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Figuras Urbanas do Cotidiano:

caos, resignação e crítica no discurso do rock nacional - anos 80

Este trabalho pretende se voltar para a análise de certas formas de representação

crítica do contexto social vivido no cotidiano brasileiro, a partir da interpretação de algu-

mas de suas configurações nas letras do rock nacional dos anos 80. Outrossim, deve-se

assinalar ainda que tais representações são aqui concebidas como mediações de uma cons-

telação ampla de valores que parece fazer parte do conjunto do imaginário da juventude

neste período. Ademais, embora o presente estudo não tenha dedicado qualquer atenção

às formas de recepção ou fruição daqueles produtos culturais por parte do público jovem,

o que demandaria uma outra ordem de investigação distinta do que está sendo proposto

aqui, a afirmação de um processo de mediação entre elementos característicos do discurso

do rock acima delimitado e certas formas de representação social mais tipicamente

configuradoras de um universo de práticas e valores juvenis, procura se respaldar na

discussão levada a efeito nos capítulos anteriores: em primeiro lugar, com respeito ao

caráter ambivalente e polissêmico da cultura comercial ou de massa, que lhe possibilita

convivência com manifestações de contratendência (como foi visto); em segundo, de

como isto pode, simbólica e potencialmente, despertar “impulsos utópicos”, na forma do

dialogismo e de um inconsciente político do discurso; por fim, no tocante a certos traços

característicos do que se passou a denominar de cultura juvenil, em particular no que se

refere ao quadro de uma cultura mundial de consumo e das condições de produção da

subjetividade neste contexto, fortemente marcado de um processo de desterritorialização

e de aculturação planetária, conforme orientação dada anteriormente.

Outro aspecto importante, quanto à afirmação de uma relação de pertinência entre

aquele discurso do rock e certas formas de representação social da juventude brasileira


dos anos 80, uma vez que não se está concebendo os MCM de forma monolítica e

unilateral, diz também respeito ao fato de ser este segmento jovem o que compõe o grande

público daquilo que pode ser caracterizado como o maior fenômeno comercial em

conjunto já obtido pelas manifestações do rock no Brasil. Como já se disse, o critério

inicial para a escolha das bandas foi, prioritariamente, embora não exclusivamente, o de

sua figuração na Parada do Leitor da revista Bizz - que, de resto, confirma o que é

revelado por outras fontes de informação sobre os hits de sucesso. Contudo deve ficar

claro, desde o início, que só neste ponto é que se procurou fazer alguma referência aos

aspectos mercadológicos do fenômeno musical do rock. Visto que se está tratando, neste

estudo, de se pensar alguns elementos do discurso e não dos processos de mercado do

rock.

E embora se vá cuidar, com exclusividade, do rock na década de 80, convém

considerar o fato de que não se está tratando este fenômeno musical como seguindo a

orientação de um movimento estético mais definido. Ao contrário, desde a sua formação

e onde quer que se tenha manifestado, o rock tem sido marcado por uma grande variedade

de estilos, com ramificações diversas, muitas vezes distintas entre si; mas, também, por

uma série de fusões, que é o que tem dado prosseguimento ao forte dinamismo deste

gênero musical. Ainda mais por ele se encontrar, em sua multiformidade, associado a

certas “bandeiras” ideologicamente representativas de certos valores compartilhados por

uma pluralidade de grupos e/ou movimentos juvenis; quando não surgem diretamente

destes grupos. Conforme ficou definido, tomou-se apenas o procedimento da análise das

letras, abstraindo-se às questões propriamente de estética musical.

Por outro lado, talvez seja conveniente lembrar que são bem anteriores as manifes-

tações em que se pode notar a influência deste gênero na movimentação musical

brasileira. Assim, ainda que de modo arbitrário, conciso e essencialmente descritivo,


pode-se classificar as principais etapas do rock no Brasil na seguinte ordem: a pré-jovem

guarda, a jovem guarda, o tropicalismo, o período de emergência do rock fundido a estilos

regionais e das bandas do rock pauleira e progressivo e, por fim, a grande explosão do

“novo” rock brasileiro nos anos 80.

4.1. Presença do rock no Brasil

As primeiras manifestações do rock no Brasil se dão já na década de 50, período

do seu surgimento nos EUA. O Brasil vivia sob o signo da modernização, inspirado na

arrancada desenvolvimentista de JK, com o seu lema dos “50 anos em 5”. O avanço

industrial de São Paulo, a construção de Brasília, as grandes transformações urbanas no

país, são alguns dos motivos de certo clima de euforia então reinante. Ao mesmo tempo,

o surgimento da televisão já denotava um novo ingrediente à expansão dos MCM no

Brasil. No plano musical, além das primeiras manifestações do rock, este período vai

assistir ao surgimento da bossa nova, um dos mais significativos movimentos estético-

musicais em todos os tempos no país.

Na verdade, sob este quadro de modernidade, o país assiste ao processo de uma

mais rápida urbanização de seus vários segmentos sociais - em particular, ao crescimento

das classes médias: potencialmente o setor que corresponderia à expansão em novos pa-

drões do consumo de bens duráveis que então se acelerava, e isso incluía o consumo dos

produtos culturais comerciais (por exemplo, com a expansão do mercado e da produção

de discos). Ao mesmo tempo que assimilavam novos valores e hábitos incorporados a

partir de tais transformações, estes setores ainda compartiam uma moral fortemente

tradicionalista no tocante aos padrões de organização da família e, em particular, com

relação à moral sexual - ver, a propósito, Medeiros (1984).


Quanto à chegada do rock no Brasil, pode-se afirmar que foi no cinema que ele

encontrou seu primeiro e principal meio de difusão em massa. O filme Rock Around the

Clock, lançado aqui em meados dos anos 50, tem sido apontado como o marco inicial de

influência de toda uma manifestação subsequente de cultura jovem no Brasil. A

dificuldade inicial de difusão do rock em efervescência nos EUA, já que os primeiros hits

deste gênero não haviam sido gravados em gravadoras de grande porte, levou a que os

produtores brasileiros gravassem outras versões (ainda em inglês) de algumas das canções

que haviam obtido maior sucesso: é o caso da canção homônima ao já referido filme, em

que a interpretação de Bill Haley é substituída pela de Nora Ney; e esse será o caso,

também, de outros artistas como, por exemplo, Cauby Peixoto. O ano de 1959 é, contudo,

aquele em que Cely Campello lança a sua versão em português da música Stupid Cupid,

de Neil Sedaka e Greenfield, obtendo grande sucesso e abrindo maior espaço para o rock

no Brasil. Agora, não se trata de simples covers do rock americano, na forma como o fez

Nora Ney; tratava-se, isto sim, de versões em português daquelas músicas: que fez crescer

a participação de uma personagem muito importante neste período e no subsequente - o

autor das versões, espécie de letrista que fazia para o português as adaptações de hits

originalmente cantados em língua estrangeira, como no caso do conhecidíssimo Fred

Jorge.

Após o sucesso de Cely Campello com Estúpido Cupido, é a vez de outros nomes

se projetarem no cenário musical: Sérgio Murilo, Demétrius, Tony Campello e outros.

Este é o momento de maior aproximação de identidade entre os cantores desse rock no

Brasil e o público jovem; visto que Nora Ney, por exemplo, estava mais para o que se

identificava como o grupo de intérpretes da MPB mais tradicional. Em sua maioria, as

canções eram versões ingênuas, marcada de forte romantismo e tímida rebeldia: tudo ao

sabor de certa aura de Brasil moderno, cujo entusiasmo se inspirava no american way of
life do pós-guerra - este é, aliás, um período de grande presença, entre nós, dos produtos

culturais americanos, particularmente do cinema, todos cheios de pré-figurações do status

quo revelador do estilo de vida americano.

Após a saída de cena de Cely Campello, que troca a carreira de cantora por um

casamento, esta primeira fase do rock no Brasil declina, após ter estado no ar em

programas de rádio e TV, um dos quais os irmãos Campello comandavam a apresentação.

Este é, particularmente, o momento de grande efervescência da bossa nova.

Passado um breve período de silêncio (com a exceção de algumas vozes isoladas),

será a vez do surgimento de uma outra fase da presença de manifestações do rock no

Brasil: trata-se da chegada da jovem guarda.

O Brasil amarga seus primeiros instantes de ditadura militar, e uma remanescência

daquela fase inicial do rock ainda ecoa na voz de Ronnie Cord com Rua Augusta.

Também neste momento, vai se delineando uma nova safra de cantores que, ainda

marcada pelo rock dos anos 50, já incorpora toda uma influência do que surgia, no plano

internacional, no início da década de 60 em matéria de rock, em seguida àquela explosão

inicial nos EUA: trata-se, em particular, do fenômeno dos Beatles. Em 1965 um programa

de televisão vai ao ar, comandado por três jovens, e se torna o marco principal deste novo

momento: é o programa jovem guarda da Record.

Com a expansão de um mercado consumidor jovem, emergente desde a fase ante-

rior, os empresários decidem investir ainda mais em uma cultura juvenil de consumo, e o

programa faz grande sucesso. Os pilotos do jovem guarda são Roberto Carlos, batizado

como o “rei da juventude”, o “tremendão” Erasmo Carlos e a “ternurinha” Wanderléia.

Após um rápido e fracassado namoro com a bossa nova, gravando a música João

e Maria, em que parecia imitar João Gilberto, Roberto Carlos começa a emplacar o

sucesso com as músicas Splish, Splash, Calhambeque, Parei na contramão. O programa


chega a galgar grande sucesso. E o período da jovem guarda assiste ao aparecimento de

um número bem significativo de novos cantores.

As composições tanto revelavam a influência dos anos 50 e do nascente rock

inglês (particularmente, os Beatles), quanto as do samba-canção e do bolero. Grande parte

das músicas comportava ainda as versões dos hits do rock internacional, conservando-se

nesta fase a figura oculta do letrista das versões, embora já fosse maior o número de

canções de compositores nacionais: de longe, o exemplo mais importante é o da dupla

Roberto e Erasmo. Em sua predominância, as letras das músicas revelavam uma forma

ainda branda de rebeldia que, embora desprovida de uma crítica social mais ampla, ou da

referência ao sexo ou às drogas, estava basicamente orientada para a afirmação de certos

comportamentos que, potencialmente, transgrediam ao moralismo vigente em relação

àqueles mesmos componentes. Ainda que marcado de muito convencionalismo, narrando

episódios amorosos como o namoro de portão, por exemplo, as canções sugeriam

situações nem sempre em total acordo com tais convenções: a exemplo do beijo em

público ou da afirmação de que o casamento não é um bom “papo”. De resto, de um ponto

de vista do visual, a rebeldia se expressava nas gírias, nos cabelos, nas roupas (à moda

dos Beatles).

No plano cultural mais amplo, o Brasil vivia certa polarização entre o que se consi-

derava como arte engajada e o que era visto como arte meramente de consumo. O público

universitário e a intelligentsia do país acusava, por isso mesmo, a jovem guarda de aliena-

ção e de capitulação à cultura imperialista; advogando para si a continuidade de uma arte

de engajamento político que refletisse uma forma de resistência à ditadura militar. Em

contraposição, inclusive, ao jazzismo da primeira fase da bossa nova, e em total rivalidade

para com a jovem guarda, surge o que ficou conhecido como “canção de protesto”,
considerada como a que melhor atendia aos princípios da arte conscientizadora e a que

mais representava a autêntica MPB.

A síntese do quadro musical brasileiro naquele momento, segundo a visão

predominante de uma esquerda ortodoxa, era a seguinte: de um lado, estavam os

“alienados” da jovem guarda; de outro, os “bem pensantes” da MPB.

Se os anos JK representaram a principal arrancada industrialista e modernizante

desde as mudanças ocorridas a partir de 1930; a ditadura militar significava, neste campo,

uma aceleração da modernização do país em ritmo de autoritarismo. Em especial com

relação ao avanço das comunicações, constata-se que este é o momento de seu maior grau

de expansão. Ideologicamente, ainda são hegemônicos, no seio da intelectualidade, os

princípios do nacional-popular na cultura. Ao que tudo indica, a MPB vivia uma

contradição que não conseguia superar: a do convívio da crítica social em mediação com

o processo das inovações técnicas e das possibilidades industriais e de mercado que

favoreciam, àquela altura, ao avanço da cultura comercial no Brasil - do qual

inevitavelmente faziam parte. Nesse sentido, a tropicália parece indicar outra solução para

esta questão:

“o trabalho dos tropicalistas não fazia distinção, assim, entre o emprego das
técnicas, tornadas possíveis pela situação industrial e o envolvimento comercial e a
crítica da sociedade e da produção artística. Não lhes era possível apropriar-se dos
recursos eletrônicos e, ao mesmo tempo, separar-se do sistema de produção que
lhes oferecia esses recursos” (Favaretto, op. cit., p.98).

A chegada dos festivais da MPB, coincide com o subsequente declínio da jovem

guarda e com a ascensão do movimento tropicalista, que leva a efeito, de modo muito

mais complexo e radical, alguns dos elementos estéticos de consumo já contidos na jovem

guarda: sem, contudo, aderir a um puro esteticismo ou comercialismo e, na verdade, sem

reconhecer, também, a dicotomia criada entre política e estética e entre cultura engajada

e cultura comercial - dicotomia a qual o discurso militante se encerrava. Como vimos, a


mediação desses e de outros elementos vai representar um processo altamente fecundo

para qualquer atividade da produção cultural brasileira a partir de então - notadamente,

em termos do circuito da cultura comercial.

Recusando folclorizar o próprio subdesenvolvimento (como expresso na

conhecida frase de Caetano Veloso); incorporando o que há de mais sofisticado em termos

técnicos de produção; fundindo estilos que vão do iê, iê, iê da jovem guarda ao pop mais

arrojado dos Beatles de “Sgt. Pepper’s” e à cafonice de Coração Materno de Vicente

Celestino, passando pelas inovações da bossa nova; mantendo ligações com as referências

advindas de outras linguagens artísticas como o cinema (Goddard, Glauber), o teatro (o

Oficina), as artes plásticas (Oiticica); a tropicália fez emergir uma situação absolutamente

inusitada no cenário musical do Brasil àquela altura. Segundo a denominação de Caetano

Veloso, a tropicália seria uma neoantropofagia (referência à idéia oswaldiana de

antropofagia, da deglutição de todas as influências culturais e da gestação de uma síntese

crítica de seus elementos).

A postura musical heterodoxa da tropicália não pôs apenas esse movimento em

uma posição alternativa entre a MPB e a jovem guarda; como, indo além disso, o levou a

superar a fronteira entre o erudito e o popular e a se encaminhar pelo experimentalismo

sonoro (a presença do maestro Rogério Duprat no movimento foi algo de grande

importância nesse sentido); mas, inclusive, a elaborar uma letra que combinava crítica

social, curtição (ver Favaretto, op.cit.), paródia (no sentido da carnavalização em Bakhtin)

e experimentalismo (com forte influência da bricolage e dos experimentos da poesia

concreta).

Essa múltipla combinação de elementos colocou os tropicalistas em situação de

confronto seja com relação ao pensamento militante e de esquerda, que não assimilou a

sua problematização das mediações entre contestação e consumo; seja com relação à
direita, que não via com bons olhos a sua postura provocativa em relação aos padrões de

comportamento, além de sua atitude politicamente anárquica. O exemplo disso é o do

famoso episódio do Tuca, em 68, no III Festival Internacional da Canção, quando,

agredido, Caetano faz um discurso contundente contra um público universitário

violentamente histérico, bem como, contra a conjuntura política do país. A certa altura do

seu discurso, assinalando a falsa dicotomia entre o político e o estético, Caetano diz: “se

vocês forem em política como são em estética, estamos feitos”. Pouco tempo após esse

episódio, é a vez de o programa tropicalista Divino Maravilhoso ser censurado e retirado

do ar e, em seguida, de Caetano e Gil serem presos e viverem o exílio em Londres.

No final deste mesmo ano de 1968, o Brasil vai ser o palco de um maior endureci-

mento do regime político, com a decretação do AI-5 e o fechamento do Congresso. O Ato

Institucional Nº 5 dava amplos poderes ao presidente, inclusive, o de suspender os direitos

de cidadania de qualquer brasileiro - tudo isso regido pela Lei de Segurança Nacional.

Daí seguiu-se um longo período de prisões, torturas, assassinatos, cassações, exílio,

desaparecimentos. Na esfera sócio-cultural, opera-se uma drástica limitação do acesso de

artistas, intelectuais e políticos aos meios de expressão, gerando uma grave situação de

crise intelectual e artística e impondo-lhes o exílio ou auto-exílio.

Em termos musicais, a saída de cena dos tropicalistas deixou, contudo, espaço

aberto para o rock nacional, através do seu principal representante: o grupo Mutantes. No

que se refere ao rock, os Mutantes representam a experiência mais importante e pioneira

daquele período - na verdade, dito em melhor termo, os Mutantes, que já participavam

com os tropicalistas de toda aquela agitação, não podem ser considerados como apêndice

ou apoio do movimento. Inicialmente convidado para acompanhar Gilberto Gil em

Domingo no Parque, o grupo logo vai ser confundido com o movimento subsequente da

tropicália, participando ativamente de todo o processo: tanto das gravações dos tropicalis-
tas, quanto gravando músicas deles. A rigor, ao passo que os Mutantes sofriam de uma

grande influência do ideário tropicalista, também contribuíam com o movimento ao

destacar o estilo anárquico de sua rebeldia.

Não é exagero afirmar que são os Mutantes o divisor de águas que abre caminho

a uma experiência musicalmente mais consistente em todo o processo da produção do

rock no Brasil até então, chegando mesmo a divisar esteticamente as manifestações do

rock entre o antes da tropicália e o depois. Além dos Mutantes, contudo, toda uma

tendência musical no Brasil vai ocorrer no pós-tropicalismo, inclusive com uma

significativa ressonância do movimento de contracultura: o desbunde. Do grupo da

tropicália, vão fazer parte deste desbunde o poeta Torquato Neto, um dos ideólogos

daquele movimento, e Gal Costa, com discos como “Gal Fa-Tal”. Ao lado de Torquato

Neto, vão figurar poetas como Waly Salomão, Rogério Duarte e outros, pioneiros de uma

linguagem experimental, fragmentária, coloquial, que inauguraria o que ficou conhecido

como a poesia dos anos 70 (poesia de mimeógrafo, marginal, alternativa, etc.): em que

irão, também, se sobressair os nomes de Chacal, Bernardo Vilhena, Chico Alvim, Cacaso,

Eduardo Carneiro entre outros.

De fato, o grau de fechamento político que o Brasil se encontrava na virada dos

anos 70, com uma forte presença da intervenção do Estado no processo de agenciamento

cultural: seja a nível estatal ou privado, inclusive com o recrudescimento da censura,

levou a que poetas, jornalistas, intelectuais e artistas em geral, optassem por formas

alternativas de expressão. Daí a proliferação de jornais, revistas e circuitos alternativos

de cinema, teatro, música. Será, em parte, nesses circuitos, que surgirá uma leva

significativa de grupos de rock que, ao lado de algumas experiências bem sucedidas de

mercado, imprimirão a história do rock dos anos 70 no Brasil - tão relevante isso que,
convém lembrar, algumas das figuras mais importantes do rock atual, compositores e

letristas, tiveram seu início justamente no rock e na poesia alternativa dos anos 70.

Na trilha aberta pelos Mutantes, vê-se surgir um número bastante significativo de

grupos de rock, a maioria dos quais, até, permaneciam no underground, sem qualquer

apoio da mídia e gozando de um grande alheamento por parte do grande público. Duas

características dominam as manifestações do rock no Brasil naquele momento. Numa,

pode-se observar a predominância de bandas que parecem seguir mais fielmente o

cardápio servido pelas grandes tendências do rock internacional: particularmente, com

relação ao progressive rock e ao heavy metal, com bandas como Genesis, Yes, Pink

Floyd, Led Zeppelin, Rolling Stones e Emerson, Lake and Palmer, por exemplo - esse era

o caso de grupos como os Mutantes (em sua nova trajetória), O Terço, Vímana, O Som

Nosso de Cada Dia, Made in Brazil e muitos outros, alguns dos quais sequer chegariam

a ter um registro de seu trabalho em vinil. Um aspecto desses grupos era a velocidade

com que surgiam e logo desapareciam de cena. Poucas bandas, como o heavy Made in

Brazil ou como o Joelho de Porco, que desenvolvia uma linha debochada de crítica do

cotidiano, emplacaram os anos 80.

Outra característica importante a atestar a presença do rock no Brasil é a dos gru-

pos que procediam pela fusão do rock a diversos estilos de características mais locais e/ou

regionais; alguns, mesmo, mantendo uma grande proximidade com a MPB. É o caso do

rock rural de Sá, Rodrix e Guarabira, onde se fundia o rock com um tipo de ritmo mais

caipira; é o caso, também, dos Novos Baianos, que tinham um nível bem mais sofisticado

de mistura de estilos: onde arranjos que envolviam a utilização de guitarras e

cavaquinhos, além dos teclados, embalavam a fusão do rock a ritmos como o samba, o

frevo, o choro; é o caso, ainda, da fusão de estilos musicais nordestinos com elementos

do rock: no disco censurado do Ave Sangria, liderado por Marco Polo, no disco “Vivo!”
de Alceu Valença, nos primeiros trabalhos de Ednardo e do Pessoal do Ceará. Numa linha

de fusão do rock com a MPB, que reunia ingredientes bem mais próximos do que fora a

experiência tropicalista, encontram-se os experimentos de vanguarda e do underground

de artistas como Walter Franco, Tom Zé (que teve importante presença no tropicalismo),

Jards Macalé, Jorge Mautner e Luiz Melodia - que, em todo caso, não tinham o apoio

necessário da mídia.

Numa fulgurante mas fugaz trajetória, fundindo estilos da MPB e dos ritmos

latinos aos do rock, encontra-se o fenômeno comercial mais significativo da época neste

campo da expressão musical: os Secos & Molhados. Também para Rita Lee, ex-Mutantes

que já vinha percorrendo carreira solo, o lançamento do disco “Fruto Proibido” será o

momento de sua decolagem e consagração diante do grande público; consagração que

tomará uma dimensão ainda maior com o disco “Rita Lee”, do final da década de 70 -

maior êxito comercial da cantora até então: trata-se de um disco que difere bastante dos

seus trabalhos anteriores, pela sua ênfase num pop mais descartável, sob a influência dos

embalos pasteurizados da música de estilo discotheque. Aliás, do ângulo de sua carreira

solo, Rita já se havia inscrito na história do rock no Brasil, com alguns dos mais

importantes resultados musicais da discografia nacional desse gênero: com destaque para

o LP “Atrás do Porto Tem uma Cidade”.

Um outro trabalho singular será desenvolvido por Raul Seixas: mais fiel ao rock

primitivo, pode-se observar em Raul a fusão do rock a baladas e a elementos da MPB,

tudo isso regado por uma grande dosagem de elementos psicodélicos e do esoterismo;

notadamente, em sua parceria com Paulo Coelho - que já havia feito parceria com Rita

Lee. De longe, Raul parece ser o cantor de rock que mais enfrenta problemas com a

censura nesse período - além de esoterismo, suas letras se compõem de punjante crítica

da realidade brasileira e do comportamento social: a começar pelo seu primeiro grande


sucesso com a música Ouro de Tolo, por exemplo. Contudo, tais obstáculos não o

impedem de obter sucesso frente ao grande público: inclusive com relação ao público

jovem dos anos 80. Aliás, tanto Raul Seixas quanto Rita Lee têm mantido sucesso de

público até hoje e, mesmo depois de sua morte, o “Raul Rock Club” talvez permaneça

sendo o maior fã clube de um cantor brasileiro de rock.

Como já se fez referência, os MCM no Brasil lograram ter, nas últimas décadas, a

sua mais significativa e vertiginosa expansão, pondo o país entre os principais mercados

de consumo e produção de bens simbólicos. Deve-se isso, particularmente, aos grandes

investimentos promovidos pelo regime militar na área das telecomunicações,

possibilitando uma grande expansão da indústria eletrônica entre nós. Como acentua

Miceli (1984),

“a expansão recente da indústria cultural brasileira coincide com a vigência do


regime autoritário instituído em 1964, dele se beneficiando diretamente através dos
maciços investimentos governamentais no setor de telecomunicações que, por sua
vez, impulsionou o crescimento da indústria eletrônica” (p.9).

O autor observa a tendência a que áreas que possibilitam grandes retornos de capi-

tal passem ao controle das grandes empresas privadas formadoras da indústria cultural;

cabendo ao Estado dar maior prioridade (embora, não exclusivamente), às ações de

conservação e proteção do “acervo histórico e artístico-nacional”, bem como, aos

“gêneros e eventos culturais” que não conseguem sobreviver pela exclusiva operação de

mercado, dependendo dos subsídios do governo (p.3). Apesar disso, o autor não deixa de

considerar que a iniciativa privada também tem apoiado consideravelmente, a partir dos

anos 80, “as atividades culturais no Brasil” (com o financiamento nas áreas do livro, do

disco, do espetáculo, do teatro, da dança, das artes plásticas etc.). No que se refere,

contudo, à presença do capital estrangeiro em todos os setores da indústria cultural

brasileira, o autor atesta que:


“A proporção crescente da produção nacional em quase todos os ramos da indústria
cultural, aferida quer em termos dos indicadores de circulação, vendas e audiência,
quer em termos de faturamento, não encontra paralelo quanto ao vulto do investi-
mento externo nessa mesma indústria” (p.11).

Só para ter um exemplo, entre as dez maiores empresas do setor fonográfico no

Brasil, cinco estão afiliadas aos grandes empreendimentos multinacionais da indústria do

disco, com um domínio sobre 70% das vendas no “mercado interno do ramo” (idem).

Com o crescimento desse setor fonográfico, que configura a sua consolidação, a

segunda metade dos anos 70 é palco, de um lado, da hegemonia dos já consagrados nomes

da MPB emergidos dos festivais da canção desde os anos 60, assim como, das baladas

românticas de cantores como Fagner, Joana, Simone. De outro lado, assiste-se à grande

difusão de um tipo de variação do funk, música negra americana, que ficou conhecida

como disco-music ou discotheque. Divulgada a partir dos EUA, este gênero fez sucesso

em todo o mundo, tendo sua principal difusão em massa no Brasil com a música Saturday

Night Fever do Bee Gees para filme homônimo.

Paralelo a isso, vê-se surgir toda uma movimentação de música negra no Brasil

fortemente influenciada pela grande difusão da soul music americana entre nós. No Rio

de Janeiro, este acontecimento assume quase que a forma de um movimento, dada a

grande adesão do público na ida aos bailes do que foi denominado de Black Rio. Aliás,

esse movimento foi essencial para a divulgação dos trabalhos de artistas como Tim Maia,

Luiz Melodia, Jorge Ben, Cassiano e outros. Uma característica musical do Black Rio era

a fusão de elementos da Soul music com ritmos do samba, do funk e, até, ritmos caribeños.

Os desdobramentos desse movimento culminaram com o que hoje se pode

caracterizar como bailes funk: agora com características completamente distintas do que

foi o Black Rio (ver a respeito Vianna, op.cit.).

Apesar disso, o final da década de 70 vai, também, ser o espaço de expressão da

produção musical independente no Brasil, assim como, da emergência de um ressonante,


embora ainda incipiente, movimento punk no país (particularmente, em São Paulo). A

produção musical independente no Brasil é um capítulo importante na história da música

brasileira da época, tendo já sido alvo de análises específicas, como é o caso do estudo

feito por Vaz (1988). Aqui, interessa apenas fazer menção ao conjunto de trabalhos

realizados em torno do selo independente “Lira Paulistana”, em especial com relação

àqueles que incorporaram criticamente à linguagem musical, um conjunto de elementos

que se configuram como instâncias de mediação de processos sócio-culturais da vida

cotidiana das sociedades contemporâneas. Os ingredientes dessa mistura são: humor,

deboche, crítica anárquica às formas de poderes e aos modelos de representação

dominantes na sociedade; uso da linguagem dos media, como os quadrinhos e os

programas radiofônicos de crônica policial ; referência à musica negra urbana e

exploração crítica do discurso divergente e marginal como representação e atribuição de

voz ao indivíduo marcado por processos de exclusão; por fim, experimentação e fusão de

vários estilos e formas musicais e poéticas mais tradicionais ou de base mais erudita. Com

efeito, não se trata esse fenômeno de um grupo homogêneo ou de um movimento estético-

musical mais unificado. Na realidade, seus trabalhos são bastante distintos entre si, sendo

que as características acima especificadas, não visaram discriminar sua maior ou menor

presença nesse ou naquele trabalho; mas, tão somente, informar o universo componente

daquela produção musical em conjunto. Os principais nomes desse “grupo paulista” são:

Arrigo Barnabé (e sua banda “Sabor de Veneno”), Itamar Assumpção (com a banda “Isca

de Polícia”) e os grupos Rumo, Premeditando o Breque e Língua de Trapo. Já nos anos

80 a “lira” vincula seu selo a uma empresa fonográfica de grande porte. Por outro lado,

ainda, alguns desses artistas se vincularam a grandes gravadoras, enquanto outros

permaneceram com as produções independentes ou oscilantes entre este tipo de produção

e o dos grandes empreendimentos comerciais.


Mas um outro elemento que vai marcar completamente o rock no Brasil dos anos

80, é a ressonância do movimento punk e das tendências subsequentes do new wave inter-

nacionais (esta última é uma expressão criada pelos empresários do disco com fins merca-

dológicos e de configuração de um rock mais sofisticado e ameno em substituição ao

punk, que reagiu com a sua radical no wave - conforme encarte Guia do Rock da Revista

Bizz). Entre nós, apesar de incipiente, as primeiras manifestações do punk se iniciam já

no final da década de 70, pouco tempo após seu surgimento na Inglaterra. Contudo, no

âmbito da música, o ano de 1982 parece ser o marco inicial para a divulgação do trabalho

das primeiras bandas surgidas desde 78 em São Paulo: o primeiro disco punk, reunindo

as bandas Olho Seco, Inocentes e Cólera, é lançado como produção independente pelo

selo “Punk Rock”. Trata-se do disco “Grito Suburbano”. Daí, seguiu-se a toda uma

proliferação de bandas de estilo punk, além de festivais cujo objetivo era uma maior

divulgação dos trabalhos e de conhecimento das bandas. Lixomania, Garotos Podres,

Voluntários da Pátria, Mercenárias e outros são os nomes das novas bandas - das quais

um bom número figurará no cenário do rock da década de 80. Sendo esse o caso,

inclusive, de bandas que acederam ao grande circuito da mídia como os grupos Ira e

Ultraje à Rigor, por exemplo.

Tanto no caso da produção independente da vanguarda paulista, quanto no caso

dos punks, pode-se falar que houve um significativo alheamento dos MCM num primeiro

momento. De fato, o espaço inicial de ambas as tendências se configurava em termos

basicamente alternativos ou underground. Por outro lado, o ano de 1982 é de importância

fundamental para a conquista de espaço na mídia. Ao que tudo indica, aqueles circuitos

alternativos dos independentes e dos punks tinham tanto permanecido no undergroud

quanto tinham conquistado uma importante adesão por parte de uma sensível parcela do

público jovem. Particularmente, no caso do punks, tratava-se, ainda, de vencer toda uma
onda de manifestações de intolerância por parte dos “guardiães” da moralidade pública,

por parte do establishment.

Em todo caso, já era possível observar a criação de certos espaços no âmbito da

grande mídia. Um deles seria o MPB-Shell, do qual participaram alguns dos representan-

tes dos “novos” direcionamentos tomados pela música mais sintonizada com o que foi

aqui caracterizado por cultura juvenil: por exemplo, com a participação no festival de

nomes como Arrigo Barnabé, Eduardo Dusek e Gang 90 & Absurdetes. Outro seria o

caso da programação da rádio FM Fluminense, que passa a divulgar os primeiros

trabalhos do que viria a ser caracterizado como rock dos anos 80 (como, por exemplo, o

hit do Rádio Táxi Dentro do Coração). Outro, ainda, seria o de espaços um pouco mais

alternativos, como no caso do Circo Voador e seu vinil “Rock Voador”, coletânea de

1982. É a partir de tais espaços que as “novas” manifestações do rock começam a ganhar

status de grande circuito da mídia, com os primeiros hits nas paradas e a corrida das

gravadoras no sentido da descoberta de novas bandas.

O caminho aberto com Perdidos na Selva, pela Gang 90 & Absurdetes do DJ Júlio

Barroso, com seu estilo new wave, marcará predominantemente o momento inicial da

grande explosão do rock brasileiro na década de 80. Talvez seja no Rio de Janeiro onde

isso se torna mais visível; sobretudo, com o grande estouro de Você não soube me amar,

o primeiro hit da Blitz. A partir daí, será a vez de Kid Abelha e Abóboras Selvagens,

Ritchie, Lulu Santos, Sempre Livre, Barão Vermelho, Lobão e outros, como os Paralamas

do Sucesso, originária de Brasília. Em São Paulo, a banda Magazine de Kid Vinil emplaca

com um hit que narra o cotidiano de um Office Boy na música Sou Boy, seguido do grande

sucesso do Ultraje à Rigor, com a música Inútil. De um ponto de vista da crítica, as

posições sobre o fenômeno são heterogêneas, indo do deslumbramento à negação

completa. No primeiro caso, atesta-se que, finalmente, algo de novo havia surgido no
cenário musical após um longo período de hegemonia dos “astros consagrados da MPB”,

que aparentemente teriam declinado em criatividade e produtividade. No segundo,

afirma-se que o fenômeno não passa de mais uma “febre” comercial de pura redundância

que nos remeteria a um período de new iê, iê, iê, de nova jovem guarda.

No plano sócio-político e econômico, o Brasil vivia um de seus momentos de

maior contradição e incerteza. De um lado, agravara-se drasticamente o quadro de crise

econômica do país, cuja ponta do iceberg remonta à recessão a nível mundial iniciada nos

idos de 74 e ao programa de modernização autoritária levada a efeito pelo regime militar,

em que o tipo associado e dependente de desenvolvimento reflete a tônica do modelo

econômico. Por ser um programa baseado na contração de empréstimos no exterior, cuja

meta era construir a imagem de Brasil-potência, essa situação vai levar o país a enfrentar

o problema de ter a maior dívida tanto externa quanto interna em toda a sua história. Tanto

mais quando o quadro de recessão mundial leva os países credores a restringirem as cotas

de investimento e a forçarem o resgate da dívida e todos os seus dividendos (com

pagamento de juros sobre a dívida). Tudo isso gerou o que os economistas consideram

como a “década perdida” em relação aos anos 80.

Toda essa situação contribuiria para o isolamento político das forças que continua-

vam a apoiar o regime militar e para um aumento da mobilização da sociedade civil e de

suas forças de expressão e luta em diversos setores de sua representação. Nestes termos

é que toda a década de 80 será palco do processo de redemocratização iniciado com a

abertura política e a promulgação da anistia na segunda metade dos anos 70 e com as

eleições diretas para governador já no início dos 80. A campanha pelas “Diretas-Já” para

Presidente da República e por uma Assembléia Nacional Constituinte, a muito

reivindicadas, levam o país a uma transição para o regime civil, pela via indireta do

Colégio Eleitoral. Transição essa que desembocará numa nova Constituição e, em


seguida, na primeira eleição direta para Presidente depois dos anos de vigência do período

militar: respectivamente em 1988 e 1989.

A crise econômica e político-institucional desse período tende a recrudescer com

as frustradas tentativas de regulação da economia através dos sucessivos planos

econômicos, iniciados com o Cruzado, e da onda de corrupção política que veio à tona

através da grande imprensa e de MCM como a televisão. Em contrapartida, se ampliam e

se pluralizam as forças de representação política de esquerda, que gozam de uma

importante adesão de parte da juventude; que muito contribuiu para o avanço dos

movimentos de minorias, de meio-ambiente, de democratização do país e do ensino, por

exemplo - mesmo que o movimento estudantil secundário e universitário atravessasse,

como ainda hoje, graves problemas internos de representação política.

É nesse sentido que, no plano musical, conforme já se assinalou, a grande explosão

do rock no período pode ser analisada para além dos critérios de mercadologia; podendo

ser apreendido em termos das formas mediadas de representação dos discursos - que estão

longe de atender a um único itinerário estético-político (como foi dito), mas que, no inte-

rior de uma multiplicidade de formas, nos possibilitam identificar elementos de um

discurso contratendente e de negação dos valores do establishment: configurando assim

a representação de um dado perfil crítico do cotidiano urbano brasileiro, expresso em

termos de mediações do que foi situado anteriormente na forma de uma cultura e discurso

juvenis; ou seja, em termos de certas formas e tendências assumidas pela juventude nas

sociedade urbano-industriais capitalistas, no sentido de uma crise condizente com

problemas relativos à construção da identidade, à transição para o mundo adulto, a um

maior descompromisso com os valores estabelecidos da ordem social (ver capítulos

anteriores a este respeito).


É nesse sentido, ainda, que procurar-se-á aqui trabalhar com a produção do rock

surgida a partir de meados dos anos 80, quando esse estilo musical sofre grande modifica-

ção tanto no plano do discurso, quanto no âmbito empresarial. Neste último caso, a

realização do “Rock in Rio” pode ser apontado como um exemplo demonstrativo de que

o rock brasileiro havia dado sinais de ampla vitalidade e aceitação por parte do público

jovem, notadamente com a figuração de algumas bandas nacionais ao lado dos mega-

stars internacionais; levando a uma multiplicação e descentralização das bandas para

além do eixo Rio-São Paulo. É o caso de Brasília, com bandas como Legião Urbana,

Capital Inicial, Plebe Rude; é o caso, também, do Rio Grande do Sul, com os Engenheiros

do Hawaii, DeFalla e Replicantes; e da Bahia, com o Camisa de Vênus - só para ficar

com alguns exemplos. Mas é o caso, ainda, do apoio empresarial a uma proliferação de

bandas em São Paulo, Rio e demais capitais. Algumas dessas bandas surgiram, mesmo,

bem anteriormente à sua consagração no mercado do disco: antes da formação do Legião

Urbana e do Capital Inicial, por exemplo, alguns de seus membros compunham, já em

78, a extinta banda Aborto Elétrico; ao passo que o grupo Ira! de São Paulo representa

uma das mais antigas formações do “novo” rock. Com efeito, esse é o quadro que vê

surgir e se afirmar outros grupos como Titãs, Metrô, Biquini Cavadão e muitos outros,

como o RPM, de longe o maior sucesso de público já obtido pelo rock nacional em todos

os tempos.

No que se refere a mudanças no plano do discurso, pode-se perceber uma maior

contundência crítica das letras no tocante à crise de valores e de legitimação nas socie-

dades atuais e, em particular, na sociedade brasileira daquele momento, com o

agravamento dos problemas sociais e econômicos e de representação política já acima

aludidos. Assim é que, nas formas mediadas de representação do discurso, pode-se

identificar no rock brasileiro uma das mais significativas formas de expressão e crítica da
juventude à realidade nacional do período. Veja-se, nesse sentido, o que demonstram as

canções Desordem de Sergio Britto, Marcelo Fromer e Charles Gavin para o lp “Jesus

não tem dentes no país dos banguelas” do Titãs e Veraneio Vascaína de Flávio Lemos e

Renato Russo, gravada no disco “Capital Inicial” da banda homônima. Na primeira, o

cotidiano se apresenta como uma realidade caótica e de ordem opressiva, em que o Estado

se apresenta como o espaço de circulação das elites governantes e em que os cidadãos

não têm respeitada a sua cidadania. Ademais, as instituições sociais são apresentadas

como que se encontrando em colapso, só restando à população desorganizada enquanto

sociedade civil ações espontaneístas que, em si, não contribuem para uma mudança do

quadro geral:

Os presos fogem do presídio,/ imagens na televisão./ Mais uma briga de


torcidas,/ acaba tudo em confusão./ A multidão enfurecida/ queimou os carros
da polícia./ Os preços fogem do controle,/ mas que loucura esta nação!/ Não é
tentar o suicídio/ querer andar na contramão?/ Quem quer manter a ordem?/
Quem quer criar desordem?/ Não sei se existe mais justiça,/ nem quando é
pelas próprias mãos./ População enlouquecida,/ começa então o linchamento./
Não sei se tudo vai arder/ como algum líquido inflamável,/ o que mais pode
acontecer/ num país pobre e miserável?/ E ainda pode se encontrar/ quem
acredite no futuro.../ Quem quer manter a ordem?/ Quem quer criar
desordem?/ É seu dever manter a ordem,/ é seu dever de cidadão,/ mas o que
é criar desordem,/ quem é que diz o que é ou não?/ São sempre os mesmos
governantes,/ os mesmos que lucraram antes./ Os sindicatos fazem greve/
porque ninguém é consultado,/ pois tudo tem que virar óleo/ pra por na
máquina do Estado./ Quem quer manter a ordem?/ Quem quer criar
desordem?
Em Veraneio Vascaína, também a falta de cidadania e a violência

institucionalizada do aparato policial no cotidiano da população é criticada, no que pese

a referência na música à existência de uma relação entre pobreza e criminalidade,

particularmente entre aqueles que, como diz o verso, “nascem com instinto assassino”:

Cuidado, pessoal, lá vem vindo a veraneio/ toda pintada de preto, branco, cinza
e vermelho/ com números do lado, e dentro dois ou três tarados/ assassinos
armados, uniformizados/ veraneio vascaína vem dobrando a esquina/ Porque
pobre quando nasce com instinto assassino/ sabe o que vai ser quando crescer
desde menino/ ladrão para roubar ou marginal para matar/ “Papai, eu quero
ser policial quando crescer”/ Se eles vêm com fogo em cima é melhor sair da
frente/ tanto faz, ninguém se importa se você é inocente/ com uma arma na
mão eu boto fogo no país/ e não vai ter problema, eu sei, estou do lado da lei.

Com efeito, o mais importante para o propósito desse trabalho é que: 1) esses

aspectos apontam para o fato de que não se trata aqui de uma simples reprodução dos

modelos importados, mas da manifestação específica das características de um perfil

próprio daquele produto cultural no Brasil atual; 2) que a potencialidade crítica expressa

no fenômeno em pauta tem se manifestado apesar das formas de padronização por que

passa esse mesmo produto, visto que também se encontra alinhado ao amplo processo

comercial de consumo da lógica da cultura industrial. Com efeito, o que se quer é chamar

a atenção para o fato de que tal mediação crítica da realidade só pode ser elaborada nesse

contexto, no âmbito das próprias mediações que essa música rock estabelece com os

processo técnicos, industriais e comerciais de sua produção e circulação - não podendo,

pois, ser completamente anulada ou negligenciada a título da acusação de pertencer a um

mero fenômeno de moda. Cabe, isso sim, uma mais atenta observação sobre as formas de

representação do referente cotidiano aí expresso; conforme tentar-se-á exemplificar no

quadro a seguir das letras selecionadas.

4.2. As Letras do Discurso

A cidade produz o destino da humanidade.


(Guattari)

Um dos objetivos centrais deste trabalho, é o de captar uma narrativa do urbano

pela música do rock, como já foi largamente esclarecido. Sendo o rock uma das produções

culturais que mais se apresenta como representação do universo simbólico e do modus

vivendi jovem e adolescente, mostra-se ele, também, como uma das manifestações artísti-

cas em que o fenômeno urbano se expressa como referente central. Por certo, um tal pro-

pósito não representa qualquer novidade em relação ao espaço a que está circunscrito. De
modos distintos em ênfases e abordagens, um sem número de estudos já se fez em termos

das imagens e representações do urbano no discurso poético e literário. Nesse sentido, o

dado singular do que se deve buscar aqui é o de apreensão das imagens e representações

críticas do cotidiano urbano, na forma de um modus vivendi adolescente e de sua represen-

tação enquanto discurso juvenil na sociedade brasileira das últimas décadas e de seu in-

gresso no fenômeno global de consumo a nível de capitalismo mundializado. Aliás, é bom

que se diga, quando se fala em representação juvenil do cotidiano urbano brasileiro, leva-

se em conta tanto os referentes mais específicos e localizados desse urbano, quanto

aqueles de um caráter mais desterritorializado, em que espaço-tempo não se definem de

modo preciso: tendo como referência a própria totalidade e simultaneidade do mundo e

de sua existência nele. Exemplo disto pode ser encontrado nos seguintes versos de Música

Urbana 2 de Renato Russo para o disco “Dois” do Legião Urbana:

Em cima dos telhados as antenas de TV tocam música urbana,/ nas ruas os


mendigos com esparadrapos podres/ cantam música urbana,/ motocicletas
querendo atenção às três da manhã -/ é só música urbana./ Os PM’s armados
e as tropas de choque vomitam música urbana/ e nas escolas as crianças
aprendem a repetir a música urbana./ Nos bares os viciados sempre tentam
conseguir a música urbana./ O vento forte seco e sujo em cantos de concreto/
parece música urbana/ e a matilha de crianças sujas no meio da rua -/ música
urbana./ E nos pontos de ônibus estão todos ali: música urbana./ Os uniformes/
os cartazes/ os cinemas/ e os lares/ nas favelas/ coberturas/ quase todos os
lugares./ e mais uma criança nasceu./ não há mentiras nem verdades aqui/ só
há música urbana.

Embora a questão inicialmente levantada neste deste trabalho se refira à questão

de que há um discurso em parte desta manifestação musical que aponta para um veio

emancipador - por assumir um diálogo contratendente (Morin, op.cit.) e de descen-

tramento (Sant’Anna, op.cit.), negador do establishment e descodificador de valores

hegemonicamente expressivos -, o presente estudo se dará por satisfeito na medida em

que já apresente alguns elementos delineadores de um certo perfil ou panorama do

cotidiano urbano, de sua representação como referente narrado por aquele tipo de música
que, na forma como se expressa e como se pode apreendê-la, demonstra ter uma relativa

sintonia com o que se denominou acima como universo adolescente e jovem. Sendo

assim, será sob o signo das imagens dialéticas de Benjamin, que se irá traçar um roteiro

de modo a perseguir o cotidiano em sua representação nos discursos das letras do rock.

Ademais, como ficou evidenciado no capítulo segundo, tem-se consciência dos

riscos de formalização de um possível “mundo” jovem e adolescente que não leve em

conta todo um conjunto de processos heterogêneos por que passam os indivíduos nas

sociedades complexas. Mas não se está querendo, portanto, ter como ponto de partida a

especificidade de um tipo nitidamente delimitado de juventude na sociedade

contemporânea. Assim, embora seja válido falar da existência de um período próprio

dessa segmentação social em termos de caracteres psico-biológicos, por exemplo,

considera-se ainda como de uma maior validade e de mais extrema necessidade, aqui,

abordar o problema dentro de certo contexto histórico; ou seja, relativamente às condições

sociais da juventude no mundo.

Aliás, é justamente a partir deste procedimento que se poderá chegar, em meio à

multiplicidade e heterogeneidade de processos, a algum ponto de generalização do tipo

adolescente e jovem e de seu “universo”. Em outras palavras, a identificação de certos

traços mais freqüentemente encontrados na segmentação social da juventude, que digam

respeito às mudanças por eles vividas de um ponto de vista especificamente etário, não

pode ser suficientemente explicada se apenas admitirmos os problemas apresentados por

uma ordem estritamente psico-biológica, não dedicando suficiente atenção para com os

aspectos de característica antropo-sociológica (conforme já se fez referência). Assim,

analisar as características de uma “crise” de adolescência implica em identificá-la como

algo próprio das sociedades contemporâneas: relembre-se a passagem do filme Absolute

Beginners, em que se afirma ser a adolescência a “nova classe econômica”.


Nesse sentido, cabe investigar como determinados elementos próprios das

sociedades atuais têm se apresentado e se manifestado na configuração do que se poderia

denominar de universo cultural da juventude, ainda que sejam elementos identificáveis

em âmbito mais global de ordem econômica e político-social das sociedades

contemporâneas. De um modo um tanto arbitrário, tais elementos podem ser identificados

como: nomadismo, desterritorialização e globalização da cidade-mundo; sociedade de

consumo e sua configuração básica em uma cultura do simulacro e do pastiche;

narcisismo, comportamento blasé e exogamia cultural. Pode-se identificar a

representação de alguns desses elementos em, por exemplo, Silvia Pfeifer de Fausto

Fawcett e Marcelo de Alexandre e em Disneylândia de Arnaldo Antunes para o Titãs. A

propósito, observe-se respectivamente como Fawcett explora os elementos do simulacro

e do narcisismo de um mundo ilusório construído no plano do desejo, enquanto Antunes

enfatiza os traços de um mundo completamente desterritorializado e sem mais fronteiras.

Observe-se as letras:

Copacabana foi transformada num supergueto de capitalismo exacerbado/ um


território paralelo à Sarney, off-off Moreira/ um vácuo financeiro industrial
dominado por gigantescas empresas transnacionais/ e gigantescas empresas
armamentistas brasileiras./ Copacabana tá repleta de telões passando
gigantescas imagens de tudo/ no meio da vertigem audio-visual os habitantes
do supergueto capitalista costumam concentrar seu olhar no maior telão do
mundo onde ininterruptas imagens da mais bela/ e sofisticada das manequins.
a manequim número um. SILVIA PFEIFER/ e o que sentem os habitantes de
um supergueto capitalista?/ de tanto ver o mundo ser transformado em
imagem/ de tanto ver a vida ser transformada em show de realidade
patrocinada eles já não sabem/ o que é o que não é real,/ não sabem se seus
sentimentos são seus mesmo ou se são ficção de personalidade./ Bombardeados
pelo delírio das ficções comerciais e não comerciais eles vivem envolvidos com/
mundos que só existem no desejo./ Pra eles o invisível já é uma coisa muito
vulgar, o transcendental já é algo tão banal devido/ às excessivas fotos, vídeos,
filmes sobre a antimatéria, sobre os espectros microscópios. De-/ vido às
excessivas imagens divulgadoras do invisível. E quando o invisível já é algo
muito vul-/ gar, quando o transcendental já é uma coisa tão banal que emoção
espiritual resta pros ha-/ bitantes de um supergueto capitalista cujos olhos
estão magnetizados pela excessiva presen-/ ça de gigantescos televisores?/ A
última emoção espiritual é a fascinação. Fascinação por imagens cada vez mais
artificiais,/ imagens que os façam pensar em mundos não humanos, universos
paralelos./ E quem são as heroínas dessa fascinação espiritual? As manequins
das revistas de moda mais/ sofisticadas. Incorpóreas ladies. Garotas de
fisionomia etérea. Mestras da sedução calculada./ No meio da vertigem audio-
visual os habitantes de um supergueto capitalista concentram/ seu olhar no
rosto da mais bela e sofisticada das manequins. A manequim número um./
Mundos não-humanos/ universos paralelos/ fascinação espiritual/ mundos que
só existem no desejo./ SILVIA PFEIFER

A situação narrada pela música toma a forma de uma sociedade no futuro, ainda

que a narrativa esteja no presente. Trata-se de um mundo regido pela imagem, em que a

ficção parece substituir a realidade num absoluto simulacro e em que o próprio invisível

e transcendental já se apresentam como banais: não restando, pois, qualquer “emoção

espiritual” para os habitantes do mundo da narrativa, a não ser a fascinação que os levam

a viver “mundos que só existem no desejo”. Mundos artificiais transmitidos por telões

gigantescos, em que as manequins das sofisticadas revistas de moda assumem a função

de heroínas da “fascinação espiritual”: em sua forma “incorpórea” e de “fisionomia

etérea” - “mestras da sedução calculada”. É nesse mundo, em que a vida se transforma

em show de realidade patrocinada, que todos voltam os olhos para a manequim número

um: Silvia Pfeifer. O lugar descrito pela narrativa encontra-se dominado por gigantescas

empresas transnacionais e armamentistas nacionais, “um vácuo financeiro industrial”

caracterizado como “supergueto de capitalismo exacerbado”: trata-se de Copacabana, que

se encontra superlativisada à dimensão de mundo.

Uma característica dessa canção é o fato de ela ser falada e não cantada, assumindo

a música uma aparência de fundo, com sua figuração basicamente eletrônica e de sonori-

dade espacial: como nas trilhas sonoras de filmes de ficção sobre a exploração do universo

cósmico. Inclusive, em sua crítica a um cotidiano dominado pela tecnologia, a letra confi-

gura a imagem de um mundo pós-moderno em que, tal como em Blade Runner, o caçador

de andróides (de Ridley Scott), gigantescos telões compõem o cenário citadino. Aliás,

um universo de simulacros, tecnologias, fenômenos poltergeist, povoado de amantes,


vedetes, manequins, andróides, marginais, homens comuns etc., envolvidos em situações

cotidianas que envolvem o sexo e o crime, parece ser a tônica do trabalho “Império dos

Sentidos” de Fausto Fawcett e Robôs Efêmeros - numa linguagem em que predomina um

realismo fantástico onde um futuro imaginário se precipita como representação crítica do

mundo cotidiano. É o que pode ser observado, ainda, nos fragmentos seguintes de

algumas das outras músicas desse disco:

Noite estrelada, uma loura condenada dirige sua Ferrari vermelha à beira de
um abismo/ canadense./ Noite estrelada, uma loura condenada dirige sua
Ferrari vermelha equipada com antena pa-/ rabólica. Ela gira o dial da TV
MUNDIAL: imagens americanas, imagens sul-americanas, ima-/ gens
européias, imagens africanas, imagens asiáticas, imagens oceânicas, imagens
antárticas./ Ela abandona as imagens mundiais e vira o rostinho pra esquerda
observando o Oceano/ Pacífico, um território marítimo reservado para
inofensivos testes bélicos da OTAN. Futuros/ foguetes intercontinentais
explodem pacificamente no horizonte pacífico./ Cabeleira loura entremeada
por tranças de poliuretano vermelho, boca carnuda ideal pra/ batom forte,
escorpião tatuado na base da espinha, coxas de quem faz jazz imensos olhos/
azuis. (...)/ Viviane Vancouver é a mais famosa fotógrafa hiperrealista do
mundo. Usou toda rara sensibilidade sádica pra transformar atentados
terroristas, crimes passionais, desastres ecológi-/ cos, catástrofes industriais,
conflitos de rua, acidentes cirúrgicos nas mais terríveis naturezas-/ mortas que
nenhum pintor jamais ousou transar. Essa loura de sensualidade over sente, é
ator-/ mentada por uma nostalgia da matéria bruta da qual o homem e a
mulher são os acidentes/ mais famosos. As revistas mundiais pagam milhares
de dólares para ter as fotos de Viviane/ Vancouver publicadas em alto relêvo.
Mas o FBI descobriu que Viviane estava se excedendo/ na sua fissura por
naturezas-mortas. Estava pagando pessoas pra mutilar, matar, se matar,/
explodir lugares. (...)
(Facada leite-moça, Fausto Fawcett e Carlos Laufer.)
Debaixo do bairro japonês/ nos porões da Liberdade/ entre pântanos de
esmalte e lixeiras de sucata cosméticas (...)/ um piloto de rallies subterrâneos
vai trepando (...)/ com uma narcótica andróide nissei (...)/ com a bateria no fim
(...)
(Andróide nissei, Fawcett e Laufer.)
Um mecânico negão eletricista sai na noite de São Paulo provocando
Poltergeists/ com micro-Atari,/ micro-computer/ micro-tv fora do ar (...)
(Santa Clara Poltergeist, Fawcett e Laufer.)
Em Disneylândia, a simultaneidade das situações e dos acontecimentos tomam a

forma de uma consciência de mundo cosmopolita, em que tempo-espaço se encontram

completamente relativizados; uma “mega-sociedade”, como na expressão de Ortiz

(1993), em que “um estrato social desterritorializado” emerge “ao lado das realidades
nacionais e de classe” (p.291). Também com Guattari (1992), como já se viu antes, pode-

se perceber esse sentido das cidades como “mega-máquinas” produtoras de subjetividade

individual e coletiva no CMI (vide epígrafe acima). Em ambos os autores, esse processo

de desterritorialização põe em questão a noção de centro, dando margem a se pensar numa

formação social e econômica atuais de base muito mais policentrada. Aliás, é em sua

crítica às formas de produção de subjetividade atuais que Guattari vai estabelecer a

correlação entre o processo de desterritorialização do ser humano contemporâneo e a

forma nômade do tipo de subjetividade atuais, em que “tudo circula (...) e, ao mesmo

tempo, tudo parece petrificar-se, permanecer no lugar” (p.169). Para Ortiz, ainda, “uma

cultura mundo” exige uma redefinição de tempo e espaço como “categorias

indissociáveis” que são, onde sua tendência à desterritorialização requer a unidade

mundial como “território que transcende as partes que o constituem” (idem). Construída

sob uma forma que lembra um informe noticiário, a letra Disneylândia pode muito bem

ilustrar o texto de Ortiz que, diga-se de passagem, utiliza exemplos explicativos do

processo atual de “mega-sociedade” que poderiam compor aquela letra. Sendo assim,

discurso científico e discurso ficcional encontram-se totalmente coincidentes. Num de

seus exemplos, Ortiz demonstra que

“um carro esporte da Mazda é desenhado na Califórnia, financiado por Tóquio, o


protótipo é criado em Worthing (Inglaterra) e a montagem é feita nos Estados Uni-
dos e México, usando componentes eletrônicos inventados em New Jersey, fabrica-
dos no Japão” (p.288).
Construção semelhante de imagens pode-se extrair da música Disneylândia, con-

forme se vê no que segue:

Filho de imigrantes russos casado na Argentina/ com uma pintora judia,


casou-se pela segunda/ vez com uma princesa africana no México./ Música
hindu contrabandeada por ciganos/ poloneses faz sucesso no interior da
Bolívia./ Zebras africanas e cangurus australianos no/ zoológico de Londres./
Múmias egípcias e artefatos íncas no museu de/ Nova York./ Lanternas
japonesas e chicletes americanos nos/ bazares coreanos de São Paulo./ Imagens
de um vulcão nas Filipinas passam na/ rede de televisão em Moçambique/
Armênios naturalizados no Chile procuram/ familiares na Etiópia./ Casas pré-
fabricadas canadenses feitas com/ madeira colombiana./ Multinacionais
japonesas instalam empresas/ em Hong-Kong e produzem com matéria prima/
brasileira para competir no mercado americano./ Literatura grega adaptada
para crianças/ chinesas da comunidade européia./ Relógios suíços falsificados
no Paraguay/ vendidos por camelôs no bairro mexicano de Los Angeles./
Turista francesa fotografada semi-nua com o/ namorado árabe na Baixada
Fluminense./ Filmes italianos dublados em inglês com/ legendas em espanhol
nos cinemas da Turquia./ Pilhas americanas alimentam eletrodomésticos/
ingleses na Nova Guiné./ Gasolina árabe alimenta automóveis americanos/ na
África do Sul./ Pizza italiana alimenta italianos na Itália./ Crianças iraquianas
fugidas da guerra não/ obtém visto no consulado americano do Egito/ para
entrarem na Disneylândia.

Como já se deixou claro noutro lugar, acredita-se que se possa estabelecer alguma

relação dialógica entre elementos da vida cotidiana narrados por certo discurso da letra

do rock (elementos esses aqui arbitrados como característicos das sociedades atuais, mais

concretamente, de sua malha urbana), e o que certo número de pesquisas sobre

adolescência e juventude apresentam como pontos dominantes e convergentes de um

perfil e representação do espaço e tempo atuais, configuradores de um olhar sobre o

mundo, no imaginário e na vida cotidiana destes adolescentes e jovens - em outras

palavras, o que se quer afirmar é a existência de uma semântica convergente entre as

manifestações de certos aspectos enunciativos do universo pensante do adolescente e

certo discurso poético do “produto” em pauta neste estudo.

Na medida em que se possa identificar este diálogo, bem como, caracterizar a sua

natureza pela negatividade e ruptura para com os valores do establishment (negatividade

e ruptura aqui entendidas como instâncias desejantes de emancipação), volta-se a afirmar,

o presente trabalho se dá como tendo atingido sua meta: visto que, assim, se mostra como

indicador de uma representação dialógica entre elementos enunciados pela letra de uma

canção de consumo (o rock) e o que se apresenta como uma espécie de cartografia dese-

jante do universo adolescente e jovem, e o próprio imaginário adolescente e jovem tal

como anteriormente apreendido.


Se seguirmos os passos de Swingewood (op.cit.), que chama a atenção para os

processos de fortalecimento da sociedade civil como condição necessária no sentido da

democratização da cultura e da participação social, pode-se considerar que esta óptica

serve para ilustrar o fato deste estudo ter, na grande explosão do rock no Brasil dos anos

80, notadamente, em sua versão mais nitidamente marcada de um discurso orientado para

uma diversidade de aspectos e problemas predominantemente vividos em nosso cotidiano

urbano, o seu centro de interesse. Por seu turno, necessário se faz esclarecer que, quando

se fala em crítica do cotidiano urbano e de sua representação no discurso das letras,

configurada em termos das mediações que opera no âmbito do imaginário e da linguagem

juvenis, tem-se atenção especial para a forma como se manifesta neste discurso o que se

caracterizou como uma constelação de aspectos e problemas vividos no espaço e tempo

do urbano. Desta feita, dos nomes do rock nacional aqui tomados como referência para

estudo, poder-se-ia partir para uma classificação do que seriam versões sobre o amor,

sobre o comportamento social padrão, sobre política etc. Em lugar disso, contudo, partiu-

se para a identificação, nas letras do rock, de um discurso cujas mediações parecem

configurar um mundo juvenil de representações políticas no cotidiano: suas utopias e

desencantamentos - onde sexualidade, família ou outros aspectos encontram-se

secundarizados em relação a um aspecto primeiro ou horizonte de um “estar no mundo”

político - seja ele anárquico-existencialista, populista, pessimista ou utópico -, capaz de

denotar formas ou nuances da referida constelação de elementos críticos de representação

social. Pelo que se pode ver, a complexidade do fenômeno do rock no Brasil da década

de 80, que não deve ser reduzida a pura mercadologia, pode, também, ser traduzido a

partir da questão de este gênero musical manter certa relação e não alheamento entre os

aspectos enunciados em seu discurso e os processos de expansão da participação da

sociedade civil no conjunto da sociedade brasileira naquele momento, com suas lutas pela
redemocratização do país e por mudanças mais efetivas nos cenários social e político:

inclusive com relação a fatores identificados a processos éticos. Aliás, o procedimento da

escolha das letras de música esteve orientado, principalmente, por este último fator - ainda

que se tenha identificado, ao lado de potencialidades utópicas desejantes de mudanças,

formas desencantadas e pessimistas que, em certo sentido, pode estar associada às

frustrações vividas por aquelas mesmas motivações de luta (como já se fez referência

anteriormente).

Um dos primeiros hits do rock neste período é uma crítica debochada da falta de

cidadania do povo brasileiro que não podia se fazer representar, e em cujo discurso parece

se afirmar o que se pretende negar: que somos um povo inútil, que necessita das tutelas

oficiais; ou que somos incompetentes, como o demonstraria a diversidade de questões as

quais não conseguimos solucionar. Claro que, como todo texto poético, trata-se de um

discurso ambíguo, ainda mais por sua característica irônica. Inclusive, com os problemas,

estética e propositadamente postos, de ordem gramatical, como a música é apresentada.

Trata-se da versão de um dos principais grupos de rock do período, o Ultraje à Rigor, para

quem o líder Roger escreveu a música Inútil:

A gente não sabemos escolher presidente/ a gente não sabemos tomar conta da
gente/ a gente não sabemos nem escovar os dentes/ e vivem pensando que nós
é indigente/ inútil, a gente somos inútil./ A gente faz carro e não sabe guiar/ a
gente faz trilho e não tem trem pra botar/ a gente faz filho e não consegue criar/
a gente pede grana e não consegue pagar/ inútil, a gente somos inútil./ A gente
faz música e não consegue gravar/ a gente escreve livro e não consegue
publicar/ a gente escreve peça e não consegue encenar/ a gente joga bola e não
consegue ganhar/ inútil, a gente somos inútil.

Numa entonação nada debochada de crítica aos problemas de construção de uma

sociedade mais ética e democrática, encontra-se a música Que País é Este, escrita por

Russo desde o ano de 1978, quando fazia parte da extinta banda Aborto Elétrico, de Brasí-

lia. A música só foi gravada em 87, no terceiro disco do Legião Urbana, uma coletânea

do que não havia sido gravado nos trabalhos anteriores da banda. Trata-se de um discurso
indignado, cujo título é uma referência à famosa frase de Francelino Pereira, então repre-

sentante governista da ditadura militar, e que foi bastante ironizada pelos jornais alternati-

vos de esquerda e anárquicos na época - por ser um governista o formulador de uma tal

frase sobre o caos, em última instância, engendrado pelas políticas de Brasil-potência

levadas a efeito nos anos de governo militar. Diz a canção:

Nas favelas, no Senado/ sujeira pra todo lado/ ninguém respeita a Constituição/
mas todos acreditam no futuro da nação/ que país é este/ no Amazonas, no
Araguaia, na Baixada Fluminense/ Mato grosso, nas Geraes e no Nordeste tudo
em paz/ na morte eu descanso mas o sangue anda solto/ manchando os papéis,
documentos fiés/ ao descanso do patrão/ que país é este/ Terceiro Mundo se
for/ piada no exterior/ mas o Brasil vai ficar rico/ vamos faturar um milhão/
quando vendermos todas as almas/ dos nossos índios em um leilão./ Que país é
este.

A certa altura do release sobre esta música, que consta no encarte do disco, se diz

que ela

“nunca foi gravada antes porque havia a esperança de que algo iria realmente mudar
no país, tornando-se a música então totalmente obsoleta. Isto não aconteceu e ainda
é possível se fazer a pergunta do título, sem erros. Jimmy Page dizia que o bom do
rock é que não se aprende na escola. Outros atacam: ‘para ser roqueiro basta pendu-
rar uma guitarra no pescoço e sair por aí, fazendo a música mais primária do
mundo’. Oras, mas é este mesmo o espírito da coisa! O ataque continua: ‘o rock é
isso mesmo, um bate-estaca, a coisa mais elementar que existe, mais primitiva,
menos inventiva que pode acontecer. O rock não é novidade, é uma imposição, é
uma ditadura. É um sistema estético com a intenção de embotar a cabeça do jovem.
Sim, pois se você fica com aquele bate-estaca o dia inteiro na cabeça, você se
esquece da realidade que o cerca, das coisas realmente importantes’. Dois apartes
aqui. Realmente o rock não pode ser novidade já que é uma forma musical que
nasceu em 1955, tem mais de trinta anos portanto. Bate-estaca ou não, juvenil ou
não, preste atenção à letra de ‘Que País é Este’. Não nos parece coisa de quem se
esquece da realidade que o cerca. Comparar o rock com ditadura? Que país é este?
Quem é Jimmy Page?”

Também duas outras canções podem ser apresentadas como algo situado nesta

dimensão da crítica ética à insolvência política e moral do país. Interessante notar que

este tipo de discurso vai ter sua principal ascendência a partir do recrudescimento da crise

política e econômica do país e do conseqüente processo de frustração daí advindo. Em

grande parte, são discursos pessimistas e sem perspectiva aparente, que findam por
assumir a forma de um discurso dos excluídos: só que de uma perspectiva ambígua, em

que ora se está identificado com o “bandido” ou “desviante”, para o qual não parece haver

saída; ora com os cidadãos excluídos de qualquer forma de participação, para quem as

promessas de mudança assumiram a forma de um desencantamento do mundo, após

situações como a derrota das “Diretas-Já” e do caráter sem precedentes da crise

econômica e de representação política, com os exemplos de corrupção na esfera do

próprio Estado e de instâncias afins. Também aqui, se pode identificar um tipo de discurso

completamente indignado e cético, e que assume uma identidade ou identificação com o

mundo da marginália e do underground. Veja-se o caso, embora distinto em sua forma

de tratar a situação, das canções Brasil (de Cazuza, Israel e Romero) e Plic-Plic (de

Brandão e Paes):

Não me convidaram/ pra essa festa pobre/ que os homens armaram/ pra me
convencer/ a pagar sem ver/ toda essa droga/ que já vem malhada/ antes d’eu
nascer/ não me ofereceram/ nem um cigarro/ fiquei na porta/ estacionando os
carros/ não me elegeram/ chefe de nada/ o meu cartão de crédito/ é uma
navalha/ Brasil/ mostra a tua cara/ quero ver quem paga/ pra gente ficar assim/
Brasil/ qual é o teu negócio/ o nome do teu sócio/ confia em mim./ Não me
sortearam a garota do Fantástico/ não me subornaram/ será que é o meu fim/
ver TV a cores/ na taba de um índio/ programada pra só dizer sim/ grande
pátria desimportante/ em nenhum instante/ eu vou te trair.

A música Brasil vai revelar a existência clara de dois mundos: aquele integrado

aos valores do establishment e o dos excluídos - em que o excluído revela uma

consciência na qual, ao mesmo tempo que denuncia um tal processo de segregação social,

assume formas e valores do banditismo como recurso crítico para ironizar tanto a “vida

bandida” dos excluídos, quanto a prática do banditismo oficial de uma política fisiológica.

Respectivamente, nas passagens em que se diz: “o meu cartão de crédito/ é uma navalha”

e “não me subornaram/ será que é meu fim”. Neste último caso, fazendo-se referência a

uma prática corriqueira no tipo de organização fisiológica do nosso Estado burocrático-

patrimonialista. Outro aspecto da ironia passada pelo autor, é o que se refere ao


patriotismo, onde a voz do excluído exige do país que se apresente de modo mais

transparente politicamente, de forma mais democrática; quando finaliza com os versos

que diz: “grande pátria desimportante/ em nenhum instante/ eu vou te trair”.

Em Plic-Plic, gravação do Hanói-Hanói, o caos urbano é o próprio palco em que

a personagem do excluído transita. Diferente do que ocorre em Brasil, em que a voz do

excluído é posta na voz do intérprete; em Plic-Plic, o intérprete apenas narra a situação

de exclusão vivida pela personagem. Personagem contraditória que em si muito revela o

quadro de crise social vivida pela sociedade como um todo. Diz a canção:

Você quer ser bom rapaz, mas ninguém te leva a sério/ se virar um “marginal”
querem te ver no cemitério./ se for preso tá ferrado; vai dançar na mão dos
“hôme”:/ se correr eles te pegam, se ficar eles te comem. Se aplique!!!/ Você
vive de biscate; não se toca que tá mal: teu salário vem do bicho que faz
carnaval./ Sindicatos não entendem teu trabalho realista./ Teu suor tá num
baralho: isca de polícia!/ Já tentou ser operário, mas foi logo demitido/
(acidentes de trabalho são assuntos proibidos)/ se virar um comunista, não te
aceitam no partido; quem não gosta do trabalho se pirar, vira bandido - se
aplique!!!/ A comida custa cara... desemprego é normal;/ na escola não tem
vaga; não tem hospital!/ Você culpa todo mundo, mas não sabe fazer nada./ A
preguiça te perturba como uma piada./ Teu salário é uma merreca, o teu
trampo é prá leão;/ tua vida muito brega tá cheia de confusão/ todo dia pensa
em greve, toda noite toma um porre,/ teu país tá numa “bad” e qualquer dia
você morre! Se aplique!!!/ Você grita por diretas; depois vota num careta:/ a
política te agrada como uma punheta./ Você age como bicho; vive numas de
que é fera;/ mal nutrido e deprimido nem a droga te acelera./ E com toda
malandragem, o teu cheque não tem fundo./ Prá você não há jeton, nem chalé
no Lago Sul./ Se tivesse educação tua vida tava a mil;/ tua fome tinha nome;
tua guerra era civil - se aplique!!!

A pluralidade de situações de exclusão vividas singularmente pela personagem,

serve muito mais para situá-la como personagem múltipla de uma realidade polifônica. É

nesse sentido que a personagem é apresentada ora como biscateiro ou contraventor, ora

como operário ou malandro e avesso ao trabalho; sendo, ainda, politicamente equivocado

- “você grita por diretas; depois vota num careta” -, apático - “a política te agrada como

uma punheta” -, mas, também, militante incompreendido - “sindicatos não entendem teu

trabalho realista” ou “se virar um comunista, não te aceitam no partido”. O cotidiano


vivido na música é essencialmente caótico: com desemprego, alta dos preços dos produtos

básicos, ausência de assistência escolar e hospitalar, baixos salários, etc. Restando, assim,

como ponto de fuga, o porre, a droga: a personagem pensa em greve, mas, se aplica.

Também a existência de outro mundo, o dos privilégios, é mostrado pela música, quando

se refere ao sistema de moradia e do recebimento de jetons a que tem direito a elite política

de Brasília - e, dos quais, a personagem encontra-se excluída. Mas tudo isso se encontra

associado à ausência de cidadania vivida pela personagem; onde, do contrário, sua

realidade seria outra. É o que a música leva a intuir quando afirma: “Se tivesse educação

tua vida tava a mil; tua fome tinha nome; tua guerra era civil”. Mas, sem isso, “se

aplique!!!”

Com efeito, crê-se não se está exagerando o aspecto relacionado a fatores que

traduzem elementos críticos com implicações de questões ligadas ao mundo de uma ética

social; visto que se está ciente de que isto não pode ser afirmado enfaticamente de um

forma generalizada. E, é claro que tem enorme importância os fatores de mercado e

comercialização, que tendem a multiplicar em mil a reprodução do modelo que “deu

certo” - aliás, digno de nota é a ironia dos versos de Léo Jaime em sua versão a Rock’n’roll

(rock and roll music) de Chuck Berry, quando canta:

Ano passado eu cantava tango/ no retrasado eu era o rei do mambo/ mas o


patrão agora deu um toque/ se quer emprego tem que cantar rock.

Em todo caso, já se afirmou que o objetivo deste ensaio é ir além da afirmação

tautológica de que interesses econômicos estão no centro da cultura comercial capitalista.

E, diga-se de passagem, uma vez mais, a abertura política e a expansão de uma cultura do

consumo no Brasil são, por sua vez, amplamente favoráveis à recente explosão do rock

no país. Outrossim, claro está que em nenhum momento se pretendeu afirmar a existência,

no rock, de um discurso contínuo, coerente e que não apresente contradições no que se

refere aos processos ético-ideológicos configuradores de uma racionalidade sobre o


mundo. Ao contrário, pretende-se afirmar tratar-se aí de um discurso multiforme,

fragmentário, caótico, descontínuo; marcados de contrapontos em imagens dialéticas em

que, ao mesmo tempo em que se afirma um universo utópico desejante, cai-se numa

completa desesperança e desencantamento do mundo, para dele fugir com acentuada

ênfase no presente como esperança possível a um existir: a partir disso, o cotidiano das

ruas se apresenta como parâmetro único da própria existência do mundo presente, em que

projeções de um mundo futuro coabitam com a descrença no futuro. Assim,

existencialismo hedonista e anarquismo se compõem como elementos nitidamente

norteadores do discurso das letras do rock; sendo, por excelência, uma forte componente

do mundo das representações do imaginário juvenil hoje. Dois dos exemplos mais

lapidares das mediações desse processo no discurso do rock, em que se assume a já

aludida característica de um nomadismo no cotidiano, ora manifesto em sua forma

gregária, ora como exercício da solidão, encontra-se nas músicas Nós de Frejat e Cazuza

para o LP “Maior Abandonado” do Barão Vermelho e Música Urbana de Flávio e Felipe

Lemos, Russo e Pretorius, gravada no LP “Capital Inicial” da banda homônima. Veja-se

como isso se dá nas respectivas músicas; em certo sentido, tradutoras de uma carac-

terística do nosso atual flâneur:

Mas não é só isso/ o dia também morre e é lindo/ quando o sol dá a alma/ prá
noite que vem/ alma vermelha, que eu vi/ vê, são tantas histórias/ que ainda
temos que armar/ que ainda temos que amar/ por enquanto cantamos/ somos
belos, bêbados cometas/ sempre em bandos de quinze, vinte/ tomamos cerveja,
e queremos carinho/ e sonhamos sozinhos/ e olhamos as estrelas prevendo o
futuro/ que não chega/ não, não é só pensar no fim/ nas profecias/ é pensar que
um dia/ sob algum luar/ vou te mandar um recado/ baby, um reggae bem
gingado/ alucinado de amor/ amassado num guardanapo/ prá rirmos dos
loucos, sábios e mendigos/ e dos palhaços noturnos/ o sal da terra ainda arde e
pulsa/ aqui neste instante/ e olhamos a lua, e babamos nos muros/ cheios de
desejo.
A provisoriedade do tempo é algo constante em muitas das canções do rock nacio-

nal deste período. Da mesma forma em que se afirma a juventude e toda uma existência

a ser vivida, tem-se consciência de sua transitoriedade e finitude. A título de exemplo,

pode-se identificar a efetiva presença da categoria “tempo” em diversas composições de

Cazuza e Renato Russo: como é o caso de Ritual, música de Frejat e Cazuza (“prá que

sonhar/ a vida é bela e cruel despida/ tão desprevenida e exata/ que um dia acaba”); como

também, de Tempo Perdido de Renato Russo (“todos os dias quando acordo, não tenho

mais o tempo que passou/ mas tenho muito tempo: temos todo tempo do mundo (...)/

somos tão jovens”). Ao que parece, ainda, a noção de tempo é o que provoca a derrocada

utópica, ameaçando o desejo, que se reafirma num realismo cotidiano sem ilusões e de

consciência fragmentada. Isto também pode ser visto em Música Urbana:

Contra todos e contra ninguém/ o vento quase sempre nunca tanto diz/ estou
só esperando o que vai acontecer/ tenho pedras nos sapatos/ onde os carros
estão estacionados/ andando por ruas quase escuras/ os carros passam/ as ruas
têm cheiro de gasolina e óleo diesel/ por toda plataforma/ você não vê a torre/
tudo errado mas tudo bem/ tudo quase sempre como eu quis/ sai da minha
frente que agora eu quero ver/ não me importam os seus atos/ eu não sou mais
um desesperado/ se eu ando por ruas quase escuras/ as ruas passam.

Ademais, a forma do discurso pode, por vezes, assumir uma característica de com-

portamento cuja negação de valores cruciais do establishment é feita a partir da afirmação

de aspectos e práticas do próprio status quo de um mundo burguês. Trata-se, pois, de um

tipo específico de fenômeno que finda por afirmar uma insatisfação não claramente

identificada (talvez seja com o mundo consumista da família), a qual corresponderia uma

violência em despropósito: em que os símbolos do status quo vividos são detonados por

uma fúria dominada de um sentimento destrutivo, que tende a afirmar o caráter de uma

personalidade autoritária reificadora da própria ordem de violência dominante do sistema

social: neste caso, a negação do establishment se faz com o uso das próprias armas e

lógica de violência do sistema estabelecido. Solidão e psicopatia seriam, assim, os


ingredientes que exemplificariam esse tipo de coisas na música Psicopata do mesmo

disco do Capital Inicial, como se pode ler:

Papai morreu/ mamãe também/ estou sozinho/ não tenho ninguém/ essa vida
me maltrata/ estou virando um psicopata/ quebrei as janelas/ da minha casa/
eu rasguei a roupa/ da empregada/ esta vida me maltrata/ estou virando um
psicopata/ quero soltar bombas no Congresso/ eu fumo Hollywood para o meu
sucesso/ sempre assisto à Rede Globo/ com uma arma na mão/ se aparece
Francisco Cuoco/ adeus televisão.

Em outro sentido, pode-se identificar no discurso do rock tanto o anseio de uma

mudança social ou, mesmo, individual; quanto a demonstração de uma apatia, decepção,

cansaço ou descrença para com os ideais de mudança, assumindo-se, pois, um discurso

basicamente individualista e desesperançado. Tomando-se como referência, inicialmente,

este último aspecto, uma canção do rock traduz-se no exemplo mais claro disso. É o caso

de Ideologia de Frejat e Cazuza:

Meu partido/ é um coração partido/ e as ilusões estão todas perdidas/ os meus


sonhos/ foram todos vendidos/ tão barato que eu nem acredito/ que aquele
garoto que ia mudar o mundo/ freqüenta agora as festas do “Grand Monde”/
meus heróis morreram de overdose/ meus inimigos estão no poder/ ideologia/
eu quero uma pra viver/ o meu prazer/ agora é risco de vida/ meu sex and
drugs não tem nenhum rock’n roll/ eu vou pagar a conta do analista/ pra nunca
mais ter que saber quem eu sou/ pois aquele garoto que ia mudar o mundo/
agora assiste a tudo em cima do muro.

A música revela um completo ceticismo em relação a qualquer princípio de

construção utópica no mundo contemporâneo à situação da música, em que não há mais

ilusões e os sonhos foram vendidos, ou seja, traídos, absorvidos ou integrados ao

establishment. Numa época assim desencantada, o conformismo e o pessimismo parece

se generalizar, produzindo assim a forma do individualismo atual. Descrente de alguma

possibilidade de construção utópica ou de um amplo e, ainda, significativo projeto ou

narrativa para a humanidade, este tipo de pensamento tem na “ideologia” a configuração

de um conceito instrumental que possa atribuir, em todo caso, um significado para a vida.

Agora, o mundo enunciado encontra-se povoado de signos cujos significantes não mais
possuem significados; e aqueles que tentaram algo, amargaram o peso de suas investidas,

pagando muito caro por isso: com os heróis mortos por overdose, resta apenas a

constatação do controle do poder pelos inimigos. Num estado total de desânimo com

relação a idéia de “mudar o mundo”, fica-se acomodado ao puro hedonismo e frivolidade

das festas e/ou à neutralidade de se manter “em cima do muro”. e, mesmo em relação à

satisfação e ao prazer, paira a ameaça de destruição do desejo em tempos de AIDS.

Apatia, tédio, monotonia de vida, também fazem parte do cotidiano narrado pela

música Tédio, composta por Bruno, Sheik, Miguel e Álvaro para o Biquini Cavadão, no

LP “Cidades em Torrente”:

Sabe esses dias em que horas dizem nada?/ e você nem troca o pijama, preferia
estar na cama/ o dia, a monotonia tomou conta de mim/ é o tédio, cortando os
meus programas esperando meu fim/ sentado no meu quarto/ o tempo voa/ lá
fora a vida passa,/ e eu aqui à toa/ eu já tentei de tudo mas não tenho remédio/
pra livrar-me desse tédio/ vejo um programa que não me satisfaz/ leio um
jornal que é de ontem, pois pra mim tanto faz/ já tive esse problema, sei que o
tédio é sempre assim/ se tudo piorar, não sei do que sou capaz/ tédio, não tenho
um programa/ tédio, esse é o meu drama/ o que corrói é o tédio/ um dia eu fico
sério/ me atiro desse prédio.

Contudo, no tocante a um discurso tendente à manifestação de um anseio de mu-

dança, expresso, em sua multiformidade, como instância negadora dos valores do esta-

blishment, pode-se dispor de um quadro bastante significativo ao dimensionamento de

um perfil crítico do cotidiano urbano brasileiro, em seu já aludido processo de expansão

de uma cultura do consumo: a partir dos projetos de modernização que tiveram, no

período militar, sua versão mais intensificada e autoritária. É, neste momento, que se

pretende tomar com maior ênfase a referência a uma constelação de valores e

representações com a qual as letras estabelecem mediação e referência. A rigor, uma tal

constelação pode ser identificada em várias formas de representação do discurso: em que,

mesmo em suas características de maior apatia e ceticismo, onde parece não mais se

manifestar um universo desejante de situações orientadoras de processos de mudança, tais


elementos se fazem presentes. Mesmo, aqui, ainda que por subtração, na medida em que

não se deposita uma maior crença no futuro, uma tal constelação pode ser observada em

seu aspecto de negação do establishment; ainda que o faça em termos cinicamente indivi-

dualista e, em sua maioria, autocomplacente: fundado num nadismo inoperante, que faz

do hedonismo consumista ou dirigido o último reduto de um projeto pessoal de vida; cuja

saída será a de uma “ideologia” (um sentido) pra viver.

Por outro lado, o aspecto particular de interesse deste estudo é o de identificar a

existência da tendência a se pautar pelo itinerário crítico do cotidiano, orientando-se por

princípios que delineiam sentimentos e idéias identificados com anseios e aspirações à

mudança do quadro geral do sistema estabelecido: promovendo-se, assim, um discurso

de descentramento ou contratendente, cujas representações são capazes de elaborar

imagens, como “campo de forças”, no sentido do “terceiro horizonte” jamesoniano; ou

seja, do horizonte revelador da multiplicidade e coexistência dos “sistemas de signos”

dos diversos modos de produção sobrepostos (arcaicos e novos; econômicos, sexuais,

políticos, sociais, entre outros). O pressuposto básico disso é que tais imagens dialéticas

podem demandar “interpretações antecipatórias”, movidas de “impulsos utópicos” que,

no sentido bakhtiniano de carnavalização, parecem ser capazes de operar tanto “inversão

social” e “subversão” de processos hegemônicos do establishment, quanto “ambivalência

e ambigüidade próprias” (como se viu no capítulo anterior). Nestes termos, dos sistemas

de signos coexistentes (Jameson), das imagens dialéticas do cotidiano (Benjamin) e da

heteroglossia do discurso (dialogismo em Bakhtin), é que se quer apreender a crítica do

cotidiano urbano brasileiro em algumas das produções musicais do rock nos anos 80,

como possibilidade de se afirmar aí a prática (também, embora, não exclusivamente) de

um veio emancipador (Prokop) naquilo que concerne ao âmbito da própria cultura

comercial: elo mediador de todo processo da produção cultural na contemporaneidade


(esteja ela orientada para a reificação ou crítica dos valores do status quo dominante; ou,

mesmo, em formas de discurso fragmentário que incorporam, ambiguamente, um e outro

fatores). Aliás, convém ilustrar o aspecto dessa coexistência de imagens e vozes do

discurso, nas letras de Fanzine, de Arnaldo Brandão e Tavinho Paes, para o disco

homônimo do Hanói-Hanói, e Racio Símio, de Marcelo Fromer, Nando Reis e Arnaldo

Antunes, para o lp “Õ Blésq Blom” do Titãs. Em Fanzine, cujo título (neologismo de fan

e magazine) faz referência a publicações de tipo artesanal que circulam entre fãs, assume-

se uma forte conotação anárquica do desejo, desde a construção fragmentária dos seus

versos até o próprio nonsense que eles apresentam em muitos dos enunciados. Após

referência à música Televisão do Titãs (que diz, em seu primeiro verso: “A televisão me

deixou burro, muito burro demais”) e ao famoso livro de Baudelaire, este rock apresenta

o fanzine como o espaço de uma nova linguagem atualmente. Veja-se o que diz a letra:

Ninguém fica burro demais só porque viu tv./ As flores do mal são cogumelos
de neon glacê./ A juventude tem um tempo certo pra se corromper./ O
anarquismo é o anjo-da-guarda de todo prazer./ E tome zine, zine, zine (em
papel xerox):/ o futuro é preto-e-branco e todo branco, preto pode ter./ E tome
zine, zine, zine (em papel xerox)/ vem do fanzine, o novo papo; a nova onda;
novo ABC!!!/ A camisinha anti-aids fez a deusa vênus virar punk/ o cantor de
yê-yê-yê comportado é um cafajeste junk.../ chegou a hora do alimento ser todo
natural/ os vermes da terra, apreciam um corpo legal!/ E tome zine.../ No país
da Xuxa, os vampiros usam fio-dental.../ A ditadura justifica o bem,
praticando o mal.../ Um dia, as palavras não vão, deslizar pela boca.../ A utopia
vai ser a loucura de um guru pôrra-loca./ E tome zine.../ Desejo quando não se
arrisca é provocação.../ A liberdade faz gato e sapato da proibição!!!/ A beleza
dá a volta ao mundo e a chuva cai.../ Meu amor cabe em 3 versos de um hay-
kay:/ e tome zine!

Em Racio Símio, jogo de palavras que tanto faz referência ao uso da razão quanto

à forma craniana do macaco, tem-se uma letra de base experimental construída rigorosa-

mente a partir da formação de “frases feitas” (alterando-as em seus enunciados) - algumas

das quais são ditos populares ou, mesmo, trechos de canção popular e slogans publicitá-

rios: com efeito, o que se obtém dessa música é igualmente um discurso marcado de uma
pluralidade de vozes, capazes de alterar completamente o senso em que muito dessas

frases se encontram no seu uso comum. Cantam os versos:

O anão tem um carro com rodas gigantes/ Dois elefantes incomodam muito
mais/ Só os mortos não reclamam/ Os brutos também mamam/ Mamãe eu
quero mamar/ Eu não tenho onde morar/ Moro aonde não mora ninguém/
Quem tem grana que dê a quem não tem/ raciosímio/ Quem esporra sempre
alcança/ Com Maná adubando dá/ Ninguém joga dominó sozinho/ É dos
carecas que elas gostam mais/ A soma dos catetos é o quadrado da hipotenusa/
Nem tudo que se tem se usa/ raciosímio/ Os cavalheiros sabem jogar damas/
Os prisioneiros podem jogar xadrez/ Só os chatos não disfarçam/ Os sonhos
despedaçam/ A razão é sempre do freguês/ Eu não tenho onde morar/ Moro
aonde não mora ninguém/ Quem como prego sabe o cu que tem/ raciosímio.

Nesse sentido, não é demais reforçar a questão fundamental para este trabalho, no

que se refere à circunscrição do seu estudo a apenas o rock explosivo dos anos 80: o fato

de que, quando se afirma a existência de um “diálogo” crítico em parte da produção desse

rock com o debate, as aspirações, as lutas pela democratização da sociedade (e da cultura),

quer-se afirmar que tanto do ponto de vista da música, quanto da sociedade

(particularmente, aqui, de sua juventude), tais imagens e processos de representação se

encontram amplamente coadunados com a emergência de uma sociedade de consumo ou

de cultura do consumo, onde abertura política e democratização da sociedade não

implicam apenas no anseio à volta ao Estado de Direito, mas, inclusive, a uma completa

abertura à participação no consumo.

Com efeito, contestação e consumo implicam, ainda, na exigência de uma reflexão

que procure identificar como as formas de protesto e de luta aqui mediatizadas parecem

se ligar, mesmo, a uma dialética que aponta para o fato de que, assim como a luta política

pela democratização se deu no bojo de uma sociedade de cultura predominantemente e

hegemonicamente urbana e de consumo, condicionantes pois da própria ação e concepção

políticas; assim, também, a expansão da própria participação no consumo e de uma

cultura urbana massiva necessitou de um nível determinado de participação política por


parte dos agentes sociais urbanos em diversos níveis de representação e da organização

da sociedade civil.

Isto posto, pode-se melhor compreender porque: se, por um lado, a abertura polí-

tica e a vertiginosa expansão de uma cultura do consumo no Brasil foram amplamente

favoráveis ao surgimento e à explosão de um “novo” segmento da manifestação do rock

no país, como já se fez alusão; por outro, as frustrações no âmbito da esfera política e

com o recrudescimento da crise econômica, que gerou um quadro recessivo

obstaculizador das condições de consumo real, possibilitou uma maior abertura, nos

MCM, a uma crítica direta, aguçada, desabusada e quase sem metáforas na linguagem

desse rock no Brasil, inclusive, numa perspectiva de negação do sistema social tal como

ficou configurado anteriormente fazer parte de uma cultura juvenil, na forma de uma

ruptura com o establishment social - notadamente, isso fica evidenciado a partir de

meados da década de 80, com a ampliação do quadro de insatisfações surgidas como

sintoma agudo da crise social naquele momento; período em que, ao contrário de outros

segmentos culturais, o rock vive seu primeiro grande boom comercial, com um nítido

domínio do mercado e com uma vasta proliferação de bandas.

Neste período, pode-se identificar uma ampla incidência no discurso das letras

para a crítica, entre outras, da falência e autoritarismo das instituições do Estado e demais

instituições sociais (família, escola, igreja). No bojo dessa crítica, surge, também, uma

crítica dos valores e do comportamento social difuso em relação ao amor, ao sexo, às

drogas etc.; da violência urbana; da ordem social em geral. No que diz respeito a este

último aspecto, pode-se ilustrar com os versos de Gritos na multidão, de Edgard

Scandurra para o lp “Vivendo e não aprendendo” do Ira! Nas duas últimas estrofes, se

canta:

Estou desempregado, estou desgovernado/ a fome me faz mal, estou passando


mal/ mas vou entrar na luta, ou então cair na rua/ já vejo a poluição, está
ficando perto/ este é o coração da máquina do esperto/ e aqui estou então, não
estou sozinho não/ é mais de 1 milhão, ninguém mais pensa em vão/ existe
confusão/ gritos na multidão/ é o fim da convenção/ gritos na multidão/ pobre
de ti, irmão!

Tal como foi dito, o teor da crítica no rock assume tanto a forma de um puro

ceticismo, quanto a característica de uma crítica potencializadora de um anseio de

mudança. Entre esses pontos assim polarizados, há uma gradação significativa de

situações que não permitem a distinção clara daqueles pólos: tornando o discurso do rock

acentuadamente ambíguo, fragmentário, contraditório; apenas permitindo uma breve

aproximação de sua interpretação em termos de uma maior ênfase em uma ou outra

tendência. Independente disso, os elementos acima e anteriormente identificados como

configuradores de uma constelação de valores e representações negadores do status quo

dominante, são, neste contexto, pensados em termos de sua tendência a praticar um veio

emancipador, em particular, quando se apresenta por aquela disposição ou anseio à

mudança da ordem social estabelecida (bem como, pela afirmação de uma postura ou

valores assumidos, alternativamente, às formas opressivas e autoritárias das práticas e

valores sociais dominantes). Fica claro, assim, que esses elementos estão sendo

observados no interior de um discurso fragmentário, cujo elo de mediação se configura

no âmbito de uma ambígua cultura juvenil e de um cotidiano caótico, conforme já se pode

perceber nas letras acima interpretadas.

Em termos de sua referência às instituições do Estado, pode-se perceber uma mul-

tiplicidade de formas de representação crítica no discurso das letras. Para este momento,

bastaria lembrar algumas dessas formas, no que se refere à desobediência civil, ao anar-

quismo, à violência, ao autoritarismo e aos fenômenos burocráticos. Dentre os discursos

mais representativos de uma visão anárquica e da desobediência civil encontram-se,

respectivamente, os das músicas Lugar Nenhum (de Antunes, Gavin, Fromer, Britto e
Bellotto), gravado pelo Titãs no LP “Jesus não tem dentes no país dos banguelas” e

Geração Coca-Cola (de Russo), para o primeiro LP do Legião. Veja-se a seguir:

Não sou brasileiro/ não sou estrangeiro/ não sou de nenhum lugar,/ sou de
lugar nenhum/ não sou de São Paulo, não sou japonês./ Não sou carioca, não
sou português/ não sou de Brasília, não sou do Brasil./ Nenhuma pátria me
pariu./ Eu não tô nem aí./ Eu não tô nem aqui.

Uma das características desse discurso pode ser identificada em seu propósito em

se afirmar a recusa aos sentimentos patrióticos; auto-afirmando-se, assim, um expatria-

mento total da “mãe-pátria”. Aliás, essa recusa parece ter, em seus versos finais, uma

certa pretensão em estabelecer uma associação das representações “pátria”, “mãe” e

“prostituta”, na passagem que diz: “nenhuma pátria me pariu” - revelando-se,

nitidamente, como uma paráfrase a uma forma de xingamento popular. Em Geração

Coca-Cola pode-se ver uma forma de desobediência civil, quando se afirma a completa

alteração das regras do jogo, em que agora toda uma “geração”, crescida e amadurecida,

dá o “troco” em contraposição ao que dela se esperava como “futuro da nação”. Observe-

se a letra:

Quando nascemos fomos programados/ a receber o que vocês nos


empurraram/ com os enlatados dos U.S.A., de 9 às 6./ Desde pequenos nós
comemos lixo/ comercial e industrial/ mas agora chegou nossa vez -/ vamos
cuspir de volta o lixo em cima de vocês./ Somos os filhos da Revolução/ somos
burgueses sem religião/ nós somos o futuro da nação/ geração coca-cola/ depois
de vinte anos na escola/ não é difícil aprender/ todas as manhas do seu jogo
sujo/ não é assim que tem que ser?/ vamos fazer nosso dever de casa/ e aí então,
vocês vão ver/ suas crianças derrubando reis/ fazer comédia no cinema com as
suas leis.

A expressão “geração coca-cola” faz alusão a uma situação social vivida no Brasil

nas últimas décadas, cuja característica maior diz respeito ao desenvolvimento de um

modelo de crescimento econômico que tanto se valeu de um modelo político-autoritário,

quanto de um modelo cívico, de longe, apartado das questões envolvidas em qualquer

processo de construção da cidadania. É, assim, num sistema social de cidadania


“amputada”, que vai se dar toda uma configuração da expansão do consumo como projeto

político da ditadura militar pós-64: período em que crescem os “filhos da Revolução”, tão

imbuídos de um materialismo burguês, fundado na “nova” ética de um hedonismo

consumista, que já constituem, mesmo, uma geração de indivíduos, símbolo desse

processo, a “geração coca-cola”. O passo à “desobediência” encontra-se no fato de que,

embora programada instrumentalmente para o consumo, esta “geração” também se

apresentaria por um desvirtuamento daqueles propósitos iniciais: “cuspindo” de volta o

“lixo” recebido e “derrubando reis” - imagens que, no plano simbólico, prefiguram um

quadro de representação de anseios à alteração da ordem social.

Com respeito ao hiato existente entre cidadão e consumidor na sociedade

brasileira, fruto do projeto autoritário de ampliação do consumo no país recentemente,

Santos (1987) vai afirmar que, ao contrário do que poderia ocorrer num real processo

democrático, em que todo cidadão se reconhece como portador de prerrogativas sociais

fundamentais, esse modelo econômico de expansão do consumo tendeu a subordinar o

modelo cívico aos seus próprios desmandos: “Numa democracia verdadeira, é o modelo

econômico que se subordina ao modelo cívico. Devemos partir do cidadão para a

economia e não da economia para o cidadão” (p.5).

Não bastasse isso, o autor vai demonstrar que, mesmo atualmente, a crise econô-

mica e as investidas neoliberais no Brasil só têm “conduzido a certos retrocessos em

matéria de conquistas sociais e políticas”. De cidadania completamente “amputada” num

primeiro momento, chega-se aos termos atuais de uma “cidadania atrofiada”, em que os

indivíduos não se apresentam como cidadãos, mas como consumidores usuários: sendo

que, como tais, exercitam uma cidadania amplamente estratificada e desigual, entendida

aqui mais pelo fator “riqueza” que pelo princípio dos “direitos essenciais” de “homens
livres” (Haguette apud Santos, op.cit., p.12). E diz, mais uma vez, o autor em relação ao

processo brasileiro:

“Em nenhum outro país foram assim contemporâneos e concomitantes processos


como a desruralização, as migrações brutais desenraizadoras, a urbanização galo-
pante e concentradora, a expansão do consumo de massa, o crescimento econômico
delirante, a concentração da mídia escrita, falada e televisionada, a degradação das
escolas, a instalação de um regime repressivo com a supressão dos direitos
elementares dos indivíduos, a substituição rápida e brutal, o triunfo, ainda que
superficial, de uma filosofia de vida que privilegia os meios materiais e se
despreocupa com os aspectos finalistas da existência e entroniza o egoísmo como
lei superior, porque é o instrumento da buscada ascensão social. Em lugar do
cidadão formou-se um consumidor, que aceita ser chamado de usuário (p.12-3).

Em consumo, música da banda Plebe Rude para o lp “Nunca fomos tão

brasileiros”, pode-se constatar esse hiato entre cidadão e consumidor, quando diz a letra:

Comprei uma coca/ cadê o sorriso?/ gastei dinheiro/ e fiquei liso/ cale a boca e
consuma/ cale a boca e consuma/ você não tem o direito de duvidar/ comprei
de tudo/ a prestação/ o SPC/ é o meu caixão/ cale a boca e consuma/ cale a boca
e consuma/ você não tem o direito de duvidar/ consumidor que não reclama/
paga filé e come banana/ cale a boca e consuma/ cale a boca e consuma/ você
não tem o direito de duvidar.

Fazendo eco ao debate levado a efeito por teóricos como Lefebvre, Baudrillard,

Heller, Mészaros, a propósito de uma sociedade dirigida ao consumo, o autor vai contra-

por a imagem de cidadão à de consumidor, mostrando que o indivíduo cidadão é um

“consumidor imperfeito”, porque insubmisso aos desmandos do mercado; ao passo que o

indivíduo que não exerce a sua cidadania se apresenta como “o consumidor mais-que-

perfeito”, pela razão oposta à do primeiro caso. É o que diz o autor em uma passagem de

suma importância:

“O consumo, sem dúvida, tem sua própria força ideológica e material. Às vezes,
porém, contra ele, pode-se erguer a força do consumidor. Mas, ainda aqui, é neces-
sário que ele seja um verdadeiro cidadão para que o exercício de sua individualidade
possa ter eficácia. Onde o indivíduo é também cidadão, pode desafiar os
mandamentos do mercado, tornando-se um consumidor imperfeito, porque
insubmisso a certas regras impostas de fora dele mesmo. Onde não há o cidadão,
há o consumidor mais-que-perfeito. É o nosso caso” (p.41).
Em Esse mundo que eu vivo, de Lobão e Vilhena (LP “Vida Bandida”) e Comida

de Antunes, Fromer e Britto (LP “Jesus não tem dentes no país dos banguelas”), pode-se

observar, respectivamente, tanto a indignação quanto à falta de escrúpulos de uma socie-

dade de mercado que tudo expõe à venda; quanto a reivindicação coletiva, expressa na

figura “a gente”, do respeito a uma mais ampla satisfação das necessidades, que não se

restringe à comida, à bebida, ao dinheiro: posto que também se tem necessidade da arte,

da diversão, do prazer. No primeiro caso, se diz:

Pelo inverno nas cidades/ eu assisto as transformações/ pelos quartos nos


hotéis/ nos anúncios, nas televisões/ vendem crimes/ vendem inveja/ vendem
tudo/ até ilusões/ estão brincando/ eu não acredito/ penso em tudo/ até em
revoluções/ nos verões pela cidade/ eu assisto as evoluções/ nas escolas desta
vida/ nas quadras nas concentrações/ eu sei que tudo é possível/ é nesse mundo
que eu vivo/ no outono pelas cidades/ eu assisto as demolições/ destróem casas/
implodem edifícios/ não é difícil/ pra quem não tem emoções/ vendem crises/
vendem misérias/ vendem tudo em mil prestações/ estão brincando,/ eu não
acredito/ penso em tudo até em revoluções.

E, no segundo caso:

Bebida é água/ comida é pasto. você tem sede de que?/ você tem fome de que?/
A gente não quer só comida,/ a gente quer comida, diversão e arte./ A gente
não quer só comida,/ a gente quer saída para qualquer parte./ A gente não quer
só comida,/ a gente quer bebida, diversão, balé./ A gente não quer só comida,/
a gente quer a vida como a vida quer./ A gente não quer só comer,/ a gente
quer comer e quer fazer amor./ A gente não quer só comer,/ a gente quer
prazer pra aliviar a dor./ A gente não quer só dinheiro,/ a gente quer dinheiro
e felicidade./ A gente não quer só dinheiro,/ a gente quer inteiro e não pela
metade.

Uma nota a mais a respeito do uso do binômio consumo e contestação no estudo

do rock brasileiro, deve considerar que ele visa exprimir o sentido de um elo mediador

entre os processos de participação na política e de participação no consumo, configurado

no contexto de uma “mega-sociedade” de globalização econômica e de cultura

mundializada (como já se propôs a partir de Ortiz e Guattari); inclusive, nestes termos,

no tocante à crise atual da modernidade e sua caracterização em uma cultura e política

pós-modernas. Aliás, é bom que se enfatize, a forma contraditória, fragmentária,


multiforme com que se pode apreender as representações no discurso do rock brasileiro

recente, como já foi apresentado no início deste capítulo, mantém muito das

características do que se ponderou aqui como pós-modernidade, em particular, como pós-

modernidade crítica (Foster e Huyssen): conflito entre impulsos utópicos e descrença no

futuro; criticidade, niilismo, anarco-existencialismo etc. O retrato melancólico disso pode

ser visto em Revanche de Lobão e Vilhena, para o LP “O rock errou”:

Eu sei que já faz muito tempo/ que a gente volta aos princípios/ tentando
acertar o passo/ usando mil artifícios/ mas sempre alguém tenta um salto/ e a
gente é que paga por isso/ Fugimos pras grandes cidades/ bichos do mato em
busca do mito/ de uma nova sociedade/ escravos de um novo rito/ mas se tudo
deu errado/ quem é que vai pagar por isso?/ Eu não quero mais nenhuma
chance/ eu não quero mais revanche/ A favela é a nova senzala/ correntes da
velha tribo/ e a sala é a nova cela/ prisioneiros nas grades do vídeo/ e se o sol
ainda nasce quadrado/ e a gente ainda paga por isso/ eu não quero mais
nenhuma chance/ eu não quero mais revanche/ Um café, um cigarro, um trago/
tudo isso não é vício/ são companheiros da solidão/ mas isso foi só no início/
hoje em dia somos todos escravos/ quem é que vai pagar por isso?

É visível a crítica à idéia de progresso da modernidade, que teria nos escravizado

em seus rituais de busca do mito de uma sociedade renovada pela técnica, que se espelha

nas grandes cidades, espaço de excelência do consumo: em que nos tornamos

“prisioneiros nas grades do vídeo” que “transforma” salas de estar em uma nova cela. E

apesar de tudo, do progresso material, permanecem claras as desigualdades sociais da

“velha tribo”, sendo a favela a nova expressão da senzala. E frente a este quadro geral, só

nos restaria a solidão, da qual “somos todos escravos” hoje. Mas, frente à dimensão dessa

grande engrenagem, em que “bodes expiatórios” pagam o preço da manutenção do

establishment, e num tom desencantado e, em parte, relativamente resignado, diz o refrão

da música : “Eu não quero mais nenhuma chance/ eu não quero mais revanche”.

Também com a característica de uma crítica desolada em relação aos progressos

da modernidade, particularmente no que se refere à sociedade capitalista de mercado e às

características de nossa civilização técnica, destacam-se duas canções do LP “Cabeça


Dinossauro”: são, respectivamente, Bichos Escrotos (de Antunes, Britto e Reis) e Homem

Primata (de Britto, Fromer, Reis e Pessoa). Na primeira canção, à polaridade civilização

vs. barbárie ou, também, mundo ordenado vs. submundo, criou-se, paralelamente, a

polaridade entre dois tipos de classificação das figuras animais: a dos animais

domesticados e a dos animais infecto-perniciosos, como se pode ver na letra:

Bichos/ saiam dos lixos./ Baratas,/ me deixem ver suas patas./ Ratos,/ entrem
nos sapatos/ do cidadão civilizado./ Pulgas,/ que habitam minhas rugas./
Oncinha pintada,/ zebrinha listrada,/ coelhinho peludo,/ vão se foder!/ Porque
aqui na face da terra/ só bicho escroto é que vai ter!/ Bichos escrotos, saiam
dos esgotos./ Bichos escrotos, venham enfeitar/ meu lar,/ meu jantar,/ meu
nobre paladar.

Em Homem Primata, passa-se a imagem de que, sob o capitalismo, o homem não

pode se libertar de sua brutal condição de um mero predador especulativo e acumulador

de bens que, capaz de destruir violentamente o meio-ambiente e o próprio espaço que ele

constrói, encontra-se regido pela ética individualista de um mundo cruel em que cada um

deve se voltar para si mesmo, com prévia consciência de que Deus está contra todos.

Neste contexto, o homem civilizado é um homem da barbárie, não tendo ainda se

libertado de sua pré-história. Diz a música:

Desde os primórdios/ até hoje em dia/ o homem ainda faz/ o que o macaco
fazia/ eu não trabalhava, eu não sabia/ que o homem criava e também destruía/
homem primata/ capitalismo selvagem/ ô ô ô/ Eu aprendi/ a vida é um jogo/
cada um por si/ e Deus contra todos/ você vai morrer e não vai pro céu/ é bom
aprender, a vida é cruel/ Eu me perdi na selva de pedra/ eu me perdi, eu me
perdi./ I’m a cave man/ A young man/ I fight with my hands/ with my hands/
I am a jungle man, a monkey man/ concrete jungle!

Com relação a outros elementos da constelação a que se pode fazer referência, no

sentido de sua contraposição aos valores do establishment, percebe-se que eles se encon-

tram, entre outros aspectos não relevados aqui, relacionados entre si e em sintonia com a

disposição geral do universo de representações de um “estar no mundo” político contido

no quadro ambíguo e fragmentário do discurso poético ora em destaque: no tocante, parti-


cularmente, ao dimensionamento de uma consciência e visão de mundo atuais que, de um

lado, tanto possibilita a afirmação da existência do elo mediador ou de um diálogo entre

o rock (como uma expressão da cultura urbana) e certos elementos próprios do mundo de

representações juvenil (caracterizadores de uma cultura jovem, na qual o rock se tem

incluído); quanto, de outro lado, como já se disse, também é capaz de afirmar a existência

potencial de uma dimensão crítico-emancipatória em certa tendência das manifestações

do discurso daquele produto cultural. A importância, ainda, deste tipo de investigação de

uma dimensão crítico-emancipatória do discurso, cuja proposição faz eco ao que Jameson

defende como sendo a articulação de uma hermenêutica negativa com uma hermenêutica

positiva (vide capítulo anterior), necessária à leitura e interpretação críticas, apoia-se,

também, e fundamentalmente, na consideração dada por Swingewood (op. cit.) às

mediações relacionadas aos fatores de consciência dos indivíduos na sociedade: de que a

consciência do indivíduo em relação ao todo é mediada pelo conhecimento produzido

(p.83). A rigor, isto se apresenta como o aspecto central de preocupação do presente

estudo. E, mesmo quando se sabe que o discurso do rock, assim como muito do mundo

de representações da cultura juvenil, se apresentam como mediação (com potencial

crítico) dos aspectos multifacetados do cotidiano, de forma fragmentária, ambígua e,

mesmo, caótica, nos termos de uma caracterização da cultura pós-moderna; ainda assim,

a postulação de uma dimensão crítico-emancipatória desse discurso não deixa de ter

pertinência caso seja considerado os termos do que Foster (op. cit.) e Huyssen (op. cit.)

propuseram como fazendo parte de uma pós-modernidade crítica.

Com referência à família, duas músicas se destacam de um modo exemplar: Famí-

lia (de Antunes e Belloto), gravado no disco “Cabeça Dinossauro” e Só as mães são

felizes (de Frejat e Cazuza), que consta do LP “Exagerado” de Cazuza. Em seu aspecto

geral, ambas as canções procedem por um discurso que opõe o universo regrado da
família (na concepção que se tem dela como espaço de garantia de uma base emocional

necessária à produção da subjetividade de seus membros) ao do mundo da rua (visto como

lugar de desafios, de crueldades, de obstáculos a serem vencidos). Disso resulta que o

universo familiar é tido, na concepção elaborada por esse discurso, como acentuadamente

limitado e que não permite aos indivíduos ampliar o conjunto de suas experiências, nem,

ao menos, dar vazão ao jogo multifário de suas emoções. Nesse sentido, e

contraditoriamente, a família é apresentada como espaço de rotina, de castração e de

neurose; onde, em lugar de favorecer uma base de apoio emocional dos indivíduos,

capitula-os como ponto de fuga e de aprisionamento pelo qual eles se protegem das

ameaças do mundo externo. Isto pode ser visto ironicamente nas imagens formadas pelos

versos da música Família:

Família, família/ papai, mamãe, titia/ família, família,/ almoça junto todo dia,/
nunca perde essa mania./ Mas quando a filha quer fugir de casa/ precisa
descolar um ganha-pão/ filha de família se não casa/ papai, mamãe, não dão
nenhum tostão./ Família ê/ família á/ família./ Família, família/ vovô, vovó,
sobrinha./ Família, família/ janta junto todo dia,/ nunca perde essa mania./
Mas quando o nené fica doente/ procura uma farmácia de plantão/ o choro do
nené é estridente/ assim não dá pra ver televisão./ Família ê/ família á/ família./
Família, família/ cachorro, gato, galinha./ Família, família,/ vive junto todo
dia,/ nunca perde essa mania./ A mãe morre de medo de barata/ o pai vive com
medo de ladrão/ jogaram inseticida pela casa/ botaram um cadeado no portão./
Família ê/ família á/ família.

Numa forma diferente de apresentação do universo acomodado da família, a

música Só as mães são felizes estrutura seu discurso, não pela apresentação da família,

mas pela configuração do mundo da rua, do qual a família, aqui expressa na figura

materna, seria o contraponto. Aliás, essa música apresenta em seu discurso um caráter

fortemente edipiano, montado na forma de um tipo acusativo, em que os heróis,

apresentados no início, compõem toda uma constelação de cultura rebelde no ocidente.

Veja-se como isso se dá:

Você nunca varou/ a Duvivier às cinco/ nem levou um susto/ saindo do Val
Improviso/ era quase meio dia/ no lado escuro da vida/ nunca viu Lou Reed/
“Walkin’on the wild side”/ nem Melodia transviado/ rezando pelo Estácio/
nunca viu Allen Ginsberg/ pagando um michê no Alaska/ nem Rimbaud pelas
tantas/ negociando escravas brancas/ você nunca ouviu falar em maldição/
nunca viu um milagre/ nunca chorou sozinha num banheiro sujo/ nem nunca
quis ver a face de Deus./ Já freqüentei grandes festas/ nos endereços mais
quentes/ tomei champagne e cicuta/ com comentários inteligentes/ mais tristes
que os de uma puta/ no Barbarella às quinze prás sete/ reparou como os velhos/
vão perdendo a esperança/ com seus bichinhos de estimação e plantas/ já
viveram tudo/ e sabem que a vida é bela/ reparou na inocência cruel das
criancinhas/ com seus comentários desconcertantes/ adivinham tudo/ e sabem
que a vida é bela/ você nunca sonhou/ ser currada por animais/ nem transou
com cadáveres/ nunca traiu o teu melhor amigo/ nem quis comer a sua mãe/ só
as mães são felizes.

No tocante à sexualidade, também duas canções são aqui demonstrativas da tensão

entre liberação e recalque tanto da sexualidade quanto de sentimentos envolvidos nesta

esfera: são elas Rádio Blá, de Lobão e Arnaldo Brandão (gravada por Lobão e pelo Hanói-

Hanói) e A Dança, de Dado Villa-Lobos, Russo e Bonfá (gravada no primeiro LP do

Legião). Em Rádio Blá, pode-se identificar uma crítica do comportamento sexual dentro

do espírito do que Marcuse chamou de dessublimação repressiva (ver capítulo primeiro).

Mentiras, jogos de sedução, usados como forma de manipulação, recalque dos desejos:

são os principais aspectos de acusação do tipo de comportamento da personagem

feminina a que se refere a letra - vivendo-se, assim, uma dimensão afetiva altamente

conflitiva e neurotizante no processo (processo, esse, que não se confunde, em nenhum

aspecto, com o feminismo ou com qualquer processo de uma manifestação real liberação

sexual). Diz a canção:

Ela adora me fazer de otário/ para entre amigas/ ter o que falar/ é a onda da
paixão paranóica/ praticando sexo/ como jogo de azar/ uma noite ela me disse/
quero me apaixonar/ como quem pede desculpas a si mesmo/ a paixão não tem
nada a ver com a vontade/ quando bate é o alarme de um louco desejo/ não dá
para controlar,/ não dá/ não dá pra planejar/ eu ligo o rádio/ e blá, blá/ eu te
amo/ Sua vida burguesa é um romance/ um roteiro de intrigas/ pra Felini
filmar/ cercada de drogas, de amigos inúteis/ ninguém pensaria que ela quer
namorar/ reconheço que ela me deixa inseguro/ sou louco por ela e não sei o
que falar/ o que eu quero é que ela quebre a minha rotina/ que fique comigo e
deseje me amar.
Em A Dança, uma verdadeira constelação de elementos encontra a sua prefigura-

ção crítica: vida moderna e materialismo burguês compõem um mundo de preconceito,

machismo, manipulação de sentimentos, solidão, hipocrisia; ao lado de drogas, idéias

equivocadas, rebeldia consentida:

Não sei o que é direito/ só vejo preconceito/ e a sua roupa nova/ é só uma roupa
nova/ você não tem idéias/ p’rá acompanhar a moda/ tratando as meninas/
como se fossem lixo/ ou então espécie rara/ só a você pertence/ ou então espécie
rara/ que você não respeita/ ou então espécie rara/ que é só um objeto/ p’rá
usar e jogar fora/ depois de ter prazer./ Você é tão moderno/ se acha tão
moderno/ mas é igual a seus pais/ é só questão de idade/ passando dessa fase/
tanto fez e tanto faz./ Você com as suas drogas/ e as suas teorias/ e a sua
rebeldia/ e a sua solidão/ vive com seus excessos/ mas não tem mais dinheiro/
p’rá comprar outra fuga/ sair de casa então/ então é outra festa/ é outra sexta-
feira/ que se dane o futuro/ você tem a vida inteira/ você é tão esperto/ você
está tão certo/ mas você nunca dançou/ com ódio de verdade./ Você é tão
esperto/ você está tão certo/ que você nunca vai errar/ mas a vida deixa marcas/
tenha cuidado/ se um dia você dançar./ Nós somos tão modernos/ só não somos
sinceros/ nos escondemos mais e mais/ é só questão de idade/ passando dessa
fase/ tanto fez e tanto faz./ Você é tão esperto/ você está tão certo/ que você
nunca vai errar/ mas a vida deixa marcas/ tenha cuidado/ se um dia você
dançar.

Várias letras do rock no período estudado apresentam um discurso que, em diver-

sas situações, exprimem representações que procuram afirmar um determinado grau de

autonomia pessoal. Isto pode ser observado em músicas de praticamente todas as bandas

de rock. Em Baader-Meinhof Blues do Legião Urbana (Villa-Lobos, Russo e Bonfá, lp

“Legião Urbana”) se canta: “Não estatize meus sentimentos/ p’ra seu governo,/ o meu

Estado é independente”. Em Rebelde sem Causa, de autoria de Roger para o lp “Nós

vamos invadir sua praia”, da banda Ultraje a Rigor, observa-se a questão da autonomia

posta num tom bastante peculiar à banda, o do deboche. A situação apresentada na música

é a de um jovem vivendo uma condição bastante singular: aquela em que um quadro geral

de materialismo consumista, tão presente nas aspirações da maioria da juventude nas

sociedades de consumo atuais, inclusive com a completa colaboração e compreensão dos

pais, leva este jovem a se queixar de que nestas condições de harmonia e consumo, não
vai poder crescer, amadurecer, enfim, criar uma identidade própria. Alguns versos desta

música já bastam para se ter uma dimensão de sua crítica irônica:

Meus dois pais me tratam muito bem (...)/ Meus dois pais me dão muito carinho
(...)/ Meus dois pais me compreendem totalmente (...)/ Meus dois pais me dão
apoio moral (...)/ Minha mãe ainda me deu essa guitarra/ ela acha bom que o
filho caia na farra/ E o meu carro foi meu pai que me deu/ filho homem tem
que ter um carro seu (...)/ Me dão dinheiro pra eu gastar com a mulherada/ Eu
realmente não preciso mais de nada/ Meus pais não querem, que eu fique legal/
Meus pais não querem, que eu seja um cara normal/ não vai dar, assim não vai
dar/ Como é que eu vou crescer sem ter com quem me revoltar (...)/ Pra eu
amadurecer sem ter com quem me rebelar (...)

Uma das letras mais significativas nesse sentido, da autonomia pessoal, é a da

música O tempo não para, de Brandão e Cazuza (lp “Fanzine” do Hanói-Hanói” e “O

tempo não pára” de Cazuza), onde se traduz uma multiplicidade de sentimentos

contraditórios, habitando um mesmo universo: em que, por exemplo, ao passo que se

demonstra sinais de cansaço pra lutar, nega-se a condição de derrotado. E, ao mesmo

tempo, ainda, a posição de independência ou autonomia pessoal é afirmado através da

voz do excluído, na forma como já foi acima apresentado no exemplo de outras canções.

Outrossim, um discurso melancólico e cético empresta um tom nitidamente anárquico-

existencialista à crítica do establishment e de um cotidiano de simulacros: em que o futuro

parece repetir o passado e o mundo se mostra como um “museu de grandes novidades”.

Veja-se o que diz a música:

Disparo contra o sol/ sou forte, sou por acaso/ minha metralhadora cheia de
mágoas/ eu sou um cara/ cansado de correr/ na direção contrária/ sem pódium
de chegada ou beijo/ de namorada/ eu sou mais um cara/ mas se você achar/
que eu estou derrotado/ saiba que eu ainda estou rolando os dados/ porque o
tempo não pára/ dias sim, dias não/ eu vou sobrevivendo/ sem um arranhão/
da caridade de quem/ me detesta/ a tua piscina está cheia de ratos/ suas idéias
não correspondem aos fatos/ o tempo não pára/ eu vejo o futuro repetir o
passado/ eu vejo um museu de grandes novidades/ o tempo não pára/ Eu não
tenho data pra comemorar/ às vezes, os meus dias são de par em par/
procurando agulha no palheiro/ nas noites de frio é melhor nem nascer/ nas de
calor, se escolhe: é matar ou morrer/ e assim nos tornamos brasileiros/ te
chamam de ladrão, de bicha, maconheiro/ transformam um país inteiro num
puteiro/ pois assim se ganha mais dinheiro.
Outra canção que parece afirmar, de modo significativo, um discurso revelador da

independência pessoal (autonomia) é Nunca existiu o pecado, de Frejat e Goffi, para o

LP “Carnaval” da banda Barão Vermelho. Pode-se tomar o forte teor existencialista da

letra, onde se observa a presença nítida da categoria tempo, através da qual se identificam

os elementos da tradição, do preconceito e da repressão à sexualidade e à liberdade de

expressão. Nesse quadro de aspectos definidores do establishment, enuncia-se que a saída

é pôr-se à margem “desse mundo escuro e sujo”, afirmando a coragem de amar e da não

admissão da existência de pecados. Também marcado de um tom melancólico, atesta-se

que a humanidade encontra-se menos utópica, menos delirante; e que não aprendeu,

sequer, as questões básicas para um existir mais liberto. Por isso, se denuncia o grande

vício da esperança, e o cuidado necessário frente as suas traições; mas, logo se afirma que

não se deve deixar dominar pelas decepções a se enfrentar. É o que se pode observar

abaixo:

A rapidez velha do tempo/ revive inquisições fatais/ o mesmo ciclo de revoltas/


e preconceitos sexuais/ hum!/ por mais liberdade que eu anseie/ esbarro em
repressões fascistas/ mas tô à margem disso tudo/ desse mundo escuro e sujo/
não tenho medo de amar/ pra mim nunca existiu o pecado/ não/ essa vida é
uma só/ nesse buraco negro eu não caio/ a esperança é um grande vício/
cuidado com suas traições/ e não deixe de cuspir no lixo/ o gosto amargo das
decepções/ não tenho medo de amar/ pra mim nunca existiu o pecado/ não/ essa
vida é uma só/ nesse buraco negro eu não caio/ a humanidade está um porre a
menos/ não aprendeu a respirar/ quebrou prá esquina errada/ e avançou os
sinais.

Finalmente, a título apenas de ilustração da existência de um discurso contraten-

dente nas manifestações do rock, atualmente, no Brasil da década de 90, pode-se fazer

referência ao desenvolvimento de muitos dos trabalhos levados a efeito tanto pelas

veteranas bandas dos anos 80, que já sobrevivem a uma década de grande sucesso de

público (Titãs, Paralamas do sucesso, Legião Urbana, Lobão e outras); quanto pelo

surgimento de novos nomes no cenário musical do rock - aliás, com trabalhos bastante

singulares no tocante à fusão de estilos e às características do discurso utilizado nas letras.


Nesse sentido, poder-se-ia destacar dois importantes exemplos da experiência musical

recente no Brasil envolvendo elementos do rock: Gabriel, o pensador e Chico Science.

Evidentemente, um estudo mais adequado das tendências recentes, demandaria um

esforço tal de suas configurações atuais, que em muito fugiria aos objetivos iniciais do

presente trabalho. Por certo, muitos dos aspectos aqui apresentados a respeito do rock da

década de 80, podem ser observados como características do processo atual; contudo, há

um novo contexto de aspectos que exigiria a atenção para com “novos” elementos em

muito necessários à análise do rock dos anos 90. E isto levaria a um outro trabalho,

diferente daquele a que aqui se propôs.

Sendo assim, em termos de ilustração apenas dos desdobramentos atuais do rock

no Brasil, fica-se aqui com a citação de um hit recente de uma das mais importantes

bandas surgidas desde a década de 80: Legião Urbana. Trata-se da canção Perfeição

composta por Dado Villa-Lobos, Russo e Bonfá, gravada no disco “O descobrimento do

Brasil”. Se se tomar atenção para o quadro acima prefigurado daquele discurso

contratendente, pode-se fazer alusão à existência nessa música de algumas das

características anteriormente apresentadas neste estudo. Nesse sentido, abstraindo-se de

qualquer esforço de interpretação dos elementos potencialmente crítico-negadores do

establishment contidos na letra de Perfeição, e apenas enfatizando que se tome atenção

para com os elementos que compõem toda a constelação de valores configuradores do

que se considerou como um mundo de representações manifesto tendencialmente no que

está sendo chamado de cultura juvenil; e que se expressa por mediações em formas de

manifestações artísticas, como no caso do rock, veja-se o que diz a canção:

1./ Vamos celebrar a estupidez humana/ A estupidez de todas as nações/ O


meu país e sua corja de assassinos/ Covardes, estupradores e ladrões/ Vamos
celebrar a estupidez do povo/ Nossa polícia e televisão/ Vamos celebrar nosso
governo/ E nosso Estado que não é nação/ Celebrar a juventude sem escola/ As
crianças mortas/ Celebrar nossa desunião/ Vamos celebrar Eros e Thanatos/
Persephone e Hades/ Vamos celebrar nossa tristeza/ Vamos celebrar nossa
vaidade./ 2./ Vamos comemorar como idiotas/ A cada fevereiro e feriado/
Todos os mortos nas estradas/ Os mortos por falta de hospitais/ Vamos
celebrar nossa justiça/ A ganância e a difamação/ Vamos celebrar os
preconceitos/ O voto dos analfabetos/ Comemorar a água podre/ E todos os
impostos/ Queimadas, mentiras e seqüestros/ Nosso castelo de cartas
marcadas/ O trabalho escravo/ Nosso pequeno universo/ Toda hipocrisia e
toda afetação/ Todo roubo e toda a indiferença/ Vamos celebrar epidemias:/ É
a festa da torcida campeã./ 3./ Vamos celebrar a fome/ Não ter a quem ouvir/
Não ter a quem amar/ Vamos alimentar o que é maldade/ Vamos machucar
um coração/ Vamos celebrar nossa bandeira/ Nosso passado de absurdos
gloriosos/ Tudo que é gratuito e feio/ Tudo que é normal/ Vamos cantar junto
o Hino Nacional/ (A lágrima é verdadeira)/ Vamos celebrar nossa saudade/ E
comemorar a nossa solidão./ 4./ Vamos festejar a inveja/ A intolerância e a
incompreensão/ Vamos festejar a violência/ E esquecer a nossa gente/ Que
trabalhou honestamente a vida inteira/ E agora não tem mais direito a nada/
Vamos celebrar a aberração/ De toda a nossa falta de bom senso/ Nosso descaso
por educação/ Vamos celebrar o horror/ De tudo isso - com festa, velório e
caixão/ Está tudo morto e enterrado/ Já que também podemos celebrar/ A
estupidez de quem cantou esta canção/ 5./ Venha, meu coração está com
pressa/ Quando a esperança está dispersa/ Só a verdade me liberta/ Chega de
maldade e ilusão./ Venha, o amor tem sempre a porta aberta/ E vem chegando
a primavera -/ Nosso futuro recomeça:/ Venha, que o que vem é perfeição.

Por certo, as interpretações elaboradas aqui não têm qualquer propósito de esgotar

as várias possibilidades de análise do universo de representações das letras do rock brasi-

leiro. Longe disso, pretendeu-se não mais que apresentar um quadro bastante limitado de

elementos daquele universo; que, todavia, pudesse ser favorável à identificação de certa

dimensão crítico-emancipatória no discurso do rock: apreendido neste estudo em termos

de sua configuração crítica com o processo das mediações estabelecido, como se disse,

tanto no âmbito da cultura jovem, quanto de aspectos da vida cotidiana.

Outrossim, tem-se consciência de que o vasto repertório do rock brasileiro é capaz

de oferecer um quadro muito mais amplo de elementos de representação como exemplo

para análises diversas e que se teve de proceder por uma significativa redução do mesmo;

além da omissão de nomes e trabalhos que figuram por sua enorme importância no

cenário musical do rock no Brasil.

De algum modo, não houve mesmo interesse em se assumir, de forma categórica,

uma conclusão definitiva do processo; mas, sim, de apreendê-la no âmbito de sua própria
parcialidade e transitoriedade. De resto, acredita-se ser as letras aqui apresentadas repre-

sentativas de certa tendência do discurso do rock ora em evidência; tendo, por isso

mesmo, validade e coerência a referida parcialidade de suas conclusões. Com efeito, é

por se considerar tais ponderações, que se pretendeu finalizar este capítulo com os últimos

versos de Música Urbana 2, quando se canta:

Não há mentiras nem verdades aqui/ só há música urbana.

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