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1. Português ou brasileiro? Um convite à pesquisa, Marcos Bagno, 7' ed.

2. Linguagem & comunicação social- visões da linguística moderna, Manoel Luiz Gonçalves Corrêa, 2' ed.
3. Por uma linguística crítica, Kanavillil Rajagopalan, 3' ed.
4. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula, Stella Maris Bortoni-Ricardo, 5' ed.
5. Sistema, mudança e linguagem- um percurso pela história da linguística moderna, Dante Lucchesi
6. "O português são dois"- novas fronteiras, velhos problemas, Rosa Virgínia Mattos e Silva, 2' ed.
7. Ensaios para uma sócio-história do português brasileiro, Rosa Virgínia Mattos e Silva, 2' ed.
8. A linguística que nos faz falhar- Investigação crítica
Kanavillil Rajagopalan, Fábio Lopes da Silva [orgs.] -sob demanda
9. Do signo ao discurso- Introdução à filosofia da linguagem, Inês Lacerda Araújo, 2' ed.
10. Ensaios de filosofia da linguística, ]o sé Borges Neto
11. Nós cheguemu na escola, e agora?, Stella Maris Bortoni-Ricardo, 2' ed.
12. Doa-se lindos filhotes de poodle- Variação linguística, mídia e preconceito, M" Marta Pereira Scherre, 2' ed.
13. A geopolítica do inglês, Yves Lacoste [org.], Kanavillil Rajagopalan
14. Gêneros- teorias, métodos, debates,]. L. Meurer, Adair Bonini, Désirée Motta-Roth [orgs.], 2' ed.
15. O tempo nos verbos do português urna introdução a sua interpretação semântica
Maria Luiza Monteiro Sales Corôa
16. Considerações sobre a fala e a escrita- fonologia em nova chave, Darci lia Simões
17. Princípios de linguística descritiva, M. A. Perini, 2' ed.
18. Por uma linguística aplicada INdisciplinar, Luiz Paulo da Moita Lopes, 2' ed.
19. Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística
U. Weinreich, W Labov, M. I. Herzog, 2' ed.
20. Origens do português brasileiro, Anthony ]ulius Naro, Maria Marta Pereira Scherre
21. Introdução à gramaticalização- Princípios teóricos & aplicação
Sebastião Carlos Leite Gonçalves, Maria Célia Lima-Hernandes,
Vânia Cristina Casseb-Galvão [orgs.]
22. O acento em português- Abordagens fonológicas, Gabriel Antunes de Araújo [org.]
23. Sociolinguística quantitativa- Instrumental de análise, Gregory R. Guy, Ana Maria Stahl Zilles
24. Metáfora, Tony Berber Sardinha
25. Norma culta brasileira- desatando alguns nós, Carlos Alberto Faraco
26. Padrões sociolinguísticos, William Labov
27. Gênese dos discursos, Dominique Maingueneau
28. Cenas da enunciação, Dominique Maingueneau
29. Estudos de gramática descritiva- as valências verbais, Mário A. Perini
30. Caminhos da linguística histórica- "Ouvir o inaudível", Rosa Virgínia Mattos e Silva
31. Limites do discurso ensaios sobre discurso e sujeito, Sírio Possenti
32. Questões para analistas do discurso, Sírio Possenti
33. Linguagem & diálogo- as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin, Carlos Alberto Faraco
IEDITOII: Marcos Marcionilo

CAPA E PROJETO GRÁFICO: Andréia Custódio

CoNSELHO EDITORIAL: Ana Maria Stahl Zilles [Unisinos]


Carlos Alberto Faraco [UFPR]
Egon de Oliveira Rangel [PUCSP]
Gilvan Müller de Oliveira [UFSC, lpol]
Henrique Monteagudo [Univ. de Santiago de Compostela]
Kanavillil Rajagopalan [Unicamp]
Marcos Bagno [UnB]
Maria Marta Pereira Scherre [UFRJ, UnB]
Rachei Gazolla de Andrade [PUC-SP]
Salma Tannus Muchail [PUC-SP] Aos confrades Tovico e Giba,
Stella Maris Bortoni-Ricardo [UnB] celebrando nossas incontáveis seratas bakhtinianas

CIP-IlRASil. CATAlOGAÇÃO NA FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, 11.1
E a Rosse-Marye Bernardi,
nossa musa bakhtiniana.
F2251
Faraco, Carlos Alberto
Linguagem & diálogo: as ideias lingufsticas do círculo de
Bakhtin I Carlos Alberto Faraco.- São Paulo: Parábola Editorial,2009.
168p.(Lingua[gem] ;33)

Inclui bibliografia
ISBN 978-85-88456-96-9

1. Bakhtin, M. M. (Mikhail Mikhailovitch), 1895-1975.2.


Linguística.3. Linguagem elínguas- Filosofia. 4. Literatura
-Estética.!. Título. 11. Série.

09-2257 CDD 401


CDU 81'42

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ISBN: 978-85-88456-96-9

© do te)<to: Carlos Alberto Faraco

© da edição brasileira: Parábola Editorial, São Paulo, junho de 2009


SUMÁRIO

Introdução
9

CAPÍTULO UM
O Círculo de Bakhtin
11
CAPÍTULO DOIS
Criação ideológica e dialogismo
45
CAPÍTULO TRÊS
A filosofia da linguagem
99

Referências bibliográficas
159

Índice de autores e obras citados


163
----------------------------------

,....,

lNTRODUÇAO*

akhtin e seu Círculo têm já um lugar conso-


lidado na história do pensamento linguísti-
co. Apesar de todos os conhecidos percal-
ços de sua trajetória, deixaram uma densa e
rica contribuição de natureza filosófica que
veio se somar às muitas outras que têm ten-
tado, ao longo dos milênios, apreender o Ser
da linguagem.
O objetivo principal deste livro é oferecer ao leitor uma visão de
conjunto da reflexão bakhtiniana. Sintetizar obra tão complexa não
é, evidentemente, tarefa fácil. Resolvemos enfrentá-la em resposta a
uma constante demanda de nossos alunos por uma espécie de rotei-
ro geral que lhes auxiliasse a mergulharna filosofia da linguagem do
Círculo de Bakhtin.
Embora haja várias e algumas muito boas apresentações do
pensamento bakhtiniano, nenhuma, até agora, centrou sua atenção
especificamente nas ideias linguísticas do Círculo, o que nos ser-
viu de justificativa para escrever este texto. Procuramos delinear as

* Este livro resultou do projeto "Fundamentos de uma teoria dialógica do discur-


so" que desenvolvi como bolsista-pesquisador do CNPq (processos n.3000954/97-2 e
303638/02-8).
grandes coordenadas dessas ideias e situá-las no eixo da história. No
melhor espírito bakhtiniano do diálogo infindo, do simpósio univer-
sal, não deixamos também de polemizar com algumas outras leituras
das mesmas obras.
O livro está dividido em três capítulos. No primeiro, situamos o CAPÍTULO l
Círculo de Bakhtin e seus grandes projetos; no segundo, apresenta-
mos o quadro amplo em que a questão da linguagem se coloca para
o Círculo; no terceiro, dirigimos nosso foco mais especificamente
para a filosofia da linguagem do Círculo.
O CÍRCULO DE BAT(HTlN
é

Por várias razões de ordem prática, usamos como fontes de nos-


sas citações as traduções americanas dos textos do Círculo. Assim, as
traduções das citações são de nossa responsabilidade. Nas Referên-
cias bibliográficas, incluímos a lista das edições brasileiras das obras
do Círculo. Ü MISTÉRIO DA AUTORIA
Esperamos que o livro seja útil tanto para quem se inicia no
uem se aproxima pela primeira vez do
pensamento bakhtiniano, quanto para quem já trabalha com ele.
pensamento de Mikhail M. Bakhtin e
de seus pares se depara com um per-
sistente quiproquó em torno da auto-
ria de certos textos, em especial de três
livros: Freudismo, Marxismo e filosofia
da linguagem e O método formal nos
estudos literários. Isso porque os dois
primeiros foram originalmente publi-
Valentin N. Voloshinov e o último sob o de

A questão toda se a partir de 1970.

Depois de trinta anos de silêncio, trabalhos de Bakhtin tinham


sido novamente publicados na Rússia em 1963 e 1965, fazendo
seu nome voltar a circular nos meios acadêmicos de sua terra natal.
Nessa conjuntura, o linguista Viatcheslav V Ivanov, sem apresen-
tar argumentos efetivos, afirmou que o livro Marxismo e filosofia
da linguagem tinha sido escrito por Bakhtin e não por Voloshinov,
atribuição de autoria que se estendeu, em seguida, aos outros textos 1929)num estudos e partilharam um conjunto expressivo de
mencionados e a alguns artigos também publicados a assinatura ideias, adotamos também a denominação que se tomou corrente
de Voloshinov e Medvedev. para identificar o conjunto da obra: o Círculo de Bakhtin.
Esse fato trouxe para os estudos bakhtinianos uma generalizada É importante lembrar que essa denominação foi-lhes atribuí-
confusão quanto à autoria desses textos. Até hoje, nenhum argu- da a posteriori pelos estudiosos de seus trabalhos, já que o próprio
mento convincente conseguiu resolver essa dúvida criada, ao que grupo não a usava. A escolha do nome de Bakhtin, neste caso, é ple-
tudo indica, artificialmente por lvanov. namente justificável, tendo-se em conta que de todos foi ele quem
produziu, sem dúvida, a obra de maior envergadura.
O contínuo e infrutífero debate acabou por diVidir a recepção
daqueles textos em três direções:
a) a primeira é a daqueles que respeitam as autorias das edi-
ções originais e, por consequência, só reconhecem como
o CíRCULO DE BAKHTIN
da autoria do próprio Bakhtin os textos publicados sob seu Antes de prosseguir, parece útil apresentar alguns dados sobre o
nome ou encontrados em seus arquivos; Círculo. Trata-se de um grupo de intelectuais (boa parte nascida por
b) a segunda direção é a daqueles que atribuem a Bakhtin to- volta da metade da década de 1890) que se reuniu regularmente de
dos os textos ditos disputados; 1919 a 1929, primeiro em Nevei e Vitebsk e, depois, em São Peters-
c) há, por fim, uma solução de compromisso que inclui os burgo (à época rebatizada de Leningrado).
dois nomes na autoria. Assim, Freudismo e Marxismo e filo-
Era constituído por pessoas de diversas formações, interesses inte-
sofia da linguagem são atribuídos a Bakhtin!Voloshinov; e O
lectuais e atuações profissionais (um grupo multidisciplinar, portanto),
método formal nos estudos literários, a Bakhtin/Medvedev.
incluindo, entre vários outros, o filósofo Matvei I. Kagan, o biólogo Ivan
Neste livro, adotamos a primeira direção. E há várias razões I. Kanaev, a pianista Maria V Yudina, o professor e estudioso de literatura
para isso. Em primeiro lugar, entendemos que atribuir a cada um Lev V Pumpianski e os três que vão nos interessar mais de peno neste
dos autores os textos publicados sob seus respectivos nomes é uma livro: Mikhail M. Bakhtin, Valentin N. Voloshinov e Pavel N. Medvedev.
forma adequada de respeitar sua memória- o que não é irrelevante, Sobre Voloshinov, sabe-se que trabalhava como professor e, de
considerando o lado trágico de suas existências. início, tinha seus interesses voltados para a história da música, vin-
Mais importante, porém, é nãD perder a diversidade de pen- do, porém, a se formar em estudos linguísticos em 1927, dedicando-
samento do grupo, suas múltiplas e inegáveis inter-relações e sua se, em seguida, a estudos pós-graduados na mesma área. Medvedev,
apreciável riqueza. Isso. tudo sem esquecer que Bakhtin, a partir da formado em direito, teve uma carreira de educador e de gestor na
década de 1960 e até a ~ua morte,. teve várias oportunidades concre- área da cultura. Desenvolveu intensa atividade no jornalismo cultu-
ral e ensinou literatura no Instituto Pedagógico Herzen, em Lenin-
' taS: de reivindicar a a~toria dos .textos mencionados e nunca o fez.
grado. Voloshinovveio a falecer em 1936, vitimado pela tuberculose;
Considerando que DS três intelectuais envolvidos tiveram fortes la- e Medvedev, provavelmente em 1940, vítima dos expurgos políticos
. ços de amiz~de, encontraram-se regularmente durante dez anos ( 1919- que varreram a URSS no fim da década de 1930.
Bakhtin, por sua vez, teve formação em estudos literários. Atuou para se completar, desde a reedição do livro sobre Dostoievski em
como professor, embora sem vínculos institucionais (principalmente 1963 até a edição, em 1986, de Para uma ato. Ironica-
por problemas de saúde) até ser preso em 1929. Condenado a um mente, o primeiro dos textos mais longos escritos por Bakhtin foi o
exílio no Cazaquistão, só pôde encontrar um emprego permanente último a ser publicado!
depois da Segunda Guerra Mundial, tornando-se professor de lite- De certa forma, o mesmo aconteceu com a chegada das obras
ratura do Instituto Pedagógico (depois, Universidade) de Saransk no Ocidente: não houve nenhuma ordem cronológica na sua divul-
(Mordóvia), donde se aposentou em 1969, passando seus últimos gação, que, por sua vez, levou perto de vinte e cinco anos para se
anos de vida na região de Moscou, onde faleceu em 1975. completar, desde as primeiras traduções em 1968 (ano em que apa-
Apreciando sua obra retrospectivamente e considerando a am- receram a edição em italiano da obra sobre Dostoievski e a edição em
plidão de seus temas e a densidade de suas reflexões, o melhor que se inglês da obra sobre Rabelais) até a tradução para o inglês de Para
pode dizer dele (seguindo hoje uma tendência internacional) é que uma filosofia do ato em 1993.
foi um filósofo, talvez um dos mais importantes do século XX, embo- Além disso, é preciso registrar que nem sempre as traduções fo-
ra seu ostracismo por mais de trinta anos tenha impedido a circulação ram feitas com o devido cuidado. Bastaria lembrar o caso da primei-
e o debate de suas ideias até praticamente a década de 1970. ra tradução do livro sobre Dostoievski para o inglês. Alguns outros
Os membros do Círculo que recebeu seu nome, tinham em co- exemplos mais pontuais podem ser lidos em Souza (1999, p. 42-53)
mum, conforme se pode ler em Clark & Holquist (p. 65), uma pai- e Castro (1997).
xão pela filosofia e pelo debate de ideias, o que é facilmente percep- Acrescente-se a isso tudo o fato de que boa parte dos textos
tível nos textos que nos legaram. Mergulhavam fundo nas discussões do próprio Bakhtin é constituída de manúscritos inacabados, alguns
de filósofos do passado, sem deixar de se envolver criticamente com apenas rascunhados, o que nos deixa, sem dúvida, numa situação de
autores de seu tempo. não poucas dificuldades quanto à apreensão de seu pensamento.
Podemos acrescentar a essa paixão outra que, progressivamen- No Brasil, a recepção das ideias do Círculo teve também suas
te, invade os interesses do Círculo, em especial em seus tempos de peculiaridades. Além de não poucos problemas de tradução, o pen-
Leningrado: a paixão pela linguagem. samento do Círculo, com bastante frequência e durante muitos anos,
foi identificado quase exclusivamente ao livro Marxismo e filosofia
da linguagem, o primeiro a ser publicado em português (em 1979).
PROBLEMAS DE RECEPÇÃO Por outro lado, em especial pelo viés do discurso pedagógico
(mas não apenas), houve uma banalização de termos como diálogo,
Além da confusão em torno da autoria de certos textos publi-
interação e gêneros do discurso, retirados do vocabulário do Círculo,
cados nos anos 1920, a recepção da obra do Círculo de Bakhtin,
mas claramente despojados de sua complexidade conceitual (con-
quando de sua reentrada em cena de meados da década de 1960 em
forme argumentaremos mais à frente).
diante, foi, para dizer o menos, bastante tumultuada. Basta lembrar,
nesse sentido, que o material veio vindo à luz na Rússia sem nenhu- E, por fim, cabe lembrar a confusão que se criou com o termo
ma ordem cronológica e sua publicação levou mais de vinte anos polifonia, seja por ser ele tomado inadvertidamente como sinônimo
de heteroglossia (ou seja pelo sentido que ele tem manteve sempre uma postura crítica frente àqueles filósofos e, mais im-
no quadro de referência do linguista francês O. Ducrot, nem sem- portante, avançou respostas bastante originais àqueles problemas, res-
pre claramente distinguido, entre nós, de seu sentido em Bakhtin1 postas que dificilmente poderiam ser classificadas como neokantianas.
3
.~ Comentaremos esta questão peculiar no capítulo dois. Desde já, po- O segundo grande projeto intelectual de membros do Círculo,
u
oo rém, recomendamos aos leitores interessados a discussão do concei- claramente visível nos textos de Voloshinov e de Medvedev, publi-
to bakhtiniano de polifonia em Tezza (2002 e 2003). cados entre 1925 e 1930, era contribuir para a construção de uma
teoria marxista da chamada criação ideológica, ou seja, da produção
e dos produtos do "espírito" humano; ou, para usar um termo mais
DOIS GRANDES PROJETOS corrente num certo vocabulário marxista, uma teoria das manifesta-
ções da superestrutura.
Quando se observa em conjunto a obra do Círculo de Bakhtin,
Tratava-se de uma área em que havia um grande vazio teórico
é perceptível a existência de dois grandes projetos intelectuais. Da no pensamento marxista e que acabou atraindo vários pensadores,
parte de Bakhtin, parece haver, de início, a intenção de construir nas décadas de 1920 e 1930, tanto na Rússia, quanto no Ocidente.
uma "prima philosophía". Seus primeiros textos apontam nessa di-
As contribuições de Voloshinov e de Medvedev nessa direção
reção ao se dedicarem extensamente à crítica do que ele chama de
têm duas marcas bem distintas. Primeiro, a crítica sistemática que
teoreticismo, isto é, as objetificações da historicidade vivida, obtidas
ambos fizeram ao chamado marxismo vulgar, aquele que tenta dar
pelos processos de abstração típicos da razão teórica.
conta dos processos e produtos da criação ideológica por meio de
A interlocução maior, nesse caso, parece se dar, segundo tem uma lógica determinista e mecanicista, segundo a qual uma relação
apontado a exegese daqueles textos, com problemas filosóficos formu- de causalidade simples, direta, unilinear e unidirecional entre a base
lados principalmente pela fenomenologia e por pensadores neokantia- econômica e as manifestações superestruturais resolveria tudo, sim-
nos. A estes, o Círculo tinha amplo acesso por meio do filósofo Matvei plória e dogmaticamente.
I. Kagan, que se doutorara na Universidade de Marburgo (Alemanha) Segundo, e certamente mais importante, o papel central que
- um dos centros do neokantismo - , onde foi aluno de Hermann eles deram à linguagem em suas formulações e as próprias pecu-
Cohen, uma das figuras emblemáticas daquele pensamento. liaridades da filosofia da linguagem que elaboraram. Nesse sentido
É preciso, porém, resistir à tentação de logo rotular Bakhtin como
específico, pode-se dizer que o Círculo de Bakhtin trouxe uma con-
tribuição original para aqueles debates, cujas implicações heurísticas
um filósofo neokantiano. Considerando o todo de sua obra, um pou-
não foram ainda de todo exploradas.
co de cautela não fará mal. Como veremos em mais detalhes adiante,
Bakhtin, de fato, parece ter encarado como relevantes os problemas for-
mulados por filósofos neokantianos (em especial a questão axiológica) e
PRIMA PHILOSOPHIA
aproveitou-os como fio condutor de suas próprias reflexões. Contudo,

Os primeiros textos de Bakhtin apontam para o objetivo do autor


Cf. Amorim (2001, p. 123, n. 162), para um comentário critico ao conceito de
polifonia de Ducrot face ao de Bakhtin. de se envolver com a construção de uma reflexão filosófica ampla. Es-
tamos nos referindo principalmente aos dois textos que foram escritos se subsumir a razão teórica na razão prática, entendida
--- -

provavelmente no início da década de 1920 e que ficaram inacabados esta como a razão que se orienta pelo evento único do ser e pela unici-
- Para uma filosofia do ato e O autor e o na estética. dade de seus atos efetivamente realizados; ou, em outras palavras, que
Vamos encontrar nestes primeiros textos um conjunto muito se orienta a partir do vivido, i.e., do interior do mundo da vida.
denso e rico de reflexões, que, de uma forma ou de outra, atravessará Esse posicionamento crítico frente à razão teórica, que abstrai o
todos os escritos de Bakhtin até o fim de sua vida. No entanto, não ser humano de sua realidade concreta (deixando apenas um esque-
é objetivo deste livro apresentar e discutir essa temática específica
leto de significado- p. 64), que constrói juízos em que eu não me
(ética e estética), por mais interessante e instigante que ela seja e por
encontro, em que eu não existo, será uma das principais constantes
mais provocadores que sejam os vários debates que ela tem motiva-
do pensamento do autor e do Círculo. O evento único e irrepetível
do internacionalmente. Por si só, ela exigiria outro livro.
será sempre uma referência central nas suas elaborações filosóficas.
Apesar disso, no contexto desta apresentação da filosofia da lin-
Deve ficar claro que essa crítica à razão teórica, ao teoreticismo,
guagem do Círculo de Bakhtin, é importante dar atenção aqui a pelo
não é uma negação da cognição teórica. Ao contrário: Bakhtin re-
menos alguns aspectos daquelas reflexões iniciais em razão de sua
conhece sua validade; o que ele recusa é sua total desvinculação do
pertinência para a concepção de linguagem que o Círculo formulou.
mundo da vida. Embora seu projeto seja
Referimo-nos particularmente:

- à questão da unicidade e eventicidade do Ser; uma representação, uma descrição da arquitetônica real, concreta da
-ao tema da contraposição eu/outro; experienciação do mundo regida por valores- não com uma funda-
- e ao componente axiológico intrínseco ao existir humano. mentação analítica na cabeça, mas com aquele centro real, concreto
(tanto espacial quanto temporal) donde emergem ou brotam avalia-
Bakhtin, em Para uma filosofia do ato, parte da asserção de que
ções, asserções e atos e onde os membros constituintes são objetos
existe um dualismo entre o mundo da teoria (isto é, o mundo do juízo
reais, interconectados por relações-eventos concretas no evento sin-
teórico, chamado, neste texto, de "mundo da cultura", o mundo em
que os atos concretos de nossa atividade são objetificados na elabora- gular do Ser (p. 61),

ção teórica de caráter filosófico, científico, ético e estético) e o mundo da ele não esconde o desejo de reconciliar o mundo da cognição teórica
vida (isto é, o mundo da historicidade viva, o todo real da existência de e o mundo da vida, conforme podemos ler à p. 49:
seres históricos únicos que realizam atos únicos e irrepetíveis, o mundo
da unicidade irrepetível da vida realmente vivida e experimentada). Todo o contexto infinito do conhecimento teórico humano possível
- a ciência - deve se tornar alguma coisa responsivamente conhe-
Esse dois mundos, diz Bakhtin (p. 2), não se comunicam porque cida [uznaníe] para mim como um único participante, e isso em nada
o mundo da vida, na sua eventicidade e unicidade, é inapreensível pelo diminui ou distorce a verdade [ístína] autônoma do conhecimento
mundo da teoria como ele se apresenta hoje, na medida em que nele não teórico, mas, pelo contrário, complementa-a até o ponto em que ela
há lugar para o ser e o evento únicos. O pensamento teórico se constitui se torna uma verdade [pravda] necessariamente válida.
exatamente pelo gesto de se afastar do singular, de fazer abstração da vida.
Bakhtin, desde este seu primeiro texto, será um crítico contu-
Mais ainda: para Bakhtin, não é possível superar este dualismo maz do racionalismo (p. 29-30), isto é, de um pensamento em que
partindo do interior da cognição teórica. Essa superação só será alcan- interessa o universal e jamais o singular; a lei geral e jamais o evento;
o sistema e jamais o ato individual; um pensamento que contrapõe o do eu moral que intui sua unicidade, que se percebe único, quere-
objetivo (entendido como o único espaço da racionalidade, da com- conhece estar ocupando um lugar único que jamais foi ocupado por
preensão lógica) ao subjetivo, ao individual, ao singular (entendido alguém e que não pode ser ocupado por nenhum outro.
como o espaço do fortuito, do irredutível à compreensão lógica).
Ao se perceber único (de dentro de sua própria existência e não
Incomoda-lhe a idéia de sistema em que não há espaço para o indi-
como um juízo teórico), este sujeito não pode ficar indiferente a esta
vidual, o singular, o irrepetível, o evêntico.
sua unicidade; ele é compelido a se posicionar, a responder a ela: não
No fim da vida, no texto inacabado Para uma epistemologia das temos álibi para a existência (p. 40).
ciências humanas (p. 169), ele voltará a este mesmo ponto e dirá,
Assume, desse modo, a responsabilidade por sua unicidade
comentando o estruturalismo, que é contra uma formalização e uma
("Eu sou concreto e insubstituível e, por consequência, devo realizar
despersonalização sistemáticas.
minha unicidade"- p. 41) e compreende que deve realizá-la por-
Bakhtin reconhece, naquele primeiro texto (p. 19), que a filo- que "aquilo que pode ser feito por mim não pode ser jamais feito por
sofia moderna, dentro de seus propósitos e perspectivas, alcançou outro alguém" (p. 40).
grande sofisticação em suas elaborações. Entretanto, para ele, essa
E esta realização da unicidade se dá na ação, no ato individual
filosofia não pode pretender ser uma filosofia primeira porque nada
e resp;;;:;á~l(~ã;-indiferente). Nesse sentido, viver é agir (p. 43) e
consegue dizer sobre o ser-como-evento único.
agir em relação a tudo o que não é eu, em relação ao outro (p. 42).
Uma filosofia primeira que trabalhe de dentro da unicidade do
No fim desse manuscrito (p. 74-75), Bakhtin volta a insistir na
ser e do evento não existe- diz ele (p. 19)- e mesmo os caminhos
relação eu/outro. Anteriormente (p. 60), ele já tinha destacado que
que levam à sua criação parecem estar esquecidos.
reconhecer minha unicidade e realizá-la no ato individual e respon-
Contudo, ele quer recuperar a possibilidade de tal filosofia pri- sável não significa que o eu vive só para si.
meira, uma filosofia cujo procedimento não será construir conceitos, Agora, ele vai afirmar que o princípio constitutivo maior do
proposições e leis universais sobre o mundo do ato efetivamente rea- mundo real do ato realizado é precisamente a contraposição concre-
lizado (em outras palavras, não se orientará pela "pureza" abstrata, te- ta eu/outro:
órica do ato), mas só poderá se viabilizar como uma fenomenologia
daquele mundo (p. 32), como uma forma do pensamento que Bakhtin A vida conhece dois centros de valores que são fundamentalmente e
essencialmente diferentes, e ainda assim correlacionados um com o
chama de participativo, não-indiferente, isto é, o pensamento daqueles
outro: eu mesmo e o outro; e é em torno desses centros que todos os
que sabem como não separar seu ato realizado do produto dele, mas momentos concretos do Ser são distribuídos e dispostos (p. 74).
sim como relacionar ambos ao contexto único e unitário da vida e
buscam determiná-los naquele contexto como uma unidade indivisí- O eu e o outro são, cada um, um universo de valores. O mesmo
vel (p. 19, nota de rodapé). mundo, quando correlacionado comigo ou com o outro, recebe valo-
rações diferentes, é determinado por diferentes quadros axiológicos.
Essa insistência de Bakhtin no trato do singular, do único, do Eessas diferenças são arquitetonicamente ativas, no sentido de que
irrepetível tem como base uma extensa reflexão sobre a existência do são constitutivas dos nossos atos (inclusive de nossos enunciados):
ser humano concreto. O argumento (p. 40) se assenta na estrutura é na contraposição de valores que os fl.tos concretos se realizam; é
no pla~o dessa contraposição axiológica (é no plano alteridade, O mesmo Voloshinov, em seu livro Marxismo
portanto) que cada um orienta seus atos. (de 1929), funda sua teoria do signo e do significado, bem
Nesse sentido, Bakhtin dirá no manuscrito O autor e na como sua crítica ao objetivismo abstrato em linguística nos mesmos
atividade estética (p. 187-188) que viver significa tomar uma posi- pressupostos: a consciência do falante não se orienta pelo sistema da
ção axiológica em cada momento, significa posicionar-se em relação língua, mas pelo novo, pelo irrepetível do enunciado, pelo concreto
a valores. Vivemos e agimos, portanto, num mundo saturado de va- de sua singularidade, pelo seu horizonte social avaliativo.
lores, no interior do qual cada um dos nossos atos é um gesto axio- Medvedev, em seu livro O método formal nos estudos literários
logicamente responsivo num processo incessante e contínuo. (publicado em 1928), elabora sua crítica à teoria da linguagem poé-
Bakhtin encerra seu manuscrito Para uma filosofia do ato com o tica dos formalistas tomando como ponto de referência o mundo
comentário de que essa contraposição axiológica eu/outro, embora já da vida, isto é, mostrando (p. 75ss.) que o conceito de linguagem
presente em algumas formulações morais, é ainda desconhecida da fi- cotidiana de que se valiam os formalistas para sustentar sua doutrina
losofia moral como um todo, não encontrou uma expressão científica da linguagem poética era excessivamente esquemático (e, portan-
adequada, nem foi pensada em sua essenc1alidade e integralidade. to, inadequado) por perder de vista as forças gerativas em operação
contínua na interação diária.
Apreciando o conjunto da sua obra, podemos afirmar que seu
Um último exemplo é a tese de Bakhtin sobre Rabelais. Ao ana-
grande projeto intelectual foi precisamente este: repor essa questão e
lisar a obra do autor francês e destacar sua relevância para a história
investigar sua essencialidade.
literária, Bakhtin salienta precisamente que é com este escritor que
Essas grandes coordenadas unicidade do ser e do evento se opera a pass<1gem da lógica (carnavalesca) da cultura popular, da
(e a co~~~q~~~te~necessidade de não separar o grundo da teoria do cultura da praça pública (do mundo da vida), para a cultura erudita,
mundo da vida), a relação ell/outro e a dim~:n,sãQaxiológica- serão, para a cultura escrita.
portanto, ()S~Lxo~ constantes e nucleares do pensamento bakhtinia-
no e de seus pares:
Citemos alguns exemplos. A LINGUAGEM NOS PRIMEIROS TEXTOS
Bakhtin discutirá extensamente, em O autor e herói na ativida-
Como fica claro, toda a reflexão que acabamos de resgatar se
de estética, que o processo estético pressupõe um olhar de fora, isto
é, um eu posicionado do lado de fora em relação ao outro para poder realiza, nos primeiros textos, ainda sem a presença constitutiva da
enformá-lo esteticamente. linguagem, marca que será característica de todos os textos poste-
riores a 1926.
Nesse texto e em O problema do conteúdo, do material e da for-
ma na arte verbal (de 1924), Bakhtin elabora toda uma reflexão esté- Não obstante isso, a linguagem já está presente nos primeiros
tica assentada na responsividade axiológica, tema que Voloshinov re- textos, e os poucos comentários que aí encontramos prenunciam
toma em O discurso na vida e o discurso na poesia (de 1926), dando muitas das elaborações posteriores.
especial destaque ao fato de que a entonação (a tomada de posição Assim é que no texto Para uma filosofia do ato, a linguagem apa-
axiológica) é o chão comum do enunciado na vida e na arte. rece já apresentada (p. 31 e 37) como atividade (e não como sistema)
e o enunciado (p. 37) como um ato singular, irrepetível, concretamen- Bakhtin dirá que não há, nem pode haver enunciados neutros. Todo
te situado e emergindo de uma atitude ativamente responsiva, isto é, enunciado emerge sempre e necessariamente num contexto cultural
uma atitude valorativa em relação a determinado estado de coisas. saturado de significados e valores e é sempre um ato responsivo, isto

Em outras palavras, estabelece-se já aqui a correlação estreita é, uma tol11~cl~~-cl~Pgsiç;j,o neste contexto.
entre o enunciado e a situação concreta de sua enunciação, bem Essa insistência na dimensão axiológica de todo e qualquer
como entre o significado do enunciado e uma atitude avaliativa. enunciado e na necessidade de abordar os enunciados desde o inte-
rior do mundo da vida leva Bakhtin, neste texto de 1924, a separar,
Essa atitude avaliativa se materializa no tom, na entonação do
pela primeira vez, sua perspectiva de estudo da linguagem daquela
enunciado ("a palavra realmente pronunciada não pode deixar de ser
desenvolvida pela linguística (p. 292ss.).
entonada"- p. 32, nota de rodapé), que, por sua vez, emerge do
universo de valores em que me situo, lembrando que, em seguida A abordagem da linguística é, na concepção bakhtiniana, insu-
(no texto O autor e o herói na atividade estética), Bakhtin dirá que ficiente pelo fato de enfocar o enunciado exclusivamente como um
viver é assumir uma posição avaliativa a cada momento; é posicio- fenômeno da língua, como algo puramente verbal, desvinculado do
nar-se com respeito a valores. ato de sua materialização, indiferente às suas dimensões axiológicas.

f>. ~~la~~a viva não conhece, portanto, um obj~tQJum "herói"~ Bakhtin posiciona seu modo de estudar a linguagem fora da
no vocabulário posterior do Círculo) como algo JQt<:tlmt::nte~~c~<?~~ linguística propriamente dita, mas não a descarta nem recusa sua
O mero fato de eu falar sobre ele significa que assumo certa atitude relevância- como discutiremos em mais detalhes no capítulo 3. A
frente a ele, uma atitude não indiferente: linguística, neste texto, é claramente apresentada como necessária
(como um conhecimento a que se deve recorrer), embora não sufi-
eis por que a palavra não apenas designa um objeto como uma enti-
dade pronta, mas também expressa por sua entonação minha atitude ciente (a língua no mundo da vida tem dimensões constitutivas que
valorativa em relação ao objeto, em relação àquilo que é desejável ou escapam da razão teórica da linguística).
indesejável nele, e, desse modo, movimenta-o em direção do que ain- Sobre isso, podemos ainda acrescentar outro dado. Consideran-
da está por ser determinado nele, transforma-o num momento cons-
do o projeto inicial de Bakhtin- isto é, a construção de uma "prima
tituinte do evento vivo, em processo (p. 32-33).
philosophia" formatada como uma fenomenologia dos atos únicos do
Está aqui a base da teoria da refração do signo que Voloshinov mundo da vida-, podemos afirmar que, em princípio, este pensa-
apresentará em seu livro de 1929, bem como da imagem da aura dor não entende sua reflexão sobre a linguagem como propriamente
heteroglóssica que Bakhtin construirá em suas discussões sobre a de natureza científica, mas primordialmente como de natureza filo-
linguagem no texto O discurso no romance, na década de 1930. sófica. Voltaremos a este tema no fim deste capítulo.
A dimensão axiológica é, portanto, parte inalienável da signi- Para encerrar este tópico, vamos fazer referência a um último
ficação da palavra viva. Esse mesmo tema aparece já mais elaborado comentário de Bakhtin sobre a linguagem em Para uma filosofia do
no texto O problema do conteúdo, do material e da forma na arte ver- ato. Neste, ele se pergunta (p. 30) se a inteireza do evento da vida (o
bal (de 1924). Nele, discutindo a criação estética como um comple- evento em processo) é, como tal, compreendida pelos participantes
xo processo de posicionamentos axiológicos em diferentes planos, por meio da abstração lógica, por meio do raciocínio teórico.
Sua resposta aqui é, evidentemente, negativa. Se transcrito em tivos Contudo, consideramos pertinente fazer algumas
termos teóricos- diz ele (p. 30-31)- o evento perde 1-''"'··'-'"'"uH.'-H'-'- ponderações sobre a questão neste ponto para, pelo menos, situar o
seu sentido de evento. leitor numa temática ainda recorrente nos estudos bakhtinianos.

No entanto, a compreensão do evento desde dentro não é alg~~ Lembramos, de início, que vários eslavistas estadunidenses, par-
o
c
inefª-v~l,_alg() q~eo5(Çpüderiã ser vivenciado, mas não verbalizado. A() ticularmente na década de 1980 (talvez ainda como efeito da Guerra
_co~~~-~ÉQ:}3akhtin afirma que essa compreensão pode ser enugçiada Fria), e vários intelectuais russos, em especial depois do fim da URSS
:'~!l:J.~l~ente co!ll clareza e nitidez.~~!.9,._U!~~~~-~~-~~~~L~::­ (talvez como efeito da ressaca pós-comunista), fizeram ingentes es-
~~-se desenvolveu historicamente a serviço do pensamento paE!!<:i: forços para desvincular o Círculo de Bakhtin do marxismo.
~~-~-~vo e dos atos efetivamente realizados (isto é? no mundo da vi4~) e
Subjacente a esses esforços parece estar, de um lado, um entendi-
-~~posteriormente passou também a servir ao pen:;amento teórico.
mento de que o marxismo é um pensamento homogêneo e monolíti-
Nesse processo de expressão do ato realizado e do evento sin- co; e, de outro, uma identificação do marxismo com o discurso oficial
gular em que tal ato é concretizado, a palavra deve ocorrer em sua do Partido Comunista da URSS. Não é preciso ir longe para mostrar
inteireza, o que compreende seu aspecto concreto palpável (mor- que esses dois pressupostos empobrecem demais a discussão e impe-
fossintático e fonológico), seu aspecto semântico-conceitual e seu dem uma apreciação mais consistente da questão como um todo.
aspecto axiológico (seu tom avaliativo)
Ao que tudo indica -isto é, pelo que se pode inferir dos textos
Contudo, diz Bakhtin, não devemos exagerar o poder da lin- assinados por ele e pelas informações biográficas de que dispomos
guagem. Embora a unicidade do ser-como-evento e do ato realizado (embora ainda bastante precárias)-, Bakhtin não vinculava seu pen-
sejam passíveis de receber expressão verbal, essa tarefa é bastante samento a uma arquitetônica que se pudesse classificar de marxista.
difícil, em grande parte porque a verbalização total é inalcançável e
Voloshinov e Medvedev, no entanto, assinaram textos com os
permanecerá sempre como algo a ser atingido.
quais buscavam, de modo explícito, intervir num debate de sua épo-
Em outros termos, Bakhtin materializa aqui sua crença nas pos- ca voltado justamente para uma temática marxista.
sibilidades de verbalizarmos nossas experiências vividas a partir de
Como sabemos, os anos imediatamente posteriores à Revolução
seu interior, mas alerta para o fato de que nunca conseguiremos ex-
de Outubro foram marcados não só por grandes mudanças políticas,
pressá-las em sua totalidade. 0~.2_eja: dar sentido ao vivido verbal-
sociais e econômicas na Rússia, mas também por intensa atividade
mente é um processopossível, mas sempre aberto, sua completude é
cultural, seja na esfera da criação artística, seja na esfera do debate
sempre postergada ("está sempre presente como aquilo que está por
das ideias. A conjuntura política levava os intelectuais a se envolve-
ser alcançado"- p. 31).
rem na construção de formulações teóricas de inspiração marxista
que pudessem se contrapor aos quadros teóricos tradicionais, espe-
cialmente os vigentes nas humanidades e nas ciências sociais.
MARXISTAS?
Ora, Voloshinov e Medvedev - pelo que se depreende de seus
Aprofundar a intrincada questão das relações do Círculo de textos da segunda metade da década de 1920- estavam diretamen-
Bakhtin com o pensamento marxista extrapola em muito os obje- te envolvidos nesses debates. E, nesse sentido, avançavam críticas
tanto às formulações do chamado marxismo vulgar, quanto àquelas Por fim, vale a pena destacar uma questão peculiar da relação
que buscavam resolver os problemas por meio de tentativas de con- desses autores com sua conjuntura. Assim como há uma inegável con-
ciliar de maneira simplista o marxismo com, por exemplo, o freudis- tribuição de Voloshinov e Medvedev à discussão de questões do inte-
mo e o formalismo, ambos em grande voga na Rússia da época. resse do marxismo; e assim como é relevante dar destaque aos belos
textos que nos foram legados (ainda tão prenhes de significados para
Seus textos- quer ao formularem críticas, quer ao darem cor-
nossos debates contemporâneos), é preciso deixar claro também que,
po a suas próprias propostas - estão sempre atravessados por duas
em alguns momentos de seus textos, Voloshinov particularmente faz
linhas argumentativas complementares: um compromisso com a
claras concessões a linhas oficiais que, nos últimos anos da década de
cientificidade do discurso (o que estava claramente em questão era
1920, começavam a tomar corpo no establishment acadêmico soviéti-
a construção de teorias de natureza científica para os problemas sob
co e a adquirir um estatuto de dogma (o que trazia pesadas consequên-
enfrentamento- atitude plenamente coincidente com as pretensões
cias políticas para qualquer dissidência). Isso deixa alguns pontos de
científicas do próprio marxismo) e uma cobrança de rigor metodo-
seus textos profundamente datados e, como tal, abertos ao mesmo
lógico de qualquer proposta que se apresentasse como de inspira-
ção marxista. Segundo eles, eram incompatíveis com o pensamento tipo de crítica de fundamentos que ele aplicou a outros autores.
marxista quaisquer propostas que não respeitassem suas premissas Talvez a mais marcada dessas concessões sejam as apologias ao
de base: o materialismo, o monismo metodológico, o caráter social e pensamento do linguista N. Y. Marr que aparecem, sem maiores da-
histórico de todas as questões humanas. nos, em Marxismo e filosofia da linguagem (que, de resto, é uma
Como dissemos antes, saber quão marxistas eram essas suas obra monumental), mas dominam praticamente toda a argumenta-
críticas e propostas ultrapassa nossos objetivos neste livro. Mas é ção do mais pobre de seus textos, o artigo O que é a linguagem?,
certo que os dois claramente investiram esforços no sentido de con- publicado em 1930.
tribuir para uma problemática de interesse marxista. Por outro lado,
é inegável que os dois (no rico contexto heurístico do Círculo de
Bakhtin) assinaram textos que contêm uma dimensão inovadora, VIRADA LINGUÍSTICA
especificamente no trato da linguagem, da estética, da literatura e
da criação ideológica em geral. Essa dimensão inovadora é de espe- Destacamos anteriormente que a questão da linguagem mar-
cial interesse para todos aqueles - marxistas ou não - que dese- ca de modo bastante peculiar a contribuição do Círculo de Bakhtin
jam pensar os processos e produtos culturais a partir de uma base para o pensamento contemporâneo. A entrada dessa questão nas
materialista e histórico-social. preocupações do Círculo, por sua vez, foi responsável por dar novas
direções ao desenvolvimento de seu próprio pensamento. Pode-se
Sugerimos ao leitor interessado em aprofundar o assunto a lei-
dizer, nesse sentido, que ocorre, nos debates destes intelectuais, uma
tura de dois autores consagrados (de formação marxista) que, segun-
espécie de virada linguística por volta de 192511926.
do entendemos, conseguiram situar bem esse aspecto do pensamen-
to do Círculo de Bakhtin e aquilatar adequadamente a relevância Se, como observamos acima, a questão da linguagem aparece
das contribuições de Voloshinov e Medvedev. Trata-se de Raymond apenas esporadicamente e de modo apenas incipiente nos primeiros
Williams (1977) e Augusto Ponzio (1980, 1981 e 1994). textos de Bakhtin, seus textos posteriores (do livro sobre Dostoievski
para a frente, isto é, a partir de 1929) se articularão tendo sempre em (transcrita em Bocharov, p. 1016), afirmou ser a concepção
como eixo um determinado conceitual sobre a linguagem, em de linguagem o elemento que unia o pensamento do grupo. A diver-
termos gerais, está delineado principalmente nos textos assinados sidade de interesses que apontamos acima acabou por encontrar na
por Voloshinov na segunda metade da década de 1920; e que co- concepção de linguagem seu elemento de convergência.
nhecerá alguns importantes desdobramentos em textos de Bakhtin Esse tema da linguagem aparece, pela primeira vez de forma
da década de 1930 em diante. mais sistemática, no texto O discurso na vida e o discurso na poesia,
Há, portanto, por volta de 1925/1926, uma confluência do Cír- assinado por Voloshinov e publicado em 1926 na revista Zvezda, 6.
culo para a temática da linguagem. Nela se casarão as preocupações É interessante observar que, no ano anterior, este mesmo autor
nucleares de Bakhtin (a temática axiológica, a questão do evento úni- publicara na mesma revista outro artigo e nele não havia nenhuma
co do Ser e a relação eu/outro), o interesse acadêmico de Voloshinov menção à temática da linguagem. Tratava-se de uma apresentação
(que se dedicava, nessa época, a estudos linguísticos) e o projeto crítica dos fundamentos da psicanálise, tendo como objetivo contra- 3
B
deste e de Medvedev de elaborar um método sociológico para os por-se a marxistas que faziam a apologia do pensamento freudiano e 0
o
estudos da linguagem, da literatura e das manifestações da chamada que tentavam uma acomodação da psicanálise e do,marxismo. Esse
cultura imaterial como um todo. tema voltará em 1927 na forma de livro (Freudismo), incluindo, ago-
ra sim, uma extensa discussão sobre a linguagem, que passa a ter,
Esse casamento de perspectivas na formulação de uma teoria
aliás, um papel nuclear na argumentação do autor.
da linguagem mostra, de um lado, a força heurística da pluralidade
de pontos de vista que se encontravam no Círculo; e, de outro, vai Também no texto de 1926 é claro o objetivo de criticar aqueles
redirecionar os trabalhos de cada um de seus membros. marxistas que estariam subscrevendo uma proposta analítica corren-
te (formulada por Sakulin) que dividia o estudo da arte entre uma
Enquanto Voloshinov vai, até 1930, se concentrar principalmen- abordagem imanente (que não poderia ser sociológica) e uma abor-
te no detalhamento da teoria da linguagem (com algumas incursões dagem histórico-causal (que deveria ser sociológica). O argumento
no terreno das questões estéticas), Medvedev, no mesmo período, vai do texto vai no sentido de que a arte é imanentemente sociológica
ocupar-se com os fundamentos do que ele chama de estudo das ideo- e, portanto, tal divisão seria contrária aos fundamentos do método
logias (num certo sentido deste termo -ver discussão adiante, no ca- marxista - o monismo e a historicidade.
pítulo dois), no interior da qual estará uma poética dita sociológica.
Para demonstrar essa sua tese, Voloshinov assume a existência
O pensamento de Bakhtin, por sua vez, se tornou fortemente de um chão comum aos enunciados artísticos (poéticos) e aos enun-
sociologizado a partir do livro sobre Dostoievski. Pode-se dizer que ciados cotidianos ambos se materializam na grande corrente
_,,.,,' ·- -· -' v'~~'''"

seus grandes temas iniciais permanecem, mas são retrabalhados a da i!l~~E~s;ão sociocultural e envolvem tomadas de posições axiolá:-
partir de um ponto de vista mais sociologicamente articulado, que gicas): É importante destacar que esse pressuposto (que será apro-
se alicerça na teoria da linguagem e da cultura que o Círculo vinha fundado por Medvedev em seu livro de 1928 e estará presente em
formulando nos anos anteriores. toda a obra posterior de Bakhtin) se contrapõe de modo frontal ao
O tema da linguagem se tornou tão forte para os membros do pensamento formalista, que se articulava precisamente sobre uma
Círculo que o próprio Bakhtin, em uma carta dirigida a V Kozhinov oposição radical entre linguagem poética e linguagem cotidiana.
Depois de enunciar aquele pressuposto, Voloshinov desenvolve ra, no início anos 1920, numa tentativa de conciliar os estudos
uma discussão sobre características da linguagem na vida cotidiana, literários tradicionais com a poética formalista e com o marxismo,
estendendo-a, na sequência, à análise do enunciado artístico. É a que as obras literárias deveriam ser analisadas por dois métodos dis-
primeira vez que, em textos do Círculo, se funda uma análise esté- tintos: o método formal para o estudo imanente da obra e o método
tica sobre uma análise da linguagem, o que será comum nos textos sociológico para o estudo histórico-causal (entendido como o estudo
futuros do Círculo e do próprio Bakhtin. das influências do extraliterário).
Destaque-se que a discussão de Voloshinov nesse texto não tem A argumentação de Medvedev, contrária a essa proposta, tem
a questão da linguagem propriamente como objeto, mas a questão da dois eixos: primeiro, a tese cara ao Círculo de Bakhtin de que as obras
literatura. É para elucidar o problema do enunciado artístico que ele literárias - na medida em que condensam valores sociais em múl-
inicia uma reflexão sobre o enunciado em geral, partindo, para isso, tiplas dimensões- são sociológicas de ponta a ponta; e, segundo,
do enunciado do dia a dia. O que estava lhe interessando, nesse mo-
que a proposta de Sakulin, com seu dualismo, era intrinsecamente
mento, era mostrar que as forças que funcionam num tipo de enun-
incompatível com o marxismo, que é um pensamento monista.
ciado são da mesma natureza daquelas que funcionam no outro.
Esses quatro artigos são característicos daquilo que se poderia
Adiante, sem perder de vista a questão do enunciado literário,
chamar de crítica ideológica, num certo sentido da expressão. Os
ele ampliará suas reflexões, envolvendo-se, inclusive, com uma longa
dois autores, em tom polêmico e cheio de ironias, realizam uma lei-
discussão sobre a própria linguística. Por ora, concentra-se em fazer
tura crítica do pensamento de Freud, dos formalistas e de Sakulin,
frente à teorização dos formalistas, contrapondo-se a seu conceito de
pondo sob rigoroso escrutínio seus pressupostos e fundamentos.
"linguagem poética" e à oposição radical que eles estabeleciam entre
a linguagem dita ordinária e a linguagem dita poética. Com base nessa leitura, aproveitam para criticar tanto o mar-
xismo vulgar, quanto pensadores marxistas que buscavam conciliar
Nestes mesmos anos de 1925/1926, Medvedev publica dois arti-
gos sobre estudos literários. Num primeiro, discute o pensamento das simploriamente marxismo e psicanálise; ou aceitavam acriticamente
principais figuras do chamado método formal, que estava em evidência uma divisão de tarefas, nos estudos literários, entre o método formal
na Rússia na primeira metade da década de 1920. Resenha criticamente e o método sociológico.
artigos e livros de autores como R.Jakobson, V Chklovski, B. M. Eikhen- Lendo esses artigos sem perder de vista o conjunto da obra
baum, V M. Zhirmunsky e Y. N. Tynyanov (que, diga-se de passagem, como referência, fica claro que tanto Voloshinov quanto Medvedev
viriam a ser grandes referências dos estudos literários no Ocidente, na estavam buscando, pelas críticas aos teóricos de seu tempo, limpar o
década de 1970), apontando as limitações de suas proposições estéticas. terreno para, nos anos seguintes, lançar suas próprias teorias, o que
Medvedev voltará a essa crítica, aprofundando-a, no seu livro de 1928 acontecerá na forma de livro.
- cf. Tezza (2003) para uma pormenorizada análise do pensamento
Voloshinov voltará, com mais fôlego, ao pensamento freudiano
formalista e das críticas do Círculo de Bakhtin àquela estética.
na obra Freudísmo: um ensaio crítico, publicada em 1927, e à teoria
Num segundo artigo, Medvedev faz uma crítica às ideias de P da linguagem na obra Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
N. Sakulin, que, conforme se podia observar no texto de 1926 de fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem, publi-
Voloshinov, atraíam alguns estudiosos marxistas. Sakulin propuse- cado em 1929 (com segunda edição já no ano seguinte).
Medvedev, por seu turno, voltará ao pensamento formalista no culdade de um lado, mencionar que foi (e é) projeto de al-
seu livro O método nos estudos uma crí- guns filósofos dar à filosofia um caráter científico, apagando, assim,
tica à poética sociológica, publicado em 1928. Nele, o autor busca especificidades e fronteiras. Por outro lado, no âmbito das ciências
situar os estudos literários, sob uma perspectiva marxista, no quadro sociais e humanas, há toda uma tradição hermenêutica (com a qual,
amplo do que ele designa de estudo das ideologias (num certo sentido aliás, Bakhtin se identificava) que opera antes no plano do conceito
deste termo, conforme vamos discutir em detalhes no capítulo dois). e da interpretação do que no da prova empírica, aproximando-se,
Tanto este texto quanto Marxismo e filosofia da linguagem foram portanto, de certo modo de fazer filosofia.
precedidos por artigos que, publicados ambos em 1928 na revista Li- Apesar dessa dificuldade, parece-nos relevante, para melhor
z:
teratura i Marxi.szm, resumiam parte da argumentação dos livros: de apreciar o pensamento do Círculo de Bakhtin, fazer, neste ponto,
~
Medvedev o artigo As tarefas imediatas da ciência histórico-literária uma incursão por esta complexa área. Nosso objetivo é argumentar ~
Ol l
(que apareceu no n. 3); e de Voloshinov o artigo As correntes mais que esse pensamento é de caráter eminentemente filosófico e não
::0
c...J
recentes do pensamento linguístico no Ocidente (publicado no n. 5). "'
i;!
propriamente científico. ':.3
o
Por fim, Voloshinov, em 1930, publica quatro artigos dentro
Reconhecer isso traz uma série de consequências fortes para os
ainda da temática da linguagem: três em que retoma a teoria do
modos como nos apropriamos dele em nossas reflexões e estudos.
enunciado e um último sobre as fronteiras entre a poética e a lin-
Entendemos que muitas das atribulações das tentativas de utilização
guística, que é, basicamente, uma extensa crítica às concepções do
desse pensamento decorrem, em boa parte, de ele ser tomado pelo
linguista russo V V Vinogradov e uma reiteração do quadro concei-
que não é.
tual anteriormente elaborado.
Quando as primeiras obras de Bakhtin chegaram ao Ocidente
Mas, nessas alturas, com Bakhtin preso e exilado na Ásia, o Cír-
Qustamente os livros sobre Dostoievski e sobre Rabelais), a recepção
culo como tal não mais existia. Sobre o pensamento construído em
conjunto nos anos 1920, cairá um pesado silêncio de mais de trinta inicial o classificou logo como um teórico da literatura.
anos. Haverá, sim, retomadas e desdobramentos, mas, agora, na pena A chegada, poucos anos depois, do texto de Voloshinov sobre a
solitária de um grande pensador esquecido na província e quase só linguagem (incluindo uma extensa discussão crítica das teorias lin-
na forma de manuscritos que nunca se completarão e de notas espar- guísticas correntes em seu tempo) e a confusão sobre a autoria leva-
sas em gastos cadernos escolares. Voloshinov morre de tuberculose ram, então, muitos leitores a visualizar um Bakhtin linguista.
em 1936 e Medvedev, que fora desde 1919 um homem do aparelho
Contudo, a progressiva divulgação de outros textos, em espe-
soviético de Estado, desaparece nos expurgos políticos da segunda
cial aqueles escritos no início da década de 1920, foi revelando que
metade da década de 1930, provavelmente fuzilado em 1940.
Bakhtin era, antes de mais nada, um filósofo, face à abrangência de
sua temática e os objetivos de sua reflexão.

fiLÓSOFOS OU CIENTISTAS? Ele mesmo, aliás, se entendia como tal, conforme revela em
entrevista a Viktor Duvakin em 1974 (citada por Caryl Emerson na
Estabelecer com precisão uma rigorosa distinção entre filosofia introdução ao livro organizado por Amy Mandelker). Perguntado
e ciência não é, evidentemente, tarefa fácil. Para destacar essa difi- se ele era mais um filósofo do que um filólogo, Bakhtin respondeu:
"Mais um filósofo. E assim permaneço até os dias de hoje. Eu sou um No segundo caso, temos um pensamento que calcula, que com-
filósofo. Um pensador [myshtdT (p. 192, n. ll). partimentaliza o mundo para "examinar-lhe as contas". O adjetivo
está relacionado com o verbo (calcular) e poderia
Bakhtin não se via, portanto, como um homem de ciência, preso
ser traduzido por (pensamento) calculador, contabilizador.
à esteira estreita da positividade e da modelização formal. Pelo seu
próprio pressuposto de base (i. e., nunca perder de vista, na reflexão, Não há nessa partição nenhuma negação da ciência; apenas uma
a eventicidade da existência, do mundo da vida), Bakhtin se colocava reflexão que destaca o fato de que o pensamento científico não é a única
fora de uma racionalidade propriamente científica e desenvolvia um forma rigorosa de exercício da razão. O besinnliches Denken não só tem
modo de pensar mais globalizante- o que, no dizer de Emerson (p. lugar, como é indispensável, no sentido de que permite uma reflexão
9-10), seria uma predisposição da própria tradição filosófica russa. mais livre das amarras dos modelos científicos, admitindo um espectro
Segundo ela, o vocábulo myslitel' (pensador) tem especiais res- mais amplo de interpretações, de correlações, de problematizações.
sonâncias na cultura acadêmica russa. Um mys1itel' (um pensador) Subjacente a essa distinção, há um interesse em não diluir a
pode ser eclético e excêntrico; ele é mais livre que o cientista para filosofia na ciência; em preservar as diferenças e especificidades de
transcender as fronteiras de disciplinas e metodologias estabelecidas. cada uma dessas formas de conhecimento; e, principalmente, em
Em suas próprias palavras (p. 10): estabelecer, num mundo dominado pelo pensamento científico, um
No caso de Bakhtin, o termo sugere uma pessoa que está menos pre- espaço para outra racionalidade.
ocupada em aplicar suas ideias à literatura do que em utilizar a litera-
Vale repetir aqui que Heidegger expressamente diz, nos Seminá-
tura, seletivamente e num alto nível de inspiração, para ilustrar suas
ideias. É de alguma forma interessante que a autodesignação altiva de rios de Zollikon, não haver, naquela distinção, uma hostilidade contra a
Bakhtin e sua trajetória intelectual tenham-se tornado agora marcas ciência (p. 122), mas uma crítica à "sua [da ciência] pretensão ao abso-
identificadoras dele e não suas imperfeições. luto, a ser o parâmetro de todas as verdades" (p. 136). E essa crítica tem
Para construirmos uma melhor compreensão desse ponto, po- especial significado no conjunto da filosofia heideggeriana, cujo eixo foi
deríamos talvez dizer que Bakhtin era um filósofo no sentido heide- precisamente superar o esquecimento do Ser praticado pela metafísica,
ggeriano do termo. (re)colocar na agenda filosófica a questão do Ser, do sentido do Ser.

Heidegger, em suas discussões sobre a ciência moderna, ela- Ora, a ciência como tal não se coloca essa questão mais ampla.
borou uma distinção entre um pensamento de natureza filosófica Para funcionar, ela precisa, de fato, abandonar o sentido do Ser. Por
(besinnliches Denken) e um pensamento de natureza científica (re- isso, diz Heidegger, a ciência não pensa (Ensaios e conferências, p.
chnendes Denken). 115). A racionalidade científica se funda no gesto primeiro de calcu-
Grosso modo, podemos resumi-la da seguinte forma: no primei- labilizar o mundo, isto é, ela precisa ver o mundo como objetidade
ro caso, temos um pensamento que busca apreender o mundo em calculável para que possa predeterminá-lo o tempo todo (Seminá-
seus sentidos mais amplos. O adjetivo alemão besinnlích pertence rios, p. 177). Só assim é que a ciência pode instalar-se num domínio
à família da palavra sinn (sentido), à qual se alia também o verbo de objetos e alcançar seus resultados. Não pensar é, portanto, sua
besinnen (refletir sobre, meditar) e poderia ser traduzido por (pensa- vantagem: basta-lhe submeter-se ao primado do método - "a pró-
mento) reflexivo, meditativo, cogitativo. pria ciência: nada mais é do que método" (Seminários, p. 136).
Sobre isso, Heidegger, nos mesmos Seminários (p, na ciência) e sua discussão das ciências humanas como fundamen-
154), retoma a frase de Nietzsche- "Não é a vitória da ciência que talmente hermenêuticas reiteram essa direção,
destaca o nosso século XIX, mas sim a vitória do método sobre a
Por fim, é curioso observar certo eco heideggeriano avant
ciência" - e oferece-lhe uma interpretação dizendo que o método lettre na forma como Bakhtin, no texto O problema do conteúdo, do
não somente está a serviço da ciência, mas acima dela: a ciência é material e da forma na arte verbal (1924), apresenta a construção
dominada pelo método, É ele que "determina o que deve ser objeto pela linguística de seu objeto precisamente como um ato de subme-
da ciência e de que maneira ele seja acessível, isto é determinado em tê-lo (dominá-lo) metodologicamente, Em suas palavras:
sua objetidade", Assim,
Somente desse modo, isolando e liberando o constituinte puramente
o principal não é a natureza, como ela interpela o homem a partir de verbal da palavra e criando uma nova unidade verbal com suas subdi-
si, mas o que é determinante é como o homem deve representar a visões concretas, é que a linguística submete metodologicamente seu
natureza a partir da intenção de dominá-la, objeto (p, 292-293),

Nessa perspectiva, a questão do Ser, pela sua amplitude, está E logo adiante:
fora do alcance da ciência (do rechnendes Denken) e exige outra ra-
Somente ao se libertar consistentemente de uma propensão metafísica
cionalidade (a do besinnlíches Denken), Exige não um pensamento (da substancialização e objetivização da palavra), de uma sobrepre-
operador de calculabilidade, mas um pensamento que pensa o sen- sença da lógica, do psicologismo e do esteticismo, é que a linguística
tido do Ser, um pensamento que "se entrega ao inesgotável do que é construiu seu caminho em direção a seu objeto, postulou-o metodo-
logicamente e, desse modo, tornou-se pela primeira vez uma discipli-
digno de ser questionado" (Ensaios, p, 59),
na científica (p, 293),
Ora, quando observamos o modo de Bakhtin elaborar suas re-
Num tempo colonizado pela ciência, é compreensível que mui-
flexões, nunca vamos encontrá-lo ocupado em ver o mundo como
tos vão aos textos de Bakhtin (e do Círculo) em busca precisamente de
objetidade calculável e, em consequência, em construir um mode-
método; aproximem-se deles na expectativa de encontrar um modus
lo instrumentalizante de uma análise científica, Em outras palavras,
faciendi, um conjunto de procedimentos para a análise literária e para
nunca vamos encontrá-lo ocupado com o rechnendes Denken, Seu a análise linguística, O resultado mais visível desse equívoco (isto é,
interesse está antes posto numa reflexão ampla que se entrega ao de se tomar os textos do Círculo pelo que não são) é transformar ca-
inesgotável da existência, ao sentido da criação estética e do Ser da tegorias filosóficas em categorias científicas, em categorias de método
linguagem, Ou, para usar um vocabulário heideggeriano, podemos (polifonia, diálogo, camavalização são, talvez, os casos mais clássicos
dizer que Bakhtin não vai ao mundo tomar-lhe as contas, mas se dei- desse processo),
xa interpelar pelo fazer estético, pela literatura e pela linguagem,
Mesmo os trabalhos de Voloshinov e Medvedev, comprome-
Sua preocupação, desde o início, com o evêntico, com o único, tidos com o pressuposto de cientificidade do pensamento mar-
com o singular, e sua crítica ao teoreticismo são já evidências da xista, dificilmente podem ser lidos como contendo recortes de
direção filosófica e não científica do seu pensamento, Sua explícita "objetos calculáveis" e formalizações de proposições de método
recusa, no fim da vida, do estruturalismo e do formalismo (correntes (sem o que a ciência não pode funcionar), "f:les são antes dis-
de pensamento que cultivaram precisamente uma espécie de fé cega cussões dos fundamentos de uma ciência da ling~agem, de UJ11a
---------------

poética sociológica ou de um estudo das ideologias (no sentido E


que este termo tem nos textos do Círculo). Constituem, portanto,
~eflexões sobre as condições de possibilidade dessas disciplinas e, Dissemos acima que Bakhtin se identificava com uma tradição
desse ~~do, são texto~-tipicamente filosóficos, mais próprios do hermenêutica nos estudos humanos, uma tradição que entende que
besinnliches Denken. o fazer científico nas ciências humanas se materializa por gestos in-
Em suma: ao percorrermos os te-xtos do CírculQ_(i~_l?_<:t;l<:htin terpretativos, por contínua atribuição de sentidos (uma espécie de
não nos d-ep~r;~;s,--ê~~enhum moment(),_ <:;()II_l_a}o!!llalizaçãg besinlíches Denken) e não por gestos matematizadores.

de ~ét;d;-~i~~t_ífico propriamente dito, mas com grandes diretri- Em termos de filosofia da ciência, podemos dizer, então, que
zes para construirmos um entendimento m_ai~ arrlp]Q cl0S realida- Bakhtin se vinculava a um pensamento que costuma operar sobre o
des s-;b-~-;t~d;_Talve~- o i~dicador mais óbvio de ausência de pro- pressuposto de uma distinção de fundo entre as ciências naturais e
jet;~et~d;lÓgico sejam as várias classificações que, vez por outra, as ciências humanas.
encontramos naqueles textos (ver, por exemplo, a terceira parte Esse vínculo parece ter-se constituído a partir de uma leitu-
de Marxismo e filosofia da linguagem ou o capítulo 5 de Proble- ra crítica dos trabalhos de Wilhelm Dilthey (1833-1911), pensador
mas da poética de Dostoíevski). El1l nenhu:n:J.a delas, as categorias alemão que esteve no centro dos debates ocorridos no fim do século
são definidas com suficiente "objetidade calculável" e aquilo que XIX e início do XX sobre o estatuto das ciências humanas e sociais,
poderla ser visto como-- o gérmen
--
de uma ---·proposição de métoci_Q e que será referência constante em todos os desdobramentos poste-
~~"~----~-----"··- .. -

não E":~~~de um exercícioclassificatório apenas sugestivo, semp~~


3
riores da hermenêutica. .E
maLacabado e apresentado como apenas preliminar, esquemático, :3?
u
Dilthey se posicionou entre aqueles que recusavam a concepção
provisório (e nunca retomado).
positivista que pretendia reduzir essas ciências às ciências da natu-
A construção de um método científico strícto sensu a partir de reza. Entendia ele que as "Ciências do Espírito" (Geísteswissenschaf-
um besinnliches Denken, embora- em tese- seja possível, não é ten) se opunham às "Ciências da Natureza" (Naturwíssenschajten)
certamente tarefa fácil, a começar pela própria constituição do ob- por terem objetos ontologicamente diferentes e, por consequência,
jeto teórico: ele precisa ser "calculável", o que pressupõe, para sua métodos diferentes.
viabilização, a necessária imposição de um recorte algo violento e Segundo Dilthey, o objeto das ciências da natureza (os fenôme-
traumático na realidade do Ser. Em outros termos; a inescapável cal- nos naturais) é estranho ao sujeito cognoscente no sentido de que
culabilidade científica exige o esquecimento da questão do Ser. o ser humano não pode conhecê-lo por dentro, a partir do interior;
Se, porém, acompanharmos Bakhtin em sua concepção herme- já o objeto das ciências do espírito (o mundo da cultura) não é es-
nêutica das ciências humanas - que pressupõe uma aproximação tranho ao sujeito. É por ser o mundo da cultura a expressão de uma
destas de certo fazer filosófico mais conceitual e interpretativo- tal- vivência humana que o sujeito cognoscente pode aqui conhecer de
vez o aproveitamento de suas ideias nas nossas reflexões possa se dentro o objeto, i.e., o sujeito, por pertencer ao mundo da cultura,
fazer de modo mais produtivo e menos reducionista, conforme, aliás, pode senti-lo por dentro, pode ter dele uma percepção íntima, pode
demonstram os trabalhos de Amorim (2001), Brait (1996) e Jobim e reviver e reproduzir a experiência dos outros seres humanos, pode
Souza (1994 e 2000). penetrar em seus significados.
Por isso, enquanto metodologicamente o ideal das ciências ciências naturais constituem uma forma de saber monológico em
natureza é a explicação (encontrar do exterior relações necessárias que o intelecto contempla uma coisa muda e se pronuncia sobre
entre os fenômenos), o das ciências do espírito é a compreensão ela, enquanto as ciências humanas constituem uma forma de saber
(captar do interior, por uma experienciação psíquica, por um sentir dialógico em que o intelecto está diante de textos que não são coisas
em conjunto com os outros, os significados das ações humanas). mudas, mas a expressão de um sujeito.
Bakhtin assume boa parte dessas formulações de Dilthey (con- Deve ficar claro que a atividade científica em qualquer área,
forme podemos ler em seu material de arquivo, particularmente suas como dimensão do universo da criação ideológica, produz texto e,
notas de caderno de 1970-1971 e os esboços sob os títulos O pro- portanto, é sempre uma atividade dialógica. O que Bakhtin procura
blema do texto e Para uma metodologia das ciências humanas), cri- destacar é um aspecto diferenciador que ele vê entre as ciências na
ticando, porém, o psicologismo inerente ao raciocínio de Dilthey ao relação com o objeto: uma relação monológica nas ciências naturais
mostrar como ele constituíra um sistema em que o psiquismo tem (porque o objeto é mudo) e uma relação dialógica nas ciências hu- s
primazia sobre o universo da cultura. Este é visto como expressão e manas (porque o objeto é o texto, a expressão de alguém). ~
G
o
materialização de consciências individuais, sem dimensão social. Por Em outras palavras, nas ciências naturais um sujeito contempla
isso, a compreensão das ações dos outros não passa de um processo e fala sobre uma coisa muda; nas ciências humanas, ao contrário, há
de empatia psicológica. sempre, pelo menos dois sujeitos: o que analisa e o analisado. Ou
Para Bakhtin, ao contrário, a consciência individual se constrói seja: nestas ciências, o intelecto contempla textos, isto é, conjuntos
na interação, e o universo da cultura tem primazia sobre a consci- de signos (verbais ou não), produtos de um sujeito social e histori-
ência individual. Esta é entendida como tendo uma realidade semi- camente localizado.
ótica, constituída dialogicamente (porque o signo é, antes de tudo, No primeiro caso (ciências naturais), há uma relação sujeito/ob-
-·--·---- ~-"' -- --- ·-
social), e se manifestando semioticamente, i.e., produzindo texto e - -

jet9i!.:~_seg~~do caso (ciências humanas), há uma relação sujeito/su-


o fazendo no contexto da dinâmica histórica da comunicação, num jeito, na medida em que o objeto é o texto de alguém e Bakhtin recusa
duplo movimento: como réplica ao já dito e também sob o condicio- sempre a reificação do texto: atrás do texto há sempre um sujeito,
namento da réplica ainda não dita, mas já solicitada e prevista, já que uma visão de mundo, um universo de valores com que se interage.
~-~·-···--····-··-·"-' -
Bakhtin entende o universo da cultura como um grande e infinito
Diz mais Bakhtin: as ciências humanas se debruçam sobre a
diálogo (como veremos no capítulo dois).
significação, por isso trabalham com a compreensão e não com a
Em consequência disso, a compreensão não é mera experien- explicação. Esta, segundo ele, implica uma só consciência, um só
ciação psicológica da ação dos outros, mas uma atividade dialógica sujeito; aquela, duas consciências, dois sujeitos. Enquanto a expli-
que, diante de um texto, gera outro(s) texto(s). Compreender não é cação aponta para o necessário (i.e., o intelecto contempla as coisas
um ato passivo (um mero reconhecimento), mas uma réplica ativa, mudas em busca de relações necessárias), a compreensão aponta
uma resposta, uma tomada de posição diante do texto. para o possível, po:rque é uma operação sobre o significado que,
Bakhtin, então, entende as ciências humanas (as ciências que sendo em grande parte efeito da interação, do encontro de cosmo-
tratam da criação ideológica, nos termos postos por Medvedev em visões e orientações axiológicas, envolve sempre uma dimensão de
seu livro sobre o formalismo) como ciências do texto. Diz ele que as pluralidade. Desvelam-se, nessa operação, aspectos semânticos não
------------------------- .......----~-"---

reiteráveis do signo, decorrentes justamente do fato sua produção


~ e recepção serem sempre contextualizadas (singulares, evênticas).
~
3 O limite da exatidão nas ciências naturais é a identidade (a garan-
3
~ tia de controle da natureza, fundada no pressuposto da necessidade
das relações, é justamente a reprodutibilidade do experimento); nas CAPÍTULO DOIS
ciências humanas, a exatidão consiste na capacidade de não fundir
em um só os dois sujeitos; ou, nas palavras de Bakhtin, de sobrepujar
a alteridade daquilo que é outro sem o transformar em qualquer coisa
que é para si (Para uma metodologia das ciências humanas, p. 169)2. CRIAÇÃO IDEOLÓGICA
E DIALOGISMO

UMA TEORIA MATERIALISTA DA


CHAMADA CRIAÇÃO IDEOLÓGICA

orno vimos no capítulo anterior, Voloshi-


nov e Medvedev tinham como projeto
intelectual explícito, em seus trabalhos
da segunda metade da década de 1920,
contribuir criticamente para a construção
de uma teoria de base marxista da criação
ideológica.
Voloshinov se concentrou na questão da lin-
guagem, desenvolvendo basicamente dois
pontos: uma discussão crítica dos estudos linguísticos de sua época
(em especial em seu livro Marxismo e filosofia da linguagem) e a apre-
sentação da tese de que os enunciados do cotidiano e os enunciados
Marilia Amorim, em seu livro O pesquisador e seu outro: Bahhtin nas ciências huma-
artísticos têm um chão comum - estão ambos no interior da grande
nas, explora, de maneira rica e interessante, essa concepção bakhtiniana das ciências
humanas como espaço de tensão dialógica. corrente da comunicação sociocultural e têm ambos uma dimensão
axiológico-social em sua significação (ver seus artigos O na direito, a religião, a ética, a política são as ideologias). É com esse uso
vida e o discurso na poesia e As fronteiras entre e no plural que Medvedev inicia seu livro, dizendo que o estudo da
literatura é um ramo do estudo das ideologias, com este abarcando
Voloshinov envolveu-se também com a temática da subjetivida-
todas as áreas da criatividade intelectual humana citadas acima.
de, desenvolvendo uma discussão crítica da psicanálise (em especial
em seu livro Freudismo) e da psicologia de seu tempo (ver particu- Esses termos (ideologia, ideologias, ideológico) não têm, portan-
larmente o cap. I-3 de Marxismo e filosofia da linguagem e o cap. to, nos textos do Círculo de Bakhtin, nenhum sentido restrito e nega-
I-2 de Freudismo) e formulando um conceitual sociológico sobre a tivo. Será, portanto, inadequado lê-los nestes textos com o sentido de
natureza da consciência. "mascaramento do real", comum em algumas vertentes marxistas.

Medvedev, por sua vez, direcionou sua reflexão para o estudo Algumas vezes, o adjetivo ideológico aparece como equivalente
da literatura, tendo como ponto de partida uma pormenorizada crí- a axiológico. Aqui é importante lembrar que, para o Círculo, a signifi-
tica das ideias dos formalistas. cação dos enunciados tem sempre uma dimensão avaliativa, expressa
sempre um posicionamento social valorativo. Desse modo, qualquer
Nos capítulos 1 e 2 de seu livro O método formal nos estudos li-
terários, Medvedev, depois de apresentar o estudo da literatura como enunciado é, na concepção do Círculo, sempre ideológico- para eles,
um ramo dos estudos da criação ideológica, traça o que poderia ser não existe enunciado não-ideológico. E ideológico em dois sentidos:
lido como diretrizes gerais para um estudo de base materialista e qualquer enunciado se dá na esfera de uma das ideologias (i.e., no
sócio-histórica do universo da criação ideológica. interior de uma das áreas da atividade intelectual humana) e expressa
sempre uma posição avaliativa (i.e., não há enunciado neutro; a pró-
· Como ideologia é uma palavra "maldita" (pelas incontáveis sig-
pria retórica da neutralidade é também uma posição axiológica). r
nificações sociais que pode veicular), é importante - para evitar
costumeiros mal-entendidos- deixar claro o sentido que ela tem na Voloshinov, ao iniciar seu livro Marxismo e filosofia da lin-
obra de Medvedev (e, de fato, de todo o Círculo de Bakhtin). guagem, também identifica ideologia com o universo da produção
imaterial humana. Diz ele que "as bases de uma teoria marxista das
Nos textos do Círculo, a palavra ideologia é usada, em geral,
ideologias - as bases para os estudos do conhecimento científico,
para designar o universo dos produtos do "espírito" humano, aquilo
da literatura, da religião, da moral etc.- estão estreitamente ligadas
que algumas vezes é chamado por outros autores de cultura imate-
rial ou produção espiritual (talvez como herança de um pensamento aos problemas da filosofia da linguagem" (p. 9).
idealista); e, igualmente, de formas da consciência social (num voca- E, logo adiante, dirá que tudo o que é ideológico (isto é - en-
bulário de sabor mais materialista). tenda-se bem-, todos os produtos da cultura dita imaterial) possui
Ideologia é o nome que o Círculo costuma dar, então, para o significado; é, portanto, um signo. E conclui com a afirmação de que
universo que engloba a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, "sem signos não existe ideologia" (p. 9), querendo com isso dizer
a ética, a política, ou seja, todas as manifestações superestruturais que o universo da criação ideológica é fundamentalmente de nature-
(para usar certa terminologia da tradição marxista). za semiótica, afirmação reiterada na página seguinte:

A palavra ocorre também no plural para designar a pluralidade O domínio da ideologia coincide com o domínio dos signos. Eles
de esferas da produção imaterial (assim, a arte, a ciência, a filosofia, o são mutuamente correspondentes. Ali onde um signo se encontra,
encontra-se também ideologia. Tudo o que é ideológico possui valor para Medvedev (como para todo o Círculo de Bakhtín), os
semiótico (p. lO). signos são intrinsecamente sociais, isto é, são criados e interpretados
no interior dos complexos e variados processos que caracterizam o
É essa identificação do ideológico com o semiótico que vai dar
intercâmbio social. Os signos emergem e significam no interior de re-
ao Círculo o fundamento para construir sua teoria materialista para lações sociais, estão entre seres socialmente organizados; não podem,
o estudo dos processos e produtos da cultura imaterial; o fundamen- assim, ser concebidos como resultantes de processos apenas fisiológi-
to de sua filosofia da cultura. cos e psicológicos de um indivíduo isolado; ou determinados apenas
Voltando ao texto de Medvedev, observamos que, como ponto por um sistema formal abstrato. Para estudá-los, é indispensável si-
de partida, ele considera inadequadas todas as abordagens positivis- tuá-los nos processos sociais globais que lhes dão significação.
tas e idealistas da criação ideológica. As primeiras, porque se perdem Por outro lado, Medvedev expõe outra premissa fundamental
num empiricismo atomista (concentram-se no estudo dos objetos para seu raciocínio (e para o pensamento do Círculo como um todo):
ideológicos - obras de arte, por exemplo - tomando-os isolada- nós, os seres humanos, não temos relações diretas, não mediadas,
mente, desaguando num detalhismo sem sentido ou numa fetichi- com a realidade. Todas as nossas relações com nossas condições de
zação do artefato). As segundas, porque entendem toda a criação existência - com nosso ambiente natural e contextos sociais - só
ideológica ou como produto de uma consciência individual isolada; ocorrem semioticamente mediadas. Vivemos, de fato, num mundo
ou como localizada no reino de "puras ideias", "puros valores" e "for- de linguagens, signos e significações.
CfJ
õ
o
mas transcendentes" (p.4). 3
Em outros termos, o real nunca nos é dado de forma direta,
~
Para Medvedev, ambas as abordagens perdem de vista o fato de crua, em si. Sobre isso, Bakhtin já dizia, em Para uma .filoso.fi~ do ·~
u
que a criação ideológica é sempre social e histórica, não podendo, ato, que "O dado puro não pode ser realmente experienciado" ,Cp.
por isso, ser reduzida nem à sua superfície empírica (como se fosse 32). Nós nos relacionamos com um real informado em matéria signi-
um rol de meros fenômenos isolados), nem fechada e autocontida no ficante, isto é, o mundo só adquire sentido para nós, seres humanos,
mundo de uma consciência individual ou no reino das "puras ideias". quando semioticizado. E mais: como a significação dos signos envol-
Pelo seu caráter intrinsecamente sócio-histórico, a criação ideológica ve sempre uma dimensão axiológica, nossa relação com o mundo é
exige, para ser estudada, um conceitual e um método de natureza sempre atravessada por valores.
sociológica, para cujo delineamento ele se propõe contribuir.
J
~rc--'

Bakhtin, em O discurso no romance (p. 276), apresenta este


Nesse processo, lembra, de saída, que todos os produtos da cria- pressuposto do Círculo, dizendo que qualquer palavra (qualquer
ção ideológica são objetos dotados de materialidade, isto é, são parte enunciado concreto) encontra o objeto a que ele se refere já recober-
concreta e totalmente objetiva da realidade prática dos seres humanos to de qualificações, envolto por uma atmosfera social de discursos,
(não se podendo estudá-los, portanto, desconectados dessa realidade). por uma espécie de aura heteroglóssica (i.e., por uma densa e tensa
camada de discursos).
E existem como tal corporificados em algum material semiótico
definido (i. e., numa determinada linguagem - tomado o termo A relação do nosso dizer com as coisas (em sentido amplo do
aqui em sentido amplo), ou seja, um produto da criação ideológica termo) nunca é direta, mas se dá sempre obliquamente: nossas pa-
lavras não tocam as coisas, mas penetram na camada de discursos
é sempre um signo.
sociais que recobrem as coisas. Essa relação palavra/coisas, diz este -na dinâmica história e por decorrência do caráter sempre múl-
autor, é complicada pela interação dialógica das várias inteligibilida- tiplo e heterogêneo das experiências concretas dos grupos humanos)

des socioverbais que conceitualizam as coisas ( p. 277). - diversas interpretações (refrações) desse mundo. Nessa mesma
direção, Medvedev dirá que "no horizonte ideológico de uma época
Essa concepção é, então, apresentada na sequência do texto
ou grupo social, não há uma, mas várias verdades mutuamente con-
pela bela figura do raio de luz:
traditórias" (p. 19).
Se nós imaginarmos a intenção de uma tal palavra, isto é, sua dire-
Essas várias verdades equivalem aos diferentes modos pelos
cionalidade para o objeto 1 , na forma de um raio de luz, então o jogo
quais o mundo entra no horizonte apreciativo dos grupos huma-
vivo e irrepetível de cores e luz nas faces da imagem que ele constrói
pode ser explicado como a dispersão espectral da palavra-raio, não nos. Como resultado da heterogeneidade de sua práxis, os grupos
no interior do objeto em si( ... ), mas antes como sua dispersão espec- humanos vão atribuindo valorações diferentes (e até contraditórias)
tral numa atmosfera cheia de palavras alheias, julgamentos de valor aos entes e eventos, às ações e relações nela ocorrentes. É assim que
e acentos através da qual o raio passa em seu caminho em direção ao a práxis dos grupos humanos vai gerando diferentes modos de dar
objeto; a atmosfera social da palavra, a atmosfera que cerca o objeto, sentido ao mundo (de refratá-lo), que vão se materializando e se
faz as faces da imagem cintilar (p. 277). entrecruzando no mesmo material semiótico.

É nesse sentido que os textos do Círculo vão dizer recorrente- A refração é, desse modo, uma condição necessária do signo na
mente, que os signos não apenas refletem o mundo (não são ape- concepção do Círculo de Bakhtin. Em outros termos, para o Círculo,
nas um decalque do mundo); os signos também (e principalmen- não é possível significar sem refratar. Isso porque as significações
te) refratam o mundo._É_~~~11~~~?1?~~1~\TE<:l~zSJ~..9ES2Jo as,~s-"u_,,m~.-,.e...... \~~~-~~ não estão dadas no signo em si, nem estão garantidas por um siste-
J>:~~~s_so A~ ~ri'lg~mu.t~S~.O ~-~ ~u-~~o em matér!a stgrljficam~ ma semântico ab~trato, único e atemporal, nem pela referência a u~
sempre atravessad() p~la refr~~ão dos quadros axiológicos. mundo dado umforme e transparentemente, mas são construídas
na dinâmica da história e estão marcadas pela diversidade de ex-
periências dos grupos humanos, com suas inúmeras contradições e
A DOUTRINA DA REFRAÇÃO confrontos de valorações e interesses sociais.

~El.<?11t!a? palavras, a refr<J.~ão é o modo ~O~() ~~inscrev~f[l I1()S


No processo de referenciação, realizam-se, portanto, duas ope- ?ignos a d~yersidade e as contradições das exp~!!~nçia~ his_t<)ricas_
rações simultâneas nos signos: eles refletem e refratam o mundo. dos grupQ~illªJ1QS,_Sengg essas e:_x:p~!~.J:l<::ias múl~ipl9:s ~ll~~e.r~g~­
Quer dizer: com os signos podemos apontar para uma realidade que peas,_s:>..?_?l&!l()S~não podem ser unívocos (moi1ossêmicQs);~<J.poci~m
lhes é externa (para a materialidade do mundo), mas o fazemos sem- ~Lph~!ÍY()COS (multissêmicos). A plurivocigade (g c:ar;it,er m:ultis-
pre de modo refratado. E refratar significa, aqui, que com nossos ~êi!ÜC::Q )~.a_ CQI1~lição de funcionamento _d~? :5iggps nas__?ocieda~es
signos nós não somente descrevemos o mundo, mas construímos huma])_as. E isso não porqlle eles sejam intrinsecamente ambíguos,
~~~-il:!I1~c!ª~t:I1tahgente porque significam deslizando e!lm~ l!!1Ílti-
Note-se que Bakhtin, neste texto, usa diversas vezes a palavra intenção no sentido
-~qgªg:r~_s.e_~~I1.1:~~():~.xiológic()s__(e não com base numa semânti:-
filosófico de intencionalidade (termo corrente na fenomenologia), isto é, de direciona-
lidade para um objeto e não no sentido mais comum de desejo, vontade, propósito. ca única e universal).
--
--~·--·-~-·~-,--<-~-'"'~-------" ----"~
Como vimos acima, cada uma dessas várias semânticas se arti- Essa dinamicidade intrínseca ao universo da criação ideológi-
cula, organiza sua arquitetônica (aproveitando um termo e conceito ca (ao universo das significações) será recoberta, em textos futuros,
do Bakhtin dos primeiros textos), nos processos de atribuição de pela metáfora do diálogo (que tantas confusões tem gerado e à qual
diferentes valorações aos entes e aos eventos, às ações e às relações voltaremos adiante).
do vasto espectro das experiências históricas de qualquer grupo hu- Neste ponto, é importante deixar registrado que a reação ao
mano e decorrem da heterogeneidade dessas experiências. caráter infinito (centrífugo) da semiose humana será parte inerente
A dinâmica da história, em sua diversidade e complexidade, faz ao jogo dos poderes sociais. As vontades sociais de poder tentarão
sempre estancar, por gestos centrípetos, aquele movimento: tentarão
cada grupo humano, em cada época, recobrir o mundo com diferen-
impor uma das verdades sociais (a sua) como a verdade; tentarão
tes axiologias, porque são diferentes e múltiplas as experiências que
submeter a heterogeneidade discursiva (controlar a multidão de dis-
nela se dão. E essas axiologias participam, como elementos consti-
cursos); monologizar (dar a última palavra); tomar o signo monova-
tutivos, dos processos de significação, daí resultando as inúmeras lente (deter a dispersão semântica); finalizar o diálogo.
semânticas, as várias verdades, os inúmeros discursos, as inúmeras
Contudo, Bakhtin, ao fim de sua vida, talvez lembrando suas
línguas ou vozes sociais (na terminologia de Bakhtin em seu texto O
discussões sobre a carnavalização e seu conceito de plurilinguismo
discurso no romance) com que atribuímos sentido ao mundo.
dialogizado (ver adiante), terminará seu último manuscrito com a
Essa plurivalência social dos signos é o que, segundo Medvedev, os seguinte observação:
toma vivos e móveis. É ela que dá dinamicidade ao universo das signifi-
Não há uma palavra que seja a primeira ou a última e não há limi-
cações, na medida em que as muitas verdades sociais se encontram e se
tes para o contexto dialógico (ele se estira para um passado ilimita-
confrontam no mesmo material semiótico e no mesmo signo. O material
do e para um futuro ilimitado). Mesmo os sentidos passados, isto é,
semiótico pode ser o mesmo, mas sua significação no ato social concreto
aqueles que nasceram no diálogo dos séculos passados, não podem
de enunciação, dependendo da voz social em que está ancorado, será nunca ser estabilizados (finalizados, encerrados de uma vez por to- \
diferente. Isso faz da semiose humana uma realidade aberta e infinita. das) - eles sempre se modificarão (serão renovados) no desenrolar
Anteriormente, em O problema do conteúdo, do material e da subsequente e futuro do diálogo. Em qualquer momento do desen-
forma na arte verbal (1924), Bakhtin, embora ainda não falando em volvimento do diálogo, existem quantidades imensas, ilimitadas de
termos de signos e semiose, já fazia referência a essa dinamicidade do sentidos contextuais esquecidos, mas em determinados momentos do
desenrolar posterior do diálogo eles são relembrados e receberão vi-
universo das significações, quando apresentava qualquer ato da cria-
gor numa forma renovada (num contexto novo). Nada está morto de
ção ideológica como vivendo essencialmente nas fronteiras (p. 274).
maneira absoluta: todo sentido terá seu festivo retomo. O problema
Para ele um domínio cultural (uma esfera da criação ideológica) da grande temporalidade (p. 170).
'
não deve nunca ser pensado como tendo uma espécie de todo espa-
cial (um território interno), mas deve ser visto como vivendo sempre
na intersecção de múltiplas fronteiras. E isso porque cada ponto de
VOLOSHINOV E BAKHTIN SOBRE O MESMO TEMA
vista criativo (que implica sempre uma tomada de posição axiológica)
toma-se necessário e indispensável somente em correlação com ou- Numa síntese da discussão anterior, podemos dizer que para
tros pontos de vista criativos (com outras posições axiológicas). Medvedev o universo da criação ideológica tem um caráter material
(é parte concreta e totalmente objetiva da realidade prática dos seres criação ideológica), dando destaque à "luta incessante dos acentos
humanos), histórico (não pode ser reduzido a processos fisiológicos em cada área semântica da existência" (p.l22). Lembra que qualquer
e psicológicos de individuas isolados) e sociossemiótico (se corpori- elemento da realidade que, por decorrência de condições socioeco-
fica em signos, emergindo e significando nos complexos processos nômicas de determinado grupo humano, entra no horizonte social
do intercâmbio social). daquele grupo, é recoberto de índices sociais de valor e, nessas con-
dições, torna-se objeto do dizer daquele grupo. Esses novos aspectos
Além disso, como os processos semióticos só refletem o mun-
da existência, integrados no círculo dos interesses sociais,
do refratando-o, os signos são espaços de encontro e confronto de
diferentes índices sociais de valor, plurivalência que lhes dá vida e não coexistem pacificamente com outros elementos da existência a
movimento, caracterizando o universo da criação ideológica como ela previamente integrados, mas entram em luta com eles, subme-
uma realidade infinitamente móvel. tem-nos à reavaliação, e deslocam sua posição no interior da unidade
do horizonte avaliativo. Este processo gerativo dialético se reflete na
Voloshinov, em seu livro Marxismo e filosofia da linguagem (em geração de propriedades semânticas na língua. Uma nova significação
especial nos cap. 1-2 e II-4), ao discutir a significação, voltará a en- emana de uma velha e por meio dela, mas isso acontece de tal modo
fatizar o pressuposto forte do Círculo de que a enunciação de um que a nova significação pode entrar em contradição com a velha e
~i~no é sempre.té(mbém aenunciélção de índices sociais de valor, i~~9 reestruturá-la (p. 106).
é, a enunciação de um signo tem efeitos de sentido que decorremfljl~
Bakhtin, em Para uma filosofia do ato, já antecipa essa discu~­
posg.QW:dadeAe ~Sl.l<l. ancoragem em diferentes guadros semântico-
são, embora ainda num vocabulário pouco sociologizado, quando
axic>!<?gic()S, e1pdif~renteshorizontes sociais de valores.
diz (p.32-33) que uma palavra viva não conhece um objeto como
Esses efeitos de sentido do signo não podem ser entendidos algo totalmente dado:
como constituídos por uma espécie de plus conotativo que se sobre-
o simples fato de que eu ter começado a falar sobre ele já significa que
poria a uma base denotativa. Voloshinov (cap. 11-4)- coerente com
assumi certa atitude em relação a ele- não uma atitude indiferente,
a doutrina da refração semiótica, elaborada pelo Círculo - rejeita
mas uma atitude efetiva e interessada. E é por isso que a palavra não
essa dicotomia tradicional, por dois motivos: primeiro, ela separa e apenas designa um objeto como uma entidade pronta, mas também ex-
hierarquiza o que não está separado nem hierarquizado na significa- pressa, por sua entonação, minha atitude valorativa em relação ao obje-
ção do signo, isto é, ela opera com uma separação entre um centro to, em relação àquilo que é desejável ou indesejável nele, e, desse modo,
denotativo e margens conotativas, quando, pelo fato de a semiose movimenta-o em direção do que ainda está por ser determinado nele,
sempre refratar, o signo é necessariamente pluriacentuado e plurívo- transforma-o num momento constituinte do evento vivo, em processo.
co; ele pode ser sempre outro.
O mesmo Bakhtin, em O discurso no romance, nos reapresenta
E, segundo, ela pressupõe, no fundo, uma semântica universal, o tema da refração, caracterizando-a como a atmosfera multidiscur-
um ponto de unicidade semântica, uma garantia preestabelecida no siva que recobre qualquer objeto (tomado este termo aqui em sen-
código, o que, face à refração semiótica, é uma impossibilidade. tido amplo) da realidade, dando a ele múltiplos nomes, definições
Também naquele livro (cap. 1-2 e 11-4), Voloshinov faz referên- e julgamentos de valor. E, para elucidar essa complexa questão, usa
cia à dinamicidade da semiose (e, portanto, de todo o universo da algumas figuras interessantes.
Apresenta a refração, por exemplo, como o emaranhado de sentido que alguns dialetos são mais conservadores e outros mais
milhares de fios dialógicos tecidos pela consciência socioideológica inovadores e têm percursos históricos diferentes. Articulavam-se aí
(isto é, pelo todo da criação ideológica) em torno de cada objeto. as duas estratificações.
Ou, como a multidão de rotas, estradas e caminhos traçados pela Já se percebera também que o contato entre as línguas em certas
consciência socioideológica em cada objeto. Ou, ainda, como a torre circunstâncias era também fator de diversificação, resultando, mui-
de Babel que cerca todo e qualquer objeto. tas vezes, no desenvolvimento dos pidgins e dos crioulos.
Para designar essas múltiplas refrações do objeto (esses múltiplos Contudo, a ciência da linguagem verbal se ocupava (e se ocupa)
discursos sociais), Bakhtin introduz, nesse texto, a expressão vozes fundamentalmente da estratificação das formas gramaticais. Seu in-
sociais ou línguas sociais, entendendo-as como complexos semiótico- teresse era (e continua sendo) correlacionar formas gramaticais com
axiológicos com os quais determinado grupo humano diz o mundo. o tempo e o espaço geográfico.
Nesse sentido, Bakhtin explicitamente apresenta, nesse mesmo Na década de 1960, a criação da sociolinguística veio acrescen-
texto (p.271), o modo como olha para a linguagem: não como um tar a essas duas estratificações uma terceira: aquela que estabelece
sistema de categorias gramaticais abstratas, mas como uma realidade uma correlação sistemática entre as formas gramaticais e a estrutura
axiologicamente saturada; não como um ente gramatical homogê- social. E disso resultou um grau maior de percepção da complexi-
neo, mas como um fenômeno sempre estratificado. dade das línguas, isto é, elas passam a ser vistas como um complexo
E estratificado não apenas no sentido mais comum do termo nos emaranhado das diferentes estratificações, emaranhado em que se
estudos linguísticos (isto é, as estratificações visíveis nas marcas dia- correlacionam as variações geográficas, sociais e temporais.

letais stricto sensu, aquelas decorrentes do tempo, da distribuição geo- Ora, o Círculo de Bakhtin, na década de 1920, vai apontar para
gráfica e social dos falantes), mas fundamentalmente pela saturação uma estratificação não propriamente e apenas de formas gramaticais'
da linguagem pelas axiologias sociais, pelos índices sociais de valor. (o signo pode ser materialmente o mesmo), mas para uma estratifi-
cação dada por diferentes axiologias, dada pelo processo sócio-histó-
Lembremos que, até o fim da década de 1920 (período em que
rico de saturar a linguagem de índices sociais de valor.
está se elaborando esse conceitual do Círculo de Bakhtin), a ciência
da linguagem verbal- embora estivesse construindo, numa certa ~~.~_?~Dt!dQ, (!quilo que chamamos de língua não é só um
esfera, uma teorização que pressupunha um objeto unitário e ho- ~n~().9:ifu§og~ vari.edadesgeográficas, temporais e sociais (como
mogêneo- já vinha trabalhando com a perspectiva da heteroge- ~~1!!'!.1!1 él. dialetologia, a.l!ggut~tjq hi2tQQC:él. t: a ?()c:Joligguísti-
neidade em pelo menos duas direções: a da estratificação temporal Todo esse universo de variedades formais está também atraves::-
(quer dizer, o tempo diversifica; as línguas se diferenciam no eixo sado outra estratificação, que é dada índices sociais deva-
temporal); e a da estratificação espacial (quer dizer, a distribuição lor oriundos da diversificada experiência sócio-histórica dos grupos 00
~"'""-""~-·-~~~-~~---'~M<~".~'' -·<- ••"••'•-2•~•"••-'''''- AOC•••- '' - ' '•

geográfica dos falantes gera diversidade; é possível, portanto, corre- sociai~:.~g~g2..9.1.le chamamos de língua é também e principalment~

lacionar formas diferentes e geografias diferentes). um conJl1nto indefinido de vozes sociais,

Ao mesmo tempo, a ciência da linguagem verbal já estabelecera A multidão de vozes sociais caracteriza o que tecnicamente se
que a estratificação geográfica poderia refletir tempos diferentes, no tem designado de heteroglossia (ou plurilinguismo) -termo que,
como veremos adiante, é muitas vezes tomado equivocadamente, concordâncias e dissonâncias, revalorizações etc. - "não há limites
em autores que fazem referência ao pensamento de Bakhtin, como para o contexto dialógico"). O universo da cultura é intrinsecamente
equivalente a polifonia. responsivo, ele se move como se fosse um grande diálogo.

Voloshinov, anteriormente, já aponta nessa mesma direção,


quando diz, no capítulo II-2 de seu livro, que cada enunciado é uma
HETEROGLOSSIA DIALOGIZADA resposta, contém sempre, com maior ou menor nitidez, a indicação
de um acordo ou de um desacordo; é um elo da corrente ininterrupta
Naquele mesmo texto da década de 1930 (O discurso no ro- da comunicação sociocultural. ao mesmo tempo que responde (no
mance), Bakhtin, além de apresentar a questão da heteroglossia, dá sentido de tomar uma p~~is:ão socioaxiológica), espera u~·a resposta.
especial destaque àquilo que é também um elemento forte do pensa- (espera que outros assumam uma posição socioaxiológica frente ao
mento do Círculo: a dinamicidade semiótica (que ele chama aqui de dito). Todo dizer é, assim, parte integrante de uma discussão cultural
heteroglossia dialogízada ou plurilinguismo dialogizado -. p. 272). (~)(iológica)
em grande escala: eleresponde ao já dito, refuta, confir-
Para Bakhtin, importa menos a heteroglossia como tal e mais a ma, antecipa respostas e objeções potenciais, procura apoio etc ..
\
dialogização das vozes sociais, isto é, o encontro sociocultural dessas
Bakhtin detalha, agora, esse modo de percepção da dinâmica da
vozes e a dinâmica que aí se estabelece: elas vão se apoiar mutua-
criação ideológica e passa a falar da dialogicidade de todo o dizer. E essa
mente, se interiluminar, se contrapor parcial ou totalmente, se diluir
dialogicidade é apresentada em três dimensões diferentes (p. 276ss.):
em outras, se parodiar, se arremedar, polemizar velada ou explicita-
mente e assim por diante. a) todo dizer não pode deixar de se orientar para o ''já dito".
Nesse sentido, todo enunciado é uma réplica, ou seja, não
Em outras palavras, "o verdadeiro ambiente de um enunciado"
se constitui do nada, não se constitui fora daquilo que cha-
(p. 272) é o plurilinguismo dialogizado (são as fronteiras) em que as
mamos hoje de memória discursiva;
vozes sociais se entrecruzam continuamente de maneira multiforme,
b) todo dizer é orientado para a resposta. Nesse sentido, todo
processo em que se vão também formando novas vozes sociais.
enunciado espera uma réplica e - mais - não pode es-
Para caracterizar, então, aquilo que é uma das pedras angulares quivar-se à influência profunda da resposta antecipada.
das teorizações do Círculo, isto é, a dinâmica inerente ao universo Neste sentido, possíveis réplicas de outrem, no contexto
da criação ideológica, o jogo de forças que torna esse universo vivo e da consciência socioaxiológica, têm papel constitutivo,
móvel, o Círculo de Bakhtin adotou a metáfora do diálogo. condicionante, do dizer, do enunciado. Assim, é intrínse-
Tal metáfora parece bem adequada para representar a dinamici- co ao enunciado o receptor presumido, qualquer que seja
dade do universo da cultura (para fundar uma filosofia da cultura), ele: o receptor empírico entendido em sua heterogeneida-
se considerarmos que o Círculo vê as vozes sociais como estando de verboaxiológica, o "auditório social" (cf., de Voloshinov,
numa intrincada cadeia de responsividade: os enunciados, ao mes- Marxismo e filosofia da linguagem, p. 85-86; ou A constru-
mo tempo que respondem ao já dito ("não há uma palavra que seja ção do enunciado, p. 122-123), ou o "superdestinatário"
a primeira ou a última"), provocam continuamente as mais diversas (o "terceiro"- nos termos discutidos por Bakhtin em O
respostas (adesões, recusas, aplausos incondicionais, críticas, ironias, problema do texto, p.l26);
c) é internamente é heterogêneo, é uma a maneira como se dá a troca de turnos entre participantes
articulação de múltiplas vozes sociais (no em de uma conversa, como faz hoje, por exemplo, a chamada análise
hoje dizemos ser todo discurso heterogeneamente consti- da conversação. Nem desenvolver um estudo de práticas conversa-
tuído), é o ponto de encontro e confronto dessas múltiplas cionais de um grupo humano qualquer, como se faz, por exemplo,
vozes. Essa dialogização interna será ou não claramente desde a década de 1960, na chamada etnografia da fala ou da comu-
mostrada, isto é, o dizer alheio será ou não destacado como nicação - por mais interessantes que possam ser essas análises.
tal no enunciado- ou, para usar uma figura recorrente em Em seu manuscrito O problema do texto (provavelmente escrito
Bakhtin, será aspeado ou não, em escalas infinitas de graus em 195911960), Bakhtin diz (p. 124) sobre isso:
de alteridade ou assimilação da palavra alheia (conforme
O diálogo concreto (a conversação cotidiana, a discussão científica, o
diz ele no manuscrito O problema do texto, p. 120-121).
debate político, e assim por diante). As relações entre réplicas de tais
diálogos são um tipo mais simples e mais externamente visíveis de
relações dialógicas. As relações dialógicas, no entanto, não coinci-
DIÁLOGO: ESSA PALAVRA MIL VEZES "MAL-DITA" dem de modo algum, é claro, com relações entre réplicas do diá-
logo concreto - elas são muito mais amplas, mais variadas e mais
Há, portanto, uma grande identificação do pensamento do Cír- complexas (destaque acrescido).
Cfj
culo de Bakhtin com a metáfora do diálogo. E isso a tal ponto que Portanto, o evento do diálogo face a face (aquilo que eles chamam, õ
o
já se tornou habitual e generalizado designar esse pensamento pelo em vários momentos, de diálogo em sentido estrito do termo) estará no 3
termo dialogismo. foco de atenção do Círculo, mas não como forma composicional e sim .êe;:
u
A palavra diálogo, contudo, tem várias significações sociais, o que como" um documento sociológico altamente interessante",(conforme
pode afetar a recepção do pensamento do Círculo. O próprio Bakhtin, se pode ler em Problemas da poética de Dostoievski- apêndice I, p.
como veremos abaixo, criticou, em vários momentos, a idéia de um 280), isto é, como um espaço em que mais diretamente se pode obser-
dialogismo estreito. É preciso, por isso, neste ponto, fazer até mesmo var a dinâmica do processo de interação das vozes sociais.
um esforço de compreensão do sentido de diálogo nos trabalhos do Em outras palavras, podemos dizer que, no caso específico da
Círculo para termos condições de explorar seu poder heurístico. interação face a face, o Círculo de Bakhtin se ocupa não com o diálogo
A palavra diálogo designa, comumente, determinada forma em si, mas com o que ocorre nele, isto é, com o complexo de forças que
composicional em narrativas escritas, representando a conversa dos nele atua e condiciona a forma e as significações do que é dito ali.
personagens. Pode designar também a sequência de fala dos perso- Interessam-lhe, de fato, as forças que se mantêm constantes em
nagens no texto dramático, assim como o desenrolar da conversação todos os planos da interação social, desde os eventos mais banais e
na interação face a face. fugazes do cotidiano, até as obras mais elaboradas do vasto espectro
Os membros do Círculo de Bakhtin não são teóricos do diálogo da criação ideológica. O que lhes interessa é aquilo a que Voloshinov
nesses sentidos. Não lhes interessa o estudo da forma-diálogo como se refere como o "colóquio ideológico em grande escala" (Marxismo
tal, seja na composição escrita ou no texto dramático, seja na interação e filosofia da linguagem, p. 95) ou que Bakhtin chama de "o simpósio
face a face. Desse modo, não constitui objeto de suas preocupações universal" (Para uma refeitura do livro sobre Dostoievski, p. 293).
Assim, o evento do diálogo face a face só interessa como um dos Para Bakhtin e o Círculo, ao contrário, trata-se de aproximá-las
muitos eventos em que se manifestam as relações dialógicas - que porque nelas, no fundo, estão em funcionamento as mesmas forças:
são mais amplas, mais variadas e mais complexas do que a relação estão ambas situadas na grande corrente da comunicação sociocul-
\
existente entre as réplicas de uma conversa face a face. O objeto efe- tural e nas duas se materializam tomadas de posição axiológicas e
tivo do dialogismo é constituído, portanto, pelas relações dialógicas relações dialógicas (cf., em especial, a discussão de Medvedev sobre
nesse sentido lato ("mais amplas, mais variadas e mais complexas"). essa questão no cap. 5 de O método formal nos estudos literários).

Sob essa perspectiva, o diálogo face a face vai também interessar Voloshinov, nesse sentido, explicita uma distinção - que apa-
ao Círculo como um dos espaços em que se dá, por exemplo, o en- recerá mais à frente também no texto de Bakhtin O problema dos
trecruzamento das múltiplas verdades sociais, ou seja, como um dos gêneros do discurso (do início da década de 1950) - entre duas
muitos espaços em que ocorre diálogo no sentido amplo do termo, esferas da criação ideológica: a ideologia do cotidiano e os sistemas
isto é, a confrontação das mais diferentes refrações sociais expressas ideológicos constituídos (cf. em especial Marxismo e filosofia da lin-
em enunciados de qualquer tipo e tamanho postos em relação. guagem, p. 19-21 e p. 91- 92).

O Círculo, portanto, olha para o diálogo face a face do mesmo A primeira esfera compreende a totalidade das atividades so-
modo que olha para uma obra literária, um tratado filosófico, um cioideológicas centradas na vida cotidiana, desde os mais fortuitos
texto religioso, isto é, como eventos da grande interação sociocultu- eventos (um acidental pedido de informação na rua) até aqueles que
ral de qualquer grupo humano; como espaços de vida da consciência se associam diretamente com os sistemas ideológicos constituídos (a
leitura de um romance, por exemplo).
socioideológica; como eventos atravessados pelas mesmas grandes
forças dialógicas (as forças da heteroglossia dialogizada). A segunda esfera compreende a totalidade das práticas socioi-
deológicas culturalmente mais elaboradas, como as artes, as ciências,
I::;so não significa que o Círculo não distinga as especificidades
o direito, a filosofia, a religião etc.
de cada um desses espaços de vida da consciência socioideológica.
Boa parte de seus textos vai precisamente no sentido de estudar essas Obviamente, Voloshinov não entende estas duas esferas como
especificidades, em especial no que diz respeito à criação literária. realidades independentes, mas em estreita interdependência. Ele vê
a esfera dos sistemas ideológicos constituídos como se consolidando
No entanto, é característica do pensamento do Círculo o con-
a partir das práticas da ideologia do cotidiano e, ao mesmo tempo,
tínuo reportar-se às práticas do cotidiano, valorizando-as como es-
se renovando continuamente por meio de um vínculo orgânico com
paços em que já estão embutidas as bases da criação ideológica mais
estas mesmas práticas que abrigam, segundo ele, os indicadores pri-
elaborada e as fontes da sua contínua renovação.
meiros e mais sensíveis das mudanças socioculturais e
As raízes dessa valorização do cotidiano estão certamente no
ainda mais, [indicadores] de mudanças ainda em processo de incre-
envolvimento filosófico inicial de Bakhtin com o mundo da vida (cf.,
mento, ainda sem um formato definido e não ainda amoldados em sis-
em especial, Para uma filosofia do ato), mas também no embate do temas ideológicos já regularizados e integralmente definidos (p. 19).
Círculo com a poética dos formalistas - que se sustentava precisa-
mente numa radical distinção entre a linguagem poética e a lingua- Essas mudanças socioculturais vão encontrar, mais tarde , sua
gem do cotidiano. expressão nas produções ideológicas mais elaboradas que, por sua
vez, acabam por exercer uma forte influência sobre as práticas do A interação face a só pode ser adequadamente analisada -
cotidiano. mesmo quando a consideramos em sua absoluta singularidade, como
evento único e irrepetível-, projetando-a na grande torrente da inte-
Em cada uma dessas esferas, desenvolve-se, em cada época e
ração social: ela precisa ser vista como um evento do "simpósio univer-
em cada grupo social, um conjunto de gêneros de formas da comu-
sal", do "colóquio ideológico em grande escala". É necessário~ portanto,
nicação socioideológica (p. 20)- que Bakhtin chamará adiante de
dimensioná-la como estrutura socioideológica, naqual os intera,ctantes
gêneros do discurso, distinguindo os gêneros primários (aqueles da
sã~~~~? soc~almente orgar~izaª()~, situados e agindc)num COJJ:lplexo
ideologia do cotidiano) e os gêneros secundários (aqueles dos sis-
quadro de relações socioculturais, no interior do qual se manifestam
temas ideológicos constituídos). Voltaremos a este tema específico ~.~~·-·~~"á'-~"--'--'''·'-"··"'--- ------" ..
~"--'~,.--.-o- -.-&.0•' -- - .- -" --

relações dialógicas (1JD sentido bakhtiniano da expressão).


no capítulo três.
Bakhtin, no capítulo 5 de seu livro Problemas da poética de Dos-
Por ora, destacamos apenas que a valorização das práticas so-
toievski, ao distinguir as tarefas da linguística e da disciplina que ele
cioideológicas do cotidiano, o pressuposto da uniformidade das
chama de metalinguística (nome traduzido mais frequentemente por
forças que dinamizam ambas as esferas e a proposta de tratá-las
translinguística, para evitar confusões com o uso mais corrente do
em constante inter-relação assentam as bases para uma teoria das
termo metalinguística), diz:
práticas socioculturais que não despreza o cotidiano, nem super-
valoriza as esferas mais elaboradas. Não se perde numa fragmen- A linguística reconhece, é claro, a forma composicional da "fala dialo-
tação empiricista, nem se condena ao determinismo inexorável de gada" e estuda suas características sintáticas e léxico-semânticas. No
grandes estruturas. entanto, ela as estuda como fenômenos puramente linguísticos, isto
é, no plano da língua; é incapaz de abordar a natureza específica das
relações dialógicas entre as réplicas num diálogo (p. 182-3).

RELAÇÕES DIALÓGICAS Vamos encontrá-lo no futuro, em seu manuscrito inacabado O


problema do texto, criticando explicitamente a "concepção estreita de
Voloshinov, particularmente, é quem mais se ocupa com o dialogismo" que o compreende apenas como uma forma composi-
evento do diálogo face a face. Isso, porque, segundo ele (conforme cional do discurso (p. 117). Nesse mesmo texto, ele vai caracterizar
se pode ler no artigo A construção do enunciado, p. 124), é aí que se as relações dialógicas como relações de sentido que se estabelecem
pode encontrar a chave para o entendimento daquilo que ocorre nos entre enunciados, tendo como referência o todo da interação verbal
enunciados das esferas mais elaboradas da criação ideológica, como, e não apenas o evento da interação face a face.
por exemplo, nos enunciados literários.
-~-ssim,
quaisq11er enunciaª()~, se postos lado a lado no pla-
Em todas as suas discussões, ele alerta sempre o leitor para o !_l()_dgsentido, "acabam por estabelecer 11ma relação dialógica" (p.
fato de que tudo o que ocorre no diálogo face a face é de caráter 117). -~esmo enunciados separados um do outro no tempo e no
intrinsecamente social, isto é, a interação face a face não pode, em esp~~o e que nada sabem um do outro, se confrontados no plano
nenhum sentido, ser reduzida ao encontro fortuito de dois seres em- d~~entido, revelarão relações dialógicas (p.124). E isso em qual-
píricos isolados e autossuficientes, soltos no espaço e no tempo, que quer ponto do vasto universo da criação ideológica, do intercâm-
trocam enunciados a esmo. bio sociocultural.
As relações dialógicas - diz Bakhtin no mesmo manuscrito Nesse mesmo capítulo, Bakhtin lembra que relações dialógicas
(p. 124) - não podem ser reduzidas a relações de ordem lógica, são possíveis não apenas entre enunciados integrais:
linguística (no sentido estrito do termo), psicológica, mecânica ou
Relações dialógicas são possíveis não só entre enunciados completos
natural. São relações de sentido de um tipo especial que se estabele-
(relativamente completos); uma abordagem dialógica é possível em
cem entre enunciados ou mesmo no interior de enunciados (quando relação a qualquer parte significante de um enunciado, mesmo em re-
marcados, por exemplo, pela chamada bivocalídade). lação a uma só palavra, caso aquela palavra seja percebida não como
uma palavra impessoal da língua, mas como um signo da posição
Essa mesma temática foi apresentada por Bakhtin no cap. 5 do
semântica de outro alguém, como o representante do enunciado de
seu livro Problemas da poética de Dostoievshi. :2SL1l_i, e!e primeiramen-
outra pessoa; isto é, se ouvirmos nela a voz de outro alguém. Assim,
te afirmaque não há relações dialógicas 11~lí!l:gua enquanto objetQ, relações dialógicas podem permear o interior do enunciado, mesmo o
da linguística, isto é? não há relações dialógicas e!ltre elementos d~"«· interior de uma só palavra, desde que nela duas vozes colidam dialo-
um sistema linguístico (por exemplo, entre palavras em um dicioná.- gicamente (microdiálogo, a que nos referimos anteriormente).
ri~,entre morfemas? entrepalavras de uma sentença etc.). Também
Por outro lado, relações dialógicas são também possíveis entre
não há tais rela~.C:~~-dialógicas entre ele1ll~l};t()~M~ç_~lll t,~xto ou en~re
estilos de língua, dialetos sociais, e assim por diante, desde que eles
g:~t()s~q1la~sl-2 apgrd_ados por um viés estritamente ling11ístico; nem
sejam percebidos como posições semânticas, como cosmovisões de
entre unidades sintáticas ou ~-~~E~ :pr:()E()Siçõ~s_quando _ig}léllll1.<::!2-~.
linguagem de certo tipo, isto é, como algo não mais estritamente
aborda~él?.P()r um viés estJitamerg~lii1g1J!~tico.
posto no interior da investigação linguística.
Para hav~r:r<:lélções dialógicas, é preciso que qualquer material
Finalmente, relações dialógicas são também possíveis em rela-
linguístico (ou de qualquer outra materialidade semiótica) tenha
~/'"""·"""··'•·•ccT '

ção a seu próprio enunciado como um todo, em relação a suaspartes


entrado na esfera do discurso,Jenha sido transformado num enun-
sep!'radas e em relação a uma só palavra em seu interior, se nós de
~iad()?t~J1ha.fi:~ado aposição de um sujeito social. Só assim é
algum modo nos afastamos deles, falamos com uma ressalva interior,
vel responª~~i~E:l-~~gt~ª()~JP:E!()~.!.l:~()...~l?~nas e~p~rico do terr-r:o!,
isto fazer réplicas ao dito, confrontar posições, dar acolhida fer- se nós os observamos a certa distância, como se estabelecêssemos li-
vorosa à :palavra do outro_, c_onfirmá-la ou rej~~tá-la, buscar-lhe Ull1 mite~-à nossa própria autoria, ou a dividíssemos em duas (p. 184).
sentido-- profundo,
. -- --
ampliá-la. Em suma, estabelecer com a palavra"'
- ___ ,__ "
Bakhtin vai dedicar todo esse capítulo 5 à análise de um tipo
de outrem relações de sentido dedeterminadaespécie,isto é, rela- especial de relações dialógicas manifestas nos diferentes processos
ções q11egeram sig11ificaçã() re~P()!lSivamente apartir do encontr:()_ daquilo que ele chama de bivocalidade. Voloshinov, por sua vez, vai
de posições avaliativas. fazer o mesmo, na parte lii de seu livro Marxismo e jilosojia da lin-
As relações dialógicas são, portarlto, __r:~l~sCl_~?..'=-11.l!:~ ..~nd!<:_~_§9~. guagem, com as diferentes formas do discurso citado, tema a que
ciais de valor - que, como vimos, constituem, no conceitual do também se dedicará Bakhtin em O discurso no romance. Voltaremos
Círculo de Bakhtin, parte inerente de todo enunciado, entendido a essas análises no próximo capítulo.
não mais como unidade da língua, mas como unidade da interação Para encerrar este tópico, é interessante ainda observar que
social; não como um complexo de relações entre palavras, mas como Bakhtin, no manuscrito O problema do texto (talvez lembrando-se
um complexo de relações entre pessoas socialmente organizadas. de eventuais percalços pedagógicos), ao mesmo tempo que critica
a visão estreita de dialogismo que confunde relações dialógicas com E, para enfatizar esse entendimento multidirecional do funcio-
réplicas do diálogo face a face, alerta para outro viés estreito de en- namento das relações dialógicas - e não apenas na direção do con-
tender as relações dialógicas: tomá-las apenas como equivalentes a senso, do entendimento, do acordo - , lembramos aqui a expressão
discussão, polêmica ou paródia. tenso combate díalógico ocorre nas fronteiras" que Bakhtin usa,
Para tentar mostrar a amplitude das relações dialógicas, Bakhtin em seu caderno de notas de 1970/1971 (p. 143), para caracterizar a
arrola, então, várias outras situações em que se pode reconhecê-las, dinâmica das relações dialógicas.
dizendo (p. 121):
Voloshinov, por seu turno, ao tratar da pluralidade de acentos
A compreensão estreita de dialogismo como debate, polêmica ou pa- avaliativos das expressões verbais, dá também destaque a essa idéia
ródia. Estas são as formas externamente mais óbvias, embora rudi- do "tenso combate dialógico". Diz ele em seu livro de filosofia da
mentares, de dialogismo. A confiança na palavra do outro, a recepção linguagem (p. 80):
reverencial (a palavra de autoridade), o aprendizado, a busca pelo sen-
tido profundo e sua natureza obrigatória, a concordância, suas infinitas De fato, qualquer enunciado concreto, de um modo ou outro ou em
gradações e nuanças (mas não suas limitações lógicas e restrições pura- um grau ou outro, faz uma declaração de acordo ou de desacordo
mente referenciais), a estratificação de um significado que se sobrepõe com alguma coisa. Os contextos não estão apenas justapostos, como
a outro, de uma voz que se sobrepõe a outra voz, fortalecimento por se alheios uns aos outros, mas encontram-se num estado de tensão
meio da fusão (mas não identificação), a combinação de muitas vozes constante, ou de interação e conflitos ininterruptos.
(um corredor de vozes) que amplia a compreensão, o afastamento para
além dos limites do compreendido, e assim por diante. Fica claro, então, que o Círculo de Bakhtin entende as relações
dialógicas como espaços de tensão entre enunciados. Estes, portan-
to, não apenas coexistem, mas se tensionam nas relações dialógicas.
DIÁLOGO É CONSENSO? Mesmo a responsividade caracterizada pela adesão incondicional ao
dizer de outrem se faz no ponto de tensão deste dizer com outros di-
Isso posto, é necessário lembrar ainda que a palavra diálogo, zeres (outras vozes sociais): aceitar incondicionalmente um enuncia-
no uso corrente, tem também uma significação social marcadamente do (e sua respectiva voz social) é também implicitamente (ou mesmo
positiva, que remete a 'solução de conflitos', a 'entendimento', a 'ge- explicitamente) recusar outros enunciados (outras vozes sociais) que
ração de consenso'. podem se opor dialogicamente a ela.

Ora, essa significação também não ocorre como tal no pensa- É nesse sentido que Bakhtin vai dizer, em O discurso no roman-
mento do Círculo de Bakhtin. Seus membros não são, portanto, teó- ce (p. 272), que qualquer enunciado é uma unidade contraditória e
ricos do consenso ou apologistas do entendimento. Ao contrário, tensa de duas tendências opostas da vida verbal, as forças centrípetas
tentam dar conta da dinâmica das relações dialógicas num contexto e as forças centrífugas.
social dado e observam que essas relações não apontam apenas na Assim, o diálogo, no sentido amplo do termo ("o simpósio uni-
direção das consonâncias, mas também das multissonâncias e disso- versal"), deve ser entendido como um vasto espaço de luta entre as
nâncias. Delas pode resultar tanto a convergência, o acordo, a ade- vozes sociais (uma espécie de guerra dos discursos), no qual atuam
são, o mútuo complemento, a fusão, quanto a divergência, o desa- forças centrípetas (aquelas que buscam impor certa centralização
cordo, o embate, o questionamento, a recusa. verboaxiológica por sobre o plurilinguismo real) e forças centrífugas
(aquelas que corroem continuamente as tendências centralizadoras, contudo, estabelece explicitamente uma vinculação
por meio de vários processos dialógicos tais como a paródia e o riso estreita entre classes sociais e a estratificação socioaxiológica da lingua-
de qualquer natureza, a ironia, a polêmica explícita ou velada, a hi- gem, descrevendo esta como decorrente daquela. Nessa linha, afirma
bridização ou a reavaliação, a sobreposição de vozes etc.). que classe social e comunidade semiótica não se confundem na medida
em que as diferentes classes sociais se servem da mesma língua, atraves-
Bakhtin, ao apresentar sua concepção axiologicamente estratifi-
sando-a, no entanto, com diferentes (e contraditórios) índices de valor.
cada da linguagem (a heteroglossia) e sua dialogização (a heteroglos-
Por isso, em suas palavras, o signo se toma a arena onde se desenvolve
sia dialogizada), aponta também, portanto, para a existência de jogos
a luta de classes (Marxismo e filosofia da linguagem, p. 23).
de poder entre as vozes que circulam socialmente, manifestados nas
tendências centrípetas e correlacionados a condições sócio-históri- Neste mesmo texto, ele diz também que a classe dominante ten-
cas específicas. ta tomar monovalente o signo- que é, no entanto, sempre poliva-
lente -,imprimindo-lhe, com este gesto, um caráter de deformação
Ao qualificar as forças centrípetas como monologizantes, é pre-
do ser a que remete o signo.
ciso observar que elas não deixam de ser dialógicas: elas também
constituem um gesto responsivo no oceano da heteroglossia. Em Voloshinov, no entanto, não fecha adequadamente a questão
outras palavras, a atitude discursiva monológica é intrinsecamente que propõe. Fica irresolvida, em seus textos, a conjunção da teoria
dialógica- como, aliás, na concepção do Círculo, todas as manifes- da refração (todo e qualquer signo refrata necessariamente o mundo)
- que implica a existência simultânea de "várias verdades sociais"
tações verbais.
- e uma teoria da divisão da sociedade em classes - que explici-
tamente atribui a verdade a uma das classes (o proletariado), aquela
que revolucionariamente construirá uma sociedade sem classes.
HETEROGLOSSIA DIALOGIZADA E LUTA DE CLASSES
Em nenhum momento, Voloshinov teoriza sobre como seria dis-
Mesmo reconhecendo os jogos de poder, Bakhtin- diferente- cursivamente uma sociedade sem classes. Desapareceria a refração dos
mente de Voloshinov - não estabelece em nenhum momento uma signos? Desapareceria a estratificação axiológica da linguagem? Esta-
vinculação estreita entre vozes sociais e classes sociais. Há sim, no riam, na sociedade sem classes, esgotados os processos dialógicos?
conceitual do plurilinguismo dialogizado, luta social entre as dife- No texto em que ele mais extensa e abertamente discute essa
rentes "verdades sociais", mas não uma correlação estreita entre essas questão (A palavra e sua função social- publicado em 1930), fica
lutas e a chamada luta de classes. bastante clara sua dificuldade em juntar as duas teorias, em harmo-
Também não há em seus textos nenhuma perspectiva de supe- nizar a (eterna) refração com a redenção da sociedade sem classes.
ração definitiva dos jogos de poder. O processo dialógico é conce- De um lado, ele reitera a teoria da refração, isto é, nenhuma
bido como infindo, inesgotável. As forças centrífugas - das quais palavra reflete seu objeto de forma totalmente acurada ('objetiva'),
talvez o riso e a carnavalização sejam as mais fortes- corroem con- nenhuma palavra é a fotografia daquilo que ela significa (p. 144). O
tinuamente todos os esforços de centralização discursiva. Assim, na signo, portanto, sempre refrata o mundo. E repisa sua velha tese de
lógica de Bakhtin, não há (nem nunca haverá) um ponto de "síntese que as refrações "em última análise são inevitavelmente condiciona-
dialética", de "superação definitiva das contradições". das por relações de classe" (p. 144).
Destaca, porém, que na linguagem de cada classe há sempre um diálogo como a grande metáfora que dará um arremate às reflexões
grau particular de correspondência entre o verbal e a obje- do Círculo sobre a linguagem e sobre a criação ideológica em sua totali-
tiva, cabendo ao proletariado o ponto de vista que mais intimamente dade, bem como sustentará as discussões futuras do próprio Bakhtin.
se aproxima da "lógica objetiva da realidade" (p. 146). Quer dizer: Vo-
'~ Os primeiros textos em que a grande metáfora do diálogo apa-
loshinov assume que a linguagem do proletariado também refrata o
rece como tal são os dois livros de 1929: aquele assinado por Vo-
mundo (não é, portanto, integralmente não refratada), mas a refração é
loshinov sobre filosofia da linguagem e o de Bakhtin sobre Dostoie-
menor do que aquela que ocorre em outras classes sociais. Em nenhum vski. Vamos encontrar, pela primeira vez, uma extensa discussão das
momento, porém, este autor esclarece como estabelecer estes graus de chamadas relações dialógicas (Problemas da poética de Dostoievski,
refração e de correspondência com a "lógica objetiva da realidade". p. 182-185), bem como a expressão diálogo em sentido amplo (Mar-
Ao admitir que a linguagem do proletariado também refrata o xismo e filosofia da linguagem, p. 95) para designar o complexo das
mundo, Voloshinov acaba por se comprometer com o infindo, com o relações dialógicas, a dinâmica dos signos e das significações enten-
inesgotável (tão característico do pensamento do Círculo de Bakhtin), dida como se realizando responsivamente de modo similar às répli-
com a não superação definitiva das contradições, o que - parece - cas de um diálogo face a face.
introduz um conflito com o conceitual marxista dominante à época As raízes dessa metáfora estão, contudo, já nos primeiros textos
em seu país. Assim é que ele diz (p. 145) que a pessoa real vive na de Bakhtin, naqueles em que as relações um/outrem (a inter-ação,
história, "no eternamente turbulento mar da luta de classes que não portanto) são extensamente discutidas, embora ainda sem a inter-
conhece nenhum descanso, nenhuma pacificação" (ênfase acrescida). venção substancial e constitutiva da linguagem, como ocorrerá à
frente. O que temos nesses primeiros textos dos inícios da década de
No fundo, o problema que perseguia os membros marxistas do
1920 é uma espécie de metafísica da interação, em que as relações
Círculo de Bakhtin era como costurar com as ortodoxias de seu tem-
um/outrem são ainda fundadas num jogo que passa pela visão (o
po um conceitual que cultiva, como pressuposto básico, a idéia do
olhar de fora e o excesso de visão são categorias centrais aqui) e não
não fechamento, do inesgotável, do inacabamento, do movimento
propriamente pela linguagem.
infindo. Ou, dito de outra forma, como aderir a uma verdade (que se
propagava como a verdade e tinha o aparelho do Estado a seu lado) A partir do texto O discurso na vida e o discurso na poesia, pu-
e, ao mesmo tempo, aceitá-la como também refratada. E, se refratada blicado por Voloshinov em 1926, a linguagem entra em cena, seja
(sempre refratada), passível de ser dessacralizada na atmosfera do em suas manifestações no cotidiano (na 'vida'), seja na criação ideo-
plurilinguismo dialogizado. lógica em sentido amplo; e a interação passa a ser assumida de modo
claro como uma realidade fundamentalmente social e semiótica.
Mesmo as referências aos enunciados da conversa cotidiana
RESUMINDO O TEMA DA DIALOGIA buscam mostrar como o "pequeno fato social imediato" (Freudismo,
p. 175) se integra no quadro maior da interação prática do respecti-
Numa síntese, podemos dizer que o Círculo de Bakhtin - desde vo grupo social, no intercâmbio social contínuo desse determinado
sua virada linguística por volta de 1925/1926- vai progressivamente grupo. Nesse sentido, os enunciadores rião são vistos como seres
pavimentando o caminho em direção à adoção, por volta de 1928/1929, empíricos, mas como um complexo de posições sociais avaliativas.
No texto de 1926, encontramos Voloshinov asseverando que que apenas uma grande metáfora para tratar de assuntos de determi-
enunciar é tomar uma posição social avaliativa (p. 16); é posicionar- nada semiótica social, de uma filosofia da linguagem. Bakhtin não é
se frente a outras posições sociais avaliativas, já que falamos sempre apenas o filósofo das relações dialógicas em sentido amplo; o diálogo
numa atmosfera social saturada de valorações. é também, no seu pensamento, a metáfora daquilo que poderíamos
Esta formulação de Voloshinov reproduz, de certa forma, afirma- considerar como sua grande utopia.
ção de Bakhtin em seu texto O autor e o herói na atividade estética. É costume lembrar que Bakhtin viveu boa parte de sua vida adulta
Nele, lemos (p. 4) que, na vida cotidiana, nós reagimos (responde- sob um regime totalitário, tendo sido, inclusive, vítima de perseguição
mos) valorativamente às manifestações dos que nos cercam. Esta visa- política, o que resultou em prisão, num exílio de seis anos no Cazaquis-
da axiológica é, como já destacamos, um dos pilares do edifício teórico tão e num ostracismo de trinta anos em cidades provincianas, já que,
bakhtiniano. O que Voloshinov faz é reelaborá-la projetando-a na lin- como antigo prisioneiro político, era alcançado pela proibição do regime
guagem. Assim, em seus termos, enunciar é responder, como aparece
stalinista de fixar residência e trabalhar em grandes centros urbanos.
em seu artigo de 1928 (As correntes mais recentes do pensamento lin-
guístico no Ocidente, p. 43), no qual vai destacar também que o enun- Apesar disso, parece que nunca lhe faltou o impulso utópico, a
ciado não só responde como se põe para uma resposta (p. 43). crença de que outro mundo era possível; ou, para usar suas próprias
palavras, parece que nunca lhe faltou o senso de fé, isto é (conforme
Essa segunda afirmação anuncia o tema caro ao Círculo (e que
se lê em Para uma refeitura do livro sobre Dostoievski),
vai ser formulado pelo próprio Voloshinov no livro sobre filosofia da
linguagem): o da compreensão responsiva. Para ele, o processo de com- não fé (no sentido de uma fé específica na ortodoxia [na religião or-
preensão não podia ser entendido como passivo, como mera decodifi- todoxa], no progresso, no homem, na revolução etc.), mas um senso
de fé, isto é, uma atitude integral (por meio da pessoa como um todo)
cação de uma mensagem. A compreensão é um processo ativo Qá que
em relação a um valor superior e supremo (p. 294).
tem de lidar com o novo e não com o recorrente do enunciado) em que
se opõe "à palavra do locutor uma contrapalavra" (p. 102); "a compre- Parece bem claro, pelo conjunto de seus textos, que o "valor
ensão é uma resposta a um signo por meio de outros signos" (p. ll). superior e supremo" para Bakhtin era a heteroglossia e sua dialogi-
zação infinda; ou, em outros termos, a pluralidade dialogizada das
Finalmente, chegamos aos textos de 1929 em que explicitamente
vozes e, neste meio heterogêneo, a resistência a qualquer processo
a dinâmica da criação ideológica, a interação social em todas as suas
centrípeto, monologizador.
esferas, a enunciação e o enunciado, a compreensão responsiva, a orga-
nização interna do próprio enunciado e a construção e funcionamento O texto em que mais explicitamente se vê esse seu impulso utó-
da consciência são abrangidos pela grande metáfora do diálogo. pico, é precisamente o manuscrito que acabamos de citar. Escrito em
1961, consiste em uma série de apontamentos e reflexões com vistas
à revisão de seu livro de 1929. Essa revisão lhe fora solicitada por
A UTOPIA BAKHTINIANA professores da Universidade de Moscou, que haviam recentemente
redescoberto seu trabalho (naqueles anos do degelo político pro-
A propósito do tema do diálogo no Círculo de Bakhtin, há ain- piciado pelo governo de N. Kruschev) e lhe haviam proposto uma
da outro aspecto que precisa ser considerado. O diálogo é aí mais nova edição, que viria a ser publicada em 1963.
É nesse manuscrito preparatório dessa nova edição que Bakhtin E
deixa emergir sua utopia. Expõe aí sua idéia de que a vida humana é
por sua própria natureza dialógica. Nesse sentido, De certa forma, o que Bakhtin parece estar defendendo aqui
Viver significa tomar parte no diálogo: fazer perguntas, dar respostas, é sua utopia de um mundo polífônico, no qual a multiplicidade de
dar atenção, responder, estar de acordo e assim por diante. Desse diá- vozes ~plen~\T~l~n!e_s e de consciências independentes e não fundíveis
logo, uma pessoa participa integralmente e no correr de toda sua vida: tem direito de cidadania- vozes e consciências que circulam e in-
com seus olhos, lábios, mãos, alma, espírito, com seu corpo todo e teragem num diálogo infinito.
com todos os seus feitos. Ela investe seu ser inteiro no discurso e
esse discurso penetra no tecido dialógico da vida humana, o simpósio Lembremos, por oportuno, que o termo polifonia, adotado por
universal (p. 293). Bakhtin do vocabulário da música, foi por ele usado para qualificar
o projeto estético realizado por Dostoievski em seus romances da
Neste "simpósio universal", a morte absoluta (o não-ser) é o es-
maturidade.
tado de não ser ouvido, de não ser reconhecido, de não ser lembrado.
Isto porque ser significa se comunicar, significa ser para um outro e, Bakhtin considerava que Dostoievski havia criado um gênero
pelo outro, ser para si mesmo (p. 287). A subjetividade se constitui e romanesco novo, caracterizado pelo fato de que nele
se move no denso caldo do simpósio universal, sendo a alteridade e a aparece um herói cuja voz é construída exatamente como a voz do
intersubjetividade, portanto, absolutamente indispensáveis: próprio autor num romance de tipo comum. Uma palavra do herói
sobre si mesmo e sobre seu mundo é tão plena quanto a palavra do
Eu não posso me arranjar sem um outro, eu não posso me tornar eu
autor costuma ser; não está subordinada à imagem objetificada do
mesmo sem um outro; eu tenho de me encontrar num outro para
herói como apenas uma de suas características, nem serve ela de por-
encontrar um outro em mim (p. 287) ta-voz da palavra do autor. Ela possui extraordinária independência
na estrutura da obra; é como se soasse ao lado da palavra do autor,
Nesse sentido, Bakhtin se posiciona contra qualquer tendência
coadunando-se de modo especial com ela e com as vozes plenivalen-
de monologização da existência humana, isto é, de negar a existên-
tes dos outros heróis (p. 7).
cia de um outro eu com iguais direitos e iguais responsabilidades.
Uma atitude monológica ou um modelo monológico do mundo é O termo, portanto, tem, em princípio, um sentido bastante es-
autocentrado e insensível às respostas do outro; não as espera e não pecífico: ele é introduzido no vocabulário bakhtiniano para designar
reconhece nelas nenhuma força decisiva; pretende ser a última pala- o modo novo de narrar que, segundo Bakhtin, havia sido criado por
vra (p. 292-293). Dostoievski. Polifonia não pode, desse modo, ser confundido com he-
teroglossia ou plurivocidade, que são termos utilizados por Bakhtin
Como forma de sobrepujar o monologismo, só há, para Bakhtin,
para designar a realidade heterogênea da linguagem quando vista pelo
a via do diálogo sem fim, que ele considera a única forma de preservar
ân~lo da multiplicidade de línguas sociais ("o plurilinguismo real").
a liberdade do ser humano e de seu inacabamento (p. 291); uma re-
lação, portanto, em que o outro nunca é reificado; em que os sujeitos É inadequado não distinguir os termos aqui principalmente
não se fundem, mas cada um preserva sua própria posição de extraes- porque a estratificação socioaxiológica da linguagem não gera neces-
pacialidade e excesso de visão e a compreensão daí advinda (p. 299). sariamente uma realidade polifônica. Polifonia não é, para "[).~!<:htirl,
um universo de muitas vozes 1 mas um universo em _que t()das as visíveis aqueles aspectos do ser humano e acima de tudo a consciência
humana pensante e a esfera dialógica de sua existência, que não estão
vozes são eguipolentes.
sujeitas à assimilação artística a partir de posições monológicas". "Modos
Assim confundir esses termos limita, por exemplo, a percepção de pensar" e não um simples momento formal: esta, em síntese, é a idéia
de que os discursos que circulam socialmente têm peso político di- central do conceito de polifonia. Em outras palavras, polifonia é mais
ferenciado; e de que, no jogo dos poderes sociais, há (como vimos uma visão de mundo do que uma categoria técnica. Nossa hipótese é
acima) um contínuo esforço centrípeto (monologizante) dos discur- que o conceito de polifonia emerge antes como uma categoria ética do
que como uma categoria literária - e Dostoievski será a grande "ilustra-
sos que ambicionam se impor como um centro, buscando reduzir e
ção" do projeto filosófico de Bakhtin.
submeter a heteroglossia.
Na sequência de seu texto, Tezza estabelece, então, uma estreita
Por outro lado, como argumenta Tezza (2002), embora polifonia
ligação entre a filosofia do ato de Bakhtin e o conceito de polifonia.
possa ser tomado à primeira vista como um termo técnico adequado
à análise literária (com ele em mãos poderíamos sair por aí à cata de Assim, a polifonia (no sentido bakhtiniano do termo)- cate-
outros autores polifônicos), ele, de fato, é pouco produtivo como tal. goria tão maltratada pelo mundo afora - é muito mais que apenas
"uma simples metáfora" (Problemas da poética de Dostoievskí, p. 22)
E isso porque, pelos critérios de Bakhtin, só mesmo Dostoievski
que permite a Bakhtin dar visibilidade ao modo como Dostoievski
foi um romancista polifônico. Tezza, em seu texto, aponta dois fatos
cria um "novo modelo artístico do mundo" (p. 3). No fundo, a po-
bastante curiosos a esse respeito. Primeiro, Bakhtin, embora tenha es-
lifonia, além de ilustrativa da filosofia do ato de Bakhtin (como de-
crito, nos anos seguintes ao livro sobre Dostoievski, extensas teorizações
fende Tezza), pode ser vista também como a metáfora que recobre
sobre o romance, nunca voltou a utilizar ou discutir o termo. Segundo,
a sua utopia e que ele viu materializada no projeto artístico de Dos-
ao fim da vida, quase cinquenta anos depois de ter usado o termo, toievski - um mundo de vozes plenivalentes em relações dialógicas
Bakhtin, numa entrevista a Zbigniew Podgórzec, deixa bastante claro infindas. Talvez, por tudo isso, fosse mais prudente mesmo retirar o
que polifonia é fenômeno praticamente exclusivo de Dostoievski. termo polifonia do vocabulário crítico de Bakhtin e transferi-lo para
Essa pouca produtividade analítica do termo no interior do seu vocabulário utópico. Pelo menos, poderíamos destrivializar seu
próprio discurso de Bakhtin leva Tezza a argumentar que polifonia uso e apreender com mais nitidez as coordenadas que o sustentam.
é, de fato, no pensamento bakhtiniano, uma categoria filosófica e Vivendo num mundo pesadamente monológico, Bakhtin foi,
não propriamente literária. Para isso, observa que, ao fim de seu li- portanto, muito além da filosofia das relações dialógicas criada por
vro, Bakhtin diz que é preciso renunciar a hábitos monológicos para ele e por seu Círculo e se pôs a sonhar também com a possibilidade
orientar-se no novo modelo artístico do mundo criado por Dostoie- de um mundo polifônico, de um mundo radicalmente democrático,
vski. E conclui Tezza (p. 297-98): pluralista, de vozes equipolentes, em que, dizendo de modo simples,
nenhum ser humano é reificado; nenhuma consciência é convertida
Estamos aqui não simplesmente diante de uma conclusão teórica, mas
em objeto de outra; nenhuma voz social se impõe como a última
antes diante de uma proposta filosófica. Bakhtin está nos dando uma
e definitiva palavra. Um mundo em que qualquer gesto centrípeto
pista sobre onde realmente estão as raízes de seu conceito de polifonia.
Elas não estão tanto na literatura quanto na filosofia, e numa filosofia
será logo corroído pelas forças vivas do riso, da carnavalização, da
que não é contemplativa, mas participativa: "Este modo de pensar toma polêmica, da paródia, da ironia.
É esse Bakhtin utópico que nos convida a renunciar aos hábitos c:~llal.tv:::>
de um senso carnavalesco do mundo (p. 107)- vai de-
monológicos (p. 272); e a aprender com o próprio Dostoievski en- senvolver extensamente a questão desse senso carnavalesco em sua
quanto criador do romance polifônico (p. 36). análise da obra de Rabelais (Rabelais e seu texto que teve
E, na utopia de superar toda e qualquer monologização da exis- uma história bastante peculiar: foi escrito na década de 1940 e apre-
tência humana, Bakhtin viu no carnaval - entendido não como sentado como tese de doutoramento ao Instituto Gorki de Literatura
uma festa específica, mas como todo um modo de apreender o mun- Universal em 1946. A defesa, porém, cobriu um período de quase
do ("um senso carnavalesco do mundo", p. 107)- uma poderosa oito anos! Só em 1952 foi-lhe concedido finalmente um título aca-
força vivificante e transformadora da vida cultural, dotada de uma dêmico, mas não o de doutor.
vitalidade indestrutível, porque "nada absolutiza, apenas proclama
a alegre relatividade de tudo" (p. 125), justamente ao permitir uma Para entender o episódio, é necessário lembrar que, ao tempo
vida às avessas, em que de sua defesa, logo após a Segunda Guerra Mundial, o governo stali-
nista voltava a apertar o cerco às atividades culturais. A relativa libe-
as leis, proibições e restrições que determinam a estrutura e a ordem
ralização que ocorrera durante a Guerra desaparecia e retomavam-se
da vida ordinária, não carnavalesca, são suspensas durante o carnaval:
os controles policialescos das atividades intelectuais, que eram obri-
o que se suspende antes de tudo é a estrutura hierárquica e todas as
formas correlatas de terror, reverência, piedade e etiqueta- isto é, tudo gadas a se submeter às linhas estreitas do dirigismo oficial.
aquilo que resulta da desigualdade sócio-hierárquica ou de qualquer ou- Ora, a tese de Bakhtin nada tinha a ver, de fato, com os dogmas
tra forma de desigualdade entre as pessoas (inclusive a etária) (p. 122).
do oficialismo. Desse modo, colocava a banca em situação muito de-
Nesse sentido, a festa em si é importante apenas na medida em licada: era impossível negar as muitas qualidades do trabalho, mas,
que, ao viver o carnaval, podemos visualizar a possibilidade de outro ao mesmo tempo, aprová-lo poderia trazer para os membros da ban-
mundo, de negar o atual e afirmar o possível (mesmo que isso ocorra ca pesadas consequências. A saída foi postergar a decisão por anos a
apenas no limite dos dias festivos). Contudo, mais importante que a fio e, ao cabo do processo, conceder-lhe apenas o título de candidato
festa é o senso carnavalesco do mundo (o carnaval, neste sentido, é, e não propriamente o de doutor (para detalhes deste processo, cf.
no dizer de Bakhtin, funcional e não substantivo, p. 125). Pan'kov 1998 e 1999).
É este senso ~JE:P.~Q.C::I2~9.ji}§1TJ:!!!1~Q!~.~-<:l!l!E<l 9c11<llgll~~-!llo­ Nesse texto, Bakhtin retoma seu percurso de filósofo do riso,
n()l()gização da existência humal!il;_é_ele q11e m(.lteriali;z:<J. gJm:ça
que se iniciara nos trabalhos em que elaborou sua teoria do romance
cultural do riso: dessacraliza-· os discursos oficiais, os discursos
-
(nas décadas de 1930 e 40), em especial em Da pré-história do dis-
da ordem e da hierarquia, os discursos do sério e do imutável.
B~kh~i~-~ã~ é, nessa-perspectiva? ;·teórico do carnaval?.. 1E:C!~ o curso romanesco.

filósofo da carnavalização. Nesta teoria, o romance é apresentado como o gênero literário plu-
riestilístico, plurilíngue e plurivocal por excelência. Bakhtin o reconhece
como uma forma relativamente nova, mas põe em evidência sua longa
A FILOSOFIA DO RISO história. Argumenta (p. 50) que suas raízes estão no riso e no plurilin-
guismo - que, segundo ele, são os fatores historicamente responsáveis
Bakhtin - além de localizar Dostoievski na longa história dos pela descentração e relativização da consciência humana, processo que,
gêneros do cômico-sério (cap. 4), aqueles que justamente estão im- em termos artísticos, encontrará no romance sua expressão.
Seu arg111nento é que a humanidade vai construindo hist()ri- cepção que se tornou consciente da vasta plenitude das línguas
camente, por meio do riso e da percepção do plurilinguismo, nacionais e, mais precisamente, das línguas sociais - das quais
c~n~ciê~cia descentrada (que se percebe uma entre muitas), chama- todas são igualmente capazes de ser "línguas da verdade", mas, em
assim sendo, são igualmente relativas, reificadas, limitadas, já que
dapor ele figurativamente de consciência galileana.
são apenas línguas de grupos sociais, de profissões e de outras di-
O riso participa organicamente desse processo porque tudo mensões da vida cotidiana (p. 367).
dessacraliza e relati~za. Rir dos discursos deixa clara sua upJl~terali­
O filósofo italiano Augusto Ponzio, em seu livro sobre filosofia
dade e seus limites,
-- - - descentrando-os,
- ,, portanto. A consciê~c!a" socio-
,..,_..-,~~~·,-~~~,~-,- ,-- ~ ,,_ ,- - -- --~-- ,-,, -
da linguagem (Ponzio, 1994), aproveita esse raciocínio de Bakhtin
ideológica passa a percebê-los como~apenas uns~ntre muito~."t; em
oü e estende-o para justificar a própria construção histórica de uma
o
'~
suas relações tensas e contraditórias. O riso destrói, assirn'.. ~"~J~;t?ssas
i5 consciência filosófica.
paredes que aprisionaram a consciência no seu próprio discurs(), na
sua própria linguagern (p. 6Q). Segundo ele (cap. 10), a consciência filosófica só se tornou de
fato possível como produto da consciência do plurilinguismo. Só
Por outro lado, a percepção do plurilinguismo (da multidão
quando a língua foi percebida como não unitária, mas pluridiscur-
das línguas alheias e, principalmente, de seu esclarecimento recípro-
siva - isto é, só quando se percebeu que se fala significativamente
co, p. 51) faz ver que a "minha língua" e a "minha cultura" não são
do mesmo mundo por meio de registros conceituais e axiológicos
únicas, são apenas uma entre muitas. Essa percepção liberta a cons-
diferentes (por diferentes línguas ou vozes sociais)- é que emergiu
ciência dos limites de um unilinguismo fechado e impermeável (p.
uma consciência filosófica, uma consciência que vive precisamente
61): dá-lhe a dimensão da diversidade linguística e do emaranhado
do confronto desses diferentes dizeres significativos. Filosofar, se-
de conflitos interlinguísticos (isto é, entre as línguas ditas nacionais)
gundo Ponzio (p. 260), é pôr-se em relação com o dizer do outro; é,
e intralinguísticos (isto é, no interior da realidade estratificada da
para usar os termos de Bakhtin, estabelecer relações dialógicas com
própria língua). Nas palavras do próprio Bakhtin (p. 65):
os enunciados e as vozes alheias.
Lá onde as línguas e as culturas se vivificaram mutuamente, a língua
Claro, diz Ponzio, este embate pluridiscursivo gerou duas di-
se tornou algo inteiramente diferente, sua própria natureza mudou:
no lugar de um mundo linguístico ptolomaico, único e fechado, apa- reções: uma monologizante e outra dialogizada; uma que expulsa
rece o mundo galileano, aberto e com muitas línguas mutuamente se o sofista da ágora (para usar a imagem de Foucault em A ordem do
vivificando. discurso) e a outra que o acolhe com todos os direitos. É porque teve
de enfrentar a pluridiscursividade que a filosofia gerou tendências
É dessa consciência galileana que nascerá o romance como o
universalizantes, unificadoras, marcadas pela quimera de silenciar a
gênero literário que dá forma estética à plurivocidade social. É isso
heterogeneidade e estancar a dialogia.
que nos diz Bakhtin no seu texto O discurso no romance (p. 366):
Por isso, Ponzio vai propor (cap. 12) que a filosofia da lingua-
O romance é a expressão de uma percepção galileana da língua,
uma percepção que nega o absolutismo de uma língua única e uni- gem seja o espaço do desenredamento crítico dos processos sociais
tária - isto é, que se recusa a reconhecer sua própria língua como geradores de significação (298) e dos processos de reificação e abso-
o único centro semântico-verbal do mundo ideológico. É uma per- lutização dos discursos (301).
impermeável, resistente a bivocalizações. E, por isso
SUJEITO
tudo, é uma palavra que "não se pode pronunciar em vão" (p. 342).
É no interior do complexo caldo da heteroglossia e de sua dia- Já a palavra que se apresenta como internamente persuasiva é
logização que nasce e se constitui o sujeito. A realidade linguística aquela que aparece como uma entre outras muitas. Transita, por-
se apresenta para ele primordialmente como um mundo de vozes tanto, nas fronteiras, é centrífuga, é permeável às bivocalizações e
sociais em múltiplas relações dialógicas - relações de aceitação e hibridizações, abre-se continuamente para a mudança.
recusa, de convergência e divergência, de harmonia e de conflitos, O embate e as inter-relações dialógicas dessas duas categorias
de interseções e hibridizações. do discurso (em seus diferentes tipos e graus) são determinantes da
8
Q história da consciência ideológica individual. Quanto mais as vozes
É nessa atmosfera heterogênea que o sujeito, mergulhado nas
forem funcionalmente de autoridade para o sujeito, mais monoló-
múltiplas relações e dimensões da interação socioideológica, vai-se
gica (ptolomaica) será sua consciência; quanto mais internamente ,..,o
constituindo discursivamente, assimilando vozes sociais e, ao mesmo ~·

tempo, suas inter-relações dialógicas. É nesse sentido que Bakhtin


persuasivas as vozes, mais galileana será sua consciência. a
várias vezes diz, figurativamente, que não tomamos nossas palavras Nosso mundo interior, portanto, é, em sua essência, sociossemióti-
do dicionário, mas dos lábios dos outros. co (sem signos não há consciência) e, por isso mesmo, heterogêneo, na
medida em que a realidade linguístico-social é heterogênea (plurilíngue).
Como a realidade linguístico-social é heterogênea, nenhum su-
E sua dinâmica interior decorre da dialogização desta heterogeneidade.
jeito absorve uma só voz social, mas sempre muitas vozes. Assim,
Sobre isso, diz Voloshinov (em Marxismo e filosofia da lingua-
ele não é entendido como um ente verbalmente uno, mas como um
gem, p. 13) que a consciência toma forma e existência nos signos
agitado balaio de vozes sociais e seus inúmeros encontros e entre-
criados por um grupo social no processo de sua interação social. A
choques. O mundo interior é, então, uma espécie de microcosmo
consciência individual se alimenta de signos; deriva deles seu cresci-
heteroglóssico, constituído a partir da internalização dinâmica e
mento; reflete sua lógica e leis.
ininterrupta da heteroglossia social. Em outros termos, o mundo in-
Esta lógica é precisamente a da interação socioideológica, isto
terior é uma arena povoada de vozes sociais em suas múltiplas rela-
é, a lógica das relações dialógicas, do plurilinguismo dialogizado. É
ções de consonâncias e dissonâncias; e em permanente movimento,
esta dinâmica social que, internalizada, desencadeia o moto contí-
já que a interação socioideológica é um contínuo devir.
nuo da atividade psíquica.
Nesse processo de construção socioideológica do sujeito, as vo-
Nossos enunciados emergem - como respostas ativas que são
zes funcionarão de diferentes modos. Algumas entrarão como vozes
no diálogo social - da multidão das vozes interiorizadas. Eles são,
de autoridade e outras como vozes internamente persuasivas (nos assim, heterogêneos. Desse ponto de vista, nossos enunciados são
termos de Bakhtin em O discurso no romance, p. 342ss.). sempre discurso citado, embora nem sempre percebidos como tal, já
A palavra de autoridade, em seus variados tipos, é aquela que nos que são tantas as vozes incorporadas que muitas delas são ativas em
interpela, nos cobra reconhecimento e adesão incondicional. Trata-se nós sem que percebamos sua alteridade (na figura bakhtiniana, são
de uma palavra que se apresenta como uma massa compacta, encap- palavras que perderam as aspas).
Outras, contudo, estão na nossa memória discursiva como pala- cada consciência responde às suas condições objetivas são sempre
singulares, porque cada um é um evento único do Ser).
(isto é, -~~~~~T11l!lC:~<3:9gs t;xpressai:rl a um só_ O sustenta esta altern:a~i"\1.8: t~()rica é a percepção cie que o
~-~j~erspec~iv~_co~_g'::l~~~_!_()~_éll:TlO~): elas são citadas direta ou in- universo E()~~()~ci.'::<:J!~gico e o mundo imt:r1or n<lo.I"~m~t~m <l e?trutl1ras
diretamente, são aceitas incondicionalmente ou são ironizadas, paro- pesada~ent~~~~~~-C:~~cerllriR~tas_i_s:gmQ ;;;~_hoJJygg;g_l,lffi úJlico
diadas, polemizadas aberta ou veladamente, estilizadas, hibridizadas. centro verbo(l~QJggic;Q).L:r!1§l:"_<l.E~§!hç:lftci~.?.i11finitaii1ente múltipl(l_se
O enunciado assim concebido se apresenta como uma reahda- ç~TltJif1lgas, _e confrontando-se em uma intgncada rede de incontá-

de consideravelmente mais complexa e dinâmica do que quando ele é veis entrechoques que vão ocorrendo num<l_c:linâ.micªjngsggtável.

3
entendido simplesmente como um objeto que articula as intenções de É dessa imensa diversidade de vozes e de suas relações dialó-
,__,;
i5 quem o produz, isto é, quando se entende o enunciado apenas como um gicas que emerge como possível a singularidade que se constituirá
veículo direto e univocal da expressão de uma consciência individual. explorando o espaço infindo da tensão dialógica das vozes sociais.

Para o Círculo de Bakhtin, a consciência é social de ponta a O sujeito tem, desse modo, a possibilidade de singularizar-se e
ponta. Nesse sentido, a expressão consciência individual tomada em de singularizar seu discurso não por meio da atualização das virtuali-
sentido absoluto contém uma contradictio in adjecto (expressão que dades de um sistema gramatical (como quer a estilística tradicional),
se repete em vários textos do Círculo. Ver, entre outros, Para uma ou da expressão de uma subjetividade pré-social (como querem os
refeitura do livro sobre Dostoievski, p. 288) . idealistas), mas na interação viva com as vozes sociais. ~ar2_"l1_~~-:­
ta perspecti\T~i _()_Jj._~JJ.~él!::.~~- na~<:t!Il1p§feg_het~roglóssiça,; (:;tssun:lir
No entanto, o Círculo não nega a singularidade e, desde os primei-
uma posição estratégica no contexto da circ1llaç_~2-~ cl(l_g1l~rra das
-~-~- -"~~~-- ,_ ----~-~~~-~~,-~,~-~"~~·w">~~----~"-"~·--"~<'-~-"~"~-~-~""'-,-d,--,•-~'''"""''m•• • ' •'-

ros textos de Bakhtin, insiste em afirmar que cada ser humano ocupa
~~z~~-~_()C:!<l.~;_ ~~:x:pl()E(l! g_pgt~p._cj.f!J . ci;:Ugnsão_ qiªtJyag(.l_het~_rgglos­
um lugar único e insubstituível, na medida em que cada um responde sia dialógica; é trabalhar nasJ~()gt_~i_r(:l_s_.
às suas condições objetivas de modo diferente de qualquer outro.
Nessa concepção fundamentalmente sociossemiótica do sujeito
Quando dizemos que, de certo ponto de vista, todo enunciado e de sua atividade, não houve, em princípio, lugar teórico para a
é discurso citado, podemos sugerir que o sujeito apenas repete os questão do inconsciente psicanalítico. Os membros do Círculo co-
discursos e que não há espaço para a singularidade: somos todos nheciam evidentemente as formulações freudianas. Contudo, não as
sempre e apenas falados. No entanto, não é assim que pensam os incorporaram em suas reflexões. Ao contrário, reagiram criticamente
membros do Círculo de Bakhtin. a elas - Voloshinov em especial.
Se eles buscaram um entendimento da pessoa humana na pers- Em seu livro Freudismo (de 1927), ele desenvolve uma expo-
pectiva de suas relações sociais e como um ente interiormente múl- sição e crítica de vários aspectos da teoria freudiana. Reconhece sua
tiplo e heterogêneo, procuraram também manter um espaço teórico magnitude e seu caráter inovador. Reconhece também a complexida-
significativo para a singularidade, recusando qualquer determinis- de do mundo psíquico e os conflitos que o atravessam (e, nesse sen-
mo absoluto. Pode-se dizer que para o Círculo, o sujeito é social de tido, é herdeiro de Freud). Recusa, porém, com base em argumentos
ponta a ponta (a origem do alimento e da lógica da consciência é sociológicos de certa inspiração marxista, o modo como Freud teori-
externa à consciência) e singular de ponta a ponta (os modos como za sobre esse mundo, em especial o viés fisiológico e subjetivista que,
segundo Voloshinov, sustenta a psicanálise freudiana. Para o psi- tema uma extensa elaboração de natureza filosófica Gá que,
quismo é fundamentalmente linguagem e, por isso, socioideológico. desde cedo, Bakhtin esteve empenhado em construir uma estética geral)
Mesmo recusando Voloshinov sente-se atraído (e desafiado) e que conheceu diferentes desdobramentos a cada novo retomo a ele.
3 '
pela "descoberta freudiana" e tenta esboçar (cap. 9) uma formulação Já no texto O autor e o herói na atividade estética, Bakhtin dis-
que interpreta o inconsciente e os conflitos psíquicos como resultan- tingue o autor pessoa (isto é, o escritor, o artista) do autor criador
tes da luta, no interior, de diferentes motivos socioideológicos. (isto é, a função estético-formal engendradora da obra, o pivõ que
Nem Voloshinov, nem os outros membros do Círculo voltaram a sustenta a unidade do todo esteticamente consumado).
essa temática. Por outro lado, o pesado discurso marxista (marcado, O autor criador é entendido fundamentalmente como uma po-
sem dúvida, pelas pressões da conjuntura em que o livro foi escrito) sição estético-formal cuja característica básica está em materializar
pode velar as qualidades polêmicas do texto de Voloshinov e impedir certa relação axiológica com o herói e seu mundo: ele os olha com
que se avance, oitenta anos depois de sua publicação e considerando simpatia ou antipatia, distância ou proximidade, reverência ou crítica,
a história posterior da psicanálise, um diálogo produtivo entre a con- gravidade ou deboche, aplauso ou sarcasmo, alegria ou amargura, ge-
cepção de linguagem do Círculo e as teorias do inconsciente. nerosidade ou crueldade, júbilo ou melancolia, e assim por diante.
Tal diálogo adquire particular interesse na atual conjuntura dos Obviamente, embora os exemplos estejam aqui apresentados em
estudos linguísticos, em que as teorias que propuseram uma incor- construções alternativas, é preciso não perder de vista que uma efeti-
poração teórica do inconsciente psicanalítico na análise da lingua-
va posição axiológica nunca é um todo uniforme e homogêneo, mas
gem, embora tenham contribuído para uma relevante problematiza-
agrega múltiplas e heterogêneas coordenadas. A simpatia pelo herói e
ção do dizer e de suas significações, não foram ainda muito além de
seu mundo poderá, por exemplo, ser nuançada por uma crítica melan-
genéricas declarações de princípio - talvez porque o inconsciente
cólica; a reverência, por uma suave e sutil ironia, e assim por diante.
mais se esconda do que se revele.
É esse posicionamento valorativo que dá ao autor criador a for-
Saber se há, de fato, incompatibilidade epistemológica entre um
ça de constituir o todo: é a partir dela que se criará o herói e o seu
olhar bakhtiniano e um olhar psicanalítico é tema complexo e que
mundo e se lhes dará o acabamento estético.
transcende os objetivos e limites deste livro. No entanto, entendemos
ser uma questão pertinente um eventual diálogo entre esses dois mun- No texto O problema do conteúdo, do material e da forma na
dos, em especial considerando que ambos os olhares pressupõem a arte verbal (escrito em 1924), Bakhtin amplia o escopo da posição
alteridade, a heterogeneidade, o conflito, a singularidade e, em espe- axiológica do autor criador, incluindo nela tanto o herói e seu mun-
cial, a linguagem - mesmo que em planos teóricos diferentes. do, quanto a forma composicional e o material, isto é, o todo estético
materializa escolhas composicionais e de linguagem que resultam
também de um posicionamento axiológico.

SER AUTOR Se podemos dizer que a distinção autor pessoa/autor criador é hoje
um lugar-comum nas teorizações estéticas, ainda assim as considerações
O tema do autor e da autoria está presente, em maior ou menor bakhtinianas trazem ao conceito de autor criador uma substância pecu-
grau, em quase todos os escritos conhecidos de Bakhtin. Trata-se de um liar ao caracterizá-lo fundamentalmente como uma posição axiológica.
Para se as bases dessa conceituação, é importante soa. para usar um comentário tardio de Bakhtin (em seus apon-
reiterar que, para Bakhtin, ag~and~fo~ça que move o univ~~so tamentos de 1970-71, p. 152), a posição autoral é, no fundo, uma
práticas culturais são precisamente as posições socioavaliativas máscara - autorar é assumir uma máscara (determinada
t~S}l~!l!~ dinâmica de múltiplas i~~eE:E~J~SQ~§It;?p()n~i.vas. posição axiológica, determinada voz social). Nesse sentido, Bakhtin
Em outras palavras, todo ato cultural se move numa atmosfe- entende que não há enunciado em que se possa encontrar uma face;
ra axiológica intensa de interdeterminações responsivas, isto é, em encontramos sempre ali um autor criador (uma máscara, portanto).
todo ato cultural assume-se uma posição valorativa frente a outras
Por outro lado, a transposição de planos da vida para a arte se
posições valorativas (conforme se pode ler em seu ensaio O problema
dá não por meio de uma isenta estenografia (o que seria impossível
do conteúdo, do material e da forma na arte verbal).
na concepção bakhtiniana), mas a partir de um certo viés valorativo
Desse modo, qualquer texto tem, como seu ponto de partida (aquele consubstanciado no autor criador).
e como seu elemento estruturante, um posicionamento axiológico,
O autor criador é, assim, uma posição refratada e refratante. Re-
uma posição autoral. No ato artístico, especificamente, a realidade
vivida Qá em si atravessada por diferentes valorações sociais porque fratada porque se trata de uma posição axiológica conforme recorta-
a vida se dá num complexo caldo axiológico) é transposta para um da pelo viés valorativo do autor pessoa; e refratante porque é a partir
outro plano axiológico (o plano da obra): o ato estético opera sobre dela que se recorta e se reordena esteticamente os eventos da vida.
sistemas de valores e cria novos sistemas de valores. Lembremos, a propósito disso, que, para o Círculo de Bakhtin,
No ato artístico, aspectos do plano da vida são destacados (iso- os processos semióticos- quaisquer que sejam eles- ao mesmo
lados) de sua eventicidade, são organizados de um modo novo, su- tempo em que refletem, sempre refratam o mundo. Em outras pa-
bordinados a uma nova unidade, condensados numa imagem auto- lavras, a semiose não é um processo de mera reprodução de um
contida e acabada. E é o autor criador - materializado como certa mundo "objetivo", mas de remissão a um mundo múltipla e hetero-
posição axiológica frente a certa realidade vivida e valorada - que geneamente interpretado - isto é, aos diferentes modos pelos quais
realiza essa transposição de um plano de valores para outro plano de o mundo entra no horizonte apreciativo dos grupos humanos em
·valores, organizando um novo mundo (por assim dizer) e sustentan- cada momento de sua experiência histórica.
do essa nova unidade.
A distinção autor pessoa/autor criador - tratada de maneira
O autor criador é, assim, quem dá forma ao conteúdo: ele não geral em O autor e o herói na atividade estética - vai ser retomada
apenas registra passivamente os eventos da vida (ele não é um este- por Bakhtin em seu manuscrito inacabado O problema do texto em
nógrafo desses eventos), mas, a partir de certa posição axiológica, linguística, filologia e nas ciências humanas (provavelmente escrito
recorta-os e reorganiza-os esteticamente. por volta de 1960).
O ato criativo envolve, desse modo, um complexo processo de Neste texto, aquela distinção recebe uma nova formulação sus-
transposições refratadas da vida para a arte: primeiro, porque é um tentada agora na filosofia da linguagem que Bakhtin havia desenvol-
autor criador e não o autor pessoa que compõe o todo estético -há vido no seu ensaio O discurso no romance (redigido em 1934-1935).
aqui, portanto, já um deslocamento refratado à medida que o autor Ela passa a ser caracterizada como envolvendo um necessário deslo-
criador é uma posição axiológica conforme recortada pelo autor pes- camento no plano da linguagem - entendida linguagem aqui não
no sentido gramatical do termo, nem no sentido político-cultural da No ensaio O no romance, esse deslocamento fundador do
língua unitária, mas no sentido construído em O no roman- ato estético está sintetizado (agora sob os pressupostos da filosofia da
ce, qual seja, a linguagem concebida como heteroglossia - como linguagem) da seguinte maneira: trata-se de dizer "Eu sou eu" na lin-
um conjunto múltiplo e heterogêneo de vozes ou línguas sociais, isto guagem de outrem; e de dizer, na minha linguagem, "Eu sou outro".
é, um conjunto de formações verboaxiológicas. Essa concepção do necessário deslocamento presente no ato
No ato artístico, há, então, um complexo jogo de deslocamentos de trabalhar uma linguagem estando fora dela remete àquilo que
envolvendo as línguas sociais, pelo qual o escritor (que é aquele que Bakhtin chama, em seu ensaio sobre o autor e o herói, de o princípio c
.~
tem o dom da fala refratada) direciona todas as palavras para vozes esteticamente criativo na relação autor/herói, qual seja, o princípio g
alheias e entrega a construção do todo artístico a uma certa voz. da exterioridade: é preciso estar fora; é preciso olhar de fora; é pre-
ciso um excedente de visão e conhecimento para poder consumar o
Essa voz criativa (isto é, o autor criador enquanto elemento es-
herói e seu mundo esteticamente.
tético-formal) tem de ser sempre, segundo insiste Bakhtin, uma voz
segunda, ou seja, o discurso do autor criador não é a voz direta do Posto em termos de linguagem, o princípio da exterioridade
escritor (do autor pessoa), mas um ato de apropriação refratada de (a lógica imanente da criação estética) demanda do escritor que ele
uma voz social qualquer de modo a poder ordenar um todo estético. desista de sua linguagem, saia dela, liberte-se dela, olhe-a pelo olho
de outra linguagem, desloque-a para outrem ao mesmo tempo em
A linguagem não deslocada (isto é, se a voz do escritor enquanto
que se desloca para outra linguagem.
pessoa permanece como tal) é, para Bakhtin, ingênua e inadequada para
a autêntica criação estética. O escritor é, então, a pessoa capaz de traba- Em outros termos, é necessário que a consciência artística se
lhar numa linguagem enquanto permanece fora dessa linguagem. libere da prisão da linguagem que se impõe como única e absoluta
(conforme está discutido no ensaio Da pré-história do discurso roma-
Mesmo que a voz do autor criador seja a voz do escritor como nesco); que se libere da hegemonia aprisionadora do imaginário de
pessoa, ela só será esteticamente criativa se houver deslocamento, uma língua unitária e da língua como mito (isto é, como uma forma
isto é, se o escritor for capaz de trabalhar em sua linguagem perma- absoluta de significar) e se deixe vagar livremente pela heteroglossia.
necendo fora dela.
No fundo, a formulação da distinção autor pessoa/autor criador
No livro sobre Dostoievski, Bakhtin apresenta esse necessário em termos de deslocamentos no plano da linguagem é apenas um
deslocamento com um vocabulário anterior à sua filosofia da lingua- outro modo de apresentar a conceituação primeira de Bakhtin. Pri-
gem, dizendo que as ídeias do escritor, quando entram na obra, mu- mordialmente, ele nos apresenta o autor criador (enquanto elemento
dam sua forma de existência: transformam-se em imagens artísticas estético-formal) como uma posição axiológica que dá unidade ao
das ídeias, isto é, não são as ideias do escritor como tais que entram todo artístico. Neste outro momento, Bakhtin caracteriza o autor
no todo estético, mas sua refração. criador como a voz social que dá unidade ao todo artístico.
Essa mesma compreensão já aparecia no texto O autor e o herói Este segundo modo de enunciar apenas transpõe a primeira con-
na atividade estética quando Bakhtin dizia que mesmo que o escritor ceituação para o quadro de referências da filosofia da linguagem de-
coloque suas ideias na boca do herói, não são mais suas ideias porque lineada na década de 1930. Nela- ao conceber a linguagem como
estão precisamente na boca do herói e se conformam ao seu todo. heteroglossia - Bakhtin vai dar materialidade verbal às posições so-
cioaxiológicas que passam a ser entendidas como vozes ou línguas so- Marina não pode ser classificado por um caso de amor (sentimento
ciais, isto é, como formações em que confluem formas léxico-gramati- que, de fato, não existe em Luís da Silva); é antes uma atração carnal
cais e uma semântica cujo dominante são os índices sociais de valor. por uma mulher que ele sequer estima. O que lhe dói é perdê-la para
Julião Tavares, a quem votava um desprezo total ("o homem odioso
Em suma, a função estético-formal de autor criador é, nos dois
o que tinha tudo, mulheres, cigarros", p. 182). Essa situação vai acirrar
"' casos, uma posição axiológica. A única diferença é que, no segundo
seus ressentimentos e seus ódios.
momento, essa posição se reveste de materialidade verbal e o autor
criador passa a ser identificado à voz social que cria e sustenta a uni- É dessa posição axiológica integralmente negativa que Luís da
dade do todo artístico. Silva constrói sua angustiante narrativa, narrativa que se afunda em
penosas recordações e em doentios redemoinhos psíquicos em que
Por ser uma função imanente ao todo estético e por definir-se
delírio e realidade se mesclam quase sem distinção.
como uma posição axiológica, o autor criador (a voz segunda) é, para
Bakhtin, pura relação: não se trata de um ente físico (não é possível
encontrar nas ruas Dom Casmurro como tal), mas de uma função
narrativa imanente que condensa, num todo estético, determinado
A AUTOBIOGRAFIA E A AUTOCONTEMPLAÇÃO
feixe de relações valorativas. Ou, como aparece formulado no fim de
A necessidade do princípio da exterioridade no ato criador poderia
O autor e o herói na atividade estética, a posição axiológica do autor
ser questionada no caso da autobiografia. Nesta, escritor e herói aparen-
criador é um modo de ver o mundo, um princípio ativo de ver que temente coincidem. Bakhtin, porém, toma a autobiografia precisamente
guia a construção do todo estético e direciona o olhar do leitor. para reiterar seu postulado geral de que sem deslocamento não há ato
Dentre incontáveis exemplos possíveis, escolhemos Angústia para criador (conforme se pode ler em O autor e herói na atividade estética).
ilustrar essa discussão. Obviamente, Luís da Silva, o autor criador da Para ele, a autobiografia não é (e não pode ser) um mero dis-
narrativa, não é Graciliano Ramos, o escritor do romance. É um ente curso direto do escritor sobre si mesmo, pronunciado do interior do
interno ao romance, puramente relaciona!; é uma voz social refratada evento da vida vivida. Ao escrever uma autobiografia, o escritor pre-
esteticamente (i. e, transposta para o plano estético); é uma posição cisa se posicionar axiologicamente frente à própria vida, submeten-
socioaxiológica que poderíamos caracterizar como a do funcionário do-a a uma valoração que transcenda os limites do apenas vivido.
pobre, "um Luís da Silva qualquer" (p. 19), solitário e amargo, viven-
Para isso (para posicionar-se axiologicamente frente à própria
do uma vida monótona e estúpida, cheio de "tristeza e raiva" (p.6).
vida), o escritor precisa dar a ela certo acabamento, o que ele só alcan-
Só enxerga uma paisagem em que "tudo [é] feio, pobre, sujo" çará se distanciar-se dela, se olhá-la de fora, se tornar-se um outro em
(p. 36), em que nada tem qualquer sentido. Despreza profundamen- relação a si mesmo. Em outros termos, ele precisa se auto-objetificar,
te os outros e se vê por eles desprezado ("sujeitos remediados que isto é, precisa olhar-se com certo excedente de visão e conhecimento.
me desprezam porque sou um pobre diabo", p. 6; "Rua do Comér-
O ato de autocontemplação no espelho motiva reflexão seme-
cio. Lá estão os grupos que me desgostam", p.9).
lhante em Bakhtin. Pode parecer, numa abordagem superficial desse
Vive fechado em si, ruminando, com amargor, sua insignificân- fenômeno, que estamos, de fato, nos vendo diretamente como os
cia de ser abjeto a seus próprios olhos. Mesmo seu interesse por outros nos veem. No entanto, diz Bakhtin, vemos no espelho uma
face que nunca temos efetivamente na vida vivida: vemos apenas um O núcleo sua discussão é muito similar ao de Bakhtin: ela é
reflexo do nosso exterior e não a nós mesmos em termos nosso Lcu.uu,_u ... formulada em termos de posições axiológicas. Para Voloshi-

exterior, porque estamos em frente ao espelho e não no seu interior. nov, o todo estético condensa uma complexa rede de relações axio-
lógicas envolvendo três grandes constituintes imanentes: o autor, o
O que fazemos, então, quando em frente ao espelho, à falta des-
receptor e o herói.
sa efetiva possibilidade (de nos vermos a nós mesmos inteiramente
abarcados pelo nosso exterior) é nos projetarmos num possível outro Ele deixa claro também que o autor não se confunde com o es-
peculiarmente indeterminado, com cuja ajuda tentamos encontrar critor, nem o receptor com o público reaL Trata-se, nos dois casos, de
uma posição axiológica em relação a nós mesmos. Nesse sentido, funções imanentes, constitutivas da obra. Cada uma delas consubs-
nunca estamos sozinhos frente ao espelho: um segundo participante tancia (de forma refratada) posições valorativas sociais e, em relações
está sempre implicado no evento da autocontemplação. recíprocas, determinam, do interior, a forma do todo estético.

Em seu caderno de notas de 1943 (conforme traduzidas e publi- Se no texto O autor e o herói na atividade estética, Bakhtin pen-
sa a forma artística como expressão da relação axiológica do autor
cadas por Tatiana Bubnova em Hacia una filosofía del acto ético. De los
criador com o herói (e só muito tangencialmente faz referência ao
borradores. Y otros escritos, p. 147), Bakhtin volta a esse tema, desta-
receptor imanente), Voloshinov como que complementa aquela dis-
cando a complexidade que se esconde atrás da aparente simplicidade
cussão, detalhando as referências ao terceiro elemento (o receptor
da autocontemplação. É ingênuo pensar, diz ele, que no ato de olhar-
imanente) nessa relação.
se no espelho há uma fusão, uma coincidência do extrínseco com o
intrínseco. O que ocorre, de fato, é que, quando me olho no espelho, O autor criador tem uma relação axiológica com o herói, mas
em meus olhos olham olhos alheios; quando me olho no espelho, não nunca perde de vista os posicionamentos axiológicos do receptor
imanente, seja frente ao mesmo herói, seja frente à própria relação
vejo o mundo com meus próprios olhos e desde o meu interior; vejo a
do autor criador com o herói. Em outras palavras, o autor criador
mim mesmo com os olhos do mundo- estou possuído pelo outro.
fala do herói, mas sempre atento ao que os outros pensam do herói
Essas reflexões todas têm, como pano de fundo, o pressuposto e da própria relação dele com o herói.
bakhtiniano forte do primado da alteridade, no sentido de que tenho
A relação autor/herói fica assim mais claramente atravessada
de passar pela consciência do outro para me constituir (ou, num vo-
pelos diálogos sociais, pelas interdeterminações responsivas. O re-
cabulário mais hegeliano, o eu-para-mim-mesmo se constrói a partir
ceptor imanente é a função estético-formal que permite transpor
do eu-para-os-outros; cf. Apontamentos de 1970-1971). para o plano da obra manifestações do coro social de vozes.

Ü TEMA DO AUTOR NO CíRCULO DE BAKHTIN

Dos outros membros do Círculo de Bakhtin, apenas Voloshinov


vai se ocupar do tema do autor, dedicando a ele boa parte do seu ar-
tigo O discurso na vida e o discurso na poesia, publicado em 1926.
CAPÍTULO TRÊS

A FILOSOFIA DA
LINGUAGEM

BAKHTIN E VoLOSHINOV SOBRE A LINGUAGEM

s dois pensadores do Círculo que escre-


veram mais explicitamente sobre ques-
tões de linguagem foram Bakhtin e Vo-
loshinov: A filosofia da linguagem que
construíram, não está, porém, apresen-
tada integralmente num único texto, até
mesmo porque sua elaboração se esten-
deu no tempo. Ela vai se constituindo ao
longo da segunda metade da década de
1920, o período mais produtivo do Círculo como tal, até sua dissolução
-por força das circunstâncias a que já nos referimos- em 1929.
Bakhtin voltará, posteriormente, a essa temática, ampliando-a e
complementando-a. Trata-se, portanto, de um pensamento construí-
do coletivamente num primeiro momento e que continua evoluindo
depois da dispersão do grupo.
O próprio Bakhtin, em carta de 1961 a V Kozhinov pode (1952-53);
ser lida em Bocharov, p. 1016), afirma que os três livros fim dos
anos 1920 (O nos Marxismo e "(1974).
losofia da linguagem e Problemas da poética de Dostoievshi) estão
Cabem aqui duas observações:
baseados numa concepção comum de linguagem - construída ao
tempo em que os três autores "estavam trabalhando em contato cria- a) os três últimos textos de Bakhtin são, de fato, manuscritos
tivo muito próximo" (p. 1016). E adiante acrescenta: inacabados, com muitas de suas partes apenas esboçadas;
Até hoje me mantenho fiel à concepção de linguagem e fala que foi
b) tópicos de linguagem ocorrem esparsamente nas várias no-
pela primeira vez apresentada, de modo incompleto e nem sempre in- tas de caderno, em especial nas de 1970-1971.
teligível, naqueles livros, embora, é claro, a concepção tenha evoluído
Por fim, lembramos que tainbém no livro de Medvedev há con-
nos últimos trinta anos.
siderações sobre a linguagem, boa parte delas muito semelhantes às
Desse modo, para apreender essa filosofia da linguagem numa formulações dos outros dois autores. Em todo caso, a elas faremos
visão de conjunto, é preciso percorrer e aproximar vários dos textos referência sempre que pertinente.
do Círculo e do próprio Bakhtin. No correr deste capítulo, apresen-
taremos os passos do processo de construção dessa filosofia, ao mes-
mo tempo em que tentaremos fazer uma apresentação de seus eixos As RELAÇÕES COM A LINGUÍSTICA
principais. Por ora, deixamos arrolados, em ordem cronológica, os
textos de cada um desses autores em que questões de linguagem Como destacamos anteriormente, o Círculo de Bakhtin conhe-
foram discutidas. ceu, por volta de 192511926, uma virada linguística, isto é, a questão
De Voloshinov: da linguagem passou a ser central em suas reflexões e reorientou
todos os trabalhos daí para a frente. O marco inicial dessa virada
- O discurso na vida e o discurso na poesia (1926);
é o artigo O discurso na vida e o discurso na poesia, publicado por
- O freudismo: um esboço crítico (1927);
Voloshinov em 1926.
- As correntes mais recentes do pensamento linguístico no Oci-
dente (1928); No entanto, antes dessa virada já encontramos, nos textos de
- Marxismo e filosofia da linguagem (1929); Bakhtin, reflexões esparsas sobre a linguagem. Ela, contudo, não é
- Estilística do discurso literário (1930) - que compreen- ainda colocada como o núcleo articulador do seu pensamento, nem
de os três artigos: "O que é a linguagem?", "A estrutura do ele se concentra em dizer como a está concebendo.
enunciado" e "A palavra e sua funçao social";
Apesar disso, podemos afirmar que as grandes coordenadas .
-"As fronteiras entre poética e linguística" (1930).
da concepção de linguagem que o Círculo construiu depois, já es-
De Bakhtin: tavam presentes em Para uma filosofia do ato, particularmente as
- Problemas da poética de Dostoievski (192911963); seguintes:
- "O discurso no romance" (1934-35); a) a perspectiva da refraçao avaliatíva de nossas relações com
- Rabelaís e seu mundo (1945/1965); o mundo - fundamento da futura concepção da linguagem
como estratificada axiologicamente e do conceitual da hetero- do o estudo dos fenômenos verbais em si e o estudo dos enunciados
glossia, isto é, da multiplicidade das vozes ou línguas sociais; artísticos concretos (da língua na poesia). Ele abre aqui uma distin-
b) a relação eu/outro- fundamento da grande metáfora dialó- ção que reiterará em vários textos posteriores: de um lado, a lingua-
gica do Círculo, que vai orientar sua compreensão da dinâ- gem verbal em si (qua gramática, qua sistema- como estudada pela
mica da cultura imaterial e donde emerge a filosofia do riso linguística) e, de outro, a linguagem verbal situada, a língua viva.
de Bakhtin e seu conceitual da heteroglossia dialogizada, da
Trata-se, neste segundo caso, do enunciado concreto, do ato
bivocalização, do discurso citado;
efetivamente performado no mundo da vida, ou seja, o enuncia-
c) o destaque à unicidade dos eventos do mundo da vida- que
do sempre situado num contexto cultural axiológico-e-semântico,
sustentará, no futuro, a insistência do Círculo em aproximar
lembrando que a aglutinação visível nesta forma hifenizada busca
sistematicamente as práticas de linguagem do cotidiano e
representar a perspectiva de Bakhtin e de seu Círculo de que se-
aquelas das diferentes esferas da criação ideológica.
. manticidade do enunciado concreto envolve sempre e de modo in-
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Foi preciso, porém, submeter essas grandes coordenadas concei- terconectado valor e~.:::.:'~!\l'"'~fl~±.'=''·
tuais a uma semioticização sociologizada para redesenhar-lhes o per-
Ao abordar especificamente os enunciados da arte verbal, Bakhtin
fil heurístico: foi preciso perceber sua materialização em linguagem e, afirma que eles devem ser estudados como fenômenos puramente
ao mesmo tempo, perceber a linguagem para além de uma concepção verbais (p. 293), mas tal estudo é insuficiente para a análise estética,
apenas formal, dimensionando-a nas relações sociointeracionais. na medida em que o que entra no todo estético não é a língua na sua
No texto O problema do conteúdo, do material e da forma na arte condição gramatical (a língua em si), mas fundamentalmente a língua
verbal (de 1924),já está claro que a questão da linguagem estava co- como realidade semântico-axiológica; "não é a foE:!l:(lli~g~~_gS:~..9.:':1~.
meçando a tomar corpo nas reflexões de Bakhtin. Neste texto, nós o entra no todo estético, mas sua significação axiológica" (p. 299).
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encontramos afirmando que os enunciados concretos emergem sem- Embora ocupado neste momento basicamente com os enuncia-
pre num contexto cultural semântico-axiológico e asseverando que, dos artísticos e com as bases de uma estética filosófica, Bakhtin já está
desse modo, não há e nem pode haver enunciados neutros (p. 292) visualizando que o modo de conceber a linguagem como estratifica-
- o dizer assevera valores, isto é, sempre que enun~~~~~~~~~~~ da axiologicamente exigiria uma disciplina diferenciada da linguística
mos também uma J20sição axiológica.
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para seu estudo. Ele não fala ainda das duas disciplinas (linguística e
E, pela primeira vez, o encontramos fazendo referência à linguís- translinguística) a que fará referência no capítulo 5 de Problemas da
tica e dizendo que a dimensão semântico-axiológica dos enunciados poética de Dostoievski, mas já antecipa, de certa forma, a questão.
concretos é inapreensível por ela como tal, na medida em que

a linguística vê neles somente um fenômeno de linguagem e os relaciona


LINGUÍSTICA E TRANSLINGUÍSTICA
apenas à unidade da língua e de maneira alguma à unidade de um con-
ceito, da vida prática, da história, do perfil de uma pessoa etc. (p. 292).
No capítulo 5 do livro sobre Dostoievski Qustamente aquele
Esse comentário aparece no contexto da discussão específica de em que discute a bivocalização na linguagem do autor), Bakhtin fala
como se deve estudar o enunciado artístico. Bakhtin está distinguin- explicitamente (p. 181) da necessidade de duas disciplinas distintas
para o estudo da linguagem verbal: a linguística - para o estudo a anál~se go o1Jjc:t9
::ot:LJdt<H (em que se estabelecem
gramatical propriamente dito; e a translinguística (que Bakhtin cha- relações entre os ele1lle12tos li11gcü~ticos) do (em
mou de metalinguística) - para o estudo das práticas socioverbais que se estabelecem relações entrepessoas).
concretas, concentrando-se particularmente em sua dinâmica e sig-
Esse modo de encarar a questão do linguístico e do discursivo
nificação, tratando, entre outros aspectos, das relações dialógicas (no
nos leva a duas considerações. Primeiro, parece-nos importante desta-
sentido discutido no capítulo anterior).
car que Bakhtin está defendendo a necessidade de uma segunda ciên-
Embora propostas como duas disciplinas distintas, Bakhtin as cia para estudar a linguagem, mas não a está propriamente criando: ele
entende em permanente correlação, o que o leva a dizer também que não recorta um "objeto calculável", nem formula proposições formais
seus limites, na prática, são violados com muita frequência: de método. O objeto "língua em sua totalidade concreta e viva" não
está suficientemente recortado para permitir a delimitação efetiva de
Obviamente, a pesquisa translinguística não pode ignorar a linguísti-
uma ciência e menos ainda de um método para abordá-lo. O máximo
ca e deve fazer uso de seus resultados. A linguística e a translinguísti-
ca estudam um e o mesmo fenômeno concreto, altamente complexo que podemos dizer, seguindo o raciocínio heideggeriano discutido no
e multifacetado, a saber, o discurso [slovo] -mas o estudam a partir capítulo um, é que o Ser da linguagem "em sua totalidade concreta e
de vários lados e diferentes pontos de vista. Elas devem se comple- viva" está interpelando Bakhtin - que lhe responde com uma filoso-
mentar mutuamente, mas não devem ser confundidas. Na prática, as fia da linguagem e não propriamente com uma nova ciência.
fronteiras entre elas são frequentemente violadas (p. 181).
Por outro lado, podemos observar que há no discurso bakhti-
Bakhtin tinha, portanto, clareza de que o objeto de seu interes- niano uma relação bastante positiva com a linguística. Ou, em ou-
se, grosso modo apresentado como tros termos, Bakhtin nunca põe a linguística em questão: aceita sua
especificidade (isto é, o estudo do verbal em si- ver O problema do
discurso, isto é, a língua em sua totalidade concreta e viva, e não a
texto, p. 120), considera legítimas e justificáveis as abstrações opera-
língua como o objeto específico da linguística, obtido por meio de
uma abstração totalmente legítima e necessária de vários aspectos da das pela linguística (Problemas da poética de Dostoievski, p. 181) e
vida concreta da palavra [slovo] (p. 181) toma o sistema gramatical como um dado, caracterizando-o por sua
virtualidade (O problema do texto, p. 118).
não poderia ser satisfatoriamente estudado por uma perspectiva
Ele apenas considera que a linguística, embora necessária, é in-
estritamente linguística. Daí ele propor outra disciplina distinta da
suficiente para o estudo da comunicação verbal em si, nos termos
linguística, mas em constante correlação com ela, acrescentando a
em que ele a entende, isto é, para o estudo das formas desta comu-
observação de que os limites entre ambas seriam, na prática, viola-
nicação, da natureza dos enunciados concretos, das relações dialógi-
dos frequentemente. cas, dos gêneros do discurso (O problema do texto, p. 118).
Essa última observação mostra Bakhtin bem consciente da im-
Nesse sentido, há uma clara diferença entre ele e Voloshinov.
possibilidade de ignorar a linguística (isto é, o estritamente verbal do
Este é um crítico contumaz da linguística, em especial de sua pers-
enunciado) e, por outro lado, de estabelecer limites rígidos entre os
pectiva formal (que ele designa de objetivismo abstrato). Seu argu-
dois tipos de enfoques no estudo da linguagem.
mento básico aqui é que a noção de sistema sincrônico não tem
Em seu texto Q~pr()blemg}os gêneros do discurs(), ele volt(l a qualquer objetividade (cf. cap. II-2 de Marxismo e filosofia da lin-
trab~~h~L~Sllll~?S~s dois pla!l.Q$ de ªn~lis~2 eiJ:fétti:zanci9 .<3. .lJ:~.c:e§§tdâ;: guagem) e, portanto, é um erro persegui-lo cientificamente.
Em nenhum momento, ele propõe criar uma segunda ciência: Podemos expressar isso da seguinte maneira: o que importa para o fa-
para ele basta redirecionar criticamente a linguística, incorporando- lante sobre uma forma linguística não é ser ela um sinal estável e sempre
lhe a enunciação como objeto (p. 96). Mesmo o estudo das formas autoequivalente, mas ser um signo sempre mutável e adaptável (p.68).
linguísticas como tais só é possível, segundo ele, no interior de uma Introduz, então, uma distinção entre sinal e signo, apresentan-
teoria da enunciação: do o primeiro como o nível da recorrência e do estável e o segundo
Enquanto a enunciação, em sua inteireza, continuar sendo terra in- como o nível do sempre mutável e adaptável. Embora essa distinção
cognita para o linguista, será impossível falar de uma compreensão faça sentido no conjunto de sua reflexão (na medida em que ele quer
genuína, concreta, não escolástica das formas sintáticas (p. 110). precisamente enfatizar a plurissignificação do signo nos diferentes
contextos de enunciação), ele não deixa esta relação sinal/signo su-
E afirma, como princípio geral, que o estudo das formas gra-
ficientemente bem resolvida no plano teórico. Isso, segundo nosso
maticais deve estar metodologicamente situado no ponto de chegada
ponto de vista, porque Voloshinov não consegue lidar com clareza
dos estudos linguísticos e não no ponto de partida (p. 95-96):
com a especificidade gramatical, negando-lhe pertinência num pon-
Daquilo que acabamos de estabelecer, segue que a ordem metodolo- to de seu texto e pressupondo-a em outro.
gicamente fundada do estudo da linguagem deve ser:
Embora alguns estudiosos da linguagem cheguem mesmo a
(1) as formas e os tipos de interação verbal em conexão com suas
negar essa especificidade, parece-nos, de fato, impossível tratar a
condições concretas;
(2) as formas de enunciações particulares, de atos particulares de di-
linguagem verbal sem considerá-la. Podemos, é claro, criticar as in-
zer, em ligação estreita com a interação de que são constituintes suficiências dos modelos gramaticais existentes e até mesmo tentar
- i.e., os gêneros do discurso na ideologia do cotidiano e na cria- criar outros levando em conta o pressuposto de Voloshinov (i. e.,
ção ideológica como determinadas pela interação verbal; de que o estudo não escolástico das formas linguísticas como tais
(3) um reexame, a partir dessa nova base, das formas da língua em só se faz produtivamente no interior de uma teoria da enunciação).
sua apresentação linguística usual. Contudo, parece-nos que não podemos ignorar sua materialidade ou
Assim, enquanto Bakhtin considera que o linguista está cor- dela escapar: ela, sem dúvida, constitui um dos incontornáveis do
reto em abordar os elementos linguísticos no contexto fechado do objeto linguagem, no sentido heideggeriano do duplo incontornável
sistema da língua (O problema do texto, p. 120), Voloshinov critica da ciência (ver Ensaios e conferências, p. 50-57 em particular).
precisamente o fato de o pensamento linguístico ter perdido, sem O próprio Voloshinov não a ignora em seu quadro de refe-
esperança, qualquer sentido do todo verbal (p. 110). rência. Assim, ao discutir a significação do enunciado (cap. II-4 de
Essa negação algo radical de uma perspectiva formal para o es-
Marxismo e filosofia da linguagem), ele inclui as formas linguísticas
como parte inalienável do enunciado e a significação calculável nes-
tudo da linguagem tem, porém, seu preço. Segundo nossa avaliação,
tas formas (que ele identifica como os aspectos semânticos que são
ela traz para Voloshinov algumas problemas de coerência interna. E
reiteráveis e sempre iguais em qualquer situação em que o enuncia-
isso é particularmente visível quando ele, ao discutir a relação falan-
do ocorre) como parte inseparável da significação deste.
te/signo, argumenta que os falantes, na interação concreta, não se
orientam por um sistema abstrato de formas, mas pela significação Em outrasp_alavras, o plano da sinalidade é parte constitutiva
que a forma adquire no contexto singular da enunciação: ~<:>_plano da significação do enunciado. Assim,sua semântica com-
po~~aria necessariamente duas dimensões em estreita correlação: a E
significação dada pela estrutura (reiterável e sempre igual) e a signi-
ficaç~~~~dapela enunciação (o sempre mutável e adaptável)- ou As origens das dificuldades de Voloshinov parecem estar em
seja, o mesmo (sinal) que é sempre outro (signo). sua clara filiação (embora crítica) à filosofia da linguagem de Hum-
Como formulação semântica geral, parece-nos uma diretriz boldt. Ao apresentar e criticar as duas principais correntes do pen-
samento linguístico de seu tempo (Parte li de Marxismo e filosofia
adequada: ela constitui, de fato, o núcleo de qualquer discussão per-
da linguagem), Voloshinov descarta radicalmente o objetivismo abs-
tinente sobre a significação da linguagem. Ela antecipa, por várias
trato, argumentando que o sistema sincrônico, pedra angular dessa
décadas, o desafio que continua a nos perseguir nas disciplinas da
corrente, não tem objetividade - em direta oposição ao que sobre
significação, isto é, engendrar modelos semânticos capazes de sub-
isso afirmava Saussure no Curso de linguística geral (p. 23)- e é,
sumir esta correlação.
portanto, um erro persegui-lo.
Apesar de, na discussão das bases de sua semântica, Voloshinov
Sua crítica ao subjetivismo individualista, contudo, é menos ra-
não recusar pertinência à materialidade do linguístico como tal, ele
dical. Ele não aceita seu compromisso de base com uma concepção
parece perder-se um pouco no tratamento dessa questão no capítulo
individualista do falante e de sua atividade linguística - isto é, o fato
em que introduz a distinção sinal/signo (cap. II-2).
de seus atos de dizer serem entendidos como expressões de uma cons-
A discussão que se desenvolve neste ponto do livro deixa-nos a ciência puramente individual; ou, em outros termos, sua incapacidade
forte impressão de que Voloshinov parece ter confundido o sistema de compreender a natureza social do enunciado e da enunciação.
sincrõnico conforme definido pelo objetivismo abstrato com o (irre-
No entanto, Voloshinov considera corretos os outros pressu-
cusável) aspecto estrutural da língua e, ao recusar um, acabou por postos de base da tradição humboldtiana (p. 93 e 94): tomar a enun-
recusar o outro, criando para si mesmo um vácuo teórico: ele não ciação como a realidade concreta da linguagem e não separar a forma
consegue falar do enunciado sem admitir que há nele uma face rei- linguística de sua substância ideológica. Em outras palavras, ele se
terável (que ele chama de sinalidade); no entanto, não encontra ele- filia a essa tradição (em oposição à tradição racionalista- em que
mentos para caracterizar sua natureza e termina por fazer a afirmação nada enxerga de correto), dando-lhe, porém, uma perspectiva socio-
claramente esdrúxula de que o componente de sinalidade existe na lógica. Suas cinco teses, apresentadas ao fim do capítulo 11-3, sinte-
língua, mas não como constituinte da língua como tal (p. 69). O que tizam esses dois posicionamentos: a linguagem é apresentada como
poderia ser isso que existe na língua, mas não é constituinte dela? atividade (como energeia), mas seus princípios são caracterizados
Obviamente o fato de o elemento de sinalidade ser "dialeti- como de natureza sociológica.
'
camente eclipsado pela nova qualidade de signo" (p. 69) não lhe Ao filiar-se à tradição humboldtiana, Voloshinov, ao mesmo
tira a especificidade estrutural. Voloshinov parece ter confundido os tempo em que lhe dá um caráter novo (ao sociologizá-la), herda as
planos da sentença e do enunciado; e, ao recusar uma linguística de dificuldades daquele pensamento para tratar do gramatical propria-
sistema, não encontra uma alternativa para lidar com aquela especi- mente dito, na medida em que este é visto, naquela tradição, como
ficidade que fica mal situada em seu conceitual: o sinal - a forma ponto de chegada e não como ponto de partida da linguagem, ou
linguística com tal- é sem ser! seja, como um a posteriori e não como um a priori da atividade
linguística. Esta não é um mero produto de um sistema que lhe pre- m1sswnános; manteve contato epistolar permanente com pesqui-
existe (como a entende o racionalismo linguístico), mas o sistema sadores de línguas indígenas da América do Norte; esteve no País
resulta da atividade elaboradora do espírito. Basco para conhecer-lhe a língua; e, frequentando em Paris a École
A obra de Wilhelm von Humboldt (1767-1835) sobre a lingua- des Langues Orientales Vivantes, entrou em contato com línguas da
o
p
gem costuma ser apresentada como extensa e dificilmente suscetível Ásia (em especial, as semíticas, o chinês e a língua kawi, da ilha de
de sistematização. Ele era dono de uma erudição enciclopédica e de Java). A esta última, Humboldt destinou sua investigação de maior
uma paixão pelas línguas. Sua vida abastada lhe deu condições de porte, publicada postumamente em 1836, contendo uma introdução
estudos, viagens e contatos contínuos com grande parte da intelec- de caráter mais geral, em que encontramos suas concepções sobre a
tualidade européia de seu tempo. Era, portanto, um intelectual de natureza da linguagem.
interesses múltiplos, o que, com certeza, contribuiu para uma pro- Para ele, linguagem e pensamento constituem uma unidade.
dução não facilmente sistematizável. Nesse sentido, a língua não é entendida apenas como a manifesta-
A esse respeito, é interessante reproduzir as palavras de E. Cassirer ção externa do pensamento (algo que vem depois do pensamento),
(1874-1945) que, em seu livro A filosofia das formas simbólicas (1923), mas aquilo que o torna possível. Ela tem, nesse sentido, um caráter
muito se inspirou nas reflexões de Humboldt (e foi leitura de cabeceira constitutivo, viabilizando a elaboração conceitual e os atos criativos
de Voloshinov que- segundo reporta Mika Lahteenmãki (2002, p. 193) da mente. É por isso que Humboldt afirma ser a língua um processo,
- havia inclusive iniciado uma tradução desse texto para o russo): uma atividade (energeia) e não um produto (ergon).

Essencialmente, Humboldt é um pensador sistemático, mas ele se mostra Ela é, ao mesmo tempo, algo que permanece (o ergon acumula-
hostil a toda e qualquer técnica de sistematização apenas exterior. Ocorre, do que cada geração recebe e que constitui, no seu conjunto, a visão
assim, que seu empenho em sempre apresentar em cada um dos pontos de de mundo da nação, o espírito do povo - bem de acordo com o
sua análise simultaneamente a totalidade de sua concepção da linguagem
ideário do pensamento romântico, do qual Humboldt foi um dos
resulta na ausência de uma distinção clara e inequívoca desta totalidade.
Os seus conceitos nunca são os produtos puros e livres da análise lógica; formuladores) e algo transitório (porque é inerentemente energeia,
neles, ao invés, vibra sempre uma tonalidade estética do sentimento, uma isto é, trabalho mental criativo contínuo, um verdadeiro ato artístico
atmosfera artística, que anima a exposição, mas, ao mesmo tempo, enco- que opera permanentemente sobre o ergon, reconfigurando-o).
bre a articulação e a estrutura das idéias. (p. 140-141)
É interessante destacar o grande fundamento semântico (e não
Em outras palavras, Humboldt é antes de tudo um filósofo da propriamente gramatical) da concepção de Humboldt: um elaborar
linguagem e não propriamente um linguista no sentido estrito do contínuo do intelecto (energeia) e o resultado desse processo, o acú-
termo: o que parece lhe interessar, antes de qualquer coisa, é o Ser mulo histórico desse trabalho (ergon) -que constitui a cosmovisão
da linguagem e não a formulação de um método de análise de um da nação, o espírito do povo.
"objeto calculável". Daí, talvez, a suposta falta de senso de sistemati-
Ora, Voloshinov incorpora essas duas facetas, sociologizando-as:
zação que alguns lhe atribuíram.
o elaborar contínuo é precisamente o jogo de significações sempre no-
Ao que se sabe, Humboldt estudou línguas extensamente: co- vas que se dão no processo de interação social - a linguagem como
nheceu muitas das gramáticas de línguas ameríndias feitas pelos uma energeía social. Já o ergon perde o caráter unitário de referência
a 'povo' ou 'nação' e se mostra socialmente estratificado em diferentes que realiza o espírito para tomar o som articulado capaz de expressar o
índices sociais de valor, em diferentes horizontes sociais pensamento. Em cada língua, este trabalho tem início em determinados
não se trata mais de uma, mas de múltiplas cosmovisões. pontos centrais, expandindo-se, a partir deles, para diversas direções
- e apesar disso, esta multiplicidade de processos criadores se funde
Voltando ao pensamento de Humboldt, vale lembrar que, se, afinal, não na unidade objetiva de uma criação, mas na unidade ideal
de um lado, a diversidade das línguas o fascinava, ele acreditava que de uma atividade que, em si, está subordinada a regras específicas. A
por detrás dela havia uma única forma geral, um modo único de ser existência do espírito só pode ser concebida em atividade e como ativi-
- energeia: dade, e o mesmo é válido para cada existência particular que somente
é apreensível e possível através do espírito. Consequentemente, o que
Pois na linguagem a individualização de uma conformidade geral é denominamos de essência e forma da linguagem nada mais é do que o
tão maravilhosa que podemos dizer com igual correção que a huma- elemento permanente e uniforme que podemos detectar, não em uma
nidade como um todo tem uma só língua e que cada ser humano tem coisa, mas no trabalho realizado pelo espírito para fazer o som articu-
a sua própria (p. 53). lado expressão de um pensamento (p. 146-147).

Em outras palavras, a capacidade de individualizar a forma ge- Este trabalho mental elaborador, com as mesmas propriedades
ral da linguagem (enquanto atividade constitutiva) é a mesma na criativas, em Voloshinov- a contrapelo de toda a tradição hum-
humanidade como um todo e em cada indivíduo em particular. boldtiana - é social, isto é, resulta da internalização da lógica dos
Desse modo, sua concepção universalizante não diz respeito a signos, que é a lógica da interação socioaxiológica (como vimos em
uma gramática universal entendida como um sistema, mas como uma detalhe no capítulo dois).
dinâmica mental de elaboração da expressão. Num certo sentido, en- Assim, em sua perspectiva, o falante é social de ponta a ponta
tão, Humboldt se aproxima da tradição universalizante que atravessa ("a única definição objetiva possível da consciência é sociológica", p.
os séculos e tem suas formulações bem conhecidas no século XX, mas 13). Mas, ao mesmo tempo, ele é individual de ponta a ponta. Quer
afasta-se de todas elas por conceber a língua não como um sistema dizer: o fato de seu psiquismo ser integralmente social não lhe tira
gramatical, mas como uma atividade mental sistemática de elabora- a individualidade, porque seu mundo mental não é uma realidade
ção. Para ele, a gramática como tal (como um a priori) e a comunica- estática, mas dinâmica (e, portanto, criativa- pressuposto funda-
ção são absolutamente acessórias, vêm depois e nunca antes daquilo mental de Humboldt).
que é o essencial, isto é, o trabalho elaborador do espírito. Essa dinamicidade mental decorre do fato de o psiquismo refle-
Vale a pena, neste ponto, voltar ao texto de Cassirer e reproduzir tir a lógica da comunicação sociocultural, isto é, a lógica das relações
a súmula que ele faz do pensamento de Humboldt sobre esse tema dialógicas, do encontro tenso (e até contraditório) das múltiplas lín-
específico, trecho em que fica clara a indisposição geral da tradição guas sociais. Também para Voloshinov, "a existência do espírito só
humboldtiana com a questão especificamente gramatical: pode ser concebida em atividade e como atividade", mas seu móvel
é social e não puramente individual. Diz ele:
A fragmentação da linguagem em palavras e regras será sempre um
trabalho grosseiro e inútil da análise científica - pois a essência da A consciência toma forma e vida no material semiótico criado, por
linguagem não reside jamais nestes elementos ressaltados pela abstra- um grupo organizado, no processo de sua interação social. A consci-
ção e pela análise, mas tão somente no trabalho eternamente repetido ência individual se alimenta de signos; ela retira deles seu desenvolvi-
mento; ela reflete sua lógica e leis. A lógica da consciência é a lógica Seu foco de interesse (como também o de Voloshinov) é o enunciar
da comunicação socioideológica, da interação semiótica de um grupo como atividade social intrinsecamente dialógica (no sentido amplo do
social (p. 13). termo) e não como um fato puramente léxico-gramatical. No entanto, se
Em suma: Voloshinov adota a concepção de Humboldt de lin- ele nada avança no sentido de uma análise estrutural, nem por isso nega
guagem como atividade, mas muda radicalmente o eixo de sua ar- sua relevância ou reduz o estrutural a um elemento que é sem ser.
ticulação ao atribuir-lhe um caráter inerentemente social, em que Essa divisão de trabalho certamente não agradaria Voloshinov.
a interação, longe de ser acessória (como era para Humboldt), é Dizemos isso considerando suas reiteradas argumentações, quando
essencial. Desse modo, o trabalho elaborador mental contínuo não discutia os fundamentos de uma poética sociológica, de que, no in-
precede a comunicação, embora seja a comunicação, ao alimentar terior de um quadro de referência marxista, o estudo das questões
de signos a consciência e dar-lhe a lógica das relações dialógicas, humanas devia respeitar necessariamente o monismo metodológico
que o torna possível. e o caráter social e histórico dessas questões.
Voloshinov, ao sociologizar a concepção de Humboldt, recupe- Poderíamos contra-argumentar lembrando simplesmente que,
ra o poder heurístico daquela filosofia e abre nova direção para os como Bakhtin não tinha o marxismo como quadro de referência de
estudos linguísticos que desejam enfocar <1 Jing~-~~gelil primordial- seu pensamento, não precisava se submeter ao monismo metodoló-
mente como atividade e não C(.)lilEJ ~!?t.~.1llê:· No entanto, Voloshi- gico defendido por Voloshinov.
nov, como os humboldtianos em geral, tem dificuldades para situar No entanto, o cerne dessa questão é bem mais complexo. A
em seu quadro teórico a questão do especificamente gramatical. Faz divisão de trabalho que Bakhtin aceita, continua permeando, quase
avançar a discussão da linguagem como atividade, mas deixa mal aporeticamente, as discussões contemporâneas na área dos estudos
resolvida a questão da face formal da linguagem. linguísticos. Se temos relativa clareza de que as práticas de lingua-
É relevante lembrar, neste ponto, que o linguista brasileiro Car- gem e suas significações são de caráter histórico-social, essa mesma
los Franchi (cf. Franchi 1977) também filiava seu pensamento ao de clareza não existe quando se trata da face estrutural das línguas. Não
Humboldt e também defendia uma concepção de linguagem como é preciso dizer que a respeito desta é hegemônico hoje o pensamento
atividade constitutiva. Mais do que isso, acreditava ter encontrado, na que a toma como uma realidade biológica.
lógica combinatória e na teoria da funcionalidade formulada por Cur- Essa caracterização, é claro, incomoda vários estudiosos, muito
ry e Feys, um caminho promissor para um modelo formal capaz de embora ninguém tenha conseguido até agora formular uma efetiva
"dar conta da 'forma' de uma atividade" (p. 36). Se de fato adequado, alternativa teórica para a questão. Se chegássemos um dia a demons-
tal tratamento formal colocaria no horizonte uma perspectiva de supe- trar que, de fato, o estrutural é, no fundo, de natureza histórico-social,
ração da clássica limitação gramatical do pensamento humboldtiano. então o monismo metodológico defendido por Voloshinov se imporia
naturalmente e Bakhtin estaria errado em tê-lo considerado de nature-
Bakhtin toma caminho diverso de Voloshinov no trato dessa
za diferente dos fenômenos discursivos e a exigir análise diferente.
complexa questão. Sua estratégia é propor uma divisão de trabalho
entre duas disciplinas, argumentando que sentença e enunciado são No entanto, se viesse a prevalecer o argumento de que o estru-
fenômenos de naturezas diferentes a exigir análises diferentes. tural, no fundo, é de caráter biológico, teríamos, então, de aceitar
a impossibilidade do monismo metodológico e, por consequência, estrutura e o estudo das práticas de linguagem, há aqueles que
a necessidade da divisão de trabalho nos estudos linguísticos. Isso consideram ser o uso da linguagem incognoscível cientificamen-
nos lançaria num outro patamar, que exigiria uma articulação entre te. É o caso de Chomsky (2000), que sugere ter a linguagem na-
o biológico e o histórico-social, assim formulado, em termos gerais, tural apenas sintaxe (no sentido que o termo tem em sua teoria)
por Raymond Williams (1977, p.43-44): e pragmática (p. 132). Este último termo é usado aí num sentido
Desse modo, podemos acrescentar à necessária definição da faculdade amplo, recobrindo as questões da língua em uso. Para ele, estas
biológica da linguagem como constitutiva uma igualmente necessária questões estão fora do alcance do conhecimento científico, pelo
definição do desenvolvimento da linguagem - tanto no indivíduo menos de uma ciência que ele classifica de naturalística (cap. 4) e
quanto na sociedade - como social e historicamente constituído. O parecem antes constituir mistérios - que nunca serão resolvidos
que podemos, então, definir é um processo dialético: a consciência
pela mente humana (p. 133).
prática cambiante dos seres humanos - nela ambos os processos
evolutivo e histórico podem tanto receber o mesmo peso, quanto po- Bakhtin talvez concordasse em parte com Chomsky, se lembrar-
dem ser distinguidos na complexa variabilidade do uso concreto da mos que, para ele, o estudo das práticas de linguagem não é da alça-
língua. É a partir deste fundamento teórico que podemos avançar da das Naturwissenschaften, mas das Geisteswissenschaften. Ou, em
para distinguir "literatura", no interior de um desenvolvimento histó-
outros termos, o estudo das práticas de linguagem é tarefa de "uma
rico específico da escrita, do conceito retrospectivo abstrato, tão co-
mum no marxismo ortodoxo, que a reduz, como o faz com a própria disciplina de interpretação e não de uma física de tipo novo". Con-
linguagem, a uma função e, na sequência, a um subproduto (super- tudo, Bakhtin certamente recusaria o pressuposto de que as práticas
estrutural) do trabalho coletivo. de linguagem são incognoscíveis, já que ele chegou a propor uma
disciplina para estudá-las- a translinguística.

De todas as disciplinas linguísticas contemporâneas, é a análise


A TRANSLINGUÍSTICA E AS do discurso aquela da qual mais diretamente se aproximaria o proje-
DISCIPLINAS CONTEMPORÂNEAS to de uma translinguística.
Não é fácil sintetizar em poucas linhas os projetos e pressu-
Como se vê, Bakhtin, ao propor que era preciso criar uma se-
postos da análise do discurso, particularmente se considerarmos a
gunda disciplina para o estudo da linguagem enquanto prática so-
diversidade teórica que aí encontramos. No entanto, parece correto
cial, estava, de certa forma, apenas antecipando uma discussão que
afirmar que uma teoria do discurso é fundamentalmente uma teoria
tomaria vulto décadas depois e que permanece viva entre nós.
da significação do dizer, privilegiando aquilo que está aquém e além
Embora não se possa dizer que esta seja uma questão resolvi- da estrutura, isto é, o já dito (a memória discursiva) e os efeitos de
da entre os estudiosos da linguagem, acreditamos não ser incorreto sentido do dizer em dada circunstância.
afirmar que há certa crença, entre boa parte deles, de que tal divisão
Ora, Bakhtin concebeu a translinguística precisamente para se
de trabalho é pertinente (mesmo que não assumam, como axioma, o
ocupar da enunciação e dos seus sentidos. Não lhe interessava, em
caráter biológico do estrutural).
princípio, uma semântica da estrutura linguística em si (embora não
Por outro lado, não se pode esquecer que entre os que ad- a descartasse), mas o estudo da significação do enunciar, em especial
mitem (e defendem) uma divisão de trabalho entre o estudo da dos efeitos de sentido das relações dialógicas.
Por outro lado, a teoria do discurso assume hoje como pressu- Williams (p. 203-204) aproveita a argumentação de Boutet
z

~ posto de base (e explicitamente inspirado em Bakhtin) a heteroge- (1994) rejeitar essa relação. Segundo ele, Boutet:
é6
w neidade constitutiva dos discursos e dos enunciados, o que implica
"o rejeita tal interpretação, afirmando que a ênfase de Bakhtin em anali-
ô abandonar qualquer concepção homogênea de formação discursiva sar as formas gramaticais e discursivas em relação a situações sociais
u·"'
:l
p e de enunciado. Os discursos constituem um emaranhado concretas de enunciação e o modo como sua teoria semântica repousa
~

~ seções enunciativas e .--"'0e_~~ão dispersos por diferentes formaçõe~~s na tensão dinâmica entre o tema e o significado de uma enuncia-
·s ~---·--~~----~~-·--~-----·~---·--h-> -----· '··- ----· ---·---- -----
~ --·~~~ --~~--- "'"'
~ ---~--~--~~~- -~ '~=

ção conduzem, em última análise, a uma crítica radical do empreen-


";:J '--) enunciados emergem desse gce,(lnO heterog~neo e estão mais
~ ·~
dimento pragmático. Boutet afirma que nem consenso social, nem
s'" li nos explicitamente marcados pela heterogeneidade que os constitui.
!,), ---· -- -----------------·
-----~--~------""~
negociação participam como princípios organizativos da interação
i:i
c.J
o Nessa perspectiva, é interessante lembrar que Bakhtin elabo- verbal nos trabalhos de Bakhtin. Ao contrário, a organização se assen-
.c;2
p
rou um conceitual em que ~~~-e~ ~ociais não têm p_f()Qriamente ta num princípio opositivo envolvendo a natureza contraditória da
c(í
~
'-' 11m espaço interior: elas vivem nas fronteiras (são2 portanto, hete-: atividade linguística e da interação.
~
z0 rogêneas), vivem em pontos de contínua tensão socioaxiológica, de Em outras palavras, embora Bakhtin se ocupe, como a pragmática,
.:l
contínuas interanimações, contraditorie9-ad~s, entrecruzamentos e com os fenômenos da língua situada, ele ultrapassa em muito os limites
reconfigurações. desta disciplina porque não interessa a ele calcular as significações que
Por outro lado, ao identificar enunciação e posicionamento axio- decorrem da relação de um enunciado com o contexto imediato de sua
lógico, Bakhtin e o Círculo deram à teoria do discurso um interessante enunciação ou com a intenção do falante (em outros termos, não lhe
viés para a apreensão dos fundamentos da heterogeneidade discursiva, interessa o significado do falante, no sentido que a pragmática deu a
esta expressão), mas as relações dialógicas entre enunciados- relações
do processo de inscrição da história na língua e de sua dinâmica.
de significação que não se reduzem aos contextos imediatos, mas se
A proximidade da concepção bakhtiniana e da teoria contem- constituem no encontro de diferentes vozes/ línguas sociais.
porânea do discurso fica bastante evidente quando observamos um
dos aproveitamentos heuristicamente mais produtivos do conceitual
de Bakhtin na área dos estudos linguísticos - as formulações de ] . A FILOSOFIA DA LINGUAGEM DO CíRCULO
Authier-Revuz sobre a questão da heterogeneidade discursiva. Essas NUMA VISÃO DE CONJUNTO
formulações tiveram, conforme destaca G. Williams (p. 164), um
profundo impacto e influência nos desdobramentos e redesenhos da Como dissemos anteriormente, Voloshinov e Bakhtin são os
teoria contemporânea do discurso. dois membros do Círculo que mais extensamente discutiram o tema
da linguagem. Construíram em conjunto, na segunda metade da dé-
Por fim, é interessante comentar que alguns analistas viram a filo-
cada de 1920, uma concepção de linguagem que- ampliada nos
sofia do Círculo de Bakhtin como precursora da chamada pragmática
textos e manuscritos de Bakhtin posteriores a 1930- singulariza o
- entendida como o componente da análise linguística que, somado
Círculo no contexto da história das idéias linguísticas.
à sintaxe e à semântica, foi proposto como necessário para se dar conta
de aspectos da significação que decorrem do uso da língua ou daquilo Nosso objetivo agora é, depois de ter destacado vários de seus
que os falantes fazem contextualmente com seus enunciados. aspectos, apresentar essa concepção numa visão de conjunto, reite-
rando que estamos diante de uma reflexão geral de natureza filosófi- o modo de interação ent~e grupos humanos (como
ca (uma formulação sobre o Ser da linguagem) e não de proposições pressupõe a etnografia da comunicação). Seu foco efetivo de atenção
de natureza científica (formulação de método para análise um são as relações dialógicas, entendidas como relações de sentido que
"objeto calculável"). decorrem da responsividade (da tomada de posição axiológica) ine-
rente a todo e qualquer enunciado.
Podemos dizer que o Círculo parte da asserção de que a reali-
dade fundamental da linguagem é o fenômeno social da interação Os sujeitos que se envolvem nessas relações dialógicas não são
verbal (Marxismo e filosofia da linguagem, p. 94) ..li~2~~ s."entidg, .<l entes autônomos e pré-sociais, mas indivíduos socialmente organi-
linguagem verbal não é vista primordialmente como sistema formal, zados ..!~_§Q_§jggi:figt_cl.i~~:Lqueos suj~itos se definem como feixes de
mas S()Il1Q ~tivisJ:élde, comQ u.m conjuntg. de práticas socioc11lt:umis re!_asêí.~S?.Qç:iais:_s:o!ls~ituem-se e vivem nestes feixes q11e são múlti-
-.. - que têm formatosrelativamer1te estáveis (concretizam-se em çlif~­ pJ.()§1.1l~<:)lixos e nunca totalmente coincidentes de pessoa a pessoa

rentes gêneros dQ_disc11rso)e estão atrayessadas por diferentesposi- (aindaq11emembros de um mesm() g111po social): Os sujeitos são,
ções avaliatiV(lS sociais (concretizam diferentes vozes sociais). -portanto, seres marcados por profunda e tensa heterogeneidªde.

A interação socioverbal não deve ser entendida como engloban- Essas inúmeras relações sociais se materializam semioticamente
(isto é, os sujeitos se constituem e vivem numa emaranhada rede de
do apenas a comunicação face a face (i. e., como diálogo no sentido
signos) e ocorrem sempre no interior das inúmeras esferas da ativi-
restrito do termo), nem sequer como eventos fortuitos e aleatórios
dade humana, desde as mais efêmeras do cotidiano até as cultural-
entre mônadas falantes que trocam enunciados a esmo.
mente mais elaboradas.
A interação é entendida, conforme diz Voloshinov (p. 95), como
Dentro dessas esferas da atividade, geram-se formas relativa-
"toda a comunicação verbal, de qualquer tipo que seja", sendo o diá-
mente estáveis de dizer- os gêneros do discurso. _Ç_Q.@Q_()?..S.1Jj_<:itps
logo face a face apenas um destes muitos tipos.
s_ã()J:>!~J:'.iativos (envolvem-se em múltiplas dessas esferas da ativida-
Por outro lado, os eventos interacionais- sejam aqueles das esfe- d~humana), são também seres que transitam por múltiplos gêneros
ras do cotidiano, sejam aqueles das esferas mais especializadas da cria- do discurso, isto é, realizam seu dizer por meio de diferentes gêneros
ção socioideológica - são sempre compreendidos como situados num correlacionados às diferentes esferas da atividade.
complexo quadro de relações socioculturais. Os eventos estão, portan- Todo o dizer, por estar imbricado com a práxis humana (social
to, sempre correlacionados com a situação social mais imediata e com e histórica), está também saturado dos valores que emergem des-
o meio social mais amplo, ambos se entrecruzando em cada evento e sa práxis. Essas diferentes "verdades sociais" (essas diferentes refra-
tendo aí papel condicionador dos atos de dizer e de sua significação. ções do mundo) estão materializadas semioticamente e redundam
em diferentes vozes ou línguas sociais que caracterizam a realidade
Mais imE_orta11~~,p_orérr1, é lembrar...._k..•.·--········
si q11e interessam, mas aquilo que neles acontece, isto é, as rela- da linguagem como profundamente estratificada (heteroglóssica) e
ções dialógicas em sentido amplo, conforme çli§cutimos no capítulo atravessada pelos contínuos embates entre essas vozes - a infinda
heteroglossia dialogizada.
dois. Assim, o Círculo não se propõe reci11~!- a questão. do dizer à
esfera das relações interindividuais (com_() pres.s1Jpõe, por exerrrpl()_,_ Esta pode ser caracterizada como uma espécie de guerra de
uma abordagem etnometodológica) ou à esfera das relações sociais discursos, em que estão em permanente tensão forças centrípetas
(centralizadoras, monologizadoras, que tentam apagar ou submeter 'provir'), com o qual se relacionam palavras como genitor, ...,...;,.......,,,~~~;

a heteroglossia) e forças centrífugas (que resistem à monologização e Por curiosidade, vale registrar que a palavra germâni-
multiplicam a heteroglossia). (criança) remonta àquela mesma base etimológica.

'~ Os enunciados emergem nesse caldo heteroglóssico e nos pon- Como se vê, esse segmento vocabular se desenvolve a partir
u
tos de tensão entre essas forças. Têm uma face ~erbalJo dito)e uma da semântica do processo de gerar (procriar) e dos produtos da
face não verbal (o presumido - que amarra a significação do enun- geração (da procriação). A utilização do termo gênero para desig-
ciado ao horizonte ~ocial amplo, ao aquém da estrutura). nar tipos de textos é uma extensão da noção de estirpe (linhagem)
Os enunciados manifestam-se fundamentalmente como uma para o mundo dos objetos literários e retóricos. Assim como as
tomada de posição axiológica, como uma resposta ao já dito. Sua pessoas podem ser reunidas em linhagens por consanguinidade,
significação comporta sempre esse estrato valorativo. Ela, portanto, o mesmo se pode fazer com os textos que têm certas característi-
não é dada apenas pelo verbal (pela estrutura), mas também pela cas ou propriedades comuns. A noção de gênero serve, portanto,
correlação entre o verbal e os horizontes sociais de valor. como uma unidade de classificação: reunir entes diferentes com
base em traços comuns.
Por outro lado, ao ser dito, o enunciado espera uma resposta.
E, ao mesmo tempo, por ser heterogeneamente constituído (o enun- Parece que Platão foi o primeiro a falar de gêneros quando, no
ciado de um contém enunciados ou fragmentos de enunciados de livro IIl da República, divide a mimese (isto é, a representação lite-
outrem), está atravessado por uma dialogização interna (a bivoca- rária da vida) em três modalidades: a lírica, a épica e a dramática.
lização - nome que recobre os processos pelos quais mais de uma Aristóteles elaborou, na sequência, dois trabalhos importantes de
voz e mais de um acento avaliativo ressoam no mesmo enunciado). sistematização dos gêneros: na Arte retórica, propôs e estudou três
gêneros retóricos (o deliberativo, o judiciário e o epidítico); e, na
Arte poética, buscou tratar da produção poética em si mesma e de
seus diversos gêneros, explorando extensamente as propriedades da
ÜS GÊNEROS DO DISCURSO
tragédia e da epopéia (e, segundo se acredita, da comédia no livro li,
totalmente perdido). Esses dois trabalhos de Aristóteles foram refe-
O atual uso inflacionado no Brasil - em especial no discurso
rências durante séculos na discussão dos gêneros.
pedagógico posterior à reforma do ensino de 1996- da expressão
gêneros do discurso, tendo o texto de Bakhtin como referência, é o É interessante observar que, na longa história da teoria dos gê-
que nos motiva a discutir em mais detalhes essa questão. Interessa- neros literários e retóricos, estes foram interpretados muito mais na
nos, particularmente, expor à crítica certa cristalização do conceito perspectiva dos produtos do que na dos processos (muito embora
em sua transposição pedagógica. - destaque-se - Aristóteles não separasse as formas de suas fun-
ções e das respectivas atividades sociais em que ocorriam).
Não será demais começar por uma breve referência etimológica. A
palavra gênero remonta à base indoeuropéia *gen- que significa 'gerar', O foco de atenção eram as propriedades formais. Houve, in-
'produzir'. Em latim, relaciona-se com esta base o substantivo genus, clusive, em vários momentos, uma forte propensão reificadora e,
generis (significando 'linhagem', 'estirpe', 'raça', 'povo', 'nação') e o ver- por consequência, normativa: as características formais dos gêneros
bo gigno, genui, genitum, gignere (significando 'gerar', 'criar', 'produzir', foram tomadas como propriedades fixas, como padrões inflexíveis.
Talvez aqui esteja uma das razões para certo abandono teoria Na uma extensa discussão sobre o conceito de
dos gêneros, principalmente a partir crítica do romantismo à enunciado, como unidade da comunicação socioverbal, em contraste
estética clássica. com o de sentença, como unidade da língua entendida como sistema
Fizeram parte do processo de construção da estética romântica gramatical abstrato. Bakhtin está, nesta segunda parte, dialogando
o questionamento do modelo do teatro clássico (o chamado modelo criticamente (sem negar-lhe relevância) com a tradição dos estudos
das três unidades: espaço, tempo e personagem) e a percepção do linguísticos que se caracteriza por privilegiar o estudo sistêmico
anacronismo da epopéia clássica. Nesse sentido, a estética romântica (imanente) da linguagem verbal e ignorar ou simplificar a realidade
pôs em xeque dois dos mais cultuados gêneros da teoria clássica. Ao linguística enquanto interação social, enquanto práticas sociais de
linguagem. E defende novamente a necessidade de constituir duas
mesmo tempo, vivia-se o desenvolvimento do romance, gênero para
disciplinas - metodologicamente separadas, mas organicamente
o qual as teorias tradicionais não forneciam qualquer subsídio analí-
combinadas - para o estudo da linguagem:
tico e que é ainda hoje motivo de muita polêmica. Pode-se dizer que
o romantismo abalou profundamente a teoria clássica dos gêneros e Mas estes dois pontos de vista sobre o mesmo fenômeno linguístico
pôs o tema gêneros numa permanente crise. específico não deveriam ser inacessíveis um ao outro e não deveriam
simplesmente ser substituídos um pelo outro mecanicamente. Eles
Em contraste com essa crítica, não deixa de ser surpreendente o deveriam se combinar organicamente (mantendo, contudo, uma dis-
uso inflacionado do termo nos últimos anos. A principal referência des- tinção metodológica muito bem definida entre eles) com base na uni-
sa explosão tem sido o texto O problema dos gêneros do discurso, escrito dade real do fenômeno linguístico.(. .. )
por Bakhtin possivelmente em 1952/1953. Trata-se de um texto inaca-
Parece-nos que um estudo da natureza do enunciado e dos gê-
bado, encontrado entre os papéis do autor e publicado na Rússia pela
neros do discurso é de fundamental importância para superar aquelas
primeira vez numa coletânea de material de seus arquivos em 1979.
noções simplistas sobre a vida do dizer, sobre o assim chamado fluxo
É claramente um fragmento de texto, o que leva os estudiosos da fala, sobre a comunicação, e assim por diante- idéias que são ain-
a afirmar tratar-se provavelmente da parte inicial de um livro a que da correntes nos nossos estudos linguísticos. Além disso, um estudo do
o autor pretendia se dedicar, retomando com mais detalhes questões enunciado como a unidade real da comunicação verbal tornará também
levantadas brevemente naqueles textos do Círculo da segunda meta- possível compreender mais adequadamente a natureza das unidades da
de da década de 1920. língua (como um sistema): as palavras e as sentenças. (p. 66-67)
Bakhtin está discutindo, neste manuscrito, caminhos para um es- Poderíamos nos perguntar, neste ponto, sobre o que diferencia
tudo da linguagem como atividade sociointeracional e aponta algumas a teoria dos gêneros do Círculo de Bakhtin das teorias tradicionais,
características da unidade deste estudo (o enunciado) em contraste inclusive para entendermos criticamente a apropriação pedagógica
com a unidade tradicional dos estudos linguísticos (a sentença). epidêmica de seu conceitual nos últimos anos.
Este fragmento de texto está dividido em duas partes. Na pri- Uma característica daquela teoria é que, diferentemente de outras,
meira, faz-se uma introdução geral do tema, conceituando-se gêne- ela não pensa os gêneros em si (muito embora seja esta a perspectiva
ro do discurso, distinguindo-se gêneros primários de secundários e dominante na apropriação pedagógica do conceito), isto é, como con-
correlacionando-se estilo e gênero. juntos de artefatos que partilham determinadas propriedades formais.
Qsgêneros não são enfocados apenas pelo viés estátiçp do l{IQdu- humana. Falar não é, portanto, apenas atualizar um código gramati-
to (das formas), mas principalmente pelo viés dinâmiço cia pmduçãuo. cal num vazio, mas moldar o nosso dizer às formas de um gênero no
Isso significa dizer que a teoria do Círculo assevera axiomaticamente interior de uma atividade.
uma e~treita correlação entre os tipos de enunciados(gêneros) e s11as
É com esse postulado da correlação intrínseca entre esferas de
!~!!çS)es na interação sociover[>al;centre os tipos e o que fazemos C()lJl
atividade e formas de dizer que Bakhtin abre certa perspectiva para
eles i11teljgr de uma cl~t~I]Jlinada ativig~d~ social._
estudos do dizer e do agir, do discurso e da atividade, que permite o
O ponto de partida de Bakhtin é a estipulação de um vínculo refinamento de nossa percepção da heterogeneidade e complexidade
orgânico entre a utilização da linguagem e a atividade humana. Para das práticas de linguagem e das atividades humanas.
ele, todas as esferas da atividade humana estão sempre relacionadas
Bakhtin conceitua gêneros do discurso como os tipos relativa-
com a utilização da linguagem. E essa utilização efetua-se em forma
mente estáveis de enunciados que se elaboram no interior de cada
de enunciados que emanam de integrantes duma ou doutra esfera
esfera da atividade humana. Face aos enfoques tradicionais da ques-
da atividade humana.
tão dos gêneros que privilegiavam as formas em si e chegavam a ope-
Assim, se queremos estudar o dizer, temos sempre de nos reme- rar normativamente sobre sua reificação, algumas observações são
ter a uma ou outra esfera da atividade humana, porque não falamos aqui indispensáveis. Ao dizer que os tipos são relativamente estáveis,
no vazio, não produzimos enunciados fora das múltiplas e variadas Bakhtin está dando relevo, de um lado, à historicidade dos gêneros; e,
esferas do agir humano. Nossos enunciados (orais ou escritos) têm~ de outro, à necessária imprecisão de suas características e fronteiras.
ao contrário? conteúdo temático, organização composicional e estilo
Dar relevo à historicidade significa chamar a atenção para o fato de
próprios correlacionados às condições específicas e às finalidades de os tipos não serem definidos de uma vez para sempre. Eles não são ape-
;;d;~~fera de atividad(:.o nas agregados de propriedades sincrônicas fixas, mas comportam contí-
Em outros termos, o que é dito (o todo do enunciado) está nuas transformações, são maleáveis e plásticos, precisamente porque as
sempre relacionado ao tipo de atividade em que os participantes atividades humanas são dinâmicas, e estão em contínua mutação.
estão envolvidos. Do mesmo modo, se queremos estudar qualquer Nesse sentido, as formas relativamente estáveis do dizer no
das inúmeras atividades humanas, temos de nos ocupar dos tipos interior de uma atividade qualquer têm de ser abertas à contínua
de dizer (dos gêneros do discurso) que emergem, se estabilizam e remodelagem; têm de ser capazes de responder ao novo e à mudan-
evoluem no interior daquela atividade, porque eles constituem parte ça. O repertório de gêneros de cada esfera da atividade humana vai
intrínseca da mesma. diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se
desenvolve e fica mais complexa.
~<:~.:.!~~~~' C:l<l~() ~e, para Bakhtin, g~neros do discurso e ati-.
vidades são mutuamente constitutivos._g_rp. outr:~~.E~~~~:;_,~pres­ Vale a pena, neste ponto, citar o próprio Bakhtin quando dis-
s~p_()~to básico da elaboração de Ba_khtin é que o agir humano não se cute a questão dos gêneros literários, em Problemas da poética de
dá independentemen~e da interação; nem o dizer fora do agir. Numa _Dostoíevskí (p. 106):
síntese, podemos afirmar que, nesta teoria, estipula-se que falamos
Um gênero literário, por sua própria natureza, reflete as tendências
por meio de gêneros no interior de determinada esfera da atividade mais estáveis, "eternas", do desenvolvimento da literatura. Estão sem-
pre preservados num gênero os elementos imperecíveis da arcaica. É É claro que essa nova perspectiva traz uma série de dificulda-
bem verdade que esses elementos arcaicos só são preservados nele des para a análise que precisarão ser adequadamente enfrentadas.
graças a seu constante rejuvenescimento, isto é, sua atualização. Um O próprio Bakhtin diz (p. 61), reconhecendo essas dificuldades: "A
gênero é e não é sempre o mesmo, é sempre novo e velho simultanea- extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso e a consequente
mente. O gênero renasce e se renova em cada etapa do desenvolvi-
dificuldade em determinar o caráter genérico do enunciado não de-
mento da literatura e em cada obra individual de certo gênero. É isso
que constitui a vida do gênero. Assim, mesmo os elementos arcaicos
vem ser minimizadas".
preservados num gênero não estão mortos, mas sempre vivos; isto é, Contudo, ele não se propõe fixar o que se move, estancar o que
os elementos arcaicos são capazes de se renovar continuamente. Um flui, nem estabelecer limites claros para aquilo que é necessariamente
gênero vive no presente, mas sempre tem a memória do seu passado,
impreciso, já que intrinsecamente vinculado à contingência das ativi-
das suas origens. O gênero é um representante da memória criativa
dades humanas. A imprecisão dos limites e fronteiras se reforça ainda
no processo do desenvolvimento literário. Precisamente por isso, o
gênero é capaz de garantir a unidade e a ininterrupta continuidade de mais, no texto de Bakhtin, pelo destaque que ele dá, por exemplo, ao
seu desenvolvimento. fato de que os diferentes gêneros se hibridizam continuamente.
Isso tudo, no entanto, face a certas recorrências de elementos,
Desse modo, Bakhtin articula uma compreensão dos gêneros
eventos e ações no interior de cada esfera da atividade, não impede
que combina estabilidade e mudança; reiteração (à medida que as-
que se reconheçam similaridades e que se gerem tipos relativamente
pectos da atividade recorrem) e abertura para o novo (à medida que
estáveis de enunciados. De certo modo, a dinâmica da tipificação é
aspectos da atividade mudam).
um processo socialmente construído de gerar significado, baseado
Ele lembra que há gêneros bastante estandardizados como cer- no reconhecimento de similaridades e analogias.
tos tipos de documentos oficiais, ordens militares, cumprimentos
No fundo, a idéia da relativa estabilidade leva Bakhtin a an-
e felicitações sociais. Contudo, mesmo estes admitem mudanças, tecipar toda uma discussão que se fará posteriormente na teoria
ou seja, estão abertos à adequação às condições concretas de uso. social de que as atividades humanas não são nem totalmente pre-
Bakhtin salienta que esses gêneros altamente estandardizados acei- visíveis por modelos pré-dados, nem totalmente casuais. As ativi-
tam variações, mesmo que ligeiras, de matizes na entonação expres- dades conhecem recorrência, mas também têm dimensões novas
siva; ou sobre eles podem intervir, por exemplo, o jogo das inflexões, em cada contingência. Para compreendê-las (e para envolver-se
isto é, sua reacentuação pela mudança de esfera de atividade ou sua nelas de modo significativo), é fundamental estabelecer contínuas
hibridização (a mistura de gêneros pertencentes a esferas diferentes inter-relações entre o que recorre e a singularidade; entre o dado
ou à mesma esfera). e o novo; entre o arquivo e o acontecimento (evento); entre a me-
mória e o momento.
Caracterizando gênero pela estabilidade relativa (admitindo,
portanto, sua contínua mobilidade e mutabilidade), Bakhtin lança Daí decorre outro aspecto importante dos gêneros do discurso:
as bases de uma teoria que abandona (por reconhecer sua impos- como tipos relativamente estáveis do dizer no interior de uma esfera
sibilidade) a tarefa tradicional de recortar tipos bem demarcados; da atividade humana, eles cump_!~~.~I1-ªisJ:>~I1s~yeis funções ~_ocig:­
de estabelecer uma taxonomia rígida baseada em critérios formais coçrnitivas. Pela sua estabilidade, eles são elementos
«;~..Q:,,.~,~-,"'-~·~·~---~··-••-------~---~--•-~•~--·~,,,,~.ww,w~ ~ ---
organizadores
---··--•--·~···"--'-••·---~---.~--·- '-

puramente sincrônicos. das ativi~aª-e~ __~;J?_()r_~sso, ()Iientam nossa participação e111 detei1lli-
nada esfera de atividade (eles balizam nosso entendimentodasações
mos, meios de conhecimento situado. São modos e meios sócio-his-
dos outros, assim comosão referência para nossas própriasações):
tóricos de visualização e conceitualização da realidade ("O processo
Ao gerarem expectativas de como serão as ações, eles nos orien- de ver e conceitualizar a realidade não deve ser separado do processo
tam diante do novo no interior dessas mesmas ações: auxiliam-nos de corporificá-lo em formas de um gênero particular", p. 134) que,
a tornar o novo familiar pelo reconhecimento de similaridades e, ao incorporados pelas pessoas, funcionam como modos e meios de co-
mesmo tempo, por não terem fronteiras rígidas e precisas, permitem nhecer a realidade e nela orientar-se ("Pode-se dizer que a consciên-
que adaptemos sua forma às novas circunstâncias. cia humana dispõe de uma série de gêneros internalizados para ver e
conceitualizar a realidade", p .134).
Nesse aspecto particular, é interessante lembrar que Medvedev,
em seu livro O método formal nos estudos literários (de 1928), de- Por outro lado, novos modos de ver e conceitualizar a realidade
lineia (cf. o capítulo 7) vários aspectos da discussão do Círculo so- gerarão novos gêneros ou modificações nos gêneros existentes que,
bre gênero. Embora tratando especificamente dos gêneros literários, por seu turno, nos permitirão ver a realidade de outro modo:
Medvedev levanta questões quanto à relação gêneros/vida social/cog- Novos modos de representação nos forçam a ver novos aspectos da
nição que podem e devem ser estendidas ao estudo dos gêneros em realidade visível, mas esses novos aspectos não conseguem clarear
outras esferas da atividade humana. nosso horizonte e entrar nele significativamente se estiverem faltando
os novos meios necessários para consolidá-los. Um é inseparável do
Medvedev inicia seu argumento, criticando o pressuposto de outro (p. 134).
que os gêneros são apenas formas. Diz ele (p. 129):
Tanto para Medvedev quanto para Bakhtin, envolver-se em
Os formalistas geralmente definem gênero como determinado con- determinada esfera da atividade implica desenvolver também um
junto específico e constante de dispositivos com uma dominante
domínio dos gêneros que lhe são peculiares. Em outr:él?_J2alayras,
definida. Como os dispositivos básicos já tinham sido previamente
<:t.rr:e_I1Q~L QS modos -~Qciais de fazer é também aprender os modos
definidos, o gênero foi mecanicamente compreendido como sendo
composto desses dispositivos. Dessa forma, os formalistas não apre-
sociais de dizer.
enderam o significado real de gênero. Nesse sentido, Bakhtin chama a atenção para o fato de que são
muitas as pessoas que, mesmo dominando muito bem a língua, sen-
E qual seria o "significado real do gênero"? Precisamente a cor-
tem-se logo desamparadas em certas esferas da comunicação verbal,
relação entre formas e atividades. O gênero não deve ser abstraído da
precisamente pelo fato de não dominarem, na prática, as formas do
esfera que o cria e usa; isto é, abstraído da atividade, de suas coorde-
gênero de dada esfera. Uma pessoa que domina os modos de dizer
nadas de tempo-espaço, das relações entre os interlocutores. É nesse
numa esfera da comunicação cultural (sabe, por exemplo, dar uma
sentido que Medvedev assevera que o enunciado que se materializa
aula, travar uma discussão científica, elaborar um tratado filosófico,
no interior de um gênero é, antes de tudo, um ato sócio-histórico
escrever um poema), pode se sentir pouco à vontade em outra: cala-
("Ele ocupa uma posição entre pessoas socialmente organizadas de
se ou então intervém de maneira muito desajeitada numa conversa
alguma forma", p. 131).
social ou numa assembléia de sindicato.
Desse modo, os gêneros constituem agregados de meios de
Segundo Bakhtin, isto ocorre não por causa de uma pobreza de
orientação coletiva à frente da realidade; constituem, em outros ter-
domínio gramatical ou de vocabulário, mas de uma inexperiência no
domínio do repertório dos gêneros da conversa social ou da prática que o são as réplicas no diálogo cotidiano ou cartas íntimas (todos
sindical; de uma falta de conhecimento vivido do que é o do têm realmente uma natureza comum), mas diferentemente destas, o
enunciado nessas circunstâncias. romance é um gênero secundário (complexo).

Ele afirma, então, que adequamos sempre nosso dizer às formas Além de destacar essa perspectiva não dicotômica, mas de inter-
típicas dos enunciados numa determinada atividade (falamos e escre- relação entre os dois grandes tipos de gêneros, é importante chamar
vemos em gêneros; eles orientam nosso dizer) e aprendemos a dizer a atenção para o fato de que, em muitas de nossas atividades, há uma
assimilando essas formas típicas no interior da mesma atividade. passagem constante do plano secundário para o primário e deste para
Por fim, é necessário lembrar que Bakhtin, para iniciar o ba- aquele. Lembremos, por exemplo, de uma conferência no contexto
lizamento do estudo dos gêneros, propõe uma primeira grande da educação acadêmica. Trata-se de um gênero secundário bastante
classificação deles em primários e secundários. Os primeiros são os elaborado no correr da história das atividades acadêmicas, que tem
gêneros da vida cotidiana (em geral, embora não exclusivamente, certas formas relativamente estáveis de acontecer, mas que se mescla,
orais). Constituem-se e se desenvolvem em circunstâncias de uma durante sua ocorrência, com gêneros primários de vários tipos, como,
comunicação verbal espontânea e estão em relação direta com seu por exemplo, quando o expositor conta uma piada ou faz uma réplica
contexto mais imediato. Trata-se dos gêneros da conversa familiar, a uma observação espontânea de um ouvinte, e assim por diante.
das narrativas espontâneas, das atividades efêmeras do cotidiano. Da mesma forma, é interessante observar que a atividade de um
Os segundos aparecem em circunstâncias de uma comunicação camelô anunciando seu produto, que poderíamos classificar como
cultural mais elaborada (em geral, mas não necessariamente, escri- gênero primário por estar diretamente relacionada com a comuni-
ta). São os gêneros que se geram e se usam nas atividades científicas, cação prática e espontânea do cotidiano, tem muitas vezes um ar
artísticas, políticas, filosóficas, jurídicas, religiosas, de educação for- de conferência, o que pode servir de exemplo para o fato de que os
mal e assim por diante. gêneros secundários também influenciam os primários.
É importante destacar, porém, que Bakhtin não entende esses dois Em síntese, cabe dizer que talvez a apropriação pedagógica da
tipos de gêneros como duas realidades independentes, mas como inter- noção de gênero do discurso de Bakhtin tivesse sido mais enriquece-
dependentes. Nesse sentido, vale reproduzir suas palavras (p. 62): clara do que cristalizadora, se suas reflexões tivessem sido entendidas
Durante o processo de sua formação, eles absorvem e digerem vá- pelo seu caráter inerentemente dinâmico e não tivesse se resumido a
rios gêneros primários (simples) que tomaram forma na comunica- submetê-las a uma leitura apenas formal dos gêneros.
ção verbal imediata. Esses gêneros primários se alteram e assumem
um caráter especial quando entram nos mais complexos. Perdem sua
relação imediata com a situação concreta e com os enunciados con-
ESTILO
cretos dos outros. Apenas no plano do conteúdo do romance é que,
por exemplo, réplicas de um diálogo cotidiano ou cartas encontradas
Como mencionamos acima, Bakhtin, ao discutir o conceito de
nele retêm sua forma e sua significação cotidiana. Elas participam da
realidade concreta somente por meio do romance como um todo, isto gênero do discurso, estabeleceu uma vinculação entre gênero e estilo.
é, como um evento artístico-literário e não como um evento da vida É interessante, então, fazermos um breve comentário sobre algumas
diária. O romance como um todo é um enunciado do mesmo modo das discussões sobre estilo que encontramos nos textos do Círculo,
em especial considerando o quase total esquecimento dos estudos gicas. De um temos, então, uma_~e~odologia que busca se
estilísticos no contexto dos estudos linguísticos mais recentes. beneficiar do rigor formal das análises estruturais (achegando-se aos
fenômenos de estilo, tertdo como pano de fundo as potencialidades
Não é difícil entender os porquês da marginalização desses es-
do sistema); e, de ou_~r_o,"~ma 1ll~~<:)~<:Jl<:Jgi~ _tllais interpretativa que,
tudos na segunda metade do século XX, se lembrarmos o domínio combinando intuição e erudição, faz um rastreamento quase filoló-
hegemônico na linguística da perspectiva estrutural sincrônica. Nela
g~~-~cl assumido como absolutamente indiyidual. Se, no primeiro
não há muito espaço - pelas próprias opções de saída (isto é, o caso, o quadro de referência é o apriorismo do sistema; no segundo,
recorte saussuriano entre Zangue e parole e suas diferentes configura- é a ação criativa puramente individual do falante (estando subjacen-
ções posteriores)- para a ação do falante. te aqui a recusa dos apriorismos racionalistas).
O pensamento sistêmico, em seus vários modelos, de certa for- Qualquer que seja o polo, a estilística está sempre atravessada,
ma, exclui o sujeito falante como elemento teórico pertinente; ou, por força de seu recorte, pelo eixo da individualidade: a discussão
para aproveitar por extensão a metáfora do gene egoísta da biologia dos fenômenos estilísticos se faz pelo viés do falante que usa ou cria
(Dawkins), transforma-o no servo da estrutura egoísta (a langue). a língua. Por outra parte e por consequência, é difícil os estudos
A estilística - ao se definir como o estudo do estilo e ao en- estilísticos fugirem de um pressuposto geral de que a atividade esti-
tender, em boa parte de suas formulações, o estilo como o espaço lística do falante envolve gestos de escolha, de seleção, seja entre as
do uso individual da língua (na esteira do pensamento saussuriano); alternativas fornecidas pelo sistema como tal, seja entre diferentes
ou como o espaço da expressão subjetiva criativa (na perspectiva do possibilidades de criação expressiva.
idealismo linguístico) - só poderia ficar mesmo à margem da trilha É interessante observar que nuança~ e refinamentos serão pro-
hegemônica da linguística oficial e, por consequência, receber até a gressivamente introduzidos no escopo da escolha. Assim, a elabora-
pecha de estudo sem efetiva dimensão científica. Restou-lhe, de certo ção do conceito de norma (que é, grosso modo, um processo teórico
modo, contentar-se em ser colocada como a herdeira da velha retó- de estratificação da noção de langue) permitiu construir-se uma es-
rica e em se ocupar com aspectos linguísticos de textos literários em tilística que vai entender estilo como desvio, isto é, o falante escolhe
que, por suposição, está mais visível a individualização da língua. escapar do "normal".

Delimitando como objeto o estilo, entendido, grosso modo, Ainda mais: os estudos da variação linguística- ao recobrirem
como o arranjo do dizer pelo falante, a estilística oscilou, desde seus outras dimensões da estratificação da linguagem: aquelas condicio-
primeiros formuladores, entre dois pólos: ou o estilo é entendido nadas por critérios geográficos, sociais e/ou contextuais- apontam
- na esteira do trabalho de Charles Bally - como a atualização in- para outro espaço em que se pode operar escolhas e para as muitas
dividual do sistema (e, nesse sentido, ele já está contido na langue); variáveis que interferem nesses gestos estilísticos.
ou o estilo é - na esteira do idealismo linguístico (Croce, Vossler, Se, de um lado, pela sempre crescente percepção da complexa
Spitzer)- a expressão criativa do psiquismo individuaL estratificação da linguagem, a escolha estilística vai deixando de ser
Se no primeiro polo, o falante é devedor das propriedades ge- redutível a um único espaço (o do sistema); de outro, o imbrica-
rais do sistema; no segundo, o indivíduo, ao manipular os elementos menta, percebido por caminhos teóricos cada vez mais densos, de
linguísticos, é devedor de sua sensibilidade e criatividade psicoló- variáveis geográficas, sociais, contextuais, históricas com variáveis
linguísticas vai esgarçando o ~~idealista (a quimera?) de re- tersecções inúmeras vozes sociais que participam da constitui-
duzir a expressão à atividade puramente individual. ção contínua do psiquismo e nele ressoam e se entrecruzam numa
espécie de moto perpétuo dialógico (cf. Evans).
Podemos afirmar que Bakhtin e seu Círculo estão entre os auto-
res que melhor perceberam essa questão de fundo. Já na década de É por esse caminho que poderemos entender a argumentação
1920, eles criticavam o idealismo linguístico por querer constituir o daqueles autores segundo a qual a elaboração estilística da enuncia-
psiquismo individual como a fonte de toda a língua, mostrando que ção é uma atividade de seleção, de escolha individual, mas de natu-
sem uma orientação social de caráter apreciativo (axioló~ico) Il~~CJQ~ reza sociológica, já que o estilo se constrói a partir de uma orientação
atividade mental. social de caráter apreciativo: as seleções e escolhas são, primordial-
mente, tomadas de posição axiológicas frente à realidade linguística,
Ao mesmo tempo, mostravam que o co~ceito de sistema abs-
incluindo o vasto universo de vozes sociais.
trato de formas normativas (a Zangue saussuriana), se fecundo para
certos fins, era insuficiente para dar conta da enunciação e da signi- Assim, se em Marxismo e filosofia da linguagem, Voloshinov
ficação linguística, realidades eminentemente sociais. argumenta que a elaboração estilística da enunciação é de natureza
sociológica, é em textos como O discurso no romance e O problema
Em decorrência dessas críticas e da construção de outro modo
dos gêneros do discurso (de Bakhtin) e As fronteiras entre a poética
de conceber a linguagem (nem só sistema abstrato, nem só expressão
e a linguístíca e A estrutura do enunciado (de Voloshinov) que essa
individual), Bakhtin e seu Círculo discutem extensamente, em dife-
questão adquire contornos mais precisos.
rentes trabalhos, temas ligados à estilística.
Ao articular sua teoria do romance, por exemplo, Bakhtin mos-
Isso, à primeira vista, poderia parecer paradoxal em estudiosos
tra como, diante desse gênero literário, a estilística tradicional- ao
que enfatizam as dimensões sociointeracionais da linguagem. Con-
compreender o estilo, "no espírito de Saussure: como uma indivi-
tudo, embora pensadores de persuasão sociológica, escapam, como
dualização da língua geral (no sentido de um sistema de normas
vimos no capítulo anterior, de um determinismo absoluto do social.
linguísticas gerais)" - (O discurso no romance, p. 264); ou como
A riqueza de seu conceitual está em nos obrigar a pensar não por
"expressão direta e espontânea da individualidade do autor" (p. 267)
dicotomias (o individual X o social) ou pelo hiperdimensionamento
-vive insuperáveis dilemas exatamente porque ignora a estratifica-
de um dos pólos, mas por uma intrincada dinâmica em que todo
ção infinita de cada uma das línguas humanas (a chamada hetero-
falante, sendo uma realidade sociossemiótica, é ao mesmo tempo
glossia); e a respectiva (e também infinita) dialogização que atravessa
único, singular, e social de ponta a ponta.
aquela estratificação.
Não há contradição nisso. E a chave que lhes permite unir, no
É essa realidade multiforme e complexa que constitui a premissa
falante, a dimensão de ser único com a dimensão de ser inteiramente
do gênero romanesco; e "qualquer estudo substancial sobre a vida
social é, como destacamos anteriormente, a forma como encaram
estilística da palavra deve começar deste fato fundamental" (p. 296).
a linguagem. Ao assumirem a linguagem como uma realidade so-
cial infinitamente. estratificada, abrem espaço para o individual (e, Nesse sJntido,
portanto, para estudos estilísticos). A singularidade vai poder se A consciência linguística socioideológica concreta, quando se torna
materializar nos incontáveis e mesmo imprevisíveis contatos e in- criativa- isto é, quando ela se torna ativa como literatura- se des-
cobre já cercada pela heteroglossia e, de modo algum, por uma língua te como fundamentalmente heterogênea. Desse modo, o tema do
única e unitária, inviolável e incontestável. A consciência hnguística discurso reportado (e da bivocalização) emerge naturalmente dos
literariamente ativa em qualquer tempo e lugar (isto é, em todas as
destaques do Círculo à estratificação socioaxiológica da linguagem, à
épocas literárias historicamente acessíveis a nós) encontra uma plura-
lidade de "línguas" e não uma língua. A consciência se acha inevitavel- heterogeneidade das vozes sociais (à heteroglossia) e a sua dialogiza-
mente face à necessidade de ter de escolher uma dentre elas (p. 295). ção (à heteroglossia dialogizada), também aos efeitos disso "no pro-
cesso de formação ideológica do indivíduo" (p. 342) -entendido
Essa noção de escolha no espectro da infinita estratificação so- basicamente como um processo de absorção valorada da palavra de
cial da linguagem - que, em O discurso no romance, serve para outrem e "na representação artística da palavra de outrem" (p. 350),
sustentar a tese do autor de que a singularidade fundamental da es- em especial no discurso romanesco.
tilística romanesca está no tipo de combinação de linguagens sociais
Bakhtin, em O discurso no romance, se mostra particularmente
e de sua dialogização- volta nos outros textos citados, adquirindo,
fascinado pela onipresença, em forma aberta ou velada, da palavra
em cada um, novas nuanças.
de outrem "nos enunciados de um indivíduo social" (p. 354), desde
Em O problema dos gêneros do discurso, por exemplo, a estrati- a réplica do diálogo familiar até as grandes obras verboaxiológicas.
ficação social infinita da linguagem é cruzada pela noção de gênero No interior de cada enunciado nesta vasta realidade linguística,
do discurso e assim se estabelece um vínculo indissolúvel entre esta
Está se dando uma interação intensa e um embate entre a palavra de
nova categoria estratificante e estilo. Em A estrutura do enunciado, um e de outrem, um processo no qual elas se opõem mutuamente
Voloshinov faz um breve exercício de análise estilística do romance ou se interanimam dialogicamente. O enunciado assim concebido é
As almas mortas de Gogól a partir do efeito do contexto sobre as es- um elemento consideravelmente mais complexo e dinâmico do que
colhas de linguagem; ou, ainda, em As fronteiras entre a poética e a quando entendido como simplesmente uma coisa que articula a in-
tenção da pessoa que o pronuncia, caso em que se assume o enuncia-
linguística em que o mesmo Voloshinov discute extensamente o con-
do como um veículo direto, univocal, da expressão (p. 354).
ceito de 'estilo individual', contrapondo sua concepção sociológica
ao psicologismo de Croce-Vossler-Spitzer (parte II) e ao formalismo Ao mesmo tempo, Bakhtin notava que este fenômeno não tinha
de V V Vinogradov (parte III). sido ainda suficientemente estudado e apreciado em sua significa-
ção: "Não houve ainda nenhuma apreensão filosófica abrangente de
todas as ramificações deste fato" (p. 355), isto é, do fato de que um
DISCURSO REPORTADO dos principais temas do dizer humano é o próprio dizer.

Anteriormente, Voloshinov dedicara toda a terceira parte de seu


É compreensível que o fenômeno linguístico concreto mais livro à discussão do discurso reportado, deixando bem visíveis as
discutido nos textos de Bakhtin e Voloshinov seja precisamente o bases de compreensão deste fenômeno pelos membros do Círculo.
discurso reportado, isto é, a presença explícita da palavra de outrem
Uma das observações principais desse texto é aquela que diz (p.
nos enunciados.
144) ser o discurso reportado tanto uma enunciação na enunciação
Este interesse decorre da própria concepção de linguagem do como uma enunciação sobre outra enunciação. Em outras palavras,
Círculo, que enfoca a realidade linguística social e a de cada falan- para Voloshinov, o discurso reportado não se esgota na citação, mas
deve ser considerado como um ato que revela também uma apreen- posição que um discurso a ser reportado ocupa nessas hierarquias,
são valorada da palavra de outrem - o que nos remete novamente porque elas afetam as formas de transmissão admissíveis.
a uma das proposições básicas do Círculo sobre a linguagem, qual
seja, sua estratificação socioaxiológica. Aceita-se, por exemplo, atravessar um determinado discurso com
réplicas, comentários, polêmicas, isto é, admitem-se, na citação, os
Assim, reportar não é fundamentalmente reproduzir, repetir;
diversos tipos do estilo que ele chama (p. 150) de pictórico- aquele
é principalmente estabelecer uma relação ativa entre o discurso
cuja característica principal é atenuar os contornos exteriores nítidos
que reporta e o discurso reportado; uma interação dinâmica dessas
da palavra de outrem? Ou, para usar a terminologia de Bakhtin, o
duas dimensões.
discurso reportante toma o discurso reportado como palavra inter-
É essa relação que constitui, segundo Voloshinov (p. 148), o namente persuasiva? Ou só se aceita citá-lo mantendo a relativa in-
"objeto verdadeiro da pesquisa", porque o discurso reportante e o tegridade da voz alheia, isto é, só se admitem as diferentes variantes
reportado "só têm uma existência real, só se formam e vivem através do estilo que Voloshinov chama de linear - aquele cuja tendência
dessa inter-relação, e não de maneira isolada". Ou, em outras pala- principal é criar contornos nítidos à volta do discurso citado; aquele
vras, entre os dois discursos estabelecem-se relações dialógicas e eles que toma o discurso reportado como palavra de autoridade?
se formam e vivem nessas relações.
Há indícios de mudança nas hierarquias sociais, visíveis, por
Assim, para Voloshinov, o erro dos pesquisadores que se ocu- exemplo, a partir da variação das formas de transmissão? Que efeitos
param com as formas de transmissão do discurso de outrem é ter de sentido decorrem da inversão das hierarquias (quando admitida)?
sistematicamente divorciado o discurso reportado de seu contexto
Um bom exemplo para fechar estas considerações são as dife-
de transmissão. Este contexto envolve não só as sequências verbais
rentes relações que nossa cultura mantém atualmente com o texto
que incluem o enunciado de outrem, mas também os fins específicos
bíblico. Enquanto no período medieval, este texto foi tomado como
com os quais se dá a transmissão (narrativa, processos legais, polêmi-
palavra de autoridade, hoje há uma total ambivalência em relação a
cas científicas etc.); e, além disso, envolvem também a(s) terceira(s)
ele. No contexto de organizações religiosas cristãs fundamentalistas,
pessoa(s), isto é, a(s) pessoa(s) a quem se destinam as sequências bivo-
o texto bíblico, assumido como a palavra de Deus revelada, ocupa
calizadas, que condicionam, efetiva ou virtualmente, ajustes no dizer.
o ponto máximo de uma hierarquia positiva de valor. Nesse caso,
Voloshinov deixa claro que, na análise, não interessa apenas ob- não se admite senão reportá-lo monoliticamente (em estilo linear,
servar esses elementos em si e reduzidos ao evento empírico de sua portanto), preservando sua integridade.
ocorrência, mas principalmente tomar esse evento como indicador de
Em outros contextos sociais, porém, o texto bíblico é recebi-
tendências básicas da recepção ativa do discurso de outrem em deter-
do como um dentre muitos textos literários. Como tal, ele também
minada formação social. Caberia, por exemplo, analisar nessa pers-
----------=~-------------···-------
está, normalmente, numa hierarquia positiva de valor (como parte
pectiva as diferentes atitudes sociais frente aos mais div~~?52_s_~iscursos
~~~~o elas se expressam-~~~-~-;J;~de- repo~t.;";~~ discur~~s.-·-·- do patrimônio literário da cultura), mas não mais tomado como pa-
lavra de autoridade. Por isso, admite as mais diversas bivocalizações
Voloshinov lembra, nesse sentido, que há verdadeiras hierar- e ocorre em citações diretas ou em paródias; em citações ironizadas
quias sociais de valor e que é importante levar sempre em conta a ou estilizadas; e assim por diante.
Nesse sentido, e se quisermos apreender numa perspectiva de
grande temporalidade a contribuição do pensamento do Círculo de
Bakhtin para essa temática, é preciso entendê-la tanto como parte
Para concluir nosso percurso pela filosofia da linguagem do dos interesses intelectuais do século XX, quanto como parte de uma
Círculo de Bakhtin, é importante relembrar que essa filosofia está tradição intelectual que começou nos fins do XVIII.
centrada no pressuposto básico de que a realidade da linguagem é Estamos aproveitando, neste ponto, a distinção bakhtiniana en-
o fenômeno social da interação verbal, ou seja, a realidade da lin- tre uma perspectiva de pequena temporalidade e outra de grande tem-
guagem é a dinâmica da responsividade, das relações dialógicas em poralidade para a história do pensamento (cf. a questão discutida no
sentido amplo. texto Resposta a uma pergunta do Conselho Editorial da 'Novy Mir').

O eixo da responsividade assim posto abre um rico horizonte Ao propor um estudo de grande temporalidade, o que se quer
heurístico para discutir inúmeros temas do interesse da filosofia e é transcender um pouco a pequena temporalidade, a temporalidade
das ciências humanas e sociais, tais como as questões da identida- imediata e próxima das teorizações, e olhá-las como parte de uma
de, da subjetividade, da autoria, da intersubjetividade, da alteridade, reflexão maior que, embora dispersa, difusa, heterogênea e não ne-
das práticas discursivas em geral e da criação literária em especial. cessariamente contínua, se estende no tempo, isto é, não começa
com as teorizações de hoje, nem nelas se esgota.
São questões que estão profundamente imbricadas e que foram
centrais durante todo o século XX. Num certo sentido, pode-se dizer A interação e a linguagem na interação são fenômenos de alta
que foi o século XX que pôs essa temática definitivamente no centro complexidade por envolverem múltiplos fatores em múltiplas rela-
ções. Se alguns desses fatores e relações estão razoavelmente descri-
do palco, envolvendo o interesse e o trabalho dos mais diferentes
tos (como, por exemplo, certas pressões da cena enunciativa sobre o
pensadores. Ela está em formulações religiosas e éticas como em Mar-
que e como se pode dizer nela), boa parte escapa ainda de uma apre-
tin Buber e Émmanuel Lévinas; na psicologia social de George Mead;
ensão mais consistente (e aqui podemos citar, entre outros exemplos,
na teoria da cognição de Lev Vygotsky; na psicanálise de Jacques
o processo de aquisição da linguagem e os modos de interveniência
Lacan; e em várias correntes filosóficas, bastando lembrar o existen-
das formações do inconsciente no dizer e no agir dos interactantes).
cialismo, oujürgen Habermas, ou Paul Ricoeur.
É preciso, portanto, reconhecer, de início, que estamos ainda muito
Pode-se dizer também que o Círculo de Bakhtin ofereceu, com distantes de uma apreensão teoricamente integrada desses fenôme-
sua concepção de linguagem, uma contribuição bastante específica e nos que envolvem múltiplos fatores em múltiplas relações.
significativa àquele amplo movimento intelectual que problematiza Nesse sentido, a interação e a linguagem na interação continuam
a questão da intersubjetividade e seus temas correlatos. recobertas por aquilo que o filósofo Heidegger (Ensaios e conferên-
Essa grande questão não é, contudo, uma elaboração do sécu- cias, p. 54-55) chamava de duplo incontomdvel: não podemos, pela
lo XX. É preciso voltar ao final do século XVIII para encontrar as sua relevância para a compreensão das questões humanas, escapar
primeiras menções à relevância da relação eu-tu para fazer face a de estudá-las (não podemos contomd-las no sentido de nos desviar
questões filosóficas para além da tradicional relação eu-ele (isto é, da delas); e não dispomos de qualquer teoria capaz de contomd-las (no
relação sujeito-objeto). sentido de traçar uma linha teórica que as contenha).
constitutivo dos processos sociointeracionais e da construção do su-
jeito. O que merece especial destaque em Mead é a sua concepção da
Pode-se dizer que a interação passou a ser objeto de estudo cien- linguagem não como estrutura, mas como ação- ação intersubjeti-
tífico a partir do começo do século XX. Talvez se possa estabelecer a va que, como tal, se internaliza e se torna ação intrassubjetiva. Pro-
obra do pensador pragmatista norte-americano George Herbert Mead cesso semelhante defenderá Vygotsky para fundamentar sua teoria
(1863-1931) como uma espécie de marco fundacional desse empre- da cognição humana, isto é, a cognição vista como uma atividade
endimento que começa na psicologia social e cria uma tradição que que se dá primeiro na interação e é internalizada, trazendo para o
se estende para a sociologia e para a antropologia norte-americanas. A interior o movimento do exterior.
interação será tema básico da chamada etnometodologia (donde vão Essas intrigantes semelhanças axiomáticas que emergem em di-
emergir as diferentes vertentes da análise da conversa); e será tema bá- ferentes pontos do tempo e do espaço, muitas vezes sem que seus
sico da etnografia da comunicação e da sociolinguística interacional. autores cheguem a se conhecer, devem servir para nós de indicado-
Toda essa tradição nos tem mostrado, de um lado, como respon- res de caminhos heuristicamente produtivos, se entendermos que
demos constitutivamente às condições contextuais imediatas; e, de as semelhanças não são meras coincidências, mas desvelam pontos
outro, como práticas culturais recorrentes moldam nossas interações. cruciais para o desdobramento do trabalho teórico.

Se, pelas vicissitudes da vida acadêmica, essas duas grandes ver- Nesse sentido? parec~.quep(l área dos estudos da interação não
tentes pouco se encontraram no passado, é cada vez mais clara a ne- podemos fugir do axioma d~ que o intersubjetivo se toma intras-
cessidade de ir além do evento em si, mas sem perder sua dinâmica. ~~~j~~~V:?' isto é, de que o movimento externo se toma movimento
interno. A questão crucial é saber como se dá esse processo. Solu-
Há, por exemplo, o persistente problema da relação das dimen- ções integralmente deterministas não são satisfatórias. Parece que boa
sões do individual e das dimensões do social. Era já uma questão central parte dos teóricos interacionistas quer compreender a subjetividade
para George Mead, que almejava construir uma abordagem psicológica como emergindo do social, quer compreender a interação como con-
que fosse uma alternativa quer aos defensores da introspecção como dicionada por vários fatores, mas, ao mesmo tempo, não quer perder
único meio de acesso ao mundo interior, quer ao behaviorismo radi- nem as singularidades da subjetividade, nem o novo, o inusitado, o
cal de Watson, que recusava qualquer relevância ao mundo interior. A imprevisível, o inesperado dos eventos de interação. Ou seja, nem o
saída de Mead foi definir o self como uma realidade intrinsecamente primado do indivíduo, nem o determinismo absoluto da estrutura.
social que se constrói no processo de interação sociossimbólica.
George Mead, por exemplo, tentou fundamentar esse não-de-
Ele recusava abordagens psicológicas que tivessem como fun- terminismo por meio de duas grandes coordenadas. Primeiro, as-
damento o primado do indivíduo, na medida em que este, por ser já sumindo que o social nunca é um dado homogêneo, mas sempre
efeito da interação, não pode ser o ponto de partida das teorizações heterogêneo. O social contém uma multiplicidade daquilo que ele
e análises psicológicas. chama de "outros generalizados" (que poderíamos entender como
Seu foco era, portanto, a construção do sujeito como efeito da conjuntos de .~ç()e_s~r~PE~sentações, valpres_e atituc1es que circulam
interação. Não há, propriamente, nele um estudo específico da lin- numa determinada sociedade; ou, em outra terminologia, o conjun-
guagem na interação para além do reconhecimento do seu papel to dos pré-construídos sócio-históricos).
Desse modo, nenhum sujeito fica confinado nos limites de um nós, da compreensão e interpretação dessas palavras alheias (a 'her-
único "outro generalizado", mas emerge de relações simultâneas ou menêutica viva')" (p. 338), ou seja, o produto do meu processamen-
consecutivas com vários "outros generalizados", muitos deles opos- to do dizer, do interagir dos "outros generalizados".
tos entre si, contraditórios, conflitivos. Essa realidade sempre hete- Também aqui há o reconhecimento do papel constitutivo do
rogênea e cheia de contradições gera desequilíbrios e tensões que que os outros dizem de nós e o papel ativo do psiquismo no pro-
inviabilizam qualquer fechamento determinista mecânico dos pro- cessamento desse dizer. Embora não haja um detalhamento desse
cessos interacionais e de seus efeitos. processo psíquico - o que transcendia os interesses imediatos da-
Por outro lado, o caráter dinâmico (ativo e não-mecânico) do quele autor-, é importante deixar em destaque, para não perder de
mundo interior também restringe o determinismo, na medida em que, vista a complexidade do psíquico, o pressuposto de que o psiquismo
a partir da contínua polarização entre o "me" e o "eu" (nos termos de tem - mesmo imerso na dinâmica da interação e dela emergindo
Mead), geram-se respostas singulares e não totalmente previsíveis. - uma autonomia e uma ação própria.

Em suma, a heterogeneidade e a contradição são os motores da E acrescentemos: essa autonomia e ação própria se realizam
relação externo/interno e da dinâmica do interno. atravessadas também pela condição de seres desejantes, dimensão
trazida para o debate pelas vertentes psicanalíticas e não considera-
O "me" é o "eu social", isto é, o resultado da internalização do
da, no plano teórico, nem por Mead, nem por Bakhtin; e, aliás, tra-
conjunto de atitudes e dizeres dos outros em relação ao self (o que
dicionalmente desconsiderada pelos estudos interacionais em geral,
sou para os outros); o "eu" é a resposta ativa ao "me", isto é, o "eu" re-
quando não banalizada ou barbarizada.
sulta do processo intrapsíquico ativo pelo qual cada um se subjetiviza
(se singulariza) respondendo às estruturas semioticizadas do "me". Se detalhamos um pouco a perspectiva de George Mead, é por-
que ela parece conter alguns dos problemas fundamentais dos estu-
Em outras palavras, podemos dizer que na complexa viagem de
dos científicos que se realizarão adiante no século XX e que ainda
nossa individualização, somos instados a responder ao "eu social" in-
constituem, muitos deles, problemas não suficientemente equacio-
ternalizado, mas, tendo de lidar com a heterogeneidade e seus con-
nados. Vamos dar atenção aqui a dois pontos em particular.
flitos - cada resposta vai ter necessariamente um caráter específico,
portanto, imprevisível. Um primeiro diz respeito ao fato de que a linguagem, na intera-
ção, tem de ser tratada necessária e primordialmente como atividade
Formulação muito parecida encontramos em Bakhtin. Ao que
e não como estrutura. No entanto, permanece entre nós o problema
se saiba, Bakhtin não chegou a conhecer a obra de Mead. Novamen-
de como construir uma teoria que equacione estrutura e atividade;
te, as semelhanças não podem, porém, ser vistas como meras coin-
que case adequadamente, por exemplo, sentença e enunciado ou
cidências, na medida em que, no fundo, revelam problemas cruciais
sentença/enunciado/enunciação.
da área dos estudos da interação. Diz ele em O discurso romanesco:
"O vir a ser axiológico de um ser humano é o processo de assimilar Nesse caso, cabe perguntar: é suficiente pensar a atividade ver-
seletivamente as palavras alheias" (p. 341). Ou, em outra formula- bal na interação como apenas um processo de atualização do sistema
ção, "deve-se ter em conta também a importância psicológica em (como pressupõem tradicionalmente as linguísticas formais)? Ou as
nossas vidas do que os outros dizem sobre nós e a importância, para especificidades da atividade (as chamadas pressões da interação, o
uma linguística stricto sensu e a segunda, pelo enorme
caráter aparentemente teleológico da atividade verbal) se inscrevem
conjunto de fatores envolvidos, visualizada como objeto de um con-
na estrutura (como pressupõem as linguísticas
sórcio de disciplinas (para nos mantermos nas coordenadas heurísti-
pelo menos, as teses da Escola de Praga)?
cas de Saussure sobre esta questão- cf. introdução, cap. IV, p. 2 7 do
Se a resposta aqui for positiva, como se dá essa inscrição? A ati- Curso de línguística geral).
vidade é mero epifenômeno da ordem da língua ou a ordem da lín-
Se não há no horizonte uma teorização que nos forneça as bases
gua é epifenômeno das funções interacionais que ela cumpre? Ou há
para pensar o estrutural a partir da atividade (o estrutural como ponto
ainda outras dimensões a serem aqui consideradas? Os interactantes
de chegada e não como ponto de partida, como pleiteava programati-
são meros usuários de uma língua pré-dada ou eles, quando em ação
camente Voloshinov, p. 96), lemos, com certo espanto, num Chornsky
conjunta (interação), também agem com e sobre a língua? A língua
mais recente (2000, p. 132), a asserção de que a estrutura (a sintaxe) é
é apenas um conjunto de signos (um produto) ou é um processo
cientificamente cognoscível, mas a atividade, face à sua heterogeneidade,
de contínua diferenciação? (Nesse sentido, que leitura de Saussure
complexidade e imprevisibilidade, não o é: constitui antes um conjunto
devemos privilegiar: a língua como um tesouro ou a língua como o
de mistérios que nunca serão resolvidos pela mente humana (p. 133).
jogo contínuo das diferenças?)
Essa posição rompe com o que tem sido uma espécie de senso
Ou, para além da problemática sentença/enunciado, a linguagem
comum entre os linguistas estruturais, que tradicionalmente defen-
como atividade é melhor tratada a partir de macroestruturas? Quais dem o primado da estrutura, mas não excluem do escopo da ciência
são elas? E como essas macroestruturas (os gêneros do discurso, por a atividade, mesmo que a atribuam como objeto a um consórcio de
exemplo) condicionam a não-aleatoriedade das sequências verbais aí disciplinas científicas.
construídas ou coconstruídas (assumindo, como se tem feito e como
Pela última formulação chomskiana, desaparece a divisão do tra-
parece inevitável, o caráter não aleatório dessas sequências)?
balho. Não na direção de uma teoria integrada, mas pela exclusão do
Parece óbvia a importância de todas essas questões. No entanto, escopo da ciência daquilo que ele chama de pragmática. Se antes, dis-
não parece existir ainda uma sintaxe, micro ou macro, que responda putávamos a direção da flecha (se da estrutura para a atividade ou se
com adequação e abrangência às demandas de uma perspectiva que da atividade para a estrutura), hoje temos de lidar com este tertius que
pense a linguagem primordialmente como atividade, como interação. coloca sob suspeita nossas crenças de que, ao lidarmos com a interação
É comum se ler, em textos interacionistas, a declaração de prin- e com a linguagem na interação, estamos fazendo ciência. Um desafio
cípio de que, sem se descuidar da questão estrutural, a ênfase esta- que nos perseguirá, no futuro imediato, será, portanto, debater e des-
rá nos processos verbointeracionais. No entanto, o silêncio sobre a lindar essa questão: fazemos ciência ou estamos lidando com um con-
questão estrutural é claro sinal de um problema que nos acompanha, junto de mistérios que nunca serão resolvidos pela mente humana?
como dissemos antes, pelo menos desde que Humboldt formulou, Um segundo ponto que gostaríamos de voltar a pautar aqui é
no início do século XIX, sua idéia da língua como atividade (embora o fato de que as teorizações sobre linguagem e interação enfrentam
não primordialmente como interação). (como Mead e tantos outros pesquisadores enfrentaram) o proble-
Por ora, parece não haver nenhuma saída para a tradicional di- ma de como relacionar o social e o individual. Passado um século
de investigações e teorizações, o desafio heurístico continua sendo,
visão do trabalho: estrutura lá, atividade cá. A primeira como objeto
em grande parte, o de relacionar dinamicamente estes dois pólos Nesse ponto específico, parece que estamos em melhor situação
tradicionais nas ciências sociais, evitando a todo custo reduzir esse teórica para o estabelecimento de um princípio geral do que no caso
problema a uma dicotomia. da face estrutural. É muito difícil hoje, considerando a crítica de mais
A crítica de quase dois séculos às filosofias individualistas, idea- de um século às filosofias idealistas, individualistas do sujeito, susten-
listas do sujeito já deveria ser suficiente para assentarmos, em qual- tar uma concepção teórica que assuma o indivíduo como axioma.
quer estudo da interação e da linguagem na interação, um princípio O caminho para incorporar uma concepção relacional de base
geral de que não se pode dar ao indivíduo a primazia sobre os "ou- está traçado, e as melhores soluções, reforçadas por variadas reflexões
tros generalizados" e sobre as relações sociais, o que não significa (e filosóficas, colocam a linguagem como pedra angular do edifício, desde
aqui mora o grande desafio) deixar a singularidade desaparecer num que, obviamente, não a tomemos como uma realidade homogênea.
caldo integralmente determinista.
Nesse sentido, é bastante engenhosa (e heuristicamente pode-
Em outras palavras, não reduzir a interação a encontros for- rosa) a formulação que Bakhtin e seu Círculo deram a essa questão.
tuitos de mônadas autossuficientes; nem assujeitar os interactantes Eles propuseram - com base em sua concepção da linguagem como
às estruturas, de modo a tornar incompreensível o inusitado, o im- interação social e em sua concepção sociossemiótica da consciência
previsível e a resposta criativa. Não ignorar o que se passa local- -uma articulação entre o individual e o social de natureza não-di-
mente nos eventos interacionais (cuja relevância ficou visível pelas cotômica e, ao mesmo tempo, não-determinista e não-idealista.
análises de fundo etnometodológico), mas não reduzir a interação ao
Segundo eles, como vimos no capítulo dois, são os signos que
exclusivamente local. Para isso, não perder, por exemplo, as lições
constituem o alimento da consciência, isto é, a consciência individu-
das investigações antropológicas que nos apontam a relevância dos
al toma forma e existência à medida que interioriza os signos sociais.
repertórios, sempre heterogêneos, de práticas culturais como condi- Nesse processo, ela não só os absorve como tais, mas absorve prin-
cionantes dos eventos interacionais. E, ainda mais, não perder igual- cipalmente sua lógica.
mente as lições de certa tradição européia de estudos discursivos de
que a interpelação dos interactantes não se faz só pelo local ou pelas Esta lógica é precisamente aquela da interação socioaxiológica,
práticas culturais, mas também pelas estruturas do inconsciente e isto é, a lógica das relações dialógicas, do plurilinguismo dialogiza-
pelos pré-construídos histórico-axiológicos que condicionam o que do. É essa dinâmica social, que, internalizada, desencadeia o moto
pode ou não ser dito, o que deve ou não ser dito e fazem nosso dizer contínuo (a autonomia) da atividade psíquica.
significar pela memória discursiva que nele ressoa. Por isso tudo, pode-se dizer que, para o Círculo de Bakhtin, a
O desafio é como não perder toda essa complexidade e como consciência é social de ponta a ponta (a origem do seu alimento e
não se perder nela: não dar primazia ao local, mas não ignorá-lo; não da sua lógica é externa - a heteroglossia dialogizada) e singular de
recusar o pré-dado cultural e historicamente construído, mas não in- ponta a ponta (os modos como cada consciência responde às suas
vocá-lo deterministicamente; não ignorar o poder interveniente das condições objetivas são sempre singulares, porque cada um é um
evento único do Ser).
formações do inconsciente, mas não entregar-se a uma psicanálise
selvagem; não desconsiderar as teias do interdiscurso, mas não se Em outras palavras, é a linguagem que funda, para Bakhtin e
satisfazer com paráfrases ingênuas ou condenações inquisitoriais. seu Círculo, a articulação social/individual. Sua materialidade per-
mite uma abordagem não-ideahsta da consciência; sua heterogenei-
A outra linhagem - aquela que vai, aos poucos, assumir a in-
dade, uma abordagem não-determinista; e sua dinâmica
tersubjetividade como axiomática e, por isso, vai fazer crescer a idéia
é o ponto de convergência do individual e do social.
de que é impossível pensar o ser humano fora das relações com 0
outro e vai pôr em xeque o primado do eu- emerge no contexto da
filos~fia alemã do século XVIII, o que é um tanto quanto paradoxal,
A INTERAÇÃO COMO TEMA FILOSÓFICO considerando que para os filósofos desse período o eu é ainda 0 nú-
cleo estruturador do seu entendimento das questões humanas.
Antes de ser um objeto de análise científica, a interação foi tema
da reflexão filosófica já desde o século XVIII. Essa reflexão emerge Trata-se, contudo, de um momento particularmente interessante
como parte de um movimento que, entre outras motivações, buscava da h~stória moderna que tem seus impactos sobre os modos de pen-
saídas para os percalços e embaraços trazidos por concepções solipsis- sar. E o período em que as principais sociedades européias começam
tas do sujeito - do sujeito que se autodefine, que reconhece sua exis- a sentir agudamente os efeitos de um grande ciclo de mudanças: os
tência por si e a partir de si, que é senhor do próprio conhecimento. efeitos socioeconômicos da Revolução Industrial e os efeitos políticos
da Revolução Inglesa e da Revolução Francesa (R. Williams, 1958).
Para entender melhor a pertinência e a conjuntura da entrada
em cena da relação eu-tu, é preciso lembrar, primeiramente, que o No primeiro caso, o novo modo de organizar a produção e 0
indivíduo (empírico ou, primordialmente na filosofia, transcenden- trabalho, com suas consequências, como a urbanização intensa e
tal), já desde o século XVI, é o grande elemento axiomático do pen- o ~edesenho das sociedades até então fundamentalmente agrárias,
samento moderno. Dele se deduz todo o resto. va1 tornar o trabalho (o agir transformador humano), por exemplo,
tema de reflexão filosófica sistemática.
Um dos grandes emblemas dessa perspectiva é, certamente, o
sujeito do cogito, o sujeito transparente a si mesmo no ato imediato No segundo caso, a percepção de que havia possibilidades con-
de refletir sobre si e de dar fundamento à sua atividade cognitiva. cretas de o agir humano coletivo redundar em significativas mudanças
Para além do sujeito, a relação que importa é a do sujeito com o ob- na organização política da sociedade começa a corroer uma perspecti-
jeto (a relação eu-ele), a relação cognitiva em si do indivíduo. va solipsista de compreensão do pensamento e da ação humana.
A se confiar na leitura que Robert G. Solomon (1983) faz desse Desse modo, a dinâmica da história vai forçando um redire-
período, pode-se dizer que, da história da filosofia moderna - de cion~mento das elaborações intelectuais. Nesse longo processo, foi
Descartes e Locke a Kant- os outros (i.e., os tus) estão silenciosa- prec1so compreender, primeiro, que o si não existe sem 0 outro, isto
mente ausentes. E, excluindo as inúmeras diferenças existentes entre é, foi preciso compreender o primado constitutivo das relações e da
as várias formulações desse modo de pensar, poderíamos ir adiante alteridade. E, depois, foi preciso colocar a linguagem como constitu-
e dizer que essa linhagem de pensamento continua forte ainda hoje tiva dessas relações.
- apesar de todas as sucessivas críticas - como o substrato orga-
Para o primeiro momento, é fundante a elaboração de Hegel
nizador de importantes reflexões, seja na filosofia, seja na ciência,
em Fenomenologia do espírito (1807), texto em que se delineiam as
sobre a subjetividade, a cognição e a linguagem, para ficar apenas
coordenadas da dialética do reconhecimento, em que 0 eu só apare-
em algumas áreas.
ce como presença de si para si mesmo pela mediação do outro: "A
consciência de si é em si e para si quando e porque é em si e para si tante dispersas. No entanto, há um trecho, em
para uma Outra; quer dizer, só é como algo reconhecido" 126) de 1866, que é suficiente para mostrar a direção
Essa formulação específica é apenas um degrau do grande edifício de seu pensamento. Dizia ele:
que Hegel constrói na Fenomenologia, mas tem sido intertexto, marca- Certamente que o idealismo sabe( ... ) que sem tu não há eu, mas este
do ou não, de várias formulações posteriores, inclusive as de Bakhtin. ponto de vista no qual há um eu e um tu, é para ele apenas o empírico,
Antes de Hegel, o filósofo Friedrichjacobi (1743-1819) parece ter não o transcendental, quer dizer, verdadeiro, não é o primeiro e origi-
nário, mas um ponto de vista subordinado, que é válido para a vida,
sido o primeiro a reclamar, explicitamente, a paternidade do tema da
mas não para a especulação (Gesammelte Werke, vol. 11, p. 176).
intersubjetividade. No prefácio à edição de 1815 da obra David Hume
über dm Glaubm, em nota de rodapé, Jacobi (1994:554) declara ter Fica claro, por este trecho, que para Feuerbach o intersubjetivo .:)
2
sido o primeiro a proclamar inequivocamente, em sua obra sobre Spi- tem um papel constitutivo ("transcendental, primeiro, originário") e não ::l

noza (publicada 1785, com uma nova e ampliada edição em 1789), a apenas subordinado. Ele elevou a interação ao estatuto de dimensão a
proposição "O eu é impossível sem o tu" ("Kein du, kein ich"). príori, condição transcendental da existência. Desse modo, ele substi-
Contudo, a proposição de Jacobi estava ligada a uma temática tuiu a razão autossuficiente por uma razão relacional e a subjetividade
teísta e emergiu no contexto de sua crítica à concepção de Spinoza isolada pela subjetividade relacional, efeito da relação intersubjetiva.
de um Deus transcendental que, contrária a todas as representações Na sequência, vamos encontrar, nesta linhagem filosófica, Mar-
antropomórficas de Deus, terminava por identificá-lo com a Nature- tin Buber (1878-1965), que, explicitamente inspirado em Feuerba-
za (o seu famoso dito Deus sive Natura). ch, escreveu seu influente livro de 1923 Ich und Du (Eu e tu, na
tradução brasileira).
Ora, para Jacobi, essa argumentação era inteiramente inaceitá-
vel. Para ele (fiel a sua formação pietista, atitude religiosa que defen- Buber identifica (em Buber 1948) Feuerbach, a par de Jacobi,
de que nada se interpõe entre Deus e o crente; que entre eles há uma como pai do princípio da intersubjetividade. Foi ele, segundo Buber,
relação direta de sentimento e não de pensamento conceitual), Deus que retirou o fundamento teísta da formulação de Jacobi e deu-lhe
tem de ser um outro; ele não pode ser uma substância indistinta na um fundamento inter-humano. Com isso, pôde estatuir também a
Natureza, nem apenas um conceito ou um valor abstrato, mas é um intersubjetividade como um a príori para uma nova filosofia, isto
ser transcendente, uma personalidade real ("Eu acredito numa causa é, uma filosofia capaz de superar o solipsismo tradicional. Nesse
inteligente e pessoal do mundo." -Jacobi 1946, p. 111) que, ao se sentido, Buber considerava a obra de Feuerbach como um segun-
dar a conhecer a nós pela experienciação de um sentimento anterior do recomeço do pensamento moderno depois da descoberta do eu
e acima da razão, também determina a individuação do eu. Em ou- pelo idealismo. Nesse sentido, havia nas formulações de Feuerbach,
tros termos, é só na relação com o tu que o eu pode se perceber como segundo Buber, um evento copernicano.
distinto. Vale aqui também o dito anterior de Jacobi de que o eu é
Buber aprofunda essa perspectiva, construindo em seu livro
impossível sem o tu. Em outras palavras, parajacobi não pode haver
uma espécie de ontologia da relação (resumida em seu slogan de
um eu exceto em referência a um tu que o transcenda.
sabor bíblico: "No princípio, é a relação"), uma ontologia da inter-
Essa questão será retomada pelo filósofo Ludwig Feuerbach relação como o modo humano de existência e, por consequência,
(1804-1872). Suas referências a uma razão intersubjetiva são bas- uma ética do inter-humano.
A alteridade precede e é constitutiva da identidade, da ipseida- Bakhtin estava familiarizado com essa rede de pensadores. De
de ("Ich werde am Du"- "Me tomo na relação com o Tu"). Devo à sua da obra fundante de Hegel, nos dá uma pequena pista nas
presença do Tu minhas possibilidades existenciais. Toda e qualquer notas de caderno de 1970-1971 (p. 137), quando alinha algumas con-
função psíquica só se desenvolve, bem ou mal, na presença do outro. siderações sobre a consciência que o ser humano adquire de si mesmo
Ser reconhecido é a pedra angular da construção do Eu: ser visto, e diz: "A reflexão do si no outro empírico por quem o si tem de passar
reconhecido, respeitado. para alcançar o eu paramim mesmo", uma quase-paráfrase de HegeL

Do caráter constitutivo, estruturante da inter-relação decorrem Por outro lado, foi leitor e admirador de Buber, mas- é im-
os fundamentos de uma ética do inter-humano. O Tu tem o dever portante destacar- suas reflexões sobre a relação eu/outro, em Para
de reconhecer o Eu (como dirá Bakhtin, mais tarde- no seu texto uma filosofia do ato, foram escritas alguns anos antes de Buber pu-
Para uma refeitura do livro sobre Dostoievski, de 1961-, "A morte blicar seu livro em 1923.
absoluta - o não-ser - é o estado de não ser ouvido, de não ser Conhecia a obra de jacobi e fez dela um aproveitamento bas-
reconhecido, de não ser lembrado. Ser significa ser para um outro, e tante curioso: utilizou a noção de Deus como o grande outro (ou a
por meio do outro, ser para si mesmo."- p. 287). alteridade absoluta) não para sustentar uma reflexão teísta, mas no
Por outro lado, o Eu tem o dever de reconhecer o Tu, o que signi- processo de caracterização do herói confessional na literatura, con-
fica, fundamentalmente, responder ao Tu. O Eu é instado a responder. forme se pode ler em O autor e herói na atividade estética (p. 144).

Desse conjunto de reflexões filosóficas, emerge uma primeira Pode-se dizer, portanto, que as diferentes abordagens da temáti-
questão crucial para os estudos da interação e da linguagem na in- ca filosófica da intersubjetividade estavam bem presentes no horizon-
teração: cabe-nos apenas descrever e explicar os fenômenos ou, ao te do pensamento de Bakhtin e de seu Círculo. Há, claro, um longo
identificar o papel nuclear, estruturante da dialética do reconheci- caminho entre as primeiras formulações da temática da intersubjeti-
mento, cabe-nos também cuidar da grande dimensão ética que per- vidade, no século XVIII, até se chegar, cento e tantos anos depois, ao
Círculo de Bakhtin com sua teoria das relações dialógicas que colo-
passa a interação?
cou, com maestria, a linguagem no cerne desta problemática. Mas,
O filósofo Emmanuel Lévinas (1906-1995) criticava qualquer pelo rápido percurso que fizemos, fica já bem claro que sua filosofia
abordagem meramente intelectualista da interação. Para ele, há uma pode ser vista como parte de uma linhagem intelectual que tomou
inter-relação originária irredutível à mera compreensão intelectuaL forma a partir da percepção básica de que o si não é sem o outro.
Ou, em outras palavras, não é possível reduzir a interação ao pro-
posicional, porque antes de ser mero objeto de conceitualização, a
interação é desde sempre uma relação que nos obriga a responder à
face (à exterioridade do outro): antes e para além de ser objetificada,
a inter-relação é, portanto, vivida.
Dentre todos os filósofos que puseram o foco de suas reflexões
na interação, foi Bakhtin o que mais avançou em termos de uma
análise da linguagem.
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A filosofia das formas simbólicas ll O
133, 136, 137, 138, 139, 141, 142,
146, 147, 151, 154, 156, 157
Bally 134
Amorím 16, 40, 44 Bocharov 31, 100
Angústia 94 Boutet 119
A ordem do discurso 83 Brait 40
A palavra e sua .funçào social 71, 100 Buber 142, 155, 157
As almas mortas 138 Bubnova 96
As correntes mais recentes do pensamento lin-
guístico no Ocidente 34, 74, 100
As fronteiras entre a poética e a lingutstica 46,
assirer 110, 112
137, 138
As tarefas imediatas da ciência histórico-
literária 34
C Castro 15
Chklovski 32
Authier-Revuz 118 Chomsky 117, 149
Círculo de Bakhtin 9, 10, 11, 13, 14, 16,
17, 18, 19,24,26,27,28,29,30,32,
7, 9,
akhtin 11, 12, 13, 14, 15,
lO, 33,34,35,39,40,46,47,48,49,50,
B26,27,29,30,31,32,34,35,36,38,
16, 17, 18, 19,20,21,22,23,24,25, 51,54,56,57,58,60,61,62,63,66,
68,69, 72, 73, 74, 79,86,87,91,96,
39,40,41,42,43,44,49,50,52,53, 99, 100, 101, 102, 103, 118, 119,
55,56,58,59,60,61,62,63,64,65, 120, 124, 125, 126, 130, 133, 136,
66,67,68,69, 70, 73, 74, 75, 76, 77, 138, 139, 140, 142, 143, 151, 157
78, 79,80,81,82,83,84,86,88,89, Clark 14
90,91,92,93,94,95,96,97,99, 100, Cohen 16
101, 102, 103, 104, 105, 106, 114, Croce 134, 138
115, 116, 117, 118, 119, 122, 124, Curry 114
125, 126, 127, 128, 129, 131, 132, Curso de linguística geral 109, 149
pré-história do discurso romanesco 13, 16 n'kov 81 Spinoza 154
93 152 Para uma epistemologia das ciências Spitzer 134, 138
David Hume über den Glauben l 54 Kozhinov 30, 100 humanas 20
Dawkins 134 Kruschev 75 Para uma filosofia do ato 15, 18, 22, 23, 25,
Descartes 152 49,55,62, 101,157 ezza 16, 32, 78, 79
Dilthey 41, 42
Dom Casmurro 94
Para uma metodologia das ciências humanas
42,44,101
T Tynyanov 32
acan 142
Dostoievski 15, 29, 30, 35, 40, 73, 77, 78,
79,80,92,103
L Lãhteenmãki 11 O
Lévinas 142, 156
Para uma refeitura do livro sobre Dostoievski
61, 75,86,156
über Spiritualismus und Materialismus 155
Ducrot 16 Podgórzec 78
Literatura i Marxiszm 34 w
op
Duvakin 35 Ponzio 28, 83
Locke 152 p
Problemas da poética de Dostoievski 40, 61, G
inogradov 34, 138

ikhenbaum 32
65,66, 73, 79,100,103, lOS, 127
V27,28,29,30,31,32,33,34,35,39,
Voloshinov 11, 12, 13, 17, 22, 23, 24,

E Emerson 35, 36
Ensaios e conferências 37, 107, 143
M andelker 35
Marr 29
D abelais 15, 23, 35, 81
45,46,47,53,54,59,61,63, 64,67,
69, 70, 71, 72, 73, 74,85,87,88,96,
Marxismo e filosofia da linguagem 11, 12, ftRabelais e seu mundo 81, 100
Escola de Praga 148 97,99, 100,101, lOS, 106,107,108,
15,23,29,33,34,40,45,46,47,54, racionalismo 19
Estilística do discurso literário l 00 109, 110, 111, 113, 114, 115, 119,
59,61,63,67, 71, 73,85, 100, lOS, Ramos 94
Eu e tu 155
120, 137, 138, 139, 140, 141, 149
107, 109, 120, 137 Resposta a uma pergunta do Conselho Edito- Vossler 134, 138
Evans 137 Mead 142, 144, 145, 146, 147, 149 rial da 'Novy Mir' 143 Vygotsky 142, 145
Medvedev 11, 12, 13, 17,23, 27,28, 29, Ricoeur 142
30,31,32,33,34,39,42,45,46,47,
enomenologia do Espírito 153 48,49,51,52,53,63, 101,130,131,
F Feuerbach 154, 155 160
akulin 31,32,33 W atson 144
Williams 28, 116, 118, 119, 153
Feys 114
Foucault 83
S Saussure 109, 137, 148, 149
Seminários de Zollikon 37, 38
Franchi 114 Nietzsche 38 Solomon 152
Freud 33,87 zhirmunsky 32
Souza 15
Freudismo 11, 12, 31, 33, 46, 73, 87

autor e herói na atividade estética 18,

Gogól 138
O22,95, 24, 74,89, 91, 92, 94, 97,157
22,
O discurso na vida e o discurso na poesia
31,46, 73,96, 100,101
O discurso no romance 24, 49, 52, 55, 58,
abermas 142 67,69,82,84,91,92,93, 100,137,
H Hacia una filosofía del acto ético. De
los borradores. Y otros escritos 96
138, 139
O discurso romanesco 146
Hegel 153, 154, 157 O freudismo: um esboço critico 100
Heidegger 36, 37, 38 1 143 O método formal nos estudos literários ll,
Holquist 14 12,23,34,46,63, 100,130
Humboldt 109, 110, 111, 112, 113, 114, 148 O problema do conteüdo, do material e da
forma na arte verbal 22, 24, 39, 52, 89,
90, 102
O problema dos gêneros do discurso 63, 101,
Jch und Du 155 104, 124, 137, 138
O problema do texto 42, 59, 60, 61, 65, 67,
91, 101, lOS, 106
acobi 154, 155, 157 O problema do texto em linguística, filologia e

J jakobson 32
bim e Souza 40
nas ciências humanas 91
O que é a linguagem? 29, 100

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