Transcrição informática pelo autor da
Revista TOC nr. 38 – 2003, Maio;
Contabilidade, capitalismo e
democracia
A importância da contabilidade no
desenvolvimento das sociedades vem de
longe. Este trabalho faz uma viagem pela
História e mostra-lhe o quão fundamental
tem sido a contabilidade ao longo dos
séculos.
Por Hernâni Carqueja
No final do primeiro quartel do século XIX a problemática da
contabilidade abordada nos livros continuava limitada à
explicação das partidas dobradas; desde Luca Pacioli até
final das Guerras Napoleónicas não se alteraram as
expectativas sociais relativas à contabilidade. O dia-a-dia do
contabilista continuava marcado pela necessidade de
estabelecer equivalências entre moedas, cada uma com seu
toque e desgaste. O cálculo de custos e a análise base de
racionalidade de conduta empresarial eram resolvidos com
frequência fora do âmbito das partidas dobradas. A prestação
de contas continuava como objectivo implícito, não
questionado, da actividade contabilística conforme a
exposição dos livros mais disponíveis.
Quando, já na segunda metade do século XIX, tratadistas e
académicos pioneiros, entre eles Cerboni (em 1873) e Besta
(em 1891), procuraram definir as fronteiras da con-
tabilidade, deram passos que conduziram à interrogação
quer sobre a natureza, quer sobre a finalidade visada pela
actividade contabilística, cujas fronteiras deviam ser melhor
definidas, até por exigência da boa convivência entre
saberes em cada escola. No segundo quartel do século XX,
medir a riqueza, privilegiando ora a sua manifestação como
rendimento ora a manifestação como capital, ou dando ao
capital e rendimento igual realce, foi o objectivo
frequentemente assumido na academia e nas opções
profissionais.
No último quartel do século XX, era presunção muitas
vezes expressa, mas sempre implícita, das soluções de
48
Páginas 48 a 53
normalização tomar como objectivo a informação útil sobre a
riqueza, dirigida em especial aos mercados de capitais onde os
interesses do investidor (1) eram tomados como paradigma.
Entre 1860 e 1960, cerca de cem anos, a prestação de contas
foi passando para a sombra e a informação útil, especialmente
dirigida ao mercado de capitais, ocupando a ribalta.
Tom Rowles (1998) apresentou em Madrid, no VIII Con-
gresso de História da Contabilidade, uma comunicação que,
entendemos, não recebeu então a atenção que justificava,
porque documenta de forma esclarecedora a alteração de
expectativas relativamente à contabilidade. Anotando
correctamente a ligação entre a indústria-capital intensivo e os
conceitos de continuidade da empresa e necessidade de
periodização de valores, entre o desfazer da relação entre
súbdito e príncipe e busca de base para custeio dos encargos
com a organização social e as dificuldades de entendimento
do conceito de capital, escreveu o seguinte: (1998:16, os
destaques não existem no original):
«The central accounting issue that arose from the rise of
company accounting in the middle of the nineteenth century
derived from the nature of capital intensive industrial assets.
Mercantile ventures terminated at the conclusion of a natural
cycle. By contrast, capital sunk in industrial plant was
contributed on a permanent basis. It was fixed. Littleton noted
that the fixed nature of industrial assets created the necessity
of the perpetual company, and the convention of 'going concern'. “It
created the necessity for periodic profit determination. This
was the place of renewal accounting and the double account
system and nineteenth century depreciation theory.
Rationalization of these policies was the role of the nineteenth
century profession.”
Mais adiante diz (1998:17):
«Philosophical speculation about the nature of wealth arose
inevitably from discussion of the moral precepts of secular
government. A first principle in these discussions was the
notion of a 'natural law' of self interest to be invoked in the
governance of man. From the sixteenth century, in the
writings of the great British philosophers such as Bacon,
Locke, North, Law, Home and Petty, it was understood that
social change, good government and the relationship between
the individual and the state were related to economic organization.
Concern to determine the requirements of a secular, moral
government, turned naturally to the characteristics of a 'just
tax'. To quote Bonar, 'Modern political economy may be
said to begin with the introduction of taxation as a means of
supporting the state in place of personal service, aids in kind and
revenues from crown property'. As taxation levied in kind changed
to money taxation, the practical question was about the form which
taxation should justify take. The answer was one levied on wealth.»
Rowles (1998:19) escreve, procurando sumariar as ideias de
Smith:
«With respect to 'capital', Smith termed what is now understood
as 'capital', a 'stock of wealth'. This was Smith's 'whole stock: It
consisted of two parts, 'capital' and 'non-capital'. 'Capital',
represented ' ... that part (of wealth) that a man expects to afford
him revenue ... The other part 'provides his consumption'. Thus, in
modern terms, Smith's conceptions did not distinguish between
income as a flow, and that part of capital, which did not produce
a revenue.»
Nos parágrafos transcritos, os problemas, o tratamento
contabilístico da depreciação (relacionado com a expectativa de
continuidade da empresa) e a incidência fiscal implicando apuro
do conceito de riqueza e dificuldades decorrentes da
conceptualização de Smith, parecem-nos correctamente
apreciados e com muita clareza.
Tal como a Rowles, também nos parece inquestionável que o
conceito actual de riqueza, em pano de fundo da informação
contabilística, é muito mais elaborado do que nas últimas décadas
do século XIX e tem profunda relação com a exposição de Irving
Fisher, em 1906(2). Só na segunda metade do século XX, ao
realçar os balanços de resultados e de fluxos de fundos, se chegou
a um modelo contabilístico com bases semelhantes às do modelo
resultante da análise de Fisher, e mesmo então ainda sem o apoio
conceptual expresso que a análise do economista oferece. Tal
como consta da comunicação de Rowles, alguns conceitos básicos
para avaliação do capital, conceito correspondente a um dos
prismas de observação da riqueza, só foram objecto da análise
económica nos finais do século XIX e na evolução do saber de
economia só com o livro de Irving Fisher, em 1906, se chega a
modelo também operacional para a contabilidade.
A identificação e a medida da riqueza(3), como objectivos da
informação dirigida ao mercado de capitais, são temas
contabilísticos que já tinham adquirido visibilidade no princípio
do segundo quartel do século XX. No «VI Congreso Internacional
de Contabilidad» realizado em Barcelona no ano de 1929, F. Réné
Delaporte (1929:77) (4) indicava como informação contabilística do
futuro balanço:
Fotografia não transcrita
« 1. O balanço financeiro, tal como o concebemos hoje.
2. Os compromissos que resultarão em pagamentos e
recebimentos;
3. Avaliação do estado-maior e chefes de Serviço da empresa
(material humano);
4. Avaliação da organização;
5.Avaliação da posição topográfica e geográfica que é um
elemento importante, etc,
6. Avaliações feitas em medidas especiais adequadas, que a
sociometria e a sociologia matemática procuram e encontrarão.»
Mas passaram os anos e a contabilidade continua a saber
desempenhar as funções relativas à prestação de contas, mas
incapaz não só de medir com objectividade, mas até identificar,
todas as origens potenciais de riqueza futura, embora seja
informação desejada pelo mercado de capitais. Na segunda metade
do século XX, à medida que foi colhendo aceitação a utilidade
como objectivo, ganhou acolhimento contabilístico o modelo
económico de avaliação em que a utilidade das empresas é medida
pelas expectativas de rendimento. Entretanto, não mudaram os
condicionamentos sociais e legais relativos à prestação de contas.
O mercado de capitais, em concordância com os entendimentos
sobre as relações de agência, não dispensa a prestação de contas,
embora pretenda informação sobre expectativas. Sempre que, em
busca de informação mais relevante, se implementaram soluções,
por exemplo no Reino Unido (5), que não eram as melhores em
prestação de contas, acabaram evidenciadas preferências por
soluções mais conservadoras. A preferência da prática profissional
por valores históricos traduz o primado da prestação de contas,
mesmo perante o mercado de capitais.
Consideramos justificada esta leitura da história, especialmente
com base nas propostas e experiências relativas à aplicação ao
imobilizado.
Aparecimento e divulgação da digrafia
Edwards (1989:45) resume a análise de Littleton (6) sobre a
possibilidade do conhecimento e uso de registos por partidas
dobradas, da existência de:
- escrita,
- conhecimento de aritmética,
- propriedade privada,
- moeda como meio de pagamento,
- crédito e transacções a crédito,
- actividade comercial,
- investimento por empresários (7).
Todas estas condições foram realizadas na Roma Antiga, o que
justifica a hipótese de os romanos terem chegado às partidas
dobradas, o que não aconteceu, de acordo com o saber actual. O
reduzido número de pessoas que sabia ler e escrever, a falta do
zero dificultando o operar com a numeração romana, e ainda o uso
muito restrito
49

do crédito, suportam o argumento de que em Roma as condições
necessárias à contabilidade por partidas dobradas não se verificavam
com frequência e em simultâneo. Na história de institutos sociais não é
fácil identificar causas, isolada ou conjuntamente. Em geral, além dos
aspectos que nos parecem principais, há todo um quadro acessório que
não pode ser ignorado. Existir escrita é diferente de existirem
instrumentos de escrita acessíveis e quem saiba escrever. Embora haja
registos contabilísticos em tábuas de cera, em papiro e em pergaminho,
todo o problema de escrever foi muito alterado no século XV com a
existência de papel a preço acessível. Eventualmente o operar
aritmético com base em algarismos teve menos importância do que
resulta de algumas observações actuais, porque a disponibilidade e
divulgação do ábaco e dispositivos equiparáveis resolvia uma
dificuldade que então não era bloqueadora, facto em que foi importante
a divulgação do saber partindo do andaluz maometano. Aliás, a
sobrevivência durante séculos da numeração romana, como números
financeiros, parece corroborar esta ideia.
Mesmo só estas considerações bastam para salientar a dificuldade de
ajuizar sobre a verificação das condições relativas ao recurso às
partidas dobradas em Roma Antiga.
Também Littleton (1961:29) num dos seus ensaios (8), apela à
imaginação do leitor para reconstruir o diálogo entre mercadores
acordando em transferência de conta para conta, e depois, na
sequência do discorrer, conclui que as partidas dobradas existiram
quando todas as operações do mercador acabaram traduzidas em
transferências de conta a conta, o que implica a existência, pelo
menos, duma conta "nominal", a de "Capital".
Sabemos que nos últimos séculos da Idade Média as partidas
dobradas estavam em uso nas Repúblicas Italianas, mas o segredo dos
seus primeiros passos pertence à História, tal como a caracterização
do conceito de capital implícito no uso da conta que lhe respeitava.
Todo o período depois de Pacioli, até meados do século XIX,
aparece como um período de divulgação, de início muito lenta, dos
processos de escrituração comercial por partidas dobradas mas com
recurso simultâneo a outras soluções, de que são exemplo as contas
de receita e despesa da prestação de contas de feitores ou
mandatários equiparáveis. Enquanto a contabilidade por partidas
dobradas era referida à riqueza do titular a contabilidade dos feitores
era referida à sua responsabilidade pessoal pelo que recebiam e
pagavam.
Quando a organização social, fruto da revolução social que
acompanhou a Revolução Francesa, e da Revolução Industrial em
que o Reino Unido é o país de referência, colocou em destaque as
empresas, que já existiam sob a forma de "companhias", ficaram
reunidas condições para impulsionar o apuro do método por
partida? dobradas.
Novo impulso surge a partir de meados do século XIX, período em
que muitos historiadores da economia dão
50
especial relevo ao avanço do capitalismo financeiro, sucedendo ao
industrial.
Esta observação da história, quando também se anota que nos últimos
séculos da Idade Média as Repúblicas Italianas assistiram ao
desenvolvimento do capitalismo comercial, pode sugerir que a
contabilidade aparece com o capitalismo comercial, nos últimos
tempos da Idade Média, que se afirma com o capitalismo industrial e
que tomou a ribalta com o capitalismo financeiro. Pode ainda
pretender-se inferir que existe ligação estreita entre a contabilidade e
o desenvolvimento do capitalismo como sistema de organização da
produção. Não compartilhamos deste parecer e pretendemos justificar
outra leitura da História nos parágrafos seguintes.
A contabilidade
e o desenvolvimento do capitalismo
Werner Sombart tem sido muito citado (9) pelo papel que atribuiu à
contabilidade no desenvolvimento do capitalismo. O contexto em que é
alvo da atenção de contabilistas é bem exemplificado pelas seguintes
citações de Cruz Vidal, Gonçalves da Silva e Lopes Amorim.
Cruz Vidal (1952:132), cita-o em artigo sobre "Contabilidade e
Investigação Económica". O título é esclarecedor sobre o contexto, e
diz: «Este apelo à contabilidade não é novo» e, deixando de lado as
ideias de alguns precursores, cujo âmbito levaria longe demais para o
âmbito deste artigo, encontramo-lo formulado mais recentemente por
Irving Fisher no seu livro 'The Nature of Capital and Income" e ainda,
entre outros, por Werner Sombart ("Der Moderne Kapitalismus") e
Léon Walras."
Gonçalves da Silva (1953:26), em artigo cuja ligação à economia é
evidenciada também pelo título "O Ensino da Contabidade nas
Escolas Superiores de Economia", evidencia o propósito de realçar o
apreço de Sombart pela contabilidade. Reproduz algumas passagens
da exposição de Sombart, de que destacamos:
«A contabilidade faz-nos compreender o Cosmos do Mundo
Económico ou, mais exactamente, do Mundo Capitalista, seguindo
aquele método anteriormente utilizado pelos naturalistas.» «Baseia-se
na ideia fundamental e logicamente desenvolvida que todas as
aparências se devem encarar como quantidades: assenta pois na ideia
fundamental da quantificação à qual se devem tantas maravilhas do
conhecimento da Natureza e que nela foi, porventura pela primeira
vez, adoptado como ideia originária de todo um sisterna»
Também Lopes Amorim (1969:633 e 634) invoca o testemunho de
Sombart como prova de dignidade da contabilidade, nos seguintes
termos: «Quem se der ao cuidado de percorrer, por exemplo, a obra do
grande economista e eminente professor da Universidade de Berlim,
Werner Sombart, intitulada "der Moderne Kapitelismus" e se
demore na leitura do capitulo X do seu segundo volume,
ficará boquiaberto com o que aí se diz da Contabilidade.» das dobradas nem por eles entendidos como contabilidade,
E depois transcreve de Sombart: “... do muito que os bastam como evidência de que as partidas dobradas não são base
economistas têm a aprender na Contabilidade ... » necessária para a racionalidade das decisões.
A «Revista de Contabilidade e Comércio» (10) publicou a tradução A interligação social complicou-se e as necessidades relativas a
do citado capítulo, em que a ligação entre a contabilidade e o prestação de contas acresceram quando a organização da
capitalismo foi particularmente destacada por Sombart produção viveu o despontar do capitalismo comercial, e mais
(1947:134): ainda quando a este sucedeu o capitalismo industrial e, depois, o
«É mesmo impossível imaginarmos o capitalismo sem a financeiro. Somos da opinião que existe uma profunda ligação
contabilidade por partidas dobradas, porque o capitalismo e a entre a contabilidade e a organização social. Existe em termos
contabilidade correspondem-se como a forma e o conteúdo. E é muito gerais: a contabilidade é apoio necessário a qualquer
lícito perguntar se foi o capitalismo que criou a contabilidade por organização social complexa, mesmo nas instituições que não
partidas dobradas, como meio de exercer as suas forças, ou se foi têm expressamente fins económicos (11). O acrescer de visibilidade
o espírito da contabilidade que criou o capitalismo,» das partidas dobradas e da contabilidade que
E da página seguinte consta: « ... eu desejaria acentuar, antes de
tudo, que pela contabilidade por partidas dobradas foram criadas
possibilidades e iniciativas, pelas quais as ideias inerentes ao
sistema capitalista se puderam desenvolver plenamente: isto é a
ideia de aquisição e racionalismo económico. O desenvolvimento
que a ideia de aquisição sofre no domínio da contabilidade é
caracterizado pelo facto desta efectuar a separação definitiva
entre o dinheiro que é investido "para fins de aquisição", isto é,
para render lucros, e qualquer outro objecto natural de
sustentação.»
É ainda Sombart que escreve, alguns parágrafos depois: «Mas a
contabilidade aumenta a racionalização económica sobre dois
outros aspectos: ela serve para tornar útil e planeada a condução
(gerência) da empresa»
Embora compreendendo a citação pelos mais eméritos tratadistas
portugueses de tão entusiástico autor, pensamos que a ligação
entre a contabilidade e o capitalismo não tem a natureza que
Sombart lhe atribuiu.
De facto nos últimos séculos da Idade Média, período em que
aparentemente foi forjado o método das partidas dobradas nas acompanhou a evolução socioeconómica não foi determinado
Repúblicas italianas, registou-se todo um conjunto de mudanças pelo capitalismo como sistema, mas sim pelas implicações que,
que podem ser interpretadas como o renascer do espírito
como instituto social, este acarretou ao complicar as relações
empresarial, demonstrado já por algumas civilizações da
entre os diferentes agentes sociais e económicos.
Antiguidade, por exemplo os fenícios, que é visto como base do
capitalismo comercial. Mas consideramos questionável a
caracterização do sistema capitalista com base no espírito de
empresa, conduta racional e prossecução do lucro sem limites; A contabilidade como construto (12) social
corresponde a esquecer que é característica do homem ser
racional e que a racionalidade, tal como as suas aspirações, estão Comungamos, portanto, do parecer de Sunder (1997:201) ao
relacionadas com o sistema de valores sociais, sem prejuízo deste referir: «Seria virtualmente impossível sem este "software"
ser só um, entre vários factores. O homem sempre foi racional, conseguir que centenas de indivíduos, que têm liberdade de
embora nos seja difícil entender as motivações e aspirações de
escolha e os seus próprios objectivos, fossem capazes de
outras épocas.
construir uma aeronave, mesmo considerando a capacidade
A conduta em tantas instituições sociais actuais, por exemplo
técnica. Contabilidade e controlo são um elemento chave na
desportivas, é prova suficiente da dificuldade em caracterizar
condutas racionais. O poder e a notoriedade não cedem passo à solução para erguer, operar, transformar e dissolver
racionalidade económica, são determinantes como base de organizações.» (13)
motivação pessoal ou social. Pensamos que qualquer sociedade organizada, quando atinge um
As soluçoes adoptadas no custeio por engenheiros, com base em certo grau de complexidade, só pode sobrevi-
procedimentos não relacionados com as parti-

51
 Na segunda metade do século XX,
à medida que foi colhendo
ver apoiada em contabilidade. Os interesses, o uso de moeda fiduciária
templos gregos ou o governo de aceitação a utilidade como e outras alterações, acompanhadas
Atenas, na Antiguidade, ou os pelo desenvolver duma profissão,
mosteiros mais próximos de nós, que
objectivo, ganhou acolhimento procurando dar respostas aos novos
a utilizaram, dificilmente poderão ser interesses, em que foi importante a
vistos como instituições capitalistas. contabilístico o modelo económico de abordagem académica, tornaram a
Nem o fim, lucro(14), nem a falta de contabilidade socialmente visível e
avaliação em que a utilidade das
limites da ambição capitalista, nem o reconhecida como instituto social
capitalismo em si têm qualquer empresas é medida pelas importante, dentro de uma
relação privilegiada com a con- organização social em que a
expectativas de rendimento. prestação de contas sempre foi um
tabilidade que um outro sistema de
organização social complexa não pilar essencial.
tenha igualmente. Parece-nos estar documentada desde
Impressionam-nos todos os testemunhos da actividade contabilística a Antiguidade a relação entre contas e democracia: a democracia
logo na Antiguidade, e depois na sucessão das épocas históricas. O ateniense viveu com a publicidade das contas públicas registadas
despertar do capitalismo acompanha transformações na organização em pedra em lugar público. A partir do método das partidas
social e económica que a tornam mais complexa e qualquer sistema dobradas - digrafia - a contabilidade implicou especialização
complexo tem a contabilidade como condição de existência. Mas profissional. As partidas dobradas continuam como método
não reconhecemos no método das partidas dobradas particularidades característico que parece conter potencialidades especiais, reco-
que o liguem a um sistema especial de produção nem que nhecidas até pela recente reorganização da contabilidade pública:
privilegiem o seu uso nas unidades de produção. adequação para resolver necessidades de prestação de contas e de
A "Sereníssima" Veneza distinguiu-se na época pela não sinalização nas relações de agência. As potencialidades do
identificação da cidade com o "Dodge" e os seus mercadores pela método revelam-se especialmente quando é amplo o intervalo de
capacidade de formarem companhias não baseadas na família. arbítrio e decisão pelo agente, como acontece com os gestores
Qualquer destas realidades exige maior cuidado na prestação de das empresas e também com a autoridade pública sujeita a
contas e apelo à contabilidade. Tom Rowles (1998) no VIII prestação de contas. A cultura dominante e critérios de
Congresso de História da Contabilidade, em Madrid, deu relevo ao racionalidade que a caracterizam interferem com as soluções
papel da riqueza, substituindo as relações pessoais, como base do contabilísticas na medida em que determinem prestações de
contributo de cada um para a viabilidade do colectivo. No mesmo contas e condicionamento do comportamento dos agentes
sentido anotamos que a riqueza da cidade "Sereníssima", Veneza, económicos.
não era riqueza do senhor mandatado, e o seu uso implicava A utilidade da contabilidade como construto social, histo-
prestação de contas. A informação sobre a riqueza adquire especial ricamente, começou por ser a de servir como testemunho e para
significado logo que são substituídos laços entre pessoas ou são prestação de contas, depois aumentou quando foi capaz de
separadas qualidades numa mesma pessoa. proporcionar medidas históricas relativas à riqueza. Em nome da
Quando Stevin sugeriu ao Príncipe de Nassau a adopção do sistema utilidade não podem ser posto em causa o desempenho destas
de partidas dobradas certamente considerou as potencialidades do funções; a informação especial para o mercado de capitais,
método face às necessidades duma organização complicada; não caracterizada pela focagem no futuro, deve acrescer às funções
considerou que o estado do Príncipe era uma unidade comercial nem anteriores e não corresponder a uma substituição.
restringiu a aplicação do método. A contabilidade é um construto social necessário para viabilizar
Impressiona-nos a observação que, ao longo da História, a relações socioeconómicas complexas. Esperamos não estar a
contabilidade procura documentar as relações de agência e procura cometer erro semelhante ao de Sombart, quando identificamos a
respostas para os problemas de maior complexidade na coordenação organização política caracterizável como democrática com
de forças sociais. A História documenta como os antigos impérios e maiores exigências relativas à contabilidade, até em virtude de
os grandes reinos recorreram a soluções mais sofisticadas (e mais maior complexidade das relações de agência e maiores
fiscalizadas) quando a sua dimensão acresceu as necessidades dos exigências na prestação de contas.
chefes recorrerem a mandatários. Embora rejeitemos a relação entre contabilidade e capitalismo,
No final do século XIX, as sociedades de responsabilidade limitada, tal como apontada por Sombart, não questionamos a efectiva
implicando mais atenção social, os grandes empreendimentos, interdependência entre qualquer organização e o sistema
implicando convergência de muitos contabilístico que a viabiliza. Interpretamos a contabilidade
como condição para viabilizar o sistema capitalista, tal como é
condição para viabilizar

52
 qualquer outra organização social complexa. Quando a produção,
circulação e consumo de riqueza implicam prestação de contas e
controlo, a contabilidade ganha importância e prestígio social.
O aprofundar da democracia, nas empresas ou em qualquer
instituição social, acentua a importância e prestígio da
contabilidade e dos contabilistas.
(Texto recebido pela CT oc
em Dezembro de 2002)
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NOTAS
(1) Discordamos desta perspectiva redutora, entendendo que a contabilidade tem
como destinatários a empresa e a sociedade em geral e que o investidor pode ter
interesses diferentes dos da empresa, tomada como instituição que visa perpetuar-
se.
(2) Referimos a publicação da obra "The Nature of Capital and Income".
(3) A prestação de contas é informação quando vista do lado do mercado de
capitais, mas sacrificar a objectividade ou clareza na prestação de contas ao
propósito de fornecer melhor quantificação da riqueza implica o erro de atribuir ao
investidor interesses que ele não tem. Pensamos que o mercado de capitais sempre
esteve, e está muito interessado em informação adicional à de prestação de contas,
mas sem prejuízo da clareza desta.
(4) Texto original em francês e em castelhano.
(5) Merece muita reflexão a evolução das soluções inglesas na segunda metade do
século XX, certamente muito influenciadas pala inflação significativa da década de
1970.
(6) Os ensaios deste autor sobre contabilidade, e outros trabalhos de investigação,
são uma referência com autoridade sobre a história da contabilidade.
(7) As designações usadas não são tradução literal do texto em inglês; preferimos
expressões que em português tivessem significados mais precisos.
(8) Littleton, A. C. (1961); "Faible in Dialogue"; Essays on Accountancy;
University of Illinois Press, Urbana; 638 págs.
(9) Na literatura contabilística em contexto semelhante, especialmente na
americana, é citado George O. May (1936).
(10) Vol. XV, nº 57, págs. 127 a 140.
(11) Vlaemminck (1961:108) conclui que a contabilidade da empresa faz parte da
sua economia; pensamos que a contabilidade de qualquer instituição é condição de
existência da mesma e as empresas seguem a regra. A contabilidade não se
confunde com a economia nem esta com aquela, embora se condicionem
mutuamente, e condicionem o comportamento dos agentes.
(12) Não obstante este termo não estar registado no recente dicionário da Língua
Portuguesa publicado pela Academia de Ciências, não é uma inovação: o ilustre
professor António Sérgio usou-o na Carta n. º 1 das «Cartas de Problemática", por
exemplo na expressão: «Os construtos formais de que se compõe o saber». Também
o tratadista brasileiro Valério Nepunocemo recorre ao termo usando-o com
significado equivalente. O termo construção sugere acção e resultado do acto de
construir, nós pretendemos destacar o resultado final, sem evocar a acção de
construir. O construto aparece como resultado final, existe independentemente da
intenção e da acção de construir. (Agradecemos ao Prof. Manuel Duarte Baganha a
chamada de atenção para a exposlçao de António Sérgio).
(13) Texto original em inglês, na tradução procurou-se manter o profundo
significado.
(14) Impressiona e é motivo para reflectir a evolução das soluções contabilísticas nos
regimes comunistas, pela retoma das referências ao lucro como resposta às
necessidades inventariadas pelas sucessivas reorganizações do sistema No caso da
Rússia, parece-nos claro tal desenvolvimento a partir do XXI congresso do partido.
Mas esse não é o problema em análise, embora documente o papel da contabilidade
em contexto não capitalista.
53