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Fundação Perseu Abramo

Instituída pelo Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores em maio de 1996.


Diretoria
Ricardo de Azevedo – Presidente
Selma Rocha – Diretora
Flávio Jorge Rodrigues da Silva – Diretor

Editora Fundação Perseu Abramo


Coordenação Editorial
Flamarion Maués
Editora Assistente
Sandra Brazil
Revisão
Maurício Balthazar Leal
Capa
Eliana Kestenbaum
Editoração Eletrônica
Enrique Pablo Grande

Impressão
Bartira Gráfica

1a edição: junho de 2007


Todos os direitos reservados à
Editora Fundação Perseu Abramo
Rua Francisco Cruz, 224
04117-091 — São Paulo — SP — Brasil
Telefone: (11) 5571-4299 – Fax: (11) 5571-0910
Correio eletrônico: editora@fpabramo.org.br
Visite a página eletrônica da Fundação Perseu Abramo
http://www.fpabramo.org.br
Copyright © 2007 by autores
ISBN 978-85-7643-038-4

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C977 Curso de formação em política internacional / [organização de] Mila Frati. – São
Paulo : Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.
288 p.
ISBN 978-85-7643-038-4

1. Política internacional. 2. Ásia – Europa – América – Oriente Médio –


África. 3. Capitalismo. 4. Relações internacionais. 5. Movimentos sociais. 6.
Política de esquerda.. I. Frati, Mila.
CDU
327
CDD 327

(Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo – CRB 10/1507)

Curso de Formação em Política Internacional.p65


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Sumário

Apresentação .............................................................................................. 5

Mapas – organização política 2007 ............................................................. 7

A teoria, as instituições
e os grandes temas das relações internacionais ....................................... 15
Kjeld Jakobsen

Retalhos para uma história dos movimentos


contra a globalização neoliberal ................................................................ 35
Gustavo Codas

Capitalismo, imperialismo e relações internacionais ................................. 54


Valter Pomar

A evolução histórica da Europa ................................................................ 75


Kjeld Jakobsen

Um olhar sobre a Ásia .............................................................................. 92


Wladimir Pomar

Um olhar sobre a Índia ............................................................................ 108


Wladimir Pomar

A Santa Rússia: Modernização e atraso ................................................. 126


Daniel Aarão Reis Filho

O petróleo do Golfo Pérsico, ponto-chave


da estratégia global dos Estados Unidos ................................................. 147
Igor Fuser

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Curso de formação em política internacional

Altos e baixos na África Austral ............................................................. 165


Beluce Bellucci

A América Latina na história do capitalismo .......................................... 184


Roberto Regalado

A trajetória do Brasil: Construção nacional e inserção internacional ..... 203


Alexandre Fortes

A política internacional do Brasil e suas fases........................................ 219


Paulo Fagundes Visentini

Rupturas e continuidades da política comercial do governo Lula .......... 247


Fátima V. Mello

Integração regional e construção da democracia na América do Sul .... 263


Ana Maria Stuart

Livros indicados ....................................................................................... 281

Filmes indicados ...................................................................................... 287

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Curso de formação em política internacional
Prefácio

Apresentação

A Fundação Perseu Abramo e a Secretaria de Relações Internacionais do


Partido dos Trabalhadores (PT), com apoio da Secretaria Nacional de For-
mação Política do PT e da Fundação Rosa Luxemburgo, da Alemanha, or-
ganizaram o Primeiro Curso de Formação em Política Internacional. Reali-
zado de 15 a 30 de julho de 2007, na cidade de São Paulo, o curso tem
como objetivos estudar e refletir sobre:
a) a situação internacional, seus principais conflitos e debates; os principais
países, as instituições internacionais e o comércio internacional; o debate so-
bre os grandes temas internacionais: meio ambiente, energia, migrações;
b) a situação atual da luta dos trabalhadores, em suas várias dimensões; os
partidos políticos, as organizações internacionais, os movimentos sociais e as cen-
trais sindicais; o Fórum Social Mundial; os governos de esquerda e progressistas;
c) o surgimento, a evolução e o estágio atual do capitalismo, dando ênfa-
se aos debates atuais sobre o imperialismo, a globalização, a mundialização
e a financeirização;
d) a evolução histórica e a situação das grandes regiões do mundo: Esta-
dos Unidos, Europa, Eurásia, Oriente Médio, África, América Latina e Caribe;
e) as relações Estados Unidos/América Latina;
f ) a evolução histórica do Brasil, as grandes correntes da política externa
no Brasil, a política externa e a política comercial do governo brasileiro;
g) os nacionalismos, os socialismos, o internacionalismo hoje e a integração
do continente americano.

Os professores convidados a tratar destes temas foram também convida-


dos a contribuir para este livro, que tem portanto como objetivo principal
subsidiar o Primeiro Curso de Formação em Política Internacional.

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Curso de formação em política internacional

Entretanto, dada a qualidade das contribuições, esta coletânea possui


também um valor autônomo e pode servir para a auto-formação de todos
aqueles que não tiveram a oportunidade de participar do curso. Além dos
textos, foram incluídos nesta edição mapas da organização política de todos
os continentes, um mapa-múndi e duas listas com livros e filmes indicados,
que destacam obras de ficção e abordam, de forma geral, os temas do curso.
Trabalharemos para que, ao longo dos próximos anos, possamos realizar
novos cursos de formação (inclusive a distância), bem como produzir novas
publicações (livros e vídeos) acerca dos grandes temas mundiais, da política
externa do Brasil e da política de relações internacionais da esquerda.

Ricardo de Azevedo, presidente da


Fundação Perseu Abramo
Valter Pomar, secretário de Relações
Internacionais do Partido dos Trabalhadores

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Curso de formação em política internacional

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7 5/6/2007, 12:39
Curso de formação em políticaAMÉRICA DO SUL
internacional

AMÉRICA
CENTRAL Caracas

VENEZUELA Georgetown
Paramaribo
GUIANA
Caiena
Bogotá SURINAME
Guiana Francesa (FRA)
COLÔMBIA

Equador
Quito
EQUADOR

PERU
BRASIL

Lima

La Paz Brasília
BOLÍVIA

Sucre

r nio PARAGUAI
d e C a p ri c ó
Trópico Assunção
CHILE

OCEANO
ATLÂNTICO
OCEANO
PACÍFICO
URUGUAI
Santiago Buenos Aires
Montevidéu
ARGENTINA

Ilhas Falkland (Ilhas Malvinas)


(RU)
Port Stanley

RU - REINO UNIDO 0 410 820


FRA - FRANÇA
ANTÁRTIDA km

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8 5/6/2007, 12:40
Curso de Formação em Política Internacional.p65

AMÉRICA DO NORTE E AMÉRICA CENTRAL


ÁSIA

C í rc
OCEANO EUROPA
GLACIAL ÁRTICO

ulo
Groenlândia

Po
(DIN)

lar
Á rt
i co
Alasca ÁFRICA
(EUA)
9

ESTADOS B
A
UNIDOS

H
Golfo do México OCEANO

A
ATLÂNTICO

M
Nassau

A
Trópico de Cânce
r G R

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A N
Havana D Ilhas Virgens
E Ilhas Turks e Caicos Americanas
CUBA S (RU) Ilhas Virgens
A Britânicas
N T
CANADÁ AMÉRICA Ilhas Cayman I L H
Anguilla (RU)
A S
DO NORTE (RU) REPÚBLICA Porto Rico
HAITI
DOMINICANA (EUA)
JAMAICA ANTÍGUA E
OCEANO Porto Príncipe
Santo Domingo San Juan BARBUDA
St. John’s

Curso de formação em política internacional


Belmopan Kingston SÃO CRISTÓVÃO E NÉVIS
PACÍFICO AMÉRICA BELIZE Basseterre
Montserrat (RU)
Guadalupe
(FRA)
GUATEMALA DOMINICA Martinica
DO NORTE Ottawa
Guatemala HONDURAS
Tegucigalpa
MAR DAS ANTILHAS
(MAR DO CARIBE)
PEQUENAS
Roseau
SANTA LÚCIA
(FRA)
Castries
ANTILHAS
BARBADOS Bridgetown
San Salvador Antilhas
EL SALVADOR SÃO VICENTE
NICARÁGUA Aruba Holandesas E GRANADINAS Kingstown
Manágua (HOL) (HOL)
St. George’s GRANADA
Lago de Nicarágua
Port of Spain
TRINIDAD
ESTADOS UNIDOS OCEANO
San José E TOBAGO
COSTA RICA
Washington PACÍFICO Panamá 0 465
PANAMÁ

km
5/6/2007, 12:40

OCEANO
MÉXICO
ATLÂNTICO
Cidade
do México

AMÉRICA
CENTRAL
RU - REINO UNIDO
9

EUA - ESTADOS UNIDOS


0 635 1270 FRA - FRANÇA
AMÉRICA DO SUL DIN - DINAMARCA
km HOL - HOLANDA
Curso de formação em política internacional

ÁFRICA
EUROPA
Argel

Rabat Túnis MA
Madeira RM
(POR) ED IT A R R
TUNÍSIA ÂNEO
MARROCOS Trípoli
Ilhas Canárias Cairo
(ESP)
El Aaiun
SAARA ARGÉLIA ÁSIA
LÍBIA EGITO
Trópico de Câncer OCIDENTAL

MA
R
VE
MAURITÂNIA

RM
CABO
VERDE

EL
Nuakchott
MALI

HO
NÍGER
CHADE Asmará
Praia Dacar SENEGAL Cartum
BURKINA Niamei ERITRÉIA
Banjul GÂMBIA Bamaco
FASSO
Bissau Ndjamena SUDÃO DJIBUTI
GUINÉ-BISSAU GUINÉ Uagadugu Djibuti
BENIN

Conacri
NIGÉRIA
GANA

TOGO

SERRA LEOA Adis-Abeba


COSTA DO Abuja
Freetown MARFIM REPÚBLICA ETIÓPIA
Monróvia Lomé
CAMARÕES CENTRO-
LIBÉRIA Yamoussoukro Porto SOMÁLIA
Acra Novo Bangui AFRICANA
Malabo Iaundé
GUINÉ EQUATORIAL UGANDA Mogadíscio
QUÊNIA
Equador São Tomé Libreville Campala
SÃO TOMÉ GABÃO CONGO REPÚBLICA
E PRÍNCIPE Kigali RUANDA Nairóbi
DEMOCRÁTICA
Brazzaville Bujumbura OCEANO
DO CONGO BURUNDI
Kinshasa ÍNDICO Vitória
ILHAS
TANZÂNIA SEICHELES
OCEANO Daar es Salaam
Luanda
ATLÂNTICO
Moroni
ANGOLA
Lilongüe COMORES
ZÂMBIA MALAUÍ
Lusaka
Ilha Sta. Helena
(RUN)
Harare MOÇAMBIQUE
ZIMBÁBUE Antananarivo
NAMÍBIA MADAGÁSCAR Port Louis
BOTSUANA MAURÍCIO
Windhoek St. Denis
Capricórnio Gaborone Pretória Ilha da Reunião
Trópico de (FRA)
Maputo
Mbabane
Bloemfontein SUAZILÂNDIA
Maseru
ÁFRICA LESOTO
DO SUL
Cidade
do Cabo

0 625 1250
POR - PORTUGAL
km ESP - ESPANHA

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10 5/6/2007, 12:40
Curso de formação em política internacional

ÁSIA
d e B e ri n g
Estreito
C í r c u l o P o l a r Á r ti c

OCEANO
OCEANO GLACIAL
ATLÂNTICO MAR DA
ÁRTICO SIBÉRIA
o

MAR DE MAR DE
BARENTS BERING
MAR DE
LAPTEV
MAR DE
KARA

MAR DE
OKHOTSK

FEDERAÇÃO RUSSA
(parte asiática)
EUROPA
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JAPÃO
Ancara (MAR DO
O
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Astana LESTE) JAPÃO


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Nicósia MAR CAZAQUISTÃO DO NORTE Tóquio
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ARAL MONGÓLIA Pyongyang
LÍBANO Seul
MA

Beirute SÍRIA UZBEQUISTÃO Pequim


Telaviv Damasco CORÉIA
ISRAEL Amã TURCOMENISTÃO Tashkent Bishkek DO SUL
EGITO IRAQUE QUIRGUISTÃO
(parte asiática) JORDÂNIA Teerã Ashkhabad Dushanbe
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IRÃ Cabul
er KUWAIT de Kuwait CHINA
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BAREIN
Riad Manama
OCEANO
VERMELHO

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PAQUISTÃO
ARÁBIA Abu Dhabi TAIWAN PACÍFICO
EMIRADOS NEPAL BUTÃO
SAUDITA ÁRABES Nova
Katmandu Timfu
UNIDOS
Mascate Délhi Macau Hong Kong
BANGLADESH
MAR DA Daca Hanói
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Sanaa ARÁBIA
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SUL DA
ÍNDIA Vientiane
CHINA FILIPINAS
Golfo de Áden Manila
Baía de Yangun
Ilhas Socotra Bengala TAILÂNDIA VIETNÃ
(IEM) Bangcoc
ÁFRICA CAMBOJA
Phnom Penh
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SRI LANKA BRUNEI Seri Begawan
Colombo I
M A L Á S I A
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MALDIVAS Kuala Lumpur S
Cingapura
CINGAPURA
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0 815 1630 OCEANO Dili
Jacarta
IEM - IÊMEN
km ÍNDICO OCEANIA

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Curso de formação em política internacional

OCEANIA
MAR DO
JAPÃO
(MAR DA
CHINA)

OCEANO
ÁSIA
PA C Í F I C O

Ilhas Ogasawara
(JAP)
Trópico de Câncer

Honolulu
Ilhas Ilhas Wake Havaí
Marianas do (EUA) (EUA)
MAR DO Norte (EUA)
SUL DA Saipan
Guam Ilhas
CHINA Hagatna
(EUA) Marshall

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Uliga-Darret
Palikir

PALAU
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Equador
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TUVALU
Toquelau
Ilhas (NZL)
Honiara Fongafale
Port Moresby Salomão Samoa
Ilhas Wallis SAMOA Americana
e Futuna (EUA)
MAR DE VANUATU (FRA) Ápia Pago Pago I l h a s
Papeete Polinésia
CORAL Suva Cook
Porto-Vila TONGA Niue (NZL) (NZL) Francesa
Nova Caledônia Alofi (FRA)
(FRA) FIJI
Nukualofa Avarua
Nouméa Trópico de Capricórnio
Ilhas Pitcairn
(RU)
AUSTRÁLIA Adamstown

Canberra
MAR DA
TASMÂNIA

Wellington
NOVA
ZELÂNDIA RU - REINO UNIDO
OCEANO EUA - ESTADOS UNIDOS
FRA - FRANÇA
ÍNDICO DIN - DINAMARCA
HOL - HOLANDA 0 700 1400
JAP - JAPÃO
NZL - NOVA ZELÂNDIA km

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Curso de formação em política internacional

EUROPA

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MAR DE
BARENTS
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NORUEGA
OCEANO
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ATLÂNTICO FEDERAÇÃO RUSSA (FR)
Tallinn
(parte européia)
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KALININGRADO Vilnius
(FR)
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BÉLGICA ALEMANHA
Praga Kiev
LUXEMBURGO
Paris Luxemburgo
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FRANÇA Berna Viena MOLDÁVIA AR
LCH ÁUSTRIA Budapeste Chisinau
SUÍÇA

Liubliana ESV HUNGRIA ROMÊNIA
SP

ITÁLIA
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Belgrado
MÔNACO CRO Bucareste
Tbilisi
Baku
ANDORRA SAN MARINO BHE
PORTUGAL San MAR NEGRO AZERBAIJÃO
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Mônaco BULGÁRIA Yerevan


R

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Córsega VATICANO Sófia
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ESPANHA Cidade do Roma ICO Tirana Skopje TURQUIA
Vaticano
MACEDÔNIA (parte européia)
Sardenha ALBÂNIA
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Estreito e Gibraltar M A R MAR GRÉCIA
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Sicília Atenas
E BHE - BÓSNIA-HERZEGÓVINA
CRO - CROÁCIA
Nicósia
R

ÁFRICA MALTA ESL - ESLOVÁQUIA


Valletta CHIPRE
R

ESV - ESLOVÊNIA
 Creta FR - FEDERAÇÃO RUSSA
N
0 385 770 E O LCH - LIECHTENSTEIN
RTC - REPÚBLICA TCHECA
km RU - REINO UNIDO

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Curso de formação em política internacional

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Kjeld Jakobsen

A teoria, as instituições e os
grandes temas das relações
internacionais
Kjeld Jakobsen1

1. INTRODUÇÃO

Diariamente quando lemos os jornais ou assistimos aos noticiários na


TV, tomamos conhecimento dos fatos ocorridos em outros países, dos con-
flitos entre países ou de medidas adotadas por determinadas instituições
internacionais. Esses fatos freqüentemente se transformam em políticas que
podem ter repercussão para nós, diretamente ou não.
A disciplina que trata das relações entre as “nações” chama-se relações
internacionais. Como afirmou o professor francês Marcel Merle, “as rela-
ções internacionais padecem do fato de designar ao mesmo tempo um cam-
po de investigação e a disciplina que serve para investigá-lo” (Merle, apud
Rodrigues, 1994, p. 12).
O estudo de relações internacionais considerado mais antigo é a obra de
Tucídides (471-400 a.C.) intitulada Guerra do Peloponeso, que analisa as
relações entre as cidades-Estado da Grécia antiga, particularmente a guerra
entre Esparta e Atenas, os interesses envolvidos e as alianças constituídas
para defendê-los.
Esta disciplina constitui um campo científico independente das ciências
sociais e deriva principalmente da ciência política, mantendo estreita relação
com o direito, a história, a economia e a sociologia, entre outras disciplinas.
O presente texto, além deste comentário inicial, apresenta quatro outras
partes: as principais teorias de relações internacionais; os grandes temas

1
Ex-secretário de Relações Internacionais da CUT (Central Única dos Trabalhadores) e da prefeitura
do município de São Paulo, atualmente é consultor em relações internacionais.

15

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internacionais da atualidade; as principais organizações internacionais; a


bibliografia e as recomendações de leitura.

2. AS PRINCIPAIS TEORIAS

Neste tópico serão apresentadas apenas as três principais teorias positivistas das
relações internacionais, das quais derivam outras, inclusive as chamadas teorias
pós-positivistas, apresentadas no Mapa teórico das relações internacionais (p. 18).

2.1 REALISMO
O principal expoente do realismo clássico foi Thomas Hobbes (1588-
1679). Sua concepção de Estado provinha do fato de considerar o estado de
natureza do homem como o de liberdade para fazer o que quisesse, inclusi-
ve cobiçar o mesmo que outros homens. Tal disputa seria resolvida em favor
do mais forte. Assim, o estado de natureza real seria um estado de guerra
entre os homens e somente poderia ser regulamentado por meio de um
poder absoluto, o Estado.
Essa concepção, traduzida para as relações internacionais, significa que o
mundo apresenta uma estrutura anárquica devida à ausência de um poder
central mundial, e o estado de natureza do mundo é a guerra, na qual os
Estados nacionais são os atores principais, que definem seus interesses em
termos de poder e de força. Desse modo, as principais preocupações na
relação entre os Estados são o poder e a segurança que eles administram
com uma avaliação coerente dos custos e benefícios de suas ações.
Há ainda outros teóricos clássicos do realismo, como o próprio
Tucídides, já mencionado, e Maquiavel. Este também considerava o Esta-
do capaz de impor a ordem e discutia a forma como o “príncipe” deveria
assegurar a sua segurança.
Esses conceitos foram atualizados no século XX. Primeiro por Edward
H. Carr, que na década de 1930 criticou o idealismo que regera algumas
das iniciativas internacionais após a Primeira Guerra Mundial, e depois por
Hans Morgenthau, autor do livro A política entre as nações: a luta pelo poder
e pela paz (1948), cuja teoria tornou-se o paradigma das relações internacio-
nais, ao menos até a década de 1970, e ainda hoje influencia a política
externa de muitos países, a exemplo da política de George W. Bush.

16

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Kjeld Jakobsen

Ele identificou como seria a política externa dos Estados Unidos, potência
hegemônica após o término da Segunda Guerra Mundial, apontando que teria
como base um contexto de substituição do multipolarismo pelo bipolarismo,
com centros fora da Europa Ocidental, disputa entre dois sistemas antagônicos
(capitalismo versus socialismo real) e desenvolvimento da tecnologia nuclear,
que poderia levar à destruição da humanidade (Sarfati, 2005, p. 91).
Morgenthau também discutia o poder dos Estados, que não se limita
necessariamente à capacidade militar, mas também envolve população, geo-
grafia, recursos naturais, capacidade industrial, legitimidade de governo,
entre outros aspectos.
Para obter a segurança internacional, ele aceitava a idéia de um “Estado
mundial” com estrutura única, que fosse capaz de atender às necessidades
dos diferentes agrupamentos humanos e de intervir nos conflitos entre Es-
tados-nações, por meio, inclusive, de força militar própria.

2.2 LIBERALISMO, NEOLIBERALISMO E INTERDEPENDÊNCIA COMPLEXA


A teoria liberal das relações internacionais está associada a uma série de
idéias de pensadores que desde o começo da Idade Moderna lidaram com
os temas da democracia, das leis e da paz, emanados da vontade do povo de
controlar o Estado – e não o inverso, que é uma das características impor-
tantes do realismo.
O neoliberalismo é a retomada dessas idéias numa visão sistêmica das
relações internacionais e contemporâneas na conjuntura dos últimos 30
anos. Para os liberais e neoliberais, as instituições internacionais são funda-
mentais para ordenar o sistema internacional anárquico, e os atores não são
apenas os Estados.
Os teóricos neoliberais reconhecem que a possibilidade de os Estados
cooperarem mutuamente depende da construção de organizações interna-
cionais que serão mais ou menos fortes a depender do assunto e do momen-
to histórico. Os atores devem perceber que têm algo a ganhar com a coope-
ração e, quanto maior a institucionalização, maior será a influência no com-
portamento dos Estados (Sarfatti, ibidem, p. 156).
Keohane é um desses teóricos. Ele define as organizações internacionais
(OIs) como grupos que podem tomar diversos formatos – organismos in-
ternacionais estabelecidos pelos Estados, ONGs (Organizações não-gover-

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Curso de formação em política internacional

namentais) internacionais, regimes internacionais e convenções –, dos quais


advirão regras formais e informais (apud ibidem, p. 157).
Esta classificação das instituições admite que a sociedade influencia as OIs
não somente por intermédio dos Estados e das relações transgovernamentais,
mas também por meio das ONGs internacionais. A isso se chama relações
transnacionais, que, de acordo com Keohane e Nye, podem afetar as relações
internacionais de várias maneiras: mudar percepções e atitudes, ampliar a
dependência, a interdependência e a capacidade de influência dos Estados e
possibilitar a emergência de atores autônomos (ibidem, p. 161-162).
O último aspecto das relações transnacionais a ser considerado é o da
interdependência complexa. Ainda de acordo com Keohane e Nye
“interdependência é uma situação caracterizada por efeitos recíprocos entre
os países ou entre os atores de diferentes países ou simplesmente o estado
de mútua dependência” (Keohane e Nye, apud Sarfatti, 2005, p. 164).

2.3 MARXISMO
Quando Marx elaborou a tese do materialismo histórico, não tinha qual-
quer preocupação em teorizar sobre relações internacionais. Porém, vários

Mapa teórico das relações internacionais

Fonte: Sarfatti, 2005, p. 364.

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Kjeld Jakobsen

dos conceitos que elaborou acabaram por fortalecer uma visão


“internacionalista”, pois os trabalhadores são explorados no mundo todo
pela burguesia. A fase de implantação do socialismo por meio da “ditadura
do proletariado” até a extinção do Estado pressupunha que isso viesse a
ocorrer em todo o planeta, de modo que toda a sociedade mundial passasse
a viver sob o sistema comunista.
Para ele, a guerra era a conseqüência natural do modelo burguês de acu-
mulação de capital, que levaria a conflitos por novas terras e novos merca-
dos. A paz mundial somente seria alcançada com a ascensão do comunismo
e o desaparecimento das classes sociais e do Estado.
O marxismo tornou-se uma teoria importante para explicar as relações
internacionais, primeiro a partir das discussões de Vladimir Lenin e Nikolai
Bukharin sobre o imperialismo e, posteriormente, com a teoria da depen-
dência dos “cepalinos”2.
As formulações de Lenin sobre o imperialismo incluem a avaliação de
diversos temas: a criação de monopólios; a relação do capital financeiro
com o capital industrial; a formação dos monopólios internacionais que
dominam a economia mundial; a consolidação da divisão territorial entre
as grandes potências capitalistas; e a diferenciação entre a exportação de
produtos manufaturados e a de commodities. Bukharin desenvolve tam-
bém o conceito sobre a divisão internacional do trabalho favorável aos
países industrializados.
Estes conceitos forneceram a base para a elaboração da teoria da depen-
dência, que identificava o desequilíbrio entre o desenvolvimento econômi-
co dos países industrializados e o dos países em desenvolvimento. Um dos
fatores era a relação comercial entre eles, em que os países industrializa-
dos se especializaram em exportar produtos de alto valor agregado, enquanto
os países em desenvolvimento exportavam produtos primários cujo valor não
competia com os primeiros e que tendiam a se desvalorizar à medida que
aumentava o volume de produção. Assim, os países subdesenvolvidos não

2
Técnicos que trabalhavam na CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe),
responsáveis pelo desenvolvimento da proposta do modelo de substituição de importações como
política para a região a fim de romper a dependência em relação aos países centrais. Alguns nomes
importantes entre eles foram Raul Prebisch e Teotônio dos Santos.

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Curso de formação em política internacional

conseguiam financiar sua industrialização por meio do comércio, mesmo


aumentando a produção de commodities, mas apenas adquirir os bens in-
dustrializados dos países em desenvolvimento.
Para superar essa relação, surgiu a proposta do modelo de substituição de
importações, que vigorou particularmente na América Latina e em deter-
minados países asiáticos, promovido pela ação do Estado voltada para fi-
nanciar o desenvolvimento. Para os “dependentistas” (defensores da teoria
da dependência), o Estado é um ator fundamental. No campo internacio-
nal, as instituições mais importantes são as organizações internacionais, o
direito internacional e as empresas multinacionais, entre outras.

3. OS GRANDES TEMAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ATUAIS

As várias teorias internacionais explicam ou embasam as medidas toma-


das pelos diferentes atores, estatais ou não, diante dos grandes temas inter-
nacionais. Embora os temas apresentados a seguir sejam mais amplos do
que os que fundamentaram a elaboração realista e neo-realista, isso não
significa que as medidas adotadas não possam ser explicadas por essas duas
teorias ou outras.

3.1 COMÉRCIO INTERNACIONAL


As principais relações entre as nações, desde a Antiguidade, têm se dado
por intermédio do comércio.
No início da Idade Moderna, sob os regimes absolutistas e, particular-
mente, a partir das grandes navegações e das descobertas de novas terras e
rotas marítimas, desenvolveu-se um conceito de comércio internacional
chamado mercantilismo, cuja principal característica era a venda de produ-
tos para acumular reservas em metais preciosos. Os países que tinham a
capacidade de produzir algum bem para o comércio com outros o prote-
giam contra a concorrência externa.
Com o advento do liberalismo econômico, adotou-se um novo conceito
de comércio baseado nas “vantagens comparativas”. Esse conceito – desen-
volvido inicialmente pelo economista inglês David Ricardo –, que vigora
até hoje entre os liberais, pressupunha ser mais eficaz para o desenvolvi-
mento da economia dos países que cada um deles exportasse os produtos

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nos quais eram mais especializados e importasse aquilo que outros países
eram mais especializados em produzir. Isto significava, por exemplo, que
Portugal e França venderiam vinho, os Estados Unidos exportariam trigo e a
Inglaterra, produtos manufaturados.
Para outros estudiosos, a teoria das vantagens comparativas e o livre co-
mércio eram apenas uma forma de proteger a indústria inglesa de possíveis
concorrentes. Para eles, os países atrasados em seu processo de industrializa-
ção, como a Alemanha e os Estados Unidos, deveriam ter o direito de pro-
teger sua indústria até que ela também se consolidasse.
De fato, se considerarmos a história do comércio mundial, perceberemos
que a liberalização comercial ocorreu em poucos momentos desde o final do
século XVIII até o fim da Segunda Guerra Mundial, e que a política comer-
cial proposta pelos países desenvolvidos para os demais nunca foi por eles
adotada da mesma forma.
Em 1948 foi criado o Acordo Geral de Comércio e Tarifas (GATT –
General Agreement on Tarifs and Trade) para negociar e coordenar a políti-
ca comercial internacional, principalmente a liberalização das tarifas exter-
nas de bens industriais dos países-membros. Porém, tais reduções ocorre-
ram como se todos os países estivessem no mesmo patamar de
desenvolvimento, tomando como parâmetro os produtos que os países mais
desenvolvidos eram capazes de produzir em condições vantajosas com rela-
ção a outras nações mais pobres. Bens como os produtos têxteis ficaram
excluídos da liberalização comercial até 2004, e os mercados agrícolas dos
países desenvolvidos continuam protegidos.
A partir do final dos anos 1970, começaram a ser discutidos outros te-
mas no GATT, como comércio de serviços, de propriedade intelectual, de
investimentos, entre outros, e em 1995 teve início o funcionamento de
uma nova instituição em substituição ao GATT, a Organização Mundial do
Comércio (OMC), uma organização internacional estruturada com direto-
res e funcionários, que assumiu a coordenação das negociações comerciais e
também da resolução de controvérsias.
Durante sua vigência, o GATT realizou oito rodadas de negociações,
sendo a última delas – e a mais abrangente do ponto de vista liberal – a
Rodada Uruguai, que perdurou de 1986 a 1994. Hoje a OMC coordena a Ro-
dada de Doha, iniciada em 2001 e sem acordo até o momento.

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3.2 DEMOCRACIA
Este tema se agregou às relações internacionais à medida que valores po-
líticos liberais foram se consolidando e sendo adotados por um número
crescente de países. Estes valores incluem a divisão de poderes e a idéia da
soberania popular como legitimadora do poder político – idéias defendidas
já no século XVIII por Montesquieu e Rousseau, respectivamente – e ou-
tros conceitos posteriores.
A democracia foi se aperfeiçoando ao longo do século XX e ainda está em
evolução. Em muitos países, as mulheres só conquistaram o direito de votar
a partir dos anos 1920. Se consideradas as limitações ao exercício do voto,
menos de dez países no mundo poderiam ser considerados democráticos no
início do século XX.
Os regimes derrotados na Segunda Guerra Mundial pela coalizão aliada
eram francamente ditatoriais, o que serviu como mote na disputa ideológi-
ca da Guerra Fria, para contrapor não apenas capitalismo e socialismo, mas
também democracia ocidental versus autoritarismo do regime de partido
único soviético.
Assim, a democracia tornou-se um tema sempre presente nas relações
internacionais, mesmo quando utilizado hipocritamente, como no caso do
apoio norte-americano a ditaduras de direita na América Latina durante a
Guerra Fria para “defender a democracia ameaçada pelo comunismo”.
Porém, as relações internacionais também contribuíram para a dissemi-
nação e o fortalecimento da democracia, como mostram os casos de Espanha,
Grécia e Portugal, que somente foram aceitos na Comunidade Européia
após a sua redemocratização.
Hoje se discute muito a possibilidade de aprofundar a democracia pela
adoção de mecanismos de democracia participativa, com a criação de conse-
lhos populares, a convocação de referendos, a criação da figura do ombudsman,
orçamentos participativos etc.

3.3 GUERRAS E PAZ


A guerra é outro elemento tradicional nas relações entre as nações, com
um agravante: fracassar numa negociação comercial pode ser negativo para
um país, mas fracassar na guerra pode ser o seu fim. A ascensão e a queda de
nações e de impérios sempre estiveram de alguma maneira ligadas à guerra.

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No entanto, esse tema assumiu uma dimensão diferente após a Segunda


Guerra Mundial e o bombardeio atômico sobre as cidades japonesas de
Hiroshima e Nagasaki. Durante a Guerra Fria e o período de bipolarismo,
perdurou o chamado “equilíbrio do terror”, pois cada lado tinha a capaci-
dade de destruir o outro várias vezes e ninguém sobreviveria a uma catástro-
fe nuclear generalizada. Houve muitas negociações internacionais nesse pe-
ríodo visando a redução de armas nucleares, bem como, mais recentemen-
te, o controle sobre armas químicas e biológicas.
Embora a discussão sobre desarmamento e desmilitarização prossiga, há
na verdade um comércio vigoroso de armamentos convencionais, e ainda
hoje as encomendas militares do governo dos Estados Unidos são um fator
importante de indução de sua economia. De 2001 até hoje, o governo
George W. Bush já gastou mais de US$ 500 bilhões somente nas operações
de guerra do Afeganistão e do Iraque.
Atualmente, os conflitos armados têm caráter regional e com freqüência
decorrem ou são justificados com base em razões étnicas, nacionalistas e
religiosas. Parte deles decorre da forma como determinados países da África,
do Oriente Médio e da Ásia foram descolonizados, sem qualquer considera-
ção à autodeterminação dos povos e com a constituição de fronteiras irrealistas
para, propositalmente, manter áreas de tensão, como entre a Índia e o
Paquistão e no Oriente Médio.
Outra parte dos confrontos decorre da maneira como a convivência
entre certas nacionalidades num mesmo território foi imposta, como
nos casos da ex-Iugoslávia e da ex-URSS (União das Repúblicas Socialis-
tas Soviéticas), que explodiram em conflito após a queda dos regimes do
socialismo real, gerando um dos maiores genocídios do pós-Segunda
Guerra Mundial.
A questão da intolerância religiosa mescla conflitos étnicos e nacionalis-
tas pelo fato de muitos Estados terem forte relação com a religião e com
instituições religiosas. Os casos mais expressivos são Israel, com o judaísmo,
e os países árabes, com o islamismo.
Diante dos conflitos desenvolvem-se uma série de mecanismos e especia-
listas voltados para a diplomacia da paz, seja a partir da ONU (Organização
das Nações Unidas) e de suas organizações regionais, seja a partir de deter-
minados países e personalidades.

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3.4 DIREITOS HUMANOS


Este tema começou a ser normatizado internacionalmente após a Segun-
da Guerra Mundial, como decorrência do trauma advindo do genocídio e
da violência praticados pelo regime nazista.
A primeira norma com valores universais foi a Declaração Universal dos
Direitos Humanos aprovada pela ONU, em 1948. Posteriormente, neste
mesmo âmbito, foi aprovada a Convenção Internacional sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Racial, em 1965, e em 1966 foram
aprovados o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o Protocolo
facultativo a ele e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais. A convenção e os pactos somente alcançaram as ratificações ne-
cessárias para vigorar em 1969 e em 1976, respectivamente.
Na Europa foi aprovado em 1950 o Convênio Europeu dos Direitos
Humanos e Liberdades Fundamentais. No continente americano, a Decla-
ração Americana dos Direitos e Deveres do Homem data de 1948, e a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que ficou mais conhecida
como o Pacto de San José da Costa Rica, de 1969.
No âmbito mundial, a política de direitos humanos foi coordenada desde
1993 por um Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU, subs-
tituído em 2006 pelo Conselho de Direitos Humanos. Na Europa, quem
decide sobre questões relativas às violações é o Tribunal de Justiça da União
Européia, com sede em Estrasburgo, na França. Nas Américas, quem trata
dos direitos humanos é a OEA (Organização dos Estados Americanos), por
meio de sua Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, com sedes, respectivamente, em
Washington e San José da Costa Rica.
Para marcar o aniversário de 20 anos da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, a primeira conferência da ONU realizada especificamente para tra-
tar do tema ocorreu em Teerã, a capital do Irã, em 1968. Essa conferência
pouco avançou, pois ocorreu no auge da Guerra Fria, quando não se permitia
adotar resoluções sobre qualquer país e nem que a Comissão de Direitos Huma-
nos, então existente, tomasse medidas diante das denúncias que recebia, sob a
justificativa da soberania nacional e do princípio da não-intervenção em assun-
tos internos garantido na Carta das Nações Unidas. Além disso, as organizações
da sociedade civil ainda não buscavam incidir sobre este tipo de conferência.

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A primeira vez que a ONU ditou uma norma que se tornou obrigatória
para os Estados-membros foi em 1977 contra o regime do apartheid na
África do Sul, considerado um crime de lesa-humanidade. Na ocasião, o
Conselho de Segurança aprovou um embargo de armas àquele país.
Os princípios sobre a defesa dos direitos humanos estabelecidos até
então foram sendo incorporados também em resoluções, convenções e
recomendações de outras organizações e agências especializadas do siste-
ma ONU que tratam de trabalho, educação, saúde, alimentação, infância
e desenvolvimento.
Em 1993 realizou-se a segunda Conferência das Nações Unidas sobre
Direitos Humanos em Viena, na Áustria, numa conjuntura muito diferen-
te da anterior e com a participação de mais de mil ONGs, entre elas algu-
mas que haviam se tornado conhecidas e influentes, como Anistia Interna-
cional e American Watch, entre outras. As resoluções desta conferência con-
seguiram romper algumas das barreiras mencionadas anteriormente.

3.5 INTEGRAÇÃO ECONÔMICA


A imprensa costuma tratar qualquer acordo de liberalização comercial
bilateral entre países ou acordados regionais como sendo integração eco-
nômica. É uma versão parcial e denota muito mais uma defesa do livre
comércio do que uma avaliação real do significado e das perspectivas de
uma integração.
De fato, o primeiro passo da integração econômica é a eliminação das
barreiras comerciais entre seus participantes, as tarifárias e as não-tarifárias.
No caso da União Européia (UE), estas últimas somente foram removidas
na década de 1990. O derradeiro instrumento econômico que poderia afe-
tar o comércio a favor de um país ou de outro seria o câmbio, o que se
resolveu na Europa com a adoção da moeda comum.
Muitas críticas podem ser feitas quanto ao desenvolvimento da estratégia
européia, mas não há dúvida de que os objetivos de estabelecer a paz e o
desenvolvimento após a Segunda Guerra Mundial, que destruiu o conti-
nente, foram alcançados.
A UE é o maior espaço econômico do mundo graças a uma política de
“Keynes em casa e Adam Smith fora dela”, pois aplicou políticas estatais
para regular a integração e proteger os mercados de seus integrantes contra

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a concorrência de terceiros, ao mesmo tempo em que propunha o livre


acesso aos mercados dos outros. Salvo os conflitos nos Bálcãs, com a dissolu-
ção da Iugoslávia, o continente vive um período inédito de paz.
Poderíamos descrever o processo de integração econômica da seguinte for-
ma: começa com a área de livre comércio e em seguida vêm a união aduaneira,
o mercado comum, a convergência macroeconômica e a união monetária.
O Mercosul (Mercado Comum do Sul), por exemplo, que pretende se
tornar um mercado comum, ainda não ultrapassou a fase de união aduanei-
ra incompleta, uma vez que a tarifa externa dos países-membros é comum,
isto é, a mesma em todos eles, com exceção de alguns produtos de cada país
que têm tarifas diferenciadas.
O debate sobre a integração da América do Sul é crucial neste momento.
O modelo de substituição de importações adotado por vários de seus países
buscou o desenvolvimento a partir do Estado Nacional e não conseguiu se
sustentar dessa forma. A pergunta é: não seria mais viável retomá-lo a partir
de um processo de integração entre vários Estados?
Para que uma integração neste formato avance é necessário haver cessão
de soberania entre os participantes. Considerando a herança da teoria da
dependência e da baixa institucionalidade do Mercosul, ainda há muito
para avançar.
Além dos casos mencionados, há mais de uma centena de acordos de
livre comércio e áreas de livre comércio, porém a maioria sem proposta de ir
além das relações comerciais; pode-se mencionar, por exemplo: o Acordo de
Livre Comércio da América do Norte (NAFTA – North American Free
Trade Agreement); o Acordo Econômico do Sudeste Asiático (ASEAN –
Association of South East Asian Nations); a Cooperação Econômica da Ásia
e do Pacífico (APEC – Asia-Pacific Economic Cooperation); a Cooperação
para o Desenvolvimento Econômico da África do Sul (SADEC – South
African Development and Economic Cooperation) e o Sistema de Integração
Centro Americano (SICA), entre outros.

3.6 ENERGIA
Atualmente, falar de energia significa cada vez mais avaliar a
vulnerabilidade das economias dos países que não dispõem de autonomia
diante de suas demandas de energia, seja para gerar eletricidade na ilumi-

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nação de suas cidades e movimentar suas indústrias, seja para que seus meios
de transporte funcionem.
A matriz energética mundial atual ainda é composta principalmente por
hidrocarbonetos e carvão mineral, e em menor dimensão por energia hi-
dráulica, nuclear, eólica, solar e biomassa. Além do efeito estufa e das trans-
formações climáticas que provoca, a dependência de hidrocarbonetos tem
dimensão política internacional.
Quando o transporte e a indústria movidos a combustíveis derivados do
petróleo se tornaram irreversíveis no início do século XX, o domínio sobre a
exploração de petróleo se tornou uma questão geopolítica, pois as fontes a ser
exploradas concentram-se em apenas alguns lugares do mundo. A mais im-
portante naquela época era o Oriente Médio, o que explica a relutância das
potências européias, como Inglaterra e França, em conceder independência
aos países daquela região ao fim da Primeira Guerra Mundial, o que somente
ocorreria após o fim da Segunda Guerra, quando asseguraram a concessão da
exploração de petróleo naqueles países para suas empresas multinacionais.
O petróleo foi primeiro explorado comercialmente nos Estados Unidos,
levando à criação de empresas como Standard Oil, Exxon, Texaco, que jun-
to com outras empresas européias formaram o cartel das “Sete Irmãs”, que
teve a concessão da produção e distribuição de petróleo no mundo durante
quase um século.
Embora as Sete Irmãs monopolizassem a exploração de petróleo, os paí-
ses produtores se articularam em 1960 por meio da Organização dos Países
Exportadores de Petróleo (OPEP) a fim de tentar regular a produção e os
preços em seu favor. A OPEP tem hoje 12 membros, entre os quais apenas
um é latino-americano – a Venezuela –, pois o Equador retirou-se em 1992.
Estes países possuem dois terços das reservas mundiais de petróleo e
um terço das de gás natural, mas apesar desse poder a maioria deles nunca
conseguiu diversificar suas economias e são dependentes da exportação
desta commodity.
Atualmente há um esforço de outros países fora do circuito da OPEP
para buscar a auto-suficiência em petróleo e gás, bem como para definir
regras próprias para explorá-los e utilizá-los politicamente nas relações in-
ternacionais. É o que ocorre principalmente na América Latina, no Irã e na
Rússia, embora com características diferentes.

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3.7 COMBATE À POBREZA


Este tema tornou-se também relevante nas relações internacionais, princi-
palmente a partir da Conferência Social de Copenhague, realizada em 1995, e
da Declaração do Milênio, aprovada pela ONU na virada do século XXI, na
qual foram incluídos os oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs)
a ser perseguidos pelos governos do planeta: erradicar a pobreza extrema e a
fome; alcançar o ensino primário universal; promover a igualdade de gênero e
a autonomização da mulher; reduzir a mortalidade infantil; melhorar a saúde
materna; combater o HIV/AIDS, a malária e outras doenças; garantir a
sustentabilidade ambiental e criar uma parceria global para o desenvolvimento.
Existem 18 metas e 48 indicadores para monitorar o progresso dos obje-
tivos. O prazo final para atingi-los é 2015, e normalmente a formulação
indica determinadas metas, como a redução de dois terços da mortalidade
infantil com até 5 anos de idade ou a redução pela metade do número de
pessoas que vivem com menos de US$ 1 por dia – uma referência adotada
pelo Banco Mundial, pela OIT (Organização Internacional do Trabalho),
pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) e ou-
tros para definir a “linha da indigência”.
Uma vantagem dos ODMs é que traçam um patamar de objetivos iguais
para todos os países e regiões, o que facilita a cooperação técnica nessa área.
Os seus indicadores permitem o monitoramento da situação social e do
combate à pobreza em qualquer nível administrativo. O governo Lula tem
o mérito de ter agregado a essas iniciativas a discussão sobre o programa
Fome Zero internacional, bem como a busca de fontes alternativas de fi-
nanciamento para o combate à pobreza, envolvendo inclusive governos de
outros países, como Chile, França e Espanha.

3.8 MEIO AMBIENTE


Esta questão é a que mais tem sido utilizada para discutir e exemplificar a
teoria da interdependência complexa, pois não há como pensar em soluções
para os problemas ambientais exclusivamente no marco dos Estados nacionais,
pois o que acontece com a atmosfera, o clima, os mares e os rios afeta a todos.
O tema ambiental é também o que mais mobiliza as organizações da
sociedade civil devido aos impactos concretos causados pelos problemas
relacionados ao meio ambiente, por exemplo, no caso do vazamento de gás

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tóxico provocado pela fábrica da Union Carbide em Bhopal, na Índia, que


em três dias matou mais de 8 mil pessoas no ano de 1984.
A primeira conferência sobre meio ambiente organizada pela ONU em Esto-
colmo, na Suécia, em 1972, foi também a primeira que teve a participação de
ONGs (Organizações não-governamentais) que, por meio de reuniões paralelas,
promoviam a discussão acerca do meio ambiente a partir de seu ponto de vista e
em seguida encaminhavam suas propostas para as delegações governamentais.
Uma das razões para o despertar desse interesse foi o enorme derramamento de
petróleo no Canal da Mancha, poucos anos antes, que danificou sobremaneira a
fauna e a flora marinha, bem como o litoral de diversos países europeus.
A segunda, a Eco-92, realizada no Rio de Janeiro em 1992, foi a confe-
rência sobre temas sociais que obteve maior participação da sociedade civil
até hoje e além disso produziu uma série de resoluções que vêm sendo
tratadas internacionalmente, por exemplo a Agenda 213.
Nesse ínterim também foi aprovada uma série de tratados específicos, como
os Acordos Multilaterais Ambientais (AMAs), entre os quais figuram o Protoco-
lo de Kyoto sobre emissão de gases e o combate ao buraco na camada de ozônio.
O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC –
Intergovernmental Panel on Climate Change) divulgou no início de fevereiro de
2007 o quarto relatório das avaliações conduzidas pelo grupo sobre o aquecimen-
to global desde que foi instaurado, em 1998, pelo Programa das Nações Unidas
para o Meio Ambiente (PNUMA), em parceria com a Organização Meteorológica
Mundial (WMO – World Meteorological Organization), também parte da ONU.
Este informe chamou a atenção pelo teor mais alarmante utilizado para tra-
tar do tema das mudanças climáticas e do papel do homem na ampliação do
efeito estufa, bem como do conseqüente aumento da temperatura do planeta,
que, segundo o documento, deverá aumentar em até quatro graus centígrados
até o final do século. Espera-se que a divulgação do documento sirva para que os
países formulem políticas públicas para enfrentar o aumento do uso de com-
bustíveis fósseis, o maior responsável pelas emissões de gás que resultam no
aquecimento global.

3
Aprovada na Eco 92, a Agenda 21 continha uma série de temas a ser negociados durante as reuniões
da ONU (Organização das Nações Unidas) posteriores à conferência; entre eles estava o da emissão
de CO2, que levou à criação do Protocolo de Kyoto.

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O presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, apesar de ser extre-


mamente ligado à indústria petroleira, afirmou que seu país deverá dimi-
nuir em 20% o consumo de gasolina nos próximos dez anos, investindo na
produção de biocombustíveis, a exemplo dos programas já desenvolvidos
com sucesso pelo governo brasileiro.

3.9 MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS


O tema das migrações internacionais se apresenta em função da
globalização, da concentração de renda, do progresso dos meios de comuni-
cação e dos meios de transporte. Refugiados em função de conflitos ou de
perseguições políticas e/ou religiosas sempre houve. Hoje, porém, a migra-
ção internacional decorre principalmente por motivos econômicos.
Na Europa dos anos 1960 e 1970, havia uma intensa migração dos paí-
ses do sul do continente para os do norte em busca de trabalho. A partir dos
anos 1980, destacaram-se os migrantes da África, que se fixavam principal-
mente nos países europeus em torno do Mediterrâneo. Depois do fim da
Guerra Fria, passou a haver um fluxo importante também do Leste europeu
em direção aos países da União Européia.
Os migrantes latino-americanos de língua espanhola têm procurado prin-
cipalmente a Espanha e os Estados Unidos para viver, e no caso dos brasilei-
ros observamos fluxos importantes para Portugal e Japão, além dos Estados
Unidos. Os migrantes asiáticos procuram majoritariamente o Japão, a Coréia
do Sul, o Oriente Médio, os Estados Unidos e a Europa.
As remessas de dinheiro dos imigrantes a seus países de origem torna-
ram-se também um fator econômico relevante. Atualmente, os emigrantes
em geral remetem aproximadamente US$ 170 bilhões por ano de volta aos
seus países de origem – no caso da América Latina, esse montante alcança
aproximadamente US$ 50 bilhões anuais.
Em relação aos refugiados devido a conflitos, destacam-se hoje os de
Darfur, Afeganistão, Iraque e Colômbia.

3.10 PARADIPLOMACIA
Atualmente, algumas esferas não-centrais de governo, como estados,
municípios e parlamentos, realizam atividades internacionais em seus res-
pectivos âmbitos, o que tem sido denominado por alguns “paradiplomacia”.

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Os termos de referência para as relações internacionais dessas esferas de


Estado subnacionais são obviamente diferentes das políticas sob responsa-
bilidade dos governos centrais, pois não lidam diretamente com temas como
defesa ou acordos comerciais. Mesmo assim, podem complementar deter-
minadas políticas centrais dos governos, inclusive no que tange às relações
internacionais, bem como ao desenvolvimento da cooperação técnica inter-
nacional conhecida como cooperação descentralizada.
Seu reconhecimento como atores pelas organizações internacionais tam-
bém é limitado. Um governo estadual ou municipal tem o mesmo status de
uma ONG junto à ONU, apesar de já existirem organizações de municípi-
os e regiões com representação mundial, como a rede Cidades e Governos
Locais Unidos (CGLU), fundada em 2004, com sede em Barcelona.
Existem outras redes municipais organizadas em torno de temas especí-
ficos, como meio ambiente, educação, promoção da paz, projetos de
integração – como o Mercosul e a Comunidade Andina de Nações –, me-
trópoles, entre outras iniciativas.
A população mundial, que hoje já é majoritariamente urbana (pouco
mais de 50%), exige a aceleração do processo de descentralização política-
administrativa para atender à demanda por melhor atendimento das suas
necessidades de proteção social e de políticas públicas.
Este processo, para ser mais eficaz, deveria ser acompanhado por rela-
ções internacionais paradiplomáticas, uma vez que muitos problemas são
semelhantes e a troca de experiências pode ser muito útil para racionalizar
esforços. Além disso, a cooperação descentralizada pode aportar recursos,
e um conjunto importante de cidades ou estados com as mesmas visões
podem incidir positivamente sobre as políticas de algumas instituições
internacionais que normalmente destinam recursos para a gestão dos go-
vernos subcentrais.

4. AS INSTITUIÇÕES E AS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS

As primeiras organizações internacionais com caráter eminentemente téc-


nico datam do século XIX. A Comissão Fluvial para tratar da navegação do
rio Reno surgiu em 1815, e a Comissão do Danúbio em 1856. A União
Telegráfica foi fundada em 1865, a União Postal Universal em 1874, a União

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para Proteção da Propriedade Intelectual em 1883, e a União das Ferrovias


em 1890 (Seitenfus, 2000, p. 35).
A OIT é de 1919 e nasceu da negociação do tratado para definir os
termos de paz com a Alemanha, que havia sido derrotada na Primeira Guer-
ra Mundial. Essa negociação também levou à criação da Sociedade das Na-
ções (SDN), proposta na época pelo presidente norte-americano Woodrow
Wilson para cuidar de segurança, cooperação econômica, social e humani-
tária e executar alguns dos dispositivos do Tratado de Versalhes.
A visão “idealista” de Wilson pressupunha que a organização não necessi-
taria de mecanismos coercitivos para funcionar, uma vez que apenas países
democráticos poderiam se tornar membros, e se todos eram democráticos
todos respeitariam as decisões tomadas e não haveria necessidade de coer-
ção. Como sabemos, não funcionou assim, e o início da Segunda Guerra
Mundial jogou uma pá de cal nessa primeira experiência de criação de uma
organização internacional para promover a cooperação entre as nações.
Em meio ao novo conflito, quando a vitória começava a despontar para os
aliados, os principais governantes da época, Franklin Delano Roosevelt,
Winston Churchill e Joseph Stálin, começaram a discutir como seria a
regulação do mundo no período posterior de paz.
Dessas conversações surgiram as Instituições de Bretton Woods (FMI e
Banco Mundial-BIRD), a ONU e o GATT. Posteriormente surgiram novos
organismos mais especializados, alguns incorporados ao sistema das Nações
Unidas e outros como organizações autônomas. Também foram criadas or-
ganizações específicas como a OCDE (Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico) e a OTAN (Organização do Tratado do Atlân-
tico Norte), além de organizações regionais.
A Carta de São Francisco marcou a criação da ONU, em 1945, e atribuiu
a ela a seguinte estrutura decisória: a Assembléia Geral, instância maior, em
que todos os membros têm direito de voz e voto; o Conselho de Segurança,
composto por 15 integrantes, dos quais cinco têm assento permanente e
direito de veto e dez são rotativos, com mandatos de dois anos cada e esco-
lhidos pela Assembléia Geral; o Secretariado, composto por todo o staff da
organização e das diferentes funções da ONU, coordenado por um secretá-
rio geral também eleito pela Assembléia; e, finalmente, a Corte Internacio-
nal de Justiça.

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Organograma das Nações Unidas

Fonte: Seitenfus, 2000, p. 123.

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Esta última, apesar da denominação, não possui poder coercitivo para


obrigar um membro a cumprir alguma resolução. Somente o Conselho de
Segurança possui tal poder, desde que se trate de questões que violem a paz,
que a maioria dos seus membros esteja de acordo e que nenhum dos países
com assento permanente aplique seu poder de veto à decisão. O sistema
ONU tem a configuração apresentada no Organograma da página anterior.

BIBLIOGRAFIA

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BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA

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cer ou não perder. Porto Alger/Brasília, Editora da Universidade/UFRGS/
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Kjeld Jakobsen

Retalhos para uma história


dos movimentos contra a
globalização neoliberal1
Gustavo Codas2

1. INTRODUÇÃO

O tema proposto para a exposição – “Um olhar sobre o mundo; a situa-


ção atual da luta dos trabalhadores em suas várias dimensões; os partidos
políticos, as organizações internacionais, os movimentos sociais e as centrais
sindicais; o Fórum Social Mundial; os governos de esquerda e progressis-
tas” – precisaria de uma boa equipe de pesquisadores dedicada por longos
meses para conseguir chegar a um resultado aceitável3.
Nas condições em que realizamos este trabalho, no entanto, nosso objetivo
está aquém do anunciado no tema do curso. Falamos em um estudo em
“retalhos” porque nos aproximaremos aqui apenas de alguns aspectos do tema
que nos foi proposto. Em nossa opinião, são capítulos importantes dos movi-
mentos que têm se desenvolvido nos anos recentes contra a globalização
neoliberal, mas não dão conta do “todo”. Por outro lado, são retalhos porque
no estágio em que se encontra nossa elaboração falta ainda explorar conexões

1
Este artigo resulta da fusão e da reelaboração de outros já publicados pelo autor: “¿Cuál es el papel
del Foro Social Mundial?”. Alternativas. Revista de análisis y reflexión teológica, ano 10, n. 25, Manágua,
Editorial Lascasiana, jan.-jun. 2003; “De volta a Seattle: anotações sobre o futuro do ‘processo FSM’”.
Proposta. Revista Trimestral de Debate da FASE, ano 28, n. 102, Rio de Janeiro, FASE, set.-nov. 2004; “América
Latina: integração e lutas de emancipação”. Contexto Latinoamericano. Revista de Análisis Político, n. 1,
Bogotá, Ocean Sur, set.-dez., 2006; Trajetória, estrutura e funcionamento da Aliança Social Continental, docu-
mento para debate no Conselho Hemisférico da ASC em Havana, 3-6 de maio de 2007.
2
Economista e jornalista paraguaio, reside no Brasil desde 1983; é assessor da Secretaria de Relações
Internacionais da Central Única dos Trabalhadores (CUT), e tem participado como representante da
CUT em diversos momentos e instâncias do Fórum Social Mundial, da Assembléia de Movimentos
Sociais e da Aliança Social Continental (ASC). Escreve aqui a título pessoal.
3
O único esforço sério feito nesse sentido foi o livro de Amin e Houtart (2002), publicado no Brasil
pela editora Cortez, em 2004, com a data do título alterada para “2003”. O livro foi o resultado de
uma iniciativa da rede Forum Mondial des Alternatives que lamentavelmente não teve continuidade.

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entre os diversos aspectos aqui abordados e buscar chegar a conclusões mais


abrangentes sobre o conjunto dos problemas. Em suma, trata-se de um ma-
terial de estudo e trabalho, antes que de um produto acabado.
O conteúdo a seguir está dividido em tópicos dedicados ao Fórum Social
Mundial (FSM), à Assembléia de Movimentos Sociais e à Aliança Social
Continental (ASC) como casos e momentos-chave do amplo processo de
reorganização da sociedade civil mundial no cenário da globalização
neoliberal. Desse estudo deriva uma série de desafios ainda não respondi-
dos e que encontram em nossa região uma conjuntura toda especial. Por
isso, finalizaremos com um tópico dedicado à aproximação dos processos
políticos latino-americanos, suas potencialidades e seus desafios.

2. O FÓRUM SOCIAL MUNDIAL (FSM): UMA RECOMPOSIÇÃO DEMORADA

Entre o final dos anos 1980 e o início da década de 1990, um conjunto


de fatos pôs em evidência a profunda derrota política das esquerdas no
mundo. Vista desde nossa região, essa é a fase em que, ao lado do impacto
da queda do muro de Berlim (1989) e da dissolução da União das Repúbli-
cas Socialistas Soviéticas (URSS) (1991), os sandinistas foram derrotados
eleitoralmente (1990), os processos de insurgência popular em El Salvador
e na Guatemala foram detidos, Cuba iniciou a travessia no deserto do “pe-
ríodo especial”4 e o neoliberalismo tornou-se programa de governo de deze-
nas de países em nosso continente. Ao mesmo tempo, ocorreu a primeira
guerra contra o Iraque, quando o governo dos Estados Unidos estreou o “mundo
unipolar” sob sua supremacia militar. O neoliberalismo alterou as bases ma-
teriais de nossas sociedades produzindo altas taxas de desemprego e precarização
que acompanhavam o ritmo de uma onda ideológica consumista e individua-
lista. O socialismo saiu do horizonte do debate, as organizações populares
viram suas bases sociais tradicionais se deteriorarem, a idéia de solidariedade

4
Período especial é a denominação com que ficou conhecida a década de 1990 em Cuba, quando
esse país sofreu os brutais impactos econômicos (“uma das mais duras crises de sua história”) da
derrubada do bloco socialista. Cuba respondeu com “um forte processo de redesenho da política
econômica, de reconversão industrial e de transformação estrutural da gestão produtiva” que lhe
permitiu voltar a “crescer e se desenvolver” (ver: “La Economía Cubana en el Período Especial”,
disponível em <www.bc.gov.cu/Espanol/economia_cubana.asp>).

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Gustavo Codas

foi posta em questão, em suma, os valores e as referências que tínhamos


construído na fase anterior estavam sob intenso ataque.
Houve ao longo do período de ascenso do neoliberalismo inúmeras lutas
sociais de resistência, mas num contexto de isolamento político. Em nossa
região, esse quadro teve sua mais clara expressão no Caracazo, em 1989, a
sublevação popular na cidade de Caracas contra um pacote de medidas im-
postas pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) e pelo governo recém-
eleito de Carlos Andrés Perez, que foi reprimida com violência, resultando em
centenas de mortos. Na década seguinte houve o clarão de uma nova conjun-
tura quando o levante indígena zapatista em Chiapas, no México, em janeiro
de 1994, despertou grande simpatia internacional e nacional. Mas teríamos
de esperar até o final da década para que processos mais amplos de contesta-
ção surgissem, já num marco de visíveis dificuldades mundiais do
neoliberalismo desde a eclosão da crise do sudeste asiático em 1997. Essa
história começou internacionalmente com a repercussão que tiveram as ma-
nifestações de novembro de 1999 em Seattle (Estados Unidos).
O Fórum Social Mundial surgiu em 2001 nesse caldeirão5. Ao rastrear
seus antecedentes internacionais vamos encontrar o I Encontro Intergaláctico
pela Humanidade e contra o Neoliberalismo (27 de julho a 3 de agosto de
1996), organizado pelo EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacio-
nal), em Chiapas. Convocado por uma organização político-militar, no en-
tanto, foi um momento de uma inédita convergência de setores sociais e
políticos de esquerda muito plurais (o que voltaria a se repetir no FSM). A
campanha contra o Acordo Multilateral de Investimentos (AMI) em 1997-
1998 e sua repercussão na opinião pública mundial mostraram que era
possível deter o avanço das medidas neoliberais que estavam em negociação
em instituições multilaterais6. Em janeiro de 1999, na Suíça, um conjunto

5
O livro de Aguiton (2002) traz um amplo panorama do surgimento dos movimentos altermundialistas
no final dos anos 1990 e início da presente década que desembocaram no processo do FSM e brinda
com informação sobre uma série de encontros que precederam a Porto Alegre 2001 e serviram para
construir o ambiente mundial favorável a essa ampla convergência no espaço Fórum.
6
Pelo papel que teve nessa campanha e na criação (em boa medida impulsionada pelo seu êxito) da
ATTAC (Associação pela Taxação dos Capitais em Apoio aos Cidadãos) em finais de 1998, o jornal
Le Monde Diplomatique ganhou ares de porta-voz do altermundialismo, ainda que nunca tenha perdido
seu sotaque político francês. O slogan “Outro mundo é possível”, popularizado depois pelo FSM,
foi utilizado em um encontro internacional realizado em 1999, iniciativa dessa e de outras redes.

37

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de redes internacionais realizou o encontro denominado O Outro Davos7,


em contraposição ao Fórum Econômico Mundial que as grandes corporações
multinacionais realizam nessa cidade anualmente desde 1973 (idéia que
depois seria assumida como mote pelo FSM).
Se analisarmos nossa região, veremos que o FSM veio precedido de uma
intensa atividade dos movimentos sociais. Entre os antecedentes mais im-
portantes esteve a campanha continental contra os 500 anos de colonialismo
em 1992. Nela, uma convergência entre movimentos indígenas, campone-
ses, de bairros, de mulheres, da cultura e comunicadores populares, entre
outros, apontava a conformação de novos atores políticos. Articulações con-
tinentais surgiram ou se fortaleceram nesse processo na nova conjuntura
que se delineava em nossa região nos anos 1990: a Via Campesina e a Coor-
denação Latino-americana de Organizações do Campo (CLOC); os encon-
tros de povos indígenas que resultaram em coordenações (amazônica, andina
etc., e que em março de 2007, na Guatemala, constituíram uma coordena-
ção de nível continental); o Jubileu Sul Américas e os “50 anos (de FMI/
Banco Mundial) bastam”; a Marcha Mundial das Mulheres e a Rede Mu-
lheres Transformando a Economia (REMTE); a Frente Continental de Or-
ganizações Comunitárias (FCOC); o Grito Continental dos/as Excluídos/
as; a Aliança Social Continental; a Campanha Continental contra a ALCA
(Área de Livre Comércio das Américas) e os Encontros Hemisféricos de
Luta contra a ALCA; a Convergência de Movimentos Populares (COMPA);
a Assembléia dos Povos do Caribe (APC). O mesmo processo encontramos
no Brasil na constituição e no importante papel que cumpriu o Fórum
Nacional de Lutas na década de 1990 e início da atual ao unificar todos os
setores sociais e partidários contrários às medidas neoliberais dos dois man-
datos de FHC (Fernando Henrique Cardoso).
A força do evento de Porto Alegre em 2001 proveio de uma peculiar
convergência de fatores. As primeiras organizações sociais brasileiras
convocadoras sintetizavam a convergência de sensibilidades políticas diver-
sas, ajudando a reproduzir essa pluralidade em nível internacional. Essa

7
Sobre esse evento ver o livro publicado por Houtart e Polet (2002). Houtart, padre católico belga,
expoente da teologia da libertação, foi um dos animadores do encontro.

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Gustavo Codas

convergência brasileira foi facilitada porque em 2000 todas tinham em maior


ou menor medida uma referência política no Partido dos Trabalhadores
(PT) e várias vinham de um trabalho conjunto no Fórum Nacional de Lu-
tas. Porto Alegre foi escolhida pela forte presença de movimentos sociais e
das esquerdas partidárias e pelas experiências dos governos do PT de ampliação
da democracia a formas participativas e diretas (o “orçamento participativo”
na prefeitura e no governo estadual). Esses governos (Olívio Dutra no esta-
do do Rio Grande do Sul; Raul Pont até 2000 e Tarso Genro em 2001, na
prefeitura de Porto Alegre) não somente deram grande apoio financeiro e de
infra-estrutura, sem nenhuma exigência de contrapartidas políticas, como
introduziram a perspectiva de ir além de um mero encontro e transformá-lo
em um evento de massas – como efetivamente veio a ser.

3. DUAS DINÂMICAS E UM MÉTODO

Já se passaram sete anos. Houve Fóruns Mundiais no Brasil (2001,


2002, 2003, 2005), na Índia (2004) e no Quênia (2007), em 2006
houve um Mundial Policêntrico (Venezuela, Mali, Paquistão), têm havi-
do fóruns continentais e regionais, além de nacionais e temáticos, sub-
regionais e locais em muitas partes do mundo. Se os Estados Unidos eram
uma referência importante pela mobilização de 1999 em Seattle, somen-
te em junho de 2007 realizarão seu primeiro Fórum Social nacional. En-
quanto algumas partes do mundo têm vivido o processo FSM de uma
maneira mais intensa, em outras apenas têm chegado ecos – é o caso de
quase toda a ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e do
Leste Europeu, boa parte do Extremo Oriente e do mundo árabe e mu-
çulmano. Tal heterogeneidade dentro do processo FSM dificulta fazer afir-
mações gerais de balanço e perspectivas.
Mas a importância de Seattle e das manifestações que lhe seguiram não
pode ser desprezada. O FSM precisou desde o início tentar ser um espelho
delas para se legitimar. Foram essas ações de rua que gestaram o que depois
o Fórum tentaria sistematizar como “método”. A marca do FSM como es-
paço aberto vem do fato de que tais iniciativas buscavam a convergência de
setores muito diversos (cultural, organizativa e ideologicamente), ainda que
unidos pela rejeição da ordem mundial imposta (a tentativa de acordo na

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OMC – Organização Mundial do Comércio – em 1999, no caso de Seattle)8.


Novas formas de fazer política (organizações comunitárias de juventude,
grupos culturais, experiências em redes horizontais etc.) convergiam com anti-
gas organizações (como as centrais sindicais e as ONGs ligadas à conferências
da ONU – Organização das Nações Unidas)9. Organizações de ação direta
caminhavam ao lado de manifestantes de organizações de tipo institucionalista.
A crise político-ideológica que se abateu sobre a esquerda no início dos anos
1990 debilitou os principais aparatos do movimento operário antes domi-
nantes (as diversas correntes socialdemocráticas e as oriundas do stalinismo),
dificultando qualquer tentação hegemonista. A desorganização programática10
da esquerda no início dos anos 1990 abriu condições para que uma década
depois houvesse maior abertura para a busca de novas convergências
programáticas entre os movimentos (e entre partidos políticos).
Assim como em Seattle, no FSM convergiram o que podemos
esquematicamente caracterizar como dois setores diferentes. Estavam lá or-
ganizações (boa parte das centrais sindicais, em geral as ONGs e as organi-
zações feministas institucionalistas) que diante da ofensiva neoliberal dos
anos anteriores tinham ensaiado estratégias de incidência, lobby e advocacy11
sobre organismos multilaterais, tentando diminuir os impactos negativos
do neoliberalismo. Foi uma cultura política reforçada pelo ciclo das Confe-

8
Essa característica do FSM como “espaço aberto” (“que não adota campanhas enquanto tal”) foi
sendo construída. Ainda na segunda reunião do Conselho Internacional do FSM, realizada em 30 de
outubro a 1o de novembro de 2001 em Dakar (Senegal), representantes de duas organizações do
Comitê Organizador brasileiro (Cives – Associação Brasileira de Empresários pela Cidadania – e
Comissão Brasileira Justiça e Paz – CBJP) propuseram que se assumisse uma campanha mundial para
erradicar a fome do mundo em um curto prazo como forma de desafiar os organismos multilate-
rais. A proposta foi polêmica e não prosperou.
9
Que as formas organizativas sejam novas não significa automaticamente que superem problemas
das antigas organizações e culturas políticas. Por exemplo, uma das experiências-símbolo da nova
cultura política e do FSM como um todo, a ATTAC França, recentemente entrou em profunda crise
após um setor que dominava sua direção ter fraudado as eleições internas (nada mais tradicional em
política que fraudar uma eleição!) para evitar perder a presidência da organização. Do mesmo modo,
nada é tão típico da cultura política tradicional quanto o personalismo exibido pelos três autores –
pessoas representativas do processo FSM – nos livros citados na nota 14 (página 44), em que tentam
contar a história do Fórum na primeira pessoa do singular; a esse respeito ver a crítica de Kjeld Jakobsen
na seção de resenha de livros da revista Teoria e Debate, n. 62, abr.-maio 2005.
10
A expressão foi cunhada pelo espanhol Miguel Romero (hoje editor da revista Viento Sur) no
início dos anos 1990 para descrever a crise que se abateu sobre as esquerdas no mundo.
11
Advocacy é a denominação de um conjunto de estratégias para influenciar, desde a sociedade civil,
na elaboração e na implementação de políticas públicas definidas pelos poderes do Estado.

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rências da ONU (ambiental, social, hábitat, mulheres etc.) ao longo da


década. Sem que existisse uma fronteira nítida, no entanto, foi crescendo ao
mesmo tempo outra cultura política e outra orientação estratégica que ques-
tionavam a validade de meros lobbies naqueles espaços multilaterais, privile-
giavam as ações diretas e de rua e buscavam uma contraposição global à
nova ordem através de campanhas. Havia evidentemente toda uma zona
cinzenta de experiências e organizações que transitavam entre esses “dois
pólos”. O que viria a ser o FSM foi “fundado” em 1999 em Seattle, pois lá,
pela primeira vez e de forma muito ampla e internacional, essas duas cultu-
ras e todas as suas nuanças se unificaram na rua, mostrando as potencialidades
das mobilizações comuns ou, pelo menos, articuladas. Teve um efeito de-
monstração instantâneo sobre inúmeras outras mobilizações que viriam a
ocorrer na seqüência. Feita essa proeza por milhares de militantes anôni-
mos, bastou depois às entidades organizadoras do “evento FSM” tentar trans-
por a um “método” o que as multidões tinham produzido na luta política.

4. GOVERNOS, PARTIDOS E DILEMAS DO FSM

Há uma “crise da política” e de seus atores tradicionais (partidos, insti-


tuições do Estado etc.). Entre as várias críticas que lhe podem ser feitas, há
duas que têm forte repercussão nos movimentos sociais: o sentimento de
que mudam governos mas não mudam – ou pouco mudam – as políticas
implementadas, e a percepção de que a lógica da construção dos partidos
progressistas (sejam mais à esquerda ou mais moderados) é necessariamente
burocrática, excludente, centralizadora etc. Na sua versão mais recente, o
discurso crítico afirma que a tentativa de tomar o poder construído pela
burguesia nos faria assumir características similares às que afirmamos com-
bater – daí a hipótese de “mudar o mundo sem tomar o poder”.
As primeiras respostas a essa crise vieram, no início dos anos 1990, na
forma da volta ao espaço local e a formas de vida comunitária. Mas essa
resposta era ambígua em relação ao desafio colocado pela hegemonia
neoliberal. Em alguns casos, víamos surgir fortes processos de resistência
local, com vocação até mesmo de se expandir para além de seu espaço ini-
cial. Porém, em outros, o localismo era apenas o verniz que a adaptação às
políticas neoliberais assumia junto à comunidade. Dessa matriz surgiram

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tanto visões e práticas de enfrentamento com a ordem conservadora como


de submissão a ela. Para dizê-lo um pouco caricaturalmente, com a mesma
lógica se podia construir uma comunidade indígena zapatista autônoma no
México ou uma parceria com o programa Comunidade Solidária no Brasil
sob o governo FHC.
No FSM a questão da política e a questão dos partidos são matérias pen-
dentes. Há que se esclarecer que a “exclusão” de partidos na organização do
FSM aconteceu num segundo momento. Qualquer um(a) que revisar as
primeiras atas do que viria a ser o primeiro Comitê Organizador do FSM de
2001 verá que havia a presença de uma representante da direção nacional
do PT. Nossa interpretação é de que a “separação formal”, que aconteceu a
seguir, foi mais por comodidade do que por formulação política. Malgrado
muitas identidades, seria difícil conciliar as prioridades da sociedade civil
(elaborar agendas alternativas) com as dos partidos políticos de maior peso
(como construir a governabilidade ao chegar ao poder). Assim, o FSM se
firmou como “espaço da sociedade civil” no qual os partidos políticos são
observadores ou parceiros em atividades realizadas por organizações sociais,
mas não são eles mesmos “organizadores”12. Essa “solução” foi necessária em
certo estágio de construção da contestação à ordem neoliberal. Mas não
ajudará a sair do impasse estratégico. Serão necessárias novas formulações
para “politizar a sociedade civil”, mas também para “desoligarquizar a polí-
tica”. O diálogo entre essas esferas, seu mútuo questionamento, a busca de
novas sínteses são tarefas que o próprio êxito do FSM pôs em pauta13. A
questão agora (2007) assume feições próprias na América Latina pelo avan-

12
Essa fórmula foi implementada primeiro pelo Fórum Social Europeu e depois assumida pelo
conjunto do FSM. A verdade é que nas primeiras edições do FSM o Comitê Organizador brasileiro
foi amplamente tolerante e aceitou a realização de atividades de partidos desde que formalmente
estivessem inscritas por alguma organização social. Atividades de governos (a começar pelas dos
dois governos locais que apoiavam o evento) sempre foram aceitas, desde que em parceria com
organizações sociais.
13
Contraditoriamente, em suas origens o FSM expressava talvez de maneira mais clara essa necessi-
dade; não foi por outro motivo senão pela experiência do orçamento participativo iniciada em
Porto Alegre, como embrião de uma “nova política”, que, quando se pensou em convocar o
primeiro FSM para janeiro de 2001, o consenso entre entidades brasileiras e estrangeiras foi que
deveria acontecer naquela cidade, um lugar onde o “outro mundo possível” já tinha começado a ser
construído. Esse quadro regrediu com as derrotas eleitorais do PT no Rio Grande do Sul (2004) e em
Porto Alegre (2006), mas, em compensação, se disseminou em várias experiências nacionais na
América Latina.

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ço de forças políticas progressistas e de esquerda no plano institucional,


com cerca de uma dezena de países em que os governos têm projetos varia-
dos que afirmam querer superar a fase neoliberal e/ou a dependência em
relação ao imperialismo norte-americano. Voltaremos a esse ponto quando
tratarmos da conjuntura regional ao final deste texto.

5. A ASSEMBLÉIA DE MOVIMENTOS SOCIAIS

Em outubro de 2000, isto é, quase quatro meses antes do primeiro FSM,


reuniram-se representantes da CUT (Central Única dos Trabalhadores) e
do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) em São Paulo
para discutir a proposta que estava circulando entre várias redes internacio-
nais de realizar dentro do FSM uma atividade que já em Porto Alegre seria
conhecida como a Assembléia de Movimentos Sociais, e que foi finalmente
convocada e organizada por um conjunto de organizações e redes nacionais,
continentais e mundiais. Em diversas modalidades, assembléias similares
aconteceram também nas edições regionais ou mundiais seguintes do FSM,
sempre convocadas por um amplo leque de movimentos sociais. Sem negar
as diferenças políticas entre seus participantes, essas assembléias buscavam
identificar as visões políticas comuns sobre o período e em relação a uma
agenda de mobilizações mundialmente articuladas.
Sua novidade residia em sua realização dentro do FSM, buscando cons-
truir identidades no amplo espaço plural desse processo, sem se sobrepor a
outras dinâmicas de convergência já existentes (sobretudo redes temáticas
mundiais), mas fazendo com que dialogassem entre si e ajudando a que
suas agendas fossem assumidas por novos segmentos.
O momento de maior ressonância desses esforços foi quando a Assem-
bléia de Movimentos Sociais do FS Europeu de 2002 e a do FSM de 2003
convocaram uma manifestação global contra a invasão militar do Iraque
pelos Estados Unidos. Esse 15 de fevereiro de 2003 catalisou uma mobi-
lização mundial sem precedentes. Porém, tão importante quanto esse mo-
mento, as assembléias foram construindo uma confiança política mútua
entre as organizações participantes.
Na terceira assembléia em Porto Alegre, em 2003, foi lançada a proposta
de constituir uma rede como vínculo permanente entre os movimentos

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participantes. Buscava-se promover as convergências para além dos momentos


em que se realizavam os eventos. Assim, estamos hoje em um momento
intermediário, tentando decifrar os caminhos possíveis de construção da
rede colada com o cotidiano dos movimentos e evitar a constituição de mais
uma “estrutura” – o que não desejamos nem é nosso objetivo construir.
Outros setores também fizeram suas experiências de encontro e articula-
ção dentro do FSM. Essa autogestão das convergências é uma dimensão
ainda pouco analisada nos balanços até agora escritos. Houve ainda quem
abordasse a realização das assembléias com desconfiança – como se as con-
vergências autogeridas fossem antagônicas no que diz respeito à diversidade
dentro do espaço FSM14.
Porém, apesar de todas essas deficiências e dos mal-entendidos, o fato é
que o FSM 2005 colocou como um dos pontos centrais de sua metodologia
a tarefa de estimular experiências de convergências sobre plataformas, estra-
tégias e ações. E a questão foi retomada no FSM de Nairóbi, em 2007, com
um “quarto dia” dedicado a trabalhar articulações e o lançamento de cam-
panhas, na expectativa de que em janeiro de 2008 se expressem em uma
Jornada Mundial a ser realizada em todos os países/regiões/continentes no
mesmo período do Fórum Econômico Mundial de Davos. Como em Seattle,
serão os debates que tenham como objetivo construir lutas concretas que
permitirão fazer todas as discussões estratégicas anteriormente referidas num
ambiente que signifique um salto de qualidade para os movimentos de
altermundialização.

6. A ALIANÇA SOCIAL CONTINENTAL

Não temos escrita uma história da Aliança Social Continental, mas, sem
dúvida, esta experiência se enquadra naquele contexto dos anos 199015. Seu
antecedente mais remoto, provavelmente, foram os esforços de articulação
realizados por organizações mexicanas, estadunidenses e canadenses para

14
Para essas críticas à assembléia ver os livros de Bernard Cassen (2003) – representante da ATTAC
França – e de Chico Whitaker (2005) – representante da CBJP – com prefácio de Oded Grajew – por
sua vez, representante da Cives.
15
Entre as referências disponíveis, ver o texto do mexicano Cueva (2000).

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resistir ao NAFTA (North American Free Trade Agreement – Tratado de


Livre Comércio da América do Norte). Essa experiência nos ensinou, pri-
meiro, o que significava essa nova geração de acordos comerciais, mas tam-
bém que era necessária e se podia fazer uma aliança entre movimentos do
Sul e do Norte com objetivos comuns.
Assim, quando retomou a proposta da Iniciativa para as Américas (1991)
apresentada pelo governo do “primeiro” Bush, o presidente Clinton lançou
em 1994 o desafio da ALCA, como uma extensão a todo o continente (exceto
Cuba) do NAFTA, e não demorou para que movimentos da região se arti-
culassem para entender o alcance dessa iniciativa, adotar posições comuns e
responder ao desafio. Das primeiras escaramuças de 1997-1998, entre os
encontros de Belo Horizonte (Minas Gerais) e de Santiago do Chile, surgiu
a Aliança Social Continental. Houve uma primeira fase de sua construção
que teve conteúdo político estratégico: conformar uma posição política co-
mum entre movimentos sociais, centrais sindicais e ONGs nacionais e re-
des regionais muito diversas. O monitoramento dos temas em negociação,
a educação popular de base para socializar as análises sobre o acordo pro-
posto, os materiais de divulgação, a discussão e elaboração de uma “Alterna-
tiva para as Américas” (de contraposição ponto por ponto à agenda
intergovernamental a partir da visão da sociedade civil) etc. foram funda-
mentais para que, em contraposição à Cúpula de Presidentes de Quebec,
Canadá, em abril de 2001, organizada para impulsionar o capítulo final
das negociações, a Cúpula dos Povos convocada pela ASC avançasse em dois
pontos fundamentais.
Por um lado, a Cúpula dos Povos em Quebec consolidou uma visão co-
mum de que a ALCA não era “reformável”, de que não seria uma cláusula
ambiental, trabalhista ou de gênero que tornaria o acordo aceitável, de que o
problema com esse tipo de acordos era “o todo” e não apenas este ou aquele
item. Isso era muito importante, já que segmentos de peso da sociedade civil
vinham da experiência de ter-se oposto à avassaladora ofensiva neoliberal dos
anos 1980-1990 apenas com estratégias de lobby ou “incidência” buscando
“diminuir impactos negativos” sobre este ou aquele setor etc. Em Quebec
houve um posicionamento majoritário por outro rumo estratégico.
Isso se concretizou em outra decisão tomada naquele momento: diante
da falta de transparência e da ausência de espaços democráticos de partici-

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pação nas negociações e nas discussões sobre a ALCA, lançou-se o desafio de


se fazer uma “consulta popular” continental. Isto é, já que os governos não
discutiam com a população (nem com seus congressos nacionais!), os pró-
prios movimentos fariam a consulta por meio de plebiscitos e de outras
formas. Esse segundo componente da decisão da ASC em Quebec é que
deu base para o lançamento da Campanha Continental de Luta contra a
ALCA. Mas, não esqueçamos, sua gestação não foi simples nem linear.
Houve dois momentos-chave de debates e de construção dessa política: a
reunião do Conselho Hemisférico da ASC em setembro de 2001, em
Florianópolis (Santa Catarina), e a primeira reunião da Campanha em janeiro
de 2002, em Porto Alegre (imediatamente após o II Fórum Social Mundial).
Em uma decidiu-se transformar a proposta de Quebec em um calendário
imediato de mobilização pela consulta continental. Na segunda, deu-se pros-
seguimento ao anterior, ao se convocar todos aqueles setores que, estando ou
não na ASC, estivessem dispostos, na linha aprovada em Quebec (“Não à
ALCA”), a desenvolver a campanha nos diversos países do continente.
A realização do primeiro Encontro Hemisférico de Luta contra a ALCA em
abril de 2002 em Havana, Cuba, consagrou essa combinação de duas dinâmi-
cas: a de uma campanha continental unitária (integrada por campanhas nacio-
nais unitárias) que funcionasse como um “espaço aberto” porém militante (isto
é, numa confluência daqueles e daquelas que querem deter e derrotar a ALCA).
Por isso, podemos afirmar que em Quebec entramos em uma “segunda
fase” da ASC, a da Campanha Continental de Luta contra a ALCA. Nela
somaram-se naturalmente temas que os movimentos vinham tratando se-
paradamente: a campanha contra a militarização e as bases militares norte-
americanas na América Latina (da qual surgiu a rede CADA – Campanha
pela Desmilitarização das Américas), a campanha pela anulação da dívida
externa (liderada pelo Jubileu Sul Américas), a campanha pela soberania
alimentar (impulsionada pela Via Campesina) etc.
Podemos considerar que essa (segunda) fase terminou em novembro de
2005 em Mar del Plata, Argentina, quando ficou claro que a ALCA (tal
como proposta pelo governo dos Estados Unidos) estava paralisada. Não
somente tinha a rejeição da opinião pública de vários países da região e
gerara importantes mobilizações populares contra o acordo e alguns dos
pontos que estavam implicados nas negociações, como países de peso

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(Mercosul + Venezuela) defenderam o abandono dessa agenda continental,


e o governo Bush e seus aliados regionais (a começar por Vicente Fox, do
México) não conseguiram recolocar o tema.
A luta contra a ALCA produziu em nosso continente um dos processos
de convergência política mais amplo e de maior peso que já ocorreram em
nível mundial. Trata-se de uma acumulação política importante, porém
insuficiente para a nova fase em que nos encontramos hoje.

7. DESAFIOS MUNDIAIS, POTENCIALIDADES


LATINO-AMERICANAS, DILEMAS ALTERMUNDIALISTAS

A América Latina entrou em um novo período político, com grandes


potencialidades emancipadoras, cujos contornos e desenvolvimento ainda
estão em construção e disputa. As dificuldades são imensas, mas trata-se de
uma oportunidade histórica única para conquistar a nossa segunda e verda-
deira independência. Nesse contexto, a questão da integração é decisiva
para definir o rumo político a ser tomado pela região16.
É inegável que esse processo de rearticulação das esquerdas tem tido
um balanço globalmente positivo – ainda que com grandes heteroge-
neidades. A resistência deu seus frutos, como demonstra o fato de a nego-
ciação da ALCA estar paralisada e de terem surgido em diversos países
forças políticas críticas do neoliberalismo e do imperialismo norte-ameri-
cano com capacidade hegemônica (e que são governos nacionais em uma
dezena de casos).
Um processo de emancipação não depende, porém, apenas da constru-
ção de forças sociais e políticas com capacidade hegemônica; depende tam-
bém de que haja uma base material que o possibilite. Até 1991, as revolu-
ções ocorridas no século XX, posteriormente à soviética – independente-
mente do maior ou menor entusiasmo em relação a esta –, contavam com a
retaguarda estratégica da URSS, ou seja, dispunham, fora do circuito eco-

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Para o aprofundamento do debate sobre integração regional latino-americana recomendamos:
Lander (2005); Mariátegui (1991); Bandeira (2006); Guimarães (2005); os resultados dos Encontros
Hemisféricos em Havana e outros documentos dos movimentos sociais da região estão disponíveis
no site da Aliança Social Continental, <www.asc-hsa.org>, e no portal <www.movimientos.org>.

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nômico dominado pelo imperialismo, de um mercado para suas exporta-


ções, de uma fonte de aprovisionamento dos produtos que faltassem, de
uma plataforma de tecnologias de ponta à qual podiam ter acesso etc. E
como o mundo estava dividido pela confrontação URSS–Estados Unidos
havia interesse por parte do governo soviético de ampliar suas áreas de in-
fluência. Mas, diante do fato de que a URSS tinha alcançado essa condição
no quadro da tragédia da opção stalinista nas décadas de 1920-1930, era
necessário se equilibrar entre utilizar essa retaguarda estratégica e não per-
der o caráter do processo revolucionário – dura prova pela qual passaria a
experiência cubana. A questão é: desaparecida a URSS, qual seria a atual
retaguarda estratégica? Se o processo emancipatório tivesse lugar num país
periférico, haveria condições de manter e aprofundar seu rumo revolucioná-
rio estando ele inserido num mercado mundial dominado pelo imperialis-
mo? Nem o pensamento revolucionário (desde Marx e Engels até meados
do século XIX) nem o pensamento e a ação estratégica do imperialismo
(desde 1917) admitiram jamais tal hipótese.
No caso de nossa região, porém, há uma brecha que poderia ser utiliza-
da. Produto da combinação da existência de amplas reservas de recursos
naturais de todo tipo e do esforço de industrialização nas fases anteriores ao
neoliberalismo, a América Latina tem um potencial regional para construir
capacidades autônomas diante da pressão do capital imperialista. Mas não
há nenhum país que possa fazê-lo isoladamente, devendo tal projeto cons-
tituir um objetivo comum a vários países.
A integração regional é, pois, uma necessidade para os projetos
emancipatórios, mas é também uma possibilidade concreta, graças ao
surgimento, à consolidação e ao crescimento das forças que menciona-
mos anteriormente.
As dificuldades residem, não obstante, no caráter inédito de um pro-
cesso assim. Até agora, a integração regional sempre foi focalizada e en-
tendida dentro da área de influência – e como parte da influência – de
uma potência hegemônica. Mesmo o processo que resultou na União
Européia deve ser entendido como parte da estratégia dos Estados Unidos
de contenção da URSS.
Já um processo de integração regional sem a liderança de uma potência
hegemônica e, pior ainda, contra as pretensões hegemônicas da única atual

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superpotência (Estados Unidos) não conta com uma doutrina que lhe
proporcione antecedentes e consistência programática: será necessário
elaborá-la à medida que se for avançando. Essa é a tarefa dramática que se
impõe às esquerdas latino-americanas como resultado dos êxitos colhidos
na fase anterior.

8. AGENDAS

1. Neste momento inédito da longa marcha pela emancipação indo-ame-


ricana, será importante sistematizar as propostas e as lições dos esforços
realizados em fases anteriores. Isso incluirá, certamente, o resgate crítico
dos debates propostos por Simón Bolívar (a cujas iniciativas os Estados
Unidos responderam com a Doutrina Monroe), José Carlos Mariátegui (em
diálogo e polêmica com Haya de la Torre), por pensadores da Comissão
Econômica para a América Latina e o Caribe-Cepal (Comissão Econômica
para a América Latina) (como Raúl Prebish, Celso Furtado, Aníbal Pinto e
Maria C. Tavares), por Ernesto Che Guevara e teóricos da dependência
(como Rui Mauro Marini), entre outros.

2. Qual deverá ser a identidade política desse amplo processo? Identida-


de ou identidades? O nacionalismo nos países periféricos ou dependentes
tem um caráter revolucionário quando é antiimperialismo17. Mas, quando
se orienta a disputas entre países da periferia, torna-se um patrioterismo da
pior espécie, facilmente manipulado por interesses imperialistas. Existem
na região conflitos latentes entre países que, se guiados por essa dinâmica,
levariam à desagregação política e ao fracasso da idéia de que há alternativas
à hegemonia imperialista na América Latina. Para superar essa dificuldade,
o presidente Hugo Chávez tem proposto o “bolivarianismo” e, de fato, o
legado de Bolívar se mostra de grande atualidade para as tarefas que estão
hoje colocadas. No entanto, é necessário se perguntar – partindo inclusive
das experiências do século passado – sobre a pertinência da busca de uma só

17
Mas quando o nacionalismo é uma ideologia dos Estados imperialistas trata-se de uma ideologia
reacionária.

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identidade política, mesmo que ideologicamente ampla. Parece que o mais


correto será buscar a convergência a partir de diversas identidades, desde
que orientadas pelo objetivo estratégico comum de uma construção contra-
hegemônica na região.

3. Quais devem ser os conteúdos desse processo? Ou seja, qual seria o seu
“programa”? Como se afirma anteriormente, ele não está pronto: é e será
um processo. E, se admitirmos uma pluralidade de identidades convergen-
tes, deveremos considerar inclusive uma pluralidade de programas. Não
obstante, há algumas diretrizes que podem se afirmar desde já. É lógico e
compreensível que cada governo inicie o processo utilizando os meios que
sua economia nacional possui no momento. Entretanto, se ficarem apenas
nisso, será uma mera reiteração do momento atual (de dependência e sub-
desenvolvimento), que justamente se pretende superar. Por isso, é funda-
mental vincular os debates sobre a superação do neoliberalismo dentro de
nossos países ao processo de integração regional. Por outro lado, nossas eco-
nomias foram construídas historicamente para servir às metrópoles, pos-
suem inclusive características de unidades competidoras entre si por merca-
dos do capitalismo central e por capitais imperialistas nos mesmos ramos.
Um projeto de integração deveria, assim, significar um amplo processo de
redefinição de nossas estruturas produtivas, das infra-estruturas de trans-
porte e comunicação, das matrizes energéticas etc., para fazer da região uma
unidade econômica comum voltada para as necessidades de seus povos. Por
último, não há entre nossos países um único que seja capaz de liderar os
demais, porque nenhum tem capacidades hegemônicas regionais; isso sig-
nifica que, nesse processo, ou se constitui uma liderança compartilhada
entre vários países, ou não haverá processo regional. (Este último é um
desafio particularmente importante e estimulante, já que o pensamento
estratégico convencional não prevê esta hipótese: deverá ser uma criação
heróica de nossos povos.)

4. Como fica claro neste artigo, esse processo não começou agora, nem
caiu do céu. É resultado de lentos e persistentes esforços de construção de
atores políticos e sociais, em nossos países e em nível regional. Por isso,
como método, é fundamental partir daquilo que vem sendo construído em

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termos de espaços de convergência e de capacidade de mobilização. Nessa


trajetória, a Cúpula dos Povos das Américas, reunida de 6 a 9 de dezembro
de 2006 em Cochabamba, Bolívia, convocada pela ASC e pelo Movimento
Boliviano pela Soberania e Integração dos Povos, concomitantemente à
Cúpula de Presidentes da América do Sul, significou um salto de qualida-
de: houve um forte diálogo com os governos presentes – com a facilitação
do presidente Evo Morales e sua equipe –, mesmo que preservada a autono-
mia dos movimentos sociais participantes. Porém, faltaram ou tiveram fraca
participação alguns atores-chave do cenário político regional, como os par-
tidos políticos de esquerda e progressistas.
O êxito do processo de lenta recomposição das esquerdas de que são
parte os Fóruns Sociais (Mundial e Regional), a Assembléia de Movimen-
tos Sociais e a Aliança Social Continental colocou com redobrada força o
desafio de, finalmente, superar os impasses nas relações entre governos
progressistas, forças partidárias de esquerda e movimentos
altermundialistas. O ponto em que ficou a elaboração do “método do
FSM” (de mero “espaço aberto” e de negação do debate aberto e da nego-
ciação programática e alianças com governos e partidos) é insuficiente
para dar conta desse recado. É por isso que o filipino Walden Bello, um
dos principais animadores asiáticos do FSM desde seu início, escreveu
recentemente que, após Nairóbi,

“muitos antigos participantes no Fórum se perguntam: é o


FSM o melhor veículo para a nova etapa da luta do movi-
mento altermundialista? Ou, tendo cumprido sua função
histórica de somar e vincular os diversos movimentos de
oposição provocados pelo capitalismo global, será hora de que
o FSM levante seu acampamento e deixe espaço para no-
vas formas de organização global da resistência e da trans-
formação?” (Bello, 2007).

De nossa parte, afirmamos que na América Latina o próprio Fórum


tem condições de ir mais além daquele estágio e que esse será o grande
desafio do FS das Américas que deve acontecer na Guatemala em outubro
de 2008.

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Por outro lado, a elaboração programática da ASC, fruto fundamental-


mente da fase de resistência à ALCA, também não está à altura do desafio
da integração regional. Cochabamba abriu um novo caminho, mas não res-
pondeu satisfatoriamente à necessária articulação de todos os atores políti-
cos relevantes no cenário latino-americano. É necessário escrever um novo
capítulo na história da emancipação política e social dos povos indo-ameri-
canos. E, diferentemente de em outros momentos, essa emancipação não é
somente um desejo, mas também uma possibilidade concreta!

BIBLIOGRAFIA

AGUITON, Christophe. O mundo nos pertence. São Paulo, Vira-


mundo, 2002.
AMIN, Samir e HOUTART, François (eds.). Mondialisation des résistances.
L’État des luttes 2002. Paris, L’Harmattan, 2002.
CASSEN, Bernard. Tout a commencé à Porto Alegre. Paris, Mille et Une
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GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Desafio brasileiro na era dos gigantes. Rio
de Janeiro, Contraponto, 2005.
HOUTART, François e POLET, François (coords.). O outro Davos. São Pau-
lo, Cortez, 2002.
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Debate, n. 62, São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo,
abr.-maio 2005.
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neoliberales y resistencias populares”. OSAL, n. 15, Buenos Aires,
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MARIÁTEGUI, José Carlos. Textos básicos (seleção, prólogo e notas de Aníbal
Quijano). México, FCE, 1991.
WHITAKER, Chico. O desafio do Fórum Social Mundial. Um modo de ver.
Prefácio de Oded Grajew. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo/
Edições Loyola, 2005.

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Gustavo Codas

TEXTOS DISPONÍVEIS NA INTERNET

BANCO CENTRAL DE CUBA. “La Economía Cubana en el Período Espe-


cial”. Disponível em: <www.bc.gov.cu/Espanol/economia_cubana.asp>.
BANDEIRA, Luiz A. Moniz. “¿Qué quiere Brasil con Sudamérica?” (entre-
vista). La onda digital. Montevidéu, 29 maio 2006. Disponível em:
<www.uruguay2030.com/LaOnda/LaOnda/>.
BELLO, Walden. “The World Social Forum at the Crossroads”, 8 de maio
de 2007. Disponível em: <www.zmag.org/content/showarticle.cfm?
SectionID=1&ItemID=12772>. Disponível em castelhano (“El Foro
Social Mundial en la encrucijada”) em: <www.rebelion.org/
noticia.php?id=50792>.

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Capitalismo, imperialismo e
relações internacionais
Valter Pomar 1

Compreender a dinâmica atual das relações internacionais, especialmen-


te entre Estados, exige compreender o capitalismo. Até porque, desde a
crise geral do socialismo, cujo ápice se deu em torno de 1990, o capitalismo
tornou-se mais hegemônico do que jamais foi.
O capitalismo, suas origens, suas contradições internas, suas tendências
de desenvolvimento, seus limites históricos são temas extremamente con-
troversos, sobre os quais há pelo menos 150 anos de polêmica e diversas
“escolas de pensamento”, muitas vezes antagônicas.
Este texto aborda algumas dessas questões, bem como sugere leituras
(principalmente aquelas disponíveis em língua portuguesa) que permitem
uma abordagem acessível a militantes interessados em ter uma visão geral
sobre o assunto.
Comecemos pelas origens do capitalismo. Embora pareça algo banal,
reconhecer o capitalismo como um fenômeno histórico é algo de enorme
significado político, pois aceitar que ele teve uma origem reforça a idéia de
que ele poderá ter um fim.
Entre os inúmeros autores que trataram do assunto, citaremos o profes-
sor inglês Maurice Dobb. Professor de economia e um dos “fundadores” da
escola de marxistas ingleses integrada por Eric Hobsbawn, E. P. Thompson,
Cristopher Hill e Rodney Hilton, Dobb é autor do livro A evolução do
capitalismo, publicado em 1946.

1
Secretário de relações internacionais do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores. Graduado,
mestre e doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. É co-autor (com Reinaldo
Gonçalves) de A armadilha da dívida e de O Brasil endividado (com Marco Aurélio Garcia e Juarez Guimarães),
e de Socialismo no século XXI, livros publicados pela Editora Fundação Perseu Abramo.

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Valter Pomar

O primeiro capítulo da obra de Dobb dedica-se exatamente a definir o


significado de “capitalismo”, entre outros motivos porque, “se o capitalismo
não existe como entidade histórica, os críticos da ordem econômica atual
que reclamam uma mudança do sistema estão lutando contra moinhos de
vento”. Dobb (1973) afirma que,

“por terem exercido uma influência sobre a pesquisa e a


interpretação históricas, três significados separados e atri-
buídos ao capitalismo surgem com destaque. Embora
em alguns aspectos os mesmos se sobreponham, cada
um deles se associa a uma visão distinta da natureza do
desenvolvimento histórico, cada qual acarreta um trata-
do de fronteiras cronológicas bem diferentes para o sis-
tema, e cada qual resulta num relato causal diferente
quanto à origem do capitalismo e o crescimento do
mundo moderno”.

A primeira abordagem é a que busca “a essência do capitalismo” não “em


qualquer dos aspectos de sua anatomia econômica ou sua fisiologia”, mas no
“espírito” predominante na época: o espírito de empresa, de empreendi-
mento, de aventura, de cálculo, de racionalidade. Ou, nas palavras recentes
de um filósofo menor, o “espírito animal” do empresário.
Uma obra clássica partidária desta primeira abordagem é A ética protes-
tante e o espírito do capitalismo, de Max Weber (2004), para quem o capita-
lismo está presente “onde quer que a provisão industrial para as necessida-
des de um grupo humano seja executada pelo método de empresa”.
A segunda abordagem identifica o capitalismo com o comércio, ou ainda
com a “produção voltada para a troca”. Essa abordagem é extremamente
influente e está na base das correntes teóricas (como o “utilitarismo” e o
“marginalismo”) que buscam o “segredo” do capitalismo não no processo de
produção, mas sim no processo de circulação de mercadorias.
Uma compreensão panorâmica dessas correntes teóricas é apresentada no
livro História do pensamento econômico, de E. K. Hunt (1989).
A terceira abordagem é a que considera o capitalismo um “modo de pro-
dução” específico, distinto de outros existentes na história da humanidade.

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O conceito de “modo de produção” é adotado, aqui, no sentido mais am-


plo do termo, ou seja, “as relações que os seres humanos estabelecem entre si
e com a natureza, no processo de produção e reprodução de sua vida social”.
A obra clássica daqueles que defendem essa abordagem é O capital, de
Karl Marx (2006), que veio à luz em 1867. Anos antes, em 1859, Marx
resumira assim seu método:

“(...) na produção social da sua vida, os homens contraem


determinadas relações necessárias e independentes da sua
vontade, relações de produção que correspondem a uma
determinada fase de desenvolvimento das suas forças pro-
dutivas materiais.
O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura
econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta
a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem
determinadas formas de consciência social.
O modo de produção da vida material condiciona o processo
da vida social, política e espiritual em geral. Não é a consciên-
cia do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o
seu ser social é que determina a sua consciência.
Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as
forças produtivas materiais da sociedade se chocam com
as relações de produção existentes, ou, o que não é senão a
sua expressão jurídica, com as relações de propriedade
dentro das quais se desenvolveram até ali.
De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas
relações se convertem em obstáculos a elas. E se abre, as-
sim, uma época de revolução social.
Ao mudar a base econômica, revoluciona-se, mais ou menos
rapidamente, toda a imensa superestrutura erigida sobre ela.
Quando se estudam essas revoluções, é preciso distinguir
sempre entre as mudanças materiais ocorridas nas condi-
ções econômicas de produção, e que podem ser apreciadas
com a exatidão própria das ciências naturais, e as formas
jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, numa

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Valter Pomar

palavra, as formas ideológicas em que os homens adqui-


rem consciência desse conflito e lutam para resolvê-lo.
E, do mesmo modo que não podemos julgar um indivíduo
pelo que ele pensa de si mesmo, não podemos tampouco jul-
gar estas épocas de revolução pela sua consciência, mas, pelo
contrário, é necessário explicar esta consciência pelas contra-
dições da vida material, pelo conflito existente entre as forças
produtivas sociais e as relações de produção” (Marx, 2003).

Uma visão de conjunto sobre as idéias de Marx pode ser encontrada no


livro do economista belga Ernest Mandel (1980) A formação do pensamento
econômico de Karl Marx. Para uma visão sobre a evolução das diferentes
correntes marxistas, recomenda-se a leitura de Considerações sobre o marxis-
mo ocidental, de Perry Anderson (2004).
É importante dizer que a metodologia histórica formulada por Marx e
Friedrich Engels tem sido parcialmente adotada, nas últimas décadas e parti-
cularmente nos últimos anos, por pessoas que não são comunistas, socialistas,
revolucionárias ou tampouco se consideram marxistas. Nessa linha, recomen-
da-se a leitura de A dinâmica do capitalismo, de Fernand Braudel (1987).
Segundo as abordagens do “espírito” e do “comércio”, o capitalismo já esta-
ria presente desde a Antiguidade clássica, pelo menos. Para a abordagem ins-
pirada em Marx, o capitalismo seria um fenômeno histórico relativamente
recente, produto da desagregação do feudalismo na Europa ocidental.
Para conhecer a visão de Marx sobre as Formações econômicas pré-capitalis-
tas (1977), sugere-se a leitura da obra de mesmo nome, precedida por uma
introdução de Eric Hobsbawn, e também do texto “Modo de producción
asiático y los esquemas marxistas de evolución de las sociedades”, de Maurice
Godelier (1969), no livro Sobre el modo de produccion asiático.
Em A evolução do capitalismo, Maurice Dobb propõe uma interpretação do
processo de transição do feudalismo ao capitalismo. O tema gerou intensa po-
lêmica, como pode ser visto na coletânea intitulada A transição do feudalismo
para o capitalismo (Sweezy et alii, 1983). Obra mais recente sobre aspectos
daquela transição é Linhagens do Estado absolutista, de Perry Anderson (2004).
Embora haja opiniões distintas sobre o surgimento do capitalismo, há enor-
me consenso sobre a importância da chamada “revolução industrial”, bem

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como das chamadas “revoluções burguesas” (a inglesa do século XVII, a nor-


te-americana e a francesa do século XVIII, as várias revoluções ocorridas em
diferentes países da Europa no século XIX) na sua evolução posterior.
Estes temas são tratados de maneira bastante didática por Eric Hobsbawn
em dois livros: Da revolução industrial inglesa ao imperialismo (1979) e A era
das revoluções (1977). Do mesmo autor, A era do capital (1988) descreve a
analisa a evolução do capitalismo entre 1848 e 1875.
Entre o final do século XIX e o início do século XX, o capitalismo passou
a apresentar características muito diferentes daquele que havia sido estuda-
do por Marx em O capital. Essas características foram analisadas, na época,
por cinco obras que hoje são consideradas clássicas:
a) Imperialismo, de John Hobson, de 1902 (1985);
b) O capital financeiro, de Rudolf Hilferding, de 1910 (1985);
c) A acumulação do capital, de Rosa Luxemburgo, de 1912 (1976);
d) A economia mundial e o imperialismo, de Nikolai Bukharin, de
1915 (1984);
e) Imperialismo: etapa superior do capitalismo, de Vladimir Lenin, de
1916 (1979).

Embora tenham pontos em comum, essas cinco obras chegam a conclu-


sões distintas. Delas, a que obteve maior repercussão política foi a de Lenin,
adotada “oficialmente” pelo movimento comunista.
A partir de então e até hoje, há uma enorme controvérsia sobre o “impe-
rialismo”. Até porque, como disse Emir Sader em Século XX. Uma biografia
não autorizada (2000), quem quiser se calar sobre o fenômeno do imperia-
lismo deverá calar-se sobre o século XX.
Uma introdução ao período 1875-1914 é fornecida por Eric Hobsbawn
em A era dos impérios (1988). A revista Margem Esquerda (2005) organizou
um dossiê inteiramente dedicado ao tema.
A definição proposta por Lenin, no sétimo capítulo de seu “ensaio popu-
lar” sobre o imperialismo, é a seguinte:

“O imperialismo surgiu como desenvolvimento e continua-


ção direta das características fundamentais do capitalismo
em geral. Mas o capitalismo só se transformou em imperia-

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Valter Pomar

lismo capitalista quando chegou a um determinado grau,


muito elevado, do seu desenvolvimento, quando algumas
das características fundamentais do capitalismo começa-
ram a transformar-se na sua antítese, quando ganharam
corpo e se manifestaram em toda a linha os traços da época
de transição do capitalismo para uma estrutura econômica
e social mais elevada. O que há de fundamental neste pro-
cesso, do ponto de vista econômico, é a substituição da
livre concorrência capitalista pelos monopólios capitalis-
tas. A livre concorrência é a característica fundamental do
capitalismo e da produção mercantil em geral; o monopó-
lio é precisamente o contrário da livre concorrência, mas
esta começou a transformar-se diante dos nossos olhos em
monopólio, criando a grande produção, eliminando a pe-
quena, substituindo a grande produção por outra ainda
maior, e concentrando a produção e o capital a tal ponto
que do seu seio surgiu e surge o monopólio: os cartéis, os
sindicatos, os trustes e, fundindo-se com eles, o capital de
uma escassa dezena de bancos que manipulam milhares de
milhões. Ao mesmo tempo, os monopólios, que derivam
da livre concorrência, não a eliminam, mas existem acima
e ao lado dela, engendrando assim contradições, fricções e
conflitos particularmente agudos e intensos. O monopólio
é a transição do capitalismo para um regime superior.
Se fosse necessário dar uma definição o mais breve possível
do imperialismo, dever-se-ia dizer que o imperialismo é a
fase monopolista do capitalismo. Essa definição compreen-
deria o principal, pois, por um lado, o capital financeiro é o
capital bancário de alguns grandes bancos monopolistas, fun-
dido com o capital das associações monopolistas de indus-
triais, e, por outro lado, a partilha do mundo é a transição da
política colonial que se estende sem obstáculos às regiões
ainda não apropriadas por nenhuma potência capitalista para
a política colonial de posse monopolista dos territórios do
globo já inteiramente repartido.

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Mas as definições excessivamente breves, se bem que cô-


modas, pois contêm o principal, são insuficientes, já que é
necessário extrair delas especialmente traços muito impor-
tantes do que é preciso definir. Por isso, sem esquecer o
caráter condicional e relativo de todas as definições em
geral, que nunca podem abranger, em todos os seus aspec-
tos, as múltiplas relações de um fenômeno no seu completo
desenvolvimento, convém dar uma definição do imperia-
lismo que inclua os cinco traços fundamentais seguintes: 1)
a concentração da produção e do capital levada a um grau
tão elevado de desenvolvimento, que criou os monopólios,
os quais desempenham um papel decisivo na vida econô-
mica; 2) a fusão do capital bancário com o capital indus-
trial e a criação, baseada nesse ‘capital financeiro’, da oli-
garquia financeira; 3) a exportação de capitais, diferente-
mente da exportação de mercadorias, adquire uma impor-
tância particularmente grande; 4) a formação de associa-
ções internacionais monopolistas de capitalistas, que parti-
lham o mundo entre si, e 5) o término da partilha territorial
do mundo entre as potências capitalistas mais importantes.
O imperialismo é o capitalismo na fase de desenvolvimen-
to em que ganhou corpo a dominação dos monopólios e do
capital financeiro, adquiriu marcada importância a expor-
tação de capitais, começou a partilha do mundo pelos trustes
internacionais e terminou a partilha de toda a terra entre
os países capitalistas mais importantes.
Mais adiante veremos como se pode e deve definir de ou-
tro modo o imperialismo, se tivermos em conta não só os
conceitos fundamentais puramente econômicos (aos quais
se limita a definição que demos), mas também o lugar his-
tórico que esta fase do capitalismo ocupa relativamente ao
capitalismo em geral, ou a relação entre o imperialismo e
as duas tendências fundamentais do movimento operário.
O que agora há a considerar é que, interpretado no sentido
referido, o imperialismo representa em si, indubitavelmente,

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uma fase particular de desenvolvimento do capitalismo. (...)


evidentemente que na natureza e na sociedade todos os limi-
tes são convencionais e mutáveis, que seria absurdo discutir,
por exemplo, sobre o ano ou a década precisos em que se
instaurou definitivamente o imperialismo” (Lenin, 1979).

A análise de Lenin acerca do imperialismo contém, além desta discussão


sobre seu lugar no processo de evolução do capitalismo, uma análise de suas
implicações políticas (no sentido nacional e internacional). Lenin apresenta
seu ponto de vista em O imperialismo, etapa superior do capitalismo, muitas
vezes por meio de críticas a Karl Kautsky, então o principal teórico do Par-
tido Socialdemocrata alemão.
Uma boa introdução ao pensamento de Kautsky está na coletânea
Karl Kautsky e o marxismo (Mattick et alii, 1988). Seus principais opo-
nentes na socialdemocracia alemã foram Eduardo Bernstein, autor de
Socialismo evolucionário (1997), e Rosa Luxemburgo, autora de Reforma
ou revolução (1975).
Segundo Kautsky (1988), o imperialismo seria “um produto do capita-
lismo industrial altamente desenvolvido. Consiste na tendência de toda
nação capitalista industrial a submeter ou anexar cada vez mais regiões agrá-
rias, quaisquer que sejam as nações que as povoam”.
Lenin dizia que esta definição

“destaca de um modo unilateral (...) apenas o problema


nacional (se bem que seja da maior importância, tanto em
si como na sua relação com o imperialismo), relacionando-
o arbitrária e erradamente só com o capital industrial dos
países que anexam outras nações, e colocando em primei-
ro plano, da mesma forma arbitrária e errada, a anexação
das regiões agrárias”.

Para Lenin, o que é característico do imperialismo

“não é precisamente o capital industrial, mas o capital fi-


nanceiro (...) o que é característico do imperialismo é pre-

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cisamente a tendência para a anexação não só das regiões


agrárias, mas também das mais industriais (...) pois, em
primeiro lugar, estando já concluída a divisão do globo,
isso obriga, para fazer uma nova partilha, a estender a mão
sobre todo o tipo de territórios; em segundo lugar, faz par-
te da própria essência do imperialismo a rivalidade de vá-
rias grandes potências nas suas aspirações à hegemonia,
isto é, a apoderarem-se de territórios não tanto diretamen-
te para si, como para enfraquecer o adversário e minar a
sua hegemonia (...)” (Lenin, 1979).

Kautsky (1988) considerava que

“do ponto de vista puramente econômico não está excluído


que o capitalismo passe ainda por uma nova fase: a aplicação
da política dos cartéis à política externa, a fase do ultra-impe-
rialismo (...) o superimperialismo, a união dos imperialismos
de todo o mundo, e não a luta entre eles, a fase da cessação das
guerras sob o capitalismo (...) a fase da exploração geral do
mundo pelo capital financeiro, unido internacionalmente”.

Lenin, falando em tese, considera indiscutível que se pode dizer que “o


desenvolvimento vai na direção do monopólio; portanto vai na direção do
monopólio mundial único, de um truste mundial único”. Mas, ao mesmo
tempo, considera esta afirmação uma abstração vazia e acusa as “divagações
de Kautsky sobre o ultra-imperialismo” de estimularem “a idéia profunda-
mente errada (...) de que a dominação do capital financeiro atenua a desi-
gualdade e as contradições da economia mundial, quando, na realidade, o
que faz é acentuá-las”.
Para Lenin,

“as alianças ‘interimperialistas’ ou ultra-imperialistas (...)


seja qual for a sua forma: uma coligação imperialista con-
tra outra coligação imperialista, ou uma aliança geral de
todas as potências imperialistas, só podem ser, inevitavel-

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mente, ‘tréguas’ entre guerras. As alianças pacíficas prepa-


ram as guerras e por sua vez surgem das guerras, concilian-
do-se mutuamente, gerando uma sucessão de formas de
luta pacífica e não-pacífica sobre uma mesma base de vín-
culos imperialistas e de relações recíprocas entre a econo-
mia e a política mundiais” (Lenin, 1979).

No décimo capítulo de seu “ensaio popular”, capítulo intitulado “O lu-


gar do imperialismo na história”, Lenin afirma o seguinte:

“(...) o imperialismo é, pela sua essência econômica, o capi-


talismo monopolista. Isto determina já o lugar histórico do
imperialismo, pois o monopólio, que nasce única e precisa-
mente da livre concorrência, é a transição do capitalismo
para uma estrutura econômica e social mais elevada. Há que
assinalar particularmente quatro variedades essenciais do mo-
nopólio, ou manifestações principais do capitalismo
monopolista, características do período que nos ocupa.
Primeiro: o monopólio é um produto da concentração da
produção num grau muito elevado do seu desenvolvimen-
to. Formam-no as associações monopolistas dos capitalis-
tas, os cartéis, os sindicatos e os trustes. Vimos o seu enor-
me papel na vida econômica contemporânea. Nos princí-
pios do século XX atingiram completo predomínio nos
países avançados (...)
Segundo: os monopólios vieram agudizar a luta pela con-
quista das mais importantes fontes de matérias-primas,
particularmente para a indústria fundamental e mais
cartelizada da sociedade capitalista: carvão e aço. A posse
monopolista das fontes mais importantes de matérias-
primas aumentou enormemente o poderio do grande capi-
tal e agudizou as contradições entre a indústria cartelizada
e a não-cartelizada.
Terceiro: o monopólio surgiu dos bancos, os quais, de mo-
destas empresas intermediárias que eram antes, se transfor-

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maram em monopolistas do capital financeiro. Três ou cinco


grandes bancos de cada uma das nações capitalistas mais
avançadas realizaram a ‘união pessoal’ do capital industrial e
bancário, e concentraram nas suas mãos somas de milhares
e milhares de milhões, que constituem a maior parte dos
capitais e dos rendimentos em dinheiro de todo o país. A
oligarquia financeira, que tece uma densa rede de relações
de dependência entre todas as instituições econômicas e
políticas da sociedade burguesa contemporânea sem exce-
ção: tal é a manifestação mais evidente deste monopólio.
Quarto: o monopólio nasceu da política colonial. Aos nu-
merosos ‘velhos’ motivos da política colonial, o capital fi-
nanceiro acrescentou a luta pelas fontes de matérias-pri-
mas, pela exportação de capitais, pelas ‘esferas de influência’,
isto é, as esferas de transações lucrativas, de concessões, de
lucros monopolistas, etc., e, finalmente, pelo território eco-
nômico em geral. (...)
É geralmente conhecido até que ponto o capitalismo
monopolista agudizou todas as contradições do capitalis-
mo. (...) Esta agudização das contradições é a força motriz
mais poderosa do período histórico de transição iniciado
com a vitória definitiva do capital financeiro mundial.
Os monopólios, a oligarquia, a tendência para a domina-
ção em vez da tendência para a liberdade, a exploração de
um número cada vez maior de nações pequenas ou fracas
por um punhado de nações riquíssimas ou muito fortes:
tudo isto originou os traços distintivos do imperialismo,
que obrigam a qualificá-lo de capitalismo parasitário, ou
em estado de decomposição. (...) No seu conjunto, o capi-
talismo cresce com uma rapidez incomparavelmente maior
do que antes, mas este crescimento não só é cada vez mais
desigual como a desigualdade se manifesta também, de modo
particular, na decomposição dos países mais ricos em capi-
tal (Inglaterra) (...) De tudo o que dissemos sobre a essên-
cia econômica do imperialismo, deduz-se que se deve

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qualificá-lo de capitalismo de transição ou, mais propria-


mente, de capitalismo agonizante” (Lenin, 1979).

As conclusões de Lenin foram criticadas, recentemente, pelo conhecido


historiador brasileiro Luiz Alberto Moniz Bandeira, que na “Introdução”
de Formação do Império americano afirma o seguinte:

“A prática, entendida como o curso da história, não con-


firmou a teoria de Lenin, segundo a qual o imperialismo
representava a fase superior do capitalismo, o capitalis-
mo em ‘decomposição’, o ‘capitalismo de transição, capi-
talismo agonizante’, o ‘prelúdio da revolução social do pro-
letariado’, pois estava ‘às portas de sua ruína, maduro até
o ponto de ceder o posto ao socialismo’. O critério da
verdade não pode consistir em comparar as diferentes
teorias, mas em compará-las com a realidade. E o que a
realidade comprovou foi que a política imperialista, con-
forme Kautsky previra, foi desalojada por outra nova, ultra-
imperialista, em que a exploração de todo o mundo pelo
capital financeiro, unido internacionalmente, globalizado,
substituiu a luta entre si dos capitais financeiros nacio-
nais, competição que se desdobrava por meio das armas
no mercado mundial.
A guerra de 1914-1918 permitiu que os Estados Unidos
conquistassem a preeminência no sistema capitalista, em-
bora contestada durante algum tempo pela Alemanha na-
zista. Todavia, a partir da Segunda Guerra Mundial, derro-
tado o nazifascismo, ninguém mais podia imaginar uma
guerra entre as grandes potências capitalistas, não obstante
as contradições que subsistissem ou pudessem ocorrer. A
política imperialista fora realmente substituída por uma
nova, ultra-imperialista, implementada pelos Estados Uni-
dos, como potência hegemônica, capaz de modelar a von-
tade de outros Estados e de conduzir a política internacio-
nal, de conformidade com seus interesses, através de um

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sistema de alianças e de pactos, que passaram a construir a


partir de 1945” (Bandeira, 2005).

A crítica de Moniz Bandeira mostra como o debate sobre o imperialismo


segue atual e tem implicações práticas na análise e na prática das relações inter-
nacionais. Curiosamente, o mesmo Moniz Bandeira que critica Lenin afirma
que a formação do Império americano é o epílogo “da globalização do sistema
capitalista, iniciada com as viagens de circunavegação, nos séculos XV e XVI”.
Nada mais humano do que a tentação de qualificar a época em que se vive
como a etapa “superior”, o “epílogo”, a “última” do capitalismo. Neste particu-
lar, é essencial distinguir conclusões teóricas de datação de processos históricos.
É óbvio que o imperialismo contemporâneo de Lenin não foi o último
momento da vida do capitalismo, que sobrevive até os dias de hoje. Da
mesma forma, o atual “epílogo” identificado por Moniz Bandeira pode du-
rar vários séculos.
Outra questão é saber se o estágio monopolista constitui ou não o ponto
mais alto do desenvolvimento capitalista, diante do qual só haveria três
desenlaces possíveis: a barbárie, o socialismo e o recomeço cíclico.
O que ocorreu logo após a publicação de Imperialismo, etapa superior do
capitalismo foram três décadas de crises econômicas, sociais e políticas, in-
clusive duas guerras mundiais e diversas revoluções que levaram partidos de
esquerda ao poder. Após a Segunda Guerra, tivemos um processo de
descolonização (especialmente na Ásia e na África), desenvolvimentismo
(especialmente na América Latina), bem-estar social (basicamente na Euro-
pa) e expansão do chamado campo socialista.
Este período da história (de 1914 a 1991) foi descrito por Eric Hosbawn
em Era dos extremos (1995). Bem pesados os fatos, parece que Lenin estava
certo (e não Kaustky) ao perceber o imenso potencial destrutivo (e criativo)
inaugurado pela etapa imperialista do capitalismo.
Ocorre que o capitalismo não sucumbiu a essa crise geral. E, paradoxal-
mente, a existência de um “campo socialista” (articulado, de diferentes
maneiras, com a descolonização, o desenvolvimentismo e o bem-estar so-
cial) ajudou a criar as condições para o surgimento de mecanismos de coo-
peração intercapitalista, tanto no terreno político quanto no econômico,
que recordam a aliança “interimperialista” vislumbrada por Kautsky.

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Mas a condição fundamental para essa aliança interimperialista era a exis-


tência da ameaça socialista. E a “paz” proporcionada pela disputa entre
“campo socialista” e “campo capitalista” era, em boa medida, assegurada
pelas possibilidades de destruição mútua e acompanhada por violentos con-
flitos militares, especialmente na Ásia e na África.
O período que se estende do final da Segunda Guerra Mundial até o final
dos anos 1960 foi, de toda forma, bastante atípico, provocando inclusive o
surgimento de novas interpretações acerca do capitalismo, do imperialismo
e do próprio socialismo (vejam-se as “teorias” dos “três mundos”, do “social-
imperialismo”, do “socialismo real” e dos “Estados operários burocratica-
mente degenerados”).
Os volumes 11 e 12 da História do marxismo (1989), de Hobsbawn,
proporcionam um sobrevôo sobre as questões enfrentadas pela esquerda
naquele período, inclusive nos países do chamado campo socialista. Cin-
qüenta anos de pensamento na CEPAL, de Ricardo Bielschowsky (2007),
traz textos fundamentais, ilustrativos das teorias da dependência e do
desenvolvimentismo na América Latina. Um mapa da esquerda na Europa
ocidental (Anderson, 2006) reúne informações básicas sobre a socialde-
mocracia e o Estado de bem-estar social.
O intenso desenvolvimento capitalista ocorrido depois da Segunda Guerra
Mundial preparou o terreno tanto para a crise dos anos 1970 como para o que
está ocorrendo hoje. A era neoliberal, neste sentido, é filha inesperada do casa-
mento entre o imenso desenvolvimento estimulado pelas políticas inspiradas
em Keynes (Skideslky, 1999) e a incapacidade da esquerda de aproveitar aquele
período e aquela crise para iniciar um novo ciclo de transformações socialistas.
A crise do capital, de Ernest Mandel (1990), traz uma descrição da “pri-
meira recessão generalizada” da economia capitalista internacional desde a
Segunda Guerra Mundial. E Balanço do neoliberalismo, de Perry Anderson
(2003), mostra os caminhos políticos e ideológicos trilhados pelas forças
capitalistas para sobreviver com sucesso a essa crise.
Entre 1970 e 1990, o capitalismo dos países centrais venceu a batalha
contra o “campo socialista”, contra os “desenvolvimentistas”, contra a
“socialdemocracia” e contra os “nacionalismos revolucionários”.
Os anos 1990 começaram, portanto, assistindo ao triunfo do
neoliberalismo, da “financeirização” e da hegemonia dos Estados Unidos.

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Do ponto de vista ideológico, a palavra-chave era “globalização”. Segundo


José Luís Fiori e Maria da Conceição Tavares:

“Não há dúvida de que a palavra globalização foi cunhada


no campo próprio das ideologias, transformando-se, nesta
última década, num lugar-comum de enorme conotação
positiva, apesar de sua visível imprecisão conceitual. É pro-
vável, inclusive, que esta palavra passe à história dos mo-
dismos sem jamais adquirir um estatuto teórico, manten-
do-se como um conceito inacabado. Mas também não há
dúvida de que, apesar de tudo isto, poucas palavras pos-
suem tamanha força política neste final de século XX, o
que já seria razão suficiente para submetê-la a um exame
rigoroso e crítico” (Tavares e Fiori, 1993).

A Guerra do Golfo (1991) foi um sinal de que a aliança interimperialista


encabeçada pelos Estados Unidos, sob pretexto de combater o campo socia-
lista liderado pela URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), pare-
cia estar se transformando numa hegemonia unilateral dos Estados Unidos
sobre todo o mundo, inclusive sobre os demais Estados capitalistas centrais.
Mas, em algum ponto entre o levante zapatista de 1º de janeiro de 1994
e os atentados de 11 de setembro de 2001, ficou claro que a instabilidade
seria uma das principais características da nova fase da história mundial.
Como era de se esperar, a crise do socialismo foi acompanhada de uma
profunda “desordem mundial”, em todos os terrenos: ambiental, social,
político, ideológico, militar.
Não há como negar a relação entre isso e o aprofundamento da hegemonia
capitalista, após a “queda do Muro”. Essa constatação é compartilhada, hoje,
tanto por quem deseja “organizar” o capitalismo como por quem deseja
construir outro modo de produção e organização da vida social. Mas no
início dos anos 1990 o pensamento crítico foi turvado pelos efeitos da crise
geral do socialismo, que, embora viesse de antes, atingiu seu ápice exata-
mente com o fim da União Soviética.
Aquela crise gerou uma imensa euforia na intelectualidade pró-capitalis-
ta, bem como uma confusão generalizada entre os pensadores socialistas.

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Na direita, um exemplo dessa euforia é o muito citado mas pouco lido


artigo “O fim da história”, de Francis Fukuyama, analisado longamente por
Perry Anderson (1992) no livro O fim da história, de Hegel a Fukuyama.
Mas a direita não foi acometida pela ingenuidade tão comum em certos
meios de esquerda: a suposta derrota final do socialismo não implicaria, em
nenhum caso, o fim dos conflitos, como foi reconhecido em 1996, por
exemplo, pelo superconservador Samuel Huntington em O choque das civi-
lizações e a recomposição da ordem mundial (1996).
Na intelectualidade socialista predominaram num primeiro momento a
revisão de “paradigmas”, o rebaixamento de horizontes e o abandono de
premissas teóricas fundamentais do marxismo, até então amplamente
hegemônico na esquerda.
No balanço das tentativas de construção do socialismo, que ocuparam
um lapso temporal muito curto e tiveram curso em países de baixo desen-
volvimento capitalista, muitos chegaram à conclusão de que seria impossí-
vel construir uma sociedade sem classes e sem Estado, baseada na proprie-
dade social dos meios de produção (Pomar, 1994).
Na discussão sobre a estratégia da esquerda partidária e social, cuja luta
arrancou direitos que tornam mais suportável a vida sob o capitalismo, muitos
concluíram que uma política eficaz não deveria ser fundada na existência
das classes sociais e da luta de classes, muito menos na adequada combina-
ção entre luta por reformas e revolução.
Na análise das mudanças ocorridas no capitalismo, apesar de a vida ter
deixado ainda mais claro os papéis do mercado e do Estado, muitos aderi-
ram a teorias que em última análise desconhecem o caráter contraditório e
histórico desse modo de produção.
No início do século XXI, passado o momento inicial de confusão, o pen-
samento crítico (socialista ou não) dá sinais cada vez mais fortes de que está
saindo da defensiva. Isso se traduz, por exemplo, no surgimento de várias
tentativas de síntese acerca do atual estágio do desenvolvimento capitalista
e sobre suas tendências futuras.
É o caso das várias obras do veterano economista François Chesnais (A
mundialização do capital, 1996; A mundialização financeira, 1999; A fi-
nança mundializada, 2005). É o caso, também, de O boom e a bolha, de
Robert Brenner (2003). E, finalmente, do extenso tratado Para além do

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capital, de Istvan Meszáros (2002), autor também de O século XXI: socia-


lismo ou barbárie? (2003).
Numa outra matriz de análise, devemos citar ainda as obras de Giovanni
Arrighi (O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo, 1996)
e Immanuell Wallerstein (Após o liberalismo, 2002).
Como ocorreu no início do século XX, estamos diante de análises con-
traditórias entre si, mas que nos permitem tirar pelo menos duas conclu-
sões fundamentais.
Primeiro, que o unilateralismo norte-americano se mostrou muito pode-
roso, mas incapaz tanto de controlar o planeta como de eliminar a compe-
tição intercapitalista e interimperialista. Pelo contrário, como demonstra
José Luís Fiori, a instabilidade e a competição são provocadas pela ação dos
próprios Estados Unidos:

“Hoje se pode ver melhor a contribuição dos Estados Uni-


dos, também no sucesso do antigo projeto russo de cons-
trução de uma Grande Potência durante o século XX, ao
colocar a União Soviética na condição de seu principal
inimigo, na sua estratégia de Guerra Fria. A potência ex-
pansiva e ganhadora pode prever, com base na experiên-
cia da história passada, que o crescimento econômico e
militar de seus competidores mais próximos produzirá,
no médio prazo, uma redistribuição territorial da riqueza
e um deslocamento dos seus centros de acumulação mun-
dial. E, muito provavelmente, acabará provocando, no
longo prazo, uma redistribuição do próprio poder mun-
dial. Mas a potência expansiva não tem como evitar esta
conseqüência e por isto se pode dizer, em última instân-
cia, que é o seu próprio comportamento que cria seus
principais obstáculos e adversários. É ela mesma que ali-
menta a contratendência ‘nacionalizante’ dos demais Es-
tados que bloqueiam sua marcha em direção ao poder
global e ao império mundial. Mas atenção, porque este
comportamento não se restringe apenas ao campo econô-
mico. Por mais paradoxal que possa parecer, ele também

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acontece no campo militar porque, em última instância,


são as potências ganhadoras que também armam os seus
futuros e eventuais adversários, pelo menos até o momento
em que eles adquiram autonomia tecnológico-militar”
(Fiori, 2004).

A segunda conclusão é que o método de análise inaugurado por Marx e


Engels, em meados do século XIX, continua a ser uma ferramenta indis-
pensável para compreender tanto o capitalismo atual como as dificuldades
experimentadas pelas tentativas de construir o socialismo, inclusive na Chi-
na (Pomar, 1987). Pois, como dizia o velho mouro,

“Nenhuma formação social desaparece antes que se desen-


volvam todas as forças produtivas que ela contém, e jamais
aparecem relações de produção novas e mais altas antes de
amadurecerem no seio da própria sociedade antiga as con-
dições materiais para a sua existência.
Por isso, a humanidade se propõe sempre apenas os objeti-
vos que pode alcançar, pois, bem vistas as coisas, vemos
sempre que esses objetivos só brotam quando já existem
ou, pelo menos, estão em gestação as condições materiais
para a sua realização.
A grandes traços podemos designar como outras tantas
épocas de progresso, na formação econômica da socieda-
de, o modo de produção asiático, o antigo, o feudal e o
moderno burguês. As relações burguesas de produção são
a última forma antagônica do processo social de produção,
antagônica não no sentido de um antagonismo individual,
mas de um antagonismo que provém das condições sociais
de vida dos indivíduos.
As forças produtivas, porém, que se desenvolvem no seio
da sociedade burguesa criam, ao mesmo tempo, as condi-
ções materiais para a solução desse antagonismo.
Com esta formação social se encerra, portanto, a pré-his-
tória da sociedade humana” (Marx, 2003).

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Gustavo Codas

A evolução histórica da Europa


Kjeld Jakobsen1

A evolução histórica da Europa descrita neste texto foi dividida em seu aspecto
geral em duas partes: sua conformação na era moderna influenciada pelos confli-
tos desde a Guerra dos 30 Anos (1618-1648) até o final da Primeira Guerra
Mundial (1914-1918) e desse momento até a construção da União Européia.
O que apresentaremos aqui será apenas um resumo de alguns fatos marcantes
dessa evolução, bem como seu papel no desenvolvimento do capitalismo e no
desenho do mundo atual. Os grandes ciclos do capitalismo permearam essa
evolução, assim como a ascensão e a queda de impérios como o dos Habsburgo,
da Holanda, da França, da Alemanha, da Inglaterra e da União Soviética, e as
transformações políticas que levaram, em particular, a diferentes concepções
de Estado.
O ponto de partida da história moderna da Europa é o Renascimento,
abordado na introdução. Em seguida, há três seções que respectivamente
englobam: a Guerra dos 30 Anos, a Conferência de Westfália e as revoluções
burguesas; as Guerras Napoleônicas, o Concerto Europeu, a ascensão do
liberalismo e a Primeira Guerra Mundial; e, por fim, a Segunda Guerra
Mundial e a construção da União Européia.

1. INTRODUÇÃO

O Renascimento trouxe consigo uma série de transformações nas artes, na


economia, na política e na religião. Seu centro principal era a península italiana.

1
Ex-secretário de Relações Internacionais da CUT (Central Única dos Trabalhadores) e da prefeitura
de São Paulo, atualmente é consultor em relações internacionais.

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Dogmas da Igreja católica foram criticados e surgiu um movimento de


reforma religiosa que posteriormente levaria ao protestantismo. A influên-
cia da cristandade sobre as práticas de governo, comum na Idade Média,
também passou a ser questionada, embora a separação entre Igreja e Estado
somente viesse a ser formalizada alguns séculos depois.
Particularmente, o Renascimento italiano fez avançar a constituição de ci-
dades-Estado, a república e a concentração de poder nas mãos do príncipe,
influenciando a formação de Estados territoriais e o fortalecimento do absolu-
tismo monárquico no restante da Europa (Cervo, 2001, p. 60).
Entre os séculos XIV e XVI, a “economia mundial” estava sob domínio
da cidade-Estado de Gênova. Esta controlava o principal fluxo de comércio
com a Europa Ocidental, distribuindo os produtos provindos do Oriente,
como tecidos e especiarias.
Os comerciantes e banqueiros genoveses ampliaram sua riqueza e sua
influência em outras áreas européias ao emprestar recursos excedentes do
comércio para governantes de outros países e cidades-Estado. Conseguiam
que suas mercadorias chegassem até o norte da Europa, e seu entreposto
principal era a cidade de Bruges, localizada numa das províncias espanholas
dos Países Baixos. Para que seus clientes não precisassem transportar altas
somas em moedas ou metais preciosos, criaram a “carta de câmbio”, que
podia ser trocada com os agentes genoveses mediante o pagamento de uma
diferença sobre esta, que se tornou o primeiro título financeiro da história.
A Península Ibérica tornou-se uma área de operações estratégica para os
genoveses, não apenas como consumidores de seus produtos, mas também
pela proteção militar que oferecia a seus negócios. Seus entrepostos em Por-
tugal e na Espanha facilitavam o acesso aos mercados do norte da Europa e
do norte da África.

2. A FORMAÇÃO DOS ESTADOS-NAÇÃO EUROPEUS E O EQUILÍBRIO INICIAL

Ao longo do século XVI, por meio de uma série de heranças, casamentos


de conveniência, alianças e conquistas, o domínio da Casa dos Habsburgo
consolidou-se sobre a Hungria, a Boêmia, regiões do norte da Itália, o Sacro
Império Romano (Alemanha) e a Espanha, além da Áustria, de onde a
dinastia se originou. A Espanha, por sua vez, já dominava os Países Baixos,

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Kjeld Jakobsen

a Sardenha, a Sicília, Gênova e outras áreas da península itálica, e em 1580


o rei Filipe II assumiu também a Coroa de Portugal.
Este império se expandiu e se manteve até meados do século XVII graças
aos recursos dos banqueiros genoveses, aos lucros do comércio dos portu-
gueses com a Ásia e aos metais preciosos trazidos pelos espanhóis e portu-
gueses de suas colônias nas Américas. Era também uma potência militar
devido ao poderio da Espanha, que detinha uma forte esquadra e havia
introduzido novas técnicas militares nas guerras.
Além de consolidar sua expansão, os Habsburgo tiveram que enfrentar
várias tentativas do Império Otomano e dos berberes do norte da África de
se estabelecerem no mar Mediterrâneo. Derrotaram-nos, finalmente, na
Batalha de Lepanto, em 1571.
Porém, a intolerância religiosa dos reis católicos da Espanha e da dinastia
dos Habsburgo em geral, somada a constantes aumentos de impostos nos
territórios dominados, provocou inúmeras insatisfações, a começar pelas
províncias dos Países Baixos, que iniciaram uma campanha por sua inde-
pendência a partir de 1560.
Essa luta levou quase cinqüenta anos para assegurar uma trégua e a auto-
nomia na prática de algumas das províncias localizadas mais ao norte da
Holanda. Entretanto, essa guerra transformou-se num conflito muito mais
amplo devido às preocupações dos demais governantes europeus com a ex-
pansão do Império dos Habsburgo e às divisões religiosas que estavam ocor-
rendo em alguns países, como na França.
A Inglaterra apoiava a Holanda, e seus corsários atacavam a frota espa-
nhola que trazia metais preciosos da América Latina e que já era assediada
pelos navios de guerra holandeses. Aliás, a frota comercial holandesa já era,
praticamente, a maior do mundo a esta altura, embora os holandeses ainda
estivessem lutando por sua independência.
No início do século XVII houve uma trégua entre Espanha e Holanda, a
grande armada espanhola não conseguira invadir a Inglaterra e os conflitos
entre católicos e protestantes na França também haviam amainado. Parecia
que haveria um período de estabilidade no continente.
No entanto, em 1618 irrompeu um conflito entre católicos e protestan-
tes pela sucessão do trono da Boêmia, que rapidamente envolveu o conjun-
to dos principados alemães e levou à intervenção do imperador da Áustria a

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favor dos príncipes católicos, com o apoio dos “primos” Habsburgo da


Espanha. O conflito rapidamente se espalhou. A Holanda rompeu a trégua
e invadiu a Renânia; a Dinamarca atacou o Império pelo norte; posterior-
mente, os suecos também intervieram, todos com o intuito de neutralizar
os Habsburgo, que, em caso de conquista da hegemonia total no Sacro
Império Romano, representariam uma ameaça séria ao conjunto dos países
europeus não submetidos à sua influência.
Foi o início da Guerra dos 30 Anos, um dos conflitos mais terríveis que
afligiram a Europa, terminada em 1648 sem que houvesse uma vitória mi-
litar definitiva de qualquer dos lados. Porém, na prática, o Império Habsburgo
estava semifalido e não tinha mais recursos para manter a guerra.
Além da aliança de todas as forças protestantes e laicas contra os
Habsburgo, o fator determinante para sua derrota foi a França, cujo primei-
ro-ministro era o cardeal Richelieu. Embora fosse católico, não teve dúvidas
em apoiar desde o início os protestantes, inimigos do Império, e até intervir
diretamente na guerra, sob a alegação da Raison d’Etat (Razão de Estado).
Se observarmos o Mapa 1, a seguir, veremos que em caso de domínio
Habsburgo total sobre o Sacro Império Romano a França ficaria pratica-
mente cercada por eles.
A sobreposição das razões de Estado em relação às questões religiosas e o
Tratado de Westfália – que acomodou a situação nos principados alemães,
afastando o Império Austro-Húngaro do conflito e deixando a continuida-
de da guerra somente entre a França e a Espanha – constituíram um marco
ao reconhecer a existência dos Estados nacionais independentes e, na medi-
da do possível, laicos, estabelecer o equilíbrio político entre eles e inaugurar
relações diplomáticas regulares.
A Guerra dos 30 Anos foi também o primeiro conflito com caráter mun-
dial, uma vez que os holandeses e seus aliados levaram a guerra às possessões
espanholas e portuguesas fora da Europa, como o Nordeste brasileiro, o
Ceilão e Angola.
A paz entre a Espanha e a França somente se estabeleceu em 1659, com
o Tratado dos Pireneus.
A Holanda tornou-se totalmente independente e a nova potência econô-
mica mundial, pois, além de conseguir sua independência, possuía a maior
frota naval do mundo e dominava o comércio internacional. Os capitalistas

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holandeses também instituíram a prática da armazenagem de commodities,


comprando-as a preços baixos e vendendo-as no momento mais apropriado.

Mapa 1 – O legado de Carlos V (1519)

Reprodução autorizada pela Editora Campus.

Fonte: Kennedy, 1989, p. 42.

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No entanto, tiveram que conviver com outros Estados ascendentes na


política e na economia mundial, a saber, França, Inglaterra e Rússia, sendo
que esta última não se envolvera nos conflitos anteriores.
Embora o equilíbrio europeu não se modificasse muito ao longo das dé-
cadas seguintes, mesmo com as disputas entre uns e outros com o intuito
de acumular poder, era a França que mais ostensivamente buscava ampliar
sua influência. Porém, ela estava dividida entre sua política voltada para a
Europa Continental e a busca de espaço internacional (já possuía colônias
na América), enquanto a Inglaterra, que tinha colônias mais consolidadas
no Novo Continente, disputava o controle do comércio mundial com a
Holanda, embora sempre atenta ao que ocorria no continente europeu.
Assim, a Holanda enfrentava a pressão dos franceses no continente e precisa-
va mobilizar exércitos e recursos para se defender, ao mesmo tempo em que os
ingleses disputavam seus mercados externos e atacavam sua frota mercantil. Um
fator crucial foi a lei inglesa que determinava que todos os bens de exportação
produzidos na Inglaterra deveriam ser transportados em navios ingleses.
Enfrentar os conflitos com os vizinhos sem a mesma fonte de recursos de
antes significou o fim do ciclo econômico holandês, mas houve ainda um
período de disputas entre Inglaterra e França, antes de a primeira se estabe-
lecer como a nova potência hegemônica.
A primeira revolução burguesa da história foi a holandesa, no século XVI,
em meio à luta pela independência, motivada pelos interesses econômicos
dos produtores locais constrangidos pela dominação espanhola. A revolução
inglesa ocorreu em vários momentos no século XVII, normalmente explicitada
pelos conflitos entre o Parlamento e a monarquia, e representou a ascensão da
burguesia industrial, que por sua vez buscava influência política.
Embora a Revolução Francesa, iniciada em 1789, também visasse a par-
ticipação dos setores sociais excluídos das decisões políticas do país, o que
implicava uma aceitação maior, por parte do rei, das decisões do Parlamen-
to – que teve sua representação ampliada –, a revolução burguesa na França
se diferenciou das anteriores porque a participação popular foi maior, a
monarquia foi abolida e os monarcas, executados.
Todas elas levaram décadas para se consolidar, mas a francesa foi a que
mais repercutiu na Europa pela profundidade das transformações que pro-
vocou nas estruturas agrárias, sociais e políticas da França.

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Os mesmos costumes do Ancien Régime francês (Antigo Regime) esta-


vam presentes em outras monarquias, como a estrutura agrária semifeudal,
a monarquia absolutista e a economia mercantilista. Foram, principalmen-
te, os fundamentos da Revolução Francesa que depois inspiraram mudan-
ças nas estruturas de outras monarquias e abriram caminho para a ascensão
do liberalismo – primeiro o econômico, depois o político.
Paralelamente aos altos e baixos do equilíbrio europeu, consolidavam-
se duas outras potências na periferia da Europa: a Rússia, cujos domínios
chegavam ao Extremo Oriente, e os Estados Unidos da América, do outro
lado do oceano Atlântico. Estes últimos foram a primeira colônia a se
tornar independente de uma metrópole européia, embora isso tenha sido
facilitado pelos conflitos entre Inglaterra e França, já que esta última,
ainda antes da revolução, apoiou diretamente os rebeldes norte-america-
nos contra a Inglaterra.

3. O EQUILÍBRIO SE ROMPE, SE RECOMPÕE, SE ROMPE...

As disputas entre os diferentes setores políticos revolucionários na França,


a crise econômica e a guerra de quase dez anos com praticamente todos os
seus vizinhos levaram à ascensão da chamada República Termidoriana2, e
posteriormente ao golpe do 18 Brumário, que abriram caminho para o gene-
ral Napoleão Bonaparte assumir o poder, inicialmente como cônsul, depois
como cônsul vitalício e, finalmente, entre 1804 e 1814, como imperador.
Ele consolidou seu poder ao derrotar e/ou promover acordos de paz com
os inimigos externos da revolução e colocar a economia em ordem. Entre-
tanto, pouco a pouco começou a estender seu controle sobre a maior parte
da Europa por meio de guerras ou alianças. A Inglaterra se opôs a essa
tentativa hegemonista e entrou em guerra aberta com a França. O Mapa 2,
a seguir, apresenta a situação européia no auge do poder napoleônico.
Napoleão manteve a ofensiva por vários anos e até firmou uma aliança
com a Rússia para enfrentar os austríacos. Porém, em 1813, ele atacou o

2
República Termidoriana foi a última composição entre os partidos na Assembléia Nacional
Francesa após a revolução e antes de Napoleão assumir o poder.

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aliado. Os franceses chegaram às portas de Moscou, mas recuaram devido à


falta de abastecimento e ao rigoroso inverno russo, perdendo a maior parte
do exército devido à fome, ao frio e aos ataques russos.

Mapa 2 – A Europa no auge do poderio de Napoleão (1810)

Reprodução autorizada pela Editora Campus.

Fonte: Kennedy, 1989, p. 130.

Foi o fim. Uma coalizão inglesa, prussiana e austríaca obrigou Napoleão


a recuar e em 1814, com os inimigos às portas de Paris, o senado francês o
destituiu do poder. Porém, após curto exílio na ilha de Elba, no mar Medi-

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terrâneo, ele reassumiu o poder por alguns meses, em 1815, mas foi nova-
mente derrotado, na batalha de Waterloo.
Neste ano realizou-se a Conferência de Viena, com o objetivo de restabe-
lecer o equilíbrio europeu rompido e criar um mecanismo que evitasse no-
vos conflitos, afinal de contas prejudiciais à economia e ao progresso. Tal
objetivo ficou conhecido como o Concerto Europeu e assumiu um caráter
conservador. Áustria, Rússia e Prússia estabeleceram a Santa Aliança com
base em suas afinidades cristãs e resgataram a idéia dos direitos divinos dos
monarcas. A Inglaterra e, depois, a França também aderiram para influen-
ciar as articulações políticas do continente e abrir espaço para fortalecer as
respectivas economias sob a égide do liberalismo.
Até 1848 foi a Aliança que decidiu quais alterações aceitaria no cenário
político, europeu e mundial. Entre elas, que a Espanha não restabeleceria
suas colônias nas Américas; que a Bélgica poderia se separar dos Países Bai-
xos e constituir um reino autônomo; que a Grécia poderia se tornar inde-
pendente sem implicar o desmantelamento do Império Otomano, apesar
dos interesses russos nesse sentido; que a Áustria poderia reprimir as tenta-
tivas de independência de seus domínios no norte da Itália, e da mesma
forma a Prússia em relação a alguns principados alemães. Foi um período de
exercício coletivo de poder (Cervo, 2001, p. 71).
Entre 1840 e 1848 ocorreu uma onda revolucionária na Europa, inclu-
sive na França, que aparentemente provocaria profundas transformações.
No entanto, ela foi derrotada, e a segunda metade do século XIX caracteri-
zou-se pela ocorrência de problemas no interior da Aliança, pelo fortaleci-
mento do nacionalismo europeu e pela ascensão do liberalismo econômico.
A Rússia tentou uma vez mais se expandir para o sul e ter acesso ao mar
Mediterrâneo à custa do Império Otomano. Isso levou à Guerra da Criméia,
em que Inglaterra e França, e posteriormente Áustria e Itália, opuseram-se à
Rússia e forçaram um acordo que a fez recuar de suas intenções.
A erupção do nacionalismo europeu levou, principalmente, às unificações
alemã e italiana, e ao fim de uma série de pequenos países. O processo de
expansão da Alemanha, já unificada em torno da Prússia, foi dirigido pelo
chanceler Otto von Bismarck e teve início pela anexação de dois ducados ao
norte, tomados da Dinamarca, por meio de guerra com o apoio da Áustria.
Em seguida, continuou com uma guerra contra esta para quebrar sua resis-

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tência à expansão alemã. A incorporação das províncias do sul levou à guerra


contra a França em 1871, que foi rapidamente derrotada, e a Alemanha esta-
beleceu-se como a segunda potência econômica e militar da Europa.
Esse processo representou o fim do Sistema de Viena3 e recolocou o equilíbrio
europeu em novos termos. A adesão de todos ao liberalismo econômico estimu-
lou a busca de novos mercados, inclusive por meio da expansão colonial na África
e na Ásia. A Inglaterra e a França saíram na frente, mas Alemanha, Itália, Rússia,
Estados Unidos e Japão buscaram também ocupar alguns espaços.
A Inglaterra era a potência militar e econômica hegemônica no mundo
do final do século XIX. Dizia-se que “o sol nunca se punha no Império
Britânico”. Sua característica geográfica de ilha sempre a poupara de inva-
sões estrangeiras na idade moderna. Ali se deu o berço da industrialização.
Suas colônias e os acordos de livre comércio que impunha a outros países
proporcionaram um mercado prontamente atendido por sua indústria e
por sua frota naval, a maior do mundo.
O fato é que o liberalismo gerou forte competição entre os grandes países
da época. Nações que haviam sido importantes no passado, como Espanha,
Portugal e Holanda, ficaram muito enfraquecidas e algumas até mesmo
perderam parte de suas colônias para as novas potências.
A competição e os diferentes interesses levaram à constituição de alianças e
diferentes acordos mútuos de defesa em substituição ao Concerto Europeu4.
Formaram-se dois blocos: a Tríplice Aliança (Alemanha, Áustria-Hungria e
Itália) e a Tríplice Entente (Inglaterra, França e Rússia). Era também um
momento em que o nacionalismo despontava em diferentes lugares.
Foi um fato com esta origem que provocou a deflagração da Primeira
Guerra Mundial: o assassinato do arquiduque Franz Ferdinand, herdeiro do
trono Austro-Húngaro, e de sua esposa por um estudante bósnio naciona-
lista em Sarajevo, capital da Bósnia, anexada pela Áustria em 1908. O aten-
tado havia sido planejado por uma organização terrorista sérvia e a reação
austríaca foi dar um ultimato à Sérvia, para o qual teve endosso alemão. A
Sérvia não respondeu satisfatoriamente ao ultimato e houve a declaração

3
Sistema de Viena foi a articulação entre os países surgida a partir da Conferência de Viena, em 1815, e que
pressupunha a manutenção do status quo europeu sem aceitar novas transformações na sua geografia.
4
Concerto Europeu era o instrumento de conciliação e de pressões para manter o Sistema de Viena.

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formal de guerra. Um dia depois a Áustria iniciou o bombardeio de Belgra-


do. Com isso a Rússia deu apoio à Sérvia, a Alemanha declarou guerra à
Rússia e todos foram arrastados para o conflito devido às alianças.
A Entente recebeu a adesão da Itália, do Japão, de Portugal, da Romênia
e, em 1917, dos Estados Unidos. A Alemanha e a Áustria-Hungria recebe-
ram apoio da Bulgária e da Turquia. O Mapa 3 apresenta os movimentos
iniciais da guerra.

Mapa 3 – As potências européias e seus planos de guerra em 1914

Reprodução autorizada pela Editora Campus.

Fonte: Kennedy, 1989, p. 247.

A guerra teve início com vários movimentos em 1914, porém, quando o


inverno chegou, as posições estagnaram-se e iniciou-se uma guerra de trin-
cheiras por três anos, do canal da Mancha até a Suíça, sem que houvesse
uma definição do conflito, apesar de algumas grandes batalhas que cobra-
ram milhares de vidas de ambos os lados.
Os russos saíram do conflito após a Revolução de 1917, embora aceitan-
do duras condições para a paz. Com a entrada dos norte-americanos na
questão, a maré mudou a favor da Entente. Com o pedido de cessar-fogo de
Bulgária, Turquia e Áustria-Hungria, a tentativa de revolução em Berlim e
a abdicação do imperador Guilherme II, a Alemanha também se rendeu.

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O fim da guerra e as negociações de paz levadas a termo com cada um


dos derrotados transformaram profundamente o mapa europeu, conforme
pode se verificar no Mapa 4.
Mapa 4 – A Europa depois da Primeira Guerra Mundial

Reprodução autorizada pela Editora Campus.

Fonte: Kennedy, 1989, p. 268.

4. A ÚLTIMA GUERRA E A CONSTRUÇÃO DA UNIÃO EUROPÉIA

As negociações de paz com a Alemanha ocorreram por intermédio do


Tratado de Versalhes, e foram coordenadas por Inglaterra, França e Estados

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Unidos pelo lado vencedor, mas a agenda dos três não era necessariamente a
mesma. À França interessava neutralizar a Alemanha definitivamente e vin-
gar-se; à Inglaterra interessava que a França não se tornasse a potência
hegemônica no continente; aos Estados Unidos interessavam a paz na Eu-
ropa e regras que favorecessem o livre comércio para expandir sua economia.
O presidente norte-americano Woodrow Wilson introduziu uma inflexão
na política externa de seu país ao substituir a política imperialista de busca
de influência pela promoção do livre comércio e pela disseminação da de-
mocracia. O objetivo era fortalecer o comércio de produtos norte-america-
nos e ampliar a influência dos Estados Unidos não mais por intermédio da
política do Big Stick5 e da Diplomacia do Dólar de seus antecessores, mas
pela disseminação dos “valores americanos”, particularmente o liberalismo
econômico e a democracia representativa.
Os 14 pontos defendidos por Wilson, em Versalhes, como base para o
acordo de paz propunham nova divisão geográfica e política para a Europa,
uma política de desarmamento, o início da descolonização, a evacuação das
tropas estrangeiras da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), a
liberdade de navegação nos mares com ou sem guerra, a eliminação de bar-
reiras comerciais e a criação da Liga das Nações (LDN). Os Estados Unidos
também se opunham às retaliações aos países derrotados.
Nem todos os pontos foram contemplados. Por exemplo, França e In-
glaterra transformaram parte do Império Otomano em novas colônias; a
indenização exigida da Alemanha foi imensa e as novas fronteiras na Eu-
ropa não seguiram exatamente a proposta norte-americana. Embora os
Estados Unidos não viessem a participar dela, a ldn foi criada e funciona-
ria com base em sua proposta de não possuir instrumentos coercitivos.
No entanto, as condições do tratado, na prática, transformaram-se nos
motivos para o início da Segunda Guerra Mundial, ainda mais mortífera e
destruidora do que a primeira.
Quase no final da década de 1920, ocorreram a crise da bolsa de Nova
York e a grande depressão americana, que repercutiu no mundo todo, com

5
Big Stick (cuja tradução é ‘grande porrete’) era a política externa para impor a vontade dos Estados
Unidos por meio da força militar. A frase é do presidente Theodore Roosevelt: “fale suavemente,
mas carregue um grande porrete” (big stick).

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exceção da União Soviética, que havia inaugurado um novo sistema econô-


mico em 1917.
O liberalismo já havia demonstrado sua incapacidade de assegurar a paz
e agora mostrava também sua incapacidade de garantir um desenvolvimen-
to econômico estável. Isto fortaleceu a visão do papel do Estado para garan-
tir a recuperação econômica após a Primeira Guerra Mundial, que estava
em execução na URSS, na Itália e na Alemanha, porém com viés autoritá-
rio, e nos casos dos regimes fascista e nazista também com viés nacionalista,
armamentista e expansionista.
A ideologia fascista viria a se tornar política de governo em vários ou-
tros países, entre eles Japão, Polônia, Países Bálticos, Romênia, Hungria,
Bulgária, Áustria, Espanha, Portugal, Grécia e até o Brasil. Alemanha,
Itália e Japão conformariam uma aliança chamada de Eixo. Os regimes
liberais mantiveram-se apenas na América do Norte e no norte e noroeste
da Europa.
A segunda metade da década de 1930 foi o momento de uma série de
expansões e vitórias fascistas, inicialmente com a cumplicidade das potên-
cias liberais para debilitar a URSS e os partidos comunistas, mas quando
estes acumularam demasiado poder a guerra teve início.
A Itália de Mussolini ocupou a Abissínia (Etiópia), em 1935, e a Albânia,
em 1939. A Alemanha, governada por Adolf Hitler, recuperou as regiões do
Sarre e a Renânia, ocupadas pela França após a Primeira Guerra Mundial,
respectivamente, em 1935 e 1936. Em 1938 anexou a Áustria e, até 1939,
também várias regiões da Tchecoslováquia. Nesse mesmo ano, a Lituânia
lhe cedeu a região do Memel.
Entre 1936 e 1939 ocorreu a Guerra Civil espanhola, opondo de um
lado os fascistas liderados pelo general Francisco Franco e apoiados por Ale-
manha e Itália, com a cumplicidade das potências liberais, e de outro os
republicanos apoiados pela URSS e pelo Comintern. O golpe franquista foi
vitorioso, e o terreno espanhol serviu para testar várias armas que seriam
utilizadas em seguida na Segunda Guerra Mundial.
Concluídos esses avanços, Hitler deu um ultimato à Polônia para que
permitisse o acesso à cidade portuária de Dantzig (Gdansk), o que foi recu-
sado, dando início à invasão alemã e, conseqüentemente, à declaração de
guerra da Inglaterra e da França contra a Alemanha.

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Kjeld Jakobsen

Até 1942 a ofensiva das forças do Eixo foi bem-sucedida, à exceção da


Itália, que sofreu várias derrotas para os ingleses no norte da África e no Me-
diterrâneo, bem como para os gregos quando tentaram ocupar este país. Toda
a Europa, exceto a Inglaterra, as neutras Suécia e Suíça, bem como os regimes
fascistas aliados, Espanha e Portugal, estava ocupada. Porém os alemães, após
um período de pacto de não-agressão, atacaram a URSS em 1941, mas foram
derrotados em Stalingrado após cercá-la por quase seiscentos dias.
No início de 1943, os Estados Unidos também estavam envolvidos na
guerra a partir do bombardeio japonês à base naval de Pearl Harbour, no
Havaí. Com o revés alemão na URSS, teve início a conta-ofensiva aliada até
a rendição dos italianos, em setembro daquele mesmo ano, dos nazistas em
maio de 1945 e dos japoneses em agosto.
Nesse meio-tempo ocorreu uma série de negociações entre os governos
dos Estados Unidos, da URSS e da Inglaterra para criar instituições respon-
sáveis pela gestão da nova ordem mundial após a guerra, como a ONU
(Organização das Nações Unidas), o FMI (Fundo Monetário Internacio-
nal), o Banco Mundial e o GATT (General Agreement on Tariffs and Trade
– Acordo Geral de Tarifas e Comércio), bem como o desenho das esferas de
influência na nova geografia mundial, em particular na Europa.
Cabe registrar que os Estados Unidos, na prática, já eram a potência
econômica hegemônica após a Primeira Guerra Mundial, mas, em função
do extensivo império britânico e da crise de 1929, isso somente se tornaria
definitivo após a Segunda Guerra, quando assumiriam também a condição
de principal potência militar.
As conferências de Yalta, de fevereiro de 1945, e de Potsdam, em julho e
agosto do mesmo ano, definiram, entre outras questões, o novo desenho da
Europa, dividida entre o lado oriental sob influência soviética e a Europa
Ocidental. Do lado oriental ficariam os Estados Bálticos, a Alemanha Orien-
tal, a Polônia, a Tchecoslováquia, a Hungria, a Romênia, a Bulgária, a Albânia
e a Iugoslávia. Embora estes dois últimos adotassem regimes socialistas, se
afastaram da influência soviética, até porque não dependeram do Exército
Vermelho para expulsar os alemães e sim de sua guerrilha dirigida pelos
respectivos partidos comunistas.
Do lado ocidental ficariam Grécia, após uma intervenção do exército inglês
contra a guerrilha comunista, Itália, Áustria, República Federal Alemã, Fran-

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Curso de formação em política internacional

ça, Luxemburgo, Holanda, Bélgica, Inglaterra e os países escandinavos, em-


bora a Finlândia tivesse que efetuar uma política de equilíbrio entre sua vizi-
nha URSS e os países ocidentais com os quais se alinhava.
Foi neste quadro que se iniciou a conformação do que se tornaria a atual
União Européia (UE). A discussão reinante, ainda antes do fim da guerra,
era sobre a reconstrução da economia e do equilíbrio europeu. Uma grande
preocupação era como envolver a Alemanha de forma diferente da de 1919,
que não dera certo.
A formação da UE pode ser analisada à luz de várias teorias econômicas e
de relações internacionais. Os economistas neoclássicos destacarão a econo-
mia de escala e a reestruturação do mercado, e os keynesianos mencionarão
o papel dos Estados europeus para a definição da política econômica e so-
cial. O bloco, do ponto de vista das relações internacionais, poderá ser ana-
lisado como um processo neo-realista, liberal ou funcionalista. Neste texto,
nos limitaremos a mencionar as etapas principais do processo.
A primeira delas, não necessariamente dirigida ao objetivo de fundar a
UE, foi a criação da zona de livre comércio entre Bélgica, Holanda e
Luxemburgo, o Benelux, em 1948. Em 1950, o ministro francês de Rela-
ções Exteriores, Robert Schuman, propôs a administração da produção de
carvão e aço sob uma autoridade comum. Esta foi uma proposta estratégica,
pois as regiões produtoras destes bens se localizavam nas fronteiras entre
Alemanha e França, e a busca de seu controle foi o motivo econômico histó-
rico das várias guerras entre os dois países. A iniciativa francesa levou à
assinatura do tratado que fundou a Comunidade Européia do Carvão e do
Aço (CECA), em 1951, entre estes dois países, o Benelux e a Itália.
A inclusão indireta da discussão sobre segurança por meio do tratado que
estabeleceu a Comunidade Européia de Energia Atômica (Euratom) possi-
bilitou a criação da Comunidade Econômica Européia (CEE), por inter-
médio do Tratado de Roma, de 1957, com o propósito de estabelecer um
mercado comum.
Este tratado foi a base que possibilitou uma série de iniciativas, desde a
liberalização comercial, de serviços, de capitais e de livre circulação de pes-
soas até a ampliação do número de países-membros da comunidade. Estas
decisões foram gradativamente regulamentadas. Por exemplo, a união adua-
neira entrou em vigor em 1968.

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Kjeld Jakobsen

Além da liberalização, também foram estabelecidas políticas comuns,


por exemplo de competitividade, transportes, agrícola, entre outras, além
de instituições para coordenar a integração com o Conselho Europeu –
instância superior, o Parlamento, o Tribunal de Justiça, o Conselho Consul-
tivo Econômico e Social e a Comissão Européia – órgão executivo.
Posteriormente foi criado o Sistema Monetário Europeu, e em 1992 en-
trou em vigor a eliminação de uma série de barreiras não-tarifárias definidas
pelo Ato Único Europeu. Novos tratados foram fortalecendo a integração
européia até chegar à moeda única e aos atuais 27 países membros. Os
principais foram os tratados Maastricht, que definiu as regras macroe-
conômicas para criar a moeda comum européia, o euro, em 1993, de Ams-
terdã, em 1999, e de Nice, que discutiu a ampliação da União Européia,
em 2000.
A CEE começou a se ampliar durante os anos 1970 com a adesão de
Inglaterra, Dinamarca e Irlanda. Depois, entraram Grécia, Espanha e Por-
tugal e, mais tarde, Áustria, Suécia e Finlândia, conformando a Europa
dos 15 que se manteria assim até o início do século XXI.
Os principais debates de hoje sobre os rumos da União Européia estão
relacionados com a aprovação ou não de uma Constituição Européia, a ade-
são de novos países que se dividem entre o Ocidente e o Oriente – como a
Turquia, os países da ex-Iugoslávia que estiveram em guerra entre si ao lon-
go da década de 1990 e a Ucrânia –, o sistema de defesa comum e a dimen-
são social da integração.

BIBLIOGRAFIA

KENNEDY, Paul. Ascensão e queda das grandes potências. Rio de Janeiro,


Campus, 1989.
CERVO, Luis Amado. “Hegemonia coletiva e equilíbrio: a construção do
mundo liberal (1815-1871)”. In SARAIVA, José Flávio S. Relações
Internacionais: dois séculos de história. vol I. Brasília: IPRI, 2001, p.
59-104.
SARAIVA, José Flávio Sombra (org). Relações internacionais: dois séculos de
história. Brasília, IBRI, 2001.

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Curso de formação em política internacional Apresentação

Um olhar sobre a Ásia


Wladimir Pomar 1

1. UMA LONGA HISTÓRIA

1. A Ásia, considerada em geral um continente à parte, mas parcela oriental


do continente Eurasiano, é o berço das mais antigas civilizações humanas. En-
tre elas se destacam as civilizações indiana e chinesa. Esta última é a mais antiga
de todas, com cerca de 6 mil anos de história, 4 mil dos quais de história escrita.
A região asiática é também o berço de povos que, em ondas sucessivas, se dirigi-
ram ao oeste, conformando os povos que hoje vivem no subcontinente europeu.
Assírios, godos, visigodos, hunos e mongóis chegaram até as praias ocidentais e
deixaram suas marcas étnicas e culturais nessas regiões.
2. A cultura milenar dos povos asiáticos, especialmente a filosofia, a reli-
gião, a arte militar e as diferentes invenções técnicas, permanece ainda hoje
influenciando a cultura mundial. A filosofia clássica chinesa, surgida no mes-
mo período da filosofia grega clássica, entre os séculos VI e IV a.C., tem co-
mo expoentes Confúcio, Mêncio e Lao-tsé. Relegada durante muito tempo
como cultura apenas exótica, ainda é uma referência mundial importante. Por
outro lado, o budismo, o hinduísmo e o taoísmo, através de suas diferentes
seitas, têm ganhado terreno entre as religiões ocidentais. Sun Zu (século V
a.C.), mestre militar e político cujos textos estão em parte reunidos em A arte
da guerra, é estudado com atenção em diferentes países. Mahatma Gandhi,
Mao Tsé-tung, Ho Chi Min (líder revolucionário vietnamita) e outros líderes
asiáticos são referências mundiais. E hoje não se pode mais desconhecer que a

1
Jornalista e escritor, é membro do conselho de redação da revista Teoria & Debate, autor, entre outros,
de Araguaia, o partido e a guerrilha, O enigma chinês – capitalismo ou socialismo, Lula lá – o susto das elites, A ilusão
dos inocentes, Pedro Pomar – uma vida em vermelho e A revolução chinesa.

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Wladimir Pomar

pólvora, a bússola, os tipos de impressão, o relógio mecânico, o leme, as velas


triangulares e diversos outros inventos humanos vieram do Oriente.
3. No século VI a.C., algumas regiões da Ásia alcançaram o apogeu do escravismo
e ingressaram no feudalismo. E no século XV d.C., quando os feudais venceram
sua disputa contra a classe dos mercadores na China, o feudalismo tornou-se a
formação econômico-social predominante na maior parte dos reinos asiáticos,
embora fosse possível encontrar populações vivendo no escravismo (a exemplo do
Tibete e de vários reinos indianos), ou mesmo no comunismo primitivo (a exem-
plo de Papua Nova Guiné). Na China, no Vietnã e na Tailândia constituíram-se
monarquias centralizadas já antes de nossa era. Porém, na Índia, no Japão, na
Birmânia, no Camboja e em outras regiões essa centralização foi tardia ou não
chegou a ocorrer antes da chegada das naus européias do mercantilismo.
4. De qualquer modo, a riqueza desses reinos, e a organização e a suntuosida-
de de suas monarquias, era de tal ordem, muitas vezes deixando conviver feuda-
lismo e escravismo, que Hegel supôs que a Ásia estava estagnada no tempo, e
Marx acreditou na existência de um modo de produção asiático, diferente do
escravismo e do feudalismo.
5. Essa complexidade começou a ser desvendada, embora ainda de maneira
enviesada e sob forte viés racista, no início da segunda onda de colonização
européia, nos séculos XVIII e XIX. O império britânico, o mais forte e o maior,
havia submetido a Índia, a Birmânia, o Ceilão, a Malásia e alguns territórios
chineses (Hong Kong e concessões continentais). O império francês tentou
concessões na Índia, mas, derrotado pelos ingleses, conformou-se com a Indochina
e concessões na China. O império alemão dominava várias ilhas na Micronésia
e tinha como concessão a cidade de Qingdao, na China. O império norte-
americano possuía o Havaí e as Filipinas, enquanto o império russo se estendera
pela Sibéria, pela Mongólia e em concessões no nordeste chinês. O império
holandês dominava a Indonésia. Portugal mantinha suas antigas feitorias em
Timor (ilhas do sudeste), Goa e Diu (Índia), e Macau (China). O emergente
império nipônico dominava a Coréia e concessões na Manchúria (China).

2. O SISTEMA DE DOMÍNIO COLONIAL CAPITALISTA DA ÁSIA

6. O sistema de exploração colonial das potências capitalistas européias,


a partir do final do século XVIII e durante o século XIX, quando se conso-

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Curso de formação em política internacional

lidou, compreendia a extração de recursos minerais e agrícolas necessários


às indústrias metropolitanas, a exploração de direitos alfandegários e con-
cessões ferroviárias e portuárias, e a transformação dos territórios domina-
dos em mercados para os produtos industriais das metrópoles.
7. Nesse período, a Índia tornou-se grande produtora de algodão, ópio,
especiarias diversas e minérios; a Malásia e a Indochina passaram a produzir
borracha; a China produzia algodão, especiarias e minérios; e o Japão, ca-
rente dessas riquezas, teve que abrir seus portos para o ingresso dos produ-
tos industriais. Além disso, todos esses países ofereciam mão-de-obra imen-
sa e barata para as grandes construções que as potências industriais realiza-
vam no mundo. Suas alfândegas passaram a ser administradas pelos
dominadores, assim como as ferrovias e os portos internacionais. Inglaterra,
França e Estados Unidos exportavam grandes volumes de tecidos e bens de
consumo cotidiano para as regiões dominadas, a preços mais baratos do que
os produtos artesanais locais.
8. Em todos os países dominados, as potências capitalistas associaram-se
às elites locais, em geral monarquias, como na Birmânia, na Malásia, na
Indochina e na China. No Japão, associaram-se aos mercadores e a algumas
famílias feudais. Na Índia, os dominadores britânicos associaram-se aos
marajás e às castas superiores, ao mesmo tempo em que incentivaram as
disputas entre eles.
9. Esse sistema de domínio teve conseqüências de diferentes tipos. Em
alguns países, desorganizou setores produtivos inteiros, como aconteceu
com a agricultura comunitária, na Índia, e com o artesanato em pratica-
mente todos eles. Em outros, introduziu elementos do modo de produção
capitalista de forma mais intensa, como ocorreu principalmente no Japão e,
em certa escala, na China. Em todos, aumentou as cargas sobre os campo-
neses, intensificou a exploração sobre os trabalhadores e fez surgirem revol-
tas e movimentos nacionalistas espontâneos.
10. No Japão, a pressão imperialista fez surgir um movimento de moderni-
zação conservadora, conhecido como Reforma Meiji, que transformou o país
numa potência industrial, sem que fosse necessário destruir o feudalismo. Da
mesma forma que a organização feudal dividia a propriedade rural e o poder
político e militar entre algumas famílias, o mesmo ocorreu com a propriedade
industrial. Em todos os demais países asiáticos, as classes dominantes foram

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Wladimir Pomar

incapazes de realizar algo idêntico ao Japão, conformando-se com sua manu-


tenção como monarquias auxiliares dos colonizadores estrangeiros.
11. Assim, ao explodir a Primeira Guerra Mundial, a Ásia encontrava-se
dividida entre um grupo reduzido de grandes potências industriais e algumas
potências de segunda classe. Com exceção do Japão, primeira potência asiáti-
ca a vencer uma guerra contra um país europeu (a Rússia, em 1905) e, aliada
dos ingleses, em 1914, a enviar uma esquadra para auxiliar as operações na-
vais contra alemães, austro-húngaros e otomanos no mar Negro, todos os
demais tinham seu futuro atrelado aos resultados dessa guerra global.
12. A Primeira Guerra Mundial resultou numa nova configuração de po-
deres mundiais. Os impérios austro-húngaro, alemão e otomano foram des-
troçados. Os impérios britânico e francês tiveram perdas enormes e saíram
enfraquecidos. Os impérios norte-americano e japonês se fortaleceram e se
firmaram como impérios emergentes. E o império russo naufragou numa
revolução de novo tipo, que implantou uma união de repúblicas socialistas.
13. Essa nova configuração causou uma redivisão no domínio colonial
sobre a Ásia. Os impérios britânico e francês expandiram-se para a
Mesopotâmia e o Oriente Médio, o império nipônico ocupou as antigas
possessões alemãs e os domínios holandês, português e norte-americano
mantiveram-se inalterados.
14. Por outro lado, emergiram os primeiros grandes movimentos
anticolonialistas. Na Índia e na China, em 1919; na Indonésia, em 1926.
Sua bandeira principal era o nacionalismo. Em alguns casos, isso surgiu asso-
ciado à democratização da propriedade agrária, com o fim do sistema feudal,
ou semifeudal, e da opressão sobre o campesinato. Em outros também se
associou à reivindicação de democracia política e a movimentos anticapitalistas.
15. Nos anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, à nova redivisão
colonial e à eclosão dos movimentos nacionalistas e de outros tipos na Ásia,
também ocorreram nos países capitalistas centrais movimentos importan-
tes, entre os setores imperialistas dominantes.
16. A Alemanha debatia-se em crise profunda, não suportando as inde-
nizações e reparações impostas pelo Tratado de Versalhes, assinado em 1919.
A república implantada não conseguiu consolidar-se, em virtude de as for-
ças militares, que serviram ao império e aos grupos econômicos, terem se
conservado intactas, e no comando da situação, principalmente após have-

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Curso de formação em política internacional

rem derrotado a insurreição de 1919. No início dos anos 1930, o Partido


Nacional-Socialista (nazista), com o apoio da grande burguesia, obteve
maioria no Parlamento e assumiu o poder. Para resolver a crise, os nazistas
implantaram uma política econômica que tinha como carro-chefe o
rearmamento, subordinado a uma estratégia de ampliação do espaço vital
alemão no rumo leste, ou seja, da União Soviética. Sob uma retórica estrita-
mente antibolchevista, a Alemanha proclamava sua disposição de realizar
uma nova divisão global.
17. Os Estados Unidos, potência mais jovem, embora houvessem coloni-
zado o Havaí e as Filipinas, propunham uma política de divisão do mundo
de natureza econômica, tendo como base o livre comércio e a competição
comercial. Assim, defendiam portas abertas na China, na Índia e em outras
regiões, e se esforçavam por manter o status quo em relação ao Japão. À
medida que as pretensões nazistas e nipônicas ficavam claras, formaram-se
dois grandes blocos internos, um defendendo o não-alinhamento a qual-
quer dos lados em disputa, outro defendendo que os Estados Unidos teriam
que tomar partido contra o nazismo e o Japão. Em vários círculos firmara-
se, além disso, a suposição de que o Japão avançaria sobre as zonas de in-
fluência dos Estados Unidos, o que obrigaria estes a confrontá-lo.
18. O Japão, que também havia chegado tardiamente à industrialização
e à divisão mundial capitalista, desenvolvera-se rapidamente após a Primei-
ra Guerra Mundial. Seus círculos dirigentes concluíram, em 1927, que o
desenvolvimento do país só seria possível se, ao mesmo tempo, se espraiasse
por outros países, garantindo as matérias-primas e as rotas de abastecimen-
to para suas indústrias. O Memorando Tanaka, desse mesmo ano, delineou
os planos de expansão japonesa na Ásia, estipulando a meta da hegemonia
nessa região, começando pela ocupação da Manchúria e pela instalação de
um governo títere, o que ocorreu em 1931. Os preparativos para a expansão
japonesa continuaram nos anos seguintes, com o abandono da Liga das
Nações, em 1933, a adesão ao Pacto Anti-Comintern, em 1936, e a ofensi-
va geral para a ocupação da China, em 1937.
19. Esses movimentos imperialistas, por uma nova redivisão do mundo,
polarizaram todas as ações, conduzindo a humanidade a uma guerra de propor-
ções mundiais ainda mais vasta e profunda do que a guerra de 1914-1918. Em
1939 já havia se conformado uma estreita aliança entre a Alemanha nazista, a

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Itália fascista e o Japão, o chamado Eixo anti-Comintern, ou anticomunista.


Porém, embora teoricamente o movimento dessas potências tivesse como obje-
tivo a liquidação da União Soviética, sua expansão territorial real ocorria às
expensas das potências ocidentais. Essa dicotomia agravou-se com a assinatura
do Pacto de Não-Agressão entre a Alemanha e a URSS (União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas), e chegou a um ponto crítico com a invasão da Polônia,
em 1939, levando a Inglaterra e a França a declararem guerra à Alemanha.
20. A URSS, por seu lado, esforçava-se para impedir um ataque pelos
dois flancos extremos de seu território (da Alemanha, através da Ucrânia,
no oeste; e do Japão, através da Sibéria, no oriente), ao mesmo tempo em
que procurava ganhar tempo para reforçar-se militarmente. Suas negocia-
ções com a França e a Inglaterra haviam fracassado até então. Para impedir
que a Finlândia pró-fascista servisse de base de operações das forças alemãs
pelo flanco noroeste, a URSS envolveu-se numa guerra de desgaste com
aquele país, conseguindo em parte sua neutralidade. Quando a Alemanha
atacou a Polônia, a URSS também movimentou suas tropas sobre os antigos
territórios ucranianos cedidos à Polônia no tratado de paz de 1918, avan-
çando suas linhas de defesa mais para o oeste.
21. Na Ásia, os movimentos anticolonialistas ainda se encontravam divi-
didos sobre quem seria o inimigo principal. Embora o Japão houvesse inva-
dido a Manchúria, havia aqueles que o enxergavam como aliado contra os
colonialistas. Talvez por isso tenha sido na Ásia que o movimento imperia-
lista em direção a uma nova guerra mundial se expandiu primeiro. A partir
de 1936, o Japão acelerou a execução do plano Tanaka, aderiu ao Pacto
Anti-Comintern, denunciou o Pacto de Washington, que limitava sua ca-
pacidade naval, e realizou sua ofensiva geral contra a China. Em 1938,
decretou a mobilização geral para a guerra e expandiu as operações de suas
tropas, tanto no sentido sul-sudoeste (Xangai, Hong Kong, Macau,
Indochina) como no sentido leste (ilhas da Micronésia).

3. A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL NA ÁSIA

22. Em 1940, tanto a Europa quanto a Ásia estavam envolvidas na Se-


gunda Guerra Mundial. Na Ásia, o Japão mantinha seu empuxo nas dire-
ções sul-sudoeste (Indochina, Birmânia e Tailândia) e sul-sudeste (Malásia,

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Indonésia, Timor, Filipinas, Ceilão, Bornéu, Papua, ilhas Molucas). Ao


mesmo tempo, em 1941, reforçava sua aliança com a Alemanha e a Itália,
mas assinava um Pacto de Não-Agressão com a URSS, apontando que iria
dirigir seu ataque principal não a oeste, mas a leste, contra os Estados Uni-
dos. O ataque à base norte-americana de Pearl Harbour ocorreu em dezem-
bro de 1941.
23. Paralelamente, o Japão empreendeu uma série de ações políticas com
o intuito de superar suas fraquezas em recursos humanos, ampliar seus apoios
nos países conquistados, dividir os movimentos de resistência e concentrar
suas forças na luta contra o inimigo principal, os Estados Unidos. Procurou
incentivar os movimentos anticolonialistas contra as potências ocidentais,
implantou governos pró-Japão na Manchúria, na China e nas Filipinas, e
prometeu reconhecer a independência da Birmânia (o que aconteceu em
1943), da Indochina e da Indonésia (o que ocorreu em 1945).
24. A Grã-Bretanha reagiu mal à ofensiva japonesa. Parte de suas tropas
capitulou em vários pontos (Hong Kong, Birmânia etc.) e as demais retira-
ram-se para a Índia. Após esse recuo geral, os britânicos passaram à ação
política, prometendo aos indianos autonomia e independência depois do
conflito. Nas outras colônias, então ocupadas pelos japoneses, os britânicos
apoiaram os movimentos guerrilheiros de resistência, fornecendo-lhes ar-
mas e outros tipos de recursos materiais.
25. A França, por seu turno, capitulou duplamente. Na Europa, diante
das tropas nazistas, vendo-se dividida em duas: ao norte, incluindo Paris,
sob ocupação das tropas nazistas, e, ao sul, com capital em Vichy, sob um
governo títere. Na Indochina, suas tropas também capitularam e, em fun-
ção da colaboração com a Alemanha, colaboraram com o Japão.
26. Em virtude do ataque japonês a Pearl Harbour, os Estados Unidos
decidiram romper sua posição de neutralidade e entrar na guerra. Embora
o palco principal de suas operações fosse o Pacífico e a guerra contra o Japão,
os Estados Unidos passaram a fornecer recursos militares para a guerra con-
tra a Alemanha na Europa, participando da aliança formada por URSS,
Inglaterra e França. Na Ásia, somente em 1942 os Estados Unidos conse-
guiram iniciar uma contra-ofensiva ao Japão, em três frentes.
27. A resistência à invasão e à ocupação japonesas variou. Organizaram-
se movimentos guerrilheiros, tanto de ideologia nacionalista quanto comu-

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nista, às vezes constituindo frentes únicas (como no Vietnã), outras vezes


não (como na Tailândia). Na China, o movimento de resistência tomou o
caráter de uma frente única nacional. Na Índia, não atacada pelas tropas
nipônicas, chegou a ser formado um exército pró-japonês, que foi desbara-
tado. As tropas indianas participaram das operações militares da Inglaterra
no norte da África e na Europa, mas não na Ásia.

4. ÁSIA: SITUAÇÃO IMEDIATA NO PÓS-GUERRA – 1945-1950

28. O surgimento de movimentos guerrilheiros nacionais relativamente


fortes, a participação da URSS na guerra contra a Alemanha e, no final,
também contra o Japão, a necessidade das potências coloniais de empunhar
a bandeira da liberdade e da democracia para conquistar o apoio dos povos
contra o Eixo, a derrota militar da Itália, da Alemanha e do Japão; tudo isso
contribuiu para profundas mudanças na correlação de forças em cada país
ou região da Ásia e tornou insustentável a continuidade do colonialismo.
29. O Japão tornou-se um país ocupado por forças norte-americanas,
que lançaram duas bombas atômicas sobre cidades japonesas (Hiroshima e
Nagasaki) para apressar o final da guerra e evitar que as tropas soviéticas
também participassem de sua tomada. Os Estados Unidos deram início aos
processos contra os criminosos de guerra nipônicos, elaboraram uma nova
Constituição para o país, realizaram a reforma agrária e iniciaram uma forte
política de reconstrução econômica, já sob os ventos da Guerra Fria contra
a União Soviética.
30. A China, que resistira ao Japão com um exército unificado, incluindo as
tropas comunistas, mergulhou num duro processo de negociações de paz, entre
1945 e 1947. Porém, ao mesmo tempo em que essas negociações ocorriam, as
forças militares norte-americanas supriam apoio logístico aos 8 milhões de ho-
mens das tropas do Guomindang2, para que se posicionassem estrategicamente
com o fim de derrotar os 3 milhões das tropas comunistas, numa nova guerra
civil. Ao mesmo tempo, a União Soviética pressionava os comunistas a aceitar o

2
Tropas do Guomindang: tropas do Exército Nacional chinês, sob a direção do Guomindang, o
Partido Nacionalista da China.

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Curso de formação em política internacional

acordo proposto pelo Guomindang e pelos Estados Unidos, de modo a evitar o


acirramento de suas disputas com os norte-americanos.
31. O fracasso dessas negociações foi acompanhado, em 1947, pela ofen-
siva das tropas do Guomindang. As tropas comunistas, rebatizadas Exército
Popular de Libertação (EPL), realizaram retiradas, mas passaram paulatina-
mente à contra-ofensiva, sendo engrossadas por corpos de exército do
Guomindang, que trocaram de lado. Em 1949, o EPL passou à ofensiva
geral. As principais tropas remanescentes do Guomindang fugiram para
Taiwan, sob proteção da 7a Frota da Armada dos Estados Unidos, enquanto
outras se embrenharam pelo Vietnã e pela Tailândia. A República Popular
foi proclamada em 1o de outubro de 1949.
32. Na Índia, em 1946, foram instalados a Assembléia Constituinte e
um governo de transição. Ao mesmo tempo, em parte por pressão da Liga
Muçulmana, os britânicos dividiram o antigo território imperial em Índia
(de maioria hinduísta), Paquistão (Ocidental e Oriental, de maioria islâmica)
e Birmânia. Essa divisão conduziu a migrações em massa e a choques san-
grentos entre hinduístas e muçulmanos. Na Caxemira, os indianos estimu-
laram uma insurreição contra o principado feudal da região, em 1947. E, a
pretexto dela, realizaram uma intervenção militar na região, promovendo a
primeira guerra contra o Paquistão. Apesar da condenação da onu (Organi-
zação das Nações Unidas) e do cessar-fogo de 1948, a Índia manteve sua
ocupação de uma parte da região, que se tornou um dos principais pontos
de atrito entre os dois países. Em meio a esses conflitos, em 1948, Mahatma
Gandhi foi assassinado, e a Índia fez a anexação do principado muçulmano
de Hiderabad. Em 1950, o Parlamento indiano proclamou a Constituição
da República da União Índia (Bharat).
33. O Paquistão Ocidental, tendo como capital Islamabad, ficou a no-
roeste da Índia, na antiga região do vale do Indo. As migrações populacionais
impuseram ao novo país uma série de crises e tensões, tanto de caráter
religioso quanto econômico e social. As disputas da população com os pro-
prietários feudais tomaram muitas vezes a forma de rebeliões armadas, agra-
vadas em grande medida pelas disputas com a Índia.
34. O Paquistão Oriental ficou situado a 1.700 quilômetros do Paquistão
Ocidental, na foz do rio Ganges. Enfrentou os mesmos problemas de crises
e tensões, agravados pelas condições naturais mais adversas e pela maior

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pobreza de sua população. Algum tempo depois, proclamou sua própria


independência e passou a chamar-se Bangladesh.
35. Pelo Acordo de Potsdam, a antiga colônia japonesa da Coréia foi
dividida, em 1945, em duas zonas, uma ocupada pelos soviéticos e outra
pelos norte-americanos, tendo como linha fronteiriça o paralelo 38. A
reunificação deveria ocorrer por meio de eleições gerais realizadas em ambos
os lados. Ao norte, com base nas forças guerrilheiras que resistiram à ocu-
pação japonesa, foram formados comitês de frente popular, que assumi-
ram o governo de transição logo após o final da guerra. No sul, os norte-
americanos mantiveram o governo militar até 1948, quando as tropas de
ocupação da URSS e dos Estados Unidos foram retiradas. As eleições fo-
ram adiadas e formaram-se duas repúblicas. Em 1950, conflitos de fron-
teira levaram o norte a invadir o sul, dando ensejo à intervenção da ONU
e dos Estados Unidos.
36. Na Indochina, a virada dos ventos da guerra mundial levou os japo-
neses a desarmar as tropas francesas, em 1945. Tendo construído grandes
forças guerrilheiras antijaponesas, os vietnamitas e os cambojanos procla-
maram a independência. No Camboja foi restabelecida a monarquia cons-
titucional, e no Vietnã foi proclamada a república popular democrática.
Logo depois, porém, tropas britânicas ocuparam Saigon e o sul do Vietnã,
entregando a administração desses territórios às autoridades coloniais fran-
cesas. Numa ação para evitar a guerra, o Vietminh (Frente de Libertação
Nacional do Vietnã) aceitou integrar a União Francesa, proposta repelida
pela França, que pretendia retomar a Indochina como colônia. Em 1946,
tropas francesas ocuparam o delta do rio Vermelho, dando início à primeira
guerra da Indochina.
37. Embora ainda permanecesse forte a tentação de manter a situação
colonial na Ásia, principalmente por parte dos franceses, o fim do
colonialismo era patente. Além dos acontecimentos de independência na
Índia, no Paquistão, na China, no Camboja e no Vietnã, as Filipinas tive-
ram a independência em 1946, a Indonésia em 1950, a Malásia foi trans-
formada em protetorado em 1948, a Tailândia teve seus territórios devolvi-
dos, a Birmânia proclamou a independência em 1947 (seguida de uma
guerra civil que se prolongou até 1954) e o Ceilão conquistou o estatuto de
domínio em 1948.

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5. CONTEXTO MUNDIAL PÓS-SEGUNDA


GUERRA MUNDIAL E INFLUÊNCIA NA ÁSIA

38. A eclosão da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética,


logo após a Segunda Guerra Mundial, acirrada pela disputa em torno de
Berlim, teve desdobramentos em todo o mundo. As duas maiores potências
mundiais passaram a influir decisivamente nas ações dos demais países,
procurando criar um ambiente no qual quem não estava de um lado estava
do outro.
39. A política norte-americana baseou-se na doutrina de quatro pontos
do presidente Harry S. Truman, tornada pública em 1947. Ele proclamou
a responsabilidade mundial dos Estados Unidos de salvaguardar todos os
países contra o comunismo, prestar a eles ajuda econômica – e onde fosse
necessário –, militar ou intervir com suas próprias tropas. Com base nessa
política, os Estados Unidos estabeleceram bases militares em várias partes
do globo, impuseram o bloqueio econômico, político e militar à China,
intervieram em todas as regiões onde se desenvolviam guerrilhas de inspira-
ção comunista, socialista ou nacionalista, elaboraram e executaram os Pla-
nos Marshall (para a Europa) e Colombo (para a Ásia), e impuseram a
vários países asiáticos a realização de reformas agrárias para tirar a base social
de qualquer projeto de transformação social.
40. A União Soviética, por seu turno, mais preocupada em curar as feri-
das da guerra e recuperar sua economia, estimulou os movimentos pacifis-
tas, procurou também prestar ajuda econômica aos novos países indepen-
dentes, praticou ajuda militar a alguns movimentos de guerrilha e procu-
rou exercer seu poder de veto, na ONU, para refrear em parte as ações
militares dos Estados Unidos.
41. Essa nova situação global influiu, em grande medida, no desenvolvi-
mento da situação em cada um dos países asiáticos, mesmo naqueles que
procuravam uma posição de neutralidade entre os dois campos.
42. O Japão assinou um tratado militar com os Estados Unidos, em
flagrante quebra dos acordos entre os aliados, no final da Segunda Guerra
Mundial. Por outro lado, os Estados Unidos investiram pesadamente na
recuperação industrial e comercial desse país, possibilitando a seu ex-inimi-
go transformar-se em potência econômica, num curto espaço de tempo.

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Aliando-se aos antigos grupos dirigentes do Japão, os Estados Unidos faci-


litaram que o Partido Liberal Democrático se tornasse o principal partido
japonês, exercendo quase o monopólio da vida política daquele país. Desse
modo, o Japão transformou-se num forte aliado dos Estados Unidos para
conter a expansão do comunismo, em especial da China, na Ásia.
43. A China sofreu, por parte dos Estados Unidos e da maioria das po-
tências ocidentais, forte bloqueio econômico, comercial, diplomático e po-
lítico. Recebeu pouco apoio material da União Soviética, ainda exausta pela
Segunda Guerra Mundial. E foi obrigada a enviar cerca de 1 milhão de
voluntários à Coréia, para impedir o avanço norte-americano sobre suas
fronteiras no rio Yalu. Mesmo assim, conseguiu reconstruir sua economia.
Em 1953, alcançou os níveis de pré-guerra. Até 1956, implantou a reforma
agrária em quase todo o país. Entre 1953 e 1957, executou seu primeiro
plano qüinqüenal de industrialização. E promulgou a Constituição da Nova
Democracia em 1954.
44. Na Índia pós-independência, o Partido do Congresso conquistou
forte hegemonia, apesar da persistência de sérios conflitos religiosos e so-
ciais. Numa dúplice política de manter neutralidade dinâmica entre os
campos em disputa global e aproveitar-se dela, a Índia adotou o modelo
soviético de planejamento, apresentando o seu primeiro plano qüinqüenal
de industrialização em 1951. E, ao mesmo tempo em que estimulava a
propriedade privada e os projetos capitalistas, interferiu na economia, in-
clusive nacionalizando ou estatizando pequenas unidades produtivas, atra-
vés das quais era possível reduzir as dificuldades populares.
45. A primeira guerra indochinesa, opondo o Vietminh aos franceses,
prolongou-se de 1948 a 1954. Apesar dos reforços militares e do apoio
militar dos Estados Unidos, a França não conseguiu derrotar o sistema de
guerra popular desenvolvido pelo Vietminh, sendo finalmente derrotada
na batalha de Dien Bien Phu. Teve que aceitar, a contragosto, participar da
Conferência de Paz em Genebra, onde foi selada a paz, resultando na divi-
são da Indochina em três países independentes: Laos, Camboja e Vietnã.
Por esse acordo, o Vietnã ficaria provisoriamente dividido em duas zonas,
separadas pelo paralelo 13, com previsão de eleições para a reunificação do
país em 1956. Antes desse prazo, porém, generais vietnamitas cooptados
pelos Estados Unidos derrubaram o rei Bao Daí, mediante um golpe mili-

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tar, e instauraram um governo ditatorial. As duas zonas tomaram, então,


caminhos diferentes.
46. No Vietnã do Norte foi instalada uma república popular democráti-
ca. Ela buscou ingressar na industrialização, principalmente com a ajuda
da União Soviética e, secundariamente, da China. O modelo de construção
econômica foi o soviético, com planejamento centralizado e investimentos
em indústria pesada. Porém, as limitações do país impuseram atenção à
agricultura e à produção de bens de consumo popular.
47. No Vietnã do Sul, a instauração da ditadura militar e a repressão que
se seguiu contra os antigos combatentes que se opunham à dominação ja-
ponesa e francesa rompendo com os acordos da Conferência de Genebra
conduziram à formação da Frente Popular de Libertação do Vietnã do Sul
(Vietcongue). Esta adotou os métodos de guerrilha e guerra popular aplica-
dos na resistência contra o Japão e a França. Os vietcongues combinavam,
ainda, a luta guerrilheira com movimentos de massa nas cidades.
48. A ausência de apoio político causava às tropas ditatoriais constantes
derrotas militares diante das guerrilhas, inferiores em homens e armamen-
tos. Isso teve como conseqüência uma sucessão de golpes militares, inclusi-
ve sangrentos, entre as próprias forças ditatoriais, na suposição de que as
derrotas se deviam à incompetência ou a erros militares. Esses golpes tam-
bém eram estimulados pelos vultosos recursos militares e financeiros carreados
pelos Estados Unidos para o Vietnã do Sul, dando ensejo a uma imensa
corrupção e ao enriquecimento rápido dos generais em comando.
49. Após mais de seis anos, e milhões de dólares jogados na fogueira da
guerra civil do Vietnã do Sul, os Estados Unidos decidiram intervir, sob a
justificativa de que o Vietnã do Norte era o responsável pela situação. A
marinha norte-americana montou um falso combate na baía de Tonquim,
em 1964, seguido do desembarque de grandes contingentes de tropas de
combate no Vietnã do Sul e de bombardeios ao Vietnã do Norte, assim
como ao Camboja e ao Laos, acusados de permitir o trânsito do apoio
logístico do Norte para os guerrilheiros do Sul.
50. Os norte-americanos colocaram mais de 500 mil soldados para com-
bater os vietcongues e entraram num atoleiro. Em 1970, a derrota norte-
americana transformou-se numa certeza e numa questão de tempo, mesmo
para uma parte do alto-comando dos Estados Unidos. Isso levou o país a

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aceitar a diplomacia do pingue-pongue, ofertada pela China, para que esta


intermediasse negociações de paz e uma saída relativamente honrosa dos
derrotados norte-americanos. As tropas dos Estados Unidos retiraram-se
em 1974, levando à debandada geral das tropas títeres e à ocupação de
Saigon e de todo o país pelas tropas vietcongues. A reunificação ocorreu em
1975, com o Vietnã tornando-se República Socialista do Vietnã. Por outro
lado, a China, mesmo envolta nas dificuldades de sua Revolução Cultural,
aproveitou essa situação para realizar uma forte abertura diplomática e po-
lítica ao exterior, rompendo o bloqueio dos Estados Unidos, impondo sua
política de uma só China, reatando relações com a maioria dos países oci-
dentais e reassumindo seu lugar na ONU e no Conselho de Segurança.
51. Durante todo esse período, os Estados Unidos fizeram um imenso
esforço, através do Plano Colombo, para o desenvolvimento capitalista dos
países asiáticos e a criação de um cinturão “sanitário” contra a expansão
comunista. Os recursos investidos pelos norte-americanos na Ásia foram
superiores aos investidos na recuperação da economia européia no pós-Se-
gunda Guerra Mundial. Os resultados desse esforço foram a transformação
do Japão em potência econômica e o surgimento dos Tigres Asiáticos. Coréia
do Sul, Cingapura, Hong Kong e Taiwan, pequenas nações e regiões asiáti-
cas, tornaram-se economicamente fortes e, mais tarde, passaram a concorrer
com os próprios Estados Unidos no mercado mundial.
52. A Coréia do Sul, arrasada pela guerra com o Norte, aproveitou adequa-
damente os recursos para reconstruir o país, industrializar-se em áreas de
mercado que estavam sendo abandonadas pelos países industrialmente de-
senvolvidos (bens de consumo corrente), usufruir das novas técnicas produti-
vas desenvolvidas pelos japoneses, investir pesadamente na educação de sua
mão-de-obra e disputar agressivamente o mercado internacional. Com isso,
cresceu de forma sustentada por vários anos e tornou-se um player do merca-
do mundial. E Cingapura, uma cidade-Estado que se tornara independente
da Malásia, aproveitou as condições favoráveis dos fluxos de capitais enviados
pelos Estados Unidos para transformar-se num centro financeiro e entreposto
de troca de mercadorias entre a Ásia meridional e a Ásia do Pacífico.
53. Hong Kong, então uma colônia sem voz nem voto da coroa britânica,
era uma porta encravada no sul da China. Por causa disso, tornara-se escoa-
douro de migrações da China continental, porta de entrada clandestina para

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ações de sabotagens na China e, paradoxalmente, janela de intercâmbio utili-


zada pela China para comerciar com os países ocidentais e furar o bloqueio
imposto pelos Estados Unidos. Nessas condições, Hong Kong pareceu o lu-
gar ideal para plantar uma próspera vitrine capitalista que atraísse os olhares e
o desejo da população chinesa. Foi desse modo que essa colônia britânica
tornou-se o maior centro financeiro e comercial do Sudeste da Ásia e, aos
poucos, passou a concorrer fortemente com os próprios Estados Unidos e a
Inglaterra. Taiwan, ilha separada da província chinesa de Fujian por um es-
treito marítimo e refúgio das tropas nacionalistas derrotadas na guerra civil
chinesa, também se transformou em importante vitrine capitalista. Seguindo
o mesmo caminho da Coréia do Sul, tornou-se um pólo industrial de primei-
ra ordem para produtos de consumo de massa, também paulatinamente con-
correndo vantajosamente com os produtos norte-americanos e europeus.
54. O surgimento dos NIC (Newly Industrializing Countries – Novos Paí-
ses Industrializados), durante os anos 1970, representou a segunda onda pro-
movida pelos investimentos norte-americanos na Ásia, no contexto da Guerra
Fria. Esses países foram Indonésia, Tailândia e Malásia. Embora seguissem os
mesmos passos dos Tigres Asiáticos, eles entraram atrasados no processo de
desenvolvimento, confrontaram-se com o ambiente descendente das demandas
dos Estados Unidos no Vietnã e não conseguiram alcançar o mesmo patamar de
desenvolvimento dos Tigres. Além disso, no caso específico da Indonésia, os
problemas de corrupção agravaram sua situação social e política.

6. SITUAÇÃO NA ENTRADA DO SÉCULO XXI

55. A partir de 1978, a China realizou uma série de reajustamentos


internos e aprovou um plano de longo prazo de reformas em seu socialismo,
incluindo a abertura econômica para o exterior. Nos anos seguintes, apesar
de o Japão haver ingressado numa prolongada crise de estagnação, o rápido
desenvolvimento chinês e a manutenção de altas taxas de crescimento da
Índia, dos Tigres e dos NIC contribuíram para transformar a Ásia do Pací-
fico na região de maior dinamismo econômico mundial, deslocando o eixo
de desenvolvimento dos Estados Unidos e da Europa para a Ásia.
56. A Ásia continua enfrentando inúmeros problemas estruturais do passa-
do. Grandes populações, persistência de áreas de grande miséria, problemas

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fronteiriços ainda não solucionados (Caxemira), reunificações não resolvidas


(Coréias, Taiwan), coexistência religiosa difícil (hinduístas, muçulmanos e cris-
tãos) e interferências externas permanecem como focos persistentes de instabi-
lidade. Apesar disso, a maior parte dos conflitos latentes tem sido de baixa
intensidade, havendo esforços consistentes para superá-los através de mecanis-
mos de consulta e diálogo. O que não quer dizer que isso dure eternamente.

BIBLIOGRAFIA INDICADA

BARRACLOUGH, Geoffrey. O imperialismo e a reação nacionalista. In His-


tória do Século XX. vol. 1. São Paulo, Abril Cultural.
CHESNEAUX, Jean. A Ásia Oriental nos séculos XIX e XX. São Paulo, Pio-
neira, 1976.
FLAMARION, Ciro. O modo de produção asiático. Rio de Janeiro, Campus, 1990.
HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismos desde 1780. Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 2002.
MESGRAVIS, Laima. A colonização da Ásia e da África. São Paulo, Atual, 1994.
PANIKKAR, K. M. A dominação ocidental na Ásia. São Paulo, Paz e Terra, 1977.
POMAR, Wladimir. O enigma chinês. São Paulo, Alfa-Ômega, 1987.
_____. A Revolução chinesa. São Paulo, Unesp, 2003.
SPENCE, Jonathan D. Em busca da China moderna. São Paulo, Cia. das
Letras, 2000.

FILMOGRAFIA SOBRE A ÁSIA

Ana e o rei do Sião (Anna and the King of Siam, Estados Unidos, 1946,
direção: John Cromwell)
Ana e o rei (Anna and the King, Estados Unidos, 1999, direção: Andy Tennant)
Passagem para a Índia (A Passage to India, 1984, Inglaterra, direção: David Lean)
Tai-Pan – A conquista de um Império (Tai-Pan, Estados Unidos, 1986, dire-
ção: Daryl Duke)
O homem que queria ser rei (The Man Who Would Be King, Estados Unidos/
Reino Unido, 1975, direção: John Huston)
O canhoneiro do Yang-tsé (The Sand Pebbles, Estados Unidos, 1966, direção:
Robert Wise)

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Um olhar sobre a Índia


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1. PRELIMINARES

1. Os antigos territórios indianos incluíam, além da atual Índia, com 3,2


milhões de km2, o Paquistão, com 796 mil km2, a noroeste, Bangladesh, com
144 mil km2, a nordeste, e Sri Lanka, com 66 mil km2, ao sul. Nesses territó-
rios, há vestígios de povoamento humano desde o período Paleolítico (há 100
mil anos). Mas datam de 5 mil anos (3000 a.C.) as primeiras povoações
conhecidas, no vale do Indo, que tinham por base a agricultura de cereais.
2. Nos 1.500 anos posteriores, essas aglomerações se transformaram em
cidades-Estado, comandadas por reis (rajás2) ou grandes reis (marajás), con-
figurando-se como culturas ou civilizações próprias. Suas características co-
muns eram as edificações de ladrilhos, os trabalhos com metais (exceto o
ferro), as canalizações urbanas e rurais (estas para irrigação), as embarcações
e o comércio fluvial, a escrita e as representações religiosas antropomórficas
(shiva) e animistas (fauna local). A história conhece essas populações do vale
do Indo, dispersas por suas cidades-Estado, como drávidas.
3. Por volta de 1.500 a.C. teve início a penetração de populações arianas,
em migração da Ásia Central. Eram tribos de língua indo-européia, dotadas
de carros de guerra puxados por cavalos e armadas com arco-e-flecha, arma-
dura e escudo. Com essa superioridade militar, impuseram-se aos drávidas,

1
Jornalista e escritor, é membro do conselho de redação da revista Teoria & Debate, autor, entre outros,
de Araguaia, o partido e a guerrilha, O enigma chinês – capitalismo ou socialismo, Lula lá – o susto das elites, A ilusão
dos inocentes, Pedro Pomar – uma vida em vermelho e A revolução chinesa.
2
Neste artigo, as palavras de origem híndi foram grafadas de duas formas: em itálico, quando não existe
o termo dicionarizado em português, sem itálico, quando o termo em questão está dicionarizado. (N.E.)

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no vale do Indo, e estenderam-se para leste, pelo vale do Ganges. Por volta de
600 a.C., haviam se estabelecido em quase todo o vale do Indo, restando
apenas algumas cidades-Estado sob domínio dravídico no golfo de Cambaia.
4. Os arianos impuseram sua estrutura econômica, social e política, assim
como sua religião védica. As terras foram repartidas entre os guerreiros (chatrias),
os sacerdotes (brâmanes) e os camponeses arianos livres (vaisia) para cultivo e
para criação dos rebanhos bovinos e ovinos. Os camponeses servos e mestiços
(sudras) trabalhavam as terras para os guerreiros e os brâmanes. Ao mesmo
tempo, permitiram a existência de pessoas totalmente desprovidas de meios de
trabalho (os párias).
5. Essa estrutura foi consolidada no Código de Manu, entre 600 a.C. e 250
a.C., ao mesmo tempo em que era sancionada pela religião Veda como regime de
castas, que impedia qualquer deslocamento social entre elas. Mas foi nesse perío-
do (540 a.C. a 468 a.C.) que a religião Veda sofreu seu primeiro choque, com o
surgimento de duas novas vertentes religiosas, o budismo e o jainismo, o que a
obrigou a uma profunda revisão, que se consolidou, mais tarde, no hinduísmo.
Ao mesmo tempo, os territórios arianos foram invadidos por povos ocidentais.
6. A Índia ariana era formada por diversas cidades-Estado ou reinos, que
travavam guerras entre si. Não conseguiram, pois, impedir que os persas, co-
mandados por Ciro, penetrassem fundo no noroeste da Índia, em 312 a.C.
Dario I ampliou as conquistas de Ciro, transformando essa região (que hoje faz
parte do norte do Paquistão) em satrapias. Entre 327 a.C. e 325 a.C., o
macedônio Alexandre, o Grande, derrotou os persas, transformou suas satrapias
em satrapias gregas e tentou atravessar a Índia, rumo ao Pacífico, mas foi impe-
dido pela forte resistência dos reinos arianos restantes.
7. Em 321 a.C. ocorreu a primeira tentativa de unificação monárquica,
feita pelo rei Chandragupta, de Magadha, no nordeste. Ele rechaçou as
tentativas de Seleuco I (antigo general de Alexandre), fundou a dinastia
Maurya, mas não chegou a dominar todo o território. Isso quase será reali-
zado por Asoka, seu neto, entre 272 e 231 a.C., com capital em Pataliputra.
Apenas Pandia, Cola e Kerala, ao sul, onde os romanos haviam estabelecido
os portos de Produke, Kolxoi e Muziris, permaneceram fora de seus domí-
nios. A conquista de Kalinga, área litorânea ao sul de Maghada, foi realiza-
da ao custo de 100 mil mortos e 150 mil deportados, levando Asoka a
converter-se ao budismo e pregar a tolerância religiosa.

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8. À morte de Asoka, em 231 a.C., seguiu-se nova divisão, a sucessão da


dinastia Maurya pela Sunga, o estabelecimento de pequenos reinos gregos no
Punjab (noroeste) e as invasões escitas (sakas, povo originário da Ásia Central)
e dos yue chi (nômades indo-europeus), a fundação do reino de Kusana em
toda a região noroeste, da dinastia Satavahana na região central (Decão) e do
Estado Ksatrapa na região ocidental (foz do Indo e vale do Narbada).
9. O estabelecimento da dinastia Gupta, em 320 d.C., com sede em
Pataliputra, procurou reaver a hegemonia perdida com a morte de Asoka,
mas não conseguiu deter as constantes invasões pelas fronteiras noroeste
(atual Caxemira). Hunos brancos, sassânidas e mercenários turcos e árabes
(muçulmanos) sucederam-se entre os anos 400 e 1030 d.C. Os muçulma-
nos penetraram profundamente no território, fundaram o sultanato de Délhi,
em 1206, e mantiveram seu domínio sobre a maior parte da Índia.
10. Os muçulmanos implantaram um despotismo teocrático-militar, com
base no islamismo. Aniquilaram o budismo, destruindo templos, mosteiros
e manuscritos. E exigiram que os hinduístas pagassem tributos para prati-
car sua religião. Como sua principal preocupação era a extração dos tribu-
tos, estipularam um sistema fiscal que aumentava a riqueza mediante a
expansão da produção (tecidos, especiarias, açúcar), mas garantia que parte
dessa riqueza fosse transferida para a sede do império árabe. Com isso,
incrementaram o comércio com o mundo islâmico ocidental, mas aumen-
taram os problemas financeiros do sultanato.
11. Os muçulmanos doavam, temporariamente, os domínios feudais a
altos funcionários ou guerreiros turcos, árabes, indianos e mongóis, não se
importando em constituir uma nobreza feudal hereditária. Apesar das cons-
tantes disputas pelo trono, o sultanato de Délhi conseguiu estender seu
domínio ao Decão e rechaçar as invasões mongóis, que se mantiveram no
reino Bahmani por quase 180 anos (1347 a 1527).
12. A extensão do domínio muçulmano ao Decão coincidiu com grave
crise financeira do sultanato e com o início de sua decadência. Em 1340, os
indianos fundaram o reino de Vijayanagar (cidade da vitória), ao sul do
Decão, convertendo-o no principal centro de resistência ao domínio islâmico,
ao estender-se às custas do reino Bahamani e dos desmembramentos do
Decão. Em 1388, o imperador mongol Timur Lenk (Tamerlão) invadiu o
norte da Índia e destruiu Délhi, anexando o Punjab a seu domínio.

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13. Em 1504, os mongóis criaram o Império do Grão-Mogol, conquis-


tando Agra, os rajputs de Khanua e o norte da Índia. Em 1601, haviam
ocupado toda a Índia. Durante seu domínio, incentivaram o casamento dos
nobres mongóis com princesas indianas, suprimiram o regime fiscal dos ára-
bes, implantaram uma burocracia centralizada, com a participação dos
hindus, proibiram os suicídios rituais e publicaram um édito de tolerância
religiosa, mesmo tendo implantado o culto ao deus Sol. O luxo cortesão
desmedido, os altos tributos exigidos dos camponeses, os conflitos em rela-
ção ao trono e a chegada da primeira onda colonial européia aceleraram o
declínio do império mongol.
14. Em 1498, Vasco da Gama chegou a Calcutá, na costa sudoeste. En-
tre 1505 e 1515 Portugal criou os primeiros elos do império português,
estabelecendo feitorias em Goa, Ceilão e Diu. Retiravam ouro, diamantes,
salitre, corantes, café, açúcar, pimenta, canela, algodão, lã, tecidos e ópio,
através de suas companhias mercantis. Em 1612, a Inglaterra também de-
finiu sua política colonial, participando na expansão marítima, na pilha-
gem dos novos territórios, na guerra contra seus concorrentes e no comércio
mundial, através da Companhia das Índias Orientais. Derrotou os portu-
gueses na batalha de Surat, em 1614, e ocupou Madras, em 1639, Bom-
baim (atual Mumbai), em 1661, e Calcutá, em 1696. A França, por sua vez,
também organizou uma Companhia das Índias Orientais, em 1644, e fun-
dou feitorias em Chandernagore e Pondicherry, no litoral oriental da Índia.
15. O Império Grão-Mogol alcançou o auge de sua expansão territorial em
1691, em meio a disputas internas, emolduradas por conflitos religiosos.
Aurengzeb, o último grão-mogol importante, tentou impor os rituais islâmicos
sunitas e restaurar a jizya, os impostos discriminatórios. Perseguiu xiitas e
hinduístas e destruiu seus templos, levando à revolta sikh e dos Estados vassalos
do Rajput, e à organização militar dos maratas, para defender o hinduísmo.
Em 1765, a Índia se livrou dos imperadores mongóis, mas permaneceu um
mosaico de pequenos e grandes reinos, comandados por príncipes (rajás e
marajás), além de parcelas do território ocupadas por europeus. A sociedade
de castas continuava intocada, enquanto os príncipes hindus permaneciam
em conflito, sob o manto do hinduísmo e do islamismo.
16. A Companhia das Índias Orientais inglesa interveio nas disputas
entre os príncipes hindus, com o apoio militar da metrópole, para assegurar

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o domínio comercial, obter privilégios tributários e o controle político e


implantar o domínio britânico. Entre 1757 e 1803, conquistou Bengala,
Audh, Bihar e Ceilão, desbaratou a Liga dos Maratas, desarmou o nizan
(alta autoridade) de Heiderabad e avassalou o reino de Mysore, seus três
principais inimigos. Finalmente, conquistou Délhi, Agra e Bengala meridio-
nal e, em 1814, tornou o Nepal parte do Império Britânico, transformando
os gurkas em guerreiros auxiliares para o domínio sobre a Índia e para as
guerras em outras partes do mundo.
17. A partir de 1817, em nova guerra contra os maratas e os rajputs, a
Inglaterra anexou a seu domínio os principados carentes de herdeiros e os
territórios limítrofes. O Tenasserin, o Arakan e o Assam, pertencentes à
Birmânia, foram incorporados em 1826. A guerra para conquistar o
Afeganistão, entre 1839 e 1842, fracassou. O Punjab foi anexado em 1849,
a Baixa Birmânia em 1852, o Butão em 1865, o Beluquistão em 1876, o
restante do território birmanês em 1886 e o Sikim em 1890. Em 1904,
após uma sangrenta expedição militar a Lhasa, a Inglaterra garantiu privilé-
gios comerciais no Tibete.
18. Desde 1858, após a vitória inglesa sobre os cipaios (tropas indianas),
com a ajuda de tropas gurkas e sikhs, e a dissolução da Companhia das Índias
Orientais, a Índia foi convertida em Domínio Britânico, sob um vice-rei. Em
1876, a rainha Vitória incorporou a seu título o de imperatriz da Índia.

2. AS CORRENTES RELIGIOSAS INDIANAS

19. Os Veda, conjunto de livros sagrados (sânscritos), constituem o pri-


meiro escrito em língua indo-européia. O Rigveda, constituído de 1.028
hinos, é do ano 1000 a.C. Eles codificam os deuses, a doutrina, os ritos, os
sacrifícios, a estrutura de castas e a exegese védica.
20. Veda significa saber ou sabedoria sagrada. Seu núcleo doutrinário é a
ioga, ou o desejo de libertação mediante a fusão com a realidade suprema.
Entre as deusas védicas encontram-se Rita (a verdade, força universal de
caráter impessoal), Varuna (deusa dos juramentos), Mitra (deusa dos con-
tratos), Ushas (deusa da aurora), Agni (deusa do fogo), Surya (deusa do
Sol), Indra (deusa da guerra). A exegese dos Veda é exclusividade dos sacer-
dotes (brâmanes).

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21. Hinduísmo foi uma denominação imposta pelos muçulmanos aos


védicos. Mas estes, após o surgimento do budismo e do jainismo, fizeram
uma revisão. Aceitaram o hinduísmo, apresentando-o como continuidade da
Sanâtama Daarma, lei cósmica universal, equilíbrio instável entre deuses e
demônios, e acrescentaram a transmigração budista à doutrina, rituais e sacri-
fícios védicos, tornando o hinduísmo a religião e a cultura predominantes.
22. A doutrina da transmigração, ou da renúncia, justifica a ordem exis-
tente em função dos méritos e dos erros das vidas anteriores. A partir dessa
visão, para alcançar a libertação (mocsa), como renunciantes (sannyasin), os
hindus devem pagar suas dívidas aos deuses e ancestrais, primeiro como
estudantes (brhmacarya) e depois como senhores da casa (grihastha).
23. O budismo surgiu em 600 a.C. como reação ao bramanismo védico.
Gautama Buda (o Iluminado), um chatria, pregava a libertação das reen-
carnações mediante o auto-aperfeiçoamento. Os aspectos essenciais do bu-
dismo consistem no reconhecimento da existência humana como sofrimen-
to, do desejo como a causa (carma) desse sofrimento, e da necessidade de
suprimir o carma para ser libertado, através do caminho, ou iluminação,
que leva ao nirvana (extinção), como propósito da vida.
24. Após a morte de Buda, o budismo dividiu-se em seitas e escolas.
Durante o reinado de Asoka, tornou-se uma religião com vocação universal,
expandindo-se por meio de missionários. Porém, em vez de unificar-se em
torno de uma doutrina e uma igreja comuns, transformou-se num agrega-
do ainda maior de seitas, que se distinguem pelas interpretações em torno
do pequeno veículo tradicional (hinaiana), do grande veículo reformado
(mahayana) e de outros pontos doutrinários. Após um apogeu, por volta de
4 d.C. e 5 d.C., o budismo sofreu na Índia o ataque conjugado do hinduísmo
reformado e do islamismo dominador, mediante perseguições e destruição
de seus templos.
25. Vardhamana, ou Mahavira (Alma Grande), ou Jaina (o Vitorioso),
também surgido em 600 a.C., pregava que o sofrimento terreno é conse-
qüência da fusão do espírito (jiva) com a matéria (ajiva). Como o budismo,
colocava-se contra o bramanismo e buscava libertar o ser humano dos sofri-
mentos inerentes à existência. Tal libertação só seria possível com a separa-
ção de espírito e matéria, através da mortificação. Isto inclui o ascetismo, a
maceração e o jejum, até a morte. Seu núcleo doutrinário consiste na nega-

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ção de himsa (a violência) e na ahimsa (não fazer mal a criatura alguma). O


jainismo seguiu uma trajetória idêntica à do budismo, dividindo-se em
ramos (os shvetambara, ou vestidos de branco, e os digambara, ou vestidos
de espaço, ou nus) e seitas diversas.
26. O Islã penetrou na Índia através das invasões turcas, árabes, persas,
afegãs e mongóis, iniciadas em 711 d.C. Seu dogma principal é a existência
de Deus (Alá) como criador do universo, ser supremo único, perfeito, e juiz
de todos os homens. Reitera o monoteísmo judaico e cristão. Mas, ao con-
trário destes, coloca o crente em relação direta com Deus, mediante os
cinco atos essenciais que cada um deve praticar: a profissão de fé (Chahada),
as abluções diárias na direção de Meca (Salat), o jejum durante o Ramadã,
a peregrinação a Meca (hadjdj), pelo menos uma vez na vida, e o pagamento
da esmola legal (zakat).
27. Embora não exista um clero para colocar os crentes em relação com
Alá, o Islã possui os homens da lei (mufti, ou intérpretes das questões jurí-
dicas), e os juízes (qadis ou cádis, que velam pela interpretação e pela apli-
cação do Corão). Formaram-se, assim, Estados muçulmanos, dirigidos por
imãs ou califas, que administram o governo e aplicam a lei corânica. A
guerra santa (jihad) foi a base da expansão muçulmana na Índia, primeiro
comandada pelos árabes, depois pelos omíadas, abássidas, turcos-otomanos
e, finalmente, pelos mongóis.
28. Nessas condições, o islamismo na Índia sempre esteve associado a
uma forma de Estado, fosse sultanato (Délhi), reino (Bengala, Malva e
Gujerat) ou império (Grão-Mogol), através do qual tentou destruir o
hinduísmo e o budismo. Durante a dominação britânica, privados de Esta-
do próprio, os muçulmanos voltaram a reivindicá-lo, no processo da inde-
pendência, o que levou à criação do Paquistão e, depois, de Bangladesh.

3. A POLÍTICA IMPERIALISTA BRITÂNICA

29. A transformação da Índia em colônia britânica está inserida na


onda de expansão colonial da Revolução Industrial dos séculos XVIII e
XIX. As emergentes potências industriais buscavam novas fontes de ma-
térias-primas minerais e agrícolas para sua produção e novos mercados
para seus produtos. Já não se tratava mais de descobrir novos territórios.

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Tratava-se de realizar uma nova divisão territorial, tendo por base as de-
mandas das indústrias.
30. A Inglaterra perdera os Estados Unidos, em 1776, e seus privilégios
comerciais na América Latina eram contestados. Nas “colônias brancas”,
como Nova Zelândia e Austrália, surgiam movimentos autonomistas. De
traficante negreira, a Inglaterra transformara-se em defensora do fim do
tráfico e da escravidão. Pressionada pelo incremento populacional, pela ex-
pansão urbana, pelo êxodo rural e pela concorrência industrial de franceses,
alemães, japoneses e norte-americanos, era levada a encontrar novos merca-
dos para os quais direcionar seus migrantes e seus produtos, e de onde
arrancar suas matérias-primas, assegurando ainda as vias de tráfego maríti-
mo para seu comércio internacional.
31. Com base em sua nova política colonial, de 1812, a Inglaterra lan-
çou-se à conquista de territórios: Colônia do Cabo em 1814, Cingapura em
1819, ilhas Malvinas em 1833, Áden em 1839, Hong Kong em 1841,
Natal e Estado de Orange entre 1848 e 1954, Transvaal em 1852, Canal
de Suez em 1875, Chipre em 1878, Egito em 1882. Em 1880, a Grã-
Bretanha controlava 46% do comércio mundial. E em 1914, início de sua
decadência, a população de suas colônias era oito vezes superior à popula-
ção da metrópole, enquanto a superfície desta era 94 vezes inferior ao impé-
rio colonial. O Império Britânico conseguira reunir sob sua coroa 23% da
população mundial e 20% da superfície do planeta.
32. Empreendimento desse vulto necessitava de justificação ideológica
que revestisse os interesses imperialistas com uma roupagem menos vulgar.
O dever puritanista de fomentar a civilização transformou-se em missão. O
escritor inglês Thomas Carlyle estabeleceu as bases ideológicas da Inglater-
ra como nação predestinada a cumprir tal missão em escala universal. O
ministro Charles Dilk criou a imagem de um “mundo cada vez mais in-
glês”. E Rudyard Kipling exprimiu literariamente o “dever do homem branco”
e a missão britânica.
33. À medida que a Inglaterra colonizava a Índia, firmava posição na
China e ocupava outros territórios, viu-se às voltas com as potências indus-
triais, inclusive no continente europeu. Os movimentos de poder na Euro-
pa a sacudiram durante todo o século XIX. As guerras napoleônicas se es-
tenderam até 1815. As restaurações da contra-reforma, as revoluções libe-

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rais e as insurreições operárias foram de 1815 a 1872. A proclamação do


Segundo Reich e a política de Otto von Bismarck intensificaram a perspec-
tiva de uma nova guerra européia. No início do século XX, dois blocos de
potências estavam em oposição: de um lado, Alemanha e Áustria-Hungria;
de outro, Inglaterra, França e Rússia (a Entente Cordial, uma aliança entre
nações européias).
34. A Inglaterra sempre procurou a hegemonia sobre as demais potên-
cias imperialistas. Primeiro, expandindo-se sobre áreas ainda “livres” ou “aber-
tas”. Segundo, com uma política armamentista que assegurasse sua supre-
macia naval. Terceiro, consolidando-se como império. Para tanto, abandonou
a política de câmbio livre e criou uma confederação imperial das “colônias
brancas”, unidas pela língua, pelos privilégios econômicos e pela Coroa.
Austrália, Nova Zelândia, Terranova e União Sul-Africana ganharam status
de domínio. Em 1914, quando estourou a Primeira Guerra Mundial, o
império britânico era constituído pela metrópole (Inglaterra) e por domí-
nios, protetorados e colônias.

4. O DOMÍNIO BRITÂNICO NA ÍNDIA

35. O domínio sobre a Índia combinou administração direta de certas


regiões com protetorado de outras. Na administração direta, não era admi-
tida qualquer participação dos hindus. O Serviço Civil era totalmente ocu-
pado por ingleses. Nos protetorados, como Nepal, Butão e Sikim, a admi-
nistração era realizada pelos nativos, embora devessem solicitar autorização
aos ingleses para qualquer passo.
36. Os ingleses inundaram a Índia com seus produtos industriais, cau-
sando a liquidação da economia rural autárquica, até então predominante.
Por outro lado, a introdução de grandes plantations de algodão, chá, juta,
índigo e papoula, com capitais britânicos, desapropriou das atividades agrí-
colas parte importante dos camponeses, obrigando-os a migrar para as cida-
des em busca de trabalho. Isso agravou os problemas da superpopulação e
da urbanização, gerando um imenso e miserável processo de favelização.
37. Ao mesmo tempo, para a comercialização dos produtos importados
da metrópole e a exportação dos produtos agrícolas e minerais produzidos
na colônia, os britânicos instalaram uma rede ferroviária, até então inexistente,

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e modernizaram os portos. Também introduziram novos sistemas de irriga-


ção nas plantations, embora deixando abandonados os sistemas de irrigação
das zonas de predomínio de culturas de pouco interesse comercial.
38. Os britânicos também implantaram seu sistema de ensino, margina-
lizando a cultura e as línguas indianas. Ao mesmo tempo, porém, estimula-
ram a formação de uma elite cultural indiana em seus colégios e universida-
des. Pretendiam que essa elite se europeizasse e colaborasse com o “processo
civilizatório” inglês. Mas o domínio britânico produziu um contínuo des-
contentamento. Além da resistência dos maratas e rajputs, com insurreições
e ataques aos britânicos, a elite cultural que os ingleses pensavam europeizar
seguiu outro caminho. Entrou em contato com as idéias nacionalistas, libe-
rais e socialistas em ebulição na Europa e foi incentivada a participar da
resistência e da luta contra o domínio britânico. Surgiram núcleos naciona-
listas conspirativos em Londres, Paris e outras cidades da Europa.
39. Em 1885 foi fundado o Congresso Nacional Indiano (Partido do
Congresso), que lutava pela participação na administração do país, pela
outorga de direitos eleitorais e pela admissão de hindus no Serviço Civil. O
êxodo de camponeses sem posses para as cidades, as epidemias de 1896-
1897 e a vitória do Japão sobre a Rússia em 1905 reforçaram o Partido do
Congresso e incentivaram os boicotes aos produtos têxteis britânicos, a rea-
lização de atentados terroristas por nacionalistas extremados e a fundação
da Liga Muçulmana como porta-voz da minoria islâmica.
40. A eclosão da Primeira Guerra Mundial não envolveu diretamente a
Índia, mas repercutiu profundamente nela. O fracasso da Sociedade das
Nações (um tipo de Organização das Nações Unidas daquele período), o
fortalecimento da consciência nacional e do princípio de autodeterminação
dos povos, as controvérsias sobre os tratados de paz, as dificuldades para a
recuperação econômica européia e mundial, a crise da democracia liberal, a
revolução russa e a emergência do primeiro Estado socialista, a emergência
de movimentos operários e de partidos comunistas em grande número de
países, inclusive coloniais, colocaram em crise a supremacia européia no
mundo – e portanto a inglesa.
41. Em 1916, hindus e muçulmanos assinaram o Pacto de Lucknow,
exigindo a autonomia do país. Contínuos levantes populares culmina-
ram, em abril de 1919, no massacre de Amritsar. Tropas britânicas chaci-

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naram mais de mil indianos desarmados. Os protestos posteriores leva-


ram os ingleses a realizar, em dezembro, a reforma Montagu-Chelmsford,
prevendo a divisão de poderes entre o governo central e as províncias
(diarquia), que deveria conferir a hindus os ministérios da agricultura, da
indústria, da educação e da saúde, enquanto os ingleses manteriam sob
seu controle a polícia, os impostos diretos e a defesa.
42. Foi neste momento que a pregação de Mohandas Gandhi, o
mahatma (magnânimo), com sua luta pela independência (swaraj), ba-
seada na verdade ideal (satya), na não-violência (ahimtsa) e na purifica-
ção pelo amor ao próximo (brahmajarya), alguns dos preceitos da tra-
dição religiosa hindu, mobilizou grandes contingentes da população.
Boicotaram a compra do sal e alastraram a resistência passiva (satyagraja),
ou desobediência civil. Os britânicos condenaram Gandhi a seis anos de
prisão, em 1920, e implantaram um governo ditatorial. Não consegui-
ram, porém, deter a mobilização popular. Viram-se obrigados a indul-
tar Gandhi em 1924, ao mesmo tempo em que o Partido do Congresso,
influenciado pelo movimento de Gandhi, avançava em suas reivindica-
ções, exigindo o status de domínio.
43. Diante da não-concretização da diarquia, em 1926 o Partido do
Congresso aceitou a proposta de Constituição de Motilal Nehru e deu
um ultimato para que a Grã-Bretanha concedesse o status de domínio em
um ano. Mas Gandhi avançava suas reivindicações. Exigia independência,
reformas econômicas contra os monopólios britânicos e melhoria das con-
dições de vida dos 60 milhões de párias (intocáveis). Em 1930, na segun-
da Campanha de Resistência Passiva, Gandhi e 60 mil nacionalistas fo-
ram presos, mas os ingleses tiveram que fazer um acordo, comprometen-
do-se a liberar os presos e iniciar, em Londres, as mesas-redondas para
discutir a independência. Em troca, a desobediência civil seria paralisada.
44. Nas mesas-redondas, porém, os ingleses não fizeram concessões. Em
razão disso, a desobediência civil foi retomada em 1932, levando os ingleses
a instaurar a diarquia, em 1935, mantendo sob seu controle apenas os mi-
nistérios do Exterior e o da Guerra. Os demais deveriam ser indicados pela
Assembléia Legislativa. As províncias ganharam autonomia, mas o vice-rei e
os governadores mantiveram o poder de decretar medidas extraordinárias.
Durante as eleições de 1937, o Partido do Congresso obteve a maioria

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em 6 das 11 províncias, entrando em vigor a nova Constituição. A Birmânia


foi separada da Índia e recebeu o status de colônia.
45. A essa altura, os ares de uma nova guerra escureciam os céus mundiais.
O Japão se armava aceleradamente e não escondia as pretensões de tomar para
si todas as colônias situadas na Ásia. Desde 1931 praticava uma política de
agressão e de expansão na China. Em 1936, aderiu ao Pacto Anti-Comintern,
voltado para o ataque à União Soviética, e denunciou o Pacto de Washington,
que limitava sua marinha de guerra. E, em 1937, tomando como pretexto
um incidente entre tropas chinesas e japonesas na ponte Marco Pólo, em
Pequim (Beijing), deu início à ofensiva para ocupar toda a China.
46. A Inglaterra viu-se obrigada a fazer novas concessões aos indianos,
tendo em conta o contexto internacional de uma nova conflagração mundi-
al. Ao mesmo tempo em que, junto com a França, declarava guerra à Ale-
manha, em virtude da invasão da Polônia, na Índia o Azad Hind (Índia
Livre) e seu ina (Indian National Army), dirigidos por Subhas Chandra
Bose, defendiam a unidade com o Japão, contra os ingleses, Gandhi lançava
sua terceira satyagraja, com o apoio de Jawaharlal Nehru, do Partido do
Congresso, e a Liga Muçulmana, dirigida por Mohamed Ali Jinnah, apre-
sentava seu Plano Paquistão, propugnando a criação de um Estado islâmico
independente, separado da federação indiana.
47. Além disso, a ofensiva japonesa dirigia-se em três direções. A primei-
ra, para o sul, visando as Filipinas e as ilhas Holandesas (Indonésia). A
segunda, para o oeste, visando Hong Kong, Indochina, Tailândia, Malásia e
Birmânia, colocando-se portanto em condições de invadir a Índia. A tercei-
ra, para o leste, a fim de ocupar as ilhas da Oceania. O Japão chegou a
exercer o domínio sobre 450 milhões de habitantes, contando com impor-
tantes fontes de matérias-primas asiáticas para suas indústrias.
48. Diante disso, os ingleses negociaram a independência indiana e con-
seguiram que a Índia participasse de seu esforço de guerra. Tropas indianas
realizaram operações bélicas junto com tropas inglesas e australianas, e as
matérias-primas agrícolas e minerais indianas contribuíram para a produ-
ção das armas inglesas e norte-americanas. Em 1946, seguindo os acordos
realizados, o governo inglês acertou a criação de uma Assembléia Consti-
tuinte e de um governo indiano de transição para a independência, procla-
mada em 1947.

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5. A ÍNDIA INDEPENDENTE

49. A independência da Índia, em vez de dar lugar a festejos generali-


zados, desembocou em graves conflitos entre hinduístas e muçulmanos.
A formação do Paquistão, pelas províncias de maioria muçulmana, levou a
um massivo movimento migratório, a rebeliões raciais e religiosas e ao
marasmo econômico. Sind e Beluquistão constituíram o Paquistão Oci-
dental. Já Bengala Oriental, a 1.700 km daquelas, formou o Paquistão
Oriental. Os principados muçulmanos de Hiderabad e Caxemira ques-
tionaram a partição e foram anexados pela Índia. Em meio a esses confli-
tos, Gandhi foi assassinado, em 1948, por um hinduísta.
50. Logo após a independência, o governo interino do primeiro-ministro
e ministro do Exterior Jawaharlal Nehru elaborou a Constituição Republi-
cana da União Hindu (Bharat). Esta dava uma nova organização político-
administrativa para o país, com 27 estados federados (com governos e par-
lamentos próprios), seis territórios e um protetorado (Sikim). Nas eleições
de 1951, o Partido do Congresso foi sufragado com 75% dos votos e man-
teve Nehru como primeiro-ministro.
51. Os problemas mais graves da Índia eram a superpopulação, a fome e a
pobreza. O governo do Partido do Congresso adotou os planos qüinqüenais.
Procurou fazer uma reforma agrária com doações voluntárias de terras. Nacio-
nalizou os bancos, as companhias de seguros e a aviação. Procurou criar uma
indústria pesada, com investimentos estrangeiros (siderúrgicas de Rourkela e
Bhilai), e desenvolver a exploração de suas matérias-primas, ao mesmo tempo
em que se esforçou para ampliar a educação e a cultura. No entanto, a renda
nacional caiu e o aumento anual da população beirou 15 milhões de pessoas.
52. O governo também procurou superar os tabus religiosos, como o das
vacas sagradas e das castas, reduzir a ignorância e avançar no rumo de um
Estado democrático. No entanto, quando os comunistas conquistaram elei-
toralmente o governo do estado de Kerala, em 1958, o governo indiano não
titubeou em dissolvê-lo à força. E foi impotente para controlar a natalidade
excessiva, evitar as lutas religiosas e lingüísticas e prevenir-se contra as catás-
trofes naturais.
53. Nesse período de polarização entre os Estados Unidos e a União Sovié-
tica (Guerra Fria), Nehru instituiu uma política exterior de “neutralidade

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dinâmica”, desempenhando papel de mediador nas crises mundiais. Em 1954,


durante a visita do primeiro-ministro chinês, Zhu Enlai, à Índia, ambos pro-
clamaram os Cinco Princípios de Coexistência Pacífica – soberania, igualdade
de direitos, não-interferência nos assuntos internos, aspirações pacíficas e aversão
a qualquer agressão e intervenção externa –, mais tarde aceitos na Conferência
dos Países Não-Alinhados, em Bandung, Indonésia.
54. Apesar disso, a política da Índia em relação à Caxemira acirrou suas
contradições com o Paquistão. Em 1947, tropas hindus participaram da
insurreição contra o principado feudal e ocuparam quase toda a região, com
exceção de Gilgit. Apesar de ser uma região de maioria muçulmana, foi
anexada à Índia. O armistício proposto pela onu apenas confirmou a divi-
são da Caxemira, mantendo uma situação instável.
55. A Índia também não reconhecia os reclamos da China contra a linha
Mac Mahon, imposta pelos ingleses para demarcar as fronteiras setentrio-
nais de seu Império, que avançara no território tibetano, sob a proteção da
China desde o século XII. Em 1959, durante a insurreição de lamas tibetanos
contra a reforma agrária e a proibição da servidão, a Índia permitiu a entra-
da de agentes estrangeiros na região, e deu guarida aos que seguiram o
Dalai Lama, após a derrota. As tropas indianas foram empurradas para trás
das antigas fronteiras, e os conflitos com a China prolongaram-se até 1962.
56. Nesse mesmo período, a Índia anexou os territórios ocupados por Portu-
gal (Goa e Diu) e as feitorias francesas (Pondicherry e Chandernagore). Nehru
morreu em 1964, mas o Partido do Congresso continuou no poder até 1977. A
antiga hegemonia do Partido do Congresso fora sendo corroída pelas dificulda-
des econômicas, pelo aumento dos antigos problemas que avassalavam o país
(superpopulação, fome e pobreza) e pela multiplicação de conflitos regionais,
étnicos e religiosos. Em 1984, a primeira-ministra Indira Gandhi, do Partido
do Congresso, foi assassinada por um sikh de sua guarda pessoal.
57. Em 1989, o Partido do Congresso foi derrotado pelo Partido Nacio-
nal, que agrupou em torno de si diversos partidos da oposição. Mas o governo
do Partido Nacional não conseguiu se livrar de graves conflitos na Caxemira,
nem de violentas demonstrações contra a permissão do acesso das castas infe-
riores aos cargos públicos. Apesar da troca do primeiro-ministro, em fins de
1990, os distúrbios étnicos se alastraram a Assam, Hydebarad, Aligarth e
Agra, e as negociações com os sikhs não tiveram sucesso.

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58. O ambiente conflituoso continuou nas eleições gerais de 1991. O


principal dirigente do Partido do Congresso, Rajiv Gandhi, foi assassinado
num atentado, que matou outras 16 pessoas. Vitorioso, o Partido do Con-
gresso esforçou-se em continuar as reformas que vinha tentando implantar
desde o governo de Indira, especialmente a abertura da economia ao capital
estrangeiro e a privatização de empresas estatais. Mas isso o enfraqueceu e,
em 1996, o levou à sua maior derrota desde que fora fundado.
59. A vitória coube ao Partido Baratya Jamata, caracterizado como
hinduísta e hostil aos muçulmanos e às demais religiões. Entretanto, o Jamata
não conseguiu coligar-se a outros partidos para obter maioria, sendo subs-
tituído pela Frente Unida, uma coalizão de 14 pequenos partidos de es-
querda e de centro-esquerda. A continuidade dos problemas sociais e polí-
ticos, assim como o envolvimento de um pequeno partido integrante da
Frente Unida no assassinato de Rajiv Gandhi, conduziu a uma nova crise
política e à convocação de eleições gerais, que marcaram o ressurgimento do
Partido do Congresso, agora sob a direção de Sonia Gandhi, viúva de Rajiv.

6. A LITERATURA INDIANA

60. A literatura indiana, embora possua um fundo cultural comum, tem


sua expressão nos quatro grandes grupos ou famílias lingüísticas do país: o
indo-ariano, o dravídico, o sino-tibetano e o austro-asiático. As principais
línguas indo-arianas são o híndi, o bengali e o urdu, que agrupam cerca de
70% da população. O grupo dravídico inclui o tâmil, o malaiala, o canará
e o teéugo, abrangendo mais de 20% da população. O grupo sino-tibetano
e o grupo austro-asiático (munda) abrangem menos de 3%.
61. As mais antigas obras literárias foram escritas em sânscrito. Elas re-
montam ao período védico, a elas ligando-se, mais tarde, os Brahmana, os
Aranyaka e os Upanishads, de transição entre Veda e o hinduísmo (século
VI a.C. a IV a.C.). A literatura hinduísta consolidou-se até o século X d.C.,
com o Mahabharata, o Ramayana, o Pancatranta, o Kama-Sutra, o Panini,
o Bharata e uma grande diversidade de textos épicos, históricos, religiosos,
poéticos, gramaticais, de dramaturgia e técnicos. O budismo e o paninismo
também produziram obras em sânscrito. Ainda hoje são produzidas em
sânscrito pequenas epopéias, dramas teatrais e novelas.

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62. Os textos bengali mais antigos, os cantos carya, essencialmente reli-


giosos, são posteriores ao século X d.C. Somente a partir do século XV
surgiram obras de vulto, tanto biográficas como romances e poesias. A par-
tir do século XVIII, já sob o domínio inglês, assistiu-se a um renascimento
bengali, que teve em Rabindranath Tagore a sua expressão máxima.
63. A literatura híndi também é posterior ao século X d.C. Durante seu
desenvolvimento histórico, ela produziu as narrativas de guerra, a poesia
bhakti, o sufismo muçulmano, a retórica e a adaptação em prosa de obras
sânscritas. A prosa híndi moderna apareceu no século XIX, estimulada pelo
nacionalismo e pelas correntes filosóficas e literárias ocidentais, como o
marxismo, o existencialismo e outras.
64. A literatura malaiala é uma das mais difundidas na Índia, por sua
variedade em prosa e verso. Ela surgiu entre os séculos XII e XIII, com o
Ramacaritan, unindo o sânscrito e o malaiala e introduzindo na literatura
de Kerala todas as figuras retóricas do Kavya. Atualmente é internacional-
mente reconhecida, através de vários escritores contemporâneos.
65. A literatura tâmil surgiu no início da era cristã, tendo sofrido a influên-
cia do sânscrito, da poesia da devoção (bhakit), dos poetas medievais profa-
nos, do canto devoto popular (kisttanai), do islamismo e do catolicismo.
66. A literatura télugo desenvolveu-se, a partir da música e do sânscrito,
desde o século XI. As narrativas télugos em verso e prosa tiveram seu apo-
geu no século XVI, ao mesmo tempo em que as gramáticas e os dicionários
consolidavam o idioma, no século XVIII. No século XIX, a literatura télugo
firmou-se como expressão moderna.

7. A ÍNDIA ATUAL

67. A Índia atual, ou Bharat no idioma híndi, tem seu território limita-
do pelo mar de Omã, a oeste; pelo Paquistão, a noroeste; por China, Nepal
e Butão, ao norte; por Bangladesh e Miamar, a nordeste; pelo Golfo de
Bengala, a leste; e pelo Oceano Índico, a sul e sudoeste. Sua capital é Nova
Délhi e suas línguas oficiais são o híndi e o inglês. Sua divisão político-
administrativa inclui 24 estados e sete territórios. A forma de governo é a
república federativa, e suas principais cidades são Mumbai (antiga Bom-
baim), Calcutá, Madras e Bangalore.

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68. A Índia é o segundo país mais populoso do mundo, com 1,1 bilhão de
pessoas em 2003, devendo ultrapassar a China em poucos anos, apesar de
possuir menos da metade do território daquela (3,2 milhões de km2 contra
9,5 milhões de km2). Cerca de 25% dessa população concentram-se em pou-
co mais de uma dezena de centros urbanos com mais de 1 milhão de habitan-
tes, enquanto os 75% restantes espalham-se por mais de 700 mil aldeias.
69. Sua agricultura ocupa 60% da população, utilizando 160 milhões de
hectares, ou 50% da superfície total. Oitenta por cento dos agricultores, em
áreas inferiores a dois hectares, produzem trigo, no vale do Ganges, e arroz,
também no vale do Ganges, em Bengala e nas costas do Decão, como alimentos
básicos da população. A produção anual desses cereais – cerca de 60 milhões de
toneladas de trigo e 110 milhões de toneladas de arroz – não supriria as neces-
sidades da população se esta tivesse um padrão alimentar superior ao atual.
70. A agricultura comercial, herdada das plantations coloniais, inclui amen-
doim, algodão, juta, tabaco e chá, mas sua produção tem sido limitada pela fraca
mecanização e pelo pouco uso de fertilizantes. A Índia é o maior produtor mun-
dial de chá. O país também possui o maior rebanho bovino do mundo (200
milhões de cabeças), mas a proteína animal é proveniente da pesca (3 milhões de
toneladas por ano), porque o hinduísmo proíbe o consumo de carne bovina.
71. A Índia também é rica em recursos naturais. Carvão, petróleo, bauxita,
manganês, ferro e pedras são relativamente abundantes. O potencial hidrelétri-
co para a geração de eletricidade é complementado por centrais nucleares. Apro-
veitando-se de seu domínio da energia nuclear, a Índia tornou-se uma das pou-
cas potências mundiais a construir um arsenal nuclear e uma indústria de fabri-
cação de mísseis.
72. A indústria siderúrgica indiana produz cerca de 80 milhões de tonela-
das por ano, complementada pelas indústrias metalúrgica, têxtil e química,
além de por uma diversificada indústria de bens de consumo cotidiano e uma
florescente indústria eletrônica em alguns pontos do território. A indústria
indiana emprega cerca de 25% da população ativa, mas não tem sido capaz
de absorver a crescente migração da população rural para as grandes cidades.
73. O comércio externo indiano é relativamente pequeno (apenas 10% do
PIB – Produto Interno Bruto), orientado especialmente para Estados Unidos,
União Européia e Japão, tendo por base produtos primários (chá, juta, algodão)
ou secundários de baixo valor agregado (tecidos). Suas importações abrangem

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matérias-primas, alimentos, semimanufaturados, manufaturados e bens de ca-


pital. Sua balança comercial inclui recursos provenientes do turismo externo e
as remessas dos indianos emigrados.
74. Parte dos emigrados indianos, com formação escolar superior, constituindo
uma mão-de-obra altamente qualificada, representa uma das contradições da
Índia moderna. Sua enorme população inclui uma elite relativamente numerosa
(cerca de 15% da população, ou 150 milhões), que tem condições de estudar no
exterior e obter altas qualificações culturais, científicas e técnicas. No entanto,
parte dessa elite não encontra lugar no desenvolvimento da economia e da socie-
dade indianas, tornando-se mão-de-obra relativamente barata para as indústrias
de altas tecnologias e de informática dos Estados Unidos e da Europa.
75. A adoção do programa Perspectiva 2020 levou a Índia, durante os
anos 1990, a abrir-se aos capitais estrangeiros, realizar uma série de refor-
mas econômicas (privatizações, redução dos investimentos públicos, flutuação
do câmbio etc.) e adotar uma macroeconomia caracterizada por crescimen-
to rápido, inflação baixa, reservas cambiais adequadas, baixo déficit fiscal e
baixas taxas de juros. Suas taxas de crescimento chegaram aos 8% anuais,
devendo manter-se entre 7% e 8% nos próximos anos. Em 2005, seu PIB
atingiu US$ 750 bilhões e suas reservas em moeda estrangeira chegaram a
US$ 140 bilhões. Mas alguns problemas-chave para o desenvolvimento,
como infra-estrutura deficiente, principalmente nos setores de energia, fi-
nanças e transportes, permanecem como obstáculo.
76. A estratificação social, religiosa e regional indiana continua: 80,3% da
população é hinduísta, 11% islâmica, 3,8% cristã, 2% sikh, 0,7% budista,
0,5% jainista, havendo ainda outras religiões menores. Persistem, na prática,
as diferenças de castas. Metade da população indiana vive num estado crôni-
co de má nutrição. As taxas de mortalidade infantil e analfabetismo permane-
cem elevadas, e a renda per capita e a expectativa de vida ainda são baixas,
colocando o país entre as vinte nações mais pobres do mundo. Cerca de 300
milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza.

BIBLIOGRAFIA

Para a bibliografia deste artigo, ver “Bibliografia Indicada” do artigo


“Um olhar sobre a Ásia”, do mesmo autor, na página 107.

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A santa Rússia:
modernização e atraso1
Daniel Aarão Reis Filho 2

No alvorecer do século XX, embora ainda fundamentalmente imerso no


universo rural, o Império Russo já não se resumia ao mundo agrário. Em
um outro movimento, que faria estremecer as estruturas arcaicas, o processo
de modernização capitalista da Rússia dera significativo salto para a frente,
apesar das resistências, das contradições e, muitas vezes, da própria vontade
manifestada pelos tsares3. Com efeito, os dois últimos imperadores, por
ocasião dos respectivos coroamentos, reafirmariam solenes compromissos
com as tradições de autocracia.
O problema é que, para se manter, e para se defender de inimigos exter-
nos e internos, o tsarismo precisava das tecnologias e dos meios de produ-
ção desenvolvidos pelo capitalismo ocidental.
Assim, principalmente a partir dos anos 1890, o crescimento capitalista
registrou uma notável aceleração de ritmo: metalurgia, siderurgia, petróleo,
carvão, prioritários numa perspectiva estratégica. Entre 1888 e 1913, o
Império alcançou um crescimento médio de 5% ao ano.
Na raiz dos sucessos, uma política estatal continuada, desde os anos 1880,
definida pelos chefes de governo Sergei Witte (1892-1903) e Piotr Stolypin
(1906-1911).

1
Textos extraídos da obra de Daniel Aarão Reis Filho, Uma revolução perdida. A história do socialismo
soviético (São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 1997).
2
Professor titular de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade Fede-
ral Fluminense e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Publicou, entre
outros: As revoluções russas e o socialismo soviético, A revolução faltou ao encontro e Uma revolução perdida. História
do socialismo soviético.
3
As palavras de origem russa foram grafadas de duas maneiras: em itálico, quando não existe o termo
dicionarizado em português; sem itálico, quando o termo em questão está dicionarizado. (N.E.)

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O capitalismo russo assumiu feição própria, acentuando algumas característi-


cas já presentes na história do Império: Estado hiperdimensionado, rede bancária
altamente monopolizada (seis bancos, todos sediados em São Petersburgo, deti-
nham mais de 50% dos depósitos à vista), presença maciça do capital estrangeiro,
sobretudo nos setores de ponta (42% e 50% de participação nas indústrias
metalúrgica e química) e uma burguesia nativa ainda pouco expressiva, mas bas-
tante ávida, apoiada pelo Estado e ganhando terreno (Lyashchenko, 1949).
Havia contradições e desníveis no processo, e um ponto fraco em meio
àquela prosperidade: a agricultura.
Desde 1906, Stolypin tentou uma política agressiva no sentido de libe-
rar os demônios do apetite individual. Pretendeu criar uma camada de pe-
quenos proprietários privados, destinada a configurar uma base agrária de
sustentação do regime, enfraquecendo simultaneamente as tradições
igualitaristas da comuna rural e os controles dos grandes proprietários,
muitas vezes acusados de absenteísmo e ineficiência.
Os atingidos acusaram o golpe e ofereceram resistência tenaz. Por cima,
os grandes proprietários tinham medo de perder mão-de-obra. Por baixo, a
comuna rural receava um processo de completa desagregação. Não conse-
guiram impedir de todo o processo de privatização: as explorações particu-
lares passaram de 2,8 milhões, em 1905, para 5,5 milhões, em 1914, de-
senvolvendo-se, além disso, um forte movimento cooperativo no campo.
Mas fizeram de tudo para se opor a ele. Em grande medida, o conseguiram.
Ou seja, apesar dos resultados alcançados, a política stolypiniana não alterou
o panorama qualitativo da economia agrícola. Como um conjunto, salvo alguns
setores, como o do açúcar, o campo continuou caracterizado por baixíssimos
índices de produtividade e consumo. Assim, se o império já começava a ser
periodicamente atacado por crises típicas do capitalismo avançado, o que indi-
cava uma crescente interdependência com o mercado internacional, ainda con-
tinuava vítima de crises de abastecimento, expressão clara da força e da fraqueza
do Antigo Regime (regime anterior à revolução, o Império tsarista).
Observado no contexto internacional, o crescimento capitalista russo evi-
denciava graves limitações, apesar do progresso alcançado e de resultados
mais lisonjeiros, mascarando as realidades contrastadas de um imenso país
de grande população, na aparência uma potência, na realidade um gigante
de pés de barro.

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Na verdade, a combinação de estágios diferenciados de desenvolvimento


podia reunir, em espaços contíguos, o que havia de mais avançado e mais
atrasado no mundo de então, dos pontos de vista econômico e tecnológico.
Progresso e atraso alimentando-se mutuamente, em um processo de de-
senvolvimento “desigual e combinado” (Leon Trotski), uma perigosa mistu-
ra. Segundo as circunstâncias, a combinação poderia se transformar em ni-
troglicerina pura.

1. A REVOLUÇÃO DE OUTUBRO: GOLPE OU REVOLUÇÃO?

No processo de ascensão ao poder, os bolcheviques4 procuraram estabele-


cer com os movimentos sociais uma sintonia fina. Sempre, no entanto, res-
guardando sua “autonomia” em relação à sociedade. No universo de refe-
rências por eles cultivados, os bolcheviques viam-se menos como expressão
da sociedade em movimento do que como intérpretes de uma teoria revolu-
cionária. Somente nesta medida é que é possível compreender as complexas
evoluções dos bolcheviques em relação aos sovietes5. O mesmo se pode di-
zer a respeito da insurreição de outubro. Parece evidente que foi realizada
sem prévia e formal consulta democrática. Entretanto, se estivesse em jogo
apenas um golpe bem executado, os bolcheviques, mesmo vitoriosos em
Petrogrado, acabariam sendo rapidamente derrotados. Conseguiram man-
ter-se nos controles da máquina estatal porque souberam formular decretos
e leis que correspondiam fundamentalmente aos interesses dos amplos
movimentos sociais.
Em outras palavras: a insurreição de outubro foi um golpe vitorioso, mas não
vitorioso porque golpista, mas porque se combinou com o atendimento a rei-
vindicações sentidas por amplas maiorias. Neste sentido, em larga medida, rea-
lizava-se a democracia, enquanto prevalência da vontade das maiorias. Parado-
xalmente, os críticos “democráticos” dos bolcheviques naquele momento, libe-

4
Bolcheviques: ala do partido operário socialdemocrata russo/POSDR, constituída a partir de 1903,
e liderada por Vladimir Lenin. Em 1918, adotou o nome de Partido Comunista (bolchevique) Russo.
O termo vem da palavra russa bol’che, que significa “maior/maioria”.
5
Soviete: a palavra russa quer dizer “conselho”. Designa organizações populares autônomas, em
relação ao Estado e aos partidos políticos que delas, porém, podiam participar. Surgiram pela
primeira vez na revolução de 1905 e foram retomadas em 1917.

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rais e socialistas, recusavam-se a realizar as exigências majoritárias, daí por que


suas denúncias não tiveram credibilidade, embora formalmente pertinentes.
Numa fase seguinte, e sempre que o imaginaram possível, os bolcheviques
tenderam a exercitar a margem de autonomia auto-atribuída pela teoria, com-
portando-se, segundo a correlação de forças, real ou imaginada, com maior
ou menor desenvoltura em relação à dinâmica da sociedade. Foram assumin-
do, nessa lógica, atitudes e políticas cada vez mais ditatoriais, embora com-
prometidas com a mudança da ordem e a transformação do antigo regime.
No pólo oposto, os brancos6 nunca ofereceram senão ditadura. E reação.
E nenhuma proposta de mudança. Numa vertente que se quis intermediá-
ria em certo momento, apresentaram-se liberais e socialistas moderados. O
problema desse campo, muito nuançado, é que não teve tempo histórico
para afirmar um perfil diferenciado. E o mais grave é que não soube, ou não
quis, ou não foi capaz, de empreender as mudanças exigidas pela sociedade
quando as circunstâncias foram propícias. Quando quiseram agir, só restava
espaço para a denúncia e o protesto. Nas condições russas que então passa-
ram a prevalecer, um exercício possível apenas no exílio.
Fios partidos. Evoluções contraditórias. Contrastes entre intenções e ges-
tos. Resultados inesperados. Interação difícil entre concepção e realização.
Dois fenômenos seriam apontados, desde o início, como determinantes para
as metamorfoses imprevistas.
Primo: a revolução internacional não acontecera. Um prenúncio nesse sen-
tido fora já registrado com a assinatura da paz de Brest-Litowski, em março
de 1918. Em fins de 1918, porém, com a vitória da revolução alemã e a fuga
do cáiser, a história pareceu recobrar coerência, e entrar nos eixos das previ-
sões de Lenin e Trotski. O tratado de Brest foi devidamente rasgado (uma tira
de papel) e os horizontes, aparentemente, se abriram para a revolução inter-
nacional, que teve um esboço de confirmação com as insurreições em Buda-
peste, na Baviera e com os movimentos sociais no norte da Itália e em outras
partes da Europa Ocidental. No fogo da guerra civil, criou-se a Internacional

6
Brancos: termo corrente nos entrechoques das revoluções russas para designar a cor da contra-
revolução e, por extensão, todos aqueles que se identificavam com ela. O nome provém da cor
branca, assumida pelas monarquias reacionárias da Europa, em oposição à cor vermelha, bandeira
das lutas populares e democráticas (século XIX).

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Comunista7, em março de 1919. Os bolcheviques estavam então numa situação


desesperada, e o congresso teve um valor apenas simbólico, mas nem por isso
deixou de fixar uma perspectiva, um compromisso.
Depois de 1921, o Estado soviético, minimamente consolidado, come-
çou a se inserir e a participar do jogo das relações internacionais. Sem aban-
donar a perspectiva – e a esperança – de uma revolução internacional, pas-
sou a assinar tratados comerciais e diplomáticos, num jogo tão complexo e
diversificado de contatos e compromissos que, às vezes, já não se sabia se
estavam merecendo preferência os interesses da revolução internacional ou
os do Estado soviético. E a revolução russa, que seria apenas o prólogo de
uma revolução mundial, ficou isolada num mundo hostil.
Secundo: a guerra civil radicalizou o atraso. Retrocesso econômico, exposto
num terrível declínio de todos os índices. E mais importante do que qualquer
e todos os índices: as epidemias, as mortes inúteis, a desmoralização, o cansa-
ço, o desgaste, e, por sobre tudo isso, o sombrio fenômeno do entrecruzamento
do terror vermelho e do terror branco8, atrocidades maciças. A brutalização
das relações sociais. A patologia social. Como estimá-la? (Werth, 1993).
No quadro desse desespero e dessa desesperança, surgiu a bizarra formu-
lação do comunismo de guerra. Instituiu o mais absoluto igualitarismo.
Decretou a proibição de qualquer empreendimento privado, na produção
ou no comércio, de resto inexistentes, ao menos em termos legais. Expro-
priou os camponeses de todos os excedentes. Liquidou com a moeda, que,
de qualquer forma, já se transformara em mero “papel pintado”. Alguns
chegaram a falar na militarização do trabalho e de toda a vida. O conceito
que, na formulação de Marx, figurava a sociedade do futuro e da abundân-
cia subitamente transmudava-se, instalava-se no presente e passava a no-
mear a escassez. Ainda uma vez, da necessidade, virtude.

7
Organização criada em março de 1919, proposta pelos bolcheviques, com o objetivo de reunir as
alas revolucionárias dos movimentos e dos partidos socialistas, como alternativa à Internacional
Socialista socialdemocrata, fundada em 1889, considerada “falida” pelos revolucionários, por suas
políticas reformistas e, sobretudo, pela conciliação com a guerra imperialista de 1914-1918. A
Internacional Comunista autodissolveu-se (ou, em outras versões, foi dissolvida por Stalin) em 1943.
8
Terror vermelho e terror branco: políticas de represálias mútuas adotadas por vermelhos e por
brancos no quadro da guerra civil (1918-1921), concretizadas em julgamentos e execuções sumárias
de militantes políticos e/ou de reféns.

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De sorte que, entre 1917 e 1921, acontecimentos vertiginosos tinham


virado pelo avesso as intenções e modificado profundamente os projetos.
Uma revolução em nome do internacionalismo nacionalizara-se. O pró-
logo se transformara em epílogo. Destinada a avançar no rumo de um mun-
do de abundância, a sociedade estava agora arrasada, brutalizada. Um pro-
cesso “mil vezes mais democrático do que a mais democrática das democra-
cias burguesas”, como gostava Lenin de se referir aos sovietes, evoluíra para
uma ditadura política de partido único, um espécime até então ignorado,
mas que se tornaria conhecido.
A classe operária, considerada pelos bolcheviques a base social principal
da revolução, minguara nos infortúnios da guerra civil. O camponês, um
colossal aliado, emergiu como os simples emergem nas lutas que arrasam as
sociedades complexas: fortalecido. O mujique (camponês russo) realizara o
velho sonho: tinha o controle da terra e podia distribuí-la sem a interferên-
cia do Estado. A comuna rural, a antiga obchina, surgiu como grande vito-
riosa. A vingança histórica do “populismo” russo. Contudo, estranhamente,
o partido que encarnara este projeto, em suas várias vertentes, estava margi-
nalizado, perseguido, banido da vida legal, e só podia manifestar-se como
espectro, através dos próprios bolcheviques.
Os bolcheviques, ali estavam eles. Figuravam-se ainda como vanguarda
da revolução mundial, mas eram apenas sobreviventes. Sob o comando de
Lenin, a nau não soçobrara, mas mudara de rumo, e já ninguém mais sabia
o destino daquela viagem. Os bolcheviques, com seus casacos de couro,
ingênuos e ainda confiantes, terríveis em seu poder e sua aura de invencíveis.
Cercados na Rússia, e, na Rússia, cercados9, em seus castelos, meditavam
sobre as ironias e as astúcias da História.

2. A REVOLUÇÃO PELO ALTO E O SOCIALISMO SOVIÉTICO

A “grande virada” instaurou, de forma hesitante, no início, um processo


de mobilização e de estatização da sociedade, uma economia comandada,
ou mobilizada (Sapir, 1990), diretamente controlada e impulsionada pelo

9
A fórmula, referida à esquerda armada brasileira dos anos 1960, é do professor Carlos Vainer.

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poder político, uma revolução pelo alto. A ofensiva teve duas direções prin-
cipais: a coletivização do campo e a industrialização acelerada.

2.1 A COLETIVIZAÇÃO DO CAMPO E AS COLHEITAS DO DESESPERO


As sucessivas “medidas emergenciais”, tomadas desde o início de 1928,
surgem, em perspectiva, como as primeiras escaramuças de uma guerra de-
clarada apenas em fins de 1929, quando o estado-maior bolchevique to-
mou decisões que mudaram a qualidade do enfrentamento: da política de
requisições, outra maneira de nomear impostos extraordinários, passou-se à
coletivização da terra, na forma de cooperativas (colcozes) e fazendas esta-
tais (sovcozes), e à liquidação dos chamados kulaks.
Duas comissões, no Comissariado do Povo para a Agricultura e no Bureau
Político, atuando de forma conjunta, fixaram o calendário da coletivização e
da caça aos kulaks, especificando metas e proporções para cada área, e visan-
do especialmente os celeiros do país: o baixo e o médio Volga, o norte do
Cáucaso, a Ucrânia e a Sibéria Ocidental. Tais decisões, é interessante ob-
servar, apesar de notória importância, não foram ratificadas, nem sequer
formalmente, por um congresso do partido ou dos sovietes. Nesse sentido,
representaram um marco simbólico de transferência de poder, do partido
para as altas instâncias do Estado.
Não mais a vigilância desconfiada, mas a ofensiva aberta. Desfez-se o
esboço de aliança, rompeu-se a trégua. Das alturas, os bolcheviques parti-
ram para o assalto das planícies.
Ao longo do ano de 1929, apesar do concurso da propaganda e dos incen-
tivos de toda ordem, o progresso da coletivização alcançara patamares modes-
tos: apenas 7,3% das explorações agrícolas estavam coletivizadas em 1o de
outubro daquele ano. A partir daí, o ritmo acelerou-se, tornou-se frenético:
13,2% em 1o de dezembro; 20,1% em 1o de janeiro de 1930; 34,7% em 1o
de fevereiro; 50% em 20 de fevereiro; 58,6% em 1º de março (Werth, 1992).
Em cerca de cinco meses, do início de outubro de 1929 ao fim de feve-
reiro de 1930, quase 60% dos mujiques foram agrupados em organizações
coletivas de produção. Cumprira-se a resolução do comitê central do parti-
do bolchevique, de novembro de 1929, segundo a qual “a construção do
socialismo, sob direção do proletariado, pode ser realizada a uma velocida-
de ainda desconhecida na História”.

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Ao mesmo tempo, e em conseqüência, começou a deportação maciça de


algumas centenas de milhares de camponeses, com as respectivas famílias,
para as regiões inóspitas da Ásia Central e do Grande Norte. Cartas e relató-
rios de autoridades soviéticas, locais e regionais, então confidenciais, e só re-
centemente publicadas, atestaram com minúcia e eloqüência as arbitrarieda-
des, as injustiças e o verdadeiro caos que se abateram sobre as aldeias russas.
A imposição e a resistência. Um furacão de morte e de destruição. Uma
orgia de sangue e de sofrimento.
O próprio Joseph Stalin vacilou. Falou em vertigem. Em 2 de março de
1930, um dia apenas depois da publicação das alucinantes estatísticas dan-
do conta de que 60% dos camponeses já se encontravam coletivizados, o
jornal Pravda divulgou um artigo de sua autoria no qual se deplorava a
“vertigem do sucesso”.
A coletivização tinha ido longe demais. Os camponeses chacinavam o
gado e se recusavam a empreender as semeaduras de primavera. Um desas-
tre. Fez-se então a crítica aos dirigentes locais por terem cometido arbitrarie-
dades. Haviam interpretado mal ou mal aplicado as diretrizes do Centro.
Ninguém poderia ou deveria ser obrigado a ingressar nas organizações cole-
tivas de produção. Os “excessos”.
Entre os dirigentes de baixo escalão e os destacamentos policiais, a de-
sorientação, o atordoamento. As metas tinham sido transmitidas por es-
crito. Como acusá-los, agora, por tê-las realizado? Entre os mujiques, nas
organizações coletivas de produção, a debandada. Nos quatro meses se-
guintes, a proporção das explorações “coletivizadas” já caíra para 21%,
menos de um terço das metas alcançadas no início do mês de março. Foi
preciso então retornar aos “excessos”. O emprego alternado e combinado
de pressões políticas, fiscais e a repressão pura e simples fizeram a curva
“coletivizante” retomar o sentido ascendente. Um ano depois, já se ha-
viam recuperado os patamares mais altos de 1930. Em seguida, sempre
apertando as cravelhas, de modo continuado e sistemático, chegou-se, em
fins de 1935, ao percentual de 98% de mujiques trabalhando em formas
coletivas de produção.
Um processo demencial pela grandiosidade das transformações operadas,
a “ausência de limites” como política (Lewin, 1985). É possível encontrar
alguma lógica em toda essa loucura?

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Os resultados econômicos apontavam, aparentemente, em sentido con-


trário. Com efeito, o nível alcançado pelo setor estratégico da produção de
cereais em 1928, último ano em que, mal ou bem, prevaleceram as orienta-
ções da NEP (Novaya Ekonomiceskaya Politika – Nova Política Econômi-
ca), não seria mais superado, até 1939. A produtividade, no melhor dos
casos, permaneceu estagnada. As próprias fontes soviéticas, consultadas,
revelam os impasses de uma política desastrosa. Em 1928, a colheita de
cereais atingiu a cifra de 73,3 milhões de toneladas. Em 1929, ligeira que-
da, para 71,7 milhões. No ano seguinte, um crescimento de cerca de 10%
levou a colheita para 77,1 milhões de toneladas. Queda brusca em 1931,
para 69,4 milhões. Estagnação, na prática, em 1932: 69,8 milhões. Ainda
uma ligeira queda em 1933: 68,4 milhões. Outra diminuição, em 1934:
67,6 milhões. Poço sem fundo, em 1935: 62,4 milhões de toneladas, um
resultado mais de 15% inferior ao de 1928. Para o ano de 1936, não há
estatísticas disponíveis. Em 1937, houve um ano excepcional do ponto de
vista climático, foi possível colher 87 milhões de toneladas. Chegara, afinal,
a bonança, como anunciaram as agências de propaganda do Estado soviéti-
co? Os frutos doces da semeadura amarga? Os dois anos seguintes, 1938 e
1939, com resultados em torno de 67 milhões de toneladas, evidenciaram
o contrário. Dez anos depois de iniciada a coletivização, a agricultura sovié-
tica continuava produzindo bem menos do que no ponto de partida.
Em outro procedimento, um autor construiu médias qüinqüenais desde
o período anterior à Primeira Guerra Mundial, no intuito de oferecer um
quadro que escapasse das variações sazonais, permitindo uma avaliação mais
equilibrada. Assim, para o período de 1909-1913, encontrou a média de
72,5 milhões de toneladas. O qüinqüênio 1928-1933, que corresponde ao
período do I Plano Qüinqüenal, projetou um resultado de 73,6 milhões de
toneladas. Entre 1933-1937, o mesmo resultado praticamente: 72,9 mi-
lhões de toneladas (Lewin, 1985). Aparentemente, a montanha, depois de
medonhos estremecimentos, havia parido um rato.
No capítulo da produção de origem animal, a catástrofe foi ainda maior.
Mikhaïl Cholokhov descreveria, em obra-prima, as sinistras festas báquicas
em que a matança indiscriminada de animais assinalou a recusa do mujique
em entregar os animais à regência coletiva (estatal) dos colcozes. Todos os
rebanhos sofreram pesadas perdas. E, no entanto, a criação de animais, em

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geral, apresentava, em 1928, uma notável recuperação: índice 137, para


uma base = 100, em 1913. A partir daí, teve início o declínio: 129, em
1929; 100, em 1930; 93, em 1931; 75, em 1932; 65, em 1933. Ou seja,
no período do I Plano Qüinqüenal, os rebanhos decresceram em mais de
50%. Um cataclisma. A partir de então, uma lenta recuperação. Às vésperas
da Segunda Guerra Mundial, em 1940, o índice era de 114, ainda inferior
em cerca de 17% ao de 1928, o último ano da NEP.
A desorganização da economia agrícola, por mais impressionante que fosse,
empalidecia de importância diante do processo de deportação de milhares de
camponeses, apontados como kulaks, subkulaks, pró-kulaks ou ainda kulakizantes.
Uma engrenagem infernal agravada pelo fato de que eram bastante fluídos os
contornos do que se desejava efetivamente caracterizar como kulak.
Mas o que era efetivamente um kulak? O termo designava um persona-
gem social específico: os camponeses ligeiramente abastados. Chamá-los de
ricos é quase uma liberdade de expressão, na fronteira do abuso. Na verda-
de, porém, diferenciavam-se no quadro da aldeia russa, marcada pela misé-
ria e pelo atraso. Tinham um ou dois animais, pequenos excedentes, regula-
res, comercializados no mercado, estoques de sementes, alguma poupança,
às vezes, o que lhes permitia emprestar aos demais e exercer sobre eles pres-
são, quando não violência, para cobrar o devido (kulak = punho). Possuíam,
além disso, algumas letras, ou as tinham através dos filhos, o que lhes acres-
centava prestígio. A massa dos camponeses votava ao kulak sentimentos
ambíguos: freqüentemente inveja (pela posição), ódio (pelos juros cobrados
e pelas exações praticadas), mas também gratidão (pelos eventuais socorros
prestados em situações de emergência). Por outro lado, é importante não
esquecer que, diante dos “homens da cidade”, a aldeia e a comuna rural, a
obchina, não raramente apresentavam-se como um bloco, sem falhas, um
universo (o mir), ou, num ângulo pejorativo, o patriotismo de aldeia.
Como categoria específica, os kulaks ganharam força no período anterior
à Primeira Guerra Mundial, sobretudo devido aos incentivos das políticas
agrárias reformistas stolypinianas, implementadas entre 1906 e 1911.
No entanto, com a vitória da revolução camponesa de 1917, sua impor-
tância social e econômica tendeu a diminuir, o que foi acentuado pelo pro-
cesso arrasador de nivelamento por baixo provocado pela guerra civil, entre
1918 e 1920. Ascenderam maciçamente, então, bafejados pela nacionaliza-

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ção e pela redistribuição da terra, os camponeses pobres (bedniaks) e os


camponeses médios (seredniaks). O triunfo do igualitarismo tradicional no
quadro da comuna rural reforçada.
É verdade que os anos da NEP haviam relançado as desigualdades. Mas
ainda era muito difícil, sob qualquer ângulo (contratação de assalariados,
propriedade de animais ou de máquinas e implementos agrícolas), falar de
uma camada de camponeses ricos na União Soviética em fins dos anos 1920.
Mais uma vez, as decisões políticas precederam e condicionaram as aná-
lises da estrutura social. Em Moscou, determinava-se o nível de coletivização
a ser alcançado em cada região, em cada distrito. Metas mensais, devida-
mente quantificadas, eram fixadas, avaliadas, cobradas. As autoridades lo-
cais, ou os destacamento de ferro, enviados das cidades, tinham a obrigação
de deskulakizar, sem incorrer em excessos, naturalmente. Em último caso, e
não eram poucos estes últimos casos, a mera resistência à coletivização já era
suficiente para um camponês ser rotulado como kulak. Caso não fosse pos-
sível enquadrá-lo nos parâmetros econômicos típicos do kulak, sempre era
possível estabelecer uma associação qualquer, o que explica em larga medida
o súbito aparecimento de uma profusão de termos aparentados: subkulak,
pró-kulak, semikulak, kulak na prática, kulakizante etc. Na verdade, estava
sendo apanhada na rede da expropriação a multidão dos camponeses médi-
os, os seredniaks, cujos minúsculos excedentes faziam falta às agências ataca-
distas do Estado.
Assim, a repressão e a deportação acabaram atingindo proporções gigan-
tescas. Fontes russas, em avaliações formuladas no início dos anos 1990,
admitiam a hipótese de 1 milhão de famílias deportadas, cerca de 5 mi-
lhões de pessoas. E o trauma das prisões, da privação dos direitos civis, da
marginalização (inimigos do povo), da separação das famílias, da maldição
do exílio, fenômenos não sujeitos à quantificação. Embora muito reais, nunca
puderam entrar nos quadros estatísticos.
Tanto sofrimento, e dispêndio de energia, violência e subversão de tradições,
para tão magros resultados econômicos. Puro desencadear de paixões irracio-
nais? Ou seria possível apontar o que o Estado pescou nessa tempestade?
Um resultado qualitativo: a erradicação da propriedade privada no campo.
Os pequenos camponeses não estariam mais, em cada microoperação eco-
nômica, engendrando o abominável regime capitalista. A “solução final” da

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maldita questão, a morte, afinal, do pequeno camponês, esse sujeito histó-


rico essencialmente reacionário, o fim da velha comuna rural (obchina), a
liquidação para sempre dos incômodos aliados, o horizonte aberto para a
construção do socialismo num só país.
Em conseqüência, ampliação exponencial da capacidade do controle do
Estado. Em cada unidade coletivizada, a possibilidade de saber “quanto, o
que, como e quando” vão produzir. Se os resultados não aparecerem, ai dos
camponeses, porque as cotas obrigatórias e os impostos serão computados
segundo as estimativas oficiais e não de acordo com os resultados efetiva-
mente alcançados. Em qualquer caso, quando e se as metas não eram atin-
gidas, os responsáveis já estavam definidos: kulaks, ou cúmplices pró-kulaks,
sabotadores, ainda travestidos, camuflados, ocultos, seria preciso desnichá-
los, sob pena de toda a comunidade correr o risco da deskulakização, porque
a responsabilidade, nestes tempos febris, tornou-se novamente coletiva, como
nos tempos do tsarismo.
Além disso, resultados econômicos. Eles seriam alcançados.
O agrupamento de milhões de pessoas em algumas dezenas de milhares
de unidades coletivas de produção, permitindo um controle preciso,
viabilizou o processo por meio do qual foi possível “espremer” os campone-
ses, extraindo deles cotas anuais fixas, às vezes ascendentes, mesmo que a
produção estivesse estagnada ou em declínio.
As chamadas entregas obrigatórias para o Estado (cotas mínimas, fixas,
contra pagamento também fixado antecipadamente) registraram curva ascen-
dente ao longo dos anos 1930. Em 1928, ainda no quadro das “medidas
emergenciais” então formuladas, atingiram 10,8 milhões de toneladas. No
ano seguinte, num aumento abrupto, de mais de 50%, chegaram a 16,1
milhões. Em 1930, novo salto, para 22,1 milhões; em 1931, 22,8 milhões.
Em 1932, 18,5 milhões. Entre 1933 e 1937, a média foi comparativamente
alta, de 27,5 milhões de toneladas. Em percentuais, em relação ao total das
colheitas, a proporção saltou de 14,7%, em 1928, para 22,4% em 1929;
mais de 25% em 1930; 32,9% em 1931; 26,9%; 34,1%, em 1933; 38,1%
em 1934; 37,8% em 1935, chegando a 38% em 1940 (Lewin, 1985).
Ao mesmo tempo, voltavam-se a abrir as “hastes da tesoura”: enquanto os
preços agrícolas permaneceram inalterados entre 1928 e 1953, o rublo des-
valorizou-se cerca de dez vezes. Assim, segundo os registros oficiais, entre

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1933 e 1938, o custo real médio, por quintal (cerca de 60 quilos) de grão,
estava em torno de 27 rublos. Mas as instituições estatais pagavam aos
colcozes apenas 6 rublos pelo quintal de centeio, 9-10 rublos pelo de trigo
e 4-5,5 pelo de aveia. Depois da guerra, já em 1953, as autoridades reco-
nheceram que os preços oficiais pagavam somente dois quintos do custo da
produção dos cereais e um quarto do custo dos produtos de origem animal.
Apenas essa disparidade, repetida ao longo de tantos anos, já teria significa-
do um formidável “tributo”.
Impostos, normais e extraordinários, cotas obrigatórias, multas, aluguéis
de máquinas e pagamentos dos serviços prestados pelas Estações de Máqui-
nas e Serviços (MST), equipadas e controladas pelo Estado, deterioração
dos termos de intercâmbio entre produtos manufaturados e agrícolas, um
arsenal completo de medidas para quebrar a espinha do mujique russo,
reduzindo-o definitivamente à condição de “servo” das unidades de produ-
ção. Na melhor das hipóteses, um cidadão de segunda classe.
Estavam asseguradas as bases da “acumulação socialista primitiva”. Permi-
tindo o abastecimento de cidades e parques industriais em expansão.
Viabilizando exportações crescentes para pagar, no mercado internacional, as
compras de matérias-primas industriais, máquinas e equipamentos, técnicos
e engenheiros, de modo a cumprir as metas “nobres” do planos qüinqüenais.
A resistência foi feroz. Individuais, desesperadas. Emboscadas, em gru-
po, articuladas. Recusas suicidas ao enquadramento. Manifestações cegas.
Matança do gado. Assassinatos de autoridades. Fugas. Sabotagens às insta-
lações dos colcozes e às máquinas impostas. Furto de cereais. E, quando a
resistência ativa foi abatida, os recursos últimos, a inação, o descaso, o des-
perdício, a apatia, o desinteresse.
O campo e o camponês pagaram caro pela rebeldia. A escassez endêmica
combinava-se com surtos brutais de total carência, a fome. A de 1932-
1933, na Ucrânia, vitimou milhões de pessoas, sobretudo as mais vulnerá-
veis, velhos e crianças. Numa estranha simbiose, combinavam-se a constru-
ção do futuro, o socialismo, com as crises típicas do antigo regime, materia-
lizadas na fome.
As pressões, afinal, tiveram que ser relaxadas. Impôs-se a alternativa de
conceder a cada mujique um pequeníssimo pedaço de terra para cultivo
próprio. O Estatuto dos Colcozes, em 1935, admitiu a atribuição de lotes,

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não maiores do que um quarto e meio hectare por família. Também foi
reconhecido, a cada família, o direito a uma vaca e a um número especifica-
do de bezerros, porcos e ovelhas, assim como a uma quantidade ilimitada
de aves (sic). Daí o camponês retiraria parte substancial da sua efetiva remu-
neração (sobrevivência). Por outro lado, a partir das brechas dos mercados
livres, eventualmente autorizados, depois de pagas as cotas e os impostos,
proviria uma fração considerável do abastecimento da sociedade. Assim, em
1938, embora os pequenos lotes correspondessem a apenas 3,9% da terra
arada, garantiram, além da sobrevivência dos camponeses, quase metade da
produção total de víveres (45%), 52,1% da produção de batatas, a maior
parte dos legumes e frutas, quase metade do gado, 71,4% do leite, 70,9%
da carne, 43% da lã...
O aparente paradoxo da disparidade entre a produtividade da grande
unidade coletivizada (na verdade, estatizada) e do pequeno lote privado
oferecia a evidência econômica do caráter forçado do processo de coletivização.
No mesmo movimento, mostrava o desapego pelo colcoz e a defesa tenaz do
interesse privado, considerado liquidado pelo discurso oficial da coletivização.
A permanência da mentalidade particularista, individual, descompro-
missada com os rumos e os interesses gerais da sociedade. Como Jonas,
sobrevivendo nas entranhas da baleia. Milhões de Jonas, esses camponeses
agarrados aos pequenos lotes concedidos, estranhos no ninho dessas milha-
res de baleias, os colcozes e os sovcozes criados pelo Estado.
Uma outra função econômica da coletivização e da formidável pressão que
a envolveu desde o início foi a expulsão dos camponeses da terra. O movi-
mento tomou tal amplitude que as autoridades foram obrigadas a tomar pro-
vidências enérgicas: restabeleceram a tradição abominada dos “passaportes
internos”, outra invenção do regime tsarista, caída em desuso. Assim, os cam-
poneses somente podiam deixar o colcoz com autorização, por escrito, da
direção da unidade, nomeada pelo Estado. Os camponeses a chamavam,
maliciosamente, de carta de emancipação, querendo com isso significar que
encaravam a implantação do sistema coletivo de produção como equivalente à
restauração do regime da servidão, juridicamente abolido desde 1861.
Ainda assim, havia aqueles que escapavam das formas de produção cole-
tiva. Em certa medida, desde que não ultrapassassem certos limites, trata-
va-se de algo desejado pelo Estado, pois o surto industrializante programa-

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do exigia braços, muitos braços. Nas cidades e nos inumeráveis canteiros de


obras, os mujiques tangidos de suas terras representariam mão-de-obra re-
sistente e pouco exigente, embora nada eficaz para efetivar operações mini-
mamente sofisticadas, pelo menos em toda uma primeira fase.
Muitos outros não teriam essa sorte. Supreendidos em situação ilegal,
sem a devida carta de emancipação fornecida pela autoridade competente,
caídos nas malhas dos controles sem fim, iriam juntar-se aos deportados e
aos presos (zeks) de toda espécie, que formigavam nos trabalhos forçados de
abertura de canais, construção de estradas de ferro, exploração de madeiras
nobres e de minas de ouro, enfrentando condições insalubres e duríssimas
de trabalho em regiões de clima gelado, inóspitas.
A importância econômica dos trabalhos forçados, reconhecida mais tarde
pelo próprio governo soviético, é até hoje de difícil mensuração. Com o tem-
po, mesmo os mais inocentes não puderam continuar ignorando sua existên-
cia, sobretudo depois dos relatos minuciosos e insuportáveis dos anos 1970
(Soljenitsyn, 1975a; 1975b; Chalamov, 1986). A denúncia do inenarrável.
Nas fábricas, nas obras de infra-estrutura, nos grandes canteiros, cons-
truindo o socialismo soviético, apesar deles mesmos, ali estariam os mujiques,
desenraizados, expropriados, “tributados”. Transformando a natureza e a
sociedade, transformando-se, transformados.

2.2 A INDUSTRIALIZAÇÃO ESTATIZADA: O GRANDE SALTO PARA A FRENTE


Quando Evgeni Preobrazhensky esgrimia com Nikolai Bukharin, nos
anos 1920, defendendo a necessidade de um planejamento mais centraliza-
do e sistemático da economia, e um investimento prioritário e mais consi-
derável no setor industrial, talvez nunca tenha imaginado a natureza que o
processo assumiu, os ritmos.
Um golpe brusco, logo no início, determinou a sorte das pequenas in-
dústrias e dos serviços privados, empurrados para a órbita do Estado. A
combinação de pressões fiscais e políticas liquidou os correlatos do kulak
nas cidades: os pequenos empresários, o vespeiro de atravessadores e
especuladores e a nuvem de clientes e parasitas que viviam ao redor.
Simultaneamente, o vendaval, num crescendo, desde 1929, quando
foi aprovada a proposta da variante “ótima” para o I Plano Qüinqüenal
(1928-1933).

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Energia, indústria pesada e infra-estrutura de transportes receberam a


máxima prioridade, 78% dos investimentos totais (Nove, 1990). E esta
alternativa, por sua vez, ainda foi emendada, novamente para cima, em
1932, quando prevaleceu a proposta de realizar o Plano Qüinqüenal em
quatro anos. O voluntarismo em estado puro, ignorando todos os limites,
os da natureza e os da condição humana.
Entretanto, a onipotência da vontade recaiu quase exclusivamente sobre
alguns setores, bem determinados: as indústrias de construção mecânica, as
que trabalhavam para a defesa, a metalurgia pesada, os transportes – estra-
das de ferro e canais –, a produção de energia elétrica (barragens), a extração
de carvão e petróleo, em suma, os dinossauros comedores de ferro e aço.
No centro das atenções, os chamadas grandes projetos. Por eles, era pre-
ciso tudo fazer: os complexos metalúrgicos de Kuznetsk e de Magnitogorsk,
as fábricas de tratores de Kharkov e Tcheliabinsk, as de automóveis de Moscou
e de Nijni-Novgorod, a usina hidrelétrica de Dnieprprogress, a estrada de
ferro estabelecendo a ligação entre o Turquestão e a Sibéria, o Turksib, o
canal Volga–mar Branco. E, como vitrine, a “pirâmide” de Stalin: o metrô
de Moscou, inaugurado em 1935, de imponentes e marmóreas estações.
Era preciso realizá-los a qualquer custo. No mais breve prazo. “A técnica
decide tudo, os ritmos tudo decidem”, slogans da época, todo um programa.
Num plano secundário, quando não francamente negligenciados, fica-
ram os setores da chamada indústria leve e da construção civil, encarregada
de prover, entre outras prioridades, as moradias e a infra-estrutura urbana
para uma população que se concentrava nas cidades a taxas de crescimento
geométricas. Com efeito, enquanto a população total evoluía de 147 para
170 milhões de habitantes (mais cerca de 15%), entre 1926 e 1939, a
população urbana, no mesmo período, deu um salto de 112%, saindo de
26 para 56 milhões de habitantes.
Para essas atividades econômicas voltadas para o consumo imediato da
população, no entanto, a versão “ótima” do I Plano Qüinqüenal não havia
reservado prognósticos promissores. O que não quer dizer que a indústria
de bens de consumo não tenha progredido, mas os aumentos nesta área
foram amplamente insuficientes em relação à demanda.
Assim, em 1936, apenas 6% de “urbanóides” dispunham de mais de um
quarto para viver, 40% de apenas um quarto, 24% de parte de um quarto,

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5% viviam em cozinhas e corredores e 25% alojavam-se em dormitórios:


barracas, barracos, tendas etc. Um estado lamentável, é verdade, mas seria
um anacronismo compará-lo com o dos trabalhadores da Europa Ocidental
ou dos Estados Unidos. No exercício de qualquer comparação, é preciso
considerar os índices e o estado existente na Rússia tsarista, antes de 1914,
ou de países em situação análoga, como a Índia ou a Turquia.
Entretanto, apesar desses senões, tomara a imaginação da sociedade, e não
gratuitamente, a idéia de que houvera um grande salto para a frente. Algo em
torno de 8 mil indústrias tinham surgido ao longo dos anos 1930. Não apenas
um crescimento quantitativo, mas qualitativo, com o surgimento de novos seto-
res: química, eletrotécnica, aeronáutica, automóveis, construção de máquinas.
Um tremendo esforço, uma economia “sob comando”, tensa, “mobiliza-
da”, quase militarizada (Sapir, 1990).
Enquanto isso, na base da sociedade, quem eram estes, os trabalhadores
anônimos que construíam o socialismo num só país?
Um turbilhão dominou a trajetória do homo sovieticus nos anos 1930.
Mobilidade espacial: do campo para a cidade, das áreas tradicionais de
ocupação para as áreas novas, de toda parte para os campos de concentração
da Ásia Central e do Grande Norte. Uma sociedade em movimento, em
fluxo contínuo. O desenraizamento. O exílio.
Mobilidade social, nas cidades. “Horizontal”, traduzida nas constantes
mudanças de emprego, da pequena para a grande indústria, e entre as indús-
trias, com altas taxas de turn-over (tekuchka – circulação de assalariados por
postos de trabalho). Da produção para os serviços e vice-versa. “Vertical”, do
aprendizado à chefia, também expressa numa constante evolução, da produ-
ção e dos serviços para a administração, para o partido, para o poder.
Assim, em fins dos anos 1920, ainda em vigor a NEP, quase 60% dos
trabalhadores encontravam-se empregados em pequenas indústrias. Dez anos
depois, 76,5% estavam em empresas de mais de 500 empregados, um terço
em fábricas de mais de 10 mil empregados. Por outro lado, nesse período, foi
extraordinária a margem de ascensão para os chamados praktiki, formados no
batente, e que assumiram freqüentemente, por absoluta falta de opções, a
direção de serviços e mesmo de fábricas. Cerca de 650 mil operários deixaram
as fábricas para se tornar empregados, funcionários ou para seguir diferentes
tipos de estágios ou cursos. Encetando a progressão dos escalões inferiores

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para os superiores, da periferia para o centro, da base para o topo na escala do


poder. Eram praktiki 89% dos chefes imediatos, 60% dos técnicos de todas
as categorias, 41% dos engenheiros e até mesmo 27% dos engenheiros chefes
das fábricas. Em meados dos anos 1930, os praktiki formavam cerca de 50%
dos quadros dirigentes nas indústrias (Lewin, 1985).
Mobilidade, enfim, nas hierarquias da sociedade.
No âmbito da família, hierarquia mais tradicional e nuclear, o
despedaçamento da figura maior do patriarca com a migração maciça das
mulheres para o mercado de trabalho. Em 1936, constituíam 40% da força
de trabalho, um ano depois representavam 82% dos novos assalariados.
Sobrecarregadas de tarefas no quadro da dupla jornada de trabalho (domés-
tica e profissional), estariam longe do retrato da mulher “emancipada e
feliz” da propaganda oficial, mas só o fato de terem escapado do controle
estrito e estreito de pais e maridos já assumia um significado histórico.
Os jovens também se beneficiaram da explosão da rigidez da família tra-
dicional. Na época, 45% da população da URSS tinham menos de 20
anos. Incorporados nas brigadas de construção das cidades novas, nas cam-
panhas de alfabetização e de instrução, acorreram em massa para as organi-
zações comunistas de jovens (Konsomol), generosos e entusiasmados, vo-
luntários. Imaginavam construir um mundo novo. Na prática, pelo menos,
emancipavam-se da sufocante tutela da família autoritária, na qual predo-
minava de forma incontrastável a autoridade do páter-famílias.
Um outro movimento ampliaria as oportunidades: o fantástico desenvol-
vimento do sistema educacional, combinado com a criação acelerada de
novos postos de trabalho. Novos horizontes para aqueles que desejavam
adquirir conhecimentos. Entre 1928 e 1941, o total de diplomados uni-
versitários nos vários ramos da educação nacional saltou de 233 mil para
908 mil graduandos. Entre os formandos no nível secundário, os dados
registraram igualmente expressivo crescimento: de 288 mil para 1,492
milhão. Sem contar os milhares que estudavam nos sistemas de educação a
distância e nos cursos de extensão, escolas noturnas e faculdades operárias
(rabfaks). O número de matrículas nesta última modalidade de ensino pu-
lou de 50 mil para 285 mil em apenas quatro anos, entre 1928 e 1932.
Neste processo, a massa de trabalhadores cindiu-se em diferenciações inter-
nas, desintegrada em camadas: os novos recrutas, recém-chegados, em ondas

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sucessivas, tangidos pela coletivização forçada; os incorporados no processo de


recuperação de meados dos anos 1920; os mais velhos, que sobraram da devas-
tação da guerra civil e da sucção do aparelho administrativo, civil e militar. Sem
falar nas diferenças geracionais e de gênero, ampliando as nuanças. E nos priva-
dos de direitos (lichentsy), elementos “estranhos, inimigos do povo”, incorpora-
dos compulsoriamente. Cada uma destas cisões era uma brecha, tornando vul-
neráveis as linhas que os operários poderiam erguer em defesa de seus interesses.
A situação foi agravada com a adoção do salário por peça e dos estímulos
materiais às performances extraordinárias. Novas divisões. Em 1933, 75% dos
trabalhadores eram pagos de acordo com normas de produção freqüentemente
fixadas de forma arbitrária, fora do alcance da grande maioria. Em 1938, 60%
não conseguiram cumprir as normas. O resultado foi a queda do salário médio
real: em 1937 correspondia a pouco mais de metade do de 1928. Enquanto
isso, beneficiando os trabalhadores de choque (udarniks), salários diferenciados,
rações especiais e outras benesses extraordinárias, fundamentais em sociedades
regidas pela escassez: alojamentos e escolas especiais, colônias de férias etc.
A partir do verão de 1935, a tendência pareceu consolidar-se com o lança-
mento do movimento stakhanovista, do nome do mineiro Aleksei Stakhanov,
emérito quebrador de recordes e das normas de produção nas minas de carvão.
Os grandes beneficiários estavam na cúpula da pirâmide social: funcioná-
rios graduados da máquina estatal e do aparelho partidário, dirigentes de
empresas, engenheiros, administradores, pesquisadores, planejadores, oficiais
das forças armadas, professores, médicos e técnicos qualificados. Compreen-
diam, segundo diferentes cálculos, de 7 milhões a 13 milhões de pessoas, ou
seja, entre 4 a 7,5% da população total. Molotov, em 1939, falou de 9,5
milhões. Quadros do partido, do exército e da polícia (1,5 milhão), chefes de
empresas rurais e urbanas (1,7 milhão), engenheiros e técnicos qualificados
(1 milhão), aí estava o núcleo dos novos gestores, dos que decidiam.
Os novos gestores correspondiam a 21% dos delegados ao XVII Congresso
do Partido Comunista da União Soviética, em 1934. Cinco anos mais tarde,
em 1938, quando se reuniu o XVIII Congresso, já seriam 54% dos delega-
dos. Também neste ano, 70% dos novos recrutas originavam-se desse setor,
enquanto os operários, ligados diretamente à produção, não passavam de 15%
do total de filiados. Nas altas esferas, o partido estimulava o recrutamento. O
inverso também era verdadeiro: tornou-se difícil aceder a um alto cargo se o

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Daniel Aarão Reis Filho

candidato não possuísse a carteira de filiado. Assim, em fins dos anos 1930,
97% dos diretores de fábricas, 82% dos chefes na construção civil, 40% dos
engenheiros do país pertenciam aos quadros do partido. Enquanto isso, em
1941, às vésperas do início da Segunda Guerra Mundial, apenas 6% dos
filiados estariam diretamente vinculados à produção.
Observe-se, fato notável, que quase metade desses que ocupavam posi-
ções de prestígio e de poder era originária de famílias operárias ou campo-
nesas. Alguns falariam em “plebeização” do poder. Outros, na emergência
de uma “suboficialidade” de intelectuais (Malia, 1994).
Em busca do futuro, o salto para a frente promoveu a interpenetração de
épocas, o entrecruzamento de estágios de desenvolvimento. O mujique é
apresentado ao trator norte-americano, cujo desenho e cuja concepção fo-
ram adquiridos e adotados, nem sempre com sucesso, considerando-se a
diferença de circunstâncias. O trabalho compulsório combinava-se com a
técnica mais refinada, importada na pessoa de engenheiros e técnicos es-
trangeiros. Os praktiki e os engenheiros. A marreta tradicional e as máqui-
nas mais modernas, importadas da Alemanha e dos Estados Unidos.
Uma sociedade em movimento, “areias movediças”. Como dar um senti-
do a esse moto contínuo? A esse redemoinho permanente?

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Igor Fuser

O petróleo do Golfo Pérsico,


ponto-chave da estratégia
global dos Estados Unidos1
Igor Fuser2

Em cada três barris de petróleo existentes no subsolo do planeta como


reservas que podem ser extraídas no futuro, dois estão situados no Oriente
Médio, mais precisamente num restrito grupo de seis países: Arábia Saudita,
Irã, Iraque, Kuwait, Emirados Árabes Unidos e Bahrain. O controle dessas
reservas tem lugar de destaque na estratégia do governo de George W. Bush
para a consolidação da hegemonia mundial dos Estados Unidos. A meta
prioritária da política de energia de Washington, formulada em 2001 por
um grupo de trabalho sob a coordenação do vice-presidente Dick Cheney,
é aumentar a oferta mundial de combustíveis por meio de medidas destina-
das a fazer com que os países produtores intensifiquem a exploração das
reservas de petróleo e de gás natural, passando a exportar esses recursos de
acordo com a máxima capacidade possível. Os Estados Unidos estão dispos-
tos a fazer uso de sua influência para obter a abertura dos recursos energéticos
desses países aos investimentos das empresas transnacionais. Para o governo
Bush, mais do que para qualquer um de seus antecessores, energia e segu-
rança são dois conceitos estreitamente associados. Nesse contexto, a invasão
do Iraque faz sentido a partir do objetivo – viável ou não – de substituir um
regime hostil por outro, sob influência norte-americana, no país que possui
a segunda maior reserva de petróleo do mundo.

1
Este trabalho foi elaborado a partir da dissertação de mestrado O petróleo e o envolvimento militar dos
Estados Unidos no Golfo Pérsico (1945-2000), de autoria de Igor Fuser, defendida e aprovada no Programa
de Pós-Graduação em Relações Internacionais Santiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP) em
dezembro de 2005, com orientação do professor Luís Fernando Ayerbe.
2
Mestre em Relações Internacionais e doutorando em ciência política na Universidade de São Paulo.
É professor de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e autor dos livros México em transe (São Paulo,
Scritta, 1995) e Geopolítica – O mundo em conflito (São Paulo, Salesiana, 2006).

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1. BUSH E OS NEOCONSERVADORES

O governo republicano iniciado em 2001 adotou um conjunto de pro-


posições que têm como espinha dorsal o uso da força militar para impedir o
surgimento de qualquer desafio ao exercício absoluto da supremacia dos
Estados Unidos. Na nova política externa de Washington, a coerção passa a
ser encarada, de forma cada vez mais explícita, como o caminho para resol-
ver as mais diversas questões. Nas palavras do vice-presidente Dick Cheney,
mentor do presidente em assuntos exteriores, “a força faz a diplomacia avançar
de um modo mais eficaz”.
As linhas essenciais da política externa de George W. Bush tinham sido
lançadas uma década antes, quando Cheney, secretário da Defesa no governo
de Bush pai, formou um grupo de trabalho, sob a coordenação do então
subsecretário Paul Wolfowitz, para repensar a posição dos Estados Unidos no
cenário mundial após a dissolução da URSS (União das Repúblicas Socialis-
tas Soviéticas) e a vitória norte-americana na Guerra do Golfo. A versão origi-
nal do documento ainda circulava reservadamente entre funcionários gradua-
dos do Pentágono quando uma cópia foi parar em poder do The New York
Times, que a publicou, provocando uma grande polêmica. Em sua passagem
mais importante, o texto definia a prioridade da estratégia norte-americana:

“Nosso primeiro objetivo é prevenir o ressurgimento de


um novo rival. Essa é uma consideração dominante que
permeia a nova estratégia de defesa regional e requer um
esforço para impedir que alguma potência hostil venha a
dominar alguma região cujos recursos sejam suficientes
para, uma vez consolidado esse controle, gerar um poderio
global” (USA Today e Los Angeles Times, 2004).

O documento afirma, enfaticamente, que os Estados Unidos devem evi-


tar que os demais países industrializados venham a desafiar a liderança nor-
te-americana. Para isso, defende a criação de mecanismos destinados a dis-
suadir “os potenciais competidores de sequer aspirar a um papel mais im-
portante em escala regional ou global”. A ameaça de “rivais europeus” é
mencionada explicitamente, assim como a da Rússia e a da China. O esbo-

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ço elaborado por Wolfowitz também declara que os Estados Unidos devem


estar preparados para agir unilateralmente em defesa de seus interesses,
quando necessário, recorrendo até mesmo a ataques preventivos contra seus
adversários. O rascunho, divulgado sem permissão, provocou protestos dentro
e fora dos Estados Unidos. Os críticos, na maioria europeus, mostraram
indignação com o papel auto-atribuído pelos Estados Unidos de “polícia do
mundo” e com a subordinação dos aliados a uma posição de segunda classe
numa ordem mundial dominada pelos norte-americanos. A celeuma levou
o Pentágono a abrandar a versão final do texto, eliminando o apelo ostensi-
vo à dominação global. O assunto desapareceu com a vitória eleitoral de
Bill Clinton, mas voltou à tona no final de seu governo. Durante a campa-
nha eleitoral para a escolha de seu sucessor, um centro de estudos pouco
conhecido lançou, em setembro de 2000, o documento Reconstruindo as
defesas da América, que retoma as propostas do esboço do Pentágono de
1992: “Os Estados Unidos são a única superpotência no mundo. A grande
estratégia da América deve ter como meta preservar e ampliar essa posição
vantajosa pelo maior tempo possível no futuro”.
O texto foi preparado por um influente grupo de estrategistas republica-
nos que adotou a denominação de Projeto por um Novo Século Americano
(Project for the New American Century – PNAC). Entre os integrantes do
PNAC estavam futuros integrantes do governo de George W. Bush, como
Dick Cheney (vice-presidente), Paul Wolfowitz (subsecretário da Defesa e,
no segundo mandato, presidente do Banco Mundial) e Donald Rumsfeld
(secretário da Defesa). O presidente do PNAC era William Kristol, o editor
da revista Weekly Standard, o principal reduto das posições políticas
neoconservadoras. Essas propostas se tornaram diretrizes políticas oficiais
após os atentados de 11 de setembro de 2001, quando Bush, deixando para
trás o período inicial de relativa indefinição, adotou uma linha de conduta
agressiva e declaradamente unilateral. A nova estratégia de segurança dos
Estados Unidos foi anunciada por Bush em julho de 2002 e ganhou forma-
to oficial, dois meses depois, no documento intitulado Estratégia de segu-
rança nacional dos Estados Unidos da América. A Doutrina Bush, aí anuncia-
da, relega a segundo plano todo o sistema internacional de tratados (como
o Protocolo de Kyoto sobre o meio ambiente, que Bush renegou logo de-
pois da posse) e de organizações multilaterais que constituem a espinha

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dorsal da ordem mundial estabelecida após a Segunda Guerra Mundial sob


a liderança dos próprios Estados Unidos. Agora, a soberania dos Estados
Unidos se torna mais absoluta do que nunca, ao passo que a dos demais
países, sobretudo daqueles que desafiem os padrões de conduta traçados em
Washington, é condicionada aos critérios dos Estados Unidos, que podem
revogar esse direito por conta própria (Ikenberry, 2002/2003). O governo
norte-americano reivindica também o direito de lançar ataques preemptivos3
contra qualquer país hostil que possua “armas de destruição em massa”. No
plano econômico, a nova estratégia de segurança nacional também advoga a
maior liberdade para os negócios norte-americanos, nos marcos de uma
globalização capitalista acelerada: os Estados Unidos vão “usar este momen-
to de oportunidade” para estender os “mercados livres e o livre comércio
para cada canto do mundo” e promover a “alocação eficiente de recursos e a
integração regional”.

2. O PETRÓLEO DO GOLFO PÉRSICO, PRIORIDADE ESTRATÉGICA

A redefinição da estratégia norte-americana trouxe fortes implicações para


o componente energético da política de segurança nacional, na medida em
que as necessidades de segurança e energia estão vinculadas entre si. A
securitização do acesso dos Estados Unidos às fontes de energia explica
a ênfase destinada ao Golfo Pérsico nos documentos de política externa a
partir da promulgação da Doutrina Carter, no início de 1980. Em resposta
à Revolução Islâmica, que derrubou o regime pró-americano do xá Reza
Pahlevi e o substituiu por uma teocracia xiita fortemente hostil aos Estados
Unidos, o presidente Jimmy Carter anunciou naquela ocasião que os Esta-
dos Unidos consideravam o Golfo Pérsico uma região de seu “interesse vi-
tal” e que estariam dispostos a defendê-la por “todos os meios necessários,
inclusive a força militar” (Carter, 1980).

3
O ataque preemptivo é a resposta a uma ameaça iminente e que pode ser claramente demonstrada,
tal como a concentração de tropas numa fronteira ou o posicionamento de mísseis voltados para
determinada direção. Já a prevenção é uma resposta a uma ameaça que não se manifesta claramente
e que pode, na melhor das hipóteses, ser apenas presumida. A invasão do Iraque pelos Estados
Unidos e outros países, em 2003, foi tipicamente um ataque preventivo, e não preemptivo.

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Sucessivos documentos oficiais das gestões de George Bush (pai) e de Bill


Clinton reafirmam os termos da Doutrina Carter – uma diretriz de política
externa que já foi classificada como uma Doutrina Monroe específica para o
Oriente Médio. Em agosto de 1991, um relatório encaminhado pelo presi-
dente Bush (pai) ao Congresso comenta o sucesso dos Estados Unidos em
reverter a agressão iraquiana ao Kuwait e salienta a “poderosa continuidade”
da política norte-americana para a região, que inclui entre as suas preocu-
pações estratégicas “a manutenção de um livre fluxo de petróleo” (National
Security Strategy Report, 1991). A política externa do governo Clinton reafir-
mou a prioridade estratégica para o controle das fontes externas de petró-
leo. Nesse terreno, praticamente não há diferença entre as concepções dos
governantes democratas e republicanos. Os partidos e as correntes ideológi-
cas que passaram pela Casa Branca nas últimas décadas atribuíram impor-
tância central ao Golfo Pérsico e a seus recursos petrolíferos. A diferença
reside na ênfase que os neoconservadores depositam no petróleo como in-
grediente da hegemonia mundial. Bush filho atribui mais importância ao
controle dos suprimentos de petróleo do que seus antecessores.
O documento oficial da Doutrina Bush inclui entre as tarefas da política
externa norte-americana a de “realçar a segurança energética”:

“Vamos fortalecer nossa própria segurança energética e a


prosperidade compartilhada da economia global trabalhan-
do com nossos aliados, parceiros comerciais e produtores
de energia para expandir as fontes e os tipos de energia
disponíveis em escala global, especialmente no Hemisfério
Ocidental, na África, na Ásia Central e na região do Mar
Cáspio” (The National Security Strategy of the United States
of America, 2002).

A segurança, portanto, só pode ser obtida a partir de iniciativas estratégi-


cas. Esse é o ponto central da política norte-americana de energia. Na ava-
liação do cientista político Michael Klare, as decisões do governo Bush (fi-
lho) relacionadas com instalações militares e com operações bélicas no exte-
rior revelam a prioridade ostensiva para as regiões periféricas que abrigam
reservas significativas de petróleo, como o Golfo Pérsico e a Ásia Central.

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“Na prática, está se tornando cada vez mais difícil distinguir as operações
militares dos Estados Unidos concebidas para combater o terrorismo da-
quelas concebidas para proteger os recursos de energia”, escreveu Klare (2004,
p. 73). Para Andrew Bacevich, um crítico das intervenções militares norte-
americanas no exterior, “o uso do poder das armas para garantir o predomí-
nio norte-americano no Oriente Médio, especialmente no Golfo Pérsico,
rico em petróleo, permanece como a essência da política dos Estados Uni-
dos para a região” (Bacevich, 2005, p. 201). Avaliação semelhante foi
publicada na revista Foreign Affairs por Kenneth Pollack, um estrategista de
posições opostas às de Bacevich. Pollack se destacou nos meses que precede-
ram a invasão do Iraque como um dos mais entusiasmados defensores da
ação militar. Em 2003, logo depois da ocupação daquele país, ele escreveu:

“O interesse principal dos Estados Unidos no Golfo Pérsico


reside em garantir um fluxo livre e estável do petróleo da
região para o mundo como um todo. [...] O motivo pelo
qual os Estados Unidos têm um interesse legítimo e crítico
em ver que o petróleo do Golfo Pérsico continue a fluir
copiosamente e por um preço relativamente barato é sim-
plesmente que a economia global construída nos últimos
50 anos repousa sobre a fundação de um petróleo barato e
abundante. Se essa fundação for removida, a economia global
desmoronará” (Pollack, 2003).

Como é possível encaixar essa situação vulnerável na imagem que as auto-


ridades dos Estados Unidos tentam construir de seu país como um podero-
so hegemon – uma “hiperpotência”, no neologismo do ex-chanceler francês
Hubert Védrine – capaz de usar a força militar para impor suas preferências
em qualquer lugar do planeta? Para Klare, a dependência do combustível
importado é o “calcanhar-de-aquiles” do império norte-americano. É signi-
ficativo, nesse sentido, que o cientista político Michael Ignatieff, no ensaio
em que saúda o surgimento de um “imperialismo” norte-americano como
algo ao mesmo tempo inevitável e positivo no cenário mundial pós-Guerra
Fria, aponte o Golfo Pérsico, devido a suas imensas reservas de petróleo,
como “o centro de gravidade do império” (Ignatieff, 2003). Em resumo, o

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petróleo do Golfo Pérsico é um instrumento fundamental na conquista e


no exercício da hegemonia – justamente o ponto central da chamada Dou-
trina Bush.

3. A BUSCA DA “MÁXIMA EXTRAÇÃO”

A primeira missão de Cheney como vice-presidente foi empreender


uma revisão abrangente da política energética dos Estados Unidos. Para
tanto, ele pediu ajuda a James Baker, secretário de Estado na gestão de
Bush pai. Na década de 1990, após o deixar o governo, Baker montou
um centro de estudos, o James Baker III Institute for Public Policy, em
Houston. Esse instituto reuniu um grupo de especialistas que apresen-
tou, em abril de 2001, um relatório intitulado Política estratégica de
energia – Desafios para o século XXI (Strategic Energy Policy..., 2001). O
texto, conhecido como Relatório Baker, serviu de base para a elaboração
da política para o setor. O relatório nota que a capacidade ociosa da
Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), equivalente
em 1985 a 25% da demanda global, tinha caído em 1990 para 8%,
chegando a 2001 com apenas 2% desse total. Nessas condições, “a es-
cassez é endêmica”. Sem uma margem adequada de capacidade disponí-
vel, afirma o estudo, episódios de aperto nos suprimentos e de alta abrup-
ta de preços continuarão a ocorrer: “O mundo atual está precariamente
próximo de utilizar toda sua capacidade global disponível de produção
de petróleo, aumentando os riscos de uma crise de suprimento com
conseqüências mais graves do que há três décadas”.
A situação no Iraque merece especial atenção no Relatório Baker. As san-
ções econômicas ao Iraque, em vigor desde a invasão do Kuwait em 1990,
foram avaliadas como prejudiciais aos interesses dos Estados Unidos. Por
um lado, essas sanções foram apontadas como ineficazes, na medida em que
o regime de Saddam Hussein se mostrava capaz de contornar as restrições
por meio do contrabando, obtendo assim uma receita extra que lhe permi-
tiria, segundo o relatório, intimidar os países vizinhos e adquirir ou desen-
volver “armas de destruição em massa”. Por outro lado, o documento iden-
tifica como problema as restrições ao ingresso do petróleo iraquiano no
mercado internacional e à exploração das imensas reservas existentes naque-

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le país, no contexto de uma oferta de combustível cada vez mais escassa. Em


resumo, os Estados Unidos precisariam do petróleo iraquiano por motivos
de segurança econômica, mas, por uma questão de segurança política e
militar, não poderiam permitir que Saddam desenvolvesse sua produção.
Sem chegar a propor explicitamente o uso da força militar para promover
uma “mudança de regime” no Iraque, o relatório esboça um cenário que
deixa pouco espaço para outra opção.
O Relatório Baker serviu de base para as discussões de outro grupo de
especialistas, que se reuniu, sob a coordenação do próprio Cheney, para
elaborar uma nova política de energia para os Estados Unidos. Essa força-
tarefa produziu um relatório que foi adotado pela Casa Branca como orien-
tação oficial em maio de 2001 (Reliable, Affordable, and Environmentally
Sound Energy..., 2001). Em lugar das ações conservacionistas, encaradas
como fúteis ou utópicas, o governo norte-americano adotou na busca da
segurança energética uma política que Michael Klare definiu, em seu livro
Blood and Oil, como “a estratégia da máxima extração”. Trata-se, em síntese,
de garantir uma oferta de combustíveis cada vez maior, dentro e fora dos
Estados Unidos, para evitar o duplo risco da escassez e da disparada dos
preços. Escreve Klare:

“A estratégia da máxima extração requer que as autorida-


des norte-americanas exortem os regimes amigos a abrir
seus setores de energia aos investimentos de companhias
estrangeiras que irão viabilizar o acesso a tecnologias avan-
çadas de perfuração e exploração. [...] Embora essas em-
presas possam desempenhar certas funções, outras tare-
fas – incluindo o esforço crítico de persuadir os principais
produtores do Golfo Pérsico a abrir seus setores de energia
ao investimento de fora – teriam de caber ao corpo diplo-
mático e a outras altas autoridades dos Estados Unidos”
(Klare, 2004, p. 83).

A Política Nacional de Energia, anunciada por Bush no documento que


ficaria conhecido como Relatório Cheney, admite sem rodeios que a econo-
mia norte-americana continuará a consumir uma parcela altamente despro-

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porcional dos recursos naturais do planeta: “Nossa prosperidade e nosso


modo de vida são sustentados pelo uso de energia”, afirma. Em vez de uma
redução no consumo de combustíveis, o Relatório Cheney defende, em
primeiro lugar, a redução do crescimento da dependência norte-americana
do petróleo importado por meio do aumento da produção doméstica4. Em
segundo lugar, depois de constatar que mesmo a exploração de áreas atual-
mente protegidas por leis ambientais não será suficiente para reduzir essa
dependência, o documento apresenta sua meta mais importante – a busca
de fontes adicionais de combustível em outros lugares do mundo.
O Relatório Cheney não deixa dúvidas sobre o fato de que a produção
doméstica de petróleo nos Estados Unidos não chegará nem perto de alcan-
çar o consumo. O mesmo vale para o gás natural. Portanto, o país terá de
importar quantidades cada vez maiores desses dois combustíveis essenciais
para a sua economia. Adverte o relatório:

“Nos próximos 20 anos o consumo de petróleo dos Esta-


dos Unidos vai crescer 33%, o consumo de gás natural
mais de 50% e a demanda por eletricidade crescerá 45%.
Se a produção de energia dos Estados Unidos aumentar na
mesma taxa que nos anos 1990, enfrentaremos uma defa-
sagem cada vez maior” (Reliable, Affordable, and Environmen-
tally Sound Energy..., 2001).

O texto conclui que, se as tendências atuais forem mantidas, os Estados


Unidos importarão dois terços do seu petróleo em vinte anos. Descarta-se,
aí, a busca da auto-suficiência norte-americana em energia, já tentada, sem
sucesso, por Nixon e Carter na década de 1970. Na visão das autoridades
norte-americanas, os múltiplos laços que ligam os Estados Unidos à econo-
mia mundial tornam irrelevante a idéia de garantir os suprimentos de ener-

4
O Relatório Cheney toca num tema altamente polêmico, ao defender a exploração das grandes
reservas de petróleo existentes na Área Nacional de Proteção Ambiental no Ártico, uma imensa
reserva ecológica no Alasca. O movimento ambientalista luta para impedir a instalação de empresas
petrolíferas nessa região.

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gia para o mercado interno sem levar em conta o conjunto do sistema capi-
talista mundial.
A solução proposta pelo Relatório Cheney é ganhar acesso, influência e
controle das fontes de energia no mundo inteiro. “A segurança energética
nacional depende de suprimentos de energia suficiente para dar suporte ao
crescimento econômico norte-americano e global”, afirma (ibidem). A prin-
cipal recomendação é um maior envolvimento do governo no esforço para
ampliar a oferta global de suprimentos de petróleo e de gás natural por
meio da “abertura de novas áreas para a exploração e o desenvolvimento ao
redor do globo”. O documento dá prioridade à busca do acesso norte-ame-
ricano às fontes de petróleo no exterior e sugere que o governo dos Estados
Unidos pressione os países produtores de combustíveis a revogar parcial ou
totalmente as leis adotadas no período da nacionalização das concessões
petrolíferas, que estabelecem o monopólio de seus respectivos Estados nacio-
nais na exploração das reservas de petróleo.
Na essência, o cenário petroleiro internacional – que tem no seu centro
os países produtores do Golfo Pérsico – se tornou o terreno para o qual
confluem objetivos fundamentais dos Estados Unidos em três campos dife-
rentes: a segurança energética, a consolidação da hegemonia internacional e
os interesses econômicos das empresas norte-americanas.

4. A INVASÃO DO IRAQUE

Os documentos sobre política energética elaborados no início do go-


verno de George W. Bush ressaltam o vínculo entre a energia e a estratégia
militar. À medida que se aprofunda a dependência dos Estados Unidos –
e da economia capitalista mundial – em relação ao petróleo importado,
aumenta a importância da força militar para garantir os suprimentos de
combustível em quantidades e preços adequados. É nesse contexto que
deve ser entendida a invasão do Iraque. A idéia de usar a força militar para
promover uma “mudança de regime” no Iraque já vinha sendo acalentada
muito antes dos atentados de 11 de setembro de 2001 pelos políticos e
estrategistas neoconservadores agrupados no PNAC. Logo após sua for-
mação, em 1997, o PNAC começou a pressionar a Casa Branca por uma
ação militar contra o Iraque. Uma carta enviada por integrantes desse

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grupo ao presidente Clinton em janeiro de 1998 pede a “remoção do


regime de Saddam Hussein do poder”, argumentando que as sanções não
são suficientes para impedir o regime iraquiano de produzir “armas de
destruição em massa”, o que teria “um efeito gravemente desestabilizador
em todo o Oriente Médio”. A carta adverte que, se os Estados Unidos não
adotarem uma atitude mais agressiva em relação ao Iraque, “uma porção
significativa dos suprimentos mundiais de petróleo correrá perigo”.
A ascensão de grande parte dos signatários desse texto a altos postos
na administração Bush leva a crer que a guerra dos Estados Unidos con-
tra o Iraque já estava em gestação muito antes dos atentados de 11 de
setembro. Entre as muitas informações já disponíveis sobre os antece-
dentes dessa decisão, destaca-se o depoimento de Paul O’Neill, secretá-
rio do Tesouro durante os dois primeiros anos do governo. Em relato
publicado em sua biografia, The Prince of Loyalty (2004), O’Neill revela
que, menos de um mês depois da posse na Casa Branca, o presidente e
seus principais auxiliares já discutiam o uso das armas para depor Saddam.
Em outro livro revelador, Contra todos os inimigos... (2004), Richard
Clarke, o principal assessor da Casa Branca para o combate ao terroris-
mo no primeiro governo de Bush (filho), conta que, no início de 2001,
alertou diversas vezes seus superiores sobre o perigo representado pela
Al Qaeda, mas eles não deram importância, pois tinham uma “idéia
fixa” em relação ao Iraque. Clarke relata sua participação numa reunião
na Casa Branca, horas depois dos atentados de 11 de setembro, em que
Rumsfeld propunha que se bombardeasse o Iraque, apesar de saber que a
Al Qaeda – já apontada como o principal suspeito pelo ataque terrorista
– estava instalada no Afeganistão.
Quatro anos após a tomada de Bagdá, nenhuma evidência foi encon-
trada para dar fundamento às alegações de que o regime iraquiano teria
ligações com a Al Qaeda ou com alguma outra organização terrorista in-
ternacional ou, ainda, que mantivesse em seu poder ou estivesse desenvol-
vendo armas proibidas. Ao contrário: as revelações que vieram a público a
partir de então sugerem, isso sim, um esforço deliberado dos governos de
Washington e de Londres para manipular informações, ocultando dados
relevantes ou veiculando versões falsas, a fim de obter apoio político e
diplomático à guerra e de influenciar a opinião pública.

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5. UMA DISPUTA GLOBAL POR ENERGIA

A questão do acesso e do controle das principais reservas de petróleo do


mundo envolve uma questão que transcende a importância puramente eco-
nômica do petróleo como commodity – envolve a disputa pelo poder em
escala internacional. Se os Estados Unidos pretendem manter, como pro-
põe a Doutrina Bush, uma posição de hegemonia mundial incontrastável,
uma peça fundamental nesse projeto é sua capacidade de influenciar a dis-
tribuição dos suprimentos de energia, cada vez mais escassos, aos demais
países do mundo – e, ao mesmo tempo, a de impedir que esses recursos
caiam em mãos de potências rivais. Em 1990, quando os Estados Unidos se
preparavam para reverter a invasão do Kuwait na primeira Guerra do Golfo,
Cheney afirmou que o controle sobre o petróleo do Oriente Médio propor-
ciona a quem o exerce uma “posição de força” sobre a economia global.
Michael Klare, ao discutir a dimensão estratégica sobre o controle desses
recursos, ressalta a importância não só do Golfo Pérsico, mas das reservas
petrolíferas das antigas repúblicas soviéticas do mar Cáspio:

“Ao permanecer como a potência dominante nessas áreas,


os Estados Unidos podem conseguir mais do que simples-
mente a garantia de seu abastecimento futuro. Eles tam-
bém podem exercer um certo grau de controle sobre os
suprimentos de energia de outros países importadores de
petróleo. Na medida em que esses países dependem da
macrorregião do Golfo–Cáspio para satisfazer suas neces-
sidades de petróleo e de gás natural, sua segurança energética
ficará vinculada à presença de poderosas forças norte-ame-
ricanas nesses locais” (Klare, 2004, p. 152).

A perspectiva de aumento da demanda mundial por energia, sem que as


regiões produtoras sejam capazes de ampliar sua oferta no mesmo ritmo, faz
prever o aumento da competição pelo acesso e pelo controle das fontes de
suprimento. Nesse panorama, o Golfo Pérsico desempenha papel estratégi-
co. Essa região forneceu 75% do petróleo consumido no Japão em 2000.
As exportações para a Europa Ocidental respondem por uma parcela menor

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do consumo – 45% em 2000 –, mas a dependência européia do Golfo


Pérsico deve crescer na medida em que se esgotem suas próprias reservas no
mar do Norte, atualmente em declínio.
Um ator-chave nesse cenário é a China. A rápida expansão de sua economia
demandará suprimentos de petróleo e de gás natural que ultrapassam larga-
mente a capacidade de suas reservas domésticas. A China se tornou um im-
portador bruto de petróleo em 1993 e, de acordo as projeções da Agência
Internacional de Energia, até 2030 as importações representarão 74% de sua
demanda. Para se abastecer, a China terá de recorrer aos mesmos fornecedores
da Europa Ocidental, do Japão e, numa escala cada vez maior, dos próprios
Estados Unidos – o Golfo Pérsico, a bacia do mar Cáspio e a África.
Diante dessa dimensão internacional, a invasão do Iraque em 2003 pode
ser interpretada como parte de um movimento de grande envergadura dos
Estados Unidos para fortalecer sua posição energética global nas próximas
décadas. Na improvável hipótese de que os Estados Unidos consigam esta-
bilizar o Iraque e implantar nesse país um regime sob sua influência, os
norte-americanos ampliarão seu controle político e militar sobre o Golfo
Pérsico e a Ásia Central e dificultarão o ingresso de potências rivais nessa
região. Nesse caso, o reforço de sua posição hegemônica facilitaria o esforço
de convencer os países produtores da região a ampliar as exportações até o
limite de sua capacidade – tal como preconiza a política da “máxima extra-
ção” estabelecida no Relatório Cheney – e abrir suas reservas petrolíferas aos
investimentos estrangeiros e, até mesmo, à privatização.

6. A RESISTÊNCIA NACIONALISTA

Mas essa não é uma tarefa fácil. Em seu esforço para garantir o acesso aos
recursos energéticos do Golfo Pérsico – e de outras regiões do planeta – por
meio do emprego crescente da força militar, os Estados Unidos deparam
com obstáculos de diferentes tipos. Alguns deles são de natureza estratégica
e política. Outras barreiras têm a ver com o fato de que o petróleo é um
recurso natural não-renovável, cuja extração obedece a limites de natureza
física. Conforme a amarga experiência da ocupação do Iraque tem demons-
trado, a supremacia militar dos Estados Unidos é insuficiente para habilitar
esse país a atingir seus objetivos de política externa. Em quatro anos de

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ocupação, os Estados Unidos perderam mais de 3 mil soldados, gastaram


bilhões de dólares e viram seu prestígio aos olhos do mundo e, em especial,
dos habitantes dos países muçulmanos cair para o patamar mais baixo em
todos os tempos. Mas não conseguiram estabilizar o Iraque nem fazer com
que a produção de petróleo iraquiana alcançasse ao menos os níveis anteri-
ores à invasão.
A inclinação das autoridades norte-americanas a superestimar as possibili-
dades do poderio militar – um traço permanente na trajetória dos Estados
Unidos desde a Segunda Guerra Mundial – tem sido apontada por muitos
autores influentes dentro do próprio establishment norte-americano. Um dos
críticos mais destacados é o cientista político Joseph Nye, que integrou o
governo de Bill Clinton como subsecretário de Defesa. Criador do conceito
de soft power (o “poder brando”), Nye adverte contra o risco de que a orienta-
ção neoconservadora do governo Bush, ao atribuir ênfase exagerada ao hard
power (o “poder duro”), venha a minar as fontes da influência ideológica dos
Estados Unidos, dificultando a obtenção do apoio de governos e de povos
estrangeiros às metas da política externa norte-americana. O que liberais como
Nye têm dificuldade de admitir é que nem sempre existe uma coincidência
entre os objetivos dos Estados Unidos e os interesses nacionais dos países
sobre os quais eles exercem ou tentam exercer influência. Na questão do pe-
tróleo, esse conflito é evidente. É verdade que, como em toda relação comer-
cial duradoura, existe um vasto leque de interesses comuns entre países pro-
dutores e consumidores. É do interesse mútuo a estabilidade do mercado
petroleiro em torno de preços que representem um equilíbrio entre as neces-
sidades dos dois lados. Os exportadores não têm o menor interesse em arrui-
nar as economias de seus clientes. Ao mesmo tempo, por que motivo eles
deveriam renunciar às vantagens que a posse de uma matéria-prima tão preciosa
pode proporcionar? Sua lógica, que a OPEP procura traduzir em políticas
específicas, rege-se pela busca de obter o máximo lucro sem prejudicar sua
posição no mercado. Já os países consumidores têm interesse em manter os
preços do petróleo elevados apenas num nível suficiente para estimular os
novos empreendimentos de pesquisa, prospecção e exploração de reservas.
A perspectiva de uma defasagem crescente entre a demanda internacio-
nal de petróleo e a capacidade de oferta dos países exportadores tende a
acirrar o conflito entre os dois pólos do mercado, sobretudo quando os

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cálculos passam a incluir o esgotamento de uma matéria-prima que é a


única ou a principal riqueza dos países onde ela se situa. De acordo com
projeções de 2001 do Departamento de Energia (Departament of Ener-
gy – DoE) dos Estados Unidos, a produção mundial de petróleo, para aten-
der ao aumento da demanda, teria de crescer de 77 milhões de barris/dia
extraídos para 121 milhões de barris/dia em 2025 – cerca de 57% ou 44
milhões de barris/dia. O DoE prevê que mais da metade dessa produção
adicional virá do Golfo Pérsico e que a Arábia Saudita, sozinha, contribuirá
com 12,3 milhões de barris/dia, o dobro do petróleo que tem extraído
atualmente. Outros grandes exportadores – como o Iraque, a Nigéria e a
Rússia – também terão de aumentar sua produção em mais de 100% nas
próximas duas décadas se quiserem dar conta da “tarefa” a eles designada
pelo governo norte-americano e por organizações internacionais como a
Agência Internacional de Energia (AIE).
O cenário projetado pelo DoE esbarra num problema que não pode ser
resolvido nem pelo hard power nem pelo soft power: os limites físicos à extra-
ção. Para atingir os 44 milhões de barris/dia adicionais, ou ao menos se
aproximar dessa meta, é preciso que as empresas petroleiras descubram no-
vas reservas de petróleo de grandes proporções e que, além disso, ampliem –
e muito – a produção dos poços já existentes. No entanto, as descobertas
têm ocorrido num ritmo decrescente nas últimas décadas. Novas tecnologias
podem levar à descoberta de poços menores ainda não detectados após mais
de um século de procura frenética por petróleo em todos os cantos do pla-
neta, mas dificilmente acharão os poços gigantes indispensáveis ao aumen-
to do consumo nas taxas previstas.
Mesmo na ausência de qualquer obstáculo físico ao cumprimento das
metas de produção da Arábia Saudita e dos demais exportadores do Golfo
Pérsico, fatores econômicos e políticos interferem nos cálculos sobre a oferta
futura de petróleo.
O governo Bush, ao erigir em prioridade de sua política externa a estra-
tégia da “máxima extração” de petróleo, leva em conta apenas os interesses
norte-americanos. Para os Estados Unidos, país cuja economia está organi-
zada com base no baixo custo do transporte a longa distância, faz sentido –
embora se possa discutir se esse é o caminho mais sensato – jogar todo o
peso de sua influência internacional para garantir combustível abundante e

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barato pelo maior tempo possível. Mas a Casa Branca, evidentemente, não
consultou os principais países exportadores para saber se a “máxima extra-
ção” é a estratégia mais conveniente também para eles.
O mercado dos combustíveis fósseis, como o petróleo e o gás natural, não
se rege totalmente pelas leis econômicas da oferta e da procura. Na maioria
das commodities, uma alta dos preços emite automaticamente um sinal aos
agentes econômicos para que aumentem a produção, o que leva o mercado
a um novo ponto de equilíbrio. Essa regra se aplicou ao mercado petroleiro
enquanto a capacidade de oferta era maior do que a demanda – notoria-
mente, nas décadas de 1980 e 1990, quando a expansão rápida da explora-
ção fora da OPEP coincidiu com a queda das taxas de crescimento da eco-
nomia mundial, com a adoção de políticas de redução do consumo nos
países desenvolvidos e com o ingresso de combustíveis alternativos, como a
energia nuclear. O resultado foi um longo período de preços baixos depois
dos choques do petróleo na década de 1970.
O contexto do início do século XXI é muito diferente. Na medida em
que a indústria petroleira se aproxima do ponto em que não será mais pos-
sível aumentar a extração, a alta dos preços se afirma como uma tendência
irreversível. Não é mais possível ocorrer um ajuste pelo lado da demanda,
pois não há substitutos viáveis para os derivados do petróleo no setor de
transportes. Ao contrário do que ocorre em outros mercados, que respon-
dem prontamente às variações de preços, o aumento das cotações do petró-
leo é insuficiente para fazer com que combustíveis alternativos passem a
abastecer os automóveis, os caminhões e os aviões.
Diante desse pano de fundo, não é difícil entender a impaciência mani-
festada em documentos do governo norte-americano e de organizações sob
sua forte influência, como a AIE e o Fundo Monetário Internacional (FMI),
diante dos obstáculos que as políticas nacionalistas vigentes nos maiores
produtores da OPEP apresentam ao ingresso do capital estrangeiro que,
supostamente, aceleraria a exploração de suas reservas. Claramente, os Esta-
dos Unidos têm muito mais pressa em ver o petróleo jorrando em novos
poços nos desertos do Golfo Pérsico do que os proprietários dessa riqueza.
Cruzam-se, aí, duas grandes tendências, com forte potencial explosivo:
• de um lado, a perspectiva da escassez de petróleo nos próximos anos e
décadas deixará os governantes do Golfo Pérsico sob forte pressão externa

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para ajustar suas políticas de produção e preço de petróleo – e, eventual-


mente, as regras relativas aos direitos de propriedade das reservas – aos
interesses dos países consumidores, em especial dos Estados Unidos;
• por outro lado, esses mesmos governantes não poderão deixar de consi-
derar a importância decisiva do petróleo para a economia de seus países e,
mais do que isso, como símbolo da independência.

Trata-se de um assunto altamente sensível entre as populações dos pa-


íses produtores de petróleo do Golfo Pérsico. Para se ter uma idéia, o emir
do Kuwait – Estado nacional que deve aos Estados Unidos a sua própria
existência após a guerra de 1991 – teve o seu pedido de mudança na
Constituição a fim de permitir o ingresso de capital estrangeiro na explo-
ração do petróleo derrotado pelo Parlamento do país, um órgão legislativo
com poderes muito limitados em comparação com seus similares ociden-
tais. Qualquer discussão sobre a “abertura” do setor de petróleo e de gás
natural às empresas ocidentais ou sobre a definição das políticas de preços
e de volume de produção desses recursos minerais se dará num contexto
fortemente simbólico. O petróleo está estreitamente associado à identi-
dade nacional desses países, em processo de consolidação. Os Estados
Unidos, em sua corrida para garantir o controle do petróleo, correm o
risco de ter sua imagem cada vez mais associada às piores lembranças que
as populações locais guardam dos tempos, não muito distantes, da espo-
liação neocolonial de seu único recurso valioso pelas grandes empresas
petrolíferas ocidentais. É difícil prever como se dará o choque entre os
interesses dos Estados Unidos e as tendências nacionalistas nos próximos
anos. Mas o fato é que o esforço norte-americano de aplicar no Golfo
Pérsico a política da “máxima extração” ocorre em um contexto local ex-
tremamente sensível, diante do qual o crescente envolvimento militar dos
Estados Unidos não só pode se mostrar ineficaz como pode provocar no-
vos conflitos e acirrar os já existentes.

BIBLIOGRAFIA

BACEVICH, Andrew J. The New American Militarism. Nova York/Oxford,


Oxford University Press, Oxford University Press, 2005.

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Curso de formação em política internacional

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O’NEILL, Paul. The Prince of Loyalty. Nova York, Simon & Schuster, 2004.
POLLACK, Kenneth M. “Securing the Gulf ”. Foreign Affairs, Washing-
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ponível em: <http://www.globalsecurity.org/military/library/policy/
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THE NATIONAL Security Strategy of the United States of America. The White
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RELIABLE, Affordable, and Environmentally Sound Energy for America’s Future
– Report of the National Energy Development Group. 16 maio 2001.
Disponível em: <http://www.whitehouse.gov/energy/>.

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Beluce Bellucci

Altos e baixos na África Austral


Beluce Bellucci 1

1. A INTEGRAÇÃO

Desde o início do século XIX existiu na África Austral uma virtuosa in-
serção na economia-mundo. Seus produtos primários provenientes das mi-
nas e de uma agricultura moderna eram competitivos e as receitas daí
advindas permitiam transferências de lucro e importações dos equipamen-
tos necessários.
A inserção na economia mundial pelas exportações criou redes de transpor-
tes, migrações entre as fronteiras, comércio de mercadorias e transferências de
rendas dos migrantes aos países pobres da região. Enfim, produziu um forte
movimento de capital, de mercadorias e de pessoas que permitiu integrar a
região pelo setor moderno, diferentemente das outras regiões africanas.
Além das questões técnico-econômicas, a integração regional só foi possí-
vel pela política econômica heterodoxa, principalmente da África do Sul,
levada a cabo ao longo do século XX. Essa política dedicava parte das recei-
tas das exportações à redistribuição de rendas, à criação do Estado de Bem-
Estar para os brancos, à subvenção de produções não-competitivas e ao
incentivo da indústria mediante a substituição de importações.
O lucro das exportações era alto porque se baseava na articulação de modos
de produção entre o setor capitalista e o setor doméstico. O apartheid foi a
mais bem acabada expressão dessa articulação, controlando com todo rigor
os locais de residência e deslocação da população não-branca.

1
Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo, pró-reitor de graduação e diretor do
CEAA (Centro de Estudos Afro-Asiáticos) da Universidade Candido Mendes, Rio de Janeiro.

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Por meio desses mecanismos desenvolveu-se a indústria sul-africana, que,


embora não competitiva na economia mundial, tinha um mercado regional
garantido. Nessa condição, de impulso das exportações à industrialização
local, a inserção na economia mundial se tornou compatível e complemen-
tar à regionalização.
A integração regional foi uma política de longo prazo desenvolvida pela
iniciativa privada com o apoio não pouco conflituoso do Estado sul-africa-
no. Foi a iniciativa privada sul-africana que construiu infra-estruturas, orga-
nizou o recrutamento e o alojamento dos emigrantes etc. Por sua vez, as
instituições governamentais não foram tradicionalmente as instâncias es-
senciais da expansão regional da África do Sul. A dinâmica sempre foi a das
empresas privadas, que recebiam apoios por acordos pontuais e setoriais da
política heterodoxa do governo (Coussy, 1996).
As instituições regionais surgiram progressivamente:
• SACU (Southern African Customs Union) – União Aduaneira da África
Austral, desde 1910, incluindo África do Sul, Botswana, Lesoto, Suazilândia
e Namíbia;
• Zona do Rand, desde 1910, com os mesmos países;
• Federação da África Central, de 1953 a 1963, incluindo as duas Rodésias
e o Malawi;
• SADCC (Southern African Development Coordination Conference) –
Conferência para a Coordenação do Desenvolvimento da África Austral,
que incluía Angola, Botswana, Lesoto, Malawi, Moçambique, Namíbia,
Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue, em 1980;
• SADC (Southern African Development Community) – Comunidade
de Desenvolvimento para a África Austral, com todos os países da SADCC
mais a África do Sul e as ilhas Maurícias, em 1990;
• PTA (ou ZTP) (Preferential Trade Area for Eastern and Southern
African States) – Área ou Zona de Trocas Preferenciais, incluindo Angola,
Burundi, Camarões, Djibouti, Etiópia, Quênia, Lesoto, Malawi, ilhas
Maurícias, Moçambique, Namíbia, Uganda, Ruanda, Suazilândia,
Somália, Sudão, Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue, criada em 1981, substi-
tuído pela Comesa;
• Comesa (Common Market for Eastern and Southern Africa) – Merca-
do Comum da África Austral e Oriental, criado em 1994.

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2. ESTRATÉGIAS EM CONFRONTO

A situação política na África Austral mudou no fim da década de 1970 e


no início da década de 1980. A política de desanuviamento de Vorster, na
África do Sul, foi substituída pela “estratégia total” de P. W. Botha, para pos-
sibilitar a sobrevivência do apartheid. A independência do Zimbábue e a cri-
ação dos países da Linha da Frente numa organização de cooperação regional
(SADCC) foram interpretadas por Pretória2 como uma grande ameaça. Em
conseqüência, iniciou-se uma política de desestabilização militar e econômi-
ca considerável na região, e Moçambique foi especialmente atingido
(Abrahamsson e Nilsson, 1995, p. 8).
O período entre 1983 e 1986 foi marcado em Moçambique pela transição
do socialismo ao capitalismo e da política desenvolvimentista para as políticas
neoliberais. Foi nesse momento que a guerra de desestabilização levada a cabo
pela África do Sul tomou proporções enormes, atingiu quase todas as regiões do
país e formou bases internas, ao mesmo tempo em que a situação econômica se
deteriorava a cada dia. A partir de 1987, Moçambique adotou o Programa de
Ajustamento Estrutural do FMI (Fundo Monetário Internacional) e do Banco
Mundial. A transição terminou efetivamente em 1992, com a assinatura do
acordo de paz entre o governo de Moçambique e a Renamo (Resistência Naci-
onal Moçambicana)3. Nesse momento instaurou-se um regime que pôs fim ao
monopartidarismo, introduziu a liberdade de movimentação de capital e de
mercadorias e reduziu substancialmente a participação do Estado na economia.
Em fins de 1983, a crise financeira obrigou Moçambique a abrir novas
frentes políticas e a aproximar-se mais do Ocidente. As exigências que este
fazia, por meio do Clube de Paris, eram no sentido de uma política de
desenvolvimento “realista que garantisse os pagamentos internacionais”; que
Moçambique ingressasse no FMI e no Banco Mundial e buscasse uma apro-

2
Pretória é a capital administrativa da África do Sul, onde fica o executivo; a Cidade do Cabo, a capital
legislativa; e Bloemfontein, a judicial.
3
Resistência Nacional Moçambicana, criada pelo governo racista de Ian Smith na Rodésia, visava a
desestabilização do governo da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) mediante incursões
militares. Passou a ter apoio da África do Sul após a independência do Zimbábue, quando intensi-
ficou em Moçambique as ações militares. Em 1992 assinou com a Frelimo acordo de paz e partici-
pou do processo eleitoral.

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ximação com Pretória. Tal fato conduziria ao Acordo de Incomáti, em 1984,


de não-agressão e boa vizinhança entre os dois governos.
Com o acordo, a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) preten-
dia evitar os ataques sul-africanos que estavam destruindo a economia
moçambicana e normalizar as relações comerciais com esse país, o que subs-
tancialmente era do interesse de ambos, enquanto deixaria de apoiar os
movimentos antiapartheid, com o que esperava atrair novas alianças ociden-
tais. O acordo foi cumprido apenas por Moçambique.
Com a retirada do apoio moçambicano, o Congresso Nacional Africano (CNA)
viu-se obrigado a ter maior presença no interior da África do Sul e a intensificar
o trabalho político de oposição clandestina. Ao se agregar a isso a derrota militar
sul-africana em Angola no Cuíto Canavale, em 1987, pode-se entender os des-
locamentos de poder na África Austral que levariam, alguns anos mais tarde, ao
fim do apartheid e à ascensão de Nelson Mandela ao poder.
Em 1984, a Frelimo começou a modificar sua perspectiva socialista, moti-
vada pela deterioração da situação econômica interna. A crise instalava-se em
todos os seus aspectos. As importações escasseavam, os investimentos redu-
ziam-se, os produtos de consumo básico tornaram-se raros e os de luxo desa-
pareciam. A produção era diminuta, as lojas comerciais estavam vazias, o po-
der de compra se reduzia, enquanto o comércio paralelo, com produtos
contrabandeados da África do Sul, e a inflação aumentavam. As políticas so-
cialistas foram substituídas em pouco tempo por políticas liberais.

3. A CONSAS (CONSTELAÇÃO DE ESTADOS DA ÁFRICA AUSTRAL)

No início dos anos 1980, a vida política da África Austral caracterizava-


se pela existência de duas estratégias opostas, que procuravam incorporar os
Estados da região numa associação econômica para aplicar suas estratégias.
De um lado a Consas, dirigida pela África do Sul, de outro a SADCC (Con-
ferência para a Coordenação do Desenvolvimento da África Austral).
Uma política regional ativa vinha sendo preparada pela África do Sul
desde a Segunda Guerra Mundial, mas se intensificou sobretudo a partir
dos anos 1970, com a “estratégia total” do governo Botha. Era a resposta do
sistema do apartheid às lutas populares na África do Sul e aos movimentos
de libertação na região, e tinha como objetivo prolongar aquele sistema por

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meio da intensificação da repressão interna e de uma política externa agres-


siva que incluía ações políticas, econômicas e militares.
O estabelecimento de uma constelação de Estados estava no programa
da “estratégia total” de Botha. Já em 1977, O Livro Branco sobre a defesa, do
governo sul-africano, expunha os objetivos essenciais do regime e se referia
pela primeira vez à necessidade de mobilizar os recursos políticos, econômi-
cos e psicológicos, assim como os militares, no processo para garantir e
manter a soberania da autoridade do Estado numa situação de conflito.
O Livro Branco traçou uma dupla posição no que diz respeito à política
regional, “a estratégia de aliar promessas a ameaças”. De um lado, tratava da
necessidade de “manter um sólido equilíbrio militar relativamente aos Estados
vizinhos e a outros Estados da África Austral”; por outro, estabelecia como
objetivo “a criação de relações de amizade e colaboração política e econômica
com os Estados da África Austral”. Enumerava 14 “áreas de ação” a ser ativadas,
com ênfase nos serviços de transporte, distribuição e telecomunicações.
A concretização da constelação de Estados constituiu, portanto, parte da
“estratégia total” do regime do apartheid. O conceito de “constelação” foi utili-
zado pela primeira vez em 1975 por B. J. Vorster, então primeiro-ministro, e
posteriormente por seu sucessor P. W. Botha, em 1979, que lhe atribuiu maior
substância, entendida como o estabelecimento de “relações mutuamente pro-
veitosas entre Estados independentes, excluindo especificamente a possibilida-
de de relações tipo satélite”. A constelação foi uma tentativa da África do Sul de
impor sua hegemonia na região e reunir os outros Estados numa aliança econô-
mica e política sob essa hegemonia. Ela constituiu uma nova versão, modificada
pela relação de forças na região, das políticas regionais seguidas pela África do
Sul desde a União, em 1910 (Adam et alii, 1981, p. 66-68).
Antes da Segunda Guerra Mundial, o governo sul-africano tinha ambi-
ções diretamente colonialistas de querer “rematar o Estado sul-africano com
fronteiras penetrando profundamente no coração da África”, embora já ti-
vesse incorporado a Namíbia, com o apoio da Liga das Nações, e induzido
a Grã-Bretanha a renunciar à sua soberania sobre seus antigos High
Commission Territories, atuais Estados de Botswana, Lesoto e Suazilândia.
Até então, o governo sul-africano tinha efetuado fortes investimentos nas
Rodésias (atuais Zimbábue e Zâmbia), na Namíbia e no Quênia, assinado
acordos econômicos com as administrações de colonos ou com as potências

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coloniais metropolitanas e ainda proposto uma união política aos represen-


tantes políticos dos colonos nas Rodésias.
Com a ascensão do Partido Nacionalista ao poder na África do Sul, em
1948, os objetivos expansionistas continuaram, mas de outra forma. Apesar
do esforço diplomático do governo para fazer da África do Sul a ligação
permanente entre as nações ocidentais e a população da África subsaariana,
as ambições coloniais dos governantes sul-africanos não vingaram. Essa pos-
tura sul-africana fundava-se na idéia de que a África do Sul era o

“único país na África Austral com civilização branca e com


o direito – em virtude da sua posição como país de bran-
cos e de sua experiência com o problema dos indígenas e o
problema dos mestiços – de atuar como conselheiro para
os povos dos Territórios Setentrionais” (ibidem).

O que aconteceu, entretanto, foram as independências de praticamente to-


dos os países africanos colonizados e os protestos generalizados contra o apartheid,
inclusive nas Nações Unidas. Internamente, foram períodos de fortes lutas soci-
ais, com massacres e avanços significativos na organização do movimento
antiapartheid. Assim, Pretória abandonou a pretensão à colonização de novos
territórios e lançou, internamente, o programa de bantustanização4.
Externamente, procurou aliados nos países vizinhos, e em 1971 conseguiu
introduzir o “Diálogo com a África do Sul” na agenda da OUA (Organização
da Unidade Africana), com a obtenção de seis votos a favor e 28 contra.
Em 1974, com a derrota do regime fascista em Portugal, a situação para
a África do Sul mudou em função da independência de Moçambique e de
Angola, da constituição de governos socialistas e do desenvolvimento da
luta armada no Zimbábue. Foi quando Pretória montou a nova estratégia
para a manutenção de sua política, conhecida como Consas.
A diferença entre a Consas e as ofensivas anteriores da África do Sul não
estava nos objetivos, mas na forma de atingi-los. Antes procurava influen-

4
Estes (“territórios bantus”) seriam a criação de “nações independentes” de bases étnicas, dentro da
África do Sul, porém sob a soberania desta, mantendo-os segregados, mas próximos. Diversos foram
criados, mas nenhum deles foi reconhecido pela comunidade internacional.

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ciar indivíduos que elaboravam as políticas, agora, a estratégia da Consas


consistia em influenciar as condições objetivas nas quais se realizavam as
decisões. Pretendia construir relações econômicas que fossem favoráveis, pelo
menos aos dirigentes dos Estados africanos visados, para que se convences-
sem de que teriam interesses comuns com a África do Sul. Para isso, propu-
nham projetos sem exigir o engajamento do Estado receptor, visando in-
fluenciar o seu futuro comportamento político (ibidem).

4. ESTADOS-TAMPÕES E BANTUSTÕES

A estratégia da constelação tinha um caráter regional e visava estabelecer


relações particulares entre a República da África do Sul e os vizinhos Estados
independentes, de modo a reverter ou impedir o crescimento dos movimen-
tos socialistas e progressistas na região. Pretendia contemplar um agrupa-
mento de Estados em torno da África do Sul, reunindo uma população de
cerca de 50 milhões de pessoas. Incluía os membros da União Alfandegária e
da Zona Monetária do Rand, liderada pela África do Sul (Botswana, Lesoto e
Suazilândia), mais o Zimbábue, a Namíbia, o Malawi, a Zâmbia e o Zaire,
além da perspectiva de – no conceito de “constelação ampla” ou “extensa” –,
se mudassem os regimes, absorver Angola, Moçambique e Tanzânia.
Já a “constelação interna” foi a expressão para descrever uma estruturação
entre a África do Sul “branca” e os bantustões “independentes”. Seria a
forma de manter sob o domínio do governo sul-africano esses territórios,
sob a fachada de serem soberanos e independentes.
A estratégia externa da constelação foi um fracasso para a África do Sul,
que não conseguiu incorporar nenhum Estado independente visado, e in-
ternamente terminou no acordo entre o Partido Nacional e o Congresso
Nacional Africano, pondo fim ao apartheid e abrindo o caminho para as
eleições multipartidárias, que levaram Mandela ao governo nos anos 1990.
O caminho desse fracasso, entretanto, levou o governo sul-africano a pro-
mover a guerra de desestabilização contra Moçambique e a invadir Angola.
Ao mesmo tempo, e em contrapartida, efetuou-se a articulação dos Esta-
dos da Linha da Frente, envolvendo Moçambique, Angola, Zâmbia, Tanzânia
e Botswana, mais o Zimbábue, recém-independente, que estabeleceram
um agrupamento regional alternativo, a SADCC. Este atraiu os Estados

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visados pela Consas, como Malawi, Botswana, Lesoto e Suazilândia, apesar


das fortes divergências políticas e ideológicas entre os diferentes governos.
Manter a aliança desses nove países na década de 1980, quando a África do
Sul avançou violentamente contra Moçambique e Angola, foi fruto da capa-
cidade de articulação política de seus líderes mais influentes, entre os quais
o principal foi o moçambicano Samora Machel.

5. A SADCC (CONFERÊNCIA PARA A COORDENAÇÃO


DO DESENVOLVIMENTO DA ÁFRICA AUSTRAL)

A SADCC foi criada em abril de 1980 em Lusaca, em oposição à conste-


lação de países proposta pela África do Sul. Participavam nove Estados in-
dependentes da África Austral: Angola, Botswana, Lesoto, Moçambique,
Malawi, Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue. A SADCC, por sua
eficiência, tornou-se ao longo da década de 1980 a organização econômica
regional de maior importância no contexto africano.
Embora não definisse objetivos ideológicos, tinha claro que romper a
dependência econômica com a África do Sul implicava encontrar alternati-
vas às relações com esse país, particularmente nas esferas de comércio, trans-
porte e migração da mão-de-obra.
A África do Sul foi durante os cem últimos anos o pólo central de desen-
volvimento na região. A existência de ouro e de uma população colona
garantiu o afluxo de capitais e a estruturação de uma economia baseada na
exploração de mão-de-obra barata. O papel reservado a cada um dos Esta-
dos da região foi fundamentalmente, desde os fins do século XIX, de forne-
cedor de mão-de-obra e de serviços. Desta forma, existe uma especialização
de trabalho regional em que a RSA [República Sul-Africana] fornece pro-
dutos agrícolas e industriais, compra mão-de-obra e utiliza certas infra-
estruturas existentes nesses países, sobretudo transportes ferroviários e ma-
rítimos. Os países da região tinham a função de fornecer mão-de-obra mi-
gratória e comprar mercadorias sul-africanas (Adam et alii, op. cit., p. 73).
Toda a região austral esteve, desde o século XIX, sob a forte influência
econômica direta britânica, subordinada ao colonialismo da Grã-Bretanha, à
exceção de Moçambique e Angola, influenciados por Londres através da polí-
tica colonial de Portugal.

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O primeiro aspecto dessa dependência regional é a dependência de suas


importações e exportações em relação à África do Sul.
O segundo aspecto diz respeito ao sistema de transporte sul-africano. Quase
metade das exportações e importações de cinco países não destinadas à África
do Sul e sem procedentes desse país passava por seus portos, devendo-se acres-
centar o fluxo com o da própria África do Sul, que era consignado pelos servi-
ços de transporte sul-africanos. Neste aspecto, Moçambique disputava esse
transporte com a África do Sul, ficando com 38% do volume de tonelagem
do tráfego de cinco países (Botsuana, Malaui, Suazilândia, Zâmbia e
Zimbábue) contra 48% da África do Sul e 14% da Tanzânia. Malawi e
Suazilândia, entretanto, dependiam dos portos de Moçambique em 100%
para as suas importações e exportações, enquanto Botsuana e Zimbábue, ape-
nas 25% cada um.
O terceiro aspecto refere-se ao fluxo migratório da mão-de-obra para a
África do Sul. Embora, no início dos anos 1980, já tivesse diminuído mui-
to o número de trabalhadores estrangeiros na indústria mineira sul-africa-
na, aproximadamente 20% do total da força de trabalho de cinco países
continuavam a servir de mão-de-obra migratória nas minas sul-africanas.
Por outro lado, o relacionamento desses países com o mercado internacional
dependia da exportação de produtos cujos mercados não controlavam e eram
dominados por grandes empresas. Assim, os países independentes tinham de
mudar as relações com a África do Sul, pressionando pelo fim do apartheid, mas
também reestruturar suas próprias economias e ligações com o mercado.
A SADCC propunha coordenar ações com objetivos de realizar as se-
guintes propostas:

“• redução da dependência econômica, particularmente,


mas não somente, em relação à República da África do Sul;
• reforço de laços para criar uma integração regional eqüi-
tativa e genuína;
• mobilização de recursos para promover a implementação
de políticas nacionais, regionais e interestatais; e
• ação concertada para assegurar a cooperação internacio-
nal dentro da estratégia desses países para a libertação eco-
nômica” (SADCC, 1980, p. 4-5).

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Além disso, a SADCC previa uma tripla reestruturação: das economias nacio-
nais, das relações entre as diferentes economias regionais entre si e das relações
delas com o exterior, fosse com a África do Sul ou outra fonte de dependência.
Não pretendia montar uma estrutura burocrática para a coordenação e avaliava
que havia na região energia e matérias-primas suficientes para “uma revolução
industrial” que tornaria possível seus desejos de independência.
O fato de a SADCC ter sido entendida como um veículo positivo de
combate ao apartheid favoreceu o apoio dos países industrializados às ações
de cooperação previstas em suas grandes propostas.
O sistema de transportes existente na região foi planejado e concebido
no século XX para convergir com o sistema de escoamento da África do
Sul. As mercadorias do Zimbábue (então Rodésia), por exemplo, para
chegar ao litoral, tinham de seguir pela África do Sul, quando o trajeto
mais curto seria o Porto da Beira, em Moçambique. Por ser o principal nó
de estrangulamento das economias dos países do hinterland, atribuiu-se
como prioridade a reestruturação do sistema de transportes e comunica-
ções (SADCC, 1980).
Até a proclamação da declaração unilateral de independência da Rodésia
do Sul em 1965, aproximadamente 80% do tráfego regional, com exceção
do da África do Sul, passavam pelas redes ferroviárias e portuárias de Angola
e de Moçambique. Mesmo após o redirecionamento do movimento da
Rodésia para a África do Sul, essa porcentagem ficou acima de 70% e come-
çou a cair após a independência das colônias portuguesas.
A partir de 1977, a “estratégia total” sul-africana definiu como objetivo
central a realização de ações econômicas e militares contra os países vizi-
nhos, incluindo cortar ou dificultar suas vias de acesso ao mar.
Por conta disso, o governo de Pretória desviou o tráfego Transvaal–Ma-
puto para portos sul-africanos, contrariando inclusive os setores privados.
Isso tudo se agravou com a independência do Zimbábue em 1980, quando
as ações para desestabilizar Moçambique passaram a ser coordenadas pelo
exército sul-africano – e depois pela Renamo – e foram intensificadas em
todas as províncias moçambicanas.
Foi nesse contexto que a SADCC justificou a prioridade dada aos proje-
tos do setor de transportes e comunicações e, nele, aos corredores ferroviá-
rios, à produção de alimentos e à proteção ambiental. Decidiu-se ainda

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estimular a troca de informações sobre as atividades mineiras, a exploração


de bacias hidrológicas, a energia e a agricultura, os problemas relacionados
ao petróleo e os excedentes de eletricidade. Não poderia ficar de fora a
formação de quadros, para a qual se previu a implementação de cursos e a
elaboração de projetos conjuntos.
Na segunda reunião da SADCC, organizações e países internacionais assu-
miram o compromisso de financiar os projetos apresentados. Mas problemas
poderiam vir, pois com a desvinculação da África do Sul a integração regional
só seria efetivada se fossem implementadas nos países medidas de reestruturação
interna de suas economias e de suas ligações externas, com a busca de parcei-
ros alternativos para a obtenção de insumos que normalmente vinham da
África do Sul. Caso contrário se ficaria refém das intimidações do vizinho.
Entretanto, fatores conjunturais, como as secas na região em anos segui-
dos na virada da década, obrigaram que importações de cereais em grandes
escalas fossem provenientes da África do Sul, pois era a única fonte possível
de abastecimento rápido e eficaz. Com certeza sabia-se que não se poderia
rapidamente substituir os sul-africanos como parceiros comerciais. Não
obstante todo o sucesso da SADCC, com a ampliação do intercâmbio eco-
nômico e das relações entre seus membros, a relação dos países da SADCC
com a África do Sul continuou a aumentar. Não pelos caminhos legais, mas
através do comércio ilegal, do contrabando de mercadorias pelas fronteiras.
Assim, apesar de tudo, a SADCC não permitiu a melhora da situação
econômica de seus membros na década de 1980, apesar dos investimentos
realizados, sobretudo, nos transportes e nas comunicações.
No contexto de fortes pressões econômicas e políticas, de guerra interna e
agressões externas, de queda da produção em todos os níveis, de grande fluxo
de migração e de penúria de parte significativa da população, foi estabelecido
para os países da região o Programa de Ajustamento Estrutural, moldado
pelo Banco Mundial e pelo FMI, conformando um novo quadro regional.

6. O NOVO PAPEL DA ÁFRICA DO SUL

Na década de 1990 as atenções se voltaram para a África Austral, na


expectativa de que as riquezas naturais e sua integração socioeconômica,
junto com o fim do apartheid, trouxessem as esperanças de que houvesse

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um relançamento da integração regional, sem a dominação e a hegemonia


da África do Sul, mas sem descartar sua fundamental participação. A histó-
ria, entretanto, não tem sido bem assim.
Nas décadas de 1960, 1970 e 1980, houve grandes mudanças na con-
juntura regional (independência unilateral da Rodésia do Sul; guerras de
libertação e independências de Zimbábue, Namíbia, Moçambique e Ango-
la; implantação de regimes socialistas; sanções internacionais e regionais
contra o regime do apartheid etc.) que promoveram na África do Sul um
acirramento das políticas de substituição de importações para fazer frente à
economia de guerra na defesa do apartheid.
De um lado, a necessidade de defesa nacional não permitia basear a esco-
lha de atividades produtivas (como química, energia, transportes, comuni-
cações etc.) em critérios de produtividade. De outro, houve forte mudança
nos fluxos dos investimentos diretos estrangeiros, que passaram para em-
préstimos financeiros (de maior mobilidade ao capital internacional, nos
casos de sanções, que as inversões produtivas). Tudo isso fez com que a
África do Sul fortalecesse sua indústria, procurasse reduzir as dependências
externas e diminuísse sua participação na economia-mundo.
A esta estratégia se contrapuseram fatores técnico-econômicos que come-
çaram a pôr em questão o modelo de industrialização norteado pela substi-
tuição de importações. Na década de 1970, as forças produtivas que im-
pulsionavam esse modelo seriam ultrapassadas pelos novos paradigmas da
acumulação de capital.
Vieram somar-se a essas dificuldades aquelas provenientes da luta con-
tra o apartheid e suas conseqüências: os aumentos de salários, os custos
com a segurança, as dificuldades impostas pelos bloqueios etc. Tudo con-
duziu a uma degradação dos termos de troca, à perda de competitividade
e à baixa da taxa de lucro da economia sul-africana. Conseqüentemente,
houve redução das receitas e, assim, as políticas de proteção à indústria
local e de substituição de importações ficaram difíceis de ser
implementadas. Para buscar divisas, o governo começou a orientar os in-
vestimentos para os setores de exportação, o que exigia, então, produtivi-
dade e competitividade em nível internacional.
Dessa forma, o próprio capital passou a questionar a eficácia da po-
lítica de subvenção, de industrialização e de cartelização posta em prá-

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tica até então pela África do Sul, e abriu brechas importantes para o
fim do apartheid.
A partir desse momento, a inserção mundial se tornou concorrente
da regionalização. A produção para exportação, exigida pela globalização,
passou a concorrer com a substituição de importações, comprometendo
a integração regional. A indústria a ser instalada localmente não seria
mais para atender ao mercado regional, mas para exportação, e segundo
os padrões globais.
Quando Nelson Mandela foi eleito presidente da África do Sul, os países
da região já tinham adotado o programa liberal havia uma década, com o
objetivo de preparar a inserção mundial dos países africanos através das
pretensas vantagens comparativas. Para isso seria imprescindível paz, demo-
cracia e uma economia de mercado (muito aberta), como passo inicial para
“melhorar a competitividade e o retorno dos capitais”. Em todos esses paí-
ses, os governos deixaram de falar em desenvolvimento e passaram a se preo-
cupar com o equilíbrio das contas, com o aumento das exportações, com a
liberdade cambial e de preços, com as privatizações etc., e a separar o Esta-
do da economia, como desejavam as instituições internacionais.
Tal foi o caso também do Banco Central e do Ministério das Finanças da
África do Sul, que abandonaram, no pós-apartheid, as políticas heterodoxas
tradicionais e passaram a buscar credibilidade para atrair novos capitais. Ca-
pitais esses, agora, para investimentos diretos (e não para empréstimos financei-
ros, como durante as sanções econômicas), direcionados para os setores de ex-
portação, e não, como tradicionalmente, aos setores de substituição de impor-
tação. Como a substituição das importações passou a ser concorrente das expor-
tações, o protecionismo das indústrias locais nos anos 1990 foi alvo de críticas
constantes. Conseqüentemente, os aspectos fundamentais que garantiam a
política de integração regional desapareceram. As intervenções de guerra não
podiam ter lugar num clima de paz e a mobilidade das pessoas não poderia
ser regulada sem o apartheid. O equilíbrio anterior já estava ameaçado.
Os capitais provenientes do setor tradicional (em contraposição aos seto-
res pós-modernos) da economia capitalista sul-africana, que ficaram blo-
queados durante os últimos anos do apartheid, partiram, no início dos anos
1990, em busca de novos mercados. E naquele momento Moçambique
lhes abriu as portas, após a desregulamentação do comércio e a privatização

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das empresas públicas, e promoveu reestruturações que demandavam in-


vestimentos estrangeiros. Como exemplos, podem ser citados a indústria
hoteleira e de turismo e alguns setores agrícolas e comerciais.
Assim, o capital sul-africano em Moçambique, tal como o português,
deslocou-se para aqueles setores que se beneficiavam da ausência de contro-
le e de regulamentação estatal, de limites para a exploração e da ausência de
organização sindical – eram eles os restaurantes, as oficinas, os setores de
serviços. Em setores rurais houve mesmo certo retorno quase às companhias
majestáticas, permitindo um capitalismo selvagem.
Enormes áreas vêm sendo destinadas a empresas que produzem livre-
mente, praticamente sem controle estatal.
Mas há, paralelamente, naquilo que se pode qualificar de capital moder-
no, o incremento dos investimentos nos chamados Corredores5, como o da
Beira, que tem investido fortes somas na construção de oleodutos, ferrovias
e rodovias e na modernização dos portos; e os de Maputo e Nacala, ambos
para atender às necessidades de movimentação de mercadorias provenientes
e destinadas aos países do hinterland e, também agora, aos investimentos
diretos estrangeiros em megaprojetos. Nestes casos, o investimento dá-se
com os mais altos índices de produtividade e controle, com técnicos e fi-
nanciamentos internacionais, tendo relativo reflexo direto na economia
moçambicana, apesar da pouca criação de empregos.
A integração regional articulada e desejada desde a década de 1990 vem
propiciando o relançamento do capitalismo pela conjunção de demanda e
oferta de investimentos privados, principalmente nos setores de turismo,
na rede de transportes, nos recursos hídricos e no meio ambiente, sem con-
seqüências positivas significativas para a população.
Mas, pergunta-se, poderia a África do Sul entrar no processo de
globalização e ser, ao mesmo tempo, um centro promotor da modernidade
e do desenvolvimento regional? Seguramente não, pois os sentidos da acu-
mulação de capital, num caso e noutro, são contraditórios e a razão central
dos conflitos atuais na região.

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Os “corredores” constituem um conceito econômico e social, que faz referência a uma faixa de
terra que comporta rodovias, ferrovias, em alguns casos servidas com oleodutos, e outras atividades
socio-econômicas, que ligam um porto no litoral de Moçambique a países do interior.

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7. A PARTICIPAÇÃO NO MUNDO GLOBALIZADO

O eixo central da acumulação baseado na transferência de renda da socie-


dade doméstica para a sociedade moderna, que permitiu a integração regio-
nal durante o apartheid, está rompido, embora possa resistir num ou nou-
tro caso. Isto é, não há condições para que se reproduza em larga escala o
processo de acumulação que existiu durante o século XX, até porque as
próprias sociedades não podem continuar mais suportando tal exploração.
Por outro lado, as políticas nacionalistas e socialistas de desenvolvimento e
de acumulação interna, em direção a uma sociedade industrial moderna,
em que os camponeses seriam transformados em trabalhadores assalariados,
fracassaram devido à própria guerra contra o apartheid e, sobretudo, por
terem chegado tarde demais. Surgiram quando a economia-mundo passava
por uma revolução técnico-científica cujo processo de globalização não mais
comportava a acumulação baseada na substituição de importações como
fator preponderante. Vale agora a competitividade (via redução de custos e
de salários) para o mercado internacional, por meio das exportações.
Para a nova competitividade, a capacitação técnico-científica nas localiza-
ções e nos tipos de investimento a ser realizados passou a ser mais impor-
tante que a matéria-prima e a mão-de-obra.
Os esforços empreendidos pelas empresas internacionais de grande por-
te, acossadas pela crise e pela concorrência, convergiram no sentido de en-
contrar fontes alternativas de energia, de modo a reduzir seu consumo,
como foi o caso do petróleo. Quanto às outras matérias-primas de base, as
empresas dos países centrais vêm reduzindo seus custos mediante a evolu-
ção científica e tecnológica e substituindo produtos antes provenientes de
países do Terceiro Mundo por produtos industriais próprios.
O movimento da globalização é excludente, “com exceção de uns poucos
‘novos países industrializados’, que haviam ultrapassado, antes de 1980,
um patamar de desenvolvimento industrial que lhes permite introduzir
mudanças na produtividade do trabalho e se manter competitivos”, estan-
do em curso “um nítido movimento tendente à marginalização dos países
em desenvolvimento” (Chesnais, 1996, p. 33). Ao mesmo tempo, não são
os países que se beneficiam integralmente dessa dinâmica global, mas seto-
res da economia mundial. Os países mal situados em termos de pesquisa,

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que já de saída não dispõem de acúmulos de conhecimentos técnico-cientí-


ficos, terão muita dificuldade em se inserir na lógica da globalização. Na
região da África Austral, poucos setores do capitalismo têm ou deverão ter
esse privilégio, e para isso terão de aceitar incondicionalmente as regras do
capital internacional, o que não ocorrerá em benefício de uma cooperação
regional ou social.
A reorganização econômica na região vem recebendo investimentos es-
trangeiros desnacionalizados. Os investidores são grupos de capitais inter-
nacionais de diferentes origens. Os IDE (Investimentos Diretos Estrangei-
ros) em Moçambique têm atraído megaprojetos, como para a produção de
alumínio, com forte impacto no aumento do PIB (Produto Interno Bruto)
e na balança comercial, mas têm gerado pouco resultado positivo no em-
prego e na renda dos trabalhadores. Eles transferem ao exterior a produção
física e os lucros obtidos, através de baixa empregabilidade.
Por outro lado, a política para a criação de empregos também depende do
capital internacional, e se configura no sistema EIMI (Exportações da Indús-
tria de Mão-de-Obra Intensiva). Essas indústrias baseiam-se em processos de
trabalho geralmente individuais ou familiares e utilizam pouco meios de pro-
dução (máquinas de costuras, colas etc.). Os trabalhadores recebem as maté-
rias-primas e se limitam a realizar um esforço físico intenso, num processo de
montagem, colagem, corte ou costura, dependendo do produto. A empresa
empregadora não tem capital no país, traz suas matérias-primas para um
ciclo produtivo para serem trabalhadas localmente, e retornam com um pro-
duto acabado para ser vendido no mercado internacional. Têm-se aí as calças,
camisas e gravatas de grifes, tênis e sapatos de marca e, num processo um
pouco mais sofisticado, os produtos eletroeletrônicos e os informatizados.
São, portanto, processos de trabalho individualizados que permitem explora-
ção extra e são extremamente voláteis. Se há qualquer aumento interno no
salário mínimo, ou redução em outros países, estas indústrias, por quase não
terem capital fixo, podem ser deslocadas.
Vistos em seu conjunto, os países da região, mesmo aceitando as regras
como vêm fazendo, estão destinados a ser uma espécie de reserva para o
capital de ponta, enquanto o capitalismo selvagem brota nas bordas e bre-
chas, aproveitando-se do que sobrou do colonialismo, do apartheid e das
guerras internas.

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Ter que participar da concorrência internacional significa aumentar a


produtividade, pois só assim se reduz os custos unitários. A redução do
custo unitário requer alta tecnologia e/ou aumento da exploração. As
tecnologias requeridas no mundo atual são inexistentes na região, o que
condiciona esses países, quando muito, a permitir instalações complexas
em seus territórios, como no caso dos megaprojetos, desde que garantam
enormes vantagens ao capital, como as isenções de taxas e impostos e a
repatriação dos lucros.
Quanto ao aumento da exploração, esta poderia se dar através do au-
mento da produtividade do setor de produção de bens-salários (mais-
valia relativa), no modelo desenvolvimentista, mas isso está fora de questão
no quadro globalizante atual. Resta aumentar a exploração reduzindo
absolutamente os salários (aumento de horas ou redução monetária),
como prevê a proposta EIMI. Mas é preciso lembrar que se trata dos
países com os mais baixos salários do mundo, onde a miséria atinge
proporções enormes da população, e qualquer redução de salário, ou
manutenção do padrão atual, pode condenar à morte parcelas significa-
tivas da sociedade.
Neste novo quadro socioeconômico e político se estabeleceram a União
Africana, em substituição à Organização da Unidade Africana, e a Nova
Parceria para o Desenvolvimento da África (NEPAD – New Partnership
for Africa’s Development) 6, prometendo um novo contexto, o do
Renascimento. São nestas duas organizações que se travam os combates
sem fronteiras, não mais entre os movimentos de libertação e o colonialismo,
o apartheid e seus oponentes, os capitalistas e os socialistas. Mas pressio-
nados por grupos de sobrevivência, contrabandistas de armas, traficantes,
corruptos, religiosos, financistas internacionais e grupos políticos, que
bóiam no caldo remanescente dos Estados do século XX, enquanto os
povos fermentam à espreita de nova esperança.

6
O NEPAD é o projeto que os dirigentes africanos adotaram como quadro estratégico para lutar
contra a pobreza e o subdesenvolvimento do continente. É a fusão de vários programas e iniciativas
de chefes de Estados africanos que foi incorporada pela 37 ª Cimeira da OUA (Organização da
Unidade Africana) em Lusaka, em julho de 2001. No mesmo mês, cinco países africanos apresenta-
ram o projeto na reunião do G8 em Gênova, que decidiu apoiá-lo.

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A América Latina na história do


capitalismo1
Roberto Regalado 2

1. COLONIALISMO

A invasão européia da América (Havas, 1981), que tem início com o


chamado descobrimento e é levada adiante com a conquista e a colonização,
fez deste continente um apêndice colonial do desenvolvimento capitalista.
Esse processo abrange as viagens exploratórias realizadas entre 1492 e 1519,
a conquista das civilizações da América Central e da cordilheira dos Andes
entre 1519 e 1535, e o controle imposto aos então considerados territórios
marginais entre 1535 e 1580.
A extração de metais preciosos a baixo custo para a metrópole é o objetivo
fundamental da exploração das colônias hispano-americanas nos séculos XVI,
XVII e início do XVIII. Para garantir maiores benefícios deste monopólio, a
Coroa espanhola institui a Casa de Contratação de Sevilha (1503), o Conselho
das Índias (1542) e o sistema de frotas (1561). E, para satisfazer as necessidades
da produção de minérios, surge uma economia de apoio quase desmonetarizada,
que, por meio da troca, abastece de alimentos, tecidos e animais de carga as
regiões de mineração e as cidades. Essa economia colonial baseia-se na explora-
ção dos indígenas e dos escravos importados de outros continentes.
Após um período de escravidão indiscriminada da população indígena,
as “leis novas”, promulgadas em 1542 por Carlos III, proíbem esse tipo

1
Extraído da obra de Roberto Regalado, América Latina entre siglos: dominación, crisis, lucha social y
alternativas políticas de la izquierda (Melbourne/Nova York, Ocean Press/La Habana, 2006).
2
Politólogo, membro fundador do Foro de São Paulo. Dirige a Seção de Análise da Área América do
Departamento de Relações Internacionais do Partido Comunista de Cuba e da revista Contexto
Latinoamericano. É autor do livro América Latina entre siglos.

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Roberto Regalado

de escravidão e estabelecem como única forma autorizada de exploração o


sistema de repartimientos ou encomiendas3. A encomienda havia sido até
então a forma de exploração aplicada àquelas etnias indígenas que, por
diversas razões, os especialistas em direito canônico e em teologia aconse-
lhavam a Coroa a não escravizar. As encomiendas se diferenciavam da es-
cravidão por não serem permanentes e nem de direito hereditário, e por
obrigarem o encomendero a “civilizar” e “cristianizar” os indígenas cujo
trabalho explorava.
Ainda que até 1670 continue legal escravizar índios “rebeldes” – contrá-
rios à colonização – e até 1810 índios “bárbaros” – acusados de atacar povoa-
dos fronteiriços espanhóis –, as “leis novas” afirmam o caráter temporal da
encomienda, suprimem os “serviços pessoais”, ratificam a obrigação de os
índios pagarem “tributos” e preservam a coexistência de várias “formas de
propriedade da terra” na área ocupada pela população encomendada.
Diferentemente das colônias americanas da Grã-Bretanha, Portugal e
França, na América espanhola prevalece a exploração indígena sobre a im-
portação de escravos de outros continentes. Isto se deve ao fato de, até a
segunda metade do século XVIII, a Coroa não incentivar a economia de
plantation, mais vinculada à escravidão africana. Ainda que a partir deste
momento a Espanha multiplique o tráfico, a América espanhola recebe no
total cerca de 1,5 milhão de escravos durante todo o período colonial (1492-
1810), cifra que representa apenas 12% dos escravos africanos importados
no continente (Hayek, 1990b).
A importação de escravos faz parte desse processo desde o início da con-
quista e colonização. Quando ocorre a invasão espanhola da América, há na
metrópole escravos de diversas origens, inclusive brancos europeus, árabes,
asiáticos e negros africanos. Alguns deles foram trazidos para o continente
americano já em 1493. Calcula-se que no final do século XVI havia na
Espanha cerca de 44 mil escravos, que constituíam 1% da população (Hayek,
1990a). Da mesma forma, desde o início da conquista e colonização, a

3
Repartimiento é o sistema adotado na colonização espanhola das Américas para garantir mão-de-obra nas
explorações agrícolas e minerais. Determinado número de índios era “repartido” entre os colonizado-
res espanhóis; a essa repartição se chamava encomienda, ou seja, estabelecia-se uma relação de patrocínio
pela qual os índios deviam obediência ao encomendero “em troca” de instrução cristã. (N.T.)

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Coroa espanhola proíbe a entrada na América de escravos “infiéis”, de etnias


“rebeldes” ou de outros agrupamentos humanos que representem uma ameaça
ao seu domínio. Finalmente, em 1542, Carlos III decreta que só podem
ingressar na América escravos negros de origem africana, com a especificação
de que não sejam originários de determinadas etnias “guerreiras”.
Menos intensos que na América hispânica são os primeiros anos da con-
quista e colonização do Brasil, nome que se origina da madeira preciosa
denominada pau-brasil, cuja produção em larga escala tem início já em
meados do século XVI. A disputa pelo controle do litoral brasileiro pelos
navegantes franceses estimula a colonização portuguesa, iniciada com duas
expedições punitivas em 1526 e 1531. Em 1532, a Carta Real de D. João
III fixa a divisão do território brasileiro em 15 capitanias hereditárias, das
quais apenas sete se constituem. Imediatamente após o fracasso do sistema
de capitanias, a Coroa portuguesa reivindica seu direito sobre a totalidade
do território da colônia, para o qual designa um governador-geral.
Durante o século XVII, o núcleo da economia se desloca para as planta-
ções de cana-de-açúcar do Norte do Brasil, abastecidas de gado e homens
pelo restante da colônia. Essa economia açucareira entra em crise após a
derrota da ocupação holandesa de Pernambuco (1630-1654), o que leva
essa potência européia a empreender o cultivo da cana-de-açúcar em suas
possessões do Caribe, e o mesmo fazem a Grã-Bretanha e a França. Diante
da impossibilidade de o Brasil competir neste quesito com as Antilhas, as
regiões marginais da colônia lusitana – dependentes da economia de apoio
ao Norte açucareiro – sobrevivem com o comércio de madeira, ouro e pe-
dras preciosas obtido por meio da troca com a população indígena, com a
pecuária e a escravidão de índios capturados em territórios de fronteira, a
qual torna-se mais barata que a importação de escravos africanos, crescente-
mente inacessíveis aos donos de engenho.
Nas colônias americanas da Espanha e de Portugal coexistem cinco for-
mas de produção: a economia de subsistência do camponês e a das vilas, a
produção mercantil simples, a escravidão patriarcal e de plantation, a pro-
dução agrária feudal ou semifeudal sob a forma de latifúndio e os embriões
pré-capitalistas (Heller, 1976). A transformação das relações de classe exis-
tentes na América pré-colombiana, assegurada pelo “direito de conquista”,
deriva da dominação colonial imposta pela Espanha. Surge assim uma or-

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dem social heterogênea na qual a supremacia é exercida por agentes do fisco


e por comerciantes peninsulares, encarregados de maximizar a transferência
das riquezas para a Coroa, ao passo que os senhores da terra e os proprietá-
rios da mineração são excluídos da circulação monetária. Os principais su-
jeitos da exploração colonialista são certamente os africanos e os índios,
submetidos ao aniquilamento étnico e convertidos, por meio de formas
variadas e mutantes de exploração, em classes peculiares da sociedade colo-
nial. Também entre eles se estabelecem diferenças sociais: os escravos africa-
nos constituem o escalão mais baixo da sociedade colonial.
A relação econômica entre a Espanha e a América hispânica se transforma
no decorrer do século XVIII em função do surgimento de uma zona econô-
mica de apoio à mineração, representada pela agricultura e pela pecuária,
que leva à proclamação das reformas burbônicas de 1778 e 1782. Estas
reformas legalizam a importação de produtos coloniais, como açúcar e taba-
co de Cuba, cacau da Venezuela e de Quito, couro do rio da Prata, além de
metais preciosos, para o mercado espanhol. Também formalizam a explora-
ção das colônias como mercado de consumo. Isso significa que a Espanha
começa a fomentar a economia de plantation quando esta já está mundial-
mente em declínio. Enquanto isso, no Brasil do final do século XVIII, o
descobrimento de jazidas de ouro e diamantes em Minas Gerais provoca o
deslocamento do centro econômico das plantations do Nordeste para a mi-
neração do Centro-Sul e estimula o surgimento de um conjunto de ativida-
des econômicas de apoio ao setor da mineração, que chega ao seu ápice
entre 1721 e 1870. Este processo corre paralelamente à redução, por parte
da metrópole, da relativa autonomia administrativa e da liberdade comer-
cial das quais a colônia usufruía.
Durante o século XVIII, tanto na América hispânica quanto no Brasil,
formam-se setores criollos4 em processo de aburguesamento, interessados na
conquista do acesso direto ao mercado europeu, entre os quais se sobressa-
em fazendeiros, estancieiros, pequenos e médios produtores e comercian-
tes, intelectuais e artesãos. Esse processo alimenta a semente da consciência
nacional americana e das idéias de independência sob a influência da Ilus-

4
Criollo: filho e/ou descendente de europeus nascido nas antigas colônias espanholas das Américas. (N.T.)

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tração, da independência das 13 colônias inglesas da América do Norte


(1775-1783), da Revolução Francesa (1789), da Revolução Haitiana (1790-
1804) e das guerras européias, em particular a ocupação de Portugal (1807)
e Espanha (1808) pelos exércitos napoleônicos, que expulsa dos respectivos
tronos as duas monarquias e deixa acéfalos os impérios coloniais ibéricos.
As mudanças ocorridas no sistema comercial espanhol, formalizadas
pelas reformas burbônicas, alteram o status quo tanto na metrópole como
nas colônias. Na Europa, a Espanha fica relegada ao papel de intermediá-
ria onerosa entre suas possessões americanas e as nações industriais, em
particular a Inglaterra. Na América hispânica o monopólio comercial se
esfacela, pois a metrópole, incapaz de cumprir os termos da nova relação,
pratica uma intermediação parasitária que encarece a importação das mer-
cadorias manufaturadas.
Por mais que as reformas burbônicas operem exclusivamente em prol da
Espanha e dos espanhóis residentes nas colônias, um de seus resultados é a
erosão da posição de todos os estratos da pirâmide criolla. As novas restrições
entram em contradição com a metamorfose pela qual passa a estrutura social
hispano-americana, até então dominada pelos peninsulares (funcionários,
comerciantes e grandes proprietários), pelo clero e pelos latifundiários criollos,
que sufocam os setores protoburgueses emergentes ligados ao comércio exte-
rior e aos setores rurais oriundos da diversificação da estrutura agrária. No
caso das castas – limitadoras da mobilidade dos grupos étnico-sociais dedica-
dos ao trabalho artesanal e a diversos ofícios e empregos desempenhados por
brancos pobres, mestiços, mulatos e negros livres –, as reformas criam uma
situação que impossibilita a ascensão não apenas no interior de cada uma
delas, mas também transfere aos filhos o status alcançado pelos pais. Tudo isso
vai constituindo um caldo de cultura para a guerra de independência.
A formação da consciência “nacional” americana e o desenvolvimento da
ideologia “nacionalista”, que refletem a cultura e as aspirações políticas,
econômicas e sociais de seus portadores, se aceleram com as lutas
independentistas e levam à “formação das nações latino-americanas”. Este é
um processo muito complexo, porque junto às contradições existentes en-
tre as metrópoles ibéricas e suas respectivas colônias – que se manifestam no
antagonismo entre os peninsulares, encarregados da manutenção do mono-
pólio comercial, e as camadas criollas altas e médias, interessadas no livre

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comércio – há outras contradições: entre as elites – peninsulares e criollas –,


detentoras do poder econômico, e os escravos negros, a população indígena
e mestiça, e os demais setores produtivos sobre cujos ombros recai o peso da
economia colonial. Por conseguinte, não se trata apenas de uma crise da
relação de “dominação política e de exploração econômica” existente entre
metrópoles e colônias, mas também das “estruturas socioeconômicas colo-
niais baseadas na polarização social e na regulamentação racial”.
Seria impossível tentar traçar aqui até mesmo um esboço da guerra de
independência hispano-americana. Basta assinalar que a contenda divide-se
em duas etapas (de 1808 a 1815, e de 1816 a 1825) e que são diferentes as
características da luta no México, na América Central e nos atuais territórios
da Venezuela, da Colômbia, do Equador e da Bolívia – onde Bolívar é a
principal figura –, e no Chile, na Argentina, no Uruguai e no Paraguai – onde
a preeminência cabe a San Martín. Em essência, se no México a rebelião
liderada por Miguel Hidalgo e José María Morelos tem início como um ge-
nuíno movimento popular, nos demais países da América hispânica ela é
conduzida pelas elites criollas, interessadas na independência como forma de
conservar o status quo socioeconômico. Neste sentido, destacam-se Venezuela
e Nova Granada, até que na segunda etapa da guerra os setores populares se
incorporam ao Exército Libertador, e o próprio Simón Bolívar dá uma guina-
da programática antiescravagista e com medidas favoráveis aos humildes. O
enfrentamento entre os dois pólos – o oligárquico e o progressista – é a marca
dos movimentos independentistas no rio da Prata. Já na América Central
predominam as elites criollas aferradas ao poder metropolitano por temer
uma insurreição popular como a que ocorreu no México. Na etapa final das
lutas de independência, estas elites mexicanas e centro-americanas se somam
ao processo quando seu desenlace torna-se óbvio e inevitável.
A independência do Brasil está estreitamente vinculada à invasão france-
sa de Portugal, pois essa colônia luso-americana foi o lugar de refúgio da
corte de D. João VI, fato que representa o estabelecimento de uma autono-
mia virtual, favorável aos interesses da aristocracia criolla. Com o regresso da
corte imperial a Lisboa, e com as tentativas dos liberais portugueses de
reativar a relação colonial com o Brasil, D. Pedro de Bragança, filho do
imperador, apoiado pela aristocracia brasileira, rompe os vínculos com a
metrópole em 7 de setembro de 1822 e se autoproclama imperador do

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Brasil. O novo império brasileiro se consolida em 1824, após a derrota das


forças colonialistas portuguesas e da rebelião republicana de Pernambuco.
Com a independência da América Latina (Hernández et alii, 1981), essa
região conformada pela antiga América hispânica e pelo Brasil muda seu
status de apêndice “colonial” para o de apêndice “neocolonial” do capitalis-
mo. A isso se soma o fracasso dos ideais acalentados por inúmeros patriotas
de que a “independência” e a “integração política” fossem elementos
indissolúveis da emancipação. Sua expressão primeira é o pensamento de
Bolívar, que identifica na unidade da América Meridional a condição indis-
pensável para derrotar o pan-americanismo “monroísta5” – a América para
os (norte) americanos – promovido pelos governantes estadunidenses.
As repúblicas surgidas do fim do império colonial espanhol na América
não têm um desenvolvimento econômico e uma estrutura social capitalista
capazes de servir de base para integrar e conformar a “unidade nacional” de
regiões tão extensas e distintas. Não só é impossível criar uma nação hispano-
americana como fracassam até mesmo as tentativas de criar unidades esta-
tais parciais: a Grande Colômbia (Venezuela, Nova Granada e Equador), a
confederação peruano-boliviana e a Federação do Centro da América
(Guatemala, Honduras, El Salvador, Nicarágua e Costa Rica). O antigo
Vice-Reino do Rio da Prata (Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai) tam-
bém se fragmenta. Outro é o curso dos acontecimentos no Brasil, onde o
interesse em preservar a escravidão leva a aristocracia a dar apoio decisivo às
forças militares do império dos Bragança (1822-1889), as quais consoli-
dam a unidade nacional em 1848, depois de sufocar as guerras civis
desencadeadas por vários movimentos separatistas e regionais, entre as quais
se destaca a Guerra dos Farrapos (1835-1845), no Rio Grande do Sul.
O panorama da independência se caracteriza pela fragmentação em re-
públicas e pelo enfrentamento entre os territórios e povos com os quais
Bolívar sonhava construir a unidade latino-americana. Essas repúblicas nas-

5
Monroísta refere-se à Doutrina Monroe, estabelecida pelo presidente dos Estados Unidos, James
Monroe, em 1823, mediante sua célebre frase: “América para os americanos” – que, na realidade,
queria dizer: América Latina para os norte-americanos. Monroe proclamava, assim, que os Estados
Unidos não permitiriam a nenhuma potência européia colonizar ou recolonizar nenhum território
do continente americano.

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cem subdesenvolvidas, atadas pela dependência econômica, pelo intercâm-


bio desigual e pelo endividamento externo a metrópoles neocolonialistas.
Em tais condições, destacam-se a participação do Estado na economia, que
surge como o único ente capaz de captar créditos e mobilizar capitais, o uso
do poder político como meio de apropriar-se de propriedades e riqueza, e o
auge da violência e do militarismo (em suas variantes de ditadura militar e
autoritarismo civil), como mecanismos indispensáveis para conter e repri-
mir a irrupção das contradições decorrentes da desigualdade social.
A destruição ocasionada pela guerra e a substituição do sistema colonial
espanhol pelo norte-americano ou britânico, conforme o caso, provocam
uma crise econômica que exacerba as contradições inerentes à abolição da
velha ordem e o surgimento das novas sociedades independentes, aqui in-
clusa a perseguição à qual são submetidos os funcionários, militares e cléri-
gos do antigo regime. A violência generalizada e a fragilidade estrutural das
novas repúblicas resultam na permanência da militarização, fato que, de
um lado, se torna elemento democratizador, que permite a mobilidade so-
cial de índios, negros, mestiços e brancos pobres transformados em oficiais
dos exércitos insurrectos, e, de outro, em freio para que essa democratização
não se estenda além do inevitável. Em tais circunstâncias se estabelece um
equilíbrio de poder desfavorável à cidade e favorável ao campo, em função
da importância adquirida pelas massas rurais na conformação dos exércitos.
Em vez de ocupar o lugar privilegiado que os peninsulares monopolizavam
na colônia, as elites criollas urbanas ficaram empobrecidas pela destruição de
suas propriedades e pela incapacidade de evitar que os britânicos se apro-
priassem do comércio de além-mar, o que resultou na perda de seu poder
político e na diminuição de seu status social. Aqueles que antes ocupavam o
topo da pirâmide social criolla tornam-se empregados das estruturas político-
administrativas, do exército e dos latifundiários. Em contrapartida, os maio-
res vencedores são os latifundiários convertidos em generais, e os generais
convertidos em latifundiários, cuja posse maior – a terra – não foi destruída
pelo conflito, e que sob as novas circunstâncias exercem o controle das massas
camponesas das quais depende o poder militar e, por conseguinte, o poder
político. Neste contexto, registra-se a mudança do papel socioeconômico exer-
cido pela Igreja devido ao seu empobrecimento, à substituição de bispos e
sacerdotes fiéis à realeza por patriotas e à subordinação da Igreja ao poder

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civil. Essa metamorfose se complementa com a limitada ascensão social das


camadas inferiores das cidades e das zonas rurais de trabalho livre, com a
obsolescência da escravidão e com a submissão da população negra a novas
formas de discriminação e subordinação.

2. DO COLONIALISMO AO NEOCOLONIALISMO

O desaparecimento dos impérios coloniais da Espanha e de Portugal abriu o


caminho para o estabelecimento na América Latina de uma nova “forma de
dominação e exploração”, o “neocolonialismo”, que responde ao desenvolvimento
alcançado pelo sistema de produção capitalista. Assim como no transcurso dos
séculos XVI, XVII e XVIII o colonialismo havia sido um esteio do processo de
acumulação originário do capital, da manufatura e do incremento da indústria
capitalista, no século XIX o neocolonialismo emerge como nova forma de do-
minação e exploração na etapa da Revolução Industrial, e consolida-se paralela-
mente à transformação do capitalismo pré-monopolista em capitalismo
monopolista. Em essência, “o neocolonialismo foi o fundamento da metamor-
fose do capitalismo de livre concorrência em capitalismo monopolista e, por
conseguinte, do surgimento e desenvolvimento do imperialismo”.
O neocolonialismo se caracteriza pela independência institucional “for-
mal” da nova colônia, que camufla a subordinação política e a dependência
econômica em relação à metrópole. A grande potência que estabelece a do-
minação neocolonial sobre a maioria dos antigos impérios luso e hispano-
americanos, especialmente na América do Sul, é a Grã-Bretanha. Não
obstante, à medida que seu emergente poderio lhe permite, os Estados
Unidos impõem seu domínio ao México e à América Central. Na América
Latina, o neocolonialismo não é assegurado imediatamente após a conclu-
são do processo de independência do subcontinente (1825), e sim por vol-
ta de duas décadas e meia mais tarde. Essa demora se constitui em um dos
fatores determinantes das diferenças existentes entre a dominação colonial e
a neocolonial. Após um longo processo de formação de uma “consciência
nacional”, de 15 anos de guerra contra o colonialismo na América hispânica
e de mais de 25 anos de existência como repúblicas independentes, não era
possível à América Latina reproduzir com a Grã-Bretanha e os Estados Uni-
dos a mesma relação que antes mantinha com as metrópoles ibéricas.

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A demora da Grã-Bretanha em consolidar seu domínio neocolonial na


América Latina deveu-se ao fato de a Revolução Industrial ter açambarcado
quase todos os capitais disponíveis no país até a década de 1870. A econo-
mia britânica naquele momento precisava “verter quantidades relativamen-
te constantes de produtos industriais” nos mercados de seus sócios comer-
ciais, enquanto a América Latina permanecia “um mercado com capacidade
de consumo muito variável” (Hernández, 1984). No que diz respeito aos
Estados Unidos, o atraso derivava do fato de o país ter estado imerso até
1853 em sua própria expansão territorial. A partir deste ano, o neocolonia-
lismo torna-se a forma empregada pela potência emergente para impor sua
dominação aos territórios da bacia do Caribe que não pode anexar em virtu-
de da resistência dessas nações e da oposição britânica.
O afiançamento da dominação neocolonial britânica na América do
Sul ocorre entre 1850 e 1873. Durante essa etapa amplia-se a demanda
européia de produtos tradicionais latino-americanos, abre-se o mercado
europeu a seus produtos não-tradicionais e se estabelece um fluxo de ca-
pitais que inclui investimentos metropolitanos no comércio e nos trans-
portes, logo ampliado a outros setores, e créditos aos governos. Ainda que
a crise econômica de 1873 retraia as importações européias e interrompa
os créditos dos quais dependem os governos latino-americanos para fun-
cionar e saldar as dívidas anteriores, a relação econômica neocolonial con-
segue superar esse obstáculo e atingir a maturidade a partir de 1880,
etapa correspondente à transformação do “capitalismo de livre concorrên-
cia” em “capitalismo monopolista”, que tem como uma de suas caracterís-
ticas a exportação de capitais.
A relação neocolonial que se consolida a partir de 1880 baseia-se em
uma divisão do trabalho em virtude da qual a América Latina exporta
matérias-primas e alimentos e importa produtos industriais. Paulatina-
mente vai se reduzindo o componente perecível dessa importação em fa-
vor de bens de capital, produtos da nova metalurgia e combustíveis. Na
maturidade do neocolonialismo, a divisão do trabalho se modifica em
favor das potências industriais. Inclusive lá onde as elites criollas retêm o
controle da produção primária, a dependência se acentua como resultan-
te da monopolização financeira, mercantil e tecnológica, ao passo que a
demanda de capital no setor primário estimula a penetração externa. O

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mesmo ocorre com a construção de estradas de ferro, frigoríficos, silos e


usinas açucareiras. Os grandes latifundiários, que se fortaleceram em ra-
zão da guerra de independência, têm seu poder econômico erodido pelo
papel predominante que assumem os investidores e comerciantes metro-
politanos. Com ritmos que variam de país a país, vão surgindo classes
médias urbanas que reivindicam cada vez mais e setores operários que
conquistam seu próprio protagonismo social.
Embora os mercados europeus de exportação tendam a se diversificar
durante a maturidade do neocolonialismo, a Grã-Bretanha se afirma como
a principal fornecedora mercantil da América do Sul e mantém o controle
dos sistemas bancário e financeiro sobre os quais se sustenta o comércio da
região com outros países. De modo que ela é a principal metrópole
neocolonial da América Latina quando, em 1889-1890, celebra-se a Con-
ferência Internacional Americana de Washington, primeira tentativa do
nascente imperialismo norte-americano de criação de um sistema de domi-
nação continental.
Desde a independência (1776), os chamados pais-fundadores dos Es-
tados Unidos da América assentam as bases da expansão territorial e da
dominação colonial e neocolonial características das relações do imperia-
lismo norte-americano com o restante do continente. Já em 1777, o en-
tão embaixador Benjamin Franklin promove o assentamento de colonos
na Louisiana com fins de anexação. Quando, em 1809, em Quito, se
produz o Primeiro Grito de Independência da América Hispânica, os Es-
tados Unidos já haviam invadido a Flórida oriental (1795), comprado da
França a Louisiana (1803), realizado a primeira tentativa de anexação de
Cuba (1803), atacado, durante anos, os postos espanhóis no rio Grande e
na Louisiana ocidental, enviado expedições contra o Texas e a Califórnia, e
despojado 20 milhões de hectares de terra dos indígenas. Quando culmi-
nam as lutas independentistas na América do Sul (1825), já havia ocorri-
do a segunda tentativa de anexação de Cuba e a primeira de Porto Rico
(1811); a Espanha já havia entregado a Flórida ocidental e a oriental
(1819), o México (independente desde 1821) sofria a política de “fron-
teira móvel”, John Quincy Adams havia promovido um pacto com a Grã-
Bretanha e a França para evitar a libertação de Cuba e de Porto Rico, e já
havia sido proclama a Doutrina Monroe (1823).

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Até 1825, os Estados Unidos mantiveram uma suposta política de neu-


tralidade diante da Guerra de Independência hispano-americana, que, en-
tretanto, não os impediu de vender armas e munições à Espanha. Depois
da independência latino-americana, ocorrem a sublevação do Texas (1832),
o reconhecimento de sua independência pelo governo dos Estados Unidos
(1837), a “consumação” do “Destino Manifesto” (de expansão até o oceano
Pacífico), “legitimado” em 1848 com o Tratado de Guadalupe–Hidalgo, no
qual o México cede o Texas, o Novo México e a Califórnia. Finalmente, após
a fracassada tentativa do flibusteiro William Walker de arrebatar mais terri-
tórios do México, o governo dos Estados Unidos impõe a chamada “compra
de Gadsen” (1853), a partir da qual fica estabelecida a atual fronteira entre
os dois países.
Apesar de alguns “pioneiros” sonharem com a expansão dos Estados
Unidos não só do Atlântico ao Pacífico, mas também da costa do mar
Ártico até o cabo Horn, depois de sete décadas de conquistas, desapropria-
ções, compras e anexações, em 1853 conclui-se, no que é fundamental, a
conformação da massa territorial da nascente potência, e passa então para
o primeiro plano a disputa da dominação colonial e neocolonial exercida
pela Espanha, pela Grã-Bretanha e por outras metrópoles européias no
resto do continente. A expansão territorial dos Estados Unidos se comple-
ta com a incorporação dos estados do Alasca (comprado da Rússia em
1867) e do Havaí (anexado em 1898 e integrado à União em 1990). No
entanto, desde a década de 1850, a resistência dos povos mexicano e cen-
tro-americano e a oposição britânica à ocupação e à anexação de novos
territórios os obrigam a limitar a ampliação de seu domínio principal-
mente mediante o neocolonialismo. Essa ampliação, executada por meio
de intervenções militares, da imposição de governantes e corpos repressi-
vos submissos, e de todo tipo de pressões políticas e econômicas, começa
a ser aplicada na bacia do Caribe para logo se estender para a América do
Sul, na medida em que o incremento do poder do imperialismo norte-
americano lhe permite disputar o controle que sobre essa região exerce o
imperialismo britânico (Hernández, 2002).
A primeira ingerência do governo estadunidense na América Latina e no
Caribe é representada pela ajuda dada à França pelo presidente George
Washington, em 1791, para que enfrente o despertar da Revolução Haitiana.

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Apesar da independência deste país ter se efetivado em 1804, as autorida-


des dos Estados Unidos só reconheceram a República do Haiti em 1862.
No transcurso de pouco mais de um século, a partir de então até a guerra
hispano-cubano-norte-americana, são numerosos os registros de atos de
ingerência e intervenção estadunidense nas lutas de independência das
nascentes repúblicas latino-americanas e em seus assuntos internos. Entre esses
atos destacam-se as violações cometidas por William Walker na América
Central entre 1855 e 1860. O governo dos Estados Unidos recorre
freqüentemente ao argumento da defesa de vidas e propriedades de cida-
dãos estadunidenses para justificar sua intervenção militar na região.
A principal ação expansionista do imperialismo norte-americano na transi-
ção do século XIX para o século XX é a intervenção na guerra de independên-
cia de Cuba contra a Espanha (1898) – que Lenin considera a primeira guer-
ra de caráter imperialista –, em virtude da qual rouba do Exército Libertador
a derrota que estava a ponto de infligir à metrópole, ocupa Cuba e estabelece
seu domínio colonial sobre Porto Rico, Filipinas e Guam (Huntington, 1994).
Outro acontecimento emblemático desse período é a subscrição do Tratado
Hay–Pauncefote entre Estados Unidos e Grã-Bretanha, que deixa sem efeito
acordos anteriores e autoriza os primeiros a construir um canal interoceânico
no istmo centro-americano. Esse tratado representa o reconhecimento implí-
cito de uma divisão das esferas de influência dos imperialismos anglo-saxões
no continente: a Grã-Bretanha e outras potências européias aceitam a domi-
nação estadunidense sobre as nações latino-americanas ao norte do rio Ama-
zonas, enquanto os Estados Unidos concordam – momentaneamente – em
respeitar o status quo das colônias européias do Caribe e o império neocolonial
britânico no restante da América do Sul (Ianni, 1995).
Nos primeiros anos do século XX, o presidente Theodore Roosevelt (1901-
1909), artífice da política do Big Stick (grande porrete)6, elabora, entre
1903 e 1906 (Kanoussi, 1996), o conhecido Corolário Roosevelt da Dou-
trina Monroe, que afirma o direito exclusivo do imperialismo norte-ameri-
cano de praticar a força para obrigar as repúblicas latino-americanas a saldar

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A política do big stick (grande porrete), do presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt
(1901-1909), refere-se à aplicação de uma política de força, de ingerência e intervenção. A frase é de
T. Roosevelt: “fale suavemente, mas carregue um grande porrete (big stick)”.

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suas dívidas internacionais. Durante seu mandato ocorrem: a secessão for-


çada do Panamá (1903), que desconhece a negativa da Colômbia à constru-
ção do canal interoceânico; a invasão militar da República Dominicana
(1904), que dá lugar à intervenção alfandegária desse país (1905-1912); a
segunda ocupação de Cuba (1906-1909); a interposição da infantaria da
marinha com o propósito de obter dividendos políticos das guerras
desencadeadas entre Guatemala e El Salvador (1906), e entre Honduras e
Nicarágua (1907); as ações intervencionistas que levam à renúncia do pre-
sidente Santos Zelaya na Nicarágua (1909). O sucessor de Theodore
Roosevelt, William Taft (1909-1913), protagoniza a intervenção militar
em Honduras para derrotar o presidente Miguel Dávila (1911), a interven-
ção militar na Nicarágua para frustrar a rebelião encabeçada por Benjamín
Zeledón (1912), e dá início à política de ameaças, pressões e agressões com
vista ao enfraquecimento da Revolução Mexicana (1910-1917).
Entre 1913 e 1921, etapa da chamada “diplomacia missioneira” de
Woodrow Wilson, com o pretexto de “promover a democracia” e “frear a
penetração alemã”, o governo dos Estados Unidos amplia a ingerência nos
assuntos internos mexicanos, ocupa militarmente o Haiti e intervém na
alfândega do país (1915-1934), ocupa a República Dominicana (1916-
1924), intervém no Panamá (1918), apóia golpes de Estado e ditaduras
civis e militares em países da América Central e do Sul, e aproveita-se da
Primeira Guerra Mundial para consolidar seu domínio político, econômico
e militar na bacia do Caribe e para deslocar da América do Sul os capitais da
Alemanha e de seus aliados.
Em decorrência do impasse provocado pela Primeira Guerra Mundial, com
a desculpa de um suposto abandono do intervencionismo e de um maior
respeito à soberania das nações latino-americanas, a política dos presidentes
Warren Harding (1921-1923), Calvin Coolidge (1923-1929) e Herbert
Hoover (1929-1933) durante a denominada “restauração republicana” ca-
racteriza-se pelo apoio às ditaduras militares – implantadas para conter as
lutas populares desencadeadas pela crise – e por uma política que busca tirar
proveito dos conflitos de natureza diversa existentes entre e no interior de
várias nações. Ao longo desses anos há várias intervenções militares: uma no
Panamá, para reprimir protestos populares (1921); duas em Honduras, para
se “interpor” à guerra travada por forças políticas em conflito (1923 e 1924);

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e uma na Nicarágua (1926), a qual se transforma em enfrentamento contra o


“Pequeño Ejército Loco” do general Augusto C. Sandino.
Em síntese, o imperialismo norte-americano se concentra em assegurar
seu domínio político, econômico e militar sobre o México, a América Cen-
tral, a franja norte da América do Sul e as nações independentes do mar do
Caribe, até que a crise de 1929-1933 quebra o sistema colonial britânico e
lhe abre o caminho para os demais países da América Latina. Ainda que a
Grande Depressão golpeie fortemente os Estados Unidos e a Grã-Bretanha,
seu efeito nas relações das duas potências com a América Latina é diferente.
Isso se deve a que a dominação estadunidense se baseia mais na proximida-
de geográfica e na força militar – elementos que não se alteram com a cri-
se –, ao passo que, no caso britânico, a dominação depende de sua capaci-
dade de manutenção da supremacia comercial e financeira.
Durante o período compreendido entre a Grande Depressão e o final da
Segunda Guerra Mundial transcorre a presidência de Franklin Delano
Roosevelt (1930-1945), que aplica a chamada política da boa vizinhança,
durante a qual não se registram intervenções militares norte-americanas na
América Latina e no Caribe. Roosevelt interage tanto com as ditaduras civis
e militares como com os governos liberais constitucionalistas de orientação
progressista. A política da boa vizinhança preconiza que o governo dos Es-
tados Unidos renuncie à intervenção armada contra as repúblicas latino-
americanas. Essa política começa a ser aplicada depois de o imperialismo
norte-americano haver instalado nos governos dos países da bacia do Caribe,
que antes invadia, ditadores e guardas nacionais dóceis, como foi o caso de
Anastácio Somoza, na Nicarágua, e Rafael Leonidas Trujillo, na República
Dominicana. Essa mudança formal da política neocolonial não abriu mão
das sanções econômicas e políticas. Não obstante, embora tenham sido muitas
as pressões exercidas pelo governo Roosevelt em represália à nacionalização
do petróleo mexicano, decretada por Lázaro Cárdenas, a situação interna-
cional, do México e dos próprios Estados Unidos, o impediu de recorrer à
usual agressão militar de seus predecessores.
Independentemente da situação de cada país, a resposta das classes do-
minantes diante da ampliação das lutas populares e das demandas por uma
maior democratização é a tentativa de estabelecer um equilíbrio social por
meio tanto do liberalismo constitucional como da ditadura militar ou civil,

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em todos os casos com uma base de apoio político sustentada na convergên-


cia de interesses dos setores sociais urbanos em detrimento dos rurais. No
caso dos países de maior desenvolvimento político, econômico e social rela-
tivo, tais como Argentina e Chile, onde era possível assimilar seletivamente
certas demandas das camadas médias e do proletariado, a resposta foi o
liberalismo constitucional. No entanto, contra o liberalismo conspirava a quase
nula incorporação do campo – em que a oligarquia latifundiária conserva-
dora exercia o controle das massas rurais empobrecidas – à vida político-
econômica nacional.
Entre as soluções liberais aplicadas antes e durante a Segunda Guerra
Mundial destacam-se: na Colômbia, os governos de Enrique Olaya (1930-
1934) e Alfonso López Pumarejo (1934-1938 e 1942-1946); no México,
o sexênio do governo de Lázaro Cárdenas (1934-1940) – durante o qual a
política nacionalista revolucionária atingiu o ápice – e o de Miguel Ávila
Camacho (1941-1946); no Chile, o governo da Frente Popular, encabeça-
do por Pedro Aguirre (1938-1942), e o da Aliança Democrática, presidido
por Juan Antonio Ríos (1942-1946); na Costa Rica, os governos de Ángel
Calderón (1940-1944) e Teodoro Picado (1944-1948), de cuja aliança
participou o Partido Vanguardista Popular (comunista). Por outro lado,
entre os projetos populistas destacam-se: no Brasil, o governo de Getúlio
Vargas (1930-1945), em particular posteriormente a 1937, ano em que
rompe a aliança com o Partido Integralista (fascista); e na Argentina o golpe
de Estado (1943), a partir do qual ganha relevância a figura de Juan Do-
mingo Perón, eleito constitucionalmente à presidência em 1946. Não é
possível passar ao largo de 1944, ano em que, na Guatemala, é derrotada a
ditadura de Juan José Ubico, o que, um pouco mais tarde, abre o caminho
para a fase dos dois governos antiimperialistas encabeçados por Juan José Arévalo
(1945-1950) e Jacobo Arbenz (1951-1954), respectivamente. Para finalizar,
no pós-crise de 1929 destacam-se o início das ditaduras de Rafael Leonidas
Trujillo, na Republica Dominicana (1931-1960), e o da dinastia implantada
por Anastácio Somoza García (1936-1979), na Nicarágua (Kissinger, 1984).
O imperialismo norte-americano se aproveita do clima internacional exis-
tente antes do início e durante o desenrolar da Segunda Guerra Mundial
para frear e reverter a penetração de capital europeu na América Latina –
em especial alemão e italiano – e para apropriar-se do setor de mineração da

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região. Contudo, não se pode dizer o mesmo do setor industrial, que per-
manece sob o controle das burguesias desenvolvimentistas. Até este ponto
havia avançado a dominação política, econômica e militar do imperialismo
norte-americano sobre a América Latina, no momento em que o desenlace
da Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria provocaram mudan-
ças radicais na situação internacional.
A Segunda Guerra Mundial modifica a configuração de um sistema de
relações internacionais que antes havia sido obrigado a acomodar-se com os
resultados da conflagração de 1914-1918 e da crise de 1929-1933. Entre
esses resultados destacam-se a destruição da Europa, a ascensão dos Estados
Unidos à condição de primeira potência imperialista mundial, o surgimento
do mundo bipolar, a partir da expansão do socialismo às nações da Europa
Oriental. Desta combinação de elementos se origina a Guerra Fria (1946-
1989), ofensiva universal – ideológica, política, econômica, diplomática e
militar – encabeçada pelo imperialismo norte-americano com o intuito de
“conter o comunismo” e evitar, em especial, sua expansão para a Europa
ocidental, berço das idéias do socialismo e do comunismo, cuja devastação
ameaça servir de incentivo à luta popular.
A expressão Guerra Fria é utilizada pela primeira vez por Bernard Baruch,
assessor do presidente Harry Truman, em um discurso pronunciado no dia
16 de abril de 1946, em Columbia, no estado da Carolina do Sul. Ela é
retomada posteriormente sob a forma de título do livro do jornalista Walter
Lippman, e também em um famoso discurso do primeiro-ministro britânico
Winston Churchill. Nesse ano, o presidente Truman promulga a Lei de Se-
gurança Nacional – que dispõe sobre a criação do Conselho de Segurança
Nacional e da Agência Central de Inteligência (CIA) – e anuncia o lançamen-
to do Plano para a Reconstrução da Europa, ou Plano Marshall. A partir
deste momento, a noção de “segurança nacional” se converte em um dogma
inapelável, justificativa para todo tipo de ação de força interna e externa.
A Guerra Fria se constitui no principal instrumento do imperialismo
norte-americano para ampliar e aprofundar sua dominação na América La-
tina, processo que avança mais rápido nos âmbitos político e militar do que
no econômico. Isso se deve ao fato de que a prioridade norte-americana é a
reconstrução da Europa ocidental. Para essa região reorienta o grosso de
suas exportações de capitais, tanto para restabelecer a capacidade produtiva

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de seu principal parceiro econômico e comercial como para convertê-la em


um “bastião anticomunista”. De modo que, mesmo que os Estados Unidos
tirem partido de sua supremacia mundial para expandir a penetração eco-
nômica monopolista na América Latina, os capitais disponíveis para tal em-
preitada são limitados.
A Doutrina Truman é a encarnação da política da Guerra Fria na Amé-
rica Latina. Com o pretexto de combater a “ameaça do comunismo”, du-
rante sua presidência (1945-1952), Truman lança uma ofensiva destina-
da à destruição de todas as forças políticas latino-americanas tidas como
obstáculo à ampliação e ao aprofundamento de seu domínio continental.
Essa política se aplica especialmente contra os partidos comunistas e ou-
tras organizações socialistas, progressistas e democráticas que haviam par-
ticipado das chamadas frentes populares antifascistas promovidas pela
União Soviética.
A atuação de diversos governos foi conseqüente com a Doutrina Truman:
na Colômbia, os governos de Mariano Ospina (1946-1950) e Carlos
Urdaneta (1950-1953); no Brasil, o de Eurico Gaspar Dutra (1946-1951);
no Chile, o de Gabriel González Videla (1947-1952); no México, o de
Miguel Alemán (1946-1952); no Equador, o de Galo Plaza (1948-1952);
na Costa Rica, os de José Figueres (1948-1949) e Otilio Oñate (1949-
1953); no Peru, a ditadura de Manuel Odría (1948-1956); e na Venezuela
a ditadura de Marcos Pérez Jiménez.
A Guerra Fria na América Latina encontra continuidade na política do
presidente Dwight Eisenhower, cuja principal ação de força na região foi
a derrubada do governo de Jacobo Arbenz na Guatemala, em 1954. Além
do golpe contra Arbenz e de sua substituição pela ditadura de Carlos
Castillo Armas (1954-1957), Eisenhower também estimulou a queda dos
governos de Getúlio Vargas no Brasil (1954), de Juan Domingo Perón na
Argentina (1955) e de Federico Chaves no Paraguai, dando origem à dita-
dura de Alfredo Strossner (1956-1989). Ao mesmo tempo contribuiu
para debilitar os conteúdos da Revolução Boliviana nos governos de Víctor
Paz Estensoro (1952-1956) e de Hernán Siles Suazo (1956-1960). Tam-
bém neste período tem início a ditadura de Jean Claude Duvalier no
Haiti. Finalmente, em razão do triunfo da Revolução Cubana em janeiro
de 1959, Eisenhower ordena a criação de um plano de agressão seme-

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Curso de formação em política internacional

lhante ao empregado contra o governo de Arbenz. A execução desse plano


levou, em abril de 1961, seu sucessor, o presidente John F. Kennedy, à
derrota na invasão de Playa Girón (baía dos Porcos).

(Tradução Mila Frati)

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KISSINGER, Henry (presidente da Comissão). Report of the National
Bipartisan Comission on Central America. Washington, 1984.

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A trajetória do Brasil: construção


nacional e inserção internacional
Alexandre Fortes1

A reflexão sobre o processo de construção nacional do Brasil exige a arti-


culação de vários âmbitos de análise. Comentaremos aqui algumas questões
que pautam o debate sobre as particularidades da formação social brasileira.
Para efeito didático, as agruparemos em quatro campos interligados: a in-
serção do Brasil no sistema econômico mundial; a configuração territorial e
populacional; a identidade cultural; e a integração social e política.
A discussão sobre a natureza da relação entre o Brasil e a economia mun-
dial foi intensa ao longo do século XX, particularmente a partir da difusão
das idéias marxistas no país. Posteriormente, aprofundou-se, em função do
papel destacado que pensadores brasileiros, como Celso Furtado, tiveram
no desenvolvimento da chamada teoria da dependência e do debate que se
seguiu sobre as limitações presentes nessa teoria.
No que diz respeito às forças políticas de esquerda, esse debate teve
sempre impacto decisivo, pois a caracterização da economia nacional e de
sua relação com o sistema capitalista mundial assumia um papel
determinante na definição das opções referentes a programa, estratégia,
política de alianças etc. Tomando apenas um exemplo, a avaliação de que
o país seria marcado pela sobrevivência de “restos feudais”, ou que deter-
minados setores da burguesia nacional estariam vinculados ao ascendente
imperialismo norte-americano, enquanto outros representariam os inte-
resses do decadente imperialismo britânico, teve, por um longo período,
um papel decisivo na justificativa das linhas políticas adotadas pelo Parti-
do Comunista Brasileiro (PCB).

1
Professor de História Contemporânea da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

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Consideramos que estas discussões foram, em grande medida, obscureci-


das pela influência de um fenômeno que foi contemporâneo ao desenvolvi-
mento do pensamento marxista na Europa do século XIX e que se estabele-
ceu como padrão mundial especialmente a partir do final da Segunda Guerra
Mundial: a naturalização da idéia de Estado nacional. Ou seja, a visão de
que a existência de Estados com domínios territoriais mutuamente
excludentes, baseados na idéia de que representam um povo ou uma cultu-
ra homogêneos (ou a hegemonia interna de determinado povo sobre “mi-
norias”), é um resultado “natural” da evolução histórica.
Visto desta perspectiva, o capitalismo, por exemplo, tende a ser compre-
endido como um sistema que surge em primeiro lugar “dentro dos Esta-
dos”, para a seguir, com base nos graus distintos de desenvolvimento, gerar
relações de subordinação e hierarquia “entre os Estados”. Assim, economias
nacionais mais desenvolvidas tendem a ser vistas como modelos, e as “lacu-
nas” ou “imperfeições” dos países periféricos diante desses modelos a ser
vistas em termos de incompletude do “capitalismo nacional”. Essas aborda-
gens têm sido criticadas, desde a década de 1970, por teorias como as do
“sistema-mundo”, elaboradas inicialmente por Imanuel Wallerstein, e que
tiveram sua versão mais recente sistematizada em O longo século XX, de
Giovanni Arrighi (1997).
Retomando idéias de historiadores da “longa duração”, como Fernand
Braudel, a teoria do “sistema-mundo” vê o capitalismo, desde as origens,
como um sistema internacional cujo desenvolvimento implica a própria
criação de diferentes modelos de “Estado” e “empresa” como vetores com-
plementares. Estado nacional e corporações multinacionais seriam, portan-
to, apenas a versão mais recente de uma divisão de papéis que, nos séculos
XVII e XVIII, por exemplo, foi desempenhada predominantemente por
impérios coloniais e companhias de comércio, como as das Índias Ociden-
tais e Orientais.
O capitalismo, nessa perspectiva, não é entendido como uma realidade
estabelecida a partir de determinado momento, em ruptura com um passa-
do “feudal” ou “pré-capitalista”, mas sim como um processo marcado pela
tendência progressiva à acumulação ilimitada de riquezas e à subordinação
do conjunto das relações sociais à produção e circulação de mercadorias. Ele
evolui, desde o final do século XV, em diferentes estágios marcados pela

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Alexandre Fortes

expansão de esferas econômicas mundiais, integradas por centros hegemônicos


que se sucedem em distintos momentos (cidades-Estado do norte da Itália,
da Holanda, da Inglaterra, dos Estados Unidos).
Nesse sentido, mais do que olhar a história para pensar as insuficiências
do Brasil como país capitalista, trata-se de pensar o papel que ele, desde as
suas origens, desempenhou no desenvolvimento do capitalismo mundial e
como, em grande medida, esse papel moldou os contornos da construção
de seu espaço nacional. Não se trata, como apontam os críticos da escola
dos “sistemas-mundo”, de ignorar ou desprezar a dinâmica interna do país
e seu grau de autonomia relativa, mas sim de não tomar como ponto de
partida uma unidade nacional que veio a existir em função da conjunção de
interesses e iniciativas que só podem ser compreendidos a partir de proces-
sos internacionais.
Portugal, um Estado europeu frágil e periférico, beneficiou-se de sua
posição geográfica privilegiada e de sua unificação política precoce em um
Estado absolutista para lançar-se a um empreendimento de vanguarda no
final do século XV: a exploração marítima do Atlântico Sul em busca das
valiosas rotas que levavam às especiarias do Oriente. Inicialmente, o modelo
do império colonial português caracterizou-se, portanto, pelo estabeleci-
mento de entrepostos em pontos estratégicos ao longo das costas do Brasil,
da África e de diversos pontos da Ásia, que forneciam suporte logístico às
rotas comerciais. Alguns desses pontos evoluíram no sentido da colonização
territorial, na medida em que existisse a possibilidade de exploração de
alguma atividade econômica local. No Brasil, apesar da frustração inicial
com a existência de minerais preciosos próximos à costa, a exploração do
pau-brasil possibilitou a primeira base para uma presença mais efetiva.
Mas os dois elementos que viabilizaram o aproveitamento do imenso
potencial territorial do Brasil – plenamente percebido poucas décadas após
a “descoberta” – foram a cana-de-açúcar e a escravidão africana. Em termos
retrospectivos, essa base econômica pode ser facilmente identificada como
primária e arcaica, mas não era essa a realidade do período. Em primeiro
lugar, na produção açucareira – um dos sistemas produtivos mais comple-
xos do mundo nos séculos XVII e XVIII – podemos já perceber em estágio
embrionário algumas das características da nova economia que se generali-
zaria a partir da Revolução Industrial. De um lado, o surgimento de novos

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ramos econômicos não apenas a partir da mudança nos métodos de produ-


ção de mercadorias já existentes, mas sim pela oferta em escala crescente de
mercadorias até então inexistentes, que constituem inicialmente um mer-
cado de elite e, posteriormente, se expandem como bens de consumo de
massas. De outro, a demanda, gerada por esse processo, de um fluxo de su-
primento de mão-de-obra comercializável, livre dos constrangimentos de
relações costumeiras e direitos tradicionais, inicialmente na forma da escra-
vização de nativos, posteriormente pelo imensamente mais rentável comér-
cio de africanos, finalmente pela criação da propriedade privada da terra e
pela generalização do trabalho livre.
As entradas e bandeiras, viabilizadas inicialmente pelo interesse econô-
mico no mercado de escravos indígenas, reverteram por fim na descoberta
de jazidas de metais preciosos, gerando um avanço no que diz respeito à
maior integração territorial, à urbanização e à diversificação econômica. O
ouro brasileiro financiou a crescente dependência portuguesa em relação à
produção manufatureira e ao poderio naval britânicos, e junto com os lu-
cros da exploração imperialista do algodão indiano contribuiu decisivamente
para a transformação de Londres em um centro financeiro relevante. Do
ponto de vista doméstico, a importância dos novos centros mineradores
levou ao deslocamento da capital de Salvador para o Rio de Janeiro, numa
posição de muito maior centralidade em relação aos limites territoriais que
passavam a ser renegociados a partir de diversos tratados com a Espanha,
substituindo as limitações iniciais, estabelecidas em Tordesilhas, em 1494,
antes portanto da própria chegada dos portugueses à América.
A ocupação efetiva do território, tanto no sentido econômico como no
político, expandiu-se progressivamente para o oeste, à custa do extermínio,
do recuo para o interior ou da desestruturação do modo de vida das popu-
lações indígenas. Configurava-se gradualmente a imagem de um país con-
tinental, em vez de uma mera faixa litorânea. Além disso, as demandas da
produção mineradora e das novas concentrações populacionais geraram o
primeiro esboço do que seria um mercado interno, fosse para as mulas cria-
das no Rio Grande no Sul ou para o gado do Piauí. Não surpreende, por-
tanto, que a primeira manifestação de destaque da consciência nacional,
como percepção de interesses da Colônia distintos dos da Metrópole, tenha
sido a Inconfidência Mineira.

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Mas se Portugal passava de um papel desbravador, nas navegações e na


produção açucareira, a uma tendência à estagnação, perceptível já na de-
pendência diante da Holanda para o refino do açúcar e depois no escoa-
mento dos lucros da mineração para os cofres britânicos, não deixa de ser
notável o bem-sucedido esforço de preservação e consolidação do imenso
território da Colônia por uma tão diminuta Metrópole. O estabelecimento
do governo-geral já em 1548, o combate às incursões e ocupações de fran-
ceses e holandeses, a destruição das missões jesuítas, entre outras iniciati-
vas, viabilizaram a unidade territorial e eliminaram poderosos riscos à sobe-
rania da Coroa. É bem verdade que Portugal alternou momentos de
descentralização e centralização na gestão do Brasil – como continuaria a
ocorrer com o governo central do país após a independência –, e que o
poder local era deixado em grande medida nas mãos dos latifundiários, mas
o fato é que, afora revoltas esporádicas de pequeno alcance, sua autonomia
permaneceu dentro de limites bastante estreitos.
Essa proeza de preservação da integridade da Colônia apesar da decadên-
cia da Metrópole, em certo sentido, atingiria seu auge quando, em 1808,
acossada pela ocupação da Península Ibérica pelas tropas napoleônicas, a
corte portuguesa transferiu-se para o Brasil, elevando-o posteriormente à
condição de sede do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve. Se de um
lado esse movimento, associado à abertura dos portos às nações amigas –
leia-se Inglaterra –, implicava a renúncia final ao monopólio colonial e ge-
rava a singularidade de uma nação americana que sediava um império ultra-
marino, de outro garantiu a transição para a independência política com a
preservação dos interesses portugueses e, mais uma vez, eliminou qualquer
risco de fragmentação, como já se percebia ser a tendência na América Es-
panhola. O historiador Kenneth Maxwell apontou como, ao contrário da
imagem caricatural de D. João VI legada à história, o processo de criação do
Reino Unido e as subseqüentes iniciativas que visavam resolver a questão da
Cisplatina (atual República Oriental do Uruguai) e do Amapá, a fim de
consolidar respectivamente as fronteiras sul e norte, revelam habilidade e
discernimento político. Já durante o Império, novas fontes de risco à inte-
gridade do território seriam eliminadas com o resultado das guerras plati-
nas: a destruição de qualquer perspectiva de autonomia e fortalecimento do
Paraguai e o surgimento do Uruguai como Estado neutro, interposto entre

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o Brasil e a Argentina, vista a partir daí pelos nossos militares como única
ameaça potencial na região. A oeste, a obra de delimitação dos contornos
territoriais seria completada, já na República, pela diplomacia do barão do
Rio Branco.
Entretanto, essa proeza de expansão e manutenção de território assenta-
va-se em uma base extremamente frágil no que diz respeito às dimensões e
à distribuição populacional. As populações nativas, pela própria caracterís-
tica de seu modo de vida dedicado à caça, à coleta e à lavoura de coivara, não
apresentavam densidade significativa. Além disso, a forma altamente pre-
datória assumida pela colonização praticamente as dizimou. Aqui o con-
traste é total com a dominação espanhola, que praticamente acoplou suas
estruturas políticas às bases anteriormente construídas pelos impérios pré-
coloniais (inca, maia e asteca) e mostrou-se desde o início zelosa na imposi-
ção de limites à exploração da mão-de-obra que pudessem comprometer a
integridade da população indígena. Além disso, no Brasil, a concentração
populacional limitava-se às áreas das atividades econômicas principais, e
essas, com a exceção parcial da mineração, tinham caráter extensivo. Ao
mesmo tempo, pela própria lógica do sistema escravista, havia o temor de
que o estímulo ao desenvolvimento de uma camada de camponeses pudesse
comprometer o sistema, diante da imensa oferta de terras virgens.
Por isso, os projetos de colonização com base na agricultura familiar fo-
ram desenvolvidos de forma controlada, ganhando maior fôlego a partir da
chegada das primeiras levas de alemães ao Rio Grande do Sul, em 1824,
após experiências fracassadas ou de alcance limitado no Espírito Santo e na
serra fluminense. No Sul, e geração após geração, no rumo do Oeste e do
Norte, revelou-se eficaz o assentamento de colonos oriundos de países com
excedentes populacionais – como alguns dos Estados que viriam a formar a
Alemanha e a Itália, além de regiões da Europa Oriental –, num sistema em
que as terras são suficientes para uma geração, mas exigem que a próxima
desbrave uma nova fronteira. Inicialmente o objetivo maior era formar uma
segunda linha de defesa sem mexer com os pecuaristas que dominavam a
metade sul do Rio Grande do Sul. Posteriormente, o sistema forneceu ini-
ciativa e mão-de-obra barata para a transformação de áreas dominadas por
vegetação nativa em terra cultivável, a ser posteriormente concentrada nas
mãos de uma pequena elite dos agronegócios.

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1. DINAMISMO CAFEEIRO

A transformação do Brasil no principal produtor mundial de café por


quase um século, a partir das experiências de plantio iniciadas nas primeiras
décadas do século XIX, de um lado consolidou a integração territorial no
centro do país, dada a adequação da terra roxa e do clima dos planaltos ao
cultivo. Numa indicação tanto da clareza de intenções por detrás dessa
“marcha para o Oeste” quanto da dificuldade de romper com a tradicional
orientação no rumo do litoral, é interessante lembrar que desde o Império
já se debatia a proposta de mudança da capital para uma posição central na
nova configuração territorial do país, algo que apenas se materializaria em
1960 com a inauguração de Brasília.
Do ponto de vista populacional, o café gerou maior densidade, tanto
pela concentração de grandes plantéis de escravos nas várias áreas incorpo-
radas à sua produção quanto pela expansão de núcleos urbanos a ela associa-
da. Apesar das crises periódicas de superprodução, o dinamismo gerado
pela expansão da demanda internacional por café, que, de moda entre a
boêmia parisiense, se transformou em estimulante oficial do mundo indus-
trial, tornou essa parte do país – do Vale do Paraíba ao oeste Paulista, pas-
sando pelo sul de Minas e pelo norte do Paraná, tendo como cabeça o
complexo formado pela cidade de São Paulo e pelo porto de Santos – no
cenário do que era, no século XIX, uma agricultura capitalista moderna,
sobre cujas bases surgiriam, na virada para o século XX, os primeiros nú-
cleos industriais significativos do país, ainda hoje, e não por coincidência,
concentrados nessa região.
Paradoxalmente, entretanto, esse dinamismo cafeeiro, combinado com
a bem-sucedida engenharia política conservadora legada por Portugal, à
qual se adaptou muito bem a emergente burguesia nacional, perpetuou
por mais de meio século o sistema escravista – de 1831 a 1888 –, num
processo de “emancipação gradual e controlada”. Isso apesar do combate
ao tráfico, desencadeado pela potência internacional hegemônica, a In-
glaterra – da qual o Brasil independente herdara o endividamento e a
tutela antes já exercida sobre Portugal –, e da legislação nacional de
banimento do comércio escravista adotada também sob pressão inglesa
(as famosas leis “para inglês ver”).

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Nesse quadro, o Brasil se caracterizava por um imenso potencial, tendo


consolidado uma dimensão territorial ímpar na América Latina, desenvol-
vido um novo núcleo dinâmico integrado ao processo acelerado de expan-
são do mercado mundial no ritmo ditado pela Revolução Industrial e até
mesmo constituído um mercado doméstico relativamente diversificado. Fi-
cava, entretanto, cada vez mais defasado em relação a dois vetores que defi-
niam a construção ou reconstrução das nações que disputariam quer a
hegemonia, quer, ao menos, um espaço menos periférico no interior do
sistema internacional: a industrialização e a democratização.
A relativa modernização econômica já no final do século XIX, até mesmo
como resultado da exportação de lucros excedentes realizada pela Inglater-
ra – e em menor escala por alguns países europeus – na forma de investi-
mentos em infra-estrutura em suas colônias e países periféricos em sua área
de influência, na verdade ampliaria o fôlego da economia cafeeira, renovan-
do e aprofundando o endividamento e a canalização dos lucros do setor
primário para as importações de manufaturados ingleses. Apesar de os pró-
prios cafeicultores terem reinvestido, em algumas áreas e setores, parte de
seus lucros na indústria, a política econômica continuaria orientada predo-
minantemente para o favorecimento do setor agroexportador.
Do ponto de vista político, desde o final do século XVIII a Europa era
atravessada por ondas de processos revolucionários ou por reformas políti-
cas sob fortíssima pressão das classes populares – tendo cada vez mais
como núcleo a emergente classe operária –, levando à generalização do
Estado liberal e à ampliação progressiva do direito ao voto, e os Estados
Unidos decidiam de forma sangrenta seu modelo de capitalismo e os li-
mites de seu federalismo com a Guerra Civil (1860-1865). Já o Brasil
permaneceu um Império no continente das Repúblicas, suprimiu movi-
mentos regionais que apontavam para a maior liberalização política e, em
alguns casos, para algum protagonismo popular, prolongou a exclusão
estrutural do núcleo de sua classe trabalhadora, os escravos, e planejou
perpetuá-la com projetos imigrantistas voltados, entre outros objetivos,
para o branqueamento da população.
Cabe aqui comentar o imbricamento entre os processos econômicos, so-
ciais e políticos mencionados anteriormente e o aspecto mais propriamente
cultural da construção da identidade brasileira. O Brasil, como já aponta-

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ram pensadores do porte de Sérgio Buarque de Holanda, ocupa um lugar


bastante peculiar no imaginário de uma Europa em profunda mudança na
virada do século XV para o XVI. A exuberância da natureza tropical brasi-
leira foi vista por certas correntes teológicas como a realização de profecias
sobre a descoberta da existência do paraíso na Terra. Uma das conseqüências
disso, como aponta Marilena Chaui, foi a persistência da visão de que aqui
as leis humanas (e portanto os direitos) não se aplicavam, e que a nação
brasileira seria uma emanação das características naturais de seu território, e
não da soberania de seu povo. Nossa própria bandeira até hoje expressa esse
conservadorismo essencialista, mantendo – além das cores da realeza portu-
guesa – a alusão a elementos naturais (ouro, matas e céu) e não, como é
característico das repúblicas, a seus princípios políticos constitutivos.
Do mesmo modo, na cultura brasileira as particularidades da constitui-
ção de nossa população são em geral tratadas pelo prisma dessa celebração
da natureza que, na verdade, destitui a cidadania de um protagonismo efe-
tivo na construção da nação. Isso acontece com o chamado “mito das três
raças” – ou seja, da complementaridade e da harmonia entre brancos, ne-
gros e índios – com o qual desde o século XIX literatos, artistas plásticos e
outros expoentes da alta cultura buscam explicar nossa especificidade nacio-
nal. Essa visão é complementada pela celebração da miscigenação e da “do-
çura” que teria caracterizado o exercício do poder senhorial português, ele-
mentos presentes, por exemplo, na obra de Gilberto Freyre.
É evidente que as particularidades da forma de colonização adotada no
Brasil contribuíram para configurar um perfil populacional ímpar, no qual
a miscigenação tornou-se um fator muito mais expressivo do que no outro
caso conhecido de uma grande nação contemporânea de passado escravocrata:
os Estados Unidos. Essas particularidades incluem a forte desestruturação,
dispersão e afastamento dos grandes centros das populações indígenas, a
introdução de contingentes expressivos de escravos africanos sem um inves-
timento expressivo na criação de condições para sua estabilidade e sua re-
produção familiar, bem como a imensa sub-representação das mulheres entre
os habitantes de origem européia por praticamente todo o período colonial.
Quando a esse quadro somou-se, especialmente a partir do final do século
XIX, a imigração de trabalhadores livres, o padrão brasileiro de relações
raciais já estava em grande medida constituído.

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As infinitas gradações dos tons de pele no Brasil não podem, entretanto,


ofuscar a gritante persistência dos mecanismos de exclusão e discriminação
baseados na origem racial. Nem podemos esquecer como foi longa e árdua
a luta que levou da perseguição policial à capoeira, ao samba e aos terreiros
de umbanda ao reconhecimento do caráter positivo do sincretismo como
elemento de peso decisivo em nossa formação cultural, ainda assim sem
apagar totalmente as marcas do estigma e da folclorização. A celebração da
natureza tropical e de nosso povo mestiço no imaginário cultivado pelo
discurso dominante, portanto, mal dissimula a realidade de uma nação
esquartejada pela reprodução e pelo aprofundamento de desigualdades, pela
naturalização das hierarquias sociais (o famoso “Você sabe com quem está
falando?”, analisado por Roberto da Matta), pela resistência histórica de
elites patrimonialistas a se submeter nem mesmo ao domínio da lei, quanto
mais a qualquer projeto de integração nacional que implique redistribuição
de renda ou qualquer tipo de interferência no poder absoluto do proprietá-
rio em “seus” domínios, sejam eles a fábrica, a fazenda ou qualquer outro
espaço de exercício do arbítrio privado.

2. A CLASSE OPERÁRIA

O processo de formação da classe operária, força motriz da democratiza-


ção e, portanto, do aprofundamento da identidade entre povo e nação, em
boa parte da Europa – e que tão perto de nós quanto na Argentina da virada
do século XIX para o XX exerceu papel muito semelhante –, dar-se-ia no
Brasil num cenário particularmente árduo. Além dos outros efeitos perver-
sos já apontados anteriormente, a persistência da escravidão nos legou uma
profunda estigmatização contra o trabalho manual. A forma como se deu a
integração à economia industrial mundial levou a um contraste acentuado
entre o dinamismo do Centro-Sul, particularmente de São Paulo, e o res-
tante do país, que também se refletia em perfis e dimensões tremendamen-
te díspares da força de trabalho. Além disso, num país continental com
variações brutais de densidade populacional e com uma infra-estrutura de-
senvolvida de forma tremendamente desigual, além da forte repressão, a
construção de qualquer tipo de processo organizativo nacional dos traba-
lhadores enfrentaria grandes dificuldades para se viabilizar.

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Voltando a fazer comparações com nossos vizinhos próximos, não havia


paralelo no Brasil para o peso da concentração populacional de Buenos
Aires na Argentina, uma cidade que, além disso, combinava as funções de
capital e de principal centro econômico, papéis que no Brasil já se encon-
travam divididos entre Rio de Janeiro e São Paulo. O intenso esforço de
criação de jornais e organizações operárias, ocorrido aqui desde a década de
1880, resultou em alguns movimentos mais expressivos, como as greves
gerais de 1917, mas sem configurar o movimento operário como um ator
nacional de feições claramente reconhecidas e articuladas. Talvez por essa
combinação de fatores, e pela força do sistema político oligárquico monta-
do na República Velha, não houve no Brasil movimentos no sentido da
incorporação das classes populares à política no início do século XX, como
haviam ocorrido, por via revolucionária, no México (com avanços consagra-
dos na Constituição de 1917) e, pela via do voto, na Argentina, com a lei
Saenz Peña de 1912. Quando ocorreu movimento em sentido semelhante
no Brasil – com a Revolução de 1930 –, ele veio na onda dos regimes
antiliberais que se espalharam pelo mundo em reação à recessão deflagrada
pelo Craque da Bolsa de Nova York, em 1929, e associado a uma concepção
corporativista de vinculação orgânica dos sindicatos ao Estado, sendo o exer-
cício do voto popular em larga escala postergado por mais 15 anos.
Na longa Era Vargas (1930-1954), o país viveu a quebra da hegemonia
cafeeira, assistiu ao fortalecimento sem precedentes do governo central, e –
aproveitando a desorganização e o refluxo do comércio internacional e a opor-
tunidade para barganhas estratégicas durante a Segunda Guerra Mundial –
lançou as bases para a implantação da indústria pesada. Nela se realizou a
incorporação dos trabalhadores urbanos àquilo que Wanderley Guilherme
dos Santos denominou “cidadania regulada”, ou seja, o acesso a um conjunto
de direitos sociais mediado pela vinculação ao mercado de trabalho formal,
estritamente regulado e controlado pelo Estado por meio de instrumentos
como a carteira de trabalho, o imposto sindical e o poder de intervenção do
Ministério do Trabalho na vida das entidades de representação dos interesses
de classe. Os trabalhadores rurais permaneceram, em linhas gerais, excluídos
mesmo dessa incorporação condicionada e restrita à cidadania.
Com todas as suas limitações, que incluíram o gozo de apenas dois anos
de atividade legal pela maior força de esquerda do país no período – o

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Partido Comunista Brasileiro –, ainda assim a existência de um sistema


eleitoral de massas possibilitou ao menos o tensionamento do caráter do
projeto nacional hegemônico. No chamado período populista, não obstante
certas oscilações conjunturais, a transformação do Brasil em uma moderna
economia industrial consagrou-se como um objetivo nacional, perseguido
pelo Estado – até mesmo por meio de uma política externa que se tornava
pouco a pouco mais independente – e pelas classes dominantes. Foi inau-
gurado um longo ciclo de 50 anos de crescimento econômico acelerado sem
que, entretanto, se verificasse qualquer movimento mais expressivo de dis-
tribuição de renda, ou seja, com a manutenção das desigualdades sociais,
algo que se estenderia e se aprofundaria durante o “milagre econômico” da
ditadura militar nos anos 1970.
Mas, até 1964, um movimento contra-hegemônico no sentido de trans-
formar o populismo em uma democracia participativa, marcada por refor-
mas sociais inclusivas, se esboçava tanto em segmentos das elites políticas e
intelectuais do país quanto, especialmente, na constituição de movimentos
de massas na cidade e, pouco a pouco, também no campo. A incapacidade
dos setores mais reacionários das elites nacionais de absorver mesmo perdas
e mudanças pontuais e limitadas, assim como a inflexibilidade da política
externa do novo império mundial, os Estados Unidos, em um mundo mar-
cado pela Guerra Fria e numa América Latina eletrizada pelas fagulhas da
radicalização da revolução cubana, explicam a desproporção entre a modés-
tia do programa reformista que se esboçava no governo João Goulart e a
violência do golpe de 1964, inaugurando o mais profundo e longo ciclo de
ditaduras militares na América Latina.
Os governos militares brasileiros oscilaram entre a busca de uma posição
de aliados preferenciais do “grande irmão do Norte” e a manutenção de
uma política externa mais autônoma, rebatizada de “pragmatismo ecumênico
e responsável”, entre a ortodoxia monetarista e o desenvolvimentismo com
repressão e arrocho salarial do “milagre econômico”, e, em linhas gerais,
aprofundaram algumas tendências já presentes no país entre 1930 e 1964.
O Brasil chegou a ocupar a posição de oitava economia mundial, urbanizou-
se aceleradamente, desenvolveu setores de ponta na produção industrial,
diversificou sua economia, acelerou a ocupação dos territórios a oeste. Mas
essa gloriosa modernização conservadora, coroada pelos projetos megalo-

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maníacos de Itaipu, da Transamazônica e da ponte Rio–Niterói, entre ou-


tros, ruiu estrondosamente com a crise da dívida externa que abalou os
países do terceiro mundo nos anos 1980, a partir da manobra por meio da
qual o Banco Central norte-americano reestruturou sua hegemonia sobre o
sistema financeiro internacional, à custa de jogar o mundo em uma década
de recessão.
Na lenta e tortuosa transição para a democracia, que se fez então inevitável,
um novo Brasil emergiu no cenário público. Um movimento sindical renova-
do e ampliado, uma grande diversidade de movimentos sociais no campo e na
cidade, uma sociedade civil galvanizada pelas experiências de solidariedade na
resistência dos “anos de chumbo”. O sistema partidário anterior, quaisquer
que sejam as avaliações sobre seus méritos e deméritos, não pôde ser reeditado
diante do prolongado bipartidarismo oficial e de sua defasagem diante da-
quela nova realidade social. A esquerda, progressivamente fragmentada a par-
tir do início dos anos 1960, encarava o triplo desafio de interpretar as trans-
formações vividas pelo país, reconstruir bases de unidade de ação e, a partir de
1989, adaptar-se a um mundo que, para o bem ou para o mal, deixava de ser
polarizado entre capitalismo e socialismo real.
É nesse cenário que se constrói a experiência democrática brasileira do
final do século XX, levando a um protagonismo inédito, e até mesmo a
postos de poder nacional, as forças políticas construídas com base nos novos
atores sociais que emergiram no final dos anos 1970. De um lado, apesar dos
pesares, uma democracia muita mais sólida e ampla do que sua predecessora
no período 1945-1964. A própria simbologia da cidadania foi reapropriada
de forma crítica e ativa em movimentos como os das Diretas Já e o do
impeachment de Collor, dotando a identidade nacional de um novo sentido.
Por outro lado, uma experiência democrática da qual se exige o resgate
da dívida social e a construção de um novo modelo de desenvolvimento
num momento histórico em que, como afirma Hobsbawm (2001), as
próprias bases sobre as quais se construiu a idéia de democracia, como a
soberania nacional, estão em questão. Ou, como afirma Naomi Klein
(2001), num cenário em que, tendo os movimentos contra-hegemônicos
finalmente logrado a democratização dos Estados nacionais em larga esca-
la, o poder de decisão foi em grande medida subtraído para esferas transna-
cionais ou internacionais.

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O Brasil do século XXI terá que se reinventar. Não nos está reservada a
condição de paraíso terrestre, nem de país do futuro. O lugar que viremos
a ocupar num mundo que caminha para turbulências imprevisíveis resul-
tará do inevitável enfrentamento de nossas contradições internas e exter-
nas. Somente assim saberemos o quanto nosso imenso potencial como
nação se realizará.

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Paulo Fagundes Visentini

A política internacional do Brasil


e suas fases
Paulo Fagundes Visentini 1

1. INTRODUÇÃO

A formação social e nacional brasileira teve sua origem na expansão euro-


péia dos séculos XV-XVI através da “descoberta” e da colonização portu-
guesas. Durante quase quatro séculos a inserção internacional da região
processou-se por intermédio das potências européias, inicialmente pelo
mercantilismo português e posteriormente via liberalismo inglês. Na passa-
gem do século XIX para o XX, contudo, o eixo da diplomacia política e
econômica do Brasil voltou-se para os Estados Unidos, limitando-se predo-
minantemente ao âmbito hemisférico (isto é, restrita às Américas). Desde o
início dos anos 1960, na esteira do desenvolvimento industrial, a política
exterior brasileira voltou-se para a busca de novos espaços mediante a
mundialização e a multilateralização. Sob os efeitos da “globalização”, no
final do século XX o país passou a valorizar o espaço regional latino-ameri-
cano, através do Mercosul (Mercado Comum do Sul), ainda que sem re-
nunciar completamente à cooperação com alguns dos espaços planetários
anteriormente atingidos. Esta poderá se afirmar, nos próximos anos, como
uma nova fase das relações do Brasil com o mundo.
A história diplomática tradicional, cujo paradigma foi representado pelo
clássico Manuel historique de politique étrangère, de autoria de Emile Bourgeois

1
Professor titular de Relações Internacionais da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande
do Sul), doutor em História Econômica pela USP (Universidade de São Paulo), pós-doutorado
em Relações Internacionais pela London School of Economics, é pesquisador do Núcleo de
Estratégia e Relações Internacionais do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da
UFRGS (paulovi@ufrgs.br).

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(1892-1898) (datado de fins do século XIX), abarcava apenas o estudo das


relações oficiais entre os Estados, expressa na atuação de agentes credenciados
pelos governos. No Brasil, essa tendência atingiu sua forma acabada nas
histórias diplomáticas de Hélio Vianna e Delgado de Carvalho. Essa abor-
dagem cedeu lugar à mais complexa História das relações internacionais, des-
de a afirmação dos trabalhos de Pierre Renouvin e Jean-Baptiste Duroselle
(1967), nas décadas de 1950 e 1960. No Brasil, a nova perspectiva teórica
foi desenvolvida a partir dos estudos de José Honório Rodrigues, tais como
Brasil e África (1964) e Interesse nacional e política externa (1966).
A “política exterior” envolve aspectos mais determinados no conjunto
das relações internacionais. Ela enfoca a “orientação governamental” de
determinado Estado a propósito de determinados governos e/ou Esta-
dos, ou ainda regiões, situações e estruturas, em conjunturas específi-
cas. A interação, conflitiva ou cooperativa, das políticas externas deve
ser considerada parte de um sistema mundial, constituindo então em
seu conjunto a “política internacional”.
Na análise da política externa, emergem duas questões de fundamental
importância: em primeiro lugar, quem a formula; em segundo, de que
forma ela se articula à política interna. Quanto ao primeiro aspecto, qual-
quer estudo empírico mais aprofundado demonstra que os rumos e as
decisões da política externa não são definidos pelo conjunto do bloco
social de poder que dá suporte a um governo, mas por alguns setores
hegemônicos desse bloco. É preciso considerar que, graças à porosidade
do Estado moderno, lobbies e grupos de interesse conseguem influir em
determinadas áreas da política externa.
Durante a fase colonial, o Brasil encontrava-se integrado ao
mercantilismo português. Com o advento do processo de emancipação,
nossa “dependência assimétrica” transferiu-se para a órbita do livre-co-
mércio hegemonizado pela Inglaterra. Paralelamente, acentuou-se outra
dimensão das relações internacionais do Brasil: a dos problemas regionais
vinculados à construção do espaço geopolítico e nacional brasileiro, tam-
bém enfocada como “questão de fronteiras”. Nesse contexto, a rivalidade
com a Argentina fazia parte de uma “relação simétrica”, herdada dos anta-
gonismos coloniais, a qual se caracterizou como um campo de relativa
autonomia para o exercício de nossa diplomacia.

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Paulo Fagundes Visentini

A dupla problemática da “subordinação unilateral” ao capitalismo


mediterrânico e norte-atlântico e da construção do espaço nacional consti-
tuiu a primeira fase de nossas relações exteriores, a qual se estendeu por
quatro séculos. Durante o século XIX, esse processo configurou-se como
uma unilateralidade sob hegemonia inglesa, segundo conceito de Werneck
da Silva (1990). Já ao longo das últimas décadas daquele século afirmou-se
gradativamente a influência norte-americana, prenunciando o advento de
uma nova fase.
A unilateralidade durante a hegemonia norte-americana representará um
novo período das relações internacionais do Brasil. Nela será concluído o
traçado das fronteiras, o país voltar-se-á para um processo de inserção
hemisférica e terá início uma vinculação mais estreita da política externa
com o desenvolvimento econômico. A gestão Rio Branco (1902-1912) re-
presentou um momento paradigmático dessa fase, pois concluiu a demar-
cação das fronteiras contestadas e estruturou a chamada “aliança não escri-
ta” (segundo a clássica expressão de Bradford Burns) com os Estados Uni-
dos da América. Coube a Getúlio Vargas e aos governos populistas dos anos
1950, por sua vez, a vinculação estratégica da política exterior às necessida-
des do processo de desenvolvimento econômico, fenômeno que Amado Cervo
denominou “política externa para o desenvolvimento”.
Durante todo esse período, que se estende até o fim da década de 1950,
as relações exteriores do Brasil voltaram-se prioritariamente para os Esta-
dos Unidos, em busca do status de “aliado privilegiado”. Na medida, en-
tretanto, em que essa relação se mostrava insuficiente como apoio ao de-
senvolvimento industrial, incrementado desde os anos 1930, a política
externa brasileira viu-se na contingência de alterar seu perfil. A “autono-
mia na dependência”, conceito formulado por Gerson Moura (1980),
que Vargas explorou às vésperas da Segunda Guerra Mundial, e o nacio-
nalismo dos governos populistas dos anos 1950 representaram uma “es-
tratégia de barganha” em relação a Washington. Essa barganha visava
redefinir os laços de dependência diante dos Estados Unidos, de forma a
obter apoio ao desenvolvimento industrial brasileiro.
A falta de uma resposta positiva por parte dos Estados Unidos conven-
ceu lideranças brasileiras da época da necessidade de ampliar os vínculos
internacionais do Brasil. Fazia-se necessário atuar num plano mundial,

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escapando à dependência hemisférica em relação aos Estados Unidos, não


obstante isso permitisse ampliar a própria barganha com esse país. Em-
bora esse processo começasse a emergir desde o segundo governo Vargas,
foi com a Política Externa Independente (PEI) de Jânio Quadros e João
Goulart, entre 1961 e 1964, que ela se configurou de forma explícita em
nossa agenda diplomática.
Iniciou-se então o terceiro grande período das relações exteriores brasilei-
ras, o da “multilateralidade na fase da crise de hegemonia no sistema mun-
dial”, que se estende até a atualidade. Aprofundou-se a vinculação da polí-
tica exterior com a estratégia de desenvolvimento econômico, ao mesmo
tempo em que se diversificavam nossos parceiros internacionais. Apesar da
manutenção de um “eixo vertical Norte–Sul”, em particular as relações com
os Estados Unidos, a diplomacia brasileira passou a atuar também num
“eixo horizontal Sul–Sul” e num “eixo diagonal Sul–Leste” (relações com o
terceiro mundo e com os países socialistas, respectivamente). Isso se tornou
possível tanto pelas necessidades do desenvolvimento brasileiro quanto pelo
advento de um sistema mundial de hegemonias em crescente desgaste.
Embora os três anos iniciais do regime militar tenham sido caracterizados
por um retrocesso ao alinhamento automático com os Estados Unidos e pelo
refluxo a uma diplomacia de âmbito hemisférico, e a década de 1964-1974
fosse marcada pelas “fronteiras ideológicas”, a multilateralidade das relações ex-
teriores e a busca do “interesse nacional do desenvolvimento” continuaram a se
aprofundar. Os novos interesses internos então configurados, bem como as alte-
rações do cenário internacional após o primeiro choque petrolífero, permitiram
ao governo Ernesto Geisel ampliar esse processo, através do “pragmatismo res-
ponsável e ecumênico”. Nem mesmo o fim do regime militar em 1985 inter-
rompeu essa estratégia diplomática, que prosseguiu até 1990.
O Brasil praticava então uma política exterior com o perfil de uma po-
tência média, e de abrangência planetária. As vigorosas alterações do cená-
rio mundial, na passagem dos anos 1980 aos 1990, e a implantação de um
modelo inspirado no neoliberalismo com o governo Fernando Collor, en-
tretanto, configuraram uma crise no processo de multilateralização, crise
ainda não superada. Nesse contexto, emerge a discussão acadêmica e políti-
ca da inserção do Brasil na nova ordem mundial pós-Guerra Fria. Trata-se
de um novo desafio para a política externa brasileira.

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2. A UNILATERALIDADE DURANTE A COLONIZAÇÃO


PORTUGUESA E A HEGEMONIA INGLESA

No tocante à diplomacia brasileira, é necessário estabelecer um marco


fundamental da política externa: seu caráter estrutural e organicamente
dependente, ainda que logrando relativa autonomia conjuntural e regional.
Segundo José Luiz Werneck da Silva,

“a nossa própria história geral é, por hipótese, um capítulo


da totalidade da história do capitalismo ocidental, norte-
atlântico-mediterrâneo, em gradativa construção e recons-
trução, na qual totalidade a formação brasileira se colocou,
historicamente, numa posição subordinada que cumpre sem-
pre reavaliar, e superar. Isto se reflete, evidentemente, nas
relações internacionais” (Silva, 1990, p. 25).

A primeira fase da política externa brasileira abarca desde o Tratado de


Tordesilhas até o início da gestão do chanceler barão de Rio Branco, no
início do século XX. Como se pode ver, a existência legal do Brasil (1494)
antecede sua existência real (1500). Esse longo período caracterizou-se pela
problemática dominante da definição do espaço territorial de um verdadei-
ro imperialismo geográfico luso-brasileiro (espécie de “destino manifesto”)
e pela dependência primeiramente em relação ao mercantilismo português
e, posteriormente, ao capitalismo industrial inglês em expansão, de viés
liberal-concorrencial. Além dos vínculos com a Europa, a América portu-
guesa também manteve relações expressivas com a África, onde eram apre-
sados os escravos que constituíam a mão-de-obra das plantations. Assim, a
história econômica elaborou o conceito de triângulo comercial atlântico.
De outra parte, durante a fase colonial os conflitos europeus repercutiam
diretamente no Brasil, especialmente no tocante às guerras platinas.
O ciclo do ouro estabeleceu no Brasil do século XVIII os fundamen-
tos de uma divisão da produção entre as diversas regiões, articulando-as
entre si e acentuando o conflito de interesses com a metrópole. A crise
do antigo sistema colonial, por seu turno, enfraquecia o mercantilismo
português, subordinando-se cada vez mais ao capitalismo inglês. Esse

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fenômeno se intensificou na passagem do século XVIII para o XIX, com


a Revolução Francesa.
As guerras napoleônicas representaram o apogeu do confronto entre dois
modelos (e dois estágios) de capitalismo, o inglês e o francês, na disputa
pela hegemonia mundial. Enquanto a França se afirmava na Europa, através
do Bloqueio Continental2, a Inglaterra consolidava o seu domínio sobre os
mares e sobre o mundo colonial, isto é, sobre o mercado global. Nesse
quadro, ocorreu a invasão de Portugal por Napoleão, e a vinda da corte e da
administração lusitanas para o Rio de Janeiro, sob a proteção da armada
britânica, em 1808. A metrópole internalizava-se no Brasil, enquanto os
portos eram abertos ao livre-comércio inglês.
Com o fim da guerra na Europa e a restauração conservadora do Con-
gresso de Viena, a situação se alterou. A constelação de Estados conservado-
res, da qual Portugal fazia parte, apostava num movimento recolonizador.
Mas a dinastia dos Bragança encontrava-se no Brasil, na América em pro-
cesso de emancipação, e a Inglaterra e os Estados Unidos opunham-se a
qualquer forma de reação colonialista, além de apoiar o movimento de in-
dependência das possessões ibéricas. O dilema bragantino logo teve de ser
resolvido. A Revolução Constitucionalista do Porto, de 1820, obrigou D.
João VI a retornar a Portugal.
A conjuntura contraditória entre reacionarismo na Europa, por um lado,
e revolução e livre-comércio na América Latina, por outro, levou os Bragança
a uma solução ousada: dividir os domínios da família em dois, o Brasil de
um lado do Atlântico e o Império português de outro (1822). O acordo
entre os dois ramos da dinastia foi avalizado pela Inglaterra (através do
Tratado Luso-Brasileiro de 1825), em troca de um acordo de livre-comér-
cio (renovação do de 1810) e do compromisso brasileiro de extinguir o
tráfico negreiro. Assim, o I Reinado manteve a diplomacia bragantina e
uma acentuada continuidade com a etapa anterior.
É importante destacar que o Brasil, por sua estrutura monárquica e
escravista, procurava capitalizar um papel de “Europa nos trópicos”,

2
O bloqueio Continental foi estabelecido por Napoleão, excluindo a Inglaterra do mercado euro-
peu, que ficava à disposição exclusivamente da França.

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antagonizando-se com as repúblicas formadas na Hispano-América. O Pra-


ta, onde prosseguiam as rivalidades entre Brasil e Argentina, bem como as
intromissões da Inglaterra e da França representaram a principal área de
atrito entre o Império e os demais países do continente. Será nesse espaço
que o Brasil defenderá seus interesses com relativa autonomia.
Com a renúncia de D. Pedro I e a instalação da Regência em 1831,
iniciaram-se lutas em torno da hegemonia política e econômica entre as
diversas regiões do país. Isso implicou um refluxo da política externa, en-
quanto as questões internas adquiriam primazia. No Prata, o Brasil adotava
uma atitude de “neutralidade paciente”. Apesar da momentânea aparente
perda de importância da diplomacia, foi justamente nessa etapa que se con-
figurou uma política externa propriamente brasileira, ainda que marcada
por uma herança bragantina. O Conselho de Estado constituiu, então, o
primeiro núcleo formulador da diplomacia nacional.
A década de 1840 foi marcada pela implantação do II Reinado e pela
consolidação política, econômica e diplomática do novo Estado. A partir
daí abriu-se uma fase de reações contra as pressões inglesas pela renovação
do acordo de livre-comércio. Em 1844 foram implantadas as Tarifas Alves
Branco, de caráter protecionista, provocando a reação de Londres através do
Bill Aberdeen, o qual visava impedir o tráfico de escravos. Dessa forma, a
extinção do sistema dos tratados permitiu a criação de condições para a
articulação de um projeto de política externa, apesar da persistência de uma
relação de dependência assimétrica com a Inglaterra.
Com a década de 1850 iniciou-se o apogeu da formação social represen-
tada pela monarquia, o que se refletiu na política externa. Os desacordos
com a Inglaterra atingiram o paroxismo com a questão Christie3 e a ruptura
das relações diplomáticas entre o Rio de Janeiro e Londres, de 1863 a 1865.
Obviamente, isso não significou a ruptura das relações comerciais e finan-
ceiras, que permaneceram intensas.
Outra dimensão fortalecida nessa época foi a política de força em relação
ao Prata. Os interesses diplomáticos, econômicos e políticos levaram o Bra-

3
Christie era o embaixador da Inglaterra no Brasil, que negociou de forma arrogante um pedido de
indenização pelo saque da carga de um navio inglês encalhado no Nordeste. O contencioso levou
à ruptura de relações diplomáticas entre os dois países nos anos 1860.

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sil a desencadear uma série de intervenções na região: Uruguai em 1851;


Argentina em 1852; Uruguai em 1855-1856; e, finalmente, Uruguai em 1864,
já vinculada ao desencadeamento da Guerra da Tríplice Aliança (Brasil, Ar-
gentina e Uruguai) contra o Paraguai, entre 1865 e 1870. Os objetivos do
Sistema do Império no Prata consistiam na defesa dos interesses econômi-
cos, na livre-navegação, no apoio aos colorados no Uruguai, mas sobretudo
visavam obstaculizar a construção de uma Argentina forte, capaz de rivali-
zar com o Brasil. Esse último princípio também foi aplicado ao Paraguai de
Solano Lopez.
Após a Guerra do Paraguai, de onde o Brasil retirou-se em 1876, alterou-
se profundamente a situação em âmbitos nacional, regional e mundial. Com
a transição do escravismo ao trabalho assalariado, entre outros fatores, a
monarquia entrou em contínuo declínio, o que trouxe conseqüências nega-
tivas para a política externa. No plano regional, a Argentina emergiu
fortalecida: em plena expansão econômica, logo ultrapassou o Brasil em
dinamismo. Por outro lado, com a expansão das ferrovias brasileiras ao cur-
so médio dos rios Uruguai, Paraguai e Paraná, a bacia do Prata perdeu o
interesse estratégico para a diplomacia do país.
A arrancada argentina, por sua vez, vinculou-se também à rearticulação
da economia mundial, com o desencadeamento da Segunda Revolução
Industrial. Graças a ela, processava-se uma reorientação profunda nas re-
lações entre o centro e a periferia do sistema mundial. A Argentina levava
vantagens nesse processo, recebendo capitais, imigrantes e novas
tecnologias, para adequar a estrutura produtiva do país às novas necessi-
dades da Europa industrial.
Neste contexto, apesar de evoluir mais lentamente, o Brasil via a valoriza-
ção de outros produtos e regiões, bem como a configuração de novos parcei-
ros externos. A economia primário-exportadora, orientada ao crescimento
para fora, precisava se modernizar e atender a novas demandas. A cafeicul-
tura, progressivamente processada por trabalhadores assalariados, bem como
a borracha explorada na Amazônia destinavam-se cada vez mais aos merca-
dos dos emergentes Estados Unidos da América. Reflexo dessa aproximação
foi, inicialmente, o convite do presidente Grant para que D. Pedro II abris-
se a Centennial Exposition em 1876 na Filadélfia, e, posteriormente, a
insistência norte-americana para que o Brasil apoiasse a criação de um

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Zollverein4 nas Américas (União Aduaneira Americana, 1886). Outra ques-


tão que marcou a política exterior brasileira na fase de transição da monar-
quia à república, apesar do relativo retraimento diplomático, foi o esforço
por continuar defendendo as fronteiras contestadas, processo que só culmi-
nará com a gestão Rio Branco, já no início do século XX.
Após 1876, envolvido com seus problemas internos, o Brasil conheceu
um refluxo em sua política externa. Igualmente, a proclamação da Repúbli-
ca em 1889 fez que a ênfase da ação governamental passasse a voltar-se para
os aspectos internos. Apesar disso, em função também da ascensão da Ar-
gentina nesse período, a diplomacia brasileira começou a se voltar para os
Estados Unidos da América, que, por seu turno, projetavam então sua eco-
nomia para fora, especialmente em direção à América Latina.
Apesar das transformações que se operaram ao longo do século XIX, afir-
mavam-se alguns elementos estruturais da política externa brasileira. O pri-
meiro consistia na condição dependente de “país novo e atrasado”, graças à
subordinação de uma economia primário-exportadora aos centros internacio-
nais (na época, a Inglaterra hegemônica). Nesse plano, configurava-se uma
“relação político-econômica assimétrica”, pois o Brasil se encontrava em posi-
ção de flagrante inferioridade. Entretanto, num segundo plano, o país conse-
guia desenvolver uma diplomacia relativamente autônoma, na forma de uma
“relação simétrica de poder”, representada então pela política no Prata.
É preciso considerar também que em certas conjunturas o Brasil desafia-
va, ainda que de forma parcial, certos aspectos da hegemonia inglesa. A
defesa de determinados interesses socioeconômicos da elite brasileira fazia a
diplomacia nacional buscar certa margem de manobra, perfilando-se igual-
mente aqui uma relativa autonomia. Mas também é necessário observar que
essa mesma elite sofria de uma espécie de “síndrome do escravismo”. Para a
manutenção da hierarquia social no país, esse grupo não hesitava em se
subordinar a interesses estrangeiros, assumindo conscientemente a posição
de sócio menor. Nesse sentido, o potencial diplomático do país resultará,
então, bastante inferior ao volume de sua população e de seus recursos eco-

4
Zollverein foi a União Aduaneira dos Estados do norte da Alemanha, promovida pela Prússia. Na
época era empregada como sinônimo de Zona de Livre Comércio.

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nômicos, naturais e territoriais. Sempre haverá um “perigo interno” a ser


priorizado. Esse elemento persistirá mesmo após a abolição.
Finalmente, é importante salientar outro elemento duradouro da políti-
ca internacional do Brasil. Trata-se da tendência em se posicionar como
rival dos Estados hispano-americanos. A política hegemonista em relação
aos vizinhos, a ambição à posição de liderança regional, o temor a determi-
nadas configurações sociais reformistas do republicanismo e do jacobinismo
hispano-americanos e a oposição às tendências integradoras do pan-
americanismo de orientação bolivarista fizeram muitas vezes o Brasil se as-
sociar às grandes potências contra os países latino-americanos. Assim, o
Brasil será considerado, e considerará a si próprio, um “país diferente” do
restante da América Latina.

3. A UNILATERALIDADE SOB HEGEMONIA NORTE-AMERICANA

A segunda fase da política exterior brasileira abrange desde a gestão Rio


Branco (1902-1912) até o fim do governo Juscelino Kubitschek (1956-
1961) e tem como temática principal as relações hemisféricas. A inserção
brasileira no sistema interamericano nesta fase caracterizou-se por uma
“aliança não-escrita” com os Estados Unidos, país do qual nossa economia
passou a depender prioritariamente. Durante esse período, variaram as
formas dessa “aliança”: “de acordo, sempre que possível”, “nobre emula-
ção”, “parceiros prediletos” ou “satélites privilegiados”. Entretanto, não se
duvidava de que todas essas nuanças se inseriam numa mesma perspecti-
va, a de que a “aliança” com Washington constituía a espinha dorsal da
política exterior brasileira.
Durante a primeira metade do século XX, como foi ressaltado, a diplo-
macia brasileira teve como tendência predominante a inserção no contexto
hemisférico, em que o eixo principal era a relação com os Estados Unidos.
Não se tratava apenas da dependência em relação aos Estados Unidos, mas
do fato de o Brasil centrar sua política externa no estreitamento das relações
com Washington, na perspectiva da “aliança não-escrita” concebida duran-
te a gestão Rio Branco. A dependência, enquanto tal, prosseguiu depois
dessa fase, mas a tônica não era mais essencialmente a busca de uma aproxi-
mação privilegiada com os Estados Unidos. Ao longo dessa fase, houve

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momentos de busca de uma relativa “autonomia na dependência”, ou de


barganha para a defesa de certos interesses brasileiros, como durante a ges-
tão Rio Branco e o primeiro governo Vargas.
A gestão Rio Branco (1902-1912) foi marcante, uma vez que nela foram
demarcadas vantajosamente as fronteiras amazônicas. Durante o auge do
ciclo da borracha, o conflito do Acre evidenciou a determinação e a conti-
nuidade da política exterior brasileira. Além disso, Rio Branco desenvolveu
uma política de defesa dos interesses nacionais numa época de dificuldades
devidas ao reordenamento mundial. A aliança com os Estados Unidos, a par
da subordinação evidente, assinalava a busca de uma estratégia de barga-
nha, com vistas ao fortalecimento da posição internacional do Brasil.
O restante da República Velha (1912-1930) e o mandato do presidente
Dutra (1946-1951) caracterizaram-se, em oposição, por uma dependência
relativamente passiva em relação aos Estados Unidos. Após a morte de Rio
Branco, e sobretudo com a Primeira Guerra Mundial, os interesses norte-
americanos afirmaram-se de forma assimétrica. Nos anos 1920, o desgaste
da República cafeeira fez inclusive que a diplomacia brasileira refluísse. A
crise de 1929, finalmente, desarticulou ainda mais a capacidade do país de
formular uma política externa mais positiva.
Todavia, devido à ascensão do projeto varguista de desenvolvimento, o
período 1930-1945 pautou-se por uma tentativa consciente de tirar pro-
veito da conjuntura internacional e da redefinição da economia brasileira,
pela utilização da política externa como instrumento estratégico para lograr
a industrialização do país. É necessário ressaltar, entretanto, que o estágio
embrionário do desenvolvimento brasileiro e as escassas possibilidades ofe-
recidas pelo contexto internacional, a longo e médio prazos, limitaram o
alcance dessa inovação introduzida por Vargas. A diplomacia pendular do
Brasil, entre Washington e Berlim, durante a preparação da Segunda Guer-
ra Mundial buscava, em essência, reativar a velha “aliança privilegiada” com
os Estados Unidos, inovando-a com outras formas de cooperação econômi-
ca. Em suma, Vargas ensaiava uma nova política externa em uma situação
ainda dominada por velhas estruturas, de alcance regional.
A derrubada do ditador estadonovista e o caráter da política externa do
governo Dutra evidenciaram esses elementos limitativos. Além do mais, a
tendência a formas mais ou menos passivas de acomodação submissa aos

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Estados Unidos ainda se faria sentir entre 1945 e 1964, especialmente du-
rante o governo Dutra. Porém, a volta de Vargas ao poder vai significar uma
importante mudança. É inegável que ainda iria persistir em larga medida a
ilusão de que o Brasil poderia, através de uma barganha nacionalista, voltar
a lograr estabelecer vínculos privilegiados com os Estados Unidos. A ilusão
persistiu até o final do governo Kubitschek. Mas a situação nos anos 1950
era diferente. O desenvolvimento econômico e a progressiva afirmação de
um novo perfil sociopolítico da sociedade brasileira impunham novas de-
mandas à política exterior.
A década de 1950 abria-se com o incremento da urbanização e da indus-
trialização, a afirmação de uma burguesia industrial, de segmentos médios
urbanos, de uma jovem classe operária e de outros trabalhadores urbanos e
rurais. O sistema político tinha de responder à crescente participação po-
pular, enquanto as contradições da sociedade brasileira constituíam um ter-
reno fértil para os conflitos sociais. Assim, Vargas viu-se na contingência de
retomar o projeto de desenvolvimento industrial por substituição de im-
portações, incrementando a indústria de base. O setor externo da economia
jogava, neste quadro, um papel fundamental. A obtenção de capitais e
tecnologias só poderia ser lograda com o incremento da cooperação econô-
mica com a potência então hegemônica do mundo capitalista, os Estados
Unidos. No quadro da Guerra Fria, entretanto, o espaço de manobra era
muito limitado para atrair a atenção norte-americana, visando a suplantar o
“descaso” de Washington para com a América Latina e, em particular, para
com o Brasil.
Foi nesse quadro que Vargas procurou implementar uma barganha nacio-
nalista, a qual consistia em apoiar os Estados Unidos no plano político-
estratégico da Guerra Fria em troca da ajuda ao desenvolvimento econômi-
co brasileiro. Essa política, ao mesmo tempo, fortaleceria a posição interna
do governo, granjeando-lhe apoio de diferentes forças políticas domésticas.
As contradições internas cada vez mais pronunciadas e os magros resultados
obtidos no plano externo atingiram um ponto grave, a partir de 1953, com
a eleição do republicano Eisenhower. Neste momento, Vargas viu-se na
contingência de aprofundar sua barganha diplomática, no intuito de rever-
ter um quadro crescentemente adverso. O problema, contudo, era que o
cenário internacional não oferecia suficientes alternativas, pois os países so-

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cialistas ainda eram considerados “inimigos”, a Europa ocidental e o Japão


mal haviam concluído a reconstrução econômica, enquanto o terceiro mun-
do recém-despertava como realidade política devido ao embrionário estágio
da descolonização. A América Latina, por seu turno, encontrava-se sob forte
pressão dos Estados Unidos, além de politicamente bastante dividida.
De qualquer forma, Vargas procurou tirar proveito dos limitados espa-
ços, além de tentar criar outros. Todavia, mesmo esse esboço de
multilateralização, o qual visava mais a barganha com os Estados Unidos do
que uma nova forma de inserção no plano mundial, viu-se obstaculizado
pelos acirrados conflitos internos, em que a oposição articulava-se direta-
mente com Washington, o que levou ao isolamento do governo e ao suicí-
dio do presidente em 1954.
A derrubada do governo Vargas e a reação conservadora que se seguiu,
tanto no plano interno como, sobretudo, no externo, evidenciaram que a
barganha nacionalista havia se tornado uma política incômoda para o status
quo internacional hegemonizado pelos Estados Unidos. A tentativa precoce
de promover uma diplomacia não linearmente subordinada a Washington
se apoiava em fatores objetivos em desenvolvimento, e não apenas na vonta-
de política de um líder populista. Por isso significou o esboço de uma nova
política externa brasileira, que conhecerá seu amadurecimento com a Políti-
ca Externa Independente.
Entre 1954 e 1958, essa linha política conheceu um sério retrocesso,
e houve um autêntico hiato com relação às tendências marcantes do perío-
do. A gestão Café Filho (1954-1955) caracterizou-se pela abertura econô-
mica absoluta ao capitalismo internacional e pelo retorno do alinhamento
automático em relação à diplomacia norte-americana, tal como no governo
Dutra. O projeto de desenvolvimento foi momentaneamente abandonado
em nome de um liberalismo econômico extremado, enquanto a barganha
nacionalista desaparecia das palavras e atitudes do governo. Tratava-se da
afirmação da diplomacia da Escola Superior de Guerra e de sua concepção
de segurança e desenvolvimento.
Com a ascensão de Kubitschek ao poder, em 1956, a situação se alterou
em certo sentido. O Brasil continuou calcando sua política externa no ali-
nhamento automático aos Estados Unidos, política concentrada na diplo-
macia hemisférica. Também prosseguiu a abertura ampla da economia ao

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capital internacional. Contudo, JK retomou o projeto de industrialização,


só que agora com base no setor de bens de consumo durável para as classes
de média e elevada renda. Assim, Kubitschek conseguia conjunturalmente
um espaço em que se harmonizavam os interesses da potência hegemônica
e de um projeto de industrialização alterado. É necessário salientar, todavia,
que tal política foi possível, entre outros fatores, pelo retorno pleno da Eu-
ropa ocidental às relações econômicas internacionais, fornecendo alternati-
vas comerciais e financeiras ao Brasil, sem confrontação com Washington.
Esse hiato, com suas duas fases distintas, no entanto, encerrou-se em
1958, com a retomada da barganha nacionalista por JK em termos muito
semelhantes aos de Vargas. A crise dos milagrosos “50 anos em 5” e deter-
minadas alterações internacionais, como a criação da Comunidade Econô-
mica Européia, a reeleição de Eisenhower num quadro de crise e o descon-
tentamento latino-americano, bem como as pressões do Fundo Monetário
Internacional (FMI), levaram o governo a retomar uma ativa barganha na-
cionalista através da Operação Pan-americana (OPA), que objetivava atrair a
atenção dos Estados Unidos para a América Latina e obter maiores créditos
nos marcos do sistema interamericano, comprometendo a Casa Branca com
um programa multilateral de desenvolvimento econômico de largo alcance.
A OPA pretendia não só incrementar os investimentos nas regiões econo-
micamente atrasadas do continente, compensando a escassez de capitais
internos, mas também promover a assistência técnica para melhorar a pro-
dutividade e garantir os investimentos realizados, proteger os preços dos
produtos primários exportados pela América Latina, bem como ampliar os
recursos e liberalizar os estatutos das organizações financeiras internacio-
nais. Ao contrário da Aliança para o Progresso, que priorizava os capitais
privados e as relações bilaterais, a OPA enfatizava a utilização de capitais
públicos e a multilateralização das relações interamericanas. Paralelamente,
JK buscou expandir a barganha para a área socialista e terceiro-mundista,
mas de forma extremamente acanhada. A economia brasileira se internacio-
nalizava progressivamente, e os conflitos sociais se exacerbavam, enquanto
as repercussões da Revolução Cubana criavam problemas adicionais. Não
podendo agir além do que lhe permitiam suas bases de sustentação política,
a diplomacia de JK permanecerá no meio do caminho, empurrando para
seus sucessores decisões que não podia ou não estava disposta a tomar.

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4. A MULTILATERALIDADE DURANTE O DESGASTE


DA HEGEMONIA NO SISTEMA MUNDIAL

A terceira fase da política externa brasileira abarca o período que se inicia


com a Política Externa Independente e vem até nossos dias. As caraterísticas
básicas do período são a multilateralização das relações exteriores e os com-
ponentes ideológicos nacionalistas, com os quais o alinhamento automático
em relação aos Estados Unidos passa a ser questionado. Ainda que a depen-
dência do Norte industrializado persista, o aprofundamento do caráter
multinacional do capitalismo permite a introdução de elementos novos.
Conforme Werneck da Silva,

“até este terceiro ‘momento’ o eixo Norte–Sul dominava as


diretrizes que formulavam a nossa política externa, confi-
gurando-se uma dependência tão forte e exclusiva ao mun-
do Norte-atlântico nas relações internacionais, que elas fi-
caram marcadas pelo traço da unilateralidade. Neste tercei-
ro ‘momento’, extremamente polêmico e diversificado nas
nuanças conjunturais, começamos a praticar, no possível,
a multilateralidade. Vislumbra-se a primeira oportunidade
de horizontalizar (eixo Sul–Sul) ou de diagonalizar (eixo Sul–
Leste) nossa política externa, mas isto sem negar totalmen-
te a verticalização (eixo Norte–Sul). Com a horizontalização
passaríamos a valorizar mais as nossas relações com a
América Latina e a África. (...) Ora, para que ocorra este
reposicionamento nos sistemas interamericano e mundial,
é preciso discutir a liderança dos Estados Unidos” (Silva,
op. cit., p. 31).

Em 1961 Jânio Quadros e seu chanceler Afonso Arinos lançaram a Polí-


tica Externa Independente (PEI), que tinha como princípios a expansão das
exportações brasileiras para qualquer país, inclusive os socialistas, a defesa
do direito internacional, da autodeterminação e a não-intervenção nos as-
suntos internos de outras nações, uma política de paz, desarmamento e
coexistência pacífica, apoio à descolonização completa de todos os territó-

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rios ainda dependentes e a formulação autônoma de planos nacionais de


desenvolvimento e de encaminhamento da ajuda externa. A raiz de tal di-
plomacia se encontrava nas necessidades do desenvolvimento brasileiro, que
sinalizavam para a mundialização da política externa, autonomizando-a dos
Estados Unidos, que não contribuíam para a economia nacional, como de-
sejavam as elites em troca de seu anterior alinhamento com Washington.
Tentando agradar o capital internacional pelo programa de austeridade, os
setores populares pela reforma e a pequena-burguesia através da onda morali-
zadora com que enfrentava os escândalos de corrupção, Jânio Quadros ia na
verdade ampliando o descontentamento e a oposição a seu governo. A direita
e os Estados Unidos reprovavam sua política externa, enquanto a esquerda e
os segmentos populares criticavam duramente o programa econômico-finan-
ceiro. Enquanto o presidente, com seu estilo personalista, se isolava das diver-
sas forças políticas, os atritos se multiplicavam. As iniciativas para estabelecer
relações diplomático-comerciais com os países socialistas (URSS – União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas – e Leste Europeu), o apoio à luta pela inde-
pendência das colônias africanas de Portugal, a defesa da não-ingerência em
relação à Revolução Cubana, a aproximação e a cooperação com a Argentina
(Tratado de Uruguaiana) e a retórica nacionalista e terceiro-mundista descon-
tentaram Washington e as forças armadas.
Marcado pela suspeição ideológica, o governo Goulart será caracterizado
pela instabilidade e pelo imobilismo. No plano diplomático, o novo
chanceler, San Tiago Dantas, aprofundou a PEI como “defesa do interesse
nacional”, voltada para o desenvolvimento, a soberania e, explicitamente, a
reforma social. Apesar de não conseguir se implementar plenamente, a PEI
gerou atritos crescentes com os Estados Unidos, devido à recusa brasileira à
expulsão de Cuba da Organização dos Estados Americanos (OEA) (Punta
del Este, 1962), à política de encampação de empresas estrangeiras por
Leonel Brizola e outros governadores e à aproximação em relação aos países
socialistas (restabelecimento de relações com a URSS em 1962) e aos países
nacionalistas da América Latina. Além dos caminhos e descaminhos da po-
lítica do regime populista preocuparem a Casa Branca, a PEI, especialmen-
te, encontrava-se sob a mira do governo norte-americano.
Com o golpe de 1964 tem início o regime militar e uma nova fase da
política externa brasileira, a qual, todavia, será marcada por traços de conti-

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nuidade. O governo Castelo Branco (1964-1967) representou um verda-


deiro recuo, abandonando o terceiro-mundismo, o multilateralismo e a di-
mensão mundial da PEI, regredindo para uma aliança automática com os
Estados Unidos e para uma diplomacia de âmbito hemisférico e bilateral.
O que embasava tal política era a geopolítica típica da Guerra Fria, teorizada
pela Escola Superior de Guerra, com seu discurso centrado nas fronteiras
ideológicas e no perigo comunista. Em troca da subordinação a Washing-
ton e do abandono da diplomacia desenvolvimentista, o Brasil esperava
receber apoio econômico. O chanceler Juracy Magalhães chegou a afirmar
que “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Como prova
de lealdade ao “grande irmão do norte”, o Brasil rompeu relações com Cuba
em maio de 1964 e enviou tropas à República Dominicana em junho de
1965 sob bandeira da OEA, onde também apoiava os Estados Unidos na
tentativa de constituir uma Força Interamericana de Defesa.
No governo Costa e Silva (1967-1969), as relações internacionais repre-
sentaram uma ruptura em relação ao governo anterior, contrariando fron-
talmente Washington. A Diplomacia da Prosperidade do chanceler Maga-
lhães Pinto, enquanto política externa voltada para a autonomia e o de-
senvolvimento, assemelhava-se muito à PEI, embora sem fazer referência à
reforma social. Ressaltava que a détente entre os Estados Unidos e a URSS
fazia emergir o antagonismo Norte–Sul, e em função disso se definia como
nação do terceiro mundo e propugnava uma aliança com este, visando a
alterar as regras injustas do sistema internacional. Tal foi a tônica na II
UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvi-
mento), em que o discurso do representante brasileiro lhe valeu a indicação
para o recém-criado Grupo dos 77, bem como na recusa em assinar o Trata-
do de Não-Proliferação Nuclear (TNP).
Na análise da política externa do regime militar, é possível identificar
fases bem definidas, com características próprias, apesar da existência de
diversidades internas e de determinados traços comuns entre elas. A pri-
meira fase, o governo Castelo Branco, constituiu um período atípico, com
alinhamento automático aos Estados Unidos, formalmente segundo a con-
cepção de fronteiras ideológicas da Doutrina de Segurança Nacional
antiesquerdista. Houve um nítido refluxo diplomático para o âmbito
hemisférico, recuando das iniciativas esboçadas pela Política Externa Inde-

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pendente, com a primazia da ordem interna e do saneamento econômico


nos moldes do FMI. Durante esta fase foi dominante a concepção “liberal-
imperialista”, calcada no princípio de uma diplomacia interdependente (ou
dependente). Contudo, é preciso reconhecer que o alinhamento brasileiro
foi menos profundo do que se pode pensar, pois muito da subserviência
externa foi resultante de problemas internos. Durante a “correção de rumos”
de Castelo Branco, igualmente estavam sendo lançadas as bases de um novo
ciclo de desenvolvimento. Portanto, muito das características de sua políti-
ca externa pode ser considerado um efeito conjuntural.
A segunda fase foi constituída pelos governos Costa e Silva, da Junta
Militar (agosto a outubro de 1969), e Emílio Garrastazu Médici (1969-
1974), caracterizando-se pelo retorno a uma diplomacia voltada para o “in-
teresse nacional” do desenvolvimento, embora ainda marcada por um dis-
curso aparentemente referenciado às fronteiras ideológicas. Este último as-
pecto se deveu, sobretudo, a elementos de política interna, como os con-
frontos abertos com os setores de oposição e, inclusive, a luta armada. Con-
sistia, pois, numa forma de legitimação política interna. Iniciando com
uma série de confrontos com a Casa Branca (governo Costa e Silva), houve
posteriormente uma relativa margem de iniciativa autônoma nas relações
com os Estados Unidos, mas ainda situadas no âmbito regional. A conjun-
tura interna, marcada pela luta contra os grupos de esquerda, fez do Brasil
um “problema” e permitiu certa convergência com Washington, ao mesmo
tempo em que o “milagre econômico” era impulsionado. Essa “aliança com
autonomia” foi também possível devido ao redimensionamento da estraté-
gia norte-americana pela administração Nixon–Kissinger, que se apoiava
em aliados regionais que desempenhavam o papel de “potência média”.
A terceira fase abrangeu os governos Ernesto Geisel (1974-1979) e João
Figueiredo (1979-1985). O Pragmatismo Responsável retomou as linhas
gerais da Política Externa Independente e, embora adotasse uma postura
menos politizada e mais conservadora (ausência de referência a reformas
sociais internas), avançou muito mais em termos práticos. Trata-se do apo-
geu da multilateralização e da mundialização da política externa brasileira.
A redemocratização pouco viria a alterar a linha diplomática implantada
por Geisel, embora a segunda metade dos anos 1980 tenha presenciado a
afirmação de uma conjuntura internacional adversa, que desembocará na

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“crise do multilateralismo” a partir de 1990. Nesta terceira fase, bem como


na segunda, prevaleceu a concepção “nacional-autoritária”, de viés
autonomista e desenvolvimentista.
A política externa do período, salvo o hiato de Castelo Branco, apresen-
tava-se como um instrumento de apoio ao desenvolvimento econômico
industrial e à construção do status de potência média, representando o
ponto alto de uma estratégia iniciada com Vargas, mas cujas origens mais
remotas se encontram na ideologia tenentista. Tal política, ao longo do
regime militar, conduziu à busca de uma maior autonomia na cena inter-
nacional, produzindo-se um crescente processo de multilateralização e
mundialização, de dimensão tanto econômica como política. Neste pro-
cesso, o país necessitava exportar produtos primários de colocação cada
vez mais difícil no mercado mundial, e para tanto as relações com as Europas
capitalista e socialista, com a China Popular e com o Japão foram particu-
larmente importantes.
Mas a recente industrialização tornava necessário buscar mercados tam-
bém para os produtos manufaturados e serviços, e para tanto as relações
com América Latina, África, Oriente Médio e Ásia foram decisivas. Con-
tudo, o país necessitava também importar capital, tecnologia e máquinas,
fazendo-se necessário manter boas relações com o Norte capitalista, espe-
cialmente com os pólos emergentes europeu e japonês, mas também com
o campo soviético. Com o primeiro choque petrolífero, também a impor-
tação de petróleo se tornou uma questão estratégica, implicando um
estreitamento de relações com os países produtores, especialmente do
Oriente Médio.
A utilização da política externa como instrumento de desenvolvimento,
aliada às conseqüências do desgaste das hegemonias no sistema mundial,
configurou a necessidade de redefinir as relações com os Estados Unidos,
imprimindo maior autonomia à diplomacia brasileira em face do “aliado
privilegiado”. Para escapar à acentuada dependência diante dos Estados
Unidos e para barganhar termos mais favoráveis para essa relação, o Brasil
ampliou sua diplomacia para outros pólos capitalistas (Europa Ocidental e
Japão), aprofundou sua atuação nas organizações internacionais e buscou
estreitar ou estabelecer vínculos com o terceiro mundo e com o mundo
socialista. Assim, a “verticalidade Norte–Sul” passou a coexistir com a

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“horizontalidade Sul–Sul” e a “diagonalidade Sul–Leste”. Tratava-se do apo-


geu do processo de multilateralização.
Ultrapassando a dimensão de mero campo de barganha, a multilatera-
lidade conduziu efetivamente à mundialização da diplomacia brasileira,
introduzindo mudanças qualitativas. Os vínculos com alguns países socia-
listas, com a China Popular e com países-chave do Oriente Próximo consti-
tuíram relações autônomas e eqüitativas entre potências de porte médio,
contrariando alguns pressupostos de um sistema internacional sob
hegemonia do Norte capitalista e industrial.
Apesar do inegável avanço que essa política representou, ela ficou aquém
de suas possibilidades, considerando-se as brechas existentes no sistema
internacional de então e as potencialidades político-diplomáticas do país.
Acreditamos que tal “timidez” se deveu principalmente às decorrências de
uma estrutura social profundamente excludente, o que limitou e entorpe-
ceu a ação internacional do país. Aliás, o adjetivo “responsável” agregado ao
pragmatismo também pode ser interpretado como um elemento de políti-
ca interna conservadora (modernização econômica sem reforma social), ao
contrário da Política Externa Independente, que teria sido “irresponsável”
por associar a diplomacia autônoma a mudanças sociais domésticas. Mais
ainda, muito da mobilização externa de recursos se deveu à tentativa de
manter internamente uma pax conservadora. Dialeticamente, era preciso
ser ousado externamente para conservar internamente.
Por outro lado, o elevado grau de internacionalização da economia brasi-
leira fez que muitos setores empresariais, governamentais e políticos prefe-
rissem apostar em vínculos dependentes, inclusive como condição para
manter intocadas as estruturas sociais internas. Além disso, quando as difi-
culdades externas cresceram na passagem dos anos 1970 para os anos 1980,
muitos tentaram negociar uma acomodação com poder hegemônico, em
lugar de prosseguir numa estratégia autonomista cada vez mais onerosa.
Contudo, é forçoso reconhecer que o paradigma das relações exteriores
dedicadas a dar suporte ao desenvolvimento econômico-industrial logrou
alcançar grande parte de seus objetivos. O Brasil, ainda que marcado pelas
deficiências sociopolíticas bem conhecidas, converteu-se no único país ao
sul do Equador a possuir um parque industrial completo e moderno,
posicionando-se entre as dez maiores economias do mundo. Este sucesso

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do nacional-desenvolvimentismo foi, todavia, obscurecido pelas transfor-


mações do cenário mundial nos anos 1980, bem como por suas repercus-
sões internas. Mesmo assim, o modelo resistiu durante o primeiro governo
pós-regime militar.
Com o encerramento do regime militar em 1985, a política externa da
Nova República apresentou uma evolução singular. O ministro Olavo Setúbal
mostrou-se determinado a romper com a linha diplomática do pragmatismo
responsável e do universalismo. Argumentava que o Brasil era um país oci-
dental, que deveria maximizar suas oportunidades individuais, em coopera-
ção com os Estados Unidos, para chegar ao primeiro mundo. Obviamente
sua ênfase foi de afastamento do terceiro mundo e de suas reivindicações.
Sua política se baseava em larga medida na situação internacional, caracte-
rizada pela relativamente bem-sucedida tentativa norte-americana de rea-
firmar sua liderança, pela crise e pela reforma do socialismo (a ascensão de
Gorbachov foi praticamente simultânea ao início da Nova República) e
pelas crescentes dificuldades do terceiro mundo, pois em 1985, na Reu-
nião de Cúpula do G-7 em Cancún, o diálogo Norte–Sul foi abandonado.
Contudo, o Itamaraty resistiu a essa nova orientação, que se assemelhava à
diplomacia de Castelo Branco. Assim, no início de 1986 o chanceler era
substituído por Abreu Sodré. Uma de suas primeiras medidas foi o reata-
mento de relações diplomáticas com Cuba, que haviam sido até então
obstaculizadas por Setúbal e pelo Conselho de Segurança Nacional (CSN).
A cooperação com a URSS cresceu, especialmente com as esperanças des-
pertadas pela Perestroika, mas logo a crise soviética e a convergência entre
Moscou e Washington frustraram-na. Em relação à China, intensificou-se o
comércio e desenvolveram-se projetos tecnológicos, especialmente na área es-
pacial. Com relação ao terceiro mundo e aos organismos internacionais, Sarney
conservou a mesma linha que se iniciara com Geisel, mantendo atitudes que
lhe valeram até o respeito da esquerda. Com relação à África, ao Oriente
Médio, à Europa Ocidental e ao Japão, a política foi exatamente igual à do
governo Figueiredo, só que marcada por dificuldades ainda maiores. Também
permaneceu inalterada a diplomacia centro-americana do Brasil, com apoio
ativo ao Grupo de Contadora e crítica à atuação dos Estados Unidos.
Quanto mais se estreitavam as possibilidades de atuação do Brasil no
plano global, mais a América do Sul foi valorizada como alternativa estraté-

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gica, tendo seu eixo centrado na cooperação e na integração com a Argenti-


na, que vivia problemas semelhantes aos do Brasil. O retorno da democra-
cia, com os presidentes Raúl Alfonsín e José Sarney, se deu numa conjuntu-
ra adversa do ponto de vista econômico e diplomático. A crise da dívida fez
que os países latino-americanos ficassem extremamente vulneráveis às pres-
sões do FMI e do Banco Mundial, num quadro de graves dificuldades eco-
nômicas, enquanto o conflito centro-americano permitia ao governo Reagan
trazer a Guerra Fria para o âmbito hemisférico, o que lhe possibilitava tam-
bém utilizar instrumentos diplomáticos e militares para exercer uma pres-
são suplementar sobre a América Latina. Neste contexto os dois países ha-
viam aderido ao Grupo de Apoio a Contadora e desencadeado um
acercamento sistemático e institucionalizado.
Em 1985, através da Declaração de Iguaçu, foi estabelecida uma comis-
são para estudar a integração entre os dois países, e em 1986 foi assinada a
Ata para Integração e Cooperação Econômica, que previa a intensificação e
a diversificação das trocas comerciais. Fruto deste esforço, em 1988 foi fir-
mado o Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento Brasil–Argen-
tina, que previa o estabelecimento de um Mercado Comum entre os dois
países num prazo de dez anos. Por trás dessa cooperação, a par dos fatores já
apontados, estavam a marginalização crescente da América Latina no siste-
ma mundial, a tentativa de formular respostas diplomáticas comuns aos
desafios internacionais, a busca de complementaridade comercial, a cria-
ção de fluxos de desvio de comércio e um esforço conjunto no campo
tecnológico (particularmente no nuclear) e de projetos específicos. Para o
Brasil, especificamente, a integração permitia aumentar a base regional
para a inserção internacional do país, num caminho que conduzirá, em
1991, à criação do Mercosul.

5. A GLOBALIZAÇÃO E A CRISE DO MODELO

Nos anos 1990, o multilateralismo e o desenvolvimentismo entram em


crise, com o advento das políticas neoliberais, as quais tentam alinhar o
Brasil a uma “ordem mundial” estruturalmente instável.
Neste contexto, o Mercosul não constituía um fim em si mesmo, nem o
aspecto comercial representava o objetivo essencial, mas fazia parte de um

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projeto mais abrangente de redimensionamento da inserção internacional


dos países da região. Quando os Estados Unidos anunciaram as articulações
para a criação do NAFTA (North American Free Trade Agreement – Trata-
do de Livre Comércio da América do Norte) (como reação ao estabeleci-
mento do Mercosul e da União Européia), o Brasil respondeu lançando em
1993 a iniciativa da ALCSA (Área de Livre Comércio Sul-Americana) e
estabelecendo com os países sul-americanos e africanos a Zona de Paz e
Cooperação do Atlântico Sul (ZoPaCAS), numa estratégia de círculos con-
cêntricos a partir do Mercosul.
A primeira iniciativa estimulava as demais nações sul-americanas a se
associar ao Mercosul através da negociação de acordos de livre comércio
(Venezuela, Bolívia e Chile já negociaram formas de associação ao Mercosul).
A criação de uma área de integração sul-americana, com o Mercosul como
núcleo duro, ampliava a margem de manobra e a capacidade de resistência
ao poder de atração que o NAFTA exercia sobre os países latino-americanos
individualmente, como no caso do Chile. Além disso, a possibilidade de
uma integração regional ampliada criou alternativas para que os países do
subcontinente não ficassem tão expostos às pressões externas para adotar
planos liberais ortodoxos de ajuste, que seriam necessários para manter rela-
ções privilegiadas com os países desenvolvidos ou estar em condições de
participar do próprio NAFTA, o que se converteu em autêntico “canto da
sereia” para certas nações latino-americanas.
No segundo caso, a idéia era criar outro círculo concêntrico em volta do
Atlântico Sul, através da cooperação do Mercosul com a África do Sul pós-
apartheid e com os países recentemente pacificados da África Austral. Esse
novo espaço constituiria uma área de crescimento econômico, tirando pro-
veito das complementaridade existentes e potenciais. Além disso, essa inicia-
tiva ampliaria o quadro de cooperação Sul–Sul, além de abrir uma rota
permanente para os oceanos Índico e Pacífico, propiciando ainda condições
para a concertação de alianças estratégicas com potências médias e/ou mer-
cados emergentes do terceiro mundo. Este último aspecto parece ser parti-
cularmente importante para a diplomacia brasileira.
O que se deseja destacar com isto é que o Brasil passou a ocupar um
espaço de liderança regional que, mesmo sem desejar, gerou uma frente de
atrito e competição com os Estados Unidos. Além disso, o Mercosul se

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tornou um fator de atração na cena internacional, em face das disputas


entre os blocos do hemisfério Norte. Além disso, a implantação do NAFTA
foi acompanhada de problemas imprevistos. No dia em que entrou em
vigor, eclodiu o levante zapatista no sul do México, e no final de 1994, em
meio à crise política daquele país (assassinato do candidato oficial à presi-
dência da República), desencadeou-se a crise cambial e financeira, com o
“efeito tequila” repercutindo em toda a América Latina, reforçando ainda os
setores políticos norte-americanos opostos ao NAFTA. Em novembro de
1994, para completar o quadro, os republicanos venceram as eleições
legislativas nos Estados Unidos, tornando ainda mais difícil a aprovação do
fast track, peça-chave para manter os países latino-americanos voltados para
a integração com o Norte. Neste quadro relativamente adverso para a Casa
Branca foi lançada na Cúpula das Américas, realizada em Miami em de-
zembro de 1994, a iniciativa da Área de Livre Comércio das Américas
(ALCA).
Na ótica dos Estados Unidos, era preciso retomar a iniciativa política,
dando uma resposta aos avanços do Brasil/Mercosul e à crise de confiança
que a crise mexicana despertava no continente em relação à estratégia de
Washington. Como reação a isso, o Mercosul assinou um acordo marco de
cooperação com a União Européia em dezembro de 1995. A estratégia de
inserção internacional foi centrada no Plano Real, com a atração de capitais
estrangeiros via privatizações, causando enormes danos ao patrimônio nacio-
nal. O país se tornou deficitário no comércio exterior de forma sistemática,
pela primeira vez na história. O ufanismo liberal-globalista, marcado por
um filo-americanismo caricato, foi irradiado pelo governo em direção ao
Itamaraty e à sociedade em geral.
O segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (1999-2002),
contudo, coincidiu com o início da instabilidade financeira internacio-
nal, que golpeou duramente o modelo de inserção internacional que vi-
nha sendo seguido até então. O governo teve de alterar rumos e priorizar
a integração sul-americana, enquanto cresciam as pressões norte-america-
nas em favor da ALCA. Todavia, a eleição de George W. Bush e os atenta-
dos de 11 de setembro de 2001 deslocaram a agenda norte-americana
para fora da região, o que seguramente facilitou certos desdobramentos
políticos que viriam a ocorrer.

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Na América Latina as pressões norte-americanas cresciam, com a


militarização e o avanço da proposta da ALCA, em meio à crise do chamado
Consenso de Washington (agenda neoliberal para o continente). No Méxi-
co, encerrou-se a longa era de domínio do PRI (Partido Revolucionário
Institucional), com a vitória do pró-norte-americano Vicente Fox. Às pres-
sões contra Cuba e o regime popular-nacionalista de Chávez na Venezuela,
somou-se a proposta do Plano Colômbia de combate ao narcotráfico e às
guerrilhas de esquerda. Crises de governabilidade se espalharam pelo em-
pobrecido continente, especialmente no Peru, na Argentina e na Bolívia. A
Argentina, cujos dirigentes alegavam possuir relaciones carnales com os Es-
tados Unidos, sofreu um completo colapso econômico-financeiro no final
de 2001, sem receber nenhum socorro internacional, particularmente dos
Estados Unidos. O neoliberalismo encontrava-se na defensiva, pois, além
da crise econômica, Collor, Salinas de Gortary, Menen e Fujimori, antes
apontados como modelos, tornaram-se homens com dívidas a acertar com a
justiça de seus países.
Mas o pivô da região era o Brasil. Diante do avanço da ALCA e da crise
do Mercosul, procurou avançar a integração física dos países sul-americanos
(Cúpulas de Brasília em 2000 e de Guayaquil em 2002). O país procurava
construir um espaço econômico de contrapeso à ALCA, como forma de
constituir um pólo protagônico para a construção de um sistema internacional
multipolar. Contudo, o elemento decisivo foi a eleição presidencial de 2002,
com a vitória da esquerda com o candidato Luiz Inácio Lula da Silva. Abriu-
se espaço para uma reação de caráter tanto social como nacional, que pode
ter grande influência no fragilizado continente.
O atual curso da política externa brasileira teve início já em meados do
segundo governo Fernando Henrique Cardoso. Mas o ex-presidente não
possuía os requisitos para uma mudança que ultrapassasse um tímido
discurso crítico, o que coube ao atual mandatário. Em primeiro lugar, o
governo Lula devolveu ao Itamaraty a posição estratégica que anterior-
mente ocupara na formulação e na execução da política exterior do Brasil,
pois FHC dominara a parte política (“diplomacia presidencial”), o minis-
tro Malan a agenda econômica internacional, restando ao Ministério das
Relações Exteriores apenas a parte técnico-burocrática das negociações e
receber as críticas.

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Evidentemente, Lula desenvolve uma intensa agenda internacional, mas


como porta-voz de um projeto que transcende objetivos de projeção pessoal
e adesão subordinada à globalização. Aliás, esta é a grande diferença: o
“desalinhamento da política” externa em relação ao “consenso” liberal nor-
te-atlântico como forma de “recuperar a capacidade de negociação”. Ao aceitar
previamente os postulados e agendas dos países desenvolvidos, não havia
muito o que negociar, apenas adaptar-se (desde os anos 1970 FHC criticava
o desenvolvimentismo em suas conferências nos Estados Unidos). Visto pela
perspectiva do G-7, por que conceder alguma coisa a quem já aceitou seu
projeto? Ironicamente, hoje o Brasil tem melhor diálogo com Washington e
uma diplomacia mais respeitada, com capacidade de negociação.
Outro ponto importante é que o Brasil age com otimismo e vontade
política, criando constantemente fatos políticos na área internacional. An-
teriormente tínhamos uma baixa auto-estima, pois os governos Collor e
Cardoso viam o país como atrasado em relação aos ajustes demandados
pelos países ricos. Agora, ao contrário, o país se considera protagonista de
mesmo nível, com capacidade de negociação e portador de um projeto
que pode, inclusive, contribuir para inserir a agenda social na globalização.
Isso capacita o país para iniciativas como o ingresso num Conselho de
Segurança da ONU (Organização das Nações Unidas) reformado, como
membro permanente.
Finalmente, o Itamaraty, em lugar de se concentrar na tentativa de coo-
peração com países em relação aos quais somos secundários e em relação a
mercados grandes, mas saturados, buscou os espaços não ocupados. Ao nos
aproximarmos dos vizinhos sul-americanos, especialmente os andinos, da
África Austral, dos países árabes e de gigantes como Índia, China e Rússia,
nossa diplomacia logrou um avanço imediato e impressionante, com gran-
des perspectivas comerciais. A presença de empresários e de convidados
argentinos na delegação presidencial é uma marca importante na sensibili-
dade da nova diplomacia.
Além disso, a cooperação com esses países permitiu a construção de alianças
de geometria variável como o G3 e o G20, com influência marcante no
plano global. Em lugar de uma diplomacia de forte conteúdo ideológico, o
Brasil desenvolveu uma postura ativa e pragmática, buscando aliados para
cada problema, contestando sem desafiar os grandes (como nas negociações

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comerciais e no caso do desrespeito anglo-americano em relação à ONU),


respeitando sem respaldar a posição de países problemáticos como Venezuela,
Cuba, Líbia e Síria, por exemplo.
Enfim, o Brasil desenvolveu uma diplomacia própria, adequada à era da
globalização, com um projeto de desenvolvimento para o país. O problema
é que ela desperta imensas expectativas, e somente poderá dar resultados se
houver desenvolvimento econômico e geração de empregos (que nem sem-
pre estão juntos). Ajustes internos e esquemas externos foram realizados
para tanto, mas variáveis internacionais são importantes. Dependemos ain-
da de um mundo muito instável para que esse projeto dê resultados positi-
vos. Sem crescimento não conseguiremos consolidar os grandes avanços lo-
grados na área sul-americana, base de nossa inserção internacional.
Mas é preciso reconhecer que em 20 anos ocorreram mudanças políticas
significativas no país. Uma parte importante da sociedade “globalizou-se”
(no mau sentido da palavra, isto é, alienou-se) e perdeu a dimensão nacio-
nal. Quando o governo simplesmente manifesta certos pontos de vista, como
em relação ao direito de dominar o ciclo nuclear (com fins pacíficos), ou
adota medidas de soberania, como em relação ao problema da reciproci-
dade no fichamento de passageiros norte-americanos, vozes brasileiras se
levantam contra. Isso revela um agudo problema de identidade ou a persis-
tência de um sentimento de inferioridade. A política econômica, por exem-
plo, demonstra como a visão de mundo do Consenso de Washington conta-
minou parte da elite e dos especialistas.
A grande batalha, contudo, é a integração sul-americana, objetivo
prioritário do governo. Recuperar o Mercosul e associá-lo à Comunidade
Andina é o objetivo estratégico, base da inserção internacional do país
(Costa, 2004), e a alternativa viável à integração hemisférica projetada
pela ALCA. Da mesma forma, a cooperação nos campos diplomático, cien-
tífico, militar e econômico com os grandes países em desenvolvimento,
como Rússia, China, Índia e África do Sul, são uma condição indispensá-
vel para o país se tornar um dos pólos de poder num sistema mundial
multipolar e um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.
Pensar grande e agir, dentro de um projeto nacional soberano, é igual-
mente um elemento necessário para que o país possa atingir o desenvolvi-
mento econômico e social.

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Fátima V. Mello

Rupturas e continuidades da
política comercial do governo Lula
Fátima V. Mello 1

Este artigo propõe uma discussão sobre a política externa na área comer-
cial do primeiro governo Lula (2003-2006), a partir do ponto de vista das
organizações e dos movimentos sociais que atuam nesta área. A atuação
desses movimentos e organizações revela que a política externa brasileira na
área comercial tornou-se objeto de forte disputa no âmbito da política na-
cional, expondo como as posições negociadoras na arena comercial refletem
as opções de política interna e a correlação de forças doméstica.
Para tal, o artigo apresenta, em primeiro lugar, alguns tópicos de debate no
campo analítico, visando reforçar as abordagens que atestam a diluição das fron-
teiras entre as políticas externa e interna. A segunda parte do artigo propõe uma
análise da política comercial do primeiro governo Lula segundo as continuida-
des e rupturas em relação à política do governo anterior, particularmente no
caso das negociações da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) e da
Rodada de Doha da OMC (Organização Mundial do Comércio).

1. A DILUIÇÃO DAS FRONTEIRAS ENTRE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNA

Acabou-se o tempo em que se podia pensar a formulação da política


externa de forma dissociada da política doméstica. As posições externas do
Brasil nas negociações internacionais de comércio e as opções do país de
políticas internas não são de forma alguma distintas mas estão diretamente
articuladas, ao contrário do que propõe a abordagem realista clássica. A

1
Diretora da FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional) e secretária execu-
tiva da Rebrip (Rede Brasileira pela Integração dos Povos).

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diluição das fronteiras entre o exteno e o interno não significa, no entanto,


que o Estado nacional, o poder e outros elementos estruturais da ordem
internacional e que orientam a ação externa das unidades nacionais perde-
ram validade. Propomos aqui uma análise que seja uma combinação de
condicionantes externos e internos.
Grosso modo, é sabido que em um dos extremos do leque de abordagens
sobre as relações internacionais encontra-se o realismo clássico, cujas princi-
pais premissas seriam o fato de não existir autoridade acima dos Estados nacio-
nais, a dimensão absolutamente central do poder, a soberania dos Estados e a
separação entre as esferas doméstica e internacional. As perspectivas realistas
concebem, portanto, as relações internacionais totalmente centradas no Esta-
do, que por sua vez seria um ator unitário e racional, sem conflitos internos
nem fragmentações. O interesse nacional seria único, e de uma maneira geral
a dimensão de política doméstica seria irrelevante para a política internacio-
nal, muito embora autores como Aron considerem importante a dimensão
interna dos Estados e a natureza e a qualidade de cada uma das unidades do
sistema; Raymond Aron critica a idéia do interesse nacional sem conflito,
problematizando a questão de quem formula o interesse nacional. Stephen
Krasner também argumenta que para que se possa definir o interesse nacional
é necessário olhar para dentro do Estado a fim de examinar quais negociações
domésticas são necessárias. A maioria dos autores realistas, entretanto, focali-
za na correlação de forças entre Estados e mantém a visão de insulamento do
Estado. Este é o caso de Kenneth Waltz, que argumenta que o interesse nacio-
nal seria deduzido da posição do Estado em relação aos demais, ou seja, do
elemento estrutural da posição relativa do Estado.
Se fôssemos adotar apenas os dois extremos do espectro de abordagens
analíticas sobre relações internacionais, no pólo oposto ao realismo estaria
localizada a perspectiva de governo mundial. Os defensores de tal perspec-
tiva argumentam que há uma mudança qualitativa em curso no sistema, e
uma das expressões disso seria a pluridade de atores e de temas, entre eles a
participação e o peso político crescentes na política internacional de atores
não-estatais como as ONGs (Organizações não-governamentais) e os movi-
mentos sociais. O sistema atual seria caracterizado, portanto, pelo fim da
primazia das questões estratégico-militares, acompanhado da emergência
de valores e de normas compartilhados por todos os atores do sistema, por

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forte erosão das soberanias – resultante da intensa aproximação entre polí-


tica doméstica e internacional – e por altas dispersão e desagregação do
poder. Segundo tal perspectiva, ao acabar com a primazia dos temas estraté-
gico-militares, as questões da chamada “baixa política”, relacionadas ao bem-
estar dos cidadãos, e portanto mais próximas à formulação de demandas
societais, passam a ser objeto de negociação internacional. Além disso, a
natureza “global” dos problemas da atualidade resultaria quase que auto-
maticamente em cooperação fundada em valores comuns.
Na atualidade, embora seja possível identificar um grau razoável de ero-
são dos Estados nacionais no que diz respeito à possibilidade de formula-
rem autonomamente suas políticas diante da interdependência e da aproxi-
mação crescentes entre política doméstica e internacional, estes continuam
a ser os atores centrais das relações internacionais, cuja configuração, ao que
tudo indica, continuará sendo a de um sistema interestatal, embora tenda a
incorporar inúmeras e importantes mudanças resultantes de uma ordem
em transição. Algumas interpretações sugerem que, à medida que a idéia de
um mundo cada vez mais globalizado avança, mais perde força, em propor-
ção inversa, o pensamento realista. As evidências, porém, levam a crer que
se faz necessário um exame mais cuidadoso. É verdade, por exemplo, que os
Estados nacionais sofrem pressões e condicionamentos externos fortíssimos
advindos do capitalismo globalizado, e que os impactos dessa dinâmica são
devastadores, visto que as agendas de política econômica passam a ficar cada
vez mais dependentes de condicionamentos externos. O fenômeno da
globalização também desafia as premissas realistas do Estado nacional como
ator unitário, que vem perdendo sua exclusividade como ator das relações
internacionais, passando a conviver com a emergência de novos atores, como
é o caso de forças transnacionais de elevadíssimo poder (como o capital
financeiro) e de outras que atuam no campo da normatividade e da cons-
trução de valores e de regras a ser observados por todas as unidades do
sistema, como por exemplo as ONGs e os movimentos sociais. O reconhe-
cimento dessas evidências não resulta, entretanto, na conclusão de que ha-
veria um grave comprometimento das capacidades do Estado-nação; diante
desse contexto, ocorre uma perda de autonomia dos Estados nacionais em
relação à sociedade, porém não necessariamente perda de capacidade (Risse-
Kappen, 1995).

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Se a erosão dos Estados nacionais não vem se confirmando como tendên-


cia absoluta, por outro lado pode-se afirmar que há aspectos do paradigma
realista que estão sendo fortemente colocados em questão pelo fenômeno da
globalização. Este é o caso da premissa da separação entre política interna e
política externa. A idéia clássica de uma sociedade internacional na qual as
unidades se inter-relacionam sem interferir nos assuntos internos das ou-
tras já não existe no cenário atual (Lyons e Mastanduno, 1995).
Tal interação entre o doméstico e o internacional já havia sido proposta por
Putnam em seu modelo de jogos de dois níveis (Putnam, 1988), que defende
a integração entre política doméstica e internacional, mas com a manuten-
ção, no entanto, da unidade negociadora centrada no Estado. Embora reite-
rando a centralidade (porém não a exclusividade) do Estado nacional – o
Estado continua a ser o mediador entre o interno e o externo, e tem de en-
frentar o problema de compatibilizar as negociações internacionais com as
dinâmicas domésticas –, estes modelos interativos trazem implícita a idéia de
que os Estados não possuem mais o controle total nem do ambiente interna-
cional nem do doméstico. Putnam trabalha, portanto, com a idéia de jogos
em dois níveis, que integram a dinâmica doméstica com a política internaci-
onal, e com a necessidade de combinar a dimensão estrutural com o processo
decisório, mantendo a unidade negociadora centrada no Estado, ou seja, é o
Estado que negocia com a sociedade e faz toda a mediação.
Autores como Skidmore e Hudson (1993) organizam esta discussão se-
gundo as dimensões estatal e societal. No caso da dimensão estatal, a política
externa é distinta da política doméstica, dado que a primeira trata do interes-
se nacional, que por sua vez trata da sobrevivência do Estado. Neste caso, a
política externa não está sujeita à politização ou a diferentes pontos de vista,
pois supostamente ninguém pode ser contra a defesa da sobrevivência do
Estado, que se trata do bem público. A política externa, portanto, não faria
parte do conflito doméstico, caracterizando-se por ser uma política de Estado
que está acima dos conflitos da sociedade. Já a dimensão societal é resultante
de interesses particulares da sociedade, e é articulada à idéia de que a política
externa tem impactos diferenciados na sociedade. Ou seja, há políticas que
beneficiam determinados setores, enquanto outros são prejudicados. Essa
abordagem tem como foco a necessidade de examinar a política externa em
sua relação com a sociedade. Na verdade, temas como agenda econômico-

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comercial, meio ambiente, direitos humanos aproximam a política doméstica


da política externa, ocorrendo assim uma politização desta última.
As abordagens do tipo realista-estrutural não são adequadas, portanto,
para a análise da política externa brasileira recente na área comercial, pois
essas perspectivas partem de uma avaliação sobre as opções disponíveis para
determinado Estado nacional, de acordo com sua posição relativa dentro do
sistema internacional. Assim, para um país periférico e dependente como o
Brasil, restaria uma margem muito limitada de opções, pois são poucos os
seus recursos de poder para tentar alterar a chamada geografia comercial, ou
seja, as relações de poder que organizam as negociações de comércio no
sistema internacional atual. No entanto, sem deixar de considerar as limita-
ções estruturais do Brasil no sistema intenacional, é preciso reconhecer que
o país tornou-se um ator central no concerto de países que formam o núcleo
duro do processo decisório sobre o comércio mundial. As motivações e as
ferramentas negociadoras serão discutidas na próxima seção.

2. POLÍTICA COMERCIAL DO PRIMEIRO GOVERNO LULA:


CONTINUIDADES E RUPTURAS COM O PERÍODO ANTERIOR

Desde 2003, o Brasil passou a integrar o núcleo decisório de dois processos


de negociação comercial: a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) e a
Rodada Doha da OMC (Organização Mundial do Comércio). Estes dois pro-
cessos, somados ao investimento na integração da América do Sul, formam o
coração da política externa do primeiro governo Lula na área comercial.
Uma das principais rupturas em relação à política externa do período ante-
rior se fez sentir logo no primeiro ano do governo Lula, em 2003, quando os
negociadores brasileiros atuaram de forma coordenada em duas frentes para,
por um lado, esvaziar as negociações para a formação da ALCA e, por outro, na
reunião ministerial da OMC em Cancún, no México, para formar uma coalizão
de países em desenvolvimento – o G20 – com o intuito de tentar equilibrar e
desbloquear as complicadas negociações da Rodada de Doha (Mello, 2007).

2.1 A RODADA DE DOHA E A CRIAÇÃO DO G20


As iniciativas tomadas pelo governo brasileiro na reunião ministerial de
Cancún devem ser analisadas tomando-se como pano fundo o elemento

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estrutural que orienta o Brasil no âmbito da OMC: desde a Rodada Uru-


guai os governos brasileiros vêm buscando, primeiro no GATT (Acordo
Geral de Tarifas e Comércio) e posteriormente na OMC, a liberalização do
comércio agrícola. A prioridade dos diversos governos brasileiros sempre foi
a busca de ampliação do acesso aos mercados de produtos agrícolas nos
Estados Unidos e na União Européia, mediante redução de barreiras tarifárias
e não-tarifárias, eliminação dos subsídios à exportação e redução substan-
cial do apoio doméstico nesses países. Para tanto, o Brasil atuava essencial-
mente através de uma coalizão de países agroexportadores (desenvolvidos e
em desenvolvimento) conhecida como Grupo de Cairns. Desde o seu iní-
cio, o governo Lula não deixou dúvidas sobre o seu compromisso e sobre a
prioridade que daria à OMC e a uma solução para a Rodada de Doha. Em
sua percepção, o âmbito multilateral seria mais favorável ao Brasil porque
ali a configuração de forças seria melhor do que nos acordos regionais e
bilaterais, nos quais o Brasil teria que, isoladamente, medir forças com Es-
tados Unidos e União Européia (Rebrip, 2006).
O novo governo, portanto, investiu seu esforço negociador em viabilizar
os interesses comerciais da agricultura exportadora (o chamado agronegócio
ou agricultura patronal) por meio do avanço da Rodada de Doha. Esta
prioridade negociadora

O ESVAZIAMENTO DA ALCA

O acordo que resultou no esvaziamento da ALCA foi realizado na reunião


ministerial de Miami, em novembro de 2003. Elaborada pela então co-presidên-
cia Brasil–Estados Unidos, a Declaração Ministerial indicava que a partir daquela
reunião a ALCA seria negociada em dois pisos: 1) um piso mínimo, ou seja, uma
base comum aos 34 países, em que seriam incluídas obrigações em todos os
temas que sempre existiram nas negociações da ALCA (acesso a mercados, agri-
cultura, serviços, investimentos, compras governamentais, propriedade intelec-
tual, política de concorrência, subsídios, antidumping e direitos compensatórios,
e solução de controvérsias). A reunião de Miami, no entanto, não definiu o grau
de compromisso a ser assumido pelos 34 países em cada um desses temas e adiou

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“reflete o imenso peso que tem o agronegócio na estrutura de


poder político na sociedade brasileira – expresso, entre outros
exemplos, na bancada ruralista e na incapacidade de todos os
governos em resolver o problema histórico-estrutural que mar-
ca mais fortemente a sociedade brasileira que é o latifúndio.
Nenhum outro setor econômico tem tamanha relação orgânica
com as estruturas de poder no Brasil. Em nome da liberalização
agrícola o Brasil sempre concordou em fazer concessões nas
outras áreas de negociação, a exemplo das concessões em pro-
priedade intelectual (TRIPS) na Rodada Uruguai para conse-
guir um pífio acordo agrícola, e (na Rodada de Doha) acenou
com concessões em NAMA e em serviços” (Rebrip, 2006).

Outro fator importante a ser assinalado sobre a formação da posição


negociadora do Brasil na OMC durante o governo Lula é a abertura à
participação de organizações, de redes e de movimentos sociais nas ins-
tâncias de debate acerca da formação das posições negociadoras, o que
permite até mesmo o ingresso desses atores nas delegações oficiais de
governo durante reuniões ministeriais. De fato, o governo Lula avançou
como nunca em relação à transparência e à inclusão desses atores no

essas decisões substantivas para uma posterior reunião; 2) um segundo piso, em


que os países poderiam assumir níveis distintos de compromissos adicionais no
âmbito da ALCA, por meio de acordos bilaterais e/ou plurilaterais. Pode-se afir-
mar que em Miami, pela primeira vez, os Estados Unidos abriram mão – pelo
menos temporariamente – de sua proposta de ALCA abrangente, ou seja, em que
todos os 34 países deveriam estabelecer compromissos plenos em todas as áreas
em negociação. Isso foi considerado uma derrota temporária da política externa e
de comércio do governo George W. Bush, mas que em seguida foi compensada
pelo avanço de acordos bilaterais de livre comércio (algo como mini-ALCAs) com
Colômbia, Peru, países da América Central e República Dominicana, além de
um acordo para a liberalização de investimentos com o Uruguai, em uma clara
tentativa de isolar e fragmentar o Mercosul.

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debate interno de formação da posição brasileira. O fato de terem sido


incluídos no jogo não significa, no entanto, de forma alguma, que o
governo tenha adotado as posições desses setores sociais. Embora haja
canais de diálogo, as divergências destes em relação à posição do gover-
no na OMC e em outras negociações comerciais são conhecidas e
explicitadas de forma permanente.
Ainda há que se mencionar que, diferentemente de outros governos, no
governo Lula sentam-se à mesa de negociações também ministérios (como
o do Desenvolvimento Agrário, do Meio Ambiente e outros) mais sensíveis
às reivindicações dos movimentos sociais. A combinação de pressões a partir
da sociedade civil e desses ministérios tem garantido alguns (pequenos)
avanços nas posições negociadoras do país, por exemplo na defesa da agri-
cultura familiar e camponesa diante das ameaças do “livre comércio” – como
é o caso de algumas sinalizações de apoio do governo brasileiro ao tema das
salvaguardas para produtos especiais e medidas de trato especial e diferencia-
do para os produtos da agricultura familiar.
Apesar dessas novidades, o governo Lula deu continuidade à política co-
mercial dos governos anteriores em um aspecto fundamental, que é a
centralidade do objetivo de liberalização do comércio agrícola. Lula buscou
a liberalização através de uma nova política de alianças na OMC, em que a
importância do Grupo de Cairns na estratégia brasileira deu lugar a uma

DIVERGÊNCIAS NA OMC

As divergências em curso na Rodada de Doha são amplas e traduzem dife-


renças políticas em relação às concepções sobre o peso e a autonomia que deve
ter a política internacional diante das políticas domésticas. Ou seja, divergem
sobre o grau de autonomia que a esfera da política nacional deve, ou pode, ter
em relação à economia e ao poder decisório das instituições internacionais que,
no caso da OMC, espelham os interesses de empresas globais. As divergências
nas negociações da OMC envolvem muitos problemas, e talvez um dos mais
difíceis de ser equacionado diga respeito às negociações sobre acesso a merca-
dos em que, de um lado, os chamados países em desenvolvimento priorizam a

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nova aliança com as maiores economias do mundo em desenvolvimento,


resultando na criação do G20, no qual se destacavam Brasil, África do Sul,
Índia e China (Rebrip, 2006). A aposta brasileira na formação do G20
buscou atender, portanto, a dois objetivos da política externa: um, mais
ligado aos interesses econômicos do setor agroexportador, de ampliar os
mercados para os produtos do agronegócio e das grandes empresas a ele
vinculadas; e outro, de natureza política, de liderar uma coalizão de países
em desenvolvimento de forma a buscar uma alteração na correlação de for-
ças no sistema internacional, que primeiro passasse pela democratização das
negociações na OMC, para depois ir produzindo efeitos em outras instân-
cias do sistema internacional.
Na prática, a iniciativa de criação do G20 e toda a movimentação cujo
ápice se produziu na reunião ministerial de Cancún teve um resultado po-
lítico da mais alta relevância: produziu uma quebra do ambiente existente
até 2002 no sistema multilateral de comércio, alterando assim a balança de
poder e o processo decisório na OMC. Este é um fato muito relevante se
levamos em consideração que até então o núcleo formado pelos países do
Norte mantinha um padrão extremamente fechado em relação ao processo
de tomada de decisões, caracterizado pelos chamados Green Rooms, quan-
do os países desenvolvidos, em momentos-chave, se fechavam para decidir
os rumos das negociações e os demais países ficavam do lado de fora aguar-

ampliação de suas exportações agrícolas para os mercados do Norte e, de outro,


os chamados países desenvolvidos concentram-se no interesse de expansão dos
negócios de suas empresas na área de serviços (financeiros, telecomunicações,
de água, energia, audiovisual etc.), de seus bens industrializados e de proprieda-
de intelectual. Desde a VI Reunião Ministerial da OMC, realizada em Hong
Kong em dezembro de 2005, o foco da disputa e das inúmeras tentativas de
desbloqueio das negociações está situado nas barganhas cruzadas entre agricul-
tura, serviços, propriedade intelectual e NAMA (Non-Agricultural Market
Access); trata-se do acordo para a redução de tarifas de importação de produtos
industrializados e da liberalização do comércio de produtos florestais como
madeira e pesca, entre outros.

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dando as decisões. O resultado do “empate” inaugurado em Cancún é que


hoje há diversas coalizões de países (além do G20, o G90, o G33, entre
outras cuja formação se dá em torno de interesses mais imediatos e
conjunturais) que se reúnem em torno de agendas comuns.
O investimento no G20 passou a ser objeto de debate interno no Brasil:

“o agronegócio inicialmente se opôs à nova estratégia do


governo brasileiro. Para alguns líderes deste setor a
relativização da centralidade do acesso a mercados era uma
inaceitável concessão2. O governo, contudo, conseguiu rapi-
damente convencer o agronegócio de que o G20 era na rea-
lidade a maneira mais eficaz de conseguir uma liberalização
agrícola nas áreas possíveis (subsídios). Já as organizações da
sociedade civil consideraram o surgimento do G20 como
uma oportunidade de, por um lado, alterar a correlação de
forças na OMC com uma nova configuração mais favorável
aos países em desenvolvimento e, por outro lado, como uma
oportunidade de bloquear as negociações. Nosso apoio ao
G20 se deu pela percepção de que através dele seria possível
sinalizar a necessidade de uma nova ‘geografia política’, po-
rém ainda insuficiente para os movimentos sociais, já que a
coalizão se propunha a disputar o jogo dentro dos parâmetros
do livre comércio, e nunca enunciou o interesse em lançar
as bases de novos paradigmas. As organizações da sociedade
civil brasileira avaliaram e compreenderam desde o início os
limites e oportunidades do G20. Na disputa doméstica, al-
gumas organizações e movimentos sociais reforçaram a
mudança na configuração de poder, apostando, diferente-
mente do governo, no fracasso da Rodada. Outras também
utilizaram a criação do G20 para aprofundar a disputa do-
méstica com o agronegócio, como foi o caso de setores da

2
A criação do G20 viabilizou-se em ampla medida pela aliança entre Brasil e Índia, e por isso a agenda
da coalizão inclui tanto o pilar de interesse do Brasil – eliminação de subsídios e de apoio
doméstico – quanto o de interesse da Índia – políticas de apoio ao desenvolvimento rural.

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agricultura familiar que viram na ascensão da discussão do


trato especial e diferenciado no G20 uma oportunidade de
lutar contra o agronegócio, e para que o governo brasileiro
adotasse uma posição inédita de defesa de produtos espe-
ciais e mecanismos de salvaguardas especiais. Em ambos os
casos, entretanto, estas organizações e movimentos brasilei-
ros sempre tiveram consciência de que se tratava de um
grupo pragmático e pró-acordo” (Rebrip, 2006).

De sua parte, o governo Lula vê em seu papel no G20 uma forma de se


legitimar como ator político relevante no sistema global, sendo esta coalizão
uma ferramenta central de fomento das relações Sul–Sul a partir de interesses
econômicos comuns. Essa busca de legitimação explica, inclusive, a insistên-
cia do Brasil em querer destravar a Rodada de Doha a qualquer custo, quando
todos os sinais apontam para obstáculos praticamente intransponíveis.

2.2 O ESVAZIAMENTO DAS NEGOCIAÇÕES DA ALCA


Lula inseriu sua política de comércio em uma visão geopolítica de mudan-
ça de eixo da política externa brasileira para o Sul, ao contrário do governo
anterior de Fernando Henrique Cardoso, que centralizava sua estratégia ex-
terna na ALCA e nas relações com os Estados Unidos e a União Européia.
Neste sentido, o esvaziamento das negociações da ALCA talvez seja o símbolo
mais importante das rupturas realizadas pela política externa do governo Lula.
Somado a uma percepção de que um alinhamento tão subordinado aos Esta-
dos Unidos não corresponderia a uma trajetória de longa data da política
externa brasileira caracterizada por manter um pluralismo pragmático nas
relações internacionais, a decisão pelo investimento no esvaziamento das ne-
gociações ocorreu também porque passou a haver, no setor exportador ligado
ao agronegócio, a forte convicção de que não haveria obtenção de ganhos de
acesso ao mercado agrícola dos Estados Unidos por meio da ALCA.
A estratégia de esvaziamento também respondeu aos fortes anseios vin-
dos da opinião pública brasileira, que foi convocada pelos movimentos so-
ciais através da Campanha Brasileira Contra a ALCA a resistir ao avanço das
negociações (Mello, 2007). Jamais um acordo comercial atingiu um grau
de debate público tão amplo como foi o caso da ALCA. Uma ampla campa-

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nha nacional contra a ALCA formou-se, reunindo igrejas, pastorais, sindi-


catos, partidos políticos, ONGs, movimentos de mulheres, de estudantes,
camponeses, urbanos, de professores, de defesa da saúde pública. Essa cam-
panha realizou um sem-número de atividades de informação e capacitação
junto a grupos de base sobre os potenciais impactos que o ingresso do Brasil
na ALCA poderia produzir no cotidiano da população, restringindo o aces-
so a serviços essenciais, anulando direitos conquistados, ampliando as
privatizações e o controle de empresas estrangeiras sobre setores-chave de
nossa economia, voltando a agricultura ainda mais para o mercado externo,
limitando a capacidade do governo de formular políticas públicas sobera-
nas e atrelando o país aos interesses dos Estados Unidos.
Foi realizado um intenso processo de mobilização – incluindo passeatas,
marchas e outras ações de massas – que culminou na realização, no ano de
2002, de um plebiscito em que a pergunta era se o Brasil deveria integrar a
ALCA, tendo-se alcançado um total de 10 milhões de votos contrários. Esse
amplo esforço dos movimentos sociais brasileiros de politização do debate
sobre a ALCA se somou a um esforço similar em diversos países das Améri-
cas, consolidando uma Aliança Social Continental, uma rede de redes com
abrangência do Canadá ao Uruguai, unida em torno do objetivo comum de
lutar contra a ALCA a partir do fortalecimento e da ampliação das resistên-
cias no interior de cada país.
Esse processo de mobilização da opinião pública punha ênfase nos impactos
que um acordo como a ALCA produziria nas políticas e nos direitos no interior
do país, expondo claramente os nexos entre as opções externas e as políticas
domésticas. O argumento utilizado era de que, ao contrário do que afirmavam
representantes dos governos do continente americano sobre a limitação das
negociações da ALCA à criação de uma área de livre comércio, o que estava em
jogo na verdade era a manutenção, ou não, e com que abrangência, da prerroga-
tiva regulatória e do poder decisório dos Estados nacionais. As regras em nego-
ciação protegeriam os investidores privados em detrimento das conquistas de
movimentos sociais por todo o continente americano, que haviam conseguido
assegurar, embora freqüentemente sem a devida implementação, alguns direi-
tos, normas e regulações no âmbito das legislações nacionais.
As redes que formam a Aliança Social Continental e a Campanha Brasi-
leira contra a ALCA ressaltavam também a natureza antidemocrática de

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acordos como a ALCA, que obedecem a um padrão de negociação e aprova-


ção em que as sociedades não são consultadas e em que não há transparên-
cia. No caso da ALCA, a divulgação dos rascunhos dos textos dos grupos de
negociação – que foi o resultado de incansáveis pressões de organizações
sociais e sindicais de todo o continente – não foi suficiente para alterar o
caráter fechado que caracterizou o processo negociador. As negociações eram
levadas a cabo por setores dos poderes executivos, em consultas com setores
empresariais, restando aos Parlamentos o papel de meros ratificadores ao
final do ciclo negociador (Mello, 2002). A permeabilidade entre o interno
e o externo, portanto, é diretamente condicionada pela questão democráti-
ca. O jogo de pressões entre interesses múltiplos e freqüentemente antagô-
nicos só pode ocorrer em um ambiente em que haja a possibilidade de se
disputar na esfera pública os rumos da formação das posições negociadoras.

3. POR UMA EFETIVA DEMOCRATIZAÇÃO DOS


PROCESSOS DECISÓRIOS EM POLÍTICA COMERCIAL

Além dos riscos econômicos, acordos visando a liberalização comercial, como


é o caso da ALCA, das regras negociadas na OMC e de outros acordos como o
Mercosul–União Européia, também tendem a colocar em risco a consolidação
da democracia em um país como o Brasil. A dinâmica negociadora desses acor-
dos permite que a diplomacia atue em nome de um suposto interesse nacional,
como se este fosse único e a sociedade não fosse permeada de conflitos de inte-
resses. Ainda que o governo Lula tenha criado mecanismos de acesso a informa-
ções e de ampliação da transparência, as negociações desses acordos seguem
com um padrão bastante fechado, concentrado no poder Executivo, contando
com o Parlamento apenas marginalmente para ratificar o processo ao seu final,
e com instâncias de consulta à sociedade que se limitam a informar de forma
superficial sobre as negociações em curso, sem recolher propostas a ser de fato
processadas e incorporadas à formação da posição negociadora. Experiências de
instâncias como a Senalca e Seneuropa3 têm precisamente esta limitação na

3
Trata-se de instâncias – criadas no âmbito do Ministério das Relações Exteriores – de informação
e consulta sobre as negociações da ALCA e do acordo União Européia–Mercosul, reunindo setores
empresariais, representantes de ministérios, parlamentares e alguns sindicatos e ONGs.

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origem de sua criação. A formação das posições negociadoras ainda reflete de


forma preocupante o jogo de pressões exercido dentro de gabinetes e em reu-
niões e conversas informais, por parte de um grupo de empresários e lobistas
que integram o fechado clube que se sente dono do poder no país.
Um passo importante, portanto, para que se possa formular políticas
comerciais e de integração alternativas e democráticas é o estabelecimento
de uma relação direta e institucionalizada entre as políticas interna e exter-
na. Uma política comercial democrática deve ser necessariamente permeá-
vel à sociedade, dialogando com a correlação de forças e os conflitos domés-
ticos, e colocando limites à autonomia estatal nas negociações.

“Mecanismos de controle político externos à agência di-


plomática são imprescindíveis para a conciliação, em con-
textos democráticos, dos recursos de autoridade e de re-
presentação necessários à credibilidade da política externa
junto aos interlocutores e parceiros externos” (Lima, 2000).

Em décadas anteriores a política externa brasileira se

“ancorava ora no ideário do nacional-desenvolvimentismo,


do modelo substitutivo de importações, ora nas doutrinas
dos regimes militares, como a diplomacia do interesse na-
cional, o pragmatismo responsável de Geisel ou o chamado
universalismo de Figueiredo. Em um contexto de total dis-
tinção entre política interna e externa, o Brasil reprimia as
demandas por democracia e justiça dentro de suas frontei-
ras, enquanto pregava no plano internacional uma demo-
cratização das relações Norte–Sul, o direito ao desenvolvi-
mento do Terceiro Mundo e a tentativa de diversificar as
relações comerciais de forma a não ficar na dependência
exclusiva dos Estados Unidos” (Mello, 2000-2001).

Já nos anos 1990, ocorre a falência da capacidade de formulação de pro-


jetos nacionais em decorrência do chamado Consenso de Washington e de
seu receituário de abertura comercial e financeira indiscriminada.

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Fátima V. Mello

Nos dias de hoje, a América do Sul vive um ambiente de quebra de


hegemonia do pensamento único, que tem se traduzido na eleição de go-
vernos mais sensíveis às aspirações populares. Tendo acumulado vitórias re-
sultantes de anos de lutas e mobilizações populares, a região está pouco a
pouco conquistando a possibilidade de desenhar seu projeto de futuro, com-
binando democracia com projetos soberanos e integrados. A região vive um
momento histórico novo, e o Brasil tem um importante peso específico na
conformação dessa possibilidade de futuro. Na atualidade, a política exter-
na brasileira para a América do Sul e para as demais regiões não precisa mais
ser refém, de um lado, de projetos do tipo Brasil Potência nem, por outro
lado, se render aos esquemas de acordos de livre comércio. Um caminho
novo para a política externa passa, necessariamente, pela combinação entre
democratização substantiva no plano doméstico, um projeto nacional de
desenvolvimento sustentável e um Estado mediador entre o interno e o
externo que mantenha sua capacidade mas deixe de ser autônomo em rela-
ção aos conflitos de interesses existentes na sociedade.

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Ana Maria Stuart

Integração regional e construção


da democracia na América do Sul
Ana Maria Stuart 1

O objetivo do presente trabalho é relacionar a questão da integração regio-


nal com a construção da democracia na América do Sul, com base na experiência
européia de combate às assimetrias regionais. Por que fazer essa relação?
Por um lado, por entender que o processo de integração europeu enfren-
tou o desafio da desigualdade entre seus países e regiões com propostas
audaciosas que, ao longo de anos de implementação de políticas públicas,
mostraram resultados positivos. A mobilização de sujeitos políticos locais,
regionais e nacionais, em interação com as instituições da União, para apli-
car os Fundos Estruturais e de Coesão permitiu a geração de interesses e
valores comuns, contribuindo para democratizar o processo de decisões na
esfera do regionalismo.
Por outro, pela convicção de que o processo de integração da América do
Sul enfrenta desafios similares, centrados no problema da desigualdade de
desenvolvimento de seus países e regiões em escala muito maior por razões
históricas, agravados pela generalizada situação de empobrecimento dos países
sul-americanos nas últimas décadas.
Isso posto, trata-se de refletir sobre a relação entre regionalismo e
democracia à luz do processo de integração mais bem-sucedido – o
Mercosul (Mercado Comum do Sul) – que, desde 2003, entrou em fase
de consolidação de um projeto de integração alternativo àquele
construído nos anos 1990, quando ficara submetido à lógica caprichosa
das crises econômico-financeiras que abalaram os países-membros. As

1
Professora de Relações Internacionais da Unesp-Franca, membro titular do Gacint/USP (Grupo de
Análise da Conjuntura Internacional), pesquisadora do Cedec (Centro de Estudos de Cultura Contempo-
rânea) e coordenadora da Assessoria Internacional do Partido dos Trabalhadores.

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Curso de formação em política internacional

soluções encontradas para os diversos impasses surgidos ao longo do


processo de integração europeu podem servir como inspiração para a
resolução de problemas de natureza similar no Mercosul. Assim, este
trabalho visa destacar o tema da integração regional na busca de coesão
econômico-social como condição para a democratização do processo de
integração. Visa também contribuir para o desenho de um modelo de
integração regional da América do Sul com políticas públicas e institui-
ções a serviço da resolução das grandes pendências históricas no plano
do desenvolvimento e da democracia.
O objetivo é assentar bases para um programa de pesquisa que facilite o
desenho de um projeto alternativo de integração sul-americana, com base
no Mercosul, aprofundado institucionalmente e alargado pela via da apro-
ximação com os países da Comunidade Andina de Nações.
Em primeiro lugar, é necessário precisar os objetivos do Mercosul em
termos de desenvolvimento e democracia, recuperando, assim, o elo per-
dido ao longo de décadas de desarticulação de projetos nacionais; em
segundo, debruçar-se sobre uma agenda consistente. Nesse sentido, os
Objetivos 2004-2006, apresentados pelo governo brasileiro na Cúpula
de Assunção (junho de 2003), constituíram um guia para a
implementação das mudanças necessárias para a transformação do pro-
cesso de integração. A mudança contempla a tendência à autonomia
como condição de democracia, incorporando o direito à igualdade de
oportunidade e à diversidade cultural. A coesão econômico-social, como
objetivo da luta contra as assimetrias, é considerada condição para a
construção do regionalismo democrático.

1. MUDANÇAS NA PERSPECTIVA DO REGIONALISMO E DA DEMOCRACIA

O primeiro projeto de integração latino-americana surgiu


concomitantemente ao europeu, nos anos posteriores à Segunda Guerra
Mundial, fundado pela Comissão Econômica para a América Latina e o
Caribe (CEPAL), em torno do objetivo do desenvolvimento industrial. Não
se trata aqui de fazer o relato desse projeto nem de aprofundar as causas
determinantes dos fracassos das experiências vinculadas a esse período. Ape-
nas queremos registrar a convicção de que a interrupção desse processo teve

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Ana Maria Stuart

relação com as carências democráticas nas sociedades e com a emergência de


regimes ditatoriais2.
Pensar o problema em termos sul-americanos tem como fundamento a in-
terpretação das mudanças ocorridas nas décadas de 1980 e 1990 e a identifica-
ção de entraves decorrentes de processos específicos pelos quais passaram deter-
minados países e que abalaram significativamente o arcabouço integracionista
latino-americano. Em especial, é importante mencionar a decisão do México de
iniciar um processo de abertura econômica pautado pela relação especial com
os Estados Unidos. Como conseqüência da crise da dívida externa do início da
década de 1980, esse país empreendeu uma mudança de rumo da política
externa, iniciada por Miguel de la Madrid e consolidada por Carlos Salinas de
Gortari, com a assinatura do NAFTA (North American Free Trade Agree-
ment – Tratado de Livre Comércio da América do Norte) em 1991. Essa opção
mexicana teve impacto profundo nas relações interamericanas, que, desde os
processos de independência do poder colonial, tinham se desenvolvido pelo pris-
ma da dualidade América anglo-saxã/América Latina. Entender a importância
dessa mudança no contexto das relações latino-americanas e hemisféricas obriga a
repensar o regionalismo no continente sobre bases distintas. Houve vários traba-
lhos que caracterizaram as etapas do regionalismo e colocaram a década de 1980
como divisor de águas entre o “regionalismo romântico” e o “regionalismo prag-
mático”, inaugurado em meados dos anos 1980 com o início dos novos processos
de integração no continente. Não é objetivo do presente trabalho tratar das mu-
danças ocorridas no projeto do regionalismo nas Américas, tema muito abordado
ao longo das décadas de 1980 e 1990 e sobre o qual existe uma excelente literatu-
ra que apresenta as diversas reflexões sobre o tema3. Mas é importante registrar
esse dado da mudança nas relações continentais depois da entrada do México na
“geografia política” da América do Norte4. Houve, a partir da década de 1990,

2
Raúl Prebisch, na etapa final da sua vida, faz uma reflexão centrada na questão democrática,
dimensão que teria sido subestimada pela geração “cepalina”: “Yo he llegado a la conclusión de que
el proceso de democratización es incompatible en la América Latina com el régimen vigente de
acumulación de capital y distribución del ingreso. Debemos buscar nuevas fórmulas de transformación
profunda de la sociedad en nuestro continente”. Citado por Esthela Gutiérrez Garza (1994).
3
Esses debates originaram importantes obras editadas pelo Grupo Editor Latinoamericano (GEL),
no marco do Programa de Estudios Conjuntos sobre las Relaciones Internacionales de América
Latina (RIAL) e dos Programas de FLACSO (Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais).
4
Para detalhes desse processo, consultar Rojas et alii (1991).

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uma redefinição dos blocos unindo o regionalismo à geografia, e em especial às


diferentes posições sobre a nova proposta hemisférica lançada pelos Estados Uni-
dos: a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas).
Foi lugar-comum caracterizar a década de 1980 como a década perdida
para a América Latina, do ponto de vista do desenvolvimento econômico.
Do ponto de vista político, porém, foi a década da recuperação do regime
democrático para a maioria dos países da região. Em particular, foi a década
da aproximação do Brasil e da Argentina, que em 1985 assinaram a Ata de
Iguaçu, inaugurando um novo processo de integração, formalizado no Tra-
tado de Assunção, de 1991. Já a década de 1990, sob a égide dos governos
neoliberais, terminou com um saldo de perdas econômicas – aumento da
pobreza da população e da vulnerabilidade econômica dos países – e políti-
cas – instabilidade social crescente e perda de credibilidade nas instituições
democráticas. Essas mudanças, vinculadas aos padrões político-econômicos
consolidados após a queda do Muro de Berlim, tiveram amplo impacto nos
Estados e nas sociedades da América do Sul (Lozano, 2000). Os benefícios
do tandem mercado/democracia, prometidos pelos ideólogos do modelo
neoliberal não se verificaram na prática; pelo contrário, a América Latina
apresentou os níveis mais altos de desigualdade social no mundo5.
É verdade que a questão da desigualdade é fenômeno antigo nessa parte
do continente. Cantegriles, villas miserias e favelas acompanharam o proces-
so de urbanização e industrialização, e uma ampla literatura refletiu o de-
bate entre funcionalistas e marxistas em busca de uma explicação para esse
fenômeno. No entanto, essa rica produção teórica muitas vezes subvalorizou
o papel da política6. Nos últimos anos, as teorias sociais sustentadas na
premissa da prioridade do espaço global sobre o espaço regional contribuí-
ram para reforçar a idéia de pertença a um sistema e a uma ordem como
única via possível de inserção internacional7.

5
Para uma análise bem documentada sobre o tema, ver Dupas (1999).
6
Madueño (2000), em seu instigante artigo “La construccíon de la cultura a través de los actores”,
defende a superação do legado cultural das ciências sociais latino-americanas: “Tenemos un arsenal
teórico constreñido por las grandes teorias evolucionistas, orgánicas o mecanicistas, incluyendo las
propuestas de marxismo autóctono y del estructural-funcionalismo predominante”.
7
A história teria chegado ao fim sob o pressuposto do acesso ao “espírito universal” no sentido
hegeliano. Ver Fukuyama (1992).

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Ana Maria Stuart

Na perspectiva do presente trabalho, a questão da desigualdade, social e


territorial, merece ser revisitada em relação à questão da democracia e do
regionalismo. O regresso da teoria política como teoria social permite vislum-
brar os processos e as mudanças que vêm ocorrendo no plano das sociedades
e dos Estados. A desigualdade histórica dos desenvolvimentos sociais huma-
nos mostrou que o mundo conquistado pelos europeus se compunha de socie-
dades e de nações muito diversas. A incorporação delas à dinâmica do sistema
colonial não significou a perda de suas características autóctones, e os proces-
sos, longe de homogeneizar as sociedades e tender à igualdade política e so-
cial, mantiveram e/ou aprofundaram as desigualdades.
Esse contexto marcou o desenvolvimento dos Estados e das sociedades e,
em particular, contribuiu para dificultar as propostas de regionalismo
surgidas do projeto cepalino. Recentemente, no debate travado sobre
modernidade e pós-modernidade, mostrou-se a necessidade de abrir novas
perspectivas que incorporem a diversidade, escondida pelo prisma da
linearidade histórica própria do pensamento positivista. O dualismo pri-
mitivo/civilizado influenciou as elites sul-americanas que importaram essa
visão de mundo, impedindo uma leitura integrada da própria realidade,
condenada à segregação de sociedades/territórios considerados “arcaicos”.
Assim, os grandes centros urbanos ficaram de costas para o próprio territó-
rio, vinculados aos grandes centros de poder mundial, mercado das maté-
rias-primas cuja exportação trazia riqueza para as elites, excluindo as maio-
rias do desenvolvimento e do progresso (ver Stuart, 1989).
Por que essa reflexão, aqui e agora? Por entender que essa tarefa histórica
não cumprida pelos Estados nacionais pode ser assumida nesta nova etapa
da integração com base no projeto do Mercosul, ampliado e aprofundado.

2. CONSTRUINDO UMA PERSPECTIVA DE REGIONALISMO


DEMOCRÁTICO: A QUESTÃO DA SOBERANIA E DA AUTONOMIA

Há uma extensa literatura produzida na América do Sul que desenvolve o


tema da autonomia. O’Donnell e Linck colocaram o centro nas condições es-
truturais da dependência, entendida como resultado da exploração e da acu-
mulação tecnológica dos países centrais, entre outros fatores determinantes (ver
O’Donnell e Linck, 1973). Outros autores definiram as nações com potencia-

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lidade de autonomia como aquelas que têm os recursos para impor severas
penalidades aos que venham a transgredir esse atributo, mantendo a capacida-
de de autodeterminação no plano interno e ampla margem de manobra no
plano internacional (ver Jaguaribe, 1979). Neste artigo, a tentativa é relacionar
a autonomia à questão do regionalismo e, de acordo com esse enfoque, especifi-
car a importância da democracia para sua realização8.
No contexto da realidade dos países da América do Sul, a questão da
autonomia pode ser analisada numa tríplice perspectiva. Em primeiro lu-
gar, como princípio que sustenta a regra de não-intervenção em assuntos
internos dos Estados9. Em segundo, como condição do Estado-nação para
articular e alcançar metas políticas de maneira independente. E em terceiro
como interesse objetivo dos Estados junto aos interesses de sobrevivência e
bem-estar econômico da sociedade. Na reflexão que guia este trabalho, esse
último significado é o mais operativo para vincular a questão da autonomia
ao regionalismo e à democracia.
Combinando as dimensões da prática e da teoria, Juan Carlos Puig10
produziu extensa obra no campo do direito internacional, da política e das
relações internacionais. Seu pensamento original articulou-se em torno da
questão da autonomia. Puig analisa a “comunidade internacional” como
sociedade internacional que apresenta similaridades com as sociedades na-
cionais, se observada a tendência à centralização da tomada de decisões
(Puig, 1980). Suas idéias críticas do positivismo foram precursoras de aná-
lises críticas contemporâneas:

“El positivismo es una doctrina apta para situaciones histó-


ricas consolidadas y tendencialmente statuquistas, como fue,
por ejemplo, el siglo XIX (...) Pero, para bien o para mal,
vivimos un mundo en que asistimos a profundos y vertigi-
nosos cambios (...)” (Puig, ibidem, p. 65).

8
Para uma completa apresentação da questão da autonomia na política exterior, da ótica das teorias
de relações internacionais, consultar Tokatlian e Carvajal (2000).
9
O “direito público americano” foi celeiro de doutrinas internacionais, incorporadas ao direito
internacional público, centradas na defesa da autonomia.
10
O argentino Juan Carlos Puig foi professor de Direito Internacional Público, autor de vasta obra
e ministro de Relações Exteriores do governo Cámpora (1973). Faleceu em Caracas em 1989.

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Na sua obra há uma crítica aos enfoques teóricos tradicionais da discipli-


na das relações internacionais, segundo ele tributários das concepções
“atomistas” da comunidade internacional, nos quais o poder é baseado so-
mente na força material e cuja perspectiva gira em torno do predomínio
absoluto das grandes potências.
Em sua concepção, a busca da autonomia transcende os marcos jurídicos
do Estado:

“(...) como determinados tratados preservan (y aún


incrementan) la autonomia, o sea la capacidad de decisión
propia del Estado, aunque signifiquen una limitación a su
‘soberania’ formal y normativa (por ejemplo, tratados de
integración autonomistas), no siempre el mantenimiento de
la ‘soberania’ significa en el fondo una mayor autonomia”
(ibidem, p. 105).

Puig entende que a justiça é uma “categoria planetária”:

“(...) lo que ocurre, en primer término, es que la sobera-


nia del Estado, eminentemente formal, no describe la
realidad del régimen internacional. Para los Estados
pertenecientes a un bloque, el criterio supremo no es el
de la impermeabilidad del Estado-nación, sino la imper-
meabilidad del bloque. Lo cual no quiere decir que la
autonomia, dentro del bloque, y hasta la secesión, no sean
juridicamente posibles” (ibidem, p. 105).

Essa reflexão completa-se com uma valoração do regionalismo como ins-


trumento de desenvolvimento integrado numa perspectiva de solidarieda-
de estratégica:

“La integración en sí misma tampoco es autonomizante. En el


fondo es instrumental, y su sentido dependerá del objetivo
que se fije. Tal vez porque los objetivos no fueron propiamente
autonómicos es que no han avanzado decididamente los

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procesos de integración en América Latina. Y por eso también


sea posible que pretensiones autonomistas, ineludiblemente
competitivas en lo económico y en lo estratégico con las naciones
industrializadas, no puedan sostenerse en América Latina sin
modelos de desarrollo interno congruentes y sin estar afincadas
en una solidaridad estratégica, que no ocasional y especulativa,
com países que aspiran a lo mismo” (ibidem, p. 154-155).

A consideração da autonomia como tema vinculado à política e à de-


mocracia, diferentemente da soberania, que é atributo de natureza jurídi-
ca, permite avançar para a consideração de sua realização além das frontei-
ras do Estado-nação. Autonomia e dependência são categorias opostas
para observar uma mesma realidade, na qual é impossível encontrá-las em
estado absoluto. Numa perspectiva crítica, como a que guia este trabalho,
o conceito de autonomia não está restrito, como na ciência política clássi-
ca, ao estudo do Estado, já que existem outros planos de autonomia regional
e da sociedade civil com implicações nas relações internacionais11.
A questão da soberania, portanto, deve ser abordada, numa superação
dos marcos teóricos clássicos, como vinculada à questão da autonomia e da
democracia. Stephen Krasner (1999) definiu a soberania estatal como
“constructo hipócrita”. Na ánalise, Krasner aponta o processo de
desconstrução desse atributo com base na observação das assimetrias de
poder, o que torna cada vez mais inconsistente o modelo westfaliano12. A
situação de “hipocrisia organizada” se coloca no cenário internacional quan-
do as regras são obedecidas em determinadas circunstâncias e em outras
simplesmente ignoradas. Sem dúvida, este trabalho aponta os mesmos pro-
blemas já observados por Puig quando diferenciava a autonomia da sobera-
nia. No caso das decisões de Estados que comprometem parte de sua sobe-
rania em processos de integração regional, como na União Européia e no
Mercosul, é possível interpretar essas decisões como plenamente autôno-
mas. Nos processos de integração entre países em desenvolvimento, a cessão

11
Para ampliar essa perspectiva, ver Díaz-Polanco (1994).
12
Termo utilizado para caracterizar o sistema de Estados, consolidado no cenário internacional pelo
Tratado de Westfália, de 1648.

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de soberania pode ser analisada como via de resistência autônoma aos impe-
rativos da globalização ou às imposições dos Estados mais poderosos.
O desafio é aprofundar conceitos. O cruzamento da “desconstrução” do
conceito clássico de soberania e da “reconstrução” do conceito de democra-
cia vinculado à autonomia constitui o núcleo dessa transformação. As incer-
tezas colocadas pela globalização, principalmente no plano econômico-
financeiro, motivam a busca de novos marcos institucionais para a
implementação de políticas públicas. Para muitos, o regionalismo demo-
crático é a resposta. A construção de uma política regional com o objetivo
de atenuar as desigualdades entre sub-regiões e países, potencializando a
região como um todo no cenário mundial, constitui uma opção política. O
vetor da integração econômica é considerado um meio para atingir tais fins.

3. OS AVANÇOS NA POLÍTICA DE INTEGRAÇÃO REGIONAL

Existe ampla literatura descritiva, analítica e reflexiva sobre os primeiros


dez anos do Mercosul, cujo aporte é base para as linhas que se seguem13.
Serão apontadas principalmente as carências desse processo no plano da
busca de coesão econômico-social e da representação dos poderes regionais
e locais, visualizados como componentes necessários de uma estratégia de
desenvolvimento democrático.
O processo de integração na América do Sul foi iniciado na década de
1980, à luz da aproximação bilateral entre Brasil e Argentina. A
redemocratização dos regimes políticos nesses países foi uma das causas
importantes da mudança da tendência histórica de rivalidade que marcou
as relações Brasil–Argentina no plano regional e hemisférico.
A vinculação de interesses dos atores da transição democrática no Brasil e
na Argentina foi decisiva para iniciar uma política de convergência em mo-
mentos em que o governo de Raúl Alfonsin sofria a ameaça de golpes mili-
tares e José Sarney se esforçava para legitimar seu governo depois da morte
do presidente eleito Tancredo Neves.

13
Três obras tratam apropriadamente de um amplo leque de questões vinculadas aos desafios atuais
do Mercosul: Bernal-Meza (2000); Lima e Medeiros (2000); e Sierra (2001).

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Na década de 1990 houve um mudança de rumo nesse processo, que


abandonou as características de integração complementar, gradual e setorial
para adotar um modelo de integração que passou a privilegiar as relações
comerciais, no marco da perspectiva chamada de “regionalismo aberto”.
As conseqüências da implementação desse modelo no Mercosul, em espe-
cial o aprofundamento do processo de concentração de poder e riqueza
nas sub-regiões mais desenvolvidas do eixo São Paulo–Buenos Aires, não
levavam a considerar necessário abordar o tema das disparidades sub-regio-
nais no Mercosul.
O processo de integração do Cone Sul foi construído seguindo o mode-
lo intergovernamental e desconsiderando a necessidade de contar com
instituições supranacionais representativas dos diversos setores sociais e
políticos. Estes optaram por organizar-se informalmente e atuar como
associações de interesses regionais, marginalizadas do processo de tomada
de decisões14.
Pretendemos discutir esse modelo e contribuir para a elaboração de
uma proposta institucional que permita a defesa dos direitos e interesses
envolvidos pela integração e abra perspectivas ao desenvolvimento de to-
dos os países e de todas as sub-regiões, em especial daquelas que apresen-
tam índices socioeconômicos muito inferiores à média regional.
A contribuição da experiência da União Européia, centrada no desenvol-
vimento de políticas públicas para diminuir as desigualdades, pode servir
como inspiração para resolver o problema das assimetrias existentes no
Mercosul. Não se trata de transportar o modelo mas de estudar a própria
realidade focalizando o objetivo da coesão regional, como meio para envol-
ver a participação de agentes locais e regionais no processo de integração.
Como já foi dito anteriormente, os processos de integração regional, a
partir dos anos 1990, ficaram sujeitos a imperativos exógenos que imprimi-
ram uma dinâmica centralizadora, por um lado, com conseqüências
homogeneizadoras em termos de políticas econômico-financeiras e, por outro,
fragmentadora das sociedades e dos territórios, que sofreram os impactos do
abandono das políticas públicas por parte dos Estados. A proposta é a reto-

14
Para um estudo sobre os atores do Mercosul, ver Hirst (1996), especialmente o Capítulo IV.

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mada dessas políticas nos marcos do bloco regional, com base nos interesses
e valores endógenos, isto é, gerados pelas sociedades civis e políticas nas
diferentes instâncias subnacionais em interação com os Estados nacionais.
As vicissitudes que sofreu o Mercosul na década de 1990 e inícios do
século XXI, submetido ao vaivém das conjunturas dos governos do Brasil e
da Argentina, obrigou os governos iniciados no ano de 2003 (Lula no Bra-
sil, Nestor Kirchner na Argentina) a começar a discussão sobre o modelo de
integração adotado. O Mercosul passou a ser considerado um instrumento
de acumulação de poder e riqueza para suas nações e seus povos, passível de
enfrentar os desafios colocados pelo processo de globalização econômico-
financeira. Viu-se a necessidade de reformular as premissas do projeto de
integração, gerando normas e instituições com base nos interesses e valores
criados na interação de seus Estados e sociedades em suas múltiplas dimen-
sões. O controle das políticas dirigidas ao aumento da coesão econômica e
social, mediante a constituição de uma instância institucional representati-
va dos governos locais e regionais, constituiu uma estratégia adequada para
a construção de um regionalismo democrático.
O Mercosul, segundo o Tratado de Assunção que o constituiu, nasceu
com vocação referenciada no modelo de integração europeu: constituir um
mercado comum, com perspectivas comunitárias. Entretanto, durante a
primeira década, apesar do intenso crescimento do comércio intra-regional
e do conseqüente aumento da interdependência entre os países, assistiu-se
a uma prolongada seqüência de crises que colocaram em risco a continuida-
de do projeto. A debilidade institucional do modelo regional do Mercosul
foi responsável pela decrescente credibilidade do processo.
Além das assimetrias entre países, causa das severas críticas apresentadas
pelos governos de Uruguai e Paraguai, também o Brasil e a Argentina so-
frem de graves distorções que afetam o funcionamento do sistema federati-
vo em ambos os países. O desenvolvimento de políticas ativas de coesão
econômico-social permitiu uma distribuição eqüitativa dos benefícios e custos
do processo.
Quais são os instrumentos disponíveis para enfrentar essas disparidades
que atentam contra a constituição do mercado comum? No Mercosul não
existia nenhum regime, mecanismo ou instituição que tivesse por objetivo
central a resolução dessa questão vital para todo o processo de integração,

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principalmente em países onde as desigualdades sociais e sub-regionais


impedem o avanço da democracia (ver Nun, 2001). Considera-se que a
aprovação dos Fundos de Convergência Estruturais (Focem) permitirá
viabilizar projetos que atendam às necessidades do desenvolvimento regio-
nal e local, com representação de seus agentes no processo decisório, como
se implementa na União Européia.
Na União Européia, a política de Fundos Estruturais foi iniciada em 1975 e
consolidada com a criação dos Fundos de Coesão após intensa pressão dos paí-
ses menos desenvolvidos, como Irlanda, Grécia, Portugal e, principalmente,
Espanha. Hoje, constituem instrumentos que os Estados-membros, em estrei-
ta colaboração com as autoridades regionais, utilizam para fomentar o desenvol-
vimento e reduzir as desigualdades entre as regiões e os grupos sociais.
Quais são as dificuldades de implementar uma proposta similar no
Mercosul?
A primeira observação que cabe colocar refere-se à inexistência de um orça-
mento comunitário no Mercosul. Há estudos que apresentam propostas viá-
veis para o financiamento de políticas de apoio ao crescimento econômico e
social, a projetos de infra-estrutura física e de reconversão produtiva, auxílio
às pequenas e médias empresas e diminuição de disparidades sociais e sub-
regionais. Para a realização desse projeto de integração é necessário contar
com instituições representativas dos poderes sub-regionais e locais para que o
desenho das políticas e a distribuição dos recursos contem com a participação
dos cidadãos. Dessa forma será possível exercer um controle democrático des-
sas políticas, já que a centralização tem demonstrado uma tendência à mal-
versação de recursos. A governabilidade regional conjugaria assim a necessida-
de de compatibilizar a “cláusula democrática”15 com a criação das condições
socioeconômicas que dariam conteúdo e viabilidade a longo prazo à democra-
cia. Nesse sentido, a proposta de criar instituições que controlem democrati-
camente a alocação desses recursos é de grande relevância.
A introdução de uma agenda política e social sofre forte resistência de
setores conservadores que vêem o Mercosul como uma oportunidade de

15
Esse compromisso consta na Declaração presidencial sobre cláusula democrática no Mercosul
(San Luis, 1996, e Ushuaia, 1998).

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mercado e nada mais. Esses setores defendem um Mercosul com formato


de “área de livre comércio”, compatível com a constituição da ALCA.

4. MERCOSUL: UMA NOVA AGENDA

Em primeiro lugar, os novos governos do Brasil e da Argentina conside-


raram que o Mercosul dos anos 1990, plataforma para a abertura
indiscriminada das economias, devia mudar com base numa visão diferente
sobre a integração, baseada em projetos de desenvolvimento com políticas
públicas ativas, com o objetivo de realizar a passagem do modelo de
integração negativa para outro de integração positiva (ver Merkel, 1999).
Já na primeira visita de Lula à Argentina como presidente eleito, em
novembro de 2002, mencionou-se a necessidade de voltar ao espírito do
PICE (Programa de Integración Comercial y Económica) assinado pelos
presidentes Sarney e Alfonsín nos anos 1980, programa que iniciou uma
aproximação inédita dos dois países em todas as áreas da produção, do tra-
balho e do conhecimento16.
O que significava retomar o espírito do PICE? Principalmente, centrar o
projeto nas potencialidades da complementação produtiva, da
implementação de políticas comuns de reconversão econômica e do estabe-
lecimento de instituições e regulamentos-marco que permitissem a implan-
tação do mercado comum com livre circulação de pessoas, bens, capitais e
serviços num prazo de tempo razoável.
Nesse sentido, uma leitura atenta dos acontecimentos e dos discursos dos
presidentes Lula, Nestor Kirchner, Tabaré Vázquez e Hugo Chávez permite
vislumbrar mudanças significativas na política para o Mercosul e a região sul-
americana. Para ilustrar essa premissa, vamos comentar o documento apre-
sentado pelo governo brasileiro na primeira reunião da Cúpula do Mercosul
(Assunção, junho de 2003) posterior à tomada de posse dos presidentes Lula
e Kirchner. Nesse documento, conhecido como Objetivos 2004-2006, fica-
ram estampadas as metas de aprofundamento e ampliação do Mercosul.

16
Nos marcos desse acordo assinaram-se, primeiro, 24 protocolos setoriais e, posteriormente,
outros 24 abrangendo todas as áreas.

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Como já foi assinalado, a generalizada situação de empobrecimento dos


países sul-americanos nas últimas duas décadas agravaram a crônica condi-
ção de fragmentação social e territorial, aumentando os bolsões de exclusão
em todos os países. A consciência da necessidade de uma resposta regional
para uma realidade que exige intervenções profundas de políticas públicas
motivou a decisão de abandonar a tese soberanista para assumir a necessida-
de de compartilhar a soberania com os países vizinhos num processo de
construção de uma comunidade autônoma além das fronteiras dos Estados.
O objetivo de consolidar o processo de integração, submetido até 2002 à
lógica das crises econômico-financeiras que afetaram os países-membros,
está presente em cada um dos itens da proposta, intitulada “Programa para
a consolidação da União Aduaneira e para o lançamento do Mercado Co-
mum”, apresentada pelo governo brasileiro na mencionada reunião de Cú-
pula do Mercosul. A primeira parte apresenta o “Programa político, social e
cultural”. A construção de uma nova institucionalidade é um dos grandes
desafios do Mercosul e, nesse sentido, a aprovação do Parlamento, já inau-
gurado em dezembro de 2006, constitui a consecução de um dos objetivos
mais relevantes para a democratização do bloco regional.
A segunda parte da proposta brasileira trata do “Programa da União Adua-
neira”. Neste capítulo, a questão da coesão econômico-social e territorial,
isto é, o combate às assimetrias, é considerada um princípio basilar da
integração. A experiência européia neste campo, já mencionada anterior-
mente, deve inspirar as políticas públicas específicas para garantir a aproxi-
mação das regiões e dos países em termos de desenvolvimento econômico-
social. Nesse sentido, os Fundos de Convergência Estrutural para o Mercosul
(Focem), também aprovados em fins de 2005, significam um avanço rele-
vante no cumprimento dos Objetivos 2004-2006.
A terceira parte da proposta trata do “Programa de base para o Mercado
Comum”, contemplando a livre circulação da mão-de-obra e a promoção dos
direitos dos trabalhadores. Na quarta seção do documento, chamada de “Pro-
grama da nova integração”, a ênfase é colocada na “integração produtiva avan-
çada” e na “integração física”. Este último objetivo constitui um dos pilares
da construção da Comunidade Sul-americana de Nações.
As negociações em torno desse programa não foram simples porque en-
frentaram interesses constituídos na defesa do modelo de Mercosul centrado

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no comércio e regido pelos imperativos do mercado. As resistências de seto-


res dominantes vinculados às empresas multinacionais provocaram impasses
que os governos conseguiram superar, dada a determinação política. Nesse
sentido, as linhas estratégicas lançadas nas declarações conjuntas Lula–
Kirchner (“Consenso de Buenos Aires”, outubro de 2003, e “Ata de
Copacabana”, fevereiro de 2004) mostram que a relação Brasil–Argentina
constitui o eixo estruturante do novo Mercosul.
Em 2003, juntamente com essas medidas de aprofundamento do
Mercosul, foram tomadas decisões para proceder à ampliação do processo
de integração. Nesse sentido, as perspectivas abertas pela viagem do presi-
dente Lula ao Peru e à Venezuela durante aquele ano tiveram como objetivo
avançar rapidamente no acordo Mercosul–CAN (Comunidade Andina de
Nações) para constituir a Comunidade Sul-americana de Nações. Nascida
em Cuzco em dezembro de 2004, seus objetivos são aprofundar o diálogo
político, fomentar acordos comerciais e, principalmente, implementar a
integração da infra-estrutura física. Para ilustrar este ponto, é importante
mencionar os avanços na construção do corredor biooceânico17 e nas nego-
ciações sobre o chamado “anel energético”18.
“O Brasil não quer hegemonia, quer cooperação”, declara reiteradamente
o presidente Lula para afastar as prevenções dos que desconfiam de interes-
ses egoístas por parte do Estado brasileiro, sem entender que para o atual
governo os interesses nacionais e regionais são interdependentes e estão im-
bricados. A construção de um novo projeto de desenvolvimento, sustentá-
vel e com justiça social, será possível se soubermos plasmar os interesses
nacionais numa escala regional. Hoje, com a integração da Venezuela, o
Mercosul constitui o núcleo principal em torno do qual se consolidará a
integração sul-americana.

17
Conjunto de obras públicas transfonteiriças visando a cominucação entre países de costa atlântica
com os países banhados pelo Oceano Pacífico. Há avanços importantes nos projetos aprovados
pelos governos do Brasil e do Peru.
18
Projeto discutido por Venezuela, Brasil e Argentina para construir um gasoduto atravessando esses
países e que interligaria também com a Bolívia. Na I Cúpula Energética da América do Sul (Margarita,
Venezuela, março de 2007) foi formado o Conselho Energético, constituído pelos ministros de área
dos países membros da Comunidade Sul-Americana de Nações para estudar o planejamento das
obras energéticas que servirão todos os países da região.

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Livros indicados

Livros indicados1

SÉCULO XX: FICÇÃO, POESIA, ENSAIO

IMPERIALISMO E COLONIALISMO
1. Joseph Conrad, O coração das trevas, Porto Alegre, L&PM, 1998. Conto
exemplar sobre o colonialismo na África.
2. Joseph Conrad, Nostromo, São Paulo, Companhia das Letras, 2007.
Um aventureiro no Caribe, um golpe militar, uma revolução separatista e o
imperialismo inglês.
3. T. E. Lawrence, Os sete pilares da sabedoria, Rio de Janeiro, Record,
2000. Como a Inglaterra manipulou a revolta árabe contra a Turquia no
final da Primeira Guerra Mundial.
4. Nadine Gordimer, O engate, São Paulo, Companhia das Letras, 2003.
A sina de um imigrante ilegal árabe na África do Sul.
5. E. M. Forster, Uma passagem para a Índia, São Paulo, Globo, 2005.
Choques na Índia ocupada pelos ingleses.
6. Octavio Paz, Labirinto da solidão, Rio de Janeiro, Paz e Terra,
2006. Os conflitos inerentes à conquista na América Latina e as men-
talidades resultantes.
7. Hannah Arendt, Origens do totalitarismo, São Paulo, Companhia das
Letras, 1997. As relações entre anti-semitismo, imperialismo e o nasci-
mento do totalitarismo.

1
Lista elaborada com a colaboração de Walnice Nogueira Galvão, professora titular de Teoria
Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo.

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Curso de formação em política internacional

PRIMEIRA E SEGUNDA GUERRAS MUNDIAIS


8. Kafka, O processo, São Paulo, Companhia das Letras, 2000. O pesade-
lo do totalitarismo que se avizinhava.
9. Elie Wiesel, A noite, Rio de Janeiro, Ediouro, 2001. Reminiscências
de um sobrevivente dos campos de concentração nazistas.
10. Primo Lévi, É isto um homem?, Rio de Janeiro, Rocco, 2000. Meditação
do autor sobre sua experiência enquanto judeu num campo de concentração.
11. Erich Maria Remarque, Nada de novo no front, Porto Alegre, L&PM,
2004. A Primeira Guerra Mundial vista das trincheiras.
12. Norman Mailer, Os nus e os mortos, Rio de Janeiro, Record, 1992.
Um testemunho sobre a Segunda Guerra Mundial no Pacífico.
13. John Hersey, Hiroshima, São Paulo, Companhia das Letras, 2002.
Uma das primeiras reportagens feitas no local onde explodiu a primeira
bomba atômica, nos estertores da Segunda Guerra Mundial.
14. James Clavell, Xogum, Rio de Janeiro, Nórdica, 1986. Amplo pano-
rama histórico e cultural do passado do Japão, cujo autor é um sobrevivente
de campos de concentração japoneses na Segunda Guerra.

ESTADOS UNIDOS
15. Norman Mailer, Os exércitos da noite, Lisboa, Dom Quixote, 1997. O
movimento pacifista-hippie contra a guerra do Vietnã nos Estados Unidos.
16. Dee Brown, Enterrem meu coração na curva do rio, Porto Alegre,
L&PM, 2003. Crônica do extermínio dos índios peles-vermelhas nos Esta-
dos Unidos.
17. Toni Morrison, O olho mais azul, São Paulo, Companhia das Letras,
2003. A intolerância racial encarniçada contra uma menina negra.
18. John dos Passos, Trilogia U.S.A. (Paralelo 42, 1919 e Dinheiro graúdo),
Rio de Janeiro, Rocco, s.d. Nos três livros, a Primeira Guerra e seus efeitos
na transformação dos Estados Unidos em potência mundial.
19. Haley Alex, Autobiografia de Malcolm X, Rio de Janeiro, Record, 1992. O
grande líder Black Power que enfrentou todos os poderes e morreu assassinado.

REVOLUÇÕES
20. John Reed, Dez dias que abalaram o mundo, São Paulo, Global, 1978.
Jornalista norte-americano presencia o deslanchar da Revolução Russa.

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Livros indicados

21. Edmund Wilson, Rumo à Estação Finlândia, São Paulo, Companhia


das Letras, 2006. Quadro histórico da Revolução Russa através de suas
principais figuras.
22. Leon Trotsky, Minha vida, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969. Um dos
dois líderes da Revolução Russa conta sua trajetória.
23. Victor Serge, Memórias de um revolucionário, São Paulo, Companhia
das Letras, 1987.
24. Alexander Isaievitch Soljenitzyn, Arquipélago Gulag, Rio de Janeiro,
Biblioteca do Exército, 1976. O sistema concentracionário criado por Stalin.
25. Aldous Huxley, Admirável mundo novo, São Paulo, Globo, 2001.
Uma fantasia premonitória de entre-guerras sobre o futuro da humanidade
em tempos totalitários.
26. Martin Bernal, “Mao e a Revolução Chinesa”. In Eric J.
Hobsbawm (org.), História do marxismo, vol. 8, Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1985, p. 375-417.
27. Ernest Hemingway, Por quem os sinos dobram, Rio de Janeiro, Bertrand
Brasil, 2004. Um combatente escreve sobre a guerra civil espanhola.
28. Nikolai Ostrovski, Assim foi temperado o aço, São Paulo, Expressão
Popular, 2003. Exemplo de romance proletário e do “realismo socialista”
que vigorou na União Soviética.
29. George Orwell, A revolução dos bichos, Companhia das Letras, 2007.
Nesta fábula, os animais tomam o poder e o que deveria ser uma sociedade
democrática se transforma em um regime totalitário.
30. Jung Chang, Cisnes selvagens, São Paulo, Companhia das Letras, 1994.
A Revolução Chinesa através da história de três gerações.
31. Anatoli Ribakov, Os filhos da rua Arbat, São Paulo, Difusão Cultu-
ral, 1990.

DIÁSPORAS CONTEMPORÂNEAS
32. Arundathi Roy, O deus das pequenas coisas, São Paulo, Companhia
das Letras, 2004. A vida cotidiana entre gente simples do sul da Índia.
33. Uzodinma Iweala, Feras de lugar nenhum, Rio de Janeiro, Nova Fron-
teira, 2006. Um menino africano é recrutado para matar nas guerras civis.
34. Paulina Chiziane, Ventos do Apocalipse, Lisboa, Caminho, 1999. A vida
tribal em Moçambique interrompida pelo caos que a guerra civil instaurou.

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35. Jhumpa Lahiri, Intérprete de males, São Paulo, Companhia das Letras,
2001. Contos sobre as agruras da vida de imigrantes indianos em NovaYork.
36. Hanin Kureishi, No colo do pai, São Paulo, Companhia das Letras,
2006. Um expatriado paquistanês conta a história de sua família, entre
Karashi e Londres.

AMÉRICA LATINA
37. Valle-Inclán, Tirano Banderas, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1976.
Inaugurou um gênero: o romance em que o protagonista é um ditador
latino-americano.
38. Fernando Ortiz, Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar, Caracas,
Biblioteca Ayacucho, 1978. O Gilberto Freyre do Caribe, criador do con-
ceito de “transculturação” e pioneiro dos estudos afrocubanos.
39. Ernesto “Che” Guevara, De moto pela América do Sul, São Paulo, Sá
Editora, 2003. Viagem iniciática para conhecer de perto o continente.
40. Miguel Ángel Astúrias, Week-end na Guatemala, São Paulo, Expres-
são Popular, 2007. Os meandros da intervenção dos Estados Unidos no
Caribe, em 1954.
41. Alejo Carpentier, O reino deste mundo, Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1985. A Revolução Haitiana e o reinado de seu auto-proclamado
monarca, o ex-escravo Henri Cristophe.
42. Mariano Azuela, Los de abajo, Madri, Mestas Ediciones, 2003. Um
olhar interno sobre os inícios da Revolução Mexicana.
43. Juan Rulfo, Pedro Páramo e Chão em Chamas, Rio de Janeiro, Record,
2005. Ficção indigenista mexicana.
44. José María Arguedas, Os rios profundos, São Paulo, Companhia das Le-
tras, 2005. Os conflitos gerados pela exploração que assola os índios peruanos.
45. José Carlos Mariátegui, Sete ensaios de interpretação da realidade
peruana, São Paulo, Alfa-Omega, 2004. Um intelectual que luta pelo so-
cialismo discute as relações entre cultura e política, tendo como tema
central o indigenismo.
46. Gabriel García Márquez, Cem anos de solidão, Rio de Janeiro, Record,
1997. Romance inaugurador do boom hispano-americano do realismo mágico.
47. Manuel Scorza, Bom dia para os defuntos, São Paulo, Círculo do Livro,
1979. Uma companhia de mineração expropria a terra dos camponeses no Peru.

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Livros indicados

BRASIL
48. Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas, 19. ed., Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 2001. O regime do coronelato em alta literatura.
49. Euclides da Cunha, Os sertões, edição Crítica de Walnice Nogueira
Galvão, São Paulo, Ática, 1999. Epopéia da Guerra de Canudos.
50. Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, São Paulo, Global, 2006.
Um exame das relações entre senhores e escravos no regime patriarcal.
51. Sergio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, São Paulo, Compa-
nhia das Letras, 2006. Um estudo comparativo entre as colonizações es-
panhola e portuguesa.
52. Antonio Candido, Formação da literatura brasileira, 10. ed. Rio de
Janeiro, Ouro Sobre Azul, 2007. Como os brasileiros realizaram seu proje-
to de possuir uma literatura independente.
53. Caio Prado Jr., Formação do Brasil contemporâneo, São Paulo, Brasiliense,
1996. Análise dos principais elementos de nosso passado colonial que mol-
daram a nação.
54. Mário de Andrade, Macunaíma, Belo Horizonte, Villa Rica, 1997.
Neste carro-chefe de nosso modernismo, o protagonista deixa a floresta
amazônica e parte para a metrópole industrial.

ENSAIO
55. E. Hobsbawm, A era dos extremos – O breve século XX, São Paulo, Com-
panhia das Letras, 1999. Tratado das linhas de força que definiram o século.
56. Susan Sontag, Diante da dor dos outros, Companhia das Letras, 2003.
Avaliação das fotografias de atrocidades com que a mídia nos bombardeia.
57. Edward M. Said, Orientalismo, São Paulo, Companhia das Letras,
1990. A construção do “Oriente” como projeção negativa do Ocidente.
58. Fernando A. Novais e Nicolau Sevcenko (orgs.), História da vida pri-
vada no Brasil, vol. 3, República: da Belle Époque à Era do Rádio, São Paulo,
Companhia das Letras, 1998. Panorama das contradições entre esfera pú-
blica e esfera privada na República Velha.

POESIA
59. Jorge Luis Borges, Fervor de Buenos Aires. In Obras completas de Jorge
Luis Borges, vol. I, São Paulo, Globo, 1998. O poeta escreve sobre sua cidade.

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60. Pablo Neruda, Canto geral, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2002.
Poesia libertária, de protesto contra a injustiça social no continente lati-
no-americano.
61. Carlos Drummond de Andrade, Nova reunião, Rio de Janeiro, José
Olympio, 1983. A evolução do poeta através de seus principais livros.
62. José Martí, Versos singelos, Porto Alegre, SBS, 1997. A veia lírica do
precursor da Revolução Cubana.
63. T. S. Eliot, Obra completa, vol. I, Poesia, São Paulo, Arx, 2004. Visão
desencantada dos descaminhos do século XX.
64. Saint-John Perse, Anábase, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1979. O
poeta francês medita sobre o valor da poesia em nosso tempo.
65. Maiakovski – Poemas, tradução de Haroldo de Campos, Boris
Schnaiderman e Augusto de Campos, São Paulo, Perspectiva, 2006. O poe-
ta da Revolução Russa.
66. Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu e Elegias de Duíno, Petrópolis, Vozes,
2006. O poeta descortina os novos tempos com apreensão e desconfiança.
67. Bertold Brecht, Poemas 1913-1956, São Paulo, Editora 34, 2004.
Grande poesia política.
68. Konstantinos Kavafis, Poemas, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990.
O poeta da decadência canta em grego as glórias do passado e sua cidade
egípcia, Alexandria.
69. e. e. cummings, Poemas, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1999. A
discussão da modernidade através das imagens poéticas.

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Filmes indicados

Filmes indicados1

OS GRANDES TEMAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS


1. Sob a névoa da guerra (The Fog of War). EUA, 2003, dir.: Errol Morris,
95 min. Documentário sobre Robert McNamara, um dos estrategistas dos
Estados Unidos como superpotência, entre os anos 1940 e 1970.
2. Terra de ninguém (No Man’s Land). Bósnia-Herzegovina/Eslovênia/Itá-
lia/ França/Inglaterra/Bélgica, 2001, dir.: Danis Tanovic, 98 min. Filme que,
a partir de uma situação dramática envolvendo dois soldados inimigos em
uma trincheira, problematiza o papel da mídia e da ONU na crise da Bósnia.
3. A Batalha de Argel (La Battaglia di Algeri). Itália, 1966, dir.: Gillo
Pontecorvo, 121 min. Filme clássico que leva para as telas a luta pela inde-
pendência argelina dos anos 1950, e a conseqüente repressão francesa, an-
corado na visão marxista de imperialismo e descolonização.
4. Babel (Babel). EUA/México/França, 2006, dir.: Alejandro González
Iñárritu, 143 min. A partir de dramas individuais entrecruzados, ambien-
tados nos Estados Unidos, no México, no Marrocos e no Japão, o filme
tenta demonstrar a assimetria e as injustiças da globalização.
5. Corações e mentes (Hearts and Minds). EUA, 1974, dir.: Peter Davis,
112 min. Documentário realista e impactante sobre a tragédia da guerra do
Vietnã, sobretudo seus efeitos sobre o povo daquele país asiático que derro-
tou os Estados Unidos numa das piores guerras do século XX.
6. O bom pastor (The Good Shepherd). EUA, 2006, dir.: Robert De
Niro, 167 min. A partir de uma visão shakesperiana de luta pelo poder, o

1
Lista elaborada com a colaboração de Marcos Napolitano, professor de história da Universidade de
São Paulo.

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filme encena a trajetória de criação da CIA e a inserção dos Estados Unidos


na política mundial.
7. Exílios (Exils). França/Japão, 2004, dir.: Tony Gatlif, 104 min. Dois
jovens franceses, de origem argelina, fazem o caminho oposto das migra-
ções contemporâneas, saindo da Europa para a Argélia, e deparam-se com
situações e pessoas que fazem pensar sobre as questões identitárias do
mundo contemporâneo.
8. Boa noite e boa sorte (Good Night, and Good Luck). EUA, 2005,
dir.: George Clooney, 93 min. Filme que se passa durante o macartismo,
perseguição aos comunistas e simpatizantes ocorrida nos anos 1950 nos
Estados Unidos, narrando a história de um jornalista que resiste à censura
e ao cabotinismo.
9. Um filme falado (Um filme falado). Portugal/França/Itália, 2003, dir.:
Manoel de Oliveira, 96 min. Bela metáfora fílmica sobre a crise e o papel da
civilização ocidental no mundo contemporâneo.
10. O senhor das armas (Lord of War). EUA/França, 2005, dir.: Andrew
Niccol, 122 min. Misturando drama familiar e aventura, o filme narra a
trajetória de um mercador de armas sem escrúpulos ou ideologia, que se
aproveita das contradições, dos conflitos e das insanidades constituintes da
própria geopolítica mundial.
11. Uma verdade inconveniente (An Inconvenient Truth). EUA, 2006,
dir.: Davis Guggenheim, 100 min. Apesar de ser um descarado marketing
pessoal de Al Gore para a próxima corrida presidencial norte-americana, o
filme mapeia os principais desafios ambientais do mundo.

MOVIMENTOS CONTRA A GLOBALIZAÇÃO NEOLIBERAL


12. O que você faria? (El Método). Argentina/Espanha/Itália, 2005,
dir.: Marcelo Piñeyro, 115 min. No mesmo momento em que ocorre
um protesto antiglobalização em Madri, um grupo de candidatos a um
emprego numa grande corporação multinacional compete por uma vaga
de executivo.
13. O jardineiro fiel (The Constant Gardener). Alemanha/Inglaterra, 2005,
dir.: Fernando Meirelles, 129 min. Numa narrativa próxima da aventura, o
filme denuncia a ação de laboratórios multinacionais da área médica na África,
abordando temas como miséria, corrupção, tráfico de influência, globalização.

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Filmes indicados

14. Pão e rosas (Bread and Roses). Inglaterra/França/Alemanha/Espanha/


Itália/ Suíça, 2000, dir.: Ken Loach, 110 min. Numa perspectiva de es-
querda, o filme narra as desventuras de uma imigrante mexicana em Los
Angeles, em sua luta por melhores condições de vida e trabalho.

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA EUROPA


15. Metrópolis (Metropolis). Alemanha, 1927, dir.: Fritz Lang, 153 min.
Clássico do cinema mundial, é uma alegoria da modernidade capitalista e
de seus dilemas, expressão de um tempo que viu nascer o nazismo.
16. Roma, cidade aberta (Roma, Città Aperta). Itália, 1945, dir.: Roberto
Rossellini, 100 min. Clássico do neo-realismo italiano que pode ser visto
como uma homenagem à resistência contra o nazismo e ao nascimento de
uma nova Europa no pós-1945.
17. Lawrence da Arábia (Lawrence of Arabia). Inglaterra, 1962, dir.: David
Lean, 210 min. Biografia de um agente inglês, T. E. Lawrence, que tinha a
missão de reunir as tribos árabes contra o Império Otomano durante a
Primeira Guerra Mundial.
18. Cruzada (Kingdom of Heaven). Inglaterra/Espanha/EUA/Alemanha,
2005, dir.: Ridley Scott, 145 min. Épico que permite pensar as origens do
choque entre o Ocidente e o Islã, bem como as trocas culturais entre estas
duas grandes civilizações.
19. Elizabeth (Elizabeth). Inglaterra, 1998, dir.: Shekhar Kapur, 124
min. Numa narrativa centrada nos dramas pessoais da famosa rainha ingle-
sa, o filme permite alguma reflexão sobre o nascimento da geopolítica no
período do Absolutismo.
20. Danton – O processo da revolução (Danton). França/Polônia/Alema-
nha Ocidental, 1983, dir.: Andrzej Wajda, 136 min. Além de retratar o
processo político que culminou na morte de George Danton, protagonista
da Revolução Francesa, o filme radicaliza o questionamento sobre a questão
da revolução e seus legados, no mundo moderno.
21. 1900 (Novecento). Itália/França/Alemanha Ocidental/EUA, 1976,
dir.: Bernardo Bertolucci, 315 min. Épico sobre a história italiana e européia.
22. O Leopardo (Il Gattopardo). Itália/França, 1963, dir.: Luchino
Visconti, 187 min. Clássico sobre o processo de modernização italiana no
século XIX e as mudanças sociais e políticas advindas.

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23. Os companheiros (I Compagni). Itália/França/Iugoslávia, 1963, dir.:


Mario Monicelli, 130 min. Um dos melhores filmes sobre o nascimento
do movimento operário e as dificuldades cotidianas do operariado na era
das fábricas.
24. Sacco e Vanzetti (Sacco e Vanzetti). Itália/França, 1971, dir.: Giuliano
Montaldo, 120 min. Drama sobre a morte de dois militantes anarquistas
italianos, nos Estados Unidos dos anos 1920.
25. Europa (Europa). Dinamarca/Suécia/França/Alemanha/Suíça, 1991,
dir.: Lars von Trier, 112 min. Metáfora da reconstrução da Europa no
pós-Guerra, a partir de um caso de amor entre um norte-americano e
uma alemã.
26. Arquitetura da destruição (Undergångens Arkitektur). Suécia, 1989,
dir.: Peter Cohen, 119 min. Documentário sobre a visão de mundo dos na-
zistas, responsável pela estetização da política e suas conseqüências trágicas.
27. Billy Elliot (Billy Elliot). Inglaterra/França, 2000, dir.: Stephen
Daldry, 110min. Comédia dramática sobre uma família operária, envol-
vida numa longa greve contra o governo de Margareth Tatcher na Ingla-
terra dos anos 1980, enquanto seu caçula tenta se transformar em bailari-
no profissional.
28. O corte (Le Couperet). Bélgica/França/Espanha, 2005, dir.: Costa-
Gravas, 122 min. Saga de um ex-executivo desempregado na tentativa de se
recolocar no mercado de trabalho.
29. Segunda-feira ao Sol (Los Lunes al Sol). Espanha/França/Itália, 2002,
dir.: Fernando León de Aranoa, 113 min. Num tom de comédia dramática,
o filme mostra os efeitos que o desemprego em massa tem sobre o cotidiano
dos operários de um estaleiro.
30. Nossa música (Notre Musique). França/Suíça, 2004, dir.: Jean Luc-
Godard, 76 min. Filme ambientado durante a guerra da Bósnia, com apelo
pacifista que se articula com a questão do reconhecimento da alteridade
como base da paz.

ÍNDIA
31. Gunga Din (Gunga Din). EUA, 1939, dir.: George Stevens, 117 min.
Filme clássico, totalmente eurocêntrico, que narra a tentativa de um indiano
de ser reconhecido como soldado a serviço do Império Britânico na Índia.

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Filmes indicados

32. Passagem para a Índia (A Passage to India). Inglaterra/EUA, 1984,


dir.: David Lean, 163 min. Filme romântico que problematiza o contato
cultural entre ingleses e indianos.
33. Um casamento à indiana (Monsoon Wedding). Índia/EUA/França/
Itália/ Alemanha, 2001, dir.: Mira Nair, 114 min. A partir de uma cerimô-
nia nupcial, o filme retrata a complexa sociedade indiana.
34. Gandhi (Gandhi). Inglaterra/Índia, 1982, dir.: Richard Attenborough,
188 min. Épico biográfico sobre a vida do grande líder da independência
da Índia.

ÁSIA
35. Anna e o rei (Anna and the King). EUA, 1999, dir.: Andy Tennant,
148 min. Drama ligeiro que permite alguma percepção sobre o cho-
que cultural causado pelo imperialismo europeu na Ásia, bem como
sobre as disputas entre França e Inglaterra pelo domínio do continente
no século XIX.
36. Tempestade sobre a Ásia (Potomok Chingis-khana). União Soviética,
1928, dir.: Vsevolod Pudovkin, 125 min. Clássico do cinema épico soviéti-
co, sobre a revolução socialista na Mongólia.
37. Indochina (Indochine). França, 1992, dir.: Regis Wargnier, 157 min.
Drama histórico sobre a presença francesa na Indochina.
38. O americano tranqüilo (The Quiet American). EUA/Alemanha/Aus-
trália, 2002, dir.: Phillip Noyce, 101 min. Aventura ambientada no Vietnã
dos anos 1950, quando os Estados Unidos começaram a substituir a França
na política de contenção do comunismo na região.
39. O último imperador (The Last Emperor). China/Inglaterra/França/
Itália, 1987, dir.: Bernardo Bertolucci, 165 min. Biografia do último im-
perador chinês, cujo drama pessoal se confunde com a história da China no
século XX.
40. Platoon (Platoon). EUA, 1986, dir.: Oliver Stone, 120 min. Drama
de guerra sob a perspectiva liberal, centrado nas desventuras dos soldados
norte-americanos no Vietnã.
41. Os boinas verdes (The Green Berets). EUA, 1968, dir.: John Wayne e
Ray Kellogg, 141 min. Aventura sobre as tropas de elite norte-americanas,
numa perspectiva de direita sobre a geopolítica da região.

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42. Apocalypse Now (Apocalypse Now). EUA, 1979, dir.: Francis Ford
Coppola, 153 min. Épico sobre a guerra do Vietnã considerado por muitos
o melhor filme de guerra de todos os tempos.
43. Balzac e a costureirinha chinesa (Xiao Cai Feng/Balzac et la Petite
Tailleuse Chinoise). França/China, 2002, dir.: Sijie Dai, 110 min. Dois
jovens são punidos com um exílio interno numa aldeia de agricultores du-
rante a Revolução Cultural chinesa, nos anos 1960.
44. Osama (Osama). Afeganistão/Países Baixos/Japão/Irlanda/Irã, 2003,
dir.: Siddiq Barmak, 83 min. Drama que narra as desventuras de uma me-
nina que finge ser homem para poder participar da vida social e cultural do
Afeganistão dominado pelos talibãs.
45. A caminho de Kandahar (Return to Kandahar). Canadá, 2003, dir.:
Paul Jay e Nelofer Pazira, 65 min. Uma viagem pelo Afeganistão do Talibã.

RÚSSIA: REVOLUÇÃO E MODERNIZAÇÃO


46. Guerra e paz (War and Peace). Itália, 1956, dir.: King Vidor, 208
min. Épico hollywoodiano sobre a história russa do século XIX, baseado no
livro clássico de Leon Tolstoi.
47. Doutor Jivago (Doctor Zhivago). EUA, 1965, dir.: David Lean, 197
min. Visão liberal do processo revolucionário e da construção do socialismo
na União Soviética.
48. Outubro (Oktyabr). União Soviética, 1928, dir.: Sergei M. Eisenstein
e Grigori Aleksandrov, 103 min. Visão oficial bolchevique da Revolução
Russa, em seus aspectos políticos e geopolíticos.
49. Arca russa (Russkiy Kovcheg). Rússia/Alemanha, 2002, dir.: Aleksandr
Sokurov, 96min. A partir de uma visita ao famoso museu Hermitage, em São
Petersburgo, o filme narra a história russa e seus dilemas.
50. Adeus, Lenin! (Good Bye Lenin!). Alemanha, 2003, dir.: Wolfgang Becker,
121 min. Comédia sobre o fim do comunismo na Alemanha (Oriental), conse-
gue abordar de maneira criativa as contradições de ambos os sistemas.

ORIENTE E INTERVENÇÃO NORTE-AMERICANA


51. Syriana – A indústria do petróleo (Syriana). EUA, 2005, dir.: Stephen
Gaghan, 126 min. Filme instigante e crítico sobre os jogos geopolíticos e os
interesses corporativos no Oriente Médio.

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Filmes indicados

52. Paradise Now (Paradise Now). Palestina/França/Alemanha/Países Bai-


xos/Israel, 2005, dir.: Hany Abu-Assad, 90 min. Filme ousado e polêmico
sobre os últimos momentos de dois homens-bomba palestinos, divididos
entre angústias pessoais e dilemas políticos.
53. Fahreinheit 11 de Setembro (Fahreinheit 9/11). EUA, 2004, dir.:
Michael Moore, 122 min. Documentário que, apesar do tom sensaciona-
lista e bem-humorado, toca em questões cruciais da política de George W.
Bush para o Oriente Médio.
54. O tigre e a neve (La Tigre e la Neve). Itália, 2005, dir.: Roberto
Benigni, 114 min. O filme é uma das primeiras ficções cinematográficas
ambientadas durante a invasão do Iraque pelos Estados Unidos.
55. O caminho para Guantanamo (The Road to Guantanamo). Inglater-
ra, 2006, dir.: Michael Winterbottom e Mat Whitecross, 95 min.
Docudrama que narra acontecimentos reais, baseado em relatos de prisio-
neiros políticos da base norte-americana de Guantanamo, acusados de per-
tencerem ao Talibã e à Al Qaeda.

ÁFRICA
56. Em minha terra (Country of My Skull). Inglaterra/Irlanda/África do
Sul, 2004, dir.: John Boorman, 103 min. Drama sobre o processo de re-
conciliação pós-apartheid na África do Sul.
57. Um grito de liberdade (Cry Freedom). Inglaterra, 1987, dir.: Richard
Attenborough, 157 min. Cinebiografia do militante antiapartheid Stephen
Biko, morto pela repressão.
58. Hotel Ruanda (Hotel Rwanda). EUA/Inglaterra/Itália/África do Sul,
2004, dir.: Terry George, 121 min. Durante a guerra civil de Ruanda,
quando as etnias dos tutsis e dos hutus se enfrentaram, com um saldo de 1
milhão de mortos, um gerente de hotel tenta salvar o máximo de vidas,
enquanto o Ocidente abandona o país à sua própria sorte.

AMÉRICA LATINA
59. Diários de motocicleta (Diarios de Motocicleta). Argentina/EUA/Cuba/
Alemanha/México/Inglaterra/Chile/Peru/França, 2004, dir.: Walter Salles,
126 min. Road movie sobre a viagem sentimental e política do jovem Che
Guevara pela América Latina nos anos 1950.

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Curso de formação em política internacional

60. Queimada! (Queimada). Itália/França, 1969, dir.: Gillo Pontecorvo,


115 min. Filme que sintetiza, dentro dos cânones do marxismo mais
esquemático, o processo de independência das ex-colônias americanas, tu-
telado pela Inglaterra, e sua inserção no capitalismo liberal do século XIX.
61. Desaparecido – Um grande mistério (Missing). EUA, 1982, dir.: Cos-
ta-Gavras, 122 min. Clássico sobre o golpe do Chile e a participação dos
Estados Unidos.
62. A batalha do Chile – 3 vols. (La Batalla de Chile: La Insurrencción de
la burguesia; La Batalla de Chile: El Golpe de Estado; La Batalla de Chile:
El Poder Popular). Cuba/França/Venezuela; Cuba/Chile/França; Cuba/Chile/
Venezuela, 1975/1977/1979, dir.: Patricio Guzmán, 191/90/100 min.
Documentário sobre o governo Allende e as contradições entre capitalismo
e socialismo na América do Sul.
63. Memórias do subdesenvolvimento (Memórias del Subdesarrollo). Cuba,
1968, dir.: Tomás Gutiérrez Alea, 97 min. Clássico do cinema latino-ame-
ricano, retrata o olhar amargo e irônico de um burguês que resolve ficar em
Cuba após a revolução de 1959.
64. Kamchatka (Kamchatka). Argentina/Espanha, 2002, dir.: Marcelo
Piñeyro, 105 min. A repressão na Argentina a partir da visão de um menino
que tem os pais perseguidos.

BRASIL: CONSTRUÇÃO NACIONAL E INSERÇÃO INTERNACIONAL


65. Mauá: o imperador e o rei. Brasil, 1999, dir.: Sérgio Rezende, 135
min. Melodrama sobre a história do Barão de Mauá e seus projetos
capitalistas para um Brasil agrário e escravista do século XIX.
66. Bye Bye Brasil. Brasil, 1979, dir.: Cacá Diegues, 110 min. Uma
caravana circense percorre o Brasil profundo nos anos 1970 e teste-
munha o processo de modernização conservadora patrocinado pelo
regime militar.
67. For All: O trampolim da vitória. Brasil, 1997, dir.: Luiz Carlos
Lacerda e Buza Ferraz, 95 min. Filme leve e bem ambientado sobre a
presença norte-americana em Natal, durante a Segunda Guerra Mundial.
68. O Velho: a história de Luis Carlos Prestes. Brasil, 1997, dir.: Toni Venturi,
105 min. Documentário biográfico sobre o líder comunista Luis Carlos
Prestes, com imagens inéditas do seu exílio em Moscou.

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Filmes indicados

A POLÍTICA INTERNACIONAL DO BRASIL


69. Lost Zweig (Lost Zweig). Brasil, 2003, dir.: Sylvio Back, 115 min.
Investigando o misterioso pacto suicida do famoso escritor alemão, dissi-
dente do nazismo, exilado no Brasil nos anos 1930, o filme aborda os com-
plexos jogos da política externa do Estado Novo getulista.
70. Jango (Jango). Brasil, 1984, dir.: Silvio Tendler, 117 min.
Documentário sobre o governo João Goulart e as razões que levaram ao
golpe de Estado de 1964, incluindo a Política Externa Independente.
71. Estado de sítio (État de Siège). França, Alemanha Ocidental, Itália,
1972, dir.: Costa-Gavras, 115 min. Drama político ambientado durante o
seqüestro do cônsul brasileiro pelos tupamaros no Uruguai, em 1971, per-
mitindo refletir sobre a participação da ditadura brasileira nas políticas
anticomunistas da Guerra Fria.

CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA NA AMÉRICA DO SUL


72. A história oficial (La Historia Oficial). Argentina, 1985, dir.: Luis
Puenzo, 112 min. Melodrama premiado, que teve o mérito de ser um dos
primeiros filmes a representar a ditadura argentina e seus efeitos sobre a
vida pública e privada.
73. Memória do saque (Memoria del Saqueo). Suíça/França/Argentina,
2004, dir.: Fernando E. Solanas, 120 min. Documentário sobre a era Menem
na Argentina e a revolta popular que derrubou o governo de Fernando de La
Rua, em 2001.
74. A revolução não será televisionada (Chavez: Inside the Coup). Irlanda/
Países Baixos/EUA/Alemanha/Finlândia/Inglaterra, 2003, dir.: Kim Bartley
e Donnacha O’Briain, 74 min. Documentário sobre a tentativa de golpe de
Estado na Venezuela, contra Hugo Chaves, em 2001, com cenas incríveis
captadas dentro do palácio presidencial.
75. Entreatos (Entreatos). Brasil, 2004, dir.: João Moreira Salles, 115 min.
Documentário que acompanhou a intimidade da campanha presidencial que
levaria o ex-operário Luis Inácio da Silva ao governo federal, em 2002.

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Na Internet: http://www.fpa.org.br

Curso de formação em política internacional foi impresso


na cidade de São Paulo pela Gráfica Bartira, que tam-
bém forneceu os fotolitos de capa e de miolo, em junho
de 2007. O texto foi composto em AGaramond no cor-
po 11,5/15. A capa foi impressa em papel Carta Íntegra
220g; o miolo foi impresso em Offset 75g.

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