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IDENTIDADES COLETIVAS E

MOBILIZAÇÃO DE IDENTIDADES*

Klaus Eder

Introdução No curso de sua universalização, o Estado


nacional depara-se com um paradoxo: tornar-se
O Estado nacional é um mecanismo de um ator central no processo de globalização
domesticação dos sentimentos coletivos, que atua enquanto sua unidade cultural, a nação, é solapa-
unindo o povo em uma nação. Isso permanece da por formas “étnicas” de pertencimento que
verdadeiro mesmo depois das mais recentes, e em não mais coincidem com as fronteiras nacionais.
parte violentas, formações de Estados nacionais O que resta é o Estado nacional sem a nação. Isso
na Europa – Estados que surgiram da dissolução constitui um desafio para todas as teorias que afir-
dos últimos impérios no Sudeste e no Leste do mam que os Estados, isto é, os sistemas de
Continente. Paradoxalmente, a Europa revelou-se decisão política, devem estar inseridos num
ao mesmo tempo pioneira e retardatária no mundo da vida, que proporciona a base da soli-
processo de construção do Estado nacional.1 dariedade, da confiança ou da identidade. Este
Podemos, assim, partir da premissa de que o suposto, de que os Estados necessitam de uma
Estado nacional tornou-se um fenômeno univer- base cultural, é mais claramente afirmado por
sal, um ator coletivo universal representando um Habermas (1984, 1987), quando argumenta que
povo civilizado, isto é, uma nação. qualquer sistema social está ligado a um mundo
da vida que lhe dá legitimidade. Mas é também
parte do antigo e do novo comunitarismo, e cen-
* Conferência proferida no XXVI Encontro Anual da
Ampocs, em Caxambu, MG. Texto traduzido por tral para a sociologia parsoniana ou para a con-
André Villalobos cepção de dominação legítima em Weber.

RBCS Vol. 18 nº. 53 outubro/2003


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As teorias do Estado nacional baseiam-se na Isso é ainda mais desafiador quando procu-
observação de uma íntima associação entre ramos observar o efeito combinado dessas conse-
unidades simbólicas e unidades sistêmicas: o qüências, isto é, quando analisamos a relação
Estado identificado com o povo. Essa associação entre o Estado e o povo. O que acontece com o
nunca se realizou historicamente, mas funcionou Estado quando tem de lidar com grupos culturais
como uma idéia diretriz ao longo dos séculos. No antagônicos no interior de suas fronteiras? Tais
mundo contemporâneo, observamos uma dissoci- situações podem ser constatadas em Estados
ação entre as estruturas sistêmicas que governam nacionais com uma coletividade dividida – bons
a reprodução da dominação política e econômica, exemplos na Europa são a Bélgica e a Suíça – ou
tanto no âmbito nacional como transnacional e com uma população de desconhecidos.
subnacional, por um lado, e as estruturas gerado- De modo a não confrontá-los com demasia-
ras de identidades culturais, de sentimentos de das interrogações (sem finalmente apresentar qual-
pertencer e de entusiasmos coletivos, de outro. A quer resposta), focalizarei minha palestra principal-
articulação entre ambas torna-se mais contingente mente na seguinte questão: Como se apresentam as
e exige que tenhamos novas idéias sobre as identidades coletivas “desacopladas”? Em poucas
conexões teóricas entre os sistemas de ação e as palavras, argumentarei que há um tema dominante
pessoas que neles atuam. É necessário que as teo- – o “desacoplamento” entre o Estado e a nação –
rias dêem conta das conseqüências dessa dissoci- e um contra-tema – a lógica autônoma da mobi-
ação para o Estado e para o mundo da vida. lização de identidades.3 Em seguida, esses temas
Acredito que, em virtude dessa dissociação, serão desenvolvidos de maneira histórica, sistemá
a forma do Estado está sendo afetada: o Estado tica e, finalmente, concreta, utilizando-se a União
nacional está se tornando um ator racional em Européia como o caso ilustrativo da problemática
escala global, como ocorre com as empresas estudada. Por fim, discutirei se o Estado nacional
econômicas. Tal dissociação tem conseqüências seria ainda a forma apropriada para domesticar os
também para o modo de pertencimento coletivo, sentimentos coletivos. Não se trata de imaginar o
para o povo: ela abre a caixa de Pandora da desaparecimento do Estado nacional (este contin-
mobilização de identidades, de sentimentos de uará a existir), mas de saber se uma de suas
pertencimento para além do Estado nacional, seja funções centrais – transformar um sentimento cole-
acima dele (como as formas transnacionais de tivo num demos civilizado – será assumida por
mobilização de identidades) ou abaixo (como as arranjos institucionais para além dele.
formas regionais ou locais de mobilização de
identidades).
Ambas as conseqüências são teoricamente Laço histórico entre o Estado e o povo
desafiadoras. O que acontece com o Estado que
não pode mais contar com o consentimento do Contingência
povo, com o “plebiscito democrático cotidiano”
(para parafrasear Renan)? Pode transformar-se Historicamente, deparamo-nos com um
num corpo deliberativo auto-sustentável de espe- interessante paradoxo na construção do Estado
cialistas, capaz de influenciar a opinião pública nacional: o Estado, criado pelo povo, transfor-
por meio da política simbólica. O que acontece mou-se em algo do qual o povo emergiu. O povo
com o outro lado do par, o povo? Pode este ainda esteve na origem do Estado moderno, seja por
se tornar um demos (corpo democrático) ou tende meio de um contrato, seja através de outras for-
a se dissipar numa série de demoi ou – pior ainda mas de construção da vontade coletiva (incluindo
– numa série de buscas identitárias por comu- a de ser súdito de um governante esclarecido). E
nidade?2 Ou temos de imaginar que as comu- então, surgido do povo, o Estado transformou-o
nidades devem ser substituídas por alguma espé- num corpo político, a nação.4 Esta transubstancia-
cie mais abstrata ou mais instrumental de união? ção (verdadeiramente mística) do povo em nação,
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isto é, numa outra espécie de povo, está na base alcançado, mas parece que a instituição do Estado
do Estado moderno, que se constituiu no curso nacional conseguiu fazê-lo (pelo menos na Euro-
de vagas revolucionárias ou de reformas pa, a proporção de guerras diminuiu significativa-
democráticas.5 mente nos últimos sessenta anos).
A conexão entre Estado e nação foi objeto Isso tudo é plausível como um balanço des-
de muita discussão entre filósofos e teóricos critivo, mas existiria uma razão teórica para que o
políticos a respeito das qualidades desse corpo Estado moderno necessite de uma identidade
emergente, descrito idealmente como um demos, coletiva?
um povo capaz de ser seu próprio soberano. A
construção desse demos baseou-se na língua e
nos valores culturais compartilhados que assegu- Identidades versus interesses: uma primeira
ravam o caráter reconhecível do povo. Diferenças proposição teórica
de classe, regionais e de gênero foram mediadas
por um novo modo de pertencer: a cidadania.6 As identidades coletivas proporcionam um
Esta baseou-se num vínculo exclusivo, a saber, princípio de integração social. Outro princípio é
ser parte de uma nação. Pertencimento e vincu- constituído pelos interesses. Há uma complemen-
lação são os dois processos relacionados por taridade teórica específica a ser identificada na
meio dos quais foi construída a nação. relação entre identidades e interesses. As identida-
Podemos descrevê-los em termos da criação des definem fronteiras em relação ao mundo
de um espaço social de comunicação no qual são exterior; excluem os outros.8 Os interesses con-
institucionalizados códigos específicos de dis- duzem a estratégias que incluem os outros median-
tinção entre um “nós” coletivo e um “outro” cole- te um cálculo racional, ou seja, levam a prover
tivo.7 O resultado é a construção de uma identi- um mundo de pessoas suficientes para dele se
dade coletiva que se manifesta como a idéia de beneficiarem. As identidades definem as fronteiras
um ego capaz de ter ou expressar uma vontade de um espaço em que se incluirão os interesses.
coletiva. Essa identidade permite superar interess- Estes, por sua vez, rompem fronteiras, ligando as
es particulares, criar a disposição de pagar impos- pessoas como indivíduos que seguem suas estru-
tos, de entregar os filhos a instituições educa- turas de preferências e transgridem as obrigações
cionais controladas pelo Estado e de, até mesmo, e as normas coletivamente compartilhadas. Trata-
morrer pelo Estado. As pessoas agora fazem essas se da função liberadora da ação racional, já obser-
coisas não porque alguma autoridade externa as vada pela sociologia histórica comparada, segun-
obrigue, mas porque acreditam que todos devem do a qual os entrepostos de comércio, as cidades
assim proceder. Quem estuda a evasão fiscal, o comerciais e as culturas mercantis parecem ter
absenteísmo escolar ou a deserção, bem sabe o desenvolvido os regimes mais liberais, embora
quão difícil é esta solução. O Estado nacional é instáveis.9 Esse aspecto liberador transformou-se
uma “instituição de baixa probabilidade”, o que na ideologia neoliberal, segundo a qual o bem
explica por que precisou de uma forte identidade coletivo é considerado resultante da ação basea-
coletiva para superar tais atos de defecção bas- da no interesse próprio.
tante prováveis. A proposta teórica em que se baseiam as
Ao mesmo tempo, as sociedades criaram um observações que se seguem não opõe identidades
novo problema, qual seja, o de identidades coleti- e interesses, antes supõe sua constituição recípro-
vas pautadas pela lógica do conflito de grupo. Essa ca.10 Esta proposta começa com um enunciado de-
lógica pressupõe um confronto de identidades que fendido pelo neo-institucionalismo econômico: a
pode resultar em enfrentamentos violentos, um busca racional de interesses cria relações sociais
padrão que conhecemos tanto na Europa do pas- instáveis. Tais relações precisam, portanto, de ins-
sado como na dos anos de 1990. A domesticação tituições fortes para criar laços sociais estáveis. As
das identidades coletivas é algo difícil de ser instituições econômicas não podem fazê-lo. Isso é,
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exatamente, o que compete às instituições políti- Ademais, surgiram identidades coletivas que
cas, que impõem restrições aos atores em sua atravessam as estruturas de vinculação e de per-
busca racional de interesses – como um sentido de tencimento constitutivas do Estado nacional. Em
justiça ou uma identidade coletiva. Esta é a lógica suma, a nação dissociou-se do Estado e novas
da appropriateness11, como argumentaram enfati- identidades surgem paralelamente às nacionais.
camente March e Olsen (1984, 1989). A solução
As razões para essa dissociação são:
moderna foi um Estado baseado numa identidade
nacional que proporcionou o arcabouço para o
desenvolvimento do capitalismo. • Reflexividade: conhecimento de que a nação
Disso se segue uma proposição teórica: é a é algo construído.
configuração particular de interesses e identida- • Diferenciação étnica: competição entre iden-
des o que explica a dinâmica das relações sociais tidades coletivas igualmente legítimas.
num dado espaço social e num determinado tem- • Migração: surgimento da formação de iden-
po. O Estado nacional moderno é um caso par- tidades coletivas secundárias.
ticular dessa combinação de identidades e interes- • Permissão de residência a estrangeiros:
ses. Pode-se dizer que se trata mesmo do caso aumento da cidadania parcial, que cria
ideal de sua convergência: a busca racional do
modos de pertencimento cruzados, solapan-
interesse é maximizada onde existe um Estado
do assim a idéia de uma filiação unitária ao
que produz uma percepção compartilhada de sua
Estado.
appropriateness, isto é, uma identidade coletiva.12
O demos nacional foi a ficção ideal de uma iden-
tidade asseguradora da inclusão – algumas vezes Essa dissociação produziu uma “dissociação
da inclusão igualitária – dos interesses de um secundária”, negligenciada em grande parte do
povo. Essa foi a solução encontrada pelo Estado debate sobre novas identidades coletivas, a saber,
nacional em sua evolução. a dissociação entre o ser membro de um Estado
como cidadão e o estar integrado num povo
através de laços comunitários. Em outras palavras,
A dissociação entre interesses nacionais o desacoplamento entre o ser cidadão e o senti-
e sentimentos coletivos
mento de identidade coletiva. Podemos pertencer
formalmente a um Estado e, ainda assim, sentir-
Esta ficção ideal tem dois modos de existên-
cia: o material e o simbólico. Como algo material, mo-nos parte de uma comunidade cujos limites
raramente conseguiu ser realizada. Como dispositi- não coincidem necessariamente com o âmbito por
vo simbólico, sobreviveu por longos períodos e ele abrangido. Podemos, por exemplo, nos identi-
forneceu o suporte ideológico para o processo de ficar como parte da humanidade de maneira geral,
modernização, especialmente para o processo de o que evidentemente cruza as fronteiras do Estado
democratização e de desenvolvimento capitalista. O nacional. Intelectuais e burgueses podem ter uma
modo de existência simbólico das instituições mo- identificação cosmopolita; trabalhadores podem
dernas gerou o discurso moderno sobre “o” povo. estar mais marcados pelo localismo, e vice-versa.
Minha hipótese é a de que estamos vivendo
Essa dissociação “secundária” separa a
o apogeu do Estado nacional, mas podemos tam-
dinâmica das identidades da dinâmica dos inter-
bém já ser observadores da sua superação. Meu
esses. É preciso compreender as conseqüências
argumento empírico é o de que o modo simbóli-
co de existência de um povo, o demos, foi posto desse processo. Por isso, no próximo passo do
em questão por vários processos, como a difer- desenvolvimento de minha argumentação, procu-
enciação de laços sociais e os discursos que já rarei dar uma base teórica à minha descrição “sis-
não dão por certa a unidade simbólica do povo. temática” dessas conseqüências.
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A transformação da relação entre O que restou do demos? Um conjunto de


o Estado e o demos atores, movidos por seus próprios interesses, que
não mais compartilham o sentido de laços cole-
O Estado nacional como ator coletivo no processo tivos. Pode-se observar, contudo, a persistência de
de globalização uma busca latente por vínculos. A transformação
do Estado em um poderoso grupo de interesse
Contrariamente à hipótese de que o Estado leva apenas a que os sentimentos coletivos dele se
nacional estaria perdendo terreno, acredito que ele desacoplem. Liberadas, as identidades coletivas
está ganhando espaço, mas não como identificado nacionais passam a competir com outras reivindi-
com o povo, e sim como um ator coletivo com cações de identidade coletiva. A afirmação da iden-
interesses “nacionais”. O desacoplamento entre tidade nacional perde seu monopólio e encontra-
identidades e interesses possibilitou transformar o se agora atuando, por assim dizer, num mercado
Estado nacional em um ator coletivo racional, um de reivindicações de identidades coletivas.
grupo de interesse. O Estado nacional torna-se um
ator global, como ocorre com as firmas transna-
cionais. Esse é, provavelmente, o fenômeno básico A lógica das reivindicações de identidade:
uma segunda proposição teórica
denotado pelo termo globalização: os Estados
nacionais competem em escala global, constituin-
Essa liberação obriga-nos a pensar com mais
do-se em grupos de interesse globais diferenciados
atenção a lógica das reivindicações de identidade,
dos atores econômicos. Afirmar que, uma vez ini-
que difere da que preside à busca racional de inter-
ciada, essa competição produz sistemas de
esses. Como explicá-la? As reivindicações de per-
posições desiguais (como, por exemplo, o mundo
tencimento a algum “nós” baseiam-se em narrati-
da OECD e o dos que não pertencem àquela orga-
vas (como as narrativas de vitórias ou derrotas),
nização) não elimina o argumento de que a ação
por meio das quais um povo se reconhece como
orientada pelo interesse torna-se o modo predom-
coletividade. Por intermédio de tais narrativas, um
inante de existência do Estado nacional.
povo define um mundo da vida compartilhado,
Teoricamente, o Estado nacional, pelo
que distingue claramente quem é parte dele e
menos no Ocidente, está racionalizado no sentido quem não é. Essas narrativas constituem poderosos
weberiano: trata-se de um ator coletivo que bar- sinalizadores de fronteiras de exclusão. Além disso,
ganha e negocia com outros Estados nacionais elas reivindicam um bem particular: uma identi-
para garantir vantagens relativas e que assegura o dade entendida como um bem coletivo. A identi-
consentimento popular por meio da demonstração dade não é algo que se negocie com outros; trata-
de êxito da ação de interesse próprio contra outro se de um bem indivisível. Não há termo comum
Estado nacional. Os próprios indivíduos são con- entre identidades. Quando ocorre uma colisão
sideradas atores racionalmente interessados. entre reivindicações de identidade, podem-se
Esta transformação do Estado moderno em imaginar idealmente dois resultados: reconheci-
grupo de interesse é estimulada pelo surgimento mento recíproco ou mútua aniquilação. Em outras
de coalizões entre Estados, visando à minimização palavras, ou ambas se reconhecem plenamente, o
recíproca de custos transacionais, de modo a se que significa dizer que afirmam sua diferença e
tornarem atores mais poderosos na arena global. requerem tolerância, ou entram em conflito até
Um caso particular desse tipo de coalizão desen- que atinjam o ponto da completa separação ou da
volveu-se na Europa com o Mercado Comum e, aniquilação recíproca. Na realidade, esses confli-
posteriormente, com a União Européia. Essa reali- tos situam-se em algum lugar entre esses dois
dade institucional emergente foi concebida (pelo pontos ideais que sugerem os extremos de uma
menos no início) como uma mera Zweckverband, série de possibilidades, no interior da qual se dão
um tipo de instituição empresarial.13 as especificidades dos choques de identidade nos
10 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 53

casos concretos. Essa teoria ajuda-nos a explicar narrativas que flutuam livremente. Em contraparti-
por que as identidades coletivas são tão impor- da, com a liberação das identidades, surge a
tantes para o Estado: elas fornecem uma narrativa necessidade de um novo tipo (ou de novos tipos)
integradora. Explica também por que tais identi- de comunidade para representá-las.
dades precisam de uma forte inserção institu- Se não a nação, o que estaria surgindo como
cional: as instituições criam o monopólio de uma um possível suporte para narrativas de identidade?
narrativa, evitando assim guerras de identidade Há um demos nascendo para além da nação? Ou
dentro do Estado. Isso implica, ainda, a supressão temos de lidar com uma pluralidade de demoi ou
de narrativas competidoras – até mesmo violenta- com comunidades de tipo não-demos, ou, ainda,
mente, quando necessário.14 com a existência simultânea desses diferentes
Com a emergência de Estados multiculturais e tipos?16 Quais as opções para se construir uma
de formas políticas transnacionais, identidades dis- comunidade que compartilhe uma narrativa e que
tintas foram obrigadas a se relacionar como identi- esteja além do Estado nacional? Gostaria de distin-
dades igualmente legítimas, isto é, foi necessário guir três opções.
que se encontrasse um espaço de coexistência A primeira é a volta a comunidades pré-
para as identidades coletivas. A solução normativa políticas, especialmente ao equivalente funcional
do reconhecimento recíproco evita a verdadeira das comunidades políticas, a saber, as comu-
questão, pois pressupõe a igualdade de poder das nidades religiosas tradicionais. Trata-se de um
reivindicações de identidade em situações reais. fenômeno bastante comum nas sociedades atuais.
Tão logo se introduza a dimensão do poder, as Os grupos sociais, particularmente aqueles com
experiências migratórias ou coloniais, tendem a
soluções normativas não mais nos ajudam. Tem-se
construir uma coletividade definida por algumas
antes de prover instrumentos teóricos não em ter-
crenças religiosas compartilhadas. Essas crenças
mos do que gostaríamos de ver, o que é certa-
são tão mais fortes quanto mais possam estar
mente o reconhecimento recíproco de diferentes
inseridas em tradições religiosas canônicas, isto é,
identidades, mas em termos das reais conseqüên-
tradições religiosas com textos sagrados escritos.
cias que decorrem do desacoplamento entre as
A segunda pode ser considerada uma vari-
identidades coletivas e o Estado, isto é, o fim do
ante moderna da modalidade tradicionalista. Trata-
monopólio da nação como narrativa criadora de
se da construção de novas comunidades religiosas
identidade. É necessário, pois, que examinemos
que compartilham a experiência direta de seus par-
esta “marketização” (marketization)15 das identi- ticipantes, não mediadas por autoridades presentes
dades coletivas. (como os grupos pentecostais, grupos de Novas
Igrejas ou New Age). A diferença reside no fato de
que, neste caso, o vínculo que une a comunidade
O futuro do demos é a experiência comum no “aqui e agora”.
A terceira reside na construção de uma
Venho argumentando que o desencantamen- comunidade de interesses com uma identidade
to do Estado nacional, sua redução a um ator cole- coletiva minimalista, isto é, uma comunidade
tivo racional, não conduz ao desaparecimento do constituída por pessoas que compartilham basica-
problema das identidades coletivas. Elas são sim- mente o interesse de a ela pertencer, definindo
plesmente liberadas e podem exercer papéis seus laços em termos de solidariedade aos que a
muito diferentes. Ademais, a emergência de uma ela pertencem. É isso, provavelmente, o que se
pluralidade de narrativas destrói o pertencimento entende por sociedade civil: um povo com uma
exclusivo do povo ao Estado. O caráter contin- identidade coletiva que, no curso de sua ação
gente das narrativas nacionais abre a porta para o política, cria as condições para a existência de
pluralismo e mesmo para a disputa entre narrati- uma associação igual e livre.
vas. Em outras palavras, a dissociação entre a Evidentemente, essa classificação não se refe-
nação e o Estado transforma as identidades em re apenas a tipos empíricos de construção de comu-
IDENTIDADES COLETIVA E MOBILIZAÇÃO DE INDENTIDADES 11

nidades nas sociedades modernas. Pode-se inferir Essa idéia relaciona-se ao que considero identidade
também, a partir dela, um aspecto normativo, visto coletiva “fraca”, pois as pessoas não são forçadas a
que nem todas essas opções são compatíveis com acreditar em algo ou a compartilhar uma experiên-
uma política democrática. Assim, a opção por vín- cia coletiva de revelação. A única imposição é a de
culos democráticos é possível, mas não há um que aceitem as regras de procedimento do debate
argumento do por que tal opção possa acontecer e aberto e igual entre indivíduos portadores de inte-
do por que não se realizaria uma outra. resses. Reiterando o já sugerido, isso envolve a
Quais são as conseqüências dessas opções idéia de uma sociedade civil que constrói sua iden-
para os conflitos de identidade? No caso da opção tidade coletiva por meio de alguns códigos de inter-
tradicionalista, desencadear-se-á com facilidade a ação civilizada entre seres humanos iguais e livres
espiral de desentendimento e de autofechamento. no interior de um espaço de interação social insti-
Trata-se do melhor caminho para a guerra entre tucionalmente definido. Trata-se de uma exigência
identidades coletivas. As comunidades tendem a fraca, mas como kantiano, não conheço nenhum
uma reunificação do político e do comunitário, a argumento pelo qual isso não possa ser suficiente.
um substituto direto e inflexível para o Estado Como sociólogo, entretanto, sei que há outros que
nacional. Não é sem razão que os Estados nacionais pensam ser preciso mais.
a consideram uma ameaça real, não apenas militar, As conseqüências dessa opção são certa-
mas também cultural. mente menos beligerantes do que as da primeira.
Quanto à segunda opção, a avaliação é mais Elas são moderadoras por natureza. Se isso é o
difícil. As novas comunidades religiosas ou quase bastante para que ela sobreviva à competição
religiosas parecem ser apolíticas, uma vez que pro- com as outras construções de identidade, é uma
porcionam nichos para o compartilhamento coletivo questão que deixarei em aberto.
de uma experiência subjetiva. Tais nichos formam Há uma possível quarta opção, que funcio-
demoi pré-políticos, caracterizados por motivações nou em algumas partes do mundo, a saber, uma
sociais – solidariedade e responsabilidade comu- identidade forte baseada na tradição, na religião,
nitária –, e agrupam crentes que constroem sua iden- em grandes vitórias políticas e no orgulho pelo
tidade coletiva como uma emanação de uma exper- passado imperial. Os impérios, contudo, desa-
iência compartilhada.17 Esses grupos não contestam o pareceram nos últimos cinqüenta anos: o britâni-
Estado nacional, mas criam espaços transnacionais (e co, o português, o espanhol, o holandês, o soviéti-
subnacionais) que escapam ao seu controle. co; e antes desses, o otomano, o austro-húngaro e
Requerem de seus membros todas aquelas obri- o prussiano, que desapareceram em um passado
gações que o Estado nacional requer de seu povo: mais distante.19 Não precisamos lidar empirica-
às obrigações para com o Estado (pagar impostos, mente com novos impérios, mas temos de tratar
enviar as crianças a escolas controladas pelo Estado, de novas formas de construção institucional – os
morrer pela nação, caso necessário) correspondem “quase Estados” transnacionais.
obrigações para com o grupo (dar apoio material à Em vez de especular sobre possíveis
comunidade dos crentes, socializar as crianças nas cenários de construção e de mobilização de iden-
crenças da comunidade, dar a vida pela comu- tidades na constelação pós-nacional (Habermas,
nidade, se for preciso). Assim, pode-se vislumbrar o 1998), podemos tomar uma outra linha interpre-
surgimento de uma competição particular entre o tativa: examinar os casos existentes de instituições
Estado nacional e essas comunidades subnacionais transnacionais que parecem seguir a opção da
ou transnacionais, politizando-as, mesmo que não identidade “fraca”.
intencionalmente.18 Trata-se do latente desfazer-se da Tenho em mente o caso da União Européia.
nação, que contesta ou desafia o Estado nacional. Os fundamentos históricos e teóricos estão esta-
Por fim, a terceira opção baseia-se na idéia de belecidos, o caso é claro e único. Acredito que a
que, em seu reconhecimento mútuo como conci- União Européia constitui um caso de experimen-
dadãos, os indivíduos criam laços frágeis entre si. tação com identidades “fracas” como um vínculo
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social para instituições políticas fortes. Trata-se de nicação: a ordem social surge onde os indivíduos
um laboratório em que o problema da construção levantam suas vozes e lutam para serem ouvidos.
e da mobilização de identidades encontrará um Interesses ideais têm a ver com idéias, e
novo foco histórico.20 Quanto mais a construção estas existem numa forma lingüística: são as refer-
política institucional se moverem direção a arran- ências ao mundo exterior contidas nos símbolos.
jos transnacionais, mais o Estado nacional se As referências ao mundo podem envolver mobi-
tornará um ator coletivo que não tem mais razão lizações diferenciadas de carga simbólica. Há
de ser em si mesmo, mas em seu papel de ator áreas em que o elemento comunicativo exerce
racional coletivo, forçado a participar de um jogo um papel mais propriamente secundário. Tais são
com outros Estados nacionais. O desencantamen- as questões distributivas. Em que medida a mobi-
to do Estado nacional, transformado em ator cole- lidade social deve ser estimulada, que direitos
tivo racional, desloca a questão da identidade sociais as pessoas devem ter, são questões que
coletiva do âmbito da nação para o plano transna- podem ser tratadas com habilidades comunicati-
cional, onde são tomadas as decisões legais impe- vas medianas. Interesses não requerem muita
rativas, e é preciso que surja uma identidade cole- interpretação, nem precisam de muita compreen-
tiva compatível para controlar essas instituições. são (Verstehen). As questões distributivas são
solucionadas nos jogos estratégicos de conceder e
negar. Há um “bolo”, e os nele interessados têm
Europa: um caso de identidade de maximizar sua distribuição igualitária. Em con-
coletiva pós-nacional trapartida, as questões relativas à identidade e à
diferença necessitam de uma maior ação comu-
Especificidade nicativa. A identidade existe apenas por ser ver-
balizada e, portanto, essas questões só podem ser
Na constelação “pós-nacional”, a idéia de vislumbradas a partir da comunicação e da com-
uma sociedade européia, e sobretudo a de uma preensão. Isso explica por que uma língua
identidade coletiva européia, parece ser algo comum foi tão importante na construção das
atávica. O discurso sobre a Europa aparece, à identidades nacionais. O sentimento de união
primeira vista, como um discurso que tenta sim- mediado por vínculos sociais pressupõe uma lín-
plesmente traduzir o simbolismo nacional num gua compartilhada.
simbolismo transnacional. Contudo, esta interpre- Mas, esse terreno cultural comum não
tação seria demasiado simplista, pois a idéia de ocorre na Europa. Nem mesmo podemos invocar
uma unidade da Europa não é mais tão evidente a dominância da língua inglesa, quando consider-
como o foi a idéia de nação. amos o papel do francês em questões administra-
Confrontamo-nos com a busca de um tivas ou a importância cada vez maior do espan-
denominador comum que difere do modelo que hol no mundo globalizado. Não pode haver
fundamenta a construção de uma identidade integração cultural com a ausência do meio, isto
nacional. A busca de uma identidade européia é é, de uma língua comum. A europeização da cul-
um exemplo da tentativa de se criar uma preocu- tura, portanto, transferiu-se para outros meios de
pação comum a partir de relações baseadas nos comunicação, como a música, a linguagem pic-
interesses dos cidadãos. Esses interesses, que dão tórica, o reconhecimento de símbolos por meio
forma às relações sociais, têm uma dupla dos filmes, da televisão e da publicidade. Essa
natureza: são materiais mas também ideais (como forma de criação de significado produz uma cul-
formulou Max Weber). A Europa é mais do que a tura comum para além das culturas separadas por
“Europa do burguês”. Entretanto, é difícil definir línguas nacionais. E, ainda assim, isso não servirá
este “mais”, pois não há um referente real. A de base para a formação de uma identidade
solução teórica desse paradoxo é a radicalização européia. Onde coincidem, a cultura lingüística e
da idéia de integração social por meio da comu- as formas simbólicas de comunicação se reforçam
IDENTIDADES COLETIVA E MOBILIZAÇÃO DE INDENTIDADES 13

reciprocamente. O exemplo histórico é o do necessária a um Estado com tal característica. Isso


nacionalismo como um movimento cultural que colide com reivindicações igualmente fortes de
reuniu a comunidade lingüística e a comunidade outros tipos de identidade coletiva. Assim, a inte-
simbólica e, assim, foi capaz de criar claros ele- gração européia estimula o ressurgimento da
mentos de distinção em relação ao mundo exteri- questão étnica na esfera nacional.
or. Onde não houve coincidência, a Europa A segunda revivescência de identidades
encontrou problemas. fortes é uma reação direta à busca de uma identi-
Para evitar esse bloqueio cultural, a inte- dade européia fraca. O resultado das tentativas de
gração européia tomou o caminho da integração pensar uma identidade européia foi – paradoxal-
econômica. O objetivo foi criar condições para mente – o de marcar limites em todos os níveis,
uma efetiva barganha de interesses.21 Desde particularmente nos níveis regionais.
Maastricht, o objetivo tem sido encontrar esse Redescobrem-se símbolos de fronteiras regionais
espaço com base em uma identidade “fraca”, e de relações locais; identidades regionais são
definida seja em termos políticos, seja em termos revitalizadas e contrapostas a formas de inte-
culturais. Contudo – e aqui retomo meu argu- gração nacionais e supranacionais. A Europa das
mento –, a abertura ao debate sobre identidade “comunidades étnicas” constitui uma tentativa de
“fraca” significou também o retorno às disputas restaurar fronteiras simbólicas que a memória
por identidades fortes.22 nacional já esquecera. Mesmo com um século de
“comunismo”, a imposição de ideologias destradi-
cionalizantes na Europa do Leste não teve êxito
A volta das identidades fortes na Europa: na produção desse esquecimento. Para além das
uma terceira proposta teórica fronteiras nacionais, são redescobertas novas
fronteiras simbólicas contra o “outro”: a defesa do
Tão logo seja superada a pura barganha de Oeste, o Ocidente, a Cristandade. O dissenso é
interesses e estes estejam ligados a formas simbóli- provocado pela alteridade, por um consenso cul-
cas coletivamente compartilhadas, a dupla face da tural concorrente que, no caso mais acentuado,
cultura torna-se visível, provocando dissenso. Esse deve ser explicado por diferenças religiosas, no
é finalmente inevitável porque a barganha de inter- mais superficial, por diferenças estéticas, e no
esses não pode ficar restrita a puros interesses. Ela mais usual, por diferenças sociais.
se mistura com motivações que têm a ver com a O novo etnonacionalismo, surgido especial-
proteção de uma identidade coletiva. Discutirei mente nos países do Leste europeu, não permite
dois mecanismos que levaram a mobilizar fortes mais distinguir entre diferenças primordiais e arti-
identidades coletivas na Europa. O primeiro diz ficiais. Esse sentimento re-mobiliza velhas marcas
respeito ao Estado de bem-estar social. e projeta novas fronteiras simbólicas. Renascem
A íntima conexão entre idéias e interesses “antigos” significados, nos quais o “antigo” é
caracteriza a lógica nacionalista envolvida na repensado e enriquecido com novos atributos. O
defesa do Estado nacional de bem-estar social na “antigo” é apenas um meio para a alegação de
Europa. A experiência de ser um competidor no uma comunalidade, um gatilho para a barganha
mercado de direitos sociais conduziu não só ao coletiva que, no curso de sua realização, se dis-
fechamento de identidades grupais específicas, socia daquilo que a desencadeou. Nesse proces-
mas a uma dinâmica do cultivo da distância em so, os símbolos da comunalidade original são
relação às outras e a sua desvalorização cultural. ulteriormente transformados, a ponto de perde-
O Estado nacional de bem-estar social revela-se rem a conexão com o mundo real. Tornam-se
uma barreira à integração européia, pois restab- mera construção social. O regionalismo, que sur-
elece o modelo de Estado-nação e, com ele, a giu em algumas sociedades do Ocidente europeu,
busca por uma identidade coletiva forte o sufi- apresenta um padrão similar: sua referência a
ciente para proporcionar a solidariedade lealdades primordiais é cada vez mais uma con-
14 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 53

strução de difícil sustentação contra o esqueci- senso cultural, entre a ruptura da comunicação e
mento institucional. o ideal de uma harmonia comunicativa, uma
Dessa forma, passa a ser contestável a ex- forma de integração social que não se baseasse
pectativa de uma teoria de modernização que apenas no benefício recíproco, tampouco na
presume a convergência do particular para o necessidade de valores compartilhados? Essas
universal no desenvolvimento da sociedade questões estão subjacentes à idéia de que a
moderna. Tornou-se obsoleta até mesmo a vari- elaboração de uma constituição pode ser um pro-
ante crítica que viu no colonialismo e no impe- jeto gerador de identidade (esta é a idéia do
rialismo os elementos destrutivos da diversidade patriotismo constitucional24). Se assim fosse,
cultural. O particular prevalece sobre esse poder teríamos um caso de identidade coletiva fraca.
destrutivo e, ao mesmo tempo, destrói o cultu- Mas, para isso, será preciso não só que se forme
ralmente outro. A perspectiva otimista do Ilumi- essa espécie de identidade constitucional, mas
nismo com relação à idéia de racionalidade, também que ela crie vínculos fracos entre os
exercida na intercomunicação dos indivíduos povos europeus. Com isso, talvez pudéssemos
livres e iguais, é demolida pela experiência do responder se o demos, que era uniforme e
fechamento da comunicação, da exclusão por homogêneo no contexto do Estado-nação, seria
meio da comunicação e da redução desta a for- substituído por uma pluralidade de demoi, que
mas interativas empobrecidas. O apoio intelectu- compartilhasse a crença em uma constituição
al para isso é fornecido pela ênfase na diversi- para a regulamentação da vida conjunta. Nesse
dade cultural e seu uso como um argumento caso, teríamos muitos demoi compartilhando tão-
contra o universalismo. somente a idéia daquilo que torna um povo um
Contudo, a integração européia prossegue. demos. O que os uniria seria uma narrativa anti-
Apesar da divisão da Europa em unidades cultur- ga e particularmente “fraca”: a narrativa da
ais com identidades particulares, observa-se o cidadania como tal.25
aumento da interação baseada em interesses. O
estágio atual do desenvolvimento da integração
européia caracteriza-se por uma situação para- Conclusão
doxal: heterogeneidade cultural e, ao mesmo
tempo, homogeneidade baseada em interesses. Para concluir, algumas considerações sobre
Qual é a solução buscada para esse para- os problemas levantados no curso desta argu-
doxo? Primeiramente, tentou-se construir um con- mentação. Discutimos primeiramente o paradoxo
texto para coordenar interesses econômicos; em contido na idéia do Estado nacional que se desen-
seguida, a busca voltou-se para a formação de canta ao tornar-se um ator coletivo racional, um
uma identidade européia. A primeira resposta não grupo de interesse em escala global, e, ao mesmo
é suficiente, uma vez que interesses necessitam tempo, se re-encanta com a pluralização de
restrições legítimas, isto é, restrições aceitas por reivindicações de identidades coletivas em seu
todos. A segunda pode ser considerada até interior, opondo identidades nacionais a outras
mesmo perigosa porque, por trás da ilusão har- identidades, o que o transforma em cenário de
monizadora da existência de laços culturais na formas mais ou menos violentas de mobilização
Europa, oculta-se a lógica perversa das con- de identidades.
struções identitárias fortes.23 Analisamos também os riscos relacionados à
evolução dos acontecimentos que giram em torno
dessa transformação do Estado nacional. Quando
Discussão em torno de uma proposta alternativa os sentimentos nacionais são postos contra outros
sentimentos coletivos, o Estado nacional certa-
Haveria uma forma de integração social mente se enfraquece ainda mais, uma vez que
situada entre a barganha de interesses e o con- deve assumir o arriscado papel de garantir um
IDENTIDADES COLETIVA E MOBILIZAÇÃO DE INDENTIDADES 15

espaço onde a identidade nacional possa se 2 A discussão sobre demos ganhou proeminência no
defrontar com outras reivindicações de identi- interior do debate sobre a construção da nova
dade. Há muitas identidades coletivas convivendo Europa. Para um levantamento sistemático a respeito
no Estado, as quais, no curso de seu re-encanta- dessa questão na Europa, ver Lepsius (1990) e Weiler
mento, entrarão na espiral viciosa da mobilização (1995). Este debate foi mais desenvolvido em
de identidades. Abromeit (1998) e Abromeit e Schmidt (1999).
É de fato possível domesticar os sentimentos 3 Essa lógica foi explicitada em diferentes tradições
coletivos? O desencantamento do Estado nacional teóricas. Ver, especialmente, Hardin (1994), para
conduziu à desconexão entre o modo de per- uma explanação racionalista do conflito de grupo.
tencer e os sentimentos de união, entre a filiação
4 O processo de construção da nação é um lócus clás-
ao Estado e a identidade coletiva. Isso abre cami-
sico da sociologia histórica. Ver Kriesi (1999) ou o
nho a uma concepção diferente de identidade
trabalho clássico de Rokkan (1999).
coletiva, qual seja, uma identidade fraca baseada
na filiação e fundada na crença em garantias 5 Esse processo de acoplamento foi também instru-
constitucionais de direitos (e obrigações) a ela mentalizado por regimes não democráticos, com
associados. Por conseguinte, uma identidade que elevados custos e resultados fracassados, como
se consubstancia em uma narrativa altamente sec- mostram os casos da Alemanha, da Itália, da
ular: a narrativa da própria cidadania. Aí reside a Espanha, de Portugal, da Europa do Leste e da
importância do debate sobre a “cidadania América Latina.
européia”, que é uma construção de identidade 6 A inclusão de trabalhadores, mulheres e minorias
coletiva fraca. étnicas é um dos resultados do processo de mod-
Por fim, como exemplifica o caso europeu, ernização política, dada a resistência dos grupos
nem mesmo instituições de tipo estatal com iden- dominantes em conceder tais direitos. O debate
tidades fracas geram um mundo para além do sobre a cidadania tornou-se um importante tópico
poder. Mas, nessas circunstâncias, a formação de da análise sociológica nos anos recentes. Ver os tra-
identidades para a ação coletiva pode tornar-se balhos clássicos de Marshall (1950) e Bendix (1977).
mais fácil e não permanecer atada à lógica per- Para um maior desenvolvimento a esse respeito, ver
versa da mobilização de identidades em sentido Brubaker (1992), Tilly (1996), Crouch, Eder e
próprio. A disputa entre detentores de poder e Tambini (2001) e Eder e Giesen (2001). Uma boa
movimentos que os desafiam é inevitável, mas visão geral do assunto encontra-se em Kymlicka e
acredito que se possa evitar becos sem saída Norman (1995) e Turner (1993).
nesse tipo de conflito, como o risco da mobiliza-
7 Trata-se de códigos primordiais, que naturalizam as
ção de identidades em sentido próprio que carac-
diferenças, códigos tradicionalistas, que ancoram a
terizou a trajetória histórica do Estado-nação. identidade na memória do passado, e códigos uni-
A Europa, na realidade, é mais uma vez um versalistas, que ligam a identidade coletiva a uma
laboratório histórico onde os paradoxos são vocação universal de um povo. Para esta distinção,
abundantes e desafiam a imaginação teórica. ver Eisenstadt e Giesen (1995) e Giesen (1998).

NOTAS 8 Para uma versão sociopsicológica deste argumento,


ver Jenkins (1996, 1997).

9 Esta busca racional de interesses foi identificada por


1 A China é um caso em que ainda se mantém a
North como a causa da dinâmica particular da
estrutura de um império, cujas partes, entretanto,
sociedade européia desde o século XII (cf. North e
não constituem unidades que possam ser consider-
Thomas, 1971; North, 1990).
adas embriões de Estados nacionais emergentes.
Taiwan, por outro lado, mesmo dentro daquela 10 A distinção das identidades como opostas a inter-
estrutura, aponta para essa opção. esses foi analisada de maneira particularmente
16 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 53

esclarecedora por Pizzorno (1986). As idéias apre- 19 É preciso esperar pelo que acontecerá com o
sentadas muito devem a essa análise. império chinês, o último a sobreviver. Ver con-
clusão em Eder e Giesen (2001).
11 Não há, em português, um equivalente preciso para
appropriateness, que é a qualidade de ser apropria- 20 Para uma exploração dessa tese, ver Eder e Giesen
do (adequado, próprio, conveniente). A expressão (2001).
“lógica da appropriateness” tem a ver com a idéia de 21 Isso se reflete no que foi chamado de “teorias de
regras definidoras do que pode ser considerado integração”, que explicam a integração européia
apropriado pelos atores envolvidos numa determi- variando de teorias realistas a teorias funcionalistas.
nada situação. “Numa metáfora do dever [por Apenas recentemente, as teorias normativas gan-
oposição a uma metáfora da escolha], presumimos haram terreno em relação a essas teorias clássicas.
que os atores [...] associam certas ações com certas Para uma interessante discussão a esse respeito, ver
situações por meio de regras de appropriateness. O Lepsius (2001).
que é apropriado para uma determinada pessoa
numa situação particular é definido pelo sistema 22 Sobre a idéia de “identidades coletivas fracas” como
político e pelo sistema social, e transmitido por meio um modelo para uma identidade européia, ver Eder
da socialização” (cf. March e Olsen, 1989, p. 741). (2001).

12 A melhor explicação desta noção encontra-se em 23 Para uma crítica da noção de uma identidade
européia em virtude de seus conteúdos ideológicos,
Giesen (1998).
ver Sträth (2002).
13 É difícil Ter um domínio completo sobre a profusa
24 Essa idéia foi proposta e popularizada por
literatura a respeito da União Européia. Sobre seu
Habermas (1992, 1998), todavia, recebeu duras críti-
caráter multi-nível, ver especialmente Kohler-Koch
cas tanto de autores que a consideram muito frágil
e Eising (1999).
como cimento para as sociedades, como de outros
14 O papel social das narrativas foi enfatizado por que a consideram muito forte para manter coesa
Somers em seu trabalho histórico-sociológico sobre uma sociedade pós-tradicional.
a cidadania na Inglaterra a partir do século XVII (cf.
25 Tomei de Margaret Somers (1993, 1995) a idéia de
Somers, 1993, 1995).
considerar a própria cidadania uma narrativa.
15 “Marketização” significa simplesmente que a narrati-
va tem de competir num mercado onde as narrati-
vas são ofertadas. Esse mercado deve ser tão mais BIBLIOGRAFIA
esperado quanto os fluxos de comunicação possam
cruzar as fronteiras nacionais, e os meios de comu- ABROMEIT, Heidrun. (1998), Democracy in
nicação de massa e a educação ofereçam acesso a Europe: legitimizing politics in a Non-
diversas espécies de narrativas. Para uma análise State Polity. Oxford, Berghahn.
desse conceito, ver Crouch, Eder e Tambini (2001). ABROMEIT, Heidrun & SCHMIDT, Thomas.
16 Comunidades de tipo demos são as que têm seu fun- (1999), “The riddle of borderless
damento na vontade comum. Comunidades que não democracy: on the search of transna-
possuem demos são as que se baseiam em algo que tional demoi”, mimeo.
está fora e acima da comunidade, em última instân- BENDIX, Reinhard. (1977), Nation-Building and
cia em Deus ou em algo equivalente. Para uma dis- citizenship: studies of our changing
cussão a esse respeito, ver Abromeit (1998). social order. Berkeley, CA, University of
17 Ela se funda, aliás, não em Jesus, mas no Espírito California Press.
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BRUBAKER, William Rogers. (1992), Citizenship
18 O primeiro indicador desse fato é a intensidade and nationhood in France and
com que a cientologia é policiada em muitas partes Germany. Cambridge, MA, Harvard
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RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 173

IDENTIDADES COLETIVAS COLLECTIVE IDENTITIES IDENTITÉS COLLECTIVES ET


E MOBILIZAÇÃO DE IDENTI- AND IDENTITY MOBILIZA- MOBILISATION D’IDENTITÉS
DADES TION

Klaus Eder Klaus Eder Klaus Eder

Palavras-chave Key words Mots-clés


Estado; Nação; Identidade; Povo; State; Nation; Identity; People; État; Nation; Identité; Peuple;
Globalização Globalization Globalisation

Os Estados nacionais contemporâ- Contemporary nation states have to Les États contemporrains doivent
neos precisam reproduzir identida- reproduce collective identities in reproduire des identités collectives
des coletivas em sociedades que a- societies with increasing ethnic dif- de sociétés qui présentent des dif-
presentam crescentes diferenças ferences. This is the situation where férences ethniques croissantes. Dans
étnicas. Nessa situação, a ordem polí- the political order is decoupled from ce cas, l’ordre politique se détache
tica se desacopla da comunidade do the community of people. The fol- de la communauté du peuple. Une
povo. Tal circunstância suscita ques- lowing questions arise in such a sit- telle circonstance suscite certaines
tões como as seguintes: O que acon- uation: What happens to the senti- questions comme, par exemple: que
tece com os sentimentos de fazer ments of national belonging? How deviennent les sentiment d’appar-
parte da nação? Como se apresentam do collective identities decoupled tenir à une nation? De quelle façon
as identidades coletivas desaco- from the nation-state look like? Do se présentent des identités collec-
pladas do Estado nacional? Referem- they still refer to a community tives détachées de l’État? Est-ce
se ainda a uma comunidade, situada below or above the nation-state or qu’elles se réfèrent toujours à une
abaixo ou acima do Estado nacio- does emerge a more abstract or a communauté située en-dessous ou
nal, ou surge uma espécie de senti- more instrumental kind of together- au-dessus de l’État, ou est-ce
mento de união mais abstrato ou ness? What happens to political qu’apparait une sorte de sentiment
mais instrumental? O que acontece mobilization in such culturally diver- d’union plus abstrat ou plus instru-
com a mobilização política nessas sified societies? The final question: mental? Que devient la mobilisation
sociedades culturalmente diversifica- Do we still need the nation-state for politique dans ces sociétés culturelle-
das? E uma última questão: ainda taming collective sentiments or do ment diversifiées? Et une dernière
precisamos do Estado nacional para we have to imagine different forms question: avons-nous toujours besoin
domesticar os sentimentos coletivos which require new theoretical tools de l’État pour apprivoiser les senti-
ou será preciso imaginar formas di- to describe and design institutions ments collectifs ou est-ce que l’on
ferentes, que exigem novos instrumen- for taming collective sentiments? doit imaginer des manières dif-
tos teóricos, com vistas a descrever e férentes qui exigeraient de nou-
conceber instituições para tal fim? veaux instruments théoriques, pour
décrire et concevoir des institutions
qui nous permettent cela?

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