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de informação, sem permissão por êscrito da editora.

Título original
Thinking with History: Explorations in the Passage to Modernism

Capa
Ettore Bottini
sobre Palas Atena (1898), óleo sobre tela de
Gustav Klimt. Viena, Historisches Museum.
Índice remissivo
Maria Cláudia Carvalho Mattos

Preparação

Cássio de Arantes Leite

Revisão
Carmen S. da Costa
Cláudia Cantarin

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)


(Câmara Brasileira d o Livro, SP, Brasil)

Schorske, Carl E.
Pensando com a história : indagações na passagem para o
m o d e r n i s m o / Carl E. Schorske ; tradução Pedro Maia Soares. —
São Paulo : C o m p a n h i a das Letras, 2000.

Titulo original: Thinking with history.


Bibliografia.
ISBN 8 5 - 3 5 9 - O O 5 7 - 8

Í . E u r o p a — Civilização — Século 19 2. Europa — Vida


intelectual — S é c u l o 19 3. Historicismo 4. M o d e r n i s m o —
Estética I. Título.

00-4073 cuu-940.28

índices para catálogo sistemático:


1. Europa : Século 19 : História 940.28

[2000]
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA SCHWARCZ LTDA.

Rua Bandeira Paulista 702 cj. 32


04532-002 — São Paulo — SP
Telefone (11) 3846-0801
Fax (11)3846-0814
www.companhiadasletras.com.br
3. A idéia de cidade no pensamento
europeu: de Voltaire a Spengler

Durante dois séculos febris de transformação social, o problema da cidade


pressionou sem cessar a consciência dos pensadores e artistas europeus. A rea-
ção dos intelectuais a essa pressão foi infinitamente variada, pois as mudanças
sociais trouxeram consigo transformações em idéias e valores mais protéicas do
que as alterações na própria sociedade,
y A j i n g u é m pensa a cidade em isolamento hermético. Forma-se uma imagem
\ dela por meio de um filtro da percepção derivado da cultura herdada e transfor-
^ mado pela experiência pessoal. Dessa forma, a investigação das idéias dos inte-
^ / lectuais sobre a cidade nos conduz inevitavelmente para fora de seu enquadra-
mento próprio, pondo em jogo miríades de conceitos e valores sobre a natureza
do homem, da sociedade e da cultura/Mapear em seu contexto próprio as
mudanças de pensamento sobre a cidade desde o século xvin transcende em
muito os limites do possível n u m ensaio curto. Não posso fazer mais do que
apresentar algumas linhas de pensamento, na esperança de que a amostra resul-
tante possa sugerir caminhos de aprofundamento da questão.
/Creio que se podem discernir três avaliações amplas da cidade nos últimos
/ duzentos anos: a cidade como virtude, a cidade como vício e a cidade para além
y ^ do bem e do mal. Essas atitudes aparecem em pensadores e artistas em sucessão
ò-

53
temporal. O século xvm desenvolveu, a partir da filosofia do Iluminismo, a visão
da cidade c o m o
)\ y virtude. A industrialização do começo do século xix trouxe à
^ v'p tona uma concepção oposta: a cidade como vício. Por fim, no contexto de uma
. / ; V r n o v a cultura subjetivista nascida na metade do século xix, surgiu uma atitude
intelectual que colocava a cidade para além do bem e do mal/kenhuma fase nova
destruiu sua predecessora. Cada uma delas sobreviveu dentro das fases que a
sucederam, mas com sua vitalidade enfraquecida, seu brilho empanado. As dife-
renças no desenvolvimento nacional, tanto social como intelectual, embaçam a
claridade dos temas. Além disso, à medida que as décadas passam, linhas de pen-
samento que eram vistas como antitéticas se fundem para formar novos pontos
de partida para o pensamento sobre a cidade/Na história da idéia da cidade,
como em outros ramos da história, o novo frutifica a partir do velho com mais
freqüência do que o destrói.

V rj /Com certeza
> 3 § r a n d e c l a s s e média do século xix supunha tacitamente que
y v a cidade era G centro produtivo das advidades h u m a n a s ma.s ^ ^

e alta cultura. Essa suposição, herança do século anterior, era tão poderosa que
precisamos dedicar alguma atenção ao seu caráter. Três filhos influentes do Ilu-
m i n i s m o - V o l t a i r e , Adam Smith e F i c h t e - h a v i a m formulado a visão da cida-
de como virtude civilizada em termos adequados a suas respectivas culturas
nacionais,/
•C-'
//Voltaire cantou seus primeiros louvores da cidade não a Paris mas a
• ^ Londres. A capital inglesa era a Atenas da Europa moderna; suas virtudes'eram a
liberdade, o comércio e a arte. Esses três valores - político, econômico e cultu-
ral — brotavam de uma única fonte: o respeito da cidade pelo talento.

Oh Londres! Rival de Atenas! Terra feliz!


Que junto com os tiranos soubeste expulsar
Os preconceitos vis que te assediavam.
Ali tudo se diz, tudo se recompensa;
Não se despreza a arte, o sucesso se louva:

54

l
Para Voltaire, Londres era a mãe promotora da mobilidade social, contra a socie-
dade hierárquica fixa.
As virtudes que encontrou em Londres, ele logo generalizaria para a cidade
v"
c moderna como tal. Sua concepção de cidade compõe um capítulo atrasado na
| y y Batalha dos Livros, de Antigos versus Modernos. Voltaire empunhava seu flore-
te c o m
vl^sV* agilidade contra os defensores de um passado desaparecido, da época de
^ ^ / y °uro da Grécia e do jardim do Éden cristão. Por que a humanidade deveria exal-
/ tar os gregos, vítimas da pobreza? Ou Adão e Eva, com seus cabelos emaranha-
dos e unhas quebradas? "Faltavam-lhes indústria e prazer: é isso virtude? Não,
pura ignorância." 2
v^r Indústria e prazer: essas duas buscas distinguiam a vida urbana para
\y Voltaire; juntas, elas produziam a "civilização". O contraste urbano entre ricos e
"" j pobres, longe de ser causa de terror para o philosophe, proporcionava a própria
) " base do progresso. Seu modelo de homem rico não era o capitão de indústria,
/ ^ mas o aristocrata perdulário que levava uma vida de ócio na cidade, um verda-
^ deiro filho do princípio do prazer. Voltaire descrevia seu hôtel mondain rococó e
,;• luxuoso, com seu exterior "ornamentado pela admirável indústria de mil mãos".3
Saboreava a ronda diária do homem rico, sua vida de sensualidade refinada: o
\J , yf
» -f mondain atravessa numa bela carruagem dourada as praças imponentes da cida-
de para se encontrar com uma atriz, depois vai à ópera e a um jantar pródigo.
Com seu modo sibarítico de viver, esse perdulário bon vivant cria trabalho para
incontáveis artesãos. Não somente proporciona emprego para os pobres, como
se torna um modelo a imitar. Ao aspirar à vida de ócio civilizado de seus superio-

<V res, os pobres são estimulados à diligência e à parcimônia e, dessa forma, melho-
ram sua situação. Graças a essa feliz simbiose de ricos e pobres, ócio elegante e
indústria florescente, a cidade estimula o progresso da razão e do gosto e, assim,
aperfeiçoa as artes da civilização.4,
,>° A p e s a r de sua ênfase um tanto burguesa na cidade como força para a mobi-
/ <r Hdade social, Voltaire considerava a aristocracia o agente crucial do progresso
^ dos costumes. A remoção dos nobres para a cidade, especialmente durante o rei-
/ nado de Luís xiv, trouxe uma "vida mais doce" para o citadino inculto. As gracio-
\ sas esposas dos fidalgos criaram "escolas de politessé", que afastaram os jovens
f ^ y urbanos da vida da taverna e introduziram a boa conversação e a leitura. 5 Voltaire
via assim a cultura da cidade nova de um modo um pouco semelhante à forma

(V f «
como hoje Lewis Mumford e outros têm visto os conceitos de planejamento que
a inspiraram: como uma extensão do palácio. No entanto, onde Mumford
encontrou despotismo barroco — uma combinação estranha de "poder e pra-
zer, uma ordem abstrata severa e uma sensualidade fulgurante", junto com uma
deterioração da vida para as massas — Voltaire via progresso social.6 Não a des-
truição da comunidade, mas a difusão da razão e do bom gosto para indivíduos
de todas as classes: essa era a função da cidade para ele.'
/Tal como Voltaire, Adam Smith atribuía a origem da cidade ao trabalho dos
monarcas. Numa era feudal selvagem e bárbara, as cidades, por necessidade dos

VdLf V reis
' f o r a m criadas COm
° CentroS d e liberdade e
ordem. Desse modo, a cidade
V V estabeleceu os alicerces do progresso tanto da indústria como da cultura:
^* v "Quando [os homens] estão seguros de usufruir os frutos de sua indústria",
V
v escreveu Smith, "eles a empregam naturalmente para melhorar sua condição e
/ o-^adquirir não somente as coisas necessárias, mas também as conveniências e ele-
o ^ gâncias da vida"/Para Voltaire, o advento da nobreza civilizou as cidades; para
o ^ Smith, a cidade civilizou a nobreza rural e, ao mesmo tempo, destruiu a autori-
dade feudaL 0 s nobres
'^V.v ' " t e n d o vendido seus direitos hereditários, não como
V ^ y / Esaú, por um prato de sopa em tempo de fome e necessidade, mas por bugigan-
gas e quinquilharias no capricho da abundância [...], se tornaram tão insignifi-
cantes quanto qualquer burguês ou comerciante substancial da cidade".8 A cida-
de nivelou nobres e burgueses para produzir uma nação ordeira, próspera e livre/
Dessa forma, a dinâmica da civilização está na cidade, tanto para Voltaire
como para S m i t h ^ a s como economista e moralista, Smith comprometeu-se
menos com o urbanismo do que Voltaire. Defendia a cidade apenas em sua rela-
Ção com o campo. A troca entre matérias-primas e manufatura, entre campo e
cidade, formava para ele a espinha dorsal da prosperidade. "Os ganhos de ambos
são mútuos e recíprocos/Smith, contudo, considerava o capital móvel essencial-
mente instável e, do ponto de vista de qualquer sociedade, não confiável "[Um]
desagrado muito fútil fará com que [o comerciante ou industrial] transfira de
V^ um país para outro seu capital e [... ] toda a indústria que ele sustenta. Pode-se
dizer n e n h u m a
•• / ; / P a r t e d e I a P e r t e n c e a algum país em particular, até que tenha
' espalhado pela superfície desse país, seja em prédios ou em melhoramentos
duradouros das terras.'" O capitalista urbano é um nômade antipatriótico.
Embora a cidade melhore o campo ao proporcionar um mercado e bens manu-

56

1
faturados, ainda que enriqueça a humanidade ao tornar possível a transcendên-
cia das necessidades animais, seus habitantes empreendedores são socialmente
instáveis e não confiáveis..
Outros vícios de uma espécie mais sutil acompanham as virtudes urbanas:
^ "inaturalidade e dependência". Smith sustentava que "cultivar o solo era o desti-

/ /
no natural do homem". Por interesse e por sentimento, o homem tendia a voltar
à terra. O trabalho e o capital gravitavam naturalmente em torno do campo rela-
tivamente livre de riscos. Mas, acima de tudo, as satisfações psíquicas do agricul-
s
vi, tor superavam as do comerciante ou industrial urbano. Aqui, Smith revela-se um

7
y,- inglês pré-romântico: "A beleza do campo, [... ] os prazeres da vida campestre, a
tranqüilidade mental que promete e, onde quer que a injustiça das leis humanas
não a perturbe, a independência que ela realmente permite têm encantos que
mais ou menos atraem a todos".10 A cidade estimulava, o campo satisfazia/
Smith insistia em seus preconceitos psicológicos até mesmo à custa de sua
lógica econômica, quando afirmava que o fazendeiro se considerava um homem
independente, um senhor, enquanto o artífice urbano se sentia sempre depen-
\ dente de seu cliente e, assim, não livre.'^A virtude da cidade era a do estímulo ao
t
< / y , Progresso econômico e cultural, mas ela não oferecia o sentimento de seguran-
ça e liberdade pessoal da vida do campo. O modelo de Adam Smith para o regres-
so "natural" de homens e capital para a terra era a América do Norte, onde o
y direito da primogenitura não restringia a liberdade pessoal, nem o progresso
, econômico. 12 Somente ali cidade e campo mantinham uma relação realmente
' . apropriada. A cidade estimulava a economia, a riqueza e o engenho; desse modo,
\ Proporcionava ao artífice os meios para voltar à terra e realizar-se finalmente
como um agricultor independente. Assim, até mesmo esse grande defensor do
laissez-faire e do papel histórico da cidade expressava aquela nostalgia pela vida
rural que iria caracterizar tanto o pensamento inglês sobre a cidade durante o
, século x i x /
/ Os intelectuais alemães interessaram-se pouco pela cidade até o começo do
século XIX. Sua indiferença era compreensível. No século xvm, a Alemanha não
tinha uma capital dominante que correspondesse a Londres ou Paris. Suas cida-
des pertenciam a dois tipos básicos: de um lado, sobreviviam cidades medievais,
tais como Lübeck e Frankfurt, que ainda eram centros de vida econômica, mas
com uma cultura burguesa tradicional um tanto sonolenta; de outro, havia

57
novos centros políticos barrocos, as assim chamadas Residenzstadt, como Berlim
e Karlsruhe. Paris e Londres haviam concentrado o poder político, econômico e
cultural em suas mãos, reduzindo as outras cidades da França e da Inglaterra a
um status provinciano. Na Alemanha dividida, as muitas capitais políticas coin-
cidiam pouco com os muitos centros econômicos ou culturais. A vida urbana
alemã era, ao mesmo tempo, mais indolente e mais variegada do que a inglesa ou
a francesa.
A geração de grandes intelectuais alemães que surgiu no final do século xvm
elaborou suas idéias de liberdade contra o poder arbitrário dos príncipes e a con-
^ vencionalidade estultificante da velha classe dos burgos. Em nenhuma dimen-
» ^ são de suas preocupações estava o papel da cidade como elemento ativo do P ro-
greSSO
Vf\ l ' , - C o n t r ,a 0 Í m P:a c t o « o m i z a d o r e desumanizador do poder
poaer do
do Estado
Estado
V „ ^ d e s p o t i c o , os humanistas germânicos radicais exaltavam o ideal comunitário da
'JS- / cidade-estado grega.

> ' V . , , D u r a n t e a s « u e r r a s " i ó n i c a s , Johann Gottlieb Fichte rompeu com o


ideal clássico para formular uma visão da cidade que governou boa parte do pen-

^ ^ cidade como . te f dor de ^ ^ ^ ^ ^ J

V V e Smith atribuíam o desenvolvimento da cidade à liberdade e à proteção


concedida a ela pelo príncipe, Fichte interpretava a cidade alemã como uma cria-
çao pura do Volk. As tnhos germânicas que cairam sob o domínio de Roma se
tornaram vitimas da raison d &af ocidental. Aquelas que permaneceram intoca-

<!aS[ R 3 ^ 6 ^ ! ! h a ^ e r ^ 0 a r a m s u a s v ' f tudes primitivas—"lealdade, probida-


d B ^ f e l ^ h o n r a e s , m P h c i d a d e " - „ a s c i d a d e s m e d i e v a i s . « N e s s a s [cida-
des] ,es reveuFichte, cada ramoda vida cultural transformou-se rapidamente

.»V
S th n ' °S r a m o s cultura registrados positivamente por Voltaire
e Smith - comercio arte e instituições livres - , Fichte acrescentou outro-
S y moralidade comum.ar,a,4>recisamen,e nesse último, expressava-,e a alma do
povo germânico. Os habitantes dos burgos, na visão dele.produzlam t u d o o que
ainda e digno de honra entre os alemães». Eles não foram civilizados por aristo
cratas e monarcas esclarecidos, como na visão de Volta ire
• * , voitaire, nem motivados Delo
interesse pessoal, como na concepção de Smith. Inspirados por piedade mod
. ^ tia, honra e, sobretudo, por um sentimento de comunidade, e ^ e m"sem
V^^^T Jhantes em sacrifício pelo bem-estar comum". Os moradores dos burgiralemães

58
mostraram durante séculos que a Alemanha era a única nação da Europa "capaz
de suportar uma constituição republicana". Fazendo um novo uso da história,
Fichte chamou a época da cidade medieval germânica de "o sonho juvenil da
nação de suas proezas futuras, [... ] a profecia do que seria, uma vez que houves-
se aperfeiçoado sua força".1''//
jf*' /Dessa forma, em sua glorificação da cidade como agente civilizador, Fichte
y ' v V acrescentou várias dimensões novas. Em sua visão, a cidade se tornou democrá-
tica e comunitária em espírito/A cidade medieval assumiu as características
socioculturais atribuídas por outros pensadores alemães—Schiller, Hölderlin e
o jovem Hegel—à polis grega. Fichte fortaleceu assim a consciência de si mesma
da burguesia alemã em sua luta pelo nacionalismo e a democracia com um
modelo concreto de sua própria história, um paraíso perdido de sua própria
criação a ser recuperado. E, com ele, inimigos a combater: os príncipes e o Estado
imoral. O florescimento da cidade fora "destruído pela tirania e a avareza dos
príncipes, [...] sua liberdade, pisoteada", até que a Alemanha mergulhasse em
sua maré mais baixa na época de Fichte, quando a nação sofreu a imposição do
jugo napoleónico. 15 Embora não desvalorizasse o papel da cidade no comércio,
Fichte rejeitava, em Smith, as "teorias defraudadoras sobre [...] manufaturar
para o mercado mundial", considerando-as um instrumento de poder estrangei-
ro e corrupção. "Richte não tinha o apreço de Voltaire pelo papel do fausto aris-
tocrático na construção da cultura urbana, nem o medo de Smith da falta de raí-
zes dos empreendedores urbanos. Ao exaltar a cidade burguesa como modelo de
comunidade ética, ele introduziu padrões ideais para a crítica posterior da cida-
de do século xix como centro do individualismo capitalista//
A sobrevivência mais forte na sociedade alemã permitiu que Fichte desen-
volvesse noções que diferiam, em sua significação histórica, das idéias da cidade
sustentadas por seus predecessores na França e na Inglaterra. Para Voltaire e
Smith, que pensavam a história como processo, a cidade possuía virtudes que
contribuíam para o progresso social; para Fichte, a cidade como comunidade
encarnava a virtude numa forma social. O pensador alemão podia usar o passa-
do para formular um objetivo ideal para o futuro, mas não tinha noção de como
o ideal se relacionava a um processo para sua realização.

59
y / /A idéia da cidade como virtude ainda estava em elaboração no século xviii

e já uma contracorrente começava a se fazer sentir: a idéia de cidade como vício.


Evidentemente, a cidade como sede da iniqüidade era lugar-comum de profetas
e moralistas religiosos desde Sodoma e Gomorra. Mas no século xvm, intelec-
t u a i s seculares começaram a levantar novas formas de crítica. Oliver Goldsmith
V deplorava a destruição do campesinato inglês à medida que o capital móvel
estendia seu d
> °mínÍO SObre
° C a m P ° - A o contrário de Adam Smith, ele via a acu-
mulação da riqueza produzir homens decadentes. Os fisiocratas franceses, cujas
noções de bem-estar econômico estavam centradas na maximização da produ-
ção agrícola, viam a cidade com suspeita^Mercier de la Rivière, um de seus líde-
res, apresentou o que parece ser uma transformação deliberada do cavalheiro
urbano de Voltaire indo alegremente ao seu encontro amoroso: "As rodas amea-
çadoras do rico arrogante passam rapidamente sobre as pedras manchadas pelo
sangue de suas infelizes vítimas".17 A preocupação social com a prosperidade do
camponês proprietário trazia o antiurbanismo em suas águas, não menos na
Europa de Mercier do que na América de jefferson. Outras correntes intelectuais
apenas reforçaram as dúvidas que cresciam sobre a cidade como agente "civili-
zador": o culto pré-romântico da natureza como substituta de um Deus pessoal
e o sentimento de alienação que se espalhou entre os intelectuais à medida que
as lealdades sociais tradicionais se atrofiavam.

J í S é C U l ° X V I " ' 0 r i c o 1 » « ™ e os artesãos industriosos de


Volta,re e Sm.th se transformaram „os fazedores de fortunas e gastadores de
Wordswor h .gualmente desperdiçando suas energias, igualmente alienados da
natureza. A rae,o„al,dade da cidade planejada, tão valorizada por Voltaire,
impunha, para William Blake, "algemas forjadas pela mente" á natureza e ao
h o m e m . Q u ã o d.ferente é o poema "London" de Blake do hino de louvor de
Voltaire:

Vagueio em cada rua mapeada,


Perto do Tâmisa e sua correnteza,
E noto em cada face encontrada
Marcas de pesar, marcas de fraqueza.*'9

* I wander thro' each charter'd street / Npar ,


T h
e . e r , fc., mee„ M„ks ' ™ « And ™ r k iin

6o
Antes que todas as conseqüências da industrialização ficassem manifestas
na cidade, os intelectuais já haviam começado a reavaliação do ambiente urba-
\ / no que ainda não se desenvolvera plenamente. A reputação da cidade se emara-
rV nhara com a preocupação com a transformação da sociedade agrária, com o
* , r

f medo do "culto do dinheiro", o culto da natureza e a revolta contra o racionalis-


mo mecanicista/
.y Para essa visão emergente da cidade como vício, a disseminação da indús-
tria, nas primeiras décadas do século xix, deu um novo e poderoso ímpeto. A
^ medida que as promessas das operações beneficentes da lei natural na vida eco-
P nômica se transformavam nas descobertas da "ciência sinistra", da mesma forma
f r
y a identidade mútua de interesse entre ricos e pobres, cidade e campo, se transfor-
^ ' , mava na guerra entre as "duas nações" de Disraeli, entre os ricos despreocupados
' -<f e os moradores depravados dos cortiços.,
J/O que os poetas românticos descobriram, os prosadores da escola realista
y inglesa da década de 1840 descreveram em seu cenário especificamente urbano,
v „ A cidade simbolizava em tijolos, fuligem e imundície o crime social da época, o
crime que, mais do que qualquer outro, preocupava a intelligentsia da Europa. O
cri de coeur que se elevou inicialmente na Inglaterra se espalhou para o leste com
a industrialização, até que, cem anos depois de Blake, encontrou voz na Rússia
de Máximo Gorki.
Pobreza, imundície e insensibilidade da classe alta eram novidade no uni-
verso urbano? Certamente não. Dois acontecimentos respondem pelo fato de a
cidade, no começo do século xix, se tornar um símbolo estigmatizado desses
males sociais. Primeiro, o enorme crescimento da taxa de urbanização e o surgi-
mento da cidade industrial de construção barata dramatizaram as condições
urbanas que até então passavam despercebidas. Em segundo lugar, essa transfor-
mação negativa da paisagem social ocorreu contra o pano de fundo das expecta-
tivas do Iluminismo, de pensamento histórico otimista sobre o progresso e a
j * riqueza da civilização por meio da cidade, tal como vimos em Voltaire, Smith e
L\VV" Pichte. A cidade como símbolo ficou presa na rede psicológica de esperanças
frustradas. Sem o quadro deslumbrante da cidade como virtude, herdado do Ilu-
minismo, a imagem da cidade como vício dificilmente teria exercido tanta
influência sobre a mente européia/

61
[J J Grosso modo, as reações críticas à cena urbana industrial podem ser classi-
ficadas em arcaizantes e futuristas. Ambas as reações refletiam uma consciência
aguda da história como meio da vida social, com o presente localizado numa tra-
v
j jetória de mudança. Os arcaístas abandonariam a cidade; os futuristas a refor-
mariam. Os arcaístas, como Coleridge, Ruskin, os pré-rafaelitas, Gustav Freytag
na Alemanha, Dostoievski e Tolstoi rejeitavam com firmeza a idade da máquina
^ e sua megalópole moderna. Cada um a sua maneira, todos buscavam uma volta
y v" à sociedade agrária ou das pequenas cidades. Os socialistas utópicos da França,
I' como Fourier e seus falanstérios, e até os sindicalistas mostravam traços anti-
urbanos similares. Para os arcaizantes, era simplesmente impossível ter uma
,o
vida boa na cidade moderna. Eles reviviam o passado comunitário para criticar
o presente competitivo e opressivo. Sua visão do futuro compreendia, em grau
maior ou menor, a retomada de um passado pré-urbano .11
/Tenho a impressão de que o fracasso da arquitetura urbana do século xix em
desenvolver um estilo autônomo refletiu a força da corrente arcaizante, mesmo
. ' , - entre a burguesia urbana. Se pontes ferroviárias e fábricas podiam ser construí-
r
\ --'-' V das em estilos utilitários novos, por que os prédios domésticos e representativos
^ eram concebidos exclusivamente em idiomas arquitetônicos anteriores ao sécu-
lo xvill? Em Londres, até mesmo as estações de trem tinham pose arcaica: a esta-
ção Euston buscava, em sua fachada, fugir para a Grécia antiga, St. Pancras, para
a Idade Média, Paddington, para a Renascença. Esse historicismo vitoriano
1
V* »^ expressava a incapacidade dos habitantes da cidade de aceitar o presente ou de
conceber o futuro senão como ressurreição do passado. Os construtores da nova
cidade relutavam em encarar diretamente a realidade de sua própria criação, não
encontravam formas estéticas para afirmá-la. Isso é quase verdade para a Paris
de Napoleão III, com sua forte tradição de continuidade arquitetônica controla-
da, assim como para a Londres vitoriana e a Berlim guilhermina, com seus ecle-
tismos históricos mais floreados. O dinheiro procurou se redimir vestindo a
máscara de um passado pré-industrial./
/ P o r ironia, os verdadeiros rebeldes arcaístas contra a cidade, fossem estéticos
ou éticos, viram os estilos medievais que defendiam caricaturados nas fachadas
das metrópoles. John Ruskin e William Morris carregaram essa cruz. Ambos
foram do esteticismo arcaizante para o socialismo, das classes para as massas, na
busca de uma solução mais promissora para os problemas do homem urbano

62
industrial. Ao fazê-lo, reconciliaram-se de alguma forma com a industrialização
moderna e com a cidade. Eles passaram do arcaísmo para o futurismo.

y
y / o s críticos futuristas da cidade eram, em larga medida, reformistas sociais
ou socialistas. Filhos do Iluminismo, viram sua fé na cidade como agente civiliza-
dor severamente abalada pelo espetáculo da miséria urbana, mas seu impulso
meliorista os levou a saltar sobre o abismo da dúvida. O pensamento de Marx e
Engels mostra, na sua forma mais complexa, a adaptação intelectual da visão pro-
gressista à era da urbanização industrial. Em seus primeiros escritos, ambos reve-
lam uma nostalgia fíchteana do artesão medieval, dono de seus meios de produ-
ção e criador de seu produto inteiro. Em 1845, o jovem Engels, em sua obra A
situação da classe trabalhadora na Inglaterra, descreveu o fado do homem pobre
urbano em termos pouco distintos daqueles utilizados pelos reformadores urba-
nos de classe média, romancistas sociais e membros de comissões parlamentares
da década de 1840. Engels descrevia realisticamente a cidade industrial e acusava-
a eticamente, mas não oferecia soluções sérias para seus problemas. Porém, nem
ele nem Marx sugeriam que o relógio fosse atrasado, nem apoiavam as soluções
do tipo "comunidade-modelo", tão ao gosto dos utopistas do século xix.
Depois de quase três décadas de silêncio sobre o problema urbano, Engels
deu-lhe novamente atenção em 1872, tratando-o então no contexto da teoria
marxista madura. 20 Embora ainda rejeitasse existencialmente a cidade indus-
trial, agora a afirmava historicamente. Argumentava que, enquanto o trabalha-
dor doméstico, dono de sua casa, estava preso a um determinado lugar como
vítima de seus exploradores, o trabalhador industrial urbano era livre—mesmo
se sua liberdade fosse a de um "proscrito livre". Engels desdenhava o "lacrimoso
olhar retrógrado do proudhonismo" para a indústria rural de pequena escala,
"que produzia apenas almas servis. [... ] O proletariado inglês de 1872 está numa
situação infinitarhente melhor do que o tecelão rural de 1772, com seu 'lar e
família'". A retirada dos trabalhadores do lar pela indústria e pela agricultura
capitalista não era, na visão de Engels, retrocesso, mas "exatamente a primeira
condição de sua emancipação intelectual". "Somente o proletariado [... ] reuni-
do nas grandes cidades está em posição de realizar as grandes transformações
sociais que porão um fim a toda exploração e dominação de classe."21

63
A atitude de Engels em relação à cidade moderna é exatamente paralela à de
Marx em relação ao capitalismo; ambas eram igualmente dialéticas. Marx rejei-
tava o capitalismo do ponto de vista ético, por sua exploração do trabalhador, e
o afirmava do ponto de vista histórico, por socializar os modos de produção Da
mesma forma, Engels acusava a cidade industrial de ser o cenário da opressão do
trabalhador, mas a afirmava historicamente como teatro por excelência da liber-
tação proletária. Assim como na luta entre o grande capital e o pequeno
empreendimento, Marx defendia o primeiro como sendo a força "necessária" e
, v / "progressista", na luta entre produção rural e urbana, Engels era a favor da cida-
de industrial por ser o purgatório do camponês e do artesão caídos, onde ambos
^ se livrariam do servilismo e iriam desenvolver a consciência proletária/
Que lugar ocuparia a cidade no futuro socialista? Engels fugiu dos planos
/ - concretos. Contudo, estava convencido de que era preciso começar a "abolir o
C
, , °ntraSte entre Cldade e cam
P° levado ao seu ponto extremo pela socie-
22
dade capitalista atual". No final de sua vida, Engels ressuscitou na discussão da
cidade do futuro a visão antimegalopolitana dos socialistas utópicos Viu nas
> < comunidades-modelos de Owen e Fourier a síntese de campo e cidade - e enal-
teceu essa síntese que sugeriria a essênaa social, embora não a forma, da unidade
V.j> de subsistência do futuro. Sua posição contra a megalópole era clara- "Querer
resolver a questão da moradia e ao mesmo tempo desejar manter as grandes
cidades modernas é um absurdo. Porém, essas cidades serão abolidas somente
com a abolição do modo de produção capitalista'- Sob o socialismo, a "conexão
íntima entre produção agrícola e industrial" e "a distribuição tão uniforme
quanto possível da população por todo o p a í s [ . . . ] i r â o [ . . . ] , i b e r t a r a população
rural do isolamento e da etargiaV
etargia e tra™,..,.
trazer as u- bênçãos - da natureza para a vida
urbana. Engels recusou-se a especificar com mais precisão suas idéias sobre
centros populacionais, mas todo o seu argumento sugeria uma forte afinidade

/ O n d e Adam Smith, com base na teoria do desenvolvimento urbano e rural


reciproco vira a realização do homem citadino numa volta à terra como indiví-
duo, Engels imaginava o socialismo unificando as bênçãos da cidade e do campo,
0 y ao levar a cidade ao campo como entidade snrial „ a
e social e d e
, XT ' modo correspondente, a
natureza para a cidade. No curso de ttrês Hprarioc o
resdecadas seu
'
f ' Pensamento passou da rejei-

64
ção ética da cidade moderna, pela afirmação histórica de sua função libertadora,
para uma transcendência do debate rural-urbano numa perspectiva utópica: a
síntese da Kultur urbana e da Natur rural na cidade do futuro socialista. Embora
extremamente crítico da cidade contemporânea, Engels resgatou a idéia da cida-
de ao integrar seus vícios ao seu processo histórico de salvação social,
fi / U m a nova geração de escritores europeus expressou na década de 1890 con-
^^ cepções não muito distantes das de Engels. Ao contrário dos romancistas ingleses
^ > da década de 1840, não achavam a vida pré-industrial uma felicidade nem as solu-
ções ético-cristãs para o urbanismo moderno viáveis. Emile Zola, em sua trilogia
,/ Trois villes, pintou Paris como um antro de iniqüidade. A mensagem cristã estava
- ^K^ fraca e corrompida demais para regenerar a sociedade moderna: nem Lurdes,
s nem Roma podiam ajudar. A cura deveria ser encontrada no centro da doença: na
i ^ metrópole moderna. Ali, a partir da própria degradação, surgiria a moral huma-
nista e o espírito científico para construir uma nova sociedade. Emile Verhaeren,
um socialista ativo e poeta de vanguarda, mostrava as modernas villes tentaculai-
re
v / $ sugando o sangue vital do campo. Compartilhava com os arcaístas um senti-
mento forte a favor da vida de aldeia, mas a horrenda vitalidade da cidade trans-
formara o sonho arcaizante no pesadelo da atualidade moderna de intolerância e
vacuidade que dominava a vida rural. O último ciclo de sua tetralogia poética
mtitulada Aurora mostrava que as energias industriais que, durante cem anos,
arrastaram o homem para a opressão e a feiúra eram também a chave para a
redenção. A luz vermelha das fábricas anunciava a aurora do homem regenerado.
A revolução vermelha das massas realizaria a transformação. 25 /'
/Estavam então os arcaístas mortos no final do século? Não. Entretanto, fio-
í- resciam deforma mais profética,com suas fleursdu malào nacionalismo totali-
c»- w> .

&
tario: Léon Daudet e Maurice Barrès, na França, os literatos protonazistas na
, Alemanha. Todos condenavam a cidade, mas não a atacavam por ser vício, e sim
se
c <
jp us moradores, por serem viciosos. Os ricos urbanos liberais eram, na melhor
r das hipóteses, aliados dos judeus; os pobres eram as massas depravadas e desen-
raizadas, adeptas do socialismo materialista j u d e u ^ o l t e m o s à província, à ver-
dade
•^V * r a França, clamavam os neodireitistas franceseskVoltemos ao solo onde o
t^1 e san
8 u e corre claro, proclamavam os alemães racistas! Os protonazistas germâni-
' C O s — L a n g b e h n , Lagarde, Lange — acrescentaram ao seu culto da virtude cam-
X P°nesa a idealização do burgo medieval de Fichte. Só que, enquanto o filósofo

65
usava seu modelo arcaico para democratizar a vida política alemã, seus sucesso-
Vi
V, res o empregavam para uma revolução de rancor contra o liberalismo, a demo-
cracia e 0 socialismo Fichte f
V-'";/^" - alava para u m a classe média em ascensão; seus
sucessores protonazistas, para uma pequena burguesia que se sentia em queda,
<r / y esmagada entre o grande capital e o grande proletariado. Fichte exaltava a cida-
de comunitária contra a Residenzstadt despótica; seus sucessores, contra a
metrópole moderna. Em suma, enquanto Fichte escrevia com a esperança de um
racionalista comunitário, os protonazistas escreviam com a frustração dos irra-
cionalistas encarniçados./
//h segunda onda de arcaísmo pode ser facilmente distinguida da primeira
o r sua falta d e
•;/P simpatia pelo homem da cidade como vítima. Em 1900, a atitu-
r> J d e com
V P r e e n s i v a passara, em larga medida, para os futuristas, os reformistas
sociais ou revolucionários que aceitavam a cidade como um desafio social e
esperavam capitalizar suas energias. Os arcaístas remanescentes não viam a cida-
de e seus habitantes com lágrimas de piedade, mas com ódio r a n c o r o s o /
y , ^Como se
compara a idéia da cidade como vício de 1900 com aquela da cida-
de como virtude de cem anos antes? Para os futuristas de 1900, a cidade possuía
vícios, assim como possuía virtudes para Voltaire e Smith. Mas eles acreditavam
que esses vícios podiam ser superados pelas energias sociais nascidas da própria
cidade. Em contraste, os neo-arcaístas invertiam totalmente os valores de Fichte:
para o filósofo, a cidade encarnava a virtude numa forma social que deveria ser
imitada; para eles, ela encarnava o vício e deveria ser d e s t r u í d a /

//Por volta de 1850, surgiu na França uma nova maneira de pensar e sentir
&Y y que lenta e inexoravelmente estendeu seu d o m í n i o sobre a consciência do
* v / V Ocidente. Ainda não existe acordo sobre a natureza da grande mudança oceâni-
S ca introduzida em nossa cultura por Baudelaire e os impressionistas franceses e
formulada fílosofícame
V nte por Nietzsche. Sabemos apenas que os pioneiros
dessa mudança desafiaram explicitamente a validade da moral, do pensamento
social e da arte tradicionais. A primazia da razão no homem, a estrutura racio-
nal da natureza e o sentido da história foram levados ao tribunal da experiência
psicológica pessoal para julgamento. Essa grande reavaliação incluiu inevitável-

66
mente a idéia da cidade. Como virtude e vício, progresso e regresso perderam
clareza de sentido, a cidade foi situada para além do Bem e do Mal.
^ y v ^ * "O que é moderno?" Os intelectuais transavaliadores deram nova ênfase à
•w* questão. Não perguntavam: "O que é bom e o que é ruim na vida moderna?", e
Ly"^ , sim "O que éa vida moderna? O que é verdadeiro, o que é falso?" Entre as verda-
des que encontraram estava a cidade, com todas as suas glórias e seus horrores,
suas belezas e sua feiúra, como base essencial da existência moderna. O objetivo
dos novi homines da cultura moderna tornou-se não julgá-la do ponto de vista
ético, mas experimentá-la em sua plenitude pessoalmente.
^Talvez possamos distinguir com mais facilidade a atitude nova e modernis-
ta das mais antigas examinando o lugar da cidade na ordem do tempo. Antes, o
pensamento urbano situava a cidade moderna numa fase da história: entre um
passado de trevas e um futuro róseo (a visão do Iluminismo), ou como uma trai-
ção de um passado áureo (a visão antiindustrial). Comparativamente, para a
nova cultura, a cidade não tinha um locus temporal estruturado entre passado e
1
' pi/ ^ f u t u r o , e sim um atributo temporal. A cidade moderna oferecia um hic et tiunc
eterno, cujo conteúdo era a transitoriedade, mas cuja transitoriedade era perma-
nente. A cidade apresentava uma sucessão de momentos variegados, fugazes, e
Ksj? cada um deles deveria ser saboreado em sua passagem da inexistência ao esque-
vy' v .
• y cimento. Para essa visão, a experiência da multidão era fundamental: todos os
*' indivíduos desarraigados, únicos, todos unidos por um momento antes de par-
>\i, tirem cada um para o seu lado.'
t^V /Baudelaire, ao afirmar seu próprio desenraizamento, pôs a cidade a serviço
u m a
^ poética dessa atitude da vida moderna. Ele abriu panoramas para o habi-
tante da cidade que arcaístas lamentadores e futuristas reformadores ainda não
haviam descoberto. "Multidão e solidão: [esses são] os termos que um poeta
ativo e fértil pode tornar iguais e intercambiáveis", escreveu ele.26 Foi o que fez.
Baudelaire perdeu sua identidade, como o homem da cidade, mas ganhou um
niundo de experiência vastamente ampliada. Ele desenvolveu a arte especial a
que chamou de "banhar-se na multidão".27 A cidade proporcionava uma "orgia
bêbada de vitalidade", "deleites febris que estarão sempre barrados ao egoísta".
Considerava o poético habitante da cidade primo da prostituta — não mais
objeto de desprezo moralista. O poeta, tal como a prostituta, identifica-se com
todas as profissões, os regozijos e as misérias que as circunstâncias põem dian-
te dele". "O que o homem chama de amor é uma coisa muito pequena, restrita e

67
débil comparada com essa orgia inefável, essa prostituição sagrada de uma alma
que se entrega totalmente, com toda a sua poesia e caridade, ao que emerge ines-
peradamente, ao desconhecido que passa."28/'
ò Para Baudelaire e seus seguidores estetas e decadentes do fim do século, a
y „ cidade tornava possível o que Walter Pater chamou de "a consciência acelerada,
, " multiplicada". Porém, esse enriquecimento da sensibilidade pessoal era obtido a
um preço terrível: o afastamento dos confortos psicológicos da tradição e de qual-
quer sentido de participação num todo social integrado. Na visão dos novos artis-
tas urbanos, a cidade moderna destruíra a validade de todos os credos integrado-
res herdados. Tais crenças preservaram-se somente de forma hipócrita, como
máscaras historicistas da realidade burguesa. Ao artista cabia arrancar as másca-
ras, para mostrar ao homem moderno sua verdadeira face. A apreciação estética,
sensorial — e sensual —, da vida moderna tornou-se, nesse contexto, apenas um
tipo de compensação para a falta de âncora, de integração social ou de crença.
Baudelaire expressou essa qualidade tragicamente compensatória da aceitação
estética da vida urbana em palavras desesperadas: "A embriaguez da Arte é a me-
lhor coisa para encobrir os terrores da Cova; [... ] o gênio pode desempenhar um
papel à beira do túmulo com uma alegria que o impede de ver o túmulo". 29 /
Viver para os momentos fugazes que compunham a vida urbana moderna,
desfazer-se tanto das ilusões arcaizantes como das futuristas, isso poderia pro-
duzir não somente a reconciliação, mas também a dor destruidora da solidão e
da ansiedade A afirmação da cidade pela maioria dos decadentes não tinha o
^ caráter de uma avaliação, e sim de um amorfati. Rainer Maria Rilke representa-
va uma variante dessa atitude, pois, ao mesmo tempo que concedia a fatalidade
da cidade, avaliava-a negativamente. Seu Livro das horas mostrava que, se a arte
podia ocultar os terrores da cova, podia também revelá-los. Rilke sentia-se apri-
sionado na "culpa da cidade", cujos horrores psicológicos descreveu com toda a
paixão de um reformador frustrado:

Mas as cidades buscam seu próprio bem somente-


arrastam tudo em sua pressa precipitada.
Despedaçam animais como madeira decadente
e consomem incontáveis nações por nada.*,'

* But cities seek their own, not others' good;/ they drag all with them in their headlong haste / They
smash up animals like hollow wood/ and countless nations they burn up for waste.

68
fale sentia-se preso nas garras pétreas da cidade e o resultado era angústia,
"a angústia profunda do crescimento monstruoso das cidades". Para ele, a cida-
de, embora não estivesse para além do bem e do mal, era uma fatalidade coletiva
que só podia ter soluções pessoais, não sociais. Rilke buscou sua salvação num
y' y neofranciscanismo poético, que negava em espírito o destino vazio—a "rotação
em espiral" — que o homem urbano chamava progresso.30 Apesar de seu claro
• , r v y^protesto social, Rilke pertencia antes aos novos fatalistas do que aos arcaístas ou
futuristas, pois sua solução era psicológica e meta-histórica, não socialmente
redentora./
Precisamos evitar o erro de alguns críticos da cidade moderna em ignorar a
genuína joie de vivre que a aceitação estética da metrópole podia engendrar. Ao
ler esses urbanistas sofisticados do fin-de-siècle, percebe-se certa afinidade com
Voltaire.jfcor exemplo, leia-se "London", de Richard Le Gallienne:

^ Londres, Londres, nosso prazer,


Grande flor que abre somente à noite,
Grande cidade do sol noturno,
Cujo dia começa quando o dia acaba.

Lâmpada após lâmpada contra o céu


Abre um súbito olho brilhante
Saltando uma luzem cada mão,
\ Os lírios de ferro da Strand.*}]
• v
Le Gallienne expressou o mesmo deleite com a cintilação vital da cidade
que Voltaire. É claro que a fonte do brilho era diferente: a luz do sol banhava a
Paris de Voltaire; a natureza glorificava a obra do h o m e m . A cidade de Le
Gallienne, por outro lado, desafiava a natureza com lírios de ferro falsamente
bucólicos e sol da meia-noite a gás. O que celebrava não era a arte, mas a artifi-
cialidade. A Londres noturna que buscava os prazeres obliterava seu dia encar-

* London, London, our delight,/ Great flower that opens but at night,/ Great city of the midnight
s
un,/ Whose day begins when day is done.// Lamp after lamp against the sky/ Opens a sudden bea-
ming eye,/ Leaping a light on either hand,/ The iron lilies of the Strand. (The Strand 6 uma aveni-
da central e crucial de Londres — N. T.)

69
dido. O metro blakeano do poema de Le Gallienne — seria intencional? —
relembra a Londres rotineira de Blake, a transição histórica cinzenta do dia bri-
lhante de Voltaire para a noite espalhafatosa de Le Gallienne. O florescimento
noturno de Londres — tal como Le Gallienne mostrou que conhecia, em out-
ros poemas — era uma flor do mal. Mas num m u n d o urbano tornado fatalida-
de, uma flor ainda é uma flor. Por que alguém não deveria colhê-la? O princípio
do prazer de Voltaire ainda estava vivo no final do século xix, embora sua força
moral estivesse esgotada.
/Por mais marcantes que fossem suas diferenças na resposta pessoal, os tran-
7
savaliadores subjetivistas coincidiam na aceitação da megalópole, com seus ter-
y y rores e alegrias, como um fato, o terreno inegável da existência moderna. Eles
baniram a memória e a esperança, tanto o passado como o futuro. Dotaram seus
sentimentos de forma estética para substituir os valores sociais. Embora a críti-
ca social continuasse, às vezes, forte, como em Rilke, todo o sentido de domínio
social se atrofiou. O poder estético do indivíduo substituiu a visão social como
fonte de ajuda diante do destino. Enquanto os futuristas sociais buscavam a
redenção da cidade mediante a ação histórica, os fatalistas a redimiam diaria-
mente, revelando a beleza na própria degradação urbana. O que consideravam
inalterável tornaram suportável, numa postura estranhamente composta de
estoicismo, hedonismo e desespero.

Baudelaire e seus sucessores modernistas contribuíram inquestionavel-


mente para uma nova apreciação da cidade como cenário da vida humana A
revelação estética deles convergiu com o pensamento social dos futuristas para
pôr em circulação idéias mais construtivas sobre a cidade em nosso século Uma
vez que essa forma de pensamento é geralmente conhecida, vou encerrar com
outra síntese intelectual mais sombria, que levou às últimas conseqüências a
ldéia venh0
A ^ discutindo: a cidade para além do bem e do mal/fessa idéia -
^ * com seu equivalente histórico, a cidade como fatalidade—alcançou sua formu-
la
Ç ã ° t e Ó n c a m a i s P l e n a n o pensamento de Oswald Spengler e sua realização
prática nas mãos dos nacional-socialistas alemães.//
/ V ^ ^ sua visão geral da civilização, Spengler reuniu de forma mu, to sofistica-
da varias das ideias da cidade que revimos neste ensaio. Para ele,'a cidade era a

70
£> . . .
agência central civilizadora. Tal como Fichte, considerava-a uma criação origi-
nal do povo. Tal como Voltaire,%kamava-a de consumadora da civilização racio-
nal. Tal como Verhaeren,'óbservou-a sugar a vida do campo. Aceitando as análi-
ses psicológicas de Baudelaire, Rilke e Le Galliennè,'considerava a humanidade
urbana moderna neonômade, dependente do espetáculo da cena urbana sem-
pre em transformação para preencher o vazio de uma consciência dessocializa-
. da e desistoricizada. C o m todas essas afinidades com seus predecessores,
tf
^ - Spengler trazia, porém, uma diferença essencial: transformava todas as afirma-
ções deles em negações. Esse brilhante historiador da cidade odiava seu objeto
com a paixão amarga dos neo-arcaístas do final do século, os direitistas antide-
mocráticos e frustrados da classe média baixa. Apresentava a cidade como fata-
lidade, mas saudava claramente sua extinção. v
Os nazistas alemães compartilhavam as atitudes de Spengler, mas certa-
mente sem sua riqueza de saber. O exemplo de suas políticas urbanas ilumina as
conseqüências da fusão de duas das linhas que discutimos: valores neo-arcaizan-
tes e a noção da cidade como fatalidade para além do bem e do mal.
J ^ //ao traduzir as noções neo-arcaizantes em políticas públicas, os nazistas
"A começaram seu governo com uma política ativa de fazer voltar a população urba-
na para o solo sagrado germânico. Tentaram o reassentamento de trabalhadores
rV urbanos
—* ^ u u u a na
l i a terra
i c i i a ec aa educação
t u u v a y a u de jovens
j^ » y rural. 32 Mas esse
urbanos no serviço
^ / antiurbanismo não se estendeu às queridas cidades medievais de Fichte. Embora
• / houvesse se originado numa Residenzstadt— Munique —, o movimento nazista
y/ escolheu a Nuremberg medieval para sede de seu congresso anual. Entretanto, as
í y y demandas do Estado industrial moderno só podiam ser satisfeitas num cenário
r
} v urbano. Os nazistas, ao mesmo tempo que denunciavam a "literatura de calçada"
/ $ ^ d o s anos 20 e acusavam a arte urbana de decadente, ressaltavam na sua constru-
«y Ção da cidade todos os elementos que os críticos urbanos haviam condenado com
J vC . . .
$ t • . mais veemência. A cidade era responsável pela mecanização da vida? Os nazistas
çf - j / cortaram as árvores do Tiergarten de Berlim para construir a rua mais larga e mais
^ tediosamente mecânica do mundo: a Achse, onde jovens ruralmente regenerados
Podiam passar montados em motocicletas ruidosas, em formação de uniformes
^ / " p r e t o s . A cidade era o cenário da multidão solitária? Os nazistas construíram pra-
( 5r{" Ças imensas nas quais a multidão podia se inebriar. O homem citadino se tornara
desarraigado e atomizado? Os nazistas o transformaram no dente de uma imen-

71
y

y
sa engrenagem. A hiper-racionalidade que os neo-arcaístas deploravam reapare-
ceu no desfile nazista, na manifestação nazista, na organização de cada aspecto da
vida. Dessa forma, todo o culto da virtude rural e da cidade medieval e comuni-
tária revelou-se um verniz ideológico, enquanto a realidade do preconceito
antiurbano levava os vícios da cidade a uma realização jamais sonhada: mecani-
zação, desenraizamento, espetáculo e — intocados atrás das grandes praças de
homens em marcha para onde ninguém sabia — os cortiços que ainda fervilha-
vam. Não há dúvidas de que essa cidade se tornara uma fatalidade para o homem,
para além do bem e do mal. Os antiurbanitas elevaram a motivo de fruição as
características da cidade que mais haviam condenado. Pois eles mesmos eram
frutos da cidade não reformada do século xix, vítimas de um sonho do Iluminis-
mo que dera errado.

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