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Ministério Público do Estado de Goiás

Procuradoria-Geral de Justiça

Revista
do Ministério Público
do Estado de Goiás

Goiânia
2017
SUMÁRIO
apresentação................................................................ 05

Direito internaCionaL

Corte interamericana de Direitos Humanos e des-


monetarização da responsabilidade civil ................... 09
aDriano pessoa Da Costa / Gina ViDaL MarCÍLio poMpeU

Direito CoLetiVo

o princípio da solidariedade frente aos fenômenos da


litigação repetitiva (repeat players) e apatia racional
(rational apathy)........................................................... 37
aLeXanDre pereira Bonna

Judicialização da educação infantil, o trabalho dos


professores e a qualidade da educação: relações
possíveis...................................................................... 57
CarLos roBerto JaMiL CUrY / LUiZ antonio MiGUeL Ferreira

Direito CriMinaL

Direito penal perigoso.................................................. 81


HaroLDo Caetano

agente infiltrado virtual (Lei n. 13.441/17): primeiras


impressões .................................................................. 97
FLÁVio CarDoso pereira
tribunal do Júri: conhecimento de ofício da reincidência
e da menoridade sem afronta à soberania do veredicto...... 117
FranCieLY ViCentini HerraDon

Direito CiViL

a legalidade da adoção intuitu personae............................ 145


peDro De MeLLo FLorentino

assUntos Gerais

a avaliação psicológica no contexto da alienação parental.... 175


MireLLa CaMarota piMenta
APRESENTAÇÃO

Caros leitores,

É com muita satisfação que apresento esta edição da re-


vista do Ministério público do estado de Goiás compilando as pro-
duções selecionadas pelo Conselho editorial da escola superior e
que compõem a primeira publicação do ano de 2017.
os oito artigos foram publicados nas duas versões (impressa
e eletrônica) e dialogam dentro das áreas do Direito: internacional,
Coletivo, penal e Civil, bem como, em temática atual no contexto dos
assuntos gerais.
estamos construindo uma nova formatação para esta publi-
cação, que contemple, cada dia mais, as expectativas de ser um
canal de reflexão e fonte de pesquisa com maior visibilidade no
meio acadêmico, seguindo critérios de classificação segundo os
estratos da Comissão Qualis de Direito da Coordenação de aper-
feiçoamento de pessoal de nível superior (Capes).
esse percurso está sendo trilhado e sabemos que, por
meio das ricas contribuições dos integrantes do Mp de Goiás e
demais colaboradores da comunidade jurídica, evoluiremos por
certo.
nossa proposta é de ser referência editorial para discus-
sões qualificadas no meio jurídico, suplemento para nosso aper-
feiçoamento funcional e elo acadêmico na perspectiva de buscar

5
excelência em nosso aprendizado de traduzir em escrita, nosso
direcionamento de reflexão e atuação.

Uma ótima leitura a todos!

Flávio Cardoso Pereira


promotor de Justiça
e Diretor da esMp-Go

Goiânia, Brasil, agosto de 2017.

6
Adriano Pessoa da Costa*
Gina Vidal Marcílio Pompeu**

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E


DESMONETARIZAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL

INTERAMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS


AND DEMONSTRATION OF CIVIL LIABILITY

CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS


Y DESMONETARIZACIÓN DE LA RESPONSABILIDAD CIVIL

Resumo:
A centralidade do ordenamento brasileiro repousa na pessoa hu-
mana. Isso se reflete na trajetória histórico-evolutiva dos direitos fun-
damentais, força motriz do fenômeno da constitucionalização do
direito privado. No atual cenário, impõe-se uma reconfiguração fun-
cional da responsabilidade civil, na esteira do que já ocorre com ou-
tros institutos privatísticos - como o contrato, a família e a propriedade.
Este trabalho demonstra que, no panorama atual de interação entre
o direito privado e o direito constitucional, a técnica tradicional da re-
paração exclusivamente monetária deve ser repensada em prol de
mecanismos alternativos aptos a proporcionar um adequado ressar-
cimento do dano injusto. A metodologia de abordagem é analítica,
empírica e comparativa. Parte do estudo da teoria dos direitos fun-
damentais e sua projeção no direito privado, nomeadamente a res-
ponsabilidade civil. Avança para análise do quadro hodierno da
matéria no direito brasileiro e desenvolve a crítica ao paradigma mo-
netário de reparação de danos a partir de precedentes da Corte Inte-
ramericana de Direitos Humanos (CIDH). As decisões da Corte,
marcantes para a promoção das liberdades civis no continente latino-

* Doutorando em Direito pela Universidade de Fortaleza, linha de pesquisa Relações


Privadas. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará, área de concentração
Ordem Jurídica Constitucional.Especialista em Direito Privado pela Universidade de
Fortaleza. Especialista em Processo Civil pela Universidade Federal do Ceará. Gra-
duado magna cum laude pela Universidade Federal do Ceará. Professor em tempo
integral da Faculdade Farias Brito (FFB). Advogado e consultor Jurídico em Fortaleza.
** Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Coordenadora e
Professora do Programa de Pós-Graduação de Mestrado e Doutorado em Direito
Constitucional da Universidade de Fortaleza (UNIFOR).

9
americano, costumam inovar na imposição de medidas que trans-
cendem a simples indenização em pecúnia. Ao final, clarifica-se a re-
levância jurisprudencial da CIDH para a edificação da
responsabilidade civil voltada à concretização da dignidade da pessoa
humana como valor jurídico supremo no Brasil e na América Latina.

Abstract:
The centrality of the Brazilian order rests on the human person. This
is reflected in the historical-evolutionary trajectory of fundamental
rights, the driving force of the phenomenon of the constitutionalization
of private law. In the current scenario, a functional reconfiguration of
civil liability is required, in the wake of what already happens with other
private institutes - such as contract, family and property. This paper
demonstrates that in the current context of interaction between private
law and constitutional law, the traditional technique of pure monetary
reparation must be rethought in favor of alternative mechanisms ca-
pable of providing adequate compensation for unfair damages. The
approach methodology is analytical, empirical and comparative. Part
of the study of the theory of fundamental rights and its projection in
private law, namely civil liability. It advances to analyze the current fra-
mework of the matter in Brazilian law and develops the critique of the
monetary paradigm of reparation of damages based on precedents
of the Inter-American Court of Human Rights (IACHR). The Court's
decisions, which are important for the promotion of civil liberties in the
Latin American continent, often innovate in the imposition of measures
that transcend the simple indemnity in pecunia. In the end, it clarifies
the jurisprudential relevance of the IACHR for the construction of civil
responsibility aimed at achieving the dignity of the human person as
a supreme legal value in Brazil and Latin America.

Resumen:
La centralidad del ordenamiento brasileño reposa en la persona
humana. Esto se refleja en la trayectoria histórico-evolutiva de los
derechos fundamentales, fuerza motriz del fenómeno de la consti-
tucionalización del derecho privado. En el actual escenario, se im-
pone una reconfiguración funcional de la responsabilidad civil, en
la estera de lo que ya ocurre con otros institutos privados, como el
contrato, la familia y la propiedad. Este trabajo demuestra que, en

10
el panorama actual de interacción entre el derecho privado y el de-
recho constitucional, la técnica tradicional de la reparación exclusi-
vamente monetaria debe ser repensada en pro de mecanismos
alternativos aptos para proporcionar un adecuado resarcimiento
del daño injusto. La metodología de enfoque es analítica, empírica
y comparativa. Parte del estudio de la teoría de los derechos fun-
damentales y su proyección en el derecho privado, en particular la
responsabilidad civil. Avanza para analizar el cuadro actual de la
materia en el derecho brasileño y desarrolla la crítica al paradigma
monetario de reparación de daños a partir de precedentes de la
Corte Interamericana de Derechos Humanos (CIDH). Las decisio-
nes de la Corte, marcadas para la promoción de las libertades ci-
viles en el continente latinoamericano, suelen innovar en la
imposición de medidas que trascienden la simple indemnización
en pecunia. Al final, se aclara la relevancia jurisprudencial de la
CIDH para la edificación de la responsabilidad civil volcada a la
concreción de la dignidad de la persona humana como valor jurí-
dico supremo en Brasil y en América Latina.

Palavras-chave:
Direitos fundamentais, responsabilidade civil, desmonetarização,
Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Keywords:
Fundamental rights, civil liability, dismantling, Inter-American Court
of Human Rights.

Palabras clave:
Derechos fundamentales, responsabilidad civil, desmontaje, Corte
Interamericana de Derechos Humanos.

11
INTRODUÇÃO

A centralidade axiológico-material dos sistemas internacio-


nais de proteção dos direitos humanos e da Constituição Federal de
1988 é a mesma: a tutela integral da pessoa humana em sua digni-
dade. Isso se reflete na trajetória histórico-evolutiva de expansão e
afirmação dos direitos fundamentais, força motriz do fenômeno da
constitucionalização do direito privado. Essa caminhada teórica con-
duz ao reconhecimento da reparação de danos como direito funda-
mental e à reconfiguração funcional da responsabilidade civil, na
esteira do que já ocorre com outros institutos privatísticos - como o
contrato, a família e a propriedade.
Repensar essa província jurídica em função do indivíduo e
assentir na fundamentalidade do direito ao adequado ressarcimento
são avanços que requerem o necessário reexame de um de seus
elementos tradicionais, a saber, o modo por meio do qual o ofensor
deverá indenizar integralmente a vítima.
Entre nós, há muito predomina, tanto no plano teórico
quanto na aplicação pretoriana das leis, a técnica da reparação ex-
clusivamente monetária. Esse modelo cria graves empecilhos à re-
configuração do direito de danos na perspectiva civil-constitucional.
O principal deles consiste no desprestígio à dimensão existencial do
ser humano, cuja violação muitas vezes não é compensável com
somas pecuniárias.
De tudo isso decorre a necessidade de que outros fatores
sejam tomados em conta no arbitramento da indenização. Elementos
como a anormalidade do dano, a reconstrução completa do bem-
estar psíquico da vítima, a repercussão social e a profilaxia da rein-
cidência da conduta antijurídica passam a ser imprescindíveis para
o adequado ressarcimento. Assim, mecanismos reparatórios alter-
nativos devem ser concebidos e praticados, para além da simples
condenação em moeda corrente.
A partir da premissa de que a jurisprudência desempenha
papel central no aprimoramento da responsabilidade civil, este tra-
balho está focado em precedentes da Corte Interamericana de Di-
reitos Humanos (CIDH). As decisões da Corte são protagonistas da
promoção das liberdades civis e da solidificação dos valores demo-
cráticos nos países da região. Não raro, transcendem a indenização

12
em pecúnia e determinam, dentre outras, medidas como a adequa-
ção legislativa, a implementação de políticas públicas e a designação
honrosa de equipamentos urbanos em nome das vítimas.
Ao final, será demonstrado que as sentenças da CIDH
podem operar como farol a iluminar o caminho para a edificação de
um aprimorado direito de danos, voltado à efetiva concretização da
dignidade da pessoa humana como valor jurídico supremo no Brasil
e na América Latina.

Direito fundamental à reparação de danos

Vive-se hoje a “sociedade de risco”1, em que “tudo, ou


quase tudo em direito, acaba em responsabilidade civil”, elevada
à condição de “espécie de estuário onde deságuam todas as
áreas do direito - público e privado, contratual e extracontratual,
material e processual” (MENEZES DIREITO; CAVALIERI FILHO,
2007, p.35). Essa é também a sociedade dita “pós-moderna” das
novas tecnologias, em que somos alvo de incessante bombar-
deio de informações.
O ser humano, mais consciente de seus direitos, torna-se
menos tolerante com abusos e atos ilícitos contra si perpetrados.
Ano após ano, o número de ações indenizatórias aumenta e inau-
ditas situações fáticas terminam por alcançar os tribunais2. Não é
difícil chegar-se à conclusão de que esta é a era do direito de danos.

1 BECK, Ulrich. Risk Society: towards a new modernity. London: Sage, 1993. Nessa
notável obra o autor analisa a chegada do que nomina como a “segunda moderni-
dade” ou “modernidade reflexiva”, na qual a distribuição dos riscos não toma em
conta as diferenças sociais, econômicas e geográficas como ocorria na “primeira
modernidade” (aquela decorrente das revoluções industriais e políticas que tiveram
lugar na Europa a partir do século XVIII). Aponta, dentre os principais perigos do
mundo atual, os riscos ambientais, químicos, nucleares, genéticos e econômicos.
Como cinco maiores processos sociais de potencial nocivo a ser enfrentados pela
sociedade contemporânea, elenca: a globalização, a individualização, o desem-
prego, a revolução dos gêneros e os riscos globais da crise ecológica e da turbu-
lência dos mercados financeiros.
2 Nesse contexto, sugere-se a leitura do texto de Nelson Konder acerca da proteção

da privacidade (2013, p. 386). Em tempos de acentuada comunicação interpessoal,


a manipulação inadequada de informações sobre a vida íntima ilustra à perfeição
os “novos danos” a que está sujeito o ser humano. Com efeito, a indevida divulgação

13
Na tradição jurídica brasileira, a matéria se posiciona
como objeto de estudo da seara privatística, mais precisamente
do direito civil. A influência do Código de Napoleão foi decisiva
para a solidificação de um cientificismo vigorosamente apegado
ao cânone liberal-individualista-patrimonialista. Nessa linha de
pensamento, a lógica jurídica predominante na Europa oitocen-
tista prestigiava a separação entre sociedade e Estado, assim
como fazia todo sentido a summa divisio entre direito público e
direito privado, haja vista o pleno protagonismo então represen-
tado pela codificação civil nas relações jusprivadas – nas quais
operava como “a verdadeira carta constitucional da sociedade
autossuficiente” (BILBAO UBILLOS, 1997, p. 237).
Segundo Konrad Hesse (1995, p. 69-70), o momento de-
cisivo para a guinada dogmática que revolucionou as relações
entre o direito constitucional e o direito privado, bem como as ta-
refas e funções de cada seara, foi o final da Primeira Guerra Mun-
dial. A partir dali, o trato desses diferentes âmbitos jurídicos
passou da justaposição e afastamento original a uma relação de
recíproca complementaridade e independência3.
A toda evidência, as diretrizes privatísticas do passado
não se coadunam ou, quando muito, carecem de aperfeiçoa-
mento diante da ordem jurídica constitucional vigente no Brasil
pós-1988. Como se observa,

de referências como a opção sexual, a ideologia política, a saúde físico-psíquica e


as características genéticas da pessoa - os chamados dados sensíveis - têm grande
aptidão de nocividade ao livre desenvolvimento da personalidade. Por exemplo, no
âmbito das relações de trabalho, os empregadores podem recusar funcionários mais
propensos ao alcoolismo e ao déficit de atenção; no direito contratual, o acesso a
dados genéticos pode evidenciar propensão a certos males, como câncer, Parkinson
e Alzheimer, fato capaz de tornar inviável a contratação do seguro-saúde.
3 A seguir, complementa que o direito constitucional e o direito privado “aparecem como

partes necessárias de uma ordem jurídica unitária que se complementam, se apóiam e


se condicionam. Nesse ordenamento integrado, o direito constitucional resulta de im-
portância decisiva para o direito privado, e o direito privado de importância decisiva para
o direito constitucional” (HESSE,1995, p. 81). Igualmente, Habermas (1984, p. 178)
aponta o final da Primeira Grande Guerra como o marco temporal em que surgiu uma
complicada mistura de tipos que, de início, “foi registrada sob a rubrica publicização do
direito privado; mais tarde aprendeu-se a considerar o mesmo procedimento também
sob o ponto de vista inverso, o da privatização do direito público”, até chegar-se ao qua-
dro atual, em que “elementos do Direito Público e do Direito Privado se interpenetram
até a incognoscibilidade e a indissolubilidade”.

14
O Direito Privado, assim ‘socializado’, é com certeza diverso do Di-
reito Privado do Code Napoleón, que exauria a sua tutela, por um
lado, no direito subjetivo (ou seja, sobretudo na propriedade) ou
antes, no seu titular, e, por outro lado, na vontade individual, ou seja,
no contrato. (GIORGIANI, 1998, p. 50).

Na modernidade, leciona Pietro Perlingieri (2002, p. 55),


o direito civil não se apresenta em antítese ao direito público; é
apenas um ramo que se justifica por razões didáticas e sistemá-
ticas e que se conecta diretamente à vida dos cidadãos como ti-
tulares de direitos fundamentais, oponíveis ao Estado e também
aos particulares. Nesse enfoque, não existe contraposição entre
privado e público, na medida em que o próprio direito civil faz
parte de um ordenamento unitário4.
Agora bem, não há outra província jurídica em que o peso
das elaborações pretorianas se faça sentir com tamanha intensi-
dade quanto à responsabilidade civil, cuja trajetória, na célebre
máxima de Louis Josserand (1941, p. 63), representa “a história
do triunfo da jurisprudência”5. Não obstante, no Brasil, o trato cien-
tífico e forense das ações indenizatórias revela grave estagnação
dogmática: seguem teorizadas pela doutrina e apreciadas pelos
tribunais na perspectiva exclusiva das pretensões individuais e
resolvidas somente com amparo em critérios patrimonialistas.
Prevalece, como regra, uma resposta jurisdicional em
que se prestigia o interesse particular/individual sobre o social/co-
letivo. O foco repousa na resolução do caso sub judice, sem a
necessária preocupação com uma adequada profilaxia judicial
capaz de evitar sua repetição por parte do ofensor. Nesse pano-
rama, a responsabilidade civil paradoxalmente acaba por se dis-
tanciar da reconstrução do direito privado à luz da Constituição
de 1988 empreendida pela doutrina – o crescente teórico que se
convencionou nominar como “direito civil-constitucional”, no qual

4 Nessa lógica, desaparece a noção de que temáticas como a responsabilidade civil, de


há muito reguladas somente pela legislação privada, seguem ainda blindadas à irradiação
jusfundamental. Na sintética metáfora de Ingo Von Munch (1997, p. 33): “una vez des-
monorado el dique que separaba el Derecho constitucional del Derecho privado, los de-
rechos fundamentales se precipitaron como una cascada en el mar del Derecho privado”.
5 Como salienta o autor francês, graças às cortes o direito de danos pôde evoluir com o

mínimo de intervenção legislativa, processo no qual o juiz “foi a alma do progresso jurí-
dico, o artífice laborioso do direito novo contra as fórmulas velhas do direito tradicional”.

15
a tutela da pessoa humana é alçada ao ponto mais elevado.
Da mesma forma, o direito aquiliano isola-se do que
ocorreu com outros tradicionais institutos civilísticos. Isso porque
até mesmo família, propriedade e contrato - os “três pilares” do
direito privado (FACCHINI NETO, 2006, p. 31) - ganham diferen-
tes tons a partir de sua vinculação direta com a ordem constitu-
cional, notadamente com os direitos fundamentais. Com efeito,
não é difícil visualizar as transformações desses temas, precio-
sos ao direito civil clássico, a partir do momento em que se dei-
xaram influenciar pelos valores emanados da Constituição.
Cumpre lembrar que a propriedade deixou de ser um di-
reito moldado na plataforma liberal e passou a ter indispensável
função social. Nesse viés, a família, antes hierarquizada, tornou-
se igualitária em sua conformação interpessoal e democrática
quanto à origem, com o rompimento do paradigma matrimonial
como única causa de surgimento do núcleo familiar. Já nas rela-
ções contratuais, surgiram intervenções voltadas para o interesse
de categorias específicas, como o consumidor, e inseriu-se a
preocupação com a justiça distributiva (RAMOS, 2000, p. 10-11).
Enquanto isso, o direito de danos segue no geral ape-
gado à dogmática de tempos idos, fulcrada no trinômio conduta
- nexo causal - dano6. Evoluir é preciso! A cláusula de abertura
grifada no art. 5º, §2º, da Constituição Federal de 1988 e as nor-
mas dos arts. 5º, V, 5º, X, e 37, §6º, que àquela se alinham, são
a chave para a compreensão de que à pessoa humana lesada
assiste o direito fundamental de ressarcimento7.
Nesse passo, já se pode observar que a responsabili-
dade civil do século XXI adota nova feição. Encontra-se agora

6 Seria incorreto afirmar que inexistiu qualquer evolução no plano da responsabilidade


civil. Exemplo disso se colhe dos atos lesivos cometidos por agentes estatais no exercício
dessa função. Enquanto no passado o assunto já foi tratado como incapaz de deflagrar
o dever ressarcitório, hoje a matéria nem mesmo exige a demonstração de culpa, nos
termos do art. 37, §6º, da Constituição Federal de 1988. No mesmo diapasão, é nítida
a tendência à objetivização da responsabilidade aquiliana, como ferramenta capaz de
facilitar o acesso da vítima à reparação devida.
7 No constitucionalismo do novo século, poucos põem em dúvida a primazia axiológica

dos direitos fundamentais. Assim constatou Peter Häberle (1991, p. 261), ao afirmar
que, em nossos dias, há “uma impressionante imagem de onipresença dos direitos fun-
damentais no Estado constitucional”.

16
iluminada pelos valores constitucionais e adaptada aos princípios
básicos do direito civil-constitucional brasileiro8. Tem reafirmado
seu escopo de promover a existência digna do indivíduo, e para
tanto se vale da recognição da fundamentalidade9 do direito à re-
paração do dano e da projeção dos direitos fundamentais sobre
as interações jurídico-privadas (“eficácia horizontal”)10.

A inadequação do paradigma monetarista à função social da


responsabilidade civil

O já referido processo de “constitucionalização do direito


privado” - e, por conseguinte, de conversão da responsabilidade civil
e outras áreas civilísticas em “direito constitucional concretizado”-,
não há de ser visto como algo passageiro; bem ao contrário, de

8 Gustavo Tepedino (2006, p. 378), em conhecida passagem teórica, anuncia as pre-

missas essenciais do direito civil constitucional: (i) o reconhecimento do direito como rea-
lidade cultural, e não como resultado (rectius, submissão) da ordem econômica vigente:
o direito tem uma intrínseca função promocional e não apenas uma função mantenedora
do status quo (repressora) e reguladora de divergências; (ii) o decisivo predomínio das
situações existenciais sobre as situações patrimoniais, devido à tutela constitucional da
dignidade humana; (iii) a valorização do perfil funcional em detrimento do perfil estrutural
dos institutos jurídicos, impedindo, por essa via, a perpetuação do esquema da subsun-
ção, já completamente ultrapassado, e libertando o fato – e juntamente com ele o juiz -
dos enquadramentos rígidos em prol da aplicação da normativa mais adequada ao caso
concreto; (iv) o reconhecimento da historicidade dos institutos, na medida da importância
da função que exercem naquela determinada sociedade, naquele determinado momento
histórico; (v) a relatividade dos princípios, das regras e dos direitos, na medida em que
todos exercem sua função em sociedade, isto é, em relação ao outro.
9 Há simetria entre a eticidade humana inerente aos direitos da personalidade e o conceito

de fundamentalidade material dos direitos fundamentais. Ingo Sarlet (2006, p. 88-89),


valendo-se de lições de Alexy e Canotilho, sustenta que esta “decorre da circunstância
de serem os direitos fundamentais elemento constitutivo da Constituição material, con-
tendo decisões fundamentais sobre a estrutura básica do Estado e da sociedade, [...] de
modo especial no que diz com a posição nestes ocupada pela pessoa humana”.
10 O pioneirismo no reconhecimento jurisprudencial da dimensão objetiva dos direitos

fundamentais - passo decisivo para a admissão da eficácia desses direitos entre atores
privados - se deu no célebre “Caso Lüth”, apreciado pelo Tribunal Constitucional Alemão
no ano de 1958. Ao sublinhar que os direitos fundamentais não reduzem sua operativi-
dade à defesa do cidadão nas situações de ameaça imposta pelo poder estatal - posto
que representam “decisões de constitucionais de natureza jurídico-objetiva válidas para
todo o ordenamento jurídico” - a Corte de Karlsruhe desempenhou papel histórico na
ultrapassagem da relação indivíduo-Estado como âmbito exclusivo de aplicação dos
direitos fundamentais.

17
há muito encontra-se amadurecido pela doutrina e jurisprudência
(TUTIKIAN, 2004, p. 47).
Decorre, na verdade, do surgimento de outro patamar ci-
vilizatório, em que “as idéias de dignidade, liberdade, segurança,
igualdade e justiça social, dentre outras, conduzem a sociedade
brasileira na busca de seus destinos e influenciam os rumos da
legislação” (BITTAR; BITTAR FILHO, 2003, p. 26), o que bem se
exemplifica com o próprio direito de danos, alvo de impulso com
a entrada em vigor do Código Civil11.
Da projeção nesse campo da força normativa dos prin-
cípios constitucionais, em cujo ápice figura a dignidade da pes-
soa humana, é preciso extrair-se uma dogmática assaz diferente
do defasado cânone de outrora, pautado num individualismo pa-
trimonialista que enxergava na reparação monetária o objetivo
maior da tutela indenizatória - como se tudo se resolvesse pelo
pagamento em pecúnia efetivado pelo lesante12.
Na contemporaneidade, a responsabilidade civil recons-
truída sob a paleta constitucional se volta para o princípio da re-
paração integral (restitutio in integrum)13 com olhar diferenciado,
até mesmo em vista da fundamentalidade do direito violado
(LUTZKY, 2012). Condenações em pecúnia amiúde são insufi-
cientes para reconduzir a vítima a patamares próximos da situa-
ção vivida antes da lesão14. Elementos de cunho social,

11 Dentre as inovações positivadas no direito pátrio pelo Código Civil brasileiro, cabe

citar a cláusula geral de responsabilidade objetiva baseada no risco da atividade


(art. 927, parágrafo único) e a identificação do abuso de direito como espécie do
gênero ato ilícito (art. 187), dispositivos que abriram possibilidades até então impen-
sadas para o direito de danos.
12 Exemplo lapidar dessa linha de pensamento é o art. 944 do Código Civil, que sintetiza

tão bem a lógica patrimonialista: “A indenização mede-se pela extensão do dano”.


13 O dever de reparar o dano situa-se entre as mais antigas regras humanas de con-

vivência. Integra o Código de Hamurabi, os livros do Pentateuco (Gênesis, Êxodo,


Levítico, Números e Deuteronômio), o Alcorão e a Lei das Doze Tábuas romana
(Lex Duodecim Tabularum).
14 Arraigada sempre foi essa concepção monetarista em nosso direito, como se

colhe da passagem ora destacada acerca do dano moral: “a sua reparação se faz
através de uma compensação, e não de um ressarcimento; impondo ao ofensor a
obrigação de pagamento de uma certa quantia de dinheiro em favor do ofendido,
ao mesmo tempo em que agrava o patrimônio daquele, proporciona a este uma
reparação satisfativa” (CAHALI, 2011, p. 38).

18
interrelacional e, sobretudo, existencial e preventivo devem ser
tomados em conta na equação jurídica que levará à definição da
forma de ressarcimento.
Ocorre que a tutela integral e efetiva da pessoa humana
já não mais condiz com rótulos dogmáticos (como bem ilustra a
erosão da dicotomia entre direito público e privado), muito menos
com o binômio dano/reparação monetária. Agora, exige-se que
o arbitramento da indenização inclua instrumentos de efetiva pro-
moção do ser vivente, considerado em qualquer situação jurídica
de que participe, contratual ou extracontratual, de direito público
ou de direito privado (MORAES, 2004, p. 52).
Com efeito, por figurar a personalidade humana e a pro-
moção de sua dignidade no ápice axiológico-constitucional bra-
sileiro, sua defesa exige uma proteção judicial diferenciada, que
vai além dos mecanismos tradicionais cíveis e criminais de re-
pressão. Nessa senda, essencial é o papel da elaboração preto-
riana, como sempre foi na responsabilidade civil, para o
aperfeiçoamento da compreensão jurídica da matéria.
A atuação dos órgãos judiciários é posta em relevo por
Claus-Wilhelm Canaris (2006, p. 241-242), para quem a elabo-
ração pretoriana pode “remediar” eventuais transgressões do le-
gislador privado. À guisa de exemplo, pondera que o ‘direito
delitivo’ alemão era falho na proteção da personalidade, mas o
Supremo Tribunal Federal “eliminou esse déficit, incluindo o
assim chamado ‘direito geral de personalidade’ no grupo dos di-
reitos tutelados pelo direito dos delitos (direito da responsabili-
dade aquiliana)”.
A reconstrução civil-constitucional da pessoa exige dife-
renciada concepção da responsabilidade civil por parte dos tri-
bunais, já desprendida da antiga visão patrimonialista15 e
doravante projetada na perspectiva da reparação integral do

15 Na ótica do direito civil de outrora, a liberdade individual alçava-se à condição de


a mais preciosa das garantias jurídicas. Do pensamento de Benjamin Constant ex-
traem-se as idéias hegemônicas do período. Segundo o “corifeu do liberalismo”, o
direito público do Estado é alheio aos direitos das pessoas privadas, e o direito po-
lítico consiste em jamais conspurcar os direitos imprescritíveis da natureza humana
- bem como restaurá-los, quando forem atacados. Liberdade, para ele, não é outra
coisa senão “o triunfo da individualidade” (GOYARD-FABRE, 1999, p. 324-327).

19
“dano à pessoa”. Longe vai a percepção de cada pessoa como
um “ter”, bem antes de um “ser”, como ocorria nas antigas codi-
ficações civilísticas. Bem ao reverso, na atualidade, as questões
existenciais é que ganham relevo - e trazem consigo a preocu-
pação com formas desmonetarizadas de ressarcimento.
A partir dessa afirmação, até mesmo os elementos de
detecção do dano indenizável sofrem mutações, pois há algo
mais no horizonte além da “conduta do ofensor” e da “relação
causal”. Outros critérios de valoração, como o dever de proteção
ao próximo (duty of care), a ausência de medidas preventivas
(carelessness) e a proximidade do dano (remoteness) entram em
cena na análise da obrigação de indenizar, como acentua Guido
Alpa (2010, p. 175-184).
Como se pode ver, enquanto o direito privado atribui pre-
valência às relações patrimoniais, no sistema do direito civil re-
fundado pela Constituição Federal de 1988, a prevalência é das
questões existenciais, “porque à pessoa humana deve o ordena-
mento jurídico inteiro, e o ordenamento civil em particular, asse-
gurar tutela e proteção prioritárias” (MORAES, 2010, p. 21-32).
A título de exemplo de manifestação pretoriana do direito
aquiliano convergente para a integral proteção do indivíduo, es-
pecialmente no que tange ao seu bem-estar psicológico, destaca-
se a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça em 2012,
na qual se reconheceu o dever indenizatório decorrente do cha-
mado “abandono afetivo”, hipótese inimaginável anos atrás16.
Para além do já exposto, convém relembrar que não são
poucos os problemas acarretados pelo referencial de indeniza-
ção que se materializa somente pela entrega de somas pecuniá-
rias ao lesado. Nessa esteira de pensamento, Anderson
Schreiber (2013, p. 210), em trabalho dedicado ao tema, aponta
os principais deles: (i) a propagação da lógica de que os danos

16 O próprio STJ havia se pronunciado anteriormente pela denegação do pleito de


ressarcimento sob esse fundamento. O decisório ficara assim ementado: “RES-
PONSABILIDADE CIVIL - ABANDONO MORAL - REPARAÇÃO - DANOS MORAIS
-IMPOSSIBILIDADE. 1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato
ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil
de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especial
conhecido e provido” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. STJ, Recurso Especial
n. 757.411/MG - (2005/0085464-3) - Rel. Min. Fernando Gonçalves - j. 29.11.2005).

20
morais podem ser causados desde que seja possível pagar por
eles; (ii) o estímulo ao “tabelamento” judicial das indenizações;
(iii) a crescente “precificação” dos atributos humanos; (iv) o in-
centivo a demandas frívolas, propostas de modo aventureiro, por
pessoas que pretendem se valer de cada inconveniente ou abor-
recimento social para conseguir uma indenização.
A tais graves inconvenientes pode-se adicionar outras hi-
póteses: (i) se o ofensor simplesmente não dispuser de recursos
monetários que lhe permitam fazer frente à reparação arbitrada,
a vítima se quedará privada de qualquer ressarcimento; (ii) noutro
giro, caso o lesado seja pessoa abastada, a indenização não re-
presentará conforto algum17.
Nessa vertente, enfatiza-se que a fixação judicial do res-
sarcimento deve ser focada não apenas no dano, mas, sobretudo,
na pessoa. Para tanto, a ciência jurídica e os tribunais devem li-
bertar-se do paradigma monetarista, mediante o recurso a diferen-
ciadas ferramentas de reação jurídica que alcancem o maior
objetivo da indenização: a uma, reabilitar a vítima na máxima me-
dida possível, incluído o necessário bem-estar psíquico; a duas,
evitar a repetição do comportamento antijurídico por parte do ofen-
sor. Dessa forma, a responsabilidade civil se alinha aos demais
institutos privados no atendimento de sua função social, exigência
incontornável dos tempos modernos.
Na lição de Judith Martins-Costa acerca da dimensão
preventiva da responsabilidade civil, no processo evolutivo de um
dado instituto jurídico é preciso que

a doutrina não se aferre a dogmas que bem vestiam tão-só a função


antiga, restando a nova como roupas mal cortadas, em massa pro-
duzidas. É precisamente o que ocorre com a insistência de atribuir-
se à responsabilidade civil, como se integrasse a sua própria
natureza, um caráter estritamente reparatório, sem nenhum elemento
de punição ou de exemplaridade. (2002, p. 441).

17 Nota-se que as duas hipóteses aventadas são bem prováveis no cenário brasileiro.

No primeiro caso, pela notória disparidade socioeconômica aqui existente, que pro-
duz a existência de milhões de pessoas alijadas até mesmo do “patrimônio mínimo”
necessário; no segundo, pelo fato de os tribunais pátrios adotarem uma política de
fixação de valores ressarcitórios bem modestos, prática amiúde justificada pelo com-
bate a uma tal “indústria da indenização” que jamais se estabeleceu entre nós.

21
Por tais motivos, os precedentes da Corte Interameri-
cana de Direitos Humanos (CIDH)18 muito têm a contribuir para
a desmonetarização da responsabilidade civil, e sua influência
na aplicação do direito pátrio pode indicar o caminho a seguir.
Destarte, cumpre examiná-los.

A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E A


DESMONETARIZAÇÃO DO DIREITO DE DANOS

A partir da segunda metade do século XX, assistiu-se à


consagração dos direitos humanos em documentos multinacio-
nais, como a Carta de Direitos Fundamentais da União Européia
e a Convenção Americana de Direitos Humanos. O crescente
protagonismo das cortes internacionais é consectário natural do
processo de afirmação desses direitos.
Na América Latina, a Convenção Americana de Direitos
Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) é pedra angular do
sistema de proteção dos direitos humanos. Na esfera nacional,
por óbvio, incumbe a cada Estado o asseguramento das liberda-
des humanas fundamentais; no plano internacional, a própria
Convenção esclarece, em seu preâmbulo, que a tutela desses
direitos, quando insuficiente no âmbito interno, propicia a atuação
subsidiária e complementar da CIDH.
Esse tribunal, que entrou em funcionamento no ano de
1978, foi reconhecido pelo Brasil, juntamente com o Pacto de
São José, somente em 1992. A CIDH está autorizada a apreciar
e julgar denúncias de violação da Convenção Americana de Di-
reitos Humanos por qualquer Estado-parte19. Cumpre reafirmar

18Essa sigla será usada no presente texto para se reportar à Corte.


19 O Pacto de São José da Costa Rica prevê a existência de outro órgão, a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, a quem compete receber petições de vítimas
de violações de direitos humanos e realizar o juízo de admissibilidade das denún-
cias. Caso positivo, são solicitadas informações ao Estado denunciado, após o que,
se necessário, é realizada uma investigação dos fatos, seguida de tentativa de con-
ciliação. Se esta for infrutífera, a Comissão elaborará relatório conclusivo, eventual-
mente fazendo recomendações ao Estado violador, que terá prazo de 3 (três) meses
para atendê-las. Expirado o prazo, o caso será submetido à CIDH para apreciação
(PIOVESAN, 2006, p. 139).

22
sua relevância para a consolidação continental de uma verda-
deira cultura democrática (O´DONNELL, 2007, p. 152-153)20 e
de respeito humanístico a partir das decisões por ela proferidas,
que têm força vinculante.
Em trabalho dedicado à análise da atuação da CIDH en-
quanto tribunal “garantista” ou “ativista”, Lênio Streck e Jânia Sal-
danha (2013) se valem da metáfora do “romance em cadeia”,
proposta por Dworkin, para enaltecer o trabalho da Corte. Se-
gundo eles, o tribunal leva a sério suas “responsabilidades de
continuidade” no que tange à expansão dos direitos individuais
e dos deveres estatais de respeitá-los. Concluem no sentido de
“reconhecer na jurisprudência da CIDH uma atitude garantista e
de reafirmação do pacto democrático assumido pelos Estados
da América Latina”.
A exemplo do que ocorre na Corte Europeia, a CIDH cria
direito jurisprudencial, que se rege pela lógica do precedente ju-
dicial do tribunal supranacional de direitos humanos em causa,
donde decorre que

não são as normas convencionais que detêm maior relevância dentro


de cada ordenamento estatal, mas a sua interpretação uniforme re-
lativa à tutela de um determinado direito, em termos ‘compensatórios’
– e certamente não ‘substitutivos’ - do direito interno (CARDUCCI;
MAZZUOLI, 2014, p. 44).

Na esteira do anunciado, a análise de alguns precedentes


do tribunal há de reforçar a tese até aqui desenvolvida, a saber:
que o objetivo essencial de proporcionar à vítima de lesão anti-
jurídica a integral reparação demanda maior sensibilidade do jul-
gador, a quem compete determinar providências outras - além
do ressarcimento pecuniário -, voltadas ao necessário conforto
espiritual e existencial do lesado e seus parentes dentro de cada

20Pondera Guillermo O´Donnell que as recorrentes violações de direitos humanos


na América Latina levam vários autores a questionar se a maioria dos países da re-
gião efetivamente merece o rótulo de “democracias”. Conforme o autor, a verdadeira
democracia exige mais do que eleições livres periódicas, partidos políticos, liberdade
de associação e expressão, etc.; demanda a concretização de um patamar consi-
derável de igualdade socioeconômica, ou seja, que haja uma ordem política geral
voltada à efetivação desta igualdade.

23
contexto fático. Nessa senda, questiona Maria Alice Hofmeister,
ao defender a tese de que o julgador deve ter em mente a integral
proteção e ressarcimento do ofendido: “Quem é a vítima? A que
aspira? O que se pode entender como ampla indenização, re-
composição ao status quo ante? O que se conhece acerca de
suas necessidades?” (HOFMEISTER, 2002, p. 213).
Assim, nas sentenças a seguir relembradas, o foco da
abordagem incide sobre os aspectos não monetários presentes
em cada condenação - com a atenção voltada ao fato de que
nesses pronunciamentos houve arbitramento de indenização fi-
nanceira, mas a decisão da CIDH a esse aspecto não se limitou
(SALES; CORREIA, 2013).
Com frequência são determinadas providências de longo
alcance, como mudanças na legislação para adequá-la ao Pacto
de São José da Costa Rica21, a tipificação de delitos até então
não previstos no ordenamento interno22 e a criação de medidas
legislativas, executivas, administrativas e judiciárias voltadas
para a efetivação dos direitos humanos23.
No caso Caracazo24, a CIDH, ao reafirmar o primado da re-
paração integral do dano, impôs à Venezuela a obrigação de inves-
tigar os fatos e apurar responsabilidades, localizar os restos mortais
das vítimas, implementar medidas de capacitação das forças ar-

21 Isso ocorreu no caso Hilaire, Constantine e Benjamin e outros vs. Trinidad e To-
bago (2002). Na espécie, um total de trinta e duas pessoas denunciaram o país por
suas condenações penais à morte por enforcamento. Diante do esgotamento das
possibilidades recursais no plano interno, restou-lhes acionar a CIDH, cuja decisão
foi pela substancial mudança nas leis criminais daquele país.
22 No caso Trujillo Oroza vs. Bolívia (2000), o senhor José Carlos Trujillo Oroza havia

sido preso sem ordem judicial válida, torturado e seu corpo jamais foi encontrado. A
CIDH, além de cominar a tipificação do crime de desaparecimento forçado de pes-
soas, impôs a investigação completa do caso e a punição dos responsáveis, bem
como a atribuição do nome da vítima a um centro educativo da cidade de Santa Cruz.
23 No precedente Niños de la Calle vs. Guatemala (1999), analisou-se o assassinato

de vários jovens moradores de rua por agentes de segurança, com características


de execução sumária (disparo de arma de fogo no crânio).
24 No julgamento Caracazo vs. Venezuela (1999), o termo define uma sequência de

protestos populares contra medidas econômicas adotadas pelo Governo Andrés


Perez no começo de 1989. A escalada dos conflitos levou o Estado venezuelano a
adotar medidas como a mobilização do aparato militar e a suspensão de garantias
constitucionais. Números oficiais mencionam, como decorrência dos enfrentamentos,
276 mortos e múltiplos desaparecidos, além de consideráveis danos patrimoniais.

24
madas e divulgar a sentença em jornal de ampla circulação. Noutro
aresto, determinou a criação, em cursos de formação dos servidores
públicos militares e de segurança, de um programa voltado à análise
da jurisprudência do sistema interamericano de proteção dos direi-
tos humanos25.
Como exposto, o direcionamento da responsabilidade civil
à promoção da dignidade humana exige medidas voltadas à rea-
firmação existencial das vítimas. Atenta a isso, a Corte frequente-
mente impõe ao país transgressor a realização de ato público de
reconhecimento de sua responsabilidade, o que inclui a ampla di-
vulgação da decisão em jornais de grande circulação26.
Em várias decisões a ordem de reparação inclui obrigações
concretas de fazer - cujo cumprimento efetivo é fiscalizado pela
Corte -, as quais tomam a forma de expedientes diversos e variados.
Por exemplo, o custeio de uma bolsa de estudos27; o fornecimento
de serviços de saúde gratuitos28; a publicação de declaração escrita
formal de reconhecimento da responsabilidade e pedido de descul-
pas29; a anulação de prévia condenação penal e a retirada do nome
da vítima dos registros públicos de antecedentes criminais30.

25
Caso Gutiérrez Soler vs. Colômbia (2005). A vítima, Wilson Gutiérrez Soler, foi
presa, extorquida e torturada por agentes públicos, fatos que ainda ensejaram pos-
teriores ameaças a si e seus familiares para que se mantivesse calado. Durante
mais de 10 anos lutou contra a impunidade de seus agressores, sem êxito.
26
Em Juan Humberto Sanchez vs. Honduras (2003), a vítima havia sido presa por
forças estatais de segurança, sem ordem judicial e nem ao menos a explicitação das
razões. Após sua liberação, militares armados invadiram sua residência, em julho de
1992, constrangeram seus familiares e o levaram amarrado. Seu corpo seria encon-
trado dias depois. Além do ato público de desagravo, a CIDH ordenou o traslado de
seus restos mortais para novo sepultamento, em local a ser definido pelos parentes.
27
Cantoral Benevides vs. Peru (2000). Acusado de fazer parte do grupo extremista
conhecido como “Sendero Luminoso”, Luis Alberto Cantoral Benavides foi preso de
forma arbitrária, permaneceu incomunicável por vários dias e foi torturado por poli-
ciais, em período de provação que durou mais de quatro anos.
28
No julgamento Barrios Altos vs. Peru (2001), os fatos tocavam à ação de um grupo
de extermínio que, em novembro de 1991, invadiu uma festa de arrecadação de
fundos para a manutenção de edifício situado no bairro de Barrios Altos, na capital
Lima. Após atirar a esmo, dizimaram quinze pessoas, uma criança inclusive.
29 No caso Tibi vs. Equador (2004), a vítima Daniel Davi Tibi - francês residente no

Equador - foi preso por agentes da Interpol, sem respaldo judicial, sob a acusação
de envolvimento com o tráfico de drogas. Foi submetido a torturas durante vinte e
oito meses e teve seus bens apreendidos, que não lhe foram restituídos nem mesmo
quando deixou o cárcere, em janeiro de 1998.
30 Eduardo Gabriel Kimel, jornalista, escritor e historiador político argentino, publicara

25
Outro traço marcante é a superação do vetusto modelo de
solução individual e atomística para cada caso, deixado de lado
em prol de uma resposta adequada também no plano transindivi-
dual. Já a dimensão preventiva da indenização, tão cara à função
social da responsabilidade civil, se evidencia quando o Tribunal
explicitamente ordena a adoção de medidas para que os fatos
não se repitam, mediante a efetivação de políticas públicas de
adequação das normas de direito interno à Convenção Americana
de Direitos Humanos31.
Em julgamento sobre morticínio de centenas de pessoas
de etnia indígena, ocorrido na Guatemala em 1982, a decisão
da Corte impôs ao país diligências para o fortalecimento da cultura
maia, mediante a implementação de políticas públicas de difusão
das tradições e da memória daquele grupo social32. Decisão
semelhante decorreu do massacre ocorrido no presídio Reten
de Catia, em Caracas, do qual resultou uma ordem de ampla
reformulação do sistema carcerário venezuelano33. Na mesma

obra sobre o assassínio de religiosos durante a ditadura daquele país. Um dos juízes
mencionados no livro iniciou processo penal por delito de calúnia, que gerou a con-
denação do escritor a um ano de prisão (caso Kimel vs. Argentina (2008)).
31 Foi o que se verificou no caso Bulacio vs. Argentina (2003). A vítima, Walter David

Bulacio, de dezessete anos, havia sido presa e torturada pelas autoridades, o que
ocasionou seu óbito logo depois. Sua detenção ocorreu durante operação da polícia
federal argentina que levou ao cárcere dezenas de pessoas, num bairro pobre de
Buenos Aires. Embora os detidos fossem liberados gradualmente, no caso da vítima,
sua família sequer fora notificada do aprisionamento. A CIDH não apenas determi-
nou que se prosseguisse a investigação sobre os responsáveis pela barbárie, como
também exigiu o asseguramento da participação dos familiares em todas as etapas
de processos dessa natureza.
32 Esse foi o caso Massacre Plán de Sánchez vs. Guatemala (2004), evento consi-

derado “genocida” pela CIDH.


33 Em novembro de 1992, durante um período de grande instabilidade política contra

o presidente Andres Perez, os reclusos do presídio Reten de Catia, em Caracas, te-


riam tentado uma fuga em massa. A violenta intervenção militar daí decorrente resultou
em nada menos que 63 reclusos mortos, 52 feridos e 28 desaparecidos. Afora isso,
motivou a denúncia também a falta de colaboração das autoridades para com as fa-
mílias das vítimas. No precedente Monteiro Aranguren e outros (2006), a CIDH impôs
à Venezuela a adoção de medidas retificadoras das condições inumanas a que eram
submetidos os presos no país e sua adequação aos padrões internacionais - ou seja,
medidas de caráter legal, administrativo, político e econômico aptas a evitar a repetição
dos abjetos fatos ali apurados. Ordenou-se, ainda, a realização de ato público de ad-
missão da responsabilidade estatal pelos eventos ocorridos no Reten de Catia.

26
senda, a partir de sentença de 2010, foi o México obrigado a realizar
campanhas de conscientização da população acerca da vio-
lência e discriminação contra mulheres indígenas34.
Acrescenta-se que atentados à liberdade de expressão
consubstanciam grave ameaça a este princípio imprescindível às
sociedades democráticas. A Corte reafirmou seu desiderato de de-
fensora do desenvolvimento humano na América Latina ao ordenar
à Venezuela - em julgamento que teve atuação de entidades de
imprensa de vários países na condição de amicus curiae -, que se
abstivesse de qualquer restrição infundada ao direito de obter e
difundir informações35.
Os aportes do Tribunal à evolução do direito de danos in-
cluem a dogmática jurídica. Ao analisar precedente acerca do
ataque de forças militares a uma minoria étnico-cultural do Suri-
name, do qual resultou a morte de dezenas de pessoas, o juiz
Antonio Augusto Cançado Trindade inovou na terminologia cien-
tífica ao reportar-se ao chamado “dano espiritual”, por ele consi-
derada como “forma agravada de dano moral insuscetível de
reparação monetária”36.
A CIDH igualmente contribui para a ampliação e aperfei-
çoamento da reparação de danos com a efetivação de medidas
voltadas ao apaziguamento espiritual dos parentes dos mortos e
desaparecidos pela preservação de sua memória. Por tal motivo,
em vários arestos adotou o expediente de ordenar a atribuição
dos nomes das vítimas a equipamentos públicos.
À guisa de exemplo, o Tribunal incluiu nas sentenças me-
didas como a construção de um monumento às vítimas e o des-
cerramento de placa com sua identificação na presença dos

34 No julgamento Rosendo Cantú e outra vs. México (2010), a sra. Valentina Ro-
sendo Cantú, indígena, sofreu violação sexual e tortura, às quais se seguiu mani-
festa ausência de diligências para apuração de responsabilidades. Sucede que o
crime fora praticado por soldados, e o caso restou encaminhado à jurisdição militar
precisamente para que ninguém fosse punido.
35 No caso Perozo e outros vs. Venezuela (2009), a moldura fática envolvia atos de

assédio, agressões físicas e prisão praticados contra dezenas de profissionais do


canal de televisão Globovisión durante o conturbado período 2001-2005, quando
um golpe tentou tirar Hugo Chávez do poder e um contragolpe o manteve.
36
Caso da Comunidade Moiwana vs. Suriname (2005). Na espécie, integrantes do
exército nacional atacaram a comunidade Maroon N´djuka Moiwana em novembro
de 1986, tirando a vida de homens, mulheres e crianças.

27
respectivos familiares37; a atribuição de seus nomes a centros
educativos38; a criação de disciplina ou curso de direitos humanos
com o nome do lesado39; a designação de rua, praça ou escola
em homenagem à vítima40. Em precedente acerca da desapari-
ção forçada de jornalista político na República Dominicana, foi
imposta ao país a realização de um documentário sobre a vida
da vítima, no qual fosse exaltado seu trabalho jornalístico e seus
esforços para a cultura do país41.
Constata-se que nos pronunciamentos condenatórios da
CIDH há nítida atenção focada na verdadeira e integral reparação
do infortúnio - não apenas no plano monetário, mas igualmente
na esfera psíquica da vítima, mediante imposições ao ofensor de
variadas obrigações de fazer aptas a oferecer àquela algum
alento, imprescindível a seu bem-estar. Na mesma vertente,
nota-se que a Corte busca incutir no transgressor a mudança
comportamental necessária para evitar a repetição do ilícito, pro-
filaxia jurisprudencial que bem se alinha à função social da res-
ponsabilidade civil.

37
No precedente denominado 19 Comerciantes vs. Colombia (2004), apurou-se a
morticínio de dezoito comerciantes por um grupo paramilitar na fronteira entre Co-
lômbia e Venezuela porque estes se recusaram a pagar “impostos” ao referido
grupo. Os desditosos tiveram seus corpos esquartejados e lançados num rio.
38
Trujillo Oroza x Bolívia; o mesmo ocorreu no caso Molina Theissen x Guatemala
(2004), em que o tribunal determinou que se designasse um centro educativo na ci-
dade da Guatemala com um nome que fizesse menção aos meninos desaparecidos
durante conflito armado ocorrido no país. Ordenou-se também que ali deveria haver
uma placa em memória de Marco Antonio Molina Theissen.
39
Versava o caso Huilca Tecse vs. Peru (2005) sobre o assassinato do líder sindical
peruano Pedro Crisólogo Huilca Tecse em dezembro de 1992. Ativo, respeitado e
combativo às medidas do então presidente Alberto Fujimori, sua morte foi artifício
para atemorizar os trabalhadores peruanos e causou grande comoção no país.
40
No caso Baldeón Garcia vs. Peru (2006), apurou-se a detenção, tortura e morte
de Bernabé Baldeón García, camponês de 68 anos, por militares. Os fatos ocorre-
ram em setembro de 1990.
41
O desaparecimento de Narciso González Medina, ativista e opositor ao governo,
foi o eixo central do caso Gonzáles Medina e familiares vs. República Dominicana
(2012). Após publicar artigo de opinião com duras críticas ao presidente Joaquín
Balaguer e conclamar os professores e estudantes de uma universidade local à de-
sobediência civil, desapareceu para jamais ser encontrado.

28
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na “sociedade de risco” contemporânea, em que se vive


à sombra permanente da ameaça de dano injusto, é considerável
o ganho de prestígio da responsabilidade civil como ciência jurí-
dica, segundo se constata, por exemplo, a partir da proliferação
de inéditas situações que passaram a chegar aos tribunais. Em
paralelo, o direito civil sofreu consideráveis mutações a partir da
segunda metade do século XX, quando a reconstrução dogmá-
tica do constitucionalismo levou à queda da antiga dicotomia
entre direito público e direito privado. Com a ascensão da digni-
dade da pessoa humana ao ápice axiológico da Constituição Fe-
deral de 1988, seus valores e princípios ultrapassaram as
relações entre indivíduo e Estado e alcançaram as interações
entre atores privados. Consequências relevantes disso decorrem:
a recognição da eficácia dos direitos fundamentais entre particu-
lares e a fundamentalidade do direito à reparação de danos.
Remodelada em função da tutela efetiva da pessoa, a
responsabilidade civil carece de um novo olhar sobre seus ele-
mentos substanciais, da mesma forma como sucedeu com outros
institutos civilísticos, nomeadamente o direito de propriedade,
contratual e familista. Nessa lógica, o modelo tradicional de com-
pensação monetária mostra-se em tudo infenso ao direito funda-
mental à reparação do dano injusto. Várias adversidades dele
decorrem, como a precificação das tribulações humanas, a me-
canização das condenações, o estímulo à propositura de deman-
das aventurescas e, pior ainda, o desprezo ao fato de que
medidas outras de natureza não pecuniária muitas vezes são
igualmente importantes para a plena reparação do infortúnio.
No cenário latino-americano, a atuação da CIDH é de ine-
gável relevância na defesa das liberdades civis e na propagação
dos valores democráticos. No que tange ao direito de danos,
suas sentenças demonstram aguda preocupação com a função
social da responsabilidade civil, tanto pelo foco na reabilitação
existencial - não apenas material -, da vítima quanto pela impo-
sição de medidas focadas na prevenção de outros malfeitos.
Diante dessa ótica, os precedentes da CIDH devem ser
tomados como paradigmáticos para a edificação de um direito

29
de danos alinhado ao centro axiológico comum do Pacto de São
José da Costa Rica e da Constituição Federal de 1988: a promo-
ção e concretização da dignidade da pessoa humana em todas
as suas dimensões.

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33
34
Alexandre Pereira Bonna*

O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE FRENTE AOS


FENÔMENOS DA LITIGAÇÃO REPETITIVA (REPEAT
PLAYERS) E APATIA RACIONAL (RATIONAL APATHY)

THE PRINCIPLE OF SOLIDARITY IN INTERFACE OF


REPEAT PLAYERS AND RATIONAL APATHY

EL PRINCIPIO DE LA SOLIDARIDAD FRENTE A LOS FENÓMENOS


DE LA LITIGACIÓN REPETITIVA (REPEAT PLAYERS)
Y APATIA RACIONAL (RATIONAL APATHY)

Resumo:
Aborda as características da sociedade moderna em relação à ato-
mização do ser humano. Aprofunda a relação entre a sociedade ato-
mizada e a litigação repetitiva e a apatia racional. Apresenta noções
da teoria do direito como integridade, com enfoque na fase pré-inter-
pretativa e interpretativa proposta por Ronald Dworkin. Explana as
exigências do princípio jurídico da solidariedade, especialmente em
face dos efeitos nocivos de uma sociedade altamente individualizada.
Retoma a discussão envolvendo o princípio da solidariedade como
elemento de destaque na fase pré-interpretativa e interpretativa e
vetor de peso na interpretação de categorias do direito e problemas
concretos enfrentados pelo Poder Judiciário.

Abstract:
It discusses the features of modern society in relation to the atomiza-
tion of the human being. Deepens the relationship between the ato-
mized society and repetitive litigation and rational apathy. It presents
the right theory of concepts such as integrity, focusing on pre-inter-
pretative phase and interpretation proposed by Ronald Dworkin. Ex-
plains the requirements of the legal principle of solidarity, especially in

* Doutorando e mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará.


Professor de graduação e pós-graduação da Universidade da Amazônia e Escola
Superior da Advocacia.

37
the face of the harmful effects of a highly individualized society. Resu-
mes discussion involving the principle of solidarity as a prominent ele-
ment in the pre-interpretation and interpretive phase and weight vector
in the interpretation of the right categories and specific problems faced
by the judiciary.

Resumen:
Aborda las características de la sociedad moderna en relación a la
atomización del ser humano. Aprovecha la relación entre la sociedad
atomizada y el litigio repetitivo y la apatía racional. Se presenta no-
ciones de la teoría del derecho como integridad, con enfoque en la
fase pre interpretativa e interpretativa propuesta por Ronald Dworkin.
Explica las exigencias del principio jurídico de la solidaridad, espe-
cialmente ante los efectos nocivos de una sociedad altamente indivi-
dualizada. Se reitera la discusión envolviendo el principio de la
solidaridad como elemento destacado en la fase pre-interpretativa e
interpretativa y vector de peso en la interpretación de categorías del
derecho y problemas concretos enfrentados por el Poder Judicial.

Palavras-Chave:
Litigantes repetitivos, apatia racional, danos em massa,integridade
da lei, princípio da solidariedade.

Keywords:
Repeat players, rational apathy, massive damages, integrity of law,
principle of solidarity.

Palabras-clave:
Litigación repetitiva, apatía racional, daños en masa, como integridad,
principio de solidaridad.

38
INTRODUÇÃO: CONTEXTUALIZAÇÃO, NOÇÕES DA TEORIA
DO DIREITO COMO INTEGRIDADE, PROBLEMA, JUSTIFICA-
TIVA E METODOLOGIA

A presente pesquisa parte de uma constatação filosófica


de que a modernidade produziu um lado sombrio nas relações pri-
vadas: a sociedade de massa e desinteressada – desenvolvida nas
obras “A Condição Humana” (2011) de Hanna Arendt e “After Vir-
tue” (1991) de Alasdair MacIntyre.
Por conseguinte, essa sociedade (de massa/desinteres-
sada) fomentou uma grave distorção no modo como os danos são
produzidos e encarados pelo Judiciário e pelas vítimas dos mes-
mos, já que por um lado o sujeito atomizado na modernidade aceita
com parcimônia condutas danosas, especialmente as de baixo
valor e intensidade, e, de outro lado, essa apatia racional (rational
apathy)1 está imbrincada com a existência de litigantes repetitivos
(repeat players)2, que se beneficiam dessa apatia e da falta de res-
ponsabilização à altura dos danos causados.
Essas duas consequências (rational apathy e repeat
players), pelo fato de revelarem um aspecto banalizado e padroni-
zado da produção de danos na sociedade atual, podem ser carac-
terizadas preocupantemente como elementos de violação de
direitos (fundamentais ou não) no bojo das relações privadas, acen-
dendo o alerta para a reflexão sobre se as instituições criadas pelo
homem - que em última instância servem para garantir o respeito e
a concretização de bens básicos3 -, são deficitárias em face desses

1 Expressão desenvolvida por Louis Visscher em “Economic analysis of punitive


damages” (2009), afirmando a pertinência do valor indenizatório de cunho pu-
nitivo de modo a causar um desestímulo ao ofensor, assim como para fazer
frente a falta de responsabilização na mesma proporção do dano causado, em
especial pela apatia racional relacionada a um certo grau de aceitação do dano
e falta de vigor, disposição e tempo para buscar proteção judicial.
2 Expressão desenvolvida por Marc Galanter (1983), ao se referir a litigantes

que se valem da falta de clareza do tratamento jurídico de determinados temas


assim como da alta probabilidade de vítimas de danos não agirem judicialmente
na defesa de seus direitos.
3 Os bens básicos são evidentes por si mesmos, inquestionáveis, são valores ou

princípios que são necessários para qualquer boa ação do homem, além de serem
fundamentais para o pleno florescimento humano. Eles servem de referência para
a avaliação das instituições criadas pelo homem (FINNIS, 2007, p. 67).

39
fenômenos, de modo a contribuir às “reflexões práticas daqueles
que se preocupam em agir, quer como juízes, quer como estadis-
tas, quer como cidadãos” (FINNIS, 2007, p. 31), um dos fundamen-
tos do Direito Natural.
Embora esse trabalho não utilize em seu desenvolvimento
os pressupostos da teoria do Direito Natural, reconhece a impor-
tância de refletir sobre a harmonia das categorias jurídicas e das
instituições que garantem direitos com um modelo de racionalidade
jurídica suficiente para impedir graves distorções morais e de for-
talecer os laços de dependência comunitária entre os membros de
um determinado grupo de pessoas, dimensão esta que também se
encontra no pensamento de Ronald Dworkin, especialmente
quando trata das obrigações comunitárias/associativas.
As obrigações comunitárias/associativas na concepção
dworkiana nada tem a ver com deveres que são deliberados e es-
colhidos, mas sim estão relacionados a uma atitude interpretativa,
porque se deve honrar compromissos que surgem no bojo da prá-
tica social na qual se está inserido, os quais estão vinculados a um
grau de reciprocidade e noção de integridade e interpretação, mo-
tivo pelo qual esse tipo de obrigação implica algum sacrifício dos
próprios interesses (DWORKIN, 1999, p. 237-244).
Nesse viés, é possível conceber uma comunidade política
como um ente com personalidade e exigências próprias, diferente
das dos indivíduos que a compõem, de modo que ser fiel a uma prá-
tica social implica agir de acordo com os princípios que emanam
dessa comunidade personificada, o que por um lado afasta essa
moral das crenças populares, mas que por outro está interligada a
um conjunto de práticas. Assim, o agir moral em harmonia com
essas práticas nada tem a ver com o que as pessoas individualmente
pensam ser o moralmente correto (DWORKIN, 1999, p. 204-208).
Portanto, a concepção do direito como integridade à tarefa
de explicar como um padrão de comportamento exigido por princí-
pios surge a partir de uma prática social, caracterizando-se como
uma teoria do direito que possui um elemento comunitário, porque
embora acate um certo grau de liberdade de perseguir ambições,
compromissos, projetos e interesses pessoais, essa esfera da so-
berania individual sofre restrições pela integridade (DWORKIN,
1999, p. 211).

40
Essa concepção de direito (direito como integridade), ado-
tada como premissa na presente pesquisa, presta substrato para
justificar a interferência da autoridade do Estado na esfera de di-
reitos dos indivíduos. Vale destacar que a atividade jurisdicional
também tem cunho político, não de política partidária, mas sim de
princípio político, especialmente em casos controvertidos (DWOR-
KIN, 2001, p. 5-6).
É por esse motivo que o direito como integridade defende
uma visão “centrada nos direitos” e não no “texto legal”, em razão
da amplitude a que o magistrado está autorizado a adentrar, apro-
ximando a atividade jurisdicional da política. Enquanto que a con-
cepção “centrada no texto legal” afirma que o poder do Estado só
pode ser exercido contra os cidadãos a partir de regras explicita-
mente especificadas, não podendo inovar até que as mesmas
sejam modificadas, a concepção “centrada nos direitos” parte de
um ideal de justiça substantiva segundo a qual os cidadãos têm di-
reitos e deveres morais entre si e perante o Estado, assim como o
Estado do Direito necessita incorporar e aplicar esses direitos mo-
rais (DWORKIN, 2001, p. 6-7).
Isso não significa que o texto legal (Constituição, leis, de-
cretos) não tenha peso e importância, pelo contrário, “um elevado
grau de aquiescência à concepção centrada no texto jurídico pa-
rece ser necessário a uma sociedade justa” (DWORKIN, 2001, p.
9). Contudo, sob essa ótica centrada nos direitos, não são apenas
as decisões oficiais que os outorgam, nem tampouco a intenção de
soberanos e muito menos o consenso em uma certa comunidade,
apesar de muitos críticos da concepção dworkiana alegarem que
se trata de uma versão falha do direito por não conseguir refletir
previsibilidade na vida dos cidadãos nem reivindicar autoridade,
visto que as questões extralegais comportam muitos dissensos.
De fato, a integridade não exige concordância (exceto na
fase pré-interpretativa). A própria falta de consenso sobre direitos
morais e a pluralidade de opiniões enriquece a prática social, de
modo que a existência de direitos está imbricada com a comuni-
dade personificada, a qual é um ente diverso dos sujeitos que a
compõem e, por esse motivo, exige um conjunto de padrões que
podem não ter relação com a opinião da maioria.

41
Minha visão é que o Tribunal deve tomar decisões de princípio, não de
política – decisões sobre que direitos as pessoas têm sob nosso sistema
constitucional, não decisões sobre como se promove melhor o bem-
estar geral (DWORKIN, 2001, p. 101).

Construir os direitos, a partir da comunidade personificada,


exige a compreensão de um tipo especial de moralidade política,
que respeite o passado, o presente e o futuro, considerando que a
melhor concepção de direitos será aquela que descrever da ma-
neira mais coerente a continuidade do empreendimento interpreta-
tivo, teoria esta que será retomada mais adiante.
A presente pesquisa busca refletir – na fase pré-interpre-
tativa e interpretativa do direito como integridade -, sobre se o juiz
está obrigado a pesar o princípio da solidariedade previsto no artigo
3º, inciso I, da Constituição Federal de 1988, na interpretação de
direitos inseridos nos fenômenos da litigação repetitiva e da apatia
racional, pois, caso possua, em algum grau o Poder Judiciário es-
taria contribuindo para a construção de uma sociedade mais soli-
dária, menos apática e propensa a danos em massa, fortalecendo
laços comunitários e de dependência mútua.
A justificativa da referida discussão se revela a partir da
realidade alarmante que se instaurou na sociedade brasileira no to-
cante a práticas ilegais e danosas, que continuam sendo perpetra-
das, posto que, à luz do custo-benefício, são lucrativas (há um
preço do ilícito)4 e se valem da apatia racional, além de outros fa-
tores como a morosidade do Poder Judiciário. Nesse cenário, en-
gendrado pelo profundo individualismo que afetou a sociedade
moderna, torna-se natural pautar condutas em detrimento ou com
indiferença perante o outro, sendo fundamental retomar a discus-
são ética pelo canal do princípio da solidariedade e do direito como
integridade, que possui também um aspecto comunitário na análise
dos direitos.

4 Já desenvolvi a relação de práticas ilícitas com altos lucros em meu “Punitive


damages (indenização punitiva) e os danos em massa: “’preço do ilícito’, por
meio do qual os ofensores sabem previamente quantas vítimas ingressarão em
juízo e também quanto despenderão a título de indenização compensatória, ve-
rificando quão vale a pena violar direito alheio” (BONNA, 2015, p. 102)

42
Primeiramente, será feita uma abordagem da sociedade
de massa e a sua influência na subsistência dos litigantes repetiti-
vos e da apatia racional. Em seguida, será dada continuidade à
construção da teoria do direito como integridade de Dworkin, es-
pecialmente explicando a fase pré-interpretativa e interpretativa. Ao
final, refletir-se-á acerca do peso do princípio da solidariedade em
casos judiciais onde o magistrado se vê diante daqueles fenôme-
nos enunciados pela filosofia.

A INFLUÊNCIA DA SOCIEDADE DE MASSA NA FORMAÇÃO


DOS LITIGANTES REPETITIVOS (REPEAT PLAYERS) E DA
APATIA RACIONAL (RATIONAL APATHY)

A vida do homem em uma sociedade de massa é marcada


pelo isolamento e falta de vínculos de dependência, formando o
que podemos chamar de atomização, que representa a existência
de vínculos muito fracos entre os membros de uma dada comuni-
dade, perdendo-se a noção de algum objetivo a ser alcançado em
cooperação.
Inúmeras razões contribuíram para a alienação do homem
em relação ao próximo, como a reforma protestante, as conquistas
marítimas, o movimento de aglutinação nas cidades e o avanço
científico, porém, nenhum desses motivos foi mais forte que o fato
de o trabalho ter se tornado a atividade mais importante da vida do
homem moderno, ou, em outras palavras, o animal laborans ter
vencido o homo faber na modernidade.
O animal laborans representa o estado do homem como
mantenedor da vida e do processo biológico correlato, não se dife-
renciando nessa condição de outros animais. É caracterizado pela
atividade do trabalho (labor), ou seja, para Hannah Arendt o traba-
lho é sinônimo de ações inseridas em um ciclo de obtenção de ne-
cessidades imediatas, motivo pelo qual o resultado do trabalho tem
permanência breve no mundo, “seja por meio da absorção no pro-
cesso vital do animal humano, seja por meio da deterioração (...)
desaparecem mais rapidamente que qualquer outra parte do
mundo” (ARENDT, op. cit., p. 118-119).

43
O homo faber (homem fabricante) possui como atividade
a obra (work), por meio da qual violenta a natureza para produzir
objetos duráveis, para além de seu ciclo biológico. Nesse estado,
o homem opera sobre a natureza para produzir um conjunto de ob-
jetos artificiais com caráter permanente a serem partilhados por ou-
tros homens (ARENDT, op. cit., p. 169).
A transformação do trabalho, como a atividade preponde-
rante do homem moderno, fez com que todos os valores desse
homem trabalhador (animal laborans) fossem transportados para
outros campos da vida social. Assim, o aspecto cíclico e efêmero
do homem trabalhador impregnou as relações sociais de modo que
o homem passou a não ver mais nada além de si mesmo e suas
respectivas necessidades, perdendo, inclusive, o interesse pelo as-
pecto comunitário e social.
Esse desinteresse pelo outro pode claramente ser consta-
tado através da bifurcação de dois campos abertos de vida e reci-
procamente excludentes: a vida social e a esfera individual: “this
bifurcation is itself an important clue to the central characteristics of
modem societies”5 (MACINTYRE, op. cit., p. 34). No aspecto indi-
vidual, os indivíduos são soberanos em suas escolhas relacionadas
aos bens que desejam perseguir; no tocante à vida social, a buro-
cracia e as decisões oficiais são soberanas.
Ressalta-se que a sociedade de consumidores está imbri-
cada com a sociedade de trabalhadores, pois o consumo desenfreado
do homem, caracterizado pela voracidade da substituição rápida de
mobílias, carros, celulares, roupas e demais objetos do mundo, en-
globa um processo produtivo composto de uma massa de trabalha-
dores para dar conta de imprimir alta produtividade em face da
velocidade com que os itens de consumo são tragados e descartados.
É nesse sentido que se diz que o animal laborans venceu
no mundo moderno, porque a abundância e efemeridade do
mesmo são características próprias do homem que visa à manu-
tenção da vida, em contraste com o homo faber, que despende es-
forços para que os objetos fabricados sejam efetivamente utilizados
e tenham durabilidade e permanência no mundo. Ou seja, o ciclo

5
"essa bifurcação é uma importante pista para compreender as características
essenciais das sociedades modernas" (MACINTYRE, op. cit., p. 34).

44
interminável da vida (caça, pesca, reprodução etc) se encaixa no
ciclo interminável do consumo, e em ambas a fronteira entre a hu-
manidade e a animalidade são estreitas.
É possível relacionar esse isolamento ocasionado pela
preponderância do trabalho com o fenômeno da apatia racional (ra-
tional apathy), visto que a vida plena do ser humano, de acordo
com o pensamento de Hannah Arendt, deveria envolver uma rela-
ção harmônica entre a atividade do trabalho, da fabricação e da
ação (relacionada ao agir moral, reflexões, decisões), e, como o
homem moderno dedica a maior parte do seu tempo à atividade
do trabalho (leia-se atividade para manter-se vivo), pouco espaço
sobra para tarefas de preservação e defesa de direitos, pouco
sobra para o agir.
Nesse sentido, é muito comum deparar-se com situações
ilegais e danosas (valor mínimo de compra para cartão de crédito,
cláusulas abusivas, publicidade enganosa, assédio moral, débito
automático de serviço não autorizado, descumprimento parcial de
contratos), que facilmente são aceitas com parcimônia pelas víti-
mas, seja porque tem pouca disposição e vigor para agir, seja por-
que individualmente considerados os referidos danos são baixos.
Nesse desiderato, o lucro ilícito a partir de uma apatia co-
letiva de pequenos danos gera outro fenômeno: o da litigação re-
petitiva (repeat players), o qual é reforçado pelo enorme grau de
desinteresse6 pelo outro próprio da modernidade, individualismo li-
beral à coexistência pacífica de setores da vida humana incomuni-
cáveis entre si, mas considerados harmônicos (a vida individual e a

6 Tamanho é o isolamento do homem moderno que há pesquisas que entendem


que para o filósofo MacIntyre as relações de trabalho e de consumo não pode-
riam ser caracterizadas como práticas visto que os seus componentes estão
sempre em busca de bens externos a essas práticas, como dinheiro, poder etc.
Nesse sentido: “As atividades laborais de boa parte dos habitantes do mundo
moderno não podem ser compreendidas como uma prática nos termos que Ma-
cIntyre desenvolve. Pois, ao deslocar o trabalho produtivo de dentro dos laços
comunitários, se perdeu a noção de trabalho como uma arte que contribuía para
o sustento da comunidade e dos lares. (...) Por conseguinte, as relações meio-
fins são necessariamente externas aos fins daqueles que trabalham, e como já
ressaltamos, as práticas com bens internos foram excluídas, assim como as
artes, as ciências e os jogos são tidos como trabalhos de uma minoria especia-
lizada” (SANTOS, 2012, p. 101-102).

45
vida comunitária): “so work is divided from leisure, private life from
public, the corporate from the personal. (...) And all these separations
have been achieved so that it is the distinctiveness of each and not
the unity of the life of the individual”7 (MACINTYRE, op. cit., p. 204).
Por fim, um magistrado insensível ao mundo que lhe rodeia
e aos seus fenômenos desagregadores não julgará atendendo aos
ditames constitucionais do solidarismo, que, como princípio que é,
impõe interpretações jurídicas em um determinado vetor, podendo
influenciar na interpretação de categorias do direito privado, espe-
cialmente diante de casos que denotem a apatia racional e a litiga-
ção repetitiva, elementos que evidenciam essa fragmentação e o
desinteresse pela esfera de bens jurídicos de outrem.

A FASE PRÉ-INTERPRETATIVA E INTERPRETATIVA DO DI-


REITO COMO INTEGRIDADE: A IMPORTÂNCIA DO RECORTE
NORMATIVO JUSTIFICADO

A concepção de direito de Ronald Dworkin exige que o in-


térprete tenha responsabilidade com as reivindicações da integri-
dade, uma delas é a de que o destino dado ao direito seja o que
melhor se amolde às práticas da comunidade e isso implica poten-
cializar a efetividade de princípios jurídicos, os quais são respon-
sáveis por dotar de sentido, unidade e coerência os sistemas
jurídicos, especialmente os de cunho constitucional como o da so-
lidariedade. Nesse sentido, Lenio Luiz Streck acentua essa dimen-
são da integridade:

(...) de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e eqüi-


dade na correta proporção, diante do que, por vezes, a coerência com
as decisões anteriores será sacrificada em nome de tais princípios (cir-
cunstância que assume especial relevância nos sistemas jurídicos como
o do Brasil, em que os princípios constitucionais transformam em obri-
gação jurídica um ideal moral da sociedade) (2008, p. 272-273).

7
"Então o trabalho é dividido do lazer, a vida privada da vida pública, o corporativo
do pessoal. (...) E todas essas separações fazem com que cada esfera seja distinta,
não fomentando a unidade da vida do indivíduo" (MACINTYRE, op. cit., p. 204).

46
Assim, uma das pretensões da integridade é conferir im-
portância à totalidade do direito, pois, como visto, a sociedade per-
sonificada explicada por Ronald Dworkin revela que a comunidade
política possui imposições e deveres que não necessariamente
condizem com as pretensões individuais de cada um dos seus
membros, posto que estes estão submetidos a princípios comuns
e fundantes da comunidade, a ponto de a concepção de justiça ter
de se pautar em princípios fundamentais, como o da solidariedade,
em detrimento de normas mais específicas, princípios menos abs-
tratos ou regras.
É como se a sociedade/comunidade fosse portadora de
um objetivo/telos próprio e que esses princípios representassem
isso, podendo impor limites a determinadas interpretações jurídicas,
motivo pelo qual o direito não se diferencia de outras práticas so-
ciais, que necessitam para a sua inteira compreensão em momen-
tos de dúvida de uma noção adequada sobre o que a prática requer
se devidamente compreendida (DWORKIN, 1999, p. 58).
Nesse viés, a tarefa dworkiana de interpretação do direito
deve conceber três momentos distintos: pré-interpretativo, interpre-
tativo e pós-interpretativo (DWORKIN, 1999, p. 81). O trabalho se
atém especificamente às fases relacionadas ao recorte normativo
e às justificativas desse recorte (respectivamente, fases pré-inter-
pretativa e interpretativa), deixando de lado a fase atinente à análise
das exigências que as justificativas das etapas anteriores requerem
no caso concreto.
A fase pré-interpretativa parte do pressuposto de que, para
iniciar qualquer atividade interpretativa, faz-se necessário partir de
elementos que evidenciem decisões políticas do passado, que con-
sensualmente devam ser consideradas à tarefa interpretativa, que,
em última instância e em consonância com as outras fases, irá jus-
tificar a força do Estado na esfera particular. Em outras práticas
esse recorte é comum, como nas obras literárias:

Na interpretação de obras literárias, a etapa equivalente é aquela em


que são totalmente identificados romances, peças etc., isto é, a etapa
na qual o texto de Moby Dick é identificado e distinguido do texto de ou-
tros romances (DWORKIN, 1999, p. 81).

47
O pressuposto da etapa pré-interpretativa é de que qual-
quer diálogo só tem sentido se primeiro as premissas dos partici-
pantes foram consensualmente selecionadas, de modo a identificar
bases e padrões comuns sobre quais práticas são relevantes para
a prática jurídica. Somente em momento posterior será possível
percorrer um aprofundamento interpretativo sobre qual a melhor
interpretação que se amolda à comunidade política:

Essa é uma exigência prática de qualquer empreendimento interpreta-


tivo. (...) Todos entramos na história de uma prática interpretativa em
um determinado momento; nesse sentido, o necessário acordo pré-in-
terpretativo é contingente e local (DWORKIN, 1999, p. 113).

Em seguida, passa-se à fase interpretativa, marcada pela


necessidade de dar razões e justificativas para o recorte normativo
feito na fase anterior, motivo pelo qual o recorte será diferente para
cada caso. Portanto, as decisões políticas do passado, que serão
determinantes para a interpretação construtiva de um caso, não
serão as mesmas para outro, mostrando toda a dinamicidade do
direito e o permanente ônus argumentativo imposto ao intérprete,
no sentido de justificar os pilares estruturantes da sua tarefa her-
menêutica para, posteriormente, pesar os princípios em jogo.

JUSTIFICATIVAS DO PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NA


FASE PRÉ-INTERPRETATIVA E INTERPRETATIVA EM FACE
DOS LITIGANTES REPETITIVOS (REPEAT PLAYERS) E DA
APATIA RACIONAL (RATIONAL APATHY)

Agora o trabalho ocupar-se-á da tarefa de avaliar a pre-


sença do princípio da solidariedade em casos de litigação repetitiva
e apatia racional, analisando as razões da fase interpretativa que
justificariam o seu peso no recorte normativo de casos envolvendo
litigação de massa, visto que, caso existam boas razões para a sua
inclusão, diversas categorias do direito podem ter a sua interpreta-
ção alterada e aprofundada.
Antes de adentrar no conteúdo do princípio da solidarie-
dade, faz-se necessário frisar dois aspectos: a) ao avaliar o conteúdo

48
do princípio da solidariedade e a sua relação com as questões de
massa e da litigação repetitiva, está-se na fase pré-interpretativa e
interpretativa, momento em que o intérprete realiza um corte nor-
mativo sobre quais decisões políticas do passado terão peso na
avaliação de um certo fenômeno jurídico a partir de justificativas;
b) afirmar que a solidariedade se trata de um princípio e não de
uma regra implica o reconhecimento de que não existe a possibili-
dade de enumerar aprioristicamente hipóteses de cabimento, visto
que um princípio é obrigatório em um certo caso particular, porque
funciona como um vetor que deve ser contrabalanceado com ou-
tros vetores (princípios). Quando há um princípio, significa que ele
deve ser levado em conta pelas autoridades públicas, como se
fosse uma razão numa ou outra direção. Quando os princípios se
intercruzam, aquele que vai resolver o conflito tem de levar em
conta a força relativa de cada um. Faz sentido perguntar que peso
ele tem ou qual importância (DWORKIN, 2002, p. 38-43), e, acres-
centaria, mesmo que um princípio não se intercruze com o outro, é
válido indagar qual o peso que ele possui na interpretação de ca-
tegorias do direito envolvidas no litígio.
Quanto à fase pré-interpretativa, não há maiores dificulda-
des em reconhecer que a Constituição Federal e seus princípios
são práticas que compõem a prática jurídica e são levados em
conta para a atuação não só de funcionários públicos como tam-
bém de particulares, assim como pautam as decisões da atividade
jurisdicional, que interpretam o direito à luz de princípios. Ou seja,
a questão não está em justificar que os princípios constitucionais
fazem parte de nossas práticas, mas sim de justificar a presença
do princípio da solidariedade no recorte normativo de casos envol-
vendo litigação repetitiva e apatia racional.
Quanto às justificativas para o princípio da solidariedade,
dentro da fase interpretativa, vale ressaltar que a solidariedade,
antes de ser inserida como um dos objetivos da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, foi muito discutida no
âmbito do direito internacional e dos direitos humanos. Na dé-
cada de 1970, Karel Vasak mencionou “direitos de solidariedade”
ou de “fraternidade”, ao se referir aos direitos à paz, meio am-
biente equilibrado, desenvolvimento e patrimônio comum da hu-
manidade, em outras palavras, direitos relacionados ao

49
bem-estar e ao reconhecimento de interesses comuns entre os
homens (BIONDI, 2015, p. 16).
Dessa feita, haveria uma dimensão de direitos abstratos
centrados no indivíduo em si (civis e políticos), direitos relacionados
às necessidades básicas a serem supridas (sociais, econômicos e
culturais) e, por fim, uma dimensão em que a dignidade da pessoa
humana cresce e se expande a ponto de exigir um tipo especial de
relação entre os indivíduos. Frisa-se que há estudos que apontam
para outras dimensões de direitos humanos.
Portanto, esse viés solidário exige uma concepção de bem
comum a todos os membros de uma comunidade política, bem este
que só pode ser alcançado mediante o esforço de todos, pessoas
físicas e jurídicas, públicas e privadas, tornando-se jurídico (obri-
gatório) no comportamento das pessoas o dever de empenhar-se
nessa tarefa, de modo que a humanidade ou a personalidade hu-
mana só estaria completa caso essa percepção do outro (e de seus
respectivos interesses) fosse lapidada.
Em razão dos limites do presente trabalho, parte-se do
pressuposto de que a solidariedade possui viés jurídico e obrigató-
rio, visto que existem teóricos críticos do caráter jurídico da solida-
riedade, aduzindo que se trata de um princípio ainda vago e
abstrato e que comporta exigências morais e não jurídicas.
Essa exigência jurídica da solidariedade pode envolver
uma dimensão interna ou até mesmo restrita a um certo grupo de
pessoas e não necessariamente atrai um fator internacional, tendo
como característica central o fato de que as partes isoladas de um
todo só terem sentido se consideradas por inteiro e por completo,
como explica Fábio Konder Comparato (2006, p. 577): “a solidarie-
dade não diz respeito, portanto, a uma unidade isolada, nem a uma
proporção entre duas ou mais unidades, mas à relação de todas
as partes de um todo, entre si e cada uma perante o conjunto de
todas elas”.
Ao refletir sobre o alcance dessa exigência no direito, é
possível constatar que se deve ir além dos direitos e interesses in-
dividuais, de modo a interpretar regras e princípios no sentido de
atenderem também o vetor que busca harmonizar os interesses in-
dividuais com um objetivo coletivo relacionado ao prestígio da coe-
xistência e compatibilidade de projetos de vida distintos, que são

50
justamente os valores necessários para fazer frente ao fenômeno
do isolamento e da atomização do ser humano, que na moderni-
dade propiciaram o surgimento da litigação de massa e da apatia
racional, que são consequências do profundo grau de individua-
lismo que a humanidade atingiu.
O direito, como reflexo também dos valores da sociedade
na qual está inserido, foi contaminado não tanto em seus institutos
da responsabilidade civil e do direito processual civil – que até pos-
sui elementos de bem comum, como a função social da proprie-
dade e dos contratos, boa-fé objetiva, dignidade da pessoa
humana, etecetera –, mas principalmente na instância da atividade
jurisdicional, particularmente na interpretação que juízes e tribunais
dão aos direitos que os cidadãos têm em litígios envolvendo danos
em larga escala e apatia racional.
Vê-se a insuficiência da interpretação de categorias do di-
reito privado ao constatar-se que, quando se está diante de danos
em massa, os magistrados não levam em conta o momento pré-
processual (pré-litigioso) relacionado à inércia das vítimas de
danos em relação a danos de pequena monta, se atento a fixar
valor indenizatório meramente compensatório do dano individual,
não se preocupando em majorar a verba de modo a causar um
desestímulo à conduta do ofensor, a ponto de inibir ele e outros
em igual condição de perpetrarem danos em massa e pautarem
suas atividades com alto grau de desinteresse7 pelos projetos de
vida do outro.
Aliás, constata-se a nefasta equação do custo-benefício
no manejo de produtos e serviços, assim como no trato com as
condições de trabalho, onde as escolhas são sempre pautadas sob
essa ótica, de modo a reduzir custos e incrementar os ganhos,
mesmo que isso signifique lesionar o outro, devendo o Poder Judi-
ciário, valendo-se do princípio da solidariedade e de suas exigên-
cias, atribuir peso, por exemplo, ao cabimento da indenização
punitiva na experiência brasileira, de modo a fazer frente às práticas
individualistas e estabelecer um padrão público de comportamento
e de justiça relacionado à solidarização.
De igual modo, registra-se outro aspecto que demonstra
como a atomização do ser humano atinge a interpretação dos tri-
bunais quanto à fraqueza das ações coletivas no trato das questões

51
de massa e a inúmeros entraves criados jurisprudencialmente para
limitar o grau de abrangência dos entes legitimados para propor
ações coletivas, exigindo, por exemplo, que os interesses em jogo
sejam “relevantes” ou possuam “interesse público”, fatores estes
que acarretaram, juntamente com o regime de coisa julgada, uma
espécie de falência das ações coletivas no trato das questões de
massa:

Mesmo com a implantação de um regime próprio para os processos co-


letivos, persistem as demandas repetitivas, que se multiplicam a cada
dia. (...) Na sociedade atual, caracterizada pela crescente complexidade
das relações jurídicas, há um enorme agigantamento na quantidade de
litígios, sendo praticamente ilusório tentar conter tal crescimento. As de-
mandas coletivas não têm conseguido resolver todos esses casos. Mui-
tos dos problemas de massa são solucionados individualmente, em
cada uma das milhares de demandas propostas a respeito do mesmo
tema. Com efeito, não é raro que uma determinada situação atinja, a
um só tempo, uma quantidade exagerada de pessoas, que, diante
disso, passam a ingressar em juízo na busca do reconhecimento de
seu direito (DIDIER; CUNHA, 2015, p. 584).

Assim, caso o princípio da solidariedade fosse selecionado


na fase pré-interpretativa e justificado na interpretativa, em conflitos
de massa, os rumos interpretativos acerca das ações coletivas po-
deriam ser outros, e estas serem fortalecidas como instrumento
para fazer frente, de maneira satisfatória, a condutas danosas re-
petitivas e marcadas pela desproteção das vítimas, apontando para
a direção de conferir maior efetividades às causas coletivas, aos
entes legitimados e aos direitos em jogo em contraposição aos ar-
gumentos e princípios em sentido contrário, visto que o ideal soli-
dário implica enfrentar a atomização do ser humano e, por
consequência, os efeitos dessa atomização (leia-se: litigação repe-
titiva e apatia racional).
Outra categoria do direito que poderia ser atingida no seu
modo de interpretar, a partir do recorte normativo que leve em conta
a solidariedade, é a boa-fé objetiva, como exigência de que os con-
tratantes guardem entre si antes, durante e após a relação jurídica,
deveres de lealdade, retidão, transparência, probidade e informa-
ção mútua. Esse princípio pode e deve ser manejado em relações
de massa e danos repetitivos, pois é um típico instituto do direito

52
privado que pode ter a sua extensão comprometida pela desconsi-
deração do princípio da solidariedade, uma vez que o grau de
abrangência do que se exige a partir da lealdade e probidade é pro-
fundamente aumentado, se for posto à prova o ideal de construir
uma sociedade solidária e lutar contra o isolamento do ser humano,
denotando mais uma vez a relevância e importância do referido
princípio no trato das questões de massa.
Assim, considerando a escolha político-legislativa de elevar
a objetivo da República Federativa do Brasil à construção de uma
sociedade solidária, assim como o papel que esse princípio pode
desempenhar em casos concretos envolvendo litigação repetitiva
e apatia racional, apontando para a interpretação do direito que
mais se amolde a esse ideal, há justificativa para que esse princípio
não seja negligenciado como guia interpretativo de litígios de
massa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não há saída. Se a litigação repetitiva e a apatia racional


são fenômenos do isolamento do ser humano e trazem consigo
uma série de mazelas, sendo o princípio da solidariedade um vetor
que abranda, atenua e enfraquece essa selvageria, como demons-
trado ao longo da pesquisa, o magistrado está obrigado a sele-
cioná-lo na fase pré-interpretativa e interpretativa como princípio
jurídico de estatura constitucional, a ser pesado com outros princí-
pios, ou mesmo em conflito de regras de modo a favorecer uma
das interpretações.
Desse modo, o Judiciário agregaria um ingrediente inter-
pretativo que fizesse frente à atomização e isolamento do ser hu-
mano, contribuindo para o incremento dos institutos de direito
privado na esteira desse ideal, porque, quando o princípio da soli-
dariedade é atraído para um caso, a interpretação jurídica é reves-
tida de um patamar ético, terreno fértil para a eficácia dos direitos
fundamentais, fonte última da autoridade do direito.

53
REFERÊNCIAS

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55
56
Carlos Roberto Jamil Cury*
Luiz Antonio Miguel Ferreira**

JUDICIALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO INFANTIL,


O TRABALHO DOS PROFESSORES E A QUALIDADE
DA EDUCAÇÃO: RELAÇÕES POSSÍVEIS

JUDICIALIZATION OF CHILD EDUCATION, THE WORK OF TEACHERS


AND QUALITY OF EDUCATION: POSSIBLE RELATIONSHIPS

JUDICIALIZACIÓN DE LA EDUCACIÓN INFANTIL, EL TRABAJO DE LOS


PROFESORES Y LA CALIDAD EDUCACIÓN: RELACIONES POSIBLES

Resumo:
O presente artigo tem como objetivo discutir a judicialização da edu-
cação infantil e os seus reflexos nas condições de trabalho do profis-
sional da educação. Tendo como foco o direito à educação e à
discussão judicial de temas relacionados com as creches, busca tra-
çar as consequências que as decisões judiciais acarretam para os
professores, em especial no que diz respeito à falta de vagas e re-
cesso ou férias. Proporciona, também, uma reflexão sobre a questão
da qualidade da educação infantil e as consequências das decisões
judiciais a respeito do tema.

Abstract:
This article aims to discuss the judicialization of early childhood educa-
tion and its impact on the working conditions of the education profes-
sional. Focusing on the right to education and the judicial discussion of

* Pós-Doutor pela Faculdade de Direito do Largo S.Francisco- USP, pela Université


de Paris e pela École des Hauts Études en Sciences Sociales. Professor Titular da
Universidade Federal de Minas Gerais e professor adjunto da PUC Minas. Mestre
e doutor em Educação: História, Política, Sociedade pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Ciências
e Letras Nossa Senhora Medianeira. Professor titular (aposentado) da Faculdade
de Educação da UFMG e professor adjunto da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais atuando na graduação e pós-graduação (mestrado e doutorado).
** Mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita
Filho". Integrante do Grupo de Atuação Especial em Educação - GEDUC Região
de Presidente Prudente. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de
São Paulo.

57
issues related to day-care centers, it seeks to outline the consequences
that court decisions impose on teachers, especially regarding the lack
of vacancies and recess or holidays. It also provides a reflection on the
issue of the quality of early childhood education and the consequences
of judicial decisions on the subject.

Resumen:
El presente artículo tiene como objetivo discutir la judicialización de
la educación infantil y sus reflejos en las condiciones de trabajo del
profesional de la educación. Con el enfoque de la educación y la dis-
cusión judicial de temas relacionados con las guarderías, busca trazar
las consecuencias que las decisiones judiciales acarrean para los
profesores, especialmente en lo que se refiere a la falta de vacantes
y recesos o vacaciones. También ofrece una reflexión sobre la cues-
tión de la calidad de la educación infantil y las consecuencias de las
decisiones judiciales sobre el tema.

Palavras-Chave:
Mudança, paradigma, judicialização, não oferecimento, oferta
irregular, creche.

Keywords:
Change, paradigm, judicialization, no offer, irregular offer, day care.

Palabras-clave:
Cambio, paradigma, judicialización, no ofrecimiento, oferta irregular,
guardería.

58
INTRODUÇÃO

Num passado não muito remoto, a primeira etapa da edu-


cação infantil – creche –, tinha um caráter assistencial que objetivava
garantir o trabalho para as mães, ou seja, era considerado um direito
da mãe trabalhadora, a ponto de a legislação trabalhista estabelecer
a necessidade de creche em estabelecimentos em que trabalhas-
sem trinta ou mais mulheres, de acordo com a redação original do
art. 389 da Consolidação das Leis do Trabalho, Decreto-Lei n.
5.452/1943.
Assim, as creches constituíam-se num modelo assistencial
às crianças, mas tendo como foco a genitora. Por outro lado, a legis-
lação educacional fazia breves e genéricas referências a escolas ma-
ternais ou jardins de infância em geral, sob a rubrica de pré-primário,
como é o caso dos artigos 23 e 24 da Lei n. 4.024/61, e não o con-
signando como direito. Com o advento da Constituição Federal de
1988, ficou expressamente estabelecido que a educação infantil é
um direito relativo à educação, a que faz jus a criança de até 05 anos
de idade, mediante o dever do Estado. Assinala-se que a educação
infantil se distingue em creche (0 a 3 anos) e pré-escola (4 a 5 anos).
Nesse sentido, pontua a Constituição Federal:

Art. 208. O DEVER DO ESTADO com a educação será efetivado me-


diante a garantia de:
.....
IV – Educação infantil, em CRECHE e pré-escola, às crianças até 5
anos de idade.
VII - atendimento ao educando, em todas as etapas da educação bá-
sica, por meio de programas suplementares de material didáticoescolar,
transporte, alimentação e assistência à saúde.

Verifica-se que a Lei Maior não apenas estabeleceu como


dever do Estado a garantia da creche, como também do atendi-
mento mediante programas suplementares de material didático-
escolar, transporte, alimentação e assistência.
Porém, não obstante essa norma, o efetivo reconheci-
mento desse direito somente ocorreu quando do julgamento do RE
n. 467255, em 22 de fevereiro de 2006, pelo Supremo Tribunal Fe-
deral, em que ficou decidido:

59
CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS DE IDADE. ATENDIMENTO EM CRE-
CHE E EM PRÉ-ESCOLA. EDUCAÇÃO INFANTIL. DIREITO ASSE-
GURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208,
IV). COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À
EDUCAÇÃO. DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO
PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, §
2º). RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO.

Consta expressamente da decisão:

A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível


que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desen-
volvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação
básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208,
IV). Essa prerrogativa jurídica, em consequência, impõe, ao Estado, por
efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil,
a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem,
de maneira concreta, em favor das “crianças de zero a seis anos de
idade” (CF, art. 208, IV) 1, o efetivo acesso e atendimento em creches e
unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão
governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adim-
plemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o pró-
prio texto da Constituição Federal.

Apontou o Supremo Tribunal Federal que a oferta de cre-


che não se qualifica como um ato discricionário da Administração
Pública e “nem se subordina às razões de puro pragmatismo go-
vernamental”. Os municípios “não poderão demitir-se do mandato
constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo
artigo 208, IV, da Lei Fundamental da República, que representa
fator de limitação da discricionariedade político-administrativa”.
Posteriormente, com o advento da Emenda Constitucional
n. 53/09 e da pressão de muitos educadores, a educação infantil
foi contemplada com um porcentual do Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Pro-
fissionais da Educação – FUNDEB, cuja regulamentação se deu
pela Lei n. 11.494/2007, artigo 36.

1Vale ressaltar que a redação original do artigo 208, IV, estabelecia o direito às
crianças de zero a seis anos de idade. Porém, com a Emenda Constitucional n.
53, de 2006, tal direito ficou assegurado às crianças de zero a cinco anos de idade.

60
Após essa decisão do STF e da Lei n. 11.494/2007, os re-
flexos foram sentidos por todos os interessados, ou seja, dos tribu-
nais às prefeituras, isso porque, se a justiça anteriormente não
reconhecia expressamente esse direito2, com a decisão do Su-
premo Tribunal Federal, passou a dar efetividade a tal comando,
obrigando os municípios a ofertarem a creche a toda criança, desde
que o pai ou responsável manifestasse interesse. Na verdade, o
pai não tem a obrigação de matricular o filho na creche, mas, sim,
na educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (de-
zessete) anos de idade (art. 208, I, da CF e Lei n. 13.005/2014).
No entanto, a partir do momento que manifesta o desejo de colocar
a criança na creche, surge, em contrapartida, a obrigação de o
Poder Público (município) oferecê-la em quantidade e qualidade
suficientes. Ademais, o município passou a receber um valor do
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e
de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB, para ga-
rantir esse direito. Em síntese: reconheceu expressamente o direito
à creche e garantiu-lhe o financiamento.
Pois bem. Tendo a lei consagrado o direito à creche como
um direito da criança de até 3 anos de idade, impondo a obrigação
de sua oferta pelo município, é óbvio que essa mudança de para-
digma proporcionou discussão no âmbito judicial, não somente em
relação à oferta de vagas, mas também no tocante a outros temas,
como financiamento adequado, férias, qualidade da educação, ali-
mentação, transporte e outros, proporcionando uma verdadeira ju-
dicialização da educação infantil.
O problema é que a judicialização realizada no âmbito do
Poder Judiciário acarreta consequências reais e imediatas, não só
em relação ao poder público (gestor), como também ao processo
pedagógico, envolvendo todos os servidores (com especial atenção
ao professor - executor), crianças, pais e responsáveis.
Tendo como parâmetro tal situação, o presente artigo busca
analisar as consequências da judicialização da educação infantil em

2Antes dessa decisão, havia posicionamentos judiciais contrários ao direito da


creche, fundamentando-se no sentido de que a creche não se enquadraria como
direito público subjetivo, posto que não é considerada obrigatória, e que o Poder
Judiciário não poderia interferir na esfera da decisão discricionária do Poder Exe-
cutivo, em face do princípio constitucional da separação dos poderes.

61
relação ao professor, abordando alguns temas específicos e suge-
rindo uma reflexão sobre o problema que atinge grande número de
municípios brasileiros, tendo como foco a questão da qualidade da
educação.

JUDICIALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO

É certo que o reconhecimento legal do direito à educação


infantil – creche –, por si só não traria tanta discussão no âmbito
do Poder Judiciário, se não fosse a legitimação conferida pela lei
ao Ministério Público e à Defensoria Pública para buscar a garantia
e efetividade do direito por meio de ações judiciais individuais e co-
letivas. Assim, além dos pais ou responsáveis, o Ministério Público
e a Defensoria Pública também passaram a atuar para fazer valer
os direitos previstos na Constituição Federal, no que diz respeito à
educação, em especial, à educação infantil.
Com isso, como já afirmamos, “o Poder Judiciário passou
a ter funções mais significativas na efetivação desse direito. Inau-
gurou-se no Poder Judiciário uma nova relação com a educação,
que se materializou através de ações judiciais visando a sua ga-
rantia e efetividade. Pode-se designar este fenômeno como a JU-
DICIALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO, que significa a intervenção do
Poder Judiciário nas questões educacionais em vista da proteção
desse direito até mesmo para se cumprir as funções constitucionais
do Ministério Público e outras instituições legitimadas” (FERREIRA;
CURY, 2010).
No mesmo sentido, Álvaro Chrispino e Raquel Chrispino
apontam “a judicialização das relações escolares como aquela
ação da Justiça no universo da escola e das relações escolares,
resultando em condenações das mais variadas” (CHRISPINO;
CHRISPINO, 2008).
Em síntese, a judicialização da educação está diretamente
relacionada com o disposto no artigo 208 da Constituição Federal.
Com efeito, estabelece o citado artigo:

62
Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante
a garantia de:
I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezes-
sete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos
os que a ela não tiveram acesso na idade própria;
II - progressiva universalização do ensino médio gratuito;
III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiên-
cia, preferencialmente na rede regular de ensino;
IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco)
anos de idade;
V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação
artística, segundo a capacidade de cada um;
VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando;
VII - atendimento ao educando, em todas as etapas da educação bá-
sica, por meio de programas suplementares de material didáticoescolar,
transporte, alimentação e assistência à saúde.
§ 1º O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.
§ 2º O não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou
sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.
§ 3º Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fun-
damental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis,
pela frequência à escola. (grifos nossos)

Verifica-se que a Constituição Federal, impondo algumas


obrigações para o Estado, o seu não cumprimento pode ensejar
ações judiciais para garantir a sua concretização. É isso que vem
ocorrendo com a educação. Cada vez mais, a Justiça está sendo
acionada para discutir temas relacionados à educação, abrangendo
uma variedade imensa de assuntos.
Por um lado, tem sido positiva essa judicialização, uma
vez que os direitos consagrados constitucionalmente, em relação
à educação, estão entrando na pauta de discussão dos poderes
públicos e sendo garantidos, independente da vontade do órgão
executor. Isso é relevante e apresenta-se como a efetivação do es-
tado de direito. Na verdade, o Poder Judiciário está sendo levado
a formular e implementar políticas públicas na área educacional
para que não reste vulnerado o direito fundamental previsto cons-
titucionalmente. Ademais, verifica-se, em âmbito nacional, uma pro-
cura pela especialização da matéria por aqueles que estão
diretamente envolvidos, como juízes, promotores de Justiça, de-
fensores públicos e advogados, dado o caráter complexo da legis-
lação educacional. É crescente o número de promotorias de Justiça

63
que vêm se especializando em educação.
No entanto, a judicialização traz consigo outra faceta, não
muito positiva. Nas citadas carreiras jurídicas, existem profissionais
que desconhecem os meandros da educação, proporcionando
equívocos judiciais com reflexos educacionais por suas ações ou
decisões, embora com fundamentação jurídica legítima. E, muitas
vezes, as consequências atingem diretamente a criança ou o ado-
lescente, e, em outras ocasiões, os próprios professores. Essa rea-
lidade requer uma análise mais ampla a fim de possibilitar a perfeita
fusão do pedagógico com o jurídico, de modo a se cumprir a lei,
sem prejuízo da questão educacional. É o que se passa a analisar,
especificamente, no que diz respeito à educação infantil.

RELAÇÕES FIRMADAS ENTRE A JUDICIALIZAÇÃO E A EDU-


CAÇÃO INFANTIL

A judicialização da educação infantil tem abrangido vários


aspectos, como: a) falta de vaga; b) férias escolares; c) período in-
tegral e parcial; d) merenda escolar; e) transporte escolar; f) mate-
rial didático-pedagógico; g) inclusão do aluno com deficiência; h)
adequação do prédio escolar; i) matrícula escolar; j) financiamento,
entre outros.
Constata-se que todos esses temas têm um reflexo direto
para o professor, podendo atingir sua atuação docente. Por outro
lado, guardam relação imediata com a qualidade da educação in-
fantil que, muitas vezes, é desconsiderada quando da judicializa-
ção. Vejamos, de forma exemplificativa, algumas situações que
ocorrem na prática.

a) Vagas nas creches

Essa questão está pacificada na justiça, no sentido de que


a vaga na creche se trata de um direito indisponível e público sub-
jetivo (quando ocorre a procura pelo pai ou responsável, de vez
que essa etapa da educação infantil não é obrigatória), que não
pode ficar a critério da conveniência ou oportunidade do município

64
para oferecê-la. Existem até súmulas dos tribunais a respeito3.
Dessa forma, o ingresso de uma ação judicial para obtenção de
vaga em creche encontra respaldo no Poder Judiciário, que confere
efetividade ao que estabelece a Constituição Federal.
De um lado, esse direito responde a uma situação socioan-
tropológica muito real de nossas cidades, especialmente aquelas
pautadas por uma metropolização complexa. As famílias, quaisquer
que sejam seus desenhos, buscam a recomposição da renda.
Nesse sentido, os pais se veem obrigados a buscar nichos no mer-
cado de trabalho. A escola vem sendo o lugar por excelência para
deixarem seus filhos aos cuidados de educadores, pois ela é um
locus permanente, sistemático e aberto a todos com apoio do Es-
tado. Por outro lado, as famílias diminuíram seu tamanho, os vizinhos
enfrentam situações similares e a rua tornou-se lugar de preocupa-
ção e mesmo de violência. Daí que a educação infantil tenha se tor-
nado uma necessidade nascida das transformações pelas quais
passam tanto as cidades como as famílias. O direito à educação in-
fantil e o dever do Estado respondem a esse contexto maior.
O problema é que não se pode analisar essa questão rela-
cionando-a apenas ao direito individual ou coletivo. Há necessidade
de se seguirem parâmetros de qualidade, sob pena de se transfor-
marem as creches em depósitos de crianças. Com efeito, as diretrizes
curriculares nacionais para a educação infantil – Resolução CNE/CEB
n. 01, de 07/04/99, a revisão do Parecer n. 20/09, a Resolução n. 5,
de 17/02/09, do CNE e Resolução n. 4, de 13/ 07/10 – definem as di-
retrizes curriculares nacionais gerais para a educação básica e esta-
belecem o número máximo de crianças por professor. Consta
expressamente do Parecer n. 20/09 do CNE, devidamente homolo-
gado em 09/12/09, que a proporção a ser seguida é a seguinte:

3No Estado de São Paulo, o Tribunal de Justiça formulou duas súmulas a res-
peito da vaga em creches.
Súmula 63: É indeclinável a obrigação do município de providenciar imediata vaga
em unidade educacional à criança ou adolescente que reside em seu território.
Súmula 65: Não violam os princípios constitucionais da separação e independên-
cia dos poderes, da isonomia, da discricionariedade administrativa e da anualidade
orçamentária as decisões judiciais que determinam às pessoas jurídicas da ad-
ministração direta a disponibilização de vagas em unidades educacionais ou o for-
necimento de medicamentos, insumos, suplementos e transportes a crianças ou
adolescentes.

65
O número de crianças por professor deve possibilitar atenção, respon-
sabilidade e interação com as crianças e suas famílias. Levando em
consideração as características do espaço físico e das crianças, no caso
de agrupamentos com criança de mesma faixa de idade, recomenda-
se a proporção de 6 a 8 crianças por professor (no caso de crianças de
zero e um ano), 15 crianças por professor (no caso de criança de dois
e três anos) e 20 crianças por professor (nos agrupamentos de crianças
de quatro e cinco anos).

Em síntese, a proporção é a seguinte:


- um professor para cada 6 a 8 crianças de 0 a 1 anos de idade;
- um professor para cada 15 crianças de 2 e 3 anos de idade;
- um professor para cada 20 crianças de 4 a 5 anos de idade.

A decisão judicial que determina a colocação de uma


criança na creche ou pré-escola, na maioria das vezes, não leva
em consideração essa questão que acaba refletindo diretamente
no professor e no processo pedagógico. E nem sempre considera
que há uma inscrição das famílias na expectativa de serem atendi-
das pelo aumento planejado de vagas. Assim, da mesma forma
que a vaga é um direito da criança, a educação de qualidade tam-
bém é um direito consagrado, que deverá ser observado. Com
efeito, estabelece a Constituição Federal:

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
........
VII - garantia de padrão de qualidade.
........
Art. 211. A União Federal e os Municípios organizarão em regime de
colaboração seus sistemas de ensino.
§ 1º - A União organizará o sistema federal de ensino e o dos Territórios,
financiará as instituições de ensino públicas federais e exercerá, em
matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a ga-
rantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de
qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Es-
tados, ao Distrito Federal e aos Municípios. (grifos nossos)

Idêntica determinação consta dos artigos 3º, IV, e 4º, IX,


da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n.
9394/1996. Aliás, o termo qualidade da educação é citado em inú-
meros outros artigos e leis esparsas, reforçando a ideia de que não

66
basta garantir vaga a uma criança na creche, tornando-se neces-
sário garantir a qualidade do serviço ofertado. Porém, quando não
há esse questionamento no âmbito judicial, muitas vezes tornando
a demanda na busca de vaga apenas um acesso, as consequên-
cias são sentidas pelos professores, que são obrigados a suportar
uma carga de alunos maior do que foi estabelecido para a garantia
da qualidade da educação. Essa questão representa um exemplo
claro de como a judicialização interfere no trabalho docente e, con-
sequentemente, na educação das próprias crianças atendidas.
Dessa forma, reputa-se necessário não somente garantir
a vaga, mas saber e acompanhar como a criança será inserida na
escola. Na impossibilidade de pronto atendimento, por falta de pro-
fessores em números suficientes, há necessidade de se aguardar
a regularização dessa situação. Essa solução apresenta-se peda-
gogicamente consequente ao ciclo da existência da criança em opo-
sição ao acúmulo de crianças para um único professor, em total
prejuízo ao seu desenvolvimento. Trata-se de uma avaliação que
deve ser feita para garantir a vaga e a qualidade da creche. A deci-
são judicial que garante a vaga deveria, como consequência lógica,
garantir a qualidade da educação, com o acompanhamento do cum-
primento da decisão, no sentido de saber onde a criança foi matri-
culada e se há o respeito às diretrizes curriculares nacionais para a
educação infantil com relação ao número de alunos por professores.
Ademais, há que se considerar a responsabilidade dos
municípios em relação à educação obrigatória, ora estendida para
as crianças desde os 4 anos e o orçamento disponível. Nesse sen-
tido, cumpre trazer à questão dois pontos importantes. O primeiro
se refere às responsabilidades dos entes federativos no apoio à
educação infantil. Elas não são exclusivas dos municípios. De
acordo com o artigo 23 e artigo 30 da Constituição Federal, essa
responsabilidade deve ser compartilhada com os estados e a
União. É o que é reforçado pela Lei n. 13.005/2014 na primeira es-
tratégia da meta 1:

1.1) definir, em regime de colaboração entre a União, os Estados, o Dis-


trito Federal e os Municípios, metas de expansão das respectivas redes
públicas de educação infantil segundo padrão nacional de qualidade,
considerando as peculiaridades locais.

67
O segundo se reporta ao alinhamento estabelecido pelo
Plano Municipal de Educação em relação à meta 01 e suas res-
pectivas estratégias postas no Plano Nacional de Educação (Lei n.
13.005/2014).
E tem ainda como derradeiro, a questão do financiamento
da creche, que deve obedecer aos critérios estabelecidos no FUN-
DEB, não se concretizando o repasse de dinheiro de forma ime-
diata com a matrícula da criança.
Em síntese, verifica-se que a garantia de uma vaga na
creche envolve muitas outras questões que devem ser observadas,
sob pena de prejudicar o desenvolvimento da criança e uma so-
brecarga ao professor. A garantia de uma vaga reflete em muitas
outras crianças e afeta o trabalho docente, circunstâncias que não
podem ser desconsideradas.

b) Férias escolares

A Constituição Federal é clara no sentido de tratar a cre-


che como educação.
Nesse sentido estabelece:

Art. 208 – O dever do Estado com a educação será efetivado mediante


a garantia de:
.....
IV - Educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco)
anos de idade;

No mesmo sentido, detalha a Lei de Diretrizes e Bases da


Educação Nacional (Lei n. 9394/96) o dever do Estado, bem como
os níveis e composição da educação, inserindo as creches na edu-
cação infantil, uma das modalidades da educação básica.
Diz a lei:

Art. 30. A educação infantil será oferecida em:


I - creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos
de idade;
II - pré-escolas, para as crianças de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade.

68
Diante da legislação supracitada, só há uma conclusão:
creche é educação. Nessa circunstância, sujeita-se às regras es-
pecíficas da legislação educacional quanto aos dias de trabalho.
Nesse sentido, pontua a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (Lei n. 9394/96):

Art. 31. A educação infantil será organizada de acordo com as se-


guintes regras comuns:
I - avaliação mediante acompanhamento e registro do desenvolvimento
das crianças, sem o objetivo de promoção, mesmo para o acesso ao
ensino fundamental;
II - carga horária mínima anual de 800 (oitocentas) horas, distri-
buída por um mínimo de 200 (duzentos) dias de trabalho educa-
cional;
III - atendimento à criança de, no mínimo, 4 (quatro) horas diárias para
o turno parcial e de 7 (sete) horas para a jornada integral;
IV - controle de frequência pela instituição de educação pré-escolar, exi-
gida a frequência mínima de 60% (sessenta por cento) do total de horas;
V - expedição de documentação que permita atestar os processos de
desenvolvimento e aprendizagem da criança (grifos nossos).

Logo, as creches devem ter o recesso ou férias escolares


por imposição legal, pois, integrando o calendário anual, a sua pro-
posta de trabalho educacional inclui o recesso. O objetivo é claro:
a) de um lado, garantir à criança o direito à convivência familiar e
comunitária prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (art.
19 do ECA: Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e
educado no seio de sua família); b) proporcionar aos profissionais
que trabalham na creche – professores –, o tempo necessário para
o descanso e planejamento da operacionalização do projeto po-
lítico-pedagógico da escola.
Não é por outra razão que a Câmara de Educação Básica
aprovou o voto da conselheira relatora Malvina Tânia Tuttman (Pa-
recer n. 23/2012 – Processo n. 23001. 000049/2011-19, devida-
mente homologado pelo Ministro da Educação conforme
publicação no DOU de 19/03/2013), assim estabeleceu:

1. As creches e pré-escolas constituem-se em estabelecimentos educa-


cionais públicos ou privados que educam e cuidam de crianças de 0
(zero) a 5 (cinco) anos de idade, por meio de profissionais com a forma-
ção específica legalmente determinada, a habilitação para o magistério

69
superior ou médio, refutando assim funções de caráter meramente as-
sistencialista, embora mantenha a obrigação de assistir às necessida-
des básicas de todas as crianças.

2. Nas creches e pré-escolas mostra-se adequada uma estrutura curri-


cular que se fundamente no planejamento de atividades durante um pe-
ríodo, sendo normal e plenamente aceitável a existência de intervalo
(férias ou recesso), como acontece, aliás, na organização das atividades
de todos os níveis, etapas e modalidades educacionais. Tal padrão de
organização de tempo de operacionalização do projeto político-peda-
gógico, com inclusão de intervalos, não constitui obstáculo ou empecilho
para a consecução dos objetivos educacionais, ao tempo em que con-
tribui para o atendimento de necessidades básicas de desenvolvimento
das crianças relacionadas à convivência intensiva com suas famílias e
a vivências de outras experiências e rotinas distintas daquelas organi-
zadas pelas instituições de educação.

Não obstante toda essa sistemática legal, o Poder Judi-


ciário tem se posicionado no sentido da não interrupção do atendi-
mento na creche, ou seja, da impossibilidade de férias ou recesso,
sendo que, em determinados julgados, ainda se manifesta pelo ca-
ráter assistencial da creche. Essa lição pode ser extraída da deci-
são proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo na
Apelação n. 022152290.2009.8.26.0000, em que figura como ape-
lante o município de São Paulo e apelada a Defensoria Pública do
Estado de São Paulo.
Consta do acórdão:

Caráter pedagógico e assistencial da educação infantil, que, ao pro-


porcionar aos pais meios para obter o sustento da família, contribui para
a realização dos fundamentos da República Brasileira consubstancia-
dos na dignidade humana e nos valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa (artigo 1º, III, IV da Constituição Federal). Serviço público es-
sencial, que deve ser prestado continuamente sem a possibilidade
de restrição de caráter infraconstitucional, inviabilizando, também, a
adoção do sistema de plantão ou a limitação aos estabelecimentos da
rede direta de ensino.

Em decisão mais recente, referido tribunal reiterou a im-


possibilidade de férias ou recesso nas creches:

70
COMINATÓRIA - Obrigação de fazer - Propositura em face do Município
de Salto/SP - Dever do Poder Público de fornecer educação básica, ob-
rigatória e gratuita a criança em unidade de educação infantil próxima
à sua residência, no período integral, observado o período de recesso
- Pedido procedente - Serviço essencial que deve ser prestado ininter-
ruptamente, até nos recessos de férias - Possibilidade, entretanto, do
Poder Público promover eventual redirecionamento das crianças que
utilizarão creche neste período, com a garantia de atendimento de toda
a demanda, providenciando o necessário transporte em caso de trans-
ferência para local distante a mais de dois quilômetros da residência da
criança - Recurso do Município parcialmente provido para este fim. Salto
- Câmara Especial - Relator Pinheiro Franco (Pres. Seção de Direito -
05/10/2015 - Votação: Unânime - Voto n. 29702).

Com isso a questão das férias ou do recesso da educação


infantil – creche –, quando judicializada não encontra respaldo legal,
refletindo diretamente no profissional da educação, que se encontra
tolhido de tal direito. O professor da creche é tão professor como o
da pré-escola. Muitas vezes, ocupam o mesmo prédio. Porém,
quando do recesso escolar, um goza das férias e o outro não. Cabe
ressaltar que o trabalho do professor da creche, às vezes, é mais
cansativo que o de outras modalidades de ensino, em face da idade
das crianças.
A justiça nesses casos, a pretexto de contribuir com os pais
ou responsáveis para garantir o sustento da família (sendo que os
pais trabalhadores têm direito a férias) sobrecarrega o professor.
Questiona-se, nessa situação, não apenas o direito do professor
trabalhador, mas também a qualidade do ensino. Aliás, esse ponto
tem o mesmo fundamento da questão da vaga. A pretexto de se
garantir um serviço de forma ininterrupta, compromete-se a sua
qualidade. E as crianças, que seriam as beneficiadas pelo serviço
contínuo, acabam sendo prejudicadas pelo ensino ministrado.
Essa situação revela apenas que há necessidade de se
pensar a creche como educação, dando-lhe o tratamento jurídico
que lhe é reservado pela Constituição Federal.
O recesso, como apontado no parecer do Conselho Na-
cional de Educação, não impede a utilização do prédio por ou-
tras secretarias municipais para o desenvolvimento de
atividades extracurriculares. Trata-se de uma questão de política

71
intersetorial para a infância e não educacional4. Consta expres-
samente do parecer:

Considera-se que muitas famílias necessitam de atendimento para suas


crianças em períodos e horários que não coincidem com os de funcio-
namento regular dessas instituições educacionais, como o horário no-
turno, finais de semana e em períodos de férias e recesso. Contudo,
esse tipo de atendimento, que responde a uma demanda legítima da
população, enquadra-se no âmbito de “Políticas para a Infância”, de-
vendo ser financiado, orientado e supervisionado por outras áreas,
como assistência social, saúde, cultura, esportes e proteção social. O
sistema de ensino define e orienta, com base em critérios pedagógicos,
o calendário, os horários e as demais condições para o funcionamento
das creches e pré-escolas, o que não elimina o estabelecimento de me-
canismos para a necessária articulação que deve haver entre a educa-
ção e outras áreas, como a saúde e a assistência, a fim de que se
cumpra, do ponto de vista da organização dos serviços nessas institui-
ções, o atendimento às demandas das crianças. Dessa forma, insta-
lações, equipamentos, materiais e outros recursos, sejam das
creches e pré-escolas, sejam dos outros serviços, podem e devem
ser mobilizados e articulados para o oferecimento de cuidados e
atividades às crianças que delas necessitarem durante o período
de férias e recesso das instituições educacionais. (grifos nossos)

Dessa forma, seria muito mais adequado planejar de


modo intersetorial junto ao município programas alternativos para
as crianças de modo a atendê-las em férias escolares. Até porque,
a prioridade que se deve dar à criança e ao adolescente engloba a
precedência na formulação e na execução das políticas sociais pú-
blicas, conforme expressamente previsto no artigo 4º, parágrafo
único, “c”, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Nos moldes

4Afora a legislação educacional propriamente dita, pode-se verificar esta inter-


setorialidade na CLT, art. 389, § 2º. Nada impede que esta intersetorialidade,
também prevista no ECA, seja expandida à luz da LDB. O recente Decreto nº
8.869, de 05 de outubro de 2016, que instituiu o Programa Criança Feliz, que
tem entre os seus objetivos a promoção e o desenvolvimento humano a partir
do apoio e do acompanhamento do desenvolvimento infantil integral na primeira
infância, estabeleceu que a sua implantação ocorrerá a partir da articulação
entre as políticas de assistência social, saúde, educação, cultura, direitos hu-
manos, direitos das crianças e dos adolescentes, entre outros (art. 5º), refor-
çando assim a necessidade da colaboração recíproca, não somente entre os
poderes, mas também no âmbito administrativo.

72
da “escola da família”, seria interessante a criação de programa so-
cial “escola em férias”, que não abrangeria apenas as crianças em
idade para creche, mas com outras idades e cujos pais também
precisam trabalhar. Com isso, cumprir-se-ia a lei e não sobrecarre-
garia o professor. E a qualidade da educação estaria garantida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em face dessas considerações, pode-se afirmar, em relação


à questão da ausência de vagas e do recesso ou férias escolares na
educação infantil, que as ações judiciais ingressadas têm por funda-
mento o disposto no artigo 208, III, do ECA, que trata da proteção ju-
dicial dos interesses individuais, difusos e coletivos, que estabelece:

Art. 208. Regem-se pelas disposições desta Lei as ações de responsa-


bilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adoles-
cente, referentes ao não oferecimento ou oferta irregular:
I - ...
II - ....
III - de atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a cinco
anos de idade; (grifo nossso)

Assim, quando se almeja a vaga em creche, é porque o ser-


viço não está sendo oferecido a todos. Quando se busca o trabalho
contínuo do professor de creche, mesmo no recesso ou férias es-
colares, a ação está fundamentada também na ausência de ofere-
cimento do serviço durante esse período.
Contudo, o que se propõe a refletir neste estudo é que ga-
rantir a matrícula da criança, sem levar em consideração o número
de alunos por professor ou a ausência de férias ou recesso das
creches, caracteriza uma oferta irregular do serviço público, tam-
bém passível de questionamento judicial. No fundo, o que se busca
é a garantia do ensino de qualidade que passa por esses proble-
mas. A lei deve ser interpretada em sua integralidade, ou seja, ana-
lisando o não oferecimento ou a oferta irregular. O problema é que
a análise judicial dessas questões tem se centrado apenas na
questão do não oferecimento. É hora de mudar o foco e garantir a

73
vaga na creche com qualidade e o recesso ou férias escolares, tam-
bém como fundamento na qualidade do ensino ministrado.
Ressalta-se que esses dois problemas decorrentes da ju-
dicialização da educação infantil tem uma ligação direta com o pro-
fessor e sua atividade docente. Mas, outros efeitos também são
sentidos pela administração de um modo geral em face dessa ju-
dicialização e que merecem análise. Trata-se da questão referente
à data da matrícula da criança em creche e a sua consequente ju-
dicialização. Nesse caso, dois problemas são levantados:

a) Pode-se estabelecer data de corte etário para o ingresso na cre-


che? A Lei fala em creche e educação infantil às crianças até 05
anos de idade5. Logo, a criança ao nascer já tem direito à creche e
deve o município ofertar a vaga. Porém, a Constituição Federal es-
tabelece no artigo 6º, como direito social “a proteção à maternidade
e à infância”. Também garante no artigo 227, o direito da criança à
convivência familiar. A Lei n. 13.257/2016, que estabelece as políti-
cas públicas para a primeira infância, destaca a convivência da
criança com os pais como forma de favorecer a criação de vínculos
afetivos e de estimular o desenvolvimento integral da criança. Para
a mãe trabalhadora é garantida a licença gestante (CF, art. 7º, XVIII
- licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a
duração de cento e vinte dias). Como a justificativa judicial para a
garantia da vaga na creche é a questão do trabalho dos pais ou res-
ponsáveis, apresenta-se razoável, diante da legislação citada, a pos-
sibilidade de se estabelecer um corte etário para o ingresso na
creche, que coincidiria com os quatro meses da licença gestante.
Contudo, deve-se levar em consideração, à vista do trabalho informal
crescente em que pessoas trabalham sem carteira de trabalho assi-
nada, que muitos pais carecem dessa proteção direta da legislação
citada. Assim, esse tema requer uma análise mais criteriosa pelos
operadores do direito, sob pena de penalizar a criança ao invés de
lhe garantir um direito. Volta-se à questão da compatibilização do
direito ao trabalho dos pais ou responsáveis com o direito da
criança à educação infantil e à convivência familiar.

5Diferente da redação original do artigo 208, IV, da CF, que citava o “atendi-
mento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade”.

74
b) Há período pré-estabelecido a ser obedecido para a matrícula
nas creches? Essa é a outra questão que traz reflexos diretos para
a administração e que merece apreciação. A rede pública de edu-
cação como um todo estabelece, por meio de resoluções, critérios
e procedimentos para a implantação do processo de atendimento
da demanda escolar. Há um calendário a ser obedecido que serve
para orientação dos pais, bem como da própria administração, para
efeito de planejamento. Com as creches, essa situação não se ve-
rifica, principalmente quando é judicializado esse direito. Isso por-
que, independente do dia ou mês, a decisão judicial impõe a
matrícula, sem levar em consideração um eventual planejamento.
Esse tema acarreta reflexos diretos às crianças, pais e à Adminis-
tração Pública e também requer uma atenção especial. Ressal-
tam-se, no caso, as estratégias 1.3 e 1.4 do Plano Nacional de
Educação, respectivamente:

1.3) realizar, periodicamente, em regime de colaboração, levantamento


da demanda por creche para a população de até 3 (três) anos, como forma
de planejar a oferta e verificar o atendimento da demanda manifesta;

1.4) estabelecer, no primeiro ano de vigência do PNE, normas, proce-


dimentos e prazos para definição de mecanismos de consulta pública
da demanda das famílias por creches;

Diante de todas essas observações, constata-se que a ju-


dicialização da educação, em especial da educação infantil na mo-
dalidade de creche, requer dos operadores do direito uma visão
mais alargada, posto que, a pretexto de cumprir a lei, acabam por
estabelecer situações que mais prejudicam a criança do que a be-
neficiam. Também se vislumbra dessas considerações a importân-
cia de uma maior especialização dos operadores do direito na
seara educacional, que tem suas peculiaridades e especificidades.
Por fim, resta firmar o posicionamento jurídico e educacional
quanto à qualidade da educação infantil (principalmente quando
judicializada). Isso porque a vaga deve ser garantida na creche, mas
sem desmerecer a qualidade. Tanto que, entre as estratégias previstas
para a Meta 01 do Plano Nacional de Educação está a 1.6, que
impõe a implantação da “avaliação da educação infantil, realizada
com base em parâmetros nacionais de qualidade, a fim de aferir a

75
infraestrutura física, o quadro de pessoal, as condições de gestão,
os recursos pedagógicos, a situação de acessibilidade entre outros
indicadores relevantes”.
Segundo o estudo “Impacto do Desenvolvimento na Pri-
meira Infância sobre a Aprendizagem”, realizado pelo Núcleo Ciên-
cia pela Infância (NCPI)6, pesquisas evidenciam que essa qualidade
da creche pode ser conferida por uma série de fatores, dentre eles:

• Profissionais com bom nível de formação, atentos e responsivos às


necessidades das crianças e engajados em promover o desenvolvi-
mento pleno.
• Turmas pequenas com número reduzido de crianças por educadores.
• Currículo adequado à faixa etária com atividades e programa peda-
gógico bem estruturados.
• Ambiente estimulante e voltado para a participação ativa da criança.
• Infraestrutura segura.
• Rotinas de higiene e cuidado pessoal.
• Modelo de atendimento associado a atividades para apoiar e orientar
os pais.

O que se almeja é uma escola de qualidade para todos. Até


porque creches de baixa qualidade impactam de forma negativa o de-
senvolvimento regular da criança e os operadores do direito não
podem desconsiderar tal questão.
Resta, ainda, a efetiva aplicação do princípio da colaboração
recíproca posto no art. 211 da Constituição Federal, que implica todos
os poderes públicos. Como decorrência desse princípio e o da gestão
democrática, a melhor saída, além dos parâmetros estabelecidos pela
Lei n. 13.005/2014, é o estabelecimento de um diálogo entre os pode-
res, sem desmerecer a especialização dos operadores do direito
quanto às questões educacionais.

6Comitê Científico do Núcleo Ciência pela Primeira Infância (2014). Estudo n.


1. O impacto do desenvolvimento na primeira infância sobre a aprendizagem.
Disponível em: <www.ncpi.org.br>. Acesso em: 4 de out. 2016.

76
REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Fede-


rativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988. 24. ed.
São Paulo: Saraiva, 2000. (Coleção Saraiva de Legislação).

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado em


13 de julho de 1990. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. (Coleção
Saraiva de Legislação).

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei n.


9394, promulgada em 20 de dezembro de 1996. São Paulo:
Roma Victor Ed., 2007.

Comitê Científico do Núcleo Ciência pela Primeira Infância


(2014). Estudo n. 1. O impacto do desenvolvimento na primeira
infância sobre a aprendizagem. Disponível em:
<www.ncpi.org.br>. Acesso em: 4 de out. 2016.

CHRISPINO, Álvaro; CHRISPINO, Raquel S. P. A Judicialização


das relações escolares e a responsabilidade civil dos educadores.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ensaio/v16n58/a02v1658.
pdf>. Acesso em: 4 de out. 2016.

Editorial. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação,


Rio de Janeiro, vol.16, n. 58, jan./mar. 2008. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
40362008000100001>. Acesso em: 4 de out. 2016.

CURY, C.R.J; FERREIRA, L.A.M. A judicialização da educação. IN:


FERREIRA, A.M.F. Temas de Direito à Educação. São Paulo: Im-
prensa Oficial: Escola Superior do Ministério Público, 2010, p. 53-94.

GOTTI, Alessandra. A Qualidade Social da Educação Brasileira


nos Referenciais de Compromisso do Plano e do Sistema Nacio-
nal de Educação. São Paulo, 2016. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view

77
=download&alias=41851-estudo-processos-judicializacao-temas-
tratados-normas-da-ceb-cnepdf&category_slug=maio-2016-
pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 4 de out. 2016.

78
Haroldo Caetano*

DIREITO PENAL PERIGOSO

DANGEROUS CRIMINAL LAW

DERECHO PENAL PELIGROSO

Resumo:
A análise da teoria da periculosidade, sua origem histórica no século
XIX e posterior inserção no direito penal brasileiro, bem assim a crítica
ao mito da periculosidade do louco, compõem o plano deste trabalho,
que se volta para a desconstrução dos fundamentos que ainda hoje
permitem a imposição de medidas de segurança a pessoas com
transtornos mentais.

Abstract:
The analysis of the theory of dangerousness, your historical origin in
the 19th century and later insertion in the Brazilian criminal law as well
as the critique of the myth of the dangerousness of the madness,
make up the plan of this work, which turns to the deconstruction of the
foundations that still today allow the imposition of security measures
to the persons with mental disorders.

Resumen:
El análisis de la teoría de la peligrosidad, su origen histórica en el
siglo XIX y posterior inserción en el derecho penal brasileño, así
como la crítica al mito de la peligrosidad del loco, componen el plano
de este trabajo, que se vuelve a la deconstrucción de los fundamen-
tos que aún hoy permiten la imposición de medidas de seguridad a
personas con trastornos mentales.

* Doutorando em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense, mestre em Ciências

Penais pela Universidade Federal de Goiás e graduado em Direito pela Pontifícia Uni-
versidade Católica de Goiás. Vencedor do VI Prêmio Innovare com o Programa de
Atenção Integral ao Louco Infrator (PAILI). Promotor de Justiça do Estado de Goiás.

81
Palavras-chave:
Direito penal, periculosidade, medidas de segurança, loucura.

Keywords:
Criminal law, dangerousness, security measures, madness.

Palabras clave:
Derecho penal, peligrosidad, medidas de seguridad, locura.

CONSIDERAÇÕES GERAIS

Na Escola Clássica¹, o poder do homem de tomar deci-


sões segundo o próprio discernimento, o seu livre-arbítrio, funda-
menta a aplicação do direito penal, sendo a liberdade individual de
primordial relevância para o funcionamento de todo o sistema puni-
tivo. O crime é um ente jurídico e a culpabilidade do indivíduo cons-
titui o pressuposto essencial para a imposição da pena, que deve
ser proporcional à gravidade do delito praticado. Santiago Mir Puig
esclarece que não se punia para além da gravidade da infração co-
metida “nem sequer por considerações preventivas, porque a digni-
dade humana se opunha a que o indivíduo fosse utilizado como

¹ Nota do autor: Não existiu propriamente uma escola clássica do direito penal.
Tal denominação surgiu da rotulação de Enrico Ferri, que propôs tal definição
com a pretensão de desqualificar os pensamentos contrários aos da escola po-
sitiva, que se tornavam hegemônicos. O que houve foi uma disputa entre posi-
tivistas e os que não admitiam os seus pontos de vista, conforme explanam
Zaffaroni, Nilo Batista, Alejandro Alagia e Alejandro Slokar, em seu Direito Penal
Brasileiro, obra à qual remeto o leitor para uma mais aprofundada compreensão
acerca desse debate interessante. Entretanto, a expressão ganhou tamanha
força que passou a ser ratificada pelos mais variados juristas, notadamente
pelo caráter didático da terminologia, que facilita a compreensão das muitas
tensões provocadas com a inauguração da escola positiva no séc. XIX. Mante-
nho a referência à escola clássica, então, exclusivamente pelo caráter didático
advindo da contraposição entre os argumentos de legitimação do direito penal
que se afastam do determinismo e, mais especificamente, da concepção redu-
cionista biológica do ser humano, defendida pelo positivismo criminológico.

82
instrumento de consecução de fins sociais de prevenção a ele trans-
cendentes” (SANTIAGO, 2007, p. 60). É que por trás das formulações
de Kant e Hegel, bases filosóficas do retribucionismo penal, encon-
tra-se uma filosofia político-liberal, que tem na proporcionalidade entre
a pena e a conduta ilícita uma garantia em favor do indivíduo.
Entretanto, a ideia de livre-arbítrio, fundamental para a Es-
cola Clássica, é negada radicalmente pelos positivistas. Para a Es-
cola Positiva, de raiz determinista, o homem não governa suas
próprias ações e não tem liberdade de agir, pois é condicionado por
vários e complexos fatores, de tal sorte que “a escolha, diante da
opção, aparentemente livre, é resultante daqueles fatores” (CER-
NICCHIARO, 1972, p. 94). Conforme explica Sérgio Carrara, o “bio-
determinismo chocava-se frontalmente com o princípio do
livre-arbítrio, que atribuía aos homens a faculdade de dirigir suas
ações conforme sua vontade, liberta de quaisquer determinações
extraconscientes” (CARRARA, 1998, p. 110).
Para o positivismo criminológico, a infração penal é ex-
pressão sintomática de uma personalidade antissocial, anormal e
perigosa. Reflexo de uma doença ou de uma anomalia, o crime não
deve ter como resposta uma sanção penal de natureza retributiva. A
pena ganha, pois, a companhia da medida de segurança, esta de
caráter preventivo, capaz de alcançar os objetivos da correção, da
educação, da inocuização e da cura, que irão proporcionar a rea-
daptação do delinquente à vida normal e honesta da sociedade.
Se, por um lado, a culpabilidade é a premissa fundamen-
tal de aplicação da pena, será a periculosidade, por outro, o pres-
suposto para a imposição da medida de segurança. Para os
positivistas, o crime é sintoma de uma enfermidade psicossomática
e merece não a retribuição de uma sanção de caráter punitivo. O
criminoso não deve sofrer a repressão da pena, porém, diversa-
mente, deve ser submetido a tratamento com vistas à prevenção
de futuras infrações em face de sua periculosidade. Nessa perspec-
tiva, as medidas de segurança são os meios aptos a alcançar os
objetivos pretendidos.

83
PERICULOSIDADE: EM BUSCA DE UM CONCEITO

Confusão e discrepância de critérios marcam a extrema di-


ficuldade dos juristas para conceituar a periculosidade.
Sebastián Soler, em seu livro Exposición y crítica de la teoria
del estado peligroso, evidencia as dificuldades conceituais enfrenta-
das nas mais variadas formulações propostas. Para Filippo Grispigni,
periculosidade é a relevante capacidade de uma pessoa para come-
ter um crime ou a probabilidade de vir a se tornar autora do crime.
Segundo Jiménez de Asúa, a periculosidade é o reflexo externo de
um estado subjetivo, la inmanenza criminale, que, por sua vez, ex-
pressa uma disposição orgânica tendente para o crime. Já para Al-
fredo Rocco, a periculosidade não passa de um dos efeitos
psicológicos do delito. Finalmente, o próprio Soler a conceitua como
sendo a “potência, a capacidade, a aptidão ou a idoneidade que um
homem tem para converter-se em causa de ações danosas”
(SOLER, 1929, p. 14-21).
Conceitos abertos como os que buscam explicar a peri-
culosidade revelam a extrema fragilidade da própria teoria, como
também se revelaram frágeis outros mitos fundantes do positi-
vismo criminológico. Quando apontam a periculosidade como po-
tência, capacidade ou aptidão para causar danos (Soler),
probabilidade de delinquir (Grispigni), tendência para o crime
(Asúa), ou, em sentido absolutamente diverso, como simples
efeito psicológico do próprio crime (Rocco), os conceitos pouco
ou quase nada dizem, pois levam à inafastável conclusão de que
qualquer indivíduo carregaria consigo a periculosidade. Sob tais
formulações conceituais, absolutamente precárias, todas as pes-
soas poderiam ser identificadas como perigosas, uma vez que
todas as pessoas carregariam de forma latente os atributos ca-
racterísticos da periculosidade.
Contudo, foi Raffaele Garofalo quem antes, em 1878, deu os
contornos conceituais primitivos da periculosidade. Para Garofalo, também
citado por Soler, se a pena constitui um meio de prevenção, deve então
adaptar-se não só à gravidade da infração ou ao dever violado, mas à te-
mibilidade do agente, por ele definida como “a perversidade constante e
ativa do delinquente e a quantidade de mal previsto que se deve temer
por parte do mesmo delinquente” (SOLER, 1929, p. 16). Kátia Mecler, a

84
propósito da definição de Garofalo, assinala ter sido a temibilidade “o con-
ceito-chave, para fins penais, dos positivistas, sendo o antecessor da con-
temporânea teoria da periculosidade” (MECLER, 2010).
Foi sob tal perspectiva que Enrico Ferri propôs a defesa so-
cial como legitimação para a pena. Para ele, o Estado tem o direito
de defender-se dos indivíduos perigosos, sem qualquer diferencia-
ção entre imputáveis e inimputáveis, devendo a culpabilidade ser
substituída pela periculosidade. Conforme sustenta, se cada delito,
desde o mais leve até o mais cruel, é a expressão sintomática de
uma personalidade antissocial, que é sempre mais ou menos anor-
mal ou perigosa, “é inevitável a conclusão de que o ordenamento
jurídico de defesa social repressiva não pode subordinar-se a uma
pretensa normalidade ou intimibilidade ou dirigibilidade do delin-
quente” (CERNICCHIARO, 1972, p. 95).
Segundo os partidários da teoria da defesa social, diante do
homem determinado à prática do crime, a sociedade deve estar de-
terminada a defender-se. Nesse contexto, explica Soler, a pena não
tem nenhuma razão de ser como retribuição; é somente um meio de
defesa (SOLER, 1992, p. 383). Corolário desse entendimento,
então, e diferentemente da culpabilidade (pressuposto de imposição
da pena), que resulta de um juízo sobre o passado e tem no próprio
crime a sua razão de ser, a periculosidade (pressuposto para a apli-
cação da medida de segurança) remete a um olhar rumo ao porvir,
para a probabilidade de o indivíduo praticar um delito no futuro.

O CRIMINOSO NATO

A concepção periculosista que aponta para a necessidade


de um direito penal destinado à prevenção em muito se sustenta na
ideia do criminoso nato², cuja aparição aconteceu na década de
1870, com a publicação do livro O homem delinquente, de autoria
do médico psiquiatra italiano Cesare Lombroso. Aníbal Bruno pontua
que Lombroso compreendia o criminoso como “uma variedade da

² Expressão com que Enrico Ferri batizou o descobrimento do seu mestre, Cesare
Lombroso (ZAFFARONI et al, 2015, p. 575).

85
espécie humana, um tipo definido pela presença constante de ano-
malias anatômicas e fisiopsicológicas” (BRUNO, 2003, p. 62).
Para Lombroso, era certo que, assim como o degene-
rado, o criminoso possuía estigmas que, na superfície de seu
corpo, indicavam as disposições de sua alma. Entretanto,

...no caso do criminoso nato, os estigmas tornavam-se imediata e


grosseiramente indicadores de uma ferocidade original, e não pro-
priamente de uma anomalia orgânica. Em termos anatômicos, a au-
sência de pêlos, o comprimento exagerado dos braços, a obtusidade
das feições, as orelhas munidas do tubérculo de Darwin, os maxilares
superdesenvolvidos, a fronte fugidia, a saliência dos zigomas, o exa-
gerado escavamento da abóbada palatina e das fossas oculares e
ainda outras peculiaridades do crânio desenhavam sobre o corpo do
criminoso o perfil anatômico dos símios. Em termos fisiológicos, a
analgesia (insensibilidade à dor), a desvulnerabilidade (capacidade
de rápida recuperação dos ferimentos), o mancinismo ou o ambides-
trismo eram tidos tanto como características dos selvagens quanto
dos criminosos natos. Psicologicamente, o gosto pela tatuagem, pela
gíria e onomatopéias, a imprevidência, a prodigalidade, a vaidade, a
imprudência, a impulsividade, a insensibilidade moral, o caráter vin-
gativo, o amor pela orgia, a preguiça, a precocidade e o prazer no
delito, a ausência de remorsos completavam a figura do atávico.
Havia ainda características fisionômicas: o olhar, frio e fixo nos as-
sassinos; errante, oblíquo e inquieto nos ladrões. Além disso tudo, os
criminosos natos seriam geralmente muito sensíveis aos metais, à
eletricidade, aos meteoros e às mudanças atmosféricas (principal-
mente às tempestades), sendo em sua maioria pederastas ou pouco
afeitos às mulheres (CARRARA, 1998, p. 105).

Depois que Cesare Lombroso colocou o problema do cri-


minoso nato, não tardou para que os criminosos fossem identifi-
cados com as pessoas com menos poder ou em situação de
vulnerabilidade social, os quais desde sempre povoaram os pre-
sídios que, não por acaso, constituíram o campo das pesquisas
do psiquiatra italiano. Por isso, Bartira Macedo de Miranda Santos
pontua que as teorias de Lombroso tiveram ampla repercussão po-
lítico-criminal que “provocaram transformações no saber penal
com rupturas com o princípio da legalidade, servindo de instru-
mental teórico ideológico para a punição e controle penal dos in-
desejáveis” (SANTOS, 2015, p. 48).

86
REFLEXOS DO POSITIVISMO CRIMINOLÓGICO

A biologização do crime, conforme proposta por Lom-


broso, fez surgir a criminologia como um saber que se propunha
a identificar signos e sintomas de uma specie generis humani in-
ferior, como capítulo da antropologia física. Seu objeto “estava
bem delimitado – tendo em vista tratar-se do estudo de um grupo
humano biologicamente diferente e inferior – motivo pelo qual se
chegou a dizer que ela era um ramo da zoologia” (ZAFFARONI
et al, 2015, p. 573-574).
Tal teoria teve desdobramentos terríveis nos campos social
e político.
As ideias de Lombroso³ desencadearam um verdadeiro
escândalo ideológico e, ainda que as tenha temperado pruden-
temente no decorrer de sua vida, sempre estiveram circunscritas
a um biologismo bastante reacionário, que culminou por servir
de fundamento às teorias racistas do crime do nacional-socia-
lismo, conforme explicam Zaffaroni e Pierangeli, autores que des-
tacam também o triste fado ideológico “de um pensamento cuja
mais difundida versão foi proporcionada por Lombroso, que per-
tencia a uma distinta família de judeus italianos” (ZAFFARONI;
PIERANGELI, p. 298). É que, por ironia do destino, as teorias
lombrosianas culminaram por dar fundamento ao pensamento
eugênico e higienista, servindo, assim, como argumento de legi-
timação da perseguição das raças inferiores, particularmente os
judeus, durante a ascensão nazista na Europa.
As doutrinas positivistas da defesa social partem dessa
concepção periculosista do criminoso e levam o determinismo
para o direito penal, que se afasta do livre-arbítrio e abraça a
ideia oposta, embora também metafísica, do homem, visto como
um animal desprovido de liberdade e plenamente sujeito às leis

³ “Cabe assinalar que Lombroso era um grande observador, assim como que
os presos europeus de seu tempo se pareciam com os colonizados. Hoje sa-
bemos que a seleção criminalizadora se efetua de acordo com os estereótipos
e que também, graças a Lombroso, os estereótipos de sua época se nutriam
das características físicas dos colonizados: todo mau era ‘feio’, como um ame-
ricano ou um africano, na conjuntura em que a Europa havia superado a visão
bucólica de seus colonizados e passado a considerá-los selvagens” (ZAFFARONI
et al, 2015, p. 574).

87
da necessidade natural. Mais precisamente, como esclarece Fer-
rajoli, as doutrinas da defesa social representam a síntese de
uma infeliz mistura das teorias de Lombroso sobre o criminoso
nato e sobre a natural desigualdade dos homens com aquelas
de Spencer acerca da sociedade, como organismo social, e as
ideias de Darwin a respeito da seleção e da luta pela existência,
que “se aplicadas a tal organismo, legitimam-no a defender-se
das agressões externas e internas por meio de práticas social-
mente profiláticas” (FERRAJOLI, 2006, p. 249).
A ideologia brutal do positivismo criminológico difundiu-
se, tomando conta da Europa e foi exportada para a América La-
tina. Em nosso continente foi um pensamento que, acolhido por
regimes da mesma forma autoritários e racistas, “serviu para jus-
tificar o desprezo pelo índio, o negro, o mestiço e o mulato, que
são os habitantes ‘naturais’ de nossos cárceres” (ZAFFARONI;
PIERANGELI, 1997, p. 297).
A pena destina-se, na concepção positivista, a quem re-
presente perigo para a sociedade, devendo inclusive sofrer mu-
dança significativa e ser substituída pelas pretensamente
assépticas medidas de segurança. A periculosidade, por seu fun-
damento racista, será identificada dentre os homens classificados
como de pior qualidade, os degenerados, os biologicamente de-
ficientes, que deveriam ser controlados pelos que exercem o
poder, pois se convertem em uma classe social perigosa. Já os
grupos de poder são praticamente invulneráveis a tais medidas
de coerção, pois sua superioridade genética ou biológica os pre-
servam e somente por acidente algum de seus integrantes ficaria
vulnerado (ZAFFARONI; PIERANGELI, 1997, p. 297).
O positivismo criminológico frutificou com incrível intensi-
dade. Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Raffaele Garofalo fizeram
muitas cabeças, de forma que suas ideias ainda continuam vivas na
psiquiatria4 e no nosso sistema punitivo5. Paulo Jacobina faz o alerta

4 Como, por exemplo, Guido Arturo Palomba, para quem “os alienados mentais crimi-
nosos são, salvo raras exceções (quando não há nexo causal entre psicopatologia e
crime), biocriminosos puros (o biológico determina a psicopatologia que leva ao crime)”
(PALOMBA, 2003, p. 188).
5 No direito, embora não sejam poucos os autores que problematizam o assunto, espe-

cialmente na criminologia crítica (Ferrajoli, Zaffaroni, Salo de Carvalho, Sérgio Salomão

88
de que o criminoso nato “é um fantasma que assombra não só as
nossas faculdades de direito, mas também as conversas de bote-
quim, as páginas policiais e os repórteres sensacionalistas, sem con-
tar os políticos de extrema direita” (JACOBINA, 2008, p. 79-80).
O delito é o sintoma da personalidade antissocial do delin-
quente, o que autoriza a defesa social por meios que persigam a
prevenção especial dos delitos, para o que penas e medidas de se-
gurança assumem a dupla função de curar o condenado, visto como
doente, e/ou segregá-lo e neutralizá-lo em decorrência da sua peri-
culosidade. Explica Luigi Ferrajoli que a ideia central dessa teoria é
a de que o delinquente é um ser antropologicamente inferior, “mais
ou menos pervertido ou degenerado, e que, portanto, o problema da
pena equivale àquele das defesas socialmente mais adequadas ao
perigo que ele representa”. Nessa perspectiva, prossegue Ferrajoli,
as penas assumem o caráter de medidas apropriadas às exigências
terapêuticas da defesa social, “higiênico-preventivas, terapêutico-
repressivas, cirúrgico-eliminatórias, dependendo do tipo de
delinquente – ocasionais, passionais, habituais, loucos ou natos –
e dos fatores sociais, psicológicos e antropológicos do crime”
(FERRAJOLI, 2006, p. 248-249). Os princípios orientadores das
doutrinas positivistas da defesa social são, assim, a segregação por
tempo indeterminado, a adaptação dos instrumentos defensivos à
respectiva categoria antropológica do delinquente e a revisão
periódica da sentença.
Não se fala em imputabilidade ou inimputabilidade, porém
está presente a responsabilidade moral do delinquente, de vez
que, na acepção de Ferri, o sujeito ativo do delito é “sempre pe-
nalmente responsável, porque o ato é seu, isto é, expressão de
sua personalidade, quaisquer que sejam as condições físico-psí-
quicas em que haja deliberado e agido” (CERNICCHIARO, 1972,

Shecaira), prevalece na academia e nas instituições do sistema de justiça criminal o en-


tendimento segundo o qual a periculosidade do louco é pressuposto apto a sustentar a
imposição de medidas de segurança. Tal quadro se explica pela relativamente recente
Lei Antimanicomial e pela não assimilada elevação da culpabilidade à condição de prin-
cípio constitucional (especialmente no art. 5º, incisos XLV e LVII). São incontáveis os au-
tores que dão sustentação à teoria da periculosidade, com forte penetração nas
faculdades de direito e que, por isso mesmo, se faz hegemônica. A título de ilustração,
podemos mencionar os nomes de Damásio Evangelista de Jesus, René Ariel Dotti, André
Estefam, Rogério Greco, Guilherme Nucci, dentre muitos.

89
p. 95). Se a culpabilidade não é pressuposto da sanção penal, a
periculosidade do criminoso ou, aqui mais precisamente, a peri-
culosidade do louco, toma esse lugar.

O LOUCO É PERIGOSO APENAS POR SER LOUCO?

No sistema de duplo binário, penas e medidas de se-


gurança coexistem e são simultaneamente aplicáveis ao indiví-
duo imputável como respostas legais para a mesma infração
penal. No Brasil, desde a reforma penal de 1984, quando foi ado-
tado o sistema vicariante na parte geral do Código Penal, so-
mente os indivíduos inimputáveis ou semi-imputáveis (CP, art.
26), assim declarados por força de doença ou perturbação da
saúde mental, passaram a ter a periculosidade presumida. É para
essas duas categorias que hoje se reservam no direito penal bra-
sileiro as medidas de segurança (CP, art. 97). A periculosidade
é, nos termos da norma penal de agora, um predicado exclusivo
do louco.
Mas por que motivo o louco deve ser considerado peri-
goso? O louco é perigoso apenas por ser louco? A construção ju-
rídica do conceito de periculosidade, embora de frágil
sustentação, é bastante refinada e exige, para sua configuração,
que, além de louco, o indivíduo tenha cometido uma infração
penal. O indivíduo não é perigoso por ser louco. Só a prática do
crime pode demonstrar a sua periculosidade, esta condicionada
àquela. O crime, por si só, não determina a periculosidade do in-
divíduo, como acontecia nas revogadas disposições do duplo bi-
nário; da mesma forma a loucura que, por si só, não determina a
periculosidade. Para que seja reconhecida, a periculosidade deve
conjugar esses dois fatores: a loucura e o crime.
A verificação da periculosidade pelo juiz do processo levará
em consideração esses dois elementos a ela essenciais e, uma
vez demonstrada no caso concreto a prática do crime pelo agente
inimputável ou semi-imputável, estará autorizada pelo Código
Penal a imposição da medida de segurança.

90
AFINAL, O LOUCO É PERIGOSO?

Conforme demonstrado, a periculosidade é de conteúdo


jurídico, resultante que é da junção entre dois fatores que tentam
lhe dar alguma sustentação conceitual: a loucura e a prática do
crime. São muito frágeis os pilares dessa ideia, uma vez que a
periculosidade não resulta da loucura em si. A periculosidade re-
sulta de uma abstração construída pela norma, de maneira que
será considerado perigoso somente o louco que vier a praticar
uma infração penal.
Originalmente, convém lembrar, o louco não era “o” indi-
víduo perigoso de que falava a Escola Positiva. Como já exposto,
para o positivismo criminológico a periculosidade era inata ao cri-
minoso, visto como um indivíduo que nascia fatalmente destinado
à prática da infração penal, independentemente de eventual
transtorno psíquico. Louco ou não, perigoso era o criminoso. Só
mais tarde a periculosidade foi restringida ao agente inimputável
por força de doença mental ou perturbação da saúde mental, o
que demonstra o quão flexível era – e ainda é –, o conceito de
periculosidade, cujo alcance, conteúdo e significado podem ser
modificados ao alvedrio do legislador penal.
Como se percebe, a periculosidade não se fundamenta em
um conceito de natureza médica, como poderia parecer à primeira
vista. Seu conteúdo é puramente normativo. É certo que Lombroso
era um médico psiquiatra e que foi responsável pelos estudos que
levaram à ideia do criminoso nato, o que mais tarde serviu de refe-
rência para a construção do conceito de periculosidade no campo
do direito penal. Ocorre que, conforme depois se denunciou, suas
conclusões careciam de fundamento científico (não há como indicar
uma base biológica para o crime), embora tenham ganhado terreno
com extrema facilidade em função, principalmente, de uma sucessão
de fatores – políticos, sociais e econômicos – presentes na Europa
do século XIX, fruto da ruptura das relações entre servos e nobres,
da racionalização da produção agrícola e pecuária, o que impeliu
grandes contingentes de camponeses empobrecidos para as cida-
des, sem demanda suficiente para acolher a imensa oferta de tra-
balho tanto pela baixa produtividade quanto pela escassez de
capital. Tal descompasso criou um novo problema: o aparecimento

91
da marginalidade urbana como classe perigosa, obrigada a convi-
ver no exíguo espaço geográfico das cidades (ZAFFARONI et al,
2015, p. 517). Nesse ambiente de crise, particularmente pelo au-
mento da pobreza, somada ao medo da guerra e outros problemas
sociais derivados das mudanças impostas pelo modo de produção
capitalista, é que se abriu espaço, segundo Rosa Del Olmo, para
“uma ciência que fosse efetiva para o controle da sociedade e para
manter a ordem” (SANTOS, 2015, p. 33-34). A periculosidade surge,
assim, como um estratagema, um disfarce, um embuste para o con-
trole de populações vulneráveis na Europa do século XIX.
Levada a periculosidade para o direito penal, como funda-
mento para a imposição de sanções, num primeiro momento foram
previstas, como se demonstrou, várias hipóteses legais de presun-
ção da periculosidade, em sintonia com aquela proposta de impor
ordem e controle às classes perigosas, de sorte que qualquer indi-
víduo poderia ser marcado como perigoso em decorrência da prática
criminosa, circunstância reconhecida na própria sentença condena-
tória proferida pelo juiz. Agora, em face da flexível conceituação pela
norma penal, perigoso seria somente o louco.
Absolutamente desprovida de fundamento na medicina, a
periculosidade tem nos frágeis argumentos do médico psiquiatra
Cesare Lombroso, todavia, apenas uma explicação artificial, em-
bora tenha sido tão sedutora para tantos. A difícil conceituação da
periculosidade como um atributo humano, cuja configuração pres-
supõe a presença de fatores estranhos ao próprio homem, resul-
tante que é de uma fórmula legal, acaba por expressar, pelas suas
próprias deficiências conceituais, o sofisma que ela representa.
Não há como atribuir-se a um ser humano a condição de perigoso.
Para ser rotulado de perigoso, o homem deve ser reduzido a um
animal aprisionado às suas necessidades naturais.
É importante lembrar, com Fernanda Otoni de Barros-Brisset,
que nem sempre o termo periculosidade se prestou a designar a
qualidade de uma pessoa, tampouco constava dos conceitos em-
pregados na linguagem jurídica. Não se qualificava alguém como
intrinsecamente perigoso. Foi justamente no período compreen-
dido entre o final do século XIX e o início do século XX, que o
termo ganhou o sentido com que hoje é empregado. Antes, o ad-
jetivo perigoso era utilizado como qualquer outro, “um modo de

92
predicar situações e coisas; muito dificilmente encontraremos, nos
registros anteriores ao século XIX, essa palavra usada como qua-
lidade para predicação de pessoas” (BARROS-BRISSET, 2010, p.
20). Até então, certas situações poderiam ser rotuladas de perigo-
sas, mas tal qualidade não se projetava para vincular a pessoa em
si, com a conotação patológica que passou a carregar na lingua-
gem jurídica.
Não obstante a tentativa da antropologia criminal em apon-
tar fundamentos biológicos para o crime, tal concepção só tem
lugar no positivismo criminológico. Somente com base nas teorias
lombrosianas é que se faz possível vincular loucura e perigo.

DIREITO PENAL PERIGOSO

A experiência de um século em que o direito penal tem


se orientado pelo mito da periculosidade do criminoso, louco ou
não, mostrou-se catastrófica e permitiu que o autoritarismo penal
tomasse o lugar da legalidade no sistema punitivo. No Brasil,
desde o Código Penal de 1940, com suas medidas de segurança
aplicadas de forma generalizada para indivíduos imputáveis ou
não, o direito penal perigoso causou estragos que ainda hoje
se fazem fortemente presentes para muito além das medidas de
segurança. São corriqueiras expressões como bandido peri-
goso ou preso de alta periculosidade tanto no sistema de jus-
tiça criminal quanto fora dele, com destaque para os meios de
comunicação social, o que acaba por naturalizar no imaginário
da população a ideia de que a periculosidade é, de fato, um atri-
buto humano.
Além de dar o embasamento essencial para as medidas
de segurança, a periculosidade está também embutida em outros
dispositivos do Código Penal, do Código de Processo Penal e da
Lei de Execução Penal, em institutos de nítido fundamento nas
teorias lombrosianas. É o que se percebe, por exemplo, no art.
326 do CPP, em que a autoridade policial, para determinar o valor
da fiança em favor do preso, deverá verificar “as circunstâncias
indicativas de sua periculosidade”; ou no art. 8º da LEP, que

93
prevê o exame criminológico, procedimento também previsto
para a concessão do livramento condicional, nos termos do art.
83, parágrafo único, do Código Penal, que exige, para o conde-
nado por crime doloso, cometido com violência ou grave ameaça
à pessoa, a constatação de “condições pessoais que façam pre-
sumir que o liberado não voltará a delinquir”. O mesmo Código
Penal, em seu art. 59, prevê ainda a averiguação, pelo juiz, da
personalidade do agente no ato de fixação da pena. Não é di-
fícil perceber que a teoria da periculosidade deixou marcas pro-
fundas e dificilmente será algum dia extirpada por completo do
sistema repressivo penal.
A periculosidade é uma herança lombrosiana maldita, mas
que ainda seduz. É injustificável, exceto para quem não se inco-
moda em face do autoritarismo punitivo, a acomodação de grande
parte dos pensadores do direito penal diante de uma bizarrice que
vem do século XIX, mas que passa distante de qualquer proble-
matização mesmo depois da Constituição de 1988 e, o que expõe
um pouco mais a omissão acadêmica, mesmo em face da clareza
solar dos avançados dispositivos da Lei Antimanicomial, esta que
rompe definitivamente com o mito da periculosidade para estabe-
lecer uma nova ordem no plano da atenção em saúde mental, pau-
tada na liberdade e no respeito à dignidade do louco.
O homem deve ser respeitado em sua dignidade e jamais
poderia ter sido rotulado de perigoso. Perigosa, como demonstrou
o nazifascismo europeu da primeira metade do século XX, é a pró-
pria doutrina da periculosidade. Perigoso tornou-se o direito penal
ao acolher as ideias de Cesare Lombroso.
De sua parte, os manicômios judiciários estão em pleno
funcionamento na maioria dos estados brasileiros, assegurando a
perpetuação do sofrimento de milhares de mulheres e homens a
pretexto de um conceito que jamais se sustentou cientificamente,
uma vez que, e aqui respondendo à indagação inicialmente pro-
posta, não! Definitivamente, o louco não é perigoso!

94
REFERÊNCIAS

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integral ao louco infrator. Belo Horizonte: Tribunal de Justiça de Minas
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Revista dos Tribunais, 1997.

96
Flávio Cardoso Pereira*

AGENTE INFILTRADO VIRTUAL (LEI N. 13.441/17):


PRIMEIRAS IMPRESSÕES

VIRTUAL INFILTRATED AGENT (LAW N. 13.441/17):


FIRST IMPRESSIONS

AGENTE INFANTRADO VIRTUAL (LEY N. 13.441/17):


PRIMERAS IMPRESIONES

Resumo:
A figura do agente infiltrado virtual, introduzida ao ordenamento bra-
sileiro por força da Lei n. 13.441/17, veio suprir lacuna no tocante ao
enfrentamento da crimilalidade cibernética, especialmente em se tra-
tando de crimes contra a dignidade sexual de pessoas menores de
idade. Referido meio de obtenção de prova, se empregado com fulcro
e obediêcia aos princípios de legalidade, proporcionalidade e ultima
ratio, por certo apresentará resultados eficazes na luta contra essa
espécie grave de deliquência.

Abstract:
The figure of the virtual infiltrated agent, introduced to the Brazilian
order by virtue of Law no. 13.441 / 17, provided a loophole for dealing
with cybercrime, especially in relation to crimes against the sexual dig-
nity of underage persons. The aforementioned means of obtaining
proof, if employed with fulcrum and compliance with the principles of
legality, proportionality and ultima ratio, will certainly present effective
results in the fight against this severe species of deliquency.

* Pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra-Portugal.


Doutor em Direito pela Universidade de Salamanca-Espanha. Especialista em
Combate à Corrupção, Crime Organizado e Terrorismo pela USAL-Espanha. Autor
da obra “El agente infiltrado desde el punto de vista del garantismo procesal penal”.
Professor e palestrante no Brasil e no exterior.Promotor de Justiça do MP-GO. Diretor
da Escola Superior do Ministério Público do Estado de Goiás.

97
Resumen:
Una figura del agente infiltrado virtual, introducida al ordenamiento
brasileño por fuerza de la ley. 13.441 / 17, veio suprir lacuna no to-
cante ante el enfrentamiento de crimilalidade cibernética, especial-
mente en el tratamiento de crímenes contra una dignidad sexual de
personas menores de edad. Referido medio de obtención de pruebas,
se emplea con fulcro y obediencia a los principios de legalidad, la pro-
porcionalidad y la última proporción, por cierto presenta los resultados
efectivos en la lucha contra la especie grave de deliquencia.

Palavras-chave:
Agente infiltrado, virtual, crime organizado.

Keywords:
Agent infiltrated, virtual, organized crime.

Palabras clave:
Agente infiltrado, virtual, crimen organizado.

98
O AGENTE INFILTRADO
NOTAS ESSENCIAIS E CARACTERÍSTICAS

O meio de obtenção da prova denominado “infiltração de


agentes” refere-se a uma técnica policial utilizada nos dias atuais
pela grande maioria dos países democráticos, sendo certo que foi
nos Estados Unidos da América, e muito particularmente no âmbito
da luta contra o tráfico de drogas, que o recurso a essa estratégia
investigativa adquiriu historicamente maior relevância, a partir dos
anos oitenta do século passado.
A origem histórica, entretanto, pode ser buscada na França
à época do Ancien Régimen, tendo sido identificada a pessoa de
Eugène François Vidocq como sendo o primeiro agente a executar
tarefas típicas de infiltração no ano de 1800.
A aceitação da figura do infiltrado, a nível mundial, justifica-se
desse modo em razão do estabelecimento de uma política criminal
bastante significativa, baseada na atuação de agentes policiais, que
tem por objeto afrontar as atuações delitivas graves praticadas por
organizações criminosas (perspectiva penal punitiva), porém, com
respeito às garantias constitucionais das pessoas investigadas
(perspectiva penal garantista).
Justifica-se o recurso a esse meio extraordinário de investiga-
ção, em razão da ineficácia das técnicas tradicionais de investigação,
utilizadas habitualmente no controle da expansão da criminalidade
organizada, e, ainda, diante da dimensão internacional desses gru-
pos delitivos, da destacada estrutura logística utilizada em suas ati-
vidades ilícitas, e, por fim, face às dificuldades em se conhecer a
fundo a potencialidade lesiva, a estrutura material e o modus ope-
randi dessas verdadeiras “multinacionais do crime”.
Dessa forma, a utilização da infiltração de agentes para a in-
vestigação de determinados delitos de natureza grave é algo natu-
ralmente aceito e admitido por um número significativo de
ordenamentos jurídicos, vez que, apesar de tratar-se de uma téc-
nica claramente restritiva de direitos fundamentais, é considerada
necessária para se conter um tipo de criminalidade cada vez mais
desenvolvida e sofisticada, portanto, fruto da atual sociedade glo-
balizada. Na grande maioria das vezes, sua utilização ocorre nos
casos envolvendo atividades criminosas de caráter transnacional,

99
tendo, inclusive, sido incluída entre as técnicas de assistência judicial
previstas no Convênio de Assistência Judicial em Matéria Penal e aceita
pelos Estados Membros da União Europeia, em 29.05.2000 (art. 14.1).
O infiltrado investiga as atividades delitivas estando entra-
nhado no interior da organização criminosa e, segundo nosso ponto
de vista, deverá atuar sem exceder ou violar de forma desnecessária
as garantias constitucionais das pessoas investigadas, utilizando-se
de estratégias de investigação, como o engano e a dissimulação,
para obter dados, informações e provas que venham a comprovar a
prática de delitos graves praticados por membros de um determinado
grupo de delinquentes organizados.
Assim, não tem o agente a intenção de criar nas mentes dos
demais membros do grupo algum propósito delitivo, por isso não
sendo correto falar-se em atos de “provocação”. Ademais, seu obje-
tivo consiste tão somente no ato de ingressar no centro estrutural da
organização criminosa e, aproveitando-se da confiança adquirida
junto aos delinquentes, obter informações e provas que possam aju-
dar as autoridades encarregadas da persecução criminal, visando
ao fim, à desarticulação e à persecução das pessoas envolvidas na
trama delituosa.
A técnica da infiltração necessita de um meio para torná-la rea-
lidade. Haverá de ser uma pessoa física que irá penetrar de forma
camuflada nas estruturas sociais, não necessariamente delitivas, para
cumular quaisquer tipos de dados relevantes e referentes a fatos de
caráter reservado. Para tanto, o simples estabelecimento de suportes
técnicos, como meio de arrecadar informações, não é, no sentido puro
da palavra, uma infiltração. São consideradas como características
básicas e fundamentais a execução de uma infiltração policial, o uso
de identidade falsa pelo agente encoberto, a investigação de deter-
minada classe de delitos classificados como graves, o uso do engano
e da dissimulação para aproximação do grupo criminoso, a conivên-
cia do Estado para com a prática excepcional de crimes de escassa
gravidade pelo infiltrado, desde que observado o princípio da propor-
cionalidade e, por fim, a autorização judicial e sigilosa.
Assim, o êxito da infiltração policial deve ser aferido a partir da
constatação de alguns requisitos básicos e imprescindíveis.
O primeiro requisito seria o caráter excepcional. Como toda me-
dida suscetível de restringir um direito fundamental, deverá a infiltração

100
apresentar um caráter excepcional e, somente se adotará tal medida,
quando não exista outro meio de investigação do delito menos gravoso
para os investigados, o que normalmente traduz-se em que a atuação
do agente infiltrado seja a ultima ratio. Justifica-se esse requisito, vez
que seria totalmente inoportuno e desproporcional a infiltração de
agentes policiais para a investigação de um simples grupo de pessoas
que praticam furtos esporádicos próximos a uma escola.
Em segundo, deverá ser necessária uma resolução (decisão)
expedida pela autoridade judicial. Tal requisito assegura a idoneidade
do método de investigação, obrigando o magistrado a que proceda
a uma análise, de forma pormenorizada, acerca da viabilidade da
concessão da autorização, documento este que tornará legítima a
atuação do infiltrado, mesmo em caso de eventual violação a direito
fundamental do investigado ou imputado.
Em correlação com os primeiros requisitos já abordados,
exige-se, ainda, o denominado juízo de proporcionalidade. Este ter-
ceiro requisito quer significar que, como toda medida restritiva de um
direito fundamental, a atividade do agente encoberto deverá estar
submetida ao princípio da proporcionalidade, no sentido de que o di-
reito ao castigo por parte do Estado não deverá realizar-se a qualquer
preço, senão, com respeito, sempre que necessário e possível, aos
direitos e garantias fundamentais do investigado (os quais, como é
cediço, não se revestem de caráter absoluto).
Em apertada síntese, seriam três as perguntas a serem for-
muladas e respondidas pela autoridade encarregada de formular
uma representação de infiltração (Polícia), ou emitir um parecer ou
requerimento (Ministério Público) ou decidir favorável ou desfavorável
ao início da operação de infiltração (magistrado):

1. O meio de investigação (infiltração policial) é apto à ob-


tenção do fim perseguido na operação encoberta?
2. Foram previamente esgotadas outras formas de investi-
gação, menos agressivas aos direitos e garantias funda-
mentais dos investigados?
3. As vantagens derivadas do fim público que se persegue
(a segurança coletiva) compensam os eventuais prejuízos
provocados aos direitos individuais que serão violados?

101
Se respondidos positivamente os três questionamentos, poder-
se-á afirmar que a infiltração policial passou pelo filtro de constitucio-
nalidade (à luz do princípio da proporcionalidade), estando apta a ser
colocada em prática, desde que obedecidos os limites impostos pela
Lei n. 12.850/13 e pela resolução judicial do magistrado.
O quarto requisito seria a especialidade. Este requisito estaria
intimamente ligado à existência de indícios suficientes para a impu-
tação de um delito determinado, de natureza grave, que permita afir-
mar a possibilidade de que o sujeito esteja cometendo ou tenha
cometido um crime, de forma tal que a autorização, que permite a
atuação do agente infiltrado, determinará, concretamente e de modo
específico, qual seria o delito ou delitos que se investiga e quais são
as pessoas que provavelmente serão objeto dessa investigação.
A motivação figura como quinto requisito, determinando que
deverá ser argumentado, na autorização judicial, as razões que con-
duziram o magistrado a restringir, pelo menos a priori, um direito fun-
damental pertencente ao investigado. Nesse sentido, deve ser
ressaltada a importância do papel da Polícia e do Ministério Público
no momento de fornecer ao juiz todos aqueles dados, fatos e indícios
racionais de criminalidade organizada, para que se realize correta-
mente a motivação da autorização judicial.
Nesse aspecto em particular, perdeu o legislador brasileiro a opor-
tunidade de inserir nos textos das Leis n. 12.850/13 e 13.441/17 redação
semelhante àquela prevista no ordenamento penal espanhol (art. 282
bis, apartado 3 da LEcrim), no sentido de que “cuando las actuaciones
de investigación puedan afectar a los derechos fundamentales, el
agente encubierto deberá solicitar del órgano judicial competente las
autorizaciones que, al respecto, establezca la Constitución y la Ley, así
como cumplir las demás previsiones legales aplicables”1.
Parece-nos que referida disposição contida na lei espanhola apre-
senta o condão de alertar previamente o magistrado que irá analisar o
pedido de infiltração, suscitando o mesmo a proceder a uma verificação
acerca de eventuais direitos fundamentais a serem violados no caminhar
da operação encoberta, sopesando, à luz dos critérios da proporcionalidade

1
“Quando as atuações de investigação podem afetar aos direitos fundamentais,
o agente infiltrado deve solicitar junto ao órgão judicial competente, as autori-
zações que, a respeito, estabelecem a Constituição e a lei, assim como, cumprir
outras disposições legais aplicáveis".

102
(necessidade, adequação e juízo de ponderação), a viabilidade do de-
ferimento do pleito, de modo a evitar a mitigação desnecessária e de-
sarrazoada de direitos e garantias fundamentais do investigado.
Por fim, tem-se um último e talvez o mais importante requisito
para o êxito da infiltração. Trata-se do controle a ser exercido pelo
juiz e pelo Ministério Público durante o período da operação enco-
berta. O órgão do Parquet, como titular do munus do controle externo
da atividade policial, deve participar de toda a elaboração do orga-
nograma do plano de infiltração. Deve, ademais, durante a operação,
ter acesso às informações a serem recolhidas junto ao infiltrado, jus-
tificando-se tal direito, em razão de ser o Ministério Público quem irá,
durante a persecução penal, utilizar-se das eventuais provas a serem
recolhidas pelos agentes infiltrados junto às organizações criminosas.
Velará assim o parquet pela obediência do infiltrado às disposições
contidas na autorização judicial. Não é pelo fato de o Ministério
Público ser o dominus litis da ação penal, que estará isento de velar
pela legalidade e pelo repúdio às práticas de atos abusivos por parte
dos agentes infiltrados. Da mesma forma, deve o juiz criminal con-
trolar, mesmo que de forma indireta (vez que não poderá participar
da investigação), a atividade de infiltração, a fim de que não se pro-
movam abusos e excessos que, no futuro, além de produzirem
danos irreparáveis aos direitos dos investigados, certamente fulmi-
narão a prova penal a ser produzida durante a instrução criminal.
Em síntese, a esta breve introdução sobre o tema é importante
finalizar, destacando que o infiltrado consiste na figura representada
pela pessoa investida na função policial, todavia, devidamente treinada
para essa situação, que, estando subordinada a outras autoridades
de persecução criminal e utilizando-se de uma identidade falsa, con-
segue penetrar nas entranhas de uma determinada organização cri-
minosa. Para tanto, vale-se o infiltrado do uso de várias técnicas, a
exemplo da dissimulação e do engano, com a finalidade específica de
obtenção de provas e outras informações acerca da prática de delitos
graves pelos membros do grupo delitivo. Por consequência, consegue
o infiltrado, via de regra, oferecer, ao fim da operação encoberta, infor-
mações às autoridades competentes, com o objetivo de colaborar na
desarticulação de toda a estrutura de macro criminalidade2.

2
Com riqueza de detalhes acerca do tema do agente infiltrado, cf. PEREIRA,

103
A LEI N. 12.850 DE 2013
(NOVA LEI DE ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS)

A recente legislação, inserida no ordenamento pátrio no ano


de 2013, acabou por suprir uma lacuna histórica relativa ao tra-
tamento do tema da criminalidade organizada e dos meios de
obtenção de provas.
Até então, estávamos subordinados à caótica Lei n. 9.034/953, a
qual primava pela ausência de tratamento específico de algumas téc-
nicas a serem utilizadas no enfrentamento à delinquência organizada.
Mais que isso, pecava a citada legislação por não apresentar
sequer um conceito normativo sobre o que seriam consideradas
como organizações criminosas.
Os meios de obtenção de provas, a exemplo das ações con-
troladas e da infiltração policial, eram tratados de forma pouco técnica
e não apresentavam na lei sequer os requisitos de validade para a
operacionalização dessas formas de investigação.
Mais grave ainda, na redação original da Lei n. 9.034/95, a
figura do agente infiltrado foi vetada, sendo que seu ingresso na
legislação supracitada, mesmo que dotado de imperfeição técnica,
somente se deu por meio da edição da Lei n. 10.217/01.
Portanto, temos a figura do infiltrado no âmbito do direito bra-
sileiro tão somente a partir de 2001.
No ano de 2012, percebe-se a edição da Lei n. 12.694, a qual
disciplinou o processo e o julgamento colegiado em primeiro grau de
jurisdição de crimes praticados por organizações criminosas. Não
houve menção aos meios de obtenção de provas em casos de in-
vestigações complexas envolvendo criminalidade organizada, res-
tando como novidade o surgimento do primeiro conceito normativo
de organizações criminosas (art. 2º)4.

Flávio Cardoso; ALMEIDA FERRO, Ana Luiza; GAZZOLA, Gustavo dos Reis.
Criminalidade organizada. Comentários à Lei 12.850, de 02 de agosto de 2013.
Curitiba: Editora Juruá, 2014, pp. 192-230; PEREIRA, Flávio Cardoso. El agente
infiltrado desde el punto de vista del garantismo procesal penal”. 2. ed. Curitiba:
Editora Juruá Internacional, 2016.
3
Importante destacar também que a infiltração de agentes já estava prevista
no art. 53, I, da Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas), porém, de forma acanhada
e sem previsão dos requisitos necessários a sua operacionalização.
4 Conceito este que restaria revogado quando da edição da Lei n. 12.850/13.

104
Com o advento da Lei n. 12.850/13, houve significativa mu-
dança no panorama do tratamento normativo do tema das organi-
zações criminosas, devendo ser reconhecido um salto na excelência
de qualidade do reconhecimento da importância de detalhamento
legislativo sobre o assunto.
Em apertada síntese, foram estas as principais novidades tra-
zidas pela nova lei de organizações criminosas:
a) novo conceito de organização criminosa (art. 1º, § 1º);
b) organização criminosa por equiparação (art. 1º, § 2º);
c) tipo penal de organização criminosa (art. 2º);
d) meios de obtenção de provas e seus requisitos (art. 3º);
e) tipificação dos crimes ocorridos na investigação e na
obtenção da prova (arts. 18 a 21).

Naquilo que nos interessa nesse breve ensaio, a infiltração de


agentes teve sua regulamentação na Lei n. 12.850/13 por meio dos
preceitos esculpidos nos artigos 3º, VII, e 10 a 14.
De início, cumpre-nos esclarecer quais foram as mudanças de
destaque na novel legislação do agente infiltrado.
A primeira diz respeito à questão do infiltrado e ao número mí-
nimo de participantes da organização criminosa.
Parece-nos que a resposta certeira poderá ser extraída do texto
do § 1º do art. 1º da Lei n. 12.850/13, ou seja, 4 (quatro) pessoas5.
Ademais, que fique claro que o infiltrado não deve ser considerado como
um delinquente a mais, portanto, não figurando nesse quantum de-
terminado pela lei. De forma distinta, inimputáveis e pessoas não
identificadas são admitidas para a contagem do número mínimo.
O conceito de infiltração permaneceu inexistente na nova lei
de organizações criminosas, cabendo à doutrina se debruçar sobre
essa questão6.

5 É de se observar que o número mínimo de 04 (quatro) pessoas não se coa-


duna com os principais textos internacionais sobre o tema, sendo que a exi-
gência do mínimo de 03 (três) pessoas é tendência já consolidada na doutrina,
jurisprudência e legislações estrangeiras.
6 Em nossa opinião, no aspecto conceitual, vale destacar que agente infiltrado,

encoberto ou topo, é a figura representada pela pessoa que exerce uma função
policial (com uma identidade falsa) e que devidamente treinado para determi-
nada situação, sob a subordinação das autoridades competentes e contando

105
De outra parte, a infiltração de agentes de polícia poderá se
originar de requerimento pelo Ministério Público ou representação
pela polícia (civil ou federal).
Exige-se, pelo texto do artigo 10, caput, da Lei n 12.850/13 a
“manifestação técnica” do delegado de polícia, quando a medida de
obtenção de provas for solicitada no curso do inquérito policial.
A intenção do legislador teria sido no sentido de que fosse opor-
tunizado à autoridade policial, ou seja, aquele órgão que efetivamente
executará a operação encoberta, opinar sobre a viabilidade da colo-
cação em prática dessa técnica de investigação. Inclusive, seria o mo-
mento para que o delegado de polícia, com atribuições legais, pudesse
ofertar ao magistrado e ao Ministério Público informações úteis sobre
a existência ou não de material humano disponível para infiltrar-se na
organização criminosa, para que relatasse acerca das condições ma-
teriais e estruturais disponíveis para elaboração do plano operacional
sobre o momento para deflagração da operação, etc.
Manifestando-se o órgão policial contrariamente à viabilidade
da operação, ficaria a cargo do juiz, após analisar os fundamentos
ofertados, decidir se acolhe ou não o requerimento ministerial.
Ao contrário, opinando a autoridade policial favorável à infiltra-
ção, por lógica, será desencadeada a montagem do plano operacio-
nal, desde que acolhido o requerimento elaborado pelo Ministério
Público. Outras novidades foram a necessidade de sigilosa autori-
zação judicial fixando os limites da operação, a oitiva obrigatória do
Ministério Público e a demonstração de indícios de infração penal de
que trata o art. 1º da Lei n. 12.850/13. Observa-se que não se falou
em demonstração de indícios de “autoria”, embora sejam estes
normalmente relevantes.
Por outra parte, uma excelente notícia foi a introdução no artigo 10,
§ 2º, de dispositivo no sentido de que somente será admitida a infiltração,

com autorização judicial fundamentada no princípio da proporcionalidade, con-


segue introduzir-se nas entranhas de uma determinada organização criminosa,
utilizando-se de várias técnicas de investigação (atos de engano e dissimula-
ção), com a finalidade específica de obtenção de informações e dados acerca
da comissão de delitos graves pelos membros desse clã criminoso e, por con-
sequência, com o oferecimento dessas valiosas informações ou dados às au-
toridades de persecução, no intuito de que seja desarticulada toda a estrutura
de macro criminalidade através de uma sentença condenatória futura.

106
se a prova não puder ser produzida por outros meios disponíveis. Reco-
nheceu-se a necessidade concreta de respeito ao princípio da ultima ratio.
Ademais, quanto ao aspecto operacional da operação, positi-
vou-se o prazo de 06 (seis) meses para a operação de infiltração,
admitindo-se prorrogações, desde que justificadas (art. 10, § 3º).
Deverá haver a apresentação de relatório circunstanciado ao
juiz e comprovação pela autoridade solicitante da necessidade da me-
dida, do alcance das tarefas dos agentes quando possível, os nomes
ou apelidos das pessoas investigadas e o local da infiltração (art. 11).
Por fim, citam-se os dispositivos referentes ao sigilo quanto ao
pedido de infiltração (art. 12, caput), ao prazo de 24 (vinte e quatro)
horas para que o juiz decida sobre a legalidade do pedido da opera-
ção (art. 12, § 1º), a possibilidade de sustação da medida em caso
de risco ao agente (art. 12, § 3º), a obediência ao princípio da pro-
porcionalidade (art. 13, caput) e a previsão de exclusão da culpabili-
dade pela inexigibilidade de conduta diversa (art. 13, § único).
Tratou-se, por fim, dos direitos do infiltrado (art. 14).
Em síntese, tem-se que a nova lei de organizações (Lei n.
12.850/13), inobstante críticas pontuais, apresentou avanços signifi-
cativos em matéria de infiltração de agentes, equiparando-se a outros
tantos regramentos internacionais avançados no tocante ao enfren-
tamento à criminalidade organizada.

AGENTE INFILTRADO VIRTUAL. A NOVA LEI N. 13.441/2017

A novidade objeto deste estudo sobre a infiltração de


agentes diz respeito à publicação da recentíssima Lei n. 13.441,
de 08 de maio de 2017, a qual promoveu alterações na Lei n.
8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), para prever a
infiltração de agentes de polícia na internet, com o fim de investi-
gar crimes contra a dignidade sexual de criança e de adolescente.
Alterou-se, portanto, o ECA, promovendo a inserção dos
preceitos contidos nos artigos 190-A, 190-B, 190-C, 190-D e 190-D7.

7Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/


L13441.htm>. Acesso em: 31de mai. 2017.

107
Assim, a utilidade maior da infiltração policial cibernética reside
no uso de identidade fictícia para coletar informações sigilosas (privadas,
em relação às quais há expectativa de privacidade) e na penetração
em dispositivo informático do criminoso a fim de angariar provas8.
A partir de agora, poderão ser deflagradas operações de
investigação mediante a utilização da figura do agente infiltrado
dentro do ambiente virtual da internet, mesmo não se tratando de
hipótese concreta de atuação de uma organização criminosa.
Dentro dessa temática, importante ressaltar que o procedi-
mento mais detalhado de infiltração de agentes previsto na Lei n.
12.850/13 pode e deve ser utilizado para complementar a previsão
legal da infiltração virtual de agentes. Em outras palavras, a infiltração
virtual seria apenas uma espécie do gênero infiltração de agentes.
Justamente por isso, seria perfeitamente possível a adoção
do procedimento de infiltração virtual de agentes para a apuração
de organizações criminosas. Nesse sentido, a nova lei em mo-
mento algum estabelece essa vedação9.
Justifica-se, ademais, tal inovação legislativa trazida pela
edição da Lei n. 13.441/17, vez que, dentre os crimes que podem
ser praticados contra a dignidade sexual de infantes e adolescen-
tes, destaca-se a pedofilia10, tema de moda dentre os problemas
enfrentados pelas sociedades modernas, em razão do incre-
mento e crescimento dos meios tecnológicos, em especial face
aos avanços da rede mundial de computadores (internet).
Assim, tornou-se algo comum a utilização dessa forma de
contato virtual para se iniciar, sem aparente risco, uma amizade

8 Nesse sentido, vide MONTEIRO DE CASTRO, Henrique Hoffmann. “Lei


13.441/17 instituiu a infiltração policial virtual”. Artigo publicado no site Conjur, em
16/05/2017. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-mai-16/academia-policia-
lei-1344117-instituiu-infiltracao-policial-virtual>. Acesso em: 31de mai. 2017.
9 Adotando essa posição, cfr. SANNINE NETO, Francisco. “Infiltração virtual de

agentes é um avanço nas técnicas especiais de investigação criminal”. Artigo


publicado no site Damásio Educacional, em 15/05/2017. Disponível em:
<http://noticias.damasio.com.br/noticias-damasio/infiltracao-virtual-de-
agentes-e-um-avanco-nas-tecnicas-especiais-de-investigacao-criminal/>.
Acesso em: 31de mai. 2017.
10 Destaca-se que a pedofilia, segundo corrente majoritária no Brasil, não é con-

siderada infração penal. Conforme SYDOW, Spencer Toth. “Pedofilia virtuale


considerações críticas sobre a Lei n. 11.829/08”, Revista Liberdades (IBCCrim),
n.1, 2009, pp.46-65.

108
do criminoso com uma vítima menor de idade, com o objetivo de
manter com ela, em um futuro próximo, atos de satisfação de las-
cívia sexual.
Além da pedofilia propriamente dita, a internet acaba
sendo utilizada como meio de prática de inúmeras outras infra-
ções penais, dentre as quais se destacam aquelas mencionadas
no caput do art. 190-A do ECA.
Referida prática delitiva11 encontra-se catalogada como
uma das atividades ilícitas mais frequentemente perpetradas
pelas grandes organizações criminosas de cunho transnacional.
Justifica-se tal assertiva em razão dos altíssimos lucros advindos
da exploração, principalmente, de material pornográfico na rede
mundial de computadores.
A infiltração virtual prevista na Lei n. 13.441/17 poderá
ser operacionalizada para o enfrentamento a crimes graves, a
exemplo dos crimes de invasão de dispositivo informático, estu-
pro de vulnerável, corrupção de menores, satisfação de lascívia,
mediante presença de criança ou adolescente e favorecimento
da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança
ou adolescente ou de vulnerável.
É de se destacar que a nova modalidade de infiltração,
a qual podemos denominar como “virtual”, deverá ser levada a
efeito por agente policial devidamente treinado para tal desígnio,
devendo este apresentar aspectos psicológicos condizentes com
a complexidade da operação, perfil intelectual adequado para o
correto desempenho das tarefas inerentes ao plano operacional,
conhecimentos avançados em matéria cibernética e capacidade
de inovar em situações de extrema fragilidade no tocante ao sigilo
do trabalho encoberto.
Caberá ao mesmo obter a confiança daquelas pessoas
envolvidas na trama delitiva e, após o uso de meios e técnicas
de dissimulação no meio virtual, conseguir obter dados e infor-
mações acerca da prática de delitos graves (mencionados na
nova lei), visando à deflagração a posteriori de um plano de desar-
ticulação e persecução aos eventuais delinquentes ou membros de
uma determinada organização criminosa.

11 A pedofilia é consderada em alguns ordenamentos jurídicos como delito.

109
Interessante mencionar alguns pontos nucleares da in-
filtração virtual, lançando ainda algumas observações críticas
pertinentes ao tratamento legislativo da matéria.
De início, deverá haver autorização judicial devidamente
circunstanciada e fundamentada, explicitando os limites para a
obtenção da prova.
Nesse aspecto, andou bem o legislador pátrio, vez que
acorde com uma concepção garantista do processo penal, nada
mais lógico do que nortear a atuação do magistrado à explicita-
ção de sua decisão sob o manto da justificação das razões de
decidir (imperativo constitucional do art. 93, IX, da CF).
Na mesma linha, deverá ser ouvido o Ministério Público,
quando a representação tiver origem em solicitação formulada
pela autoridade policial.
A legitimidade para o pedido de infiltração poderá partir
tanto do Ministério Público (via de requerimento) ou do delegado
de polícia (via representação).
Uma falha a ser apontada na nova Lei n. 13.441/17 diz res-
peito à ausência de exigência de “manifestação técnica” da autoridade
policial, quando o pedido for formulado pelo representante do parquet.
Ora, poder-se-ia ter o legislador utilizado da mesma linha de
raciocínio da Lei n. 12.850/13 (art. 10, caput), vez que a menção e a
exigência de manifestação técnica do delegado de polícia se traduzem
em requisito primordial e imperioso ao êxito da operação de infiltração.
Imagina-se que o Ministério Público faça um requeri-
mento ao juiz, pleiteando autorização de deflagração de opera-
ção mediante uso de um agente infiltrado virtual, vindo a mesma
a ser acatada, autorizando-se o pedido.
Levada a decisão ao conhecimento da polícia, observa
o delegado de polícia a ausência de pessoa qualificada nos qua-
dros da instituição policial para o desempenho de tal função.
O que fazer? Inserir no mundo virtual um agente sem a ap-
tidão e o preparo necessários ao bom caminhar das investigações?
Não nos parece ser essa a solução adequada, vez que
um dos requisitos basilares, quando da elaboração do plano ope-
racional de infiltração, consiste no recrutamento inicial do agente
portador de perfil técnico e psicológico correspondente à finali-
dade da investigação.

110
Outra observação de interesse diz respeito ao prazo de
90 (noventa) dias, cujo limite não poderá ser excedido, salvo em
caso de eventuais renovações, e ainda desde que não ultrapasse
no seu total o lapso temporal de 720 (setecentos e vinte) dias.
Haveria em todo caso a necessidade de demonstração
por parte do órgão solicitante da efetiva necessidade de opera-
cionalização da infiltração virtual.
O prazo inicial de 90 (noventa) dias parece-nos razoável,
vez que cada operação encoberta apresentará particularidades,
que podem ao fim justificar a elasticidade ou não desse lapso
temporal previsto em lei.
Nessa mesma linha de intelecção, as renovações são
permitidas como consectário lógico ao desenvolvimento da com-
plexa operação de infiltração.
Diante do exposto, parece ter falhado o legislador, ao
prever no art. 190-A, III, da Lei n. 8.069/90 (com as alterações
promovidas pela Lei n. 13.441/17), o prazo máximo dessas pror-
rogações, fixando um patamar único e fechado de 720 (setecen-
tos e vinte) dias para a conclusão da operação de investigação.
Ora, é cediço dentre aqueles que conhecem o mínimo
sobre investigações criminais que cada situação concreta apre-
senta suas particularidades e nuances, devendo ser lembrada a
situação esdrúxula de uma investigação focada em uma estrutu-
rada e poderosa rede de pedofilia, portanto, verdadeira organi-
zação criminosa transnacional, na qual o órgão de persecução
se veja prestes a concluir o trabalho investigativo em data pró-
xima ao prazo limite de 720 (setecentos e vinte) dias.
Nessa hipótese aventada, perder-se-ia todo o trabalho
árduo desenvolvido pelo agente infiltrado virtual, em razão de
este não ter conseguido concretizar a obtenção da prova dentro
do limite fixado por lei12.

12Basta lembrar que grandes operações de infiltração a nível mundial, que re-
dundaram em desarticulação de poderosas organizações criminosas, perdura-
ram por alguns anos, face à complexidade da obtenção de provas que
pudessem incriminar agentes pertencentes a esses grupos delitivos. Cita-se,
como exemplo, a operação levada a efeito pelo agente de codinome “lobo” na
Espanha, a qual desarticulou nos anos oitenta boa parte da estrutura operacio-
nal da organização terrorista conhecida por ETA.

111
Andou melhor o texto da Lei n. 12.850/13, bem como da
maioria dos ordenamentos jurídicos que tratam do tema, ao fixa-
rem um prazo inicial razoável, porém, permitindo quantas forem
as prorrogações, desde que a autoridade solicitante demonstre,
perante o juiz da causa, as razões técnicas e operacionais que
possam justificar a continuidade do trabalho de busca de dados
e informações sobre os delitos graves praticados em detrimento
da dignidade sexual de criança e adolescente.
Cumpre papel relevante nesse contexto, a análise do
caso concreto à luz do princípio da proporcionalidade, o qual pode
ser compreendido como um verdadeiro critério que busca esta-
belecer os limites à intervenção do agente infiltrado virtual na
busca da verdade, equilibrando-se os interesses do Estado e os
direitos das pessoas que figuram como investigadas. Referimo-
nos ao reconhecido e compatibilização do binômio garantia-
eficiência.
Outra nota de destaque no texto da Lei n. 13.441/17 con-
diz com o reconhecimento do princípio da ultima ratio, exigindo-
se que a infiltração dos agentes policiais virtuais só ocorra se a
prova não puder ser obtida por outros meios menos invasivos a
direitos e garantias individuais.
Por essa razão, em conformidade com o § 3º, poder-se-á
admitir que, como toda medida suscetível de restrição de direitos
fundamentais, deverá a infiltração de agentes apresentar um ca-
ráter excepcional, sendo adotada somente na hipótese de ine-
xistência de outros meios de obtenção de provas.
Acertou a nova lei ao prever que as informações da ope-
ração deverão ser encaminhadas diretamente ao juiz responsável
pela operação, visando com isso concretizar e garantir o sigilo ne-
cessário a essa técnica de investigação (art. 190-B, caput, do ECA).
Digna de crítica parece-nos ser a redação dada ao art.
190-C do ECA (inserido por força da Lei n. 13.441/17), a qual não
menciona explicitamente a causa de exclusão de ilicitude ou
causa absolutória na qual estará amparado o agente infiltrado
virtual que ocultar sua identidade no ambiente cibernético, a fim
de colher indícios de autoria e materialidade dos crimes mencio-
nados nos arts. 240, 241, 241-A, 241-B, 241-C e 241-D do Esta-
tuto da Criança e do Adolescente e nos arts. 154-A, 217-A, 218-A

112
e 218-B do Código Penal.
Cita-se, a título de comparação, que a Lei n. 12.850/13
fez constar expressamente no § único do art. 13, que não é puní-
vel, no âmbito da infiltração, a prática de crime pelo agente infil-
trado no curso da investigação, quando inexigível conduta diversa.
E mais grave, ainda, seria a conduta do infiltrado no sen-
tido de ocultar a sua identidade no mundo virtual, infração penal
prevista no ordenamento jurídico brasileiro? Não, em nossa opinião.
Da mesma forma, ficou em aberto, no texto da nova lei
sobre o infiltrado virtual, o tratamento jurídico a respeito da respon-
sabilidade penal, civil e administrativa do agente que, no curso da
investigação devidamente autorizada judicialmente, cometer atos
e crimes que possam redundar em tais consequências jurídicas.
Limitou-se o legislador a apontar que o agente policial in-
filtrado, que deixar de observar a estrita finalidade da investiga-
ção, responderá pelos excessos praticados (art. 190-C, § único,
do ECA, com a alteração promovida pela Lei n. 13.441/17).
Dirão os mais simplistas que bastará aplicar a analogia
para se buscar amparo na tese da inexigibilidade de conduta di-
versa, a fim de justificar eventuais crimes praticados pelo infil-
trado virtual. Não nos apresenta tal justificativa tão acertada.
Por fim, restou positivamente consignado na lei reguladora
do agente infiltrado virtual que, concluída a investigação, todos os
atos eletrônicos praticados durante a operação deverão ser regis-
trados, gravados, armazenados e encaminhados ao juiz e ao Mi-
nistério Público, juntamente com o relatório circunstanciado.
Consectário lógico, deverá, ao fim da operação enco-
berta, assegurar-se a identidade do infiltrado e das crianças e
adolescentes envolvidos no caso sob investigação (art. 190-E do
ECA, introduzido por força da Lei n. 13.441/17).

113
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em linhas gerais, a introdução do agente infiltrado virtual,


no contexto das investigações atinentes ao enfrentamento à cri-
minalidade organizada e aos atos isolados de pedofilia, reveste-
se de suma importância em razão do avanço promovido pela
evolução assustadora das novas tecnologias.
O mundo cibernético se transformou em terreno vasto para
a proliferação e perpetuação de atividades criminosas que promo-
vem lucros altíssimos a poderosas organizações criminosas.
A descoberta dos segredos contidos nos bastidores da
“rede das redes” tem se tornado uma aspiração mundial por parte
dos agentes incumbidos de promover a prevenção e a repressão
ao crime organizado.
Assim, a justificação do uso de técnicas, como a dissi-
mulação e o engano, para se infiltrar no meio cibernético, con-
siste em questão de política criminal, retratando as
consequências advindas dessa violação de direitos e garantias
individuais do investigado.
Porém, em nossa visão sobre o tema, a explicação lógica
acerca da utilização, em ultima ratio, desse meio de obtenção de
provas poderá ser justificada em uma ponderação de valores, na
qual prepondera, no caso concreto, o valor “eficácia”, vez que a
meta consiste em enfrentar de forma contundente essa forma
grave de perpetração de delitos contra vítimas vulneráveis, utili-
zando-se para tal do agente infiltrado virtual, na busca de pro-
mover o bem- estar e a pacificação social da sociedade, que se
encontra atemorizada diante de tantas atrocidades cometidas
contra nossa juventude através da rede internet.
Nesse aspecto, dentro de um Estado de Direito, deverá
ser visada a aplicação da “justiça”, mas sem se descuidar das
precauções para se evitar o “vale tudo” no tocante à obtenção da
prova penal.
Não se pode dessa forma promover o engano via virtual,
de modo desproporcional e sem obedecer aos critérios legais
para a concessão de autorização judicial para a infiltração de um
agente policial na internet.

114
Embora se possam vislumbrar equívocos e, principal-
mente, distorções entre as Leis n. 12.850/13 e 13.441/17, andou
bem o legislador brasileiro ao preocupar-se com o enfrentamento
dessa nova modalidade de criminalidade “virtual”, a qual infeliz-
mente atinge um público totalmente vulnerável e passível de
danos físicos e psicológicos irreparáveis.
Espera-se uma vez mais que os atores do processo
penal possam, tal qual um remédio com alta propensão de resul-
tados práticos, utilizar os norteamentos promovidos pela edição
da nova lei, com moderação e cuidado, evitando-se fazer “justiça”
com resultados também gravosos aos direitos das pessoas acu-
sadas ou investigadas pela prática de delitos graves cometidos
contra crianças e adolescentes.
Que se promova o respeito e culto a um processo penal
garantista. No bom sentido, é lógico.

115
REFERÊNCIAS

CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Lei 13.441/17 instituiu a


infiltração policial virtual. Artigo publicado no site Conjur, em
16/05/2017. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-mai-
16/academia-policia-lei-1344117-instituiu-infiltracao-policial-virtual>.
Acesso em: 31 de mai. 2017.

PEREIRA, Flávio Cardoso; ALMEIDA FERRO, Ana Luiza; GAZ-


ZOLA, Gustavo dos Reis. Criminalidade organizada. Comentá-
rios à Lei 12.850, de 02 de agosto de 2013. Curitiba: Editora
Juruá, 2014.

PEREIRA, Flávio Cardoso. El agente infiltrado desde el punto de


vista del garantismo procesal penal. 2. ed. Curitiba: Editora Juruá
Internacional, 2016.

SANNINE NETO, Francisco. Infiltração virtual de agentes é um


avanço nas técnicas especiais de investigação criminal. Artigo
publicado no site Damásio Educacional, em 15/05/2017. Dispo-
nível em: <http://noticias.damasio.com.br/noticias-damasio/infil-
tracao-virtual-de-agentes-e-um-avanco-nas-tecnicas-especiais-d
e-investigacao-criminal/>. Acesso em: 31 de mai. 2017.

116
Franciely Vicentini Herradon*

TRIBUNAL DO JÚRI: CONHECIMENTO DE


OFÍCIO DA REINCIDÊNCIA E DA MENORIDADE
SEM AFRONTA À SOBERANIA DO VEREDICTO

JURy: lEGAl KNOWlEDGE OF tHE CRiMiNAl


RECURRENCE AND MiNORity WitH NO
AFRONt tO tHE SOVEREiGNty OF tHE VERDiCt

tRiBUNAl DEl JURADO: CONOCiMiENtO DE


OFiCiO DE lA REiNCiDENCiA y DE lA MENORiDAD
SiN AFRONtA A lA SOBERANÍA DEl VEREDiCtO

Resumo:
A Lei n. 11.689/2008 provocou acentuadas mudanças quanto ao pro-
cesso e julgamento dos crimes dolosos contra a vida, especialmente
a matéria referente à formulação de quesitos. Assim, circunstâncias
agravantes e atenuantes apreciadas pelo magistrado na segunda
fase da dosimetria não são quesitadas aos jurados, porém, o juiz pre-
sidente somente poderia aplicá-las se sustentadas pelas partes du-
rante os debates. Todavia, a agravante da reincidência e a atenuante
da menoridade são circunstâncias de caráter objetivo, já demonstra-
das nos autos documentalmente e também pelo interrogatório judicial,
o que permitiria ao julgador conhecê-las de ofício, sem qualquer
afronta ao contraditório e à plenitude de defesa, bem como à sobe-
rania dos veredictos, conforme importante precedente do Supremo
Tribunal Federal lastreado no princípio da proporcionalidade da pena.

Abstract:
The Law n. 11.689/2008 promoted drastic changes in procedures
related judgement of deliberate crime committed against human
life, especially concerning issues referring to questions formula-
tion. Thus, aggravating or attenuating circumstances assessed

* Pós-graduada em Ciências Criminais pela Escola Superior Associada de Goiânia


e graduada em Direito pela Universidade Estadual de Maringá-PR. Juíza de Direito
da Comarca de Novo Gama-GO.

117
by the magistrate at the second stage of penalty setting, do not
submit to jury’s questioning anymore, but a judge presiding would
be able to apply them only if mentioned by the parts involved du-
ring jury debates. However, the aggravating concerning habitual
offense, as well as attenuating minority are circumstances of ob-
jective nature, as they have already been registered at court re-
cords and trial inquiry, which allows the judge to appoint them by
his own initiative, with no harm to contestation and broad de-
fense, as well as to verdict prevalence, in accordance with im-
portant precedent at Brazilian Federal Supreme Court based on
the penalty proportionality.

Resumen:
La Ley n. 11.689/2208 hizo grandes cambios en el proceso y juzga-
miento de los delitos dolosos contra la vida, especialmente en lo que
atañe a la formulación de los quesitos. Así, las circunstancias agra-
vantes y atenuantes preciadas por el juez en la segunda fase de la
dosimetría de la pena no son objeto de los quesitos a los jurados, sin
embargo, el juez presidente solo podría aplicarlas si sustentadas por
las partes durante los debates. Por otra parte, la agravante de la rein-
cidencia y la atenuante de la menoridad son circunstancias de carác-
ter objetivo, ya demostradas en los autos documentadamente así
como en el interrogatorio judical, lo que permitiría al juez conocerlas
de ofício, sin cualquier afronta al contradictorio y a la amplia defensa,
como tampoco a la soberanía de los veredictos, conforme importante
precedente del Supremo Tribunal Federal basado en el principio de
la proporcionalidad de la pena.

Palavras-chave:
Dosimetria, atenuante, agravante, circunstâncias objetivas.

Keywords:
Penalty dosimetry, attenuating, aggravating, objective circumstances.

Palabras-clave:
Dosimetría, atenuante, agravante, circunstâncias objetivas.

118
INTRODUÇÃO

As normas processuais que disciplinam o tribunal do Júri,


previstas no Código de Processo Penal de 1941, sofreram inúme-
ras modificações com a lei n. 11.689/2008, com o fito de agilizar,
simplificar e modernizar o procedimento atinente aos crimes dolo-
sos contra a vida.
Dentre as alterações oriundas da novel legislação, ocupa
posição de destaque a formulação de quesitos.
Pelo regramento anterior, as circunstâncias agravantes e
atenuantes necessariamente eram objeto de quesitos, de maneira
que o juiz sentenciante não poderia decidir isoladamente e tam-
pouco contrariar o entendimento dos jurados. todavia, o sistema
processual vigente permite que aludidas circunstâncias sejam re-
conhecidas pelo magistrado independente de qualquer indagação
ao Conselho de Sentença.
Para que tais circunstâncias incidam na segunda fase de
fixação da pena, mister se faz que sejam sustentadas pelas partes
durante o momento processual denominado “debates”, em confor-
midade com o disposto no artigo 492, inciso i, alínea b, do Código
de Processo Penal.
Entretanto, será que mencionado preceito aplica-se indis-
tintamente a qualquer agravante ou atenuante? Ora, não se pode
olvidar que há circunstâncias agravantes e atenuantes de natureza
objetiva, as quais dispensam maiores indagações entre os sujeitos
processuais, mormente porque já se encontram documentadas nos
autos, não pairando dúvidas quanto às suas existências.
Desse modo, para o reconhecimento na sentença da agra-
vante da reincidência e da atenuante da menoridade, ambas de
caráter objetivo, seria necessário que fossem postuladas pelo
órgão acusatório e pelo defensor durante os debates?
O estudo em questão tem por escopo demonstrar pelo
método dedutivo, através de evolução doutrinária e jurisprudencial
nacional, que o magistrado pode aplicar a agravante da reincidên-
cia e a atenuante da menoridade, ainda que não tenham sido sus-
citadas pelas partes, sem acarretar qualquer nulidade processual
e ofensa à soberania do júri popular.

119
A SOBERANIA DO VEREDICTO DO TRIBUNAL DO JÚRI: DELIMI-
TAÇÃO

O tribunal do Júri - integrante do Poder Judiciário de pri-


meira instância da Justiça Comum Estadual e Federal -, é de natu-
reza eclética, ou seja, composto por um juiz togado, que o preside
e por 25 (vinte e cinco) cidadãos, dentre os quais, 07 (sete) serão
sorteados para compor o Conselho de Sentença em cada sessão
de julgamento e com competência mínima para julgar os crimes
dolosos contra a vida.
A Constituição Federal de 1988, no título ii, reservado aos
direitos e garantias fundamentais, conferiu ao júri a importância de
figurar como garantia e direito-instrumental (art. 5º, XXXViii), com o
propósito de tutelar o direito de liberdade e também o direito coletivo
e social do cidadão para participar ativamente do Poder Judiciário1.
Além do mais, a instituição do júri foi erigida à categoria de
cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4º, iV), não podendo ser abolida do
ordenamento jurídico pátrio, sendo ainda regida por um microssis-
tema inserido no âmbito do Código de Processo Penal2 em conso-
nância com os princípios constitucionais.
Dentre tais princípios, merece especial ênfase aquele de-
nominado de soberania dos veredictos (CF, art. 5º, XXXViii, c), o
qual estabelece que a decisão coletiva e sigilosa dos jurados seja
acatada, impossibilitando qualquer alteração em seu mérito, seja

1 Nesse sentido: “Se é uma garantia, há um direito que tem por fim assegurar.
Esse direito é, indiretamente, o da liberdade. [...] o Estado só pode restringir a li-
berdade do indivíduo que cometa um crime doloso contra a vida, aplicando-lhe
uma sanção restritiva de liberdade, se houver um julgamento pelo tribunal do
Júri. O Júri é o devido processo legal do agente de delito doloso contra a vida,
não havendo outro modo de formar sua culpa. E sem formação de culpa, ninguém
será privado de sua liberdade (art. 5º, liV). logicamente, é também um direito.
Em segundo plano, mas não menos importante, o Júri pode ser visto como um
direito do cidadão de participação na administração de justiça do país.” (NUCCi,
1999, p. 55). Enaltecendo ainda a importância do tribunal do Júri: “Por sua posi-
ção topográfica no texto constitucional, contemplado entre as garantias funda-
mentais dos cidadãos, vê-se, de logo, o estreito liame da instituição do júri com
os ideais democráticos acolhidos pela nação, a um tempo servindo de garantia
ao acusado, de ser julgado por seus pares, e permitindo a participação popular
na administração da justiça criminal.” (BONFiM; PARRA NEtO, 2009, p.1).
2 Após ser sancionada a lei n. 11.689, de 09 de junho de 2008, a matéria foi discipli-

nada nos artigos 406 a 497 do Código de Processo Penal (Cf. CPP, art. 394, § 3º).

120
por um juiz de direito, seja por um tribunal.
Nesse viés, oportuna a distinção de José Frederico Mar-
ques (1997, p. 80) entre soberania do júri e soberania dos veredic-
tos. Enquanto a primeira refere-se à impossibilidade de outro órgão
do Poder Judiciário, por exemplo, tribunal de Justiça, em sede re-
cursal, modificar o entendimento dos jurados, a segunda atinge o
próprio magistrado presidente, impedindo-o que contrarie a vontade
popular ao proferir sentença com conteúdo diverso do que foi deli-
berado pelos juízes naturais da causa3.
Mas se a decisão dos jurados for manifestamente contrária
às provas dos autos, caberá à parte interessada interpor apelação,
podendo o juízo ad quem determinar a realização de novo julgamento
pelo próprio júri, com outros jurados (CPP, art. 593, iii, d e § 3º), sem
que haja violação ao postulado da soberania dos veredictos.
Frisa-se que o jurado, pelo princípio da íntima convicção,
simplesmente vota, condenando ou absolvendo o réu, de acordo
com sua consciência e sem apego à lei4. Como bem asseverou Ro-
berto lyra, “não é o jurado obrigado, como Juiz, a decidir pelas pro-
vas do processo, contra os impulsos da consciência” (apud
tOURiNHO FilHO, 1997, p. 76). Ele apenas vota “sim” ou “não”
aos quesitos, sem externar qualquer fundamento.
Entende-se por quesitos as perguntas dirigidas aos jurados
para que se pronunciem sobre a imputação que recai sobre o réu,
cujo resultado das respostas materializará a soberania do veredicto.
Ao conjunto de quesitos dá-se o nome de questionário.
Assim, a soberania dos veredictos restringe-se ao mérito
da causa, isto é, os juízes leigos votam os quesitos pela condena-
ção ou absolvição do acusado, cabendo ao juiz de direito, a partir
do resultado obtido, empenhar-se na fixação da reprimenda.
Portanto, o preceito constitucional da soberania dos vere-
dictos não abrange a dosimetria da pena, sendo esta de compe-
tência exclusiva do magistrado presidente.

3 Vide também: ANSANElli JÚNiOR, 2005.


4A propósito, uma vez formado o Conselho de Sentença composto por 07 (sete)
cidadãos sorteados, procede-se ao juramento, ocasião em que os jurados são
chamados nominalmente, firmando o compromisso de que decidirão o caso em
julgamento, de acordo com a consciência e os ditames da justiça, sem qualquer
referência às leis e às jurisprudências pátrias. Vide artigo 472 do Código de
Processo Penal.

121
AS CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES E ATENUANTES: NECES-
SIDADE DE ELABORAÇÃO DE QUESITOS ANTES E APÓS A
LEI N. 11.689/2008

Anteriormente às alterações introduzidas pela lei n.


11.689/2008, uma das funções do libelo-crime - peça articulada pri-
vativa do órgão acusatório -, era permitir a inclusão das circunstân-
cias agravantes, que, nesta hipótese, obrigatoriamente, seriam
objeto de quesitos, sob pena de nulidade.
Nesse sentido decidiu o Superior tribunal de Justiça que,
“no julgamento pelo júri, não formulado quesito sobre a reincidên-
cia, a agravante não pode ser considerada pelo juiz presidente ao
exarar a sentença, sob pena de nulidade” (BRASil, 2009), se-
guindo a mesma orientação do Supremo tribunal Federal quanto
à indispensabilidade de elaboração de quesito sobre a agravante
da reincidência, ou de qualquer outra, para que se pudesse na sen-
tença reconhecê-la5.
logo, pela sistemática outrora vigente, as circunstâncias
agravantes deveriam ser articuladas no libelo-crime ou, então, sus-
tentadas em plenário durante os debates, para que fossem subme-
tidas ao crivo do Júri Popular, a requerimento do acusador6.
No tocante às circunstâncias atenuantes, antes da reforma
processual, compunham elas o rol de quesitos obrigatórios, inde-
pendente da defesa articulá-las na contrariedade ao libelo ou
mesmo em plenário7. A ausência desse quesito ensejava nulidade
absoluta, em consonância com a Súmula 156 do StF8.

5 Cf. Habeas Corpus n. 69.803, segundo o qual o Relator Ministro Paulo Brossard

sedimentou que a “reincidência induz nulidade de sentença por falta de quesito


nesse sentido.”
6 Eis a redação do antigo artigo 484, parágrafo único, do Código de Processo

Penal: “Serão formulados quesitos relativamente às circunstâncias agravantes


e atenuantes [...]: i – para cada circunstância agravante, articulada no libelo, o
juiz formulará um quesito; ii – se resultar dos debates o conhecimento da exis-
tência de alguma circunstância agravante, não articulada no libelo, o juiz, a re-
querimento do acusador, formulará o quesito a ele relativo.”
7 A redação antiga determinava que “o juiz formulará, sempre, um quesito sobre a exis-

tência de circunstâncias atenuantes, ou alegadas” (CPP, art. 484, parágrafo único, iii). 
8 “É absoluta a nulidade do julgamento, pelo júri, por falta de quesito obrigatório.”

122
todavia, o libelo-crime não mais foi contemplado. Hodier-
namente, é a pronúncia que delimita a acusação em plenário, de-
vendo o juiz, de forma comedida e fundamentada, indicar a
materialidade do fato e a existência de indícios suficientes de auto-
ria ou de participação, bem como citar o dispositivo legal que se
acha incurso o pronunciado, além de eventuais qualificadoras e
causas de aumento de pena (CPP, art. 413, § 1º).
trata-se, pois, do princípio da correlação entre a pronúncia
e o questionário, isto é, “teses não abordadas especificamente na
decisão de admissibilidade da acusação, relacionadas ao tipo penal
incriminador, são vedadas ao órgão acusatório, ao atuar em plenário”
(NUCCi, 2013b, p. 138).
Observa-se, porém, que a novel legislação não mencionou
as chamadas circunstâncias agravantes, previstas nos artigos 61 e
62 do Código Penal, como parte integrante da decisão de pronúncia9.
Desse modo, exsurge a seguinte indagação: As circuns-
tâncias agravantes, tais como as atenuantes, devem ser objeto de
quesitos?
Em outras palavras, compete aos jurados votarem pela
configuração ou não de tais causas legais de elevação ou redução
da pena, assim como ocorria antes da entrada em vigor da lei n.
11.689/2008?
Oportuno ponderar que as circunstâncias agravantes (CP,
arts. 61 e 62) e atenuantes (CP, arts. 65 e 66) são matérias atinen-
tes à fixação da pena, tendo sido adotado em nosso ordenamento
jurídico o sistema trifásico (ou Nelson Hungria), conforme se infere
do artigo 68, do Código Penal10.
As agravantes e as atenuantes podem ser assim definidas
como “circunstâncias objetivas ou subjetivas que não integram a es-
trutura do tipo penal, mas se vinculam ao crime, devendo ser con-
sideradas pelo juiz no momento da aplicação da pena” (CUNHA,
2014, p. 384), mais precisamente, na segunda fase da dosimetria.

9Com efeito, “mesmo no regime anterior, já era entendimento dominante que a


pronúncia não deveria conter referências a questões relativas à pena, entre as
quais as circunstâncias agravantes (CP, arts. 61 e 62).” (BADARÓ, 2008, p.
185). No mesmo sentido: CAPEZ, 2004, p. 600; MiRABEtE, 1998, p. 488-489.
10 Art. 68 do CP: “A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59

deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e


agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento.”

123
Ademais, em consonância com o artigo 385 do Código de
Processo Penal, admite-se o reconhecimento de circunstância
agravante ainda que não descrita na denúncia. logo, permite-se
ao magistrado aplicá-la de ofício, malgrado não tenha sido susten-
tada pela acusação11-12 .
O mesmo raciocínio, com mais razão ainda, deve ser em-
pregado acerca das circunstâncias atenuantes, por serem de incidên-
cia obrigatória, posto que sempre atenuam a pena, representando
um direito público subjetivo do réu seu reconhecimento pelo juiz na
fixação da reprimenda, ainda que não arguida pelas partes.
Pois bem. Na seara do tribunal do Júri, com a supressão
do libelo-crime, não se torna mais necessária a formulação de que-
sitos referentes tanto à agravante quanto à atenuante.

11 Confira: HABEAS CORPUS. PENAl E PROCESSUAl PENAl. ANUlAÇÃO

DA SENtENÇA tRANSitADA EM JUlGADO NA PARtE DA FiXAÇÃO DA


PENA. MANUtENÇÃO DA EXECUÇÃO PENAl. AGRAVANtE DO ARt. 62, i
DO CP. DEMONStRAÇÃO DA RESPONSABiliDADE DA PACiENtE NA OR-
GANiZAÇÃO CRiMiNOSA. 1. [...]. 2. As agravantes, ao contrário das qualifica-
doras, sequer precisam constar da denúncia para serem reconhecidas pelo Juiz.
É suficiente, para que incidam no cálculo da pena, a existência nos autos de ele-
mentos que as identifiquem. [...]. (StF - HC 93211, Relator(a): Min. EROS GRAU,
Segunda turma, julgado em 12/02/2008, DJe-074 DiVUlG 24-04-2008 PUBliC
25-04-2008 EMENt VOl-02316-06 PP-01294 lEXStF v. 30, n. 356, 2008, p.
449-454). (destacou-se); HABEAS CORPUS. SUBStitUtiVO RECURSAl.
CRiME CONtRA A ORDEM tRiBUtÁRiA. NUliDADES. AlEGADA AUSÊNCiA
DE MOtiVAÇÃO DE ACÓRDÃO PENAl. APliCAÇÃO DE AGRA-VANtE. FUN-
DAMENtAÇÃO iDÔNEA. SUPRESSÃO DE iNStÂNCiA. 1. [...] 3. O reconheci-
mento de agravante não envolve a questão da quebra de congruência entre a
imputação e a sentença, por força do art. 385 do CPP (Precedentes) – [...] .
(StJ - HC 246.398/AM, Rel. Ministro SEBAStiÃO REiS JÚNiOR, SEXtA
tURMA, julgado em 05/03/2013, DJe 13/03/2013). (destacou-se).
12 De acordo com Guilherme de Souza Nucci, “o magistrado não está atrelado ao

pedido de reconhecimento das agravantes, feito pela acusação, para poder aplicar
uma ou mais das existentes no rol do art. 61 do Código Penal (além de outras
que, porventura, surjam em leis especiais). Se o juiz pode o mais, que é aplicar
as circunstâncias judiciais, em que existe um poder criativo de larga extensão [...],
é natural que possa o menos, isto é, aplicar expressas causas agravantes, bem
descritas na lei penal. Não há, muitas vezes, contraditório e ampla defesa acerca
das agravantes e atenuantes, tanto quanto não se dá em relação às circunstâncias
judiciais do art. 59 do Código Penal.” (2013a, p.747). De outro lado, Eugênio Pacelli
e Douglas Fischer sustentam a aplicação da parte final do artigo 385 do Código
de Processo Penal, somente se a circunstância agravante, ainda que não apon-
tada na denúncia ou na queixa, foi debatida, e desde que tenha natureza objetiva,
assim como ocorre com a reincidência (CP, art. 61, i) (2014, p. 794).

124
O artigo 483 do Código de Processo Penal enumera as
matérias que integrarão o questionário, sendo elas: a) a materiali-
dade do fato; b) a autoria ou a participação; c) se o acusado deve
ser absolvido; d) se existe causa de diminuição de pena alegada
pela defesa; e e) se existe circunstância qualificadora ou causa de
aumento de pena reconhecidas na pronúncia ou em decisões pos-
teriores que julgaram admissível a acusação.
Entretanto, Guilherme de Souza Nucci aduz que as cir-
cunstâncias agravantes e atenuantes continuam sendo objeto de
quesitos, de modo que o juiz presidente se submeterá à conclusão
do Conselho de Sentença, não podendo ser reconhecidas na sen-
tença, se foram expressamente rejeitadas pelos jurados (2013b, p.
360). trata-se, porém, de entendimento minoritário.
Por sua vez, a doutrina majoritária, conjugando os artigos 483
e 492, ambos do Código de Processo Penal13, posiciona-se no sentido
de ser desnecessária a elaboração de quesitos referentes às circuns-
tâncias agravantes e atenuantes, uma vez alegadas nos debates14.
Segue-se, assim, o espírito simplificador do questionário,
aliás, um dos grandes objetivos da lei n. 11.689/2008.
Nota-se que o legislador infraconstitucional mencionou no
artigo 492, inciso i, alínea c, do Código de Processo Penal, que os
aumentos ou diminuições da pena deverão ser levados em conta, se
admitidos pelo júri, ou seja, desde que apresentado quesito próprio a
respeito de qualificadoras, majorantes, privilégios e minorantes.
lado outro, no que tange às circunstâncias agravantes e
atenuantes, basta que sejam sustentadas nos debates, para que o
magistrado as aplique na segunda fase da dosimetria da pena, sem
qualquer interferência do corpo de jurados, como se observa da re-
dação do artigo 492, inciso i, alínea b, do diploma processual penal.
A propósito, esse é o entendimento que predomina nos tri-
bunais pátrios, com o advento da lei n. 11.689/200815.

13 Art. 492 do CPP: “Em seguida, o presidente proferirá sentença que: i – no caso
de condenação: a) fixará a pena-base; b) considerará as circunstâncias agra-
vantes ou atenuantes alegadas nos debates; c) imporá os aumentos ou diminui-
ções de pena, em atenção às causas admitidas pelo júri [...].” (destacou-se).
14 Nesse sentido: BADARÓ, 2008, p. 205; CAMPOS, 2014, p. 302; liMA, 2015,

p. 1396; PACElli, 2012, p. 736.


15 À guisa de exemplo, confira os seguintes julgados: NUliDADE. AGRAVANtE.

125
EVOLUÇÃO INTERPRETATIVA DA EXPRESSÃO “ALEGADAS
NOS DEBATES” PREVISTA NO ARTIGO 492, INCISO I, ALÍNEA
B, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

Em consonância com a interpretação gramatical do artigo


492, inciso i, alínea b, do Código de Processo Penal, o reconheci-
mento das circunstâncias agravantes e atenuantes pelo juiz togado
depende de alegação pelas partes nos debates.
Assim, a admissão das causas legais previstas nos artigos
61, 62, 65 e 66, todos do Código Penal, não poderá ocorrer de ofício,

REiNCiDÊNCiA. MAtÉRiA QUE NÃO FOi AlVO DE QUESitO PERANtE O


tRiBUNAl DO JÚRi. ARt. 484, § ÚNiCO, i E ii DO CPP. RitO PROCEDiMEN-
tAl. NOVEl lEGiSlAÇÃO. lEi N. 11.689/2008. NÃO APliCAÇÃO. MAJORA-
ÇÃO DA REPRiMENDA NA DOSiMEtRiA. iMPOSSiBiliDADE.
CONStRANGiMENtO ilEGAl EViDENCiADO. ORDEM PARCiAlMENtE
CONCEDiDA. 1. Não obstante o advento da inovação processual no sentido
de que as circunstâncias atenuantes e agravantes não mais são objeto de
quesitação, constata-se que o paciente foi submetido a julgamento pelo
Tribunal do Júri em sessão realizada em 18-7-2007, isto é, em momento an-
terior à entrada em vigor da Lei n. 11.689/2008. Logo, no presente caso,
ainda se fazia necessária a inclusão das circunstâncias atenuantes e agra-
vantes no questionário a ser apreciado pela Corte Popular, consoante de-
terminava a antiga redação do art. 484, parágrafo único, incisos I e II, do
Estatuto Processual. [...] (StJ - HC 100.641/RJ, Rel. Ministro JORGE MUSSi,
QUiNtA tURMA, julgado em 21/09/2010, DJe 16/11/2010). (destacou-se). APE-
lAÇÃO CRiMiNAl. HOMiCÍDiO SiMPlES. JÚRi. NUliDADE. AtENUANtE.
AUSÊNCiA QUESitAÇÃO. Com o advento da lei n. 11.689/08, o reconhecimento
de circunstâncias atenuantes e agravantes basta sejam debatidas em plenário,
não se exigindo a formulação de quesitos a serem apreciados pelo conselho de
sentença. [...] (tJGO - APElACAO CRiMiNAl 271549-55.2004.8.09.0023, Rel.
DES. lEANDRO CRiSPiM, 2A CAMARA CRiMiNAl, julgado em 19/03/2013,
DJe 1279 de 10/04/2013). (destacou-se). APElAÇÃO CRiMiNAl - JÚRi - HO-
MiCÍDiO QUAliFiCADO - RECURSO QUE iMPOSSiBilitOU A DEFESA DO
OFENDiDO - DECiSÃO MANiFEStAMENtE CONtRÁRiA À PROVA DOS
AUtOS - iNOCORRÊNCiA - CONDENAÇÃO MANtiDA - AtENUANtE DA
CONFiSSÃO ESPONtÂNEA - MAtÉRiA NÃO DEBAtiDA EM PlENÁRiO - RE-
CONHECiMENtO - iNADMiSSiBiliDADE - AFRONtA AO DiSPOStO NO ARt.
492, i, B, DO CPP - PENAS EXACERBADAS - REDUÇÃO QUE SE iMPÕE. [...]
02. Com a reforma introduzida pela Lei n. 11.698/2008 não mais se submete
aos jurados quesitos acerca da existência de circunstâncias agravantes
ou atenuantes, as quais somente poderão ser consideradas pelo juiz pre-
sidente, na dosimetria da pena, desde que suscitadas nos debates orais,
a teor do que prescreve o art. 492, inciso I, alínea b, do CPP. [...] (tJMG -
Apelação Criminal 1.0134.13.003422-3/003, Relator(a): Des.(a) Fortuna Grion
, 3ª CÂMARA CRiMiNAl, julgamento em 03/03/2015, publicação da súmula em
13/03/2015). (destacou-se).

126
sujeitando-se à provocação da parte interessada no momento pro-
cessual chamado “debates”, após o encerramento da instrução em
plenário16.
Contudo, em março de 2011, o Supremo tribunal Federal,
ao julgar o Habeas Corpus n. 106.376/MG, criou importante prece-
dente quanto à possibilidade de reconhecimento pelo juiz senten-
ciante da circunstância atenuante referente à confissão espontânea
(CP, art. 65, iii, d), apesar de não debatida em plenário do júri, o
que implicou reforma da decisão exarada pela Quinta turma do Su-
perior tribunal de Justiça17.
Eis o teor da ementa do significativo julgado da maior ins-
tância do Poder Judiciário:

CONStitUCiONAl, PENAl E PROCESSUAl PENAl. tRiBUNAl DO


JÚRi. CONFiSSÃO ESPONtÂNEA NÃO DEBAtiDA NO PlENÁRiO.
AUtODEFESA. PlENitUDE DE DEFESA. RECONHECiMENtO
PElO MAGiStRADO DE OFÍCiO. POSSiBiliDADE. NAtUREZA OB-
JEtiVA DA AtENUANtE. DiREitO PÚBliCO SUBJEtiVO DO RÉU.
PRiNCÍPiOS DA iNDiViDUAliZAÇÃO DA PENA E DA PROPORCiO-
NAliDADE RESGUARDADOS. HARMONiZAÇÃO DO ARt. 492, i, DO
CÓDiGO DE PROCESSO PENAl, AOS ARt. 65, iii, D, DO CÓDiGO
PENAl, E ARt. 5º, XXXViii, “A”, e XlVi, DA CONStitUiÇÃO DA RE-
PÚBliCA. 1. Pode o Juiz Presidente do Tribunal do Júri reconhecer
a atenuante genérica atinente à confissão espontânea, ainda que
não tenha sido debatida no plenário, quer em razão da sua natu-
reza objetiva, quer em homenagem ao predicado da amplitude de

16 Assim, “a acusação deve sustentar a pronúncia e se desejar o reconheci-

mento de alguma circunstância agravante deverá também sustentá-la em ple-


nário, não podendo, portanto, considerar agravantes se não houve expressa
sustentação da mesma pela acusação” (tASSE, 2009, p. 64).
17 A ementa do acórdão proferido pelo StJ dando provimento ao Recurso Es-

pecial n. 1.157.292-MG, interposto pelo Ministério Público, é a seguinte: PENAl


E PROCESSUAl PENAl. RECURSO ESPECiAl. JÚRi. DOSiMEtRiA DA
PENA. APliCAÇÃO DE AtENUANtE. CONFiSSÃO ESPONtÂNEA. JUlGA-
MENtO REAliZADO NOS tERMOS DA lEi N. 11.689/08. NECESSiDADE DE
tER SiDO A tESE AlVO DOS DEBAtES. i - Com a reforma introduzida pela
lei n. 11.698/08 não há mais necessidade de submeter aos jurados quesitos
acerca da existência de circunstâncias agravantes ou atenuantes. ii - Não obs-
tante, embora tenha sido transferido o exame da presença das referidas cir-
cunstâncias ao Juiz Presidente do tribunal do Júri, elas somente serão
consideradas na dosimetria da pena desde que suscitadas nos debates orais,
a teor do que prescreve o art. 492, inciso i, alínea b do CPP. Recurso especial
provido. (REsp 1157292/MG, Rel. Ministro FEliX FiSCHER, QUiNtA tURMA,
julgado em 02/09/2010, DJe 04/10/2010). (destacou-se).

127
defesa, consagrado no art. 5º, XXXVIII, “a”, da Constituição da Repú-
blica. 2. É direito público subjetivo do réu ter a pena reduzida, quando
confessa espontaneamente o envolvimento no crime. 3. A regra con-
tida no art. 492, I, do Código de Processo Penal, deve ser interpretada
em harmonia aos princípios constitucionais da individualização da
pena e da proporcionalidade. 4. Conceder a ordem. (StF - HC 106376,
Relator(a): Min. CÁRMEN lÚCiA, Primeira turma, julgado em 01/03/2011,
PROCESSO ElEtRÔNiCO DJe-104 DiVUlG 31-05-2011 PUBliC 01-
06-2011 REVJMG v. 62, n. 196, 2011, p. 345-353). (destacou-se).

Segundo as razões do voto da Ministra Cármen lúcia, o


entendimento adotado pelo Superior tribunal de Justiça, negando
o reconhecimento da atenuante não sustentada nos debates pelo
juiz presidente, “iguala aquele que confessa ao que nega os fatos,
prestigiando a forma, ou a ausência dela, em detrimento ao con-
teúdo” (BRASil, 2011).
Desse modo, ignora-se “o princípio da proporcionalidade,
que deriva do princípio da individualização da pena, à medida que
estabelece um resultado final incompatível com as circunstâncias
que envolvem o delito e o seu protagonista” (BRASil, 2011).
Além disso, não se pode olvidar que a atenuante em ques-
tão, assim como a menoridade e a senilidade (CP, art. 65, i), possui
natureza objetiva, tornando sua constatação independente do sub-
jetivismo do julgador.
De mais a mais, conforme ressaltado pela referida relatora,
“afigura-se impróprio, porque inócuo, determinar que seja debatido
algo que documentalmente se comprovou e sobre tema que não
subsistem dúvidas” (BRASil, 2011).
Firmado esse entendimento, parcela doutrinária passou a
posicionar-se favoravelmente ao reconhecimento pelo magistrado
de circunstância atenuante, ainda que não sustentada nos debates18.

18Nesse sentido, salienta a doutrina que “o mais adequado é que o juiz presi-
dente possa reconhecer as circunstâncias atenuantes comprovadas nos autos,
independentemente de solicitação do defensor do acusado em plenário, quando
o advogado pedir a absolvição. Diferente situação ocorrerá se o defensor tiver
requerido aos jurados a condenação de seu cliente, apenas tendo sustentado
a diminuição de sua carga (v.g., afastamento de qualificadoras, reconhecimento
de privilégio), pois caberá a ele postular ao juiz o reconhecimento da atenuante
que julgar cabível, o que não trará qualquer prejuízo à imagem de coerência
de sua atuação frente aos jurados. Se não o fizer, não poderia, em tese, o ma-
gistrado, nos termos da lei processual, reconhecê-la”. (CAMPOS, 2014, p. 303).

128
A jurisprudência também trilhou o mesmo caminho, como
se vê das razões do acórdão referente à Apelação Criminal n.
374952-82.2006.8.09.0051 interposta perante o tribunal de Justiça
de Goiás, no sentido de que, muito embora não pleiteadas nos de-
bates, tanto a menoridade quanto a confissão, uma vez comprova-
das nos autos, devem ser levadas em consideração na dosimetria
da pena19.
Quanto às circunstâncias agravantes, independente do ca-
ráter subjetivo ou objetivo que apresentarem, prevalece que são re-
pelidas de ser conhecidas pelo juiz de direito, se não constituíram alvo
dos debates, mesmo que devidamente comprovadas nos autos20.
Entretanto, oportuno registrar que no tocante à agravante
da reincidência, em tempo longínquo, mais precisamente em
agosto de 1997, houve o adiamento do julgamento do Habeas Cor-
pus n. 75.256-0/RJ, em virtude de requerimento de vista do Ministro

Em adição: “não cabe, no caso das atenuantes, interpretação restritiva, em pre-


juízo do réu. [...] Ainda que a atenuante não tenha sido explicitada nos debates,
se não mais existe previsão para a formulação de proposição específica no
questionário sobre o assunto, o magistrado deverá reconhecê-la, de ofício, por
ser direito público subjetivo do réu. [...] Em resumo, na prática, o juiz presidente
somente irá valorar por si mesmo as circunstâncias judiciais elencadas no art.
59 do CP, bem como as circunstâncias agravantes e atenuantes, sendo que na
primeira hipótese dependerá de requerimento, ao passo que na segunda po-
derá agir de ofício” (CANO; ANtUNES; DOMiNGUES, 2004, p. 334-335). Vide
também MARQUES, 2009, p.158.
19 Confira: APElAÇÃO CRiMiNAl. HOMiCÍDiO QUAliFiCADO. NUliDADE.

iNiMPUtABiliDADE. AUSÊNCiA DE FORMUlAÇÃO DE QUESitOS. iNO-


CORRÊNCiA. REGiME DE CUMPRiMENtO DA PENA. [...] APliCAÇÃO DAS
AtENUANtES CONFiSSÃO E MENORiDADE. COMPEtÊNCiA DO JUiZ PRE-
SiDENtE. É sabido que, apesar de as atenuantes e as agravantes não serem
submetidas ao Conselho de Sentença, elas devem ser analisadas pelo Juiz Pre-
sidente do Júri ao dosar a pena, o que não ocorreu no caso em tela. Assim, ape-
sar de não terem sido alegadas nos debates, tanto a menoridade quanto a
confissão estão devidamente demonstradas nos autos. Deve, portanto, serem
consideradas para minorar a pena imposta ao apelante. [...]. APElAÇÃO CO-
NHECiDA E PARCiAlMENtE PROViDA. (tJGO, APElACAO CRiMiNAl
374952-82.2006.8.09.0051, Rel. DES. lEANDRO CRiSPiM, 2A CAMARA CRi-
MiNAl, julgado em 18/02/2014, DJe 1501 de 12/03/2014) (destacou-se).
20 Afirma-se que “a denominada cláusula de debates (necessidade de expressa

arguição de atenuantes e agravantes nos debates para seu reconhecimento


pelo juiz), [...], só é aplicável à acusação, que tem o ônus de, sempre que opor-
tuno, sustentar ao juiz o agravamento da pena quando presentes as hipóteses
legais, sob pena de preclusão”. (CAMPOS, 2014, p. 304).

129
Nelson Jobim que, naquela época, já ousou em pensar que a reinci-
dência, por se tratar de uma questão objetiva, prescindiria de quesito.
O citado ministro do Supremo tribunal Federal, mesmo es-
boçando entendimento de vanguarda, acabou refluindo, adotando
posição de que a reincidência deveria ser objeto de quesito para
ser considerada na dosimetria da pena21.
Ressalta-se, porém, que a decisão em tela ocorreu antes
da reforma gerada pela lei n. 11.689/2008, isto é, quando o Código
de Processo Penal ainda exigia que as circunstâncias agravantes
fossem quesitadas, sob pena de nulidade.
Com efeito, os princípios constitucionais devem orientar a
interpretação e a aplicação das normas infraconstitucionais.
Nessa perspectiva, a expressão “alegadas nos debates”
inserta no artigo 492, inciso i, alínea b, do Código de Processo
Penal, não deve ser interpretada restritivamente, a ponto de tolher
do juiz presidente o reconhecimento da agravante da reincidência,
bem como da atenuante da menoridade.
Como já mencionado, aludidas circunstâncias possuem
status objetivo. Assim, somente as agravantes e atenuantes de na-
tureza subjetiva é que dependeriam de alegações durante os de-
bates, condicionando o juiz presidente a admiti-las no momento da
dosimetria da pena, sob pena de invalidade.
Se a agravante da reincidência e a atenuante da menori-
dade ostentam caráter objetivo e já foram demonstradas nos autos,
corroboradas, inclusive, pelo interrogatório judicial, ocasião em que
o réu é indagado sobre sua qualificação e vida pregressa, qual a
necessidade/utilidade de que tais circunstâncias fossem quesitadas
aos jurados ou mesmo debatidas pelas partes?
Somado a isso, o interrogatório não pode ser desprezado
como exercício da autodefesa e tampouco como elemento de
prova, no momento da aplicação da pena pelo juiz presidente.
Vale a pena repisar que, antes das alterações provocadas

21“AGRAVANtE - liBElO - QUESitO. Uma vez não havendo constado do li-


belo, ou não tendo sido submetida ao corpo de jurados determinada agravante,
descabe levá-la em conta na dosimetria da pena, procedendo-se à compensa-
ção da atenuante reconhecida pelo júri”. (StF - HC 75256, Relator(a): Min.
MARCO AURÉliO, Segunda turma, julgado em 23/09/1997, DJ 30-03-2001
PP-00081 EMENt VOl-02025-01 PP-00232).

130
pela lei n. 11.689/2008, não se admitia em hipótese alguma que o
magistrado reconhecesse a agravante da reincidência de ofício,
pois, necessariamente, os jurados deveriam ser consultados sobre
sua configuração.
Hodiernamente, não se formula mais quesitos sobre cir-
cunstâncias agravantes e atenuantes.
Destarte, não haveria razão plausível para impedir que o
juiz togado aplicasse a agravante da reincidência e a atenuante da
menoridade, quando da análise da segunda fase de dosimetria da
pena, ainda que não tenham sido objeto de quesitos e sequer sus-
tentadas pelas partes nos debates.
Assim, desde que a matéria tenha sido ventilada nos autos
e durante o plenário, ainda que não especificamente na etapa dos
“debates” (CPP, arts. 476-481), pode e deve ser conhecida pelo juiz
de direito a circunstância de natureza objetiva, seja agravante, seja
atenuante.
Negar ao magistrado o conhecimento de ofício de tais cir-
cunstâncias implica um apego exacerbado à forma, por meio de
uma interpretação meramente literal, quando o mais prudente e ra-
zoável seria a aplicação de uma interpretação sistemática, mor-
mente com os princípios constitucionais da individualização da
pena e da proporcionalidade.
Nem se diga que haveria cerceamento de acusação ou de
defesa, pois tanto as partes como os jurados tiveram acesso à exis-
tência das circunstâncias genéricas, não só pelos documentos car-
reados aos autos, mas também pelas declarações do réu em seu
interrogatório judicial.
Outrossim, no que diz respeito à agravante da reincidência,
calha salientar que está ela intimamente relacionada com a análise
da pena-base, na fase do artigo 59 do Código Penal referente aos
antecedentes, tanto é assim que, se o acusado apresentar sen-
tença penal condenatória com trânsito em julgado por fato crimi-
noso anterior, não poderá servir ela ao mesmo tempo para elevar
a pena como circunstância judicial e como circunstância agravante,
sob pena de haver bis in idem22. Nesse caso, costuma-se valorar a

22 Eis o teor da Súmula 241 do StJ: “A reincidência penal não pode ser considerada

como circunstância agravante e, simultaneamente, como circunstância judicial.”

131
condenação transitada em julgado na segunda fase de fixação da
reprimenda, como agravante da reincidência.
Por conseguinte, mesmo os adeptos do entendimento de
que a circunstância agravante da reincidência não pode ser reco-
nhecida pelo juiz presidente, sem a provocação da acusação, na
prática, resultará idêntica elevação da pena no momento de apreciar
a circunstância atinente aos antecedentes do acusado (CP, art. 59).
Ora, há verdadeiro consenso de que o magistrado aprecia
livremente as circunstâncias judiciais descritas no artigo 59 do Código
Penal, na primeira fase da dosimetria da pena no procedimento es-
calonado do Júri, independente de qualquer alegação das partes.
logo, ainda que impedido seja o juiz togado de conside-
rar a condenação penal definitiva como agravante da reincidência,
fatalmente a levará em conta quando da análise das circuns-
tâncias judiciais (CP, art. 59), notadamente aquela referente aos
antecedentes.
Além disso, não se pode perder de vista que, na fase do
artigo 422 do Código de Processo Penal é bastante comum ao
órgão acusatório requerer como diligência a juntada de certidão de
antecedentes atualizada do pronunciado, constando eventual sen-
tença e seu trânsito em julgado. E qual seria então a finalidade
desta providência? Por óbvio, em caso de condenação, a elevação
da pena pelo reconhecimento da reincidência 23.
Assim, se a mais alta Corte de Justiça brasileira admitiu a
possibilidade de reconhecer as atenuantes de cunho objetivo de
ofício pelo juiz sentenciante, impõe-se a adoção de idêntico critério
em relação à agravante da reincidência de natureza objetiva, sob
pena de clara violação aos princípios da igualdade entre acusação
e defesa24 e da proporcionalidade na aplicação da pena.

23Giza-se que, o requerimento de provas e de diligências outrora constituía uma


das partes do libelo. Com a supressão do libelo, tais providências passaram a
ser exercitadas após o trânsito em julgado da decisão de pronúncia, nos termos
do artigo 422 do Código de Processo Penal.
24 “insere-se aí a garantia de paridade de armas no processo penal, igualando

acusação e defesa. Mas quando se afirma que as duas partes devem ter trata-
mento paritário, isso não exclui a possibilidade de, em determinadas situações,
dar-se a uma delas tratamento especial para compensar eventuais desigualda-
des, suprindo-se o desnível da parte inferiorizada a fim de, justamente, resguar-
dar a paridade de armas.” (FERNANDES, 2000, p. 50).

132
O INTERROGATÓRIO COMO FONTE DE DADOS RELEVANTES
PARA O RECONHECIMENTO DA REINCIDÊNCIA E DA ME-
NORIDADE

A confissão do réu e sua menoridade quando da prática


do delito, mesmo que não tenham sido levantadas em sede de de-
bates, foram exteriorizadas no momento do interrogatório.
Assim, ao apreciar as agravantes ou atenuantes, “deve o
juiz presidente levar em consideração tanto a tese apresentada
pela defesa técnica quanto aquela apresentada pelo próprio acu-
sado, no exercício de sua autodefesa” (liMA, 2013, p. 1419)25.
É cediço, portanto, que o interrogatório exprime a autode-
fesa ou defesa pessoal do acusado, não podendo ser desprezado
no julgamento, notadamente diante do princípio constitucional da
plenitude de defesa (CF, art. 5º, XXXViii, a).
Giza-se, ainda, que o próprio artigo 482 do Código de Pro-
cesso Penal elege, como fonte dos quesitos, a decisão de pronún-
cia, as alegações orais das partes em plenário e o interrogatório.
De acordo com a lição de Guilherme de Souza Nucci, o in-
terrogatório (CPP, art. 187) está dividido em três etapas: a primeira,
chamada interrogatório de qualificação, é o momento em que ocorre
a colheita de dados pessoais do réu, como nome, naturalidade,

25Aliás, seguindo essa linha de pensamento, assim decidiu recentemente o Su-


perior tribunal de Justiça: PENAl E PROCESSUAl. HABEAS CORPUS SUBS-
titUtiVO DE RECURSO ORDiNÁRiO. HOMiCÍDiO tENtADO. AtENUANtE
DA CONFiSSÃO. iNCiDÊNCiA. DEFESA tÉCNiCA. iNtERROGAtÓRiO JU-
DiCiAl. DEBAtE EM PlENÁRiO. CONSiDERAÇÃO. [...] 2. Esta Corte possui
o entendimento de que a Lei 11.689/2008, alterando a redação do art. 492
do CPP, conferiu ao juiz presidente do Tribunal do Júri a atribuição de apli-
car as atenuantes e agravantes alegadas nos debates. 3. O juiz presidente
deve considerar como "alegada nos debates" ou "debatidas em Plenário"
tanto a defesa técnica quanto a autodefesa realizada pelo acusado no mo-
mento do interrogatório, de forma que ambas são legítimas para ensejar
o reconhecimento de atenuantes e agravantes. 4. A atenuante prevista no
artigo 65, iii, d, do Código Penal, deve ser aplicada em favor do condenado
ainda que a sua confissão somente corrobore a autoria delitiva já evidenciada
pela prisão em flagrante delito. 5. Habeas corpus não conhecido ante a inade-
quação da via eleita. Ordem concedida de ofício para determinar que o Juízo
da Execução aplique a atenuante da confissão. (StJ, HC 161.602/PB, Rel. Re-
lator: Ministro GURGEl DE FARiA, Data de Julgamento: 18/11/2014, t5 -
QUiNtA tURMA). (destacou-se).

133
idade, estado civil, filiação, profissão, grau de instrução, residência
etc.; a segunda é o interrogatório de individualização, consistente
na obtenção de dados sobre a vida pessoal do acusado, incluindo
sua vida pregressa, sendo a ele indagado se já foi preso ou proces-
sado alguma vez, se sofreu condenação e o quantum da pena, se
já cumpriu a reprimenda etc.; e, a terceira, refere-se ao interrogatório
de mérito, oportunidade concedida ao infrator para apresentar sua
versão a respeito da imputação acusatória (2013a, p. 444-447).
inegável, assim, que o interrogatório, além de cumprir pri-
mordialmente a função de autodefesa, também é meio de prova
contra ou a favor do réu, podendo materializar perante as partes,
os jurados e o juiz presidente, inclusive, a presença de certas ate-
nuantes, como a menoridade26 (CP, art. 65, i), quando o réu declara
sua idade ou a data de nascimento (interrogatório de qualificação),
bem como a agravante da reincidência27 (CP, art. 61, i), ao ser
questionado sobre sua vida pregressa, isto é, os antecedentes cri-
minais consistentes em condenações definitivas (interrogatório de
individualização).
Não se desconhece, é claro, que para o reconhecimento
da agravante da reincidência, exige-se certidão de trânsito em jul-
gado de sentença penal condenatória, ao passo que, para a ate-
nuante da menoridade, seria necessário cópia de certidão de
nascimento ou outro documento pessoal equivalente (CPP, art. 155).
Ademais, tanto a agravante da reincidência quanto à ate-
nuante da menoridade possuem indiscutivelmente caráter objetivo,
haja vista que foram concebidas documentalmente nos autos, não
pairando, em tese, dúvidas quanto às suas existências.

26 Diga-se que “a menoridade relativa é atenuante aplicável aos indivíduos com


idade entre 18 e 21 anos à época do fato. [...] entendendo-se que o menor,
nessa fase da sua vida, ainda está em formação da sua personalidade, mere-
cendo a benevolência do juiz no momento da fixação da pena.” (NUCCi, 2014,
p. 229).
27 “Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de

transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha conde-


nado por crime anterior” (CP, art. 63). Configura reincidência também o come-
timento de contravenção penal após já ter sido o autor condenado com trânsito
em julgado por anterior contravenção penal, nos termos do art. 7º do Decreto-
lei 3.668/1941.

134
Salienta-se ainda que, a despeito das críticas existentes
quanto à incidência do artigo 385 do Código de Processo Penal,
sob o argumento de que o reconhecimento de agravantes não ale-
gadas afrontaria os princípios do contraditório e da ampla defesa e
o próprio sistema acusatório, definitivamente, essa situação não
atinge a reincidência, posto não se tratar de circunstância relacio-
nada ao fato imputado, mas de uma condição pessoal do réu, o
que dispensa sua narrativa na peça inicial acusatória, bastando que
esteja documentalmente demonstrada por certidão de condenação
definitiva28.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A lei n. 11.689/2008 acarretou importantes alterações no


rito escalonado do tribunal do Júri, tornando desnecessária a for-
mulação de quesitos referentes às circunstâncias agravantes e
atenuantes.
O termo “alegadas nos debates” contido no artigo 492, in-
ciso i, alínea b, do Código de Processo Penal, merece ser interpre-
tado em consonância com os princípios constitucionais,
especialmente o da individualização da pena e da proporcionali-
dade, possibilitando ao juiz togado, de ofício, a aplicação da agra-
vante da reincidência e a atenuante da menoridade, principalmente
por ostentarem caráter objetivo, dispensando maiores indagações,
se devidamente demonstradas nos autos, independente de serem
sustentadas pelas partes.

28Na verdade, na maioria das vezes, somente se toma ciência acerca da reinci-
dência do acusado após o recebimento da denúncia, durante o trâmite proces-
sual, com a juntada de certidão de antecedentes criminais. Em sentido contrário,
“ainda que na pronúncia não haja necessidade de fazer referência a circunstân-
cias agravantes, [...] elas devem ter uma descrição mínima implícita na denúncia
ou nas alegações finais para que possam ser aplicadas pelo juiz presidente em
sua sentença condenatória, ato que não possibilita uma inovação em plenário,
como fosse viável rebater a exposição sem oportuna produção de provas, sur-
preendendo a defesa que não estará preparada para demonstrar a não incidên-
cia da circunstância legal.” (CANO; ANtUNES; DOMiNGUES, 2004, p. 334).

135
tanto é assim que, para corrigir essa anomalia, o Supremo
tribunal Federal permitiu que o magistrado reconhecesse a ate-
nuante de natureza objetiva, como a menoridade e a confissão,
ainda que não debatida em plenário, conforme decisão exarada no
Habeas Corpus n. 106.376/MG.
Malgrado os tribunais superiores não tenham enfrentado
ainda o tema29, o mesmo raciocínio deve incidir no que toca à agra-
vante da reincidência, posto que, tratando-se de matéria devida-
mente comprovada nos autos através de certidão e não tendo sido
objetada pelas partes, inexiste motivo para que não seja levada em
conta diretamente pelo juiz sentenciante.
Só haveria sentido em condicionar a aplicação da reinci-
dência na dosimetria da pena, se fosse obrigatória sua quesitação!
lado outro, as agravantes de ordem subjetiva e que en-
volverem questões de fato devem ser levantadas pelo órgão acu-
satório durante os debates, abstendo-se o magistrado de
conhecê-las de ofício, por manifesta violação ao contraditório e à
plenitude da defesa.
Certo é que a discussão em questão perderia o sentido se,
em plenário do tribunal do Júri, houvesse promotores de justiça e
advogados talhados à função de verificar com acuidade a presença
de agravantes e atenuantes e, de conseguinte, sustentá-las durante
os debates, o que muito facilitaria a tarefa do julgador em aplicar
corretamente e com justiça a pena ao condenado.
todavia, é cada vez mais recorrente a ausência de alega-
ções do órgão acusatório e da defesa durante os debates, quanto
à presença de causas legais que interferirão na fixação da pena.
impedir que o juiz presidente do tribunal popular dose de-
vidamente a reprimenda, por deficiência na atuação do órgão acu-
satório e da defesa, significa tolher a consciência jurídica do
julgador, forçando-o a ignorar a incidência de uma agravante e/ou
atenuante de ordem objetiva, quando seu convencimento aponta
justamente que elas indubitavelmente existem.

29Em pesquisa jurisprudencial realizada até o término deste trabalho, não houve
o registro de qualquer pronunciamento judicial acerca da admissão ou não da
reincidência, ainda que tal agravante não tenha sido alegada pelo órgão acu-
satório durante os debates.

136
Por derradeiro, se as circunstâncias agravantes e atenuan-
tes não figuram mais como quesitos obrigatórios, não há que se
falar em ofensa à soberania do veredicto do tribunal do Júri ou a
qualquer outro princípio, na hipótese de o juiz de direito conhecê-
las diretamente na fixação da pena.

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141
142
Pedro de Mello Florentino⃰⃰

A LEGALIDADE DA ADOÇÃO INTUITU PERSONAE

THE LEGALITY OF ADOPTION INTUITU PERSONAE

LA LEGALIDAD DE LA ADOPCIÓN INTUITU PERSONAE

Resumo:
A Lei Nacional de Adoção (Lei n. 12.010/09) assegurou a obriga-
toriedade dos cadastros de adoção, estabelecendo rígida obediên-
cia à ordem dos inscritos, prevendo somente três exceções à
adoção direta ou intuitu personae. Apesar das vantagens trazidas
pelo Cadastro Nacional de Adoção (CNA), uma boa parte das ado-
ções no país são realizadas fora do CNA. O objetivo central do
trabalho é traçar parâmetros para o reconhecimento legal da ado-
ção intuitu personae, além das hipóteses expressamente previs-
tas, quando pretendida por postulantes previamente habilitados
ou por interessados sem habilitação. A análise é feita a partir do
direito à convivência familiar, dos princípios da proteção integral e
do superior interesse. Envolve, por sua vez, o reconhecimento de
valor jurídico aos vínculos de apego, desenvolvidos até por recém-
nascidos, considerando que o rompimento abrupto causa sérios
danos psicológicos à criança, que serão sentidos na fase adulta.

Abstract:
The National Adoption Law (Law No. 12,010/09) made mandatory
the adoption register, establishing rigid obedience to the order of
names enrolled in the register, foreseeing only three exceptions
to the direct adoption or intuitu personae. In spite of the advanta-
ges brought by the National Adoption Register (NAR), a large
number of adoptions in the country is made out of the NAR. The
core goal of this work is to establish parameters to legal recognition

* Pós-Graduado em Direito da Criança e do Adolescente pela Escola Superior da


Magistratura do Estado de Goiás e em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo e graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica
de Campinas-SP. Promotor de Justiça do MP-GO.

145
of intuitu personae adoption, besides the hypothesis expressly fo-
reseen, when intended by candidates previously registered in the
NAR or by not-registered candidates. The analysis is made based
on the right to family life, on the principles of integral protection and
on the major interest. It involves the acknowledgment of legal value
to attachment relationships, developed even by newborns, consi-
dering that its abrupt rupture causes serious psychological dama-
ges to the children, which will be felt in the adult phase.

Resumen:
La Ley Nacional de la Adopción (Ley n. 12.010/09) assegura la ob-
ligatoriedad de los registros de adopción, y fija la obediencia al
orden de los inscritos, previendo solamente tres excepciones a la
adopción directa o intuitu personae. Aunque haya ventajas en el
Registro Nacional de Adopción (RNA), parte considerable de las
adopciones en el país son realizadas fuera de este registro. El ob-
jetivo principal de este proyecto es trazar parámetros para el reco-
nocimiento legal de la adopción intuitu personae, además de las
hipótesis expresamente contempladas, cuando pretendida por
postulantes previamente habilitados o por interesados sin habilita-
ción. El análisis está basado en el derecho a la convivencia familiar,
en los principios de la protección integral y del superior interés.
Comprende el reconocimiento del valor jurídico a los vínculos de
apego, desarrollados incluso por recién nacidos, teniendo en
cuenta que la ruptura abrupta de ellos desencadena serios daños
psicológicos al niño, sentidos en la edad adulta.

Palavras-Chave:
Adoção intuitu personae, adoção consensual, Cadastro Nacional
de Adoção (CNA), adoção à brasileira.

Keywords:
Adoption intuitu personae, Consensual adoption, National Adoption
Register (NAR), “Adoção à brasileira”.

Palabras-clave:
Adopción intuitu personae, Adopción consensual, Registro Nacional
de Adopción (RNA), “Adopción a la brasileña”.

146
INTRODUÇÃO

A reforma do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),


introduzida pela Lei n. 12.010/2009, chamada de Lei Nacional da
Adoção, teve como fundamento assegurar, com maior eficácia, o di-
reito fundamental à convivência familiar1.
Nesse propósito, regulamentou de forma ampla e detalhada
os cadastros de adoção, compreendendo dados de crianças e ado-
lescentes em condições de serem adotados, bem como de pessoas
interessadas e em condições de adotar (artigo 50).
Esses dois grandes bancos de dados ainda foram objeto
das Resoluções n. 54 e 190 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ),
que trataram da implementação do Cadastro Nacional de Adoção
(CNA), além da Recomendação n. 8, desse mesmo órgão correcio-
nal, que defende a obediência ao cadastro nas decisões de guarda
provisória envolvendo a colocação de crianças menores ou com
idade igual a três anos em família substituta.
A sistemática introduzida pela Lei n. 12.010/09 estabeleceu
rígida obediência à fila dos inscritos, incumbindo ao Ministério Público
fiscalizar a alimentação do cadastro e a observância à ordem esta-
belecida para convocação2. Previu, contudo, três exceções que au-
torizam a adoção direta por postulantes não cadastrados, desde que
domiciliados no Brasil3.

1 Art. 1º Esta Lei dispõe sobre o aperfeiçoamento da sistemática prevista para


garantia do direito à convivência familiar a todas as crianças e adolescentes,
na forma prevista pela Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, Estatuto da Criança
e do Adolescente.
2 Art. 50, parágrafo 12. A alimentação do cadastro e a convocação criteriosa

dos postulantes à adoção serão fiscalizadas pelo Ministério Público.


3 Art. 50, parágrafo 13. Somente poderá ser deferida adoção em favor de can-

didato domiciliado no Brasil não cadastrado previamente nos termos desta Lei
quando:
I - se tratar de pedido de adoção unilateral;
II - for formulada por parente com o qual a criança ou adolescente
mantenha vínculos de afinidade e afetividade;
III - oriundo o pedido de quem detém a tutela ou a guarda legal de
criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de
convivência comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não seja
constatada ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas nos arts.
237 ou 238 desta Lei.

147
Mesmo assim, passados mais de seis anos da vigência da
nova legislação, uma boa parte dos processos de adoção no Brasil
tratam de adoções fora do CNA, como é o caso da adoção dirigida
ou intuitu personae, em que, em uma das hipóteses mais comuns, a
genitora escolhe a pessoa ou o casal que adotará seu filho, indepen-
dentemente de estarem previamente habilitados.
Nesse contexto, considerando os princípios que estruturam
a legislação da infância e juventude, a teoria do apego, que procura
explicar, no âmbito da psicologia, o surgimento da ligação afetiva
entre a criança e a pessoa que dela cuida, independente de vínculo
biológico, assim como as consequências de uma ruptura forçada,
este artigo procurará traçar alguns parâmetros em que a adoção di-
rigida deve ter a sua legalidade reconhecida, regularizando a situa-
ção de crianças e adolescentes adotados na informalidade, com
privilégio aos vínculos de cuidado amoroso, essenciais ao desenvol-
vimento saudável para a fase da vida adulta.

A ADOÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO BRASIL:


PREVISÃO LEGAL, A OBRIGATORIEDADE DOS CADASTROS
E A GRANDE QUANTIDADE DE ADOÇÕES FORA DO CNA

O microssistema do Estatuto da Criança e do Adolescente


(Lei n. 8.090/90) foi estruturado a partir dos princípios da proteção
integral4 , já consagrado na Constituição Federal de 1988, e do su-
perior interesse, este com previsão na Convenção Internacional
sobre os Direitos da Criança de 1989, da Organização das Nações
Unidas (ONU)5, ratificada pelo Brasil e incorporada ao nosso orde-
namento por meio do Decreto n. 99.710/90.
As crianças e adolescentes foram então reconhecidos como
sujeitos de direito e não mais como objetos de proteção, conforme
era a previsão do Código de Menores (Lei n. 6.697/79), fundado na

4Art. 1º. Esta lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.
5Art. 3º. Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições
públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas
ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior
da criança.

148
doutrina da situação irregular do menor. Nesse contexto, ao tratar da
adoção, o ECA assegurou que a medida será deferida quando apre-
sentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos le-
gítimos6, ou seja, a adoção passou a ser entendida como a busca
de uma família para uma criança e não uma criança para uma família
(RIBEIRO, 2012, p. 179).
No ano de 2009, o ECA passou por grandes modificações
introduzidas pela Lei n. 12.010, chamada de Lei Nacional de Adoção,
que procurou aperfeiçoar a sistemática prevista para a garantia do
direito à convivência familiar, trazendo, nesse propósito, detalhada
regulamentação ao instituto da adoção, sem desconsiderar os prin-
cípios da proteção integral e do superior interesse.
Ao comentar a Lei n. 12.010/09, Paulo Hermano Soares Ri-
beiro bem observou:

[...] Há um evidente caráter de dependência principiológica, o que contri-


bui para elevar a consistência sistêmica do Estatuto, impelindo o intér-
prete e o operador a retornarem aos conceitos gerais e princípios
estabelecidos no ECA.
A nova Lei observa e aprofunda, na sua função de conformação, os fun-
damentos constitucionais e sociais do ECA, entre outros, principalmente
no que se refere à garantia do direito à convivência familiar, a proteção
integral da criança e do adolescente, e a prioridade de observância do
melhor interesse destes. (2012, p. 82-83)

Sobre a adoção, o artigo 50 regulamentou os cadastros, pre-


tendendo tornar mais produtiva a utilização de dois grandes bancos
de dados, um de crianças e adolescentes em condições de serem
adotados, e outro de pessoas interessadas e em condições de adotar
(RIBEIRO, 2012, p. 161). Os cadastros foram previstos em âmbito
municipal, estadual e federal, tendo o dispositivo também especifi-
cado a existência de cadastro distinto para pessoas ou casais resi-
dentes fora do país.
Na esfera federal, o Cadastro Nacional de Adoção (CNA)
funciona junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e sua implan-
tação foi regulada pelas resoluções n. 54/2008 e 190/2014. Atual-
mente, abarca todos os dados dos cadastros municipais e estaduais,

6 Art. 43. A adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o

adotando e fundar-se em motivos legítimos.

149
representando a principal ferramenta disponibilizada aos juízes das
varas da infância e juventude para acelerar os processos de adoção
em todo o país, uma vez que uniformiza as informações, possibili-
tando que pretendentes de um estado possam adotar uma criança
de outro estado (RIZZARDO, 2014, p. 521).
Conforme previsto pela Lei Nacional de Adoção, as pessoas
interessadas em adotar devem passar por um procedimento de ha-
bilitação, onde é averiguado se possuem condições psicológica e fi-
nanceira para assumirem uma filiação socioafetiva. Uma vez
habilitados, os postulantes são inscritos no cadastro, sendo que a
convocação será feita de acordo com a ordem cronológica de habi-
litação e conforme a disponibilidade de crianças ou adolescentes
adotáveis. Existe, contudo, um subcadastro para postulantes resi-
dentes no exterior, que somente será consultado diante do insucesso
em se obter uma família substituta de habilitados residentes no país.
Além da agilidade do procedimento, ampliando o cruza-
mento de dados da lista de postulantes com a lista de crianças e ado-
lescentes aptos a serem adotados, o CNA traz outras vantagens,
como a de evitar que crianças sejam entregues a pessoas não ca-
dastradas, cuja aptidão para adotar ainda não foi certificada por
equipe interprofissional, ou, ainda mais grave, que a entrega seja
feita em troca de dinheiro ou outro benefício.
Ao prever a obrigatoriedade dos cadastros, a Lei Nacional
de Adoção buscou dificultar as adoções diretas a postulantes não
habilitados. Mesmo assim, previu expressamente três exceções, apli-
cáveis somente a candidatos residentes no Brasil (artigo 50, pará-
grafo 13). Elas ocorrem quando: a) se tratar de pedido de adoção
unilateral; b) for formulada por parente com o qual a criança ou ado-
lescente mantenha vínculos de afinidade ou afetividade; ou c)
oriundo o pedido de quem detém a tutela ou a guarda legal de
criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de
tempo de convivência comprove a fixação de laços de afinidade e
afetividade, e não seja constatada a ocorrência de má-fé ou dos cri-
mes previstos nos artigos 237 e 238 do ECA7.

7 Art. 237. Subtrair criança ou adolescente ao poder de quem o tem sob sua

guarda em virtude de lei ou ordem judicial, com o fim de colocação em lar subs-
tituto.

150
Sobre a obrigatoriedade dos cadastros e as exceções trazi-
das expressamente pela lei, Rolf Madaleno comentou:

Os cadastros de adoção, tanto para inscrição de crianças ou adolescentes


habilitados para adoção como de pessoas ou casais habilitados para ado-
tarem, deverão seguir a ordem cronológica de inscrição e o artigo 197-E
do Estatuto reafirma não só a obrigatoriedade da inscrição dos candidatos
à adoção e o rigor a ser observado pela autoridade judiciária na restrição
da ordem de inscrição, salvo quando, atento ao princípio dos melhores in-
teresses do infante, se façam presentes as hipóteses previstas nos incisos
I, II e III do §13 do artigo 50 do ECA. E como observa Sávio Bittencourt,
“se uma criança tem características que demonstrem a inconveniência da
adoção pelo primeiro habilitado da lista, em função de incompatibilidade
entre o perfil da criança e do interessado, deve ele ser preterido, entre-
gando-se a criança aos cuidados de outro habilitado cadastrado”. Por fim,
salutar e revolucionário o espírito renovado pela Lei 12.010-2009 ao alterar
o Estatuto da Criança e do Adolescente e realçar e priorizar, também para
efeitos de adoção, sobrepondo-se ao rigor de uma listagem de inscrição,
quando em benefício da criança ou do adolescente se fazem presentes
antecipadamente os elos de afetividade e afinidade (ECA, art. 50, §13, III),
ficando justamente em segundo plano o prévio cadastro de candidato à
adoção quando o pretendente à adoção já detém a tutela ou a guarda
legal de criança maior de três anos ou adolescente, desde que o lapso de
tempo de convivência comprove a fixação dos referidos laços de afinidade
e afetividade, consagrando o presente dispositivo de lei a institucionaliza-
ção da filiação socioafetiva. (2015, p. 678)

Não obstante as vantagens trazidas pelo CNA, é certo


que uma boa parte dos processos de adoção que tramitam atual-
mente no país envolvem adoções fora do cadastro.
Ainda não foi produzida uma estatística específica sobre
o tema, com dados de todo o Brasil, no entanto, a pesquisa “O
Tempo dos Processos Relacionados à Adoção no Brasil. Uma
Análise sobre os Impactos da Atuação do Poder Judiciário”, en-
comendada pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias do Con-
selho Nacional de Justiça (CNJ) à Associação Brasileira de

Pena - reclusão de dois a seis anos, e multa.


Art. 238. Promoter ou efetivar a entrega de filho ou pupilo a terceiro, mediante
paga ou recompensa:
Pena - reclusão de um a quatro anos, e multa.
Parágrafo único. Incide nas mesmas penas quem oferece ou efetiva
a paga ou recompensa.

151
Jurimetria (ABJ), com dados dos Tribunais de Justiça dos Esta-
dos de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Santa Catarina,
Rio Grande do Sul, Distrito Federal e Territórios, Pará e Pernam-
buco, apontou que apenas 29% das adoções ocorrem no CNA:

Em nossa pesquisa, detectamos que pelo menos 48% dos processos


de adoção envolviam adoções fora do CNA (Observamos, além disso,
que 29% das adoções ocorrem no CNA, 12% dos processos tratavam
de adoção unilateral e 11% dos processos não continham nenhuma
informação nesse sentido). (2015, p. 147)

Essa grande quantidade de adoções diretas demonstra


uma realidade que precisa ser melhor compreendida, à luz dos
princípios que orientam e estruturam a legislação da infância e
juventude, assegurando a supremacia dos direitos da criança e
do adolescente no Brasil.
O enfrentamento passa por diversos setores, como:
campanhas de conscientização à população sobre as vantagens
do CNA; maior celeridade no julgamento de processos de desti-
tuição do poder familiar e de adoção; aparelhamento dos conse-
lhos tutelares, dos conselhos de direitos, das entidades de
acolhimento, dos órgãos da assistência social e das equipes in-
terdisciplinares que atuam junto às varas da infância e juventude;
capacitação dos profissionais que atuam na rede de proteção da
criança e do adolescente, incluindo juízes e promotores; além do
reconhecimento da legalidade da adoção intuitu personae nas
condições expostas nos capítulos seguintes.

ADOÇÃO INTUITU PERSONAE E POSTULANTES PREVIA-


MENTE HABILITADOS

A adoção intuitu personae usualmente ocorre quando a


genitora - na grande maioria das vezes a criança não tem pai re-
gistral -, escolhe a pessoa ou o casal a quem pretende entregar
o filho. Sobre a matéria, transcrevemos a explicação mais abran-
gente de Maria Berenice Dias:

152
Chama-se de adoção intuitu personae quando há o desejo da mãe de
entregar o filho a determinada pessoa. Também é assim chamada a
determinação de alguém em adotar uma certa criança. As circunstân-
cias são variadas. Há quem busque adotar o recém-nascido que en-
controu no lixo. Também há esse desejo quando surge um vínculo
afetivo entre quem trabalha ou desenvolve serviço voluntário com uma
criança abrigada na instituição. Em muitos casos, a própria mãe en-
trega o filho ao pretenso adotante. [...] (2011, p. 498).

A adoção intuitu personae não se confunde com a ado-


ção à brasileira, que é o registro de filho alheio como próprio (MA-
CIEL, 2016, p. 385). A adoção à brasileira consiste em uma burla
ao registro civil, uma falsidade ideológica prevista como crime no
artigo 242 do Código Penal8.
Verifica-se a adoção à brasileira quando um casal recebe
um recém-nascido de uma mãe que não deseja criá-lo, dirigem-se
ao Cartório de Registro Civil e registram o bebê como se fossem
os pais biológicos. Situação ainda mais comum ocorre quando o
companheiro registra o filho da companheira como seu, mesmo
sabendo não ser o pai biológico.
De outro lado, na adoção intuitu personae, a genitora co-
nhece uma família com quem cria afinidade e decide entregar seu
filho para que possam adotá-lo. Não há falsidade de registro, o
que ocorre é uma adoção consentida, onde não se obedece à fila
do cadastro de adoção.
Uma primeira situação a ser observada ocorre quando os
postulantes à adoção intuitu personae estão previamente cadas-
trados, ou seja, quando já se submeteram ao procedimento de
habilitação, encontrando-se com condições psicológicas e mate-
riais para estabelecerem uma filiação socioafetiva certificadas
pelo Poder Judiciário.
Situações como essa tratam de adoções consentidas,
que não encontram previsão nas exceções do artigo 50 do ECA,

8Art. 242. Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem;
ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente
ao estado civil:
Pena – reclusão, de dois a seis anos.
Parágrafo único. Se o crime é praticado por motivo de reconhecida
nobreza:
Pena – detenção, de um a dois anos, podendo o juiz deixar de aplicar a pena.

153
mas são autorizadas pelos artigos 459 e 16610 da mesma legisla-
ção, que cuidam da adoção consensual. Esses dispositivos foram
introduzidos pela Lei n. 12.010/2009 e devem ser interpretados
em coadunação com os artigos 50, §13, e 197-E, §1º11, que tratam
de exceções ao cadastro prévio e da obediência à ordem crono-
lógica das habilitações.
Se a regra do parágrafo 1º do artigo 197-E autoriza a fle-
xibilização da fila do cadastro nas hipóteses excepcionais do pará-
grafo 13 do artigo 50, ou seja, para postulantes não cadastrados,
com maior razão, a ordem cronológica deve ser relativizada nas
adoções dirigidas em que os postulantes se encontram previa-
mente inscritos no CNA, desde que comprovado, no caso em con-
creto, ser essa a melhor solução no interesse do adotando.
Defendendo a legalidade da adoção consentida a casais
previamente habilitados, vejamos o posicionamento de Silvana
do Monte Moreira, Presidente da Comissão de Adoção do Instituto
Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM):

A adoção intuitu personae é a conhecida adoção consensual onde a


família biológica, comumente apenas a mãe, eis que desconhecido
ou ausente o pai, entrega a criança em adoção a pessoa conhecida.
Tal adoção tem seu embasamento legal fulcrado no ECA – Artigos 45,
caput e 166. Principalmente depois do advento da Lei nº 12.010/2009
a adoção consentida passou a ser uma grande dúvida jurídica, sendo
aceita em alguns juízos e outros não. A fundamentação para sua não

9 Art. 45. A adoção depende do consentimento dos pais ou representante legal


do adotando.
§1º O consentimento será dispensado em relação à criança ou adolescente
cujos pais sejam desconhecidos ou tenham sido destituídos do poder familiar.
§2º Em se tratando de adotando maior de doze anos de idade, será
também necessário o seu consentimento.
10 Art. 166. Se os pais forem falecidos, tiverem sido destituídos ou suspensos do

poder familiar, ou houverem aderido expressamente ao pedido de colocação em


família substituta, este poderá ser formulado diretamente em cartório, em petição
assinada pelos próprios requerentes, dispensada a assistência de advogado.
11 Art. 197-E. Deferida a habilitação, o postulante será inscrito nos cadastros

referidos no art. 50 desta Lei, sendo a sua convocação para a adoção feita de
acordo com ordem cronológica de habilitação e conforme a disponibilidade de
crianças ou adolescentes adotáveis.
§1º A ordem cronológica das habilitações somente poderá deixar de ser
observada pela autoridade judiciária nas hipóteses previstas no §13º do art. 50 desta
Lei, quando comprovado ser essa a melhor solução no interesse do adotando.

154
aceitação tem base em suposto conflito com relação à interpretação
literal do parágrafo 13, do art. 50, em cotejamento com o artigo 166,
visto que a interpretação de tal parágrafo, perfunctoriamente, induz a
um pseudo entendimento de revogação do art. 166 do ECA.
Entendemos, contudo, assim como vários outros operadores do di-
reito, que se o legislador tivesse a intenção de revogar tal artigo o teria
feito e não o manteria na mesma lei. Não se trata de erro material, o
artigo 166 subsiste e é claro no que determina, através da inclusão,
pela própria Lei n. 12.010/2009, dos parágrafos de 1º ao 7º, vez que
o objetivo dos parágrafos, de conformidade com a hermenêutica jurí-
dica, é o de dar especificidade à matéria de que trata o caput.
Assim, com base no acima aduzido, é nosso entendimento que a ado-
ção consentida é juridicamente possível, desde que realizada por pes-
soas previamente habilitadas.12

Devemos também observar que o Código Civil brasileiro


reconhece expressamente o direito dos pais de escolherem tutor
para os filhos em testamento13, ou seja, uma escolha que surtirá
efeitos após a extinção do poder familiar com a morte. Nessas
condições, não há obstáculo para que, no exercício do poder fa-
miliar, os pais biológicos escolham a pessoa ou o casal a quem
entregarão o filho para adoção, desde que os adotantes estejam
previamente habilitados.
Em se tratando do direito da mãe biológica de escolher
os pais socioafetivos de seu filho, transcrevemos a enfática posi-
ção de Maria Berenice Dias:

E nada, absolutamente nada impede que a mãe escolha quem sejam


os pais de seu filho. Às vezes é a patroa, às vezes uma vizinha, em
outros casos um casal de amigos que têm uma maneira de ver a vida,
uma retidão de caráter que a mãe acha que seriam os pais ideais para
o seu filho. É o que se chama de adoção intuitu personae, que não
está prevista na lei, mas também não é vedada. A omissão do legis-
lador em sede de adoção não significa que não existe tal possibilidade.
Ao contrário, basta lembrar que a lei assegura aos pais o direito de
nomear tutor a seu filho (CC, art. 1.729). E, se há a possibilidade de

12 A adoção intuitu personae e a necessária habilitação prévia. Disponível em:


<http://silvanammadv.blogspot.com.br/2012/02/adocao-intuitu-personae-e-
necessaria.html>. Acesso em: 02 jul. 2016.
13 Art. 1729. O direito de nomear tutor compete aos pais, em conjunto.

Parágrafo único. A nomeação deve constar de testamento ou de qual-


quer outro documento autêntico.

155
eleger quem vai ficar com o filho depois da morte, não se justifica
negar o direito de escolha a quem dar em adoção.14

A exigência da habilitação prévia para as adoções con-


sentidas busca atender o superior interesse da criança. Não des-
consideramos que a adoção intuitu personae pode ensejar
situações em que a genitora acaba entregando o filho a um casal
sem preparo para adoção. Esse risco pode ser diminuído com a
habilitação prévia, onde as condições materiais e psicológicas
dos adotantes são avaliadas por um conjunto de estudos técnicos
especializados.
Não olvidamos, de igual modo, que um casal de postu-
lantes, mesmo que habilitado, possa assediar a família biológica,
oferecendo dinheiro e outras vantagens financeiras para furarem
a ordem cronológica do cadastro. Essa hipótese, contudo, não
trata de adoção intuitu personae. A situação configura crime e
deve estar sob constante fiscalização dos órgãos que integram a
rede de proteção da criança e do adolescente, de modo que,
quanto mais cedo for detectada a conduta de má-fé ou quaisquer
das situações criminosas dos artigos 237 e 238 do ECA, menor
será o prejuízo para a vida da criança com a ruptura do vínculo.
Nessas condições, a adoção intuitu personae, com pos-
tulantes previamente cadastrados, deve constituir uma exceção
à ordem cronológica dos cadastros, pois a proteção da fila, nes-
ses casos, atenderá mais aos interesses dos casais habilitados
do que os direitos da criança a ser adotada.
Esse reconhecimento mostra-se necessário para evitar
que inúmeras crianças permaneçam em situação irregular, sob a
guarda de fato de pessoas bem-intencionadas, mas que temem
perdê-las se acionarem os juizados da infância e juventude.
Esses adotantes recebem orientação jurídica para permanecerem
em situação irregular por lapso de tempo que consolide os laços
de afinidade e afetividade, até se enquadrarem na exceção do in-
ciso III, do parágrafo 13, do artigo 50. Situações como essa, muito
corriqueiras em todo o país, contrariam a vontade do legislador,

Adoção e a espera do amor. Disponível em: <file:///C:/Users/pedro/Documents/Mo-


14

nografia/Textos/Maria%20Berenice%20-%20Adocao%20e%20a%20espera%20de%
20amo.pdf>. Acesso em: 16 jul. 2016.

156
pois retiram a adoção do controle e da fiscalização do Poder Ju-
diciário, limitando-o a um mero órgão homologador de situações
já consolidadas.
Não bastasse, a aceitação da adoção intuitu personae
evita condutas criminosas, como a adoção à brasileira, que, den-
tre tantas irregularidades, privam a criança do direito de conhecer
sua origem genética, assegurado aos adotados15.
Gradativamente, os casais interessados se sentirão mais
motivados a se submeterem ao procedimento de habilitação, au-
mentando a fiscalização e, consequentemente, a proteção às
crianças adotadas.
Sobre a necessidade de se reconhecer a adoção intuitu
personae, transcrevemos trecho da autorizada doutrina de Gal-
dino Augusto Coelho Bordallo:

O registro de filho alheio como próprio é situação incorreta que não deve
ser aceita, sob os argumentos que é menos trabalhoso agir desta forma
do que propor a ação de adoção. Há, no sistema jurídico, instituto que
tem por finalidade única tornar jurídica a paternidade de fato já existente,
a adoção. Não se deve aceitar que as pessoas usem de meios ilegais
para obter o mesmo fim. Para evitar estas situações, devemos buscar
instrumentos que retirem das pessoas o medo de procurar nas varas
da infância o meio correto para regularizar a situação de afeto que já
possuem com relação a uma criança. Devemos, para tanto, aceitar as
adoções intuitu personae, conforme exposto no subitem anterior, pois
esta é a única forma que o Estado terá de controlar o estabelecimento
das filiações socioafetivas e verificar se as crianças estarão sendo pro-
tegidas de forma efetiva. (apud MACIEL, 2016, p. 387).

As adoções consentidas são uma realidade e devem


parar de ser feitas na informalidade, sem fiscalização dos órgãos
de proteção da infância e juventude.
Não cabe ao Poder Judiciário se limitar a homologar vín-
culos socioafetivos já consolidados. Os adotantes, por sua vez,
não podem ser tratados como marginais, com a má-fé presumida
em um ato que é, antes de tudo, regido por sentimentos de amor
ao próximo. Já os principais interessados, as crianças adotadas,

15Art. 48. O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como
de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus
eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos.

157
não podem ter seu direito fundamental à convivência familiar pre-
judicado para serem recolhidas a um abrigo. O zelo deve ser dado
à qualidade dos vínculos estabelecidos pela adoção, e não à
ordem cronológica da fila do cadastro de adotantes, sob pena de
se protegerem as pessoas habilitadas em detrimento das crianças
adotadas, cujo superior interesse é resguardado pela Lei Nacional
de Adoção.

ADOÇÃO INTUITU PERSONAE E POSTULANTES NÃO PRE-


VIAMENTE HABILITADOS: TEORIA DO AFETO

Uma segunda situação, mais complexa, ocorre quando a


adoção intuitu personae é requerida por pessoa ou casal não ha-
bilitado. O caso envolve um maior risco à criança a ser adotada,
pois a família substituta pode não se encontrar em condições de
adotar.
Conforme já exposto, o Estatuto da Criança e do Adoles-
cente previu expressamente a possibilidade de adoção direta a
postulantes não cadastrados residentes no país em três hipóteses
dispostas no artigo 50.
Sobre a matéria, o Conselho Nacional de Justiça expediu
a Recomendação n. 8, de 07 de novembro de 2012, buscando
restringir as adoções intuitu personae às hipóteses expressa-
mente previstas no Estatuto:

Art. 1º Recomendar aos juízes com jurisdição na infância e juventude


que ao conceder a guarda provisória, em se tratando de criança com
idade igual ou menor de 3 (três) anos, seja ela concedida somente a
pessoas ou casais previamente habilitados nos cadastros a que se re-
fere o art. 50 do ECA, em consulta a ser feita pela ordem cronológica
da data de habilitação na seguinte ordem: primeiro os da comarca;
esgotados eles, os do Estado e, em não havendo, os do Cadastro Na-
cional de Adoção.16

16 CNJ. Recomendação n. 08, 07 de novembro de 2002. Dispõe sobre a colocação

de criança e adolescente em família substituta por meio de guarda. Disponível


em: <file:///C:/Users/pedro/Documents/Monografia/Resoluções%20e%20Reco-
mendações%20CNJ/Recomendacao_8_07-11-2012.pdf. >Acesso em: 16 jul. 2016.

158
No entanto, boa parte da doutrina tem defendido, ao
nosso ver de forma acertada, a legalidade das adoções intuitu per-
sonae, mesmo com postulantes não habilitados, desde que verifi-
cada a consolidação de vínculos socioafetivos entre os envolvidos.
Para tanto, as exceções dispostas no artigo 50 são inter-
pretadas de forma exemplificativa, excluindo-se a interpretação
restritiva e literal do dispositivo.
Nesse sentido, vejamos a explicação de Paulo Hermano
Soares Ribeiro:

O cadastramento não pode ser visto como regra absoluta para os


casos de adoção, diante da singularidade que envolve o desejo e o
afeto já sacralizados entre os maiores envolvidos: crianças a serem
adotadas e pessoas que querem adotar. Portanto, a exceção deve ser
analisada e levada a termo, se o caso assim o ensejar. Há que se tra-
balhar casos, em que o casal não está inscrito no Cadastro Nacional
de Adoção. Os propósitos contidos no artigo 50 do Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA) são nobres, mas a inscrição cronológica dos
adotantes não pode prevalecer sobre o melhor interesse da criança
ou do adolescente.
A frustração de ver interrompido um processo de adoção, por falta de
requisito técnico, burocrático ou meramente legal, é a declaração clara
que a criança foi abandonada, mais uma vez, e que o seu interesse
prioritário é uma mera declaração constitucional (2012, p. 172).

Essa interpretação busca dar maior atenção aos casos


em concreto, já que a adoção é estruturada por vínculos de sen-
timento, que perpassam por aspectos psicológicos e sociais de
grande complexidade e inquestionável individualidade, cujo reco-
nhecimento não pode ficar condicionado ao simples processo de
subsunção da casuística a uma das três exceções dispostas no
artigo 50.
Mostra-se, portanto, necessário reconhecer valor jurídico
aos vínculos de apego, diretamente relacionados ao direito à con-
vivência familiar e aos princípios da proteção integral e do superior
interesse, que constituem os valores fundamentais do ECA. Esses
princípios e sua inquestionável força normativa representam o
fundamento das regras jurídicas do ECA e refletem a própria es-
trutura ideológica do Estado, representativa dos valores consa-
grados pela nossa sociedade (TAVARES, 2006, p. 101).

159
Além da doutrina, esse posicionamento tem sido acolhido
por parcela significativa da jurisprudência17, inclusive do Superior
Tribunal de Justiça. Vejamos a ementa de conhecido precedente
desse Tribunal Superior:

RECURSO ESPECIAL - AFERIÇÃO DA PREVALÊNCIA ENTRE O


CADASTRO DE ADOTANTES E A ADOÇÃO INTUITU PERSONAE -
APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DO MENOR
- VEROSSÍMIL ESTABELECIMENTO DE VÍNCULO AFETIVO DA
MENOR COM O CASAL DE ADOTANTES NÃO CADASTRADOS -
PERMANÊNCIA DA CRIANÇA DURANTE OS PRIMEIROS OITO
MESES DE VIDA - TRÁFICO DE CRIANÇA - NÃO VERIFICAÇÃO -
FATOS QUE, POR SI, NÃO DENOTAM A PRÁTICA DE ILÍCITO - RE-
CURSO ESPECIAL PROVIDO.
I - A observância do cadastro de adotantes, vale dizer, a preferência
das pessoas cronologicamente cadastradas para adotar determinada
criança não é absoluta. Excepciona-se tal regramento, em observân-
cia ao princípio do melhor interesse do menor, basilar e norteador de
todo o sistema protecionista do menor, na hipótese de existir vínculo
afetivo entre a criança e o pretendente à adoção, ainda que este não
se encontre sequer cadastrado no referido registro;
II - É incontroverso nos autos, de acordo com a moldura fática deli-
neada pelas Instâncias ordinárias, que esta criança esteve sob a
guarda dos ora recorrentes, de forma ininterrupta, durante os primeiros
oito meses de vida, por conta de uma decisão judicial prolatada pelo
i. desembargador-relator que, como visto, conferiu efeito suspensivo
ao Agravo de Instrumento n. 1.0672.08.277590-5/001. Em se tratando
de ações que objetivam a adoção de menores, nas quais há a prima-
zia do interesse destes, os efeitos de uma decisão judicial possuem o
potencial de consolidar uma situação jurídica, muitas vezes, incontor-
nável, tal como o estabelecimento de vínculo afetivo;
III - Em razão do convívio diário da menor com o casal, ora recorrente, du-
rante seus primeiros oito meses de vida, propiciado por decisão judicial,
ressalte-se, verifica-se, nos termos do estudo psicossocial, o estreitamento
da relação de maternidade (até mesmo com o essencial aleitamento da
criança) e de paternidade e o consequente vínculo de afetividade;

17 Conferir: TJGO, Apelação Cível 360314-23.2010.8.09.0142, Rel. Des. Fran-


cisco Vildon José Valente, 5ª Câmara Cível, julgado em 06/09/2012, DJe 1156
de 03/10/2012; TJMG, Apelação Cível 1.0194.12.006162-8/002, Rel. Des. Hilda
Teixeira da Costa, 2ª Câmara Cível, julgamento em 27/01/2015, publicação da
súmula em 04/02/2015; TJRS, Apelação Cível 70050679125, 8ª Câmara Cível,
Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, julgado em 29/11/2012; TJRJ, Agravo de Ins-
trumento 0071376-22.205.8.19.0000, Rel. Des. Mônica Costa di Pietro, 8ª Câ-
mara Cível, julgamento em 29/03/2016.

160
IV - Mostra-se insubsistente o fundamento adotado pelo Tribunal de
origem no sentido de que a criança, por contar com menos de um ano
de idade, e, considerando a formalidade do cadastro, poderia ser afas-
tada deste casal adotante, pois não levou em consideração o único e
imprescindível critério a ser observado, qual seja, a existência de vín-
culo de afetividade da infante com o casal adotante, que, como visto,
insinua-se presente;
V - O argumento de que a vida pregressa da mãe biológica, depen-
dente química e com vida desregrada, tendo já concedido, anterior-
mente, outro filho à adoção, não pode conduzir, por si só, à conclusão
de que houvera, na espécie, venda, tráfico da criança adotanda. Ade-
mais, o verossímil estabelecimento do vínculo de afetividade da menor
com os recorrentes deve sobrepor-se, no caso dos autos, aos fatos
que, por si só, não consubstanciam o inaceitável tráfico de criança;
VI - Recurso Especial provido.18

Nessas condições, caberá à autoridade judiciária, por in-


termédio de pareceres da equipe interprofissional, analisar, caso
a caso, a existência e, principalmente, a qualidade dos vínculos
socioafetivos entre as partes envolvidas, verificando, de igual
modo, as condições dos postulantes para adotar, já que não se
encontravam previamente habilitados.
A questão se apresenta, contudo, mais intricada quando
se trata de bebês. Um ponto fundamental no reconhecimento de
valor jurídico aos vínculos de apego é o estudo da formação e
consolidação dos vínculos de afetividade e afinidade em recém-
nascidos, bem como as consequências da ruptura para o seu de-
senvolvimento psicológico saudável.
Conforme já exposto, a exceção prevista pela lei não es-
tabelece prazo determinado para a fixação dos laços de socioa-
fetividade, mas exige, dentre outros requisitos, que a criança
tenha mais de 3 (três) anos de idade (art. 50, §13, III).
Por essa razão, inúmeras crianças menores de 3 (três)
anos são retiradas da guarda de fato de famílias substitutas, após
longo período de convivência, para serem recolhidas a entidades
de acolhimento ou encaminhadas a outra família substituta, me-
lhor posicionada na fila do cadastro, o que atende à citada Reco-
mendação n. 8/2012 do CNJ.

18 STJ, 3ª Turma, REsp 1172067/MG, Rel. Ministro Massami Uyeda, julgado em

18/03/2010, DJe 14/04/2010.

161
No entanto, essas providências desconsideram estudos
que a psicologia reconhece há muitas décadas, ignorando os efei-
tos adversos que a ruptura de um vínculo seguro de amor pode
causar ao desenvolvimento saudável de uma criança, mesmo que
menor de 3 (três) anos.
Ainda na década de 40 do século passado, o psiquiatra
e psicanalista britânico John Bowlby começou a desenvolver a
chamada teoria do apego, a partir do estudo interdisciplinar do
comportamento de crianças órfãs e sem lar logo após a Segunda
Guerra Mundial.19
Os trabalhos de Bowlby são de reconhecida importância
para a psicologia e foram fonte para o desenvolvimento de diver-
sas outras pesquisas relacionadas ao desenvolvimento da vincu-
lação afetiva entre crianças e seus cuidadores, bem como as
consequências de eventual rompimento abrupto.
Ao tratarem da teoria do apego, em parecer psicológico
coletivo sobre a formação e rompimento de laços afetivos enco-
mendado pela ANGAAD – Associação Nacional de Grupos de
Apoio à Adoção - uma equipe de especialistas na área da psico-
logia e do desenvolvimento infantil especificou:

Para Bowlby (1969/1990), o bebê irá desenvolver vinculação afetiva,


ao longo do primeiro ano de vida, com uma figura preferencial com a
qual mantiver vivências constantes e afetuosas de interação social.
As interações do bebê com a mãe ou outro cuidador principal ensina-
riam a criança a discriminar esta pessoa das outras e fariam com que

19Ao tratar da fase inicial de suas pesquisas sobre o vínculo de apego, John
Bowlby relatou: “Em 1950 fui convidado para assessorar a Organização Mundial
de Saúde na área de saúde mental de crianças sem lar. Essa missão propor-
cionou-me uma valiosa oportunidade para conhecer muitos dos investigadores
mais eminentes no campo da puericultura e da psiquiatria infantil, e para me
familiarizar com a respectiva literatura. Conforme escrevi no prefácio do relatório
resultante (1951), o que mais me impressionou entre aqueles que conheci foi o
“elevado grau de concordância existente a respeito tanto dos princípios que
subjazem à saúde mental infantil como às práticas pelas quais ela pode ser sal-
vaguardada”. Na primeira parte do meu relatório apresentei provas e formulei
um princípio: “O que se acredita ser essencial para saúde mental é que o bebê
e a criança pequena experimentem um relacionamento carinhoso, íntimo e con-
tínuo com a mãe (ou mãe substituta permanente), no qual ambos encontrem
satisfação e prazer”. In: Apego. A Natureza do Vínculo. Volume 1 da Trilogia. 3.
ed. 3. reimpressão. São Paulo: Martins Fontes, junho de 2015. p. X.

162
ela preferisse a sua presença, demonstrando reações de protesto e
medo quando afastada desta figura de referência. Verificou-se que
dois comportamentos do cuidador reforçam este padrão de apego: as
iniciativas de interação com a criança e a prontidão para responder e
atender ao seu choro.20

Sobre os prejuízos que a ruptura abrupta dos vínculos


afetivos poderá causar na criança, o já citado parecer psicológico
coletivo enumerou:

Os pesquisadores que se dedicam ao estudo desta temática, de forma


geral, concordam que crianças com rupturas de vínculos afetivos
podem sofrer efeitos adversos para o desenvolvimento, especialmente
se forem rupturas abruptas, nas quais a criança tem a impossibilidade
de compreender o motivo de uma separação prolongada (ou definitiva)
de seus cuidadores afetivos.
Diversos pesquisadores listam uma série de efeitos adversos com se-
parações abruptas de crianças pequenas de seus cuidadores amorosos:
- a criança poderá sofrer de regressão em termos de dependência de
atividades das quais já dominava;
- diminuição do senso de segurança e confiança de que adultos esta-
rão disponíveis;
- interrupção de aquisição de novos comportamentos de desenvolvi-
mento global;
- interferência no desenvolvimento da identidade;
- a consciência de estímulos externos e internos sofrerá franca regres-
são;
- interrupção de aquisição de linguagem ou perda de habilidades já
adquiridas;
- a capacidade cognitiva ainda não desenvolvida poderá levar à
criança a pensar que ela é a causa dessa separação e da perda;
- prejuízo no desenvolvimento do hemisfério cerebral direito respon-
sável por processar informações relacionadas com nossas interações
sociais e emoções;
- a capacidade de formar novos apegos ficará prejudicada tanto com
um comportamento indiscriminado de apegar-se a qualquer pessoa
quanto a uma passividade e indiferença que poderá ser confundida
com a aceitação dessa separação;
- quebra do laço de apego seguro e da compreensão do seu padrão

20Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção (ANGAAD). Parecer Psi-


cológico Coletivo sobre Formação e Rompimento de Laços Afetivos. Recife,
2014. p. 4. Disponível em: <file:///C:/Users/pedro/Documents/Monografia/Pes-
quisas/Parecer%20Psicológico%20Coletivo%20sobre%20Formação%20e%20
Rompimento%20de%20Laços%20afetiv....pdf>. Acesso em: 19 ago. 2016.

163
que prejudicará o desenvolvimento emocional, pois como afirma Shore
(2002) “a segurança de um apego íntimo e seguro é a defesa primária
contra psicopatologias futuras”;
- problemas de aprendizagem e de fala são conseqüências inerentes;
- separações abruptas e desorganizadas podem levar crianças a
terem menor controle de impulso, menos capacidade de tolerar o
stress, menor habilidade de frustração e, no futuro, podem levar a risco
de ansiedade, depressão, agressão, violência, suicídio e uso de subs-
tâncias (Toth & Cichetti, 1998).
Desta forma, as pesquisas mostram claramente que quando as ne-
cessidades de dependência e vinculação afetiva de uma criança não
são supridos (ou são interrompidos de forma abrupta, retirando-se
uma criança pequena de uma família amorosa), esta criança cresce
com falhas em seu desenvolvimento socioemocional: ela sempre vai
achar que a vida está lhe devendo e sua confiança em outras pessoas
será seriamente prejudicada. Quem será esse ser humano incapaz
de confiar em outros? Como formará laços? Como desenvolverá sua
empatia, generosidade, tolerância se tudo isso lhe foi tirado durante
seu desenvolvimento? Esta criança poderá crescer sempre assumindo
o papel de vítima ou ainda ser uma vitimizadora, pois suas caracterís-
ticas de controle foram danificadas. Poderá se tornar um adulto rígido,
inflexível e incapaz de lidar com controle de impulsos agressivos de
maneira adequada. (2014, p. 5)

Baseado na teoria de Bowlby, dentre outros estudos cien-


tíficos dela decorrentes, como os do professor Terry Faw e da psi-
cóloga Mary Ainsworth, o Promotor de Justiça Júlio Alfredo
Almeida defendeu que a vinculação afetiva em bebês se conso-
lida a partir do sexto mês de vida:

Isso significa, que no caso de uma pessoa ou conjunto de pessoas,


tenha indevidamente recebido criança recém-nascida, seja pela trans-
ferência direta efetuada pelo genitor, seja pelo encontro de exposto,
poderá – e ao final direi que deverá – ter essa relação ilegal imediata-
mente rompida, até os seis meses de idade da criança, isso indepen-
dentemente das boas ou más condições dos adotantes.
Poderá ainda, até os oito meses, ser rompida mediante análise do com-
portamento da criança, com o objetivo de verificar se formou ou não
apego, a ocorrência ou não do medo, pois é nessa idade, que a maioria
das crianças apresenta, de forma inconfundível, a reação medo21.

21 In: Adoção intuitu personae – Uma proposta de agir. Síntese da Monografia de

Especialização em Direito Comunitário: Infância e Juventude. 2002. Fundação Es-


cola Superior do Ministério Público, Porto Alegre. Disponível em:
<https://www.mprs.mp.br/infancia/doutrina/id393.htm>. Acesso em 20 ago. 2016 .

164
Comentando os critérios sugeridos por Júlio Alfredo de
Almeida, Galdino Augusto Coelho Bordallo observou:

Para a verificação da existência do vínculo e pelo fato de nestas si-


tuações sempre estarmos diante de bebês, Júlio Alfredo de Almeida
sugere critérios que devam ser utilizados, dividindo-os pelo tempo de
vida da criança, entendendo que as crianças de até seis meses de
idade devam ser retiradas da guarda dos adotantes e entregues a pes-
soas cadastradas, afirmando que estas ainda não criaram vínculos
afetivos com aqueles. Para as demais crianças, o autor entende que
devam passar por avaliação da equipe interprofissional para que seja
atestada a existência do vínculo. Não temos certeza se este critério
proposto por Júlio Alfredo de Almeida é correto no que se refere às
crianças com idade igual ou inferior a seis meses, já que se pode per-
ceber que desde muito pequenas as crianças já reconhecem as pes-
soas com as quais convivem diariamente. (apud MACIEL, 2016, p. 381)

De fato, estabelecer marco temporal para a conclusão de


um processo de desenvolvimento psicológico, procura tornar
exata uma ciência humana, marcada pela singularidade, genera-
lizando a vinculação afetiva que, na verdade, depende da quali-
dade do vínculo e da individualidade dos envolvidos. O próprio
Bowlby ponderou:

Embora existam provas abundantes mostrando que o tipo de cuidados


que um bebê recebe de sua mãe desempenha um importante papel
na determinação do modo como se desenvolve seu comportamento
de apego, não se deve jamais esquecer em que medida a própria
criança inicia a interação e influencia a forma que ela adota. Ainsworth
e Schaffer estão entre os numerosos observadores que chamam a
atenção para o papel muito ativo do bebê humano. (2015, p. 251)

Contudo, se a idade de seis meses não serve de marco


temporal exato para a autoridade judiciária decidir se retira o
recém-nascido em situação irregular de uma família substituta,
sem prejuízo para o seu desenvolvimento futuro; por outro lado,
essa idade serve de parâmetro, mesmo que aproximado, para so-
pesar a determinação da medida, o que deverá sempre ser me-
lhor avaliado por intermédio de parecer da equipe
interprofissional.

165
Em todo caso, o que não pode ser olvidado é que os
recém-nascidos se apegam a adultos e são capazes de criar vín-
culos socioafetivos com eles, o que torna a ruptura abrupta pre-
judicial ao seu desenvolvimento saudável, causando sequelas
psicológicas que serão sentidas na vida adulta. Ignorar essa pre-
missa é desconsiderar os reconhecidos estudos que a psicologia
vem desenvolvendo, há mais de setenta anos, além de voltar a
oferecer ao recém-nascido o tratamento do Código de Menores,
deixando de reconhecê-lo como um sujeito que possui direitos à
convivência familiar e à proteção integral, para insistir no trata-
mento como objeto de proteção.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Lei Nacional de Adoção previu expressamente como


objetivo aperfeiçoar a sistemática existente para garantir o direito
à convivência familiar a todas as crianças e adolescentes.
Nesse propósito, regulamentou detalhadamente o cadastro
de adoção, tornando mais produtiva a utilização dos bancos de
dados, o que veio a ser aperfeiçoado com a implementação do CNA,
por intermédio das resoluções n. 54/2008 e 190/2014 do CNJ.
Atualmente, o CNA concentra dados de todo o país, re-
presentando uma ferramenta para ampliar o cruzamento de
dados, possibilitando que pretendentes de um estado possam
adotar uma criança de outro local da federação.
Além de agilizar o procedimento, o CNA dá transparência
ao processo de adoção, facilita a fiscalização e, consequente-
mente, diminui os riscos, evitando que crianças sejam adotadas
por meios escusos e por pessoas despreparadas.
Não obstante as vantagens da ferramenta, uma boa parte
das adoções no país ainda são realizadas fora do CNA, consis-
tindo em adoções intuitu personae.
A Lei Nacional de Adoção previu expressamente três hi-
póteses de adoções dirigidas. Em razão de interpretações literais
e restritivas, crianças têm sido retiradas de famílias substitutas
mesmo após o estabelecimento de vínculos de socioafetividade,

166
com vistas a resguardar a obrigatoriedade do cadastro e a rígida
obediência à fila de habilitados.
Essas medidas têm criado nos adotantes o temor de
acionarem a Justiça quando recebem uma criança diretamente
da mãe. Por medo de terem os vínculos rompidos, a criança é
mantida em situação irregular por anos. O Judiciário só é procu-
rado quando os vínculos já estão consolidados e o caso pode se
encaixar em uma das exceções previstas expressamente pela
legislação.
O radicalismo desse posicionamento, ao invés de asse-
gurar as vantagens do CNA, está retirando a adoção do controle
do Poder Judiciário.
Em vez de fiscalizar os processos de adoção, certificando
o preparo dos adotantes e acompanhando a adaptação da criança
no estágio de convivência, o Poder Judiciário passou a ser um
homologador de vínculos já estabelecidos, pois somente é acio-
nado quando o delicado processo de adaptação da criança em
família substituta já se encontra concluído.
Um procedimento que deveria ser acompanhado de perto
pelos órgãos de proteção da infância e juventude tem sido feito
na informalidade, longe da fiscalização dos órgãos competentes.
O enfrentamento dessa realidade passa por diversos fa-
tores, conforme foi exposto, mas ressalta a importância de se re-
conhecer a legalidade da adoção intuitu personae nos termos
propostos.
Quando a pessoa ou casal se encontrar previamente ha-
bilitado, ou seja, com as condições para adotar certificadas pelo
Poder Judiciário, não há impedimento legal para que adotem uma
criança que a própria genitora lhes confiou a criação. Trata-se de
hipótese de adoção consentida, que encontra previsão nos artigos
45 e 166 do ECA, e atende os interesses superiores da criança.
Por outro lado, quando a pessoa ou casal não se encon-
trar previamente habilitado, a autoridade judiciária deve verificar,
caso a caso, principalmente por intermédio de relatórios da equipe
interdisciplinar, o preparo dos adotantes e a sedimentação de vín-
culos socioafetivos na criança, sendo recomendável a sua retirada
caso um desses requisitos não seja constatado.

167
Mesmo tratando-se de bebês, a teoria do afeto e outros
estudos da psicologia já demonstraram que são capazes de criar
vínculos de amor e afinidade com seus cuidadores durante o pri-
meiro ano de vida. O rompimento abrupto dessas ligações pode
causar sequelas psicológicas irreparáveis, prejudicando o desen-
volvimento saudável e a fase adulta da vida do adotado.
A aceitação da adoção intuitu personae, nas condições
defendidas, trará segurança para que os adotantes acionem o Ju-
diciário caso recebam uma criança em confiança da própria geni-
tora. Também incentivará as pessoas interessadas a se
submeterem previamente aos procedimentos de habilitação. A
adoção à brasileira, assim como outros procedimentos escusos,
perderão utilidade aos postulantes de boa-fé. Todas essas mu-
danças ajudarão a retirar a adoção do terreno da marginalidade,
aumentando a fiscalização por parte dos órgãos de proteção, o
que possibilitará detectar e punir, com maior eficiência, os proce-
dimentos criminosos promovidos por postulantes de má-fé.
Não bastasse, as crianças adotadas terão seus direitos
à convivência familiar e à proteção integral assegurados, fazendo
valer seu superior interesse em detrimento da ordem cronológica
do cadastro de adotantes, o que coloca o CNA na condição idea-
lizada pelo legislador, qual seja, de instrumento para garantir o di-
reito à convivência familiar e não de motivo para prejudicá-lo.
Dessa forma, será dado privilégio ao que é mais caro à adoção,
os sentimentos de afinidade, afetividade e o vínculo seguro de
cuidado amoroso.

168
REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Júlio Alfredo de. Adoção intuitu personae – Uma pro-


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a implantação do cadastro nacional de adoção, para possibilitar
a inclusão dos pretendentes estrangeiros habilitados nos tribunais
e dá outras providências. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/

169
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170
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TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 4. ed.


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171
172
Mirella Camarota Pimenta*

A AvAliAção psicológicA
no contexto dA AlienAção pArentAl

RELIGIOSIY OF STATE LAICO

EL ESTADO LAICO RELIGIOSIDAD

Resumo:
A interdisciplinaridade entre a Psicologia e o Direito pode possibilitar
a diminuição da violência intrafamiliar e a promoção da justiça, pois
propiciam um melhor entendimento dos fenômenos emocionais ob-
servados nas partes de um processo judicial, principalmente aqueles
que permeiam um processo de separação ou divórcio que envolve
filhos. A alienação parental ocorre quando o genitor alienador denigre
a imagem do outro e cria resistência entre este e seu filho, ocasionado
o distanciamento do convívio com o filho de forma gradativa até o
ponto de o genitor alienado tornar-se um estranho para o próprio filho,
e este tratá-lo de forma indiferente e agressiva. O presente estudo
visa demonstrar quais instrumentos psicológicos podem ser utilizados
para a realização de uma avaliação psicológica, quando se tratar de
casos jurídicos com suspeita de alienação parental.

Abstract:
The interdisciplinarity between Psychology and Law can allow the re-
duction of intrafamily violence and the promotion of justice, since they
provide a better understanding of the emotional phenomena observed
in the parts of a judicial process, especially those that permeate a pro-
cess of separation or divorce involving children. Parental alienation
occurs when the alienating parent denigrates the image of the other
and creates resistance between him and his son, resulting in the se-
paration of the relationship with the child gradually until the alienated

*Pós-Graduada em Psicologia Jurídica pelo Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais -


IPES e pós-graduada em Avaliação Psicológica pelo Instituto de Pós-Graduação e Gra-
duação- IPOG. Graduada em Direito e Psicologia pela Universidade de Rio Verde - UniRV.

175
parent becomes a stranger to his own son, and This will treat you in-
differently and aggressively. The present study aims at demonstrating
which psychological instruments can be used to perform a psycholo-
gical evaluation when dealing with legal cases with suspected parental
alienation.

Resumen:
La interdisciplinariedad entre la psicología y la ley puede permitir la
reducción de la violencia familiar y la promoción de la justicia, ya que
proporcionan una mejor comprensión de los fenómenos emocional
observado en algunas partes de una demanda, especialmente
aquellos que impregnan el proceso de separación o divorcio partici-
pación de los niños. La alienación parental se produce cuando el
progenitor alienador denigra la imagen del otro y crea resistencia
entre este y su hijo, hizo que el desprendimiento de vivir con el niño
poco a poco hasta el punto de que el padre alienado convertido en
un extraño a su propio hijo, y este tratar con indiferencia y agresiva-
mente. Este estudio tiene como objetivo demostrar que las herra-
mientas psicológicas pueden ser utilizados para llevar a cabo una
evaluación psicológica cuando se trata de casos legales de sospe-
cha de alienación parental.

Palavras-chave:
Psicologia, direito, família, testes psicológicos.

Keywords:
Psychology, law, family, psychological tests.

Palabras clave:
Psicología, derecho, familia, tests psicológicos.

176
introdUção

É notável o crescente índice de divórcio e, consequen-


temente, a disputa pela guarda dos filhos. A literatura aponta que,
em muitos processos de disputa de guarda, outorga-se a um dos
genitores a guarda do filho, e ao outro genitor o direito de visitas,
de forma que garanta o direito da criança à convivência em fa-
mília previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, asse-
gurando, assim, o não rompimento de vínculo entre o filho e o
genitor não guardião.
Em meio a essa disputa pela guarda, pais estão cheios
de ressentimentos, mágoas e sentimentos egoístas, querendo,
na maioria das vezes, atingir o outro, usando nesse caso os pró-
prios filhos. São genitores que, de forma silenciosa, ou quase im-
perceptível, colocam empecilhos para que a criança não tenha
acesso ao outro genitor, promovendo, então, o que se chama de
alienação parental.
Por meio dessa prática, o genitor alienador denigre a
imagem do outro, cria hostilidade entre este e seu filho, distancia
o convívio do filho com o outro genitor, normalmente seu ex-côn-
juge, e gera dessa forma um afastamento gradativo, até que o
genitor alienado torne-se um estranho para o filho, que o tratará
de forma indiferente e agressiva.
Essa alienação produz várias consequências de ordem
emocional e comportamental, podendo ser graves e irreparáveis.
Essas crianças podem se tornar adultos com doenças psicosso-
máticas, ansiosas, agressivas, depressivas crônicas, dentre ou-
tras que, se não identificadas a tempo, podem ensejar a
denominada síndrome da alienação parental.
Fonseca (2007) relata que a síndrome da alienação pa-
rental consiste em sequelas emocionais e comportamentais, em
que a criança se recusa terminantemente a ter contato com um
dos progenitores em decorrência da alienação parental, que é o
afastamento do filho de um dos genitores, causado pelo outro
genitor.
Diante disso, o presente estudo visa demonstrar quais
instrumentos psicológicos podem ser utilizados para a realização

177
de uma avaliação psicológica quando se tratar de casos jurídicos
com suspeita de alienação parental.
De acordo com Primi (2010, p. 26), “a avaliação psicoló-
gica é uma atividade mais complexa e constitui-se na busca sis-
temática de conhecimento a respeito do funcionamento
psicológico das pessoas, de tal forma a poder orientar ações e
decisões futuras”.

interdisciplinAridAde

De acordo com Farias e Rosenvald (2014), a ciência ju-


rídica se avizinha de outros ramos, como a Psicologia, a Socio-
logia, a Antropologia, a Medicina, dentre outros, com o intuito de
obter conhecimento para a boa solução dos conflitos familiares,
sendo assim, essa interdisciplinaridade impõe uma aproximação
do direito de família com diferentes áreas do saber humano.
Para Rovinski (2004, p. 13), “Psicologia e Direito, mesmo
constituindo-se disciplinas distintas, possuem como ponto de in-
tersecção o interesse pelo comportamento humano”.
Pena Junior (apud FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 59)
assinala que:

A interdisciplinaridade considera as contribuições oriundas dos vários ramos


do conhecimento, integrando-as no estudo de determinado fenômeno. Ela
não busca criar uma nova disciplina, e sim somar essas realidades diferen-
ciadas, na organização de um conhecimento relacionado com o todo.

No mesmo sentido, Dias (2015, p. 65) afirma que:

No âmbito das demandas familiares, é indispensável mesclar o direito com


outras áreas do conhecimento que têm, na família, seu objeto de estudo e
identificação. Nessa perspectiva, a psicanálise, a psicologia, a sociologia, a
assistência social ensejam um trabalho muito mais integrado. O aporte inter-
disciplinar, ao ampliar a compreensão do sujeito, traz ferramentas valorosas
para a compreensão das relações dos indivíduos, sujeitos e operadores do
direito, com a lei. Os profissionais devem reconhecer o benefício do trabalho
de cooperação com outras áreas do conhecimento, sob pena de se infringi-
rem princípios maiores que gozam de garantia constitucional.

178
Sendo assim, denota-se que estudos realizados por assis-
tentes sociais e avalições psicológicas são importantes ferramentas
que auxiliam a formar um juízo que, muitas vezes, seria impossível
sem o uso da interdisciplinaridade.
No Brasil, a divulgação da síndrome da alienação parental
intensificou-se no âmbito do Poder Judiciário em meados de 2003,
com o surgimento das primeiras decisões que reconheciam tal fe-
nômeno. Foi importante a participação das equipes multidiscipli-
nares nos processos que envolvem direito de família, bem como
a realização de pesquisas e divulgações realizadas por órgãos
como a APASE – Associação dos Pais e Mães Separados, IBD-
FAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, dentre outros
(FREITAS; PELIZZARO, 2010).
A respeito do seu surgimento, Dantas (2011) pondera que
a síndrome da alienação parental passou a despertar bastante in-
teresse nos profissionais da área da psicologia e do direito, haja
vista ser do interesse desses dois ramos do saber, levando a uma
constatação da real necessidade de que o direito e a psicologia
caminhem juntos, a fim de propiciar um melhor entendimento dos
fenômenos emocionais observados nas partes de um processo
judicial, principalmente aqueles que permeiam um processo de
separação ou divórcio.
Conforme o disposto na Resolução n. 17/2012 do Conselho
Federal de Psicologia, a atuação do psicólogo perito nos diversos
contextos consiste em uma avaliação direcionada a responder de-
mandas específicas, originadas no contexto pericial, e poderá con-
templar observações, entrevistas, visitas domiciliares e institucionais,
aplicação de testes psicológicos, utilização de recursos lúdicos e
outros instrumentos, métodos e técnicas reconhecidas pela ciência
psicológica.
Segundo Barbosa e Castro (2013), promulgada a Lei da
Alienação Parental, surgiu uma grande necessidade de que os ope-
radores do direito tivessem conhecimento e domínio acerca dos con-
ceitos ligados ao tema, o que se tornou fator imprescindível para
todos os profissionais das áreas jurídicas e psicológicas que traba-
lhavam com litígios ligados à família.

179
AlienAção pArentAl

origem e definição legal de alienação parental

Somente na década de 80, o psiquiatra e professor Richard


Gardner, que trabalhava com o aconselhamento de pais divorciados,
retomou as pesquisas que culminaram na delimitação e formalização
teórica da alienação parental (SILVA, 2011).
De acordo com Gardner (apud GAGLIANO; PAMPLONA
FILHO, 2013, p. 613), ressalta-se:

A Síndrome de Alienação Parental (SAP) é um distúrbio da infância que apa-


rece quase exclusivamente no contexto de disputas de custódia de crianças.
Sua manifestação preliminar é a campanha denegritória contra um dos geni-
tores, uma campanha feita pela própria criança e que não tem nenhuma jus-
tificação. Resulta da combinação das instruções de um genitor (o que faz a
‘lavagem cerebral, programação, doutrinação’) e contribuições da própria
criança a caluniar o genitor-alvo. Quando o abuso e/ou a negligência paren-
tais verdadeiros estão presentes, a animosidade da criança pode ser justifi-
cada, e assim a explicação de Síndrome de Alienação Parental para a
hostilidade da criança, não é aplicável.

Após a entrada em vigor da Lei da Alienação Parental (Lei


n.12.318/10), aconteceu uma verdadeira revolução na atividade do
Poder Judiciário no que diz respeito aos litígios familiares, haja vista
que, por força do texto legal, os magistrados, por provocação dos
advogados e do Ministério Público, passaram a ser obrigados a con-
siderar as práticas de alienação parental como elemento subjetivo e
não somente como um fator de caráter subjetivo, como era feito an-
teriormente a essa lei, em que a alienação ficava em segundo plano
por não haver regulamentação legal (FREITAS, 2012).
Araújo (2011) comenta que a Lei n. 12.318/10 trouxe mudanças
importantes para o Judiciário brasileiro, pois disciplinou o contexto da
alienação parental. O conceito de alienação parental, após esse texto
legal, não vê o fato somente como a interferência prejudicial à forma-
ção psicológica da criança ou do adolescente por parte dos genitores,
incluindo nesse rol também os avós ou outros parentes que detenham
autoridade sobre a criança ou adolescente, ou que tenham a guarda
ou vigilância e que também podem fazer com que repudiem o genitor
não guardião, ou prejudicar a manutenção do vínculo com ele.

180
Conforme explica Freitas (2012, p. 24), a Lei n. 12.318/10
conceitua alienação parental como:

A interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente pro-


movida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham
a criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância para que
repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção
de vínculos com este.

Cabral (2014, p. 1) detalha o conceito legal de alienação


parental:

Através dessa prática, um genitor tenta denegrir a imagem do outro, criando


hostilidade entre este e seu filho, tentando impedir a convivência do filho (que é
de ambos) com o outro (geralmente ex-cônjuge), promovendo um afastamento
progressivo até torná-lo estranho, indiferente e agressivo. Tem início principal-
mente após o término de uma relação conjugal contenciosa, em que apenas
um dos genitores fica responsável pela guarda da criança ou adolescente.

Gardner observou que “na disputa judicial, os genitores


deixavam muito claro em suas ações que tinham como único ob-
jetivo a luta incessante para ver o ex-cônjuge afastado dos filhos,
fazendo muitas vezes uma verdadeira lavagem cerebral na
mente das crianças” (apud FREITAS, 2012, p. 21).
Os conflitos familiares tornaram-se mais complexos, pois
com o fim do relacionamento conjugal, os genitores passaram a
reclamar a guarda dos filhos. No entanto, a ruptura conjugal gera
no genitor detentor da guarda um sentimento de abandono, re-
jeição, traição, e surge uma tendência vingativa muito grande,
pois há casos de desvio do afeto das crianças somente a um dos
genitores, o que prejudica seu relacionamento afetivo com o
outro, fenômeno este denominada por Gardner como alienação
parental (apud MAGALHÃES, 2010).
Para Dantas (2011), a alienação parental é na verdade
uma verdadeira campanha em busca da desmoralização do geni-
tor, onde o filho é usado como um instrumento apto a imprimir
agressividade ao parceiro, configurando uma forma de maus-tratos
ou abusos contra a criança.
Nesses casos, de fato os filhos acabam sendo penaliza-
dos de forma bastante cruel pela falta de maturidade de um dos

181
pais, que não é capaz de fazer a devida separação entre o fim
do relacionamento conjugal e a relação parental, criando uma re-
lação de dependência entre o modo de viver dos filhos e a rela-
ção dos pais posteriormente ao rompimento do vínculo entre os
cônjuges (SOUZA, 2008).
De acordo com o posicionamento de Freitas e Pelizzaro
(2010), a alienação parental é, por uma série de motivos, uma
discussão que vai além do debate jurídico puro e simples, con-
substanciando-se em um mal sociofamiliar que precisa ser ur-
gentemente extirpado da sociedade. Salientam que, na
impossibilidade em virtude da falta de maturidade do genitor
alienante, precisam ser aplicadas medidas enérgicas, previstas
em lei, a fim de evitar que ocorra de pais e filhos serem privados
por muito tempo de contato um com o outro.
Fonseca (2007) explica que a síndrome da alienação pa-
rental surge em virtude de um apego exagerado do filho a um
dos genitores, ao passo que se afasta definitivamente do outro.
Na verdade é o resultado de todo um processo realizado, cons-
ciente ou inconscientemente, pelo genitor alienante, aliado ao
fato de que a criança normalmente não tem muita vontade de
estar com o outro genitor.
Nas situações em que há essa síndrome, a criança é le-
vada a se recusar de estar na companhia do genitor alienado, o
que gera a quebra da relação do filho com esse genitor. É este o
objetivo do genitor alienador: destruir a relação entre a criança e
o genitor.
De acordo com Fonseca (2007), é necessário esclarecer
que a síndrome da alienação parental não pode ser confundida
com a simples alienação parental, haja vista que esta em si sig-
nifica tão somente o afastamento do filho de um dos pais, cau-
sado pelo outro genitor, que no caso é o detentor da guarda da
criança. Já a síndrome está relacionada às sequelas emocionais
e comportamentais de que a criança passa a estar acometida em
virtude daquele afastamento, ou seja, a síndrome diz respeito ao
comportamento da criança, que se nega veementemente a ter
contato com o outro genitor. A alienação parental tem a ver com
o procedimento adotado pelo guardião para conseguir afastar a
criança do seu progenitor.

182
práticas consideradas alienação parental

O processo alienante inicia-se por meio de uma campa-


nha de modificação nas emoções do alienador e da criança. Para
alcançar seu objetivo, o genitor alienador começa a trabalhar a
cabeça da criança para que ela o veja como seu psicólogo par-
ticular, desabafa e lamenta as decepções da sua vida, cujas con-
sequências são trágicas para a criança, que começa desde ir mal
na escola até a agredir outras pessoas sem motivos aparentes
(FREITAS, 2012).
Gardner delineou quatro aspectos gerais da alienação
parental: lavagem cerebral, programação engenhosa, fatores da
própria criança e fatores situacionais referentes à separação,
sendo que apenas os dois primeiros referem-se aos comporta-
mentos e ações do alienador (apud LASS, 2013). A lavagem ce-
rebral é constituída por ações conscientes realizadas com o
intuito de colocar a criança contra o genitor alienado. Essas ati-
tudes são no sentido de proferir difamações contra o genitor alie-
nado na presença da criança, dizer a esta que o genitor a
abandonou e exponenciar as mínimas falhas do alienado. A pro-
gramação engenhosa é definida como um processo de progra-
mação sutil e muitas vezes inconsciente de atribuir aspectos
negativos ao genitor alienado, sem o dizer de forma aberta, mas
gradativamente sabotar as visitas por meio de indução de culpa
e desencorajamento passivo.
Souza (2008, p.7) pontua que:

o maior sofrimento da criança não advém da separação em si, mas do conflito,


e do fato de se ver abruptamente privada do convívio com um de seus geni-
tores, apenas porque o casamento deles fracassou. Os filhos são cruelmente
penalizados pela imaturidade dos pais quando estes não sabem separar a
morte conjugal da vida parental, atrelando o modo de viver dos filhos ao tipo
de relação que eles, pais, conseguirão estabelecer entre si, pós-ruptura.

Diante do exposto, Cabral (2014) define três protagonis-


tas: o guardião, que passa a funcionar como alienador; o ex-côn-
juge, que não detém a guarda dos filhos, porém, tem direito de
visitação e convivência, que é classificado como genitor alienado;
e, a criança, que é a vítima da discórdia entre seus genitores.

183
A atuação do genitor alienador consiste em distanciar pro-
gressivamente a criança do genitor que se encontra fora do lar, ge-
ralmente caracterizada por motivos infundados como maledicências,
falsas afirmativas, fatos inverídicos e até mesmo difamação, daí a ex-
pressão “falsas memórias”. Todas essas condutas são dirigidas com
intenção de causar um abismo cada vez maior entre o filho e o ex-
cônjuge, no intuito de impor ao outro genitor as consequências da-
nosas da separação por meio da falta do filho, que está sendo
cerceado de sua convivência (CABRAL, 2014).
Dentre os exemplos observados na literatura do que real-
mente ocorre ou que poderá ocorrer como elementos identifica-
dores da alienação parental, Carneiro (2007, p.44) disserta:

É a recusa de passar as chamadas telefônicas; a passar a programação de


atividades com o filho para que o outro genitor não exerça o seu direito de vi-
sita; apresentação do novo cônjuge ao filho como seu novo pai ou mãe; de-
negrir a imagem do outro genitor; não prestar informações ao outro genitor
acerca do desenvolvimento social do filho; envolver pessoas próximas na la-
vagem cerebral dos filhos; tomar decisões importante a respeito dos filhos
sem consultar o outro genitor; sair de férias sem os filhos e deixá-los com ou-
tras pessoas que não o outro genitor, ainda que este esteja disponível e queira
cuidar do filho para que não se comunique com o outro genitor.

Vê-se, dessa forma, que a prática da alienação parental


comumente está associada a uma modificação do status quo fa-
miliar, quer pelo casamento do genitor, uma nova namorada ou
namorado, o ingresso de ação revisional de alimentos ou o pe-
ríodo de convivência. Enfim, a modificação da situação em que
se encontra o contexto familiar geralmente está associada ao iní-
cio da prática da alienação parental, ou mesmo a sua execução
em um nível diverso do que vinha comumente se realizando
(FREITAS, 2012).
Na prática, a criança exposta à alienação parental passa
a se recusar a manter qualquer tipo de contato com o genitor que
não é seu guardião, em virtude de passar a nutrir um sentimento
de rejeição com relação a ele, o que é gerado pela alienação em-
pregada por seu guardião. Inicialmente, o alienado pode até
mesmo externar esse sentimento, mas normalmente não apresenta
justificativas e explicações plausíveis, limitando-se a conceitos

184
negativos. Contudo, com o passar do tempo, o afastamento se
torna completo e irreversível, chegando a criança a afastar-se até
mesmo dos familiares do seu genitor (FONSECA, 2007).
Cuenca (2008, p. 93) explica que:

Ao estudar o perfil do genitor alienador, conclui que este geralmente demons-


tra uma grande impulsividade e baixa autoestima, medo de abandono repe-
titivo, esperando sempre que os filhos estejam dispostos a satisfazer as suas
necessidades, variando as expressões em exaltação e cruel ataque. Esta
fase é a mais grave.

De acordo com Freitas e Pelizzaro (2010), a conduta enten-


dida como alienante pode ou não ser intencional e gera uma série
de modificações nas emoções, tanto do alienador quanto da criança
que sofre a alienação. Ato contínuo, a vítima da alienação é induzida
a desenvolver um sistema de cumplicidade e compreensão no que
diz respeito às atitudes do alienador. Dessa forma, a criança passa
tanto a justificar essa conduta perante outras pessoas quanto a pra-
ticar atos da mesma natureza.
Sobre os efeitos da alienação parental, Xaxá (2008, p.18)
diz que:

Com o passar dos tempos e a constante repetição de conceitos negativos


sobre o outro genitor, esse quadro evolui para um completo e, via de regra,
irreversível afastamento. Essa alienação pode durar anos com consequên-
cias gravíssimas para a formação da criança, que somente será superada
(se for!) quando ela adquirir alguma independência do genitor alienante.

Na prática, o alienador costuma acusar o outro genitor


de haver praticado agressões à criança. Contudo, tais afirmações
falsas acabam se traduzindo em ofensas ao próprio filho, tor-
nando-se ele o agressor, haja vista que, além desses males cau-
sados pelas afirmações inverídicas, o alienante ainda erra ao não
conscientizar-se de que o vínculo com ambos os genitores é es-
sencial para que a criança tenha o equilíbrio psicológico ade-
quado para um ser em formação (SILVA, 2011).

185
Avaliação psicológica

De acordo com a Cartilha de Avaliação Psicológica ex-


pedida pelo Conselho Federal de Psicologia (2013, p.13), a ava-
liação psicológica é um processo técnico e científico realizado
com pessoas ou grupos de pessoas que, de acordo com cada
área de conhecimento, requer metodologias específicas; é dinâ-
mica e constitui-se em fonte de informações de caráter explica-
tivo sobre os fenômenos psicológicos, com a finalidade de
subsidiar os trabalhos nos diferentes campos de atuação do psi-
cólogo, dentre eles, saúde, educação, trabalho e outros setores
em que ela se fizer necessária. Trata-se de um estudo que re-
quer um planejamento prévio e cuidadoso, de acordo com a de-
manda e os fins para os quais a avaliação se destina.
Por intermédio da avaliação, os psicólogos buscam in-
formações que os ajudem a responder questões sobre o funcio-
namento psicológico das pessoas e suas implicações. Como o
comportamento humano é resultado de uma complexa teia de
dimensões inter-relacionadas que interagem para produzi-lo, é
praticamente impossível entender e considerar todas as nuances
e relações a ponto de prevê-lo deterministicamente.
De acordo com Noronha e Vendramini (apud MANFREDINI;
ARGIMON, 2010, p. 134):

Os testes psicológicos são instrumentos utilizados na prática do psicólogo e


podem fornecer importantes contribuições para a elaboração de um diag-
nóstico, em um processo de avaliação psicológica. Para que os testes sejam
úteis e eficientes, eles devem passar por estudos que comprovem suas qua-
lidades psicométricas, assim como devem atender determinadas especifica-
ções que garantam reconhecimento e credibilidade por parte da comunidade
científica e de leigos.

Meyer e cols. (apud PRIMI, 2010, p. 33) sugerem que


“as avaliações que usam múltiplos métodos são mais eficazes e
que clínicos que fazem avaliações exclusivamente com entrevis-
tas e observação são propensos a entendimentos incompletos”.
De acordo com o Conselho Federal de Psicologia (2004),
os testes caracterizam-se como instrumentos de avaliação ou
mensuração de características psicológicas observadas através

186
da manifestação do comportamento. Sendo assim, conside-
rando-se a maneira como as pessoas se comportam nas tarefas,
faz-se análise das características psicológicas que o teste busca
avaliar. Esses testes auxiliam na avaliação psicológica com
dados úteis e confiáveis.
Resta evidente, dessa forma, que é imprescindível que a
verificação da alienação parental seja feita por profissionais gaba-
ritados no assunto, capazes de visualizarem o problema biopsi-
cossocial que a influência danosa por parte de um dos genitores,
originada pela alienação parental, gera na criança, sendo capaz
de agir de maneira a evitar que o trauma cresça ainda mais na
criança vítima da alienação parental (ARAÚJO, 2013).
Segundo a Resolução n. 007/2003 do Conselho Federal
de Psicologia (2003), os resultados das avaliações devem consi-
derar e analisar os condicionantes históricos e sociais e seus efei-
tos no psiquismo, com a finalidade de servirem como instrumentos
para atuar não somente sobre o indivíduo, mas na modificação
desses condicionantes, que operam desde a formulação da de-
manda até a conclusão do processo de avaliação psicológica.
De acordo com a Cartilha de Avaliação Psicológica ex-
pedida pelo Conselho Federal de Psicologia (2013, p.18), a es-
colha adequada de um instrumento/estratégia é complexa e deve
levar em conta os dados empíricos que justifiquem, simultanea-
mente, o propósito da avaliação associado aos contextos espe-
cíficos. No caso da escolha de um teste, é necessário que o
psicólogo faça a leitura cuidadosa do manual e das pesquisas
envolvidas em sua construção para decidir se ele pode ou não
ser utilizado naquela situação.
Sendo assim, para o caso de alienação parental, sugere-se
uma bateria de instrumentos favoráveis, de acordo com o SATEPSI
– Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos desenvolvido pelo
Conselho Federal de Psicologia, os quais se descrevem nas li-
nhas seguintes.

187
A hora do jogo diagnóstica

Conforme Efron et al. (2001), a hora do jogo diagnós-


tica é um recurso técnico utilizado no processo psicodiagnós-
tico com o objetivo de conhecer a realidade da criança a ser
consultada, o qual implica o vínculo transferencial breve para
conhecer e compreender a criança. As possibilidades de co-
municação são mediadas utilizando-se a atividade lúdica. Por
meio de um brinquedo, a criança pode expressar aquilo que
vivencia no momento. Essa atividade pode revelar o sentido
oculto das angústias e dos sintomas que a criança apresenta.
A mesma autora ressalta que nessa técnica existem al-
guns indicadores importantes para fins diagnósticos e prognós-
ticos, como: escolha de brinquedos e brincadeiras, conforme a
idade da criança; modalidade de brincadeira, pela qual se pode
detectar plasticidade, rigidez e/ou estereotipia e perseverança;
motricidade, que demonstra o desenvolvimento neurológico e
de fatores psicológicos e ambientais; tolerância e abertura para
experiências novas; tolerância à frustração, que está relacio-
nada ao princípio de prazer e de realidade; capacidade simbó-
lica, que demonstra capacidade intelectual e qualidade do
conflito; e, adequação à realidade, que permite a avaliação de
suas possibilidades.

Sistema de Avaliação do Relacionamento Parental (SARP)

O Sistema de Avaliação do Relacionamento Parental


(SARP) é um conjunto de técnicas que tem como objetivo avaliar
a qualidade do relacionamento entre pais e filhos (ou entre res-
ponsáveis e crianças), para subsidiar recomendações acerca da
disputa de guarda e/ou regulamentação de visitas em perícias
judiciais.
As características do SARP não se enquadram na defi-
nição de um teste psicológico padronizado. Trata-se, assim, de
um método de avaliação não restrito a psicólogos, recomendado
para psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais.

188
Tendo em vista a flexibilidade do método e a possibili-
dade de adaptação e/ou supressão de algumas questões da
entrevista e/ou itens da escala, o SARP revela-se passível de
uso em outros contextos que não exclusivamente o de disputa
de guarda, servindo a uma gama de situações em que seja ne-
cessário subsidiar o Judiciário com informações acerca do re-
lacionamento entre responsáveis e filhos (adoção, guarda
compartilhada, regulamentação de visitas, alienação parental).
O SARP foi desenvolvido a partir da tese de doutorado
de Vivian de Medeiros Lago, com orientação de Denise Ruschel
Bandeira. Essa foi uma das teses em Psicologia vencedoras do
Prêmio Capes de Tese 2013.
O SARP é composto de três técnicas aplicadas a res-
ponsáveis e filhos: a entrevista SARP, o protocolo de avaliação
infantil “Meu Amigo de Papel” (uma versão para meninos e uma
para meninas) e a Escala SARP. Ainda há um livreto de apresen-
tação do profissional, para ser utilizado juntamente com o “Meu
Amigo de Papel”.

Teste de Apercepção Infantil – CAT-A

O Teste de Apercepção Infantil – CAT-A tem por objetivo


investigar a dinâmica da personalidade da criança em sua sin-
gularidade, de modo a compreender o seu mundo vivencial, sua
estrutura afetiva, a dinâmica de suas reações diante dos proble-
mas e a maneira como os enfrenta. Abrange a população entre
5 e 10 anos de idade, ou seja, somente aplicado em crianças.
O CAT-A – Teste de Apercepção Infantil é um dos mais
importantes instrumentos para diagnóstico psicológico e psicote-
rapia, sendo imprescindível no exame psicológico de crianças,
principalmente aquelas com problemas emocionais ou vítimas de
violência de qualquer natureza. Visa revelar a estrutura de per-
sonalidade da criança, as defesas e o modo dinâmico de reagir
e enfrentar os problemas do crescimento, captando o mundo vi-
vencial da criança a partir da interpretação das histórias narradas
aos estímulos apresentados.

189
Composto por dez gravuras (cartões) representando ani-
mais em diferentes situações, as quais permitem investigar as-
pectos como o relacionamento da criança com figuras
importantes em sua vida, a dinâmica das relações interpessoais,
a natureza e a força dos impulsos, as defesas mobilizadas, o es-
tudo do desenvolvimento infantil e a compreensão da dinâmica
familiar.
Para a interpretação do CAT-A, é proposto um conjunto
de nove dimensões, identificadas como aspectos do sujeito, a
respeito dos quais podem ser levantadas hipóteses, com base
nos elementos concretos da narrativa: autoimagem, relações ob-
jetais, concepção de ambiente, necessidades e conflitos, ansie-
dades, mecanismos de defesa, superego e integração do ego.

Teste de Apercepção Temática – TAT

O Teste de Apercepção Temática – TAT é considerado


uma técnica projetiva que consiste em apresentar uma série de
pranchas, selecionadas pelo examinador, ao sujeito que deverá,
assim, contar uma história sobre cada uma das pranchas.
Para criar o T.A. T, o autor partiu do princípio de que di-
ferentes indivíduos, frente a uma mesma situação vital, a expe-
rimentam cada um a seu modo, de acordo com a sua perspectiva
pessoal. Essa forma pessoal de elaborar uma experiência revela
a atitude e a estrutura do indivíduo frente à realidade experimen-
tada. Assim, expondo-se o sujeito a uma série de situações so-
ciais típicas e possibilitando-lhe a expressão de sentimentos,
imagens, ideias e lembranças vividas em cada uma dessas con-
frontações, é possível ter acesso à personalidade subjacente.
Esse procedimento, nas situações apresentadas, favorece a pro-
jeção do mundo interno do sujeito.
É um instrumento útil em qualquer estudo abrangente da
personalidade, no caso de distúrbios da conduta, doenças psi-
cossomáticas, nas neuroses e psicoses.
Segundo Werlang (apud CUNHA, 2000, p. 409), espera-
se que o examinando utilize a sua reserva de experiência, ela-
borando narrações, em que, sem se dar conta, se identifica com

190
os personagens da cena. Tais histórias denunciarão dados sobre
a relação do examinando com as figuras de autoridade e outros
tipos de vínculos, revelando também o funcionamento das rela-
ções familiares, a natureza dos temores, desejos e dificuldades.
De acordo com Cunha (2000), as principais indicações
para a utilização são: avaliação da personalidade, principalmente
para analisar a natureza dos vínculos afetivos, regulação dos afe-
tos, qualidade das relações interpessoais e identificação de con-
flitos e mecanismos de defesa; avaliação de condições para
indicação psicoterápica e acompanhamento da evolução durante
o processo psicoterápico; coleta de subsídios sobre a função
cognitiva de planejamento, através da análise do manejo que o
examinando faz de ideias verbalizadas sequencialmente; análise
da capacidade de organização e manutenção de ideias.

Teste Projetivo Rorschach

O método Rorschach foi criado pelo psiquiatra suíço Her-


mann Rorschach, nascido em Zurique, aos 8 de novembro de
1884. O Psicodiagnóstico Rorschach é um teste projetivo, capaz
de captar a vivência subjetiva do sujeito, bem como os seus di-
namismos, suas áreas de potencialidades e de patologias.
De acordo com Adrados (1991), o teste constitui-se em
dez pranchas padronizadas, compostas por manchas de tinta,
cuidadosamente selecionadas, de modo que cumpram com cer-
tos requisitos de composição e ritmo espacial; são simétricos, o
que condiciona o teste de maneira igual para destros e canhotos,
sendo que esta simetria ainda favorece as interpretações das
pessoas inibidas ou bloqueadas.
Esse teste revela a organização básica da estrutura da
personalidade, bem como características da afetividade, sexua-
lidade, vida interior, recursos mentais, energia psíquica e traços
gerais e particulares do estado intelectual do indivíduo. A inter-
pretação das manchas situa-se no campo da percepção e da
apercepção (ADRADOS, 1991, p. 5).
Desse modo, Costa (2006) ensina que o Psicodiagnós-
tico Rorschach traz dados valiosos sobre a estrutura e dinâmica

191
da personalidade, a compreensão da constituição das bases afe-
tivas sobre as quais repousa todo o funcionamento psíquico, da
qualidade das fantasias, assim como as concepções ligadas à
percepção de si e do ambiente, as reações afetivo-emocionais e
as condições para a ação prática no ambiente são aspectos cen-
trais em uma leitura integrada de um protocolo de Rorschach.
De acordo com Vaz (1997, p. 6-7):

O Rorschach é considerado como um instrumento capaz de fornecer subsídios


para avaliação da estrutura da personalidade do sujeito e o funcionamento de
seus psicodinamismos. Através da técnica avaliar seus traços de personalidade,
o funcionamento de suas condições intelectuais, o nível de ansiedade básica e
situacional, a depressão, suas condições efetivas e emocionais; fornece-nos con-
dições para vermos como está a pessoa quanto ao controle geral, quanto à ca-
pacidade para suportar frustrações e conflitos, quanto à adaptação ao trabalho e
ao ajustamento e integração humanos; impulsos, instintos, reações emocionais,
nível de aspiração, são outros elementos psicodinâmicos avaliáveis através do
Rorschach. Além disso, é um instrumento capaz de auxiliar o examinador no diag-
nóstico de paciente com problemas de interferência neurológica e com perturba-
ção ou desvio de conduta.

Segundo Costa (2006), as possibilidades e as formas de


controle dos impulsos, assim como a consciência das motivações
pessoais em um comportamento manifesto, é um dado eminente
em um protocolo de Rorschach. A capacidade de suportar frustra-
ções, de reagir ao estresse e os níveis de ansiedade, assim como
os modos de manejá-la, são evidentes à luz dos dados oriundos
da aplicação de Rorschach.
Ao avaliar a prática do Rorschach, o instrumento não deve
ser utilizado somente como uma conclusão diagnóstica, mas tam-
bém como uma intervenção que possibilite à pessoa, uma vez di-
mensionada suas dificuldades, compreender como se relaciona
consigo, com o mundo e os objetos, bem como de se perceber
como campo de possibilidades.
Ensina Costa (2006) que o Rorschach traz dados riquís-
simos a respeito da forma particular de integração do indivíduo
com o seu ambiente social.

192
considerAçÕes FinAis

Ao abordar o tema referente à alienação parental obser-


vou-se que é preciso discutir uma interdisciplinaridade entre a
Psicologia e o Direito, com o intuito de garantir um espaço rela-
cional que proporcione mudanças no universo comunicativo de
interação entre os juízes, promotores, defensores e os psicólogos
e assistentes sociais do setor psicossocial forense.
Um efetivo diálogo entre essas duas áreas de conheci-
mento, bem como uma análise reflexiva da importância da inter-
disciplinaridade como instrumento, pode possibilitar a diminuição
da violência intrafamiliar e a promoção da justiça.
A interação dessas ciências tornará mais efetiva as de-
cisões judiciais, uma vez que os trabalhadores do Direito e da
Psicologia serão coautores em ações conjuntas, a fim de conciliar
a aplicação da lei com as reais necessidades da família.
A alienação parental e o abandono afetivo são problemas
sérios e, por isso, identificaram-se diversos casos em que os fi-
lhos ficavam sob a guarda da genitora, e esta, muitas vezes, por
ainda não ter aceitado e interiorizado sua nova realidade, ou seja,
estar divorciada, acabava por transferir esse "luto" ao filho. O
filho, por sua vez, acabava por exteriorizar sua insatisfação com
tal situação, aliando-se à genitora em desfavor do pai, o que, in-
felizmente, em alguns casos, gerava o abandono afetivo por
parte do genitor em relação ao filho.
Denota-se que se esse abandono pode ocorrer porque
o genitor, ao sentir-se “cansado” dos conflitos e cenas vexatórias
em frente ao filho, afasta-se da ex-mulher e, em consequência,
acaba se afastando do filho.
A alienação parental causa problemas sérios para todos
envolvidos na relação (pai, mãe e filho). O cuidado com o menor
alienado deve ser dobrado e impreterivelmente acompanhado por
profissionais em tratamentos psicológicos, quando identificada a
alienação, juntamente com os que praticam os atos. É necessário
também que o pai seja encaminhado ao tratamento psicológico,
para que tal alienação não enseje um abandono afetivo.
É primordial que psicólogos, psiquiatras e assistentes so-
ciais conheçam os critérios de identificação da alienação parental,

193
para poder diferenciar o ódio exacerbado que leva a um senti-
mento de vingança e a programação do filho para se afastar do
outro genitor. Somente o diagnóstico correto permite apontar o
tratamento adequado, capaz de evitar uma sobreposição de trau-
mas psicológicos a todas as pessoas envolvidas.

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