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Tarefa que desempenho com extrema alegria: seria muito bom poder viver de
escrever posfácios para poetas talentosos como ele. Mas, como isso é raro (escrever
posfácios E encontrar poetas talentosos), quero abusar e me deleitar escrevendo este
aqui. Aliás, coisa bastante colona: nunca se deixa comida no prato.
Não, nada de desperdício. Vou lamber até a última gota de molho. Vou revirar
este livro do avesso e vou mostrar como foi farta a minha refeição. Vou servir-lhes o
Enclave numa mesa de café colonial.
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Mas essa refeição começou muito antes. Pois, em Enclave, desaguam córregos e
ribeirões que nasceram nos primeiros trabalhos do autor. Foram ganhando força,
inquietação e volume para, juntos, formarem o rio caudaloso de poesia que é este livro.
Quais são esses córregos, esses ribeirões?
Só sei que a questão identitária e os aspectos regionais já apareciam ali no
Trapaça (2016), embora sem propriamente serem um tema central ou uma “questão
norteadora”. Se o leitor estiver com Trapaça em mãos, poderá verificar indícios de
preocupação com a questão da brasilidade em Pindorama, com a sulinidade em Frio
sem estética e em Vento sul, e com a cidade de Blumenau em Bolso como luvas. Além
disso, Trapaça faz algumas menções a certa ilha, não nomeada, de aspecto inacessível,
e que fica mais longe quanto mais a pessoa se aproxima.
O que é essa ilha? Não entrarei nesse mérito porque este é o posfácio de
Enclave, e não de Trapaça. Mas tem muita coisa pra quem quiser se ocupar disso aí.
“Ilha” (ou “ilhas”) é palavra-chave para qualquer um que se aventurar a pensar sobre
Santa Catarina.
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De qualquer maneira, o Labes optou por pensar o seu feudo cultural específico
(sua ilha) sob a semântica de uma palavra também bastante específica. Usando o
conceito de “enclave”, o poeta nos dá uma visão de Blumenau como uma cidade
invasora, remetendo a algo que se define pela deformidade causada por um corpo
estranho no interior de um organismo (o entorno) que se pretende homogêneo. O
Enclave, enfim, é um problema: não deveria estar ali. Tampouco queria.
É por isso que o primeiro poema do livro (e há ainda, no entanto, a possibilidade
de pensar o Enclave como um grande poema composto por 37 fragmentos) já o localiza
geograficamente em relação a outra geografia distante. O curso do Itajaí-açú, ver-se-á, é
a tela de fundo para a projeção dos rios Weser, Sem e Elba, deslizando o bisturi de suas
águas pela carne fresca (do ponto de vista do colonizador europeu) deste Brasil
meridional. A localização dupla, aliás, indecisa ou descompassada, é o que interessa ao
poeta nos primeiros momentos do livro, enquanto está ainda rondando, cercando seu
“objeto”. Mas não demora em partir para cima, desferindo golpes constantes e cada vez
mais contundentes, beirando o risco de machucar as mãos: quando se agride a própria
cidade, a cultura que bem ou mal se partilha, é inevitável que os golpes reverberem
dentro de si.
Os avanços são conduzidos por uma série de temas que norteiam o andamento
do livro. Enclave é composto num movimento progressivo, em acumulação, de maneira
a manter sempre presente a consciência de cada temática, inclusive quando não
enunciadas. Essa acumulação é um acorde de fundo sobre o qual cada poema
desenvolve sua melodia específica.
Permitindo-me a dispersão, falarei sobre alguns desses temas ao longo de meus
próximos tópicos frouxos.
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Pausa: acho impossível não falar das epígrafes. A escolha das epígrafes, neste
pequeno livro, é um gesto poético em si. Sua delicadeza faz com que, em alguns
momentos, elas próprias sejam a culminância. Quero dizer: chega a parecer que são os
poemas que as epigrafeiam – são eles que preparam seu aparecimento, não o contrário.
Esse gesto, revelando a sofisticadíssima qualidade de leitor por trás do escritor, é
essencial para a estrutura do Enclave, onde o poeta quer estar relativamente consciente
de sua posição em uma condição cultural específica – que pretende delimitar para que
possa, autoconscientemente, acompanhar ou enfrentar quando for necessário.
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Enchente,
Novembro de 2008: lá em Chapecó, e no Brasil, só se falava naquilo: a água que
descia e parecia não ter para onde escoar.
Coisas que aprendi neste livro: no Enclave se entra, mas não se encontra saída –
o que vale sobretudo pra chuva: a chuva não sabe como sair. Talvez nem queira:
reparem, nos versos, como a natureza parece odiar a cidade, menstruando lama e
afogando os vivos, desenterrando os mortos, inundando os campos, numa convivência
bizarra, absurda mesmo, das catástrofes periódicas com “a maior festa alemã da américa
latina”. São pelo menos 4 poemas em que as referências à oktoberfest e às enchentes
aparecem lado a lado, em termos de associação ou comparação, de maneira a deixar
muito claro quais são os aspectos da fama internacional da cidade.
Está por aí, na boca do povo, em sites da internet, em qualquer enciclopédia
escolar. Todo mundo já cansou de saber: a enchente é o mote da festa.
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Mas o Labes faz tudo com a leveza que lhe é característica, já revelada ao longo
de sua obra anterior. Mesmo com um material tão duro, tão aparentemente objetivo, sua
poesia segue tendo suavidade – uma suavidade sóbria, rigorosa até, sem desleixo ou
desbunde.
Certa vez, ao falar sobre o livro anterior, Trapaça, numa postagem de facebook,
afirmei que a impressão em papel tinha algo de muito pesado, e que deveria ter sido
publicado no vento – o que me fez optar pela leitura em voz alta. O Enclave, por sua
vez, embora pareça mais assentado, firme no chão, não deixa também de estar muito
bem se servido em voz alta. Permanece a agilidade lírica e a velocidade dos versos, que
se dão por inteiro e instantaneamente. Sem, é claro, perder contundência.
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Enclave é o melhor livro que li nos últimos tempos, tanto pelo conceito quanto
pela execução, de maneira geral e, além disso, particularmente, porque a discussão de
“catarinidades” me interessa muitíssimo.
Mas este não é um livro só para blumenauenses ou catarinenses e afins. É para
qualquer um que queira se surpreender com as habilidades de um poeta talentosíssimo,
emocionar-se com o uso lírico que um grande escritor pode dar à linguagem; e, também,
para aqueles interessados em ampliar sua noção/percepção de Brasil/brasilidades e
Sul/sulinidades. Marcelo Labes não está apenas muito bem localizado para levantar essa
discussão: ele tem, repito, o talento, a coragem e a sensibilidade. É um poeta muito mais
que maduro: essa fruta já se derramou sobre o solo e, dela, estamos vendo vingar um
novo pomar na literatura brasileira contemporânea.
Acusem-me exagerado (adoro). Digam que sou brega (a-do-ro). Chamem de
puxa-saco (gosto, se for bom o saco que estou puxando). Mas tenho certeza de que sua
trajetória poética terá longa vida e será luminosa. Já brilha. Brilhará ainda mais. É esse
algo que se ilumina – e o poeta encontra a saída.
Deixará o Enclave
(com vida).
Gustavo Matte
Chapecó – Porto Alegre,
Outubro/2017