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SENTENÇA

Vistos etc...

Cuida-se de AÇÃO DE USUCAPIÃO ESPECIAL URBANO


intentada por JOSÉ ARNOUD TEIXEIRA DA AGUIAR e FRANCISCO
ROGÉRIO TEIXEIRA DE AGUIAR, ambos qualificados nos autos, pelos
motivos já amplamente expostos na inicial.

Os autores alegam que há quase 50 anos, sem oposição de quem


quer que seja, suas famílias se acham na posse mansa, pacífica e ininterrupta
de um terreno situado nesta cidade, na rua Timbira, n.º 628, Bairro Pindorama,
nesta cidade, utilizando-o moradia. Afirmam que o bem não se encontra
registrado nem matriculado no Registro de Imóveis, e que os demandantes
não são proprietários de qualquer outro bem imóvel.

Nos pedidos requereram o julgamento procedente da demanda,


declarando a propriedade do imóvel usucapiendo em favor dos requerentes,
expedindo-se o respectivo mandado de registro ao ofício competente. Juntou
documentos às fls. 11/19, dentre os quais, certidão negativa de matricula ou
registro em cartório (fls. 11) e memorial descritivo do imóvel (fls.15).

Decisão de fls. 21 deferindo o pedido de gratuidade processual.

As fazendas Públicas demonstraram desinteresse no feito às fls.


27/30.

Manifestação Ministerial às fls. 35, para que a convivente de José


Teixeira da Aguiar integre à lide na qualidade de consorte. No mesmo sentido,
requereu que os autores chamassem à lide todos os familiares que dividiram
ou dividissem a posse com eles, especialmente os demais irmãos.

Às fls. 36/37, os autores requereram a citação da senhora Maria


Assunção dos Santos Costa, informaram que na verdade residiam no imóvel há
30 anos, que passaram a ocupar o bem juntos, e a família a qual se referiram é
a anaparental, formada pelos dois. Os pais dos autores nunca teriam exercido
atos de posse; nunca moraram com eles, e, portanto, não haveria que se falar
em herdeiros destes.

Deferido o pedido de inserção de Maria Assunção dos Santos Costa


no polo ativo da demanda (fls. 40).

Manifestação Ministerial requerendo a intimação dos usucapiendos


para que promovessem a publicação da citação de eventuais interessados no
feito (fls. 45/46).
Decisão de fls. 48/49, indeferindo o pedido ministerial de publicação
de edital de citação, por entender já devidamente cumprido à fls. 22, e em
razão dos autores litigarem sobre o pálio da justiça gratuita.

Requerimento Ministerial para realização de audiência de instrução e


julgamento (fls. 50).

Realizada audiência de instrução e julgamento às fls. 66/72, ocasião


em que foram inquiridas testemunhas, e deferido o pedido das partes para
apresentação de memoriais escritos.

Alegações finais sob forma de memoriais às fls. 74/76, apresentadas


pelos autores, aduzindo que o objeto da demanda encontra-se localizado em
área urbana inferior à 250m², além dos requerentes não possuírem outro
imóvel, preenchem todos os requisitos para o reconhecimento da Usucapião
especial urbana. Por fim, requereu o acolhimento integral dos pedidos da
inicial.

Parecer Ministerial às fls. 77/78, não vislumbrando qualquer


impedimento ao que é intentado pelos requerentes, e manifestando-se de
maneira favorável ao pedido autoral.

Despacho de fls. 79, chamando o feito à ordem para que se


expedisse ofício ao titular do registro, a fim de que fosse renovada as
pesquisas em seus livros para identificação do imóvel objeto da usucapião.

Em resposta ao ofício expedido nos termos do despacho de fls. 79,


foi informada a inexistência de cadastro que possa espelhar com a necessária
precisão a propriedade do imóvel objeto da demanda, pela falta de informações
oriundas do Poder Público Municipal quanto a abertura de logradouros
públicos, e a descrição precária dos registros de imóveis anteriores à Lei n.º
6.015. (fls. 83).

Despacho de fls. 84, determinando a suspensão do processo em


razão das irregularidades constatadas.

É o relatório.

DECIDO.

INICIALMENTE, se não foi comprovada a existência de matrícula do


imóvel objeto do pedido de usucapião, havendo certidão do tabelião afirmando
que não se pode definir a sua titularidade, é inexigível a citação do titular do
registro e nem impede a tramitação do processo.

É lição de Pontes de Miranda (Comentários ao Código de Processo


Civil, Forense, Rio de Janeiro, 1977, Tomo XIII, p. 374) que

―Os sujeitos passivos, na relação jurídica processual, em que se


pede declaração de aquisição por usucapião são quaisquer
interessados: os que se consideram donos, os possuidores, os
titulares de direitos reais ou de constrições cautelares sobre o
bem, os que são feridos pela declaração nos termos em que se
quer quanto à extensão do bem, os compossuidores, e qualquer
pessoa, que tenha interesse em se não declarar a propriedade. O
direito real tem sujeito passivo total. A diferença entre a
concepção do direito material e do direito pré-processual está
em que todos são sujeitos passivos, na relação de direito
material; ao passo que o Estado somente admite que litigue (aí,
conteste) quem tenha interesse legítimo (Código Civil,
art. 76; Código de Processo Civil, arts. 3º e 4º). Daí a citação ser a
todos os interessados. Há necessidade da citação edital porque,
sem ela, a sentença declaratória só teria eficácia entre as partes,
e não bastaria para se permitir a transcrição, que é, exatamente,
para a eficácia perante todos, aí interessados ou não‖.

Ressalte-se que não é caso nem mesmo de citação dos eventuais


proprietários como réus incertos, pois como bem assinalou NELSON NERY,
em menção ao antigo art. 942 CPC/73:

―Aperfeiçoou-se a redação antiga, de modo a evitar a confusão


que reinava na doutrina e jurisprudência a respeito dos réus que
deveriam ser litisconsortes necessários passivos na ação de
usucapião. Agora apenas os réus certos que se encontrem em
lugar incerto é que serão citados e não mais os réus ‗ausentes,
incertos e desconhecidos‘‖ (Código de Processo Civil e
Legislação Extravagante. 11 ed., rev., ampl. e atual até 17.2.2010,
Revista dos Tribunais: São Paulo, p. 1.232).

Como o imóvel não está matriculado ou registrado em nome de uma


pessoa determinada, os sujeitos passivos se consideram quaisquer
interessados citados por edital.

A respeito,

―APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA -


CERTIDÃO NEGATIVA EXPEDIDA PELO CARTÓRIO
COMPETENTE - AUSÊNCIA DE REGISTRO IMOBILIÁRIO DE
ORIGEM - INCLUSÃO NO PÓLO PASSIVO DO PROPRIETÁRIO
CONSTANTE DO REGISTRO - IMPOSSIBLIIDADE - EXTINÇÃO DO
PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO - NÃO CABIMENTO -
RECURSO PROVIDO. - Não há como se exigir que a parte autora
proceda à indicação precisa do propenso proprietário do imóvel
objeto da ação de usucapião para formar a relação processual,
quando incerto, em face da ausência de registro imobiliário de
origem. Assim, torna-se descabida a extinção do processo, sem
resolução de mérito, por suposta ausência dos pressupostos
de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo.
(Apelação Cível n.º 1.0352.15.005026-3/001, TJMG, Rel. Des.
Shirley Fenzi Bertão, 11ª CACIV, jul. 03/05/2017, pub. 12/05/2017).

―APELAÇÃO CÍVEL - USUCAPIÃO - IMÓVEL NÃO


MATRICULADO - DESNECESSIDADE DE CITAÇÃO DO TITULAR
DO REGISTRO - ESCRITURA PÚBLICA - PROVA DA POSSE AD
USUCAPIONEM - PROCEDÊNCIA. Se não foi comprovada a
existência de matrícula do imóvel objeto do pedido de
usucapião, havendo certidão do tabelião afirmando que não se
pode definir a sua titularidade, é inexigível a citação do titular
do registro. A simples escritura pública de aquisição do bem
objeto da usucapião não comprova a sua titularidade,
tampouco o exercício da posse. Comprovado, pelos autores, o
preenchimento dos requisitos da posse ad usucapionem, em
razão da soma da posse de seu antecessor, deve ser julgado
procedente o pedido. Recurso não provido.‖ (TJ-MG - AC:
10035070977661001 MG, Relator: Gutemberg da Mota e Silva,
Data de Julgamento: 07/03/2013, Câmaras Cíveis Isoladas / 10ª
CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 15/03/2013 – grifei).

Ou seja, “A ausência de registro do imóvel no cartório


competente, ao mesmo tempo que não enseja a conclusão de ser ele
devoluto, não obsta seja o pedido feito pelo autor submetido a exame, e,
ao final, deferido, desde que presentes os demais requisitos legais a tanto
necessários” (TJ-MG 101550500934510011 MG 1.0155.05.009345-1/001 (1),
Relator: DOMINGOS COELHO, Data de Julgamento: 25/07/2007, Data de
Publicação: 04/08/2007)

Outro ponto importante é a natureza do imóvel, público ou privado,


ante a falta de registro público.

Uma questão tormentosa no direito processual civil, que tem relação


também com o direito administrativo, é a atuação da Fazenda Pública
(especialmente a estadual) nos procedimentos de usucapião. É que o Código
de Processo Civil de 1973, em seu art. 943, previa a intimação dos
“representantes da Fazenda Pública da União, dos Estados, do Distrito
Federal, dos Territórios e dos Municípios”, para que manifestem interesse
na causa. Tal previsão é repetida no Novo CPC (Lei n.º 13.105/2015), inclusive
no procedimento de usucapião extrajudicial (art. 1.071, que acrescentou o art.
216-A, § 3º, à Lei n.º 6.015/73), com problemas específicos que precisarão ser
aprofundados.

A relevância da comprovação do destaque válido do patrimônio


público-privado em ações de usucapião decorre do fato de que a manifestação
da Fazenda Pública Estadual, como regra, perpassa e depende desta análise
técnica. Isso porque, uma vez constatada que a cadeia dominial não foi
validamente formada, o Estado, como regra, apresenta resistência ao pedido
de usucapião, com objetivo de obter o julgamento pela improcedência do
pedido.

A história dos registros públicos e da constituição do patrimônio


público e privado no Brasil remonta uma situação tanto quanto peculiar que
causa reflexos na atualidade, especialmente quanto à identificação das terras
devolutas. É que a distribuição de terras decorreu de um duplo processo de
inversão entre o patrimônio público e privado. Como explica Floriano de
Azevedo Marques Neto, o processo de colonização no país foi marcado pelo
domínio amplo dos bens descobertos em benefício do Reino de Portugal,
citando-se, como fundamento, as disposições contidas no Título XV do Livro II
das Ordenações Manuelinas e Título XXVI do Livro II das Ordenações Filipinas.
Assim, inicialmente, todos os bens eram considerados como públicos e
pertencentes à Coroa portuguesa. Com isso, segue o mencionado autor
explicando que o processo inicial de ocupação da propriedade por particulares
se deu através das capitanias hereditárias, que podiam também fazer
concessões pelo sistema de sesmarias:

―[...] todos os bens integrantes do território da Colônia


pertenciam à Coroa. O processo de transferência destes bens
para os particulares se iniciam pelas Capitanias Hereditárias,
entregues a donatários, a quem se conferia a prerrogativa de dar
e conceder extensões territoriais a quem quisesse cultivar parte
destas terras incultas por meio do antigo sistema de sesmarias
existentes em Portugal. Posteriormente, com o malfadar da
maioria das Capitanias, atribui-se a Thomé de Souza a
prerrogativa de distribuir terras por sesmarias, sem foro nem
tributo, a povoadores que se dispusessem a cultivá-las.‖
(MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Bens públicos: função
social e exploração econômica: o regime jurídico das utilidades
públicas. 1ª reimpressão. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 88)

A despeito da possibilidade de utilização do sistema de sesmarias,


menciona o autor também que havia um processo fático de ocupação dos
imóveis (posse ou direitos relacionados), independentemente da obtenção de
um título, o que ocasionou dois legados: um processo de ocupação
descentralizado e desorganizado e a configuração do patrimônio público como
remanescente de terras não ocupadas por particulares.

Neste contexto, já no período imperial posterior à independência, a


primeira manifestação de preocupação com este processo e com a titulação
patrimonial se deu através da Lei n.º 601, de 18 de dezembro de 1850 (Lei de
Terras do Império), regulamentada pelo Decreto n.º 1.318, de 30 de janeiro de
1854, através da qual se proibiu, como regra, a aquisição de terras públicas
que não através de títulos de compra, conceituando, ainda em seu art. 3º, o
que se entendia por terras devolutas. Fez-se, então, o processo inverso ao
anterior, retirando a liberdade de distribuição dos títulos de posse ao colocar os
bens remanescentes sob a propriedade do Estado e vedar a aquisição
particular pela sistemática anterior.

Apesar da menção à Lei n.º 601, de 18 de dezembro de 1850 (Lei de


Terras do Império) como primeira manifestação da preocupação com os
imóveis do Estado, é de se destacar que, em 1843, já havia sido editada a Lei
Orçamentária n.º 317 de 21 de outubro de 1843, criando um Registro Geral de
Hipotecas, que seria regulamentado através do Decreto n.º 482, de 14 de
novembro de 1846. Esta lei, contudo, não tratou pormenorizadamente da
questão relativa à propriedade público-privada. Criava-se, então, o Cartório de
Registro de Hipotecas, que não tratava, inicialmente, de outra matéria que não
a hipotecária.
Cláudio Grande Júnior, em dissertação de mestrado sobre o tema,
destacou o problema dos registros públicos e a ausência de propriedade plena
antes da Lei de Terras do Império ao afirmar que

―4. Em que pese o processo de transformação da natureza


jurídica das sesmarias ao longo da colonização, enquanto foi
aplicado o regime sesmarial não era possível falar em domínio
pleno do solo pelo particular, de forma que não era possível falar
em propriedade da terra nos mesmos moldes que se concebe,
hoje, o instituto jurídico da propriedade. Só se operacionalizou
juridicamente o pleno domínio privado da terra com a Lei n.º 601,
de 1850. A partir de então, começou a ganhar embalo a
regulamentação jurídica do instituto da propriedade imobiliária
no Brasil, que, conquanto prevista na Constituição do Império,
ainda não tinha efetividade e, mesmo depois da Lei de Terras,
continuou capenga de efeitos, por falta de um sistema registral
minimamente seguro até o início do século XX‖. (GRANDE
JÚNIOR, Cláudio. Usucapião quarentenária sobre terras do
Estado: fundamentos jurídicos, atualidade e repercussão na
questão agrária. Dissertação (mestrado). Universidade Federal
de Goiás, Faculdade de Direito, 2012, p. 408).

Porém, o mencionado registro passou a ser ampliado posteriormente


através da Lei n.º 1.237, de 24 de setembro de 1864, regulamentada pelo
Decreto n.º 3.453, de 26 de abril de 1865. Tal diploma passou a prever que o
Registro Geral também englobaria a “transcripção dos titulos da
transmissão dos immoveis susceptiveis de hypotheca e a instituição dos
onus reaes”. Ampliava-se, portanto, o objeto dos registros, passando a
denominar o Cartório de Registro Geral e Hipotecas. Não tornava o registro dos
imóveis, contudo, como obrigatório, o que mantinha ainda a desorganização
dos títulos de propriedade. Pode-se, citar, ainda, o Decreto n.º 451-B, de
31/05/1890, regulamentado pelo Decreto n.º 955-A, criando o Sistema de
registro Torrens, ainda sem obrigar, como regra, o registro para terras
particulares (sendo obrigatório, contudo, para registro de terras devolutas).
Neste contexto, as terras devolutas ainda eram de propriedade do Império.
Com a Constituição de 1891, através do disposto em seu art. 64, é que passou
a constituir propriedade dos Estados.

Apenas com o Código Civil de 1916 foi que o panorama se


modificou, tornando obrigatório o registro da transferência de imóveis (vide art.
530, inciso I, e 531). O art. 856 passou a prever que a abrangência do registro
de imóveis, ao passo que o art. 849 dispunha expressamente que “presume-se
pertencer o direito real à pessoa, em cujo nome se inscreveu, ou transcreveu”.
O códex foi seguido do Decreto Legislativo n.º 4.827/1924, regulamentado pelo
Decreto n.º 18.542, de 24 de dezembro de 1928, todos tratando e
sistematizando os registros públicos. Ainda há também o Decreto n.º 4.857, de
9 de novembro de 1939, tratando da “execução dos serviços concernentes aos
registros públicos estabelecidos pelo Código Civil”.

Quanto à vedação de usucapião de imóveis públicos, o Código Civil


de 1916 não foi explícito. Tal restrição ficou expressa apenas por meio do
Decreto n.º 22.785, de 31 de maio de 1933, o qual, em seu art. 2º, estabeleceu
que “Os bens públicos, seja qual fôr a sua natureza, não são sujeitos a
usocapitão”. Em que pese toda a discussão doutrinária que se iniciou pela
omissão do texto normativo do nosso primeiro código civilista, o STF definiu a
questão ao afirmar, em sede sumular (Súmula 340), que “desde a vigência do
Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem
ser adquiridos por usucapião”.

Ao fim, temos, na atualidade, os principais diplomas legislativos


aplicáveis aos registros públicos como sendo a Lei n.º 6.015, de 31 de
dezembro de 1973 e o Código Civil de 2002, além de normas esparsas sobre
matérias mais pontuais.

A questão é entender os problemas de identificação da cadeia


patrimonial que demonstram o destaque válido do patrimônio público-privado
para fins de viabilizar uma manifestação favorável da Fazenda Pública nos
procedimentos de usucapião e, consequentemente, definir os reflexos disto na
fixação do ônus probatório. Veja-se que, como dito anteriormente, a
consolidação da abrangência do patrimônio público passou por dois momentos
distintos: um primeiro, no qual as terras foram amplamente distribuídas aos
particulares (com ou sem titulação); e um segundo, em que fora proibida a
distribuição das terras sem título legítimo, sendo todo patrimônio remanescente
considerado como terra devoluta.

Neste cenário, em todo procedimento de usucapião, a Fazenda


Pública Estadual procura verificar se o patrimônio privado, sobre o qual se
pretende usucapir, foi constituído de forma regular. Isto é, se foram registrados
corretamente ou se foram objeto de titulação ou posse desde 40 (quarenta)
anos antes da vigência do Código Civil de 1916 (01.01.1917). É que,
enquadrando-se nesta última hipótese, ter-se-á prescrição aquisitiva
quarentenária (também denominada longissimi tempori ou imemorial), a
proteger a o particular interessado.

A prescrição quarentenária é instituto jurídico que permite a proteção


da posse ocorrente há tempos e tem origem no direito romano, acolhida no
Brasil Império até a vigência do Código Civil de 1916. Sintetizando as normas
que baseavam a prescrição aquisitiva desde o direito romano, Sílvio Meira
assim expõe:

Seriam assim as prescrições aquisitivas de dois tipos: a


ordinária por três, para os bens móveis, e dez ou vinte anos para
os imóveis, se o proprietário e o prescribente residissem,
respectivamente, na mesma ou em comarcas diferentes. O outro
tipo de prescrição, chamada extraordinária, seria a decorrente do
decurso do prazo de trinta anos, independentemente de justo
título, mas havendo boa-fé. Em quarenta anos seriam
prescritíveis os bens dominicais do Estado, cidades e vilas e os
imóveis das igrejas e estabelecimentos pios. Esta prescrição
quarentenária encontra apoio nos textos legislativos romanos:
Novelas 9 e 111, 131, cap. 6, Código 23; e no direito lusitano,
Digesto Port. 1, art. 1.376.‖ (MEIRA, Sílvio. Aquisição da
propriedade pelo usucapião. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, v. 88, n. 22, p. 195-228. 10/1985, p. 197)

Assim, considerando que até o advento do Código Civil de 1916 não


havia proibição quanto à usucapião de bens públicos, a prescrição
quarentenária passou a ser admitida pela doutrina e pela jurisprudência, desde
que apresentada comprovação de posse correspondente a período anterior da
vigência do Código Civil de 1916 (01.01.1917). Esta posse poderia ser
comprovada através de títulos conferidos pelo Governo (a exemplo das cartas
de sesmarias) ou por meio de outros documentos que demonstrassem a posse
do beneficiário (a exemplo das cartas paroquiais).

Uma vez constatado que a terra é devoluta, será impossível a


pretensão de usucapir o imóvel, já que se trata de bem público e, mesmo
sendo bem dominical, não pode ser objeto de usucapião. Este é o teor
expresso do art. 183, § 3º, da Constituição de 1988, art. 102 do Código Civil e
da Súmula n.º 340 do STF.

Neste contexto, a questão que se põe, na atualidade, acerca do


ônus probatório é a seguinte pergunta: a quem compete demonstrar (ônus
probatório) que houve destaque válido do patrimônio público ao privado, seja
por meio da comprovação da cadeia dominial, seja através do acolhimento pela
prescrição quarentenária? Tal comprovação é fato constitutivo do direito do
requerente ou fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor?

O ônus da prova no Código de Processo Civil é tratado


especificamente em seu art. 373, ao dispor que é incumbência do autor a
comprovação do fato constitutivo do seu direito; e do réu a existência de fato
impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor (distribuição estática do
ônus probatório). Porém, este novo diploma vai mais além, na medida em que,
incorporando entendimento doutrinário e jurisprudencial sobre a matéria,
permite expressamente a distribuição do ônus da prova de forma diversa em
decisão fundamentada ou por convenção das partes e desde que atendidos os
requisitos lá previstos (distribuição dinâmica do ônus probatório).

Trazendo estas questões ao objeto do presente processo, vê-se que


há um sério problema a ser enfrentado quando a questão é a comprovação do
destaque válido do patrimônio público-privado no âmbito da ação de usucapião.
É que, como já se disse, na distribuição estática do ônus probatório, incumbe
ao autor comprovar o fato constitutivo do seu direito. Sendo assim, alegando
que a terra a ser usucapida é de propriedade privada, entendemos que lhe
cabe a comprovação deste fato.

Não há como se arguir que se trata de fato impeditivo, extintivo ou


modificativo do direito do autor, a ser alegado e comprovado pela Fazenda
Pública. Em primeiro lugar, porque a alegação de usucapião só se admite em
bens particulares, de sorte que a afirmação de deter o bem tal natureza se
constitui como fato integrante do direito do autor, sem o que não poderia ele ter
sua pretensão julgada procedente. Em segundo lugar, é evidente que a
atribuição à Fazenda Pública do ônus probatório, neste caso, traria um
verdadeiro problema estrutural, na medida em que o Estado não possui todos
os elementos necessários à comprovação da sucessão de títulos particulares e
muito menos da sucessão de posse, criando-se, por vezes, a atribuição de uma
verdadeira prova impossível em detrimento do ente fazendário.

Não se quer aqui afirmar que o Estado não teria uma atribuição de
auxiliar na busca pela natureza da propriedade, adotando diligências
adequadas. A questão não é essa, até porque, pelo regime principiológico do
direito processual civil atual, é imperativa a cooperação das partes, o que se
reflete de forma expressa no art. 6º do novo CPC.

Lucas Buril de Macedo, Mateus Costa Pereira e Ravi Peixoto bem


destacam a importância do princípio da cooperação para o processo civil:

―Essa nova acepção do processo tem como base a superação


das concepções privatistas que regem o sistema processual,
deixando de ser um duelo entre as partes, havendo, agora, uma
publicização do processo, onde o magistrado zelará pela
valorização do contraditório, assumindo uma atitude ativa na
condução do duelo, de modo a garantir uma condução
cooperativa do processo, com um diálogo entre os partícipes da
relação processual e, insista-se, sem protagonismos‖.
(MACEDO, Lucas Buril de; PEREIRA, Mateus Costa; PEIXOTO,
Ravi de Medeiros. Precedentes, cooperação e fundamentação:
construção, imbricação e releitura. Civil Procedure Review, v.4,
n.3: 122-152, sep-dec., 2013)

Complementando, ressaltam os referidos autores que o princípio da


cooperação, pela abalizada doutrina, resulta em alguns deveres, os quais são
assim enumerados: a) dever de esclarecimento; b) dever de consulta; c) dever
de prevenção; e d) dever de auxílio. Nesta perspectiva, acredito que deve
haver a aplicação desta concepção também no caminhar do processo de
usucapião.

A intimação da Fazenda Pública fará com que esta adote as


providências necessárias à verificação técnica do destaque, inclusive
pesquisando em seus registros (v.g., análise dos registros paroquiais). Porém,
em caso de inexistir titulação privada ou mesmo cadeia dominial válida que
comprove o destaque, a conclusão deverá ser pelo enquadramento da terra
como devoluta ou restará viabilizada a usucapião?

A questão aqui discutida, sob o ponto de vista jurisprudencial, passa


por alguns percalços. Isso porque, averiguando o caso no âmbito do Supremo
Tribunal Federal, é possível encontrar apenas julgados bastante antigos,
anteriores à Constituição de 1988, quando a Corte Suprema ainda analisava
matéria infraconstitucional. É o caso, por exemplo, do RE n.º 72020/SP, julgado
em 11/09/1973, que analisou especificamente a questão do ônus probatório da
natureza pública ou privada do imóvel.
No caso em específico, tratava-se de situação em que o imóvel não
possuía registro imobiliário, porém o Magistrado a quo, diante dos elementos
dos autos, considerou que a terra não era devoluta, utilizando-se, para tanto,
de outros meios de prova que não a certidão do Cartório competente. Tal
procedimento, então, foi admitido como correto pela Suprema Corte, que
entendeu no sentido de que, embora as terras devolutas sejam aquelas que
nunca entraram, por título legítimo, no domínio particular, a ausência de
certidão não seria suficiente para configurar a natureza devoluta a terra.

Outro precedente relevante é o RE n.º 75459/SP, julgado em


27/04/1973. Nele, o caso concreto remetia a uma situação em que o
requerente da ação de usucapião teria utilizado de outros instrumentos –
essencialmente provas testemunhais –, para demonstrar a natureza privada do
imóvel. Após os recursos cabíveis, assentou a Primeira Turma que “as
decisões na instância ordinária, com apoio na prova, repeliram a alegada
existência de terras devolutas”. Nesse sentido, atentou-se para a natureza
da terra teria sido averiguada em primeira instância.

Seguiram-se a isso outros julgados, como o RE n.º 86234/MG,


julgado em 12/11/1976, e o RE n.º 84.063/SP, julgado em 08/03/1977. Neles,
afirmou-se que não haveria presunção iuris tantum de que as terras seriam
devolutas ante a mera ausência de registro do imóvel no Cartório competente,
cabendo, em cada caso, a análise das provas colhidas nos autos.

Contudo, é de se observar que, na maioria dos casos, o usucapiente


havia trazido aos autos outros elementos para comprovar suas alegações,
mesmo que fosse minimamente a prova testemunhal, apesar da inexistência de
registro imobiliário. Não se trata, portanto, de uma presunção iuris tantum
também em relação ao particular. Caberia a este a comprovação do fato
constitutivo do seu direito, demonstrando, através das provas cabíveis, a
natureza privada do imóvel. Apenas nesta hipótese é que, alegando a Fazenda
Pública fato contrário, deverá comprovar a natureza de terra devoluta do
imóvel.

Este julgado, apesar de conclusivo quanto ao posicionamento da


Corte à época (que não mais possui a mesma composição), continua sendo
utilizado como parâmetro para decisões dos tribunais inferiores, a nosso ver de
forma equivocada. É que a conclusão do Supremo Tribunal, naquela
oportunidade, não foi no sentido de inverter o ônus da prova de forma absoluta,
ou seja, não foi de que o ônus seria exclusivamente da Fazenda Pública
quanto à natureza devoluta da terra. Não se propôs tal afirmação no acórdão.

O que restou assentado é que o requerente pode comprovar o


domínio através de outros meios. É o caso, por exemplo, do requerente
(usucapiente) conseguir demonstrar que o imóvel foi objeto posse alcançada
pela prescrição quarentenária (já tratada anteriormente), com títulos conferidos
pelas cartas paroquiais.

Ou seja, o ônus probatório de que o imóvel é privado é do autor na


ação de usucapião.
Corroborando com o posicionamento, Maria Sylvia Zanella di Pietro
assenta que o posicionamento mais correto deve atribuir o ônus probatório ao
particular, em que pese a solução contrária conferir maior acesso às terras
públicas pelos particulares. Defende que:

―A primeira tese nos parece juridicamente correta, embora a


segunda favoreça o acesso do particular às terras públicas. Há
que se ter em vista que as terras devolutas sempre foram
definidas de forma residual, ou seja, por exclusão: são devolutas
porque não entraram legitimamente no domínio particular ou
porque não têm qualquer destinação pública. E existe,
indubitavelmente, uma presunção em favor da propriedade
pública, graças à origem das terras no Brasil: todas elas eram do
patrimônio público; de modo que, ou os particulares as
adquiriram mediante concessão, doação, venda, legitimação de
posse ou usucapião (no período permitido), ou elas realmente
têm que ser consideradas públicas e insuscetíveis de
usucapião.‖ (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito
administrativo. 24ª ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 724-725)

Apesar disso, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, os


precedentes do Supremo Tribunal Federal foram incorporados sem maiores
reflexões. É que a Corte de Justiça Superior vem entendendo que a Fazenda
Pública Estadual possui o encargo de comprovar a titularidade pública do
imóvel, independentemente da instrução processual. A tese firmada em
precedentes é de que a ausência de certidão de registro do imóvel não induz
presunção iuris tantum de que as terras seriam públicas (devolutas),
adicionando-se a afirmação de que cabe ao Estado comprovar sempre a
natureza dos imóveis.

Apesar de entendermos que o ônus probatório é do autor, não


discordamos também da dificuldade – assim como a Fazenda Pública Estadual
– em carrear documentos hábeis a comprovação do destacamento do público
para o privado, ante a debilidade fundiária persistente em nosso país.

E aqui propomos uma nova visão da usucapião aplicada ao presente


caso. Um olhar mais social e a procura da solução do problema que assola a
imensidão dos municípios brasileiros, diante do caos fundiário.

Pois bem,

De 200 municípios brasileiros pegos aleatoriamente: 38 não


possuem órgão de análise e aprovação de parcelamento do solo, 10 não
souberam informar; 54 não possuem qualquer base cartográfica, 10 não
sabiam informar; 18 cidades possuem base cartográfica desatualizada há mais
de 10 anos. (fonte: cadastros municipais e registros de imóveis: a lógica do
desenvolvimento urbano em um Brasil em transição entre o rural e o urbano,
programa de pós-graduação em planejamento e gestão do território,
universidade federal do ABC, apresentação em 9 de junho de 2017, no III
Seminário de Governança de Terras e Desenvolvimento Econômico –
UNICAMP).

Ressalte-se, ainda, que a grande maioria dos processos existentes


nessa comarca, algo em torno de 90% (noventa por cento), são imóveis
ocupados por pessoas há muitos anos e sem qualquer registro pleiteando seu
tão sonhado DIREITO DE PROPRIEDADE sobre o imóvel.

A informalidade urbana ocorre em quase todas as cidades


brasileiras e no Estado do Piauí a situação é mais dramática, porque essa
situação atinge a esmagadora maioria dos Municípios. Embora não
exclusivamente, a irregularidade é, em sua maior parte, associada a ocupações
de população de baixa renda. É sabido e consabido que, morar irregularmente
significa estar em condição de insegurança permanente, de modo que, além de
um direito social, pode-se afirmar que a moradia regular é condição para a
realização integral de outros direitos constitucionais, como o trabalho, o lazer, a
educação e a saúde

Ao que se percebe, o principal problema do país é a ausência de


mecanismos concretos que regulem a propriedade, o uso e ocupação do solo
rural e urbano brasileiros. E essa falta de regulação, efetiva e não de regras,
decorre e é determinada pelas possibilidades de se especular com terras – isto
é, ganhar dinheiro com a compra, manutenção, transformação e posterior
revenda de terras em qualquer de suas formas.

Também é sabido que as regras que visavam à efetiva regulação


desses mercados através de legislações acabaram sendo sempre burladas ou
não fiscalizadas, gerando condições mais propícias à especulação para alguns.
Portanto, a regulação ideal seria aquela na qual a sociedade passasse a ter
governança e pudesse definir o uso adequado do solo quer do ponto de vista
produtivo, quer para habitações, preservando simultaneamente o meio
ambiente. Mas o primeiro passo para a melhora na governança fundiária no
Brasil passa pela compreensão da estrutura atual de governança e o potencial
de sua transformação para atingir os objetivos que a sociedade almeja.

As noções de governança de terras e de administração fundiária


nunca estiveram presentes na gestão das terras do país.

O aparente descaso se deve, por um lado, ao peso exercido pelo


recente interesse despertado por processos de reforma agrária e distribuição
de terras e, por outro, pela construção legal e institucional brasileira, que tratou
o tema sempre de forma segmentada e não integrada. Daí decorre também a
incipiência do referencial conceitual que serve de ancoradouro ao tema gestão
e/ou administração fundiária.

O termo administração de terras avançou com o passar dos anos e


demonstrou a sua importância no processo de desenvolvimento de um país,
uma vez que, ao contribuir para a boa governança de terras, a economia é
alavancada e seus mercados de terras funcionam de forma melhor.
Portanto, a partir do desenvolvimento do chamado “Sistema de
Administração de Terras”, os principais benefícios são: a) Garantia de
propriedade e segurança da posse; b) apoio à tributação de terra e
propriedade; c) segurança ao crédito; d) desenvolvimento e monitoramento dos
mercados de terras; e) proteção de terras do Estado; f) redução das disputas
por terra; g) Melhoramento do planejamento urbano e desenvolvimento de
infraestrutura; i) apoio à gestão ambiental; e j) produção de dados estatísticos.

Digno de nota, a seguinte passagem do Livro eletrônico Governança


de Terras: Da Teoria à Realidade Brasileira, FAO/SEAD. 2017, Brasília. 378
pp., p. 65, no capítulo Indefinição jurídica da propriedade: aspectos legais
associados à propriedade da terra, escrito pelos autores ANA PAULA DA
SILVA BUENO e BASTIAAN PHILIP REYDON, onde traz a questão da
propriedade como mola propulsora da segurança jurídica ao cidadão,
capacidade de organização e gestão do território ao Estado e desenvolvimento
econômico à Nação. In verbis:

―A definição da propriedade é essencial para que seus direitos


sejam estabelecidos de forma a proporcionar segurança jurídica
ao cidadão, capacidade de organização e gestão do território ao
Estado e desenvolvimento econômico à Nação, já que a
propriedade é um meio fundamental para a produção de riqueza.
Dessa forma, a propriedade deve estar definida na lei e
organizada no cadastro para que o registro de direitos seja
inequívoco e seguro.‖

JACOMINO é categórico ao afirmar que o histórico imbróglio entre


terras públicas e particulares é decorrente da contradição entre a necessidade
da regulamentação da propriedade e o modelo de exploração econômica da
colônia que se assentava na agricultura predatória e extensiva, prática que se
tornou regra depois da independência e se manteve até há bem pouco tempo
como uma chaga da realidade fundiária e ambiental brasileira. Embora
publicada na primeira metade do século XIX o autor reproduz texto que relata a
fonte de conflitos agrários que perduram até os dias de hoje:

―um germe fecundíssimo de desordens e de crimes tem sido a


confusão dos limites das propriedades rurais, tanto as
adquiridas por sesmarias primitivamente, como as havidas por
título de posse com cultivos efetivos. As divisas principalmente
dessas últimas só são firmadas e respeitadas por armas de fogo
desfechadas de emboscadas de trás dos grossos troncos de
nossas árvores seculares.‖ (JACOMINO, S. Registro e cadastro –
Uma Interconexão Necessária. Disponível em
<http://www.irib.org.br/print/biblio/matricula.asp>. Acesso em
12/12/2017).

Em um território no qual predomina o regime jurídico da propriedade


pública do solo, como é o caso do Piauí, o Poder Público, ao estimular e
garantir a regularização das áreas públicas, está cumprindo um dos mais
importantes princípios do Direito Agrário, que é o da despublicização de suas
terras, transferindo-as para particulares para que nelas produzam e trabalhem.

L. Lima Stefanini atribui o seguinte conceito à regularização de


posse:

“A regularização fundiária é um modo derivado, oneroso, e


preferencial de aquisição de terras públicas, mediante
procedimento típico do órgão executivo em benefícios daqueles
que, achando-se na posse dessas terras nas formas e sujeições
da lei, fazem por provocar a liberalidade do Poder Público de
alienar-lhes as terras apossadas, independente de concorrência
pública.‖

A seguir, o autor discorre sobre os pontos básicos desse instituto.

―1.º. É um modo derivado, porque a relação jurídica de que passa


a ser titular não exsurge como um direito novo, sem vinculação
com qualquer predecessor, mas configura-se diretamente ligado
ao Estado, proprietário anterior, donde dá-se início a cadeia
dominial.
2.º. É um modo oneroso de aquisição porque o beneficiário paga
o valor da terra nua (VTN), custas e emolumentos devidos ao
Poder Público regularizante. Configura-se uma autêntica compra
e venda.
3.º. É uma aquisição preferencial, pois o Poder Público defere
uma preempção ao possuidor na compra do lote de terras
públicas que cultiva (o agricultor e sua família).
4.º. A regularização de posse (titulação dominial) é atingida
através de processo administrativo típico, onde são analisadas
as possibilidades jurídicas do pedido, os critérios normativos do
órgão regularizador, etc.
5.º. Configura-se uma indiscutível liberalidade do Poder Público
em alienar ou não a área, por deter o possuidor, em relação ao
Estado, o proprietário, uma mera preferência à aquisição.
6.º. A alienação é feita independentemente de concorrência
pública. A venda feita através da concorrência e materializada
pela adjudicação facultativa do ocupante não é uma típica
regularização fundiária.‖ (STEFANINI, L. Lima. op. cit., p. 159/161)

E aqui reside o ponto crucial e que reputo de mais valioso ao que


está acontecendo no Estado do Piauí. Pois, hoje, esse Estado pode realizar
uma política de regularização fundiária organizada e voltada a uma boa
governança de terras, que não acontece desde idos dos anos de 1500. Época
de nosso descobrimento.

Para que as áreas não fiquem ociosas e novamente venham a ser


objeto de cobiça, causando uma série de prejuízos à sociedade e atraso ao
desenvolvimento deste Estado, deve o ente público destiná-las a sua real
função.
Para isso, sustenta-se, também, que a função social deve ser
aplicada também aos imóveis públicos, apenas de uma forma diferente daquela
aplicada aos imóveis privados. Vamos assim dizer, de uma maneira mais
flexibilizada do que para os imóveis privados, sem que haja a possibilidade de
sua perca, mas, impondo-se a obrigação de haver uma destinação que cumpra
os objetivos constitucionais de um imóvel servindo à sociedade.

Obriga-se, o Município de Parnaíba/PI, a dar uma destinação em


suas áreas para que não surjam conflitos e ocasionem mais gastos à máquina
pública. A isso, está se chamando de função social da propriedade pública,
fundamentado no fato de que a Carta Magna, bem como, a legislação
infraconstitucional, não fazem distinção entre propriedade pública e privada.

Isso se deve à atuação do poder público estar vinculado sempre ao


interesse público, obrigando-o a promover a devida utilização dos bens
públicos para o bem comum. Assim, permitir a subutilização de bem público em
detrimento ao interesse comum não estaria adequado aos próprios princípios
que regem a administração pública.

Argumenta Sílvio Luis Ferreira Da Rocha que:

―(...) a finalidade cogente informadora do domínio público não


resulta na imunização dos efeitos emanados do princípio da
função social da propriedade, previsto no texto constitucional.
Acreditamos que a função social da propriedade e princípio
constitucional que incide sobre toda e qualquer relação jurídica
de domínio, pública ou privada, não obstante reconheçamos ter
havido um desenvolvimento maior dos efeitos do princípio da
função social no âmbito da propriedade privada, justamente em
razão do fato de o domínio público, desde a sua existência, e,
agora, com maior intensidade estar, de um modo ou de outro,
voltado ao cumprimento de fins sociais, pois, como visto,
marcado pelo fim de permitir a coletividade o gozo de certas
utilidades.‖ (ROCHA, Sílvio Luis Ferreira da. Função social da
propriedade pública. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 122.)

Citando entendimento de Angel M. Lopez, o autor argumenta que:

―[...] na medida em que os fins dos bens públicos não entrem em


conflito com o princípio da função social, cabe exigir dos entes
públicos que acomodem a utilização de seus bens de domínio
privado aos parâmetros da função social, mormente quando,
através do exercício do direito de propriedade dos bens
patrimoniais, o ente público desempenhe uma atividade pura e
exclusiva de obtenção de rendas‘.‖ (Idem, p. 123-124)

A nosso ver, os bens públicos também submetidos ao cumprimento


de uma função social, pois servem de instrumento para realização, pela
administração pública, dos fins a que está obrigada.
No que se refere a função social dos bens dominicais, autor afirma
que:

―(...) o fato e que os bens do domínio privado do Estado, ou bens


dominicais não estariam indelevelmente marcados ao
atendimento de uma finalidade cogente que possa ser
confundida com a realização de uma função social.‖ (ROCHA,
Silvio Luis Ferreira da. Função social da propriedade pública.
São Paulo: Malheiros, 2005. p.145)

Ademais, a inocorrência de usucapião em imóvel público, não o


isenta de cumprir a função social, conforme observa a Defensora Pública
Federal, Karine de Carvalho Guimarães, que citando Cristiana Fortini afirma:

―A Constituição da República não isenta os bens públicos do


dever de cumprir função social. Portanto, qualquer interpretação
que se distancie do propósito da norma constitucional não
encontra guarida. Não bastasse a clareza do texto constitucional,
seria insustentável conceber que apenas os bens privados
devam se dedicar ao interesse social, desonerando-se os bens
públicos de tal mister. Aos bens públicos, com maior razão de
ser, impõe-se o dever inexorável de atender a função social.‖
(GUIMARÃES, Karine de Carvalho. A função social da
propriedade e a vedação de usucapião sobre bens públicos. Uma
interpretação a luz da unidade constitucional. Disponível em
http://jus.com.br/artigos/10948/a-funcao-social-da-propriedade-e-
a-vedacao-de-usucapiao-sobrebens-publicos. Acesso em 29 de
abril de 2015.)

Não se quer aqui dizer que se deva imputar ao Estado penalidades


pelo não cumprimento da função social, mas apenas acordá-lo para o dever de
ordenar seu território para uma boa governança de terras. Isso a população
brasileira já espera desde o descobrimento do Brasil. Já passa da hora de se
instituir no país uma política de regulamentação e ordenação de suas terras em
que o Estado, como nação, seja responsabilizado a destiná-las na melhor
maneira possível e seguindo as Diretrizes Voluntárias para uma boa
governança de seu território.

A função social imputada ao particular é explorar o imóvel, enquanto


a função social da propriedade imputada ao ente público é determinar a
exploração de acordo com a necessidade pública. Entenda-se necessidade
pública neste caso, a exploração do imóvel propriamente dita – produção de
bens e serviços, bem como, a destinação do resultado desta exploração –
fornecer alimentos e serviços para a coletividade.

Pode-se afirmar que a função social da propriedade pública rural


estaria sendo cumprida mediante a exploração por particular com vistas a
atender as necessidades da coletividade. Cite-se, como exemplo, uma
propriedade rural que produza alimentos para atender a sociedade,
erradicando a fome, tornando sustentáveis os aglomerados urbanos.
Do mesmo modo, a função social da propriedade pública urbana
estaria cumprida com a destinação de imóvel público para implantação de
programas voltados a moradias conforme previsto na Constituição, no Estatuto
das Cidades e agora, mais recentemente, na Lei n.º 13.465/17 (regularização
fundiária urbana e rural).

O Estado cumpriria a função social se assim agir. Por outro lado,


descumpriria o princípio da função social da propriedade caso se omitisse de
legalizar a exploração do bem público, seja para fins de exploração agrícola,
seja para fins de moradia, deixando o bem a mercê de grilagem e exploração
incompatível com a política agrícola ou habitacional.

Historicamente, a posse de terras no Brasil (e, por consequência, no


Piauí) foi formalmente regulada, mas operacionalizada de forma inadequada,
implicando leis de acesso à terra que desempenharam um papel distorcido ou
fragilizado.

A função do Estado ganha peso e deve ser reconhecida quando se


tratar da governança de terras, porque a ocupação sem um ordenamento
territorial e sem a construção de um cadastro das propriedades, o que faz com
que paire constantemente um espectro de risco associado às garantias dos
direitos de propriedade. Isso não significa a total ausência de direitos, mas,
mesmo que os proprietários tenham documentação, ainda pairam dúvidas.

O dever no cumprimento da função social do bem público interage


com a função social da administração pública, que tem como ponto fulcral
atender objetivamente seus administrados proporcionando bem-estar social por
meio de políticas públicas capazes de, se não extirpar, ao menos diminuir as
mazelas que assolam a sociedade.

Portanto, incabível e impensável conceber que o Estado venha ter


em seu poder imóvel urbano ou rural sem que seja para pesquisa,
experimentação, demonstração e fomento, visando ao desenvolvimento da
agricultura, a programas de colonização ou fins educativos de assistência
técnica e de readaptação. Não sendo esses casos, o imóvel deve ser
transferido para o patrimônio privado.

Quem atua no setor fundiário sabe o que o título representa para o


ocupante: segurança dominial, crédito bancário e melhoria de vida. A titulação
provoca no indivíduo uma nova disposição para o trabalho revertendo, afinal,
na busca de uma melhor qualidade de vida e maior produtividade da terra.

A importância da medida justifica-se pela necessidade de superar o


obstáculo que a ausência de titulação de parte das ocupações existentes na
região representa para um maior desenvolvimento econômico local e para a
implementação de políticas de fomento da atividade rural em bases legais. A
não titulação das áreas públicas urbanas e rurais intensifica um ambiente de
instabilidade jurídica, propiciando, via de regra, a grilagem de terras, o
acirramento dos conflitos, ocupações desordenadas e o avanço do
desmatamento.

Aqueles que querem a terra para nela continuar vivendo e


trabalhando, terão a tranquilidade de que necessitam para viver sem
sobressaltos e a garantia de acesso aos financiamentos públicos e privados e a
assistência técnica dos órgãos do governo.

Nesse contexto, verifica-se que o acesso à propriedade é essencial


para o crescimento e desenvolvimento desse país, principalmente, propiciar
àqueles que possuem menos condições sociais a terem acesso ao crédito e a
políticas públicas do governo nas três esferas.

Portanto, nesse diapasão, julgar improcedente o pedido contido


na presente ação não é a medida mais justa a ser dada, mas, ao mesmo
tempo, em se julgando procedente o pedido contido na presente
demanda, poderia abrir brechas inimagináveis para que imóveis públicos
fossem usucapidos. A melhor solução para o caso e na nossa humilde
opinião, é possibilitar que o imóvel seja regularizado fundiariamente
dentro das diretrizes legais que possuímos atualmente.

E em boa hora fora promulgada a Lei n.º 13.465/17, que consolidou


procedimentos aplicáveis à Regularização Fundiária Urbana (Reurb), a qual
servirá de base para resolver a presente lide. E para isso, necessário se
entender o conceito de legitimação fundiária, instrumento de regularização,
prevista na referida norma.

A unidade imobiliária objeto da Reurb é núcleo urbano informal,


conceituado pelo legislador como aquele “clandestino, irregular ou no qual
não foi possível realizar, por qualquer modo, a titulação de seus
ocupantes, ainda que atendida a legislação vigente à época de sua
implantação ou regularização” (art. 11, II).

A legitimação fundiária é meio “de aquisição originária do direito


real de propriedade sobre unidade imobiliária objeto da Reurb” (art. 11, VII
da Lei). Corresponde, segundo o art. 23 da Lei, a uma “forma originária de
aquisição do direito real de propriedade conferido por ato do poder
público, exclusivamente no âmbito da Reurb, àquele que detiver em área
pública ou possuir em área privada, como sua, unidade imobiliária com
destinação urbana, integrante de núcleo urbano informal consolidado
existente em 22 de dezembro de 2016”. O ocupante “adquire a unidade
imobiliária com destinação urbana livre e desembaraçada de quaisquer
ônus, direitos reais, gravames ou inscrições, eventualmente existentes
em sua matrícula de origem, exceto quando disserem respeito ao próprio
legitimado” (art. 23, § 2º).

As condições para concessão da legitimação fundiária vêm


estampadas no art. 23, § 1º, da Lei n.º 13.465/17: “I - o beneficiário não seja
concessionário, foreiro ou proprietário de imóvel urbano ou rural; II - o
beneficiário não tenha sido contemplado com legitimação de posse ou
fundiária de imóvel urbano com a mesma finalidade, ainda que situado em
núcleo urbano distinto; e III - em caso de imóvel urbano com finalidade
não residencial, seja reconhecido pelo poder público o interesse público
de sua ocupação”.

No fundo, a legitimação fundiária garante o mesmo efeito da


usucapião, só que em imóvel público.

Poder-se-ia entender que a legitimação fundiária é um ato


discricionário da Administração Pública – União, Estados, Distrito Federal e
Municípios. E eu digo que não. A regularização do parcelamento urbano
implantado de fato constitui um poder-dever dos administradores públicos para
evitar lesão aos seus padrões de desenvolvimento urbano e na defesa dos
direitos dos adquirentes dos lotes irregulares.

Sabemos, ainda, da inexistência de um projeto de regularização


fundiária aprovado, como é de exigência da Lei, que inclua medidas jurídicas,
urbanísticas, ambientais e sociais com a finalidade de incorporar os núcleos
urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus
ocupantes.

Temos em mente a necessidade de que sejam definidos: I –


implantação dos sistemas viários; II – implantação da infraestrutura essencial e
dos equipamentos públicos ou comunitários, quando for o caso; e III –
implementação das medidas de mitigação e compensação urbanística e
ambiental, e dos estudos técnicos, quando for o caso; IV – sistema de
abastecimento de água potável, coletivo ou individual; V – sistema de coleta e
tratamento do esgotamento sanitário, coletivo ou individual; VI – rede de
energia elétrica domiciliar; VII – soluções de drenagem, quando necessário; e
VIII – outros equipamentos a serem definidos pelos Municípios em função das
necessidades locais e características regionais; IX – caracterização da situação
ambiental da área a ser regularizada; X – especificação dos sistemas de
saneamento básico; XI – proposição de intervenções para a prevenção e o
controle de riscos geotécnicos e de inundações; XII – recuperação de áreas
degradadas e daquelas não passíveis de regularização; XIII – comprovação da
melhoria das condições de sustentabilidade urbanoambiental, considerados o
uso adequado dos recursos hídricos, a não ocupação das áreas de risco e a
proteção das unidades de conservação, quando for o caso; XIV – comprovação
da melhoria da habitabilidade dos moradores propiciada pela regularização
proposta; e XV – garantia de acesso público às praias e aos corpos d'água; XVI
– a caracterização físico-ambiental, social, cultural e econômica da área; XVII –
a identificação dos recursos ambientais, dos passivos e fragilidades ambientais
e das restrições e potencialidades da área; XVIII – a especificação e a
avaliação dos sistemas de infraestrutura urbana e de saneamento básico
implantados, outros serviços e equipamentos públicos; XIX – a identificação
das unidades de conservação e das áreas de proteção de mananciais na área
de influência direta da ocupação, sejam elas águas superficiais ou
subterrâneas; XX – a especificação da ocupação consolidada existente na
área; XXI – a identificação das áreas consideradas de risco de inundações e de
movimentos de massa rochosa, tais como deslizamento, queda e rolamento de
blocos, corrida de lama e outras definidas como de risco geotécnico.

Inclusive, a ingerência é tamanha, que se está vendo nos noticiários


locais a situação calamitosa por que passa o município de Parnaíba/PI, devido
ao grande percentual de água que vem massacrando a população sem
nenhuma política pública implementada para solucionar o problema que se
repete em épocas das chuvas. Mais um motivo de se exigir a regularização
desses imóveis e que o município se movimente na aprovação de uma lei de
regularização fundiária adequada e que preveja toda a problemática do ente
Mirim.

Mas repito, não se pode mais ficar parado, diante do caos que se
instalou na cidade de Parnaíba/PI. O que está gerando insegurança e aumento
dos conflitos urbanos, ante uma falta de solução concreta por parte do Poder
Executivo e Legislativo da cidade.

A solução fundiária urge e não pode mais ser empurrada com a


barriga gestão por gestão, desde idos de 1500.

Importantíssimo ter me mente o conceito de Direito à Cidade,


segundo Henri Lefebvre. De acordo com Lefebvre, o direito à cidade afirma,
“de um lado, o direito dos ‗usuários‘ a se pronunciar sobre o espaço e o
tempo de suas atividades no território urbano; e, de outro, o direito ao
uso da centralidade, lugar privilegiado, em vez de se verem dispersos,
isolados nos guetos” (Apud; BENTES, João Manoel. O DIREITO À CIDADE
SOB A PERSPECTIVA DAS CAPACIDADES)

Por fim, o ponto mais nevrálgico e que precisa ser enfrentado para
que não paire dúvidas, é a questão da constitucionalidade do instituto da
legitimação fundiária em imóveis públicos e a proibição da usucapião em
imóveis de tais espécies (art. 183, § 3º e art. 191, ambos da CF/88).

A doutrina majoritária e os tribunais, de acordo com alguns


dispositivos constitucionais vem entendendo pela absoluta imprescritibilidade
dos bens públicos, ainda que estes não cumpram sua função social.

Como sustentado incansavelmente linhas acima, não há


inconstitucionalidade, ante a ponderação de princípios, tais como, princípio da
função social da propriedade, o princípio fundamental da dignidade da pessoa
humana, o direito fundamental da propriedade, os direitos sociais de moradia,
do trabalho etc.

E explico.

Tendo em vista a existência de conflitos normativos, onde de um


lado se encontra a vedação constitucional de usucapião de bens públicos, cujo
fundamento elencado pela doutrina encontra-se no princípio da supremacia do
interesse público sobre o privado, e de outro, a previsão do princípio da função
social da propriedade, do princípio fundamental da dignidade pessoa humana,
do direito de propriedade, e os direitos sociais de moradia, do trabalho etc,
busca, através da técnica da ponderação pautada pelo princípio da
proporcionalidade estabelecer uma correta exegese do ordenamento jurídico
no que se refere a imprescritibilidade de propriedade pública.

Destaca-se que para uma correta interpretação do ordenamento


jurídico, deve-se observar a nova conjuntura constitucional, qual seja, o
neoconstitucionalismo, cujo fundamento consiste em buscar sempre a
eficácia da Constituição, sobretudo no que diz respeito a concretização dos
direitos fundamentais. Sobre esse assunto, dispõe Walber de Moura Agra:

―O neoconstitucionalismo tem como uma de suas marcas a


concretização das prestações materiais prometidas pela
sociedade, servindo como ferramenta para a implantação de um
Estado Democrático Social de Direito. Ele pode ser considerado
como um movimento caudatário do pós-modernismo. Dentre
suas principais características podem ser mencionadas: a)
positivação e concretização de um catálogo de direitos
fundamentais; b) onipresença dos princípios e das regras; c)
inovações hermenêuticas; d) densificação da força normativa do
Estado; e) desenvolvimento da justiça distributiva. (AGRA, 2008,
p. 31, apud LENZA, 2014, p. 72).

O princípio da função social da propriedade pública, já amplamente


debatido acima, exige do Estado uma política que garanta o bem-estar social,
além de assegurar a sociedade o direito de questionar o cumprimento da
norma constitucional garantido, sendo a inércia do Estado submetida a uma
sanção jurídica. Sob essa ótica, não só a propriedade privada está obrigada a
cumprir o princípio da função social da propriedade, mas, com mais razão, a
propriedade pública. É o que dispõe Hélder Luiz Coutinho:

―Contudo, em uma interpretação sistemática e teleológica da


Constituição, é possível perceber que não seria lícito e legítimo
isentar o poder público da observância do princípio da função
social da propriedade no que tange a administração de seus
próprios bens, notadamente em um Estado Democrático de
Direito. (COUTINHO, 2009, p. 1)

Desta forma, seguindo o raciocínio apresentado, atenta-se para a


possibilidade de usucapião da propriedade pública que não esteja cumprindo
uma função social, notadamente os bens dominicais, visto que, normalmente,
não dão ensejo a uma destinação pública. Daí, também, se concluir, da
constitucionalidade, mais ainda, da legitimação fundiária, porque se trata de
núcleos urbanos consolidados.

Outra justificativa utilizada para proibir a usucapião de bens púbicos


está pautada, sobretudo, no princípio da supremacia do interesse público.
Todavia, a CRFB/1988 não estabelece nenhuma forma de separação do
interesse público do interesse particular, uma vez que não são antagônicos, e
sim, complementares. É o que dispõe Humberto Ávila:

―O interesse privado e o interesse público estão de tal forma


instituídos pela Constituição brasileira que não podem ser
separadamente descritos na análise da atividade estatal e de
seus fins. Elementos privados estão incluídos nos próprios fins
do Estado (p. ex. preâmbulo e direitos fundamentais). [...] Se eles
— o interesse público e o privado — são conceitualmente
inseparáveis, a prevalência de um sobre outro fica prejudicada,
bem como a contradição entre ambos. A verificação de que a
administração deve orientar-se sob o influxo de interesses
públicos não significa, nem poderia significar, que se estabeleça
uma relação de prevalência entre os interesses públicos e
privados. Interesse público como finalidade fundamental da
atividade estatal e supremacia do interesse público sobre o
particular não denotam o mesmo significado. O interesse público
e os interesses privados não estão principalmente em conflito,
como pressupõe uma relação de prevalência. Daí a afirmação de
HÄBERLE: ‗Eles comprovam a nova, aberta e móvel relação
entre ambas as medidas...‘‖ (ÁVILA, 2001, p. 13-14).

No mesmo sentido leciona Luciana Gaspar:

―O exame realizado revela, também, que esse ‗princípio‘ não


pode ser havido como um postulado explicativo do direito
administrativo, uma vez que o interesse público não pode ser
descrito separadamente ou de forma contraposta aos interesses
privados; antes, os interesses privados consistem em uma parte
do interesse público, sendo a relação entre ambos de
entrelaçamento, e não de contraposição. (DUARTE, 2015)

Desta forma, não havendo contradição entre o interesse público e o


privado (conceitualmente, são inseparáveis), não há que se falar em
prevalência, mas sim em uma ponderação desses interesses, que só é
alcançada se observado a proporcionalidade, objetivando uma maior realização
dos anseios envolvidos. É o chamado “postulado da unidade da
reciprocidade de interesses”, consubstanciado na sistematização das normas
da constituição. A aplicação pura e simples desse princípio, sem a observância
dos direitos fundamentais do cidadão, bem como do princípio da dignidade da
pessoa humana não condiz com o atual ordenamento jurídico brasileiro.

Data vênia, o problema do ordenamento territorial brasileiro deriva,


primordialmente, da falta de um cadastro de terras e do acesso ao titulo de
propriedade. Então, pode-se subentender que o direito aqui discutido não é tão
individual quanto pensamos, mas sim, latente o seu cunho eminentemente
público.

Não é à toa que o direito à terra é considerado como uma questão


de direitos humanos. Ele inclui direito a: ocupar, desfrutar e utilizar a terra e
seus recursos; limitar ou excluir o acesso de outros à terra; transferir, vender,
comprar, doar ou emprestar; herdar e legar; desenvolver a terra ou realizar
benfeitorias; alugar ou sublocar; e beneficiar-se da valorização da terra ou de
seu aluguel (FOOD AND AGRICULTURAL ORGANISATION OF THE UNITED
NATIONS, 2002).

Ele constitui a base para o acesso a alimentação, moradia e


desenvolvimento, e, sem acesso à terra, muitas pessoas são colocadas em
situação de grave insegurança econômica.

Em diversos países, acesso e direito à terra são, muitas vezes,


estratificados e baseados em um sistema hierárquico e segregado no qual os
mais pobres e menos escolarizados carecem de segurança na posse da terra.
Historicamente, o controle sobre o direito à terra tem servido de instrumento de
opressão, marginalização e colonização.

A sua importância está refletida no atual sistema internacional de


proteção de direitos humanos, onde o direito à propriedade é, ao mesmo
tempo, um dos princípios por excelência do sistema e um tema bastante
controverso. O artigo 17 da Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH)
estabelece que:

1. Toda pessoa tem direito à propriedade, só ou em sociedade


com outros.
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.
(UNITED NATIONS, 1948, art. 17)

A Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas


de Discriminação Racial (ICERD, sigla original), aprovada em 1965, estabelece
um compromisso geral dos Estados Partes de eliminar a discriminação racial e
garantir “direito, tanto individualmente como em conjunto, à propriedade”
(UNITED NATIONS, 1965, art. 5, v).

O direito à propriedade também foi visto como uma questão


importante na luta para eliminar a discriminação contra as mulheres. A
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra
as Mulheres (CEDAW, sigla original), afirma em seu artigo 16 que os Estados
devem assegurar “os mesmos direitos a ambos os cônjuges em matéria de
propriedade, aquisição, gestão, administração, gozo e disposição da
propriedade, tanto a título gratuito quanto oneroso” (UNITED NATIONS,
1979, art. 16).

O direito à moradia está inscrito em diversos instrumentos


internacionais fundamentais de direitos humanos. Entre eles, pode-se citar o
Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC)
(artigo 11, par. 1º), a Convenção sobre os Direitos da Criança (artigo 27, par. 3)
e as cláusulas de não discriminação previstas no artigo 14, par. 2 (h) da
CEDAW e artigo 5º (e) da ICERD. O artigo 25 da DUDH inclui o direito à
moradia como parte do direito mais amplo a um padrão adequado de vida.
Portanto, o direito à moradia é, muitas vezes, qualificado como um direito a
uma moradia adequada.

Longe de mim discutir a possibilidade de usucapir toda e qualquer


propriedade pública, mas tão somente aquela propriedade que se encontra
desafetada e que esteja contribuindo sobremaneira para a realização de certos
direitos e garantias constitucionais de determinado indivíduo, realizando a
função social da propriedade. Ressalto, ainda, a impossibilidade quando
decorrente de ato ilícito (falsificação de documentos públicos, vulgarmente
conhecida como grilagem de terras). É seguindo esse raciocínio que ganha
força os ensinamentos de FARIAS e ROSENVALD ao classificar o bem público
em materialmente e formalmente público. Nesse sentido, Cristiana Fortini:

―A Constituição da República, ao afastar a possibilidade de


usucapião de bens públicos, pretendeu acautelar os bens
materialmente públicos, ou seja, aqueles que, pela função social
a que se destinam, exijam proteção, sob pena de sacrificar o
interesse público. Interpretação diversa se distancia da correta
exegese da Constituição da República porque implica a
mitigação da exigência constitucional de que a propriedade
pública e a privada cumpram função social‖. (FORTINI, 2004, p.
119, 120).

Seguindo o raciocínio acima apresentado, faz-se necessário


mencionar a decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) em
que julgou procedente pedido de usucapião de bem público dominical:

―USUCAPIÃO - BEM PÚBLICO - DISTRITO INDUSTRIAL DE


CAMPINAS - TERRENOS DESAPROPRIADOS E VENDIDOS PARA
CONSTRUÇÃO DE INDÚSTRIAS - EMDEC CONSTITUÍDA PARA
PROCEDER À FORMAÇÃO DO DISTRITO INDUSTRIAL -
AFASTAMENTO DA ALEGAÇÃO DE IMPOSSIBILIDADE
JURÍDICA DO PEDIDO, EM RAZÃO DA DESAFETAÇÃO DOS
BENS IMÓVEIS DESAPROPRIADOS - POSSIBILIDADE DE
ALIENAÇÃO - RECURSO PROVIDO POR MAIORIA. [...] Cinge-se a
controvérsia, em saber se o pedido da recorrente é ou não
possível juridicamente. A sentença, acatando a tese da
imprescritibilidade do bem público de qualquer natureza,
extinguiu o processo sem apreciação do mérito, entendendo ser
o pedido impossível juridicamente. Insiste a apelante na
possibilidade de haver usucapião de imóvel contido em área
desapropriada pela EMDEC, registrado no Cartório Imobiliário
em nome do Município de Campinas (fls. 263), bem público cuja
desafetação legal se destinou a implementar o Distrito Industrial
de Campinas (fls. 136). [...] Tem razão a apelante quando afirma
ser o pedido juridicamente possível, devendo ser afastada a
decisão de primeiro grau que julgou o feito extinto sem análise
de mérito. [...] Se assim é, o bem desapropriado passou a
compor o patrimônio disponível da Municipalidade, mas ocorreu
a desafetação, podendo, dessa maneira, ingressar no patrimônio
particular das empresas que tinham interesse na formação do
Distrito Industrial de Campinas. [...] Diante dos precedentes
deste Tribunal e dos demais julgados apresentados pela
recorrente, não se pode negar que o pedido é viável.
Relativamente à posse longeva e com intenção de dono, da
autora, nenhuma controvérsia existe. Bem por isso, fica
reformada a sentença e julga-se procedente a ação de usucapião
para reconhecer a propriedade da empresa autora. (Apelação
Cível nº 9172311-97.2007.8.26.0000. 9ª Câmara de Direito Privado
do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Relator: João
Carlos Garcia, julgado em 24/05/2011- Publicado em 21/07/2011 –
grifei).

Nota-se que apesar da vedação constitucional de usucapião de bens


públicos, não há que se falar aqui em conflito de normas, uma vez que sob a
ótica da interpretação sistemática, tal dispositivo está em perfeita sintonia com
o direito fundamental da função social da propriedade, contribuindo para
regularização fundiária de interesse social e, ainda, alcançando o fim maior do
Estado que é o resguardo e a concretização da dignidade da pessoa humana,
fundamento da CRFB/1988.

A propósito, válido mencionar, o art. 60 da Lei n.º 11.977/09 que


instituiu o Programa Minha Casa, Minha Vida. Com o intuito de regularização
de posses e aquisição de unidades habitacionais pelos indivíduos de baixa
renda, a referida Lei previu em seu art. 60 a aquisição da propriedade por
usucapião, incluindo aí a propriedade pública. É o que dispõe:

―Art. 60. Sem prejuízo dos direitos decorrentes da posse


exercida anteriormente, o detentor do título de legitimação de
posse, após 5 (cinco) anos de seu registro, poderá requerer ao
oficial de registro de imóveis a conversão desse título em
registro de propriedade, tendo em vista sua aquisição por
usucapião, nos termos do art. 183 da Constituição Federal.‖

A possibilidade de usucapir bens públicos deve ser visto como um


meio de realização do princípio fundamental da dignidade de pessoa humana,
do princípio da função social da propriedade, do direito social de moradia, do
trabalho, de propriedade etc. Para atender aos anseios socias, o assunto deve
ser analisado em consonância com o princípio da proporcionalidade, da
interpretação sistemática e teleológica da CRFB/1988, bem como da
ponderação dos princípios que o tema abrange. A aplicação literal da lei fere,
por muitas vezes, os direitos fundamentais do cidadão, indo de encontro com
os preceitos do neoconstitucionalismo. Nesse sentido, Karine de Carvalho
Guimarães:

[...] vê-se que a vedação à prescrição aquisitiva, encarada de


modo absoluto a todos os bens públicos, inviabiliza a
concretização dos princípios maiores esculpidos na Lei
Fundamental. Desta sorte, há que se adotar uma solução que,
sem violar as regras imanentes ao Direito Administrativo, se
harmonize com os escopos do sistema constitucional. É preciso
que, através da interpretação constitucional, se extraia uma
solução justa para as demandas concretas por uma destinação
adequada dos bens públicos. (GUIMARÃES, 2007)

No Brasil, ainda há muitas pessoas vivendo à margem da sociedade.


Em contrapartida, é notória a quantidade de imóveis públicos abandonados,
sendo por muitas vezes ocupados por pessoas de baixa renda que não
possuem moradia digna. O Estado, proprietário de bens desafetados, se
abstém de utilizá-los ao interesse público, não cumprindo a função social da
propriedade.

Todavia, por uma ponderação de valores e princípios do


ordenamento jurídico brasileiro, é possível relativizar a regra constitucional que
veda a usucapião de bens públicos, e, por consequência, permitir a legitimação
fundiária prevista na Lei n.º 13.465/17. Isso porque as regras jurídicas não são
imutáveis, não possuindo, assim, caráter absoluto. O aplicador da norma deve
se pautar no critério de unidade e harmonia do ordenamento jurídico, delineado
por situações fáticas e concretas de cada parte em uma demanda judicial.

Ademais, sendo o princípio da dignidade da pessoa humana o


princípio basilar da CRFB/1988, e estando-o intimamente relacionado com o
direito fundamental de acesso à moradia, é possível sustentar a ideia de que
entre o princípio da função social da propriedade e a regra que veda a
usucapião de propriedade pública, há uma hierarquia axiológica, devendo, pela
sua importância, prevalecer a primeira.

Dessa forma, não vejo inconstitucionalidade na possibilidade de


legitimação fundiária de bem público que não esteja respeitando o princípio da
função social. Pois, seria uma forma até mesmo de impulsionar o
Estado/Nação à realização de uma gestão eficiente de seus bens e de seus
atos, em benefício da coletividade.

Ao que se pode apurar dos autos, as três Fazendas Públicas


manifestaram desinteresse na presente ação.

Compulsando os autos, fica evidenciado que os requerentes não


são concessionários, foreiros ou proprietários de imóvel urbano ou rural (fls.
9/10); e, não foram beneficiados por mais de uma legitimação de posse ou
fundiária de imóvel urbano com a mesma finalidade (fls. 9/10).

Na hipótese, os demandantes exercem a posse exclusiva e


ininterrupta sobre o bem, sem oposição, por mais de 05 anos. Aliás, exercem
desde idos dos anos 2000, tendo-o como sua moradia habitual.

E mais, não há dúvidas que se trata de um núcleo urbano informal,


ou seja, aquele de difícil reversão, considerados o tempo da ocupação, a
natureza das edificações, a localização das vias de circulação e a presença de
equipamentos públicos, até 22 de dezembro de 2016 (art. 9, § 2º, da Lei n.º
13.465/2017).
À vista do exposto e do mais que dos autos consta, JULGO
PROCEDENTE o pedido, dando interpretação conforme à Constituição
Federal, para o fim de determinar o registro do título de legitimação de posse e
a sua conversão em título de propriedade dos requerentes sobre a área
descrita na inicial e nos respectivos memorial, planta e croqui, tudo nos termos
da Lei n.º 13.465/17.

Após o trânsito em julgado desta decisão, expeça-se mandado de


registro, devendo o imóvel ficar registrado em nome de JOSÉ ARNOUD
TEIXEIRA DA AGUIAR e FRANCISCO ROGÉRIO TEIXEIRA DE AGUIAR, já
devidamente qualificados na inicial.

Advirto ao Registrador da isenção das custas e emolumentos


notariais e registrais, bem como a exigência de comprovação de pagamento de
tributos ou penalidades tributárias.

Sem custas e deixo de condenar em honorários advocatícios, ante a


inexistência de parte requerida no processo.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Intimem-se as Fazendas Públicas da presente sentença, inclusive o


Município de Parnaíba/PI para proceder com o projeto de regularização
fundiária, nos termos da Lei n.º 13.564/17, no prazo de 180 (cento e oitenta)
dias.

Notifique-se o Núcleo de Regularização Fundiária para auxiliar o


município de Parnaíba/PI na condução do projeto de regularização fundiária.

Parnaíba(PI), 15 de abril de 2019

HELIOMAR RIOS FERREIRA


Juiz de Direito

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