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EXPERIÊNCIA
A geração que constitui os pais e educadores dos jovens de hoje é, sem dúvida, a que mais
vivenciou as transformações sociais, econômicas, políticas e tecnológicas sofridas pelo País e pelo
mundo. Ela assistiu a guerras, embates ideológicos e crises, sentiu o peso de censuras e repressões,
alegrou-se com a descoberta de vacinas e tratamentos, lutou pela liberdade e pela justiça. É,
certamente, a que mais encontra dificuldades para formular conceitos e valores a serem transmitidos.
Por terem presenciado os horrores das guerras, ensinam que não há nada melhor para conciliar
divergências que o diálogo (e, de fato, mesmo as guerras mais recentes cessam quando tal atitude é
tomada). A sociedade, entretanto, prega a competição e a violência, o que inutiliza, muitas vezes, esse
ensinamento.
Por terem lutado pela liberdade, garantem-na como direito universal – mas, por experiência própria,
sabem que seu excesso pode ser nocivo. A ideologia corrente, por sua vez, defende o prazer, o pleno
divertimento, mesmo à custa de danos futuros, o que prejudica o convívio pacífico entre jovens (que
recebem tais influências) e adultos.
Por terem se rebelado contra a injustiça e a corrupção, defendem a integridade moral como
verdadeiro meio de realização pessoal. Por terem visto a violência como resultado da falta de
princípios, pregam e incentivam a religião. São, muitas vezes, chamados de “caretas”, reacionários e
ultrapassados por essa mesma sociedade, que valoriza o lucro, o “jeitinho”, o trapace*.
É verdade que muitos desses formadores de opinião não seguem tais padrões, tranformando-se
em maus exemplos, a maioria, contudo, tem se esforçado por transmitir esses valores, mesmo
oprimidos pelos interesses capitalistas de hoje. É preciso, portanto, compreender sua dificuldade em
lidar com uma sociedade em constante transição – mas, certamente, os jovens que lhes seguem os
ensinamentos, frutos da experiência, serão pessoas íntegras e felizes.
(Eveline Oliveira de Castro, aluna do 3.o colegial da Unidade de Mogi das Cruzes,
aprovada no vestibular 2002, Medicina-USP)
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(Superinteressante, julho/2007)
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Exemplos
1. SUBSTANTIVO
É o nome com que designamos seres em geral – Quem nasce em Salvador da Bahia é sote-
pessoas, animais, coisas, vegetais, lugares etc. ropolitano, no Rio Grande do Norte é poti-
guar, em Santa Catarina é catarinense,
em Fortaleza é fortalezense, em Florianó-
Divide-se em:
polis é florianopolitano, na Guatemala é
Concreto: mar, sol, Deus, alma, fada. guatemalteco, em Tânger é tangerino,
Abstrato: beleza, amor, frio, viagem, saída. na Nova Zelândia é neozelandês.
❑ Locução substantiva
É a expressão que equivale a um substantivo.
3. ARTIGO
Exemplos
É a palavra que se antepõe aos substantivos,
Fomos ver o pôr-do-sol (= crepúsculo). designando seres determinados (o, a, os, as) ou inde-
terminados (um, uma, uns, umas).
Deram-me um vidro de água-de-cheiro Divide-se em:
(= perfume). a) Definido: o, a, os, as.
b) Indefinido: um, uma, uns, umas.
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Exemplos Exemplo
• Possessivo
4. PRONOME Dá ideia de posse (meu, teu, seu, nosso,
vosso, e as variações para o plural e feminino).
É a expressão que designa os seres sem lhes dar
nomes nem qualidades, indicando-os apenas como Exemplo
pessoas do discurso.
Classifica-se em: “Muita coisa aprendi com meu pai.”
• Pessoal (Vivaldo Coaracy)
Quando representa as pessoas do discurso, que
são três: primeira pessoa (que fala), segunda pessoa
(com quem se fala), terceira pessoa (de quem se fala). • Demonstrativo
Quando funciona como sujeito, é o pronome pessoal Dá ideia de posição em relação ao tempo, ao espa-
reto: eu, tu, ele ou ela, nós, vós, eles ou elas. ço e ao contexto. Os principais demonstrativos são:
este, esta, isto, esse, essa, isso, aquele,
Exemplo aquela, aquilo, o, a, mesmo, próprio, seme-
lhante, tal e variações.
“Eu faço versos porque o instante resiste...”
(LUP)
Exemplos
Quando o pronome tem qualquer outra função, que Esta caneta com que eu te escrevo ...
não a de sujeito, é pessoal oblíquo (me, mim,
comigo, te, ti, contigo, se, si, consigo, o, a, lhe,
Essa caneta com que tu me escreves ...
nos, conosco, vos, convosco, se, si, consigo,
os, as, lhes).
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• Indefinido c) de tratamento
Refere-se ao nome de uma maneira vaga, impreci- você(s)
sa, indeterminada (quem, tudo, nada, alguém, nin- vossa(s) senhoria(s)
guém etc.). vossa(s) alteza(s)
vossa(s) majestade(s)
Exemplos
2) Possessivos
“Tudo passa sobre a terra ...”
(José de Alencar) meu(s), minha(s)
teu(s), tua(s)
“Não sou nada.” seu(s), sua(s)
(Álvaro de Campos) nosso(s), nossa(s)
vosso(s), vossa(s)
seu(s), sua(s)
• Interrogativo 3) Demonstrativos
É o próprio pronome indefinido numa situação de
este(s), esta(s), isto
interrogação.
esse(s), essa(s), isso
aquele(s), aquela(s), aquilo
Exemplos
o(s), a(s), o
Quem chegou?
↑ ↑ ↑
= aquele (s) = aquela(s) = aquilo
Quantos vieram?
tal, tais etc.
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6. VERBO
4) Relativos
É a palavra que, exprimindo ação ou apresentando
que (= o qual, a qual, os quais, as quais) estado ou mudança de um estado a outro, pode fazer
quem (= o qual, a qual, os quais, as quais) indicação de pessoa, número, tempo, modo e voz.
onde (= no qual, nos quais, na qual, nas quais)
cujo(s), cuja(s) etc ❑ Flexão do verbo
• Pessoa e Número
1.a pessoa singular → canto
5) Indefinidos 2.a pessoa singular → cantas
3.a pessoa singular → canta
algum(s), alguma(s), algo, alguém
nenhum(s), nenhuma(s), nada, ninguém
1.a pessoa plural → cantamos
todo(s), toda(s), tudo 2.a pessoa plural → cantais
outro(s), outra(s), outrem 3.a pessoa plural → cantam
muito(s), muita(s), bastante(s)
pouco(s), pouca(s), cada • Tempo
vários, várias etc. presente → canto
perfeito → cantei
6) Interrogativos*
qual, quais
pretérito
{ imperfeito → cantava
mais-que-perfeito → cantara
quantos, quantas
quem etc. futuro
{ do presente → cantarei
do pretérito → cantaria
(*) = empregados em frases interrogativas
diretas ou indiretas • Modo
Indicativo: canto, cantei, cantarei.
Subjuntivo: cante, cantasse, cantar.
5. NUMERAL
afirmativo → canta tu
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Exemplos
Casa de Paulo.
7. ADVÉRBIO Necessito de você.
Creio em você.
É uma palavra que modifica o verbo, o adjetivo e até Útil a todos.
outro advérbio, acrescentando-lhes uma circunstância
(de tempo, de modo, de intensidade etc.).
❑ Locução prepositiva
Exemplos
É a expressão que tem o mesmo valor de uma
preposição.
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9. CONJUNÇÃO
❑ Locução interjectiva
É a palavra que liga orações, coordenando ou subor-
É a expressão que tem o mesmo valor de uma
dinando-as; ou, dentro da mesma oração, coordena
interjeição.
palavras que tenham o mesmo valor ou função.
Exemplos
❑ Tipos de conjunção
“Virge Maria! Que foi isto, maquinista?”
a) Coordenativas: Vem agora ou perdes a vez.
(Manuel Bandeira)
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FRENTE 2 Literatura
MÓDULO 1 Classicismo (I): Camões lírico
Sob o reinado de D. Manuel, o 2. A escola clássica
CONCEITO E ÂMBITO
Venturoso, Portugal gozou de mo- renascentista (1527-1580)
A MEDIDA NOVA
mentânea mas intensa euforia, gra-
LUÍS DE CAMÕES
ças a grandes cometimentos: desco- Ainda que, já no fim da Idade Mé-
berta do caminho marítimo para as dia, os autores da Antiguidade Clássica
1. O Renascimento Índias, empreendida por Vasco da fossem conhecidos em Portugal, só
Conceito e âmbito Gama em 1498; descobrimento do se pode falar na existência de um
O Renascimento foi um dos perío- Brasil em 1500; conquista de Goa e estilo renascentista expressivo a
dos mais férteis da cultura ocidental: de regiões da África entre 1507 e partir de 1527, quando o poeta Sá de
Dante, Camões, Petrarca, 1513; viagem de circum-navegação Miranda regressa da Itália, local em
Shakespeare, Rabelais, Ronsard, realizada por Fernão de Magalhães que viveu, entre 1520 e 1527, e onde
Cervantes, Tasso, Ariosto, Da Vinci, entre 1519 e 1520. esteve em contato com a literatura da
Michelângelo alinharam-se como as Desses fatos sobreveio uma ex- Renascença italiana, o dolce stil
mais portentosas figuras da arte em traordinária prosperidade econômica: nuovo, iniciando a divulgação, em Por-
todos os tempos. Foi um período Lisboa transformou-se num importante tugal, das modalidades poéticas clás-
marcado pela supervalorização do centro comercial; na corte imperava o sicas. Esse conjunto de procedimen-
homem, pelo antropocentrismo, luxo desmedido, na certeza de que a tos artísticos, que, em território luso,
pelo hedonismo, em oposição ao Pátria havia chegado a uma inalterável chamou-se medida nova, consistia:
teocentrismo, misticismo e ascetismo • na utilização do verso decassíla-
riqueza material. Este ufanismo,
medievais. bo, em lugar dos redondilhos tradicionais;
contudo, foi declinando até a der-
O interesse pelo homem e pelo • na predileção pelas formas fi-
que ele poderia realizar de alto, rocada final em Alcácer-Quibir, em
1578, com a destruição do exército xas, inspiradas nos modelos latinos e
profundo e glorioso (Humanismo) italianos: o soneto, o terceto, a sexti-
inspirou o conceito de homem in- português e morte de D. Sebastião. A
literatura começou a refletir a co- na, a oitava, a ode, a elegia, a canção,
tegral, senhor do mundo, sequioso a écloga, a epístola, o epigrama, o
para conhecê-lo totalmente. moção épica gerada pelo progresso
nas primeiras décadas do século XVI, epitalâmio; além do teatro clássico,
Características centrais mas refletiu também, vez por outra, o com a tragédia grega e a comédia
do Renascimento desalento e a advertência, lúcidos latina, regidas pela “lei das três uni-
• Equilíbrio e harmonia de dades” (de tempo, de lugar e de ação);
perante a dúbia e provisória supe-
forma e fundo. Clareza, mentalidade • na assimilação da influência
rioridade.
aberta, intensidade vital, ímpeto temática e formal de autores como
O Renascimento português não
progressista, euforia, ânsia de glória e Horácio, Virgílio, Ovídio, Plauto,
representou, como nos países protes-
perenidade, apreço pelo humano. Terêncio, Homero, Píndaro,
tantes, uma revolução cultural tão
• Universalismo, apego aos Anacreonte, Sannazzaro, Boccaccio,
extensa e profunda. Na facção pro-
valores transcendentais (o Belo, o Boiardo, Torquato Tasso, Ariosto,
testante, as condições foram mais
Bem, a Verdade, a Perfeição) e aos Dante Alighieri e Petrarca, além da
favoráveis à liberdade de pensa-
sistemas racionais; simplificação por releitura dos filósofos gregos Platão e
mento e à difusão popular da cultura,
lucidez técnica, simetria. Aristóteles, filtrados pelo pensamento
graças à propagação da imprensa,
• Culto da Antiguidade greco- cristão de São Tomás de Aquino e
veículo privilegiado pela Reforma Santo Agostinho.
-latina. Deuses pagãos usados como
Luterana. Em Portugal, como na Contudo, o espírito medieval não
figuras literárias e claras alegorias.
Espanha e Itália, a Contrarreforma foi completamente abandonado. Por
Católica inaugurou, precocemente,
O Renascimento português isso, o Quinhentismo luso constituiu
O Renascimento em Portugal um período de recalque ideológico e uma época bifronte, pela coexistência
correspondeu ao período de apogeu de repressão. Em 1547, o Santo e, não raro, a interinfluência das duas
da Nação, cujo império, à semelhan- Ofício visitou casas e livrarias à formas de cultura: a medieval,
ça do império inglês do século XIX, procura de livros heréticos. Gil Vicente, popular, tradicional, materializada na
abrangia do Oriente (China, Índia) ao Camões, Sá de Miranda, Antônio medida velha, e a clássica, erudita,
Ocidente (Brasil), e marcou, com Ferreira, entre outros, foram consi- renascentista, que se expressou por
Camões, a plena maturação da lín- derados “agentes contra a Fé e os meio da medida nova. Esse
gua portuguesa. Costumes”. bifrontismo foi lugar-comum entre os
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autores portugueses da época renas- aos domínios da Espanha. Poucos dias mões, marcada pelo tom reflexivo,
centista, cujas aparentes contradições antes de morrer, em carta a um pela dialética cerrada e pela reflexão
só podem ser explicadas quando se amigo, D. Francisco de Almeida, dizia: densa sobre o tema lírico-amoroso,
tem em vista a ambivalência cultural “Enfim acabarei a vida e verão todos sobre os transes existenciais do poe-
da época. que fui tão afeiçoado à minha pátria, ta e sobre o desconcerto do mundo.
No caso português, acresce não que não me contentei em morrer Em ambas as vertentes, Camões
ter havido um Renascimento típico, nela, mas com ela”. foi o maior poeta de seu tempo. Sua
pois, dada a prevalência do catoli- obra abrange as diversas correntes
cismo e do poder eclesiástico, o ra- Camões lírico artísticas e ideológicas do século XVI
cionalismo e a ideologia burguesa não O tema central da lírica camo- e reflete uma experiência pessoal
vingaram de modo tão expressivo niana é o amor, concebido não sim- múltipla.
como ocorreu em outros países. plesmente como um sentimento,
3. Luís de Camões mas como uma força vital, uma força As redondilhas de Camões
cósmica que pode elevar o espírito. Sem muita rigidez, pode-se dizer
A biografia de Camões apresenta Camões celebrou amores, a beleza que a grande maioria das composições
problemas insolúveis por falta de feminina, o prazer sensual (os versos na medida velha, em versos
dados seguros. Lisboa, Coimbra, em que descreve o encanto da es- redondilhos, ao gosto do público pala-
Alenquer e Santarém disputam o seu crava negra, a menina dos olhos ver- ciano, e à maneira do Cancioneiro Geral
nascimento. Mais provável Lisboa ou des, a moça que vai buscar água na de Garcia de Resende, data da
Coimbra, por volta de 1525. Morreu fonte); mas celebrou também o amor mocidade de Camões. Em geral, as
em 1580, em Lisboa. espiritual (o amor dito “platônico” e redondilhas são leves, brincalhonas,
Em 1552, num dia de Corpus que mais propriamente se deve madrigalescas e destinam-se à recitação
Christi, numa rixa com um funcionário considerar um sinal do neoplato- na corte. Revelam a habilidade formal do
do paço, Gonçalo Borges, foi ferido nismo camoniano). Neste último poeta, que usa imagens, trocadilhos e
com um golpe de espada, tendo sido caso, o amor é visto como força que ambiguidades mais voltados para a
recolhido à prisão do Tronco. No ano pode libertar o espírito do mundo da
magia verbal, para a demonstração da
seguinte, como aventureiro, tomou matéria e elevá-lo a um plano material
habilidade na manipulação de palavras e
parte em várias expedições, superior.
conceitos, do que para a expressão
refazendo assim toda a rota de Vasco Outros temas da obra lírica camo-
pessoal e individualizada.
da Gama, na viagem do descobri- niana são a mudança constante de
mento do caminho marítimo para as tudo, ou seja, a instabilidade da vida
Índias, que mais tarde se converteu humana, e o desconcerto do TEXTOS
na ação central de Os Lusíadas. mundo, ou seja, a desordem e a
Em 1555, envolveu-se em traba- desrazão que governam tudo. Dessas DESCALÇA VAI PARA A FONTE
lhos de guerra em Goa, cujo gover- características, também decorre a
nador era Afonso de Albuquerque. Por necessidade de um mundo superior, MOTE
volta de 1558, esteve em Macau liberto deste mundo de aparências
(China), primeiro estabelecimento enganosas, no qual o próprio amor Descalça vai para a fonte
europeu no Extremo Oriente. Aí foi não passa de fonte de desenganos e Lianor pela verdura;1
Provedor-Mor de Bens de Defuntos e sofrimentos. vai formosa, e não segura.
Ausentes, importante cargo adminis- Os livros didáticos, sem muito
trativo. Acusado de irregularidades, rigor, abordam duas vertentes da lírica VOLTAS
voltou preso a Goa, para justificar-se. de Camões:
Durante a viagem (1559), naufragou • a primeira, tradicional, popular, Leva na cabeça o pote,
às margens do Rio Mekong, no de inspiração medieval, vazada em o testo2 nas mãos de prata,
Camboja. Em Os Lusíadas há uma trovas, vilancetes, cantigas e es- cinta de fina escarlata,
alusão a este fato e ao seu salva- parsas, composta em versos redondi- sainho de chamalote3;
mento com o manuscrito de Os lhos, na medida velha, com utiliza- traz a vasquinha4 de cote5,
Lusíadas, o que faz ver que a obra ção frequente de motes e glosas. É mais branca que a neve pura;
devesse estar quase completa (Canto uma poesia leve, galante, madriga- vai formosa, e não segura.
X, 127-128). É da tradição que tenha lesca, como as composições do Can-
perdido neste naufrágio seu grande cioneiro Geral de Garcia de Resende; Descobre a touca a garganta,
amor oriental (Dinamene), em memó- • a segunda, clássica, erudita, de cabelos de ouro o trançado,
ria de quem fez o soneto “AIma minha inspiração italiana, vazada em fita de cor de encarnado6,
gentil que te partiste”, além de outros. sonetos, canções, odes, oitavas, éclo- tão linda que o mundo espanta!
Morreu miserável em 1580, após gas, tercetos, sextinas e elegias, Chove nela graça tanta,
o desastre militar de Alcácer-Quibir, composta em decassílabos, na que dá graça à formosura;
que antevia a anexação de Portugal medida nova. É a maturidade de Ca- vai formosa, e não segura.
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Vocabulário e Notas Amor é fogo que arde sem se ver; Continuamente vemos novidades,
1 – Verdura: vegetação. é ferida que dói e não se sente; diferentes em tudo da esperança;
2 – Testo: tampa do pote. do mal ficam as mágoas na lembrança,
é um contentamento descontente;
3 – Chamalote: tecido de lã e seda. e do bem (se algum houve) as saudades.
4 – Vasquinha: saia de vestir por cima de toda é dor que desatina sem doer.
a roupa, com muitas pregas na cintura.
O tempo cobre o chão de verde manto,
5 – De cote: de uso diário. É um não querer mais que bem querer; que já coberto foi de neve fria,
6 – Encarnado: vermelho.
é um andar solitário entre a gente; e, enfim, converte em choro o doce
densa e perfeita de sua lírica. Com os mas, enquanto me a mim a vida dura,
sempre viva em minh’alma te acharão.
decassílabos da medida nova e com
as formas fixas do Classicismo ***
E se meus rudos versos podem tanto
(sonetos, canções, odes, elegias,
que possam prometer-te longa história
éclogas, oitavas e sextinas), o poeta
daquele amor tão puro e verdadeiro,
conseguiu o mais alto equilíbrio entre Mudam-se os tempos, mudam-se as
a disciplina, o virtuosismo formal e a [vontades, celebrada serás sempre em meu canto,
reflexão profunda sobre o sentido do muda-se o ser; muda-se a confiança; porque enquanto no mundo houver
amor e da vida. Leia a seguir alguns todo o mundo é composto de mudança, [memória
de seus sonetos: tomando sempre novas qualidades. será minha escritura teu letreiro.
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E vós, Tágides minhas, pois criado O início da ação (I, 19) dá-se, não Vocabulário e Notas
Tendes em mim um novo engenho 1 – Escuma: espuma.
no início da viagem de Vasco da
[ardente1, 2 – Consagrado: sagrado, santificado.
Gama, mas quando os navegadores 3 – Próteu: deus marinho, guardador do gado
Se sempre, em verso humilde, celebrado
já estão em pleno Oceano Índico, na de Netuno. Tinha o dom de tomar todas as for-
Foi de mim vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado, costa leste da África, à altura da Ilha mas possíveis.
de Madagáscar. Só mais tarde é que 4 – Consílio: conselho, assembleia.
Um estilo grandíloquo e corrente,
Por que de vossas águas Febo2 ordene se irão narrar o início da viagem, a
No Canto X, a narrativa encerra-se
Que não tenham inveja às de Hipocrene3. partida das naus e os incidentes da
e o poema termina com um epílogo
navegação no Atlântico.
Vocabulário e Notas desalentado, em que o poeta lamenta
Camões, na estrofe 19 do primeiro
1 – Engenho ardente: refere-se à inspiração a situação presente de seu país e
épica (heroica).
canto, apresenta rapidamente os dirige-se de novo a D. Sebastião,
2 – Febo: Apolo, deus do sol e aquele que presi- navegadores já no Índico, para, a se- retomando a exortação que a ele
de as musas. guir, apresentar a primeira ação mito- fizera na dedicatória do poema.
3 – Hipocrene: fonte que o cavalo alado Pé- lógica, a primeira intervenção do Contrapondo-se ao tom vibrante
gaso fez brotar no Hélicon. Quem bebesse de “maravilhoso pagão”, no episódio do e ufanista do início do poema, o des-
suas águas se tornaria poeta.
“Consílio dos Deuses no Olimpo”: fecho contém uma dolorosa crítica à
decadência do país, corroído pela
Em seguida, propõe uma inflama-
Já no largo Oceano navegavam, ambição desmedida de conquista e
da dedicatória a D. Sebastião, esti- As inquietas ondas apartando;
de riqueza. É uma clara premonição
mulando-o a uma grande empresa de Os ventos brandamente respiravam,
da derrocada do país, submetido à
conquista que o elevasse à altura de Das naus as velas côncavas inchando;
Da branca escuma1 os mares se mostravam
Espanha, e de seu Império Oriental:
seus ilustres antepassados (sabe-se
Cobertos, onde as proas vão cortando
do desastre em que terminaria, pou- Não mais, Musa1, não mais, que a Lira tenho
As marítimas águas consagradas2,
cos anos depois, a aventura de D. Se- Destemperada2 e a voz enrouquecida,
Que do gado de Próteu3 são cortadas, E não do canto, mas de ver que venho
bastião na África):
Cantar a gente surda e endurecida3.
Quando os Deuses no Olimpo luminoso, O favor com que mais se acende o engenho
E, enquanto eu estes canto, e a vós não Onde o governo está da humana gente, Não no dá a pátria, não, que está metida
Se ajuntam em consílio4 glorioso, No gosto da cobiça e na rudeza
[posso,
D’uma austera, apagada e vil tristeza.
Sublime Rei, que não me atrevo a tanto, Sobre as coisas futuras do Oriente.
Tomai as rédeas vós do Reino vosso: (...)
Dareis matéria a nunca ouvido canto. Vocabulário e Notas
1 – Musa: Camões dirige-se novamente a suas
Comecem a sentir o peso grosso
inspiradoras, as Tágides, para informá-las de
(Que pelo mundo todo faça espanto) que vai parar o poema, não porque tivesse se
De exércitos e feitos singulares cansado do canto, mas porque sente falta do
De África as terras e do Oriente os mares. maior estímulo à sua poesia: o reconhecimento
do povo, da pátria.
2 – Destemperado: desafinado.
Na estrofe 19, inicia-se a nar- 3 – Gente surda e endurecida: o povo portu-
ração de Os Lusíadas, a qual com- guês. Para alguns críticos, Camões refere-se
apenas àquela parcela corroída pela ganância e
preende três ações principais: a via-
pelo individualismo. Para outros, o sentido da
gem de Vasco da Gama, a história crítica é mais amplo e atinge toda a Nação,
de Portugal e a luta dos deuses do entregue ao obscurantismo religioso (a
Olimpo (Baco x Vênus); são, Contrarreforma), ao autoritarismo político (o
Absolutismo), à decadência econômica e à
portanto, duas ações históricas e retórica pedante e esterilizante da ignorância e
uma ação mitológica. Essas ações do medo.
são entremeadas de digressões
(dissertações) poéticas de Camões
sobre a moral, sobre a desconside-
Padrão dos Descobrimentos,
ração de seus contemporâneos pela
marco comemorativo da epopeia marítima
poesia, sobre o verdadeiro valor da portuguesa, construído em 1960, em
glória, sobre a onipotência do ouro e comemoração dos 500 anos do
sobre o destino de Portugal. Infante D. Henrique, o Navegador.
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primeiros heróis (Luso e Viriato), a Canto VII mitológicos, proféticos, líricos e natu-
fundação do País e os reis de Portu- Os portugueses chegam a Cali- ristas (descrições da natureza), entre-
gal, as batalhas de Ourique e Salado e cute, na Índia. Camões descreve o meados uns aos outros, de forma que
o episódio lírico-amoroso de Inês de Oriente exótico. um mesmo episódio pode ter vários
Castro. significados.
Canto Vlll
Canto IV O Consílio dos Deuses
Paulo da Gama, atendendo a um
Vasco da Gama prossegue a nar- pedido do catual (autoridade regional no Olimpo (I, 20-41)
ração da história de Portugal: a Bata- da Índia), explica o significado das Reunidos sob a presidência de
lha de Aljubarrota (centralização mo- bandeiras de Portugal e refere-se aos Júpiter, os deuses discutem o futuro
nárquica — início da Dinastia de Avis). heróis portugueses e aos seus feitos. das navegações portuguesas e da
As primeiras conquistas, a Tomada de Camões narra os perigos enfrentados viagem de Vasco da Gama. Baco é
Ceuta, o sonho profético de D. Manuel, no Oriente. Vasco da Gama é feito pri- contrário aos portugueses, pois teme
que confia a Vasco da Gama o des- sioneiro e é resgatado em troca de que eles suplantem seus feitos no
cobrimento do caminho marítimo para mercadorias europeias. Camões tece Oriente. Também Netuno (deus do
as Índias. A partir desse ponto, Vasco considerações sobre a onipotência do mar) fará depois oposição aos nave-
da Gama passa a narrar a própria via- ouro. gadores, invejoso de seus sucessos
marítimos. Vênus (deusa do amor) e
gem, a partida das naus e a adver-
Canto IX Marte (deus da guerra) tomam partido
tência do Velho do Restelo (censura
Os portugueses iniciam a viagem dos lusos, considerados pela deusa
às navegações, representando a
de regresso. Vênus e as Ninfas prepa- como os maiores amantes e, por-
sobrevivência da ideologia medieval,
ram a “llha dos Amores”, prêmio e re- tanto, seus protegidos, e tidos por
feudal e conservadora).
pouso para os navegadores. É a fusão Marte como os guerreiros mais valen-
dos planos histórico e mitológico. tes. Após o debate, Júpiter decide a
Canto V
favor dos portugueses. Baco, incon-
Vasco da Gama conclui a narração
Canto X formado, desce à Terra e tenta im-
da sua viagem. Fala do Cruzeiro do Sul,
Na “llha dos Amores”, Tétis e as pedir o êxito da viagem, armando ci-
do fogo-de-santelmo, da tromba ma- ladas e ataques traiçoeiros.
Ninfas oferecem um banquete aos
rítima, do episódio cômico de Veloso Essa ação mitológica, a disputa
navegadores. Tétis mostra a Vasco da
e do Gigante Adamastor (monstro de entre Vênus e Baco, interfere no plano
Gama uma miniatura do Universo (a
pedra que personifica o Cabo das histórico, e tem o claro propósito de ele-
“Máquina do Mundo”), apontando
Tormentas, simbolizando a superação var os navegadores à altura dos deu-
os lugares onde os portugueses iriam
do medo do “Mar Tenebroso”). De ses olímpicos. Inspiradas na tradição
praticar grandes feitos. Camões narra
novo em Melinde, Vasco da Gama o episódio de São Tomé, em que se clássica, essas alegorias constituem
exalta a tenacidade portuguesa. Aqui fundem o “maravilhoso cristão” alguns dos pontos altos do poema.
se encerra o primeiro ciclo épico. (bíblico), o “maravilhoso pagão” Inês de Castro (III,118-135)
Camões recrimina os portugueses (mitológico) e o plano histórico. Tétis Episódio de natureza Iírico-amo-
pelo desapego à poesia. despede-se dos portugueses. Re- rosa, simboliza a força e a veemência
gresso à pátria. Camões lamenta a do amor em Portugal.
Canto Vl decadência de Portugal (Epílogo), faz Valendo-se de fontes medievais
Camões retoma a narração da via- exortação a D. Sebastião e vaticina as (as Trovas, de Garcia de Resende) e
gem de Melinde para a Índia. Os deu- futuras glórias. clássicas (a tragédia A Castro, de
ses reúnem-se no Palácio de Netuno Antônio Ferreira), Camões, pela boca
3. Episódios notáveis
para o Consílio dos Deuses Marinhos. de Vasco da Gama, inscreve na
A bordo das naus, os portugueses se Os episódios de Os Lusíadas são epopeia a narrativa lírica da jovem
entretêm com a narrativa cavaleiresca ações acessórias às ações principais. condenada pelo crime de amar. Inês,
do episódio dos Doze da Inglaterra Além das ações históricas, reais, jovem da pequena nobreza de
(inspirada nos torneios da cavalaria narradas diretamente pelo poeta, por Castela, apaixonou-se pelo Príncipe
medieval). Meditações do poeta Vasco da Gama, ou por seu irmão, D. Pedro (depois D. Pedro I, de Portu-
sobre o verdadeiro valor da glória. Paulo da Gama, há episódios gal). A corte portuguesa opunha-se a
– 57
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tal união, e o Rei D. Afonso IV, mes- do e punido pelos deuses, foi transfor- Esse longo episódio é riquíssi-
mo reconhecendo a inocência da mo- mado num monstro de pedra. Inspi- mo em sugestões e significados.
ça, não impede sua morte. Pedro, na rada na mitologia clássica (Homero e Simboliza a elevação dos navegadores
época em trabalhos de guerra na Ovídio), é uma das alegorias mais à condição de semideuses, inter-
África, regressa a Portugal e encontra ricas do poema. Simboliza, no plano seccionando os planos histórico e
a amada morta (de onde vem a histórico, a superação, pelos portu- mitológico. Na exibição da Máquina
expressão popular “agora Inês é gueses, do medo do “Mar Tenebro-
do Mundo, os portugueses tornam-se
morta”). Diz a lenda que, tresloucado, so”, das superstições medievais. No
senhores dos segredos do Universo,
o príncipe teria desenterrado Inês, plano lírico, desenvolve o tema do
e Vasco da Gama triunfa mais uma
coroando-a rainha após a morte, e teria, amante infeliz e desenganado (Tétis
vez sobre Adamastor, tornando-se
ainda, obrigado a corte a beijar a mão era esposa de Peleu, e enganou o
da rainha-defunta. O certo é que, as- amante de Tétis, ninfa do mar. Inspi-
Gigante); o amor-tragédia. Curiosa-
sumindo o trono, foi um dos reis mais mente, o primeiro navegante a atraves- rado em Virgílio, Horácio e Ovídio, o
cruéis do país, obcecado pela vingança sar o Cabo das Tormentas, Bartolomeu episódio é um hino ao amor e à sen-
contra os algozes da amada. Dias, morreu exatamente ali, quando, sualidade.
12 anos depois, em 1500, comandava
O Velho do Restelo uma das quatro naus que Pedro
(IV, 94-104) Álvares Cabral perdeu na costa afri-
Quando as naus de Vasco da cana, num naufrágio. Era a vingança
Gama se despediam do porto de Be- do Gigante, ou do Cabo da Boa
lém, um velho, o Velho do Restelo, Espe ran ça, co mo o batizou
elevando a voz, manifestou sua Bartolomeu Dias, em 1488.
oposição à viagem às Índias. A sua
fala pode ser interpretada como a A llha dos Amores
sobrevivência da mentalidade feudal, (IX, 18 a X, 143)
agrária, oposta ao expansionismo e “Oh! Que famintos beijos na floresta” — as
Após a conquista do Oriente, lan-
às navegações, que configuravam os ninfas são a recompensa de Vênus aos nave-
çadas as sementes do Império Por- gadores.
interesses da burguesia e da monar-
tuguês que aí surgiria, os navegado-
quia. É a expressão rigorosa do con-
res estão voltando a Portugal. Vênus, TEXTOS
servadorismo. Certo é que Camões,
mesmo numa epopeia que se propõe entretanto, prepara-lhes uma surpre-
sa, como recompensa aos seus es- EPISÓDIO DE INÊS DE CASTRO
a exaltar as Grandes Navegações, dá
a palavra aos que se opõem ao pro- forços e sacrifícios. Numa ilha paradi-
Passada esta tão próspera vitória1,
jeto expansionista. síaca, os navegadores são recebidos Tornado Afonso à Lusitana Terra,
pelas ninfas do mar, que Cupido, por A se lograr da paz com tanta glória
O Gigante Adamastor ordem de Vênus, fez enamoradas dos Quanta soube ganhar na dura guerra,
(V, 37-60) portugueses. Emoldurados por uma O caso triste e digno da memória,
Quando a esquadra de Vasco da natureza exuberante, vivem instantes Que do sepulcro os homens desenterra,
Gama atravessava o Cabo das Tor- de prazeres ilimitados. Home-
Aconteceu da mísera e mesquinha
mentas, passando do Oceano Atlân- Que depois de ser morta foi Rainha.
nageados por Tétis com um ban-
tico para o Índico, um monstro disfor- (III, 118)
quete, uma ninfa profetiza os futuros
me e ameaçador interpela os navega-
feitos portugueses. Após, Tétis, do Tu, só tu, puro Amor, com força crua,
dores, condenando sua ousadia, pro-
alto de um monte, mostra a Vasco da Que os corações humanos tanto obriga,
fetizando desgraças e miséria. O Gi-
Gama a Máquina do Mundo, es- Deste causa à molesta2 morte sua,
gante narra, a seguir, a causa de sua
Como se fora3 pérfida inimiga.
transformação na figura monstruosa pécie de miniatura do Universo. Par-
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
que guarnecia o Cabo das Tormentas: ticularizando o globo terrestre, aponta
Nem com lágrimas tristes se mitiga4,
tendo-se apaixonado por Tétis (filha os lugares onde os portugueses iriam É porque queres, áspero e tirano,
de Dóris e Nereu), foi por ela repudia- fincar sua bandeira, incluindo aqui o Tuas aras5 banhar em sangue humano.
do e tentou tomá-la à força. Derrota- Descobrimento do Brasil. (III, 119)
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Estavas, linda Inês, posta em sossego, O coração a quem soube vencê-la), Se terras e riqueza mais desejas?
De teus anos colhendo doce fruito6, A estas criancinhas tem respeito, Não é ele por armas esforçado,
Naquele engano7 da alma, Iedo e cego, Pois o não tens à morte escura dela; Se queres por vitórias ser louvado?
Mova-te a piedade sua e minha, (IV, 100)
Que a Fortuna8 não deixa durar muito,
Pois te não move a culpa que não tinha.
Nos saudosos campos do Mondego9,
(III, 127) Deixas criar as portas o inimigo,
De teus formosos olhos nunca enxuito10,
Por ires buscar outro de tão longe,
Aos montes ensinando e às ervinhas Vocabulário e Notas Por quem se despovoe o Reino antigo,
O nome que no peito escrito tinhas. 1 – Esta... vitória: refere-se à vitória dos cris- Se enfraqueça e se vá deitando a longe!
(III, 120) tãos na Batalha do Salado. Buscas o incerto e incógnito perigo
2 – Molesto: lastimoso, lamentável. Por que a Fama te exalte e te lisonje
Do teu Príncipe ali te respondiam 3 – Fora: fosse. Chamando-te senhor com larga cópia,
As lembranças que na alma Ihe moravam, 4 – Mitigar: abrandar. Da Índia, Pérsia, Arábia e Etiópia.
Que sempre ante seus olhos te traziam, 5 – Ara: altar. (IV, 101)
Quando dos teus formosos se apartavam; 6 – Fruito: fruto.
De noite, em doces sonhos que mentiam, 7 – Engano: êxtase, enlevo.
Oh! Maldito o primeiro que, no mundo,
8 – Fortuna: na crença dos antigos, deusa que
De dia, em pensamentos que voavam; Nas ondas vela pôs em seco lenho5!
presidia ao bem e ao mal; destino, fado.
E quanto, enfim, cuidava e quanto via Digno da eterna pena do Profundo6,
9 – Mondego: rio que banha Coimbra.
Eram tudo memórias de alegria. Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!
10 – Enxuito: enxuto.
(III, 121) Nunca juízo algum, alto e profundo,
11 – Indino: indigno.
Nem cítara sonora de vivo engenho,
12 – Mauro: mouro.
De outras belas senhoras e Princesas Te dê por isso fama nem memória,
Os desejados tálamos enjeita, Mas contigo se acabe o nome e glória!
Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas, EPISÓDIO DO VELHO DO RESTELO
(IV, 102)
Quando um gesto suave te sujeita.
Mas um velho, de aspecto venerando,
Vendo estas namoradas estranhezas,
Que ficava nas praias, entre a gente, Trouxe o filho de Jápeto7 do Céu
O velho pai sisudo, que respeita
Postos em nós os olhos, meneando O fogo que ajuntou ao peito humano,
O murmurar do povo e a fantasia
Três vezes a cabeça, descontente, Fogo que o mundo em armas acendeu,
Do filho, que casar-se não queria,
A voz pesada um pouco alevantando, Em mortes, em desonras (grande engano!).
(III, 122)
Que nós no mar ouvimos claramente, Quanto melhor nos fora, Prometeu,
Tirar Inês ao mundo determina, C’um saber só de experiências feito, E quanto para o mundo menos dano,
Por lhe tirar o filho que tem preso, Tais palavras tirou do experto1 peito: Que a tua estátua ilustre não tivera
Crendo com sangue só da morte indina11 (IV, 94) Fogo de altos desejos que a movera!
Matar do firme amor o fogo aceso. (IV, 103)
“Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Que furor consentiu que a espada fina,
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Que pôde sustentar o grande peso Não cometera o moço miserando8
Ó fraudulento gosto, que se atiça
Do furor Mauro12, fosse alevantada O carro alto do pai, nem o ar vazio
C’uma aura popular, que honra se chama!
Contra hũa fraca dama delicada?
Que castigo tamanho e que justiça O grande arquitector com o filho9, dando,
(III, 123)
Fazes no peito vão que muito te ama! Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Que mortes, que perigos, que tormentas, Nenhum cometimento alto e nefando
(...)
Que crueldades neles exprimentas2! Por fogo, ferro, água, calma e frio,
(IV, 95) Deixa intentado a humana geração.
A corte, contudo, exige a morte
Mísera sorte! Estranha condição!”
de Inês (nobre, mas bastarda), com
Condenando a temeridade de se (IV, 104)
quem o príncipe tinha filhos e de
lançarem os portugueses na con-
quem não queria se afastar. Levada à Vocabulário e Notas
quista do Oriente, adverte para o pe- 1 – Experto: experiente, sábio.
presença do rei, Inês suplica a cle-
mência de D. Afonso IV, não por ela, rigo representado pelos árabes e 2 – Exprimentas: experimentas.
3 – Ismaelita: referente a Ismael, filho de Abraão,
ou pela sua vida, mas por seus filhos. amaldiçoa as navegações:
segundo o Velho Testamento.
Observe a elegância e concisão do 4 – Pola: pela.
poeta na estrofe que se segue: Não tens junto contigo o Ismaelita3, 5 – Seco lenho: embarcação, navio.
Com quem sempre terás guerras sobejas? 6 – Profundo: inferno.
7 – Filho de Jápeto: Prometeu.
Não segue ele do Arábio a Lei maldita,
Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito 8 – Miserando: digno de pena.
(Se de humano é matar uma donzela, Se tu pola4 de Cristo só pelejas? 9 – Grande arquitector com o filho: Dédalo (da
Fraca e sem força, só por ter sujeito Não tem cidades mil, terra infinita, mitologia grega) e seu filho, Ícaro.
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mada Barroco. Costuma-se dizer que ACHANDO-SE UM BRAÇO PERDIDO DO desenvolve um raciocínio sutil e paradoxal
o conceptismo predomina na prosa e MENINO DEUS DE N. S. DAS MARAVILHAS, (versos 3-4: se a parte é que faz o todo, a parte
QUE DESACATARAM é tudo — é essencial — para que haja o todo),
o gongorismo, na poesia. Esta noção
INFIÉIS NA SÉ DA BAHIA exemplifica com um artigo de fé (Deus está
é falsa. Há conceptismo, por exem- inteiro em cada hóstia, que é parte de seu
plo, na poesia sacra e reflexivo- corpo), chegando à conclusão de que o braço
-filosófica de Gregório de Matos, uma da imagem de Cristo vale não apenas como
O todo sem a parte não é todo;
variante da poesia a lo divino, dos parte, mas como a imagem toda.
A parte sem o todo não é parte;
místicos espanhóis, em que o Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Homem é divinizado e Deus Não se diga que é parte, sendo o todo. ***
humanizado, por meio de sutilezas
conceituais, na esteira de Quevedo,
modelo conceptista muito repro- Em todo o Sacramento está Deus todo, VOS ESTIS SAL TERRAE – Math., V, 13
duzido em Portugal e no Brasil. E todo assiste inteiro em qualquer parte,
E feito em partes todo em toda a parte,
O conceptismo é a vertente bar- Vós, diz Cristo Senhor nosso, falando com
Em qualquer parte sempre fica o todo. os Pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes
roca mais diretamente influenciada
pela visão de mundo da Companhia sal da terra, porque quer que façam na terra o
de Jesus, pela fé inaciana e contrar- que faz o sal. O efeito do sal é impedir a
O braço de Jesus não seja parte,
corrupção, mas quando a terra se vê tão
reformista: os recursos da lógica aris- Pois que feito Jesus em partes todo,
corrupta como está a nossa, havendo tantos
totélica e tomista postos a serviço do Assiste cada parte em sua parte.
nela que têm ofício de sal, qual será ou qual
convencimento religioso; a expressão
pode ser a causa desta corrupção? Ou é por-
da angústia de ter ou não ter fé, de Não se sabendo parte deste todo, que o sal não salga, ou porque a terra se não
amar a Cristo e revoltar-se contra Um braço que lhe acharam, sendo parte, deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os
suas determinações. Evitando a apa- Nos diz as partes todas deste todo. Pregadores não pregam a verdadeira doutrina;
rência brilhante do cultismo, o con- (Gregório de Matos) ou porque a terra se não deixa salgar, e os
ceptismo procura economizar pala- ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes
vras e imagens. Mas têm em comum Vocabulário e Notas dão, a não querem receber; ou é porque o sal
o desejo de surpreender pela novida- 1 – Parte: nada. não salga, e os Pregadores dizem uma coisa e
de, pela excentricidade, requerendo fazem outra, ou porque a terra se não deixa
ambos do leitor um elevado grau de salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que
Comentário eles fazem, que fazer o que dizem: ou é porque
atenção, dado o obscurantismo deli- A propósito do achamento de um braço
o sal não salga, e os Pregadores se pregam a
berado, a propor verdadeiros labi- de uma estátua perdida de Cristo, o poeta,
si, e não a Cristo; ou porque a terra se não
rintos de imagens e ideias: partindo de constatações óbvias (versos 1-2: o
deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a
todo depende da parte e a parte, do todo),
Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto
verdade? Ainda mal. (...)
(Padre Antônio Vieira,
Sermão de Santo Antônio aos Peixes)
Comentários
A partir de um “conceito predicável”,
extraído da citação bíblica, Vieira desenvolve o
raciocínio explorando as possibilidades
sugeridas pelo tema, por meio de antíteses e
associações de ideias que, dispostas em
movimento circular, vão sendo retomadas e
ampliadas. A estrutura paralelística revela-se
Enterro do Conde de Orgaz, em várias orações — “Ou é porque o sal não
de Domenikos Theotokopoulos, salga, ou porque a terra se não deixa salgar”.
El Greco (1541-1614). O título, Sermão de Santo Antônio aos
Há nitidamente dois planos: Peixes, indicia o fato de que, alegoricamente,
Vieira irá falar aos “peixes”, que agrupam, segun-
o terreno, marcado pela pompa,
do ele, categorias humanas. Parte da lenda
tristeza e imobilidade diante do
medieval segundo a qual o franciscano Santo
mistério da morte, e o celestial,
Antônio, numa de suas pregações, não sendo
marcado pelo movimento e ouvido pelos homens, lança a sua palavra ilumi-
pela visão da eterna salvação nada na praia deserta, e os peixes levantam a
da alma, acolhida pelos anjos cabeça à superfície das águas, como sinal da
e pela Virgem Maria. força da palavra do santo pregador.
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O polvo, com aquele seu capelo na cabe- E ele próprio responde, corajo- deles é um trabalho sobre outro. Não há
ça, parece um monge; com aqueles seus raios samente: trabalhos mais doces que os das vossas
estendidos, parece uma estrela; com aquele oficinas; mas toda essa doçura para quem é?
não ter osso nem espinha, parece a mesma Sois como as abelhas, de quem disse o poeta:
Quando a necessidade e a consciência
brandura, a mesma mansidão. E, debaixo “Sic vos non vobis mellificatis apes”1.
obriguem a tanto, digo que sim, e torno a dizer
dessa aparência tão modesta ou dessa hipo-
que sim: que vós, que vossas mulheres, que
crisia tão santa, testemunham constantemente
vossos filhos e que todos nós nos sus- Vocabulário e Notas
(...) que o dito polvo é o maior traidor do mar.
tentássemos de nossos braços, porque melhor 1 – Verso atribuído a Virgílio: “Assim vós, mas
4. Sermão da Primeira é sustentar do suor próprio que do sangue não para vós, fabricais o mel, abelhas”.
alheio. Ah! Fazendas do Maranhão; que se
Dominga da Quaresma
esses mantos e essas capas se torcerem, ha-
Mas, paradoxalmente, estabele-
Também denominado Sermão do viam de lançar sangue.
ce uma cabal diferença entre o negro
Cativo, foi pregado no Maranhão, em gentio, entregue à sua própria sorte
1653. Nele o orador tenta persuadir os na África, e o negro submetido à fé
5. Sermão XIV do Rosário
colonos a libertarem os indígenas, que católica. Chega a bendizer a escra-
compara aos hebreus cativos do vidão que trouxe o negro ao Brasil e
faraó. Na corte, atuou na defesa do Pregado na Bahia para uma irman-
ao cristianismo:
índio contra os colonos e lá pregou, dade de negros, revela a repulsa ao
em 1662, o Sermão da Epifania: “que preconceito de cor e ao tratamento (...) Deveis dar infinitas graças a Deus por
os homens de qualquer cor, são todos cruel a que eram submetidos os es- vos ter dado conhecimento de si e por vos ter
iguais por natureza, e mais iguais ain- cravos: tirado de vossas terras, onde vossos pais e vós
viveis como gentios, e vos ter trazido a esta,
da por fé”, afirma o pregador, defen-
Em um engenho sois imitadores de Cristo onde, instruídos na Fé, vivais como cristãos e
dendo a filiação comum e universal do vos salveis. (...)
Crucificado: porque padeceis em um modo
homem a um Deus criador e único. muito semelhante ao que o mesmo Senhor Oh! se a gente preta tirada das brenhas
No Sermão da Primeira Dominga padeceu na sua cruz, e em toda a sua paixão. A de sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera
da Quaresma, imagina-se no lugar sua cruz foi composta de dois madeiros, e a bem quanto deve a Deus e à sua Santíssima
dos colonos que tivessem de se des- vossa em um engenho é de três. (...) Cristo mãe por este que pode parecer desterro,
fazer de seus escravos e indaga: despido, e vós despidos; Cristo sem comer, e cativeiro e desgraça, e não é senão milagre e
vós famintos; Cristo em tudo maltratado, e vós grande milagre!
Quem nos há de ir buscar um pote de maltratados em tudo. (...) Eles mandam, e vós
água ou feixe de lenha? Quem nos há de fazer servis; eles dormem, e vós velais; eles
6. Sermão do Bom Ladrão
duas covas de mandioca? Hão de ir nossas descansam, e vós trabalhais; eles gozam o
mulheres? Hão de ir nossos filhos? fruto de vossos trabalhos, e o que vós colheis
Pregado em 1655, em Lisboa,
traz a distinção entre o ladrão co-
mum, que eventualmente furta para
sobreviver, e o ladrão que, amparado
pelo poder, rouba cidades e reinos. A
notória atualidade do tema tem tor-
nado frequente a transcrição de tre-
chos desse sermão em diversos ves-
tibulares:
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desde sempre, “poeta maldito”. Sua A obra atribuída a Gregório de se julgavam a “nobreza” da terra; os
obra permaneceu praticamente Matos é o organismo mais inventivo e “unhates”, comerciantes portugue-
inédita até o século XX, apesar da atual de toda a poesia do período ses; os mestiços, mulatos, o clero e
popularidade de que desfrutou na considerado luso-brasileiro. Gregório as autoridades.
Bahia, onde seus poemas circulavam possui três modelos: Camões, A sátira constitui a vertente mais
em cópias manuscritas e eram Góngora e Quevedo. Sua poética “brasileira” e original de sua obra, ain-
constantemente oralizados pelo da que tenha várias vezes recorrido
mantém, portanto, compromissos
povo. As peripécias de sua vida foram aos moldes espanhóis (Quevedo):
com a Renascença maneirista e com
romanceadas recentemente por Ana o Barroco cultista e conceptista. RETRATO ANATÔMICO
Miranda, no romance biográfico Boca
Assim, a lírica amorosa anda de DOS ACHAQUES DE QUE
do Inferno. Sua sátira à Bahia
permeio com a lírica religiosa. Sua PADECIA ÀQUELE TEMPO
dominada pela “máquina mercante”
sátira desbocada e agressiva vem A CIDADE DA BAHIA
é o que se lê a seguir:
também da Espanha barroca, mas (fragmentos)
possui raízes medievais portuguesas
Triste Bahia, oh quão dessemelhante
Que falta nesta cidade? ... Verdade.
Estás e estou de nosso antigo estado! e qualidades absolutamente próprias.
Que mais por sua desonra? ... Honra.
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, A poesia encomiástica explica-se pela
Falta mais que se lhe ponha? ... Vergonha.
Rica te vi eu já, tu a mi abundante. habilidade versificatória e pelas
circunstâncias de sua vida.
O Demo a viver se exponha,
A ti trocou-te a máquina mercante, É uma constante em sua poesia a
Que em sua larga barra tem entrado; Por mais que a fama a exalta,
noção de que os homens e as vai- Numa cidade onde falta
A mim foi-me trocando e tem trocado
Tanto negócio e tanto negociante.
dades humanas são insignificantes, Verdade, Honra, Vergonha.
de que o tempo é fugaz e a sorte
Uma obra problemática instável. Dentro dessa linha, produziu, (...)
Não há um texto definitivo (edi- entre outros, o magnífico soneto
ção crítica) da poesia de Gregório de “Nasce o sol, e não dura mais que E que justiça a resguarda? ... Bastarda.
Matos e não se encontrarão dois poe- um dia”, que lembra, pela temática, É grátis distribuída? ... Vendida.
mas absolutamente iguais nas diver- o famoso “O sol é grande...”, de Sá Que tem, que a todos assusta? ... Injusta.
sas edições que se seguiram à pri- de Miranda.
meira tentativa de organizar, já no sé- Valha-nos Deus, o que custa
culo XX, sua suposta “obra comple- O que El-Rei nos dá de graça,
ta”. Nada tendo publicado em vida, e Que anda a justiça na praça
A sátira de
expurgado de nossa vida literária Bastarda, Vendida, Injusta.
Gregório de Matos
durante dois séculos, os códices (= Ora é respeitador do escrúpulo
manuscritos antigos) e compilações (...)
vocabular, usando palavras admitidas
trazem infinitas variantes, muitos pela convenção, para pôr a nu as
poemas que comprovadamente não mazelas e baixezas de toda a Bahia; E nos Frades há manqueiras? ... Freiras.
são de Gregório de Matos e inúmeros ora é livre usuário de vocabulário que Em que ocupam os serões? ... Sermões.
ainda faz enrubescer, para retratar Não se ocupam em disputas? ... Putas.
casos de autoria duvidosa.
Esquematicamente, podemos isomorficamente festas de bailes,
agrupar assim a poesia de Gregório passeios ou cenas picarescas e Com palavras dissolutas
de Matos: pornográficas das ruas, lares e pros- Me concluís, na verdade,
tíbulos de sua terra. Satiriza povo, Que as lidas todas de um frade
clero e fidalgos do tempo, sempre São Freiras, Sermões e Putas.
I – Poesia satírica
com a mesma maldade, muita inteli-
{
amorosa gência e alta consciência poética. A O açúcar já se acabou? ... Baixou.
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Não vês, Nise, este vento desabrido, que arrebate as ideias de Poeta, deixa e a experiência intelectual e social na
Que arranca os duros troncos? Não vês esta, ponderar ambiciosa fadiga de minerar a Europa.
Que vem cobrindo o Céu, sombra funesta,
terra que Ihes tem pervertido as cores.” • Os temas que versou com
Entre o horror de um relâmpago
[incendido?
“A desconsolação de não poder mais frequência foram:
substabelecer aqui as delícias do Tejo, do – o platonismo amoroso, con-
Não vês a cada instante o ar partido Lima e do Mondego, me fez empecer o figurado no amante infeliz e na tris-
Dessas linhas de fogo? Tudo cresta, engenho dentro do meu berço.”
Tudo consome, tudo arrasa e infesta
teza da mudança das coisas em rela-
O raio a cada instante despedido. ção à permanência dos sentimentos;
• Essa visão realista e objetiva – o contraste rústico x civilizado;
Ah! não temas o estrago que ameaça da impossibilidade de transpor para a – a presença de Nise, sua musa
A tormenta fatal; que o Céu destina natureza brasileira as convenções da
Vejas mais feia, mais cruel desgraça:
e pastora, causa de seus lamentos e
poesia arcádica contribuiu para que dissabores:
Rasga o meu peito, já que és tão ferina; se criticasse, em Cláudio Manuel da
Verás a tempestade, que em mim passa; Costa, a ausência do elemento brasi- Aquela cinta azul, que o Céu estende
Conhecerás, então, o que é ruína. leiro. Contudo, a paisagem mineira À nossa mão esquerda, aquele grito
está presente na sua obra, através de Com que está toda a noite o corvo aflito
• Tentou conciliar as conven- alusões à natureza áspera (pedras, Dizendo um não sei quê, que não se
ções do Arcadismo com a paisagem penhas, rochedos, penhascos), que [entende;
mineira, mas reconheceu as limita- o poeta faz contrastar com a
ções que as adversidades da condi- Levantar-me de um sonho, quando atende
brandura de seus sentimentos.
O meu ouvido um mísero conflito,
ção colonial impunham à criação
A tempo, que o voraz lobo maldito
poética. Observem-se estes trechos
... oh! quem cuidara A minha ovelha mais mimosa ofende;
do “Prólogo” das Obras Poéticas:
Que entre penhas tão duras se cria
Encontrar a dormir tão preguiçoso
Uma alma terna, um peito sem dureza.
“que só entre as delícias do Pindo se Melampo, o meu fiel, que na manada
podem nutrir aqueles espíritos que desde Sempre desperto está, sempre ansioso;
o berço se destinaram a tratar com as • Oscilou entre o apego à Colô-
nia e o amor à Metrópole, atitude Ah! queira Deus que minta a sorte irada:
Musas.”
Mas de tão triste agouro cuidadoso1
“Não são estas as venturosas praias comum a muitos dos nossos árcades.
Só me lembro de Nise, e de mais nada.
da Arcádia, onde o som das águas Por isso, é frequente a expressão do
inspirava a harmonia dos versos. Turva e dilaceramento interior, provocado Vocabulário e Notas
feia, a corrente desses ribeirões, primeiro pelo contraste entre o rústico mineiro 1 – Cuidadoso (de): preocupado com.
A Casa dos Contos (vestíbulo), construída em Ouro Preto (1784). Cláudio Manuel da Costa foi um
dos inconfidentes que estiveram presos nessa elegante construção civil, em 1789.
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dos frios gelos e dos sóis queimado. sustentada, Marília, no meu braço;
Ah! enquanto os destinos impiedosos
Tenho próprio casal1, e nele assisto2; ali descansarei a quente sesta,
não voltam contra nós a face irada,
dá-me vinho, legume, fruta, azeite; dormindo um leve sono em teu regaço,
façamos, sim, façamos, doce amada,
das brancas ovelhinhas tiro o leite, enquanto a luta jogam os Pastores
os nossos breves dias mais ditosos8.
e mais as finas lãs, de que me visto. e emparelhados correm nas campinas,
Um coração que, frouxo,
Graças, Marília bela, toucarei6 teus cabelos de boninas7,
a grata posse de seu bem difere9,
Graças à minha Estrela! nos troncos gravarei os teus louvores.
a si, Marília, a si próprio rouba
Graças, Marília bela,
e a si próprio fere.
Graças à minha Estrela!
Eu vi o meu semblante numa fonte,
dos anos inda não está cortado; Ornemos nossas testas com as flores
os pastores, que habitam este monte, Depois que nos ferir a mão da morte, e façamos de feno um brando leito;
respeitam o poder do meu cajado. ou seja neste monte, ou noutra serra, Prendamo-nos, Marília, em laço estreito,
Com tal destreza toco a sanfoninha, nossos corpos terão, terão a sorte gozemos do prazer de sãos amores.
que inveja até me tem o próprio Alceste: de consumir os dois a mesma terra. Sobre as nossas cabeças,
ao som dela concerto a voz celeste; Na campa, rodeada de ciprestes, sem que o possam deter, o tempo corre;
nem canto letra que não seja minha. lerão estas palavras os pastores: e para nós o tempo que se passa
Graças, Marília bela, “Quem quiser ser feliz nos seus amores também, Marília, morre.
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1. Autores épicos do Arcadismo O episódio mais famoso do poe- Pois, se sabes que a tua formosura
ma é o da morte de Lindoia. Cacam- Por força há de sofrer da idade os danos,
bo, o amado da bela índia, foi levado Por que me negas hoje esta ventura?
Basílio da Gama
à morte por uma trama traiçoeira do
(São José do Rio das Mortes, Guarda para seu tempo os desenganos,
horrendo jesuíta Balda. Este agora vai
MG, 1741 – Lisboa, 1795) Gozemo-nos agora, enquanto dura,
conseguir seu intento de casar seu
Sua obra de maior representativi- repulsivo filho Baldeta com a índia, Já que dura tão pouco, a flor dos anos.
dade foi O Uraguai, epopeia em que é filha do cacique. No final do epi-
cinco cantos, com versos sódio, Lindoia, refugiada numa gruta Vocabulário e Notas
decassílabos brancos (sem rimas) e para evitar o casamento indesejado, 1 – Desbaratar: arruinar.
estrofação livre, que narra o conflito escreve por toda a parte o nome do
entre os índios de Sete Povos das amado morto e depois deixa que uma Frei Santa Rita Durão
Missões e o exército luso-espanhol. cobra venenosa Ihe morda o seio. (Cata Preta, MG, 1722 –
No poema, Basílio da Gama tenta Assim o poeta a descreve morta: Lisboa, 1784)
conciliar a louvação de Pombal e do É o autor do poema épico Cara-
Inda conserva o pálido semblante1
heroísmo do indígena. Torna herói o muru, no qual segue o modelo camo-
Um não sei quê de magoado e triste,
niano (dez cantos, versos decassíla-
comissário real português Gomes Que os corações mais duros enternece,
bos em oitava-rima).
Freire de Andrade, fazendo recair Tanto era bela no seu rosto a morte!
Nesse poema, narram-se os acon-
sobre os jesuítas a pecha de vilões. Vocabulário e Notas tecimentos lendário-históricos do nau-
Sobre O Uraguai, pode-se afirmar: 1 – Semblante: rosto. frágio, do salvamento e das aventuras
• nada há no poema que lembre de Diogo Álvares Correia, o Caramuru.
Comentário
as rígidas divisões do poema épico Caramuru destaca-se por apre-
O antológico verso final, com suas alitera-
tradicional, ou seja, do modelo camo- sentar costumes e instituições dos ín-
ções em t e seu tom exclamativo, é imitação
niano; de um verso do poeta italiano Petrarca dios brasileiros, a flora nativa e o
• a natureza é colhida por ima- (séc. XV): Morte bela parea nel suo bel viso, “a sentimento nativista de amor à pátria.
gens densas e rápidas; já não são as morte parecia bela em seu rosto belo.” Assim, Santa Rita Durão prenun-
imagens do Arcadismo, mas sim o ca- cia a figuração romântica do índio:
minho para o paisagismo romântico; Na lírica, suas produções são às
• há o realismo da ação heroica, vezes de alta qualidade, como atesta Nós que zombamos deste povo insano,
e não o fabuloso; o soneto seguinte, em que o lugar- Se bem cavarmos no solar nativo,
• usa-se o sobrenatural (bruxaria -comum do carpe diem é desen- Dos antigos heróis dentro às imagens
indígena); volvido com o emprego de imagens Não acharemos mais que outros selvagens.
de discreto gosto barroco:
• o indígena é tomado como he-
rói, equiparado ao português, prenun- Veja-se a abertura do poema:
Já, Marfiza cruel, me não maltrata
ciando o índio romântico de Saber que usas comigo de cautelas,
Gonçalves Dias e Alencar. De um varão em mil casos agitado,
Qu’inda te espero ver, por causa delas,
Que as praias discorrendo do Ocidente,
Veja-se a abertura do poema: Arrependida de ter sido ingrata.
Descobriu o recôncavo afamado
Fumam ainda nas desertas praias Com o tempo, que tudo desbarata1, Da capital brasílica potente,
Lagos de sangue tépidos1 e impuros2, Teus olhos deixarão de ser estrelas; Do filho do trovão denominado,
Em que ondeiam cadáveres despidos, Verás murchar no rosto as faces belas Que o peito domar soube à fera gente,
Pasto de corvos. Dura inda nos vales E as tranças d’ouro converter-se em prata. O valor cantarei na adversa sorte,
O rouco som da irada artilheria. Pois só conheço herói quem nela é forte.
MUSA, honremos o Herói3 que o povo rude
Subjugou do Uraguai e no seu sangue
Dos decretos reais lavou a afronta. A Morte de Moema,
Ai, tanto custas, ambição de império4!... de Vítor Meireles (1832-1903).
Tanto Moema, do poema
Vocabulário e Notas Caramuru, quanto Lindoia,
1 – Tépido: quente. 2 – Impuro: porque o do poema O Uraguai,
sangue é de indígenas, não cristãos. 3 – Herói: representam antecipações do
o general português que lutou contra os indianismo romântico
indígenas. 4 – Império: domínio. ainda no período neoclássico.
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1. Contexto português Surgiu, como reflexo das “luzes” e 3. Manuel Maria Barbosa
do racionalismo, uma nova Lisboa: du Bocage (1765-1805)
metade da cidade havia sido destruída por
O absolutismo tradicional proclamava um terremoto (1755). Caíram em ruínas o Vida
a subordinação do monarca às leis de palácio real, igrejas, hospital, ópera, ruas e Bocage é o pastor Elmano Sadino da
Deus (leis interpretadas pela Igreja, bairros opulentos. O futuro Marquês de Nova Arcádia. (Elmano é anagrama de
evidentemente), aos costumes do país e Pombal, em vez de reedificar a cidade a Manoel e Sadino é homenagem ao Rio
às leis que o rei promulgava para a nação. partir do traçado anterior, mandou destruir Sado, que passa por Setúbal, terra natal
Em oposição, o despotismo esclarecido as ruínas e decidiu que fosse levantada do poeta.)
entendia que as leis (as de Deus, as uma cidade “esclarecida”: racionalmente Desde cedo, Bocage sentia-se
naturais e as da nação) deveriam ser planejada e edificada, com ruas, praças e identificado com Camões:
interpretadas pelo soberano. casas traçadas a régua e compasso.
Esse período começou, em Portugal, Enquanto a nova Lisboa revelava a Camões, grande Camões, quão semelhante
a partir de 1755, com o reinado de D. José ideologia racional dos iluministas, houve em Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
(1750-1777). Seu grande mentor foi o Portugal a convivência com o estilo tenso do
Jovem ainda, apaixonou-se por
Marquês de Pombal, que, em parte, Barroco: o ouro que ia do Brasil para Portugal
Gertrudes (Gertrúria da poesia árcade),
adotou teorias de alguns pedagogos e o vinho exportado para a Inglaterra
mas, ao voltar a Lisboa — depois de ter
portugueses que tinham vivido no exterior levaram prosperidade ao reino,
acarretando a construção de mansões ido servir em Goa, colônia portuguesa, e
(pejorativamente chamados de “estran-
aristocráticas que seguiram as formas de ir a Macau, tendo já desertado —, o
geiros”): Luís Antônio Verney, Ribeiro
tradicionais do Barroco. poeta a reencontra casada com seu
Sanches, colaborador da Enciclopédia, de
A renovação cultural que se processou irmão:
D’Alembert, entre outros.
No Direito, o fundamento político dos levou também à substituição da influência
Por bárbaros sertões gemi, vagante:
espanhola pelas influências francesa,
Estados ilustrados era a Razão. A lei de Falta-me ainda o pior, falta-me agora
italiana, inglesa e alemã. Ver Gertrúria nos braços de outro amante.
1790, unificando a jurisdição em todo o
país, constituiu um novo passo no sentido
de romper os privilégios feudais e impor a 2. O Arcadismo em Portugal Boêmio, conheceu a vida devassa.
todos a autoridade única da Coroa. Em 1797 foi preso e processado pelas
Além do Direito, o lluminismo de- Com a fundação da Arcádia Lusitana, ideias anticatólicas e antimonarquistas.
sempenhou um papel decisivo na cultura, em 1756, teve início uma nova fase no Depois de meses de prisão, conseguiu
sobretudo na educação regular. O atraso setor doutrinário: a Arte Poética de Cândi- sua transferência para o Mosteiro de São
do Lusitano, inspirada em Boileau. A Bento.
do sistema de ensino português era
rebeldia contra o Barroco (inutilia truncat) e Dizem os biógrafos que de lá ele saiu
grande. O Estado despótico adotou a
a tentativa de restabelecer a simplicidade arrependido e transformado.
política da intervenção direta no sistema
das artes renascentista e antiga perten-
cultural, mediante a censura do Estado (a O certo é que Bocage, ao ser liberta-
cem a um contexto em que as discussões
censura religiosa foi substituída pela Real do, passou a viver de traduções,
literárias estão em comum acordo com
Mesa Censória, de 1768). O ensino sustentando a si e a sua irmã.
discussões e reformas de ordem legal.
jesuítico foi proibido e substituído por Em vida, o poeta publicou Idílios
Em 1790 foi fundada a Academia das
uma educação renovada e mais Marítimos, recitados na Academia das
Belas Artes, logo depois denominada
progressista. Verney, com seu Verdadeiro Nova Arcádia. Três anos depois, a Belas-Artes (1791) e Rimas (três volumes:
Método de Estudar (1746), cobriu todos Academia já publicava algumas obras 1791, 1799 e 1804).
os campos da Educação. As reformas poéticas de seus sócios, sob o título
educacionais envolviam o conhecimento Almanaque das Musas. Seus integrantes A lírica de Bocage
da escrita, línguas, humanidades (retórica, mais importantes foram Domingos Caldas Como lírico, é da maior importância.
poesia e história), ciências (aritmética, Barbosa (1740-1800), brasileiro que ficou Cultivou a lírica elegíaca, a bucólica e a
geometria, álgebra, óptica etc.), dança, famoso nos ambientes aristocráticos pela amorosa, exprimindo-se em odes, elegias,
esporte. A Universidade de Évora, cujos interpretação e composição de modinhas canções, epístolas, sonetos etc. É
proprietários eram jesuítas, foi extinta. e lundus, e Padre José Agostinho de especialmente no soneto que ele
A educação libertou-se do controle da Macedo, poeta satírico. Com ele se evidencia seu alto talento lírico, sendo
Igreja, com base no princípio iluminista de desentendeu o poeta Bocage e, por causa invariavelmente considerado um dos três
que a Razão é a fonte de todo o das divergências internas, a Nova Arcádia, maiores sonetistas da língua, ao lado de
conhecimento. em 1794, acabou desaparecendo. Camões e Antero de Quental.
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Evolução da lírica – a imposição do eu: o subjetivismo; Prazeres, sócios meus e meus tiranos!
bocagiana: o conflito – a presença da morte, da poesia Esta alma, que sedenta em si não coube,
razão versus sentimento noturna e fúnebre: o locus horrendus No abismo vos sumiu dos desenganos.
Pode-se dividir em duas fases a substitui o locus amoenus da primeira fase;
poesia lírica de Bocage: – o pessimismo, o fatalismo e a Deus, ó Deus!... Quando a morte à luz me
poesia confessional. [roube,
Ganhe um momento o que perderam anos,
• Primeira fase:
Saiba morrer o que viver não soube.
a lírica arcádica A poesia satírica de Bocage
É marcada pela maior presença de Ainda que considerada inferior à
regras e convenções trazidas pelo lírica, a sátira de Bocage, vítima de severa ***
Arcadismo. O poeta adota uma atitude de repressão, foi o aspecto que mais se
Incultas produções da mocidade
artificialismo poético, cercando-se de popularizou, gerando um anedotário Exponho a vossos olhos, ó leitores:
imagens mitológicas e clássicas, para as fescenino que a imaginação do povo veio Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
quais transpõe os seus infortúnios ampliando com o tempo: Que elas buscam piedade, e não louvores:
(fingimento poético). Bocage procura
sujeitar-se ao racionalismo clássico, mas o
Lá quando em mim perder a humanidade Ponderai da Fortuna a variedade
seu temperamento e sensibilidade impe-
Mais um daqueles que não fazem falta, Nos meus suspiros, lágrimas e amores:
lem-no a uma expressão mais emotiva e
Verbi-gratia1 — o teólogo, o peralta, Notai dos males seus a imensidade,
pessoal. Começa a impor-se o eu tumul-
Algum duque, ou marquês, ou conde, ou A curta duração dos seus favores:
tuoso do artista contra a impessoalidade e
[frade;
o fingimento da poesia árcade.
E, se entre versos mil de sentimento
Não quero funeral comunidade Encontrardes alguns cuja aparência
• Segunda fase: Que engrole2 sub-venites3 em voz alta; Indique festival contentamento,
a lírica pré-romântica Pingados gatarrões 4, gente de malta 5,
O que melhor o distingue nessa nova Eu também vos dispenso a caridade; Crede, ó mortais, que foram com violência
fase é a matéria psicológica que traz pela Escritos pela mão do Fingimento,
primeira vez à poesia portuguesa: o Mas, quando ferrugenta enxada idosa Cantados pela voz da Dependência.
sentimento agudo da personalidade, que Sepulcro me cavar em ermo outeiro 6,
o faz retratar-se, gritar o seu remorso e o Lavre-me este epitáfio mão piedosa: ***
horror do aniquilamento na morte. Esta Marília, se em teus olhos atentara1,
última é uma ideia que constantemente o “Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
Do estelífero2 sólio3 reluzente,
Passou vida folgada e milagrosa;
persegue. Revolta-se ainda contra a Ao vil mundo outra vez o onipotente,
Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro.”
humilhação da dependência e contra o O fulminante Júpiter baixara 4.
despotismo em nome da Razão. Cultiva o
fúnebre e o noturno, exprime clamores de Vocabulário e Notas Se o deus que assanha as Fúrias te avistara,
ciúme, de blasfêmia ou contrição. É o 1 – Verbi-gratia: por exemplo. 2 – Engrolar: enrolar, As mãos de neve, o colo transparente,
pessimismo e o fatalismo que invadem a recitar de qualquer jeito. 3 – Sub-venites: salmos. Suspirando por ti, do caos ardente
poesia bocagiana. 4 – Gatarrão: gato. 5 – Gente de malta: gente de Surgira à luz do dia e te roubara.
Percebe-se que o Bocage dessa fase má fama, ralé. 6 – Outeiro: colina, monte.
é pré-romântico: procura expressões Se a ver-te de mais perto o Sol descera,
novas para transmitir suas confissões, o Textos como esse foram utilizados No áureo carro veloz dando-te assento,
arrependimento, a tensão dramática, o para fundamentar a prisão do poeta. Até da esquiva Dafne5 se esquecera.
sofrimento moral. Para ser inteiramente
romântico, falta libertar-se por completo E se a força igualasse o pensamento,
de sua formação neoclássica. Isso talvez TEXTOS Ó alma de minh’alma, eu te of’recera
tenha diminuído a temperatura dramática Com ela a Terra, o Mar e o Firmamento.
de sua poesia. De qualquer forma, é um
Meu ser evaporei na lida insana Vocabulário e Notas
dos maiores poetas da língua portuguesa,
Do tropel de paixões que me arrastava;
tornando-se a sua obra o grande elo entre 1 – Atentara: atentasse; ver também as formas
Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
o melhor da poesia clássica, a de verbais nos versos 5 e 9. 2 – Estelífero: estrela-
Em mim quase imortal a essência humana.
Camões, e a que vingaria no Roman- do. 3 – Sólio: trono; sólio estelífero: céu. 4 – Bai-
tismo, caracterizada pelo signo da revolta De que inúmeros sóis a mente ufana xara: baixaria; ver também as formas verbais
e da mais profunda insatisfação. Existência falaz me não dourava! nos versos 8, 11 e 13. 5 – Dafne: ninfa da mito-
Sintetizando-se as antecipações ro- Mas eis sucumbe a Natureza escrava logia grega que, para esquivar-se do assédio de
mânticas de Bocage, vale enfatizar: Ao mal que a vida em sua origem dana. Apolo, acaba sendo transformada em loureiro.
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Características
formais e temáticas
• A ruptura com a
disciplina clássica
Na poesia desaparecem as for-
mas fixas, predominando a liberdade
quanto à extensão do poema e quan-
to aos temas e à natureza dos versos
e estrofes. A poesia aproxima-se do
tom coloquial da prosa, e a prosa
ganha inflexões poéticas. O conto,
a novela e o romance tornam-se
gêneros muito difundidos e ganham
respeitabilidade.
O teatro rompe com a lei das
três unidades e manifesta-se em
prosa. O gênero épico ganha inúme-
ras modalidades e perde o rigor clás-
sico; desaparecem as sugestões fun-
dadas na mitologia greco-romana.
A liberdade, a flexibilidade e a
A Liberdade Guiando o Povo, de Eugène Delacroix (1798-1863). O quadro é uma exaltação das ideias mistura de gêneros tornam relativos
liberais que se associam ao Romantismo. O jovem de cartola e com um fuzil na mão é o próprio pintor, todos os valores.
um aristocrata que, em 1830, entusiasmou-se com as ideias libertárias.
Retomando alguns aspectos do
Barroco (o impulso pessoal, a intensi-
1. Romantismo -Naturalismo, o Parnasianismo, o dade, a irregularidade), o Romantis-
mo constitui o primeiro grande estilo
Simbolismo e o Modernismo.
moderno do Ocidente. Renova-se a
Contexto A burguesia, instalada então no
língua, com a incorporação da
O Romantismo é o movimento poder após aquelas revoluções, mas linguagem oral e do neologismo. A
cultural que reflete as ideias e ideais sem a tradição e o prestígio da nobre- superação do repertório linguístico
da burguesia recém-chegada ao po- za, já decaída, instaura nova perspec- dos clássicos possibilita uma dicção
der. É, no plano intelectual, uma revo- tiva estética: em vez dos procedimen- mais solta e mais compatível com o
tos artificiosos da cultura clássica — gosto e com o entendimento da
lução que corresponde ao que, no
burguesia e das camadas populares.
plano político, foi a Revolução Fran- imitação da natureza, razão, ordem,
cesa (1789) e as outras revoluções equilíbrio, harmonia, impessoalidade • O predomínio da
burguesas (de 1770 e 1848) e, no etc. —, a arte agora expressa os imaginação e da emoção
– O subjetivismo
plano tecnológico, ao que foi a Revo- aspectos tumultuosos e pessoais da
A manifestação do subjetivismo
lução Industrial (por volta de 1750). existência, como a paixão, o amor, o
corresponde ao predomínio da função
Os movimentos culturais ocor- sonho, o devaneio, a loucura, a emo tiva ou expressiva da lin -
ridos após a Idade Média — Renas- morbidez, o tédio, o espírito de guagem.
cimento, Barroco e Arcadismo —, rebeldia, o ímpeto revolucionário, a A metáfora é, mais uma vez, o
apesar de suas diferenças, são todos infância e a religiosidade. No lugar do instrumento pelo qual a imaginação
pertencentes à Era Clássica, que tem universalismo da arte clássica, o descobre semelhanças onde há dis-
Romantismo propõe o particularismo paridade. Daí a riqueza das imagens
como fundamento socioeconômico o
e a ousadia das aproximações, fer-
fato de a nobreza estar no poder. O do indivíduo (subjetivismo) e do país
mentando um discurso pomposo,
Romantismo inaugura a Era Român- (nacionalismo); em vez da repetição do colorido, carregado de adjetivos. A
tica, que, a despeito também de suas que a tradição consagra, os românticos realidade confunde-se com a fanta-
diferenças, inclui ainda o Realismo- valorizam a originalidade, o novo. sia, e a percepção das coisas torna-se
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mais importante do que elas pró- contra os exércitos francês e mantismo, é representado por três
prias. A intensidade da emoção, o im- espanhol, e o país fica em situação autores: Almeida Garrett, Alexandre
pulso, por vezes o tumulto, fazem lastimável: saques, perseguições e Herculano e Antônio Feliciano de Cas-
fre quentes as inter jeições, os uma política insustentável — tilho, cujas obras têm ainda fortes
pontos de exclamação e as reticên- simultaneamente protetorado inglês ressonâncias neoclássicas. Esses
cias, a dupla pontuação e as após- e colônia do Brasil. autores marcam-se pela presença do
trofes violentas. A regência do general Beresford, a
medievalismo, que fascinou o grupo
• O nacionalismo vai buscar revolta do exército (1820), a Junta Pro-
coimbrão do Romantismo.
suas fontes no passado histórico e visória, as eleições para as cortes, o
lendário (na Idade Média, para os eu- Camões (1825), de Garrett (o
regresso de D. João Vl a Portugal, a
ropeus; na figura do índio e na autor mais ativo do grupo), foi marco
nova Constituição e a Independência do
natureza, nos países da América). inicial do movimento, que só se con-
Brasil abrem um período de revoluções
Desenvolve-se o gosto pelo exótico, solidou na década de 1830. São des-
e contrarrevoluções, contrapondo abso-
pela cor local e pelas manifes- lutistas e liberais de diversos matizes, o sa época as primeiras traduções para
tações nacionais e populares. que se estenderá até 1851, quando o o português das obras de Walter
governo da Regeneração, por meio de Scott e a publicação de A Voz do
• O idealismo – Profeta, de Alexandre Herculano;
Saldanha, assume o poder, apoiado
A insatisfação – • O segundo momento (1840-
O escapismo pela burguesia unificada.
É nesse contexto que se desen- 1850) representa a transição entre o
(fuga da realidade)
volve o Romantismo português, cujos medievalismo e a observação da
O mundo real sempre frustra o
marcos cronológicos são: realidade. É a fase do ultrarroman-
idealismo romântico. Daí a rebeldia
Início: 1825 – Publicação do tismo, das novelas passionais de
dos poetas do mal do século. Esse de-
poema Camões, de Almeida Garrett; Camilo Castelo Branco e da poesia
sejo de fugir à realidade manifesta-se
Término: 1865 – Eclosão da mórbida de Soares Passos;
em atitudes como: a morbidez; o de-
sejo de morrer; a boêmia desbragada; “Questão Coimbrã”, que marca o • O terceiro momento (1850-
o culto da solidão; a evasão no tempo início do período realista. 1865) representa a aliança do Ro-
(a busca do passado, a antevisão do mantismo com as antecipações do
A evolução do Realismo. Júlio Dinis, com o romance
futuro e a abominação do presente); a
Romantismo em Portugal de costumes, foi fundamental na
evasão no espaço (a busca de lugares
Há três momentos (ou gerações) caracterização da classe média urba-
longínquos, exóticos, o gosto pelas ruí-
nas, a poesia noturna e fúnebre) etc. que podem resumir a evolução do na e rural. João de Deus, na poesia,
• Ilogismo Romantismo português: atacou duramente a venalidade do
A negação da lógica e da razão e • O primeiro momento (1825- regime da Regeneração, antecipando
a instabilidade emocional manifes- 1840), a fase de implantação do Ro- a atitude crítica dos realistas.
tam-se por meio de atitudes anti-
téticas — alegria/tristeza, euforia/ de-
pressão, desejo/autopunição, religio-
sidade/satanismo.
• Idealização da mulher
Anjo ou demônio, inacessível, po-
derosa, a mulher, para os românticos,
é capaz de alterar a vida do homem,
levá-lo à loucura e à morte.
2. Romantismo em Portugal
hábito: durante a cerimônia, Maria de • Historiografia O sino os simples sons pelas quebradas
Noronha, única filha do casal, morre a História de Portugal Da cordilheira, anunciando o instante
seus pés. Manuel de Sousa Coutinho, História da Origem e Estabe- Da Ave-Maria; da oração singela,
no convento, adotou o nome Frei Luís lecimento da Inquisição em Portugal Mas solene, mas santa, em que a voz do
de Sousa. [homem
• Coleção Documental Se mistura nos cânticos saudosos,
2. Alexandre Herculano de – edição Que a natureza envia ao céu no extremo
Carvalho e Araújo (1810-1877) Portugaliae Monumenta Historica Raio de Sol, passando fugitivo
Na tangente deste orbe 5, ao qual trouxeste
• Polêmica (Ensaios) Liberdade e progresso, e que te paga
Opúsculos Com a injúria e o desprezo, e que te inveja
A Questão Eu e o Clero Até, na solidão, o esquecimento!
(...)
Herculano — o poeta
Só realizou poesia na mocidade, Vocabulário e Notas
até os 25 anos, sob influência de 1 – Préstito: procissão.
Chateaubriand e Victor Hugo. Sua 2 – Adro: pátio externo, localizado em frente ou
poesia é reflexiva, solene, séria, em torno a uma igreja.
contrapondo-se ao lirismo sentimen- 3 – Presbitério: igreja paroquial.
tal e intimista de Garrett. O lirismo 4 – Núncio: anunciador.
amoroso não existe em Herculano. 5 – Orbe: mundo.
Os temas de que tratou são
Vida românticos: a Religião, a Pátria e a Comentário
De origem humilde, foi quase Natureza. A poesia é uma vibrante afirmação de fé e
autodidata. Estimulado pela Marque- Formalmente, Herculano distan- uma condenação ao desprezo e ingratidão dos
sa de Alorna, sua protetora, inicia-se cia-se do à vontade de Garrett, reali- homens. Foi escrita em versos brancos (sem
na literatura e na historiografia. Como zando uma poesia rica em símbolos e rima) em algumas passagens, e o poeta utiliza-
Garrett, empenha-se nas lutas expressando-se num tom solene, se de várias estruturas estróficas.
liberais e conhece o exílio. grave, reflexivo, e com uso frequente
De volta a Portugal, passa pelos de hipérbatos (inversões sintáticas): O romance histórico
Açores, pelo Porto e pela Biblioteca de Herculano
da Ajuda. Publica nessa época A Voz A CRUZ MUTILADA
do Profeta, inspirado em Paroles d’un • Lendas e Narrativas
Amo-te, ó cruz, no vértice firmada Reaproveitam a prosa medieval
Croyant, de Lamennais.
De esplêndidas igrejas; (os nobiliários, os cronicões e as
Na direção da revista O Pano-
Amo-te quando à noite, sobre a campa, obras de Fernão Lopes e Rui de Pina),
rama, publica Lendas e Narrativas e
Junto ao cipreste alvejas;
O Bobo. Como membro da Academia recriando essas fontes documentais,
Amo-te sobre o altar, onde, entre incensos,
de Ciências, organizou a publicação que emprestam cor local às tramas
As preces te rodeiam;
de Portugaliae Monumenta Historica. romanescas, aclimatadas em diver-
Amo-te quando em préstito1 festivo
Desgostoso com os rumos políti- sos períodos da Idade Média.
As multidões te hasteiam;
cos do país, afastou-se da vida públi- Não há unidade de ação, e o
Amo-te erguida no cruzeiro antigo,
ca, retirando-se para a sua quinta em autor interrompe a narrativa com fre-
No adro2 do presbitério 3,
Vale de Lobos. Nessa época aban- quentes reflexões morais, religio-
Ou quando o morto, impressa no ataúde,
dona a literatura e passa a dedicar-se, sas, políticas e com evocações his-
Guias ao cemitério;
até a morte, à vida do campo. tóricas (tumultos, procissões, am-
Amo-te, ó cruz, até quando no vale
Foi poeta, romancista, historiador bientes interiores e exteriores) que
Negrejas triste e só,
e polemista. reconstroem a cor local com rigor
Núncia4 do crime, a que deveu a terra
histórico.
Do assassinado o pó:
Obras Entre as Lendas e Narrativas,
Porém quando mais te amo,
destacam-se:
• Poesia Ó cruz do meu Senhor,
– “Alcaide de Santarém” – acli-
Poesias, incluindo “A Harpa do É, se te encontro à tarde,
matada na época de dominação árabe;
Crente” e “A Cruz Mutilada” Antes de o Sol se pôr.
– “Dama Pé-de-Cabra” – narrada
à maneira das velhas avós que relata-
• Prosa de Ficção (...) vam suas lendas e crendices, em
O Bobo tom poético e levemente zombeteiro;
Eurico, o Presbítero e O Monge (...) – “O Bispo Negro” – em que
de Cister, reunidos sob o título No pedestal musgoso, em que te ergueram avulta o nacionalismo na reconstitui-
Monasticon Nossos avós, eu me assentei. Ao longe, ção da personalidade afirmativa e
Lendas e Narrativas Do presbitério rústico mandava dominadora de D. Afonso Henriques;
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– “A Morte do Lidador” – centra- vocação, mas por fuga a amores fra- E quase a um tempo dois pesados golpes
da na bravura e destemor de Gonçalo cassados ou por buscarem um en- de franquisque assinalaram profundamente os
Mendes da Maia, à maneira das contro com suas consciências. elmos de Opas e Juliano. No mesmo momento
novelas de cavalaria medievais; A religião é o complicador do mais três ferros reluziram.
– “Arras por Foro de Espanha” – conflito sentimental de Eurico e Um contra três! — Era um combate
novela histórica em torno de serve aos intuitos vingativos de calado e temeroso. O cavaleiro da Cruz parecia
D. Leonor Teles; Vasco. A época histórica de Eurico é a desprezar Mugueiz: os seus golpes retiniam só
– “O Pároco da Aldeia” – novela do domínio árabe. Por carência de nas armaduras dos dois Godos. Primeiro o
campesina que terá desdobramento bases documentais, Herculano recor- velho Opas, depois Juliano caíram.
na obra de Júlio Dinis. Apologia do re à intuição para nos dar o choque Então, recuando, o cavaleiro cristão
cristianismo, sem qualquer ranço de duas civilizações: a dos árabes, exclamou:
anticlerical. bárbara, violenta, e a dos godos, já “Meu Deus! Meu Deus! — Possa o
caldeada pelo cristianismo. O roman- sangue do mártir remir o crime do Presbítero!”
• O Bobo ce é mais poético do que histórico e, E, largando o franquisque, levou as mãos
talvez por isso, menos do agrado de ao capacete de bronze e arrojou-o para longe
Romance histórico, aclimatado no
Herculano (por ferir seus escrúpulos de si.
castelo de Guimarães, na época das
de historiador rigoroso). Mugueiz, cego de cólera, vibrava a espada:
figuras legendárias de Afonso Henri-
O narrador é onisciente. O autor o crânio do seu adversário rangeu, e um jorro de
ques e Egas Moniz. Dom Bibas é um
ocupa sempre o primeiro plano, sangue salpicou as faces do Sarraceno.
enjeitado que diverte a corte com
seus defeitos físicos e seus gracejos. mesmo no diálogo, por meio do qual
exprime as suas ideias, ou em suas E, na sequência do desfecho,
Desprezado como o “bobo-da-corte”,
divagações e comentários, nos quais quando Pelágio constata que Her-
acabou por auxiliar os portugueses na
o tom saudosista (poético) se mengarda, sua irmã, enlouquecera:
independência.
mistura com uma ironia quase
agressiva muito característica de Nessa noite, quando Pelágio voltou à
• Eurico, o Presbítero –
Herculano em Eurico. caverna, Hermengarda, deitada sobre o seu
Monasticon
Há três partes distintas na obra: a leito, parecia dormir. Cansado do combate e
No tempo em que godos e ára- vendo-a tranquila, o mancebo adormeceu,
bes lutavam na Península Ibérica (sé- primeira apresenta a pancronia da
época; a segunda introduz e carac- também, perto dela, sobre o duro pavimento da
culo Vlll), havia um godo, Eurico, que gruta. Ao romper da manhã, acordou ao som de
teriza as personagens na ação, que,
escolhera o sacerdócio como meio canto suavíssimo. Era sua irmã que cantava um
na terceira parte, surge clara e em
para curar-se do amor impossível por dos hinos sagrados que muitas vezes ele ouvira
seu pleno desenvolvimento, até a
Hermengarda e que vazava seu tor- entoar na catedral de Tárraco. (...)
conclusão. Isso contraria a estrutura
mento passional em poemas e can- Quando Hermengarda acabou de cantar,
da epopeia clássica e do romance
ções que logo se fizeram conhecidos ficou um momento pensando. Depois, repen-
realista, que iniciam a narrativa em
por toda parte. Com o acirramento da tinamente, soltou uma destas risadas que
pleno desenrolar da ação.
guerra entre godos e árabes, Eurico fazem eriçar os cabelos, tão tristes, soturnas e
A linguagem majestosa, ritmada,
abandona o hábito e, tornando-se o rica de lirismo e de comparações dolorosas são elas: tão completamente expri-
Cavaleiro Negro, consagra-se como sugestivas permite a classificação co- mem irremediável alienação do espírito.
herói de lendárias façanhas. Nem por mo poema (ao que se acresce a A desgraçada tinha, de feito, enlouque-
isso o êxito sorri aos cristãos. forma literalizante, vernácula, arcai- cido.
Hermengarda é raptada pelos árabes. zante e o tom levemente irônico). (Alexandre Herculano, Eurico, o Presbítero)
Eurico enfrenta todos os perigos para O colorido na recriação da
salvá-la. Em delírio, a moça confessa época e da paisagem tem o caráter
a Eurico que o ama. O desespero da de uma crônica histórica.
revelação (ele era, agora, um padre) Pelo trabalho inventivo, ficcio-
leva-a à loucura, e Eurico morre em nal, é um romance.
escaramuça contra os inimigos. A grandiosidade, a nobreza das
personagens, os lances violentos,
Observações a unidade de ação e o desenrolar
fatídico dos acontecimentos fazem
Eurico, o Presbítero constitui com de Eurico um aparentado da
O Monge de Cister uma dupla novela, tragédia.
aglutinada sob o título Monasticon, Assim, lido como poesia, como
que pretende examinar a questão do crônica, como romance e como
celibato clerical à luz do sen- tragédia, Eurico é a obra-prima de
timento. Herculano, e uma das joias literárias
A tese não se prova porque a hi- de Portugal.
pótese é apresentada recorrendo-se A seguir, transcrevemos o
a duas figuras — Eurico e Vasco —, momento em que Eurico se entrega, Estátua de Alexandre Herculano na
que se fizeram sacerdotes, não por voluntariamente, à morte: Câmara Municipal de Lisboa.
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1. Camilo Castelo Branco Há instabilidade literária e falta de tica social decalcado no tema realista
(1825-1890) concisão no enredo; é perceptível a do adultério e na observação perso-
influência de Ann Radcliffe, Eugênio nalizada da realidade.
Vida Sue, Alexandre Dumas, Victor Hugo.
Teve vida atribulada. Filho natural, As personagens são representa- • Poesia
perdeu a mãe aos dois anos e o pai tivas da miséria, dor, crime, corrup- Pundonores Desagravados, O
aos dez. Viveu sucessivamente com ção, perversão. É notória a influência Juízo Final e o Sonho do Inferno, A
uma tia, até os 14 anos, e com uma de seus estudos médicos. Murraça, Nas Trevas.
irmã. Casou-se aos 16 anos. Aos 21, Já se percebem nessas obras os
já separado da mulher, rapta uma elementos passionais que marcarão a • Teatro
senhora em Vila Real. São segunda fase e a intenção crítica que Agostinho de Ceuta, O Marquês
aprisionados. Cursa, sem concluir, amadurecerá na terceira. das Torres Novas, A Morgadinha de
Medicina e Engenharia e frequenta o Segunda Fase – A Novela Pas- Val d’Amores.
seminário. Envolve-se com uma sional: Amor de Perdição, Amor de
freira. Em 1857, conhece Ana Salvação e A Queda dum Anjo (novela • Vária
Plácido, sua grande paixão. A moça, satírica). Essa fase representa a Compreendendo crônicas, crítica
casada por imposição familiar, foge maturidade. literária, escritos sobre história, me-
do marido e junta-se com Camilo. Amor de Perdição, obra que mórias etc.
Ambos são presos por dois anos. Na confere notoriedade ao autor, apre-
prisão, Camilo escreve, em quinze senta enredo conciso, equilibrado, Características da novela
dias, sua obra-prima — Amor de sem personagens dispensáveis e passional camiliana
Perdição —, que esteve na iminência quase sem digressões. A linguagem • Esquema folhetinesco tradi-
de ser rasgada pelo autor. Com a é adequada: é romântica na corres- cional: amor impossível, adúltero,
morte do marido de Ana Plácido, ela e pondência Simão–Teresa; é popular, incestuoso, que se engrandece em
Camilo são libertados e vão viver em direta, coloquial em João da Cruz; face das dificuldades, tornando-se
São Miguel de Seide. irônica e caricatural, quando envol- eterno;
Entregue à redação de suas ve as freiras do convento. • Amor fatal, obsessivo, tão
obras, nas quais tem seu ganha-pão, Há elementos de poesia, de grandioso que não pode ficar restrito
Camilo leva existência difícil, pela novela e de tragédia, perpassados ao campo terreno;
falta de dinheiro, pela loucura de um de forte humanismo, que conferem à • Desenlaces trágicos, com a
filho — Jorge — e pela cegueira obra vigor e grandiosidade. expiação transcendental das culpas
ameaçadora. Em 1.o de junho de Terceira Fase – A Antecipação dos amantes: morte, suicídio, lou-
1890, já cego, Camilo suicida-se. Realista: Eusébio Macário, A Corja, cura, ida para um convento;
A Brasileira de Prazins e Vulcões de • Como Balzac e Sue, procurava
enredar emocionalmente o leitor, jo-
Obras Lama.
gando com suas expectativas. Mesmo
• Novela: dentre as 58 que O poder de observação desce ao
trabalhando esquemas narrativos já
escreveu, destacamos: pormenor descritivo, com uma lingua-
incorporados ao gosto do leitor, Camilo
Primeira Fase – Iniciação: gem mais próxima da classe popular.
inovou a escrita literária portuguesa.
narrativas de mistério e novelas de As personagens, extraídas das ca-
Afastou o empolamento retórico e re-
assunto histórico: Anátema, Carlota madas populares, não destoam da ga-
novou o vernáculo castiço, comuni-
Ângela, Onde Está a Felicidade?, Um leria camiliana: são enjeitados, mulhe-
cando-se com o grande público, sem
Homem de Brios e Memórias de res moralmente fracas, tísicos, loucos,
deixar de fazer obra de arte.
Guilherme do Amaral. adúlteros, beberrões, mal-amados etc.
Os romances dessa fase marcam-se Pretendendo criticar e ironizar o Amor de Perdição
pelo tom macabro, terrífico, com romance naturalista, parece que Dois jovens, Simão Botelho (rico
tendências para o melodrama (ódios, Camilo acaba por aderir à nova ten- fidalgo) e Teresa Albuquerque, estão
vinganças, fatalismo). dência, realizando o romance de crí- enamorados. As respectivas famílias,
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separadas por velhas questões, não À voz do comandante desamarraram rapi- como memórias dum tal Silvestre
veem com bons olhos tal afeição e damente o bote, e saltaram homens para da Silva. Este teria escrito essas
tentam de vários modos afastá-los, salvar Mariana. memórias em idade já madura,
chegando até a enviar Simão para Salvá-la!... reflexiva, capaz de autoironia. Ao
Coimbra e a obrigar Teresa a ingressar Viram-na, um momento, bracejar, não para evocar, na primeira parte (Coração),
num convento por não se casar com resistir à morte, mas para abraçar-se ao cadá- amores da juventude, frutos de
seu primo Baltasar Coutinho. Diante ver de Simão, que uma onda lhe atirou aos imaginação inquinada de literatura,
braços.
disso, os jovens planejam uma fuga e, Silvestre denuncia o vazio do
(Amor de Perdição)
quando Simão se dirige ao convento, Ultrarromantismo, que escondia sob
encontra, às portas desse, o pai e o um palavreado sublime a caça
Características da novela
primo de Teresa. Trava-se, então, uma erótica. A segunda parte (Cabeça),
satírica camiliana
luta entre o último e Simão. Baltasar menos bem-humorada, é uma
Ainda que sejam contemporâneas
acaba morto. Simão é preso e con- invectiva à burguesia portuense e ao
denado ao exílio. Faz-lhe companhia a das novelas passionais, as novelas jornalismo que a bajulava. A terceira
pobre Mariana, moça simples, que o satíricas de costumes representam parte (Estômago) contém as
ama sem ser correspondida e que lhe o avesso do idealismo sentimental, melhores páginas. Glosando o tema
tem sido um anjo da guarda. Enquanto dando-nos o quadro de uma vida a cidade e o campo, Silvestre exalta
Teresa definha no convento, atacada totalmente dirigida pela sordidez, pela a vida rústica, sã, instintiva, patriarcal,
por um mal incurável, o moço aguarda ambição de riqueza, pelos prazeres do com a poesia forte da ingenuidade. O
a hora de partir. O barco larga. Simão estômago e do sexo, pela ânsia hedonismo impregna as descrições e
avista, ao longe, o convento de hipócrita de supremacia social, as falas, castiças, de flagrante
Monchique e o lenço branco de Teresa disfarçada, às vezes, pela retórica verdade, dando suculência e cor ao
acenar debilmente. Sobrevém-lhe idealizante do sentimentalismo e das próprio estilo. Mas, para o inquieto
repentina febre, que o prostra à morte. nobres intenções sociais. Camilo, a vida aldeã não é também a
É sepultado no mar. Mariana lança-se Na novela satírica de costumes ou chave da ventura: o final desengana o
ao mar e morre abraçada ao cadáver nas paródias satíricas dos enredos leitor: Silvestre, no campo,
de Simão. passionais predomina o tom grotesco estupidifica-se, por excesso de
O trecho a seguir corresponde a de farsa, com que Camilo retrata o “imobilidade e cansaço das molas
essa passagem: tipo filho-família, boçal e libidinoso, digestivas”.
ou do novo-rico brasileiro. O adultério É esta a obra de Camilo na qual se
— Agora é tempo de dar sepultura ao
e a sedução apresentam-se com uma reúnem características semeadas por
nosso venturoso amigo... É ventura morrer
luz irônica, que os reduz a casos toda a sua produção literária, como
quando se vem a este mundo com tal estrela.
picarescos ou de anedotário picante, se, indo buscar pedaços de cada
Passe a senhora Mariana ali para a câmara, que
personagem já criada, concluísse o
vai ser levado daqui o defunto. apesar de o autor erguer, de quando
puzzle da sua galeria de tipos.
(...) em quando, um véu de considera-
O autor esmerou-se para nos
Foi o cadáver envolto num lençol e trans- ções moralistas. É o que cabalmente
portado ao convés.
presentear com uma das melhores
exemplificam as aventuras amorosas
Mariana seguiu-o. Do porão da nau foi
novelas satíricas em língua portu-
em que Silvestre da Silva se envolve
trazida uma pedra, que um marujo lhe atou às guesa. Nela desvenda as misérias de
na primeira parte de Coração, Cabeça
pernas com um pedaço de cabo. O comandan- uma sociedade que se compraz na
e Estômago. O coração é o disfarce vulgaridade e na hipocrisia,
te contemplava a cena triste com os olhos úmi-
para as mais variadas incursões praticando todo o gênero de
dos, e os soldados que guarneciam a nau, tão
eróticas do herói-memorialista. excessos e orientando todas as suas
funeral respeito os impressionara, que insensi-
Camilo esmera-se em traçar cari- energias para a cupidez, a brutalidade
velmente se descobriram.
Mariana estava, no entanto, encostada ao
caturas das motivações digestivas, e ânsia de ascensão social.
flanco da nau, e parecia estupidamente encarar sexuais ou econômicas, revestindo Coração, Cabeça e Estômago é o
aqueles empuxões que o marujo dava ao cadá- farsescamente essas motivações percurso de Camilo pela vida de
ver, para segurar a pedra na cintura. inferiores com nobres ideais, sempre Silvestre da Silva. Escrito pelo punho
Dois homens ergueram o morto ao alto desmascarados no final. do próprio Silva em apontamentos
sobre a amurada. Deram-lhe o balanço para o soltos, que o autor, seu amigo, teria
arremessarem longe. E, antes que o baque do • Coração, Cabeça e Estômago salvado das mãos dos credores, que
cadáver se fizesse ouvir na água, todos viram, Com intuito comercial, Camilo julgavam serem papéis de crédito os
e ninguém já pôde segurar Mariana, que se Castelo Branco cerziu nesta obra papéis de escrita, a obra divide-se em
atirara ao mar. textos fragmentários, compondo-os três volumes, cada um deles
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dedicado à parte anatômica a que o terrenos não fez deixação, porque lá estavam das santas quimeras, que aconteceram na
título se refere e que parece os credores, seus presuntivos herdeiros, ainda mocidade, e consequência funesta da má
comandar a roda da fortuna de que alguns deles declinaram a herança a direção que ele deu aos Projetos, raciocínios e
benefício de inventário, lamentando que em sistemas da cabeça. Podemos assinar tempo
Silvestre da Silva em cada uma das
Portugal não fosse lei a prisão por dívidas: ao terceiro volume, desde 1860 até fim de 61,
fases da sua vida.
parece que os irritou a certeza de que o em que o autobiógrafo se desmanchou do que
A seguir, transcreve-se parte do
cadáver insolvente não podia ser preso. Em era para se arranjar doutro feitio.
“Preâmbulo” da novela: outro ponto te darei mais detida notícia desta Silvestre, como sabes, tinha muita lição de
catástrofe. maus livros. Olha se te lembras que os seus
— O meu amigo Faustino Xavier de Novais Eu fui o herdeiro dos seus papéis. Alguns folhetins eram um viveiro de imoralidades
conheceu perfeitamente aquele nosso amigo credores quiseram disputarmos, cuidando que vestidas, ou nuas, à francesa. Jornal em que
Silvestre da Silva... eram papéis de crédito. Fiz-lhes entender que ele escrevesse morria ao fim do primeiro
— Ora, se conheci!... Como está ele? eram pedaços dum romance; e eles, renun- trimestre, depois de ter matado muitas ilusões.
— Está bem: está enterrado há seis ciando a posse, disseram que tais pataratices Quem hoje desembrulha um queijo flamengo,
meses. deviam chamar-se papelada, e não papéis. e lê no invólucro um folhetim de Silvestre, mal
— Morreu?! Aceitei a distinção como necessária e pensará que tem entre as mãos o passaporte
— Não morreu, meu caro Novais. Um retirei com a papelada, resolvido a dá-la à de muita gente para o inferno.
filósofo não deve aceitar no seu vocabulário a estampa, e com o produto dela ir resgatando a
palavra morte, senão convencionalmente. Não palavra do nosso defunto amigo, embolsando
há morte. O que há é metamorfose, transfor- os credores os credores. Fiz um cálculo
mação, mudança de feito. Pergunta tu ao TEXTO I
aproximado, que me anima a asseverar aos
doutíssimo poeta José Feliciano de Castilho o credores de Silvestre da Silva que hão de ser
destino que tem a matéria. Dir-te-á a teu JORNALISTA
plenamente pagos, feita a 10.a edição deste
respeito o que disse de Ovídio, sujeito que não I
romance.
era mais material que tu e que o nosso amigo
Aqui tens tu uma ação que deve ser O homem não se deve somente à sua
Silvestre da Silva. “Ovídio cadáver”, pergunta
extremamente agradável às moléculas felicidade — primeira máxima.
o sábio, “onde é que para? Tudo isso corre
circunfusas do nosso amigo. Espero que O principal egoísta é aquele que se descia
fados misteriosos, como Adão, como Noé,
Silvestre ainda venha a agradecer-me o culto em explorar o coração alheio para opulentar o
como Rômulo, como nossos pais, como nós,
que assim dou à memória dele, convertido em próprio com as deleitações do amor — segun-
como nossos filhos, rolando pelos oceanos,
aroma de flor, em linha de cristalina fonte, ou da máxima.
flutuando nos ares, manando nas fontes,
em Ambrósia de vinho do Porto, metamorfose Como a felicidade do egoísta é um
correndo nos rios, agregado nas pedras,
mais que muito honrosa, mas pouco admirativa paradoxo, a felicidade pelo amor é impossível
sumido nas minas, misturado nos solos,
nele, que foi deste mundo já saturado em bom — terceira máxima.
viçando nas ervas, rindo nas flores, recenden-
vinho. É opinião minha que o nosso amigo, a Quarta — o bem particular é resultado do
do nos frutos, cantando nos bosques, rugindo
esta hora, é uma folhuda parreira. bem geral.
nas matas, rojando dos vulcões, etc.” Isto, a
Vamos à papelada, como dizem os outros. Quem quiser ser feliz há de convencer-se
meu ver, é exato e, sobretudo, consolador. O de que sacrificou ao bem geral uma parte dos
Tenho debaixo dos olhos, mal enxutos da
nosso amigo Silvestre da Silva, a esta hora, seus prazeres individuais — quinta máxima.
saudade, três volumes escritos da mão de
anda repartido em partículas. Aqui faz parte da O amor, considerado fonte de contenta-
garganta dum rouxinol; além, é pétala duma Silvestre.
mentos ideais, é o sonho dum doido sublime
tulipa; acolá, está consubstanciado num olho O primeiro, na lauda, que serve de capa,
— sexta.
de alface; pode ser até que eu o esteja tem a seguinte inscrição em letras maiúsculas:
Sétima — a mulher é uma contingência:
bebendo neste copo de água que tenho à Coração.
quem quiser constituí-la essência de sua vida
minha beira e que tu o encontres nos sertões O segundo, menos volumoso, diz: Cabeça.
aleija-se na alma e cairá setenta vezes sete
da América, alguma vez, transfigurado em O título do terceiro, e maior volume, é:
vezes das muletas a que se ampare do chão
cobra cascavel, disposto a comer-te, meu Estômago.
mal gradado e barrancoso do seu falso
Faustino. Nenhum deles designa época; mas quem
caminho.
O que te eu assevero é que ele deixou de tiver, como eu, particular conhecimento do
Estas sete máximas fui eu que as compus,
ser Silvestre da Silva, há seis meses, posto indivíduo, pode, sem grande erro cronológico, depois de ler a antiguidade e alguns
que os parentes teimam em lhe ter uma lousa datar os três manuscritos. almanaques que tratavam do amor.
sobre o chão, onde o estiraram, com esta O Coração reina desde 1844 até 1854. São Entrei a cogitar no modo de ser útil à
mentira: ‘Aqui jaz Silvestre da Silva.’ aqueles dez anos em que nós vimos Silvestre humanidade com a minha experiência e inteli-
Pois é verdade. fazer tolice brava. gência do coração humano. Ofereceu-se-me
O nosso amigo começou a queixar-se, há Em 1855 notamos a transfiguração do logo azo1 de exercitar as minhas benévolas
de haver um ano, de falta de apetite, e nosso amigo, que durou até 1860, época em disposições. Escrevi para o Periódico dos
frialdade de estômago, efeito das indigestões. que tu já tinhas trocado o Patrimônio da estima Pobres, do Porto, uma correspondência contra
Foi de mal a pior. Desconfiou que passava a dos teus conterrâneos pelas lentilhas do Novo o regedor2 da minha freguesia3, acusando-o de
outra metamorfose, e deu ordem aos seus Mundo. Não viste, pois, a transição que o me prender um criado para recruta. Nesta
negócios da alma com a eternidade. Dos bens homem fez para o estômago, sepultura indigna correspondência discorri largamente acerca
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dos direitos do homem. Examinei o que foi a 2 – Pedrês: matizado de preto e branco.
liberdade em Grécia e Roma. Procurei-a no TEXTO II 3 – Este recurso de dirigir-se diretamente ao
berço do cristianismo e vim com ela, através leitor será retomado por Machado de Assis,
dos séculos, até a Revolução Francesa, que eu INTRODUÇÃO1 que, reconhecidamente, aprendeu muito com
denominei o último verbo da sociabilidade Camilo Castelo Branco.
humana: tudo isto por causa do recruta e Folheando os livros de antigos assenta- 4 – “Amou, perdeu-se, e morreu amando” é a
contra o regedor da minha freguesia, que eu mentos, no cartório das cadeias da Relação do frase que pode sintetizar cabalmente a figura
cobri de epítetos4 tais como ominoso5 e paxá Porto, li, no das entradas dos presos desde de Simão Botelho e a índole romântica e
de três caudas6. 1803 a 1805, a folhas 232, o seguinte: passional da novela de Camilo.
O regedor respondeu-me e eu repliquei. Simão Antônio Botelho, que assim disse
Seguiu-se uma série de correspondências, que chamar-se, ser solteiro, e estudante na
podiam formar um livro importante para a Universidade de Coimbra, natural da cidade de
história dos costumes dos regedores em Lisboa, e assistente na ocasião de sua prisão
TEXTO III
Portugal no século XIX. na cidade de Viseu, idade de dezoito anos, filho
O prurido de escrever correspondências a Havia na botica um relógio de parede, na-
de Domingos José Correia Botelho e de D. Rita
respeito doutras muitas coisas, e mormente da cional, datado em 1781, feito de grandes toros
Preciosa Caldeirão Castelo Branco; estatura
dotação do clero — matéria que veio a ponto, de carvalho e muita ferraria. Os pesos, quando
ordinária, cara redonda, olhos castanhos,
quando eu tive uma questão com o meu subiam, rangiam o estridor de um picar de
cabelos e barba pretos, vestido com jaqueta de
pároco por causa da côngrua7 e pé de altar8, amarras das velhas naus. Dava-se-lhe corda
baetão azul, colete de fustão pintado e calça de
insinuou-me a persuasão de que havia em mim como quem tira um balde da cisterna. Por
pano pedrês2. E fiz este assento, que assinei
pronunciadas tendências para escritor político. debaixo da triplicada cornija1 do mostrador
— Filipe Moreira Dias.
Discutia-se naquele tempo o Sr. Conde de havia uma medalha com uma dama cor de
À margem esquerda deste assento está
Tomar, a quem uns chamavam Barba-Roxa e laranja, vestida de vermelhão, decotada, com
escrito:
outros marquês de pombal. Decidi-me a favor uma romeira2 e uma pescoceira, crassa3 e
Foi para a Índia em 17 de março de 1807.
dos segundos, que tinham incontestável razão. grossa de vaca barrosã 4, penteada à Pom-
Não seria fiar demasiadamente na
Escrevi uma série de artigos, como muito padour, com uma réstia de pedras brancas a
sensibilidade do leitor3, se cuido que o degredo
suco, em grande parte copiados do Dicionário enastrar-lhe5 as tranças. Cada olho era maior
de um moço de dezoito anos lhe há de fazer dó.
Político de Garnier-Pagés; e, na parte de minha que a boca, dum vermelho de ginja 6. Ela tinha
lavra, havia ali uma verdura de ideias que Dezoito anos! O arrebol dourado e
a mão esquerda escorrida no regaço, com os
ninguém lhe metia dente. Por essa ocasião escarlate da manhã da vida! As louçanias do
dedos engelhados7 e aduncos8 como um pé
recebi de vários pontos do País diferentes coração que ainda não sonha em frutos, e todo
de perua morta; o braço direito estava no ar,
cartas, umas insultadoras, capitulando-me de se embalsama no perfume das flores! Dezoito
hirto 9, com um ramalho de flores que parecia
besta; outras, no mais moderado de seus anos! O amor daquela idade! A passagem do
uma vassoura de hidrângeas10. Este relógio
encômios9, profetizavam em mim o Girardin seio da família, dos braços da mãe, dos beijos
badalara três horas que soaram ríspidas como
português10. das irmãs para as carícias mais doces da
as pancadas vibrantes, cavas, das caldeiras da
(Coração, Cabeça e Estômago, virgem, que se lhe abre ao lado como flor da
Hecate de Shakespeare11.
Segunda Parte – Cabeça) mesma sazão e dos mesmos aromas, e à
(Eusébio Macário)
mesma hora da vida! Dezoito anos!... E
Vocabulário e Notas: degradado da pátria, do amor e da família!
Vocabulário e Notas
1 – Azo: motivo, causa, oportunidade. Nunca mais o céu de Portugal, nem liberdade, 1 – Cornija: moldura.
2 – Regedor: antiga autoridade administrativa nem irmãos, nem mãe, nem reabilitação, nem 2 – Romeira: agasalho feminino.
de Portugal. dignidade, nem um amigo!... É triste! 3 – Crasso: pesado (sentido figurado).
3 – Freguesia: subdivisão administrativa de um O leitor decerto se compungiria; e a 4 – Barrosã: feminino de barrosão, de Barroso,
concelho (por sua vez, subdivisão administra- leitora, se lhe dissessem em menos de uma região portuguesa onde se cria uma raça de boi,
tiva de um distrito). linha a história daqueles dezoito anos, o qual é então denominado barrosão; diz-se
4 – Epíteto: qualificação. chocaria! também do boi que tem pelo da cor do barro.
5 – Ominoso: horrendo, execrável. Amou, perdeu-se, e morreu amando4. 5 – Enastrar: entretecer, ornar.
6 – Paxá de três caudas: o paxá era o gover- (Amor de Perdição) 6 – Ginja: fruto muito semelhante à cereja.
nador de uma província no Império Otomano;
7 – Engelhado: enrugado.
no contexto, paxá de três caudas é pejorativo e Vocabulário e Notas
8 – Adunco: curvo.
significa homem mandão e insolente. 1 – Observe-se que, mesmo se tratando de
9 – Hirto: retesado, esticado.
7 – Côngrua: o que os habitantes de uma fre- uma novela passional romântica, Camilo
10 – Hidrângea: hortênsia.
guesia pagam ao pároco para sua sustentação. procura criar uma “ilusão” de realidade,
11 – Hecate: personagem da peça Macbeth,
8 – Pé de altar: o rendimento que o pároco pretendendo dar verossimilhança à narrativa,
de William Shakespeare.
obtém de batizados, casamentos e enterros. com a citação de documentos e testemunhos.
9 – Encômio: elogio. Simão Botelho realmente existiu e foi preso e
10 – Girardin: jornalista e político francês (1802- degredado para a Índia, só que não pelos
1881). motivos que o romance relata.
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• Os Timbiras. Poema épico in- Não gorjeiam como lá. Vocabulário e Notas
dianista, do qual temos apenas os Nosso céu tem mais estrelas, 1 – Imigo: inimigo.
Nossas várzeas têm mais flores, 2 – Mendace: mendaz, mentiroso, traidor.
quatro cantos iniciais. Os doze
3 – Fugace: fugaz, rápido.
restantes perderam-se no naufrágio Nossos bosques têm mais vida, 4 – Ignavo: preguiçoso, covarde.
em que morreu o poeta. O plano do Nossa vida mais amores.
poema era ambicioso: Em cismar, sozinho, à noite, III
Mais prazer encontro eu lá;
“(...) imaginei um poema... como nunca Minha terra tem palmeiras, I-JUCA-PIRAMA
ouviste falar de outro: magotes de tigres, de Onde canta o Sabiá. (fragmento: canto VIII)
coatis, de cascavéis; imaginei mangueiras e
Minha terra tem primores, Tu choraste em presença da morte?
jabuticabais copados, jequitibás e ipês arro-
Que tais não encontro eu cá; Na presença de estranhos choraste?
gantes, sapucaieiras e jambeiros, de palmeiras
Em cismar — sozinho, à noite — Não descende o covarde do forte;
nem falemos; guerreiros diabólicos, mulheres
Mais prazer encontro eu lá; Pois choraste, meu filho não és!
feiticeiras, sapos e jacarés sem conta; enfim,
Minha terra tem palmeiras, Possas tu, descendente maldito
um gênese americano, uma Ilíada Brasileira. Onde canta o Sabiá. De uma tribo de nobres guerreiros,
Passa-se a ação no Maranhão e vai terminar no Implorando cruéis forasteiros,
Amazonas com a dispersão dos Timbiras; Não permita Deus que eu morra, Seres presa de vis Aimorés.
guerras entre eles e depois com os portu- Sem que eu volte para lá;
gueses.” Sem que desfrute os primores (...)
Que não encontro por cá;
• Últimos Cantos, em que se Sem qu’inda aviste as palmeiras, Não encontres doçura no dia,
Onde canta o Sabiá. Nem as cores da aurora te ameiguem,
inclui a obra-prima do indianismo
E entre as larvas da noite sombria
romântico, “I-Juca-Pirama”. Nunca possas descanso gozar:
II
• Cantos, que reúne os livros an- Não encontres um tronco, uma pedra,
teriores, mais os Novos Cantos. Aí se I-JUCA-PIRAMA Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,
inclui “Ainda uma Vez, Adeus”, poe- (fragmento: canto IV) Padecendo os maiores tormentos,
ma lírico-amoroso, de fundo autobio- Onde possas a fronte pousar.
1. Poesia da Segunda Geração • erotismo irrealizado, associ- Mas se Werther morreu por ver Carlota9
Romântica (Byroniana – ado à culpa e ao medo. O desejo e a Dando pão com manteiga às criancinhas,
Se achou-a assim mais bela... eu mais te
Individualista – do Mal do punição fundem-se. O amor só se
[adoro
Século – Ultrarromântica) realiza no plano do sonho: Sonhando-te a lavar as camisinhas!
Álvares de Azevedo IDEIAS ÍNTIMAS
É ela! é ela! meu amor, minh’alma,
(1831-1852) IX
A Laura, a Beatriz10 que o céu revela...
Ligado aos grupos boêmios da Oh! ter vinte anos sem gozar de leve É ela! é ela! — murmurei tremendo,
Faculdade de Direito de São Paulo A ventura de uma alma de donzela! E o eco ao longe suspirou “é ela!”.
E sem na vida ter sentido nunca
(Sociedade Epicureia), morreu aos Na suave atração de um róseo corpo Vocabulário e Notas
1 – Águas-furtadas: sótãos. 2 – Venturoso: feliz.
vinte anos. É o melhor representante Meus olhos turvos se fechar de gozo!
Oh! nos meus sonhos, pelas noites minhas 3 – Morfeu: deus grego dos sonhos. 4 – Mavioso:
do mal do século. afetuoso. 5 – Otelo: personagem de peça
Passam tantas visões sobre meu peito!
Suas principais características (...) homônima de Shakespeare; personifica o ciúme.
são: 6 – Devaneio: fantasia, imaginação. 7 – Cioso: cui-
• poesia humorística (realismo dadoso. 8 – Rol: lista. 9 – Werther e Carlota:
• morbidez, tédio, dúvida, personagens de Werther, de Goethe. 10 – Laura
humorístico e humor negro) e litera-
satanismo, na esteira de Lord tura fantástica são duas contribui- e Beatriz: musas de Petrarca e Dante, respec-
Byron, modelo que seguiu de perto: tivamente.
ções originais ao nosso Romantismo:
• Os presságios da morte, as
SE EU MORRESSE AMANHÃ É ELA! É ELA! É ELA! É ELA! alusões à família e à infância, a fúria
Se eu morresse amanhã, viria ao menos É ela! é ela! — murmurei tremendo, da solidão, as dualidades sonho
Fechar meus olhos minha triste irmã; E o eco ao longe murmurou “é ela!...” versus realidade, espírito versus
Minha mãe de saudades morreria Eu a vi... minha fada aérea e pura, carne e alguns arroubos liberais
Se eu morresse amanhã! A minha lavadeira na janela! (“Pedro Ivo”) são temas constantes.
(...) Obras
Dessas águas-furtadas1 onde eu moro
Eu a vejo estendendo no telhado • Lira dos Vinte Anos reúne seus
• poesia cerebral, que reflete Os vestidos de chita, as saias brancas... melhores poemas: “Ideias Íntimas”,
mais leituras que vivências. A preco- Eu a vejo e suspiro enamorado! “Spleen e Charutos”, “É Ela! É Ela! É
cidade de sua poesia oscila entre Ela! É Ela!”, além de “Lembrança de
Esta noite eu ousei mais atrevido Morrer” e “Se Eu Morresse Ama-
momentos geniais e descaídas. Es-
Nas telhas que estalavam nos meus passos
crevia tumultuariamente, entregue, nhã”. O livro é dividido em três par-
Ir espiar seu venturoso2 sono,
Vê-la mais bela de Morfeu3 nos braços! tes, e a segunda parte vem precedida
às vezes, à incontinência verbal e ao
de prefácio em que o poeta de-
descabelamento. Nem sempre exer- Como dormia! que profundo sono!... monstra grande consciência dos com-
cia o senso crítico, que possuía mais Tinha na mão o ferro do engomado... ponentes estéticos de seu trabalho.
agudo que qualquer romântico nacio- Como roncava maviosa4 e pura!
Quase caí na rua desmaiado! LEMBRANÇA DE MORRER
nal, à exceção de Gonçalves Dias:
Afastei a janela, entrei medroso: Eu deixo a vida como deixa o tédio
IDEIAS ÍNTIMAS Do deserto, o poento caminheiro
Palpitava-lhe o seio adormecido...
I — Como as horas de um longo pesadelo
Fui beijá-la... roubei do seio dela
(...) Que se desfaz ao dobre de um sineiro;
Um bilhete que estava ali metido...
Basta de Shakespeare. Vem tu agora,
(...)
Fantástico alemão1, poeta ardente Oh! decerto... (pensei) é doce página
Que ilumina o clarão das gotas pálidas Onde a alma derramou gentis amores! Descansem o meu leito solitário
São versos dela... que amanhã decerto Na floresta dos homens esquecida,
Do nobre Johannisberg! Nos teus romances
Ela me enviará cheios de flores... À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
Meu coração deleita-se... Contudo,
— Foi poeta — sonhou — e amou na vida.
Parece-me que vou perdendo o gosto, Tremi de febre! Venturosa folha!
Vou ficando blasé2, passeio os dias Quem pousasse contigo neste seio! SPLEEN E CHARUTOS
Pelo meu corredor, sem companheiro, Como Otelo5 beijando a sua esposa, I
Sem ler nem poetar. Vivo fumando. Eu beijei-a a tremer de devaneio...6 SOLIDÃO
(...)
É ela! é ela! — repeti tremendo, Nas nuvens cor de cinza do horizonte
Vocabulário e Notas Mas cantou nesse instante uma coruja... A lua amarelada a face embuça 1;
1 – Fantástico alemão: Goethe. Abri cioso7 a página secreta... Parece que tem frio e, no seu leito,
2 – Blasé: entediado. Oh! meu Deus! era um rol8 de roupa suja! Deitou, para dormir, a carapuça 2.
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Ergueu-se... vem da noite a vagabunda3 sando pela poesia gótica, pelo sata- Casimiro de
Sem xale, sem camisa e sem mantilha, nismo, pelo patriotismo, pelo natu- Abreu (1839-1860)
Vem nua e bela procurar amantes...
ralismo e pela poesia religiosa. Foi um Poeta da saudade, do amor ado-
É doida por amor da noite a filha.
poeta de transição no Romantismo. lescente, simples, espontâneo, co-
(...) Os temas roceiros e bucólicos municativo; sua poesia, muito popu-
Falando ao coração... que nota aérea (“Juvenília”, “A Roça”, “A Flor do lar, ainda agrada aos que pedem pou-
Deste céu, destas águas se desata? Maracujá”), ao lado da dualidade co à poesia. Essencialmente musical,
Canta assim algum gênio adormecido Casimiro não tem maior complexida-
Das ondas mortas no lençol de prata?
cidade versus campo, natureza versus
civilização, constituem a parte mais de filosófica e psicológica, e sua obra,
Minh’ alma tenebrosa4 se entristece, significativa de sua obra, sem esque- acessível a qualquer leitor alfabetiza-
É muda como sala mortuária...
cer o “Cântico do Calvário”, elegia do, versa sempre as pulsões eróticas
Deito-me só e triste sem ter fome, da adolescência, oscilando entre o
Vendo na mesa a ceia solitária. dedicada ao filho morto, obrigatória
em qualquer antologia romântica. amor e o medo; as saudades da infân-
Ó lua, ó lua bela dos amores, cia, da família e da pátria. Opera uma
Se tu és moça e tens um peito amigo, A ROÇA “descida de tom” em relação a Gon-
Não me deixes assim dormir solteiro, çalves Dias e a Álvares de Azevedo.
À meia-noite vem cear5 comigo! O balanço da rede, o bom fogo As Primaveras, reunião de suas
(Álvares de Azevedo) Sob um teto de humilde sapé;
A palestra, os lundus, a viola, poesias, incluem os conhecidos
Vocabulário e Notas O cigarro, a modinha, o café; “Meus Oito Anos”, “Amor e Medo”,
1 – Embuçar: cobrir. 2 – Carapuça: gorro. “Minha Terra”, “Minha Mãe”, além
3 – Vagabundo: errante. 4 – Tenebroso: Um robusto alazão, mais ligeiro da “Canção do Exílio”, derivação imi-
sombrio. 5 – Cear: jantar. Do que o vento que vem do sertão,
Negras crinas, olhar de tormenta,
tativa do poema homônimo de
• A Noite na Taverna, escrito à Pés que apenas rastejam no chão. Gonçalves Dias.
maneira dos contos fantásticos de
Hoffmann, traz à tona o mundo insólito (...) MEU LAR OU CANÇÃO DO EXÍLIO
da inconsciência e da embriaguez
A FLOR DO MARACUJÁ Se eu tenho de morrer na flor dos anos,
(incesto, envenenamento, traição, ne-
(...) Meu Deus! não seja já!
crofilia, duelo etc.), através das recor-
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
dações de alguns jovens embriaga- Por tudo o que o céu revela! Cantar o sabiá!
dos, numa taverna, em noites de tem- Por tudo o que a terra dá,
pestade, entre mundanas bêbadas, Eu te juro que minh’alma
Meu Deus, eu sinto e tu bem vês que eu
De tua alma escrava está!...
adormecidas, garrafas vazias etc. Guarda contigo este emblema [morro
Solfieri, Johann, Gennaro, Bertran, Da flor do maracujá! Respirando este ar;
Arnold e Herman resolvem, por des- Faz que eu viva, Senhor! dá-me de novo
fastio, contar casos escabrosos e ver- Não se enojem teus ouvidos Os gozos do meu lar!
De tantas rimas em – a –
dadeiros que tivessem vivido. Mas ouve meus juramentos, (...)
• Macário, de classificação pro- Meus cantos ouve, Sinhá!
blemática, oscila entre o teatro, o diário Te peço pelos mistérios
AMOR E MEDO
Da flor do maracujá!
íntimo e a narrativa. Satã e Penseroso
dialogam no cemitério sobre os vícios Quando eu te fujo e me desvio cauto
CÂNTICO DO CALVÁRIO
e destinos da cidade de São Paulo, vei- Da luz de fogo que te cerca, oh! bela,
culando as ideias do próprio poeta. Eras na vida a pomba predileta Contigo dizes, suspirando amores:
• Conde Lopo e Poema do Frade Que sobre um mar de angústias conduzia “— Meu Deus! que gelo, que frieza aquela!”
são poemas narrativos, motivados O ramo da esperança. — Eras a estrela
Que entre as névoas do inverno cintilava Como te enganas! meu amor é chama
diretamente pela emulação do
Apontando o caminho ao pegureiro1. Que se alimenta no voraz segredo,
modelo byroniano. Eras a messe2 de um dourado estio. E se te fujo é que te adoro louco...
Eras o idílio de um amor sublime. És bela — eu moço; tens amor — eu
Fagundes Eras a glória, — a inspiração, — a pátria, [medo!...
Varela (1841-1875) O porvir de teu pai! Ah! no entanto,
Autor, dentre outras obras, de Pomba, — varou-te a flecha do destino! (...)
Vozes d’América, Cantos e Fantasias, Astro, — engoliu-te o temporal do norte!
Cantos do Ermo e da Cidade e An- Teto, — caíste! — Crença, já não vives! MEUS OITO ANOS
chieta ou o Evangelho nas Selvas, (...) Oh! que saudades que tenho
realizou uma síntese da poesia ro-
Da aurora da minha vida,
mântica, versando temas que vão do Vocabulário e Notas Da minha infância querida
indianismo de Gonçalves Dias ao 1 – Pegureiro: guardador de gado; pastor. Que os anos não trazem mais!
condoreirismo de Castro Alves, pas- 2 – Messe: colheita. (...)
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Abolição, República). Era um quadro celeste!... A cada afago Nas tempestades da vida,
Representa o segmento liberal- Mesmo em sonhos a moça estremecia... Das rajadas8 no furor9,
progressista da burguesia, que acre- Quando ela serenava... a flor beijava-a... Foi-se a noite, tem auroras
dita no progresso, opondo-se à ten- Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia... O Gondoleiro do amor.
dência saudosista e regressiva, domi-
Dir-se-ia que naquele doce instante Teu seio é vaga dourada
nante em nosso Romantismo.
Brincavam duas cândidas crianças... Ao tíbio10 clarão da lua,
Os temas que versou com maior A brisa, que agitava as folhas verdes, Que, ao murmúrio das volúpias11,
frequência foram: Fazia-lhe ondear as negras tranças!...
Arqueja12, palpita nua;
• a poesia da natureza, explo-
rando o efeito plástico e sugestivo E o ramo ora chegava, ora afastava-se...
Como é doce, em pensamento,
Mas quando a via despertada a meio,
dos grandes planos (mar, infinito, Do teu colo no langor13
P’ra não zangá-la... sacudia alegre
oceano, vastidão, águias e albatro- Vogar14, naufragar, perder-se
Uma chuva de pétalas no seio...
zes): O Gondoleiro do amor!?
90 –
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• a poesia patriótica e de- Presa nos elos de uma só cadeia, 6 – Cambalear: desequilibrar-se.
clamatória, “Ode ao Dous de A multidão faminta cambaleia6, 7 – Rijo: violento, severo.
Julho”, “Pedro Ivo”: E chora e dança ali! 8 – Serra Leoa: região da África.
Um de raiva delira, outro enlouquece, 9 – Lúgubre: sombrio, triste.
O POVO AO PODER Outro, que martírios embrutece, 10 – Coorte: tropa, conjunto formado por um
Cantando, geme e ri! grande número de pessoas.
A praça! A praça é do povo
11 – Irrisão: escárnio, zombaria.
Como o céu é do condor,
No entanto o capitão manda a manobra,
É o antro onde a liberdade
E após fitando o céu que se desdobra, A CRUZ DA ESTRADA
Cria águias em seu calor.
Tão puro sobre o mar,
Senhor!... pois quereis a praça?
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
Desgraçada a populaça Caminheiro que passas pela estrada,
“Vibrai rijo7 o chicote, marinheiros!
Só tem a rua de seu... Seguindo pelo rumo do sertão,
Fazei-os mais dançar!...”
Ninguém vos rouba os castelos, Quando vires a cruz abandonada,
Tendes palácios tão belos...
(...) Deixa-a em paz dormir na solidão.
Deixai a terra ao Anteu1.
(Espumas Flutuantes) V Que vale o ramo do alecrim cheiroso
Vocabulário e Nota Que lhe atiras nos braços ao passar?
Senhor Deus dos desgraçados!
1 – Anteu: gigante, filho de Posídon e de Geia Vais espantar o bando buliçoso
Dizei-me vós, Senhor Deus!
(Terra). Habitava na Líbia e obrigava todos os Das borboletas, que lá vão pousar.
Se é loucura... se é verdade
viajantes a lutar contra ele. Enquanto estivesse
Tanto horror perante os céus?!
em contato com sua mãe, era invencível. É de um escravo humilde sepultura,
Ó mar, por que não apagas
Coa esponja de tuas vagas Foi-lhe a vida o velar de insônia atroz.
• o amor ao progresso e à De teu manto este borrão?... Deixa-o dormir no leito de verdura,
liberdade:“O Livro e a América”, “O Astros! noites! tempestades! Que o Senhor dentre as selvas lhe compôs.
Trem de Ferro”. Rolai das imensidades!
• poesia de inspiração judaica: Varrei os mares, tufão! Não precisa de ti. O gaturamo1
“Hebreia”, “Ahasverus e o Gênio”. Geme, por ele, à tarde, no sertão.
• poesia abolicionista e hu- (...) E a juriti 2, do taquaral no ramo,
manitária, momento mais expressivo Povoa, soluçando, a solidão.
do condoreirismo nacional. Valendo-se Ontem a Serra Leoa8,
A guerra, a caça ao leão, Dentre os braços da cruz, a parasita,
de metáforas ousadas, antíteses,
O sono dormido à toa Num abraço de flores, se prendeu.
hipérboles e apóstrofes violentas,
Sob as tendas d’amplidão! Chora orvalhos a grama, que palpita:
Castro Alves confere dignidade esté- Hoje... o porão negro, fundo, Lhe acende o vaga-lume o facho seu.
tica ao tema social, em sua movimen- Infecto, apertado, imundo,
tada alocução. “O Navio Negreiro”, Tendo a peste por jaguar... Quando, à noite, o silêncio habita as matas,
“Vozes d’África”, “A Cruz da Estrada”, E o sono sempre cortado A sepultura fala a sós com Deus.
“A Canção do Africano” são os poe- Pelo arranco de um finado, Prende-se a voz na boca das cascatas,
mas mais expressivos nesse aspecto: E o baque de um corpo ao mar...
E as asas de ouro aos astros lá nos céus.
IV Ontem plena liberdade,
Caminheiro! do escravo desgraçado
A vontade por poder...
Era um sonho dantesco1... otombadilho2 O sono agora mesmo começou!
Hoje... cúm’lo de maldade,
Que das luzernas3 avermelha o brilho Não lhe toques no leito de noivado,
Nem são livres pra morrer...
Em sangue a se banhar. Há pouco a liberdade o desposou.
Prende-os a mesma corrente
Tinir de ferros... estalar de açoite... — Férrea, lúgubre9 serpente —
Legiões de homens negros como a noite, Nas roscas da escravidão.
Horrendos a dançar... E assim zombando da morte,
Vocabulário e Notas
Dança a lúgubre coorte10
1 e 2 – Gaturamo e juriti: espécies de aves.
Negras mulheres, suspendendo às tetas Ao som do açoite... Irrisão11!...
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães: (...) Obra
Outras moças, mas nuas e espantadas, (São Paulo, 18 de abril de 1868 – Espumas Flutuantes, único livro
No turbilhão de espectros4 arrastadas, Os Escravos)
publicado em vida (1870), reúne poe-
Em ânsia e mágoa vãs!
Vocabulário e Notas sia lírica, patriótica, naturista, faltando
1 – Dantesco: infernal. apenas o tema do escravo negro, que
E ri-se a orquestra irônica, estridente... 2 – Tombadilho: superestrutura erguida na
E da ronda fantástica a serpente
surgirá nos livros póstumos (Os
popa de um navio; diz-se também do
Faz doidas espirais... Escravos, A Cachoeira de Paulo Afon-
pavimento dessa superestrutura.
Se o velho arqueja5, se no chão resvala, 3 – Luzerna: clarão, luz muito intensa. so). Deixou, ainda, o drama histórico
Ouvem-se gritos... o chicote estala. 4 – Espectro: fantasma. sobre a Inconfidência: Gonzaga, ou a
E voam mais e mais... 5 – Arquejar: arquear, curvar-se. Revolução de Minas.
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1. José de Alencar (1829-1877) aristocrática, Alencar foi contra a lítico e crítico, aprofundando a di-
abolição do regime escravagista. mensão psicológica de suas per-
Características É sempre com desprezo e irrita- sonagens, especialmente em Lucíola
Consolida o romance nacional, ção que Alencar observa os cos- e Senhora. Tentando compreender as
compondo um verdadeiro painel do tumes urbanos de seu tempo, bem desarmonias e estranhezas da condu-
Brasil, que inclui todas as latitudes, como a vida da burguesia. A atitude ta e desmascarar e denunciar certos
todos os períodos históricos e todos do autor diante da vida urbana é sem- aspectos profundos da realidade hu-
os grupos étnicos e regionais. pre saudosista, regressiva e ressenti- mana e social, Alencar foi, sem em-
da. Ao condenar a cidade, a saída que bargo da idealização romântica,
No plano do espaço, abrange: Alencar entrevê é puramente um modesto precursor de
• o sertão do Nordeste (O Serta- sentimental: o retorno à natureza, ao Machado de Assis.
nejo); índio, ao sertão, aos campos.
• o litoral cearense (Iracema); A intuição nacionalista de Alencar Evolução
• o pampa gaúcho (O Gaúcho); levou-o a inventar uma imensa saga da obra alencariana
• a zona rural (Til ); brasileira, fundando, bem ou mal, • Primeira fase (1856-1864)
• a zona da mata fluminense (O uma mitologia mestiça, colossal e Alencar iniciou-se publicando crô-
Tronco do Ipê); telúrica, uma verdadeira sinfonia nicas na imprensa carioca, mais tarde
• a cidade, a corte no Rio (Diva, americana. reunidas em Ao Correr da Pena
Lucíola, Senhora) e demais romances Os índios e super-heróis inscre- (1856). Ganha notoriedade nesse mes-
urbanos. vem-se nesse propósito de criar uma mo ano, travando áspera polêmica
literatura nacional com arquétipos, e acerca do poema épico pseudo-
No plano do tempo, abarca: o entusiasmo com que Alencar mer- indianista A Confederação dos Ta-
• o período pré-cabralino (Ubi- gulhou nesse trabalho verdadeira- moios, de Gonçalves de Magalhães.
rajara); mente enciclopédico explica os erros Já havia publicado A Viuvinha, sem
• os primeiros contatos entre o de História e Geografia e os exageros nenhuma repercussão, quando, em
índio e o colonizador nos séculos XVI imaginativos, que lhe valeram inúme- 1857, publica O Guarani, que lhe traz
e XVII (Iracema e O Guarani ); ras críticas e zombarias. rápida notoriedade. São dessa fase,
• a colonização (A Guerra dos Ainda o nacionalismo inspirou a entre outros, Lucíola, Diva, As Minas
Mascates, As Minas de Prata); luta que Alencar empreendeu em de Prata e Iracema (1865), além das
• o presente, a vida urbana no defesa do português falado no peças de teatro.
século XIX, em todos os romances Brasil, liberto do rigor das gramáticas • Segunda fase (1866-1869)
urbanos. e dicionários lusitanos. No sentido de Envolvido na política (deputado,
defesa de um uso brasileiro da língua ministro da justiça, candidato rejeita-
No plano étnico, o índio e o portuguesa, escreveu Alencar: do a senador), deixou, nessa fase, os
branco alternam-se como heróis, “Como pode um povo que chupa a escritos políticos intitulados Cartas de
modelados na honradez e galanteria manga, o abacaxi e o cambucá falar Erasmo.
dos cavaleiros medievais: Peri, Poti, como um povo que sorve a uva, a • Terceira fase (1870-1875)
Jaguarê, D. Antônio Mariz e seus pera e a nêspera?”. Abandonando a política e o tea-
cavaleiros, Arnaldo Louredo, Manuel Enriqueceu a nossa língua literária tro, desgostoso e retraído, entrou em
Caño. Alencar omite a violência de que de inúmeros brasileirismos, aprovei- nova fase criadora, publicando cerca
o índio foi vítima, indiscriminadamente; tando vocábulos, expressões e um de dez livros (entre outros, O Gaúcho,
assim, os brancos honrados, na visão fraseado tipicamente nacionais, dando Ubirajara, Senhora e O Sertanejo),
alencariana, irmanaram-se com os à frase um meneio, uma cadência além do romance póstumo Encar-
índios na construção da nacionalidade, tropical. Suas imagens e metáforas nação e da autobiografia Como e por
que o romancista idealizava morena, utilizam com beleza e entusiasmo a que Sou Romancista.
mestiça, resultado da integração da fauna e a flora do país.
natureza (índio) com a civilização Além do vigor descritivo e da jus- Divisão da obra de Alencar
(branco). teza com que “pinta” a paisagem a) Romances indianistas (for-
O negro aparece como persona- humana e a natureza, apoiado em mação da nacionalidade; anteceden-
gem no teatro, em O Demônio Fami- metáforas que ressaltam o colorido, tes aborígines):
liar e no dramalhão Mãe, cabendo fundindo a realidade humana e a – O Guarani
lembrar que, fiel à sua posição política paisagem, Alencar desenvolveu um – Iracema
conservadora e à sua origem rural e contínuo esforço no sentido ana- – Ubirajara
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b) Romances históricos (bos- irmão, que reconduziria o guerreiro Mais rápida que a ema selvagem, a
quejos históricos e crônicas roman- branco, são e salvo, às terras piti- morena virgem corria o sertão e as matas do
ceadas dos tempos coloniais): guaras. Iracema, porém, apaixona-se Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da
grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal ro-
– As Minas de Prata por Martim, traindo o “segredo da jure-
çando, alisava apenas a verde pelúcia que
– Alfarrábios ma”, que guardava como “virgem de
vestia a terra com as primeiras águas.
– A Guerra dos Mascates Tupã” [Iracema entrega-se sexualmen- Um dia, ao pino do sol, ela repousava em
te a Martim, inebriados ambos pela um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a
droga cujo segredo ela deveria pre- sombra da oiticica, mais fresca do que o
c) Romances regionalistas (a servar]. Acompanha o esposo, deixan- orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre
pátria brasileira; a sociedade rural): do na sua tribo um ambiente de revol- esparziam flores sobre os úmidos cabelos.
– O Gaúcho ta, acirrado pelos ciúmes de Irapuã, Escondidos na folhagem os pássaros ameiga-
– O Sertanejo destemido chefe tabajara. Desenca- vam o canto.
– Til deia-se a guerra de vingança, e os (...)
– O Tronco do Ipê tabajaras são derrotados; Iracema con- Rumor suspeito quebra a doce harmonia
da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol
funde as venturas do amor com as
não deslumbra; sua vista perturba-se.
d) Romances urbanos (roman- amargas tristezas que despertam os
Diante dela e todo a contemplá-la, está
ces de complicação sentimental, campos juncados de cadáveres de um guerreiro estranho, se é guerreiro e não
perfis de mulher e quadros da socie- seus irmãos. Ao remorso e saudade algum mau espírito da floresta. Tem nas faces
dade): outra dor se lhe acrescenta: o arrefe- o branco das areias que bordam o mar, nos
– Cinco Minutos cimento do amor de Martim que, para olhos o azul triste das águas profundas.
– A Viuvinha amenizar a nostalgia da pátria distan- Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o
– A Pata da Gazela te, ausentava-se em longas e demo- corpo.
radas jornadas. Num dos seus regres- Foi rápido, como o olhar, o gesto de Irace-
– Sonhos d’Ouro
sos, encontra Iracema às portas da ma. A flecha embebida no arco partiu. Gotas
– Encarnação
morte, exausta pelo esforço que fize- de sangue borbulham na face do desco-
– Diva nhecido.
– Lucíola ra para alimentar o filhinho recém-nas-
De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu
– Senhora cido, a quem dera o nome de Moacir,
sobre a cruz da espada; mas logo sorriu. O
que significa, na sua língua, “filho da moço guerreiro aprendeu na religião de sua
dor”. Martim enterra o corpo da espo- mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e
2. Romance indianista sa e parte, levando o filho e a sauda- amor. Sofreu mais d’alma que da ferida.
de da fiel companheira. (R. M. Pinto, O sentimento que ele pôs nos olhos e no
in Pequeno Dicionário de Literatura rosto, não o sei eu. Porém a virgem lançou de
Iracema
Brasileira, Cultrix.) si o arco e a uiraçaba e correu para o guerreiro,
Iracema é um romance lírico que sentida da mágoa que causara.
desenvolve uma antiga lenda sobre a A mão que rápida ferira estancou mais
colonização do Ceará, terra do autor. Iracema, por sua linguagem su- rápida e compassiva o sangue que gotejava.
A ação, centrada no encontro/desen- gestiva e delicada, é um verdadeiro Depois Iracema quebrou a flecha homicida:
contro entre o europeu e o nativo poema em prosa. A narrativa procura deu a haste ao desconhecido, guardando
brasileiro, envolve a rivalidade entre representar, miticamente, o surgi- consigo a ponta farpada.
as tribos tabajara e pitiguara. Martim mento da nacionalidade brasileira (Iracema, cap. II)
é europeu, branco e civilizado; Irace- pelo contato da terra virgem (Iracema
ma, a bela selvagem tabajara que é a “virgem dos lábios de mel”) com
foge com ele para o litoral, representa o europeu civilizado. Quanto a esse
a América virgem e ingênua, cativa e sentido simbólico, já foi notado que o
dominada. nome Iracema é um anagrama de
América (anagrama é palavra formada
pela transposição das letras de outra
Resumo palavra).
Numa atmosfera lendária, de exó-
tica e delicada poesia, desenrola-se a
história triste dos amores de Martim, TEXTO I
primeiro colonizador português no Cea-
rá, e Iracema, a jovem e bela índia taba-
Além, muito além daquela serra, que
jara, filha de Araquém, pajé da tribo.
ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Martim saíra à caça com seu amigo
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que
Poti, guerreiro pitiguara, e perdera-se tinha os cabelos mais negros que a asa da graú-
Iracema, de Antônio Parreiras (1869-1937),
do companheiro, indo ter aos campos inspirado na personagem homônima de José de
na e mais longos que seu talhe de palmeira. Alencar. Iracema, “lenda do Ceará”, metaforiza
dos inimigos dos tabajaras. Encontra O favo da jati não era doce como seu a formação de uma nova raça, morena, mestiça,
Iracema, que o acolhe na cabana de sorriso, nem a baunilha recendia no bosque tropical, uma utopia romântica e nacionalista,
Araquém, enquanto volta Caubi, seu como seu hálito perfumado. revestida de um intenso lirismo e alta poesia.
– 95
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O Guarani mento de todos pelos selvagens. O Então passou-se sobre esse vasto
final do romance, com a palmeira deserto de água e céu uma cena estupenda,
Publicado primeiramente em fo- heroica, sobre-humana; um espetáculo gran-
arrastada pelas águas da enchente e
lhetins no Diário do Rio de Janeiro, dioso, uma sublime loucura.
abrigando na sua copa os dois seres
em 1857, O Guarani foi o desdobra- Peri alucinado suspendeu-se aos cipós
de raças diferentes, é um símbolo
mento da polêmica de Alencar com que se entrelaçavam pelos ramos das árvores
feliz da futura população do Brasil. (R.
Gonçalves de Magalhães sobre a cria- já cobertas de água e, com esforço deses-
M. Pinto, Pequeno Dicionário de
ção de uma verdadeira epopeia na- perado, cingindo o tronco da palmeira nos seus
Literatura Brasileira, Cultrix.)
cional. O livro procura ser a resposta braços hirtos, abalou-o até as raízes.
de Alencar ao problema que tanto Três vezes os seus músculos de aço,
preocupou os escritores que estabe- estorcendo-se, inclinaram a haste robusta; e
TEXTO II três vezes o seu corpo vergou, cedendo à
leceram o Romantismo entre nós.
Alencar afasta-se da épica tradicional: retração violenta da árvore, que voltava ao
Peri compreendera o gesto da índia; não
lugar que a natureza lhe havia marcado.
não escreve em verso, como fez, porém, o menor movimento para segui-la.
Luta terrível, espantosa, louca, esvairada;
Magalhães, mas em prosa, e sua nar- Fitou nela o seu olhar brilhante e sorriu.
luta da vida contra a matéria; luta do homem
rativa filia-se ao gênero mais em voga Por sua vez a menina também compreen-
contra a terra; luta da força contra a imobi-
naquela época: o romance — no sub- deu a expressão daquele sorriso e a resolução lidade.
gênero romance histórico de aven- firme e inabalável que se lia na fronte serena Houve um momento de repouso em que
turas. do prisioneiro. o homem, concentrado todo o seu poder,
Na realidade, se episódios da Insistiu por algum tempo, mas debalde. estorceu-se de novo contra a árvore; o ímpeto
colonização do Brasil nos albores do Peri tinha atirado para longe o arco e as foi terrível; e pareceu que o corpo ia despe-
século XVII constituem o entrecho da flechas e, recostando-se ao tronco da árvore, daçar-se nessa distensão horrível.
obra, o protagonista é um índio, Peri, conservava-se calmo e impassível. Ambos, árvore e homem, embalançaram-
elevado à categoria de autêntico herói De repente o índio estremeceu. se no seio das águas: a haste oscilou; as raízes
romântico. Logo depois que Filipe ll Cecília aparecera no alto da esplanada e desprenderam-se da terra já minada profunda-
da Espanha ocupa o trono de lhe acenara; sua mãozinha alva e delicada mente pela torrente.
Portugal, D. Antônio de Mariz, fidalgo agitando-se no ar parecia dizer-lhe que espe- A cúpula da palmeira, embalançando-se
da velha estirpe portuguesa, fiel à sua rasse; Peri julgou mesmo ver no rostinho gentil graciosamente, resvalou pela flor da água
de sua senhora, apesar da distância, brilhar um como um ninho de garças ou alguma ilha flu-
pátria, prefere instalar-se no interior
raio de felicidade. tuante, formada pelas vegetações aquáticas.
do Brasil a servir à Coroa estrangeira.
(O Guarani, cap. II) Peri estava de novo sentado junto de sua
Com sua família e alguns homens de
senhora quase inanimada: e, tomando-a nos
armas, inicia a formação de uma
braços, disse-lhe com um acento de ventura
fazenda à margem do Rio Paquequer, suprema:
afluente do Paraíba. De um acidente TEXTO III — Tu viverás!...
resulta a morte de uma índia de uma Cecília abriu os olhos e, vendo seu amigo
tribo aimoré, que passa por isso a junto dela, ouvindo ainda suas palavras, sentiu
(...)
hostilizar os brancos colonizadores. o enlevo que deve ser o gozo da vida eterna.
Peri tinha falado com o tom inspirado que
D. Antônio de Mariz conta com a — Sim?... murmurou ela; viveremos!... lá
dão as crenças profundas; com o entusiasmo
amizade de Peri, jovem guerreiro no céu, no seio de Deus, junto daqueles que
das almas ricas de poesia e sentimento.
goitacá, de nobres instintos e amamos!...
Cecília o ouvia sorrindo e bebia uma a
extrema bravura. O selvagem devo- uma as suas palavras, como se fossem as
O anjo espanejava-se para remontar ao
tava a Cecília, a filha do fidalgo, uma berço.
partículas do ar que respirava; parecia-lhe que a
adoração quase religiosa e por isso — Sobre aquele azul que tu vês, conti-
alma de seu amigo, essa alma nobre e bela, se
estendia sua proteção providencial a nuou ela, Deus mora no seu trono, rodeado
desprendia do seu corpo em cada uma das
toda a família. Depois de inúmeros dos que o adoram. Nós iremos lá, Peri! Tu
frases solenes, e vinha embeber-se no seu
viverás com tua irmã, sempre...!
acidentes e peripécias, em que se coração, que se abria para recebê-la.
Ela embebeu os olhos nos olhos do seu
destaca a ação de Peri, conjurando A água subindo molhou as pontas das amigo, e lânguida reclinou a loura fronte.
perigos advindos não só dos indíge- largas folhas da palmeira, e uma gota, resva- O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face.
nas inimigos, mas também do vilão lando pelo leque, foi embeber-se na alva cam- Fez-se no semblante da virgem um ninho
Loredano e seus asseclas, dissimula- braia das roupas de Cecília. de castos rubores e límpidos sorrisos: os lábios
dos entre os “aventureiros” que A menina, por um movimento instintivo abriram como as asas purpúreas de um beijo
serviam a D. Antônio, este, esgotadas de terror, conchegou-se ao seu amigo; e nesse soltando o voo.
as possibilidades de resistência, pede momento supremo, em que a inundação abria A palmeira arrastada pela torrente impe-
a Peri que salve Cecília, levando-a a fauce enorme para tragá-los, murmurou tuosa fugia...
para a Corte, enquanto faz explodir docemente: E sumiu-se no horizonte.
sua casa, a fim de evitar o trucida- — Meu Deus!... Peri!... (O Guarani , Epílogo)
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1. Romance Urbano
TEXTO I TEXTO II
Senhora
Publicado em 1875, é o terceiro (...) Aurélia passava agora as noites solitária.
Na sala, cercada de adoradores, no meio Raras vezes aparecia Fernando, que arran-
da série “perfis de mulher”. A per- das esplêndidas reverberações de sua beleza, java uma desculpa qualquer para justificar sua
sonagem principal é Aurélia Camargo, Aurélia, bem longe de inebriar-se da adoração ausência. A menina, que não pensava em
rainha dos salões cariocas na época produzida por sua formosura e do culto que lhe interrogá-lo, também não contestava esses
do Segundo Reinado. Herdeira repen- rendiam, ao contrário parecia unicamente pos- fúteis inventos. Ao contrário, buscava afastar
tina de um avô que desconhecia, suída de indignação por essa turba vil e abjeta. da conversa o tema desagradável.
Não era um triunfo que ela julgasse digno Conhecia a moça que Seixas retirava-lhe
passa da pobreza a uma existência de
de si, a torpe humilhação dessa gente ante sua seu amor; mas a altivez de coração não lhe
fausto social. Toda a intriga gira em riqueza. Era um desafio, que lançava ao consentia queixar-se. Além de que, ela tinha
torno do tema do casamento por mundo, orgulhosa de esmagá-lo sob a planta, sobre o amor ideias singulares, talvez inspira-
interesse, por meio do contrato e como a um réptil venenoso. das pela posição especial em que se achara ao
dote, fato comum na época. Aurélia, E o mundo é assim feito; que foi o fulgor fazer-se moça.
satânico da beleza dessa mulher a sua maior (Senhora, cap. VI)
enquanto pobre, sofrera amarga
sedução. Na acerba veemência da alma revol-
decepção ao ver Fernando Seixas, ta, pressentiam-se abismos de paixão, e entre-
por quem se enamorara, afastar-se Lucíola
via-se que procelas de volúpia havia de ter o
Neste romance, Alencar desen-
diante do aceno de um dote de trinta amor da virgem bacante.
Se o sinistro vislumbre se apagasse de
volve um tema romântico que moti-
contos de réis, quando ela de nada
súbito, deixando a formosa estátua na penum- vou, e ainda motiva, muita paixão. É o
dispunha. Jurou vingar-se e, ao tema da “boa prostituta”, que se
bra suave da candura e inocência, o anjo casto
receber a herança, manda e puro que havia naquela, como há em todas as redime de seu “pecado” por meio do
sigilosamente oferecer ao ex-noivo a moças, talvez passasse despercebido pelo amor sincero de um belo jovem, que a
quantia de cem contos de réis para turbilhão. ama, mas que a sociedade tentará
um casamento com moça desconhe- As revoltas mais impetuosas de Aurélia afastar dela. Ela é Lúcia, meretriz de
eram justamente contra a riqueza que lhe servia singular nobreza de caráter, inspirada
cida. Fernando repeliu inicialmente a
de trono e sem a qual nunca, por certo, apesar de na Marguerite da peça A Dama das
oferta, mas, necessitando de dinhei- suas prendas, receberia como rainha
ro, aceitou-a, com a condição de Camélias, de Alexandre Dumas Filho;
desdenhosa a vassalagem que lhe rendiam.
receber vinte contos de réis em ele é Paulo Silva, um jovem promissor,
Por isso mesmo considerava ela o ouro
um vil metal que rebaixava os homens; e no
de boa família, inspirado no Alfredo da
adiantamento. Na noite de núpcias, é
íntimo sentia-se profundamente humilhada mesma peça. Aqui, como em
recebido com desprezo, sofrendo a
pensando que, para toda essa gente que a Senhora, Alencar, romanticamente,
humilhação de encarar o recibo da apresenta o amor como operador de
cercava, ela, a sua pessoa, não merecia uma só
sua compra em posse de Aurélia. Um das bajulações que tributavam a cada um de mudanças comportamentais nas
ano depois, consegue, graças a um seus mil contos de réis. pessoas — mudanças que trazem
negócio antigo, receber a quantia de Nunca da pena de algum Chatterton purificação, redenção, elevação. No
vinte contos que entrega à mulher desconhecido saíram mais cruciantes apóstro- jogo de “pecado”, “pureza”, sexo e
fes contra o dinheiro, do que vibrava muitas convenções sociais, revela-se a
para compra de sua liberdade. Aurélia
vezes o lábio perfumado dessa feiticeira meni-
pede-lhe que fique, pois o seu concepção moral de Alencar, que
na, no seio de sua opulência.
procedimento fizera com que se redi- exprime o moralismo da parcela con-
Um traço basta para desenhá-la sob esta
misse de toda a venalidade [venal é face.
servadora da sociedade de seu tempo.
quem se vende] e infâmia. O Convencida de que todos os seus inúme-
ros apaixonados, sem exceção de um, a
romance retrata os hábitos e vícios da
pretendiam unicamente pela riqueza, Aurélia TEXTO III
sociedade fluminense da época, reagia contra essa afronta, aplicando a esses
influenciada pelos hábitos europeus e indivíduos o mesmo estalão.
em vias de formação urbana. Com Assim costumava ela indicar o mereci- Um embaraço imprevisto, causado por
uma narrativa complexa para o mento relativo de cada um dos pretendentes, duas gôndolas1, tinha feito parar o carro. A
dando-lhes certo valor monetário. Em lingua- moça ouvia-me; voltou ligeiramente a cabeça
romance da época, é dos melhores
gem financeira, Aurélia cotava os seus adora- para olhar-me e sorriu. Qual é a mulher bonita
livros de José de Alencar. (A. dores pelo preço que razoavelmente poderiam que não sorri a um elogio espontâneo e um
Coutinho, Enciclopédia de Literatura obter no mercado matrimonial. grito ingênuo de admiração? Se não sorri nos
Brasileira, MEC) (Senhora, cap. I) lábios, sorri no coração.
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Durante que se desimpedia o caminho, aventuras, foram alguns dos ingre- arreava-se do azul diáfano onde a fantasia se
tínhamos parado para melhor admirá-la; e então dientes que conquistaram de ime- embebe com a voluptuosidade casta da criança
ainda mais notei a serenidade de seu olhar que diato os leitores. De fato, Alencar a aconchegar-se dentro, tão dentro do grêmio
nos procurava com ingênua curiosidade, sem materno.
demonstra um valioso domínio da
provocação e sem vaidade. O carro partiu; Bem longe do céu, porém, e bem presos
técnica narrativa, pois construiu sua
porém tão de repente e com tal ímpeto dos ca- à terra andavam os olhos dos nossos dois
valos por algum tempo sofreados, que a moça
trama em 62 capítulos: os 31 primei- amiguinhos, que nem haviam reparado sequer
assustou-se e deixou cair o leque. Apressei-me ros narram fatos que vão se tornando na limpidez da atmosfera. Ainda estavam na
e tive o prazer de o restituir inteiro. cada vez mais complicados, o que sazão8 feliz, em que respira o céu, como o ar
Na ocasião de entregar o leque apertei-lhe prende a curiosidade, seduzida pelos da vida, e o aroma do campo, quase sem
a ponta dos dedos presos na luva de pelica. mistérios que se lhe vão sentir.
Bem vê que tive razão assegurando-lhe que apresentando; os 31 seguintes Às flores, que a noite desabrochara; aos
não sou tímido. A minha afoiteza a fez corar; dedicam-se a desenrolar os nós da frutos silvestres que enfeitavam a copa das
agradeceu-me com um segundo sorriso e uma primeira metade do romance, o que árvores; aos passarinhos que trinavam
ligeira inclinação da cabeça; mas o sorriso atrai ainda mais a atenção, que vai embalando-se nas franças9 dos coqueiros; ao
desta vez foi tão melancólico, que me fez dizer que era da terra e bem da terra, iam os
vendo todos os mistérios sendo
ao meu companheiro: impulsos desses jovens corações, quando não
desvendados.
— Esta moça não é feliz! se volviam um para o outro, a reverem-se entre
— Não sei; mas o homem a quem ela
Pelo fato de sua história se passar si.
amar deve ser bem feliz! no interior de São Paulo, Til é O céu, essa imensa tela azul, que foi
Nunca lhe sucedeu, passeando em nos- reconhecidamente rotulado como cúpula de um berço, o da luz, e será mais tarde
sos campos, admirar alguma das brilhantes romance regionalista, tendo, portanto, véu de um leito, o da vida; a alma só o procura,
parasitas que pendem dos ramos das árvores, como preocupação a descrição dos só o contempla, quando a dor a prostra. Mas
abrindo ao sol a rubra corola? E quando ao co- costumes daquela localidade, o que para aquela que sorri e folga, o firmamento é
lher a linda flor, em vez da suave fragrância que acaba por contribuir com mais uma uma terra por descobrir e debuxa-se10
esperava, sentiu o cheiro repulsivo de torpe faceta do painel de nossa nacionali- vagamente na imaginação, como a montanha
inseto que nela dormiu, não a atirou com dade que Alencar pretendia erigir. azul desse vale de lágrimas.
desprezo para longe de si? Alguma vez deixava o rapaz de seguir com
É o que se passava em mim quando essas o passo a menina, para acompanhá-la com a
primeiras recordações roçaram a face da Lúcia TEXTO IV vista. De braços cruzados sobre a coronha da
que eu encontrara na Glória. Voltei-me no leito clavina11 de caça, fitava os grandes olhos
para fugir à sua imagem e dormi. pardos com tal possança d’alma, que mais
Eram dois, ele e ela, ambos na flor da
(Lucíola, cap. II) parecia absorver e entranhar em si o gracioso
beleza e da mocidade.
vulto, do que enlevar-se em sua contemplação.
Vocabulário e Notas O viço da saúde rebentava-lhes no
(...)
1 – Gôndola: carro puxado por burros. encarnado das faces, mais aveludadas que a
— Que me está olhando aí? Nunca me
açucena escarlate recém-aberta ali com os
viu? exclamou com surpresa, mas travada
2. Romance Regionalista orvalhos da noite. No fresco sorriso dos lábios,
sempre da petulância que animava-lhe todos
como nos olhos límpidos e brilhantes, brotava-
os movimentos.
Aqui está um dos aspectos mais lhes a seiva d’alma.
— Não era para você! respondeu rápido o
admiráveis do autor: dá-nos um painel Ela, pequena, esbelta, ligeira, buliçosa,
moço, baixando a cabeça de modo a ocultar o
das principais regiões culturais do saltitava sobre a relva, gárrula e cintilante do
rubor que lhe afogueava o rosto.
País — a região sulina, com seus prazer de pular e correr, saciando-se na delícia
Para confirmar o disfarce, armou a clavina
inefável de se difundir pela criação e sentir-se
pampas e suas coxilhas (O Gaúcho), a e fez pontaria a um cardeal que se embalava no
flor no regaço daquela natureza luxuriante.
vida rural fluminense (O Tronco do topo de uma palmeira.
Ele, alto, ágil, de talhe robusto e bem
Ipê), o Planalto Paulista (Til) e o conformado, calcando o chão sob o grosseiro
— Miguel!...
Nordeste (O Sertanejo). Como no (Til, cap. I)
soco da bota com a bizarria de um príncipe que
caso do romance histórico, não é a pisa as ricas alfombras1, seguia de perto a
realidade, a verdade em si, que atrai o gentil companheira, que folgava pelo campo, a Vocabulário e Notas
romancista, e sim o tema que volutear2 e fazendo-lhe mil negaças, como a 1 – Alfombra: tapete espesso e muito macio,
possibilite dar largas à fantasia, ao borboleta que zomba dos esforços inúteis da de cores e figuras diversas.
seu estilo épico e ao desejo de lançar criança para a colher. 2 – Volutear: andar em roda; girar, rodopiar,
os fundamentos de uma literatura Caminhavam por uma rechã3, bordada de voltear.
nacional. ilhas de mato, que emergiam aqui e ali do 3 – Rechã: terreno alto, extenso e plano, ter-
verde gramado. Pela ramagem frondente4 das minando em escarpa abrupta.
Til árvores e renovos5 que abrolhavam, percebia- 4 – Frondente: frondoso, repleto de copas.
Publicado primeiramente em se a proximidade de um grande manancial, e 5 – Renovo: broto.
entre as crepitações da brisa nas folhas, como 6 – Múrmure: murmúreo.
folhetim no jornal A República entre
um tom opaco desse arpejo da solidão, ouvia- 7 – Acendrado: de acendrar (limpar).
1871 e 1872, Til obteve bastante
se o múrmure6 soturno do Piracicaba, que leva 8 – Sazão: época, estação.
sucesso. Sua linguagem idealizada, a ao Tietê o tributo caudal de suas águas. 9 – França: copa.
descrição rebuscada da paisagem, os Sete horas da manhã haviam de ser. A luz 10 – Debuxar: esboçar.
relacionamentos amorosos leves e de um sol esplêndido fluía no éter, que a 11 – Clavina: carabina.
inocentes, além do ritmo ágil das trovoada da véspera tinha acendrado7. O céu
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