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O CRONISTA NO FRONT: A CRÍTICA SOCIAL EM RUBEM BRAGA1

Carlos Ribeiro

Confesso que não gosto nada de ler relatos de torturas; essas coisas me dão
medo e repugnância. Pois assim mesmo leio, porque acho que é um dever e uma
necessidade. Não temos o direito de procurar ignorar, ou fingir esquecer essa
ignomínia.

A reportagem mais completa e equilibrada sobre o assunto acho que foi de


Antonio Carlos Fon, em “Veja” de fins de fevereiro. Não vou reproduzir
detalhes, porque acho que não é matéria própria para esta “Revista Nacional”,
suplemento de domingo em que o leitor espera encontrar coisas amenas, e não
penosas.

Quero apenas assinalar o depoimento de um dos torturadores, o delegado


Firmiano Pacheco Neto, que funcionou no DEOPS, e hoje está no Departamento
Estadual de Investigações Criminais. Transcrevo suas palavras: “Gosto do meu
serviço. Somos como os lixeiros: ninguém gosta deles, mas todos precisam dos
seus serviços. A polícia é o lixeiro da sociedade”. Mais adiante: “É evidente que
ser chamado de torturador me prejudica com uma parcela da sociedade. Mas
negar a participação também me deixa mal com outra parcela. Olha, se você for
publicar a lista dos torturadores, não tire meu nome, não: isso pode prejudicar a
minha carreira”.

Apreciamos a franqueza do homem. Lembramos, em todo caso, que o lixeiro pode


sentir nojo das coisas com que lida, não das que faz; enquanto o torturador, que
tiver um resto de sensibilidade ou consciência, sentirá nojo de si mesmo. Se
houvesse um sindicato de lixeiros, ele protestaria contra a insultuosa
comparação. O lixeiro faz um serviço penoso, e às vezes repugnante, mas depois
toma um banho e vai dormir limpo de corpo e alma. Isso acontecerá também com
o delegado Firmiano Pacheco Neto?

Vou dizer uma coisa com sinceridade: faço votos para que o Sr. Firmiano
Pacheco Neto não tenha filhos. Conheço pessoalmente casos de filhos de
torturadores (não desta ditadura militar, mas da ditadura de Getúlio) que
tiveram a infância traumatizada pelo nome de seus pais. Desde a escola, eles
foram apontados como filhos de torturadores. E como criança não tem papas na
língua, tiveram de ouvir mais de uma vez a acusação direta, feita cara a cara.
Sentiram que eram olhados com medo e nojo.

É uma pena que inocentes sejam assim traumatizados pelas atividades


criminosas de seus pais.

Seria o caso de sugerir que, neste Ano Internacional da Criança, os 233


torturadores brasileiros, cujos nomes foram publicados, requeressem em cartório
mudança de sobrenome de seus filhos. Para evitar que eles cresçam arrastando
aquele rabo – aquele rabo sujo de sangue.

1
Trecho do livro Rubem Braga: um escritor combativo – a outra face do cronista lírico, que será lançado
em junho de 2013 pela Editora Booklink, em comemoração ao centenário de nascimento do escritor
capixaba.
(Arquivo da Fundação Casa de Rui Barbosa. “Os filhos dos torturadores”. Revista
Nacional, in O Estado do Pará, 18 março 1979)

A crônica acima, publicada em 1979, portanto já próximo do final da ditadura


militar, marcou o declínio dos enfrentamentos que o cronista Rubem Braga teve, ao
longo de sua carreira, com os governos que praticaram diversas formas de tortura e
arbitrariedades, no Brasil. E resultou numa tentativa de retaliação que já não teria
consequências. O fato é assinalado pelo biógrafo Marco Antonio de Carvalho:

Um oficial do Serviço Nacional de Informações foi à revista para conversar com


Meira2 e exigir o afastamento daquele Rubem Braga, autor de tais assacadilhas
contra o poder militar. O problema é que a abertura política estava em curso e
Meira tinha amigos poderosos no Exército e não se deixou intimidar. Respondeu
ao enviado dos “porões da ditadura” que Rubem era intocável. E ficou tudo por
isso mesmo. Braga continuaria escrevendo o que bem entendesse e parte dos
militares nunca gostaria. (CARVALHO, 2007. p. 525).

Braga, disse Carvalho, “continuaria escrevendo o que bem entendesse”. Mas já


não lhe restava muito tempo. Dali a apenas onze anos estaria morto. Olhando para trás,
entretanto, o caminho longo que trilhara é pontilhado por prisões, perseguições e
ameaças, fruto das contundentes denúncias, feitas por ele, das arbitrariedades cometidas
pelos sucessivos governos. Inclusive, como veremos adiante, os ditos democráticos.

Essa trajetória é referida pelo cronista, em maio de 1950, em carta dirigida à


escritora Lygia Fagundes Telles, então casada com um dos mais importantes nomes do
movimento integralista, Gofredo Telles.

Sou um homem horrivelmente afetivo e, ao contrário do que muitos pensam,


odeio ferir pessoas. Mas não tenho apenas emoções pessoais. Tenho atrás de mim
15 anos ou mais de lutas políticas. Se nunca fui bom político, nem cheguei a
militar realmente em nenhum partido (hoje estou no Socialista, mas só
episodicamente faço alguma coisa lá) também nunca larguei de todo meu
modesto trabuco de franco-atirador.

2
O jornalista Mauritônio Meira, ex-repórter do jornal Última Hora, foi o idealizador e editor da Revista
Nacional, suplemento dominical encartado em diversos jornais brasileiros, nos anos 70/80.
Mais de meia dúzia de cadeias e vários perigos de morte atestam isso. Quanto ao
integralismo, fui dos primeiros a lutar contra ele: em 33 ou começo de 34 eu já
merecia uma nota especial da Chefia Nacional e uma tentativa de sequestro. No
Rio, em Recife, no Cachoeiro, em São Paulo, um pouco por toda parte, eu os
combati. Se alguma vez fiz um gesto a favor deles foi para pedir anistia, em um
momento de desgraça. Conheci-os bem, porque os ouvi me insultando, atirando
contra mim, me cercando numa estação, matando um velho amigo, denunciando-
me à polícia quando eu estava escondido, fazendo pressão sobre um editor de
jornal para me despedir – e até mesmo porque estive preso na mesma cela com
vários deles. (CARVALHO, 2007, p. 337).

À exceção da fase em que colaborou no jornal cachoeirense Correio do Sul,3


quando defendia ardentemente o governo de Mussolini e denunciava as “inteligências
estragadas nesse modernismo maluco”, Braga desde cedo se posicionou contra
segmentos reacionários que atuavam de forma bastante enérgica na sociedade brasileira
dos anos 30: a Igreja Católica, o Getulismo, o Integralismo – e, mais adiante, o
Comunismo ao qual inicialmente se aliara, mas em cujos métodos passou a ver as
mesmas distorções que combatia. É basicamente contra esses quatro segmentos que o
jovem cronista se indisporá, nas décadas seguintes, em suas constantes investidas contra
a supressão das liberdades políticas, contra a repressão policial, contra a tortura e a
censura.

O terreno no qual proliferavam esses males trazia uma forte herança do período
escravagista e da tradição agrária herdada dos quatrocentos anos de colonização. Dos
escravos libertos apenas trinta anos antes, e de seus descendentes, a grande maioria
ocupava os estratos mais baixos da sociedade – e sobre eles pesavam opiniões como a
de que tinham uma incapacidade congênita para o trabalho. Eram “cachaceiros”,
“indolentes”, “sem disciplina”, qualidades estas que justificariam, em parte, sua
marginalização e o estímulo cada vez maior, por parte do governo, da imigração de um
grande contingente de japoneses, italianos, espanhóis, portugueses e alemães.
Intelectuais do porte de Sílvio Romero e de Afrânio Peixoto pregavam que “a vitória na
luta pela vida, entre nós, pertencerá, no porvir, ao branco” (Romero) e que em duzentos

3
As primeiras crônicas e artigos de Rubem Braga foram publicadas nesse jornal, de 1928 a 1931,
portanto dos quinze aos dezoito anos. O Correio do Sul era dirigido por Armando de Carvalho Braga, e
gerenciado por Jerônimo Braga, ambos irmãos adolescente de Rubem.
anos “terá passado inteiramente o eclipse negro” (Peixoto).4 A marginalização não se
dava apenas em relação à etnia. No Código Civil Brasileiro, promulgado em 1917, e que
vigorou até 1962, constava que as mulheres casadas “são incapazes, relativamente a
certos atos ou à maneira de os exercer”, atribuindo, portanto, ao marido, a chefia da
“sociedade conjugal” (artigo 233),

conferindo-lhe a representação legal da família, a administração dos bens


comuns (e dos particulares da mulher, conforme o regime matrimonial adotado ou
o pacto antenupcial), o direito de fixar e mudar o domicílio da família, o direito
de autorizar a profissão da mulher e sua residência fora do teto conjugal.5
(ANDREATO, Elifas et al., 1984, p. 85).

A Igreja Católica atuava – e atuaria, ainda, durante meio século – como a única
religião oficial, com amplos poderes para ditar a moral e os bons costumes, reagindo, de
forma muitas vezes virulenta, às transformações em todas as áreas: da ciência às artes,
da educação à sexualidade. Não por acaso, seria ela a grande inimiga de Braga, durante
quase quarenta anos, até o surgimento da Teologia da Libertação nos anos 60 e de
personagens como Dom Hélder Câmara, a quem ele dedicou páginas elogiosas e apoiou
em momentos difíceis. As oligarquias, por sua vez, representavam talvez o símbolo
mais efetivo de um país agrário, atrasado e profundamente injusto na distribuição da
renda e no controle do poder político e econômico. Seja no Norte-Nordeste, onde
vigorava ainda o coronelismo, que mais tarde se modernizaria; seja no Centro-Oeste,
com o baronato do café, ou nos Pampas do Sul, elas representavam o atraso que Braga
se empenharia em denunciar. E, finalmente, para completar o quadro, consolidava-se,
pouco a pouco, o processo intenso de concentração urbana com o crescimento do
operariado e das massas anônimas das grandes capitais.

Era, portanto, esse o perfil da sociedade brasileira que transparece nas crônicas
publicadas nos dois primeiros livros do autor: O conde e o passarinho e Morro do
isolamento, lançados respectivamente em 1936 e 1944. Em “Como se fora um coração
postiço”, ele retrata, com lirismo, o descompasso do coração de um menino, que havia
nascido fora do peito, com a cidade desumanizada. Em “Pequenas notícias” mostra,

4
A citação consta do livro Retrato do Brasil. (São Paulo: Política Editora, 1984. p. 110).
5
Retrato do Brasil. São Paulo: Política Editora, 1984. p. 35.
com ironia ácida e cômica inversão de sentidos, tão habituais em suas crônicas, os fatos
noticiados nos jornais:

Dia do trabalho... Houve uma reunião de operários em São Paulo, mas havia tanto
soldado de polícia que não se sabia se era uma reunião de operários ou de
soldados de polícia.

A ordem foi mantida. Os operários não permitiram que a polícia praticasse


nenhum distúrbio. (BRAGA, 1961, p. 33).

Em “Animais sem proteção”, compara todos os animais do país, que, de acordo


com o decreto de número 64.645, de Getúlio Vargas, “são tutelados do Estado”, com
aqueles “que vivem em lugares anti-higiênicos, quase privados de ar e luz” e que “se
parecem extraordinariamente com os homens”. Animais que “vivem em cortiços e
porões, em casebres infectos e em casarões imundos”, cujas “fêmeas de cinquenta anos,
tuberculosas e exaustas”, são obrigadas a trabalhar diariamente, “se não quiserem
morrer de fome”. E conclui:

É interessante notar que, devido a certas semelhanças, algumas pessoas pensam


que esses animais são também homens. É engano. Eles, de fato, têm alguma
parecença com os homens; mas não são homens, são operários.6(BRAGA, 1961,
p. 51).

O processo de desumanização nas grandes cidades é mostrado em crônicas como


“A empregada do Dr. Heitor”, na qual retrata a rotina da vida suburbana, mecânica,
cinzenta e triste, sem ideais e sem transcendência. Mostra a família de funcionários
públicos, cuja casa “é uma repartição”. O pai, aposentado; o filho no mesmo emprego
medíocre que o pai tinha; a filha, com um emprego tão bom que “às vezes até trabalha”.
E, por trás de todos, a empregada, que há quinze anos faz o que dona Maria manda. E
que nunca teve uma ideia interessante, por exemplo: matar dona Maria, incendiar a casa.
Está tão cansada de viver que nem sequer mais quebra os pratos.

A empregada do Dr. Heitor é de cor parda e namora um garboso militar que uma
noite não mais virá ao portão e depois nunca mais aparecerá, deixando a
empregada do Dr. Heitor à sua espera e à espera de alguma coisa. De alguma

6
Op. Cit. p. 51.
coisa que será um molequinho vivo que cantará samba na rua, marchando,
batendo palmas, desentoando com ardor. (BRAGA, 1961, p. 60-61).

Em “Mistura” aborda o drama, exposto num telegrama enviado ao jornal, de


dona Rosa, mãe de Alice, jovem “muito branca e muito loura”, por ela ter fugido com
José Cândido, um brasileiro de cor negra.

Isso desgostou dona Rosa, e dona Rosa berra como só as verdadeiras mães sabem
berrar:

– “Ela merecia um bacharel!”

E diz, mais adiante:

Calma, dona Rosa. Alice está passeando no País das Maravilhas. E se aquele país,
pelo qual todas as mocinhas suspiram, é gostoso e bom, que importa a cor do
cicerone?

Neste país, dona Rosa, muitos brancos amaram muitas pretas. E se a senhora não
acredita, eu lhe mostrarei as provas. As provas andam aí por toda a parte, são
dengosas e excelentes e se chamam, na linguagem corrente, mulatas.

Calma, dona Rosa, calma, dona Rosa. Alice está no País das Maravilhas. E quem
sabe se ela não voltará de lá um dia para a sua casa, trazendo pelo braço uma
criancinha mulata de olhos verdes? E a senhora não acha linda, dona Rosa, as
mulatinhas de olhos verdes? (BRAGA, 1961, p. 65).

Fala ainda sobre o cangaço (“Não sou cangaceiro por motivos geográficos e
mesmo por causa do meu reumatismo”), sobre uma festa carnavalesca reunindo as
massas populares (“Como vos apertais, operários em construção civil, empregados em
padarias, engraxates, jornaleiros, lavadeiras, cozinheiras, mulatas, pretas, caboclas,
massa torpe e enorme, como vos apertais!”), sobre a notícia, veiculada no Diário de São
Paulo, de um passarinho que bicou e saiu voando com uma fitinha que estava no peito
do conde Matarazzo (“Voai, voai, voai por entre as chaminés do conde, varando as
fábricas do conde, sobre as máquinas de carne que trabalham para o conde, voai, voai,
voai, passarinho, voai”), sobre a vida suburbana do Catete, no Rio, vista, numa
perspectiva histórica, de um futuro longínquo (“Naquele tempo existiam as chamadas
„moças‟. Eram mulheres que, embora já fossem aptas para a vida normal, se
conservavam em recato durante muitos anos. Isso era devido ao hábito do casamento,
um dos mais curiosos e bárbaros costumes da época”), sobre a morte de João da Silva,
um homem comum e anônimo, noticiada na seção “Fatos Diversos”, do Diário de
Pernambuco7.

João da Silva – nunca nenhum de nós esquecerá seu nome. Você não possuía
sangue-azul. O sangue que saía de sua boca era vermelho – vermelhinho da silva.
Sangue de nossa família. Nossa família, João, vai mal em política. Sempre por
baixo. Nossa família, entretanto, é quem trabalha para os homens importantes. A
família Crespi, a família Matarazzo, a família Guinle, a família Rocha Miranda, a
família Pereira Carneiro, todas essas famílias assim são sustentadas pela nossa
família. (BRAGA, 1961, p. 108).

O primeiro livro de Rubem Braga traria mais duas outras crônicas com forte
temática social: “Recife, tome cuidado”, no qual descreve a miséria nos mocambos do
Recife (“Há fome, frio, lama, doença, miséria, dentro de cada mocambo. Recife, linda
Recife, tome cuidado. 250 mil pessoas vivem morrendo em seus mocambos”) e
“Reflexões em torno de Bidu”, quando, comentando a apresentação da cantora lírica
Bidu Sayão, diz ser “horrivelmente vergonhoso pensar que dos 450 mil habitantes do
Recife, só um punhadinho possa gozar tanta riqueza de sentimento, tanta vibração de
beleza”.

No Teatro Santa Isabel há uma placa de bronze com uma frase de Nabuco: “Aqui
vencemos a Abolição.” Mas não vi nenhum negro no recital. Os negros e os
brancos pobres – o enorme povo – não entram ali. Para ele estão fechadas as
portas de todos os altos bens da vida humana. Velho Nabuco, há muitas abolições
a fazer ainda” (BRAGA,1961, p. 117).

Em Morro do isolamento, lançado em 1944, encontra-se os temas da repressão


policial arbitrária (“Palmiskaski”), da pobreza (“Morro do isolamento”), da vida
medíocre e mecânica dos subúrbios (“O homem do quarto andar”), da destruição da
beleza das mulheres operárias na rotina esmagadora e desumanizante (“A lira contra o
muro”):

7
As citações referem-se respectivamente às crônicas “Cangaço” (página 69), “Batalha no Largo do
Machado” (página 70), “O conde e o passarinho” (página 79), “Conto histórico” (página 87), todas
publicadas no livro O conde e o passarinho (Rio de Janeiro: Ed. Sabiá, 1961).
Não, poeta, eu não levarei o meu mau-gosto a ponto de falar das operárias –
dessas estranhas mulheres que não têm o direito de ser bonitas nem saudáveis –
ou das mulheres da roça, que vivem para trabalhar e parir. Não quero magoar
você, poeta. Apenas quero que você pense nesse formidável capital de beleza e,
portanto, de lirismo, que este mundo que aí está massacra sistematicamente.
(BRAGA, 1961, p. 147).

Crônica na qual, dirigindo-se a um hipotético poeta, seu alter ego, traça um


retrato de si próprio.

Na verdade, estamos todos presos, e precisamos ter uma aguda consciência disso.
Você, Poeta, não tem consciência de classe. Tem coragem de dizer que ama tudo
o que é lindo e humano, a beleza em geral, as mulheres, os sentimentos delicados,
a poesia, essas coisas – e detesta a política. (BRAGA, 1961, p. 145).

Nas crônicas “A senhora virtuosa”, “O número 12”, “Dia da raça”, “Crime de


casar”, “Os mortos de Manaus”, “Temporal de tarde” e “Reportagens” aborda ainda
questões como a precariedade dos serviços públicos no Rio de Janeiro, as crianças
pobres que vivem e morrem na miséria em todo o país, a questão racial (mais uma vez),
a morte de crianças por febre tifoide, os efeitos da chuva “sobre a cidade sórdida” e o
preconceito religioso. Ainda nesse livro, uma das crônicas mais famosas, na verdade,
uma obra-prima em que o lirismo se harmoniza com perfeição ao registro social: “Em
memória do bonde de Tamandaré”.

Nela, o cronista descreve poeticamente a extinção pela Light (companhia inglesa


que detinha o controle acionário de iluminação a gás, e, posteriormente, elétrica, e dos
serviços de transporte em algumas capitais brasileiras) de algumas linhas de bonde. A
revolta do Tamandaré, pai e mãe de todos os bondes do Rio de Janeiro, tem o sentido de
uma reação desesperada contra as transformações verificadas no espaço urbano e das
quais o povo é alienado. Não é, aqui, o homem quem reage às decisões impostas de
cima para baixo, mas a própria máquina, humanizada, que se rebela.

A urbs escalavrada acordou. O homem que esperava seu “camarão” foi informado
de que seu “camarão” não existia mais. De acordo com a Prefeitura, a Light havia
cortado várias linhas de bonde. Os subúrbios distantes ficaram mais distantes, e a
gente pobre daquele subúrbio ficou mais pobre. Houve protestos, e houve,
sobretudo, confusão. Ninguém sabia onde tomar o bonde, nem se havia bonde,
nem o nome do bonde, nem o caminho do bonde. Os guardas-civis (seja dita a
verdade) informavam com a maior gentileza. Informavam e depois tomavam
bondes errados, porque eles, também, não sabiam. E alguém murmurava: mas
onde estás, onde estás, bonde Brigadeiro Galvão? E o eco respondia: não sei não.
E tu, oh tu, Vila Clementino, em cujo terceiro banco, em um dia chuvoso de
1933, certa mulher ruiva me sorriu? E tu, Santa Cecília, e tu, Vila Maria, e tu,
Jardim da Aclimação dos meus domingos de sol? E o infinito bonde Jabaquara? E
o gentil Campos Elísios? Higienópolis também morreu...

... Mas quem morreu, quem morreu, e isso me custa dizer, foi o grande bonde
Tamandaré. Morreu o grande bonde Tamandaré, pai e mãe de todos os bondes.
(BRAGA, 1961, p. 150).

E prossegue o cronista, descrevendo o grande bonde Tamandaré, que tinha um


itinerário e um horário, mas que nunca soube disso por ser analfabeto e por não
funcionar muito bem da cabeça; suspeito de se entregar a libações alcoólicas e por ter
“uma paixão encravada no Ipiranga”.

Um dia eu encontrei ao meio-dia, sob um sol de rachar, em estado lamentável, na


Praça do Patriarca, e não pude deixar de sorrir. Ele certamente percebeu, porque
no mesmo dia, às duas horas da tarde, quis me matar no Largo da Sé. Uma vez, na
Praça do Correio, exatamente na Praça do Correio, uma noite de grande
tempestade, ao passar junto ao monumento de Verdi, esse bonde parou, protestou,
armou um escarcéu e fez um comício monstro, berrando por todos os balaústres,
dizendo que aquela estátua era um absurdo.8 (BRAGA, 1961, p. 151).

Apesar do seu ímpeto homicida, o bonde Tamandaré tinha um grande coração.

Só matava mulheres muito feias e homens muito chatos, e em toda a sua vida
esmagou apenas nove crianças, sendo três pretinhos (dos quais dois no Piques),
uma meninazinha loura, um italianinho jornaleiro, dois filhos gêmeos de uma
lavadeira e dois não especificados”.9 (BRAGA, 1961, p. 152).

Todos unanimemente pobres. “Eram pobres demais!”, razão pela qual, o bonde,
mesmo com as rodas sujas de sangue, sentia o coração limpo.

8
Idem, p. 151.
9
Idem. p. 152.
Ao contrário dos demais bondes que, por ordem da Light, recolheram-se ao
barracão, ele prosseguiu, alucinado, em sua trajetória de rebeldia, ao ponto de, na Rua
da Consolação, acordar todos os defuntos do cemitério. Foi, finalmente, preso em Barra
do Piraí e recambiado para São Paulo. “Estava completamente bêbado e havia invadido
os trilhos da Central do Brasil. Voava em direção ao Rio”.

O perneta do barracão não quis confirmar essa história. Quando perguntei se


podia desmenti-la, ele fez um gesto indefinível com a cabeça e tirou fumaça de
seu pobre cachimbo. Depois olhou para um lado e outro. Tive a impressão de que
ia me confirmar tudo, em segredo. Mas cuspiu uma saliva suja e disse apenas:

− Tamandaré... Um belo bonde! Muito bom mesmo... Muito bom...

Talvez estivesse com medo, mas eu não sei dizer se era medo ou uma verdadeira
amizade. (BRAGA, 1961, p. 153).

Dois outros livros de Rubem Braga, Um pé de milho (1948) e O homem rouco


(1949) retratam, com bastante acuidade, os anos de 1933 ao final da década de 40.
Diversamente das crônicas, artigos e reportagens inéditos em livro, como se verá
adiante, eles não confrontam diretamente os desmandos das eras Vargas (1930-1945) e
Dutra (1946-1951). Observa-se, no entanto, não propriamente um registro, mas o
reflexo das prisões que o cronista sofreu durante o Estado Novo, feito, com ironia, bom
humor e algum cinismo politicamente incorreto no conto “História do caminhão”, que
assim se inicia:

Quando parou à minha porta o enorme caminhão fechado, com soldados de fuzil
na mão, e um deles me perguntou: “é aqui?” – eu suspirei e disse que sim.

Já fui preso várias vezes; não há de ser por mais uma que perderei minha natural
dignidade. Tratei de apanhar a escova de dentes, a pequena, frívola e patética
escova de dentes que anda sempre na bolsa das senhoras desonestas e no bolso
dos políticos perseguidos. E dispondo também de dois maços de cigarro, esperei
impávido, embora chateado. Só então notei que o caminhão era do Ministério da
Fazenda. (BRAGA, 1982, p. 94-95).

Desfeito o mal-entendido, o cronista volta ao livro que começara a ler, “e que


era um desses romances introspectivos tão profundos que a gente dorme e cai num
estado de catalepsia; de maneira que esqueci o incidente”. Em seguida, ao descobrir que
os fardos despejados ali pelos funcionários do Ministério da Fazenda continham notas
de mil cruzeiros e que era resultado de um engano, pensou “em procurar o Ministro da
Fazenda e contar-lhe a história”. Desistiu da ideia após refletir que “com toda certeza o
ministro não me receberia porque os ministros estão sempre muito ocupados em receber
pessoas e por causa disso jamais recebem quem quer que seja”.

A história desenrola-se em três capítulos, com idas e vindas, até que, ao final, a
mulher do narrador, “que é muito piedosa”, sugere que ele gaste o dinheiro em obras de
benemerência.

Achei que ela estava com razão, pois sempre tive ligeiras tendências marxistas, e
acho que os ricos devem ficar um pouco menos ricos para que os pobres fiquem
um pouco menos pobres, aliás, sem exagero. Assim sendo, e como o governo
houvesse fechado os cassinos, fundei a “Sociedade Protetora das Girls”. Comecei
protegendo duas, e tudo corria muito bem quando minha mulher sugeriu, com
certa violência, que era melhor aplicar a verba em menores abandonados.
Argumentei que uma das girls era menor, e a outra, se não o era, o fora muito
recentemente; e ambas estavam abandonadas; e quem sabe, meu Deus, o que lhes
poderia acontecer lançadas ao abandono com aqueles corpos tão lindos e aquelas
almas tão frágeis – mas tão frágeis!

Que o quê: minha “Sociedade Protetora” teve de ser fechada. Agora só funciona
na ilegalidade; pois mesmo em segredo gosto de praticar a caridade, o que aliás
penso que tem mais merecimento; e como é bom!10 (BRAGA, 1982, p. 102).

O que, entretanto, prevalece do ponto de vista social, nas crônicas e contos desse
período são os velhos temas recorrentes no autor: o processo de desumanização
verificado na cidade grande, a exploração da classe operária e do campesinato, os
péssimos serviços prestados à população, a tristeza e mediocridade da vida nos
subúrbios.

Em “Ginástica”, ele aborda a acusação feita por uma fábrica de tecidos de São
Paulo ao líder dos operários por realizarem uma “greve branca”, que consiste, segundo
noticia o jornal, “em provocar o desgaste da maquinaria”. O cronista, mais uma vez

10
Idem. p. 102.
utilizando-se de ironia e do deslocamento semântico (recurso, diga-se de passagem,
sofisticado, ambíguo e não muito comum ao repertório dos jornalistas), não se admira
que o acusado vá para a cadeira. Isto lhe parece justo, considerando-se que “um crime
contra máquinas é sempre uma coisa repugnante, pois as máquinas não devem ser
culpadas das extorsões e opressões que os homens praticam, utilizando-as”.

E nós, no Brasil, temos bem poucas máquinas para que nos possamos dar ao luxo
de estragá-las. O tipo mais abundante de máquinas que possuímos – e assim
mesmo em número inferior ao necessário – é o dessas máquinas a que
chamaremos, com uma certa boa vontade, humanas. E eis um problema a meditar:
o desgaste que se faz, no Brasil, nas máquinas de carne e osso. Vá o leitor assistir,
de manhã ou de tarde, a uma partida ou chegada dos trens suburbanos em que
viajam essas máquinas de carne e osso. Ali, sim, é possível observar o desgaste
violento, quase aflitivo, das maquinarias. (BRAGA, 1982, p. 23).

Em “Subúrbios”, o cronista traça um painel dolorido, em sua extrema crueza, da


vida das populações que habitam “os densos subúrbios dos subúrbios” da Central e da
Leopoldina, em que, diferentemente dos morros, onde o “horizonte não enche a barriga
de ninguém: mas enche os olhos”, “a pobreza é toda feiura e limitação”, onde “a
pobreza se achata na planície”, onde “o que a pobreza vê é a outra pobreza”.

Há, certamente, nos subúrbios, pessoas normais e belas, Mas na população geral o
que sentimos é uma depressão física e também mental. As conversas são queixas
irritadas, ou resenhas de males e dificuldades. E como são feias as casas, e sujos
os quintais; há ruas inteiras que cheiram mal. Respira-se um ar de problemas; são
problemas baratos, que ninguém resolve e que se cruzam com outros problemas.
Não há sequer aquela dignidade que encontramos por exemplo numa aldeia de
pescadores extremamente miserável, perdida numa praia qualquer – onde a vida
tem um ritmo simples, entre os peixes, a esteira e a mandioca.

O subúrbio é penetrado pelo mundo; ele ajuda a fazer funcionar o mundo, e ao


mesmo tempo é um lixo confuso de gente boa a ruim, de ambições mesquinhas e
sonhos tortos. A vida sofre uma distorção; perde seu sentido mais simples. Na
aldeia de Paralucagem o sol nasce, o sol morre; aqui o trem sai e o trem chega –
atrasado. Há uma tristeza mesquinha; nem a desgraça é límpida. (BRAGA, 1982,
p. 54).
Uma das crônicas, “Os fícus do Senhor” conta com a seguinte apresentação do
autor:

É uma crônica de 1943 e não é tão inédita que não tenha sido publicada em duas
revistas. Mas ambas circulavam quase às ocultas e foram fechadas logo depois
pelo governo. A crônica pode ser má, e creio mesmo que está mal escrita, de um
modo diferente do meu modo costumeiro de escrever mal. Mas naqueles tempos
já era uma grande coisa quando se conseguia escrever alguma coisa que não fosse
louvaminhas ao Senhor; e quando se escrevia era ao mesmo tempo com raiva e
contensão, duas circunstâncias que atrapalham qualquer estilo, e ainda mais o
meu, que se atrapalha à toa. Talvez por isso mesmo reli com uma espécie de
carinho e resolvi publicar outra vez. (BRAGA, 1982, p. 106).

Trata-se, o fícus, diz o cronista, de um arbusto que jamais será uma bela árvore,
pois que inventada e domesticada impiedosamente pelo homem, rei da Criação. Homem
que, quando é rei, de fato, diz o cronista, monta a sua máquina de mandar.

São máquinas monstros de mil compartimentos complexos – masmorras e


picadeiros, com aparelhos de metralhadoras, microfones, casas de moeda e
medalhas, jornais, uniformes, bandeiras, talentos, alicates de arrancar unhas e
técnicos em festinhas escolares, foguetes, benemerências – se a quisésseis
conhecer, toda essa engrenagem de aço e sentimentos, de ouro e vaidades, de
bem-aventuranças fáceis e torturas facílimas, haveríeis de gastar uma vida, e não
conseguiríeis. Não é preciso. Afinal, tudo é simples, tudo é chicote e torrão de
açúcar, tudo é tesoura e estrume. (BRAGA, 1982, p. 108).

O fícus constitui, aqui, símbolo daqueles que, diante dessa máquina de mandar,
se moldam, se adaptam, se submetem, se servilizam; aqueles que, mesmo sentindo
amargura com o primeiro corte da tesoura, com o tempo já não a espera: “Ele mesmo
fica sendo a sua própria tesoura”. Um tipo que geralmente prolifera nas ditaduras e
sistemas totalitários, pois que

Para uns é preciso que o chicote entre na carne, para outros basta que sibileno ar –
para muitos basta que o chicote exista. Uns se jogam de quatro para lamber
farelos de açúcar preto, outros recebem com ares de dignidade alvos tabletes
refinadíssimos, uns se limitam a ficar mansos, outros aprendem proezas e dão
espetáculos graciosos. E a degradação humana sob o fascismo ora é brutal, ora é
sutil – e se abre um estranho picadeiro de feras avacalhadas sob o mesmo círculo
de assistência que se bestifica e bate palmas porque até o silêncio é crime – e a
floresta magnífica dos homens se muda em praça paris com sofás de fícus, caixas
de pó-de-arroz de fícus, guarda-chuva de fícus, toda uma alucinação idiota de
formas obedientes e escravas – de fícus. (BRAGA, 1982, p. 108-109).

Em O homem rouco, de 1949, apenas uma crônica traz, de forma bastante


velada, referências à polícia e às forças armadas. Trata-se de “Essas amendoeiras”, em
que se refere às árvores ameaçadas da rua onde mora, não apenas o cronista, mas
generais e o próprio chefe do Estado-Maior do Exército, que “às vezes chega à janela
com seus óculos”.

O presidente, o prefeito, o chefe de polícia, todos são generais. O presidente tem


uma parenta nesta rua e às vezes a visita. Vem sozinho, e felizmente nunca olha
para o alto; é um homem calado e triste, e dá a impressão de que fizeram alguma
coisa com ele; fizeram-no, é verdade, presidente. O chefe de polícia nunca nos
deu a doce honra de comparecer; apenas manda, às vezes, um desenfreado carro
de radiopatrulha varar a rua de ponta a ponta, deixando o aviso urgente de que a
autoridade é um fato. O prefeito passou uma vez na segunda esquina para o sul,
viu uma estátua e carregou-a não sei para onde; consolo-me em pensar que a
própria Câmara Municipal não sabe. (BRAGA, 1984, p. 30).

Outras crônicas – “Histórias de Zig”, “O funileiro” e “Nascem varões” –


abordam questões sociais, de forma indireta, seja contando as façanhas do cão Zig, da
infância de Braga, que votava profundo ódio a soldados em geral; seja denunciando a
triste beleza dos objetos apartados de sua utilidade; seja com sentimento de profundo
desencantamento em que se refere, com melancolia e perturbação, ao nascimento de
uma criança, a “esse sentimento da continuação do mundo”.

Eis, aqui, uma amostra das preocupações sociais do cronista Rubem Braga,
registradas em livro. Trata-se, neste caso, de uma faceta pouco estudada do cronista
lírico cujo centenário de nascimento está sendo comemorado este ano com uma série de
relançamentos e lançamentos de livros, debates, seminários e exposições. Esta
efeméride tem especial importância no sentido de se redimensionar a importância da
obra de RB no panorama da literatura, da história e do jornalismo contemporâneos.
BIBLIOGRAFIA
ANDREATO, Elifas et al. Retrato do Brasil. São Paulo: Política Editora, 1984.

BRAGA, Rubem. O conde e o passarinho e Morro do isolamento. 4. ed. Rio de


Janeiro: Sabiá, 1961.

BRAGA, Rubem. Um pé de milho. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1982.

BRITO, Mário da Silva. Antecedentes da semana de arte moderna. 4. ed. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.

CARVALHO, Marco Antonio de. Rubem Braga: Um cigano fazendeiro do ar. São
Paulo: Globo, 2007.

COSTA, Cristiane. Pena de aluguel: Escritores jornalistas no Brasil 1904-2004. São


Paulo: Companhia das Letras, 2005.

RIBEIRO, Carlos. Caçador de ventos e melancolias: um estudo da lírica nas crônicas


de Rubem Braga. Salvador: EDUFBA, 2000.

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