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343p.
ISBN 978-85-61924-09-6
CDU 398
Boa Vista
UERR Edições
Wei Editora
2019
SUMÁRIO
Créditos, 9
Apresentação, 13
ENTREVISTAS
Clemente Flores e Manoel Bento Flores, 25
Manoel Bento Flores, 71
Armando Magalhães, 115
Valdélio Perez Ribeiro, 157
Letícia Barbosa e Eduardo Alexandre Magalhães, 183
Lucinézio Peres Ribeiro, 223
Sebastiana Peres dos Santos, 239
José Vitor da Silva, 253
Aprígio Ramos, 287
Áurea da Silva Galvão e Seu Genário, 299
Seu Oliveira, 309
Domício Pereira da Silva e Regina Santos da Silva, 319
A todos os entrevistados,
Principalmente a Clemente Flores e
Eduardo Magalhães
(in memoriam).
Agradecimentos
Agradeço primeiramente a todas as comunidades indíge-
nas do Alto São Marcos que permitiram a minha presença
em seu âmbito. Vocês são partes efetivas de minha vida, de
minha memória.
Aos alunos de Iniciação Científica, sem eles esse trabalho
não estaria pronto: Ana Maria Alves de Souza, Eliana Almeida,
Keyty Almeida de Oliveira, Leonor Cravo, Michele Rubistein,
Robson Félix de Souza, meus agradecimentos.
Agradeço ao apoio do Paulino Batista, Airton Vieira,
Lucimar Sales, Rosiclei Liberal, Carmen Vera Nunes Spotti,
Huarley Mateus do Vale Monteiro, Karlyson Roberto Veras
Rodrigues.
Agradeço à Universidade Estadual de Roraima pelo apoio
e confiança no trabalho a ser desenvolvido, bem como ao
CNPQ pelo seu financiamento.
À Carla Monteiro de Souza, por ter me apresentado a
metodologia da História Oral.
Ao Rivelino Pereira de Souza e Zacarias Fernando de Sou-
za Loiola, meus agradecimentos pelas traduções de Macuxi
e Taurepang, respectivamente.
A todos que direta e indiretamente contribuíram para
realização do projeto.
9
CRÉDITOS
Dentro da primeira fase do projeto Panton pia’: Narrativa
Oral Indígena, registro e análise, seguem-se as atividades
desenvolvidas por cada membro, quanto à coleta e proces-
samento dos dados coletados. As atividades dividiram-se nas
seguintes funções: entrevistador, assistente de entrevista,
transcritor, conferência de entrevista e copidesque. Algumas
atividades foram exercidas por mais de um componente do
grupo. A seguir estão os responsáveis, a atividade exercida
e as entrevistas trabalhadas. Algumas entrevistas tiveram
participação de mais de um informante.
AIRTON VIEIRA
Conferência de fidelidade: Armando Magalhães; Áurea
da Silva Galvão e seu Genario; José Vitor da Silva; Manoel
Bento Flores; Sebastiana Peres dos Santos; seu Avelino;
Valdélio Perez Ribeiro.
Copidesque: Sebastiana Peres dos Santos.
10
LUCIMAR SALES
Assistente de entrevista: Clemente Flores e Manoel
Flores; Letícia Barbosa e Eduardo Alexandre Magalhães;
Lucinete Peres Ribeiro; Manoel Bento Flores; Sebastiana
Peres dos Santos; Valdélio Perez Ribeiro.
MICHELE RUBISTEIN
Transcritora: Armando Magalhães; Letícia Barbosa e
Eduardo Alexandre Magalhães.
ROSICLEI LIBERAL
Entrevistadora: dona Rosa, Filha Antonina, Filha Neli;
dona Tereza e filha e intérprete dona Luisa; tuxaua João.
Apresentação
Panton pia’ é um livro de histórias. “Panton” significa
história em macuxi e “pia’ ”, junto, perto: junto, perto
da história. Isso a princípio já seria muito, principalmente
quando diz respeito a histórias indígenas, a suas narrativas.
Mas tornou-se muito mais para mim, quase uma questão de
1 honra, pois é uma tentativa de contribuir no processo de
Minha orientadora de
Mestrado e Doutorado, valorização dos indígenas do Alto São Marcos, localizado
pela Universidade de Bra-
sília.
no município de Pacaraima, em Roraima, de três etnias: os
indígenas macuxi, taurepang e wapixana.
Cheguei em Boa Vista há doze anos e ainda ressonam até
hoje as palavras de Ana Vicentini de Azevedo: 1 “Já pensou
o que você pode estudar lá?” Estávamos conversando sobre
os estudos dos aspectos mitológicos indígenas, quando
ela pronunciou essas palavras. Contudo, quando iniciei as
entrevistas, veio o primeiro susto: onde estaria o que bus-
cava? Onde estariam as histórias mitológicas desses povos,
as grandes narrativas que buscava? Simplesmente, da forma
como imaginava, elas não surgiram e nem mais existiam na
boca da grande maioria dos entrevistados. Todavia algo
novo surgia nessas entrevistas: a história de vida desses in-
14
Agradecimento especial
As narrativas aqui apresentadas seguiram a metodologia à professora Carla Mon-
da História Oral, traduzida nos seguintes passos: Entrevista; teiro de Souza, da UFRR,
por ter me apresentado
Transcrição; Conferência de Fidelidade.4 à Metodologia da História
Oral e mesmo me orien-
Entrevista tando no percurso de seu
aprendizado.
Foi elaborado um roteiro para entrevista, contudo ele não
era rígido, podendo ser modificado no decorrer da entrevis-
ta. Essa flexibilidade objetivava não engessar a entrevista,
já que qualquer entrevista está sujeita ao desconhecido,
que é o outro, o entrevistado. Em praticamente todas as
entrevistas o caminho era guiado por certas “deixas” do
entrevistado, somente depois retomava-se o roteiro. Por
questões técnicas, o roteiro somente não foi adotado na
comunidade Boa Esperança.
O conteúdo do roteiro tratava desde a identificação do
entrevistado, passando pela realidade da comunidade onde
ele mora, até perguntas relacionadas às histórias de seu
povo, como pantonkon.
A maioria das entrevistas foram satisfatórias, em que o
entrevistado conseguia desenvolver o raciocínio, interagir e
até caçoar do entrevistador, como no caso da dona Letícia,
da comunidade Santa Rosa. Em outras, as respostas eram
monossilábicas. Contudo, optou-se em também incluir todas
as entrevistas transcritas aqui, pois é difícil definir o que é
efetivamente irrelevante dentro dos Estudos Culturais, locus
em que esse trabalho propõe a se inserir.
Com exceção da comunidade Nova Esperança, todas
as outras entrevistas foram realizadas por Devair Antônio
Fiorotti. Além disso, vale destacar que os assistentes de en-
trevistas, algumas vezes, também fizeram perguntas. Ainda,
17
entrevistado.
Para alguém da Letras, consciente das teorias linguísticas
19
A entrevista começa num tom descontraído, pois havia sido feita a entrevista
do irmão de Clemente Flores, Manoel Flores. Seu Manoel falava que o filho do
Clemente era bom desenhista e havia desenhado a história de Macunaima. A partir
desse ponto, a entrevista começa com a narrativa a respeito de Macunaima.
nada, não via nada. Chegou lá e ajuntou a fruta que não era
bom de comer e apanhou, apanhou. “Ah, não tem nada não,
rapaz, pra comer! Umbora comer essa fruta, fruta que não é
bom pra comer.” “Olha, tu achou banana, né?” “Não.” “Sim,
tu achou! Descobriu.” “Não, não achei não.” “Olha, ele trou-
xe...” “Sim, eu sei. Amanhã nós vamo comer lá.” Aí foram.
Aí foram embora. Chegaram lá no pé de banana. Banana
naja, baié, banana comprida. De tudo pé de banana. Tudo,
tudo, tudo, tudo, de tudo. As bananas que existem aqui no
mundo agora foram espalhadas a partir daquele momento.
Chegaram lá, banana no chão, tudo apodrecendo, caindo,
madurinha. “Umbora comer!” Aí olhou, Xicö tava olhando
por cima: “Lá tem, de novo, amadurecendo. Vou derrubar.”
“Não senhor!” “Sim, vou derribar!” Aí começaram. Pegou
o machado. “Pan.” Rapaz, esse menino foi muito ruim. Em
vez de embaixo, estando lá embaixo, ele derriba. Aí o que é
que ele faz? Aí tava derrubando já. Nesse momento, Cutia,
coitado do Cutia, era assim, pode ser que ele tinha couro
branco ou couro preto, assim, uma coisa assim, do Cutia,
né! Então, cada vez que dormiam por aí, nas matas, tiravam
mel, nós chamamo wuan.
DF: Wuan.
CF: Mel. Wuan é nome da gente também. Juan é João.
Mas na minha língua é wuan, não é Juan. Sim wuan. É abelha.
MF: Mel de abelha.
CF: Mel de abelha. Aí, ele amontoava cera, cera de mel.
9
Há certa incoerência no Como essa9 Cutia fez? Conseguiu um pau cheio de oco por
uso do feminino ou plural,
entre “esse Cutia” e “essa
dentro. Tu sabe que ele tampou todos os buracos que
Cutia”. Como não foi pos- apareceram com essa cera viva que ele ajuntou da abelha.
sível rever o informante,
pois ele faleceu, optamos Fechou, amontoou lenha, amontoou banana que tava recém-
em deixar como está, já que -caída, verde, tudo amontoou dentro do oco de pau. E ficou
Cutia, nesse caso, é uma
personificação mitológica. lá, enterrado. Ele se preparou, esse Cutia se preparou. Os
outros Macunaima, Xicö não, não se prepararam não, não
se preveniram. O que é que eles fazem? Aí começou cair pé
de banana. Tu sabe que tem muitas árvores, também grande
igual a ele. Engatou. O cipó aguentou na ponta. Aí obrigam
coitado do Quati: “Vai torar aquele cipó, senão não cai.” Ele,
36 Projeto: Panton pia’
tu sabe que ele roi também ligeiro.
D F: Ele é um roedor.
CF: “Tchan.” Torou. Caiu. Saiu muita água do pé de bana-
na. Tu sabe que banana tem muita água. Sim. Aí tinha muita
água. Tinha dois pés de palmeiras, um de najá, um de... Deixa
me lembrar: outra palmeira, tem de várias qualidades de
palmeiras. Aquele tal de pé de bacaba, mas não é bacaba
desse o’ nörö alhö ytesek mörö ko ke? Anek, mayi.[Como é
o nome dessa palmeira? É aquele?] Patauá, pé de patauá,
tinha pé de patauá e pé de inajá bem perto assim como tá
aqui [aponta com o dedo pra um lado], e outro também aí
[aponta com dedo pro outro lado]! Pé de najá, pé de patauá.
O que é que Macunaima faz? Vão subir lá. Volta a subir no pé
de najá. Ficaram lá. Encheu d’água. Cutia lá dentro d’água.
Tudo tampado nesse buraco. Ficou lá. Passa ano, passa mês.
Essa fruta que tava junto com ela lá desses Macunaima e
Xicö tava ainda verde, né! Passaram meses. Aí ficou de vez.
Estavam comendo dessa fruta. Patauá e inajá. “Irmão!”, tava
escuro. Escureceu. Não sei porque escureceu. (Esse também
não tem como entender, detalhadamente não posso dizer,
porque não sei por que tava escuro assim). Ficaram lá, tem-
po. Aí já tava madurando. “Irmão, joga da tua fruta pra mim
provar.” Xicö fazia o quê? Xicö era ruim, eu não estou dizendo
que ele era ruim. Aí pegava a fruta e descascava, passa no
bicho dele [pênis] e “tchan.” pra ele: “Tá gostoooso?” “Tá
bom, tá gostoso.” E ele achando graça do irmão dele mas não
descobriu o que ele tinha feito pro irmão dele. Não descobriu
o que é que tava fazendo pro irmão provar essa fruta. É por
isso que a partir desse momento essa fruta é assim, liguenta,
não é solta assim como bacaba, ela é liguenta assim, cheiro
de graxa, cheio de graxa assim. Aí, tempo depois, secou. Aí
provaram como este caroço que estavam comendo, “tibum.”
lá em baixo. “Já tá ficando irmão, umbora descer.” Depois,
parece de 150 dias, secou. Aí desceram. A Cutia abriu esse
oco de pau que tava dentro. Abriu, saiu. Essa aqui traseira
[passa a mão nas nádegas] ficou encarnadinha por fumaça,
por causa da fumaça. Essa é a história de Macunaima. Essa é
que é a história de Macunaima. Cutia não era assim não. Era
Projeto: Panton pia’ 37
CF: Isso aí, puseram pra ser o título do livro, mas podia ser
assim. Mas agora o nome próprio é Makunaimö.
DF: Ele fez de propósito. A pessoa que escreveu esse livro
foi em 1927. Não do século agora, mas faz noventa anos já.
Foi Mário de Andrade, ele já sabia essa história.
CF: Agora, outra coisa que eu estou... que tem outro tipo
de historiadores, ele conta diferente. Aí tu vai falar com ele,
tu vai anunciar, tu vai perguntar dele, ele vai contar em outra
forma. Assim, porque a história que sai mais correto é dos
taurepang. Agora, arecuna errou, arecuna errou, porque eu
vi na escritura de... não sei de quem foi... quem foi que escre-
veu? Foi Parimé, Parimé Brasil, que ele deu um livrinho pro
meu filho, mas não fala correto como você, ele fala errado.
DF: Eu sei, entendo... Deixa eu anotar aqui. O nome com-
pleto do senhor é...
CF: Clemente Flores.
DF: Clemente Flores. Seu Clemente, o senhor sabe a idade
do senhor?
CF: Sessen... agora assim idade, por cálculo, eu estou
com sessenta e oito. Porque naquela época, também, meu
pai, coitado, não sabia dizer que hora, em que mês, em que
ano, em que dia...
DF: Eu sei, eu entendo.
CF: É por isso que quando o filho do índio tá assim [faz
sinal com a mão, em relação ao tamanho], tá como dois anos,
não, dois anos não, até ano pode ser. Eu tinha sete anos, me
colocaram pouco... Sim, calculando assim, agora eu estou
com sessenta e oito anos.
DF: Ah! Entendi.
CF: Sessenta e oito... Naquela época ninguém sabia, nin-
guém se dava conta, se, por exemplo, tu, se alguém vier me
perguntar: “Que dia nasceu teu filho?” “Meu senhor, a lua
tava bem por aí quando nasceu meu filho.”
DF: Ah é!
CF: Mas qual era, qual era a lua? Janeiro? Fevereiro? Ou
40 Projeto: Panton pia’
Março? Abril? Ou Dezembro?
DF: Eu sei, porque são doze por ano.
CF: É isso aí. Assim foi naquela época, meu pai não sabia.
Depois de velho, depois de me gerar, meu pai aprendeu a
ler, depois de velho, assim como idade dele. Depois de velho
ele aprendeu...
DF: O senhor é casado?
CF: Eu sou casado.
DF: Casado. Quantos filhos?
CF: Tenho sete filhos.
DF: Ah! Sete filhos.
CF: Tenho sete. Quatro homens e três mulheres.
DF: Bem dividido, né?
CF: Hum? Agora, os netos, tenho vinte e seis netos; do
Florentino, do Pedro, do Glorentina, da Fidelina, e hum...
Mário, Aurimelia, vinte e seis netos. Netos e netas.
CF: Meu irmão, agora nossa história que nós temos, como
fundamos esse Sorocaima I. Eu estou falando a história, não
é do passado, não é do Macunaima, [que] não é verídica.
Porque eu, quando nasci aqui, passei a doença, epidemia que
Projeto: Panton pia’ 45
DF: Conheço.
CF: É por isso que nós estamos por aqui. Agora já esta-
mos quase civilizados, mas não tenho carro, por isso que
eu ainda estou do mesmo jeito que tava. Agora, quando eu
andava assim no volante, eu era branco mesmo. Agora não,
eu estou andando a pé mesmo, chinelazinha no pé, eu vou
Projeto: Panton pia’ 47
18
Nesse momento, seu pegar minha18 camisa, eu vou pescar. Eu pego meu timbó,
Clemente havia dito “meu
camisa”, tal difiuldade em
vou botar timbó no rio pra pegar peixe. Tudo isso aí acontece.
língua portuguesa é comum Gente vivia feliz, meu irmão, a gente vivia feliz. Depois que
em falantes que não tem o
português como primeira
passou estrada por aqui, sem dar nenhum tostão pra nós.
língua. Esse tipo de flutua- Sem dar nenhum centavo pra nós, eles passaram por aqui
ção ocorreu várias vezes em
falantes em que a a primeira ganhando dinheiro. Olha aqui, gente que passou por aqui.
língua era indígena. CIR, organização CIR19 roubou muito dinheiro. O pagamento
19
Conselho Indigenista de desse negócio que fizeram.20 Parece que cento e poucos mil
Roraima.
reais que eles tiraram. Era pra cá, parece que vinte e cinco mil
20
Referência ao chama-
do Linhão de Guri, cabos reais, pra cá, pra comunidade né, esse dinheiro. Vinte e cinco
elétricos que cortam toda pra cá, vinte e cinco pra ali, vinte e cinco assim. Só eles do CIR
reserva São Marcos, le-
vando energia elétrica da comeram tudo. Agora outra lei que aparece pra nós, é muito
Venezuela para o Brasil. preocupante, sim senhor, embora que o policiamento, entra
vereador, entra governador, estou passando esta história
que tá acontecendo aqui entre nós. Chega Meio Ambiente: se
eu vou derribar uma roça, uma rocinha por aqui, tu tem que
pagar trezentos; se der uma linha, duas linhas, tem que pagar
quinhentos reais. Pra quê? Se eu estou derribando na minha
área?. Se eu vou botar timbó no igarapé, tu vai preso, e por
que pela estrada vem maldade? Esse aí que me preocupa. Às
vezes, a gente fica triste, às vezes a gente chora, meu irmão,
isso aí que nós estamos sentindo. O nosso pessoal, tuxaua
Geraldo, só que segundo tuxaua. Daqui da comunidade, tudo
taurepang. Nosso irmão, caçula do nosso pai, Astromarino,
ele é tuxaua. Uma vez nós derribamos duzentos metros
quadrados, ele derribou trezentos metros quadrados, ele
derribou duzentos metros quadrados. Outro derribou du-
zentos metros quadrados. No tempo da queima avoa tudo
essa montanha, porque, quando tá seco, ninguém vai apagar.
Quem vai apagar fogo dele? Ai, ai,ai. Aí veio helicóptero, veio
filmando: “Derrotaram as matas.” “Vamos cobrar eles.” Aí
chegou cobrando. Veio cobrar nove mil setecentos e cinquen-
21
Nesse ponto, ele pergunta ta.21 Primeira cobrança. Passou. Ainda mais fizeram. Cajado de
em taurepang qual o valor
da multa ao irmão Manoel
dezesseis mil e não sei quanto. 2ª cobrança. 3ª chegou quase
Flores. vinte e cinco mil reais. Da onde o índio vai tirar dinheiro? Tu
não pode derribar muita mata, porque vai estragar madeira.
Madeira não estraga, não. Quando a gente vai derribar roça,
nós estamos plantando macaxeira, maniva de fazer farinha.
48 Projeto: Panton pia’
Essa madeira que caiu no chão, estamos aproveitando pra
torrar farinha. Não estraga, não. Não estraga! Nós estamos
aproveitando. Gente não trabalha com máquina, senão com
a mão, manual. Então, nós temos que trazer lenha pra poder
torrar farinha. Essa madeira não estraga, não. Nós aproveita-
mos. Até agora, essa época que nós estamos falando com o
senhor, nós sempre perseguido, sem motivo algum. Ele não
matou. Ele também não matou, mas sem motivo tão perse-
guindo. É por isso aí, da minha parte, eu estou pensando de
me mudar pra Venezuela, porque estão me perseguindo,
assim como vento me levou fugindo da doença, eu tenho
que fugir pra Venezuela.
DF: Procurar o que é melhor, né?
CF: Sim, senhor. Abandonar Sorocaima. Ele [o indígena]
vai pra onde quiser. Se ele quer ir pra cá, ele vai pra cá. Isso
aqui fica abandonado. A polícia chegou aqui; bateu, bateram
em muita gente aqui, nove persona. De mal! Até agora esse
meu filho que [eu] tava falando, desenhador,22 foi batido, 22
O filho de Clemente se
muito [de] mais, e tá sentindo a dor onde bateram nele. E identifica também como
Mário Taurepang, além de
por que é que vem maldade pela estrada? É por isso que nós encontrar referências a
Mário Flores e Mário Flores
não queríamos, nós não queríamos estrada, mas vieram pela
Taurepang na Internet.
porta da gente.
DF: Bem no meio, né?
CF: Sim senhor...
DF: Bem no meio da comunidade. É mais, é o que eles
chamavam de progresso, não é?
CF: Hum... Progresso é só pra eles. Progresso pra eles.
Sim senhor, meu amigo, assim que a história ficou por aí...
Estamos falando outra coisa que, que nós fizemos...
DF: Não, mas isso também é importante, né. Inclusive
essas perguntas todas a gente fez pro Manoel. Mas é, tá tudo
dentro, né. É claro, como ele falou assim: “Não, o senhor
pode deixar que o meu irmão vai contar as histórias lá do...”
MF: Macunaima.
Projeto: Panton pia’ 49
MF: Eh.
MF: Não!
MF: Tá proibido.
31
Maurak localiza-se na
MF: Antes da gente vir daqui do Maurak,31 meu pai falou
Venezuela, região do Par- pra mim assim: “Meu filho”, o mais velho, talvez irmão, o
que Canaima. Interessante
observar como se configura avô dele falou pra ele: “Olha, não usa muran pra ser caçador,
a territorialidade nessa não usa, mas usa água.”, ele falou pra ele, pro meu pai, aí
região entre os indígenas.
chamou nós: “Olha, meu filho, vocês têm que se curar, não
vão usar essa puçanga. O meu tio falou pra mim falar pra
vocês, pra vocês não ver essa puçanga, mas vamos conseguir
outro meio aí pra você se curar, pra vocês ser caçador, pra
quando você casar a mulher de você não passar fome, vocês
não se curaram, vocês não têm dinheiro, então pega flecha,
assim, pega arma, vão pra mata pegar uma caça, é assim.”
Ele dizia assim: “Vocês vão na beira do igarapé, vê aquela,
aquela moita, né, quando enchente, no tempo da enchente
não pega aqueles galhos muito balseiro, né, folha.”
32
Optou-se em deixar essa CF: Folha pequeno, comprido, grosso, grosso.32
concordância para observar
como a língua portuguesa MF: “Aí encosta na beira do igarapé.” Aí papai, ele falou
se distingue da língua deles.
Esses entrevistados, no ge- pro papai, papai passou pra gente: “Olha, meu filho, vão
ral, tiveram como primeira
curar. Cinco horas da manhã vocês têm que pegar copo,
língua o taurepang, depois
é que vieram o português e vocês têm que ir pro igarapé, tomar água, aonde tem aque-
o espanhol. Eles falam, pelo
menos, essas três línguas.
le galho, um monte de galho, é considerado como caça, aí
tem veado, aí tem catitu, aí tem todo bicho, todo pássaro.
Bebe água até vomitar. Encheu a barriga, tem que vomitar
em cima dessa folha, durante noventa dias, sessenta dias.
Depois disso vocês vão sair, matar veado.” Aí eu, meu irmão
que mora ali naquela casa, aí decidimos: “Rapaz, umbora
fazer?” Éramos curumim, né, “Umbora fazer!” Nós fomos na
beira do igarapé. Aí tomamos água. Rapaz, pra tomar água
de manhã cedo: “Quem que vai tomar?” [risos] Nós fizemos
66 Projeto: Panton pia’
isso só uma semana, aí eu não aguentei. Depois de vomitar...
CF: A garganta da gente fica toda irritada.
MF: É, meter banho cedo lá, é água fria, aí tá gelada
mesmo pra pessoa banhar, hunn! Aí aguentamos. Foi só uma
semana. Aí paramos. E depois eu conversei com outro velho,
não da igreja, aí ele falou pra mim: “Olha, rapaz, aqui tem
puçanga.” Ele me amostrou: “Pra quê?” “Pra veado mateiro,
veado campeiro.” “Como é que a gente faz?” “A gente bota
no olho da gente, passa num ralinho, aí passa no olho, só um
mês.” “E bom pra ser caçador?” “Eh, eu já experimentei, olha,
aqui tem couro de veado, tem chifre de veado campeiro. Eu
mato bem aqui mesmo.” “Rapaz, o senhor não tá inventan-
do não?” Aí eu disse: “Eu vou experimentar.” Eu fui mais
esperto, né. Aí eu fui usar esse remédio. Só que queima os
olhos da gente igual pimenta, só por uns cinco minutos, aí
fica ardendo. Usei durante sessenta dias, contados, sessenta
dias. Doutor, parece mentira, tu não sente mais o sono, tu
fica assim, animado, querendo caçar, tu fica, tu fica esperto
mesmo. Eu pegava espingarda, eu saía pra experimentar.
“Rapaz, agora eu vou experimentar.” Eu saía, encontrava
caça. Isso existiu, mas parei, tava bom pra conseguir alguma
coisa, pra quem tem família. Quem não usa esse muran, ele
não consegue não. Ele não consegue. Já morei aqui com um
velho, como é que chama um homem que não caça, que não
consegue nada? É como é que chama? É...33 33
A palavra é panema: im-
prestável, sem sorte na
LS: Azarado. caça e na pesca.
DF: É claro.
CF: Então, pra isso que as antigas velhas curavam suas
filhas assim, cortavam aqui assim: “Tcham.” “Tcham.”
DF: Os lábios embaixo né.
CF: Embaixo. Aí coloca esse pó, é puçanga. Aí quando ela
vai mastigar, pra misturar caxiri que tá fervendo. Ela coloca,
mistura e coloca no balde. Amanhã de manhã cedo doce sem
açúcar. Isso aí é outro remédio, companheiro.
DF: Eh... Que beleza!
MF: Pajuaru é bebida mais venenosa. Se ela tiver meio
azeda, se tu botar bem por aqui, tomar um, aí tu não conse-
gue sair por causa de maniva.
CF: Sim porque é forte, muito forte. Igual cachaça.
MF: Igual cachaça. O senhor não consegue tomar. Agora
caxiri não. Caxiri enche a barriga, aí tu vai andando. Mas
pajuaru, tomou numa vasilhazinha, tomando duas vasilhas
desse, rapaz tu fica...
CF: Tombando. Sim muitas coisas, assim vem na memória,
muitos pensamentos. Então, quando tu voltar de novo, por
aqui, a gente conversa mais. Traga dólares pra nos alegrar...
DF: Ih, tá falando com a pessoa errada.
CF: Traga dólar pra nós conversar mais...[risos]
MF: Primeiro eu assisti a chegada da Funai aqui na área,
eu assisti a chegada da Funai. Tinha a sede deles em Manaus,
mas aqui na área, no Estado de Roraima, nunca tinha. Mas
quando, assim, não é ofendendo vocês, mas o branco tava
querendo massacrar a gente. A gente passou pra polícia
territorial, naquela época, ligou pra Manaus, ele sabia onde
sede da Funai, aí vieram aqui. Primeira pessoa que recebeu a
presença da Funai fui eu. Em 70... 74, é, 74... 77, é, 77. Então,
eu vi gravador, é, rádio mesmo, aí botava quando a pessoa
34
A partir desse ponto tem
tá falando. 34
início uma entrevista ex-
clusiva com Manoel Flores.
Projeto: Panton pia’
Entrevistado: Manoel Bento Flores (MF)
Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)
Assistente de Entrevista: Lucimar Sales (LS)
Local: Comunidade Sorocaima I, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR
Data da Entrevista: 1/10/2008
Transcritora: Ana Maria Alves de Souza
Conferência de Fidelidade: Airton Vieira, Devair Antônio Fiorotti
Copidesque: Devair Antônio Fiorotti
Duração: 2’11’’49’’’
Projeto: Panton pia’ 73
[...]
DF: Então, vamos lá. A gente queria primeiro, seu Manoel,
que o senhor falasse o nome e a idade do senhor. A etnia eu
já sei, que é taurepang, não?
MF: Taurepang.
DF: Qual o nome do senhor, então?
MF: Meu nome é Manoel Bento Flores. Nasci em 1955.
Agora, até agora eu tenho 53 anos.
DF: 53. Aqui na comunidade o senhor tem alguma função
específica? Porque as comunidades possuem alguma função,
por exemplo, o primeiro tuxaua, segundo tuxaua. O senhor
tem alguma função específica?
MF: Sim, eu sou representante da comunidade. Até o
presente momento, eu sou o representante. Na declaração,
aí constam umas dezessete comunidades. Até dezembro sou
representante. Depois vão me dar baixa. Outro vai assumir,
então é assim.
DF: O senhor é o representante das dezessete?
MF: Eh.
DF: Ah! Sim.
MF: Não. De outros aldeamentos indígenas.
DF: Uma coisa que eu achei muito interessante aqui na
comunidade do senhor é a questão que vocês têm um po-
sicionamento em relação à escola muito pessoal, não tem?
MF: Tem.
DF: Que vem do patriarca. O senhor poderia falar um
pouquinho como é que se dá o ensino aqui, como é que a
mãe ensina, se é a mãe quem ensina pros filhos ou é o pai?
E qual o motivo do patriarca não permitir a escola? Espero
que a gente não veja isso como algo negativo. É pra eu en-
tender um pouquinho. É uma coisa que eu fiquei muito feliz.
Quando eu chego aqui e observo que, aonde eu chego, é
claro que pode ter um lado negativo, mas onde chego, vocês
conversam na língua de vocês, preservando. Não é toda co-
74 Projeto: Panton pia’
munidade por aqui que conseguiu preservar isso. Eu cheguei
em vários locais, então isso aí também é algo positivo, não
tem só negativo...
MF: Isso é longo assunto sobre a nossa convivência aqui
na área. Eh, eu queria esclarecer assim, não sei como, se o
nosso patriarca Mário Roberto Flores, criou aquela, aquela,
uma ideia deu na cabeça dele, né? O pensamento vem da
cabeça. Então, ele teve uma ideia de proibir os filhos se
integrarem na sociedade branca. Ele falou assim: “Meu
filhos, vocês têm que viver assim do jeito que nós estamos
morando, de agricultura. Se um dia vocês vão chegar a ser
pai, vocês vão ter filho, então vocês têm que passar isso pra
filho de vocês, eles têm que trabalhar na agricultura.” Então,
ele falava assim, “Deixa que os brancos vivam assim como
eles estão, mas nós temos que manter a nossa cultura até o
fim da nossa vida. Enquanto eu estou vivo, jamais eu vou abrir
a mão pra construir uma escola.” Essa ordem que ele deixava
pra nós, um conselho. Eu, o filho do patriarca Mário Roberto
Flores, meu nome Manoel Bento Flores, então eu fui mais
atentado, eu falava pra meu pai: “Papai, por que assim? Seu
pensamento tá muito errado. Nós vamos viver até dez anos,
quinze anos pra lá, vai chegar a sociedade branca, então não
tem como, não vai ter como a gente se entender com ele, e
nós falamos taurepang e eles falam português. E aí como é
que vai ficar?” Aí ele falava pra mim assim: “Meu filho, eu sei
falar um pouco de português, então eu mesmo, eu vou levar
alguns produtos, eu mesmo compro, eu mesmo trago pra cá.
Agora vão trabalhando. Não pensa em estudar.” Então, com
essa proposta, os filhos mais velhos tomaram essa ideia do
pai. Então, eles, meus irmãos não aceitam a escola. Então, a
família que vocês estão vendo aqui, as crianças não sabem
falar português, ficam surdo ou mudo quando a senhora
fala: “Eu quero tomar água.” Então, algumas meninas ficam
perdidas, ficam pegando aquilo que a senhora não tá pe-
dindo, água, mas é assim. Assim nós estamos vivendo aqui.
Mas meu pensamento é diferente. A proposta do patriarca
Mário Roberto Flores é essa, não se integrar com a sociedade
branca. Então, pra gente estudar foi difícil, foi muito difícil,
pra mim foi difícil, porque ele comprou o livro como esse,
Projeto: Panton pia’ 75
ele me deu: “Meu filho, estuda.” Agora quem é que vai ensi-
nar? Eu andava com o livro na mão só pra dizer que eu tava
estudando, em casa mesmo. Mas eu me interessei muito pra
saber o que o mundo oferece, o que o mundo traz, então eu
me interessei muito. Eu andava com livro e lápis, e depois,
eu estou esclarecendo isso, o que é que aconteceu comigo.
Isso aconteceu comigo. Eu perguntava de alguém, porque
meu pai ele era missionário, ele pregava a palavra de Deus,
não parava em casa. Parava assim, mas por um pouco de
tempo. Ia pra aldeamento indígena, chegava, passava dois,
três meses e depois saía. A profissão dele foi essa. Então,
eu sinto isso, que nós crescemos assim. Eu pegava o livro,
olhava: “Agora quem é que vai me ensinar?” O irmão mais
velho saiu pra outra vila longe, o irmão mais velho; e outro
filho não sabia ler; outro filho não sabia ler; outra irmã, que é
a nossa irmã, não sabia ler; outra irmã não sabia ler: “Agora
quem é que vai ensinar?” Mas eu acho que com a ajuda de
Deus eu consegui descobrir o que tava escrito. Isso caiu na
minha cabeça, eu fui começar a ler. Aí eu perguntava dele,
do meu pai: “Papai é assim?” “É assim.” Mas ele não ensina-
va. Só mostrava: “Isso aqui fala.” Então, pra não chegar ler
assim, a escrever um pouco, assinar o nome foi muito difícil,
é difícil, é difícil!
DF: Vocês tiveram que aprender sozinhos...
MF: Sozinhos. Eu aprendi sozinho, porque eu passei por
aí. Aprendi sozinho. E depois meu irmão mais velho entrou
na escola. lá ele aprendeu um pouquinho. Quando ele tá
começando a aprender, o professor também se afastou. Aí
pronto. Aí nós ficamos. Aí então, até agora ninguém sabe se
comunicar com o doutor, com os homens da lei, ninguém
tem como a gente se comunicar.
DF: Comunicar comunica, o problema é que tem dificul-
dade em ter acesso...
MF: Eh. Se torna problemático pra nós. Agora, pra ou-
tro aldeamento, é mais fácil, porque tem professor, tem
professora.
76 Projeto: Panton pia’
DF: E eles mesmos conseguem se defender...
MF: É, eles sabem. Mas nós aqui, nós estamos dentro do
aprisco, ninguém pode nem abrir a mão. Então, a gente anda,
a gente se arrasta pra alcançar a estudar, e ler, e escrever,
porque hoje a gente vê a lei do país chegando até as comuni-
dades. A lei do país chega na comunidade através do IBAMA,
através da Funai que representa as comunidades indígenas. A
lei do país chega através da Polícia Federal, a lei do país vem
através da Polícia Militar, todas as autoridades. Eles trazem
a lei que ninguém conhece. Então, pra gente responder se
torna difícil. É por isso que me interesso muito a estudar. Por
isso. Se nós vivemos assim que nem nós vivemos aqui, sem
estrada, sem transporte, sem avião, assim fora da sociedade
branca, tudo bem, pra mim não me interessa estudar. Eu
mato caça, eu pesco, eu estou comendo, lavrando a terra,
trabalhando, mas assim como nós estamos aqui, no meio de
uma tempestade: prende indígena, intima indígena, prende
o índio pra ali. Então, a gente se encontra muito pobre.
Temos nosso Deus, o poderoso, o senhor sabe muito bem.
Temos Deus, um vivo, que nunca dormita, mas o próprio
Deus entrega alguém pra ajudar os filhos dEle. Aí pra nós se
tornou muito difícil.
DF: Imagino. A primeira língua que a comunidade aprende
é o taurepang, né?
MF: Eh.
DF: A primeira língua. A língua materna é o taurepang.
MF: Língua materna ninguém aprendeu. Nós nascemos...
DF: Sei.
MF: Primeira língua.
DF: Eh.
MF: A linguagem materna é essa, taurepang.
DF: Então, o português já é a segunda língua.
MF: Segunda língua. Pra nós é língua estranha, idioma
estranho.
Projeto: Panton pia’ 77
MF: Mário Roberto Flores. Não sei quem foi que deu esse
nome FLORES. Mas quem sabe os antepassados deram esse
nome pra ele, né? Nome da minha mãe é Paula, Paula Bento.
DF: Ela era taurepang também?
MF: Não. Ela é da tribo macuxi.
DF: Ah! Ela é macuxi.
MF: Passamos a morar aqui em Venezuela há uns 15 anos.
Minha mãe, com 15 anos, nunca aprendeu a falar taurepang,
nenhuma palavra. Macuxi é macuxi mesmo. Falava, porque
pra lá, Venezuela, só fala mais taurepang, aí ela respondia
em macuxi, aí os taurepangues não entendiam. Então, eu
78 Projeto: Panton pia’
sou filho do taurepang e a mãe macuxi.
LS: Mas ela conseguia entender o que os taurepangues
falavam?
MF: Ela entendia um pouco. Foi difícil, mas no decorrer
do tempo ela começou a chegar a descobrir o que é que eles
estavam querendo, aí ela foi entendendo. E ela entendia, só
que não respondia. Respondia macuxi.
DF: A religião do senhor é qual? O senhor falou que é
Adventista.
MF: Eu sou da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Meu pai
quando ele veio, ele era da Igreja Católica, mas depois ele
reconheceu que isso tava muito errado, não tava conforme
tá escrito na Bíblia. Os missionários pregavam diferente.
Então, ele tinha que abandonar a Igreja Católica e passar
pra Igreja Adventista.
DF: E o senhor tem mais alguma informação de quando
a Igreja Adventista veio pra cá? Ou mesmo assim, quando o
seu pai se tornou católico, ou sempre foi...
MF: Meu pai, ele recebeu a Igreja Adventista, religião
Adventista, com idade de dez anos, dez anos. Depois de dez
anos, quando eles estavam... Sempre eles faziam o culto no
dia de sábado. Tinha um americano ensinando eles; ameri-
cano que veio dos Estados Unidos, veio até aqui, quando
eles moravam, eram pequenos, aí veio um americano, casal
de americano. Aí tiveram a primeira religião que meu pai
recebeu, a religião Adventista. E foi passando uns tempos. E
depois a Igreja Católica soube que a religião tava penetrando
no meio dos indígenas, aí a Igreja Católica de Caracas ou de
Colombia, ou lá mesmo dos Estados Unidos, vieram, man-
daram prender o pastor americano, mandaram prender. A
prima minha que mora em Santa Elena, tem histórico muito
bom de quando a Igreja Católica se prontificou pra prender
o pastor americano da Igreja Adventista. Ela fez tudo, mas
ela ficou de passar pra mim, que eu preciso, como assim que
vocês estão procurando, e eu também procuro como nasceu
a Igreja Adventista.
Projeto: Panton pia’ 79
MF: Eh.
MF: Aqui mesmo, não. Mas indo um dia e meio, tem muita
caça. Também a gente mata caça escolhida. Ninguém come
porco, ninguém come tatu, ninguém come anta, ninguém
come nada. A gente mata veado mateiro, campeiro, mutum,
jacu, nambu, só. Então, se o senhor entrar aqui nessa mata,
você vê um bando de queixada. Ninguém mexe com eles.
MF: Como?
MF: É o general.
Ele passou pra nós, tá tendo outra negociação, de Caracas pra Funai à época em Roraima,
Argentina, gasoduto. O mesmo trabalho que a Eletronorte Gonçalo Teixeira.
fez, outra firma também vai fazer, por baixo da torre, vai
pra Argentina; vai cortar terra indígena; vai cortar terra dos
fazendeiros; vai cortar o Estado de Roraima; vai entrar pra
Manaus; aí vai embora. Gasoduto vem da Venezuela, porque
Venezuela tem muito gás.
DF: Lá tem demais.
MF: Então, tá tendo este estudo, então pra isso as lideran-
ças indígenas. Porque no meu tempo, quando fizeram essa
negociação, os índios perderam muito, perderam, porque só
pensaram em tirar os fazendeiros e não olharam a quantia de
dinheiro. Então, o próprio consultor indigenista, o Carvalho,
disse: “Eu não sei, se os fazendeiros pedirem dez milhões,
Eletronorte vai indenizar. Se os fazendeiros pedirem quatro
milhões, também vai ficar aí. Pronto. Em segundo lugar dizem
que terra é da União, a Funai não pode dar título definitivo
pro índio, porque não é deles. E aí, companheiro? Eu não es-
tou satisfeito com isso não. É por isso que tem que examinar
a Lei, embora que eu não vou resolver, mas a gente tem que
Projeto: Panton pia’ 95
MF: Não.
MF: Os mesmos.
DF: Foi?
MF: Foi. Eu acho que o senhor indo lá, eles devem contar,
porque aconteceu agora no ano passado, em 2007, foi mês
de agosto, mês de março, por aí, do ano passado. Mataram
um, e foi Canaimé.
DF: Não.
45
Referência a um local na
MF: Eh. Canaimé existe. Eu fui pro km 8845 agora no ano
Venezuela, que localiza-se passado, no dia 7 de setembro, quando o Exército tava des-
no km 88, sentido Santa Ele-
na de Uairén Puerto Ordaz.
filando. Eu passei pra lá, lá eu vi muita coisa, história desse
Canaimé. É muito perigoso. Ele mata. Até eles amostravam
um Canaimé: um gordo, um homem forte. Isso daqui, aque-
le aí, você não pode nem zombar dele assim: “Não mata
ninguém!” Pode se aprontar que ele te mata. Acostumado
matar. Só que eles não matam: “Matou? Não, fulano matou.”
Quando ele toma uma cervejinha: “Ah! Eu matei.” Pronto.
DF: Ah! Ela me contou também que era engraçado pra
descobrir se a pessoa foi atacada ou não, porque pode atacar
e não matar, não é isso? E a pessoa passa uma semana; fica
triste; fica não sei o quê; fica amuada. Como é que faz pra
saber se a pessoa foi ou não atacada pelo Canaimé? Porque
às vezes ele nem sabe se foi atacado. Não é isso?
MF: Eh. A pessoa não conta não. Não conta.
DF: Ela não consegue contar, não é?
MF: Não consegue contar.
ALGUÉM: Aí, na última hora eles contam.
MF: Dizem os mais velhos, (como é que chama?), negócio
de pilão, é mão de pilão, que soca assim: “tá, tá, tá, tá.” Aí
lava, dá um pouco de água pra ele, aí passa a contar.
DF: Ah! Sim. Pega a água do pilão.
MF: O meu tio, irmão do meu pai ali, morreu de Canaimé.
DF: Sim?
MF: Colocar.
que ele consegue é pra ele. O que mora aqui também prepara
sua comida, ele come. Estão aprendendo, aprenderam mais
o que é dos brancos, né?
DF: Nós somos assim.
MF: Eh. A casa bem juntinho, mas não chama outro. A
comida que ele tem é pra aquela casa. Também ele não
conhece outro, conhecendo ele não diz, porque eu já passei
por aí em Boa Vista: “O senhor conhece o fulano?” “Não.”
[...] Nem dá bom dia, passa assim perto, mas não fala. En-
tão, nessa parte os índios já estão participando. O que ele
comprou, o que ele gastou é pra ele, deixa o vizinho passar
fome. Antigamente, quando a gente começou a morar, não
era assim. Antigamente a gente chamava, agora não. Agora
é na base do dinheiro. Aí outra pessoa diz: “Não, rapaz, às
vezes eu falo pra minha esposa ‘vamos convidar o parente
...’ .” “Não, tem pouca comida, não vai dar. Também nós
gastamos dinheiro...” É assim. É nessa parte a gente entra
nessa divisão.
DF: Que é já a cultura do outro.
MF: Eh. A cultura dos brancos.
DF: Eh. Nós somos assim. A não ser em ocasião de festa,
que a gente se reúne...
MF: Eh. No dia da festa é aberto pra todo mundo, pode vir
preto, amarelo, é tudo, mas assim no meio da semana é difícil.
DF: Não, praticamente não existe.
[...]
MF: Doutor, eu queria terminar o assunto da área de-
marcada, a terra da União, porque sem saber os tuxauas
brigaram. Agora estavam querendo solicitar o título definitivo
da Funai, aí ele disse: “Não. Título definitivo pro índio não se
dá. Por quê?”, ele falou pra nós, “Por quê? Vou já explicar:
se o índio receber o título definitivo, ele vai se tornar o dono
daquela área.” Ele falava, eu sempre converso com ele: “Ele
vai se tornar o dono daquela área, ele vai querer negociar
com os brancos. O dinheiro daquela área vai servir muito pra
106 Projeto: Panton pia’
ele. Como? Pra ele comprar o carro, ele vai andar de carro;
ele vai sair da sua cultura, da sua tradição; ele vai acompa-
nhar os branco, andar de carro. Então, deixa os índios sem
título de terra.”
DF: E aí vai passando de um pra outro, mas...
MF: ... só que acontece, não sei se acontece pra lá pro
Pará, Maranhão, não sei, mas aqui na fronteira acontece isso.
Meu pai, ele procurou dar o nome da fazenda: é Fazenda
Flores. Aqui é só família Flores, então, aí ele passou: “Eu que-
ria que o senhor fizesse uma placa: Fazenda Flores, porque
somos família Flores e nós queremos a placa.” Aí chefe de
posto disse: “Não. Não pode ser assim. Esse daqui não é de
vocês, é da União. Vocês não podem ser o dono.” E no ano
retrasado — eu acho que aconteceu isso em 2003 — uma
vez o nosso carro que foi doado pelo governo, uma Toyota
Bandeirante, atropelou um carro venezuelano lá dentro,
lá em Venezuela. Aí o dono do carro passa pro advogado,
advogado chama o carro: “Não, deixa o carro brasileiro
aqui. Nós vamos entregar o carro só quando ele pagar meu
carro.” Pronto. O nosso carro foi preso, o carro do governo.
Aí nós ficamos aqui aperreados; nós tirávamos dez cachos de
banana; outros davam um saco de farinha, ali apuramos pra
pagar advogado pra ele liberar o carro. Não deu pra cobrir
aquela dívida. Aí o que é que nós pensamos? Nós temos a
fazenda indenizada, Fazenda Asa Branca, que foi indenizada
pela Eletronorte juntamente com a Funai e as lideranças. Tá
dentro do cercado, dentro do cercado, lá tem pedra, pedra
bruta mesmo. Aí tinha um homem comprando aí dez carradas
de pedra, já que a comunidade não tinha. Tinha, mas não
deu pra cobrir aquele tanto de dinheiro. Então, estudamos:
“Agora vamos pegar pedra, oito carradas, até aonde der.”
Aí consultamos uma caçamba, levamos, ajuntamos um mon-
te de pedra, aí levamos. Eles estavam olhando pra gente.
Aí levamos mais carradas. Aí alguém correu lá: “Rapaz, a
comunidade Sorocaima I tá vendendo pedra.” Eu fui com o
Nelson da Funai, aquele moreno, ele tava aí no Programa São
Marcos. Aí quando a gente vinha subindo com a carrada de
Projeto: Panton pia’ 107
AM: Isso.
DF: Isso.
Quando o senhor vai outra vez levar nossa história pra outros
cantos e trazer dinheiro, contribui pra nós, dá ao menos cem
mil reais; não pode, ao menos cinquenta mil ou vinte mil
reais. Tudo serve pra comunidade!” Aí nós dissemos: “Não,
agora o delegado tá preservando a comunidade. Ele foi pro
exterior; trouxe dinheiro; agora ele tá contribuindo. Agora
mesmo dizendo essa história bonita pro senhor: “O senhor
como delegado não, o senhor pega, todo dia tá trocando de
carro, carro dos melhores carros né, e nós ficamos na pior.”
Dizendo: “Não pode tuxaua derrubar madeira.” Que isso?
Nós vamos acabar com isso, vamos acabar com isso sincera-
mente, nós estamos enjoados. “Vai chegar o dia delegado,
de nós eliminar vocês. Acabar com isso. Lá dentro ninguém
vai mais aceitar vocês lá dentro, de jeito nenhum. Se aceitar
vai pro cacete lá dentro, vai pra borduna, não tem jeito né?”
Aí como é que a gente vai aceitar as pessoas que só vem
nos enganando. Só levando nossa história e não trazendo
nada pra ninguém. Não traz projeto, não planta projeto. E aí
coitados, a gente de machado, terçado, nós estamos cansa-
dos de cortar. Hoje nós queremos uma motosserra pra tirar
madeira bem na linha. Bater a linha, tirar umas madeiras fazer
suas casas bem arrumadas. É isso que nós estamos queren-
do. “Acabou, a gente tá cortando de machado, o braço da
gente tá cansado delegado. Mostra um projeto pra nós, pra
nós ficarmos animados com o senhor. Que o senhor não é
nosso patrão de jeito nenhum. Patrão somos nós, tuxauas e
lá dentro quem manda é a comunidade, é o tuxaua. Não é o
senhor que vai mandar lá dentro, botar opiniões lá dentro.
Opinião tem que sair de dentro da nossa comunidade pro
senhor. Se no caso, se o senhor aceitar, tudo bem, senão fica
lá dentro mesmo. Opinião fica com as lideranças lá dentro. É
isso nosso objetivo.” Nossa história é essa. É a melhor coisa.
DF: E o Governo Federal?
AM: Governo Federal, ele tá aí né? Ele diz que apoia um
lado, apoia um lado, apoia outro lado. Mas na verdade nós
temos que saber onde que nós estamos mesmo. Porque
senão nunca, ninguém vai conseguir nosso objetivo, de às
vezes até de viver bem. O Governo Federal, ele tá abrindo
134 Projeto: Panton pia’
uns projetos, tá abrindo as portas pra uns projetos, pras
comunidades, pra associação. Às vezes, muita das vezes,
nosso presidente, nós mesmos lideranças, muita das vezes
não tá se manifestando a procurar. Aí onde caem os outros
mais espertos, pegam o projeto. Aqui na associação era pra
vir nove mil reais. E as outras comunidades comeram. E aí
nós temos outros projetos, de um caminhão e uma toyo-
ta cabina dupla pra vir pra cá, pra associação e até agora
nunca ninguém conseguiu. Mas já fomos lá, formamos sete
tuxauas e fomos lá na secretaria lá do índio, procurar do seu
Adriano.51 Ele disse, se negou pra nós: “Eh, rapaz, cê sabe 51
Secretário Estadual da
Secretaria do Índio de Ro-
que Uiramutã mora muito distante de vocês, precisa ter
raima, Adriano Nascimento,
um caminhão e tal.” Então, quer dizer que o negócio tá por à época.
DF: Justamente.
mesmo aqui. Ele veio aqui e: “Ah, tu tá aqui, né? Nós vamos te
matar.” Quando ele ficava aí com as crianças meio-dia, aí ele
ficava aí, e diz que esse homem veio. Esse mesmo, barbudo,
veio aí. “Ah, tu tá aqui, né? Mas tu não vai escapar não, cara.
Tu não vai escapar não...” “Ei, pô, eu vou dizer pro papai o
que tu disse.” Ele contou, mas, eu andei atrás desse cara
um bocado de dias por aqui, doido pra conversar. Eu digo:
“Vou pegar esse cara hoje.” Mas nunca encontrei com ele.
Quando encontrava era correndo. Ia embora pra Boa Vista.
Aí eu andei muito tempo caçando ele. Mas isso é história do
Canaimé, né? Matou pessoas, enforcou, bagunçou, matou.
Então, é a história...
DF: E ele faz isso por nada?
AM: Por nada. Por inveja, às vezes. Que às vezes você é
trabalhador; às vezes você é tuxaua bom, acolhedor. Aí ele
vai e: “Não, esse tuxaua aqui nós vamos matar logo ele, pra
ele não levar segredo muito pra frente. Esse daqui já dá pra
eliminar ele.” Então, vai, às vezes tá por aí, às vezes forma
um grupo de cinco peões, Canaimé deles. Aí chega lá, ataca
a gente sem a gente ver, derruba, mata, ou então machuca
o cara lá, só chega gritando na casa. Nem doutor dá jeito,
porque já tá todo arrebentado. Colocam vara no bumbum da
pessoa, lá pra dentro tudo. Cortam a língua, tudo bagunçado.
É assim a história do Canaimé.
DF: O senhor já ouviu falar como a pessoa faz pra virar
um Canaimé? Por que ela vira?
AM: Não, professor, é o seguinte: esse Canaimé é uma
qualquer pessoa que vem de fora, lá de outros cantos. Aí, eles
ficam com inveja. Às vezes, outra pessoa manda: “Rapaz, tu
garante matar?” “Garanto!” “Então vai lá, faz o Canaimé pro
cara lá.” Ele vai, ele corta uns couros de mambira, de taman-
duá, se tiver; fura um buraco, faz aquela máscara, ele faz a
máscara pra poder ver e a pessoa se assustar. Eles colocam
aquelas vestes, aquelas roupas de tamanduá. Tira o couro e
se veste, e o cara vê aquele negócio feio, viche Maria, já cai
desmaiado. É onde eles pegam e matam a pessoa. É qualquer
pessoa que venha de fora. Parentes mesmo, parentes que
140 Projeto: Panton pia’
moram assim distante, eles fazem isso com povos indígenas.
Qualquer um né? Então, isso aí que é chamado Canaimé. É o
Canaimé do índio. E do branco é bandido.
DF: Bandido.
AM: Eh.
DF: O senhor sabe de alguma outra história parecida com
essa, da comunidade, que o senhor ouviu alguma vez alguém
contando? O senhor sabe de alguma?
AM: Professor, sei não, professor.
DF: Sabe não?
AM: Sei não. Se eu sei, mas tem que lembrar.
DF: Aquela história da mulher que foi pega pelo macaco.
Já ouviu falar ou não?
AM: Não, senhor.
DF: Não?
AM: Não, senhor.
DF: Que ela morou com o macaco, não?
AM: A história que eu sei é de um homem, justamente
esse Canaimé. Ele tinha matado uma pessoa, aí ele dormiu
numa maloca longe, em cima da serra. Aí, em cima, anda-
va uns caçadores, caçadores de veado. “Bora caçar por
aí? Bora pegar...” Aí, pegaram suas flechas por aí. Aí lá de
baixo encontraram o cara dormindo lá, assim escornado,
só soninho. A noite toda tinha andado por aí, nas comuni-
dades matando gente. Aí tava dormindo lá, pelado ainda.
Aí o cara diz: “Rapaz, o que nós vamos fazer? Nós vamos
amarrar o grão do cara aí com a corda. Aí tiraram a corda, o
arco novo, aquela corda que é de, de curauara, aquela que
é dura que só. Amarraram o coisa do cara lá pra trás. Ele
tava com a perna encolhida, bem encolhidinha e amarraram
aqui no mocotó dele. Bacana. Deram um nó, acocharam ele
devagar aí amarraram aqui no mocotó dele. Aí “Agora nós
vamos correr, nós vamos gritando.” Aí lá vem: “Ia! Ia! Ia!”
gritando, aquele pessoal, né? E aí o cara acordou assim, que
Projeto: Panton pia’ 141
pra lá. Pode fazer. Faz um posto de saúde que fica perto,
pra não estar correndo.” Fica perto. Tem o telefonezinho,
de lá liga pro hospital, mas de qualquer forma fica longe.
Tem que ter uma casa de saúde e uma escolinha perto, que
essas crianças quando vão começando a fazer a 5ª série ou
qualquer grau maior, nós já temos as nossas casas ali, que
é pra acomodar eles. Daí eles vão pra escola, daí eles vem
pra cá, dorme aí. Nós estamos na mata com outras crianças
menores que estão crescendo. [...]
DF: Hoje, qual é a principal dificuldade encontrada pela
comunidade?
AM: A principal, como é que se diz?
DF: Dificuldade. A coisa mais difícil.
AM: Bom, a dificuldade que nós estamos tendo é porque
ninguém tem uma estradinha lá dentro. Só umas vicinais, mas
uma estrada no momento não, é no trilho. Essa é a nossa
dificuldade, mas de resto não tem dificuldade nenhuma. Só
a estrada mesmo que nós estamos precisando e nós vamos
trabalhar com isso.
DF: E o senhor percebe algum tipo de preconceito em
relação aos indígenas ou não? Já tá tudo igual ou as pessoas
ainda têm algum tipo de receio?
AM: Bom, os preconceitos que a gente vê, que hoje tá na,
estamos quase, quase não, estamos iguais. O povo brasileiro,
ele não, acho que nós como indígenas eu não, não estou
sentindo que nós estamos tendo preconceito ainda nesse
momento. Até porque nós estamos, quer dizer, nós usamos
só uma parte de brasilidade. Todos nós somos brasileiros, não
tem preconceito de, vamos dizer assim, de (de como se diz?
Projeto: Panton pia’ 143
[...]), de dizer que o senhor não tem direito, né? Vamos dizer
assim. Todos nós temos direito. Assim como o senhor tem
direito, o indígena também tem sua parte de direito também.
Só, vamos dizer assim, nós usamos a igualdade igual. Cada
um de nós, indígenas, temos direito como os outros têm
também, o próprio branco. Preconceito não tem assim de
dizer que a gente é...
DF: Diferente.
AM: Diferente. Desclassificar ninguém: “Ah, porque fu-
lano é preto, fulano é branco.” Não. Preconceito então, pra
mim, eu acho dentro de mim que somos, todo mundo somos
iguais. [...] O que pode existir, porque um pensa dum jeito,
como o branco, e nós também pensamos diferente deles
também. Mas quase o mesmo caminho que o outro vem pen-
sando, a gente vem pensando junto, porque até, porque nós
estamos tendo, e vendo, nós estamos dentro da sociedade,
civilização. Hoje não tem mais quase índio que anda naqueles
tempos como andava tempos passados. Hoje nós estamos
cada vez mais se desenvolvendo, vendo a parceria dos outros
brancos. E pra mim, ninguém tem preconceito de...
DF: Outra coisa, como é que o senhor vê a questão: se,
por um lado, o índio é dono da terra; por outro ele não é.
Porque a terra pertence, na realidade, à União.
AM: À União.
DF: O índio só é um beneficiário.
AM: Sim.
DF: Como é que o senhor vê isso, esse negócio de, de
repente a gente luta por uma coisa, pra estar na terra, mas
ao mesmo tempo você não pode usufruir a terra direito,
porque ela é da União?
AM: Isso.
DF: Como é que o senhor vê essa questão?
AM: Bom, essa questão a gente tá vendo, que... Eu estive
conversando, eu lancei uma pergunta pro delegado da Polícia
144 Projeto: Panton pia’
Federal, eu disse assim: “Delegado, o senhor, uma pergunta
pro senhor, que dizem que a terra é da União. Mas essa União
é do povo brasileiro ou do povo estrangeiro? Porque, do
que eu estou entendendo um pouquinho que tá dizendo, a
terra é da União. Então, a terra é do povo brasileiro. É isso
delegado?” Eu falei pra ele. “É rapaz, é da União, de todos,
né?”, e não quis me explicar direito, mas disse que a terra é
da União. Tornei perguntar dele de novo o que era União,
que ninguém tava sabendo o que é essa União. A União que
nós sabemos dentro da comunidade é que estamos unidos,
todo mundo trabalhando de união, só em um objetivo só. É
o que eu entendo de união. Aí ele diz União é, não sei como,
não sei nem como dizer, professor, pro senhor que até agora
eu estou confuso.
DF: Não tá entendendo né?
AM: Não estou entendendo que é essa União. Eu acho
que...
DF: União é do governo, é do Brasil?
AM: Do Brasil sim, do Governo Federal.
DF: Eh, mas é assim, uma terra que pertence a todos os
brasileiros.
AM: Todos brasileiros. Tá certo. Eh.
DF: A palavra significa isso, entendeu?
AM: Tá certo. Agora eu entendi como é que é.
DF: Não pertence só ao Devair, pertence a todos.
AM: Todo mundo, né?
DF: Isso. E é gerenciado pelo governo. É o governo que
gerencia. Como se fosse um parque, né?
AM: Isso.
DF: O que é muito complicado pro indígena.
AM: Não, pra mim, quer dizer, não é complicado. Isso
que eles estão fazendo, não acho que é complicado, porque
tem que ser assim, né? A gente tem que trabalhar conforme
Projeto: Panton pia’ 145
DF: A legislação.
DF: Ela não disse nada a ninguém? Não deixou uma carta?
VR: Deixou uma carta pra mãe dela, dizendo que se a
mãe dela não chegasse aquele dia, ela ia se, ela ia, como é
que pode dizer, assim, se arrepender, né? Se a mãe dela não
chegasse aquele dia, ela ia se arrepender. Então, foi, meteu
a corda no pescoço e pulou da casa. Se suicidou e morreu.
[...] Pois é, e o próprio irmão dela que morava junto com ela,
chegou na casa de noite, porque ela dormia assim no sofá
e numa rede. Aí ele chegou na rede dele e dormiu a noite
todinha, pensando que a irmã tava bem. A irmã dele tava lá
no quarto pendurada, ele não via ela mexer, só quando ela
dormia. Aí, de manhã, ele foi ver ela no sofá, ela não tava. Aí
entrou no quarto e ela tava pendurada desde as oito da noite.
DF: Aí é triste mesmo.
VR: Eh.
DF: E feliz?
VR: Eh, feliz, hoje, porque tenho uma família, têm meus
pais que moram perto da gente. Acho que a maior felicidade
é ter a família unida. Acho que é uma das felicidades [...] e
saúde principalmente.
DF: O senhor nasceu onde, aqui no Alto mesmo?
VR: Aqui no Alto mesmo. No Alto São Marcos.
DF: Certo. E agora vou fazer algumas perguntas mais
sobre a comunidade. Qual a história da fundação da comu-
nidade, o senhor sabe?
VR: Eh, como eu tava contando naquela hora, dentro da
comunidade hoje, são as histórias que a gente já sabe, que
a comunidade veio desse processo de 1900 pra cá, foi um
livro que, que o meu professor também lá da comunidade
tem achado por internet e achou, foi de um alemão, parece,
Theodor Koch-Grünberg, Koch-Grünberg. 55
55
VR: Dezoito!
VR: Foi o João Sales. [...] Então, segundo o meu avô, que
era Sari, o nome dele macuxi.
DF: Sari.
sabem fazer, agora, pra falar que é o negócio! Pode ver que
aqui no Sorocaima I, hoje...
DF: Sei.
VR: Segundo o pessoal comenta, os alunos só vão pra
escola depois de sete anos, só depois que já sabem falar o
idioma deles.
DF: Ali nem escola tem. Ele não deixou colocar escola até
hoje, o patriarca.
VR: Pois é, então, é a escola do Sorocaima I. Então, só vão
pra escola depois de sete anos, quando já sabem falar o...
DF: Taurepang.
VR: O taurepang deles lá. Então, é interessante, né?[...]
DF: Eles falam taurepang mesmo. Me diga uma coisa,
como é que o senhor vê hoje a questão do indígena, o senhor
como tuxaua?
VR: A questão, mas como assim?
DF: Do índio hoje, por exemplo, a relação dele com o não
índio, como é que o senhor vê isso aí?
VR: É como eu disse, eu não vou repetir mais, mas hoje a
sociedade indígena, apesar de que não são bem, vamos dizer
assim, são considerados quase como mentores, como gente.
Mas hoje, o índio, ele é como qualquer um ser humano, né?
Hoje o pensamento de nós indígenas é estar ocupando os
espaços também, onde hoje os não índios estão ocupando
hoje, né, pode ser no município, na parte de vereador, na
parte de prefeito, nas escolas já estão com certeza, se não
falha a memória, mas acho que são quase mil professores
indígenas, hoje.
DF: Sim, na parte do Insikiran, não é isso?
VR: Não, nas comunidades indígenas mesmo.
DF: Ah, nas comunidades.
VR: Isso. Na parte do Insikiran, parece que são seiscentos,
170 Projeto: Panton pia’
parece que é mais ou menos assim. [...] Pois é, então é isso,
que eu vejo assim, que a parte de nós indígenas hoje tem
que avançar, acho que a palavra hoje é avançar.
DF: Sim, o senhor falou uma coisa que é interessante: os
indígenas pensam que o branco pensa que o índio não era…
VR: Não, escuta aqui, não todos os não índios. Imagina
assim, que hoje os brancos, o indígena não é considerado
quase como gente hoje, que o índio, por exemplo, pra eles,
assim, é uma coisa quase descartável, um animal, vamos dizer
assim, mas, na realidade o indígena hoje é um ser humano
igual a qualquer um hoje.
DF: Sei.
VR: Pensa, tem inteligência como qualquer um, né?
DF: É por isso que eu tava falando daquela questão do
direito e dever.
VR: Pois, é.
DF: Eu acho importante ter essa consciência do, até que
ponto é, isso é uma coisa que eu acho muito estranha. Na
hora em que você nasce índio, você nasce índio, mas também
nasce brasileiro.
VR: Pois, é.
DF: Não é isso? Mas na hora de seguir a legislação parece
que é uma legislação própria só pro índio e a outra legislação
não serve. Vocês tem direito à terra, não tem? Tem. Mas a
terra não é de vocês, é da União. Isso cria uma confusão
danada, não cria não?
VR: Cria sim.[...] Igual quando eu tava participando de um
concurso lá no Sebrae, aí a professora colocava o seguinte:
“Não, porque vocês não são mais indígenas, porque vocês
já usam relógio, não sei o quê mais...” Aí eu perguntei pra
ela: “Professora, a gente não é mais indígena porque a
gente já tá na cidade com todas essas coisas. E se a senhora
nascesse aqui na cidade e passasse dez anos lá na aldeia,
a senhora ia ser maranhense ou ia ser indígena?” “Não, eu
Projeto: Panton pia’ 171
VR: Isso.
DF: Entendi. Então, em relação àquelas histórias antigas,
o senhor ouviu contar muito, não ouviu? Por exemplo, a
história de Macunaima, todo mundo fala né, mas o senhor
ouviu, sabe essa história, sabe contar?
VR: Não, não. Essa história de Macunaima eu não sei, eu
não sei muitas coisas, não.
DF: Sei.
VR: Também, eu não vou dizer que eu sei, né?
DF: Mas na comunidade tem algumas pessoas que sabem?
VR: Ah, eu acho que com certeza tem, porque quem
podia contar a história de Macunaima era meu avô. Só que
aí não vai dizer, porque ele tá bem velhinho e se a gente for
conversar com ele não vai, e é bom ouvir, mas só que ele tá,
ele não tá raciocinando direito mais não. [...]
DF: Mas se algum dia ele quiser falar, o senhor pode,
inclusive, ir junto, ficar fazendo as perguntas, pra registrar
mesmo. [...]
DF: E a história do timbó, vocês ainda fazem pesca com
o timbó?
VR: Não, não.
DF: Não fazem?
VR: Sempre o pessoal fazia lá uma pesca com o timbó, mas
só que era um timbó bem fraquinho mesmo, porque quem
utiliza o timbó é o pessoal aqui da Boca da Mata mesmo,
mas lá mesmo, não.
DF: Nunca ouviu falar a história dele, não?
VR: Não, não.[...]
DF: Sim. E essa questão do fogo-fátuo, já ouviu?
VR: Eu já ouvi falar em fogo-fátuo, mas da história eu
nunca ouvi, não.
174 Projeto: Panton pia’
DF: Não sabe.
VR: Não, não.
DF: E do Canaimé?
VR: Iche. Tem vários casos do Canaimé, aí.
DF: O que o senhor sabe dele, o que entende, o que
pensa a respeito?
VR: Não, segundo o que o pessoal comenta, que o Ca-
naimé é a pessoa assim, que faz mal às outras pessoas, é
só pra fazer o mal mesmo, né? Caso de inveja, essas coisas,
assim. Então, vai fazer o mal à pessoa. Graças a Deus que
quase não tem muito isso, tem assim, se o Canaimé assoviou,
assoviou por lá, mas se diz que não é o Canaimé, mas diz que
é assim: o Canaimé é uma pessoa normal, só que tem um, ele
usa um não sei, um tipo de não sei de quê lá, uma matéria
que ele usa, que os parentes dizem que é uma puçanga que
ele tem. Então, por exemplo, porque é, vamos dizer assim,
existe essa puçanga pra várias coisas, pra caça, pra pesca,
pra todas coisas, né? E pra matar gente também serve, então
é isso que acontece com ele, ele usa essas batatas, não sei
se é batata o que ele usa lá, sei que é uma puçanga que ele
usa pra fazer mal aos outros. E eu ouvi dizer que, acho que
na Boca da Mata, um velhinho que mora na Boca da Mata,
não sei se é vivo ainda, ele morava não sei onde, acho que no
Arai. Aí, lá os parentes deram uma batata pra ele, uma batata
de matar veado, né, diz que aí ele páá, rapaz, vou matar um
veado hoje, ele passou não sei se foi a mão, na perna dele,
e foi caçar. Aí diz que a mulher dele tava na roça e passou a
batata e esqueceu de tudo. Daí a um pedaço, chegou lá na
roça com a mulher dele e tava matando a mulher dele, aí a
mulher dele gritando: “Não, não faz não, não faz não.” Não
tava conhecendo ela, né? “Não faz, não faz, não faz.” Não
sei o quê, e ele querendo matar ela. Até que ele correu. Aí
quando ele chegou de tarde lá, a mulher dele perguntou:
“Rapaz, tu queria me matar lá na roça?” “Eu? Eu não, rapaz,
eu fui caçar!” “Não, foi tu mesmo que queria, tava me en-
gasgando lá.” “Não, eu não fui pra lá não, eu fui caçar.” Aí,
Projeto: Panton pia’ 175
DF: Do Curupira é?
LB: Não.
DF: Ah, é?
DF: Ah, é?
LB: Escorpião.
LB: Macunaima?
DF: Eh.
DF: Ah é?
EM: Não.
LB: Tem gente que sabe. Já ouvi contar, mas não aprendi.
LB: É Orocaima.
EM: Depois.[...]
DF: Aqui então tem história que era muita, que tinha
muito papagaio aqui?
LB: Lembro.
LB: O pajé ele era o médico, pajé era médico dos antigos.
É, aquela conversa que a gente puxou de Canaimé. A pessoa
que adoecia. Às vezes criança se assustava, passando mal ali.
Vai chamar o pajé lá da Curicaca ou da Santa Rosa. Aí o pajé
vinha, batia folha, cantava. Tem Maruwai que traz a sombra
da gente. Não sei se vocês, os senhores conhecem.
LB: Eh, sei. Espera aí que eu vou contar. O pajé ele bate
folha, bate folha, bate folha. Ele fica cantando, a gente
fica acompanhando, que aí ele vai: “Criança tá assustado,
vam’bora buscar o espírito dessa criança ou daquela mulher
ou daquele senhor.” Aí começa a cantar.
Amîrî wîtî tane, amîrî wîtî tane, ashikî manon
Ayete’ tá’ ashikî manon
60
Todas as transcrições e
Manon yawon pa wamî pia ashikî manon. 60
traduções em macuxi fo- Suwooo! Suwooo!
ram realizadas por Rivelino
Pereira de Souza. [Enquanto você vai, enquanto você vai, venha filha
Na sua rede, venha filha
Filha, venha no meio de sua gente, filha]
LB: A gente chama o espírito. Vem cá; vem com teu pes-
soal, com teus irmãos; vem comer sua comida junto com
a sua família. É assim que a gente cantava, né. Hoje já não
existe mais.
LS: É bonita.
LB:
Yekaton anepî tane Maruwa, Maruwa manon yekaton
ene’kî
Maruwa, Maruwa, Maruwa wîkîrî wîtî manon yekaton
61
Dona Letícia não repetiu a
ene’kî
música, mas aparentemente
a completou Maruwa, Maruwa, suwooo! Suwooo! Asîkî Manon.61
LB: Ele morreu assim olha, ele curava muita gente. Tinha
um branco, por nome Djalma, Djalma não sei de que lá, ele
morava no Surumu. Ele tinha ferida na perna. “Será que esse
pajé sabe mesmo?” “Geraldo vem ver aqui o que que ele
tem na perna.” Ele foi lá. “Ah seu Djalma, tá com pereba na
perna assim.” “Tu, tu reza pra mim?” “Rezo.” Ele rezou nas
feridas do seu Djalma. “Será que esse pajé, é verdade que
ele conhece mesmo? Esse pajé tá é mentindo. Peraí.” “Seu
Djalma, o senhor não vai comer galinha, não come ovos,
não come porco, carne de porco. Daqui uns dias mais, mais
tardar um mês, o senhor vai ficar sem comer dessas coisas.
Não come carne de gado, essas coisas, peixe, que porco faz
mal.” Geraldo foi embora pra casa dele dia. Passam uns dias...
aí vinha ele. “Eu quero ver se Geraldo adivinha mesmo.” E ele
comeu carne de porco, comeu galinha ele. A ferida tornou
a espocar de novo. Mandou chamar finado Geraldo aí ele:
“Seu Djalma, o senhor comeu porco, seu Djalma.” “Eu não
comi.” “O senhor comeu.” Aí eles começaram a teimar. E ele
tinha comido mesmo. Aí é donde ele acreditou. O branco, né?
Acreditou nele. Foi assim. Pra ele morrer, ele morreu em Boa
Vista, foi em cinquenta, cinquenta e seis. [...] Em cinquenta
e seis ele morreu. Então, ele tinha um conhecido, que tinha
uma comadre por nome Andrelina. O marido dela morreu e
ela se juntou com, com homem novo. Ele bebia muito, e ela
também bebia. Briga de casal né?[...] Ele vai coloca veneno
no, na bebida, na bebida. Ele sabia que ela gostava de beber.
Era pra matar ela. Aí o pajé chegou, [mas não adivinhou]. Ele
gostava muito de beber também, ele bebia muito. “Geraldo
tu não quer tomar café ou quer tomar café, café branco?”
“Eu aceito café branco.” Ela foi, ela deu um trago pra ele,
demorou o homem caiu. Quando ele sentiu, ele disse: “Olha
comadre, você me matou.” Quando ele tragou a cachaça,
ele disse: “A comadre me matou.” Aí ele morreu né, morreu
206 Projeto: Panton pia’
envenenado.[...]
DF: E qual é a história do parixara?
LB: A história do parixara, parixara já é dança. [...] A dança,
dança antiga. Tem tucui, tem areruia, tem parixara. Dança
parixara. São danças.
DF: Mas vocês dançam quando? Dançavam. Hoje em dia
dançam mais...
LB: Dançavam, né. Dançavam em tempo de Natal, dan-
çavam mais no tempo de Natal. Por exemplo, aqui é uma
comunidade indígena. Hoje não tá mais acontecendo como
o seu Eduardo fala, não tá mais acontecendo, por exemplo,
vai ter festejo de Natal lá na Curicaca. Aí o tuxaua de lá manda
convite pra cá, aí todo mundo se prepara pra ir pra festa.
Vai o senhor; vai ele; vai ela; mas tudo é homem, cinco, seis
homens. Lá estão seis homens preparados pra chegar, pra
chegada do, do como é que chama?
EM: Receber o pessoal de outra comunidade, né.
LB: Eh.
DF: Os visitantes.
EM: Isso.
LB: Tem um nome pra eles, como guerreiro tem [um
nome], esqueci o nome. Aí vão pra lá. Chega lá tem tabatinga.
Eles começam a se pintar de tabatinga, né? Barro branco.
Se pinta. Aí corre. Lá vem o pessoal. E as mulheres ficam
aqui preparadas. Não deixa o homem entrar, se entrar pra
dentro de casa, se o homem entra e escapulir da mão de
outro homem, ele vai lá dentro beber caxiri lá dentro. Pra
não deixar ele entrar lá dentro, aí lá vem o homem, aí lá vem,
pega o homem, pega homem. Como é que chama quase
como queda de corpo. Como é que chama, eu já esqueci o
nome. Aí deita aqui no ombro do outro, aí o outro agarra.
Aí o outro agarra, e o que tá esperando tem que agarrar o
que vem chegando; aí suspende; aí pronto. Mas tem vez que
quando escapole daqui, ele procura entrar dentro de casa.
Aí para todo mundo, aí já vem o pessoal, já vem cantando de
Projeto: Panton pia’ 207
LB: É assim[...]
DF: Aí fica cantando e dançando?
LB: É todo mundo fica dançando pra lá e pra cá.
LS: Já tem outra. Tem outra música?
LB: Tem.
LS: A senhora lembrou agora?
LB: Estou lembrando devagar.
DF: É. A gente não tem pressa não.
LB:
Shiso, Shiso ya purîu ya sîrîrî pe penane (3 vezes)
Shiso, Shiso morî antî kî sîrîrî pe penane
Shiso, Shiso u’pî katî kî sîrîrî pe penane (bis)
Oi, oi, oi…
(Tawon senî’ kraiwa, eserenka’to)
[...]
LB: É, é...
LS: Em português.
Música.
LB: Iwareka piipî uri tumai, Iwareka piipî uri tumai é da-
morida. Usan purari é tambor. Uri tumai é damorida. “Coro
de guariba é meu tambor”, né? “Coro de guariba é minha
damorida.” São só essas duas palavra, são quatro aliás, né.
[...]
LB: De Natal.
DF: Ah é?
DF: É aí.
LB: Eh.
DF: Eh.
LB: Fazia.
DF: Um ritual?
EM: Eh.
DF: Depois daquilo, era quase como que ele fosse aceito
na comunidade como homem, como guerreiro, não é isso?
EM: É.
DF: A senhora lembra o que faziam com eles, alguma
coisa?
LB: Bom, o rapaz, quando ele tá ficando rapaz, os velhos
curavam, com a pimenta, cortavam tudo, botavam pra caçar.
“Eu vou botar seu Eduardo pra ir pescar.” Primeira vez que
ele vai pescar, né. Já fizeram trabalho com ele.
DF: E como que era o trabalho?
LB: Pimenta ou tajá, tem o tajá que eles fazem. Lava o
braço, ferra com a lacraia, como ele tava falando. Tanto fazia
mulher como homem também fazia, dava uma ferradinha
de lacraia. Às vezes ferrava com aquele tucandeiro que cha-
mam. Já hoje não existe, existia muito. Aí vai o rapaz. Vai seu
Eduardo, vai, vai caçar, leva a espingarda, leva seu caniço e
vai pescar. Aí ele vai pescar, ou traz veado ou peixe mesmo,
Projeto: Panton pia’ 213
ele chega com a caça dele. Ele não vai ter direito de comer
a caça que ele matou.
DF: Não?
LB: Não. Senão ele fica panema. Não mata mais caça.
DF: O que é panema?
LB: Panema é, como é que, não mata mais. Nem peixe se
ele pegar ele não come.
DF: A primeira vez.
LB: A primeira vez. Se ele pegar não tem o direito de
comer a caça dele. Assim, assim mesmo menina. Menina,
quando ela se forma primeira vez, ela não tem direito assim
de conversar com rapaz; não olha pra gente; tem que armar
rede dela bem alto, que pra quando chegar homem ou rapaz
não ver. É proibido ela olhar pras pessoas. Aí ela, por exem-
plo, ela menstruou hoje: “Ela tá menstruada.” “Então você
vai ser guardada.” Aí guarda. Isso era antigamente.
DF: Guardava como?
LB: Guardada é deixar lá dentro pra ninguém mexer com
ela, não conversar com ela. Arma redinha dela, bota bem em
cima, dessa altura assim, ela fica deitada.
DF: Quanto tempo a pessoa ficava?
LB: Uns três dias, quando ela termina menstruação. Passa
três dias, aí o avô ou pai trança olho de buriti assim pra ela
sentar em cima. Quando é de madrugada, cinco horas, ela já
tá melhor, né, senta ela naquele trançado, como um tapete.
Ela senta ali, ela vai fiar algodão, aí ela, já é cinco e meia, ela
trança de novo olho de buriti bem comprido. “Embora, você
vai tomar banho agora.” Chega lá na beira do rio, ela vai levar
três tacadas de olho de buriti.
DF: Olho de buriti é o que? É uma...
LB: É trança.
EM: Cipó.
LB: Como é, modo dum cipó. Palha de buriti, eu chamo
214 Projeto: Panton pia’
de olho.[...] Trança, aí o pai dá três tacadas na menina, aí ela
cai na água, toma banho e vai embora pra casa. Aí quando
ela vai ralar mandioca, é benzido, o pai benze pra poder ralar
mandioca. Aí manda ela cantar.
DF: Cantar o quê?
LB: Cantar, quando ela vai cantar, ralar a mandioca ela
tem que cantar.
DF: A senhora não lembra a música não?
EM: A música da mandioca, ela sabe.
LB: Sei, sei.
DF: Então, é isso, a senhora poderia cantar pra gente?
LB: Canto sim. Aí ela vai ralar a mandioca. Aí a mandioca
tá benzida. Não acontece não. Se a gente pegar trabalho
assim, às vezes: “Ai, meu braço tá doendo!” “Ai aqui tá me
doendo!” “Minha mão tá doendo!” Pra não acontecer isso,
tem oração pra isso, que benze. Aí ela vai. Taí a mandioca.
Tá benzido vai ralar essa mandioca. Tá bom. Aí ela pega ralo
e vai ralar. Ela começa a cantar assim.
Ariike’ kai’ma sane (bis)
A’piya uyawi’shi rumpa’ pî
Ariike’ kai’ma sane (bis)
A’pi ya uyawi’shi rumpa’ pî
Mîrîrî warantî e’seren ka’ pîtîpî
DF: Ah pote!
DF: Ah, lindo ele. A senhora não faz mais então os potes,
né?
LB: Não. Não faço, porque meu marido não quer mais que
eu trabalhe assim, por causa das mãos, que eu estou cheia de
reumatismo. Aí ele me ajudava, tirava barro né, batia barro
Projeto: Panton pia’ 217
DF: É mutum?
LB: Tî wa’.
LB: Trempi.
DF: Ah, sei o quê que é. [...] Tem nome indígena também
Projeto: Panton pia’ 221
ou não?
LB: Já.
LB: Já, já existia. O meu pai conta que, que ele, primeiro
padre que andou por aqui, padre alemão, ele fala assim nome
dele é Dom Preau, né Eduardo?
EM: É.
DF: Então.
DF: Em macuxi.
DF: Isso!
SP: Nunca passaram em mim não, mas eu já ouvi falar que
tem muita puçanga pra pessoa ser... ser caçador.
DF: E o que é puçanga? O que significa a palavra puçanga?
SP: Puçanga é assim uma plantinha, uma planta. Aí faziam
chá de umas plantas, mas tem a planta pra caçador, pra ter
até mulher. Tinha um até que me falou que o pai dele fez
assim puçanga, né, pois até tucandeira ferrar ele debaixo da
língua pra ele ser bom de mulher...
DF: Pra quê?
SP: [risos] Ser assim, bom de mulher?
DF: [risos] Ah, bom de mulher! E qual é essa puçanga?
SP: … é tucandeira, tucandeira, ferra debaixo da língua.
DF: O que é tucandeira?
SP: É uma formiga.
DF: Ah...
SP: Mas dói...
DF: Debaixo da língua?
SP: Debaixo da língua, dizem que pra ficar bom de mu-
lher [risos]. Mas agora eu não sei qual é, [se dirigindo a uma
pessoa ao lado]: Ele deve saber qual é, mas tem dois tipos.
Será que é igual? Sei que tem gente que faz garrafada pra
gripe, não sei o que... pega, cozinha, faz aquele mel. Puçan-
ga é plantada, é nome de uma planta, não, estou falando
que tem tantas plantas, mas tem uma puçanga pra aquilo.
Como assim? Eu quero uma puçanga pra ser bom de homem:
tem. Pra eu ser bom de caça: tem também. Pra eu ser bom
de pesca, assim, tudo tem... puçanga, mas só que tem um
nome. Não faz a puçanga, assim, de rapazes. De primeiro,
eles cortavam [aponta pros braços], aí faziam a puçanga pra
eles terem força, assim quando for brigar, pra ser...
DF: …ser guerreiro.
250 Projeto: Panton pia’
SP: Eh.
DF: E você tem alguma opinião formada sobre essa ques-
tão da Raposa? O que você pensa a respeito disso?
SP: Não, não...
DF: É tão complicado que a gente não sabe o que é certo
ou o que é errado, né?
SP: Tem tanta coisa de errada...
DF: Eh, não sabe não. Você tem religião?
SP: Tenho. É católica, católica.
DF: Desde sempre?
SP: Desde sempre. Mas chega um monte de gente pra
mim, pra eu ser evangélica, né? Mas até agora eu não quis
trocar não, eu sou católica mesmo. Eu sou meio macuxi e
wapixana... já sou macuxana!
DF: acuxana!?
LS: Mas você escolhe se quer ser macuxana, macuxi, ou
não? Como é isso?
SP: Não, pra mim é porque o meu pai e minha mãe, é
tipo...
DF: É por isso que ela falou macuxana.
LS: Que é uma mistura.
DF: É [risos].
SP: Porque é meu pai e minha mãe... aí eu não posso ficar
só de um lado.
DF: Justamente.
SP: Fico dos dois.
DF: Então, tá certo, é mais ou menos isso mesmo. Tem
alguma outra história que você queira contar?
SP: Não. Não tem, não.
DF: Qual é a coisa mais triste que já aconteceu na sua vida?
Projeto: Panton pia’ 251
SP: Ah! Coisa mais triste tem demais, acho que sou a
pessoa mais sofrida do mundo, eu.
DF: Então, conta o que foi mais triste?
SP: Eu perdi dois filhos meus e meu outro, três anos se-
guidos. O primeiro foi um filho meu que eu perdi de 20 anos,
mataram ele, né? Aí o segundo, a minha casa queimou com
tudo e eu fiquei só com a roupa do meu corpo mesmo, né?
Eu não sabia nem como assim, quando meu filho morreu,
não, porque ficou tudo na minha casa, eu tinha como...
mas quando a minha casa queimou eu não tinha nem como
recomeçar. Era minha casa lá! Aí quando queimou, queimou
mesmo tudo, não sabia nem como começar minha vida de
novo. Eu não sabia mais, assim, deu vontade de desistir...
DF: Mas, pelo visto a senhora tá aqui hoje e bem forte,
não é?
SP: Iche, demais.
DF: E qual foi a coisa mais feliz?
SP: A coisa mais feliz foi que eu ainda estou aqui depois
de todas as coisas que eu passei. Muita gente me chamava,
conversando demais pra eu largar tudo pra lá e me conformar
com meu filho que tava aqui e com o pessoal da comunidade
com quem eu trabalho. E eu acho que eu estou mais feliz,
porque eles gostam muito de mim, do meu trabalho. Acho
que eu nunca, eu penso que nunca fiz mal pra ninguém. Feliz
de estar com minha mãe, conhecer minha mãe, né? Apesar de
ter perdido minha casa consegui tudo que eu tinha perdido.
E hoje já estou na minha casa.
DF: Guerreira!
SP: Guerreira.
DF: Puçanga que fizeram pra você foi boa. Então, tá certo.
Eu queria agradecer, obrigado.
SP: De nada, qualquer coisa...
252 Projeto: Panton pia’
Projeto: Panton pia’ 253
aqui.” “Eu vou enganar ela lá.” Aí ele foi. Aí tava bebendo
água, aí pegou ele: “Ah! Macaco, eu vou te comer. Jabuti me
enganou, agora eu vou te comer.” “Não rapaz, como é que
tu vai fazer? Me pega pelo rabo assim, me roda assim e me
joga lá, pra mim bater no pau, pra não escutar teu dente na
minha cabeça.” “Tá bom.” Aí ele pegou assim, jogou no pau,
pegou no pau lá dentro. Aí Macaco foi embora. Só tinha um
bebedor. “Agora, dois me enganaram. Agora, como que eu
vou beber água agora?” Aí ele entrou, achou um abelheiro,
né, se melou de mel todinho, se melou lá. “Eu vou beber
água agora.” Aí se melou de mel, chegou lá se encheu de
folha, o Macaco. Ele já tinha ido duas vezes. Aí chegou lá.
“Ah! Compadre Folharal, agora eu vou te comer. Macaco
me enganou, eu vou te comer.” E o [Macaco Folharal falou]:
“Eu não sou Macaco não. Aqui não tem nada pra tu comer
não, eu sou magro.” “Não, eu te como assim mesmo, eu tô
com fome.” Aí pegou de novo. “Agora eu vou fazer assim o
mesmo que tu fez com o Macaco. Tu me leva...” Lá ele joga
de novo; escapuliu e foi embora. Lá, ele correu atrás dele lá,
aí entrou no buraco do tatu assim. Entrou no chão. Aí tá lá, no
buraco, pelejando pra tirar. Peleja pra tirar e nada. Aí chamou
urubu: “Ei compadre Urubu, tu fica aqui vigiando esse buraco
aqui que o Macaco Folharal tá aí dentro; que eu vou buscar
ferramentas pra mim cavar.” “Tá bom, então pode ir.” Aí foi
embora atrás de coisas dele pra cavar. Aí ele chegou, não, aí
ele apareceu, aí Urubu tava lá. Aí o Macaco: “E aí compadre
Urubu, o que é que tu tá fazendo aí?” “Rapaz, eu tô vigiando
aqui que o compadre Onça deu ordem aqui, ele foi buscar
as coisas dele pra tirar o Folharal que tá aí dentro.” “Sou eu
que estou aqui rapaz.” “É tu é?” “É, mas tu arregala bem os
teus olhos assim, porque se tu não arregalar bem teu olho,
assim, eu vou sair e tu não vai nem me ver. Tu arregala teus
olhos bem assim e fica bem perto do buraco com os olhos
arregalados, aí tu vai me enxergar quando eu sair.” Aí ele
pegou um pouco de barro lá, aí quando ele arregalou os olhos
dele, aí “tá”, ele jogou areia nos olhos dele, barro nos olhos
dele. Aí ele saiu e foi embora. Olha aí a história do compadre
Folharal. Aí a Onça chegou: “Cadê, ele tá aí.” “Rapaz, ele tá
264 Projeto: Panton pia’
aí.” Aí cavou o buraco, o lugar mais limpo. Folharal já tinha
ido embora. Mas era mesmo ele, o Macaco, só que ele se
melou com o mel, né, aí se enrolou na folha e ficou cheio de
folha. Acabou já a história do Macaco. Uma história que eu
estou concluindo até hoje...
DF: [risos] Dá saudade?
JV: [risos] Matando a saudade. Pois é, professor, é assim
a história...
DF: E história do Macunaima, o que é que o senhor sabe
a respeito, que o senhor ouviu contar?
JV: A história do Macunaima com aquele irmão dele. O
irmão dele era o Anaipê,64 do Macunaima, do Insikiran,né? 64
Anaipê é conhecido em
geral por Aninkê.
Do Insikiran, eles andavam muito por aí. Aí irmão dele, esse
Anaipê era danado, era danado, ele andava em todo coisa
que não prestava, né? Aí o irmão desse, o Insikiran dizia pra
ele: “Meu irmão, deixa de estar fazendo danação rapaz,
tu morre!” “É nada. Não vai acontecer nada comigo, não.
Eu sei o que eu tô fazendo.” Aí acharam um buraco onde
morava um camaleão muito grande. Aí: “Eu vou cavar esse
camaleão, mano, pra mim, pra nós comer, pra...” “Não rapaz,
deixa ele, ele é brabo...” “Não, eu vou cavar ele!” Aí foi cavar
ele. Aí lá esse camaleão comeu ele, engoliu ele. Agora o que
esse Insikiran faz? “Agora comeu meu irmão, eu fiquei sozi-
nho.” Aí cava o buraco, até que achou camaleão lá dentro,
camaleão grande que tinha engolido o irmão dele. Aí lá ele
matou o camaleão, partiu o camaleão, e o irmão dele tava
lá dentro inteiro, tinha engolido inteiro, já tava morto já,
né? Lá ele trabalhou, rezou, aí lá levanta de novo esse irmão
dele: “Rapaz, mas tu é muito teimoso. Eu não disse que ia te
engolir. Você é muito teimoso...” “Não, eu só queria malinar
de ti fazendo isso.” “Mas não faça mais uma coisa dessa
não, meu irmão, porque tu só fica me dando trabalho.” Lá
foram de novo. Aí tinha esse tal de Mapinguari, aí tava lá.
“Mano, umbora empurrar uma pedra.” “Rapaz, deixa aí, o
Sol vai escurecer, vai escurecer aqui pra nós.” “Não, eu vou
arrumar uma pedra.” Aí tinha uma pedra em falso assim em
cima dele, aí empurrou a pedra. Quando ele se espantou, a
Projeto: Panton pia’ 265
é fumaça que tem por aí na mata, tudo é ele que faz na mata.
Esse Taitei é um bicho assim cabeludo, que nem arma ou de
tiro, assim, não mata ele não. É tudo cabeludo uma vez que
eu mostrei ele bem por aqui que nem bicho, careca pelado
assim, assim um bicho que faz, gritando por aí. Ele grita na
mata quando ele tá sozinho por aí. Só na mata, ele grita.
Um bicho que ele é muito difícil a gente ver, mas quando
ele ataca, ele aparece e grita “huuuuuuuu!”, ele grita. Agora
só que já tá tudo desmatado, tá muito longe por dentro
dessas matas. Tem uma moradia dele por aí, o Mapinguari;
os macuxis chamam pra ele Taitei.
DF: Taitei.
JV: Pois então.
DF: E ele faz o quê?
JV: Ele mesmo, ele uma pessoa, mas só que ele é um
bicho encantado.
DF: É um bicho encantado.
JV: Bicho encantado que vive na mata também.
HM: O senhor pode descrever ele pra gente, como é
que ele é?
JV: Não, ele é gente mesmo, ele é gente, completamente
gente, mas só que ele cabeludo.
DF: Ele faz maldade, alguma coisa?
JV: Ele não faz não, ele não faz maldade não. Ele mora
mesmo por aí, pra espantar os outros, por aí.
DF: E sobre o Canaimé, o que é que o senhor sabe?
JV: Canaimé, é gente mesmo, rabudo, né? É como tem
bandido na cidade, então esses daí são Canaimé, chama
Kanaimî.
DF: Kanaimî?
JV: Kanaimî, que nós chamamos Kanaimî, em macuxi.
Kanaimî anda de muito, não andam de pouco não, anda de
270 Projeto: Panton pia’
quarenta, anda de trinta, anda até menina, mulher deles,
anda com eles pra pegar homem, assim. A gente, eu estou
trabalhando ali, aí eles estão aqui, aí estamos trabalhando,
fazendo a roça. Aí o que é que ele faz? “Aí tu se apresenta
lá pra ele.” [Diz] pra menina né: “Enquanto tu se apresenta
pra ele lá, aí tu convida ele pra fazer relação contigo. Aí
então tu faz, tu segura ele com força que nós vamos pegar
ele lá!” Aí apresenta menina lá. Ele anda com menina. Aí
enquanto a gente fala pra ele lá, aí ela encontra o homem,
que homem [não tá] cismado, aí pega ele, se ela agarrar aí já
vem e encosta, o rabudo velho. Aí pegam ele, aí quebra ele
todinho. Eles tiram bumbum da gente enfiando a faca, eles
tiram bumbum, assim. Aí costuram lá dentro aquela tripa da
gente, lá o resto do bumbum, fica a costura. Aí eles cortam
a piroca da gente, corta, corta língua. Às vezes eles furam,
pinicam todinha a língua, todinha com espinho. Aí passam
cuspe na boca da gente assim, aí a gente olha, vai bonzinho
daqui, não vai sentindo nada, quando chega na tua casa, aí
já vai logo, dá febre em você lá na casa.
DF: Dizem que a pessoa não lembra.
JV: Não lembra não. Aí chegando você não diz nada,
você sabe, lembra, mas só que não conta pra sua família. Lá
doente, morre.
DF: Pra poder contar tem que fazer o quê?
JV: Tem que lavar água de pilão.
DF: Ouvi falar.
JV: Eh, água de pilão, lava água de pilão. Bota água, lava
pilão, aí dá pra pessoa. “Ah! Mas se tiver vivo, conta”, mas
tem gente que morre na hora, mas sempre conta também.
Assim, tem é muito desse que vem da Guiana.
DF: Vem da Guiana?
JV: Vem da Guiana.
DF: Já me falaram isso também.
JV: Vem da Guiana, vem daquelas serras, pro lado do
Bonfim. Ali só tem parente rabudo pra lá. Aqui nessa faixa
da Venezuela tem; pra Guiana tem; tudo vem de lá.
DF: E eles fazem por fazer, não tem motivo nenhum.
JV: Sem motivo nenhum. Às vezes é assim, eles trazem
trança de peneira, jamaxim, abano, essas coisas assim, al-
gumas coisas que eles trazem, panela, lá vindo da Guiana,
eles trazem. Aí eles vêm vender a troco de uma rês. Vamos
dizer: eles tem uma rede, e querem uma rês, aí: “Ah! não, tal
dia nós vamos pegar, a gente deixa tudo fiado. Tá bom nós
vamos voltar.” E com poucos dias eles já vêm fazer isso já, aí
não tá nem esperando, tá devendo, quebram dois, três por
aí, aí vem embora, aí eles viram lobisomem (nós chamamos
oilubut, que vira bicho, aí vira tamanduá, se transforma em
tamanduá; transforma até na galinha, no cachorro; até em
mambira, tatu, tudo ele se transforma, tudo bicho. Aí fica
gritando assim, como imitando grito de macaco, imitando
pássaro, imita assim quando tá virando lobisomem, nós
chamamos assim no macuxi oilubut, que é lobisomem no
macuxi, oilubut.
DF: E iniciação de menino ou menina, como é que era
antigamente? Menina quando tá na puberdade, virando
mocinha, o que é que fazia antigamente?
JV: Antigamente, quando a menina se formava, era mui-
to difícil andar como hoje, não tem mais a lei, né? Hoje já a
menina se forma, como tava dizendo agora, a menina hoje
nasceu, com meia hora tá de calcinha, mas naquele tempo
a mãe da menina, e os curumim mesmo, não usavam roupa
primeiro, não usavam roupa não. A mulher nascia, até mu-
lher mesmo, até quando arranjava marido, e naquele tempo
[quando ia] arranjar marido, ela era moça, não era como hoje
que menina de dez anos não é mais nada. Antigamente tinha,
existia menina moça, porque... não usava calcinha, mas tinha
respeito, tinha lei pra não coisar isso. Naquele tempo, era
muito cuidado que eles tinham quando a menina se formava.
Aí diziam assim: “Mamãe, já sangrei agora...” Aí cortavam o
cabelo bem curtinho assim, cortezinho assim, aí escondiam
lá dentro, aí só saía de lá depois de um mês. Aí guardado lá,
pendurado lá em cima, lá que a mãe dava [tudo]. Só tirava
escondido ela pra fazer xixi, levavam ela bem escondido dos
272 Projeto: Panton pia’
outros pra ela fazer cocô. Pra ela urinar era bem escondido,
ninguém não via não. Quando depois de um mês, quando ti-
ravam de lá, que faziam... Aí tem esse urucum né, chama hoje
de urucum que faz de coisa, colorau, esse daí. Apanhavam
um bocado aí, misturavam, fazia e dava pro velho rezar, pra
poder levantar da rede, levantar pra poder olhar os outros,
pra poder andar com os outros. E o velho rezava, aí tirava
da rede, aí fazia, fazia um cinturão de miolo de buriti, tinha
mais isso ainda! Ele botava, tirava esse daí, trançava um
cordão assim: “Agora cunhantã vai sair hoje.” E lavava ela
por aqui tudo, nas pernas dela, por aqui tudo. Aí tinha mais
outro ainda, molho de pimenta que passava por aqui pelos
pés dela, por aqui pelos olhos, tudo.65 Aí depois que passava 65
Essas foram ditas e acom-
esse urucum, pintava ela tudo bem vermelho por aqui na panhadas por uma gesti-
culação indicando onde
cabeça dela, por aqui no pé, tudo, pelos tudo pintado, pra eram passadas a pimenta,
poder sair, né? [...] Hoje ninguém não faz mais: a menina se o urucum..
formou, aí fica por aí mesmo, não tem mais respeito. Aí, até
antigamente... Por isso não adoeciam primeiro, não adoe-
ciam não, todo pessoal era sadio. Hoje a menina de 10, 12, tá
adoecendo, tá desmaiando, porque não aguardou a lei que
o vovô, antigamente, eles guardavam, não existe mais hoje,
tá na civilização, não deixa né? Aí não tem como.
DF: Sim.
JV: Né?
DF: E os meninos, tinha alguma coisa?
JV: Os meninos... Os meninos ficam rapazes, mas era
assim mesmo. Antigamente, os velhos criavam filho assim:
eles usavam muito, tal de puçanga. Usavam puçanga de
veado; usavam puçanga de jabuti; usavam puçanga de
capoeiro; usavam oração de tatu; de paca. Tudo tinha uma
parte, uma plantazinha como diz daí, eles usavam. O que é
que eles faziam? Os velhos, que eram pais deles, tratavam as
crianças, esses meninos, pra ser caçador, pra ser pescador.
Aí tem aquele, nesse mato por aí tem um [jericazinho], ele
corta que só. Aí tem aquele tal de, como que chama?, um
mato que tem por aí, aí corta tudo, mistura com pimenta. Aí
mandava pela venta, aí já pegava tudo assim, essas pimentas,
Projeto: Panton pia’ 273
veado, peixe, jabuti, tatu, fazia logo. Todo mundo comia, né?
Aí nunca acontecia de maltratar com nós. Por que é que tá
acontecendo hoje? Padre Jorge chegou aqui em 1970, 69...
DF: Quem?
JV: Padre Jorge. Padre Jorge, que chegou aqui pra fazer
essa guerra aqui. Foi padre Jorge que trouxe essa guerra.
Antigamente os padres pegavam tudo. O padre chegava na
comunidade fazia batismo, fazia casamento, era um padre
mesmo que fazia casamento, não tinha guerra não. Agora,
em 69 o padre chega aqui em Roraima, aí ele trouxe guerra.
Foi o primeiro guerreiro, foi esse padre Jorge, que chegou
aqui em Roraima. Não tem outro padre que trouxe guerra,
não, foi padre Jorge que trouxe essa guerra aqui em Roraima.
DF: Isso foi na década de 70.
JV: Foi na década de 69 que ele chegou aqui. Aí o que é
que ele fez? Esse padre Jorge andava nas fazendas dos fa-
zendeiros. Andava, passava semana na fazenda e tratavam
ele muito bem, porque ele era padre. Destar que ele tava
prestando atenção como ele vivia. Aí passava semana nas co-
munidades vendo a situação também dos parentes também.
Aí quando foi na de 70, 71, ele disse assim, ele falou, eu sei
bem lembrando dessa história do padre Jorge. Ele fazia reu-
nião nas comunidades, ele fazia assim: “Olha, vocês botam
os brancos pra fora, esses brancos não são daqui não, esses
brancos vem aqui, tá na custa de vocês aqui, usando terra
de vocês, criando gado pra eles com vocês passando fome
aqui”. Ele dizia né, padre Jorge: “Quando vocês acabarem
de matar gado dele aí, aí vocês não vão precisar não, porque
é de vocês, o gado é de vocês.” Aí o pessoal tinha medo de
matar gado. O finado velho Jair tinha muito desse aí, eram
quarenta e cinco mil reses, era o maior fazendeiro que tinha
em Roraima, que tinha placa nº 01, maior fazendeiro aqui
em Roraima. Aí acabaram com medo. Começaram a come-
çar. Aí tem aquele motorista da FUNASA, meu primo Lauro,
foi criado com Jair, e ele apanhava muito quando ele era
curumim. Aí então ele serviu o quartel, aí deu baixa e ficou,
278 Projeto: Panton pia’
voltou pra lá; foi ele que começou a matar gado. Aí chegava
gado assim no terreiro, muito boi, vaca gorda, boi gordo, aí
falava pro irmão dele, pro Pereira que mora lá: “Mano, me
dá uma espingarda que tem um veado bem ali assim.” “Tu
não tá mentindo não, Lauro?” “Não, não estou mentido que
eu vou lá matar ele.” “Já foi embora.” “Não, não foi não!”
Aí pegou espingarda dele, aí foi lá [...] pertinho assim, boi
tava comendo no terreiro. Aí “pow”, matou né. “Mas rapaz,
tu matou!” “Não, rapaz, tá com medo é? Umbora comer
gado. Eu já apanhei tanto, por que é que vou apanhar? Não
vou apanhar mais não.” Aí, por aí começou. Filho do velho
Jair Alves tinha quarenta e cinco mil reses, eles comeram
dez mil reses do Jair. Aí Jair: “Já que não estão nem mais
tratando carne certo, estavam só tirando carne numa boa e
deixando o resto, aí quase todo mundo entrou!”, ordem do
padre Jorge. Aí, finado velho Jair trazendo polícia, levando
polícia, levando exército, fazendo medo. Aí: “tá bom de
vocês começarem fazer o retiro ali, o gado vem pra vocês.”
Aí quebraram forças dos fazendeiros, aí já coligaram com
Funai também. Aí Funai já foi botando Polícia Federal em
cima, aí retiraram fazendeiro tudo. Até hoje estão tirando.
Estão tirando até hoje. Quem fez isso foi padre Jorge; mas
antigamente ninguém não vivia assim não. Porque quando
fazendeiro tinha um serviço, convidava: “Compadre, tem um
serviço pra fazer, um cercado, limpar terreiro...”. Eles não
levavam de graça, eles pagavam. Aí eles [os índios] falavam:
“O senhor me vende uma rês?” “Vendo, tanto. Então, tu faz
esse trabalho.” Aí vendia uma rês, aí pra trocar com sal, pra
trocar com roupa, tudo ele fazia. Naquele tempo era difícil,
não tinha roda de carro, hoje tem muita roda de carro e estão
querendo acabar? Então, era difícil. Nós enchemos tanto de
vasilha olha, o telefone bem aí, qualquer coisa a gente corre
aí. Aí não existia isso, chave na porta, mas naquele tempo...
Então, tudo existiu isso, não maltratavam não, mas hoje eles
dizem: “Não, porque fazendeiro maltratava, batia muito nos
índios.” Índio nunca foi maltratado não, nunca foram mal-
tratados não, contrário, os brancos que ajudavam a gente.
Agora, hoje é que nós vamos sofrer. Tem um senhor ali em
Projeto: Panton pia’ 279
no garimpo?
JV: Eh, no garimpo eu vi. Eu fiquei muito triste, porque
eu vi duas mortes de faca no garimpo, quando trabalhava
no garimpo. Os parentes mesmo se esfaquearam, que eu vi,
foi muito triste. Eu vi o pessoal morto na beira do rio assim,
esfaqueado, foi muito triste. Conhecido, era meu amigo que
morreu. Eu fiquei muito triste no garimpo. Agora, depois
nunca mais, depois teve muita alegria no garimpo porque
pegava muito dinheiro, mas hoje não tem nada. Como eu
disse né, não tem nada.
DF: Entendo.
JV: Peguei muito dinheiro.
DF: Muito diamante?
JV: Muito diamante, naquela época era diamante, não
era ouro não.
DF: Sei.
JV: Peguei muito dinheiro. Se eu tivesse aproveitado bem
esse dinheiro eu seria milionário até hoje.
DF: Qual foi o maior diamante que o senhor pegou até
hoje?
JV: Sim eu peguei muito dinheiro, muito diamante.
DF: Mas o senhor pegou algum grande?
JV: Não, nunca peguei não, só mesmo os medianos, de
180, 170 pontos, 80 pontos, assim.
DF: Sim.
JV: De quilate.
DF: O senhor tinha muito parente no garimpo?
JV: Era mais indígena que trabalhava, era mais indígena.
Depois chegou muito pessoal de fora.
DF: Que veio de fora?
JV: Assim, cearense, maranhense. Mas o que mais tem
284 Projeto: Panton pia’
é cearense, né?
DF: Sei.
JV: Amazonense é muito difícil no garimpo. Chegou mais
cearense, paulista também.
DF: E me diga uma coisa, o senhor sabe alguma história
do timbó, a história dele?
JV: Timbó?
DF: Eh, timbó, pescar né?
JV: É, tem timbó aí.
DF: Mas o senhor sabe alguma história, algum mito atrás
dele, narrativa, alguma coisa?
JV: Esse timbó, são três qualidades de timbó: tem timbó
“folha”, tem folha que é uma, uma folhinha mesmo assim,
uma folhinha redonda. Esse daí mata peixe também, mas
ele é zangado. Ele tem que pegar dois sacos daquele, aí ma-
chuca ele todinho, calado, né? Tem um pocinho assim cheio
de peixe, aí machuca ele todinho, aí ele, porque tem gente
como o senhor ali. Aí ele manda: “Vocês calem a boca aí, va-
mos botar calado, sem gritar, sem bater água.” Aí machuca
todinho, aí bota, aí vai botando no saco aquela golda dele
todo, aí quando os peixes estiverem boiando já começando
a virar, deixa eles morrerem né, não deixa ninguém pegar
não, deixa ele morrer primeiro. Quando estiver tudo ruim,
morrendo mesmo, aí eles começam a pegar. Quando gór-
dio, que eles começam a pegar, aí pega todinho. Mas antes,
quando ninguém obedecia ao chefe que tá mandando não
mexer, se mexer, os peixes ficavam todinhos, aí esse timbó,
essa folha, elas ficavam, a água ficava roxa todinha.
DF: Roxa?
DF: Entendo.
DF: Sei.
JV: Eh.
DF: Então, tá certo senhor Vitor.
JV: Ouvir dizer professor, que esse timbó tá servindo pra
diabetes?
DF: Eh? Não estou sabendo, não.
JV: Estão dizendo por aí que não é pra dizer pra ninguém,
mas estão dizendo aí pra Venezuela. Diz que pra Venezuela...
DF: Estão usando.
JV: Já usaram esse timbó, essa raiz que tem na mata. Aí
lá condenaram ele de doente de AIDS, de diabetes. Então,
porque lá eles não tratam, quem tá condenado vai embora,
quem tá condenado morre pra lá. Aí, lá vai, aí pega cipó que
é esse timbó.
DF: Entendi.
JV: Aí arrancaram: “Vamos logo tomar esse timbó que
286 Projeto: Panton pia’
nós morremos aqui mesmo, nós já estamos sofrendo por
aqui.” Aí pisaram, aí tiraram aquela golda do timbó, tudo.
Aí tiraram um pouquinho assim, aí manda pro peito; aí des-
maiaram. Quando foi umas dez horas aí acordaram, tudinho
acordou, com fome [risos], com fome acordaram, aí levaram
pra comer tudo. Quem tava com AIDS também provocou.
Aí ficou tudo bom. Aí passou um dia, voltaram, tudo bom.
Aí foram pro médico, aí foram fazer exame, não tinha mais
nada. Aí perguntou: “O que é que vocês beberam? Com o
que é que se trataram?” “Nós nos tratamos, nós tomamos
golda de timbó.” Aí ficam provando. Aí estão estudando pra
fazer remédio pro diabético, pra AIDS.
DF: Se for bom, que beleza, não?
JV: É porque esse aí a gente bota num igarapé desse, mata
piaba. Às vezes não mata tudo. Aí água fica limpa, limpa,
limpa; depois que a gente coisa né, limpa a água bem limpa,
o igarapé fica tudo limpo. Aí deve ser bom pra remédio, aí
eles devem estar provando esse.
DF: Tá certo. Se o senhor tiver uma história depois que
quiser contar pra gente, a gente volta.
Projeto: Panton pia’ 287
as letras tudo, mas eu não sei. Eu tava com doze anos, quan-
do comecei a estudar, tava com doze anos, e eu não sabia
69
Dentre os indígenas en- falar português, eu entendia só gíria,69 gíria, esse macuxi,
trevistados, “gíria” refere- né, eu falava só isso aí. Que meu pai, minha mãe não sabiam
-se à língua nativa.
falar nada; meu pai só falava gíria, então me ensinaram a
falar gíria. Aí quando eu entrei na escola, eu não entendia
português não; aí quando eu aprendi, recebi o livro desse
abecedário, aí eu aprendi. Eu aprendi ler antes de aprender
falar português. Eu aprendi ler livro; eu aprendi mais ligeiro
as letras. Depois foi aprendendo português, pouco; entendia
mais um pouquinho português. Aí fui assim. Aí entendo mais
português, pouco.
DF: Como é que era a escola naquela época? Qual foi a
dificuldade que o senhor teve?
AR: Porque acabou a escola. Parou. O missionário foi
embora, americano, na época, quando abriu a Escola Beteu.
Aí acabou, foram embora, voltaram os missionários, foram
embora pra terra deles. Aí ficaram as professoras, eram bra-
sileiras, de Boa Vista. Dona Levina, dona Edite Barros, que
era professora maranhense. Aí voltaram pra terra deles, aí
acabou, parou a escola.
DF: Parou a escola, né?
AR: Eh. Acabou. Quantos anos, não sei quantos anos
passou, aí ficou missionário Aroldo aí no Beteu. Sempre ele
caminhava pro Contão. Eu sou morador lá do Contão.
DF: Ah! O senhor é do Contão?
AR: Eh. Fui criado aí. Até quando nós tornamos a aceitar
os crentes, ser crentes. Era tudo bagunçado lá no Contão,
eh, tudo: vivia só na bebedeira, pajuaru, cachaça. Cachaça
morava assim perto, o comércio dos brancos aí, tinha outro
lá embaixo. Quando tomava pajuaru e acabava pajuaru iam
atrás da cachaça, traziam dois, três, garrafas e bebiam; tudo
na briga um com os outros, né? Vivia assim. Até quando nós
tornamos a aceitar a palavra de Deus, assim, os crentes, essa
Igreja Batista Regular, aí parou, parou muito no Contão. Os
velhos que entenderam a falar assim gíria, a pregação do
290 Projeto: Panton pia’
Evangelho, aí ficaram; tornaram mais ser crentes; entende-
ram mais; aí pararam com bebida; pararam mais com bebida.
Aí foi até quando eu vim morar pra cá, já tava parada já a be-
bida. Muitos não queriam parar, mas foi deixando, deixando,
deixando, e hoje parou, como até hoje tá parado a bebida.
Mas têm alguns que estão bebendo mais, tem muitos que
estão bebendo lá.
DF: Bebem ainda, né?
AR: Eh. Estão se matando, furando outro de faca, essas
coisas que tem acontecido lá. Até hoje existe ainda briga lá.
Mas pra aqui eu vim sozinho, eu saí de lá, eu vim pra cá. Até ia
com seu Macário e entrei pro Bananal. Cheguei lá no Bananal
com finado velho Bento, que era um velho daí também, que
era morador. Os filhos dele estão aí, que já morreu. Ele tinha
esposa dele, morreu também. Eu tava aqui quando morre-
ram. O velho Macário tava com esposa, morreu a esposa,
hoje tá sozinho sofrendo aí, tá velho já.
DF: Eu o vi.
AR: É esse aí. Eles são os moradores daí.
DF: O senhor chegou aqui quando?
AR: Eu cheguei aqui não sei que ano não, não sei que ano
não. O professor sabe, esse professor sabe. Esse tuxaua que
passou pelo senhor, ele sabe de que ano chegamos aqui. Eu
não sei que ano que eu cheguei aqui não. Aí foi indo assim.
Aí formamos comunidade. Precisei da escola. Aí esse meu
genro, professor João (a casa dele é ali), ele era professor,
veio de lá do Contão, aí casou com minha filha. Aí caminhava
daqui lá na entrada; tinha escola lá na entrada, nessa BR, sei
lá. Aí vivia assim, vivia encrencando lá, o pessoal de lá ficava
encrencando com ele. Aí procuramos levantar uma escola
aqui. Quando eu fui procurar, nós fomos procurar, preci-
sava tuxaua, aqui não existia ainda tuxaua não. Só era um
pouquinho, só um pouquinho, só nós mesmos: uns quatro
ou cinco, tinha uns dez alunos ainda. Aí nós fomos procurar
na Funai, aí disseram que só com o tuxaua. Atrás de tuxaua,
levantava a escola. Aí fomos procurar de novo, procurar de
Projeto: Panton pia’ 291
AR: Ele diz que andava, andava mesmo, abria escola né,
aí foi embora pra aí. Aí quando na beira do rio não fez nada
não, só tinha, só tinha casa dele; e, do outro lado do rio, é,
casa do Raposa, esse cachorro dele, Raposa, e [olhar] dele
né, assim, Raposa. Aí agourava ele, cavava toda noite lá, aí
que é onde inimigo perseguiu ele. Ele entrou na terra e saiu
lá no Santa Maria, Raposa que agourava ele, cachorro dele.
Tem duas pedras lá, laje grande, é dele. E assim acabou pra
lá, a história do Macunaima.
AR: Canaimé?
DF: Eh.
DF: Rabudo.
DF: Qual é?
AG: Assembleia.
AG: Ahã.
SG: Sou.
SG: Genário.
DF: Nove filhos. Agora uma coisa bem pessoal: qual foi a
coisa mais triste que a senhora já viu na vida? O que a senhora
menos gostou, ficou mais chateada?
AG: Moro. Teve uma vez que eu passei dois anos fora
daqui.
SO: Macuxi.
DF: Qual a coisa mais triste que o senhor viu até hoje? Que
o senhor tem recordação?
DF: Sei.
328 Projeto: Panton pia’
DP: Ali perto do Cem era chamado de Liberdade, nós mo-
ramos lá quinze anos, na casa da comunidade. Ali nas comu-
nidades Três Corações que chama, ali era, não sabiam quem
morava, morava numa casa e outro morava ali. Chamava lá
Liberdade ou Santa Lúcia, depois mudou pra Três Corações.
Nós moramos lá, eram duas famílias, nós morávamos com o
pai, nós moramos lá quinze anos. Aí de lá quando nós saímos,
quando construí família aí eu vim pra cá, pro Perdido. Que ela
era daqui do Perdido, morava aqui no Perdido. Aí morei mais
ou menos três anos no Perdido. Então, aí é quatro, porque
quando eu vim de lá do Perdido nós fomos pro Curicaca. Vi-
vemos parece que dezoito anos no Curicaca. Foi do Curicaca
que nós já viemos pra cá.
DF: E como funciona, por exemplo, o senhor não perten-
cia a Curicaca?
DP: Não.
DF: E aí de repente o senhor vai pra lá. Como funciona?
O senhor conversa com o tuxaua e pergunta “A gente pode
ficar aqui?”
DP: Sim.
DF: Como é que funciona esse trâmite?
DP: A gente chega lá, vai lá com ele, com o tuxaua, aí
o tuxaua faz a reunião com a comunidade. Aí a gente vai
participar, dizer que a gente tá querendo morar, que ali já
não deu pra nós ficar, aí tudo bem, se a comunidade decidir:
“Não porque nós somos parente, vocês não são de outra
família, vocês podem vir morar aqui com a gente.” É assim
que é conversado. Mas às vezes se a comunidade não aceita,
o tuxaua diz: “Não, não dá certo. Ele tem alguma que vem
de lá, já fez sujeira pra lá e vem pra cá...” Aí a comunidade
não aceita também. Mas quando você é uma pessoa limpa
em todo canto, aonde você chegar pode morar tudo, mas
não conhece. Quando nós fomos pra lá que falamos: “Não
vocês podem vir, que é uma família nossa.” Inclusive essa
dona Letícia é, a Regina é sobrinha dela.
DF: Ah é!
Projeto: Panton pia’ 329
DP: É. São família. Por isso quando nós chegamos lá, era
tudo família, aí nós ficamos. Aí depois que já viemos pra cá.
DF: E outra coisa: o senhor pertence a alguma represen-
tação indígena?
DP: Sim. Nós temos, nós fazemos parte da APIR, Asso-
ciação [dos Povos] Indígenas de Roraima, que é a APIR. E
tem essa que a gente criou logo depois que a, primeiro tinha
uma que era um programa na região do Truaru, que era um
programa da energia de Guri, e depois mudaram o nome pra
APTISM, porque achavam que o programa não era certo,
não falava indígena, aí isso aí se precisa colocar outro nome.
Então, ela mudou desse nome que antes era um programa
de quando eles começaram, e quando já veio lá o programa
da Eletronorte pra fazer esse convênio, era um programa. Aí
quando nós achamos: “Não, ninguém quer programa não.”
“Quem quer programa?” “Não, que programa já é coisa as-
sim passado, vamos mudar o nome que tem que pegar com
a terra indígena São Marcos.” Aí botaram APTISM. Botaram
outro nome, aí mudou.
DF: Associação dos Povos das Terras Indígenas do São
Marcos.
DP: Porque não quiseram mais programa... Mas até hoje
tem gente que chama programa, nunca esqueceu. “É o
Programa São Marcos.” É que eles se acostumaram e muita
gente ainda fala esse nome.
DF: O senhor foi o primeiro tuxaua da comunidade ou
não? Ou teve outro?
RS: Mas daqui ou não?
DP: Daqui eu fui o primeiro.
DF: Então, quantos anos têm a comunidade, mais ou
menos?
DP: Vixi! A gente esquece.
DF: Não precisa ser exato. Uns quatro anos ou cinco.
DP: É mais ou menos isso, quatro anos.
330 Projeto: Panton pia’
DF: E outra coisa: os rituais antigos, é feito algum na
comunidade ainda?
DP: Como ritual?
DF: Um ritual assim é... as danças, tudo. Existe alguma
coisa ainda, ou não?
DP: Existe. Nós temos aqui o nosso próprio, nós temos
um grupo, que faz a dança parixara, que faz assim uma
representação, que os pessoal às vezes pede: “Será que
vocês podiam fazer uma representação assim de dança?”
Nós temos o nosso grupo que tá preparado, as crianças,
os rapazes, os trajes pra sair, aí assim que a gente sai com
grupo pra fazer representação. É de dança parixara, tucui.
Essas coisas de tradição que a gente tem.
ele era uma pessoa. Só que ele tinha poder, ele era poderoso
também, ele dizia uma coisa. Primeiro era Deus e logo depois
era ele. Por onde ele andava, você não podia tá criticando
Deus. Se criticasse, ele fazia alguma coisa do senhor. Por
exemplo, ele vinha lá, você vai levando, ela tava contando
essa história, que ele vinha aí, sempre o pessoal saía pra caçar
no Natal, pra chegar pra fazer a festa de Natal. Ele sempre
viajava. Aí teve encontro, mandaram sete mulheres pra levar
caxiri pro encontro dos maridos que vinham da caçaria. Aí
pararam num ponto que esperaram em cima de uma laje. Aí
nessa hora o Macunaima vinha de lá pra cá, aí sempre quan-
do eles encontravam com ele, eles davam caxiri pra ele, né.
Aí disseram: “Ah! Lá vem o vovô velho ali. Mas hoje a gente
não vai dar caxiri pra ele não”, eles falaram: “Ninguém vai
dar caxiri pra ele não.” Ele escutou, ele ouvia, era poderoso,
aí tá bom. Aí juntaram os baldes, os sete baldes assim. Aí
falou com ele, deu bom dia, tomaram bênção, falaram que
não iam dar caxiri: “Ah! Eu já vou.” “Tá bom.” Aí ele disse:
“Os sete baldes vão virar pedra.” Pronto. Na hora que ele
saiu, que deu as costas, quando foram olhar, os sete baldes
viraram pedra, tava tudo encarreradinho. Aí ele não bebeu
e o marido também não bebeu. Transformou os baldes em
pedra, tudo em pedra. Essa era a história que ela contava,
do Macunaima que ele era viajante. Ele, não sei como é que
ele era, não sei se Macunaima era pesado, se ele chegasse
numa pedra assim. Se ele passasse a mão, do jeito que ele
passava, ele desenhava, não sabia como fazia isso. Pois se
ele chegasse aqui: “Senhor, eu vou deixar a marca do meu pé
em cima dessa pedra”, ele pisava e ficava a marca do pé dele.
DF: Eu já ouvi também.
DP: Tudo ele fazia. Não sei como é que ele fazia isso.
A pedra ficava mole... Essa é a história dele, ele era muito
poderoso.
DF: E do Canaimé?
DP: Do Canaimé é só pra fazer mal aos outros.
DF: Ah é!
334 Projeto: Panton pia’
DP: É. Canaimé é igual a uma coisa... O Canaimé é igual
como são esses bandidos hoje. Aí às vezes ele chega com
aquela inveja do senhor, aquela inveja, aí ele vai lhe perse-
guir. Ou às vezes um parente, isso é como uma coisa... ele
é revoltado. Vamos dizer, tem um que mata algum parente
dele, pra lá, então ele vem lhe perseguir até lhe matar, ou a
tua família. Ele tem que fazer alguma coisa com a sua família,
se ele não pode lhe pegar então vai pegar um da sua família,
ou seu filho ou seu irmão, ele tem que descontar aquilo que
ele quiser. O Canaimé é assim, ele vira de todo jeito assim. Aí
quando ele pega pessoa diz que ele usa, tira dente de cobra
cascavel. Ele usa vários tipos pra lhe maltratar, que o dente
de cascavel, ele tem veneno. Aí quando ele pega, enforca, aí
cheira pra fazer mal, pra morrer mesmo, pra matar. Aí você
volta e já chega em casa com febre. Aí se não tiver nenhum
pajé perto pra ver, aí você vai morrer. Às vezes tem pajé
perto, né, chama, diz o que aconteceu: “Canaimé bateu
fulano... Vai correr atrás de pajé.” Pajé vem, vai bater folha:
“Não, foi Canaimé. E tem remédio. Vão fazer remédio.” Às
vezes escapa. Mas quando não tem pajé perto...
DF: É complicado.
DP: É complicado. Morre mesmo.
DF: O senhor conheceu algum caso?
DP: Conheci vários casos que tinham acontecido isso.
DF: E o que é que o senhor pensa a respeito?
DP: Do Canaimé?
DF: Eh.
DP: Eu não sei nem o que a gente pode fazer dele.
DF: Não sabe, não é! Agora, tão falando que eles tão
descendo por causa das questões indígenas [da Raposa].
DP: Esses que mataram agora ali no Surumu, no Banco,
ele veio de lá, tal de Roberto, conheceram numa serra aí,
era Canaimé mesmo, de lá. Aí ele veio porque eles estavam
perdendo questão lá da Raposa Serra do Sol. Aí eles vieram
Projeto: Panton pia’ 335
no trecho incompreensível.
bém os indígenas aprenderam assim coisas que, nós dizemos,
pela educação. Primeiro os indígenas não saíam pra estudar.
Elas cresciam e os homens também na comunidade. Crescia,
se casava, se formava ali trabalhando. Aí a gente vê, de uns
tempos pra cá, que a educação, ela fazia muito o nosso
pessoal da comunidade. Se quiser, um jovem, um homem ir
estudar ele vai estudar. Às vezes vai pra cidade e não quer
mais voltar. A mulher, a gente coloca também: “Não, eu
quero fazer faculdade, vou pra Boa Vista”, aí não volta pra
essa comunidade. Então, as comunidades foram acabando
com os indígenas. De primeiro não, elas se casavam com
vinte anos, vinte cinco e ficavam na comunidade, morando,
se casavam aqui mesmo, é por isso que aumentavam muito.
Então, tem muitas comunidades hoje que elas estão muito
vazias por causa da educação. Que vai estudar pra outro
colégio fora da comunidade, termina não voltando mais. E
muitas. Na Curicaca conheci, elas foram tirar: “Não, eu vou
estudar em Boa Vista.” Aí elas foram acabando. Por uma
parte, eles aprenderam alguma coisa, por outra parte eles
fracassaram as comunidades, que saíram muito e não tão
Projeto: Panton pia’ 341
voltando mais.
DF: Por isso que é bom fazer a escola na própria comuni-
dade. E dificuldade hoje, quais as principais dificuldades das
comunidades hoje?
DP: Como assim dificuldade?
DF: O que mais atrapalha a comunidade a crescer, o
desenvolvimento da comunidade, o que é que é difícil hoje?
DP: O que atrapalha muito assim na comunidade é a
bebida alcoólica. Bebida alcoólica atrapalha a vida da co-
munidade, que às vezes você tá bem, trabalhando, e aí de
repente toma, aí começa, atrapalha a comunidade. Hoje a
gente vê através da bebida. Até o caxiri forte, ele também
atrapalha. E quando é só caxiri que você faz, levanta ele hoje
pra tomar amanhã, todos ele toma, é criança, todos tomam,
porque é um caxiri doce, né, ele não prejudica nada. Mas se
você deixar ele fermentar, ele vai prejudicar, porque um bebe
mais, aí vai ficar bêbado, vai discutir com outro, aí começa a
atrapalhar a vida da comunidade.
DF: O alcoolismo.
DP: O alcoolismo.
DF: O senhor conhece a história de algum, alguma coisa
assim relacionada a algum animal? Alguma história falando
de peixe, de alguma coisa ou não?
DP: De peixe...
DF: É. Alguma coisa assim de algum animal, alguma his-
tória aí. Conhece alguma?
DP: Não.
DF: Não, né. Tem algum amuleto, alguma coisa pra trazer
sorte assim ou não? Que o senhor já ouviu falar alguma vez.
DP: Não.
DF: Amuleto, alguma pedra, alguma coisa que possa ter.
DP: Não. Tem não.
DF: E os meninos assim, por exemplo, tem algum tipo de
342 Projeto: Panton pia’
iniciação pros meninos e pras meninas? Quando elas estão
virando moças, fazem alguma coisa ou não fazem mais? Ou
nunca fizeram?
DP: Não. Isso aí só com a mulher que pode contar alguma
coisa.
DF: E pros meninos então, pros rapazes? É porque tinha
uma cultura que cortava assim...
DP: É. Mas hoje não faz mais isso.
DF: Não faz não.
DP: Não. Já esquecemos muita coisa disso aí que o se-
nhor falou.
DF: E o senhor lembra mais de alguma coisa?
DP: Não.
DF: Então, tá certo seu Domício. [...]Tem alguma história
que o senhor queira contar, alguma coisa? Qualquer coisa
que o senhor lembre que o senhor queira falar.
DP: Por enquanto não.
DF: Não. Então, manda um recado pra alguém que vai ver
essa fita do senhor daqui a duzentos anos. [Risos] Manda
um recado. Pense que daqui a duzentos anos um neto, um
bisneto, um tataraneto do senhor vai pegar esse material
todo e vai ler o recado que o senhor deixou pra ele. O que é
que o senhor falaria pra ele?
DP: Só deixar um recado de lembrança pros netos, pros
filhos, é o recado que eu deixo pra eles.
DF: Que manda lembrança pra eles. Tá certo. Obrigado.