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Deixai toda esperança, ó vós que entrais.

1.

Desde que o professor Ricardo Machado, da UFFS, tomou contato com as


minhas ideias (ainda incipientes, como sempre hão de ser) sobre a colonagem ítalo-
germânica do Sul do Brasil; e desde que os instintos do Ricardo apitaram e ele teve o
palpite certeiro de que seria produtivo me botar em contato com um poeta de Blumenau;
desde esse dia, Marcelo Labes e eu estamos mantendo conversas quase diárias, apesar
da distância. É que nós temos este interesse em comum: pensar e falar sobre o espanto
que é tentar entender o Brasil e o Sul do Brasil a partir desta localização bastante
específica: as cidades de imigração italiana e alemã em Santa Catarina.
Eu estava engajado no assunto a ponto de ter recém publicado dois livros: um
romance e um ensaio sobre a questão da cultura do colono urbano no Oeste de SC. É
um terreno ainda bem pouco explorado, carente de formulações artísticas e, algumas
vezes, a sensação de solidão me atormentava, quase oprimia.
Então, recebi por email uma cópia de um novo projeto do Labes, intitulado
Enclave.
Depois, ele me deu a incumbência de escrever um posfácio.

2.

Tarefa que desempenho com extrema alegria: seria muito bom poder viver de
escrever posfácios para poetas talentosos como ele. Mas, como isso é raro (escrever
posfácios E encontrar poetas talentosos), quero abusar e me deleitar escrevendo este
aqui. Aliás, coisa bastante colona: nunca se deixa comida no prato.
Não, nada de desperdício. Vou lamber até a última gota de molho. Vou revirar
este livro do avesso e vou mostrar como foi farta a minha refeição. Vou servir-lhes o
Enclave numa mesa de café colonial.

3.

Mas essa refeição começou muito antes. Pois, em Enclave, desaguam córregos e
ribeirões que nasceram nos primeiros trabalhos do autor. Foram ganhando força,
inquietação e volume para, juntos, formarem o rio caudaloso de poesia que é este livro.
Quais são esses córregos, esses ribeirões?
Só sei que a questão identitária e os aspectos regionais já apareciam ali no
Trapaça (2016), embora sem propriamente serem um tema central ou uma “questão
norteadora”. Se o leitor estiver com Trapaça em mãos, poderá verificar indícios de
preocupação com a questão da brasilidade em Pindorama, com a sulinidade em Frio
sem estética e em Vento sul, e com a cidade de Blumenau em Bolso como luvas. Além
disso, Trapaça faz algumas menções a certa ilha, não nomeada, de aspecto inacessível,
e que fica mais longe quanto mais a pessoa se aproxima.
O que é essa ilha? Não entrarei nesse mérito porque este é o posfácio de
Enclave, e não de Trapaça. Mas tem muita coisa pra quem quiser se ocupar disso aí.
“Ilha” (ou “ilhas”) é palavra-chave para qualquer um que se aventurar a pensar sobre
Santa Catarina.

4.

De qualquer maneira, o Labes optou por pensar o seu feudo cultural específico
(sua ilha) sob a semântica de uma palavra também bastante específica. Usando o
conceito de “enclave”, o poeta nos dá uma visão de Blumenau como uma cidade
invasora, remetendo a algo que se define pela deformidade causada por um corpo
estranho no interior de um organismo (o entorno) que se pretende homogêneo. O
Enclave, enfim, é um problema: não deveria estar ali. Tampouco queria.
É por isso que o primeiro poema do livro (e há ainda, no entanto, a possibilidade
de pensar o Enclave como um grande poema composto por 37 fragmentos) já o localiza
geograficamente em relação a outra geografia distante. O curso do Itajaí-açú, ver-se-á, é
a tela de fundo para a projeção dos rios Weser, Sem e Elba, deslizando o bisturi de suas
águas pela carne fresca (do ponto de vista do colonizador europeu) deste Brasil
meridional. A localização dupla, aliás, indecisa ou descompassada, é o que interessa ao
poeta nos primeiros momentos do livro, enquanto está ainda rondando, cercando seu
“objeto”. Mas não demora em partir para cima, desferindo golpes constantes e cada vez
mais contundentes, beirando o risco de machucar as mãos: quando se agride a própria
cidade, a cultura que bem ou mal se partilha, é inevitável que os golpes reverberem
dentro de si.
Os avanços são conduzidos por uma série de temas que norteiam o andamento
do livro. Enclave é composto num movimento progressivo, em acumulação, de maneira
a manter sempre presente a consciência de cada temática, inclusive quando não
enunciadas. Essa acumulação é um acorde de fundo sobre o qual cada poema
desenvolve sua melodia específica.
Permitindo-me a dispersão, falarei sobre alguns desses temas ao longo de meus
próximos tópicos frouxos.

5.

A “dupla cidadania” do Enclave é, como veremos, na percepção do poeta,


experimentada como algo forjado. Melhor: ela nega ser dupla, pretende sempre a
associação com a origem estrangeira, em detrimento do entorno local e presente. Suas
ligações com o “país natal” dependem de constantes falsificações convocadas
incessantemente para legitimar a diferença que, no interior do Brasil, marca sua
identidade. Mas atenção! A crítica à “falsificação cultural”, neste livro, não se sustenta
no gesto pueril de simplesmente negar particularidades e diferenças. Mais que isso,
aparece na opção por revelar a forma através da qual essas particularidades são
professadas, enunciadas, defendidas. Não se trata de fazer pouco caso da especificidade
da formação sociocultural das cidades colonas em território brasileiro, mas demonstrar o
tipo e a forma superficial do esforço que as instituições culturais dominantes, a nível
local, investem para fazer com que o Enclave realmente pareça um enclave.
Os poemas insistem no desmascaramento do exercício de uma cultura cuja
“invenção” é sempre visível, facilmente verificável por seu caráter folclorizante. Óbvio
que, em alguma medida, as culturas todas são inventadas, construídas na inevitabilidade
das estruturas sociais e históricas. Mas, se esses processos costumam ser “impessoais”,
diluindo-se na vida e operando nos subterrâneos, no caso do Enclave tudo sobe à
superfície. Há uma articulação desavergonhada, feita à luz do dia; a “invenção” precisa
ser constantemente reafirmada, em cada gesto folclórico que insiste em fazer parecer
que a sensibilidade daquela coletividade, encerrada no Enclave, seja algo anacrônico,
sem verificação material.
Nessa constante manutenção descarada do falso, uma das causas-consequências
(difícil determinar) é a negação de pertença à nacionalidade jurídica, atribuindo ao
nacional caráter estrangeiro. Pois, na verdade, o “isolamento” depende do gesto de
congelamento da ideia de si num passado que, conforme afirma o poeta, nunca existiu,
mas que se pretende manter intacto. As imagens para falar dessa falsificação vão
surgindo: água oxigenada, vitrine, industrialização do folclore (com uma divisão de
trabalho própria) etc. Elas vão, aos poucos, desvelando a natureza dessa sensação de
falso que o folclore oficial desencadeia, numa distância inconciliável entre
“infraestrutura” e “superestrutura”, mais ou menos como as “ideias fora do lugar”, de
Roberto Schwarz. Dedicando-se a entender e poetar o Enclave, Labes revela o ridículo
da reivindicação de pertença ao estrangeiro quando, na verdade, a herança não se
verifica materialmente ou no funcionamento das instituições. Ocorre que, no Enclave,
repetem-se as mesmas estruturas do entorno, mas com manifestações de superfície que
querem ser adorno, ou maquiagem.
É isto: no Enclave, tudo precisa ser fabricado, para que não se assemelhe ao
Brasil: o céu, as flores e a arquitetura de um lugar que se pretende cenográfico, e por
isso mesmo nunca pode ser completamente sincero sobre si mesmo.
Até que um poeta apareça e estilhace cada um dos vidros dessa vitrine.

6.

Pausa: acho impossível não falar das epígrafes. A escolha das epígrafes, neste
pequeno livro, é um gesto poético em si. Sua delicadeza faz com que, em alguns
momentos, elas próprias sejam a culminância. Quero dizer: chega a parecer que são os
poemas que as epigrafeiam – são eles que preparam seu aparecimento, não o contrário.
Esse gesto, revelando a sofisticadíssima qualidade de leitor por trás do escritor, é
essencial para a estrutura do Enclave, onde o poeta quer estar relativamente consciente
de sua posição em uma condição cultural específica – que pretende delimitar para que
possa, autoconscientemente, acompanhar ou enfrentar quando for necessário.

7.

O caráter quase enciclopédico que o Enclave às vezes assume me faz sentir


autorizado a deixar escapar alguns vícios acadêmicos neste meu texto. Fica quase como
um “sinta-se em casa”. Óbvio, o visitante permanece tímido, mas vai observando os
hábitos do anfitrião e, quando vê, já está descalçando os sapatos, tirando tatu do nariz.
Num movimento parecido, gradativamente, vou ficando à vontade neste livro do Labes,
onde sou convidado. Reparando em seus movimentos, também vou soltando alguns
meus.
Mas é muito difícil imitar sua maestria. Enclave é o absurdo de um poeta que
consegue fazer poesia com um material de inspiração enciclopédica, cheio de dados,
informações e curiosidades históricas e geográficas. Chega ao cúmulo de um poema
inteiro com datas e medidas de altura, contrabandeando para a poesia a linguagem das
tabelas informativas. Vá lá, ele esboça dois versinhos no fim, apenas para confirmar as
conclusões íntimas do leitor, pressionando o gatilho do espanto. De fato, não precisei
chegar ao final para entender do que ele estava falando. Qualquer um que já tenha
ouvido falar das tragédias do Enclave chegaria à mesma conclusão rapidinho.

8.

Enchente,
Novembro de 2008: lá em Chapecó, e no Brasil, só se falava naquilo: a água que
descia e parecia não ter para onde escoar.
Coisas que aprendi neste livro: no Enclave se entra, mas não se encontra saída –
o que vale sobretudo pra chuva: a chuva não sabe como sair. Talvez nem queira:
reparem, nos versos, como a natureza parece odiar a cidade, menstruando lama e
afogando os vivos, desenterrando os mortos, inundando os campos, numa convivência
bizarra, absurda mesmo, das catástrofes periódicas com “a maior festa alemã da américa
latina”. São pelo menos 4 poemas em que as referências à oktoberfest e às enchentes
aparecem lado a lado, em termos de associação ou comparação, de maneira a deixar
muito claro quais são os aspectos da fama internacional da cidade.
Está por aí, na boca do povo, em sites da internet, em qualquer enciclopédia
escolar. Todo mundo já cansou de saber: a enchente é o mote da festa.

9.

O que não se saberá de qualquer enciclopédia escolar é a maneira de trabalhar


tantos dados, tanta história, com uma habilidade e inteligência poéticas que fazem de
Marcelo Labes um poeta extremamente maduro e consciente de sua atividade. Sua voz
inclusive brinca conosco, dando conta dessa inspiração “informativa” de sua poesia –
“isso é um poema, não é uma aula de história” –, que pode até ser inspiração, mas nunca
será seu caráter. Enclave é outra coisa: é a subversão das narrativas midiáticas
(mediadas) pela via da experiência imediata (não-mediada – é possível?), do
testemunho diário, do compromisso com o sensível.
Os livros de história ou de sociologia não poderiam se aproximar tão
francamente, por exemplo, da triste poesia dos trabalhadores que operam sob o
ascetismo protestante, embora Max Weber o tenha definido. Essa vivência religiosa do
trabalho, que equipara a diligência laboral ao valor do indivíduo na comunidade, pauta
as inflexões da vida coletiva. Qual o motivo para, por exemplo, encarar com
“reprovação e necessidade” o recebimento de doações para as vítimas de uma enchente,
se não a crença obsessiva no imperativo de autossuficiência do indivíduo? Às vezes, até
o estranhamento do imigrante alemão no Brasil aparece sob a ótica dessa relação
específica com o trabalho e a terra: a procura por frutos / é a labuta por frutos / é a
espera por frutos / é suar sobre os frutos / e reescrever a máxima / que diz nesta terra
em / se plantando tudo dá. Afinal de contas, na tradição brasileira, essa máxima – que
remete à carta de Pero Vaz de Caminha em 1500 – parece dar a ideia de que a natureza
trabalhará pelo homem (pense-se nos delírios de um Policarpo Quaresma, por exemplo),
numa louvação da exuberância tropical que se justifica pela fartura, beleza e
plasticidade. É um engano que está na raiz da frustração que aparece no relato de muitos
imigrantes europeus no Brasil: haviam sido convencidos da fartura que os esperava, ao
fugirem da fome na Europa; a fartura, porém, não existe, apenas trabalho árduo. Além
do mais, para esse tipo de imigrante, de que adianta a beleza e a exuberância se não
puderem servir ao caráter racionalizante de sua cultura?
Nada disso: as coisas, para o imigrante, não devem ser belas. Devem ser úteis.

10.

Mas o Labes faz tudo com a leveza que lhe é característica, já revelada ao longo
de sua obra anterior. Mesmo com um material tão duro, tão aparentemente objetivo, sua
poesia segue tendo suavidade – uma suavidade sóbria, rigorosa até, sem desleixo ou
desbunde.
Certa vez, ao falar sobre o livro anterior, Trapaça, numa postagem de facebook,
afirmei que a impressão em papel tinha algo de muito pesado, e que deveria ter sido
publicado no vento – o que me fez optar pela leitura em voz alta. O Enclave, por sua
vez, embora pareça mais assentado, firme no chão, não deixa também de estar muito
bem se servido em voz alta. Permanece a agilidade lírica e a velocidade dos versos, que
se dão por inteiro e instantaneamente. Sem, é claro, perder contundência.

11.
Enclave é o melhor livro que li nos últimos tempos, tanto pelo conceito quanto
pela execução, de maneira geral e, além disso, particularmente, porque a discussão de
“catarinidades” me interessa muitíssimo.
Mas este não é um livro só para blumenauenses ou catarinenses e afins. É para
qualquer um que queira se surpreender com as habilidades de um poeta talentosíssimo,
emocionar-se com o uso lírico que um grande escritor pode dar à linguagem; e, também,
para aqueles interessados em ampliar sua noção/percepção de Brasil/brasilidades e
Sul/sulinidades. Marcelo Labes não está apenas muito bem localizado para levantar essa
discussão: ele tem, repito, o talento, a coragem e a sensibilidade. É um poeta muito mais
que maduro: essa fruta já se derramou sobre o solo e, dela, estamos vendo vingar um
novo pomar na literatura brasileira contemporânea.
Acusem-me exagerado (adoro). Digam que sou brega (a-do-ro). Chamem de
puxa-saco (gosto, se for bom o saco que estou puxando). Mas tenho certeza de que sua
trajetória poética terá longa vida e será luminosa. Já brilha. Brilhará ainda mais. É esse
algo que se ilumina – e o poeta encontra a saída.
Deixará o Enclave
(com vida).

Gustavo Matte
Chapecó – Porto Alegre,
Outubro/2017

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