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Sérgio Buarque de Holanda inicia uma síntese do que seria seu futuro livro, publicado
em 1936, Raízes do Brasil, afirmando que a principal contribuição brasileira para a
civilização seria a cordialidade. Tendo como referência uma análise elaborada por Ribeiro
Couto, a respeito da especificidade latina, Sérgio Buarque enfatizaria a importância da
noção de "homem cordial". Esse pressupõe lhaneza no trato, hospitalidade,
generosidade, virtudes estas características da psicologia do brasileiro.
Sérgio Buarque se apropria da noção de "homem cordial", criada por Ribeiro Couto, de
forma peculiar. Ele traz essa expressão para o âmbito da cultura nacional.
Os traços peculiares que marcam a Península Ibérica devem a sua existência ao ingresso
tardio dessa região no Europeísmo. Isso repercutiria intensamente em seus destinos,
determinando alguns aspectos particulares da sua história e da sua formação espiritual.
Sérgio Buarque afirma que a originalidade nacional dos portugueses e dos espanhóis
deve-se muito à importância que os mesmos atribuem à autonomia do indivíduo, ao
valor próprio da pessoa humana. Para os espanhóis e portugueses é fundamental o valor
da autossuficiência, ou seja, que um homem garanta a sua sobrevivência sem necessitar
dos demais.
Cada qual é filho de si mesmo, de seu esforço próprio, de suas virtudes (...) e as
virtudes soberanas para essa mentalidade são tão imperativas, que chegam por
vezes a marcar o porte pessoal e até a fisionomia dos homens.
(HOLANDA, 1990, p.4)
Algumas palavras que marcam o vocabulário desses povos simbolizam uma mentalidade
representativa da autonomia. Sérgio Buarque dá o exemplo da palavra"sobranceria",
que indicaria inicialmente a ideia de superação. Para este autor alguns traços da
mentalidade hispânica colaboram para a ausência de uma coesão social tipicamente
moderna. Se a autonomia exacerbada pressupõe a ausência de solidariedade e
ordenação, dificilmente se pode conceber a noção de um Estado que se configure a
partir de um conjunto de cidadãos.
Em terra onde todos são barões não é possível acordo coletivo durável, a não ser
por uma força exterior respeitável e temida.
(HOLANDA, 1990, p. 4)
Quando Sérgio Buarque se propõe a discutir os contrastes entre uma ética protestante e
uma ética católica, mais especificamente lusitana, recorre ao livro clássico de Max
Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Neste livro, o autor de Raízes do
Brasil encontra subsídios para uma discussão em torno de um ethos particular do
capitalismo, que não teria se inserido na colonização portuguesa.
Weber estabelece no final do seu livro uma comparação que se assemelha à que Sérgio
Buarque empreenderá em Raízes do Brasil. Para o primeiro autor o início da colonização
norte-americana produz dois tipos de trabalhadores: os "adventures", que organizaram
as plantações com mão de obra servil e nelas viviam senhorialmente; e os "puritanos",
tipicamente burgueses, que se enquadravam no perfil de trabalhador voltado para a
ascese. Sérgio Buarque se apropria da metodologia "weberiana" ao criar algumas
"tipologias" que vão percorrer o seu livro. Embora este autor tenha consciência de que
esses "tipos ideais", como o nome já diz, não podem ser encontrados em estado puro na
História, constrói algumas oposições que se encontrariam no contexto que ele pretende
estudar.
Estamos nos referindo à primeira tipologia que o autor elabora para dar conta da
mentalidade ibérica. Os tipos do "aventureiro" e do "trabalhador" encarnam duas éticas
totalmente diferentes. A ética do aventureiro se enquadra mais facilmente no tipo de
colonização realizada no Brasil. Sérgio Buarque afirmaria: "Essa exploração dos trópicos
não se processou, em verdade por um empreendimento metódico e racional, não
emanou de uma vontade construtora e enérgica: fez-se antes com desleixo e certo
abandono." (HOLANDA, 1990, p. 12)
O autor distingue a ética do trabalho da ética da aventura; o tipo "trabalhador" só
atribuirá valor moral positivo às ações que sente ânimo de praticar, e consequentemente
rejeitará a audácia, a imprevidência e a instabilidade tão características do tipo
aventureiro. Este valorizará somente as atividades que lhe proporcionarem uma
recompensa imediata.
Nesse sentido, no contexto político brasileiro só foi possível se pensar num princípio
unificador através de governos fortemente centralizados. A precária solidariedade e a
deficiente coesão social provocaram a configuração de um tipo de organização política
artificialmente mantida por uma força exterior que, para este autor, encontrou uma das
suas formas mais características nas ditaduras militares. Voltaremos a discutir a relação
estreita entre cultura personalista e Estado Autoritário, quando tivermos desenvolvido
melhor a própria noção de cultura personalista.
A "aventura" pressupõe ousadia, e não trabalho, por isso a economia rural no Brasil
contou com maciça mão-de-obra escrava, monocultura e a exigência extrema de
produtividade em detrimento do investimento técnico e financeiro. Devemos reconhecer
que em decorrência dessa exploração rural, dessa hipertrofia do sistema latifundiário,
não houve investimentos em outras áreas.
O que sobretudo nos faltou para o bom êxito desta e de tanta outras formas de
labor produtivo foi, seguramente, uma capacidade de livre e duradoura associação
entre os elementos empreendedores do país.
(HOLANDA, 1990, p. 28)
A Cultura Personalista
Eram dois mundos distintos que se hostilizavam com rancor crescente, duas
mentalidades que se opunham como ao racional se opõe o tradicional, ao abstrato
o corpóreo e o sensível, o citadino e o cosmopolita ao regional ou paroquial. A
presença de tais conflitos já parece denunciar a imaturidade do Brasil escravocrata
para transformações que lhe alterassem profundamente a fisionomia.
(HOLANDA, 1990, p. 460)
Se nos EUA o que conta é o indivíduo, o cidadão, no Brasil o que conta é a relação. Se o
universo de cidadania torna os indivíduos potencialmente iguais, fazendo as diferenças
desaparecerem sob o legado da convenção e da lei, o que se espera no universo social
brasileiro é exatamente o oposto.
Roberto Da Matta enfatiza que, no contexto brasileiro, o indivíduo sempre espera ser
reconhecido. Em qualquer situação-dilema, existe uma expectativa de que o respectivo
caso seja singularizado, personalizado. O cidadão é a entidade que está sujeita à lei, ao
passo que a família, as relações de amizade, porque representam um vínculo afetivo
e/ou biológico, podem se excluir de uma convenção formal. O universo das relações
permite revestir uma pessoa de humanidade, excluindo-a da "temível" universalidade a
que é submetida enquanto "cidadão". O universo relacional permite que se atue sob a
forma de exceção, ou seja, uma situação de conflito que é resolvida de forma afetiva
permite diversas soluções particulares. Roberto Da Matta diagnostica na sociedade
brasileira um universo de conflito entre o mundo público das leis universais e do
mercado e o âmbito privado da família, dos compadres, parentes e amigos.
Não há brasileiro que não conheça o valor das relações sociais, que não as tenha
utilizado como instrumentos de solução de problema ao longo de sua vida. Não há
brasileiro que nunca tenha usado o'você sabe com quem está falando?' diante de
uma lei universal e do risco de uma universalização que acabaria transformando
sua figura moral num mero número ou entidade anônima.
(DA MATTA, 1991, p. 102)
A construção das cidades e a forma que estas adquiriram serviria de ilustração para os
contrastes entre a colonização portuguesa e a colonização espanhola. Essa distinção
parece fundamental para Sérgio Buarque, que trabalha constantemente com a
comparação. Novamente constatamos a presença de uma tipologia "weberiana",
encarnada nos personagens do "semeador" e do "ladrilhador". Esses tipos ideais são
representantes da colonização portuguesa e da colonização espanhola respectivamente.
A ordem que aceita não é a que compõe os homens com trabalho, mas a que
fazem com desleixo e certa liberdade; a ordem do semeador, não a do ladrilhador.
(HOLANDA, 1990, p. 82)
Nem sempre, é certo, as novas experiências bastaram para apagar neles o vinco
doméstico, a mentalidade criada ao contato de um meio patriarcal, tão oposto às
exigências de uma sociedade de homens livres e de inclinação cada vez mais
igualitária.
(HOLANDA, 1990, p.104)
A visão intimista das ações sociais é estimulada à medida que o domínio público passa a
ser abandonado. O esvaziamento da ação política pode representar um perigo do ponto
de vista da idealização de uma sociedade igualitária. A valorização da esfera familiar
provoca a transformação da mesma numa referência moral, transfere-se a moralidade
privada para a esfera do público. A dificuldade do brasileiro em lidar com o impessoal
torna quase que obrigatória a inserção do padrão familiar na esfera pública. A família é
garantidora da manutenção do íntimo, do subjetivo, do particular, ou seja, todas as
identidades são possivelmente asseguradas no âmbito familiar. "A intimidade é uma
tentativa de se resolver o problema público negando que o problema público exista."
(SENNETT, 1993, p. 44)
A "anulação" do problema público pode ser ilustrada com a caracterização que Sérgio
Buarque constrói do funcionalismo público brasileiro. Utilizando-se de uma distinção de
Max Weber entre patrimonialismo e burocracia, o autor procura caracterizar o
"personalismo" no Estado brasileiro. O funcionário "patrimonial" é aquele cuja gestão
política volta-se sempre para os seus interesses particulares. As funções, os empregos e
os benefícios relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses isentos.
Estes configuram a meta de um Estado burocrático, no qual predominam a
especialização das funções e o esforço para assegurar garantias jurídicas aos cidadãos.
Essa distinção não parece irreversível: o funcionário patrimonial, com a sofisticação da
divisão do trabalho e com o aumento da racionalização do seu serviço, pode adquirir
traços burocráticos.
O "homem cordial" é resultado da cultura personalista e patrimonialista própria da
sociedade brasileira. A cordialidade brasileira simboliza o predomínio de relações
humanas mais simples e diretas que rejeitam todo e qualquer aspecto de ritualização do
comportamento. Nossa maneira de conviver socialmente representa o contrário de uma
atitude vinculada à polidez. A civilidade, que pressupõe uma noção ritualística da vida,
parece distante do modus vivendi do brasileiro. A polidez simboliza uma organização de
defesa diante da sociedade e equivale a uma máscara que permitirá a cada qual
preservar as suas emoções, as suas impressões subjetivas.
O espírito brasileiro que ainda informa o homem cordial demonstra uma intimidade até
mesmo com a religião. Este ponto é exemplificado pela proximidade das pessoas com os
seus santos. O sentimento religioso é totalmente dotado de caráter personalista. O
indivíduo tem uma relação íntima com seu santo, pedindo-lhe benesses individuais na
mais profunda expectativa de ser atendido. Sérgio Buarque estende os seus exemplos à
linguística. O vocabulário brasileiro é recheado de palavras cujo emprego do diminutivo
é quase que uma constante. A utilização da terminação "inho" serve para familiarizar ou
aproximar as pessoas, e estas a objetos.
A cordialidade é um traço forte do caráter nacional, mas pode ser modificado de acordo
com as circunstâncias históricas.
Superação da Cordialidade?
Numa carta-resposta a Cassiano Ricardo, escrita em 1948, Sérgio Buarque faz questão
de frisar o grau de mobilidade e de historicidade do conceito de HOMEM CORDIAL.
"Por fim quero frisar, ainda uma vez, que a própria cordialidade não me parece virtude
definitiva e cabal que tenha de prevalecer independentemente das circunstâncias
mutáveis de nossa existência. Acredito que ao menos na segunda edição do meu livro,
tenha deixado esse ponto bastante claro. Associo-a antes a condições particulares de
nossa vida rural e colonial, que vamos rapidamente superando. Com a progressiva
urbanização, que não consiste apenas no desenvolvimento das metrópoles, mas ainda e
sobretudo na incorporação de áreas cada vez mais extensas à esfera da influência
metropolitana, o homem cordial se acha fadado provavelmente a desaparecer, onde
ainda não desapareceu de todo." (Carta a Cassiano Ricardo, HOLANDA, 1990, p. 145-
146)
A possibilidade de união se dá muito mais através dos sentimentos e são estes que
forjam o único tipo de disciplina possível nessa situação: a obediência cega, esta
na medida em que não se estrutura sobre qualquer tipo de contrato ou lealdade
tradicional, é a única que pode existir num ambiente cujo apelo emocional é
intenso, e onde o exercício constante da força apresenta-se como necessidade.
(AVELINO FILHO, 1990, p. 6)
Nem sempre essa "idealizada" obediência serviu ao brasileiro como princípio constitutivo
de uma associação coletiva possível num Brasil atrelado à sua herança colonial. A
relação do brasileiro com o Estado ainda é muito submissa, servil. O Estado é uma
entidade próxima mas transcendente. Próxima porque trata-se de uma instituição
presente em todas as esferas privadas do indivíduo. Ainda é visto como uma espécie de
"grande pai" a quem se deve pedir tudo desde que passemos a respeitá-lo com
subserviência. Talvez por isso seja difícil para Sérgio Buarque imaginar o Brasil do
período no qual ele escreve como uma nação que, graças ao desenvolvimento de uma
cidadania, possa promover um Estado democrático. Não há democracia sem vida
democrática. Em Raízes do Brasil, o autor alerta para a ineficácia da importação de um
ideário liberal sem que houvesse um preparo mental para a receptividade do mesmo.Há
uma profunda incompatibilidade entre o ideário liberal impessoal -a felicidade garantida
para a maioria -e o caráter restrito dos sentimentos que se fundam sobre preferências.
O Estado e o conjunto de convenções que o cercam devem servir à cultura na qual
ambos estão inseridos. Por fim, Sérgio Buarque sugere que se respeite o ritmo próprio
em que se constituía nossa cultura, seja ela adepta da modernidade ou não. Este autor
parecia estar muito atento às tensões entre a persistência das tradições e a mudança
histórica.
Bibliografia
COUTO, Rui Ribeiro. El hombre cordial, producto americano, Revista do Brasil, Rio de
Janeiro,1987.
DA MATTA, Roberto. A casa e a rua, espaço e cidadania, mulher e morte no Brasil. 4. ed.
Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1991.
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Sérgio Buarque de Holanda: historiador. São Paulo:
Ática, 1985. (Coleção Grandes cientistas sociais).
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Corpo e alma do Brasil: ensaio de Psicologia Social.
Revista do Brasil, Rio de Janeiro, 1987.
REIS, Elisa P. O Estado Nacional como ideologia: o caso brasileiro. Estudos Históricos,
São Paulo, n. 2, 1988.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1989.