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ANDRÉ DANTAS
Tenho ainda uma viva lembrança de Freud me dizendo: “Meu caro Jung, prometa-me
nunca abandonar a teoria sexual. É o que importa, essencialmente! Olhe, devemos fazer
dela um dogma, isto é, um baluarte inabalável.” Ele me dizia isso cheio de ardor, como
um pai que diz ao filho: “Prometa-me uma coisa, meu caro filho: vá todos os domingos
à igreja”. Um tanto espantado, perguntei-lhe: “Um baluarte contra o quê?” Ele
respondeu-me: “Contra a lama negra do ocultismo!” O que me alarmou em primeiro
lugar foi o “baluarte” e o “dogma”: um dogma, isto é, uma profissão de fé indiscutível
surge apenas quando se pretende esmagar uma dúvida, de uma vez por todas. Não se
trata mais de um julgamento científico, mas revela somente uma vontade de poder
pessoal.1
Apesar de naquele momento não ter se pronunciado contra tal posição, Jung não
podia concordar com ela. O que Freud entendia por ocultismo era aproximadamente
tudo o que a filosofia, a religião e a nascente parapsicologia do início do século diziam
da alma. Mas para Jung, a teoria sexual era tão oculta, isto é, tão hipotética quanto
outras tantas concepções especulativas. O que Jung ainda não havia compreendido de
todo era o quanto a sexualidade era numinosa para Freud. Quando falava sobre ela era
“num tom insistente, quase ansioso, e desaparecia sua atitude habitual, crítica e cética.
Uma estranha impressão de inquietude, cuja causa eu ignorava, marcava o seu rosto”2.
Como mais tarde veio a entender, Jung estava no meio de uma irrupção de fatores
religiosos inconscientes em Freud, que queria recrutá-lo para uma defesa contra essa
ameaça. Até então Jung jamais considerara a sexualidade algo de flutuantemente
precário, algo ao qual se devia fidelidade devido ao medo de perdê-la.
Parecia-me claro que Freud, proclamando sempre e insistentemente sua irreligiosidade,
construíra um dogma, ou melhor, substituíra o Deus ciumento que perdera, por outra
imagem que se impusera a ele: a da sexualidade. Ela não era menos premente,
imperiosa, exigente, ameaçadora e moralmente ambivalente. Psiquicamente falando,
aquilo que é mais forte e, portanto, mais temível, toma os atributos de “divino” e de
“demoníaco”; da mesma forma, a “libido sexual” se revestira e desempenhara nele o
papel de um deus oculto. A vantagem desta transformação consistia, para Freud, ao que
parece, que o novo princípio “numinoso” se lhe afigurava cientificamente irrecusável e
livre de qualquer hipótese religiosa. Mas, no fundo, a numinosidade – enquanto
classificação psicológica desses contrários, racionalmente incomensuráveis, que são
Javé e a sexualidade – permanecia a mesma. Só mudara o nome e, por conseguinte o
ponto de vista.3
Certamente, para Freud, a sexualidade era numinosa, mas em sua terminologia, em sua
teoria a considerava exclusivamente como função biológica. A animação que falava
desse tema permitia concluir que tendências ainda mais profundas ressoavam nele. Em
suma: ele queria ensinar – pelo menos é o que me pareceu – que, considerada
subjetivamente, a sexualidade engloba também a espiritualidade, ou possui uma
significação intrínseca. Mas sua terminologia, demasiado concreta, era muito restrita
para poder formular esta ideia. Minha impressão era que, no fundo, ele trabalhava
contra sua própria meta e contra si mesmo. Pois bem: haverá maior amargura do que a
de um homem que é seu mais encarniçado inimigo? Citando palavras suas: ele se sentia
ameaçado por “uma onda de lodo negro”, ele, aquele que antes de qualquer outro tentara
penetrar e tirar a limpo as profundidades negras. (..). Era cego em relação ao paradoxo e
à ambiguidade dos conteúdos do inconsciente e não sabia que tudo o que dele surge tem
um alto e um baixo, um interior e um exterior. Quando se fala apenas do aspecto
exterior – é o que Freud fazia – só se toma em consideração uma das metades e como
consequência inevitável nasce uma reação no inconsciente.4
Minha conversa com Freud mostrara-me o quanto ele temia que a clareza numinosa de
sua teoria fosse extinta por uma onda de lodo negro. Assim, criava uma situação
mitológica: a luta entre luz e trevas. Esta situação explica a numinosidade da questão e o
recurso imediato a um meio de defesa, tirado do arsenal religioso: o dogma. (...) A
interpretação sexual por um lado, e a vontade de poder manifestada pelo dogma, por
outro, me orientaram no correr dos anos para o problema tipológico, assim como para a
polaridade e a energética da alma. Depois, comecei a investigação que se estendeu
através de várias décadas, acerca da onda de lodo negro do ocultismo; esforcei-me por
compreender as condições históricas, conscientes e inconscientes, da psicologia
moderna.6
Olhando para trás, posso dizer que sou o único que prosseguiu o estudo dos dois
problemas que mais interessavam Freud: o dos “resíduos arcaicos” e o da sexualidade.
Espalhou-se o erro de que não vejo o valor da sexualidade. Muito pelo contrário, ela
desempenha um grande papel em minha psicologia, principalmente como expressão
fundamental – mas não a única - da totalidade psíquica. Minha preocupação essencial
era, no entanto, aprofundar a sexualidade além do seu significado pessoal e seu alcance
da função biológica, explicando-lhe o lado espiritual e o sentido numinoso. Exprimia,
assim, o que fascinara Freud, sem que este o compreendesse. Os livros Psicologia da
Transferência e Mysterium Coniunctionis expõem minhas idéias sobre o tema. Como
expressão de um espírito ctônico, a sexualidade é da maior importância. Esse espírito é
“a outra face de Deus”, o lado sombrio da imagem de Deus. Os problemas do espírito
ctônico me preocuparam desde que tomei contato com o mundo das idéias da alquimia. 7
O que na aparência é visto como rompimento, para Jung tratou-se de um
aprofundamento no lado oculto das ideias de Freud. Até o fim da sua vida Jung foi de
certa forma um freudiano, visto que ele mergulhou como poucos na sombra da teoria
sexual, na lama negra do ocultismo, no aspecto místico-religioso da alma que a
psicanálise excluía por contradizer suas afirmações centrais. Isso implicava retornar às
afirmações que haviam reprimido a sexualidade durantes séculos, e Jung estava ciente
do perigo de que isso restaurasse unilateralmente as antigas posições veementemente
combatidas por Freud. Era necessário suportar a tensão entre as oposições sem afirmar a
superioridade de uma sobre a outra, pois foram os excessos unilaterais da
espiritualidade que fermentaram o retorno patológico da sexualidade negada
borbulhante nos sintomas neuróticos. Sem a Igreja não haveria psicanálise, porque o
que ela trouxe à tona foi tudo aquilo que a primeira havia ontologicamente excluído da
alma. Mas Freud assumiu o partido contrário com tanta veemência que perdeu a
conexão entre a sua posição e a do seu inimigo, combatendo-a sem perceber que a
reproduzia em suas próprias atitudes.
Por “função transcendente” não se deve entender algo de misterioso e por assim dizer
supra-sensível ou metafísico, mas uma função que, por sua natureza, pode-se comparar
com uma função matemática de igual denominação, e é uma função de números reais e
imaginários. A função psicológica e “transcendente” resulta da união dos conteúdos
conscientes e inconscientes. A experiência no campo da psicologia analítica nos tem
mostrado abundantemente que o consciente e o inconsciente raramente estão de acordo
no que se refere a seus conteúdos e tendências. Esta falta de paralelismo, como nos
ensina a experiência, não é meramente acidental ou sem propósito, mas se deve ao fato
de que o inconsciente se comporta de maneira compensatória ou complementar em
relação à consciência. Podemos inverter a formulação e dizer que a consciência se
comporta de maneira compensatória com relação ao inconsciente. 10
O velho Heráclito, que era realmente um grande sábio, descobriu a mais fantástica de
todas as leis da psicologia: a função reguladora dos contrários. Deu-lhe o nome de
enantiodromia (correr em direção contrária), advertindo que um dia tudo reverte em seu
contrário.12
Para Jung, a oposição não era apenas a pré-condição indispensável para a vida
psíquica, era também psicóide, uma lei da natureza a qual ele conecta à primeira lei da
termodinâmica para qual toda energia é função de uma oposição.
Visto do ponto de vista unilateral da atitude consciente, a sombra é uma parte inferior
da personalidade. Por isso é reprimida devido a uma intensa resistência. Mas o que é
reprimido tem que se tornar consciente para que se produza a tensão entre contrários,
sem o que a continuação do movimento é impossível. A consciência está em cima,
digamos assim, e a sombra embaixo. E como o que está em cima sempre tende para
baixo, e o quente para o frio, assim todo consciente procura, talvez sem perceber, o seu
oposto inconsciente, sem o qual está condenado à estagnação, à obstrução ou à
petrificação. É no oposto que se acende a chama da vida. 16
O indivíduo tende a identificar-se com a máscara impelido pelo mundo, mas também
por influências que atuam de dentro. “O alto ergue-se do profundo”, diz Lao-Tzé. É do
íntimo que se impõe o lado contrário, tal como se o inconsciente oprimisse o eu com o
mesmo poder que a persona exerce sobre ele. À falta de resistência exterior contra a
sedução da persona, corresponde uma fraqueza interior relativa às influências do
inconsciente. O papel desempenhado fora é atuante e forte, ao passo que dentro vai-se
desenvolvendo uma fraqueza efeminada contra todas as influências do inconsciente:
estados de espírito momentâneos, caprichos, angústias e uma sexualidade efeminada
(que culmina na impotência) passam, pouco a pouco, para o primeiro plano. A persona,
imagem ideal do homem tal como ele quer ser, é compensada interiormente pela
fraqueza feminina; e assim como o indivíduo exteriormente faz o papel de homem forte,
por dentro torna-se mulher, torna-se anima, e é esta que se opõe à persona. O íntimo é
obscuro e invisível para a consciência extrovertida, principalmente para o indivíduo que
tem dificuldade em reconhecer suas fraquezas, por haver-se identificado com a persona.
Portanto, o contrário da persona – a anima – também permanece totalmente no escuro e
se projeta. (...). É importante para a meta de individuação, isto é, da realização do si-
mesmo, que o indivíduo aprenda a distinguir entre o que parece ser para si mesmo e o
que é para os outros. É igualmente necessário que conscientize seu invisível sistema de
relações com inconsciente, ou seja, com a anima, a fim de poder diferenciar-se dela.17
Assim, anima e animus personificam o outro interno reprimido e por isso nos
parecem tão misteriosos e ameaçadores. São símbolos da própria existência do
inconsciente e, como tal, intermediam as relações entre a consciência e o inconsciente
do mesmo modo como a persona intermedia as relações entre a consciência e o mundo
social. “O animus não pertence à função de relação consciente; sua função é a de
possibilitar a relação com o inconsciente”.18 No papel de mediadores, eles são essenciais
no processo de integrar elementos cindidos da psique. A ligação entre os arquétipos da
sizígia e a função transcendente é clara.
Por um lado, o inconsciente é um processo puramente natural, sem objetivo; mas por
outro lado tem o endereçamento potencial, típico de todo processo energético. Quando a
consciência desempenha uma parte ativa e experimenta cada estádio do processo,
compreendendo-o pelo menos intuitivamente, então a imagem seguinte sempre
ascenderá a um estágio superior, constituindo-se assim finalidade da meta. A meta
seguinte da confrontação com o inconsciente é alcançar um estado em que os conteúdos
inconscientes não permaneçam como tais e não continuem a exprimir-se indiretamente
como fenômenos da anima e do animus, mas se tornem uma função de relação com o
inconsciente.19
Para Jung, anima e animus devem ser levados a sério como manifestações da
atividade psíquica. O diálogo com estas personificações faz com que revelem seus
conteúdos e intenções. Ao serem clarificados, elas dissolvem-se em uma função de
relação com o inconsciente. A dissolução das imagens personificadas da anima e do
animus impede que eles funcionem em completa autonomia, apossando-se do ego.
5) Ele é a imagem especular de uma vivência mística do artifex, a qual coincide com a
opus alchymicum (obra alquímica).
6) Enquanto vivência acima referida, ele representa, por um lado, o si-mesmo e, por
outro, o processo de individuação e também o inconsciente coletivo, devido ao caráter
ilimitado de suas determinações.21
Em uma carta escrita por Jung em 10/04/1954 ao padre Victor White, é visível a
sobreposição do conceito de si-mesmo e de função transcendente, visto que ambos se
referem a uma totalidade que se expressa por meio da oposição complementar. “No
começo, a compensação é um conflito infernal, mas, depois, quando se compreende o
sentido de ‘nirdvanda’, torna-se ela os pilares da porta da função transcendental, isto é,
da passagem para o si-mesmo”.25
Este foi o motivo pelo qual um alquimista da Idade Média argumentava que Deus não
louvou o segundo dia da criação, visto que nesse dia (uma segunda-feira – dies lunae)
surgiu o binarius, ou melhor, o diabo (enquanto número dois, ou “aquele que duvida”).
O número dois pressupõe a presença do número um, do uno; e o número um não é mais
do que o uno diminuído e transformado em “número”, por causa da divisão. O “uno” e o
“outro” formam um par de contrários, o que não acontece com o um e o dois, pois estes
constituem simples números, e só se distinguem entre si exclusivamente por seu valor
aritmético. O “uno”, porém, sempre tende a manter sua unicidade e seu isolamento, ao
passo que a tendência do “outro” é ser justamente “outro” em relação ao uno. O uno não
pretende exonerar o outro, senão perderia seu caráter próprio, enquanto o outro se
destaca do uno, simplesmente para perdurar. Daí resulta uma tensão antitética entre o
uno e o outro. Qualquer tensão deste tipo, porém, leva a uma espécie de evolução, da
qual resulta o terceiro termo. Com a presença do terceiro termo, desfaz-se a tensão e
reaparece o uno perdido. O uno absoluto não entra no processo de numeração, nem pode
ser objeto de conhecimento. Só pode ser conhecido a partir do momento em que aparece
no um, pois no estágio de “uno” falta o “outro” exigido para estas operações. A tríade é,
portanto, uma espécie de desdobramento do uno, e sua transformação num conjunto
cognoscível. O três é o uno que se tornou cognoscível e que, não havendo a resolução
da antítese entre o “uno” e o “outro”, permaneceria num estado de absoluta
indeterminação. Por isso, o três comparece como um verdadeiro sinônimo de processo
de desenvolvimento dentro do tempo, disso resultando um paralelo com a auto-
revelação de Deus como uno absoluto, no desdobramento do três. 27
O espírito santo é como o ka, uma força procriadora, uma potência vital que
materializa, na forma de um filho, a realidade espiritual do pai. O pai e o filho se acham
unidos numa só e mesma obra ou poder procriador. Na Bíblia, ele fecunda Maria na
forma de uma pomba e após a morte de Jesus ele desce sobre os apóstolos como
inúmeras línguas de fogo. O fogo e o ar eram formas comuns de manifestação do
espírito, mas alguns enxergavam no espírito santo uma relação amorosa ou, como os
primeiros cristãos gnósticos, a mãe geradora. O problema de identificar o espírito santo
com a mãe de Cristo é que isso pode naturalizar algo que é essencialmente contra
naturam, aprisionando o nascimento espiritual de Cristo numa imagem natural de
família, pai-mãe-filho.
Realmente, é de máxima importância que a idéia do Espírito Santo não constitua uma
imagem natural, mas sim um conhecimento, um conceito abstrato da vida do Pai e do
Filho, como terceiro elemento existente entre o Uno e o Outro. A vida sempre extrai da
tensão da dualidade um terceiro elemento desproporcional e paradoxal. Por isso, na sua
qualidade de “tertium” o Espírito Santo é necessariamente desproporcional e paradoxal.
Ao contrário do Pai e do Filho, ele não tem um “nome” especial, nem caráter definido.
É uma função e, como tal, é a terceira pessoa da divindade. 28
No monoteísmo, tudo que se opõe a deus não pode vir de outro lugar senão dele
mesmo, mas o choque causado por essa afirmação é a razão pela qual o diabo não
encontrou acolhida no seio da divindade, tendo sido reduzido a uma privatio boni, mera
falta de luz, quando deveria ocupar uma posição antinômica correspondente ao seu
status de adversário de Cristo e ser, também, filho de deus, ser o quarto elemento da
trindade.
Por isso convém ter presente que a Cruz representa precisamente o conflito entre Cristo
e o Diabo, e foi por este motivo levantada exatamente no centro do universo, entre o
Céu e o Inferno, correspondendo à quaternidade. (...). A matéria, com efeito, é o
extremo oposto do espírito. É verdadeiramente a morada do Diabo, que tem o seu
inferno e o fogo da sua fornalha no interior da terra, ao passo que o espírito luminoso
paira no éter, livre das cadeias da gravidade terrestre. (...). Por esta razão é que o
Adversário foi imaginado de algum modo, logicamente, como a alma da matéria, pois
esta, do mesmo modo que o Diabo, representa aquela oposição dos contrários sem a
qual é simplesmente impensável a autonomia da existência individual. O Diabo se
caracteriza pela sua oposição e pelo fato de querer sempre o contrário, do mesmo modo
que a desobediência caracteriza o Pecado Original. Como já foi dito, são estes os dois
pressupostos da obra da criação e, portanto, deveriam estar inscritos no plano divino e
incluídos na esfera do divino.30
A duplicidade de deus não era estranha à especulação religiosa. Ela foi expressa
em imagens como a do unicórnio, um animal colérico associado ao lado vingativo de
deus que largou o mundo na desordem como punição pelo pecado original. Essa
irascibilidade foi aplacada graças à habitação no ventre da virgem, que abrandou a
cólera vingativa tão visível nos textos do velho testamento. Através do feminino deus
conheceu o amor.31 Essa dualidade é intrínseca ao símbolo que personifica a própria era
cristã, a era de peixes. No simbolismo astrológico, o signo aparece com dois peixes
nadando em direções contrárias ligados por uma linha. Jung percebeu nessa imagem a
união de dois movimentos contrários, um ascendente espiritualizante, outro descendente
materializante. A primeira metade dos dois mil anos da era de peixes presenciaram a
predominância do movimento ascendente, enquanto a segunda caracterizou-se pelo
florescimento de tudo aquilo que havia permanecido à sombra de Cristo, sendo por isso
a era do Anti-Cristo, o peixe que nada nas profundezas ctônicas.32 A segunda metade
marca o retorno do feminino, da matéria excluída da trindade. A igreja não foi
insensível a essa dinâmica, ensaiando um acréscimo do feminino à trindade na forma da
assunção de Maria.
Jung fala que a trindade expressava uma totalidade apenas imaginada, não
existente na realidade concreta. Mas em outras passagens ele afirmou que a imaginação
era o terceiro elemento que resolvia a oposição excludente entre o intelecto e a matéria.
Todas as épocas têm sua unilateralidade, seus preconceitos e males psíquicos. Cada
época pode ser comparada à alma de um indivíduo: apresenta uma situação consciente
específica e restrita, necessitando por esse motivo de uma compensação. O inconsciente
coletivo pode proporcionar-lhe tal instrumento, mediante o subterfúgio de um poeta ou
visionário, quando este exprime o inexprimível de uma época, ou quando suscita pela
imagem ou pela ação o que a necessidade negligenciada de todos está almejando; isto,
tanto para o bem como para o mal, para a salvação, ou para a destruição dessa época.39
Na época de Jung, a persona social era bem mais rígida e os papéis masculinos e
femininos eram claramente diferenciados e definidos, estando sob o julgo do logos
patriarcal. Hoje, com o retorno de eros da inconsciência, os papéis se misturam de
forma que sol e lua, logos e eros, não podem ser mais literalizados como homem e
mulher. O logos solar e o eros lunar podem, então, ser considerados personificações da
função transcendente em seu trabalho de unir o que aparece dissociado e separar o que
aparece fundido.
Nas suas últimas obras, Jung mostrou como a psicologia é a herdeira da grande
coniunctio alquímica entre a razão lógico-solar e a imaginação mítico-lunar. A anima
recebeu a cota de atenção merecida por Jung, cujo trabalho de resgate da imaginação
mitopoética foi um passo importantíssimo no caminho para a realização da totalidade
psíquica. E quanto ao animus? Olhando para a obra de Jung como um todo, não se vê o
mesmo grau de compromisso com a razão conceitual que foi dedicada à anima. Mas se a
opus magnum é o casamento alquímico do rei sol e da rainha lua, então uma real
psico/logia não pode privilegiar apenas uma metade do par, o que nos leva a perguntar:
Qual a lógica da psicologia junguiana? A resposta é clara para qualquer um que se
aventure na tradição histórica do logos, pois entre os diversos tratamentos que ele
recebeu ao longo dos séculos, nenhum é mais próximo da alquimia junguiana do que a
grande corrente dialética, cujos elos incluem Heráclito, Hegel, Marx, entre muitos
outros. Toda essa tradição gira em torno da unidade dos opostos descrita não em uma
linguagem mitopoética, mas na forma lógica da razão conceitual. Assim como Jung
retornou aos mitos e à alquimia para resgatar a anima esquecida pela consciência
coletiva, todo aquele que aceitar o desafio de levar a opus junguiana adiante, terá de
retornar à tradição histórica do animus para explicitar aquilo que ficou implícito na
sizígia junguiana. O caminho foi aberto pelo próprio Jung, cabendo a nós percorrê-lo
sem reservas com toda a dedicação que ele exige.
andre.mercurio@hotmail.com
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
1. JUNG.CG, Memórias, Sonhos e Reflexões, p.136. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira.
9.MILLER.J, The Transcendent Function. Albany: State University of New York, 2004.
10.JUNG.CG, A Natureza da Pisque, Obras Completas Vol VIII/2, §§ 131-132. Petrópolis: Editora
Vozes,1984.
11.JUNG.CG, Mysterium Coniunctionis, Obras Completas Vol XIV/1, § 200. Petrópolis: Editora Vozes,
1985.
12.JUNG.CG, Estudos Sobre Psicologia Analítica, Obras Completas Vol VII, §111. Petrópolis: Editora
Vozes,1981.
13.JUNG.CG, Tipos Psicológicos, Obras Completas Vol VI, § 367. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.
21. JUNG.CG, Estudos Alquímicos, Obras Completas Vol XIII, § 284. Petrópolis: Editora Vozes, 2003.
23.JUNG.CG, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, Obras Completas Vol IX/1, §§ 520, 522-523.
Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
24. HILLMAN.J, apud MILLER, op.cit. Todas as citações cujos originais estão em outra língua foram
traduzidas sob minha responsabilidade.
25. JUNG.CG, Cartas Vol II, p.338. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. “Entendemos o Self como o
símbolo conciliador, como o mais desejado fruto da função transcendente”. JUNG.CG, The Vision
Seminars Vol II: Notes of the Seminar Given in 1930-1934, p.472. New Jersey: Princeton University
Press, 1997.
27. JUNG.CG, Psicologia da Religião Ocidental e Oriental, Obras Completas Vol XI, § 180. Petrópolis:
Editora Vozes, 1983.
31.JUNG.CG, Psicologia e Alquimia, Obras Completas Vol XII. Petrópolis: Editora Vozes, 1994.
32. JUNG.CG, AION – Estudos Sobre o Simbolismo do Si-mesmo, Obras Completas Vol IX/2. Petrópolis:
Editora Vozes, 1982.
36. Para Edinger, o conflito entre o 3 e o 4 representa a oposição entre os aspectos dinâmicos-processuais
e os estáveis-estruturais da totalidade. Apesar de Jung descrever a função transcendente como a produção
do terceiro excluído, J.Miller vê nela um exemplo psicológico do axioma da profetiza Maria onde “o um
torna-se dois, o dois torna-se três e do três vem o um, como o quatro”. A função transcendente seria o
terceiro excluído que ao reunir o que estava dividido origina o quarto que restabelece a unidade psíquica.
39. JUNG.C.G, O Espírito na Arte e na Ciência, Obras Completas Vol XV, § 155. Petrópolis: Editora
Vozes,1991.
42. JUNG.CG, Mysterium Coniunctionis, Obras Completas Vol XIV/1, §§ 217, 221.