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Procuradoria-Geral de Justiça
Revista
do Ministério Público
do Estado de Goiás
Goiânia
2017
SUMÁRIO
apresentação................................................................ 05
Direito internaCionaL
Direito CoLetiVo
Direito CriMinaL
Direito CiViL
assUntos Gerais
Caros leitores,
5
excelência em nosso aprendizado de traduzir em escrita, nosso
direcionamento de reflexão e atuação.
6
Adriano Pessoa da Costa*
Gina Vidal Marcílio Pompeu**
Resumo:
A centralidade do ordenamento brasileiro repousa na pessoa hu-
mana. Isso se reflete na trajetória histórico-evolutiva dos direitos fun-
damentais, força motriz do fenômeno da constitucionalização do
direito privado. No atual cenário, impõe-se uma reconfiguração fun-
cional da responsabilidade civil, na esteira do que já ocorre com ou-
tros institutos privatísticos - como o contrato, a família e a propriedade.
Este trabalho demonstra que, no panorama atual de interação entre
o direito privado e o direito constitucional, a técnica tradicional da re-
paração exclusivamente monetária deve ser repensada em prol de
mecanismos alternativos aptos a proporcionar um adequado ressar-
cimento do dano injusto. A metodologia de abordagem é analítica,
empírica e comparativa. Parte do estudo da teoria dos direitos fun-
damentais e sua projeção no direito privado, nomeadamente a res-
ponsabilidade civil. Avança para análise do quadro hodierno da
matéria no direito brasileiro e desenvolve a crítica ao paradigma mo-
netário de reparação de danos a partir de precedentes da Corte Inte-
ramericana de Direitos Humanos (CIDH). As decisões da Corte,
marcantes para a promoção das liberdades civis no continente latino-
9
americano, costumam inovar na imposição de medidas que trans-
cendem a simples indenização em pecúnia. Ao final, clarifica-se a re-
levância jurisprudencial da CIDH para a edificação da
responsabilidade civil voltada à concretização da dignidade da pessoa
humana como valor jurídico supremo no Brasil e na América Latina.
Abstract:
The centrality of the Brazilian order rests on the human person. This
is reflected in the historical-evolutionary trajectory of fundamental
rights, the driving force of the phenomenon of the constitutionalization
of private law. In the current scenario, a functional reconfiguration of
civil liability is required, in the wake of what already happens with other
private institutes - such as contract, family and property. This paper
demonstrates that in the current context of interaction between private
law and constitutional law, the traditional technique of pure monetary
reparation must be rethought in favor of alternative mechanisms ca-
pable of providing adequate compensation for unfair damages. The
approach methodology is analytical, empirical and comparative. Part
of the study of the theory of fundamental rights and its projection in
private law, namely civil liability. It advances to analyze the current fra-
mework of the matter in Brazilian law and develops the critique of the
monetary paradigm of reparation of damages based on precedents
of the Inter-American Court of Human Rights (IACHR). The Court's
decisions, which are important for the promotion of civil liberties in the
Latin American continent, often innovate in the imposition of measures
that transcend the simple indemnity in pecunia. In the end, it clarifies
the jurisprudential relevance of the IACHR for the construction of civil
responsibility aimed at achieving the dignity of the human person as
a supreme legal value in Brazil and Latin America.
Resumen:
La centralidad del ordenamiento brasileño reposa en la persona
humana. Esto se refleja en la trayectoria histórico-evolutiva de los
derechos fundamentales, fuerza motriz del fenómeno de la consti-
tucionalización del derecho privado. En el actual escenario, se im-
pone una reconfiguración funcional de la responsabilidad civil, en
la estera de lo que ya ocurre con otros institutos privados, como el
contrato, la familia y la propiedad. Este trabajo demuestra que, en
10
el panorama actual de interacción entre el derecho privado y el de-
recho constitucional, la técnica tradicional de la reparación exclusi-
vamente monetaria debe ser repensada en pro de mecanismos
alternativos aptos para proporcionar un adecuado resarcimiento
del daño injusto. La metodología de enfoque es analítica, empírica
y comparativa. Parte del estudio de la teoría de los derechos fun-
damentales y su proyección en el derecho privado, en particular la
responsabilidad civil. Avanza para analizar el cuadro actual de la
materia en el derecho brasileño y desarrolla la crítica al paradigma
monetario de reparación de daños a partir de precedentes de la
Corte Interamericana de Derechos Humanos (CIDH). Las decisio-
nes de la Corte, marcadas para la promoción de las libertades ci-
viles en el continente latinoamericano, suelen innovar en la
imposición de medidas que trascienden la simple indemnización
en pecunia. Al final, se aclara la relevancia jurisprudencial de la
CIDH para la edificación de la responsabilidad civil volcada a la
concreción de la dignidad de la persona humana como valor jurí-
dico supremo en Brasil y en América Latina.
Palavras-chave:
Direitos fundamentais, responsabilidade civil, desmonetarização,
Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Keywords:
Fundamental rights, civil liability, dismantling, Inter-American Court
of Human Rights.
Palabras clave:
Derechos fundamentales, responsabilidad civil, desmontaje, Corte
Interamericana de Derechos Humanos.
11
INTRODUÇÃO
12
em pecúnia e determinam, dentre outras, medidas como a adequa-
ção legislativa, a implementação de políticas públicas e a designação
honrosa de equipamentos urbanos em nome das vítimas.
Ao final, será demonstrado que as sentenças da CIDH
podem operar como farol a iluminar o caminho para a edificação de
um aprimorado direito de danos, voltado à efetiva concretização da
dignidade da pessoa humana como valor jurídico supremo no Brasil
e na América Latina.
1 BECK, Ulrich. Risk Society: towards a new modernity. London: Sage, 1993. Nessa
notável obra o autor analisa a chegada do que nomina como a “segunda moderni-
dade” ou “modernidade reflexiva”, na qual a distribuição dos riscos não toma em
conta as diferenças sociais, econômicas e geográficas como ocorria na “primeira
modernidade” (aquela decorrente das revoluções industriais e políticas que tiveram
lugar na Europa a partir do século XVIII). Aponta, dentre os principais perigos do
mundo atual, os riscos ambientais, químicos, nucleares, genéticos e econômicos.
Como cinco maiores processos sociais de potencial nocivo a ser enfrentados pela
sociedade contemporânea, elenca: a globalização, a individualização, o desem-
prego, a revolução dos gêneros e os riscos globais da crise ecológica e da turbu-
lência dos mercados financeiros.
2 Nesse contexto, sugere-se a leitura do texto de Nelson Konder acerca da proteção
13
Na tradição jurídica brasileira, a matéria se posiciona
como objeto de estudo da seara privatística, mais precisamente
do direito civil. A influência do Código de Napoleão foi decisiva
para a solidificação de um cientificismo vigorosamente apegado
ao cânone liberal-individualista-patrimonialista. Nessa linha de
pensamento, a lógica jurídica predominante na Europa oitocen-
tista prestigiava a separação entre sociedade e Estado, assim
como fazia todo sentido a summa divisio entre direito público e
direito privado, haja vista o pleno protagonismo então represen-
tado pela codificação civil nas relações jusprivadas – nas quais
operava como “a verdadeira carta constitucional da sociedade
autossuficiente” (BILBAO UBILLOS, 1997, p. 237).
Segundo Konrad Hesse (1995, p. 69-70), o momento de-
cisivo para a guinada dogmática que revolucionou as relações
entre o direito constitucional e o direito privado, bem como as ta-
refas e funções de cada seara, foi o final da Primeira Guerra Mun-
dial. A partir dali, o trato desses diferentes âmbitos jurídicos
passou da justaposição e afastamento original a uma relação de
recíproca complementaridade e independência3.
A toda evidência, as diretrizes privatísticas do passado
não se coadunam ou, quando muito, carecem de aperfeiçoa-
mento diante da ordem jurídica constitucional vigente no Brasil
pós-1988. Como se observa,
14
O Direito Privado, assim ‘socializado’, é com certeza diverso do Di-
reito Privado do Code Napoleón, que exauria a sua tutela, por um
lado, no direito subjetivo (ou seja, sobretudo na propriedade) ou
antes, no seu titular, e, por outro lado, na vontade individual, ou seja,
no contrato. (GIORGIANI, 1998, p. 50).
mínimo de intervenção legislativa, processo no qual o juiz “foi a alma do progresso jurí-
dico, o artífice laborioso do direito novo contra as fórmulas velhas do direito tradicional”.
15
a tutela da pessoa humana é alçada ao ponto mais elevado.
Da mesma forma, o direito aquiliano isola-se do que
ocorreu com outros tradicionais institutos civilísticos. Isso porque
até mesmo família, propriedade e contrato - os “três pilares” do
direito privado (FACCHINI NETO, 2006, p. 31) - ganham diferen-
tes tons a partir de sua vinculação direta com a ordem constitu-
cional, notadamente com os direitos fundamentais. Com efeito,
não é difícil visualizar as transformações desses temas, precio-
sos ao direito civil clássico, a partir do momento em que se dei-
xaram influenciar pelos valores emanados da Constituição.
Cumpre lembrar que a propriedade deixou de ser um di-
reito moldado na plataforma liberal e passou a ter indispensável
função social. Nesse viés, a família, antes hierarquizada, tornou-
se igualitária em sua conformação interpessoal e democrática
quanto à origem, com o rompimento do paradigma matrimonial
como única causa de surgimento do núcleo familiar. Já nas rela-
ções contratuais, surgiram intervenções voltadas para o interesse
de categorias específicas, como o consumidor, e inseriu-se a
preocupação com a justiça distributiva (RAMOS, 2000, p. 10-11).
Enquanto isso, o direito de danos segue no geral ape-
gado à dogmática de tempos idos, fulcrada no trinômio conduta
- nexo causal - dano6. Evoluir é preciso! A cláusula de abertura
grifada no art. 5º, §2º, da Constituição Federal de 1988 e as nor-
mas dos arts. 5º, V, 5º, X, e 37, §6º, que àquela se alinham, são
a chave para a compreensão de que à pessoa humana lesada
assiste o direito fundamental de ressarcimento7.
Nesse passo, já se pode observar que a responsabili-
dade civil do século XXI adota nova feição. Encontra-se agora
dos direitos fundamentais. Assim constatou Peter Häberle (1991, p. 261), ao afirmar
que, em nossos dias, há “uma impressionante imagem de onipresença dos direitos fun-
damentais no Estado constitucional”.
16
iluminada pelos valores constitucionais e adaptada aos princípios
básicos do direito civil-constitucional brasileiro8. Tem reafirmado
seu escopo de promover a existência digna do indivíduo, e para
tanto se vale da recognição da fundamentalidade9 do direito à re-
paração do dano e da projeção dos direitos fundamentais sobre
as interações jurídico-privadas (“eficácia horizontal”)10.
missas essenciais do direito civil constitucional: (i) o reconhecimento do direito como rea-
lidade cultural, e não como resultado (rectius, submissão) da ordem econômica vigente:
o direito tem uma intrínseca função promocional e não apenas uma função mantenedora
do status quo (repressora) e reguladora de divergências; (ii) o decisivo predomínio das
situações existenciais sobre as situações patrimoniais, devido à tutela constitucional da
dignidade humana; (iii) a valorização do perfil funcional em detrimento do perfil estrutural
dos institutos jurídicos, impedindo, por essa via, a perpetuação do esquema da subsun-
ção, já completamente ultrapassado, e libertando o fato – e juntamente com ele o juiz -
dos enquadramentos rígidos em prol da aplicação da normativa mais adequada ao caso
concreto; (iv) o reconhecimento da historicidade dos institutos, na medida da importância
da função que exercem naquela determinada sociedade, naquele determinado momento
histórico; (v) a relatividade dos princípios, das regras e dos direitos, na medida em que
todos exercem sua função em sociedade, isto é, em relação ao outro.
9 Há simetria entre a eticidade humana inerente aos direitos da personalidade e o conceito
fundamentais - passo decisivo para a admissão da eficácia desses direitos entre atores
privados - se deu no célebre “Caso Lüth”, apreciado pelo Tribunal Constitucional Alemão
no ano de 1958. Ao sublinhar que os direitos fundamentais não reduzem sua operativi-
dade à defesa do cidadão nas situações de ameaça imposta pelo poder estatal - posto
que representam “decisões de constitucionais de natureza jurídico-objetiva válidas para
todo o ordenamento jurídico” - a Corte de Karlsruhe desempenhou papel histórico na
ultrapassagem da relação indivíduo-Estado como âmbito exclusivo de aplicação dos
direitos fundamentais.
17
há muito encontra-se amadurecido pela doutrina e jurisprudência
(TUTIKIAN, 2004, p. 47).
Decorre, na verdade, do surgimento de outro patamar ci-
vilizatório, em que “as idéias de dignidade, liberdade, segurança,
igualdade e justiça social, dentre outras, conduzem a sociedade
brasileira na busca de seus destinos e influenciam os rumos da
legislação” (BITTAR; BITTAR FILHO, 2003, p. 26), o que bem se
exemplifica com o próprio direito de danos, alvo de impulso com
a entrada em vigor do Código Civil11.
Da projeção nesse campo da força normativa dos prin-
cípios constitucionais, em cujo ápice figura a dignidade da pes-
soa humana, é preciso extrair-se uma dogmática assaz diferente
do defasado cânone de outrora, pautado num individualismo pa-
trimonialista que enxergava na reparação monetária o objetivo
maior da tutela indenizatória - como se tudo se resolvesse pelo
pagamento em pecúnia efetivado pelo lesante12.
Na contemporaneidade, a responsabilidade civil recons-
truída sob a paleta constitucional se volta para o princípio da re-
paração integral (restitutio in integrum)13 com olhar diferenciado,
até mesmo em vista da fundamentalidade do direito violado
(LUTZKY, 2012). Condenações em pecúnia amiúde são insufi-
cientes para reconduzir a vítima a patamares próximos da situa-
ção vivida antes da lesão14. Elementos de cunho social,
11 Dentre as inovações positivadas no direito pátrio pelo Código Civil brasileiro, cabe
colhe da passagem ora destacada acerca do dano moral: “a sua reparação se faz
através de uma compensação, e não de um ressarcimento; impondo ao ofensor a
obrigação de pagamento de uma certa quantia de dinheiro em favor do ofendido,
ao mesmo tempo em que agrava o patrimônio daquele, proporciona a este uma
reparação satisfativa” (CAHALI, 2011, p. 38).
18
interrelacional e, sobretudo, existencial e preventivo devem ser
tomados em conta na equação jurídica que levará à definição da
forma de ressarcimento.
Ocorre que a tutela integral e efetiva da pessoa humana
já não mais condiz com rótulos dogmáticos (como bem ilustra a
erosão da dicotomia entre direito público e privado), muito menos
com o binômio dano/reparação monetária. Agora, exige-se que
o arbitramento da indenização inclua instrumentos de efetiva pro-
moção do ser vivente, considerado em qualquer situação jurídica
de que participe, contratual ou extracontratual, de direito público
ou de direito privado (MORAES, 2004, p. 52).
Com efeito, por figurar a personalidade humana e a pro-
moção de sua dignidade no ápice axiológico-constitucional bra-
sileiro, sua defesa exige uma proteção judicial diferenciada, que
vai além dos mecanismos tradicionais cíveis e criminais de re-
pressão. Nessa senda, essencial é o papel da elaboração preto-
riana, como sempre foi na responsabilidade civil, para o
aperfeiçoamento da compreensão jurídica da matéria.
A atuação dos órgãos judiciários é posta em relevo por
Claus-Wilhelm Canaris (2006, p. 241-242), para quem a elabo-
ração pretoriana pode “remediar” eventuais transgressões do le-
gislador privado. À guisa de exemplo, pondera que o ‘direito
delitivo’ alemão era falho na proteção da personalidade, mas o
Supremo Tribunal Federal “eliminou esse déficit, incluindo o
assim chamado ‘direito geral de personalidade’ no grupo dos di-
reitos tutelados pelo direito dos delitos (direito da responsabili-
dade aquiliana)”.
A reconstrução civil-constitucional da pessoa exige dife-
renciada concepção da responsabilidade civil por parte dos tri-
bunais, já desprendida da antiga visão patrimonialista15 e
doravante projetada na perspectiva da reparação integral do
19
“dano à pessoa”. Longe vai a percepção de cada pessoa como
um “ter”, bem antes de um “ser”, como ocorria nas antigas codi-
ficações civilísticas. Bem ao reverso, na atualidade, as questões
existenciais é que ganham relevo - e trazem consigo a preocu-
pação com formas desmonetarizadas de ressarcimento.
A partir dessa afirmação, até mesmo os elementos de
detecção do dano indenizável sofrem mutações, pois há algo
mais no horizonte além da “conduta do ofensor” e da “relação
causal”. Outros critérios de valoração, como o dever de proteção
ao próximo (duty of care), a ausência de medidas preventivas
(carelessness) e a proximidade do dano (remoteness) entram em
cena na análise da obrigação de indenizar, como acentua Guido
Alpa (2010, p. 175-184).
Como se pode ver, enquanto o direito privado atribui pre-
valência às relações patrimoniais, no sistema do direito civil re-
fundado pela Constituição Federal de 1988, a prevalência é das
questões existenciais, “porque à pessoa humana deve o ordena-
mento jurídico inteiro, e o ordenamento civil em particular, asse-
gurar tutela e proteção prioritárias” (MORAES, 2010, p. 21-32).
A título de exemplo de manifestação pretoriana do direito
aquiliano convergente para a integral proteção do indivíduo, es-
pecialmente no que tange ao seu bem-estar psicológico, destaca-
se a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça em 2012,
na qual se reconheceu o dever indenizatório decorrente do cha-
mado “abandono afetivo”, hipótese inimaginável anos atrás16.
Para além do já exposto, convém relembrar que não são
poucos os problemas acarretados pelo referencial de indeniza-
ção que se materializa somente pela entrega de somas pecuniá-
rias ao lesado. Nessa esteira de pensamento, Anderson
Schreiber (2013, p. 210), em trabalho dedicado ao tema, aponta
os principais deles: (i) a propagação da lógica de que os danos
20
morais podem ser causados desde que seja possível pagar por
eles; (ii) o estímulo ao “tabelamento” judicial das indenizações;
(iii) a crescente “precificação” dos atributos humanos; (iv) o in-
centivo a demandas frívolas, propostas de modo aventureiro, por
pessoas que pretendem se valer de cada inconveniente ou abor-
recimento social para conseguir uma indenização.
A tais graves inconvenientes pode-se adicionar outras hi-
póteses: (i) se o ofensor simplesmente não dispuser de recursos
monetários que lhe permitam fazer frente à reparação arbitrada,
a vítima se quedará privada de qualquer ressarcimento; (ii) noutro
giro, caso o lesado seja pessoa abastada, a indenização não re-
presentará conforto algum17.
Nessa vertente, enfatiza-se que a fixação judicial do res-
sarcimento deve ser focada não apenas no dano, mas, sobretudo,
na pessoa. Para tanto, a ciência jurídica e os tribunais devem li-
bertar-se do paradigma monetarista, mediante o recurso a diferen-
ciadas ferramentas de reação jurídica que alcancem o maior
objetivo da indenização: a uma, reabilitar a vítima na máxima me-
dida possível, incluído o necessário bem-estar psíquico; a duas,
evitar a repetição do comportamento antijurídico por parte do ofen-
sor. Dessa forma, a responsabilidade civil se alinha aos demais
institutos privados no atendimento de sua função social, exigência
incontornável dos tempos modernos.
Na lição de Judith Martins-Costa acerca da dimensão
preventiva da responsabilidade civil, no processo evolutivo de um
dado instituto jurídico é preciso que
17 Nota-se que as duas hipóteses aventadas são bem prováveis no cenário brasileiro.
No primeiro caso, pela notória disparidade socioeconômica aqui existente, que pro-
duz a existência de milhões de pessoas alijadas até mesmo do “patrimônio mínimo”
necessário; no segundo, pelo fato de os tribunais pátrios adotarem uma política de
fixação de valores ressarcitórios bem modestos, prática amiúde justificada pelo com-
bate a uma tal “indústria da indenização” que jamais se estabeleceu entre nós.
21
Por tais motivos, os precedentes da Corte Interameri-
cana de Direitos Humanos (CIDH)18 muito têm a contribuir para
a desmonetarização da responsabilidade civil, e sua influência
na aplicação do direito pátrio pode indicar o caminho a seguir.
Destarte, cumpre examiná-los.
22
sua relevância para a consolidação continental de uma verda-
deira cultura democrática (O´DONNELL, 2007, p. 152-153)20 e
de respeito humanístico a partir das decisões por ela proferidas,
que têm força vinculante.
Em trabalho dedicado à análise da atuação da CIDH en-
quanto tribunal “garantista” ou “ativista”, Lênio Streck e Jânia Sal-
danha (2013) se valem da metáfora do “romance em cadeia”,
proposta por Dworkin, para enaltecer o trabalho da Corte. Se-
gundo eles, o tribunal leva a sério suas “responsabilidades de
continuidade” no que tange à expansão dos direitos individuais
e dos deveres estatais de respeitá-los. Concluem no sentido de
“reconhecer na jurisprudência da CIDH uma atitude garantista e
de reafirmação do pacto democrático assumido pelos Estados
da América Latina”.
A exemplo do que ocorre na Corte Europeia, a CIDH cria
direito jurisprudencial, que se rege pela lógica do precedente ju-
dicial do tribunal supranacional de direitos humanos em causa,
donde decorre que
23
contexto fático. Nessa senda, questiona Maria Alice Hofmeister,
ao defender a tese de que o julgador deve ter em mente a integral
proteção e ressarcimento do ofendido: “Quem é a vítima? A que
aspira? O que se pode entender como ampla indenização, re-
composição ao status quo ante? O que se conhece acerca de
suas necessidades?” (HOFMEISTER, 2002, p. 213).
Assim, nas sentenças a seguir relembradas, o foco da
abordagem incide sobre os aspectos não monetários presentes
em cada condenação - com a atenção voltada ao fato de que
nesses pronunciamentos houve arbitramento de indenização fi-
nanceira, mas a decisão da CIDH a esse aspecto não se limitou
(SALES; CORREIA, 2013).
Com frequência são determinadas providências de longo
alcance, como mudanças na legislação para adequá-la ao Pacto
de São José da Costa Rica21, a tipificação de delitos até então
não previstos no ordenamento interno22 e a criação de medidas
legislativas, executivas, administrativas e judiciárias voltadas
para a efetivação dos direitos humanos23.
No caso Caracazo24, a CIDH, ao reafirmar o primado da re-
paração integral do dano, impôs à Venezuela a obrigação de inves-
tigar os fatos e apurar responsabilidades, localizar os restos mortais
das vítimas, implementar medidas de capacitação das forças ar-
21 Isso ocorreu no caso Hilaire, Constantine e Benjamin e outros vs. Trinidad e To-
bago (2002). Na espécie, um total de trinta e duas pessoas denunciaram o país por
suas condenações penais à morte por enforcamento. Diante do esgotamento das
possibilidades recursais no plano interno, restou-lhes acionar a CIDH, cuja decisão
foi pela substancial mudança nas leis criminais daquele país.
22 No caso Trujillo Oroza vs. Bolívia (2000), o senhor José Carlos Trujillo Oroza havia
sido preso sem ordem judicial válida, torturado e seu corpo jamais foi encontrado. A
CIDH, além de cominar a tipificação do crime de desaparecimento forçado de pes-
soas, impôs a investigação completa do caso e a punição dos responsáveis, bem
como a atribuição do nome da vítima a um centro educativo da cidade de Santa Cruz.
23 No precedente Niños de la Calle vs. Guatemala (1999), analisou-se o assassinato
24
madas e divulgar a sentença em jornal de ampla circulação. Noutro
aresto, determinou a criação, em cursos de formação dos servidores
públicos militares e de segurança, de um programa voltado à análise
da jurisprudência do sistema interamericano de proteção dos direi-
tos humanos25.
Como exposto, o direcionamento da responsabilidade civil
à promoção da dignidade humana exige medidas voltadas à rea-
firmação existencial das vítimas. Atenta a isso, a Corte frequente-
mente impõe ao país transgressor a realização de ato público de
reconhecimento de sua responsabilidade, o que inclui a ampla di-
vulgação da decisão em jornais de grande circulação26.
Em várias decisões a ordem de reparação inclui obrigações
concretas de fazer - cujo cumprimento efetivo é fiscalizado pela
Corte -, as quais tomam a forma de expedientes diversos e variados.
Por exemplo, o custeio de uma bolsa de estudos27; o fornecimento
de serviços de saúde gratuitos28; a publicação de declaração escrita
formal de reconhecimento da responsabilidade e pedido de descul-
pas29; a anulação de prévia condenação penal e a retirada do nome
da vítima dos registros públicos de antecedentes criminais30.
25
Caso Gutiérrez Soler vs. Colômbia (2005). A vítima, Wilson Gutiérrez Soler, foi
presa, extorquida e torturada por agentes públicos, fatos que ainda ensejaram pos-
teriores ameaças a si e seus familiares para que se mantivesse calado. Durante
mais de 10 anos lutou contra a impunidade de seus agressores, sem êxito.
26
Em Juan Humberto Sanchez vs. Honduras (2003), a vítima havia sido presa por
forças estatais de segurança, sem ordem judicial e nem ao menos a explicitação das
razões. Após sua liberação, militares armados invadiram sua residência, em julho de
1992, constrangeram seus familiares e o levaram amarrado. Seu corpo seria encon-
trado dias depois. Além do ato público de desagravo, a CIDH ordenou o traslado de
seus restos mortais para novo sepultamento, em local a ser definido pelos parentes.
27
Cantoral Benevides vs. Peru (2000). Acusado de fazer parte do grupo extremista
conhecido como “Sendero Luminoso”, Luis Alberto Cantoral Benavides foi preso de
forma arbitrária, permaneceu incomunicável por vários dias e foi torturado por poli-
ciais, em período de provação que durou mais de quatro anos.
28
No julgamento Barrios Altos vs. Peru (2001), os fatos tocavam à ação de um grupo
de extermínio que, em novembro de 1991, invadiu uma festa de arrecadação de
fundos para a manutenção de edifício situado no bairro de Barrios Altos, na capital
Lima. Após atirar a esmo, dizimaram quinze pessoas, uma criança inclusive.
29 No caso Tibi vs. Equador (2004), a vítima Daniel Davi Tibi - francês residente no
Equador - foi preso por agentes da Interpol, sem respaldo judicial, sob a acusação
de envolvimento com o tráfico de drogas. Foi submetido a torturas durante vinte e
oito meses e teve seus bens apreendidos, que não lhe foram restituídos nem mesmo
quando deixou o cárcere, em janeiro de 1998.
30 Eduardo Gabriel Kimel, jornalista, escritor e historiador político argentino, publicara
25
Outro traço marcante é a superação do vetusto modelo de
solução individual e atomística para cada caso, deixado de lado
em prol de uma resposta adequada também no plano transindivi-
dual. Já a dimensão preventiva da indenização, tão cara à função
social da responsabilidade civil, se evidencia quando o Tribunal
explicitamente ordena a adoção de medidas para que os fatos
não se repitam, mediante a efetivação de políticas públicas de
adequação das normas de direito interno à Convenção Americana
de Direitos Humanos31.
Em julgamento sobre morticínio de centenas de pessoas
de etnia indígena, ocorrido na Guatemala em 1982, a decisão
da Corte impôs ao país diligências para o fortalecimento da cultura
maia, mediante a implementação de políticas públicas de difusão
das tradições e da memória daquele grupo social32. Decisão
semelhante decorreu do massacre ocorrido no presídio Reten
de Catia, em Caracas, do qual resultou uma ordem de ampla
reformulação do sistema carcerário venezuelano33. Na mesma
obra sobre o assassínio de religiosos durante a ditadura daquele país. Um dos juízes
mencionados no livro iniciou processo penal por delito de calúnia, que gerou a con-
denação do escritor a um ano de prisão (caso Kimel vs. Argentina (2008)).
31 Foi o que se verificou no caso Bulacio vs. Argentina (2003). A vítima, Walter David
Bulacio, de dezessete anos, havia sido presa e torturada pelas autoridades, o que
ocasionou seu óbito logo depois. Sua detenção ocorreu durante operação da polícia
federal argentina que levou ao cárcere dezenas de pessoas, num bairro pobre de
Buenos Aires. Embora os detidos fossem liberados gradualmente, no caso da vítima,
sua família sequer fora notificada do aprisionamento. A CIDH não apenas determi-
nou que se prosseguisse a investigação sobre os responsáveis pela barbárie, como
também exigiu o asseguramento da participação dos familiares em todas as etapas
de processos dessa natureza.
32 Esse foi o caso Massacre Plán de Sánchez vs. Guatemala (2004), evento consi-
26
senda, a partir de sentença de 2010, foi o México obrigado a realizar
campanhas de conscientização da população acerca da vio-
lência e discriminação contra mulheres indígenas34.
Acrescenta-se que atentados à liberdade de expressão
consubstanciam grave ameaça a este princípio imprescindível às
sociedades democráticas. A Corte reafirmou seu desiderato de de-
fensora do desenvolvimento humano na América Latina ao ordenar
à Venezuela - em julgamento que teve atuação de entidades de
imprensa de vários países na condição de amicus curiae -, que se
abstivesse de qualquer restrição infundada ao direito de obter e
difundir informações35.
Os aportes do Tribunal à evolução do direito de danos in-
cluem a dogmática jurídica. Ao analisar precedente acerca do
ataque de forças militares a uma minoria étnico-cultural do Suri-
name, do qual resultou a morte de dezenas de pessoas, o juiz
Antonio Augusto Cançado Trindade inovou na terminologia cien-
tífica ao reportar-se ao chamado “dano espiritual”, por ele consi-
derada como “forma agravada de dano moral insuscetível de
reparação monetária”36.
A CIDH igualmente contribui para a ampliação e aperfei-
çoamento da reparação de danos com a efetivação de medidas
voltadas ao apaziguamento espiritual dos parentes dos mortos e
desaparecidos pela preservação de sua memória. Por tal motivo,
em vários arestos adotou o expediente de ordenar a atribuição
dos nomes das vítimas a equipamentos públicos.
À guisa de exemplo, o Tribunal incluiu nas sentenças me-
didas como a construção de um monumento às vítimas e o des-
cerramento de placa com sua identificação na presença dos
34 No julgamento Rosendo Cantú e outra vs. México (2010), a sra. Valentina Ro-
sendo Cantú, indígena, sofreu violação sexual e tortura, às quais se seguiu mani-
festa ausência de diligências para apuração de responsabilidades. Sucede que o
crime fora praticado por soldados, e o caso restou encaminhado à jurisdição militar
precisamente para que ninguém fosse punido.
35 No caso Perozo e outros vs. Venezuela (2009), a moldura fática envolvia atos de
27
respectivos familiares37; a atribuição de seus nomes a centros
educativos38; a criação de disciplina ou curso de direitos humanos
com o nome do lesado39; a designação de rua, praça ou escola
em homenagem à vítima40. Em precedente acerca da desapari-
ção forçada de jornalista político na República Dominicana, foi
imposta ao país a realização de um documentário sobre a vida
da vítima, no qual fosse exaltado seu trabalho jornalístico e seus
esforços para a cultura do país41.
Constata-se que nos pronunciamentos condenatórios da
CIDH há nítida atenção focada na verdadeira e integral reparação
do infortúnio - não apenas no plano monetário, mas igualmente
na esfera psíquica da vítima, mediante imposições ao ofensor de
variadas obrigações de fazer aptas a oferecer àquela algum
alento, imprescindível a seu bem-estar. Na mesma vertente,
nota-se que a Corte busca incutir no transgressor a mudança
comportamental necessária para evitar a repetição do ilícito, pro-
filaxia jurisprudencial que bem se alinha à função social da res-
ponsabilidade civil.
37
No precedente denominado 19 Comerciantes vs. Colombia (2004), apurou-se a
morticínio de dezoito comerciantes por um grupo paramilitar na fronteira entre Co-
lômbia e Venezuela porque estes se recusaram a pagar “impostos” ao referido
grupo. Os desditosos tiveram seus corpos esquartejados e lançados num rio.
38
Trujillo Oroza x Bolívia; o mesmo ocorreu no caso Molina Theissen x Guatemala
(2004), em que o tribunal determinou que se designasse um centro educativo na ci-
dade da Guatemala com um nome que fizesse menção aos meninos desaparecidos
durante conflito armado ocorrido no país. Ordenou-se também que ali deveria haver
uma placa em memória de Marco Antonio Molina Theissen.
39
Versava o caso Huilca Tecse vs. Peru (2005) sobre o assassinato do líder sindical
peruano Pedro Crisólogo Huilca Tecse em dezembro de 1992. Ativo, respeitado e
combativo às medidas do então presidente Alberto Fujimori, sua morte foi artifício
para atemorizar os trabalhadores peruanos e causou grande comoção no país.
40
No caso Baldeón Garcia vs. Peru (2006), apurou-se a detenção, tortura e morte
de Bernabé Baldeón García, camponês de 68 anos, por militares. Os fatos ocorre-
ram em setembro de 1990.
41
O desaparecimento de Narciso González Medina, ativista e opositor ao governo,
foi o eixo central do caso Gonzáles Medina e familiares vs. República Dominicana
(2012). Após publicar artigo de opinião com duras críticas ao presidente Joaquín
Balaguer e conclamar os professores e estudantes de uma universidade local à de-
sobediência civil, desapareceu para jamais ser encontrado.
28
CONSIDERAÇÕES FINAIS
29
de danos alinhado ao centro axiológico comum do Pacto de São
José da Costa Rica e da Constituição Federal de 1988: a promo-
ção e concretização da dignidade da pessoa humana em todas
as suas dimensões.
REFERÊNCIAS
CAHALI, Yussef Said. Dano moral. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2011.
30
FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre
a constitucionalização do direito privado. In: SARLET, Ingo Wolf-
gang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado.
2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 13-62.
31
MARTINS-COSTA, Judith. Os danos à pessoa no direito brasi-
leiro e a natureza da sua reparação. In: MARTINS-COSTA, Judith
(org.). A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002.
32
STRECK, Lenio; SALDANHA, Jânia. Ativismo e garantismo na
Corte Interamericana de Direitos Humanos. In: DIDIER JR., Fre-
die et al. Ativismo judicial e garantismo processual. Salvador: Jus-
Podium, 2013. p. 395-429.
33
34
Alexandre Pereira Bonna*
Resumo:
Aborda as características da sociedade moderna em relação à ato-
mização do ser humano. Aprofunda a relação entre a sociedade ato-
mizada e a litigação repetitiva e a apatia racional. Apresenta noções
da teoria do direito como integridade, com enfoque na fase pré-inter-
pretativa e interpretativa proposta por Ronald Dworkin. Explana as
exigências do princípio jurídico da solidariedade, especialmente em
face dos efeitos nocivos de uma sociedade altamente individualizada.
Retoma a discussão envolvendo o princípio da solidariedade como
elemento de destaque na fase pré-interpretativa e interpretativa e
vetor de peso na interpretação de categorias do direito e problemas
concretos enfrentados pelo Poder Judiciário.
Abstract:
It discusses the features of modern society in relation to the atomiza-
tion of the human being. Deepens the relationship between the ato-
mized society and repetitive litigation and rational apathy. It presents
the right theory of concepts such as integrity, focusing on pre-inter-
pretative phase and interpretation proposed by Ronald Dworkin. Ex-
plains the requirements of the legal principle of solidarity, especially in
37
the face of the harmful effects of a highly individualized society. Resu-
mes discussion involving the principle of solidarity as a prominent ele-
ment in the pre-interpretation and interpretive phase and weight vector
in the interpretation of the right categories and specific problems faced
by the judiciary.
Resumen:
Aborda las características de la sociedad moderna en relación a la
atomización del ser humano. Aprovecha la relación entre la sociedad
atomizada y el litigio repetitivo y la apatía racional. Se presenta no-
ciones de la teoría del derecho como integridad, con enfoque en la
fase pre interpretativa e interpretativa propuesta por Ronald Dworkin.
Explica las exigencias del principio jurídico de la solidaridad, espe-
cialmente ante los efectos nocivos de una sociedad altamente indivi-
dualizada. Se reitera la discusión envolviendo el principio de la
solidaridad como elemento destacado en la fase pre-interpretativa e
interpretativa y vector de peso en la interpretación de categorías del
derecho y problemas concretos enfrentados por el Poder Judicial.
Palavras-Chave:
Litigantes repetitivos, apatia racional, danos em massa,integridade
da lei, princípio da solidariedade.
Keywords:
Repeat players, rational apathy, massive damages, integrity of law,
principle of solidarity.
Palabras-clave:
Litigación repetitiva, apatía racional, daños en masa, como integridad,
principio de solidaridad.
38
INTRODUÇÃO: CONTEXTUALIZAÇÃO, NOÇÕES DA TEORIA
DO DIREITO COMO INTEGRIDADE, PROBLEMA, JUSTIFICA-
TIVA E METODOLOGIA
princípios que são necessários para qualquer boa ação do homem, além de serem
fundamentais para o pleno florescimento humano. Eles servem de referência para
a avaliação das instituições criadas pelo homem (FINNIS, 2007, p. 67).
39
fenômenos, de modo a contribuir às “reflexões práticas daqueles
que se preocupam em agir, quer como juízes, quer como estadis-
tas, quer como cidadãos” (FINNIS, 2007, p. 31), um dos fundamen-
tos do Direito Natural.
Embora esse trabalho não utilize em seu desenvolvimento
os pressupostos da teoria do Direito Natural, reconhece a impor-
tância de refletir sobre a harmonia das categorias jurídicas e das
instituições que garantem direitos com um modelo de racionalidade
jurídica suficiente para impedir graves distorções morais e de for-
talecer os laços de dependência comunitária entre os membros de
um determinado grupo de pessoas, dimensão esta que também se
encontra no pensamento de Ronald Dworkin, especialmente
quando trata das obrigações comunitárias/associativas.
As obrigações comunitárias/associativas na concepção
dworkiana nada tem a ver com deveres que são deliberados e es-
colhidos, mas sim estão relacionados a uma atitude interpretativa,
porque se deve honrar compromissos que surgem no bojo da prá-
tica social na qual se está inserido, os quais estão vinculados a um
grau de reciprocidade e noção de integridade e interpretação, mo-
tivo pelo qual esse tipo de obrigação implica algum sacrifício dos
próprios interesses (DWORKIN, 1999, p. 237-244).
Nesse viés, é possível conceber uma comunidade política
como um ente com personalidade e exigências próprias, diferente
das dos indivíduos que a compõem, de modo que ser fiel a uma prá-
tica social implica agir de acordo com os princípios que emanam
dessa comunidade personificada, o que por um lado afasta essa
moral das crenças populares, mas que por outro está interligada a
um conjunto de práticas. Assim, o agir moral em harmonia com
essas práticas nada tem a ver com o que as pessoas individualmente
pensam ser o moralmente correto (DWORKIN, 1999, p. 204-208).
Portanto, a concepção do direito como integridade à tarefa
de explicar como um padrão de comportamento exigido por princí-
pios surge a partir de uma prática social, caracterizando-se como
uma teoria do direito que possui um elemento comunitário, porque
embora acate um certo grau de liberdade de perseguir ambições,
compromissos, projetos e interesses pessoais, essa esfera da so-
berania individual sofre restrições pela integridade (DWORKIN,
1999, p. 211).
40
Essa concepção de direito (direito como integridade), ado-
tada como premissa na presente pesquisa, presta substrato para
justificar a interferência da autoridade do Estado na esfera de di-
reitos dos indivíduos. Vale destacar que a atividade jurisdicional
também tem cunho político, não de política partidária, mas sim de
princípio político, especialmente em casos controvertidos (DWOR-
KIN, 2001, p. 5-6).
É por esse motivo que o direito como integridade defende
uma visão “centrada nos direitos” e não no “texto legal”, em razão
da amplitude a que o magistrado está autorizado a adentrar, apro-
ximando a atividade jurisdicional da política. Enquanto que a con-
cepção “centrada no texto legal” afirma que o poder do Estado só
pode ser exercido contra os cidadãos a partir de regras explicita-
mente especificadas, não podendo inovar até que as mesmas
sejam modificadas, a concepção “centrada nos direitos” parte de
um ideal de justiça substantiva segundo a qual os cidadãos têm di-
reitos e deveres morais entre si e perante o Estado, assim como o
Estado do Direito necessita incorporar e aplicar esses direitos mo-
rais (DWORKIN, 2001, p. 6-7).
Isso não significa que o texto legal (Constituição, leis, de-
cretos) não tenha peso e importância, pelo contrário, “um elevado
grau de aquiescência à concepção centrada no texto jurídico pa-
rece ser necessário a uma sociedade justa” (DWORKIN, 2001, p.
9). Contudo, sob essa ótica centrada nos direitos, não são apenas
as decisões oficiais que os outorgam, nem tampouco a intenção de
soberanos e muito menos o consenso em uma certa comunidade,
apesar de muitos críticos da concepção dworkiana alegarem que
se trata de uma versão falha do direito por não conseguir refletir
previsibilidade na vida dos cidadãos nem reivindicar autoridade,
visto que as questões extralegais comportam muitos dissensos.
De fato, a integridade não exige concordância (exceto na
fase pré-interpretativa). A própria falta de consenso sobre direitos
morais e a pluralidade de opiniões enriquece a prática social, de
modo que a existência de direitos está imbricada com a comuni-
dade personificada, a qual é um ente diverso dos sujeitos que a
compõem e, por esse motivo, exige um conjunto de padrões que
podem não ter relação com a opinião da maioria.
41
Minha visão é que o Tribunal deve tomar decisões de princípio, não de
política – decisões sobre que direitos as pessoas têm sob nosso sistema
constitucional, não decisões sobre como se promove melhor o bem-
estar geral (DWORKIN, 2001, p. 101).
42
Primeiramente, será feita uma abordagem da sociedade
de massa e a sua influência na subsistência dos litigantes repetiti-
vos e da apatia racional. Em seguida, será dada continuidade à
construção da teoria do direito como integridade de Dworkin, es-
pecialmente explicando a fase pré-interpretativa e interpretativa. Ao
final, refletir-se-á acerca do peso do princípio da solidariedade em
casos judiciais onde o magistrado se vê diante daqueles fenôme-
nos enunciados pela filosofia.
43
O homo faber (homem fabricante) possui como atividade
a obra (work), por meio da qual violenta a natureza para produzir
objetos duráveis, para além de seu ciclo biológico. Nesse estado,
o homem opera sobre a natureza para produzir um conjunto de ob-
jetos artificiais com caráter permanente a serem partilhados por ou-
tros homens (ARENDT, op. cit., p. 169).
A transformação do trabalho, como a atividade preponde-
rante do homem moderno, fez com que todos os valores desse
homem trabalhador (animal laborans) fossem transportados para
outros campos da vida social. Assim, o aspecto cíclico e efêmero
do homem trabalhador impregnou as relações sociais de modo que
o homem passou a não ver mais nada além de si mesmo e suas
respectivas necessidades, perdendo, inclusive, o interesse pelo as-
pecto comunitário e social.
Esse desinteresse pelo outro pode claramente ser consta-
tado através da bifurcação de dois campos abertos de vida e reci-
procamente excludentes: a vida social e a esfera individual: “this
bifurcation is itself an important clue to the central characteristics of
modem societies”5 (MACINTYRE, op. cit., p. 34). No aspecto indi-
vidual, os indivíduos são soberanos em suas escolhas relacionadas
aos bens que desejam perseguir; no tocante à vida social, a buro-
cracia e as decisões oficiais são soberanas.
Ressalta-se que a sociedade de consumidores está imbri-
cada com a sociedade de trabalhadores, pois o consumo desenfreado
do homem, caracterizado pela voracidade da substituição rápida de
mobílias, carros, celulares, roupas e demais objetos do mundo, en-
globa um processo produtivo composto de uma massa de trabalha-
dores para dar conta de imprimir alta produtividade em face da
velocidade com que os itens de consumo são tragados e descartados.
É nesse sentido que se diz que o animal laborans venceu
no mundo moderno, porque a abundância e efemeridade do
mesmo são características próprias do homem que visa à manu-
tenção da vida, em contraste com o homo faber, que despende es-
forços para que os objetos fabricados sejam efetivamente utilizados
e tenham durabilidade e permanência no mundo. Ou seja, o ciclo
5
"essa bifurcação é uma importante pista para compreender as características
essenciais das sociedades modernas" (MACINTYRE, op. cit., p. 34).
44
interminável da vida (caça, pesca, reprodução etc) se encaixa no
ciclo interminável do consumo, e em ambas a fronteira entre a hu-
manidade e a animalidade são estreitas.
É possível relacionar esse isolamento ocasionado pela
preponderância do trabalho com o fenômeno da apatia racional (ra-
tional apathy), visto que a vida plena do ser humano, de acordo
com o pensamento de Hannah Arendt, deveria envolver uma rela-
ção harmônica entre a atividade do trabalho, da fabricação e da
ação (relacionada ao agir moral, reflexões, decisões), e, como o
homem moderno dedica a maior parte do seu tempo à atividade
do trabalho (leia-se atividade para manter-se vivo), pouco espaço
sobra para tarefas de preservação e defesa de direitos, pouco
sobra para o agir.
Nesse sentido, é muito comum deparar-se com situações
ilegais e danosas (valor mínimo de compra para cartão de crédito,
cláusulas abusivas, publicidade enganosa, assédio moral, débito
automático de serviço não autorizado, descumprimento parcial de
contratos), que facilmente são aceitas com parcimônia pelas víti-
mas, seja porque tem pouca disposição e vigor para agir, seja por-
que individualmente considerados os referidos danos são baixos.
Nesse desiderato, o lucro ilícito a partir de uma apatia co-
letiva de pequenos danos gera outro fenômeno: o da litigação re-
petitiva (repeat players), o qual é reforçado pelo enorme grau de
desinteresse6 pelo outro próprio da modernidade, individualismo li-
beral à coexistência pacífica de setores da vida humana incomuni-
cáveis entre si, mas considerados harmônicos (a vida individual e a
45
vida comunitária): “so work is divided from leisure, private life from
public, the corporate from the personal. (...) And all these separations
have been achieved so that it is the distinctiveness of each and not
the unity of the life of the individual”7 (MACINTYRE, op. cit., p. 204).
Por fim, um magistrado insensível ao mundo que lhe rodeia
e aos seus fenômenos desagregadores não julgará atendendo aos
ditames constitucionais do solidarismo, que, como princípio que é,
impõe interpretações jurídicas em um determinado vetor, podendo
influenciar na interpretação de categorias do direito privado, espe-
cialmente diante de casos que denotem a apatia racional e a litiga-
ção repetitiva, elementos que evidenciam essa fragmentação e o
desinteresse pela esfera de bens jurídicos de outrem.
7
"Então o trabalho é dividido do lazer, a vida privada da vida pública, o corporativo
do pessoal. (...) E todas essas separações fazem com que cada esfera seja distinta,
não fomentando a unidade da vida do indivíduo" (MACINTYRE, op. cit., p. 204).
46
Assim, uma das pretensões da integridade é conferir im-
portância à totalidade do direito, pois, como visto, a sociedade per-
sonificada explicada por Ronald Dworkin revela que a comunidade
política possui imposições e deveres que não necessariamente
condizem com as pretensões individuais de cada um dos seus
membros, posto que estes estão submetidos a princípios comuns
e fundantes da comunidade, a ponto de a concepção de justiça ter
de se pautar em princípios fundamentais, como o da solidariedade,
em detrimento de normas mais específicas, princípios menos abs-
tratos ou regras.
É como se a sociedade/comunidade fosse portadora de
um objetivo/telos próprio e que esses princípios representassem
isso, podendo impor limites a determinadas interpretações jurídicas,
motivo pelo qual o direito não se diferencia de outras práticas so-
ciais, que necessitam para a sua inteira compreensão em momen-
tos de dúvida de uma noção adequada sobre o que a prática requer
se devidamente compreendida (DWORKIN, 1999, p. 58).
Nesse viés, a tarefa dworkiana de interpretação do direito
deve conceber três momentos distintos: pré-interpretativo, interpre-
tativo e pós-interpretativo (DWORKIN, 1999, p. 81). O trabalho se
atém especificamente às fases relacionadas ao recorte normativo
e às justificativas desse recorte (respectivamente, fases pré-inter-
pretativa e interpretativa), deixando de lado a fase atinente à análise
das exigências que as justificativas das etapas anteriores requerem
no caso concreto.
A fase pré-interpretativa parte do pressuposto de que, para
iniciar qualquer atividade interpretativa, faz-se necessário partir de
elementos que evidenciem decisões políticas do passado, que con-
sensualmente devam ser consideradas à tarefa interpretativa, que,
em última instância e em consonância com as outras fases, irá jus-
tificar a força do Estado na esfera particular. Em outras práticas
esse recorte é comum, como nas obras literárias:
47
O pressuposto da etapa pré-interpretativa é de que qual-
quer diálogo só tem sentido se primeiro as premissas dos partici-
pantes foram consensualmente selecionadas, de modo a identificar
bases e padrões comuns sobre quais práticas são relevantes para
a prática jurídica. Somente em momento posterior será possível
percorrer um aprofundamento interpretativo sobre qual a melhor
interpretação que se amolda à comunidade política:
48
do princípio da solidariedade e a sua relação com as questões de
massa e da litigação repetitiva, está-se na fase pré-interpretativa e
interpretativa, momento em que o intérprete realiza um corte nor-
mativo sobre quais decisões políticas do passado terão peso na
avaliação de um certo fenômeno jurídico a partir de justificativas;
b) afirmar que a solidariedade se trata de um princípio e não de
uma regra implica o reconhecimento de que não existe a possibili-
dade de enumerar aprioristicamente hipóteses de cabimento, visto
que um princípio é obrigatório em um certo caso particular, porque
funciona como um vetor que deve ser contrabalanceado com ou-
tros vetores (princípios). Quando há um princípio, significa que ele
deve ser levado em conta pelas autoridades públicas, como se
fosse uma razão numa ou outra direção. Quando os princípios se
intercruzam, aquele que vai resolver o conflito tem de levar em
conta a força relativa de cada um. Faz sentido perguntar que peso
ele tem ou qual importância (DWORKIN, 2002, p. 38-43), e, acres-
centaria, mesmo que um princípio não se intercruze com o outro, é
válido indagar qual o peso que ele possui na interpretação de ca-
tegorias do direito envolvidas no litígio.
Quanto à fase pré-interpretativa, não há maiores dificulda-
des em reconhecer que a Constituição Federal e seus princípios
são práticas que compõem a prática jurídica e são levados em
conta para a atuação não só de funcionários públicos como tam-
bém de particulares, assim como pautam as decisões da atividade
jurisdicional, que interpretam o direito à luz de princípios. Ou seja,
a questão não está em justificar que os princípios constitucionais
fazem parte de nossas práticas, mas sim de justificar a presença
do princípio da solidariedade no recorte normativo de casos envol-
vendo litigação repetitiva e apatia racional.
Quanto às justificativas para o princípio da solidariedade,
dentro da fase interpretativa, vale ressaltar que a solidariedade,
antes de ser inserida como um dos objetivos da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, foi muito discutida no
âmbito do direito internacional e dos direitos humanos. Na dé-
cada de 1970, Karel Vasak mencionou “direitos de solidariedade”
ou de “fraternidade”, ao se referir aos direitos à paz, meio am-
biente equilibrado, desenvolvimento e patrimônio comum da hu-
manidade, em outras palavras, direitos relacionados ao
49
bem-estar e ao reconhecimento de interesses comuns entre os
homens (BIONDI, 2015, p. 16).
Dessa feita, haveria uma dimensão de direitos abstratos
centrados no indivíduo em si (civis e políticos), direitos relacionados
às necessidades básicas a serem supridas (sociais, econômicos e
culturais) e, por fim, uma dimensão em que a dignidade da pessoa
humana cresce e se expande a ponto de exigir um tipo especial de
relação entre os indivíduos. Frisa-se que há estudos que apontam
para outras dimensões de direitos humanos.
Portanto, esse viés solidário exige uma concepção de bem
comum a todos os membros de uma comunidade política, bem este
que só pode ser alcançado mediante o esforço de todos, pessoas
físicas e jurídicas, públicas e privadas, tornando-se jurídico (obri-
gatório) no comportamento das pessoas o dever de empenhar-se
nessa tarefa, de modo que a humanidade ou a personalidade hu-
mana só estaria completa caso essa percepção do outro (e de seus
respectivos interesses) fosse lapidada.
Em razão dos limites do presente trabalho, parte-se do
pressuposto de que a solidariedade possui viés jurídico e obrigató-
rio, visto que existem teóricos críticos do caráter jurídico da solida-
riedade, aduzindo que se trata de um princípio ainda vago e
abstrato e que comporta exigências morais e não jurídicas.
Essa exigência jurídica da solidariedade pode envolver
uma dimensão interna ou até mesmo restrita a um certo grupo de
pessoas e não necessariamente atrai um fator internacional, tendo
como característica central o fato de que as partes isoladas de um
todo só terem sentido se consideradas por inteiro e por completo,
como explica Fábio Konder Comparato (2006, p. 577): “a solidarie-
dade não diz respeito, portanto, a uma unidade isolada, nem a uma
proporção entre duas ou mais unidades, mas à relação de todas
as partes de um todo, entre si e cada uma perante o conjunto de
todas elas”.
Ao refletir sobre o alcance dessa exigência no direito, é
possível constatar que se deve ir além dos direitos e interesses in-
dividuais, de modo a interpretar regras e princípios no sentido de
atenderem também o vetor que busca harmonizar os interesses in-
dividuais com um objetivo coletivo relacionado ao prestígio da coe-
xistência e compatibilidade de projetos de vida distintos, que são
50
justamente os valores necessários para fazer frente ao fenômeno
do isolamento e da atomização do ser humano, que na moderni-
dade propiciaram o surgimento da litigação de massa e da apatia
racional, que são consequências do profundo grau de individua-
lismo que a humanidade atingiu.
O direito, como reflexo também dos valores da sociedade
na qual está inserido, foi contaminado não tanto em seus institutos
da responsabilidade civil e do direito processual civil – que até pos-
sui elementos de bem comum, como a função social da proprie-
dade e dos contratos, boa-fé objetiva, dignidade da pessoa
humana, etecetera –, mas principalmente na instância da atividade
jurisdicional, particularmente na interpretação que juízes e tribunais
dão aos direitos que os cidadãos têm em litígios envolvendo danos
em larga escala e apatia racional.
Vê-se a insuficiência da interpretação de categorias do di-
reito privado ao constatar-se que, quando se está diante de danos
em massa, os magistrados não levam em conta o momento pré-
processual (pré-litigioso) relacionado à inércia das vítimas de
danos em relação a danos de pequena monta, se atento a fixar
valor indenizatório meramente compensatório do dano individual,
não se preocupando em majorar a verba de modo a causar um
desestímulo à conduta do ofensor, a ponto de inibir ele e outros
em igual condição de perpetrarem danos em massa e pautarem
suas atividades com alto grau de desinteresse7 pelos projetos de
vida do outro.
Aliás, constata-se a nefasta equação do custo-benefício
no manejo de produtos e serviços, assim como no trato com as
condições de trabalho, onde as escolhas são sempre pautadas sob
essa ótica, de modo a reduzir custos e incrementar os ganhos,
mesmo que isso signifique lesionar o outro, devendo o Poder Judi-
ciário, valendo-se do princípio da solidariedade e de suas exigên-
cias, atribuir peso, por exemplo, ao cabimento da indenização
punitiva na experiência brasileira, de modo a fazer frente às práticas
individualistas e estabelecer um padrão público de comportamento
e de justiça relacionado à solidarização.
De igual modo, registra-se outro aspecto que demonstra
como a atomização do ser humano atinge a interpretação dos tri-
bunais quanto à fraqueza das ações coletivas no trato das questões
51
de massa e a inúmeros entraves criados jurisprudencialmente para
limitar o grau de abrangência dos entes legitimados para propor
ações coletivas, exigindo, por exemplo, que os interesses em jogo
sejam “relevantes” ou possuam “interesse público”, fatores estes
que acarretaram, juntamente com o regime de coisa julgada, uma
espécie de falência das ações coletivas no trato das questões de
massa:
52
privado que pode ter a sua extensão comprometida pela desconsi-
deração do princípio da solidariedade, uma vez que o grau de
abrangência do que se exige a partir da lealdade e probidade é pro-
fundamente aumentado, se for posto à prova o ideal de construir
uma sociedade solidária e lutar contra o isolamento do ser humano,
denotando mais uma vez a relevância e importância do referido
princípio no trato das questões de massa.
Assim, considerando a escolha político-legislativa de elevar
a objetivo da República Federativa do Brasil à construção de uma
sociedade solidária, assim como o papel que esse princípio pode
desempenhar em casos concretos envolvendo litigação repetitiva
e apatia racional, apontando para a interpretação do direito que
mais se amolde a esse ideal, há justificativa para que esse princípio
não seja negligenciado como guia interpretativo de litígios de
massa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
53
REFERÊNCIAS
54
MACINTYRE, Alasdair. After Virtue. 3. ed. University of Notre
Dame Press: Notre Dame, 1981.
55
56
Carlos Roberto Jamil Cury*
Luiz Antonio Miguel Ferreira**
Resumo:
O presente artigo tem como objetivo discutir a judicialização da edu-
cação infantil e os seus reflexos nas condições de trabalho do profis-
sional da educação. Tendo como foco o direito à educação e à
discussão judicial de temas relacionados com as creches, busca tra-
çar as consequências que as decisões judiciais acarretam para os
professores, em especial no que diz respeito à falta de vagas e re-
cesso ou férias. Proporciona, também, uma reflexão sobre a questão
da qualidade da educação infantil e as consequências das decisões
judiciais a respeito do tema.
Abstract:
This article aims to discuss the judicialization of early childhood educa-
tion and its impact on the working conditions of the education profes-
sional. Focusing on the right to education and the judicial discussion of
57
issues related to day-care centers, it seeks to outline the consequences
that court decisions impose on teachers, especially regarding the lack
of vacancies and recess or holidays. It also provides a reflection on the
issue of the quality of early childhood education and the consequences
of judicial decisions on the subject.
Resumen:
El presente artículo tiene como objetivo discutir la judicialización de
la educación infantil y sus reflejos en las condiciones de trabajo del
profesional de la educación. Con el enfoque de la educación y la dis-
cusión judicial de temas relacionados con las guarderías, busca trazar
las consecuencias que las decisiones judiciales acarrean para los
profesores, especialmente en lo que se refiere a la falta de vacantes
y recesos o vacaciones. También ofrece una reflexión sobre la cues-
tión de la calidad de la educación infantil y las consecuencias de las
decisiones judiciales sobre el tema.
Palavras-Chave:
Mudança, paradigma, judicialização, não oferecimento, oferta
irregular, creche.
Keywords:
Change, paradigm, judicialization, no offer, irregular offer, day care.
Palabras-clave:
Cambio, paradigma, judicialización, no ofrecimiento, oferta irregular,
guardería.
58
INTRODUÇÃO
59
CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS DE IDADE. ATENDIMENTO EM CRE-
CHE E EM PRÉ-ESCOLA. EDUCAÇÃO INFANTIL. DIREITO ASSE-
GURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208,
IV). COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À
EDUCAÇÃO. DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO
PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, §
2º). RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO.
1Vale ressaltar que a redação original do artigo 208, IV, estabelecia o direito às
crianças de zero a seis anos de idade. Porém, com a Emenda Constitucional n.
53, de 2006, tal direito ficou assegurado às crianças de zero a cinco anos de idade.
60
Após essa decisão do STF e da Lei n. 11.494/2007, os re-
flexos foram sentidos por todos os interessados, ou seja, dos tribu-
nais às prefeituras, isso porque, se a justiça anteriormente não
reconhecia expressamente esse direito2, com a decisão do Su-
premo Tribunal Federal, passou a dar efetividade a tal comando,
obrigando os municípios a ofertarem a creche a toda criança, desde
que o pai ou responsável manifestasse interesse. Na verdade, o
pai não tem a obrigação de matricular o filho na creche, mas, sim,
na educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (de-
zessete) anos de idade (art. 208, I, da CF e Lei n. 13.005/2014).
No entanto, a partir do momento que manifesta o desejo de colocar
a criança na creche, surge, em contrapartida, a obrigação de o
Poder Público (município) oferecê-la em quantidade e qualidade
suficientes. Ademais, o município passou a receber um valor do
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e
de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB, para ga-
rantir esse direito. Em síntese: reconheceu expressamente o direito
à creche e garantiu-lhe o financiamento.
Pois bem. Tendo a lei consagrado o direito à creche como
um direito da criança de até 3 anos de idade, impondo a obrigação
de sua oferta pelo município, é óbvio que essa mudança de para-
digma proporcionou discussão no âmbito judicial, não somente em
relação à oferta de vagas, mas também no tocante a outros temas,
como financiamento adequado, férias, qualidade da educação, ali-
mentação, transporte e outros, proporcionando uma verdadeira ju-
dicialização da educação infantil.
O problema é que a judicialização realizada no âmbito do
Poder Judiciário acarreta consequências reais e imediatas, não só
em relação ao poder público (gestor), como também ao processo
pedagógico, envolvendo todos os servidores (com especial atenção
ao professor - executor), crianças, pais e responsáveis.
Tendo como parâmetro tal situação, o presente artigo busca
analisar as consequências da judicialização da educação infantil em
61
relação ao professor, abordando alguns temas específicos e suge-
rindo uma reflexão sobre o problema que atinge grande número de
municípios brasileiros, tendo como foco a questão da qualidade da
educação.
JUDICIALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO
62
Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante
a garantia de:
I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezes-
sete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos
os que a ela não tiveram acesso na idade própria;
II - progressiva universalização do ensino médio gratuito;
III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiên-
cia, preferencialmente na rede regular de ensino;
IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco)
anos de idade;
V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação
artística, segundo a capacidade de cada um;
VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando;
VII - atendimento ao educando, em todas as etapas da educação bá-
sica, por meio de programas suplementares de material didáticoescolar,
transporte, alimentação e assistência à saúde.
§ 1º O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.
§ 2º O não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou
sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.
§ 3º Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fun-
damental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis,
pela frequência à escola. (grifos nossos)
63
que vêm se especializando em educação.
No entanto, a judicialização traz consigo outra faceta, não
muito positiva. Nas citadas carreiras jurídicas, existem profissionais
que desconhecem os meandros da educação, proporcionando
equívocos judiciais com reflexos educacionais por suas ações ou
decisões, embora com fundamentação jurídica legítima. E, muitas
vezes, as consequências atingem diretamente a criança ou o ado-
lescente, e, em outras ocasiões, os próprios professores. Essa rea-
lidade requer uma análise mais ampla a fim de possibilitar a perfeita
fusão do pedagógico com o jurídico, de modo a se cumprir a lei,
sem prejuízo da questão educacional. É o que se passa a analisar,
especificamente, no que diz respeito à educação infantil.
64
para oferecê-la. Existem até súmulas dos tribunais a respeito3.
Dessa forma, o ingresso de uma ação judicial para obtenção de
vaga em creche encontra respaldo no Poder Judiciário, que confere
efetividade ao que estabelece a Constituição Federal.
De um lado, esse direito responde a uma situação socioan-
tropológica muito real de nossas cidades, especialmente aquelas
pautadas por uma metropolização complexa. As famílias, quaisquer
que sejam seus desenhos, buscam a recomposição da renda.
Nesse sentido, os pais se veem obrigados a buscar nichos no mer-
cado de trabalho. A escola vem sendo o lugar por excelência para
deixarem seus filhos aos cuidados de educadores, pois ela é um
locus permanente, sistemático e aberto a todos com apoio do Es-
tado. Por outro lado, as famílias diminuíram seu tamanho, os vizinhos
enfrentam situações similares e a rua tornou-se lugar de preocupa-
ção e mesmo de violência. Daí que a educação infantil tenha se tor-
nado uma necessidade nascida das transformações pelas quais
passam tanto as cidades como as famílias. O direito à educação in-
fantil e o dever do Estado respondem a esse contexto maior.
O problema é que não se pode analisar essa questão rela-
cionando-a apenas ao direito individual ou coletivo. Há necessidade
de se seguirem parâmetros de qualidade, sob pena de se transfor-
marem as creches em depósitos de crianças. Com efeito, as diretrizes
curriculares nacionais para a educação infantil – Resolução CNE/CEB
n. 01, de 07/04/99, a revisão do Parecer n. 20/09, a Resolução n. 5,
de 17/02/09, do CNE e Resolução n. 4, de 13/ 07/10 – definem as di-
retrizes curriculares nacionais gerais para a educação básica e esta-
belecem o número máximo de crianças por professor. Consta
expressamente do Parecer n. 20/09 do CNE, devidamente homolo-
gado em 09/12/09, que a proporção a ser seguida é a seguinte:
3No Estado de São Paulo, o Tribunal de Justiça formulou duas súmulas a res-
peito da vaga em creches.
Súmula 63: É indeclinável a obrigação do município de providenciar imediata vaga
em unidade educacional à criança ou adolescente que reside em seu território.
Súmula 65: Não violam os princípios constitucionais da separação e independên-
cia dos poderes, da isonomia, da discricionariedade administrativa e da anualidade
orçamentária as decisões judiciais que determinam às pessoas jurídicas da ad-
ministração direta a disponibilização de vagas em unidades educacionais ou o for-
necimento de medicamentos, insumos, suplementos e transportes a crianças ou
adolescentes.
65
O número de crianças por professor deve possibilitar atenção, respon-
sabilidade e interação com as crianças e suas famílias. Levando em
consideração as características do espaço físico e das crianças, no caso
de agrupamentos com criança de mesma faixa de idade, recomenda-
se a proporção de 6 a 8 crianças por professor (no caso de crianças de
zero e um ano), 15 crianças por professor (no caso de criança de dois
e três anos) e 20 crianças por professor (nos agrupamentos de crianças
de quatro e cinco anos).
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
........
VII - garantia de padrão de qualidade.
........
Art. 211. A União Federal e os Municípios organizarão em regime de
colaboração seus sistemas de ensino.
§ 1º - A União organizará o sistema federal de ensino e o dos Territórios,
financiará as instituições de ensino públicas federais e exercerá, em
matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a ga-
rantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de
qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Es-
tados, ao Distrito Federal e aos Municípios. (grifos nossos)
66
basta garantir vaga a uma criança na creche, tornando-se neces-
sário garantir a qualidade do serviço ofertado. Porém, quando não
há esse questionamento no âmbito judicial, muitas vezes tornando
a demanda na busca de vaga apenas um acesso, as consequên-
cias são sentidas pelos professores, que são obrigados a suportar
uma carga de alunos maior do que foi estabelecido para a garantia
da qualidade da educação. Essa questão representa um exemplo
claro de como a judicialização interfere no trabalho docente e, con-
sequentemente, na educação das próprias crianças atendidas.
Dessa forma, reputa-se necessário não somente garantir
a vaga, mas saber e acompanhar como a criança será inserida na
escola. Na impossibilidade de pronto atendimento, por falta de pro-
fessores em números suficientes, há necessidade de se aguardar
a regularização dessa situação. Essa solução apresenta-se peda-
gogicamente consequente ao ciclo da existência da criança em opo-
sição ao acúmulo de crianças para um único professor, em total
prejuízo ao seu desenvolvimento. Trata-se de uma avaliação que
deve ser feita para garantir a vaga e a qualidade da creche. A deci-
são judicial que garante a vaga deveria, como consequência lógica,
garantir a qualidade da educação, com o acompanhamento do cum-
primento da decisão, no sentido de saber onde a criança foi matri-
culada e se há o respeito às diretrizes curriculares nacionais para a
educação infantil com relação ao número de alunos por professores.
Ademais, há que se considerar a responsabilidade dos
municípios em relação à educação obrigatória, ora estendida para
as crianças desde os 4 anos e o orçamento disponível. Nesse sen-
tido, cumpre trazer à questão dois pontos importantes. O primeiro
se refere às responsabilidades dos entes federativos no apoio à
educação infantil. Elas não são exclusivas dos municípios. De
acordo com o artigo 23 e artigo 30 da Constituição Federal, essa
responsabilidade deve ser compartilhada com os estados e a
União. É o que é reforçado pela Lei n. 13.005/2014 na primeira es-
tratégia da meta 1:
67
O segundo se reporta ao alinhamento estabelecido pelo
Plano Municipal de Educação em relação à meta 01 e suas res-
pectivas estratégias postas no Plano Nacional de Educação (Lei n.
13.005/2014).
E tem ainda como derradeiro, a questão do financiamento
da creche, que deve obedecer aos critérios estabelecidos no FUN-
DEB, não se concretizando o repasse de dinheiro de forma ime-
diata com a matrícula da criança.
Em síntese, verifica-se que a garantia de uma vaga na
creche envolve muitas outras questões que devem ser observadas,
sob pena de prejudicar o desenvolvimento da criança e uma so-
brecarga ao professor. A garantia de uma vaga reflete em muitas
outras crianças e afeta o trabalho docente, circunstâncias que não
podem ser desconsideradas.
b) Férias escolares
68
Diante da legislação supracitada, só há uma conclusão:
creche é educação. Nessa circunstância, sujeita-se às regras es-
pecíficas da legislação educacional quanto aos dias de trabalho.
Nesse sentido, pontua a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (Lei n. 9394/96):
69
superior ou médio, refutando assim funções de caráter meramente as-
sistencialista, embora mantenha a obrigação de assistir às necessida-
des básicas de todas as crianças.
70
COMINATÓRIA - Obrigação de fazer - Propositura em face do Município
de Salto/SP - Dever do Poder Público de fornecer educação básica, ob-
rigatória e gratuita a criança em unidade de educação infantil próxima
à sua residência, no período integral, observado o período de recesso
- Pedido procedente - Serviço essencial que deve ser prestado ininter-
ruptamente, até nos recessos de férias - Possibilidade, entretanto, do
Poder Público promover eventual redirecionamento das crianças que
utilizarão creche neste período, com a garantia de atendimento de toda
a demanda, providenciando o necessário transporte em caso de trans-
ferência para local distante a mais de dois quilômetros da residência da
criança - Recurso do Município parcialmente provido para este fim. Salto
- Câmara Especial - Relator Pinheiro Franco (Pres. Seção de Direito -
05/10/2015 - Votação: Unânime - Voto n. 29702).
71
intersetorial para a infância e não educacional4. Consta expres-
samente do parecer:
72
da “escola da família”, seria interessante a criação de programa so-
cial “escola em férias”, que não abrangeria apenas as crianças em
idade para creche, mas com outras idades e cujos pais também
precisam trabalhar. Com isso, cumprir-se-ia a lei e não sobrecarre-
garia o professor. E a qualidade da educação estaria garantida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
73
vaga na creche com qualidade e o recesso ou férias escolares, tam-
bém como fundamento na qualidade do ensino ministrado.
Ressalta-se que esses dois problemas decorrentes da ju-
dicialização da educação infantil tem uma ligação direta com o pro-
fessor e sua atividade docente. Mas, outros efeitos também são
sentidos pela administração de um modo geral em face dessa ju-
dicialização e que merecem análise. Trata-se da questão referente
à data da matrícula da criança em creche e a sua consequente ju-
dicialização. Nesse caso, dois problemas são levantados:
5Diferente da redação original do artigo 208, IV, da CF, que citava o “atendi-
mento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade”.
74
b) Há período pré-estabelecido a ser obedecido para a matrícula
nas creches? Essa é a outra questão que traz reflexos diretos para
a administração e que merece apreciação. A rede pública de edu-
cação como um todo estabelece, por meio de resoluções, critérios
e procedimentos para a implantação do processo de atendimento
da demanda escolar. Há um calendário a ser obedecido que serve
para orientação dos pais, bem como da própria administração, para
efeito de planejamento. Com as creches, essa situação não se ve-
rifica, principalmente quando é judicializado esse direito. Isso por-
que, independente do dia ou mês, a decisão judicial impõe a
matrícula, sem levar em consideração um eventual planejamento.
Esse tema acarreta reflexos diretos às crianças, pais e à Adminis-
tração Pública e também requer uma atenção especial. Ressal-
tam-se, no caso, as estratégias 1.3 e 1.4 do Plano Nacional de
Educação, respectivamente:
75
infraestrutura física, o quadro de pessoal, as condições de gestão,
os recursos pedagógicos, a situação de acessibilidade entre outros
indicadores relevantes”.
Segundo o estudo “Impacto do Desenvolvimento na Pri-
meira Infância sobre a Aprendizagem”, realizado pelo Núcleo Ciên-
cia pela Infância (NCPI)6, pesquisas evidenciam que essa qualidade
da creche pode ser conferida por uma série de fatores, dentre eles:
76
REFERÊNCIAS
77
=download&alias=41851-estudo-processos-judicializacao-temas-
tratados-normas-da-ceb-cnepdf&category_slug=maio-2016-
pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 4 de out. 2016.
78
Haroldo Caetano*
Resumo:
A análise da teoria da periculosidade, sua origem histórica no século
XIX e posterior inserção no direito penal brasileiro, bem assim a crítica
ao mito da periculosidade do louco, compõem o plano deste trabalho,
que se volta para a desconstrução dos fundamentos que ainda hoje
permitem a imposição de medidas de segurança a pessoas com
transtornos mentais.
Abstract:
The analysis of the theory of dangerousness, your historical origin in
the 19th century and later insertion in the Brazilian criminal law as well
as the critique of the myth of the dangerousness of the madness,
make up the plan of this work, which turns to the deconstruction of the
foundations that still today allow the imposition of security measures
to the persons with mental disorders.
Resumen:
El análisis de la teoría de la peligrosidad, su origen histórica en el
siglo XIX y posterior inserción en el derecho penal brasileño, así
como la crítica al mito de la peligrosidad del loco, componen el plano
de este trabajo, que se vuelve a la deconstrucción de los fundamen-
tos que aún hoy permiten la imposición de medidas de seguridad a
personas con trastornos mentales.
Penais pela Universidade Federal de Goiás e graduado em Direito pela Pontifícia Uni-
versidade Católica de Goiás. Vencedor do VI Prêmio Innovare com o Programa de
Atenção Integral ao Louco Infrator (PAILI). Promotor de Justiça do Estado de Goiás.
81
Palavras-chave:
Direito penal, periculosidade, medidas de segurança, loucura.
Keywords:
Criminal law, dangerousness, security measures, madness.
Palabras clave:
Derecho penal, peligrosidad, medidas de seguridad, locura.
CONSIDERAÇÕES GERAIS
¹ Nota do autor: Não existiu propriamente uma escola clássica do direito penal.
Tal denominação surgiu da rotulação de Enrico Ferri, que propôs tal definição
com a pretensão de desqualificar os pensamentos contrários aos da escola po-
sitiva, que se tornavam hegemônicos. O que houve foi uma disputa entre posi-
tivistas e os que não admitiam os seus pontos de vista, conforme explanam
Zaffaroni, Nilo Batista, Alejandro Alagia e Alejandro Slokar, em seu Direito Penal
Brasileiro, obra à qual remeto o leitor para uma mais aprofundada compreensão
acerca desse debate interessante. Entretanto, a expressão ganhou tamanha
força que passou a ser ratificada pelos mais variados juristas, notadamente
pelo caráter didático da terminologia, que facilita a compreensão das muitas
tensões provocadas com a inauguração da escola positiva no séc. XIX. Mante-
nho a referência à escola clássica, então, exclusivamente pelo caráter didático
advindo da contraposição entre os argumentos de legitimação do direito penal
que se afastam do determinismo e, mais especificamente, da concepção redu-
cionista biológica do ser humano, defendida pelo positivismo criminológico.
82
instrumento de consecução de fins sociais de prevenção a ele trans-
cendentes” (SANTIAGO, 2007, p. 60). É que por trás das formulações
de Kant e Hegel, bases filosóficas do retribucionismo penal, encon-
tra-se uma filosofia político-liberal, que tem na proporcionalidade entre
a pena e a conduta ilícita uma garantia em favor do indivíduo.
Entretanto, a ideia de livre-arbítrio, fundamental para a Es-
cola Clássica, é negada radicalmente pelos positivistas. Para a Es-
cola Positiva, de raiz determinista, o homem não governa suas
próprias ações e não tem liberdade de agir, pois é condicionado por
vários e complexos fatores, de tal sorte que “a escolha, diante da
opção, aparentemente livre, é resultante daqueles fatores” (CER-
NICCHIARO, 1972, p. 94). Conforme explica Sérgio Carrara, o “bio-
determinismo chocava-se frontalmente com o princípio do
livre-arbítrio, que atribuía aos homens a faculdade de dirigir suas
ações conforme sua vontade, liberta de quaisquer determinações
extraconscientes” (CARRARA, 1998, p. 110).
Para o positivismo criminológico, a infração penal é ex-
pressão sintomática de uma personalidade antissocial, anormal e
perigosa. Reflexo de uma doença ou de uma anomalia, o crime não
deve ter como resposta uma sanção penal de natureza retributiva. A
pena ganha, pois, a companhia da medida de segurança, esta de
caráter preventivo, capaz de alcançar os objetivos da correção, da
educação, da inocuização e da cura, que irão proporcionar a rea-
daptação do delinquente à vida normal e honesta da sociedade.
Se, por um lado, a culpabilidade é a premissa fundamen-
tal de aplicação da pena, será a periculosidade, por outro, o pres-
suposto para a imposição da medida de segurança. Para os
positivistas, o crime é sintoma de uma enfermidade psicossomática
e merece não a retribuição de uma sanção de caráter punitivo. O
criminoso não deve sofrer a repressão da pena, porém, diversa-
mente, deve ser submetido a tratamento com vistas à prevenção
de futuras infrações em face de sua periculosidade. Nessa perspec-
tiva, as medidas de segurança são os meios aptos a alcançar os
objetivos pretendidos.
83
PERICULOSIDADE: EM BUSCA DE UM CONCEITO
84
propósito da definição de Garofalo, assinala ter sido a temibilidade “o con-
ceito-chave, para fins penais, dos positivistas, sendo o antecessor da con-
temporânea teoria da periculosidade” (MECLER, 2010).
Foi sob tal perspectiva que Enrico Ferri propôs a defesa so-
cial como legitimação para a pena. Para ele, o Estado tem o direito
de defender-se dos indivíduos perigosos, sem qualquer diferencia-
ção entre imputáveis e inimputáveis, devendo a culpabilidade ser
substituída pela periculosidade. Conforme sustenta, se cada delito,
desde o mais leve até o mais cruel, é a expressão sintomática de
uma personalidade antissocial, que é sempre mais ou menos anor-
mal ou perigosa, “é inevitável a conclusão de que o ordenamento
jurídico de defesa social repressiva não pode subordinar-se a uma
pretensa normalidade ou intimibilidade ou dirigibilidade do delin-
quente” (CERNICCHIARO, 1972, p. 95).
Segundo os partidários da teoria da defesa social, diante do
homem determinado à prática do crime, a sociedade deve estar de-
terminada a defender-se. Nesse contexto, explica Soler, a pena não
tem nenhuma razão de ser como retribuição; é somente um meio de
defesa (SOLER, 1992, p. 383). Corolário desse entendimento,
então, e diferentemente da culpabilidade (pressuposto de imposição
da pena), que resulta de um juízo sobre o passado e tem no próprio
crime a sua razão de ser, a periculosidade (pressuposto para a apli-
cação da medida de segurança) remete a um olhar rumo ao porvir,
para a probabilidade de o indivíduo praticar um delito no futuro.
O CRIMINOSO NATO
² Expressão com que Enrico Ferri batizou o descobrimento do seu mestre, Cesare
Lombroso (ZAFFARONI et al, 2015, p. 575).
85
espécie humana, um tipo definido pela presença constante de ano-
malias anatômicas e fisiopsicológicas” (BRUNO, 2003, p. 62).
Para Lombroso, era certo que, assim como o degene-
rado, o criminoso possuía estigmas que, na superfície de seu
corpo, indicavam as disposições de sua alma. Entretanto,
86
REFLEXOS DO POSITIVISMO CRIMINOLÓGICO
³ “Cabe assinalar que Lombroso era um grande observador, assim como que
os presos europeus de seu tempo se pareciam com os colonizados. Hoje sa-
bemos que a seleção criminalizadora se efetua de acordo com os estereótipos
e que também, graças a Lombroso, os estereótipos de sua época se nutriam
das características físicas dos colonizados: todo mau era ‘feio’, como um ame-
ricano ou um africano, na conjuntura em que a Europa havia superado a visão
bucólica de seus colonizados e passado a considerá-los selvagens” (ZAFFARONI
et al, 2015, p. 574).
87
da necessidade natural. Mais precisamente, como esclarece Fer-
rajoli, as doutrinas da defesa social representam a síntese de
uma infeliz mistura das teorias de Lombroso sobre o criminoso
nato e sobre a natural desigualdade dos homens com aquelas
de Spencer acerca da sociedade, como organismo social, e as
ideias de Darwin a respeito da seleção e da luta pela existência,
que “se aplicadas a tal organismo, legitimam-no a defender-se
das agressões externas e internas por meio de práticas social-
mente profiláticas” (FERRAJOLI, 2006, p. 249).
A ideologia brutal do positivismo criminológico difundiu-
se, tomando conta da Europa e foi exportada para a América La-
tina. Em nosso continente foi um pensamento que, acolhido por
regimes da mesma forma autoritários e racistas, “serviu para jus-
tificar o desprezo pelo índio, o negro, o mestiço e o mulato, que
são os habitantes ‘naturais’ de nossos cárceres” (ZAFFARONI;
PIERANGELI, 1997, p. 297).
A pena destina-se, na concepção positivista, a quem re-
presente perigo para a sociedade, devendo inclusive sofrer mu-
dança significativa e ser substituída pelas pretensamente
assépticas medidas de segurança. A periculosidade, por seu fun-
damento racista, será identificada dentre os homens classificados
como de pior qualidade, os degenerados, os biologicamente de-
ficientes, que deveriam ser controlados pelos que exercem o
poder, pois se convertem em uma classe social perigosa. Já os
grupos de poder são praticamente invulneráveis a tais medidas
de coerção, pois sua superioridade genética ou biológica os pre-
servam e somente por acidente algum de seus integrantes ficaria
vulnerado (ZAFFARONI; PIERANGELI, 1997, p. 297).
O positivismo criminológico frutificou com incrível intensi-
dade. Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Raffaele Garofalo fizeram
muitas cabeças, de forma que suas ideias ainda continuam vivas na
psiquiatria4 e no nosso sistema punitivo5. Paulo Jacobina faz o alerta
4 Como, por exemplo, Guido Arturo Palomba, para quem “os alienados mentais crimi-
nosos são, salvo raras exceções (quando não há nexo causal entre psicopatologia e
crime), biocriminosos puros (o biológico determina a psicopatologia que leva ao crime)”
(PALOMBA, 2003, p. 188).
5 No direito, embora não sejam poucos os autores que problematizam o assunto, espe-
88
de que o criminoso nato “é um fantasma que assombra não só as
nossas faculdades de direito, mas também as conversas de bote-
quim, as páginas policiais e os repórteres sensacionalistas, sem con-
tar os políticos de extrema direita” (JACOBINA, 2008, p. 79-80).
O delito é o sintoma da personalidade antissocial do delin-
quente, o que autoriza a defesa social por meios que persigam a
prevenção especial dos delitos, para o que penas e medidas de se-
gurança assumem a dupla função de curar o condenado, visto como
doente, e/ou segregá-lo e neutralizá-lo em decorrência da sua peri-
culosidade. Explica Luigi Ferrajoli que a ideia central dessa teoria é
a de que o delinquente é um ser antropologicamente inferior, “mais
ou menos pervertido ou degenerado, e que, portanto, o problema da
pena equivale àquele das defesas socialmente mais adequadas ao
perigo que ele representa”. Nessa perspectiva, prossegue Ferrajoli,
as penas assumem o caráter de medidas apropriadas às exigências
terapêuticas da defesa social, “higiênico-preventivas, terapêutico-
repressivas, cirúrgico-eliminatórias, dependendo do tipo de
delinquente – ocasionais, passionais, habituais, loucos ou natos –
e dos fatores sociais, psicológicos e antropológicos do crime”
(FERRAJOLI, 2006, p. 248-249). Os princípios orientadores das
doutrinas positivistas da defesa social são, assim, a segregação por
tempo indeterminado, a adaptação dos instrumentos defensivos à
respectiva categoria antropológica do delinquente e a revisão
periódica da sentença.
Não se fala em imputabilidade ou inimputabilidade, porém
está presente a responsabilidade moral do delinquente, de vez
que, na acepção de Ferri, o sujeito ativo do delito é “sempre pe-
nalmente responsável, porque o ato é seu, isto é, expressão de
sua personalidade, quaisquer que sejam as condições físico-psí-
quicas em que haja deliberado e agido” (CERNICCHIARO, 1972,
89
p. 95). Se a culpabilidade não é pressuposto da sanção penal, a
periculosidade do criminoso ou, aqui mais precisamente, a peri-
culosidade do louco, toma esse lugar.
90
AFINAL, O LOUCO É PERIGOSO?
91
da marginalidade urbana como classe perigosa, obrigada a convi-
ver no exíguo espaço geográfico das cidades (ZAFFARONI et al,
2015, p. 517). Nesse ambiente de crise, particularmente pelo au-
mento da pobreza, somada ao medo da guerra e outros problemas
sociais derivados das mudanças impostas pelo modo de produção
capitalista, é que se abriu espaço, segundo Rosa Del Olmo, para
“uma ciência que fosse efetiva para o controle da sociedade e para
manter a ordem” (SANTOS, 2015, p. 33-34). A periculosidade surge,
assim, como um estratagema, um disfarce, um embuste para o con-
trole de populações vulneráveis na Europa do século XIX.
Levada a periculosidade para o direito penal, como funda-
mento para a imposição de sanções, num primeiro momento foram
previstas, como se demonstrou, várias hipóteses legais de presun-
ção da periculosidade, em sintonia com aquela proposta de impor
ordem e controle às classes perigosas, de sorte que qualquer indi-
víduo poderia ser marcado como perigoso em decorrência da prática
criminosa, circunstância reconhecida na própria sentença condena-
tória proferida pelo juiz. Agora, em face da flexível conceituação pela
norma penal, perigoso seria somente o louco.
Absolutamente desprovida de fundamento na medicina, a
periculosidade tem nos frágeis argumentos do médico psiquiatra
Cesare Lombroso, todavia, apenas uma explicação artificial, em-
bora tenha sido tão sedutora para tantos. A difícil conceituação da
periculosidade como um atributo humano, cuja configuração pres-
supõe a presença de fatores estranhos ao próprio homem, resul-
tante que é de uma fórmula legal, acaba por expressar, pelas suas
próprias deficiências conceituais, o sofisma que ela representa.
Não há como atribuir-se a um ser humano a condição de perigoso.
Para ser rotulado de perigoso, o homem deve ser reduzido a um
animal aprisionado às suas necessidades naturais.
É importante lembrar, com Fernanda Otoni de Barros-Brisset,
que nem sempre o termo periculosidade se prestou a designar a
qualidade de uma pessoa, tampouco constava dos conceitos em-
pregados na linguagem jurídica. Não se qualificava alguém como
intrinsecamente perigoso. Foi justamente no período compreen-
dido entre o final do século XIX e o início do século XX, que o
termo ganhou o sentido com que hoje é empregado. Antes, o ad-
jetivo perigoso era utilizado como qualquer outro, “um modo de
92
predicar situações e coisas; muito dificilmente encontraremos, nos
registros anteriores ao século XIX, essa palavra usada como qua-
lidade para predicação de pessoas” (BARROS-BRISSET, 2010, p.
20). Até então, certas situações poderiam ser rotuladas de perigo-
sas, mas tal qualidade não se projetava para vincular a pessoa em
si, com a conotação patológica que passou a carregar na lingua-
gem jurídica.
Não obstante a tentativa da antropologia criminal em apon-
tar fundamentos biológicos para o crime, tal concepção só tem
lugar no positivismo criminológico. Somente com base nas teorias
lombrosianas é que se faz possível vincular loucura e perigo.
93
prevê o exame criminológico, procedimento também previsto
para a concessão do livramento condicional, nos termos do art.
83, parágrafo único, do Código Penal, que exige, para o conde-
nado por crime doloso, cometido com violência ou grave ameaça
à pessoa, a constatação de “condições pessoais que façam pre-
sumir que o liberado não voltará a delinquir”. O mesmo Código
Penal, em seu art. 59, prevê ainda a averiguação, pelo juiz, da
personalidade do agente no ato de fixação da pena. Não é di-
fícil perceber que a teoria da periculosidade deixou marcas pro-
fundas e dificilmente será algum dia extirpada por completo do
sistema repressivo penal.
A periculosidade é uma herança lombrosiana maldita, mas
que ainda seduz. É injustificável, exceto para quem não se inco-
moda em face do autoritarismo punitivo, a acomodação de grande
parte dos pensadores do direito penal diante de uma bizarrice que
vem do século XIX, mas que passa distante de qualquer proble-
matização mesmo depois da Constituição de 1988 e, o que expõe
um pouco mais a omissão acadêmica, mesmo em face da clareza
solar dos avançados dispositivos da Lei Antimanicomial, esta que
rompe definitivamente com o mito da periculosidade para estabe-
lecer uma nova ordem no plano da atenção em saúde mental, pau-
tada na liberdade e no respeito à dignidade do louco.
O homem deve ser respeitado em sua dignidade e jamais
poderia ter sido rotulado de perigoso. Perigosa, como demonstrou
o nazifascismo europeu da primeira metade do século XX, é a pró-
pria doutrina da periculosidade. Perigoso tornou-se o direito penal
ao acolher as ideias de Cesare Lombroso.
De sua parte, os manicômios judiciários estão em pleno
funcionamento na maioria dos estados brasileiros, assegurando a
perpetuação do sofrimento de milhares de mulheres e homens a
pretexto de um conceito que jamais se sustentou cientificamente,
uma vez que, e aqui respondendo à indagação inicialmente pro-
posta, não! Definitivamente, o louco não é perigoso!
94
REFERÊNCIAS
95
______. Exposición y crítica de la teoria del estado peligroso.
Buenos Aires: Valerio Abeledo Editor, 1929.
96
Flávio Cardoso Pereira*
Resumo:
A figura do agente infiltrado virtual, introduzida ao ordenamento bra-
sileiro por força da Lei n. 13.441/17, veio suprir lacuna no tocante ao
enfrentamento da crimilalidade cibernética, especialmente em se tra-
tando de crimes contra a dignidade sexual de pessoas menores de
idade. Referido meio de obtenção de prova, se empregado com fulcro
e obediêcia aos princípios de legalidade, proporcionalidade e ultima
ratio, por certo apresentará resultados eficazes na luta contra essa
espécie grave de deliquência.
Abstract:
The figure of the virtual infiltrated agent, introduced to the Brazilian
order by virtue of Law no. 13.441 / 17, provided a loophole for dealing
with cybercrime, especially in relation to crimes against the sexual dig-
nity of underage persons. The aforementioned means of obtaining
proof, if employed with fulcrum and compliance with the principles of
legality, proportionality and ultima ratio, will certainly present effective
results in the fight against this severe species of deliquency.
97
Resumen:
Una figura del agente infiltrado virtual, introducida al ordenamiento
brasileño por fuerza de la ley. 13.441 / 17, veio suprir lacuna no to-
cante ante el enfrentamiento de crimilalidade cibernética, especial-
mente en el tratamiento de crímenes contra una dignidad sexual de
personas menores de edad. Referido medio de obtención de pruebas,
se emplea con fulcro y obediencia a los principios de legalidad, la pro-
porcionalidad y la última proporción, por cierto presenta los resultados
efectivos en la lucha contra la especie grave de deliquencia.
Palavras-chave:
Agente infiltrado, virtual, crime organizado.
Keywords:
Agent infiltrated, virtual, organized crime.
Palabras clave:
Agente infiltrado, virtual, crimen organizado.
98
O AGENTE INFILTRADO
NOTAS ESSENCIAIS E CARACTERÍSTICAS
99
tendo, inclusive, sido incluída entre as técnicas de assistência judicial
previstas no Convênio de Assistência Judicial em Matéria Penal e aceita
pelos Estados Membros da União Europeia, em 29.05.2000 (art. 14.1).
O infiltrado investiga as atividades delitivas estando entra-
nhado no interior da organização criminosa e, segundo nosso ponto
de vista, deverá atuar sem exceder ou violar de forma desnecessária
as garantias constitucionais das pessoas investigadas, utilizando-se
de estratégias de investigação, como o engano e a dissimulação,
para obter dados, informações e provas que venham a comprovar a
prática de delitos graves praticados por membros de um determinado
grupo de delinquentes organizados.
Assim, não tem o agente a intenção de criar nas mentes dos
demais membros do grupo algum propósito delitivo, por isso não
sendo correto falar-se em atos de “provocação”. Ademais, seu obje-
tivo consiste tão somente no ato de ingressar no centro estrutural da
organização criminosa e, aproveitando-se da confiança adquirida
junto aos delinquentes, obter informações e provas que possam aju-
dar as autoridades encarregadas da persecução criminal, visando
ao fim, à desarticulação e à persecução das pessoas envolvidas na
trama delituosa.
A técnica da infiltração necessita de um meio para torná-la rea-
lidade. Haverá de ser uma pessoa física que irá penetrar de forma
camuflada nas estruturas sociais, não necessariamente delitivas, para
cumular quaisquer tipos de dados relevantes e referentes a fatos de
caráter reservado. Para tanto, o simples estabelecimento de suportes
técnicos, como meio de arrecadar informações, não é, no sentido puro
da palavra, uma infiltração. São consideradas como características
básicas e fundamentais a execução de uma infiltração policial, o uso
de identidade falsa pelo agente encoberto, a investigação de deter-
minada classe de delitos classificados como graves, o uso do engano
e da dissimulação para aproximação do grupo criminoso, a conivên-
cia do Estado para com a prática excepcional de crimes de escassa
gravidade pelo infiltrado, desde que observado o princípio da propor-
cionalidade e, por fim, a autorização judicial e sigilosa.
Assim, o êxito da infiltração policial deve ser aferido a partir da
constatação de alguns requisitos básicos e imprescindíveis.
O primeiro requisito seria o caráter excepcional. Como toda me-
dida suscetível de restringir um direito fundamental, deverá a infiltração
100
apresentar um caráter excepcional e, somente se adotará tal medida,
quando não exista outro meio de investigação do delito menos gravoso
para os investigados, o que normalmente traduz-se em que a atuação
do agente infiltrado seja a ultima ratio. Justifica-se esse requisito, vez
que seria totalmente inoportuno e desproporcional a infiltração de
agentes policiais para a investigação de um simples grupo de pessoas
que praticam furtos esporádicos próximos a uma escola.
Em segundo, deverá ser necessária uma resolução (decisão)
expedida pela autoridade judicial. Tal requisito assegura a idoneidade
do método de investigação, obrigando o magistrado a que proceda
a uma análise, de forma pormenorizada, acerca da viabilidade da
concessão da autorização, documento este que tornará legítima a
atuação do infiltrado, mesmo em caso de eventual violação a direito
fundamental do investigado ou imputado.
Em correlação com os primeiros requisitos já abordados,
exige-se, ainda, o denominado juízo de proporcionalidade. Este ter-
ceiro requisito quer significar que, como toda medida restritiva de um
direito fundamental, a atividade do agente encoberto deverá estar
submetida ao princípio da proporcionalidade, no sentido de que o di-
reito ao castigo por parte do Estado não deverá realizar-se a qualquer
preço, senão, com respeito, sempre que necessário e possível, aos
direitos e garantias fundamentais do investigado (os quais, como é
cediço, não se revestem de caráter absoluto).
Em apertada síntese, seriam três as perguntas a serem for-
muladas e respondidas pela autoridade encarregada de formular
uma representação de infiltração (Polícia), ou emitir um parecer ou
requerimento (Ministério Público) ou decidir favorável ou desfavorável
ao início da operação de infiltração (magistrado):
101
Se respondidos positivamente os três questionamentos, poder-
se-á afirmar que a infiltração policial passou pelo filtro de constitucio-
nalidade (à luz do princípio da proporcionalidade), estando apta a ser
colocada em prática, desde que obedecidos os limites impostos pela
Lei n. 12.850/13 e pela resolução judicial do magistrado.
O quarto requisito seria a especialidade. Este requisito estaria
intimamente ligado à existência de indícios suficientes para a impu-
tação de um delito determinado, de natureza grave, que permita afir-
mar a possibilidade de que o sujeito esteja cometendo ou tenha
cometido um crime, de forma tal que a autorização, que permite a
atuação do agente infiltrado, determinará, concretamente e de modo
específico, qual seria o delito ou delitos que se investiga e quais são
as pessoas que provavelmente serão objeto dessa investigação.
A motivação figura como quinto requisito, determinando que
deverá ser argumentado, na autorização judicial, as razões que con-
duziram o magistrado a restringir, pelo menos a priori, um direito fun-
damental pertencente ao investigado. Nesse sentido, deve ser
ressaltada a importância do papel da Polícia e do Ministério Público
no momento de fornecer ao juiz todos aqueles dados, fatos e indícios
racionais de criminalidade organizada, para que se realize correta-
mente a motivação da autorização judicial.
Nesse aspecto em particular, perdeu o legislador brasileiro a opor-
tunidade de inserir nos textos das Leis n. 12.850/13 e 13.441/17 redação
semelhante àquela prevista no ordenamento penal espanhol (art. 282
bis, apartado 3 da LEcrim), no sentido de que “cuando las actuaciones
de investigación puedan afectar a los derechos fundamentales, el
agente encubierto deberá solicitar del órgano judicial competente las
autorizaciones que, al respecto, establezca la Constitución y la Ley, así
como cumplir las demás previsiones legales aplicables”1.
Parece-nos que referida disposição contida na lei espanhola apre-
senta o condão de alertar previamente o magistrado que irá analisar o
pedido de infiltração, suscitando o mesmo a proceder a uma verificação
acerca de eventuais direitos fundamentais a serem violados no caminhar
da operação encoberta, sopesando, à luz dos critérios da proporcionalidade
1
“Quando as atuações de investigação podem afetar aos direitos fundamentais,
o agente infiltrado deve solicitar junto ao órgão judicial competente, as autori-
zações que, a respeito, estabelecem a Constituição e a lei, assim como, cumprir
outras disposições legais aplicáveis".
102
(necessidade, adequação e juízo de ponderação), a viabilidade do de-
ferimento do pleito, de modo a evitar a mitigação desnecessária e de-
sarrazoada de direitos e garantias fundamentais do investigado.
Por fim, tem-se um último e talvez o mais importante requisito
para o êxito da infiltração. Trata-se do controle a ser exercido pelo
juiz e pelo Ministério Público durante o período da operação enco-
berta. O órgão do Parquet, como titular do munus do controle externo
da atividade policial, deve participar de toda a elaboração do orga-
nograma do plano de infiltração. Deve, ademais, durante a operação,
ter acesso às informações a serem recolhidas junto ao infiltrado, jus-
tificando-se tal direito, em razão de ser o Ministério Público quem irá,
durante a persecução penal, utilizar-se das eventuais provas a serem
recolhidas pelos agentes infiltrados junto às organizações criminosas.
Velará assim o parquet pela obediência do infiltrado às disposições
contidas na autorização judicial. Não é pelo fato de o Ministério
Público ser o dominus litis da ação penal, que estará isento de velar
pela legalidade e pelo repúdio às práticas de atos abusivos por parte
dos agentes infiltrados. Da mesma forma, deve o juiz criminal con-
trolar, mesmo que de forma indireta (vez que não poderá participar
da investigação), a atividade de infiltração, a fim de que não se pro-
movam abusos e excessos que, no futuro, além de produzirem
danos irreparáveis aos direitos dos investigados, certamente fulmi-
narão a prova penal a ser produzida durante a instrução criminal.
Em síntese, a esta breve introdução sobre o tema é importante
finalizar, destacando que o infiltrado consiste na figura representada
pela pessoa investida na função policial, todavia, devidamente treinada
para essa situação, que, estando subordinada a outras autoridades
de persecução criminal e utilizando-se de uma identidade falsa, con-
segue penetrar nas entranhas de uma determinada organização cri-
minosa. Para tanto, vale-se o infiltrado do uso de várias técnicas, a
exemplo da dissimulação e do engano, com a finalidade específica de
obtenção de provas e outras informações acerca da prática de delitos
graves pelos membros do grupo delitivo. Por consequência, consegue
o infiltrado, via de regra, oferecer, ao fim da operação encoberta, infor-
mações às autoridades competentes, com o objetivo de colaborar na
desarticulação de toda a estrutura de macro criminalidade2.
2
Com riqueza de detalhes acerca do tema do agente infiltrado, cf. PEREIRA,
103
A LEI N. 12.850 DE 2013
(NOVA LEI DE ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS)
Flávio Cardoso; ALMEIDA FERRO, Ana Luiza; GAZZOLA, Gustavo dos Reis.
Criminalidade organizada. Comentários à Lei 12.850, de 02 de agosto de 2013.
Curitiba: Editora Juruá, 2014, pp. 192-230; PEREIRA, Flávio Cardoso. El agente
infiltrado desde el punto de vista del garantismo procesal penal”. 2. ed. Curitiba:
Editora Juruá Internacional, 2016.
3
Importante destacar também que a infiltração de agentes já estava prevista
no art. 53, I, da Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas), porém, de forma acanhada
e sem previsão dos requisitos necessários a sua operacionalização.
4 Conceito este que restaria revogado quando da edição da Lei n. 12.850/13.
104
Com o advento da Lei n. 12.850/13, houve significativa mu-
dança no panorama do tratamento normativo do tema das organi-
zações criminosas, devendo ser reconhecido um salto na excelência
de qualidade do reconhecimento da importância de detalhamento
legislativo sobre o assunto.
Em apertada síntese, foram estas as principais novidades tra-
zidas pela nova lei de organizações criminosas:
a) novo conceito de organização criminosa (art. 1º, § 1º);
b) organização criminosa por equiparação (art. 1º, § 2º);
c) tipo penal de organização criminosa (art. 2º);
d) meios de obtenção de provas e seus requisitos (art. 3º);
e) tipificação dos crimes ocorridos na investigação e na
obtenção da prova (arts. 18 a 21).
encoberto ou topo, é a figura representada pela pessoa que exerce uma função
policial (com uma identidade falsa) e que devidamente treinado para determi-
nada situação, sob a subordinação das autoridades competentes e contando
105
De outra parte, a infiltração de agentes de polícia poderá se
originar de requerimento pelo Ministério Público ou representação
pela polícia (civil ou federal).
Exige-se, pelo texto do artigo 10, caput, da Lei n 12.850/13 a
“manifestação técnica” do delegado de polícia, quando a medida de
obtenção de provas for solicitada no curso do inquérito policial.
A intenção do legislador teria sido no sentido de que fosse opor-
tunizado à autoridade policial, ou seja, aquele órgão que efetivamente
executará a operação encoberta, opinar sobre a viabilidade da colo-
cação em prática dessa técnica de investigação. Inclusive, seria o mo-
mento para que o delegado de polícia, com atribuições legais, pudesse
ofertar ao magistrado e ao Ministério Público informações úteis sobre
a existência ou não de material humano disponível para infiltrar-se na
organização criminosa, para que relatasse acerca das condições ma-
teriais e estruturais disponíveis para elaboração do plano operacional
sobre o momento para deflagração da operação, etc.
Manifestando-se o órgão policial contrariamente à viabilidade
da operação, ficaria a cargo do juiz, após analisar os fundamentos
ofertados, decidir se acolhe ou não o requerimento ministerial.
Ao contrário, opinando a autoridade policial favorável à infiltra-
ção, por lógica, será desencadeada a montagem do plano operacio-
nal, desde que acolhido o requerimento elaborado pelo Ministério
Público. Outras novidades foram a necessidade de sigilosa autori-
zação judicial fixando os limites da operação, a oitiva obrigatória do
Ministério Público e a demonstração de indícios de infração penal de
que trata o art. 1º da Lei n. 12.850/13. Observa-se que não se falou
em demonstração de indícios de “autoria”, embora sejam estes
normalmente relevantes.
Por outra parte, uma excelente notícia foi a introdução no artigo 10,
§ 2º, de dispositivo no sentido de que somente será admitida a infiltração,
106
se a prova não puder ser produzida por outros meios disponíveis. Reco-
nheceu-se a necessidade concreta de respeito ao princípio da ultima ratio.
Ademais, quanto ao aspecto operacional da operação, positi-
vou-se o prazo de 06 (seis) meses para a operação de infiltração,
admitindo-se prorrogações, desde que justificadas (art. 10, § 3º).
Deverá haver a apresentação de relatório circunstanciado ao
juiz e comprovação pela autoridade solicitante da necessidade da me-
dida, do alcance das tarefas dos agentes quando possível, os nomes
ou apelidos das pessoas investigadas e o local da infiltração (art. 11).
Por fim, citam-se os dispositivos referentes ao sigilo quanto ao
pedido de infiltração (art. 12, caput), ao prazo de 24 (vinte e quatro)
horas para que o juiz decida sobre a legalidade do pedido da opera-
ção (art. 12, § 1º), a possibilidade de sustação da medida em caso
de risco ao agente (art. 12, § 3º), a obediência ao princípio da pro-
porcionalidade (art. 13, caput) e a previsão de exclusão da culpabili-
dade pela inexigibilidade de conduta diversa (art. 13, § único).
Tratou-se, por fim, dos direitos do infiltrado (art. 14).
Em síntese, tem-se que a nova lei de organizações (Lei n.
12.850/13), inobstante críticas pontuais, apresentou avanços signifi-
cativos em matéria de infiltração de agentes, equiparando-se a outros
tantos regramentos internacionais avançados no tocante ao enfren-
tamento à criminalidade organizada.
107
Assim, a utilidade maior da infiltração policial cibernética reside
no uso de identidade fictícia para coletar informações sigilosas (privadas,
em relação às quais há expectativa de privacidade) e na penetração
em dispositivo informático do criminoso a fim de angariar provas8.
A partir de agora, poderão ser deflagradas operações de
investigação mediante a utilização da figura do agente infiltrado
dentro do ambiente virtual da internet, mesmo não se tratando de
hipótese concreta de atuação de uma organização criminosa.
Dentro dessa temática, importante ressaltar que o procedi-
mento mais detalhado de infiltração de agentes previsto na Lei n.
12.850/13 pode e deve ser utilizado para complementar a previsão
legal da infiltração virtual de agentes. Em outras palavras, a infiltração
virtual seria apenas uma espécie do gênero infiltração de agentes.
Justamente por isso, seria perfeitamente possível a adoção
do procedimento de infiltração virtual de agentes para a apuração
de organizações criminosas. Nesse sentido, a nova lei em mo-
mento algum estabelece essa vedação9.
Justifica-se, ademais, tal inovação legislativa trazida pela
edição da Lei n. 13.441/17, vez que, dentre os crimes que podem
ser praticados contra a dignidade sexual de infantes e adolescen-
tes, destaca-se a pedofilia10, tema de moda dentre os problemas
enfrentados pelas sociedades modernas, em razão do incre-
mento e crescimento dos meios tecnológicos, em especial face
aos avanços da rede mundial de computadores (internet).
Assim, tornou-se algo comum a utilização dessa forma de
contato virtual para se iniciar, sem aparente risco, uma amizade
108
do criminoso com uma vítima menor de idade, com o objetivo de
manter com ela, em um futuro próximo, atos de satisfação de las-
cívia sexual.
Além da pedofilia propriamente dita, a internet acaba
sendo utilizada como meio de prática de inúmeras outras infra-
ções penais, dentre as quais se destacam aquelas mencionadas
no caput do art. 190-A do ECA.
Referida prática delitiva11 encontra-se catalogada como
uma das atividades ilícitas mais frequentemente perpetradas
pelas grandes organizações criminosas de cunho transnacional.
Justifica-se tal assertiva em razão dos altíssimos lucros advindos
da exploração, principalmente, de material pornográfico na rede
mundial de computadores.
A infiltração virtual prevista na Lei n. 13.441/17 poderá
ser operacionalizada para o enfrentamento a crimes graves, a
exemplo dos crimes de invasão de dispositivo informático, estu-
pro de vulnerável, corrupção de menores, satisfação de lascívia,
mediante presença de criança ou adolescente e favorecimento
da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança
ou adolescente ou de vulnerável.
É de se destacar que a nova modalidade de infiltração,
a qual podemos denominar como “virtual”, deverá ser levada a
efeito por agente policial devidamente treinado para tal desígnio,
devendo este apresentar aspectos psicológicos condizentes com
a complexidade da operação, perfil intelectual adequado para o
correto desempenho das tarefas inerentes ao plano operacional,
conhecimentos avançados em matéria cibernética e capacidade
de inovar em situações de extrema fragilidade no tocante ao sigilo
do trabalho encoberto.
Caberá ao mesmo obter a confiança daquelas pessoas
envolvidas na trama delitiva e, após o uso de meios e técnicas
de dissimulação no meio virtual, conseguir obter dados e infor-
mações acerca da prática de delitos graves (mencionados na
nova lei), visando à deflagração a posteriori de um plano de desar-
ticulação e persecução aos eventuais delinquentes ou membros de
uma determinada organização criminosa.
109
Interessante mencionar alguns pontos nucleares da in-
filtração virtual, lançando ainda algumas observações críticas
pertinentes ao tratamento legislativo da matéria.
De início, deverá haver autorização judicial devidamente
circunstanciada e fundamentada, explicitando os limites para a
obtenção da prova.
Nesse aspecto, andou bem o legislador pátrio, vez que
acorde com uma concepção garantista do processo penal, nada
mais lógico do que nortear a atuação do magistrado à explicita-
ção de sua decisão sob o manto da justificação das razões de
decidir (imperativo constitucional do art. 93, IX, da CF).
Na mesma linha, deverá ser ouvido o Ministério Público,
quando a representação tiver origem em solicitação formulada
pela autoridade policial.
A legitimidade para o pedido de infiltração poderá partir
tanto do Ministério Público (via de requerimento) ou do delegado
de polícia (via representação).
Uma falha a ser apontada na nova Lei n. 13.441/17 diz res-
peito à ausência de exigência de “manifestação técnica” da autoridade
policial, quando o pedido for formulado pelo representante do parquet.
Ora, poder-se-ia ter o legislador utilizado da mesma linha de
raciocínio da Lei n. 12.850/13 (art. 10, caput), vez que a menção e a
exigência de manifestação técnica do delegado de polícia se traduzem
em requisito primordial e imperioso ao êxito da operação de infiltração.
Imagina-se que o Ministério Público faça um requeri-
mento ao juiz, pleiteando autorização de deflagração de opera-
ção mediante uso de um agente infiltrado virtual, vindo a mesma
a ser acatada, autorizando-se o pedido.
Levada a decisão ao conhecimento da polícia, observa
o delegado de polícia a ausência de pessoa qualificada nos qua-
dros da instituição policial para o desempenho de tal função.
O que fazer? Inserir no mundo virtual um agente sem a ap-
tidão e o preparo necessários ao bom caminhar das investigações?
Não nos parece ser essa a solução adequada, vez que
um dos requisitos basilares, quando da elaboração do plano ope-
racional de infiltração, consiste no recrutamento inicial do agente
portador de perfil técnico e psicológico correspondente à finali-
dade da investigação.
110
Outra observação de interesse diz respeito ao prazo de
90 (noventa) dias, cujo limite não poderá ser excedido, salvo em
caso de eventuais renovações, e ainda desde que não ultrapasse
no seu total o lapso temporal de 720 (setecentos e vinte) dias.
Haveria em todo caso a necessidade de demonstração
por parte do órgão solicitante da efetiva necessidade de opera-
cionalização da infiltração virtual.
O prazo inicial de 90 (noventa) dias parece-nos razoável,
vez que cada operação encoberta apresentará particularidades,
que podem ao fim justificar a elasticidade ou não desse lapso
temporal previsto em lei.
Nessa mesma linha de intelecção, as renovações são
permitidas como consectário lógico ao desenvolvimento da com-
plexa operação de infiltração.
Diante do exposto, parece ter falhado o legislador, ao
prever no art. 190-A, III, da Lei n. 8.069/90 (com as alterações
promovidas pela Lei n. 13.441/17), o prazo máximo dessas pror-
rogações, fixando um patamar único e fechado de 720 (setecen-
tos e vinte) dias para a conclusão da operação de investigação.
Ora, é cediço dentre aqueles que conhecem o mínimo
sobre investigações criminais que cada situação concreta apre-
senta suas particularidades e nuances, devendo ser lembrada a
situação esdrúxula de uma investigação focada em uma estrutu-
rada e poderosa rede de pedofilia, portanto, verdadeira organi-
zação criminosa transnacional, na qual o órgão de persecução
se veja prestes a concluir o trabalho investigativo em data pró-
xima ao prazo limite de 720 (setecentos e vinte) dias.
Nessa hipótese aventada, perder-se-ia todo o trabalho
árduo desenvolvido pelo agente infiltrado virtual, em razão de
este não ter conseguido concretizar a obtenção da prova dentro
do limite fixado por lei12.
12Basta lembrar que grandes operações de infiltração a nível mundial, que re-
dundaram em desarticulação de poderosas organizações criminosas, perdura-
ram por alguns anos, face à complexidade da obtenção de provas que
pudessem incriminar agentes pertencentes a esses grupos delitivos. Cita-se,
como exemplo, a operação levada a efeito pelo agente de codinome “lobo” na
Espanha, a qual desarticulou nos anos oitenta boa parte da estrutura operacio-
nal da organização terrorista conhecida por ETA.
111
Andou melhor o texto da Lei n. 12.850/13, bem como da
maioria dos ordenamentos jurídicos que tratam do tema, ao fixa-
rem um prazo inicial razoável, porém, permitindo quantas forem
as prorrogações, desde que a autoridade solicitante demonstre,
perante o juiz da causa, as razões técnicas e operacionais que
possam justificar a continuidade do trabalho de busca de dados
e informações sobre os delitos graves praticados em detrimento
da dignidade sexual de criança e adolescente.
Cumpre papel relevante nesse contexto, a análise do
caso concreto à luz do princípio da proporcionalidade, o qual pode
ser compreendido como um verdadeiro critério que busca esta-
belecer os limites à intervenção do agente infiltrado virtual na
busca da verdade, equilibrando-se os interesses do Estado e os
direitos das pessoas que figuram como investigadas. Referimo-
nos ao reconhecido e compatibilização do binômio garantia-
eficiência.
Outra nota de destaque no texto da Lei n. 13.441/17 con-
diz com o reconhecimento do princípio da ultima ratio, exigindo-
se que a infiltração dos agentes policiais virtuais só ocorra se a
prova não puder ser obtida por outros meios menos invasivos a
direitos e garantias individuais.
Por essa razão, em conformidade com o § 3º, poder-se-á
admitir que, como toda medida suscetível de restrição de direitos
fundamentais, deverá a infiltração de agentes apresentar um ca-
ráter excepcional, sendo adotada somente na hipótese de ine-
xistência de outros meios de obtenção de provas.
Acertou a nova lei ao prever que as informações da ope-
ração deverão ser encaminhadas diretamente ao juiz responsável
pela operação, visando com isso concretizar e garantir o sigilo ne-
cessário a essa técnica de investigação (art. 190-B, caput, do ECA).
Digna de crítica parece-nos ser a redação dada ao art.
190-C do ECA (inserido por força da Lei n. 13.441/17), a qual não
menciona explicitamente a causa de exclusão de ilicitude ou
causa absolutória na qual estará amparado o agente infiltrado
virtual que ocultar sua identidade no ambiente cibernético, a fim
de colher indícios de autoria e materialidade dos crimes mencio-
nados nos arts. 240, 241, 241-A, 241-B, 241-C e 241-D do Esta-
tuto da Criança e do Adolescente e nos arts. 154-A, 217-A, 218-A
112
e 218-B do Código Penal.
Cita-se, a título de comparação, que a Lei n. 12.850/13
fez constar expressamente no § único do art. 13, que não é puní-
vel, no âmbito da infiltração, a prática de crime pelo agente infil-
trado no curso da investigação, quando inexigível conduta diversa.
E mais grave, ainda, seria a conduta do infiltrado no sen-
tido de ocultar a sua identidade no mundo virtual, infração penal
prevista no ordenamento jurídico brasileiro? Não, em nossa opinião.
Da mesma forma, ficou em aberto, no texto da nova lei
sobre o infiltrado virtual, o tratamento jurídico a respeito da respon-
sabilidade penal, civil e administrativa do agente que, no curso da
investigação devidamente autorizada judicialmente, cometer atos
e crimes que possam redundar em tais consequências jurídicas.
Limitou-se o legislador a apontar que o agente policial in-
filtrado, que deixar de observar a estrita finalidade da investiga-
ção, responderá pelos excessos praticados (art. 190-C, § único,
do ECA, com a alteração promovida pela Lei n. 13.441/17).
Dirão os mais simplistas que bastará aplicar a analogia
para se buscar amparo na tese da inexigibilidade de conduta di-
versa, a fim de justificar eventuais crimes praticados pelo infil-
trado virtual. Não nos apresenta tal justificativa tão acertada.
Por fim, restou positivamente consignado na lei reguladora
do agente infiltrado virtual que, concluída a investigação, todos os
atos eletrônicos praticados durante a operação deverão ser regis-
trados, gravados, armazenados e encaminhados ao juiz e ao Mi-
nistério Público, juntamente com o relatório circunstanciado.
Consectário lógico, deverá, ao fim da operação enco-
berta, assegurar-se a identidade do infiltrado e das crianças e
adolescentes envolvidos no caso sob investigação (art. 190-E do
ECA, introduzido por força da Lei n. 13.441/17).
113
CONSIDERAÇÕES FINAIS
114
Embora se possam vislumbrar equívocos e, principal-
mente, distorções entre as Leis n. 12.850/13 e 13.441/17, andou
bem o legislador brasileiro ao preocupar-se com o enfrentamento
dessa nova modalidade de criminalidade “virtual”, a qual infeliz-
mente atinge um público totalmente vulnerável e passível de
danos físicos e psicológicos irreparáveis.
Espera-se uma vez mais que os atores do processo
penal possam, tal qual um remédio com alta propensão de resul-
tados práticos, utilizar os norteamentos promovidos pela edição
da nova lei, com moderação e cuidado, evitando-se fazer “justiça”
com resultados também gravosos aos direitos das pessoas acu-
sadas ou investigadas pela prática de delitos graves cometidos
contra crianças e adolescentes.
Que se promova o respeito e culto a um processo penal
garantista. No bom sentido, é lógico.
115
REFERÊNCIAS
116
Franciely Vicentini Herradon*
Resumo:
A Lei n. 11.689/2008 provocou acentuadas mudanças quanto ao pro-
cesso e julgamento dos crimes dolosos contra a vida, especialmente
a matéria referente à formulação de quesitos. Assim, circunstâncias
agravantes e atenuantes apreciadas pelo magistrado na segunda
fase da dosimetria não são quesitadas aos jurados, porém, o juiz pre-
sidente somente poderia aplicá-las se sustentadas pelas partes du-
rante os debates. Todavia, a agravante da reincidência e a atenuante
da menoridade são circunstâncias de caráter objetivo, já demonstra-
das nos autos documentalmente e também pelo interrogatório judicial,
o que permitiria ao julgador conhecê-las de ofício, sem qualquer
afronta ao contraditório e à plenitude de defesa, bem como à sobe-
rania dos veredictos, conforme importante precedente do Supremo
Tribunal Federal lastreado no princípio da proporcionalidade da pena.
Abstract:
The Law n. 11.689/2008 promoted drastic changes in procedures
related judgement of deliberate crime committed against human
life, especially concerning issues referring to questions formula-
tion. Thus, aggravating or attenuating circumstances assessed
117
by the magistrate at the second stage of penalty setting, do not
submit to jury’s questioning anymore, but a judge presiding would
be able to apply them only if mentioned by the parts involved du-
ring jury debates. However, the aggravating concerning habitual
offense, as well as attenuating minority are circumstances of ob-
jective nature, as they have already been registered at court re-
cords and trial inquiry, which allows the judge to appoint them by
his own initiative, with no harm to contestation and broad de-
fense, as well as to verdict prevalence, in accordance with im-
portant precedent at Brazilian Federal Supreme Court based on
the penalty proportionality.
Resumen:
La Ley n. 11.689/2208 hizo grandes cambios en el proceso y juzga-
miento de los delitos dolosos contra la vida, especialmente en lo que
atañe a la formulación de los quesitos. Así, las circunstancias agra-
vantes y atenuantes preciadas por el juez en la segunda fase de la
dosimetría de la pena no son objeto de los quesitos a los jurados, sin
embargo, el juez presidente solo podría aplicarlas si sustentadas por
las partes durante los debates. Por otra parte, la agravante de la rein-
cidencia y la atenuante de la menoridad son circunstancias de carác-
ter objetivo, ya demostradas en los autos documentadamente así
como en el interrogatorio judical, lo que permitiría al juez conocerlas
de ofício, sin cualquier afronta al contradictorio y a la amplia defensa,
como tampoco a la soberanía de los veredictos, conforme importante
precedente del Supremo Tribunal Federal basado en el principio de
la proporcionalidad de la pena.
Palavras-chave:
Dosimetria, atenuante, agravante, circunstâncias objetivas.
Keywords:
Penalty dosimetry, attenuating, aggravating, objective circumstances.
Palabras-clave:
Dosimetría, atenuante, agravante, circunstâncias objetivas.
118
INTRODUÇÃO
119
A SOBERANIA DO VEREDICTO DO TRIBUNAL DO JÚRI: DELIMI-
TAÇÃO
1 Nesse sentido: “Se é uma garantia, há um direito que tem por fim assegurar.
Esse direito é, indiretamente, o da liberdade. [...] o Estado só pode restringir a li-
berdade do indivíduo que cometa um crime doloso contra a vida, aplicando-lhe
uma sanção restritiva de liberdade, se houver um julgamento pelo tribunal do
Júri. O Júri é o devido processo legal do agente de delito doloso contra a vida,
não havendo outro modo de formar sua culpa. E sem formação de culpa, ninguém
será privado de sua liberdade (art. 5º, liV). logicamente, é também um direito.
Em segundo plano, mas não menos importante, o Júri pode ser visto como um
direito do cidadão de participação na administração de justiça do país.” (NUCCi,
1999, p. 55). Enaltecendo ainda a importância do tribunal do Júri: “Por sua posi-
ção topográfica no texto constitucional, contemplado entre as garantias funda-
mentais dos cidadãos, vê-se, de logo, o estreito liame da instituição do júri com
os ideais democráticos acolhidos pela nação, a um tempo servindo de garantia
ao acusado, de ser julgado por seus pares, e permitindo a participação popular
na administração da justiça criminal.” (BONFiM; PARRA NEtO, 2009, p.1).
2 Após ser sancionada a lei n. 11.689, de 09 de junho de 2008, a matéria foi discipli-
nada nos artigos 406 a 497 do Código de Processo Penal (Cf. CPP, art. 394, § 3º).
120
por um juiz de direito, seja por um tribunal.
Nesse viés, oportuna a distinção de José Frederico Mar-
ques (1997, p. 80) entre soberania do júri e soberania dos veredic-
tos. Enquanto a primeira refere-se à impossibilidade de outro órgão
do Poder Judiciário, por exemplo, tribunal de Justiça, em sede re-
cursal, modificar o entendimento dos jurados, a segunda atinge o
próprio magistrado presidente, impedindo-o que contrarie a vontade
popular ao proferir sentença com conteúdo diverso do que foi deli-
berado pelos juízes naturais da causa3.
Mas se a decisão dos jurados for manifestamente contrária
às provas dos autos, caberá à parte interessada interpor apelação,
podendo o juízo ad quem determinar a realização de novo julgamento
pelo próprio júri, com outros jurados (CPP, art. 593, iii, d e § 3º), sem
que haja violação ao postulado da soberania dos veredictos.
Frisa-se que o jurado, pelo princípio da íntima convicção,
simplesmente vota, condenando ou absolvendo o réu, de acordo
com sua consciência e sem apego à lei4. Como bem asseverou Ro-
berto lyra, “não é o jurado obrigado, como Juiz, a decidir pelas pro-
vas do processo, contra os impulsos da consciência” (apud
tOURiNHO FilHO, 1997, p. 76). Ele apenas vota “sim” ou “não”
aos quesitos, sem externar qualquer fundamento.
Entende-se por quesitos as perguntas dirigidas aos jurados
para que se pronunciem sobre a imputação que recai sobre o réu,
cujo resultado das respostas materializará a soberania do veredicto.
Ao conjunto de quesitos dá-se o nome de questionário.
Assim, a soberania dos veredictos restringe-se ao mérito
da causa, isto é, os juízes leigos votam os quesitos pela condena-
ção ou absolvição do acusado, cabendo ao juiz de direito, a partir
do resultado obtido, empenhar-se na fixação da reprimenda.
Portanto, o preceito constitucional da soberania dos vere-
dictos não abrange a dosimetria da pena, sendo esta de compe-
tência exclusiva do magistrado presidente.
121
AS CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES E ATENUANTES: NECES-
SIDADE DE ELABORAÇÃO DE QUESITOS ANTES E APÓS A
LEI N. 11.689/2008
5 Cf. Habeas Corpus n. 69.803, segundo o qual o Relator Ministro Paulo Brossard
tência de circunstâncias atenuantes, ou alegadas” (CPP, art. 484, parágrafo único, iii).
8 “É absoluta a nulidade do julgamento, pelo júri, por falta de quesito obrigatório.”
122
todavia, o libelo-crime não mais foi contemplado. Hodier-
namente, é a pronúncia que delimita a acusação em plenário, de-
vendo o juiz, de forma comedida e fundamentada, indicar a
materialidade do fato e a existência de indícios suficientes de auto-
ria ou de participação, bem como citar o dispositivo legal que se
acha incurso o pronunciado, além de eventuais qualificadoras e
causas de aumento de pena (CPP, art. 413, § 1º).
trata-se, pois, do princípio da correlação entre a pronúncia
e o questionário, isto é, “teses não abordadas especificamente na
decisão de admissibilidade da acusação, relacionadas ao tipo penal
incriminador, são vedadas ao órgão acusatório, ao atuar em plenário”
(NUCCi, 2013b, p. 138).
Observa-se, porém, que a novel legislação não mencionou
as chamadas circunstâncias agravantes, previstas nos artigos 61 e
62 do Código Penal, como parte integrante da decisão de pronúncia9.
Desse modo, exsurge a seguinte indagação: As circuns-
tâncias agravantes, tais como as atenuantes, devem ser objeto de
quesitos?
Em outras palavras, compete aos jurados votarem pela
configuração ou não de tais causas legais de elevação ou redução
da pena, assim como ocorria antes da entrada em vigor da lei n.
11.689/2008?
Oportuno ponderar que as circunstâncias agravantes (CP,
arts. 61 e 62) e atenuantes (CP, arts. 65 e 66) são matérias atinen-
tes à fixação da pena, tendo sido adotado em nosso ordenamento
jurídico o sistema trifásico (ou Nelson Hungria), conforme se infere
do artigo 68, do Código Penal10.
As agravantes e as atenuantes podem ser assim definidas
como “circunstâncias objetivas ou subjetivas que não integram a es-
trutura do tipo penal, mas se vinculam ao crime, devendo ser con-
sideradas pelo juiz no momento da aplicação da pena” (CUNHA,
2014, p. 384), mais precisamente, na segunda fase da dosimetria.
123
Ademais, em consonância com o artigo 385 do Código de
Processo Penal, admite-se o reconhecimento de circunstância
agravante ainda que não descrita na denúncia. logo, permite-se
ao magistrado aplicá-la de ofício, malgrado não tenha sido susten-
tada pela acusação11-12 .
O mesmo raciocínio, com mais razão ainda, deve ser em-
pregado acerca das circunstâncias atenuantes, por serem de incidên-
cia obrigatória, posto que sempre atenuam a pena, representando
um direito público subjetivo do réu seu reconhecimento pelo juiz na
fixação da reprimenda, ainda que não arguida pelas partes.
Pois bem. Na seara do tribunal do Júri, com a supressão
do libelo-crime, não se torna mais necessária a formulação de que-
sitos referentes tanto à agravante quanto à atenuante.
pedido de reconhecimento das agravantes, feito pela acusação, para poder aplicar
uma ou mais das existentes no rol do art. 61 do Código Penal (além de outras
que, porventura, surjam em leis especiais). Se o juiz pode o mais, que é aplicar
as circunstâncias judiciais, em que existe um poder criativo de larga extensão [...],
é natural que possa o menos, isto é, aplicar expressas causas agravantes, bem
descritas na lei penal. Não há, muitas vezes, contraditório e ampla defesa acerca
das agravantes e atenuantes, tanto quanto não se dá em relação às circunstâncias
judiciais do art. 59 do Código Penal.” (2013a, p.747). De outro lado, Eugênio Pacelli
e Douglas Fischer sustentam a aplicação da parte final do artigo 385 do Código
de Processo Penal, somente se a circunstância agravante, ainda que não apon-
tada na denúncia ou na queixa, foi debatida, e desde que tenha natureza objetiva,
assim como ocorre com a reincidência (CP, art. 61, i) (2014, p. 794).
124
O artigo 483 do Código de Processo Penal enumera as
matérias que integrarão o questionário, sendo elas: a) a materiali-
dade do fato; b) a autoria ou a participação; c) se o acusado deve
ser absolvido; d) se existe causa de diminuição de pena alegada
pela defesa; e e) se existe circunstância qualificadora ou causa de
aumento de pena reconhecidas na pronúncia ou em decisões pos-
teriores que julgaram admissível a acusação.
Entretanto, Guilherme de Souza Nucci aduz que as cir-
cunstâncias agravantes e atenuantes continuam sendo objeto de
quesitos, de modo que o juiz presidente se submeterá à conclusão
do Conselho de Sentença, não podendo ser reconhecidas na sen-
tença, se foram expressamente rejeitadas pelos jurados (2013b, p.
360). trata-se, porém, de entendimento minoritário.
Por sua vez, a doutrina majoritária, conjugando os artigos 483
e 492, ambos do Código de Processo Penal13, posiciona-se no sentido
de ser desnecessária a elaboração de quesitos referentes às circuns-
tâncias agravantes e atenuantes, uma vez alegadas nos debates14.
Segue-se, assim, o espírito simplificador do questionário,
aliás, um dos grandes objetivos da lei n. 11.689/2008.
Nota-se que o legislador infraconstitucional mencionou no
artigo 492, inciso i, alínea c, do Código de Processo Penal, que os
aumentos ou diminuições da pena deverão ser levados em conta, se
admitidos pelo júri, ou seja, desde que apresentado quesito próprio a
respeito de qualificadoras, majorantes, privilégios e minorantes.
lado outro, no que tange às circunstâncias agravantes e
atenuantes, basta que sejam sustentadas nos debates, para que o
magistrado as aplique na segunda fase da dosimetria da pena, sem
qualquer interferência do corpo de jurados, como se observa da re-
dação do artigo 492, inciso i, alínea b, do diploma processual penal.
A propósito, esse é o entendimento que predomina nos tri-
bunais pátrios, com o advento da lei n. 11.689/200815.
13 Art. 492 do CPP: “Em seguida, o presidente proferirá sentença que: i – no caso
de condenação: a) fixará a pena-base; b) considerará as circunstâncias agra-
vantes ou atenuantes alegadas nos debates; c) imporá os aumentos ou diminui-
ções de pena, em atenção às causas admitidas pelo júri [...].” (destacou-se).
14 Nesse sentido: BADARÓ, 2008, p. 205; CAMPOS, 2014, p. 302; liMA, 2015,
125
EVOLUÇÃO INTERPRETATIVA DA EXPRESSÃO “ALEGADAS
NOS DEBATES” PREVISTA NO ARTIGO 492, INCISO I, ALÍNEA
B, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
126
sujeitando-se à provocação da parte interessada no momento pro-
cessual chamado “debates”, após o encerramento da instrução em
plenário16.
Contudo, em março de 2011, o Supremo tribunal Federal,
ao julgar o Habeas Corpus n. 106.376/MG, criou importante prece-
dente quanto à possibilidade de reconhecimento pelo juiz senten-
ciante da circunstância atenuante referente à confissão espontânea
(CP, art. 65, iii, d), apesar de não debatida em plenário do júri, o
que implicou reforma da decisão exarada pela Quinta turma do Su-
perior tribunal de Justiça17.
Eis o teor da ementa do significativo julgado da maior ins-
tância do Poder Judiciário:
127
defesa, consagrado no art. 5º, XXXVIII, “a”, da Constituição da Repú-
blica. 2. É direito público subjetivo do réu ter a pena reduzida, quando
confessa espontaneamente o envolvimento no crime. 3. A regra con-
tida no art. 492, I, do Código de Processo Penal, deve ser interpretada
em harmonia aos princípios constitucionais da individualização da
pena e da proporcionalidade. 4. Conceder a ordem. (StF - HC 106376,
Relator(a): Min. CÁRMEN lÚCiA, Primeira turma, julgado em 01/03/2011,
PROCESSO ElEtRÔNiCO DJe-104 DiVUlG 31-05-2011 PUBliC 01-
06-2011 REVJMG v. 62, n. 196, 2011, p. 345-353). (destacou-se).
18Nesse sentido, salienta a doutrina que “o mais adequado é que o juiz presi-
dente possa reconhecer as circunstâncias atenuantes comprovadas nos autos,
independentemente de solicitação do defensor do acusado em plenário, quando
o advogado pedir a absolvição. Diferente situação ocorrerá se o defensor tiver
requerido aos jurados a condenação de seu cliente, apenas tendo sustentado
a diminuição de sua carga (v.g., afastamento de qualificadoras, reconhecimento
de privilégio), pois caberá a ele postular ao juiz o reconhecimento da atenuante
que julgar cabível, o que não trará qualquer prejuízo à imagem de coerência
de sua atuação frente aos jurados. Se não o fizer, não poderia, em tese, o ma-
gistrado, nos termos da lei processual, reconhecê-la”. (CAMPOS, 2014, p. 303).
128
A jurisprudência também trilhou o mesmo caminho, como
se vê das razões do acórdão referente à Apelação Criminal n.
374952-82.2006.8.09.0051 interposta perante o tribunal de Justiça
de Goiás, no sentido de que, muito embora não pleiteadas nos de-
bates, tanto a menoridade quanto a confissão, uma vez comprova-
das nos autos, devem ser levadas em consideração na dosimetria
da pena19.
Quanto às circunstâncias agravantes, independente do ca-
ráter subjetivo ou objetivo que apresentarem, prevalece que são re-
pelidas de ser conhecidas pelo juiz de direito, se não constituíram alvo
dos debates, mesmo que devidamente comprovadas nos autos20.
Entretanto, oportuno registrar que no tocante à agravante
da reincidência, em tempo longínquo, mais precisamente em
agosto de 1997, houve o adiamento do julgamento do Habeas Cor-
pus n. 75.256-0/RJ, em virtude de requerimento de vista do Ministro
129
Nelson Jobim que, naquela época, já ousou em pensar que a reinci-
dência, por se tratar de uma questão objetiva, prescindiria de quesito.
O citado ministro do Supremo tribunal Federal, mesmo es-
boçando entendimento de vanguarda, acabou refluindo, adotando
posição de que a reincidência deveria ser objeto de quesito para
ser considerada na dosimetria da pena21.
Ressalta-se, porém, que a decisão em tela ocorreu antes
da reforma gerada pela lei n. 11.689/2008, isto é, quando o Código
de Processo Penal ainda exigia que as circunstâncias agravantes
fossem quesitadas, sob pena de nulidade.
Com efeito, os princípios constitucionais devem orientar a
interpretação e a aplicação das normas infraconstitucionais.
Nessa perspectiva, a expressão “alegadas nos debates”
inserta no artigo 492, inciso i, alínea b, do Código de Processo
Penal, não deve ser interpretada restritivamente, a ponto de tolher
do juiz presidente o reconhecimento da agravante da reincidência,
bem como da atenuante da menoridade.
Como já mencionado, aludidas circunstâncias possuem
status objetivo. Assim, somente as agravantes e atenuantes de na-
tureza subjetiva é que dependeriam de alegações durante os de-
bates, condicionando o juiz presidente a admiti-las no momento da
dosimetria da pena, sob pena de invalidade.
Se a agravante da reincidência e a atenuante da menori-
dade ostentam caráter objetivo e já foram demonstradas nos autos,
corroboradas, inclusive, pelo interrogatório judicial, ocasião em que
o réu é indagado sobre sua qualificação e vida pregressa, qual a
necessidade/utilidade de que tais circunstâncias fossem quesitadas
aos jurados ou mesmo debatidas pelas partes?
Somado a isso, o interrogatório não pode ser desprezado
como exercício da autodefesa e tampouco como elemento de
prova, no momento da aplicação da pena pelo juiz presidente.
Vale a pena repisar que, antes das alterações provocadas
130
pela lei n. 11.689/2008, não se admitia em hipótese alguma que o
magistrado reconhecesse a agravante da reincidência de ofício,
pois, necessariamente, os jurados deveriam ser consultados sobre
sua configuração.
Hodiernamente, não se formula mais quesitos sobre cir-
cunstâncias agravantes e atenuantes.
Destarte, não haveria razão plausível para impedir que o
juiz togado aplicasse a agravante da reincidência e a atenuante da
menoridade, quando da análise da segunda fase de dosimetria da
pena, ainda que não tenham sido objeto de quesitos e sequer sus-
tentadas pelas partes nos debates.
Assim, desde que a matéria tenha sido ventilada nos autos
e durante o plenário, ainda que não especificamente na etapa dos
“debates” (CPP, arts. 476-481), pode e deve ser conhecida pelo juiz
de direito a circunstância de natureza objetiva, seja agravante, seja
atenuante.
Negar ao magistrado o conhecimento de ofício de tais cir-
cunstâncias implica um apego exacerbado à forma, por meio de
uma interpretação meramente literal, quando o mais prudente e ra-
zoável seria a aplicação de uma interpretação sistemática, mor-
mente com os princípios constitucionais da individualização da
pena e da proporcionalidade.
Nem se diga que haveria cerceamento de acusação ou de
defesa, pois tanto as partes como os jurados tiveram acesso à exis-
tência das circunstâncias genéricas, não só pelos documentos car-
reados aos autos, mas também pelas declarações do réu em seu
interrogatório judicial.
Outrossim, no que diz respeito à agravante da reincidência,
calha salientar que está ela intimamente relacionada com a análise
da pena-base, na fase do artigo 59 do Código Penal referente aos
antecedentes, tanto é assim que, se o acusado apresentar sen-
tença penal condenatória com trânsito em julgado por fato crimi-
noso anterior, não poderá servir ela ao mesmo tempo para elevar
a pena como circunstância judicial e como circunstância agravante,
sob pena de haver bis in idem22. Nesse caso, costuma-se valorar a
22 Eis o teor da Súmula 241 do StJ: “A reincidência penal não pode ser considerada
131
condenação transitada em julgado na segunda fase de fixação da
reprimenda, como agravante da reincidência.
Por conseguinte, mesmo os adeptos do entendimento de
que a circunstância agravante da reincidência não pode ser reco-
nhecida pelo juiz presidente, sem a provocação da acusação, na
prática, resultará idêntica elevação da pena no momento de apreciar
a circunstância atinente aos antecedentes do acusado (CP, art. 59).
Ora, há verdadeiro consenso de que o magistrado aprecia
livremente as circunstâncias judiciais descritas no artigo 59 do Código
Penal, na primeira fase da dosimetria da pena no procedimento es-
calonado do Júri, independente de qualquer alegação das partes.
logo, ainda que impedido seja o juiz togado de conside-
rar a condenação penal definitiva como agravante da reincidência,
fatalmente a levará em conta quando da análise das circuns-
tâncias judiciais (CP, art. 59), notadamente aquela referente aos
antecedentes.
Além disso, não se pode perder de vista que, na fase do
artigo 422 do Código de Processo Penal é bastante comum ao
órgão acusatório requerer como diligência a juntada de certidão de
antecedentes atualizada do pronunciado, constando eventual sen-
tença e seu trânsito em julgado. E qual seria então a finalidade
desta providência? Por óbvio, em caso de condenação, a elevação
da pena pelo reconhecimento da reincidência 23.
Assim, se a mais alta Corte de Justiça brasileira admitiu a
possibilidade de reconhecer as atenuantes de cunho objetivo de
ofício pelo juiz sentenciante, impõe-se a adoção de idêntico critério
em relação à agravante da reincidência de natureza objetiva, sob
pena de clara violação aos princípios da igualdade entre acusação
e defesa24 e da proporcionalidade na aplicação da pena.
acusação e defesa. Mas quando se afirma que as duas partes devem ter trata-
mento paritário, isso não exclui a possibilidade de, em determinadas situações,
dar-se a uma delas tratamento especial para compensar eventuais desigualda-
des, suprindo-se o desnível da parte inferiorizada a fim de, justamente, resguar-
dar a paridade de armas.” (FERNANDES, 2000, p. 50).
132
O INTERROGATÓRIO COMO FONTE DE DADOS RELEVANTES
PARA O RECONHECIMENTO DA REINCIDÊNCIA E DA ME-
NORIDADE
133
idade, estado civil, filiação, profissão, grau de instrução, residência
etc.; a segunda é o interrogatório de individualização, consistente
na obtenção de dados sobre a vida pessoal do acusado, incluindo
sua vida pregressa, sendo a ele indagado se já foi preso ou proces-
sado alguma vez, se sofreu condenação e o quantum da pena, se
já cumpriu a reprimenda etc.; e, a terceira, refere-se ao interrogatório
de mérito, oportunidade concedida ao infrator para apresentar sua
versão a respeito da imputação acusatória (2013a, p. 444-447).
inegável, assim, que o interrogatório, além de cumprir pri-
mordialmente a função de autodefesa, também é meio de prova
contra ou a favor do réu, podendo materializar perante as partes,
os jurados e o juiz presidente, inclusive, a presença de certas ate-
nuantes, como a menoridade26 (CP, art. 65, i), quando o réu declara
sua idade ou a data de nascimento (interrogatório de qualificação),
bem como a agravante da reincidência27 (CP, art. 61, i), ao ser
questionado sobre sua vida pregressa, isto é, os antecedentes cri-
minais consistentes em condenações definitivas (interrogatório de
individualização).
Não se desconhece, é claro, que para o reconhecimento
da agravante da reincidência, exige-se certidão de trânsito em jul-
gado de sentença penal condenatória, ao passo que, para a ate-
nuante da menoridade, seria necessário cópia de certidão de
nascimento ou outro documento pessoal equivalente (CPP, art. 155).
Ademais, tanto a agravante da reincidência quanto à ate-
nuante da menoridade possuem indiscutivelmente caráter objetivo,
haja vista que foram concebidas documentalmente nos autos, não
pairando, em tese, dúvidas quanto às suas existências.
134
Salienta-se ainda que, a despeito das críticas existentes
quanto à incidência do artigo 385 do Código de Processo Penal,
sob o argumento de que o reconhecimento de agravantes não ale-
gadas afrontaria os princípios do contraditório e da ampla defesa e
o próprio sistema acusatório, definitivamente, essa situação não
atinge a reincidência, posto não se tratar de circunstância relacio-
nada ao fato imputado, mas de uma condição pessoal do réu, o
que dispensa sua narrativa na peça inicial acusatória, bastando que
esteja documentalmente demonstrada por certidão de condenação
definitiva28.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
28Na verdade, na maioria das vezes, somente se toma ciência acerca da reinci-
dência do acusado após o recebimento da denúncia, durante o trâmite proces-
sual, com a juntada de certidão de antecedentes criminais. Em sentido contrário,
“ainda que na pronúncia não haja necessidade de fazer referência a circunstân-
cias agravantes, [...] elas devem ter uma descrição mínima implícita na denúncia
ou nas alegações finais para que possam ser aplicadas pelo juiz presidente em
sua sentença condenatória, ato que não possibilita uma inovação em plenário,
como fosse viável rebater a exposição sem oportuna produção de provas, sur-
preendendo a defesa que não estará preparada para demonstrar a não incidên-
cia da circunstância legal.” (CANO; ANtUNES; DOMiNGUES, 2004, p. 334).
135
tanto é assim que, para corrigir essa anomalia, o Supremo
tribunal Federal permitiu que o magistrado reconhecesse a ate-
nuante de natureza objetiva, como a menoridade e a confissão,
ainda que não debatida em plenário, conforme decisão exarada no
Habeas Corpus n. 106.376/MG.
Malgrado os tribunais superiores não tenham enfrentado
ainda o tema29, o mesmo raciocínio deve incidir no que toca à agra-
vante da reincidência, posto que, tratando-se de matéria devida-
mente comprovada nos autos através de certidão e não tendo sido
objetada pelas partes, inexiste motivo para que não seja levada em
conta diretamente pelo juiz sentenciante.
Só haveria sentido em condicionar a aplicação da reinci-
dência na dosimetria da pena, se fosse obrigatória sua quesitação!
lado outro, as agravantes de ordem subjetiva e que en-
volverem questões de fato devem ser levantadas pelo órgão acu-
satório durante os debates, abstendo-se o magistrado de
conhecê-las de ofício, por manifesta violação ao contraditório e à
plenitude da defesa.
Certo é que a discussão em questão perderia o sentido se,
em plenário do tribunal do Júri, houvesse promotores de justiça e
advogados talhados à função de verificar com acuidade a presença
de agravantes e atenuantes e, de conseguinte, sustentá-las durante
os debates, o que muito facilitaria a tarefa do julgador em aplicar
corretamente e com justiça a pena ao condenado.
todavia, é cada vez mais recorrente a ausência de alega-
ções do órgão acusatório e da defesa durante os debates, quanto
à presença de causas legais que interferirão na fixação da pena.
impedir que o juiz presidente do tribunal popular dose de-
vidamente a reprimenda, por deficiência na atuação do órgão acu-
satório e da defesa, significa tolher a consciência jurídica do
julgador, forçando-o a ignorar a incidência de uma agravante e/ou
atenuante de ordem objetiva, quando seu convencimento aponta
justamente que elas indubitavelmente existem.
29Em pesquisa jurisprudencial realizada até o término deste trabalho, não houve
o registro de qualquer pronunciamento judicial acerca da admissão ou não da
reincidência, ainda que tal agravante não tenha sido alegada pelo órgão acu-
satório durante os debates.
136
Por derradeiro, se as circunstâncias agravantes e atenuan-
tes não figuram mais como quesitos obrigatórios, não há que se
falar em ofensa à soberania do veredicto do tribunal do Júri ou a
qualquer outro princípio, na hipótese de o juiz de direito conhecê-
las diretamente na fixação da pena.
REFERÊNCIAS
137
BRASil. Superior tribunal de Justiça. Habeas Corpus 246.398/AM. Rel.
Ministro Sebastião Reis Júnior. Sexta turma, julgado em 05/03/2013,
DJe 13/03/2013. Disponível em: < https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/
inteiroteor/?num_registro=201201275847&dt_publicacao=13/03/2013>.
Acesso em: 28 jun. 2015.
138
E3o+criminosa%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/p3dd3f
m>. Acesso em: 28 jun. 2015.
139
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva,
2004.
_____. Manual de Processo Penal. 3. ed. Bahia: Editora Jus Podivm, 2015.
140
MiRABEtE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 8. ed. São Paulo: Atlas, 1998.
_____. Tribunal do Júri. 4. ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 2013b.
PACElli, Eugênio. Curso de Processo Penal. 16. ed. São Paulo: Atlas,
2012.
141
142
Pedro de Mello Florentino⃰⃰
Resumo:
A Lei Nacional de Adoção (Lei n. 12.010/09) assegurou a obriga-
toriedade dos cadastros de adoção, estabelecendo rígida obediên-
cia à ordem dos inscritos, prevendo somente três exceções à
adoção direta ou intuitu personae. Apesar das vantagens trazidas
pelo Cadastro Nacional de Adoção (CNA), uma boa parte das ado-
ções no país são realizadas fora do CNA. O objetivo central do
trabalho é traçar parâmetros para o reconhecimento legal da ado-
ção intuitu personae, além das hipóteses expressamente previs-
tas, quando pretendida por postulantes previamente habilitados
ou por interessados sem habilitação. A análise é feita a partir do
direito à convivência familiar, dos princípios da proteção integral e
do superior interesse. Envolve, por sua vez, o reconhecimento de
valor jurídico aos vínculos de apego, desenvolvidos até por recém-
nascidos, considerando que o rompimento abrupto causa sérios
danos psicológicos à criança, que serão sentidos na fase adulta.
Abstract:
The National Adoption Law (Law No. 12,010/09) made mandatory
the adoption register, establishing rigid obedience to the order of
names enrolled in the register, foreseeing only three exceptions
to the direct adoption or intuitu personae. In spite of the advanta-
ges brought by the National Adoption Register (NAR), a large
number of adoptions in the country is made out of the NAR. The
core goal of this work is to establish parameters to legal recognition
145
of intuitu personae adoption, besides the hypothesis expressly fo-
reseen, when intended by candidates previously registered in the
NAR or by not-registered candidates. The analysis is made based
on the right to family life, on the principles of integral protection and
on the major interest. It involves the acknowledgment of legal value
to attachment relationships, developed even by newborns, consi-
dering that its abrupt rupture causes serious psychological dama-
ges to the children, which will be felt in the adult phase.
Resumen:
La Ley Nacional de la Adopción (Ley n. 12.010/09) assegura la ob-
ligatoriedad de los registros de adopción, y fija la obediencia al
orden de los inscritos, previendo solamente tres excepciones a la
adopción directa o intuitu personae. Aunque haya ventajas en el
Registro Nacional de Adopción (RNA), parte considerable de las
adopciones en el país son realizadas fuera de este registro. El ob-
jetivo principal de este proyecto es trazar parámetros para el reco-
nocimiento legal de la adopción intuitu personae, además de las
hipótesis expresamente contempladas, cuando pretendida por
postulantes previamente habilitados o por interesados sin habilita-
ción. El análisis está basado en el derecho a la convivencia familiar,
en los principios de la protección integral y del superior interés.
Comprende el reconocimiento del valor jurídico a los vínculos de
apego, desarrollados incluso por recién nacidos, teniendo en
cuenta que la ruptura abrupta de ellos desencadena serios daños
psicológicos al niño, sentidos en la edad adulta.
Palavras-Chave:
Adoção intuitu personae, adoção consensual, Cadastro Nacional
de Adoção (CNA), adoção à brasileira.
Keywords:
Adoption intuitu personae, Consensual adoption, National Adoption
Register (NAR), “Adoção à brasileira”.
Palabras-clave:
Adopción intuitu personae, Adopción consensual, Registro Nacional
de Adopción (RNA), “Adopción a la brasileña”.
146
INTRODUÇÃO
didato domiciliado no Brasil não cadastrado previamente nos termos desta Lei
quando:
I - se tratar de pedido de adoção unilateral;
II - for formulada por parente com o qual a criança ou adolescente
mantenha vínculos de afinidade e afetividade;
III - oriundo o pedido de quem detém a tutela ou a guarda legal de
criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de
convivência comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não seja
constatada ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas nos arts.
237 ou 238 desta Lei.
147
Mesmo assim, passados mais de seis anos da vigência da
nova legislação, uma boa parte dos processos de adoção no Brasil
tratam de adoções fora do CNA, como é o caso da adoção dirigida
ou intuitu personae, em que, em uma das hipóteses mais comuns, a
genitora escolhe a pessoa ou o casal que adotará seu filho, indepen-
dentemente de estarem previamente habilitados.
Nesse contexto, considerando os princípios que estruturam
a legislação da infância e juventude, a teoria do apego, que procura
explicar, no âmbito da psicologia, o surgimento da ligação afetiva
entre a criança e a pessoa que dela cuida, independente de vínculo
biológico, assim como as consequências de uma ruptura forçada,
este artigo procurará traçar alguns parâmetros em que a adoção di-
rigida deve ter a sua legalidade reconhecida, regularizando a situa-
ção de crianças e adolescentes adotados na informalidade, com
privilégio aos vínculos de cuidado amoroso, essenciais ao desenvol-
vimento saudável para a fase da vida adulta.
4Art. 1º. Esta lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.
5Art. 3º. Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições
públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas
ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior
da criança.
148
doutrina da situação irregular do menor. Nesse contexto, ao tratar da
adoção, o ECA assegurou que a medida será deferida quando apre-
sentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos le-
gítimos6, ou seja, a adoção passou a ser entendida como a busca
de uma família para uma criança e não uma criança para uma família
(RIBEIRO, 2012, p. 179).
No ano de 2009, o ECA passou por grandes modificações
introduzidas pela Lei n. 12.010, chamada de Lei Nacional de Adoção,
que procurou aperfeiçoar a sistemática prevista para a garantia do
direito à convivência familiar, trazendo, nesse propósito, detalhada
regulamentação ao instituto da adoção, sem desconsiderar os prin-
cípios da proteção integral e do superior interesse.
Ao comentar a Lei n. 12.010/09, Paulo Hermano Soares Ri-
beiro bem observou:
6 Art. 43. A adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o
149
representando a principal ferramenta disponibilizada aos juízes das
varas da infância e juventude para acelerar os processos de adoção
em todo o país, uma vez que uniformiza as informações, possibili-
tando que pretendentes de um estado possam adotar uma criança
de outro estado (RIZZARDO, 2014, p. 521).
Conforme previsto pela Lei Nacional de Adoção, as pessoas
interessadas em adotar devem passar por um procedimento de ha-
bilitação, onde é averiguado se possuem condições psicológica e fi-
nanceira para assumirem uma filiação socioafetiva. Uma vez
habilitados, os postulantes são inscritos no cadastro, sendo que a
convocação será feita de acordo com a ordem cronológica de habi-
litação e conforme a disponibilidade de crianças ou adolescentes
adotáveis. Existe, contudo, um subcadastro para postulantes resi-
dentes no exterior, que somente será consultado diante do insucesso
em se obter uma família substituta de habilitados residentes no país.
Além da agilidade do procedimento, ampliando o cruza-
mento de dados da lista de postulantes com a lista de crianças e ado-
lescentes aptos a serem adotados, o CNA traz outras vantagens,
como a de evitar que crianças sejam entregues a pessoas não ca-
dastradas, cuja aptidão para adotar ainda não foi certificada por
equipe interprofissional, ou, ainda mais grave, que a entrega seja
feita em troca de dinheiro ou outro benefício.
Ao prever a obrigatoriedade dos cadastros, a Lei Nacional
de Adoção buscou dificultar as adoções diretas a postulantes não
habilitados. Mesmo assim, previu expressamente três exceções, apli-
cáveis somente a candidatos residentes no Brasil (artigo 50, pará-
grafo 13). Elas ocorrem quando: a) se tratar de pedido de adoção
unilateral; b) for formulada por parente com o qual a criança ou ado-
lescente mantenha vínculos de afinidade ou afetividade; ou c)
oriundo o pedido de quem detém a tutela ou a guarda legal de
criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de
tempo de convivência comprove a fixação de laços de afinidade e
afetividade, e não seja constatada a ocorrência de má-fé ou dos cri-
mes previstos nos artigos 237 e 238 do ECA7.
7 Art. 237. Subtrair criança ou adolescente ao poder de quem o tem sob sua
guarda em virtude de lei ou ordem judicial, com o fim de colocação em lar subs-
tituto.
150
Sobre a obrigatoriedade dos cadastros e as exceções trazi-
das expressamente pela lei, Rolf Madaleno comentou:
151
Jurimetria (ABJ), com dados dos Tribunais de Justiça dos Esta-
dos de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Santa Catarina,
Rio Grande do Sul, Distrito Federal e Territórios, Pará e Pernam-
buco, apontou que apenas 29% das adoções ocorrem no CNA:
152
Chama-se de adoção intuitu personae quando há o desejo da mãe de
entregar o filho a determinada pessoa. Também é assim chamada a
determinação de alguém em adotar uma certa criança. As circunstân-
cias são variadas. Há quem busque adotar o recém-nascido que en-
controu no lixo. Também há esse desejo quando surge um vínculo
afetivo entre quem trabalha ou desenvolve serviço voluntário com uma
criança abrigada na instituição. Em muitos casos, a própria mãe en-
trega o filho ao pretenso adotante. [...] (2011, p. 498).
8Art. 242. Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem;
ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente
ao estado civil:
Pena – reclusão, de dois a seis anos.
Parágrafo único. Se o crime é praticado por motivo de reconhecida
nobreza:
Pena – detenção, de um a dois anos, podendo o juiz deixar de aplicar a pena.
153
mas são autorizadas pelos artigos 459 e 16610 da mesma legisla-
ção, que cuidam da adoção consensual. Esses dispositivos foram
introduzidos pela Lei n. 12.010/2009 e devem ser interpretados
em coadunação com os artigos 50, §13, e 197-E, §1º11, que tratam
de exceções ao cadastro prévio e da obediência à ordem crono-
lógica das habilitações.
Se a regra do parágrafo 1º do artigo 197-E autoriza a fle-
xibilização da fila do cadastro nas hipóteses excepcionais do pará-
grafo 13 do artigo 50, ou seja, para postulantes não cadastrados,
com maior razão, a ordem cronológica deve ser relativizada nas
adoções dirigidas em que os postulantes se encontram previa-
mente inscritos no CNA, desde que comprovado, no caso em con-
creto, ser essa a melhor solução no interesse do adotando.
Defendendo a legalidade da adoção consentida a casais
previamente habilitados, vejamos o posicionamento de Silvana
do Monte Moreira, Presidente da Comissão de Adoção do Instituto
Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM):
referidos no art. 50 desta Lei, sendo a sua convocação para a adoção feita de
acordo com ordem cronológica de habilitação e conforme a disponibilidade de
crianças ou adolescentes adotáveis.
§1º A ordem cronológica das habilitações somente poderá deixar de ser
observada pela autoridade judiciária nas hipóteses previstas no §13º do art. 50 desta
Lei, quando comprovado ser essa a melhor solução no interesse do adotando.
154
aceitação tem base em suposto conflito com relação à interpretação
literal do parágrafo 13, do art. 50, em cotejamento com o artigo 166,
visto que a interpretação de tal parágrafo, perfunctoriamente, induz a
um pseudo entendimento de revogação do art. 166 do ECA.
Entendemos, contudo, assim como vários outros operadores do di-
reito, que se o legislador tivesse a intenção de revogar tal artigo o teria
feito e não o manteria na mesma lei. Não se trata de erro material, o
artigo 166 subsiste e é claro no que determina, através da inclusão,
pela própria Lei n. 12.010/2009, dos parágrafos de 1º ao 7º, vez que
o objetivo dos parágrafos, de conformidade com a hermenêutica jurí-
dica, é o de dar especificidade à matéria de que trata o caput.
Assim, com base no acima aduzido, é nosso entendimento que a ado-
ção consentida é juridicamente possível, desde que realizada por pes-
soas previamente habilitadas.12
155
eleger quem vai ficar com o filho depois da morte, não se justifica
negar o direito de escolha a quem dar em adoção.14
nografia/Textos/Maria%20Berenice%20-%20Adocao%20e%20a%20espera%20de%
20amo.pdf>. Acesso em: 16 jul. 2016.
156
pois retiram a adoção do controle e da fiscalização do Poder Ju-
diciário, limitando-o a um mero órgão homologador de situações
já consolidadas.
Não bastasse, a aceitação da adoção intuitu personae
evita condutas criminosas, como a adoção à brasileira, que, den-
tre tantas irregularidades, privam a criança do direito de conhecer
sua origem genética, assegurado aos adotados15.
Gradativamente, os casais interessados se sentirão mais
motivados a se submeterem ao procedimento de habilitação, au-
mentando a fiscalização e, consequentemente, a proteção às
crianças adotadas.
Sobre a necessidade de se reconhecer a adoção intuitu
personae, transcrevemos trecho da autorizada doutrina de Gal-
dino Augusto Coelho Bordallo:
O registro de filho alheio como próprio é situação incorreta que não deve
ser aceita, sob os argumentos que é menos trabalhoso agir desta forma
do que propor a ação de adoção. Há, no sistema jurídico, instituto que
tem por finalidade única tornar jurídica a paternidade de fato já existente,
a adoção. Não se deve aceitar que as pessoas usem de meios ilegais
para obter o mesmo fim. Para evitar estas situações, devemos buscar
instrumentos que retirem das pessoas o medo de procurar nas varas
da infância o meio correto para regularizar a situação de afeto que já
possuem com relação a uma criança. Devemos, para tanto, aceitar as
adoções intuitu personae, conforme exposto no subitem anterior, pois
esta é a única forma que o Estado terá de controlar o estabelecimento
das filiações socioafetivas e verificar se as crianças estarão sendo pro-
tegidas de forma efetiva. (apud MACIEL, 2016, p. 387).
15Art. 48. O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como
de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus
eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos.
157
não podem ter seu direito fundamental à convivência familiar pre-
judicado para serem recolhidas a um abrigo. O zelo deve ser dado
à qualidade dos vínculos estabelecidos pela adoção, e não à
ordem cronológica da fila do cadastro de adotantes, sob pena de
se protegerem as pessoas habilitadas em detrimento das crianças
adotadas, cujo superior interesse é resguardado pela Lei Nacional
de Adoção.
158
No entanto, boa parte da doutrina tem defendido, ao
nosso ver de forma acertada, a legalidade das adoções intuitu per-
sonae, mesmo com postulantes não habilitados, desde que verifi-
cada a consolidação de vínculos socioafetivos entre os envolvidos.
Para tanto, as exceções dispostas no artigo 50 são inter-
pretadas de forma exemplificativa, excluindo-se a interpretação
restritiva e literal do dispositivo.
Nesse sentido, vejamos a explicação de Paulo Hermano
Soares Ribeiro:
159
Além da doutrina, esse posicionamento tem sido acolhido
por parcela significativa da jurisprudência17, inclusive do Superior
Tribunal de Justiça. Vejamos a ementa de conhecido precedente
desse Tribunal Superior:
160
IV - Mostra-se insubsistente o fundamento adotado pelo Tribunal de
origem no sentido de que a criança, por contar com menos de um ano
de idade, e, considerando a formalidade do cadastro, poderia ser afas-
tada deste casal adotante, pois não levou em consideração o único e
imprescindível critério a ser observado, qual seja, a existência de vín-
culo de afetividade da infante com o casal adotante, que, como visto,
insinua-se presente;
V - O argumento de que a vida pregressa da mãe biológica, depen-
dente química e com vida desregrada, tendo já concedido, anterior-
mente, outro filho à adoção, não pode conduzir, por si só, à conclusão
de que houvera, na espécie, venda, tráfico da criança adotanda. Ade-
mais, o verossímil estabelecimento do vínculo de afetividade da menor
com os recorrentes deve sobrepor-se, no caso dos autos, aos fatos
que, por si só, não consubstanciam o inaceitável tráfico de criança;
VI - Recurso Especial provido.18
161
No entanto, essas providências desconsideram estudos
que a psicologia reconhece há muitas décadas, ignorando os efei-
tos adversos que a ruptura de um vínculo seguro de amor pode
causar ao desenvolvimento saudável de uma criança, mesmo que
menor de 3 (três) anos.
Ainda na década de 40 do século passado, o psiquiatra
e psicanalista britânico John Bowlby começou a desenvolver a
chamada teoria do apego, a partir do estudo interdisciplinar do
comportamento de crianças órfãs e sem lar logo após a Segunda
Guerra Mundial.19
Os trabalhos de Bowlby são de reconhecida importância
para a psicologia e foram fonte para o desenvolvimento de diver-
sas outras pesquisas relacionadas ao desenvolvimento da vincu-
lação afetiva entre crianças e seus cuidadores, bem como as
consequências de eventual rompimento abrupto.
Ao tratarem da teoria do apego, em parecer psicológico
coletivo sobre a formação e rompimento de laços afetivos enco-
mendado pela ANGAAD – Associação Nacional de Grupos de
Apoio à Adoção - uma equipe de especialistas na área da psico-
logia e do desenvolvimento infantil especificou:
19Ao tratar da fase inicial de suas pesquisas sobre o vínculo de apego, John
Bowlby relatou: “Em 1950 fui convidado para assessorar a Organização Mundial
de Saúde na área de saúde mental de crianças sem lar. Essa missão propor-
cionou-me uma valiosa oportunidade para conhecer muitos dos investigadores
mais eminentes no campo da puericultura e da psiquiatria infantil, e para me
familiarizar com a respectiva literatura. Conforme escrevi no prefácio do relatório
resultante (1951), o que mais me impressionou entre aqueles que conheci foi o
“elevado grau de concordância existente a respeito tanto dos princípios que
subjazem à saúde mental infantil como às práticas pelas quais ela pode ser sal-
vaguardada”. Na primeira parte do meu relatório apresentei provas e formulei
um princípio: “O que se acredita ser essencial para saúde mental é que o bebê
e a criança pequena experimentem um relacionamento carinhoso, íntimo e con-
tínuo com a mãe (ou mãe substituta permanente), no qual ambos encontrem
satisfação e prazer”. In: Apego. A Natureza do Vínculo. Volume 1 da Trilogia. 3.
ed. 3. reimpressão. São Paulo: Martins Fontes, junho de 2015. p. X.
162
ela preferisse a sua presença, demonstrando reações de protesto e
medo quando afastada desta figura de referência. Verificou-se que
dois comportamentos do cuidador reforçam este padrão de apego: as
iniciativas de interação com a criança e a prontidão para responder e
atender ao seu choro.20
163
que prejudicará o desenvolvimento emocional, pois como afirma Shore
(2002) “a segurança de um apego íntimo e seguro é a defesa primária
contra psicopatologias futuras”;
- problemas de aprendizagem e de fala são conseqüências inerentes;
- separações abruptas e desorganizadas podem levar crianças a
terem menor controle de impulso, menos capacidade de tolerar o
stress, menor habilidade de frustração e, no futuro, podem levar a risco
de ansiedade, depressão, agressão, violência, suicídio e uso de subs-
tâncias (Toth & Cichetti, 1998).
Desta forma, as pesquisas mostram claramente que quando as ne-
cessidades de dependência e vinculação afetiva de uma criança não
são supridos (ou são interrompidos de forma abrupta, retirando-se
uma criança pequena de uma família amorosa), esta criança cresce
com falhas em seu desenvolvimento socioemocional: ela sempre vai
achar que a vida está lhe devendo e sua confiança em outras pessoas
será seriamente prejudicada. Quem será esse ser humano incapaz
de confiar em outros? Como formará laços? Como desenvolverá sua
empatia, generosidade, tolerância se tudo isso lhe foi tirado durante
seu desenvolvimento? Esta criança poderá crescer sempre assumindo
o papel de vítima ou ainda ser uma vitimizadora, pois suas caracterís-
ticas de controle foram danificadas. Poderá se tornar um adulto rígido,
inflexível e incapaz de lidar com controle de impulsos agressivos de
maneira adequada. (2014, p. 5)
164
Comentando os critérios sugeridos por Júlio Alfredo de
Almeida, Galdino Augusto Coelho Bordallo observou:
165
Em todo caso, o que não pode ser olvidado é que os
recém-nascidos se apegam a adultos e são capazes de criar vín-
culos socioafetivos com eles, o que torna a ruptura abrupta pre-
judicial ao seu desenvolvimento saudável, causando sequelas
psicológicas que serão sentidas na vida adulta. Ignorar essa pre-
missa é desconsiderar os reconhecidos estudos que a psicologia
vem desenvolvendo, há mais de setenta anos, além de voltar a
oferecer ao recém-nascido o tratamento do Código de Menores,
deixando de reconhecê-lo como um sujeito que possui direitos à
convivência familiar e à proteção integral, para insistir no trata-
mento como objeto de proteção.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
166
com vistas a resguardar a obrigatoriedade do cadastro e a rígida
obediência à fila de habilitados.
Essas medidas têm criado nos adotantes o temor de
acionarem a Justiça quando recebem uma criança diretamente
da mãe. Por medo de terem os vínculos rompidos, a criança é
mantida em situação irregular por anos. O Judiciário só é procu-
rado quando os vínculos já estão consolidados e o caso pode se
encaixar em uma das exceções previstas expressamente pela
legislação.
O radicalismo desse posicionamento, ao invés de asse-
gurar as vantagens do CNA, está retirando a adoção do controle
do Poder Judiciário.
Em vez de fiscalizar os processos de adoção, certificando
o preparo dos adotantes e acompanhando a adaptação da criança
no estágio de convivência, o Poder Judiciário passou a ser um
homologador de vínculos já estabelecidos, pois somente é acio-
nado quando o delicado processo de adaptação da criança em
família substituta já se encontra concluído.
Um procedimento que deveria ser acompanhado de perto
pelos órgãos de proteção da infância e juventude tem sido feito
na informalidade, longe da fiscalização dos órgãos competentes.
O enfrentamento dessa realidade passa por diversos fa-
tores, conforme foi exposto, mas ressalta a importância de se re-
conhecer a legalidade da adoção intuitu personae nos termos
propostos.
Quando a pessoa ou casal se encontrar previamente ha-
bilitado, ou seja, com as condições para adotar certificadas pelo
Poder Judiciário, não há impedimento legal para que adotem uma
criança que a própria genitora lhes confiou a criação. Trata-se de
hipótese de adoção consentida, que encontra previsão nos artigos
45 e 166 do ECA, e atende os interesses superiores da criança.
Por outro lado, quando a pessoa ou casal não se encon-
trar previamente habilitado, a autoridade judiciária deve verificar,
caso a caso, principalmente por intermédio de relatórios da equipe
interdisciplinar, o preparo dos adotantes e a sedimentação de vín-
culos socioafetivos na criança, sendo recomendável a sua retirada
caso um desses requisitos não seja constatado.
167
Mesmo tratando-se de bebês, a teoria do afeto e outros
estudos da psicologia já demonstraram que são capazes de criar
vínculos de amor e afinidade com seus cuidadores durante o pri-
meiro ano de vida. O rompimento abrupto dessas ligações pode
causar sequelas psicológicas irreparáveis, prejudicando o desen-
volvimento saudável e a fase adulta da vida do adotado.
A aceitação da adoção intuitu personae, nas condições
defendidas, trará segurança para que os adotantes acionem o Ju-
diciário caso recebam uma criança em confiança da própria geni-
tora. Também incentivará as pessoas interessadas a se
submeterem previamente aos procedimentos de habilitação. A
adoção à brasileira, assim como outros procedimentos escusos,
perderão utilidade aos postulantes de boa-fé. Todas essas mu-
danças ajudarão a retirar a adoção do terreno da marginalidade,
aumentando a fiscalização por parte dos órgãos de proteção, o
que possibilitará detectar e punir, com maior eficiência, os proce-
dimentos criminosos promovidos por postulantes de má-fé.
Não bastasse, as crianças adotadas terão seus direitos
à convivência familiar e à proteção integral assegurados, fazendo
valer seu superior interesse em detrimento da ordem cronológica
do cadastro de adotantes, o que coloca o CNA na condição idea-
lizada pelo legislador, qual seja, de instrumento para garantir o di-
reito à convivência familiar e não de motivo para prejudicá-lo.
Dessa forma, será dado privilégio ao que é mais caro à adoção,
os sentimentos de afinidade, afetividade e o vínculo seguro de
cuidado amoroso.
168
REFERÊNCIAS
169
atosadministrativos/atosdapresidencia/resolucoespresiden-
cia/28155-resolucao-n-190-de-1-de-abril-de-2014>. Acesso em:
10 jul. 2016.
170
MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 6. ed. Rio de Ja-
neiro: Forense, 2015.
171
172
Mirella Camarota Pimenta*
A AvAliAção psicológicA
no contexto dA AlienAção pArentAl
Resumo:
A interdisciplinaridade entre a Psicologia e o Direito pode possibilitar
a diminuição da violência intrafamiliar e a promoção da justiça, pois
propiciam um melhor entendimento dos fenômenos emocionais ob-
servados nas partes de um processo judicial, principalmente aqueles
que permeiam um processo de separação ou divórcio que envolve
filhos. A alienação parental ocorre quando o genitor alienador denigre
a imagem do outro e cria resistência entre este e seu filho, ocasionado
o distanciamento do convívio com o filho de forma gradativa até o
ponto de o genitor alienado tornar-se um estranho para o próprio filho,
e este tratá-lo de forma indiferente e agressiva. O presente estudo
visa demonstrar quais instrumentos psicológicos podem ser utilizados
para a realização de uma avaliação psicológica, quando se tratar de
casos jurídicos com suspeita de alienação parental.
Abstract:
The interdisciplinarity between Psychology and Law can allow the re-
duction of intrafamily violence and the promotion of justice, since they
provide a better understanding of the emotional phenomena observed
in the parts of a judicial process, especially those that permeate a pro-
cess of separation or divorce involving children. Parental alienation
occurs when the alienating parent denigrates the image of the other
and creates resistance between him and his son, resulting in the se-
paration of the relationship with the child gradually until the alienated
175
parent becomes a stranger to his own son, and This will treat you in-
differently and aggressively. The present study aims at demonstrating
which psychological instruments can be used to perform a psycholo-
gical evaluation when dealing with legal cases with suspected parental
alienation.
Resumen:
La interdisciplinariedad entre la psicología y la ley puede permitir la
reducción de la violencia familiar y la promoción de la justicia, ya que
proporcionan una mejor comprensión de los fenómenos emocional
observado en algunas partes de una demanda, especialmente
aquellos que impregnan el proceso de separación o divorcio partici-
pación de los niños. La alienación parental se produce cuando el
progenitor alienador denigra la imagen del otro y crea resistencia
entre este y su hijo, hizo que el desprendimiento de vivir con el niño
poco a poco hasta el punto de que el padre alienado convertido en
un extraño a su propio hijo, y este tratar con indiferencia y agresiva-
mente. Este estudio tiene como objetivo demostrar que las herra-
mientas psicológicas pueden ser utilizados para llevar a cabo una
evaluación psicológica cuando se trata de casos legales de sospe-
cha de alienación parental.
Palavras-chave:
Psicologia, direito, família, testes psicológicos.
Keywords:
Psychology, law, family, psychological tests.
Palabras clave:
Psicología, derecho, familia, tests psicológicos.
176
introdUção
177
de uma avaliação psicológica quando se tratar de casos jurídicos
com suspeita de alienação parental.
De acordo com Primi (2010, p. 26), “a avaliação psicoló-
gica é uma atividade mais complexa e constitui-se na busca sis-
temática de conhecimento a respeito do funcionamento
psicológico das pessoas, de tal forma a poder orientar ações e
decisões futuras”.
interdisciplinAridAde
178
Sendo assim, denota-se que estudos realizados por assis-
tentes sociais e avalições psicológicas são importantes ferramentas
que auxiliam a formar um juízo que, muitas vezes, seria impossível
sem o uso da interdisciplinaridade.
No Brasil, a divulgação da síndrome da alienação parental
intensificou-se no âmbito do Poder Judiciário em meados de 2003,
com o surgimento das primeiras decisões que reconheciam tal fe-
nômeno. Foi importante a participação das equipes multidiscipli-
nares nos processos que envolvem direito de família, bem como
a realização de pesquisas e divulgações realizadas por órgãos
como a APASE – Associação dos Pais e Mães Separados, IBD-
FAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, dentre outros
(FREITAS; PELIZZARO, 2010).
A respeito do seu surgimento, Dantas (2011) pondera que
a síndrome da alienação parental passou a despertar bastante in-
teresse nos profissionais da área da psicologia e do direito, haja
vista ser do interesse desses dois ramos do saber, levando a uma
constatação da real necessidade de que o direito e a psicologia
caminhem juntos, a fim de propiciar um melhor entendimento dos
fenômenos emocionais observados nas partes de um processo
judicial, principalmente aqueles que permeiam um processo de
separação ou divórcio.
Conforme o disposto na Resolução n. 17/2012 do Conselho
Federal de Psicologia, a atuação do psicólogo perito nos diversos
contextos consiste em uma avaliação direcionada a responder de-
mandas específicas, originadas no contexto pericial, e poderá con-
templar observações, entrevistas, visitas domiciliares e institucionais,
aplicação de testes psicológicos, utilização de recursos lúdicos e
outros instrumentos, métodos e técnicas reconhecidas pela ciência
psicológica.
Segundo Barbosa e Castro (2013), promulgada a Lei da
Alienação Parental, surgiu uma grande necessidade de que os ope-
radores do direito tivessem conhecimento e domínio acerca dos con-
ceitos ligados ao tema, o que se tornou fator imprescindível para
todos os profissionais das áreas jurídicas e psicológicas que traba-
lhavam com litígios ligados à família.
179
AlienAção pArentAl
180
Conforme explica Freitas (2012, p. 24), a Lei n. 12.318/10
conceitua alienação parental como:
181
pais, que não é capaz de fazer a devida separação entre o fim
do relacionamento conjugal e a relação parental, criando uma re-
lação de dependência entre o modo de viver dos filhos e a rela-
ção dos pais posteriormente ao rompimento do vínculo entre os
cônjuges (SOUZA, 2008).
De acordo com o posicionamento de Freitas e Pelizzaro
(2010), a alienação parental é, por uma série de motivos, uma
discussão que vai além do debate jurídico puro e simples, con-
substanciando-se em um mal sociofamiliar que precisa ser ur-
gentemente extirpado da sociedade. Salientam que, na
impossibilidade em virtude da falta de maturidade do genitor
alienante, precisam ser aplicadas medidas enérgicas, previstas
em lei, a fim de evitar que ocorra de pais e filhos serem privados
por muito tempo de contato um com o outro.
Fonseca (2007) explica que a síndrome da alienação pa-
rental surge em virtude de um apego exagerado do filho a um
dos genitores, ao passo que se afasta definitivamente do outro.
Na verdade é o resultado de todo um processo realizado, cons-
ciente ou inconscientemente, pelo genitor alienante, aliado ao
fato de que a criança normalmente não tem muita vontade de
estar com o outro genitor.
Nas situações em que há essa síndrome, a criança é le-
vada a se recusar de estar na companhia do genitor alienado, o
que gera a quebra da relação do filho com esse genitor. É este o
objetivo do genitor alienador: destruir a relação entre a criança e
o genitor.
De acordo com Fonseca (2007), é necessário esclarecer
que a síndrome da alienação parental não pode ser confundida
com a simples alienação parental, haja vista que esta em si sig-
nifica tão somente o afastamento do filho de um dos pais, cau-
sado pelo outro genitor, que no caso é o detentor da guarda da
criança. Já a síndrome está relacionada às sequelas emocionais
e comportamentais de que a criança passa a estar acometida em
virtude daquele afastamento, ou seja, a síndrome diz respeito ao
comportamento da criança, que se nega veementemente a ter
contato com o outro genitor. A alienação parental tem a ver com
o procedimento adotado pelo guardião para conseguir afastar a
criança do seu progenitor.
182
práticas consideradas alienação parental
183
A atuação do genitor alienador consiste em distanciar pro-
gressivamente a criança do genitor que se encontra fora do lar, ge-
ralmente caracterizada por motivos infundados como maledicências,
falsas afirmativas, fatos inverídicos e até mesmo difamação, daí a ex-
pressão “falsas memórias”. Todas essas condutas são dirigidas com
intenção de causar um abismo cada vez maior entre o filho e o ex-
cônjuge, no intuito de impor ao outro genitor as consequências da-
nosas da separação por meio da falta do filho, que está sendo
cerceado de sua convivência (CABRAL, 2014).
Dentre os exemplos observados na literatura do que real-
mente ocorre ou que poderá ocorrer como elementos identifica-
dores da alienação parental, Carneiro (2007, p.44) disserta:
184
negativos. Contudo, com o passar do tempo, o afastamento se
torna completo e irreversível, chegando a criança a afastar-se até
mesmo dos familiares do seu genitor (FONSECA, 2007).
Cuenca (2008, p. 93) explica que:
185
Avaliação psicológica
186
da manifestação do comportamento. Sendo assim, conside-
rando-se a maneira como as pessoas se comportam nas tarefas,
faz-se análise das características psicológicas que o teste busca
avaliar. Esses testes auxiliam na avaliação psicológica com
dados úteis e confiáveis.
Resta evidente, dessa forma, que é imprescindível que a
verificação da alienação parental seja feita por profissionais gaba-
ritados no assunto, capazes de visualizarem o problema biopsi-
cossocial que a influência danosa por parte de um dos genitores,
originada pela alienação parental, gera na criança, sendo capaz
de agir de maneira a evitar que o trauma cresça ainda mais na
criança vítima da alienação parental (ARAÚJO, 2013).
Segundo a Resolução n. 007/2003 do Conselho Federal
de Psicologia (2003), os resultados das avaliações devem consi-
derar e analisar os condicionantes históricos e sociais e seus efei-
tos no psiquismo, com a finalidade de servirem como instrumentos
para atuar não somente sobre o indivíduo, mas na modificação
desses condicionantes, que operam desde a formulação da de-
manda até a conclusão do processo de avaliação psicológica.
De acordo com a Cartilha de Avaliação Psicológica ex-
pedida pelo Conselho Federal de Psicologia (2013, p.18), a es-
colha adequada de um instrumento/estratégia é complexa e deve
levar em conta os dados empíricos que justifiquem, simultanea-
mente, o propósito da avaliação associado aos contextos espe-
cíficos. No caso da escolha de um teste, é necessário que o
psicólogo faça a leitura cuidadosa do manual e das pesquisas
envolvidas em sua construção para decidir se ele pode ou não
ser utilizado naquela situação.
Sendo assim, para o caso de alienação parental, sugere-se
uma bateria de instrumentos favoráveis, de acordo com o SATEPSI
– Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos desenvolvido pelo
Conselho Federal de Psicologia, os quais se descrevem nas li-
nhas seguintes.
187
A hora do jogo diagnóstica
188
Tendo em vista a flexibilidade do método e a possibili-
dade de adaptação e/ou supressão de algumas questões da
entrevista e/ou itens da escala, o SARP revela-se passível de
uso em outros contextos que não exclusivamente o de disputa
de guarda, servindo a uma gama de situações em que seja ne-
cessário subsidiar o Judiciário com informações acerca do re-
lacionamento entre responsáveis e filhos (adoção, guarda
compartilhada, regulamentação de visitas, alienação parental).
O SARP foi desenvolvido a partir da tese de doutorado
de Vivian de Medeiros Lago, com orientação de Denise Ruschel
Bandeira. Essa foi uma das teses em Psicologia vencedoras do
Prêmio Capes de Tese 2013.
O SARP é composto de três técnicas aplicadas a res-
ponsáveis e filhos: a entrevista SARP, o protocolo de avaliação
infantil “Meu Amigo de Papel” (uma versão para meninos e uma
para meninas) e a Escala SARP. Ainda há um livreto de apresen-
tação do profissional, para ser utilizado juntamente com o “Meu
Amigo de Papel”.
189
Composto por dez gravuras (cartões) representando ani-
mais em diferentes situações, as quais permitem investigar as-
pectos como o relacionamento da criança com figuras
importantes em sua vida, a dinâmica das relações interpessoais,
a natureza e a força dos impulsos, as defesas mobilizadas, o es-
tudo do desenvolvimento infantil e a compreensão da dinâmica
familiar.
Para a interpretação do CAT-A, é proposto um conjunto
de nove dimensões, identificadas como aspectos do sujeito, a
respeito dos quais podem ser levantadas hipóteses, com base
nos elementos concretos da narrativa: autoimagem, relações ob-
jetais, concepção de ambiente, necessidades e conflitos, ansie-
dades, mecanismos de defesa, superego e integração do ego.
190
os personagens da cena. Tais histórias denunciarão dados sobre
a relação do examinando com as figuras de autoridade e outros
tipos de vínculos, revelando também o funcionamento das rela-
ções familiares, a natureza dos temores, desejos e dificuldades.
De acordo com Cunha (2000), as principais indicações
para a utilização são: avaliação da personalidade, principalmente
para analisar a natureza dos vínculos afetivos, regulação dos afe-
tos, qualidade das relações interpessoais e identificação de con-
flitos e mecanismos de defesa; avaliação de condições para
indicação psicoterápica e acompanhamento da evolução durante
o processo psicoterápico; coleta de subsídios sobre a função
cognitiva de planejamento, através da análise do manejo que o
examinando faz de ideias verbalizadas sequencialmente; análise
da capacidade de organização e manutenção de ideias.
191
da personalidade, a compreensão da constituição das bases afe-
tivas sobre as quais repousa todo o funcionamento psíquico, da
qualidade das fantasias, assim como as concepções ligadas à
percepção de si e do ambiente, as reações afetivo-emocionais e
as condições para a ação prática no ambiente são aspectos cen-
trais em uma leitura integrada de um protocolo de Rorschach.
De acordo com Vaz (1997, p. 6-7):
192
considerAçÕes FinAis
193
para poder diferenciar o ódio exacerbado que leva a um senti-
mento de vingança e a programação do filho para se afastar do
outro genitor. Somente o diagnóstico correto permite apontar o
tratamento adequado, capaz de evitar uma sobreposição de trau-
mas psicológicos a todas as pessoas envolvidas.
reFerÊnciAs
194
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA - CFP. Resolução n.
007/2003. Brasília: CFP, 2003.
195
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Síndrome da Alienação Paren-
tal. Revista Brasileira de Direito de Família, v.8, n.40, p.5-16, fev./mar.
2007.
196
SOUZA, Rachel Pacheco Ribeiro de. A tirania do guardião. In: PAU-
LINO, Analdino Rodrigues (Org.). Síndrome da alienação parental e
a tirania do guardião: aspectos psicológicos, sociais e jurídicos. Porto
Alegre: Equilíbrio, 2008, p.7-10.
197
198