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The Oxford History of Islam, Capítulo 5

Arte e Arquitetura Islâmica


Temas e Variações*

Sheila S. Blair Jonathan M. Bloom

Sumário

1 O que é arte islâmica? 3

2 A Arte da Escrita 8

3 O aniconismo: ausência de guras 15

4 Os temas decorativos do arabesco e da geometria 19

5 O uso exuberante da cor 29

6 A noção de ambiguidade deliberada 40

Lista de Figuras

1 Retrato de Fath Ali Shah, atribuído a Abdullah Khan 4

2 Mir Sayyid Ali. Cena de Acampamento. 7

3 O Balde Bobrinski 8

4 Dinar de ouro de Abd al-Malik 10

5 Tigela funda. Cerâmica esmaltada. Irã ou Ásia Central, século X. 11

6 O minarete de Ghazna, Afeganistão. 14


*
Tradução de Youssef Cherem (cherem@unifesp.br).

1
Lista de Figuras

7 O mausoléu de Ahmad Yasavi 14

8 Mausoléu de Ahmad Yasavi, detalhe das inscrições 15

9 A constelação de Andrômeda. ‘Abd al-Rahmân al-Sû , 17

10 Cena de al-Maqamat, de al-Hariri. 18

11 Maomé liderando Hamza os muçulmanos contra os Banu Qaynuqa. Jami’


al-Tawarikh, de Rashid al-Din. 20

12 Arabesco em estuque, Samarra, Iraque, século IX. 20

13 Arabescos na mesquita de Ibn Tulun, Cairo, 879. 21

14 Mesquita de Balkh, Afeganistão, atribuída ao século IX. 22

15 Arabesco na Mesquita de Córdoba. 23

16 Frontispício do Alcorão de Ibn Bawwab, 1000-1001. Chester Beatty Library. 24

17 Painel de pinho, produzido em Alepo, Síria, provavelmente séc. IX ou X. 25

18 Minarete Kalyan em Bukhara, Uzbequistão, 1127. 27

19 Muqarnas na Mesquita Jom’e, Isfahan, Irã. 29

20 Bahram Gur no pavilhão verde. Tabriz, 1481. 31

21 Yusuf e Zuleykha, de Kamal al-Din Behzad, 1488. 32

22 Mesquita de Córdoba, salão de orações. 34

23 Madrasa al-Attarin, Fez, Marrocos. 36

24 Madrasa Attarin em Fez, detalhe do mosaico. 37

25 Madrasa Attarin em Fez, detalhe do mosaico com inscrições. 37

26 O Taj Mahal visto do Rio Yamuna 38

27 Mármore embutido no Forte Vermelho em Déli. 39

28 Prato de lustre metálico, Samarra, Iraque, século IX. 40

29 Alhambra, Sala dos Abencerrajes. 42

30 Muqarnas sob a cúpula, Sala das Duas Irmãs, Granada. 43

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1 O que é arte islâmica?

31 Muqarnas sobre as janelas, Sala das Duas Irmãs, Granada. 43

Todas as culturas através dos tempos se expressaram visualmente, e a civilização islâmica


não é exceção. É só pensarmos nos tapetes orientais, nas miniaturas persas, e nos azulejos
marroquinos, sem falar do Domo da Rocha, o Palácio de Alhambra, a Mesquita Selimiye e
o Taj Mahal, para ver a grande extensão da expressão visual nas terras islâmicas através dos
séculos. A arte islâmica inclui isso e muito mais. Como empregado neste capítulo, o termo
arte islâmica se refere a todas as artes visuais produzidas nas terras em que o islã era a religião
dominante, independentemente de a liações confessionais dos indivíduos que zeram a arte
ou os propósitos aos quais ela servia. Ao contrário do termo “arte cristã”, o termo “arte islâmica”
não se restringe a obras feitas somente para situações ou funções religiosas , e muitos dos mais
estimados exemplos de arte islâmica têm pouco ou nada a ver com a religião islâmica. Uma
página de um pergaminho do Alcorão é obviamente considerada uma obra de arte islâmica,
mas uma bacia incrustada com cenas cristãs da Síria do século XIII também é.

1 O que é arte islâmica?


É claro que a arte islâmica não poderia ter surgido antes do surgimento do islã no começo do
século VII na Arábia, mas foi somente depois de quase um século que os muçulmanos come-
çaram a se tornar grandes e so sticados patronos das artes. Embora os muçulmanos tenham
começado a erigir estruturas logo depois da revelação do islamismo, geralmente se considera
como o primeiro exemplo de arquitetura islâmica o magní co Domo da Rocha em Jerusa-
lém, ordenado em 692 pelo califa omíada Abd al-Malik ibn Marwan (r. 685-705). Seguindo
essa de nição ampla, a arte islâmica continua a ser produzida até hoje; os artistas continuam a
trabalhar numa variedade de materiais em todos os países muçulmanos. No entanto, o surgi-
mento das identidades nacionais, especialmente nos séculos XIX e XX, mudou as formas de as
pessoas pensarem sobre as obras de arte produzidas nos países islâmicos nos tempos moder-
nos. Assim, um retrato do soberano qajar Fath Ali Xá (r. 1797-1834) é mais frequentemente
considerado um exemplo de um estilo de pintura distintamente persa do que para ilustrar as
atitudes islâmicas ou iranianas em relação à representação no século XIX. No uso corrente
em relação à arte moderna, o termo “islâmico” geralmente se refere a expressões puramente
religiosas como a caligra a.
Hoje, muitos museus na América do Norte, Europa e nos países islâmicos exibem orgulho-
samente suas obras-primas da arte islâmica, mas tradicionalmente as artes visuais tiveram um
papel relativamente menor na civilização islâmica, especialmente se comparadas às artes im-
portantes da poesia e da música. Por exemplo, não há palavra para “arte” propriamente dita
em árabe clássico. A palavra mais comum usada hoje é fann, um neologismo, pois tradicio-
nalmente signi cava “ofício” ou “habilidade”. O mesmo é válido para as palavras em persa e
turco, respectivamente hunar e hüner. Além disso, os artistas geralmente não gozavam de alto
status na sociedade islâmica, e há poucos ou nenhum Michelangelo ou Rembrandt, cujas vidas
se tornaram lendas.
De todas as artes visuais, a única que era largamente apreciada dentro de sua própria cultura
era a caligra a, a arte da bela escrita. Os nomes e as biogra as dos calígrafos foram coletados e

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1 O que é arte islâmica?

Figura 1: Retrato de Fath Ali Shah. Atribuído a Abdullah Khan. Óleo sobre calico. Feito no Irã, entre 1797 e 1834.
Victoria and Albert Museum, 707-1876.

preservados, e foram escritos tratados sobre a estética da caligra a. Mas a caligra a era a exce-
ção, e não a regra, e não há equivalente islâmico do arquiteto romano Vitrúvio, do século I a.C.,
ou o arquiteto italiano Alberti, do século XV, que escreveram tratados sobre a teoria da arqui-
tetura. A civilização islâmica também não produziu guras comparáveis aos literatos chineses,
que escreviam tratados sobre a apreciação estética da pintura chinesa desde o período das Seis
Dinastias (229-589 d.C.). Como os muçulmanos escreviam tão pouco sobre a apreciação esté-
tica de sua própria cultura visual, o estudo da arte islâmica exige uma abordagem positivista.
Ele deve ser feito baseado no exame dos próprios vestígios. Alguns estudiosos atuais tentaram
derivar princípios estéticos para toda a arte islâmica, mas esses princípios tendem a re etir
preocupações modernas, já que não foram gerados numa sociedade islâmica tradicional.
A arte islâmica inclui um conjunto pesado de materiais, técnicas, estilos, períodos e regiões.
Seu estudo, uma disciplina relativamente nova, desenvolveu-se não em países islâmicos, mas na
Europa Ocidental, como um ramo do estudo da arte europeia. Da perspectiva europeia, a arte
islâmica evoluiu no Oriente Próximo a partir dos vestígios das tradições artísticas do antigo
Oriente Próximo e da Antiguidade tardia, sendo uma ponte entre a arte do m do período
clássico e do começo da Idade Média. À medida em que o islamismo se difundia bem além dos
con ns geográ cos do Oriente Próximo para a África Ocidental e Subsaariana, a Ásia Central, a
Índia e o Sudeste Asiático, e além do limite temporal da Idade Média, expandia-se também sua
expressão visual. Assim, os modelos criados para compreender as artes da região mediterrânica
no século VIII não são necessariamente válidos para compreender a arte islâmica da Indonésia
ou de Mali.
A arte da civilização ocidental é tradicionalmente compreendida segundo uma hierarquia em

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1 O que é arte islâmica?

que a arquitetura e as artes representativas da pintura e da escultura têm dominado a paisagem


artística até hoje. Essa hierarquia não é válida para a arte islâmica. Embora a arquitetura seja
igualmente importante na cultura islâmica, o islã produziu poucas esculturas ou pinturas em
painel. Na civilização chinesa, outra longa tradição de produção artística, havia uma divisão
clara entre artistas (pintores, calígrafos e poetas) e artesãos (escultores, oleiros, trabalhadores
em metal etc.), e portanto entre a arte a o artesanato. Essa divisão não vale para a arte islâmica,
porque não há essa distinção entre a arte e o artesanato. De fato, uma característica distintiva
da arte islâmica é a transformação de objetos utilitários em obras de arte sublimes. Então,
ao observar a cultura material islâmica, devemos estar preparados para encontrar expressões
artísticas em numa vasta gama de situações, desde as mais humildes lâmpadas a óleo até os
túmulos mais monumentais. Contudo, a arte islâmica permanece sendo uma rubrica útil sob
a qual são consideradas as culturas visuais dos últimos quatorze séculos em grande parte da
Eurásia e África, porque permite fazer algumas conexões e estabelecer relações.
A arquitetura foi universalmente a forma mais importante de arte islâmica. Custou mais,
durou mais, e foi vista pela maior audiência. Construções com ns religiosos, como mesqui-
tas e madrassas (escolas religiosas) sou frequentemente mais bem conhecidas e preservadas
porque continuaram a ser usadas e preservadas através dos séculos. As construções religiosas
podem fornecer um quadro de referência para traçar o desenvolvimento da arquitetura islâ-
mica, mas o conservadorismo inerente à arquitetura religiosa quer dizer que essas estruturas
teriam demorado para apresentar inovações. É mais provável que a inovação arquitetônica te-
nha sido introduzida em construções seculares – como palácios, casas, caravançarais, banhos,
mercados e coisas do gênero –, porque eles foram construídos segundo o gosto de uma pessoa
particular, e para suas próprias necessidades. Mais um número muito menor desses edifícios
sobreviveu: alguns simplesmente viraram ruína, enquanto outros foram destruídos delibera-
damente. Poucos governantes, por exemplo, pensavam que servia algum objetivo preservar as
fantasias pessoais de seus predecessores. Assim, a amostra arquitetônica disponível para es-
tudo é enviesada; ao tentar reconstruir a forma do passado, é importante lembrar que o que
sobrevive não é tudo o que foi feito.
Como a caligra a e os calígrafos eram reverenciados nas sociedades islâmicas, as dava-se
extraordinária importância às artes da escrita – e, por extensão, as artes do livro. Numa época
anterior à imprensa, todos os manuscritos, desde cópias do Alcorão até contos populares e
obras cientí cas, tinham que ser trabalhosamente copiados à mão, primeiro em folhas de pa-
piro e pergaminho e posteriormente em papel. As obras de calígrafos mais habilidosos eram
particularmente apreciadas e colecionadas. Folhas individuais era frequentemente embele-
zadas com decorações elegantes e, onde fosse apropriado, belas pinturas, e depois juntadas
em caixas ou encadernadas com couro trabalhado e dourado. Os livros eram preservados em
bibliotecas ligadas a mesquitas ou palácios. Numa época em que os monastérios europeus
podem ter abrigado algumas dezenas de volumes, as bibliotecas no mundo islâmico tinham
comumente centenas, quando não milhares de volumes.
Um terceiro material que conseguiu preeminência na arte islâmica é o tecido. A produção e
o comércio de bras, de tinturas e de tecidos era uma das principais fontes de renda em muitos
lugares. Um historiador moderno comparou a indústria têxtil no período medieval no mundo
islâmico à indústria pesada dos Estados industriais modernos, porque os tecidos deitaram as
fundações econômicas da sociedade medieval islâmica. As duas principais bras eram a lã e o

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1 O que é arte islâmica?

linho. Seda e algodão também eram importantes porque eles, assim como a lã, poderiam ser
tingidos com relativa facilidade com cores brilhantes. Muitas outras bras eram usadas quando
disponíveis. Talvez a imagem mais marcante da centralidade dos tecidos na cultura islâmica é
a kiswa, o véu de tecido que cobre a Kaaba em Meca, que pode representar um vestígio da
tenda sagrada – semelhante à tenda dos Israelitas para a Arca da Aliança (2 Sam. 6,17) – em
que Deus morava. Embora hoje a kiswa seja sempre preta com bordados de ouro e citações
alcorânicas, no passado poderia ser de praticamente qualquer cor, incluindo branco, verde ou
até vermelho.
Em muitas sociedades, as roupas faziam o homem ou a mulher. A vestimenta distinguia não
somente o homem da mulher e o rico do pobre, mas também os nômades dos habitantes das
cidades e os muçulmanos dos não-muçulmanos. A roupa também era usada para fazer incontá-
veis distinções sociais e religiosas: turbantes verdes eram usados por descendentes do profeta
Maomé, turbantes enrolados ao redor de um bastão vermelho indicavam os seguidores da or-
dem safávida, de onde surgiu a dinastia que dominou o Irã entre os séculos XVI e XVIII. Um
casaco tosco feito de lã (suf em árabe) era frequentemente usado por místicos, cuja abordagem
bastante pessoal em relação à religião se tornou cada vez mais importante, lado a lado com a
prática comum do islamismo. Esses místicos caram conhecidos como su s.
Os tecidos também eram usados como mobília. Havia pouca ou nenhuma necessidade de
tapeçarias que regulavam a passagem de ar nos castelos frios do norte medieval, assim como
também não havia necessidade, num clima relativamente seco e quente, de mobília de madeira
para distanciar as pessoas do chão úmido e frio. A maioria das pessoas se assentava em esteiras
ou tapetes estendidos sobre o chão, apoiados em travesseiros ou almofadas, e dormiam em
tapetes no chão. As refeições eram normalmente comunais; um tecido lavável era estendido
sobre o tapete e as pessoas se assentavam e se serviam de travessas comuns cheias de comida,
que eram às vezes colocadas sobre um suporte curto.
De forma mais característica, os tecidos também eram usados para a arquitetura móvel nos
países islâmicos. A área em que o islã se difundiu originalmente incluía duas grandes tradições
de construção de tendas. Os beduínos nos desertos árabes usavam tendas feitas de longas faixas
de tecido costurado sustentadas estacas e presas com cordas e pinos. Em contraste, os nômades
turcos da Ásia Central usavam tendas feitas de quadros auto-sustentados cobertos com feltro.
Na civilização islâmica, ambos os tipos de estrutura, a estrutura árabe elástica e a estrutura
turca comprimida, difundiram-se para regiões tradicionais do outro grupo, e as características
distintivas foram trocadas. Por causa da função importante e frequentemente poderosa dos
nômades na sociedade sedentária islâmica, essas humildes moradias foram adotadas pelos go-
vernantes, que transformaram suas estruturas utilitárias em luxuosos equipamentos feitos dos
materiais mais nos e caros.
No estudo da arte islâmica, muitos desses outros aspectos – como metal, cerâmica, vidro e
madeira, mar m e cristal de rocha – são geralmente abarcados na rubrica de artes “menores”
ou “decorativas”. Na arte ocidental, esses termos têm uma conotação um tanto depreciativa,
porque esses materiais são considerados menos nobres que as artes maiores da escultura e da
pintura. Isso simplesmente não é verdadeiro no caso da arte islâmica. Como em muitas ou-
tras culturas, artesãos trabalhando para patronos ricos transformaram materiais caros, como
mar m, ouro e pedras preciosas, em objetos de luxo. Nos países islâmicos, entretanto, os ar-
tesãos também transformaram os materiais mais humildes, como argila, areia e minérios, em

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2 A Arte da Escrita

cerâmicas com esmalte brilhante, vidros límpidos e metais brilhantes usados por muitas clas-
ses da sociedade. Esses objetos eram frequentemente utilitários, como bilhas, bacias, bandejas
e tigelas. Precisamos de uma grande dose de imaginação para transportar uma tigela de ce-
râmica, austeramente exibida num museu, ao seu contexto original, utilizada para servir um
prato numa refeição medieval.
O Balde Bobrinski, uma das obras-primas da arte islâmica, exempli ca muitas dessas carac-
terísticas. Comprado em Bukhara (no atual Uzbequistão) em 1885, foi posteriormente adqui-
rido pelo conte russo A. Bobrinski, de onde vem o nome da peça. O corpo, de latão (cobre e
zinco) fundido, é incrustado em cobre e prata com faixas de inscrições e cenas gurativas. De
acordo com a inscrição dedicatória na borda, o balde foi encomendado por Abd al-Rahman
ibn Abdallah al-Rashidi, formado por Muhammad ibn Abd al-Wahid, e incrustado por Masud
ibn Ahmad, o designer de Herat (atual Afeganistão) para o comerciante Rashid al-Din Azizi
ibn Abul-Husayn al-Zanjani. A alça porta a data de Muharramm 559 do calendário islâmico,
correspondente a dezembro de 1163. Nenhuma das pessoas mencionadas na inscrição é co-
nhecida por outras fontes, e a função do balde é um enigma. Já foi chamado de chaleira ou
caldeirão, mas é muito luxuoso para ser usado para cozinhar. Também não poderia ser usado
para carregar alimento ou líquido, porque o contato com o interior poderia causar envene-
namento por azinhavre (cobre oxidado). A explicação mais plausível é que o balde era usado
como vasilha para carregar água quando o mercador ia ao banho. Resumindo, esse balde era
um presente para o homem que tinha tudo em 1163, o equivalente medieval de um equipa-
mento eletrônico de luxo.
A despeito da enorme variedade da arte islâmica, que pode variar desde grandes estruturas
a pequenos objetos produzidos entre a costa do Atlântico na África e as ilhas da Indonésia,
desde o século VIII até o presente, alguns temas têm tido apelo perene e universal. […] Este
capítulo tem uma abordagem temática que enfatizam características comuns que unem grande
parte da arte islâmica através dos continentes e dos séculos. Cinco temas foram escolhidos: a
arte da escrita, a ausência de guras; os temas decorativos do arabesco e da geometria; o uso
exuberante da cor e a noção de ambiguidade proposital. Cada um desses temas pode não apa-
recer em cada obra de arte islâmica, mas coletivamente eles de nem uma abordagem estética
que distingue a arte islâmica das tradições das regiões e culturas ao seu redor.

2 A Arte da Escrita
A escrita é o tema mais importante, que perpassa toda a arte islâmica. O uso de inscrições não
é exclusivo da cultura islâmica; foi desenvolvido em parte de precedentes na região em que a
civilização islâmica se desenvolveu. Havia, por exemplo, uma longa tradição no mundo clás-
sico de uso de inscrições, particularmente para decorar as fachadas de prédios e monumentos
como os arcos de triunfo. Essa tradição passou, por sua vez, ao mundo cristão, e a arte bi-
zantina era frequentemente decorada com inscrições (embora guras tenham se tornado mais
populares com o tempo). De forma semelhante, inscrições eram frequentemente utilizadas no
Oriente Próximo, como nos relevos na rocha de Bisitun (ou Behistun) no oeste do Irã, onde
uma inscrição trilíngue em Persa Antigo, Elamita e Babilônico louva o grande rei aquemênida
da Pérsia, Dario I (r. 522-486), circundando um relevo monumental mostrando o triunfo sobre

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2 A Arte da Escrita

Figura 2: Cena de Acampamento. Mir Sayyid Ali, séc. XVII. 28,4 x 20 cm. Harvard University Art Museums,
1958.75. Os tecidos preenchiam a vida tanto dos nômades quanto dos habitantes das cidades, cobrindo
o chão e de nindo o espaço. O papel onipresente dos tecidos é visto numa pintura de um acampamento
nômade, atribuído ao pintor persa do século XVI Mir Sayyid Ali.

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2 A Arte da Escrita

Figura 3: O Balde Bobrinski. Museu Heritage, São Petesburgo.

o usurpador Gaumata e os rebeldes. Em todos esses casos, entretanto, a escrita suplementava


e explicava a imagem. O que é diferente na arte islâmica é que a escrita se tornou o princi-
pal (e às vezes único) elemento de decoração. A mudança fundamental deveu-se, em grande
medida, ao papel central da escrita no islamismo. As primeiras palavras que Deus revelou a
Maomé foram os cinco primeiros versos do capítulo 96 do Alcorão:

Recita em nome do teu senhor que criou, َ‫اﻗْﺮَأْ ﺑِﺎﺳْﻢِ رَﺑﱢﻚَ اﻟﱠﺬِي ﺧَﻠَﻖ‬
Criou o homem de um coágulo; ٍ‫ﺧَﻠَﻖَ اﻹِْﻧﺴَﺎنَ ﻣِﻦْ ﻋَﻠَﻖ‬
Recita, e teu senhor é o mais generoso, ُ‫اﻗْﺮَأْ وَرَﺑﱡﻚَ اﻷَْﻛْﺮَم‬
Que ensinou pelo cálamo, ِ‫اﻟﱠﺬِي ﻋَﻠﱠﻢَ ﺑِﺎﻟْﻘَﻠَﻢ‬
Ensinou ao homem o que ele não sabia. ْ‫ﻋَﻠﱠﻢَ اﻹِْﻧﺴَﺎنَ ﻣَﺎ ﻟَﻢْ ﻳَﻌْﻠَﻢ‬
Em outras palavras, o conhecimento da escrita distingue o homem das outras criaturas de
Deus. A importância da escrita é salientada em passagens do Alcorão. No capítulo 68, uma das
primeiras revelações, conhecida como Surat al-Qalam (O Cálamo) ou Surat al-Nun (A letra
nun), abre com as palavras: “Nun. Pelo cálamo e o que eles escrevem”. De acordo com outro
par de versos revelados um pouco depois (Alcorão 50, 17-18), dois nobres anjos cam sobre os
ombros do homem para registrar todas suas ações e pensamentos. O do lado direito escreve as
boas ações, e o do lado esquerdo, as más. No Dia do Julgamento, todos os atos serão calculados
para a contabilidade nal no Livro do Julgamento Final (Alcorão 69, 18-19).
Dada a importância da escrita na revelação, não é de surpreender que a escrita tenha-se
tornado uma característica tão importante na cultura islâmica. Os livros e a produção de livros
se tornaram grandes formas de arte, e a caligra a se tornou um dos principais temas de deco-
ração. Como o Alcorão foi revelado em árabe, a língua e a escrita árabes rapidamente dominou

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2 A Arte da Escrita

as línguas que eram usadas na região, tornando-se a lingua franca de um vasto território. No
nal do século VIII, os calígrafos foram responsáveis por tornar a escrita árabe mais legível e
bela, e seus esforços podem ser vistos em exemplos ainda existentes, desde moedas e marcos
de estradas até construções.
Moedas bizantinas e sassânidas tinham guras de imperadores sob cujos auspícios elas fo-
ram cunhadas. Depois de um breve período de experimentação, os governantes muçulmanos
rejeitaram esse tipo de moeda gurativa em favor de moedas que dependiam exclusivamente
de palavras. Começando em 692, sob o califa omíada Abd al-Malik, praticamente todas as mo-
edas foram decoradas exclusivamente com escrita. Isso é válido, por exemplo, para moedas de
ouro antigas, conhecidas como dinars ( g. 4). No anverso, o centro é preenchido pela pro ssão
de fé, que continua em parte da borda; o resto do espaço contém um verso do Alcorão (9, 33)
sobre a missão profética. No reverso da moeda há uma inscrição de um versículo alcorânico
(112) declarando a unicidade de Deus e refutando a Trindade; o texto em volta da borda con-
tém a invocação, a cunha, e a data. Tudo isso aparece numa moeda com menos de 20mm de
diâmetro. Embora o estilo da escrita tenha mudado em vários locais e períodos, esse tipo de
moeda epigrá ca continuou a ser característica de praticamente toda a cunhagem de moedas
em países islâmicos até a era moderna.

Figura 4: Dinar de ouro de Abd al-Malik. Provavelmente Síria, AH 77/696-697. d.C. The British Museum.

Inscrições são encontradas em todos os tipos de suporte e materiais, mesmo aqueles cujas
limitações técnicas do suporte fazem extremamente difícil incorporar texto corrido. É o caso,
por exemplo, dos tecidos. É relativamente fácil tecer padrões simétricos de motivos repetidos
num tear, mas muito mais difícil inserir um design direcional que é lido em uma direção. No
século X, entretanto, tecelões persas haviam superado as limitações do suporte e encontraram
uma forma de incorporar longas faixas de inscrições nas suas sedas de padrões elaborados. Um
bom exemplo é o fragmento de seda conhecido como Sudário de São Josse, porque foi usado na
Idade Média para guardar os ossos de São Josse na abadia de St. Josse-sur-Mer, perto de Caen,
no noroeste da França, aonde foi provavelmente trazido por um cruzado retornando a casa da
Terra Santa. Isso mostra como os tecidos islâmicos eram considerados preciosos tanto em casa
quando no estrangeiro. Dos dois pedaços que restam, o tecido pode ser reconstruído como um
grande quadrado medindo um metro e meio de um lado, com um design de tapete em várias
bordas ao redor de um campo central. As bordas contêm uma série de camelos, e o campo teria
duas faixas idênticas de elefantes. Debaixo dos pés dos elefantes, há uma faixa de inscrição
em árabe. Os animais estão arranjados simetricamente, mas a faixa com a inscrição só pode
ser lida da direita para a esquerda. O texto invoca a glória e a prosperidade ao comandante,
Abu Mansur Bakhtitin, que é identi cado em textos medievais como um comandante turco
no nordeste do Irã. Ele foi preso e executado sob as ordens do soberano samânida Abd al-

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2 A Arte da Escrita

Malik ibn Nuh por volta de 960, então a seda deve ter sido confeccionada antes dessa data,
porque ela se refere a uma pessoa viva.Embora esse seja o único exemplo remanescente, essa
seda deve ter sido uma de muitas peças idênticas. Era extremamente custoso em termos de
tempo e recursos montar um tear para tecer esse design complexo de sete cores, mas ao tecer
múltiplas cópias dos quadrados de seda, os custos seriam divididos mais igualmente. Não se
sabe bem como essa peça era usada originalmente, mas foi provavelmente tecida para cobrir
as selas das tropas sob o comando de Bakhtitin.
O Sudário de São Josse é somente um exemplo de como os artistas na época medieval usa-
vam inscrições para decorar obras de arte. Em objetos feitos de materiais caros, como seda ou
taças de jade, as inscrições frequentemente nomeiam o patrono ou o usuário que encomen-
dou o artefato. Em objetos de materiais menos nobres ou feitos para o mercado, entretanto,
as inscrições contêm textos mais gerais. Esse é o caso de uma tigela com bordas em folho1 ,
produzida, como o Sudário de São Josse, no nordeste do Irã no século X ( g. 5). Feita de cerâ-
mica bege coberta com uma demão na de cobertura vermelha2 com toques marrom-escuro
e coberta com esmalte transparente, a tigela funda é notável por seu tamanho e por sua na
decoração interior.

Figura 5: Tigela funda. Cerâmica esmaltada. 11.2 cm de altura, 39.3 cm de diâmetro. Irã ou Ásia Central, século
X. Inscrita com a frase: “Bênção ao dono”, seguida do provérbio: “Diz-se que quem se contenta com sua
própria opinião corre perigo”. The Freer and Sackler Galleries, Washington, D.C., F1957.24

No centro, há um motivo vegetal abstrato de um único caule com cinco folhas, mas a prin-
cipal decoração é uma larga faixa de uma elegante escrita angular ao redor da borda. Supondo

1
Folho: tira franzida ou pregueada. Sinônimo: “babado”.
2
No original: slip: “mistura cremosa de argila, água e tipicamente um pigmento, usada especialmente para decorar
cerâmica” (The Oxford Dictionary).

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2 A Arte da Escrita

que o propósito da tigela tenha sido portar alimentos, somente o ornamento em forma de pe-
quenas conchas ao redor da borda cava visível quando a tigela estivesse cheia. Mas, à medida
que o alimento fosse consumido, a inscrição caria cada vez mais visível, até que a decoração
se revelasse quando a tigela se esvaziasse. A inscrição em árabe começa depois de um pequeno
motivo decorativo a aproximadamente quatro horas, com a frase “Bênção ao dono”. Depois de
um pequeno motivo em forma de gota a cerca de oito horas, o texto continua com um pro-
vérbio: “Diz-se que quem se contenta com sua própria opinião corre perigo”. Se a tigela tiver
sido elaborada para ser segurada e apreciada com o caule da planta para baixo, mais perto do
espectador, então a parte mais importante da inscrição, a bênção ao dono, ca imediatamente
legível sob ela. Para ler o provérbio, o leitor deve rodar a tigela em sentido anti-horário.
Outras tigelas e pratos do mesmo meio são decoradas com aforismos semelhantes, como
“Planejar antes do trabalho evita arrependimentos; a paciência é a chave do conforto”, ou “O
conhecimento é um ornamento da juventude e a inteligência é uma coroa de ouro”. As ins-
crições nessas cerâmicas são planejadas com cuidado extremo, e em escrita estilizada, bem
distinta da escrita cursiva conhecida de manuscritos da época, e merece ser chamada de cali-
gra a. Espectadores modernos, mesmo os que sabem bem o árabe, acham difícil decifrar essas
inscrições. É provável que mesmo naquela época seu propósito fosse ser um divertimento, um
quebra-cabeças para uma clientela so sticada, que não somente apreciava sua louça decorada
com uma escrita estilizada, mas também conhecia a língua árabe bem o su ciente para en-
tender os aforismos moralizantes. No Irã e na Ásia Central no século X, o Novo Persa estava
se destacando como uma língua popular, mas o árabe era mais apropriado para a escrita. O
manuscrito persa mais antigo a sobreviver até os dias de hoje data do século XI.
Esses dois artefatos com inscrições – o sudário e a tigela – datam do século X, mas são
encontradas inscrições em objetos criados em toda a história da civilização islâmica, desde
os primeiros tempos até o presente. A mais antiga obra de arquitetura islâmica, o Domo da
Rocha em Jerusalém, revela um uso so sticado de inscrições executadas em mosaico de vidro.
No século XVI o sultão otomano Suleyman (r. 1520-66) substituiu os mosaicos do exterior
da cúpula com azulejos, e esses próprios azulejos foram substituídos no século XX, então é
impossível dizer o que quer que seja sobre o papel original das inscrições nessa parte. Mas o
interior preserva a maior parte do seu aspecto original e o programa de mosaicos mais suntuoso
a sobreviver da época antiga ou medieval. Duas longas faixas de inscrições, em letras douradas
que cintilam sobre a base em azul profundo, circundam as faces interior e exterior da arcada
octogonal. Os textos contêm frases pias e versos do Alcorão sobre a onipotência de Deus e a
missão profética de Maomé, bem como o nome do patrono, o califa omíada Abd al-Malik, e a
data da construção.
Como nas moedas, a escrita utilizada no Domo da Rocha é pensada com cuidado e planejada
para preencher o espaço disponível. As inscrições no Domo fornecem a primeira evidência
datada para a escrita do Alcorão, e mostram que já havia calígrafos treinados para explorar as
possibilidades decorativas da escrita árabe. Nenhum manuscrito do Alcorão sobreviveu dessa
época, e alguns estudiosos usaram essa falta de evidência para sugerir que a escrita árabe
evoluiu devagar através dos séculos. A julgar pelas inscrições nas moedas e no Domo da Rocha,
não há questão de que a arte da escrita em árabe já estava bem desenvolvida no nal do século
VIII.

12
2 A Arte da Escrita

As inscrições ainda são um tema importante da decoração na arquitetura islâmica moderna.


Elas são proeminentes, por exemplo, dentro da mesquita erigida em 1984 no Aeroporto In-
ternacional Rei Khalid em Riyadh, na Arábia Saudita. Como no Domo da Rocha, a inscrição
na mesquita é escrita com uma faixa larga em volta da base da cúpula, mas, neste caso, o texto
é todo do Alcorão (57:1-7). Os versos dizem que tudo o que está na terra e nos céus declara
a glória de Deus, o Onipotente, a rmando no nal que aquele que gastar dinheiro com uma
obra pia será recompensado com justiça. O texto foi claramente escolhido como referência aos
motivos do patrão para fundar a mesquita.
Em todas as épocas e lugares, versículos alcorânicos foram cuidadosamente escolhidos para
uma situação particular. Examinar de perto a escolha dos versículos pode nos dar pistas so-
bre a função ou signi cado original de uma obra de arte. As sepulturas eram frequentemente
decoradas com versículos sobre a morte e o paraíso, como “Tudo o que habita a terra pere-
cerá, exceto a face do teu senhor” (55, 26-27). Podia-se inscrever nos portais um versículo
pedido a Deus “uma entrada justa e uma saída justa” (17, 80). Outros textos alcorânicos fo-
ram escolhidos porque algumas palavras tinham uma ressonância particular. Por exemplo, a
fachada do túmulo na madraça Shifaiye, construída em 1220 em Sivas pelo sultão seljúcida
de Rum Kaykaus, porta uma inscrição do versículo 69, 28-29 do Alcorão, que termina com a
palavra sultaniya (poder), sem dúvida escolhida como um jogo de palavras com o título mais
importante de Kaykaus, sultão.
A escrita em árabe também era a forma de transformar em islâmicas formas não islâmicas.
Isso pode ser visto na tela em arco que o governante muçulmano de Déli, Qutb al-Din Ay-
bak (1206-10), acrescentou à mesquita congregacional em 1198. Conhecida como Quwwat
al-Islam (“Poder do Islã), a mesquita foi construída menos de uma década antes, depois da
conquista islâmica da região. A tela, que ca no pátio em frente ao salão de orações, não tem
nenhum propósito estrutural e foi aparentemente adicionada ao edifício em hipostilo por ra-
zões estéticas, para mascarar o que cava atrás e fazer com que o novo edifício parecesse mais
atraente. Ela é ricamente decorada com fachas naturalistas de rolos de vinha e inscrições. Os
rolos pertencem a uma tradição local de escultura em pedra que pode ser vista em templos
hindus e jainistas, onde são frequentemente acompanhados por exuberantes esculturas mos-
trando as atividades de incontáveis deuses e deusas com muitos braços e pernas. Os novos
patronos muçulmanos julgavam essa idolatria horrível e zeram com que os artesãos locais
substituíssem as guras por textos do Alcorão.
O desejo de usar a escrita para decorar edifícios e objetos nos países islâmicos era avassalador,
e construtores e designers, particularmente no período medieval, competiam para criar novos
estilos e métodos para escrever suas mensagens em edifícios. Em alguns casos, acrescentaram
ores e folhas ao redor e entre as letras. Esse estilo era particularmente popular no Cairo, e
muitos dos edifícios de pedra erigidos sob o patronato da dinastia fatímida, governantes ricos e
so sticados do país entre 969 e 1171, têm belos textos esculpidos num estilo conhecido como
ku oreado, que estão entre as mais nas inscrições arquitetônicas islâmicas, porque têm um
equilíbrio criterioso entre as exigências da decoração e a legibilidade.
No Irã e na região adjacente, onde o tijolo cozido era o material de construção mais comum,
os designers desenvovleram outros tipos de escrita, particularmente as com nós e outros ele-
mentos de decoração geométrica. Um dos estilos arquitetônicos que duraram mais é conhecido
em persa como bannai ou “técnica de construtor”. A escrita se desenvolveu a partir das téc-

13
2 A Arte da Escrita

Figura 6: O minarete de Ghazna, Afeganistão.

nicas dos pedreiros, à medida que tijolos e outros elementos da construção eram postos em
relevo para criar palavras e frases simples. O exemplo mais antigo ainda existente dessa escrita
é o minarete de Ghazni (no leste do Afeganistão), de cerca de 1100, do soberano ghaznávida
Masud III (r. 1098-1115). Os painéis no fuste do minarete declinam os nomes e vários títulos
do sultão. O texto é incomum, já que é um dos poucos exemplos conhecidos de uma inscrição
nessa técnica contendo informação histórica. O texto também é muito difícil de ler, porque
as letras são formadas por pequenas peças de terracota espremidas entre tijolos mais largos
colocados verticalmente numa cadeia escalonada.
Elaborar e planejar essa inscrição deve ter sido extremamente trabalhoso (e, portanto, caro),
e construtores e designers logo descobriram como adotar a técnica para métodos de produção
mais rápidos. Eles simpli caram o próprio texto, de forma que, em vez dos nomes e títulos de
um governante especí co, o texto continha nomes sagrados ou uma frase religiosa como “Não
há profeta depois de Maomé” ou “O domínio pertence a Deus”. Construtores e designers
também simpli caram a técnica. Em vez de montar peças de terracota em relevo, usaram os
próprios tijolos para escrever o texto. Num primeiro momento, foram explorados os espaços
entre os tijolos, de forma que as sombras entre os espaços vazios formassem palavras e frases.
Daí era um passo para os designers preencherem os espaços entre os tijolos com elementos
vidrados, de forma que as palavras fossem inscritas em superfícies brilhantes alinhadas com as
ligações entre os tijolos e contrastando com a superfície fosca ao redor.
Essa técnica se difundiu amplamente no oriente islâmico a partir do século XIII, porque era
um meio ideal de cobrir grandes amplas superfícies de prédios de tijolo. Um bom exemplo é
o santuário que o conquistador turco-mongol Timur (Tamerlão, 1336-1405) mandou construir
para o xeique su Ahmad Yasavi no norte de Samarcanda. O santuário é um enorme bloco

14
2 A Arte da Escrita

Figura 7: O mausoléu de Ahmad Yasavi

Figura 8: Mausoléu de Ahmad Yasavi, detalhe das inscrições

15
3 O aniconismo: ausência de guras

retangular que utua sobre a estepe plana e poeirenta. A área ao longo dos muros laterais é
dividida em um quadro de formas de cruz delineadas em tijolos vidrados azul-escuro. Cada
cruz é preenchida com tijolos vidrados azul-claro com os nomes de Deus, Ali e Maomé. A téc-
nica não somente foi visualmente e caz, como também fazia sentido em termos religiosos, pois
qualquer um podia perceber os nomes de longe, da mesma forma como um crente fervoroso
repete os nomes como parte de sua devoção. O edifício é literalmente envolvido em escritura
sagrada.

3 O aniconismo: ausência de guras


Frequentemente se diz que a representação de seres vivos é proibida na arte islâmica, mas
isso simplesmente não é verdade. O Alcorão diz muito pouco sobre a representação gurativa,
embora proíba explicitamente idolatria, adivinhação, bebidas alcoólicas, apostas etc […] Fazer
retratos de pessoas aparentemente não era um assunto de suma importância na Arábia do nal
do século VI e começo do século VII. Além disso, não há razão para representar pessoas na arte
religiosa, porque os muçulmanos acreditam que Deus é único e sem associado e, portanto, não
pode ser representado, exceto por sua palavra, o Alcorão. Deus é adorado diretamente sem
intercessores, então não há lugar para imagens de santos, como na arte cristã. Maomé era
o mensageiro de Deus, mas, ao contrário de Jesus Cristo, não era divino. Seus atos — não
sua pessoa — representam o ideal ao qual aspiram os muçulmanos. ao contrário da Bíblia, o
Alcorão tem poucas passagens narrativas; assim, não há razão para ilustrar histórias para ensinar
a fé.
Com o tempo, a falta de motivo e oportunidade se endureceu como lei, e a ausência de gu-
ras (tecnicamente conhecida como aniconismo se tornou uma característica distintiva da arte
religiosa islâmica. Assim, pouca ou nenhuma representação humana é encontrada em mes-
quitas e outros edifícios com função religiosa. Palácios, banhos e locais para outras atividades,
entretanto, podem muito bem ter tido decoração gurativa, embora em períodos posteriores o
aniconismo do meio religioso frequentemente transbordasse para a órbita secular. De acordo
com os hadith (tradições do Profeta), até Muhammad estava ciente da diferença; ele ordenou
que todos os ídolos fossem removidos da Kaaba em Meca, mas está registrado que ele usou
cortinas e almofadas decoradas com guras em sua casa.
Representações de pessoas e animais eram usadas, com frequência de forma exuberante,
em ambientes particulares. Um exemplo do começo da era islâmica pode ser visto nas ruínas
do palácio omíadas conhecido com o Khirbat al-Mafjar, próximo a Jericó. Destruído por um
terremoto na década de 740, a construção era o retiro do príncipe playboy al-Walid ibn Ya-
zid, que festejou com seus amigos por duas décadas esperando suceder seu tio senil, o califa
omíada Hisham ibn Abd al-Malik (r. 724-743). O palácio tinha um elaborado hall de música,
completo com uma piscina, um banho quente, e uma sala de audiências particular. A única
coisa que restou intacta é o enorme piso de mosaico, decorado com uma extraordinária série
de padrões geométricos que se assemelham a tapetes de pedra. A partir dos muitos fragmen-
tos de pedra e estuque que entulham o sítio, os escavadores puderam reconstruir grande parte
da superestrutura do edifício. O portal, por exemplo, era elaboradamente decorado com uma
estátua de estuque, presumivelmente representando o patrono, e do lado de dentro do portal

16
3 O aniconismo: ausência de guras

mais estátuas de estuque com voluptuosas dançarinas seminuas sugerem os prazeres que se
encontravam no interior. A cúpula sobre a pequena sala de audiências culminava em uma se-
dutora cobertura de folhas de acanto com protuberâncias de cabeças de belos jovens, homens
e mulheres, que olhavam de cima outras esculturas de pássaros e cavalos alados. Claramente,
o que se fazia em particular podia ser bem diferente de o que se fazia em público.
Na mesma linha, escavadores alemães no começo do século XX encontraram milhares de
fragmentos de pinturas murais que decoravam as casas, banhos e palácios de Samarra, o local
ao norte de Bagdá que serviu de capital abássida em meados do século IX. Os escavadores
conseguiram reconstruir algumas das cenas do palácio, que incluíam rolos de cornucópias ha-
bitados por animais selvagens e mulheres nuas, cenas de caça, e um mural mostrando um par
de garotas dançando. As duas guras têm braços entrelaçados; enquanto dançam, cada uma
despeja bebida numa taça que a outra segura. O líquido deve ter sido certamente vinho, por-
que o sítio também está cheio de fragmentos de garrafas de vinho pintadas. Histórias o ciais
podem registrar os atos dos grandes e poderosos, mas a arte, como a poesia e a música, fre-
quentemente mostram aspectos da vida privada que estão em desacordo com o ideal o cial.
A mesma distinção entre o religioso e o secular vale para a decoração de livros. Manuscritos
do Alcorão eram frequentemente decorados com designs orais ou geométricos. Os estudio-
sos não conhecem nenhum manuscrito do Alcorão que seja decorado com pinturas de pessoas,
como manuscritos cristãos da Bíblia da mesma época. Em contrapartida, guras eram frequen-
temente incluídas em outros tipos de livros, incluindo tratados cientí cos, obras literárias, po-
emas épicos e histórias. Em alguns casos essas guras eram necessárias para a compreensão
do texto, em outros casos, elas o embelezavam.
Só restam fragmentos de livros ilustrados do período anterior a 1000 d.C., mas não há razão
para duvidar de sua existência, particularmente porque eles são descritos por outros livros. Um
dos primeiros manuscritos ilustrados a sobreviver é uma cópia do tratado de Abd al-Rahman
al-Su sobre as estrelas xas. A obra, em última análise derivada de escritos clássicos, parti-
cularmente o Almagesto de Ptolomeu, foi composta por volta de 965 pelo astrônomo al-Su
(903-986) da cidade de Rayy para o soberano búyida Adud al-Dawla (r. 949–983). A cópia mais
antiga ainda existente foi feita do original pelo lho de al-Su , e suas ilustrações mostram como
as tradições clássicas representando as constelações foram adaptadas ao gosto muçulmano. As
guras, por exemplo, usam turbantes e vestidos com longas pregas uidas.
A partir dessa época, chegou até nós uma maior quantidade de livros de todos os tipos,
incluindo com ilustrações, e tratando de uma gama mais ampla de assuntos. Um dos primeiros
e mais incomuns é o livro Maqamat (Assembleias) do escritor árabe al-Hariri (1054-1122), que
viveu em Basra. Esse livro contém a narrativa sagaz do mercado al-Harith sobre as cinquenta
aventuras do vigarista Abu Zayd através do mundo islâmico. Linguisticamente criativa e cheio
de jogos de palavras, a obra era imensamente popular entre a burguesia educada do mundo
árabe. A pirotecnia verbal do texto não se prestava facilmente à ilustração, mas a demanda
por livros ilustrados era tão forte que ele foi várias vezes ilustrado. Sobrevivem onze cópias
produzidas antes de 1350, o que sugere que existiam muitas outras. As ilustrações fornecem
raros vislumbres da vida quotidiana no período medieval, mostrando cenas como mercados e
bibliotecas.
Enquanto que livros como as Maqamat teriam sido uma posse apropriada para um biblió lo
burguês, os livros foram transformados, sob os soberanos mongóis do Irã conhecidos como os

17
3 O aniconismo: ausência de guras

Figura 9: A constelação de Andrômeda. ‘Abd al-Rahmân al-Sû , Kitâb suwar al-kawâkib al-thâbita (Catálogo das
Estrelas Fixas). Cópia oriental, século XIV. Papel, 229 f., 27 × 18 cm Bibliothèque Nationale de France,
Département des Manuscrits, arabe 2489, f. 70 v°. http://expositions.bnf.fr/islam/grand/isl_018.
htm

Ilkhânidas, em uma grande forma de arte para a realeza, principalmente depois que os gover-
nantes mongóis se converteram ao islã no nal do século XIII. Os livros se tornaram sica-
mente muito maiores, provavelmente porque folhas maiores de papel mais no e mais branco
se tornaram disponíveis, e essas grandes superfícies davam mais espaço para uma decoração
elaborada. Foram produzidos manuscritos suntuosos do Alcorão. Tratava-se frequentemente
de conjuntos de apresentação compostos por trinta volumes, que seriam dados a uma mesquita,
um santuário ou um complexo funerário, em que um volume seria lido em voz alta durante o
mês sagrado do Ramadã. O maior manuscrito a sobreviver — com cada página medindo 72 x
50 cm) foi copiado em Bagdá e doado ao mausoléu do sultão Muhammad Khodabanda Uljaytu
(r. 1304-16) em Sultaniya. Levou oito anos para ser copiado; cada página tem três linhas em
majestosa escrita muhaqqaq em ouro delineada em preto, alternando com duas linhas de uma
escrita thuluth-muhaqqaq mais uida em preto delineada em ouro — um dos exemplos mais
espetaculares de caligra a alcorânica monumental. Como outros conjuntos de trinta volumes,
ele tem magní cos frontispícios duplos, contendo padrões geométricos.
Grandes manusritos de outras obras foram produzidos no período Ilkhânida. Histórias, por
exemplo, eram extremamente populares, provavelmente porque os governantes mongóis, como
estrangeiros, estavam interessados em se inserir nas longas tradições da história persa e islâ-
mica. O sultão mongol Mahmud Ghazan (r. 1295-1304) encomendou a seu vizir Rashid al-Din
uma história dos mongóis, e o sucessor de Ghazan, Uljaytu, expandiu a encomenda, para fazer
dela uma história universal, a primeira do gênero. O Jami al-Tawarikh (Compêndio de Crôni-
cas) era uma obra de vários volumes, incluindo histórias de povos europeus e asiáticos, uma

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3 O aniconismo: ausência de guras

Figura 10: Cena de al-Maqâmât (Assembleias), de Muhammad al-Qâsim al-Harîrî. Al Harith reconhece Abu Zayd
em uma biblioteca em Hulwan. . Miniaturas et caligra a de Yahya ibn Mahmûd al-Wâsitî, Iraque, 1237.
Papel, 167 f., 37 x 28 cm. Bibliothèque Nationale de France, département des Manuscrits, arabe 5847,
f. 5 v°. http://expositions.bnf.fr/islam/grand/arab_5847_005v.htm

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3 O aniconismo: ausência de guras

Figura 11: Maomé liderando Hamza os muçulmanos contra os Banu Qaynuqa. Jami’ al-Tawarikh, de Rashid al-
Din. Irã, Tabriz, datado 714 AH (1314-15 d.C.). Tinta, aquarela translúcida e opaca, ouro e prata sobre
papel. 43.5 x 30 cm.

genealogia das dinastias e uma geogra a. Para tornar seu livro mais atraente e compreensível,
Rashid al-Din ordenou que ele fosse ilustrado. Seus pintores desenharam baseados em uma
vasta gama de fontes disponíveis em sua sociedade cosmopolita. Seções de história chinesa, por
exemplo, foram ilustrada segundo modelos chineses, e seções sobre história bíblica seguiram
protótipos de manuscritos bizantinos.
O que é talvez mais interessante e incomum nessa grande obra é o conjunto de ilustrações
mostrando eventos da vida do profeta Maomé. Como não havia tradição anterior de represen-
tação de Maomé na arte islâmica, e o texto de Rashid al-Din fornecia somente os mais parcos
detalhes da vida de Maomé, os pintores tinham que procurar inspiração em outras partes. Uma
pintura mostra Maomé montado em um cavalo liderando os muçulmanos numa batalha contra
os Banu Qaynuqa, uma tribo judia da Arábia. O Profeta é mostrado no mundo azul marinho
rodeado de nuvens brancas e anjos. Atrás dele estão as forças muçulmanas, incluindo seu tio
Hamza, identi cável porque tinha barba ruiva e carregava o estandarte do Profeta. Os anjos
têm as cabeças descobertas e cachos de cabelos compactos e usam vestes longas derivadas
do chiton, a veste básica usada por homens e mulheres gregas. No Irã mongol, parece que
havia um bastante interesse em representar o Profeta, e vários manuscritos ainda existentes
ilustram cenas de sua vida. Essas representações de Maomé não são imagens religiosas; elas
são ilustrações históricas que não têm o propósito de serem usadas em rituais religiosos. Um
tanto quanto incomuns no panorama geral da arte islâmica, essas imagens mostram, contudo,
a contínua distinção entre os domínios religioso e secular na arte islâmica.

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4 Os temas decorativos do arabesco e da geometria

4 Os temas decorativos do arabesco e da geometria


Como as imagens gurativas eram desnecessárias na arte religiosa islâmica, outros temas de-
corativos se tornaram importantes. Vários desses temas haviam sido elementos subsidiários na
arte pré-islâmica. Na arte bizantina, por exemplo, representações de pessoas haviam sido des-
tacadas, ou enquadradas, ou ligadas por elementos geométricos (formas e padrões) e padrões
vegetais (isto é, frutas, ores e árvores estilizadas). No começo da era islâmica, esses elementos
subsidiários foram transformados em grandes temas artísticos. Assim, os mosaicos decorando a
Grande Mesquita de Damasco, construída pelo califa omíada al-Walid (r. 705-715) no começo
do século VIII, foram claramente derivados das tradições da antiguidade tardia. O painel que
sobrevive na parede oeste da mesquita mostra uma paisagem contínua de construções fantás-
ticas separadas por árvores, sobre um rio a uir. Na arte clássica e bizantina esses temas teriam
sido um pano de fundo guras maiores, mas nesse painel a própria paisagem é o tema, prova-
velmente signi cando o jardim do paraíso prometido aos muçulmanos no Alcorão e descrito
como um lugar com aposentos altos sob os quais correm rios.
Nos mosaicos de Damasco, as árvores e as construções ainda são facilmente reconhecíveis,
mas, com a crescente relutância em representar guras, tais representações especí cas foram
substituídas por motivos mais estilizados, abstratos e geométricos. Esse estilo já era popular
no século IX, como ca evidente numa pequena tigela desse período, decorada com quatro
cores de lustro. O motivo principal mostrado no centro da tigela é uma planta com um caule
central e pares de folhas. O design básico é bem simples, mas foi elaborado em muitos padrões
geométricos — pontos, ziguezague, manchas, olhos de pavão etc — que cobrem o máximo de
superfície e negam a qualidade orgânica do motivo principal. Em resumo, elementos natura-
lísticos, como ores e folhas, cam cada vez mais estilizados e sujeitos às leis da geometria.

Figura 12: Arabesco em estuque, Samarra, Iraque, século IX.

Sobreviveu pouco da decoração das mesquitas da capital abássida de Samarra, mas podemos
ter uma ideia do estilo abstrato de decoração que teria sido usado nas mesquitas nessa cidade
ao observar as cópias construídas em outros lugares. A mesquita do Cairo completada em 879
por ordem do governador abássida Ahmad ibn Tulun (835-884), por exemplo, é considerada

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4 Os temas decorativos do arabesco e da geometria

como uma aproximada da mesquita de Samarra. Contrariamente à mesquita de Damasco, mais


antiga, a decoração da mesquita de Ibn Tulun é contida. Uma longa inscrição em madeira per-
corre o edifício sob o teto, e os alicerces e as bordas de arcos pesados de tijolo são embelezados
com estuque esculpido com elementos orais simples para criar padrões que combinam ele-
mentos orais e geométricos. A superfície decorada é totalmente preenchida, de forma que
não há distinção entre o segundo plano e o tema. Essa decoração, em que elementos orgânicos
são submetidos às regras da geometria, podem se estender in nitamente em qualquer direção.

Figura 13: Arabescos na mesquita de Ibn Tulun, Cairo, 879.

Um tipo de decoração semelhante foi usada em uma pequena mesquita em Balkh no norte
do Afeganistão, atribuído, devido ao estilo, ao século IX. Embora muito arruinada, a pequena
construção quadrada tem quatro pilares maciços que suportavam nove cúpulas. A maioria da
parte superior era coberta de estuque, esculpida com padrões geométricas e vegetais com um
corte inclinado distintivo. O uso de um estilo semelhante, documentado desde o Cairo até o
leste do Irã no século IX, sugere que deve ter tido uma origem comum, sem dúvida as capitais
abássidas na Mesopotâmia. Seu uso difundido mostra como estilos puderam se disseminar em
amplas áreas durante esse período de poder centralizado.
Esse tipo de design, baseado em formas naturais como caules, gavinhas3 e folhas rearranja-
das para formar padrões geométricos in nitos, se tornou um marco da arte da ornamentação
arquitetônica islâmica e do século X ao XV. Para descrevê-lo, os europeus cunharam o termo
“arabesco”, primeiramente usado no século XV ou XVI, quando os artistas da Renascença in-
3
Gavinha: “Cada um dos apêndices liformes da vinha e outras plantas sarmentosas e trepadeiras.” Dicionário
Priberam da Língua Portuguesa.

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4 Os temas decorativos do arabesco e da geometria

Figura 14: Mesquita de Balkh, Afeganistão, atribuída ao século IX.

corporaram designs islâmicos na ornamentação e encadernação de livros. Através dos séculos,


o termo foi aplicado a uma grande variedade de decorações vegetais sinuosas e entrelaçadas
na arte e temas sinuosos na música e na dança, mas se aplica propriamente somente à arte
islâmica. O historiador da arte vienense do século XIX Alois Riegl explicitou as principais ca-
racterísticas do arabesco: as gavinhas da vegetação são altamente geometrizadas e não se arran-
jam em ramos de um único caule contínuo; pelo contrário, as gavinhas crescem uma da outra,
arti cialmente. Além disso, o arabesco tem uma correspondência in nita, signi cando que o
design pode ser estendido in nitamente em qualquer direção. A estrutura do arabesco fornece
informação su ciente para que o observador estenda o design segundo sua imaginação.
Como o estilo de ornamento de Samarra, o arabesco provavelmente se disseminou a partir
do Iraque, a província principal do mundo islâmico no século X, e rapidamente se difundiu a
todo o mundo islâmico. Um dos primeiros estágios desse desenvolvimento distintivo e origi-
nal pode ser encontrado nos painéis esculpidos em mármore ao redor do mihrab da grande
Mesquita de Córdoba, completada em 965. Um caule central, ele próprio composto de pa-
drões,tem gavinhas crescendo arti cialmente da base à ponta; o caule dá a armadura para
um entrelaçamento simétrico das gavinhas, folhas e ores que parecem pressionar para fora,
contra o limite de outro quadro com padrão semelhante. Na arte islâmica a popularidade do
arabesco durou até o século XIV, quando foi paulatinamente substituída por designs usando
motivos inspirados na China, como o crisântemo, a peônia e o lótus, que se tornaram popula-
res no Irã, e a folhagem fantástica do estilo saz que se tornou popular entre os otomanos. No
entanto, mesmo esses designs retêm algo do embasamento geométrico do arabesco.
A popularidade do arabesco se deveu sem dúvida à sua adaptabilidade, porque era apro-
priado a praticamente todas as situações, indo da arquitetura às páginas iluminadas que eram
acrescentadas para decorar o começo e o m dos manuscritos. Um pequeno manuscrito do
Alcorão, poe exemplo, tem cinco conjuntos de páginas duplas, três no começo e dois no m.

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4 Os temas decorativos do arabesco e da geometria

Figura 15: Arabesco na Mesquita de Córdoba.

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4 Os temas decorativos do arabesco e da geometria

Alguns manuscritos contêm tabelas com escritas adicionadas sobre o ornamento geométrico
e oral; outras são puramente geométricas e vegetais. Os designs são desenhados elaborada-
mente em tinta marrom e melhorados com ouro, azul, branco, verde e vermelho. Os círculos no
eixo vertical são autocontidos, mas os no eixo horizontal podem se estender inde nidamente;
o design, assim, alcança um equilíbrio entre o estático e o dinâmico.

Figura 16: Frontispício do Alcorão de Ibn Bawwab, 1000-1001. Chester Beatty Library.

Essas páginas são obra de um mestre e, segundo o colofão, esse manuscrito foi completado
pelo escriba Ali ibn Hilal em Bagdá em 1000-1001. Ele pode ser identi cado como o famoso
calígrafo mais conhecido como Bin al-Bawwab, que re nou a “escrita proporcional” — desen-
volvida um século antes pelo calígrafo árabe Ibn Muqla — em que as letras eram medidas em
termos de pontos, círculos e semicírculos. A escrita usada neste manuscrito con rma os talen-
tos de Ibn al-Bawwab; os 280 fólios são transcritos numa letra arredondada chamada naskh. A
escrita é notável por sua clareza e regularidade, o que é ainda mais impressionante porque não
há traços das linhas-guia utilizadas por calígrafos posteriores para guiar suas mãos. O manus-
crito também representa uma inovação técnica porque é uma das primeiras cópias do Alcorão
transcritas em papel a sobreviver até os dias de hoje.
As páginas duplas de iluminuras com designs geométricos, frequentemente conhecidas como
“páginas-tapete”, tornaram-se cada vez mais esplêndidas no decorrer do tempo. Algumas das
mais nas foram produzidas sob os mamelucos, uma sequência de sultões que controlaram o
Egito e a Síria entre 1249 e 1517. Esses governantes e seus próximos encomendaram cópias do
Alcorão como mobílias para grandes fundações de caridade que construíram no Cairo e alhu-
res para preservar seus nomes e suas fortunas depois da morte. De acordo com a lei islâmica,
a propriedade doada a instituições de caridade é livre de con scação pelo Estado. Esse tipo de
instituição é conhecido como waqf (pl. Awqaf) ou, na África do Norte, habus. Em tempos tur-
bulentos, em que os governantes caíam como dominós, essas fundações permitiam às famílias
transmitir suas fortunas com segurança, já que o documento de doação podia especi car que
o fundador ou seus descendentes fossem apontados como guardiões.
Para mobiliar essas fundações de caridade, os mamelucos frequentemente encomendavam

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4 Os temas decorativos do arabesco e da geometria

grandes manuscritos do Alcorão, tipicamente embelezados com elaborados frontispícios deco-


rados com designs de estrelas poligonais. O mais famoso é um manuscrito encomendado pelo
emir de Sultan Shaban, Arghun Shah al-Ashra , condenado à morte em 1376. Seu frontispício
retangular é dividido num campo quadrado central limitado por painéis retangulares com uma
escrita ku estilizada. O quadrado central contém uma estrela de dezesseis pontas dentro de
uma treliça geométrica. Essa composição, frequentemente comparada a um sol, parece ex-
plodir do centro mas na verdade é fechada e não pode se estender para além do quadro. Os
vários quadros são decorados com arabescos e arranjos orais, incluindo muitos elementos de
inspiração chinesa, como peônias e ores de lótus.

Figura 17: Painel de pinho, produzido em Alepo, Síria, provavelmente séc. IX ou X.

Efeitos geométricos complexos também podem ser conseguidos em outros materiais, in-
cluindo madeira. A madeira era frequentemente utilizada para a mobília na das mesquitas,
como suportes para o Alcorão, atris4 e caixas para livros mas a maior peça era o minbar (púl-
pito). O minbar era o local na mesquita aljama5 das quais o sermão semanal era proferido du-
rante a oração comunal de sexta-feira, tornando-se, então, um forte símbolo de autoridade po-
lítica. Patronos que encomendavam novos minbars desejavam fazê-los tão esplêndidos quanto
4
Atril: “Móvel ou suporte disposto em plano inclinado onde se coloca um livro aberto, para se poder ler de pé ou
sem o segurar com as mãos.”
5
Aljama: mesquita congregacional ou de sexta-feira. Foi utilizado esse termo porque “aljama” era o nome das
comunidades judias ou muçulmanas na Península Ibérica, sendo utilizado em espanhol também como sinônimo
de “mesquita”, mais especi camente as “grandes mesquitas” usadas por toda a comunidade de uma localidade para
a oração e o sermão da sexta-feira, dia de descanso semanal para os muçulmanos. A utilização do termo também é
mais apropriada e paralela ao uso árabe, masjid jami’a (nota do tradutor).

26
4 Os temas decorativos do arabesco e da geometria

fosse possível, mas devido ao des orestamento das terras do Mediterrâneo devido à colheita
excessiva na época medieval, a madeira era cada vez mais escassa. Para aproveitar ao máximo
esse material caro, foram exploradas novas técnicas artísticasl Uma técnica comum do século
XI era a marchetaria, na qual grandes painéis eram formados de faixas entrelaçadas radiando
de estrelas centrais. Para fazer essas peças grandes e imponentes ainda mais re nadas, os ar-
tesãos utilizavam cores diferentes de madeiras exóticas, que eram às vezes embutidas com
materiais preciosos, como mar m e madrepérola.
Alepo, na Síria dos dias de hoje, se tornou um centro de marchetaria, e a mais re nada
e famosa peça produzida lá foi o requintado minbar encomendado pelo soberano zânguida
Nur al-Din em 1168-1169 para a Mesquita al-Aqsa em Jerusalém. A cidade estava, na época,
nas mãos dos cruzados, e Nur al-Din encomendou o minbar em antecipação à tomada da
cidade. Ele foi instalado em seu lugar pretendido duas décadas depois por seu sobrinho, o
sultão aiúbida Salah al-Din (Saladino), que conquistou a cidade em 1187. Esse minbar, que
era o mais famoso exemplo dessa prolí ca escola de artesanato em madeira e assinada por não
menos que quatro artesãos, foi destruído por um incêndio criminoso em 1969.
O minbar de Nur al-Din seguia a forma triangular típica. Ao longo da hipotenusa, havia de-
graus estreiros levando a uma plataforma no topo; tanto os degraus quando a plataforma eram
fechados por grades, e a plataforma, como ca claro em muitos outros exemplos, era coberta
por uma cúpula. Os principais campos de decoração eram os grandes lados triangulares. No
minbar de Nur al-Din, eles eram decorados com estrelas de oito pontos, e as extensões de seus
lados eram traçadas numa rede de ensambladura (técnica de encaixe em madeira). Os interstí-
cios poligonais eram preenchidos com arabescos com detalhes minuciosos. O design intricado
era proporcional ao custo do material, pois o minbar exibia uso extenso de mar m embutido,
tanto para o contorno das guras poligonais quanto para algumas das estrelas intersticiais me-
nores. A marchetaria fazia o melhor uso dos materiais mais caros, mas o design geométrico, em
que os arabescos variavam de polígono a polígono, contribuíam ao efeito estético ao convidar
à contemplação do design de perto e de longe.
Padrões geométricos também eram métodos populares para a decoração de edifícios. No Irã
e na maior parte do oriente islâmico, não havia pedra apropriada à construção, então o material
típico para construção era o tijolo. Os tijolos de lama tinham a vantagem de serem baratos e
notavelmente úteis em áreas com pouca chuva, e sua superfície frágil poderia ser protegida
por revestimentos de gesso ou estuque, que poderiam ser esculpidos ou pintados para dar
mais vida à monotonia inerente ao material. No século IX, quando os abássidas precisavam
de decorar enormes palácios e outras estruturas em tijolo de lama na sua nova capital em
expansão, Samarra, eles utilizaram painéis moldados com designs geométricos que poderiam
ser rapidamente executados em estuque ( g. 12).
Tijolo cozido era mais caro, porque exigia suprimentos de madeira para o fogo, que era es-
cassa. Mas tinha a vantagem de ser muito mais durável, e, onde havia os meios nanceiros,
era preferido por sua durabilidade, especialmente em regiões com maior precipitação e clima
mais extremo, como no platô iraniano. Embora o tijolo cozido também pudesse ser coberto
de gesso, particularmente em interiores, era geralmente deixado exposto no exterior. Com a
adoção de tijolo cozido de alta qualidade, os construtores no Irã e nas áreas adjacentes rapida-
mente tornaram o material para construção em material para decoração. Ao arranjar os tijolos
em padrões, eles podiam dar mais vida à superfície da parede. Esses padrões eram particular-

27
4 Os temas decorativos do arabesco e da geometria

mente efetivos num clima em que o sol brilhante frequentemente se inclina sobre as paredes
de tijolo, e as protuberâncias dos tijolos criam padrões de luz e sombra.
Um dos primeiros exemplos desse uso decorativo dos tijolos é o túmulo dos samânidas em
Bukhara. Construído e decorado com tijolo cozido, trata-se de um pequeno cubo com paredes
inclinadas sustentando uma cúpula central e pequenas cúpulas nos cantos. A despeito das
formas simples, o interior e o exterior são elaboradamente decorados com padrões trabalhados
no tijolo cor de creme. A qualidade e a harmonia da construção e da decoração mostram que,
embora seja a primeira construção desse tipo a chegar até nós, não pode ter sido a primeira a
ser construída. No começo do século X, teve ter havido uma longa tradição de construção de
estruturas decoradas com tijolos no mundo iraniano.
O chamado “estilo nu” de trabalho com tijolos se tornou um marco da arquitetura medieval
na região. Os construtores exploraram as possibilidades decorativas de padrões de tijolos, par-
ticularmente para minaretes. […] Embora uma característica comum da arquitetura religiosa
islâmica, o minarete não é nem necessário nem onipresente. Aparentemente não eram usados
na dinastia omíada, e somente sob os abássidas é que a ideia de uma torre maciça, localizada
dentro ou além do meio da parede oposta ao mihrab, se disseminou pelo mundo islâmico,
talvez como símbolo de autoridade califal.
No nal do século XII o minarete já se havia tornado símbolo universal do islã do Oceano
Atlântico ao Índico. Era comum acrescentar minaretes a mesquitas anteriores. Eles eram me-
nos caros do que construir uma mesquita nova e eram grati cantemente visíveis de longe, onde
indicavam a presença de uma cidade, ou de perto, onde indicavam a localização da mesquita.
Eles serviam para mostrar a presença do islã e ao mesmo tempo demonstravam a piedade do
patrono.
Mais de 60 minaretes datando do período medieval ainda sobrevivem no Irã, na Ásia Central
e no Afeganistão, seja ligadas a uma mesquita ou isoladas e livres. Esse grande número é sinal
da explosão da popularidade dessa forma, e a rmeza de sua decoração é testemunho da habi-
lidade de seus construtores e da alta estima que essas altas torres tinham. Os minaretes eram
tipicamente decorados com faixas largas de decoração geométrica de tijolos, frequentemente
separadas por faixas e inscrições. Os construtores exploravam as possibilidades decorativas dos
padrões geométricos, alargando deliberadamente as faixas ou organizando os tijolos em re-
levo.[…]
Outra forma de decoração arquitetônica que se desenvolveu nessa época é conhecida como
muqarnas. Às vezes comparados a estalactites, os muqarnas consistem em leiras de elemen-
tos semelhantes a nichos que se projetam da leira abaixo. Aparentemente desenvolvidos no
nal do século X, foram primeiramente aplicados a elementos de apoio dentro de cúpulas,
como trompas de ângulo (abóbadas cônicas) ou arcos nos cantos, e dividindo elementos entre
diferentes partes das construções, como cornijas em túmulos ou minaretes. No século XI ele-
mentos de muqarnas foram usados para cobrir toda a superfície interior de abóbadas. Embora
os primeiros muqarnas opssam ter tido um papel estrutural, eles se tornaram cada vez mais um
elemento puramente decorativo. No Irã e no oiente islâmico, abóbadas de muqarnas decora-
tivos foram feitos de gesso e suspensos por vigas de madeira da abóbada de tijolos acima. Na
região mediterrânica, onde prevalecia a pedra era como meio de construção, abóbadas com
muqarnas sobre portais de prédios importantes foram trabalhosamente esculpidas em pedra.
Como a escrita, o muqarnas foi adotado por construtores desde a Espanha até a Ásia Central e

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4 Os temas decorativos do arabesco e da geometria

(a) Fotogra a: Dave Proffer http://www.flickr. (b) Fotogra a: Arthur Chapman http:
com/photos/23442653@N00/2887520891 //www.flickr.com/photos/arthur_chapman/
4582887453/sizes/z/in/photostream/

(c) Fotogra a: Loïc Brohard http://www.flickr.


com/photos/loic_brohard/5026275639/

Figura 18: Minarete Kalyan em Bukhara, Uzbequistão, 1127.

29
5 O uso exuberante da cor

além, tornando-se,assim, a mais distintiva característica decorativa da arquitetura islâmica. Ao


contrário de outros motivos decorativos, nunca foi aplicado a outro meio além da arquitetura,
ou elementos arquitetônicos como o minbar.

Figura 19: Muqarnas na Mesquita Jom’e, Isfahan, Irã.

O módulo repetido típico da construção em tijolos fez o ornamento geométrico uma decora-
ção apropriada; tal ornamento era igualmente apropriado a têxteis, em que o cruzamento dos
os da urdidura e da trama também gera uma grade geométrica. Em nenhum outro lugar isso
é mais aparente do que em tapetes de nós, em que um tecelão podia facilmente criar designs
geométricos ao amarrar nós de cores diferentes aos os de urdidura. No decorrer da história,
os tecelões trabalharam para combinar motivos orais e animais mais ou menos estilizados
com quadros geométricos. Tapetes de nós foram produzidos por milênios no Oriente Médio e
na Ásia Central. O mais antigo exemplar a sobreviver, talvez datando do século V a.C., é o ta-
pete descoberto num túmulo Pazyryk na Sibéria. Outros fragmentos talvez datando do século
IX ou X foram descobertos no Egito. Os tapetes mais antigos ainda existentes em quantida-
des signi cativas, entretanto, foram feitos na Anatólia no começo do século XIV, usando uma
gama bem limitada de cores fortes, como vermelho, amarelo, azul, marrom e branco. Alguns
dos tapetes têm designs de motivos geométricos repetidos, outros têm representações extre-
mamente estilizadas de animais, mas todos têm bordas de motivos geométricos ou formas de
letras estilizadas.

5 O uso exuberante da cor


Os designs epigrá cos e geométricos geralmente usados na arte islâmica era frequentemente
realçados pela cor, e o uso exuberante da cor é outro marco da arte islâmica. A própria língua
árabe tem um vocabulário cromático particularmente rico, e nela conceitos podem ser facil-

30
5 O uso exuberante da cor

mente associados através de similaridades morfológicas. A raiz árabe kh-d-r, por exemplo, dá
origem a khudra (verdura), akhdar (verde), khudara (verduras, ervas) e al-khadra (“verde-
jante” ou “paraíso”). Azul, a cor do céu na tradição ocidental, é frequentemente assimilada ao
verde nas terras islâmicas, onde o espectro é tradicionalmente dividido em amarelo, vermelho
e verde. A tonalidade é menos importante que a luminosidade e a saturação, provavelmente
por causa do ambiente ensolarado da maioria da região.
No começo da era islâmica várias escolas losó cas elaboraram uma teoria aristotélica da
cor, e esse interesse na cor foi tomado pelos místicos, que viam paralelos entre os fenômenos
da cor e a visão interior do divino. O uso simbólico da cor perpassa muito da literatura islâmica.
O grande poeta persa Nizami (ca. 1141-1203 ou 1217), por exemplo, estruturou seu clássico
poema Haft Paykar (Sete Retratos) em volta de sete cores (haft rang) tradicionais na cultura
persa (vermelho, amarelo, verde e azul complementados por preto, branco e cor de sândalo).
Nesse poema o soberano ideal, exempli cado pelo rei sassânida Bahram Gur, visita sete prin-
cesas, cada uma morando num pavilhão de uma cor; as princesas contam sete histórias, que
podem ser interpretadas como os sete estágios da vida humana, e sete aspectos do destino
humano, ou sete estágios ao longo do caminho místico. Os sete pavilhões coloridos do Haft
Paykar se tornaram temas favoritos para ilustrações de livros no século XV e XVI no Irã.
Um dos mais famosos manuscritos do poema de Nizami tem um longo e criativo colofão
que conta as peregrinações do manuscrito e mostra como eram importantes esses manuscritos
ilustrados para os governantes da época. […]
A pintura Bahram Gur no Pavilhão Verde exempli ca o estilo exuberante de ilustração
de manuscritos praticadao na corte Aqqoyunlu. Foi provavelmente acrescentada pelo artista
Shakhi quando o manuscrito estava na posse do sultão Yaqub. Ela mostra o monarca sassânida
reclinando com sua tábua de escrever e livros ao lado dele, escutando a uma das senhras ler um
poema enquanto outra massageia seus pés. A gura reclinante pode na verdade representar o
jovem príncipe aqqoyunlu, que estaria com menos de vinte anos na época. O sujeito nominal,
o príncipe no pavilhão, entretanto, é mergulhado numa confusão de vegetação fantástica. A
natureza explode dos limites do quatro, e árvores em forma de pirulito com folhas imbricadas
brotam entre as rochas escondendo faces humanas e animais. As cores são particularmente
vívidas, com verdes ácidos contra vermelhos rosados e azuis brilhantes.
Essas cores vistosas, típicas do estilo da corte turcomena, pode ser contrastada com o estilo
cuidadosamente modulado que é associado com a cidade de Herat (atual Afeganistão) entre
os séculos XV e XVI e exempli cado na obra de Behzad (ca. 1450-1535), o mais famoso pin-
tor persa, e aquele cujo nome é associado (correta ou erroneamente) a mais pinturas do que
qualquer outro artista. Geralmente se considera que obra-prima de Behzad é A Sedução de
Yusuf. A pintura ilustra um manuscrito do poeta persa Saadi (ca. 1213-92) intitulada Bustan
(Jardim), transcrita em 1488 para a biblioteca do sultão timúrida Husayn Mirza pelo calígrafo
mais famoso da época, Sultan Ali Mashhhadi. O texto de Saadi, escrito em papel sem cor em
faixas de nuvens no topo, meio e embaixo da ilustração, menciona a sedução de Yusuf, o José
da Bíblia, pela esposa de Potifar, conhecida na tradição islâmica como Zukaykha, mas nada
no texto exige a composição arquitetônica elaborada de Behzad. Pelo contrário, essa estrutura
é descrita no poema místico Yusuf e Zulaykha, escrito pelo poeta timúrida Jami (1414-1492)
cinco anos antes de o manuscrito de Saadi ser transcrito. Quatro linhas do poema de Jami são
inscritas em branco sobre azul em volta do arco no centro da pintura. De acordo com Jami,

31
5 O uso exuberante da cor

Figura 20: Bahram Gur no pavilhão verde. Tabriz, 1481. Topkapi Sarai, Hazine 762, folio 180b.
http://www.ee.bilkent.edu.tr/~history/Pictures1/im28.jpg

32
5 O uso exuberante da cor

Zukaykha contruiu um palácio com sete esplêndidos quartos que foram decorados com pintu-
ras eróticas dela com Yusuf. Ela guiou Yusuf, que estava despreparado, de um quarto a outro,
trancando as sete portas, que miraculosamente se abriam diante dele.
Da mesma forma como o texto de Jami é uma alegoria da alma em busca do amor divino e da
bgeleza, a imagem de Behzad convida à contemplação mística. O esplêndido palácio signi ca
o mundo material, os sete aposentos representam os sete climas, e a beleza de Yusuf é uma
metáfora para a beleza de Deus. Como não há testemunhas, Yusuf poderia ter cedido à paixão
de Zulaykha, mas ele percebeu que Deus é onividente e onipotente. As sete portas trancadas,
que forma a matriz da composição, pode ser aberta somente por Deus. Essa imagem brilhante
transcende os requerimentos literais do texto e evoca os temas místicos que são proeminentes
na literatura e na sociedade da época. Behzad obviamente tinha orguho de sua criação, porque
ele assinou sobre o painel arquitetônico sobre a janela no quarto do lado superior esquerdo
e datado 893 (correspondendo a 1488) no cartucho azul e branco nal no arco seguindo os
versos do poema de Jami.
A obra-prima de Behzad mostra um uso so sticado, porém restrito, da cor, em que azuis e
verdes predominam, mas são temperados por cores quentes complementares, especialmente
o laranja vivo. O uso cuidadosamente modulado da cor leve o olho através do complexo arqui-
tetônico para focar em Zulaykha, marcante em seu vistoso vestido laranja, um forte contraste
com Yusuf, que se veste de verde frio. As cores são como joias; a na qualidade dos pigmentos,
feitos de materiais caros como lapis lazuli e ouro, que foram cuidadosamente moídos, mistu-
rados com cola e aplicados com pinceladas nas. As cores parecem tanto mais brilhantes no
mundo de sonho da pintura em livros persa, uma vez que elas não eram moduladas por som-
bras ou perspectiva atmosférica, duas técnicas pictóricas que só foram introduzidas na pintura
persa sob in uência da arte europeia no século XVII.
O uso brilhante da cor não se limitou a livros so sticados feitos no mundo persa em séculos
posteriores. O uso vivo da cor é encontrado na maioria da arte islâmica, desde os primeiros
tempos. Oleiros escondiam cerâmicas pouco atraentes sob coberturas e vidrados de cores bri-
lhantes. A invenção mais signi cativa para a história futura da cerâmica no mundo islâmico,
bem como na China e na Europa, foi a decoração em baixo vidrado, em que um corpo de
cerâmica no e branco fornecia a superfície ideal para pintura em óxidos de metal coloridos.
A superfície pintada era, então, coberta com um vidrado transparente alcalino, que protegia
a superfície pintada mas, ao contrário de outros vidrados de cobre, não faziam dom que os
pigmentos escorressem durante o cozimento.
De forma semelhante, uma das mais importantes contribuições dos artesãos em metal do
mundo islâmico foi o desenvolvimento da técnica de tauxia (embutimento), em que se dava
vida ao objeto monocromo, geralmente feito de latão ou bronze, através da inserção de ouro,
prata ou cobre, como no Balde Bobrinski ( g. 3). Outros objetos, como magní cas bacias usa-
das para lavar as mãos antes e depois de comer, eram embitidas com inscrições e cenas gu-
rativas trabalhadas em prata e uma substância negra betuminosa.
A cor também é uma das características mais distintivas da arquitetura islâmica, pois cúpulas
azul-celeste resplandescentes e deslumbrantes superfícies de azulejos multicoloridos decoram
muitas das construções mais conhecidas. O primeiro grande monumento da arquitetura islâ-
mica, o Domo da Rocha, tinha originalmente um mosaico policromo e de ouro cobrindo tanto
o exterior quanto o interior. Os efeitos cromáticos dos mosaicos do interior eram aumentados

33
5 O uso exuberante da cor

Figura 21: Yusuf e Zuleykha, de Kamal al-Din Behzad, 1488. Biblioteca Nacional do Cairo. Fonte: http://en.
wikipedia.org/wiki/File:Yusef_Zuleykha.jpg

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5 O uso exuberante da cor

pelo teto pintado e dourado com brilhantismo e com o uso generoso de mármore. Os dados6
eram decorados com painéis de mármore repartidos em quatro partes, cortados e arranjados
de forma que os grãos naturais formassem padrões simétricos. Em alguns casos, motivos ve-
getais eram embutidos em mástique negro para contrastar com o mármore branco. A mesma
combinação de cores foi estendida aos arcos, que foram construídos com aduelas7 alternando
preto e branco.
O estilo de cores vivas típico da arquitetura omíada deixou um precedente que foi muitas
vezes repetido por patronos em épocas seguintes. Mas, da mesma forma como frágeis mosaicos
no exterior do Domo da Rocha sofreram as intempéries, os efeitos cromáticos em muitas outras
construções, como os dos templos gregos ou igrejas romanescas, frequentemente perderam a
cor sob a poeira e fumaça, cando com tons de terra uniformes, dando a impressão errada
de que só construções posteriores tinham cores brilhantes. Em outros casos, como na dinastia
puritânica almôada, que governou a Espanha e o Marrocos nos séculos XII e XIII, exteriores
mais sóbrios e interiores caiados eram preferidos para mesquitas.
Mas muitas construções tinham cores brilhantes. No século X, por exemplo, quando um
dos califas omíadas da Espanha decidiu aumentar a mesquita congregacional em sua capital
de Córdoba, seus construtores tentaram imitar muitos dos efeitos cromáticos da arquitetura
omíada na Síria, embora eles os conhecessem somente de uma distância muito grande. A mes-
quita original de Córdoba, completada em 786-87, tinha usado um sistema criativo de colunas
e arcos em duas leiras para sustentar o telhado de madeira, provavelmente porque somente
colunas curtas e grossas estavam disponíveis em construções visigóticas abandonadas na re-
gião.Ao empilhar duas colunas curtas uma sobre a outra, os construtores da mesquita podiam
atingir a altura necessária, embora precisassem adicionar arcos intermediários para reforçar a
construção inerentemente instável. Eles uni caram essa coleção díspar de colunas e capitéis
com um impressionante desenho para as aduelas, alternando pedra branca e tijolo vermelho.
O efeito de faixa de arcos de duas leiras foi mantido por construtores posteriores, que au-
mentaram a mesquita nos séculos IX e X. Essas renovações culminaram quando o califa omíada
al-Hakam II (r. 961-976) expandiu o salão de orações e acrescentou uma cúpula sobre a en-
trada do centro da nova parte, e cúpulas na frente e em ambos os lados do novo mihrab. A área
com tela, que era ligada ao palácio por uma passagem na parede da mesquita na direção de
Meca, era uma maqsura, um espaço fechado para o soberano, cujo propósito não era prote-
ger c califa (como se pensa que era a função nas primeiras maqsuras), mas enfatizar a grande
pompa e cerimônia de que o califa omíada se cercava. Essas áreas eram distinguidas pelas telas
elaboradas de arcos entrecortados, e revestimentos em mosaico de vidro ricamente coloridos;
os mosaicos de vidro tinham a clara intenção de evocar os grandes mosaicos que decoravam
construções omíadas na Síria. De acordo com histórias árabes locais, não havia trabalhado-
res na Espanha capazes executar esses mosaicos, então o califa enviou um embaixador até o
imperador bizantino em Constantinopla, pedindo que enviasse trabalhadores para decorar a
mesquita. O imperador aceitou o pedido, e o embaixador voltou com mestres artesãos e cubos
de mosaicos su cientes para completar a obra.
Embora a técnica difícil de mosaico de vidro tenha sido repetida com pouca frequência em

6
Dado: tronco ou corpo do pedestal que sustenta uma gura ou coluna (NT).
7
Aduela: série de pedras que formam o arco (NT).

35
5 O uso exuberante da cor

Figura 22: Mesquita de Córdoba, salão de orações. Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Cordoba_Mosque_


1.jpg

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5 O uso exuberante da cor

séculos posteriores e geralmente com alguma referência aos omíadas da Síria, revestimento
multicolorido em azulejos de cerâmica vidrada se tornou um marco da arquitetura islâmica
posterior da Espanha e do Norte da África até as fronteiras da Índia. No m do século XI,
construtores no leste do mundo islâmico haviam alcançado o mais alto nível da exploração da
decoração com entalhes e padrões de tijolos, e estavam prontos para experimentar com reves-
timento vidrado. Eles começaram incorporando pequenas pelas de azulejo cortado, principal-
mente de azul turquesa, que era fácil de fazer a partir dos depósitos de cobre prontamente
disponíveis no Irã. Logo expandiram as superfícies cobertas, e no século XIV a paleta se esten-
deu para incluir o azul escuro (colorido com cobalto), preto (manganês) e branco, bem como
verde e ocre. Incluindo a cor natural do tijolo, o número de cores totalizava sete, o número de
cores na paleta tradicional persa. Com uma maior gama de cores veio a elaboração do design,
e padrões geométricos abriram caminho para designs naturalísticos e orais, feitos cortando
pequenos pedaços de azulejos monocromos e encaixando as peças.
A técnica atingiu o apogeu no nal do século XIV e no século XV, paralelo ao desenvolvi-
mento da pintura persa em livros. Alguns dos mais nos painéis de azulejos foram preparados
para o enorme palácio que o conquistador turco Timur (Tamerlão) construiu em sua cidade
natal de Shahr-e Sabz, mas só restam fragmentos para testemunhar seu esplendor original.
Podemos ver mais na Mesquita Azul, construída pelos Qaraqoyunlu em sua capital de Tabriz,
no noroeste do Irã, por volta de 1465. A mesquita toma seu nome do soberbo revestimento
em azulejos, que nunca foi superado em monumentos posteriores.
Embora em ruínas, a Mesquita Azul exibe uma variedade incomum de decoração com azu-
lejos de qualidade magní ca. Mosaicos de sete cores cobrem o exterior e muito das paredes
interiores sobre um dado de mármore. São particularmente impressionantes os motivos em
arabesco e as inscrições, frequentemente destacadas em branco ou ouro sobre um fundo de
azul profundo ou verde. A construção é praticamente um catálogo de técnicas de azulejo.
Azulejos vidrados hexagonais azul escuros cobriam as superfícies mais altas e as abóbadas da
câmara principal, e azulejos púrpura pintados de dourado foram colocados no santuário. Azu-
lejos de esmalte com lustre metálico eram colocados na base do molde no portal de entrada,
um dos raros exemplos dessa técnica no século XV. Fragmentos moldados de azulejos em baixo
vidrado com muitas gravações em relevo ainda existem nos contrafortes dos cantos.
O mosaico de azulejos é uma tarefa trabalhosa e cara porque cortar e encaixar as peças toma
muito tempo. No século XV, essa técnica foi gradualmente substituída por uma técnica mais
barata em que grandes azulejos com a mesma forma eram pintados com padrões trabalhados
em diferentes cores de vidrado. Para prevenir os vidrados de escorrer durante a queima, eles
eram separados por uma substância gordurosa misturada com manganês, que deixava uma li-
nha fosca entre as cores depois da queima. Essa técnica, conhecida em espanhol como “cuerda
seca”, é muito mais rápida do que o mosaico de azulejos, mas as cores não são tão brilhantes
porque são todas queimadas à mesma temperatura.
O mosaico de azulejos também era popular na outra extremidade do mundo muçulmano,
no Magrebe (Ocidente), onde era conhecido localmente como “zallij” (de onde vem a pala-
vra “azulejo” em português). A técnica pode ter-se desenvolvido nessa região ainda antes, mas
oresceu durante o século XIV sob os marínidas no Marrocos ( g. 23,24 e 25). No oriente do
mundo muçulmano, a cor predominante era o azul, enquanto que no ocidente as cores prin-
cipais eram o verde e a “cor de bronzeado” (marrom claro), geralmente sob fundo branco. As

37
5 O uso exuberante da cor

paredes inferiores eram cobertas de dados com azulejos, geralmente terminadas com frisos
epigrá cos com as letras negras formadas raspando o vidrado até atingir o corpo da argila.
As paredes superiores eram cobertas com decoração em estuque elaboradamente esculpido,
encimada por frisos de madeira, consolas [peça saliente que sustenta uma estátua, cornija, sa-
cada, etc.] e cornijas. O piso, ao contrário dos pisos orientais, tinha frequentemente destaques
vidrados ou eram completamente cobertos de azulejo. O efeito geral desses interiores é de cin-
tilação, e a combinação tripartite – dado com azulejos, parede em estuque e estrutura superior
em madeira – continuou sendo padrão na região por séculos.

Figura 23: Madrasa al-Attarin, Fez, Marrocos, 1325. Azulejos, gesso esculpido e madeira foram usa-
dos para a decoração do interior. Fonte: http://www.morocco-holidays-guide.co.uk/fes/img/
medersa-el-attarin-fes.jpg

Talvez os efeitos cromáticos mais re nados foram conseguidos nas construções dos mogóis
no subcontinente indiano. Mármore branco polido que re etia luz foi contrastado com o are-
nito vermelho fosco que o absorvia ( g. 26). O efeito era destacado pelo uso de pietra dura,
um embutimento multicolorido em pedras raras e duras como lapis lazuli, ônix, jaspe, topázio,
cornalina e ágata, que enfatizavam as qualidades de “joia” da edi cação. O pequeno túmulo
de Itimad al-Dawla, ministro das nanças do imperador da Índia Jahangir (r. 1605-27) é como
uma caixa de joias. Construída por Nur Jahan, que foi lha de Itimad al-Dawla (e esposa de
Jahangir) depois da morte de seu pai em 1622, o pequeno túmulo é decorado com os tradici-
onais designs geométricos e arabescos, combinados com temas de taças de vinho, vasos com
ores e ciprestes, alusões visuais às descrições alcorânicas do paraíso. O embutimento intri-
cado em amarelo, marrom, cinza e preto contrastando com o mármore liso pre gura a fase
posterior da decoração mogol, em que o mármore branco seria guarnecido com ouro e pedras

38
5 O uso exuberante da cor

Figura 24: Madrasa Attarin em Fez, detalhe do mosaico.

Figura 25: Madrasa Attarin em Fez, detalhe do mosaico com inscrições. Fonte: http://travel-image.org/
wp-content/uploads/2011/04/1-1017.jpg

39
5 O uso exuberante da cor

preciosas. Em outros lugares, particularmente em locais mais públicos, o repertório de designs


e cores era um tanto quanto mais limitado. Por exemplo, no Taj Mahal, o túmulo construído
pelo lho de Jahangir, Shah Jahan, essa decoração é restrita e usada somente para arabescos
esguios e as extensas inscrições feitas em preto que contrastam com o mármore branco polido.

Figura 26: O Taj Mahal visto do Rio Yamuna. Notar o contraste entre o branco do mármore e o vermelho do arenito.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Taj_Mahal-11.jpg

Talvez o mais suntuoso dos espaços privados dos mogóis seja o Forte Vermelho em Déli. Ele
era parte de Shahjahanabad, o bairro construído sob os auspícios do imperador Shah Jahan en-
tre 1639 e 1648. Esses palácios, agora chamados de Rang Mahal (Palácio Pintado) e Divan-e
Khass (Sala de Audências Particular), estão atrás da principal sala de audiências e tinham vista
para o rio. Eles são decorados com mármore suntuosamente esculpido, pinturas e embuti-
mento em pietra dura em ouro e pedras preciosas ( g. 27).
O uso extravagante da cor na arte e na arquitetura islâmica foi explicado de diversas formas.
Frequentemente se pensa ser uma reação à paisagem enfadonha e monocromática das terras
centrais do islã, mas essa explicação é simplista. As cores também tinham uma ampla gama de
associações simbólicas, mas essas eram frequentemente contraditórias e só signi cativas em
contextos geográ cos ou cronológicos especí cos. Assim, o preto era frequentemente associ-
ado à misteriosa pedra negra na Cáaba em Meca, mas também associado à vingança e à revolta,
como na bandeira negra que se tornou o estandarte da dinastia abássida. No Magrebe, o preto
poderia ser a cor amaldiçoada do inferno, e, para evitar pronunciar seu nome, a cor oposta
(branco) era utilizada. Assim, até hoje o carvão é às vezes conhecido no Norte da África como
“al-abyad” (“o branco”).
O branco geralmente transmitia um sentido de claridade, lealdade, realeza e morte, muitos
dos mesmos valores em muitas outras culturas. Dois pedaços de tecido sem costura compõem a
vestimenta usada por todos homens em peregrinação a Meca, e eles eram geralmente guarda-
dos para uso como mortalha. O branco também era associado aos califas fatímidas, oponentes
dos abássidas. O azul tinha conotações pro láticas, e muitas pessoas usavam azul, particular-
mente contas, para afastar o olho grande. O poder mágico do azul fez dele uma fonte de má

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5 O uso exuberante da cor

Figura 27: Mármore embutido no Forte Vermelho em Déli. Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:


Red_Fort_07.jpg

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6 A noção de ambiguidade deliberada

sorte, e, ao mesmo tempo, uma defesa contra ela. Considerava-se que o verde, a cor das plantas,
trazia equilíbrio, boa sorte, fertilidade e juventude. O verde era a cor da bandeira do profeta
Maomé, e o manto de seu genro e sucessor Ali. Em épocas posteriores o verde também era
usado por descendentes do Profeta, e acreditava-se que o trono celestial havia sido esculpido
de uma joia verde. As cúpulas e telhados com azulejos eram na maioria das vezes verdes ou
azuis, mas associações auspiciosas ou celestiais podem ter sido superadas por considerações
práticas, porque o óxido de cobre, um agente colorante onipresente, produz uma cor verde
com um vidrado de chumbo e uma cor turquesa ou azul com um alcalino.

6 A noção de ambiguidade deliberada


As interpretações variadas e cambiantes dadas a qualquer cor particular em qualquer época
particular exempli ca uma característica nal de grande parte da arte islâmica: sua ambigui-
dade deliberada. Como não há um clero no islamismo para prescrever ou manter qualquer
dado signi cado para qualquer símbolo ou tema particular, há muito mais liberdade para o
espectador interpretar a seu bel prazer. Um exemplo é encontrado num prato de lustre metá-
lico descoberto durante as escavações alemãs de 1911-13 na capital abássida de Samarra ( g.
28). O design ca entre a abstração e a representação. À primeira vista, parece ser abstrato,
mas de perto pode ser interpretado como planta ou pássaro. Um círculo no meio do prato é
transformado no corpo de um pássaro com a adição de palmeiras nos lados para formas asas e
no topo para formar a cabeça do pássaro segurando um ramo na boca.

Figura 28: Prato de lustre metálico, Samarra, Iraque, século IX.

Uma ambiguidade semelhante marca grande parte do estuque dos palácios da mesma época
em Samarra. Os estudiosos distinguiram três estilos de entalhe em estuque em Samarra. O pri-
meiro estilo é uma técnica de entalhe derivada da decoração vegetal geometrizada usada no
período omíada. O segundo estilo é caracterizado pelo uso de hachuras para os detalhes. Os

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6 A noção de ambiguidade deliberada

temas são relativamente simpli cados, mas ainda distinguíveis do fundo. O terceiro estilo, tam-
bém conhecido como chanfrado, é uma técnica de moldura adequada à cobertura de grandes
áreas de parede. Esse estilo usa um corte distinto inclinado, permitindo que o gesso seja facil-
mente destacado da moldura. A decoração no estilo chanfrado é reconhecível pelas repetições
rítmicas e simétricas das linhas curvas terminando em espirais que formam padrões abstratos
em que é dissolvida a distinção tradicional entre o tema e o fundo. O estilo chanfrado foi sem
dúvida desenvolvido para o estuque, mas foi logo aplicado à madeira e outros suportes de en-
talhe como quartzo, não somente nas principais cidades do Iraque, como também nos centros
de província.
A transferência de técnicas e designs de um suporte a outro é outra marca da arte islâmica,
que contrasta com a época pré-islâmica, em que designs especí cos eram usados para diferen-
tes materiais – um design para tecidos, outro para metal e outros para decoração arquitetônica
ou vidro. Essa divisão não existe na arte isâmica, em que um design para tecidos pode reapare-
cer em metais ou cerâmicas e um motivo arquitetônico pode aparecer em um vidro, a despeito
enormes diferenças de escala. Por exemplo, o mesmo design de medalhões com bordas de pé-
rola ao redor de pássaros míticos com cabeças de leão, chamados simurgh, é conhecido em
tecidos, metais e pinturas murais feitas nos primeiros tempos do islã numa ampla região indo
da Ásia Central ao Mediterrâneo.
O estilo chanfrado derivou claramente de motivos vegetais, mas os espectadores da época,
assim como os dos dias de hoje, devem ter visto que esses motivos repetidos também podiam
ser interpretados como faces humanas ou outros motivos de animais. Um painel de madeira do
Egito, por exemplo, é entalhado num motivo abstrato chanfrado puro, mas os motivos vegetais
foram arranjados de tal maneira que eles também podem ser interpretados como represen-
tando um pássaro. Embora claramente não seja um pássaro, trata-se de mais que meras ores
abstratas. Esse sentido de ambiguidade deliberada é uma parte essencial do conteúdo artístico
do objeto.
A escrita também poderia ser deliberadamente ambígua, como no Balde Bobrinski. O corpo
do balde é decorado com cinco faixas horizontais. O topo, o meio e a parte de baixo contêm
inscrições árabes com votos de felicidade a um dono anônimo. As duas faixas contêm cenas -
gurativas. A segunda faixa a partir de cima mostra cenas de entretenimento, incluindo bebida,
música, dança e jogos como gamão. A segunda faixa a partir de baixo contém cenas de cava-
leiros caçando e lutando. Ao contrário da inscrição dedicatória escrita em persa claramente
em volta da borda e da alça, as inscrições árabes no corpo do balde são extremamente difíceis
de ler. Nas faixas de cima e de baixo, as partes superiores das letras são formadas por guras
humanas e algumas das partes inferiores são formadas por animais. No meio, as letras têm nós
elaborados. O texto nos escritos antropomór cos e com nós é tão banal (“glória e prosperidade
e poder e tranquilidade e felicidade... ao dono”) que qualquer um podia imediatamente adi-
vinhar seu conteúdo. Essas inscrições provavelmente não era pensadas para ser decifradas e
lidas literalmente, mas para serem interpretadas metaforicamente, como uma representação
da mesma boa vida representada nas cenas que as acompanham.
Pode-se fazer até mesmo com que a arquitetura seja ambígua. Designers e arquitetos justa-
punham e brincavam com os conceitos de interior e exterior. Isso é imediatamente percebido
em Alhambra, o complexo de palácios construído nas montanhas com vista sobre a cidade de
Granada, no sul da Espanha. Uma de suas características mais distintivas e atraentes é a mis-

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6 A noção de ambiguidade deliberada

tura entre exterior e interior. Um pátio está aberto ao céu, mas dentro de uma construção; um
átrio é coberto em três lados, mas abre-se ao pátio. Essa ambiguidade é incrementada pelo uso
da água para ligar o exterior e o interior. A água, trazida por aquedutos das montanhas circun-
dantes, era levada por canos para as construções, onde uía de fontes através de um elaborado
sistema de canais no piso. O som onipresente da água contribuía para borrar a distinção entre
interior e exterior. As vistas também faziam convergir o lado de fora e o lado de dentro; muitos
quartos tinham janelas ou loggias (galerias cobertas e abertas), planejadas para ter uma visão
extensa da paisagem, de onde podia-se observar os jardins ou a cidade abaixo.
Uma ambiguidade semelhante pode ser vista nos muqarnas, o motivo de estalactite em-
pregado em construções islâmicas desde a Espanha até a Ásia Central. A ambiguidade jocosa
inerente à forma frequentemente di culta a determinação de sua capacidade de suportar carga
em casos individuais. Assim como suas funções visuais e estruturais, suas implicações simbó-
licas eram frequentemente ambíguas, e podem muito bem ter tido diferentes implicações em
diferentes momentos. Alguns estudiosos sugeriram, por exemplo, que a fragmentação e a efe-
meridade intrínsecas ao muqarnas eram metáforas apropriadas para o atomismo de algumas
correntes teológicas. No Irã e nas áreas vizinhas, abóbadas em muqarnas foram muito usadas
nos túmulos de santos e místicos, provavelmente para destacar a santidade do local. No santuá-
rio de Ahmad Yasavi, por exemplo, impressionantes abóbadas com muqarnas cobrem o salão
do túmulo e a mesquita.
O muqarnas também foi empregado como uma metáfora da abóbada celeste. Isso ca claro
do palácio de Alhambra, onde a escrita transmite a mensagem sugerida pela forma. Duas mag-
ní cos abóbadas de muqarnas são suspensas sobre as salas no centro dos longos lados do Pátio
dos Leões. Ao norte ca o chamado Salão das Duas Irmãs ( g. 30 e 31), um nome romântico
dado em memória de duas irmãs cativas que se conta que morreram de amor por terem visto
encontros amorosos nos jardins abaixo, mas dos quais elas não podiam participar. O muqar-
nas ca sobre um tambor octogonal com oito pares de janelas, elas próprias sustentadas por
muqarnas de trompas de ângulo sobre a sala quadrada. Do lado oposto ao pátio ca o chamado
Sala dos Abencerrajes ( g. 29), cujo nome apócrifo deriva da famosa família brutalmente as-
sassinada no m do governo muçulmano na Espanha. Neste caso, o muqarnas ca sobre uma
estrela de oito pontas. As paredes de ambas as salas contêm inscrições com versos de um poema
mais longo do poeta da corte do século XIV, Ibn Zamrak. Os versos descrevem o movimento
dos corpos celestes em suas órbitas e reforçam a metáfora da rotação da abóbada celeste. À
medida que o sol passava de janela a janela no tambor da abóbada de muqarnas nessas duas
salas, o movimento das sombras podia criar o efeito de um céu estrelado em rotação.
Paradoxalmente, a ambiguidade em muitas formas e motivos empregados em construções
islâmicas pode ter contribuído à sua sobrevivência, pois eram reinterpretadas de acordo com
as necessidades e aspirações de usuários posteriores. Essa hipótese de signi cado variável e
interpretação cambiante pode explicar, em parte, por que o Domo da Rocha em Jerusalém, e
especialmente os mosaicos no interior, sobreviveram tão bem. Os pesquisadores ainda estão
um pouco perdidos tentando explicar por que o califa Abd al-Malik ordenou sua construção,
embora tenham sido propostas várias explicações contraditórias para sua presença. Uma das
primeiras explicações, conhecida desde o século VIII, é que Abd al-Malik mandou erigir o
Domo como substituto para a peregrinação à Cáaba em Meca, que estava, na época, sob con-
trole do inimigo de Abd al-Malik, Abdallah ibn al-Zubayr, que também havia-se declarado ca-

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6 A noção de ambiguidade deliberada

Figura 29: Alhambra, Sala dos Abencerrajes. Fonte: http://es.wikipedia.org/wiki/Archivo:Abencerrajes.jpg

Figura 30: Muqarnas sob a cúpula, Sala das Duas Irmãs, Granada. Fotogra a: Manuel M. Ramos, http://www.
flickr.com/photos/_mm_/277293481/sizes/z/in/photostream/

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6 A noção de ambiguidade deliberada

Figura 31: Muqarnas sobre as janelas, Sala das Duas Irmãs, Granada. Fotogra a: Eve Anderson.

lifa. Essa ideia herética é descartada por muitos hoje em dia, mas certamente foi muito aceita
por um longo tempo. Uma segunda interpretação, ainda sustentada por muitos hoje em dia,
liga o Domo da Rocha à miraculosa viagem noturna (isra) de Maomé de Meca a Jerusalém e
sua ascensão (mi’raj) ao céu. Esse evento é mencionado no Alcorão (17, 1). De acordo com o
texto, Maomé viajou da “mesquita sagrada” (al-majid al-haram) à mesquita mais distante (al-
masjid al-aqsa). A mesquita sagrada geralmente é entendida como a mesquita de Meca, e no
século VIII a “mesquita mais distante” era compreendida como alguma localização em Jeru-
salém. Gradualmente, cada um dos eventos da jornada foi relacionado a um sítio especí co
da cidade, mas é somente no século XII ou XIII que podemos documentar uma associação
direta entre o Domo da Rocha e a jornada do Profeta. Independentemente da verdade última
sobre qualquer dessas explicações, o que é importante é que explicações diferentes podiam
ser aceitas e eram aceitas por diferentes audiências.
O mesmo vale para o programa de mosaicos no interior do Domo da Rocha. Alguns estu-
diosos relacionaram o programa iconográ co de árvores e outras plantas a histórias medievais
sobre o Templo de Salomão, particularmente seu palácio, e associaram a decoração em mosai-
cos com o jardim do paraíso prometido aos éis. Explicações escatológicas semelhantes foram
propostas para os mosaicos da mesma época na Grande Mesquita de Damasco, e tal explica-
ção se encaixa em Jerusalém, a terceira cidade mais sagrada do islã. Uma outra interpretação
é centrada nas joias representadas nos mosaicos, particularmente as coroas e outras insígnias
reais. Elas são interpretadas como troféus dos inimigos conquistados que foram arranjados
como oferendas num santuário ou memorial. Entretanto, nenhuma dessas explicações – a pe-
regrinação, a viagem noturna, a ascensão, o paraíso, a vitória – são mencionados nas inscrições
da época da fundação, que discorrem sobre o islamismo e o cristianismo.
Patronos, artistas e consumidores no mundo islâmico se deliciam com essa ambiguidade.

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6 A noção de ambiguidade deliberada

Assim como a língua árabe encoraja o jogo de palavras, a arte islâmica também é aberta a
interpretações múltiplas e contraditórias. A escrita podia passar informação, mas ela também
era decorativa. A geometria formava o módulo arquitetônico da construção, mas era também
um dos grandes temas da decoração não somente de construções, mas também de objetos. A
cor era atrativa e dava vida, mas também tinha tons simbólicos. Esses múltiplos signi cados
e ambiguidades deliberadas são parte do apelo da arte islâmica, que pode ser tanto imutável
quanto variável para um observador moderno.

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