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LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA

José Carlos Siqueira


Ricardo Iannace
Sueli Saraiva

LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA

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LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA
José Carlos Siqueira
Ricardo Iannace
Sueli Saraiva

2012

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© 2009 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização
por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

S63L

Siqueira, José Carlos


Literatura brasileira contemporânea / José Carlos Siqueira, Ricardo Iannace,
Sueli Saraiva. - Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2012.
288 p.

Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-3334-8

1. Literatura brasileira – Século XX e XXI – História e crítica. 2. Modernismo


(Literatura) – Brasil. 3. Pós-modernismo (Literatura) – Brasil. 4. Poesia moderna –
Brasil – História e crítica. 5. Prosa brasileira – História e crítica. 6. Crítica literária –
Brasil. 7. Teatro brasileiro (Literatura) – Brasil – História e crítica. I. Iannace, Ri-
cardo. II. Saraiva, Sueli. III. Inteligência Educacional e Sistemas de Ensino. IV.
Título.

CDD: 869.909
CDU: 821.134.3(81).09

Capa: IESDE Brasil S.A.


Imagem da capa: Jupiter Images / Dpi Images

Todos os direitos reservados.

IESDE Brasil S.A.


Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200
Batel – Curitiba – PR
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José Carlos Siqueira

Doutorando em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP).


Mestre em Estudos Comparados de Literaturas pela USP. Bacharel em Linguística
pela USP. Professor de Pós-Graduação em Teoria Literária.

Ricardo Iannace

Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São


Paulo (USP). Mestre em Literatura Brasileira pela USP. Bacharel e Licenciado em
Letras Vernáculas pela Universidade Mackenzie. Professor de Literatura Brasileira.

Sueli Saraiva

Mestre em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Univer-


sidade de São Paulo (USP). Bacharel em Letras Português e Inglês pela USP. Licen-
ciada em Inglês pela USP. Professora de Literatura Comparada e Teoria Literária.

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Sumário
Modernismo dos anos 1930: o regionalismo.................. 11
Modernismo brasileiro: onde tudo começou ................................................................ 11

Graciliano Ramos: narrativa e história............................... 37


A realidade brasileira da obra de Graciliano Ramos...................................................... 39
Caetés.............................................................................................................................................. 41
São Bernardo e Vidas Secas...................................................................................................... 43
História e memória em Graciliano ..................................................................................... 46

Geração de 45: poesia e metalinguagem......................... 55


Os anos pré-45: em busca do equilíbrio perdido........................................................... 55
Tradição e modernidade ....................................................................................................... 57
O amador de poemas: Péricles Eugênio da Silva Ramos ........................................... 59
Lêdo Ivo: a emoção na poesia............................................................................................... 61
Essência e concisão: a poesia de José Paulo Paes ........................................................ 63
Manoel de Barros: a reinvenção da palavra poética...................................................... 65
Paulo Mendes Campos: poesia e vida .............................................................................. 68

Clarice Lispector: narrativa do fluxo de consciência.... 77


É chegada a prosa de 45.......................................................................................................... 77
A estreia e a recepção crítica de Clarice Lispector.......................................................... 78
O esquema ficcional de Clarice Lispector ....................................................................... 80
A Paixão Segundo G.H. e A Hora da Estrela: mito e realidade....................................... 82
Considerações finais.................................................................................................................. 84

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Guimarães Rosa: veredas da prosa...................................... 95
Guimarães Rosa e o seu regionalismo . ............................................................................ 95
A escrita mágica de Guimarães Rosa ................................................................................ 97
Estórias do sertão de Rosa...................................................................................................... 98
Rosa em versos..........................................................................................................................102

João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar:


duas poéticas............................................................................113
João Cabral, um “menino bastante guenzo” . ...............................................................114
A “poética João Cabral” de Melo Neto..............................................................................117
A obra-vida de Ferreira Gullar . ..........................................................................................120

Concretismo e outras vanguardas....................................133


Poemas para ver e ouvir.........................................................................................................134
Haroldo de Campos e os “novíssimos”..............................................................................135
Concretismo, Campos & cummings..................................................................................138
Décio Pignatari: designer de signos..................................................................................141
Rupturas e continuidades ...................................................................................................143

Tendências contemporâneas: prosa.................................155


O romance após o Grande Sertão.......................................................................................156
A vez da narrativa curta.........................................................................................................161

Tendências contemporâneas: poesia...............................179


Ivan Junqueira: o poeta do palimpsesto .......................................................................179
Rubens Rodrigues Torres Filho: poesia em transição ................................................181
A poesia delas: Adélia Prado, Hilda Hilst e Ana Cristina César.................................182
Poesia marginal hoje...............................................................................................................187

Tendências contemporâneas: teatro................................199


Nelson Rodrigues e o teatro desagradável.....................................................................200
Dias Gomes: em direção ao teatro épico .......................................................................203

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Augusto Boal e o Teatro do Oprimido ............................................................................205
Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha....................................................................................206
Teatro Oficina ..........................................................................................................................207

Novos autores, autores jovens


e a internet como espaço literário....................................217
Tendências pós-modernas . ...............................................................................................217
Chico Buarque: dos anos de luta à crise do sujeito pós-moderno.........................219
Sérgio Sant’Anna: a vida como ela é! ..............................................................................220
João Gilberto Noll: pela linguagem e pelo leitor . ......................................................222
Os limites entre o real e o ficcional na obra de Bernardo Carvalho.......................224
Paulo Lins: o povo como protagonista.............................................................................226
A internet como espaço literário: poesia virtual e blogs .........................................227

Crítica e ensaísmo literários contemporâneos.............241


Antonio Candido e a crítica moderna . ...........................................................................241
Roberto Schwarz: literatura, sociedade e capitalismo . ............................................244
Luiz Costa Lima: convite ao debate...................................................................................246
Gilda de Mello e Souza: uma elegante crítica da forma.............................................248
Silviano Santiago e a crítica pós-moderna......................................................................250
Leyla Perrone-Moisés: em defesa dos velhos tempos literários . ..........................252

Gabarito......................................................................................261

Referências.................................................................................271

Anotações..................................................................................287

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Apresentação

Falar em “história da literatura brasileira”, em geral, nos traz à mente períodos


remotos da nossa cultura: Barroco, Arcadismo, Romantismo e até mesmo o Mo-
dernismo que já se foi no “século passado”. Esses períodos são “priscas eras”, como
diriam os mais antigos. Por esse motivo, há sempre um certo desconforto ao se
abordar a literatura contemporânea, pois ela está aqui, viva e atuante. Não temos
mais a cômoda distância temporal, as obras completas, que podem ser analisadas
em sua totalidade, e, principalmente, uma fortuna crítica que já tenha destilado as
qualidades e posto de lado momentos menores e defeitos de um autor, de uma
escola, de uma época.
Mas a história, parodiando Cazuza, não para, não, não para..., por isso se faz
necessário o risco de se abrir um capítulo na história da literatura chamado “ten-
dências contemporâneas”. Será o registro de nossa época por ela mesma, pro-
curando indicar os autores e as correntes que, no momento, acreditamos ser o
futuro capítulo da nossa história literária, quando nos tornarmos “priscas eras”
para as próximas gerações.
Como se pode ver, há o risco de que algumas obras possam estar sendo su-
perestimadas, enquanto outras, melhores, relegadas a um segundo plano, e só
o tempo e as depurações da crítica futura poderão fazer justiça e reparar equí-
vocos. No entanto, nossa tarefa continua sendo válida, pois, ao considerarmos o
momento atual, estaremos deixando também uma história da leitura de nossa
época, dos nossos valores e esperanças (ou desesperanças), estaremos legando
para o futuro a nossa visão de mundo e de cultura, com todos os acertos e desa-
certos de que qualquer época é passível.
Se estivermos de acordo sobre isso, então vamos nos debruçar sobre alguns
romances, contos e poemas que estão sendo publicados agora, procurando rela-
cioná-los com as obras que vieram imediatamente antes. Sempre com o intuito
de observar continuidades e rupturas, e assim dar um certo sentido ao desenrolar
de nossa cultura e de nossa gente.
Para este livro, tivemos também a preocupação de dar um lugar ao teatro
contemporâneo, à crítica que está sendo formulada neste momento e também
às tendências que as novas mídias vêm apresentando, como a internet e outras
formas virtuais de expressão.
Obviamente, o quadro que apresentaremos não abrange todas as obras e auto-
res do cenário brasileiro contemporâneo. O leitor poderá notar a ausência de alguns
nomes de reconhecido valor em nossas letras. Logo, é justo considerar este esforço
historiográfico ainda como um recorte, um exercício de reconhecimento e análise.
Assim, com todas as ressalvas feitas, convidamos você a correr este risco e es-
tudar conosco a literatura brasileira contemporânea.

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Modernismo dos anos 1930:
o regionalismo

Modernismo brasileiro: onde tudo começou


Queremos luz, ar, ventiladores, aeroplanos, reivindicações obreiras, idealismos,
chaminés de fábricas, sangue, velocidade, sonho, na nossa Arte. E que o rufo de um
automóvel, nos trilhos de dois versos, espante da poesia o último deus homérico que
ficou anacronicamente a dormir e a sonhar, na era do jazz-band e do cinema, com a
frauta dos pastores da Arcádia e os seios divinos de Helena! (Menotti Del Picchia. Trecho
do discurso de 15 de fevereiro de 1922, segunda noite da Semana de Arte Moderna,
Teatro Municipal, São Paulo.)1  

O trecho acima faz parte do longo discurso proferido sob intensas vaias
por Menotti Del Picchia, um dos mentores da Semana de Arte Moderna de
1922, considerada o marco do modernismo brasileiro. Entre os promotores
da Semana, cuja proposta vinha se desenvolvendo desde 1917, destacam-
se ainda Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Sérgio
Milliet, Guilherme de Almeida, Graça Aranha, além de muitos outros artis-
tas embebidos das novas ideias estéticas europeias, vistas como a última
pá de cal às agonizantes correntes literárias que vigoravam por aqui desde
a segunda metade do século XIX: o Parnasianismo e o Simbolismo.

Os artistas que se engajaram no movimento eram jovens, filhos da elite


brasileira, basicamente do eixo Rio-São Paulo, mas com trânsito constante
por Paris, Genebra, Lisboa etc. Ao voltarem de suas viagens, traziam na
bagagem notícias do Surrealismo, do Futurismo e tudo o mais que se tra-
tasse da atualização da arte no outro lado do Atlântico e servisse de parâ-
metro para aproximar a literatura brasileira à vida moderna.

Esse espírito modernista não contaminou apenas a literatura. Pratica-


mente todas as formas de expressão artística participaram da busca de
afirmação de outros ideais estéticos, de uma nova concepção de arte bra-
sileira. Os exemplos são vários: na pintura, Anita Malfatti e Di Cavalcanti;
na escultura, Victor Brecheret; na música, Villa-Lobos e por aí em diante.
1
Discurso reproduzido na obra O Curupira e o Carão, de Plínio Salgado, Menotti Del Picchia e Cassiano Ricardo (São Paulo: Hélios, 1927,
p. 17-29).

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Literatura Brasileira Contemporânea

“Ruins, mas de um ruim esquisito”. Essa frase de Manuel Bandeira sobre os versos
do estreante Mário de Andrade com o seu Há uma Gota de Sangue em cada Poema
(1917) talvez possa ser emprestada para resumir a impressão do público diante
das novidades estéticas trazidas cinco anos mais tarde pela “Semana”. Afinal, de
11 a 18 de fevereiro, apesar das vaias e semblantes de reprovação da burguesia
culta que compareceu ao Teatro Municipal de São Paulo, o evento foi concluído,
repercutiu para além das fronteiras do Sudeste e certamente agitou as rodas de
conversas durante todo aquele ano de 1922. Vejamos algumas observações do
historiador da “Semana”, Mário da Silva Brito (apud BOSI, 1994, p. 337):
A grande noite da Semana foi a segunda. A conferência de Graça Aranha, que abriu os festivais,
confusa e declamatória, foi ouvida respeitosamente pelo público, que provavelmente não a
entendeu, e o espetáculo de Villa-Lobos, no dia 17, foi perturbado, principalmente porque se
supôs fosse “futurismo” o artista se apresentar de casaca e chinelo, quando o compositor assim
se calçava por estar com um calo arruinado... Mas não era contra a música que os passadistas
se revoltavam. A irritação dirigia-se especialmente à nova literatura e às novas manifestações
da arte plástica.  

Embora possa ter havido uma certa inconsistência ideológica por parte dos
artistas modernistas por não conseguirem superar por completo os limites for-
mais da expressão artística trazida de fora – conforme a autocrítica feita duas
décadas mais tarde por Mário de Andrade (“éramos uns inconscientes”), que la-
mentava que no desenrolar dos fatos tenha faltado aos primeiros modernistas
(1922-1930), da chamada “fase heroica”, repensar “com objetividade o problema
da sua inserção na práxis brasileira” (BOSI, 1994, p. 343) –, de qualquer forma, a
“Semana” se tornou um divisor de águas, um jato de rebeldia no conservadoris-
mo da República Velha (1894-1930) e o despertar de uma nova forma de com-
preender a brasilidade.

O primeiro momento modernista (1922-1930):


rebeldia estética
Podemos dizer que o espírito da primeira fase modernista está resumido na
obra-prima de Mário de Andrade: Macunaíma (1928). Uma narração de estilos
variados (lenda, crônica, sátira, paródia, folclore etc.) que seu autor se recusou
a enquadrar no gênero romance, chamando-a de “rapsódia”. A obra se propõe a
representar as faces do povo brasileiro, sua miscigenação entre as culturas indí-
gena, africana e europeia: “No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói
de nossa gente”. Ao mesmo tempo, a obra é, ela própria, uma crítica metalinguís-
tica às formas estéticas passadistas, ao texto rebuscado e à imposição de formas

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Modernismo dos anos 1930: o regionalismo

tradicionais europeias a um conteúdo tropical, conforme vemos na abertura da


famosa “Carta pras Icamiabas”, que abarca todo o Capítulo IX da obra:
Às mui queridas súbditas nossas, Senhoras amazonas.
Trinta de Maio de Mil Novecentos e Vinte e Seis, São Paulo.
Senhoras:
Não pouco vos surpreenderá, por certo, o endereço e a literatura desta missiva. Cumpre-nos,
entretanto, iniciar estas linhas de saudades e muito amor, com desagradável nova. É bem
verdade que na boa cidade de São Paulo – a maior do universo, no dizer de seus prolixos
habitantes – não sois conhecidas por “icamiabas”, voz espúria, sinão que pelo apelativo de
Amazonas; e de vós, se afirma, cavalgardes ginetes belígeros e virdes da Hélade clássica; e
assim sois chamadas. Muito nos pesou a nós, Imperador vosso, tais dislates da erudição porém
heis de convir conosco que, assim, ficais mais heroicas e mais conspícuas, tocadas por essa
platina respeitável da tradição e da pureza antiga. (ANDRADE, 1977, p. 96)  

O paulistano Mário de Andrade (1893-1945) em 1922 trouxe a público o seu


Pauliceia Desvairada, em cujo “Prefácio Interessantíssimo” ele afirma ser o fun-
dador do “desvairismo”: um modo de expressão lírica com base no Surrealis-
mo com sua escrita ditada pelo inconsciente: “Quando sinto a impulsão lírica
escrevo sem pensar tudo o que meu inconsciente me grita. Penso depois: não
só para corrigir, como para justificar o que escrevi. Daí a razão deste Prefácio
Interessantíssimo...”.

Um outro “Andrade” paulistano é o Oswald (1890-1954). Ele participou ativa-


mente da Semana consolidando a base do chamado modernismo paulista. É o
autor dos famosos manifestos literários Pau-Brasil (1924) e Antropofágico (1928).
Após os abalos do crack estadunidense de 1929 e da Revolução brasileira de 1930,
esse advogado, filho da elite paulistana, tornou-se um crítico do capitalismo, ade-
rindo ao Partido Comunista. Sua literatura transitou pela poesia futurista-cubista,
herança das escolas italiana e francesa, e pelo teatro e romance de temática social.
Sua produção artística contém Os Condenados (1922); Memórias Sentimentais de
João Miramar (1924); Serafim Ponte Grande (1928-33) e muito mais.

Mais um escritor do grupo paulista que navegou pelas ondas do Primeiro


Modernismo e se consagrou no cânone literário nacional foi o jovem Alcântara
Machado (1901-1935). O autor da coletânea de contos Brás, Bexiga e Barra Funda
(1927) assumiu como tema as mudanças ocorridas na cidade com a chegada
dos imigrantes, em especial os italianos, procurando dar um novo tratamento à
estrutura e à linguagem da escrita curta (contos), tendo no horizonte inclusive as
ideias “desvairistas” manifestas no período. Assim, com a lente da burguesia inte-
lectual à qual pertencia, esse autor trouxe para a literatura brasileira um retrato
realista e um tanto impressionista dos novos bairros operários e de classe média
de São Paulo, a exemplo dos três “Bs” que dá nome à sua obra mais conheci-
da, onde homens e mulheres ocupados com a sobrevivência ou ascensão social

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Literatura Brasileira Contemporânea

estavam distantes do mundo cultural que fervilhava em torno da zona forense


intelectualizada do Largo São Francisco.

O Rio de Janeiro, então capital do país, foi representado no movimento mo-


dernista por um de seus filhos adotivos mais ilustres, o recifense Manuel Bandeira
(1886-1968). Familiar ao melhor da poesia simbolista e pós-simbolista da Europa, o
poeta do verso livre respirou os novos ares e trouxe o experimentalismo à primeira
fase do Modernismo em obras como Ritmo Dissoluto (1924) e Libertinagem (1930).
O irônico Bandeira representou o artista desejoso das mudanças em favor das
novas tendências estéticas, mas ciente de que os espectros das velhas poéticas
sempre rondavam a sua pena. Ele reconhecia a luta heroica para vencer o tom par-
nasiano e simbolista de sua obra inaugural, Cinza das Horas (1917). O novo desejo
pela literatura do inconsciente, de sabor surrealista vem expresso nestas palavras:
Na minha experiência pessoal fui verificando que o meu esforço consciente só resultava
em insatisfação, ao passo que o que me saía do subconsciente, numa espécie de transe ou
alumbramento, tinha ao menos a virtude de me deixar aliviado de minhas angústias. Longe de
me sentir humilhado, rejubilava como se de repente me tivessem posto em estado de graça.
(BANDEIRA, 1990, p. 40)  

É fácil perceber pelos exemplos apresentados como o primeiro momento


modernista foi marcado pela predominância de artistas e intelectuais do eixo
Rio-São Paulo, e como suas preocupações e realizações estavam voltadas para
um intenso experimentalismo formal, no qual a crítica social se concentrava no
espaço urbano e no capitalismo industrial.

O segundo momento modernista (1930 a 1945):


a vez do Brasil profundo
Os anos de 1930 no Brasil chegam em meio à revolução política, crise cafeeira
no Sudeste, declínio da economia nordestina, ascensão da burguesia industrial,
aprofundamento da miséria rural, enfim, um cenário de profundas mudanças
sociais, políticas e econômicas. Uma situação que demandou também uma nova
maneira de expressar artisticamente a realidade brasileira, ou, melhor dizendo,
expressar a descoberta de um Brasil maior e mais desigual pelos brasileiros.

Nessa segunda fase do movimento modernista, o eixo se desloca para outras


regiões do Brasil, tornando a Geração de 30 do Modernismo um grupo mais
diversificado em termos nacionais. De Minas Gerais, Carlos Drummond de An-
drade (1902-1987) vê a vida com seriedade, é avesso à literatura “inútil” – sem
utilidade social. Esse poeta que “dorme sonhando com outra humanidade” faz
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Modernismo dos anos 1930: o regionalismo

uma poesia que é, nas palavras de Otto Maria Carpeaux, “poesia objetiva” (cf.
1943, p. 331). Em Alguma Poesia (1930), seu livro de estreia, dedicado ao amigo
Mário de Andrade, o poema “Sentimental” revela um eu-lírico “interiorizado”,
mas que não descuida da visão social:

Ponho-me a escrever teu nome


com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
e debruçados na mesa todos contemplam
esse romântico trabalho.

Desgraçadamente falta uma letra,


uma letra somente
para acabar teu nome!

– Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!

Eu estava sonhando...
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
“Neste país é proibido sonhar.”
(DRUMMOND DE ANDRADE, 1988, p. 14-15) 

Drummond é, sem dúvida, o maior poeta da Geração de 30. Porém, os decê-


nios de 1930 e de 1940 são considerados pelos críticos como a era do romance
brasileiro. Neste período, a prosa brasileira se emancipou com o modernismo de
José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado e
Erico Verissimo, autores cujas obras imortais trataremos com mais detalhe neste
capítulo. À exceção do gaúcho Erico Verissimo, esse grupo compõe-se de escri-
tores da região Nordeste, no caso Paraíba, Ceará, Bahia, compondo o grupo do
chamado regionalismo nordestino.

Regionalismo: as partes e o todo


O Brasil é um país de dimensão continental. Essa frase, não raro usada para
justificar algumas das mazelas nacionais, mais do que apontar o “gigante pela
própria natureza”, indica que nossa cultura é formada inevitavelmente de vários
blocos culturais. Afrânio Coutinho e Galante (2001, p. 1.353), definindo o fenô-
meno literário do regionalismo, chamou a esses blocos de “regiões culturais”, afir-
mando que não interessa ao estudo literário a divisão regional geográfica:
O essencial nessa literatura regional, é que não se põe em xeque a unidade do país [...]. O regionalismo
é um conjunto de retalhos que arma o todo nacional. É a variedade que se entremostra na unidade,
na identidade de espírito, de sentimentos, de língua, de costumes, de religião.  

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Literatura Brasileira Contemporânea

Para ser regional, segundo Afrânio Coutinho (1986, p. 235), “uma obra de arte
não somente tem que ser localizada numa região, senão também deve retirar
sua substância real [seu conteúdo] desse local”.

E como chegamos ao regionalismo do Nordeste que amadureceu nos anos


de 1930? Antonio Candido, ao estudar a Formação da Literatura Brasileira, iden-
tifica três elementos que constituíram em proporções variáveis a principal arga-
massa do regionalismo literário do Nordeste:
Primeiro o senso da terra, da paisagem que condiciona tão estreitamente a vida de toda a região
[...]. Em seguida, o que se poderia chamar patriotismo regional, orgulhoso das guerras holandesas,
do velho patriarcado açucareiro, das rebeliões nativistas. Finalmente, a disposição polêmica de
reivindicar a preeminência do Norte, reputado mais brasileiro... (CANDIDO, 1981, p. 299)  

A passagem incita o leitor curioso a buscar uma enciclopédia de história do


Brasil para que uma breve pesquisa esclareça as razões do “patriotismo regional,
orgulhoso das guerras holandesas do velho patriarcado açucareiro, das rebeliões
nativistas”. Trata-se aqui do século XIX do Brasil independente, e Candido está se
referindo ao nacionalismo romântico de cunho regional do cearense Franklin
Távora (1842-1888). Távora, autor de Um Casamento no Arrabalde (1869) e O Ca-
beleira (1876), é considerado pela crítica o primeiro “romancista do Nordeste”.
Apesar da naturalidade cearense, suas obras giram em torno da história e costu-
mes pernambucanos (CANDIDO, 1981, p. 300), e ele abre caminho ao primeiro
regionalismo nordestino, na sua fase romântica, e confronta o cenário literário
nacional, conforme escreve no prefácio de O Cabeleira:
As letras têm, como na política, um certo caráter geográfico; mais no Norte, porém, do que no
Sul, abundam os elementos para a formação de uma literatura propriamente brasileira, filha
da terra.
A razão é óbvia: o Norte ainda não foi invadido como está o Sul de dia em dia pelo estrangeiro.  

Alfredo Bosi (1994, p. 146) esclarece a polêmica:


[Távora] estava animado por certo ressentimento de nordestino em face da Corte [no Rio de
Janeiro] e, por extensão, do progresso sulino que, com a ascensão do café, marginalizava as
demais áreas do país. Daí o tom de polêmica e a sua frontal oposição de uma “literatura do
Norte” à do resto do Brasil.

O espírito isolacionista, de rivalidade e revanche de Távora, que esteve na origem


do regionalismo e poderia fazer algum sentido naquele momento de afirmação
de identidades literárias, teve o mérito de chamar para a discussão, por exemplo,
o regionalismo romântico do cearense José de Alencar (1829-1877) juntamente
com o regionalismo naturalista de um outro cearense, Adolfo Caminha (1867-1897),
e o regionalismo realista do baiano Afrânio Peixoto (1876-1947), estilos que cerca de
seis décadas mais tarde sucumbiriam à renovação das ondas modernistas. O que se

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Modernismo dos anos 1930: o regionalismo

vê a partir de 1930 é um novo regionalismo, espelhando com mais agudeza as rela-


ções sociais brasileiras. Neste sentido, os muitos regionalismos, sem qualquer ranço
de isolacionismo, participam da consolidação da ficção brasileira para além do seu
sentido regional.

O regionalismo nordestino:
declínio econômico, ascensão literária
A cana-de-açúcar, de origem asiática, foi a base da exploração colonial nos sé-
culos XVI e XVII, e um dos principais fomentadores da escravidão e do desenvol-
vimento do patriarcado nordestino. De um modo geral, os engenhos de açúcar
regeram a vida econômica e social nos primeiros séculos do Brasil. Mas, enquan-
to no Norte-Nordeste a riqueza se fazia pelas moendas, no Sudeste, as bandeiras
paulistas se embrenhavam pelas matas em busca de escravos e metais precio-
sos, sendo posteriormente substituídos pelo café, que se firmou soberano.

A partir do século XIX, a economia brasileira foi regida pelo café no Sul e
Sudeste, criando obstáculos à recuperação da decadente economia açucareira
nordestina. Com a ascensão das regiões meridionais e a consequente concentra-
ção de riqueza privada e investimentos públicos nessas áreas, nasceu uma nova
“aristocracia rural”, os barões do café. Enquanto isso, a vida no Nordeste e em
outras áreas se tornou cada vez mais difícil, e, com a aceleração da crise em 1850,
encerrou-se o ciclo de poder patriarcal que se fez em torno dos engenhos.

Tal paisagem açucareira e seus engenhos em decadência constituíram uma


das importantes bases temáticas da literatura nordestina e brasileira na virada
do século XIX para o XX, especialmente exemplificadas nos romances do ciclo da
cana-de-açúcar de José Lins do Rego, de Menino de Engenho (1932) a Usina (1936).

No entanto, além da cultura do açúcar, outros temas se fizeram presentes no


regionalismo nordestino, com destaque para as secas que castigam aquela ge-
ografia. O título mais emblemático nesse sentido é Vidas Secas (1938), de Graci-
liano Ramos, romance que consagrou a literatura de crítica social e de denúncia
do flagelo nordestino.

Mas dez anos antes, a seca já era retratada na obra que inaugurou a literatura
de ficção: A Bagaceira (1928), de José Américo de Almeida. O romance, apesar de
traçar o quadro da vida num engenho de açúcar, trata igualmente da seca e seus
personagens-tipo, isto é, o retirante, o jagunço etc.

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Dois anos após a publicação de A Bagaceira, uma jovem de 19 anos, Rachel de


Queiroz, se revelaria para a literatura brasileira com O Quinze (1930), retratando a
seca cearense de 1915. Conforme veremos adiante, a principal contribuição de Quei-
roz foi a inovadora precisão formal na representação da realidade da miséria da seca,
trazendo, de fato, uma roupagem regional à estética do Primeiro Modernismo.

Enquanto isso, o escritor baiano Jorge Amado adotava como pano de fundo
de seus romances o trabalho nas fazendas de cacau do sul da Bahia. Surge, deste
modo, um terceiro e importante elemento na literatura regionalista nordestina,
o cacau. A exemplo de Lins do Rego e seu ciclo da cana-de-açúcar, Jorge Amado
batizou de “ciclo do cacau” o conjunto de romances Cacau (1933), Terras do Sem
Fim (1942) e São Jorge dos Ilhéus (1944).

A Bagaceira: um passo adiante


na literatura brasileira
José Américo de Almeida (1887-1980) publicou A Bagaceira (1928) no mesmo
ano em que surgiu Macunaíma, de Mário de Andrade – no momento em que a
narrativa do “herói sem nenhum caráter” encerrava a primeira fase do Modernis-
mo, iniciada na Semana de 22. Portanto, considera-se que a obra de José Amé-
rico de Almeida inaugura o segundo momento modernista, agora na sua fase
regionalista. Porém, ao contrário da inovação formal de Macunaíma, A Bagaceira
não revela inovações no processo literário, ao contrário, a obra não ultrapassa
em estilo a expressividade do regionalismo nordestino de inspiração naturalista,
visto no final do século XIX, chegando mesmo a refletir características românti-
cas. Ressalte-se, porém, que tal estilo não foi exclusividade deste escritor parai-
bano, mas perpassou grande parte da literatura regionalista dos anos 1930.

O motivo do que se poderia chamar de “passadismo” deveu-se, é preciso dizer,


ao projeto literário ainda incipiente da ficção moderna regionalista e mesmo às
origens patriarcais de alguns de seus escritores. O resultado foi, de um certo
modo, a memória saudosista e a exaltação dos espaços nordestinos, mesclados
com o desejo de uma literatura de cunho social. De qualquer forma, com A Baga-
ceira foi dado um passo importante, abrindo portas para a representação social
cada vez mais enfática do protesto contra a degradação das condições de vida
nas regiões setentrionais do Brasil, cuja inovação estética ocorreria nas obras de
Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado e Graciliano Ramos, para
citarmos as mais importantes.

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Modernismo dos anos 1930: o regionalismo

O Quinze: Rachel de Queiroz e a estética da seca


Exatamente em 1930, dois anos após a publicação de A Bagaceira, de José
Américo de Almeida, uma cearense de Fortaleza, Rachel de Queiroz (1910-2003),
publica, aos 19 anos, aquela que seria a sua mais importante obra romanesca,
O Quinze. O título e o tema do romance referem-se à grande seca que assolou a
região cearense em 1915, colocando em desespero tanto pobres quanto ricos,
como foi o caso da família da escritora, que, na época, alternou sua residência
entre o sertão e a capital cearense, passando pelo Rio de Janeiro e Belém do
Pará, até retornar à Quixadá, novamente no sertão, em 1919.

A obra, considerada um fenômeno literário em razão de sua maturidade ar-


tística em contraste com a juventude de sua escritora, tem como um dos princi-
pais aspectos o tratamento inovador da temática da seca: a linguagem é direta,
clara, fluente, sem floreados linguísticos, ou seja, a forma adotada reflete o seu
conteúdo: a miséria provocada pela seca, que não combinaria com o sentimen-
talismo romântico nem com meras descrições e prescrições naturalistas. No
enredo, o sonho de amor da personagem central, a professora Conceição, que
fugiu da seca, e seu primo, o vaqueiro Vicente, que ficou no sertão, é ofuscado
pela secura da vida miserável dos retirantes, com destaque para a família amiga
da professora, a qual ela reencontra desfigurada pela árdua viagem através do
sertão ressequido.

Em outras palavras, O Quinze faz denúncia social: denuncia o abandono das


populações nordestinas à calamidade das secas, colocando o “eu”, o individual,
os sonhos em segundo plano, como repercutindo o lirismo do mineiro Drum-
mond de Andrade: “Eu estava sonhando... / há em todas as consciências um
cartaz amarelo: / ‘Neste país é proibido sonhar’”.

Rachel de Queiroz, ao contrário do autor de A Bagaceira, reaproxima a literatu-


ra regionalista nordestina de alguns dos pressupostos da estética modernista da
Semana de 22: a recusa do exagero, da opulência retórica, do realismo artificial.
Ao contrário, o que se verifica em O Quinze é uma narrativa ao modo impressio-
nista, uma paisagem descrita sem rodeios, quase uma fotografia da realidade viva,
mas além do Naturalismo. Frases enxutas como: “O pasto, as várzeas, a caatinga, o
marmeleiral esquelético, era tudo de um cinzento de borralho” (QUEIROZ, 1975b,
p. 15), conferem uma peculiaridade regionalista ao estilo e enfatiza a função dra-
mática de uma prosa de ficção que narra, com precisão, o avesso do Brasil urbano
e industrializado do Sudeste modernista.

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Fogo Morto: José Lins do Rego e o fim de uma era


O paraibano José Lins do Rego (1901-1957) publica Fogo Morto, seu décimo
romance e sua obra-prima, em 1943. O título metonímico do romance exprime
não apenas o tema da própria obra, mas o de toda a sua literatura memorialista:
a extinção do fogo dos engenhos em razão da substituição desse sistema manu-
fatureiro pelo usineiro industrial em Pernambuco e Paraíba, na virada do século.
A decadência irreversível dos engenhos, seus senhores e, por conseguinte, das
“casas-grandes” e sua ordem econômica e social estabelecida ao lado das sen-
zalas ecoa ainda nos romances do ex-menino de engenho (José Lins) no Brasil
progressista dos anos 1930 de Getúlio Vargas.

De um modo geral, sua escrita é marcada pelo tom autobiográfico-confessio-


nal, uma atmosfera literária nostálgica dos valores e costumes da infância passa-
da no engenho do avô, atmosfera predominante nas obras iniciais, e retomada
em sua obra tardia, Meus Verdes Anos (1956). É inegável nas obras de José Lins
do Rego a influência do amigo e mentor, o sociólogo pernambucano Gilberto
Freyre (1900-1986), cujo ensaio Casa Grande e Senzala (1933), entre outros, traça
um grande painel sociológico da decadência do Nordeste canavieiro, ao qual
Lins do Rego dará o viés literário. Na confissão do próprio romancista: “Você,
meu querido Gilberto, tem feito de mim gente. [...] Porque se existe escravatu-
ra mental eu sou seu escravo” (Carta de José Lins a Gilberto Freyre, 1924, apud
TRIGO, 2002, p. 51).

O romance regionalista de José Lins do Rego estreia com Menino de Enge-


nho (1932) e prossegue com, para citar alguns, Doidinho (1933), Banguê (1934),
O Moleque Ricardo (1935), Usina (1936), Riacho Doce (1939), até chegar a Fogo
Morto, livro que encerrou o que Lins do Rego denominou de romances do ciclo
da cana-de-açúcar.

Fogo Morto é a obra da maturidade romanesca de Lins do Rego. Nele o autor


suspende a voz intimista e nostálgica das obras anteriores para dar lugar a varia-
dos pontos de vista narrativos, abrindo espaço, inclusive, para a visão dos opri-
midos. No romance sobressai o tom de denúncia dos desmandos dos senhores
de engenho e igualmente do Estado, a falta de esperança dos pobres desvalidos
frente ao poderio da oligarquia, a violência da escravidão, as injustas relações
sociais pós-abolição etc.

Nesse sentido, o romance se coloca na linha do romance social dos anos 1930
– diferentemente das obras anteriores de Lins do Rego, em que a crítica social
ficava nas entrelinhas, permanecendo em primeiro plano o relato memorialis-
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Modernismo dos anos 1930: o regionalismo

ta. Some-se à crítica social em Fogo Morto, a detalhada descrição psicológica


dos personagens em seus conflitos pessoais, familiares e sociais, até o limite da
tristeza profunda, da doença, demência e morte. São exemplares passagens de
análise psicológica como esta:
O mestre estava sozinho. Naquele dia a velha arrumara os trastes [...]. Vendo-a sair de casa, quis
lhe falar e teve medo. Havia em Sinhá um ódio que ele sabia maior que tudo. [...] Quem visse o
mestre, na quietude em que ficou, não podia imaginar o que andava por dentro dele. [...] Tinha
parado o mundo para o mestre. (REGO, 1998, p. 224)

Mas, o grande protagonista de Fogo Morto é a entidade chamada “engenho”.


É o engenho Santa Fé que, a exemplo do espaço do cortiço na obra de Aluísio
Azevedo (O Cortiço, 1890), respira, vive e morre como personificação de uma
comunidade e de uma era. Em Fogo Morto, tema e estilo narrativo estão em
perfeita correspondência. Por isso, a agonia e decadência do engenho Santa Fé
confundem-se com a agonia e decadência da família que o possui.

A tarefa dos escritores do Segundo Modernismo foi, portanto, dar ao movi-


mento uma roupagem regional, as cores do Brasil profundo, distante do Sudeste
da capital federal. Além dos aspectos regionais já mencionados, observam-se
ainda a dinâmica espacial dentro de cada região (por exemplo, a oposição entre
o modo de vida nos engenhos, localizados na várzea, e as outras fazendas, no
sertão), os elos do local com o nacional (como a participação dos senhores de
engenho na política federal), o jogo de poder local entre o coronelato, os canga-
ceiros e as forças do Estado.

Outra característica desta estética regionalista é retratar a inquietação social em


torno da mudança de um estado de coisas que se acreditava imutável, utilizando
para tanto uma linguagem espontânea oriunda do fluxo da memória traduzido pela
oralidade, a fala cotidiana, a prosódia dos contadores de rua. Lins do Rego (1945, p.
54) afirma: “Quando imagino meus romances tomo sempre como modo de orienta-
ção o dizer as coisas como elas surgem na memória, com o jeito e as maneiras sim-
ples dos cegos poetas”, ecoando assim, em chave regionalista, o modernista Mário
de Andrade em seu prefácio de Pauliceia Desvairada (1922): “Quando sinto a impul-
são lírica escrevo sem pensar tudo o que meu inconsciente me grita”.

No entanto, note-se nas duas citações também as diferenças entre o estilo


do Primeiro Modernismo de 22 e o do Modernismo regionalista de 30. Enquan-
to Mário de Andrade, embebido da estética europeia, clamava pelo “desvairis-
mo” inconsciente, Lins do Rego voltava-se para a memória, para os fatos da re-
alidade e para “maneiras simples dos cegos poetas” das praças nordestinas, ou
seja, para a cor local.

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Escritor de uma “modernidade conservadora”, Lins do Rego teve uma relação


ambígua com o movimento paulista, criticando seu experimentalismo excessivo
e o simulacro do evento: “Para nós, do Recife, esta Semana de Arte Moderna não
existiu, simplesmente porque, chegando da Europa, Gilberto Freyre nos advertia
da fraqueza e do postiço do movimento”. Indo além, ele critica ferozmente obras
como Macunaíma, que em suas palavras seria “mais um fichário de erudição fol-
clórica do que um romance [...]; mais um arranjo de filólogo erudito do que um
instrumento de comunicação oral ou escrito” (apud TRIGO, 2002, p. 85-86). Mas,
eram claras as contribuições da ousadia promulgada em São Paulo para a sua
forma narrativa e toda a literatura regionalista brasileira. Mário de Andrade e
o seu Macunaíma transformaram a linguagem literária em “instrumento vivo e
flexível, nacionalizando-se a nossa forma de escrever” (TRIGO, 2002, p. 85).

Fogo Morto se divide em três partes independentes e complementares que


podem ser lidas como narrativas individuais, como três novelas interrelaciona-
das, cujo enredo tem começo, meio e fim, e cada história traz um personagem
central, representante de uma classe social, e que circula pelas três narrativas.

A primeira parte traz o seleiro, mestre José Amaro, trabalhador, pobre e orgu-
lhoso de sua condição de autonomia:
O mestre José Amaro, seleiro dos velhos tempos, trabalhava na porta de casa, com a fresca
da manhã de maio agitando as folhas da pitombeira que sombreava a sua casa de taipa, de
telheiro sujo. Lá para dentro estava a família. Sentia-se cheiro de panela no fogo, chiado do
toicinho no braseiro que enchia a sala de fumaça.
– Vai trabalhar para o velho José Paulino? É bom homem, mas eu lhe digo: estas mãos que o
senhor vê nunca cortaram sola para ele. Tem a sua riqueza, e fique com ela. Não sou criado de
ninguém. Gritou comigo, não vai. (REGO, p. 1998, p. 5)  

A segunda parte é intitulada “O engenho de seu Lula”. Aqui descreve-se a


saga do engenho Santa Fé, iniciada por volta de 1850, ano impresso no frontão
da casa-grande, e encerra-se na virada do século. Fica claro, desde o título, que o
personagem principal é o próprio engenho. A vida gira em torno desta verdadei-
ra entidade social baseada na cana-de-açúcar: o surgimento, desenvolvimento e
apogeu com o primeiro senhor, o capitão Tomás de Melo; e seu declínio e extin-
ção com Lula de Holanda, sobrinho e genro do fundador.

A relação de Lula com o Santa Fé, senhor de engenho por laços de casamento,
era apenas de exploração das riquezas que ele produzia. Assim, o homem com
porte de senhor fidalgo, educado no Recife e órfão de pai morto na Revolução de
1848, ignorava a demanda do engenho para desgosto do sogro: “Tinha terra gorda
para trabalhar, dinheiro, negros, sementes, e ficava dentro de casa, naquela leseira,
naquela preguiça sem fim” (REGO, 1998, p. 128). Num segundo momento, com a

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Modernismo dos anos 1930: o regionalismo

morte dos sogros, ele revela sua face de algoz e se torna o capitão Lula de Holanda,
o senhor de engenho mais cruel e odiado no Santa Fé e arredores. Porém, todo o
vigor era empregado no desmando e maldade, e nenhuma atenção era dedicada
ao trabalho no engenho, empresa que decaía de forma vertiginosa, acentuando-se
com a abolição da escravatura. Por fim, a queda do engenho foi a síntese da dege-
neração física e espiritual do senhor da casa-grande e sua família.

Na terceira parte, intitulada “O capitão Vitorino”, o enredo gira em torno do qui-


xotesco e falastrão capitão Vitorino Carneiro da Cunha, considerado pela crítica o
personagem mais importante em toda a obra de Lins do Rego, por sua personalida-
de irreverente e temerária. Ele é o primo pobre dos maiores senhores de engenho
da região, o José Paulino e Lula de Holanda, com os quais mantém constantes de-
savenças; sempre metido na política da região, “colhendo votos” para a chapa que
defendia. Ele é amado e odiado, reverenciado e ridicularizado por ricos e pobres.
Julgando-se o mais justo dos justos, vai levantando a voz contra os mandatários
em defesa, principalmente, do pobre compadre José Amaro e sua família:
Pela tarde apareceu o capitão Vitorino. Vinha numa burra velha, de chapéu de palha muito
alvo, com a fita verde-amarela na lapela do paletó. O mestre José Amaro estava sentado na
tenda, sem trabalhar. E quando viu o compadre alegrou-se. [...] Desde aquele dia em que vira
o compadre sair com a filha para o Recife, fazendo tudo com tão boa vontade, que Vitorino
não lhe era mais o homem infeliz, o pobre bobo, o sem-vergonha, o vagabundo que tanto lhe
desagradava. (REGO, 1998, p. 182)  

Desta forma, ao apontar os novos rumos trazidos à região nordestina pela


modernização brasileira da República Nova, Lins do Rego vai indicando, junto
com Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos, entre outros, as diretri-
zes da nova literatura brasileira.

Capitães da Areia: a estética do povo


de Jorge Amado
Outro nordestino que contribuiu com sua literatura para a vanguarda estéti-
ca modernista foi o baiano Jorge Amado (1912-2001). Ativista político no auge
do Partido Comunista, Amado tornou-se um dos mais populares escritores bra-
sileiros, apesar de parte da crítica especializada ver com restrições, ainda hoje,
grande parte de sua obra. O escritor que nasceu na região cacaueira no sul da
Bahia, onde seu pai era proprietário de terras, estava em Salvador nos fins da
década de 1920, quando o Modernismo aportava naquela região. Sua vida lite-
rária e seu ativismo político, no entanto, se desenvolveram no Rio de Janeiro na
década de 1930, onde conheceu Rachel de Queiroz e outros jovens escritores.
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Seu livro de memórias, Navegação de Cabotagem (1992), traz na epígrafe uma de


suas frases ficcionais: “[...] uma história se conta, não se explica”. A frase define o
espírito literário de Jorge Amado: um contador de histórias regionais, mais preci-
samente, da Bahia do cacau dos coronéis, do mar dos pescadores, do candomblé
dos pais de santo, da sensualidade das mulheres etc.

A modernidade na obra de Jorge Amado não está somente na abordagem


do conteúdo regional, presente também em outros romances nordestinos do
período: os desmandos dos coronéis latifundiários, o jaguncismo, as relações
arcaicas e precárias de trabalho, a seca e o drama dos retirantes, as condições
sociais do negro, o conflito de classes e assim por diante. Suas histórias se desta-
cam pelos personagens-tipo que compõem uma vívida paisagem humana, pela
narrativa em estilo simples e incorporação da fala cotidiana, pela expressão dos
costumes rurais, tanto na zona do cacau, nos chamados romances do “ciclo do
cacau” (Cacau, 1933; Terras do Sem Fim, 1942; São Jorge dos Ilhéus, 1944), quanto
nos centros urbanos, nos “romances da Bahia” (O País do Carnaval, 1931; Suor,
1934; Jubiabá, 1935; Mar Morto, 1936; Capitães da Areia, 1937).

A pergunta que o leitor deveria estar se fazendo é: e as inesquecíveis Ga-


briela, Dona Flor, Teresa Batista? Essas personagens, que dão vida aos romances
Gabriela, Cravo e Canela, Dona Flor e Seus Dois Maridos e Teresa Batista Cansada
de Guerra, fazem parte de uma segunda fase da extensa obra de Jorge Amado,
que veio a público a partir de 1944.

O último romance regional urbano que Jorge Amado categorizou de “roman-


ce da Bahia”, ou melhor, de Salvador, é Capitães da Areia (1937). A obra trata de
um tema que era realidade no Brasil do século XX e permanece neste início de
século XXI: os menores abandonados e marginalizados nas ruas das grandes ci-
dades. A história contada por Jorge Amado gira em torno de um grupo de me-
ninos que vivem num velho armazém abandonado e realizam furtos nos bairros
ricos de Salvador. São apelidados de capitães da areia, “porque o cais é o seu
quartel-general. E têm por comandante um molecote dos seus quatorze anos,
que é o mais terrível de todos [...]” (1993, p. 11).

Os traços de modernidade da obra se revelam já no modo como ela é estru-


turada, rompendo com a forma romanesca tradicional. A narrativa inicia com um
prólogo formado por uma matéria no “Jornal da Tarde” sobre um assalto pratica-
do pelos meninos e cobrando providências da polícia. Na sequência, leem-se as
cartas à redação em resposta à matéria.

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Modernismo dos anos 1930: o regionalismo

A primeira carta é da secretaria de polícia, esquivando-se da responsabili-


dade e impelindo-a ao juiz de menores; a segunda, do juiz de menores defen-
dendo-se, alegando que sua única responsabilidade é a de encaminhar os me-
nores, após serem capturados pela polícia, ao reformatório, onde são tratados
com todo amor e carinho, e, se dali fogem, o problema é dos psicólogos que os
orientam; a terceira carta é da mãe de um menor, denunciando que os meninos
fogem do reformatório devido a maus-tratos, conforme pode confirmar o padre,
ex-capelão do lugar; a quarta carta é do padre confirmando as acusações feitas
pela mãe; a última carta, do diretor do reformatório, protestando contra o “padre
do demônio” e a “mulherzinha do povo”, e convidando um redator do jornal a
visitar o local, desde que previamente agendado. O título da reportagem, após
visita ao reformatório (em letras maiúsculas): “UM ESTABELECIMENTO MODELAR
ONDE REINAM A PAZ E O TRABALHO – UM DIRETOR QUE É UM AMIGO – ÓTIMA
COMIDA – CRIANÇAS QUE TRABALHAM E SE DIVERTEM – CRIANÇAS LADRONAS
EM CAMINHO DA REGENERAÇÃO – ACUSAÇÕES IMPROCEDENTES [...]”. A partir
dessa abertura de tom realista e irônico, Jorge Amado conta a história do bando
de Pedro Bala, cuja “regeneração”, se houver, não será graças à disposição da so-
ciedade, conforme deixa claro os já mencionados discursos.

Como todo projeto literário do maior escritor brasileiro do proletariado, a


obra se estrutura sobre a crítica social, mas o faz de um modo que forma e con-
teúdo emanem do imaginário popular, dos hábitos e costumes da baianidade,
da espontaneidade do cordel, das técnicas do folhetim, dos provérbios, gírias e
palavrões usados na linguagem sem rodeios do dia a dia. Enfim, Jorge Amado,
bebendo na fonte modernista que o precedeu, emancipou a literatura regiona-
lista do Nordeste, dando ao proletariado, aos marginalizados e injustiçados a
centralidade da narrativa, em torno dos quais gravitavam todos os temas já tra-
tados nos romances modernistas de seus contemporâneos.

O Tempo e o Vento: o regionalismo


ao sul de Erico Verissimo
De que vale um romance com arte mas sem humanidade?

Erico Verissimo

O representante sulista mais importante do regionalismo da Geração de 30


é, sem dúvida, o gaúcho nascido em Cruz Alta, Erico Verissimo (1905-1975). A

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ficção de Verissimo, pai de um dos maiores escritores da atualidade, Luís Fernan-


do Verissimo (Comédias da Vida Privada), é bem conhecida do grande público,
inclusive pelas diversas adaptações de suas obras para a televisão, como Olhai
os Lírios do Campo (1938); O Tempo e o Vento (1949-1961); Incidente em Antares
(1971). No que concerne ao nosso estudo, vamos remontar ao Erico Verissimo da
Geração de 30 e sua obra mais significativa do período: O Tempo e o Vento.

Na verdade, a primeira obra do escritor riograndense data de 1933: Clarissa.


É a história de uma menina-moça romântica e sonhadora cuja visão lírica do
mundo de uma pacata cidade é narrada em um tom idílico, beirando a prosa
poética: “O rio parece mercúrio. Os montes, longe, dentro da noite clara, têm
um tom irreal. No pátio dormem sombras misteriosas” (VERISSIMO, 1956a, p. 52).
Essa personagem e suas reflexões intimistas contrastam, de certa forma, com a
expressão literária de denúncia social que vinha de seus contemporâneos nor-
destinos Rachel de Queiroz (O Quinze) e José Américo de Almeida (A Bagaceira).
Apesar do clima pré-moderno dessa obra inaugural, com traços claramente sim-
bolistas e até mesmo românticos, trata-se de uma das primeiras tentativas de se
escrever romance regionalista urbano no Rio Grande do Sul e nele já desponta
uma vertente modernista que será consolidada a partir de Caminhos Cruzados
(1935). Esse segundo romance, marcado pela estética do modernismo inglês e
norte-americano baseada no simultaneísmo da ação, no associacionismo, no
rompimento da sequência temporal e linguagem cinematográfica dará um salto
qualitativo à obra de Verissimo, colocando sua escrita em diálogo com o moder-
no regionalismo que se fazia no Norte.

Seguindo o rastro de Caminhos Cruzados e Música ao Longe (1936), chegamos


à publicação de sua obra-prima: O Tempo e o Vento, a epopeia do povo gaúcho.
Uma trilogia épica publicada em 1949, 1951 e 1961, com os respectivos subtí-
tulos: “O Continente”, “O Retrato” e “Arquipélago”. A nota da editora impressa na
orelha dos volumes explica a saga: “Trata-se duma família e duma cidade do Rio
Grande do Sul, desde suas origens, em meados do século XVIII, até nossos dias”,
melhor dizendo, de 1745 a 1945.

O crítico Massaud Moisés (1996, p. 231) define O Tempo e o Vento como “a


lenda ou o mito de um povo de vocação heroica”. Na história, as agruras da seca
e o calor calcinante do sertão e das matas de cacau dos romances do Nordeste
são substituídas pelo frio enregelante das planícies do Sul. No primeiro volume,
o narrador descreve as condições climáticas com as quais se depara a famosa
personagem Ana Terra:

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Modernismo dos anos 1930: o regionalismo

Os anos chegavam e se iam. Mas o trabalho fazia Ana esquecer o tempo. No inverno tudo
ficava pior: a água gelava nas gamelas que passavam a noite ao relento; pela manhã o chão
frequentemente estava branco de geada e houve um agosto em que, quando foi lavar roupa na
sanga, Ana teve primeiro de quebrar com uma pedra a superfície gelada da água. (VERISSIMO,
1956b, p. 185)

Na história de Rodrigo Cambará, Ana Terra, Vasco e outros heróis, o elemento


central é o “tempo” – dimensão em que os personagens ganham vida física e
psicológica –, a linguagem narrativa é fluída e emotiva, de estilo cristalino, sem
exageros linguísticos perturbando a linearidade da estrutura. Na saga, o lastro
histórico regional vem acompanhado de lendas, crendices e uma energia telúri-
ca que dá ao enredo o seu teor de verdade. Porém, tais características presentes
no conjunto da obra de Verissimo mereceram da crítica conservadora a mesma
incompreensão dispensada a Jorge Amado.

A exemplo do ficcionista baiano, o regionalismo do escritor gaúcho apresen-


ta duas faces não conflitantes: uma rural, ou telúrica, e outra citadina e cosmopo-
lita. Mas, ao contrário de seus contemporâneos, sobretudo os nordestinos, para
Verissimo é a vida em si, a dimensão interior humana, não o ambiente circun-
dante (sertão, engenho, mata, litoral etc.) que permanece em primeiro plano,
definindo as cores da narrativa.

Texto complementar

Do Beco ao Belo: dez teses sobre


o regionalismo na literatura
(CHIAPPINI, 1995)

[...]

A história do regionalismo mostra que ele sempre surgiu e se desenvol-


veu em conflito com a modernização, a industrialização e a urbanização. Ele
é, portanto, um fenômeno moderno e, paradoxalmente, urbano. No Brasil,
não foi diferente. [...] a primeira geração modernista saudou a modernização
endossando o gosto e os valores daqueles que lucravam com ela, sem aten-
tar para as dores, desvalores e desgostos dos que com ela perdiam. [...]

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Uma das conclusões que se pode tirar dessa história do regionalismo bra-
sileiro é que a transição difícil nos reajustes sucessivos da nossa economia aos
avanços do capitalismo mundial se trama de modo específico e a literatura
tende a recontar o processo ora como decadência, ora como ascensão, ora
com pessimismo, ora com otimismo, dependendo de que lado está: da mo-
dernização ou da ruína. Quando consegue superar o otimismo autocentrado
das elites ganhadoras ou o simples ressentimento das frações perdedoras, ex-
pressando o modo como o pobre “paga o pato” em um e outro caso, ela supera
também os limites estreitos da ideologia, para virar forma de conhecimento e
vivência solitária dos diferentes problemas do homem pobre brasileiro.

São essas algumas das questões em jogo nas teses [abaixo], que aparece-
ram assim como um esforço de síntese, tentando deixar claro o que já ficou
menos obscuro para mim, depois de tantos encontros, desencontros e reen-
contros com escritores, obras e movimentos regionalistas. [...]

Teses

1. A obra literária regionalista tem sido definida como “qualquer livro


que, intencionalmente ou não, traduza peculiaridades locais”, definição que
alguns tentam explicitar enumerando tais peculiaridades (“costumes, cren-
dices, superstições, modismo” ) e vinculando-as a uma área do país: “regiona-
lismo gaúcho”, “regionalismo nordestino”, “regionalismo paulista”... Tomado
assim, amplamente, pode-se falar tanto de um regionalismo rural quanto
de um regionalismo urbano. No limite, toda obra literária seria regionalista,
enquanto, com maiores ou menores mediações, de modo mais ou menos
explícito ou mais ou menos mascarado, expressa seu momento e lugar.

Historicamente, porém, a tendência a que se denominou regionalista


em literatura vincula-se a obras que expressam regiões rurais e nelas situam
suas ações e personagens, procurando expressar suas particularidades
linguísticas.

2. Há quem vincule o regionalismo literário à tradição greco-latina do


idílio e da pastoral. Mas é em meados do século XIX, com George Sand na
França, Walter Scott na Inglaterra e Berthold Auerbach na Alemanha, que
essa tradição é retomada na forma de romance regionalista que, daí para a
frente, começa a viver da tensão entre o idílio romântico e a representação
realista, tentando progressivamente dar espaço ao homem pobre do campo,
cuja voz busca concretizar paradoxalmente pela letra, num esforço de torná-la

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audível ao leitor da cidade, de onde surge e para a qual se destina essa lite-
ratura. À tensão entre idílio e realismo correspondem outras constitutivas do
regionalismo: entre nação e região, oralidade e a letra, campo e cidade, estó-
ria romanesca e romance; entre a visão nostálgica do passado e a denúncia
das misérias do presente.

3. Regionalismo na literatura, como tema de estudo, constitui um desa-


fio teórico, na medida em que defronta o estudioso com questões das mais
candentes da teoria, da crítica e da história literárias, tais como os problemas
do valor, da relação entre arte a sociedade, das relações da literatura com as
ciências humanas, das literaturas canônicas e não canônicas e das frontei-
ras movediças entre clãs. Estudar o regionalismo hoje nos leva a constatar
seu caráter universal e moderno. Surgindo como reação ao iluminismo e à
centralização do Estado-nação, hoje se reatualiza como reação à chama-
da globalização. Se, para um pensamento não dialético, a chamada “aldeia
global” suplantou definitivamente a “aldeia” e tudo o que dela fale e por ela
se interesse, a dialética nos faz considerar que a questão regional e a defesa
das particularidades locais hoje se repõem com força, quanto mais não seja
como reação aos riscos de homogeneidade cultural, à destruição da natu-
reza e às dificuldades de vida e trabalho no “paraíso neoliberal”. (Por isso o
regionalismo literário hoje, em muitos países, inclusive aqui, reaparece dis-
cutindo questões de identidade problemática e de ecologia.)

4. Com a modernização das técnicas agrícolas, o êxodo rural, o desen-


volvimento das cidades e de uma literatura urbana, o regionalismo tem
sido visto como ultrapassado, retrógrado, localismo estreito e reacionário
tanto do ponto de vista estético quanto do ideológico. Essa crítica esquece,
no entanto, que ele é um fenômeno eminentemente moderno e universal,
contraponto necessário da urbanização e da modernização do campo e da
cidade sob o capitalismo. Por isso, continua a existir e a dar frutos como uma
corrente temático-formal contraditória onde têm lugar os reacionários e os
progressistas; os nostálgicos, os xenófobos, mas também os inconformados
com a divisão injusta do mundo entre ricos e pobres. Uma corrente que deu
origem a grandes obras, como as de Faulkner, Verga, Rulfo, Carpentier, Ar-
guedas e Guimarães Rosa.

5. Do ponto de vista dos estudos literários, o regionalismo é uma tendên-


cia temática e formal que se afirma de modo marginal à “grande literatura”,
confundindo-se frequentemente com a pedagogia, a etnologia e o folclore.

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Certos autores de textos de reconhecida qualidade estética não tinham in-


tenção de ir além do testemunho, do registro de contos e lendas orais, ou,
quando muito, de fazer história. É o caso, no Brasil, de um João Simões Lopes
Neto ou de um Euclides da Cunha.

Os críticos costumam menosprezar o regionalismo por essa impureza,


julgando-o também conservador tanto do ponto de vista estético quanto do
ponto de vista ideológico. Campo minado de preconceitos, o regionalismo
se presta a equívocos da crítica. [...]

6. É compreensível o esforço da crítica para excluir da tendência os gran-


des autores, já que nela o número de obras literariamente menos expressivas
talvez seja maior que em outras, porque proporcional ao grau de dificuldade
que a especificidade da empresa do regionalismo literário implica. O argu-
mento da crítica para assim fazer é que a qualidade literária de suas obras os
elevaria do regional ao universal. Mas frequentemente ela esquece que é o
seu espaço histórico-geográfico, entranhado e vivenciado pela consciência
das personagens, que permite concretizar o universal. O problema não nos
parece tanto distinguir os tipos de regionalismo, mas distinguir, como em
qualquer tendência, as obras boas das más, esteticamente falando. Nestas,
o efeito sobre os leitores será acanhado como soarão acanhados o espaço,
os dramas, os caracteres, a linguagem, o pensamento e as ideias. Naquelas,
necessariamente, por menor que seja a região, por mais provinciana que seja
a vida nela, haverá grandeza, o espaço se alargará no mundo e o tempo finito
na eternidade, porque o beco se transfigurará no belo e o belo se exprimirá
no beco.

7. Só podemos sustentar que um Faulkner ou um Guimarães Rosa são


regionalistas, se entendermos que o regionalismo, como toda tendência li-
terária, não é estático. Evolui. É histórico, enquanto atravessa e é atravessa-
do pela história. Um escritor da literatura fantástica que escreva hoje como
Poe ou como os romancistas do gótico certamente será tido como epígono,
extemporâneo e démodé. Da mesma forma, um escritor regionalista que es-
creva hoje como George Sand ou como Verga. O defeito não está em George
Sand nem em Verga, nem na tendência regionalista, mas na falta de cultura,
de esforço e de “desconfiômetro” para superá-los, superando as dificuldades
específicas da ficção regionalista, que eles enfrentaram cada um a seu modo,
com os recursos de suas respectivas épocas.

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8. É importante distinguir o regionalismo como movimento político, cul-


tural e, mesmo, literário, das obras que decorrem deste direta ou indireta-
mente. Muitas vezes programa e obra mantêm uma relação tensa, quando
não se contradizem abertamente, exigindo uma análise das distintas media-
ções que relacionam a obra literária com a realidade natural e social. O regio-
nalismo, lido como movimento, período ou tendência fechada em si mesma
num determinado período histórico em que surgiu ou alcançou maior pres-
tígio, é empobrecedor: um ismo entre tantos. O regionalismo lido como uma
tendência mutável onde se enquadram aqueles escritores e obras que se
esforçam por fazer falar o homem pobre das áreas rurais, expressando uma
região para além da geografia, é uma tendência que tem suas dificuldades
específicas, a maior das quais é tornar verossímil a fala do outro de classe
e de cultura para um público citadino e preconceituoso que, somente por
meio da arte, poderá entender o diferente como eminentemente outro e, ao
mesmo tempo, respeitá-lo como um mesmo: “homem humano”.

9. O defeito que muitas vezes a crítica aponta no escritor regionalista, do


pitoresco, da cor local, do descritivismo, foi a seu tempo uma dura conquis-
ta. Da mesma forma, na pintura, só depois de pintar com perfeição a figura,
o pintor pode aludir a ela por traços, cores e luzes; só depois de descrever
como quem pinta uma paisagem, o escritor pode indicá-la pela alusão, con-
seguida seja por imagens, seja pela sonoridade e ritmo, seja pelo modo de
ser e de falar das personagens. Em qualquer dos casos, o grande escritor re-
gionalista é aquele que sabe nomear; que sabe o nome exato das árvores,
flores, pássaros, rios e montanhas. Mas a região descrita ou aludida não é
apenas um lugar fisicamente localizável no mapa do país. O mundo narrado
não se localiza necessariamente em uma determinada região geografica-
mente reconhecível, supondo muito mais um compromisso entre referência
geográfica e geografia ficcional.

Trata-se, portanto, de negar a visão ingênua da cópia ou reflexo fotográ-


fico da região. Mas, ao mesmo tempo, de reconhecer que, embora ficcional,
o espaço regional criado literariamente aponta, como portador de símbolos,
para um mundo histórico-social e uma região geográfica existentes. Na obra
regionalista, a região existe como regionalidade e esta é o resultado da de-
terminação como região ou província de um espaço ao mesmo tempo vivido
e subjetivo, a região rural internalizada à ficção, momento estrutural do texto
literário, mais do que um espaço exterior a ele.

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10. Se o local e o provincial não são vistos como pura matéria, mas como
modo de formar, como perspectiva sobre o mundo, a dicotomia entre local
e universal se torna falsa. O importante é ver como o universal se realiza no
particular, superando-se como abstração na concretude deste e permitindo
a este superar-se como concreto na generalidade daquele. Desse modo, as
“peculiaridades regionais” alcançam uma existência que as transcende. Assim,
espaço fechado e mundo, ao mesmo tempo objetivos e subjetivos, não neces-
sitam perder sua amplitude simbólica. A função da crítica diante de obras que
se enquadram na tendência regionalista é, por isso, indagar da função que a
regionalidade exerce nelas; e perguntar como a arte da palavra faz com que,
através de um material que parece confiná-las ao beco a que se referem, algu-
mas alcancem a dimensão mais geral da beleza e, com ela, a possibilidade de
falar a leitores de outros becos de espaço e tempo, permanecendo, enquanto
outras (mesmo muitas que se querem imediatamente cosmopolitas, urbanas
e modernas) se perdem para uma história permanente da leitura.

Dicas de estudo
Para que o estudante possa completar as informações sobre a história brasilei-
ra refletida na literatura regional dos anos 1930, sugerimos as seguintes obras:

 Ler o capítulo “A revolução de 1930 e a cultura”, do livro A Educação pela


Noite, de Antonio Candido, Editora Ouro sobre Azul.

Um ensaio fundamental para se entender o contexto histórico do Regio-


nalismo de 30.

 Roteiro de Leitura: Capitães da Areia de Jorge Amado, de Álvaro Cardoso Go-


mes, Editora Ática.

Um trabalho de grande didatismo, analisando obra e autor com certa pro-


fundidade.

 Engenho e Memória: o Nordeste do açúcar na ficção de José Lins do Rego, de


Luciano Trigo, editado pela Academia Brasileira de Letras/Topbooks.

Prêmio José Lins do Rego da Academia Brasileira de Letras, o livro é um


minucioso ensaio sobre a obra de Lins do Rego e a cultura açucareira do
Nordeste do Brasil.

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Modernismo dos anos 1930: o regionalismo

Estudos literários
1. Explique a reação do público que assistiu à Semana de Arte de 1922 em rela-
ção às propostas estéticas que foram apresentadas.

2. Em que sentido o Primeiro Modernismo diferiu do Segundo Modernismo?

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3. Quais foram os principais temas do regionalismo nordestino? Exemplifique


com obras e autores.

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Graciliano Ramos: narrativa e história

Com a pena irresoluta, muito tempo contemplei destroços flutuantes. Eu tinha confiado
naquele naufrágio, idealizara um grande naufrágio cheio de adjetivos enérgicos, e por
fim me aparecia um pequenino naufrágio inexpressivo, um naufrágio reles. E outro:
dezoito linhas de letra espichada, com emendas. (RAMOS, 1961, p. 99)  

Quem se autocritica dessa forma impiedosa é João Valério, um guarda-


-livro (contabilista) da pequena cidade de Palmeira dos Índios, Alagoas. Ele
está tentando escrever um romance histórico passado na época do bispo
Pero Fernandes Sardinha, aquele que foi devorado em 1556 pelos índios
caetés no litoral do Nordeste brasileiro. Valério vive no pós-Primeira Guerra
Mundial e, com esse projeto literário, procura escapar da mediocridade
e do anonimato acachapantes das cidadezinhas interioranas. Mas ele se
depara com suas próprias limitações, entre elas a estilística: sua pretensão
era escrever um romance indianista, talvez à moda romântica de um José
de Alencar, mas falta-lhe a verve poética para tanto, e o projeto vai empa-
cando repetidamente.

Citação e informações foram extraídas, como o leitor possivelmente


já deve ter identificado, do romance Caetés do escritor alagoano Gracilia-
no Ramos (1892-1953), primeiro livro por ele publicado quando já havia
completado 40 anos de idade. Esse trecho de seu livro de estreia tem sido
com frequência apresentado como uma síntese das características estilís-
ticas do próprio Graciliano, desde que o grande crítico Antonio Candido
o pinçou num dos primeiros estudos sistemáticos sobre a obra do nosso
romancista (cf. CANDIDO, 1956, p. 15). No entanto, para além de uma pos-
sível referência metalinguística, na qual através do personagem o autor
teria feito uma reflexão acerca de seu próprio estilo, nos parece que aqui,
como em outras partes do livro, o escritor alagoano propõe um irônico
acerto de contas com a literatura brasileira e suas tradições.

Vários estudiosos têm apontado para uma certa dificuldade em vincu-


lar Graciliano tanto ao Modernismo de 22 quanto ao regionalismo mais
ortodoxo de 30. Questões como uma declarada antipatia do romancista
pelas estéticas da Semana de 22 e um certo desvio dos temas e da forma
em geral adotadas pela geração de escritores nordestinos – seus contem-
porâneos – pareceriam indicar um lugar à parte da obra graciliana na lite-
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Literatura Brasileira Contemporânea

ratura nacional. Uma leitura mais atenta de Caetés, entretanto, pode nos dar uma
outra visão do assunto. As limitações estilísticas de João Valério, bem como sua
dificuldade na construção do romance histórico sobre os caetés, revelam mais
o esgotamento de uma temática e de um gênero que foram importantes no
século XIX, mas que nos novecentos não tinha mais lugar. Valério poderia nem
ser tão medíocre literariamente como ele mesmo vai se avaliando ao longo do
livro, mas sua fixação em retomar as fórmulas passadas da literatura brasileira é
que é o verdadeiro empecilho para sua realização como escritor.

Para o personagem e narrador de Caetés, a linguagem empolada e colori-


da de um romantismo já morto era a “verdadeira” literatura, a qual ele aspirava.
Porém, seu tempo e sua experiência de vida exigiam outra linguagem e novos
conteúdos para uma literatura verdadeira (sem aspas). Exigiam a expressão seca
e precisa, sem ornamentos, de um Graciliano, capaz de dar conta de represen-
tar uma realidade social, esta também ressequida, marcada pela injustiça social,
pela pobreza e falta de possibilidades de realização individual – onde a poesia e a
expressão artística beletristas não tinham sentido. Mas, vejam, essa forma de ex-
pressão de nosso autor só foi possível graças à limpeza de terreno promovida
pelo Modernismo. Devemos lembrar que foram revolucionários como Oswald e
Mário de Andrade que deram fim ao bacharelismo e beletrismo que grassavam
na, ou desgraçavam a, nossa literatura, havendo portanto um imperioso vínculo
formal entre a produção graciliana e os modernistas de 22.

A escolha do tema do “romance” de João Valério também não pode ser negli-
genciada. Mais do que simplesmente possibilitar uma relação com a produção
indianista do Romantismo, o motivo dos caetés canibais faz ainda um contra-
ponto ao movimento antropofágico da primeira fase modernista, proposto por
Oswald de Andrade.1 Na antropofagia oswaldiana, a cultura brasileira deveria
deglutir as obras e as estéticas estrangeiras, a fim de incorporá-las de forma
criativa à sua produção nacional, que então poderia entregar uma produção de
alto nível e, ao mesmo tempo, marcadamente nacional. No caso de Graciliano
Ramos, ele parece nos dizer exatamente o contrário: não há mais como engolir
os modelos estrangeiros, a estética “Sardinha” nos é intragável, e a literatura bra-
sileira deve se pôr em suas próprias bases e fontes.

Como prova extraliterária das interpretações que acabam de ser feitas, pode-
-se acrescentar o trecho de uma carta de Graciliano (1936) a sua segunda esposa,
Heloísa, que principiava também na carreira de escritora: “Foi o palavreado difícil

1
Aqui é necessária uma ressalva. O Manifesto Antropófago de Oswald é publicado em 1928, e Caetés, segundo o próprio autor, foi escrito entre 1925
e 1930. Então talvez só se possa falar numa coincidência de símbolos e reflexão entre os dois escritores.

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Graciliano Ramos: narrativa e história

de personagens sabidos demais que arrasou a antiga literatura brasileira. Lite-


ratura brasileira uma ova, que o Brasil nunca teve literatura. Vai ter de hoje em
diante” (RAMOS, 1992, p. 161). À maneira de Graciliano, em poucas linhas e numa
linguagem despojada, ele nos dá a síntese precisa do que prolixamente vimos
tentando dizer: a nova literatura brasileira, que Ramos desejava inaugurar com
Caetés, precisaria ser feita numa linguagem próxima à do cotidiano. Só assim se
poderia representar literariamente a realidade brasileira e, dessa forma, se fazer
literatura brasileira.

A realidade brasileira
da obra de Graciliano Ramos
E qual é a realidade que Graciliano desejava expressar em sua obra? Podemos
defini-la em termos cronológicos como o período que compreende o Entreguer-
ras e o imediato pós-Segunda Guerra Mundial (entre as décadas de 1920 e 1950),
e situá-la geograficamente no Nordeste brasileiro. Apenas pela terminologia
escolhida para delimitar temporalmente essa realidade, pode-se perceber que
se trata do momento mais turbulento e trágico do século XX, considerado por
muitos historiadores um dos períodos mais terríveis da história da humanidade.

No Brasil, já sofrendo os efeitos catastróficos do Crash de 1929 (quando


a Bolsa de Valores de Nova York quebrou e jogou o mundo inteiro numa
profunda recessão), assistia-se em 1930 ao golpe de Estado que levaria ao
poder Getúlio Vargas (1882-1954) e ao fim da República Velha, com sua po-
lítica oligárquica e conservadora. A Revolução de 1930 carregava consigo
uma alta expectativa de mudanças políticas e sociais, entretanto, com a
demora de Vargas em implantar as reformas esperadas e convocar eleições,
foi crescendo em amplos setores da sociedade brasileira a desconfiança de
que o político gaúcho talvez desejasse se perpetuar no poder, desconfian-
ça que a história mostrou estar certa. O Estado de São Paulo lidera então
uma insurreição contra o governo provisório de Vargas, num movimento
chamado de Revolução Constitucionalista, em 1932. As forças federais su-
focam a revolta com excessos de violência. Tal vitória torna Vargas ainda
mais poderoso, possibilitando que, em 1937, ele assumisse definitivamente
o controle despótico da nação, nos moldes fascistas dos governos italiano e
alemão da época. O Estado Novo, como se designou o período que vai até
1945, quando finalmente Vargas é derrubado, marcou uma etapa paradoxal
de nosso país.
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Ao mesmo tempo em que as liberdades individuais se encontravam revoga-


das, em que havia censura a todo tipo de expressão e a perseguição política e
a tortura eram mecanismos comuns de controle político, o Brasil experimentou
um grande crescimento econômico, industrializou-se de forma autossustentável
e os mais importantes direitos trabalhistas foram outorgados à população em
geral. Com o fim da Segunda Guerra e do Estado Novo, o processo de industria-
lização, modernização das instituições e urbanização se acelerou, o que contri-
bui para aumentar o peso econômico das regiões Sul e Sudeste. O desequilíbrio
regional do país, que já era intensamente sentido desde o final do século XIX,
também aumentou, o que levou a uma ampla e prolongada onda de emigração
das populações pobres do Nordeste em direção ao sul do país.

Como o foco governamental se concentrava na industrialização e moderniza-


ção do país, as áreas do Brasil que haviam perdido o trem da história para essas
transformações acabaram sendo sistematicamente desassistidas, o que por si só
acarretava em graves prejuízos para a vida e a cultura desses locais. Para piorar
mais a situação, no Nordeste, as secas periódicas e a decorrente fome provoca-
vam verdadeiros desastres sociais.

Além da crise de 1929, do fascismo e da Segunda Guerra Mundial, houve


ainda um outro fator de caráter internacional que teve um papel importante nos
eventos do período que estamos estudando: o movimento comunista. Depois de
consolidada a Revolução Russa, iniciada em 1917, partidos comunistas inspira-
dos na União Soviética (ex-império russo) se desenvolveram por todos os países,
levando a proposta de superação do capitalismo e da sociedade burguesa pela
construção de uma sociedade igualitária, sem classes, de organização socialista.
No Brasil, o Partido Comunista só ganhou densidade política com a adesão de
participantes do movimento tenentista, que fora a forma mais radical de oposi-
ção à República Velha. Um dos “tenentes”, Luís Carlos Prestes (1898-1990), depois
do fim da Coluna Prestes (uma insurreição militar que percorreu o país de norte
a sul entre 1925 e 1927), tornou-se o principal líder comunista e comandou uma
tentativa de golpe de Estado em 1935, a conhecida Intentona Comunista.

A Intentona pretendia derrubar Getúlio Vargas do poder e instaurar o regime


comunista no Brasil. O golpe tem início em Natal, em 23 de novembro de 1935,
e se expande para o Recife e para o Rio de Janeiro, onde se concentrarão as mais
duras escaramuças militares. A insurreição é facilmente dominada pelas forças
legalistas, e os revolucionários são perseguidos implacavelmente, sendo presos
ou exilados. Mas o governo Vargas aproveita a oportunidade para ainda per-
seguir outros adversários políticos, e o país passa por uma verdadeira caça às

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Graciliano Ramos: narrativa e história

bruxas. Dessa forma, Vargas obtém maior controle sobre a nação e um importan-
te subterfúgio para se perpetuar no poder: o perigo comunista. Foi assim que,
em 1937, ele lança mão de um documento forjado, o Plano Cohen, que supos-
tamente revelaria um novo golpe comunista em andamento, como o de 1935,
provocando intenso temor na sociedade brasileira. Graças a essa fraude, quem
dá o golpe é Vargas, que instaura o regime ditatorial do Estado Novo.

Todo este excurso histórico tem muito a ver com o estudo da obra de Gracilia-
no. Como já indicamos no início do capítulo, para o romancista era da realidade
nacional que a literatura brasileira deveria cuidar e deveria saber expressá-la de
forma literária. Mas não é só isso, os episódios relatados correspondem estreita-
mente à experiência vital do escritor. Como ele mesmo estabeleceu como prin-
cípio de sua poética romanesca, que o autor só deveria escrever sobre aquilo
que experimentara, da realidade que vivera – “só conseguimos deitar no papel
os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além disso não há
nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o
que somos” (RAMOS, 1992, p. 213). Vamos em seguida apresentar parte de sua
obra em constante diálogo com sua biografia e a realidade brasileira.

Caetés
Graciliano Ramos nos legou quatro romances de superior qualidade: Caetés
(1933), São Bernardo (1934), Angústia (1936) e Vidas Secas (1938), e dois livros de
memórias de grande importância em nossa literatura: Infância (1945) e Memó-
rias do Cárcere (1953, póstumo). Sua produção ainda comporta contos, crônicas,
relatos de viagem e textos de literatura infantil, que infelizmente não podere-
mos abordar aqui.

A estreia de Graciliano no romance é acompanhada por uma história in-


teressante, cuja veracidade nem sempre é aceita. Graciliano fora prefeito da
cidade de Palmeira dos Índios (Alagoas) entre 1928 e 1930, e, nessa época, os
chefes do executivo municipal eram obrigados a prestar relatórios anuais ao
governador do Estado. Os textos que Ramos redigiu para esse fim eram carac-
terizados por uma prosa fluente, bem humorada e marcada pela ironia. Publi-
cados na imprensa local, acabaram conhecidos por Frederico Schmidt, poeta
e importante editor da época no Rio de Janeiro, que num impulso telegrafou
para Graciliano a seguinte mensagem: “mande o romance”! Ele mandou e, com
a supervisão editorial de Jorge Amado, o romance Caetés foi publicado em
1933 pela Editora Schmidt.

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Conforme já dissemos, Caetés foi publicado quando Graciliano já contava


com 40 anos. O fato de ele haver sido prefeito pode levar a uma imagem de
uma pessoa bem-sucedida e sem grandes problemas financeiros. No entanto,
acontecia exatamente o contrário: filho de uma imensa família oriunda de pro-
prietários de engenho falidos, nosso escritor teve uma infância difícil e apenas
conseguiu concluir o ensino secundário, não havendo cursado nenhuma facul-
dade. Autodidata, obteve assim uma ampla formação cultural e, graças a isso,
trabalhou como jornalista, professor e funcionário público, antes de tornar-se
escritor, mas sempre perseguido por dificuldades financeiras.

Não se pode negar que a caracterização do personagem João Valério, em


Caetés, se aproxima muito da descrição de Graciliano que acabamos de fazer.
Mais ainda, há total paralelismo entre o esforço de Valério em escrever seu ro-
mance histórico, e o de Ramos compondo esse mesmo relato.

Narrado em primeira pessoa por esse personagem, o romance é o registro da


vida medíocre no interior brasileiro, em que seus habitantes tentam dar algum
sentido à existência e extrair dela algo mais do que a simples sobrevivência. O
fio condutor do romance é a paixão adúltera entre João Valério e Luísa, esposa
de Adrião, dono da empresa em que Valério trabalha como guarda-livros. A ba-
nalidade desse tema passional já nos dá pista de não ser este o nervo do livro,
sendo usado apenas como suporte para aquilo que é essencial: a percepção da
realidade da pequena cidade brasileira pela subjetividade um tanto nervosa e
deprimida do personagem-narrador.

Mas o grande momento do livro é metalinguístico: o jogo entre o romance de


Ramos e o romance escrito por Valério. Nesse caso, Graciliano está retomando a
fascinante estratégia literária do “romance dentro romance” usada com maestria
por Eça de Queirós em sua penúltima obra A Ilustre Casa de Ramires. Do mesmo
modo com que Eça faz uma espécie de paródia do romance histórico de seu
tempo, formulando assim uma crítica tanto à sociedade quanto à literatura por-
tuguesas, Graciliano, conforme antecipamos nas páginas anteriores, procura fazer
um acerto de contas com o passado literário brasileiro e, de forma irônica, apontar
para possíveis superações dos impasses em que nossa cultura se encontrava:
Pôr no meu livro um navio que se afunda! Tolice! Onde vi eu um galeão? E quem me disse que
era um galeão? Talvez fosse uma caravela. Ou um bergantim. Melhor teria feito se houvesse
arrumado os caetés no interior do país e deixado a embarcação escangalhar-se como Deus
quisesse! (RAMOS, 1961, p. 105)

Caciques! Que entendia eu de caciques? Melhor seria compor uma novela em que arrumasse
padre Atanásio, o Dr. Liberato, Nicolau Varejão, o Pinheiro, D. Engrácia [personagens de Caetés].

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Mas como achar enredo, dispor as personagens, dar-lhes vida? Decididamente não tinha
habilidade para a empresa: por mais que me esforçasse, só conseguiria garatujar uma narrativa
embaciada e amorfa. (RAMOS, 1961, p. 85)  

Perceba com atenção: aquilo que o narrador, por estar comprometido com
uma visão retrógrada da literatura, diz não poder fazer, que é a representação da
realidade em que está inserido, é exatamente o que está sendo feito imediata-
mente diante dos olhos do leitor! Eis a genialidade de Ramos: pôr em ação no ro-
mance aquilo que o próprio texto diz não ser possível realizar, quebrando assim
as expectativas de quem lê, e abrindo sua mente para novas perspectivas.

Caetés tem sido sistematicamente visto como uma obra menor de Gracilia-
no (o livro é “bom, mas não ótimo”, segundo BOSI, 1994, p. 402), mas aqui nos
parece haver uma certa má vontade com um romance de estreia, talvez pelo
preconceito de que não se pode acertar logo na primeira tentativa. Pelo exposto,
nosso leitor deve fazer uma nova leitura do livro para, quem sabe, comprovar o
grau de inventividade e maestria que nele há.

São Bernardo e Vidas Secas


Logo após a publicação de Caetés, que não chegou a despertar muito inte-
resse entre o público, Graciliano publica sua magnum opus, o romance São Ber-
nardo. E aqui entra outra curiosa história de publicação envolvendo o mesmo
Frederico Schmidt da seção anterior. O nosso autor havia resolvido publicar seu
segundo livro com a Ariel Editora do Rio de Janeiro, que realiza seu lançamento
em novembro de 1934. Dessa vez, o novo romance causa um grande impacto, e
a crítica mostra-se unânime: tratava-se de um livro excepcional. A exceção entre
os críticos ficou por conta de ninguém menos do que o antes empolgado Schmi-
dt, que então fez no Diário de Notícias firmes ressalvas ao romance de Graciliano.
Segundo Jorge Amado, o mau humor de Schmidt se devia ao fato de haver sido
preterido na publicação do novo livro.

São Bernardo e o último romance escrito por Graciliano, Vidas Secas (1938), são
as duas obras desse autor mais próximas da corrente do regionalismo nordesti-
no, a qual vinha sendo desenvolvida por nomes como José Lins do Rego, Rachel
de Queiroz e Jorge Amado. O que não quer dizer que os dois títulos possam ser
simplesmente rotulados assim, sem mais nem menos, pois, conforme o crítico
José Carlos Garbuglio (1987, p. 444-445) define, “Graciliano Ramos não é um ro-
mancista da seca. Ele tem um romance que por acaso trata das secas. Ele não é

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um romancista que vem na linguagem do Machado. Ele não é um romancista


que vem na linguagem do Regionalismo”. No entanto, o tema da propriedade
agrária no Nordeste e o das secas comparecem nesses romances, e permitem
que se juntem a, por exemplo, Fogo Morto, de José Lins do Rego, e O Quinze, de
Rachel de Queiroz, no enfrentamento de tais questões.

Em São Bernardo, Graciliano retoma a estratégia de um narrador escrevendo


um livro, como em Caetés. A diferença está em que Paulo Honório não compõe
um romance, muito menos tem o interesse no prestígio literário: ele faz uma es-
pécie de autoanálise pela escrita, procurando compreender seus atos ao longo
da vida, em especial os que envolveram Madalena, sua falecida esposa. Outra
diferença: não há aqui o “romance dentro do romance”, o texto que Honório es-
creve constitui o próprio romance.
As pessoas que me lerem terão, pois, a bondade de traduzir isto em linguagem literária, se
quiserem. Se não quiserem, pouco se perde. Não pretendo bancar escritor. É tarde para mudar
de profissão. [...]
– Então para que escreve?
– Sei lá! (RAMOS, 1979, p. 11)  

A história se passa na região de Viçosa (Alagoas), por volta de 1930, quando


Paulo Honório começa a escrever suas memórias. O momento é de grandes
transformações políticas, sociais e econômicas. No Nordeste, a cultura açucarei-
ra vinha perdendo importância econômica, enquanto o algodão passava a ser
um item valoroso em nossa balança comercial. O desenvolvimento tecnológico
na agricultura havia feito com que os antigos engenhos de açúcar fossem sendo
substituídos pelas usinas – alteração que leva a muitas transformações na com-
posição do trabalho e na distribuição do poder político, conforme se vê em Fogo
Morto, de José Lins do Rego. Nesse contexto, o romance nos conta a ascensão,
o apogeu e o início da decadência do fazendeiro Paulo Honório, que saindo dos
estratos mais desfavorecidos da nossa sociedade, galgou através do trabalho, de
trapaças e de vários crimes o topo da pirâmide social de sua região, tornando-se
um dos maiores e mais competentes fazendeiros do local.

Muito longe de ser uma apologia ao self-made man,2 o segundo livro de Graciliano
faz uma história da acumulação primitiva do capital em terras brasileiras. O romance
pode ser visto como uma exemplificação nacional da máxima atribuída a Balzac, ro-
mancista francês do século XIX: “Por trás de toda grande fortuna há um crime”. Para
atingir seus objetivos de ascensão social e, em particular, tornar-se o proprietário da
Fazenda São Bernardo, Honório deixou de lado a ética, suas regras morais, qualquer
escrúpulo e mesmo o próprio orgulho. Ele próprio o confessa no início do livro:
2
Self-made man (2004): Alguém que se fez por si próprio, com seu esforço.

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Ninguém imaginará que, topando os obstáculos mencionados, eu haja procedido


invariavelmente com segurança e percorrido, sem me deter, caminhos certos. Não senhor,
não procedi nem percorri. Tive abatimentos, desejo de recuar; contornei dificuldades: muitas
curvas. Acham que andei mal? A verdade é que nunca soube quais foram os meus atos bons
e quais foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo; fiz coisas ruins que deram
lucro. E como sempre tive a intenção de possuir as terras de São Bernardo, considerei legítimas
as ações que me levaram a obtê-las. (RAMOS, 1979, p. 19)  

No auge de sua fortuna, Paulo Honório, como todo bom burguês, quer dar
sentido e dignidade ao patrimônio conquistado, algo que o faça se perpetuar
no tempo, levando o nome do dono mesmo depois de morto. É assim que ele
pensa num herdeiro e toma a decisão de se casar. Entra em cena a já mencionada
Madalena, professora muito pobre que vivia com a tia D. Glória, único parente da
moça. O casamento se faz por conveniências: o fazendeiro quer um herdeiro, a
professora quer segurança material e prestígio social. Entretanto, a coisa desan-
da: Madalena concebe o filho pretendido por Honório, mas não se submete ao
mundo materialista do marido e procura se afirmar como indivíduo. No entanto,
na fazenda daquele capitalista rude e pragmático só há lugar para um indivíduo,
ao qual se subordinam todos os outros seres: máquinas, animais e homens – o
dono original. Madalena, diferente dos outros bens de Paulo Honório, não lhe
entrega algumas das funções pelas quais o homem a havia levado para sua casa,
ou seja, afeto, reconhecimento e gratidão.

Acostumado a obter o que desejava pela força, o dono de São Bernardo faz
da vida de Madalena um inferno. Vencida em seus propósitos, mas sem capitu-
lar em seus princípios de individuação, a professora termina se suicidando. O
trágico fim da esposa leva Paulo Honório a um profundo conflito interior, pois
sua morte frustra muitas de suas aspirações burguesas e abre uma fenda em sua
carcaça psicológica. Com isso, a força descomunal que punha na acumulação de
riquezas perde o seu vigor e o leva a um declínio como proprietário e adminis-
trador. É o fim de São Bernardo – da fazenda e do romance.

Vidas Secas difere dos romances analisados até aqui em vários pontos, a co-
meçar pela perspectiva do livro que é toda dada a partir de uma família miserá-
vel de retirantes da seca em Alagoas, uma gente cuja formação cultural e experi-
ência brutalizada de vida mal lhe permitiam a expressão verbal. Assim a história
é narrada em terceira pessoa, processo único dentre os romances de Graciliano,
com o uso sistemático do discurso indireto livre, no qual o narrador empresta
sua voz aos sentimentos e digressões dos personagens.

A seca da qual fogem Fabiano, sinha Vitória, o menino mais velho, o menino
mais novo e a cachorra Baleia é uma impiedosa força da natureza que, para ser
não vencida, mas sobrevivida, exige dos mais pobres a máxima cunhada por Eu-
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clides da Cunha em Os Sertões: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Mas não


é sobre a seca que Graciliano quer falar, apesar de ser com ela que o romance se
inicia e encerra, e sim de uma outra força tão devastadora e opressora quanto a
seca para os desvalidos: o injusto sistema social brasileiro. É dessa realidade que
o romance trata em suas diversas esferas, que vão desde o pequeno poderoso,
encarnado no soldado amarelo, até o grande proprietário rural, fonte do poder
político e da reprodução do status quo que mantém nossa gente analfabeta,
alienada de seus direitos e tendo apenas seus corpos como peça de barganha
na luta pela vida.
Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali. Aparecera como um bicho, entocara-
se como um bicho, mas criara raízes, estava plantado. [...] Ele, sinha Vitória, os dois filhos e a
cachorra Baleia estavam agarrados à terra. [...] Entristeceu. Considerar-se plantado em terra
alheia! Engano. A sina dele era correr mundo, andar para cima e para baixo, à toa, como judeu
errante. Um vagabundo empurrado pela seca. Achava-se ali de passagem, era hóspede. Sim
senhor, hóspede que demorava demais, tomava amizade à casa, ao curral, ao chiqueiro das
cabras, ao juazeiro que os tinha abrigado uma noite. (RAMOS, 1977, p. 19)  

A estruturação de Vidas Secas é ainda inovadora. Apesar do livro relatar a saga


dessa família fugida da seca, os capítulos são quase autônomos, centrando-se
num personagem ou num tema da história. Graciliano Ramos, sem perder a
continuidade da história mais ampla, oferece um exercício contista, dando ao
livro a dupla experiência de romance e conto. Para o crítico Antonio Candido, tal
estrutura revela que o mundo interior dos personagens “é, portanto, mais que
simples, primitivo; e o livro, mais tosco do que puro” (CANDIDO, 1956, p. 52). Sem
discordar deste estudioso, podemos complementar que a forma fragmentária
e “tosca” que Graciliano imprime a sua história tem muito a ver com a própria
visão de mundo dessa gente pobre e “primitiva”, que apreende a vida e reflete
sobre elas aos bocados, já que não pode projetar seu futuro (“achava-se ali de
passagem, era hóspede”), nem é capaz de compreender as forças que traçavam
seu destino, fossem as da natureza ou dos homens.

História e memória em Graciliano


Para finalizar, citaremos ainda o terceiro romance de nosso autor, Angústia,
publicado em 1936. Nessa obra, pode-se dizer que estamos diante de outro Gra-
ciliano. Há ainda paralelos com seus dois primeiros livros: o protagonista, um
“pobre diabo”, é o narrador em primeira pessoa; porém, agora a ação se passa

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numa cidade grande, Maceió, capital de Alagoas, sendo, portanto, um roman-


ce mais estritamente urbano. O narrador não está escrevendo nenhum livro e
temos acesso direto aos seus pensamentos e devaneios – podendo-se falar aqui
de algo que se aproxima do fluxo de consciência, conforme encontrado na obra
de Virginia Woolf, James Joyce e Marcel Proust, porém sem a radicalidade formal
destes escritores europeus.

Tal forma narrativa nos revela as memórias de infância e adolescência de Luís


da Silva, o narrador; nos franqueia seus desejos e terrores de adulto, e ainda
os processos mentais e emocionais que o levaram ao crime que é o clímax do
enredo. Por inúmeros motivos, essa estratégia de escrita se aproxima do gênero
literário memorialista, e sem dúvida em Angústia há muito de autobiográfico, ou
seja, originado da vida real de seu autor.

As características memorialistas e autobiográficas desse romance pareceriam


antecipar uma nova vertente na produção graciliana, pois, terminado Vidas Secas,
o escritor alagoano não mais retornou ao gênero romanesco para se expressar.
Os principais títulos de sua obra a partir da década de 1940 são de caráter au-
tobiográfico: Infância (1945) e Memórias do Cárcere (1953, póstumo) e Viagem
(relato de sua excursão à URSS e à Tchecoslováquia, 1954, também póstumo).

Graciliano Ramos morre em 1953, vítima de câncer no pulmão. Estava finali-


zando Memórias do Cárcere, em que relatava seu quase um ano de prisão entre
1936 e 1937, fruto da perseguição política movida por Getúlio Vargas depois da
Intentona Comunista. O governo estava pondo na cadeia não apenas desafetos
políticos, mas um grande número de intelectuais, artistas e profissionais liberais
vistos como “perigosos” para a ordem pública. Durante os meses em que passou
encarcerado em Recife, Rio de Janeiro e, principalmente, na Colônia Correcional
da Ilha Grande, Graciliano fez anotações em todo tipo de papel que obtinha na-
quelas condições. Ele conseguiu levar consigo esse grande volume de anotações
ao ser solto, em janeiro de 1937, e, durante vários anos, passou a organizá-las e
a pô-las em grande literatura, conforme nos diz mais uma vez Antonio Candi-
do (1956, p. 58): “[...] do ponto de vista humano e artístico são grandes livros
(Infância e Memórias do Cárcere), ao nível do que melhor escrevera até então”.

Graciliano encerrava sua obra radicalizando o princípio que adotara desde o


início: representar a realidade brasileira usando a linguagem despojada e seca
do dia a dia. Para isso, ao fim e ao cabo, nem mais da ficção ele precisava, bastava
a vida, a sua vida.

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Texto complementar

Apontamentos sobre a obra de Graciliano Ramos  


(MAIA, 2007)

[...]

Angústia, o terceiro romance, é o único de Graciliano em que a imissão


na interioridade do personagem-narrador chega a ponto de permitir falar
no uso do monólogo interior. Por isso, a presença do narrador é absorven-
te, a assimilação das coisas, seres e fatos ao mundo interior de Luís da Silva
é muito mais completa que em S. Bernardo, o que faz com que o mundo
exterior apareça inteiramente embebido em sentimentos e forças de uma
subjetividade tumultuosa, desesperada.

A exemplo do livro anterior, Angústia entronca o romance de Graciliano


Ramos num importante conjunto de obras da literatura e da cultura brasi-
leira em que emerge o tema da decadência da grande propriedade rural.
Este tema está presente em autores como Silvio Romero, Joaquim Nabuco,
Gilberto Freyre, Lúcio Cardoso, José Lins do Rego, Carlos Drummond de An-
drade, entre outros. Entre autores tão diversos, os modos de encarar o pro-
blema histórico foram também diversos. Se Casa Grande e Senzala, de Freyre,
Menino de Engenho e Meus Verdes Anos, de Lins do Rego, têm muito de “crô-
nica de saudades” (expressão de Roberto Ventura), na poesia de Drummond,
por outro lado, a figuração do filho de fazendeiro emigrado para a cidade,
na qual assume posição deslocada, diminuída, tem força crítica para pôr em
questão as contradições do processo de modernização conservadora no
contexto brasileiro dos anos 30.

Luís da Silva é membro de uma família rural em decadência, que por isso
vive na cidade a experiência da penúria, e este é o principal fundamento
prático de sua vida desventurada. A trajetória desse personagem é um ápice
de frustração, que nele suscita, tal qual em João Valério, ódio pelos mais fa-
vorecidos na escala social. A figura de Julião Tavares é a encarnação desse
outro de classe que tem de ser, sob a pressão do ódio obsessivo, eliminado.
No entanto, o desvalimento de Luís da Silva torna ambivalentes seus sen-
timentos em relação ao antagonista, o qual lhe inspira repulsa e inveja. Na

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Graciliano Ramos: narrativa e história

mesma clave do desgosto extremo fundado na indigência econômica do


personagem, está sua situação de escritor frustrado, impossibilitado de resis-
tir à comercialização barata de suas produções, com o que se avilta. Por estes
e outros exemplos que poderiam ser levantados, tanto em Angústia quanto
nos outros romances, a afirmação genérica de Franklin Martins parece-me
certeira, se a utilizarmos com o cuidado da especificação: “em Graciliano a
frustração tem base econômica” (OLIVEIRA, 1987, p. 427).

Enfim, Vidas Secas, no qual podemos apontar de saída dois traços que o
singularizam entre os romances do escritor alagoano: é o único escrito em
terceira pessoa e é também o único que eleva a plano de destaque o drama
do nordestino miserável, a tragédia social do Nordeste.

Para fixar bem a específica problemática geográfica e social, a aderência à


terra, à paisagem é uma das marcas registradas da conduta das personagens.
O recurso narrativo bem explorado por Graciliano em seus livros anteriores, a
integração entre personagem e acontecimento, aparece aqui, como explica
Antonio Candido, em função do denominador comum entre aqueles fatores
do enredo: o meio físico. Longe de ser mero elemento decorativo, a paisa-
gem está fundamentalmente integrada à vida e vinculada a um problema
social, aspecto que, como parte da matéria regional destacada no romance,
aproxima a ficção de Graciliano da produção dos outros escritores nordes-
tinos seus contemporâneos. No entanto, a diferença está na verificação de
que em Vidas Secas o meio físico-social não se impõe de uma maneira que
tira força das personagens. Ao contrário, como já veremos, o mundo interior
dos retirantes está presente de um modo considerável, e que não foi bem
percebido pela maior parte dos críticos. Diga-se ainda que a integração de
geografia e vida dos retirantes tem afinidade com um traço importante de
certa tradição historiográfica brasileira (de que fazem parte autores como
Joaquim Nabuco, João Ribeiro, Alcântara Machado), que se forma, segun-
do a historiadora Ângela de Castro Gomes, a partir do final do século XIX
e primeiras décadas do XX, e contribuiu bastante para o desenvolvimento
posterior dos estudos históricos; tradição que começava a tratar o “espaço
geográfico” como algo que não era simplesmente “natural”, mas que tinha
de ser visto também como uma dimensão integrante do “social” (GOMES,
2001, p. 40-41).

A miséria das vítimas da seca nordestina, de que a história de Fabiano e


sua família constituem a principal realização literária, é uma das expressões

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máximas da situação apartada dos pobres no Brasil. No romance a habitual


economia de palavras da arte do velho Graça serve bem ao tratamento lite-
rário consequente do problema: a extrema redução na caracterização dos
meninos retirantes, por exemplo, é um índice da situação desumanizado-
ra em que vivem. Portanto, a homologia entre técnica narrativa e assunto,
uma das forças do livro e da ficção do autor, é suficientemente crítica para
dispensar o dedo em riste. E como Vidas Secas foi publicado em 1938, já em
pleno período de vigência do Estado Novo, é bastante oportuno lembrar,
de acordo com Wander Melo Miranda, que este romance contraria vigoro-
samente e, por conseguinte, põe em causa a defesa da construção nacional,
da integração dos brasileiros, que tinha lugar central na ideologia do regime
(MIRANDA, 2004, p. 47).

A interpretação consagrada do livro encarece o “círculo sem saída” em que


se encerra a vida da família de retirantes, a “eterna errância” que o primeiro e
o último capítulos sugeririam, a “estrutura circular” que sinalizaria o bloqueio
à mudança no panorama social brasileiro. A meu ver, tudo isso está certo. No
entanto, ao aludir à cidade grande, a que se vincula a esperança de Fabia-
no e sinha Vitória, o final do livro acena com a ampliação de horizonte das
personagens, ao sonho de ir além da existência miserável de sempre. Claro
que é uma esperança tênue, pois seu fundamento prático é muito frágil, o
que não permite alijar o “círculo sem saída”, e torna irreal falar, na contracor-
rente da leitura consagrada, em encerramento otimista. Mas penso que este
remate tem certa ambiguidade, coloca-se entre a esperança e o bloqueio
das circunstâncias.

Para encerrar, cabem algumas palavras sobre a minimização da dimen-


são psicológica e capacidade expressiva das personagens de Vidas Secas por
grande parte da crítica. O livro chegou a ser definido exageradamente como
“o drama de uma impossibilidade de comunicação” (Rui Mourão). Diga-se
que é verdade que a comunicação entre os viventes é débil e que o livro
acentua isso de modo a caracterizar criticamente o estado de destituição a
que estão submetidos os miseráveis. É certo ainda que a opção pelo narrador
onisciente é o recurso necessário para suprir aquela carência de expressão.
Entretanto, Adriano da Gama Kury fez um reparo aos críticos que merece ser
considerado: a desatenção destes ao uso de discurso indireto livre no roman-
ce, por meio do qual é possível surpreender o pensamento das personagens

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(KURY, 1995, p. 813-827). Mais recentemente, na esteira das análises de Kury,


às quais amplia o alcance, Duda Machado demonstrou convincentemente
que os dilemas e tormentos interiores de Fabiano e que a relação entre com-
preensão do mundo e apreensão da linguagem pelos meninos tornam tais
criaturas gracilianas bem mais complexas do que o retrato crítico que lhes
foi traçado pelos estudiosos. Digamos que para Graciliano as personagens
miseráveis não se reduzem a seres unidimensionais, voltados apenas à sua
sobrevivência, cuja vida interior não seja digna de nenhum registro. Macha-
do demonstrou ainda a frequência com que o narrador, num momento deci-
sivo em que a família precisa encarar o desconhecido sob a pressão da seca,
registra os diálogos entre sinha Vitória e o marido, os quais se expandem
consideravelmente naquele ponto especialmente delicado de suas vidas
(MACHADO, 2003, p. 182-199). Assim, só recentemente a crítica começa a dar
a atenção devida ao problema da comunicação e à psicologia dos viventes
de Vidas Secas. Creio que se trata de um ponto fundamental para a compre-
ensão de um dos mais importantes livros da literatura brasileira.

Dicas de estudo
 Ficção e Confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos, de Antonio Candido,
Editora Ouro sobre Azul.

Estes ensaios são considerados seminais para a interpretação da obra de


Graciliano Ramos. A nova edição foi revisada pelo próprio autor.

 “Apontamentos sobre a obra de Graciliano Ramos”, artigo de João Roberto


Maia, publicado em Espéculo, Revista de Estudios Literários, n. 35, Universi-
dad Complutense de Madrid.

Sugerimos a leitura de todo o artigo proposto na seção “Texto comple-


mentar” acima. Trata-se de uma excelente introdução aos romances de
Graciliano, com uma bibliografia bastante atualizada.

 Graciliano Ramos, de José Carlos Garbuglio et al. Editora Ática.

Coletânea de artigos, ensaios e debates sobre a obra graciliana, escritos


por nomes como Alfredo Bosi, Valentim Facioli e Antonio Candido.

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Estudos literários
1. Disserte sobre o estilo literário de Graciliano e procure vinculá-lo aos prová-
veis princípios estético-críticos a que ele se propunha.

2. A produção romanesca de Graciliano Ramos se faz em constante diálogo


com seu contexto histórico e social. Descreva esse contexto.

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3. Faça uma análise sucinta das principais linhas de força do romance São Ber-
nardo.

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Geração de 45: poesia e metalinguagem

Com o movimento modernista de 22, a nossa poesia, como também a


prosa de ficção, se libertou de modo radical das amarras das velhas escolas
poéticas, graças ao experimentalismo de Mário de Andrade, Manuel Ban-
deira e Oswald de Andrade – para mencionar apenas os ícones da nova
poesia brasileira. A partir do quadro consolidado, os poetas dos anos 30
tiveram liberdade para revisitar algumas das tendências reprimidas pelo
esteticismo de 22; e assim a poesia brasileira recuperou ainda nos baús
europeu e norte-americano um certo tom universalizante, metafísico e
hermético da assim chamada poesia “tradicional”, para com ele tempe-
rar o ludismo e a experimentação propostos pela Semana de 22. Enfim,
buscava-se na década de 1930 uma poética consistente com o Brasil de
Getúlio Vargas e com um mundo que marchava para a Segunda Grande
Guerra (1939-1945).

Os anos pré-45:
em busca do equilíbrio perdido

Poesia
(DRUMMOND DE ANDRADE, 1988, p. 20)

Gastei uma hora pensando em um verso


que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.

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Literatura Brasileira Contemporânea

Iniciamos este capítulo sobre a Geração de 45 citando Carlos Drummond de


Andrade (1902-1987), cuja poética, apesar de consagrada no período pós-22 e
pré-45, tornando Drummond o grande poeta da Geração de 30, continuou se
ampliando e repercutindo ao longo das épocas seguintes. A longeva vida do
bardo mineiro lhe possibilitou estar ao lado das mais importantes vozes da
poesia brasileira: nos anos de 1930 integrou o grupo de Murilo Mendes (1901-
1975), Cecília Meireles (1901-1964), Jorge de Lima (1895-1953), Augusto Frederi-
co Schmidt (1906-1965), Vinicius de Morais (1913-1980); e com a chamada Gera-
ção de 45 esteve ao lado de Péricles Eugênio da Silva Ramos (1919-1992), Lêdo
Ivo (1924-) José Paulo Paes (1926-1998), Manuel de Barros (1916-), Paulo Mendes
Campos (1922-1991) e João Cabral de Melo Neto (1920-1999).

Desse modo, Drummond comparece em nosso cenário literário como um


poeta transgeracional e importante balizador das mudanças ocorridas em nossa
poesia, não somente nos anos de 1940, mas ao longo do século XX. Em 1930,
com sua obra de estreia, Alguma Poesia, Drummond já indicava o seu papel de
atualizador da poética brasileira. No poema “A rua diferente”, ele ironiza, usando
um recurso metonímico, os “vizinhos” que se irritavam com as mudanças na
“sua” rua, que podemos interpretar como os novos ventos que sopravam na arte
pós-22, com os quais o futuro, aqui simbolizado pela criança, se alegraria:

Na minha rua estão cortando árvores


botando trilhos
construindo casas.

Minha rua acordou mudada.


Os vizinhos não se conformam.
Eles não sabem que a vida
tem dessas exigências brutas.

Só minha filha goza o espetáculo


e se diverte com os andaimes,
a luz da solda autógena
e o cimento escorrendo nas fôrmas.
(1988, p. 12)

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Geração de 45: poesia e metalinguagem

Dessa maneira, a exemplo de Drummond, os poetas de 30 empreenderam


diversas frentes de recriação formal, valorizando, sobretudo, a liberdade esté-
tica conquistada com seus antecessores, e agregando ao ensinamento de 22
uma abordagem efetiva à realidade sociopolítica brasileira, ao desconcerto do
mundo e à crise do indivíduo em conflito consigo e com a sociedade, cuja an-
gústia o “poeta do povo” Drummond de Andrade, já adentrando o Terceiro Mo-
dernismo, exprime em versos de “A flor e a náusea” (1945):

Preso à minha classe e a algumas roupas,


vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
(1988, p. 97)

Os anos de 30 serviriam, portanto, para assentar a poeira do redemoinho de 22


e sedimentar o caminho para a poesia brasileira, que se firmaria a partir de 1945 –
ano da morte de Mário de Andrade, mas não do sepultamento do Modernismo.

Tradição e modernidade
A classificação de um poeta em uma ou outra “geração” não é uma decisão
estanque, como também não ocorre com a própria literatura; por isso, há histo-
riadores que afirmam que a literatura contemporânea brasileira – em vigência
– teve início nos anos 1930. De qualquer modo, é sempre vantajoso no estudo
literário identificar um período histórico em que, de algum modo, os aconteci-
mentos tenham provocado uma manifestação coletiva que levou a mudanças
artísticas, inclusive com um mesmo artista integrando diferentes momentos,
como foi o caso de Drummond.

Exemplos de marcos históricos em nossa literatura foram as transformações so-


ciopolíticas e econômicas oriundas do capitalismo industrial e da Primeira Grande
Guerra (1914-1918) que fomentaram as vanguardas europeias, as quais, por sua
vez, influenciaram o Movimento Modernista brasileiro. No mesmo sentido, foi no
rescaldo da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e, paralelamente, do Estado
Novo brasileiro que se constituiu o ponto de virada para o terceiro momento mo-
dernista, também conhecido como Neomodernismo ou Geração de 45.

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Literatura Brasileira Contemporânea

Alguns membros dessa geração, apoiados pela crítica, defendiam uma rup-
tura categórica com as estéticas anteriores, decretando a morte de todo e qual-
quer resquício de Modernismo. No Primeiro Congresso Paulista de Poesia, em
1948, Domingos Carvalho da Silva (1915-2004) entusiasmava-se com a nova
onda literária:
Estamos, em conclusão, diante de uma nova poesia, profundamente, radicalmente nacional.
Diversa da que prevaleceu até poucos anos atrás no ambiente literário nacional. Não se trata
de uma questão opinativa, mas de um fato verificável objetivamente. O Modernismo foi ultra-
passado. Cabe portanto aos poetas novos prosseguir o rumo que se anuncia, sem transigência
com o passadismo e sem compromisso com a Semana de Arte Moderna. (SILVA, 1948, p. 67-69)  

Esse discurso inflamado reiterava a aversão à “desmedida” da Geração de 22, já


protagonizada pelos poetas dos anos 1930. Mas a proposta de ultrapassagem e
a falta de compromisso com os antecessores não implicaria, contudo, numa total
ruptura. No desenrolar dos acontecimentos, constatou-se que os únicos pontos
possíveis de ruptura eram aqueles que, com o passar do tempo, se tornaram um
discurso repetitivo, inócuo e, portanto, desprezado pelos próprios partidários de
1922, ou seja, o Modernismo poderia evoluir, como revelaram os anos 1930, sem
ser necessariamente extinto, como desejavam alguns da terceira geração.

Os poetas de 1945 continuavam tão modernistas quanto aqueles que por


acaso confrontavam e, de fato, revelaram uma inevitável ambivalência, de recusa
e aceitação das lições anteriores, pois eram tributários do modernismo heroico de
1922 e da cartilha dos poetas de 1930, sendo que ambos lhes abriram o caminho
para a renovação estética. Assim, ao contrapô-los, eles próprios manifestavam, pa-
radoxalmente, o espírito de transformação que está no cerne do Modernismo.

O fato novo é que agora confiavam no poeta como missionário para um


mundo desagregado pelos desvarios da Grande Guerra. Para cumprir tal missão,
seria preciso que a própria poesia fosse liberta da intolerância, reencontrasse o
equilíbrio, fizesse as pazes com sua tradição, recuperando, inclusive, a veia clas-
sicista, parnasiana e simbolista que o Primeiro Modernismo procurou extirpar.
Em outras palavras, era preciso reinventar o passado para reordenar o presente,
começando pela forma poética.

Nesse ambiente de mudanças haveria naturalmente pouco espaço para ho-


mogeneidade de pensamento; assim, vozes divergentes, mas não excludentes,
se levantaram, impedindo chamar a Geração de 45 de um “movimento”, no sen-
tido lato do termo. Por exemplo, a agenda revolucionária de Domingos Carvalho
da Silva não seria cumprida, pois tanto os elementos surrealistas de 1922 quanto
o prosaísmo, o verso livre, o poema-piada, o soneto que persistiram nos anos
1930 estavam sendo usados em maior ou menor grau.
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Geração de 45: poesia e metalinguagem

São muitas as diferenças de estilo entre os poetas dessa época, mas um ele-
mento comum a quase todos foi o uso da metalinguagem como uma verdadeira
declaração de princípios, manifestando, ainda que de forma dispersa e individu-
alista, a renovação da forma poética. Um dos casos exemplares são estes versos
de “Canto em Louvor da Poesia” (1945), de Domingos Carvalho da Silva (apud
MOISÉS, 1996, p. 384):

Quero a palavra fluente,


viva e inquieta como o sangue.
Pura ou impura eu reclamo
a poesia do momento,
filtrada exata constante.

Em um outro momento, Silva resume o que seriam as características da poesia


de sua geração – como a complementar o seu “canto em louvor...” –, afirmando
que a poesia agora precisava de: “técnica, precisão de linguagem, intensidade
emotiva, sentimento de medida, equilíbrio entre a dicção e o ritmo, abolição do
prosaísmo [...]” (apud MOISÉS, 1996, p. 382). Em suma, era novamente permitido
falar em rimas, métrica e vocabulário.

O amador de poemas:
Péricles Eugênio da Silva Ramos
Além do entusiasmado Domingos Carvalho da Silva que já mencionamos,
destacaremos alguns autores que ascenderam sob a chamada Geração de 45.
O primeiro deles é o poeta e crítico literário nascido em Lorena, interior de São
Paulo, Péricles Eugênio da Silva Ramos (1919-1992). Como era praxe entre os
filhos da burguesia brasileira do início do século passado, Silva Ramos formou-se
na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco; porém, o jovem deixou de
lado as coisas da lei, dedicando-se às letras, ajudando a firmar o que deveriam
ser os preceitos da Geração de 45.

Silva Ramos exerceu uma outra atividade comum aos literatos do período, a
tradução de obras que em geral contribuíam para a opção e/ou formação literária.
Entre seus trabalhos de tradução constam, por exemplo, os Sonetos de Shakespe-
are e uma coletânea de poetas líricos gregos e latinos, autores que certamente

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contribuíram para a sua lírica. Além da prática da poesia, Péricles Eugênio da Silva
Ramos é reconhecido como um dos maiores especialistas no estudo da poética,
conforme atestam seus diversos ensaios publicados, entre outras coletâneas, em
O Amador de Poemas (1956). Algumas características atribuídas a sua poesia são:
serenidade, neoparnasianismo, classicismo helênico, memorialismo e confissão;
esses últimos ao invocar as lembranças da infância passada em Lorena. Sua estreia
na poesia se deu em 1946 com Lamentação Floral, obra com traços neoparnasia-
nos, conforme vemos em “O mundo, o novo mundo”:

Porque tentasse decifrar os signos da matéria


com seu rumor de concha sob a forma silenciosa;
porque sem olhos se entregasse a tal empenho,
os pés feriu à margem do caminho,
dilacerou as mãos grimpas da montanha.

Um deus, porém – ah! foi um deus! –


penalizado o socorreu no meio da jornada,
oferecendo-lhe, na voz, os olhos com que visse,
as asas com que o vale do mistério transpusesse.

[...]

ei-lo que canta!

E surge o mundo, o novo mundo, sobre o túmulo da esfinge.


(apud COELHO, 1974, p. 275)

Esses versos que, à primeira leitura, parecem mergulhados num tom “passa-
dista”, na verdade atendem aos preceitos de harmonia que o poeta defendia ao
lado de Domingos Carvalho da Silva: técnica, precisão de linguagem, intensida-
de emotiva, sentimento de medida, equilíbrio entre dicção e ritmo e abolição do
prosaísmo.

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Geração de 45: poesia e metalinguagem

Lêdo Ivo: a emoção na poesia


Sempre me considerei um escritor transgeracional – inclusive porque
desde minhas primeiras tentativas em prosa e verso
me guiou a ambição de durabilidade.

Lêdo Ivo

A cadeira de número 10 da casa de Machado de Assis, a Academia Brasileira


de Letras (ABL), é atualmente ocupada pelo alagoano Lêdo Ivo, nascido em 1924.
Esse filho de Maceió também se formou em Direito, mas, como grande parte dos
jovens advogados da época, sua vocação era a poesia, o romance, a crônica, o
conto e outras atividades relacionadas às letras, para felicidade de nossa cultura.

Ivo foi um dos poetas mais hostis ao Modernismo de 22, mas ao mesmo
tempo não se identificava com a poética de seus contemporâneos de 1945. O
crítico Wilson Martins (2004) argumenta que o próprio Ivo se definia como um
“transgressor” das ideias do período, pois, na opinião desse crítico, “os poetas re-
presentativos dessa escola eram eruditos de gabinete procurando imitar os ver-
dadeiros clássicos, propostos como modelos nos manuais de poética antiga”.

Deste modo, Ivo seria contemporâneo da Geração de 45, mas não exatamen-
te partidário das esparsas ideias ali apresentadas. Alguns críticos o consideram,
de fato, um redentor daquela geração de poetas desnorteados entre a estética
modernista e o mundo pós-guerra. Wilson Martins (2004) resume seu argumen-
to em prol de Ivo: “Em conjunto, a ‘poesia de 45’ foi anacrônica por definição e co-
letivizante por necessidade, enquanto os grandes poetas são sempre individua-
listas autônomos que deformam ou conformam o que encontram, exatamente
o que ocorre com Lêdo Ivo”.

Essa deformação e conformação do estado da arte poética em Lêdo Ivo


tinham na base tanto a tradição do verso clássico de Camões quanto a lírica pré-
moderna de Arthur Rimbaud (1854-1891), ícone da poesia francesa de todos os
tempos, cujos sonetos Lêdo Ivo traduziu e reverenciou. Apesar de se distanciar
do Simbolismo convulsivo de Rimbaud, é inegável que seu estilo tenha se torna-
do aparentado ao do francês, assim como não foi gratuita sua eleição da forma
soneto como central em seu universo poético. Dentro dos dois quartetos e dois
tercetos, ele controla a eloquência de seus versos, dando um sentido original às
palavras, de modo a chegar à metrificação bem composta, ao ritmo e à sonorida-
de que caracterizam a sua poesia: “Bailemos: a vida é breve. / Cantemos: a saia é
leve / Bebamos: é de cevada / o sonho de nossa treva” (IVO, 1960, p. 39).

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Por tudo isso, Lêdo Ivo foi capaz de dar forma elevada àquela técnica, preci-
são de linguagem, emotividade, sentimento de medida que estavam no hori-
zonte da nova poesia, mas com a peculiaridade de reunir todo esse aparato com
um propósito claro: devolver a emoção à poesia brasileira.

Seu discurso também é metalinguístico: afirma-se a função do poeta no pró-


prio fazer da poesia. Na primeira estrofe de “Descoberta do inefável”, composi-
ção de seu segundo livro, Ode e Elegia (1945), ele manifesta a sua poesia:

Sem o sublime, que é o poeta? Sem o inefável,


como pode louvar, não traindo a si mesmo,
a plena e estranha juventude da moça a quem ama?
Que é o poeta, que imita as marés,
sem adquirir com o tempo uma serenidade de coisa sempre nua
como se as estrelas estivessem caminhando governadas
pelo seu riso
e seus braços agitassem as árvores feridas pelo clarão da lua?
(IVO, 1976, p. 39)

Para Ivo, ser poeta é ser livre para descobrir o indizível, indescritível; é contem-
plar o belo e o sublime através de um mundo de formas orientado pela paixão:
“minha paixão reduz o mundo a formas” (“Jorrar”, em Um Brasileiro em Paris, apud
MOISÉS, 1996, p. 392). Enfim, é não se abster das possibilidades da poesia simbo-
lista ensinada pelo mestre Rimbaud.

A poesia de cunho social também encontrou expressão na obra de Lêdo Ivo. As


angústias do pós-guerra, o ceticismo em relação à humanidade e a impotência da
arte neste cenário vêm expressos nos versos de um cético “Soneto presunçoso”:

Que forma luminosa me acompanha


quando, entre o lusco e o fusco, bebo a voz
do meu tempo perdido, e um rio banha
tudo o que caminhei da fonte à foz?

Dos homens desde o berço enfrento a sanha


que os difere da abelha e do albatroz.
Meu irmão, meu algoz! No perde e ganha
quem ganhou, quem perdeu, não fomos nós.

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Geração de 45: poesia e metalinguagem

O mundo nada pesa. Atlas, sinto


a leveza dos astros nos meus ombros.
Minha alma desatenta é mais pesada.

Quer ganhe ou perca, sou verdade e minto.


Se pergunto, a resposta é dos assombros.
No sol a pino finjo a madrugada.
(IVO, 1976, p. 227)

Aqui, a chave de ouro, a ideia principal contida no último verso, sintetiza


aquele ceticismo capaz de imprimir na alma do poeta a madrugada fria em
pleno meio dia.

Ao lado de João Cabral de Melo Neto e José Paulo Paes, Lêdo Ivo representa
os poetas que, mirando o horizonte, construíram a ponte entre o Modernismo e
o Concretismo, desenhando novas rotas no mapa de nossa poesia.

Essência e concisão: a poesia de José Paulo Paes


Em 1926, na cidade paulista de Taquaritinga, nasceu o filho de um livreiro por-
tuguês que o batizou de José Paulo Paes. Esse brasileiro interiorano estava predes-
tinado a se tornar por vocação uma das mais importantes figuras da literatura e
crítica literária no Brasil, além de um dos mais exímios tradutores de obras clássicas
e modernas, em prosa e poesia, a partir de idiomas que ele aprendeu de maneira
autodidata: francês, inglês, italiano, espanhol, alemão e grego moderno.

Não frequentou o Largo do São Francisco ou a Faculdade Nacional de Direito,


berços da maioria daqueles que seriam seus pares literários. Ainda jovem, mu-
dou-se para Curitiba (PR), onde se formou num curso técnico de Química Indus-
trial, não chegando a cursar nenhuma universidade. Entretanto, a efervescente
vida curitibana dos anos 1940 foi o ambiente propício para a revelação de seu
talento para as letras.

Em 1947, aos 21 anos, José Paulo Paes publicou em Curitiba o seu primeiro livro
de poemas. Nesse trabalho, o jovem revela apaixonadamente a sua admiração
pelos modernistas de 1922, confessando-se um aprendiz no próprio título dessa
obra inaugural: O Aluno. Sua reverência era para os mestres Carlos Drummond
de Andrade, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, além dos estrangeiros Rimbaud,
Neruda, Éluard; nomeados ao longo do livro, a exemplo deste soneto:
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L’Affaire Sardinha
São meus todos os versos já cantados:
A flor, a rua, as músicas de infância,
O líquido momento e os azulados
Horizontes perdidos na distância. [...]

São meus também, os líricos sapatos


De Rimbaud, e no fundo dos meus atos
Canta a doçura triste de Bandeira.

Drummond me empresta sempre o seu bigode,


Com Neruda, meu pobre verso explode
E as borboletas dançam na algibeira.
(2000, p. 66)

Apesar do tom de exaltação aos mestres, o aluno José Paulo levou uma repri-
menda do professor Drummond de Andrade, que o incitou a remexer a algibeira e
encontrar a sua própria fonte para a dança das tais borboletas, ou seja, desapegar-
se dos estilos sedimentados e formar a sua poética do mundo e dos homens.

O obediente aprendiz encontrou seu caminho na dedicação à pesquisa esté-


tica, chegando a uma poesia essencial e concisa, com uma linguagem sintética e
incisiva. Para transmitir o épico mundo das coisas simples da vida, Paes adotou a
clássica epigrama, o chiste, a sátira, a ironia, e deixou de lado tudo quanto fosse
supérfluo, sentimental e vazio. Enfim, concentrou nas mínimas linhas de uma
poesia todo o “seu” sentimento do mundo.

Residindo na cidade de São Paulo desde 1949, ele publica o seu segundo livro,
Cúmplices, em 1951, dedicado à Dora, que no ano seguinte seria a sua esposa. O
tema predominante é o amor, mas a forma epigramática impede a desmedida.
Neste poema, o surpreendente último verso refreia o exagero emotivo com a
imagem de um cão:

Meu amor é simples, Dora,


Como a água e o pão.
Como o céu refletido
Nas pupilas de um cão.
(2000, p. 21)

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Geração de 45: poesia e metalinguagem

Por versos precisos desfilaram os mais variados temas e, em especial, a crítica


social, conforme se apresenta em seu terceiro livro, Novas Cartas Chilenas (1954):

O bispo ensinou ao bugre


Que pão não é pão, mas Deus
Presente na eucaristia.

E como um dia faltasse


Pão do bugre, ele comeu
O bispo, eucaristicamente.
(2000, p. 87)

Considerando-se esses atributos, não é difícil perceber as peculiaridades de


José Paulo Paes e sua estética naquele turbilhão de vozes dissonantes que se
reuniam sob a égide da chamada Geração de 45. Do mesmo modo que Lêdo Ivo,
Paes filiava-se a essa geração por mera coincidência cronológica: apenas por ter
iniciado sua produção artística naquele período.

Por fim, valem também para José Paulo Paes as palavras que Wilson Martins
(2004) dedicou a Lêdo Ivo, citadas anteriormente neste capítulo: “os grandes
poetas são sempre individualistas autônomos que deformam ou conformam
o que encontram”. Paes superou o modernismo anacrônico e encontrou a sua
própria voz lírica. Essa foi uma das inestimáveis contribuições de José Paulo Paes
para a literatura brasileira e mundial.

Manoel de Barros: a reinvenção da palavra poética


Não tenho compromisso com as verdades consagradas.
O que desejo é me constar por meio de um trabalho estético.
Se de tudo resultar um cheiro de coisa do chão, é bom.

Manoel de Barros

No grupo de poetas que, a exemplo de Lêdo Ivo e José Paulo Paes, não res-
ponderam diretamente à convocação de ruptura com os “mestres do passado”
da Geração de 45, ouviu-se uma voz mato-grossense que, injustamente, esteve
ausente dos holofotes da crítica até meados dos anos de 1980. Estamos falando
de Manoel de Barros (1917), o poeta que desconstrói a palavra extraindo dela a
própria essência da vida:
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No descomeço era o verbo.


Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá,
onde a criança diz:
eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
Funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta,
que é a voz
De fazer nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio.
(1994, p. 17)

Seu interesse pelas letras foi despertado ainda no colégio com as obras do
padre Antonio Vieira e sua escrita elaborada em torno de frases plásticas que
pareciam mais importantes do que o próprio discurso do padre português. Mais
tarde, já na faculdade de Direito no Rio de Janeiro, tornou-se mais um dos admi-
radores do poeta francês Rimbaud e sua rebeldia pós-romântica. Mas, a essên-
cia de sua poesia, publicada pela primeira vez em 1937 com Poemas Concebidos
sem Pecado, encontra-se na experiência de sua infância vivida no Pantanal mato-
grossense, onde o pai era fazendeiro.

Títulos como Compêndio para Uso dos Pássaros (1961), Gramática Expositiva do
Chão (1969), Arranjos para Assobio (1983), O Guardador de Águas (1989) etc., de-
nunciam a sensibilidade para as coisas ao rés do chão, para a dinâmica da natureza
aprendida no quintal da infância. Foi nesse contexto que o pantaneiro Manoel de
Barros, mesmo quando estava radicado no Rio de Janeiro, deu à luz uma poesia
que muitos críticos consideram uma espécie de “poesia roseana”, ou seja, a recria-
ção linguística no jogo com as palavras (“No descomeço era o verbo”), a invocação
da matéria, as imagens telúricas, o folclore e costumes regionais que moldam seu
estilo remetem à escrita do prosador Guimarães Rosa. Vejamos um pequeno frag-

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Geração de 45: poesia e metalinguagem

mento do poema “A arte de infantilizar formigas”, na obra intitulada Livro sobre


Nada, que Manoel de Barros publicou em 1996 (p. 21):

Depois de ter entrado para rã, para árvore, para pedra


– meu avô começou a dar germínios
Queria ter filhos com uma árvore.
Sonhava de pegar um casal de lobisomem para ir
vender na cidade.

A metalinguagem instrumental em sua poética é exemplificada nos versos


abaixo, os quais exprimem o entendimento de Manoel de Barros sobre o fazer po-
ético, tarefa que envolveria paciência, estado de torpor e inércia criativa, decom-
posição de coisas fossilizadas e, por fim, o nascimento de uma outra matéria viva.

Para entrar em estado de árvore é preciso


partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em dois anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz.

Hoje eu desenho o cheiro das árvores.


(1994, p. 19)

Manoel de Barros é um excelente exemplo do desdobramento da poesia em


termos cronológicos, em vez de periódicos. Apresentamos trechos de poemas
que têm mantido uma consistência estilística ao longo de quase 70 anos de vida
poética. A obra deste representante daquela longínqua Geração de 45, cuja in-
fluência se espraia até os dias de hoje, manteve o mesmo frescor e consciência
estética que o jovem mato-grossense propunha nos idos de 1937 com os seus
Poemas Concebidos sem Pecado.

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Paulo Mendes Campos: poesia e vida


Só poetas, não apenas grandes mas muito especiais,
sabem juntar uma sombria obsessão de morte
a uma ânsia vital ilimitada.

Paulo Mendes Campos

No dia 28 de fevereiro de 1922, dez dias após o encerramento da “Semana de


Arte Moderna” que mudou para sempre a face da arte brasileira, nascia em Belo Ho-
rizonte (MG) o futuro cronista, poeta e tradutor Paulo Mendes Campos (1922-1991).
Já na adolescência, seu espírito rebelde ao academicismo e às convenções o afastou
da Escola Preparatória de Cadetes (Porto Alegre) e de qualquer tolhimento ao seu
espírito livre. Estudou, sem concluir, Odontologia, Direito e Veterinária, mas foi nas
letras que Paulo Mendes Campos encontrou o lugar para a expressão de seu “eu”.

Participou das rodas literárias que consagrariam os maiores literatos mineiros:


Otto Lara Rezende, Fernando Sabino, Hélio Pelegrino, Carlos Drummond de An-
drade, Murilo Rubião, entre outros. Quando chegou ao Rio de Janeiro, em 1945,
já estava em marcha a chamada Geração de 45, e seu primeiro livro de poesia, A
Palavra Escrita, foi publicado em 1951.

O poeta mineiro é celebrado como um exímio cronista do cotidiano triste e


alegre do tipo humano que sobrevive indiferente à nossa vã filosofia. Os títulos
de suas crônicas indicam o campo de visão que o interessa: O Cego de Ipanema,
Homenzinho na Ventania, O Anjo Bêbado, Supermercado. Uma tal sensibilidade à
espontaneidade da vida vivida transbordam igualmente em seus versos plenos
de emoções e sentimentos em torno de sua infância mineira e da paisagem ca-
rioca de sua vida adulta.

Nesse sentido, a poesia em prosa flui naturalmente em sua obra, ao lado dos
sonetos e das epigramas: algumas de suas formas de expressão, cujo estilo de
escrita não se enquadraria em molduras, ao contrário, seus versos fluem livres e
só obedecem à pluralidade lírica de um autor que não se deixou prender a ne-
nhuma corrente ou ideário.

Entre os principais temas abarcados em sua poesia estão o tempo, a morte,


a eternidade, a fugacidade das coisas: “Da memória das vagas inconstantes /
Vamos colher a flor do tempo” (1984, p. 132). Tais motivos recorrentes em sua
obra são claramente expressos em seu segundo livro O Domingo Azul do Mar
(1958), em versos como:

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Geração de 45: poesia e metalinguagem

Três coisas
Não consigo entender
O tempo
A morte
Teu olhar
O tempo é muito comprido
A morte não tem sentido
Teu olhar me põe perdido
(1984, p. 89)

Aliada à sua arte de poetizar celebrando a vida, Paulo Mendes Campos foi
um valoroso pensador da poesia. Em textos ensaísticos ele argumentou em prol
do que chamava de “os pormenores felizes da poesia”, aquelas características da
poesia que, em certa medida, eram defendidas igualmente pelos poetas de sua
geração: “imagens exatas, assonâncias, a valorização das palavras e dos sons,
uma exaltação de rimas, linguagem profundamente alusiva, a precisão contras-
tando com o impreciso, o familiar tornando-se estranho, o estranho tornando-se
familiar, o equilíbrio de tons e emoções [...]” (CAMPOS, 1952, p. 6).

Quanto à metalinguagem, neste poeta ela serviu como instrumento para ma-
nifestar o propósito de sua poesia, que hoje alguns poderiam aproximar, por
assim dizer, da vertente de “autoajuda”. Algo que pode ser visto nos versos do
longo poema “Hino à vida”, em que o poeta incita a prosseguir, apesar do ine-
vitável fim, pois homem e poeta devem “Continuar a primeira palavra escrita, /
Continuar a frase, não resigná-la / A temor, imperfeição, náusea, / Continuar com
imenso trabalho”, e assim encerra o seu apelo à poesia e à vida:

Porque a vida é sempre a vida, a mesma vida.


Porque não se pode,
Porque, se parássemos, ouviríamos um estrondo
E depois, perturbados, o silêncio do que somos.
(1984, p. 103)

A breve análise que propusemos deste período de nossa história literária não
encerra uma conclusão; no entanto é possível defender que os poetas que se

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Literatura Brasileira Contemporânea

elevaram a partir de 1945 não puderam rejeitar a velha casa de alicerces muito
sólidos que receberam de herança, mas não abriram mão de uma “reforma” geral
para atender às demandas da nova família poética. Então, paredes foram que-
bradas para facilitar o trânsito das ideias, e as que restaram foram pintadas com
mesclas de cores tradicionais e modernas. Com isso, recuperaram o livre arbí-
trio para sua expressão, sem temer a inquisição dos guardiões de 22, em versos
plenos de sonoridade e ritmo, imagens e figuras de linguagem, além dos devi-
dos cuidados métricos a critério exclusivo de sua expressão poética.

Texto complementar

A Geração de 451
(MELO NETO, 2006, p. 741-752)

Primeira parte
Apesar de existir há alguns anos a querela que acompanhou o nascimen-
to e o batismo da chamada Geração de 45 e apesar de os poetas dessa gera-
ção se mostrarem quase tão interessados em explicar-se quanto em criar, a
verdade é que o denominador comum do grupo ainda não foi estabelecido
com a desejada precisão.

Vamos, por enquanto, deixar de lado as tentativas de balanço e caracteriza-


ção que têm partido dos membros da geração, mais capazes de pensamento
crítico. Essas tentativas de explicação, feitas de dentro para fora, se podem ser
de utilidade para definir a atitude de tal ou qual poeta, quando aplicada ao
grupo padece de um defeito essencial: ela é incapaz de mostrar uma visão de
conjunto dessa poesia nova e tende facilmente à incompreensão. Pois a capa-
cidade polêmica de muitos desses poetas novos, e seu gosto pelos bate-bocas
da vida literária não se exercem apenas nos casos de legítima defesa. Exercem-
se também em grande parte internamente, isto é, como uma luta de família,
com as incompreensões e violências próprias das lutas de família.

Por isso me parece mais instrutivo tentar a caracterização desse grupo de


autores a partir da atitude crítica que se formou em relação a ela pelos escri-
tores de gerações anteriores. De certa maneira, algumas das afirmações que
1
Artigo originalmente publicado por João Cabral de Melo Neto no Diário Carioca em 1952.

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Geração de 45: poesia e metalinguagem

constituem essa atitude crítica geral parecem definitivamente depositadas.


Devo dizer que nem todas essas afirmações são justas e que a facilidade com
que foram aceitas não me parece o resultado da visão certeira desses críticos.
As opiniões que os autores mais antigos têm dos poetas da Geração de 45
são também igualmente polêmicas, embora menos violentamente polêmicas:
elas se beneficiam da falta de entusiasmo excessivo que vem com os anos,
com os anos da idade civil e com os anos de vida ativa na república literária.

Prefiro partir do que pensam e dizem sobre os jovens poetas, os poetas


mais antigos, porque eles são capazes de fornecer sobre as novas tendências
uma visão de conjunto, muito mais útil, embora incompreensiva, do que a
dos elementos mais lúcidos entre esses mesmos jovens poetas.

A primeira atitude que se nota em relação à nova poesia é a de considerar


sua contribuição como de importância limitada pelo fato de não se haver
voltado violentamente contra a poesia que a precedeu, criando uma nova
direção estética para a literatura brasileira. A essa atitude os poetas mais
jovens têm procurado responder com a afirmação de que existe um espírito
comum à sua geração (embora nunca tenham chegado a um acordo ao dizer
o que é esse espírito) radicalmente diverso do que caracterizou a geração
anterior e, apesar de não ter havido revolta em profundidade (embora esca-
ramuças de superfície), absolutamente contrário a tudo o que foi realizado
pelos poetas que o precederam imediatamente.

Creio ver um equívoco nesses dois pontos de vista. Ambos parecem partir
da ideia de que é a revolta e a negação pelo avesso de tudo o que se estava
fazendo ou pensando, que caracteriza um novo movimento literário. De certa
maneira, em muitas literaturas, e na nossa principalmente, essa tem sido a lei
que prevalece. Não, por exemplo, na literatura inglesa. Lembro-me, a esse
respeito de um pequeno discurso de Stephen Spender, falando exatamente
na sabedoria da poesia inglesa, que não parece jamais interessar-se em levar
às últimas consequências práticas as ideias estéticas de um momento deter-
minado. A seu ver, essa capacidade para o compromise era o que a distinguia
melhor da de outros países, da francesa, por exemplo.

No caso da literatura brasileira, se é verdade que prevalecem as reformas


radicais, elas têm acontecido mais no âmbito de movimentos literários do
que de gerações literárias. A poesia de um Castro Alves, em relação à de um
Gonçalves Dias não é a de negação radical, mas de superação, dentro do
mesmo espírito romântico.

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Literatura Brasileira Contemporânea

Uma geração pode continuar outra. A poesia dos poetas brasileiros que,
nascidos no princípio do século, estrearam por volta de 1930, quando a face
mais agudamente destruidora dos modernistas de 1922 estava superada,
não foi dirigida contra as ideias da Semana de Arte Moderna. Ao contrário
partiram deles, dos pontos de partida que eles haviam fixado no meio de
seu combate. E não me consta que alguém, em nome da necessidade de
renovação pela revolta, houvesse exigido desses poetas de 1930, o retorno
ao que existia antes de 1922.

O que esses poetas fizeram foi tirar o máximo de partido possível das con-
quistas do Modernismo. Aproveitando o terreno desentulhado, puderam iniciar
logo seu trabalho de criação positiva. O fato de não terem participado na primei-
ra fila do combate dava-lhes uma vantagem inicial: um recuo, um ponto de vista
de meia-isenção, suficiente para que pudessem distinguir o que naquela luta
era episódico, truque, deformação exigida pela própria luta. Em muitos casos,
os autores dessa Geração de 30 iniciaram sua criação positiva antes mesmo dos
responsáveis pelas operações de limpeza. Estes, em geral, tardaram ainda a se
ver livres das deformações e só mais tarde, aproveitando-se muitas vezes das
conclusões dos companheiros mais jovens, puderam iniciar sua obra pessoal.
Não é preciso lembrar que alguns deles só foram capazes de realizar bem a pri-
meira fase polêmica, a poesia da Semana de Arte Moderna.

A atitude dos poetas da Geração de 45 também não podia ser uma atitu-
de de revolta. Na verdade, as possibilidades do terreno aberto pelo Moder-
nismo longe estão de esgotadas. Os poetas dos anos 1930, juntamente com
os poetas de 1922 que puderam superar o combate pelo combate, estabe-
leceram dentro desse território, núcleos de exploração importantes. Mas se
alguns desses núcleos mostram-se agora de fogo morto, se alguns dos ex-
ploradores mostram-se cansados ou dispostos a abandonar o terreno, nada
disso é prova contra a riqueza que ali ainda existe.

Por tudo isso, me parece equivocada a exigência que se dirige geralmente


aos poetas mais recentes, de revolta contra a poesia que encontraram no mo-
mento em que para eles se abriu a vida literária. A poesia que eles encontraram
em funcionamento era uma poesia poderosa. Seis ou sete daqueles núcleos
de exploração estavam naquele momento, em seu melhor período. Ofereciam
possibilidades de trabalho consideráveis aos poetas que começavam. Não é de
estranhar, portanto, que cada estreante lançasse mão de soluções e de uma ex-
periência técnica já confirmadas, para fazer levantar o voo de sua obra pessoal.

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Geração de 45: poesia e metalinguagem

Por outro lado, considero equivocada, também, a afirmação de alguns te-


óricos da poesia de 1945, da existência de um espírito de renovação radical,
silencioso, mas evidente por si mesmo. Não creio que haja esse espírito como
não creio que haja nesses poetas de 1945 uma nova consciência, diversa dos
poetas anteriores.

Existe uma diferença de posição histórica, no máximo. Ao momento da


conquista do terreno, sucedeu a fundação dos núcleos de exploração. E
a este vem suceder, com os outros poetas de 1945, o momento da exten-
são dessa exploração. A partir desse ponto de vista, creio divisar uma nova
poesia, talvez mesmo uma nova sensibilidade. Talvez mesmo, uma nova ge-
ração, se por motivos de comodidade não temos escrúpulos de empregar
um conceito tão impreciso. [...]

Dicas de estudo
Para que o estudante possa completar as informações sobre as características
da poesia brasileira no período a partir de 1945, sugerimos as seguintes obras:

 Ler o capítulo “A Geração de 45”, do livro Obra Completa, de João Cabral de


Melo Neto, Editora Nova Aguilar.

A leitura integral do texto complementar acima dará ao estudante a vi-


são global do movimento poético do período, a partir do testemunho de
um dos maiores poetas brasileiros e expoente da poesia do Terceiro Mo-
dernismo. Trata-se da compilação de quatro artigos publicados no Diário
Carioca, em 1952, que João Cabral escreveu ao calor da hora e estando
inserido no movimento, antecipando algumas das considerações que a
crítica contemporânea tem confirmado sobre a poesia daquela geração.

 Os Perigos da Poesia e Outros Ensaios, de José Paulo Paes, Editora Topbooks.

Neste livro, o estudante encontrará a didática apaixonada de José Paulo


Paes, poeta da Geração de 45, em suas reflexões sobre o fazer poético, os
movimentos literários e os poetas estrangeiros e brasileiros.

 Verso e Controvérsia: a poesia de Paulo Mendes Campos sob o signo de 45,


Dissertação de Mestrado de Luciano Rosa da Cruz Santos. Disponível em:
<www.letras.ufrj.br/posverna/mestrado/SantosLRC.pdf>.

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Devido ao escasso material sobre a obra deste poeta representativo da


Geração de 45 e em razão da boa qualidade acadêmica da dissertação su-
gerida, o texto é um valioso instrumento para o estudo mais aprofundado
tanto da obra do autor quanto da Geração de 45.

Estudos literários
1. Carlos Drummond de Andrade é considerado ícone da Geração de 30, mas
sua poesia foi igualmente importante para a Geração de 45. Por quê?

2. Por que é possível se dizer que o Modernismo de 22 evoluiu, em vez de ser


extinto pela Geração de 45?

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Geração de 45: poesia e metalinguagem

3. Em que sentido a metalinguagem, recurso comum em textos poéticos, foi


particularmente empregada pelos poetas da Geração de 45?

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Clarice Lispector:
narrativa do fluxo de consciência
O Modernismo brasileiro apresenta-se, com a Semana de Arte Moderna
em 1922, como expressão estética notadamente transgressora, quer pela
personalidade irreverente de integrantes do então inesquecível evento pau-
listano – Oswald de Andrade é um deles – quer pelos escritos anunciados na
época. A propósito, a composição em versos e em prosa aposta no desvio da
forma, em desabono aos preceitos legitimados e estratificados pela tradi-
ção literária. Isso explica a predileção dos primeiros modernistas pelo verso
livre, paródico, prosaico, resistente ao vernáculo de cunho lusitano; senão,
pela prosa em formato fragmentado, avessa à linearidade na exposição dos
incidentes narrados, numa estreita correlação com a técnica cubista desen-
volvida nas artes plásticas de início do século XX na Europa.

De fato, o experimentalismo verbal e o antiacademicismo, caracteri-


zadores da primeira fase modernista, visam à desestabilização de todo e
qualquer conservadorismo. Todavia, essa postura contestatória à pacifici-
dade dos temas, do estilo e das estratégias de confecção do texto ficcional
se abranda com a chegada dos anos 1930, pois a poesia que se edifica a
partir desse decênio dispensa arrojos e radicalismos estruturais. Há poetas
que buscam, por meio de uma construção sóbria e literalmente formal, a
espiritualidade (Cecília Meireles), imersos, em maior ou em menor grau, no
catolicismo (Jorge de Lima, Murilo Mendes e Vinicius de Moraes). Quanto
à prosa regional de verve engajada da década de 1930, a tônica recai na
descrição e no retrato psicológico do nordestino marginalizado.

É chegada a prosa de 45
A Geração de 45, que os historiadores da literatura brasileira denomi-
nam terceira fase modernista, ou mesmo modernismo “tardio”, apresenta-
se com outra dicção. O projeto vislumbrado pelos autores que surgem
nesse período, projeto que pouco a pouco se consolida e convence a crí-
tica literária, alicerça-se sobremaneira na metalinguagem. É intencional o
interesse dos autores em valorizar os elementos que materializam os seus
estratos poéticos, a fim de realçar, mais que nunca, os planos da expressão

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Literatura Brasileira Contemporânea

(a acústica, em especial) e da significação (a plataforma semântica) do texto, que


assume força e dinamismo sem iguais. Os poetas concretistas puseram exaus-
tivamente à prova essa combinatória, explorando arranjos cujo efeito e apelo
visuais são sui generis. À parte, uma poesia ímpar nasce com João Cabral de Melo
Neto. A engenharia que esquadra os seus versos, num compasso bem medido e
a rigor econômico, avista espaços, entre outros, ocupados por paisagens e rios
pernambucanos, incluindo-se o Capibaribe.

Na prosa, destacam-se João Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Neles, a me-


talinguagem se faz pronunciada através de um ressoo extraordinário: a palavra
insere-se numa sintaxe inquieta, estranha à familiar estrutura linguística, provo-
cando tensão no enunciado, a exigir do leitor envolvimento com a bricolagem
que saborosamente subverte a escritura, bem como cumplicidade no tocante
aos conflitos de base existencial que consomem narradores e personagens. O
experimentalismo a que se submeteu a palavra com os modernistas de 1922
ganha nova direção e roupagem: ritmo e estilo acalorados vêm mesmo orientar
o fluxo narrativo de Rosa e de Lispector.

A estreia e a recepção crítica de Clarice Lispector


Clarice Lispector nasce em 10 de dezembro de 1920 na Ucrânia, Rússia, numa
aldeia chamada Tchetchelnik. De origem judia, chega ao Brasil com apenas dois
meses de idade. Passa a infância em Recife e a adolescência no Rio de Janeiro,
onde, já órfã de mãe, fixa residência com o pai – vendedor de rua – e com as duas
irmãs mais velhas. Nessa cidade, ingressa aos 18 anos no curso de Direito da Uni-
versidade do Brasil, bacharela-se, mas não advoga. Exerce desde muito jovem a
função de jornalista, escrevendo para importantes jornais e revistas, paralelamen-
te aos romances, contos e crônicas que produz ao longo da vida. O seu primeiro
romance, Perto do Coração Selvagem, data de 1943, ano em que se casa com o
colega de faculdade Maury Gurgel Valente. Com o marido na condição de embai-
xador e diplomata, Lispector reside em Nápoles (Itália), Berna (Suíça) e Torquay
(Inglaterra). Oficializada a separação conjugal, em 1964, Clarice retorna definitiva-
mente ao país com os dois filhos do casal. Falece em 9 de dezembro de 1977, no
Rio de Janeiro, um dia antes de completar 57 anos, vítima de câncer.

Ao vir a público a obra de estreia de Clarice Lispector, a crítica sublinha um


modo de narrar incomum nas nossas letras: a voz do narrador entremeia-se à
da personagem, muito próxima à voz da autora. Observa-se uma tensão que
irrompe dessa sintaxe com pontuação irregular, cujos vocábulos e imagens se

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Clarice Lispector: narrativa do fluxo de consciência

repetem e ganham estranhas associações – afora o fluxo de consciência prepon-


derante do discurso, à maneira dos escritores da língua inglesa James Joyce e
Virginia Woolf. Infelizmente, a escrita de Perto do Coração Selvagem não cativa
Álvaro Lins, crítico renomado da época, que publica, em 1944, artigo intitulado
“A experiência incompleta: Clarisse Lispector”: “A Sra. Clarisse [sic] Lispector não
atingiu todo o objetivo da criação literária. O leitor menos experiente confundirá
com a obra criada aquilo que é apenas o esplendor de uma micante personali-
dade” (LINS, 1963, p. 189).

Diz mais:
Os fatos do livro não importam; não são eles que procuro identificar com a figura da autora,
pois o que devemos reter e contemplar é o ser humano que está animando estas páginas de
ficção. O que se deverá fixar, antes de tudo, em Perto do Coração Selvagem, será exatamente
aquela personalidade da sua autora, a sua estranha natureza humana. (LINS, 1963, p. 189)  

Álvaro Lins não vê com bons olhos o talhe inacabado da obra, identificando
falta de unidade na estrutura do romance. Alcunha a protagonista Joana, alter
ego da autora, ao que lhe parece, de “estranha natureza humana”. Tal impressão
resulta da receptividade intensa, sensível, sinestésica, reticente que compreen-
de, em larga medida, a feminilidade da personagem cuja infância, adolescência
e fase adulta confluem-se e saltam simultaneamente às páginas. Lê-se no capí-
tulo “O banho”:
A água cega e surda mas alegremente não muda brilhando e burbulhando de encontro ao
esmalte claro da banheira. O quarto abafado de vapores mornos, os espelhos embaçados, o
reflexo do corpo já nu de uma jovem nos mosaicos úmidos das paredes.

A moça ri mansamente de alegria de corpo. Suas pernas delgadas, lisas, os seios pequenos
brotaram da água. Ela mal se conhece, nem cresceu de todo, apenas emergiu da infância. [...]

Imerge na banheira como no mar. Um mundo morno se fecha sobre ela silenciosamente,
quietamente... (LISPECTOR, 1990, p. 76-77)  

Já o crítico Sérgio Milliet, no mesmo ano, observa na obra pontos que vão
além do hibridismo de vozes (narrador, autora e personagem), valorizando o li-
rismo na tessitura da intriga e a agudeza de Joana, que “vê crescer dentro de si a
invenção, a clarividência e a curiosidade”. Pois,
[...] para essa heroína de olhos fixos nos pormenores, nos mais tênues movimentos da vida, não
há uma realidade, mas várias; e todo o seu drama nasce da contradição, do antagonismo de
seu mundo próprio, cheio de significados específicos, com os olhos alheios, ou mais vulgares e
impenetráveis. (MILLIET, 1981, p. 28-29)  

Antonio Candido, notável crítico da literatura brasileira, “No raiar de Clarice


Lispector”, artigo datado de 1943, tão logo publicado Perto do Coração Selvagem,
reconhece que o ritmo do romance é de “procura, de penetração que permite

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uma tensão psicológica poucas vezes alcançada em nossa literatura”, e os vocá-


bulos, ao perderem “seu sentido corrente”, oferecem à língua “o mesmo caráter
dramático que o entrecho” (CANDIDO, 1970, p. 129).

A partir daí, muitos foram os estudiosos que examinaram a obra clariciana;


obra totalizada em 26 títulos, considerando-se os volumes póstumos, como a
prosa de ficção Um Sopro de Vida: Pulsações (1978), os contos inseridos em A Bela
e a Fera (1978) e as crônicas de A Descoberta do Mundo (1984), originalmente pu-
blicadas no Jornal do Brasil, de 1967 a 1973, além de Como Nasceram as Estrelas.
Doze Lendas Brasileiras (1987), narrativas destinadas ao público infanto-juvenil.
Entre os importantes pesquisadores da autora, destacam-se Benedito Nunes,
Nádia Battella Gotlib e Olga de Sá.

O esquema ficcional de Clarice Lispector


Cumpre salientar que a estrutura narrativa de Lispector, com o passar dos
anos, adensa a fragmentação da linguagem, testada ininterruptamente. Nesse
aspecto, é inegável a sua filiação a escritores do século XX que contrariaram a
linearidade do enredo, divorciados da falaciosa cronologia que imprime sequên-
cia contínua à passagem do tempo. O francês Marcel Proust, autor de Em Busca
do Tempo Perdido, foi com certeza um mestre e pioneiro ao facultar as mais com-
plexas digressões às suas personagens; e o mesmo fizeram James Joyce e Virgi-
nia Woolf, sem que se esqueça da contista neozelandesa Katherine Mansfield,
que Clarice leu com largo entusiasmo aos 15 anos de idade. Em todos eles, há
consenso em relação à diferença do tempo medido pelo relógio e do tempo es-
praiado da imaginação. Segundo o ensaísta Anatol Rosenfeld (1996), o romance
moderno deve muito à pintura de vulto abstrato do século XX, ao romper com
as linhas perspectivadas do desenho figurativo e descritivo herdado da arte re-
nascentista, já que a tela abstrata abusa do borrão, excedendo nas pinceladas e
na gramagem da textura.

A ficção de Clarice Lispector merece justamente ser valorizada por essa vee-
mência, isto é, desordem no jeito de representar. Aliás, a autora expõe suas perso-
nagens, com regularidade, a experiências que culminam em significativas crises
existenciais. E por assim exibir a vida interior da mulher de classe média carioca
do seu tempo, coube-lhe o reconhecimento como escritora que melhor expan-
diu, em língua portuguesa, a identidade feminina, perpassando todas as idades
(da infância à velhice) – o que não quer dizer que os homens que figuram em
seus textos se delineiem menos expressivos.

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Clarice Lispector: narrativa do fluxo de consciência

Com a intenção de extremar tais experiências, Lispector confere às narrativas


a intrusão de bichos e insetos, ou mesmo de outros componentes – grotescos e
marginalizados – que paradoxalmente promovem a epifania1, o desequilíbrio e
geram sensação de mal-estar e náusea nas personagens. Em crônica intitulada
“Perdoando Deus”, o dispositivo é um rato: “um enorme rato morto”, “ruivo, de
cauda enorme, com pés esmagados, e morto, quieto, ruivo”. Ele é, pois, a pre-
sença repugnante à vista da narradora, que exige, daí o monólogo interior, uma
resposta divina à sua sensível fraqueza humana.

Sem dúvida, “Amor” é o conto mais lembrado quando se pretende ilustrar a


efetiva interação desses elementos. Está entre as treze histórias enfeixadas no
volume Laços de Família (1960), e seu enredo externa o seguinte enovelamento:
narrado em terceira pessoa, relata-se o difícil itinerário percorrido pela protago-
nista Ana, no retorno a casa, após as compras para o jantar em família. Recosta-
da no banco do bonde a fim de maior conforto, é surpreendida pela freada do
condutor que atende ao chamado de um cego, à espera no ponto, mascando
chiclete. Nesse momento, quebram-se-lhe os ovos.

Sabe-se que Ana leva uma vida sem grandes surpresas, acompanhando os
filhos que cresciam,
[...] tomavam banho, exigiam para si. [...] A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado
dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o
vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar
e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. (LISPECTOR, 1983, p. 19)  

A autora cria essa atmosfera relativamente branda, reportando-se à rotina


doméstica de Ana, para justificar o abalo a seguir sofrido com a súbita presença
do cego, que leva a passageira a um território desconcertante. Porque, incomo-
dada, agindo tal qual cega desgovernada, ignora o ponto da descida, saltando
do bonde fortuitamente no Jardim Botânico. Atravessa os portões e senta-se
num dos bancos do Jardim – “tão bonito que ela teve medo do inferno”. Tomada
pela epifania (desconhecida iluminação), tudo à volta lhe parece se metamorfo-
sear, adquirindo insólita significação. “Tudo era estranho, suave demais, grande
demais.” Conforme o ensaísta Benedito Nunes (1989, p. 85), “ali, em ação nas
árvores silenciosas, desencadeia-se algo hostil que o cego lhe revelara, e que,
agora, fascinada, experimentando um estado de verdadeiro êxtase, vê estender-
se sobre o mundo inteiro”. Eis o quadro:

1
Affonso Romano de Sant’Anna, em “Clarice: A Epifania da Escrita”, texto publicado como prefácio do volume de contos A Legião Estrangeira de
Clarice Lispector (São Paulo: Ática, 1977, p. 4-5), afiança que, com as personagens claricianas, “ocorre um fenômeno que a autora não nomeia, mas
que a crítica pode chamar de epifania: uma súbita revelação da verdade. [...] Significa um relato da experiência que a princípio se torna simples e
rotineira, mas que acaba por mostrar a força de uma inusitada revelação. É a percepção de uma realidade atordoante [...], a consciência se abre para
o mundo em momentos luminosos”.

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Inquieta, olhou em seu torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um


pardal cismava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada.
Fazia-se no jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de
circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos
roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as
luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranquila. O assassinato era profundo.
E a morte não era o que pensávamos. (LISPECTOR, 1983, p. 25-26)  

Ao escapar dessa experiência vertiginosa, a personagem retorna ao apar-


tamento a tempo de preparar o jantar (sem a quantidade prevista de ovos) –
porque mais tarde “o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os
filhos dos irmãos”. “Jantaram com as janelas todas abertas no nono andar”. Mas o
saldo de tudo isso é a certeza de que algo mudou, tão periclitante fora a exposi-
ção de Ana à natureza, apreendida no seu sinistro e ostensivo mistério.

Nos romances, reincidem essas provações – mas num esquema não tão demar-
cado como nos contos; não o fosse, as áreas de ocupação de suas personagens se
desenhariam menos acidentadas e impactantes, é o que se depreende do entorno
de Virgínia em O Lustre (1946), de Lucrécia Neves em A Cidade Sitiada (1949), de
Martim em A Maçã no Escuro (1961), de G.H. em A Paixão Segundo G.H. (1964) e de
Macabéa em A Hora da Estrela (1977). Os dois últimos títulos citados já se tornaram
referência, e gozam de alto prestígio na história da literatura brasileira.

A Paixão Segundo G.H.


e A Hora da Estrela: mito e realidade
O romance A Paixão Segundo G.H. avulta como obra-prima da autora. Deve-se
a densidade estrutural da obra, cujos capítulos iniciam com a frase que finaliza
o antecessor – modelo curioso de engate –, ao sacrifício de uma escultora solitá-
ria, abatida com involuntário aborto, recentemente abandonada pelo amante e
pela empregada, Janair. O título da narrativa acena a escritos bíblicos, mas toda
analogia, nesse sentido, fabula-se como revisão crítica dos extremos e dos infor-
túnios mundanos a que estão sujeitos os homens.

É com esse monograma (G.H.), senão letras iniciais, abreviaturas secretas de


um nome próprio, que a protagonista se apresenta ao leitor. Ela é a narradora
da sua história, é quem reelabora o incidente ocorrido em seu apartamento de
cobertura no dia anterior – quando, por uma fatalidade, decide arrumá-lo co-
meçando pelo quarto dos fundos, antes ocupado pela criada. A protagonista

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Clarice Lispector: narrativa do fluxo de consciência

descobre, de imediato, que as paredes deste dormitório, exageradamente bran-


cas, suportam três silhuetas anônimas desenhadas a carvão pela ex-serviçal: “Na
parede caiada, contígua à porta – e por isso eu não tinha visto – estava quase a
tamanho natural o contorno a carvão de um homem nu, de uma mulher nua, e
de um cão que era mais nu do que um cão” (LISPECTOR, 1991, p. 42-43).

Nesse recinto comparado ao “retrato de um estômago vazio”, há um guarda-


-roupa, e dele emerge uma barata, que G.H., atônita, prensa com a porta, deixan-
do-a entre a vida e a morte. Para Ricardo Iannace (2007, p. 43), nesse momento
[...] inicia-se uma absurda, mítica e mística introjeção da protagonista no cerne desse inseto
semivivo. A escultora, neste seu reconto, plasma várias imagens, sobressaindo-se a barata
em decomposição, sem aquele invólucro que lhe esconde o sumo esbranquiçado e mucoso:
a massa – que G.H. experimenta. Procura, loucura, salvação pelo extremo palatável da
amoralidade, êxtase com o sujo e o primitivo – toda uma cavidade alegórica se infunde em A
Paixão Segundo G.H.  

Se, no romance, a narradora encontra na ingestão da barata a (sua) própria


sobrevivência, prosternando-se ante um inseto repulsivo, numa quase celebra-
ção de magia negra, em A Hora da Estrela o contato com a morte esboça-se em
outra proporção. O narrador, Rodrigo S.M., apresenta-se como escritor. Lê-se,
portanto, durante toda a narrativa, o enredo que ele mesmo arma acerca de uma
alagoana subnutrida de 19 anos chamada Macabéa. Saturado da personagem
nordestina que avista de relance numa rua do Rio de Janeiro, e impossibilitado
de lhe conceder um destino que não seja a morte, decide introduzir no caminho
da infeliz heroína um Mercedez-Benz dourado, carro potente e luxuoso.

O tom de A Hora da Estrela é irônico e traduz a impaciência do narrador com


o seu processo de criação. Macabéa lhe é indigesta, como o é ao leitor e – tudo
indica – à própria Clarice Lispector, que escreve a obra no último ano de vida
(1977), atribuindo-lhe, como se constata na página de abertura do livro, outros
doze títulos: “Saída pelas portas dos fundos”, “Ela que se arranje”, “Eu não posso
fazer nada” são alguns deles.

A obra é por excelência metalinguística: Rodrigo S.M. é tanto o autor da trama


na qual Macabéa é protagonista como é quem confere a ela o ofício de datiló-
grafa, que precariamente desempenha, mal sabendo ler e escrever. Já o namora-
do da nordestina, o conterrâneo Olímpico de Jesus, metalúrgico de tosco trato,
que a troca pela personagem Glória – “loira oxigenada”, colega de escritório de
Macabéa –, gosta mesmo é de discursar: sonha ser deputado. Em face de todo
esse contexto, é notório o intento da autora em erigir um romance de enverga-
dura mais social. Na leitura de Nádia Battella Gotlib (1995, p. 466),

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[...] este romance, se segue a trilha do romance social dos anos 1930, que tem o Nordeste como
espaço da fome e da miséria, lança a personagem já no cenário agressivo da grande capital –
como tantos milhões de brasileiros que assim tentam melhorar de vida. E laça o receptor de
modo intenso pelas entranhas. Tal como Clarice, quando afirma que “há gente que cose para
fora, eu coso para dentro”, esse livro fisga o leitor na íntima e difícil angústia de um conflito,
que é social, mas que aparece experimentado de dentro, na sua densa repercussão de ordem
existencial.  

Até porque nenhuma outra narrativa de Lispector arquiteta com tanta tena-
cidade a exclusão; enfoca, entre outros pontos, a questão da fome e da mora-
dia, uma vez que Macabéa aluga um quarto coletivo, em bairro miserável do
subúrbio carioca, com moças que trabalham nas Lojas Americanas, além de se
alimentar de cachorro-quente e Coca-Cola (consumo barato). A protagonista
desconhece as etiquetas básicas de higiene, tem uma dor de dente lancinante
e, sempre que pode, toma aspirina, para amenizar uma outra dor: a de existir.
Contenta-se com o mínimo. É ouvinte de um programa de rádio que, de minuto
a minuto, informa as horas e desperta para curiosidades gerais.

Considerações finais
Muitos são os estudos publicados sobre Clarice Lispector. A autora é tra-
duzida e pesquisada em vários países. Pesquisas em universidades brasileiras
têm-lhe concebido inúmeras perspectivas de abordagem: a relação entre vida e
obra (biografia) a partir também de leitura de suas fotografias (fotobiografia); a
transcrição de cartas que trocou com amigos e familiares; as adaptações de seus
textos para o cinema e para o teatro; as traduções de autores ingleses e franceses
que realizou; a aproximação entre os escritos ficcionais, a produção jornalística e
a pintura que compôs – esta, no antepenúltimo ano de vida, em 1975.

Soma-se à excepcionalidade da ficção o enigma criado em torno da fisiono-


mia da mulher Clarice Lispector; ou seja: o rosto que manifesta circunspeção
– maçãs acentuadas, lábios grossos e bem delineados, olhos verde-escuros,
distantes... Quantos leitores não são atraídos primeiramente por esse mistério?
Caetano Veloso, ao compor “Clarice”, explora na letra da música o refrão “Que
mistério tem Clarice”. A bruxa Clarice?

Afinal, jamais escondeu que ia a cartomantes. Em 1975, participa em Bogotá,


Colômbia, de um Congresso de Bruxaria no qual lê uma de suas narrativas,
“O Ovo e a Galinha”, tão obscura que ela própria chegou a dizer que nunca a
compreendeu.

Seremos nós, então, que iremos compreendê-la?

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Texto complementar

Os Laços de Família
(LISPECTOR, 1983, p. 107-117)

A mulher e a mãe acomodaram-se finalmente no táxi que as levaria à Es-


tação. A mãe contava e recontava as duas malas tentando convencer-se de
que ambas estavam no carro. A filha, com seus olhos escuros, a que um ligei-
ro estrabismo dava um contínuo brilho de zombaria e frieza – assistia.

– Não esqueci de nada? perguntava pela terceira vez a mãe.

– Não, não, não esqueceu de nada, respondia a filha divertida, com


paciência.

Ainda estava sob a impressão da cena meio cômica entre sua mãe e seu
marido, na hora da despedida. Durante as duas semanas da visita da velha,
os dois mal se haviam suportado; os bons-dias e as boas-tardes soavam a
cada momento com uma delicadeza cautelosa que a fazia querer rir. Mas eis
que na hora da despedida, antes de entrarem no táxi, a mãe se transformara
em sogra exemplar e o marido se tornara o bom genro. “Perdoe alguma pa-
lavra mal dita”, dissera a velha senhora, e Catarina, com alguma alegria, vira
Antônio não saber o que fazer das malas nas mãos, a gaguejar – perturbado
em ser o bom genro. “Se eu rio, eles pensam que estou louca”, pensara Cata-
rina franzindo as sobrancelhas. “Quem casa um filho perde um filho, quem
casa uma filha ganha mais um”, acrescentara a mãe, e Antônio aproveitara
sua gripe para tossir. Catarina, de pé, observava com malícia o marido, cuja
segurança se desvanecera para dar lugar a um homem moreno e miúdo, for-
çado a ser filho daquela mulherzinha grisalha… Foi então que a vontade de
rir tornou-se mais forte. Felizmente nunca precisava rir de fato quando tinha
vontade de rir: seus olhos tomavam uma expressão esperta e contida, torna-
vam-se mais estrábicos – e o riso saía pelos olhos. Sempre doía um pouco ser
capaz de rir. Mas nada podia fazer contra: desde pequena rira pelos olhos,
desde sempre fora estrábica.

– Continuo a dizer que o menino está magro, disse a mãe resistindo aos
solavancos do carro. E apesar de Antônio não estar presente, ela usava o
mesmo tom de desafio e acusação que empregava diante dele. Tanto que

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uma noite Antônio se agitara: não é por culpa minha, Severina! Ele chamava
a sogra de Severina, pois antes do casamento projetava serem sogra e genro
modernos. Logo à primeira visita da mãe ao casal, a palavra Severina tornara-
se difícil na boca do marido, e agora, então, o fato de chamá-la pelo nome
não impedira que… – Catarina olhava-os e ria.

– O menino sempre foi magro, mamãe, respondeu-lhe.

O táxi avançava monótono.

– Magro e nervoso, acrescentou a senhora com decisão.

– Magro e nervoso, assentiu Catarina paciente.

Era um menino nervoso, distraído. Durante a visita da avó tornara-se ainda


mais distante, dormira mal, perturbado pelos carinhos excessivos e pelos be-
liscões de amor da velha. Antônio, que nunca se preocupara especialmente
com a sensibilidade do filho, passara a dar indiretas à sogra, “a proteger uma
criança”…

– Não esqueci de nada…, recomeçou a mãe, quando uma freada súbita


do carro lançou-as uma contra a outra e fez despencarem as malas. Ah! ah!,
exclamou a mãe como a um desastre irremediável, ah! dizia balançando a
cabeça em surpresa, de repente envelhecida e pobre. E Catarina?

Catarina olhava a mãe, e a mãe olhava a filha, e também a Catarina acon-


tecera um desastre? Seus olhos piscaram surpreendidos, ela ajeitava de-
pressa as malas, a bolsa, procurando o mais rapidamente possível remediar
a catástrofe. Porque de fato sucedera alguma coisa, seria inútil esconder:
Catarina fora lançada contra Severina, numa intimidade de corpo há muito
esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e mãe. Apesar de que nunca
se haviam realmente abraçado ou beijado. Do pai, sim. Catarina sempre fora
mais amiga. Quando a mãe enchia-lhes os pratos obrigando-os a comer
demais, os dois se olhavam piscando em cumplicidade e a mãe nem notava.
Mas depois do choque no táxi e depois de se ajeitarem, não tinham o que
falar – por que não chegavam logo à Estação?

– Não esqueci de nada? Perguntou a mãe com voz resignada.

Catarina não queria mais fitá-la nem responder-lhe.

– Tome suas luvas! disse-lhe, recolhendo-as do chão.

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– Ah! ah! minhas luvas! exclamava a mãe perplexa.


Só se espiaram realmente quando as malas foram dispostas no trem,
depois de trocados os beijos: a cabeça da mãe apareceu na janela.
Catarina viu então que sua mãe estava envelhecida e tinha os olhos
brilhantes.
O trem não partia e ambas esperavam sem ter o que dizer. A mãe tirou o
espelho da bolsa e examinou-se no seu chapéu novo, comprado no mesmo
chapeleiro da filha. Olhava-se compondo um ar excessivamente severo onde
não faltava alguma admiração por si mesma. A filha observava divertida.
Ninguém mais pode te amar senão eu, pensou a mulher rindo pelos olhos;
e o peso da responsabilidade deu-lhe à boca um gosto de sangue. Como se
“mãe e filha” fosse vida e repugnância. Não, não se podia dizer que amava
sua mãe. Sua mãe lhe doía, era isso. A velha guardara o espelho na bolsa, e
fitava-a sorrindo. O rosto usado e ainda bem esperto parecia esforçar-se por
dar aos outros alguma impressão, da qual o chapéu faria parte. A campainha
da Estação tocou de súbito, houve um movimento geral de ansiedade, várias
pessoas correram pensando que o trem já partia: mamãe! disse a mulher. Ca-
tarina! disse a velha. Ambas se olhavam espantadas, a mala na cabeça de um
carregador interrompeu-lhes a visão e um rapaz correndo segurou de passa-
gem o braço de Catarina, deslocando-lhe a gola do vestido. Quando pude-
ram ver-se de novo, Catarina estava sob a iminência de lhe perguntar se não
esquecera de nada…
– …Não esqueci de nada? perguntou a mãe.
Também a Catarina parecia que haviam esquecido de alguma coisa, e
ambas se olhavam atônitas – porque se realmente haviam esquecido, agora
era tarde demais. Uma mulher arrastava uma criança, a criança chorava, no-
vamente a campainha da Estação soou… Mamãe, disse a mulher. Que coisa
tinham esquecido de dizer uma a outra, e agora era tarde demais. Parecia-lhe
que deveriam um dia ter dito assim: sou tua mãe, Catarina. E ela deveria ter
respondido: e eu sou tua filha.
– Não vá pegar corrente de ar! gritou Catarina.
– Ora menina, sou lá criança, disse a mãe sem deixar porém de se preocu-
par com a própria aparência. A mão sardenta, um pouco trêmula, arranjava
com delicadeza a aba do chapéu e Catarina teve subitamente vontade de lhe
perguntar se fora feliz com seu pai:

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– Dê lembranças a titia! gritou.

– Sim, sim!

– Mamãe, disse Catarina porque um longo apito se ouvira e no meio da


fumaça as rodas já se moviam.

– Catarina! disse a velha de boca aberta e olhos espantados, e ao primeiro


solavanco a filha viu-a levar as mãos ao chapéu: este caíra-lhe até o nariz,
deixando aparecer apenas a nova dentadura. O trem já andava e Catarina
acenava. O rosto da mãe desapareceu um instante e reapareceu já sem o
chapéu, o coque dos cabelos desmanchado caindo em mechas brancas
sobre os ombros como as de uma donzela – o rosto estava inclinado sem
sorrir, talvez mesmo sem enxergar mais a filha distante.

No meio da fumaça, Catarina começou a caminhar de volta, as sobrance-


lhas franzidas, e nos olhos a malícia dos estrábicos. Sem a companhia da mãe,
recuperara o modo firme de caminhar: sozinha era mais fácil. Alguns homens
a olhavam, ela era doce, um pouco pesada de corpo. Caminhava serena, mo-
derna nos trajes, os cabelos curtos pintados de acaju. E de tal modo haviam-se
disposto as coisas que o amor doloroso lhe pareceu a felicidade – tudo
estava tão vivo e tenro ao redor, a rua suja, os velhos bondes, cascas de laran-
ja –, a força fluía e refluía no seu coração com pesada riqueza. Estava muito
bonita neste momento, tão elegante; integrada na sua época e na cidade
onde nascera como se a tivesse escolhido. Nos olhos vesgos qualquer pessoa
adivinharia o gosto que essa mulher tinha pelas coisas do mundo. Espiava
as pessoas com insistência, procurando fixar naquelas figuras mutáveis seu
prazer ainda úmido de lágrimas pela mãe. Desviou-se dos carros, conseguiu
aproximar-se do ônibus burlando a fila, espiando com ironia; nada impediria
que essa pequena mulher que andava rolando os quadris subisse mais um
degrau misterioso nos seus dias.

O elevador zumbia no calor da praia. Abriu a porta do apartamento en-


quanto se libertava do chapeuzinho com a outra mão. Parecia disposta a
usufruir da largueza do mundo inteiro, caminho aberto pela sua mãe que
lhe ardia no peito. Antônio mal levantou os olhos do livro. A tarde de sábado
sempre fora “sua”, e, logo depois da partida de Severina, ele a retomava com
prazer, junto à escrivaninha.

– “Ela” foi?

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– Foi sim, respondeu Catarina empurrando a porta do quarto de seu filho.


Ah, sim, lá estava o menino, pensou com alívio súbito. Seu filho. Magro e
nervoso. Desde que se pusera de pé caminhara firme, mas quase aos quatro
anos falava como se desconhecesse verbos: constatava as coisas com frieza,
não as ligando entre si. Lá estava ele mexendo na toalha molhada, exato
e distante. A mulher sentia um calor bom e gostaria de prender o menino
para sempre a este momento; puxou-lhe a toalha das mãos em censura: este
menino! Mas o menino olhava indiferente para o ar, comunicando-se consi-
go mesmo. Estava sempre distraído. Ninguém conseguira ainda chamar-lhe
verdadeiramente a atenção. A mãe sacudia a toalha no ar e impedia com sua
forma a visão do quarto: mamãe, disse o menino. Catarina voltou-se rápida.
Era a primeira vez que ele dizia “mamãe” nesse tom e sem pedir nada. Fora
mais que uma constatação: mamãe! A mulher continuou a sacudir a toalha
com violência e perguntou-se a quem poderia contar o que sucedera, mas
não encontrou ninguém que entendesse o que ela não pudesse explicar. De-
samarrotou a toalha com vigor antes de pendurá-la para secar. Talvez pudes-
se contar, se mudasse a forma. Contaria que o filho dissera: mamãe, quem é
Deus. Não, talvez: mamãe, menino quer Deus. Talvez. Só em símbolos a ver-
dade caberia, só em símbolos é que a receberiam. Com os olhos sorrindo de
sua mentira necessária, e sobretudo da própria tolice, fugindo de Severina, a
mulher inesperadamente riu de fato para o menino, não só com os olhos: o
corpo todo riu quebrado, quebrado um invólucro, e uma aspereza aparecen-
do como uma rouquidão. Feia! disse então o menino examinando-a.

– Vamos passear! respondeu corando e pegando-o pela mão.

Passou pela sala, sem parar avisou ao marido: vamos sair! e bateu a porta
do apartamento.

Antônio mal teve tempo de levantar os olhos do livro – e com surpresa


espiava a sala já vazia. Catarina! chamou, mas já se ouvia o ruído do elevador
descendo. Aonde foram? perguntou-se inquieto, tossindo e assoando o nariz.
Porque sábado era seu, mas ele queria que sua mulher e seu filho estivessem
em casa enquanto ele tomava o seu sábado. Catarina! chamou aborrecido
embora soubesse que ela não poderia mais ouvi-lo. Levantou-se, foi à janela
e um segundo depois enxergou sua mulher e seu filho na calçada.

Os dois haviam parado, a mulher talvez decidindo o caminho a tomar. E


de súbito pondo-se em marcha.

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Por que andava ela tão forte, segurando a mão da criança? Pela janela via
sua mulher prendendo com força a mão da criança e caminhando depressa,
com os olhos fixos adiante; e, mesmo sem ver, o homem adivinhava sua boca
endurecida. A criança, não se sabia por que obscura compreensão, também
olhava fixo para a frente, surpreendida e ingênua. Vistas de cima as duas fi-
guras perdiam a perspectiva familiar, pareciam achatadas ao solo e mais es-
curas à luz do mar. Os cabelos da criança voavam…

O marido repetiu-se a pergunta que, mesmo sob a sua inocência de frase


cotidiana, inquietou-o: aonde vão? Via preocupado que sua mulher guiava
a criança e temia que neste momento em que ambos estavam fora de seu
alcance ela transmitisse a seu filho… mas o quê? “Catarina”, pensou, “Catari-
na, esta criança ainda é inocente!” Em que momento é que a mãe, apertan-
do uma criança, dava-lhe esta prisão de amor que se abateria para sempre
sobre o futuro homem. Mais tarde seu filho, já homem, sozinho, estaria de
pé diante desta mesma janela, batendo dedos nesta vidraça; preso. Obriga-
do a responder a um morto. Quem saberia jamais em que momento a mãe
transferia ao filho a herança. E com que sombrio prazer. Agora mãe e filho
compreendendo-se dentro do mistério partilhado. Depois ninguém sabe-
ria de que negras raízes se alimenta a liberdade de um homem. “Catarina”,
pensou com cólera, “a criança é inocente!” Tinham porém desaparecido pela
praia. O mistério partilhado.

“Mas e eu? e eu?” perguntou assustado. Os dois tinham ido embora sozi-
nhos. E ele ficara. “Com o seu sábado.” E sua gripe. No apartamento arruma-
do, onde “tudo corria bem”. Quem sabe se sua mulher estava fugindo com o
filho da sala de luz bem regulada, dos móveis bem escolhidos, das cortinas
e dos quadros? Fora isso o que ele lhe dera. Apartamento de um engenhei-
ro. E sabia que se a mulher aproveitava da situação de um marido moço e
cheio de futuro – desprezava-a também, com aqueles olhos sonsos, fugindo
com seu filho nervoso e magro. O homem inquietou-se. Porque não poderia
continuar a lhe dar senão mais sucesso. E porque sabia que ela o ajudaria a
consegui-lo e odiaria o que conseguissem. Assim era aquela calma mulher
de trinta e dois anos que nunca falava propriamente, como se tivesse vivido
sempre. As relações entre ambos eram tão tranquilas. Às vezes ele procurava
humilhá-la, entrava no quarto enquanto ela mudava de roupa porque sabia
que ela detestava ser vista nua. Por que precisava humilhá-la? No entanto
ele bem sabia que ela só seria de um homem enquanto fosse orgulhosa. Mas

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tinha se habituado a torná-la feminina deste modo: humilhava-a com ternu-


ra, e já agora ela sorria – sem rancor? Talvez de tudo isso tivessem nascido
suas relações pacíficas, e aquelas conversas em voz tranquila que faziam a at-
mosfera do lar para a criança. Ou esta se irritava às vezes? Às vezes o menino
se irritava, batia os pés, gritava sob pesadelos. De onde nascera esta criaturi-
nha vibrante, senão do que sua mulher e ele haviam cortado da vida diária.
Viviam tão tranquilos que, se se aproximava um momento de alegria, eles
se olhavam rapidamente, quase irônicos, e os olhos de ambos diziam: não
vamos gastá-lo, não vamos ridiculamente usá-lo. Como se tivessem vivido
desde sempre.

Mas ele a olhara da janela, vira-a andar depressa de mãos dadas com o
filho, e dissera-se: ela está tomando o momento de alegria – sozinha. Sentira-
-se frustrado porque há muito não poderia viver senão com ela. E ela con-
seguia tomar seus momentos – sozinha. Por exemplo, que fizera sua mulher
entre o trem e o apartamento? Não que a suspeitasse mas inquietava-se.

A última luz da tarde estava pesada e abatia-se com gravidade sobre os


objetos. As areias estalavam secas. O dia inteiro estivera sob essa ameaça de
irradiação. Que nesse momento, sem rebentar, embora, se ensurdecia cada
vez mais e zumbia no elevador ininterrupto do edifício. Quando Catarina vol-
tasse, eles jantariam afastando as mariposas. O menino gritaria no primeiro
sono, Catarina interromperia um momento o jantar… e o elevador não para-
ria por um instante sequer?! Não, o elevador não pararia um instante.

– “Depois do jantar iremos ao cinema”, resolveu o homem. Porque depois


do cinema seria enfim noite, e este dia se quebraria com as ondas nos roche-
dos do Arpoador.

Dicas de estudo
A fim de que o estudante complemente a sua leitura sobre Clarice Lispector,
apresentamos as seguintes sugestões:

 O Drama da Linguagem. Uma Leitura de Clarice Lispector, de Benedito Nu-


nes, Editora Ática.

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Afigura-se como obra crítica fundamental para a depreensão da estrutura


literária de Clarice Lispector. O professor e ensaísta Benedito Nunes foi um
dos primeiros a desvendar a complexidade da autora; e, dada a sua for-
mação em Filosofia, estabelece interessantes paralelos entre a narrativa
clariciana e o existencialismo. Entre os vários artigos do livro, o intitulado
“A forma do conto” se eleva como leitura obrigatória.

 Clarice – uma vida que se conta, de Nádia Battella Gotlib, Editora Ática.

Trata-se do mais completo estudo biográfico de Clarice Lispector. Percor-


re-se desde a chegada dos Lispectors ao Brasil, até o ano de morte da es-
critora, rastreando o que Clarice procurou silenciar, mas se fez revelado
em sua ficção. Valiosa, sobretudo, é a correlação que a biógrafa e ensaísta
faz entre a vida e a obra de Clarice, abordando crônicas, contos e roman-
ces com muita agudeza e sensibilidade.

 A Escritura de Clarice Lispector, de Olga de Sá, Editora Vozes.

Originalmente apresentado como dissertação de mestrado, em 1978


(PUC-SP), lança-se, no meio acadêmico, como um dos estudos pioneiros
sobre Lispector. A professora Olga de Sá analisa a fortuna crítica à época
destinada à autora, bem como problematiza as figuras de linguagem e a
epifania inerentes à escritura clariciana.

Estudos literários
1. É possível afirmar que a transgressão àquele sistema literário inclinado à li-
nearidade na exposição dos eventos narrativos, por meio de enredos que se
retratam e se projetam mais definidos e sequenciados, caracteriza o projeto
ficcional de Clarice Lispector? Por quê?

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2. Quais elementos identificados com o grotesco se introduzem no texto de


Lispector? E com qual objetivo?

3. As personagens femininas, na obra clariciana, costumam ser surpreendidas


com experiências que as fazem repensar uma rotina culturalmente reserva-
da ao universo da mulher. Comente.

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Guimarães Rosa: veredas da prosa

As produções de Clarice Lispector e de João Guimarães Rosa, para fi-


carmos nos prosadores que mais ofereceram ao terceiro período moder-
nista um estilo inovador, explicitam, como nenhuma outra, a ambiguida-
de imanente ao tempo, aos seres e ao espaço. Não o fosse, o mundo que
figura na literatura desses dois autores se insurgiria em coloração atenu-
ada; e tampouco se agregariam experiências, em suas obras, que teste-
munham o transporte de narradores e personagens ao insólito terreno da
marginalidade.

Tensa é a matéria verbal que estrutura as suas narrativas, pois a ma-


neira como Lispector e Rosa constroem os seus enunciados desestabiliza
a sintaxe convencional da língua portuguesa. Em verdade, rearranjam-na
ao submetê-la a experimentalismos que apostam na fragmentação dos
segmentos frásicos, na inversão dos termos da oração e, com maior estou-
ro no texto rosiano, no desmantelamento e na recomposição do léxico,
que estampa, na página, um estranho mosaico escritural.

A propósito, o contexto armado pelos dois autores parece de fato en-


contrar o seu ponto de fuga nessa têmpera discursiva potencialmente
adulterada. Em se tratando de Rosa, o criador de Grande Sertão: Veredas
– romance incomparável na literatura brasileira –, soma-se-lhe o conheci-
mento apreendido da convivência com homens rústicos, como jagunços
e boiadeiros do chão de terra dos confins das Minas Gerais.

Guimarães Rosa e o seu regionalismo


Dá-se a sua estreia em 1946 com o volume de contos Sagarana. Passados
dez anos, vêm a público Corpo de Baile, ciclo de três de suas novelas, e o
romance, ainda em 1956, que efetivamente o consagrará, Grande Sertão: Ve-
redas. Mais adiante, só para citar os principais, os livros de contos Primeiras
Estórias (1962), Tatuméia (1967), que atende também pelo nome Terceiras
Estórias, os póstumos Estas Estórias (1969) e Ave, Palavra (1970), este, com
escritos diversos, que abarcam gêneros independentes.

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É previsível a surpresa dos críticos ao constatarem que o regionalismo ins-


tituído na prosa do autor se difere do estabelecido pela geração antecedente.
Lembre-se de que a descrição das regiões nordestinas atingidas pela seca, bem
como a esquivança das autoridades governamentais, alheias às condições de-
sumanas de trabalho e de sobrevivência dos habitantes, tornaram-se alvo de
análise e de ataque dos modernistas de 30, como José Américo de Almeida e
José Lins do Rego. Nesse sentido, esvai-se aos olhos do leitor de Guimarães Rosa
aquele projeto de escopo engajado, embasado na denúncia, visto que a atenção
do receptor se transfere a personagens de outras zonas periféricas, cujas frontei-
ras sinalizam o norte de Minas, e à luz, sobretudo, de um traçado que compre-
ende conflitos de grandeza notadamente existencial. O sertanejo é, portanto,
peça chave dessa narrativa, envolto num cenário paradoxal, caracterizado pelas
intrincadas e obscuras ramagens da cultura dos áridos arredores.

Cabe frisar que o autor de Sagarana é exímio conhecedor desse homem. Nas-
cido em Cordisburgo, região centro-norte do estado de Minas Gerais, em 1908,
e falecido em 1967, aos 59 anos, no Rio de Janeiro, é filho de pai comerciante e
assiste já na infância à cotidianidade singular do seu povo. Em entrevista con-
cedida em janeiro de 1965 ao crítico Günter W. Lorenz, em Gênova, Rosa é cate-
górico ao identificar-se como sertanejo, uma vez que “este pequeno mundo do
sertão, este mundo original e cheio de contrastes”, lhe é “o símbolo, diria mesmo
o modelo de” seu universo” (LORENZ, 1979, p. 7).

Eis que emergem da observação entranhada aos moradores desses lugare-


jos, em fases distintas da vida do escritor, temas, assuntos e um inventário verbal
inigualáveis para a sua prosa de ficção. Assegura:
[...] nós, os homens do sertão, somos fabulistas por natureza. Está no nosso sangue narrar
estórias. [...] Desde pequenos, estamos constantemente escutando as narrativas multicoloridas
dos velhos, os contos e lendas, e também nos criamos em um mundo que às vezes pode se
assemelhar a uma lenda cruel. [...] Deus meu! No sertão, o que pode uma pessoa fazer do seu
tempo livre a não ser contar estórias? (LORENZ, 1979, p. 8)

O narrador de Guimarães Rosa é acima de tudo um memorialista engenhoso.


Impressiona o modo como ele encadeia os casos, senão causos, relatados. Ao
desfiá-los, constata-se que o seu manancial de histórias e o seu alcance imagéti-
co para tal recriação afiguram-se praticamente infindáveis. Assim, lendas, contos
populares, mitos, sagas e tantos outros gêneros emprestados da cultura oral,
que brotam de ocultos territórios e sobre eles se espargem, concretizam-se na
poética de Rosa. E é essa sabedoria delegada pelos antepassados que confe-
re credibilidade a uma expressiva galeria de personagens, que dispõe, muito
embora apartada do campo letrado, de diferenciada erudição. Nesse aspecto,

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verifica-se estreita equivalência entre o sujeito mentor que conduz a trama ro-
siana e a concepção de narrador defendida pelo filósofo Walter Benjamin em
ensaio datado de 1936. Segundo o pensador alemão:
A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores.
E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais,
contadas pelos inúmeros narradores anônimos. (BENJAMIN, 1994, p. 198)  

Benjamin aponta duas referências identitárias que classificam a origem do


narrador. Uma delas é a do marinheiro, que sempre tem muito a contar acerca
de suas viagens; a outra, a do camponês sedentário, pertencente ao grupo de
homens “que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhe-
ce suas histórias e tradições” (BENJAMIN, 1994, p. 198-199). Se correlacionado
esse ponto de vista com a obra e a vida do autor de Corpo de Baile, a analogia, pri-
meiramente, se daria entre Rosa e o arquétipo do marinheiro; a exemplo deste,
viajou por inúmeros países em consequência do exercício exigido pelo cargo de
diplomata para o qual se concursou, afora suas andanças por cidades do interior
mineiro, no posto de médico, para o qual se formou – chegou inclusive a parti-
cipar de uma guerra civil, como oficial. Quanto aos seus narradores, afinam-se
mais com o homem primitivo do campo, isto é, o camponês sedentário impingi-
do por outros saberes. São palavras do escritor:
Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes da minha vida, e, a rigor, esta sucessão
constitui um paradoxo. Como médico conheci o valor místico do sofrimento; como rebelde, o valor
da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte. (LORENZ, 1979, p. 7)

A escrita mágica de Guimarães Rosa


Como se lê, a sensibilidade de Rosa com relação à sua gente – aos conflitos
da ordem do dia e àqueles cuja periclitância culmina em sofrimento que abeira
a morte – converte-se-lhe em fatura narrativa. Contudo, impera um diferencial
nessa absorção dos incidentes que exprimem a contingência humana: o reserva-
tório que abriga um feixe de línguas magnífico de domínio do autor.

Poliglota, enveredou como autodidata por vários idiomas, entre os quais o


alemão, o italiano, o francês, o russo, o latim, o grego, o polonês, o hebraico, o
sânscrito, o japonês, o tupi e outros. Atrás desse interesse, que inclui a leitura
de dicionários, reside o fascínio pelo mistério – crenças, tradições, mantras ar-
raigados às línguas. Isso explica a curiosidade pela filosofia e pela história das
religiões – o gosto particular pelo sincretismo, que o faz conhecer, além do ca-
tolicismo, as ciências ocultas, o kardecismo e o budismo. Logo, a ficção de Rosa
espelha esse baralhamento sem-par.
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Davi Arrigucci Jr., em ensaio intitulado “O mundo misturado: romance e expe-


riência em Guimarães Rosa”, assinala que nesse narrar está presente a “refundi-
ção das formas velhas em mesclas renovadas”, e, entre as “soldas inusitadas”,
[...] encontramos, na base da linguagem, o falar regional do norte de Minas, certamente muito
estilizado, de combinação com latinismos; arcaísmos tomados ao português medieval [...];
indianismos; neologismos; termos aproveitados e adaptados de muitos idiomas (do inglês, do
alemão, do francês, do árabe etc.); vocábulos cultos e raros, bebidos nos clássicos portugueses;
elementos da linguagem das ciências, e sabe-se lá de que fontes mais. (ARRIGUCCI JR., 1994, p. 13)

Acrescentem-se a isso as considerações de Alfredo Bosi (1994, p. 486), ao


sublinhar que a prosa de Guimarães Rosa se apropria de recursos inerentes à
poesia:
[...] células rítmicas, aliterações, onomatopeias, rimas internas, ousadias mórficas, elipses, cortes
e deslocamentos de sintaxe, vocabulário insólito [...], associações raras, metáforas, anáforas,
metonímias, fusão de estilos, coralidade.

Quanto ao plano do significado, onde pesa a relação representativa entre o


ser e o universo que o circunda,
[...] as suas estórias são fábulas, mythoi que velam e revelam uma visão global da existência, própria
de um materialismo religioso, porque panteísta, isto é, propenso a fundir numa única realidade a
Natureza, o bem e o mal, o divino e o demoníaco, o uno e múltiplo. (BOSI, 1994, p. 487)

Com efeito, a mística professada em seus textos se ilumina em meio a uma


sintaxe que se autorreferencia encrespada, propositadamente caótica.

Estórias do sertão de Rosa


Em Sagarana enfeixa-se “A hora e a vez de Augusto Matraga”, conto no qual
esse conjunto de elementos se mostra sistematizado.

O entrecho versa sobre o infortúnio do protagonista Nhô Augusto, também co-


nhecido como Augusto Esteves e Augusto Matraga. De início, é apresentado como
fazendeiro dado a brigas, truculento com todos, até mesmo com mulher e filha.

Tão logo a mulher o abandona, é surrado pelos próprios capangas, a mando


do seu grande inimigo, Major Consilva. O espancamento, com direito a marcas
de ferro, quase o leva à morte, e a recuperação parece só existir graças à caridade
de um casal de pretos que o conduz a terras afastadas. É quando a personagem,
reabilitada, converte-se num novo homem, redimindo-se do mal por meio do tra-
balho pesado e justo, por meio de rezas e de bom comportamento – assimilando,
ainda, a máxima que cria para si: “Pra o céu eu vou, nem que seja a porrete”.

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Certo dia, por acaso, chega a esse lugar o bando de Joãozinho Bem-Bem. Ma-
traga recebe-o com hospitalidade e resiste ao convite sincero do chefe dos jagun-
ços em agregá-lo ao grupo forasteiro. Todavia, o destino propiciará um último
encontro entre eles: recuperado, depois de despedir-se dos pretos que o acolhe-
ram, parte a esmo, e a caminho depara-se com Joãozinho e seu bando envolvidos
numa vingança que implicaria a morte de um inocente. Não atendido pelo chefe,
seu velho comparsa, Matraga lança-se contra ele, morrendo ambos nesse duelo.
E o povo, enquanto isso, dizia: – “Foi Deus quem mandou esse homem no jumento, por mór de
salvar as famílias da gente!...” E a turba começou a querer desfeitear o cadáver de seu Joãozinho
Bem-Bem, todos cantando uma cantiga que qualquer um estava inventando na horinha:

Não me mata, não me mata,


seu Joãozinho Bem-Bem!
Você não presta mais pra nada,
seu Joãozinho Bem-Bem!...
Nhô Augusto falou, enérgico:

– Para com essa matinada, cambada de gente herege!... E depois enterrem bem direitinho o
corpo, com muito respeito e em chão sagrado, que esse aí é o meu parente seu Joãozinho
Bem-Bem! (ROSA, 1984, p. 385-386)  

Antes de Matraga expirar, um outro homem, João Lomba, ali o reconhece, e


trocam estas parcas e derradeiras palavras:
– Virgem Santa! Eu logo vi que só podia ser você, meu primo Nhô Augusto...
Era o João Lomba, conhecido velho e meio parente. Nhô Augusto riu:
– E hein, hein João?
– P’ra ver...
Então, Augusto Matraga fechou um pouco os olhos, com sorriso intenso nos lábios lambuzados
de sangue, e de seu rosto subia um sagaz contentamento.
Daí mais, olhou, procurando João Lomba, e disse, agora sussurado, sumido:
– Põe a benção na minha filha... seja lá onde for que ela esteja... E, Dionóra... Fala com a Dionóra
que está tudo em ordem!
Depois, morreu. (ROSA, 1984, p. 386)

A sina desse herói tem fechamento sublime e com alta reserva de ambigui-
dade. Matraga – sujeito com histórico desonrado – sacrifica-se por um estranho,
divergindo da injustiça que durante muito tempo o condecorou.

Sem dúvida, experiências que atestam sintonia de narradores e personagens


com o Absoluto, facultando ao texto uma estranheza similar à dos sonhos, são
recorrentes em Guimarães Rosa. O tempo projeta-se na sua prosa sob uma pers-
pectiva mágica, onírica; do mesmo modo que o espaço, como categoria da nar-
rativa, indicia-se quimérico, inverossímil, encantatório.

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Quanto a Grande Sertão: Veredas, extraordinário é o número de casos armaze-


nados na memória de Riobaldo; preenchem as 460 páginas nas quais esse narra-
dor vigoroso entoa uma fala ininterrupta. Afinal, o tempo é aliado do ex-jagunço
que se apresenta como pacato fazendeiro fixado à margem do São Francisco,
com horas de sobra para recordação, ao passo que seu interlocutor, abstendo-se
de palavras, é puro ouvidos, miragem, mero figurante nessa ficção.

No reconto de Riobaldo, não há como precisar o limite entre o real e o ima-


ginário, dado que o sertão que arquiva todos os relatos que lhe vêm à cabeça
é mítico e místico. Nele estão inseridos, o que é comum nas célebres narrativas
orais, eventos de toda espécie: lutas homéricas entre legiões inimigas, vingan-
ças, segredos, temores, paixões, superstições.

Enreda-se em tal discurso caudaloso, não menos eriçado, a história de amor


que não se realizou, talvez a mais agônica, e com certeza única, em toda traje-
tória do romance brasileiro. Dá-se entre o jovem Riobaldo e o colega de bando
– o valente Reinaldo – conhecido como Diadorim, cuja identidade sexual é
somente desvendada ao final, depois que é morto por Hermógenes e tem o
corpo desnudado. O epílogo, revelador de que Diadorim era uma moça traves-
tida em cangaceiro, admite revisão quanto ao sentimento de Riobaldo provir
de um castigo do diabo, com o qual pactuara no passado. Essa é, por certo, uma
das razões para o narrador se reportar ao demo já no parágrafo introdutório de
Grande Sertão: Veredas.
– Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira
em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde
mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco,
erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis
avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito
pessoa. Cara de gente, cara de cão; determinaram – era o demo. Povo prascóvio. Mataram.
Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O
senhor ri certas risadas… Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir,
instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão.
Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles
dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo,
então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos
carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador;
e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos
montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de
vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura,
até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim,
cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães… O sertão está
em toda a parte. (ROSA, 1986, p. 7-8)

No livro de contos Primeiras Estórias, onde se reúnem 21 narrativas, a vinculação


com o estatuto do extraordinário se mede através do aceno à loucura e à morte.

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Guimarães Rosa: veredas da prosa

Repousa sobre a protagonista Nhinhinha, em “A menina de lá”, de idade in-


ferior a quatro anos, com sugestivo retardo mental, uma inominável santidade;
mesmo após o seu falecimento, os pais mantêm sigilo quanto aos milagres da
personagem.
Assim, quando a Mãe adoeceu de dores, que eram de nenhum remédio, não houve fazer com
que Nhinhinha lhe falasse a cura. Sorria apenas, segredando seu – “Deixa... Deixa...” – não a
podiam despersuadir. Mas veio, vagarosa, abraçou a Mãe e a beijou, quentinha. A Mãe, que
a olhava com estarrecida fé, sarou-se então, num minuto. Souberam que ela tinha também
outros modos. [grifo do autor] (ROSA, 1962, p. 22)  

Em “Sorôco, sua mãe, sua filha”, um viúvo encaminha as mais íntimas e próxi-
mas parentas ao vagão do trem que as conduzirá ao hospício. É quando as duas
mulheres se põem a cantar, iniciando uma cantoria contagiante, a consumir esse
pai e filho assistido pelo povoado que, em solidariedade, reforça o coro insano.
Num rompido – ele começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si – e era a cantiga,
mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando./ [...] [E] todos,
de uma vez, de dó dele, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. (ROSA,
1962, p. 18)  

Em “A benfazeja”, a protagonista Mula-Marmela, que anda como indigente


pelas ruas de seu lugarejo depois de assassinar Munbungo, homem cruel com
quem fora casada, abandona a cidade levando às costas um cachorro morto, e
segue acompanhada do enteado, o cego Retrupé:
De como, quando ia a partir, ela avistou aquele um cachorro morto, abandonado e meio já
podre, na ponta-da-rua, e pegou-o às costas, o foi levando: se para livrar o logradouro e lugar
de sua pestilência perigosa, se para piedade de dar-lhe cova em terra, se para com ele ter
com quem ou quê se abraçar, na hora de sua grande morte solitária? Pensem, meditem nela,
entanto. (ROSA, 1962, p. 134)  

Antológico e não menos enigmático é o conto “A terceira margem do rio”.


Nessa história, tempo e espaço inscrevem-se numa plataforma que se abre para
o infinito. A voz da narrativa é a de um filho que, na infância, vê a partida do pai
numa “canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da
popa, como para caber justo o remador”. Esse pai enfrenta inexplicavelmente
as intempéries da natureza (frio, chuvas, enchentes) para vigiar, a distância, a
família saudosa e inconformada com a separação. Se a canoa que todos viram
desaparecer era um caixão funerário “para caber justo o remador”, o leitor jamais
saberá. No entanto, a dívida transformada em culpa por não ter partido com o
pai é clara – e justifica a presença do narrador às margens do rio.

Um dado dia, já despontados os seus cabelos brancos, chega de longe a avis-


tá-lo (alucinação?); e recua, delegando ao leitor esta incumbência:

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Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também
numa canoinha de nada, nessa água que não para, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora,
rio a dentro – o rio. (ROSA, 1962, p. 37)  

Rosa em versos
Rosa implantou na literatura brasileira uma nova língua. No entanto, seu
enlevo não se restringe à excentricidade vernacular: deve-se, e muito, à prodi-
giosa mestria de urdir um sertão fantasioso, de entalhe insólito e, por mais anta-
gônico que pareça, incisivamente verdadeiro.

Saliente-se que, antes do aparecimento dos estudos linguísticos voltados à


investigação das ambivalências discursivas, ao exame do dito e do não dito, das
ambiguidades que não saltam à superfície mas estão depositadas no subterrâ-
neo do texto, a escrita rosiana já buscou a palavra em sua substância, decom-
pondo-a como morfema, pois a insubordinação se flexiona em seus enredos (e
não é que “Desenredo” é título de um dos contos inseridos em Tutameia?).

Por fim, cumpre lembrar que Carlos Drummond de Andrade transformou


Rosa em poesia. O médico, o diplomata, o sertanejo e o literato – falecido três
dias após homenagem recebida como novo membro da Academia Brasileira de
Letras –, versificam-se na lírica do poeta itabirano.

Um chamado João

João era fabulista?


fabuloso?
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?

Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas,
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?
Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?

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no peito?
Vegetal ele era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?

Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multívoca?
João era tudo?
tudo escondido, florindo
como flor é flor, mesmo não semeada?
Mapa com acidentes
deslizando para fora, falando?
Guardava rios no bolso,
cada qual com a cor de suas águas?
sem misturar, sem conflitar?
E de cada gota redigia
nome, curva, fim,
e no destinado geral
seu fado era saber
para contar sem desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de véus novos?

Mágico sem apetrechos,


civilmente mágico, apelador
e precípites prodígios acudindo
a chamado geral?
Embaixador do reino
que há por trás dos reinos,
dos poderes, das
supostas fórmulas
de abracadabra, sésamo?
Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?
Por que João sorria

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se lhe perguntavam
que mistério é esse?

E propondo desenhos figurava


menos a resposta que
outra questão ao perguntante?
Tinha parte com... (não sei
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
que se arcabuzeiam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?

Ficamos sem saber o que era João


e se João existiu
de se pegar.
(DRUMMOND DE ANDRADE, 1987, p. 928-930)

Texto complementar

A terceira margem do rio


(ROSA, 1962, p. 32-37)

Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde moci-
nho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando
indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais es-
túrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe
era quem regia, e que ralhava no diário com a gente – minha irmã, meu irmão e
eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.

Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena,


mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve

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de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever
durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a
ideia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para
pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda
era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se esten-
dendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma
da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.

Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um


adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa,
não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbra-
vejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: – “Cê
vai, ocê fique, você nunca volte!” Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou
manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira
de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava,
chega que um propósito perguntei: – “Pai, o senhor me leva junto, nessa sua
canoa?” Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto
me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para
saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se
indo – a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a
invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre
dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verda-
de deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os
parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente
conselho.

Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos
pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns
achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que,
nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que
seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua fa-
mília dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas – passadores,
moradores das beiras, até do afastado da outra banda – descrevendo que
nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de
noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa
mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse,
ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s’embora,

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para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por


uma vez, para casa.

No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um
tanto de comida furtada: a ideia que senti, logo na primeira noite, quando
o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, en-
quanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte,
apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai,
no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe,
sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou
para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do
barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz,
e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe
sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixa-
va, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não
se demonstrava.

Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negó-
cios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um
dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai
o dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo,
vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passa-
va ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se
chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do
jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não vence-
ram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão,
de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a
escuridão, daquele.

A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a


gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que,
no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto
que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se enten-
der, de maneira nenhuma, como ele aguentava. De dia e de noite, com sol
ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem
arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses,
e os anos – sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das
duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim.
Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da

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canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho


em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O
que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente deposi-
tava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco,
ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos
braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes,
no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o
perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo – de
espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós,
também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se
podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia,
era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de
outros sobressaltos.

Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele,
quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da
noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só
com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal.
Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido
com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de
unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto
de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a
gente de tempos em tempos fornecia.

Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de res-
peito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom pro-
cedimento, eu falava: – “Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim...”; o que
não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele
não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia
ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não encontrável? Só ele sou-
besse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar
para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã
de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a
criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A
gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós
todos aí choramos, abraçados.

Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão re-
solveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depres-

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sa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com
minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia
querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia
de mim, eu sei – na vagação, no rio no ermo – sem dar razão de seu feito. Seja
que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram:
que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao
homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha
morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas
conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primei-
ras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-
mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, portanto,
a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não
podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.

Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta
culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio – pondo
perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice – esta vida era só o demoramento.
Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reu-
matismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais
dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que
bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em
tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Aper-
tava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranquilidade. Sou o culpado do
que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse – se as coisas fossem
outras. E fui tomando ideia.

Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não
se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de
doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço,
para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim,
ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito.
Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive
que reforçar a voz: – “Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o
senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando
que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...” E,
assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.

Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n’água, proava para cá, con-
cordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado

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o braço e feito um saudar de gesto – o primeiro, depois de tamanhos anos


decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me
tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir:
da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele.
Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado.
Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas,
então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me deposi-
tem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas
beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio.

Dicas de estudo
A fim de que o estudante complemente a sua leitura sobre Guimarães Rosa,
apresentamos as seguintes sugestões:

 O Léxico de Guimarães Rosa, de Nilce Sant’Anna Martins, Edusp.

A pesquisa apresenta-se sob a estrutura de dicionário, abrangendo vocá-


bulos que compreendem toda a obra do escritor mineiro. Após remissão
à narrativa de onde é retirado o verbete transcrito, a autora propõe-lhe
a definição. Portanto, o leitor tem a seu dispor um precioso material de
consulta, já que o texto de Guimarães Rosa aposta em experimentalismos
que resultam em complexidade lexical.

 Guimarães Rosa: do feminino e suas estórias, de Cleusa Rios Pinheiro Passos,


Editora Hucitec.

O livro origina-se da tese de livre-docência da professora Cleusa Rios na


área de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP. A autora
analisa a obra de Guimarães Rosa com profundidade, privilegiando a per-
sonagem feminina. Para isso, vale-se de inúmeros pressupostos críticos,
em especial, a teoria psicanalítica freudiana.

 O Brasil de Rosa. Mito e História no Universo Rosiano: O Amor e o Poder, de


Luiz Roncari, Editora da Unesp.

O professor e pesquisador Luiz Roncari, ao abordar as primeiras obras de


Guimarães Rosa, concebe o escritor mineiro como intérprete do Brasil,
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vislumbrando aspectos da vida pública e privada do país. Nesse sentido,


Sagarana, Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas apresentam entre si for-
te vinculação; os dois primeiros títulos, sob vários ângulos, anunciam-se
tal qual laboratório para Grande Sertão: Veredas, sobretudo no tocante à
constituição do jagunço como herói.

Estudos literários
1. Embora a narrativa de Guimarães Rosa se apresente como regionalista, é pos-
sível atestar que o tratamento dado ao regional, em sua obra, se difere do de-
senvolvido pelos modernistas da Geração de 30. Comente essa afirmação.

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Guimarães Rosa: veredas da prosa

2. O texto rosiano mostra-se bastante identificado com os relatos orais. Tal pro-
ximidade lhe confere, então, uma estruturação mais simplificada?

3. É válido considerar que a prosa ficcional de Guimarães Rosa se apropria, para


a sua construção, de outros gêneros literários?

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João Cabral de Melo Neto
e Ferreira Gullar: duas poéticas
A poesia brasileira do século XX pode ser vista como uma espécie de
gangorra, num certo momento um de seus extremos (um princípio poé-
tico) está em alta, enquanto seu oposto fica em baixa. Passa-se o tempo
e as posições se invertem. Foi assim com o Modernismo de 22, em que a
experimentação poética, o uso lúdico do poema e a sátira quase inofensi-
va (Oswald, Mário de Andrade, Manuel Bandeira) tiraram de cena o rigor
métrico, os temas consagrados e o intimismo que fez sucesso no final
do século XIX. Chega a Geração de 30 e a experimentação e o lúdico são
abrandados em favor de uma poesia de maior conteúdo político e social,
sem recair nas fórmulas passadas (Drummond e Murilo Mendes). Surgem
os poetas da Geração de 45 e estão de volta as formas consagradas da
poesia ocidental: o soneto, a ode e suas métricas bem contadas; saem o
experimentalismo e a poesia participativa – importa agora a subjetivida-
de, a espiritualidade e a metalinguagem.

Quando desembarcamos na segunda metade do século XX e, da pers-


pectiva em que escrevemos o presente texto, se inicia o período que po-
demos chamar de contemporâneo a nós, nova reviravolta: é dado um
basta à hegemonia do eu na poesia brasileira, ela precisa novamente se
objetivar, trazer o coletivo para o centro de sua poética, buscar novos có-
digos linguísticos para seus poemas (fim do verso!) a fim de se adequar a
uma sociedade de massas e de consumo, e diversas outras inovações e
experimentações (recupera-se o espírito de 22). Dois autores podem aqui
ser apontados, em grande parte, como responsáveis por essa renovação,
e não por acaso também considerados como os dois maiores poetas do
final dos novecentos: o recifense João Cabral de Melo Neto e o são-luisen-
se Ferreira Gullar.

João Cabral faleceu em 1999, mas sua poesia continua viva e atuante
em nossa cultura, como prova as novas edições de sua obra e a contínua
referência a ele feita pelos escritores em atividade. Ferreira Gullar continua
escrevendo, publicando e atuando na cultura e política nacionais.

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João Cabral, um “menino bastante guenzo”


Anos atrás, no calor úmido da Zona da Mata pernambucana, amenizado pelo
fim do dia e pela brisa suave da região, um grupo de cassacos1 de um dos en-
genhos locais se punha em volta de um menino magrinho, “bastante guenzo”2,
que animadamente recitava romances de cordéis comprados por aqueles lavra-
dores nos mercados próximos. As histórias assim lidas pelo garoto certamente
se juntavam depois causos e mazelas cotidianas que a peãozada tinha sempre
disponíveis para passar o tempo naquelas longas noites rurais.

O menino guenzo era João Cabral de Melo Neto (Recife, 1920 – Rio de Janeiro,
1999), que fora uma criança bem dotada, havendo aprendido a ler muito cedo, e
passara a maior parte da infância nos engenhos de sua enorme e tradicional fa-
mília. Foi assim que o futuro poeta iniciou uma profunda relação com a paisagem
rural de seu estado, com os sofridos trabalhadores da terra, com o fluxo tortuoso
do belo rio Capibaribe e, sem dúvida, foi iniciado na poesia popular e autêntica do
Nordeste brasileiro. Misture-se tudo isso e acrescente-se uma estupenda técnica
poética arduamente desenvolvida ao longo dos anos, e se terá uma das obras líri-
cas mais marcadamente brasileiras e altamente inventivas do século XX.

– O cassaco de engenho
vai amarelamente
entre todo esse azul
que é Pernambuco sempre.
– Mesmo contra o amarelo
da palha canavial,
ainda é mais amarelo
o seu, porque moral.
– O cassaco de engenho
é o amarelo tipo:
– É amarelo de corpo
e de estado de espírito.
– De onde a calma que às vezes
parece sabedoria:
– Mas não é calma, nada,
é o nada, é calmaria.
(MELO NETO, 1988, p. 63)

1
“O que vem a ser o cassaco? Trabalhador na plantação de cana-de-açúcar com todas as marcas de penúria, doença e morte que essa condição im-
plica. O dicionário de Houaiss vai ao encalço de uma possível origem africana, banta, do termo: no quicongo angolês, Kasakana quer dizer ‘trabalhar,
fazer qualquer coisa sob o império da fome ou de outras necessidades’ ” (BOSI, 2004, p. 195).
2
Muito magro, adoentado ou fraco. É assim que o poeta se descreve em “O rio”: “um menino bastante guenzo / de tarde olhava o rio / como se filme
de cinema; / via-me, rio, passar / com meu variado cortejo / de coisas vivas, mortas, / coisas de lixo e de despejo” (MELO NETO, 2006, p. 137).
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João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar: duas poéticas

A estrofe nove do poema “Festa na casa-grande”, da obra Dois Parlamentos,


é uma prova do que acabamos de dizer. Ela faz parte de dois longos poemas
que, lembrando a forma do cordel, desenvolvem um discurso dramático em que
várias vozes se sucedem para, de forma extremamente irônica e cruel, “descre-
ver” e “avaliar” o sertão e o miserável trabalhador rural do Nordeste. No trecho
citado, vemos o cassaco de engenho descrito pela boca de deputados nordes-
tinos como sendo “amarelo” de corpo e espírito, alguém vazio e sem vontade,
cuja única possibilidade existencial é trabalhar a terra do único modo que pode,
triste e desfibrado. Para realçar sua amareleza, os versos a contrastam contra o
azul do céu pernambucano e o amarelo da palha da cana.

É claro que temos aqui uma crítica à ideologia das elites dominantes no Nordeste
do Brasil. Chegamos, portanto, a uma característica a mais da poesia de João Cabral,
sua grande sensibilidade social, que é instrumentalizada numa contundente crítica
às condições dos menos favorecidos e numa posição política de esquerda.

Voltando à sua biografia, passada a infância nas fazendas de seus pais, João
Cabral estuda no Recife, completando apenas o nível secundário. Motivos de
saúde, segundo alguns biógrafos, o impediram de cursar a universidade. O que
paradoxalmente não o impediu de ser um bom futebolista e de vencer o cam-
peonato estadual juvenil pelo time do Santa Cruz (com certeza para desgosto
de seu conterrâneo Ariano Suassuna, poeta e sportista [torcedor do Sport Club
do Recife] fanático) em 1935. O amor pelo futebol acabou virando também um
dos temas recorrentes em sua poesia, em que, além de louvar a beleza plástica
do esporte bretão, ainda homenageou grandes ídolos de sua época, como, por
exemplo, Ademir da Guia (ídolo maior do clube Palmeiras) e Ademir Meneses
(craque pernambucano), entre outros.

O futebol brasileiro evocado da Europa

A bola não é a inimiga


como o touro, numa corrida;
e, embora seja um utensílio
caseiro e que se usa sem risco,
não é o utensílio impessoal,
sempre manso, de gesto usual:
é um utensílio semivivo,
de reações próprias como bicho
e que, como bicho, é mister

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(mais que bicho, como mulher)


usar com malícia e atenção
dando aos pés astúcias de mão.
(MELO NETO, 2006, p. 407)

Nesse magnífico poema, João Cabral aproxima o futebol da tourada, uma outra
de suas fascinações, e um tema sempre presente em sua obra. Mas, no caso, o
futebol, além da destreza também necessária nas corridas de touros, requer uma
malícia e uma atenção que o leva mais para o campo do sexo e da sedução. Talvez
o poeta visse os dois esportes como representações psicanalíticas – a psicanálise
foi um de seus grandes interesses intelectuais –, em que um, a tauromaquia, se en-
contra na esfera da Tânatos (a pulsão da violência e da morte), enquanto o futebol
se compõe mais na esfera de Eros (a pulsão do sexo e da vida).

No início de sua vida adulta, João Cabral entra para a carreira diplomática, exer-
cendo várias funções oficiais em diversos países, sendo que suas diversas estadas
na Espanha foram imprescindíveis para uma das linhas mais produtivas de sua pro-
dução poética: a paixão pela cultura espanhola. Além do já citado entusiasmo pela
tauromaquia desenvolvida naquele país, o poeta pernambucano ainda trabalhou
temas ligados à vida em cidades espanholas (em especial Sevilha), à arte flamenca,
à poesia castelhana, ao artesanato produzido na Espanha, e por aí afora.

“A palo seco”

Se diz a palo seco


o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada;

se diz a palo seco


a esse cante despido:
ao cante que se canta
sob o silêncio a pino.

[...]

A palo seco existem


situações e objetos:

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João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar: duas poéticas

Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto,

as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos.

Eis uns poucos exemplos


de ser a palo seco,
dos quais se retirar
higiene ou conselho:

não de aceitar o seco


por resignadamente,
mas de empregar o seco
porque é mais contundente.
(MELO NETO, 2006, p. 247-251)

“A palo seco” é uma expressão em espanhol que, no canto flamenco, significa


cantar sem acompanhamento instrumental, a capella conforme a norma erudita.
Por extensão, “a palo seco” também especifica tudo aquilo que não usa adornos,
ornamentos. Então João Cabral vai até a cultura cigana para buscar uma locução
que dê conta de um princípio de sua própria poesia, um texto sem ornamentações,
em que todo o excesso linguístico deve desaparecer a fim de que a verdadeira es-
sência da língua e da mensagem possam aflorar em toda a sua contundência.

Atente-se também para o fato de João Cabral fazer um inesperado curto-cir-


cuito entre culturas distintas, pois aquilo que começa com a música flamenca vai
desembocar no sertão nordestino, na escrita de um Graciliano Ramos, lançando
uma luz inusitada sobre coisas que pareciam totalmente desconexas. Há um uni-
versalismo em João Cabral que ilumina o particular e vice-versa.

A “poética João Cabral” de Melo Neto


O poeta João Cabral morre no dia 9 de outubro de 1999, em seu apartamento
no Rio de Janeiro, após um longo período de profundo desalento e depressão. Uma
condição existencial que beira ao incompreensível, ao menos para nós meros apre-
ciadores de sua arte, pois seus últimos anos são de absoluta consagração de sua obra.
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Ele é reconhecido no Brasil e no exterior como um dos maiores poetas do século XX,
deixando várias gerações de escritores profundamente influenciados por sua obra e
poética, ou seja, pelos princípios artísticos que ele elegeu para fazer poesia.

A poética de João Cabral tem como característica básica o rigor formal, em


outras palavras, seus poemas são construídos sob total controle intelectual do
poeta, que vai adequando sua estrutura, a escolha das palavras, o ritmo da lin-
guagem, a sintaxe etc. ao objeto que está sendo tratado nos versos. Nesse sen-
tido, o poeta recifense recusa por princípio a ideia de inspiração e, mais, a visão
romântica de poesia como a forma literária de revelar o eu, a subjetividade do
gênio em geral incompreendido e descabelado:

Não a forma encontrada


como uma concha, perdida
nos frouxos areais
como cabelos;

não a forma obtida


em lance santo ou raro,
tiro nas lebres de vidro
do invisível;

mas a forma atingida


como a ponta do novelo
que a atenção, lenta,
desenrola,

aranha; como o mais extremo


desse fio frágil, que se rompe
ao peso, sempre, das mãos
enormes.
(MELO NETO, 2006, p. 95-96)

Essa é a seção VI do poema “Psicologia da composição”, publicado numa


edição do próprio autor em Barcelona, quando servia na delegação brasileira
desta cidade. Estamos ainda no início da produção cabralina e vários de seus
poemas fazem um ajuste com a poética anterior, em especial, a romântica. É o
próprio poeta que explica sua posição: “Escrever para mim é trabalho braçal, e
se eu não tiver um estímulo exterior qualquer, não levo o meu trabalho ao fim”
(apud NUNES, 1971, p. 19).
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João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar: duas poéticas

A poética de João Cabral é a da objetividade. É o esforço de apresentar um


objeto, uma experiência, a partir de si mesmo, e não da interioridade do poeta,
de seus sentimentos e emoções. É lógico que para isso é necessário a mediação
da linguagem, das estratégias poéticas; por isso é tão importante o trabalho de
burilar a palavra, não mais no sentido parnasiano: a fim de produzir uma “joia”
poética, mas sim no de abrir uma comunicação crítica com o leitor. A experiência
individual do poeta deve, através da palavra, se transformar em mensagem cole-
tiva, na qual os leitores se engajem e tenham um papel ativo no fazer poético:

Tecendo a manhã

1
Um galo sozinho não tece a manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo
para que a manhã, desde uma tela tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
(MELO NETO, 2006, p. 345)

Este poema possui uma extensa polissemia (vários sentidos), podendo ser
lido metalinguisticamente como uma referência ao próprio fazer poético. Nessa
direção, o eu lírico estaria afirmando o processo coletivo da poesia (a “manhã”),
que só se realiza quando as vozes de vários poetas (os “galos”) se integrem e
gerem uma obra comum, capaz de conter todos os homens, poetas e leitores,
e assim iluminar a realidade como um todo: “A manhã, toldo de um tecido tão
aéreo / que, tecido, se eleva por si: luz balão”.

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Mas também podemos ler “Tecendo a manhã”, publicado originariamente no


livro A Educação pela Pedra (1966) – num momento dramático da vida brasileira
que vivia o começo do regime ditatorial do Golpe de 64 –, como um canto utó-
pico, em que a “manhã” seria a possibilidade de uma sociedade livre e justa, que
desse lugar à noite sombria da opressão. No caso, os “galos” seriam todos os indi-
víduos que através da denúncia, da organização, da mobilização e demais meios
de união da coletividade pudessem criar as condições sociais para a superação
do momento presente de tirania e injustiça.

Juntando as duas leituras, podemos avaliar que a poética de João Cabral não
se esgota numa experimentação textual vazia, um jogo lúdico de palavras para
um petit comité (grupo de amigos íntimos) do poeta, mas é um esforço para se
construir uma ponte altamente significativa entre as pessoas, a fim de iluminar
uma realidade sombria, cuja opacidade só serve à dominação ilegítima e impos-
sibilita a realização dos indivíduos e sua sociedade.

A obra-vida de Ferreira Gullar


A mesma preocupação com a forma poética e a denúncia social marca a tra-
jetória do poeta maranhense Ferreira Gullar (São Luís, 1930- ). Além da poesia,
Gullar ainda se dedicou à crítica de arte, ao jornalismo, ao teatro, à pintura e ao
ensaísmo. Nascido numa grande família de 11 filhos, ele despertou para a poesia
cedo, aos 13 anos, segundo nos conta. E foi também bem jovem que percebeu
que sua belíssima cidade natal não era o umbigo do mundo e nem sua beleza
serviria de tema preferencial para usa poesia:

Poema sujo

[...]

Mas sobretudo meu


corpo
nordestino
Mais que isso
maranhense
mais que isso
sanluisense
mais que isso
ferreirense

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João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar: duas poéticas

newtoniense
alzirense
meu corpo nascido numa porta-e-janela da Rua dos Prazeres
ao lado de uma padaria sob o signo de Virgo
sob as balas do 24º BC
na revolução de 30 [...]
combatente clandestino aliado da classe operária
meu coração de menino
(GULLAR, 2001, p. 240)

Em outro lugar, Gullar (1999) ainda revela:


Um dia, não sei bem quando, descobri a existência do resto do mundo – as grandes
cidades distantes – e desde então passei a sentir-me vivendo à margem da História. São
Luís do Maranhão, minha cidade, com seus dias luminosos e azuis, mantinha-me entre o
deslumbramento e o desespero: a vida era bela e destituída de propósito.

Poema Sujo foi escrito em 1975 na Argentina, durante o exílio de Gullar. Por
isso, antes de falarmos do texto, seria importante contextualizar o período de
sua redação.

Aos 21 anos, em 1951, o poeta deixa a capital do Maranhão e parte para a


capital federal da época, Rio de Janeiro, onde inicia sua carreira jornalística. Logo
em seguida, publica seu segundo livro, A Luta Corporal (1954), que tem boa re-
percussão nos meios literários. Ele então é convidado pelos irmãos Campos e
Décio Pignatari para se unir ao Movimento Concretista, pois o questionamento
à linguagem poética feito naquela obra se afinava e muito com o espírito dessa
vanguarda. No entanto, a parceria durou pouco, pois, segundo o nosso poeta:
Quando o pessoal de São Paulo propôs que a poesia deveria ser feita de acordo com fórmulas
matemáticas, o que era oposto a tudo que eu pensava, eu rompi com eles, em 1957. Mas
continuamos a nossa experiência com o grupo do Rio, que era muito mais intuitivo e inovador.
(apud STYCER, 1993, p. 12)

A partir daí, Ferreira Gullar passa por um momento mais “popular” em sua poesia
– motivo: atingir com maior objetividade as populações marginalizadas. O poeta
toma consciência de que seu país e sua cultura precisavam mais de engajamento po-
lítico e denúncia social do que experimentações vanguardistas. É desse período suas
realizações com a literatura de cordel João Boa-Morte, Cabra Marcado para Morrer e
Quem Matou Aparecida (1962). É interessante notar como tal decisão acabou apro-
ximando-o de João Cabral de Melo Neto, que havia publicado Dois Parlamentos em
1961 e viria a editar Morte e Vida Severina em 1965, ambos com laivos cordelistas.

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João Boa-Morte Morte e vida severina

[...] [...]
Sucedeu na Paraíba – O meu nome é Severino,
mas é uma história banal não tenho outro de pia.
em todo aquele Nordeste. Como há muitos Severinos,
Podia ser no Sergipe, que é santo de romaria,
Pernambuco ou Maranhão, deram então de me chamar
que todo cabra-da-peste Severino de Maria;
ali se chama João [...]
Boa-Morte, vida não. E se somos Severinos
[...] iguais em tudo na vida,
Trabalhava noite e dia morremos de morte igual,
nas terras do fazendeiro, mesma morte severina:
mal dormia, mal comia, que é a morte de que se morre
mal recebia dinheiro; de velhice antes dos trinta,
se recebia não dava de emboscada antes dos vinte
pra acender o candeeiro. de fome um pouco por dia
João não sabia como
fugir desse cativeiro. [...] [...]
(GULLAR, 2001, p. 111-112) (MELO NETO, 1988, p. 70-71)

Indiferenciação, fome e morte são motivos presentes nos textos escolhidos para
a comparação dos dois poetas. Logo, não é só a forma que une as obras de mesmo
período, mas o conteúdo social de forte apelo denunciativo. A década de 1960 é
marcada, portanto, por corajosas escolhas poéticas e políticas, o que levou Gullar
a se chocar de frente com as forças repressivas do Golpe Militar de 1964. Depois de
publicar o importante ensaio “Vanguarda e subdesenvolvimento”, e com a edição
pela ditadura do Ato Institucional n.º 5, Gullar foi preso no Rio de Janeiro. Passou
algum tempo na cadeia na companhia do jornalista Paulo Francis e dos composi-
tores Gilberto Gil e Caetano Veloso. Solto, ele resolve se exilar e, em 1971, vai para
Paris. Mais tarde se fixa em Buenos Aires, onde escreve o Poema Sujo.

Segundo o poeta, o título dessa sua obra, Poema Sujo, remete ao submundo
do cotidiano, o lado feio e excluído da vida diária, o lixo. Gullar faz um percurso
memorialista a sua infância e a São Luís, mas não para recolher momentos idílicos
e afetivos. Há aí uma preferência pelo reprimido, pelo corpo em suas reentrâncias

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ridículas e impudicas, portanto um “poema sujo”. O momento era dramático para o


escritor. Depois de sair do Chile em razão da queda do presidente Allende, também
na Argentina se prenunciava um golpe militar e ele não tinha para onde ir, pois seu
passaporte havia sido cancelado pelo governo brasileiro. Para ele, o “poema sujo”
poderia ser a última coisa a ser escrita em sua vida. Felizmente, as coisas não foram
tão sombrias e, quando publicado, em 1976, o livro se tornou um best-seller, perma-
necendo várias semanas entre os mais vendidos do país.

Apesar de bastante discursivo, Poema Sujo apresenta uma grande variedade


de recursos linguísticos, havendo até um momento em que os versos devem
ser cantados acompanhados pela música sinfônica de Villa-Lobos, a Tocata da
Bachiana n.º 2, o conhecidíssimo “Trenzinho do caipira”:

[...]
lá vai o trem com o menino
lá vai a vida a rodar
lá vai ciranda e destino
cidade e noite a girar
lá vai o trem sem destino
pro dia novo encontrar
correndo vai pela terra
vai pela serra
vai pelo mar
cantando pela serra do luar
correndo entre as estrelas a voar
no ar
piuí! piuí piuí
no ar
piuí! piuí piuí
[...]
(GULLAR, 2001, p. 245-246)

Nessa obra, Gullar realiza uma grande proeza: sem abrir mão das conquistas
formais que o Modernismo e as vanguardas haviam obtido, nosso poeta faz uma
longa composição lírica de enorme beleza literária e, ao mesmo tempo, bastan-
te acessível a um público bem mais amplo. Razões do sucesso de vendas, bem
como de uma posição de destaque na literatura nacional.

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Sem dúvida, após passar pela experiência radical das vanguardas concretistas
e neoconcretista (este último um movimento por ele liderado principalmente no
Rio de Janeiro) e pelos trabalhos cordelistas, Gullar atinge uma síntese perfeita
em sua poética. A grande razão para isso pode estar nestas palavras do próprio
escritor maranhense:
[...] eu sou um homem político, comprometido com as coisas, e não separo a poesia da minha
vida. É como eu digo: a poesia nasce da prosa, da vida. A poesia não é algo que acontece num
recanto celeste. Ela acontece aqui, no chão, no meio da gente. Eu costumo escrever inclusive
andando na rua. (apud STYCER, 1993, p. 12)

Mais do que isso, Gullar não fica preso num cotidiano que serve apenas de
pano de fundo para suspiros metafísicos e metáforas espirituais, como foi a linha
de muitos poetas anteriores e atuais. Sua poesia morde onde a vida dói mate-
rialmente, carnalmente, de fato e de direito. No entanto, a poesia não pode cair
apenas no panfletário, nem na banalidade linguística: a expressividade literária
e a beleza estética do texto precisam continuar presentes.

Não há vagas

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão.

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário

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que esmerila seu dia de aço


e carvão
nas oficinas escuras

– porque o poema, senhores,


está fechado: “não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira.
(GULLAR, 2001, p. 162)

É disso que estamos falando, a poesia de Gullar “fede e cheira” a uma vida que
muitas vezes é rasteira, comezinha, feia e suja, e cujo atributo poético principal
está em ser “vida”, tanto em seu conteúdo como na forma que vai assumindo
conforme seu tema, seu motivo assim o exija. Seja o preço do feijão, a impudi-
cícia de nosso corpo, a impotência civil ou o sonho utópico dos que vivem nas
margens da vida social.

Texto complementar

Da função moderna da poesia


(Tese apresentada por João Cabral no Congresso de Poesia de São Paulo, 1954)
(MELO NETO, 2006, p. 767-770)

Embora o que se costuma chamar de “poesia moderna” seja uma coisa


multiforme demais, não é excessivo querer descobrir nela um denominador
comum: seu espírito de pesquisa formal. Esse espírito tem caracterizado as
diversas gerações que se vêm sucedendo no período dito moderno, ainda
que não se possa afirmar seja a pesquisa da forma o motivo nodal da criação
poética de cada uma dessas gerações.

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O poeta moderno, em geral, justifica a necessidade das inovações formais


que é levado a introduzir na sua obra, a partir de uma das duas seguintes
atitudes mentais: a) a necessidade de captar mais completamente os ma-
tizes sutis, cambiantes, nefáveis, de sua expressão pessoal e b) o desejo de
apreender melhor as ressonâncias das múltiplas e complexas aparências
da vida moderna. Mas, apesar da aparente oposição dessas duas atitudes –
uma subjetiva e outra objetiva – as pesquisas formais a que são levadas as
duas famílias de poetas estão, no fundo, determinadas pelas condições que
a vida moderna, em seu conjunto, impõe ao homem de hoje. A realidade
exterior tornou-se mais complexa e exige, para ser captada, um instrumento
mais maleável e de reflexos imediatos. E a realidade interior, daí decorrente,
tornou-se também mais complexa, por mais inespacial e intemporal que o
poeta pretenda ser, e passou a exigir um uso do instrumento da linguagem
altamente diverso do lúcido e direto dos autores clássicos.

A necessidade de exprimir objetiva ou subjetivamente a vida moderna


levou a um certo tipo especializado de aprofundamento formal da poesia,
à descoberta de novos processos, à renovação de processos antigos. Afir-
má-lo não significa dizer que cada poeta de hoje é um poeta mais rico. Pelo
contrário: esse aprofundamento deu-se por meio de uma desintegração do
conjunto da arte poética, em que cada autor, circunscrevendo-se a um setor
determinado, levou-o às suas últimas consequências. A arte poética tornou-
se, em abstrato, mais rica, mas nenhum poeta até agora se revelou capaz de
usá-la, em concreto, na sua totalidade.

Esse enriquecimento técnico da poesia moderna manifestou-se princi-


palmente nos seguintes aspectos: a) na estrutura do verso (novas formas
rítmicas, ritmo sintático, novas formas de corte e enjambement); b) na es-
trutura da imagem (choque de palavras, aproximação de realidades estra-
nhas, associação e imagística do subconsciente); c) na estrutura da palavra
(exploração dos valores musicais, visuais e, em geral, sensoriais das palavras:
fusão ou desintegração de palavras; restauração ou invenção de palavras, de
onomatopéias); d) na notação da frase (realce material de palavras, inversões
violentas, subversão do sistema de pontuação), e e) na disposição tipográ-
fica (caligramas, uso de espaços brancos, variações de corpos e famílias de
caracteres, disposição sistemática dos apoios fonéticos ou semânticos).

Em consequência de não se terem fixado tipos de poemas capazes de


corresponderem às exigências da vida moderna, o poeta contemporâneo

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ficou limitado a um tipo de poema incompatível às condições da existên-


cia do leitor moderno, condições a que este não pode fugir. A apresentação
(não organizada em formas “cômodas” ao leitor) de sua rica matéria poética
faz da obra do poeta moderno uma coisa difícil de ler, que exige do leitor
lazeres e recolhimento difíceis de serem encontrados nas condições da vida
moderna. Cada tipo de poema que conheceu a literatura antiga nasceu de
uma função determinada; ajustar-se às exigências da estrutura perfeitamen-
te definida do poema era, para o poeta, adaptar sua expressão poética às
condições em que ela poderia ser compreendida e, portanto, corresponder
às necessidades do leitor. O poema moderno, por não ser funcional, exige do
leitor um esforço sobre-humano para se colocar acima das contingências de
sua vida. O leitor moderno não tem a ocasião de defrontar-se com a poesia
nos atos normais que pratica durante sua rotina diária. Ele tem, se quer en-
contrá-la, de defender dentro de seu dia um vazio de tempo em que possa
viver momentos de contemplação, de monge ou de ocioso.

Talvez a explicação desse aspecto da poesia moderna esteja na atitude


psicológica do poeta de hoje. O poeta moderno, que vive no individualismo
mais exacerbado, sacrifica ao bem da expressão a intenção de se comunicar.
Por sua vez, o bem da expressão já não precisa ser ratificado pela possibilida-
de de comunicação. Escrever deixou de ser para tal poeta, atividade transiti-
va de dizer determinadas coisas a determinadas classes de pessoas; escrever
é agora atividade intransitiva, é, para esse poeta, conhecer-se, examinar-se,
dar-se em espetáculo; é dizer uma coisa a quem puder entendê-la ou inte-
ressar-se por ela. O alvo desse caçador não é o animal que ele vê passar cor-
rendo. Ele atira a flecha de seu poema sem direção definida, com a obscura
esperança de que uma caça qualquer aconteça achar-se na sua trajetória.

Como a necessidade de comunicação foi desprezada e não entra para


nada em consideração no momento em que o poeta registra sua expres-
são, é lógico que as pesquisas formais do poeta contemporâneo não tenham
podido chegar até os problemas de ajustamento do poema à sua possível
função. As conveniências do leitor, as limitações que lhe foram impostas pela
vida moderna e as possibilidades de receber poesia, que esta lhe forneceu,
embora de maneira não convencional não foram jamais consideradas ques-
tões a resolver. A poesia moderna – captação da realidade objetiva moderna
e dos estados de espírito do homem moderno – continuou a ser servida em
invólucros perfeitamente anacrônicos e, em geral imprestáveis, nas novas
condições que se impuseram.

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Mas todo esse progresso realizado limitou-se aos materiais do poema:


essas pesquisas limitaram-se a multiplicar os recursos de que se pode valer
um poeta para registrar sua expressão pessoal; limitaram-se àquela primeira
metade do ato de escrever, no decorrer da qual o poeta luta por dizer com
precisão o que deseja, isto é, tiveram apenas em conta consumar a expres-
são, sem cuidar da sua contraparte orgânica – a comunicação.

Desse modo, essas pesquisas não atingiram, em geral, o plano da construção


do poema no que diz respeito à sua função na vida do homem moderno. Apesar
de os poetas terem logrado inventar o verso e a linguagem que a vida moderna
estava a exigir, a verdade é que não conseguiram manter ou descobrir os tipos,
gêneros ou formas de poemas dentro dos quais organizassem os materiais de
sua expressão, a fim de tornarem-na capaz de entrar em comunicação com os
homens nas condições que a vida social lhes impõe modernamente.

O caso do rádio é típico. O poeta moderno ficou inteiramente indiferente


a esse poderoso meio de difusão. À exceção de um ou outro exemplo de
poema escrito para ser irradiado, levando em conta as limitações e exploran-
do as potencialidades do novo meio de comunicação, as relações da poesia
moderna com o rádio se limitam à leitura episódica de obras escritas origi-
nariamente para serem lidas em livro, com absoluto insucesso, sempre, pelo
muito que diverge a palavra transmitida pela audição da palavra transmitida
pela visão. (O que acontece com o rádio, ocorre também com o cinema e a
televisão e as audiências em geral).

Mas os poetas não desprezaram apenas os novos meios de comunicação


postos a seu dispor pela técnica moderna. Também não souberam adaptar
às condições da vida moderna os gêneros capazes de serem aproveitados.
Deixaram cair em desuso (a poesia narrativa, por exemplo, ou as aucas ca-
talãs, antepassadas das histórias de quadrinhos), ou deixaram que se degra-
dassem em gêneros não poéticos, a exemplo da anedota moderna, herdeira
da fábula. Os expulsaram da categoria de boa literatura, como aconteceu
com as letras das canções populares ou com a poesia satírica.

No plano dos tipos problemáticos, tudo o que os poetas contemporâneos


obtiveram foi o chamado “poema” moderno, esse híbrido de monólogo inte-
rior e de discurso de praça, de diário íntimo e de declaração de princípios, de
balbucio e de hermenêutica filosófica, monotonamente linear e sem estrutu-
ra discursiva ou desenvolvimento melódico, escrito quase sempre na primei-

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ra pessoa e usado indiferentemente para qualquer espécie de mensagem


que o seu autor pretenda enviar. Porém, esse tipo de poema não foi obtido
através de nenhuma consideração acerca de sua possível função social de
comunicação. O poeta contemporâneo chegou a ele passivamente, por inér-
cia, simplesmente por não ter cogitado o assunto. Esse tipo de poema é a
própria ausência de construção e organização, é o simples acúmulo de ma-
terial poético, rico, é verdade, em seu tratamento do verso, da imagem e da
palavra, mas atirado desordenadamente numa caixa de depósito.

Conclusão: acredita o autor que a consideração desse aspecto da poesia con-


temporânea pode contribuir para a diminuição do abismo que separa hoje em dia
o poeta de seu leitor. Não que acredite em que uma consciência nítida desse fato
anule completamente esse abismo. A seu ver, as razões de tal divórcio residem bem
mais na preferência dos poetas pelos temas intimistas e individualistas. Acredita
também que pesquisas no sentido de se encontrarem formas ajustadas às condi-
ções de vida do homem moderno, principalmente através da utilização dos meios
técnicos de difusão que surgiram em nossos dias, poderão contribuir para resol-
ver, ao menos até certo ponto, o que lhe parece o problema principal da poesia
de hoje: garantir sua própria sobrevivência. Quando nada, pensa, a consciência
deste problema poderá ajudar aqueles poetas contemporâneos menos individu-
alistas, capazes de interesse por temas da vida em sociedade e que também não
encontraram ainda o veículo capaz de levar a poesia à porta do homem moderno.
A falta de tal veículo está, também, condenando a poesia destes últimos autores à
espera, desesperançada, de leitores que venham espontaneamente à sua procura,
leitores, de resto, cada dia mais problemáticos.

Dicas de estudo
 Sobre João Cabral de Melo Neto, continua sendo imprescindível o magistral
ensaio feito por Benedito Nunes, João Cabral de Melo Neto, Editora Vozes.

 Uma bela biografia do mesmo João Cabral se encontra em O Homem sem


Alma, livro do jornalista José Castello, publicado pela Rocco.

 Para uma excelente antologia da obra de Ferreira Gullar, acompanhada de


uma proveitosa introdução escrita pelo crítico Alfredo Bosi, indicamos Os
Melhores Poemas de Ferreira Gullar, Editora Global. Ainda sugerimos a visita
ao site oficial do poeta, com muitas informações e textos de sua autoria:
<http://literal.terra.com.br/ferreira_gullar/>.
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Literatura Brasileira Contemporânea

Estudos literários
1. Disserte, brevemente, sobre as polarizações que a poesia brasileira sofreu
no século XX, identificando a posição de Ferreira Gullar e João Cabral nesse
quadro poético.

2. A respeito da poética de João Cabral, qual seria o papel da mensagem ou


comunicação a ser desempenhado na poesia moderna?

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João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar: duas poéticas

3. Para Ferreira Gullar, qual a relação que deve existir entre “expressão poética”
e “vida” na poesia contemporânea?

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Concretismo e outras vanguardas

dar a qualquer matéria


a aritmética do metal
dar lâmina ao metal
e à lâmina alumínio
[...]
dar à escultura o limpo
de uma máquina de arte
por sua vez capaz da arte
de dar-se um espaço explícito
(MELO NETO, 2006, p. 375)

A arte brasileira, e por extensão a sua poesia, adquiriu a partir da


Semana de Arte Moderna de 1922 uma vertente experimentalista que,
apesar das mudanças temático-formais dos poetas dos anos 1930 e do
radicalismo anti-22 da Geração de 45, jamais ganhou o epíteto de “fogo
morto”. Na verdade, João Cabral de Melo Neto, ainda sob a égide da Gera-
ção de 45, retomou a inventividade das vanguardas jogando luz sobre a
questão estrutural na arquitetura do poema. Ele traduziu em versos a sua
observação da arte tridimensional da escultura, conforme as estrofes ci-
tadas na abertura deste capítulo, falando de uma “concreção” na arte que
poderia muito bem ser transferida a sua própria poética, bem como aos
poetas do chamado poema “verbovocovisual”, ou poesia concreta.

A nova poética, surgida após a diatribe1 contra a poesia modernista


promovida pela Geração de 45, não se compara, em termos de inovação
formal, a qualquer vanguarda até então experimentada. Ela vinha propor
não apenas uma reforma, mas a absoluta aniquilação de qualquer limi-
tação formal. Foi durante os primeiros anos da década de 1950 que um
grupo de jovens poetas paulistas – atentos às inovações formais dos auto-
res franceses Mallarmé e Apollinaire, do irlandês James Joyce e dos norte-
americanos Cummings e Ezra Pound, além dos brasileiros Sousândrade,
Oswald de Andrade e ao próprio João Cabral de Melo Neto – renovou o
esforço experimentalista da poesia brasileira.
1
Diatribe (2004): Crítica severa e mordaz.

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Literatura Brasileira Contemporânea

A poesia concreta era então inaugurada pelos irmãos Augusto e Haroldo de


Campos e o amigo Décio Pignatari, uma realização literária e estética que foi reco-
nhecida internacionalmente como a contribuição brasileira para a derrubada da ar-
bitrariedade da restrição verbal, da sujeição à linearidade do começo, meio e fim, da
organicidade linguística e da gramaticidade a que o poema estava sujeito até aquele
momento. Assim, expressões como ideograma, caligrama, atomização da palavra,
poesia visual etc. passaram a fazer parte das rodas literárias no entorno do Largo São
Francisco, centro da cidade de São Paulo e endereço da Faculdade de Direito da USP,
ambiente universitário dos jovens fundadores do Movimento Concretista.

Poemas para ver e ouvir


A ideia do “concretismo” já havia sido adotada nas artes plásticas “para de-
finir as composições não figurativas, de tendências geométrica e racionalista”
(MOISÉS; PAES, 1987, p. 114) e acabou sendo empregada como instrumento
de transformação definitiva da poesia, propondo, em vez do subjetivismo lírico
tradicional, uma poesia objetiva, exata e sintética, apreensível ao nível do olhar.
Em vez da limitação à categoria verbal, o poema deveria extrapolar e comungar
com a música, a pintura, a arquitetura e as artes visuais em geral.

Apesar de ainda se situar no terceiro momento do Modernismo brasileiro, e ao


contrário da Geração de 45, esse trio de poetas deu início de fato a um movimen-
to com nome, sobrenome e manifesto, ou “Plano Piloto”, conforme veremos mais
adiante. O ano de 1952 é considerado o marco da poesia concreta com o lançamen-
to pelos irmãos Campos e Décio Pignatari da revista Noigandres2. A publicação se
tornou sinônimo do primeiro grupo concretista brasileiro. Mas foi só em 1956 que
o Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo serviu de palco para o lançamento
oficial da poesia concreta brasileira. Ali, o grupo Noigandres colocou literalmente em
exposição seus “poemas-cartazes” ao lado de quadros e esculturas da linha concre-
tista, dando por superada a primazia da forma tradicional de disposição do verso.

Dois anos mais tarde, em 1958, já no quarto número de Noigandres, apre-


sentou-se o “Plano Piloto para a Poesia Concreta” – uma alusão ao “Plano Piloto
para a construção de Brasília” (1957) feito pelo arquiteto Lúcio Costa. No “Plano
Piloto para a Poesia Concreta” se explica de forma metalinguística o programa e
o projeto da nova estética, resumindo sua concepção de ideograma, estrutura,
material, problema, ritmo, metacomunicação:

2
Noigandres é um termo de origem provençal. Na época da publicação da revista não se conhecia o seu significado. Hoje, especula-se que signi-
fique “proteger do tédio”.

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Concretismo e outras vanguardas

ideograma:3 apelo à comunicação não verbal. o poema concreto comunica a própria estrutura:
estrutura-conteúdo. O poema concreto é um objeto em e por si mesmo, não um intérprete
de objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas. Seu material: a palavra
(som, forma visual, carga semântica). Seu problema: um problema de funções-relações desse
material. Fatores de proximidade e semelhança, psicologia da gestalt4. Ritmo: força relacional.
O poema concreto, usando o sistema fonético (dígitos) e uma sintaxe analógica, cria uma área
linguística específica – “verbivocovisual” – que participa das vantagens da comunicação não
verbal sem abdicar das virtualidades da palavra. Com o poema concreto ocorre o fenômeno da
metacomunicação: coincidência e simultaneidade da comunicação verbal e não verbal, com a
nota de que se trata de uma comunicação de formas, de uma estrutura-conteúdo, não da usual
comunicação de mensagens. (CAMPOS, 2006, p. 216)  

Em resumo, o Concretismo, ansiando conferir certa “tridimensionalidade” ao


poema, chegou ao conceito de “verbivocovisual”, ou seja, uma estrutura que
abarca em níveis igualmente significativos a palavra escrita – o verbo –, a palavra
falada com seus ritmos, pausas etc. – a vox ou “voco” (a voz, o poema lido em voz
alta) – e, por fim, a disposição das letras, das palavras no espaço do papel (ou de
outros suportes físicos) – o visual. Propôs-se enfim, parafraseando os versos de
João Cabral, dar ao poema “o limpo / de uma máquina de arte / por sua vez capaz
da arte / de dar-se um espaço explícito”.

Haroldo de Campos e os “novíssimos”


O poema forma e conteúdo de si mesmo, o poema é.
a ideia-emoção é parte integrante da forma, vice-versa.

Décio Pignatari

Em 1948, no plenário do I Congresso de Poesia, Domingos Carvalho da Silva,


fiel escudeiro da Geração de 45 bradava: “Há uma poesia nova no Brasil!”, en-
quanto Oswald de Andrade, guardião da “Semana”, retrucava: “22 está vivo!”.
Diante dessa polarização, alguns novos poetas, emprestando versos do portu-
guês José Régio, por sua vez declaravam: “Não sei por onde vou, / Não sei para
onde vou, / – Sei que não vou por aí!” (apud ÁVILA, 1986, p. 19).

Já em 1951, o grande historiador Sérgio Buarque de Holanda escrevia um artigo,


“Rito de Outono”5, sobre Haroldo de Campos (1929-2003). Nele, o crítico aplaudia os
sinais de um “inconformismo promissor” nos versos do jovem poeta, cuja coletânea
Auto do Possesso havia sido publicada, ao lado de outros “novíssimos” – entre eles
3
O ideograma é um desenho ou símbolo gráfico com valor convencional, usado para representar coisas ou conceitos, sendo a unidade lexical da
escrita chinesa. Diferente das palavras em nossa língua, que apresentam apenas uma relação convencional com aquilo a que se refere, o ideograma
oferece em si mesmo o significado da coisa representada. Para o poeta norte-americano Ezra Pound, o ideograma é poético por sua própria nature-
za, e nos oferece um modelo para a apreciação da poesia, bem com para a sua produção (cf. POUND, s/d, p. 23-31).
4
Do alemão, significa “boa forma”. Em psicologia, gestalt nomeia a teoria concebida pelos psicólogos alemães Max Wertheimer (1880-1943), Kurt
Koffka (1886-1941) e Wolfgang Köhler (1887-1967). Segundo essa teoria, o conhecimento humano é obtido a partir de uma configuração adequada
de todos os dados ou elementos que fazem parte de um assunto ou objeto.
5
Publicado na Folha da Manhã de 6 de junho de 1951. Disponível em: <http://almanaque.folha.uol.com.br/sergiobuarque_rito.htm>.

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Décio Pignatari –, pelo Clube de Poesia de São Paulo, criado naquele mesmo tur-
bulento Congresso de 1948. Os “novíssimos” Haroldo de Campos e Pignatari logo
se destacariam de seu grupo geracional em termos de revolução verbal e formal,
conforme apontaria o sempre atento crítico Buarque de Holanda.

Haroldo de Campos em sua primeira obra deixava claro o pendor para a


poesia de Mallarmé, o simbolista francês que em 1897 lançara os dados do jogo
poético experimentalista para o século XX, com o famoso poema Un Coup de Dês
[Um Lance de Dados]. O “novíssimo velho” Mallarmé antes da virada do século
já utilizava recursos tipográficos em seus poemas e rejeitava o uso inócuo de
formas poéticas fixas, quando não atendessem criativamente à organização do
espaço gráfico. Suas ideias foram cruciais na formação do jovem Haroldo de
Campos, sendo ainda uma das referências mais importantes do que viria a ser a
poesia concreta brasileira.

Além da maestria para a reinvenção linguística e o “artesanato” da palavra,


traços mais ou menos comuns aos poetas concretistas, Haroldo de Campos deu
início também a uma estética fortemente marcada por elementos culturais, isto
é, sua prática poética dominaria com competência os aparentemente inconcili-
áveis motivos tradicionais – como a narrativa bíblica, a mitologia grega, o orien-
talismo – e a modernidade do tratamento sonoro, das imagens, do ritmo. Enfim,
uma poesia deliberadamente apoiada na tradição literária, mas sem incorrer
em qualquer passadismo pós-modernista. Ao contrário, o poeta estrutura o seu
verso, constrói a sua poética com vistas a uma “obra de arte aberta”6. Aliás, esse
é o título de um texto que ele publicou em 1955, cujo conceito crítico teve sua
primazia reconhecida pelo pensador italiano Umberto Eco, autor do mundial-
mente conhecido ensaio Obra Aberta, de 1962.

A “obra em aberto” proposta por Haroldo de Campos foi condição sine qua
non para a poesia concreta que nasceria do intercurso com as artes consideradas
afins. Desse modo, em 1956, Haroldo de Campos visita o mundo da arquitetura
e publica na revista AD – Arquitetura e Decoração, o poema “olho por olho a olho
nu”, propagando a estética concretista e a sua metapoesia:

6
“Obra aberta” é um conceito estético que procura explicar a polissemia das obras de arte. Segunda essa ideia, uma realização artística, para além
dos propósitos originais de seu autor, é uma composição complexa e viva, graças à permanente mudança que a linguagem sofre no decorrer da
história. Isso confere ao leitor ou espectador uma parcela de criatividade na construção do sentido dessa obra, fazendo com que ela esteja aberta a
expressar outros valores e significados que não sejam apenas os propostos por seu autor.

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Concretismo e outras vanguardas

a POESIA CONCRETA é a linguagem adequada à mente criativa contem-


porânea

permite a comunicação em seu grau + rápido

prefigura para o poema uma reintegração à vida cotidiana semelhante


à q o BAUHAUS propiciou às artes visuais: quer como veículo de propagan-
da comercial (jornais, cartazes, TV, cinema etc.), quer como objeto de pura
fruição (funcionando na arquitetura, p. ex.), com campo de possibilidades
análogo ao do objeto plástico substitui o mágico, o místico e o maudit pelo
ÚTIL

TENSÃO para um novo mundo de formas


VETOR
para
o
FUTURO

(apud CAMPOS, 2006, p. 76)

Mais de uma década após Auto do Possesso, já na Revista Noigandres de 1962,


Haroldo publicou a coletânea Servidão de Passagem, em que a forma ensaiada
em 1950, sob o influxo do mestre Mallarmé, se emancipou num “grande poema”
organicamente composto em um livro-poema ou poema-livro. Em 1964, esse
trabalho foi traduzido para o japonês, inaugurando a carreira internacional da
poesia concreta brasileira, via Haroldo de Campos.

A relação de Haroldo de Campos com a cultura mundial foi desde o princípio


uma prerrogativa de seu trabalho. Nesse contexto, o poeta, tal qual o irmão Au-
gusto de Campos, se tornou um dos mais importantes tradutores, ou “transcriado-
res” como ele preferia, do Brasil. Estudioso de línguas estrangeiras, ele dominava o
latim, o inglês, o espanhol e o francês, aprendidos ainda no colégio. Mas seu fôlego
de exímio tradutor o levou também a aprender o russo e o hebraico para traduzir,
respectivamente, poetas russos e textos bíblicos. Entre as muitas obras traduzi-
das, incluem-se, além da poesia moderna, a versão integral da Ilíada de Homero.
Quando faleceu em 2003, ficou “em aberto” a tradução da Odisséia de Homero,
com apenas alguns trechos traduzidos.

Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), o advogado, poeta,


tradutor, ensaísta, crítico literário e professor universitário, além de um dos mais
premiados literatos brasileiros, Haroldo de Campos e sua poesia concreta conti-
nuam a ser um “VETOR para o FUTURO”.

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Literatura Brasileira Contemporânea

Concretismo, Campos & cummings


Sem forma revolucionária não há arte revolucionária.

Maiakóvski (In Noigandres 1 – post-scriptum, 1961)

Seria crime de lesa-pátria poética falar da poesia de Augusto de Campos sem


mencionar a relação deste poeta brasileiro com o seu interlocutor norte-americano
Edward Estlin Cummings (1894-1962), que assinava sua obra como “e. e. cummings”.

Um dos maiores poetas estadunidenses de todos os tempos, mas que só con-


seguiu publicar seus poemas aos 41 anos de idade – e com a ajuda da mãe! Em
reação à cegueira editorial que o privara de ser publicado, Cummings intitulou
aquele que se tornaria um de seus mais importantes livros com o sugestivo No
Thanks [Não obrigado] (1935), uma bem-humorada desforra contra as editoras
às quais submetera os originais de seus poemas, recebendo sempre a mesma
resposta: no thanks. É claro que para um mestre da poética da forma, a ocasião
exigia um poema-figura, em formato de taça, esculpido com os nomes das edi-
toras. Assim, no lugar do costumeiro “Agradecimentos” nas primeiras páginas
das publicações, Cummings abre seu livro com este “brinde”:

NO
THANKS
TO

Farrar & Rinehart


Simon & Schuster
Coward-McCann
Limited Editions
Harcourt, Brace
Random House
Equinox Press
Smith & Haas
Viking Press
Knopf
Dutton
Harper’s
Scribner’s
Covici-Friede

(CUMMINGS, 1986, p. 19)

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Concretismo e outras vanguardas

Chamado por seus detratores, entre eles alguns renomados poetas e críti-
cos de linha conservadora, de “inventor da ginástica pontuacional”; “poeta da
tipografia”; “Puzzles” etc., Cummings só começou a ser lentamente reconhecido
pelo poeta que é por volta de 1954, com o lançamento de Poems 1923-1954,
pela mesma Harcourt Brace citada no “poema-taça” acima. Mas foi do lado sul
da América que o poeta encontrou um de seus mais fiéis admiradores: Augusto
de Campos. Ainda no início dos anos 1950, o co-fundador de Noigandres, reco-
nhecia a maestria do homem “que não tinha renda, porque não estava à venda”
(CUMMINGS, 1986, p. 24), um rebelde que definitivamente participou da revolu-
ção artística ocidental ocorrida no século XX.

Foi pela ousada via da tradução que Augusto de Campos ajudou a romper,
conforme ele afirma, “o ritual do boicote e da ignorância em torno da poesia
‘tipográfica’ de Cummings” (CUMMINGS, 1986, p. 21). Em 1960, após três anos de
trabalho árduo sob a rigorosa tutela do mestre norte-americano, a cultura brasi-
leira teve acesso a 10 Poemas de e. e. cummings, uma publicação que, não fosse as
incontáveis provas tipográficas trocadas entre o Brasil e os Estados Unidos, teria
sido a primeira tradução de Cummings no mundo (mérito que coube a alemães e
italianos). Mas o resultado veio coroado pelos “Congratulations” [Parabéns] finais
(CUMMINGS, 1986, Apêndice 1) do exigente Cummings a Augusto de Campos.
Em 1986, Campos lançou um nova e ampliada edição intitulada 40 poem(a)s.

Nascido em São Paulo, Augusto de Campos (1931-), irmão de Haroldo de


Campos, tem sido desde meados do século XX poeta, tradutor, ensaísta, crítico
de literatura e música. Estreou na poesia em 1951 com O Rei Menos o Reino, numa
edição particular. Em 1955, a revista Noigandres 2 publica Poetamenos, escritos
dois anos antes e considerado o primeiro conjunto sistemático de poemas con-
cretos no Brasil. A peculiaridade desses poemas é a linguagem visual em cores,
com palavras distribuídas graficamente na página em branco com variação de
até seis cores diferentes, conforme pode ser conferida nos poemas “lygia fingers”,
“eis os amantes” e “dias dias dias”.

Sua veia experimental pulsou vigorosamente ao longo do século XX e buscou


as mais variadas formas de “concretizar” as muitas nuances do seu “verbivocovi-
sual”: dialogou com as artes plásticas com “poemas-objetos” e jamais se furtou
às inovações midiáticas. Com Augusto de Campos, aprendemos a aceitar e fruir
esteticamente meios aparentemente “pouco-poéticos” para poemas como, por
exemplo, luminosos, videotextos, neon, hologramas, laser, animações computa-
dorizadas, videoclipe, leitura plurivocal, e por aí adiante.

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Para uma breve apreciação dessas características, o poema “pós-tudo”, de


1984, oferece uma excelente síntese:

(CAMPOS, 2009b)
O que chama logo a atenção é a forma outdoor, espécie de placa publicitá-
ria. A fonte escolhida, composta de círculos concêntricos, produz uma ilusão de
ótica que dá a impressão de as palavras estarem em movimento, causando ainda
um certo efeito hipnótico. O conteúdo verbal apresenta uma espécie de balanço
poético do eu lírico, no qual este declara haver mudado tudo (certamente em
termos estéticos) e, agora, depois da mudança, ele se encontra mudo (sem voz,
ou sem expressão). Duas interpretações são possíveis aqui. A primeira, seguindo
nossa leitura inicial, seria o desapontamento do poeta com o resultado da mu-
dança, que o teria levado a um beco sem saída para sua produção poética – por
isso a mudez, o espaço vazio após a última palavra. A outra interpretação passa-
ria por um jogo com a polissemia do termo “mudo”, que então teria valor verbal,
ou seja, “eu mudo”, possibilitando assim o sentido de que o poeta se decidiu por
uma nova mudança – algo como uma “revolução permanente”.

O poema é por demais ambíguo e, por tal razão, causou polêmica quando foi
publicado originalmente no jornal Folha de S.Paulo, em 27 de janeiro de 1985. O
texto foi duramente criticado por Roberto Schwarz (cf. SCHWARZ, 1987, p. 57 e
ss.), influente teórico da literatura, provocando assim uma série de artigos por
parte de vários intelectuais.

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Concretismo e outras vanguardas

Décio Pignatari: designer de signos


– o poeta concreto não volta a face às palavras, não lhes lança olhares oblíquos: vai direto ao
seu centro, para viver e vivificar a sua facticidade.

Augusto de Campos

Um dos fundadores do grupo Noigandres, Décio Pignatari (1927- ), natural da


cidade paulista de Jundiaí, adentrou o século XXI consagrado pela história da litera-
tura brasileira como um dos mais criativos e revolucionários poetas de nossa língua.
Sua trajetória poética teve início ainda na Faculdade de Direito do Largo São Fran-
cisco, em São Paulo, ao lado dos irmãos Campos. Pignatari estreou na poesia em
1950, aos 23 anos de idade, com O Carrossel, poemas escritos entre 1947 e 1949. No
poema que dá título à coletânea e inaugura a sua vasta obra, ele confessa:

Entre escolher
Montanha-russa
Roda-gigante
Ou trem-fantasma,
Eu escolhi
Meu carrossel.
Paguei com vida
– Engenho e arte –
Pelo meu árdego corcel. [...]
(PIGNATARI, 2004, p. 19)

Na companhia dos Campos, Pignatari começou seu processo de formatar,


com engenho e arte, a matéria visual, auditiva e sensitiva captada enquanto
“Gira-girando / Gira-girando / Gira-girando” (2004, p. 19) vai o seu carrossel da
vida. Todas as imagens captadas pelo olhar daquele que vai montado no “árdego
corcel”, toda a mobilidade, imagens e jogos mentais contidos neste extenso
poema inaugural saltaram da folha em branco e exigiram, ao longo de sua obra,
o estatuto e a materialidade do próprio papel.

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A poesia de Pignatari se rebela, contesta, desafia os limites do meio material


que originalmente lhe trouxe à vida. Por isso, já em 1956, com Vértebra, publi-
cado em Noigandres 3, as palavras se apoderam do espaço e se (des)organizam,
obedecendo exclusivamente ao verso, até chegar, num outro momento, a uma
espécie de “poema-livro” intitulado LIFE (1957). Ali, a visualização da poesia de-
pende da virada das páginas. Desse modo, a palavra liberta pelas mãos habilido-
sas do artesão Décio Pignatari, em cumplicidade com os ideogramas dos irmãos
Campos, assumem o comando do “verbivocovisual”.

No “verbivocovisual”, onde a poesia de Pignatari se “concretiza”, é dispensável,


na maioria das vezes, a presença intrusa do eu-lírico: o poema fala por si mesmo,
não carece de uma voz narrativa ou de alguma mediação fora do campo da pa-
lavra e do papel – ou qualquer outro meio utilizado. Essa autonomia da palavra,
contemplada “de fora” pelo poeta-criador, trouxe para a arte brasileira e para o
campo da semiótica tantas possibilidades quanto um signo pode proporcionar.

Décio Pignatari, apesar de, ou devido a, todas as inovações do Concretismo,


esculpiu a sua poesia sem abrir mão da crítica aos tempos modernos, ao capi-
talismo, às questões sociais brasileiras, como no caso dos conflitos no campo,
da luta pela reforma agrária. Seu famoso poema “Terra” (1956) é inteiramente
montado em cima da desconstrução da palavra “terra”: (PIGNATARI, 2004, p. 126)

Os deslocamentos de letras/palavras/sílabas da palavra formam espaços in-


ternos, grandes “linhas” no campo textual, cujo desenho lembra os sulcos na
“terra” arada; e sua leitura ritmada representa o som do arado em movimento.

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Em outro texto clássico, o poema-slogan “beba coca cola” (1957), Pignatari


formula uma antipropaganda da mundialmente famosa marca de refrigerante:

(PIGNATARI, 2004, p. 128)


A antipropaganda é uma forma de denunciar e tentar esvaziar o controle
exercido pela publicidade, vista como instrumento de dominação na socieda-
de de consumo. O poeta concretista elege a propaganda da Coca-Cola como
paradigma desse controle. Retomando o slogan da bebida, através de uma
meticulosa desconstrução da frase e das palavras, numa satírica configuração
espacial, o poema pode estar dizendo, numa de suas múltiplas possibilidades
significativas, que na sociedade capitalista é possível se vender qualquer coisa...
qualquer coisa mesmo!

A versatilidade do verbo do poeta Pignatari tem encontrado solo fértil nas


mais variadas mídias contemporâneas, culminou ainda numa veia ensaística e
de teoria da comunicação, em especial no campo da semiótica. Professor apo-
sentado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Pignatari reside em
Curitiba (PR) desde 1999.

Rupturas e continuidades
Se a história da arte demonstra que sua evolução se dá na arena dos deba-
tes e polêmicas em torno das manifestações artísticas de um período, a poesia
concretista não poderia querer escapar desse destino. Assim, o grupo paulista
Noigandres não figurou sozinho no palco literário-poético das décadas de 1950
em diante.

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O experimentalismo dos irmãos Campos e Décio Pignatari encontrou adversários


em vozes que, ao mesmo tempo em que contestavam a nova poesia e sua proposta
de priorizar a forma estética, apresentavam opções que iam da recusa absoluta do
Concretismo, como é o caso de Mário Chamie, até a gradual dissidência do Concre-
tismo, como é o caso do maranhense Ferreira Gullar (1930- ). O segundo, apesar de
abrir caminho para a afirmação da poesia concreta no Brasil com A Luta Corporal
(1954), segundo consideração de Alfredo Bosi (1994, p. 473), repudiou o Concre-
tismo “racionalista” dos homens de Noigandres, que não era, na visão de Gullar,
“participante” o suficiente para veicular a sua mensagem ideológica. Gullar, que
em 1959 liderou os artistas concretos do chamado Grupo do Rio no lançamen-
to da dissidência “oficial” do Concretismo paulista, não abriu mão, contudo, dos
códigos vanguardistas; em vez disso, associou-os à estrutura lírica tradicional,
recorrendo inclusive à popular literatura de cordel.

Um terceiro poeta que não abdicou dos traços tradicionais em plena era do
Concretismo foi Mário Faustino (1930-1962). Apesar de seu falecimento precoce,
o poeta nascido em Teresina deixou uma obra curta, porém robusta, considera-
da próxima da experiência concretista. Com uma poesia adepta tanto do Sur-
realismo e do Neossimbolismo (Rimbaud etc.) quanto do experimentalismo de
Cummings, seus versos igualmente destoam da estética concretista “ortodoxa”.

Mário Faustino: a poesia-experiência


O Homem e sua Hora (1955) é o único livro que Mário Faustino (1930-1962)
publicou em vida; postumamente, outros poemas espalhados por diversos peri-
ódicos foram reunidos em Poesia (1966). Mas o ávido Faustino produziu em sua
breve vida, findada tragicamente num acidente aéreo, uma grande quantidade
de crônicas, traduções e textos críticos de literatura e cinema, numa carreira ini-
ciada antes dos vinte anos nas páginas da Província do Pará, em Belém.

Morando no Rio de Janeiro durante o auge do Concretismo e do Neoconcretis-


mo, esse poeta foi responsável pela seção “Poesia e Experiência” do Suplemento
Literário do Jornal do Brasil, entre 1956 e 1959, ocasião em que se dedicou à con-
sistente crítica dos grandes poetas modernos, brasileiros e estrangeiros, dando
espaço nessas páginas tanto a autores consagrados quanto a novos poetas.

O espaço aos novatos revela a preocupação central de Faustino: a renovação


da poesia brasileira, motivo que o levou a simpatizar com as correntes concre-

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tistas, as quais, antes de tudo, traziam os ventos da renovação estética, um tanto


tímidos depois de 22. Faustino dedicou-se ainda à tradução de poetas ingleses,
franceses e norte-americanos. Desse último grupo, Ezra Pound tornou-se seu
“guia poético”. É dele a frase que Faustino adotou como lema da “Poesia-experi-
ência”: “repetir para aprender, criar para renovar” (apud MOISÉS, 1996, p. 433).

“Criar para renovar” era sem dúvida a proposta dos concretistas. Daí a sim-
patia de Faustino com esses poetas que prezavam tanto a inovação quanto o
exercício crítico. Mas seu caminho ao lado do experimentalismo concretista não
chegou a render-lhe a alcunha de concretista “de fato”, pois, embora fazendo
amplo uso de fragmentos e recortes, jamais abriu mão da estrutura canônica do
verso. Antes, o poeta preferiu reconstruir antigas formas com roupagem moder-
nas, contrariando a essência do Concretismo.

Em seu projeto poético, ele desenvolveu temas como “amor e morte, tempo
e eternidade, sexo, carne e espírito, vida agônica, salvação e perdição, pureza e
impureza” (NUNES, 1966, p. 5). Faustino seguiu um programa que tinha por ob-
jetivo uma poesia ao mesmo tempo moderna e tradicional, na qual conteúdo e
forma devem dialogar em busca de renovação.

Mário Chamie: a opção pela praxis


Paralelamente ao desenvolvimento do Concretismo, o paulista Mário Chamie
(1933- ) contestava vigorosamente as estéticas modernistas, desde a Geração
de 45, o movimento concretista paulista até o chamado Neoconcrestismo fun-
dado no Rio de Janeiro por Ferreira Gullar. A respeito dos poetas da Geração de
45, Chamie critica o que denominou de “rigorismo equivocado que conseguiu
apenas restaurar um equilíbrio anacrônico e parnasiano” (CHAMIE, 1974, p. 103);
sobre o Concretismo, seu argumento é de que apesar de se opor à Geração de 45
e revalorizar o ensinamento de 22, “conduziu o poema à categoria de um objeto
e de uma coisa idêntica a si mesma. Na mais pura linha de um racionalismo
mecânico” (CHAMIE, 1974, p. 104). Por último, o Neoconcretismo, surgido para
combater o que Chamie definiu de “exacerbação mecanicista e academicismo
atualizado” do Concretismo (CHAMIE, 1974, p. 105), também não satisfazia sua
exigência estética.

Por fim, ele assim resume suas considerações: “Integrados ou não na proble-
mática e no desafio de 22, a verdade é que a Geração de 45, o Concretismo e o

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Neoconcretismo se distanciaram da realidade que subministrou e configurou


essa problemática e desafio” (CHAMIE, 1974, p. 106). A questão da representação
da realidade na poesia permeia a teoria de Chamie e, para expor a sua missão
de dar sentido ao suposto descompasso da poesia com a realidade brasilei-
ra, Chamie lança em 1962 seu livro porta-voz, Instauração Praxis. O manifesto
é também o cartão de visita de todos os correligionários de Chamie, nomea-
dos “poetas praxis” ou novos poetas. A palavra de ordem do grupo é transfor-
mação de, no lugar de identificação com a estética vanguardista em moda.
Por isso, apesar da rebeldia assumida, sequer é aceitável a seus defensores
identificar a poesia praxis (poesia prática) ao Modernismo de 22, pois o objetivo
também é superá-lo e encerrar o ciclo do Modernismo (CHAMIE, 1974, p. 109).

Na base da poesia praxis, encontram-se a busca do sentido do texto poético a


partir de seus próprios elementos internos e originais, a condenação da unidade
temática e sua substituição pela noção mais objetiva de “áreas de levantamento”.
Dentro dessa área, uma palavra-matriz pode desdobrar-se em seus componen-
tes (prefixos, sufixos e infixos, sílabas e fonemas etc.), dando sentido ao todo
orgânico do poema.

Vejamos, como exemplo, o verso “o esfalfado arfar no asfalto falto de ar”


(CHAMIE, 1974, p. 113), integrante do poema “Migradores” de Chamie. O texto
tem como área de levantamento (em vez de tema) a migração do homem do
campo para a cidade, e a palavra-matriz é o verbo “esfalfar”, que se desdobra em
suas variantes morfossintáticas. Segundo a análise do próprio autor:
[...] defronta-se o poeta com o fato prosódico de que a letra l, numa fala rural brasileira, tem o
som de r, com o fato morfológico de que o esfalfar na cidade é um esfalfar no asfalto, com o
fato léxico de que esfalfar é cansar, ter falta de ar, com o fato semântico e silábico-estatístico
que a desinência de esfalfar é ar e de que o sufixo de asfalto é falto, com o fato prosódico e
pragmático de que, tendo a letra l a prolação de r, o elemento radical do verbo esfalfar seria
outro verbo arfar (composição de ar (f ) ar) [...]. (CHAMIE, 1974, p. 112)

A despeito do desinteresse de parte da crítica, o grupo da poesia praxis guiado


por Mário Chamie empreendeu um projeto que, embora dissonante das ideias
concretistas, ou exatamente por isso, animou a discussão sobre as vanguardas
brasileiras e legou um rico viés poético e uma pertinente crítica literária.

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Texto complementar

Entrevista – Augusto de Campos  


(Perguntas formuladas por K. David Jackson, Eric Vos & Johanna Drucker. Res-
postas de Augusto de Campos. In: CAMPOS, 2009b)

1. Que dimensões da poética contemporânea estão diretamente en-


volvidas com o Concretismo?

R. Vejo a poesia concreta diretamente engajada com as práticas da poesia


de vanguarda, experimental ou – como será talvez mais adequado chamá-la
– poesia de invenção. Creio que, ao surgir, nos anos 1950, coube a ela res-
tabelecer o contacto com a poesia das vanguardas do início do século (Fu-
turismo, Cubofuturismo, Dada et alia), que a intervenção das duas grandes
guerras e a proscrição das ditaduras nazista e stalinista haviam condenado à
marginalização. Movimento semelhante ocorreu, na mesma década de 1950,
na área musical, com a recuperação da obra do Grupo de Viena (Schoenberg,
Webern, Berg), a redescoberta dos grandes experimentalistas individuais
(Ives, Varèse etc.) e a intervenção dos novos compositores de vanguarda que
se impuseram a partir de então, de Boulez e Stockhausen a Cage. Em con-
fronto com os poetas que Pound denominava de “masters”, “diluters” etc., os
praticantes da poesia concreta se situam ou aspiram a se situar, programa-
ticamente, na categoria dos “inventors”, ou seja, os que estão engajados na
perquirição de novas formas.

2. Como você vê os precedentes históricos da sua própria obra


concreta?

R. Para mim, o marco divisório da linguagem poética de invenção, na mo-


dernidade, é a obra Un Coup De Dés de Mallarmé (1897), o poema concebido
intersemioticamente como estrutura fragmentária (“subdivisions prismatiques

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de l’Idée”), na confluência do painel visual e da partitura musical. A partir da


compreensão dessa obra foi possível rever as experiências das vanguardas
do começo do século e caminhar para novas elaborações. “Sans présumer de
l’avenir qui sortira d’ici, rien ou presque un art”, o último Mallarmé – de Un
Coup De Dés a Le Livre – cataliza e radica as principais alternativas futuras da
linguagem poética. Nessa obra e nos desenvolvimentos subsequentes das van-
guardas históricas, que vão ser reciclados e radicalizados pela poesia concreta,
encontram-se os pressupostos formais da poesia da Era Tecnológica, que se
expande ao longo da segunda metade do século. Além de Mallarmé e das van-
guardas do início do século, eu colocaria como precedentes diretos, Ezra Pound
(o “método ideogrâmico”, a colagem e a metalinguagem dos Cantos), James
Joyce (o caleidoscópio vocabular do Finnegans Wake e sua polileitura textual),
Cummings (a atomização e o deslocamento sintático dos seus poemas mais ex-
perimentais) e, num segundo plano, por mais idiossincrática e menos rigorosa,
a prosa experimental, minimalista e molecular, de Gertrude Stein. No caso par-
ticular da poesia brasileira, o Sousândrade (séc. XIX) de O Inferno De Wall Street,
com seus epigramas-mosaicos pré-colagísticos, Oswald de Andrade e o poema-
minuto “antropófago”, a engenharia construtivista de João Cabral. Numa consi-
deração transdisciplinar, mencionaria as transformações da linguagem musical
de Webern a Cage e da visual de Malévitch/Mondrian a Duchamp.

3. Quais são os fundamentos teóricos que distinguem as suas obras


das dos precedentes históricos ou dos contemporâneos?

R. Em vista do próprio contexto histórico em que surgiu, a poesia concreta


obviamente não participa nem da ideologia do Simbolismo, que ainda subjaz
na poética de Mallarmé, nem das utopias mecanopolíticas futuristas, nem do
niilismo dadá. A poesia concreta se situou como uma poética da objetivida-
de, tentando colocar simplesmente suas premissas nas raízes da linguagem,
com o intento de criar novas condições operacionais para a elaboração do
poema, no quadro da revolução tecnológica. Tecnicamente, os poetas concre-
tos se distinguem dos seus antecessores pela radicalização e condensação dos
meios de estruturação do poema, no horizonte dos meios de comunicação
da segunda metade do século. Isso implicou, entre outras características, nas
seguintes: maior rigor construtivo, em relação às experiências gráficas de futu-
ristas e dadaístas; maior concentração vocabular; ênfase no caráter não discur-
sivo da poesia com supressão ou relativização dos elos sintáticos; explicitação
da materialidade da linguagem sob os aspectos visual e sonoro; trânsito livre
entre os estratos verbais e não verbais.

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Concretismo e outras vanguardas

Poemas como “terra” de Décio Pignatari ou “cristal” de Haroldo de Campos,


dos anos 1950, ou como os meus “cidadecitycité” ou “olho por olho” dos anos
1960 tipificam essas características.

Distinguem-se os poetas concretos de outras experiências (zaum, let-


trisme, poesia fonética), por não desprezarem os valores semânticos, e os
colocarem, antes, em pé de igualdade com os outros parâmetros materiais,
visuais e sonoros, do poema. Diferenciam-se também da “chance poetry”
de Cage e outros por não abdicarem do controle da estrutura do poema,
embora admitindo intervenções do acaso.

4. Em que extensão é a obra que você está discutindo diferente da


obra dos poetas concretos dos anos 1950 e 1960? De que forma?

R. Passadas quatro décadas das primeiras experiências de poesia con-


creta, eu diria que os anos 1950 a 1960 caracterizaram o período de maior
ortodoxia do movimento, algo como a serialização de todos os parâmetros
musicais proposta pelos músicos pós-webernianos europeus. Nas décadas
subsequentes ocorreu uma maior flexibilização da linguagem poética em
favor da recuperação de estruturas frásicas (em relação ao elementarismo
da 1.ª fase, poemas constituídos de uma só palavra ou de poucos subs-
tantivos espacializados) e da incorporação do acaso (a partir das interven-
ções de Cage), mas essa flexibilização não deixou de ter em conta o rigor
compositivo e o princípio da funcionalidade ou da necessidade formal do
poema. Tal abertura se mostrou inevitável em face da redundância de pro-
cessos e de sua degradação, provocada pela inconsequência de muitas re-
alizações, especialmente na área da poesia visual, caracterizadas por uma
insignificância semântica análoga a de muitos “labirintos” gráficos barro-
cos, que, por sob a camada superficial de requintados crochês gráficos,
não exibiam mais que a vacuidade de elogios epitalâmicos ou funerários.
Não deve confundir-se também tal abertura com a aparente complexidade
de textos simplesmente caótico-surrealistas que utilizam o espaço gráfico
sem qualquer sustentação formal satisfatória. As obras dos anos 1980/1990
são, por um lado, mais livres em relação à ortodoxia dos primeiros anos e,
por outro lado, participam mais intensamente do desafio das novas tec-
nologias, que conduzem aos poemas digitalizados, à animação gráfica e
sonora, aos processos multimídia e a intermídia. Nesse sentido, os “wishful
thinkings” dos anos 1950 se materializam agora nos computadores, espaço
congenial para as aventuras “verbivocovisuais”.

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Literatura Brasileira Contemporânea

5. Há uma poética do Concretismo ou é a poesia concreta antes um


artifício formal do que uma premissa conceitual?

R. Tal como a vejo, a poesia concreta não surgiu como uma especializa-
ção formal dentro do campo da poesia moderna, como se poderia falar do
carmen figuratum da Antiguidade, mas, antes, como uma proposta de radica-
lização da linguagem poética, na qual os aspectos visuais constituem apenas
um dos parâmetros relevantes. O que se buscou com a poesia concreta foi
recuperar a especificidade da própria linguagem poética, a materialidade do
poema e a sua autonomia, a partir de uma revisão e radicalização dos proce-
dimentos da poesia moderna e da elaboração de um novo projeto criativo
no contexto das novas mídias.

6. Tese: “O Concretismo, uma das tendências vanguardistas mais ra-


dicais deste século, engajado numa revalorização crítica do objeto ar-
tístico e o seu lugar na sociedade, trouxe um novo meio de olhar e ler a
tradição. Ele foi um precursor das mais recentes tendências neobarroca
e pós-moderna.” Gostaríamos de ter sua avaliação ou julgamento sobre
essa perspectiva artística do ponto de vista de um artista participante,
enquanto ela se relaciona com a sua própria obra ou poética ou com a
sua apreciação crítica da experiência concretista.

R. Não creio que nenhuma das expressões – “neobarroco” ou “pós-moder-


no” – seja suficientemente adequada para caracterizar o momento atual em
suas possíveis relações com a poesia concreta. O termo “neobarroco” é dema-
siado carregado de historicidade e pode levar a confusões, caso se conside-
re que ele costuma abranger práticas da poesia hispânica, latino-americana,
não vinculadas às poéticas do Concretismo. Quanto ao “pós-moderno” é um
conceito de contornos indefinidos, pouco sustentável, na medida em que
os pressupostos do “moderno” ainda são os vigentes, parecendo antes um
rótulo que serve de pretexto a ecletismos de índole conservadora, na ver-
dade pré ou antimodernistas. Eu ficaria com a primeira frase do enunciado,
acrescentando em lugar de “Ele foi um precursor etc.”, que (a poesia concreta)
retomou as especulações da linhagem experimental da poesia contemporâ-
nea, firmando relevantes pressupostos para o desenvolvimento da poesia no
contexto das novas mídias que se expandem na fase tecnológica da moderni-
dade. Constituiu, no mínimo, um movimento importante para manter acesa
a ideologia revolucionária da experimentação permanente e autônoma e re-
definir a atuação da vanguarda na 2.ª metade do século, assumindo-a sob a

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Concretismo e outras vanguardas

categoria de “poesia de invenção” (em contraste com a mais palatável “poesia


de expressão”) como resistência à massificação e à banalização impostas aos
novos meios de comunicação e ao imobilismo da literatura convencional.

Dicas de estudo
Para que o estudante possa completar as informações sobre o movimento
poético-literário concretista, fazemos as seguintes sugestões:

 Teoria da Poesia Concreta: textos críticos e manifestos (1950-1960), de Au-


gusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, Editora Ateliê.

Uma seleção de textos dos três promotores do Concretismo, publicados


entre 1950 e 1960, ou seja, no auge da divulgação do movimento. Na obra,
o estudante poderá verificar a incidência de alguns temas comuns aos três
autores, bem como suas peculiaridades, em discussões teóricas profun-
das, mas bastante didáticas, que oferecem um panorama não somente
da gradual construção da poesia concreta, mas do desenvolvimento da
teoria poética como um todo.

 Poesia Visual, Vídeo Poesia, de Ricardo Araújo, Editora Perspectiva.

O livro aborda o fenômeno resultante da inventividade concretista que


chegou ao século XXI expressando o diálogo entre a evolução da forma
poética e a tecnologia, em especial no campo da computação gráfica. O
estudo, originalmente defendido como tese de doutorado na USP, possi-
bilita ao estudante observar os desdobramentos do projeto verbivocovi-
sual em nossos dias.

 Poesia concreta – projeto verbivocovisual, disponível em: <www.poesia-


concreta.com.br>.

Projeto cultural de divulgação da poesia concreta, com apoio institucio-


nal do Ministério da Cultura (MinC), apresenta vasto material: poesias;
imagens; poesia concreta musicalizada; textos fundadores de Augusto de
Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari; textos críticos etc. É, por-
tanto, uma valiosa fonte de referência no estudo da poesia concreta.

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Literatura Brasileira Contemporânea

Estudos literários
1. Explique a relação entre a poesia concreta e a ideia de “concretismo” adotada
nas artes plásticas.

2. Por que a poesia concreta é também conhecida por poesia “verbivocovisual”?

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Concretismo e outras vanguardas

3. Quais os movimentos e poetas que se insurgiram contras as propostas da


poesia concretista na década de 1960 e quais os seus argumentos?

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Tendências contemporâneas: prosa

Nas décadas de 1950 e 1960, a literatura do Brasil dialoga com as novas


experiências da ficção europeia do pós-guerra que, na esteira, Joyce,
Proust e Kafka propõem a radicalização da forma narrativa. Exemplo disso
é o conjunto de romances franceses publicados nesse período, denomi-
nado por nouveau roman (novo romance) e cultivado nos anos de 1950
por Robbe-Grillet, Natalie Sarraute, Claude Simon, entre outros. Essa van-
guarda propunha uma total liberdade na construção ficcional, em que os
dados do mundo fossem apreendidos de forma direta, chegando a um co-
nhecimento fundado no imediato e na subjetividade. Em outras palavras,
trata-se de um tipo de representação que, análoga à abstração na pintura
moderna, destruindo-se a unidade do objeto para, a partir da total experi-
ência subjetiva, chegar-se à objetividade do mundo. No caso do romance,
essa abstração revela-se na forma ficcional, na escrita marcada pela extre-
ma liberdade no trato da palavra, na oposição à suposta objetividade da
visão onisciente do mundo típica do romance tradicional. Ao contrapor-se
ao tradicionalismo formal, o nouveau roman aliava-se à categoria de uma
poética da obra aberta tal como Umberto Eco a concebe em seu famoso
ensaio Obra Aberta (1962), que traz um subtítulo autoexplicativo: forma e
indeterminação nas poéticas contemporâneas.

No âmbito da América Latina, em especial nos países de língua espanho-


la, florescia a escola que se tornaria conhecida na literatura mundial como o
realismo mágico latino-americano, referido ainda com os adjetivos de “fan-
tástico” ou “maravilhoso”. Os traços estilísticos dessa nova narrativa já haviam
surgido em 1935, com a História Universal da Infâmia, do argentino Jorge Luis
Borges; mas considera-se que o primeiro escritor a empregar de fato o termo
“realismo mágico” foi o venezuelano Uslar Pietri em 1948; e por fim o gênero
foi mundialmente consagrado com Cem Anos de Solidão (1967), do colombia-
no Gabriel García Márquez, obra que até hoje já vendeu cerca de quarenta
milhões de exemplares em todo o mundo. No entanto, muitas outras vozes,
praticamente em todos os países hispano-americanos, levantaram-se em
torno dessa proposta estética, destacando-se ainda o cubano Alejo Carpen-
tier, o argentino Júlio Cortazar, o peruano José María Arguedas, o paname-
nho Carlos Fuentes. No Brasil, José J. Veiga transitou por essas águas de forma
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Literatura Brasileira Contemporânea

competente, chegando a ser reconhecido como o que estaria mais próximo de uma
escritura “realista mágica” brasileira no período.

Movimento de contestação, essa estética do insólito reagia tanto ao realis-


mo naturalista do século XIX quanto à chamada “novela da terra”, uma espécie
de romance regionalista hispano-americano do início do século XX. Propunha,
de outro modo, uma forma de trazer a cultura pré-colombiana para a literatura,
valorizando as marcas étnicas e culturais da mestiçagem latino-americana. Se
essa nova ficção identificava no próprio conteúdo sociocultural os elementos
indicativos do misterioso, do inexplicável, do mítico, incorporando-os à forma
narrativa, afastando-se daquele realismo “puro” que sustentava, por exemplo,
um romance regionalista; por outro lado, a situação político-social da América
Latina como um todo, oprimida por ditaduras militares, exigia uma postura de
engajamento e crítica por parte dos escritores.

Assim, também no Brasil, em meio a ideias artístico-revolucionárias dessa


ordem e acrescidas do contexto do regime militar (1964-1985), florescia a prosa
introspectiva e a linguagem fragmentada de Clarice Lispector (1920-1977)
– que, na esteira da inglesa Virginia Woolf (1882-1941), privilegiava o fluxo de
consciência – e a inventividade de Guimarães Rosa (1908-1967), que, depois de
publicar Sagarana (1946), voltava à cena literária em 1956 com as novelas de
Corpo de Baile, reiterando sua opção de representar a faceta sertaneja da reali-
dade brasileira. E, mais importante, estabelecendo nesse mesmo ano um divisor
em nossas águas literárias com a sua única e longuíssima narrativa romanes-
ca: Grande Sertão: Veredas (1956). O romance roseano, pode-se dizer, congrega
tanto traços do nouveau roman francês quanto da narrativa fantástica da escola
hispano-americana, ou seja, alia ao conteúdo social (o ambiente sertanejo) e a
psicologia do indivíduo (os conflitos internos de um jagunço) à musicalidade da
lírica e o discurso mitopoético. Deste modo, Guimarães Rosa encerra em grande
estilo a era de ouro do romance regionalista brasileiro e com a mesma maestria
percorre as novas veredas do conto brasileiro das décadas de 1960-1970.

O romance após o Grande Sertão


Os decênios de 1930 e 1940 marcam a ascensão do romance moderno brasi-
leiro, época em que prevaleceu a ficção regionalista de José Lins do Rego, Rachel
de Queiroz, Erico Verissimo, Jorge Amado e Graciliano Ramos, mas também a
prosa cosmopolita, de sondagem psicológica e moral de um Lúcio Cardoso ou
de um Cyro dos Anjos, entre outros. Na época, a realidade brasileira – a crise

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Tendências contemporâneas: prosa

cafeeira, a Revolução de 1930, o declínio da economia nordestina etc. – deman-


dava formas mais complexas de representação do cotidiano, trazendo à prosa
os estilos ficcionais que superavam o experimentalismo de 22 e eram “marca-
dos pela rudeza, pela captação direta dos fatos, enfim, por uma retomada do
naturalismo, bastante funcional no plano da narração-documento que então
prevaleceria”. O romance dessa época, continua Alfredo Bosi (1994, p. 389-390),
“é um romance que analisa, agride, protesta. Para atingir esse alvo, porém, foi
necessária toda uma reorganização da linguagem narrativa”. Uma tal reorganiza-
ção da linguagem atingiria seu ponto máximo com o advento de Grande Sertão:
Veredas, ou seja, os anos 1950 foram visitados pelo vendaval roseano que varreu
algumas certezas sobre a escrita narrativa e marcou definitivamente a forma li-
terária e o caminho das experimentações estilísticas cabíveis à representação da
realidade brasileira.

Há, sem dúvida, um pensamento comum entre os críticos literários sobre a


ausência de seguidores diretos dessa monumental obra que é Grande Sertão:
Veredas, não sendo identificada no romance brasileiro qualquer tentativa séria
de aproximação ao seu estilo. Mas obviamente surgiram nomes significativos do
romance brasileiro pós-1950, cuja grandeza narrativa justifica o louvor da críti-
ca contemporânea. Entre as obras que inovaram na forma estilística com vistas
à denúncia social, ao engajamento às questões da época, destacamos Quarup
(1967) do fluminense de Niterói, Antonio Callado, e Sargento Getúlio (1971), do
baiano João Ubaldo Ribeiro.

Quarup: história e mito, por Antonio Callado


Fontoura pôs os joelhos no chão e leu:
– Centro geográfico do Brasil, latitude dez graus e vinte minutos sul, longitude cinquenta e três
graus e doze minutos oeste de Greenwich.
Fontoura caiu de cara no chão, as mãos para frente, o ouvido colado à terra, enquanto inquietos
bandos de formigas lhe cobriam os dedos e o pescoço.
“Nando!”, gritou Francisca. “Levanta, Fontoura, levanta!”
“Ponha o seu ouvido na terra”, disse Fontoura.
“Para quê? Levanta”.
Mas, na impossibilidade de erguer Fontoura, Francisca se curvou, deitou o rosto sobre as
formigas enlouquecidas, sentiu viva e feroz a terra de Levindo.
“Está ouvindo?” disse Fontoura.
“O quê?”
“O coração.”
“Estou ouvindo”, disse Francisca. “Agora levanta, Fontoura!”
“Você ouviu bem?”, disse Fontoura.
“Ouvi, ouvi, agora vamos!”
“Estou perguntando, porque a gente ouve de leve. A batida é funda”. (CALLADO, 1984, p. 377)  

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Esse trecho traz a cena da descoberta do centro geográfico do Brasil, repre-


sentada na ficção de Antonio Callado (1917-1997). Romance que mescla fatos e
figuras da História do Brasil contemporâneo e traz de volta à literatura a questão
indígena brasileira, não mais com o caráter indianista do passado, mas no con-
junto de reflexões globais sobre o Estado brasileiro. A narrativa aborda questões
tão abrangentes quanto o suicídio do presidente Getúlio Vargas, o golpe militar
de 1964, a instauração da ditadura militar, a luta dos camponeses, a ocupação
irregular da terra, a interferência da modernidade brasileira na cultura indígena
remanescente etc. Tudo isso temperado por intensos conflitos psicológicos, idí-
lios sexuais, que faz da obra um épico brasileiro pós-modernista.

Quarup é um termo que, na cultura dos povos indígenas na região do Xingu,


norte do estado de Mato Grosso, remete ao mito das origens. É uma festa inter-
tribal que celebra o mítico herói xinguano Mavotsinim. O ritual envolve a ressur-
reição simbólica do herói e é também ocasião para as aldeias celebrarem os seus
mortos ilustres.

O tempo da narrativa no romance Quarup compreende cerca de dez anos:


inicia-se no governo Getúlio Vargas, eleito pelo voto direto em 1951 e morto em
1954, e termina em 1964, com o golpe e o início da ditadura militar. Os diver-
sos passos ritualísticos da festa do quarup são apropriados por Antonio Callado
como parte estruturante da forma de sua narrativa. Assim, ao mesmo tempo em
que apresenta uma imagem literária da provável decadência dessa festa indíge-
na, devido à interferência da cultura não indígena, a obra vai traçando um painel
das mazelas sociais e crises políticas do Brasil contemporâneo.

Na narrativa, um quarup está acontecendo no Xingu justamente nos últimos


dias da convulsão que levou o presidente Getúlio Vargas ao suicídio, em 24 de
agosto de 1954. O trágico evento, dando continuidade ao messianismo populis-
ta de Vargas, o “pai dos pobres”, levou às ruas as massas populares, que, “órfãs”,
foram realizar o ritual em honra ao seu morto mais ilustre. Quarup é, sobretudo,
um romance de engajamento político, retratando um profundo desejo de mu-
dança social que vai paulatinamente se encaminhando para a desilusão provo-
cada pelo golpe militar.

O romance finaliza com um quarup realizado pelas personagens principais


num evento que reúne os diversos segmentos da sociedade brasileira, um ritual
que, apesar de tudo, simboliza a esperança em um novo estado de coisas no
Brasil, alegoria do retorno a um tempo de possibilidades perdido com o golpe
de 64.

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Tendências contemporâneas: prosa

Ao trazer a questão indígena para aquela que seria a mais acabada narrativa
histórica do Brasil contemporâneo, o autor alia-se à corrente hispano-americana
de resgate das raízes autóctones na representação ficcional e, em termos de li-
teratura brasileira, ele ousa, assim como o fez Guimarães Rosa, adentrar os espa-
ços profundos da geografia brasileira, para ouvir a voz da terra, que costuma ser
funda e quase inaudível.

Jornalista, teatrólogo e ficcionista, Antonio Callado publicou antes de Quarup


(1967) os romances Assunção de Salviano (1954) e A Madona de Cedro (1957); mas
os outros romances que publicou na linha de Quarup, livros ditos engajados, são
Bar Don Juan (1971), Reflexos do Baile (1976) e Sempreviva (1981), entre outras
obras em prosa e peças teatrais. Literato por vocação, Callado teve as suas opi-
niões políticas forjadas ao longo de sua intensa atividade jornalística exercida
paralelamente ao ofício literário. Trabalhou no extinto jornal Correio da Manhã,
no Rio de Janeiro, foi correspondente de guerra da rádio BBC, em Londres, em
1941; retornando ao Brasil e ao Correio da Manhã somente em 1947. Conheceu
as realidades de Cuba e do Vietnã do Norte em pleno ano de 1968 – auge da
guerra –, mas, sobretudo, conheceu a fundo as coisas do Brasil. Na década de
1960, viajou à região do Xingu como jornalista, o que lhe rendeu a oportunida-
de de pesquisar para a escrita deste magnífico romance, exemplar dos desafios
que os grandes autores se impuseram para tratar o gênero romanesco na era
pós-Rosa.

João Ubaldo Ribeiro e o povo brasileiro


Do mesmo modo que Antonio Callado alia-se a Guimarães Rosa pela opção
do espaço narrativo afastado da geografia urbana, o romancista baiano João
Ubaldo Ribeiro (1941), na obra que emancipou sua literatura aos olhos da crítica,
Sargento Getúlio (1971), retoma o tipo de regionalismo roseano, embora mais
ameno no uso da cor local, para descrever a paisagem e as gentes de seu Nor-
deste. Mas João Ubaldo segue na esteira de Rosa também na liberdade linguís-
tica, no enredo e na elaboração psicológica da personagem. Se Guimarães Rosa
permitiu ao jagunço Riobaldo refletir sobre sua existência em Grande Sertão: Ve-
redas, João Ubaldo fez o mesmo com o matuto “sargento da Polícia Militar do
Estado de Sergipe”, o narrador-protagonista Getúlio.

A narrativa é, na verdade, um grande monólogo do sargento. Sua linguagem


é a variante caboclo-sertaneja, também ao estilo de Rosa, inclusive com o uso de
diversos neologismos resultantes da adulteração ou sobreposição de vocábulos

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gramaticalmente corretos (esguincho, almospenados, sinfetar, consumições) pelo


linguajar criativo do brasileiro sem instrução formal.

O sargento Getúlio é na verdade a mesma espécie de jagunço que transitava


nas páginas dos romances regionalistas da década de 1930: um exterminador, co-
rajoso, fiel, inocente, que mata sem questionar, cumprindo fielmente as ordens do
“patrão”. Mas, a exemplo do jagunço Damião, personagem de Jorge Amado em
Terras do Sem Fim (1942), que enlouquece durante uma tocaia, ao ter um lampe-
jo de consciência de sua vida de matador, também o sargento Getúlio durante a
longa viagem de automóvel, do sertão para a capital Aracaju, na escolta de um
preso, trava uma luta interior, alternando gestos de incrível violência com explo-
sões de humanidade ao refletir involuntariamente sobre a sua existência.

A narrativa é composta por longos monólogos em primeira pessoa, que se es-


tendem por várias páginas sem parágrafos e com muitas frases “costuradas” umas
às outras, ou com poucos parágrafos e frases curtas. É claro que há aqui ecos de
um Ulisses, do irlandês James Joyce (1882-1941): uma linguagem ágil, parecendo
fluir direto do pensamento do narrador, as pausas, interrupções e desvios conduz
o leitor no sentido de presenciar o pensamento do narrador. Vejamos a passagem
em que Getúlio está refletindo sobre o seu ser e estar no mundo:
Hum. Quer dizer, eu estou aqui. Sou eu. Para eu ser eu direito, tem que ser como o chefe,
porque senão eu era outra coisa, mas eu sou eu e não posso ser outra coisa. Estou ficando
velho, devo ter mais de trinta. Devo ter mais de quarenta, possa ser, e reparei uns cabelos
brancos na barba já tem muito tempo. Não posso ser outra coisa, quer dizer que eu tenho de
fazer as coisas que eu faço direito porque senão como é que vai ser? O que é que eu vou ser?
Não gosto dessa conversa desses homens vir aqui conversar. Se o chefe vem, bom. Se não
vem, não sei. Eu sou sargento da Polícia Militar do Estado de Sergipe. Não sou nada, eu sou é
Getúlio. Bem que eu queria ver o chefe agora, porque sozinho me canso, tenho que pensar,
não entendo as coisas direito. Sou sargento da Polícia Militar do Estado de Sergipe. O que é
isso? Fico espiando aqui essa dobra de cáqui da gola da farda me espetando o queixo. Eu não
sou é nada. (RIBEIRO, 1982, p. 94)  

A viagem empreendida pelo narrador se converte, portanto, numa viagem de


descobrimento da própria identidade. Ao ser assaltado por reflexões em torno de
sua condição humana na estrada rumo à capital, o problemático universo interior
do policial-matador, o homem da lei que não compreende o significado do cargo
que ocupa, vai também se abrindo, (des)interiorizando, como a sair do sertão de
seu subconsciente para o litoral da consciência. O regionalismo de João Ubaldo
Ribeiro ultrapassa o regionalismo do chamado “romance do Nordeste” da década
de 1930, principalmente pelo uso de novos recursos estilísticos. Sargento Getúlio

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Tendências contemporâneas: prosa

é uma denúncia da brutalidade do universo sertanejo com o seu jaguncismo, mas


também denuncia as condições sociais que forjam o jagunço: o coronelismo, os
conflitos eleitorais, a ausência do Estado, que grassavam no Nordeste nos anos
1950, época em que se passa a ação do romance.

Sargento Getúlio é o segundo e consagrador romance do escritor baiano que,


ao lado de Jorge Amado, representa os grandes literatos contemporâneos nas-
cidos na Bahia. O escritor e jornalista João Ubaldo Ribeiro, que ocupa a cadeira
34 da Academia Brasileira de Letras (ABL) desde 1993, formou-se em Direito pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA); pós-graduou-se em Administração Públi-
ca pela mesma Universidade e diplomou-se mestre em Administração Pública
e Ciência Política pela Universidade da Califórnia do Sul (EUA). No entanto, sua
vocação para as Letras o levou para o trabalho jornalístico e a criação ficcional,
iniciados ainda no tempo de estudante de graduação. Entre sua extensa produ-
ção artística, destacam-se ao lado de Sargento Getúlio os romances Viva o Povo
Brasileiro (1984); O Sorriso do Lagarto (1989); O Feitiço da Ilha do Pavão (1997); A
Casa dos Budas Ditosos (1999); além de grande produção de contos, crônicas,
ensaios, textos para televisão etc.

A vez da narrativa curta


Se os decênios de 1930 e 1940 são chamados de a “era do romance brasileiro”
(BOSI, 1994, p. 388), podemos dizer comparativamente que, nas décadas de 1960
e 1970, a narrativa curta, o conto, encontrou seu lugar definitivo em nossa lite-
ratura. Na esteira de nossos maiores contistas pós-modernistas, Guimarães Rosa
e Clarice Lispector, e imbuídos do espírito do novo realismo latino-americano –
realismo mágico, realismo fantástico ou realismo maravilhoso –, surgiram nesse
período novos narradores brasileiros, na maioria privilegiando o conto para traçar
um retrato sintético do Brasil pós-64. Assim, entraram em cena os nossos melhores
contistas contemporâneos, a exemplo do paranaense Dalton Trevisan, do gaúcho
Moacyr Scliar, da paulista Lygia Fagundes Telles e dos mineiros Rubem Fonseca e
Murilo Rubião. Na crônica – narrativa de temas da atualidade que tem por caracte-
rística principal a ficcionalização de fatos reais, muitas vezes se confundindo com o
conto –, Fernando Sabino (1923-2004) será a voz altissonante, ao lado de cronistas
expoentes como Rubem Braga (1913-1990) e Paulo Mendes Campos (1922-1991).

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Literatura Brasileira Contemporânea

Dalton Trevisan, o vampiro de Curitiba


A alcunha de “vampiro de Curitiba” atribuída a Dalton Trevisan (1925- ), um
dos maiores contistas da literatura brasileira contemporânea, tem origem em
seu mais popular livro de contos: O Vampiro de Curitiba (1965). O título do ter-
ceiro livro deste curitibano de personalidade introvertida e avesso à publicidade
converteu-se quase que naturalmente em descrição de seu autor. Sua cidade
natal, Curitiba, é o espaço que Trevisan elegeu para situar suas narrativas, repro-
duzindo em seus contos um retrato amargo da vida de seres urbanos perdidos
na pequenez da cinzenta vida cotidiana.

Trevisan começou a publicar seus contos e novelas em 1959 (Novelas nada


Exemplares) e seguiu um percurso temático que vai desde a denúncia social, a
condição humana até as relações interpessoais e os conflitos conjugais; tudo
narrado num “realismo ácido, um realismo marcado pelo grotesco, [...] de um
Kafka que descortinasse o absurdo no dia a dia mais banal” (MOISÉS, 1971, p.
582). Assim se revela, por exemplo, o conto “Uma vela para Dario”, que integra o
seu primeiro livro, Cemitério de Elefantes (1964).

A história se passa numa noite chuvosa, em uma movimentada rua de Curiti-


ba. Por ela, um elegante senhor vindo de outra cidade, Dario, passa rápido, mas
tranquilamente fumando o seu cachimbo e, de repente, sofre um ataque e des-
falece em plena calçada. De início, os passantes demonstram solidariedade e
começam a ajudá-lo, mas essa disposição vai esmorecendo conforme é exigido
algum sacrifício por parte dos supostos benfeitores: “A velhinha de cabeça grisa-
lha gritou que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou para o táxi da esquina.
Já no carro a metade do corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida?”
(TREVISAN, 1980, p. 40). Esse foi apenas o início de uma série de eventos que
revelam a fugacidade da compaixão humana. Após duas horas de agonia, Dario
estava morto. Nesse período, as pessoas se aproximaram dele, no início por so-
lidariedade, depois por mera curiosidade e, quando chega a polícia, mais de du-
zentos curiosos fogem, pisoteando o cadáver “17 vezes”, diz o conto. No final, o
homem que cruzava a rua com guarda-chuva, cachimbo, gravata com alfinete
de pérola, relógio de pulso e outros bens, nem mesmo pode ser identificado,
pois sua carteira, como os demais objetos citados, havia sido roubada. O agora
indigente foi despojado, pela polícia, do último objeto que o identificava como
indivíduo, sua aliança de casamento, apertada demais para ser furtada sorratei-
ramente por aqueles que, durante as duas últimas horas de vida de Dario, foram
pouco a pouco o destituindo dos objetos que o identificavam como cidadão,

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Tendências contemporâneas: prosa

indivíduo, humano. No final, abandonado também pela autoridade que chegou


ao local e não mais despertando curiosidade de ninguém, somente uma criança,
um menino negro e miserável se aproxima do solitário cadáver e, num derradei-
ro gesto de compaixão, acende uma vela ao seu lado.

O conto de menos de duas páginas mostra de forma concisa e linguagem enxuta


o “absurdo no dia a dia”, captado com argúcia e representado magistralmente por
Trevisan. O último parágrafo reflete a amargura do narrador em sua descrença em
qualquer utopia, até mesmo a vela, um possível gesto de redenção da humanidade
perdida, não queimou até o fim: “Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas
depois, lá estava Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó,
e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado mais da metade e apagou-se às pri-
meiras gotas da chuva, que voltava a cair” (TREVISAN, 1980, p. 43).

Moacyr Scliar e o “absurdo verossímil”


A sedução da musa cumpriu com felicidade o seu papel na formação da li-
teratura brasileira. A biografia de nossos autores aponta o desvio produtivo de
muitos ex-alunos das faculdades de Direito para o caminho das letras. Mas não
foi somente o judiciário que perdeu muitos filhos diletos para o canto da litera-
tura, a Medicina em alguns casos teve que, no mínimo, compartilhar seus reben-
tos com a irresistível dama. Dois casos exemplares são os do doutor Guimarães
Rosa (1908-1967), o médico que mudou para sempre os rumos de nossa prosa
literária; e mais recentemente o doutor Moacyr Scliar, nascido em Porto Alegre
em 1937. Médico por profissão e escritor por vocação, ele já publicou mais de 70
livros, entre crônicas, contos, ensaios, romances e literatura infantojuvenil, desde
a sua estreia em 1962 com o sugestivo título Histórias de um Médico em Forma-
ção, trazendo para a sua criação literária suas experiências de médico recém-
formado. Mas foi em 1968, com o livro de contos O Carnaval dos Animais, que
o médico-escritor gaúcho marcou definitivamente o seu lugar no panteão dos
literatos brasileiros.

Nascido e estabelecido na cidade de Porto Alegre, Scliar filiou-se à corrente


do realismo fantástico latino-americano para criar uma narrativa de humor sutil
e mórbido, usando a ironia como instrumento de denúncia da violência, da mi-
séria, enfim, dos males mascarados pela resignação e pela mediocridade da vida
cotidiana. Sua perspectiva da realidade deriva, além de sua experiência médica,
da sua origem judaica e do ambiente social porto-alegrense.

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Da cultura de seus ancestrais, ele recupera a parábola bíblica e o fabulário judai-


co para criar personagens e situações que se coadunam com o gênero conto, que
cultivou com o mesmo zelo dedicado aos romances e outros tipos de prosa. Enfim,
conforme anuncia sua página da Academia Brasileira de Letras, onde ocupa a ca-
deira n.º 31, “sua ficção insere a temática do imigrante judeu e urbano no imaginá-
rio da literatura sul-rio-grandense”1. A título de exemplo, vejamos o seguinte trecho
do conto “Diário de um comedor de lentilhas”, do livro A Orelha de Van Gogh:
Como é fácil imaginar, lentilhas nunca mais foram a mesma coisa para Esaú após a perda da
primogenitura. Ele, que nunca tinha sido um particular apreciador da leguminosa, ele, que, ao
oferecimento de certos anfitriões, recusava dizendo não, não, prefiro cabrito, ele foi obrigado a
fazer urna profunda reflexão sobre um prato que, na sua culinária emocional, desempenhara até
então um papel relativamente modesto. Nesta trajetória, passou por diversas fases. A primeira,
naturalmente, foi de raiva: perdi a minha primogenitura! Aquilo que me era tão precioso! E
por um prato de lentilhas! Um desgosto acentuado pela troça de amigos e parentes: nunca
um prato de lentilhas custou tanto a alguém, diziam, entre risos escarninhos. Sugeriam-lhe -
também entre risos - que se estabelecesse com uma estalagem especializada em lentilhas (e
alguém até propunha o nome: A Lentilha de Ouro).
[...]
Longo é o diário de Esaú, e muito desigual no que se refere à importância de suas reflexões
(pode-se até falar em ruminações; sem mencionar os erros de ortografia e a complexa sintaxe,
que dificultam a leitura). De modo que, expurgado de tais elucubrações, o que resta? O fato
básico de que ele deixou de ser primogênito por ter comido um prato de lentilhas. Por causa
disto, os estudiosos que se debruçaram sobre o documento renunciaram a toda e qualquer
pretensão de extrair daí um trabalho digno de valor, pelo ângulo acadêmico ou por qualquer
outro. Dirigiram sua atenção para outros campos mais promissores. Três deles, por exemplo,
constituíram uma firma de exportação de leguminosas. Estão atentos às cotações da Bolsa
de Chicago. Não se trata, contudo, da lentilha, a respeito da qual Esaú tinha várias queixas,
fundadas ou infundadas. Trata-se de soja, que não poucos denominam o “grão de ouro”.
(SCLIAR, 1989, p. 71-75)  

A reviravolta temática no final deste conto revela uma das principais carac-
terísticas de Scliar: a maestria no fechamento do enredo, com um final ora aber-
tamente crítico da sociedade moderna (como neste caso em que o capitalismo
vence a intelectualidade) ou tendendo ao insólito, ao fantástico. Mesmo na se-
gunda alternativa, e de modo paradoxal, há sempre uma perfeita sintonia com o
curso da narrativa, dando-lhe, um natural fecho de ouro, objetivo buscado pelos
praticantes da narrativa curta ou da poesia.

O absurdo, aquilo que parece inverossímil seria, na ficção de Scliar, consequên-


cia da própria realidade representada. O jogo narrativo é desassossegado, pois
assim é a condição humana que o engendra: a mudança de rumo no fim da narra-
tiva ou mesmo o final em aberto reproduz a incerteza quanto ao próprio destino
da vida humana. Como, quando e por que as coisas acontecem não faz parte do
ramo das ciências exatas; por isso o médico Moacyr Scliar, em seu fazer ficcional,
desafia o realismo colocando em xeque a inverossimilhança do absurdo.
1
Disponível em: <www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=488&sid=298>. Acesso em: 10 mar. 2009.

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Lygia Fagundes Telles: entre homens e ratos


Em 24 de outubro de 1985, a paulistana Lygia Fagundes Telles (1923- ) passou
a ocupar a cadeira n.º 16 da Academia Brasileira de Letras (ABL). Filha de um pro-
motor público que atuava no interior de São Paulo, Lygia viveu parte da infância
em cidades como Sertãozinho, Itatinga, Assis, Apiaí e Descalvado. Retornando à
capital, cursou o Ensino Fundamental na tradicional Escola Estadual Caetano de
Campos e graduou-se na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP).

A jovem de 21 anos estreou no seu percurso literário com Praia Viva (1944) e
O Cacto Vermelho (1949), ambos livros de contos, gênero predominante em sua
extensa carreira literária, apesar de a escritora ter se consagrado definitivamente
na cena literária com o romance Ciranda de Pedra, em 1954. É inegável, portanto,
que a ascensão do gênero conto na literatura brasileira é tributária da dedicação
privilegiada dessa escritora pela narrativa curta, uma forma que, no parecer de
Massaud Moisés (1989, p. 482), “melhor se adapta à sua visão do mundo”.

A visão de mundo expressa na obra da autora, e especificamente nos contos,


é uma visão engajada, um olhar crítico sobre as condições sociais do Brasil na se-
gunda metade do século XX, as desigualdades sociais e a fragilidade da condição
humana em um cenário político de violência e incertezas. A contista representa
essa realidade no campo da ficção, captando com grande carga de emotividade
os gestos aparentemente comuns na vida de pessoas igualmente comuns, mas
que de fato revelam o seu modo de ser e estar no mundo.

É assim em “Antes do baile verde” (1970), conto no qual a protagonista é uma


jovem que se prepara animada para um grande baile a fantasia, enquanto no quarto
ao lado seu pai agoniza em seus últimos momentos de vida. A jovem, movida pela
vontade de se divertir, se esquiva da responsabilidade de velar o pai moribundo,
tentando convencer a si mesma de que não há nada de errado em seu ato egoísta:
Você quer que eu fique aqui chorando, não é isso que você quer? Quer que eu cubra a cabeça com
cinza e fique de joelhos rezando, não é isso que você está querendo? – Ficou olhando para a ponta
do dedo coberto de lantejoulas. Foi deixando no saiote o dedal cintilante. – Que é que eu posso
fazer? Não sou Deus, sou? Então? Se ele está pior, que culpa tenho eu? (TELLES, 1992, p. 70)  

Partindo do esquadrinhamento da psicologia do indivíduo, sua ética e com-


promisso com a coletividade, a contista segue o caminho da denúncia no plano
macro da vida nacional. Por exemplo, no conto “Seminário dos ratos” (1977), já
o título é ambíguo e provocador: seminário no qual se discutirá a problemática
da praga dos roedores que infestam uma cidade, ou seminário no qual “ratos” é
metáfora dos próprios participantes?

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Na história, os pequenos e vorazes roedores invadem um casarão do governo


recém-reconstruído e afastado do ambiente insalubre da cidade empestada por
ratos. Os organizadores esperavam que neste espaço, preparado especialmente
para a ocasião, houvesse tranquilidade para realizar o “VII Seminário dos Roe-
dores”; mantendo-se o objeto da discussão, os ratos, distante dali. Nesse lugar
fictício, a proporção dos roedores em relação ao número de homens já estava
na ordem de cem por um, e eles acabaram alcançando o casarão, que sucum-
biu ao ataque. O clima que se instaura com a invasão dos roedores é de terror
diante do desconhecido, e principalmente, diante do incontrolável. Logo, uma
das possibilidades de interpretação do conto é a da alegorização das estruturas
político-burocráticas brasileiras em sua inaptidão para controlar as pragas que
elas próprias ajudam a criar.

Neste conto, Lygia coloca a serviço da denúncia social alguns elementos


do realismo fantástico disseminado pela escola hispano-americana. A metáfo-
ra desse país dominado por roedores que adquirem autonomia e destroem a
modernosa casa dos aparvalhados seres humanos pode ser analisada de vários
ângulos, levando-se em conta o período histórico em que o conto foi escrito, a
ditadura militar e o projeto desenvolvimentista brasileiro. A invocação de Carlos
Drummond de Andrade e de seu poema “Edifício Esplendor” (1955) na epígrafe
do conto aponta para seu tema central, o do país como o edifício em decadên-
cia. O termo “esplendor” no título do poema de Drummond é usado ironicamen-
te para descrever um edifício em franca decadência.

Os contos de Lygia Fagundes Telles fazem, portanto, a crítica tanto em relação


ao indivíduo que, no exercício do egoísmo cotidiano, despreza as necessidades
do outro (“Antes do baile verde”) quanto da esfera pública na qual o povo não
existe como realidade. Assim, a ironia, o humor e mesmo o insólito são elemen-
tos que se fundem na representação de uma realidade hostil, captada pelo pen-
samento engajado da artista.

Rubem Fonseca: a narrativa sem meias palavras


Na linha da narrativa do cotidiano, Rubem Fonseca (1925- ), nascido em Minas
Gerais, mas habitante do Rio de Janeiro desde a infância, apresenta uma escrita
que, indo além da crônica tradicional dá carga ficcional a histórias cujos enredos
estão presentes quase que diariamente nas manchetes de jornais, em especial
nas páginas policiais, políticas ou do cotidiano. Isso confere duas características
fundamentais a seus contos e romances. Em primeiro lugar, apesar de a violência

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descrita muitas vezes beirar ao surrealismo, ela é, na verdade, a realidade nua


e crua da fracassada condição humana em sua vivência cotidiana. A segunda
característica, complementar a esta, é a forma direta e dura, sem rodeios, que
Fonseca imprime aos seus textos: para narrar um conteúdo drástico é preciso
uma forma drástica. São exemplares de seu estilo propositalmente chocante os
episódios de “Passeio noturno”, em sua obra de 1975, Feliz Ano Novo:
Saí como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta, nesta cidade que tem
mais gente que moscas. Na avenida Brasil, ali não podia ser, muito movimento. Cheguei numa
rua mal iluminada, cheia de árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? Realmente não
fazia grande diferença, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a ficar tenso, isso
sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. Então vi a mulher, podia ser ela, ainda que
mulher fosse menos emocionante, por ser mais fácil. (FONSECA, 1975, p. 50)  

Esse estilo narrativo “seco” brutal, é o retrato em preto e branco da perversidade


humana. O narrador de Feliz Ano Novo é um pai de família da burguesia endinheira-
da que faz “passeios noturnos” escolhendo vítimas para atropelar com o seu potente
carro importado, pois só assim conseguiria aliviar o peso do “dia de trabalho”. Que
tipo de trabalho é esse não é dito, apenas somos informados que lhe proporcio-
nava um padrão de vida abastado. O narrador em jogo dialógico, faz afirmações e
negações que nos faz ficar em dúvida sobre este personagem. Não sabemos se ele
é um industrial ou um traficante ou qualquer outra profissão. Ou haveria por trás da
indefinição profissional do narrador uma denúncia implícita dos tipos sociais surgi-
dos nos “anos de chumbo” do Brasil contemporâneo, uma metáfora dos “trabalhos
ocultos” que a História mostrou terem sido praticados no período.

Em 1963, ao publicar seus primeiros contos no livro Os Prisioneiros, o Brasil


estava no prenúncio da ditadura militar e, na linha de grande parte dos artistas
da época, o ex-policial Rubem Fonseca era um observador atento da sociedade
que se formava naquela situação. Prova disso foi a própria experiência de Fon-
seca com os contos de Feliz Ano Novo. O livro lançado em 1975 foi proibido de
ser comercializado em razão da censura do governo militar. As alegações básicas
remetiam aos “palavrões” empregados no texto. O autor foi processado e a obra
só voltou a circular em 1989.

A verdade é que Rubem Fonseca fora delegado e relações públicas da polícia


de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, entre 1952 e 1958, e trazia para seu traba-
lho literário muitas das experiências vividas naquele período – o personagem
detetive Matos é um exemplo disso. No entanto, sua obra também denunciava
a proposta de um país desenvolvimentista em meio ao crescimento da pobreza,
da exclusão social, da violência, do egoísmo e prepotência da classe média, e do
autoritarismo dos homens da ordem e do progresso. Esse olhar atento para as

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coisas do Brasil atingiu seu ápice já na década de 1990, com o romance Agosto.
Aqui, realidade e ficção encontram-se para recontar um dos episódios mais dra-
máticos da história brasileira: a morte de Getúlio Vargas.

Murilo Rubião e a lógica do absurdo


Considerado o precursor da literatura realista fantástica brasileira, o mineiro
Murilo Rubião (1916-1991) publicou seu primeiro livro de contos, O Ex-mágico,
em 1947, após peregrinar por diversas editoras. O autor, que até essa primeira
publicação alegava desconhecer a obra do tcheco Kafka (pai da literatura insóli-
ta e absurda), ecoa em sua obra inaugural a estética kafkiana.

Leitor da Bíblia, Rubião trouxe as Sagradas Escrituras para a sua criação ficcio-
nal. A presença dos textos sagrados confirma-se inclusive pelas epígrafes de pas-
sagens bíblicas em seus contos. Por exemplo, no conto “O Edifício”, publicado pela
primeira vez em 1965, o autor recupera o tom da proclamação profética (“Chegará
o dia em que os teus pardieiros se transformarão em edifícios; naquele dia ficarás
fora da lei”, Miquéias, 7: 11) para denunciar a desordem instalada na mente das
personagens e no espaço físico que ocupam. E mais: desenvolve em suas narrati-
vas o gosto pelo desdobramento extraordinário, quando não insólito.

No conto em discussão, um jovem e arrogante engenheiro assume a missão


de coordenar a construção do maior arranha-céu de que se tinha notícia, um
edifício de infinitos andares, sendo, contudo, advertido a não ter a ilusão de levar
esse objetivo a termo. Além disso, o próprio Conselho Superior da Fundação que
o contratara profetizara que, ao se atingir o octingentésimo andar do edifício,
haveria irremovível confusão no meio dos operários e, consequentemente, o fra-
casso definitivo do empreendimento. Qual o motivo de tão extraordinária cons-
trução? O engenheiro jamais soube. De qualquer modo, cumpria ano após ano a
sua jornada vertical, até atingir e supostamente vencer a maldição do andar de
número 800:
Afinal, dissiparam-se as preocupações. Haviam chegado sem embaraços ao octingentésimo
andar. O acontecimento foi comemorado com uma festa maior que as precedentes. Pela
madrugada, porém, o álcool ingerido em demasia e um incidente de pequena importância
provocaram um conflito de incrível violência. Homens e mulheres, indiscriminadamente, se
atracaram com ferocidade, transformando o salão num amontoado de destroços. Enquanto
cadeiras e garrafas cortavam o ar, o engenheiro, aflito, lutava para acalmar os ânimos. Não
conseguiu. Um objeto pesado atingiu-o na cabeça, pondo fim a seus esforços conciliatórios.
Quando voltou a si, o corpo ensanguentado e dolorido pelas pancadas e pontapés que
recebera após a queda, sentiu-se vítima de terrível cilada. De modo inesperado, cumprira-se a
antiga predição. (RUBIÃO, 1998, p. 162)  

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Não há dificuldade em perceber que Murilo Rubião, neste conto, faz refe-
rência ao período de modernização do Brasil, o qual testemunhara nas ruas de
Belo Horizonte (MG). Os primeiros arranha-céus, os gigantescos galpões fabris,
a urbanização desenfreada em capitais como a Belo Horizonte de Murilo Rubião
nos anos 1930 aguçaram a sensibilidade de artistas, que viam no processo o pre-
núncio do caos social, do capitalismo canibalesco; da fragmentação do eu até a
automatização do indivíduo num mundo sem respostas; enfim, da realidade em
si mesma, insólita. Assim é o mundo do engenheiro no edifício em construção,
e também da personagem de um interiorano que vem à cidade grande para
uma entrevista com o gerente de uma fábrica no conto “A fila”, em O Convidado
(1974), em que homens esperam por uma entrevista de emprego numa imensu-
rável fila. Ali, todas as tentativas do personagem central de conseguir sua entre-
vista são infrutíferas, ele é continuamente impedido de atingir seu objetivo por
funcionários subalternos. O conto, portanto, faz uma crítica mordaz à burocracia
“surrealista” típica do cotidiano capitalista.

O realismo fantástico de Murilo Rubião, assim como na escola kafkiana, propõe


uma forma de enxergar o real empírico através de lentes que ultrapassam a visão
imediata. Rubião, no dizer de Massaud Moisés (1989, p. 496), “mira a realidade como
um palco onde brilhassem o insólito e o maravilhoso. [...] Basta atentar para as
coisas e os seres para vê-los dividir o espaço com o inverossímil, o sobrenatural”.

A crônica de Fernando Sabino: ridendo castigat mores


No campo da crônica, o mineiro Fernando Sabino tornou-se um dos mais
competentes manejadores da arte de retratar a vida cotidiana nas grandes ci-
dades. Para esse escritor e jornalista, a crônica é “a busca do pitoresco ou irrisó-
rio no cotidiano de cada um”. No texto intitulado “A última crônica” (1965), ao
mesmo tempo em que confessa o desejo de perseguir até o fim a singeleza na
representação artística da realidade, Sabino revela metalinguisticamente o seu
manifesto pessoal da crônica:
A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na
realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar
inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano
de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo
humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao
episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras
de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do
essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do
poeta se repete na lembrança: “assim eu quereria o meu último poema”. Não sou poeta e estou
sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem
uma crônica. (SABINO, 1965, p. 174)  

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De um modo geral, pode-se considerar o gênero crônica como uma narrativa


curta que representa ficcionalmente fatos empíricos e circunstanciais através da
linguagem literária e traços estilísticos do gênero reportagem. Por isso, o meio
privilegiado de publicação de crônicas é o jornal. Sendo os textos, em geral, pu-
blicados primeiramente em jornais e revistas, para somente num segundo mo-
mento serem reunidos em livro. A crônica literária é provocativa, exigindo uma
atitude ativa por parte do leitor que, retirado da zona de conforto de uma leitura
descomprometida, deve produzir uma resposta imediata ao texto lido. É assim
ao final da crônica acima referida, em que o fato aparentemente simples de uma
família negra e pobre – presente no mesmo lugar e hora em que se encontrava o
cronista, o tal “botequim da Gávea” – demonstra pura felicidade ao comprar um
único e modesto pedaço de bolo em comemoração ao aniversário da filhinha
de três anos. A cena envolta em puro lirismo “apresenta-se” à sensibilidade do
artista e converte-se na crônica que o escritor tanto buscava. Ao contemplar o
humilde pai de família, intrépido em seu momento de êxtase heroico, o ficcionis-
ta recebe da cena, não apenas a crônica, mas também a sua metáfora:
O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso
da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba,
constrangido – vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se
abre num sorriso.

Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso. (SABINO, 1965, p. 174)  

Sabino iniciou sua carreira literária na década de 1940 com o livro de contos
Os Grilos não Cantam Mais (1941), consagrando-se ainda com narrativas médias
e longas, das quais se destacam, sobretudo, duas obras: os romances O Encontro
Marcado (1956) e O Grande Mentecapto (1979). No intervalo desses livros, Sabino
dedicou-se essencialmente à escrita de crônicas, publicadas entre 1960 e 1977
sob os títulos: O Homem Nu (1960); A Mulher do Vizinho (1962); A Companheira de
Viagem (1965); A Inglesa Deslumbrada (1967); Gente (1975); Deixa o Alfredo Falar!
(1976); O Encontro das Águas: crônica irreverente de uma cidade tropical (1977). De
1980 até a sua morte em 2004, o autor dividiu-se entre a narrativa longa e curta,
com uma maestria que lhe rendeu uma sólida carreira internacional, recebendo
traduções em diversas línguas e prêmios no Brasil e no exterior. Em julho de
1999, foi agraciado pela Academia Brasileira de Letras com o prêmio “Machado
de Assis” em razão do conjunto de sua obra.

Para terminar, é necessário se dizer que, em suas narrativas, os elementos


reais ganham o tom da paródia, do chiste, enfim, do humor a serviço da crítica
e da denúncia contra a degradação do lugar do indivíduo na sociedade. Nesse
sentido, reinterpretando a máxima latina dura lex, sed lex, Sabino cunhou uma

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Tendências contemporâneas: prosa

das frases mais famosas da cultura brasileira: “Pros pobres, é dura lex sed lex: a lei
é dura, mas é lei. Pros ricos, dura lex sed latex: a lei é dura, mas estica” (SABINO,
1985, p. 87). Do mesmo modo que a antiguidade clássica nos ensinou que rindo
se corrigem os costumes (ridendo castigat mores), tal princípio se fez amplamen-
te presente em toda a ficção de Sabino, o qual soube perceber de forma aguda
o tragicômico entremeado no cotidiano dos grandes centros urbanos, com indi-
víduos aturdidos entre a luta pela sobrevivência diária e a busca pela afirmação
de sua humanidade.

Texto complementar

A crise da representatividade na arte


do século XX e o conto
Da curiosidade em saber “o quê” à curiosidade em
saber “como”
(MARIA, 1992, p. 76-84)

[...] o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda
devagar; tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu
estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam,
urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...

Nesta passagem de Memórias Póstumas de Brás Cubas (cap. LXXI), Macha-


do de Assis, referindo-se ao seu próprio estilo, coloca explicitamente a ques-
tão da representação literária. O texto que reproduz fielmente uma realidade
exterior a ele, um referente externo, o que, com presteza e fluência conta uma
estória, constitui a “narração direta e nutrida”, amada pelo leitor, de que fala
Machado de Assis. E, aqui, um dado importante quando se pensa em literatu-
ra do século XX: a figura do leitor, o papel a ser desempenhado por ele.

Machado de Assis, num procedimento autenticamente moderno, seme-


lhante a alguns momentos dos filmes de Godard, dirige-se numa clara se-
gunda pessoa ao leitor. E diretamente lhe critica a postura de correr atrás da
representação dos fatos, de buscar avidamente o desenrolar da estória, sem
atentar para o verdadeiro elemento literário: o estilo. Sem atentar para o fato
de que, em arte, qualquer representação do real estará sempre mediatizada

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pela “visão” e “expressão” do artista. Exatamente por isso, Machado escarne-


ce deste leitor e zomba de sua obtusidade: “[...] o maior defeito deste livro és
tu, leitor”. Registrando, assim, a inconveniência deste tipo de leitor para o seu
texto, Machado – um autor que em vários aspectos revela-se moderno – regis-
tra a absoluta inconveniência deste tipo de receptor para a arte que o século
XX vai produzir.

Se a relação da arte com o real sempre constituiu preocupação de artistas


e criadores, nos últimos cem anos esta relação aparece no âmago das ques-
tões de que têm se ocupado artistas plásticos, cineastas, poetas e escritores
em geral.

Enquanto a arte realista do século XIX, o romance mimético – reprodução


cuidada e verossímil do real – ou a pintura figurativa do passado, servindo
para registrar a imagem de uma pessoa notável, por exemplo, mantêm uma
certa cumplicidade entre autor e receptor, entre o artista e seu público – es-
pécie de acordo mútuo sobre interesses e valores comuns – a arte da moder-
nidade denuncia a quebra desta relação. A segunda metade do século XIX
é já o palco sobre o qual se desenham as linhas configuradoras desta nova
ordem das coisas.

Lembre-se que, de pano de fundo das modificações artísticas, estão as


modificações histórico-sociais que engendram os modos de vida em cada
época. A arte é, sempre, a expressão de um ser sensível ante o real com que
se defronta. E, no século XIX, vão-se consubstanciar, realmente, mudanças
que os tempos de modo gradativo vinham germinando. A Revolução Indus-
trial e o consequente declínio do artesanato, a ascensão da classe burguesa
– a presença dos novos-ricos, sem qualquer lastro de cultura e tradição –, a
produção em série de bens vulgares e pretensiosos frequentemente nomea-
dos como “Arte” – tudo isso havia deteriorado o gosto do público, marcando
profunda dissociação entre o artista e o receptor de sua arte.

Se para o promissor homem de negócios o artista não passa, na maio-


ria das vezes, de um impostor que exige preços absurdos por um trabalho
sobre o qual recai o questionamento da “utilidade”, mudando-se a ótica, para
o artista, tornou-se agradável passatempo, quando não agressiva revolta,
“chocar o burguês”, agredi-lo com a estranheza, obrigando-o à perplexidade
diante de uma arte que tende para a abstração e promove a subversão ra-
dical das convenções do realismo. O artista moderno divorcia-se dos valores
da burguesia, sem abraçar outra classe.

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Na pintura vamos encontrar, no movimento expressionista de princípios


do século XX, por exemplo, a deliberada recusa àquela “fidelidade à natu-
reza” e à “beleza ideal”, assumindo inteiramente que os nossos sentimentos
deformam a nossa visão das coisas e produzindo uma arte que se negava a
expressar apenas o lado agradável da vida. Do ponto de vista da recepção, a
arte expressionista parece ter desagradado, não tanto por furtar-se à repre-
sentação fiel a que o público se acostumara, mas justamente por distanciar-
se da beleza, devolvendo ao público a imagem do feio-horrível, como se pre-
tendesse obrigá-lo a mirar-se e reconhecer-se nela. Quem não se lembra, por
exemplo, do famoso Guernica, de Picasso, retratando os horrores da guerra?

Outra grande tendência da pintura contemporânea – o cubismo – não se


propunha a abolir a representação, mas a reformá-la, a partir da redução da
figura aos seus elementos geométricos básicos. Fragmentando a imagem e
reorganizando-a em ângulos e linhas na superfície da tela, a pintura cubista
procura sugerir a visão simultânea da mesma imagem. De qualquer forma,
da transformação da realidade até a completa desvinculação da arte com o
real exterior, é apenas mais um passo.

Abstracionismo é o nome que recebeu esta nova tendência da pintura


moderna: representar, não formas e imagens da realidade, mas criar formas
geométricas ou não – simples manchas de cores – correspondentes a exi-
gências da pura sensibilidade e do mundo psíquico. Assim, livre de qual-
quer representação figurativa, a pintura abdica da condição de expressar
qualquer conteúdo descritivo. Tal como se cor puxasse cor e forma puxasse
forma, num processo muito semelhante ao que encontramos na poesia da
modernidade, onde está presente o processo “palavra puxa palavra”.

E aqui, leitor avesso à arte, que já se encontrava resmungando à procura


de uma explicação para o fato de eu estar falando de pintura num livro que
indaga sobre conto, eis o fio da meada. Focalizei três tendências contempo-
râneas da pintura arte visual – tentando mostrar como, nas várias manifesta-
ções artísticas do século XX, o experimentalismo formal, a preocupação com
os procedimentos formais, está sempre acima e à frente da preocupação
com a temática. Mesmo quando a arte faz a denúncia do social, esta denún-
cia – a merecer o nome de arte – é revelada através dos processos formais
utilizados pelo artista e não apenas por apontar, conteudisticamente, na te-
mática, o objeto de sua denúncia. Vale, ainda, como exemplo, o Guernica,
de Picasso.

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Veja, estamos no terreno da arte em geral. Se pensamos em literatura, é


igualmente válido o que acabei de afirmar e se nos detemos sobre a questão
do gênero conto, particularmente, é óbvio que nada se altera. Voltemos ao
título deste item e recordemos que ele nos fala de uma passagem, quanto à
relação texto/leitor, em que este último é levado da curiosidade em saber “o
quê” à curiosidade em saber “como”. E este é um dado realmente importante.
Toda a narrativa do século XX exige uma nova postura do leitor: exige que
ele saia da prazerosa atitude de quem espera a fruição fácil de uma estorinha
“água com açúcar”, descruze os braços e participe atentamente do jogo.

As tendências que estão presentes na pintura moderna possuem corres-


pondentes na narrativa, guardadas evidentemente as diferenças das duas
modalidades de arte. A crueza da linguagem, que nos deixa um tanto des-
norteados em muitos contos atuais, tem seu parâmetro no expressionismo
e sua predileção pelo dramático. A fragmentação do discurso, a diversidade
de pontos-de-vista dentro de um mesmo texto, a superposição de cenas –
imitativa também da realidade fílmica – são elementos que se aparentam de
muito perto com o cubismo das artes plásticas.

Por outro lado, o livre exercício da linguagem, a completa autonomia do


texto, do discurso, em relação à representação de um conteúdo externo, a
volta da arte sobre si mesma, a metalinguagem, a metapoesia, o metarro-
mance, o metaconto (o conto que fala do conto) [...] são tendências presen-
tes na literatura do século XX e que correspondem àquela autonomia busca-
da pela pintura abstrata.

Evidente que para uma literatura consciente de seus procedimentos for-


mais, uma literatura que não se quer ilusionista, não se quer reprodução fiel
da realidade, mas parece gritar a cada momento para o leitor – Isto é um
texto! Trata-se de uma arte! – uma literatura, então, anti-ilusionista, que não
esconde e ainda joga com o seu caráter de “criações”, há que se desejar um
leitor atento a estas particularidades. Um leitor que não tenha “pressa de en-
velhecer” e não vá sedento ao pote, em busca de um “o quê” revelador da se-
quência dos acontecimentos, mas um leitor que olhe em todas as direções,
abraçando desde a visão do todo até o exame das partículas mínimas que
atuam no “como” se realiza o texto. Enfim, um leitor atento não para “o quê”
o texto conta, mas atento a “como” o texto conta. E é por isto que Machado
de Assis, adivinhando esta nova relação a ser proposta pela arte moderna, já
lança sobre o leitor seu descontentamento.

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Dicas de estudo
Para um estudo mais profundo e complementar às questões que apresenta-
mos sobre a prosa contemporânea, fazemos as seguintes sugestões:

 Os textos do semiólogo e escritor italiano Umberto Eco em Obra Aberta:


forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas, Editora Perspectiva,
oferecem uma visão abrangente sobre a cultura e o estado da arte e da
literatura no cenário contemporâneo.

 Do contista e teórico da literatura Júlio Cortázar indicamos os textos “Al-


guns aspectos do conto” e “Do conto breve e seus arredores”, que estão em
sua obra de referência Valise de Cronópio, Editora Perspectiva.

 No livro de contos Tutameia, de Guimarães Rosa, Editora Nova Fronteira,


há quatro prefácios do autor intitulados: “Aletria e hermenêutica”, “Hipo-
trélico”, “Nós, os temulentos” e “Sobre a escova e a dúvida”, que são engra-
çadíssimas aulas sobre a natureza do conto.

Estudos literários
1. Explique a relação entre a conjuntura política na América Latina e a concep-
ção estética nas literaturas de seus países na segunda metade do século XX.

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2. As décadas de 1960-1970 são consideradas, na literatura brasileira, a era da


narrativa curta, o conto, e por extensão, a crônica. Ficcionistas como Dalton
Trevisan, Moacyr Scliar, Lygia Fagundes Telles, Rubem Fonseca, Murilo Ru-
bião e Fernando Sabino privilegiaram esse gênero narrativo para traçar um
retrato do Brasil pós-1964. Para cumprir tal objetivo, os autores adotam di-
versas temáticas. Indique um tema comum a Dalton Trevisan, Moacyr Scliar
e Murilo Rubião, explicando seu uso literário.

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3. “Pros pobres, é dura lex sed lex: a lei é dura, mas é lei. Pros ricos, dura lex sed
latex: a lei é dura, mas estica” (SABINO, Fernando. A Falta que Ela me Faz. Rio
de Janeiro: Record, 1985. p. 87). Comente essa famosa frase que integra uma
crônica de Fernando Sabino com base no projeto estético do autor.

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A poesia é uma fatalidade do espírito humano. Porque


é a operação de linguagem diante do mistério, diante do pasmo,
da vida, do amor e da morte. E enquanto houver vida,
amor e morte, haverá necessidade de exprimir
esta nossa perplexidade diante disto.

Affonso Romano de Sant´Anna

A crítica continua se debatendo sobre um tema difícil no campo da análise


literária, que é o problema da avaliação das obras de arte no tempo de sua
própria produção. No caso da história da literatura, a pergunta suscitada é se
seria factível abordar o fenômeno literário “a quente”, sem um distanciamento
temporal que permitisse confirmar ou condenar um estilo, uma forma ou um
gênero literário. Entre as visões correntes sobre o tema, a perspectiva de Mas-
saud Moisés surge como um ponto de partida seguro para se pensar o objeto
de estudo neste capítulo: a poesia contemporânea. O crítico afirma que:
Entre [1] suspender a sondagem do fenômeno literário no momento em que a
distância cronológica não é suficiente para se captar com clareza o fluxo histórico e,
com cautela, [2] delinear um esboço descritivo que sabemos provisório [...], sujeito a
correções futuras, preferimos a segunda alternativa. (MOISÉS, 1989, p. 513)  

Desse modo, tendo-se em mente a “cautela” sugerida pelo crítico,


vamos neste capítulo delinear um esboço descritivo da poesia brasileira
produzida nas últimas quatro décadas.

Ivan Junqueira: o poeta do palimpsesto


A poesia mais forte que se escreve hoje está sendo escrita no Nordeste [...]. No caso
de Pernambuco, por exemplo, há dois poetas excepcionais que são César Leal e Ober
da Cunha Melo. [...]. Na Bahia você tem o Dario Tavares, Rui Espinheira Filho, Miriam
Fraga, Luiz Antonio Cajazeira Ramos. Aqui [Ceará] você tem um enorme poeta que
é o Francisco Carvalho, você tem Luciano Maia, José Alcides Pinto, Floriano Martins,
Adriano Spíndola. No Maranhão nós temos o José Chagas, temos o Lauro Machado.
Mais acima, no Amazonas, há um poeta notável que é o Luiz Barcelar, e também o
Aníbal Bessa. (Entrevista de Ivan Junqueira para Maranhão, 2003)  

Essa opinião categórica de Ivan Junqueira (1934- ) a respeito dos poetas


brasileiros de hoje revela algo desconcertante: a dificuldade de se abarcar
o universo da poesia que se faz hoje no Brasil. Certamente a concepção de
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“poesia forte” de Ivan Junqueira resvala em critérios identificados em seu próprio


fazer poético, os quais podem ser conferidos nos títulos Os Mortos (1964), A Rainha
Arcaica (1979), O Grifo (1986), A Sagração dos Ossos (1994), bem como em seus en-
saios e opiniões públicas como a entrevista de onde extraímos a citação acima.

Entre as características na poesia de Junqueira destacadas em sua fortuna crítica


está o rigor extremo na elaboração formal. O poeta dialoga com a tradição lírica e
não se abstém de utilizar formas fixas (poemas em tercetos, quadras, quintilhas, em
rimas soantes ou toantes) e revisitar estilos variados dos mestres predecessores.

Esse diálogo com o cânone universal rendeu-lhe por vezes o epíteto de poeta
passadista. Porém, conforme recorda o crítico Ricardo Thomé (1995), Ivan Jun-
queira faz na verdade um “palimpsesto1 poético”, isto é, ele não nega as gera-
ções passadas, antes, ele escreve os seus versos sobre as marcas deixadas pelos
escritos anteriores, somando a sua camada poética à superfície herdada de um
Manuel Bandeira, um Carlos Drummond de Andrade, um Baudelaire e assim su-
cessivamente. Junqueira consolida essa imagem no poema “Palimpsesto”:

Eu vi um sábio numa esfera,


os olhos postos sobre os dédalos
de um hermético palimpsesto,
tatear as letras e as hipérboles
de um antiquíssimo alfabeto.
Sob a grafia seca e austera
algo aflorava, mais secreto,
por entre grifos e quimeras,
como se um código babélico
em suas runas contivesse
tudo o que ali, durante séculos,
houvesse escrito a mão terrestre.
(JUNQUEIRA, 2005, p. 177) 

Os temas recorrentes em sua obra são a morte, o amor e a própria arte; temas
que resultam numa poesia da famigerada condição humana. Mas, a imagem da
morte que aparece desde já nos títulos de seus livros (Os Mortos; A Sagração dos
Ossos) não significa, no entanto, apego ao niilismo2 ou a lamentação pelo paraíso
perdido, antes o poeta destaca a morte para louvar a vida. Exemplo dessa atitude
1
Palimpsesto (2001): papiro ou pergaminho cujo texto primitivo foi raspado, para dar lugar a outro”.
2
Niilismo (2001): ponto de vista que considera que as crenças e os valores tradicionais são infundados e que não há qualquer sentido ou utilidade
na existência.

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Tendências contemporâneas: poesia

poética está na primeira e na última estrofe do poema “Sagração dos ossos”. No


poema, os ossos inertes no sepulcro, que se mantêm íntegros para além da morte,
são saudados pelo poeta:

Considerai estes ossos


– tíbios, inúteis, apócrifos –
que sob a lápide dormem
sem prédica que os conforte.
[...]
sagro estes ossos que, póstumos,
recusam-se à própria sorte,
como a dizer-me nos olhos:
a vida é maior que a morte.
(JUNQUEIRA, 2005, p. 283) 

Rubens Rodrigues Torres Filho:


poesia em transição
Como num trapézio, a oscilação entre o alto e o baixo fecha um círculo envolvendo tensão e
vertigem. Vamos ao circo e sentimos o frenesi, a arte do trapezista se desenha no intervalo.
(PAIXÃO, 1997, p. 16)  

A metáfora do trapezista foi utilizada pelo crítico Fernando Paixão no prefácio


do sexto livro do poeta Rubens Rodrigues Torres Filho, uma coletânea de sua obra
intitulada Novolume. O motivo, justifica o crítico, é o caráter móvel de sua constru-
ção poética. Dito de outra forma, há nos poemas uma intenção vertiginosa de colo-
car em contato pensamentos, sonhos e imagens, com versos investidos de ritmo e
contorção. Essa forma poética criaria uma experiência de leitura “como se” estivesse
diante do espetáculo de um trapezista, em que, no momento intervalar de seu voo
em direção ao próximo objeto de contato, o público prende a respiração, vive-se
segundos de frenesi e, mesmo depois do final feliz do espetáculo, permanece no
peito do espectador o desassossego de uma alegria mediada pelo susto.

Esse misto de desassossego e alegria perpassa a obra de Torres Filho. O filósofo-


poeta canta a vida com humor e ironia, mas não baixa a guarda para a vida como
ela é. Nos versos a seguir, as palavras escolhidas, a ausência de pontuação cria
aquela imagem de “alto e baixo” do movimento do trapezista, até o ponto final ali-
viador. Mas se o leitor fica contente com o fim da angustiante leitura que lhe exigiu
todo o ar dos pulmões, permanece o desassossego das incongruências da vida:
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Procurei inutilmente por um único objeto


que fosse a um só tempo expressivo e quieto,
inútil e completo
como costuma ser somente aquilo que é correto
e quando vem ao caso, mas nunca sempre, aquieta
as irrequietas intenções e irresponsáveis gestos
falsamente coerentes e apreciados nas festas
onde o deus Pã, de tão sóbrio, jamais se manifesta.
(TORRES FILHO, 1997, p. 24) 

Este poema, que traz o paradoxo já no título, “Nunca sempre”, integra o livro
Novolume. Nele verifica-se o requinte artesanal no manuseio das palavras carac-
terístico de Torres Filho. No movimento inebriante dos versos, à primeira vista
herméticos, vai se desvelando um lirismo lúdico, jogos verbais, trocadilhos, alu-
sões, paradoxos e um vívido senso de humor. Outra característica marcante em
seus poemas é a elaboração formal, que neste exemplo é essencial para a intera-
ção leitor-poema. Basta reler o poema, preferencialmente em voz alta!

Filho da elite paulista da primeira metade do século, cursou por obrigação fa-
miliar o curso de Direito no Largo do São Francisco (USP) e concomitantemente,
por vocação, o curso de Filosofia na mesma Universidade. Com os diplomas em
mãos, ignorou o de Direito e seguiu a ciência da razão. Trilhou um bem sucedido
percurso acadêmico tornando-se um dos mais prestigiados professores da Univer-
sidade de São Paulo. Exerceu com o mesmo zelo a carreira docente e a de poeta,
ficcionista, tradutor e historiador da filosofia moderna. “No fundo”, afirma o crítico
Davi Arrigucci Jr., Rubens Rodrigues Torres Filho “se vincula à linhagem dos poetas
doutos, modernos e críticos, já sem filiação definida, mas com certeza um autor
para quem pesa a muita leitura e o saber universitário” (TORRES FILHO, 2009).

A poesia delas: Adélia Prado,


Hilda Hilst e Ana Cristina César
Nosso trânsito, neste capítulo, passará pelo caminho de três poetisas que,
cada qual ao seu estilo, semearam o terreno da poesia brasileira que se pratica
hoje. Por exemplo, a “poesia marginal” ou “periférica” – cujo chão tem sido ou as
periferias dos grandes centros urbanos ou espaços literários que não coadunam
com o chamado “cânone literário” – encontra a sua gênese na literatura marginal

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ou “udigrúdi”3 dos anos 1960, cuja representante mais emblemática é a carioca


Ana Cristina César (1952-1983).

Um outro tipo de poesia, igualmente importante na história da literatura bra-


sileira, será vista nos versos da paulista Hilda Hilst (1930-2004). Poetisa, ficcionis-
ta e dramaturga, Hilst produziu ao longo de quase 50 anos de carreira vasta obra
laureada com os mais importantes prêmios literários brasileiros. Entretanto, sua
obra provocadora do cânone e dos costumes encontra, não raramente, resistên-
cia por parte da ala conservadora da crítica e dos leitores.

Ainda por mãos femininas, vamos revisitar a seara da poesia mineira e reli-
giosa de Adélia Prado (1936- ). Ao contrário de Ana Cristina César e Hilda Hilst,
Adélia Prado encontrou seu lugar ao sol canônico e figura na literatura contem-
porânea como uma das mais importantes poetisas brasileiras em atividade.

Adélia Prado: poesia e epifania


Antes do nome

Não me importa a palavra, esta corriqueira.


Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o “de” o “aliás”,
o “o”, o “porém” e o “que”, esta incompreensível
muleta que me apoia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.
(PRADO, 1991, p. 22) 

Adélia Prado (1936) nasceu, cresceu e reside desde sempre em Divinópo-


lis, cidade do centro-oeste mineiro. A escritora foi apresentada ao público por
Carlos Drummond de Andrade, em 1976, quando contava 40 anos de idade. O
primeiro título, Bagagem, confirmou pela originalidade e estilo ter merecido o
especialíssimo reconhecimento do poeta de “Sentimento do mundo”. Em 1978,
é a vez de O Coração Disparado, com o qual conquista o Prêmio Jabuti de Li-
teratura. Em 1979 e 1980, trilha os caminhos da prosa e volta à poesia no ano
3
Udigrúdi (2001): movimento ou grupo apartado da ordem ideológica, econômica, política etc. que constitui uma sociedade ou um Estado, geral-
mente refletindo pontos de vista heterodoxos, vanguardísticos ou radicais.

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seguinte, em 1981, com Terra de Santa Cruz. Suas próximas publicações poéticas
incluem: O Pelicano (1987); A Faca no Peito (1988) e Oráculos de Maio (1999). Além
dos volumes de poemas, a obra de Adélia Prado compõe-se das prosas: Solte os
Cachorros (1979); Cacos para um Vitral (1980); Os Componentes da Banda (1984);
O Homem da Mão Seca (1994); Manuscritos de Filipa (1999) e Filandras (2001).

Sobre sua poesia, gênero que enfatizaremos aqui, a principal característica


de seus poemas é a presença do sagrado, uma linguagem religiosa que se une
ao profano da vida cotidiana, da vida da gente comum, da família, do amor e do
sexo. Os versos captam e traduzem numa epifania, num momento de revelação,
cada momento aparentemente banal da vida. No entanto, essa experiência não
corresponde a um evento metafísico “do alto”, distanciado dos comuns mortais.
Ao contrário, o inefável em seus versos está ao rés do chão, é a vida revelada
na simplicidade de palavras bem ditas: “O céu estrelado / vale a dor do mundo”
(PRADO, 1999, p. 119).

Drummond de Andrade resumiu com convicção de mestre o fazer poético


da colega mineira: “Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom
tempo: esta é a lei, não dos homens, mas de Deus. Adélia é fogo, fogo de Deus
em Divinópolis” (DRUMMOND DE ANDRADE, 1975, p. 3).

Hilda Hilst: poesia “de carne e osso”


Hilda Hilst é um caso a celebrar na história das artes brasileiras. Paulistana
de Jaú, no interior de São Paulo, nasceu em 1930 numa família endinheirada.
Mudou-se para Santos aos dois anos de idade e depois para São Paulo, onde
se formou, primeiro no Instituto Presbiteriano Mackenzie e depois na Faculda-
de de Direito do Largo São Francisco, da USP. Mas sua carreira como advogada
teve vida breve. Diplomou-se em 1952, trabalhou num escritório de advocacia
em 1953, e dali se demitiu em 1954. As coisas da lei eram incompatíveis com a
paixão pelas letras, cultivada desde a infância.

Aos 20 anos, ainda como estudante de Direito, Hilst lançara seu primeiro livro
de poesia Presságio (1950), iniciando uma carreira que se dividiria, com a mesma
grandeza artística, em prosa, poesia e dramaturgia.

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Ao falecer em 2004, a autora deixou publicados 41 livros, abrangendo os três


gêneros pelos quais transitou (dramaturgia, prosa e poesia). Mas o reconheci-
mento da crítica e do público não andou de mãos dadas no caso de Hilda Hilst.
Desde o início da carreira, recebeu aplausos da crítica, a qual ela desafiava com
uma escrita de temas ousados, de técnica apurada, extremamente personalista
e inventiva. Mas essa literatura exigente dificultava sua aproximação do público.
Hilst não abria mão de uma poesia encorpada, de “carne e osso”, que pudesse
expressar a vida em sua plenitude humana e espiritual. Nessa busca, ela não he-
sitava em usar todos os recursos temáticos e linguísticos à disposição, inclusive
as muito ousadas, para a sua época, palavras obscenas.

Bela, rica, independente e intelectual, a jovem Hilst foi uma “celebridade cultu-
ral” nas décadas de 1950 e 1960. Muitos foram os que suspiraram pela musa em
nada recatada. Um de seus muitos amigos artistas e intelectuais, Carlos Drummond
de Andrade, lhe escreveu um poema em 1952, cantando um certo amor platônico
por aquela que chamou de “estrela Aldebarã” (a estrela mais brilhante da conste-
lação Taurus). Nos versos, o gauche se declara “mui pertubado” ao abrir o jornal e
ver a então socialite “Hilda, que é sab(ilda)” “por entre espécies grã-finas”, “girando
em boates”, com “tanto vestido assinado” que “cobre e recobre de vez / sua preclara
nudez”. E o poeta lamenta: “Hilda dos outros, não minha... (...) não vês que nesses
teus giroflês / esqueces quem tanto te ama?” (LEITE NETO, 1991, p. 5-7).

Nos anos de 1990 e 1991, após uma longa carreira de glórias e esquecimentos, a
escritora procura recuperar a atenção da crítica e do público lançando uma trilogia
erótica ou, como ela mesma definiu, “obscena”. A popularidade de fato aconteceu,
mas em duas vias. De um lado, um número significativo de leitores reviveu a obra da
escritora e isso pode ser comprovado com uma simples busca na internet. Mas, por
outro lado, houve uma tentativa da crítica especializada de soterrar a produção literá-
ria e dramatúrgica hilstiana sob esses três volumes-anátemas, pois “pornográficos”.

A senhora H. H., dona da Casa do Sol, residência e refúgio nas imediações da


cidade de Campinas (SP), onde viveu a partir dos trinta e poucos anos, expressou na
vida e na poesia a libertação feminina conquistada nos turbulentos anos 1970, mas,
sobretudo, a intelectual Hilst refletiu, com temor e esperança, sobre a sua época e
sobre a condição humana, para ela imperfeita e divina. Assim está declamado em
“Poemas aos Homens do nosso Tempo”, publicado inicialmente em 1974:

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Ao teu encontro, Homem do meu tempo,


E à espera de que tu prevaleças
À rosácea de fogo, ao ódio, às guerras,
Te cantarei infinitamente à espera de que um dia te conheças
E convides o poeta e a todos esses amantes da palavra, e os outros,
Alquimistas, a se sentarem contigo à tua mesa.
As coisas serão simples e redondas, justas. Te cantarei
Minha própria rudeza e o difícil de antes,
Aparências, o amor dilacerado dos homens
Meu próprio amor que é o teu
O mistério dos rios, da terra, da semente.
Te cantarei Aquele que me fez poeta e que me prometeu

Compaixão e ternura e paz na Terra


Se ainda encontrasse em ti, o que te deu.
(HILST, 2001, p. 182) 

Ana Cristina César e a “Geração Mimeógrafo”


No ano de 1952, enquanto o poeta Carlos Drummond de Andrade declamava
em versos a beleza e a juventude de Hilda Hilst em seus 22 anos de idade, nascia
no Rio de Janeiro outra mulher também predestinada a ser bela e dedicada às
letras: Ana Cristina César, ou simplesmente Ana C., como era conhecida.

A escritora começa a publicar poemas e textos de prosa poética na década


de 1970 em coletâneas, revistas e jornais alternativos. Mas foi a amiga Heloisa
Buarque de Hollanda quem lançou, em 1976, o nome de Ana C. ao público mais
amplo, ao incluí-la no livro 26 poetas hoje. A coletânea teve por objetivo traçar
um panorama da geração de poetas da década de 1970. Os nomes ali incluídos
remetiam a poetas do grupo chamado de poetas “marginais”, isto é, escritores
que ou não encontravam espaço nas editoras tradicionais ou procuravam burlar
a censura do regime militar e divulgar seus ideais de forma mais livre. Assim, eles
próprios organizavam, editavam, mimeografavam livros artesanais que eram
vendidos nas faculdades, em bares, na porta de teatros e noutros locais públicos.
Daí também o apelido de “Geração Mimeógrafo”.

A maioria desses jovens universitários, cabeludos e contestadores, produziam


versos carregados de coloquialidade, objetividade e crítica social. E, embora não
se tratasse de um movimento poético de características padronizadas, com um
firme ideário estético, todos afirmavam contrapor esteticamente o intelectualis-
mo literário dos anos 1950 e início de 1960.

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Em 1986, dez anos após o lançamento de 26 poetas hoje, a professora, crítica


literária e editora Heloisa Buarque de Hollanda, sempre estudiosa da literatura
marginal, publica artigo no Jornal do Brasil, no qual resume a sua crítica ao estilo
geral da Geração de 70:
A prática poética da geração 70 [...] é um elogio ao anacronismo: a maioria dos poemas, seja
pela técnica, seja pelo tratamento dispensado ao tema, configura uma imitação detalhada da
poesia que se escreveu nos primeiros anos do Modernismo brasileiro (1920 a 1930). Os poemas
de Oswald de Andrade, por exemplo, podem ser facilmente confundidos com as anotações
dos poetas marginais. (HOLLANDA, 1986, p. 4)  

A singularidade de Ana C. foi, portanto, fazer uma poesia com estilo próprio,
numa linguagem apurada, menos coloquial, e subjetiva. Enfim Ana Cristina
César pertencia à tal “Geração Mimeógrafo”, mas seu estilo não correspondia
exatamente àquele típico dos poemas de seus pares. Sua lição de poesia está
impressa em versos como:
olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas (CÉSAR, 2001, p. 249)  

Ana C. exerceu intensa atividade jornalística, editorial e foi tradutora com-


petente de obras de escritoras de sua predileção: Emily Dickinson (1830-1886),
Katherine Mansfield (1888-1923) e Sylvia Plath (1932-1963). Ana C. suicidou-se
aos 31 anos de idade, no Rio de Janeiro, em 1981. Seu prodígio literário legou à
poesia brasileira obras fundamentais que têm sido redescobertas pela crítica, e
produzido uma nova geração de leitores de: Cenas de Abril (1979); Correspondên-
cia Completa (1979); Luvas de Pelica (1980); A Teus Pés (1982); Inéditos e Dispersos
(1985) e Novas Seletas (2004), sendo as duas últimas obras póstumas.

Poesia marginal hoje


Estamos na rua, loco, estamos na favela, no campo, no bar, nos viadutos, e somos marginais
mas antes somos literatura, e isso vocês podem negar, podem fechar os olhos, virar as costas,
mas, como já disse, continuaremos aqui, assim como o muro social invisível que divide este
país. (FERRÉZ, 2005, p. 10)  

A poesia marginal da geração de Ana Cristina César participou de um mo-


mento de reconquista da liberdade de expressão acaçapada pelo regime militar
brasileiro (1964-1985). Os poetas buscavam caminhos alternativos para publicar
e distribuir a sua poesia, além de revelar novos poetas. Essa geração não chegou
a formar um movimento poético de características padronizadas; no entanto,

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assim como muitos dos ideais culturais dos anos 1960, a ideia de literatura mar-
ginal persiste até os dias de hoje.

Mas há diferenças significativas entre aquele momento e o atual. A litera-


tura marginal pós-ditadura é uma literatura urbana, contemporânea, voltada
para a cidade e seus problemas, para questões do país e do mundo globaliza-
do. Também chamada de “literatura periférica”, ela é dividida em prosa e poesia
que denunciam, sobretudo, a desigualdade social, a miséria, a violência. Nesse
sentido, as produções atuais ainda cumprem um propósito de contestação.
Mas, ao contrário da década de 1970, seus praticantes em geral não frequen-
tam o meio universitário e vivem não apenas a marginalidade literária, mas
também a realidade da exclusão social. Os versos revelam um misto de angús-
tia e determinação.

Apesar de muitos possuírem publicações próprias ou já terem publicado em


jornais alternativos e mesmo alguns poucos terem alcançado as editoras oficiais,
o meio eletrônico, a internet, também se apresenta como o futuro da reprodu-
ção, antes mimeografada. Com a “inclusão digital” atingindo um número cada
vez maior de jovens em todas as classes sociais, a literatura marginal tem à sua
disposição um valioso aliado.

A poesia marginal hoje congrega autores e títulos publicados “oficialmente”


ou não como Allan da Rosa (Vão, 2005); Dinha (De Passagem, mas não a Passeio:
poesia reunida, 2006); Sérgio Vaz (Colecionador de Pedras, 2007), entre outros.

Texto complementar

Cinco pontas de uma estrela


(BOSI, 2006, p. 44-49)

O objetivo deste artigo é destacar brevemente um aspecto de cinco


poetas: a interrogação sobre o lugar do sujeito. São eles: Ferreira Gullar, Au-
gusto de Campos, Sebastião Uchoa Leite, Francisco Alvim e Armando Freitas
Filho. Muito diferentes entre si, cada qual compôs uma obra consistente em
que podemos apreender e delinear os embates das últimas décadas. Com
eles, é possível puxar essas pontas dos fios da história para abarcar o contex-
to brasileiro em dimensões mais amplas, dada a necessidade de rastrear os

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Tendências contemporâneas: poesia

centros nervosos vitais que deságuam na poesia contemporânea, e tendo em


vista as reviravoltas que marcaram momentos de crise no Brasil desde os anos
de 1950 e 1960. A partir de então, não se podia mais acreditar que houvesse
condições para uma retomada da subjetividade nos moldes do alto modernis-
mo, mesmo nos poetas ditos marginais: apesar da leitura consistente de (por
exemplo) Manuel Bandeira (1886-1968), Carlos Drummond de Andrade (1902-
1987) e João Cabral de Melo Neto (1920-1999) neles presente, cristalizaram-se
outras atitudes frente ao mundo e ao próprio eu, uma vez que a consciência
da crise política e existencial se tornara imperativa. Quanto à fé revolucionária
dos anos de 1960, passou por tais agruras que necessariamente se matizou.
Por fim, nem se conseguiria reter o mesmo ideário do construtivismo caracte-
rístico dos anos JK (Juscelino Kubitschek (1902-1976)), quando esperanças de
modernização e desenvolvimento afiguravam-se factíveis.

O período próximo à virada para os anos de 1970 foi significativo para o


assentamento da arte atual. Quando Glauber Rocha (1939-1981), em Terra
em Transe (1967), critica a figura do intelectual que se julga onisciente en-
quanto na verdade descobre-se um pau-mandado das elites – longe do povo
e perto da própria vaidade –; e quando Hélio Oiticica (1937-1980) inspira-
se na construção popular dos barracos, puxadinhos e carnavais para criar
parangolés e penetráveis... Pode-se antever o construtivismo enferrujado e
opaco de Amílcar de Castro (1920-2002), que (como bem analisou Rodrigo
Naves) não escolheu o dúctil e brilhante alumínio para suas esculturas mas o
peso do ferro, extraído com trabalho quase escravo das minas, imprimindo,
na dificuldade das dobras, a memória do material e de sua dura escavação
– também aí uma reflexão sobre transformações importantes na realidade
encarnam-se na forma artística como consciência de fundo.

Assim, as décadas subsequentes contemplaram amadurecimentos im-


portantes na obra de alguns poetas, que se consolidaram em uma lingua-
gem mais complexa, levando em conta vários tipos de tensão entre arte e
sociedade. Ao contrário de seus antecessores dos anos de 1950 e 1960, as
novas gerações atenuaram seus projetos para o futuro, revendo a crença na
possibilidade de transformação redentora da realidade presente, e conse-
quentemente, seu lugar como sujeito na história e sua linguagem como ex-
pressão de uma voz coletiva.

A partir dos anos de 1970 e mesmo de 1980, observamos dois movi-


mentos que parecem opostos: de um lado, uma paralisação ou repetição de

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certos paradigmas durante anos a fio (muitas vezes até hoje) e, de outro, a
interrupção abrupta de experiências artísticas levadas ao limite. São dois ex-
tremos entre os quais há algo em comum: tanto um quanto outro ajudam-nos
a compreender porque, como consequência da frustração, alguns sofreram a
suspensão da própria vida e obra, e outros continuaram a reiterar o mesmo,
como se a história tivesse parado. Há, porém, um terceiro tipo de desdobra-
mento: poetas que, sem significativas alterações de fundo, conseguiram aden-
sar e enraizar sua visada reflexiva. Nas artes plásticas, um pintor como Iberê
Camargo (1914-1994), nas séries finais dos anos de 1990, vislumbra essa es-
tranha percepção da estagnação melancólica do tempo representando velhas
crianças de expressão inocente ou alvar cujo corpo dissolve-se, e cujos olhos
se confundem com o azul do fundo, ao lado de uma bicicleta imóvel.

Na poesia de Ferreira Gullar, a crise anunciada foi arraigando-se e transfor-


mando-se à medida que a consciência aguda do tempo subjetivo e históri-
co era análoga à consciência da necessidade da sintaxe discursiva, e mesmo
narrativa – até chegarmos ao paradoxo de Muitas Vozes (1999), em que o
mais prosaico e desataviado dos versos apresenta a impotência da expres-
são pessoal frente à morte, mas o poético nasce deste cerne duro, alcançan-
do transfiguração ao permear-se da voz do outro e do alarido da rua. Desde
o começo, Gullar se debatia entre as memórias mescladas da infância e o
desejo de abarcar todos os homens, conectando seres miúdos a corpos ce-
lestes, barulhos da cidade e da natureza à situação do país – e revoltando-se
contra o lugar fixo de sujeito branco de classe média, e contra o lugar mumifi-
cado de artista. A vertigem de minudências e as passagens abruptas do Poema
Sujo (1976) antecipam a procura da síntese com fraturas que ele sempre buscou,
seja no final daquele livro (quando encaixa o homem dentro da cidade, dentro
do mundo numa série que intenta montar um quebra-cabeça de forma meto-
nímica), seja em sua obra mais recente. Os embates entre construção e imersão
na existência, e a necessidade de criar uma fala nova aproximando-a da do nas-
cimento e podridão das coisas, acompanham a luta do poeta para aproximar-se
do corpo dos seres, nos quais vida e morte, um e outro, convivem.

Já Augusto de Campos retorna muitas vezes ao tema da presentificação


reiterada, do circuito do nada ao nada, como um mantra – tempo e espaço
circulares, poemas parados no ar – letras de néon piscando, de um agora que
pulsa imóvel. Para isso, cria constantes variações da geometria do quadrado
em ricochete ou círculos sem saída, como em SOS – uma orfandade do eu
vagando no concêntrico.

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Embora os poemas do livro mais recente (Não, 2003) acentuem a positi-


vação do design industrial e das possibilidades do computador, observamos
que, mesmo depositando confiança na técnica, Augusto de Campos expri-
me a angústia do sujeito imobilizado que, ou jaz numa catacumba, ou velho,
“mata em si/sua criança”. Como se a crítica do processo de desenvolvimento
que se estagnou – na utopia representada por Brasília e no progresso urbano
e democrático anunciado pelos cosmopolitas anos de 1950 (e que a poesia
concreta encarnou) – se fizesse no inconsciente do poema, numa talvez des-
percebida tensão: “O poeta morituro te saúda.” Nesse sentido, um poema
que coroa a passagem dos anos de 1970 para os de 1980 é o famigerado
“Pós-tudo”, ao introduzir a subjetividade biográfica, a temporalidade narrati-
va e a autoironia ao mesmo tempo que reafirma a forma concreta, gerando
um curto-circuito, como um cartaz que, sem renunciar a anunciar, anuncias-
se a renúncia. Essa afirmação da impotência do eu nas entrelinhas de uma
estética que procura superar a expressão lírica é uma das contribuições mais
sintomáticas (e por isso interessantes) para compreender os desdobramen-
tos da atual situação brasileira em sua contraditória configuração.

Sebastião Uchoa Leite (1935-2003), cuja obra encerrou-se a pouco, culti-


vou o humor negro agressivo do sujeito que se posiciona no ataque, vilipen-
diando a si, à poesia e a tudo o mais, como o acuado que se defende pela
exibição. Contra a “baixeza das alturas”, corrói com bravatas de sarcasmo as
falsas certezas. Sua espreita é de uma “lucidez amarela” que se quer sadica-
mente desagradável: “A minha consciência é o verme/e eu sou o cria cuer-
vos”. A sombra de um mundo monstruoso, de crimes e seres aberrantes dá a
medida da história como perda, desgosto e tédio. O pó do tempo é compa-
nheiro constante, a poesia “é a máquina do nada”. O infra-herói que “é todo
coação” (ao invés de coração) e “resíduo de varredura” lembra diretamente a
definição do modo irônico, para Frye, em que olhamos de cima para baixo
para enxergar o (anti) herói: “ao vencedor as baratas”... O vampiro se dirige
a nós com hostilidade: leitor, “meu não semelhante”. Sua poética é de altiva
autoderrisão e recusa ao contato. Em seus últimos livros, o indivíduo espio-
nado tenta esquivar-se, negando inclusive as definições de si, e dirigindo-se
à realidade com estranheza e suspeita.

Francisco Alvim, batizado pelo amigo Cacaso como o poeta da “voz dos
outros”, no Elefante (2000) apresenta nos poemas situações em que a mais
funda percepção de impasses individuais perfura pungente o paradoxo
entre a eficiência moderna e a paralisia das escolhas do sujeito transformado

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em coisa, como parábola da estase da vida contemporânea impossibilita-


da de direção autêntica. O tempo dos velhos, que aparece em tantos versos
curtos, é um paradigma desta manivela gasta rangendo no vazio.

No poema justamente intitulado “Escolho” divisamos o melhor testemu-


nho do impasse mencionado, pois nele apresenta-se a inutilidade do movi-
mento humano, tematizando o esgotamento da fantasia e da própria ironia.
O nome talvez jogue com a ideia sartreana da obrigatoriedade da liberdade
individual: o sujeito inexoravelmente responsável por seu destino. Mas, aqui,
trata-se de alguém parado de pé em uma plataforma – de trem ou metrô
– com um saco de compras entre as pernas, cansado, como um resto aban-
donado. Pensamento, ideias, palavras, amores e poemas – exauridos. Só o
chão parece sólido, as pernas aqui imóveis nele se apoiam como partes das
coisas. E a ideia do escolho é mesmo fluvial porque se imagina entre duas
lagunas, dois portos – mas também, entre duas doenças, ou entre duas pai-
xões, breves e exaustivas. As imagens todas reforçam o foco na estagnação
reificada.

Conclui o poema com um apelo, como uma prece, em um momento de


anti-iluminação. Abandona-se a um tipo de providência, não mais divina,
mas nesse instante considerada superior à consciência sempre finita e
errada. Como se estivéssemos diante de um Ulisses ao revés, queixando-se
da falta de rumo da viagem, da indiferenciação entre homem e mundo, num
cansaço que o reduz às mercadorias. Não mais aquele sentimento de indi-
visão épica entre interior e exterior, nem o belo abandonar-se à percepção
do mundo a ponto de nele transfigurar-se para mais intimamente exprimi-
lo. Temos, ao contrário, uma paródia extrema disso. Quem sabe como seria
melhor alienar-se e deixar-se levar pelo arbítrio do acaso, que transformaria
o escolho do eu na escolha impessoal...

Já o lugar do sujeito em Armando Freitas Filho é o do perseguido pelo


tempo e pelo mundo, que vêm ameaçá-lo e contra os quais se faz necessário
urgentemente resistir. O poema mimetiza o duelo, a faísca, a tentativa pre-
mente de agarrar no último minuto a palavra que vai fugir. O real é dificultoso
de alcançar, e o poeta se esforça com vísceras e músculos, com todo vapor,
num feixe de gritos, para sair no seu encalço e apreendê-lo: “Pulo de dois pés
juntos/para dentro de você, de mim./O coração parte com todos os cavalos”.
Mas o limite do sujeito impede o vôo para fora de si, então o poema se revol-
ta e lamenta de forma obsessiva, e de novo arremete com toda a coragem,

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Tendências contemporâneas: poesia

munido de seus instrumentos de escrita e percepção, ao encontro do mar


mais bravio, do muro sem passagem, do papel vazio. O corpo acompanha
a escrita, e fica a descoberto, exposto à ferida das “sucessivas erratas” que o
roçar do real rascunha no papel da pele. A tentativa de expressão forceja por
todos os poros, procurando frestas por onde passe a palavra e sua substância
vital ou de onde possa receber o mundo e dele embeber-se.

Pois o crivo fundamental que separa as águas do tempo presente dos


anteriores, e subjaz a concepção deste período atual, consiste na dúvida
sobre o sujeito e sobre a continuidade histórica. As relações do indivíduo
consigo próprio e com o outro, a cidade, a política, a linguagem, ou mesmo
com passado e futuro são colocadas sob suspeição. Assim, o selo da poesia
contemporânea não está nem na morte do sujeito (e do autor) nem em sua
integridade biográfica e histórica, mas em um lugar de cisão. Dirão que tal
irrupção da desconfiança na identidade já germinara desde o início da mo-
dernidade. Percebemos, no entanto, que a plena radicalização disto, com a
percepção da descontinuidade entre o sujeito e este mundo tornou-se mais
intensa e visível. A perplexidade perante o excessivamente veloz e fragmen-
tário obriga o poeta a posições defensivas: seja pela recusa, seja pelo ataque,
seja pelo travamento reflexivo ou irônico.

Cada qual com uma linguagem inconfundível, estes poetas se consomem


na fatura do verso a ponto de neles identificarmos menos o sujeito particular
e muito mais a palavra concreta de nossa época (da qual também participa-
mos). A firme decisão de continuar a escrever nesses tempos duros advém
da consciência de que “O poema é uma coisa/que não tem nada dentro,/a
não ser o ressoar/de uma imprecisa voz/que não quer se apagar/– essa voz
somos nós.” (Ferreira Gullar, Não-coisa).

Dicas de estudo
Para que o estudante possa completar as informações sobre a poesia con-
temporânea, sugerimos o seguinte material:

 Revista Cult. Dossiê Essa tal de poesia. Edição 102, 10 de maio de 2006, p. 5-53.

Esta edição traz, além do texto “Cinco pontas de uma estrela”, de Viviana Bosi,
indicado como texto complementar desse capítulo, outros artigos impres-
cindíveis para um estudo detalhado da poesia contemporânea: “Virando as

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latas do contemporâneo – pessoal e marginal ao mercado editorial, o blog


é um espaço de experimentação da escrita”; “Por uma ontologia da canção:
poema e letra – o espaço cultural da canção visto em três planos: teórico,
cultural e contemporâneo”; “Poesia portuguesa do século 20: a poesia con-
temporânea portuguesa na visão de um dos seus maiores expoentes” e “Esse
tal de Cacaso”.

 “Affonso Romano de Sant’Anna: Poeta do Nosso Tempo”, artigo de Wilson


Martins (In Jornal do Brasil, Caderno B, 4 out. 1980). Disponível em: <www.
jornaldepoesia.jor.br/wilsonmartins022.html>.

O estudo da poesia brasileira contemporânea não pode se abster do co-


nhecimento da obra do poeta mineiro Affonso Romano de Sant’Anna
(1937). Seu livro de estreia, em 1962, intitulado O Desemprego da Poesia
marca o início de uma brilhante carreira de um dos maiores poetas e críti-
cos da poesia no Brasil contemporâneo.

 FRANCO, Nilton Ferrreira. O Sarau Paulistano na Contemporaneidade: Coo-


perifa – Zona Sul 1980-2006. Dissertação de mestrado em Educação, Arte
e História da cultura, na Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2006.
Disponível em: <http://mx.mackenzie.com.br/tede/tde_busca/arquivo.
php?codArquivo=20>

O estudo analítico abrangente sobre o projeto desenvolvido na comunida-


de da periferia paulistana denominada Cooperifa, cuja atuação cultural em
torno da poesia marginal contemporânea tem sido referência no Brasil.

Estudos literários
1. O que significa dizer que Ivan Junqueira faz um “palimpsesto poético”? Por-
que a necessidade de tal observação?

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2. Cite e comente as principais diferenças temáticas e estilísticas da poesia de


Adélia Prado, Hilda Hilst e Ana Cristina César.

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3. Qual a diferença entre a poesia marginal dos anos 1970 e a poesia marginal
hoje?

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Tendências contemporâneas: teatro

Se o teatro moderno brasileiro tivesse um pai, este seria sem dúvida


Nelson Rodrigues, o carioquíssimo dramaturgo que por acaso nasceu no
Recife, Pernambuco, em 1912, morrendo no Rio de Janeiro em 1980. Isso
não quer dizer que no Brasil não tivesse havido teatro antes desse período,
nem tampouco que não houvesse peças modernas. O que ocorreu foi que
com Vestido de Noiva (encenada pela primeira vez em 1943), terceira peça
de Rodrigues, um novo caminho se abriu para a dramaturgia nacional, e
o adjetivo “moderno” pôde ser de forma sistemática adicionado às produ-
ções cênicas de autores brasileiros.

Antes desse momento, o teatro brasileiro se restringia a comédias de


costumes, chanchadas e teatro de revista, ou seja, gêneros radicados no
século XIX. Só para se ter uma ideia do atraso nesse setor artístico, na
Semana de Arte Moderna de 1922, que – perceba-se o paradoxo, foi reali-
zada numa casa de espetáculos cênicos, o Teatro Municipal de São Paulo
– contemplava a apresentação de obras poéticas, peças musicais, exposi-
ção de pinturas etc., não se montou nenhuma criação teatral. O teatro na-
cional naquele período estava reduzido a um entretenimento voltado às
elites sociais, distanciado das outras artes e das revoluções que ocorriam
no resto do mundo ocidental. Isso apesar de grandes companhias teatrais
europeias se apresentarem com frequência no eixo Rio-São Paulo.

No entanto, como já antecipamos, alguns autores tentaram inovar


nesse campo, ainda antes da Segunda Guerra Mundial, escrevendo peças
altamente experimentais e revolucionárias, sendo o caso mais exemplar o
da obra Rei da Vela do modernista paulistano Oswald de Andrade. Escrita
a partir de 1933 e publicada em 1937, a peça só veio a ser encenada em
1967, pelo grupo Teatro Oficina, causando um verdadeiro furor no mundo
artístico daquele momento.

Apesar de escrita e publicada, uma peça teatral pode até ser conside-
rada literatura, razão pela qual estamos abordando este gênero artístico
aqui, mas, enquanto não for encenada, ela não pode ser com propriedade
chamada de teatro. Foi o que aconteceu com o Rei da Vela, que levou trinta

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anos para ter esse direito. A razão da demora se deve em parte às característi-
cas inovadoras da peça, mas também ao seu conteúdo altamente polêmico e
denunciativo. Abelardo I, o “rei da vela”, é um agiota que se aproveita da crise de
1929 (crack da Bolsa de Nova Iorque) e, através de empréstimos escorchantes,
vai dilapidando antigos fazendeiros e outros burgueses. Na verdade, a peça des-
vela os mecanismos da acumulação capitalista internacional e de como isso se
processa em especial nos países periféricos como o Brasil, conforme podemos
ver neste diálogo entre Abelardo I e sua noiva Heloísa, filha de um fazendeiro
arruinado pela crise do café:
Abelardo I – Não faça ironia com a sua própria felicidade! Nós dois sabemos que milhares
de trabalhadores lutam de sol a sol para nos dar farra e conforto. Com a enxada nas mãos
calosas e sujas. Mas eu tenho tanta culpa disso como o papaníqueis bem colocado que se
enche diariamente de moedas. É assim a sociedade em que vivemos. O regímen capitalista
que Deus guarde...
Heloísa – E você não teme nada?
Abelardo I – Os ingleses e americanos temem por nós. Estamos ligados ao destino deles.
Devemos tudo, o que temos e o que não temos. Hipotecamos palmeiras... quedas de água.
Cardeais!
Heloísa – Eu li num jornal que devemos só à Inglaterra trezentos milhões de libras, mas só
chegaram aqui trinta milhões...
Abelardo I – É provável! Mas compromisso é compromisso! Os países inferiores têm que
trabalhar para os países superiores como os pobres trabalham para os ricos. Você acredita que
New York teria aquelas babéis vivas de arranha-céus e as vinte mil pernas mais bonitas da terra
se não se trabalhasse para Wall Street de Ribeirão Preto a Cingapura, de Manaus a Libéria?
Eu sei que sou um simples feitor do capital estrangeiro. Um lacaio, se quiserem! Mas não me
queixo. É por isso que possuo uma lancha, uma ilha e você... (ANDRADE, 1999, p. 55-56)

Para que essa peça pudesse então ser posta no palco foi necessária todo uma
profunda reformulação do teatro no Brasil: novas técnicas de encenação, o sur-
gimento da figura do diretor teatral (até então inexistente) e de um corpo de
atores e técnicos com uma nova formação e postura artística. Foi o que aconte-
ceu a partir de Vestido de Noiva de Nelson Rodrigues, peça encenada pelo revolu-
cionário (para os padrões da época) grupo teatral carioca Os Comediantes. Mas
vamos conhecer toda essa história de uma forma mais organizada, começando
pelo próprio Nelson Rodrigues.

Nelson Rodrigues e o teatro desagradável


Nelson Rodrigues sempre foi um autor polêmico, até mesmo um homem po-
lêmico. Segundo ele, começou sua vida profissional como repórter policial aos
13 anos no jornal A Manhã de propriedade de seu pai – isto mesmo: 13 anos!
Com a morte do pai e a Revolução de 1930, sua família cai em grande dificuldade
financeira, o que o levou a trabalhar como jornalista em outras publicações. Na

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década de 1940, começa a escrever chanchadas teatrais e descobre sua grande


vocação dramatúrgica.

Em 1943, animado com a possibilidade de seu novo meio de expressão artística,


Rodrigues elabora uma ambiciosa peça em que rompe com duas das três unida-
des aristotélicas do drama: a unidade de tempo e de espaço.1 Na primeira rubrica
da peça Vestido de Noiva, lê-se: “Cenário dividido em três planos – primeiro plano:
alucinação; segundo plano: memória; terceiro plano: realidade” (RODRIGUES, 1993,
p. 349). O que significa que as ações transcorrem em lugares e momentos distin-
tos, trazendo uma grande dificuldade para sua apresentação no palco. Apenas o
grupo de teatro amador Os Comediantes teve coragem de levar o empreendimen-
to adiante, sob a direção do exilado polonês Ziembinsky, que, graças a sua experi-
ência no teatro europeu, possuía técnicas e estratégias cênicas para tanto.

A protagonista da peça é Alaíde, uma jovem mulher casada, da classe média


carioca, que sofre um grave atropelamento. Enquanto é socorrida e operada
num hospital, ela delira e, entre alucinação e memória, se descortina sua vida pe-
queno-burguesa, seus conflitos familiares e seus traumas e frustrações sexuais.

Outra personagem importante é Madame Clessi, uma famosa e elegante mere-


triz do começo do século XX, que terminou assassinada por um amante de 17 anos.
Durante sua juventude, Alaíde morou com os pais na casa em que morreu Clessi:

(Plano da alucinação)
Alaíde – Me lembrei agora! [...] Foi uma conversa que eu ouvi quando a gente se mudou. No
dia mesmo, entre papai e mamãe. Deixe eu me recordar como foi... Já sei! Papai estava dizendo:
“O negócio acabava...
(Escurece o plano da alucinação. Luz no plano da memória. Aparecem pai e mãe de Alaíde.)
Pai – (continuando a frase) ... numa orgia louca.”
Mãe – E tudo isso aqui?
Pai – Aqui, então?!
Mãe – Alaíde e Lúcia morando em casa de madame Clessi. Com certeza, é no quarto de Alaíde
que ela dormia. O melhor da casa!
Pai – Deixa a mulher! Já morreu!
Mãe – Assassinada. O jornal não deu?
Pai – Deu. Eu ainda não sonhava conhecer você. Foi um crime muito falado. Saiu fotografia.
Mãe – No sótão tem retratos dela, uma mala cheia de roupas. Vou mandar botar fogo em tudo.
Pai – Manda.
(Apaga-se o plano da memória. Luz no plano da alucinação.)
Alaíde – (preocupada) Mamãe falou em Lúcia. Mas quem é Lúcia? Não sei. Não me lembro.
(RODRIGUES, 1993, p. 354)

Lúcia é a irmã de Alaíde, que nesse estado de alucinação tem lapsos de me-
mória. O enredo, na verdade, é a tentativa da mulher acidentada, em seu delírio
1
Segundo Aristóteles, uma obra teatral precisa apresentar unidade de tempo, de espaço e de ação, ou seja, transcorrer num mesmo período de
tempo, dentro do mesmo lugar e seus atos serem todos articulados dentro do esquema de causa e efeito.

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e instigada pelo “fantasma” de Madame Clessi, de lembrar sua vida e resolver


seus profundos conflitos interiores. O conflito mais manifesto é o ódio de Lúcia
por Alaíde haver roubado seu namorado, Pedro, e casado com ele. A irmã não
a perdoara pela traição e jurara vingança exatamente no dia do seu casamento.
Mas o problema na verdade se encontrava na frustração da vida de casada, nas
convenções a que se submetia e na insatisfação crônica por seus desejos eróticos
reprimidos. É isso que nos revela o plano da alucinação, no qual Alaíde expressa
claramente o desejo de ser como Clessi, livre para dar vazão a sua libido.
Alaíde – Lá vi a mala – com as roupas, as ligas, o espartilho cor-de-rosa. E encontrei o diário.
(arrebatada) Tão lindo, ele!
Clessi – (forte) Quer ser como eu, quer?
Alaíde – (veemente) Quero, sim. Quero.
Clessi – (exaltada, gritando) Ter a fama que eu tive. A vida. O dinheiro. E morrer assassinada?
Alaíde – (abstrata) Fui à biblioteca ler todos os jornais do tempo. Li tudo!
Clessi – (transportada) Botaram cada anúncio sobre o crime! Houve um repórter que escreveu
uma coisa muito bonita! [...]
Alaíde – [...] Quero ser como a senhora. Usar espartilho. (doce) Acho espartilho elegante!
Clessi – Mas seu marido, seu pai, sua mãe e... Lúcia? (RODRIGUES, 1993, p. 355)

O universo teatral de Nelson Rodrigues se concentra na classe média cario-


ca, passando por vezes pela alta burguesia e marginalidade. Seu olhar se dirige
para a vida convencional e castrante que o núcleo familiar de extração burguesa
impõe aos indivíduos, fazendo com que suas vidas se reduzam a fazer a manu-
tenção e reprodução do status quo burguês, desconsiderando assim os desejos,
os anseios e a individualidade de cada um de seus membros. Para dar a essa
situação dramática a força reveladora necessária, Nelson Rodrigues vai tocar em
assuntos tabus, como o incesto, e mostrar com crueza o lado avesso da vida,
razão pela qual o próprio autor denominou sua obra de “teatro desagradável”,
sendo o “desagradável a exposição das pulsões (erotismo e violência), das taras
e demais perversões que compõe a psique do homem moderno.

Destacam-se ainda entre sua vasta produção cênica as peças Álbum de Fa-
mília (1946), uma tragédia burguesa brasileira centrada no complexo de Édipo,
Valsa n°. 6 (1951), um fantástico monólogo em que Mocinha, uma adolescente,
faz uma dolorosa autoanálise, e Senhora dos Afogados (1956), em que Rodrigues
retoma o tema do complexo de Édipo. Outras peças importantes: Os Sete Gati-
nhos (1958), Bonitinha mas Ordinária (1961) e Toda Nudez será Castigada (1966),
havendo sido levadas ao cinema com grande impacto.

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Dias Gomes: em direção ao teatro épico


Contemporâneo a Nelson Rodrigues, o baiano Dias Gomes (Salvador, 1922 –
São Paulo, 1999) também estreou no teatro na década de 1940. No entanto, suas
carreiras foram muito distintas. Rodrigues, apesar de inovador em vários pontos
da representação teatral, manteve-se preso à temática do drama oitocentista,
em que o indivíduo burguês e sua família eram os únicos protagonistas possí-
veis. Já Dias Gomes rompe radicalmente com isso e põe no palco, como perso-
nagens centrais, pessoas do povo e complexos conflitos sociais.

Gomes trabalhou no rádio, escrevendo e produzindo diversos tipos de pro-


gramas, e na televisão. O leitor certamente se lembrará de dois de seus grandes
sucessos na TV: as telenovelas O Bem-Amado e Roque Santeiro. No teatro, foi com
a peça O Pagador de Promessas (1960) que o dramaturgo baiano se consagrou
como um dos mais importantes autores teatrais brasileiros. A encenação diri-
gida pelo renomado diretor Flávio Rangel foi um estrondoso sucesso de crítica
e público, sendo logo transposta para o cinema sob a competente direção de
Anselmo Duarte, que trouxe para o Brasil a Palma de Ouro de Cannes em 1962.

A história de O Pagador de Promessas é bem simples: Zé-do-Burro, um pobre


lavrador, viaja a pé na companhia de Rosa, sua esposa, do interior baiano onde
mora até Salvador. Ele carrega uma enorme cruz de madeira e seu objetivo é
pagar uma promessa feita a Iansã pela cura do querido e útil burrinho Nicolau.
No sincretismo das religiões afro-brasileiras, Iansã é a Santa Bárbara do culto ca-
tólico, por isso a promessa de Zé-do-Burro é levar e deixar a cruz dentro da igreja
dedicada à Santa Bárbara, na capital baiana. O conflito começa quando padre
Olavo, responsável pelo santuário católico, fica sabendo pelo próprio pagador
que a promessa fora feita para Iansã. Por causa da típica intolerância do clero
romano, Zé-do-Burro é proibido de entrar na igreja e completar sua promessa.
Motivado por sua religiosidade simples e sincera, o lavrador não aceita a nega-
tiva do padre e fica na porta da igreja até conseguir entrar. A atitude daquele
crente ganha os noticiários e gera uma grande comoção na cidade, que é capita-
lizada por todos os tipos de interesses: comerciais, políticos e religiosos.

Zé-do-Burro se vê enredado por uma situação que não compreende e cujas


injunções o transcendem completamente. No trecho a seguir, vamos acompanhar

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como a intransigência e o dogmatismo do padre fazem com que o humilde e sim-


plório roceiro passe a representar uma ameaça messiânica:
Padre: (Dá alguns passos de um lado para outro, de mão no queixo e por fim detém-se diante
de Zé-do-Burro, em atitude inquisitorial.) Muito bem. E que pretende fazer depois... depois de
cumprir a sua promessa?
Zé: (Não entendeu a pergunta.) Que pretendo? Voltar pra minha roça, em paz com a minha
consciência e quite com a santa.
Padre: Só isso?
Zé: Só...
Padre: Tem certeza? Não vai pretender ser olhado como um novo Cristo?
Zé: Eu?!
Padre: Sim, você que acaba de repetir a Via Crucis, sofrendo o martírio de Jesus. Você que,
presunçosamente, pretende imitar o Filho de Deus...
Zé: (Humildemente) Padre... eu não quis imitar Jesus...
Padre: (Corta terrível) Mentira! Eu gravei suas palavras! Você mesmo disse que prometeu
carregar uma cruz tão pesada quanto a de Cristo.
Zé: Sim, mas isso...
Padre: Isso prova que você está sendo submetido a uma tentação ainda maior.
Zé: Qual, Padre?
Padre: A de igualar-se ao Filho de Deus.
Zé: Não, Padre.
Padre: Por que então repete a Divina Paixão? Para salvar a humanidade? Não, para salvar um
burro!
Zé: Padre, Nicolau... (GOMES, 2002, p. 37-38)

É claro que o caso do pobre pagador de promessas só poderia terminar em


tragédia. Segundo o próprio autor, a peça não pretende apenas fazer uma crítica
à intolerância e ao dogmatismo religioso: tanto o padre quanto a instituição ecle-
siástica que ele representa são alegorias de uma sociedade dirigida pela força de
elites que não admitem serem contestadas nem que seus valores sejam postos
em dúvida. Escrita e encenada no início da década de 1960, a peça O Pagador
de Promessas foi premonitória sobre os rumos que nosso país iria tomar, com a
ascensão de uma casta militar disposta a tudo para calar as vozes discordantes e
a encarar qualquer um que ousasse assumir outros valores que não a ideologia
vigente, e assumisse um tom subversivo e perigoso à sociedade.

O teatro de Dias Gomes é feito com personagens populares e também se volta


para o povo brasileiro, objetivando uma maior consciência política por parte das
camadas menos favorecidas; a fim de que o andar de baixo da nossa sociedade
ganhe condições de expressão e de luta por seus direitos e valores. Tais recursos
dramatúrgicos, bem como seus propósitos, se aproximam dos princípios do teatro
épico, uma forma dramatúrgica desenvolvida principalmente pelo grande autor e
diretor alemão Bertold Brecht (1898-1956), e cuja principal característica é dar voz
a grupos sociais e não a indivíduos (como no drama burguês), procurando assim
conscientizar o espectador e fazê-lo tomar decisões de nível político e social.

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Entre a variada produção dramatúrgica de Dias Gomes, vale destacar as


peças: Odorico, o Bem-Amado (1962), que depois se transformou na telenovela, e
O Santo Inquérito (1966), peça histórica passada no século XVIII que teve enorme
sucesso em momentos diferentes de sua encenação.

Augusto Boal e o Teatro do Oprimido


A partir da renovação teatral iniciada por Nelson Rodrigues e Dias Gomes,
houve a oportunidade do aparecimento de grupos teatrais ainda mais experi-
mentais e inovadores em suas propostas e criações cênicas, como é o caso do
Teatro de Arena, formado em 1955, e o Teatro Oficina, de 1958, ambos paulista-
nos. O Arena tinha como vocação a criação de uma forma de representação tea-
tral brasileira, realizando para tanto seminários e laboratórios de interpretação.
Fruto desse trabalho são os dramaturgos Augusto Boal e Oduvaldo Vianna Filho,
o Vianinha.

O carioca Augusto Boal (1931- ) começou no Teatro de Arena como diretor,


mas foi como autor e teórico do teatro que ele ganhou fama internacional. Em
1960, ele escreve a peça que o vai colocar num lugar de destaque na dramatur-
gia brasileira: Revolução na América do Sul. Encenada pelo Arena, sob direção
de José Renato, importante diretor e fundador daquele grupo, a peça de Boal
rompe com a estrutura do drama tradicional e coloca em cena estratégias bre-
chtianas, conforme mencionamos acima. Usando o formato do teatro de revista
e também de tradições populares de representação, Revolução conta o percurso
do operário José da Silva, símbolo do povo brasileiro, que, enfrentando situa-
ções de caráter político, comercial, social etc., acaba morrendo de fome em meio
a interesses espúrios de vários tipos. Segundo o crítico de teatro Sábato Magaldi
(1999, p. 269):
A peça é contra tudo e contra todos, e, realmente, só a favor do operário José da Silva, que
está morrendo de fome. [...] Muitas vezes grosseira, mal-educada, sem sutileza, Revolução
guarda, no entanto, toda a vitalidade alegre e contagiante da farsa primitiva. Sente-se nela
o sopro criador do teatro. Pelo trabalho consciente do dramaturgo, ela significa mais ainda:
assimila, pelos seus vários aproveitamentos, as lições tradicionais do teatro, e mistura-as com
os estímulos imediatos da experiência nacional – a revista e o circo.

Além de Revolução, devemos lembrar ainda das obras teatrais: Mulheres de


Atenas (1977), uma adaptação de Lisístrata, de Aristófanes, com músicas de Chico
Buarque, e Murro em Ponta de Faca (1978), em que narra as agruras dos exilados
brasileiros depois das perseguições políticas do golpe de 1964.

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Sua contribuição à teoria e prática do teatro pode ser sintetizada na expressão


Teatro do Oprimido. Partindo das experiências do Teatro Oficina, Boal prescreveu
uma série de princípios, estratégias e exercícios para se produzir um teatro po-
pular que fosse capaz de enfocar os grandes problemas sociais de nosso mundo,
sendo feito por pessoas comuns e para o próprio povo. O principal livro publi-
cado para esse fim tem o título: O Teatro do Oprimido e Outras Políticas Poéticas
(1975). O trabalho teórico de Boal tem sido disseminado por todo o planeta, ga-
nhando aplicação em situações de luta política, em condições diversas de opres-
são e até mesmo na psicoterapia.

Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha


Da mesma geração de Boal e saído da usina de força do Teatro de Arena, o
carioca Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974), mais conhecido como Vianinha, tor-
nou-se um dos principais autores e promotores do teatro popular e político. Ha-
vendo atuado em peças de Boal (Revolução na América do Sul) e de Gianfrances-
co Guarnieri (Eles Não Usam Black-Tie), além de haver participado dos seminais
laboratórios de teatro realizados pelo grupo do Arena, Vianinha percebeu uma
contradição fundamental entre o tema das peças em que atuava e o público que
o assistia, formado basicamente de estudantes universitários e uma classe média
culta. Por isso, em 1962, desligou-se do Arena e participou da fundação do CPC
– Centro Popular de Cultura – da UNE, cujo objetivo era a produção de um teatro
feito pelo e para o povo brasileiro, visando a conscientização das massas e sua
preparação para a luta política.

Nesse sentido, pode-se apresentar como uma peça revolucionária o texto A Mais-
Valia Vai Acabar, Seu Edgar, de 1960, composta por Vianinha com a colaboração de
estudantes de sociologia e economia. Nessa obra, o dramaturgo busca de forma te-
atral e popular explicar o conceito marxista de “mais-valia”. Para tanto, Vianinha põe
em cena quatro operários: D 1, D 2, D 3 e D 4, sendo a letra “D” sigla para “desgraça-
do”. Numa forma próxima do teatro de revista e do cordel, com trilha sonora de Car-
linhos Lyra, D 4, numa frenética busca por entender os mecanismos de dominação
do capitalismo, enfim atinge tal conhecimento. Numa cena altamente plástica, D 4
leva D 1 a uma feira imaginária, onde as mercadorias são vendidas não por dinheiro,
mas por horas de trabalho despendidas na sua fabricação. Ao término da feira, D 1
comprara tudo o que precisava diariamente para viver e só gastara 2 horas/dia de
trabalho das 8 diárias que tinha obtido com seu próprio suor; no entanto, na saída
da feira, o capitalista fica com as 6 horas/dia que sobrara:

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Tendências contemporâneas: teatro

D 1: Como é?
D 4: A gente vende a gente, não é?
INDIVÍDUO: É.
D 4: A força que a gente tem na cabeça, no estômago, nas pernas... O gaguinho disse que isso
era mer... mercadoria tam... também.
INDIVÍDUO: Sem dúvida.
D 1: Eu sou mercadoria?
INDIVÍDUO: Pois então.
D 4: É assim, 1. Não dependeu de mim, do Amim, de você. Nossa força de trabalho é mercadoria.
E sabe quanto vale? O tempo de trabalho que leva pra fazer ela.
D 1: E quanto é que a gente vale?
INDIVÍDUO: Cinco mil réis e uma casca de laranja.
D 4: Nossa força de trabalho vale o tempo de trabalho que gastam pra fazer as coisas que a
gente come, veste... E agora você viu... Isso vale duas horas... Você trabalha oito. As seis horas
que sobram eles embolsam. Tudo é vendido pelo valor certinho... só que é vendido. Tem dono
e endereço direitinho.
INDIVÍDUO: Direitinho, direitinho.
Erradinho, erradinho.
Qual dos dois é mais bonitinho?
D 1: Vem cá, isso é assim mesmo.
INDIVÍDUO: Ele é bastante burro, heim?
D 4: Acho que é.
D 1: E aqueles tempos que os vendedores falavam, são esses mesmos?
D 4: Não sei. Acho que nem o autor sabe direito. (VIANNA FILHO, 1981, p. 271)

A peça é altamente didática e, ao mesmo tempo, hilária, com grandes tiradas


cômicas e numa linguagem para lá de coloquial. A ideia é que a representação
fosse vista por trabalhadores em geral, com o fito de instruí-los sobre os meca-
nismos do capitalismo e, assim, prepará-los para uma participação mais ativa e
lúcida na vida política brasileira.

Depois da instauração da ditadura militar, o CPC foi fechado e os artistas


desse movimento procuraram novos rumos. Vianinha acabou indo para a televi-
são, tendo sido um dos criadores do seriado A Grande Família. Oduvaldo Vianna
Filho morreu precocemente, aos 38 anos, vítima de câncer no pulmão. A vasta
obra deixada só comprova seu enorme talento e disposição para atuar na cul-
tura nacional. Destacamos como suas principais obras: Rasga Coração e Papa
Highirte, ambas encenadas postumamente em 1979.

Teatro Oficina
Logo no início deste capítulo, mencionamos o Teatro Oficina, um grupo de
artistas que havia posto em cena pela primeira vez a inovadora peça de Oswald
de Andrade, O Rei da Vela. O grupo nasce na Faculdade de Direito do Largo de S.
Francisco, da USP, em 1958, tendo como propósito ser um contraponto tanto ao

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aburguesamento do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia, importante companhia


de teatro que existe até nossos dias) bem como ao nacionalismo do Teatro de
Arena. Apesar dessas origens, em 1967, com a representação de O Rei da Vela,
sob direção do grande encenador e líder do Oficina, José Celso Martinez, essa
companhia teatral assume um papel de destaque na vanguarda artística do país,
inaugurando o movimento Tropicalista na esfera dramatúrgica.

O Teatro Oficina continua vivo e atuante até hoje, agora com o nome Oficina
Uzyna Uzona, sendo responsável por espetáculos altamente inventivos e expe-
rimentais na cena paulistana.

Texto complementar

Em busca do populário religioso1


(MAGALDI, 1999, p. 236-241)

Para Ariano Suassuna, “estamos vivendo a época elisabetana agora, esta-


mos num tempo semelhante ao que produziu Molière, Gil Vicente, Shakes-
peare etc.”. O dramaturgo paraibano, fixado no Recife, aproxima o Nordeste
de Florença e Roma renascentistas. Essa visão do mundo contemporâneo,
aliada à fé católica (ele, de protestante, se converteu ao catolicismo, duran-
te uma enfermidade), introduz o universo dramático do autor, cujo Auto da
Compadecida, apresentado inicialmente por amadores pernambucanos, é
hoje, sem dúvida, o texto mais popular do moderno teatro brasileiro.

Foi em 1957 que o jovem escritor, ainda circunscrito ao Nordeste, onde


havia recebido vários prêmios, irrompeu no Rio de Janeiro e em São Paulo,
conquistando logo as companhias profissionais. Ao mérito artístico juntou-
-se um aspecto que deve ser ressaltado em nossa literatura: trata-se de uma
dramaturgia católica, na melhor tradição que esse teatro fixou em todo o
mundo, vindo das formas medievais, em que se assinalam os caracteres po-
pulares e folclóricos e uma religiosidade simples, sadia, irreverente e presi-
dida pela Graça, com a condenação dos maus e a salvação dos bons. É certo
que as numerosas lendas nordestinas reúnem os predicados que podem
servir de base a um teatro popular e religioso, desde que passando pelo crivo
1
Ariano Suassuna (João Pessoa, 1927- ), nome maior da dramaturgia e da literatura brasileiras contemporâneas, criou uma vertente dramá-
tica absolutamente descolada do teatro moderno nacional. O texto que se segue é a parte inicial de um brilhante ensaio de Sábato Magaldi
dedicado à obra de Suassuna

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artístico. Acrescente-se que o autor chamou algumas de suas obras “autos


sacramentais”, gênero levado à perfeição por Calderón de La Barca, cuja peça
La Vida es Sueño se baseou, aliás, na mesma lenda de que se valeu Ariano
Suassuna para escrever O Arco Desolado.

Funde o dramaturgo, em seus trabalhos, duas tendências que se desen-


volvem quase sempre isoladas em outros autores, e consegue assim um en-
riquecimento maior da sua matéria-prima. Alia o espontâneo ao elaborado,
o popular ao erudito, a linguagem comum ao estilo terso, o regional ao uni-
versal. A quase superstição das histórias folclóricas atinge o vigor de uma
religiosidade profunda, que pode espantar aos cultores de um catolicismo
acomodatício, mas responde às exigências daqueles que se conduzem por
uma fé verdadeira. A crença de A Compadecida, por exemplo, alimenta-se de
amor efetivo e do melhor sentido que possa ter a palavra misericórdia.

Entre as peças que precederam a obra-prima de Ariano Suassuna, encontra-


-se o Auto de João da Cruz, “drama sacramental”. Como inspiração, assemelha-se
à aventura faustiana, na história do jovem carpinteiro que faz um acordo com
o demônio para possuir os bens terrenos (O Milagre de Teófilo, produção me-
dieval de meados do século XIII, de autoria de Ruteboeuf, já tratava o tema). O
caminho para a danação é interrompido pelo aparecimento do anjo da guarda
e do pai peregrino, que, no júri final da peça, se identifica à figura divina. O
móvel da salvação, como sucederá em A Compadecida, é um cangaceiro, que
havia há tempo evitado a morte de João da Cruz, e agora, num sinal de que
a consciência deste continua viva, recebe, para fugir da polícia, o corcel que o
demônio lhe presenteara. Diante da justiça, os puros levam sempre a melhor.

O tratamento de O Arco Desolado diferencia-se fundamentalmente do


que o dramaturgo espanhol deu à lenda polaca. O Sigismundo de Calde-
rón, sabendo que “la vida es sueño”, quer tornar a existência um sonho bom.
Contraria a predição sobre o seu nascimento, para instaurar um reino de jus-
tiça. O Sigismundo de Ariano Suassuna desencadeia de fato, quando sai da
prisão, uma série de horrores. Vai purgar-se da possível bastardia no mundo,
confiando-se de novo à prisão em que fora criado. Com o seu sacrifício e o da
jovem amante possibilita a reconciliação do pai e do tio, concluindo a peça
sob um céu limpo, que lembra o de Romeu e Julieta.

A matéria de A Compadecida é o folclore, enquanto o autor reuniu no


texto, segundo indicam as epígrafes, a intervenção de Maria por uma alma, a

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história do enterro de um cachorro e a de um cavalo que defecava dinheiro


(transposto na peça em gato), todas pertencentes ao romanceiro anônimo.
Fundindo elementos tão díspares, para estabelecer um entrecho sólido, uni-
ficado pelas peripécias da personagem também popular que é João Grilo,
conseguiu o autor o salto para a obra sem fronteiras, que é dada pela inscri-
ção dos valores particulares numa ordem maior, vinda, no caso, das tradições
medievais. Aborrecendo o autor o teatro moderno, dessorado na disciplina
intelectualista, A Compadecida bebe seus efeitos em recursos primitivos, até
na encenação de um julgamento no outro mundo. Aproxima-se o texto dos
autos vicentinos ou dos “milagres” mais antigos de Nossa Senhora, e, con-
trastando com o sabor arcaico, dá ao diálogo a espontaneidade da improvi-
sação e à estrutura dramática a ideia de que é algo que se constrói à vista do
público, para só no final sentir-se a solidez arquitetônica.

Leva a essa conclusão o exame das personagens e da técnica. João Grilo,


o protagonista, não é alguém dotado de um drama profundo a resolver, e
o entrecho seria o meio de estudar sua psicologia. Ele é o malandro, o de-
socupado, o conversador, o homem sem objetivo senão o de sair-se melhor
do instante – o que se inventa e inventa as soluções à medida que surgem
os problemas. Seus dados psicológicos são mínimos: uma genérica revolta
contra a injustiça, a esperteza e um certo amoralismo, além do desejo de vin-
gança contra os patrões que o deixaram quase a morrer doente, enquanto
tratavam com luxo um cachorro. É mais a figura sociológica do homem da
rua, de mãos vazias (apesar do emprego só agora abandonado), fazendo de
cada cotidiano a tarefa a cumprir, a fim de prolongar-se no tempo. Nascido
da galeria brasileira do “herói sem nenhum caráter”, lembra Arlequim, votado
permanentemente a desembrulhar a existência que ele próprio complicou,
com o objetivo de reservar-se alguns momentos melhores. A diferença básica
está em que João Grilo deixa de ser o elemento cômico de um entrecho maior,
em que sua função se limita mais propriamente a servir a intriga teatral, pela
condição de subordinado (mesmo quando essa função se torna precípua no
mecanismo da Comédia Nova, com o escravo puxando os acontecimentos),
para ser o dono do próprio destino, construído nas maquinações de cada pe-
ripécia. João Grilo vai inventando a vida até que o cangaceiro o abate, como
instrumento que é da cólera de Deus. Diante do próprio Jesus Cristo, a manei-
ra que tem de escapar ao inferno é a utilização sucessiva de artimanhas, até
o apelo final à misericórdia, encarnada por Nossa Senhora. Do ponto de vista
religioso, a figura de João Grilo sugere, assim, as dificuldades e as quedas da

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passagem terrena, comprometida em mil arranjos tortuosos, até que Maria


redime o homem pela intervenção junto a Cristo.

A estrutura de A Compadecida está de acordo com esse espírito de im-


provisação. As personagens, se são necessárias ao desenrolar da trama, su-
cedendo-se com uma lógica irrepreensível, dão a impressão de que surgem
à mercê dos acontecimentos, isto é, são chamadas a participar da ação, pois,
do contrário, ela não prosseguiria. Daí esse aspecto de invenção constante
que se vê no diálogo, mantido até o final com saborosa linguagem e reno-
vada comicidade. A história se faz com cenas que se sucedem tendo interlo-
cutores diversos, além da presença permanente de João Grilo, e seu desdo-
bramento, Chicó. Alternam-se o padre, o fazendeiro, o sacristão, o padeiro e
sua mulher, o bispo, o frade e finalmente os cangaceiros, nos episódios ter-
renos. A missão de uma personagem é avançar mais o entrecho, e, quando o
emaranhado se torna grande, os cangaceiros despacham todos para o outro
mundo. No próprio julgamento sobrenatural, existe esse fator de surpresa,
pois não se acham todos presentes, logo no início, vindo ao palco primeiro o
Encourado, depois o preto Manuel (encarnação de Jesus Cristo) e só no fim,
qual deus ex machina, a figura de Nossa Senhora.

Os episódios não aparecem isolados, porém, porque se relacionam na po-


dridão que faz manifestar-se a cólera divina, por meio do extermínio a cargo
do cangaceiro, e consequente presença de todos diante de Manuel. A situa-
ção da história, como algo que se representa, “para exercício da moralidade”,
vê-se pelo narrador – o Palhaço – que promove as ligações necessárias. A
volta à vida terrena, também, depois do julgamento, fica verossímil pela ex-
trema habilidade do autor. Depois de obter a condenação de cinco pecado-
res apenas ao purgatório, Nossa Senhora consegue de Deus que João Grilo
tenha nova oportunidade de experimentar-se na terra. Seu retorno coincide
com a cena em que, na rede, o levam para o túmulo. Aí, ele se levanta, já
que a bala teria passado de raspão, apenas desacordando-o. Mas fora Chicó
autor de uma promessa a Nossa Senhora, oferecendo-lhe todo o dinheiro,
que a morte dos outros pusera em suas mãos, para preservar-se a vida de
João Grilo. Conserva-se, assim, o caráter de “milagre” de Nossa Senhora e o
cumprimento da promessa vale como “os honorários da advogada”.

A maneira de Ariano Suassuna apresentar os caracteres baseia-se na


forma popular brasileira, que não sugere sutilezas ou requintes. Embora re-
flita o lavor de um dramaturgo inteligente e lúcido, A Compadecida não se

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poupa, além do primitivismo e da ingenuidade deliberados, um tom algo


primário. Incide o autor na simples dicotomia do bem e do mal que, apesar
de toda a profundidade que tente emprestar-se, acaba sempre em prima-
rismo inapelável. No combate ao mundanismo da Igreja, fica a trama nas
simplificações mais fáceis, expressas, na verdade, em anedotas e achados
de grande efeito sobre o público. Combate-se o preconceito de cor (Deus
aparece como preto), ridiculariza-se a chicana do palácio da justiça, brinca-
se com a ignorância católica da Bíblia (João Grilo pergunta se Jesus Cristo é
protestante, por conhecê-la tão bem), e impera sempre o espírito de vitó-
ria do fraco sobre o forte, do humilde sobre o poderoso, do sincero sobre
o mundano – da verdade sobre a mentira. O frade, que o bispo chama de
débil mental, é o legítimo santo, enquanto ele, grande administrador, peca
por simonia. Junta-se a peça à visão do povo que se revolta, muitas vezes,
contra a aliança da Igreja com os bens temporais. Por isso, esse aspecto de
reivindicação justa, de revide honesto, de desforra contra o erro dá à trama
um sabor de briga santa, colocando a plateia em permanente torcida pelo
bem. Para que prevalecesse esse espírito de quase aventura, era necessária
simplicidade dos caracteres, sem o que não se evidenciaria o problema in-
disfarçável do herói e do vilão. Merece reparos, porém, que, ao lado da sim-
pática ficção, sustentando o maravilhoso lendário (como a ingenuidade do
cangaceiro morto para ver Padre Cícero, na espera de ressuscitar ao som da
gaita), o autor caricature tanto as figuras do padre, do bispo, do sacristão,
do padeiro e de sua mulher. Nos traços que lhes deu percebe-se a caracte-
rização mais vulgar, embora consciente, e que um tratamento diverso teria
valorizado, em benefício do alcance da peça. Apesar das simplificações pri-
márias, a trama cresce aos olhos da audiência, porque abdica de um realismo
verista em troca de uma outra realidade, feita de sobrenatural e de poesia.
Estão lançadas as bases de um autêntico teatro popular católico, de amplo
significado na tradição religiosa do país, e que retoma, na língua portuguesa,
o caminho aberto por Gil Vicente. [...]

Dicas de estudo
 Sugerimos a leitura do restante do ensaio de Sábato Magaldi apresenta-
do na seção “Texto complementar”: Panorama do Teatro Brasileiro, Editora
Global, p. 236-244.

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Tendências contemporâneas: teatro

 Para uma visão crítica do teatro moderno brasileiro no contexto interna-


cional, indicamos a coletânea de ensaios de Iná Camargo Costa, Sinta o
Drama, da Editora Vozes.

 Sugerimos ainda a leitura das seguintes peças e a apreciação dos filmes


nelas baseados: Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues; O Pagador de Pro-
messas, de Dias Gomes; e O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna.

Estudos literários
1. Nelson Rodrigues é considerado por muitos o pai do teatro moderno brasi-
leiro. Qual de suas peças foi responsável pela mudança no cenário dramatúr-
gico e quais foram as características inovadoras dessa obra?

2. Quais características da produção teatral de Dias Gomes a diferenciam da


obra dramatúrgica de Nelson Rodrigues?

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3. Qual a contribuição dada por Boal e Vianinha ao teatro moderno brasileiro?

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Novos autores, autores jovens
e a internet como espaço literário

Os estudiosos e críticos da literatura brasileira, a exemplo de Massaud


Moisés, apontam, para efeito didático, como fim do ciclo da modernidade
literária a década de 1970 e mais precisamente a publicação do romance
Avalovara (1973) do escritor pernambucano Osman Lins (1924-1978). O
motivo de tal afirmação repousa, entre outros fatores, na forma e estilo
narrativos de Lins. A partir de um enredo que se desenrola entre os gêne-
ros épico, lírico e dramático, o autor confere uma face renovada ao roman-
ce regionalista nordestino. Como exemplo dessas características formais
da produção de Lins, podemos mencionar o próprio Avalovara, obra que
“pretende reproduzir, na estrutura em palíndromo, configurado num qua-
drado e numa espiral, a ordem cósmica” (MOISÉS, 1989, p. 510).

Mas a contemporaneidade, o período histórico brasileiro posterior a


1960/1970, o mundo pós-industrial etc., exige dos artistas um olhar mais
do que nunca voltado para o social. Desse modo, na esteira de Osman
Lins, que propunha uma literatura capaz de “inquietar o leitor, despertá-lo,
arrancá-lo de seu torpor, apontar-lhe caminhos de esclarecimento inte-
rior e de intervenção no processo social” (MOISÉS, 1989, p. 507), surgiram
poetas e prosadores que trouxeram, e continuam a trazer, novas cores e
formas ao grande painel literário brasileiro, entre eles João Antônio, Adélia
Prado, Olga Savary, Ignácio de Loyola Brandão, Silviano Santiago, Raduan
Nassar, Ivan Ângelo, Josué Guimarães, Chico Buarque de Hollanda, Sérgio
Sant’Anna, João Gilberto Noll, Bernardo Carvalho; e os novíssimos Milton
Hatoum, Paulo Lins, Luiz Ruffato, Ferréz e Marcelino Freire, entre outros.

Tendências pós-modernas
Há qualquer coisa no ar. Um fantasma circula entre nós nestes anos 1980: o pós-
modernismo. Uma vontade de participar e uma desconfiança geral. Jogging, sex-shops,
mas gente dizendo: “Deus está morto, Marx também e eu não estou me sentindo muito
bem”. Videogames em casa, auroras de laser na danceteria. Nietzsche e Boy George
comandam o desencanto radical sob o guarda-chuva nuclear. Nessa geleia total, uns
veem um piquenique no jardim das delícias; outros, o último tango à beira do caos.
(SANTOS, 1986, p. 7)  

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Literatura Brasileira Contemporânea

Ao refletir criticamente sobre o mundo que nos cerca, vamos nos deparar mais
cedo do que imaginamos com o termo pós-modernismo, conceito de caráter si-
nuoso, mas essencial para a reflexão crítica da nossa contemporaneidade seja no
campo estético, ideológico ou literário. Por isso, é vantajoso iniciarmos este capítu-
lo sobre os novos autores e o novo espaço na literatura brasileira retomando bre-
vemente a discussão do conceito. A ideia de “pós-modernidade” abarca uma série
de significados controversos e tem sido motivo de intensos e acalorados debates
entre os críticos. Em geral, fala-se de um “paradigma pós-moderno” operando na
cultura, evitando-se com isso o comprometimento com qualquer hipótese sobre
a natureza do pós-modernismo. De qualquer modo, é consensual a ideia de que
esse “conjunto de tendências, paradigmas e teorias de diversos domínios do co-
nhecimento, em particular como possível explicação estética, ideológica, literária
e/ou crítica de todas as manifestações artísticas” (CEIA, 2009) se espraiou pelo Oci-
dente após 1945, consolidando-se na segunda metade do século XX.

O pós-modernismo surgiu no contexto de intensas mudanças socioculturais,


a partir dos anos 1950: a urbanização desenfreada, o consumismo, a tecnologia
da informação, a televisão, a liberação sexual, a pílula anticoncepcional, o declí-
nio da religiosidade e de outros valores institucionalizados, e a inevitável cultura
de massa. Nesse cenário, em que o indivíduo experimenta um desenraizamento
de sua própria identidade e do mundo que o cerca, as artes se apressaram a
buscar novas ferramentas para representar não mais a realidade em si, mas o
simulacro da realidade:
O ambiente pós-moderno significa basicamente isso: entre nós e o mundo estão os meios
tecnológicos de comunicação, ou seja, de simulação. Eles não nos informam sobre o mundo;
eles o refazem à sua maneira, hiperrealizam o mundo, transformando-o num espetáculo
(SANTOS, 1986, p. 13)  

O que hoje chamamos de ambientes virtuais é o resultado mais acabado desse


processo. Aquilo que nos anos 1950 era tido como sinais de progresso, hoje, com
a telefonia celular, a internet, a televisão digital e tudo o mais que podemos ima-
ginar em termos de tecnologia, configura a realidade, ou melhor, o simulacro de
uma realidade espetacular. Uma tal espetaculização do mundo empobrece a ex-
periência humana em esferas tão diversas quanto as relações pessoais, conjugais,
familiares, de trabalho etc. E o que veremos neste capítulo é como as artes, e mais
especificamente a literatura contemporânea, lidaram com tudo isso.

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Novos autores, autores jovens e a internet como espaço literário

Chico Buarque: dos anos de luta


à crise do sujeito pós-moderno
O desejo de tomar o partido dos pobres e de vê-los defender na rua os seus direitos sobe
de supetão, para se apagar em seguida. É como um reflexo antigo, antediluviano, hoje uma
reação no vazio, já que a alegria do povo é aparecer na televisão. [...]
Depois dos tempos em que a pobreza ignorante seria educada pela elite, e de outros tempos
em que os malfeitos dos ricos seriam sanados pela pureza popular, chegamos agora a um
atoleiro de que ninguém quer sair e em que todos se dão mal. (SCHWARZ, 1999, p. 180)  

As passagens acima são parte da análise que o crítico Roberto Schwarz faz
do romance Estorvo (1991), a primeira incursão no gênero romance do compo-
sitor-poeta, intérprete, dramaturgo, cronista e ficcionista carioca Chico Buarque
de Hollanda. Artista-ícone na história da música popular brasileira, Chico Buar-
que, como é conhecido, tem sido um dos mais sensíveis pensadores da cultura
e da sociedade contemporânea e traduz suas reflexões com sagacidade, seja no
campo musical, teatral ou literário. Considerado um verdadeiro artesão da língua
portuguesa (basta recordar a letra da música “Construção”, de 1971), Chico Bu-
arque, um “veterano de 1968”, no dizer de Schwarz (1999, p. 180), publicou sua
primeira prosa em 1974, a novela Fazenda Modelo: novela pecuária. Abertamen-
te uma obra crítica do regime militar, o enredo traz uma clara alegoria daque-
le momento de opressão: o povo é substituído por uma boiada; e o país, por
uma grande fazenda. O narrador é um boi, e a narrativa é dedicada a uma vaca.
Assim iniciou a carreira literária de Chico Buarque, que foi retomada em 1991, já
em tempos de democracia e pós-modernismo, com o romance Estorvo. Artista
de poucas, mas valiosas obras literárias, Chico Buarque publicou ainda a novela
Benjamim, em 1995 e o romance Budapeste, em 2003.

Nascido Francisco Buarque de Hollanda, em 1944, filho do paulistano Sérgio


Buarque de Hollanda (1902-1982), célebre historiador que nos legou Raízes do
Brasil (1936), obra fundamental para o entendimento de nossa cultura, Chico é
também sobrinho de Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, crítico literário, le-
xicógrafo, filólogo, e “pai” de um dos mais famosos dicionários da língua portu-
guesa. Porém, mais do que a herança cultural familiar, Chico Buarque congrega
em sua biografia experiências que refletem uma época de privação de liberdade
de todas as ordens: o Brasil dos anos de chumbo das décadas de 1960 e 1970.

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Literatura Brasileira Contemporânea

A aproximação da escrita de Chico Buarque ao contexto do pós-modernismo


pode ser justificada pela temática e forma de representação da realidade: a des-
centralização, fragmentação e deslocamento do sujeito, imerso em constantes
conflitos existenciais e sociais. Suas personagens demonstram ausência de um
tônus vital, lassidão e hesitação perante a vida, um estado que é interrompido so-
mente por pequenos lapsos, por vislumbres de consciência que se esgotam com
facilidade, ou seja, algo que “sobe de supetão, para se apagar em seguida”, no dizer
de Schwarz; assim exemplificado na apresentação do protagonista de Benjamim:
Se uma câmera focalizasse Benjamim na hora do almoço, captaria um homem longilíneo, um
pouco curvado, com vestígios de atletismo, de cabelos brancos mas bastos, prejudicado por
uma barba de sete dias, camisa para fora da calça surrada aparentando desleixo e não penúria,
estacionado em frente ao Bar-Restaurante Vasconcelos, tremulando os joelhos como se
esperasse alguém. Benjamim entretanto não esperava nada, a não ser que ele mesmo resolva
o dilema: entrar num bar-restaurante ou voltar para a cama. A questão é embaraçosa porque
Benjamim não tem sono, nem sede, nem apetite, nem alternativa para esta tarde. Preso ao
chão, as pernas irrequietas, impacienta-se com a própria hesitação, e é nessas conjunturas que
lhe costuma voltar a sensação de estar sendo filmado. (BUARQUE, 1995, p. 10)  

Aliando elementos do romance policial, do realismo insólito e do thriller cine-


matográfico, as obras de Chico Buarque participam da narrativa brasileira con-
temporânea advertindo para uma mudança de paradigma no que se refere à
resistência do sujeito às forças sociais que imperam sobre a sua individualidade.
Enfim, denuncia-se que o projeto utópico dos anos 1960, que impelia o sujeito a
agir e a não se submeter, deu lugar na contemporaneidade a um horizonte vazio
de ideais, à entrega coletiva a um mundo midiatizado e esquizofrênico, a um
estado de suspensão num entre-lugar (“bar-restaurante”), cuja alternativa já não
lhe parece ser a ação, mas a imobilidade total (“a cama”).

Sérgio Sant’Anna: a vida como ela é!


Outro escritor carioca da geração de Chico Buarque, que segue a verten-
te específica que se costuma chamar de literatura urbana brasileira, é Sérgio
Sant’Anna (1941). Sant’Anna estreou na literatura em 1969 com O Sobrevivente.
Quatro anos mais tarde, em 1973, publica novos contos em Notas de Manfredo
Rangel (A respeito de Kramer) e em 1975 é lançado o seu primeiro romance, Con-
fissões de Ralfo, seguido pelo também romance Simulacros, de 1977. Antes de
retomar a prosa curta, Sant’Anna trafega pelos caminhos da poesia, com Circo
(1980), e da dramaturgia, com Um Romance de Geração (1981). Em 1982, retoma
o seu gênero de preferência, o conto, e lança O Concerto de João Gilberto no Rio
de Janeiro, obra que lhe rendeu seu primeiro Prêmio Jabuti, que viria ainda com
a novela Amazona (1986) e o romance Um Crime Delicado (1997). Acrescem-se ao
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Novos autores, autores jovens e a internet como espaço literário

rol literário do autor: Junk-Box (poesia, 1984), A Tragédia Brasileira (romance-te-


atro, 1984), A Senhorita Simpson (contos, 1989), Breve História do Espírito (contos,
1991), O Monstro (contos, 1994) e O Voo da Madrugada (contos, 2003).

Entre as características que distinguem sua obra está a ausência de um tom


regionalista ou social padrão. Apesar de ter o Rio de Janeiro como espaço narra-
tivo preferencial, Sant’Anna utiliza uma linguagem pertinente a quaisquer espa-
ços e situações urbanos. A problemática refletida em sua ficção, apesar de recair
sobre contextos sociais, familiares e pessoais, é isenta da afetividade comum
à abordagem de tais temas. A linguagem flui espontânea e coloquialmente: a
ironia, a paródia e a mistura de gêneros (jornalístico, dramático, poético etc.) são
recursos que o autor usa para trazer ao palco personagens anônimas, excluídas e
marginalizadas na moderna sociedade brasileira firmada a partir de 1964.

Em pleno 1969, ano de efervescência da ditadura militar e de seus temíveis


corredores, surge o momentoso conto “Exercício”, integrante do livro O Sobrevi-
vente. Nele Sant’Anna ousa bulir ironicamente, com o intuito de provocar a refle-
xão, com um dos temas mais sensíveis ao imaginário brasileiro, isto é, a violência
de Estado daquela época:
A violência, entretanto, possuía sempre como virtude o rompimento com uma fase e obrigava
uma pessoa a tentar compreender e isso acontecera também com ele, ali diante do velho,
um envergonhado do outro. Então era como se visse a si e aos outros pela primeira vez e o
tempo anterior desfilava diante de sua percepção com uma certa e incorrompida nitidez; ele
entendendo, desse modo, o que era possuir para os outros um corpo e uma presença e ser,
enfim, uma pessoa, mesmo neutra e apagada, diante deles, implicando aquilo tudo um modo
diferente de agir – a não ser que se dedicasse, a partir daí, à rebelião. (SANT’ANNA, 1997, p. 26)  

Se, no tratamento da temática, Sant’Anna provoca os sentidos do leitor, em


relação à forma narrativa sua proposta é abalar as estruturas de uma estética
que, no seu entender, dá guarida a um tipo de discurso por vezes hegemônico,
previsível, silenciador e omisso. Então, sem se abster dos temas sociopolíticos
e culturais – ou justamente em função deles –, o autor condena a hegemonia
discursiva e coloca no primeiro plano de sua escrita a desconstrução, a desmisti-
ficação e o desmascaramento de formas e clichês canônicos que não dão conta
de expressar a complexidade social e humana da contemporaneidade.

Nesse sentido, no conto intitulado “O monstro”, do livro homônimo, a estrutura é a


de uma entrevista a um jornal intitulado “Flagrante”, durante a qual se esmiúça o mi-
crocosmo de um crime hediondo praticado pelo entrevistado Antenor Lott Marçal,
professor universitário, e sua amante contra uma jovem cega. As reflexões mais lúci-
das sobre o crime são exercitadas pelo próprio assassino, que mais do que ninguém
busca uma “verdade pelo menos relativa” sobre a sua condição (des)humana:

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Flagrante: As pessoas que o conhecem ficaram muito surpresas com a sua confissão de estupro
e participação no assassinato da jovem Frederica Stucker. Como o senhor mesmo explicaria
que um homem considerado por todos como tímido, austero e, segundo alguns, até obscuro,
de repente se veja cometendo crimes dessa natureza?
Antenor: É necessária muita cautela para chegar a alguma verdade quando se trata de atos
humanos. Não acredito em causas isoladas ou muito precisas. Mas eu, mais do que todos,
estou interessado, a respeito desse caso todo, em chegar a uma verdade pelo menos relativa.
[...] (SANT’ANNA, 1997, p. 607)  

O artesanato linguístico e a investigação da própria arquitetura narrativa na


obra de Sant’Anna são apenas alguns dos elementos que elevaram o ficcionista
à condição de um dos mestres contestadores e provocadores da literatura brasi-
leira contemporânea.

João Gilberto Noll: pela linguagem e pelo leitor


A literatura pós-moderna existe para falar da pobreza da experiência, [...] mas também da
pobreza de comunicação. Trata, portanto, de um diálogo de surdos e mudos, já que o que
realmente vale na relação a dois estabelecida pelo olhar é uma corrente de energia, vital
(grifemos: vital), silenciosa, prazerosa e secreta. (SANTIAGO, 2002, p. 56-57)  

O gaúcho João Gilberto Noll (1946- ) é um dos escritores que a crítica situa, ao
lado de Bernardo Carvalho, na esfera do pós-modernismo. Em 1970, Noll publica
sua primeira antologia de contos, Roda de Fogo, iniciando uma promissora car-
reira literária. Dez anos mais tarde, em 1980, é a vez de O Cego e a Dançarina, livro
que o colocaria em definitivo sob os holofotes do público e da crítica, renden-
do ao autor três dos mais importantes prêmios literários no Brasil: “Revelação
do Ano”, da Associação Paulista de Críticos de Arte; “Ficção do Ano”, do Instituto
Nacional do Livro e o “Prêmio Jabuti”, da Câmara Brasileira do Livro. Em 1983,
o conto “Alguma coisa urgentemente”, contido neste O Cego e a Dançarina, foi
adaptado para o cinema com o título Nunca Fomos tão Felizes.

“Alguma coisa urgentemente” narra a história de um adolescente órfão de


mãe que, vindo de Porto Alegre com o pai, um ativista político perseguido no
regime militar, se instala em Copacabana (Rio de Janeiro) num apartamento na
avenida Atlântica, um espaço que não lhes pertencia (“De amigos, ele [o pai] co-
mentou. Mas embora o apartamento fosse bem mobiliado, ele vivia vazio” [NOLL,
1997, p. 685]). E assim, ocupando um lugar transitório, aparentemente tempo-
rário e solitário em meio a um dos mais agitados e burgueses bairros cariocas, o
protagonista é logo abandonado pelo pai. O jovem deixado à própria sorte vai
experimentando a sensação de um vazio existencial e, em sua emancipação for-
çada, passa a refletir sobre a condição humana: conhece e repudia o mundo da
prostituição masculina, penaliza-se com o pai que retorna moribundo, e, mesmo

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morando em um bairro agitado, é incapaz de abrir um canal de comunicação


com as pessoas que o cercavam, não tendo ninguém para expressar suas angús-
tias no momento presente.
Eu fui para a janela pensando que ia chorar, mas só consegui ficar olhando o mar e sentir que
precisava fazer alguma coisa urgentemente. Virei a cabeça e vi que meu pai dormia. Aliás, não
foi bem isso o que pensei, pensei que ele já estivesse morto e fui correndo segurar o seu único
pulso.
O pulso ainda tinha vida. Eu preciso fazer alguma coisa urgentemente, a minha cabeça
martelava. É que eu não tinha gostado de ir com aquele homem na noite anterior, meu pai ia
morrer e eu não tinha um puto centavo. De onde sairia a minha sobrevivência? Então pensei
em denunciar meu pai para a polícia para ser recebido pelos jornais e ganhar casa e comida em
algum orfanato, ou na casa de alguma família. Mas não, isso eu não fiz porque gostava do meu
pai e não estava interessado em morar em orfanato ou com alguma família, e eu tinha pena do
meu pai deitado ali no sofá, dormindo de tão fraco. Mas precisava me comunicar com alguém,
contar o que estava acontecendo. Mas quem? (NOLL, 1997, p. 686-687)  

A incomunicabilidade, a fragilidade das relações humanas e as incertezas que


o cotidiano impõe ao indivíduo: eis algumas características que perpassam as
obras de Noll, à medida que ele vai esboçando um retrato da realidade urbana
contemporânea. O narrador-anônimo, angustiado e solitário tem por testemu-
nha de sua confusão existencial apenas o leitor que, numa troca silenciosa, vai
compartilhando a sensação de atordoamento, asfixia e a necessidade de “fazer
alguma coisa urgentemente”.

A narrativa de João Gilberto Noll insere-se ainda na poética pós-moderna


que se volta à escrita erótica e, ao lado de elementos da escatologia, procura
desmistificar a linguagem e a estética burguesa que ainda prepondera no fazer
literário. O corpo e a sexualidade humana são trazidos para a narrativa como re-
cursos metafóricos de uma sociedade pós-industrial decadente e consumista em
que os iguais, os humanos, se devoram, daí as imagens narrativas que chocam
deliberadamente o leitor, obrigando-o a abandonar o seu lugar de observador
passivo da existência humana.

Os contos, crônicas e romances que Noll produziu até 1996 foram compi-
lados num volume único em 1997. Nas 785 páginas desta obra parcialmente
completa constam, além de O Cego e a Dançarina, os romances A Fúria do Corpo
(1981); Bandoleiros (1985); Rastros de Verão (1986); Hotel Atlântico (1989); O Quieto
Animal da Esquina (1991); Harmada (1993); A Céu Aberto (1996). A esse conjunto
de obras foram acrescentados até o presente momento mais quatro romances e
dois livros de contos: os romances Canoas e Marolas (1999); Berkeley em Bellagio
(2002); Lorde (2004) e Acenos e Afagos (2008); e os contos reunidos em Mínimos
Múltiplos Comuns (2003) e A Máquina do Ser (2006).

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Os limites entre o real e o ficcional


na obra de Bernardo Carvalho
No início de 2009, o escritor carioca, radicado em São Paulo, Bernardo Carva-
lho (1960- ) lançou o seu décimo livro de ficção intitulado O Filho da Mãe. Obra
cuja produção podemos denominar de “uma experiência pós-moderna”: ela
foi feita por encomenda segundo um projeto editorial que em 2007 enviou 17
autores a várias partes do mundo pelo período de um mês. O objetivo de tal
empreitada era que a partir dessas experiências de viagem fossem criadas 17
narrativas que girassem em torno do tema “amor”. Mas não apenas isso. Todas as
experiências foram acompanhadas por meio de um blog na internet, ou seja, os
leitores teriam notícias prévias das experiências que resultariam em romances
que leriam tempos mais tarde, como é o caso de Bernardo Carvalho e o seu O
Filho da Mãe, narrativa-produto da viagem do romancista à cidade de São Peter-
sburgo, na Rússia, cujo início é narrado como se segue:
Andrei sai do quartel a tempo de chegar à praça da estação às nove da noite. Não deve ser
visto. As ruas ainda não estão completamente desertas, mas a essa hora, pelo menos, sua
figura solitária não despertará tanta suspeita quanto se passasse por ali de madrugada. Terá
que voltar antes do último metrô, pelo mesmo motivo, para não ser visto como exceção. Leva
a mochila vazia nas costas, como se estivesse de licença, a caminho de casa. É um disfarce
inútil. No quartel, não engana ninguém. Não volta para casa desde que entrou para o serviço
militar, vai fazer um ano. Não poderia voltar nem se estivesse de licença, já que foi expulso
de casa. A mãe e a irmã vivem onde termina o país, sete fusos horários à frente. Não recebe
notícias das duas desde que chegou a São Petersburgo. Mesmo se tivesse permissão, não se
atreveria a ligar, correndo o risco de ter que falar com o padrasto, no caso de ele atender. As
cartas que escreve eventualmente, à noite, não passam de exercícios de comunicação para
não perder a prática, já que não pode enviá-las. Vai rasgá-las de qualquer jeito. Não conversa
com ninguém. Não fala nem mesmo com as paredes, um vício de infância ao qual costumava
recorrer, quando estava só, em Vladivostok, mas que interrompeu, providencialmente, nem
que tenha sido por um espírito igualmente inconsciente de sobrevivência, quando chegou ao
quartel. (CARVALHO, 2009b, p. 52)  

No período em que o escritor e jornalista Bernardo Carvalho permaneceu na


cidade russa pesquisando para a escrita desse romance, ele relata ter vivenciado
experiências de estranhamento, incomunicabilidade, solidão e pânico diante de
códigos linguísticos, sociais e culturais que não domina. No entanto, a situação
lhe teria possibilitado uma dupla experiência essencial ao cumprimento do ob-
jetivo daquela viagem. Se, por um lado, o sentimento foi de desamparo, solidão
e medo; por outro, o distanciamento compulsório, o olhar estrangeiro sobre a
cultura do “outro”, permitiu-lhe ver com acuidade as mazelas sociais e o simula-
cro de modernidade que encobre como um véu o submundo feio e sujo onde
jaz a face real da sociedade russa.

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Conforme revela a obra de Carvalho, a experiência de estar em um lugar não


seu, de não pertencer a um tempo e espaço, é acentuada no contexto pós-mo-
derno. Um mundo de valores desintegrados, de desestruturação social, descaso
com o semelhante, negligência e indiferença diante da violência. Nesse tipo de
sociedade, o indivíduo pode vagar como autômato e é da mesma forma tratado,
seja no seu bairro, na sua cidade, no seu país ou em países estrangeiros. Em geral,
nos romances de Carvalho, é recorrente a existência de personagens alienadas
de si e dos outros, incapazes de entender a situação em que se encontram. A ver-
tigem diante de um conjunto de elementos não familiares ou não identificáveis
torna-se dispositivo para a perda do sentido de personalidade, para a fragmen-
tação da individualidade.

Em O Filho da Mãe, Bernardo Carvalho opta pela primeira vez por um narrador
em terceira pessoa, já que, seguindo a tendência dominante na literatura pós-
moderna, seus outros nove romances são narrados em primeira pessoa – con-
forme ocorre em Aberrações (1993); Os Onze (1995); Os Bêbados e os Sonâmbulos
(1996); Teatro (1998); As Iniciais (1999); Medo de Sade (2000); Nove Noites (2002);
Mongólia (2003) e O Sol se Põe em São Paulo (2007). Sobre essa mudança do foco
narrativo no seu décimo romance, o autor afirmou em entrevista: “Ao usar pela
primeira vez um narrador em terceira pessoa, onisciente, senti uma liberdade
incrível. [...] Podia sair da cabeça de um personagem e entrar na de outro. Minha
perspectiva não estava mais limitada a um narrador-protagonista” (KRAPP, 2009).
O que fica nas entrelinhas dessa confissão é que a liberdade proporcionada pela
narrativa onisciente serviu como um contraponto à opressão que o espaço teria
exercido, extraordinariamente, sobre o próprio autor.

A respeito de seu desconforto naquele espaço estrangeiro, ele afirma: “Em


São Petersburgo, cidade planejada para o controle, o espaço é o das grandes
esplanadas, das avenidas larguíssimas, das pontes. É uma geografia opressiva:
não há a possibilidade do esconderijo. Você fica vulnerável o tempo todo, à vista
de qualquer inimigo” (apud KRAPP, 2009). O tom de paranoia alimentando, o tor-
mento da incerteza, é recorrente nos romances de Carvalho. O foco narrativo e
a construção das personagens são enfatizados na montagem do enredo, o qual
trata, sobretudo, de coisas humanas: memória, amor, morte, sexualidade, via-
gens, fotografias ou qualquer outro elemento da realidade cotidiana que se dê
à apreensão ficcional.

A consciência do autor sobre o ato de escrever resulta num estilo narrativo


simples (não simplório) e fragmentado, coerente com a realidade que represen-
ta; uma escrita que se faz voltada para fatos, pessoas e experiências reais, como

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foi o caso da experiência do próprio escritor na Rússia. Desse modo, sem propor
uma escrita autobiográfica, e consciente sobre aquilo que separa um texto lite-
rário de um texto documental, Bernardo Carvalho desenvolve um realismo crí-
tico, a partir de um jogo seguro entre realidade e ficção: note-se que muitos de
seus narradores são escritores, espelhando ficcionalmente a própria experiência
do autor. Suas estratégias literárias conectadas à realidade colaboram para uma
reflexão metalinguística sobre a própria literatura e a forma como esta se rela-
ciona com a realidade e, principalmente, retira o leitor da sua zona de conforto,
exigindo sua participação consciente no ato de leitura.

Paulo Lins: o povo como protagonista


O romance de estreia de Paulo Lins, um catatau de quinhentas e cinquenta páginas sobre a
expansão da criminalidade em Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, merece ser saudado como
um acontecimento. (SCHWARZ, 1999, p. 163)  

A crítica enaltecedora de Schwarz, um dos maiores críticos literários brasi-


leiros, a um estreante na literatura brasileira tem muita razão de ser. A primeira
delas é o local de enunciação da narrativa de Cidade de Deus (1997): um dos lu-
gares mais violentos do Rio de Janeiro. O poeta concretista, professor e pesqui-
sador carioca Paulo Lins (1958- ) cresceu e testemunhou a violência que dá con-
teúdo à sua narrativa. Participou ativamente da vida comunitária, integrando o
grupo Cooperativa de Poetas da Cidade de Deus, na década de 1980. Publicou
o livro de poesia, Sobre o Sol (1986) pela Universidade Federal do Rio de Janei-
ro (UFRJ). Mas foi principalmente a partir de entrevistas realizadas no bairro
Cidade de Deus como integrante do projeto da antropóloga Alba Zaluar sobre
“Crime e criminalidade nas classes populares” que o poeta enveredou para a
escrita romanesca, produzindo uma das mais inovadoras narrativas de fim de
século no Brasil.

Lins traz para a literatura o realismo bruto de uma situação social que perfaz,
na contemporaneidade, uma parte significativa da miséria social brasileira que
atinge cidadãos duplamente oprimidos. Externamente são trabalhadores discri-
minados pela sociedade em geral por pertencerem às comunidades periféricas,
as chamadas favelas. Internamente são vitimados pela violência alimentada co-
tidianamente pelo tráfico de drogas que parasita esses ambientes de concentra-
ção de pobreza. Da violência e perversidade sustentadas pelos traficantes “do
morro” e também do asfalto, e pelos consumidores “do asfalto” e também do
morro, emerge um conteúdo narrativo com todos os matizes da arte pós-moder-
na. Em Cidade de Deus, o insólito não é metáfora, mas sim um recurso literário:
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Novos autores, autores jovens e a internet como espaço literário

A favela agora tinha dono: Miúdo. Só ele poderia traficar na favela. Deu uma das bocas-de-
fumo para Sandro Cenoura na consideração, porém o resto era dele e do Pardalzinho. A
Teresona continuaria a vender, mas teria apenas dez por cento sobre as vendas, assim como
qualquer vapor. (LINS, 2003, p. 160)  

No livro, a fragmentação do indivíduo e a realidade social representada nada


mais são do que o fim de um processo sócio-histórico que se eximiu de respon-
sabilidades para com uma parte da sociedade, a qual, por sua vez, procura repro-
duzir, em geral pela via da criminalidade, as lições da economia capitalista.

A internet como espaço literário:


poesia virtual e blogs
Em 2009, comemorou-se os 20 anos de um “ser” pós-moderno de nascença:
a World Wide Web, ou simplesmente a www. 1989 foi o ano em que o britânico
Tim Berners-Lee (1955) publicou um estudo que daria ao mundo uma das ferra-
mentas mais revolucionárias da comunicação humana: a nossa já velha conhe-
cida internet. A rede de comunicação global usada, para o bem e para o mal,
em todos os continentes, logo se revelou um ambiente acolhedor para uma das
mais antigas formas de comunicação humana: a literatura.

No Brasil, o espaço virtual ou eletrônico, como denominamos o meio de pro-


dução e divulgação de textos não impressos, prosperou na década de 1990, à
medida que mais passos foram dados na organização das informações e forma-
tação de páginas virtuais através dos chamados sites pessoais e blogs (espaço
de divulgação de textos e opiniões). Esses meios têm se mostrado de tal modo
ágeis na comunicação entre escritores e público que autores consagrados, es-
treantes e aspirantes às letras transitam em tais ambientes com desenvoltura,
chegando algumas vezes a se fixarem apenas no mundo virtual (como é o caso
da já consagrada “poesia virtual”). Outras vezes, os escritores iniciam-se no meio
eletrônico e posteriormente levam a obra à publicação impressa, como Ferréz e
Marcelino Freire, que veremos a seguir.

O meio eletrônico tem servido de importante espaço de divulgação para a cha-


mada “literatura marginal”, ou “das margens”, cujas obras encontram pouca recep-
ção nas editoras tradicionais. Mesmo escritores da nova geração, já veiculados pelo
meio de publicação impresso, não abdicam de manter um contato de comunica-
ção virtual com o seu público. Por exemplo, o paulistano Ferréz (1975), autor de
obras importantes como Capão Pecado (2000) e Ninguém é Inocente em São Paulo

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(2003) – que retratam os dilemas sociais das periferias da cidade de São Paulo e
foram publicadas em livro – mantém on-line um site e um blog (<www.ferrez.com.
br> / <http://ferrez.blogspot.com>). Outro exemplo dessa nova geração de auto-
res que circulam primordialmente pela rede mundial de computadores é o per-
nambucano radicado em São Paulo, Marcelino Freire (1967), vencedor do Prêmio
Jabuti de Literatura em 2006, com o livro Contos Negreiros (2005), e autor também
de EraOdito (2002); Angu de Sangue (2000) e BaléRalé (2003). Marcelino Freire é
encontrado na “rede” no endereço: <www.eraodito.blogspot.com>.

Texto complementar

Dialética da marginalidade – caracterização da


cultura brasileira contemporânea
(ROCHA1, 2004, p. 7)

Hoje, 29 de fevereiro [de 2004], o cinema brasileiro vive um momento


histórico com o feito inédito da indicação do filme dirigido por Fernando
Meirelles, Cidade de Deus, para concorrer ao Oscar em quatro categorias: di-
reção, roteiro adaptado, montagem, fotografia. A ocasião deve ser festejada,
pois confirma o alto nível técnico alcançado pelas produções nacionais. Na
saga do crime organizado, descrita com mão firme por Paulo Lins no roman-
ce Cidade de Deus [Cia. das Letras], a brutalidade da violência de Zé Pequeno
esclarece que a caracterização da cultura brasileira contemporânea exige
novos modelos de análise, capazes de estimular uma outra leitura do filme.
De igual modo, em 1962, o cinema brasileiro vivia um momento dos mais
importantes em termos de reconhecimento internacional, ao conquistar a
Palma de Ouro em Cannes, com O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte
– indicado no mesmo ano ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Na cortante
história de Dias Gomes, por efeito de contraste, a ingenuidade interiorana da
crença de Zé do Burro assinalava a complexidade da vida urbana, tema que
se impunha no Brasil, na segunda metade do século XX. Na saga do paga-
dor de promessas, o deslocamento do campo para a cidade é expresso não
somente na morte de Zé do Burro, mas também na atração que sua mulher
Rosa sente por uma personagem tipicamente urbana, o malandro Bonitão.
1
João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Escreveu Literatura e Cordia-
lidade (Eduerj) e organizou As Máscaras da Mímesis (Record) e Interseções (Imago).

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Novos autores, autores jovens e a internet como espaço literário

Esses dois filmes favorecem um paralelo intrigante: do ponto de vista social,


não poderia ser maior a distância entre as personagens Zé Pequeno e Zé do
Burro. De um lado, o criminoso e sua brutalidade, aterrorizando a todos os
espectadores, precisamente pela proximidade com o cotidiano, como se o
horror da ação na tela pudesse ser reencontrado na próxima esquina. De
outro lado, o camponês e sua simples fé, cativando a todos os espectadores,
precisamente pelo caráter anacrônico de que se reveste, como se o passa-
do projetasse uma sombra melancólica no dia a dia da cidade de Salvador.
Como compreender a distância entre esses dois momentos históricos? Neste
ensaio, busco identificar um fenômeno que tem ocorrido nos últimos anos
e cujas consequências ainda não se podem avaliar plenamente, pois se acha
em curso. Porém, tal fenômeno deverá provocar uma mudança radical na
imagem da cultura brasileira. Refiro-me à passagem da “dialética da malan-
dragem” ao que chamo de “dialética da marginalidade”. Para ser mais exato,
refiro-me ao choque entre essas duas formas de compreender o país. A meu
ver, a cultura brasileira contemporânea tornou-se o palco de uma sutil dispu-
ta simbólica. De um lado, propõe-se a crítica certeira da desigualdade social
– o caso, entre tantos, do romance Cidade de Deus, da música dos Racionais
MC’s, dos romances de Ferréz, Capão Pecado (ed. Labortexto) e Manual Prá-
tico do Ódio (ed. Objetiva). De outro lado, e ainda que à revelia de seus reali-
zadores, acredita-se no retorno à velha ordem da conciliação das diferenças
– o caso, por exemplo, do filme Cidade de Deus e do seriado da TV Globo
Cidade dos Homens. Antes de explorar essa disputa simbólica, retornemos
ao ano da premiação da saga de Zé do Burro, cuja mescla de obstinação e
subserviência foi intuída por Elizabeth Bishop. O trecho é longo, mas indis-
pensável: “Qualquer pessoa em visita ao Brasil concordaria que os brasileiros,
os cidadãos comuns, são um povo maravilhoso, alegre, gentil, espirituoso e
paciente – de uma inacreditável paciência. Vê-los esperar em filas por horas,
literalmente por horas, em filas cujo ziguezague, esticado, equivaleria a duas
ou três quadras, só para embarcar num ônibus avariado e dirigido da manei-
ra mais imprudente com destino a suas minúsculas casas de subúrbio, onde
as ruas provavelmente ainda aguardam conserto e o lixo não foi recolhido,
onde talvez esteja até faltando água – ver isso é assombrar-se com tama-
nha paciência. Outros povos sob provações semelhantes sem dúvida fariam
uma revolução por mês”. Essa surpreendente avaliação do povo brasileiro
se encontra no parágrafo final de um livro que a poeta buscou esquecer:
“Brazil”, escrito para a coleção World Library da revista norte-americana “Life”.
Dois anos após suas proféticas palavras, o golpe militar se travestiu de revo-

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lução, instalando a ditadura que controlou o país por duas décadas. Elizabe-
th Bishop vislumbrou perfeitamente o alvo, mas acreditou demais na pro-
verbial paciência brasileira. Se pudesse reescrever o trecho, provavelmente
abandonaria a caracterização macunaímica do povo feliz, embora à espera
do nada. Uma nação de Pedros pedreiros esperando um trem que nunca
sairia da estação.

Ora, os ônibus continuam sendo dirigidos por pilotos do caos urbano; as


filas aumentam ecumenicamente, incluindo a dos bancos, dos postos de saúde
e das inscrições para os escassos empregos públicos; os bairros de subúrbio
permanecem uma distante realidade para os donos do poder. Em suma, no
tocante ao respeito pela cidadania das camadas menos favorecidas, 1962 e
2004 são apenas números diferentes. Entretanto hoje os pedreiros estão de-
sempregados, e a hipótese de a estação nunca ter existido deixou de ser um
pesadelo kafkiano para transformar-se no surrealismo do nosso cotidiano. Por
fim, a violência substituiu a decantada paciência na caracterização da cultu-
ra brasileira contemporânea: Zé Pequeno tomou o lugar de Zé do Burro, não
resta dúvida. Por isso mesmo, nas últimas décadas, uma sensação crescente de
desconforto e de insegurança se tornou parte do dia a dia nas grandes cidades
brasileiras. Condomínios fechados e carros particulares blindados expressam a
reação dos mais privilegiados à realidade dos sequestros-relâmpago; da neo-
favela como entreposto do tráfico internacional de drogas; dos comandos do
crime organizado aterrorizando bairros de classe média como fazem há déca-
das nas áreas da periferia. O repertório é variado, pois não deve ser à toa que
criminalidade rima com criatividade. Já os órgãos de segurança pública não
conhecem rima e muito menos soluções para o problema. Em alguma medida,
a chave reside na elaboração de um novo modelo de estudo. Afinal, a análise
crítica somente estará à altura da produção cultural contemporânea mediante
a criação de formas de abordagem inovadoras. Nesse sentido, as discussões
sobre o filme Cidade de Deus com base na oposição entre “estética” e “cosméti-
ca” da fome pouco contribuem para o entendimento do panorama contempo-
râneo, pois terminam reduzindo sua novidade a modelos teóricos das décadas
de 1960 e 1970. Pelo contrário, proponho outra estratégia com a formulação
do conceito de dialética da marginalidade, como forma de descrever a supera-
ção parcial, no âmbito da sociedade, da dialética da malandragem. Será então
possível mostrar o perturbador maniqueísmo do filme Cidade de Deus e, ao
mesmo tempo, dar conta de uma produção cultural contemporânea alternati-
va. Antes, porém, recordemos o modelo anterior.

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Dialéticas em colisão

Na “Dialética da Malandragem – Caracterização das Memórias de um Sar-


gento de Milícias”, Antonio Candido desenvolveu uma interpretação fecunda
da especificidade histórica brasileira, com base num comércio de mão dupla
entre os pólos da ordem e da desordem. Tal comércio seria realizado por
meio da figura socialmente plástica do malandro – homem de muitos rostos
e discursos, cujo gingado rivaliza com sua habilidade de obter vantagem nas
situações mais diversas e mesmo adversas.

Tal trânsito entre esferas opostas representaria a metáfora da formação


social comprometida com o acordo, em lugar da ruptura; com o “deixa-disso”,
em lugar do conflito. Afinal, o desejo de ser cooptado também define o ma-
landro. No fundo, como Candido esclarece, o malandro aguarda “ser final-
mente absorvido pelo polo convencionalmente positivo”.

Nesse contexto, destaca-se a definição precisa de Jorge Amado, tal como


proposta em Capitães de Areia: “A elegância malandra, que está mais no jeito
de andar, de colocar o chapéu e dar um laço despreocupado na gravata que
na roupa propriamente”. Pois a roupa talvez esteja puída, assim como o país
talvez esteja com as forças sociais esgarçadas, próximas do rasgo. Melhor
então desviar os olhos da vestimenta, em gesto análogo ao dos grupos do-
minantes que desejam esquecer o território por eles explorado.

Num importante livro, Carnavais, Malandros e Heróis, Roberto DaMatta


aprofundou ao máximo o veio aberto por Candido, afirmando que o dilema
brasileiro residiria na oscilação entre o mundo das leis universais e o universo
das relações pessoais, entre a hierarquia rígida da lei e a igualdade morna do
convívio.

Em seu vocabulário, no Brasil todos aspiram ao estatuto de “pessoa” em


detrimento da condição de “indivíduo”. Ora, a pessoa possui uma rede de
relacionamentos que lhe permite driblar a lei a seu bel-prazer. Já o indivíduo
deve curvar-se à perversa universalidade das regras, pois seu universo de
relações é limitado. Tudo está dito no provérbio estudado pelo antropólogo:
“Aos amigos tudo; aos inimigos, a lei”. Por isso, na teoria de DaMatta, o que
“faz o brasil, Brasil” é precisamente a construção de uma ordem relacional,
isto é, fundada num “mecanismo social básico por meio do qual uma socie-
dade feita com três espaços pode tentar refazer sua unidade”. Esses espaços
– o mundo cotidiano, o mundo das festas e o mundo oficial – articulariam

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um mosaico peculiar, no qual a fratura dá lugar à unidade. O artifício oculta


um cálculo interessado: “Há em todos os níveis essa recorrente preocupação
com a intermediação e com o sincretismo, na síntese que vem cedo ou tarde
impedir a luta aberta ou o conflito pela percepção nua e crua dos mecanis-
mos de exploração social e política”. Ora, por que não pensar que a dialética
da malandragem e a ordem relacional têm sido parcialmente substituídas
pelo seu oposto, a dialética da marginalidade e a ordem conflituosa? Tal subs-
tituição tem consequências profundas, já que o conflito aberto não pode
mais ser mascarado sob a aparência do convívio carnavalizante. A hipótese
da emergência da dialética da marginalidade ajuda a compreender o ponto
comum de um grande número de produções recentes que desenham uma
nova imagem do país; imagem essa definida pela violência, transformada
em protagonista de romances, textos confessionais, letras de música, filmes
de sucesso, programas populares e mesmo séries de televisão. A violência é
o denominador comum, mas a forma de abordá-la define movimentos opos-
tos, determinando a disputa simbólica que interessa explicitar.

Disputa simbólica

A melhor maneira de expor essa disputa e apresentar uma compreensão


outra do filme de Fernando Meirelles consiste em destacar a drástica e nada
inócua mudança de ponto de vista na transposição para as telas do impac-
tante romance de Paulo Lins. Por fim, a série Cidade dos Homens apenas radi-
calizou o processo de infantilização do problema da violência e do narcotrá-
fico iniciado pelo filme. Tal processo pode ser mais bem apreciado por meio
do estudo do foco narrativo.

Roberto Schwarz acertou ao considerar que “o romance de estreia de


Paulo Lins [...] merece ser saudado como um acontecimento”. Mas terminou
circunscrevendo Cidade de Deus ao modelo já consagrado: “A ambivalência
no vocabulário traduz a instabilidade dos pontos de vista embutidos na
ação, um certo negaceio malandro entre ordem e desordem”. A nota sobre a
complexidade do narrador é importante, porém, o romance evidencia cabal-
mente os impasses e os limites da dialética da malandragem.

Paulo Lins estabelece uma inquietante equivalência entre malandros, “ban-


didos”, “bichos-soltos” e “vagabundos”: todos sabem como obter vantagem em
tudo. Trata-se de gesto fundamental pouco destacado pela crítica. Em lugar da
idealização do malandro, como vimos no trecho de Jorge Amado, Paulo Lins

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revela o lado oculto de sua ginga, ou seja, esclarece que o malandro somente
pode existir à custa de um otário. Ainda mais: o otário, via de regra, é alguém
do povo, um entre tantos dos inúmeros excluídos. Malandro que é malandro
não cospe para cima. Lembremos o samba de Zeca Compositor: “Enquanto
existir otário no mundo,/ malandro acorda ao meio-dia”.

Estabelecer esse relacionamento estrutural entre as figuras do malandro e


do otário é um movimento crítico decisivo. Celebrar a malandragem, portan-
to, é esquecer que todo Vadinho necessita de uma Dona Flor para explorar,
roubar-lhe o dinheiro, agredi-la quando seu desejo não é prontamente aten-
dido e, como ninguém é de ferro, dar-lhe também amor. Não necessariamente
nessa ordem, pois tudo depende das urgências dos negócios do malandro.
Em princípio, o amor pode sempre ficar para mais tarde. Pode ser inclusive
póstumo, por assim dizer. E certamente o malandro nunca leva em conta o
problema do outro, como ocorre com o Bonitão em O Pagador de Promessas.
Nos termos de Roberto DaMatta, alguém só se afirma como pessoa quando
um número infinitamente maior se vê reduzido ao pálido papel de indivíduo.

Daí a importância do ponto de vista da narração no romance. A ausência


de uma perspectiva clara de superação da desigualdade social inviabiliza a
promessa utópica do morador da Cidade de Deus ser “finalmente absorvido
pelo polo convencionalmente positivo”.

À revelia de seu desejo, ele é o otário, simples escada para a duvidosa


ascensão do malandro. Por exemplo, os políticos engravatados em busca de
voto; os grupos dominantes em busca da paz perdida em meio à violência
cotidiana.

Ora, qual o ponto de vista narrativo do filme Cidade de Deus? Em lugar de


um narrador difuso e deliberadamente ambíguo, optou-se pela determina-
ção do foco narrativo, atribuído ao adolescente Buscapé. No filme, ele parece
ter dois problemas principais: perder a virgindade e deixar a favela graças a
um possível emprego como fotógrafo. Essa extraordinária simplificação da
personagem corresponde a um propósito duplo: tanto torna o horror da his-
tória mais palatável, por acrescentar uma dose de comédia, quanto associa o
desejo do espectador de distanciar-se da realidade ao objetivo do rapaz de
abandonar a Cidade de Deus.

Portanto a escolha do foco narrativo é reveladora, ou seja, por intermédio


da perspectiva de Buscapé, cria-se entre o espectador e as causas do descon-

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trole da violência uma série de mediações interessadas: o olhar do fotógrafo,


a própria câmera fotográfica, seu desejo de escapar da Cidade de Deus. Esses
inúmeros filtros tornam matéria de espetáculo a insuportável realidade da
favela dominada pelo narcotráfico. Se o foco narrativo escolhido fosse o de
Zé Pequeno, o público teria consagrado o filme Cidade de Deus? O caráter
imediato de sua brutalidade recorda o ódio do cobrador, personagem do
conto homônimo de Rubem Fonseca, autêntico prenúncio da atual dialéti-
ca da marginalidade. Estaremos preparados para olhar no espelho e admi-
tir nossa própria indiferença? Daí as mediações que permitem o consumo
voyeurista da violência. Exatamente como numa cena de Carandiru, filme
inspirado no livro de Dráuzio Varela e dirigido por Hector Babenco. Após ter-
minar seu plantão, o médico observa a intimidade das celas por meio de
pequenos orifícios em suas portas, até que se vê na iminência de passar a
noite na penitenciária, pois já havia ocorrido a troca da guarda. Depois de
um breve suspense, as portas da prisão são abertas: o doutor respira o ar
da liberdade. No fundo, queremos é testemunhar as memórias do cárcere,
retornando, porém, ao conforto de lares burgueses. Um “Big Brother” com
uma dose adicional de realismo. Além disso, o filme Cidade de Deus atualiza
clichês, estruturando a narrativa mediante um maniqueísmo difícil de acei-
tar. Zé Pequeno é transformado em verdadeiro tipo ideal lombrosiano. Ele é
o indiscutível bandido mau, perverso, cruel, sem possibilidade aparente de
regeneração: um psicopata, em suma. Sua maldade é reforçada pela “bonda-
de” de seu parceiro, Bené, e, claro, pela justa vingança procurada por Mané
Galinha, cuja noiva foi violentada pelo incorrigível Zé Pequeno. Não é preci-
so uma imaginação fértil para recordar a retórica de programas de televisão
como Cidade Alerta, que reduzem a criminalidade a desvios de comporta-
mento individuais. O processo de infantilização dos protagonistas foi radi-
calizado na série Cidade dos Homens. A equipe básica de realização do seria-
do televisivo é a mesma do filme. A infantilização do foco narrativo parece
adequar-se à sensibilidade da audiência do horário nobre, pois em lugar de
um adolescente, temos agora duas crianças, Laranjinha e Acerola. No primei-
ro ano da série, discutiam-se as dificuldades típicas da vida na favela, ainda
que de forma diluída. Já no segundo ano, em 2003, as aventuras amorosas
dos protagonistas ocuparam o lugar de destaque e os clichês foram servidos
sem escrúpulos, incluindo a representação de moças da favela, que, na praia,
oferecem-se tanto a estrangeiros (falando um arremedo de inglês delibera-
damente ridículo) quanto a jovens de classe média, cuja aparência promete
possíveis benefícios econômicos.

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Novos autores, autores jovens e a internet como espaço literário

Tal prática possui nome e, ao que se sabe, constitui ofício dos mais an-
tigos. Difícil compreender o propósito dessas cenas na estrutura narrativa
da série. Difícil não se incomodar com um tratamento tão estereotipado e
ofensivo. Ou será que se trata de evitar a discussão sobre o problema grave
das favelas dominadas pelo narcotráfico por meio da exotização do próximo,
demasiadamente próximo? Resta uma última pergunta: qual o propósito da
crescente infantilização do foco narrativo e dos protagonistas? Desse modo,
os problemas associados ao narcotráfico podem ser deixados à margem e,
assim, reencontramos a “humanidade” das relações “mesmo” numa favela. Tal
infantilização termina por criar uma favela abstrata, totalmente descontex-
tualizada, como se sua vista privilegiada não passasse de um elemento de
valorização imobiliária e todos os barracos fossem apartamentos de cober-
tura. No segundo ano da série, a favela transformou-se no cenário de uma
sensualidade à flor da pele, uma miniatura da imagem turística de Salvador
em pleno morro carioca. Em breve, os espectadores de Cidade dos Homens
abandonarão sua teimosia e trocarão o asfalto congestionado pela vida
aventurosa das favelas. Afinal, somos todos brasileiros; logo, filhos de Deus,
na cidade maravilhosa.

[...]

Dicas de estudo
Para que o estudante possa completar as informações sobre a literatura con-
temporânea e a sociedade brasileira a partir dos anos de 1960, sugerimos o se-
guinte material:

 Sequências Brasileiras: ensaios, de Roberto Schwarz, Editora Companhia


das Letras.

Nesta obra, Schwarz, um dos maiores críticos em atividade no Brasil, reexami-


na a experiência brasileira no pensamento e na arte contemporânea, vislum-
brando nessa produção os caminhos de uma arte moderna crítica. Os textos
indicam os rumos tomados pela cultura popular após o colapso do desenvol-
vimentismo e o império da mídia. Destacamos, em complemento ao nosso
estudo, especialmente os seguintes textos: “Fim de século”; “Cidade de Deus;
“Nunca fomos tão engajados” e “Um romance de Chico Buarque”.

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Literatura Brasileira Contemporânea

 O que é Pós-moderno?, de Jair Ferreira dos Santos, Editora Brasiliense.

Título da famosa coleção Primeiros Passos, trata-se de uma breve mas con-
sistente referência à matéria pós-modernismo. Escrita numa linguagem
didática e “jovial”, a obra esclarece as bases culturais que formam a socie-
dade contemporânea, respondendo a questões como “o que ocorreu nas
artes com o fim das vanguardas?”, ou “por que o niilismo voltou à boca dos
filósofos?”.

 Filmes: considerando que alguns dos autores estudados neste capítulo


tiveram suas obras adaptadas para o cinema, indicamos as seguintes pro-
duções:

 Crime Delicado (2005), dirigido por Beto Brant, baseado no romance


Um Crime Delicado de Sérgio Sant’Anna.

 Estorvo (2000), dirigido por Ruy Guerra, baseado no romance Estorvo,


de Chico Buarque.

 Nunca Fomos Tão Felizes (1984), dirigido por Murilo Salles, baseado no
conto “Alguma coisa urgentemente”, de João Gilberto Noll.

Estudos literários
1. De um modo geral, o que está por trás do conceito de pós-modernismo?

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Novos autores, autores jovens e a internet como espaço literário

2. Artistas como Chico Buarque (1944- ) e Sérgio Sant’Anna (1941- ) chegaram


à maturidade em meio aos chamados “anos de chumbo” da história político-
social do Brasil: as décadas de 1960 e 1970. Disserte sobre a influência desse
período nas obras literárias desses autores.

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Literatura Brasileira Contemporânea

3. “A favela agora tinha dono: Miúdo. Só ele poderia traficar na favela. Deu uma
das bocas-de-fumo para Sandro Cenoura na consideração, porém o resto era
dele e do Pardalzinho. A Teresona continuaria a vender, mas teria apenas dez
por cento sobre as vendas, assim como qualquer vapor”. Essa passagem do
romance Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins, revela uma das facetas mais
perversas da sociedade contemporânea: o mercado do tráfico de drogas.
Quais os índices da economia capitalista que são revelados nesse excerto?

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Crítica e ensaísmo
literários contemporâneos

Num dos mais importantes livros de estudos literários do final do


século XX, História Concisa da Literatura Brasileira, Alfredo Bosi inovou ao
franquear uma seção de sua obra para o trabalho de críticos literários –
algo que poderia ser visto como uma impropriedade, afinal, se literatura é
uma realização artística fincada na ficção, como se admitir que trabalhos
de análise e interpretação pudessem participar de uma “história da litera-
tura”. Um outro estudioso importante, João Alexandre Barbosa (2006, p.
114), justifica tal decisão com um sólido argumento:
A verdadeira crítica, isto é, aquela que continua a operar através de numerosos juízos
sobre uma dada obra, possui sempre o seu conteúdo, por assim dizer, memorialístico. É
fundamentalmente a história de uma leitura, de um encontro entre leitor e obra, embora
que elevados pelo pensamento e pela erudição. Eis aí por que falo do crítico como
escritor e da crítica como literatura: uma maneira de ser por meio da linguagem.  

No Brasil, a crítica e o ensaísmo literários produzidos depois da Segun-


da Guerra Mundial não apenas têm contribuído com a melhor compre-
ensão e, consequentemente, maior fruição dos textos literários escritos
aqui e no exterior, mas têm ainda servido para aprofundar nosso conhe-
cimento sobre a realidade nacional e para estimular o debate sobre esta.
Mais que críticos, pensadores da cultura e da sociedade brasileiras seria a
melhor definição para Antonio Candido, Roberto Schwarz, Silviano Santia-
go, Luiz Costa Lima, Gilda de Mello e Souza e Leila Perrone-Moisés, cujas
obras apresentaremos em seguida.

Antonio Candido e a crítica moderna


Ler e reler Antonio Candido é algo que todos os críticos ou aspirantes a críticos deveriam
fazer regularmente, porque sempre há muito para se aprender ou reaprender com ele.
Dentre as qualidades que fazem de Antonio Candido um crítico modelar, eu destacaria
as seguintes: o amor à literatura, que o faz valorizar o texto mais do que o contexto, o
objeto mais do que o método; a enunciação delicada de suas avaliações, que nunca
se apresentam como juízos de verdade, definitivos e indiscutíveis; o reconhecimento
de valores estéticos independentes de valores éticos e políticos. (PERRONE-MOISÉS,
1998, p. 5)  

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Literatura Brasileira Contemporânea

O nonagenário crítico literário Antonio Candido de Mello e Souza (1918- ) já


perdeu a conta das inúmeras homenagens que vem recebendo há muito tempo,
mas a profusão de tributos é proporcional à sua longevidade e à extensão e im-
portância de sua obra. Carioca por acaso, Candido (que grafa seu prenome e
sobrenome sem acentuação) nasceu em 14 de julho de 1918, mas passou toda
sua infância em Poços de Caldas, interior de Minas Gerais, de onde provinha sua
família. Estudou Ciências Sociais e Direito na Universidade de São Paulo (USP)
nos primeiros anos de sua fundação, tendo por mestres os ilustres pensadores
europeus especialmente contratados para o início da instituição.

Sob a orientação do importante sociólogo Fernando de Azevedo, o futuro crí-


tico obtém seu doutorado em 1954 com a tese Os Parceiros do Rio Bonito (publica-
do em 1964), que, note-se, é uma pesquisa na área de sociologia: “Este livro teve
como origem o desejo de analisar as relações entre a literatura e a sociedade; e
nasceu de uma pesquisa sobre a poesia popular, como se manifesta no Cururu –
dança cantada do caipira paulista” (CANDIDO, 2001, p. 11), o que nos mostra como
os estudos da sociedade desde cedo se vincularam à sua pesquisa em literatura.

Ainda durante a faculdade, Candido com alguns colegas da época fundaram


a revista que seria uma das publicações mais influentes de meados dos novecen-
tos, a revista Clima (1941-1944). Seus membros se tornaram expoentes nas áreas
de cultura e conhecimento em que atuaram na revista. São eles: Décio de Almei-
da Prado (teatro), Paulo Emílio Salles Gomes (cinema), Lourival Gomes Machado
(artes plásticas), Roberto Pinto Souza (economia e direito), entre outros. Ainda nos
anos 1940 conhece Gilda de Moraes Rocha, que se tornaria Gilda de Mello e Souza,
sua esposa e colega no quadro dos mais importantes críticos literários do Brasil.

Seu percurso profissional pela crítica literária se inicia a partir de 1943, com con-
tribuições ao jornal paulistano Folha da Manhã, onde elaborou críticas, por exemplo,
dos primeiros livros de João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector. Em 1959, veio a
público a terceira publicação de Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira
(Momentos Decisivos), obra em dois extensos volumes abordando a produção literá-
ria desde a segunda metade do século XVIII até final do século XIX. Consagrando-se
como um dos mais importantes estudos críticos da literatura brasileira, a obra é
referência obrigatória para o entendimento de nossa história literária.

Candido abre o Formação da Literatura Brasileira com o capítulo “Literatura como


sistema”. Nele, o teórico elabora um dos conceitos mais utilizados até hoje para o

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Crítica e ensaísmo literários contemporâneos

entendimento da formação de uma literatura nacional: a noção de que é possível


identificar um sistema literário numa determinada sociedade pela constatação de
[...] um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel [os
autores]; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais
a obra não vive [os leitores]; um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem,
traduzida em estilos), que liga uns a outros. O conjunto dos três elementos dá lugar a um tipo
de comunicação inter-humana, a literatura [...] (CANDIDO, 1981, p. 23)  

A forma didática de especificar conceitos e ideias – que por outras mãos po-
deriam se tornar obscuros – é uma das características deste pensador sereno e
objetivo da cultura brasileira. Exemplos de seu didatismo são encontrados em
variadas notas sobre literatura e sociedade, campo de estudo em torno do qual
gira a sua crítica. Sobre a função social da literatura, ele explica:
A função social comporta o papel que a obra desempenha no estabelecimento de relações,
na satisfação de necessidades espirituais e materiais, na manutenção ou mudança de uma
certa ordem na sociedade. [...] Considerada em si, a função social independe da vontade ou
da consciência dos autores e consumidores de literatura. Decorre da própria natureza da obra,
da sua inserção no universo de valores culturais e do seu caráter de expressão, coroada pela
comunicação. (CANDIDO, 2000, p. 40)  

Precursor da linha de pesquisa literária identificada como “literatura e socie-


dade”, Candido inclui em suas reflexões não apenas o fazer literário, mas o papel
do escritor na sociedade:
O escritor, numa determinada sociedade, é não apenas o indivíduo capaz de exprimir a sua
originalidade (que o delimita e especifica entre todos), mas alguém desempenhando um
papel social, ocupando uma posição relativa ao seu grupo profissional e correspondendo a
certas expectativas dos leitores ou auditores. (grifo do autor) (CANDIDO, 2000, p. 67)  

Antes de aposentar-se da docência, em 1978, Candido fundou a Área de


Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (USP), em
1974, tornando-se professor efetivo dessa cadeira. Na aposentadoria, Candido
dedicou-se por longo tempo aos cursos de pós-graduação.

Entre suas publicações destacam-se – além das obras citadas até aqui – os
seguintes títulos: Introdução ao Método Crítico de Sílvio Romero (1945); Ficção e
Confissão (1956); A Personagem de Ficção (1963); Tese e Antítese (1964); Literatura
e Sociedade (1965); Vários Escritos (1960); Radicais de Ocasião (1978); Quatro Espe-
ras (1990); Brigada Ligeira e outros Escritos (1992); O Discurso e a Cidade (1993); O
Estudo Analítico do Poema (1999); A Educação pela Noite e outros Ensaios (2000).
Todos os títulos foram reeditados inúmeras vezes e permanecem na lista de
obras obrigatórias no estudo universitário de literatura brasileira.

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Literatura Brasileira Contemporânea

Roberto Schwarz:
literatura, sociedade e capitalismo
Nascido em Viena em 1938, Roberto Schwarz, filho de judeus austríacos,
veio para o Brasil ainda muito pequeno para se tornar um dos mais brasileiros
críticos de nossa cultura e literatura. Ex-aluno do sociólogo e crítico literário
Antonio Candido, e seu seguidor imediato no campo da literatura e sociedade,
Schwarz é um pensador alinhado com a crítica marxista. Suas reflexões sobre
a formação da sociedade brasileira desvelam uma contemporaneidade onde
ecoam os vícios do escravismo, do patriarcalismo, do favoritismo etc. Uma tal
visão crítica é balizada, em especial, pela análise dos interstícios de Memórias
Póstumas de Brás Cubas (1881), obra de nosso escritor maior, Machado de Assis
(1839-1908). As reflexões acerca da obra e seu escritor renderam a Schwarz
textos memoráveis como Ao Vencedor as Batatas (1977) e Um Mestre na Periferia
do Capitalismo (1990).

Schwarz, dialogando com as então recentes sugestões críticas da norte-


americana Helen Caldwell, torna-se um dos principais nomes que renovariam
as leituras críticas da obra machadiana. Se, em 1960, Helen Caldwell, professora,
feminista e estudiosa de Machado de Assis, publica The Brazilian Othelo of Ma-
chado de Assis (O Otelo brasileiro de Machado de Assis) e dá início à polêmica
sobre a “inocência de Capitu” e a personalidade manipuladora do narrador do ro-
mance D. Casmurro (1899); Roberto Schwarz, por sua vez, amplia o leque crítico
ao analisar outro narrador fundamental na obra machadiana, Brás Cubas. Entre
as principais revelações sobre as ações dessa personagem, Schwarz identifica
uma “desfaçatez de classe” (SCHWARZ, 1990, p. 15) no discurso engendrado pelo
autointitulado defunto autor.

O primeiro livro de ensaios de Schwarz tem o enigmático título de A Sereia


e o Desconfiado (1965), uma obra de juventude que já nasceu madura. O crítico
Leandro Konder (1991, p. 95) recorda que esse primeiro trabalho “abarcava uma
gama vastíssima de obras e temas, à luz de um quadro de referências teóricas
extremamente rico”, e que “o aparecimento do livro causou certa perplexida-
de em alguns setores: como era possível que um crítico jovem discorresse com
tanta desenvoltura a respeito de expoentes das literaturas alemã, russa, francesa
e norte-americana?”.

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Crítica e ensaísmo literários contemporâneos

No entanto, a biografia de Schwarz revela que sua maestria não é obra do


acaso. Em entrevista a pesquisadores da Fapesp1, o crítico revela a esmerada for-
mação intelectual pelas mãos do pai e, após a morte deste, de amigos como
o alemão Anatol Rosenfeld (1912-1973), outro estrangeiro que radicou-se no
Brasil para tornar-se um marco em nossa crítica literária. Sobre o mestre e amigo,
Schwarz (apud SANTOS; MOURA, 2004) recorda:
Ele [seu pai] morreu cedo, quando eu tinha 15 anos. O Anatol Rosenfeld, que era amigo dele e
da família, passou a acompanhar os meus estudos e a sugerir leituras. Durante muitos anos ele
jantou em casa aos domingos, que passaram a ser um dia obrigatório de revisão da semana e
discussões. Apesar da grande diferença de idade, ficamos muito amigos.  

Retirado em exílio para a França durante o Regime Militar (1964-1985), Ro-


berto Schwarz não desviou seu olhar da vida político-cultural brasileira. No final
dos anos 1970 ele retorna ao Brasil e lança a sua tese sobre Machado de Assis:
Ao Vencedor as Batatas. A partir de então vieram outros textos e coletâneas de
ensaios imediatamente acolhidos pela crítica especializada: O Pai de Família e
Outros Estudos (1978); Os Pobres na Literatura Brasileira (1983); Que Horas São?
(1987); Um Mestre na Periferia do Capitalismo: Machado de Assis (1990); Misplaced
Ideas: essays on brazilian culture [As Ideias Fora do Lugar: ensaios sobre a cultu-
ra Brasileira] (1992); Duas Meninas (1997); Sequências Brasileiras (1999); Cultura e
Política, 1964-1969 (2001).

O célebre ensaio “As ideias fora do lugar”, que também inicia o livro Ao Ven-
cedor as Batatas, é crucial como introdução ao pensamento crítico de Roberto
Schwarz. Nele, o estudioso dialoga com importantes nomes da sociologia, da
história e da economia do Brasil contemporâneo – Sérgio Buarque de Holan-
da, Emília Viotti da Costa, Fernando Henrique Cardoso, Maria Sylvia de Carvalho
Franco, Luiz Felipe Alencastro, entre outros – para refletir sobre a disparidade
social brasileira após a independência (1822). O texto revela que, por um lado, a
sociedade brasileira do século XIX proclamava as formas e teorias do estado bur-
guês moderno e seus ideais iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade;
por outro lado, o escravismo que vigorou oficialmente até 1888 chocava-se com
tais ideias liberais, criando uma situação paradoxal.

Acrescente-se a isso que, em tal sociedade, o clientelismo e o favoritismo no


lugar da racionalidade e objetividade da ética burguesa do trabalho mediavam

1
A Fapesp – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (www.fapesp.br) – edita a Revista Fapesp, edição on line: <www.revistapes-
quisa.fapesp.br>.

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Literatura Brasileira Contemporânea

a vida daqueles que não eram nem “senhores” nem “escravos”, nem proprietá-
rios nem proletários, ou seja, os “homens livres na ordem escravocrata” (FRANCO,
1997, p. 10). Schwarz (2000, p. 17) argumenta: “O escravismo desmente as ideias
liberais; mais insidiosamente o favor, tão incompatível com elas quanto o pri-
meiro, as absorve e desloca, originando um padrão particular”. É esse “padrão
particular” que resume as “ideias fora do lugar”, as quais Schwarz verá refletidas
exemplarmente na obra daquele a quem ele denominou de “mestre na periferia
do capitalismo”, Machado de Assis.

Roberto Schwarz é uma referência da crítica marxista de viés contemporâ-


neo. Prova disso é que suas análises críticas abarcam, além de Machado de Assis,
nomes como Chico Buarque de Holanda e seu romance Benjamim (1995); e Paulo
Lins, com Cidade de Deus (1997).

Luiz Costa Lima: convite ao debate


O debate intelectual se diferencia do debate político porque no debate
intelectual o “adversário” tem outro significado: escolhê-lo é um
ato de reconhecimento de sua importância; de que o respeitamos.

Luiz Costa Lima

Conhecer os diferentes pontos de vista sobre um determinado assunto é fun-


damental para que o estudioso consolide o seu próprio pensamento crítico. Na
literatura, esse procedimento pode levar à descoberta da corrente, ou correntes,
que mais se aproxima de sua visão do mundo, da cultura, das artes etc., sem,
contudo, desprezar as ideias antagonistas. Nesse quesito, as lições de despren-
dimento de Luiz Costa Lima são obrigatórias. Esse teórico da literatura e profes-
sor do Instituto de Letras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e
do departamento de História da PUC Rio não recusa, por exemplo, o epíteto de
adversário teórico de seu contemporâneo Roberto Schwarz. Um frutífero anta-
gonismo que enriquece o debate em torno de nossa cultura literária.

Nascido no estado do Maranhão em 1937, Costa Lima é, ao lado do próprio


Schwarz, um dos mais importantes críticos brasileiros na atualidade, sendo um
dos mais produtivos qualitativa e quantitativamente. Seu campo de reflexões
abrange não somente o objeto “literatura”, mas a cultura e o papel do intelectual
na contemporaneidade. Entre suas obsessões críticas consta a busca de mati-
zes teóricas adequadas para lidar com o fenômeno literário enquanto processo
universal. Essa universalidade literária significa, no caso brasileiro, que ele rejeita

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Crítica e ensaísmo literários contemporâneos

centralmente as correntes filiadas ao pensamento dialético schwarziano, aos es-


tudos culturais2 e à pós-modernidade.

Sem economia de palavras, o crítico apresenta em ensaios, palestras e en-


trevistas seus argumentos a favor ou contra as variadas correntes da crítica mo-
derna. Por exemplo, em entrevista concedida em 2000, e publicada em 2001 na
revista de estudos literários da Universidade de Juiz de Fora (MG), ele reitera a
sua crítica aguda sobre os estudos culturais:
Os estudos culturais normalmente se apresentam [...] sem qualquer teoria; são guiados ou por
um motivo político – frequentemente justo, como a discriminação que sofrem os homossexuais,
o tratamento desigual concedido às mulheres ou às pessoas de cor [sic] – ou pelo impacto de
temas da atualidade. As boas intenções, contudo, mesmo quando sejam boas, não asseguram
bons resultados. (NASCIMENTO, 2001, p. 13)  

Na continuidade da entrevista, ele indica não ser exatamente contra abordar


os temas sociais na literatura, mas que “saber mostrá-lo [o social], contudo, não
pode ser feito apenas com boas intenções e amadorismo” (NASCIMENTO, 2001,
p. 13). São provocações desta ordem que tem suscitado discussões acaloradas e
instigantes sobre o que é a literatura brasileira e as suas faces críticas hoje.

Entre as diversas vertentes do pensamento de Costa Lima, destaca-se uma


noção já disseminada entre o estudo literário no Brasil, que é a do “controle do
imaginário”, ou seja, mecanismos de controle – não de censura – sobre a ficção
na era moderna. Não por acaso suas últimas publicações remetem ao tema.
Em Trilogia do Controle (2008), ele reúne num volume único os títulos anterior-
mente publicados: O Controle do Imaginário (1984), Sociedade e Discurso Ficcio-
nal (1986) e O Fingidor e o Censor (1988). Nas cerca de 850 páginas de “esforço
de construção teórica”, um dos pontos mais impressionantes, aponta um leitor
especializado, é “o ajuste de contas com a cultura latino-americana (colonial e
pós-colonial), tributo que o autor brasileiro não se furta de prestar e quitar”
(WAIZBORT, 2008, p. 5).

Recentemente, Costa Lima deu continuidade a esse projeto lançando O Con-


trole do Imaginário & a Afirmação do Romance — Dom Quixote, As Relações Pe-
rigosas, Moll Flanders, Tristam Shand (2009). Nessa última empreitada, o crítico
revisita obras clássicas da literatura mundial e, partindo da análise da formação
do romance moderno, ele envereda por um caminho que vem corroborar a sua
visão crítica da cena literária contemporânea, incluindo a versão brasileira.

2
Estudos Culturais (2009): De uma forma geral, chamamos Estudos Culturais à disciplina que se ocupa do estudo dos diferentes aspectos da cultura,
envolvendo, por exemplo, outras disciplinas como a história, a filosofia, a sociologia, a etnografia, a teoria da literatura etc. Trata-se de uma disciplina
acadêmica, [...] sendo habitual ligar [sua] origem ao próprio desenvolvimento do pós-modernismo e às suas celebrações contra a alta cultura e as
elites sociais, aos seus debates sobre multiculturalismo que têm tido particular expressão nos Estados Unidos, à sua ênfase nos estudos sobre pós-
colonialismo, [...] às suas manifestações sobre cultura popular urbana.

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Literatura Brasileira Contemporânea

A ousadia crítico-teórica de Luiz Costa Lima pode ser debatida e até contes-
tada, mas os desafios que o crítico impõe jamais podem ser considerados me-
nores. Seu labor teórico, de esmerado detalhe e sutileza, tem sido uma das mais
consistentes propostas de exercício crítico disponível aos estudiosos da literatu-
ra contemporânea. Os mais de 40 anos de trabalho ininterrupto de sua produção
ensaística não arrefeceram as dúvidas que definem o pensador sensato. Em en-
trevista de 11 de abril de 2009, o crítico assevera a respeito de sua vocação:
Eu me vejo como teórico da literatura, mas com o mínimo de bom senso para saber que a
teoria não vem antes da prática. Trata-se de verificar, ler, ler e ler, levantar objeção à sua própria
interpretação, ver se aquilo comprova isso. É claro que todos esses recursos não são suficientes
para ter certeza de que você não está se enganando. Mas procuro nunca fazer com que a teoria
seja algo que se imponha a priori. Teorizar a priori pode dar em besteira. (apud BERTOL, 2009,
p. 4)  

O rol de livros assinados pelo septuagenário Costa Lima é extenso. Ele começa
a publicar na década de 1960 e mantém o mesmo fôlego na produção de títulos
que revelam consistência e originalidade em sua trajetória intelectual. Outros
exemplos, além das obras já citadas, são: Mímesis e Modernidade (1980); Disper-
sa Demanda (1981); O Livro do Seminário (1983); Sociedade e o Discurso Ficcional
(1986); A Aguarrás do Tempo: estudos sobre a narrativa (1989); Pensamentos nos
Trópicos (1991); Vida e Mimesis (1995); Terra Ignota (1997); Mimesis: desafio ao
pensamento (2000); Euclides da Cunha: contrastes e confrontos do Brasil (2000);
Intervenções (2002).

Gilda de Mello e Souza:


uma elegante crítica da forma
Gilda de Mello e Souza afasta toda aplicação estreita de métodos, todo espírito de sistema,
expondo, por intuições seguras e conhecimentos sólidos, algumas das significações mais
profundas do objeto que analisa. Seu texto é rigoroso, suas demonstrações mostram-se
sempre fundadas [...]. Não é, de modo nenhum, antiacadêmico: suas qualidades são aquelas
que todo texto universitário deveria possuir. (COLI, 2004, p. 94)  

Os adjetivos atribuídos, por seus pares, à filósofa, crítica e ensaísta paulistana


Gilda de Mello e Souza (1919-2005) indicam um modo de transmissão de co-
nhecimento que é ao mesmo tempo “elegante” e rigoroso. Dona Gilda, como é
carinhosamente chamada, iniciou sua formação intelectual sob a orientação do
escritor Mário de Andrade, que era seu parente. Por sugestão do autor de Macu-
naíma, ela ingressou, em 1937, no curso de Filosofia na recém-fundada Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Entre os professores e mentores do célebre
quadro “uspiano” dos primeiros anos, destacavam-se Claude Lévi-Strauss, Jean

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Maugüé e Roger Bastide. Foi sob a orientação de Bastide que, em 1950, Gilda de
Mello e Souza apresentou a sua tese de doutorado, A Moda no Século XIX: ensaio
de sociologia estética, legando sua contribuição para o entendimento do mundo
feminino na sociedade brasileira do século XIX. O ensaio veio a público em 1987,
sob o título O Espírito das Roupas: a moda no século XIX.

Com ampla formação no campo da estética, seus estudos contemplam com


a mesma perícia e rigor crítico a forma artística do teatro, cinema, música, artes
plásticas e literatura. Exemplo disso é o esquadrinhamento de filmes como Deus
e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em Transe (1967), ambos do brasileiro
Glauber Rocha. Ocasião em que a professora Gilda ensina que é preciso suspen-
der qualquer juízo de valor superficial e reconhecer o significado de uma obra
de arte naquilo que ela apresenta no detalhe. Assim, sobre a filmografia de Glau-
ber Rocha, muitas vezes considerada demasiado hermética pelos estudiosos, ela
não hesita: “[...] a força de Glauber não consiste em exprimir um pensamento
discursivo, e sim na maestria com que usa a imagem, para criar um universo
plástico de equivalências, um sistema de metáforas e alegorias” (SOUZA, 1980, p.
189). Tais lições de estética são abrangentes e servem igualmente aos interesses
da crítica literária. Não por acaso, o livro Exercícios de Leitura (1980), onde é anali-
sado o filme Terra em Transe, é também dedicado à literatura brasileira.

Sobre o exercício crítico de Gilda de Mello e Souza, sua colega Otília Beatriz
Fiori Arantes (2006, p. 313) comenta:
Um pouco por temperamento, mas sobretudo por uma escolha muito meditada, Gilda sempre
valorizara, na interpretação das obras, aquilo que aparentemente era desimportante e que
não aparecia de imediato numa primeira leitura ou a olho nu, os pequenos indícios a serem
perseguidos, como as pegadas, por um caçador, ou os “sinais” característicos que despertam a
imaginação de um detetive, de modo a decifrar o enigma que nos é proposto pela obra, fosse
ela quadro, filme ou livro.  

No que tange à crítica literária, suas reflexões são especialmente dedicadas à


obra de Mário de Andrade (1893-1945). A partir do verso, “Sou um tupi tangendo
um alaúde!” (ANDRADE, 2005, p. 83), deste que foi um dos pais do Modernismo
brasileiro, a ensaísta escreveu O Tupi e o Alaúde: uma interpretação de Macunaí-
ma, com primeira edição em 1979. A obra faz uma análise essencial da rapsódia
de Mário de Andrade e é referência para a compreensão da história do nosso
famoso herói sem nenhum caráter.

Gilda de Mello e Souza, companheira inseparável de Antonio Candido por


mais de 60 anos, nos legou uma escrita generosa, cujo alcance é possível até
mesmo ao leitor não iniciado no mundo das teorias. Roberto Schwarz assim des-
creve o estilo ensaístico da professora Gilda:

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A musicalidade das argumentações e da sintaxe, as palavras sempre bem achadas, as compa-


rações cheias de interesse, [...] a liberdade com que os ensaios circulam entre as várias artes e a
vida social, tudo isso dá um sentimento de plenitude que é raro. (SCHWARZ, 2006, p. 51)

A maestria de Dona Gilda pode ser conferida nas obras aqui mencionadas,
além de artigos dispersos em periódicos, a exemplo da Revista Discurso,3 da USP,
fundada e dirigida por ela nos anos 1970, e publicada ainda hoje como referên-
cia cultural brasileira.

Silviano Santiago e a crítica pós-moderna


A universalidade ou bem é um jogo colonizador, em que se consegue pouco a pouco a
uniformização ocidental do mundo, a sua totalização, através da imposição da história europeia
como História universal, ou bem é um jogo diferencial em que as culturas, mesmo as em situação
econômica inferior, se exercitam dentro de um espaço maior, para que se acentuem os choques
das ações de dominação e das reações de dominados. (SANTIAGO, 1982, p. 24, grifos nossos)  

A compreensão da literatura brasileira contemporânea não pode se abster do


pensamento crítico do mineiro, radicado no Rio de Janeiro, Silviano Santiago. As
obras desse romancista, poeta, contista e ensaísta são de importância capital no
panorama das letras brasileiras nas últimas quatro décadas.

Avesso a contemporizações quando o assunto é literatura fora dos centros


irradiadores do cânone, o provocador Santiago é reconhecidamente o teórico-
mestre nos estudos culturais e pós-modernos no Brasil contemporâneo. Em
suma, afirmam os estudiosos de sua obra:
Santiago direciona seu texto [...] para a possibilidade de “descolonizar” a cultura dependente,
propondo substituir o sentido da indigência, da precariedade do que é segundo ou derivado,
por uma postura afirmativa capaz de autorreconhecer-se como valor diferencial. (SOUZA;
MIRANDA, 1997, p. 131)

A valorização da literatura oriunda de países ditos periféricos e a indicação da


“possibilidade de ‘descolonizar’ a cultura dependente” são ideias que atravessam
textos como os contidos em Uma Literatura nos Trópicos: ensaios sobre dependên-
cia cultural, de 1978. Os ensaios nessa obra são um ponto de partida obrigatório
para o estudo sistemático da literatura brasileira contemporânea. Nesse conjun-
to de textos, encontra-se um dos ensaios mais referenciados de Silviano Santia-
go: “O entre-lugar do discurso latino-americano”. Esse “entre-lugar” seria, grosso
modo, a posição histórico-cultural ocupada pelo discurso, incluindo o literário,

3
Apesar de ser uma edição impressa, alguns números podem ser acessados no endereço <www.fflch.usp.br/df/site/publicacoes/discurso.php>.

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dos povos latino-americanos dentro de um quadro ocidental mais amplo que se


pretende uno e puro. Nosso discurso cultural ocuparia um lugar próprio e exclu-
sivo, ou seja, nem central (europeia) nem periférico (autóctone). E, em defesa da
mestiçagem, do hibridismo que impera ao sul do Equador, o crítico pondera:
A maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática
dos conceitos de unidade e de pureza [;] estes dois conceitos perdem o contorno exato do seu
significado, perdem seu peso esmagador, seu sinal de superioridade cultural, à medida que
o trabalho de contaminação dos latino-americanos se afirma, se mostra mais e mais eficaz.
[grifos do autor] (SANTIAGO, 1978, p. 18)  

Nesse viés de crítica emancipatória, Silviano Santiago foi o precursor, entre os


pensadores acadêmicos, que sem preconceitos e estereótipos iniciou o estudo
a sério da cultura popular, cultura de massa; liberou os escritores latino-ameri-
canos para exercitarem sua literatura miscigenada; colocou na agenda do dia a
poética homoerótica e tantos outros temas renegados pela crítica tradicional.

Nascido na cidade interiorana de Formiga (MG), em 1936, filho de uma nu-


merosa família de classe média, Santiago passa por Belo Horizonte, onde se gra-
duou em Letras Neolatinas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Em 1961, inicia sua pós-graduação na capital carioca e segue para a França com
uma bolsa de estudos para o doutorado. Seus caminhos no exterior o levam aos
Estados Unidos da América, onde constrói uma sólida carreira como professor
universitário lecionando literaturas brasileira e portuguesa. Santiago opta por
retornar definitivamente ao Brasil no final da década de 1970, estabelecendo-se
como professor no Rio de Janeiro; primeiro pela Pontifícia Universidade Católica
(PUC-Rio) e depois na Universidade Federal Fluminense (UFF).

A partir desse período, ele também intensifica a publicação de crítica literária,


textos ficcionais e poesia, os quais lhe renderam várias premiações, incluindo
três prêmios Jabuti de Literatura, da Câmara Brasileira do Livro, nas categorias
conto e romance. Em 2005, Silviano Santiago recebeu pelas mãos do presidente
da República Luiz Inácio Lula da Silva, acompanhado do ministro da Cultura, Gil-
berto Gil, a insígnia da Ordem do Mérito Cultural.

Além dos títulos já citados, destacam-se no conjunto de sua obra de ensaios


críticos: Carlos Drummond de Andrade (1975); Vale Quanto Pesa (1982); Nas Malhas
da Letra (1989); O Cosmopolitismo do Pobre (2004); Ora (direis) Puxar Conversa!
(2006); As Raízes e o Labirinto da América Latina (Leitura Contrastiva de Sérgio Bu-
arque de Holanda e Octavio Paz) (2006) e A Vida como Literatura: o amanuense
Belmiro (2006).

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Leyla Perrone-Moisés:
em defesa dos velhos tempos literários
A riqueza da crítica literária, toda a gente sabe, encontra-se na existência de
visões antagônicas que contribuem para o debate intelectual. Desse modo, en-
quanto, por exemplo, Antonio Candido persegue a linha da literatura e socieda-
de, Roberto Schwarz adota o marxismo como base de suas reflexões e Gilda de
Mello e Souza vale-se da corrente filosófica estética, a professora Leyla Perrone-
Moisés adota a visão crítica que defende a literatura como entidade autônoma,
desvinculada do processo social ou das perspectivas teóricas atuais como os es-
tudos culturais. Seu objetivo é defender, sobretudo, os critérios estéticos para a
interpretação literária, ou a “literatura pura”.

Perrone-Moisés rebate com vigor o enquadramento da obra de arte em mol-


duras sociológicas ou em tendências literárias que se voltam, por exemplo, ao
estudo de gênero; ao estudo étnico, ao estudo pós-colonial, ao multicultura-
lismo; enfim, as chamadas perspectivas literárias “politicamente corretas”. Em
outras palavras, por meio de vários ensaios, Perrone-Moisés propõe a separação
entre a prática político-social e a prática literária. Trata-se, portanto, de uma visão
crítica em favor do discurso literário e contra correntes contemporâneas:
[...] tratar de obras literárias é sempre lidar com ideologia, a do autor e a do leitor. Mas não
apenas. O perigo dos “estudos culturais” é a atenção dada às obras apenas em função do tema:
feminismo, homoerotismo, pós-colonialismo, correção política... Tudo isso pode estar presente
na obra literária, que é enciclopédica, mas não é o tema que a justifica como obra de arte. E, se
não avaliarmos as obras com base em critérios estéticos, seremos militantes de determinadas
causas, mas não críticos literários. (PERRONE-MOISÉS apud SILVA, 2007, p. 2)

Frequentando a Universidade de São Paulo, enquanto aluna e docente,


desde os anos 1950, Leyla Perrone-Moisés formou um currículo acadêmico de
larga experiência em crítica literária e literatura francesa, disciplina esta que mi-
nistrou por mais de 20 anos, a partir da década de 1960; além de lecionar litera-
tura brasileira e portuguesa na Universidade Sorbonne, na França. Atualmente
é professora emérita da Universidade de São Paulo e coordena o Núcleo de
Pesquisa Brasil-França, do Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP). Sua pro-
dução bibliográfica inclui, entre outras obras: Falência da Crítica: um caso limite:
Lautréamont (1973); Flores da Escrivaninha (1990); Vinte Luas: viagem de Paul-
mier de Gonneville ao Brasil (1503-1505) (1992); Altas Literaturas: escolha e valor
na obra crítica de escritores modernos (1998); Inútil Poesia e Outros Ensaios Breves
(2000); Texto, Crítica, Escritura (2005); Vira e Mexe, Nacionalismo: paradoxos do
nacionalismo literário (2007).

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Texto complementar

Por amor à arte


(PERRONE-MOISÉS, 2005, p. 345-348)

[...]

Para terminar, e para sair do “odioso eu”, algumas palavras sobre o ensino
da literatura e a crítica literária. Muitas coisas mudaram desde que me tornei
crítica literária. A mais importante e a mais grave é que a literatura, tal como
era concebida na alta modernidade, perdeu muito de seu prestígio. A cria-
ção literária não é mais concebida como uma das mais nobres atividades
humanas, uma “vocação” à qual o escritor dedicava todas suas forças e podia
até sacrificar sua vida. A literatura, atualmente, é apenas uma das atividades
de comunicação, uma atividade como qualquer outra, que dá prestígio e, às
vezes, muito dinheiro.

No ensino, o que é mais grave, a Literatura é uma disciplina ameaçada. No


curso secundário, as aulas de Literatura vêm sendo substituídas por cursos
de Comunicação e Expressão. A palavra “literatura” quase nem aparece nas
Diretrizes do Ministério da Educação. Aliás, nossa área agora se chama “Lin-
guagens, códigos e suas tecnologias”. Essa questão do ensino da literatura
veio à tona há dois ou três anos, depois ninguém mais falou disso, mas eu
aconselho, sobretudo os acadêmicos que têm o poder de intervir nesses as-
suntos, a verem um pouco as Diretrizes Curriculares para os cursos de Letras
do Ministério de Educação, não só do secundário mas do universitário, onde
a palavra “literatura” é quase ausente. Quando ela aparece, é para falar de
Guimarães Rosa como alguém que é interessante porque mostra uma região
de Minas Gerais, costumes e falas locais. Ou então, pior ainda, para dizer que
os professores não devem ser elitistas e seus cursos devem corresponder ao
repertório e aos gostos dos alunos. No caso de um aluno que disse “eu acho
Drummond de Andrade um chato”, a professora afirma: “ele tem o direito de
achar isso”. Ora, que um aluno diga que acha Drummond um chato, isso de-
veria ser um magnífico estímulo para o professor. Qual é o nosso papel? É
mostrar que ele está enganado, e porque. É ensinar a ler.

A Literatura é uma disciplina ameaçada. Digo isso com absoluta certeza.


Quando escrevi Altas Literaturas, muitos me chamaram de apocalíptica. Não

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acho que a literatura como tal esteja acabando. A produção não, a produção
não tem de ser vigiada, nem palpitada por ninguém. A literatura segue o
caminho que ela terá de seguir. A literatura está em mutação, como sempre
esteve. E se não sabemos muito bem para onde ela está indo, é porque ainda
não temos os parâmetros para aferir isso. Os escritores criarão esses parâme-
tros, e cabe aos críticos reconhecê-los.

Mas como formar novos leitores e novos escritores sem o conhecimento


da literatura do passado? Nos cursos de Comunicação e Expressão do se-
cundário, os textos literários têm o mesmo status que qualquer outro tipo
de texto. A orientação do Ministério da Educação não é causa do declínio do
ensino de Literatura, é sintoma, porque são as equipes que fazem os parece-
res e elaboram os currículos que tomam determinados rumos. Aliás, o des-
prestígio progressivo do ensino da alta literatura, ou da literatura difícil, re-
presentada pelos textos canônicos ocidentais, é um fato histórico universal.

Esse desprestígio tem numerosas razões:

1. Vivemos numa época de informação coletiva e rápida, e a leitura literá-


ria é uma atividade solitária, lenta e que, para ser bem feita, precisa ser
apreendida.

2. Respostas simples às grandes questões filosóficas e existenciais passa-


ram a ser buscadas, por aqueles que ainda leem, em manuais de auto-
ajuda, mais reconfortantes do que os textos literários.

3. O relativismo cultural dominante põe em xeque as antigas escalas de


valores, sem as substituir por novas. Na Universidade os estudos cultu-
rais de inspiração norte-americana valorizam em seus temas o “politi-
camente correto”, isto é, o conteúdo ideológico das obras, e desconfiam
do cânone ocidental, “eurocêntrico”.

Tenho tratado polemicamente dessas questões, e não vou voltar a elas.


Quanto ao conteúdo dos estudos culturais, do ponto de vista político, estou
perfeitamente de acordo com eles, com as causas que são defendidas, como
não poderia deixar de estar. Mas que a literatura seja usada para defesas de
causas políticas ou de supostas “minorias”, é algo que eu, como uma velha
professora de Literatura, não posso aceitar.

Portanto, como instituição a literatura está em declínio. O que está em


questão não é a salvação da literatura como prática de escrita ou de leitura. A

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Crítica e ensaísmo literários contemporâneos

literatura, nas grandes formas de ficção e poesia, continua sendo largamente


praticada e consumida, como o comprovam as grandes tiragens editoriais,
o afluxo de um largo público aos eventos literários, cursos livres, salões do
livro, bienais, prêmios etc., se bem que, nesses eventos, a alta literatura é o
que menos se busca.

A literatura como prática não precisa de nenhuma defesa especial. O que


está em questão, curiosamente, é a salvação da literatura como disciplina es-
colar e universitária. A ameaça sofrida pela disciplina Literatura tem caráter
universal, como o comprovam os numerosos debates a esse respeito reali-
zados, primeiramente, em países como os Estados Unidos, onde a polêmica
surgiu e, em 1995, a maior associação literária americana, a Modern Langua-
ge Association – e isso está registrado – considerou a literatura “finished for
good” no ensino.

Na França houve polêmicas curriculares de alcance nacional, que fizeram


cair um ministro em 2000. No Brasil, o “desaparecimento” da Literatura no
ensino, tão evidente como naqueles países, tem causado pouca comoção. A
maior associação brasileira de professores de Literatura, a Associação Brasi-
leira de Literatura Comparada (Abralic), em seu último congresso, realizado
em Porto Alegre, em agosto de 2004, não tinha uma única mesa dedicada ao
ensino da Literatura.

Esse é um assunto vastíssimo, mas estou encerrando. Há um buraco


enorme entre um secundário anticanônico e os programas canônicos dos
vestibulares, porque os mesmos alunos que são ensinados – se é que a isto
se pode chamar de ensino – a tratar fragmentos de textos literários como um
texto de jornal ou uma carta, quando chegam ao vestibular, têm de enfren-
tar o programa canônico. O que acontece? Acontece a simplificação dos cur-
sinhos, porque os alunos não leem tudo o que deveriam; leem os resumos,
sabem o que dizer de cada um daqueles autores, e são muito poucos os que
leem. Daí a queixa geral dos professores, não só de Literatura, pelo fato de os
alunos não saberem escrever e não gostarem de ler.

Há também um paradoxo – tudo isso são problemas nacionais, e é por isso


que estou aproveitando este lugar para falar disso – na criação de bibliotecas
sem que a escola se preocupe em formar leitores. Ensinar literatura é ensinar a
ler textos complexos. Sem leitura não há cultura. A pretensa democratização do
ensino – a “Universidade para todos” – como nivelação baseada na “realidade”

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dos alunos redunda em injustiça social. O argumento de que se devem oferecer


ao aluno apenas textos ao seu alcance, ou oriundos do seu ambiente social, é
um paternalismo e um menosprezo da capacidade dos jovens.

Ainda sobre o ensino da literatura, o que é subversivo hoje não é a militân-


cia política em sala de aula. O que é subversivo é ensinar poesia, pois, como
diz Adorno, “qualquer que seja a sua temática, a poesia desvenda o funda-
mento qualitativo da sociedade. A grandeza da obra-de-arte é deixar falar
aquilo que a ideologia dissimula”. Colocações muito semelhantes a essas de
Adorno, às quais eu poderia acrescentar as de muitos outros grandes teóri-
cos, estão num discurso sobre “A poesia lírica e a sociedade”, de 1958, escrito
por Antonio Candido, e numa conferência que ele fez em 1988, intitulada “O
direito à literatura”. Nessa conferência, ele fala da literatura como um “bem
incompreensível a que todos têm direito, e que deveria ser acrescentado
aos direitos do homem”. Coincidentemente, na sua última aula no Collège
de France, Roland Barthes também disse que o direito à literatura deveria
constar nos direitos humanos.

O ensino de literatura de qualquer nacionalidade não é elitista, mas de-


mocratizante. O livro ainda é o objeto cultural mais barato e acessível. O texto
do Dom Quixote ou de Dom Casmurro é o mesmo, num volume encadernado
em papel bíblia ou num exemplar de banca de jornal. Se os leitores de lite-
ratura constituem uma elite, esta é aberta a todos os alfabetizados, cabendo
aos professores apenas mostrar o objeto sob a sua melhor luz.

Ora, o texto literário tem uma especificidade e um valor que devem ser
preservados. Atualmente, há muita informação cultural circulando, o que não
redunda em cultura, porque essas informações são superficiais, indiferencia-
das, veiculadas sem nenhum critério de seleção e recebidas de modo aleató-
rio. É como um antídoto a essa indiferenciação generalizada da informação
que a literatura deve ser ensinada e estudada. A grande obra literária é meio
de conhecimento, de crítica do real e exercício da liberdade imaginativa, sem
a qual a história é vivida como fatalidade. O acesso às obras dotadas desses
valores e ao instrumental que permite a sua melhor fruição é um direito ao
qual corresponde um dever do professor e do crítico.

Se me permitirem uma citação pessoal, com valor meramente documental,


eu dizia, acerca da minha profissão, em 1982: “Que se possa assegurar a sobre-
vivência material, com palavras ditas e escritas, e palavras sobre a palavra inútil

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da literatura, é algo que me encanta como um milagre”. Foi um depoimento


que dei, porque achava milagroso poder viver como professora de Literatura.
Já naquela época eu costumava dizer: “Professor de Literatura vai ser uma pro-
fissão esquecida no futuro, como a de meirinho ou de anspeçada”. Esse milagre
continua a me espantar, e tenho até certo receio de chamar atenção para ele,
temendo que a sociedade ainda mantenha professores de literatura e críticos
literários por mera distração, e de repente se dê conta de que nós não temos
nenhuma utilidade. Entretanto, minha certeza não da utilidade imediata, mas
do valor permanente da literatura jamais se abalou. A certeza não me vem
apenas do prazer e do saber que a literatura me tem dado pela vida afora, mas
também, e principalmente, da resposta de sucessivos grupos de alunos e leito-
res a esse valor que eu tenho podido modestamente repassar-lhes.

Dicas de estudo
Para complementação ao estudo da crítica brasileira contemporânea, sugeri-
mos o seguinte material:

 O que é Arte, de Jorge Coli, Editora Brasiliense.

O estudo da crítica literária ganha em qualidade quando o estudante


compreende os fundamentos da arte como um todo e, por conseguinte, a
arte literária. Desse modo, o título “autoexplicativo” desta famosa coleção
brasileira torna-se um valioso instrumento para os primeiros passos neste
campo do conhecimento.

 Rumos da Crítica, organizado por Maria Helena Martins, Editora Senac.

Obra que reúne textos de renomados professores e críticos que partici-


param das conferências de inauguração do programa Rumos: Literatura e
Crítica, do Itaú Cultural. Informações sobre este projeto estão disponíveis
no site: <www.itaucultural.org.br>. O estudante encontrará em Rumos
da Crítica reflexões de dezenas de estudiosos brasileiros e estrangeiros, a
exemplo do francês Jacques Leenhardt: “Crítica de arte e cultura no mun-
do contemporâneo”; dos brasileiros Gerd Bornheim (1929): “A dimensão
da crítica” e Benedito Nunes: “Crítica literária no Brasil, ontem e hoje”.

 “Crítica e sociologia” In Literatura e Sociedade, de Antonio Candido, Editora


Publifolha.

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No capítulo de abertura desta obra de referência na crítica brasileira, An-


tonio Candido dá lições sobre o papel do crítico literário, advertindo, por
exemplo, que uma crítica que se queira integral não pode ser unilateral-
mente sociológica, psicológica ou linguística, e deve, em vez disso, utilizar
os elementos necessários para uma interpretação coerente.

Estudos literários
1. Segundo João Alexandre Barbosa, por que se justifica estudar a crítica lite-
rária juntamente com o seu objeto, a Literatura, e, desse modo, considerar o
crítico como escritor e a sua crítica como literatura?

2. O crítico Luiz Costa Lima, publicamente tido como antagonista teórico de


Roberto Schwarz, afirma que no debate intelectual escolher um “adversário”
é “um ato de reconhecimento de sua importância; de que o respeitamos”.
Que lições os estudantes das teorias da Literatura podem extrair desse jogo
intelectual?

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3. Os chamados estudos culturais, corrente crítica seguida por pensadores


como Silviano Santiago, bem como a sua ramificação no multiculturalismo,
são firmemente combatidos por Leyla Perrone-Moisés. Qual a justificativa da
crítica para tal oposição?

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Gabarito

Modernismo dos anos 1930: o regionalismo


1. O público teve uma reação bastante hostil, irritando-se especialmente
com a nova literatura e as novas manifestações da arte plástica basea-
das nas ideias vanguardistas europeias. O Futurismo, o Surrealismo, o
Expressionismo e outras correntes que revolucionavam a arte na Euro-
pa propunham jogar por terra a estética obsoleta herdada do século
XIX. Essa visão de mundo entrou em choque com os ideais conserva-
dores da burguesia paulista que compareceu ao evento.

2. O Primeiro Modernismo, iniciado com a Semana de 22, ocupou-se prin-


cipalmente da revolução estética, rebelando-se contra a expressão ar-
tística de forma passadista. Esse primeiro movimento baseou-se no eixo
Rio-São Paulo, e sua crítica social se concentrava no espaço urbano e
no capitalismo industrial. No Segundo Modernismo, iniciado por volta
de 1930, o eixo se desloca para outras regiões do Brasil, destacando-se
a região Nordeste. A realidade social brasileira ocupa o primeiro plano
e abrange o chamado “Brasil profundo”; o cenário passa dos espaços
urbanos para o sertão da seca, as várzeas da cana-de-açúcar, as matas
de cacau e as geladas planícies gaúchas. A diferença entre os dois mo-
mentos do Modernismo, portanto, encontra-se no foco de abordagem
(rebeldia estética x realidade brasileira), bem como nos espaços de atu-
ação (urbano x rural).

3. A cana-de-açúcar e a decadência dos engenhos, exemplificado nos ro-


mances A Bagaceira, de José Américo de Almeida; Menino de Engenho,
Usina e Fogo Morto de Jose Lins do Rego; a miséria provocada pela
seca, nos romances O Quinze, de Rachel de Queiroz e Vidas Secas, de
Graciliano Ramos; a conjunção de terra, dinheiro, cacau e morte no sul
da Bahia, conforme os romances Cacau e Terras do Sem Fim, de Jorge
Amado; a luta pela sobrevivência nos centros urbanos nordestinos,
conforme Capitães da Areia, de Jorge Amado.

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Graciliano Ramos: narrativa e história


1. A escrita da obra de Graciliano Ramos é bastante despojada em termos lite-
rários. Ele era avesso aos ornamentos, adjetivações e ao discurso empolado,
típicos de um beletrismo que fora cultivado desde o século XIX na literatura
brasileira. Segundo o autor alagoano, para se fazer literatura brasileira, era
necessário representar nossa realidade naquilo que tinha de brutal e injusta,
para isso uma linguagem seca e sem floreios era a forma necessária para essa
representação.

2. A obra de Graciliano foi escrita e reflete o período que vai do Entreguerras até
o pós-Segunda Guerra Mundial. Em termos mundiais, ocorreu o Crash de 1929,
a ascensão do nazi-fascismo, a difusão dos partidos comunistas e a Segunda
Guerra Mundial (1939-1945). Na esfera nacional, temos a Revolução de 1930,
o Estado Novo de Getúlio Vargas, o início do processo de industrialização e
urbanização brasileiro, e o aprofundamento das disparidades regionais.

3. A temática e a forma de São Bernardo se aproximam da corrente regionalista


de 1930. Poderíamos dizer que o romance se propõe a fazer um registro da
acumulação primitiva do capital no Brasil, mostrando como isso é feito a par-
tir das desigualdades sociais, de estratégias fraudulentas e do uso sistemá-
tico da força e da violência. Além disso, o enredo ainda expõe as formas de
reprodução desse modelo econômico e a ideologia burguesa que procura
lhe dar sentido e justificativas, tudo dentro do contexto rural do Nordeste
das décadas de 1920 e 1930.

Geração de 45: poesia e metalinguagem


1. Carlos Drummond de Andrade foi um poeta transgeracional e importante ba-
lizador das mudanças ocorridas em nossa poesia ao longo do século XX. Pu-
blicou suas poesias pela primeira vez em 1930 (Alguma Poesia) e, nessa obra,
já sinalizava a superação da arte pela arte pregada em 1922. Mesmo balizado
pela liberdade estética do amigo Mário de Andrade, a quem dedicou o pri-
meiro livro, Drummond imprimia seus próprios rumos ao Modernismo, trans-
pondo com seu humor característico o mero prosaísmo em prol de uma visão
crítica da realidade social, do desconcerto do mundo e da crise do indivíduo
neste mundo. A poética de Drummond, que adquiriu faces complementares
nas décadas seguintes, foi, desta maneira, um importante referencial para as
permanências e superações que caracterizaram a Geração de 45.

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Gabarito

2. A sentença de morte de todo e qualquer resquício de Modernismo por parte


de alguns contemporâneos de 1945 contrapôs-se a uma inevitável ambiva-
lência, ou seja, a recusa e a aceitação das lições anteriores. Isso se explica pela
sedimentação da liberdade de expressão artística trazida pelo Modernismo
de 22. Por sua própria natureza inovadora, os partidários desse movimento
já haviam, com o passar do tempo, demonstrado desprezo pelos pontos ob-
soletos do próprio discurso. Por outro lado, para combater a rebeldia desme-
dida de 22, os poetas de 45, paradoxalmente, recorreram ao próprio espírito
de transformação que estava no cerne do Modernismo. Logo, ao contrário
da extinção de uma base modernista sólida, o contexto indica uma situação
de renovação, apontando para a evolução de um movimento que até os dias
de hoje é referencial na definição das artes.

3. Ao longo do século XX, época de contestação de várias ordens, diversos


escritores recorreram à metalinguagem, ou reflexão sobre o próprio ato da
escrita, como forma de compreender e expressar a natureza de sua arte. Na
Geração de 45, isso ficou particularmente evidente dado ao questionamento
do papel da arte em um mundo pós-guerra em que a arte pela arte fomenta-
da pelas vanguardas modernistas soava incongruente. Assim, a poesia meta-
linguística, característica dessa geração, ao mesmo tempo em que questio-
nava a dissonância das formas modernistas que vigoravam até então, fazia
da própria estrutura do verso um espaço de manifesto de suas intenções
para o que seria a nova poesia.

Clarice Lispector: narrativa do fluxo de consciência


1. Sim. O texto de Clarice Lispector e de outros prosadores de sua geração
rompe com a linearidade que confere sequência à exposição dos eventos
narrados. O fluxo de consciência discursivo, bem como a preferência pela
fragmentação da linguagem, com emprego menos regular da pontuação,
o que dá ao texto um aspecto de inacabado (mais próximo, nessa esfera, do
artefato abstrato), vêm configurar a obra da autora.

2. Estes elementos são comumente insetos (baratas, por exemplo), animais ou


seres humanos que apresentam alguma diferenciação, acenando para uma
marginalidade social: mendigo, cego etc. Objetiva-se, com a presença deles
no texto, expor as personagens a experiências vertiginosas, decorrentes, na
maioria das vezes, de uma revelação (epifania) inesperada.

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3. De fato, a personagem feminina pertencente à classe média, na obra de Lis-


pector, afigura-se como alvo de análise psicológica. Nesse sentido, a autora
retrata as convenções que culturalmente foram delegadas à mulher. Con-
venções essas ligadas ao ambiente doméstico (afazeres de esposa, de mãe)
que as aprisionam. Por essa razão, eclode do contato com o mundo margina-
lizado, que extrapola os limites da casa e do lar, uma necessidade torrencial
de questionamento da vida interior, externando assim uma crise existencial.

Guimarães Rosa: veredas da prosa


1. De fato, a narrativa de Guimarães Rosa põe em evidência o homem do ser-
tão, cujos valores de mundo ilustram a cultura local. No entanto, o autor não
faz de sua ficção uma matéria de combate às políticas públicas que ignoram
a pobreza do sertanejo, vítima do abandono. Logo, a prosa rosiana não se
caracteriza como de denúncia, tampouco se estrutura em forma de enredo
descritivo da paisagem rural, do mesmo modo que as suas personagens não
são exaustivamente focadas do ponto de vista psicológico. Rosa retrata o
sertão por meio de uma linguagem insólita, recuperando mitos regionais,
sob atmosfera mística, sinalizando para a ambiguidade inerente ao ser.

2. De modo algum. Ao oferecer à narrativa maior aproximação com a oralidade,


Rosa confere mais autenticidade ao sertanejo, espelhando-lhe a rusticidade
pelo modo tão particular de se expressar. No mais, a estranheza presente na
literatura de Rosa deve-se majoritariamente à língua que concede ao texto;
e, com certeza, os registros orais – por sua espontaneidade – permitem, além
do dinamismo, um afortunado experimentalismo verbal.

3. Sim, é válido, pois Rosa apropria-se de um número significativo de gêneros,


quer da tradição oral quer da tradição escrita, para a composição de suas
narrativas (fábulas, mitos, lendas), bem como se vale de recursos próprios da
poesia (rimas internas, figuras de linguagem etc.), propiciando à sua enun-
ciação uma intensidade e uma densidade sem iguais.

João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar:


duas poéticas
1. A partir da primeira fase do Modernismo (1922-1930), a poesia brasileira tem
se submetido a uma oscilação periódica ou geracional. No início do século se
deu a ruptura total com a poética anterior, havendo uma radical escolha por
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Gabarito

novas formas poéticas, pela experimentação linguística e pelo caráter lúdico


da poesia. Depois da Segunda Guerra, a Geração de 45 decretou o fim do
Modernismo, retomando as formas líricas clássicas, principalmente o soneto,
e combateu as rupturas vanguardistas. A geração seguinte, a partir das déca-
das de 1950 e 1960, recupera o espírito da Semana de 22 e prega a liberdade
formal na poesia e até mesmo a morte do verso. João Cabral e Ferreira Gullar
se inserem nesse novo momento vanguardista.

2. João Cabral sempre se esforçou em fugir do hermetismo que acompanhou a


maior parte da produção vanguardista, na qual o desejo de experimentação
e de expressão original com frequência resultaram em textos poucos acessí-
veis ao grande público leitor. O poeta recifense procurou em sua produção
usar os vários recursos estilísticos postos à disposição do poema contem-
porâneo, sem, no entanto, perder a capacidade de criar uma mensagem, de
abrir um canal de comunicação com o leitor atual, que pudesse iluminar a
realidade desse leitor.

3. Para Ferreira Gullar, a poesia nasce da prosa e da vida, e não é fruto de uma
inspiração divinamente produzida. No entanto, o poeta não deve abrir mão da
expressão poética, ou seja, o poema deve falar da vida até mesmo mais mes-
quinha, no entanto o texto deve ser literariamente belo e bem construído.

Concretismo e outras vanguardas


1. Nas artes plásticas, o “concretismo” definia as composições de tendências ge-
ométricas e racionalistas, ao contrário do que seria uma representação figu-
rativa do objeto. Essa ideia serviu de modelo aos poetas concretistas justa-
mente pela proposta de radicalização formal, ou seja, pela possibilidade de
transformação da poesia num “objeto” racional, exato e sintético: o concreto
no lugar do subjetivismo lírico tradicional.

2. A poética concretista, procurando conferir um caráter “tridimensional” ao


poema, chegou ao conceito de “verbivocovisual”, uma estrutura que abar-
casse em níveis igualmente significativos (1) a palavra escrita, o verbo; (2) a
voz (vox ou “voco”), a palavra sonorizada pelo ritmo, pausas etc.; e (3) a dis-
posição das letras e palavras no espaço da página ou de outro suporte físico,
o visual.

3. O poeta Ferreira Gullar apesar de haver se aliado ao Concretismo no início,


posteriormente criticou essa estética por não considerá-la capaz de sustentar

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uma mensagem ideológica condizente com a realidade nacional. Liderando o


Grupo do Rio, Gullar propôs o Movimento Neoconcretista. Outro poeta que a
princípio foi simpático à poesia concreta, mas logo partiu para outras possibi-
lidades na poesia brasileira, foi o piauiense Mário Faustino. Embora apoiasse a
renovação dos concretistas, ele não abriu mão do verso tradicional e preferiu
unir a tradição às novas conquistas formais. Já Mário Chamie, outro dissidente
do vanguardismo concreto, acabou condenando o seu “racionalismo mecâni-
co”. Para Chamie, a representação da realidade era o ponto central da poesia
contemporânea e, a partir desse princípio, ele vai propor a poesia praxis, com-
prometida com a transformação.

Tendências contemporâneas: prosa


1. A América Latina como um todo viveu um intenso período de regime políti-
co não-democrático a partir de meados dos anos 1960 – no Brasil essa situa-
ção perdurou cerca de duas décadas – até 1985. Diante do Estado ditatorial,
a literatura desempenhou mais uma vez o papel de engajamento social e
crítica. Uma das inovações estéticas florescidas nesse contexto sociopolítico
foi o realismo mágico latino-americano, referido ainda com os adjetivos de
“fantástico” ou “maravilhoso”. Essa escola que vinha germinando desde 1935
pressupunha identificar no próprio conteúdo social os elementos indicativos
do misterioso, do inexplicável, do mítico, incorporando-os à forma narrativa,
e com isso afastando-se daquele realismo “puro” que já não dava conta de
refletir uma realidade inexplicável apenas pela ordem da razão.

2. Os autores valem-se do tema do absurdo, do insólito, implícito na realida-


de empírica do cotidiano urbano para denunciar a violência, a miséria e os
males da sociedade contemporânea. No entanto, para eles, o absurdo que
ronda o dia a dia de indivíduos e comunidades não pode ser associado intei-
ramente ao insólito, ao mágico ou fantástico. Basta olhar mais atentamente
para perceber que as ações aparentemente inverossímeis e irracionais são
inerentes à própria condição humana, em seu exercício de egoísmo e mes-
quinharia. Em outras palavras, para eles o absurdo é apenas consequência da
própria realidade representada.

3. Fernando Sabino em suas crônicas, bem como nos contos e romances, tra-
ta as condições opressivas da vida moderna com humor e sátira, realizando
assim o espírito de uma outra grande frase latina: ridendo castigat mores, ou
seja, rindo se corrigem os costumes.

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Tendências contemporâneas: poesia


1. O poeta contemporâneo Ivan Junqueira, não raro, é alcunhado pela crítica
de poeta passadista. Isso se dá em função de um assumido diálogo com a
tradição lírica e a utilização de formas fixas como os tercetos, quadras, quin-
tilhas, rimas soantes ou toantes etc., jamais hesitando em revisitar os estilos
dos mestres predecessores como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de
Andrade, Baudelaire. Em resposta a isso, o próprio poeta observa e parte de
sua crítica também confirma que, na verdade, o que ele faz é uma espécie
de palimpsesto poético, isto é, os seus versos são feitos sobre as marcas
deixadas pelos escritos anteriores, acrescentando então a sua própria cama-
da poética à superfície herdada. Isso seria bastante diferente de retroagir e
permanecer no passado.

2. Os principais temas na poesia de Adélia Prado são a religiosidade, a vida sim-


ples, a gente comum, a família, o casamento, o amor e o sexo. Tudo isso ela-
borado num estilo e linguagem que unem o sagrado ao profano, traduzindo
cada momento aparentemente banal da vida numa epifania, num momento
de revelação. Ao contrário do estilo epifânico de Adélia Prado, a poesia de
Hilda Hilst é menos etérea, mais encorpada, de “carne e osso”, expressando a
plenitude da vida humana e espiritual num conjunto de temas que compre-
ende as relações humanas, o amor, o sexo etc. Mas tudo é tratado sem res-
trições estilísticas e linguísticas, utilizando, inclusive, palavras consideradas
obscenas e provocadoras dos costumes. Já Ana Cristina César, cerca de vinte
anos mais nova que Hilda Hilst, insere-se na chamada poesia marginal ou
poesia “mimeógrafo” da década de 1970. Seus temas compreendem igual-
mente as conturbadas relações humanas, a feminilidade e o próprio fazer
poético. Quanto ao estilo, diferentemente da tendência dos “poetas margi-
nais” de sua geração, ela opta por um estilo intimista, uma linguagem apura-
da e menos coloquial.

3. A poesia marginal da Geração de 1970 participou, sobretudo, de um momen-


to de reconquista da liberdade de expressão acaçapada pelo regime militar
brasileiro (1964-1985). Já a literatura marginal pós-ditadura é uma literatura
urbana voltada para a cidade e seus problemas, para questões do país e do
mundo globalizado. Ao contrário da década de 1970, os poetas marginais
de hoje, em geral, não frequentam o meio universitário e vivem não apenas
a marginalidade literária, mas também a realidade da exclusão social. Seus
versos revelam um misto de angústia e determinação.

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Tendências contemporâneas: teatro


1. A peça Vestido de Noiva foi a responsável pela grande revolução teatral brasi-
leira a partir da década de 1940. Nessa obra, Nelson Rodrigues rompe com os
tradicionais princípios aristotélicos de unidade de tempo e de espaço, possi-
bilitando que no palco se acompanhem ações que se passam na dimensão
da realidade, da memória e da alucinação, conseguindo com isso uma am-
pliação da capacidade expressiva do drama no Brasil.

2. O teatro de Dias Gomes rompe com a temática do drama, na qual indivíduos


da burguesia são os protagonistas dos enredos, como ocorre na maioria das
peças rodriguianas. Gomes almejava colocar no palco personagens popula-
res em situações de conflito sociais próprias da nossa realidade nacional. Por
isso, suas peças têm em geral protagonistas que espelham a pluralidade da
sociedade brasileira contemporânea.

3. Ambos os autores rompem definitivamente com a forma “drama” nas suas


mais importantes obras teatrais. Em vez de colocar indivíduos em cena com
seus conflitos interiores e suas problemáticas afetivas, os dois retomam es-
tratégias do teatro popular e de revista para, inspirados nas concepções
brechtianas de teatro épico, fazer um teatro engajado, em que as classes
populares assumem o proscênio para denunciar a opressão social e inspirar
atitudes de engajamento político por parte da plateia.

Novos autores, autores jovens e a internet como espaço literário


1. O conceito de pós-modernismo corresponde ao conjunto de tendências,
paradigmas e teorias de diversos domínios do conhecimento, atuando na
cultura como possível explicação estética, ideológica ou crítica de todas as
manifestações artísticas. A ideia surgiu no contexto de intensas mudanças
socioculturais, a partir dos anos 1950, tendo como pano de fundo a urbani-
zação desenfreada, o consumismo, a tecnologia da informação, a televisão,
a liberação sexual, a pílula anticoncepcional, o declínio da religiosidade e de
outros valores institucionalizados e a inevitável cultura de massa.

2. Em 1974, aos 30 anos de idade, Chico Buarque, publica a sua primeira obra
ficcional em prosa: Fazenda Modelo: novela pecuária, criticando, no calor da

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Gabarito

hora, a situação de opressão e antidemocracia no Brasil. Desde então se re-


fletem em todas as suas formas de atuação artística a crítica social e a de-
núncia da situação do indivíduo no mundo dito pós-moderno. Cinco anos
antes da estreia literária de Chico Buarque, um seu conterrâneo, então com
28 anos de idade, Sérgio Sant’Anna, havia publicado o seu primeiro livro de
contos: O Sobrevivente. Aqui também a crítica recai sobre o regime militar
brasileiro e a opressão ao indivíduo, mas, à diferença de Chico Buarque, que
opta pela crítica direta, Sérgio Sant’Anna prefere provocar pela linguagem
irônica e paródica; um estilo consagrado nas obras que vieram depois.

3. A passagem revela índices capitalistas como a propriedade privada (“a favela


agora tinha dono”); os jogos de poder e hierarquização social (“só ele pode-
ria traficar na favela”); favorecimento (“deu uma das bocas de fumo [...] na
consideração”); distribuição de lucros entre acionistas (“teria apenas dez por
cento sobre as vendas”).

Crítica e ensaísmo literários contemporâneos


1. A crítica consistente e duradoura sobre uma dada obra possui sempre um
conteúdo, por assim dizer, memorialístico. Ela é fundamentalmente a histó-
ria de uma leitura e do encontro entre leitor e obra, ainda que elevados pelo
pensamento e pela erudição.

2. O estudante tem a possibilidade de conhecer os diferentes pontos de vista


sobre um determinado assunto para, a partir das diversas reflexões, consoli-
dar o seu próprio pensamento crítico; descobrir qual corrente, ou correntes,
se aproxima de sua visão do mundo, da cultura, das artes etc., sem, contudo,
desprezar as ideias antagônicas.

3. Perrone-Moisés defende a literatura como uma entidade autônoma separa-


da da prática político-social. Assim, o perigo dos estudos culturais, segundo
a estudiosa, é a atenção dada às obras apenas em função do tema: feminis-
mo, homossexualidade, pós-colonialismo, correção política. E que, embora
os temas sociais possam estar presentes na obra literária, eles não são sufi-
cientes para justificá-la como obra de arte.

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Ricardo Iannace
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