Вы находитесь на странице: 1из 142

SERVIÇO SOCIAL DA INDÚSTRIA – SESI

Departamento Nacional

Leonor Barreto Franco


Presidente do Conselho Nacional

Carlos Eduardo Moreira Ferreira


Diretor do Departamento Nacional

Rui Lima do Nascimento


Diretor-Superintendente

Otto Euphrásio de Santana


Diretor-Técnico

Humberto Meneses
Diretor de Desenvolvimento

UNESCO Brasil

Conselho Editorial
Jorge Werthein
Maria Dulce Almeida Borges
Célio da Cunha

Comitê para a Área de Educação


Maria Dulce Almeida Borges
Célio da Cunha
Lúcia Maria Gonçalves Resende
Marilza Machado Gomes Regattieri
APRENDER A VIVER JUNTOS:
educação para integração na diversidade

Brasília
2002
Edições UNESCO Brasil

Tradução: José Ferreira


Revisão e diagramação: DPE Studio
Assistente Editorial: Larissa Vieira Leite e Maria Luiza Monteiro
Projeto Gráfico: Edson Fogaça

© Unesco 2002
Aprender a viver juntos : educação para a integração da
diversidade / tradução de José Ferreira – Brasília : UNESCO,
IBE, SESI, UnB, 2002.
148p.

1. Educação I. UNESCO II. Ferreira, José

CDD – 370

Logo SESI
SBN – Quadra 1 Bloco C – Edifício Roberto Simonsen
70040-903 – Brasília – DF
Tel.: (61) 317-9000 – Fax: (61) 317-9200
E-mail: http://www.sesi.org.br

Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura


Representação no Brasil
SAS, Quadra 5 Bloco H, Lote 6, Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9o andar
70070-914 – Brasília – DF – Brasil
Tel.: (55 61) 321-3525 – Fax: (55 61) 322-4261
E-mail: UHBRZ@unesco.org

4
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 09

ABSTRACT 11

CONVIVÊNCIA COMO HARMONIZAÇÃO DE LEI, MORAL E CULTURA


Antanas Mockus
1. INTRODUÇÃO 13
2. CONVIVÊNCIA E REGRAS 17
3. CONVIVÊNCIA E PLURALISMO 18
4. DIVÓRCIO ENTRE LEI, MORAL E CULTURA 20
5. CULTURA CIDADÃ 21
6. PESQUISA COM JOVENS SOBRE CONVIVÊNCIA CIDADÃ 26
7. RESULTADOS DA PESQUISA 32
8. TOLERÂNCIA À PLURALIDADE DE PROJETOS 35
9. ALGUMAS CONCLUSÕES 36
10. POST DATA: DA TOLERÂNCIA RELIGIOSA À ATRAÇÃO PELA DIVERSIDADE,
OS “ANFÍBIOS CULTURAIS” 38

A EDUCAÇÃO PARA APRENDER A VIVER JUNTOS: UMA ANÁLISE


CRÍTICA DA PESQUISA COMPARADA
Aaron Benavot
1. REFLEXÕES INICIAIS 41
2. ESCLARECIMENTOS CONCEITUAIS 44
3. VÍNCULOS CAUSAIS ENTRE EDUCAÇÃO E MUDANÇA SOCIAL 44
As tendências da análise 47
4. UMA OLHADA GLOBAL PARA A EXPANSÃO EDUCATIVA 50
5. QUADROS ANALÍTICOS ALTERNATIVOS 57
Currículo e resultados educacionais 57
Indicadores comparativos 61
Os currículos e os livros-texto 62
6. OS CURRÍCULOS E O APRENDER A VIVER JUNTOS 64
7. COMENTÁRIOS FINAIS 67

5
APRENDER A VIVER JUNTOS: NOSSOS JOVENS ESTÃO PREPARADOS?
Alejandro Tiana

1. PRIMEIRA REFLEXÃO: APRENDER A VIVER JUNTOS REQUER O


DESENVOLVIMENTO DA CIDADANIA 70
2. SEGUNDA REFLEXÃO: APRENDER A VIVER JUNTOS EXIGE
CONHECIMENTOS 77
3. TERCEIRA RELFEXÃO: APRENDER A VIVER JUNTOS REQUER
COOPERAÇÃO E INTERCÂMBIO 83

CENÁRIOS FUTUROS DA EDUCAÇÃO: UMA JANELA AO


DESCONHECIDO
Uri Peter Trier

1. UMA VIDA COM DIGNIDADE 88


2. O BEM-ESTAR DO ESTADO E DA COMUNIDADE 89
3. GENÉTICA HUMANA E ENGENHARIA GENÉTICA: ESTENDENDO A
VIDA HUMANA 90
4. O DIVÓRCIO ENTRE A PRODUÇÃO, O EMPREGO E
O LUGAR DE TRABALHO 92
5. TRABALHO NÃO-RELACIONADO COM O EMPREGO 93
6. O CONHECIMENTO E A SOCIEDADE DA APRENDIZAGEM 94
7. A INFORMÁTICA E A APRENDIZAGEM 96
8. CONCLUSÃO 96

POSIÇÕES/CONTROVÉRSIAS – APRENDER A VIVER JUNTOS:


DESAFIO PRIORITÁRIO NO ALVORECER DO SÉCULO XXI
John Daniel

1. EDUCAÇÃO PARA VIVER JUNTOS 103

APRENDER A VIVER JUNTOS – OS CONHECIMENTOS CÍVICOS, AS


CRENÇAS SOBRE AS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS E O
COMPROMISSO CÍVICO DOS ADOLESCENTES DE 14 ANOS
Judith Torney-Purta

1. ANÁLISES E CONCLUSÕES SOBRE OS CONHECIMENTOS


CÍVICOS 115
2. ANÁLISES E CONCLUSÕES SOBRE O COMPROMISSO
CÍVICO 119
3. ANÁLISES E CONCLUSÕES A RESPEITO DAS ATITUDES
CÍVICAS 124
4. INDICADORES DE CONHECIMENTO E COMPROMISSO
CÍVICOS 126
5. CONCLUSÕES GERAIS 129

EDUCAÇÃO PARA TODOS PARA APRENDER A VIVER JUNTOS: UM


DESAFIO PRIORITÁRIO NO SÉCULO XXI 133
Cecilia Braslavsky

CONCLUSÕES E PROPOSTAS DE AÇÃO DA 46 A SESSÃO DA


CONFERÊNCIA INTERNACIONAL EM EDUCAÇÃO (CIE)

1. OS DESAFIOS 140
2. POLÍTICAS EDUCACIONAIS E PRÁTICAS 142
3. PROPOSTAS PARA A AÇÃO 143
4. COOPERAÇÃO INTERNACIONAL 146
5. O PAPEL DA UNESCO E DE SEUS INSTITUTOS
ESPECIALIZADOS 147
APRESENTAÇÃO

O êxito alcançado pelo I Telecongresso Internacional de Educação de Jovens e


Adultos, realizado em novembro de 2001 mediante parceria entre o SESI, a UNESCO
e a Universidade de Brasília, mostrou de imediato a necessidade de sua continuidade.
De fato, as perspectivas pedagógicas abertas por esse evento, com a participação em
todo o país de quase 10 mil educadores e dirigentes educacionais serviu de estímulo
e incentivo à projeção do II Telecongresso.
Como a UNESCO havia realizado, em setembro de 2001, em Genebra, a
46a Conferência Internacional de Educação com o objetivo de aprofundar a reflexão
sobre uma pedagogia para aprender a viver juntos, aprendizagem que se configura
como um dos maiores desafios do mundo contemporâneo, surgiu a idéia e a
possibilidade de se repetir no Brasil o evento de Genebra com as adaptações que se
tornassem necessárias ao contexto brasileiro.
Tomada a decisão de colocar como tema do II Telecongresso a educação para a
diversidade no âmbito da escola, da comunidade e do trabalho, o passo seguinte foi
promover a vinda ao Brasil da Diretora da UNESCO/IBE de Genebra, a Professora
Cecília Braslavsky, que não apenas aprovou a idéia, como também a ela se associou
ajudando a conceber e planejar o evento.
Como parte desse planejamento, foi decidida a publicação de um livro
que reunisse textos de especialistas internacionais que, por diversos ângulos de
análise, pudessem contribuir para aprofundar o significado e a relevância
pedagógica e social de uma educação para a diversidade e para melhor viver
juntos. Coube à Cecília Braslavsky selecionar e organizar os artigos e imprimir-
lhes uma visão de conjunto.
Assim, o SESI e a UNESCO, com o apoio da Universidade de Brasília, sentem-
se gratificados em apresentar aos participantes do II Telecongresso Internacional de
Educação de Jovens e Adultos o presente livro, que se define como uma obra de
inegável alcance pedagógico no marco de uma nova educação para o século XXI.
Estamos convictos que este livro representa um importante subsídio aos projetos
pedagógicos das instituições escolares, em todos o seus níveis e modalidades,
alimentando-as no processo de busca de uma educação solidária. Nosso objetivo
comum, para repetir as palavras de John Daniels, Subdiretor-Geral de Educação da
UNESCO, é fortalecer a capacidade de toda pessoa com vistas a edificar a paz e a
justiça na sociedade da informação nesses tempos de globalização.

9
ABSTRACT

The book Learn to Live Together: education for diversity integration is a


selection of texts discussed at the 46th International Conference on Education held
by UNESCO in Geneva, in September, 2001. The articles include philosophical
reflections, research results, discussions, and innovative experiences with the goal
of stimulating debate and assuring that the twenty-first century will be a century
where lifelong education becomes equitable quality education that improves our
capacity to live together. The authors are specialists in education from different
countries and they analyze a wide variety of issues involved in this challenge.
These include the moral, legal, and cultural foundations of living together and
also the relationships between education and life conditions as well as relationships
between school curricula, mutual understanding, civic responsibilities, democracy,
and other ideas of humanity. The publication of this book in Brazil is intended
to stimulate dialogue and an exchange of experiences directed towards education
towards peace and social cohesion.

11
CONVIVÊNCIA COMO HARMONIZAÇÃO
DE LEI, MORAL E CULTURA1
Antanas Mockus*

1. INTRODUÇÃO

Convivência é um conceito surgido ou adotado na América Latina


para resumir o ideal de uma vida em comum entre grupos cultural,
social ou politicamente muito diferentes, uma vida em comum viável,
um “viver juntos” estável, possivelmente permanente, desejável por si
mesmo e não somente por seus efeitos.
No mundo anglo-saxão convivência costuma ser traduzida por
coexistence, que descreve a vida em paz de uns com outros,
especialmente como resultado de uma opção deliberada. Precisamente,
como opção contrária à guerra, contém uma ligeira conotação de
resignação na hora de aceitar o outro.Talvez – como ocorreu durante
a chamada coexistência pacífica –, conviva-se com o outro por
necessidade, porque não há mais remédio. Revelam-se, pois, duas
características em comum com a tolerância: por um lado, é algo
desejável, por outro, implica – em certo grau – um aprender a suportar.
Um matiz similar da convivência, como algo deliberadamente oposto
à exclusão e como algo a que se chega com certa resignação, aparece na

1 Agradeço muito o convite de Nadia Sikorsky para colaborar na edição de março de 2002 da revista do Bureau
International d’Éducation, “Prospects”, abordando a primeira parte da publicação (titulada “filosofia”), com um
resumo do que foi aprendido com meu trabalho sobre convivência. Este convite, junto com a experiência de trabalho
acadêmico sobre o tema, uma primeira experiência como prefeito de Bogotá, um trabalho de pesquisa sobre jovens em
Bogotá e o regresso à prefeitura de Bogotá, talvez ajudem a compreender a estrutura, um pouco curiosa, deste texto:
reflexão filosófica, um resumo do meu inicio acadêmico no tema, algumas lições provenientes do programa Cultura
Cidadã, outras da pesquisa e, ao final, novamente algo de reflexão.
* Prefeito de Bogotá, professor Associado da Universidade Nacional da Colômbia.

13
tradução ao francês como cohabitation. No entanto, talvez por sua
origem, o termo espanhol convivencia acabou tendo conotações mais
positivas e promovendo algo intrinsecamente desejável2.
Conviver é chegar a viver juntos entre distintos sem os riscos da
violência e com a expectativa de aproveitar de maneira fértil nossas
diferenças. O desafio da convivência é basicamente o desafio da
tolerância à diversidade e esta encontra sua manifestação mais clara
na ausência de violência3.
A tolerância à diversidade implica hoje:
• Uma transformação das identidades e de seus mecanismos
de reprodução, de maneira que, para se ter uma identidade forte
ou para conservá-la, já não seja necessário negar a identidade do
outro, não seja necessário excluí-lo.
• A aceitação do fato de que as opções que distintos grupos
ou distintas tradições oferecem diante das perguntas mais
importantes (religiosas4, filosóficas, políticas) poderiam considerar-

2 Talvez por isso a UNESCO decidiu usar as versões “living together” e “vivre ensamble” e optou, ainda em espanhol,
por promover o “aprender a vivir juntos”
3 Toda intolerância, cedo ou tarde, se traduz em violência do intolerante ou do intolerado. Em
muitos paises, aprender a conviver, aprender a viver juntos, tem um sentido imediato óbvio:
aprender a viver sem violência. A pergunta, demasiado complexa, que surge então é: quais são os
determinantes mínimos de uma vida em comum não-violenta entre pessoas e entre grupos sociais
diversos? Muitas são as condições desejáveis que alguém poderia tentar associar a uma sociedade
não-violenta. Aqui, tenta-se identificar condições mínimas suficientes.
4 A matriz histórica da tolerância foi a tolerância religiosa. O seguinte texto, de Martín Buber,
ilustra os desafios para alcançá-la e sustentá-la: “toda religião tem sua origem em uma revelação.
Nenhuma religião detém a verdade absoluta, nenhuma é um pedaço de céu transplantado na terra.
Cada religião representa uma verdade do homem. Isto significa que expressa a relação com o
Absoluto de uma comunidade humana determinada. Cada religião é uma morada para a alma
humana sedenta de Deus, uma morada provida de janelas e sem porta; não tenho mais que abrir
uma janela para que a luz de Deus entre nela. Mas se faço um buraco na parede e fujo, ficarei sem
casa e, além disso, me rodeará uma luz de gelo, que não é a luz de Deus vivo. Cada religião é uma
terra de exílio na qual o homem se vê jogado e na qual, mais que em nenhuma outra parte, está
separado das outras comunidades humanas pela forma de sua relação com Deus. E não seremos
libertados desses exílios nem teremos acesso ao mundo de Deus, comum a todos, senão depois da
redenção do mundo. Mas as religiões que sabem que todas elas estão associadas em uma espera
comum podem comunicar-se entre elas, de um lugar de exílio a outro, de morada a morada, através
das janelas abertas. Mais ainda: podem unir seus esforços para ver se encontram o que pode ser feito
pelo homem para aproximar o tempo da redenção. É concebível uma ação comum de todas as
religiões, ainda que cada uma delas não possa trabalhar mais que em sua própria morada. Mas isto
não será possível senão na medida em que cada religião recupere sua origem, ou seja, a revelação que
está em sua origem e desde a qual avança para a critica de tudo o que a distanciou no processo

14
se – sob algum ângulo – equivalentes e, mais recentemente, a
aceitação da possibilidade e utilidade de que coexistam, em uma
mesma sociedade, diversos projetos de sociedade.
• A ampliação do campo de celebração de acordos (muitos
temas, como os relacionados à sexualidade ou às tarefas domésticas,
deixam de ser regulados por costumes e passam a ser objetos de
acordo, por exemplo, entre os casais).

Ausência de violência implica:


• A exclusão de ações violentas, mediante regras compartilhadas
(legais ou culturais) ou mediante regras fixadas ou interiorizadas
de maneira autônoma e unilateral (morais-pessoais).
• A universalização de rivalidades, para resolver pacificamente
conflitos (solucionar problemas, chegar a acordos).

Há, é claro, uma conexão entre os dois aspectos, tolerância e


não-violência: as identidades repousam, em boa parte, sobre regras
compartilhadas ou autonomamente adotadas5. Geralmente, mais
regras compartilhadas significam maior identidade comum e vice-
versa; o cumprimento das partes mais fundamentais das regras é o
que nos permite diferenciarmo-nos em outras (nossa maneira de
vestir, nossa disciplina pessoal etc.). A existência de diferentes opções
religiosas, filosóficas ou políticas, com valores que, de algum ponto

histórico de seu desenvolvimento. As religiões têm tendência a converterem-se em fins em si


mesmas, a substituir – por assim dizer – a Deus, de modo que, na verdade, para obscurecer a face
de Deus não há nada mais adequado do que uma religião... Cada uma [das religiões] deve aceitar o
fato de que não é mais do que uma das formas sob as quais a elaboração humana da mensagem de
Deus se expressou, que não tem o monopólio do divino; cada uma deve renunciar à pretensão de
ser a morada única de Deus sobre a terra e aceitar que é a morada dos homens animados por uma
mesma imagem de Deus, uma casa aberta para o exterior. Cada uma deve abandonar sua atitude
exclusiva – sem verdadeira base – e adotar um comportamento mais próximo da verdade. (....)
Então, ter-se-ão unido não só em uma espera comum da redenção, mas também nas tarefas
cotidianas de um mundo ainda não-salvo”. Vários, A tolerância. Antologia de textos, seleção de
Zaghloul Moprsy, Madri: Editorial popular –Editorial UNESCO, 1974, pp. 213-214.
5 Isto se acentua nas sociedades com alta divisão do trabalho: o sistema de ofícios ou ainda mais
o das profissões defende cada vez mais categorias sociais caracterizadas porque a sociedade pode
estar certa de que essas categorias trabalharam dentro de imperativos categóricos (morais) e também
em conformidade com um conjunto de imperativos hipotéticos (regras técnicas).

15
de vista, são equivalentes, nos coloca, na prática, o desafio de
chegar a acordos (inevitavelmente parciais e imperfeitos) e, em
particular, nos leva a procurar regras comuns (ainda que as
reconheçamos e respeitemos por razões diversas de tradições
distintas 6).
Em suma, para tornar viável a tolerância à diversidade e para excluir
a violência:
a) são necessárias algumas regras em comum:
• regras culturais compartilhadas (alguns denominadores
comuns);
• um quadro constitucional e legal explicitamente adotado; e
• convenções internacionais;
b) são necessárias uma capacidade e uma disposição
compartilhadas pela grande maioria, para celebrar e cumprir
acordos.
Para deixar de ver na diferença um perigo e passar a ver nela
uma ocasião para o mútuo conhecimento, para a mútua ampliação
de perspectivas, são necessárias também, e crucialmente, essas regras
comuns e essa boa disposição para os acordos.
Além da mútua tolerância e ausência de violência, a convivência
sugere processos de construção e estabilização desse “viver juntos”:
em seu conteúdo máximo, conviver poderia significar harmonizar
os processos de reprodução econômica e cultural 7. Mas não é nossa
intenção chegar tão longe aqui. Nossa abordagem é mais limitada:
queremos ir além da definição negativa de convivência como
ausência de violência, para explorar uma visão positiva da

6 “Consenso por traslapes” em Rawls, Liberalismo Político, México: Faculdade de Direito UNAM e FCE
(primeira edição em inglês 1993) (Capítulos IV e V).
7 A aprendizagem e a interiorização de regras e normas, que contribuem substancialmente para a
formação de identidades e padrões de inter-relação e, portanto, para a reprodução cultural, são
reconhecidos hoje em dia como o complemento indispensável das instituições (regras formais)
quando se trata de explicar porque umas sociedades se desenvolvem economicamente mais rápido
que outras (North, Douglas C., Instituciones, cambio institucional y desempeño econômico, FCE,
México, 1993 / Fukuyama, Francis, Confianza (Trust), Editorial Atlântida, Buenos Aires, 1996).
Apesar de flagrantes manifestações de autonomia, a reprodução cultural das identidades e dos
comportamentos se entrelaça irremediavelmente com a reprodução econômica. As tensões ou
fricções entre ambas as reproduções estão, talvez, na base dos problemas de convivência.

16
convivência.
O que nos leva a tolerar a diversidade, a assumi-la com
entusiasmo? O que nos distancia da violência? Uma primeira
resposta positiva, imediata, provisória, mas cujos refinamentos
examinaremos nesse artigo – indo do mais filosófico (numerais 1,
2, 3 e 4) à experiência como prefeito de Bogotá (5) e às conclusões de
uma pesquisa com jovens (6 e 7), para retornar a um tema mais
filosófico – toma a convivência como tolerância acompanhada de
apreço diante da existência de diversos projetos de sociedade e de
humanidade (8 e 9).
À luz da visão positiva alcançada antes de iniciar a pesquisa com
jovens e usada como conceito inicial para a mesma8, conviver é acatar
regras comuns, contar com mecanismos culturalmente arraigados de
auto-regulação social, respeitar as diferenças e acatar regras para processá-
las; também é aprender a celebrar, a cumprir e a reparar acordos.

2. CONVIVÊNCIA E REGRAS

Por que poderia ser tão relevante para a convivência o respeito às


regras? A quais regras?
Para abordar o respeito às regras deve-se reconhecer que a
modernidade acentua a diferenciação entre regras legais, morais e
culturais, entre lei, moral e cultura. A sanção legal e o sentimento de
culpa não são a mesma coisa, e nenhum desses dois castigos é
assimilável ao repúdio social. Do mesmo modo, a motivação de uma
conduta por admiração à lei escrita, sua gestão e sua aplicação, pode
diferenciar-se da motivação por autogratificação da consciência, e
esta, por sua vez, da motivação por reconhecimento social.
Graças a esta diferenciação, poderemos concluir que a convivência
consiste, em boa parte, em superar o divórcio entre lei, moral e cultura,
ou seja, superar a aprovação moral e/ou cultural de ações contrarias à
lei e a debilidade ou carência de aprovação moral ou cultural das

8 Conceito possivelmente marcado pela circunstancia colombiana e pelo que pudemos aprender e fazer dentro desta
circunstancia, principalmente na gestão pública e na pesquisa.

17
obrigações legais.
A habilidade para celebrar acordos e cumpri-los e, quando
necessário, repará-los, a desaprovação moral e cultural de ações contrarias
à lei e a aprovação moral e cultural de ações obrigatórias segundo a lei,
serão reconhecidas como as chaves da convivência, uma convivência
que, por essa conexão com a diferenciação entre lei, moral e cultura, e
pela centralidade inequívoca da lei, chamaremos de convivência cidadã.

3. CONVIVÊNCIA E PLURALISMO

Na Colômbia e, em maior ou menor grau, em muitos outros


países, para muitas pessoas a consciência ou o costume justificam
violar a lei. Tive a sorte de poder ajudar a corrigir isso na ação do
governo e na pedagogia. Depois de trabalhar, por mais de dez anos,
em pedagogia, pude aplicar parte do que aprendi no exercício da
prefeitura de Bogotá (1995-1997, e agora 2001-2003), sob a forma do
programa Cultura Cidadã, com resultados visíveis na proteção à vida
e no acatamento a normas e comportamento cívico, como por
exemplo, a economia voluntária de água. Além disso, nos três anos
seguintes à minha primeira gestão na prefeitura, tive a oportunidade
de realizar, com J. Corzo, uma pesquisa com jovens do 9ª grau em
Bogotá9, cujos resultados estão representando um insumo útil para a
segunda versão do programa Cultura Cidadã.
A visão que inspirou este trabalho, de forma resumida, é a de
sociedades nas quais se consegue harmonia entre lei, moral e
cultura. Isto não significa que a lei, a moral e a cultura ordenem
exatamente o mesmo; isso seria conservadorismo e seria
incompatível com o pluralismo cultural e o pluralismo moral,
ideais comumente aceitos na maioria das sociedades
contemporâneas e muito claramente na nossa10.
Uma das características da sociedade contemporânea é que

9 A. Mockus e Jimmy Corzo , Indicadores de convivência ciudadana, projeto de pesquisa , Instituto de Estudos
Políticos e Relações Internacionais e Departamento de Matemática e Estatística da Universidade Nacional da
Colômbia, Maio de 1999.
10 Como se pode observar claramente na Constituição colombiana promulgada em 1991.

18
pessoas com critérios morais diferentes podem sentir mútua
admiração moral; eu caracterizaria desta maneira o pluralismo
moral. Não se trata unicamente de que cada qual estabeleça suas
própria regras, e sim que estas regras tenham a suficiente
universalidade, a suficiente coerência ou uma adequada expressão
estética, para conseguir suscitar admiração de pessoas que têm
referências morais distintas. Durante séculos, para a humanidade
não foi fácil assumir isto ou entendê-lo, e, portanto, podemos
compreender que para uma sociedade contemporânea também seja
difícil de entender.
Pois bem: como conseguir que o pluralismo não se converta em
indiferença aos critérios legais? Como evitar que seja assumido como
“vale tudo”? A harmonia entre lei, moral e cultura é a situação
na qual cada pessoa seleciona moral e culturalmente
comportamentos, mas os seleciona dentro dos comportamentos
legais; podendo esta opção ser diferente de pessoa para pessoa, de
comunidade para comunidade. Dito de outra maneira, não há
justificativa moral para o comportamento ilegal e, se houvesse,
então ter-se-iam que reunir uma série de condições. John Rawls,
por exemplo, as estuda ao trabalhar sobre desobediência civil
(Teoria da Justiça, capítulo VI). Algumas dessas condições consistem,
primeiro, em assumir publicamente a violação da lei, estar disposto
a debater publicamente a intenção de quem, por razões morais,
viola a lei; e, segundo, estar disposto a reconhecer que o valor
outorgado ao critério moral é tão alto que alguém aceitaria o
castigo legal por violar a lei.
A constituição colombiana prevê que haja respeito à diversidade
cultural, à diversidade de crenças, à diversidade de costumes, mas
dentro do respeito à lei. Dito de outra maneira “viva o pluralismo”,
mas não de tal modo que justifique moralmente ou leve a aceitar
culturalmente a ilegalidade.
Na sociedade democrática ideal, de um modo que ilustra
algumas épocas na vida de algumas sociedades industrializadas
estáveis, os três sistemas de regulamentação do comportamento

19
mencionados – lei, moral e cultura – tendem a ser congruentes, no
sentido que se explica em seguida. Todos os comportamentos
moralmente válidos à luz do juízo moral individual costumam ser
culturalmente aceitos (não acontece necessariamente o contrário:
existem comportamentos culturalmente aceitos que alguns
indivíduos abstêm-se de adotá-los por motivos morais). Por sua vez,
o culturalmente permitido cabe dentro do legalmente permitido
(aqui tampouco ocorre o inverso: há comportamentos
juridicamente permitidos, mas culturalmente recusados). Nessas
sociedades, a cultura simplesmente exige mais que a lei, e a moral
exige mais que a cultura.

4 . D I V Ó R C I O E N T R E L E I , M O R A L E C U LT U R A

Eu chamei de “divórcio entre lei, moral e cultura” a falta de


congruência entre a regulamentação cultural do comportamento e
suas regulamentações moral e jurídica, falta esta que se expressa como
violência, como delinqüência, como corrupção, como ilegitimidade das
instituições, como debilidade do poder de muitas das tradições culturais
e como crise ou debilidade da moral individual11.
Assim chegamos a caracterizar a sociedade colombiana por um
alto grau de divórcio entre lei, moral e cultura. O exercício
sistemático da violência, fora das regras que definem o monopólio
estatal do uso legítimo da mesma, e o exercício da corrupção crescem
e consolidam-se precisamente porque chegam a ser comportamentos
culturalmente aceitos em certos contextos. Toleram-se, assim,
comportamentos claramente ilegais e, com freqüência, moralmente
censuráveis. Em trabalho posterior subtraiu-se a força que na
Colômbia tem a regulamentação cultural: “A estabilidade e o
dinamismo da sociedade colombiana dependem demasiadamente

11 Parágrafo tomado de A. Mockus, “Anfíbios culturales y divorcio entre ley, moral y cultura”. Análisis Político,
21, 1994, pp. 37-48. Alguns dos textos incluídos nos numerais 4 e 10 deste artigo foram tomados ou adaptados desse
artigo e de A. Mockus “Anfíbios culturales, moral y productividad” em Revista colombiana de Psicologia, 3,
1994, pp 125-135.

20
do alto poder que nela tem uma regulamentação cultural que às
vezes não se encaixa dentro da lei e leva as pessoas a atuarem
contra sua convicção moral”12.
Outras nações, outros continentes, a própria Europa, atravessaram
situações de crise geradas pelo divórcio entre lei, moral e cultura. Em
geral, foram os Estados nacionais que conseguiram instaurar uma certa
ordem, privilegiando o legal, e foi com a lei – obviamente com certo
apoio da moral e da cultura e, mais especificamente, da religião e da
ideologia – que se alcançou um alto nível de congruência entre lei,
moral e cultura.
Em suma, o divórcio entre os três sistemas se expressa em ações ilegais,
mas aprovadas moral e culturalmente; ações ilegais desaprovadas
culturalmente, mas moralmente julgadas como aceitáveis; e ações ilegais
reconhecidas como moralmente inaceitáveis, mas culturalmente toleradas,
aceitas. E se expressa também em obrigações legais que não são reconhecidas
como obrigações morais ou que, em certos meios sociais, não são
incorporadas como obrigações culturalmente aceitas.

5 . C U LT U R A C I D A D Ã

O primeiro programa do Cultura Cidadã (95-97) dava ênfase à


regulamentação cultural. A regulamentação cultural e sua congruência
com as regulamentações moral e legal ajudam muito a entender como
funciona o são, o não-violento, o não-corrupto. Tratava-se de reconhecer
e melhorar a regulamentação cultural da interação entre desconhecidos
ou entre pessoa e funcionário, contanto que desconhecidos.
Posteriormente, houve iniciativas que despertaram interesse sobre a
regulamentação cultural das interações na família (por exemplo, na
luta contra a violência familiar).
A coordenação entre instituições e a compreensão social do processo,
necessárias para obter os resultados alcançados, dependeram muito da
apropriação institucional e social da própria idéia de cultura cidadã.
Reformas legais recentes (estatuto orgânico de Bogotá, lei de

12 “Anfíbios culturales, moral y productividad”

21
planejamento e lei de orçamentos) facilitaram uma apropriação
institucional da noção e permitiram, assim, dar-lhe, desde o começo, um
papel privilegiado no interior da equipe do governo e perante a sociedade,
por via de uma comunicação intensificada (alto interesse dos meios de
comunicação, motivado em parte pela novidade dos meios postos em jogo).
A noção de cultura cidadã buscava impulsionar principalmente a
auto-regulamentação interpessoal. Subtraiu-se a regulamentação cultural
das interações entre desconhecidos, em contextos como os do transporte
público, o espaço público, os estabelecimentos públicos e a vizinhança;
e subtraiu-se também a regulamentação cultural nas interações cidadão-
administração, dado que a constituição da coisa pública depende
substantivamente da qualidade destas interações.
Definiram-se, assim, os quatro objetivos correspondentes à cultura
cidadã, principal prioridade e coluna vertebral do plano de
desenvolvimento da cidade:
a) aumentar o cumprimento de normas de convivência;
b) aumentar a capacidade dos cidadãos para que levem outros ao
cumprimento pacífico de normas;
c) aumentar a capacidade de concentração e de solução pacífica
de conflitos entre os cidadãos;
d) aumentar a capacidade de comunicação dos cidadãos (expressão,
interpretação) por meio da arte, da cultura, da recreação e do esporte.
O pluralismo moral e o cultural não deveriam significar
relativismo dissolvente. Para que não sejam traduzidos como um
“vale-tudo”, é necessário relacionar de outra maneira a auto-regulação
individual e a(s) auto-regulação(ões) coletiva(s): que os outros tenham
regras parcialmente distintas às minhas, de nenhuma maneira
significa que eu possa ou deva negligenciar as minhas. Se reconheço
a legitimidade de outras tradições culturais, nem por isso devo debilitar
meu interesse por elaborar e intensificar minha preferência por uma
tradição específica.
Com as ações organizadas em torno da idéia de cultura cidadã,
buscou-se identificar algo desse piso comum, desse conjunto de regras
mínimas, básicas, compartilhadas, que deveriam permitir desfrutar a
diversidade moral e cultural.
O programa Cultura Cidadã incluiu múltiplas ações de educação

22
cidadã marcadas por uma filosofia comum. Demandou muita
cooperação interinstitucional e multissetorial, principalmente na fase
de concepção e em ações de resposta a contingências não previstas.
Seu custo total, durante os três anos, 95-97, foi de aproximadamente
130 milhões de dólares (3,7% do orçamento de investimento para a
cidade). O Cultura Cidadã e a filosofia expressa em seus objetivos
foram também a inspiração de muitas das ações do governo, não-
planejadas e surgidas como resposta a situações imprevistas. A
consistência entre as duas partes da agenda de governo – a planejada
e a improvisada – contribuiu muito para a assimilação social do
conceito. As ações executadas em matéria de Cultura Cidadã
continuam sendo, local e nacionalmente, reconhecidas como a
principal realização desse governo.
Um elemento crucial para multiplicar o efeito das ações do Cultura
Cidadã foi sua altíssima visibilidade perante a sociedade, conseguida, em
boa parte, pelos meios massivos de comunicação. Não com campanhas
pagas, e sim com formas novas, atrativas, de alto impacto visual ou
psicológico. Em particular, nos conflitos que se apresentaram com os
taxistas, com os empresários de ônibus, vans e coletivos e com o próprio
governo nacional, a propósito do desarmamento, quanto mais oportuna,
sincera e franca foi a comunicação, mais resultados favoráveis foram
alcançados. Talvez o caso com maiores limitações na comunicação, o do
desarmamento pela via jurídica, tenha sido também o dos maiores tropeços.
Em três das mudanças de comportamento assinaladas (ver quadro
de Resultados do Cultura Cidadã) contava-se com indicadores
atualizados que permitiam uma avaliação freqüente das ações
praticadas e a comunicação via-se muito marcada pela evolução dos
indicadores13. O caso mais detectado foi a economia de água durante
a crise de abastecimento em 199714. Muitas das ações do Cultura
Cidadã foram apresentadas como ações preventivas e, portanto,

13 Teve crucial importância a informação sobre armas e sobre álcool ministrada pelo Instituto Nacional de Medicina
Legal. Foi muito útil a cooperação interinstitucional na análise das causas da violência, na promulgação de medidas
e na coordenação detalhada das ações de aplicação (“enforcement”). Desarme, economia de água, restrição à pólvora
foram ações construídas, aperfeiçoadas e convalidadas graças a indicadores.

14 Levar a sério o convite à economia em vez de fazer o convite formalmente só para justificar,

23
aclimataram medidas justificadas, como as de redução de riscos,
rompendo com as posições segundo as quais os indivíduos são
totalmente livres para assumir riscos.
Muitas vezes, teve um papel crucial a combinação entre opinião
pública sensível, franqueza radical e uma metodologia elementar de
regulamentação da comunicação. Quando a comunicação se
intensifica, há, obviamente, o perigo de dissolver certas ambigüidades
cômodas e gerar uma percepção crua de regras, hierarquias e
concorrências. Mas a sinceridade produziu quase sempre melhor
resultado que a tradicional diplomacia (mal-entendida). Dizer
claramente o que se podia e o que não se podia e recordar, com precisão,
as rivalidades foram ferramentas de uso cotidiano.

Resultados do Cultura Cidadã em Bogotá (1997-2001)

• Redução da taxa de homicídios de 82, em 1993, para 35, em


2000, a cada 100.000 habitantes, uma diminuição de mais de 50%
nos últimos sete anos. Uma série de medidas relacionadas com
os três tipos de regulamentações teriam influenciado
consideravelmente: “lei cenoura” (limitação do horário de
funcionamento de bares e discotecas e venda de bebidas alcoólicas
até uma hora da madrugada, medida adotada também em outras
cidades colombianas e equatorianas); desarmamento (legal e
voluntário), centros de mediação, capacitação da polícia, com a
entrega voluntária de mais de 1.500 armas. No mês em que se
realizou a entrega voluntária de armas, a taxa de homicídios
reduziu-se em 26%: recolheu-se somente 1% das armas, mas a
mensagem, que significa dispor unilateralmente da arma, teve
um efeito significativo. 45.000 pessoas participaram da

depois de dois dias, o racionamento, não aceitar a pressão jornalística para centrar a notícia nas sanções previstas para
quem não economizasse água, verificar que existia a vontade de economizar e que havia de ajudar com informação
e metodologias para a mudança de hábitos foram alguns dos marcos desta campanha que permitiu manejar, durante
aproximadamente quatro meses, a emergência.

24
“vacinação” contra a violência familiar: uma breve e intensa
oficina com o apoio de psiquiatras e psicólogos, útil para detectar
casos que requerem atenção profissional, para divulgar a oferta
institucional de atenção e para compreender o quanto a violência
tem de doença.
• Redução de mortes em acidentes de trânsito de 1.387, em 1995,
para 834 em 2000. A este respeito teve uma grande influência o
fato de que a Polícia Metropolitana encarrega-se do trânsito na
cidade, medida que também conduziu à erradicação do costume
de pagar suborno para evitar as multas de trânsito.
• Redução de dois terços no número de crianças queimadas
com pólvora.
• Avanços notórios na recuperação e respeito ao espaço público.
• Economia voluntária de água entre 11% e 14% por
emergência, durante vários meses, com economia residual
estimulada pela estrutura tarifária (o consumo mensal médio
das famílias acabou baixando de 27 para 20 m³, permitindo
prorrogar a custosa construção de novas represas por mais de
quinze anos).
• Interrupção da relação clientelista entre Governo e Conselho.
A busca conjunta de uma relação legal, moral e culturalmente
defensável levou ao império do intercâmbio rigoroso de
argumentos, onde, outrora, eram comuns os favores (nomeações
e contratos).
Algo que também teve importância nesta primeira versão do programa
Cultura Cidadã foi assumir o conflito como tendo sido causado ou agrava-
do por limitações na comunicação. Em um congresso de sociólogos, ao qual
me convidaram, em 1993, apresentei uma conferência cujo título era A vio-
lência como forma de comunicação. Consistia em tomar as idéias de Jürgen
Habermas, sua teoria da comunicação, para mostrar que uma pessoa violen-
ta é alguém que escolhe certa linguagem, e que poderia ser do interesse da
sociedade convidá-lo a escolher outros instrumentos de comunicação. Mostra-
va-se, então, que parte das funções comunicativas da violência podem ser
exercidas de outra maneira. Dito de outro modo, se certas formas de violên-

25
cia não tivessem a repercussão comunicativa que têm, seriam muito pouco
atrativas. Na maioria dos casos, poderia ser dito que não há violência física,
principalmente pública, que não esteja acompanhada da pretensão de comu-
nicar algo. Concluímos, assim, que o conflito podia ser causado ou agravado
por limitações na comunicação e, portanto, que a comunicação e a interação
intensificadas podiam reduzir o divórcio entre lei, moral e cultura15. Uma
maneira de entender isso foi reconhecer que, nas situações de conflito, pode ser
mais útil o intercâmbio de argumentos do que as negociações. Concluiu-se que
a relação direta, cara a cara, podia dissuadir da violência. Em Obedience to
Authority, uma pesquisa de Stanley Milgram, realizada na Universidade de
Yale, mostra-se que é mais fácil jogar uma bomba atômica a dez mil metros de
altura que ferir uma pessoa cara a cara. Isso não é uma garantia, mas foi uma
pista que seguimos: novas formas para expressar inconformismo, como a agres-
são simbólica, podem ser de grande utilidade.
Em suma, a estratégia do Cultura Cidadã buscou fortalecer a
regulamentação cultural e a regulamentação moral. Buscou aumentar a
congruência e a eficiência complementar dessas regulamentações entre si e
com a lei. Procurou – e muitas vezes conseguiu – debilitar a legitimidade
cultural ou moral de ações contrárias à lei. Buscou também comunicar (ou
reconstruir em um ambiente de comunicação) as razões de ser e as
conveniências da regulamentação legal.

6. PESQUISA COM JOVENS SOBRE CONVIVÊNCIA CIDADÃ

Na pesquisa com jovens de 9ª grau, em Bogotá, as respostas de uma


amostra de 1.400 jovens a mais de 200 perguntas foram analisadas,
utilizando as técnicas de análise de correspondências múltiplas. Na
pesquisa, a convivência foi inicialmente descrita como a combinação de
obediência a regras, capacidade de celebrar e cumprir acordos e confiança.
A obediência a regras especificou-se em maior detalhe como obediência

15 Esta era, de fato, a moral do primeiro trabalho acadêmico sobre o tema, realizado por Clara Carrillo, sob a minha
direção, em 1991 na Universidade Nacional (Carrillo Fernández, Clara, “La interacción en la reconstrucción de
legalidad y moralidad”, monografia, Departamento de Filosofia, Universidade Nacional, Bogotá, 1991).

26
a três tipos de regras: legais, morais e culturais. Procurou-se averiguar o
que acontecia quando havia tensão entre esses sistemas reguladores e
quão tolerantes eram os jovens com o pluralismo moral e cultural.
Quisemos submeter a um contraste e a um refinamento empírico
o ponto de vista inicial. Utilizamos um instrumento de mais de 100
perguntas (algumas delas com 40 subperguntas). A análise de
correspondências múltiplas nos permitiu identificar os grupos de
respostas que melhor se prediziam umas às outras. Obviamente, os
resultados estão muito marcados pelas perguntas iniciais. No entanto,
a reflexão se vê exposta a resistências e, às vezes, ao caráter contra-
intuitivo de conclusões que derivam dos dados16.
Uma maneira de aproximarmo-nos à teoria que há por trás de
ambas as concepções, de intervenção, em Bogotá, e da pesquisa sobre
convivência entre jovens, é por intermédio do seguinte quadro. Nele,
distinguem-se várias dimensões ou conceitos, os quais, por sua vez,
desagregam-se nas denominadas variáveis primárias.

QUADRO 1. Conceituação inicial para a pesquisa sobre


convivência 17
Descrição Desagregação em dimensões
Convivência Integra indicadores sobre • Apego a regras
acordos, regras (morais, • Harmonia de lei, moral e
legais e culturais), confiança cultura
e não–assimetria. • Confiança
Indicadores de não-violência. • Capacidade de celebrar
Servem como variável e cumprir acordos
de contraste. • Gratificação
• O outro não é muito diferente
de mim mesmo (baixa assimetria)
• Não usar nem receber
violência ao resolver problemas
ou celebrar acordos (baixa
“violência”, dimensão
de contraste

16 Mais adiante se apresentam alguns exemplos de resultados inesperados.


17 Serviu de base para elaborar o questionário com o qual se adiantou a pesquisa empírica.
A comparação com os resultados da análise de correspondências múltiplas leva a uma simplificação
e hierarquização (ver os quadros com o titulo: Quadro 2. Sete caminhos para a convivência).

27
Dimensão ou Descrição Desagregação em subdimensões
subdimensão ou variáveis primárias
Apego a regras Acatamento à lei, à moral e • Regulamentação legal,
à cultura e valorização moral e cultural
das regras • Atitude diante das regras
Regulação Obediência de cada qual à sua • Intensidade da regulação
moral consciência , “maioridade” moral
moral. Tenta incorporar uma • Cumpro regras por razões
aproximação ao grau de morais
desenvolvimento moral. • Os demais cumprem regras
por razões morais
• Cumpro acordos por
razões de consciência
• Os demais cumprem acordos
por razões de consciências
• A moralidade regula a ação
conforme a lei
• Grau aproximado do
desenvolvimento moral
Regulação Obediência às regras sociais • Intensidade da
cultural do meio ou do grupo e regulação cultural
compatibilidade dessas regras • Pluralismo cultural
com a lei e consciência pessoal • A cultura regula a ação
conforme a lei
• Regulamentação cultural
compatível com a moralidade
Regulação Força da lei e lei percebida • Intensidade da
legal como um acordo regulação legal
• Perceber a lei como um
acordo
Harmonia Consistência, não-conflito entre • A moral regula a ação
entre lei, mo- lei e o que é aceito ou conforme a lei
ral e cultura18 imposto pela regulação • A cultura regula a ação
cultural e/ou moral conforme a lei
• Regras culturais compatíveis
com a moral pessoal
• Pluralismo

18 Mockus, A. (1999) Armonizar ley, moral y cultura. Cultura ciudadana, prioridad de gobierno con resultados en
prevención y control de violencia en Bogotá, 1995-1997. Publicado na página web do Banco Interamericano para o
desenvolvimento: www.bid.org.

28
Dimensão ou Descrição Desagregação em subdimensões
subdimensão ou variáveis primárias
Pluralismo Tolerância à diversidade em • Pluralismo moral
assuntos de consciência • Pluralismo cultural
e de tradição cultural
Confiança A confiança interpessoal • Os outros confiam em
outorgada e recebida mim, eu confio nos outros
• Confiança nas instituições
• Confiança nas autoridades
• Para chegar a acordos,
ambas as partes conquistaram
confiança
Capacidade Disposição e capacidade para • Orientação para acordos
de celebrar construir acordos e procurar • Cumpro acordos por razões
e cumprir cumpri-los. Resolver problemas de consciência
acordos através de acordos • Os demais cumprem acordos
por razões de consciências
• Busco acordos vantajosos
para mim
• Busco acordos vantajosos
para os outros
• Orientação pessoal
nos acordos
• Orientação objetiva
nos acordos
• Cumpro acordos
de bom grado
• Os demais cumprem acordos
de bom grado
• Perceber a lei como acordo
Gratificação Atribuição de maior força • Cumpro regras e acordos
reguladora a recompensas de bom grado
que a punições • Os demais cumprem regras
e acordos de bom grado
Assimetria Diferenças entre percepção de • Eu me governo mais por
si e percepção que alguém consciência, os demais se
tem dos demais governam mais por lei ou
cultura
• Eu me governo volunta-
riamente, os demais não

29
Dimensão ou Descrição Desagregação em subdimensões
subdimensão ou variáveis primárias
• Assimetria diante do uso da
violência: inflijo mas não
recebo violência e vice-versa
• Assimetria perante o não
cumprimento de acordos:
eu exijo o cumprimento
dos demais, mas eu não
cumpro
• Os demais confiam em
mim, mas eu não confio
nos demais
Violência Uso ou invocação de violência • Acordos atingidos com
na solução de problemas ou ameaça de violência
celebração de acordos • Problemas resolvidos
por meio de violência ou
ameaças de violência
• Violência física recebida
e/ou infligida

A pesquisa permitiu detectar as seguintes características, bastante


generalizadas na população (as duas primeiras e a quarta foram
confirmadas em aproximadamente uma centena de oficinas no país):
1. Eu me guio pela minha consciência, os demais pela lei e pela cultura.
2. Eu entendo coisas de bom grado, os demais não.
3. Pluralismo tende a ser igual ao “vale tudo”.
4. mais valioso é a “família” (resposta mais freqüente à pergunta
qual é seu maior orgulho?).
Nas duas primeiras características, evidencia-se uma assimetria na
percepção que os jovens de Bogotá têm (e possivelmente os colombianos
em geral) de seus companheiros. A assimetria entre a autopercepção e
a percepção que se tem dos demais poderia ser corrigida por meio do
respeito: respeitar é, por etimologia, olhar novamente, voltar a olhar e
considerar com atenção. É como um primeiro momento do

30
reconhecimento. Pode haver um elevado grau de respeito numa
sociedade em que as hierarquias são muito marcadas. Igualmente,
pode-se imaginar a importância, nas circunstâncias mais recentes
de sociedades como a colombiana (em que avançaram a
secularização e a democratização, houve progressos notáveis em
eqüidade de gênero e no acesso a oportunidades educativas), do
respeito igualitário, do respeito entre semelhantes. A noção de
cidadania é inseparável deste respeito entre iguais. Onde há
cidadania, qualquer encontro entre desconhecidos é, antes de mais
nada, um encontro entre cidadãos. Ver o outro como um semelhante
em sua relação com as três regulamentações, acreditar que se pode,
como os demais, entender, sem restrições, constituem as bases de
um respeito cidadão. Completar a transição do “respeito baseado
em hierarquias” para o “respeito baseado na consciência de
igualdade”, comparável a uma mudança radical de paradigma, seria
um dos desafios centrais da construção da convivência. Respeitar o
desconhecido, atribuir-lhe, desde o começo, qualidades de sujeito
análogas às próprias, é um suporte crucial da convivência.
No questionário, também incluímos perguntas sobre violência.
“Lembre-se do acordo mais importante que você fez nos últimos meses,
faça um breve resumo, e agora responda às seguintes perguntas (....):
utilizou ou sofreu violência?” De um modo similar: “na solução do
problema mais importante que teve nos últimos meses, sofreu, infligiu
ou ameaçou com violência ou foi ameaçado com violência?” E também
uma pergunta mais genérica: “você sofreu violência na infância ou em
alguma época de sua vida? Em que época e por parte de quem?” Mas
esta parte do questionário não foi incluída nos indicadores de
convivência, já que seria utilizada mais tarde como contraste. A teoria
era: a convivência consiste em seguir regras, em celebrar e cumprir
acordos e em gerar e reproduzir confiança; confiar nos demais e
conseguir que o cumprimento de regras e acordos dê um feedback à
confiança. Era uma teoria positiva da convivência; não se definia a
convivência como não-violência. Uma vez consolidado o trabalho
estatístico, as variáveis da violência foram cotejadas com os resultados,
para saber quais fatores estavam relacionados com a ausência de
31
violência (e em que grau).

7 . R E S U LTA D O S D A P E S Q U I S A

Os dois principais fatores para a convivência foram a capacidade


de celebrar e cumprir acordos e o respeito à lei. No entanto, o respeito
à lei predisse melhor a ausência de violência infligida pelo jovem ou
contra o jovem. Esta pesquisa influenciou para que, na segunda versão
do programa Cultura Cidadã, fosse maior a ênfase em cultura
democrática, especialmente em apreciar o bom, apreciar as normas e
os procedimentos democráticos para decidir.
Concluímos que, para a convivência, os acordos são mais
importantes que as regras, e, nestas, é muito importante a harmonia
entre lei e cultura. A pesquisa confirmou que a mudança cultural, mais
que a mudança do critério moral, podia influenciar o melhoramento
da convivência. É óbvio que as perguntas estavam influenciadas pela
teoria, ou seja, não é uma prova contundente, é o argumento de uma
discussão. Na América Latina, há uma corrente de conscientização e,
de certa maneira, o enfoque do Cultura Cidadã evidencia que “de
consciência estamos bem”. Talvez o difícil seja obter hábitos e
comportamentos congruentes com o que se tem claro na consciência.
Todos sabem que não deveríamos matar, mas, culturalmente, é mais
um tema de regulamentação externa.
O resultado final foi: se olharmos a convivência de um ponto de
vista positivo, o que melhor a prediz é a capacidade de celebrar e
cumprir acordos. E se olharmos do ponto de vista da violência, da
urgência de reduzir a violência, o mais importante é aprender a
respeitar e seguir regras, especialmente a lei.
Assim, por exemplo, um resultado inesperado foi a coincidência
em um mesmo fator da regulamentação cultural e o argumento
utilitário. A resposta: “é justificável violar a lei quando há grande
proveito econômico” coincide muito com “é justificável violar a lei
quando é de costume” ou “quando os demais o fazem”. Ao menos
neste momento histórico, para os jovens de Bogotá escolarizados,

32
poderia ser dito que a regulamentação cultural resume os aprendizados
utilitários, mas não se os contrapõe. Hoje, o costume não é uma barreira
contra o utilitarismo, como pode ter sido em outro momento. Outros
exemplos de resultados contra-intuitivos: a confiança não se
apresentou como um importante prognóstico de convivência (com
exceção da resposta “quando celebro um acordo confio em que a
outra parte o cumprirá”). Era de se esperar que a convivência se
traduzisse como confiança: a obediência a regras e acordos geraria
confiança e, por sua vez, a confiança geraria maior adesão às regras e
aos acordos. Mas confiantes e desconfiados convivem
aproximadamente da mesma forma, pelo menos na população
estudada.
Há outro resultado derivado da análise estatística de respostas a
uma pergunta clássica em ciências sociais: “você aceitaria, como vizinhas,
pessoas de distinta religião, de regiões distintas, de nacionalidade
distinta, gente com o vírus da Aids, pessoas indigentes ou indígenas?”
Entram, assim, uma quantidade de categorias com o fim de estabelecer
quão tolerante é a pessoa. Nessa mesma pergunta, incluíram-se também
os corruptos, narcotraficantes, guerrilheiros e paramilitares. Tínhamos
a esperança de obter dois pluralismos, mas obtivemos um só: o jovem
que tolera indígenas e portadores do vírus da Aids como vizinhos,
tende a tolerar também os narcotraficantes, guerrilheiros, paramilitares
e corruptos.
O pluralismo tornou-se um “vale tudo”. No entanto, o maravilhoso
da invenção da lei escrita, de todos os processos para debater as leis
durante sua formação e das garantias constitucionais das minorias, é
que tudo isso existe para proteger o pluralismo, mas não até o ponto
de torná-lo um axioma que impede a própria vigência do quadro
constitucional.
Ao contrastar os dados obtidos sobre o pluralismo com as variáveis
de violência, pôs-se em evidência a relação direta entre dois fatores:
apesar da tendência de ver a tolerância como um “vale tudo”, a pessoa
intolerante tem uma probabilidade ligeiramente maior de utilizar
violência ou ser vítima dela.

33
Em termos de seu menor grau de associação com a violência é
preferível o descuido total em acordos (dificuldade para celebrá-los,
cumpri-los ou até reconhecê-los) do que aquilo que chamamos
anteriormente de “ordem sem lei”, caracterizada como o gosto pelas
normas acompanhado do desconhecimento da lei por razões culturais.
QUADRO 2. Sete caminhos para a convivência

Cinco caminhos, ordenados por importância decrescente por sua


suposta contribuição para a redução da violência:

C2: Nomia *: acatar a lei acima de sua utilidade imediata e do


costume (acatar à lei mesmo que às custas dos resultados) e
buscar formas lícitas de inovar.
C3: Adesão à lei: admirar os avanços da lei nacional ou local,
gostar das normas e ser capaz de acatar à lei mesmo que entre
em tensão com as convicções morais.
C5: Ordem, porém com lei e superação da negligência com os
acordos: harmonizar normas legais e culturais e aprender
* Sic (N. doaT.)cultivar acordos.

C4: Pluralismo: tolerar a diversidade.


C1 Fazer acordos: aprender a celebrar e cumprir acordos
e, especialmente, a reparar acordos não cumpridos.

Dois caminhos adicionais correspondentes a aspectos


problemáticos encontrados de maneira quase geral na população

C6: Respeito igualitário: romper a assimetria, chegar a respeitar


o outro como a um semelhante; ver a semelhança entre um e
outro (ambos somos basicamente autônomos e buscamos
construir harmonia entre nossa moral e a lei, ambos
entendemos basicamente de boa vontade).

* Sic (N. do T.) Salvo C6 e C7. De fato, não foi analisada empiricamente a influência potencial de C6
e C7 sobre violência sofrida ou infligida. Para os outros cinco, sim, foram detectadas correspondências.

34
C7: Cultura democrática para um pluralismo viável: aprender
a resolver mediante procedimentos democráticos as tensões
entre moral e lei e conseguir a primazia da lei sobre cultura
e a moral necessária para um pluralismo viável (“não um
vale tudo”).

8. TOLERÂNCIA À PLURALIDADE DE PROJETOS

Conviver é também compartilhar os sonhos ou, ao menos,


conseguir ter sonhos compatíveis. Os sonhos podem provir do passado,
portanto dotados de autoridade, ou podem nascer de processos
contratuais, de acordos reconhecidos como tais. De algum modo, as
artes, e especificamente as emoções morais que as artes suscitam, ajudam
a transmitir e expressar sonhos compartilhados.
A autoridade do sonho herdado – o que vem do passado – se
expressaria também como regulamentação cultural, como efeito
obrigatório de caminhos e limites já decantados por tradição.
Assistimos à ampliação do poder da idéia de “projeto” e, no marco
dessa ampliação, à crescente disponibilidade dos mais diversos aspectos
da natureza e da vida humana. Não mais uma disponibilidade global
associada a heranças messiânicas, e sim uma disponibilidade localizada,
muitas vezes gradual.
Outra vez, inevitavelmente, diante da indeterminação associada à
existência simultânea de vários projetos (sua discussão, a variação de
sua força empiricamente derivada de seus êxitos ou fracassos), a lei é
central, ao formular definições claras dos comportamentos aceitos. A
lei também cumpre a função de fechar caminhos.
Para algumas sociedades, em que a convivência não está
assegurada, a visão de futuro defensável para alguns consistiria em
uma sociedade com muitas visões de futuro (“uma sociedade em que
cada um tenha sua visão de futuro”, propôs alguém em uma oficina
de construção de visão compartilhada de futuro). O projeto consiste
em favorecer a coexistência de muitos projetos. Pois bem, os projetos
são expressão de vontade e de poder. A luta entre projetos volta a ser
uma luta contra a violência, contra a exclusão e, inevitavelmente,
35
passa por um acordo mais ou menos geral, ao menos majoritário,
sobre as regras – para que coexistam diversos projetos. A gestação e a
sobrevivência desses diversos projetos encontram uma de suas mais
importantes garantias nas leis, mas, simultaneamente, dependem
muito de costumes (como o do debate, ou a concorrência limpa entre
organizações).
Qual é a autoridade do sonho comum construído mediante
um processo deliberado que tinha expressamente esse fim? Não
o sabemos exatamente, mas há muitas metodologias em voga que
se baseiam neste tipo de construção conjunta do sonho comum.
Não sabemos se de qualquer visão de futuro assim construída
possam ser derivados os caminhos da convivência identificados:
acatar a lei por cima da utilidade imediata e do costume, gostar
das normas, valorizar a lei e acatá-la, ainda que por cima das
convicções morais, ver o outro também como sujeito moral
autônomo e aprender a tentar mudar democraticamente a lei
quando ela vai contra nossas convicções morais, harmonizar
normas legais e culturais e proibir o descuido com os acordos,
aceitar contato cotidiano com a diversidade e aprender a celebrar
e cumprir acordos e a repará-los. Ao menos parte desses caminhos
resultam, tácita e praticamente aceitos, no procedimento seguido
para construir essa visão compartilhada.

9. ALGUMAS CONCLUSÕES

A convivência pareceria depender principalmente do chamado


“império da lei”. No entanto, o principal não é exatamente a lei: é a
congruência entre a regulamentação cultural e moral e a lei. O que importa
são as justificativas para obedecer ou para desobedecer à lei, ou o exemplo
dos demais, ou o costume, ou o único meio para alcançar o objetivo. Assim,
a centralidade não está posta exatamente na lei, e sim no acompanhamento
à lei a partir da cultura e da moral. É justo onde há lei que não lhe basta
sua própria força, onde para conseguir convivência faz-se indispensável o
respaldo de tradições e/ou transformações éticas ou culturais. Cada vez
que se legisla deveria se iniciar um processo (preferivelmente voluntário)

36
de mudança cultural e moral. Para isso, a lei que nasce deve, ao menos
para uma maioria de cidadãos, parecer justa.
A cultura expressa-se no costume, principalmente na medida em
que o costume tem autoridade. O costume vale como expressão da
cultura, especialmente quando “obriga” supra-subjetivamente, quando
expressa autoridade gerando sentido e sentimento de obrigação.
Essa autoridade da cultura, ao menos em parte, é deslocada pela
disponibilidade técnica associada ao projeto. Cada vez mais podemos
representar, conhecer e esquematizar – e, portanto, sonhar em
configurar de maneira técnica – até os aspectos mais sagrados ou
íntimos da reprodução cultural. A reprodução econômica quis
modificar-se significativamente a partir de mudanças em uma só de
suas dimensões (a propriedade dos meios de produção) e esquecendo
sua relação com a reprodução cultural. Os sonhos mais inspirados,
que apontavam para coletividades moral e culturalmente mais próximas
a certos ideais, também inspiraram e ainda podem inspirar
totalitarismos como o fascismo alemão ou o stalinismo; isso nos tornou
mais modestos. Porém claramente os desafios da convivência são
também os desafios de compreender mais (e transformar mais
cuidadosamente) as relações entre a reprodução econômica e a
reprodução cultural. A reprodução e a educação poderão algum dia
ser transformadas simultânea e congruentemente? Muitas sociedades
já avançaram na construção de um quadro cultural que, de maneira
sustentável, aclimata, impulsiona e confere sentido à produtividade.
Em síntese, a construção de uma conceituação positiva da
convivência guiada por uma reflexão sobre regras e acordos, e por
tentativas de modificar, na prática, alguns comportamentos de cidadãos
em Bogotá, foi submetida a um contraste empírico com 1.400 jovens
da mesma cidade. Por sua importância para o conceito positivo da
convivência e por sua capacidade para predizer a não-violência,
destacaram-se duas dimensões:
• Acatar a lei acima da utilidade imediata e do costume;
• Gostar das normas e obedecer à lei, ainda quando entra em
conflito com as convicções morais e admirar os avanços da lei
nacional ou local.
37
Aprender a celebrar e cumprir acordos e, especialmente a reparar
acordos não cumpridos ou chegar a respeitar o outro como a um
semelhante; ou aprender a resolver mediante procedimentos
democráticos as tensões entre moral e lei, não foram variáveis tão
importantes para a redução da violência, mas o foram, sim, na hora
de caracterizar positivamente a convivência.

1 0 . P O S T D ATA : D A T O L E R Â N C I A R E L I G I O S A À
AT R A Ç Ã O P E L A D I V E R S I D A D E , O S “ A N F Í B I O S
C U LT U R A I S ”

A tolerância perante a diversidade foi se transformando em um


entusiasmo pela diversidade e em uma consciência crescente de que
sob algumas condições, cujo exame foi o objetivo principal do
presente trabalho, a diversidade é uma fonte de riqueza humana
que pode ser aproveitada de maneira fértil e sustentável. Quando a
diversidade cultural é simplesmente conservada, transforma-se em
riqueza inexplorada. É fundamental que ao lado da preservação
das diferenças se desencadeie ou se acentue o contato, o diálogo, o
intercâmbio, a fertilização cruzada.
Em contextos culturais diversos, rege-se sistemas de regras
diversos. “Anfíbio cultural” é quem se desenvolve em diversos
contextos, como camaleão, e, ao mesmo tempo, como intérprete,
possibilita uma comunicação fértil entre eles, ou seja, transporta
fragmentos de verdade (ou de moralidade) de um contexto a outro.
O “anfíbio cultural”, camaleão e intérprete, facilita o processo de
seleção, hierarquização e tradução necessário para a circulação da
riqueza cultural.
Para isso parece necessária uma harmonia como a descrita entre
os sistemas reguladores – lei, moral e cultura – compatível com o
pluralismo moral e cultural. Talvez a continuação da construção
do projeto de uma humanidade interessada, entusiasmada por sua
diversidade, mas também interpelada por ela, seria ajudada pela
presença do “anfíbio cultural” – seja como identidade generalizada
da humanidade, seja como uma grande coletividade transnacional,
38
seja como figura excepcional, ou como figura ideal nunca
plenamente realizada.
A integração do fundo moral de diversas tradições facilita ações
do “anfíbio”, nas quais moralidade e cultura se coincidem e se
expressam com pureza ou perfeição exemplar, demonstrando a atores
de distintas culturas a possibilidade e a fertilidade do que, em outros
momentos, poderia ser percebido como contaminação. O “anfíbio”,
enquanto tece nexos e facilita processos de reconhecimento de
elementos de unidade humana no próprio mosaico da pluralidade
de tradições e projetos, pode ser visto como uma espécie de
integrador moral da humanidade.
O mútuo conhecimento –com capacidade de se envolver moral
e culturalmente, tal como o tenta descrever a figura do “anfíbio
cultural” – parece ser condição para tornar mais viável e fértil a
coexistência do culturalmente diverso.

39
A EDUCAÇÃO PARA
APRENDER A VIVER JUNTOS:

UMA ANÁLISE CRÍTICA DA PESQUISA COMPARADA 1

Aaron Benavot *

1. REFLEXÕES INICIAIS

A expansão educativa e os programas escolares transformaram-se


na panacéia moderna para abordar os problemas sociais (freqüentemente
definidos como “desafios”). Para facilitar o crescimento econômico e a
competitividade tecnológica, os países voltam-se para o ensino da
matemática, das ciências e da informática. Para combater o desemprego,
ressaltam a formação para o emprego e as capacidades profissionais

1
Uma análise crítica da pesquisa comparativa em educação, in Perspectivas, vol XXXII, no 1, março 2002. Uma
versão anterior deste artigo foi apresentada em um seminário especial intitulado “Temas curriculares sobre a convivência”,
auspiciado pela UNESCO:IBE, a Faculdade de Educação da Universidade de Genebra e a Unidade de Pesquisa
Educacional, do Departamento de Educação, cantão de Genebra, de 3 a 4 de setembro, de 2001. Fragmentos deste artigo
também foram lidos durante o debate principal do painel 1, na 46º Sessão da UNESCO, da Conferência Internacional
de Educação intitulada “A educação para todos para aprender a viver juntos”, Genebra, Suíça, 5 a 8 de setembro, de
2001. Gostaria de agradecer a Francisco Ramírez, Tamar Rapoport, Ronald Sultana e John Meyer por seus valiosos
comentários.
*
Palestrante, decano em sociologia na Hebrew University de Jerusalém. Anteriormente, foi professor
assistente na Universidade da Geórgia (Estados Unidos). É co-autor de dois livros – School Knowledege
for the Masses (com John Meyer e David Kamens) e Law and the shaping of public education (com
David Tyack e Thomas James) –, assim como, de numerosos artigos nas principais publicações em
sociologia da educação e educação comparativa. Em suas pesquisas analisou os modelos dos
planos oficiais de estudo, os efeitos da educação no desenvolvimento econômico e na democratização
e as origens e expansão da educação de massas. Correio eletrônico: msbenavoamscc.huji.ac.il

41
adequadas. Para diminuir as altas taxas de natalidade, os países menos
desenvolvidos ampliam as oportunidades educativas para as mulheres e
criam cursos de planejamento familiar e de sexualidade humana. Para
fortalecer a integração nacional, os países destacam as línguas, a história
e a geografia nacionais. Para lutar contra a deterioração do meio
ambiente, criam cátedras de ecologia ou de estudos para o meio ambiente.
Para potencilizar o compromisso moral e a orientação ética de seus
cidadãos, ressaltam a educação religiosa, a educação moral ou os estudos
sociais. Para aprofundar a consciência dos princípios democráticos e
aumentar a participação política, promovem a educação cívica. Para
lidar com as conseqüências da globalização (a transformação dos lugares
de trabalho, as novas tecnologias, o auge do conhecimento e a
diversificação das fontes de informação), os países fomentam os temas
interdisciplinares, inculcam “novas” habilidades e competências, abordam
temas de diversidade cultural e apóiam a formação permanente. Em
poucas palavras, a educação transformou-se em um paliativo universal,
um elixir que, tomado em doses regulares segundo as prescrições
estabelecidas, poderia solucionar um acúmulo de males nacionais e de
desafios para a sociedade.
No entanto, a pesquisa comparativa em educação não corrobora
este quadro geral, para não entrar em detalhes. Para a maioria das
demandas mencionadas acima, existe um corpo muito limitado de
pesquisas e muitas de suas conclusões têm uma importância pouco
clara e/ou uma validade duvidosa. Entre os poucos resultados de
natureza social que podem ser conferidos às análises comparativas
(desenvolvimento econômico, participação da força de trabalho,
fertilidade, participação política), costumam ser deixadas de lado provas
que corroborem os supostos poderosos efeitos da educação no
desenvolvimento (ver, por exemplo, Bledsoe et al., 1999; Fuller &
Rubinson, 1992; Chabbot & Ramírez, 2000; Kerckhoff, 2000). No
entanto, apesar do caráter não conclusivo das pesquisas atuais e, ainda
mais importante, independentemente das provas científicas
apresentadas, os argumentos otimistas e as configurações das políticas
que vinculam a educação formal e os conteúdos dos programas de
estudo a resultados sociais desejáveis transformaram-se em um traço

42
predominante da paisagem educativa mundial (Chabbott, 1996). Para
as instituições educativas internacionais, para os ministérios nacionais
de educação, para os analistas das políticas e para os especialistas em
educação, a escolarização chegou a ser concebida como a solução
adequada para um acúmulo de problemas sociais. Mesmo que na
realidade a escolarização resulte ou não nos benefícios supostos, a idéia
de que a educação é crucial para alcançar importantes objetivos
econômicos, políticos e sociais difundiu-se para todos os lados e
institucionalizou-se, cada vez mais, em âmbito mundial.
Dada esta situação de desequilíbrio, é justo perguntar-se como
deveriam responder as organizações internacionais orientadas pelas
políticas que participam nos assuntos educativos. Deveriam,
independentemente das limitadas provas das quais dispomos, seguir
adiante com sua função de defesa dos direitos e promover a expansão
escolar e os programas de estudo “modernos”? Ou deveriam
estimular pesquisas comparativas mais rigorosas? Ou desenvolver uma
atitude mais crítica – inclusive céptica – em relação às políticas
preponderantes, assim como em relação aos projetos e às reformas
educativas “inovadoras”?
Mais especificamente, já que o currículo é um elemento tão
central na experiência escolar, cada vez mais, prolongada dos jovens
em todo o mundo: que perguntas relacionadas aos conteúdos dos
programas deveriam ser suscitadas e debatidas? Como a pesquisa
comparativa pode contribuir com esse debate? Por exemplo, é sinal
de realismo acreditar que os programas escolares são criados e
elaborados como respostas eficazes aos “desafios” da globalização?
Podem os conteúdos curriculares, isolados das mudanças que ocorrem
paralelamente nas famílias e nas comunidades, gerar e sustentar nos
jovens atitudes de empatia, tolerância e, inclusive, respeito em relação
ao “outro” ou ao “estrangeiro”? Podemos esperar que os programas
escolares facilitem o entendimento mútuo e a coexistência entre
comunidades, países e civilizações cultural e religiosamente diversas?
Como poderia se avaliar o impacto dos currículos sobre os alunos
individuais, nas comunidades ou no conjunto da sociedade, seja a curto
ou a longo prazo, e quem os avaliaria?
43
2. ESCLARECIMENTOS CONCEITUAIS

Com a finalidade de facilitar o diálogo e a discussão entre os


pesquisadores e os responsáveis pela elaboração de políticas nestes
assuntos, gostaria de apresentar dois conjuntos de qualificações
conceituais. O primeiro especifica o caráter dos vínculos causais que
costumam ser tidos como certos entre educação e conteúdos dos planos
de estudo por um lado e, por outro, os resultados sociais desejados. O
segundo distingue os componentes específicos da escolarização formal,
cujos efeitos sociais são destacados no discurso educativo
contemporâneo.

3. VÍNCULOS CAUSAIS ENTRE EDUCAÇÃO E


MUDANÇA SOCIAL

O modelo básico das supostas causas-chave, que apóiam a idéia


de que as estruturas escolares e os conteúdos curriculares afetam
uma gama de resultados sociais, pode ser descrito da seguinte
maneira. Primeiro, como resultado de estruturas educativas e
políticas curriculares sistemáticas (normalmente, organizadas pelo
Estado), os colégios, mais ou menos de modo eficaz: a) expõem os
jovens a conhecimentos valorizados culturalmente; b) ensinam
habilidades básicas, cognitivas e lingüísticas avançadas; c) inculcam
importantes valores, atitudes e modelos normativos de conduta; e
d) ajudam os alunos a construírem orientações profissionais e
projetos de vida viáveis. Em segundo lugar, as mudanças promovidas
entre os jovens por estes processos supostamente baseados na escola
são mais perduráveis do que transitórios. De outra forma, seria
difícil justificar os enormes investimentos públicos na escolarização
formal. Em terceiro lugar, como conseqüência de um melhor
desenvolvimento como adultos em diversas esferas da sociedade (o
mercado trabalhista, o sistema político, a família, o lar, a
comunidade) os indivíduos com uma formação (ou seja,
previamente escolarizados) acrescentam um valor social e
econômico ao conjunto da sociedade. Em outras palavras, as

44
mudanças individuais produzidas entre as pessoas com uma
formação, podem ser agregadas. Portanto, geralmente, quanto mais
alta a proporção da população adulta que foi escolarizada e exposta
a conteúdos curriculares valorizados, maior será seu impacto para
gerar soluções viáveis para os desafios e problemas sociais.
As variações deste modelo básico, que implicam vínculos causais
entre a educação e a mudança social, como foi demonstrado, estão
presentes nas políticas educativas e na legislação contemporâneas (ver,
por exemplo, Boli, 1997; Fiala & Lansford, 1987; McNeely, 1995; Meyer,
1997). Podemos encontrá-las, explícita ou implicitamente, nas
declarações dos analistas das políticas, educadores, legisladores e
dirigentes da comunidade cujos antecedentes ideológicos ou políticos
costumam ser muito diferentes. Além disso, as instituições educativas
nacionais e internacionais costumam justificar suas recomendações de
políticas e dotações de ajudas com argumentos pertencentes a este
modelo (ver Lockheed & Vespoor, 1991).
Para um pesquisador interessado em elucidar o nexo macrosocial
entre a educação, os currículos e a sociedade, esse modelo proporciona
uma série de proposições e hipóteses potencialmente falsificáveis, que
podem ser provadas utilizando diversos instrumentos metodológicos
e formas de pesquisa. No entanto, nem todas as relações descritas nesse
modelo foram objeto da mesma medida de revisão acadêmica. Mesmo
que não possa supor que eu tenha um conhecimento exaustivo da
literatura relevante (principalmente nas publicações não-inglesas), acho
que é justo dizer que a ampla maioria da pesquisa comparativa esteve
(e continua) centrada na primeira seqüência causal, ou seja, o impacto
das estruturas educativas, os conteúdos curriculares e as políticas
educativas específicas nas conquistas acadêmicas, e em outros resultados
dos alunos, como as habilidades, os modelos de conduta e as atitudes.
Para avaliar a segunda relação causal é necessário uma forma de
pesquisa longitudinal, que é cara, consome tempo e costuma se chocar
com as realidades a curto prazo da implementação das políticas e do
financiamento governamental. Não é surpreendente que sejam poucos
os estudos prospectivos – comparativos ou de outro caráter – que
acompanham os jovens em diferentes pontos da escola e, depois, em

45
diversas etapas no transcurso da vida adulta ²2. É verdade que
existem numerosos estudos retrospectivos e transversais,
principalmente no âmbito da economia e da sociologia da
educação. No entanto, mesmo que esses estudos costumem gerar
informação sobre o passado educativo dos entrevistados (anos de
escolarização, qualificações obtidas etc.), raramente formulam
perguntas sobre as disciplinas, sobre os temas e práticas
pedagógicas, ou seja, sobre os conteúdos curriculares, aos quais
estas pessoas foram expostas. Os economistas e os demógrafos
supõem que anos de escolarização ou de certificados obtidos são
mais importantes para definir, por exemplo, a posição no mercado
trabalhista, a produtividade por trabalhador ou a conduta de
fertilidade do que os conteúdos dos programas e os pontos
relevantes que foram vividos durante a escolarização. Só quando
os pacotes de conteúdo curricular institucionalizam-se nos
diferentes programas ou vias educativas (acadêmica, profissional,
clássica, ciências sociais, ou matemática e ciências) aprendemos
acerca do passado curricular dos indivíduos.
A terceira relação causal no modelo básico supõe, de maneira
muito pouco crítica, que quando existem mais adultos competentes,
produtivos ou eficazes, isso necessariamente resulta em economias,
formas de governo ou sociedades mais modernas. Se isso pode ser
uma caracterização válida de algumas sociedades européias e da
América do Norte, os fenômenos como a “fuga de cérebros” e o
consumismo crescente em outras partes do mundo deveriam dar a
entender que, se os indivíduos com mais formação costumam
protagonizar um esforço racional para progredir em seus próprios
interesses pessoais, estes não coincidem, necessariamente, com os
interesses coletivos da sociedade.

2 Entre os excepcionais exemplos de estudos longitudinais, destacam-se o estudo longitudinal Malmö, na Suécia,
iniciado em 1938; o First United States National Longitudinal Survey of Youth (Primeiro estudo nacional
longitudinal da juventude dos Estados Unidos), iniciado em 1979; e o Canadian National Longitudinal Survey of
Children and Youth (NLSCY) (Estudo longitudinal nacional de crianças e jovens do Canadá), iniciado em 1994.

46
Portanto, em geral, os vínculos causais fundamentais descritos
neste modelo continuam sendo problemáticos. Isto deve-se a: a) falta
de pesquisas comparativas; b) qualidade desigual dos estudos anteriores;
c) inconsistências das descobertas registradas; e d) uma tendência a
misturar níveis de análise, como o individual e o social, que devem ser
diferenciados e separados.

AS TENDÊNCIAS DA ANÁLISE

Nos argumentos que vinculam os processos sociais com resultados


no conjunto da sociedade, podemos distinguir dois discursos
independentes, ainda que relacionados³3. O primeiro centra-se na
expansão quantitativa da educação, especialmente na universalização
da educação de massas. Isso representa, sem dúvida, o tema dominante
no discurso educativo do século XIX e pode ser visto nos esforços para
ampliar a escolarização dentro dos grupos de idade (desde a educação
pré-escolar até a formação permanente), assim como tornar mais
eqüitativo o acesso à educação para os alunos provenientes de diferentes
grupos sociais. Nos fóruns internacionais, especialmente, os temas
relativos à expansão educativa e ao acesso desigual propiciaram (e
continuam propiciando) uma gama de iniciativas de reformas e debates
sobre as políticas. O principal argumento (freqüentemente implícito)
é que a escolarização formal (ou seja, a ampliação da educação
obrigatória e, às vezes, mais horas letivas) para alunos mais jovens em
cada grupo de idade (isto é, taxas de matrícula mais altas), por meio
das seqüências causais mostradas anteriormente, trará consigo
importantes resultados para o conjunto da sociedade.
O segundo discurso ressalta os conteúdos da educação e
debate sobre os conhecimentos culturais valorizados que deveriam

3 Um terceiro tema, não abordado explicitamente neste artigo, mas cada vez mais destacado nos discursos das políticas,
gira em torno da organização e relativa eficácia com que os serviços educativos recebem recursos do setor público. Esta
linha de idéias, baseada profundamente em pressupostos econômicos, freqüentemente compreende comparações entre os
“insumos” e os “produtos” dos sistemas nacionais de educação, com o objetivo geral de maximizar sua relação.

47
ser selecionados e organizados sistematicamente nos currículos.
O argumento central, freqüentemente não-formulado, é que as
disciplinas escolares específicas e as ênfases curriculares podem
contribuir claramente com a criação de uma sociedade mais
desenvolvida, competitiva, democrática ou sustentável. Enquanto o
primeiro tema mantém um predomínio nos debates orientados pelas
políticas e debates acadêmicos, o interesse pelos conteúdos curriculares
ou das escolas teve uma história mais descontínua. Durante o auge do
nacionalismo europeu no final do século XIX e no começo do século
XX, dedicou-se uma atenção excepcional à definição dos conhecimentos
culturais apropriados para os jovens nos sistemas educativos nacionais
em expansão (Maynes, 1985; Goodson, 1993; Glenn, 1988). Entre os
participantes das polêmicas sobre o conteúdo dos currículos – disciplinas
que seriam incluídas (ou excluídas), temas dos programas, livros-texto,
métodos pedagógicos e práticas de provas – havia acadêmicos, dirigentes
de sindicatos, autoridades religiosas, pais e destacados educadores
(Goodson, 1993; Kleibard, 1986; Popkewitz, 1987). Os teóricos do
sistema social, como Durkheim e Waller, abordaram os problemas
relacionados com os currículos em suas análises da educação moderna
(Durkheim, 1977, 1983; Waller, 1961, 1932). Os temas curriculares
também foram incorporados em numerosas recomendações do
Escritório Internacional de Educação (IBE) da UNESCO, durante seus
primeiros vinte e cinco anos (UNESCO, 1979). Resumindo, era uma
época em que os sistemas de educação de massas ampliavam-se na
Europa e na América do Norte, coincidindo com o visível e
generalizado interesse pelos conteúdos curriculares.
Nas décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial, a
preocupação com conteúdos curriculares, especialmente entre os
teóricos e pesquisadores das ciências sociais, desapareceu quase por
completo. As principais linhas gerais dos currículos escolares, segundo
alguns, converteram-se em um aspecto óbvio e dado como certo nos
impulsos para a modernidade (McEneaney, 2000). Ao contrário, o
interesse acadêmico centrou-se em temas que não tinham muito a
ver com o caráter e com a organização dos currículos escolares. Por
exemplo, entre os sociólogos da educação, discutiam-se dois temas
predominantes:

48
1. O primeiro centrava-se no currículo latentes ou ocultos, ou
seja, os efeitos de socialização ou estratificação dos modelos
de significado e das mensagens transmitidas aos alunos devido
à própria natureza da escola e da vida na sala de aula (Lynch,
1989). Um enfoque consistia em analisar a contribuição da
escola com a internalização de valores normativos cruciais
na adaptação e funcionamento dos adultos (Dreeben, 1968).
Outro consistia em destacar, por meio de uma socialização
diferencial, como o currículo reproduzia as estruturas de classe
capitalistas predominantes (Bowles & Gintis, 1976; Apple,
1979). É significativo observar que os defensores de ambos os
pontos de vista evitavam a análise dos temas explícitos que as
escolas realmente tentam transmitir pela via do currículo
concreto.
2. O segundo âmbito de estudos centrava-se nas desigualdades
sociais geradas a partir da diferenciação curricular. Já que as
escolas tendem a classificar e distribuir os alunos em grupos e
em contextos de habilidades, isto produz uma diferenciação
curricular considerável. Esta diferenciação, por sua vez, cria
oportunidades de aprendizagem desiguais, já que os alunos
trabalham com diferentes recursos educativos, grupos de
conhecimentos e cobertura do conteúdo, o que posteriormente
reforça as desigualdades nos resultados educativos, na
conquista de certificados e nas posições profissionais (Oakes,
Gamoran & Page, 1992). A maioria das pesquisas sobre este
tema usam amplas distinções culturais (acadêmico em
oposição a profissional; orientado para a universidade, para
a educação geral ou especial); alguns estudos analisam o
processo de seleção de disciplinas dos alunos (Garet & Delany,
1988). No entanto, são poucos os que avaliam os processos
que antecedem a diferenciação curricular baseada na escola e
a influência das ofertas de disciplinas e de exposição aos
conteúdos sobre as desigualdades de nível macro, social e
econômico.

49
Nas últimas décadas, surgiram novos enfoques que analisam o
conteúdo substancial dos currículos e alguns avaliam as conseqüências
dos conteúdos, sobre o indivíduo ou sobre o conjunto da sociedade.
Apresentarei brevemente as conclusões relevantes destes enfoques
na seção seguinte.

4 . U M A O L H A D A G L O B A L PA R A A E X PA N S Ã O E D U C AT I VA

Por mais poderosos que sejam, os discursos educativos, por si


próprios, não criam “fatos” educativos. No entanto, sem dúvida,
contribuem com a legitimação da construção e da criação de políticas
nacionais para a expansão da escolarização de massas e da organização
de estruturas curriculares. Uma breve análise do progresso da educação
mundial ilustra a visível – há quem diga a considerável – influência
destes discursos nas realidades educativas contemporâneas.
Vamos pensar, por exemplo, na questão da expansão da cobertura
educativa. A UNESCO (2000) informa que, por volta de 1997, mais de 1.250
milhões de jovens (21% da população mundial) freqüentavam as escolas do
mundo inteiro (desde o primeiro grau até as instituições de terceiro grau). As
taxas mundiais de matrícula tinham chegado a níveis sem precedentes. No
primeiro grau, 95% da população relevante em idade escolar freqüentavam
formalmente a escola; no segundo grau, a taxa era de 60% e, no nível superior,
de 17% (UNESCO, 2000: pp. 115-116). A matrícula nas aulas de pré-primário
também aumentaram rapidamente (ver O’Connor, 1988). Ao mesmo
tempo, 90% de todos os países independentes tinham aprovado leis sobre a
educação obrigatória que exigiam que as crianças freqüentassem a escola
durante um determinado período: entre quatro (São Tomé e Príncipe) e
treze anos (Países Baixos). Em âmbito mundial, a duração média da
escolarização obrigatória (que normalmente começa aos cinco ou seis anos)
era de 8,2 anos e definia cada vez mais os limites sociais da infância e da
adolescência (Ramírez & Vantresca, 1992)4. Além disso, os países estipulavam

4 Em 1999, 91,4% dos 186 países independentes do mundo analisados pela UNESCO haviam aprovado leis de
escolarização obrigatória. No entanto, inclusive em países que carecem desta legislação, a educação básica costuma ser
gratuita e as taxas de matrícula são bastante altas (UNESCO, 1965, 1976, 1985, 1995 e 1999; UNESCO:
IBE, 1999).

50
que as crianças deviam dedicar em média 750 horas por ano nas salas de
aula da escola primária (Amadio, 1998; UNESCO-IBE, 2000).
Retrospectivamente, a segunda metade do século XX foi um período
excepcionalmente notável em relação ao crescimento da escolarização de
massas e sua sistematização sob as burocracias educativas do Estado, inclusive
entre os países relativamente pobres, do chamado terceiro mundo que
conquistaram recentemente a independência (Fuller, 1991; Ramírez & Soysal,
1992). Mesmo que continue existindo diferenças nas taxas de matrícula entre
países mais ou menos desenvolvidos, a expansão mundial da escolarização é,
de fato, uma “revolução educativa mundial” e deve-se, em grande parte, ao
domínio deste tema no discurso educativo (Meyer et al., 1977; Boli, 1997).
Em relação aos conteúdos curriculares dos sistemas nacionais de
educação e como mudaram ao longo do tempo, sabe-se muito menos.
Em parte, isto deve-se a uma suposição de longa data, aceita pela maioria
dos especialistas em educação comparada e dos profissionais
internacionais, de que o currículo reflete fundamentalmente as
prioridades nacionais ou perspectivas culturais específicas do mundo e
que, por conseguinte, as comparações destes currículos entre países são
pouco válidas (Holmes & McLean, 1989; Cummings, 1999). Além disso,
os estudos que ressaltam as mudanças históricas na organização dos
conhecimentos educativos tendem a ressaltar os atores (por exemplo,
os protagonistas da política nacional, as elites econômicas, os especialistas
acadêmicos e pedagógicos) que lutam e competem entre si para definir
os conteúdos do currículo oficial (Goodson, 1995; Kleibard, 1986). No
âmbito de tais estudos, as pesquisas baseadas em amplas comparações
dos currículos têm um valor limitado.
É bastante evidente que os países variam consideravelmente nos
problemas, temas e práticas pedagógicas tratados no ensino das matérias
escolares. No entanto, as categorias e meios básicos com que os países
organizam os conhecimentos da escola e que tentam transmitir aos
jovens em diferentes níveis educativos e em diferentes tipos de escolas
estão padronizados em uma medida surpreendente, os horários
semanais que definem oficialmente as matérias que deverão ser ensinadas
e a atribuição de tempo por matéria já se encontram em numerosos
informes do século XIX). Mesmo assim, apesar da disponibilidade dessa
51
informação curricular, antes dos anos 80, publicou-se apenas um único
grande estudo (auspiciado pela UNESCO) de diversos países sobre os
currículos da escola primária e secundária (Dottrens, 1962; UNESCO-
IBE, 1960). Desde então, os dados comparativos sobre políticas e ênfases
curriculares foram recompilados, registrados e analisados por estudiosos e
por organizações internacionais (Travers & Westbury, 1989; Pelgrum, Voogt
& Plomp, 1995; Benavot et al., 1991; Kamens, Meyer & Benavot, 1996;
Amadio, 1998; UNESCO-IBE, 2000).
As principais descobertas que surgem do estudo comparativo dos
currículos oficiais compreendem (ver tabelas abaixo).

TABELA 1. Percentual dos países, no mundo, que exigem o ensino em


matérias do currículo no nível da escola primária (1º a 6º séries), 1920-1986.
Área da matéria curricular Período histórico
1920-1945 1946-1969 1970-1986
(n=43-48) (n=73-82) (n=73-82)
Aprendizagem da língua 100 100 100
(de todos os tipos)
• Línguas nacionais ou locais 97 92 92
• Línguas oficiais ou estrangeiras 19 60 61
Matemáticas 100 100 100
Ciências naturais 81 92 100
Ciências sociais (de todo tipo) 98 96 100
• História 82 71 45
• Geografia 87 72 43
• Educação Cívica 38 35 30
• Estudos sociais 11 28 61
Formação estética
(arte, música, dança, ofícios) 86 97 99
Formação religiosa ou moral 78 77 75
• Educação religiosa 54 57 59
• Educação moral 32 28 28
Educação física 89 97 96
Higiene/Educação para a saúde 35 38 42
Matérias práticas/
formação profissional 86 72 68
N=número de países Fonte: Adapatado de Meyer et al., 1992

52
TABELA 2. Percentual e média do total de tempo destinado às matérias nos
currículos da escola primária, 1ª a 6ª séries, em 1970-1986

Matéria África Sub- Oriente Ásia América Caribe Europa Ocidente*


Saariana Médio/ (n=17-19) Latina (n=9-10) Central (n=18-22)
(n=28-29), Norte da (n=14-17) (n=9)
África
(n=15-18)
Línguas
(todos os tipos) 38,2 36,8 36,7 24,4 34,7 37,4 34,1
•Línguas nacionais
e locais 13,5 31,8 27,3 18,1 18,1 30,3 27,7
•Língua oficial 24,2 0 7,0 3,8 14,2 1,9 3,5
•Língua estrangeira 0,5 4,9 2,4 0,4 0,7 5,1 2,2
Matemáticas 17,7 16,6 17,5 18,6 20,7 20,5 18,5
Ciências naturais 7,0 6,7 8,1 11,3 7,5 7,5 6,4
Ciências sociais
(de todos os tipos) 7,8 6,4 8,7 13,1 12,0 6,3 9,0
•História, geografia
e educação cívica 4,5 2,6 2,6 4,3 4,3 6,3 3,3
•Estudos sociais 3,3 3,9 6,0 8,7 7,2 0 5,0
Formação estética 8,5 7,7 9,5 8,0 7,4 10,4 13,5
Formação religiosa
e moral 4,6 12,0 6,1 3,4 2,5 0 5,0
•Educação
religiosa 3,8 11,8 3,0 2,2 2,2 0 4,7
Educação moral 0,8 0,7 2,9 1,0 0,8 0 0,2
Educação física 5,9 6,3 5,8 7,4 5,3 9,4 9,2
Higiene /educação
para a saúde 0,9 1,8 1,5 2,5 2,9 0,3 0,5
Matérias práticas/
formação
profissional 7,3 2,4 4,1 9,5 3,2 6,6 0,7

N=número de países (intervalo)


• Ocidente compreende Europa Ocidental, América do Norte, Austrália, Nova Zelândia.
• Fonte Adaptado de Meyer et al., 1992

53
1. No nível primário, a maior parte dos conhecimentos escolares
são definidos em seis áreas temáticas que predominam quase
universalmente: língua, matemática, ciências naturais, ciências sociais,
formação estética e educação física. Estas matérias escolares representam
o núcleo curricular da educação primária e normalmente
correspondem a 80%, 90% de todas as horas letivas durante os seis
primeiros anos de escolarização obrigatória. Várias outras disciplinas
– formação religiosa ou moral, educação para a saúde, habilidades
práticas ou formação profissional – fazem parte de numerosos sistemas
escolares nacionais, ainda que sua presença curricular limitada dependa
mais das condições históricas ou culturais.
2. Entre o conjunto de disciplinas nucleares mostradas acima,
o currículo primário da maioria dos países dá uma especial ênfase ao
aprendizado da língua e de matemática. Em média, um terço de todo
o tempo letivo nas escolas primárias é dedicado à aprendizagem da
língua (aproximadamente 25%, à língua nacional ou, em alguns casos,
às línguas locais e 8%, às línguas oficiais ou estrangeiras). À matemática
dedica-se aproximadamente um quinto do total de horas letivas. As
horas letivas destinadas às artes, às ciências naturais, à educação física
e às ciências sociais correspondem, em média, a 10%, ou um pouco
menos, para cada uma destas áreas temáticas.
3. Estas estruturas curriculares permaneceram notavelmente
estáveis durante o século XX e há claros indícios de uma maior tendência
para normas unificadas e para a homogeneidade. Além disso, foram
descobertas certas tendências longitudinais, por exemplo, a proporção
de horas letivas dedicadas a matérias “modernas”, como matemática,
ciências naturais e línguas estrangeiras aumentou (Kamens e Benavot,
1991; Cha, 1991; McEneaney, 1998), e o ensino de história, geografia e
educação cívica como matérias separadas diminuiu, dando lugar aos
“estudos sociais” de caráter interdisciplinar (Wong, 1991).
4. Enquanto a organização estrutural dos currículos da escola
primária permaneceu relativamente estável, os conteúdos específicos
das matérias sofreram drásticas mudanças, entre as quais o
individualismo, o aluno-centrismo e uma gestão e proteção do meio
ambiente natural mais racional (McEneaney e Meyer, 2000). De forma

54
especial, os elementos transnacionais adquiriram uma presença maior
na história e nos estudos sociais (Frank et al., 2000), e a educação cívica
centrou-se progressivamente no “cidadão pós-nacional”, ativamente
participante nos assuntos mundiais (Rauner, 1998).
5. O vínculo entre o grau de industrialização ou desenvolvimento
econômico de um país e suas ênfases curriculares é bastante fraco. No
entanto, existem diversas variações regionais interessantes, por exemplo,
uma maior ênfase na aprendizagem da língua na África sub-saariana,
muito menor na América Latina; mais matemática na Europa Central
e no Caribe; mais ciências naturais e sociais na América Latina; mais
formação religiosa no Oriente Médio e no norte da África, enquanto
é praticamente inexistente na antiga Europa Central comunista; e mais
formação estética e educação física nos países da OCDE.
6. No segundo grau, os programas e fórmulas clássicas, assim
como o estudo das línguas clássicas, diminuíram em todas as regiões do
mundo a partir dos anos 30. A única região na qual ainda conserva
certa importância (ainda que atualmente não constitua uma exceção à
tendência geral) é a Europa. Por outro lado, os currículos globais e os
programas especializados de matemática e ciências evoluíram na maioria
das regiões do mundo (Kamens, Meyer e Benavot, 1996).
7. Atualmente, parecem delinear-se dois modos gerais bem-
estabelecidos de organização da educação secundária academicamente
orientada. O primeiro é um programa escolar global que inclui um
número de matérias escolhidas pelos alunos, enquanto, no quadro do
outro sistema, os alunos são direcionados a programas de estudo
especializados (por exemplo, matemática e ciências, humanidades,
direito), ressaltando conteúdos diferenciados. Normalmente, este último
enfoque domina nos sistemas nos quais antes predominavam os
programas clássicos.
8. A organização curricular e as ênfases tendem a seguir os tipos
de programas acadêmicos que encontramos no sistema secundário.
Em outras palavras, os programas classificados de “gerais” –
“matemática e ciências”, “ciências sociais” ou “clássicos” – contêm temas
e ênfases curriculares que refletem o nome ou o rótulo aplicado ao
programa. Isto acontece em todas as regiões do mundo. Por exemplo,
55
as horas letivas em línguas clássicas estão diminuindo porque os
programas curriculares “clássicos” estão desaparecendo. Por outro
lado, os programas de matemática e ciências adquiriram maior
importância e normalmente eqüivalem aproximadamente ao dobro
das horas dedicadas ao estudo dessas matérias em comparação com
outros programas.
Em termos gerais, as recentes pesquisas comparativas refletem o
crescente isomorfismo dos currículos escolares nacionais. A definição oficial
de disciplinas escolares e as correspondentes horas letivas,
fundamentalmente no nível primário e, em menor grau, no nível
secundário, enquadra-se em uma crescente padronização no mundo inteiro.
Estas tendências não só sublinham o predomínio do Estado como o lugar
no qual se elaboram e sancionam os currículos, mas também a influência
de organizações internacionais, elites profissionais e especialistas acadêmicos
na divulgação de modelos padronizados e na prescrição de determinados
conhecimentos escolares e uma organização curricular adequada (Meyer
et al., 1997; McNeely, 1995; Schafer, 1999).
No entanto, é importante lembrar que inclusive antes da criação
de importantes organizações internacionais como a UNESCO, o
Banco Mundial e a OCDE, as influentes forças transnacionais
propiciaram um grau considerável de padronização curricular. Por
exemplo, no final do século XIX e começo do século XX, os especialistas
em educação realizavam regularmente visitas a sistemas educativos
estrangeiros, fundamentalmente na Europa continental, no Reino
Unido e na América do Norte, e posteriormente entregavam extensos
informes e recomendações destacando o que se poderia qualificar
atualmente como “melhores práticas”. As conferências e exposições
internacionais sobre educação também contribuíram com os
“empréstimos culturais” e com a divulgação de políticas e práticas
educativas específicas. Sem dúvida, a criação dos sistemas educativos
coloniais, em que conteúdos “adequados” eram impostos aos alunos
nativos e adaptados à luz dos sistemas escolares da metrópole, também
desempenharam um papel no crescente isomorfismo internacional
dos planos de estudo escolares, que continuaram, inclusive, depois da
declaração de independência das antigas colônias.

56
Em poucas palavras, a evidência sugere que antes das
tendências mais recentes de crescente integração política e
econômica dos Estados, de progresso científico e tecnológico mais
acelerado e de maior poder das organizações transnacionais e das
empresas multinacionais – um processo que normalmente é
denominado de globalização –, as estruturas curriculares dos
sistemas educativos eram notavelmente similares, pelo menos no
que diz respeito às intenções curriculares oficiais.

5. QUADROS ANALÍTICOS ALTERNATIVOS

Nesta seção, resenhamos brevemente outros enfoques do estudo


comparativo dos currículos escolares que surgiram nas últimas décadas.
Mostramos especialmente as contribuições (e limitações) destes
programas de pesquisa com a finalidade de avaliar o impacto dos
conteúdos curriculares.

CURRÍCULO E RESULTADOS EDUCACIONAIS

Desde os anos 60, realizaram-se numerosos estudos comparativos


em grande escala dos resultados educacionais, fundamentalmente sob
os auspícios da International Association for the Evaluation of
Education Achievement (IEA) e, mais recentemente, pelos
patrocinadores da International Assessment of Education Progress
(IEAP)5. Esta corrente de pesquisas documenta diferenças intra e
internacionais importantes nos resultados coletivos da escolarização,
segundo a pontuação dos alunos em testes de desempenho
padronizados, em diferentes níveis de série/idade e nas principais
disciplinas escolares.

5 O primeiro estudo IEAP está reunido em Lapointe, Mead e Phillips (1989). As conclusões de um segundo estudo,
realizado em 1991, estão reunidas em um número especial da Comparative Educational Review, publicada por
John Modell (1994).

57
Algumas das contribuições notáveis deste estudo foram a
distinção analítica entre o currículo oficial, o implementado e o currículo
realizado6; a utilização operativa desta diferença na pesquisa educativa
sobre educação; e a descoberta geral de que os currículos oficiais e
implementados servem como importantes mecanismos para explicar as
diferenças de rendimento individual entre países (Travers e Westbury,
1989; Harmon et al., 1997). A atenção crescente centrada no currículo
implementado tem uma importância especial, devido à acumulação de
antigos trabalhos comparativos sobre os currículos oficiais ou propostos.
Nestes estudos, o currículo implementado normalmente é definido como:
a) “cobertura do conteúdo” (a relação entre o que supostamente deve
ser ensinado em uma disciplina escolar e o que realmente é cumprido
pelos docentes nas salas individuais); ou b) a “oportunidade de aprender”
(a porcentagem de alunos que foram expostos a temas estipulados em
um conjunto de fatores de provas). Uma conseqüência importante deste
programa de pesquisa comparativa é que qualquer tentativa de avaliar,
em nível individual, os resultados comportamentais ou de disposição
que nascem da exposição dos alunos aos conteúdos curriculares deveria
considerar seriamente a variação da sala de aula, a escola ou o conjunto
do sistema nas matérias que realmente são ensinadas.
Assim dito, quero mostrar pelo menos duas limitações
importantes dos estudos de conquistas entre países: primeiro, entender
a sala de aula como o principal âmbito analítico para avaliar o currículo
implementado e, em segundo lugar, na análise das disciplinas escolares
como unidades isoladas7. Em seguida, aprofundarei esta particularidade.
Já que, supostamente, a maior parte da aprendizagem (assim
como as mudanças nas atitudes e no comportamento dos alunos) é
produzida nas salas de aula, deduz-se logicamente que a medida com
que os docentes aderem às diretrizes administrativas definindo os

6 Além destes três, às vezes foi analisado o conceito do currículo ideal, baseado na compreensão subjetiva que os
protagonistas têm da educação (Harrison, 1994). Um grupo de acadêmicos da Universidade de Michigan realizou
pesquisas em profundidade sobre as conquistas em leitura e ciências no nível primário nos Estados Unidos, Japão e Taiwan
(Stevenson, Lee e Stigler, 1986).
7 Para outros temas relacionados aos estudos comparativos de resultados, ver Baker e
LeTendre (2000).

58
conteúdos curriculares projetados e as práticas pedagógicas adequadas
nas salas de aula é uma variável-chave para avaliar os resultados da
aprendizagem8. No entanto, mesmo que, com certeza, as salas de
aula sejam âmbitos importantes da produção desigual de conteúdos
curriculares, elas estão inseridas nos colégios, mas também em outros
estratos organizacionais (por exemplo, distritos, regiões, Estados), uma
realidade que influencia na implementação do currículo. No âmbito
escolar, especialmente, os atores autorizados tomam decisões que se
situam entre o sistema mais amplo no qual se desenvolvem as
diretrizes curriculares oficiais e a sala de aula na qual realmente se
produz o aprendizado. As decisões relacionadas ao currículo tomadas
no âmbito da escola facilitam ou limitam o ensino na sala de aula.
Por exemplo, as escolas podem decidir, excluir, reformular ou deixar
de dar ênfase a uma disciplina obrigatória, à medida que incorporam-
se novas disciplinas ou atividades curriculares. Estas mudanças
modificam a distribuição dos conteúdos curriculares devido ao caráter
de “soma zero” das horas letivas disponíveis. Além disso, as decisões
baseadas na escola para ampliar ou não continuar com a distribuição
hierárquica de alunos em grupos de habilidades podem influenciar
no cumprimento de um determinado programa de estudo.
Estes temas estão se tornando especialmente visíveis à luz dos
modelos de gestão e financiamento em mudança nos numerosos
sistemas educativos nacionais (Cummings e Riddell, 1994). Devido à
descentralização e à privatização da educação, as escolas locais estão
adquirindo maior flexibilidade e espaço de manobra para organizar
os conhecimentos educativos que oferecem, assim como mais
autonomia em relação às diretrizes curriculares oficiais (p. ex., OCDE,
2000, pp. 242-247). As escolas podem decidir modificar a distribuição
das horas letivas semanais ou reformular os conteúdos educativos. Neste
sentido, o currículo que as escolas colocam em prática não reflete

8 Este enfoque também pode-se aplicar normativamente, seja para identificar as causas de discrepâncias entre as
diretrizes curriculares oficiais e o currículo utilizado nas salas de aula ou para definir maneiras de assegurar que as
diretrizes e práticas dos planos de estudos sejam realizadas em sua totalidade pelos diretores e docentes locais.

59
apenas as diretrizes das autoridades centrais ou regionais, mas também
um complexo conjunto de forças sociais: condições locais, normas
institucionalizadas, perspectivas individuais do mundo e processos
coletivos de tomadas de decisões (Benavot e Resh, 2001). Em poucas
palavras, à medida que o controle sobre as decisões curriculares torna-
se menos centralizado e a autoridade educativa delega responsabilidades
a agentes administrativos regionais, as escolas locais tornam-se um
espaço crítico para a definição dos verdadeiros conteúdos curriculares.
Uma limitação adicional dos estudos comparativos sobre
o cumprimento dos conteúdos e sobre as conquistas educativas
é que se concentram invariavelmente em uma (às vezes duas)
disciplinas curriculares. Com isso, supõe-se erroneamente que a
ênfase e o cumprimento das disciplinas são relativamente
independentes um do outro. Na realidade, a atribuição de horas
letivas nas escolas (normalmente um recurso “fixo”) desempenha
um importante papel na cobertura do conteúdo nas salas de
aula. Se as escolas decidem dedicar mais horas letivas, por
exemplo, à matemática e às ciências (disciplinas muito
valorizadas), isso costuma diminuir o tempo disponível para
disciplinas menos valorizadas, por exemplo, artes ou
humanidades. Estas mudanças baseadas na escola costumam
implicar trocas curriculares: certas disciplinas relacionadas
podem adquirir ênfase ao serem emparelhadas, e as disciplinas
institucionalmente fracas, como artes ou educação musical,
podem ser sacrificadas para outorgar mais horas letivas a outras
disciplinas. Em poucas palavras, o cumprimento do conteúdo
em uma disciplina pode ser afetado por mudanças na
distribuição geral do conteúdo curricular nos horários semanais,
principalmente nos casos em que existe uma quantidade
relativamente fixa de recursos pedagógicos para ser ministrada.
A interdependência das disciplinas destacada no currículo
escolar, que costuma ser ignorada nos estudos comparativos dos
acadêmicos, pode definir o impacto de programas curriculares
“inovadores” que ressaltam, por exemplo, a condição cidadã
ativa, o multiculturalismo ou a tolerância mútua.

60
INDICADORES COMPARATIVOS

O interesse crescente pela qualidade e efetividade escolar,


principalmente pelo entorno organizacional no qual se desenvolve a
aprendizagem, gerou renovados esforços para conceituar e medir a “caixa
preta” dos processos de aprendizagem e ensino situados entre os insumos
do sistema e os resultados educativos. Como conseqüência da “terceira
onda” de estudos da IEA (especialmente o Terceiro Estudo Internacional
de Matemática e Ciências, sem precedentes), o Centro para a Pesquisa
em Educação e Inovação, filiado à OCDE e ao EUROSTAT, auspiciado
pela União Européia, desenvolveu medidas comparáveis de intenções e
políticas curriculares (OCDE/CERI, 1992; 1994; 1995a; 1995b; Comissão
Européia, 2000). Em suas recentes publicações, essas organizações
informam sobre uma variedade de indicadores curriculares, por exemplo,
as horas letivas projetadas por ano para alunos de diferentes níveis de
idade; a distribuição de horas letivas segundo as áreas temáticas; até que
ponto as disciplinas são obrigatórias ou opcionais; os requisitos para as
línguas estrangeiras; o predomínio de correntes ou vias
institucionalizadas; e as práticas de exames no âmbito nacional. No
entanto, sob a luz da discussão anterior, estas medidas podem obscurecer
tanto quanto iluminar, já que dependem principalmente das políticas e
definições oficiais, mais do que dos verdadeiros sistemas de
implementação.
Existem outros indicadores de conteúdos e de estrutura curricular
(ver Pelgrum, Voogt e Plomp, 1995). Apesar das visíveis inconsistências
terminológicas e do alcance limitado de muitos estudos no quais se usam
essas medidas, eles merecem uma revisão mais profunda. No mínimo,
destacam importantes diferenças analíticas que devem ser consideradas
quando avaliamos os resultados dos conteúdos curriculares: atribuição e
utilização de horas letivas; classificação dos conteúdos (por exemplo, temas
específicos, problemas ou temas ensinados ou complexidade dos materiais
utilizados); o contexto pedagógico no qual se ensinam os conteúdos (por
exemplo, métodos de ensino e práticas pedagógicas, uso de livros-texto e/
ou de outros materiais); estilos curriculares básicos (Piper, 1995); e a estrutura
informal do currículo (Kahane, 1997; Yair, 1997; Cohen, 2001).

61
OS CURRÍCULOS E OS LIVROS-TEXTO

Em numerosos sistemas educativos nacionais, especialmente nos


países mais desenvolvidos, os livros-texto são um componente essencial
do currículo escolar, tanto do oficial como do implementado (Crossley
e Murby, 1994). Os ministérios de educação obrigam a utilização de
livro-texto nas principais disciplinas, o que, por sua vez, determina em
alto grau os planos de horas por disciplina, a integração na sala de
aula do docente com os alunos e os deveres de casa. A avaliação do
aprendizado dos alunos costuma centrar-se, exclusivamente, nos
conhecimentos baseados nos livros-texto.
Ao contrário, no mundo menos desenvolvido, a disponibilidade de
livros-texto (sem falar de outros materiais básicos relacionados ao ensino)
é mais limitada (Lockheed e Verspoor, 1991). Nessas condições, as forças
externas têm efeitos especialmente poderosos nos currículos escolares. Por
exemplo, quando os países dispõem de poucos recursos para produzir livros-
texto, os produtos distribuídos por editores estrangeiros de livros-texto
costumam ser os que realmente definem o currículo escolar (Altbach e
Kelly, 1988). Além disso, os exames de prestígio produzidos pelas metrópoles
educativas têm uma influência considerável sobre os conteúdos curriculares,
principalmente nos países pequenos e nas antigas colônias (Bray e Steward,
1998; Eckstein e Noah, 1993).
A pesquisa comparativa, baseada fundamentalmente em modelos
de insumo-produto da aprendizagem dos alunos (os “insumos” seriam
as características do docente, a disponibilidade de livros-texto, o tamanho
da sala de aula, as instalações escolares etc., e o “produto” seria o
desempenho dos alunos em provas padronizadas), demonstrou que os
alunos têm melhor rendimento em provas quando são utilizados livros-
texto em sala de aula (Heyneman e Jamison, 1980; Fuller, 1987). Estas
conclusões levaram diversos organismos internacionais, principalmente
o Banco Mundial, a aumentarem o apoio financeiro à produção e
distribuição de livros-texto em diversas regiões do terceiro mundo. Ao
mesmo tempo, os temas relacionados a quando e como os docentes e os
alunos realmente utilizam os livros em sala, e se isto varia por área
temática, ainda não foram estudados profundamente. As limitadas

62
descobertas sobre o uso do livro-texto na aprendizagem em sala de
aula são contraditórias (Moulton, 1997).
No entanto, os livros-texto não só comunicam fatos que
supostamente devem ser aprendidos pelos alunos. Também organizam,
legitimam e divulgam acervos selecionados de conhecimentos culturais.
Especialmente nas humanidades e nas ciências sociais, mas também
em outras disciplinas, transmitem uma visão da herança de um país e
da cultura contemporânea. Por conseguinte, freqüentemente
transformam-se em um objeto de intenso conflito político e social
(Altbach e Kelly, 1988; Apple, 1986)9. Nesse sentido amplo, os conteúdos
dos livros-texto podem representar uma poderosa plataforma para
promover a reconciliação entre inimigos políticos (Firer, 1998); para
desfazer crenças ideológicas ou culturais profundamente arraigadas
que se tornam socialmente inaceitáveis ou repugnantes (por exemplo,
o militarismo, o fascismo, o sexismo); para potencializar a visibilidade
e a “voz” de grupos socialmente marginalizados (Al-Ashmawi, 1996); e
para construir uma nova identidade transnacional (Soysal, 2000). Os
estudos internacionais sobre livros-texto escolares proliferaram nas
últimas décadas (entre os exemplos, o Instituto G. Eckert for
International Textbook Research, a rede de pesquisa sobre livros-texto
da UNESCO), em grande parte devido ao rico significado social,
cultural e político que os especialistas vêem implícitos nos livros-texto.
Mesmo assim, a partir da perspectiva da pesquisa comparativa,
ainda restam para serem estudados os temas-chave em relação aos efeitos
dos livros-texto, tanto nos alunos individuais como em diversas
instituições e processos sociais. Concretamente, sob que condições os
livros-texto potencializam a aprendizagem dos alunos? Além dos
resultados da aprendizagem, os livros-texto influenciam, especialmente
nas humanidades e ciências sociais, as atitudes, os preconceitos e os
estereótipos que os alunos elaboram e mantêm ao longo do tempo –

9 Os recentes atritos entre Coréia do Sul e Japão por conta dos livros-texto de história no Japão (tanto em suas
afirmações quanto em suas omissões) é um bom exemplo dos conflitos políticos intra e internacionais gerados com
freqüência pelos conteúdos dos livros-texto.

63
além da sala de aula? Tratando-se do conjunto da sociedade, os livros-
texto contribuem no terreno humanista, de alguma maneira
sistemática, com a eliminação de preconceitos culturais e mal-
entendidos, com o fortalecimento das instituições e processos
democráticos ou com a potencialização das comunidades minoritárias?
As provas pertinentes, baseadas em pesquisas comparativas
simplórias, outorgam escassa fé aos argumentos de que os livros-texto
têm efeitos não cognitivos importantes. Digo isso consciente dos
convincentes argumentos dos especialistas e educadores que participam
da produção e revisão de livros-texto. E, ao dizê-lo, não ataco o valor das
análises do conteúdo dos livros-texto (nem dos programas das disciplinas)
para descrever mudanças no conjunto da sociedade em desigualdades de
gênero, orientações nacionalistas, tendências de exclusão-inclusão social
e teorias pedagógicas dominantes. Meu argumento é que mesmo que
seja possível que os livros-texto, na medida em que estão disponíveis,
dominem o contorno da vida na sala de aula, eles não representam,
necessariamente, um instrumento de socialização autorizado que modele
as atitudes e a visão de mundo dos alunos. É evidente que se requer uma
pesquisa aprofundada para analisar se são produzidas ou não mudanças
sistemáticas, nos alunos ou em setores da sociedade, como resultado da
utilização generalizada de determinados livros-texto.

6. OS CURRÍCULOS E O APRENDER A VIVER


JUNTOS

Como vimos, as tentativas de avaliar o impacto individual – ou


no conjunto da sociedade – dos conteúdos curriculares estão cheias de
problemas. Um tema diferente, ainda que não menos importante, está
relacionado com a tentativa de esclarecer e conceitualizar o significado
de “aprender a viver juntos”, um tema recente e um objetivo das
políticas das instituições internacionais de educação (Delors, 1996). (O
exemplar de setembro de Perspectivas, vol. XXXI, no 3, foi dedicado a
este tema.) Que fenômenos e conceitos analíticos estão definidos nesta
complexa noção? Numerosas idéias avançaram – por exemplo, a
capacidade de lidar com rápidas mudanças sociais, econômicas, políticas

64
e tecnológicas; a tendência a reconhecer, entender e respeitar a
diversidade cultural e os traços distintivos de uma comunidade; a
vontade de participar ativamente da vida pública e dos processos
políticos; a avaliação e assimilação dos valores relacionados ao
pluralismo, à coesão social, à coexistência pacífica e à harmonia; a
capacidade para promover e defender os direitos humanos e as
liberdades elementares, principalmente diante das guerras, da violência,
do conflito político e das desigualdades sociais, para citar só alguns
(Daniel, 2001). Em geral, estes conceitos referem-se a mudanças de
nível individual que supostamente evoluem e cristalizam durante a
infância e a adolescência e depois conservam-se ao longo da vida
adulta. Em termos concretos, estas idéias refletem noções modernas
de si próprio, da pessoa e da condição cidadã em um mundo cada
vez mais diverso e independente. Também são vistos como necessários
elementos de construção para uma democracia sólida e um
compromisso cívico de ampla base.
Devido aos períodos da idade em que estas transformações
supostamente ocorrem, ou seja, durante os anos da escolarização em
massa, não é surpreendente que se considere as escolas e os currículos
elementos cruciais da formação. Ainda assim, a contribuição precisa
da escolarização e dos conteúdos especialmente elaborados é ambígua,
a não ser que avaliemos até que ponto os jovens adquirem estas
capacidades, inclusive na ausência de escolarização. Além disso, que
“valor” específico é agregado ao aprender a conviver a partir da simples
freqüência à escola, independentemente dos conteúdos aos quais são
expostos os alunos? Para abordar estes temas elementares, a forma de
pesquisa mais frutífera seria comparar crianças escolarizadas e não-
escolarizadas. Além disso, temos de perguntar que papel desempenham
as famílias e as comunidades na formação destas capacidades
valorizadas: por acaso “aprender a viver juntos” não é um complexo
conjunto de disposições e habilidades que, ao contrário das
competências em ciências e matemática, é transmitido aos jovens
mediante uma diversidade de agentes de socialização? Se assim for, é
necessário construir estudos que esclareçam o tecido de influências
familiares, comunitárias e próprias do desenvolvimento que também
65
influenciam, junto com os programas educativos e currículos específicos.
Os estudos recentemente acabados da IEA sobre os conhecimentos
cívicos e o compromisso político dos adolescentes poderiam
proporcionar um conjunto de respostas a estas perguntas (Torney-Purta
et al., 2001). Em outro caso, poderia surgir da análise da influência
relativa de diferentes fatores próprios dos antecedentes, por exemplo,
gênero, religião, classe, estrutura familiar, assim como de fatores
relacionados com a escolarização, nos traços sociais e políticos da vida
adulta (Inkeles e Smith, 1974; Pallas, 2000).
Um enfoque diferente consiste em alterar o nível de análise e
analisar estes temas utilizando unidades sociais agregadas como
comunidades, regiões ou países. Por exemplo, assim como os
pesquisadores estudaram se as pontuações das provas nacionais em
matemática e ciências contribuem para alcançar maiores taxas de
crescimento econômico (Hanushek e Kimko, 2000), poderia ser
analisado se os países com desempenhos mais altos em educação cívica,
ou aqueles que atribuem mais horas letivas a temas relacionados, têm
maiores probabilidades de contar com uma população mais tolerante
e comprometida civicamente, com instituições democráticas mais
sólidas, menos violações dos direitos humanos e civis ou níveis mais
baixos de violência política. Não conheço nenhum estudo comparativo
deste tipo, no qual se analisem os efeitos dos conteúdos curriculares
políticos ou cívicos10. Mesmo que exista uma extensa literatura
comparativa que analisa as relações entre a democratização educativa
e política (Kamens, 1988; Hadenius, 1992; Benavot, 1996), ela compara
fundamentalmente o impacto político da educação de massas (primária,
secundária) em relação à educação da elite (superior), e não os conteúdos
curriculares específicos. A pesquisa comparativa sobre resultados
macrossociais, uma pesquisa que vá além dos resultados educacionais
ou da expansão educativa para analisar os efeitos dos planos de estudo
merece maior atenção (Benavot, 1992).

10 Entre os estudos sobre os efeitos econômicos dos conteúdos curriculares, que empregam desenhos de pesquisa
transnacionais, encontram-se o de Benavot (1992) e o de Ramírez et al. (2001).

66
7. COMENTÁRIOS FINAIS

Os conflitos militares, a violência étnica, a violação dos direitos


humanos, a ignorância, a marginalização cultural, a falta de
compromissos cívicos, a doutrinação ideológica, a intolerância religiosa,
o empobrecimento econômico e a deterioração do meio ambiente
foram, e continuam sendo, traços proeminentes do panorama mundial
em que vivemos. Os esforços empreendidos por parte dos indivíduos,
das comunidades e organizações que pretendem erradicar ou mitigar
estas manifestações da miséria humana merecem nosso apoio e respeito
ativo. Cada vez mais, mas principalmente desde a Segunda Guerra
Mundial, a educação tem sido apresentada como um remédio quase
universal para abordar estes e outros males do conjunto da sociedade.
As crianças pequenas e os adolescentes, segregados na escola e a salvo
das iniqüidades e males do mundo adulto e desfrutando de amplas
oportunidades para desenvolver suas mentes e suas potencialidades
humanas, representam um futuro melhor no qual as comunidades e
as sociedades aprendem a resolver seus conflitos e problemas por meios
pacíficos, mediante o respeito mútuo e a tolerância. Esta crença na
promessa e no poder da escolarização, como instrumento para um
progresso social e econômico sustentável, assim como para a
potencialização individual e a transformação de si próprio, também
transformou-se em um traço característico (e extremamente
institucionalizado) do mundo em que vivemos.
Neste artigo, sustento que ainda que os benefícios coletivos e
individuais da educação moderna tenham sido amplamente elogiados
nas universidades, nos governos nacionais e nas organizações
internacionais, as provas desenvolvidas até agora pelos pesquisadores
de educação comparada que apóiam ditos argumentos são equívocas,
fracas, contraditórias, ou não existem. Em relação aos efeitos das
disciplinas e conteúdos curriculares escolares concretos, os problemas
das provas são ainda mais nítidos. Não só há espaço para um saudável
ceticismo, tal como corresponde a um pesquisador em educação
comparada, como sustento que resta ainda muito o que estudar. Não
afirmo isso para conferir importância aos temas abordados pelas

67
recentes conferências internacionais (por exemplo, a Conferência
Internacional de Educação, da UNESCO). Ao contrário, posto que os
objetivos gerais abordados por estas reuniões são ao mesmo tempo
relevantes e oportunos, os especialistas interessados devem outorgar-
lhes importância que vá além de fazer meras declarações. Devem pensar
se contribuem para justificar as recomendações que hoje têm poucas
conseqüências reais ou que provocam involuntariamente resultados
contraproducentes (por exemplo, o fortalecimento do particularismo,
a xenofobia e o egocentrismo, ou a exacerbação das divisões e tensões
políticas e sociais). Ainda que se possa formular um argumento
convincente de que a educação é um fator extremamente poderoso de
racionalização e universalização do mundo moderno, isso não significa
necessariamente que contribua para mitigar o conflito social, as relações
desiguais de poder e a miséria humana (Davies, 2001).
O objetivo subjacente deste artigo é duplo. Em primeiro lugar,
destacar a complexidade dos temas conceituais e metodológicos que
analisamos; em segundo, suscitar perguntas que provoquem a reflexão à
luz da pesquisa comparativa em educação, perguntas que contribuam
para o diálogo e para os debates existentes entre os responsáveis pelas
políticas e os pesquisadores. Ainda que os estudos entre países sobre as
intenções curriculares oficiais tenham demonstrado claramente uma
maior globalização e padronização cultural, a investigação comparativa
tem muito menos a dizer sobre a uniformidade ou diversidade das práticas
curriculares reais nas escolas locais, ou sobre os complexos resultados
sociais e políticos que produzem estes modelos. Os limites dos
conhecimentos acadêmicos neste âmbito deveriam ser levados em
consideração quando se pensa em novas estratégias educacionais e em
futuros alternativos.

68
APRENDER A VIVER JUNTOS:

NOSSOS JOVENS ESTÃO PREPARADOS?

Alejandro Tiana*

A 46a sessão da Conferência Internacional de Educação, realizada


em Genebra em setembro de 2001, abordou um tema – “A educação para
todos para aprender a viver juntos” – sobre cuja importância não cabe
nenhuma dúvida. Aprender a viver juntos constitui uma necessidade
irrefutável nestes momentos de mudança cultural e de globalização
acelerada. Os desafios que a situação atual traz consigo são de grandes
dimensões e podem ser sentidos tanto no interior dos países como no
âmbito internacional. As mudanças registradas nas tecnologias da
informação e nos processos de produção, o impacto produzido pelas
migrações em massa e pelas grandes transformações econômicas, sociais e
políticas, a expansão dos limites do saber humano requerem o
desenvolvimento de novas atitudes e a aquisição de novos conhecimentos.
Neste mundo crescentemente interrelacionado e complexo, onde a
diferença requer respeito e a mistura de culturas demanda compreensão e
aceitação, aprender a viver juntos constitui uma exigência inevitável para
um futuro promissor. E para enfrentar tais desafios, a educação volta a
situar-se no centro de nossa atenção, como já era ressaltado, claramente,
no Informe Delors (Delors et al., 1996).
Nos últimos anos, insistiu-se reiteradamente que essas novas
aprendizagens requeridas não devem estar limitadas somente a alguns
setores sociais, como foi o caso muitas vezes no passado. Como já
manifestou a Conferência de Jomtien, há uma década, adquirir os
conhecimentos necessários aparece agora como uma tarefa que tem de
envolver a todos (WCEFA, 1990). Indo além dessa exigência, nos últimos

69
anos insistiu-se também que não basta facilitar o acesso de todos à
educação, mas que é necessário oferecê-la em condições de qualidade, já
que esta dimensão está estreitamente vinculada à igualdade e à eqüidade
(OECD, 1992; UNESCO, 2000).
O documento elaborado como marco de referência para os debates
desenvolvidos durante a 46a Conferência ressaltou com muita clareza e
rigor os desafios que se impõem, assim como as respostas que a nova situação
demanda a todos os envolvidos no desenvolvimento da educação
(UNESCO, 2001). Em sua análise, identificava uma série de necessidades
de aprendizagem para viver juntos e para assegurar a participação social,
que devem constituir a base para buscar respostas adequadas a tais desafios.
Os responsáveis políticos e administrativos de nossos sistemas
educativos enfrentam um debate tão complexo quanto inevitável, do qual
devem extrair orientações para guiar sua atuação e sua tomada de decisões.
E esse debate exige tanto o contraste de idéias como o diagnóstico e a
análise da situação existente.
Este trabalho concreto insere-se nesse contexto de preocupação pelo
desenvolvimento educativo adequado nos próximos anos, ante a evidência
de que aprender a viver juntos constitui um desafio crucial para nossas
sociedades atuais e para o futuro das relações mundiais. O texto gira em
torno de algumas reflexões concretas que se inserem no quadro analítico
geral traçado pelo documento de referência da Conferência Internacional
de Educação e que estão baseadas na experiência pessoal adquirida ao longo
de muitos anos atuando no mundo da pesquisa e da avaliação educacionais.
Trata-se de reflexões modestas, possivelmente incompletas, mas que
pretendem oferecer alguns elementos para um diagnóstico da situação
atual, no que diz respeito à aprendizagem para viver juntos. Sua perspectiva
é claramente internacional e comparativa e, para isso, recorre a diversos
trabalhos desenvolvidos por algumas organizações internacionais.

1. PRIMEIRA REFLEXÃO: APRENDER A VIVER JUNTOS


R E Q U E R O D E S E N V O LV I M E N T O D A C I D A D A N I A

A primeira reflexão tem a ver com uma das necessidades educativas


que vêm sendo identificadas como requisito indispensável para viver
melhor juntos, que consistem em desenvolver nas pessoas a capacidade

70
de converter-se em cidadãos mediante a participação na vida política
e nas instituições públicas, contribuindo ao mesmo tempo para sua
redefinição. Como afirmava o documento para debate da Conferência
Internacional de Educação, a preocupação com educar os jovens para
a cidadania democrática está cada vez mais presente em todos os sistemas
educativos, o que, sem dúvida, mantém relação com as conquistas
alcançadas pela democracia nas últimas décadas (UNESCO, 2001). Esta
necessária educação cívica ou formação cidadã exige a aquisição de
conhecimentos, o desenvolvimento de atitudes e a construção de valores
adequados, atividades que requerem tempo e atenção.
É legítimo perguntar em que medida nossos sistemas educativos
estão conseguindo converter em realidade essa aspiração. Com o
propósito de encontrar uma resposta a esta questão, a Associação
Internacional para a Avaliação do Rendimento Educacional (IEA)1
desenvolveu, durante a segunda metade dos anos 90, um ambicioso
estudo sobre a educação cívica, que teve duas fases, a primeira que
consistiu numa série de estudos de casos nacionais e a segunda, de caráter
empírico, baseada na aplicação internacional de provas e questionários
comuns. No denominado Estudo sobre a Educação Cívica participaram
ao total cerca de 90 mil estudantes de 28 países, pertencentes a quatro
continentes2. Suas conclusões, ainda que sejam modestas e devam ser
contrastadas e ampliadas no futuro, são reveladoras sobre o que está
acontecendo neste âmbito atualmente (Torney-Purta, Schwille &
Amadeo, 1999; Torney-Purta, Lehmann, Oswald & Schulz, 2001).
Uma primeira conclusão que se extrai do estudo é que o
conhecimento dos ideais e dos processos que caracterizam os sistemas

1 A IEA, uma associação cooperativa de instituições de pesquisa educativa, sem caráter governamental, foi fundada
em 1958 e conta atualmente com 58 países-membros (6 americanos, 14 asiáticos, 5 africanos, 31 europeus e 2 da
Oceania). Para obter mais informações sobre a associação, pode-se consultar sua página na Internet: http://
www.iea.nl.
2 Não foi esta a primeira vez que a IEA dedicou-se ao estudo sobre a educação cívica que os jovens
recebem e adquirem. Já em 1971, havia desenvolvido um primeiro estudo, que produziu interessantes
resultados (Torney, Oppenheim & Farnen, 1975). No entanto, as transformações nesses últimos vinte
e cinco anos aconselharam a realizar um novo estudo, mais ambicioso e com maior número de
países-participantes.

71
políticos democráticos está amplamente difundido entre os
adolescentes dos países-participantes, o que deve ser motivo de
satisfação. Com efeito, o estudo constatou que mais de 75% dos
estudantes da maioria destes 28 países foram capazes de responder
corretamente a uma série de perguntas relativas à natureza
fundamental das leis e aos direitos políticos ou ao funcionamento
dos sistemas democráticos. Por exemplo, em 21 desses 28 países, mais
de 70% dos estudantes de 14 anos identificaram adequadamente as
funções que desempenha o multipartidarismo nos regimes
democráticos, alcançando-se uma média internacional de 75% de
respostas corretas, o que não é desprezível (Torney-Purta, Lehmann,
Oswald & Schulz, 2001: 50).
Os dados proporcionados pelo estudo permitiram comprovar
que a maioria dos adolescentes de 14 anos dos países-participantes
reconhece a importância dos atributos da democracia sublinhados pelos
teóricos da política. Por exemplo, a maioria desses jovens de países tão
diferentes entre si crê que as eleições livres e a existência de uma
pluralidade de associações cidadãs fortalecem a democracia. Também
considera que a democracia encontra-se ameaçada quando os poderosos
exercem uma influência indevida sobre o governo, quando os políticos
interferem nos tribunais ou quando se proíbe expressar críticas à ação
dos governantes. Além disso, acredita que um bom cidadão deve
respeitar às leis e considera importante votar nas eleições. O estudo
permite concluir que a maior parte destes adolescentes já são membros
de uma cultura política. Construíram seus próprios conceitos sobre as
responsabilidades sociais e econômicas dos governos, que coincidem
em boa medida com as que possuem os adultos com os quais convivem
em sociedade. E também vale a pena destacar que não existem diferenças
importantes entre homens e mulheres no que diz respeito a esse
conhecimento dos principais conceitos cívicos.
Apesar de esse grau de conhecimento poder ser qualificado como
satisfatório em termos gerais, há outras duas conclusões
complementares do estudo que obscurecem, em certa medida, o
panorama. Por um lado, foram poucos os estudantes capazes de
responder corretamente a algumas perguntas que abordavam assuntos

72
mais complicados, como as relacionadas com a identificação das
posições políticas de diversos grupos ou partidos que disputam uma
eleição, a compreensão dos processos de reforma política ou as
implicações que têm as decisões econômicas e políticas adotadas pelos
governantes. Por outro lado, o conhecimento cívico que esses
adolescentes adquiriram pode ser qualificado em geral como
superficial e pouco ligado à vida cotidiana. Por exemplo, mais de um
terço dos estudantes consultados mostrou-se incapaz de interpretar
um simples pasquim eleitoral e identificar as posições que nele se
defendiam. Apenas em 13 países houve mais de 70% de respostas
corretas, em nenhum superou-se a marca de 85% e em seis deles não
se alcançou sequer o índice de 50% (Torney-Purta, Lehmann, Oswald
& Shulz, 2001: 48). Mesmo com as cautelas necessárias e levando-se
em consideração a idade dos estudantes entrevistados e o tipo de
instrumento utilizado, parece que nossos jovens aprendem
efetivamente na escola quais são os fundamentos do funcionamento
democrático das sociedades, mas não os aplicam adequadamente à sua
vida cotidiana, o que deveria nos deixar intranqüilos.
Talvez essa desconexão entre conhecimento político e cívico e
conduta habitual tenha relação com outra conclusão do estudo, que
também é ambivalente. De acordo com as análises realizadas, a
maioria dos adolescentes mostrou um escasso interesse em realizar
atividades como participar da vida política, afiliar-se a um partido
político ou converter-se em candidatos eleitorais, apesar de estarem
conscientes da importância que teoricamente têm tais atividades para
a vida coletiva. Esse contraste é ressaltado ao comparar-se o índice de
80% dos estudantes entrevistados que manifestaram sua provável ou
certa participação em eleições gerais com o índice de 39% de
adolescentes que declararam seu interesse pela política ou com os
quatro quintos que não se mostraram interessados em escrever cartas
aos jornais sobre temas sociais ou políticos (Torney-Purta, Lehmann,
Oswald & Schulz, 2001: 118-124).
No entanto, esse desinteresse pela política, entendida no sentido
convencional, não quer dizer que os jovens sejam socialmente
insensíveis, já que estão dispostos a participar em formas menos
73
tradicionais de compromisso cívico e político, como manifestações não-
violentas de protesto ou atividades de voluntariado ou caridade. Assim,
59% desses jovens mostraram-se dispostos a arrecadar dinheiro para
alguma causa social e 45%, a arrecadar assinaturas para alguma petição
(Torney-Purta, Lehmann, Oswald & Shulz, 2001: 124). Somente uma
pequena fração dos entrevistados estava inclinada a envolver-se em
atividades ilegais de protesto, tais como bloquear ruas, ocupar edifícios
ou fazer pixações nas paredes. Esse contraste entre a participação cidadã,
fenômeno do qual se falou muito nos últimos tempos e que a pesquisa
educativa vem confirmar, deveria fazer com que refletíssemos sobre as
características e a profundidade da formação cívica que estamos
difundindo em nossas instituições educativas.
Esta última observação torna-se especialmente relevante, se
levamos em consideração que outra das conclusões que o estudo
sublinhou consiste no importante papel que desempenha a prática
educativa na formação de cidadãos responsáveis: 91% dos jovens
entrevistados afirmam ter aprendido na escola a cooperar em grupo;
84%, a entender que há pessoas com idéias diferentes de suas próprias;
79%, a atuar para proteger o meio ambiente, 68% a contribuir para a
solução de problemas comunitários; 64%, a compreender a necessidade
de ser um bom cidadão; e 55%, a valorizar a importância de votar nas
eleições (Torney-Purta, Lehmann, Oswald & Shulz, 2001: 136). Além
disso, de acordo com as análises realizadas, as escolas que funcionam
com normas democráticas e participativas, que promovem um clima
aberto à discussão em classe e que incentivam os estudantes a participar
na vida escolar conseguem favorecer a aquisição de um conhecimento
cívico e o desenvolvimento de um compromisso cidadão.
Concretamente, o estudo revelou a importância de um clima escolar
aberto à discussão, aspecto sobre o qual insistiram outros estudos (Hahn,
1998; Gordon, Holland & Lahelma, 2000). Uma das conclusões mais
claras do estudo é de que a percepção de que existe tal clima aberto na
escola constitui um fator positivo do conhecimento cívico e da
probabilidade de participar em futuras eleições, em três quartos dos
países-participantes.
Apesar deste resultado incontestável, é preciso assinalar que

74
muitos dos estudantes consultados nos vinte e oito países-participantes
não percebem que em suas escolas existe um clima propício à
participação ativa. Somente uma proporção que varia entre 27% e
39% dos estudantes diz que em suas escolas são incentivados a construir
suas próprias idéias, a expressar suas opiniões, ainda que difiram das
dos outros ou dos professores, e a contemplar as distintas perspectivas
de um determinado assunto. São inclusive menos (16%) os que dizem
que os professores estimulam às vezes a discussão de assuntos sobre os
quais existem opiniões diferentes. É como se as escolas não tivessem
assumido na prática sua função de formadoras de cidadãos e
continuassem ligadas à de transmissoras de conhecimentos.
Talvez esta última observação tenha relação com outro fenômeno
apontado no estudo. Apesar de as declarações oficiais darem uma grande
importância à educação cívica na maioria dos países, a realidade é que
os especialistas nacionais consultados consideram que continua sendo
uma área curricular de escassa importância na prática e que está
limitada, muitas vezes, a um ensino bastante superficial do
funcionamento político (Torney-Purta, Schwille & Amadeo, 1999). Os
professores que se encarregam de seu ensino dizem dar importância a
assuntos como o pensamento crítico ou a construção de valores, mas
na realidade concentram-se na transmissão de conhecimentos. Os
métodos centrados no professor são os predominantes e os textos
escolares ocupam um lugar privilegiado, ainda que muitos professores
desenvolvam seus próprios enfoques didáticos. Esse contraste que se
percebe entre o nível das declarações políticas e pedagógicas e o plano
da prática escolar, entre as convicções e a realidade escolar, deveria
atrair nossa atenção e fazer com que refletíssemos.
Entretanto, não se pode culpar, exclusivamente, a escola pelos
déficits encontrados na tarefa de conformação de sociedades
democráticas e coesas, nem pelas deficiências que podem ser
encontradas nesse campo. Seria uma reprovação tão injusta como
excessiva. O Estudo sobre a Educação Cívica chegou à conclusão de
que os estudantes procedentes de famílias com mais recursos educativos
adquirem, em praticamente todos os países, um melhor conhecimento
cívico e, algumas vezes, ainda que nem sempre, desenvolvem uma atitude
75
mais participativa, o que ressalta a cooperação que deve existir nessa
tarefa entre a escola, a família e a comunidade. Por outro lado, muitos
dos conhecimentos cívicos que os estudantes adquirem são
transmitidos pelos meios de comunicação e, muito especialmente,
pela televisão. Muitos dos jovens entrevistados concedem maior
credibilidade à informação televisiva do que à impressa em jornais, o
que obriga a considerar a participação destes poderosos meios de
formação de opinião na tarefa da educação cidadã.
Tampouco se deve crer que a construção de uma cidadania ativa
e consciente por meio da educação cívica seja uma tarefa que não admite
retrocesso. A história nos mostra como alguns países com democracias
assentadas sucumbiram a regimes autoritários, e este estudo da IEA
nos confirma que o problema de proporcionar uma formação cidadã
adequada continua vigente, tanto em países que atingiram
recentemente a democracia, como nos outros que desfrutam dela há
muito tempo. Entre os países cujos estudantes alcançaram níveis mais
altos em conhecimentos cívicos encontram-se Chipre, República Tcheca,
Finlândia, Grécia, Hong Kong, Itália, Noruega, Polônia, Eslováquia e
Estados Unidos, que são muito diferentes entre si. E entre os que
desenvolveram atitudes de participação social e política estão Chile,
Colômbia, Chipre, Grécia, Polônia, Portugal, Romênia e Estados
Unidos. Como se pode perceber, no desenvolvimento da formação
cívica dos estudantes existe um elemento de vontade política e
mobilização social que não pode ser ignorado.
Estas conclusões do Estudo sobre a Educação Cívica da IEA são
estimulantes, mas também mostram-se inquietantes. Por um lado,
mostram que em muitos países estamos assistindo, na atualidade, a
uma revisão e a uma reconceitualização da educação cívica, a qual se
considera que deve ser transdisciplinar, participativa, interativa, ligada
a vida, realizada em um encontro não autoritário e construída em
cooperação com as famílias e à comunidade. Por outro lado, essas
mesmas conclusões chamam a atenção para as deficiências da formação
adquirida pelos estudantes, que não valorizam excessivamente a
atividade política, nem sempre têm níveis de intenção de participação
que podem ser considerados satisfatórios, nem integram habitualmente

76
essa formação em sua conduta cotidiana e nem sempre encontram na
escola estímulo adequado para desenvolver condutas cívicas e
comprometidas. Também é preciso levar em consideração que o estudo
não pôde abordar outras questões que poderíamos propor, tais como as
que se referem às motivações das condutas reais dos estudantes ou ao
contraste entre os valores vigentes na sociedade e os apregoados pela escola,
aspectos que permanecem abertos a futuras investigações. Em suma, trata-
se de um quadro com luzes e sombras que deveríamos analisar com detalhe,
se efetivamente queremos promover uma aprendizagem para viver juntos,
que permita uma inserção social ativa e participativa.

2. SEGUNDA REFLEXÃO: APRENDER A VIVER JUNTOS


EXIGE CONHECIMENTOS

A segunda reflexão está relacionada a uma frase incluída no


documento de referência da conferência: “querer e saber como viver
juntos pressupõem conhecimentos”. Com efeito, a educação cívica é o
aspecto que mais se destaca quando nos perguntamos sobre como
podemos ensinar a viver juntos, mas de modo algum esta aprendizagem
está reduzida exclusivamente à formação cidadã, por mais importante
que esta seja. Como ressalta o próprio documento, o desafio da
globalização traz consigo diversas necessidades educativas, pelo menos
no âmbito das capacidades lingüísticas, do saber científico e do domínio
das tecnologias da informação e da comunicação, sem que esta
enumeração esgote todas as necessidades de aprendizagem. Como indica
o próprio documento, “saber, poder e querer participar, dominar as
línguas, ser científica e tecnologicamente alfabetizado constituem, sem
sombra de dúvidas, indicadores da qualidade da educação para todos
para viver melhor juntos” (UNESCO, 2001: 26).
A necessidade de adquirir um conjunto de conhecimentos como
os mencionados relaciona-se a uma dupla exigência. A primeira consiste
em conseguir um desenvolvimento em condições de eqüidade; a segunda,
em assegurar o acesso generalizado à sociedade do conhecimento. Nossas
sociedades não podem se permitir desperdiçar o talento que possuem,
depositado em seus cidadãos, sem ameaçar seriamente sua capacidade de

77
desenvolvimento. O avanço em direção a uma verdadeira sociedade
do conhecimento torna ainda mais urgente esse aproveitamento. Por
outro lado, nossas sociedades não podem pôr em perigo sua coesão
social, sem arriscar seu futuro político e social. E nessa dupla tarefa os
sistemas educativos têm uma importante função designada.
A primeira pergunta que surge a partir deste ponto de vista refere-
se a que diferenças de formação existem entre nossos estudantes e nossos
países. Para tentar respondê-la, pode-se também recorrer a alguns
estudos internacionais realizados recentemente. Neste caso, farei uso
do conhecido Third International Mathematics and Science Study
(TIMSS)3, estudo realizado também pela IEA, cujo desenvolvimento
iniciou-se no princípio dos anos 90, do qual participaram até agora
mais de 50 países de todos os continentes e que já proporcionou alguns
resultados de indubitável valor (Martin et al., 2000; Mullis et al.,2000).
Os dados da aplicação de 1999 referem-se a estudantes de 14 anos e por
isso são paralelos aos apresentados na seção anterior. Estarei centrado
somente no caso da aprendizagem das ciências, como um exemplo,
para colocar minha reflexão em conexão com uma das necessidades
educativas identificadas no documento-marco da Conferência. Porém,
boa parte das observações realizadas a seguir sobre os conhecimentos
científicos são plenamente aplicáveis a outras áreas da aprendizagem.
Uma primeira conclusão do estudo consiste em que os países
diferem notavelmente em seu rendimento médio na aprendizagem de
ciências, nesta idade que corresponde aproximadamente à de finalização
da educação secundária inferior. As diferenças existentes entre os países
que encabeçam a distribuição (muitos deles da Ásia oriental) são muito
consideráveis. Se a média internacional situa-se em 488, a distribuição
de pontuações médias dos países estende-se de 243 até 569 (Martin et
al., 2000: 32)4. inclusive, nos casos mais extremos, os melhores alunos

3 Para obter mais informações sobre o projeto, suas características e resultados, pode-se acessar sua página web: http:/
/timss.bc.edu.
4 A situação é bastante similar em matemática, cuja pontuação nacional inferior é de 275 e a
superior, de 604. A média situa-se em 487 (Mullis et al., 2000: 32).

78
dos países com piores resultados alcançaram somente um nível de
rendimento similar ao dos piores alunos dos países com melhores
resultados. As diferenças entre os extremos são chamativas, ainda
que exista um amplo grupo médio de países cujo rendimento seja
bastante similar. Portanto, podemos dizer que a distribuição mundial
de resultados é claramente desigual, existindo algumas situações
concretas de visível polarização. E é preciso levar em consideração
que somente um dos países participantes tem um PIB per capita inferior
a três mil dólares, o que deixa de fora do foco de análise praticamente
todos os países menos desenvolvidos. Se a participação destes últimos
tivesse sido maior, a desigualdade teria sido escandalosa.
Uma segunda conclusão refere-se à existência de níveis muito diversos
de desigualdade de rendimento no interior dos países. Sem pretender
chegar a um nível de detalhe excessivo, pode-se dizer que há países cuja
distribuição interna de resultados é muito mais igualitária do que em
outros. Assim, enquanto a diferença entre os estudantes com melhores e
piores resultados situa-se em alguns países em pouco mais de 200 pontos,
em outros supera amplamente os 400 pontos5. Em outras palavras, a
distância entre os alunos que obtêm os melhores e os piores resultados é
mais ou menos notada nos diferentes países-participantes. E isso não
tem a ver exclusivamente com o nível médio dos resultados nacionais.
Ou seja, há países com bons resultados médios mas pouco homogêneos
(com uma grande dispersão), enquanto há outros com resultados ruins
mas relativamente homogêneos (com pequena dispersão), e vice-versa.
Isto deveria fazer com que refletíssemos sobre os critérios de eqüidade
realmente aplicados pelos sistemas educativos.
Uma terceira conclusão está ligada a um tipo de diferença que
acreditávamos estar em vias de superação em escala mundial. Refere-se
às diferenças de rendimento entre homens e mulheres. Os resultados
do estudo confirmam que em quase metade dos países estudados os
homens tiveram melhor resultado em ciências do que as mulheres.

5 Este dado refere-se à pontuação obtida pelos alunos situados nos percentuais 5 e 95, respectivamente, nos diversos países
participantes.

79
Dos 38 países incluídos no relatório do estudo de 1999, 16 deles
apresentavam diferenças estatisticamente significativas a favor dos
garotos, outros 19 tinham o mesmo tipo de diferenças, mas sem
significação estatística, em um a pontuação era idêntica para ambos os
grupos e somente em dois a diferença (não estatisticamente significativa)
era a favor das garotas. A diferença da média internacional também
era significativa a favor dos homens (Martin et al., 2000: 50)6. Além
disso, os garotos mostraram um grau maior de confiança em sua
capacidade para o aprendizado de ciências do que as garotas, o que
indica que ainda existem problemas a resolver neste sentido. Ainda
que a tendência geral que vem sendo percebida entre o levantamento
de dados de 1995 e o de 1999 aponta para uma ligeira diminuição, essa
diferença continua sendo perceptível.
Uma quarta conclusão refere-se aos níveis de acerto que puderam
ser identificados em escala mundial e à dispersão que apresentam os
países com relação a eles. O estudo permitiu identificar vários níveis de
acerto (benchmarks), que estabelecem o que um estudante conhece e
sabe fazer, conforme esteja situado em um nível médio, ou em níveis
superiores ou inferiores de acerto7. Obviamente, não se trata de níveis
de acerto prescritivos (que indiquem o que deve saber ou fazer), mas
exclusivamente estatísticos (que indicam o que efetivamente sabe ou
faz), mas aportam uma informação muito interessante sobre quais
são as capacidades que, em termos de aprendizado científico, os
estudantes dos diversos países desenvolveram, além de nos permitirem
comparar situações nacionais com padrões internacionais. Também

6 É necessário ressaltar que as diferenças existentes entre ambos os grupos no rendimento obtido em matemática não
eram tão chamativas. Ainda que também nessa área verificava-se uma diferença internacional estatisticamente
significativa a favor dos garotos, era muito menos do que no caso das ciências (Mullis et al., 2000: 50).
7 O estudo definiu níveis de acerto (benchmarks) para os estudantes incluídos nos 10% superiores, nos 25% superiores,
nos 50% e nos 25% inferiores. Para cada um deles, foram especificados os conhecimentos que possuiria, assim como as
principais tarefas que seria capaz de realizar. Para fazer mais compreensíveis tais níveis de acerto, os relatórios
publicados como resultado do estudo incluíram alguns exemplos concretos de perguntas correspondentes a cada nível de
dificuldade (Martin et al., 2000: 57-92).

80
aqui se percebem diferenças entre os países. Como caso mais
chamativo, pode-se dizer que os estudantes com piores resultados de
alguns países são capazes de realizar tarefas que nem sequer os
melhores estudantes de alguns países podem realizar. Por exemplo,
mais de 30% dos estudantes de Cingapura e Taiwan alcançam a
pontuação média internacional dos 10% superiores, enquanto que
em nove países são menos de 2% dos estudantes os que conseguem.
Isso quer dizer que o nível de excelência dos 10% superiores é
alcançado por muitos estudantes de alguns países, mas por muito
poucos de outros. E enquanto em oito países mais de 75% dos
estudantes superam o nível de acerto médio (50%), em outros seis, o
índice não chega a 25%.
Assim como acontecia no caso da educação cívica, o estudo
também ressalta o importante papel que as escolas desempenham na
conquista dessas vitórias e na eqüidade dessa distribuição. Fatores como
a confiança que o professor tem em seu preparo para o ensino, o tempo
efetivamente dedicado à instrução, a freqüência de interrupções na
aula, a riqueza do material didático disponível, o clima escolar reinante
demonstraram exercer um impacto perceptível nos resultados
conseguidos. Ainda que esta análise esteja aqui restrita ao caso do ensino
das ciências, os resultados correspondentes a matemática e outros estudos
semelhantes concordam plenamente com estas apreciações (Crahay,
2000). E também deve-se destacar a influência que exercem outros fatores
complementares, como a riqueza dos recursos educativos no ambiente
familiar, a atitude dos pais com relação à educação dos filhos ou a
ligação da família com a escola. Esses resultados voltam a confirmar
que a educação dos jovens é uma tarefa coletiva, na qual as escolas e os
professores ocupam lugar central, mas com outros fatores igualmente
decisivos que não podem ser ignorados.
Em resumo, o ciclo de estudos do TIMSS, com levantamento de
dados em 1995, 1999 e 2003, vai-nos permitindo conhecer as diferenças
que existem nos conhecimentos realmente adquiridos pelos estudantes
de nossos países em algumas áreas-chave do currículo escolar. E é preciso
confessar que a situação não se mostra excessivamente alentadora. Como
ocorria no caso da educação cívica, no quadro aparecem algumas zonas
81
de luz, que parecem se estender em determinadas direções, mas o
panorama continua apresentando outras zonas de sombra, que não
sabemos se conseguiremos clarear em um tempo razoável. Dado que
o estudo tem um componente longitudinal, que permite estudar as
tendências produzidas ao longo do tempo, pode-se também afirmar
que o progresso linear não é a única realidade. Com efeito, enquanto
alguns países mostram claros sinais de melhora em seu rendimento
com o passar do tempo, outros apresentam certos retrocessos, ainda
que possam ser conjunturais ou devidos a motivos circunstanciais. Os
dados do TIMSS e de outros estudos internacionais similares indicam
que a tarefa que resta a fazer para assegurar um acesso ao conhecimento
em condições de igualdade é ainda considerável.
A pergunta que se faz em seguida consiste em saber se é possível
viver efetivamente juntos quando existem tais diferenças nos
conhecimentos adquiridos e nas habilidades desenvolvidas pelos jovens.
Essa pergunta admite uma perspectiva dupla: por um lado, pode-se
aplicar ao interior de uma determinada sociedade; e por outro, pode-se
aplicar às diferenças existentes entre países.
A partir do primeiro ponto de vista, a pergunta nos conduz a
uma reflexão sobre quais são os níveis mínimos de acerto que deveriam
ser assegurados a todos os cidadãos de uma determinada sociedade. As
novas concepções de justiça social estão concedendo grande importância
a este aspecto da igualdade, que tem a ver com a aquisição generalizada
de alguns conhecimentos básicos, e o acesso a eles é responsabilidade
da escolarização inicial (Trannoy, 1999). Saber em que medida nossos
jovens estão alcançando essas competências que podem ser consideradas
básicas e imprescindíveis para todos os cidadãos é fundamental para
colocar em prática políticas de eqüidade e de diminuição do fracasso
escolar. O diagnóstico correto do acesso efetivo a esses conhecimentos
constitui, além de tudo, a base para a adoção de novos parâmetros
curriculares que dêem ênfase às competências, às capacidades e às
habilidades que devem ser desenvolvidas pelos jovens, em lugar dos
simples conteúdos que devem ser aprendidos (Tiana, 2000).
A partir do segundo ponto de vista, a pergunta nos leva a outra
reflexão sobre quais são as condições educativas que o vigente processo

82
de globalização exige. Sendo mais rigorosos nas questões propostas,
não bastaria somente perguntarmos sobre os níveis de rendimento
aceitáveis, mas sobre os âmbitos que devem estar incluídos nesse
saber básico, sobre a conexão que estabelece com a realidade mundial,
de um lado, e com a local, de outro. Estes e outros aspectos
semelhantes não foram ainda abordados pela pesquisa educacional
internacional, ainda que estejamos coletando dados de grande
interesse para empreendermos esta reflexão. A construção de escalas
de acertos (benchmarks) como as indicadas é um primeiro passo
para responder a essas perguntas mais amplas.

3. TERCEIRA REFLEXÃO: APRENDER A VIVER JUNTOS


REQUER COOPERAÇÃO E INTERCÂMBIO.

A terceira e última reflexão diz respeito a outra afirmação


contida no documento de referência: “os resultados derivados da
pesquisa permitem avançar mais para ensinar a viver melhor
juntos”, ainda que também se reconheça que “os resultados obtidos
pela pesquisa sobre os rendimentos de aprendizagem não parecem
ser ainda suficientemente utilizados” (UNESCO, 2001: 26).
Qualquer pessoa que possua ou tenha possuído vínculo com o
mundo da pesquisa educacional e responsabilidades no âmbito da
administração da educação não pode ter outra atitude a não ser
assinar embaixo dessa afirmação. Mas, no contexto da reflexão
suscitada pelas necessidades educativas para aprender a viver juntos,
é preciso destacar também a importância da cooperação e do
intercâmbio internacionais como instrumentos de aprendizagem
e de melhoria para os sistemas educativos.
O documento marco da conferência caracteriza o atual processo
de globalização como uma etapa de expectativas e de incertezas. Nessas
circunstâncias tão especiais torna-se ainda mais necessário atuar
conjuntamente. E pode-se honestamente afirmar que, com todos os
defeitos que haja, com toda a insensibilidade que, às vezes, possa ter
demonstrado para a resolução dos problemas vislumbrados, a
comunidade dos pesquisados da educação está capacitada para colaborar
83
na tarefa de melhorar nossos sistemas educacionais e seus processos
de ensino e de aprendizagem.
Sabemos que é difícil experimentar em matéria de educação.
Em outros âmbitos da atividade humana a experimentação, mesmo
sendo complicada, é factível, mas no campo da educação encontra
muitas limitações. Com o fim de superar algumas dessas dificuldades,
já faz quase cinqüenta anos que pesquisadores pioneiros lançaram a
idéia de considerar o mundo como um laboratório educativo. O
elemento central dessa nova perspectiva consistia em comparar o
rendimento obtido pelos diversos sistemas educacionais, controlando,
na medida do possível, as principais variáveis que intervêm neles.
Essa visão comparativa permitiria analisar e mensurar a influência
dos diversos fatores assim identificados, mediante uma aproximação
transnacional. A diversidade internacionalmente existente em aspectos
como a organização do sistema educacional, a formação dos
professores ou o currículo previsto ou implementado, para não
mencionar mais do que alguns exemplos, permitiria analisar e mensurar
sua influência sobre os resultados, sem necessidade de introduzir
mudanças complicadas e arriscadas para medir seus efeitos. Os estudos
internacionais de avaliação se converteriam, assim, em um poderoso
instrumento de pesquisa empírica do rendimento e de seus fatores
associados, sempre a serviço da melhoria da educação.
Essas idéias inspiraram, a partir de então, o trabalho de muitos
especialistas e de diversas organizações internacionais. Sem pensar que
sua aplicação direta possa ser uma nova panacéia para resolver os
problemas educativos, que, sem dúvida, requerem tratamentos muito
mais complexos, tampouco pode-se desprezar as possibilidades que este
enfoque oferece para desenvolver uma análise dos sistemas
educacionais. A melhor demonstração da potencialidade dessa idéia
é que há, cada vez mais, esforços internacionais desenvolvidos nessa
direção por diversas organizações, tanto governamentais quanto não-
governamentais (IEA, OECD, UE, UNESCO). Os estudos que medem
o rendimento da educação, a construção de escalas de acertos e a
elaboração de indicadores educativos não são mais do que uma mostra
significativa das possibilidades abertas a partir desta perspectiva

84
(Degenhart, 1990). No final das contas, a comparação com alguns
critérios e normas pré-estabelecidas, a comparação consigo mesmo
ao longo do tempo e a comparação com outras realidades
semelhantes à nossa são poderosos instrumentos de avaliação de
nossa situação.
Nesta tarefa de pesquisa e reflexão para aprender a viver juntos é
muito difícil atuar de forma independente. Afinal vivemos um processo
de globalização que, apesar de acarretar riscos, também é uma fonte
de riqueza. Ainda que cada um possa aprender por si próprio, nosso
processo de aprendizagem será enriquecido se for compartilhado com
os outros. E nessa tarefa de cooperação e intercâmbio, nós pesquisadores
da educação que trabalhamos a partir de uma perspectiva internacional
e comparativa estamos dispostos a realizar nossa contribuição, modesta,
mas esperançosa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CRAHAY, M. L’école peut-elle être juste et efficace? De l’égalité


des chances à l’égalité des acquis. Bruxelas: De Boeck Université, 2000.
DEGENHART, R. E., (ed.). Thirty years of international research.
An annotated bibliography of IEA publications (1960-1990). The Hague:
IEA, 1990.
DELORS, J. et al. L’éducation, un trésor est caché dedans. Paris:
UNESCO-Odile Jacob, 1996.
GORDON, T., HOLLAND, J. e LAHELMA, E. Making spaces:
citizenship and differences in schools. Nova Iorque: St. Martin’s Press, 2000.
HAHN, C. Becoming political: Comparative perspectives on
citizenship education. Albany: State University of New York Press, 1998.
MARTIN, M. et al. TIMSS 1999 Science Benchmarking Report.
Eighth Grade. Achievement Results for U.S. States and Districts in An
International Context. Boston: Boston College-IEA, 2000.
MULLIS, I. et al. TIMSS 1999 Mathematics Benchmarking Report.
Eighth Grade. Achievement Results for U.S. States and Districts in na
International Context. Boston: Boston College-IEA, 2000.
OECD. High-Quality Education and Training for All. Paris:

85
OECD,1992.
TIANA, A. Contenue ou compétences? Une Nouvelle aproche.
In: Revue internationale d’éducation, nº 25, pp. 19-22, 2000.
TORNEY, J. V.; OPPENHEIM, A. N.; FARNEN, R. F. Civic
education in ten countries: An empirical study. Nova Iorque: John Wiley
and Sons, 1975.
TORNEY-PURTA, J.; SCHWILLE, J.; AMADEO, J. (eds.). Civic
Education across Countries: Twenty-four National Case Sutdies from
the IEA civic Education Project. Amsterdam: IEA, 1999.
TRANNOY, A. L’égalisation des savoirs de base: l’éclairage des
théories économiques de la responsabilité et des contrats. In: MEURET,
D. (ed.). La justice du systéme éducatif. Bruxelas: De Boeck Université,
pp. 55-76, 1999
UNESCO. Fórum Mundial sobre Educação. Relatório final.
Dacar: UNESCO. 2000
UNESCO. A educação para todos para aprender a viver juntos:
conteúdos e estratégias de aprendizagem – Problemas e soluções,
documento de referência para a 46 a reunião da Conferência
Internacional de Educação. Genebra: BIE-UNESCO, 2001.
WCEFA. Final Report. World Conference on Education for All:
Meeting Basic Learning Needs. Nova Iorque: Inter-Agency Commission,
WCEFA (UNDP, UNESCO, UNICEF, Banco Mundial), 1990.

86
CENÁRIOS FUTUROS DA EDUCAÇÃO:

UMA JANELA AO DESCONHECIDO

Uri Peter Trier *

A conditio humana muda lentamente, se é que o faz. Não


obstante, as condições nas quais os humanos devem viver estão
transformando-se de modo intenso e importante. A educação – ou
seja, o esforço de dotar cada nova geração com o que necessitará
para quando cheguar sua maturidade – acarreta necessariamente
uma concepção sobre o porvir. Não podemos conhecer o futuro e
este sempre permanecerá impredizível, mas necessitamos ter uma
idéia sobre ele.
Quando refletimos sobre o futuro, todos olhamos por janelas,
contemplando com lentes ideológicas a sociedade, a cultura, a
natureza e nós mesmos. Absortos, falamos em termos rebuscados
da complexidade de nossas sociedades qualificadas de pós-modernas.
O que vem em seguida é minha opinião, ou melhor, parte dela:
exponho apenas alguns aspectos do futuro, ainda que eu seja
plenamente consciente de que existem outros de mesma importância.
Meu interesse principal está em expor aqui os temas que, na minha
opinião, são fundamentais para modelar as políticas educacionais.

* Doutor honoris causa pela Universidade de Zurich. Atualmente, professor visitante de psicologia na Universidade
de Neuchâtel. Ex-diretor da Faculdade de Pesquisa e Desenvolvimento da Pedagogia em Zurich. Presidente do Comitê
Pedagógico da Conferência Suíça dos Ministros de Educação. Diretor de um programa de pesquisa nacional.
Representante suíço de educação diante da OCDE. Especialista em programas para o desenvolvimento das escolas em
Butão e Laos. Consultor de várias organizações suíças e internacionais. Seus âmbitos de pesquisa e trabalho:
desenvolvimento e avaliação das escolas e sistemas de educação, psicologia cognitiva e psicanálise.

87
1. UMA VIDA COM DIGNIDADE

A Suíça é um lugar bonito, cômodo e tranqüilo para viver e pensar


sobre o futuro; no entanto, antes de olhar pela primeira janela, abro
rapidamente uma segunda janela que não dá ao futuro, mas ao presente
bem conhecido por todos, esse que existe nos continentes distantes do
meu, mas que não me são alheios. A humanidade está dividida hoje
em dois mundos muito diferentes. Em um deles, as mães de família
não podem ter certeza se “amanhã” poderão alimentar seus bebês; as
famílias não têm moradia; os níveis de educação e expectativa de vida
são baixos; o conceito dos direitos humanos não significa nada; e se
matam homens, mulheres e crianças em grandes quantidades.
Existe um claro limite entre esses dois mundos, ainda que não
seja de índole econômica ou continental. Tampouco é demarcado por
termos cunhados tais como o “Terceiro Mundo”, o “Norte contra o
Sul” ou “os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento”. Essa
fronteira atravessa cidades, regiões ou nações e o que a define é o fato
de que os seres humanos possam ou não viver com dignidade.
Atualmente, fala-se e escreve-se muito sobre “os pobres”. O Banco
Mundial organizou suas denominadas “consultorias sobre os pobres”
e escreveu intrigantes livretos sobre suas condições. A comunidade
educacional está ocupada com um vigoroso debate sobre os
conhecimentos que os sistemas de educação deveriam priorizar. Não
obstante, ela é propensa a incorrer em uma falácia comum: passar por
alto sobre o impacto determinante das condições de vida de cada pessoa
e concentrar-se no fornecimento de conhecimentos adequados e na
elaboração de listas de instrumentos, habilidades e competências para
os alunos. Nem sempre presta a devida atenção ao fato cruel de que
sem moradia, alimento, proteção à saúde, segurança adequada e acesso
à educação básica, as pessoas não podem levar vidas dignas e, portanto,
não podem ser responsabilizadas pela construção de seu futuro.
Nossa capacidade de encontrar condições de vida melhores em
nossas sociedades, principalmente nas mais fracas, será um fator decisivo
nas próximas décadas. A educação é importante para alcançar esse
objetivo, ainda que não seja o fator mais determinante. A realidade é,

88
que as sociedades influenciam a educação mais do que a educação
influencia a sociedade
Para ilustrar este ponto, apresentarei três exemplos. Se vivêssemos
em uma sociedade mundial onde a fabricação de armas se limitasse a
uma pequena produção controlada – ou seja, aquela necessária para
uma força policial legítima –, obviamente, nossas sociedades estariam
mais seguras, independentemente das capacidades básicas, sociais ou
cívicas adquiridas individualmente. Por outro lado, sendo menos
dramáticos, imaginemos os programas de televisão mostrando pistolas
e armas como costumava acontecer nos filmes dos anos cinqüenta de
Hitchcock. Sem dúvida, diminuiriam nossas necessidades em relação à
educação para prevenir o crime. Por último, enfocando um dos fatos
mais horríveis e incríveis de nossa época, devemos nos perguntar: quem
é realmente responsável pela morte de milhões de crianças e jovens
por causa da Aids na África? São os pais analfabetos e as escolas
ineficazes, ou as condições econômicas e políticas prevalecentes e os
interesses das multinacionais?
Antes de deixar essa segunda janela e passar para a primeira, minha
mensagem é simples: todos nós estamos sempre nos desenvolvendo e
atuando em um campo político. Isso significa que nossas atividades e
decisões relacionadas com as questões sociais, econômicas e culturais
decidirão o futuro. E as políticas visionárias de desenvolvimento
sustentável poderão marcar uma diferença entre os povos que vivem
sem esperança e aqueles que aspiram a viver um futuro digno. Apenas as
sociedades que vivem em paz social sobreviverão no século XXI. Serão
aquelas que proporcionam um nível mínimo de bem-estar a todos, que
promovem uma distribuição de riqueza orientada para a igualdade, que
protegem os direitos humanos, lutam contra a violência em todos os
setores e níveis e garantem a aplicação das normas jurídicas.

2 . O B E M - E S TA R D O E S TA D O E D A C O M U N I D A D E .

As decisões que os futuros cidadãos deverão tomar serão mais


complexas e menos transparentes do que as de hoje e, muitas vezes,

89
terão conseqüências irreversíveis. As esferas decisórias em todos os
planos – comunitário, regional, estatal, nacional, continental e mundial
– deverão planejar de acordo com a crescente interdependência entre
esses níveis e dentro de cada um deles.
Atualmente, as organizações e instituições que foram os centros
tradicionais da expressão da opinião pública – tais como as igrejas, partidos
políticos, sindicatos e associações – estão perdendo sua influência. Na
sociedade civil estão se desenvolvendo novos modelos de organizações,
como as organizações não-governamentais nacionais e internacionais, e
aumentando sua influência no terreno do jogo político. A geração de
políticas centrada nos meios de comunicação sempre corre o risco de
cair em lutas internas, exageros e polarizações. O acesso à informação
por meio de múltiplas redes aumentará radicalmente. A questão é como
essa informação será integrada às idéias políticas dos cidadãos.
Um sistema descentralizado que admita certa autonomia é o
mais indicado para propiciar uma ação política eficaz. Em tal sistema,
a dinâmica vital da tomada de decisões nasce das bases e dirige-se para
cima, em vez de proceder ao contrário. Dessa maneira, os cidadãos
podem participar diretamente do processo decisório nos contextos
locais. Ao mesmo tempo, será preciso adotar também decisões de cima
para baixo, com a finalidade de proporcionar maior eficácia e
estabelecer limites e obrigações.
Talvez a lição mais importante que se pode aprender com as
experiências do século XX seja que a maior prioridade na vida social é
dada à responsabilidade política exercida por meio de processos
democráticos. Além de constituir um objetivo da educação, a
democracia deveria ser um princípio de organização social e, inclusive,
econômica. A democracia só existe onde é vivida.

3. GENÉTICA HUMANA E ENGENHARIA GENÉTICA:


ESTENDENDO A VIDA HUMANA

Atualmente, nossa geração espera viver em média oitenta anos


(ainda que, lamentavelmente, não seja o caso de muitas populações no

90
mundo). Não obstante, a divisão da longevidade em três segmentos –
(i) crescimento e educação; (ii) trabalho e reprodução; e (iii)
aposentadoria –, já não é um modelo pertinente para o futuro graças
aos progressos na medicina e pesquisa genética.
Ainda estão por ser entendidas em sua totalidade as enormes
conseqüências da exploração do genoma humano com a finalidade
de prolongar a longevidade, dadas as possibilidades que parecem
remotas na nossa realidade contemporânea. Estas envolvem a
prevenção de doenças por meio da manipulação genética e de
terapias fundamentadas em tecnologias genéticas destinadas a
controlar o envelhecimento. As novas gerações das sociedades mais
privilegiadas poderão esperar dar um passo quantitativo em relação
à qualidade da saúde e à expectativa de vida para além dos cem
anos, ainda que este seja um cálculo moderado. Segundo algumas
predições recentes de biólogos, nas próximas gerações concebem-
se expectativas de vida que oscilarão entre os 200 e os 300 anos
(Mittelstrass, 1998). Isto significa que os que agora se consideram
“velhos” participarão no futuro com toda a plenitude física e
psíquica da vida social, econômica e cultural de suas sociedades.
Mais ainda, é possível que as pessoas tenham acesso a seus fatores
genéticos, podendo modificar deliberadamente suas próprias
constituições genéticas, assim como, as de seus filhos.
Conseqüentemente, a condição humana mudaria no sentido de que
suas bases biológicas poderiam ser alteradas. Isto incluiria uma dimensão
completamente nova à desigualdade intranacional e internacional. Não
apenas o acesso à riqueza e à saúde tradicional estariam sujeitos a fatores
do poder político e econômico, mas também o acesso à prolongação
da vida manipulada geneticamente.
Nesta nova área que está emergindo, as normas éticas e os
controles políticos e jurídicos são, mais do que nunca, cruciais. Assim
como a ecologia atual dedica-se à preservação da natureza, será
imprescindível estabelecer uma “ecologia humana que se dedique à
preservação dos seres humanos”. É necessário promover a
sensibilidade do público para empreender medidas responsáveis nos
dois âmbitos mencionados.
91
4. O DIVÓRCIO ENTRE A PRODUÇÃO, O EMPREGO E
O LUGAR DE TRABALHO

A integração tradicional do emprego em um quadro


permanente, estável, institucional e orientado para o trabalho,
com as trajetórias profissionais traçadas – pelo menos durante a
“idade ativa” – está desaparecendo (Sennet, 1998). Esta
desestabilização está acontecendo pela convergência de duas
tendências e traz consigo novas oportunidades e riscos. O fator
decisivo é a pressão econômica da inovação, a qual exige uma
reestruturação constante das empresas. As redes multinacionais e
a descentralização da produção e dos serviços facilitam a
adaptação às mudanças do mercado. Graças à flexibilidade da
especialização na produção aumenta o grau de liberdade que as
organizações econômicas têm na tomada de decisões estratégicas com
respeito às vantagens comparativas oferecidas por certos locais para
realizar sua produção e seus serviços.
O segundo fator, sem o qual um desenvolvimento deste tipo
seria impossível, procede do mundo da tecnologia avançada. Neste
momento, a gestão da produção e dos serviços dispõe de uma maior
flexibilidade. As redes de comunicação eletrônica facilitam a
realocação do emprego, passando do escritório tradicional à
presença física temporal dos empregados em lugares escolhidos
por eles. Este fato recente conduzirá, previsivelmente, a uma
organização e a condições de trabalho totalmente novas. As
oportunidades de emprego consistirão, cada vez mais, de um
contrato de trabalho claramente definido, no qual haverá projetos
concretos com prazos fixos que pessoas ou grupos deverão realizar.
Os caminhos profissionais “clássicos” que constituíam as metas
dos planos educativos e de vida, possivelmente, desaparecerão,
acarretando insegurança e riscos para as pessoas, ainda que seja
difícil calculá-los. Em certo grau, os sistemas de segurança social
poderão moderar estes riscos, mas as forças do mercado impõem,
cada vez mais, a liberalização de normas, mesmo no estado de
bem-estar social.

92
5. TRABALHO NÃO-RELACIONADO COM O EMPREGO

Na última década do século XX, diversos fatores indicam que os


sistemas de apoio social destinados aos aposentados e deficientes, e
também aos jovens, que foram estabelecidos a um custo enorme nos
países europeus, depois do período da política do “bem-estar social”,
não seriam viáveis da mesma maneira no futuro. Os gastos dos serviços
sociais essenciais não serão totalmente custeados pela economia
monetarista e será necessário que as famílias, sócios, vizinhanças,
comunidades e municípios assumam mais a carga de uma renovada
rede social. Essas redes deverão ser mantidas por meio da cooperação
voluntária e da solidariedade recíproca, e não por meio de um sistema
de troca monetária, e, como tal, não poderiam organizar-se segundo o
pricípipo de um provedor. Não é preciso remontar à história de nossos
tempos modernos para ver como isso pode ser feito e inclusive hoje
existem sociedades nas quais podem ser encontrados esses exemplos.
No entanto, como isso perdeu-se em nosso mundo atual, será necessário
recriar e reorganizar as estruturas e condições da vida pós-moderna.
Nossas atitudes necessitarão de uma mudança paradigmática em
relação ao muito valorizado setor do emprego e ao muito desvalorizado
setor do desemprego. Não obstante, além das redes sociais confiáveis
que deverão ser criadas, existem mais razões para atribuir valor ao
trabalho não-remunerado. Cabe pensar que o desenvolvimento ulterior
da produtividade econômica continuará reduzindo os postos de
trabalho. Já em alguns países, decretou-se a semana de trabalho de
quatro dias e horários flexíveis para boa parte dos empregados, e a
taxa de desemprego é permanente. Ao mesmo tempo, um terço da
população tem mais de sessenta anos de idade. É indispensável levar
em conta que haverá ainda mais aposentados e pessoas sadias no futuro.
Deverão ser revisados os termos usuais de “tempo livre”,
“aposentadoria” ou os períodos livres sem emprego tradicional. Estes
termos menosprezam a necessidade humana de realizar uma atividade
com sentido. Na minha opinião, no futuro surgirá uma nova cultura
do trabalho que caminhará paralelamente ao emprego atual, mas sem
estar unida a ele.

93
Tal modelo futuro vai requerer que o trabalho não-assalariado
tenha um valor igual ao do trabalho assalariado no setor econômico
monetário. Neste cenário, o trabalho não-assalariado terá pouco em
comum com os denominados passatempos atuais na sociedade de ócio
contemporânea. Ao contrário, a sociedade reconhecerá plenamente as
atividades inovadoras e recreativas, assim como os serviços sociais ou
ecológicos, organizando-os por meio de sistemas de troca direta ou
cooperativas.

6. O CONHECIMENTO E A SOCIEDADE DA
APRENDIZAGEM

As três dimensões inter-relacionadas que acabo de esboçar –


aumento da expectativa de vida, maiores flexibilidade e mobilidade da
mão-de-obra e uma maior valorização do trabalho não-assalariado –
terão efeitos tangíveis sobre nossa compreensão da educação e da
aprendizagem:
• As pessoas seguirão, cada vez menos, uma carreira ou um ofício
e vão adquirir aptidões em vários âmbitos especializados e
capacidades que utilizarão em seus empregos, assim como, no
trabalho não-assalariado.
• As maiores flexibilidade e mobilidade do mercado de trabalho
continuarão oferecendo mais oportunidades (assim como, riscos),
que necessitarão de níveis mais elevados de competência e de
conhecimentos próprios. Isto quer dizer que as pessoas
necessitarão de uma gama de aptidões especializadas, viáveis e
variadas, assim como a capacidade de adaptar-se ao mercado de
trabalho, seja modelando ou acrescentando qualificações. Da
mesma forma, as vicissitudes ou as mudanças relacionadas com
a identidade e com a segurança pessoal deverão ser percebidas
como um traço positivo, e não como ameaças.
• A divisão temporal da vida em etapas distintas – (i) educação e
formação; (ii) emprego; e (iii) período posterior ao emprego (ou
de emprego não-assalariado) – tornar-se-ão cada vez mais difusas.
Conseqüentemente, pode-se imaginar inclusive que a distinção

94
entre “escolaridade” e “educação de adultos” deixará de ser
clara. Como resposta, podemos instituir modelos de etapas
completamente novos, como a redução da primeira etapa da
educação e o acréscimo de uma segunda e terceira etapas de
educação plenamente reconhecidas. Também podemos criar um
treinamento formal para novas habilidades profissionais e um
emprego conjunto em tempo parcial, seja no mesmo campo ou
em outro.
Com a finalidade de descrever adequadamente esta mudança
radical em nossas condições socioeconômicas, tentamos utilizar os
termos “sociedade pós-industrial”, “sociedade da informação”,
“sociedade da aprendizagem” (Keating, 1998) e, mais recentemente,
“sociedade do conhecimento” (Bereiter & Scardamalia, 1998). Todos
estes termos denotam a crença de que a obtenção e a aplicação do
conhecimento são um valor agregado.
O conhecimento sempre foi investido na produção de bens e
serviços, mas a diferença agora é que esse conhecimento que é dado
como certo tornou-se uma mercadoria, alheio a todo o processo de
produção ou serviços.
Em uma sociedade do conhecimento, a pessoa instruída
continua sendo naturalmente sua portadora. Mas, sozinha, não
pode administrar ou desenvolver o conhecimento exigido pela
demanda. Assim, quando a criação do conhecimento constitui o
ponto cardeal do desenvolvimento econômico e social, torna-se mais
concreto para muitas pessoas o conceito de que esta criação, que só é
alcançada por meio do esforço coletivo.
Na sociedade do conhecimento, a colaboração será um fator
de produção decisivo. As sociedades modernas bifurcar-se-ão no
caminho do século XXI. A sociedade será capaz de se organizar para
que a maioria das pessoas participe do desenvolvimento e alcancem
o conhecimento, ou dividirá-se-á em dois grupos – a elite do
conhecimento e as massas marginalizadas, um cenário que coloca,
evidentemente, em perigo a coesão social. Conseqüentemente, as
sociedades que desenvolvam e utilizem a aprendizagem assistencial
e social poderão garantir seu progresso socioeconômico, e aquelas
que não o fizerem fracassarão.

95
7. A INFORMÁTICA E A APRENDIZAGEM

O conhecimento já está intrinsecamente vinculado à tecnologia


da informação e vai estar, cada vez mais, no futuro. A convergência da
psicologia, da neurofisiologia e da informática já está acontecendo
(Frawl, 1997). Os computadores estão se tranformando em sócios
populares da aprendizagem em muitas áreas da aprendizagem
cognitiva, mesmo nas áreas da aprendizagem “inteligente”. Até pouco
tempo, essa interação entre os humanos e o computador, que inclui
um alto nível de complexidade em relação à entrada, ao processamento
e à recuperação dos dados, aumentava a um ritmo relativamente lento;
agora avança rapidamente. Por exemplo, em campos muito
especializados, o computador recupera dados e resolve os problemas
operativos, enquanto os indivíduos ocupam-se de tomar as decisões
relacionadas com os critérios. Nosso debate sobre o conhecimento e
sobre a sociedade da aprendizagem na era da tecnologia da informação
pode ser resumido nas quatro propostas seguintes:
• a aquisição e a utilização do conhecimento são fatores críticos
em nossa sociedade inovadora, mutante e em desenvolvimento;
• tal conhecimento deverá ser fundamentado na cooperação de
diversos grupos humanos;
• a emergência de uma sociedade do conhecimento deverá se
basear na criação e organização de uma sociedade de
aprendizagem; e
• todos os grupos de idade deverão acrescentar uma aprendizagem
eficaz, agilizando necessariamente esse processo. As novas formas
de aprendizagem facilitarão esse processo – já que muitas delas
utilizarão os computadores – ou apoiar-se-ão neles.

8. CONCLUSÃO

Imaginei o “homo saeculi XXI” sadio e ativo durante um


período de vida mais longo, no qual ele ou ela realizará uma
variedade de atividades, algumas remuneradas e outras não. Diante

96
desta mudança, o valor do trabalho que não esteja relacionado
com a compensação monetária aumentará. O curriculum vitae
tradicional será substituído por um perfil pessoal de profissões e
destrezas múltiplas. O emprego assalariado não vai requerer um
lugar de trabalho fixo nem estará sujeito a contratos de duração
determinada. Haverá um equilíbrio entre a aprendizagem adquirida
durante a infância e a juventude e a aprendizagem do adulto. A
educação e a formação profissional serão entendidas, cada vez
menos, como uma preparação para a vida adulta e, cada vez mais,
como um processo que deverá continuar ao longo da vida.
A geração futura viverá, mais que a geração presente, em um
mundo globalmente interconectado, reunindo povos de diferentes
idiomas e culturas. Nesse mundo, as pessoas deverão aferrar-se a
princípios para poderem se relacionar com o entorno local, o qual
estará inundado de mensagens e informações transmitidas pelos meios
de comunicação. Nesse mundo, a experiência virtual dificilmente poderá
ser distinguida da experiência direta.
A sociedade do século XXI será cada vez mais complexa. O
desenvolvimento da tecnologia e do conhecimento continuará
crescendo exponencialmente, assim como os riscos, tais como as
ameaças ao meio ambiente. Por um lado, poderemos manipular a
natureza e a vida humana e, por outro, os efeitos diretos e secundários
da tecnologia avançada tornar-se-ão menos transparentes e só serão
controlados condicionalmente. Na sociedade do conhecimento, o
acúmulo do conhecimento individual e coletivo não fará falta só
para aperfeiçoar a si próprio, mas para controlar responsavelmente
o impulso tecnológico que criamos.
O nível de vida digno ou elevado para todos vai depender de uma
produtividade contínua. Não obstante, os modelos de segurança social
atuais para os menos favorecidos ou para as épocas difíceis não poderão
ser mantidos. Por isso, a participação do cidadão nos debates e decisões
políticas (do município à organização supranacional) é um fator
contundente no desenvolvimento futuro.
Imaginemos, projetando-nos no tempo, os habitantes do século
XXIII observando nossa época. Provavelmente, examinar-nos-iam como

97
Norbert Elias fazia com as matanças da Idade Média e perguntar-se-
iam como toda uma civilização acha que a chave da felicidade ou do
suposto “desenvolvimento” é um ilimitado crescimento econômico
do capitalismo darwinista. É possível que a população do século XXI
tenha descoberto novamente que o equilíbrio é mais importante que
o crescimento.
Concluirei com um exemplo do Himalaia, fazendo referência
a um sinal dos tempos e tendências que espero que cheguem. Em
Buthan, país que conheço e amo, o governo propôs introduzir o
termo “Felicidade Interna Bruta” (FIB), acrescentado ao da “vaca
sagrada universal” que é o Produto Interno Bruto (PIB), como uma
idéia germinadora para elaborar políticas. A felicidade em Buthan
é uma “preocupação política e um objetivo político”. Ao examinar
a proposta de Buthan, aparece a dramática tensão dialética entre as
forças de nossa economia pós-industrial mundial que guia o mundo
e as mensagens de alerta procedentes das culturas antigas. Na
proposta do governo de Buthan, pede-se “uma nova orientação
política e novos trabalhos de pesquisa”, afirmando que é preciso
perguntar como as mudanças evidentes – ou seja, os progressos da
informática, a diminuição da diversidade biológica e cultural e a
rápida automatização social e econômica – que impulsionam o novo
século afetarão as perspectivas da felicidade. Buthan trabalha para
elaborar uma política educativa orientada para a manutenção “das
bases de uma rica cultura e cheias de valor da vida cotidiana”. Na
formulação de políticas, pergunta-se se “o processo da secularização
e da nuclearização da família aumentará (....) a solidão e o auto-
isolamento no meio da multidão urbana” e se “o capitalismo
mundial e o comércio competitivo internacional farão com que as
pessoas sejam mais vulneráveis à infelicidade e à insegurança em
suas vidas”. Buthan traça a “questão básica de como manter o
equilíbrio entre o materialismo – incluindo as vantagens da ciência
e da tecnologia – e o espiritualismo”. Em sua tomada de decisões, o
país leva em conta “a possibilidade de perder espiritualidade,
tranqüilidade e “felicidade interna bruta” diante do avanço da
modernização” (Thinley, 1998). Buthan abre o caminho de um

98
porvir luminoso ao tentar desenvolver e aplicar uma política
revestida de visão educativa, cultural e ecológica.

REFERÊNCIAS

BEREITER, C.; SCARDAMALIA, M. Beyond Bloom’s taxonomy:


rethinking knowledge for the knowledge age [Além da taxonomia de
Bloom: reexaminando o conhecimento para a era do conhecimento].
In: HARGREAVES, A.; LIEBERMANN, A.; FULLAN, M.; HOPKINS,
D. (comps.). International handbook of educational change, pp. 675-
692. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1998.
FRAWL, W. Vygotsky and cogniyive science, language and the
unification of the social and computational mind [Vygotsky e a ciência
cognitiva, a linguagem e a unificação da mente social e informática].
Boston; Harvard UP, 1997.
KEATING, D. Human development in the learning society [O
desenvolvimento humano na sociedade da aprendizagem]. In:
HARGREAVES, A.; LIEBERMANN, A.; FULLAN, M.; HOPKINS, D.
(comps.). International handbook of educational change, pp. 693ff.
Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1998.
MITTELSTRASS, J. The impact of the new biology on ethics [O impacto
da nova biologias na ética]. In: European Review, vol. 7, nº 2, pp. 277-
283, 1998.
SENNETT, R. The corrosion of character [A corrosão do caráter]. Nova
York: Norton, 1998.
THINLEY, J. Y. 1998. Values and development: gross national happiness
[Valores e desenvolvimento: felicidade interna bruta]. In: KINGA, S.;
GALAY, K.; RAPTEN, P.; PAIN, A. (comps.). Gross national happiness:
discussion papers, pp. 12-23. Thimpu: Centre of Bhutan Studies, 1999.

99
POSIÇÕES/CONTROVÉRSIAS
APRENDER A VIVER JUNTOS:

DESAFIO PRIORITÁRIO NO ALVORECER DO SÉCULO XXI

John Daniel *

O Fórum Mundial de Educação, reunido em Dakar, Senegal, em


abril de 2000, proporcionou a oportunidade para revisar a educação
básica no mundo e estabelecer, coletivamente, uma série de
compromissos a serem postos em prática. Evidentemente, ficaram de
fora importantes aspectos referentes à desigualdade e à exclusão na
educação, particularmente no que diz respeito às mulheres das zonas
rurais e aos grandes centros urbanos muito pobres. Não obstante, no
início do século XXI, a proporção das crianças e jovens de todos os países
do mundo que freqüentam a escola aumentou consideravelmente, em
comparação com a situação prevalecente há cinqüenta anos. O
crescimento espetacular da assistência escolar no mundo foi resultado
do importante empenho de muitos governos, movimentos políticos e
sociais, da comunidade internacional e, principalmente, das próprias
famílias desfavorecidas.

Diretor Geral Adjunto de educação da UNESCO. Depois de realizar seus estudos nas universidades de Oxford e Paris,
começou sua carreira como professor no Institut national des sciences et techiques nucléaires, França. Posteriormente,
trabalhou em diversas universidades canadenses. Foi vice-decano da Universidade Aberta do
Reino Unido em 1990 e presidente da Universidade Aberta dos Estados Unidos desde 1998.
Também foi membro das juntas do Conselho Internacional da Educação a Distância, de Commonwealth
of Learning, da Organização Internacional do Bacharelado (OIB), da Fundação Carnegie para o
Progresso do Ensino, do Centre national d’enseignement à distance, do Grupo consultivo sobre el aprendizaje
electrónico, da Universidade Aberta de Hong Kong e do CEPES. Sua publicação mais importante é
Mega-universities and knowledge media: technology strategies for higher education [Mega-universidades e meios
informativos de conhecimentos: estratégias de tecnologia para os estudos superiores].

101
No mundo inteiro, incluindo os países em desenvolvimento,
existem circunstâncias que dificultam a freqüência ou permanência das
crianças na escola, assim como a alfabetização adequada de adultos. A
pobreza, principalmente a miséria, é o meio mais eficaz que inventamos
para debilitar o direito à educação e entravar o aproveitamento das
oportunidades educacionais. O isolamento geográfico, da mesma forma
que as pressões exercidas pelo emprego, pelo subemprego e pelo
desemprego, criam suas respectivas barreiras. Tomemos como exemplo
a migração do setor rural para o setor urbano e transnacional, de homens
adultos em busca de um emprego remunerado para sustentar suas
famílias; nesta situação, os outros membros da família ficam
sobrecarregados, limitando, conseqüentemente, suas oportunidades de
estudo. Da mesma forma, as desigualdades e a discriminação baseadas
no gênero, na raça, na incapacidade e na idade devem também ser
entendidas como causas e formas da distribuição desigual das
oportunidades de educação.
Os educadores do mundo inteiro são uma espécie sitiada que está
ameaçada, não tanto pela extinção mas pelo esgotamento, uma vez que
tentam realizar seu trabalho de rotina e ao mesmo tempo adaptar-se às
incessantes mudanças decorrentes das reformas, programas de
melhoramento e novas iniciativas políticas. Em resumo, as metas estão
sempre mudando. Por outro lado, devem ser feitas distinções, já que
algumas mudanças de metas são positivas e necessárias, como as melhorias
no acesso dos excluídos, aumentos da duração da jornada escolar,
oportunidades de educação superior ou permanente e o fortalecimento
da qualidade e relevância da educação. As demandas e as expectativas não
são estáticas. A batalha para conseguir o acesso se complementa
eventualmente com a luta para manter o aluno na escola e conseguir
mais anos de escolaridade. A concepção de democratização da educação
muda de uma abordagem quantitativa para uma ênfase no currículo,
nos hábitos da vida escolar, nas relações escola/comunidade e na
descentralização. Contudo, nesses assuntos, não há uma simetria evidente
nem qualquer seqüência natural ou compensação automática entre a
quantidade e a qualidade. No entanto há importantes mudanças de ênfase
que podem ser detectadas na elaboração dos sistemas educativos e nas
prioridades atribuídas a diferentes aspectos da educação. Em muitos

102
países, por exemplo, os pais de família já não se contentam com que
seus filhos freqüentem a escola primária por apenas cinco ou seis anos.
Eles querem que seus filhos comecem mais cedo e terminem mais tarde.
Compreenderam que, no século XXI, é necessário dedicar mais tempo à
escola para obter as qualificações e habilitações indispensáveis para
ingressar e progredir no mercado de trabalho.
Além disso, a relevância e a adequação do currículo chamam a
atenção não somente dos progenitores, como também dos planejadores,
que o vêem como uma alavanca estratégica para as reações de um
país aos desafios da globalização, da competitividade econômica
internacional e da denominada “divisão informática”. Estas
considerações são evidentemente importantes, mas também o são as
maneiras como a educação pode contribuir com outras dimensões
vitais do bem-estar humano. Em particular, a educação deve fazer
justiça a cada um dos “quatro pilares” mencionados no INFORME
DELORS1: aprender a saber, aprender a fazer, aprender a viver juntos
e aprender a ser. Na última Conferência Geral da UNESCO, foi
decidido que, do dia cinco ao dia oito de setembro de 2001, a
quadragésima sexta reunião da Conferência Internacional da
Educação seria dedicada ao tema dos conteúdos e métodos de educação
necessários para viver juntos no século XXI. Dezesseis meses depois
da reunião em Dakar do Fórum Mundial da Educação, a finalidade
da presente Conferência é continuar tratando da contribuição dos
dois aspectos fundamentais da qualidade educacional – os conteúdos
e os métodos – para o sucesso da educação básica para todos.

1 . E D U C A Ç Ã O PA R A V I V E R J U N T O S

Muitas inquietudes e questões vêm à mente, quando se pensa em


aprender a viver juntos e em como enfrentar, da melhor maneira esse
desafio que, na realidade, é enorme. Estas preocupações, que são analisadas

1 Jacques Delors e outros autores. Learning: the treasure within [A educação contém um tesouro]. Paris,
UNESCO, 1996. (Informe da Comissão Internacional da Educação para o Século XXI).

103
aqui sem qualquer ordem prioritária especial, poderão servir de pontos
de referência nas deliberações da Conferência. A primeira preocupação
enfoca nossa sensibilidade à natureza do desafio e à sua importância em
nossas vidas. O fato de que a educação não é a causa direta ou operativa
de guerra ou que não desencadeia a onda de violência dentro de um
Estado ou entre Estados, não deveria levar-nos a subestimar seu papel.
Afinal, a educação desempenha uma função importante na maneira
como as sociedades criam e transmitem crenças, valores, percepções e
interpretações sobre muitos aspectos de nossas vidas, incluindo questões
de conflito, paz e violência. Não obstante, há muito por fazer para
incrementar a tomada de consciência do papel da educação, quando
esta transmite mensagens que debilitam ou fortalecem nossa capacidade
de viver juntos. Temos os conhecimentos, as pesquisas e as experiências
para formular estas questões. A pesquisa educacional demonstrou, por
exemplo, que os currículos e os métodos de ensino utilizados em alguns
países, antes da Segunda Guerra Mundial, realmente fomentaram o
racismo e o militarismo. Outros estudos realizados sem livros-texto de
história e geografia atuais revelam algumas práticas sutis e outras
evidentes, em que se estabelecem estereótipos e preconceitos. É possível
que, até hoje, não tenhamos nos dado conta do que está sendo ensinado
e do que os jovens estão aprendendo, dentro e fora da escola, a respeito
das maneiras de viver com os demais, neste nosso mundo de rápidas
mudanças. Deverá ser dada uma atenção especial à relação existente entre
as mensagens transmitidas pelos meios de comunicação, pela família e
pelas escolas. Pode-se, por exemplo, solicitar aos sistemas escolares que
neutralizem algumas das mensagens violentas que a sociedade transmite:
porém, deveremos entender mais sobre as formas de fazê-lo e sobre as
repercussões das relações existentes entre a escola e a sociedade. Na ordem
do dia do diálogo educacional internacional, deverão figurar uma maior
análise dessas questões e a difusão de maiores informações sobre elas.
A segunda inquietude refere-se a nossa capacidade de definir as
aptidões necessárias para viver juntos no século XXI, assim como os
conceitos, valores e metodologias que possam desenvolver melhor tais
habilitações. Além da alfabetização e da aritmética elementar, o Quadro
de Ação aprovado pelo Fórum Mundial de Educação em Dakar, dá
importância à aprendizagem das “habilidades essenciais para a vida”.

104
Isto significa desenvolver a capacidade para lidar com a vida cotidiana,
principalmente fazer escolhas difíceis e assumir responsabilidades
pessoais. Por meio da ênfase em tais aspectos, aspira-se a encontrar
formas de aprendizagem que evitem o verbalismo e versões
enciclopedistas do século XVIII, as quais costumam criar um abismo
entre as necessidades educacionais e individuais. No entanto, é preciso
ser cauteloso no enfoque sobre as habilidades para a vida, a fim de que
este não reforce desigualdades, criando grupos de pessoas distintos, ou
seja, os que aprendem só as habilidades para a vida e os que adquirem
capacidades cognitivas superiores. Uma educação de qualidade para
todos deve proporcionar o desenvolvimento integral de cada pessoa e
dar, a cada um de nós, a oportunidade de descobrir e desenvolver seus
talentos, capacidades e potenciais. Mas os esforços para redirecionar a
ênfase excessiva às habilidades cognitivas, dada por grande parte da
educação formal, por meio de um foco nas habilidades para a vida
não devem fazer crer que as habilidades cognitivas não são importantes,
ou que sejam mais importantes para algumas crianças do que para
outras. A questão primordial é: como podemos desenvolver esses dois
conjuntos de competências paralelamente e de uma maneira integral?
Quais conteúdos e métodos deveríamos escolher?
O Informe da Comissão Internacional da Educação para o Século
XXI, presidida por Jacques Delors, oferece muitos indícios a respeito disso.
Como foi observado antes, o Informe Delors advoga a edificação da
educação em quatro pilares que desenvolvam ao mesmo tempo
habilidades práticas para a vida e conhecimentos intelectuais superiores.
No entanto, com a finalidade de pôr em prática essas orientações, é
preciso fazer uma série de perguntas. É possível, e, em caso positivo,
seria conveniente estabelecer um corpus ou uma lista de conteúdos que
possam ser ensinados em todos os países? Quanto aos métodos, pode-se
provar que alguns são mais apropriados do que outros? Em uma escala
global, será conveniente dar preferência a certos métodos, em vez de
outros, estando o mundo marcado pela diversidade cultural, pelas
interações de personalidades diferentes e pelas descobertas casuais
originadas pela experimentação e pela inventividade? Para melhorar as
maneiras de aprender a viver juntos, como podemos chegar à combinação
e ao equilíbrio de elementos nos currículos e nos processos de ensino/
105
aprendizagem? Particularmente, como podemos evitar a ênfase
exagerada sobre o desenvolvimento cognitivo, em detrimento dos
aspectos emocionais e sociais do desenvolvimento da pessoa? Que tipos
de concepção de currículos e de práticas educativas podem melhor nos
ajudar a enfrentar o forte componente emocional contido nos
preconceitos e estereótipos, que costumam interferir no processo de
viver juntos?
A terceira preocupação tem a ver com a relação entre a demanda
feita às instituições de ensino para uma melhor preparação dos jovens
para viver juntos e o conjunto existente de práticas e valores sociais. Ao
mesmo tempo, quando conferimos responsabilidades à educação para obter
essa preparação, devemos reconhecer suas limitações. Não podemos exigir
da educação o que não demandamos ou o que não podemos demandar
da sociedade. Quão eficazes podem ser as mensagens educativas se as
condições atuais de paz e justiça social as contradizem ou não as apóiam?
Se pedimos às instituições educacionais que ofereçam um ensino a favor
da coesão social, é justo pedir em troca um grau mínimo de coesão social
para habilitar as escolas para cumprirem suas missões adequadamente.
Portanto, aprender a viver juntos deve ser concebido como uma tarefa
social, com a qual a educação deveria contribuir, porém, sem esperar que
ela arque com toda a responsabilidade. A criação de consensos, a promoção
da tolerância, o respeito às diferenças e a compreensão mútua requerem
um respaldo amplamente consolidado, assim como uma liderança política
comprometida. Não podemos esperar que as escolas sejam refúgios de
tranqüilidade se estão rodeadas de turbulência e violência sociais.
A quarta inquietude diz respeito à relação entre as instituições
educacionais e os novos sistemas de distribuição da informação que
decorrem dos avanços da tecnologia de comunicação e informação. A
partir dos anos cinqüenta, as escolas, em muitos lugares do mundo,
aprenderam a viver com a televisão. No entanto, nos anos futuros, as
escolas deverão decidir que tipo de relações querem manter com as
autopistas da informação. Quando a televisão foi inventada e quando
ela começou a se difundir, alguns idealistas pedagogos acharam que
ela substituiria os docentes. Na atualidade, alguns deles sugerem que as
novas tecnologias da informação e da comunicação substituam os
docentes. Porém, isto é realmente factível? E, o que é ainda mais

106
importante, é o que realmente querem as pessoas?
Os conteúdos e os métodos educativos não aparecem
naturalmente. Eles são o produto de uma série de decisões conscientes
adotadas por uma diversidade de atores. São o resultado de atos
deliberados de seleção e ênfase efetuados na liberdade de manobra de
toda pessoa. Não há dúvidas de que os novos sistemas de distribuição de
informação oferecem, por si, oportunidades muito promissoras para o
desenvolvimento da educação no século XXI. Porém, como poderemos
aproveitar essas oportunidades para promover um maior acesso à
informação, assegurando ao mesmo tempo que a informação seja
utilizada em benefício do viver juntos? Sobre esta questão, deve-se prestar
atenção às relações sociais da aprendizagem, especialmente, às interações
entre os alunos, assim como entre estes e seus professores. Quando se
trata de aprender a viver juntos, além da preocupação com o
desenvolvimento de aptidões afetivas, com a promoção da reflexão sobre
atitudes e crenças e com a abordagem às realidades das diferenças e
conflitos interpessoais, é de grande valor a mediação hábil de educadores
profissionais. Ainda que as tecnologias da informação e a comunicação
proporcionem os instrumentos úteis para aprender a viver juntos, o
papel dos docentes é vital para dirigir o processo de aprendizagem.
A quinta preocupação enfoca aqueles que são responsáveis por
elaborar os conteúdos e os métodos da educação para viver juntos.
Durante o período da criação e da difusão dos sistemas de educação e
escolarização modernos, uma grande quantidade de instituições
formulou os conteúdos e os métodos educativos, segundo suas culturas
e seus antecedentes históricos. As autoridades públicas das nações foram
o agente principal deste processo, ainda que as instituições religiosas
tenham desempenhado, às vezes, um papel importante. Certos níveis
e tipos de educação atraíram o interesse de outros atores; por exemplo,
algumas vezes as empresas comerciais envolveram-se profundamente
no ensino secundário técnico.
Nas décadas recentes, tem havido uma maior consciência da
importância de mobilizar e reunir todos os atores sociais envolvidos
com as decisões sobre as opções educacionais, inclusive aquelas
relacionadas com o currículo. Em muitos países, experimentos bem
sucedidos foram realizados para estabelecer o perfil dos alunos que
107
abandonam a escola, com a participação das empresas. Em outros,
grande parte da tomada de decisões foi atribuída aos sindicatos de
docentes e organizações não-governamentais. Reconheceu-se que as
reformas curriculares muitas vezes fracassam pela falta de apoio da
sociedade, em geral, e dos docentes, em particular. Há muito que
aprender dessas experiências bem sucedidas, e de outras com menos
sucesso. No âmbito dos conteúdos curriculares e dos métodos, o tema
do aprender a viver juntos se destaca, por demandar uma abordagem
essencialmente consultiva e participativa, que envolva todas as partes
interessadas.
A sexta preocupação relaciona-se com a escala em que o aprender
a viver juntos deveria ser promovido. Em um mundo cada vez mais
globalizado, para aprender a viver com os demais, as relações não
podem limitar-se somente aos vizinhos imediatos. As virtudes de uma
boa cidadania, por exemplo, aplicam-se não só às comunidades locais,
mas também a populações de países distantes, que não foram e nem
serão conhecidos por determinada pessoa. A educação ecológica, um
componente importante de nossos enfoques para aprender a viver
juntos, pode oferecer inúmeros exemplos das atividades que são
realizadas em um ponto do planeta e seus efeitos produzidos em lugares
distantes. Devemos pesquisar como outras dimensões do aprender a
viver juntos transcendem os limites da distância; estas dimensões
adicionais abarcam, por exemplo, o fomento da empatia com relação
à difícil situação dos refugiados, das vítimas de guerra ou daqueles que
tiveram seus direitos humanos negados. Há alguns anos, tornou-se
popular dizer que era necessário “pensar globalmente e atuar
localmente”. Chegou o momento de revisar essa declaração na Era da
internet e considerar quantos indivíduos, hoje, adquiriram a capacidade
de participar pessoalmente em atividades de âmbito global.
A sétima e última inquietude está relacionada com a maneira de
compreender o significado de conflito e da diferença. O aprender a viver
juntos não deveria basear-se na falsa conjectura de que se pode criar
um mundo livre de conflitos, sem diferenças nem antagonismos.
Deveremos adquirir melhores conhecimentos sobre a natureza do
conflito, assim como maiores aptidões para manejar os conflitos, a

108
fim de que estes não degenerem em violência ou opressão. Deveremos
aprender a aceitar a realidade das características distintivas de outros
povos e o fato de que, provavelmente, eles não mudarão somente para
nos agradar. Aprender a viver com o outro implica o direito que um
povo tem de continuar sendo “outro”.
Para concluir, não é mera coincidência que no mesmo mês em
que a quadragésima sexta reunião da Conferência Internacional da
Educação esteja acontecendo em Genebra, outras conferências reunir-
se-ão, em Nova York e África do Sul – convocadas por organizações
associadas ao sistema das Nações Unidas –, para falar de problemas da
criança, do racismo, da xenofobia e da discriminação. Estes três eventos
juntos deverão contribuir substancialmente para uma melhor
compreensão sobre o triângulo infância, educação e práticas sociais.
Este entendimento, por sua vez, nutrirá as políticas nacionais, regionais
e institucionais, assim como as estratégias mundiais da Educação pra
Todos. Nosso objetivo coletivo é fortalecer a capacidade de cada
indivíduo para edificar a paz e a justiça na sociedade da informação
durante a era da globalização.

109
APRENDER A VIVER JUNTOS

OS CONHECIMENTOS CÍVICOS, AS CRENÇAS SOBRE


AS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS E O COMPROMISSO
CÍVICO DOS ADOLESCENTES DE 14 ANOS

Judith Torney-Purta*

Quais são os pontos em comum entre as diferentes percepções


dos jovens sobre suas sociedades e sobre suas responsabilidades e direitos
cívicos nos países democráticos? Como esperam um dia assumir sua
responsabilidade de manter as estruturas políticas democráticas e a
sociedade civil? Que papel desempenham as escolas nesses processos?
Um estudo empírico de massa com noventa mil jovens de vinte e oito
países oferece algumas respostas a estas questões, que adquiriram nova
urgência nos últimos dez anos.
Em meados dos anos noventa, a Associação Internacional para
a Avaliação do Rendimento Educacional (IEA), uma cooperativa
independente de organismos e institutos de pesquisa presente em mais

* Professora de Desenvolvimento Humano e professora adjunta de Assuntos Públicos na Universidade de Maryland, College
Park. Desde 1994, é presidente do Comitê Diretivo Internacional do Estudo sobre a Educação Cívica, executado pela
Associação Internacional para a Avaliação do Rendimento Educacional (IEA). Co-autora do volume sobre a primeira
fase do estudo, Civic education across countries: twenty-four national case studies from the IEA civic
education project (Educação Cívica entre os países: vinte e quatro estudos de casos nacionais do projeto de educação
cívica da IEA), publicado em 1999, e autora principal do volume do ano de 2001, correspondente à segunda fase
Citizenship and education in twenty-eight countries: civic knowledge and engagement at age fourteen
(Cidadania e educação em vinte e oito países: conhecimento e engajamento cívico aos quatorze anos de idade). Psicopedagoga,
interessou-se particularmente pela pesquisa empírica e pela avaliação do desenvolvimento das atitudes políticas das crianças
e jovens. Endereço eletrônico: jt22@umail.umd.edu.

111
de cinqüenta países, começou a planificar o Estudo sobre a
Educação Cívica. Este é um dos vinte estudos transnacionais em
grande escala sobre o rendimento educacional executados pela
Associação. As áreas relacionadas com a educação cívica foram
objetos de pesquisa privilegiados no final dos anos sessenta e
começo dos setenta, e numerosas organizações internacionais,
assim como unidades de pesquisa com base nacional, realizaram
estudos relacionados à educação cívica e elaboraram novos
currículos e novos programas de formação de docentes. Muitas
destas pesquisas foram realizadas por quem se interessava pela
socialização política. A IEA, por sua vez, realizou também um
pequeno estudo sobre a educação cívica em 1971 (Torney,
Oppenheim e Farnen, 1975). A clara consciência de que as
mudanças políticas e sociais no final dos anos oitenta e começo
dos noventa estabeleciam novos desafios para a educação cívica
levou a IEA a realizar um estudo sobre esta problemática, baseado
na coleta de dados de seus países membros.
O Estudo da IEA sobre a Educação Cívica foi executado em duas
fases interligadas, em grande medida porque, quando iniciou-se o
trabalho, não se dispunha de uma estrutura amplamente aceita que
pudesse guiar a elaboração de provas e questionários nas velhas e novas
democracias. A primeira fase foi constituída por estudos de casos
qualitativos nacionais, baseados numa série de perguntas estruturadas
de acordo com determinados parâmetros. Para isto, especialistas dos
países participantes foram consultados sobre o que se podia esperar
que a média dos estudantes de quatorze anos conhecesse,
compreendesse e acreditasse sobre temas como as leis, as instituições
legislativas ou a natureza dos problemas existentes na comunidade.
Foram examinadas as linhas gerais dos planos de estudo e as opiniões
de docentes e outros especialistas. Este processo serviu para identificar
um núcleo de expectativas comuns aos estudantes dos diversos países,
assim como as diferenças nas estruturas e processos curriculares, para
garantir que os jovens tivessem a possibilidade de satisfazer as exigências
do estudo. Em muitos países, os objetivos da educação cívica estavam
inseridos nos cursos de história ou ciências sociais ou dispersos ao longo

112
de todo o currículo.
Elaborou-se um modelo que mostrava a natureza dispersa da
educação cívica individual dos estudantes nos macro e microprocessos
que abarcam a sociedade, a família, o grupo de pares, a comunidade e
a escola. Os pesquisadores utilizaram recortes como a cognição
circunstanciada para compreender as maneiras como a experiência
cotidiana, tanto dentro como fora da escola, influi nas crenças e
comportamentos dos estudantes (Lave e Wenger, 1991; Wenger, 1998).
Os resultados desta fase foram publicados pela IEA no volume intitulado
Civic education across countries: twenty-four national case studies from
the IEA civic education project (Torney-Purta, Schwille e Amadeo, 1999).
A segunda fase do Estudo da IEA sobre a Educação Cívica, que
constitui a base deste artigo, começou com um extenso processo de
elaboração de um enquadramento de conteúdos em torno de três campos
temáticos identificados nas propostas dos países durante a primeira fase.
Estes campos foram: i) democracia, instituições democráticas e cidadania;
ii) identidade nacional e relações internacionais; e iii) coesão social e
diversidade. Este enquadramento constituía a base da elaboração da
prova e do questionário. Os Coordenadores da Pesquisa Nacional da
IEA em cada país e um Comitê Diretivo Internacional integrado por
dez membros contribuíram com a elaboração do instrumento destinado
aos estudantes, assim como com a aplicação da prova-piloto e com a
seleção das perguntas. Isto teve como resultado uma prova de múltipla
escolha sobre os conhecimentos cívicos e a capacidade de interpretar a
informação relacionada (trinta e oito pontos, cada um com uma resposta
correta); um questionário sobre conceitos, atitudes e comportamentos
(cento e trinta e seis pontos, sem respostas corretas); e perguntas
contextuais sobre a alfabetização nos lares, as expectativas de estudos
ulteriores cifradas em anos, sua eventual condição de membros de
organizações ou associações (assim como o gênero, a idade e outras
características demográficas). Elaborou-se também um questionário
escolar e outro docente.
O centro de coordenação internacional se encontrava na
Universidade Humboldt, de Berlim, sob a direção de Rainer Lehmann.
Os procedimentos de controle de qualidade da IEA foram seguidos
113
para a amostragem, a verificação da tradução, a aplicação das provas e
a tabela da teoria de resposta a item (TRI). Durante 1999,
aproximadamente noventa mil estudantes da série que contivesse a
maior parte dos jovens de quatorze anos de idade foram submetidos
a provas nos seguintes países: Alemanha, Austrália, Bélgica (a
comunidade de língua francesa), Bulgária, Chile, Colômbia, Chipre,
Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Estados Unidos, Estônia,
Federação Russa, Finlândia, Grécia, Hong Kong (China), Hungria,
Itália, Letônia, Lituânia, Noruega, Polônia, Portugal, Reino Unido
(Inglaterra), República Tcheca, Romênia e Suíça.
A princípio houve certo ceticismo sobre a possibilidade de elaborar
provas para a área de educação cívica. Grande parte da pesquisa nacional
sobre educação cívica abordou detalhadamente a estrutura governamental
do país de que se tratava, mas estes aspectos eram inadequados ao uso
transnacional. O Estudo da IEA sobre a Educação Cívica dedicou recursos
ao processo de elaboração das provas internacionais durante um período
de quatro anos. Por meio de um processo que compreendia a construção
de um consenso transnacional sobre o enquadramento, a preparação de
cento e quarenta projetos de item, a revisão e o ensaio piloto destes
questionários e a obtenção do visto dos Coordenadores Nacionais da
Pesquisa, foi possível elaborar um instrumento significativo, válido e
confiável. O índice de confiabilidade alfa para a prova de conhecimentos
e capacidades dos trinta e oito itens resultantes excedeu 0,80 em cada país
participante. Com a finalidade de satisfazer às normas da IEA, foi
estabelecida uma tabela de avaliação baseada nos métodos TRI, tanto para
a prova como para o questionário.
Este processo de desenho das medições transnacionais deu aos
participantes e aos condutores do estudo uma idéia clara do que é
essencial com relação à compreensão e às crenças fundamentais sobre
a democracia aplicáveis a todos os países. Por outro lado, este processo
levou também a uma concordância transnacional sobre uma série de
valiosos resultados obtidos por uma educação cívica eficaz, não limitada
aos conhecimentos ou às atitudes.
O desenho – durante o qual as amostras representativas em âmbito
nacional foram submetidas à prova e durante o qual cada estudante respondeu

114
ao mesmo instrumento – permite vários tipos de análises e apresentações.
Primeiro, as médias internacionais baseadas nas respostas de todos os
estudantes examinados podem ser utilizadas (e grande parte deste artigo
descreve o adolescente típico de quatorze anos destes vinte e oito países).
Segundo, as diferenças entre os países podem ser observadas. No volume que
abrange as conclusões do estudo, Citizenship and education in twenty-
eight countries: civic knowledge and engagement at age fourteen
(Tourney-Purta e outros, 2001), predominam os gráficos que mostram
os resultados dos distintos países e, neste artigo, são apresentadas também
algumas diferenças transnacionais. Terceiro, pode-se identificar dentro
dos países os correlatos ou indicadores de importantes conseqüências de
ordem cívica, como os conhecimentos ou o compromisso. Estas análises
sugerem eventuais orientações para explorar a reforma da educação cívica
em cada país. Podem examinar o efeito de um fator escolar, como o
clima na sala de aula, e manter constantes outros fatores, como os recursos
educacionais do lar e o gênero. Estas análises oferecem uma imagem
mais clara que a simples comparação dos resultados principais dos
diferentes grupos. Uma breve seção deste artigo apresenta um modelo
indicador dos conhecimentos cívicos.
As análises e as conclusões deste estudo estão resumidas aqui sob
as seguintes denominações de conteúdos: Conhecimentos cívicos,
Compromisso cívico e Atitudes cívicas. Apresentam-se as respostas
médias dos distintos países e algumas diferenças nacionais. Além disso,
uma breve seção deste artigo apresenta um modelo que relaciona os
conhecimentos cívicos com as características dos estudantes e os fatores
escolares. Muitos outros materiais relativos às diferenças transnacionais
e aos indicadores de compromisso e de conhecimentos cívicos podem
ser encontrados em Torney-Purta e outros (2001) e nos informes
nacionais que estão sendo publicados pelos países participantes (vide
referências em www.wam.umd.edu/~iea/).

1. ANÁLISES E CONCLUSÕES SOBRE OS


CONHECIMENTOS CÍVICOS

Os dados da IEA sobre a educação cívica mostram que o estudante

115
médio tem em todos os países uma compreensão das instituições e
dos valores democráticos fundamentais. Por exemplo, os resultados
das provas indicam que, em âmbito internacional, a maioria dos
estudantes reconhece a função das leis, das associações privadas da
sociedade civil e dos partidos políticos. No entanto, sua compreensão
parece, às vezes, superficial. Isso corrobora com as pesquisas prévias
realizadas em países individuais, com amostragens menores, por meio
de entrevistas ou ensaios escritos, que sugeriam que muitos jovens
compreendem a democracia referindo-se a uma série de slogans sobre
a liberdade ou com relação a uma instituição em particular (Doig e
outros, 1993-94; Torney-Purta, Hahn e Amadeo, 2001).
No Estudo da IEA sobre Educação Cívica, o estudante médio
demonstrou um moderado nível de capacitação para interpretar
materiais relacionados com a vida cívica – como caricaturas políticas ou
cédulas de eleições simuladas – e para distinguir as opiniões dos fatos
(Torney-Purta e outros, 2001, capítulo 3).
No entanto, existem diferenças estatisticamente significantes entre
os países a respeito dos resultados das provas de capacidades e
conhecimentos cívicos. No Quadro 1, os países estão agrupados de acordo
com seu posicionamento acima, no mesmo nível ou abaixo da média
internacional. Dentro destes três grupos, a maior parte das diferenças
entre os países não era significativa.
É útil comparar estes resultados com os estudos realizados em
outras áreas temáticas. As diferenças entre os países a respeito da
capacitação e dos conhecimentos cívicos são similares em magnitude
às encontradas em estudos transnacionais prévios da IEA sobre
alfabetização, mas não tão importantes como as encontradas em seus
estudos da área de matemática, como o Terceiro Estudo Internacional
sobre Matemática e Ciência.
Não há explicações simples para as diferenças entre estes países
nos níveis de conhecimentos cívicos. O grupo com resultados elevados
compreende não só as democracias de estabilidade prolongada, mas
também nações que conheceram transições políticas radicais durante
a vida dos adolescentes de quatorze anos incluídos no estudo e que
ainda estão em processo de consolidação da democracia (República

116
Tcheca, Polônia e Eslováquia). Estes países experimentaram
mudanças políticas altamente visíveis e amplamente discutidas.
Pouco depois dessas mudanças, os sistemas escolares destes países
foram rapidamente modificados com o fim de introduzir novos
programas de educação cívica democrática. Estes fatores podem
ter influenciado nos resultados dos estudantes; os relatórios
nacionais, por sua vez, apresentarão outros elementos
complementares.

QUADRO 1. Rendimento por país com relação ao total de


conhecimentos cívicos segundo o Estudo da IEA sobre a Educação
Países significativamente
Cívica: médias e desviosPaíses não
padrões. Países significativamente
acima da média significativamente diferentes abaixo da média
internacional de 100 da média internacional de 100 internacional de 100

Polônia 111 (1,7) Austrália 102 (0,8) Portugal 96 (0,7)


Finlândia 109(0,7) Hungria 102 (0,6) Bélgica 95 (0,9)
(língua francesa)
Chipre 108 (0,5) Eslovênia 101 (0,5) Estônia 94 (0,5)
Grécia 108 (0,8) Dinamarca 100 (0,5) Lituânia 94 (0,7)
Hong Kong 107 (1,1) Alemanha 100 (0,5) Romênia 92 (0,9)
(China)
Estados Unidos 106 (1,2) Federação Russa 100 (1,3) Letônia 92 (0,9)
Itália 105 (0,8) Reino Unido 99 (0,6) Chile 88 (0,7
(Inglaterra)
Eslováquia 105 (0,7) Suécia 99 (0,8) Colômbia 86 (0,9)
Noruega 103 (0,5) Suíça 98 (0,8)
República Tcheca103 (0,8) Bulgária 98 (1,3)

Notas: As amostras dos estudantes submetidos à prova eram


representativas em âmbito nacional, compensadas para corresponder

117
às cifras demográficas e ordenadas por magnitude a partir de 2.076
na Bélgica até 5.688 no Chile. Os estudantes eram examinados na
oitava ou na nona séries (de acordo com a série em que as estatísticas
nacionais indicaram que se encontraria a maior proporção de
adolescentes de 14 anos). A média de idade mais baixa se encontrou
na Bélgica (língua francesa), 14,1, e a mais alta em Hong Kong, 15,3.
Fonte dos dados: Estudo da IEA sobre a Educação Cívica,
mostras de quatorze anos de idade submetidos à prova em 1999. Vide
Torney-Purta e outros, 2001.
Os resultados cognitivos totais apresentados no Quadro 1 estão
compostos de dois subtotais intitulados “conhecimentos de conteúdos”
(conhecimento de princípios democráticos fundamentais) e “capacidade
de interpretar informação relacionada com a vida cívica” (como caricaturas
políticas, cédulas eleitorais ou reportagens jornalísticas). A comparação
dos resultados destas subescalas mostra pautas interessantes. Os estudantes
da Austrália, do Reino Unido (Inglaterra), da Suécia, da Suíça e dos Estados
Unidos obtiveram melhores resultados nos pontos que mediam a
capacidade de compreender a informação relacionada com a vida cívica
do que nos que mediam o conhecimento de conteúdos sobre os princípios
democráticos fundamentais. Já os estudantes de países como a Bulgária, a
República Tcheca, a Hungria, a Federação Russa e a Eslovênia alcançaram
melhores pontuações nos itens que mediam o conhecimento de conteúdos
do que nos que avaliavam a capacidade de interpretar a comunicação
política concreta. Os resultados destes países podem refletir diferenças nos
aspectos privilegiados pelos currículos: por exemplo, uma maior ênfase
dada aos conceitos e princípios políticos abstratos nos países pós-comunistas
e, pelo contrário, a primazia dada a sua aplicação concreta na América do
Norte, Austrália e parte da Europa Ocidental. Os países não mencionados
acima se desempenharam de maneira equivalente nas duas subescalas.
Em quase todos os países participantes, os estudantes que
afirmaram ter mais livros em casa demonstraram maiores conhecimentos
cívicos. A comparação entre os distintos graus de disponibilidade desses
recursos culturais pode também servir para interpretar algumas diferenças
entre os países. Os estudantes de quatro dos oito países que obtiveram
resultados abaixo da média internacional na prova de conhecimentos

118
afirmaram possuir poucos livros em suas casas (para uma análise mais
detalhada, vide Torney-Purta e outros, 2001, capítulo 3).
O alcance da compreensão dos princípios democráticos dos
adolescentes de 14 anos também fica demonstrado pela medição dos
“conceitos de democracia” do estudo. As respostas dos estudantes a
estas tabelas de conversão (que interrogavam sobre o que era bom ou
mau para a democracia, mas não designavam respostas corretas)
corroboraram os resultados das provas citados acima. Em todos estes
vinte e oito países existe consenso sobre o fato de que a democracia se
consolida quando os cidadãos podem escolher livremente seus dirigentes,
quando existem muitas organizações para quem deseja aderir a elas e
quando todas as pessoas têm direito de expressar suas opiniões.
Inversamente, estes jovens crêem que a democracia se debilita quando
os ricos têm uma influência particular sobre o governo, quando os
políticos exercem pressão sobre a justiça, quando uma única empresa
possui todos os jornais e quando se proíbe o povo de expressar idéias
que critiquem o governo.
Apesar de muitos estudantes terem uma compreensão cabal dos
fundamentos básicos da democracia, em cada um dos países há grupos
que não mostram esse nível de captação. O nível relativamente baixo
da capacidade de compreensão de elementos de comunicação cívica
(por exemplo, cédulas como as utilizadas durante as eleições) é altamente
preocupante em alguns países.

2. ANÁLISES E CONCLUSÕES SOBRE O COMPROMISSO


CÍVICO

O Estudo da IEA sobre a Educação Cívica dava ênfase a vários


aspectos do compromisso cívico. Para medir a participação e o
envolvimento, o instrumento da pesquisa incluía numerosas perguntas
sem respostas corretas e incorretas. Entre estas perguntas encontravam-
se algumas que sondavam a opinião dos jovens sobre a importância
que os adultos davam a distintos aspectos da vida cívica, sobre as
atividades comunitárias das quais já participavam, junto com aquelas
das quais se propunham a participar quando fossem adultos, e sobre o

119
grau de confiança que tinham no valor da participação em grupos
escolares organizados.
QUADRO 2: Médias internacionais sobre pontos que avaliavam o
conceito de bom cidadão adulto
Um adulto que é bom Importância Um adulto que é bom Importância
cidadão cidadão

Obedece à lei 3,65 Vota em todas as eleições 3,12


Participa de atividades que 3,24 Acompanha a realidade 2,85
promovam os direitos política pelos jornais,
humanos rádio ou televisão
Participa de atividades de Participa em discussões 2,37
proteção ao meio ambiente 3,15 políticas

Participa de atividades Adere a um partido político 2,11


em prol da comunidade 3,13

Notas: As tabelas de conversão iam de 1 (não importante) a 4


(muito importante). Sobre estes oito pontos não havia consenso
transnacional – definido como a diferença de um ponto ou menos na
escala, entre a média nacional mais baixa e a média mais alta – nem
alto nem moderado.
Fonte dos dados: Estudo da IEA sobre a Educação Cívica, mostras
de adolescentes de quatorze anos submetidos a provas em 1999. Vide
Torney-Purta e outros, 2001.
O Quadro 2 mostra os pontos que avaliavam o que os adolescentes
de quatorze anos dos distintos países crêem que seja importante que os
adultos façam para ser bons cidadãos. Estes jovens consideravam que
obedecer à lei é uma responsabilidade muito importante do civismo
adulto e que votar também é importante. Outros comportamentos
que tradicionalmente são associados à consciência cívica dos adultos,
como a participação em discussões políticas ou a adesão a um partido
político, são considerados por estes jovens como relativamente sem

120
importância. Por outro lado, em todos os países os jovens crêem que as
responsabilidades dos cidadãos adultos compreendem fazer parte de
atividades que promovam os direitos humanos, protejam o meio
ambiente e beneficiem a comunidade. Em alguns países também se
considera importante acompanhar os acontecimentos políticos nos
meios de comunicação (para mais detalhes, vide Torney-Purta e outros,
2001, capítulo 4). Em suma, as responsabilidades do civismo
convencional são percebidas por estes estudantes como
consideravelmente menos importantes do que o que por vezes é
chamado de “atividades relacionadas com movimentos sociais”.
Os estudantes foram interrogados também sobre o tipo de
participação política que esperavam assumir quando fossem adultos.
Apenas cerca de 20% da amostra (de todos os países em seu
conjunto) afirmaram que se propunham a participar das atividades
habitualmente associadas com o compromisso político convencional
dos adultos, por exemplo, aderir a um partido político, escrever
nos jornais sobre problemas de interesse político ou social ou
candidatar-se a cargos locais ou municipais. Os 80% restantes
afirmaram, no entanto, que provável ou certamente votariam. Estes
estudantes disseram também que provavelmente coletariam
dinheiro para uma causa social ou de caridade (a média internacional
foi de 59%) e que provavelmente participariam de passeatas de
protesto não violentas (a média internacional foi de 44%). Pelo
contrário, a participação em atividades de protesto que seriam ilegais
na maioria dos países, como bloquear a circulação ou ocupar
edifícios, foram consideradas eventualmente possíveis apenas para
15% dos estudantes. Com exceção de votar, os estudantes se
mostraram bastante cépticos com respeito às formas tradicionais
de compromisso político. Por outro lado, muitos estão abertos a
outros tipos de envolvimento na vida cívica.
Para examinar as diferenças transnacionais, foram elaboradas
três tabelas separadas relativas ao compromisso cívico: uma que dava
ênfase às crenças sobre a importância das atividades cívicas
convencionais, outra que enfatizava as crenças sobre a importância
das atividades cívicas relacionadas com movimentos sociais e uma
121
terceira que indagava sobre a intenção de participar em atividades
cívicas convencionais quando fossem adultos.
Quando as médias nacionais foram comparadas, os estudantes
dos seguintes países apresentaram altos níveis que compromisso cívico
(acima da média internacional em duas das três tabelas enumeradas
no parágrafo anterior e pelo menos no nível médio na terceira): Chile,
Colômbia, Chipre, Grécia, Polônia, Portugal, Romênia, e Estados
Unidos. Os estudantes dos seguintes países mostraram baixos níveis de
compromisso cívico (abaixo da média internacional nas três tabelas):
Austrália, Bélgica (língua francesa), República Tcheca, Dinamarca,
Reino Unido (Inglaterra), Finlândia, Suécia e Suíça. Os demais países
apresentaram resultados mais variados.
Estes resultados sugerem que o envolvimento dos jovens em
atividades de tipo cívico constitui um processo complexo que se produz
dentro de contextos políticos diferentes. Entre os países onde os
estudantes se mostraram relativamente entusiasmados com respeito
à participação cívica e manifestaram estar comprometidos, havia
quatro que apresentaram baixos resultados em conhecimentos cívicos
(Chile, Colômbia, Portugal e Romênia) e quatro que obtiveram altos
resultados em conhecimentos (Chipre, Grécia, Polônia e Estados
Unidos). Entre os países onde os estudantes apareceram relativamente
desinteressados na atividade cívica encontravam-se países com altos
resultados cognitivos (República Tcheca e Finlândia), assim como
também outros resultados mais moderados nesse mesmo tipo de prova
(Austrália, Bélgica (língua francesa), Dinamarca, Reino Unido
(Inglaterra), Suécia e Suíça). Quando são examinadas as diferenças
entre os países, é possível constatar que os níveis elevados de
conhecimentos cívicos não estão necessariamente acompanhados pelo
mesmo nível de compromisso.
Além de examinar o potencial compromisso em atividades cívicas
orientadas para o âmbito nacional ou municipal, o instrumento da
IEA incluiu uma medida intitulada “Confiança na participação dentro
da escola”, para indagar sobre as experiências democráticas no âmbito
escolar. A pesquisa prévia incluiu com freqüência medições da eficácia
política, nas quais os entrevistados respondiam sobre o poder dos

122
cidadãos para influenciar sobre os governos locais ou nacionais. O
estudo da IEA examinou a experiência cotidiana dos jovens em suas
escolas e não só suas orientações com respeito às autoridades
governamentais mais distantes. Esta medição foi elaborada com o fim
de avaliar o sentido da eficácia escolar, até que ponto os estudantes
pensam que reunir-se com outros estudantes para tentar melhorar sua
escola pode eventualmente ter resultados positivos.
Entre essas comparações transnacionais, as mais interessantes
foram as que se referiam às medições da “Confiança na participação
dentro da escola”. No Chile, em Chipre, na Grécia, na Polônia, em
Portugal e na Romênia, os estudantes mostraram altos níveis de
compromisso cívico na área política da atividade adulta (vide os países
de altos e baixos índices de compromisso cívico enumerados
previamente nesta seção) e também altos níveis de confiança no
compromisso dentro da escola. Nestes países, a experiência com a
democracia na escola e o compromisso cívico na sociedade como um
todo são razoavelmente congruentes. Em contraste, na Dinamarca,
na Finlândia e na Suécia, apesar de haver altos níveis de confiança na
participação dentro da escola, os níveis de compromisso no campo da
política local ou nacional eram relativamente baixos. Nestes três países
nórdicos, os estudantes têm experiências positivas de eficácia política
dentro da escola, mas isso não parece transportar-se ao compromisso
cívico orientado à conduta política adulta.
Em suma, em nível transnacional existe uma considerável
variabilidade no compromisso cívico dos estudantes. A maioria dos
jovens não se sente atraída pelo tipo de atividades comuns em muitas
democracias entre os adultos politicamente comprometidos. Neste
ponto existe também um complexo panorama de diferenças
transnacionais. Entre os países onde os estudantes expressam níveis
relativamente altos de crença na importância das atividades cívicas
convencionais ou relacionadas com movimentos sociais, incluem-se
alguns que obtêm bons resultados na prova de conhecimentos e outros
cujo rendimento é relativamente pobre. Além disso, os países em que
os estudantes afirmam ter experiências positivas de participação na
escola nem sempre correspondem àqueles em que os jovens crêem na
123
importância das atividades políticas extra-escolares, sejam convencionais
ou relacionadas com os movimentos sociais.

3. ANÁLISES E CONCLUSÕES A RESPEITO DAS


AT I T U D E S C Í V I C A S

O instrumento da IEA incluía uma variedade de medições das


atitudes cívicas e políticas. Porque se supõe que a legitimidade dos
governos democráticos depende da confiança política dos cidadãos e
porque existia uma pesquisa transnacional prévia neste campo
(Inglehart, 1997; McAllister, 1999), foi incluída uma avaliação da
confiança nas instituições governamentais. Em quase todos os países,
os tribunais e a polícia receberam a maior confiança destes adolescentes
de quatorze anos, seguidos pelos governos locais e nacionais. Alguns
países desviaram deste modelo e mostraram governos locais e nacionais
que gozavam de maior confiança que as instituições do sistema judicial.
No entanto, em todos os países os partidos políticos foram os que
receberam menor confiança.
Os adolescentes de quatorze anos parecem já ser membros das
culturas políticas de seus países e expressar altos níveis de confiança que
correspondem amplamente aos dos adultos. O nível mais alto de confiança
nas instituições governamentais foi encontrado entre os adolescentes de
quatorze anos da Dinamarca, Noruega e Suíça, e o mais baixo, na Bulgária,
na Federação Russa e na Eslovênia. Geralmente, os países com uma história
democrática curta (incluídos os países pós-comunistas) mostraram níveis
mais baixos de confiança nas instituições governamentais (para mais
detalhes, vide Torney-Purta e outros, 2001, capítulo 5; para dados similares
sobre amostras de adultos, vide McAllister, 1999).
Um dos propósitos do estudo era investigar as atitudes com
respeito à coesão social e à diversidade. Isto se mostrou difícil, por causa
das diferentes situações e das diversas características dos grupos sujeitos
à discriminação nas distintas regiões. Em alguns dos países participantes,
a discriminação é um problema de racismo ou de intolerância religiosa.
Em outros, trata-se de um problema de discriminação às minorias

124
nacionais, aos imigrantes ou a grupos que falam uma língua materna
diferente da falada pela maioria da população. Entretanto, foi possível
elaborar uma tabela relativa às atitudes com relação aos direitos dos
imigrantes. Em todos os países, os jovens sustentavam os direitos dos
imigrantes, sendo que o maior nível de apoio era à oportunidade
educacional e o menor era ao direito de manter sua própria língua.
As mulheres constituem outro grupo sujeito à discriminação na
vida política em muitas sociedades. No instrumento da IEA foi incluída
uma escala de apoio aos direitos políticos e trabalhistas da mulher; os
estudantes sustentavam amplamente estes direitos e estavam de acordo
com pontos como “as mulheres deveriam ocupar cargos públicos e
participar do governo tanto quanto os homens” e em desacordo com
outros como “os homens estão melhor qualificados que as mulheres
para serem líderes políticos” e “quando o trabalho torna-se escasso, os
homens têm mais direito a trabalhar do que as mulheres”.
Os estudantes da Austrália, da Dinamarca, do Reino Unido
(Inglaterra) e da Noruega obtiveram os melhores resultados no que
diz respeito à sustentação dos direitos da mulher, com marcas também
acima da média em Chipre, Finlândia, Alemanha, Suécia, Suíça e
Estados Unidos. Os estudantes da Bulgária, Letônia, Romênia e
Federação Russa obtiveram os resultados mais baixos no ponto dos
direitos da mulher, com Chile, Estônia, Hong Kong (China), Hungria,
Lituânia e Eslováquia também abaixo da média internacional. Em
quase todos os países em que os estudantes obtiveram marcas abaixo
da média internacional nos direitos da mulher, as taxas de desemprego
adulto eram superiores a 10% da força de trabalho. Os baixos índices
desses países podem estar relacionados com os pontos da tabela relativos
à competição por empregos.
A dimensão política desta tabela também é importante. Estes
dados oferecem a oportunidade de comparar países de regiões diversas
e com diferentes graus de representação feminina nas legislaturas
nacionais. Na Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Noruega e Suécia,
onde as mulheres ocupam mais de 30% das bancadas parlamentares, a
sustentação dos jovens aos direitos das mulheres é alta. A maioria dos
países em que os resultados dos estudantes estão significativamente
125
abaixo da média internacional no que diz respeito à sustentação dos
direitos da mulher possui relativamente poucas mulheres em suas
legislaturas nacionais: de 6% na Federação Russa e Romênia a 17%
nos três Estados Bálticos. Pode ser que, quando vêem as mulheres assumir
posições políticas, os jovens as vejam também como modelos e
desenvolvam atitudes mais positivas com relação aos direitos da mulher.
Outra possibilidade é que os eleitores que desenvolvem uma atitude de
sustentação aos direitos da mulher durante a adolescência sejam mais
propensos a votar em mulheres candidatas quando chegam à idade adulta.
Uma explicação alternativa seria a combinação destes processos com
outros fatores, como um movimento feminino bem organizado e visível
(para mais detalhes, vide Torney-Purta e outros, 2001, capítulos 1 e 5).
Existem diferenças substanciais de gênero na sustentação dos
direitos dos imigrantes e diferenças muito substanciais de gênero na
sustentação dos direitos políticos e econômicos da mulher. O apoio
aos direitos dos imigrantes e das mulheres é maior no caso das mulheres
(dado corroborado por grande parte da pesquisa anterior).

4. INDICADORES DE CONHECIMENTO E
COMPROMISSO CÍVICOS

As diferenças entre países, como as apresentadas nas seções


anteriores, são de grande interesse para compreender os contextos e os
processos da educação cívica. Entretanto, muitas questões de relevância
para os planificadores, educadores e pesquisadores ficariam sem resposta
se não fossem explorados os correlatos entre os conhecimentos cívicos e
o compromisso dos estudantes. Com a finalidade de abordar algumas
destas questões e de sugerir orientações para futuras análises, elaboraram-
se modelos simples para detectar os conhecimentos cívicos e as
probabilidades de voto expressas. Como primeiro passo, foi desenvolvido
um modelo por regressão de acesso para uma amostra composta na
qual os vinte e oito países eram ponderados de maneira equivalente;
logo foram produzidas regressões separadas utilizando a amostra

126
plenamente ponderada para cada país. O modelo por regressão para
“os conhecimentos cívicos” está resumido no quadro 3 (para uma
informação mais completa, incluindo uma análise paralela dos
Expectativa de educação ulterior cifrada Freqüência com que assistem ao noticiário
indicadores de probabilidade de voto, vide Torney-Purta, 2001, capítulo
em anos (indicador + em vinte e oito países) pela televisão (indicador + em dezesseis países)
8).
QUADRO
Recursos 3.(indicador
de leitura no lar Indicadores
+ emdos Gênero
resultados de conhecimentos
feminino cívicos
(indicador – em onze países)
vinte e sete países)

Passa as noites com os amigos fora de casa Participação em conselhos de estudantes


(indicador – em vinte e quatro países) (indicador + em dez países)

Clima propício para discussões em classe


(indicador + em vinte e dois países)

Nota: As correlações de múltiplos quadrados iam de 0,10 na Colômbia


a 0,36 na República Tcheca, com uma média de 0,22.

Os indicadores mais importantes dos resultados sobre


conhecimentos cívicos foram as aspirações à educação superior e os
recursos de leitura disponíveis no lar, ambos relacionados positivamente
ao conhecimento. Os indicadores de conhecimentos cívicos são bastante
similares aos encontrados em outras áreas temáticas examinadas pela
IEA. Os estudantes de contextos que alimentam aspirações à educação
superior e oferecem recursos de leitura possuem mais conhecimentos
cívicos e capacitações. Por outro lado, os jovens que com freqüência
passam as noites fora de casa acompanhados por seus amigos têm
conhecimentos cívicos e capacitações inferiores. Isto pode indicar que
um grupo não dedica muito tempo ao seu trabalho escolar ou tem
tendência a assumir os valores de seus amigos mais do que os de seus
pais ou professores.
Em pouco menos da metade dos países, as mulheres obtiveram
127
resultados inferiores aos homens na área de conhecimentos cívicos
(quando estes outros fatores se mantinham constantes). A magnitude
destas diferenças de gênero tendem a ser relativamente pequenas em
comparação com os estudos realizados no passado.
A freqüência com que assistem ao noticiário pela televisão
constitui um indicador de conhecimentos cívicos superiores na metade
do países, aproximadamente. Com esta variável não se pode descartar
a possibilidade de que os estudantes que estão mais informados sobre
temas cívicos tenham mais interesse em acompanhar a atualidade pela
televisão, e não o contrário.
Ainda quando os fatores do lar, do grupo de amigos e dos meios
de comunicação se mantêm constantes, há dois aspectos da escola que
contribuem de maneira substancial ao conhecimento cívico. O primeiro
duplica uma relação encontrada no Estudo da IEA sobre a Educação
Cívica de 1971 e em outros estudos reexaminados por Torney-Purta,
Hahn e Amadeo (2001). Na pesquisa da IEA de 1999, a intensidade
com que os estudantes experimentavam em sala de aula um clima
propício à discussão aberta foi positivamente relacionada com o
conhecimento cívico em vinte e dois dos vinte e oito países. Na tabela
“clima na sala de aula”, perguntava-se aos estudantes, por exemplo,
com que freqüência eram incentivados a pensar por conta própria
sobre distintos temas, em que medida os docentes respeitavam as
opiniões dos alunos e os incentivavam a expressá-las durante as
discussões em classe e em que medida os professores incentivavam a
discussão de temas sobre os quais as pessoas têm opiniões diferentes e
apresentavam diversos aspectos destes problemas. Aproximadamente
40% dos estudantes disseram ser incentivados com freqüência a pensar
por conta própria e afirmaram que suas opiniões eram respeitadas.
Somente entre 15% e 25% disseram ser incentivados com freqüência a
discutir temas controversos ou ter ouvido distintas versões de um
problema. Os estudantes que haviam tido estas experiências em classe
obtiveram melhores resultados em conhecimentos, inclusive quando
eram consideradas as diferenças nas aspirações educacionais e a
disponibilidade de livros em suas casas.
A outra experiência escolar que se relacionou positivamente

128
com o conhecimento foi a participação em um conselho ou grêmio
estudantil (uma influência positiva sobre o conhecimento cívico
em um terço dos países, aproximadamente). Em alguns países, no
entanto, essas organizações escolares não parecem estar ao alcance
de muitos estudantes (Torney-Purta e outros, 2001, capítulo 7).
Os estudos de caso realizados como parte da primeira fase do
Estudo da IEA sobre a Educação Cívica indicaram também que
em alguns países existe uma considerável ambivalência sobre o
poder real que estas organizações deveriam ter na escola (Torney-
Purta, Schwille e Amadeo, 1999).
Em suma, existem dois fatores escolares – ambos indicativos
de uma atmosfera democrática – que parecem explicar o sucesso da
educação cívica dos jovens de quatorze anos: um clima de abertura na
sala de aula, em que incentiva-se a discussão de temas relacionados
com o exercício da cidadania, e a participação em um conselho ou
grêmio escolar. Em certos países, no entanto, a incitação dos jovens a
expressar suas opiniões parece ser muito limitada e, por outro lado, a
oportunidade de participar em grêmios escolares é rara em alguns
lugares. Estes aspectos podem constituir a matéria para posteriores
explorações de educadores e planificadores interessados na promoção
dos conhecimentos cívicos dos estudantes.

5. CONCLUSÕES GERAIS

Este estudo traça uma imagem relativamente positiva do


adolescente médio de quatorze anos de idade em diversos países, descrito
como alguém que:
• possui consideráveis conhecimentos sobre os princípios
democráticos fundamentais e uma capacidade moderada para
analisar a informação de relevância cívica;
• adere ao “texto básico da democracia”;
se propõe a votar;
• crê que outras atividades tradicionalmente associadas com o
exercício adulto da cidadania são menos importantes do que a
129
participação em grupos comunitários ou em movimentos de
proteção ao meio ambiente; e
• já faz parte de uma cultura política compartilhada com os
adultos de seu país.
Existem substanciais diferenças de conhecimentos cívicos e de
capacitação para interpretar a informação associadas ao contexto
familiar. Estas diferenças são mais modestas com respeito às
probabilidades de voto e bastante pequenas quando se trata das atitudes.
Observam-se algumas diferenças relacionadas ao gênero no que diz
respeito aos conhecimentos cívicos (com as mulheres menos
informadas do que os homens em alguns países), diferenças mais
substanciais nas atitudes com respeito aos imigrantes (com as mulheres
mais positivas do que os homens em muitos países) e diferenças muito
substanciais nas atitudes com relação aos direitos da mulher (com as
mulheres muito mais positivas do que os homens em todos os países
participantes).
Os grupos de países em que poderiam esperar obter resultados
similares em conhecimentos cívicos e compromisso (por exemplo, os
países pós-comunistas) na realidade mostram pautas muito diversas.
Em alguns destes países, os adolescentes de quatorze anos mostram
altas médias tanto em conhecimentos como em compromisso,
enquanto que os de outros países deste grupo obtêm resultados baixos
em ambos os campos. Ainda entre os países pós-comunistas, há casos
de alguns cujos estudantes mostram altos resultados em conhecimentos
e baixos em compromisso (ou baixos em conhecimentos e altos em
compromisso). A mesma diversidade é encontrada entre as democracias
de longa data participantes.
O estudo põe em evidência que as escolas contribuem para
melhorar os conhecimentos cívicos dos estudantes quando lhes oferecem
oportunidades de discussão aberta em classe. A participação em
organizações como os grêmios escolares ou conselhos de classe também
mostra surtir um efeito positivo em alguns países. O desenvolvimento
desses aspectos da vida escolar acarreta, entretanto, uma série de desafios.
Como pode-se melhorar a capacitação docente para estabelecer um
clima aberto e respeitoso em sala de aula, de modo que, ao analisar

130
temas relacionados com a vida cívica, mantenha-se a atenção sobre
os conteúdos e as atitudes? Como pode-se vincular as atividades em
grupos comunitários e ecológicos e em outras organizações que
parecem interessar aos jovens com o compromisso político
convencional? Como pode-se converter a vontade de votar e de
comprometer-se em certos aspectos da vida cívica expressa pelos
adolescentes de quatorze anos em voto real à idade de dezoito anos?
Como pode-se diminuir o vão que existe entre os estudantes de lares
mais confortáveis, que podem esperar fazer estudos superiores, e os
de origem modesta?
A análise deste fecundo conjunto de dados foi apenas iniciada
com a publicação pela IEA de Citizenship and education in twenty-
eight countries: civic knowledge and engagement at age of fourteen
(Torney-Purta e outros, 2001). Muitos aspectos serão discutidos em
publicações de outros membros do Comitê Diretivo Internacional
(incluídos os resultados de um questionário dirigido a docentes que
não foi abordado aqui). Os países participantes publicarão os relatórios
nacionais. O caráter da educação cívica em 1999, refletido pelas respostas
destes noventa mil jovens, será apresentado à comunidade educacional
internacional para uma consideração ainda mais ampla quando, em
2002, forem divulgados os dados para sua análise.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DOIG, B. et al. 1993-1994. Conceptual understanding in social


education (Entendimento conceitual em educação social). Melbourne,
Australian Council for Education Research.
INGLEHART, R. 1997. Modernization and post-modernization:
cultural, economic and political changes in 43 societies (Modernização
e pós-modernização: mudanças culturais, econômicas e políticas em 43
sociedades). Princeton, New Jersey, Princeton University Press.
LAVE, J.; Wenger, E. 1991. Situated learning: legimimate peripheral
participation (Aprendizado situado: participação periférica legítima).
Cambridge, Reino Unido, Cambridge University Press.
131
MCALLISTER, I. 1999. The economic perfomrnace of
governments (A performance econômicas dos governos). In: Norries,
P. (comps.). Critical Citizens: global support for democratic government, pp.
188-203. Oxford, Reino Unido, Oxford University Press.
TORNEY, J.; Oppenheim, A.N.; Farnen, R. 1975. Civic education
in ten countries: an empirical study (Educação cívica em dez países: um
estudo empírico). Estocolmo, Almquist e Wiksell.
TORNEY-PURTA, J. et al. 2001. Citizenship and education in
twenty-eight countries: civic knowledge and engagement at age of
fourteen (Cidadania e educação em vinte e oito países: conhecimentos
cívicos e engajamento aos quatorze anos de idade). Amsterdam, IEA.
Correio eletrônico: Department@iea.nl. Web: www.eam.umd.edu/~iea/
.TORNEY-PURTA, J.; Hahn, C.; Amadeo, J. 2001. Principles of subject-
specific instruction in education for citizenship (Princípios da instrução específica
em educação para a cidadania). In: Brophy, J. (comps). Subject specific
instructional methods and activities. Oxford, Reino Unido, Elsevier Science.
TORNEY-PURTA, J.; Schwille, J.; Amadeo, J. 1999. Civic education across
countries: twenty-four national case studies from the IEA civic education project
(Educação cívica entre os países: vinte e quatro estudos de caso do projeto de
educação cívica da IEA). Amsterdam, IEA. Correio eletrônico:
Department@iea.nl.
WENGER, E. 1998. Communities of practice (Comunidades de prática).
Cambridge, Reino Unido, Cambridge University Press.

132
EDUCAÇÃO PARA TODOS
PARA APRENDER A VIVER JUNTOS:

UM DESAFIO PRIORITÁRIO NO SÉCULO XXI


Cecilia Braslavsky1

A presente publicação reúne diversos artigos apresentados em dois


números da revista Perspectivas da UNESCO destinados ao tema da
Educação para Viver Juntos e associados à realização da 46ª Conferência
Internacional de Educação que aconteceu em Genebra, organizada pelo
Escritório Internacional de Educação da UNESCO (EIE), mais conhecido
por suas siglas francesas BIE (Bureau International d’Education), em
setembro de 2001. Trata-se dos números 119 e 121, publicados,
respectivamente, em setembro de 2001 e março de 2002.
Essa conferência acabou no dia 9 de setembro, apenas alguns dias
antes dos ataques de 11 de setembro. A escolha do tema por parte da
Conferência Geral da UNESCO de 1998 tinha colocado em evidência
a decisão da organização de refletir sobre alguns dos paradoxos do
século XX e de convocar os ministros, acadêmicos, representantes do
magistério e de organizações internacionais para identificar os
problemas existentes por trás desses paradoxos e as soluções que estão
sendo elaboradas no mundo inteiro. Os debates que aconteceram
durante a conferência e os materiais que foram produzidos para ela,
assim como suas conclusões, mostram o acerto da decisão de 1998. Os
eventos subseqüentes ratificam o acordo e fortalecem a percepção da
urgência sem se abordar estes temas.

1 Cecília Braslavsky é diretora do Escritório Internacional de Educação da UNESCO, com sede em Genebra. http:/
/www.ibe.unesco.org.

133
A publicação que apresentamos foi produzida conjuntamente
entre o BIE e o Escritório da UNESCO no Brasil para o II Telecongresso
Internacional da Educação de Jovens e Adultos de agosto de 2002, e
propõe-se a transmitir uma seleção dos insumos para a 46a Conferência
Internacional de Educação e das propostas nela apresentadas. Com
esta finalidade começamos constatando certos elementos que marcaram
permanentemente o diálogo e, em continuação, apresentamos
sinteticamente o conteúdo dos artigos selecionados para esta produção.
O Século XX foi um período de avanços significativos na
escolarização universal. No entanto, estes avanços não puderam
impedir mais de 180 milhões de mortes de seres humanos provocadas
intencionalmente por outros seres humanos, nem conseguiu solucionar
os conflitos que têm afligido, durante anos, muitos países, e tampouco
conseguiu deter a expansão do HIV/Aids. O alvorecer do Século XXI
também nos mostrou outras caras da morte: dirigentes políticos e
sociais, cientistas e tecnólogos com os mais altos níveis educativos
imagináveis estiveram envolvidos em decisões e ações que contribuíram
para o desencadeamento de matanças massivas.
Diante desses atos surgem numerosas perguntas: como melhorar o
esforço de escolarização iniciado há séculos sob as asas do Iluminismo?
Que responsabilidade tem a educação nas crises, conflitos intergeracionais
e interétnicos, perseguições e discriminações religiosas e de outra natureza?
Como pode a educação contribuir para o distanciamento da morte e
para dar sentido à vida de todos? Que elementos ela pode oferecer para
que se consiga viver juntos e em paz?
A 46a Conferência Internacional de Educação da UNESCO (CIE,
2001) constituiu o evento internacional mais importante que aconteceu
nos últimos anos para o intercâmbio de idéias e o debate sobre estas
contradições. Sob o lema de considerar, ao mesmo tempo, os problemas
e as soluções da educação para viver juntos, discutiu-se como desenvolver
uma cultura mundial para a paz, criada por governos e cidadãos que
desejem e saibam viver juntos.
As suposições subjacentes à escolha dos temas abordados e da
modalidade de trabalho da CIE foram as de que a educação fornecida
no século XX não é pertinente para o propósito de aprender a viver

134
juntos no Século XXI; que os processos de aprofundamento das
interdependências econômicas, culturais e sociais atuais devem ser
encarados por meio de novos equilíbrios entre educação local, nacional
e para a compreensão internacional; e, finalmente, que para poder
viver juntos é imprescindível que todas as pessoas de todas as culturas
tenham uma educação de base, que lhes permita participar na vida
pública, nos conhecimentos e – conseqüentemente – na produção e na
redistribuição dos benefícios da riqueza mundial.
As conclusões da 46a CIE reiteram aspectos conhecidos. Por
exemplo, que “o direito das crianças ao livre acesso às escolas está longe
de ser respeitado no mundo...”. Mas, também, aparecem novas facetas
desses aspectos. Assim, pela primeira vez, uma Conferência
Internacional de Ministros da Educação propõe, com unanimidade e
aclamação, a adaptação dos currículos (planos e programas de estudos,
métodos de trabalho nas salas de aula e nas escolas) e a atualização dos
conteúdos, com a perspectiva da necessidade de coesão social e da
resolução pacífica dos conflitos e das tensões. Isto, com a finalidade de
que reflitam, por exemplo, “as mudanças econômicas e sociais que
aconteceram, especialmente, por causa da globalização, da migração e
da diversidade cultural”, ou “a dimensão ética dos avanços científicos
e tecnológicos”. Também foram propostos estímulos para “criar na
escola uma atmosfera de tolerância e de respeito que propicie o
desenvolvimento de uma cultura democrática” e para “dotar a escola
com uma maneira de funcionamento que estimule a participação dos
alunos na tomada de decisões”1.
As questões mais importantes continuam sendo, então: Como os
jovens, os primeiros a serem afetados pela qualidade do sistema
educativo, podem desenvolver esta capacidade de “viver juntos” em
suas vidas diárias? Como construir um mundo de paz com os jovens
de hoje e de amanhã, um mundo que lhes corresponda? No caso do
Brasil, estas perguntas e as reflexões em torno delas são de uma

1 Os produtos e processos dessa 46a CIE podem ser encontrados em francês e em espanhol em:
http://www.ibe.unesco.org/International/ICE/46english/46menue.htm.

135
importância capital. De fato, apesar dos recentes avanços
empreendidos pela instituições públicas e pela sociedade civil, os
problemas de disparidade social continuam vigentes. Para citar um
exemplo, este país continua tendo um dos índices de desigualdade
entre ricos e pobres mais elevados do mundo2. Dessa forma, as tensões
e violência internas são agravadas por um descontentamento
crescente das pessoas menos favorecidas, entre as quais se encontra
uma grande proporção de jovens3.
O presente livro consta de uma série de artigos (reflexões filosóficas,
resultados de pesquisa, discussões e experiências inovadoras) que têm
por objetivo estimular o debate e assegurar que o século XXI seja um
século de educação ao longo da toda a vida, eqüitativa e de qualidade,
que melhore nossa capacidade para viver juntos. Cada um desses artigos
está, ao seu modo, relacionado com a preocupação comum
compartilhada por especialistas em educação do mundo inteiro e
apresentada em linhas gerais no artigo de John Daniel, Diretor-Geral
Adjunto da UNESCO para a educação.
Para começar, Uri Peter Trier, eminente especialista suíço, optou
por uma visão prospectiva para difundir suas hipóteses a respeito da
posição que a educação ocupará na nova sociedade e a respeito das políticas
educativas que serão necessárias. Propõe que a condição prévia para que
cada indivíduo possa determinar seu próprio futuro consiste em assegurar
que sejam melhoradas suas condições de vida e ressalta que, na realidade,
“as sociedades fazem com que a educação progrida mais do que a educação
faz com que as sociedades progridam”.
Também numa perspectiva social, Antanas Mockus (Prefeito de
Bogotá, Colômbia) pergunta-se: O que é a convivência? É possível
alcançá-la? Que ações devem ser empreendidas para consegui-la? O
autor apresenta-nos uma perspectiva sobre este tema a partir de
aspectos teóricos, práticos e de pesquisa. Propõe a possibilidade de

2 O coeficiente de desigualdade total é igual a 1.


3 Juventude, violência e vulnerabilidade social na América Latina: desafios para políticas públicas,
UNESCO, 2002.

136
encontrar os fundamentos da convivência na conquista de uma
harmonia em torno de certas “condições mínimas necessárias”, a
partir dos traços legais, morais e culturais de cada cidadão. Sua
proposta gira em torno da idéia do “pluralismo moral” e, ao longo
de seu artigo, nos mostra como foi posta em prática em sua gestão
como prefeito da capital da Colômbia.
Por sua parte, Aarón Benavot (Israel) analisa a relação entre
os conteúdos dos currículos e os resultados sociais desejados e
pergunta-se se é válido supor que esta seja uma relação direta. Por
exemplo, podemos esperar que os programas escolares facilitem o
entendimento mútuo e a coexistência entre comunidades, países e
civilizações cultural e religiosamente diferentes? Neste sentido,
também enfatiza a necessidade de abordar pesquisas que mostrem
os caminhos para os planos educativos, de maneira que estes
alcancem resultados importantes que possam transcender o nível
do puramente discursivo.
Em seguida, Judith Torney-Purta, professora da Universidade
Maryland e presidente do Comitê Internacional de Organização do
Estudo, apresenta os resultados de um abrangente levantamento,
Estudo de Educação Cívica, realizado pela Associação Internacional
para a Avaliação de Resultados Escolares durante os anos noventa.
Desta maneira, traça sua reflexão em torno das seguintes questões: São
os adultos os únicos que se interessam pela “democracia”, pelos “direitos
e responsabilidades cívicos” e outras “grandes palavras” deste tipo? Qual
a opinião dos jovens sobre tudo isso? Como vêem seu próprio papel
em relação à preservação da democracia nas estruturas políticas e na
sociedade civil?
Finalmente, Alejandro Tiana (Espanha) aborda a questão de se
os jovens estão preparados para viver juntos e se, realmente, o desejam.
Os jovens estão interessados em ser cidadãos no sentido pleno e em
participar na vida política? Por outra parte, esses jovens adquiriram os
conhecimentos suficientes que lhes permitam exercer plenamente sua
cidadania? São capazes de dialogar sobre isso? Podem cooperar com
outras pessoas? O autor analisa a atitude de jovens de diferentes países
diante destas questões.
137
Todos estes artigos procuram aumentar nossa capacidade para
esclarecer o conceito de aprender a viver juntos como um dos eixos
principais do novo paradigma de uma educação de qualidade para o
século XXI. Também pretendem estimular o diálogo e a troca de
experiências de forma ampla, com o objetivo de contribuir com o
trabalho em redes, apoiar ações mais eficazes em prol da educação
para a paz e da coesão social vinculadas à redução da pobreza e à
compreensão intercultural. No contexto particular do Brasil, sua
compilação também pretende apoiar o desenvolvimento e a expansão
dos avanços educativos realizados até o momento. Sua circulação
durante o Segundo Telecongresso Internacional da Educação de Jovens
e Adultos, de agosto de 2002, permitirá o enriquecimento das idéias a
respeito destes temas. Esse enriquecimento e um maior conhecimento
das práticas em curso em um país tão vasto e dinâmico como o Brasil,
com certeza contribuirão para melhorar a capacidade coletiva de
avançar nesse campo.

138
CONCLUSÕES E PROPOSTAS DE AÇÃO
DA 46 SESSÃO DA CONFERÊNCIA INTERNACIONAL
A

EM EDUCAÇÃO (CIE)∗

PREÂMBULO

1. O Bureau Internacional de Educação, no exercício de seu


papel de centro da UNESCO, especializado em conteúdos
e métodos da educação, organizou a 46 a sessão da
Conferência Internacional de Educação, em Genebra, de
5 a 8 de setembro de 2001.

2. Mais de 600 pessoas participaram das discussões, das quais


oitenta eram ministros ou vice-ministros da educação, vindos
de 127 Estados-Membros da UNESCO, junto com nove
representantes de organizações intergovernamentais, treze,
não-governamentais e três fundações.

3. O objetivo de intensificar e fortalecer o diálogo, ao nível das


políticas educacionais, sobre os problemas e. perspectivas de
soluções visando a melhorar a qualidade da educação para
aprender a viver junto foi largamente alcançado. Estas
conclusões e as propostas de ações resultantes apresentam as
características-chaves dos debates e o trabalho preparatório
(Netforum, mensagens ministeriais, relatórios nacionais, boas

* 46a Sessão da Conferência Internacional de Educação, Genebra, 5-8 de setembro de 2001.

139
práticas, etc.). A coleção completa será conhecida por meio
do Relatório Final, dos relatórios dos seminários e dos outros
documentos a serem publicados depois da Conferência.

4. Estas conclusões, de 8 de setembro de 2001, resultaram dos debates


principais, das sessões plenárias e dos seis seminários que
aconteceram durante a Conferência. Elas se destinam a
governantes, a organizações governamentais e não-
governamentais, professores e organizações dos profissionais de
ensino, à mídia e todos os membros da sociedade civil cujos
esforços melhoram a qualidade da educação, encorajam o
diálogo e desenvolvem a capacidade para viver juntos.

1. OS DESAFIOS

5. Dado a enorme complexidade dos problemas que as sociedades


têm de enfrentar, particularmente a globalização, as
insuportáveis desigualdades entre e dentre os países, aprender
a viver juntos, um conceito criado pela Comissão Internacional
da Educação para o Século Vinte e Um, se tornou uma
necessidade em todas as regiões do mundo.

6. Um dos principais desafios que os sistemas de ensino enfrentam


é garantir e respeitar o direito de educação para todos. Porém,
o direito de crianças para ter livre-acesso à escola está longe de
ser respeitado em todos os lugares no mundo e, particularmente,
nos países que experimentam situações de guerra, ocupação,
violência e intolerância.

7. O apelo para a educação superar esses desafios que as


sociedades enfrentam não é um fenômeno novo. Mesmo

140
assim, hoje, as expectativas tornaram-se muito mais
urgentes, dando a impressão de que a educação, por si só,
pode superar os problemas que existem nos países e em
nível internacional.

8. Ambas, a educação formal e a não formal, são ferramentas


essenciais para lançar e promover processos sustentáveis de
construção da paz, da democracia e dos direitos humanos,
mas elas sozinhas não podem prover soluções para a
complexidade, as tensões e até mesmo as contradições do
mundo atual.

9. No entanto, é essencial, como foi enfatizado na Declaração de


Jomtien1 e no Marco de Ação de Dakar2 , que esforços, em
âmbitos nacional e internacional, para o desenvolvimento da
educação sejam complementados por estratégias globais para
eliminar a pobreza e promover a participação na vida política,
social e cultural.

10. Alcançar o objetivo de educação para todos vai além do esforço


de escolarização universal. Em cada país, a procura da coesão
social, a luta contra a desigualdade, o respeito pela diversidade
cultural e o acesso à sociedade de conhecimento, que pode ser
facilitado pelas tecnologias de informação e comunicação, será
alcançado por intermédio de políticas que enfoquem a
melhoria da qualidade da educação.

1 Nota do Tradutor : Trata-se da Declaração Mundial de Educação Para Todos (Conferência


Mundial sobre Educação para Todos, Jomtien, Tailândia – 5 a 9 de março de 1990). Para conhecer o
Plano de Ação para Satisfazer as Necessidades Básicas de Aprendizagem, proposto a partir dessa
Conferência, consultar o endereço: http://www.unicef.org/brazil/jomtien.htm
2 Nota do tradutor : Trata-se do documento: “O Marco de Ação de Dakar. Educação Para Todos:
Atingindo nossos Compromissos Coletivos” – Texto adotado pela Cúpula Mundial de Educação
– Dakar, Senegal – 26 a 28 de abril de 2000. Para conhecer o texto consultar o endereço: http://
www.unesco.org.br/publica/Doc_Internacionais/marcoDakar.asp

141
11. Estas políticas devem superar os obstáculos impostos pelas
desigualdades de acesso e riscos de exclusão nos campos dos
idiomas, da ciência e da tecnologia.

- Em relação aos idiomas, é possível notar


que inúmeros países são multilíngües,
embora um único idioma apareça como o
idioma oficial de comunicação.
- Com relação à ciência e à tecnologia,
particularmente aquelas da informação e
comunicação, o fosso está se tornando cada
vez mais largo devido à desigualdade do
acesso para os avanços mais recentes.

2. POLÍTICAS EDUCACIONAIS E PRÁTICAS

12. Em todo o mundo, há uma forte vontade política, por parte


de numerosos governos e professores, para adaptar onteúdos
educacionais, estruturas e métodos para responder aos desafios
acima mencionados.

13. As experiências das políticas e práticas educacionais indicam


que é necessário considerar as reformas mais como processos
do que como produtos. Estes podem surgir tanto como decisões
governamentais como de iniciativas de outros patrocinadores.
O modo pelo qual eles são implementados, envolvendo a
mobilização de todos os atores, é tão importante quanto o seu
conteúdo.

14. Na comunidade internacional já existem acordos básicos


relativos a linhas de ação voltadas para promover a habilidade
e a vontade para viver junto. Aqueles responsáveis pelas políticas

142
de educação, no nível nacional, expressaram claramente sua
boa vontade para buscar a implementação desses acordos.

15. A avaliação dos resultados dos processos de reforma e,


particularmente, as “boas práticas” nos permite destacar
algumas condições únicas em cada contexto cultural, além de
ressaltar algumas características comuns.

3 . P R O P O S TA S PA R A A A Ç Ã O

16. Toda a área de ensino e de práticas educacionais voltada


para o viver junto deveria ser melhor conhecida,
disseminada e explorada, buscando fortalecer as capacidades
inerentes a cada país.
17. Treinamento para a política do diálogo é essencial para se
alcançar o objetivo principal que é o de melhorar a qualidade
da educação para todos.

18. Processos de reforma devem ser continuados ou deveriam ser


empreendidos nos seguintes domínios:

Conteúdos:

• Adaptando currículos e atualizando conteúdos que


possam refletir:

ƒ o conjunto de mudanças econômicas e


sociais em movimento, em particular pela
globalização, migração e diversidade
cultural;
ƒ a dimensão ética de progresso científico e
tecnológico;

143
ƒ a crescente importância da comunicação,
expressão e da capacidade para escutar e
dialogar, primeiro na língua materna,
depois no idioma oficial do país, como
também em um ou mais idiomas
estrangeiros;
ƒ a contribuição positiva que pode resultar
da integração de tecnologias no processo
de aprendizagem.

• Desenvolver abordagens e competências disciplinares e


interdisciplinares.
• Apoiar e estimular inovações.
• Buscando, no desenvolvimento de currículos, assegurar, ao
mesmo tempo, a relevância nos níveis locais, nacionais e
internacionais.
Métodos:

• Promovendo métodos de aprendizagem ativa e trabalhos


de equipe.
• Encorajando o desenvolvimento integral e equilibrando
do indivíduo para a cidadania ativa, aberto para o mundo.

Professores:

• Facilitando o envolvimento genuíno dos professores nos


processos de tomada de decisão da escola, por meio de
treinamento e outros meios.
• Melhorando a educação dos professores de forma que eles possam
desenvolver melhor, entre os alunos, comportamentos e valores
de solidariedade e tolerância, e os prepare para prevenir e solucionar
conflitos de forma pacifica e respeitar a diversidade cultural.

144
• Mudando a relação entre o professor e o aluno para responder
à evolução da sociedade.
• Melhorando o uso das tecnologias da informação e da
comunicação no treinamento do professor e nas práticas de
sala de aula.

Cotidiano das Instituições educacionais:

• Criando, no interior das escolas, um clima de tolerância e


respeito encorajando o desenvolvimento de uma cultura de
democracia.

• Promovendo uma forma de funcionamento da escola de


modo a encorajar a participação dos alunos na tomada de
decisão.
• Promovendo uma definição compartilhada de projetos e
atividades de aprendizagem.

Pesquisa educacional:

• Estimulando a pesquisa que clarifique o conceito de aprender


a viver junto e as suas implicações para políticas e práticas.
• Promovendo a pesquisa no desenvolvimento de conteúdos e
métodos de ensino relativos ao aprender a viver junto.
• Estimular estudos comparativos em contextos sub-regional,
regional e transregional.

19. Parcerias:

• Considerando que a educação não é só uma resposta


exclusiva ao aprender a viver junto, sua melhoria não

145
requer só a contribuição da escola, mas também a de
todos os atores interessados. Isso, no entanto, implica a
introdução e o fortalecimento de parcerias genuínas de
toda a sociedade: professores, comunidades, famílias, o
setor econômico, as mídias, as ONGs e as autoridades
intelectuais e espirituais.
• Parcerias são também requeridas para ampliar o acesso
ao uso efet ivo das novas tecnologias da informação e da
comunicação.

20. Aprender a viver junto requer políticas para o


desenvolvimento da aprendizagem ao longo da vida,
começando na educação infantil e dando atenção particular
ao período da adolescência (12-18 anos).

4. COOPERAÇÃO INTERNACIONAL

21. O desenvolvimento de atividades de cooperação


internacional para melhorar a qualidade de educação para
aprender a viver junto para todos deveria estar baseado em
seis princípios principais:

• Fortalecimento da função do Bureau Internacional


de Educação – IBE/UNESCO, de um observatório
de tendências, como também o seu papel no
desenvolvimento de bancos de dados facilmente
acessíveis e sistemas de informação.
• Coleta dos resultados da pesquisa educacional no
desenvolvimento de conteúdos, empreendendo
estudos comparativos em níveis sub-regionais e
regionais, e disseminando-os mundialmente.

146
• Criação de redes de cooperação nos níveis
internacional, regional e sub-regional, facilitando a
troca de experiência e promovendo projetos em
comum para fortalecer capacidades endógenas.
• Treinamento para tomadores de decisão na
educação, na política do diálogo para encorajar a
definição de objetivos comuns, a busca de consensos
e a mobilização de parcerias.
• Vivenciamento de novas modalidades de
assistência técnica fornecida por agências bi ou
multilaterais de cooperação, a fim de enfatizar não
só a colaboração Norte−Sul, mas também a
colaboração Sul−Sul.
• Fortalecimento das parcerias entre a UNESCO e
outras importantes organizações ntergovernamentais.

5 . O PA P E L D A U N E S C O E D E S E U S I N S T I T U T O S
ESPECIALIZADOS

22. As conclusões da 46a sessão da Conferência Internacional da


Educação são comunicadas à Conferência Geral da
Organização, para que sejam levadas em conta no processo de
reflexão e reforcem, a pequeno, médio e longo termos, o
programa de ação da UNESCO, o Bureau Internacional de
Educação e outros institutos especializados, visando a melhorar
a qualidade da educação.

147

Вам также может понравиться