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+ Sartre Básico

Alienação - A alienação é sempre ligada, em Sartre, à objetivação. Em "O Ser e o Nada", é o olhar
do outro que me objetiva, que faz de mim algo ao não me tomar a não ser como uma
exterioridade; na "Crítica da Razão Dialética", a objetivação se define mais precisamente como
materialização. É a matéria que constitui o fundamento real da alienação.

Angústia - Sentimento que não se relaciona a nenhum objeto que se pode encontrar no mundo,
mas apenas dentro de si mesmo, isto é, na própria liberdade. Ela pode ser definida como a
consciência da própria liberdade, especialmente nas situações mais triviais. Por exemplo, quando
decidiu não mais comer pão, Sartre disse: "Não é sem uma pequena angústia que descobri uma
vez mais ontem pela manhã que eu era livre para cortar o pedaço de pão que a empregada colocara
perto de mim e livre também para levar o pedaço à minha boca. Nada no mundo podia me impedir
de fazê-lo a não ser eu mesmo." ("Carnets de la Drôle de Guerre"). A mesma angústia sob forma
de vertigem pode ser sentida pelo medo do precipício, quando tomo consciência de que, "se
madame me força a salvar minha vida, nada me impede de me precipitar no abismo", que sou
absolutamente livre para viver ou morrer. ("O Ser e o Nada"). Com essa concepção de angústia,
Sartre se separa de um racionalismo que concede apenas à razão o poder de conduzir à verdade.
Em "A Náusea", é precisamente essa disposição que revela a Antoine Roquentin a contingência da
existência e a compreensão da existência humana.

Contingência - A contingência se opõe à necessidade de qualificar a existência. Presa à sua


nudez, a existência possui uma característica supérflua, que suscita a náusea. É precisamente esse
sentimento que invade Roquentin quando as coisas se apresentam a ele, desprovidas de sua
utilidade e de seu significado. Assim, no jardim público, a raiz de uma árvore se torna "uma massa
negra e disforme, inteiramente bruta"; então, é sua própria existência que se revela.

Engajamento - É a atitude do indivíduo que toma consciência de sua responsabilidade total diante
de sua situação histórica e social e decide agir para modificá-la ou denunciá-la. Em certo sentido,
o engajamento é um modo de ser pois, pelo próprio fato de existir, eu me engajo, eu estou dentro
do mundo ao lado de outros ou, como diz Sartre, estou "em situação". De qualquer forma, essa
situação não é um sofrimento que sofro: para cada um dos meus atos, eu escolho livremente minha
situação. Minha liberdade e minha responsabilidade são, então, totais, como sublinha Sartre em
"O Existencialismo É um Humanismo": Nossa responsabilidade é muito maior do que podemos
pensar, pois ela envolve a humanidade inteira". O engajamento é igualmente uma obrigação moral
para aquele que, recusando o conforto da atitude contemplativa ou de má-fé, atrai as
conseqüências éticas e políticas de seu ser-em-situação. É particularmente o caso do intelectual e
do escritor, que, por terem o poder de revelar o mundo, devem se engajar.

Liberdade - Que o homem é livre é uma evidência cuja contestação revela má-fé. Essa liberdade
significa negativamente que o homem não é uma coisa e que suas ações, assim como suas
"paixões", não revelam de modo nenhum um princípio transcendente, tal como a natureza, a
sociedade, o corpo ou o inconsciente psíquico. Positivamente, a liberdade descreve não uma
faculdade ou propriedade, mas o ser do homem enquanto ligação eterna com o projeto que lhe é
próprio. O homem não escolheu nascer e, de certa forma, sua situação não depende dele; da
mesma forma, não pode renunciar à sua liberdade e "nós estamos condenados a ser livres"
("Cadernos por uma Moral"). A liberdade do homem se encontra na menor de suas escolhas
empíricas, em seus gostos e vontades, em seu trato de características que levam a uma escolha
original que explicita a psicanálise existencial ("O Ser e o Nada"). Assim, a responsabilidade
humana é muito maior que a má-fé quer admitir, e, se a liberdade pode ser um fim, ela é
igualmente um fardo.
Psicanálise existencial - Sartre opõe à psicanálise freudiana uma psicanálise existencial. Uma e
outra têm como objetivo "decifrar os comportamentos empíricos do homem" e partem da
convicção de "que não há um gosto, um ato humano, que não seja revelador". Mesmo assim,
como a interpretação das condutas muitas vezes são insignificantes, se Freud busca descobrir os
complexos inconscientes que os determinam, Sartre recusa categoricamente a hipótese de um
inconsciente psíquico. Sartre substitui a hipótese de inconsciente pela idéia de que todo homem é
habitado por um projeto original, escolhido livremente, por qual se esforça para realizar seu desejo
de ser e que se manifesta nos menores aspectos de sua existência: "O projeto original que se
exprime em cada uma de nossas tendência empíricas observáveis é o projeto de ser; ou, se
preferirmos, cada tendência empírica é com o projeto original de ser em uma forma de expressão e
saciedade simbólica, como as tendências conscientes, em Freud, em ligação aos complexos e à
libido original". ("O Ser e o Nada").

Razão dialética - A razão dialética é a razão que torna inteligível toda forma de totalização, quer
dizer, toda unificação em curso (seja um simples ato, uma vida humana ou mesmo a história). A
razão dialética é, então, a "lógica viva da ação". Ela é, nesse sentido, uma razão prática, por
oposição à razão analítica, a que é utilizada pelas ciências positivas, que é uma razão observadora
situada no exterior de quem a observa.

Transcendência - Não se trata da transcendência de Deus, no sentido de que Deus está "exterior"
ao mundo. Conforme a etimologia latina do termo -construído a partir de "trans" (do outro lado) e
"scando" (subir)- a transcendência sartriana designa o movimento da consciência de se conduzir
sempre além dela mesma e daquilo que é. A consciência não prende o objeto tal como ele é, mas a
apreende em sua incompletude, ultrapassando-a até que não seja mais.

+ cronologia

1905 Nasce em 21/6, em Paris, filho do oficial da Marinha Jean-Baptiste Sartre e Anne-Marie
Schweitzer.

1920 Torna-se amigo de Paul Nizan e inicia trabalhos filosóficos sobre a imaginação.

1924 Matricula-se na École Normale Supérieure.

1929 Conclui o doutorado em filosofia na École Normale Supérieure. Conhece Simone de


Beauvoir.

1931 É nomeado professor de filosofia no Havre, que será cenário fictício de "A Náusea".

1933 Torna-se bolsista do Instituto Francês de Berlim, onde estuda a fenomenologia de Husserl e
Heidegger.

1936 Publica "A Imaginação".

1937 É nomeado professor de filosofia no liceu Pasteur, em Paris, e publica "A Transcendência do
Ego"

1938 Publica "A Náusea".

1939 Lança "O Muro".

1940 Servindo na guerra, é feito prisioneiro pelos alemães e enviado a um campo de concentração.
1941 Libertado no final de março, entra para a Resistência e funda o movimento Socialismo e
Liberdade.

1943 Saem "O Ser e o Nada" e a peça "As Moscas".

1944 Sai "Entre Quatro Paredes".

1945 Dissolve Socialismo e Liberdade e funda, com Merleau-Ponty, a revista "Les Temps
Modernes". Publica "A Idade da Razão" e "Sursis".

1946 São lançados "Mortes sem Sepultura" e "A Prostituta Respeitosa" e "O Existencialismo É
um Humanismo", além de estudo sobre Baudelaire.

1948 Sua obra é incluída no índex do Santo Ofício.

1951 Escreve "O Diabo e o Bom Deus".

1952 Ingressa no Partido Comunista Francês.

1956 Rompe com o PCF após a intervenção da União Soviética na Hungria. Escreve "O Fantasma
de Stálin".

1960 Publica "Crítica da Razão Dialética". Viaja ao Brasil e a Cuba, onde se reúne com Fidel
Castro e Che Guevara. Milita pela independência da Argélia.

1963 Publica a autobiografia "As Palavras".

1964 Recusa-se a receber o Prêmio Nobel de Literatura.

1968 Durante as manifestações de maio, põe-se ao lado dos estudantes nas barricadas.

1970 Assume simbolicamente a direção do jornal maoísta "A Causa do Povo", em protesto pela
prisão de seus diretores.

1971 Publica "O Idiota da Família", um estudo sobre Flaubert.

1973 É um dos fundadores do jornal "Libération".

1975 Viaja a Portugal para apoiar a Revolução dos Cravos, iniciada no ano anterior.

1978 Viaja a Israel para tentar ajudar na resolução dos conflitos com os árabes.

1980 Morre em 15/4, em Paris. Seu enterro, no cemitério Montparnasse é acompanhado por 50
mil pessoas.

Em busca do homem total


Reprodução Encontro
do
filósofo
com
Fidel
Castro e
Che
Guevara,
em Cuba,
em 1960

Figura e atuação do filósofo francês concentra as hesitações, desequilíbrios e decisões da


filosofia e da história ao longo do século 20

JEAN-LUC NANCY

A figura de Sartre concentra de maneira marcante os aspectos essenciais de um tempo de


oscilação, hesitação e decisão, todas juntas, durante o qual girou o curso da práxis filosófica em
meados do século 20 -e com ele a relação desse século com sua própria história, com sua própria
disposição consigo mesmo ou com o mundo, seus possíveis e suas exigências. Sartre e a relação
com Sartre terão caracterizado o que podemos considerar o desequilíbrio do século 20
-"finalmente em si mesmo"- e a abertura nele de uma situação nova.
Essa configuração exemplar pode ser esboçada -sem ambição de análise- a partir de algumas
características. A primeira seria a da leitura de Husserl e de Heidegger. Para Sartre, o que ficara
relativamente acantonado na Alemanha (e depois foi expulso por ela) e também relativamente
limitado à universidade acedia a um novo estatuto: aquele em que a filosofia traz visivelmente sua
influência ao meio do real da história, do etos e do agir.

Lendo Heidegger a seu


modo, Sartre defendeu a
negação de toda essência e a
recusa do "ser" substancial

Sem dúvida, fez de Heidegger uma leitura tributária de postulados afastados inicialmente por este
último e, resumindo, substituiu uma simples antecedência da existência sobre a essência pela
franca negação de toda essência e pela recusa do "ser" substancial. Bataille, Beaufret, Granel e
Derrida tiveram de reconquistar essa recusa e a "desconstrução" da ontologia. Mas eles o
conseguiram, pelo menos em parte, porque Sartre já havia preparado o caminho.
Na leitura de Heidegger (e na de Husserl, mas aqui seria preciso trasvasar para Merleau-Ponty)
não estava em jogo tanto a relação com um autor quanto, mais profundamente, com a própria
concepção do pensamento e, singularmente, sua ordenação consensual em torno de um
humanismo de "valores" ou da produção de um "homem total", ele mesmo um valor absoluto. Não
por acaso, um texto de Derrida dedicado a Sartre se intitulou "Os Fins do Homem" (1972) e
trabalhou expressamente a ambigüidade desse título colocado entre Sartre e Foucault.
Outra característica seria a da relação com a psicanálise. Enquanto se opunha a Freud, Sartre abria
no meio da tradição da "consciência" a possibilidade de deslocar o "sujeito" não para uma
subconsciência, mas para o tecido das relações de forças e de significado nas quais pode surgir o
ponto fugaz de uma singularidade.
Aí também Bataille, Foucault, Deleuze e Derrida abordariam de maneira decidida o que Lévi-
Strauss chamou em 1962, ao discutir Sartre, de o "mundo da comunicação", onde essa palavra
deveria ser compreendida não como inter-subjetiva, mas como ante-subjetiva e transcendental ou
estruturante. Aí também, Sartre teria se mantido no limite, na linha divisória de águas. A
"estrutura" operava sobre um sentido não-dado, quando para ele permanecia no fundo pré-dado
(como "liberdade", por exemplo).
Uma última característica estaria nessa relação com a literatura que fez de Sartre um Jano inédito.
Ninguém antes dele havia sido escritor e filósofo e ninguém havia até então (desde o romantismo)
filosofado sobre a literatura. Em certo sentido, essa mistura ou sobretudo esse atrito de gêneros
sob uma mesma pluma nada perturbou na clara divisão dos registros teórico e ficcional.
No entanto era ao mesmo tempo o modo de exposição do pensamento e a natureza do discurso do
sentido ou da verdade que se encontravam surdamente colocados em jogo. Que esse discurso não
possa se tornar seu próprio fundamento e que ele seja de maneira constitutiva exposto à alteridade
segundo a qual, precisamente, pode haver um "sentido" não-preestabelecido (não-transcendente),
isso Sartre já sabia.

Caminho da interrogação
Ele abria, sem se envolver nele, o caminho da interrogação contemporânea sobre todas as formas e
sobre todos os questionamentos de uma escrita filosófica, ou seja, de um pensamento que se
engaja a partir do que ele formulou assim: "Trata-se de criar o mundo que já existe. Isso significa
que o mundo deve surgir para mim como originário até em seu ser de uma liberdade que é a minha
liberdade. Procissão poética: o ser-em-si tem de ser liberdade magicamente transformada em
alteridade" ("Cadernos para uma Moral").
Essa frase reúne grandes ambigüidades e particularmente aquela que justapõe um "surgir para
mim" e um "ser" numa equivalência incerta. Mas aqui não é lugar de análise crítica. O que se deve
sublinhar é isto: com essa "procissão poética" indica-se uma superação do regime do sentido dado
e recebido sem sair de si, sem questionamento absoluto de uma suposta relação com um céu ou
um horizonte cheio de verdade.
No texto póstumo publicado em 1989 por Annette Elkaïm-Sartre, "Verdade e Existência",
podemos ler: "Toda verdade é provida de um fora que sempre ignorarei. Assim, a atitude da
generosidade é atirar a verdade aos outros para que ela se torne infinita na medida em que me
escapa". Nós somos, já nos havíamos tornado durante a vida de Sartre, seus outros e seu fora.
Diríamos que a verdade absolutamente atirada à alteridade é infinita no sentido "atual", e não
somente "potencial", como ele a entende. Diríamos que esse infinito inscreve o fora e a alteridade
no próprio "homem". Mas não negaremos que ainda nos chega por meio disso alguma coisa da
generosidade de Sartre.
Essa generosidade -essa responsabilidade- insistia em querer mudar o mundo, como se deve para
quem quer pensá-lo, mas não percebia o quanto o mundo se transformava e, com ele, o
pensamento.

Jean-Luc Nancy é filósofo francês, autor de "Le Sens du Monde" (O Sentido do Mundo, Galilée). Este texto foi
publicado no "Le Monde".

TOPOGRAFIA EXISTENCIALISTA DE PARIS


EM SUA VIDA E EM SUA OBRA, JEAN-PAUL SARTRE LEVOU A FILOSOFIA ÀS
RUAS E AOS CAFÉS E TRANSFORMOU BAIRROS COMO SAINT-GERMAIN-DES-
PRÉS E MONTPARNASSE EM ÍCONES DA CONTRACULTURA OCIDENTAL DO PÓS-
GUERRA

MARCOS FLAMÍNIO PERES


ENVIADO ESPECIAL A PARIS

Na ensolarada tarde de sábado de 23 de abril, o bairro de Saint-Germain-des-Prés, encravado no


coração de Paris, está fervilhando com a chegada da primavera. Multidões de turistas e moradores
flanam por suas ruas apinhadas de restaurantes e cafés, patinadores e ciclistas realizam acrobacias
arriscadas e shows de música étnica da África ou América do Sul ocupam as praças do bairro mais
famoso da contracultura ocidental dos últimos 60 anos, talvez só comparável ao Greenwich
Village, em Nova York.
Mas esse "quartier" outrora provinciano, que conquistaria prestígio no pós-guerra justamente por
tornar-se o quartel-general do movimento existencialista, hoje dá as costas para aquele que foi seu
líder e que lhe fez a fama mundo afora: Jean-Paul Sartre, o filósofo francês mais controvertido e
midiático do século 20, que ali viveu, refletiu, formou escola e engajou-se.
O pensador, que faria cem anos no dia 21, notabilizou os cafés de Saint-Germain-des-Prés e
Montparnasse -que a Folha visitou- como espaços de reflexão não só por tê-los freqüentado
assiduamente mas porque personagens de romances como "A Idade da Razão" e do conto
"Intimidade" não hesitam em deter-se em algum deles para tomar um conhaque e refletir sobre o
sentido da liberdade e o vazio da existência.
Com Sartre -vida e obra-, a discussão filosófica invadiu a vida cotidiana, como diz Michel Contat,
principal estudioso de sua obra, em entrevista à Folha.

A grife Sartre
Claro, sua memória ainda resiste na principal praça do bairro, que em 2000 foi rebatizada com seu
nome e o de Simone de Beauvoir, a companheira de mais de 50 anos com quem manteve uma
relação aberta e iconoclasta. O trio-de-ferro dos cafés existencialistas -o Flore, o Deux Magots e o
Lipp- também continua de portas abertas, mas a liberdade a que aspiravam seus antigos
freqüentadores é parte do passado.
Caros mesmo para padrões europeus -um expresso sai em média 4 (R$ 12)-, os três têm um afluxo
contínuo de turistas, que buscam uma certa ambientação que a praça oferece, reunindo consumo
de luxo, urbanidade e verniz intelectual.
No Flore, revestido de estofados vermelhos, nem a gerente nem os garçons conheceram Sartre,
mas um anexo se encarrega de lembrá-lo. O autodenominado "café existencialista" criou uma
butique à própria glória que oferece, a preços salgadíssimos, suvenires de sua história.
A "grife" Sartre, naturalmente, é a peça principal da loja: por 14 (R$ 42), pode-se levar um livro
com trechos da trilogia romanesca "Os Caminhos da Liberdade" que fazem referência ao café, e,
por 21 (R$ 63), compra-se um trivial jogo de pires e xícara com o logotipo do Flore.

Se Saint-Germain-des-Prés
era sinal de afetação
intelectual, hoje é símbolo de
voracidade consumista

A praça ao lado reúne grifes caras e badaladas, que antes se concentravam do outro lado do rio, no
entorno do Arco do Triunfo, tradicional reduto da alta burguesia parisiense. Um brasileiro
desavisado que passasse por lá e pelas ruas adjacentes poderia imaginar-se em uma versão
multiplicada e mais sofisticada da rua Oscar Freire, em São Paulo, sobretudo por não ser raro
ouvir em voz alta o português falado por brasileiras trajando calças jeans apertadas e botas de
cano alto e segurando, com dificuldade, várias sacolas.
Se no pós-guerra Saint-Germain-des-Prés era sinal de afetação intelectual, hoje é símbolo de
voracidade consumista.
Estrategicamente localizada entre os três cafés, a livraria Hune surge como um oásis para quem
busca vestígios existencialistas na região, oferecendo várias edições e estudos sobre Sartre assim
como o valioso catálogo da exposição que ocorre na Biblioteca Nacional de Paris, a maior já
realizada sobre Sartre. É irônico pensar, contudo, que na praça onde o existencialismo literalmente
chegou às ruas e aproximou a reflexão filosófica do dia-a-dia, Sartre só seja efetivamente
lembrado nas prateleiras de uma livraria.
Mas, se Sartre, o intelectual engajado por definição, desapareceu da vida cotidiana que o
consagrou, pelo menos tem sido objeto de uma lenta, mas constante, reavaliação, sobretudo em
sua produção ficcional e dramatúrgica, após décadas de ostracismo imposto pelo estruturalismo e
suas derivações. Como lembra Bento Prado Jr., que conviveu com Sartre e Simone de Beauvoir
durante sua estada no Brasil, em 1960, seus contos são "extraordinários".
Richard Rorty, apesar de condenar a tentativa de fundir marxismo e existencialismo, destaca, em
entrevista na pág. 9, passagens notáveis de "O Ser e o Nada". Já para Michel Contat, a "Crítica da
Razão Dialética" é ainda o ataque mais consistente já feito ao sistema capitalista.
Vinculando reflexão e práxis, Sartre sempre defendeu a revolta como premissa básica da
existência e fundamento da liberdade do homem. É esse o fio condutor de suas obras ficcionais,
dramatúrgicas e filosóficas.
Homem múltiplo, sempre teve em alta conta a utilização do "mass media" pelos intelectuais, de
que são exemplos sua reportagem "Furacão sobre Cuba" ou os programas de rádio para a "Temps
Modernes" ou a criação do jornal "Libération".
Sua coerência sem fissuras levou-o a cometer erros grosseiros de avaliação, como a insistência em
apoiar o ditador soviético Josef Stálin mesmo quando os expurgos que cometera já se faziam
claros.

Paris é uma festa esvaziada


A predominância do espaço público na vida de Sartre -ruas, cafés, praças ou mesmo as inúmeras
viagens que fez, aos EUA, Cuba, União Soviética ou Brasil- reflete-se com a mesma intensidade
em seus romances, suas peças e seus contos.
As personagens estão sempre perambulando por ruas ou cafés, como em "Erostrato" e
"Intimidade" (de "O Muro") e em "A Idade da Razão", ou, ao contrário, estão fechadas em espaços
exíguos, como em "O Quarto" (de "O Muro") ou em "Entre Quatro Paredes".
Os bairros por que transitam são pouco nobres (pelo menos à época), como Montmartre -na
margem direita do Sena-, Montparnasse, Quartier Latin, além de Saint-Germain-des-Prés -estes na
margem esquerda.
Mas, apesar da fama deste último, é em Montparnasse, ao sul do jardim de Luxemburgo, que
perambula a maior parte das personagens atormentadas dos romances de Sartre. Cafés
freqüentados por ele, como o Coupole e o Dôme, nas imediações do bulevar Raspail, são hoje
tomados no almoço por turistas e secretárias ou executivos que trabalham na maior torre de
escritórios de Paris, que domina o bairro com seu revestimento negro.
O Coupole -onde o protagonista de "Erostrato" janta pela última vez antes de realizar seu
diabólico plano: descarregar o revólver a esmo nos transeuntes e depois suicidar-se- pertence hoje
a uma rede de cafés que cobre boa parte da França.
Nesse conto, o anti-herói Paul Hilbert traça um roteiro preciso das ruas do bairro, imaginando sua
rota de fuga: mora no sexto andar de um prédio da rua Delambre -pois "é preciso ver os homens
do alto"-, passeia pelas ruas de Odéssa e Montparnasse, onde costuma freqüentar prostitutas,
aguça sua pontaria treinando em uma feira da rua Denfert-Rochereau e, para conceber seu plano,
hospeda-se em uma pensão da rua Vavin; finalmente, no bulevar Edgar-Quinet, realiza os
disparos.
Aqui, a abordagem naturalista dos detalhes, em que o leitor quase perde a dimensão trágica do ato
que está para se consumar, evoca a precisão cinematográfica de um Buñuel de "O Anjo
Exterminador" (1962). Cinema, aliás, que foi uma das grandes paixões de Sartre, conforme lembra
Michel Contat.
Já o Dôme é um dos cenários de "Intimidade", onde se encontra a ambiciosa Rirette aguardando a
chegada de Lulu, amiga que decidira abandonar o marido. "Aqui se sente o cheiro de roupa suja...
Detesto os miseráveis", pensa ela, que prefere o elegante Café de la Paix, em frente à Ópera, do
outro lado do Sena.
No que parece uma auto-ironia de Sartre, Rirette se revolta contra Lulu por insistir em marcar
encontros no Dôme: "Aqui eles bebem café o dia inteiro ou então café com creme, porque não têm
dinheiro, e isso deve enervá-los [...] Como devem espantar-se aqueles que me vêem no meio desse
pessoal, desses homens que não fazem a barba e dessas mulheres que têm ar nem sei de quê!".
No final do conto, a cena de Lulu fugindo do ex-marido ao longo da rua Delambre (a mesma em
que mora o Paul Hilbert de "Erostrato" e a Sara de "A Idade da Razão") remete a "Acossado"
(1960), de Godard.
Também fica em Montparnasse, precisamente na rua Campagne-Première, a casa de Bergère, o
surrealista que irá iniciar nas artes e no sexo o jovem Lucien, protagonista da contundente novela
"A Infância de um Chefe" (de "O Muro"). É nos cafés e dancings do Quartier Latin que Lucien e
seus amigos vão divertir-se às escondidas com jovens vindas da província. É na rua Saint-André-
des-Arts, como uma das etapas de seu aprendizado para tornar-se líder, que ele espanca um
imigrante.
E será em um dos cruzamentos principais do bairro, ao ver-se refletido em uma vitrina na esquina
da rua des Écoles com o bulevar Saint-Michel, que Lucien -morador da chique rua Raynouard,
perto da torre Eiffel- se dá conta de que não é mais um jovem trôpego, mas um "chefe"
consumado -que adota posições nacionalistas, anti-semitas e colaboracionismo com os nazistas.
Nisso, Sartre é tributário da melhor poesia e ficção do século 19, como a de Poe, Baudelaire ou
Zola, onde o indivíduo -temeroso ou desafiador- se defronta com a metrópole e seu índice mais
evidente -a multidão. Mas, em sua prosa, Sartre inverte essa relação, esvaziando Paris tanto de
aglomerações quanto de importância política.
Em "A Idade de Razão", por exemplo, Mathieu Delarue busca compreender os fatos que
irrompem em sua vida até então sem sobressaltos -a contingência-, mas não a partir dos elementos
objetivos que se lhe apresentam, mas voltando-se para sua experiência interior, da qual não
consegue desgarrar-se.
Passado em dois dias e três noites, em que Mathieu perambula atônito pela cidade em busca de
dinheiro para realizar o aborto da amante, "A Idade da Razão" é em grande parte responsável pela
temática e a dinâmica da literatura beat -trata-se de um romance "on the road" a pé.
Vazia de massas, Paris também é esvaziada de importância continental, numa antecipação da
geopolítica bipolar que iria se configurar no pós-guerra e em que a França seria coadjuvante. Pois,
nesse romance, tudo o que conta para o destino da Europa está sendo decidido bem longe de Paris:
na Espanha, onde se dava a heróica resistência ao fascismo de Franco, e no eixo Londres-Berlim,
onde se buscava uma saída diplomática para evitar a iminente eclosão da Segunda Guerra.

Nova geografia da contestação


Na Paris de hoje, a geografia da contestação mudou radicalmente, abandonando o circuito da "rive
gauche" e deslocando-se para o norte e nordeste da capital. É lá que se concentram as massas
imigratórias vindas das ex-colônias francesas na África e na Ásia ou ainda imigrantes mais
recentes, como europeus do Leste e chineses.
Nessa nova realidade, uma caminhada pelo antigos redutos existencialistas pode mostrar como as
posições políticas de Sartre e sua defesa intransigente da liberdade voltam a adquirir uma súbita
atualidade.
A duas quadras da sofisticada praça Sartre-Simone de Beauvoir, operários de origem africana,
falando em sua língua nativa, reparam a fachada de um edifício. No Quartier Latin, nas ruas atrás
do liceu onde estudou Sartre -o Henri 4º-, restaurantes árabes se acotovelam para atrair a atenção
dos turistas. Às 21h30 de uma segunda-feira 24 de abril, na estação Châtelet-Les Halles, um dos
entroncamentos do gigantesco metrô parisiense, um jovem negro é cercado por dois policiais,
depois seis, e interpelado aos gritos e de forma agressiva -até onde a reportagem pôde
acompanhar.
A imigração, juntamente com a defesa dos direitos de outras minorias, parecem recolocar na
ordem do dia em todas as sociedades do Ocidente a questão subjacente em toda a obra de Sartre: o
Outro. Talvez seja agora o momento de sua filosofia -expurgada dos erros, entre os vários acertos,
que o homem Sartre cometeu- provar sua atualidade.

A epidemia Sartre
O filósofo Bento Prado Jr., que entrevistou e conviveu com o pensador durante sua estada
em SP, em 1960, lembra das multidões que atraía em suas conferências e diz que há hoje um
retorno a seu pensamento

DO ENVIADO ESPECIAL A PARIS

Venha conhecer os problemas concretos com que se defrontam os países subdesenvolvidos." Após
esse convite do escritor Jorge Amado (1912-2001), Jean-Paul Sartre, que já vinha de uma viagem
a Cuba no início de 1960, decidiu-se por realizar uma visita ao Brasil.
À época já um fenômeno de mídia, Sartre empreenderia uma longa viagem pelo país, que se
estendeu de 15/8 a 1º/11 daquele mesmo ano. Recebeu tratamento de estrela em todas as cidades
por que passou, como Recife, Salvador, Fortaleza, Rio de Janeiro, Brasília, Araraquara (SP) e São
Paulo. Apenas na semana que passou na capital paulista, na primeira quinzena de setembro, foi
objeto de mais de 250 artigos na imprensa local.
Além de ter participado de vários debates, Sartre e Simone de Beauvoir concederam entrevista à
TV Excelsior, tendo como debatedores uma seleta de jovens promissores, como Bento Prado Jr.,
Fernando Henrique Cardoso, Ruy Coelho e o psicanalista Luís Meyer.
Na entrevista abaixo, Bento Prado Jr., que é professor de filosofia na Universidade Federal de São
Carlos, lembra que, antes de entrar no palco, o casal lhes comunicou as perguntas que gostariam
que fossem feitas -todas elas, segundo o filósofo, "eram orientadas na direção da defesa da Argélia
(em guerra com a França) e de Cuba".
Ao final de três horas de entrevista, Sartre ficou surpreso com o fato de que uma empresa
capitalista pudesse manter tanto tempo no ar um programa em defesa do socialismo, afirma.
Bento Prado Jr. também relata como era Sartre na intimidade e diagnostica um retorno à
fenomenologia e a Sartre nos dias atuais. Sua obra, conclui Bento Prado Jr., não é "coisa do
passado". (MFP)

Folha - Como o sr. conheceu Jean-Paul Sartre?


Bento Prado Jr. - Quando Sartre e Simone de Beauvoir estavam para chegar a São Paulo,
acompanhados por Jorge Amado, o hoje psicanalista Luís Meyer me procurou para ver se era
possível fazer uma entrevista com os dois escritores na televisão. Procurou-me porque sabia de
minha amizade com Manoel Carlos, que então estava trabalhando na TV Excelsior.

Simone era obrigada a


controlar um pouco Sartre,
do consumo de álcool ao
tempo gasto conosco

Após contato com Sartre e Simone, que concordaram com a idéia, nos encontramos pela primeira
vez na televisão na hora da entrevista. Além de mim, entre os entrevistadores estavam presentes
Ruy Coelho, Fernando Henrique Cardoso e o próprio Luís Meyer.
Depois desse primeiro contato passamos a nos ver praticamente todos os dias que durou a estadia
do casal em São Paulo. No mais das vezes, na casa do Fernando Henrique, onde quase sempre
estavam presentes os membros do seminário sobre o capital: Ruth Cardoso, José Arthur Giannotti,
Paul Singer, Roberto Schwarz e outros.

Folha - Como foi a convivência com ele e Simone de Beauvoir? Como era Sartre na
intimidade?
Prado Jr. - Sartre era sempre extremamente simpático e generoso. Chegou a oferecer todos os
textos da revista "Temps Modernes" [que ele dirigia], que poderíamos republicá-los livremente
numa revista que cogitávamos e que nunca se tornou realidade. Simone era obrigada a controlar
um pouco Sartre, desde o consumo de álcool até o tempo gasto conosco.
Lembro-me de Sartre pedindo um terceiro uísque e da intervenção em contrário de Simone. Sartre
dizia: "Só mais um!". Ela respondia: "Não". Mas ele chegava a um acordo, pedindo: "Só meia
dose?".
Do mesmo modo, ao fim da noite, ele nos perguntava a que horas nos encontraríamos no dia
seguinte e sugeria 9h. Simone dizia: "Dez horas". O mesmo esquema do uísque funcionava:
"Nove e meia?".

Ele dizia ser muito penoso


dividir sua intimidade com
esse outro insuportável: o
Sartre famoso

Em suas memórias, Simone lembra-se de nossos encontros numa frase rápida, quando fala de
"jovens universitários muito cultos". Jovens, pois tudo isso se passou em meados de 1960.

Folha - São Paulo, à época, foi tomada por uma "epidemia Sartre"?
Prado Jr. - De certa maneira, sim. Houve várias conferências, todas elas com um público enorme.
Lembro-me, para dar um exemplo, de que estava entre nós o filósofo Gilles-Gaston Granger,
dedicado à epistemologia e muito distante do universo intelectual de Sartre. Pois bem, até ele me
disse: "Acho que Sartre é o maior filósofo contemporâneo, pois as últimas coisas do Heidegger...".
Se não me falha a memória, o poeta Mário Chamie (que, no entanto, apreciava desde meados da
década de 50 "O Que É a Literatura?") passou, justamente por ocasião da presença de Sartre, do
estrito concretismo à sua "poesia práxis".

Folha - Como Sartre se comportou na entrevista à TV Excelsior?


Prado Jr. - Na verdade foi uma pseudo-entrevista. Antes de entrarmos no palco, Sartre e Simone
nos comunicaram as perguntas que gostariam de responder. Todas as perguntas eram orientadas na
direção da defesa da Argélia (em guerra com a França) e de Cuba.
Lembro que foi aqui no Brasil, por essa ocasião, que Sartre assinou o famoso Manifesto dos 121,
em defesa dos rebeldes argelinos, que tanto ruído provocou na França (de retorno à França, Sartre
não foi preso porque, segundo o general Charles de Gaulle [então presidente da França], "não se
prende Voltaire").
O divertido é que me coube a seguinte pergunta, endereçada a Simone: "Cuba é uma ditadura?".
Ela respondeu pela negativa e com tanta violência que fez um espectador na platéia perguntar a
meu amigo Jorge da Cunha Lima [presidente da Fundação Padre Anchieta]: "Quem é esse
rapazinho reacionário?". Meu amigo teve de explicar-lhe o contexto, livrando-me da desagradável
qualificação.
A entrevista teve três horas de duração, para espanto de Sartre, que perguntava como era possível
que uma empresa capitalista perdesse tanto dinheiro (suspendendo seus programas durante esse
horário) para dar lugar a uma pura propaganda do socialismo.

Folha - O sr. o chamaria de um filósofo midiático avant la lettre?


Prado Jr. - Sartre filósofo midiático? Sim e não. Não, porque antes de se empenhar no seu
"engajamento" político, sua obra extraordinária (filosofia e literatura) atingia apenas o público
diretamente interessado, mais ou menos 5.000 pessoas na França, segundo Sartre.
Logo no imediato pós-guerra, tudo mudou. Sartre começou a escrever para jornais (Heidegger,
com inveja de tanto sucesso, chamou-o de mero jornalista, depois de tê-lo qualificado de
extraordinário) e mesmo a agir por meio de um programa radiofônico.
Mas Sartre viveu essa metamorfose como uma catástrofe. Dizia ser muito penoso conviver e
dividir sua intimidade com esse outro insuportável -o Sartre famoso. De resto, sua entrevista na
televisão em São Paulo foi a primeira que aceitou fazer. Até então, sempre recusava convites dessa
natureza. Mais que midiático, Sartre era um filósofo essencialmente ativo politicamente. O
filósofo midiático posterior é aquele que se identifica narcisicamente com esse outro produzido
socialmente, "como uma mercadoria".

Folha - O que ficou de seu pensamento e de suas obras ficcionais?


Prado Jr. - Ficou o exemplo de um grande filósofo, tão raro em nossos dias, em que predomina a
filosofia escolar. Hoje, até mesmo no campo extremamente técnico das ciências cognitivas, há
uma espécie de retorno generalizado à fenomenologia em geral e até mesmo aos escritos de Sartre.
Seguramente sua obra não é "coisa do passado", como recentemente disse uma amiga minha.
Sua obra literária é desigual. Para mim, "Os Caminhos da Liberdade" parecem pouco
interessantes. Muito mais significativo é "A Náusea" e, sobretudo, os contos reunidos em "O
Muro", que são perfeitamente extraordinários. Além, é claro, de sua grande obra teatral.

O filósofo midiático
Principal estudioso da obra de Sartre, Michel Contat fala de sua defesa do uso de rádio,
jornal e TV pelos intelectuais, lembra seu amor "erótico" pelo cinema e diz que sua obra é
ainda a melhor crítica já feita ao capitalismo

DO ENVIADO ESPECIAL A PARIS

Expoente da crítica genética, que busca abrir novas linhas de análise e interpretação a partir do
estudo de manuscritos originais, Michel Contat é hoje o principal estudioso da obra de Jean-Paul
Sartre. Dirige em Paris, no Centro Nacional de Pesquisa Científica, a equipe que pesquisa os
documentos originais de Sartre.
Profundo conhecedor de sua vida, obra e seu pensamento, Contat lembra, na entrevista a seguir,
que Sartre foi um ardoroso defensor da apropriação das "mass media" pelos intelectuais e teria se
servido muito mais da TV se ela não fosse propriedade do Estado, o qual criticava.
Contat, que foi o responsável, com Michel Rybalka, pela publicação das "Oeuvres Romanesques"
(Obras Romanescas, Gallimard, 1982), lembra também que Sartre era apaixonado pelo cinema,
ainda mais do que pelo teatro -no fim da vida, "mesmo quase cego, ele ainda "via" filmes na TV".
(MFP)

Folha- Sartre é a figura pública mais importante do século 20 na França?


Michel Contat - Por volta de 1960, havia três franceses conhecidos em todo o mundo: Charles de
Gaulle, Jean-Paul Sartre e... Brigitte Bardot. A celebridade de Sartre como intelectual data do pós-
guerra e ele próprio a explicou como sendo uma compensação que a França encontrou para o fato
de ter se tornado uma potência secundária: sua cultura torna-se um produto de exportação de
grande valor simbólico e seus escritores, em conseqüência, tornaram-se "bens nacionais".
Foi, de fato, um bem nacional, mas que nunca deixou de contestar tanto a França, em suas ilusões
de grandeza, quanto a cultura francesa, na medida em que se tornara uma cultura burguesa, isto é,
particular, ao invés de universal. Sartre quis ser um "universal singular".

Folha - Qual a sua importância para o jornalismo moderno, considerando sua atividade na
criação da "Temps Modernes" e do "Libération"?
Contat - Desde o manifesto da "Temps Modernes", em 1945, e, em seguida, em "O Que É
Literatura?", de 1947, Sartre afirma que os escritores devem apropriar-se da "mass media". Para
ele, a reportagem é um gênero literário inteiramente à parte e, certamente, não de menor valor.
Nesse aspecto, ele seguia escritores com Ernest Hemingway e John dos Passos, além de Arthur
Koestler, a quem admirava, e George Orwell. Publicou em 1944 uma reportagem sobre a
libertação de Paris, depois foi aos EUA como jornalista do "Combat", jornal de Camus, e do
"Figaro".
Praticou uma espécie de jornalismo literário mas também econômico. Seu "Furacão sobre Cuba",
a reportagem sobre a Revolução Cubana, saiu no "France Soir", que, à época, tinha uma tiragem
de mais de 1,5 milhão de exemplares, e depois em livro na América Latina e nos EUA.
Em 1947, ele apresentou um programa de rádio, "La Tribune des Temps Modernes", por meio do
qual tentava prolongar o trabalho de reflexão de sua revista. Em condições normais, ele deveria ter
ido trabalhar para a TV, mas o monopólio do Estado sobre esse meio de comunicação de massa o
levou a exercer uma espécie de boicote à televisão.

Folha - Qual é a relação de Sartre com o cinema?


Contat - Penso que, se as condições de produção cinematográfica nos anos 40 tivessem permitido,
Sartre teria feito mais cinema que teatro. Ele tinha pelo cinema um amor mais intenso, mais
"erótico", que pelo teatro. Mas foi preciso aguardar até meados dos anos 50 para que o cinema se
abrisse a jornalistas e literatos.
Antes disso, ele estava exclusivamente nas mãos dos produtores e dos diretores. Mas Sartre foi
roteirista para a Pathé, e alguns de seus roteiros foram filmados. Enfim, por volta de 1960, ele
escreveu para John Houston um roteiro admirável sobre Freud. Sartre amou o cinema desde sua
infância e nunca deixou de amá-lo. Mesmo quase cego, ele ainda "via" filmes na TV.

Folha - E qual foi sua importância para o teatro moderno?


Contat - Ele dominou o teatro parisiense do pós-guerra até o surgimento do "teatro do absurdo"
(de que ele é em parte o pai, com "Entre Quatro Paredes") e de Brecht, que exerce uma influência
poderosa sobre os criadores do teatro moderno.
É, portanto, um dramaturgo que tem um papel de passagem entre o teatro marcado por Ibsen,
Strindberg, Pirandello e o teatro de Beckett, depois o de Brecht. Ele via neste último uma espécie
de clássico, mas não aceitava sua teoria do teatro épico e concebeu contra ela a idéia do teatro
dramático, um teatro em que haja tanto a identificação quanto o distanciamento em relação ao
herói.
Não se pode dizer que sua concepção tenha exercido influência. Seu teatro foi rejeitado por Roger
Planchon e Patrice Chéreau, que regeneraram o teatro francês moderno. Uma das razões foi Sartre
ter dado pouca importância à mise-en-scène.

Folha - Pode-se dizer que o debate sobre os direitos das minorias na França de hoje e o
questionamento do republicanismo que representa são problemas já previsto por Sartre,
considerando-se seu papel na defesa de argelinos, árabes e judeus?
Contat - Seu pensamento é fundado na revolta (só se vive a liberdade por meio da revolta).
Portanto, ela devia necessariamente ir ao encontro das revoltas das minorias. Sartre apresentou
sistematicamente ao mundo e à sociedade o ponto de vista dos mais desfavorecidos. E, sobre o
conflito entre árabes e judeus, é a favor e contra todos, sob o risco de ser rejeitado por ambos -o
que, politicamente, causa problemas.

Folha - O que ficou de seu pensamento e de sua literatura?


Contat - Em literatura, acho que "A Náusea" é uma das obras maiores do século 20 e "Os
Caminhos da Liberdade" são um grande romance desconhecido, superiormente virtuosístico por
sua técnica. E os ensaios sobre Baudelaire, Mallarmé e Jean Genet são obras-primas da
inteligência.
Em relação à filosofia de Sartre, a universidade continua a bloqueá-lo, considerando-o menos
importante que Husserl, Heidegger e mesmo Merleau-Ponty. É verdade que se trata de filósofos
acadêmicos, enquanto Sartre nunca o fora, ainda que tenha tido uma formação muito clássica. Mas
o fato de ele ter introduzido a vida cotidiana -e mesmo os cafés parisienses- na filosofia continua a
chocar os professores, ainda que seduza os estudantes.
A filosofia de Sartre, que foi muito popular e chegou a estar na moda, sem dúvida será
redescoberta em toda sua extensão metafísica e social.
A "Crítica da Razão Dialética" pode parecer um pouco bizantina hoje, quando o contexto da
discussão com o marxismo, assim como o próprio marxismo, desapareceu. Mas continua sendo a
melhor crítica ao capitalismo e fatalmente ressurgirá. A filosofia de Sartre dá seu substrato de
liberdade ao materialismo histórico, o qual ainda não deu seu último suspiro. "Não é minha culpa
se a realidade é marxista", dizia Sartre.

Relação com Simone de Beauvoir rompeu barreiras


MARIA RITA KEHL
ESPECIAL PARA FOLHA

Eles formaram o casal símbolo das esperanças libertárias dos tempos modernos. O amor e a
paixão da amizade, que os uniram por mais de 50 anos, até a morte de Sartre, consolidaram-se em
torno de um objeto comum: a verdade. Mas como é impossível viver na verdade, o encontro entre
Sartre e Simone inaugurou-se com uma mentira. Em 1929, quando se licenciou em filosofia na
Sorbonne, Beauvoir estava envolvida em uma relação platônica com André Herbaud, amigo de
Sartre.

O que mais sabia


Quando Jean-Paul propôs-lhe um encontro, Simone inventou uma desculpa e pediu a sua irmã que
a substituísse. Esta, ao voltar do passeio, disse que Sartre engoliu a mentira "cortesmente".
Poucas semanas depois, Castor [forma como Simone era chamada por Sartre] entraria com
Herbaud e Nizan no quarto de Sartre para estudar Leibniz. Já no primeiro encontro percebeu que
Sartre era o que mais sabia no grupo. Ganhava todas as discussões, mas mostrava uma genuína
alegria em compartilhar seu saber. "Era um maravilhoso treinador intelectual", escreveu Simone
em seu diário. Sartre estava com 23 anos, Simone, com 21. Depois desse primeiro contato, seguiu-
se um período de alegre camaradagem entre Simone e os três rapazes, que a consideravam como
uma igual: a moça de família burguesa e formação católica não se chocava com a liberdade da
conversa masculina.
Em pouco tempo, a amizade de Sartre prevaleceu sobre a dos outros dois: "Todo tempo que não
passava com ele era tempo perdido".
Para Beauvoir, Sartre foi o companheiro que não exigiu que ela renunciasse a si mesma. Para ele,
Castor foi a cúmplice em um projeto que raras mulheres de sua geração aceitariam: uma parceria
amorosa radicalmente antiburguesa, que excluía casamento, filhos, formação de patrimônio.
Uma união em que o pensamento e a escrita sempre estiveram em primeiro lugar, seguidos do
companheirismo, do prazer da conversa, da paixão pela política. "Bruscamente, não me achava
mais só", escreveu Simone, surpresa por ter encontrado um homem que a dominava
intelectualmente, mas que a estimulava para que se tornasse sua igual. "Com ele, poderia sempre
tudo partilhar."
Não foi um arroubo de juventude. Sartre e Simone bancaram, durante 51 anos, a ousada proposta
do que Benjamin Péret chamou de "amor sublime", entre homem e mulher capazes de fazer, do
encontro amoroso, condição de sublimação. Sartre não tinha interesse em dominar Simone. Sua
liberdade o interessava, assim como seu talento e sua produção escrita. Foram sempre os
primeiros leitores dos livros que um e outro escreviam.
Nunca moraram na mesma casa. Mesmo durante a doença de Sartre, os hábitos do agradável
cotidiano compartilhado respeitavam os limites da autonomia de cada um. Passavam, juntos, uma
parte das férias; depois, cada um viajava para o seu lado. "Mas a separação de Sartre sempre era
um pequeno choque para mim", escreveu Beauvoir.
A longa lista de casos amorosos de Sartre, todos do conhecimento de Simone, tinha relação com o
prazer que ele sentia em ocupar, diante de outras mulheres, a posição masculina tradicional, de
domínio e poder.

Certa deserotização
É possível que o racionalismo que marcou a parceria entre Sartre e Simone, condição para que o
casal sobrevivesse à arriscada proposta da liberdade sexual de ambos, tenha lhes custado o preço
de uma certa deserotização. Na longa entrevista que Sartre concedeu à sua companheira em 1974,
o interesse dele por outras mulheres foi discutido abertamente; àquela altura, o triunfo de Beauvoir
sobre todas as outras estava consolidado. Com outras mulheres, Sartre experimentava o mundo
singular de cada uma. Porém "o mundo, eu o vivia com você". Parecia um amor esfriado; talvez
não fosse. "Amo muito você, minha querida Castor", teria lhe dito Sartre no hospital, dois dias
antes de morrer.
A morte de Sartre deixou Simone em estado de choque. Tentou deitar-se junto do corpo dele no
leito do hospital, debaixo dos lençóis. Ficou seriamente doente e esgotada nas semanas que se
seguiram. Foi uma despedida dolorosa. "Sua morte nos separa. Minha morte não nos reunirá.
Assim é: já é belo que nossas vidas tenham podido harmonizar-se por tanto tempo."

Maria Rita Kehl é psicanalista, ensaísta e poeta, autora de "Ressentimento" (ed. Casa do Psicólogo), entre outros
livros

Obras no Brasil

A Náusea (1938) - Tradução de Rita Braga, ed. Nova Fronteira (tel. 0/xx/ 21/2131-1111), está
sendo relançado neste mês.
O Muro (1939) - Tradução de H. Alcântara Silveira, ed. Nova Fronteira, está sendo relançado
neste mês.
O Ser e o Nada (1943) - Tradução de Paulo Roberto Perdigão, ed. Vozes (tel. 0/ xx/ 11/ 3105-
7144), 784 págs., R$ 82,50, está sendo relançado neste mês.
As Moscas (1943) - Tradução de Caio Liudvik, ed. Nova Fronteira, edição inédita prevista para
agosto.
Entre Quatro Paredes (1944) - Tradução de Pedro Hussak e Alcione Araújo, ed. Civilização
Brasileira (tel.0/xx/ 11/ 2585-2000), 128 págs., R$ 20,90.
A Idade da Razão (1945) -Tradução de Sérgio Milliet, ed. Nova Fronteira, 400 págs., R$ 44.
Sursis - Tradução de Sérgio Milliet, ed. Nova Fronteira, 448 págs, R$ 49
A Prostituta Respeitosa (1946) - Tradução de Maria Lucia Pereira, ed. Papirus (tel. 0/ xx/19/
3272-4500), 160 págs., R$ 26.
A Questão Judaica (1946) - Tradução de Mario Vilela, ed. Ática (tel. 0/xx/11/ 3346-3000), 96
págs., R$ 14,50.
Os Dados Estão Lançados (1947) - Tradução de Lucy Risso Moreira César, ed. Papirus, 200
págs., R$ 26,50
Com a Morte na Alma (1949) - Tradução de Sérgio Milliet, ed. Nova Fronteira, 384 págs., R$
44.
Saint Genet - Ator e Mártir (1952) -Tradução de Lucy Magalhães, ed. Vozes , 584 págs., R$ 69.
Crítica da Razão Dialética (1960) - Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira, ed. DP&A
(tel. 0/xx/ 21/2232-1768), 900 págs., R$ 69.
As Palavras (1963) - Tradução de J. Guinsburg, ed. Nova Fronteira, reedição prevista para agosto.

Diário de uma Guerra Estranha (1983) - Tradução de Aulyde Soares Rodrigues e Guilherme
João de Freitas Teixeira, ed. Nova Fronteira, reedição prevista para agosto com a inclusão de um
caderno inédito que foi localizado e publicado na nova edição francesa.
Freud, Além da Alma (1984) - Tradução de Jorge Laclette, ed. Nova Fronteira, reedição prevista
para agosto.
Em Defesa dos Intelectuais - Tradução de Sergio Goes de Paula, ed. Ática, 72 págs., R$ 13,50
Que É a Literatura - Tradução de Carlos Felipe Moisés, ed. Ática, 231 págs., R$ 41
Sartre no Brasil - A Conferência de Araraquara - Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes, ed.
Paz e Terra/ Unesp, esgotado
A Esperança Agora - Entrevista a Benny Lévy, tradução de Maria Luiza X. de A. Borges, ed.
Nova Fronteira, 96 págs., R$ 14
Verdade e Existência - tradução de Marcos Bagno, ed. Nova Fronteira, 128 págs., R$ 18

"RECUSAR OS SINAIS DISTINTIVOS É UMA TAREFA"


O pensador francês explica por que recusou o Prêmio Nobel de Literatura, em 1964, e
defende que a tarefa da linguagem é fixar a vida

DA REDAÇÃO

Leia trecho de entrevista que Jean-Paul Sartre concedeu à Rádio Canadá e em que fala sobre a
razão de ter recusado o Prêmio Nobel de Literatura, em 1964, e explica também por que a escrita
está ligada à própria condição humana.

Pergunta - No final de "As Palavras", o sr. faz uma pergunta a si mesmo, que é: "O que
resta?". E o sr. responde: "Um homem, feito de todos os homens, que os vale a todos e que vale
qualquer um". Logo depois do aparecimento de "As Palavras", lhe outorgaram o Prêmio
Nobel de Literatura. O sr. o recusou, e isso levou alguém que o sr. aprecia a afirmar sobre isso:
"Definitivamente, Sartre é mais qualquer um do que qualquer um".
Jean-Paul Sartre - Bem, quando digo "um homem feito de todos os homens", vale para mim
como para todos e significa, conseqüentemente, uma tal comunidade, em profundidade, entre as
pessoas, que, verdadeiramente, o que as separa é o que as diferencia; dito de outro modo, acho que
é melhor tentar realizar em si, de forma radical, a condição humana, na medida do possível, do
que apegar-se a enormes diferenças específicas que chamamos, por exemplo, de talento [...].
Uma certa ligação extrema com a morte, o amor, a família, a necessidade, em um mesmo
momento de perigo, faz com que, nesse momento, se atinja a verdadeira realidade humana -ou
seja, o conjunto de ligações vividas em todos os termos-limite de nossa condição. É por isso que
respeito as pessoas que vivem assim; por exemplo, os camponeses cubanos antes da revolução: na
miséria, no sofrimento.
No entanto penso que nessas condições ser "qualquer um" não é simplesmente uma realidade -é
também uma tarefa. Quer dizer, recusar todos os sinais distintivos para poder falar em nome de
todos, e só se pode falar em nome de todos se se é "todos"-, e não procurar, como muitos de meus
pobres colegas, os super-homens; mas, ao contrário, ser o mais "homem" possível; quer dizer, o
mais parecido com os outros; logo, trata-se de uma tarefa.
Dito de outra maneira, estou totalmente de acordo com um dos ideais de Marx, que afirma que,
quando uma desordem na sociedade tiver suprimido a divisão de trabalho, não haverá mais
escritores ligados às suas pequenas particularidades de escritores e, de resto, mineiros ou
engenheiros, mas existirão homens que escreverão e que, aliás, farão outra coisa, e escreverão
nesse momento porque a atividade de escrever é uma atividade absolutamente ligada à condição
humana: é o uso da linguagem para fixar a vida. É, portanto, uma coisa essencial.
Mas ela não deve, precisamente por isso, ser entregue a especialistas -atualmente ela é entregue a
especialistas em razão da divisão de trabalho-, mas, na realidade, seria necessário conceber
homens que fossem polivalentes. Não sei se é realizável. É um outro problema.

Pergunta - E o Prêmio Nobel de Literatura? Seria uma distinção?


Sartre - O Prêmio Nobel de Literatura teria sido precisamente uma pequena distinção, um
pequeno poder, uma separação. Só tenho ligação com meu público.

Pergunta - Mas o sr. teria aceito o Prêmio Nobel da Paz?


Sartre - Não. Não mais do que o Prêmio Nobel de Literatura. Eu teria aceito, com orgulho, o
Prêmio Nobel na ocasião do Manifesto dos 121 [em defesa dos rebeldes argelinos], porque a essa
altura não o teria considerado como um reconhecimento, mas como prova de solidariedade por
uma ação radical contra a guerra em países estrangeiros. Nessa época, sim, mas não teria
considerado que me pertenceria.

Pergunta - Como um ato político?


Sartre - Como um ato político.

Pergunta - Mas o Nobel de Literatura ou da Paz?


Sartre - Pouco importa a essa altura. Seria bom de qualquer modo.

Pergunta - A contradição teria sido resolvida.


Sartre - De maneira absoluta. Mas precisamente por isso, a contradição não é possível de ser
resolvida.

Esta entrevista faz parte de CD-ROM que acompanha o livro "Sartre" (Bibliothèque Nationale de France/Gallimard).
Transcrição e tradução de
HOMENS-TEATRO, SE QUISEREM
Ator deve praticar uma "ginástica intelectual" para recuperar os sentidos histórico e social
de uma peça

por Jean-Paul Sartre

Talvez se surpreendam que tenhamos pensado em fundar uma escola, quando já existem tantas.
Mas nos pareceu que o ensino dramático, tal como é concebido hoje, não responde mais
inteiramente a seu objetivo. O valor individual dos professores -eles próprios excelentes atores-
não está em causa. O que parece ter-se perdido de vista é a natureza própria do ator e suas
funções.
Uma escola dramática -todos concordarão- deve ser uma escola de interpretação. Naturalmente, e
antes de tudo, são cursos de interpretação que estamos preocupados em criar. Mas não os
consideramos como o único ensinamento a dar aos atores. Eles nos parecem ser antes o
coroamento de toda uma vida de disciplina. É que a interpretação teatral é de uma espécie muito
particular: o ator é ao mesmo tempo o intérprete e o instrumento. Um violinista deve servir-se de
um instrumento cujos recursos estão exatamente determinados. Ele conhece esses recursos, e o
autor cujas obras executa os conhecia também. O instrumento do ator é ele mesmo: seu próprio
corpo, sua fisionomia, sua voz, seus movimentos.
Ora, ninguém até aqui se preocupou em estabelecer um registro dos recursos dramáticos do corpo
humano. Eles permanecem indefinidos, e com freqüência o jovem ator os ignora em sua maior
parte. Mais ainda: os próprios autores permanecem aquém do que poderiam exigir de seus
intérpretes, como um compositor que escrevesse uma melodia para duas cordas de violino. Alguns
mesmo -e dos mais célebres- crêem que o teatro é uma arte puramente vocal e não vêem que o
ator -o ator como uma totalidade psicofisiológica- é a substância mesma da peça, a matéria de que
ela é feita; eles não compreendem que uma arte dramática que exigisse mais dos atores seria
profundamente renovada por esse fato mesmo.
Nossa escola gostaria de tentar restituir a essa matéria humana toda a sua plasticidade, isto é,
colocar o ator de posse de todos os seus recursos espirituais e corporais.
Essa tarefa nos parece particularmente urgente hoje. Com efeito, basta um exame superficial para
ver que uma certa vivacidade clownesca e quase louca se perdeu. O ator -o das pantomimas, da
"commedia dell'arte"- era no passado um saltimbanco, um malabarista. Talvez a interpretação
propriamente dita sofresse com isso, mas o desempenho dos intérpretes ganhava uma graça, uma
leveza cujo segredo não mais conhecemos. Vejam os bufões de Shakespeare: deveriam ser alados
e os calçamos com solas de chumbo.
Um curso de arte dramática deveria restituir ao corpo sua flexibilidade por um treinamento
apropriado. Uma ginástica cotidiana, a prática de certos esportes, a mímica, os diversos meios que
visam a dar ao homem o domínio de seu corpo, devem concorrer a esse objetivo. É inconcebível,
por exemplo, que um ator aprendiz creia desde o início "saber respirar". Ele respira, é verdade,
como Monsieur Jourdain escrevia prosa. Mas Monsieur Jourdain não podia se tornar um grande
prosador, pois ignorava a arte da prosa.
Assim também o jovem aprendiz ignora tudo da "arte respiratória". Não sabe que esse é o alfabeto
do ator, que uma boa respiração é como o pilar que sustentará sua voz, seus gestos e mesmo sua
postura. É o que tentaremos ensinar-lhe.
Além disso é preciso reconhecer que se torna cada vez mais difícil ser ator. De fato, é costume
dizer que se deve abandonar a pretensão de ser um cientista universal, porque a quantidade
absoluta dos conhecimentos científicos a adquirir aumenta a cada dia. Mas já se refletiu que no
teatro deparamos com dificuldades quase tão grandes porque a quantidade absoluta dos papéis a
aprender aumentou nas mesmas proporções?
Antigamente, algumas farsas, uma ou duas grandes peças constituíam uma bagagem suficiente.
Hoje, porém, o ator se vê diante de uma produção dramática distribuída por vários séculos e ele
deve adaptar-se, de um dia para o outro, a exigências profundamente diferentes. Desempenhará ele
um ciumento de Molière no mesmo estilo que "Os Espectros", de Ibsen? "O Anúncio Feito a
Maria", de Claudel, como "A Galeria do Palácio", de Corneille?
Na maior parte do tempo, o ator elude a questão: permanece ele mesmo na imensa diversidade dos
papéis que desempenha, nunca representa senão ele. É que lhe falta cultura. Certamente ele pôde
ler todas as peças do repertório. Mas acaso suspeita de que as peças emanavam de um certo meio,
que respondiam a certas questões colocadas pela época, que correspondiam a uma certa concepção
do teatro, que foram representadas, escutadas e compreendidas numa atmosfera social bem
definida?

Sentido histórico da obra


É somente quando o ator tiver compreendido o sentido histórico de uma obra teatral, é somente
então que ele poderá realmente representar "um Marivaux" ou "um Shakespeare". Convém,
portanto, flexibilizar seu espírito -assim como queremos tentar flexibilizar seu corpo- por uma
ginástica intelectual.
Essa ginástica é a cultura -uma cultura ao mesmo tempo geral e estritamente apropriada às
necessidades do teatro-, não há atores sem cultura; somente a cultura pode lhes permitir sair de si
mesmos, somente ela lhes dará a compreensão do texto e colocará à sua disposição os registros
dramáticos os mais variados. Assim nossa escola reservará a maior parte do tempo ao ensino
cultural. Parece, enfim, que o teatro deve, nos anos vindouros, estreitar seus vínculos com a
comunidade. No último século o público vinha simplesmente divertir-se no teatro, e as
representações reuniam espectadores de origens muito diversas, que não tinham nem as mesmas
paixões nem os mesmos interesses.
Com isso, os atores eram levados a dividir sua vida em duas partes bem distintas: no palco,
algumas horas por dia, exerciam uma profissão; na cidade, o resto do tempo, eram homens como
os outros; de sua arte, conservavam apenas, na maioria das vezes, uma deformação profissional
bastante irritante. Se o teatro quiser retomar a função social que teve nas grandes épocas da arte
dramática, ele terá que exigir dos espectadores, do autor e dos atores mais compreensão recíproca
e mais disciplina. De nossa parte, gostaríamos de contribuir a essa metamorfose formando, mais
do que atores, homens, homens para quem o teatro seria ao mesmo tempo uma concepção do
mundo e o ponto de vista pessoal que eles teriam sobre tudo: homens-teatro, se quiserem.
Talvez considerem nossa ambição muito pretensiosa. Não é preciso tanto esforço, dirão, para
formar um ator. O essencial é que ele tenha um temperamento, uma "natureza". O resto virá
espontaneamente, a arte não se preocupa com pedagogia. Mas, em primeiro lugar, se é verdade
que o ator de gênio não tem necessidade de ninguém, é preciso convir que o teatro não é feito
apenas pelos atores de gênio. Há também os outros, todos os outros, os honestos artesãos do
teatro, inteligentes e conscienciosos. Uma escola como a nossa se preocupará primeiramente com
esses: trata-se de elevar seu nível, de revelar-lhes todas as suas possibilidades, de levá-los ao
melhor de si mesmos. Conseguir elevar, ainda que só um pouco, o nível médio dos atores seria um
tempo perdido?
Quanto aos outros, aos artistas de exceção, certamente não pretendemos ensinar-lhes seu gênio.
Mas, se as vicissitudes de nascimento e as dificuldades materiais os privaram, na origem, de
cultura e de alguns meios físicos, eles buscarão por muito tempo, talvez a vida inteira, adquirir por
si próprios essa cultura e esses meios. Não acreditaremos ter agido mal se nossa escola lhes tornou
essa aquisição mais fácil.

Este texto, extraído dos arquivos de Charles Dullin, é um provável projeto para uma nova orientação da escola de arte
dramática de Dullin, em que deu cursos durante a 2ª Guerra, e foi publicado em "Sartre" (Bibiliothèque Nationale de
France/Gallimard).
Tradução de Paulo Neves.

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