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A METÁSTASE
O assassinato de Marielle Franco e o avanço das milícias no Rio
ALLAN DE ABREU
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“Agora é Bolsonaro, porra”, disse o aspirante a deputado Rodrigo Amorim na campanha de 2018, segurando a placa
com o nome de Marielle. Ao seu lado, o futuro governador Wilson Witzel FOTO_REPRODUÇÃO
N
o primeiro semestre de 2001, o professor Marcelo Baumann
Burgos reuniu 22 alunos do curso de ciências sociais da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro para um
estudo sociológico na favela Rio das Pedras, na Zona Oeste da cidade.
Pesou na escolha da comunidade, além de seu tamanho – 40 mil
habitantes na época e 80 mil hoje –, o fato de ser uma das poucas da
capital fluminense sem narcotraficantes. Isso facilitava o trabalho dos
pesquisadores e era motivo de elogios da parte de Burgos – o
professor chegou a definir Rio das Pedras como “um oásis em meio à
barbárie”.
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que o tráfico”, disse em 2006 o então prefeito do Rio, César Maia, que
comparou os paramilitares cariocas às Autodefesas Unidas da
Colômbia, grupo paramilitar que, entre 1997 e 2006, combateu a
guerrilha das Farc e lucrou com o comércio de drogas. Os grupos do
Rio, porém, ao fincar raízes, passaram a extorquir comerciantes e
moradores, e rapidamente migraram para outras frentes econômicas,
como a grilagem de terras – a ocupação irregular, mediante fraude e
falsificação de documentos. “No Rio há muitos títulos de propriedade
falsos, decorrentes de um sistema cartorial corrupto. Os paramilitares
usam esse argumento para tirar os donos originais à força”, me disse
a antropóloga Alba Zaluar, que há quatro décadas pesquisa o crime
organizado no Rio de Janeiro.
V
era Araújo trabalha há trinta anos como jornalista e se
especializou na cobertura de temas relacionados à segurança
pública no Rio. Em março de 2005, numa reportagem que
publicou no jornal O Globo, mostrou que onze grupos de
paramilitares controlavam 42 favelas na capital, principalmente na
Zona Oeste. Pela primeira vez, o termo “milícia” foi utilizado para
identificar esses agrupamentos de policiais e ex-policiais. A escolha se
deu por um motivo prosaico, me disse a repórter: era uma palavra
curta, mais fácil de ser encaixada no título de uma reportagem de
jornal do que o termo “paramilitares”.
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M
arielle Franco esteve com Marcelo Freixo na investigação
parlamentar contra os milicianos. Por nove anos, entre 2007 e
2016, a jovem negra criada no Complexo da Maré – um
conjunto de dezesseis favelas onde moram 130 mil pessoas, na Zona
Norte – foi assessora de Freixo. Ao mesmo tempo que cursava
ciências sociais na PUC-Rio, ela coordenava na Assembleia
Legislativa a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania,
presidida pelo deputado. Em 2016, Marielle decidiu concorrer pela
primeira vez a um cargo público. Candidatou-se a vereadora pelo
PSOL e obteve a quinta maior votação na cidade – 46 mil votos, a
maior parte deles oriundos da Zona Sul.
Seu mandato foi marcado pela defesa das mulheres, dos negros e das
minorias, e também por duras críticas à violência policial. “Mais um
homicídio de um jovem que pode estar entrando para a conta da PM.
[…] Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”,
escreveu Marielle no Twitter em 13 de março do ano passado, a
respeito da morte de um rapaz na favela do Jacarezinho. Na noite do
dia seguinte, ela própria seria assassinada no Centro do Rio, aos 38
anos de idade.
O
relógio no painel do carro marcava 21h14. Fazia menos de dez
minutos que Marielle, a sua assessora, Fernanda Chaves, e o
motorista Anderson Gomes haviam deixado a Casa das Pretas,
na rua dos Inválidos, no Centro da cidade, depois do debate “Jovens
Negras Movendo as Estruturas”, organizado pelo PSOL. “Não sou
livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes
dela sejam diferentes das minhas”, disse Marielle no encontro,
citando a escritora norte-americana Audre Lorde – negra, feminista e
gay, como a vereadora. “Vamos que vamos, vamos juntas ocupar
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Nenhum dos três percebeu, mas, assim que o Agile deixou a rua dos
Inválidos, foi seguido por um Chevrolet Cobalt prata – o veículo com
placas clonadas estava no local desde as sete da noite, quando
Marielle chegou à Casa das Pretas para o debate. No banco traseiro
do Cobalt, um homem segurava uma submetralhadora alemã HK
MP5, calibre 9 milímetros, conhecida pela precisão de seus disparos.
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D
epois de viver uma década no Rio de Janeiro, o delegado
Giniton Lages, 44 anos, praticamente perdeu o sotaque caipira.
Paulista de Jaú, ele se formou em direito no interior de São
Paulo. Seu sonho era ser promotor de Justiça. Durante cinco anos
prestou concursos públicos para a carreira, sem sucesso. Decidiu
então tentar uma vaga de delegado na Polícia Civil. Passou em
concursos da corporação em Pernambuco, Minas Gerais e Rio de
Janeiro. Escolheu o último estado. Em 2008, assumiu o distrito policial
de Japeri, na Baixada Fluminense, e de lá foi para a vizinha Belford
Roxo. Em 2010, chegou à Delegacia de Homicídios (DH) da Baixada,
onde atuou por oito anos. Em 17 de março do ano passado, três dias
após a morte de Marielle, Lages assumiu a chefia da DH na capital,
com a missão de elucidar o crime. A Delegacia de Homicídios conta
com 10 delegados, 22 peritos, 206 agentes e 48 carros. De cada dez
assassinatos ocorridos na capital, esclarece dois, me disse Lages –
duas vezes mais do que a média no estado do Rio, conforme pesquisa
do Monitor da Violência.
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Paulo I, onde tinha ocorrido o crime uma semana antes. Seu objetivo
era localizar alguém que habitualmente passasse por aquele local
sempre às quartas-feiras, entre nove e nove e meia da noite. Foi assim
que ela encontrou duas testemunhas, que não tinham sido ouvidas
pela polícia. Uma delas era um morador de rua, que presenciou o
crime a uma distância de apenas 10 metros. “Foi tudo muito rápido.
O carro dela [Marielle] quase subiu na calçada. O veículo do assassino
imprensou o carro branco [onde estava a vereadora]. O homem que deu
os tiros estava sentado no banco de trás e era negro. Eu vi o braço
dele quando apontou a arma, que parecia ter silenciador”, disse o
homem – para protegê-lo de uma possível retaliação, a jornalista não
o identificou na reportagem.
N
o dia seguinte ao crime, 15 de março, o então ministro da
Segurança Pública, Raul Jungmann, e a procuradora-geral da
República, Raquel Dodge, desembarcaram no Rio. A dupla se
reuniu à tarde na Cidade da Polícia, no bairro do Jacaré, Zona Norte,
com Rivaldo Barbosa, o general do Exército Walter Souza Braga
Netto, na época interventor na segurança pública do estado, e o
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m mês após os assassinatos, o repórter Antônio Werneck
recebeu na redação do jornal O Globo o telefonema de uma
pessoa que disse haver um grande “furo” à espera dele na
Superintendência da Polícia Federal do Rio. Werneck – que trabalha
no jornal há 29 anos – especializouse, como Vera Araújo, em
investigações na área de segurança pública. Quando o jornalista
chegou à PF, encontrou três delegados federais: Hélio Khristian
Cunha de Almeida, conhecido como HK, Lorenzo Martins Pompílio
da Hora e Felício Laterça. HK não tem currículo que se possa
admirar: em 2002, quando trabalhava em Belém, capital do Pará, foi
denunciado pelo MPF por corrupção passiva ao aceitar passagem
aérea de um empresário investigado por corrupção pela própria PF.
Quatro anos depois, já no Rio, HK foi novamente denunciado à
Justiça por concussão (extorsão de dinheiro praticada por funcionário
público), ao supostamente forjar um inquérito por crime
previdenciário contra um empresário carioca e exigir dele 5 milhões
de reais para arquivar a investigação. O delegado foi absolvido em
primeira instância, os procuradores recorreram e o TRF da 2ª Região o
condenou a dois anos e meio de prisão por corrupção passiva. Como
o crime pelo qual foi condenado (corrupção) difere daquele pelo qual
fora denunciado pelos procuradores (concussão), HK conseguiu
anular a decisão. Ainda não há data para um novo julgamento – a
defesa do delegado garante que vai provar sua inocência.
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O
s irmãos Domingos e Chiquinho Brazão são velhos conhecidos
da política carioca. Domingos, 54 anos, é o segundo mais novo
dos seis filhos de um casal de portugueses radicados em
Jacarepaguá. Ele foi o primeiro da família Brazão a se aventurar nas
urnas, em 1996, quando conseguiu uma cadeira de vereador. Dois
anos mais tarde, elegeu-se deputado estadual pelo PMDB, função que
exerceu por dezessete anos. Nesse período, Domingos acumulou um
patrimônio declarado de 14,5 milhões de reais, em valores corrigidos.
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enos de uma semana depois da publicação da reportagem de
Werneck com acusações do sargento Ferreira contra Siciliano e
Orlando de Curicica, o delegado Giniton Lages foi ouvir esse
último em Bangu 9. Curicica admitiu ter se encontrado com Siciliano
em um restaurante da Zona Oeste, mas disse que se limitou a
cumprimentar o vereador. Também negou ter participado das mortes
de Marielle. No dia seguinte, o advogado de Curicica convocou a
imprensa para apresentar uma carta escrita pelo cliente. No
documento, o miliciano identifica nominalmente o PM que o delatou
– até então, os jornais vinham omitindo a identidade dele – e o ataca.
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O
Escritório do Crime reapareceria na imprensa em 1º de
novembro, quando os jornalistas Vera Araújo e Chico Otávio
publicaram no site do jornal O Globo uma entrevista com
Orlando da Curicica feita por escrito. O carioca Otávio construiu sua
reputação com reportagens investigativas sobre políticos do Rio. Em
parceria com Araújo, o repórter havia mergulhado na cobertura do
caso Marielle – “sem dúvida o maior que já cobri nessa área”, ele me
disse.
mandaria para Mossoró e, de fato, foi o que fez. Mas o tempo todo
percebi que eles [os investigadores] estavam perdidos, sem caminho
nenhum.”
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o início da noite de 14 de novembro, quarta-feira, o delegado
Giniton Lages assistia ao telejornal local da Globo no Rio
quando tomou um susto. “O RJ2 teve acesso com exclusividade
ao inquérito que apura as execuções da ex-vereadora Marielle Franco
e de seu motorista, Anderson Gomes. Oito meses depois, a polícia
acumula milhares de páginas, mas ainda tem poucas conclusões”,
disse o apresentador do telejornal. A reportagem afirmava que,
apesar de o Escritório do Crime ser citado no inquérito, até aquele
momento a principal linha de investigação da Delegacia de
Homicídios ainda apontava para o vereador Marcello Siciliano e o
miliciano Orlando de Curicica. Parte dos papéis, em páginas
digitalizadas, havia vazado para o jornalista Leslie Leitão, produtor
da TV Globo no Rio, que acompanha o caso Marielle desde o início –
depois de atuar na imprensa como repórter de esportes e de polícia,
ele migrou em 2017 para a emissora carioca.
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Ministério Público Estadual do Rio passou por uma dança de
cadeiras importante no decorrer das investigações. Desde o
início, o caso Marielle esteve sob os cuidados de Homero das
Neves Freitas Filho, titular da 23ª Promotoria de Investigação Penal,
responsável por acompanhar os inquéritos da Delegacia de
Homicídios na capital. Em junho de 2018, em entrevista ao jornal O
Globo, o promotor esbanjava otimismo: “Dentro dos recursos
disponíveis, considero que os avanços na investigação são grandes,
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