitanga, pe. Félix Antônio Lisboa, seu irmão, e do mestre de Sabará. Ainda cita obras de
Francisco Vieira Servas, particularmente seus anjos tocheiros, e Manoel Dias de Assis e
Souza, entre outros.
A análise das escolas regionais termina com a breve análise das produções de
Pernambuco, Rio de Janeiro e Maranhão. Cita autores e obras de cada uma dessas dessa
região e, mesmo apontando para a falta de estudos específicos que permitiriam a
destacamento de características particulares de cada uma delas, afirma encontrar, em
Pernambuco, uma certa originalidade; no Rio de Janeiro, notáveis traços portugueses; e,
finalmente, no Maranhão, características estilísticas próprias.
207
presidente Fernando Henrique Cardoso. Nota-se que não se trata propriamente de uma
história gloriosa. Hall aponta para a dizimação de índios e para a devastação ecológica
executadas a partir da colonização portuguesa, para a situação de exclusão social em que se
encontravam os escravos, ainda que teriam encontrado, segundo o historiador, uma
estrutura social menos rígida do que a constatada na escravidão norte-americana, e para o
fato de o Brasil ter sido o último país do hemisfério a ter abolido a escravatura. Os períodos
imperiais e republicanos são descritos como teatro de interesses econômicos e políticos das
classes dominantes e das nações industrializadas. Por fim, o texto conclui, de forma
bastante pessimista, que o Brasil, apesar de ter uma das maiores economias do mundo,
entra no novo milênio ocupando os últimos lugares nos rankings de indicadores sociais e de
distribuição de renda.
"The messages ofbrazilian rituais: popular celebrations and Carnival", Roberto DaMatta
DaMatta, numa chave multiculturalista e antropológica, analisa o que chama de
"rituais brasileiros" (celebrações cívicas, religiosas, populares e "orgiásticas"), como parte
integrante da cultura do país e, principahnente, do que denomina ser seu uruverso
simbólico. Alegando que essa análise seria bastante propícia no contexto da exposição
Body and Sou!, pois ofereceria um pretexto para a discussão histórica, geográfica e sócio
cultural da cultura brasileira em meio a um tempo dominado por um cosmopolitismo
globalizado, o antropólogo propõe que as festividades brasileiras que analisa dotam de
homogeneidade e de constãncia a sociedade brasileira: de um lado, frente a constantes
instabilidades que redundariam em mudanças constitucionais, políticas e monetárias, os
rituais brasileiros se mostrariam intocáveis ao longo da história, mantendo as linhas gerais
de organização da "brasilidade" intactas; de outro, obrigados a conviver com os desmandos
e autoritarismos das classes dominantes, os brasileiros encontrariam nesses eventos tanto a
provisão de auto-estima necessária para garantir uma continuidade social quanto a inversão
dos modelos de dominação impostos a eles, reacendendo esperanças enquanto sociedade e
cultura.
Destacada então a importãncia desses rituais, DaMatta os analisa em diferentes
níveis. Primeiramente, afirma que eles constituem um triãngulo vital, baseado na triade
comemoração cívica, religiosa e popular ou profana, para a convivência social. Depois
propõe que, na verdade, as celebrações funcionariam como ponte entre dois tipos de
208
sociabilidade em curso no Brasil: a primeira, dominada pelo mercado, que instituiria
relações individualistas, abstratas e universais; a segunda seria baseada nas relações
pessoais que os indivíduos construiriam e que serviriam de proteção contra regras fortes e
impessoais de controle rígido do comportamento público. Os rituais, principalmente os
profanos, como o carnaval, ocupando um espaço especial entre esses dois padrões de
sociabilidade substituíriam o mundo de ordem social baseado na segregação do espaço e
tempo pelo o que DaMatta chama de "visão relaciona!'', implícita e mágica. Essa visão, ou
visão de mundo, como às vezes a denomina o antropólogo, seria uma forma diferente de
orientação emocional, intelectual e cognitiva e inverteria, assim, as rotinas sociais, os
papéis dos gêneros e os valores sacros. As celebrações, para tanto, demandariam gasto e
engajamento coletivo. A "visão de mundo relaciona!'' prevista nesses rituais seriam
permeadas de atitudes e gestos que contrastariam com as atitudes modernas da rotina diária
e substituiriam a igualdade política, formal e legal (abstrações em formas de leis no
contrato de convívio social coletivo), por uma igualdade substantiva que daria conta de
representar e de agir apontando para "equivalências morais", tais com morte, sofrimento,
ínveja, desejo e necessidades psicológicas diversas. Segundo DaMatta, dessa forma,
propondo essa igualdade substantiva, as celebrações dramatizariam a necessidade que todos
teriam de cantar, dançar, comer, beber, fazer sexo e, acima de tudo, rir, o que relativizaria a
seriedade e ridicularizaria a pompa e o poder.
O carnaval e outras celebrações brasileiras também são analisados pelo seu caráter
contraditório que dissolveria oposições tais como natureza e cultura, mundo fisico e
metafisico, morte e vida, homem e mulher, adulto e criança, trabalho e lazer. Nesse
sentido, são interpretados como atos provenientes de uma intencionalidade humana
posicionada contrariamente às fundações de sistemas culturais governados pela
compartimentalização, individualismo, anonimato e trabalho como punição e obrigação.
Essas festividades também tornariam humanizado o cruel, segundo o antropólogo, ambiente
urbano da América Latina e, assim, decretariam periodicamente a liberdade e a união de
todos. Elas dissolveriam também laços de relações convencionais e libertariam os
indivíduos para se agregarem em associações livres baseadas em interesses comuns e de
livre escolha, como as escolas de samba, blocos, etc. DaMatta assinala também que haveria
uma inversão da ordem do poder, já que os indivíduos provenientes dos substratos sociais
209
menos poderosos senam aqueles que estariam no comando e na organização das
festividades, o que inspiraria inveja e desdém nas classes altas. Isso ficaria claro nas
freqüentes queixas de que o esforço gasto nas festividades poderia ser aplicadas em algo
mais útil ou mesmo na indignação moral que a sensualidade dos rituais motivaria.
DaMatta diferencia a inda o que chama de "rituais de ordem", que reforçariam as
posições sociais (tais como as festas oficiais de celebração da independência ou da
proclamação da república, além de festejos orientados pelo mercado, como o dia dos
namorados) dos "rituais orgiásticos". Aponta também para o carnaval oficial das últimas
décadas, já domesticado e comercial, e para a sobrevivência dos rituais mais subversivos na
carnavalização de certas procissões religiosas, motivadas sobretudo pelo o que chama de
"mulatismo", proposto c orno aspecto fundamental da cultura brasileira, que operaria nos
festejos referidos pela mistura de símbolos católicos com credos africanos e pela fusão de
sagrado e profano. Ainda assinala a convivência dos rituais oficiais e universais, como as
comemorações cívicas, e dos rituais mais específicos e orgiásticos. Nesse sentido, afirma:
"from a anthopological point of view it is interesting to observe that the dual agenda of
rituais is testimony, not of an ill-constructed modernity or of an indigent and backward
underdevelopment, but of an imaginative way of conjugating local aspects with the
universalistic aspects imposed by the modem agendas originating, from top to bottom, as
political and civilizing schemes" (p. 51). A partir disso, propõe que a mensagem das
celebrações brasileiras revelam "a singular and altemative modernity for a social world
that, while undoubtedly worried about economic growth, social order, and democratic
institutions, is cornmitted to the plight of the oppressed and faithful to a forgotten sense o f
human solidarity".
210
Inicia sua teorização de "barroco" recorrendo às supostas etimologias do termo e
assume que elas seriam a base dos preconceitos, advindos de posturas clássicas e
tradicionalistas, que o termo encerraria. Afirma que essas posturas, no Brasil, teriam
sustentado que "barroco" teria causado mais de um século de terror obscurantista.
Contrapondo-se a essas posturas, assegura que "barroco", no Brasil e na América Latina,
além de suscitar interesse turistico e cultural, seria um elemento "metabolizador" de
distintivos espirituais e intelectuais responsáveis pela identidade nacional e continental. No
entanto, alega que, para argumentar essas posições, assim como para propor o valor de
"barroco" como dinâmica cultural circular, deseja se desfazer de um ranço com a
universidade e com o conhecimento acadêmico compartimentalizador, incapaz, portanto, de
perceber a cultura "barroca" como um todo. Assim, propõe um "modelo científico" de
análise do fenômeno "barroco" que daria conta de sua referida circularidade e de suas
decorrências semióticas. Antes, porém, de pôr em funcionamento esse aparato crítico, Á vila
enuncia coordenadas históricas gerais para a localização de "barroco" no tempo.
Na época do descobrimento das Américas, a humanidade estaria, segundo Ávila,
cheia de paroxismos e paradoxos - de um lado, motivado por utopias edênicas, o homem
partia para a exploração do novo; de outro, pressionado pela contra-reforma e pelo
Absolutismo, via-se oprimido. "Barroco", nesse sentido, seria a vazão dessas contradições:
"the Baroque completely e mbodied, breathed, and expressed, through its ideological and
cultural channels, the duality of apprehension and hope that was essentialy a fusion of
devotional spirítuality (Paradise) and irrepressible terrestrialization of the senses (the
forbidden union of Adam and Eve)" (p. 116).
Seria esse o contexto da migração de "barroco" para Brasil. "Barroco assim teria se
espalhado segundo três modalidades distintas. A primeira, relativa ao que Á vila chama de
"barroco litorâneo, seria a disseminação de "barroco" ao longo da costa brasileira de norte a
sul, espalhando fé, conhecimento e padrões de comportamento ético e recreativos. A
segunda modalidade seria aquela que teria caminhado em direção ao interior e às fronteiras
da colônia; seria um "barroco" mais simples e disperso, e seu exemplar mais típico seria o
"barroco missioneiro" das "reduções" jesuíticas. Mas a modalidade mais elevada e de
desenvolvimento mais coeso seria a terceira, aquela que corresponderia ao "barroco
mineiro", já residual em termos cronológicos. Sobre a especificidade desse "barroco",
211
Á vila aponta para a ausência de ordens religiosas, o que teria tido conseqüências decisivas
para a confecção de arte e para o estilo de vida. Esse estilo de vida também teria sido
propiciado pela mineração e pela Igreja, que não teria condicionado apenas a arte mas a
formação da região como um todo, principalmente na tarefa de atrair, congregar e estimular
novas formas de vida comunitária e social. A culminância disso seria notada nas festas
"barrocas", que também seriam características de todo "barroco latino-americano". No
entanto, as festividades "barrocas" teriam tido um caráter mais programático em Minas
Gerais, pois, agindo como uma força maior na suspensão das ordens das coisas, anularia
distinções sociais tendo em vista uma união coletiva. As festas de Minas Gerais,
particularmente o Triunfo Eucarístico, seriam, nas palavras de Ávila, um ponto de encontro
democrático de brancos, negros e mestiços. Essa união social, que Ávila atribui a uma
"circularidade barroca", seria característica importante na identidade da América Latina e
do Brasil.
Depois de tratar dessas três modalidades de assimilação no Brasil, Ávila propõe
quatro marcos fundamentais que identificariam e definiriam "barroco" em termos formais e
ideológicos. O primeiro deles é chamado de "intenção persuasiva e impacto", explicado
como ditame contra-refonnista que pregaria uma maior eficiência na comunicação
devocional da arte religiosa. O segundo, de certa forma, decorrência do primeiro, seria o
que Ávila chama de "primazia do visual", advindo da necessidade do imediatismo das
mensagens contra-refonnistas. Ávila aponta que "a primazia do visual" não teria sido
desenvolvido apenas na criação artística mas em outras áreas relacionadas ao "estilo de
vida barroco", embasado na tendência programática em direção ao uso da sugestão ótica, da
captura do olhar no ritual e na ornamentação da igreja, além da valorização da cor, da luz e
da paisagem nos espaços arquitetônicos. O terceiro marco seria relacionado ao que Ávila
chama de "geometria da curva", proposta como decorrência da visualidade demandada por
"barroco". Aponta, a esse respeito, para as reapropriações da ilusão do movimento de
massa borromínica. Finalmente, o quarto marco, característica decisiva na visão de mundo
e no estilo de vida que "barroco" envolveria, é denominado por "rebelião através do jogo".
Elementos 1údicos e a noção de jogo estariam impregnados na arte e na" vidas ocial" e
denotariam, segundo Ávila, um desejo subjetivo de liberdade e de vôo dirigido contra a
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força contra-reformista vigente. Á vila defende ainda que a noção de "pacto lúdico" seria o
critério mesmo definidor de "barroco" como fenômeno histórico e cultural.
Depois dessas considerações, Ávila desenvolve uma longa discussão teórica sobre o
que chama de "circularidade cultural do Barroco". Essa circularidade é definida de
diferentes formas e em diferentes niveis. Primeiramente, seria um aspecto formal de
"barroco" previsto na "geometria de curvas", que insinuaria círculos e elipses. Essas formas
geométricas são interpretadas como decorrências psicológicas, cognitivas e socioculturais
do estilo de vida que "barroco" engendraria. Num ponto de vista mais sociocognitivo, a
circularidade referida diria respeito a padrões sociais integrativos que "barroco"
asseguraria. C orno estilo de v ida, seria capaz de integrar diferentes estratos sociais num
padrão cognitivo, suspendendo divisões de classes e de raça. Essa característica de
"barroco", tomada como conseqüência de sua "circularidade cultural", ficaria mais evidente
nos festejos coletivos. Por último, e de forma mais insistente, a referida circularidade seria
relativa a complexos mecanismos de assimilação e absorção de "barroco" em diferentes
tempos e espaços. Num espécie de moto-contínuo, a história da arte teria, segundo a
perspectiva de Á vila, assistido a surgimentos e ressurgimentos de "barroco". Assim, é
explicada a disseminação de "barroco" por toda a Europa no século XVII e, na seqüência,
por toda a América Latina. Esse movimento constante e circular de assimilação e
reapropriação teria produzido inúmeros "barrocos" com características próprias em todos os
territórios em que teria se dado, assim como teria causado o surgimento de "barroco" em
tempos diferentes, como o "barroco mineiro residual", do XVIII e do inicio do XIX, e
mesmo os aparecimentos mais recentes, fundamentahnente na América Latina, de obras
artísticas e racionalidades tidas como "barrocas".
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mais colonas retas mas cohmas torsas, chamadas de "salomônicas". As colunas seriam
construídas em arquivoltas concêntricas e haveria uma profusão de ornamentação. As
colunas salomônicas também seriam característica básica do estilo joanino. Típico também
seria o coroamento das colunas em arco, com figuras angelicais na frente do conjunto que
serviriam como suporte visual para as colunas. Por fim, a tendência "rococó" seria
caracterizada por uma "dignidade" arquitetônica, o que significaria uma simplificação
estrutural e conseqüente revalorização do altar principal, talhado em arcos plenos e
coroamentos.
Sobre a e statuária, Á vila diz que, c orno os estudos estariam em um estado a inda
preliminar, não seria possível estabelecer com grande segurança uma tipologia mais rígida.
No entanto, aponta para algumas características já conhecidas a respeito das
particularidades da produção de cada século. No XVI, as imagens teriam uma aparência
menos acabada e pouca sugestão de movimento. Assinala que os corpos seriam desenhados
de forma desproporcional sobre um eixo vertical. A pouca movimentação que a imagem
sugeriria estria concentrada nas áreas dos joelhos e dos braços. No entanto, as cabeças
permaneceriam rígidas, e as faces estampariam uma expressão de vazio dramático. As
imagens quinhentistas teriam ainda policromia mínima pouco variada e pedestais simples.
No século XVII, as imagens ainda denotariam imobilidade. Da mesma forma, a cabeça,
agora fora de proporção com o resto do corpo, estaria fixa em uma posição rígida. A face,
no entanto, sugeriria uma expressão discreta e doce. Ávila aponta ainda para outras
características agora mais salientes, como a estilização dos cabelos. As imagens do XVIII,
por sua vez, já demonstrariam um movimento do corpo e seriam pensadas geometricamente
sobre um eixo que, de forma simétrica, dividiria a composição da massa. Outras
características são apresentadas, como a utilização de vidro para a confecção dos o lhos.
Depois de 1760, condicionadas pelo estilo "rococó", as imagens denotariam um movimento
ascendente, caracterizado por Ávila como pleno de espiritualidade e assimetria. No XIX,
porém, influenciadas pelo "neoclassicismo", a estatuária teria a suavização dessas
características "rococós" e apresentariam torsões falsas e poses rígidas.
Depois de apresentar essa tipologia e essa classificação estilística, Ávila desenvolve
o que chama de "análise cronológica". Nessa análise, organiza os tipos de produção em
escolas regionais e localiza, no tempo, a predominância de determinados estilos em locais
214
específicos de produção, além de enumerar obras e artistas significativos. Sua análise se
inicia tratando da produção das ordens religiosas, elencando retábulos e estatuária
significativos de jesuítas, beneditinos e franciscanos. Com relação à produção leiga,
observa, no XVIII, o desenvolvimento de estilos regionais de relativa autonomia. Com
relação à Babia, sublinha as produções de Francisco das Chagas, o cabra, e de Manoel
Inácio da Costa. Propõe características peculiares da produção pernambucana e dá maior
atenção às obras de Minas Gerais, tratando principalmente de Aleijadinho e de Francisco
Vieira Servas.
Por fim, analisa a pintura de teto, que teria ainda menos tipologias já aceitas.
Basicamente, divide esse tipo de produção em dois grandes períodos: o primeiro dos
painéis e caixotões decorados; o segundo, posterior a 1737, caracterizado por pintura
ilusionista trompe l 'oeil, que teria encontrado sua maior expressão em Minas Gerais.
Telles trata do altar principal da igreja de São Bento de Olinda, inteiramente exposto
em Nova Iorque. Argumenta que o altar pode ser considerado uma obra-prima sem
precedentes e sucessores na arte colonial brasileira. Depois de descrever os detalhes do
retábulo do altar, cita bibliografia que sustenta que se trata de obra de algum mestre
português das regiões de M inho ou Braga, dadas determinadas s imilitudes com o bras I á
existentes. Ao descrever os estilos de talha empregados na obra, classifica-a como a mais
alta realização da talha "barroco-rococó" do Nordeste brasileiro.
Depois dessas considerações iniciais, visando inserir o altar no contexto da história
beneditina e no desenvolvimento da arquitetura religiosa brasileira, faz um histórico da
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Ordem de São Bento, de seu estabelecimento no Brasil e dos principais monastérios e
igrejas construídas na colônia brasileira.
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brasileira" teria sido tomada por um "espírito barroco" de "emoção contagiosa" e "êxtase
coletivo". Recorre também a outros textos do catálogo referido para reafirmar a intrínseca
relação entre "barroco" e Brasil e as características multimidiáticas, de "fé contagiante" e
de "emoção coletiva".
Usando o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty para entender o que chama de
corpo e alma brasileiros condicionados pela dimensão ética de "carnalidade" de "barroco",
Underwood propõe uma relação entre "barroco" e "modernismo antropofágico". O último
que, assim, como o primeiro, pregaria a união de corpo e alma através de um retorno para
um "fisicalidade primordial" e para sua inerente espiritualidade. Assim, tanto o "espírito
barroco" quanto a estratégia modernista brasileira, a antropofagia, operariam uma síntese
ritual de oposto, unindo carnalidade e espiritualidade.
A junção desse "espírito barroco" e da estratégia modernista antropofágica,
elementos assim complementares, seria a chave para a obra do arquiteto Oscar Niemeyer.
Dessa forma, Underwood analisa e interpreta algumas obras do arquiteto e, no final de seu
texto, de artistas brasileiros contemporâneos, como Tunga e Cildo Meireles.
"The Baroque, the Modem, and Brazilian Cinema", Robert Stam e Ismail Xavier
O texto propõe uma moldura interpretativa para os filmes durante a exposição do
Guggenheim. De forma geral, o cinema brasileiro é tomado como indicador de
especificidades do Brasil. Seguindo as diretrizes da mostra, essas especificidades são
propostas através de "barroco" e de "modernismo". Os filmes refletiriam esses dois eixos
da "cultura visual brasileira" direta e indiretamente, segundo os autores do artigo. De forma
direta, alguns filmes selecionados tematizam os dois períodos históricos assinalados pelos
termos "barroco" e "modernismo": os documentários Santuário, de Lima Barreto, e Música
Barroca Mineira, de Joaquim Pedro de Andrade, bem como os longas ficcionais Xica da
Silva, de Carlos Diegues, Chico Rei, de Walter Lima Jr., e Os inconfidentes, de Joaquim
Pedro de Andrade, tematizariam diretamente "barroco", enquanto os filmes Limite, de
Mário Peixoto, e Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, teriam a mesma relação direta
com o "'modernismo".
No entanto, a relação indireta que os filmes teriam com os dois períodos referidos é
o ponto central do artigo. Os filmes refletiriam, de um lado, o "baroqueness ofBrazil" e, de
217
outro, o caráter antropofágico do mesmo país, tal como suposto em suas "práticas artísticas.
Uma série de elementos são referidos para caracterizar o caráter "barroco" do Brasil: ''tbe
irregular, the assymethrical, the excessive, the grotesque, the sensual, the melancholy, the
frenetic, the transrealist", assim como uma religiosidade popular, "estruturas labirínticas",
"coabitação de contrários", "especialização da fé", "mistura de sagrado e profano",
"aspiração messiãnica"; todos esses elementos seriam abundantes no cinema brasileiro,
segundo os autores do estudo.
Combinando Walter Benjamin (que definiria "barroco" como alegoria) e Fredric
Jamenson (que proporia que a cultura do terceiro mundo seria necessariamente alegórica),
Stam e Xavier reforçam, ao mesmo tempo, o caráter "barroco" e alegórico do cinema
brasileiro e já antecipam como esse cinema se relaciona com o segundo eixo fundamental
das "práticas culturais brasileiras": a alegoria da periferia seria também operante nos filmes
nacionais. Essa alegoria, essencialmente, para os autores do artigo, seria operada de
maneira antropofágica nos filmes. Colocados esses parâmetros gerais de avaliação do
cinema nacional, os autores do artigo narram uma evolução histórica do cinema brasileiro,
demonstrando como em cada período de produção cinematográfica os padrões "barrocos" e
"antropofágicos" surgiriam.
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