Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
Estruturas
e Fundamentos
do Texto Literário
Autoras
Marta Morais da Costa
Silvana Oliveira
2009
200 p.
ISBN: 978-85-7638-814-2
CDD 801.95
O valor na literatura | 17
A crítica literária e as outras instituições | 17
O julgamento crítico | 18
Os critérios de valoração da obra literária | 19
A metodologia do discurso crítico | 20
O que é um clássico? | 21
Gabarito | 181
Referências | 193
Anotações | 199
acúmulo de exemplos da linguagem figurada (metáforas, metonímias, símiles, analogias, elipses e ou
tros). Segundo Todorov (1980, p. 96-97) ainda
[...] uma parte esmagadora dos nossos contemporâneos nem aderem à teoria ornamental [a do verso], nem à teoria afe
tiva [a do sofrimento do poeta], mas a uma terceira, cuja origem é claramente romântica; uma parte tão predominante
que temos dificuldade em perceber que não se trata, no fim das contas, senão de uma teoria entre outras (e não da ver
dade enfim revelada). Nesse caso, a diferença semântica entre poesia e não-poesia não mais é procurada no conteúdo
da significação, mas na maneira de significar: sem significar outra coisa, o poema significa de outro modo. Uma maneira
diferente de dizer a mesma coisa seria: as palavras são (somente) signos na linguagem cotidiana, ao passo que elas se
tornam, em poesia, símbolos: daí o nome de simbolista que utilizo para designar essas teorias.
Para melhor esclarecer o que entende por símbolo, o teórico faz referência à tradição alemã de pen
samento sobre o texto poético (Schlegel, Novalis, Schelling, Kant, Hegel, Solger). São escritores dos séculos
XVIII e XIX, do apogeu do movimento literário conhecido como Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto)
que combateu a herança neoclássica e instaurou uma nova literatura na Europa. Revolução essa que che
gou posteriormente ao Brasil. No que consiste essa concepção de símbolo, e por extensão, de poesia?
Poderíamos resumi-la em cinco pontos (ou cinco oposições entre símbolo e “alegoria”): 1. o símbolo mostra o devir do
sentido, não seu ser; a produção, e não o produto acabado. 2. O símbolo é intransitivo, não serve apenas para transmitir
a significação, mas deve ser percebido em si mesmo. 3. O símbolo é intrinsecamente coerente, o que quer dizer que um
símbolo isolado é motivado (não-arbitrário). 4. O símbolo realiza a fusão dos contrários, e mais especificamente, a do
abstrato e do concreto, do ideal e do material, do geral e do particular. 5. O símbolo exprime o indizível, isto é, aquilo
que os signos não-simbólicos não chegam a transmitir; é, por conseguinte, intraduzível, e seu sentido é plural – ines
gotável. (TODOROV, 1980, p. 97)
Temos aí uma perspectiva bastante significativa e didática do que seja a matéria-prima da poesia,
o símbolo. As negações de Todorov fazem sentido, porque é muito freqüente encontrarmos, na tenta
tiva de compreender o gênero lírico, a associação entre a subjetividade do leitor e a do poeta. Posição
que ele denominou “teoria afetiva”. Maria Lúcia Aragão (1997, p. 75, grifo nosso), por exemplo, ao tratar
do gênero lírico afirma:
[...] a extensão da composição lírica [...] deve ser de pequeno tamanho para não trair o que há de essencial na disposição
anímica do poeta, e para que haja unidade e coesão do clima lírico no poema.
Ao falarmos em clima, estamos partindo do pressuposto de que o importante no estilo lírico não são as conexões ló
gicas. A comunicação entre o leitor e o poema não exige que a compreensão ocupe o primeiro plano. O leitor se emo
ciona primeiro, para depois entender. Por este motivo, Staiger afirma que “para a insinuação ser eficaz, o leitor precisa
estar indefeso, receptivo”. Isso acontece quando a alma do leitor está afinada com a do poeta.
No entanto, Emil Staiger não é de todo partidário de uma arte poética baseada exclusivamente
na afetividade. Ao tentar defini-la, em outro momento da obra Conceitos Fundamentais da Poética, ta
xativamente esclarece: “Dizem que uma poesia é bela, e pensam apenas na sensação, palavras e versos.
Ninguém pensa, entretanto, que a verdadeira força e valor de uma poesia está na situação, em seus
motivos. A partir daí fazem-se milhares de poesias em que o motivo é nulo e que simulam uma espécie
de existência, simplesmente através de sensações e versos sonoros” (STAIGER, 1972, p. 25). É possível
perceber nessas poucas tentativas como os autores citados combatem diferentes aspectos já estabe
lecidos e repetidos a respeito da definição de poesia. É mais fácil negar o que está em desacordo com
a idéia dos autores do que conseguir definir exatamente o que é a poesia lírica. No entanto, também
Staiger enumera qualidades que considera definidoras de poesia:
Se a idéia de lírico, sempre idêntica a si mesma, fundamenta todos os fenômenos estilísticos até então descritos, essa
mesma idéia una e idêntica precisa ser revelada e ter nome. Unidade entre a música das palavras e de sua significação;
atuação imediata do lírico sem necessidade de compreensão (1); perigo de derramar-se, retido pelo refrão e repetições
de outro tipo (2); renúncia à coerência gramatical, lógica e formal (3); poesia da solidão compartilhada apenas pelos
poucos que se encontram na mesma “disposição anímica” (4); tudo isto indica que em poesia lírica não há distancia
mento. (STAIGER, 1972, p. 51)
Essa ausência de distanciamento, isto é, o leitor não pode deixar de se envolver com o poema lido,
faz com que haja, por vezes, confusão entre o eu lírico (manifestação subjetiva no poema) e o eu bio
gráfico (o poeta enquanto ser vivo). Para que essa diferença se torne mais clara, Angélica Soares (1989,
p. 26) assim a qualifica:
1.º o eu lírico ganha sempre forma no modo especial de construção do poema: na seleção e combinação das palavras,
na sintaxe, no ritmo e na imagística;
2.º assim, ele se configura e existe diferentemente em cada texto, dirigindo-nos a recepção;
3.º e, por isso, não se confunde com a pessoa do poeta (o eu biográfico), mesmo quando expresso na primeira pessoa
do discurso.
Diferentemente do escritor que compõe a sua autobiografia e tenta descrever o passado, o poeta
tenta compreendê-lo, o que pressupõe uma atitude objetiva, mas a autobiografia, que também faz a re
flexão sobre o passado, mantém um laço com o passado e com o relógio, ao passo que o poeta lírico, ao
debruçar-se sobre si mesmo e sobre seu passado, o faz sempre no tempo presente, como se os fatos esti
vessem a seu lado, dominantemente ocorrendo, num fluir contínuo. “O passado como objeto de narração
pertence à memória. O passado como tema do lírico é um tesouro de recordação.” (STAIGER, 1972, p. 55).
O fato de todos os teóricos tratarem dessa questão da confusão que pode se estabelecer entre sujeito
lírico e sujeito empírico demonstra o quanto a poesia provoca a interação intensa do leitor com o texto,
ao ponto de confundir o que se lê com o que se vive. Fernando Paixão (1982, p.31) também se detém no
estudo dessa relação e considera esse tipo de subjetividade do ponto de vista discursivo e afirma:
Apoiada em sua força simbólica, a linguagem dos poetas – os bons poetas, é claro – se realça por ser um dos raros dis
cursos correntes em nossa sociedade em que existe o tom de confissão e de sinceridade, ainda que afirmem o contrário
os famosos versos de Fernando Pessoa: “o poeta é um fingidor/ finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/
a dor que deveras sente”. O dizer poético, ao meu ver, representa apesar de tudo um dos poucos que ainda mantêm
uma relação de necessidade com a vida.
Podemos inferir o quanto de imaginada biografia e realidade podem conter os versos de Augusto
dos Anjos:
Vozes de um túmulo
Augusto dos Anjos
Morri! E a Terra – a mãe comum – o brilho
Destes meus olhos apagou!... Assim
Tântalo, aos reais convivas, num festim,
Serviu as carnes do seu próprio filho!
Inconcebível na vida real esse poeta-defunto, mas perfeitamente possível na literatura. Lemos um
texto em primeira pessoa, com “eu” explícito, mas que não pode ser acreditado integralmente. Trata-se
de um texto simbólico, figurado, para tratar de assuntos relevantes à existência humana, como a força
inexorável do tempo e da morte. Fica evidente que as semelhanças físico-biológicas que possam existir
entre o eu lírico expresso nos verbos e pronomes de primeira pessoa desse texto não correspondem
ao eu empírico Augusto dos Anjos, muito vivo no momento da escrita. Pode haver, sim, semelhanças
anímicas e de pensamento, difíceis de serem comprovadas e aproximadas, porque pertencem ao ima
ginário e ao inconsciente do autor. Muitas vezes, o poeta nem comunga dos mesmos sentimentos e usa
imagens comuns e constantes da literatura poética, repetindo-as por serem estéticas ou por estarem de
acordo com aquelas usadas no período literário em que se enquadra sua obra.
Salete Cara (1989, p. 69) conclui a definição do que acredita seja a poesia lírica com a seguinte sín
tese: “o lirismo se encontra onde se encontra uma expressão particular cuja figura é criada pelas relações
– de acorde ou dissonância – entre som, sentido, ritmo e imagens. Essas relações são comandadas pela
visão subjetiva de um sujeito lírico”. Observe-se a importância dos termos que a autora grifou, porque
eles expressam os elementos relevantes e indispensáveis à poesia de qualidade.
Todorov (1980), ao tratar do gênero lírico, apresenta quatro teorias para explicar a natureza do
discurso lírico: a ornamental, a afetiva, a simbólica e a sintática. A ornamental é uma teoria pragmática
que considera o poema como um artefato retórico, isto é, destinado a agradar e não a instruir. Conse
qüentemente, um bom poema lírico é o mais belo, o mais carregado de ornatos poéticos (figuras de
linguagem, figuras sonoras, construções sintáticas elaboradas). A teoria afetiva considera que a poesia
enfatiza os efeitos emotivos do poema, criando diferenças com a linguagem comum, mais voltada para
a apresentação de idéias. A poesia busca o efeito afetivo, patético, de sentimentos. A teoria simbólica
defende a diferença entre a poesia e a não-poesia estabelecida não pelo conteúdo, mas pela maneira
de significar. Essa maneira está no uso das palavras no seu sentido de símbolos, isto é, na capacidade de
exprimir o indizível, de realizar a fusão dos contrários, de ter valor intrínseco, em si mesmo, de não ser
restrito a um sentido único. A teoria sintática prega “a coerência e unidade entre os diferentes planos do
texto”, valorizando sua construção fônica, gramatical e semântica.
Mais uma vez é possível observar a pluralidade de enfoques existentes na compreensão e defi
nição do gênero lírico, de vez que ele está ancorado na história da literatura e da cultura, passível de
transformações do ponto de vista da produção e da recepção dos textos literários.
Os tratados científicos da Antigüidade usavam o verso, mas nem por isso os textos pertenciam
ao gênero lírico. “Entre gregos, egípcios e hebreus a lírica associava-se, primitivamente, às práticas reli
giosas. Todavia, os críticos romanos, caudatários dos gregos, enfatizaram-lhe o aspecto estético, ou seja,
consideravam-na simplesmente uma poesia de natureza musical, acompanhada pela lira e destinada
ao canto” (MOISÉS, 1997).
Quanto ao caráter musical da poesia oral e da escrita grega, é preciso salientar a constituição da
língua grega clássica, cuja acentuação era intensiva (sílabas longas e sílabas breves) e não tônica, como
na língua portuguesa. Salete Cara (1989, p. 15) esclarece:
Embora hoje em dia a gente não possa mais saber o que foi exatamente a música grega e pouca coisa tenha sobrado
dos textos de poesia, a não ser fragmentos, é possível observar que as palavras não tinham posição secundária em
relação à música, mas permaneciam com suas potencialidades de ritmo e canto. De canto com as próprias palavras, sem
notas musicais.
Na Grécia primitiva, o termo que designava o poeta era aedo, que significava cantor. Era simulta
neamente o autor e o recitador de sua produção, o que o distinguia do rapsodo, que apenas executava
os poemas de outro poeta.
Embora o primeiro poeta grego, Homero, tenha sido autor de dois importantíssimos poemas épi
cos, a Ilíada e a Odisséia, surgiu a necessidade de uma poesia individual, como expressão pessoal, tra
tando de acontecimentos da vida cotidiana e comunitária. Nascia a poesia lírica, para ser cantada com
acompanhamento musical.
Entre os vários tipos de poesia lírica grega, destaca-se a poesia mélica (de “melodia”) que através de Safo e Alceu foi a
que teve o acompanhamento musical mais completo e a maior liberdade de composição.
Havia também a poesia de coro e as elegias, que conservavam um pouco das relações com a poesia épica, na medida em
que glorificavam deuses e vencedores de jogos, mantendo uma certa natureza política e bélica. (SOARES, 1989, p. 15)
Entre os latinos, predominou o termo “vate”, significando “adivinho, sacerdote”, visto que suas pa
lavras aproximavam-se das profecias, enunciadas por sacerdotes, por inspiração dos deuses. Essa deno
minação conferia ao poeta uma distinção entre os demais artistas. O termo reaparecerá mais tarde entre
os poetas românticos, no século XIX, que se acreditavam inspirados por influxos que transcendiam o
humano, com vocação distintiva dos outros mortais.
O livro sobre a arte poética, de Aristóteles, escrito no século IV a.C., contém o pensamento da An
tigüidade sobre a forma poética. Entre esses ensinamentos, salienta-se a atenção dada à metáfora, no
capítulo XXI do texto: “A metáfora é a transposição de nome de uma coisa para outra, transposição do
gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou de uma espécie para a outra, por via da analogia”
(ARISTÓTELES, 1964, p. 304). Na linguagem da poesia, segundo o pensador grego, a elocução do verso
pode adotar diferentes espécies de nomes: ou o termo próprio, ou um termo dialetal (que ele não reco
menda), ou uma metáfora, ou um vocábulo ornamental, a palavra forjada, ou alongada, ou abreviada1,
ou modificada. Trata-se de modos de alterações nas palavras (seja por meio de mudanças neológicas,
seja na composição do termo). É possível inferir que as palavras do autor visavam indicar que o texto
poético tem o poder de intervir na língua cotidiana para criar efeitos significativos. Essa importância
dada à linguagem permanece até os dias de hoje.
1 A língua grega era baseada em acentos de duração. Por isso, vogais longas produziam alongamento das palavras e as breves, sua abreviação.
As alterações provocavam efeitos semânticos diferentes.
A poesia lírica nasce da necessidade de expressão individual no momento em que a cultura grega
era dominada pela poesia épica, como a Ilíada e a Odisséia, que expressavam idéias e crenças da polis.
Nessa poesia épica, “estética e ética andavam juntas” (CARA, 1989, p. 14), ao passo que a poesia lírica
serviu para exprimir ainda certas marcas cívicas, mas já com acentuada ligação com a música.
Dois tipos de poesia lírica eram então comuns: a poesia mélica (melos = melodia em grego), “que,
através de Safo e Alceu, foi a que teve acompanhamento musical mais completo e a maior liberdade de
composição”; e a poesia de coro e as elegias, “que glorificavam deuses e vencedores de jogos, mantendo
certa natureza política e bélica.” (CARA, 1989, p. 15). Observemos um poema de Safo (séc. VII a VI a. C.)
para conferir essas características:
Basta-me ver-te e ficam mudos os meus lábios, ata-se a minha língua, um fogo sutil corre sob minha pele, tudo escu
rece ante o meu olhar, zunem-me os ouvidos, escorre por mim o suor, acometem-me tremuras e fico mais pálida que a
palha: dir-se-ia que estou morta. (CARA, 1989, p. 16)
Mais do que sentimento, o que se pode afirmar é que a poesia lírica, por intermédio da musica
lidade e da liberdade de expressão, investiga a alma humana, nela explorando as reações diante da
realidade (objetiva e de relações humanas) e, em especial, o inconsciente. A passagem das descrições
bélicas, cívicas e coletivas (da poesia épica) para a individualidade e profundidade de exploração da
alma humana não se deu num salto, de imediato. Foi passando por transformações lentas e históricas.
De uma atitude teologal, através da alegoria, pôde ensinar verdades da alma e da religião durante a
Idade Média e o Renascimento.
Cumpre ressaltar que nesse período vigorou também, na poesia provençal e nas cantigas portu
guesas, uma forte corrente de poesia erótica nas cantigas d’escárnio e maldizer medievais e nos poemas
de Manuel du Bocage (1765-1805) e Gregório de Matos Guerra (1623/1633-1696).
Após o Barroco, em que se filiam esses dois poetas, o movimento Iluminista do século XVIII criou
uma poesia filosófica que desembocou no Romantismo do século XIX. Neste, a poesia tratou do infi
nito, do universo, da natureza e da espiritualidade, bem como – através de imagens em profusão, de
símbolos e de musicalidade – dos sentimentos amorosos, da morte e da amizade. O Romantismo foi o
grande responsável por essa avaliação da poesia lírica como um texto literário dominado pelo subjeti
vismo emocional, em que o poeta somente consegue atingir o ápice da arte na medida em que se deixa
dominar pela esfera pessoal, por seu mundo interior. É verdade que o Romantismo traz para a arte um
novo conceito de sujeito. Não mais o sujeito clássico “submetido à convenção universalista do logos – o
“penso, logo existo” – que definia o ego da tradição clássica” (CARA, 1989, p. 30-31). Mas um novo con
ceito de subjetividade, relacionado à liberdade de expressão, à expressão da emotividade, à elevação
do indivíduo-poeta para além da situação cotidiana e das funções sociais burguesas: o poeta se alçará à
categoria de vate, um profeta inspirado pelos deuses.
Com a chegada do Simbolismo ao final do século XIX, em especial Rimbaud (1854-1891), e da
vanguarda francesa, o poeta-vidente (voyant)2 mergulha no inconsciente, o que pode ser comprovado
pela frase rimbaudiana: “Je est un Autre”(Eu é um Outro), indicando que a poesia fará um mergulho nas
zonas nebulosas da mente, do inconsciente, procurando descobrir o monstro indecifrável que habita
cada ser humano. A frase famosa foi escrita numa carta a Paul Demeny em 15 de maio de 1871 e traz
uma concepção original para explicar a criação artística, pois indica que o poeta perdeu o controle so
bre o que se passa dentro dele. O poeta continua: “Assisto à eclosão de meu pensamento: eu o olho, eu
o escuto...” Há um deslocamento da concepção clássica de subjetividade enquanto pólo de identidade.
Perde-se essa unidade e essa referência.
O advento da Psicanálise e os estudos sobre o inconsciente, realizados por Freud, estão na base
do Surrealismo e do modo automatizado de criação de poemas. O automatismo psíquico “pelo qual [os
escritores] se propõem exprimir, seja oralmente, seja por escrito, seja por outras maneiras, o funciona
mento real do pensamento. Trata-se de construir poemas ditados sob a ausência de qualquer controle
exercido pela razão e fora de qualquer preocupação estética ou moral” (VAILLANT, 2005, p. 26-27).
Ainda segundo Salete Cara (1989, p. 48), “o sujeito lírico moderno é aquele que, a partir do Simbo
lismo, toma consciência de que o espaço da poesia não é nem o espaço da realidade (a objetividade será
impossível, portanto), nem o espaço do eu (a dita subjetividade será encarada também como ilusória).” Há,
portanto, uma dissociação entre o sujeito lírico e a poesia que o expressa e o mundo dos sentimentos, cau
sada pela transformação da noção de sujeito e de subjetividade. Buscar nos poemas a manifestação exclu
siva de sentimentos equivale a desconhecer a natureza e as funções da poesia lírica contemporânea.
2 O termo aparece na obra Cartas de um Vidente (Lettres à um Voyant), de Rimbaud, publicada em 1871.
Lirismo e visualidade
Uma nova percepção da linguagem poética, nascida na Grécia, vem ao encontro da vanguarda
da literatura no século XX: é a imagem visual. A construção do poema que não se restringe ao ritmo,
tom ou sonoridade das palavras, mas agrega a tudo isso o componente visual. O poema se desenha
juntamente com as palavras (e até mesmo sem elas), em composições que desafiam a inventividade dos
poetas e a interpretação dos leitores.
Há formas diferentes de aproveitamento do espaço da página para que a imagem adquira visu
alidade e significação. A primeira forma é dos poemas figurados, “composições poéticas cujos versos se
organizam de modo a sugerir a forma do objeto que lhes constitui o tema, como um ovo, coração, asa,
pirâmide, altar, cálice, relógio etc.” (MOISÉS, 1997, p. 400).
Observemos um poema como o de Mário Quintana (1906-1994), reproduzido a seguir:
O mapa
Mário Quintana
Podemos perceber o quanto as palavras evocam espaços e paisagens: ruas, casas, o vento, o cor
po feminino são descritos e valorizados enquanto imagens de seres existentes no real. O leitor imagina
essas imagens, sem que as palavras as desenhem de forma mimética no papel. Essa é a presença evocada
das imagens numa poesia tradicional. O poema figurado traz essa imagem com palavras em posições e
formatos que tentam reproduzir a referência externa. Vejamos, por exemplo, o poema abaixo:
Trata-se de um poema conhecido como “O ovo”, do grego Símias de Rodes, datado de três séculos
antes de Cristo. As palavras são dispostas de maneira a reproduzir a imagem do significado que traduzem.
Guillaume Apollinaire (1880-1918) criou no início do século XX para esse tipo de texto o nome de
caligrama3. Os hieróglifos egípcios foram os primeiros caligramas conhecidos. A eles segue o poema de
Símias de Rodes. Esse tipo de composição existiu ao longo da Idade Média e do Barroco, mas teve seu
desenvolvimento mais intenso com as criações de Guillaume Apollinaire. Também pode ser designado,
além de poema figurado, como carmen figuratum, pattern poem, bildergedicht ou poema figurativo. Ve
rifique um exemplo de caligrama de Apollinaire:
La cravate et la montre
Guillaume Apollinaire
LA
TE
CRAVA
DOU
LOU
REUSE
QUE TU
PORTES
ET QUI T’
ORNE O CI
M M E L’ O VILISÉ,
CO N OTE- TU VEUX
S ’ A M U S E LA BIEN
SI RESPI
BI
RER
EN
les laa
heures
et le beau
vers Mon
dantesque cœur té
luisant et
cadavérique. de
la
le bel les
inconnu Il yeux vie
est Et
— tout pas
5 se
les Muses en ra se
aux portes de fin fi
ton corps ni l’enfant la
dou
l’infini leur
redressé Agla
par un fou de
de philosophe
mou
rir
semaine la main
Tircis
Esse poema francês tem como título “A gravata e o relógio” 4. Como pode ser observado, são as pa
lavras que, por sua distribuição pelo espaço da página, constroem e visualizam as imagens. Do mesmo
poeta, o poema “Paysage” sugere uma árvore:
4 Os exemplos de caligramas e de poesia visual, como os que são aqui apresentados, podem se obtidos na internet no site <www.fcsh.unl.pt/
edtl/verbetes/C/caligrama.htm>.
Guillaume Apollinaire
CET
ARBRISSEAU
QUI SE PRÉPARE
A FRUCTIFIER
TE
RES
SEM
BLE
N U
P Ê
pondo caligramas como o ‘Pêndulo’ (1962), de E. M. de
L
D
U
N Melo e Castro”, segundo Carlos Ceia (2006), à esquerda.
P Ê
D U
A presença das imagens visuais, nascidas do de
N
P Ê D senvolvimento da tecnologia, da sociedade imagéti
N
ca em que estamos
P Ê imersos e da inven Ernesto Manuel de Melo e Castro
tividade dos poetas
contemporâneos, fez nascer um novo tipo de poesia, denominada Soneto soma 14 X
poesia visual. Nela, as palavras não precisam necessariamente repre 1 4 3 4 2
sentar a imagem. A visualidade pode vir representada por outros 2 3 3 0 6
signos não-verbais, como no exemplo de Ernesto Manuel de Melo 4 1 6 1 2
e Castro, ao lado. 3 2 2 1 6
Jayro Luna (2005, p. 74-75) assim analisa o texto: 5 0 0 1 8
No caso da utilização de elementos estatístico-probabilísticos na poesia 2 1 2 5 4
concreta portuguesa, tomemos como exemplo um poema de E. M. de MeIo 1 4 0 1 8
e Castro, “Soneto soma 14 X”, do livro Poligonia do Soneto, 1963. 3 2 4 1 4
É um soneto que se insere naqueles que farão a crítica do soneto como for 3 1 2 3 5
ma poética.
5 4 1 2 2
O “Soneto soma 14 X” é composto de números e, nesse sentido, conhe 3 0 4 2 5
cendo algumas da regras compositivas do soneto, e observando que, no
caso deste poema, a soma dos números de um verso devam totalizar 14, é 4 3 3 1 3
possível subtrair-se alguns versos e pedir a alguém que complete os versos 5 1 2 1 5
faltantes, num raro exercício de análise matemática da forma. 8 9 3 5 3
O soneto em questão apresenta rimas numéricas, assim, no caso da reconstituição, é possível, sabendo-se com qual
determinado verso rima, já saber de antemão qual o último dos cinco números que compõem o verso. Os outros qua
tro números do verso resultaram de uma soma baseada no fato do total do verso dar 14, e de que não há um só verso
repetido neste soneto. Observe-se ainda, que o último verso deste soneto, o verso “chave de ouro”, dá soma 28 (duas
vezes 14), como que a querer dizer que é um verso que vale mais do que os outros.
Numericamente, portanto, é possível neste nosso exercício de reconstrução produzir variantes do soneto, mas que,
funcionalmente, exerceram o mesmo papel desempenhado pelo original de Melo e Castro, que crítica justamente a
forma padrão para o fazer poético.
Cabe observar, ainda, que se retirássemos não um verso, mas somente um número de cada verso, a possibilidade de
reconstrução integral do soneto, em relação ao original, seria de 100%.
Trata-se da evolução do poema lírico ao longo da história da literatura, com a contribuição de no
vos tempos e novas tecnologias. Há, nessa visualidade, inteira correspondência com o modo de olhar da
contemporaneidade e com a possibilidade de criar múltiplos objetos, mantendo sempre a capacidade de
surpreender e de provocar descobertas no leitor.
Texto complementar
(ELLIOT, 1972, p. 33-35)
Espero que todos concordem em que todo bom poeta, seja ele ou não um grande poeta, tem
algo a dar além do prazer: pois, se fosse somente prazer, o próprio prazer não seria no maior grau.
Além da intenção específica que a poesia possa ter [...], há sempre a comunicação de alguma experi
ência nova, de algum entendimento novo do familiar, ou a expressão de alguma coisa que sentimos
mas para a qual não temos palavras, que amplia nossa conscientização, ou apura a nossa sensibilida
de. Entretanto, assim como não se refere à qualidade do prazer individual, essa conferência também
não diz respeito aos benefícios individuais causados pela poesia. Creio que todos entendem quer
o tipo de prazer que a poesia pode dar, quer o tipo de diferença, além do prazer, que traz a nossas
vidas. Sem produzir esses dois efeitos, simplesmente não há poesia. Podemos ter conhecimento
disso, mas ao mesmo tempo negligenciar algo que a poesia faz para nós coletivamente, enquanto
sociedade. E digo isso no seu sentido mais amplo, pois considero importante que cada povo tenha
sua própria poesia, não apenas para aqueles que gostam de poesia – esses podem sempre apren
der outras línguas e deleitar-se com sua poesia – mas porque faz realmente diferença na sociedade
como um todo, e isso para as pessoas que não gostam de poesia. Estou incluindo até mesmo os que
desconhecem os nomes de seus poetas nacionais. Esse o tema real dessa conferência.
Podemos observar que a poesia difere de qualquer outra arte por ter para o povo da mesma
raça e língua do poeta um valor que não tem para os outros. É bem verdade que até a música e
a pintura têm uma característica local e racial, mas, evidentemente, as dificuldades de apreciação
dessas artes, para um estrangeiro, são bem menores... Por outro lado, é verdade também que os
escritos em prosa têm, em sua própria língua, um sentido que se perde na tradução; todos nós per
cebemos, porém, que estamos perdendo muito menos ao ler um romance traduzido do que ao ler
um poema: e na tradução de alguns tipos de trabalho científico a perda pode ser virtualmente nula.
Que a poesia é muito mais local do que a prosa pode ser verificado na história das línguas européias.
Através da Idade Média até há algumas centenas de anos, o latim continuava sendo a língua usada
para a Filosofia, Teologia e Ciência. O impulso para o uso literário das línguas dos povos começou
com a poesia. E isso se torna perfeitamente natural ao percebermos que a poesia está primeira
mente ligada à expressão dos sentimentos e das emoções, e que sentimentos e essas emoções são
particulares, embora isso seja geral. É mais fácil pensar numa língua estrangeira do que sentir nela.
Portanto, nenhuma arte é mais obstinadamente nacional do que a poesia. E um povo pode ter sua
língua extirpada, e ser obrigado a usar outra língua nas escolas, mas, a não ser que se ensine àquele
povo a sentir na nova língua, não se conseguirá extirpar a antiga. E ela reaparecerá na poesia, que
é o veículo do sentimento. Acabei de dizer “sentir na nova língua” e refiro-me a algo bem maior do
que apenas “expressar seus sentimentos numa nova língua”. Um pensamento expresso numa língua
diferente pode ser praticamente o mesmo pensamento, mas um sentimento ou emoção expres
sos numa língua diferente não são o mesmo sentimento e a mesma emoção. Uma das razões para
aprendermos bem pelo menos uma outra língua é a de adquirir uma espécie de personalidade
suplementar; uma das razões para não assimilar uma nova língua em lugar da nossa própria é a de
que nenhum de nós quer se transformar numa pessoa diferente. Uma língua superior dificilmente
poderá ser aniquilada, a não ser através do extermínio do povo que a fala. Quando uma língua
suplanta outra é porque, geralmente, tem vantagens que a recomendam e que oferecem não só a
diferença em si, mas um nível maior e mais refinado para o pensamento e para o sentimento do que
a língua inicial mais primitiva.
As emoções e os pensamentos, então, expressam-se melhor na língua comum ao povo – ou
seja, a língua comum a todas as classes, a estrutura, o ritmo, o som, o idioma de uma língua expres
sam a personalidade do povo que a fala. Quando digo que a poesia mais do que a prosa está ligada
à expressão da emoção e do sentimento, não quero dizer que a poesia precisa despir-se de todo
conteúdo intelectual ou significado, nem que a grande poesia tem conteúdo igual ao da poesia
menor. Desenvolver essa pesquisa, porém, afastar-me-ia muito de minha finalidade imediata. Vou
considerar como certo que todos encontram a expressão mais consciente de seus sentimentos pro
fundos na poesia de sua própria língua mais do que em qualquer outra arte ou na poesia de uma
outra língua. Isso não significa, evidentemente, que a verdadeira poesia se limita aos sentimentos
que qualquer um pode reconhecer e compreender; não devemos limitar a poesia popular. É sufi
ciente que num povo homogêneo os sentimentos dos mais refinados e complexos tenham algo em
comum com o dos mais rudes e simples. [...]
Podemos dizer que o dever do poeta, como poeta, é só indiretamente voltado para seu povo:
seu dever direto é para com sua língua, que lhe cabe em primeiro lugar preservar, em segundo am
pliar e melhorar. Ao expressar o que os outros sentem, ele está também modificando o sentimento,
tornando-o mais consciente: está fazendo com que as pessoas percebam melhor o que sentem,
ensinando-lhes, portanto, algo a respeito de si mesmas. Mas ele não é apenas uma pessoa mais
consciente do que as outras; é, também, individualmente diferente das outras pessoas e também
dos outros poetas, e pode fazer com que seus leitores compartilhem conscientemente novas sen
sações ainda não vivenciadas. Essa é a diferença entre o escritor meramente excêntrico ou louco e
o poeta genuíno. O primeiro pode ter sensações únicas mas não partilháveis, e, portanto, inúteis;
o segundo descobre novas variações de sensibilidade que podem ser utilizadas por outros. E ao
expressá-las ele está desenvolvendo e enriquecendo a língua que fala.
Estudos literários
1. Escolha três letras de canções populares brasileiras. A seguir, escreva essas letras em folhas sepa
radas e descubra se elas têm características de poemas líricos.
2. Avaliação do “Soneto do amor total”, poema da obra de Vinícius de Moraes. Aplique no texto a
teoria sobre poesia lírica, e discuta o resultado obtido.
Soneto
Lanço-me ao leito, exausto de fadiga,
Repousa o corpo ao fim da caminhada;
Mais eis que a outra jornada a mente obriga
Quando é do corpo a obrigação passada.
2. O aluno
::: verá que a catarse tem função de ensinamento e de moralização;
::: vai encontrar em Bertolt Brecht a mesma função de ensinamento e de objetivo social do tea-
tro, que é o de conscientizar os espectadores;
::: vai verificar que as peças que tratam de problemas sociais e de denúncia de injustiças sociais
têm a mesma função;
::: deve concluir que a catarse, em sua natureza mais profunda, permanece em todo o teatro que
tenha como finalidade instruir e conscientizar os espectadores.
3. O aluno deve verificar que as rubricas direcionam bastante bem a ação dos atores e as expressões
faciais e gestuais: declamando, guardando a carta, olha para a rua, pela janela.
Há muitos provérbios antigos ou ainda presentes em nossa cultura. Esses provérbios justificam o
título da peça: “Antes assim que amortalhado”, “como Deus é servido”, “quem não deve não teme”
e outros.
O conflito se dá entre a rejeição de Inês e a insistência em casar da parte de Isaías.