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URBANO (O)
O que é o urbano?
A palavra não é nova, mas o conceito traz o novo, iluminando um certo número de
fatos, de relações, permanecidos na obscuridade e no silêncio (vergonha ou pudor?).
O termo urbano teve por predecessor e ancestral semântico um belo substantivo: a
urbanidade, próximo da civilidade, que significava a cortesia, a tolerância, o saber-
viver (em oposição à “barbárie” do campo, no século XVIII). A urbanidade, nesse
sentido, retinha toda a tradição (suposta) das cidades desde Atenas e Roma,
passando por Veneza e Florença. Quando a urbanidade se apaga, a palavra entra
em desuso, aparecendo, então, o urbanismo e a pretensiosa “urbanística”, com uma
ideologia, regulamentos, um código, que pretendem substituir uma vida prática que
sai de moda e ordenar aquilo que teve charme espontâneo: a vida “na cidade”, em
Londres, em Paris, do que restam muitos testemunhos literários (Swift, Diderot,
etc.). Aqui, como alhures, uma prática (também com uma ideologia) precedeu a
teoria.
Esse conceito, o urbano, há pouco entrado nos vocabulários (ciência e prática), não
designa a cidade e a vida na cidade. Ao contrário: ele nasce com a explosão
[l’éclatement] da cidade, com os problemas e a deterioração da vida urbana. A esse
título, ele tem um grande alcance, tanto quanto “o industrial” ou “o informacional”.
Longe de coincidir com a Pólis [Cité] (antiga) e com a cidade (medieval), o urbano as
substitui englobando-as, portanto sem excluí-las enquanto momentos históricos.
Essas diversas noções, envolvidas pela mais recente, designam a dupla tendência
do espaço social à concentração e à extensão (periférica). O urbano? É uma forma
geral: a da reunião, a da simultaneidade, a do espaço-temporal nas sociedades,
forma que se afirma de todos os lados no curso da história e quaisquer que sejam as
peripécias dessa história. Desde as origens e o nascimento das sociedades, essa
forma se confirma, com os conteúdos os mais diversos. Ela se confirma enquanto
forma até na explosão [dans l’éclatement] que assistimos.
O conceito, o urbano (que aparece com a transformação daquilo que ele eleva ao
conhecimento) permite descrever e impor esse duplo processo de implosão-
explosão. A cidade de origem histórica (medieval) não desaparece com a
modernidade. De um lado, a centralidade se afirma, confirma-se: centros de
decisão, de autoridade administrativa e política, de organização econômica, de
informação e conhecimento, etc. A cidade persiste condensando-se (o que não
exclui a pluralidade dos centros, portanto a existência de centros “culturais”,
religiosos, simbólicos, etc. Com as características tradicionais: monumentalidade,
exibição de força, traços espetaculares. Ao mesmo tempo, dispersam-se em torno
dela (a aglomeração concentrada e policêntrica que ainda traz o nome de “cidade”)
aglomerações secundárias, cidades satélites, periferias, ditas “subúrbios” 1. As
periferias podem ir longe, a tal ponto que quem as atravessa não sabe muito bem
onde começa a cidade e onde ela acaba (assim como Los Angeles que se estende
por mais de cem quilômetros e que compreende municipalidades autônomas, Santa
Mônica, Hollywood, Pasadena, etc. Além de lugares com status, ao que parece,
intermediários, mal definidos, nem cidade nem campo, “isolats”, “guetos”. Nessa
acepção, o termo e o conceito de urbano não designam, portanto, (somente) os
centros, os núcleos históricos, mas também as extensões mesmo fragmentadas, aí
compreendidos (como problemas) esses “isolats”, esses guetos, esses grupos de
casas ou esses “conjuntos”. Em resumo, o que não é ou não é mais “campo”,
território voltado à produção agro-alimentar ou ao abandono. O urbano compreende
tanto um pequeno burgo de casas agrupadas em torno de algumas pequenas e
médias empresas, como as gigantescas aglomerações: México, São Paulo, Los
Angeles.
1
O autor fala em“Banlieues”, termo que designava os lugares sob a dominação da capital (lugares no “ban”).. NT.
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correspondentes, é mais amplo. É, portanto, o território onde se desenvolvem a
modernidade _ e a cotidianidade no mundo moderno. O conceito foi elaborado para
substituir por análises dialéticas (levando em conta a complexidade dos fatos assim
como contradições e conflitos) as representações simplificadas, as constatações, o
estudo de questões reais mas parciais; a repartição e as transferências de
propriedade, as especulações, a demografia, etc. O conceito sublinha aquilo que se
passa e tem lugar fora das empresas e do trabalho, se bem que ligado por múltiplos
liames à produção. Ele põe a ênfase no cotidiano na vida das “cidades”.
O urbano hiper-complexo
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O autor emprega o termo “les marées”, que designa as marés, mas que pode também designar fluxos.
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histórica), a fim de dominar a enorme problemática e, na medida do possível,
unificá-la, encontrando uma terminologia.
A sociedade urbana
Durante muito tempo (e ainda para Marx) a Terra passava por laboratório das
formas e realidades sociais. O que desde então só tem uma verdade bastante
relativa: os mares tiveram seu papel, notadamente na formação das trocas, da
moeda, da mercadoria. De outro lado, é preciso considerar a Terra num sentido
muito amplo: não somente segundo as produções, mas segundo as relações de
propriedade. A terra e a agricultura mantiveram até os nossos dias a aldeia e a
família camponesa, formações vigorosas, milenares; entretanto, sobre todas as
terras, conquistas, cessões e heranças, engendraram a grande propriedade
fundiária, portanto uma aristocracia, um mandarinato, tributos e dízimos, usurários.
Roma, a grande cidade antiga, a Pólis [Cité] por excelência geria um império
baseado na propriedade fundiária (os latifundia).
A cidade foi por muito tempo considerada um lugar maldito, voltado ao mal, ao
diabo e ao pecado. O mito de Babilônia a perversa está longe de ter desaparecido.
Quando o arquiteto Constant Nieuwenhuis intitulou New-Babylon seu projeto
urbano, punha aí um desafio, uma provocação. Mesmo o socialismo nascente seguiu
esse caminho, uma prática orientada por um mito; Havana, não sem alguma razão,
foi a Babilônia da revolução cubana. A URSS e a teoria revolucionária só lenta e
dificilmente admitiu o crescimento urbano. Ora, hoje a urbanização maciça
prossegue irresistivelmente: no final do século, 80% da população mundial viverá
naquilo que outrora se nomeava a cidade...
O agro-alimentar perderá, não sua importância (ao contrário), mas uma parte das
superfícies cultivadas, só conservando as mais rentáveis (em rendas diferenciais). O
que reatualiza, ao lado das obras de Marx e de Engels sem esquecer Saint-Simon e
Fourier, as hipóteses de Ricardo, de Darwin e mesmo de Malthus (os teóricos
chineses admitiram que seu enorme território não poderia alimentar mais de um
bilhão e meio aproximadamente de seres humanos; donde a exigência de um
controle e de uma limitação dos nascimentos). Por muito tempo os campos, com
modalidades diversas, dominaram as cidades. O feudalismo [la féodalité] ocidental
baseava-se no feudo, no território, na suserania das aldeias; depois, as cidades se
libertaram das sujeições, um pouco por toda parte (exceto onde não houve
feudalismo [féodalité]: nos USA por exemplo). A cidade torna-se, então, o lugar da
civilização, retendo ou tentando reter da cidade antiga o que ela teve de melhor: o
amor do citadino por sua cidade, o gosto e o sentido do espaço urbano, a praça, a
avenida, o jardim (square). Acrescentando a isso o sentido da perspectiva, o espaço
perspectivo sendo uma descoberta e uma invenção (século XIV na Itália). Do mesmo
modo que a filosofia nasceu da cidade antiga, com diversos tipos de arte, do mesmo
modo, em uma escala mais ampla, a civilidade nasceu ou reapareceu com a cidade.
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Afirmar-se-ia o urbano como o lugar de uma nova barbárie? O combate teórico e
prático contra esta hipótese faz parte do projeto. Ele será longo, difícil. Uma vez que
é preciso resolver inventando (espaço e tempo novos), resolvendo contradições e
conflitos entre os mais profundos produzidos pelo “modo de produção” que
dominou.
resumirá por muito tempo a emoção do poeta diante do urbano. Desde então,
quantos livros magníficos (por exemplo: Carlos Fuentes, a Região a mais límpida,
sobre o México) aí compreendidos os presságios sobre o planeta urbanizado (Trentor
em a Fundação).
A pólis [cité] e a cidade tinham trazido a civilização. Parece que a era industrial, com
seus traços revolucionários, contradições, trouxe a cultura. O fato do termo cultura
ter ocupado o lugar, por uma substituição ainda não esclarecida, da palavra e da
idéia de civilização, tem isso um sentido? Muito provavelmente. Qual? A civilização
se definia por uma maneira de viver _ por certas “maneiras” nas relações sociais. A
“cultura”, embora tenha um jeito de saco de gatos [fourre-tout] e que nela caiba
não importa o quê, a “cultura” tem por conteúdo essencial representações,
abstrações: mesmo na arte, cada vez mais abstrata. E mesmo na arquitetura (o
movimento pós-moderno parte dessa constatação). Escaparia a imagem à
abstração? Dizer isso, acreditar nisso é uma inconseqüência de graves
conseqüências.
Fará o urbano reaparecer, no lugar da “cultura” uma nova civilização, de modo que
a transformação ou revolução cultural que se realiza na “cultura” sem que muitos se
dêem conta, restituiria em um nível mais elevado a civilização (isto é, a sociedade
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civil, a civilidade, a urbanidade, o civismo dos cidadãos)? Maneira de ser no
cotidiano, uma civilização urbana geriria, até anulá-la, a clivagem entre a elite e o
povo, em outras palavras, a sociedade dual ou “triádica” [“trial”].
A teoria do pós-moderno não responde à questão; embora a proponha com força nos
países os mais industrializados e urbanizados. Entretanto, os pós-modernos,
obcecados pelas nostalgias não previram ou não construíram mais que neo-aldeias.
Como outras denominações propostas em nome da transformação social (sociedade
pós-industrial _ sociedade de comunicação, etc.) o pós-moderno tem um sentido,
mas não aquele que as palavras declaram; essas palavras quiseram designar
alguma coisa de preciso, uma intuição ou mesmo um projeto; ora, eles apenas
exprimiam um recuo diante dos erros e das falsas audácias do “modernismo”:
diante das horrorosas realizações das “torres”, dos “grandes conjuntos” ou dos
[cottages pavillonnaires] os mais recentes.
Ao contrário, uma outra escola, mais “urbanística”, afirma que o arquitetônico vem
em seguida, que a concepção do espaço urbano tem prioridade, porque
determinante, porque provindo de um “nível” superior, mais global.
O direito à cidade
Se é exato que a cidade foi um lugar de civilização, sua explosão [son éclatement]
pode aniquilar esse papel. Ou o espaço urbano será um espaço de dissociação da
sociedade e do social (em um caos, em uma massa agitada de movimentos
diversos), ou ele será um lugar de reapropriação (da vida cotidiana, do social). Se
não há determinismo absoluto, mas sempre (na vida biológica e nos tempos
humanos) possibilidades freqüentemente opostas, uma “escolha” mais ou menos
consciente se realiza. O urbano, hoje e amanhã? Um feixe de possibilidades, o
melhor e o pior. Talvez o melhor aqui e o pior alhures!...
O “direito à cidade”? Isto queria e ainda quer dizer: não deixar perder a herança
histórica _ não deixar o espaço se transformar em migalhas, reencontrar o “centro”
como lugar de criação, de civilização (de urbanidade).
Essa idéia, lançada há vinte anos e que teve uma certa repercussão, procede das
análises anteriores: a cidade teve e guarda uma “centralidade”, lugar favorecido
pelas trocas, pela vida social, pela civilização (portanto, não somente do ponto de
vista da autoridade e do poder _ o que acompanha a vida social, não sem conflitos).
As periferias e subúrbios encontram-se em situação ruim: do ponto de vista da
atividade prática (transportes, fadigas, isolamento) como do ponto de vista da
sociabilidade (das relações fora do trabalho). As críticas, as advertências, não foram
bem entendidas: vimos desde então as conseqüências de uma tal “negligência”,
que se prendia aos interesses ditos privados, às posições das autoridades, à
ideologia modernista: lançava-se para as superfícies “desurbanizadas”, com a
promessa do “moderno”, os habitantes dos centros urbanos. Duplo lucro: construir
cada vez mais longe da cidade e remanejar a cidade (sem outra perspectiva que o
ganho). Contra essa propaganda e contra a negligência muito real dos que deveriam
ter-se oposto a isso e proposto uma “política urbana”, foi preciso reagir em nome de
um direito. Mais ou menos bem observados, os “direitos do homem” foram
reconhecidos em numerosos países (Helsinque). Os direitos do cidadão? Estão em
pane. Mal definidos, a não ser como direito à opinião (mutável, flutuante,
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manipulada) e ao voto (para eleger “representantes”, sem mandato imperativo). O
direito à cidade, (completado pelo direito à diferença e pelo direito à informação),
deveria modificar, tornar mais concretos e práticos os direitos do cidadão, tornado
citadino, usuário de múltiplos serviços. De um lado, ele afirmava o direito dos
“usuários” de se pronunciar sobre o espaço e o tempo de suas atividades no
território urbano; e, além disso, o direito ao uso da centralidade, lugar privilegiado,
em vez de se ver dispersados, rechaçados em guetos (para trabalhadores, para
imigrantes, para “marginalizados” e até para “privilegiados”!).
O direito à cidade vem, pois, não tanto como complemento dos direitos do homem
( como o direito à educação, à saúde e seguridade, etc.) mas dos direitos do
cidadão: este não é mais somente membro de uma “comunidade política”, cuja
concepção permanece indecisa e conflituosa, mas de um agrupamento mais
preciso, propondo múltiplas interrogações: a cidade moderna _ o urbano. Esse
direito conduz à participação ativa do cidadão-citadino no controle do território, na
sua gestão, cujas modalidades permanecem por precisar. Ele conduz também à
participação do cidadão-citadino à vida social ligada ao urbano; ele propõe proibir o
deslocamento dessa “cultura” urbana, impedir a dispersão sem amontoar os
“habitantes” e “usuários” uns sobre os outros, mas inventando nos domínios e nos
níveis do arquitetônico, do urbanístico, do territorial.
Será ainda preciso provar que tem havido inovações, iniciativas, invenções nesses
domínios? O que seria preciso mostrar é que elas acompanharam as mudanças de
época, de sociedade, de civilização. Foi assim, a perspectiva, admirável invenção,
contemporânea do fortalecimento das cidades (na Itália, na Toscana: em Siena e
Florença), do renascimento do conhecer e da arte _ da ascensão do capitalismo, das
trocas, do banco, do comércio, dos negócios. Com um compromisso histórico entre a
aristocracia e a burguesia.
Ora, é evidente hoje que esse espaço é insuportável [“invivable”]. A não ser para a
elite, antiga ou recente, que soube arrumar seus territórios, recuperar o centro das
cidades (que ela abandonava por um certo período), cuidar das residências, etc. As
periferias, entendendo-se por esse termo tanto a segunda e a terceira coroas de
Paris como as aglomerações da África e da América, são elas suficientes para definir
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o (um) novo (e diferente) proletariado? Uma revolução? As relações e condições do
trabalho _ as relações no trabalho _ não podem ser descartadas. Entretanto, o
espaço e o tempo entram em tais definições, com seu emprego (seu uso).
O urbano e o Estado
Tudo muda. Tudo se torna. Não há nada de permanente, escapando ao tempo. Não
há nada de durável. A Pólis [Cité], a Cidade, o Urbano não se encontram fora do
Devir. Não mais que os movimentos parciais: o mundo torna-se nosso mundo, no
entanto, o devir difere conforme as escalas, as dimensões, os ritmos. O devir tem
leis e pode ser analisado: ele tem ritmos lentos e outros rápidos, se bem que
relativos. Assim, portanto, o nascimento e o desenvolvimento. Igualmente, há tática
e estratégia: tática no imediato e no atual rápido; a ação _ estratégia lenta a longo,
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médio ou curto prazo. Tudo o que é muda, mas desigualmente; as formas duram
mais que os conteúdos e resistem ao tempo, embora se dissolvam e acabem _ como
tudo no mundo! O urbano, forma atual da simultaneidade, da reunião, da unidade,
interroga-nos ao mesmo tempo sobre a forma e o conteúdo...
(N.B.: Página escrita após uma releitura do Crátilo de Platão, dedicada aos
filósofos.)