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O SILÊNCIO EM AMARELO
The article presents the initial clues of an investigation about the silence present in
the contemporary dance performance "Amarelo" (2007), by Elisabete Finger (PR).
This performance presents compositional procedures such as absence of sound
track and verbal language, pauses and stills acts, identified here as silent
procedures. Also the concept of Anthropophagy (cannibalism) is added to the
analysis of the silence in the piece. This reflective exercise integrates the master's
research "Cartographies of silence in contemporary dance" that investigates silence
as a provocateur of meanings, speeches and presentations, based on the analysis of
art works by Brazilian women artists. The issues presented in this article have
aesthetic and political implications, address the relationship between artist and
spectator, and touch on gender discussions.
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o silêncio / foi a primeira coisa que existiu / o silêncio que ninguém ouviu /
astro pelo céu em movimento / e o som do gelo derretendo / o barulho do
cabelo em crescimento / e a música do vento / e a matéria em
decomposição / a barriga digerindo o pão / explosão de semente sobre o
chão / diamante nascendo do carvão.
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Tais reflexões sobre o silêncio nos propõem, já de imediato, sair de uma zona
maniqueísta de raciocínio que compreenda uma coisa como sendo uma e não outra.
Os sentidos do silêncio podem ser vários, contrários e coexistir, a depender do
contexto. Vamos nos aproximando, então, de uma ideia de silêncio que remete à
abertura, fluidez, como um território de movimento dos sentidos. Silêncio que evoca
dança...
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Desde 2009, a trajetória artística da artista-pesquisadora Olga Lamas tem no silêncio sua força
criativa. Dentre os trabalhos que mais se destacam no tema estão: o solo “Em Gole” (2010) e as
performances urbanas “Sirva-se” (2011) e “Sagração” (2014).
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Também nos conta a autora sobre o caráter de discurso que pode haver no
silêncio, uma vez que ele não é pano de fundo da linguagem, o “vazio” da
linguagem, o lugar da ausência das palavras. Ela “brinca” dizendo que toda palavra,
antes de sê-la, foi silêncio, como também canta Arnaldo Antunes, na canção
anteriormente citada. A autora defende o silêncio como fundador, como aquele que
torna toda significação possível, que indica que o sentido pode sempre ser outro.
Fundador não como sinônimo de “originário”, absoluto, preexistente, mas como um
lugar de recuo necessário para que se possa significar, para que o sentido faça
sentido:
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Termo recorrente no seu livro Água Viva, de 1973.
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temporalidade extrema, a “um presente amplo, no qual já não sentimos que estamos
‘deixando o passado para trás’ e o futuro está bloqueado” (Id., ibid., p. 152).
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O objeto-obra-em-seu-processo-de-fazimento-como-de-arte interrompe,
abre um vazio, um tempo de silêncio, uma parada, uma questão sem
resposta, provocando um dilaceramento sem reconciliação onde o mundo é
obrigado a interrogar-se. (ROCHA, 2009, p. 3)
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Performer e coreógrafa, desenvolve trabalhos que perseguem uma lógica de sensações e se
ocupam de um erotismo da matéria: um corpo-matéria que se funde, colide, atravessa outras
matérias. Foi artista residente na Casa Hoffmann (Curitiba, 2004), fez parte da Formação Essais no
Centre National de Danse Contemporaine d’Angers (França, 2005-2006), e do Programa SODA –
Solo/Dance/Authorship, mestrado em dança pela HZT/UdK (Berlim – Alemanha, 2010-2011). Foi co-
fundadora e integrante do Couve-Flor Minicomunidade Artística Mundial (2005-2012). Tem
apresentado seu trabalho em diferentes contextos (dança, performance, artes visuais), em diversos
festivais e mostras no Brasil e em outros países, com apoio de instituições como: Itaú Cultural,
Festival Panorama, FUNARTE, Ministério da Cultura, Instituto Goethe, PACT Zollverein, Fabrik
Potsdam, Uferstudios, entre outras.
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Coincidentemente, neste ano de 2017, a artista voltou a performar o solo após alguns anos sem
apresenta-lo e, assim, a tessitura desse texto toma outro fôlego, parece ganhar ainda mais sentido, já
que a obra volta ao movimento - viva - para além de nossa memória e dos registros.
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[...] entre massa, pele, plástico, espinhos, goiabada; entre toque, gosto,
cheiro. As formas e imagens geradas nessa integração não são uma
conclusão, mas um evento, um manancial de passados e futuros possíveis.
Surgiram na prática e tornaram-se o princípio ativo de uma trajetória: a
contingência do fazer, desmanchar, transformar... (FINGER, 2007).
pedaço de goiabada transita da boca da artista para o chão para axila para o cacto
(em posição semelhante ao que seria uma boca da planta e depois a flor/fruto) e
para sua própria boca novamente; a massa de pão é abraçada, pisada, vestida.
Por vezes, o modo como Elisabete manipula os elementos permite que eles
se tornem uma extensão de seu próprio corpo, ou seja, ora o objeto é apenas objeto,
ora o objeto é corpo, numa dinâmica de esvaziamento e preenchimento constante
de sentidos.
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Canção de 1969, de autoria do músico, cantor e compositor francês Serge Gainsbourg (1928 -
1991).
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Figura 1 – Amarelo – Dublagem com goiabada
Fonte - Alessandra Haro
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O quadro Abaporu chamava-se O Antropófago, originalmente. Esse é seu significado em tupi-
guarani.
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“O manifesto de Oswald de Andrade é ‘antropófago’, reitera-se, substantivo, e não ‘antropofágico’,
como é equivocadamente chamado, aqui e ali, insistentemente. Esse erro soa como vontade
inconsciente de amainar a potência do texto, apropriando-se de um substantivo tão forte,
‘antropófago’, de um sujeito, para transformá-lo em um mero adjetivo, ‘antropofágico’, que acabou por
se transformar numa espécie de ‘genérico” (AZEVEDO, 2016, p. 90).
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O conceito de antropofagia trazido no manifesto relaciona as práticas antropofágicas tupinambás à
acepção do que poderia ser uma cultura genuinamente brasileira – provocações tecidas na década
de 1920 e ainda absolutamente coerentes com nossa contemporaneidade.
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Figura 2 – Abaporu / Fonte – Tarsila do Amaral / internet
Figura 3 – Amarelo - Antropofagia / Fonte – Alessandra Haro
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Conferência intitulada “Um aspecto antropofágico da cultura brasileira: o homem cordial”.
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“quanto mais melhor”, é um exercício árduo. Como remar contra a maré para tentar
abrir espaços de escuta, pausa, suspensão. Compreender que se contrapor ao ritmo
caótico coletivo cotidiano, seja em cena seja na vida privada, é um ato político. Faz-
se urgente inventar estratégias de existência, de instauração de uma lógica outra,
distinta, diversa da que já estamos habituados – essa que nos afasta cada vez mais
uns dos outros, egoisticamente, em prol da manutenção de um sistema econômico-
social para o qual fazemos tantas coisas sem nem saber ao certo porquê, para quê,
para quem - apenas fazemos.
A mescla dos conceitos presentes no decorrer desse texto, que criam pistas
de aproximação ao silêncio - sentido, significação, discurso, presença, antropofagia,
alteridade - pode ser útil à tessitura dessas novas estratégias de vida, de existência,
de resistência. Também no modo de organização das comunidades matriarcais
podemos encontrar rastros que auxiliem nessa tarefa nada simples. Os Pataxó de
Coroa Vermelha, comunidade indígena de raiz matriarcal, por exemplo, exercitam o
silêncio como possibilidade de amadurecimento de táticas de reação,
Tempos de crise são tempos de apurar ainda mais a escuta e abrir espaços
para estados de presença que primem pela empatia e alteridade, palavras preciosas
que, ao nosso ver, tornam-se possíveis através desse exercício de escuta
partilhada, da disponibilidade para troca de saberes, experiências e de aprender a
tornar-se eu Outro.
Referências:
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FUSINI, Nadia. Sou senhora da minha alma: o segredo de Virginia Woolf. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: Uma outra história das músicas. São
Paulo: Companhia das Letras: 1999.
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*Flaviany Lamas, nome artístico Olga Lamas, é artista, produtora e pesquisadora. Mestranda
pelo Programa de Pós-Graduação em Dança da UFBA e Licenciada em Teatro pela mesma
instituição. É uma das artistas-produtoras da Gameleira Artes Integradas, território de
articulações artísticas. Sua pesquisa artística e acadêmica traz o silêncio como foco de
investigação. lamas.olga@gmail.com
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