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Carlos Ribeiro
Confesso que não gosto nada de ler relatos de torturas; essas coisas me dão
medo e repugnância. Pois assim mesmo leio, porque acho que é um dever e uma
necessidade. Não temos o direito de procurar ignorar, ou fingir esquecer essa
ignomínia.
Vou dizer uma coisa com sinceridade: faço votos para que o Sr. Firmiano
Pacheco Neto não tenha filhos. Conheço pessoalmente casos de filhos de
torturadores (não desta ditadura militar, mas da ditadura de Getúlio) que
tiveram a infância traumatizada pelo nome de seus pais. Desde a escola, eles
foram apontados como filhos de torturadores. E como criança não tem papas na
língua, tiveram de ouvir mais de uma vez a acusação direta, feita cara a cara.
Sentiram que eram olhados com medo e nojo.
1
Trecho do livro Rubem Braga: um escritor combativo – a outra face do cronista lírico, que será lançado
em junho de 2013 pela Editora Booklink, em comemoração ao centenário de nascimento do escritor
capixaba.
(Arquivo da Fundação Casa de Rui Barbosa. “Os filhos dos torturadores”. Revista
Nacional, in O Estado do Pará, 18 março 1979)
2
O jornalista Mauritônio Meira, ex-repórter do jornal Última Hora, foi o idealizador e editor da Revista
Nacional, suplemento dominical encartado em diversos jornais brasileiros, nos anos 70/80.
Mais de meia dúzia de cadeias e vários perigos de morte atestam isso. Quanto ao
integralismo, fui dos primeiros a lutar contra ele: em 33 ou começo de 34 eu já
merecia uma nota especial da Chefia Nacional e uma tentativa de sequestro. No
Rio, em Recife, no Cachoeiro, em São Paulo, um pouco por toda parte, eu os
combati. Se alguma vez fiz um gesto a favor deles foi para pedir anistia, em um
momento de desgraça. Conheci-os bem, porque os ouvi me insultando, atirando
contra mim, me cercando numa estação, matando um velho amigo, denunciando-
me à polícia quando eu estava escondido, fazendo pressão sobre um editor de
jornal para me despedir – e até mesmo porque estive preso na mesma cela com
vários deles. (CARVALHO, 2007, p. 337).
O terreno no qual proliferavam esses males trazia uma forte herança do período
escravagista e da tradição agrária herdada dos quatrocentos anos de colonização. Dos
escravos libertos apenas trinta anos antes, e de seus descendentes, a grande maioria
ocupava os estratos mais baixos da sociedade – e sobre eles pesavam opiniões como a
de que tinham uma incapacidade congênita para o trabalho. Eram “cachaceiros”,
“indolentes”, “sem disciplina”, qualidades estas que justificariam, em parte, sua
marginalização e o estímulo cada vez maior, por parte do governo, da imigração de um
grande contingente de japoneses, italianos, espanhóis, portugueses e alemães.
Intelectuais do porte de Sílvio Romero e de Afrânio Peixoto pregavam que “a vitória na
luta pela vida, entre nós, pertencerá, no porvir, ao branco” (Romero) e que em duzentos
3
As primeiras crônicas e artigos de Rubem Braga foram publicadas nesse jornal, de 1928 a 1931,
portanto dos quinze aos dezoito anos. O Correio do Sul era dirigido por Armando de Carvalho Braga, e
gerenciado por Jerônimo Braga, ambos irmãos adolescente de Rubem.
anos “terá passado inteiramente o eclipse negro” (Peixoto).4 A marginalização não se
dava apenas em relação à etnia. No Código Civil Brasileiro, promulgado em 1917, e que
vigorou até 1962, constava que as mulheres casadas “são incapazes, relativamente a
certos atos ou à maneira de os exercer”, atribuindo, portanto, ao marido, a chefia da
“sociedade conjugal” (artigo 233),
A Igreja Católica atuava – e atuaria, ainda, durante meio século – como a única
religião oficial, com amplos poderes para ditar a moral e os bons costumes, reagindo, de
forma muitas vezes virulenta, às transformações em todas as áreas: da ciência às artes,
da educação à sexualidade. Não por acaso, seria ela a grande inimiga de Braga, durante
quase quarenta anos, até o surgimento da Teologia da Libertação nos anos 60 e de
personagens como Dom Hélder Câmara, a quem ele dedicou páginas elogiosas e apoiou
em momentos difíceis. As oligarquias, por sua vez, representavam talvez o símbolo
mais efetivo de um país agrário, atrasado e profundamente injusto na distribuição da
renda e no controle do poder político e econômico. Seja no Norte-Nordeste, onde
vigorava ainda o coronelismo, que mais tarde se modernizaria; seja no Centro-Oeste,
com o baronato do café, ou nos Pampas do Sul, elas representavam o atraso que Braga
se empenharia em denunciar. E, finalmente, para completar o quadro, consolidava-se,
pouco a pouco, o processo intenso de concentração urbana com o crescimento do
operariado e das massas anônimas das grandes capitais.
Era, portanto, esse o perfil da sociedade brasileira que transparece nas crônicas
publicadas nos dois primeiros livros do autor: O conde e o passarinho e Morro do
isolamento, lançados respectivamente em 1936 e 1944. Em “Como se fora um coração
postiço”, ele retrata, com lirismo, o descompasso do coração de um menino, que havia
nascido fora do peito, com a cidade desumanizada. Em “Pequenas notícias” mostra,
4
A citação consta do livro Retrato do Brasil. (São Paulo: Política Editora, 1984. p. 110).
5
Retrato do Brasil. São Paulo: Política Editora, 1984. p. 35.
com ironia ácida e cômica inversão de sentidos, tão habituais em suas crônicas, os fatos
noticiados nos jornais:
Dia do trabalho... Houve uma reunião de operários em São Paulo, mas havia tanto
soldado de polícia que não se sabia se era uma reunião de operários ou de
soldados de polícia.
A empregada do Dr. Heitor é de cor parda e namora um garboso militar que uma
noite não mais virá ao portão e depois nunca mais aparecerá, deixando a
empregada do Dr. Heitor à sua espera e à espera de alguma coisa. De alguma
6
Op. Cit. p. 51.
coisa que será um molequinho vivo que cantará samba na rua, marchando,
batendo palmas, desentoando com ardor. (BRAGA, 1961, p. 60-61).
Isso desgostou dona Rosa, e dona Rosa berra como só as verdadeiras mães sabem
berrar:
Calma, dona Rosa. Alice está passeando no País das Maravilhas. E se aquele país,
pelo qual todas as mocinhas suspiram, é gostoso e bom, que importa a cor do
cicerone?
Neste país, dona Rosa, muitos brancos amaram muitas pretas. E se a senhora não
acredita, eu lhe mostrarei as provas. As provas andam aí por toda a parte, são
dengosas e excelentes e se chamam, na linguagem corrente, mulatas.
Calma, dona Rosa, calma, dona Rosa. Alice está no País das Maravilhas. E quem
sabe se ela não voltará de lá um dia para a sua casa, trazendo pelo braço uma
criancinha mulata de olhos verdes? E a senhora não acha linda, dona Rosa, as
mulatinhas de olhos verdes? (BRAGA, 1961, p. 65).
Fala ainda sobre o cangaço (“Não sou cangaceiro por motivos geográficos e
mesmo por causa do meu reumatismo”), sobre uma festa carnavalesca reunindo as
massas populares (“Como vos apertais, operários em construção civil, empregados em
padarias, engraxates, jornaleiros, lavadeiras, cozinheiras, mulatas, pretas, caboclas,
massa torpe e enorme, como vos apertais!”), sobre a notícia, veiculada no Diário de São
Paulo, de um passarinho que bicou e saiu voando com uma fitinha que estava no peito
do conde Matarazzo (“Voai, voai, voai por entre as chaminés do conde, varando as
fábricas do conde, sobre as máquinas de carne que trabalham para o conde, voai, voai,
voai, passarinho, voai”), sobre a vida suburbana do Catete, no Rio, vista, numa
perspectiva histórica, de um futuro longínquo (“Naquele tempo existiam as chamadas
„moças‟. Eram mulheres que, embora já fossem aptas para a vida normal, se
conservavam em recato durante muitos anos. Isso era devido ao hábito do casamento,
um dos mais curiosos e bárbaros costumes da época”), sobre a morte de João da Silva,
um homem comum e anônimo, noticiada na seção “Fatos Diversos”, do Diário de
Pernambuco7.
João da Silva – nunca nenhum de nós esquecerá seu nome. Você não possuía
sangue-azul. O sangue que saía de sua boca era vermelho – vermelhinho da silva.
Sangue de nossa família. Nossa família, João, vai mal em política. Sempre por
baixo. Nossa família, entretanto, é quem trabalha para os homens importantes. A
família Crespi, a família Matarazzo, a família Guinle, a família Rocha Miranda, a
família Pereira Carneiro, todas essas famílias assim são sustentadas pela nossa
família. (BRAGA, 1961, p. 108).
O primeiro livro de Rubem Braga traria mais duas outras crônicas com forte
temática social: “Recife, tome cuidado”, no qual descreve a miséria nos mocambos do
Recife (“Há fome, frio, lama, doença, miséria, dentro de cada mocambo. Recife, linda
Recife, tome cuidado. 250 mil pessoas vivem morrendo em seus mocambos”) e
“Reflexões em torno de Bidu”, quando, comentando a apresentação da cantora lírica
Bidu Sayão, diz ser “horrivelmente vergonhoso pensar que dos 450 mil habitantes do
Recife, só um punhadinho possa gozar tanta riqueza de sentimento, tanta vibração de
beleza”.
No Teatro Santa Isabel há uma placa de bronze com uma frase de Nabuco: “Aqui
vencemos a Abolição.” Mas não vi nenhum negro no recital. Os negros e os
brancos pobres – o enorme povo – não entram ali. Para ele estão fechadas as
portas de todos os altos bens da vida humana. Velho Nabuco, há muitas abolições
a fazer ainda” (BRAGA,1961, p. 117).
7
As citações referem-se respectivamente às crônicas “Cangaço” (página 69), “Batalha no Largo do
Machado” (página 70), “O conde e o passarinho” (página 79), “Conto histórico” (página 87), todas
publicadas no livro O conde e o passarinho (Rio de Janeiro: Ed. Sabiá, 1961).
Não, poeta, eu não levarei o meu mau-gosto a ponto de falar das operárias –
dessas estranhas mulheres que não têm o direito de ser bonitas nem saudáveis –
ou das mulheres da roça, que vivem para trabalhar e parir. Não quero magoar
você, poeta. Apenas quero que você pense nesse formidável capital de beleza e,
portanto, de lirismo, que este mundo que aí está massacra sistematicamente.
(BRAGA, 1961, p. 147).
Na verdade, estamos todos presos, e precisamos ter uma aguda consciência disso.
Você, Poeta, não tem consciência de classe. Tem coragem de dizer que ama tudo
o que é lindo e humano, a beleza em geral, as mulheres, os sentimentos delicados,
a poesia, essas coisas – e detesta a política. (BRAGA, 1961, p. 145).
A urbs escalavrada acordou. O homem que esperava seu “camarão” foi informado
de que seu “camarão” não existia mais. De acordo com a Prefeitura, a Light havia
cortado várias linhas de bonde. Os subúrbios distantes ficaram mais distantes, e a
gente pobre daquele subúrbio ficou mais pobre. Houve protestos, e houve,
sobretudo, confusão. Ninguém sabia onde tomar o bonde, nem se havia bonde,
nem o nome do bonde, nem o caminho do bonde. Os guardas-civis (seja dita a
verdade) informavam com a maior gentileza. Informavam e depois tomavam
bondes errados, porque eles, também, não sabiam. E alguém murmurava: mas
onde estás, onde estás, bonde Brigadeiro Galvão? E o eco respondia: não sei não.
E tu, oh tu, Vila Clementino, em cujo terceiro banco, em um dia chuvoso de
1933, certa mulher ruiva me sorriu? E tu, Santa Cecília, e tu, Vila Maria, e tu,
Jardim da Aclimação dos meus domingos de sol? E o infinito bonde Jabaquara? E
o gentil Campos Elísios? Higienópolis também morreu...
... Mas quem morreu, quem morreu, e isso me custa dizer, foi o grande bonde
Tamandaré. Morreu o grande bonde Tamandaré, pai e mãe de todos os bondes.
(BRAGA, 1961, p. 150).
Só matava mulheres muito feias e homens muito chatos, e em toda a sua vida
esmagou apenas nove crianças, sendo três pretinhos (dos quais dois no Piques),
uma meninazinha loura, um italianinho jornaleiro, dois filhos gêmeos de uma
lavadeira e dois não especificados”.9 (BRAGA, 1961, p. 152).
Todos unanimemente pobres. “Eram pobres demais!”, razão pela qual, o bonde,
mesmo com as rodas sujas de sangue, sentia o coração limpo.
8
Idem, p. 151.
9
Idem. p. 152.
Ao contrário dos demais bondes que, por ordem da Light, recolheram-se ao
barracão, ele prosseguiu, alucinado, em sua trajetória de rebeldia, ao ponto de, na Rua
da Consolação, acordar todos os defuntos do cemitério. Foi, finalmente, preso em Barra
do Piraí e recambiado para São Paulo. “Estava completamente bêbado e havia invadido
os trilhos da Central do Brasil. Voava em direção ao Rio”.
Talvez estivesse com medo, mas eu não sei dizer se era medo ou uma verdadeira
amizade. (BRAGA, 1961, p. 153).
Quando parou à minha porta o enorme caminhão fechado, com soldados de fuzil
na mão, e um deles me perguntou: “é aqui?” – eu suspirei e disse que sim.
Já fui preso várias vezes; não há de ser por mais uma que perderei minha natural
dignidade. Tratei de apanhar a escova de dentes, a pequena, frívola e patética
escova de dentes que anda sempre na bolsa das senhoras desonestas e no bolso
dos políticos perseguidos. E dispondo também de dois maços de cigarro, esperei
impávido, embora chateado. Só então notei que o caminhão era do Ministério da
Fazenda. (BRAGA, 1982, p. 94-95).
A história desenrola-se em três capítulos, com idas e vindas, até que, ao final, a
mulher do narrador, “que é muito piedosa”, sugere que ele gaste o dinheiro em obras de
benemerência.
Achei que ela estava com razão, pois sempre tive ligeiras tendências marxistas, e
acho que os ricos devem ficar um pouco menos ricos para que os pobres fiquem
um pouco menos pobres, aliás, sem exagero. Assim sendo, e como o governo
houvesse fechado os cassinos, fundei a “Sociedade Protetora das Girls”. Comecei
protegendo duas, e tudo corria muito bem quando minha mulher sugeriu, com
certa violência, que era melhor aplicar a verba em menores abandonados.
Argumentei que uma das girls era menor, e a outra, se não o era, o fora muito
recentemente; e ambas estavam abandonadas; e quem sabe, meu Deus, o que lhes
poderia acontecer lançadas ao abandono com aqueles corpos tão lindos e aquelas
almas tão frágeis – mas tão frágeis!
Que o quê: minha “Sociedade Protetora” teve de ser fechada. Agora só funciona
na ilegalidade; pois mesmo em segredo gosto de praticar a caridade, o que aliás
penso que tem mais merecimento; e como é bom!10 (BRAGA, 1982, p. 102).
O que, entretanto, prevalece do ponto de vista social, nas crônicas e contos desse
período são os velhos temas recorrentes no autor: o processo de desumanização
verificado na cidade grande, a exploração da classe operária e do campesinato, os
péssimos serviços prestados à população, a tristeza e mediocridade da vida nos
subúrbios.
Em “Ginástica”, ele aborda a acusação feita por uma fábrica de tecidos de São
Paulo ao líder dos operários por realizarem uma “greve branca”, que consiste, segundo
noticia o jornal, “em provocar o desgaste da maquinaria”. O cronista, mais uma vez
10
Idem. p. 102.
utilizando-se de ironia e do deslocamento semântico (recurso, diga-se de passagem,
sofisticado, ambíguo e não muito comum ao repertório dos jornalistas), não se admira
que o acusado vá para a cadeira. Isto lhe parece justo, considerando-se que “um crime
contra máquinas é sempre uma coisa repugnante, pois as máquinas não devem ser
culpadas das extorsões e opressões que os homens praticam, utilizando-as”.
E nós, no Brasil, temos bem poucas máquinas para que nos possamos dar ao luxo
de estragá-las. O tipo mais abundante de máquinas que possuímos – e assim
mesmo em número inferior ao necessário – é o dessas máquinas a que
chamaremos, com uma certa boa vontade, humanas. E eis um problema a meditar:
o desgaste que se faz, no Brasil, nas máquinas de carne e osso. Vá o leitor assistir,
de manhã ou de tarde, a uma partida ou chegada dos trens suburbanos em que
viajam essas máquinas de carne e osso. Ali, sim, é possível observar o desgaste
violento, quase aflitivo, das maquinarias. (BRAGA, 1982, p. 23).
Há, certamente, nos subúrbios, pessoas normais e belas, Mas na população geral o
que sentimos é uma depressão física e também mental. As conversas são queixas
irritadas, ou resenhas de males e dificuldades. E como são feias as casas, e sujos
os quintais; há ruas inteiras que cheiram mal. Respira-se um ar de problemas; são
problemas baratos, que ninguém resolve e que se cruzam com outros problemas.
Não há sequer aquela dignidade que encontramos por exemplo numa aldeia de
pescadores extremamente miserável, perdida numa praia qualquer – onde a vida
tem um ritmo simples, entre os peixes, a esteira e a mandioca.
É uma crônica de 1943 e não é tão inédita que não tenha sido publicada em duas
revistas. Mas ambas circulavam quase às ocultas e foram fechadas logo depois
pelo governo. A crônica pode ser má, e creio mesmo que está mal escrita, de um
modo diferente do meu modo costumeiro de escrever mal. Mas naqueles tempos
já era uma grande coisa quando se conseguia escrever alguma coisa que não fosse
louvaminhas ao Senhor; e quando se escrevia era ao mesmo tempo com raiva e
contensão, duas circunstâncias que atrapalham qualquer estilo, e ainda mais o
meu, que se atrapalha à toa. Talvez por isso mesmo reli com uma espécie de
carinho e resolvi publicar outra vez. (BRAGA, 1982, p. 106).
Trata-se, o fícus, diz o cronista, de um arbusto que jamais será uma bela árvore,
pois que inventada e domesticada impiedosamente pelo homem, rei da Criação. Homem
que, quando é rei, de fato, diz o cronista, monta a sua máquina de mandar.
O fícus constitui, aqui, símbolo daqueles que, diante dessa máquina de mandar,
se moldam, se adaptam, se submetem, se servilizam; aqueles que, mesmo sentindo
amargura com o primeiro corte da tesoura, com o tempo já não a espera: “Ele mesmo
fica sendo a sua própria tesoura”. Um tipo que geralmente prolifera nas ditaduras e
sistemas totalitários, pois que
Para uns é preciso que o chicote entre na carne, para outros basta que sibileno ar –
para muitos basta que o chicote exista. Uns se jogam de quatro para lamber
farelos de açúcar preto, outros recebem com ares de dignidade alvos tabletes
refinadíssimos, uns se limitam a ficar mansos, outros aprendem proezas e dão
espetáculos graciosos. E a degradação humana sob o fascismo ora é brutal, ora é
sutil – e se abre um estranho picadeiro de feras avacalhadas sob o mesmo círculo
de assistência que se bestifica e bate palmas porque até o silêncio é crime – e a
floresta magnífica dos homens se muda em praça paris com sofás de fícus, caixas
de pó-de-arroz de fícus, guarda-chuva de fícus, toda uma alucinação idiota de
formas obedientes e escravas – de fícus. (BRAGA, 1982, p. 108-109).
Eis, aqui, uma amostra das preocupações sociais do cronista Rubem Braga,
registradas em livro. Trata-se, neste caso, de uma faceta pouco estudada do cronista
lírico cujo centenário de nascimento está sendo comemorado este ano com uma série de
relançamentos e lançamentos de livros, debates, seminários e exposições. Esta
efeméride tem especial importância no sentido de se redimensionar a importância da
obra de RB no panorama da literatura, da história e do jornalismo contemporâneos.
BIBLIOGRAFIA
ANDREATO, Elifas et al. Retrato do Brasil. São Paulo: Política Editora, 1984.
CARVALHO, Marco Antonio de. Rubem Braga: Um cigano fazendeiro do ar. São
Paulo: Globo, 2007.