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A
cultura
em
Portugal
à
entrada
para
o
século
XX
parecia
dominada
pelo
poder
da
escrita.
O
século
XIX
fora
marcado
pela
proliferação
de
doutrinas
políticas
e
filosóficas,
bem
como
pelo
aparecimento
do
romance
como
género
dominante
no
gosto
dos
leitores.
Pela
década
de
1890,
o
público
do
mercado
livreiro
tinha
no
positivismo
e
no
realismo
as
suas
principais
fontes
para
ver
e
explicar
o
mundo.
E,
no
entanto,
a
urgência
constante
em
afirmar
o
valor
das
palavras
sugere
que
uma
mudança
dramática
estava
em
curso
na
República
das
letras
no
final
de
oitocentos.
Dois
livros
publicados
em
Portugal
na
passagem
do
século
mostram
como
os
escritores
do
período
se
sentiram
ameaçados.
Ambos
afirmam
a
importância
da
palavra
como
matéria-‐prima
estruturante
da
vida
cultural,
mas
acrescentam
um
elemento
perturbador.
As
palavras,
tanto
em
Palavras
Loucas,
de
Alberto
de
Oliveira
(1894),
como
em
Palavras
Cínicas,
de
Albino
Forjaz
de
Sampaio
(1905),
1
pareciam
representar,
na
sua
loucura
e
cinismo,
o
primeiro
sintoma
de
uma
crise
na
racionalidade
do
sistema
positivista
e
na
verdade
da
estética
realista.
Palavras
Loucas
começa
por
ser
uma
despedida
amarga
do
século
XIX.
Na
senda
da
reacção
anti-‐racionalista
da
direita
europeia
sua
contemporânea,
Alberto
de
Oliveira
confessa-‐se
enjoado
com
as
análises
e
agoniado
com
as
dúvidas
do
espírito
científico,
e
propõe
uma
solução:
‘procurar
a
felicidade
na
fé
e
o
sossego
no
instinto’
e
assim
‘desintelectualizar-‐nos’.1
Mais
especificamente,
Oliveira
preconiza
a
resistência
e
abandono
da
civilização
urbana
e
o
retorno
à
vida
mais
autêntica
do
mundo
rural:
‘Em
Portugal
seria
necessário
que
nós
os
poetas
emigrássemos
para
as
aldeias
(…).
Talvez
assim
compreendêssemos
o
carácter
do
nosso
país,
e
víssemos
bem
largo
o
caminho
que
nós
podemos
traçar
(…)
no
meio
desta
literatura
fatigada.’2
São
dois
os
elementos
que
aqui
interessa
reter.
Por
um
lado,
a
crise
é
pensada
no
âmbito
nacional
porque
o
progresso
civilizacional
ameaçava
o
campo
que,
em
oposição
à
cidade,
era
para
estes
escritores
o
símbolo
da
verdadeira
identidade
Portuguesa.
Por
outro,
trata-‐se
também
de
uma
crise
literária,
tanto
porque
as
formas
de
vida
urbana
tinham
corrompido
a
literatura,
como
porque
apenas
através
das
palavras
–
palavras
agora
inspiradas
pelo
contacto
directo
com
o
povo
rural
–
era
possível
regenerar
o
País.
1
Oliveira,
Alberto.
Palavras
Loucas.
Coimbra:
F.
França
Amado,
Editor,
1894,
3.
2
Idem,
32.
2
país
‘lendo
as
serras,
soletrando
os
panoramas’.3
Com
os
seus
companheiros
de
geração
–
escritores
como
Afonso
Lopes
Vieira,
António
Corrêa
de
Oliveira
ou
Antero
de
Figueiredo
–
transformaria
a
partir
daí
a
prostração
perante
o
frenesim
do
século
–
e
as
marcas
de
decadentismo
visíveis
por
exemplo
em
Só,
livro
de
poemas
do
seu
íntimo
amigo
António
Nobre
–
num
programa
a
que
chamaram
neo-‐garrettismo,
na
esteira
do
fundador
do
romantismo
Português,
Almeida
Garrett,
que,
segundo
os
jovens
de
1890,
tinha
copiado
‘Portugal
para
os
seus
livros.’4
3
progresso
civilizacional
que
Eça
de
Queirós,
no
início
do
romance,
contrasta
com
o
ambiente
rústico
onde
o
protagonista
finalmente
encontraria
a
paz.
A
crítica
a
Lisboa,
implícita
em
A
Cidade
e
as
Serras
mas
mais
clara
noutros
romances
de
Queirós,
ecoou
também
em
Alberto
de
Oliveira,
para
quem
a
cidade
era
‘apenas
uma
instituição
burocrática
e
administrativa’7,
onde
‘o
público
é
composto
de
políticos’
e
‘os
literatos
são
quase
todos
amanuenses
de
jornais’8.
A
ocultação
de
Lisboa
–
da
vida
urbana
e
da
modernização
–
dos
discursos
do
nacionalismo
provocará
um
desequilíbrio
nas
representações
da
cultura
portuguesa
que
deixa
incompreensível
o
êxito
de
Palavras
Cínicas.
Tal
desequilíbrio,
ou
desfasamento,
entre
as
definições
da
cultura
Portuguesa
e
a
vida
cultural
do
País,
permite-‐nos
levantar
algumas
questões
que
situam
mais
rigorosamente
a
narrativa
deste
capítulo.
Em
particular,
pelo
modo
como
o
que
Albino
Forjaz
de
Sampaio
escreve
no
seu
livro
destoa
do
imaginário
familiar
nas
várias
narrativas
sobre
a
época.
De
facto,
perante
uma
história
das
ideias
que
garante
que
no
início
do
século
XX
se
assiste
a
um
surto
metafísico
em
Portugal,
como
pensar
que
a
maior
parte
dos
leitores
andasse
a
ler
que
‘é
preferível
ver
um
cano
de
esgoto
em
toda
a
sua
porcaria
a
uma
alma
em
toda
a
sua
intimidade’?9
Perante
uma
história
da
literatura
que
nos
fala
da
emergência
de
um
neo-‐romantismo
que
celebra
a
pureza
dos
sentimentos
populares,
como
explicar
que
há
um
livro
reeditado
praticamente
todos
os
anos
ao
longo
de
décadas
garantindo
que
‘o
Ódio
dá
mais
7
Oliveira,
Alberto.
Idem,
219.
8
Idem,
52.
9
Sampaio,
Albino
Forjaz
de.
Palavras
Cínicas.
Lisboa:
Editora
Viúva
Tavares
Cardoso,
1905, 29.
4
prazeres
que
o
amor’?10
Perante
uma
história
política
que
narra
a
ascensão
de
valores
republicanos,
como
justificar
que
o
público
se
divirta
ao
ler
que
‘aqui
para
triunfar,
é
preciso
ser
(…)
muito
mau.
Sê
mau,
cínico,
hipócrita
e
persistente
que
vencerás’?11
Finalmente,
perante
uma
história
cultural
que
dá
como
traço
essencial
do
país
a
construção
nacionalista
que
fazia
assentar
o
significado
de
Portugal
na
sua
fé
católica,
como
situar
um
escritor
cuja
glória
literária
foi
conquistada
através
da
provocação
religiosa:
‘Tu
crês
em
Deus?
(…)
Pois
bem;
vai-‐lhe
dizer
que
eu
que
o
odeio
com
toda
a
força
do
meu
ódio’?12
A
crise
das
palavras
com
que
começámos
tem
aqui
o
seu
pano
de
fundo:
na
distância
entre
a
definição
da
identidade
nacional
dos
discursos
nacionalistas
e
uma
vida
cultural
com
outros
autores
populares,
outras
narrativas
em
circulação
e
outras
formas
de
entretenimento.
Trata-‐se,
em
síntese,
da
distância
entre
a
cultura
portuguesa,
entendida
como
expressão
da
autenticidade
nacional,
e
a
cultura
em
Portugal
como
o
espaço
social
composto
pelos
públicos
(quase
sempre
urbanos)
e
os
seus
consumos
culturais.
A
vontade
de
escandalizar
em
Palavras
Cínicas
sugere
assim
a
existência
de
um
gosto
que
a
história
esqueceu
mas
que
corresponde
ao
que
à
época
era
publicamente
mais
visível
e
apreciado.
O
êxito
literário
de
Forjaz
de
Sampaio
pode
assim
ser
visto
como
sintoma
do
estado
da
produção
e
consumo
culturais
onde
estes
eram
mais
visíveis:
Lisboa
como
o
único
espaço
urbano
com
bolsas
industriais,
classes
médias
e
uma
pequena
burguesia
de
dimensão
suficiente
para
justificar
o
desenvolvimento
do
que
no
Portugal
do
início
do
século
XX
podiam
ser
as
suas
indústrias
culturais.
Num
texto
de
1909,
o
escritor
definiu-‐se
precisamente
como
um
proletário
e
a
sua
obra
como
um
produto
manufacturado:
Eu
não
sou
literato.
E,
o
que
é
mais,
odeio
a
literatura.
¿Pois
como
pode
ser
amada
uma
profissão
que
nada
dá
e
tudo
exige,
que
é
um
sobressalto,
uma
incerteza
constante?
(…)
Não
sou
artista,
sou
industrial.
Fabrico
períodos
como
um
marceneiro
cómodas
ou
um
luveiro
luvas.
(…)
Quero
servir
bem
o
10
Idem,
8.
11
Idem.
12
Idem,
12.
5
meu
freguês,
que
é
o
meu
editor.
Este,
por
seu
turno,
tem
interesse
em
servir
o
público.
É
claro
que,
gostando
da
minha
marca
e
exigindo-‐a
ou
gastando-‐a,
o
editor
se
dirija
a
minha
casa
a
buscar
os
meus
produtos.
(…)
O
meu
nome
é
a
minha
tabuleta.13
Neste
sentido,
a
cultura
era
uma
indústria
com
a
sua
mão-‐de-‐obra,
a
sua
matéria-‐prima
e,
acima
de
tudo,
o
seu
mercado
e
publicidade.
O
principal
ramo
desta
actividade
era
a
imprensa.
À
entrada
do
século
XX,
eram
evidentes
em
Portugal
os
efeitos
da
revolução
provocada
pelas
máquinas
rotativas:
o
aumento
na
velocidade
de
impressão
embaratecera
as
edições
permitindo
que
o
jornal
alargasse
o
seu
público
atraindo
mais
publicidade,
o
que,
por
sua
vez,
contribuiu
para
baixar
ainda
mais
os
preços
e
chegar
a
ainda
mais
leitores
num
ciclo
que
fará
da
narrativa
jornalística
uma
das
primeiras
mercadorias
massificadas
da
era
industrial.
Os
jornais
eram
a
instituição
organizadora
da
vida
literária.
Os
escritores
eram
jornalistas
e
vice-‐versa,
muitos
romances
começavam
por
ser
folhetins,
mas
era
sobretudo
o
noticiário
e
a
forma
como
a
utilização
crescente
de
fotografias
e
manchetes
dramatizava
os
acontecimentos
que
mais
contribuía
para
a
imagem
dos
tempos.
O
universo
das
reportagens
jornalísticas
não
andava
assim
longe
do
retrato
impiedoso
que
tanto
a
literatura
naturalista
como
os
inquéritos
da
emergente
sociologia
à
vida
das
populações
lançava
sobre
a
sociedade.
A
regra,
13
Sampaio,
Albino
Forjaz
de.
Grilhetas.
Lisboa:
Editora
Literária
Fluminense,
1916,
11-‐
12.
14
Cf.
Ramos,
Rui,
‘A
Segunda
Fundação
(1890-‐1926),
História
de
Portugal.
Lisboa:
6
por
todas
estas
narrativas,
era
o
crime,
a
promiscuidade
e
várias
outras
misérias
e
violências.
Um
mundo
de
distância
parece
assim
separar
o
pessimismo
de
Albino
Forjaz
de
Sampaio
da
inocência
campestre
de
Alberto
de
Oliveira.
Para
o
primeiro,
para
quem
‘o
ventre
das
mães
é
o
embrião
do
crime’15,
a
sociedade
estava
perdida.
Para
o
segundo,
apesar
das
ameaças
sobre
Portugal,
‘a
virgindade
das
nossas
árvores
[e]
a
inviolada
cor
azul
do
nosso
céu
meridional’16
permaneciam
intactas.
Mas
apesar
das
diferenças
entre
a
sociedade
portuguesa
e
a
imagem
do
seu
nacionalismo,
as
palavras
loucas
e
as
palavras
cínicas
foram
dois
lados
de
um
mesmo
combate
de
percepções
empenhadas
em
conquistar
o
mercado
de
leitores.
Nesse
sentido,
mais
do
que
Alberto
de
Oliveira
ou
Albino
Forjaz
de
Sampaio,
devemos
procurar
com
mais
atenção
o
mundo
desse
público,
maioritariamente
urbano,
de
todas
estas
palavras.
O
hotel
onde
o
pai
de
Gabriel
era
porteiro
surge,
a
seus
olhos,
como
o
primeiro
microcosmos
da
realidade
que
o
rodeia:
‘O
Teatro,
a
Política,
a
Magistratura,
o
15
Sampaio,
Albino
Forjaz,
Palavras
Cínicas,
idem,
30.
16
Oliveira,
Alberto
de,
Palavras
Loucas,
idem,
214.
7
Escândalo,
tudo
por
lá
tem
passado.
(…)
Melhor
do
que
isto
só
o
Animatógrafo.’17
O
que
verdadeiramente
nos
interessa
no
ponto
de
vista
do
romance
é
a
consciência
de
que
a
imagem
daquele
mundo
de
teatro
e
política
depende
directamente
dos
mecanismos
culturais
–
melhor
do
que
isto
só
o
Animatógrafo
–
que
o
dão
a
ver.
Lisboa,
mais
do
que
a
capital
oficial
ou
um
antro
de
miséria,
torna-‐se
assim
um
mundo
de
imagens
–
filmes,
gravuras,
fotografias
–
e
sons
–
canções,
boatos,
pregões
–
que
é
preciso
aprender.
A
cabeça
de
Gabriel
estava
cheia
destas
imagens
e
sons.
Quando
lhe
dizem
que
um
familiar
vai
chegar
de
Buenos
Aires,
a
palavra
América
fá-‐lo
imediatamente
pensar
‘em
índios,
verdura
infinita,
cavalgadas
doidas,
laços,
tiros
de
revólver’18.
O
mítico
Oeste
tornava-‐se
assim
na
segunda
pátria
de
uma
criança
lisboeta
da
década
de
1900,
ainda
antes
dos
westerns
de
Hollywood:
17
Miguéis,
José
Rodrigues.
A
Escola
do
Paraíso.
Lisboa:
Estampa,
1989
[1960],
356.
18
Idem,
144.
19
Idem,
250.
8
(…).’20
Só
assim
se
explica
que,
na
cabeça
daquela
criança,
‘o
fim
do
mundo’
fosse
‘a
preocupação
maior
duma
época,
aliás,
sob
outros
aspectos
pacífica
(…).
Os
jornais,
com
as
suas
reportagens
e
estampas
sugestivas,
contribuem
muito
para
a
atmosfera
de
pavor
e
expectativa
em
que
se
vive.’21
O
mundo
tanto
era
feito
dessas
notícias
que
efabulavam
as
coisas
próximas
e
distantes,
como
também
desse
‘outro-‐mundo
nocturno,
imponderável,
irreal,
onde
tudo
é
permitido
e
sem
peso,
como
num
Sonho:
o
Teatro.’22
O
teatro
era
ainda
o
principal
espectáculo
urbano
na
Lisboa
de
inícios
do
século.
Nesse
sentido,
era
também
o
mais
visível,
com
as
suas
salas
bem
situadas
e
os
seus
placards
publicitários
que
ajudavam
a
fama
dos
actores
e
o
sucesso
das
peças.
Mas
era
ainda,
na
sua
proximidade
com
a
noite
como
tempo
de
boémia
e
transgressão,
um
mundo
de
segredos
e
mistérios.
Muito
ele
sonha
a
olhá-‐lo!
Mas
este
é
só
palco:
tem
o
pano
de
boca,
erguido,
a
mostrar
a
cena,
irresistível:
um
cárcere
imenso,
de
altas
janelas
gradeadas,
montes
de
palha
a
servir
de
camas,
cadeiras
chumbadas
às
paredes
de
grandes
blocos
de
pedra,
e
arcarias.
(…)
É
um
palco
completo,
está
visto,
com
moldura,
sanefas,
cortinas
e
pano
de
boca,
tudo
dum
rico
vermelho-‐cereja,
com
muitas
borlas
e
franjas
amarelas
a
fingir
de
oiro.
(…)
E
podem-‐se
usar
outros
cenários,
e
actores:
vêm
nestas
folhas
de
recortar,
como
soldados.
Por
exemplo
Os
Huguenotes,
aqui
estão
eles.
Tudo
em
roxo
e
doirado,
que
lindo.
Levado
o
pequeno
teatro
para
casa,
Gabriel
passa
dias
a
encenar
peças
de
fantasia,
mostrando
que
o
teatro
é
simultaneamente
o
‘outro-‐mundo’
de
sonho
que
tanto
o
fascinava
como
uma
forma
de
espectáculo
familiar.
Pouco
tempo
depois,
porém,
cansa-‐se
de
imaginar
novas
histórias
e
dar
vida
às
personagens
e
20
Idem,
217.
21
Idem,
207.
22
Idem,
296.
23
Idem,
168.
9
vai
deixando
o
seu
brinquedo
ao
abandono.
Que
fazer
então
para
se
entreter?
‘Só
há
um
remédio:
é
moer
a
paciência
ao
pai:
“Paizinho,
vamos
ao
Animatógrafo!”’24
O
cinema
era
sem
dúvida
a
grande
novidade.
Dando
os
seus
primeiros
passos
na
capital
portuguesa
em
espaços
adaptados
de
lojas
de
onde
se
entrava
e
saía
a
meio
da
projecção,
os
testemunhos
sobre
os
seus
primeiros
anos
dão-‐nos
estranhamente
conta
de
um
ambiente
confuso
e
barulhento:
O
sr.
Augusto
[pai
de
Gabriel],
de
maré,
dá-‐lhes
dinheiro
e
eles
levam-‐na
[a
Ryala,
a
avó]
ao
Chiado
Terrasse,
a
ver
o
animatógrafo.
A
Ryala,
que
nunca
imaginou
que
tal
pudesse
existir,
enche
a
sala
de
brados
de
assombro
e
risos
descompassados.
Há
uma
comédia
de
Max
Linder
e
uma
fita
de
peles-‐
vermelhas.
Ao
ver
surgir
pela
frente
em
pleno
Far-‐West,
entre
cavalgadas,
frechadas
e
tiros,
uma
locomotiva
que
avança
a
todo
o
vapor
sobre
a
audiência,
não
há
quem
a
segure:
um
grito
de
terror,
um
salto
de
cabra,
e
a
Ryala
abala
a
fugir,
para
não
ser
esmagada
pelo
trén!
24
Idem,
171.
10
O
povo
de
Lisboa
era,
segundo
as
elites,
um
público
mal
comportado.
A
popularização
da
imprensa
e
dos
espectáculos
urbanos
acentuou
a
distinção
de
classes
nos
espaços
e
hábitos
culturais.
A
Ilustração
Portuguesa,
a
que
Gabriel
se
refere
com
frequência,
foi
criada
em
1903
e
tornou-‐se
um
dos
símbolos
dessa
divisão.
Pelas
páginas
da
revista,
é
possível
ver
a
crónica
ilustrada
(nomeadamente
através
de
fotografias
captadas
por
Joshua
Benoliel)
das
cerimónias
públicas,
momentos
de
lazer
e
actividades
desportivas
com
que
a
aristocracia
(e
a
família
real)
se
dava
a
ver.
O
desporto
desempenha
aí
um
papel
fundamental,
e
é
precisamente
pela
distinção
entre
os
desportos
praticados
pela
elite
–
o
ténis,
a
equitação,
a
vela
–
e
os
espectáculos
desportivos
para
o
povo,
que
a
Ilustração
traça
a
fronteira
entre
um
exercício
físico
civilizado
e
o
espectáculo
bárbaro
–
de
luta,
no
caso
–
com
que
as
massas
exibem
a
sua
falta
de
educação:
‘O
povo
de
Lisboa
vai
todas
as
noites
admirá-‐los
[aos
lutadores]
(…).
Os
que
procuram
vencer
por
qualquer
modo,
pelo
excesso
na
impetuosidade
do
ataque
ou
recurso
de
golpes
proibidos,
são
pateados
e
insultados.
O
público,
nervoso
e
indignado,
num
movimento
geral
de
protesto
ameaça
o
combatente,
arremessando
bengalas,
batatas
e…
até
botas
para
a
arena!…
Nessas
ocasiões
é
mais
interessante,
para
o
espectador
calmo,
o
espectáculo
fornecido
pelo
público,
que
o
executado
pelos
profissionais.
E
as
enchentes
sucedem-‐se,
apesar
da
intensidade
emotivas
dos
matches.
Nas
ruas
discutem-‐se
os
lutadores,
tomam-‐se
antipatias,
critica-‐se
a
arte
de
uns,
comentam-‐se
os
trucs
de
outros.
E
essa
efervescência
agrada
aos
empresários,
que
vêem
nos
campeonatos
profissionais
um
dos
negócios
mais
lucrativos.’25
25
‘4º
Campeonato
Internacional
de
Luta’,
in
Ilustração
Portuguesa,
230,
18-‐7-‐1910,
73.
11
Primeira
Parte
(20h.30m)
-‐
D.
Ramiro,
ouverture,
pela
orquestra
Blancheteau;
-‐
A
Célebre
e
assombrosa
maravilha
norte-‐americana
Eletrophone:
-‐
Petit
Tonkinoise;
-‐
Novo
Fado
de
Coimbra;
-‐
Tosca,
pelo
grande
tenor
Caruso;
-‐
Valsa
de
Apolo,
cantada
pela
actriz
Georgina
Cardoso;
-‐
O
S.
João
Novo,
canção
popular
do
norte;
-‐
O
surpreendente
e
maravilhoso
animatógrafo:
-‐
O
pesadelo
de
Çaid;
-‐
Escola
militar
de
equitação
em
Roma;
-‐
A
confissão;
-‐
Astúcias
de
um
marido;
-‐
Amor
de
escrava
(a
cores);
-‐
Apresentação
da
Gentil
e
Famosa
Bailarina
La
Flor
da
Andaluzia;
Intervalo
-‐
La
Textulia,
Zamanocca,
pela
orquestra
Chueca;
-‐
A
Célebre
e
assombrosa
maravilha
norte-‐americana
Eletrophone:
-‐
Pó,
pó,
pó,
cançoneta;
-‐
Morte
de
Othello,
pelo
grande
tenor
Tamagno;
-‐
O
signal
do
ano
novo,
pelos
sinos
da
Catedral
de
Milão;
-‐
Cavalaria
Rusticana,
pelo
grande
tenor
Caruso;
-‐
A
cana
verde,
canção
popular
do
norte;
-‐
O
surpreendente
e
maravilhoso
animatógrafo:
-‐
Inspecção
da
Alfândega;
-‐
Nos
banhos
do
mar;
-‐
Os
irmãos
Kremo;
-‐
O
ciclista
vence
obstáculos;
-‐
Salteadores
modernos;
-‐
Segunda
apresentação
da
Gentil
e
Famosa
Bailarina
La
Flor
da
Andaluzia;
Segunda
parte
(22h.30m)
-‐
La
Trempanica,
jota,
pela
orquestra
Gimenez;
-‐
1ª
Sessão
do
Campeonato
de
Luta
dos
Vendedores
de
Jornais.
12
Em
1904,
a
companhia
discográfica
Odeon
instala-‐se
em
Portugal
e
inicia
gravações
de
vários
géneros
musicais
onde
já
se
destaca
o
fado
como
o
género
popular
lisboeta
por
excelência.
O
fado,
oriundo
do
bas-‐fond
da
capital
de
inícios
do
século
XIX,
tinha
passado
por
um
processo
de
popularização
na
segunda
metade
de
oitocentos
que
o
alargara
a
camadas
sociais
mais
vastas,
nomeadamente
o
proletariado
e
as
classes
médias.
Se,
por
um
lado,
o
alargamento
do
fado
a
partir
do
ambiente
de
crime
e
sexualidade
onde
nasceu
significou
a
sua
radicalização
política
por
contacto
operário,
por
outro,
a
penetração
do
género
em
lares
burgueses
acabou
por
contaminá-‐lo
com
um
bom
gosto
médio
que
quase
faria
desaparecer
o
erótico
e
o
obsceno.26
O
fado
gravado
de
início
do
século
vai-‐se
consolidando
como
forma
lírica,
música
de
paixões,
traições
e
saudade
com
que
foi
criando
uma
identidade
tipicamente
lisboeta,
primeiro,
e
nacional,
depois.
Mas
o
fado
cresce
também
com
a
cidade.
Continua
a
cantar-‐se
nas
tabernas
dos
bairros
tradicionais,
mas
avança
pelos
novos
estabelecimentos
que
acompanham
o
alargamento
de
Lisboa.
Entra
pelas
casas
de
vários
estratos
sociais
e
torna-‐se
banda
sonora
obrigatória
no
teatro.
Alguns
dos
maiores
nomes
do
teatro
popular
de
então,
como
Maria
Vitória,
celebrizaram-‐se
também
como
cantoras
de
fado,
numa
relação
íntima
entre
as
duas
formas
que
era
um
dos
traços
marcantes
do
mais
popular
dos
géneros
teatrais:
a
revista
à
Portuguesa.
‘branqueamento’.
Cf.
Nery,
Ruy
Vieira.
Para
uma
história
do
Fado.
Lisboa:
Público,
2004.
A
obra
de
Nery
servirá
como
guia
ao
que
neste
capítulo
se
escrever
sobre
fado.
27
Na
descrição
da
revista
à
portuguesa
nas
primeiras
décadas
do
século,
seguirei
a
análise
do
género
feita
por
Rodrigues,
Pedro
Alexandre
Caldeira.
Ernesto
Rodrigues.
Um
Homem
de
Teatro
na
Primeira
República.
Dissertação
de
Mestrado,
Faculdade
de
Letras
da
Universidade
de
Lisboa,
2007.
13
da
Primeira
República,
em
1926,
e
algumas
das
peças
dos
seus
autores
chegaram
até
aos
anos
quarenta
sob
forma
de
adaptação
cinematográfica.
Era
uma
gente
que
se
deitava
tarde
e
era
forçada
a
viajar
em
tournée.
Isso
dava-‐lhes
a
aura
de
mistério
que
tanto
fascinava
Gabriel.
No
entanto,
o
testemunho
de
um
profissional
do
meio,
o
escritor
André
Brun,
mostra
como
a
espectacularidade
da
revista
era
o
resultado
do
trabalho
intenso
de
uma
classe
profissional
como
as
outras:
‘Um
dos
preconceitos
que
ainda
existe
contra
a
gente
do
teatro
é
que
a
vida
de
palco
é
uma
vida
de
mandria
e
doce
panria.
Para
muita
gente
a
vida
de
um
actor
é
levantar-‐se
às
quatro,
fumar
cigarros
à
porta
do
Suisso,
representar
meia
dúzia
de
facécias
à
noite
e
tresnoitar
até
à
alvorada.
Estranhamente
surpresos
ficariam
os
que
assim
pensam,
se
lhes
fosse
dado
presenciar
os
esforços
e
o
trabalho
que
se
empregam
para
que
o
espectador,
que
tem
disponível
a
noite
e
o
custo
do
bilhete,
esteja
divertido
durante
algumas
horas’.28
Os
preconceitos
de
que
fala
Brun,
porém,
sugerem
que
o
que
mais
interessava
o
público
na
revista
era
a
sensação
de
entusiasmo
e
transgressão
que
já
pudemos
imaginar
na
ida
de
Gabriel
ao
animatógrafo
ou
na
noite
de
luta
no
Coliseu.
28
In
idem,
38.
14
Segundo
Sousa
Bastos,
um
dos
principais
autores
do
género,
‘o
nosso
público
em
geral
só
vai
ao
teatro
para
se
divertir
e
passar
o
tempo
(…).
Ri
alarvemente
com
quantas
baboseiras
ouve,
aplaude
com
entusiasmo
o
actor
palhaço
e
desdenha
do
trabalho
consciencioso
do
artista
correcto.’29
E,
no
entanto,
a
revista
dava
ao
público
algo
diferente
do
exotismo
do
far-‐west
e
dos
excessos
da
luta.
As
personagens
e
os
cenários
eram
facilmente
reconhecíveis
como
o
povo
e
a
paisagem
lisboetas.
O
público
da
capital
podia
assim,
mais
do
que
rever
em
palco
a
sua
vida
e
a
da
sua
cidade,
participar
simultaneamente
num
momento
de
crítica
e
entretenimento.
A
revista
funcionava
como
mediação
através
da
qual
se
gozava
com
os
costumes
e
situações
familiares
e
se
criticavam
os
poderes
e
hierarquias
do
quotidiano.
A
capacidade
de
rir
de
si
próprio
ou
de
situações
familiares,
porém,
era
um
privilégio
dos
estratos
médios
da
sociedade
urbana.
As
plateias
do
teatro
podiam
ser
indisciplinadas,
mas
dificilmente
se
revoltavam.
15
mesmo
problema.
Se
o
povo
estava
cada
vez
mais
exposto
à
política
e
à
cultura
dos
jornais,
dos
teatros
e
dos
outros
espectáculos,
havia
então
que
encontrar
mecanismos
para
o
educar.
Mais
decisivo,
porém,
foi
o
papel
dado
à
escola,
sobretudo
à
instrução
primária
e
à
leitura.
Apesar
do
impacto
pouco
significativo
da
política
republicana
na
redução
da
taxa
de
analfabetismo
(de
75%
em
1910,
mantinha-‐se
ainda
nos
67,8%
em
1926),
a
missão
educativa
do
regime
foi
uma
pedra
central
do
seu
discurso
legitimador.
Era
inevitável
que
assim
fosse:
os
republicanos
sabiam
que
o
analfabetismo
deixava
a
maioria
dos
portugueses
à
mercê
da
máquina
16
ideológica
da
igreja
católica
com
a
sua
apertada
rede
de
igrejas
distribuídas
ao
longo
do
território,
enquanto
o
republicanismo
se
mantinha
circunscrito
ao
povo
alfabetizado
da
cidade.
‘por
mais
gasta
que
esteja
esta
palavra
apóstolo,
não
sei
de
outra
melhor
que
se
aplique
aos
professores
das
Escolas
Móveis
—
como
os
lendários
companheiros
de
Jesus,
são
afáveis,
discretos
e
quase
sempre
sem
fortuna;
vêm,
como
eles,
das
mais
diversas
profissões,
das
mais
variadas
terras;
mas
basta
o
evangelho
da
Cartilha
Maternal
para
que
um
mesmo
credo
os
irmane
e
um
mesmo
ideal
os
guie.’31
17
livro
um
objecto
fundamental.
Proliferaram
assim
as
bibliotecas,
colecções
com
ambições
enciclopédicas,
através
dos
quais
o
leitor
poderia
aprender
uma
história
universal
orientada
pela
lei
do
progresso33.
No
campo
artístico
e
literário,
porém,
a
ideia
republicana
terá
de
se
defrontar
com
um
adversário
no
mínimo
tão
poderoso
quanto
a
religião.
O
folhetim
e
teatro
políticos
–
como
vimos
no
caso
do
Teatro
Livre
–
lutam
uma
luta
desigual
contra
o
gosto
pelo
melodrama
e
pelo
drama
histórico,
por
um
lado,
e
contra
a
extrema
popularidade
do
teatro
de
revista
que,
mesmo
quando
politizado
e
pró-‐
republicano,
dificilmente
contribuiria
para
a
emancipação.
O
mesmo
tipo
de
tensão
entre
entretenimento
e
política
é
visível
na
música,
onde
o
encerramento
de
teatros
de
ópera
e
a
criação
das
Orquestras
Sinfónicas
Portuguesa
e
de
Lisboa
não
logrou
substituir
a
tradição
lírica
da
ópera
italiana
pelo
impulso
modernizante
da
música
sinfónica.
18
os
uma
atitude
anti-‐dogmática
traduzida
na
crítica
ao
positivismo.
Mais
importante,
porém,
eles
eram
a
elite
no
topo
da
intelectualidade
proletarizada
pela
emergência
das
indústrias
culturais.
Nesse
sentido,
distanciam-‐se
sempre
que
as
ideologias
se
aproximam
de
movimentos
de
massa:
poucos
prolongam
o
anarquismo
para
o
interior
do
movimento
operário;
a
própria
criação
da
Renascença
quando
a
República
conquista
o
poder
revela
o
desejo
de
manterem
a
distância
crítica
em
relação
à
vida
partidária,
parlamentar
e
governamental.
A
forma
dessa
distância
é
bem
definida
na
apresentação,
logo
em
Dezembro
de
1910,
da
revista
Águia,
órgão
da
RP:
‘A
Águia,
sobranceira
e
altiva,
deixa,
por
instantes,
os
solitários
píncaros
da
montanha.
Soltando
gritos
heróicos
de
superioridade,
alarga
as
asas
no
gesto
impetuoso
do
arranque
(…).’34
A
distância
crítica
era
uma
superioridade.
Por
sobre
os
três
níveis
de
desenvolvimento
intelectual
da
sociedade
portuguesa
–
o
do
povo
analfabeto,
o
do
público
urbano
e
o
do
proletariado
intelectual
–
os
intelectuais
da
Renascença
pairavam
como
os
guias,
mas
não
executores,
da
regeneração
nacional.
Cedo,
porém,
começou
a
desenhar-‐se
uma
divisão
no
interior
do
grupo.
Tudo
começou
com
a
definição
do
próprio
nome
do
movimento
e
da
forma
como
se
devia
apresentar
‘ao
povo’.
De
um
lado,
o
núcleo
do
Porto,
em
torno
do
poeta
Teixeira
de
Pascoaes,
aponta
como
objectivo
o
‘conhecimento
verdadeiro
da
alma
lusitana’
(e
propõe
o
nome
Renascença
Lusitana,
acentuando
a
dimensão
identitária
da
cultura
nacional)
e
o
combate
às
‘influências
contrárias
ao
nosso
carácter
étnico.’35
Do
outro,
Raul
Proença,
em
nome
da
parte
sediada
em
Lisboa,
critica
o
isolamento
intelectual
do
País
e
preconiza
uma
reforma
interior
que
permita
dialogar
de
forma
menos
passiva
com
o
pensamento
universal
–
no
que
era
também
uma
crítica
ao
positivismo
republicano,
entendido
como
um
mero
mimetismo
do
positivismo
Francês.
19
próximo
de
Raul
Proença,
António
Sérgio.
O
primeiro
procurara
definir
a
saudade
como
‘a
personalidade
eterna
da
nossa
raça’36,
e
a
partir
daí
construir
um
sistema
estético
e
filosófico
–
o
saudosismo
–
da
identidade
portuguesa
em
oposição
ao
saber
instrumental
da
civilização
moderna.
Pascoaes
será
muito
específico
na
definição
de
saudade
–
‘velha
lembrança
gerando
o
novo
desejo’37
–
e
consequente
na
utilização
do
conceito
como
princípio
da
sua
obra
poética.
Para
o
que
aqui
nos
interessa,
porém,
o
saudosismo
começou
por
ser
nele
uma
reacção
à
‘terrível
monotonia
da
uniformidade’38
moderna
e
acabou
como
uma
forma
de
isolamento,
pessoal
e
nacional,
em
relação
ao
resto
do
mundo:
‘Não
tenho
tempo
de
folhear
livros,
nem
o
meu
espírito
se
contenta
com
essa
bisbilhotice
intelectual
que
trata
de
saber
o
que
os
outros
dizem.
(…)
nada
disso
me
interessa.
A
mim,
o
que
me
interessa,
é
o
meu
pensamento,
embora
humilde
e
obscuro.’39
Era
uma
atitude
nos
antípodas
do
ideal
intelectual
de
António
Sérgio,
que
não
se
cansou
de
historiar
a
funda
divisão
entre
aqueles
que
procuraram
isolar
a
cultura
portuguesa
e
os
que
buscavam
na
história
da
razão
e
da
ciência
as
formas
para
libertar
Portugal
dos
seus
atavismos.
Mais
do
que
insistir
no
que
para
ele
era
evidente
–
a
saudade
não
é
um
pensamento
exclusivamente
português
–
Sérgio
tentou
mostrar
que
ele
e
Pascoaes,
como
representantes
dessas
duas
linhagens
culturais,
eram
‘duas
substâncias
incomunicáveis’40:
‘(…)
o
meu
poeta
[Pascoaes]
exclama:
“Louvemos
o
isolamento
em
que
ele
(o
povo
português)
tem
vivido!”
–
Como
a
história
se
repete
na
nossa
terra
desgraçada!
Pois
que
significa
esta
palestra,
senão
um
mínimo
episódio
(…)
na
grande
luta
portuguesa,
entre
o
Isolamento
e
a
Cultura,
entre
a
Inquisição
e
o
Humanismo
(…)?’41
36
In
Mesquita,
Marieta
Dá,
(org.).
A
Águia.
Lisboa:
Alfa,
1989,
31.
37
‘O
saudosismo
e
a
Renascença’,
in
idem,
183.
38
Idem.
39
‘Mais
palavras
ao
homem
da
espada
de
pau’,
in
idem,
238.
40
‘Regeneração
e
tradição,
moral
e
economia’,
in
idem,
203.
41
Idem,
206.
20
Talvez
mais
do
que
o
conteúdo
do
saudosismo,
porém,
ou
seja,
mais
do
que
o
seu
tradicionalismo,
o
que
interessa
aqui
notar
é
o
modo
como
tanto
o
activismo
cultural
de
Sérgio
como
o
de
Pascoaes,
como
de
resto
o
dos
republicanos,
participam
de
uma
mesma
confiança
na
capacidade
do
pensamento
e
da
arte
em
explicar
e
agir
sobre
o
mundo.
De
facto,
se
o
imaginário
do
saudosismo
radica
fundo
na
continuidade
histórica
e
na
imobilidade
social,
o
seu
projecto
–
definir
a
identidade
nacional
como
conceito
e
poética
e
regenerá-‐la
–
é
em
si
intrinsecamente
moderno
na
utilização
que
faz
dos
mecanismos
da
cultura
moderna
–
jornal
e
a
revista,
a
escola
e
a
universidade
popular
–
como
instrumentos
de
acção.
21
contexto
da
crise
da
primeira
guerra
mundial.
Isso
é
visível,
por
um
lado,
nos
seus
planos
para
uma
completa
reforma
administrativa
e
na
sua
revisão
da
historiografia
e
cultura
nacionais.
Mas
também
na
forma
como
estes
intelectuais
saudaram
a
guerra
como
a
oportunidade
de
purificação
de
que
o
país
precisava:
‘Oh,
mas
a
guerra
veio
–
Louvada
seja
a
guerra!
Há
sangue.
(…)
Mas
o
sangue
é
resgate,
mas
o
sangue
é
sacrifício,
e
nós
somos
a
geração
da
expiação’,
exclamou
António
Sardinha,
um
dos
fundadores
do
movimento,
na
sua
‘Apologia
da
Guerra’42.
Neste
momento,
o
campo
nacionalista
já
nada
tem
de
conservador
e
o
nacionalismo
é
uma
arma
para
os
modernos
combates
intelectuais,
cujo
alvo
já
não
é
o
mundo
rural
a
salvo
da
corrupção,
mas
a
cidade
desnacionalizada.
22
dramática
da
palavra
quando
escreveram
os
seus
Ultimatum
(Campos)
e
Ultimatum
Futurista
às
gerações
portuguesas
do
século
XX
(Almada).
Também
aqui,
os
textos
tinham
um
referente
político
e
organizavam-‐se
sistematicamente
em
forma
de
doutrina.
Num
como
noutro,
o
objectivo
era
ainda
pensar
como
aproveitar
as
energias
libertadas
pela
guerra.
desdobramento
em
várias
personalidades
literárias
–
Álvaro
de
Campos,
Alberto
Caeiro
e
Ricardo
Reis
seriam
os
mais
significativos
–
e
a
construção
com
elas
de
um
sistema
muito
próximo
de
uma
experiência
literária
total.
48
Campos,
Álvaro
de,
31.
23
Almada
Negreiros
é
mais
específico
no
projecto
de
‘criar
a
pátria
portuguesa
do
século
XX’.
O
lado
performativo
dos
seus
vários
manifestos
–
para
além
do
ultimato
publicado
em
Portugal
Futurista,
Almada
escreveu
A
Cena
do
Ódio,
em
1915,
e
o
Manifesto
Anti-‐Dantas,
em
191649
–
subverte
o
lugar
tradicional
da
literatura,
o
que
amplia
de
duas
formas
os
efeitos
da
sua
enunciação.
Por
um
lado,
Almada
age
intensamente
num
processo
cultural
que
rompe
com
os
limites
da
palavra
escrita,
onde
podemos
ver
o
início
de
uma
cultura
modernista
ligada
a
novos
hábitos
e
comportamentos
(em
cafés,
no
teatro,
pelos
cabarets),
à
visualidade
(para
além
da
importância
dada
ao
grafismo,
só
a
pintura
modernista,
sobretudo
com
Amadeo
de
Souza
Cardoso,
atingiu
o
nível
da
sua
poesia)
e
ao
gesto
corporal
(a
visita,
em
1918,
dos
Ballet
Russes
a
Lisboa,
teve
um
forte
impacto
no
grupo).
Por
outro
lado,
textos
como
A
Cena
do
Ódio
e
o
Manifesto
Anti-‐Dantas
põem-‐se
à
margem
do
campo
literário
para
melhor
o
criticar.
No
primeiro
caso,
o
ataque
é
ainda
ao
gosto
do
burguês
‘rotundo
e
pançudo-‐sanguessugo’
que
hostilizou
Orpheu:
‘Tu
arreganhas
os
dentes
quando
te
falam
de
Orpheu/e
pões-‐te
a
rir,
como
os
pretos,
sem
saber
porquê./E
chamas-‐me
doido
a
Mim/que
sei
e
sinto
o
que
Escrevi.’50
No
segundo,
o
alvo
é
a
própria
instituição
literária
e
teatral
personificada
no
escritor
e
dramaturgo
Júlio
Dantas.
Em
1915,
enquanto
quase
toda
a
gente
atacava
Orpheu,
Dantas
preferiu
censurar
precisamente
esses
que,
atacando
a
revista
,
contribuíam
para
a
sua
publicidade:
‘é
justo
confessar
que
os
loucos
não
são
precisamente
os
poetas
(…)
que
querem
ser
lidos,
discutidos
e
comprados;
quem
não
tem
juízo
é
quem
os
lê,
quem
os
discute
e
quem
os
compra.’51
Dantas
tocara
um
ponto
sensível:
ignorar
a
vanguarda
(ser
surdo
à
sua
performance)
neutralizava-‐lhe
os
efeitos.
24
lisboeta.
O
texto
de
Almada
começa
precisamente
por
tratar
Dantas
como
o
símbolo
literário
da
mediocridade
contra
que
reagiam
os
modernistas:
‘o
Dantas
é
um
autómato
que
deita
p’ra
fora
o
que
a
gente
já
sabe
que
vai
sair…
Mas
é
preciso
deitar
dinheiro!’
A
forma
do
manifesto
permite-‐lhe
depois
usar
uma
linguagem
neutral
(quase
jornalística)
para
descrever
algumas
cenas
da
peça.
O
resultado
é
a
completa
ridicularização
de
valores
morais,
processos
narrativos
e
técnicas
teatrais
que,
aparentemente,
o
próprio
público
considerava
já
obsoletos:
‘Ouve-‐se
uma
corneta
tocar
uma
marcha
de
clarins
e
Mariana
sentindo
nas
patas
dos
cavalos
toda
a
alma
do
seu
preferido
foi
qual
pardalito
engaiolado
a
correr
até
às
grades
da
janela
gritar
desalmadamente
plo
seu
Noel.
Grita,
assobia
e
rodopia
e
pia
e
rasga-‐se
e
magoa-‐se
e
cai
de
costas
com
um
acidente,
do
que
já
previamente
tinha
avisado
o
público
e
o
pano
cai
e
o
espectador
também
cai
da
paciência
abaixo
e
desata
numa
destas
pateadas
tão
enormes
e
tão
monumentais
que
todos
os
jornais
de
Lisboa
no
dia
seguinte
foram
unânimes
naquele
êxito
teatral
do
Dantas.’52
A
ironia
final
de
Almada
é
decisiva:
os
jornais
de
Lisboa
teriam
celebrado
o
êxito
da
peça
precisamente
na
medida
em
que
o
público
a
tinha
pateado.
A
literatura
de
Dantas,
com
os
seus
frívolos
folhetins
jornalísticos
e
as
suas
peças
de
teatro
ultra-‐românticas,
era
uma
daquelas
formas
de
entretenimento
para
o
indisciplinado
público
lisboeta.
Não
é
assim
de
surpreender
que
para
um
escritor
simultaneamente
conservador
e
popular
como
era
Júlio
Dantas,
esse
mesmo
sistema
de
entretenimento
fosse
a
única
forma
de
conter
os
riscos
políticos
da
massificação
cultural.
Nesse
sentido,
vê-‐lo-‐emos
pôr
os
mecanismos
da
cultura
de
massa
ao
serviço
do
nacionalismo
no
momento
em
que
este
se
consolidou
como
sistema
hegemónico
na
passagem
da
década
de
dez
para
os
anos
20.
4. O
Sistema
do
Nacionalismo
Não
é
um
exagero
dizer
que
Dantas
foi
quase
tudo
no
campo
cultural
Português:
foi
comissário
no
Teatro
Nacional;
foi
professor
e
director
da
Escola
da
Arte
de
Representar
e
do
Conservatório;
foi
Inspector-‐Geral
dos
Arquivos
e
Bibliotecas
Eruditas;
foi
presidente
da
Academia
das
Ciências
de
Lisboa;
foi
52
Negreiros,
Almada.
‘Manifesto
Anti-‐Dantas,
in
Obras
Completas
VI.
Lisboa:
INCM,
1993,
21-‐2.
25
fundador
da
Associação
de
Escritores
e
Compositores
Teatrais
Portugueses;
foi
presidente
da
Comissão
Nacional
de
Cooperação
Intelectual
da
Sociedade
das
Nações
e
mais
tarde
representante
português
na
UNESCO;
representou
a
vida
intelectual
no
Senado
Republicano
e
na
Câmara
Corporativa
do
Estado
Novo;
foi
deputado
na
Monarquia
e
na
República;
fundou
o
Partido
Nacionalista;
foi
ministro
da
Instrução
e
dos
Negócios
Estrangeiros.
A
escolha
de
Almada
Negreiros
explica-‐se
assim
como
parte
da
antipatia
alimentada
contra
ele
nos
meios
culturais
(mas
não
entre
o
público
que
esgotava
as
edições
dos
seus
livros
de
folhetins).
O
carácter
polémico
da
sua
figura,
porém,
dificilmente
permitiria
que
fosse
a
sua
obra
a
hegemonizar
o
nacionalismo
(apesar
de,
através
do
teatro
histórico,
também
ele
ter
contribuído
para
o
filão
nacionalista).
A
sua
posição
serviu,
antes,
como
veículo
para
o
nacionalismo
de
outros.
De
facto,
dada
a
impopularidade
da
vida
cultural
lisboeta,
a
formação
de
um
consenso
como
aquele
que
envolveu
o
nacionalismo
na
década
de
vinte
teve
necessariamente
de
vir
de
fora
da
esfera
pública.
Em
resumo,
o
sistema
do
nacionalismo
foi
um
processo
pelo
qual
os
meios
urbanos
de
comunicação
de
massa
vão
dar
visibilidade
a
um
conjunto
de
autores
isolados
no
mundo
rural
e
que,
nesse
sentido,
puderam
emergir
como
os
autores
da
autenticidade
nacional.
Trinta
anos
após
Palavras
Loucas,
escritores
próximos
de
Alberto
de
Oliveira
como
Antero
de
Figueiredo,
Corrêa
de
Oliveira
e
Lopes
Vieira
tinham
atingido
um
estatuto
que
os
punha
em
posição
de
cumprir
o
projecto
neo-‐garrettista
de
‘copiar
Portugal
para
os
livros’.
Os
três
tiveram
carreiras
literárias
muito
semelhantes:
após
viagens
ao
estrangeiro
e
vários
empenhamentos
políticos
juvenis,
todos
experimentaram
idênticos
processos
de
desencantamento
com
o
mundo
moderno
e
em
particular
com
a
vida
pública
e
a
política
urbana,
e
refugiaram-‐se
num
canto
tranquilo
e
seguro
da
província.
Outro
aspecto,
fundamental,
unia-‐os:
eram
economicamente
independentes
de
profissões
citadinas,
o
que
lhes
deu
um
estatuto
simbólico
privilegiado
e
permitiu
dedicarem-‐se
em
exclusivo
aos
seus
trabalhos
literários.
Nestas
condições,
puderam
surgir
como
aqueles
cuja
inspiração
se
mantivera
imune
à
corrupção
moderna.
Era
este
o
tipo
de
imagem
que
transmitiam
na
sua
ficção,
memórias
e
entrevistas:
o
poder
desumanizador
da
vida
urbana
estava
a
tornar
os
seus
habitantes
numa
massa
indiferente
e
insensível
e
esta
26
negatividade
era
precisamente
o
que
legitimava
a
sua
posição.
Eles
eram
a
voz
de
um
outro
país
que
resistia
ainda
no
isolamento
da
vida
rural.
A
distância
dos
racionalismos
ideológicos
e
políticos,
das
práticas
burocráticas
e
dos
espectáculos
de
entretenimento,
parecia
dar
às
suas
obras
uma
ligação
privilegiada
com
as
fontes
intangíveis
do
passado
de
Portugal
e
do
espírito
do
seu
povo.
Corrêa
de
Oliveira,
ao
escrever
que
nos
seus
versos
‘é
Portugal
quem
vos
fala’53,
e
Lopes
Vieira,
garantindo
que
‘um
poeta’,
como
ele
próprio,
‘é
a
voz
por
que
um
povo
diz’54,
encarnavam
a
voz
colectiva.
Ora,
o
que
é
decisivo
em
todo
este
processo
é
o
modo
como
o
isolamento
espiritual
destes
escritores
foi
materializado
no
espaço
público.
Porque
nenhum
destes
discursos
teria
feito
qualquer
diferença
se
não
fossem
os
mecanismos
de
massificação
cultural
que
eles
tanto
criticavam.
Paradoxalmente,
era
ainda
o
mesmo
carácter
macrocéfalo
da
capital
que
permitia
a
poemas
escritos
numa
quinta
do
Norte
ou
numa
vila
piscatória
da
costa
Ocidental
constituírem-‐se
como
discursos
da
Nação.
E
por
isso
é
ainda
ao
campo
literário
urbano
que
temos
de
voltar
para
compreender
o
processo
de
promoção
do
nacionalismo
dos
poetas
isolados.
Nos
trinta
anos
que
tinham
ido
desde
os
primeiros
passos
até
à
consagração
literária,
a
geração
neo-‐garrettista
tinha-‐se
dividido
entre
o
campo
e
a
cidade.
Assim,
enquanto
os
escritores
isolados
(a
que
devemos
acrescentar,
naturalmente,
Teixeira
de
Pascoaes)
se
envolviam
da
sua
aura
anti-‐urbana,
os
seus
amigos
citadinos
iam
ocupando
o
poder
do
sistema
cultural.
Conhecemos
já
o
caso
de
Júlio
Dantas.
Mas
devemos
referir
também
Carlos
Malheiro
Dias,
que
dirigiu
a
Ilustração
Portuguesa
(e
com
quem
António
Sérgio
travou
mais
uma
polémica
em
torno
do
nacionalismo),
de
Agostinho
de
Campos,
pedagogo
e
linguista,
organizador
de
uma
Antologia
Portuguesa
com
volumes
sobre
Antero
de
Figueiredo
e
Lopes
Vieira,
ou
ainda
Augusto
de
Castro,
que
em
1919
se
tornou
director
do
mais
influente
jornal
de
referência
do
país,
o
Diário
de
Notícias.
53
CORREIA,
António
Corrêa
de.
Hora
Incerta:
Pátria
Certa.
Lisboa:
Secretariado
de
Propaganda
Nacional,
1948,
23.
54
Vieira,
Afonso
Lopes.
País
Lilás,
Desterro
Azul.
Lisboa:
Editora
Portugal-‐Brasil,
1922,
11.
27
Todos,
no
segundo
grupo,
foram
centrais
na
consagração
dos
isolados.
Sobre
Antero
de
Figueiredo,
Augusto
de
Castro
escreveu
tratar-‐se
de
‘uma
silenciosa
e
calma
criatura
que
persegue
e
realiza,
com
singular
fé,
um
ideal
nobre’,
ou
seja,
alguém
que
recusava
‘a
popularidade
que
só
os
medíocres
idolatram
e
preferem.’55
Como
de
costume,
a
legitimidade
cultural
era
estabelecida
contra
a
mediocridade
do
proletariado
intelectual
e
do
público
urbano.
Mais
do
que
a
superioridade
intelectual
(que
vimos
no
voo
da
Águia
e
na
super-‐humanidade
de
Álvaro
de
Campos),
o
que
interessava
a
Augusto
de
Castro
era
o
silêncio
de
Antero
de
Figueiredo,
ou
seja,
uma
discrição
a
que
ele
próprio
dava
voz
com
o
seu
trabalho
de
jornalista.
A
estrutura
deste
sistema
traz-‐nos
a
mais
um
momento
na
crise
das
palavras
que
temos
visto
desenrolar-‐se
desde
a
década
de
1890.
Uma
das
explicações
para
a
tese
da
corrupção
citadina
assentava
na
intensa
circulação
do
objecto
impresso.
Quando,
no
volume
dedicado
a
Lopes
Vieira
da
Antologia
Portuguesa,
Agostinho
de
Campos
salientou
no
poeta
a
prática
‘da
boa
linguagem’,
feita
de
‘portuguesismo
e
idealismo’56,
estava
a
sugerir
que
a
verdadeira
língua
portuguesa
era
aquela
falada
pelos
camponeses
analfabetos
na
medida
em
que
ainda
viviam
a
salvo
dos
efeitos
perniciosos
da
escrita
e
da
leitura.
A
oposição
entre
o
uso
oral
da
língua
pelo
povo
analfabeto
e
a
palavra
escrita
corrompida
da
política
e
jornalismo
citadinos,
permitiram
a
Agostinho
de
Campos
estabelecer
as
bases
do
programa
cultural
nacionalista.
Desde
logo,
ao
desvalorizar
a
literacia
como
condição
da
cidadania
e
ao
definir
a
nova
escola
–
em
contraste
com
a
escola
republicana
–
como
‘aquela
onde
se
ensinem
as
crianças
a
evitar
os
inconvenientes
e
os
perigos
de
saberem
ler’57.
Estes
perigos
vinham,
antes
mais,
da
imprensa,
num
período
em
que
os
jornais
eram
facilmente
acessíveis
a
toda
a
população.
Mas
também
da
política
parlamentar
cuja
linguagem
tinha,
segundo
Campos,
progredido
‘na
escolha
e
no
uso
de
55
Castro,
Augusto
de.
Fumo
do
meu
cigarro.
Lisboa:
Empresa
Literária
Fluminense,
1916,
205.
56
Campos,
Agostinho
de
(0rg.).
Antologia
Portuguesa
–
Afonso
Lopes
Vieira.
Lisboa:
28
manhas
com
que
melhor
se
paralisa
a
educação
de
um
auditório
atrasado.’58
Neste
momento,
o
nacionalismo
estava
já
a
agir
na
queda
do
liberalismo
e
da
liberdade
de
expressão.
Em
muito
poucos
anos,
este
nacionalismo
tornar-‐se-‐á
ubíquo.
O
poder
despolitizador
do
seu
consenso
antecipou
assim
o
golpe
militar
de
1926,
feito
precisamente
para
acabar
com
as
divisões
políticas
na
sociedade
portuguesa.
Acompanhemos
o
seu
poder
de
contaminação
através
de
diferentes
formas
culturais.
A
cobertura
jornalística
de
acontecimentos
intrinsecamente
modernos,
como
a
travessia
aérea
do
Atlântico
Sul
em
1922,
ou
os
jogos
de
futebol
da
recém-‐criada
selecção
nacional,
foram
transformados
em
grandes
ocasiões
nacionalistas.
A
concorrência
entre
jornais,
por
outro
lado,
fez
com
que
os
principais
títulos
começassem
a
usar
a
divulgação
do
país
rural,
através
de
concursos
e
passatempos,
para
atrair
os
seus
leitores
urbanos.
Literariamente,
o
período
assistirá
a
algumas
conversões
ao
nacionalismo
–
a
mais
espectacular
de
todas
será
a
de
Forjaz
de
Sampaio,
que
em
1926
abandonou
a
sua
já
longa
carreira
de
escritor
maldito
para
publicar
um
patriótico
Porque
me
orgulho
de
ser
Português.
A
eficácia
do
nacionalismo,
porém,
revelar-‐se-‐á
sobretudo
nos
mecanismos
de
imagens
e
sons
da
cultura
de
massa.
Os
próprios
escritores,
como
vimos,
contribuíram
para
a
desvalorização
da
palavra
escrita
enquanto
expressão
do
povo
maioritariamente
analfabeto.
Afonso
Lopes
Vieira
dirá
várias
vezes
que
a
essência
da
língua
era
oral
e
que
a
sua
expressão
mais
autêntica
era
o
canto.
Vieira
redefiniu
o
programa
do
nacionalismo
com
a
ideia
de
‘reaportuguesar
Portugal’
e
foi
com
este
mote
que
a
maioria
dos
escritores,
artistas
e
intelectuais
tomaram
em
mãos
a
tarefa
de
preencher
as
várias
artes
com
motivos
nacionais.
O
projecto,
na
realidade,
não
era
novo.
Na
música,
por
exemplo,
há
uma
continuidade
desde
a
primeira
tentativa
de
criar
uma
ópera
portuguesa,
por
Alfredo
Keil,
com
A
Serrana,
em
1899,
até
à
iniciativa
do
Renascimento
Musical,
já
em
1924,
com
o
fim
de
definir
uma
tradição
erudita
em
Portugal.
Nas
artes
plásticas,
a
recuperação
dos
painéis
quinhentistas
de
S.
Vicente,
em
1909,
foi
uma
oportunidade
para
o
historiador
de
arte
José
de
Figueiredo
teorizar
sobre
58
Campos,
Agostinho
de.
Ler
e
Tresler.
Apontamentos
de
Linguagem
e
Literatura.
Porto:
29
uma
escola
portuguesa
de
pintura,
enquanto
o
naturalismo
pictórico
de
Silva
Porto
e
José
Malhoa
prolongava
o
imaginário
da
literatura
oitocentista.
Todo
este
esforço
encontrará,
no
entanto,
as
condições
para
uma
verdadeira
massificação
da
imagem
de
Portugal
nos
anos
vinte.
Este
momento
marca
então
um
salto
qualitativo
entre
a
atitude
mais
ou
menos
passiva
de
‘copiar
Portugal
para
os
livros’
e
a
forma
mobilizadora
de
‘reaportuguesar
Portugal’.
O
nível
de
consenso
que
o
nacionalismo
conquistou
nesse
momento
pode
ser
avaliado
na
variedade
dos
colaboradores
do
Guia
de
Portugal
dirigido
por
Raul
Proença,
cujos
numerosos
volumes
começaram
a
ser
publicados
em
1924.
Aquilino
Ribeiro,
António
Sérgio,
Afonso
Lopes
Vieira,
José
de
Figueiredo,
Teixeira
de
Pascoaes,
Júlio
Dantas
(para
referir
apenas
autores
já
mencionados
neste
capítulo),
todos
contribuíram
para
esse
levantamento
e
sistematização
histórica,
paisagística
e
patrimonial
do
país.
A
iniciativa
do
Guia
de
Portugal
sugere
a
emergência
de
uma
classe
média
que
não
só
tinha
meios
para
viajar
como,
por
ser
urbana,
precisava
de
ajuda
para
encontrar
o
que
não
conhecia.
A
ideia
de
reaportuguesar
implicava
assim
um
processo
prévio
de
desaportuguesamento.
Ou
seja,
e
mais
uma
vez,
as
causas
do
levantamento
exaustivo
dos
monumentos,
da
arquitectura,
dos
costumes
e
vestuário
das
várias
regiões
e
o
carácter
consensual
–
quase
obsessivo
–
do
valor
de
Portugal
enquanto
identidade
unificadora
devem
ser
procuradas
na
cidade
e
no
modo
como
o
seu
quotidiano
parecia
cada
vez
mais
distante
do
país
ideal
do
nacionalismo
e
na
contaminação
das
formas
de
entretenimento
urbanas
por
imaginários
estrangeiros.
5. As
imagens
autoritárias
e
as
palavras
democráticas
O
cinema
é
um
bom
exemplo
deste
processo,
onde
a
afirmação
do
nacionalismo
é
tanto
mais
dramática
quanto
maior
é
a
ameaça
externa.
No
início
dos
anos
vinte,
quando
se
inicia
a
produção
continuada
de
longas-‐metragens
de
ficção
em
Portugal,
pareceu
óbvio
que
estas
teriam
de
obedecer
a
um
género
‘tipicamente
português’59.
O
cinema
português
devia
ser
aquele
que
mostrasse
59
Sobre
o
conceito
de
cinema
tipicamente
português
e
o
início
da
industrialização
30
‘às
nações
estrangeiras
(…)
as
belezas
naturais
de
Portugal,
os
seus
monumentos
e
os
costumes
do
seu
povo
(…).’60
Trata-‐se
de
uma
faca
de
dois
gumes:
o
cinema
podia
constituir
uma
oportunidade
única
para
divulgar
o
país,
mas
era
também
um
mercado
em
crescimento
e
cada
vez
mais
aberto
à
entrada
de
imagens
estrangeiras.
A
exibição
cinematográfica
alterara-‐se
muito
desde
o
início
do
século.
O
centro
da
Lisboa
tinha
agora
grandes
salas
cuja
exuberância
arquitectónica
era
sintoma
do
carácter
moderno
da
sétima
arte
e
da
expansão
do
cinema
mudo,
bem
como
da
emergência
de
um
novo
público
cinéfilo,
entendido
e
mais
exigente,
composto
por
assalariados
dos
serviços
e
pelas
várias
classes
médias
urbanas.
A
indisciplina
das
plateias
deslocou-‐se,
nestas
circunstâncias,
do
centro
para
os
bairros
periféricos,
onde
abriram
salas
para
um
público
mais
popular
e
proletário61.
A
rádio,
por
outro
lado,
vai-‐se
popularizando
na
cultura
urbana
à
medida
que
a
qualidade
do
som
melhora
e
que
a
audição
se
expande
para
formas
colectivas
quando,
em
meados
da
década,
se
começa
a
usar
o
alto-‐falante62.
Desta
forma,
ao
lado
da
audição
privada
em
ambiente
familiar
–
nos
lares
burgueses
com
aparelho
de
rádio
próprio,
os
mesmos
onde
presumivelmente
também
havia
gramofones
e
se
ouviam
discos
–
a
transmissão
radiofónica
levou
a
música
gravada
às
camadas
populares.
A
popularidade
rapidamente
conquistada
pelo
Rádio
Clube
Português,
criado
em
1921,
convivia
entretanto
com
a
recepção
e
audição
de
emissores
estrangeiros.
Rádio
e
cinema
geram
assim
dois
tipos
de
cruzamento
cultural:
em
primeiro
lugar,
a
proliferação
de
diferentes
formas
de
audição
radiofónica
–
e
em
ficcional
mudo
em
Portugal
no
início
dos
anos
vinte.
Dissertação
de
mestrado,
Faculdade
de
Ciências
Sociais
e
Humanas
da
Universidade
Nova
de
Lisboa,
2003.
60
Palavras
de
Virgínia
de
Castro
e
Almeida,
directora
de
uma
produtora
significado
social,
cf.
Baptista,
Tiago.
“Cinemas
de
estreia
e
cinemas
de
bairro
em
Lisboa
(1924-‐1932)”,
in
Ler
História,
52,
2007.
62
Este
foi,
segundo
Manuel
Deniz
Silva,
a
tranformação
sociológica
mais
importante
da
década
em
termos
de
audição
musical.
Silva,
Manuel
Deniz.
“La
musique
a
besoin
d’une
dictature”:
musique
et
politique
dans
les
premières
années
de
l’Etat
nouveau
portugais,
Thése
de
Doctorat,
Université
Paris
8,
2005,
332.
Neste
capítulo,
seguimos
de
perto
a
investigação
de
Manuel
Deniz
Silva
sobre
a
difusão
radiofónica
e
associativismo
musical
nos
anos
vinte.
31
particular
dos
discos
aí
transmitidos
–
bem
como
a
circulação
de
cópias
dos
mesmos
filmes
tanto
nos
cinemas
do
centro
da
cidade
como
nos
dos
bairros
periféricos,
permitem
uma
experiência
interclassista
única;
em
segundo
lugar,
a
facilidade
de
acesso
à
audição
de
música
estrangeira
bem
como
a
circulação
de
filmes
importados
dão
ao
público
português
um
contacto
com
imagens
de
outros
países
e
sons
noutras
línguas
que
constituem
uma
abertura
inédita
ao
resto
do
mundo.
Esta
permeabilidade
a
gestos,
ritmos
e
formas
de
viver
distantes
–
e
portanto
cada
vez
menos
exóticas
–
é
também
visível
na
forma
com
que
o
noticiário
jornalístico
reflecte
o
progresso
tecnológico
das
telecomunicações.
O
ritmo
cada
vez
mais
intenso
da
circulação
de
mensagens
telegráficas
e
radiofónicas
permite
ao
leitor
aceder
a
notícias
do
mundo
inteiro
–
as
agências
noticiosas
instaladas
em
Portugal
garantiam
fácil
acesso
a
uma
rede
global
de
informação
–
e,
cada
vez
mais,
ver
os
acontecimentos
reproduzidos
fotograficamente.
Nesta
altura,
a
imprensa
é
ainda
o
centro
organizador
da
vida
pública.
A
propriedade
dos
títulos
mais
vendidos
–
e
o
controle
das
respectivas
linhas
editoriais
–
como
O
Século
e
o
Diário
de
Notícias,
torna-‐se
alvo
de
disputa
por
parte
de
vários
interesses
políticos
e
económicos.
São
por
outro
lado
estes
jornais
que
em
boa
medida
dinamizam
a
emergência
dos
outros
fenómenos
culturais:
a
criação
de
revistas
ilustradas
sobre
cinema,
desporto
e
rádio
ligadas
às
grandes
empresas
jornalísticas
mostra
como
dificilmente
haveria
fenómeno
no
campo
cultural
que
escapasse
ao
alcance
da
imprensa.
Todas
estas
actividades
–
jornalismo,
rádio,
cinema,
sem
esquecer
o
teatro,
cuja
importância
não
mudara
–
implicavam,
por
sua
vez,
uma
mão-‐de-‐obra
cada
vez
mais
especializada.
Um
dos
índices
mais
reveladores
do
crescimento
das
indústrias
culturais
foi
o
associativismo.
De
facto,
quase
todas
as
associações
mais
ou
menos
informais
que
organizavam
as
várias
comunidades
profissionais
do
mundo
cultural,
foram
transformadas
ao
longo
dos
anos
vinte
em
associações
sindicais
propriamente
ditas.
A
criação
da
Associação
de
Classe
dos
Trabalhadores
do
Teatro
e
do
Sindicato
dos
Profissionais
da
Imprensa
de
Lisboa
é
o
reconhecimento
de
que
tanto
teatro
como
jornalismo
tinham
classes
específicas,
com
empregos
permanentes
e
interesses
distintos.
Simultaneamente,
o
nascimento
da
Sociedade
de
Escritores
32
e
Compositores
Teatrais
Portugueses
(precursora
da
Sociedade
Portuguesa
de
Autores),
revela
como
no
interior
de
cada
actividade
havia
que
traçar
uma
linha
entre
os
assalariados
que
viviam
o
quotidiano
dos
teatros
e
das
redacções
dos
jornais
e
os
autores
–
dramaturgos
e
folhetinistas
–
propriamente
ditos
que,
dado
o
crescimento
do
mercado,
podiam
já
viver
dos
seus
direitos
autorais.
É
importante
sublinhar
como
as
questões
profissionais
se
relacionam
directamente
com
os
progressos
tecnológicos.
Os
músicos,
por
exemplo,
reagiram
inicialmente
com
preocupação
ao
advento
da
‘música
mecânica’:
a
presença
de
aparelhos
de
rádio
em
lugares
públicos
como
cafés
e
restaurantes
onde
antes
havia
pequenas
orquestras,
o
fim
do
cinema
mudo
e
o
consequente
desaparecimento
de
acompanhamento
musical
nas
salas
de
cinema,
ou
as
ameaças
da
radiodifusão
à
propriedade
intelectual,
surgiam
como
ameaças
a
profissões
que,
assim,
tiveram
também
de
se
organizar.
O
impacto
da
tecnologia
na
cultura
fez-‐se
sentir
ainda
na
criação
literária.
A
proliferação
de
magazines
ilustrados
e
a
generalização
da
reportagem
como
género
jornalístico
fez
da
imprensa
o
espaço
de
um
processo
de
banalização
do
modernismo
no
gosto
médio
do
público
leitor.
Em
poucos
anos,
o
poder
de
choque
dos
manifestos
de
Almada
Negreiros
e
Álvaro
de
Campos
perdera-‐se
irremediavelmente
através
de
reportagens
e
ficção
sobre
aviões
e
aviadores,
crimes
violentos
e
transgressões
nocturnas
(a
droga
e
o
sexo),
temas
simultaneamente
próximos
do
imaginário
jornalístico
e
de
uma
imagem
estereotipada
da
vida
moderna.
Jornalistas
modernistas
como
Reinaldo
Ferreira
e
as
suas
reportagens
ficcionadas
(assinadas
como
Repórter
X),
ou
João
Ameal,
com
romances
futuristas
sobre
aviação
e
clubes
nocturnos,
ganharam
notoriedade.
A
primeira
figura
deste
modernismo
banal
foi
António
Ferro,
jovem
companheiro
dos
modernistas
de
Orpheu
e
que
em
1922
procurou
definir
a
época
num
texto
intitulado
A
Idade
do
Jazz-‐Band.
Ao
contrário
do
que
à
primeira
vista
possa
parecer,
o
jazz-‐band
era
aqui
menos
um
género
musical
do
que
uma
dança.
O
período
surgia
assim
como
um
tempo
cuja
banda
sonora
eram
os
novos
ritmos
oriundos
da
cultura
norte-‐americana
(e
que
Portugal
conhecera
pela
rádio)
mas
sobretudo
como
uma
época
de
movimento
que,
nesse
sentido,
tinha
uma
qualidade
fílmica
que
só
o
cinema
podia
exprimir:
33
Dançar
é
viver
em
movimento,
em
vertigem,
dançar
é
multiplicar-‐se,
é
ter
um
corpo
em
cada
gesto
e
em
cada
frase,
é
fecundar-‐se
a
si
próprio,
gerar
imagens
da
própria
imagem,
desenvolver-‐se
como
um
filme,
ser
écran,
ser
intérprete
e
ser
o
drama…63
Se
o
mundo
moderno
se
desenvolvia
como
um
filme,
os
escritores
tinham
de
acompanhá-‐lo.
O
cinema
torna-‐se
assim
o
horizonte
da
literatura,
e
nas
suas
insistentes
metáforas,
os
novos
modernistas
não
se
cansarão
de
repetir
que
o
repórter
se
move
e
capta
a
realidade
como
uma
câmara,
que
a
reportagem
é
um
filme
e
que
o
jornal,
ou
o
magazine,
é
um
ecrã.
Ferro
pode
assim
surgir
como
‘um
cartaz
espantando
a
multidão’64
–
enquanto
João
Ameal
era
dado
a
ver
como
‘operador
cinematográfico’65
–
e
dizer,
a
propósito
da
Ilustração
Portuguesa
de
que
se
torna
director
em
1921,
que
‘o
‘magazine’
tem
grandes
afinidades
com
o
cinema’,
uma
vez
que
‘o
papel
“couché”
é
o
“ecran”
dos
‘magazines’66.
A
submissão
da
literatura
às
formas
mecânicas
das
imagens
e
dos
sons
não
poderia
deixar
de
provocar
reacções
entre
alguns
escritores
mais
velhos.
Em
Julho
de
1926,
dois
meses
após
o
golpe
militar
que
derrubou
a
República,
Aquilino
Ribeiro
considerou
que
‘uma
vaga
de
loucura
vai
varrendo
o
mundo’,
não
porque
os
militares
tivessem
usurpado
o
poder
a
políticos
eleitos,
mas
porque
a
cultura
fora
invadida
por
essas
mesmas
formas
de
imagem
e
movimento
–
e
o
corpo
a
elas
associado
–
celebradas
por
António
Ferro:
o
cinema,
o
jazz-‐band,
‘as
danças,
o
foot-‐ball,
vieram
na
mesma
rajada
de
insânia
e
desvairamento.’67
A
revolta
dos
escritores
contra
a
idade
do
jazz-‐band
era
ainda
mais
uma
forma
da
reacção
da
elite
intelectual
contra
a
indisciplina
dos
públicos.
No
momento
em
que
a
liberdade
de
expressão
estava
prestes
a
ser
eliminada,
escritores
como
Aquilino
Ribeiro
pareciam
estar
mais
preocupados
com
a
cultura
de
massa
do
que
com
a
ditadura
militar.
Isto
ajuda-‐nos
a
situar
melhor
o
papel
do
consenso
nacionalista.
Na
passagem
da
primeira
para
a
segunda
metade
dos
anos
vinte,
a
63
in
Ferro,
António,
Obras
de:
António
Ferro,
Lisboa:
Verbo,
1987,
p.
206
64
in
Idem,
20.
65
António
Ferro,
‘Crónica
Literária’,
in
Diário
de
Lisboa,
25-‐6-‐21,
2.
66
[António
Ferro],
“A
Entrevista
da
Semana
–
a
‘Ilustração
Portuguesa’
Entrevista
a
34
geração
de
António
Ferro
decide
dar
provas
de
amadurecimento,
abandonar
os
excessos
modernistas
e
pôr
a
sua
energia
ao
serviço
do
nacionalismo.
Nem
todos
escolheram
a
mesma
forma
de
o
fazer,
mas
é
isso
precisamente
que
mostra
que
naquele
momento
a
divisão
decisiva
no
interior
da
cultura
não
era
entre
nacionalistas
e
republicanos,
mas
sobre
a
forma
mais
eficaz
–
a
palavra
escrita
ou
as
imagens
e
os
sons
–
de
servir
a
mesma
causa.
Em
1928,
Leitão
de
Barros,
outro
jornalista
–
e
cineasta
–
próximo
do
modernismo,
tomou
a
direcção
do
magazine
Notícias
Ilustrado
com
a
missão
de
‘inventar
um
jornal,
um
publico,
uma
sociedade,
um
país!’
Quando
escreveu
a
João
Ameal
pedindo
colaboração,
esclareceu
‘não
há
quem
leia
–
e
há
pouco
quem
escreva.
(…)
Não
é
preciso
ler:
basta
ver
e
ouvir.’68
A
reacção
de
Ameal
foi
uma
defesa
apaixonada
da
ordem
da
palavra
escrita
ameaçada
pelas
imagens:
Eu
creio
no
Espírito.
Acho
inadmissível
que
o
Espírito
seja
assim
destronado
–
pela
Maquina…
(…)
num
tempo
talvez
não
muito
longínquo,
todos
os
operários
trabalharão
mecanicamente,
ou
serão
mesmo
substituídos
pelo
mecanismo
–
excepto
um:
o
operário
das
letras.
E
suponho
até
que,
nesse
dia
da
mecanização
universal,
o
escritor
poderá
dominar,
por
um
justo
direito,
o
mundo
materializado
que
o
cerca
–
dominá-‐lo,
em
nome
da
supremacia
da
Inteligência.69
A
crise
das
palavras
chegava
aqui
a
uma
encruzilhada.
A
diferença
dos
percursos
de
António
Ferro,
Leitão
de
Barros
e
João
Ameal
ao
longo
da
década
de
trinta,
que
de
seguida
se
sintetiza,
representa
bem
a
balança
de
poder
das
várias
formas
culturais
no
momento
em
que
é
criado
o
Estado
Novo,
bem
como
a
prioridade
dada
ao
controle
das
imagens
e
dos
sons
pelo
nacionalismo
salazarista.
João
Ameal,
empenhado
ainda
nas
formas
de
poder
clássicas
baseadas
em
doutrinas
escritas,
dedica-‐se
à
divulgação
e
apologia
do
fascismo.
Será
ele
o
autor
do
decálogo
oficial
da
ditadura,
directamente
inspirado
no
decálogo
fascista
italiano.
Nunca
deixando
de
ocupar
uma
posição
destacada
no
campo
nacionalista,
afastar-‐se-‐á
progressivamente
da
notoriedade
pública
e
do
poder.
68
“Cartas
de
Leitão
de
Barros”,
30-‐1-‐29,
Espólio
Literário
de
João
Ameal,
Biblioteca
35
Leitão
de
Barros,
por
sua
vez,
tornar-‐se-‐á
um
dos
principais
cineastas
do
período,
com
uma
obra
representativa
dos
vários
compromissos
do
salazarismo
com
a
indústria
cinematográfica.
Neste
sentido,
foi
autor
de
adaptações
literárias
e
filmes
históricos
como
A
Severa
(primeiro
filme
falado
português,
baseado
na
peça
de
Júlio
Dantas),
As
Pupilas
do
Senhor
Reitor
(1935)
e
Bocage
(1936),
tendo
também
experimentado
a
comédia
popular,
com
Maria
Papoila
(1937),
e
o
filme
de
propaganda.
António
Ferro
passou
de
primeira
figura
do
jornalismo
modernista
dos
anos
vinte
a
líder
da
propaganda
nacionalista
nos
anos
trinta.
Em
1932,
fará
uma
série
de
entrevistas
com
António
de
Oliveira
Salazar,
recentemente
nomeado
chefe
do
governo.
A
dado
passo
da
entrevista,
insiste
com
o
ditador
quanto
à
necessidade
de
aproveitar
a
energia
dos
trabalhadores
intelectuais
da
sua
geração
–
a
mão-‐
de-‐obra
especializada
nas
profissões
técnicas
ligadas
às
indústrias
culturais
–
para
dar
forma
à
estética
do
salazarismo.
Salazar,
ciente
da
importância
da
informação
e
propaganda,
não
ficou
indiferente
ao
repto
de
Ferro
e
nomeou-‐o
director
do
Secretariado
de
Propaganda
Nacional
(SPN)
em
1933.
Ferro
concebeu
então
o
plano
de
uma
Política
do
Espírito
que
pode
ser
vista
como
o
ponto
de
chegada
do
processo
de
reaportuguesamento
cultural.
Os
mesmos
mecanismos
da
cultura
de
massa
que
haviam
contribuído
para
a
desnacionalização
dos
públicos
urbanos
seriam
agora
preenchidos
de
conteúdos
nacionalistas.
Para
tal,
o
SPN
controlou
vastos
sectores
da
vida
cultural:
associou-‐se
a
todo
o
conjunto
de
instituições
ligadas
ao
saber
e
à
criação,
desde
as
mais
pequenas
associações
recreativas
até
às
indústrias
do
cinema,
a
rádio
e
o
turismo.
Formou,
por
outro
lado,
uma
frente
ideológica
com
outras
organizações
de
controle
social
e
de
perfil
fascizante
então
criadas,
como
a
Federação
Nacional
para
a
Alegria
no
Trabalho
e
a
Mocidade
Portuguesa70.
Como
resultado,
a
Política
do
Espírito
tornar-‐se-‐á
numa
enorme
máquina
de
produzir
identidade
nacional,
arbitrando
o
gosto
e
classificando
espectáculos
–
ou
seja,
definindo
o
que
era
nacionalista
e
o
que
era
desnacionalizador
–,
estabelecendo
o
que
devia
ser
70
Sobre
a
institucionalização,
funcionamento
e
alcance
do
Secretariado
de
Propaganda
Nacional,
cf.
Ó,
Jorge
Ramos
do.
Os
Anos
de
Ferro.
O
dispositivo
cultural
durante
a
“Política
do
Espírito”
(1933-‐1949).
Lisboa:
Editorial
Estampa,
1999.
36
‘tipicamente
português’
no
cinema,
no
teatro,
na
música,
na
pintura,
e
procurando
ainda
restaurar
tradições
populares
e
folclóricas.
A
propaganda
foi
assim
uma
produção
urbana
imposta
sobre
motivos
essencialmente
rurais
e
para
consumo
ou
das
classes
médias
e
proletariado
citadinos
–
a
quem
se
mostrava,
desta
forma,
que
não
eram
eles
os
verdadeiros
portugueses
–
ou
de
um
potencial
mercado
turístico
internacional
–
a
quem
era
oferecida
a
oportunidade
de
ver
um
país
intacto
e
pacífico
(enquanto
o
resto
da
Europa
mergulhava
na
guerra).
A
imagem
de
Portugal
que
daqui
resultou
foi
uma
superfície
simultaneamente
moderna
e
estereotipada.
O
momento-‐síntese
deste
processo
foi
a
Exposição
do
Mundo
Português
montada
em
Lisboa
em
1940.
Uma
ideia
original
de
Alberto
de
Oliveira,
comissariada
por
Augusto
de
Castro
e
com
a
colaboração
de
homens
como
Júlio
Dantas,
António
Ferro
e
Leitão
de
Barros,
articulou
o
arrojo
cénico
do
espaço
e
arquitectónico
dos
pavilhões
com
os
conteúdos
tradicionais
do
Portugal
histórico
e
rural.
Apesar
da
impressionante
eficácia
da
imagem
folclórica
e
da
narrativa
histórica
da
propaganda,
António
Ferro
não
logrou
submeter
todo
o
campo
cultural.
O
êxito
da
acção
do
SPN
foi
tanto
maior
quanto
mais
próximo
esteve
da
noção
de
espectáculo
e
sob
o
signo
da
visibilidade
–
a
festa
e
a
exibição,
o
cartaz
e
o
edifício
–
falhando,
porém,
quase
totalmente,
no
campo
da
palavra
escrita:
os
principais
movimentos
intelectuais
e
correntes
literárias
mantiveram-‐se
hostis
à
propaganda
do
nacionalismo.
Esses
escritores
e
intelectuais
serão,
para
o
mesmo
Ferro
que
havia
escrito
A
Idade
do
Jazz-‐Band,
os
autores
de
um
‘diabolismo
dissolvente’,
do
‘amoralismo
e
morbidez’
que
‘sujam
a
arte’,
e
para
quem
o
director
do
SPN
reserva
um
tom
belicista
que
recorda
ainda,
mas
apenas
na
forma,
as
guerras
do
futurismo
de
1917,
quando
decidiu
‘declarar
guerra
publicamente
aos
déspotas
da
liberdade
do
pensamento,
aos
intelectuais
“livres”
(…),
aos
defensores
do
homem
gidiano,
do
homem-‐
terramoto,
Narcisos
da
democracia,
envenenadores
do
Mundo!’71
Para
esses
ficaria,
e
por
várias
décadas,
reservada
a
censura
e
um
apertado
controle
policial.
O
domínio
desta
combinação
entre
nacionalismo,
indústrias
71
In
idem,
121.
37
culturais
e
autoritarismo
político
determinou
assim
negativamente
a
posição
das
letras
no
campo
cultural.
Perante
as
ameaças
à
liberdade
de
pensamento
e
autonomia
da
criação,
a
parte
do
campo
cultural
português
que,
à
esquerda,
procurou
ficar
à
margem
do
nacionalismo,
foi
relegada
para
uma
situação
de
resistência
(nesse
sentido
já
distante
de
projectos
preenchidos
de
carga
utópica
como
o
republicanismo
e
a
Renascença
Portuguesa).
Logo
em
1921,
o
nascimento
de
mais
um
grupo
intelectual
em
torno
de
uma
revista,
a
Seara
Nova,
pode
ser
visto
como
uma
primeira
manifestação
deste
recuo.
É
verdade
que
naquele
momento
a
ditadura
–
e
a
sua
censura
–
ainda
vinha
longe,
mas
os
outros
elementos
da
combinação,
o
nacionalismo
e
a
cultura
de
massa,
estavam
já
bem
presentes.
Pela
escrita
dos
seus
intelectuais
mais
combativos
–
António
Sérgio
e
Raul
Proença
do
grupo
de
Lisboa
da
Renascença
Portuguesa,
–,
a
Seara
Nova
procurará
constituir-‐se
como
a
consciência
crítica
da
nação.
Curiosamente,
o
seu
primeiro
alvo
pareceu
estar
bastante
próximo
do
dos
intelectuais
nacionalistas
do
Integralismo
Lusitano:
a
degradação
da
vida
política
republicana.
Esta
frente
de
regeneração
política
deu
aliás
lugar
a
uma
efémera
mas
significativa
colaboração
entre
seareiros
e
integralistas
na
revista
Homens
Livres
–
‘livres’
do
efeito
corruptor
dos
interesses
políticos
e
económicos
–
onde
se
juntaram
as
várias
dezenas
de
homens
que
compunham
a
elite
intelectual
(os
mesmos,
sensivelmente,
que
pela
mesma
altura
procediam
ao
levantamento
histórico-‐patrimonial
do
Guia
de
Portugal).
A
ideia,
segundo
Sérgio,
era
que
juntos
representavam
uma
forma
de
política
‘nova’
porque
eram
todos
pensadores
–
com
se
a
ética
intelectual,
por
si
só,
estivesse
acima
de
qualquer
suspeita.
A
ideia
que
intelectuais
de
esquerda
e
de
direita
podiam
juntar-‐se
pairando
sobre
os
interesses
menores
da
vida
material
é
ainda
mais
um
sinal
da
formação
do
consenso
nacionalista.
Porque
o
que
aqui
estava
em
causa
era
um
entendimento
idealista
de
nação
intelectual
que
fazia
prevalecer
a
noção
de
elite
sobre
as
divisões
ideológicas
e
políticas
propriamente
ditas.
Cedo,
porém,
os
seareiros
perceberam
que
o
nacionalismo
não
era
uma
doutrina
como
as
outras:
a
natureza
do
seu
objecto
pressupunha
sempre
uma
indiscutibilidade
em
relação
ao
que
é
português,
e
por
isso
o
fim
do
debate
e
da
interrogação
intelectuais.
38
Raul
Proença
e
António
Sérgio
passarão,
a
certa
altura,
a
fazer
uma
crítica
cerrada
aos
nacionalismo,
o
primeiro
procurando
desconstruir
a
doutrina
do
Integralismo,
o
segundo
vigiando
as
iniciativas
literárias
com
que
se
ia
tecendo
o
sistema
nacionalista.
Quando
a
República
cai
e
as
águas
se
separam
definitivamente,
torna-‐se
claro
para
Sérgio
que
a
incomunicabilidade
por
ele
apontada
na
polémica
com
Teixeira
de
Pascoaes
não
só
não
fora
superada,
como
se
radicalizara
no
confronto
entre
‘um
actual
sector
de
tendência
católica,
conservadora,
neo-‐escolástica,
fascistóide,
nacionalista,
tradicionalista’,
e
o
‘espírito
de
livre-‐pensamento,
de
universalismo,
de
humanismo
crítico,
de
amor
da
Liberdade
intelectual
e
cívica,
de
democracia
política
e
social.’72
A
progressiva
articulação
entre
a
geração
neo-‐garrettista
e
os
jovens
jornalistas
modernistas
ajuda
a
situar,
por
outro
lado,
a
criação
da
revista
presença,
em
1927,
neste
mesmo
processo
de
refluxo
dos
que
estavam
à
margem
da
hegemonia
nacionalista.
Criada
por
escritores
e
críticos
como
José
Régio,
João
Gaspar
Simões
e
Adolfo
Casais
Monteiro,
a
presença
é
normalmente
entendida
como
o
segundo
momento
do
modernismo
português.
Terá
sido,
nesse
sentido,
a
hora
dos
críticos,
depois
da
intensa
criatividade
e
ruptura
de
Orpheu
e
Portugal
Futurista.
Mais
do
que
as
obras
literárias,
estes
autores
notabilizar-‐se-‐iam,
assim,
pela
divulgação
da
primeira
geração
modernista.
A
presença
foi
isso,
mas
entendê-‐la
como
segundo
modernismo
pressupõe
ignorar
toda
a
efervescência
do
modernismo
jornalístico
da
década
de
vinte
quando
a
maior
parte
do
público
se
familiarizou
com
uma
estética
moderna
onde
pôde
reconhecer
um
século
XX
feito
de
jazz-‐band,
aviões
e
cinema.
Pode
então
sugerir-‐se
que
a
crítica
erudita
dos
escritores
da
presença,
bem
como
a
sua
intransigente
defesa
da
autonomia
da
arte,
foi
ainda
mais
um
caso
de
reacção
contra
a
banalização
modernista
pela
cultura
de
massa,
reacção
dramatizada
quando
o
nacionalismo
passou
a
ser
o
objecto
mais
visível
desse
processo.
Sintetizada
na
expressão
de
Casais
Monteiro
‘a
arte
é,
não
serve’73,
o
ideal
estético
presencista
reagiu
ainda
contra
outro
fenómeno:
o
da
literatura
72
Sérgio,
António,
“Sobre
as
correntes
inclusas
na
‘Renascença
Portuguesa’
e
seu
destino”,
in
Jaime
Cortesão/Raul
Proença.
Catálogo
da
Exposição
Comemorativa
do
Primeiro
Centenário
(1884-‐1984),
Lisboa,
Ministério
da
Cultura,
Biblioteca
Nacional,
1985,
53.
73
Monteiro,
Adolfo
Casais.
De
Pés
Fincados
na
Terra.
Lisboa:
INCM,
2006,
35.
39
militante
de
inspiração
anarquista,
primeiro,
e
marxista,
depois,
que
se
desenvolveu
ao
longo
das
décadas
de
vinte
e
trinta.
A
criação
do
suplemento
literário
do
diário
A
Batalha,
órgão
da
Confederação
Geral
dos
Trabalhadores,
em
1923,
é
apenas
um
dos
momentos
mais
visíveis
da
intensa
actividade
cultural
–
sobretudo
teatral
–
no
interior
do
movimento
operário.
Também
aqui
pontuavam
os
jornalistas
que
cultivarão
um
género
realista
de
denúncia
da
opressão
e
exposição
da
pobreza.
De
todos,
o
único
autor
a
conquistar
um
sucesso
literário
relevante
foi
Ferreira
de
Castro
(que
começara
com
um
estilo
próximo
do
jornalismo
modernista
de
António
Ferro),
sobretudo
a
partir
de
A
Selva,
de
1927,
baseado
na
sua
própria
experiência
laboral
como
trabalhador
emigrante
na
selva
amazónica.
A
acção
do
grupo,
porém,
ia
muito
para
além
da
criação:
colaboraram
em
jornais
e
criaram
revistas,
militaram
no
sindicalismo
jornalístico,
mobilizaram
campanhas
de
esclarecimento.
Com
o
fim
da
república
e
o
endurecimento
das
condições
ditatoriais
vão
ser
eles
os
principais
fundadores
de
uma
nova
noção
de
cultura,
entendida
já
não
tanto
como
um
conjunto
díspar
de
criações
do
campo
artístico,
literário
e
filosófico,
mas
um
espaço
de
resistência
e
emancipação
intelectual.
Na
passagem
para
os
anos
trinta,
este
activismo
levará
ao
acontecimento
cultural
mais
decisivo
desde
a
hegemonização
do
nacionalismo:
a
recepção
do
marxismo.
Os
primeiros
sinais
da
penetração
do
materialismo
histórico
foram
dados
numa
polémica
no
interior
da
Seara
Nova,
entre
o
então
jovem
José
Rodrigues
Miguéis
e
António
Sérgio,
bem
como
pela
acção
de
Bento
de
Jesus
Caraça
na
interior
da
Universidade
Popular
Portuguesa.
Ambos
os
momentos
devem
ser
vistos
na
sua
reciprocidade:
na
versão
marxista
de
Caraça,
a
iniciativa
das
Universidades
Populares
(que
em
Portugal
tinha
tido
várias
versões
desde
o
século
XIX)
pressupunha
uma
emancipação
baseada
na
‘Cultura
integral
do
indivíduo’74,
ou
seja,
simultaneamente
política
e
intelectual,
que
coincidia
com
o
materialismo
que
Rodrigues
Miguéis
opôs
ao
idealismo
de
António
Sérgio,
ao
defender
que
o
dever
dos
intelectuais
74
Título
de
uma
conferência
pronunciada
por
Bento
de
Jesus
Caraça,
in
Conferências
e
40
‘é
passar
das
afirmações
doutrinais
à
acção,
dos
métodos
expositivos,
da
controvérsia
lógica,
para
a
dialéctica
da
organização
e
para
própria
organização;
das
camarilhas,
tertúlias
e
academias
para
a
atmosfera
acre
e
fértil
das
massas
populares.’75
O
modo
como
o
marxismo
emerge
no
espaço
público
dos
anos
trinta
mostra
que
formas
podia
tomar
essa
‘organização’.
Munidos
de
uma
teoria
da
prática
que
os
orienta,
simultaneamente,
para
explicar
e
agir
sobre
o
mundo,
os
jovens
comunistas
vão
entrar
em
cena
num
momento
de
enorme
dramatismo
político
com
a
vitória
do
fascismo
em
Portugal
e
Espanha
bem
como
no
contexto
internacional
de
escalada
para
a
guerra
europeia
–
enquanto
a
União
Soviética
representava
o
único
horizonte
de
esperança.
A
resposta
às
circunstâncias
tomou
dois
tipos
de
forma:
a
militância
em
organizações
como
o
Socorro
Vermelho
Internacional,
a
Liga
contra
a
Guerra
e
contra
o
Fascismo,
a
Federação
das
Juventudes
Comunistas
ou
o
próprio
Partido
Comunista;
a
intervenção
em
jornais
e
revistas,
sobretudo
de
cariz
literário
e
cultural.
Foi
por
estes
títulos
que
alguns
jovens
marxistas
começaram,
na
segunda
metade
da
década,
a
lançar
as
sementes
do
que
se
viria
a
tornar
o
movimento
literário
dominante
das
décadas
seguintes:
o
neo-‐realismo76.
As
primeiras
obras
do
neo-‐realismo
foram
publicadas
à
entrada
da
década
de
quarenta,
já
portanto
fora
do
alcance
cronológico
deste
volume.
É
no
entanto
interessante
notar
que
ainda
antes
dos
seus
poemas,
contos
e
romances,
o
neo-‐
realismo
foi
uma
ideia,
um
plano
de
criar
uma
literatura
atenta
ao
mundo
(oposta
ao
ensimesmamento
presencista)
mas
que
fosse
também
capaz
de
reproduzir
as
contradições
do
real
(a
luta
de
classes)
na
própria
estrutura
da
narrativa
–
ao
contrário
da
passividade
perante
a
miséria
e
opressão
no
realismo
anarquista.
A
decidida
politização
dos
marxistas
conduzirá
a
acesas
polémicas
com
António
Sérgio
e
José
Régio.
Ambos,
o
primeiro
no
campo
ideológico,
o
segundo
no
da
estética,
reagirão
como
tinham
feito
com
os
nacionalistas:
criticando
o
uso
75
In
Amaro,
António
Rafael.
A
Seara
Nova
nos
anos
vinte
e
trinta
(1921-‐1939):
memória,
41
das
ideias
ao
serviço
de
projectos
políticos
ou
da
criação
artística
em
nome
de
um
ideal.
Os
neo-‐realistas,
por
sua
vez,
acusaram
seareiros
e
presencistas
de
demissionismo.
O
fascismo
era
para
eles
o
horizonte
inescapável
dos
tempos,
e
o
combate
à
Política
do
Espírito
exigia
por
isso
nada
menos
do
que
uma
contra-‐
narrativa,
a
do
comunismo,
para
combater
em
todos
os
domínios
a
tendência
totalizante
do
nacionalismo.
6. Conclusão:
a
canção
de
Lisboa
Como
procurámos
ver
desde
o
início,
por
detrás
das
lutas
ideológicas
e
literárias
pela
definição
de
Portugal,
a
circulação
e
consumo
de
produtos
culturais
obedeceu
a
contingências
sociais
e
tecnológicas:
o
crescimento
dos
públicos
urbanos
e
a
mecanização
das
imagens
e
dos
sons.
Neste
sentido,
nos
anos
trinta,
enquanto
os
intelectuais
lutavam,
ora
por
mobilizar
o
povo
para
a
emancipação,
ora
para
preservar
a
autonomia
da
arte
e
do
pensamento,
ora
para
silenciar
todos
os
outros
sob
o
consenso
nacionalista,
o
público
estava
provavelmente
mais
interessado
noutras
formas
que
não
a
do
realismo
marxista,
a
do
modernismo
presencista
ou
a
do
fascismo
salazarista.
Este
público
estava,
como
sempre,
onde
estavam
as
imagens,
os
sons,
e
também
as
palavras
reproduzidas
mecanicamente,
ou
seja,
e
cada
vez
mais,
em
frente
a
um
ecrã
de
cinema,
em
torno
de
um
aparelho
de
rádio,
ou
com
um
jornal
nas
mãos.
O
seu
horizonte
de
expectativas
não
estava
circunscrito
ao
Portugal
definido
pelos
seus
intelectuais
e
artistas,
indo
antes
até
qualquer
lugar
de
onde
chegassem
notícias
por
telegrama,
rodeado
de
canções
noutras
línguas
e
preenchido
por
imagens,
entretanto
familiares,
produzidas
pelas
grandes
indústrias
cinematográficas,
sobretudo
a
de
Hollywood.
As
indústrias
culturais
portuguesas,
por
outro
lado,
estavam
no
mercado
e
tinham
de
responder
a
uma
procura
fortemente
condicionada
pela
oferta
de
produtos
estrangeiros.
Não
é
assim
de
estranhar
que
os
objectos
culturais
mais
populares
estivessem
ainda,
apesar
da
propaganda
e
censura
ditatoriais,
onde
sempre
tinham
estado:
nas
formas
de
entretenimento
ligadas
aos
espectáculos
urbanos,
nomeadamente
o
fado,
omnipresente
dos
palcos
à
rádio,
bem
como
o
próprio
teatro
onde
o
fado
se
cantava,
e
sobretudo
as
comédias
e
revistas
que,
a
42
partir
da
década
de
trinta,
serão
alvo
de
adaptações
cinematográficas
que
alargam
ainda
mais
a
sua
popularidade.
O
significado
político
do
fado
e
da
comédia
podem
ajudar-‐nos
a
concluir
este
texto
no
cruzamento
entre
produção
cultural
e
os
seus
públicos
e
entre
cultura
portuguesa
e
cultura
estrangeira.
Tradicionalmente,
a
esquerda
hostilizou
o
fado
e
as
comédias
cinematográficas,
vistas
ambas
como
formas
da
ideologia
salazarista,
ou
pelo
menos
distracções
alienantes.
E,
no
entanto,
o
regime
também
desconfiou
sempre
de
ambas.
Em
primeiro
lugar,
e
especialmente
o
fado,
por
veicularem
uma
imagem
derrotista
da
identidade
portuguesa,
mas
também,
como
à
esquerda,
por
não
passarem
de
entretenimentos
menores.
A
ditadura
terá
um
forte
impacto
sobre
o
fado
e
a
comédia,
neutralizando
em
ambas
tanto
o
interdito
sexual
como
político
com
que
das
tabernas
aos
palcos,
mas
menos
em
discos
e
filmes,
se
tinha
construído
a
sua
imagem
de
marca.
Nos
anos
trinta,
os
dois
géneros
sofrerão
evoluções
muito
semelhantes,
emergindo
ambos
como
as
formas
da
indústria
cultural
portuguesa
mais
competitivas
no
mercado
da
cultura
de
massa,
e
perdendo
pelo
caminho,
pela
acção
combinada
da
censura
ditatorial
e
da
censura
do
mercado,
os
aspectos
mais
provocatórios
da
cultura
urbana
lisboeta.
A
industrialização
do
fado
rodeá-‐lo-‐á
de
um
aparato
estereotipado
tanto
nos
locais
onde
é
tocado
–
as
casas
de
fado
por
onde
Lisboa
se
vai
tornando
uma
atracção
turística
–
como
no
conteúdo
das
suas
letras,
cada
vez
mais
exclusivamente
sobre
a
cidade,
o
País,
bem
como
a
própria
identidade
fadista.
O
seu
êxito
torna-‐se
entretanto
irresistível
pelo
desenvolvimento
do
mercado
discográfico
e
pela
rádio
–
a
própria
Emissora
Nacional
criada
pelo
Estado
Novo
terá
de
aceitar
transigir,
em
nome
das
audiências,
com
o
gosto
dominante.
A
produção
continuada
de
longas-‐metragens
de
ficção,
por
outro
lado,
organizou-‐se
sobretudo
em
torno
da
delegação
portuguesa
da
Tobis
Klangfilm
alemã,
criada
em
1932.
Os
anos
trinta
serão
um
período
de
definição,
em
que
o
cinema
falado
vai
experimentando,
através
de
vários
géneros,
um
compromisso
entre
a
política
oficial
e
as
preferências
dos
espectadores.
Entre
alguns
poucos
filmes
de
propaganda
e
os
dramas
históricos
e
adaptações
literárias
próximos
do
imaginário
da
Política
do
Espírito,
foram
as
comédias
que
gozaram
de
maior
notoriedade
e
continuidade.
43
O
segundo
filme
português
sonoro
foi
A
Canção
de
Lisboa,
de
1933.
O
realizador
será
o
arquitecto
Cottinelli
Telmo,
colaborador
da
Política
do
Espírito.
Os
cartazes
de
promoção
são
da
autoria
de
Almada
Negreiros
que,
na
sua
faceta
de
ilustrador
e
pintor,
colaborará
também
com
o
SPN.
A
canção
de
que
fala
o
título,
porém,
será
o
fado
e
o
espaço
da
narrativa
era
ainda
a
Lisboa
dos
bairros
populares
familiar
às
comédias
teatrais.
A
presença
da
revista
à
portuguesa
em
A
Canção
de
Lisboa
é
evidente:
nos
autores
e
actores,
nos
espaços
e
temas,
mas
também
numa
narrativa
pontuada
de
suspensões
humorísticas,
como
se
toda
a
história
fosse,
antes
de
mais,
um
pretexto
para
contar
piadas.
Os
momentos
de
lazer
e
espectáculo
e,
mais
ainda,
a
velha
indisciplina
dos
públicos,
surgem,
neste
contexto,
como
ocasiões
propícias
para
fazer
o
público
rir:
um
sarau
numa
associação
recreativa
onde
o
presidente
vicia
o
resultado
de
um
concurso
de
beleza,
um
baile
popular
e
uma
sessão
de
fados
que
acabam
em
pancadaria.
Parte
da
graça
destes
momentos
deve-‐se
à
experiência
dos
actores.
Os
protagonistas,
António
Silva,
Vasco
Santana
e
Beatriz
Costa,
estavam
de
há
muito
habituados
a
fazer
rir
as
plateias
da
revista.
Como
Maria
Vitória,
vinte
anos
antes,
também
Beatriz
Costa
representava
e
cantava,
o
que
lhe
permitiria
atingir
uma
notoriedade
de
outra
forma
inacessível
às
mulheres
–
que
podiam
ser
vistas
e
ouvidas,
enquanto
actrizes
e
cantoras,
mas
raramente
lidas,
como
intelectuais
e
escritoras.
A
forte
presença
dos
espectáculos
urbanos,
porém,
mostra
como
um
tipo
de
humor
baseado
na
identificação
dos
espectadores
com
o
seu
quotidiano
teria
necessariamente
de
usar
o
teatro,
as
festas,
a
rádio,
a
música,
ou
o
próprio
cinema
(temas
constantes
na
tradição
da
comédia
na
década
seguinte)
para
fazer
rir
os
lisboetas
e
outros
portugueses.
A
Canção
de
Lisboa
sintetiza
assim
aquela
que
provavelmente
foi
a
mais
intensa
actividade
cultural
no
Portugal
da
primeira
metade
do
século
XX:
o
mundo
dos
espectáculos
urbanos
normalmente
escondido
das
narrativas
da
identidade
nacional,
onde
milhares
de
espectadores
tinham
o
hábito
de
se
sentar
para
ouvir
música
e
assistir
a
peças
de
teatro,
e
assim
familiarizar-‐se
com
o
trabalho
de
inúmeros
profissionais
–
cantores,
actores,
escritores,
compositores
e
técnicos
de
toda
a
ordem
–
experientes
na
arte
de
montar
espectáculos,
compor
canções,
escrever
piadas
e
interpretá-‐las
ambas.
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