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Noções básicas CLÁUDIO LAKS EIZIRIK

ANA MARGARETH SIQUEIRA BASSOLS

sobre o MARINA BENTO GASTAUD


JULIA GOI
funcionamento
psíquico

profissionais da área da saúde e para os estudan-


INTRODUÇÃO
tes dessas disciplinas. O conhecimento profundo
O funcionamento psíquico baseia-se em uma desses estágios possibilita uma melhor percepção
complexa interação de elementos biológicos, psi- a respeito da estrutura dos padrões normais e
cológicos e sociais. Quando se avaliam o estado dos conflitos psíquicos esperados, assim como
psicológico e o comportamento de uma pessoa, dos limites entre saúde e transtornos emocionais.
três fenômenos devem ser considerados. O pri- Desse modo, é importante saber que certas crises
meiro é que os tipos de comportamento ou esta- do desenvolvimento, acompanhadas por ansieda-
do emocional, caracterizados como normais ou de, incerteza e estresse, estão dentro de uma ex-
anormais, variam enormemente com a idade: o pectativa normal e não são, necessariamente, si-
que se considera normal em um estágio do desen- nais de séria instabilidade ou doença mental.
volvimento pode ser considerado decisivamente Ao longo dos capítulos deste livro que des-
anormal em outro. O segundo fenômeno é que creverão as etapas do desenvolvimento humano,
o desenvolvimento psicológico não prossegue de vários conceitos básicos serão utilizados. O objeti-
modo uniforme: ocorre em estágios descontí- vo deste capítulo é descrever tais conceitos de
nuos, separados por períodos de mudanças brus- forma sintética e fornecer uma visão geral do fun-
cas ou de transição de um estágio para outro. Já cionamento psíquico ao longo do ciclo vital. Por
o terceiro diz respeito ao ambiente ou à cultura sua própria natureza introdutória, o que segue é
em que cada pessoa vive, com suas peculiarida- uma formulação resumida, que deve ser comple-
des, tradições e costumes. mentada pela leitura dos trabalhos dos autores
A identificação e a descrição dos estágios do aqui citados, para fazer justiça à complexidade e
desenvolvimento são importantes para todos os à criatividade de suas contribuições.
16 | cap. 1 Noções básicas sobre o funcionamento psíquico

te ainda ocorra), pois só colaboraria para uma


NORMALIDADE
simplificação e um consequente empobrecimen-
O conceito de normalidade é ambíguo, tem uma to da compreensão do desenvolvimento humano.
multiplicidade de significados e usos e costuma Também é importante levar em conta que o con-
ser definido como um juízo de valor: depende ceito de normalidade ou patologia pode ser usado
das normas culturais, dos valores e da época den- em situações de regimes ditatoriais, para perse-
tro do contexto social. As quatro principais pers- guir dissidentes, e ainda deve ser destacado que
pectivas pelas quais pode ser compreendido são: os autores deste livro compartilham a noção de
que existem doenças mentais, bem estudadas e
Normalidade como saúde, em que um com- passíveis de diagnóstico e tratamento, fato que
portamento é considerado normal quando algumas vezes costuma ser negado por razões
não há nenhuma psicopatologia presente. ideológicas ou políticas.
Normalidade como utopia, em que ocorre
um equilíbrio harmônico de diversos ele-
mentos do aparelho mental que culmina
O DESENVOLVIMENTO
com um ótimo funcionamento.
DO SISTEMA NERVOSO
Normalidade como média, isto é, baseada Durante os nove meses da gestação, o cérebro
no princípio matemático da curva de Gauss, do embrião humano adquire neurônios ao ritmo
sendo considerada a média como normal e de 250 mil por minuto. Inicialmente, esses neu-
as extremidades da curva como desviantes. rônios desenvolvem-se de maneira que parece
Normalidade como processo, resultante de caótica e, então, migram para destinações prede-
sistemas que interagem ao longo do tempo, terminadas. Os principais circuitos neuronais são
englobando variáveis de origem biológica, basicamente os mesmos em todos os mamíferos.
psicológica e social. O desenvolvimento do organismo tem origem em
um único ovo fertilizado e culmina no indivíduo
A integração dessas perspectivas e o uso de adulto. Nesse processo, a arquitetura dos circui-
uma ou outra vai favorecer a compreensão da tos neuronais é determinada pelos genes e por
pessoa como um todo, seja em um corte transver- suas interações com o ambiente celular.
sal ou longitudinal de seu desenvolvimento. É im- Entre o 40o e 50o dias de gestação, o cérebro
portante que não se utilize o conceito de normali- humano assemelha-se ao cérebro de um peixe.
dade como juízo de valor (embora isso infelizmen- Por volta do 100o dia, passa a assumir todas as
características do cérebro de um mamífero. A par-
tir do quinto mês de gestação, adquire as carac-
terísticas típicas de um primata. A partir desse
ponto, a grande elaboração do prosencéfalo, do
córtex cerebral e do cerebelo caracteriza exclusi-
vamente o gênero humano. O fato de que os está-
O conceito de normalidade gios iniciais do desenvolvimento do cérebro e do
é ambíguo, tem uma embrião humano como um todo guardam alguma
multiplicidade de semelhança com o curso da evolução de formas
significados e usos e mais simples até as mais sofisticadas de vida levou
costuma ser definido como à antiga noção de que a ontogênese reproduz a
um juízo de valor. filogênese.1,2
Há três teorias que procuram explicar o mo-
do pelo qual as mesmas vias e padrões específicos
de conexões neuronais são reproduzidos em cada
O ciclo da vida humana | 17

cérebro humano: a teoria do crescimento trófico; axônios se projetam para núcleos profundos bem
a teoria da competição das células; e a teoria do abaixo do córtex.
movimento dirigido pelas fibras.
É provável que esses três modelos sejam váli-
Teoria do crescimento trófico: postula que dos em diferentes situações do desenvolvimento,
terminais nervosos em crescimento juntam-se a em diversos grupos neuronais.4
neurônios ou células específicos, porque gradien-
tes químicos de certas substâncias estimulariam
O NEURÔNIO
o crescimento do axônio em uma dada direção e
no sentido de determinado grupo de células-alvo. O neurônio é a unidade funcional do cérebro. Ele
A pesquisadora Rita Levi-Montalcini foi agraciada recebe informações em seus dendritos e corpo
com o prêmio Nobel por ter identificado, em celular e as envia para outros neurônios e células
1951, o primeiro membro de uma família de subs- ao longo de seu axônio. O axônio típico divide-se
tâncias denominadas fatores de crescimento.3 Em em várias fibras menores, que acabam em termi-
suas pesquisas, ela verificou que a injeção de fato- nais, cada qual formando uma sinapse em outra
res de crescimento em ratos promove o cresci- célula. A sinapse representa a conexão funcional
mento de axônios simpáticos em direção ao local entre o terminal axonal e o neurônio seguinte,
da injeção. Dessa forma, o desenvolvimento neu- sendo o ponto no qual a informação é transmitida
ronal seria mediado por gradientes de fatores de de um neurônio a outro. A fenda sináptica é o
crescimento neuronal. pequeno espaço que separa o terminal axonal, o
corpo celular ou o dendrito de outra célula, com
Teoria da competição das células: propõe a qual ele faz contato sináptico.
que, no curso do desenvolvimento do embrião, A transmissão sináptica depende de agentes
certas conexões axonais acabam por se desenvol- neuroativos classificados em três grupos: neuro-
ver à custa de outras, que se retraem e desapare- transmissores, neuromoduladores e neuro-hor-
cem. Certos núcleos do sistema auditivo, por mônios. Para que seja classificada como neuro-
exemplo, contêm muito mais neurônios antes do transmissor, uma dada substância deve ser sinte-
nascimento que depois dele. Desse modo, são tizada e liberada pelo neurônio pré-sináptico. Os
formados mais neurônios e sinapses do que seria neuromoduladores não apresentam atividade si-
necessário, os axônios competem, e o número
de sinapses e neurônios acaba sendo reduzido.
Nessa perspectiva, esse seria o processo que leva-
ria à modelagem fina da organização anatômica
do cérebro do embrião, chegando posteriormen- A sinapse representa a conexão
te à organização precisa e detalhada das conexões funcional entre o terminal axonal e
sinápticas do cérebro adulto. o neurônio seguinte, sendo o
ponto no qual a informação é
Teoria do movimento dirigido pelas fibras: transmitida de um neurônio a
segundo esse modelo, cada neurônio em desen- outro. A fenda sináptica é o
volvimento emitiria prolongamentos que, ao al- pequeno espaço que separa o
cançar obstáculos (p. ex., superfície cerebral), já terminal axonal, o corpo celular ou
não podem crescer mais. O corpo celular passaria o dendrito de outra célula, com a
a migrar ao longo de seu prolongamento até che- qual ele faz contato sináptico.
gar ao obstáculo. Um exemplo desse processo são
as células de Purkinje, no cerebelo, cujo corpo
celular se encontra no córtex cerebelar e cujos
18 | cap. 1 Noções básicas sobre o funcionamento psíquico

náptica intrínseca e atingem o nível pré ou pós-


sináptico somente quando há transmissão sináp-
tica em curso. A modulação em geral ocorre por
Não só os fatores do
meio de segundos mensageiros envolvidos na
desenvolvimento, mas também a
transmissão. Os neuro-hormônios podem ser li-
experiência do indivíduo – desde
berados por neurônios e por células não neuro-
antes do nascimento até a morte –,
nais. Sua principal característica é o fato de trafe-
dão forma e rearranjam
garem na circulação para exercer sua ação em
continuamente a estrutura e a função
um ponto distante do qual foram liberados. O nú-
de cada cérebro individual.
mero de substâncias identificadas como neuro-
transmissores, neuromoduladores ou neuro-hor-
mônios é próximo de cem. Esses agentes atuam
em receptores de vários tipos, por meio dos quais
podem produzir efeitos diferentes. Assim como
é provável que nem todos os neurotransmissores
sejam conhecidos, tampouco se pode considerar sob controle genético e são formados antes do
que o mapeamento dos receptores tenha sido nascimento. Contudo, hoje se admite que muitas
completado.1,2 conexões sinápticas são formadas e modificadas
Um neurônio pode receber milhares de co- ao longo da vida. Essas conexões podem ser alte-
nexões sinápticas de outros neurônios, uma vez radas e moldadas pela experiência e podem cons-
que o cérebro humano apresenta cerca de 100 tituir uma das bases para a formação de determi-
bilhões de neurônios. Cada neurônio realiza apro- nados tipos de memória.1,2
ximadamente 60 mil sinapses; no cerebelo, ocor- Calcula-se que o número total de genes do
rem cerca de 150 mil sinapses. A cada segundo DNA humano chegue a 100 mil. Desses, talvez 50
ocorrem 100 mil impulsos por neurônio.5 mil sejam funcionais exclusivamente no cérebro,
O número possível de combinações de cone- o que sugere a enorme complexidade do controle
xões sinápticas entre neurônios em um único cé- genético sobre o cérebro e seu desenvolvimento.
rebro humano é maior do que o número estima- Não só os fatores do desenvolvimento, mas tam-
do de partículas atômicas que compõem o univer- bém a experiência do indivíduo – desde antes do
so conhecido. As vias e os sistemas de conexões nascimento até a morte –, dão forma e rearran-
sinápticas que se desenvolvem no cérebro estão jam continuamente a estrutura e a função de cada
cérebro individual. O desenvolvimento do sistema
nervoso central compreende diversos e comple-
xos estágios, desde a formação da placa neural,
passando pela neuroplasticidade e neurogênese,
pelas conexões cerebrais e, ainda, pela poda de
O número possível de
porções neuronais e morte de neurônios desne-
combinações de conexões
cessários ou impróprios (apoptose). A plasticida-
sinápticas entre neurônios em
de está ligada à capacidade neuronal para adap-
um único cérebro humano é
tar-se ou moldar-se de acordo com a necessidade
maior do que o número
cerebral ao longo do desenvolvimento, depen-
estimado de partículas atômicas
dendo de experiências repetidas ou, ainda, após
que compõem o universo
um dano neural. A neurogênese relaciona-se à
conhecido.
capacidade latente para o reparo tecidual dos
neurônios pela proliferação de novas células que
substituem o tecido danificado.1,2
O ciclo da vida humana | 19

Embora a arquitetura geral seja a mesma no metidos a situações de estresse muito intensas
gênero humano, os detalhes da organização cere- apresentam diminuição de estruturas hipocam-
bral diferem amplamente de uma pessoa para ou- pais, disfunções hipotalâmicas e reprogramação
tra devido tanto a fatores genéticos e do desen- do eixo HHA. Da mesma forma, indivíduos que
volvimento quanto às experiências de cada indiví- sofrem traumas importantes na infância, como
duo ao longo da vida. A interação desses fatores abuso sexual, apresentam níveis permanente-
– ou seja, herança genética, fatores ligados ao de- mente elevados de cortisol mesmo na idade adul-
senvolvimento e experiências ao longo da vida – ta. Essas crianças estão mais propensas a desen-
determina o que tem sido descrito como equação volver problemas psiquiátricos, como depressão,
etiológica das disfunções psíquicas.1,2 quando adultas.8
O termo estresse surgiu para designar as for- É provável que essa maior vulnerabilidade
ças envolvidas em uma situação de ameaça à ma- seja mediada pela disfunção do HHA. Dessa for-
nutenção da homeostase, sendo o sistema alos- ma, fatores biológicos podem predispor e perpe-
tático responsável por essa manutenção. O orga- tuar quadros psiquiátricos. Acredita-se atualmen-
nismo reage ao estresse ativando um complexo te que fatores ambientais, como estresse, possam
repertório de respostas comportamentais e fisio- interagir com fatores biológicos, ativando a ex-
lógicas, conhecidas como reações de “luta e fuga”, pressão de determinados genes, como os trans-
já descritas no início do século XX por Walter portadores de neurotransmissores ou os recepto-
Cannon.6 Genericamente, o estresse é referido res hormonais, que resulta em alterações no fun-
como qualquer mudança física ou psicológica que cionamento posterior do sistema alostático e de
rompe o equilíbrio do organismo, ou seja, altera resposta ao estresse, bem como em produção e
a homeostase, gerando uma carga alostática cu- manutenção de sintomas e quadros clínicos com-
mulativa ao longo da vida, à medida que o sistema plexos.
alostático se torna sobrecarregado. Essa sobre- Estudos mostram que ratas separadas preco-
carga com frequência é apontada como um fator cemente de suas mães apresentaram comporta-
para o surgimento ou a manutenção de quadros mento materno disfuncional com sua própria pro-
psiquiátricos, como depressão, transtornos de an- le, com diminuição do contato físico (comporta-
siedade e esquizofrenia.7 mento de lamber e acariciar). Além disso, seus
A resposta clássica ao estresse caracteriza- filhotes apresentaram resposta alterada ao es-
-se por mudanças físicas e comportamentais, en-
volvendo o sistema nervoso simpático e o eixo
hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA). A ativação do
HHA causa a liberação de catecolaminas nas ter-
minações nervosas e pela medula da adrenal, Indivíduos submetidos
além da secreção de adrenocorticotrofina pela a situações de estresse muito
adeno-hipófise, estimulando a secreção de cor- intensas apresentam diminuição de
tisol no córtex da adrenal. Os níveis elevados de estruturas hipocampais, disfunções
cortisol podem favorecer a atrofia de dendritos hipotalâmicas e reprogramação do eixo
da zona CA-3 do hipocampo, tornando-se tóxicos HHA. Da mesma forma, indivíduos que
ao organismo se elevados cronicamente, embora sofrem traumas importantes na infância,
sua elevação inicial seja importante para a respos- como abuso sexual, apresentam níveis
ta ao estresse. O cortisol em níveis elevados pode permanentemente elevados de
favorecer a suscetibilidade de neurônios à morte, cortisol mesmo na idade adulta.
tornando-os menos resistentes a adversidades co-
mo hipoglicemia, hipoxia e níveis elevados de
aminoácidos excitatórios. De fato, indivíduos sub-
20 | cap. 1 Noções básicas sobre o funcionamento psíquico

tresse, como, por exemplo, a ativação do hormô-


nio liberador de corticotrofina e a inibição da ex-
pressão de comportamentos e respostas neu- Neurônios espelho permitem
roendócrinas ao estresse, o que fortalece a ideia não apenas a compreensão direta
de que a presença do comportamento de lamber das ações dos outros, mas também
e acariciar (cuidados maternos) pode ser determi- de suas intenções, conferindo-lhes
nante no desenvolvimento neuroendócrino. Isso um grande significado social e
enfatiza que as relações precoces e a qualidade interacional, de importância
dos cuidados nos primeiros anos de vida são de- suprema nas primeiras relações da
terminantes no comportamento das pessoas ante
infância, bem como no processo
traumas na vida adulta, mas também evidencia que
psicoterápico ou analítico.
são determinantes da expressão gênica e de todo
o sistema neurológico de resposta ao estresse.9
Estudos de neuroimagem mostraram que ex-
periências adversas precoces modificam o funcio-
namento de áreas do cérebro como o sistema lím-
bico, do qual faz parte a amígdala (já está bem teracional, de importância suprema nas primeiras
fundamentada sua relação com o processo de re- relações da infância, bem como no processo psi-
conhecimento do perigo, gatilho das reações coterápico ou analítico.
emocionais e fisiológicas ao estresse, bem como
o fato de que esse mecanismo é a base da inter-
DESENVOLVIMENTO
pretação do ambiente, incluindo as relações in-
COGNITIVO BÁSICO
terpessoais, e do padrão de reações emocionais
subsequentes, como a percepção de ameaça, se- A ênfase no desenvolvimento cognitivo foi dada
gurança, raiva, medo, etc.).8 A capacidade de co- pelo psicólogo suíço Jean Piaget ao conduzir estu-
nexão desse sistema com áreas superiores, como dos sobre como as crianças pensam e se compor-
o córtex frontal, tem relação direta com a capaci- tam, formulando uma teoria da cognição. A teoria
dade de modular esses afetos e as reações com- piagetiana tenta explicar o desenvolvimento do
portamentais decorrentes, sendo que o processo pensamento do indivíduo, não o desenvolvimen-
de mudança ocorrido na psicoterapia e análise to da personalidade ou da identidade. Teóricos
estaria justamente relacionado à modulação de contemporâneos atualizaram a compreensão
padrões emocionais, em nível do sistema límbico, proposta por Piaget, tendo em vista a constatação
por centros corticais superiores. Essa capacida- de que habilidades evoluídas são percebidas cada
de não se restringe à percepção dos próprios sen- vez mais precocemente no desenvolvimento.11
timentos, mas dos estados emocionais de outras Piaget descreveu quatro estágios principais (ver
pessoas, o que remete ao conceito de neurônios quadro a seguir) que levam à capacidade do pen-
espelho, localizados principalmente no córtex samento adulto. Um é pré-requisito para o próxi-
pré-motor. Esses neurônios são células, descober- mo, mas a forma como crianças diferentes avan-
tas entre os anos 1980 e 1990, que se ativam na çam por esses estágios varia conforme sua heran-
execução de uma tarefa e na observação de outra ça genética e circunstâncias ambientais.12
pessoa executando a mesma tarefa, o que está
relacionado às tarefas de imitação, aquisição da
NOÇÕES PSICANALÍTICAS
linguagem, aprendizado e interação social.10 Eles
BÁSICAS
permitem não apenas a compreensão direta das
ações dos outros, mas também de suas intenções, A formulação clássica dos aspectos psicológicos
conferindo-lhes um grande significado social e in- do funcionamento mental é fornecida pela psica-
O ciclo da vida humana | 21

nálise, disciplina estabelecida por Sigmund Freud Baranger, Arminda Aberastury, Leon Grinberg e
(1856-1939) e desenvolvida por uma série de pes- David Liberman.
quisadores da mente, dentre os quais se desta- A palavra psicanálise designa uma teoria do
cam as contribuições de Anna Freud, Melanie funcionamento mental, um método de investiga-
Klein, Karl Abraham, Sandor Ferenczi, W. R. Bion, ção dos processos mentais inconscientes e um
D. Winnicott, J. Lacan, Margareth Mahler, Erik método de tratamento para transtornos emocio-
Erikson e, na atualidade, Otto Kernberg, André nais.
Green, Jean Laplanche, Hanna Segal, Janine Como teoria do funcionamento mental, a
Chasseguet Smirgel, Joyce MacDougall, Betty psicanálise baseia-se em dois postulados funda-
Joseph, Paulina Kernberg, Thomas Ogden e An- mentais: o determinismo psíquico, ou princípio da
tonino Ferro. A contribuição latino-americana pa- causalidade, e a existência do inconsciente. O pri-
ra o desenvolvimento da psicanálise baseia-se meiro sustenta que todos os acontecimentos da
principalmente nas contribuições de Angel vida mental são determinados, produzidos ou, ao
Garma, Heinrich Racker, Willy e Madeleine menos, influenciados por eventos anteriores do

Idade Estágio Descrição

0-2 Sensório-motor Uso de esquemas inatos para compreender o mundo (preensão,


sugar e olhar); aprendizagem por ensaio e erro e experimentação;
ausência de relações causais e de planejamento; início da capacida-
de de representação objetal, mas incapacidade de manipular as
imagens mentais; ausência de símbolos.

2-6 Pré-operacional Capacidade de simbolizar; capacidade de manipular mentalmente


os símbolos (a vassoura pode virar um cavalo durante a brincadeira);
egocentrismo (a criança pressupõe que todos veem o mundo à sua
maneira); ausência de conservação (a massinha de modelar em for-
mato esférico é amassada e, mesmo que a criança veja que nenhu-
ma quantidade de massa foi adicionada, ela diz que há mais quan-
tidade no novo formato); início da capacidade de classificação e
agrupamento de objetos, mas ausência do princípio de inclusão de
classe (p. ex., rosas são parte da classe de flores).

7-12 Operacional concreto Elaboração de regras e estratégias para compreender o mundo;


reversibilidade (operações mentais e ações físicas podem ser in-
vertidas – a massinha amassada pode voltar a ficar redonda); ope-
rações matemáticas; ordenação seriada; capacidade de investigar
hipóteses; lógica indutiva (do particular para o geral) e não dedutiva.

12+ Operacional formal Capacidade de previsão, não só de constatação; imaginação de


consequências futuras para as ações presentes; solução sistemática
e metódica de problemas; lógica dedutiva (se as premissas são ver-
dadeiras, então a conclusão é verdadeira); descentralização da pers-
pectiva egocêntrica.
22 | cap. 1 Noções básicas sobre o funcionamento psíquico

desenvolvimento, tanto os que ocorreram ime- rivalizar com um progenitor em busca da atenção
diatamente antes quanto aqueles que foram vivi- e do amor do progenitor do sexo oposto. Os con-
dos no início do desenvolvimento. Além dos da- flitos vivenciados durante esse período, bem co-
dos clínicos que permitem comprovar o princípio mo sua capacidade de resolução, gerariam as ba-
da causalidade, há crescentes evidências de pes- ses para as experiências relacionais futuras do in-
quisas recentes que sustentam a relação entre divíduo e determinariam um maior ou menor
doenças mentais da idade adulta e situações trau- grau de saúde e doença mental.
máticas da infância. Ao longo deste livro se verá Freud descreveu dois modelos principais de
que o autor que estabeleceu de forma mais organização da mente. O primeiro, conhecido co-
abrangente a sequência de fases e suas tarefas mo primeira tópica, ou teoria topográfica, divide
evolutivas específicas foi Erikson, seguindo e am- a mente em consciente, pré-consciente e incons-
pliando as formulações iniciais de Freud. ciente. O consciente é formado pelas ideias e pe-
O segundo postulado estabelece que nossa los sentimentos que estão em nossa mente a cada
vida mental é predominantemente inconsciente, dado momento. O pré-consciente inclui conteú-
ou seja, o estado mental consciente corresponde dos mentais que podem ser facilmente trazidos
ao que Freud sugeriu ser apenas a ponta de um à consciência pelo simples aumento da atenção
iceberg, de reduzidas proporções em face da ou esforço de memória. Já o inconsciente apre-
imensa massa submersa.13 Não temos acesso di- senta conteúdos mentais censurados por serem
reto ao inconsciente, mas apenas aos seus deriva- inaceitáveis, sendo reprimidos e não podendo
dos, como os sonhos, os atos falhos, os sintomas emergir tão facilmente à consciência. As evidên-
e as várias manifestações emocionais e comporta- cias clínicas que Freud utilizou para comprovar a
mentais que se expressam na transferência, con- existência do inconsciente foram os sonhos e as
ceito que caracterizaremos adiante. parapraxias (lapsos ou atos falhos).13
Ao longo do desenvolvimento teórico da psi- A segunda tópica, ou modelo estrutural
canálise, foram propostos vários modelos para (1923), passa a considerar a existência de três ins-
tentar descrever o desenvolvimento da personali- tâncias ou estruturas psíquicas na mente: ego, id
dade e o funcionamento mental. Os mais relevan- e superego.14,15 Nesse modelo, o ego era entendi-
tes para a perspectiva de desenvolvimento adota- do como uma espécie de moderador entre as de-
da neste livro serão agora resumidamente descri-
tos. As contribuições de outros autores serão des-
critas ao longo dos próximos capítulos.

FREUD
O id é uma instância psíquica
Freud, em 1905, propôs a primeira teoria psicana- totalmente inconsciente que inclui as
lítica do desenvolvimento, apresentando estágios pulsões – de vida e morte ou
sequenciais do desenvolvimento sexual, em que amorosas e agressivas –, tendo como
postula não apenas uma teoria sobre o desenvol- objetivo descarregar a tensão
vimento infantil, mas também uma teoria de in- provocada pela operação dessas
teração entre constituição (sequências matura- forças. É controlado pelos aspectos
cionais inatas) e experiência. As principais etapas inconscientes do ego e pelo superego,
do desenvolvimento infantil estudadas por Freud que incorpora a consciência
foram as fases oral, anal e fálica. Na fase fálica, a moral e o ideal de ego.
criança vive, para Freud, um momento crucial de
sua estruturação psíquica: o complexo de Édipo.
Há uma vivência triangular em que ela passa a
O ciclo da vida humana | 23

mandas pulsionais (provindas do id) e a realidade


MELANIE KLEIN
externa, tendo aspectos conscientes e inconscien-
tes. O aspecto consciente seria o órgão executivo Em contraste com a teoria freudiana, porém com-
da mente, responsável pelas tomadas de decisão plementando-a, Melanie Klein e colaboradores,
e pela integração perceptiva. O aspecto incons- citados por Segal,16 descreveram um modelo que
ciente conteria os mecanismos de defesa, como privilegia as relações de objeto primitivas e duas
a repressão, necessários para defender o ego das posições evolutivas – esquizoparanoide e depres-
pulsões poderosas da sexualidade (libido) e da siva –, bem como postula que o conflito psíquico
agressividade, oriundas do id. O id é uma instância ocorre desde o início do desenvolvimento, consi-
psíquica totalmente inconsciente que inclui as derando que o sadismo atua como um fator de-
pulsões – de vida e morte ou amorosas e agressi- terminante no conflito mental. A posição esqui-
vas –, tendo como objetivo descarregar a tensão zoparanoide ocorre nos primeiros meses e é ca-
provocada pela operação dessas forças. É contro- racterizada por intensa ansiedade persecutória,
lado pelos aspectos inconscientes do ego e pelo provocada pela sensação de que a mãe, ou partes
superego, que incorpora a consciência moral e o dela, está cindida. O bebê percebe as pessoas de
ideal de ego. O superego é formado a partir das forma parcial e as dota de características ora boas,
identificações inconscientes com as figuras dos ora más. Essa cisão ocorre por ação da agressivi-
pais e de outras pessoas significativas, ou seja, é dade inconsciente do bebê e faz com que o objeto
o herdeiro do complexo de Édipo. Nele estão con- percebido como mau torne-se uma ameaça imi-
tidos os valores próprios do indivíduo e os ele- nente. Aos poucos, o bebê vai percebendo que o
mentos da cultura da qual o sujeito faz parte. mesmo objeto é percebido como bom e como
Um conceito central daí decorrente é o de mau, experimentando sentimento de culpa por
conflito psíquico, resultante essencialmente da ter tentado destruir, de modo inconsciente, o ob-
luta entre poderosas forças inconscientes que jeto bom anteriormente percebido como mau.
buscam expressão e forças opostas que impedem Disso advém a posição depressiva. Na posição de-
seu surgimento. Na neurose, o conflito ocorre en- pressiva, o bebê percebe a mãe e os demais obje-
tre o ego (que se alia com a realidade externa) e tos como mais integrados, reconhece-os como
o id; na psicose, o conflito se daria entre o ego objeto total (em contraste com os objetos par-
(que se alia com o id) e a realidade externa; na ciais, ou partes deles, da posição anterior) e é
perversão, o conflito estaria entre o ego (que se capaz de relacionar-se com mais tranquilidade e
alia com o id) e o superego. O conflito produz menos temor persecutório.
uma ansiedade de alarme ou ansiedade-sinal, in-
consciente, que coloca em ação os mecanismos
de defesa. Assim, o conflito produz ansiedade,
que resulta em defesa, levando a um compromis-
so entre o id e o ego. A partir do conflito, surge o O bebê percebe as pessoas de
sintoma, constituindo uma formação de compro- forma parcial e as dota de
misso que, ao mesmo tempo, defende contra o características ora boas, ora más.
surgimento do desejo proveniente do id e o grati- Essa cisão ocorre por ação da
fica de uma forma simbólica. agressividade inconsciente do bebê
Os mecanismos de defesa contra a ansiedade e faz com que o objeto percebido
são de grande importância para a compreensão como mau torne-se uma ameaça
do funcionamento psíquico normal e patológico. iminente.
Os principais mecanismos de defesa e sua caracte-
rização serão descritos adiante.
24 | cap. 1 Noções básicas sobre o funcionamento psíquico

Klein sugeriu que a presença de ansiedade e D, ou seja, esquizoparanoide e depressivo, con-


excessiva na infância e o predomínio de um supe- forme descritos por Klein. Tal oscilação é que dá
rego primitivo e severo conduzem a distúrbios flexibilidade à mente e permite que novas expe-
no desenvolvimento do ego e a psicoses. Ela des- riências sejam assimiladas. Ou seja, Bion concei-
creveu um novo mecanismo de defesa: a identifi- tua que, quando somos expostos a uma nova ex-
cação projetiva. Na identificação projetiva, o su- periência emocional, entramos em uma certa de-
jeito projeta partes de seu self, ou eu, na mente sorganização psíquica (Ps), e que, se pudermos
de outra pessoa. Essa pessoa é acionada incons- tolerá-la, a seguir chegaremos a um novo estado,
cientemente a identificar-se com a parte projeta- mais organizado (D), tendo aprendido algo novo.
da e passa a comportar-se ou a experimentar sen-
timentos conforme esse aspecto do outro colo-
WINNICOTT
cado dentro de si. O reconhecimento e a descri-
ção desse mecanismo foram possivelmente o que Winnicott18 enfatizou o papel da “mãe suficiente-
modificou a compreensão das relações analista- mente boa” no equilíbrio entre o verdadeiro e o
-paciente e médico-paciente, como veremos a falso self, permitindo que o primeiro se expresse
seguir. em situações socialmente aceitáveis. Na teoria
de Winnicott, a influência de uma mãe suficien-
temente boa, aquela que estimula de forma repe-
BION
tida a segurança do lactente, reconhecendo e sa-
Seguindo a teorização kleiniana, Bion, citado por tisfazendo o gesto espontâneo do bebê, fortalece
Hinshelwood,17 descreveu com maior sofisticação o fraco ego infantil e cria, a partir disso, um verda-
a estrutura de mente, sugerindo que todo o de- deiro self, resultado, portanto, do sucesso da mãe
senvolvimento psíquico ocorre a partir das expe- em sua função. Nem gratificando demais, o que
riências emocionais vividas nos vínculos huma- impede que seu filho reconheça a realidade ou
nos. Esse desenvolvimento se iniciaria na primiti- que tenha frustrações necessárias para seu de-
va relação mãe/bebê, em que a mãe “empresta- senvolvimento (do pensamento, como já dizia
ria” sua mente, sua capacidade de pensar, para Bion), nem gratificando tão pouco que ele não
compreender e transformar as emoções brutas possa fortalecer seu ego e desenvolver sua au-
do bebê em elementos psíquicos com significado.
A mãe seria, então, continente para as emoções
do bebê, estabelecendo uma primeira relação
transformadora continente/contido. Com o pas-
sar do tempo, o bebê identifica-se com essa fun-
ção continente e transformadora da mãe e, assim, Na teoria de Winnicott, a
adquire uma função essencial que o tornará capaz influência de uma mãe
não só de conter suas próprias emoções, como suficientemente boa, aquela que
também de transformá-las em elementos psíqui- estimula de forma repetida a
cos capazes de serem memorizados, sonhados e segurança do lactente,
armazenados. Em suma, Bion concebe que assim reconhecendo e satisfazendo o
se constrói a mente humana. Ele denomina esses gesto espontâneo do bebê,
elementos brutos de elementos beta; os elemen- fortalece o fraco ego infantil e cria,
tos frutos da transformação foram batizados de a partir disso, um verdadeiro self,
elementos alfa; e a função transformadora, por resultado, portanto, do sucesso da
sua vez, de função alfa. mãe em sua função.
Além disso, Bion concebe que a mente oscila
permanentemente entre dois estados básicos, Ps
O ciclo da vida humana | 25

toestima e sua criatividade. Uma mãe que não é interage com amigos, professores, etc., em seu
suficientemente boa falha em satisfazer as neces- contexto cultural. Ele foi além de Freud ao descre-
sidades e em complementar a autonomia do be- ver o desenvolvimento após a puberdade, contes-
bê ou o faz em excesso, de modo que este não tando a noção de que a experiência infantil é o
pode mais reconhecer a realidade como tal. Nes- único determinante de padrões de personalidade
se caso, a mãe substitui a espontaneidade do be- ao longo da vida. Erikson considera que a pessoa
bê por sua própria conduta, falhando em funcio- evolui durante toda a vida, interagindo constante-
nar como um espelho para seu filho (Winnicott mente com o meio ambiente. Sua teoria é voltada
também enfatizou a importância do espelhamen- para o desenvolvimento do ego ao longo do ciclo
to na relação do bebê com a mãe); assim, as fun- vital, sendo o ego a ferramenta utilizada pelo indi-
ções se invertem, e o bebê acaba submetendo- víduo para organizar informações externas, testar
se a uma mãe possivelmente onipotente, auto- percepções, selecionar memórias, realizar ações
centrada e arrogante. Trata-se do estágio inicial adaptativas e integrar capacidades de orientação
do falso self, resultante da inabilidade da mãe de e planejamento. Ele descreve oito estágios do de-
sentir as necessidades do bebê.18 senvolvimento do ego, que abrangem desde o
nascimento até a morte. Cada estágio apresenta
aspectos positivos e negativos, é marcado por cri-
ERIKSON
ses emocionais e é afetado pela cultura particular
Erik H. Erikson, um dos mais influentes psicanalis- do indivíduo e por sua interação com a sociedade
tas norte-americanos, ampliou a teoria psicana- da qual faz parte. Define como básico o princípio
lítica do desenvolvimento para fora dos laços da epigenético, no qual cada estágio psicossocial ser-
família nuclear, focalizando seu interesse além das ve como base para o subsequente.19 O mais im-
questões da importância das primeiras experiên- portante é que considera que a personalidade
cias do bebê e do romance familiar edípico para continua a ser moldada no decorrer dos oito está-
o mundo mais amplo, a sociedade, onde a criança gios seguintes:

Estágio Crise psicossocial

I. Bebê Confiança básica × Desconfiança


II. Primeira infância Autonomia × Vergonha, dúvida
III. Infância intermediária Iniciativa × Culpa
IV. Idade escolar Atividade × Inferioridade
V. Adolescência Identidade × Confusão de identidade
VI. Adulto jovem Intimidade × Isolamento
VII. Adulto Generatividade × Estagnação
VIII. Idoso Integridade de ego × Desespero

Cada crise psicossocial possibilita, se bem III. Objetivo/Propósito


elaborada, uma aquisição significativa à persona- IV. Competência
lidade do sujeito: V. Fidelidade
VI. Amor
I. Esperança VII. Cuidado
II. Vontade/Desejo VIII. Sabedoria
26 | cap. 1 Noções básicas sobre o funcionamento psíquico

Por sua vez, cada estágio do ciclo vital terá tência de um comportamento inato da criança
um resultado patológico diferente se não for con- de buscar o cuidador, principalmente em situa-
cluído de forma bem sucedida.20 ções de medo e perigo. Ele coloca a função do
apego como uma capacidade cognitiva instintiva,
que tem uma função adaptativa de propiciar pro-
PSICOLOGIA DO EGO
teção no início da vida e desencadear o comporta-
Hartmann21 e seus colegas da psicologia do ego mento de cuidado – capacidade de apego com-
descreveram um modelo em que há matrizes ina- plementar (afeto/proteção) – por parte do cui-
tas desde o início do desenvolvimento, áreas li- dador. Essa capacidade de apegar-se, vincular-se,
vres de conflito e uma busca de adaptação com pode aumentar ou diminuir de acordo com o cor-
relação ao meio ambiente expectante. respondente complementar de apego fornecido
Nessa tradição teórica, M. Mahler e colabo- pelo ambiente e pelas principais relações da in-
radores22 estudaram as relações de objeto na pri- fância precoce. Também cita a exclusão defensiva,
meira infância e fizeram uma contribuição signifi- em que o bebê tem condições de excluir da me-
cativa para a compreensão do desenvolvimento mória situações com as quais ainda não tem re-
da personalidade. Descreveram o processo de se- cursos para lidar, como um mecanismo de defesa
paração-individuação a partir da observação em- que deve ser usado em proporções ideais, nem
pírica de crianças em desenvolvimento, resultan- demais nem de menos.24
do no sentido subjetivo de separação entre o indi- Esse autor considera que a relação da criança
víduo e o mundo ao seu redor. O processo de se- com seus pais é influenciada pelas características
paração-individuação começa no terceiro ou quar- do infante, dos progenitores e da relação dinâmi-
to mês de vida e termina em torno dos 36 meses. ca entre eles. A resposta dos pais, no sentido de
Outro autor importante dessa escola é René estarem atentos, disponíveis, sensíveis às necessi-
Spitz,23 com seu conceito de “organizador”. Para dades da criança e que confortem amorosamente
ele, o primeiro organizador é a resposta do sorri- em situações de medo em que ela busque prote-
so, em torno das primeiras seis semanas de vida, ção, sem limitar sua autonomia, seria crucial no
quando o bebê reage de forma consistente e re- desenvolvimento da personalidade. Os pais são
petida em resposta a uma face humana, o que como uma “base segura”, resultando em compe-
sugere que essa face representa o primeiro objeto tência da criança para explorar e se relacionar
“não eu” para o bebê, com a função de ligar even- com o mundo. O indivíduo se tornaria confiante
tos externos e internos. O organizador seguinte e esperançoso, aumentando o esforço mediante
é a “resposta ao estranho”, que ocorre em torno falhas/obstáculos, sendo mais “resistente” a si-
dos 7 meses de idade. A criança reage evitando,
com apreensão, uma pessoa estranha ao seu am-
biente, sinalizando o vínculo a alguém específico
(mãe ou cuidador). O terceiro organizador de
Spitz é o desenvolvimento do “não”, que sinaliza
a presença de um ser separado, que pode recusar A teoria do apego
algo utilizando o não, mostrando-se um centro considera a existência de
de desejos separado da mãe. um comportamento inato
da criança de buscar o
cuidador, principalmente
As contribuições de Bowlby em situações de medo
Outro autor psicanalítico que nos ajuda a com- e perigo.
preender todas essas relações é John Bowlby, com
a sua teoria do apego. Essa teoria considera a exis-
O ciclo da vida humana | 27

tuações adversas, sentindo-se capaz de ajudar-


se e de ser ajudado. Esse padrão de vínculo pode
ser considerado um fator de resiliência, que facili-
taria a adaptação do indivíduo a situações adver- O repertório de defesas
sas na vida adulta. No entanto, se os pais estão utilizado por uma pessoa para
frequentemente indisponíveis ou não reconhe- lidar com a ansiedade em
cem as necessidades da criança, se estabelece o situações de estresse fornece uma
que Bowlby chamou de apego inseguro ansioso- contribuição decisiva para a
resistente, e a criança torna-se excessivamente formação de sua personalidade.
ansiosa em relação a separações e em sua explo-
ração do mundo. Outra possibilidade de apego
inseguro é o tipo ansioso-evitativo, que tende a
se estabelecer quando a criança não recebe con-
forto ao buscar ajuda e segurança, mas atitudes
de rechaço e rejeição, levando-a a buscar viver guindo a sistematização e a descrição propostas
sentindo que não precisa de ninguém. Nesses ca- por Gabbard25 e adaptando-a aos propósitos des-
sos, quando a criança e seus cuidadores falham te capítulo.
em estabelecer o chamado apego seguro, o indiví-
duo estaria mais sujeito a sensações de descon- Defesas maduras: são as defesas consideradas
trole e imprevisibilidade que, na vigência de um adaptativas, pois conseguem maximizar a gratifi-
evento traumático, levariam a aumento do risco cação do impulso e permitem o conhecimento
de psicopatologia, ou seja, menor resiliência. consciente de sentimentos, ideias e suas conse-
quências. Esses mecanismos envolvem um balan-
ço adequado entre manter a ideia e o afeto na
MECANISMOS DE DEFESA
mente enquanto se atenua o conflito. Esse nível
O conhecimento dos principais mecanismos de de funcionamento defensivo indica uma adapta-
defesa é de grande utilidade para a compreensão ção mais favorável no manejo dos estressores.
do funcionamento da mente, tanto dos processos
mentais normais como dos patológicos. Seu estu- Defesas neuróticas: são as defesas que permi-
do foi iniciado por Freud e seguido por sua filha tem as formações de compromisso, ou seja, o in-
Anna Freud, Melanie Klein e autores posteriores, divíduo mantém ideias, sentimentos, recorda-
que ampliaram e detalharam alguns mecanismos ções, desejos ou temores, considerados poten-
específicos, como repressão, formação reativa, cialmente ameaçadores, fora da consciência. São
anulação, introjeção, identificação, projeção, iden- defesas que alteram afetos, sentimentos internos
tificação projetiva e sublimação, entre outros. ou expressão dos instintos, fazendo que o indiví-
O repertório de defesas utilizado por uma duo pareça estar sempre às voltas com suas pre-
pessoa para lidar com a ansiedade em situações ocupações pessoais e seus problemas insolúveis.
de estresse fornece uma contribuição decisiva
para a formação de sua personalidade. Defesas imaturas: são as defesas narcísicas, que
Os mecanismos de defesa podem ser classifi- envolvem uma maior distorção na imagem de si
cados de várias maneiras, por exemplo, levando mesmo ou de outros, podendo ser empregadas
em consideração a fase libidinal em que surgem, para regular a autoestima. Caracterizam-se por
de acordo com uma forma particular de psicopa- manter os estressores, impulsos, ideias, afetos ou
tologia, como simples ou complexos, etc. responsabilidades desagradáveis ou inaceitáveis
Consideramos aqui a classificação em defe- fora da consciência, atribuindo-os, em geral de
sas narcísicas, imaturas, neuróticas e maduras, se- forma incorreta, a causas externas. Tendem a ser
28 | cap. 1 Noções básicas sobre o funcionamento psíquico

usadas por pessoas que se sentem ameaçadas Idealização: lidar com o conflito emocional
pela intimidade interpessoal ou que se compor- ou estressores internos ou externos atribuin-
tam de forma socialmente indesejável. do a outros qualidades positivas exageradas.
Cada mecanismo de defesa é assim definido:26 (Neurótico)
Formação reativa: transformar um impulso
Sublimação: obter gratificação de impulsos ou sentimento inaceitável em seu oposto.
e retenção de metas, mas alterando uma me- (Neurótico)
ta ou objeto socialmente reprovável para um Projeção: atribuir os próprios sentimentos
socialmente aceito. Permite que os instintos e desejos a outra pessoa devido a esses senti-
sejam canalizados em vez de bloqueados ou mentos internos serem intoleráveis ou dolo-
reprimidos. Os sentimentos são reconheci- rosos. (Imaturo)
dos, modificados e voltados em direção a um Agressão passiva: expressar agressividade
objeto ou meta significativo e uma pequena em relação a outros indiretamente por meio
satisfação instintiva ocorre. (Maduro) de passividade e masoquismo e voltar-se
Humor: usar humor para expressar aberta- contra si mesmo. (Imaturo)
mente sentimentos e pensamentos sem des- Atuação (acting out): expressar um desejo
conforto ou imobilização pessoal e sem pro- ou impulso inconsciente por meio da ação,
duzir um efeito desagradável nos outros. Per- evitando tomar consciência de um afeto con-
mite que a pessoa tolere e ainda assim focali- comitante. A fantasia inconsciente é vivida
ze o que é terrível demais para ser suportado. impulsivamente no comportamento, gratifi-
(Maduro) cando o impulso, em vez da proibição contra
Antecipação: antecipar realisticamente al- ele. Envolve ceder cronicamente a um im-
gum desconforto futuro. É voltado a uma me- pulso para evitar a tensão que resultaria do
ta e implica um planejamento cuidadoso ou adiamento de sua satisfação. (Imaturo)
preocupação e antecipação afetiva prematu- Isolamento: dissociar ou separar uma ideia
ra, porém realista, de resultados calamitosos do afeto que a acompanha e é reprimido.
e potencialmente assustadores. (Maduro) (Imaturo)
Supressão: consciente ou semiconsciente- Desvalorização: lidar com o conflito emocio-
mente adiar prestar atenção a um impulso nal ou estressores internos ou externos atri-
ou conflito. As questões podem ser delibera- buindo qualidades exageradamente negati-
damente interrompidas, mas não são evita- vas a si mesmo ou a outros. (Imaturo)
das. O desconforto é reconhecido, mas mi- Fantasia autística: lidar com o conflito emo-
nimizado. (Maduro) cional ou estressores externos ou internos
Racionalização: oferecer explicações racio- mediante devaneios excessivos, como um
nais em uma tentativa de justificar atitudes, substituto para relacionamentos humanos,
crenças ou comportamentos que podem, de ações mais efetivas ou resoluções de proble-
outro modo, ser inaceitáveis. (Maduro) mas. (Imaturo)
Anulação: lidar com o conflito emocional ou Negação: evitar a percepção de algum aspec-
estressores internos ou externos mediante pa- to doloroso da realidade negando dados sen-
lavras ou comportamentos destinados a negar soriais. A negação abole a realidade externa.
ou corrigir simbolicamente pensamentos, sen- (Imaturo)
timentos ou ações inaceitáveis. (Neurótico) Deslocamento: mudar uma emoção ou cate-
Pseudoaltruísmo: o indivíduo ajuda o outro xia de impulso de um objeto ou ideia para ou-
com o propósito de sentir-se (a si próprio) tro que se assemelha ao original em algum as-
gratificado. (Neurótico) pecto ou qualidade. Permite a representação
O ciclo da vida humana | 29

simbólica da ideia ou do objeto original por


outro que evoca menos angústia. (Imaturo)
Dissociação: modificar de modo temporário
e drástico, o caráter de uma pessoa ou o pró- A compreensão dos fenômenos
prio sentimento de identidade pessoal para transferenciais é central para se
evitar angústia. Estados de fuga e reações entender a atitude e as
de conversão histérica são exemplos de dis- expectativas do paciente em
sociação. (Imaturo) relação ao terapeuta e à
Cisão: lidar com o conflito emocional ou es- equipe de saúde.
tressores internos e externos compartimen-
talizando estados afetivos opostos, não con-
seguindo integrar as qualidades positivas e
negativas, próprias ou dos outros, em ima-
gens coerentes. (Imaturo)
Somatização: converter derivados psíquicos temporâneas a aceita como essencial, pois possi-
em sintomas corporais e tender a reagir com bilita entender o que está se passando na relação
manifestações somáticas em vez de psíqui- bipessoal, assim como o nível de desenvolvimen-
cas. (Imaturo) to emocional apresentado pelo paciente tanto na-
quele momento como ao longo de sua evolução.
A partir das contribuições de Willy e Made-
A RELAÇÃO COM O PACIENTE
leine Baranger27 e de outros autores mais recen-
Os vários modelos psicanalíticos da mente e do tes, foi possível entender que se estabelece um
funcionamento psíquico têm como decorrência campo analítico em que o terapeuta e o paciente
prática a concepção de uma relação terapêutica acabam por desenvolver uma relação única, com
que se baseia em um interjogo inconsciente entre fantasias inconscientes compartilhadas, assim co-
terapeuta e paciente e entre médico e paciente. mo áreas de resistência mútua denominadas ba-
Dois conceitos básicos nesse sentido são os de luartes, que vão determinar o maior sucesso ou
transferência e de contratransferência. A transfe- insucesso de cada relação terapêutica. Para que
rência é a reedição de sentimentos, ideias, fanta- uma adequada ação terapêutica seja exercida, é
sias ou experiências infantis na relação atual com necessário que o terapeuta se coloque em uma
o terapeuta ou profissional da saúde. Assim, as posição de certa neutralidade possível em relação
experiências infantis com os pais ou outras figuras ao paciente, em que possa ser ao mesmo tempo
significativas são revividas na relação terapêutica natural e espontâneo e preservar a assimetria da
atual, em que o terapeuta pode ser visto como relação.28
figura idealizada ou persecutória, alternada ou Assim, na medida em que se espera que um
sucessivamente. A compreensão dos fenômenos estudante das áreas da saúde aprenda a relacio-
transferenciais é central para se entender a atitu- nar-se com as pessoas que observa, espera-se
de e as expectativas do paciente em relação ao também que esteja, dessa forma, se preparando
terapeuta e à equipe de saúde. para estabelecer relações adequadas e éticas com
Em resposta à transferência, o terapeuta rea- seus pacientes, respeitando, reconhecendo e
ge com ideias, sentimentos e fantasias inconscien- identificando tanto as suas próprias reações emo-
tes que constituem a contratransferência. Consi- cionais como as de seu paciente, em qualquer
derada inicialmente como um obstáculo para o fase do ciclo vital, pois isso será decisivo para o
tratamento analítico e para a compreensão da diagnóstico e o tratamento das várias situações
relação com o paciente, a maioria das escolas con- encontradas em sua atividade clínica.
30 | cap. 1 Noções básicas sobre o funcionamento psíquico

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