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corporeidade e
conhecimento
BOLETIM 07
MAIO 2005
SUMÁRIO
PROPOSTA PEDAGÓGICA
ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO ........................................................... 03
Margarida Serrão
Wilson Costa
PGM 1
O EU E O OUTRO: PARCEIROS ESSENCIAIS ................................................................................................. 15
O Eu e o Outro
Margarida Serrão
PGM 2
EU COMIGO MESMO: O BRINCAR COMO ESPAÇO DE CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE .................... 25
O papel do lúdico na construção do conhecimento e do psquismo
Carlos Alberto de Mattos Ferreira
PGM 3
O EU, O OUTRO E AS DIFERENÇAS INDIVIDUAIS E CULTURAIS ............................................................... 31
Identidade e diferença no cotidiano escolar: práticas de formação e de fabricação de identidades docentes
Elizeu Clementino de Souza
PGM 4
CORPOREIDADE E CONHECIMENTO: A UNICIDADE DO INDIVÍDUO FRENTE À DIVERSIDADE DE
APRENDIZAGENS ............................................................................................................................... 39
Wilson Costa
PGM 5
REDES DE CONVIVÊNCIA E DE ENFRENTAMENTO DAS DESIGUALDADES .......................................... 50
Antonio Eugenio do Nascimento
Margarida Serrão 1
Wilson Costa 2
À educação cabe uma missão ambígua: preparar a criança e o jovem para a convivência humana e,
portanto, para as relações sociais, o que implica a introjeção das regras e dos valores
convencionados e aceitos coletivamente, reproduzindo os já existentes. Ao mesmo tempo, espera-se
das crianças e dos jovens as mudanças e a quebra das tradições.
Nos tempos em que imperam o pragmatismo, a cultura do lucro a qualquer custo, a exacerbação do
produto, é preciso resgatar um ensino em que o educador ocupe um lugar que possibilite navegar
pelo conhecimento ao sabor dos ventos, sem ter a intenção de manipular, fazer render, obter uma
utilidade imediata. É essencial que os educadores reencontrem o prazer de compartilhar com seus
alunos a alegria de aprender, de tomar decisões em grupo sobre a organização de atividades, de
discutir sobre regras de convívio e de trabalho, e de dividir as responsabilidades para o alcance das
metas individuais e coletivas.
A pressão pela homogeneização a que estamos submetidos na pós-modernidade, muitas vezes, leva
o professor a tratar o seu aluno como objeto da pedagogia e da psicologia, esperando respostas que
devem estar de acordo com padrões predeterminados pela mídia.
Existem diferentes desafios para a realização de um trabalho que discuta a importância da educação
para a solidariedade, para a convivência, para o conhecimento de nossa realidade cultural, e que
promova a postura crítica dos alunos, quando, por exemplo, os meios de comunicação de massa
incitam, com excelente resultado, o imediatismo, o individualismo e o consumo.
A vida nos dias atuais – num mundo cada vez mais baseado na informação e no conhecimento,
numa sociedade mais aberta e competitiva, com os meios de comunicação tornando próximos os
acontecimentos no mundo – mostra-nos, de maneira explícita, que a formação educacional básica e
cultural é um dos fatores fundamentais para o alcance de melhores condições profissionais no
futuro. Certamente, esta realidade aumenta a pressão sobre os profissionais que atuam na escola.
“A escola tem de ser a escola do sim e do não, onde a prevenção deve afastar a necessidade de repressão,
onde o espírito de colaboração deve evitar as guerras de poder ou competitividade mal-entendida, onde a
crítica franca e construtiva evita o silêncio roedor ou a apatia empobrecedora e entorpecedora”(Alarcão,
2001, p. 17).
O reencontro com nossas raízes culturais fornece o lastro fundamental sobre o qual se ergue nossa
identidade, individual e coletiva. Ter história é estar inserido numa ordem temporal, numa cadeia de
significados e significantes, fazendo parte de um tempo que nos precedeu e de outro que nos
sucederá. Fazer parte de uma história é reconhecer um passado e projetar-se num futuro. É ter raízes
e asas. Raízes e asas a partir de um corpo habitado por um sujeito que quanto mais se orgulha de
sua história – individual e coletiva – mais se apropria de seu território, mais consciência tem de seus
contornos, de seus limites e de suas possibilidades.
Como diz Maria Cristina Kupfer, em seu livro Educação para o Futuro, se o professor não estivesse
tão preocupado em responder para que serve aquilo que ensina, poderia dizer ao seu aluno:
“Tudo isso não tem mesmo que significar nada, ninguém sabe de antemão onde
um estudo ou as notas musicais ou as palavras vão nos levar. Suporte não saber o
que esse saber significa(...), permita que esse saber venha a produzir os efeitos que
apaziguam – ou enlouquecem –, não procure saber por quê, pois isto é defensivo e
faz frear a busca, jogue-se no rio, molhe-se sem parar para olhar o que está
acontecendo com suas roupas.”
O que está sendo dito é que se o aluno estuda pela obrigação de alcançar um resultado
preestabelecido, ele aprende muito pouco. Não há espaço para o encantamento e a magia da
descoberta e da criação.
Atualmente, grande parte destas atividades lúdicas é praticada fora da escola, e é, em sua maioria,
de domínio de meninos e meninas que fazem parte das camadas mais pobres das grandes cidades.
Como estas atividades e eventos são praticados em espaços abertos, e estes se encontram cada vez
mais reduzidos devido à falta de segurança e de políticas efetivas que estimulem a prática dessas
atividades, apresenta-se a oportunidade de validarmos as expressões culturais como conteúdo
fundamental para a formação do sujeito histórico crítico e, ainda, de se discutir o papel e a função
da escola, como um espaço público de prática do conhecimento e como um lugar promotor de
encontro entre o indivíduo e a sua identidade cultural.
Nada mudou, a força da desigualdade social subtrai cada vez mais os espaços de inclusão para a
população menos favorecida e destina o excluído à sombra da sociedade. Aos pobres restam os
cantos, as favelas, vielas, as sobras, os subempregos, as escolas “sucatadas” e as armas para
defender o tráfico de drogas.
A imagem de si constitui-se a partir dos contextos sociais. Logo, quando o processo é observado
pela ótica de como a sociedade vê a população excluída, esta geralmente é considerada como sem
produto, ou seja, carente.
Existe uma falta de reflexão sobre as potencialidades desta população que, vivendo em condições
tão adversas, apresenta soluções cooperativas para a sobrevivência em questões de habitação,
alimentação, adoção, resistência cultural e no enfrentamento da violência praticada pela polícia e
pelas discriminações de várias espécies.
Cultura não tem nada a ver com doutorado; cultura é uma questão de
sensibilidade e de valores subjetivos. Por exemplo, a palavra inteligente derivada
do latim ‘intus legeri': aquele que é capaz de ler por dentro. Existem pessoas
analfabetas que são sumamente inteligentes, porque captam pessoas e situações
por dentro; isso é cultura (Frei Beto, 2003, p.110).
O olhar estigmatizante das discriminações que recaem sobre os excluídos determina uma imagem
difícil de se romper, de se desvencilhar: o lugar da incapacidade e da exclusão. Em contrapartida, as
ausências de bons afetos e de políticas que atendam às necessidades básicas, sendo estas de
responsabilidade fundamental do Estado, defendem-se e reafirmam este olhar condicionante,
resistindo a tudo que não seja realmente interessante, interessado e estável o suficiente para operar
uma mudança das condições subumanas a que estão expostos.
A formação de redes entre estes atores sociais pode contribuir decisivamente para a mobilização
da sociedade em busca da operação de mudanças significativas neste cenário.
Temas que serão debatidos na série: Espaços de encontro: corporeidade e conhecimento , que
será apresentada no programa Salto para o Futuro/TV Escola, de 16 a 20 de maio de 2005:
A condição do sujeito dialoga sempre com a sua história, construída junto aos outros seus, mesmo
A ação mediadora exercida pelo adulto entre a criança e o mundo é fundamental para as noções que
esta construirá, e se manifestará nas suas interações corporais expressivas e verbais com os outros e
os objetos. Logo, torna-se central observarmos como se constitui o sujeito. Qual a importância dos
cuidados e afetos dispensados ao seu desenvolvimento nos primeiros anos de vida? Que papel está
reservado aos responsáveis, professores e sociedade nessa construção? Por que algumas crianças e
jovens parecem lidar com situações adversas e outros a elas sucumbem? Em que medida é possível
intervir no desenvolvimento e na subjetividade de nossos alunos enquanto indivíduos e cidadãos?
Como organizar os ambientes e sobre o que se deve instruir as pessoas diretamente envolvidas na
educação de crianças nos primeiros anos de vida e na adolescência?
Para dominar o que está fora, é preciso fazer coisas, não só pensar ou desejar, e
fazer coisas leva tempo.
O encontro da criança consigo mesma se faz através do brincar. É o lúdico que possibilita a
elaboração de suas vivências e sentimentos cotidianos. A compreensão dos acontecimentos que lhe
dizem respeito se torna possível pelo reviver que o seu brincar produz, expressando o que ela ainda
não é capaz de formular pela linguagem e encontrando alternativas para solucionar impasses da
realidade.
Trataremos neste programa do brincar como espaço privilegiado para o desenvolvimento humano,
no qual ocorrem as trocas essenciais à construção da subjetividade e à transmissão dos valores
éticos e culturais.
O exercício da tolerância e da cidadania brota da relação do indivíduo com ele mesmo, que passa
por pessoas próximas, especiais, que possibilitam a sua existência, para então, expandir-se até os
outros.
Eis o grande desafio do ser humano: compreender que todas as pessoas são iguais em relação aos
direitos da existência e diferentes na maneira de viver a sua existência.
De que maneira a escola pode tornar-se um território favorável à aprendizagem do convívio com a
diferença?
Este programa destaca a importância social da escola na promoção do convívio com a diferença,
ressaltando o caráter humanizador da educação e o valor do trabalho com a pluralidade cultural.
“O professor pensa ensinar o que sabe, o que recolheu dos livros e da vida. Mas o
aluno aprende do professor não necessariamente o que ele quer ensinar-lhe, mas
aquilo que quer aprender. Assim, o aluno pode aprender o reverso ou algo
diferente do que o professor ensinou-lhe. Ou, mais ainda, aquilo que o professor
nem sabe que ensinou, mas o aluno reteve. O professor, por isso, ensina também o
que não quer, algo de que não se dá conta e que passa silenciosamente pelos
gestos e pelas paredes da sala...” (Affonso Romano de Santanna).
A exploração do espaço pelo corpo, na ontogênese, é intermediada pelo olhar, pelo toque e pela
palavra orientadora do outro.
Neste programa, abordaremos estas questões, destacando o valor destas atividades para a construção
da subjetividade e para a construção de valores estéticos e éticos.
Temos tempo para reverter esse abandono e esse massacre. O ser humano
sabe fazer dos obstáculos novos caminhos, porque, para a vida, lhe basta o
espaço de uma greta para renascer” (Ernesto Sábato. A Resistência .
Buenos Aires, Seix Barral, 2000).
As atividades de movimento e expressão, lúdicas e artísticas, existem na cultura humana desde seu
início e depõem sobre as relações do homem com os contextos históricos, culturais, espirituais e
sociais, traduzindo as formas de organização social de poder e das relações de trabalho.
Por um lado, estas atividades de natureza estética e política sempre proporcionaram a expressão de
idéias, sentimentos e beleza, e destinavam-se ao ócio. Por outro lado, também eram vistas como
inúteis, sem caráter de seriedade e utilidade para o trabalho.
No decorrer dos séculos, as instituições educacionais e para a formação cível e militar foram
absorvendo as técnicas empregadas pelos artistas populares, adaptando-as ao seu interesse,
moldando o cidadão de acordo com as suas necessidades políticas, militares e econômicas.
Atualmente, ouve-se falar que crianças e jovens pobres devem dançar, cantar, jogar e fazer arte para
ter um futuro melhor. Esta expectativa não só gera uma ilusão quanto destitui todo o caráter de
respeito à criança e ao jovem como um ser histórico, que deve ser ouvido e considerado no seu
Hoje, muitas instituições do terceiro setor empreendem seus esforços para o resgate da auto-estima
e para o auto-reconhecimento de crianças e jovens, através da oferta de atividades lúdicas e
expressivas, investindo no seu poder de gerar trocas interpessoais e valorizar a expressão pessoal.
Estes movimentos têm constituído redes para o enfrentamento às violações de direitos e para a
criação de espaços culturais, gerando tecnologia social e buscando a valorização destas atividades
para a educação e inclusão de crianças e jovens oriundos da população de baixa renda.
Este programa vai abordar a riqueza deste trabalho e apresentar as contribuições que as redes têm
dado à sociedade e ao Estado para o enfrentamento das desigualdades sociais.
Referências bibliográficas
CENPEC. Muitos lugares para aprender . São Paulo: Cenpec/Fundação Itaú Social/ Unicef,
2003.
COLL, César. Comunidades de Aprendizagens. Revista Pátio . Porto Alegre: Ed. Artmed,
2002.
KISHIMOTO, Tizuko Morchida. O brincar e suas teorias . São Paulo: Pioneira, 1998.
GARCIA, Regina Leite et al. O corpo que fala dentro e fora da escola . Rio de Janeiro:
DP&A Editora, 2002.
KUPFER, Maria Cristina. Educação para o Futuro, psicanálise e educação . São Paulo:
Editora Escuta, 2001.
LEVIN, Esteban. A Clínica Psicomotora: o corpo na linguagem . Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu e Vanede
Nobre. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1971.
Notas
O Eu e o Outro
Margarida Serrão( 1)
“O maior apetite do homem é desejar ser. Se os olhos olham com amor, o que não
é, tem que ser.”
(Padre Antonio Vieira. Paixões Humanas )
O momento sociocultural em que vivemos está marcado por duas afirmativas: uma é proveniente da
ideologia capitalista, e a outra é proveniente do desenvolvimento científico e tecnológico. A
injunção capitalista que nos captura estabelece que tudo pode ser adquirido, basta que tenhamos a
moeda adequada para essa aquisição. A injunção decorrente do avanço científico e tecnológico
afirma que é possível sanar todas as nossas dores e faltas através de um produto adequado. Se este
produto ainda não está disponível, com mais algum tempo de pesquisa e investimento, estará.
Uma sociedade centrada em produtos que o indivíduo pode ter a qualquer momento, conforme sua
vontade, gera insatisfação constante e leva a uma busca desenfreada pelo ter. Ter tudo, ter qualquer
coisa, ter mais.
São esses os tempos em que vivemos. Tempos de ausência de referenciais, de ausência de ritos de
passagem de mito e de lei. Tempo de apagamento das diferenças entre as gerações e entre os sexos.
Somos educadores e nossas sementes são crianças e adolescentes, geralmente vivendo em situações
adversas, portanto, em solo árido, e a nós compete uma difícil missão: a de contribuirmos como
formadores éticos das novas gerações.
Por acreditar nessa afirmação, convido você, professor/professora, para uma viagem imaginária,
que relata a trajetória de um filhote humano na direção de sua constituição enquanto sujeito de
desejo, futuro cidadão.
A Viagem
(Paulo Leminski)
Quando nasce uma criança, estamos diante de um ser com infinitas possibilidades, mas ainda
despreparado para sobreviver por si. Trata-se de um filhote humano que só submetido aos cuidados
de uma maternagem virá a se constituir num sujeito capaz de conviver entre seus pares.
O recém-nascido bebê humano não tem consciência de seus contornos, nem de se constituir num
ser. É como se fosse constituído de fragmentos de partes de corpo. Esses fragmentos só se
organizam na estrutura de um corpo à medida que são conectados através do toque materno.
Quando as mãos da mãe ensaboam, enxugam, despem, vestem, acariciam, elas vão untando a pele
do bebê com uma cola afetiva que une esses pedaços de corpo, dando-lhes sentido e constituindo
uma unidade. Dessa colagem também participam a voz e o olhar maternos.
A voz traz o calor do som humano. Rememora uma música ouvida desde o ventre. Embala e
acalma. Pode também assustar, amedrontar, confundir. Ainda que as palavras não queiram dizer
coisa alguma, o tom de voz fala. E muito.
O olhar representa o primeiro espelho no qual a criança pode se mirar e se reconhecer. Se esse olhar
vem cheio de amor e carinho, se é um olhar apaixonado, reflete para o bebê sua imagem como se
fosse um espelho no qual ele se vê muito belo. No olhar da mãe, o bebê se reconhece como um ser
Essa ligação tão íntima, simbiótica, entre o bebê e sua mãe, ou quem faz as vezes desta, necessária
nos primeiros dias, semanas, meses, para a constituição desse ser como sujeito, está fadada a se
transformar. Da mesma forma como a gestação se compõe de nove meses e, no parto, o cordão
umbilical precisa ser cortado para que mãe e bebê possam sobreviver, também essa ligação íntima
precisa ser cortada para que mãe e filho possam sobreviver como sujeitos. Se esse corte não se
efetua, o filho permanece como o objeto que preenche todos os desejos da mãe e fica
impossibilitado de desejar ele próprio.
O responsável pelo corte desse cordão simbólico é o pai. É o pai que, ao se introduzir entre a mãe e
seu filho, corta esse outro cordão simbólico, possibilitando que ambos sobrevivam como sujeitos
desejantes, capazes de exercer-se individualmente.
Mas grande parte de nossas crianças não tem pai. E quando não há um pai? Essas crianças não se
constituem sujeitos? Mesmo quando não há, pode existir um pai. Porque esse pai de carne e osso
que se introduz na relação mãe-filho é um representante do “terceiro”, que entra numa relação dual
e a rompe. Com isso quero dizer que algo ou alguém que desperte o olhar da mãe e afaste esse olhar
do seu filho, preenchendo o seu desejo (da mãe), ocupando a sua atenção e lhe dando prazer, ocupa
o lugar de terceiro na relação, executa o corte, como o pai.
Essa dinâmica inicial entre pai-mãe-filho determina a posição que a criança vai assumir nessa
triangulação, estrutura a sua personalidade e marca a sua inserção no coletivo, no social.
Dessa forma, cresce a criança, inicialmente como um filhote devorador que se torna humano
quando submetido a uma maternagem e, posteriormente, a uma ordem social que lhe é imposta a
partir da separação sofrida com a entrada de um terceiro (geralmente o pai) na íntima relação que
mantém com sua mãe.
Filho devorador porque não há limites ao seu querer onipotente: mãe, objetos, mundo, tudo ao seu
redor se oferece ao seu desejo. Só à medida que vai se confrontando com alguns “não”,
naturalmente dados e/ou impostos, e aprende a suportar as frustrações que esses “não” acarretam, é
Desse modo, de limite em limite, aprendendo a conviver com frustrações, ao final da infância, a
criança já tem formada a estrutura da sua personalidade, assim como possui uma lei interna que lhe
permite aceitar que todos nós estamos submetidos a uma ordem que nos suplanta.
• Toda criança vem ocupar um lugar preenchido pelo desejo de seus pais (ou daqueles que a
criam), por suas fantasias e seus fantasmas. E se reconhece nos significantes que lhe são
atribuídos por eles. Mais tarde, essa mesma afirmação pode ser feita em relação aos seus
professores.
• Toda criança deseja atender às expectativas dos adultos significantes com os quais convive.
Esses adultos são, via de regra, seus pais e, posteriormente, seus professores.
• Toda criança necessita de limites ao seu querer onipotente para adquirir “um rosto humano”.
Esses limites geram frustrações que ela aprende a suportar e é esta aprendizagem que lhe
permitirá conviver produtivamente com seus pares, inventando saídas criativas para as suas
faltas.
Mas, nossa viagem não se encerra aqui. Ao primeiro trecho, chamado Infância, segue-se o segundo.
Adolescência
A esse, segue-se o luto pela perda da identidade infantil. O adolescente não é mais criança, porém
ainda não é adulto. A perda da identidade infantil não atinge só o próprio adolescente, atinge
também os adultos que o cercam.
Imaginemos que uma criança entra em sua sala de aula agora e não se trata de uma aluna da escola.
Você irá logo perguntar seu nome e, em seguida, de quem é filho(a). Essa filiação vai lhe conferir
uma identidade. Se, no entanto, é um adulto que aí entra, e não se trata de um responsável ou
funcionário, você irá igualmente perguntar-lhe o nome e, em seguida, o que faz. Sua ocupação vai
lhe conferir uma identidade. Se, no entanto é um jovem quem chega, você lhe perguntará, com
certeza, o seu nome e, a seguir, o que quer ser. O jovem é uma promessa de vir a ser. O futuro é que
lhe conferirá uma identidade.
No vazio sobre si mesmo, o adolescente se depara com mais uma perda: a quebra da imagem dos
pais, até então entes idealizados, positiva ou negativamente, como todo-poderosos, mágicos,
flagrados agora na sua humanidade de seres falíveis, com defeitos, contraditórios, que se enganam.
Essa descoberta é acompanhada de um movimento de confrontação e de contestação de todas as
normas, regras, idéias que valiam como referências, anteriormente. O primeiro momento da
adolescência é de ruptura. Exige dos pais e professores “suportar o tranco”, estabelecer limites
firmes, manter sua autoridade.
Nesse espaço aberto entre o que foi, quando criança, e o que será, quando adulto, o adolescente
reedita a sua infância.
Ele reedita exatamente o momento do corte necessário para que a vida se faça possível. Só que
agora se trata da sua vida enquanto sujeito que sente, pensa, escolhe. Ele reedita o lugar que ocupa
junto aos pais e a internalização da lei à qual todos estamos submetidos. Essa lei nos fala da
sexualidade e da morte, nos fala da escolha de um sexo e de um objeto de amor. Essa lei nos fala da
O segundo momento da adolescência traz movimentos novos. Não se trata mais, em geral, de
ruptura, mas de reconhecimento, de reorganização, reconstrução e troca. A palavra-chave é
reconhecimento. O adolescente em questão quer o reconhecimento de seus pares e dos adultos
significativos. O adolescente de que tratamos quer ser identificado como sujeito agente da ação.
Precisa ainda de limites, mas postos em novas bases, as bases da troca e da escuta, para que se sinta
reconhecido como um semelhante.
E por que parece tão difícil para pais e professores atender a esse desejo de reconhecimento? Talvez
porque isso envolva mudanças de posição, que implicam lutos e abertura de feridas aparentemente
cicatrizadas, e o surgimento de questões que desencavam mágoas infantis, tanto dos adultos quanto
dos jovens.
Os princípios dos novos textos permanecem os mesmos: o vínculo afetivo, a colocação de limites, o
respeito mútuo e a confiança no processo de crescimento e de transformação.
Por vínculo afetivo entendemos a relação de caráter libertador que se estabelece entre o adulto
significativo e o jovem, permitindo a expressão de questões pessoais em direção à autonomia,
favorecendo novos questionamentos e a quebra de rótulos e papéis fixos. Em relação ao educador,
este precisa estar disponível para criar as condições favoráveis para construir algo em comum com
o jovem. Para tal, deve estar consciente do lugar que ocupa e de sua importância para o
desenvolvimento pessoal e social de quem se encontra sob sua responsabilidade. Isto implica aceitar
diferenças individuais e o jeito de ser de cada um e escutar e acolher a todos, independentemente de
afinidades e preferências.
Por colocação de limites, entendemos o estabelecimento dos contornos necessários, sem os quais a
Por respeito mútuo, entendemos a aceitação de outras formas de pensar, sentir e agir. Respeitar
alguém não é sinônimo de concordar com o outro e, sim, de respeitar sua individualidade, seu ritmo,
suas opiniões, sua imagem, suas origens e escolhas. Isso envolve tanto os professores quanto os
alunos.
A nós, educadores, cabe tocar com mãos de escultores a massa ainda bruta – promessa; ver na
matéria-prima, massa bruta, a obra futura – projeto; acreditar que será belo o resultado – espelho.
Porque crescer é sempre difícil. Implica perder coisas para ganhar outras. Implica ter coragem de
admitir os erros, trocar certezas por dúvidas, questionar o impossível, mas realizar o possível.
Notas
Resiliência 1
Margarida Serrão 2
Resiliência
Essa força se faz presente — basta que nosso olhar se detenha ao redor e observe mais
profundamente os movimentos e também as ações positivas produzidas por um grande número de
jovens em suas comunidades, grupos, associações, escolas, a despeito das adversidades.
É inevitável que nos perguntemos: Por que alguns jovens crescem de modo saudável apesar das
condições sociais e familiares desfavoráveis, enquanto outros sucumbem? Por que crianças em
situação de risco não desenvolvem o problema ao qual estão expostas e outras dele não escapam?
Por que uns e outros não?
A investigação particularizada de crianças e jovens resilientes indica algumas condições entre esses
sujeitos:
Essas redes podem estar representadas pela família, ou pela escola, ou por determinado professor,
ou por um educador social, ou pela união de dois ou mais representantes.
A aceitação incondicional da criança (ou do adolescente) não implica a aceitação de sua conduta,
mas sim um interesse genuíno por sua pessoa, assim como o oferecimento do espaço de escuta
necessário para que a criança ou o adolescente se sintam acolhidos, num clima de confiança, a
despeito de seus atos.
Esse algo superior não diz respeito necessariamente a alguma fé religiosa, mas a algo que
transcende a existência imediata e concreta, oferecendo sentido a ela. Por exemplo: a arte, a música,
a dedicação a uma causa.
O sentimento de possuir um traço distintivo em relação aos demais, que seja valorizado e contribua
positivamente para a convivência no grupo social, é fonte de resiliência.
Desejo e força
Refletindo sobre o que foi dito acerca da resiliência, é possível entrever inúmeras possibilidades de
ação geradoras desse potencial presente nos seres humanos. Possibilidades e potencial que não
podemos antecipar, mas apenas apostar em sua existência e atuar a seu favor.
Se os pais dão aos filhos raízes e asas, não são os únicos responsáveis pelo solo no qual essas raízes
se desenvolvem, nem pelos ares em que as asas ensaiarão seus vôos.
Para o jovem, lançar-se no futuro é projetar para si os ideais que construiu ao longo de sua breve
história. Os adultos significativos aí se incluem como interlocutores na construção de seus planos,
escutando anseios, ouvindo questões, interessando-se por suas verdades, respeitando suas escolhas,
reconhecendo seus valores. O projeto de vida de um jovem diz respeito ao adulto que ele quer ser,
aos valores pelos quais quer viver e ao tipo de vida que deseja levar.
É dentro em nós que as coisas são. Admitir-se imperfeito e mortal, reconhecer-se incompleto e
faltante, mas ainda assim capaz de exercer-se criativamente, produzindo marcas diferenciais no
entorno, fazendo a diferença no âmbito pessoal e coletivo. Desejo e força.
Notas
1 Texto extraído do artigo “É dentro em nós que as coisas são”, publicado em Escola
da Família. Idéias 32, Edição Comemorativa da Secretaria de Estado de Educação
de São Paulo, Programa Escola da Família.
Brincar deriva do latim vinculum , que significa “laço, união e criação de vínculos”. Em diversos
idiomas, como o alemão, o inglês, o francês e o espanhol, os termos brincar e jogar são
equivalentes, enquanto que na língua portuguesa detecta-se uma divisão.
A construção da atividade lúdica, presente no jogo e no brinquedo, tem sido objeto de estudo de
autores em diversas áreas do conhecimento, em especial daqueles que são interessados em sua
gênese, no que se refere à infância e à cultura.
Partindo do princípio formulado pelo antropólogo Johan Huizinga (1938-2001), o jogo pode ser
considerado como universal, encontrando-se presente em todas as culturas conhecidas.
A escolha das três correntes que estudam o brincar e o jogo, que serão analisadas neste texto, dizem
respeito aos estudos que mais influenciam e dão suporte teórico e prático aos profissionais e
pesquisadores acerca do papel desempenhado pela função da construção lúdica na organização
psíquica.
O ato de brincar e o jogo infantil nem sempre têm seus respectivos valores reconhecidos e
compreendidos, quando o assunto é o desenvolvimento infantil e a construção de subjetividades.
Compreende-se que, por meio das atividades lúdicas, o pequeno infans – desprovido de palavras –
Pode-se inferir, ainda, que a partir da ação e da linguagem por meio do lúdico, a criança constrói
suas estratégias, o que lhe permite ser reconhecida como sujeito que recria a realidade, que busca
escapes ilusórios das determinações históricas, num esforço de recuperação das perdas vivenciadas
em função de reconstruir sua existência e de encontrar um sentido para a vida.
De acordo com as linhas que propomos apresentar, constata-se que a primazia da ação e/ou da
linguagem aparece alternada em função dos suportes teóricos que sustentam a idéia de uma
atividade lúdica que seja estruturante de subjetividades e organizadora de corporeidades.
Nesse prisma, subjetividades e corporeidades, constituídas sob a ótica do lúdico, por meio da ação e
da linguagem, serão estudadas em três correntes principais: a psicogênese piagetiana, a sociogênese
vygotskiana e a psicanálise.
Piaget cria uma Epistemologia Genética, que tem por objetivo estudar a gênese dos processos com
os quais a criança aprende a aprender. O modelo clássico da estrutura dos estágios de
desenvolvimento pode ser descrito no seguinte enquadre, articulado aos seus correspondentes
lúdicos:
Outro quadro que relaciona os estágios anteriores com a construção das regras pode ser
demonstrado a seguir:
Regras motoras
Manipulação de objetos
Esquemas ritualizados
Consciência autônoma
Objetividade
De acordo com a orientação teórica de Vygotsky, todo avanço no processo de desenvolvimento está
conectado com uma mudança acentuada nas motivações, tendências e incentivos.
A motivação é sempre relativa à idade da criança: o que motiva um bebê não motiva uma criança de
quatro anos. As tendências são uma síntese das necessidades e dos desejos da criança, tentando
tornar realizável o irrealizável, tanto por não poder satisfazer imediatamente tais necessidades e
desejos, quanto pela impossibilidade de agir num mundo real (dos adultos). Por isso, ela cria o
brinquedo.
Os incentivos estão vinculados a determinantes externos que são constituídos pelas influências do
meio social sobre a criança, em diversas relações de troca, com adultos, outras crianças e outros
elementos característicos de cada cultura, como jogos, brinquedos, representações sociais e acesso a
diferentes tecnologias, entre outros.
Em intercâmbio constante com o seu meio ambiente, a criança, diante do desafio de conhecer-se e
de conhecer o mundo, constrói sua compreensão da realidade pela imaginação e que, em sua
dimensão pragmática, é constituída na interação com o brinquedo.
3. As correntes psicanalíticas
O desejo que dirige o brincar da criança é o de tornar-se adulto. Este desejo é guiado pela ilusão
infantil de que no mundo adulto todas as fantasias são possíveis de ser realizadas.
O brincar e o jogar das crianças são as estratégias básicas de comunicação infantil, por meio das
quais elas inventam o mundo e elaboram os impactos exercidos pelos outros.
Sobre a agressividade, pode-se dizer que Freud a compreende como uma expressão primária
original e “auto-consistente, sendo o maior impedimento à civilização”. E, tal como descrita,
encontra-se presente nas diversas atividades infantis, caracterizadas, essencialmente pelo brincar,
donde se observa que, independente das formas com que as crianças são educadas, pode-se afirmar
que não existe atividade lúdica que não apresente expressões de fantasias agressivas, tais como
brincar de guerra, de matar, atirar, ferir e morrer, por exemplo.
O jogo e o brinquedo infantis produzem uma área intermediária, onde a criança pode experimentar
suas fantasias agressivas sem ser destrutiva com os outros e nem ser destruída por eles.
Winnicott considera que crianças “privadas” e “inquietas” são incapazes de brincar. A possibilidade
de criar é um estado saudável e a sua impossibilidade, uma submissão, torna-se uma base doentia
para toda a vida. Os adultos, em geral, não observam que crianças consideradas como muito
obedientes podem estar prisioneiras de uma ação inibitória que as impede de expressar suas
emoções e desejos por meio das brincadeiras e da comunicação verbal.
O brincar facilita o crescimento e a saúde da criança, conduz aos relacionamentos grupais e é uma
forma de comunicação consigo mesma e com os outros.
No início da vida, fantasia e realidade se confundem e, através da primeira, a criança cria uma
estratégia para compensar, pelo jogo, suas experiências dolorosas, de tal modo que brincar
possibilita a realização dos desejos. A saída para os obstáculos impostos pelo mundo encontra uma
resolução por meio da fantasia. O brincar e o fantasiar possibilitam a realização de desejos.
Referências bibliográficas
HUIZINGA, J. Homo Ludens – O jogo como elemento da cultura . São Paulo Editora Perspectiva,
2001.
______________. O juízo moral na criança . (1 a ed. 1932) São Paulo, Summus Editorial, São
Paulo, 1994.
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente . 4 ª ed. São Paulo, Martins Fontes, 1991(c).
Notas
2 Artigo publicado em: Fórum, ISSN 1518-2509, volume 9, INES, Rio de Janeiro, p.
17-21.
“Eu não sou eu nem sou o outro, sou qualquer coisa de intermédio: pilar da ponte de
tédio que vai de mim para o outro”
(Mário de Sá Carneiro).
Sinopse
Neste texto, que visa oferecer subsídios aos debates do terceiro programa da série, pretendo discutir
questões teórico-práticas relacionadas à construção da identidade e à vivência das diferenças no
cotidiano escolar. Pretendo, também, analisar as implicações da construção da identidade
profissional no processo da formação docente e do desenvolvimento profissional de professores, no
que se refere às diferenças e a interculturalidade na escola.
Vivemos numa sociedade marcada pela pluralidade de imagens e diferenças sociais e culturais. A
escola, por sua vez, buscará desenvolver seu projeto pedagógico com ênfase nas diferenças e nas
relações que os indivíduos estabelecem consigo mesmos e com os outros. Convém questionar se
nós, professores, desenvolvemos nossas práticas tendo em vista a assunção das identidades e o
respeito às diferenças. Como podemos viver os projetos de igualdade e do respeito à diversidade,
tão presente e marcada na sociedade brasileira? De que maneira a escola pode tornar-se um
território favorável à aprendizagem do convívio com a diferença?
É na dinâmica da vida e nas histórias tecidas no nosso cotidiano que aprendemos dimensões
existenciais e experienciais sobre nós mesmos, sobre os outros e sobre o meio em que vivemos. No
entrecruzamento de nossas aprendizagens, a escola exerce um papel singular, visto que neste espaço
‘convivemos' e internalizamos papéis sociais apreendidos no cotidiano familiar. O investimento na
formação de professores e no trabalho coletivo na escola poderá possibilitar outras formas de
trabalho didático e pedagógico, que contribuam para a reafirmação de identidades, para a vivência,
para a tolerância e para o respeito ao exercício da cidadania.
Discutir a fabricação da igualdade , tomada aqui como projeto de homogeneização dos indivíduos e
da negação das diferenças no espaço da escola , é uma tarefa que exige reafirmação de novas e
constantes opções que cruzam e entrecruzam a compreensão do mundo, da vida, das aprendizagens
e experiências construídas ao longo da existência.
A vivência escolar se entrecruza, no seu cotidiano, com valores produzidos no coletivo e no âmbito
social, na medida em que esses valores se modificam de acordo com os condicionantes econômicos,
políticos, institucionais, culturais, físico-ambientais e ético-estéticos. Compreendo que é desse
entrecruzamento que são apropriados, construídos e reconstruídos diversos processos e formas da
vida dos sujeitos como produtores e construtores da história. Por isso, penso que não devemos
fechar a noção de “identidade” como algo fixo, imutável e cristalizado, porque significa construção,
daí a necessidade de compreendê-la como processo que comporta subjetividades, complexidades,
diferenças e não igualdades.
Teoricamente, busco em Louro (1997, 1998), Hall (2000) e Silva (1999, 2000) princípios teóricos
que me possibilitem apreender conceitos e políticas de sentido sobre a identidade e a diferença no
cotidiano escolar, visto que “[...] consideramos a diferença como um produto derivado da
identidade. Nesta perspectiva, a identidade é a referência, é o ponto original relativamente ao qual
se define a diferença [...]” (SILVA, 1999, p. 74-5). Numa outra perspectiva, e no que concerne à
fabricação de identidades docentes, busco em Lawn (2000), Moita (1992) e Nóvoa (1992a, b),
aspectos teóricos sobre a construção de identidades profissionais e práticas de regulação
engendradas nas políticas de formação.
Ao discutir sobre “Os professores e a fabricação de identidades” Lawn 3 (2000) afirma que a
construção e as alterações na identidade são forjadas e governadas pelo Estado, o qual utiliza
discursos como forma de controlar as “identidades oficiais”. O discurso revela-se como elemento de
governação das identidades oficiais e gerencia as reformas pensadas como estratégias políticas de
um determinado momento histórico.
A relação posta pelo autor entre a fixação de uma identidade nacional ou oficial e o mundo do
trabalho torna-se visível pelos efeitos práticos e ideológicos da administração e da governação dos
professores, seja através das políticas de formação, das exigências e ‘competências' requeridas para
seleção ou contratação, o que evidencia que “[...] a identidade pode ser um aspecto chave da
tecnologia do trabalho [...]” (p. 71). As mudanças e reformas educativas vinculam-se aos modelos
político-econômicos e refletem as alterações que são impressas no trabalho docente, relacionando-
se às formas de controle sobre a identidade dos professores e as tecnologias impostas pelo trabalho.
Em diferentes períodos e reformas, a fixação da identidade dos professores, gerenciada através dos
discursos, materializa-se nas mudanças e na reestruturação do trabalho. Estruturas e políticas tácitas
são pensadas pelo Estado como forma de regulação das identidades dos professores, seja para a
manutenção das identidades oficiais ou para o policiamento das fronteiras identitárias. Os
professores contrapõem-se, através dos movimentos associativos e sociais da profissão, ao discurso
de governação e às políticas de fronteira. A autonomia e o domínio exercido no espaço da sala de
aula, assim como o controle por parte do sujeito professor do seu fazer, podem criar dimensões de
não subserviência, de oposições e tensões sobre a manutenção e as políticas de fronteiras pensadas e
reguladas pela nação, visto que a “[...] existência de professores que não se adequam às identidades
oficiais causa pânico. Da mesma forma, as idéias que os professores têm, e as pessoas às quais se
associam, também causam pânico [...]” (p. 76). Este princípio configura-se como um dos problemas
relacionados à manutenção das fronteiras, estabelecendo dificuldades para controlar e manter
fidedignas as identidades oficiais.
Tais mudanças mexem significativamente com a forma de pensar e de exercer a profissão docente,
incluindo os formatos de controle e de regulação das identidades. Se nos anos 80 a identidade dos
professores representava um domínio sobre o fazer e circunscrevia-se no espaço da sala de aula e na
organização da escola, num modelo de descentralização como sinônimo de qualidade, a partir do
início dos anos 90 as identidades e os mecanismos de controle são explicitados nas políticas de
formação e de certificação, as quais configuram modelos de competências, de uma cultura da
excelência e na diversidade de imagens e de representações de professores que é engendrada pelos
diferentes modelos de escolarização.
Outra vertente de reflexão sobre a identidade é construída na perspectiva dos estudos culturais 4 ,
apreendendo a identidade como ‘aquilo que é' e a diferença, como o oposto à identidade, como
‘aquilo que não é', visto que ambas estão numa relação de estreita dependência. Ou seja, a forma de
expressão da identidade, como fixa e imutável, demarca e escamoteia as relações postas nesta
relação, ou como algo que se esgota em si mesmo. “A identidade está ligada a estruturas discursivas
e narrativas. A identidade está ligada a sistemas de representação. A identidade tem estreitas
conexões com relações de poder” (Silva, 1999, p. 97). Identidade e diferença são produções
históricas, resultantes de processos de produção simbólica e discursiva que envolvem poder, saber,
disciplinamento, inclusão, exclusão e que se caracterizam em representações.
Conforme Louro (1997), “a escola delimita espaços” 5 , os quais são instituídos a partir de símbolos
e códigos, mapeando o que cada um pode ou não pode fazer, separando, agregando, elegendo,
classificando e legitimando diferenças em suas identidades ‘escolarizadas'.
Para Moita, a identidade profissional “[...] é uma construção que tem uma dimensão espácio-
temporal, que atravessa a vida profissional desde a fase da opção pela profissão até a reforma,
passando pelo tempo concreto da formação inicial e pelos diferentes espaços institucionais onde a
profissão se desenrola [...]” (1992 p. 115-6). A identidade profissional assenta-se em saberes
científicos e pedagógicos e tem como referência axiomas éticos e deontológicos. Pode-se apreender
que é forjada e performatizada a partir do contexto e dos interesses postos historicamente como
forma de controle e de organização das mudanças educativas ou, ao contrário, como forma de não
assujeitamento ao estabelecido. Ainda assim, a autora reitera que a identidade profissional: “É uma
construção que tem marca das experiências feitas, das opções tomadas, das práticas desenvolvidas,
das continuidades e descontinuidades, quer ao nível das representações, quer ao nível do trabalho
concreto” (idem, p. 116).
Conforme Nóvoa (1992b, c), a identidade é entendida como um lugar de lutas, tensões e conflitos,
caracterizando-se como um espaço de construção do ser e estar na profissão, que parte do pessoal
para o profissional e vice-versa. “[...] É um processo que necessita de tempo. Um tempo para
refazer identidades, para acomodar inovações, para assimilar mudanças” (1992b, c, p. 16).
HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a
perspectiva dos estudos culturais . Petrópolis: Vozes, 2000, pp. 103/133.
___________ . Os professores e as histórias da sua vida . In: NÓVOA, António (org.). Vida de
professores . 2ª ed. Porto: Porto Ed., 1992c, pp. 11-30.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis:
Vozes, 2000.
Notas
Wilson Costa 1
Este texto, que oferece subsídios para as discussões do quarto programa da série, tem por objetivo
contribuir para a discussão a respeito dos processos que ocorrem no desenvolvimento, que apontam
e significam a unicidade do sujeito nos processos de aprendizagem , considerando a importância do
movimento para o conhecimento da realidade dos objetos e dos espaços, como também das
linguagens expressivas e artísticas para a compreensão das relações humanas subjetivas, cognitivas,
interpessoais e políticas.
Inicialmente, este texto aborda a função e a importância das relações interpessoais para a
constituição do sujeito e de sua corporeidade, nos processos de desenvolvimento, aprendizagem e
nos diferentes espaços sociais, dentre estes, o escolar. Num segundo momento, aborda as relações
entre corporeidade e ideologia e corporeidade e ludicidade, significando as suas implicações na
construção de conhecimentos escolares e informais. Aponta para uma abordagem construtivista de
aspectos lúdicos, essenciais para o resgate do interesse dos alunos sobre os conhecimentos
escolares, e aborda também as possibilidades de estudo sobre os elementos conceituais e atitudinais
presentes nos conteúdos das áreas do ensino formal e das linguagens de movimento e da expressão
artística. Finaliza com a discussão sobre a importância destas atividades para favorecer o
envolvimento dos alunos com dificuldades de aprendizagem.
É a emoção que coloca em movimento a sua globalidade, na busca da atualização de seus desejos e
das suas necessidades.
Chamo a atenção para a dimensão subjetiva que, amalgamada com a dimensão biológica, se
presentifica em cada ação do sujeito no mundo, especialmente pelo seu próprio corpo.
A condição do sujeito dialoga sempre com a sua história, construída junto aos outros seus, mesmo
que não sejam consangüíneos, constituída de afetos e conhecimentos gerados pelas suas interações
– emocionais/afetivas, cognitivas e corporais – com o mundo social, dos objetos e do conhecimento.
A ação mediadora exercida pelo adulto entre a criança e o mundo é fundamental para as noções da
realidade que esta constituirá e se expressará de forma singular nas suas interações corporais,
expressivas e verbais com os outros, os ambientes e os objetos.
O caráter cultural e prazeroso das atividades lúdicas e expressivas, de acordo com as escolhas da
abordagem pedagógica de cada instituição, pode exercer papel fundamental na formação de
crianças e jovens.
O conceito de imagem corporal remete às relações existentes entre as percepções que a criança
gradualmente constitui do seu corpo e a idéia que constrói de si mesma. Esta construção é
constituída por elementos subjetivos e objetivos, possibilitando a formação das percepções sobre
sua personalidade, pelas atitudes, sentimentos, idéias e nas relações interpessoais. Logo, quando
trabalhamos a corporeidade, atuamos sobre a imagem corporal da criança e incidimos sobre a sua
identidade.
Neste momento, é fundamental analisarmos o papel dos espaços que a criança freqüenta e nos quais
interage, além da família, durante a sua vida: a escola e a sociedade.
O laço familiar, o vínculo cultural, a condição de humano é construída a partir das influências de
“aprendizagens” a que o ser humano vai estar submetido desde o seu nascimento.
Desse entendimento, conclui-se que o contexto social e o momento histórico criam condições que
geram “aprendizagens” específicas de um determinado meio, para que, num contexto de interação, a
criança possa construir seu processo de desenvolvimento.
Começa com a mobilização das funções mais primitivas (inatas), com o seu uso
natural. A seguir, passa por uma fase de treinamento, em que, sob a influência de
condições externas, muda sua estrutura e começa a converter-se de um processo
natural em um “processo cultural” complexo, quando se constitui uma nova forma
de comportamento com a ajuda de uma série de dispositivos externos. O
desenvolvimento chega, afinal, a um estágio em que esses dispositivos auxiliares
externos são abandonados e tornados inúteis e o organismo sai desse processo
evolutivo transformado, possuidor de novas formas e técnicas de comportamento
(VYGOTSKY & LÚRIA, 1996, p. 215, apud Ferreira, 2000, p. 12).
Os pais, familiares, colegas e educadores participam da vida da criança, estabelecendo relações que
geram conhecimentos, habilidades e valores.
A escola é o espaço social eleito para ampliar o espaço das relações, para além da família,
introduzindo novos elementos na rotina da criança, dentre eles a figura do professor, que exerce
uma função fundamental no acolhimento, nos cuidados, na formação e no exercício da cidadania.
A postura ideológica assumida pela Instituição Escolar frente às questões de natureza política e
humanitária define a sua atualidade frente à obviedade de sua função social.
Aqui cabem algumas considerações sobre o lugar do educando no convívio com a escola, como
instituição que exerce uma função social de importância na constituição de uma identidade moral do
sujeito no grupo, que remete à constituição da imagem corporal, ou seja, a imagem que este forma
de si mesmo.
Logo, a função de mediar as aprendizagens, que cabe ao professor, deve considerar as condições
sócio-morais dos alunos e a adequação dos conteúdos ao contexto em que eles vivem, para
corresponder às reais necessidades de desenvolvimento de suas competências.
O contexto escolar exerce um lugar significativo no que se refere à constituição do sujeito, uma vez
que avalia a sua capacidade pelo desempenho nas aprendizagens, o valor da nota, e reflete as
condições de convívio dos alunos na relação com as regras da instituição e com a disciplina.
Corporeidade e ideologia
Esta visão Dualista Cartesiana, do século XVII, foi superada pelas descobertas do campo da
neurofisiologia no século XIX que, a partir da identificação de determinados fenômenos clínicos,
nomeou a palavra psicomotricidade.
Em 1909, Dupré, neurologista francês, a partir de estudos clínicos, contribuiu para o campo da
psicomotricidade, afirmando a independência da debilidade motora dos processos neurológicos,
abrindo espaços para os estudos da psicomotricidade, para além das amarras da cognição.
Uma vez superada s, pelo campo das pesquisas científicas, as abordagens que dissociavam o sujeito
do seu corpo e o corpo do seu sujeito, podemos insistir na dimensão simbólica como formadora do
humano e responsável pelo advento da linguagem, que funda a cultura humana.
Nas relações de domínio, ocorridas pelas lutas de classes, aqueles que detêm o poder submetem os
oprimidos a seus valores e às suas normas, explicitando o que lhes é ou não permitido, que se
estende aos ganhos, posses, credos, expressões e oportunidades.
Estes domínios se estendem também às práticas corporais, uma vez que, historicamente, as
ideologias influenciaram as relações que os indivíduos estabeleceram com seu próprio corpo,
através da alimentação, vestuários, práticas corporais artísticas, esportivas, de lazer e de defesa para
finalidades pessoais e da pátria.
Prescrições de valores e de padrões estéticos foram moldadas corporalmente no século, a partir das
práticas da ginástica científica. No mesmo século, a referida prática corporal é englobada pela
“educação corporal”, e se faz portadora de preceitos e normas (Carmen Soares, 1998, p.17).
Não faltaram iniciativas no decorrer do século XIX de estendê-la a toda população, atribuindo-lhe
valores estreitamente ligados aos interesses de consolidação econômica e política da Europa.
Logo, ao selecionarmos os conteúdos para o trabalho educativo, devemos cuidar dos seus aspectos
sócio-históricos, exercendo uma leitura crítica que possibilite ao aprendiz escapar de uma leitura
ingênua dos fatos da atualidade.
Aqui encontramos um grande desafio: como desenvolver conteúdos e objetivos sem desconsiderar
as motivações, tendências e inclinações de um público cada vez mais bombardeado pela mídia de
massa e a globalização, que têm degradado cada vez mais os valores humanizadores?
Corporeidade e ludicidade
A prática de atividades lúdicas, especificamente a partir das categorias do jogo simbólico, depende
da decisão, por parte daquele que brinca, se entra ou não na brincadeira. Esta tomada de decisão
pressupõe uma deliberação, uma escolha. Dentre diversos fatores, existem motivações determinadas
por alguma emoção específica, algum afeto que influencie especialmente na escolha.
Alguns estudos apontavam que a brincadeira era considerada uma atividade improdutiva, por não
apresentar resultados objetivos e, em muitas ocasiões, favorecer a reprodução de atitudes
indesejáveis aos espaços escolares, classificados como sérios, onde a atenção e a dedicação não
poderiam conviver com as atitudes e expressões decorrentes das atividades lúdicas.
Estas abordagens superficiais detinham-se em algumas condutas de quem brinca e joga, subtraindo-
as de todo o contexto da atividade, isolando-as dos processos de formação subjetiva e de adaptação
aos contextos sociais, que toda criança e todo adolescente vivem.
O que é considerado como produtivo, ou não, para as aprendizagens escolares e para a vida depende
da visão de mundo dos educadores, das escolas e da sociedade. Felizmente, alguns paradigmas da
Conhecimento e ludicidade
A escola, em função de seu projeto político-pedagógico, corresponderá ou não aos anseios dos pais
para o futuro de seus filhos, através de suas práticas metodológicas e culturas institucionais.
A prática pedagógica tradicional pressupõe um aluno dedicado e esforçado, nos moldes do trabalho
adulto, exigindo uma atenção estável, a prática dos valores e da ética institucionais, num ambiente
de silêncio e imobilidade, valendo-se das exposições verbais e leituras como estratégias didáticas.
Por outro lado, na literatura especializada que trata dos processos de desenvolvimento infantil, os
aspectos lúdicos são considerados como fundamentais para as aprendizagens escolares. E, ao
contrário da prática da maioria dos espaços educativos, sugerem um ensino dinâmico, através de
vivências concretas de trabalho, promovendo espaços que privilegiam o diálogo, discussões de
temas atuais em grupo, o exercício da autonomia e, fundamentalmente, o prazer de aprender.
Prazer funcional
“Uma tarefa interessante para a criança é clara, simples e direta. É realizável nos
seus tempos (interno, externo). Desafiante (envolvente). Constante (regular) na
forma e variável no conteúdo. Surpreendente. Com espírito lúdico”.
Desafio. Surpresa
Possível
Simbólica
Construtivo
“Desafio de considerar algo segundo diversos pontos de vista, dada sua natureza
relacional e dialética.”
Considerações finais
Considerando o sujeito em sua globalidade, atualizada nas relações corporais e significativas com
os outros, com os objetos e com o contexto sociocultural imediato, as atividades lúdicas,
expressivas, de movimento e escolares, quando desenvolvidas em condições como as apontadas
pelos indicadores categorizados por Lino de Macedo, constituem-se em poderosa ferramenta para o
desenvolvimento da auto-imagem e da auto-estima.
Neste aspecto, a leitura psicomotora da corporeidade dos sujeitos, pelo olhar do educador, favorece
a expressão falada e corporal do aprendiz. Esta é a porta de entrada para o estabelecimento de um
vínculo inicial que remeta a uma progressiva e constante cumplicidade para a mudança constante de
paradigmas, baseados na metodologia educacional, no convívio social e na formação de valores.
As atividades são o meio e a meta final, uma vez que é através delas que o sujeito coloca em
discussão todo o seu conhecimento e conteúdos subjetivos.
A partir dos encaminhamentos acima descritos, alcançamos os conteúdos previstos pelas áreas na
dimensão do sujeito mais global, para além das limitações dos conteúdos e, ao mesmo tempo,
extrapolando destes as suas dimensões habituais.
Certamente não só as aprendizagens são alcançadas, mas também outros sujeitos ressurgem,
confirmando a importância dos vínculos afetivos com os outros, reafirmando constantemente as
suas competências psicomotoras e reorientando o seu olhar para o mundo ao seu redor, a partir dos
novos paradigmas vivenciados.
Referências bibliográficas
CENPEC. Muitos lugares para aprender. São Paulo: Cenpec/Fundação Itaú Social/ Unicef, 2003.
CENPEC. Guia de ações complementares à escola para crianças e adolescentes. São Paulo:
COLL, César. Comunidades de Aprendizagens. Porto Alegre: Revista Pátio / Ed. Artmed, 2002.
HERNANDEZ & VENTURA. A organização do currículo por projetos de trabalho. Porto Alegre:
Ed. Artes Médicas, 1998.
LEVIN, Esteban. A Clínica Psicomotora: o corpo na linguagem . Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
SOARES, Carmen. Imagens da educação no corpo. Campinas, SP: Autores Associados, 1998.
WALLON, Henri. As origens do caráter na criança. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1971.
Nota
Os versos que abrem este artigo fazem parte da bela canção Rancho da Goiabada , escrita por João
Bosco e Aldir Blanc, no final do período autoritário que teve início com o golpe militar de 1964.
Nela, os autores fazem desfilar, além dos bóias-frias que não aparecem na estrofe em epígrafe, uma
lista de tipos profissionais brasileiros que já não conseguem sustentar a si próprios com as parcas
moedas recebidas em troca de sua força de trabalho, muito menos dar à sua prole as condições
necessárias para mantê-la longe dos expedientes vis que, quase sempre, nas periferias das grandes
cidades, levam os jovens às raias da delinqüência.
Lá se vão os dias de um passado não muito distante, em que ouvíamos pais e mães, trabalhadores e
trabalhadoras integrantes dessas categorias, pronunciarem frases esperançosas exprimindo o desejo
de que seus filhos tivessem uma vida melhor. A mais comum, dita entre afagos, mas sempre com a
contundência que a necessidade requeria, passava, com pequenas variações, a seguinte mensagem:
estude, meu filho, pra que você possa ser alguém na vida. Com este jargão os mais velhos queriam
externar a vontade de que a meninada tivesse um futuro diferente , obviamente, numa perspectiva
de ascensão que somente a escola seria capaz de propiciar. No Nordeste, os meninos ainda
ganhavam dois tapinhas na cabeça, seguidos da sentença imperativa: cresça meu filho, pra ir pro
Rio de Janeiro!
Esta forma simplória de caminhar em busca de dias melhores fez com que grande parte da
população campesina fosse gradativamente se deslocando para as cidades, onde supostamente
estariam as mágicas instituições ampliadoras do conhecimento, capazes de livrar os mais novos das
mazelas do analfabetismo e, por conseguinte, das formas escravistas de produção que ainda hoje
Na década de 80, mais precisamente em 1985, o regime autoritário chegava ao fim, levando com ele
velhas práticas de mercado que seriam substituídas pelas tendências globalizantes alicerçadas no
pensamento neoliberal. No caso do Brasil, o que mais se propagava eram as vantagens do estado
mínimo. Um Estado leve e livre de compromissos empresariais para que os recursos, acumulados
com a sangria dos impostos, fossem aplicados diretamente na satisfação das necessidades básicas da
população.
Portanto, era de se esperar que, ao concluirmos o processo de universalização da escola (os números
mais otimistas falam em 98% das crianças matriculadas no Ensino Fundamental), a filharada das
classes que aparecem na música de Bosco e Blanc não tivesse mais de se amontoar nos sinais de
trânsito para as sutis formas de mendicância realizadas pelos menores limpadores de nada,
malabaristas e vendedores de todos os produtos que podem ser utilizados em pequenos golpes, na
velocidade que os sinais de trânsito determinam. Além da infância e da adolescência habitantes
serelepes dos cruzamentos urbanos, poderíamos completar a lista com os meninos dos lixões, das
feiras temáticas e livres, da prostituição, dos empacotadores clandestinos dos supermercados, do
tráfico de drogas e de inúmeras atividades insalubres que são postas à disposição dos petizes que
têm passagem registrada pelos bancos da escola pública brasileira.
Neste ponto já podemos imaginar que: (1) a universalização da escola não veio acompanhada da
qualidade que uma instituição, prioritariamente, destinada aos filhos dos setores menos favorecidos
da sociedade, deve possuir; (2) o aumento dos níveis de desemprego, motivado pela entrada de
nosso país em uma competição para a qual ele não estava preparado, contribuiu para o aumento do
número de jovens e adolescentes que se movimenta em busca de quase nada. Uma parcela
significativa deste contingente é composta por descendentes de sertanejos e “agrestinos”, que além
das dificuldades de convivência, em meio à violência da cidade grande, já não possuem sequer os
referenciais capazes de lhes despertar o desejo, comum aos que chegam do Norte , de, um dia,
voltar à terra natal.
A novidade que aparece nesta discussão reside no aumento considerável de instituições que
voltaram suas práticas para a implementação de atividades que têm origem no universo da arte. Os
últimos 50 anos foram determinantes para a consolidação de um processo sócio-educativo que tem
suas raízes fincadas nos interstícios da Escola Nova e que chegou até nós, na década de 60, através
das propostas de inúmeras escolinhas de artes , que tinham como objetivo primeiro a difusão das
linguagens artísticas entre as camadas populares. Seus formuladores (Anísio Teixeira, Villa-Lobos e
mais tarde Augusto Rodrigues) estavam certos de que a arte era algo importante demais para ficar
restrita aos domínios da classe artística que, já naquela época, ia transformando o seu amor
(amadorismo) em profissão. Por esta nova concepção, todos deveriam engajar-se no estudo de um
tipo de arte qualquer, inclusive os artistas.
A questão que agora retomamos tem por objetivo estimular a realização de embates ideológicos
sobre as formas de sedução empregadas pelas organizações não-governamentais na arregimentação
desses segmentos para um tipo de atividade (trabalho artístico), que até bem pouco tempo era visto,
pela sociedade brasileira, como algo proibido e marginal. Podemos limpar o campo trabalhando, em
um primeiro momento, sobre o consenso de que a todos deve ser dada a oportunidade de vivência e
estudo das linguagens da arte, para em seguida trazer à tona as preocupações relativas às
propagandas enganosas que levam crianças, adolescentes e jovens à incorporação da máxima que os
induz a acreditar que o aprendizado de uma determinada manifestação artística pode levá-los a
conquistas capazes de lhes proporcionar uma vida de melhor qualidade.
Por outro lado, devemos reconhecer que o trabalho desenvolvido por uma parcela significativa das
instituições aglutinadas sob a chancela “de educação informal” vem, ao longo dos últimos vinte
anos, produzindo frutos que poderiam chegar à escola pública e, mais facilmente, às crianças
vitimadas por uma modalidade qualquer de esquecimento social: esquecidas pelo Estado, pela
família, pela escola; não importando, para efeito deste trabalho, as razões dos esquecimentos que,
porventura, viessem a ser apresentadas para justificar as desgraças de cada segmento. Sabemos
Para os esquecidos, quase tudo. A escola que está posta a eles não interessa mais. Criada sob a égide
dos postulados positivistas e presa à lógica utilitarista que estabelece os padrões de qualidade, a
escola é, sobretudo, uma instituição orientada pelas ideologias que enfatizam a competição como
instrumento de crescimento, mas ainda não encontrou a maneira de contribuir para que, a todos,
fossem dadas as mesmas oportunidades. Isto faz com que, quase sempre diante do imprevisível, nos
percebamos assustados com a possibilidade de aparecimento de novas modalidades de fracasso. Ao
mesmo tempo, sabemos da existência de bons exemplos que poderiam funcionar como ponto de
partida para novas formas de produção coletiva. A escola, notadamente a que serve às classes
populares, é um imenso laboratório produtor de inúmeros experimentos: alguns fortuitos, outros
intencionais, quase sempre pouco observados pelo coletivo docente. No entanto, para nossa
satisfação, essa forma soberba de olhar com desdém para o conhecimento, que emerge do
imbricamento entre o saber científico e o senso comum, não impede o trânsito das interferências
que, mais cedo ou mais tarde, provocarão fendas na organização curricular tradicional.
Por isso, é importante que nos detenhamos, primeiro, na observação dessas saudáveis rupturas,
depois na construção de estratégias pautadas nos referenciais teóricos que direcionam a produção do
objeto artístico, na esperança de que eles possam contribuir para a superação das dificuldades que
surgem no cotidiano dos espaços formais de educação. Com isto, estaremos dando um passo
significativo para a construção das redes de convivência e enfrentamento das desigualdades , objeto
central desta discussão, que, mesmo sem o aval das esferas oficiais vão, aqui e ali, se constituindo
para a felicidade geral.
O problema que está posto nos atordoa, porque a quase totalidade das escolas por onde passamos,
como alunos ou professores, elaboram os seus programas educativos baseando-se na pretensa
existência de um aluno padrão ideal, cada vez mais distante da realidade. Logo, as nossas
inquietações não se distanciam muito daquelas que, mundo afora, levaram inúmeros educadores à
busca de alternativas que pudessem contribuir para a superação das barreiras subjetivas salpicadas
no caminho daqueles que, por uma série inumerável de motivos, sofreram qualquer tipo de agressão
praticado pelo núcleo social que, por princípio, deveria protegê-lo, ou pelos caprichos, nem sempre
Precisamos, no entanto, ter a consciência de que, por mais que estejamos, cotidianamente, a revirar
gavetas e estantes em busca de alguma argumentação que nos ajude a dialogar com as nossas
aflições relativas à educação dos setores populares, vamos perceber que parte daquilo que
procuramos não reside nas páginas da literatura clássica, elaborada com a finalidade de respaldar o
trabalho docente e contribuir para a melhoria de suas práticas. É mais razoável acreditar que os
nossos desejos serão parcialmente satisfeitos através das vivências promovidas por algumas
instituições que descobriram, quase sempre fazendo uso da seiva que emerge do conhecimento
popular, os instrumentos capazes de fazer com que uma determinada situação incômoda pudesse ser
contornada pelos próprios membros do grupo social afetado. Sobre este assunto, Gohn (1999, p. 7),
nos ajuda com a seguinte proposição:
Hoje, quando a humanidade caminha para a finalização de mais um milênio (1999), a educação tem
sido proclamada como uma das áreas-chave para enfrentar os novos desafios gerados pela
globalização e pelo avanço tecnológico na era da informação. A educação é conclamada também
para superar a miséria do povo, promovendo o acesso dos excluídos a uma sociedade mais justa e
igualitária, juntamente com a criação de novas formas de distribuição de renda e da justiça social.
Neste cenário, observa-se uma ampliação do conceito de educação, que não se restringe mais aos
processos de ensino-aprendizagem no interior das unidades escolares formais, transpondo os muros
da escola para os espaços da casa, do trabalho, do lazer, do associativismo, etc. Com isto, um novo
campo da educação se estrutura: o da educação não-formal. Ela aborda processos educativos que
ocorrem fora das escolas, em processos organizativos da sociedade civil, ao redor de ações coletivas
do chamado terceiro setor da sociedade, abrangendo movimentos sociais, organizações não
governamentais e outras entidades sem fins lucrativos que atuam na área social; ou processos
educacionais, frutos da articulação das escolas com a comunidade educativa, via conselhos,
colegiados etc .
Temos, inclusive, observado que este tipo de instituição, livre das amarras dos tradicionais sistemas
oficiais de ensino, movimenta-se com mais liberdade em torno das estratégias elaboradas para que
um determinado fim seja atingido. Uma parte deste universo é composta por entidades que fazem
uso de instrumentos não convencionais para livrar a meninada dos perigos oferecidos pelas ruas das
grandes cidades e das condições miseráveis em que vive. Algumas delas, fruto de iniciativas
Durante dois anos, a escola foi comandada por uma equipe responsável pela elaboração de uma
pedagogia adequada ao contexto do Candeal e atendeu, experimentalmente, a sessenta alunos. Mas
a desestruturação dessa equipe, sob a alegação de falta de verbas, impediu o pleno funcionamento
da Escola, que ficou seis meses sem atividades, voltando a abrir as portas para setenta alunos. No
espaço Pracatum funciona, também, o estúdio de gravação de Carlinhos Brown – A Ilha do Sapo.
Além do exposto nos parágrafos anteriores, já temos vários indícios de que os alunos que se
envolvem em trabalhos de natureza lúdica, artística ou utilitária caminham, com mais desenvoltura,
pelos vários campos do conhecimento. O que estamos querendo dizer com isso é que a escola
pública, num arroubo de progressivismo , e no afã de se colocar na defensiva contra o discurso
burguês sobre as diferenciações entre o ensino oferecido às classes dominantes (produção
intelectual) e os setores subalternos (trabalho braçal), esqueceu-se da importância da escola de
Freinet e Makarenko, onde as oficinas sempre estiveram presentes, dando significado às atividades
que a escola desenvolvia visando à alfabetização dos filhos das sociedades francesa e soviética,
atordoados pelas angústias dos períodos pós-guerra.
O Grupo Cultural Afro-Reggae ganha corpo a partir de 1993, mais precisamente na Favela de
Vigário Geral, um pouco antes da grande chacina cometida pela polícia carioca, na qual perderam a
vida mais de 20 trabalhadores. Trata-se de uma organização não-governamental que atua nos
bolsões de pobreza da cidade grande. Atualmente o grupo está estruturado em quatro grandes
comunidades: Vigário Geral, Morro do Cantagalo, Cidade de Deus e Parada de Lucas e conta ainda
com trabalhos em vários outros pequenos núcleos habitados pelos segmentos menos favorecidos.
Afora o quesito dimensão e volume de atendimento, podemos dizer que o trabalho realizado pelo
Grupo Cultural Afro-Reggae é filho legítimo das gráficas escolares de Freinet, também presentes
nas atividades desenvolvidas pelos Centros de Interesses da Ilha de Cuba e pelas Colônias de
Ressocialização de Makarenko, na antiga União Soviética. São formas distintas de lidar com a
educação dos filhos das classes menos favorecidas, porém alicerçadas nos mesmos princípios e
visando à conquista dos mesmos objetivos: proporcionar aos filhos do proletariado um leque de
oportunidades capaz de levar a sociedade à melhoria dos padrões de qualidade de vida, trabalho e
lazer.
Vivemos no mundo da bola, somos o país de futebol e por isso achamos natural que todos os
meninos, em algum momento de suas vidas, tenham sonhado em ser um Ronaldinho não
importando, para efeito dos sonhos, se o moço é gaúcho ou carioca. O que todos querem mesmo é
um dia entrar no maior estádio do mundo ovacionados pela torcida de seu time, comprar uma casa
para a mãe e um carro vermelho novinho em folha para desfilar entre os amigos da pobre infância,
dos quais, todos os que chegam lá, dizem jamais esquecer.
Tamanha unanimidade fez com que as mais antigas propostas de ocupação do tempo da meninada,
nos horários não preenchidos pelas escolas, partissem de agremiações ainda não contaminadas pela
febre das ONGs, que surgiram com os mesmos ventos impulsionadores do fenômeno da
Dentre as propostas interessantes que surgem do mundo da bola, uma delas vem na contramão,
falando em cultura, cidadania, transformação da realidade. Trata-se do Projeto Dois Toques da
Fundação Gol de Letra, uma instituição criada por dois prestigiados jogadores de futebol que, até
bem pouco tempo, encantavam os olhos da torcida brasileira: Leonardo, dono de um jogo vistoso,
homem falante, excelente articulador e Raí que, durante toda a sua vida esportiva, caracterizou-se
pela disciplina, pelo comportamento ético e pelas paixões que despertava nas camadas femininas da
sociedade. O que pouca gente sabe é que, além de todas as virtudes inerentes à profissão, os dois
ainda arranjaram um tempo para conversar sobre uma coisa que nós fazemos todos os dias:
construir estratégias para que a sociedade avance em busca de dias mais promissores.
Queremos, no entanto, deixar claro que, apesar do número significativo de projetos que partem da
iniciativa de grupos privados, setores religiosos ou pessoas físicas, insistimos em responsabilizar o
Estado pela falta de cuidado para com a educação dos setores sociais menos aquinhoados. O que
essas instituições estão apontando, cada uma à sua maneira, são algumas alternativas que podem
proporcionar à filharada das classes populares uma vida mais digna. Ao Estado cabe a tarefa de
multiplicar as iniciativas que deram bons frutos, onde quer que haja necessidade.
Referências bibliográficas
GARCIA, Regina Leite (org ). Múltiplas linguagens na escola . Rio de Janeiro, DP&A, 2000.
GUERREIRO, Goli . A trama dos tambores – a música afro-pop de Salvador . São Paulo, Editora
34, 2000.
VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente . São Paulo, Martins Fortes, 1991. L. S.
Vygotsky: p sicólogo russo, autor de vários tratados sobre psicologia, educação e arte.
É o principal inspirador do movimento sócio-interacionista. Para Vygotsky a
aprendizagem é fruto de processos interativos que têm origem na cooperação.
Notas