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{ Festa do Divino Espírito Santo de

Pirenópolis - Goiás }
dossiê iphan 17 { Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás }
dossiê iphan 17 { Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás }
Esta festa não se acaba,
esta festa não tem fim.
Esta festa não se acaba,
esta festa não tem fim.
Se esta festa se acabar,
se esta festa se acabar,
ai, meu Deus,
ai, meu Deus,
ai, meu Deus
que será de mim?
Domínio Público. Farofada,
Música da Festa do Divino
de Pirenópolis.
PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Departamento de Patrimônio Imaterial Instrução Técnica do Processo de Registro
Michel Temer
COORDENAÇÃO-GERAL DE IDENTIFICAÇÃO
da Festa do Divino Espírito Santo de
MINISTRO DA CULTURA E REGISTRO Pirenópolis – Goiás
Sérgio Sá Leitão Deyvesson Israel Gusmão
Supervisão técnica
PRESIDENTE DO IPHAN COORDENAÇÃO-GERAL DE SALVAGUARDA
Kátia Santos Bogéa Rívia Ryker Bandeira de Alencar DEPARTAMENTO DO PATRIMÔNIO IMATERIAL
Ana Claudia Lima e Alves
DIRETOR DO DEPARTAMENTO DE COORDENAÇÃO DE IDENTIFICAÇÃO Ana Lúcia de Abreu Gomes
PATRIMÔNIO IMATERIAL Ivana Medeiros Pacheco Cavalcante
Hermano Fabrício Oliveira Guanais e Queiroz SUPERINTENDÊNCIA DO IPHAN EM GOIÁS
COORDENAÇÃO DE REGISTRO Simone Monteiro Silvestre Fernandes –
DIRETOR DO DEPARTAMENTO DE Marina Duque Coutinho de Abreu Lacerda coordenadora do Iphan
ARTICULAÇÃO E FOMENTO José Newton Coelho Meneses – Coordenador
Marcelo José Santos de Brito COORDENAÇÃO DE APOIO À SUSTENTABILIDADE da equipe de pesquisa
Natália Guerra Brayner Ivana Medeiros Pacheco Cavalcante
DIRETOR DO PATRIMÔNIO MATERIAL Maíra Torres Corrêa
Andrey Rosenthal Schlee CENTRO NACIONAL DE FOLCLORE E
CULTURA POPULAR – CNFCP ESCRITÓRIO TÉCNICO DO IPHAN EM PIRENÓPOLIS
DIRETOR DO DEPARTAMENTO DE Claudia Márcia Ferreira Paulo Sérgio R. de A. Galeão
PLANEJAMENTO E ADMINISTRAÇÃO Adelmo Carvalho
Marcos José Silva Rêgo Catarina Judite Schiffer

DIRETOR DO PAC DE CIDADES HISTÓRICAS COORDENAÇÃO E EQUIPE DE PESQUISA


Robson Antônio de Almeida Restarq/Restauração Arquitetura e Arte Ltda.
Ana Maria Xavier – Coordenação Executiva
SUPERINTENDENTE DO IPHAN EM GOIÁS Marina A. M. de Macedo Soares (antropóloga)
Salma Saddi de Paiva – Coordenação Técnica
João Guilherme Curado (historiador) –
pesquisador
Teresa Caroline Lobo (cientista social) –
pesquisador
Vanderlei Alcantara Ramos (arquiteto) –
pesquisador

DEPARTAMENTO DE PATRIMÔNIO IMATERIAL –


DPI/IPHAN
SEPS Quadra 713/913, Bloco D,
Edifício IPHAN, 4o andar
CEP 70.390-135 Brasília – DF
Telefone: (061) 2024-5401
E-mail: dpi@iphan.gov.br
Edição do Dossiê Interpretativo Registro da Festa do Divino Espírito Santo
COORDENAÇÃO DE EDIÇÃO
de Pirenópolis – Goiás
Yêda Barbosa Processo no 01450.000715/2010-15
EDIÇÃO DE TEXTO E COPIDESQUE
PROPONENTES
Ana Claudia Lima e Alves Instituto Cultural Cavalhadas de Pirenópolis
Ana Lúcia Lucena Prefeitura Municipal de Pirenópolis, Irmandade do
Santíssimo Sacramento.
PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS E REVISÃO DE TEXTO
Denise Ceron
DADOS DO PROCESSO
FOTOGRAFIAS Pedido de Registro aprovado na 63a reunião do Conselho
Arquivo ETEC/IPHAN – Pirenópolis Consultivo do Patrimônio Cultural, em 15 de abril de
Arthur Pedreira 2010.
Cristophe Scianni Inscrição no Livro de Registro das Celebrações em 13 de
João Guilherme Curado maio de 2010.
Leiliane Trindade
Marina de Macedo Soares
Maurício Pinheiro
Saulo Cruz
Silvio Cavalcante
Vanderlei Alcantara

ILUSTRAÇÃO
William Burchell

FONTE DE IMAGENS HISTÓRICAS


Carvalho, A.

PROJETO GRÁFICO
Victor Burton

DIAGRAMAÇÃO C A PA
Avellar e Duarte REI C RIS T Ã O E REI M OU RO SE
Inara Vieira PREPA RA NDO PA RA A S C A R R E I R A S.
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

PÁ GINA 2
V ES T IM ENT A DO REI C RIS T Ã O .
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

PÁ GINA 4
DET A L H ES DA V ES T IM ENT A D O
C A V A L H EIRO M OU RO.
FOT O: M A U RÍ C IO PINH EIR O , 2 0 0 8 .

PÁ GINA 8
M A S C A RA DO NO A L T O DA MA T R I Z.
FOT O: S A U L O C RU Z - 2 008 .
sumário
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 9

10 apresentação 48 Junta, saída e giro 100 AS ARTES NA FESTA


49 Os pousos 102 Os sons da festa
12 introdução
54 A entrega das folias 105 Autos e folguedos
18 UMA FESTA QUE NÃO TEM FIM 108 Dramas e operetas
56 O IMPÉRIO E AS CAVALHADAS
20 Que festa é essa: origem e 108 Pastorinhas
62 Os protagonistas
andanças do Divino 109 Espaço para todos
64 O grande espetáculo
22 A Festa do Divino em 109 As artes do Divino em
67 O campo das cavalhadas
Pirenópolis: rezar, comer e festar exposição
26 Quem faz a festa 70 MÁSCARAS E MASCARADOS
110 RECOMENDAÇÕES DE
32 Os tempos e lugares da festa 73 “Sair de mascarado”
SALVAGUARDA
75 Os preparativos
34 O IMPÉRIO DO DIVINO E SEUS 111 Fatores de risco e ameaças
77 Origens e transformações
RITUAIS 117 Medidas de salvaguarda
36 A centralidade da festa 80 O REINADO DA SENHORA
120 NOTAS
37 As atribuições do imperador E DO SANTO
39 As primeiras cerimônias do 84 Os rituais do Reinado 140 fontes bibliográficas
Império 87 Os reis e rainhas
41 O domingo do Divino e o anexos
90 A CAVALHADINHA 143 Anexo 1 – Pessoas
sorteio do novo imperador
93 O início dos festejos entrevistadas durante a pesquisa
43 As últimas cerimônias do
94 A sexta-feira da cavalhadinha 146 Anexo 2 – Parecer do Relator
Império
96 O sábado da cavalhadinha 155 Anexo 3 – Certidão de
44 AS FOLIAS DO DIVINO 96 O domingo do Divino Registro
ESPÍRITO SANTO 98 Do simples folguedo à
46 As folias de Pirenópolis e suas transmissão da tradição
hierarquias
apresentação
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 11

C OR O A DO I MP ERADOR E M
P RO CI SSÃO .
F O TO : CR I STOP HE SC IANNI, 2008.

A Coleção Dossiê dos Bens Culturais


Registrados destina-se a tornar
amplamente conhecidos e valorizados
trabalho institucional contribui
para o reconhecimento desse
patrimônio pela sociedade
A articulação entre passado e
presente, a atribuição de novas
formas a antigos conteúdos e vice-
como Patrimônio Cultural brasileira e favorece condições de versa, num eterno refazer, mantém
do Brasil os Bens de natureza sua permanência. São apresentados viva a Festa ao longo de gerações.
imaterial Registrados pelo Iphan. nos Dossiês elementos que Sua salvaguarda não tem foco
O Registro foi criado pela definem a identidade dos no risco de desaparecimento, pois
Constituição Federal de 1988, detentores dos Bens Culturais os mecanismos de transmissão e o
art. 216, § 1º, e regulamentado e dos grupos sociais envolvidos engajamento de sua comunidade
pelo Decreto Presidencial nº em sua realização, seu universo são fortes e garantem sua
3.551/2000, que também institui o de ocorrência, e as práticas e continuidade. O desafio é garantir
Programa Nacional do Patrimônio saberes que o constituem. a vitalidade e atualidade da Festa,
Imaterial (PNPI). Ele é realizado Este 17º volume da Coleção mantendo seu vínculo e sentido
pela inscrição dos bens em algum apresenta o Registro da Festa para a comunidade local, mesmo
dos quatro Livros de Registro: do Divino Espírito Santo de com sua abrangência ampliada. ¢
das Celebrações, dos Lugares, Pirenópolis, Goiás, inscrito Kátia Santos Bogéa
das Formas de Expressão e dos no Livro das Celebrações. Presidente do Iphan
Saberes. Os Dossiês publicados A Festa se confunde com
têm por base os estudos que a história e a dinâmica de
fundamentaram o Registro Pirenópolis. Nela estão envolvidos
do Bem Cultural e refletem as os diversos atores locais, diversas
etapas de pesquisa, análise e expressões culturais e são
reconhecimento desse patrimônio. reproduzidas as estruturas sociais
A divulgação dos processos que configuram as identidades
de Registro e dos resultados do coletivas e individuais.
introdução
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 13

C AVALEI R O S MI R I N S.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

A Festa do Divino Espírito Santo


de Pirenópolis é uma das
principais manifestações de devoção
cortejos do imperador, jantares,
novena, missas cantadas, alvoradas,
levantamento do mastro e queima
culturais caros aos pirenopolinos.2
Considerada, por tudo isso, uma
das mais tradicionais e expressivas
religiosa popular do Brasil. Seu de fogos; as cavalhadas (encenações celebrações do Divino Espírito Santo
primeiro registro data de 1819, de batalhas medievais no Brasil, a festa de Pirenópolis
quando a história local começou a entre mouros e cristãos); demandava havia tempos seu
colecionar a lista dos imperadores. os mascarados, que, a pé ou a reconhecimento como patrimônio
Desde então, sua realização é cavalo, circulam irreverentes pelas cultural brasileiro pela sociedade local,
contínua. A celebração articula o ruas e participam das cavalhadas; por estudiosos da cultura popular e
passado ao presente, envolvendo a encenação de dramas, operetas por instituições culturais goianas.
permanentemente toda a cidade e do auto As pastorinhas; ranchões, Assim, no final de 2007, por iniciativa
e determinando os padrões de bailes sertanejos e outras da então 14a Superintendência
sociabilidade local. A cidade faz a formas de expressão associadas Regional, atual Superintendência
festa e a festa faz a cidade. à festa; o Reinado de Nossa do Iphan em Goiás, teve início o
Por meio dela, marca-se Senhora do Rosário dos Pretos projeto de pesquisa da festa, tendo
o tempo, reproduzem-se e o Juizado de São Benedito, em vista a oportuna instauração
estruturas sociais e configuram-se antigas festas de pretos, com seus do seu processo de registro. Sob
identidades coletivas e individuais. congos, congadas e tradicionais a supervisão do Departamento
Muitos eventos e celebrações distribuições de doces. do Patrimônio Imaterial, foram
compõem a festa: as folias da A cavalhadinha complementa a contratados, mediante licitação,
Roça, da Rua e do Padre, que festa. Realizada essencialmente por serviços técnicos especializados
giram1 pelos bairros da cidade e crianças, é a reprodução mirim para a produção de conhecimento
pela zona rural do município, dos festejos e o momento máximo e documentação da celebração.
recolhendo donativos para a festa; de socialização e transmissão, para A empresa Arquitetura,
as celebrações do império, com os uma nova geração, dos valores Restauração e Arte Ltda. (Restarq)
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V I S T A DA I G R EJ A E DA P RAÇA
D O BO N F I M.
F O T O : SI LVI O CAVALCANTE , 2005.

foi a responsável pelas pesquisas. coordenação de historiadoras da registro, que afinal se concretizou
A Set de Filmagens, por sua vez, Superintendência do Iphan em com os pedidos apresentados por
encarregou-se da documentação Goiânia (Goiás) e a supervisão imperadores do Divino (de 1970
audiovisual. A Restarq constituiu da Gerência de Registro do até 2009), pelo Instituto Cultural
uma equipe multidisciplinar Departamento do Patrimônio Cavalhadas de Pirenópolis –
coordenada pela antropóloga Imaterial (DPI/Iphan).4 formado pelos cavaleiros mouros e
Marina de Macedo Soares, composta A pesquisa e a documentação cristãos –, pela prefeitura municipal
de três pesquisadores e uma da Festa do Divino Espírito de Pirenópolis e pela Irmandade
estagiária, todos residentes Santo de Pirenópolis, feitas em do Santíssimo Sacramento.
em Pirenópolis, conforme 2008, cobriram todo o período A estes se juntaram, por meio
pré-requisito da metodologia do de preparação e de realização das de manifestações de anuência, o
Inventário Nacional de Referências celebrações. Foram identificados delegado local da Agência Goiana de
Culturais (INRC) adotada para e documentados, em fotografia e Cultura, Pedro Ludovico (Agepel),
a pesquisa e a documentação vídeo, os elementos constitutivos e a Câmara Municipal de Pirenópolis.
da festa. A Set manteve em atuais da festa, suas origens, A etapa de pesquisa e
Pirenópolis um fotógrafo, o processo histórico de sua sistematização do conhecimento
que se incorporou à equipe de ocorrência e as transformações foi concluída em dezembro de
pesquisa durante os trabalhos de pelas quais passou, além das 2008, com a entrega do relatório
campo, cobrindo as entrevistas, motivações dos produtores do do INRC e da primeira versão
e depois vários cinegrafistas e evento e dos significados que estes do dossiê descritivo. As fotos
fotógrafos, que registraram o atribuem à sua participação. digitalizadas e os documentários
período de clímax da festa.3 Enquanto transcorriam as audiovisuais, editados em versões
Os trabalhos foram gerenciados pesquisas, foram mobilizados os longa e curta, foram entregues
pelo então chefe do Escritório promotores e participantes da festa pela Set na mesma época (final de
Técnico de Pirenópolis, sob a para a formalização da proposta de dezembro de 2008). Sob análise
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técnica dos setores competentes, suportes, constituem 14 anexos do para acompanhar os vários
o dossiê e seu material audiovisual processo, começando pelo relatório eventos intermitentes da festa. Foi
sofreram modificações até alcançar do INRC, nas versões impressa necessário, para isso, elaborar um
a versão definitiva, em outubro de (com cinco volumes) e digital. roteiro e um fluxograma situando
2009. Por fim, em 25 de janeiro Desse modo, todo o no tempo e no espaço as numerosas
de 2010, a documentação reunida, conhecimento sobre a Festa celebrações, que se concentraram
produzida e sistematizada durante do Divino Espírito Santo de em um período de 64 dias – do
as pesquisas foi encaminhada pela Pirenópolis e os requisitos para seu domingo de Páscoa a Corpus Christi.
superintendente do Iphan de Goiás registro, em conformidade com Nesse período, ao mesmo tempo
ao presidente do instituto, e passou a legislação, foram devidamente que desenvolvia o trabalho de
a constituir o processo de Registro contemplados no processo. Cabe campo, a equipe de pesquisa
da Festa do Divino Espírito Santo destacar que o empenho da equipe atendia os membros da comunidade
de Pirenópolis, Goiás, sob o de pesquisa foi decisivo para a envolvidos com os festejos, que
número 01450.000715/2010-15. obtenção dessa documentação visitavam constantemente o
Compuseram o corpo do completa, visto que a celebração se Escritório Técnico de Pirenópolis
processo os documentos originais caracteriza pela dispersão espacial como objetivo de contribuir
dos pedidos de registro e cartas e pelo grande número de eventos e para o conhecimento da festa.
de anuência, já mencionados, os rituais, muitos dos quais ocorreram O alto nível de desempenho
programas e convites da festa de (e ocorrem) simultaneamente das equipes de pesquisa e de
2008 e o dossiê descritivo ilustrado, em diferentes lugares.5 documentação, como também
além das correspondências de Mesmo apoiada pelo pessoal do do escritório do Iphan (que
encaminhamento do Iphan. Escritório Técnico do Iphan – que proporcionou o gerenciamento
Os demais documentos e publicações sediou os trabalhos de pesquisa dedicado ao projeto por seu chefe,
produzidos ou reunidos pela e documentação –, a equipe de Paulo Sérgio Galeão), traduziu-se
equipe de pesquisa, em diferentes pesquisa precisou se desdobrar na quantidade e na qualidade
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do conhecimento sistematizado festa e dos principais elementos que procedeu à inscrição da festa no
e também na documentação a constituem. No texto ilustrado, Livro de Registro das Celebrações
produzida pela equipe da Set é apresentada uma descrição densa em 13 de maio de 2010 e,
de Filmagens, que chegou a da rede de eventos, das relações e das consequentemente, reconheceu-a
mobilizar mais de 20 integrantes práticas sociais que dão forma, ano a como patrimônio cultural do Brasil.
nos momentos de pico da festa. ano, aos festejos do Espírito Santo, O registro representa um passo
A equipe registrou em arquivos a maior devoção da comunidade fundamental para a preservação
digitais com alta resolução cerca local, demonstrando a importância dessa celebração e compromete
de 1.500 fotografias de todos os de seu registro como patrimônio o Iphan e as demais instituições
bens culturais identificados e dos cultural do Brasil. Conforme públicas municipais e estaduais
principais rituais e personagens da previsto na Resolução no 001/2006 a contribuir para as condições
festa. Além disso, produziu 130 do Iphan, que regulamenta o de produção e de continuidade
horas de material bruto para editar registro de bens culturais de da Festa do Divino Espírito
um vídeo de 1 hora e 50 minutos e natureza imaterial, o dossiê também Santo de Pirenópolis, cuja
outro de 25 minutos, que, com as apresenta as recomendações de realização sempre mobilizou
informações consolidadas nos quatro salvaguarda necessárias à preservação profundamente a sociedade local.
volumes do INRC, propiciaram da Festa do Divino de Pirenópolis. No intuito de contribuir para a
o mais amplo conhecimento da Devidamente instruído, valorização e a salvaguarda da festa,
festa do Divino Espírito Santo de portanto, o processo de registro esta publicação trata de divulgar o
Pirenópolis e de seu significado da Festa do Divino Espírito Santo conhecimento reunido no processo
como patrimônio cultural do Brasil. de Pirenópolis foi apreciado e de registro, com base no dossiê
Com base no conhecimento e aprovado pelo Conselho Consultivo descritivo que se organizou de modo
na documentação produzidos pela do Patrimônio Cultural, em semelhante à estrutura da festa, com
pesquisa, elaborou-se o dossiê sua 63a reunião, realizada em 15 os seguintes tópicos: “Uma festa
descritivo, seguindo a estrutura da de abril de 2010. O DPI/Iphan que não tem fim”; “O Império do
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 17

DA ES QU ERDA PA RA A DIRE I T A
M A S C A RA DO A PÉ DA NÇ A N D O .
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

EXPOS IÇ Ã O AS AR T E S DO DI VI N O .
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

de um olhar dotado de certo


lastro histórico que informa o
que é, de onde veio e como veio,
guardando em sua expressão
contemporânea muitos traços que
podem ser encontrados em outras
festas do Divino no Brasil, em
qualquer tempo. Ela evidencia o
eterno refazer das festas religiosas
populares, que nada mais são do
que um grande diálogo entre as
festas medievais europeias, trazidas
com a colonização, refletindo
Divino e seus rituais”; Compreendê-la pelo olhar de as diversas transformações
“As folias do Divino Espírito Santo”; quem a faz – como a metodologia econômicas, sociais e culturais que
“O Império e as cavalhadas”; do INRC propicia – significa fizeram das antigas Minas de Nossa
“Máscaras e mascarados”; desvelar sua grandiosidade, Senhora do Rosário de Meya Ponte
“O Reinado da Senhora e além de sua capacidade de fazer a Pirenópolis de hoje.6 Em suma,
do Santo”; “A cavalhadinha”; uma cidade, já que permanece pode-se ler a história da cidade na
“As artes na festa” e as profundamente imbricada na história da Festa do Divino Espírito
“Recomendações de salvaguarda”. rede de sociabilidade local, Santo de Pirenópolis, que o Iphan
A festa do Divino Espírito Santo dando significado e orientando tem o prazer de apresentar nesta
de Pirenópolis é, certamente, a vida de toda a população. publicação para a apropriação e
uma das principais demonstrações A pesquisa sobre essa festa a valorização desse patrimônio
de devoção ao Divino do país. também propicia a construção cultural por todos os brasileiros. ¢
uma festa que não tem fim
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 19

D ECORAÇÃ O EM F RENTE À C ASA D O


I MP ER ADOR.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

D I REI TA
A MATRI Z E O LARG O D E M E YA
P O N TE EM 1 825 , R ETR ATADOS
P O R W I LLI A M B URCHEL L .
F O N TE: G I LB ER TO F ERRE Z , 1981.

E m Pirenópolis, há quem conte


o tempo pelas festas. A Festa do
Divino Espírito Santo faz parte de
A Festa do Divino Espírito Santo
de Pirenópolis desempenha
papel central na formação da
vento, anuncia a chegada de um novo
tempo por meio da propagação de
seus sete dons: fortaleza, sabedoria,
uma rede de eventos religiosos que identidade cultural local: um jeito ciência, conselho, entendimento,
envolve a cidade e seus povoados. próprio de viver e sentir o piedade e temor de Deus. É a chegada
Além de várias Nossas Senhoras – do mundo com base no qual não há do Império do Divino Espírito Santo,
Rosário (a padroeira), de Fátima, um tempo “antes” e um tempo marcado pela partilha entre os homens
Aparecida –, a população local “depois” da festa nem distâncias e entre a terra e o céu: o Divino chega
realiza muitas outras festividades: intransponíveis entre o catolicismo ao homem; o homem divino é.
dos Reis Magos, com sua folia, oficial e o catolicismo popular. É, portanto, santo mais de
em janeiro, até a Festa de São A festa apresenta todos os agradecer do que de pedir.
Judas Tadeu, em outubro. pressupostos que nos possibilitam Na verdade, é santo de festejar.
Além da Festa do Divino, sua entendê-la como um “fato social E a Festa do Divino Espírito
maior devoção, merece destaque total”: um sistema de produção Santo é a forma que a cidade de
a da Santíssima Trindade, que dá e circulação de bens e de dádivas Pirenópolis – antiga Minas de Nossa
pretexto à famosa Festa do Morro, na baseado na reciprocidade, Senhora do Rosário de Meya Ponte
lua cheia de julho, quando boa parte que interfere em todas as – encontra desde seus primórdios
dos moradores da cidade se muda para dimensões da vida social.8 para celebrar sua maior devoção.
a serra dos Pireneus. Essa sequência de O Divino Espírito Santo não é Há quem diga que, por sua
eventos revela a profunda religiosidade santo de procissão nem de romaria. capacidade de aglutinar outras
que permeia e organiza a sociabilidade Não tem poder de cura, mas tudo manifestações religiosas e culturais,
local: as festas organizam a economia pode curar. Não é santo de brancos de origens as mais diversas, há várias
e informam a geografia, a história, a ou de negros, nem mesmo santo festas em uma. Há quem diga que
tradição e a memória dos habitantes padroeiro da cidade é. Na forma de se trata de uma festa que não tem
de Pirenópolis e dos arredores.7 pomba, fogo, neblina, nuvem ou fim, já que mobiliza durante o ano
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 20

Que festa é
essa: origem
e andanças
do Divino

inteiro – e não apenas durante os


festejos – toda a comunidade.
A festa faz circular as graças
imperador, cozinheiro, folião,
fogueteiro ou cavaleiro.
A festa é solidária: nela só se
A s Festas do Divino Espírito
Santo são associadas a
antiquíssimos festejos realizados
do Espírito Santo, que se acumula para redistribuir, não em épocas de colheita, como
multiplicam pelo campo e pela importa o lugar que cada um ocupa instrumentos de distribuição de
cidade, entrelaçando vizinhos e nos festejos. É nesse lugar que víveres e donativos em períodos
parentes, por meio da fartura, se realiza a densa troca simbólica de “fomes apertadas”.9 Elas são
da oração e da comensalidade. entre o Divino Espírito Santo fundadas na reciprocidade e na
A forma de agradecer ao Divino e seus devotos. A devoção ao solidariedade e baseadas em relações
é a festa, e a certeza de receber Divino explica a festa, que explica de parentesco e vizinhança, que se
suas bênçãos vem exatamente a cidade, constituindo a fonte organizam em grandes mutirões.
da participação no evento como principal de sua identidade. ¢ Uma das versões mais divulgadas
sobre sua origem localiza seus
primórdios em Portugal, na
passagem do século XIII para o
XIV. Ela teria sido instituída pela
rainha Dona Isabel, esposa de Dom
Diniz, o rei lavrador, em franco
conflito com a Igreja Católica.
Cinquenta dias após a Páscoa,
no domingo de Pentecostes, o
Espírito Santo – terceira pessoa da
Santíssima Trindade – era festejado
com banquetes e distribuição
de esmolas aos pobres.10 O
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 21

E SQU ERDA
P RO CI SSÃO DAS V I R G ENS NO D OM INGO
D O DI V I N O , EM 1 91 7 , D URANTE O
I MP ÉR I O DE CHI CO DE SÁ.
F O N TE: CA RVALHO, A., 2007.

D I REI TA
F O LI A DO DI V I N O N O L ARGO DA
MA TRI Z, N O I N ÍCI O DO SÉ CUL O XX.
F O N TE: CA RVALHO, A., 2007.

auge do culto ao Espírito Santo foi mais atraente, mais alentada de sincretismo, na diversidade
em Portugal coincidiu com o satisfação geral”12 que a do Divino. simbólica e na circularidade
período mais intenso da expansão Essas festas e tradições populares cultural”, as festas religiosas
ultramarina. Muito popular na tiveram importante papel na foram as principais expressões da
Idade Média, espalhou-se pela mediação entre as culturas que se sociabilidade das comunidades que
África portuguesa, pela Índia, confrontavam durante o período então se formavam, gerando “formas
pelos arquipélagos da Madeira e colonial e na conformação dos específicas de sociabilidade”.14
dos Açores, e ganhou o mundo padrões sociais locais. Para a Igreja A bibliografia consultada e
a bordo das naus portuguesas.11 Católica, elas eram frequentemente reunida durante as pesquisas
No Brasil, o culto difundiu-se consideradas situações propícias à realizadas em 2008 indicou a
durante o período colonial e hoje evangelização. Foi o que ocorreu continuidade das Festas do Divino
é celebrado em todas as regiões, em Goiás durante o ciclo do ouro, pelo Brasil afora, com variações nos
em variadas versões, podendo ser que propiciou a formação de vilas elementos comuns de seus rituais
considerado uma das práticas mais e cidades. Porém, como destaca sagrados e profanos, incluindo
antigas do catolicismo popular. a historiadora Mônica Martins encenações de cavalhadas e
De acordo com relatos de vários da Silva, é importante relembrar mascarados. A celebração acontecia
viajantes estrangeiros, o Espírito as características da Igreja no em algumas cidades do Pará, do
Santo era celebrado de Norte a Sul Brasil naquele período, em que Amapá, do Piauí e da Bahia, e
do Brasil no século XIX, sobretudo predominava o “aspecto devocional era uma referência cultural no
no Centro-Oeste, no Sudeste e nas em romarias, promessas, votos Maranhão, onde se celebrava
áreas de imigração açoriana, como e festas dedicadas aos santos, o Espírito Santo com grandes
Santa Catarina e Rio Grande do Sul. com caráter basicamente social e festividades na capital, São Luís,
José Alexandre Mello Moraes Filho popular”, em comemorações em em muitas cidades do interior
informa que, “até 1855, nenhuma que práticas sagradas e profanas e em Alcântara, onde as velhas
festa popular no Rio de Janeiro se confundiam.13 Calcadas “no senhoras vestidas de vermelho
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 22

A Festa do
Divino em
Pirenópolis:
rezar, comer e
festar

batiam caixas em homenagem ao


Divino. Ele continuava imperando
também em Diamantina, onde
e Jaraguá, onde mascarados
circulavam na véspera do domingo
de Pentecostes, assim como em
N ão são conhecidos registros que
indiquem como e quando esses
festejos chegaram ao Centro-Oeste
era celebrado com tradicional Corumbá, no Mato Grosso do Sul, do país. Alguns autores consultados
suntuosidade. Com maior ou onde também havia cavalhadas. durante a pesquisa confiam na
menor força, a festa continuava Em Luziânia, a festa acontecia hipótese de que, em Pirenópolis,
ocorrendo em pelo menos mais desde o século XIX, e as cavalhadas a Festa do Divino venha sendo
uma centena de cidades mineiras. do Divino foram revividas na celebrada desde a fundação do
No Rio de Janeiro, o Divino última década do século XX.16 arraial, na primeira metade
Espírito Santo imperava na cidade Em São Paulo, o Divino era do século XVIII. Entretanto,
histórica de Paraty,15 em outras festejado em várias cidades do o primeiro registro histórico
cidades do interior do estado e vale do Paraíba, sendo a festa conhecido sobre a realização da
em bairros da capital, como o de São Luiz do Paraitinga a celebração nessa cidade é de 1819,
Catumbi. No Tocantins, separado principal referência, por conta dos em um período particularmente
do estado de Goiás em 1988, a bonecos gigantes, da distribuição importante para as festas populares,
Festa do Divino continuava a ser gratuita do afogado, prato típico que, com a vinda da família real
a mais popular de Natividade. tradicional, e de outras ricas para o Brasil, intensificaram-se
Em Mato Grosso, ainda ocorria expressões de devoção. Na região na forma de cerimônias públicas,
em algumas cidades, mas sem Sul, as celebrações do Espírito colaborando para a consolidação de
expressão significativa. Já em Santo continuavam ocorrendo um imaginário no qual
Goiás, o Divino Espírito Santo em Santa Catarina, onde eram “se punha a pátria no altar”.18
continuava sendo festejado com valorizadas como a expressão mais Ao mesmo tempo que enaltecia a
pompa nos municípios de Santa significativa da identidade cultural pátria e perpetuava a devoção ao
Cruz, Pilar, Cidade de Goiás açoriana, bem como no Paraná Divino, a festa ia se inscrevendo e se
(a antiga Vila Boa), Palmeiras e no Rio Grande do Sul.17 ¢ refazendo “
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 23

C AMP O DA S CAVALHA DAS – L ARGO DA


MA TRI Z – MEADOS DO SÉ C UL O XX.
F O TO : AU TOR DESCONHE C IDO.
F O N TE: ARQ U I VO ETE C/IPHAN –
P I R EN Ó P O LI S.

na diacronia, incorporando traços, certamente contribuiu para que de comidas, tabuleiros de doces e
esquecendo outros, dando novos Meya Ponte iniciasse a construção “magníficas ceias, trazidas de casa”;
conteúdos a antigas formas ou, de um novo olhar sobre si mesma barracas de espetáculos, cavalhadas,
ao contrário, atribuindo novas e suas tradições: mesmo sendo encamisados, congos e congadas,
formas a antigos conteúdos”.19 anteriormente realizada, foi a ópera, circo, teatro e fogos.24
Nesse eterno refazer, o evento partir de 1819 que a Festa do As semelhanças se estendem
permanecia dialogando com a Divino “entrou para a história” à estruturação do ciclo da festa,
história, com as condições locais e local. Essa informação divide com sua novena e seus picos no
com as circunstâncias do cotidiano, espaço com outra: a de que a Festa sábado do Divino e no domingo de
que, absorvidas pelos festejos, do Divino é tão velha quanto a Pentecostes. A diferença
podiam ou não vir “a integrar o própria cidade, compondo, para marcante entre elas está no
estoque simbólico acessado no muitos, seus mitos de fundação.22 fato de que, em Pirenópolis,
ano seguinte”.20 Dessa maneira, Analisando a literatura relativa o imperador nunca foi menino.25
atualizavam-se e, ao mesmo tempo, a esse período do século XIX, No livro O Divino, o santo e a senhora,
reiteravam-se as tradições locais. verificam-se semelhanças entre o antropólogo Carlos Rodrigues
Foi nesse período que a então a Festa do Divino Espírito Santo Brandão sintetiza a Festa do
Minas de Nossa Senhora do Rosário celebrada hoje em Pirenópolis Divino Espírito Santo como “uma
de Meya Ponte, por sua privilegiada e as que eram realizadas em São série de sequências simbólicas
situação geográfica, entrou na rota Paulo e no Rio de Janeiro: folias de atuação, com graus diversos
do Brasil dos viajantes, tornando-se em busca de esmolas para o culto, de formação ritual, distribuídas
foco da atenção de artistas, bandeirolas e arandelas no largo entre comemorações coletivas
cientistas e naturalistas que dela da Igreja, instalação do Império,23 em situações de rezar, comer e
registraram suas impressões em levantamento do mastro com a festar”.26 De fato, não há evento
descrições, narrativas, aquarelas bandeira do Divino, bandas e da festa que não seja produzido
e aguadas.21 Esse acontecimento orquestras, vendedores de sorte e coletivamente e que não implique
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 24

C A M A ROT E DA BA NDA NO C AMP O DA S


C A V A L H A DA S – L A RGO DA M A T R I Z – F I N S DA
DÉC A DA DE 19 5 0.
FOT O: A U T OR DES C ONH EC ID O .
A C ERV O: JOS É PERC IV A L A FO N SO .
FONT E: A RQU IV O ET EC / IPH AN –
PIRENÓPOL IS .

a circulação de bênçãos por Santo”.27 Os depoimentos • as folias, que “giram” de dia


meio da farta distribuição de colhidos durante a pesquisa e pousam de noite, na cidade e
alimentos. Desde o início dos reiteram esses entendimentos, nas fazendas da região, levando as
terços dos cavaleiros, ainda em podendo-se afirmar que a festa bandeiras do Divino e angariando
janeiro, e durante todo o período e a devoção ao Divino marcam donativos para a festa;
de efervescência da festa, até a profundamente a sociedade de • o Império propriamente dito,
sua finalização, há uma sucessão Pirenópolis e estruturam sua cujas cerimônias principais se
ininterrupta de grandes e pequenas identidade e suas representações. concentram em (cerca de) quinze
cerimônias que se desenvolvem Nesse processo, festeja-se a dias, a partir da saída das folias,
– muitas vezes simultaneamente unidade de uma coletividade acima com alvoradas, novena, cortejos,
– em torno de orações, de rezas de suas alteridades, ao mesmo levantamento do mastro, queima
cantadas e de refeições partilhadas, tempo em que se confirmam de fogos de artifício, distribuição
seja na casa do imperador, seja suas diferenças e os numerosos de “verônicas”, sorteio e coroação
nas farofadas, seja nas folias conflitos que, ano a ano, vão do sucessor, tudo embalado pela
e nas festas do Reinado. conformando a dinâmica da festa. centenária Banda Phoenix;
Para a comunidade local,
a eficácia da festa é traduzida na
expressão da fé e na manutenção
Por meio da pesquisa,
apreendeu-se que, embora a Festa
do Divino de Pirenópolis dialogue
• os mascarados – bois, onças,
capetas, caveiras e monstros,
vestidos com roupas coloridas
das tradições: “A festa é um com outras manifestações culturais e brilhantes, em bandos –, que
compromisso coletivo da cidade locais e sofra transformações ao saem no sábado, ao meio-dia,
para com o Divino” e “o modo longo do tempo, sua estrutura anunciando a abertura da festa,
próprio de a cidade expressar a mantém-se a mesma. e reinam até o sábado de Corpus
sua crença, promovendo uma Os numerosos rituais e personagens Christi, duas semanas depois;
situação de múltiplos rituais de que a constituem são os seguintes, • as cavalhadas, na qual
louvor e homenagem ao Espírito segundo sua ordem de ocorrência: mouros e cristãos ricamente
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 25

vestidos encenam batalhas e segunda e da terça-feira seguintes os valores e referências


confraternizações do domingo ao domingo de Pentecostes; da identidade cultural
de Pentecostes até a terça-feira, • outras expressões agregadas dos pirenopolinos.29
à noitinha, quando rezam ao à festa, como as peças de teatro Do mesmo modo que se
Divino e descarregam as armas (desde 1837), o auto natalino preservam as características
na frente da Igreja do Bonfim, As pastorinhas (desde 1923), os congos essenciais da Festa do Divino,
encerrando o Império; e congadas, a barraca do padre, continuam sendo reiterados os
• as Festas de Nossa Senhora do a feira, os ranchos dançantes; principais mecanismos sociais
Rosário e de São Benedito, santos • a cavalhadinha, ou que configuram sua celebração
dos pretos, que foram agregadas cavalhada-mirim,28 que reproduz a cada ano, articulando Igreja,
ao Império do Divino há décadas os rituais da festa para crianças, as poder público e famílias locais,
e acontecem nas manhãs da quais aprendem, brincando, como se descreve a seguir. ¢
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 26

quem faz a
festa

E m Meya Ponte, principalmente


no decorrer do século XIX,
os imperadores do Divino
tradicionalmente envolvida com
os festejos aumenta o prestígio
do participante diante da
imperadores e, tradicionalmente,
está envolvida com as mais
diversas manifestações da festa,
pertenciam ao clero, à Guarda comunidade, ao mesmo tempo entre elas as cavalhadas, o auto
Nacional ou à esfera política que potencializa sua devoção, As pastorinhas, a banda e peças
local, quase sempre membros refazendo e atualizando no teatrais. Pompeu Cristóvão
dasfamílias mais importantes – presente a trama das relações de Pina foi um dos principais
com vinculação direta ou indireta simbólicas e históricas de organizadores da Festa do Divino
com a irmandade do Santíssimo seu grupo familiar com os e referência incontestável de
– e quase sempre ligados por uma festejos do Divino e com as suas ordens e tradição.31
extensa rede de parentesco que tradições culturais locais. Esse modo fundamental de
reorganizava permanentemente Há famílias tradicionalmente inserção na festa também orienta
os limites entre os grupos sociais envolvidas com o Império, com o as relações entre adultos e crianças.
locais. Constatou-se durante a Reinado, com a Banda Phoenix, Em todos os depoimentos colhidos
pesquisa que essa característica com a produção de peças teatrais, durante a pesquisa, os entrevistados
permanece e é fundamental para com a música que se faz nas enfatizaram a necessidade
a compreensão da Festa do Divino folias ou com as próprias folias. imperiosa de transmissão das
de Pirenópolis, bem como das Outras ainda são responsáveis tradições: é preciso aprender
Festas do Divino em geral.30 pelo levantamento do mastro, com os pais (ou com a família) e
As famílias não são apenas pela confecção de bandeiras, repassar os conhecimentos para as
o principal meio de inclusão e pela montagem de altares e pela próximas gerações. Depoimentos
movimentação dos indivíduos nos preparação de doces, de máscaras dessa natureza foram ouvidos em
diferentes cargos, funções e papéis ou de vestimentas para a festa. todos os eventos e celebrações
que fazem a festa. Descender A família de Pompeu Cristóvão de da festa, na casa do imperador,
de família reconhecida como Pina, por exemplo, já elegeu 21 durante as folias, dos cavaleiros e
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 27

I MP ER ADOR, CA VALEIROS E DE M AIS


MEMB RO S DA CO MUN IDADE RE Z AM
D URAN TE O TERÇO
D OS CAVALEI R O S.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 28

dos participantes do Reinado e,


naturalmente, da cavalhadinha.
A comunidade também cuida
de passar para as novas gerações as
tradições da Banda de Couro, do
congo e da contradança, além da
catira e das pastorinhas infantis.32
No processo de transmissão da
cultura da festa também merecem
destaque as virgens e os anjinhos,
que participam dos cortejos
do imperador no domingo do
Divino desde muito pequenos, até
mesmo enquanto ainda bebês. da festa. A Festa do Divino é o imperador, os cavaleiros das
Esse grande mecanismo de preponderantemente masculina, cavalhadas e os participantes
reprodução sociocultural – o de embora haja papéis reservados das folias. A exceção fica
refazer e honrar a tradição familiar às mulheres, sobretudo nas para o Reinado, que sempre
de envolvimento com os festejos atividades de preparação dos contou com a rainha de Nossa
do Divino e, assim, praticar a festejos, como montagem de Senhora do Rosário e com
sua devoção – confirma o fato altares e enfeites, confecção a juíza de São Benedito.
de que as famílias locais são as de vestimentas e elaboração Historicamente, as mulheres
verdadeiras protagonistas da festa. de comidas, restritos aos sempre tiveram lugar no coro e
Outro aspecto a considerar domínios privados. na orquestra que se apresentam
é referente ao modo como Os principais personagens nas missas e na novena do Divino,
homens e mulheres participam da festa são do sexo masculino: limitando-se sua atuação aos
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 29

DA ES QU ERDA PA RA A DIRE I T A
A L M OÇ O DA FOL IA DA ROÇ A .
FOT O: M A U RÍ C IO PINH EIR O , 2 0 0 8 .

C A T IRA NA FOL IA DO PA DR E .
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

espaços litúrgicos da festa.33


Só no início do século XX as
mulheres conquistaram espaço
definitivo na festa, com o auto As
pastorinhas, no qual os papéis de
pastoras e demais personagens
foram reservados às meninas e
adolescentes, filhas das famílias
locais mais importantes. Nessa
época, também, as mulheres
passaram a participar dos
dramas e operetas “levados”
durante os festejos, que nas
primeiras edições da festa eram
essencialmente masculinos.34
Atualmente, as mulheres
também participam da Banda
Phoenix, dançam catira na
cerimônia de abertura das
cavalhadas e em alguns pousos
de folia. Nas folias da Roça e da
Rua, são raríssimas exceções,
embora compareçam em massa
aos bailões e forrós dos pousos da
Folia da Roça. Também se dão ao
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 30

E S Q UER DA, A LTO C E NTRO, A L T O DIEIT A , A L T O


PO M P EU CR I STÓVÃO DE PINA OTAVINH O QU ER S U BS T IT U IR S EU DONA L A U RIT A DA V EIGA , RA I N H A
(1 9 3 4 -20 1 4 ) , G U A RDI ÃO DAS TIO- AVÔ, O FA M OS O OT Á V IO DE DE NOS S A S ENH ORA DO ROS ÁR I O .
T R A DI ÇÕ ES E U M DO S P RINC IPAIS M ORAES , NA FOL IA DA ROÇ A . FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.
O R GA N I ZA DORES DA F ESTA FOTO: S A U L O C RU Z - 2 008.
D O DI V I N O . DIREIT A , BA IXO
F O T O : SAU LO CRU Z, 20 08. C E NTRO, BA IXO NEU S A DE S Á , JU Í Z A DE
DONA DIV INA C OM T RÊS DOS S EU S S Ã O BENEDIT O.
E S Q UER DA, B AI X O C INC O NET OS QU E PA RT IC IPA M FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.
D O N A LU , I R MÃ DE CA VAL E IRO, DA C AVA L H A DINH A .
B O R DA A CAP A DE REI CRISTÃO DE FOTO: S A U L O C RU Z , 2 008.
S E U FI LHO, A DAI L.
F O T O : SAU LO CRU Z, 20 08.
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 31

F O LI O N A S DA N ÇAM C ATIRA E M
P O U SO N A F OLI A DA RUA.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

direito de sair de “mascarado”, de Pirenópolis é indubitavelmente do Divino. Tradicionalmente,


denunciando suas formas masculina e, em suas cerimônias, cabia exclusivamente aos
femininas ou mesmo tirando suas não há lugar para as mulheres. homens fundir e esculpir as
máscaras, contrariando a regra Para ele, tais inovações são forminhas de chumbo com as
fundamental do anonimato. indesejáveis aos festejos.35 quais são moldadas as massas
Em 2008, a esposa do Vale a pena lembrar, de açúcar, enquanto eram as
imperador desempenhou funções entretanto, que atividades antes mulheres que faziam o doce.
que normalmente não cabem reservadas às mulheres têm sido Na festa de 2008, foi grande
às mulheres, conduzindo, por desempenhadas também por a presença masculina na casa
exemplo, os terços dos cavaleiros. homens. É o caso das “verônicas”, do imperador auxiliando em
Segundo Pompeu de Pina, alfenins em forma de medalhão todas as etapas de confecção
a Festa do Divino Espírito Santo com emblemas relativos à Festa das cobiçadas verônicas.36¢
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 32

Os tempos e
lugares da
festa

O conjunto de festejos que


compõem a Festa do Divino
Espírito Santo de Pirenópolis
serão produzidos bens materiais
e simbólicos que circularão como
dádivas durante os festejos.
no reinado e nos pousos da Folia
da Rua. Da mesma forma, a casa
do imperador é dos devotos
marca, antes de tudo, o tempo Há, de fato, um período do Divino: nela, o altar da
local. Há um tempo cíclico – de “dormência”, seguido da coroa está sempre montado, as
o da festa – que cria intensos deflagração propriamente dita portas, sempre abertas, e a mesa,
movimentos de ressignificação dos eventos e celebrações da festa, posta, à espera das visitas.
do passado e do presente. que vai pouco a pouco ocupando Nas fazendas, os altares ficam
O significado de ser pirenopolino todos os espaços da cidade. São abertos à visitação; porém,
passa obrigatoriamente por essa lugares da festa as casas, largos e de acordo com as regras de
dimensão do tempo na qual o igrejas, sendo os principais a casa hospitalidade das folias, “[...] na
passado se atualiza no presente do imperador, a Igreja Matriz casa só pousam o Espírito Santo,
e o presente se potencializa de Nossa Senhora do Rosário, o dono da casa e sua família”.38
no passado, reiterando as a arena das cavalhadas, o teatro As igrejas se reservam para a
representações locais. Não há e as ruas, estradas, atalhos e realização de eventos diretamente
cotidiano sem festa; sem ela, morros percorridos pelas folias. relacionados à festa, como a
não há passado nem presente. Durante os festejos, esses lugares novena do Divino, o levantamento
Isso faz do evento “uma festa e cenários são alvo de inversão dos mastros e as missas em louvor
que não tem fim”, já que, a partir temporária de seu uso cotidiano. aos santos do Reinado (na Igreja
do sorteio do novo imperador, As casas tornam-se espaços do Bonfim) e as cerimônias que
no domingo de Pentecostes, abertos de celebração e envolvem o imperador (bênção da
iniciam-se os preparativos para a comensalidade, por exemplo, coroa, novena, sorteio e coroação
festa do ano seguinte, envolvendo durante a realização dos terços do imperador), na igreja matriz.
toda a comunidade. Até a próxima dos cavaleiros e das “farofadas”,37 Do mesmo modo, durante as
festa – e em nome da devoção – nas festas de doces promovidas alvoradas, cortejos e procissões,
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 33

DA E SQU ERDA PA RA A DIREIT A


CASA DO IM PERA DOR.
FOTO: S A U L O C RU Z , 2 008.

IGRE JA E L A RGO DA IGREJA


D O B ONFIM .
FOTO: S A U L O C RU Z , 2 008.

Pyrenopolis são apresentadas as o Império, seus domínios se


encenações de dramas e operetas, estendem por uma extensa rede
além do auto As pastorinhas. de relações que unem o rural e
A cavalhadinha da Vila o urbano, visível principalmente
Matutina, inventariada durante nas folias. Além disso, a sociedade
as pesquisas, ocorre em lugares pirenopolina se reconhece nos
próprios daquele bairro, com valores rurais, identificando-se
a apresentação de todos os profundamente com seus padrões
pequenos personagens da festa. éticos, estéticos e sociais. A moda
As encenações dos combates e de viola, a catira, a profunda
confraternizações dos pequenos religiosidade, a virilidade,
cavaleiros mouros e cristãos as relações de compadrio,
acontecem no campinho da vila. a lida no campo e o prazer de
as ruas são tomadas pelos devotos. As celebrações litúrgicas da festa, percorrer longas distâncias são
O largo da Matriz é palco de o levantamento dos mastros dos alguns dos valores cultivados pela
numerosos eventos e cerimônias, santos do reinado e do Divino, comunidade local.39 Isso sem falar
como tocatas, apresentação a queima das fogueiras e o sorteio nos cavalos, sem os quais não há
de folguedos e cerimônias dos encargos são realizados na cavalhadas, nem folias, nem as
de levantamento do mastro e praça da Santa. A queima de famosas exibições equestres dos
queima da fogueira, no sábado fogos também acontece na vila, mascarados durante a festa.¢
do Divino. A queima de fogos, à beira do rio das Almas, em um
que acontece em seguida, é feita lugar conhecido como Lages.
à beira-rio, local onde também Embora a centralidade do
se realizaram os ensaios das território da festa seja urbana,
cavalhadas, em 2008. No Theatro já que é na cidade que se sedia
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 34

o império divino
Ee seus rituais
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 35

R E I CR I STÃ O DA S CAVAL HADAS


B EI J AN DO A CO RO A NA C ASA
D O I MP ERADOR.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

D I REI TA
B A N DEI RA E CO RO A DO D IVINO.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

A Festa do Divino Espírito


Santo é móvel. Sua data varia
conforme a combinação dos
sobreposição de tantas cerimônias
e o grande envolvimento da
comunidade local podem dar a
ciclos solar e lunar, com clímax impressão de que se está diante
no domingo de Pentecostes, de comemorações independentes,
normalmente entre os meses de agregadas quase aleatoriamente
maio e junho. Em 2008, ano em em torno de um tema principal.
que se realizou a pesquisa para Entretanto, uma observação mais
conhecimento e documentação da cuidadosa revela um circuito de
Festa do Divino de Pirenópolis, trocas simbólicas que vincula
os festejos se desdobraram ao firmemente a maioria dessas
longo de 64 dias de comemorações celebrações ao Império do Espírito
intermitentes e muitas vezes Santo. Objetos simbólicos,
simultâneas: iniciaram-se no cavalhadinha na noite de Corpus como a coroa, as bandeiras e as
domingo de Páscoa (dia 23 de Christi e terminou no domingo lanças dos cavaleiros, circulam
março), tiveram seu ápice no dia 11 seguinte (em 2008, dia 25 de no espaço de cada festejo e entre
de maio (domingo de Pentecostes maio), com a queima de fogos na os festejos, e são consagrados
ou domingo do Divino) e se Vila Matutina. pelo imperador ou na presença
encerraram em Corpus Christi As cerimônias são, em sua dele. É sob as asas do Império e
(dia 22 de maio), com a entrega maioria, bastante ritualizadas. pela ação do imperador que essa
definitiva da coroa ao imperador “Conversam entre si” em multiplicidade de manifestações
de 2009, quando se iniciaram os vários momentos dos festejos, ganha sua inteira dimensão.40¢
preparativos para a festa do ano oferecendo ao observador um
seguinte. A festa ainda continuou largo e denso panorama da festa.
com os primeiros eventos da A intensidade, a extensão e a
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 36

C OZ INH A DA C A S A DO IM PER A D O R
FOT O: V A NDERL EI A L C A NT A R A , 2 0 0 8

A centralidade
da festa

O Império do Divino é sempre


a grande referência da Festa
do Divino Espírito Santo de
tenha, a mesa mais sofisticada.
Aí ele põe o trono, a coroa em
destaque, e é velada, e é rezada,
casa do mordomo da bandeira
e termina na igreja matriz,
onde, após receber as bênçãos,
Pirenópolis. Seus símbolos mais é pedida pelos fiéis, que vão lá é levantada no mastro.41 Nas
sagrados são a pomba, as bandeiras e têm fé de conseguir alguns cavalhadas, a passagem pela casa
e a coroa, que é objeto de todas as favores do Espírito Santo”. do imperador e a visitação à coroa
deferências e permanece exposta A maioria das procissões é realizada por meio de diversos
à visitação o ano todo, em um e dos cortejos do Império rituais e em diversos momentos
altar especialmente preparado na sai ou converge para a casa dos festejos. As Folias da Roça
casa do imperador. Essa é uma do imperador. A exceção é a e da Cidade também encerram
característica singular da Festa procissão da bandeira, no sábado seus giros diante do altar da
do Divino de Pirenópolis, como do Divino, que se inicia na coroa, na casa do imperador.¢
explicou Pompeu de Pina, em
depoimento gravado durante a
pesquisa: “[…] a nossa coroa do
Divino, ela é entronizada. Em
outras cidades existem coroas
[…]. Mas nenhuma das coroas
é entronizada. Agora, a nossa
coroa do Divino é entronizada,
é venerada durante 24 horas por
dia. Sorteia o cidadão imperador;
no outro dia ele constrói na sala,
a melhor sala que ele tem, usando
os panos mais bonitos que ele
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 37

C HIC O PEDRU C A FA Z O
“PE D IT ÓRIO” PA RA A FES T A DO
DIVIN O DE C A S A EM C A S A .
FOTO : S A U L O C RU Z , 2 008.

As atribuições
do imperador

O imperador é o principal
responsável pela preparação
e pela realização dos festejos.
bandeiras são bentas na presença
do imperador. É principalmente
por intermédio do imperador,
Tradicionalmente, é ele quem ou de suas insígnias, que a
arca com a maioria das despesas maioria das cerimônias que
da festa, embora conte com o compõem a festa reverencia
auxílio de sua família, de amigos, o Espírito Santo.
de devotos e de outras pessoas Entre a Páscoa e a novena do
da comunidade de Pirenópolis, Divino, o imperador realiza várias
além das autoridades da prefeitura cerimônias em sua casa (que,
municipal e do estado de Goiás. desse modo, passa a ser um local
Seu prestígio emana exatamente da festa), muitas relacionadas
de sua capacidade de “acumular às cavalhadas e às folias, além
para redistribuir”, sejam bens bênção da coroa, as alvoradas, de providenciar a alimentação
materiais ou imateriais, seja a novena e as missas do Espírito dos músicos que participam das
trabalho voluntário, sejam Santo, os cortejos e as procissões, alvoradas. A casa do imperador
víveres para a preparação de a bênção da bandeira e o é dos devotos do Divino, que
alimentos, por exemplo. Para levantamento do mastro, devem ser servidos com fartura em
muitos, “o que o Imperador vai a fogueira, a queima de fogos e as qualquer ocasião. Por esse motivo,
gastar com a festa não é nada roqueiras (tiros de toco) e o sorteio a cozinha da casa do imperador –
perto das graças que já recebeu e a posse do novo imperador. comandada pela esposa do festeiro
e vai continuar recebendo”.42 O Império estrutura seus e movida a doações, trabalho
Em Pirenópolis, o Império domínios principalmente por voluntário ou remunerado –
do Divino dá forma e sacraliza meio das folias e das cavalhadas jamais descansa, preparando
um conjunto de rituais, como a e alcança o Reinado, cujas ininterruptamente quitandas,
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 38

DE CIMA PA RA BA IXO
OS TIRO S DE T OC O – R O Q UE I R AS
– ANUNC IA M O INÍ C IO DA M IS S A E
DA NOVENA DO DIV INO.
FOTO: S A U L O C RU Z , 2 008.

“PE D ITÓ RIO” PA RA PA GA M ENT O


DE PROM ES S A S , NA V ÉS PERA DO
DOM ING O DE PÁ S C OA .
FOTO: A RT H U R PEDREIRA , 2 008.

cafés, bolos e salgados, que são


servidos em várias refeições diárias.
Outra atribuição do imperador
é providenciar a pólvora para
os tiros de toco43 e os fogos
para a cerimônia “do queima”,
na noite do sábado do Divino,
um dos pontos altos da festa.
Tradicionalmente, é ele também
quem contrata os espetáculos
teatrais que serão levados durante
a festa, assim como a Banda
Phoenix e a Orquestra Nossa
Senhora do Rosário, que participa
da novena e das missas cantadas
em latim. Cabe a ele, ainda,
providenciar a decoração da igreja
e da rua, esta com bandeirolas
brancas e vermelhas no trajeto
da casa imperial à matriz, para
as procissões do domingo do
Divino. É ele, finalmente,
quem promove a distribuição de
verônicas e pãezinhos do Divino
às virgens do cortejo imperial. ¢
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 39

DA E SQU ERDA PA RA A DIREIT A


DANÇ A DO C ONGO NO S Á BA DO
D O D IV INO.
FOTO: S A U L O C RU Z , 2 008.

As primeiras
M ASCA RA DOS NO S Á BA DO
D O D IV INO.

cerimônias do FOTO: C RIS T OPH E S C IA NNI, 2 008.

Império

A s cerimônias litúrgicas ligadas


especificamente ao Império
iniciaram-se no domingo de Páscoa,
com o peditório de esmolas44 e a
bênção da coroa, e foram
retomadas durante a novena do
Divino, que, em 2008, ocorreu
durante os dias 2 e 10 de maio.
Na véspera de Pentecostes – o sábado
do Divino –, uma série de eventos
abriu os festejos: ao meio-dia,
após o repique de sinos e a tocata
da Banda Phoenix, os mascarados
marcaram sua presença na festa, dança e música que participaram de bandeira do Divino, que foi
tomando conta do largo da Matriz. várias cerimônias durante a festa: abençoada durante a missa.45 Em
Com máscaras de boi, capetas e Banda de Couro, congo, congada, seguida, a multidão seguiu a Banda
outros personagens, a cavalo ou a contradança e pastorinhas. Phoenix, que acompanhou o
pé, os mascarados foram a partir daí À noite, após o último dia imperador até a beira-rio, para
uma presença constante nos festejos, da novena e com a ajuda dos a cerimônia “do queima”.
tanto no campo das cavalhadas mordomos da festa e de membros A queima de fogos é um
como circulando em permanentes da irmandade espetáculo grandioso (como
desfiles pelas ruas da cidade. do Santíssimo Sacramento, aqueles que acontecem nas
No mesmo largo, e também foi realizada a cerimônia de queima passagens de ano em vários lugares
a partir do meio-dia de sábado, da fogueira e de levantamento do mundo), com duração de
apresentaram-se os grupos de do mastro, após a colocação da quase 20 minutos, muito
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 40

D I R E I TA
C O L OCA ÇÃ O DA B AN DEIRA DO D IVINO
NO MASTRO .
F O T O : SAU LO CRU Z, 20 08.

B A I X O, ESQ U ERDA
C E R IMÔN I A DE LEVAN TAM E NTO DO
M A S TR O , EM F REN TE À IGRE JA M ATRIZ ,
NO SÁ B A DO DO DI V I N O .
F O T O : SAU LO CRU Z, 20 08.

B A I X O, DI R EI TA
F O G UEI RA A CESA A N TES DO
L E V AN TA MEN TO DO MASTRO, NO L ARGO
DA M A TRI Z, N O SÁ B A DO DO D IVINO.
F O T O : SAU LO CRU Z, 20 08.

aplaudido pela multidão.


“O queima”, como é chamado
em Pirenópolis, é considerado
pela maioria um indicador
da qualidade da festa e do
prestígio do imperador.
Esses eventos preparam a
chegada do domingo do Divino
(ou domingo de Pentecostes),
dia de glória do imperador,
um dos raros momentos em que
ele tem a honra de usar a coroa. ¢
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 41

PROC IS S Ã O DO DIV INO,


NO DOM INGO DE PENT EC O ST E S.
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

o domingo
do divino e o
sorteio do novo
imperador

L ogo pela manhã saiu o cortejo


imperial, conduzindo o
imperador Adão Rosa Pires de sua
casa à igreja matriz, para a missa
solene – ou missa do Divino –
que precede o sorteio do novo
imperador. As bandeiras do
Divino abriram o cortejo, seguidas
das crianças da contradança e do
congo, além das virgens (meninas
vestidas de branco) e dos anjinhos.
Atrás delas veio o andor – uma
coroa gigante enfeitada com
flores – e, finalmente, o quadro Após a missa cantada, colocar o nome na sorte, mas
dentro do qual foram conduzidos teve início o sorteio do novo quem escolhe é o Divino”.46
o imperador e sua família. imperador, sempre aguardado Diante da multidão que lotava
Alguns ex-imperadores, a Banda com ansiedade e tensão pelos a matriz, foram sorteados os
Phoenix, a congada e a Banda candidatos. Entre eles, Rafael principais ocupantes dos cargos
de Couro fecharam o cortejo. Donato, mordomo da bandeira para a festa do ano seguinte:
Já na matriz, o imperador, em 2008, aguardava “a vontade o imperador, o mordomo da
seus parentes, as porta-bandeiras do Divino, esperando há mais fogueira, o mordomo do mastro,
e outros participantes do cortejo de 30 anos para ser sorteado o mordomo da bandeira e o
tomaram seus lugares à esquerda como imperador”, pois, segundo mordomo das velas. Depois do
do altar-mor, enquanto o andor ele e a crença da maioria sorteio, formou-se novamente
foi colocado ao lado do altar. dos candidatos, “você pode o cortejo (agora denominado
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 42

ES QU ERDA
S ORT EIO DO NOV O IM PERA D O R ,
NO DOM INGO DO DIV INO.
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

DIREIT A , DE C IM A PA RA BA IX O
O NOV O IM PERA DOR É C ORO A D O .
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

C ORT EJO DO NOV O IM PERA D O R


C OROA DO PA RA S U A C A S A ,
A C OM PA NH A DO PEL O IM PERA D O R Q UE
T ERM INA S EU M A NDA T O.
FOT O: V A NDERL EI A L C A NT A R A , 2 0 0 8 .

coroou o imperador de 2009,


Marcus Siqueira, sacralizando
com as bênçãos da Igreja o
Império do Divino Espírito
Santo, nascido quase pagão.47
Confirmou-se, assim,
a continuidade da festa,
com a passagem de um ano
imperial para o outro.48
Foi formado um novo cortejo
para conduzir, dentro do quadro,
os dois imperadores até a casa
do novo imperador, Marcus
procissão do Divino), com a Como reza a tradição, ainda Siqueira, de tradicional família
mesma formação da manhã, que no domingo, ao final da missa pirenopolina, morador da rua
conduziu o imperador Adão das 19 horas, continuaram as Direita. Lá, a coroa foi depositada
Pires de volta a sua casa para a cerimônias ligadas ao Império, em seu novo altar. Entretanto,
distribuição das verônicas e dos com a bênção e a posse do novo de acordo com a tradição, a
pãezinhos do Divino às crianças imperador. Conduzido pela Banda coroa ainda permaneceu com o
que participaram da procissão. Phoenix, o imperador Adão Pires imperador de 2008: na mesma
No domingo à tarde, o foi de sua casa à igreja matriz. noite, o imperador Adão Pires
imperador se dirigiu ao campo e, Em frente ao altar, o padre, após levou-a de volta para sua casa,
de seu camarote, assistiu à abertura aspergir água benta sobre os dois desta vez sem nenhum cortejo. ¢
das cavalhadas, lá permanecendo imperadores, retirou a coroa
até o final das encenações. da cabeça de Adão Rosa Pires e
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 43

as últimas
cerimônias do
império

E m 22 de maio, foram realizadas


as últimas cerimônias do
Império, iniciadas com a procissão
de Corpus Christi, seguida de repique
de sinos na matriz, ao meio-dia,
e descida do mastro.49
A entrega definitiva da coroa ao
novo imperador foi feita no início
daquela noite. O cortejo, liderado
pelas suas filhas e acompanhado
pela Banda Phoenix, saiu da casa
do imperador Adão Pires, que
foi carregando a coroa nas mãos
até a casa do novo imperador.
Os dois imperadores, com seus
familiares, seguiram dentro do
quadro até a altura da matriz, onde
foi feita a transferência da coroa.
O cortejo, com o novo
imperador já coroado, seguiu
pela rua Direita, ainda coberta
pelo tapete de flores da procissão aguardava a coroa. Houve conta da rua e da casa. Encerrou-se,
de Corpus Christi, realizada naquela queima de fogos e distribuição de assim, o ano imperial de Adão Rosa
manhã. O altar, montado na salgados e bebidas à multidão, que Pires, imperador do Divino
melhor sala da casa do imperador, acompanhou o cortejo e tomou de 2008.¢
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 44

as folias do
divino espírito santo
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 45

F O LI A DO P A DR E N A CHE GADA
A O P OU SO.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

D I REI TA, DE CI MA P A RA BAIXO


E N TREG A DA S B AN DEIRAS DA
F O LI A DA CI DA DE A O S DONOS
D O P OU SO.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

S A ÍDA DA F OLI A DA R OÇ A DA
A NTI G A CASA DE SEU OTÁVIO E
D . RO SA, N A R U A DO ROSÁRIO.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

A s folias são antigos ritos de


peditório de donativos para
festas de santos católicos. Um
normalmente organizados em
regime de mutirão, realizados
entre vizinhos, parentes e amigos.
diante delas, tocando-as,
beijando-as, cantando ou rezando,
que os devotos recebem suas
exemplo muito conhecido são as No canto de chegada a cada pouso, bênçãos e fazem seus pedidos
Folias de Reis. Os participantes os foliões vão entoando: ou agradecimentos ao Divino
das Folias do Divino se empenham “O Divino vem chegando, com Espírito Santo. São elas que, ao
na missão de divulgar a devoção ao seu belo resplendor. Vai dizendo final dos giros, são entregues,
Espírito Santo, ao mesmo tempo viva, viva, viva o nobre morador!”. com as esmolas, ao imperador
que tratam de ampliar os domínios Muito ritualizadas, as folias e colocadas no altar, diante
do Império. Eles descrevem são abertas pelas bandeiras, que da coroa do Divino. ¢
esses ritos como procissões ou simbolizam a presença do Divino
romarias que preparam a chegada Espírito Santo e orientam o longo
do domingo de Pentecostes e cerimonial que será seguido
“tiram” esmolas para ajudar pelos foliões. São conduzidas
o imperador a fazer a festa. solenemente pelos alferes, que,
As folias do Divino giram de com elas, visitam casas, fazendas
dia e pousam à noite,50 cumprindo e povoados, recolhendo esmolas
um roteiro predeterminado. e distribuindo as bênçãos do
Nas rurais, os foliões seguem a Divino. Nos pousos, recebidas
cavalo; na cidade, fazem o giro a pelos donos da casa, as bandeiras
pé. Os caminhos percorridos são são depositadas em altares
circulares e não podem se cruzar, especialmente preparados para
girando sempre do nascente para a ocasião, em meio a cantorias e
o poente. Os giros duram de orações. É com elas que se pede o
sete a oito dias, e os pousos são pouso e se “tiram” as esmolas. É
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 46

as folias de
pirenópolis
e suas
hierarquias

E m Pirenópolis, existem
atualmente três folias: a da
Roça, que se realiza há mais de
das folias, seus participantes e os
significados atribuídos por eles
a esses giros de devoção e festa.
Os alferes são os líderes
organizadores das folias e
conduzem os foliões pelos giros.
140 anos e reúne o maior número Nas folias há uma hierarquia São eles que, todos os anos,
de foliões, inclusive de cidades bem definida, formada por negociam os pousos e estabelecem
próximas; a da Rua, ou da Cidade, alferes, embaixadores, regentes, o roteiro a ser percorrido pelos
que existe há cerca de 50 anos e procuradores e salveiros, além foliões. Além de carregar as
circula no perímetro urbano; dos foliões, normalmente bandeiras, eles entregam os
a do Padre, que também uniformizados e portando as donativos ao imperador ou ao
percorre a zona rural do insígnias do Divino: pombinhas padre (no caso da Folia do Padre).
município – uma iniciativa do Divino – ou divininhos – presas Os embaixadores – os músicos
mais recente da Igreja local contra com uma fita vermelha na camisa – são os mestres litúrgicos
os “excessos” das outras folias, ou no chapéu. Existem também das folias que, com versos e
e a única que entrega os donativos os chamados foliões de atalho, cantorias, indicam passo a passo
à igreja, e não ao imperador.51 ou seja, aqueles oportunistas as minuciosas etapas rituais que
A Folia do Padre é a primeira que só participam dos desfiles na devem ser cumpridas pelos foliões
a sair. As outras duas ocorrem saída da folia e em sua chegada à em cada pouso. Ao som de vários
simultaneamente. Todas elas cidade, e comparecem aos pousos instrumentos – violão, viola,
apresentam três etapas de somente nos momentos que lhes cavaquinho, sanfona, pandeiro
realização – junta, giro e chegada interessam, como a hora do jantar e zabumba – entoam os versos
–, tendo cada momento seus e a dos bailões. Vale ressalvar que de chegada, agradecimento e
rituais e cantorias pertinentes. esse não é o caso da Folia da Rua, despedida, e conduzem as rezas
Com base na pesquisa realizada pois é comum que o folião vá e cantorias diante do altar das
em 2008, foi possível conhecer dormir em casa e retome o giro bandeiras, na hora das refeições,
e documentar os diversos rituais na alvorada do dia seguinte. durante o peditório e durante
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 47

DA ES QU ERDA PA RA A DIRE I T A
“GIRO” DA FOL IA DA C IDA D E .
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

“JU NT A ” DA FOL IA DA C IDAD E


FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

os procuradores permanecem
em pé, ao lado das bandeiras,
segurando os saquinhos de
pano vermelho onde os devotos
depositam seus donativos.
Os salveiros, por sua vez,
são responsáveis pelos fogos
e roqueiras (tiros de toco),
que anunciam os momentos
rituais mais importantes da
folia, principalmente na
chegada e na saída dos pousos
e quando terminam os giros,
as alvoradas. São eles também e cuidar de seus animais. Na seja na porta da igreja, seja
que conduzem a catira e a dança organização das folias, existem na casa do imperador. ¢
do chá52 em todos os pousos. ainda os tropeiros, que cuidam
Sem eles, não há folia. dos cavalos na chegada dos pousos
Os regentes são responsáveis e, pela manhã, recolhem-nos nos
pela ordem e disciplina do grupo, pastos e os entregam aos foliões.53
principalmente nos pousos das Os procuradores se incumbem
folias rurais, onde, diariamente, de recolher as esmolas durante
além do cumprimento de todas o peditório realizado pelos
as etapas rituais, os participantes embaixadores, todas as noites após
devem montar e desmontar seus o jantar. Enquanto os músicos
acampamentos, lavar as roupas entoam os versos e cantorias,
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 48

C A NT ORIO EM FRENT E A O A LT A R
DE U M POU S O (FOL IA DO PA D R E ) .
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

Junta, saída
e giro

E m 2008, a Folia do Padre


iniciou seu giro no dia 18
de abril. No junta, as bandeiras
para os antigos foliões, pois ali
moravam o famoso alferes Otávio
de Moraes e sua esposa, dona
A Folia da Cidade teve nove
pousos em 2008, saindo da casa
de Mané Chato (Manoel Moreira
foram levantadas na porta do salão Rosa, ambos já falecidos, que por da Silva), no Alto do Bonfim.
paroquial e benzidas diante do muitas décadas abrigaram Os foliões, alguns muito idosos,
altar, em cerimônia conduzida o início da folia.55 O junta percorreram um trajeto circular
por um ministro da eucaristia – iniciou-se no dia 24, véspera da pelos bairros do entorno do centro
imperador do Divino em 2006 – saída, como de costume, sendo histórico, seguindo, ao final,
e finalizada pelo pároco os embaixadores dessa folia quase para a casa do imperador.57 ¢
local que, diante do microfone, todos moradores de Anápolis, em
empenhou-se em realizar Goiás. Eles são músicos famosos
“a tradução litúrgica” da devoção por trabalhar com repentes.
ao Divino Espírito Santo. Durante o junta, realizaram-se
Após o almoço, os foliões seguiram rezas e cantorias diante do altar
para o primeiro pouso.54 e as bandeiras foram bentas
As Folias da Roça e da Rua pelos próprios foliões. Na tarde
saíram no dia 25 de abril – seguinte, a folia se organizou
dois dias antes do retorno da diante da casa do senhor Otávio
Folia do Padre à cidade – e cruzou a cidade em duas longas
e finalizaram seus giros no domingo filas de cavaleiros, como manda
anterior ao de Pentecostes. a tradição, seguindo em direção
A Folia da Roça partiu da rua ao primeiro pouso. Nas ruas e
do Rosário, da casa no 27, no calçadas, a população saudava a
centro histórico, que continuava passagem dos foliões, tocando
sendo uma referência do junta as bandeiras e beijando-as.56
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 49

FOL I A DA ROÇ A FA Z O “S ”
NA C H EGA DA A O POU S O.
FOTO: S A U L O C RU Z , 2 008.

os pousos

N as fazendas que receberam as


folias rurais, além dos altares
preparados na melhor sala da casa,
foram feitos vários arranjos para
os pousos, como a montagem
de uma grande cozinha e de um
grande refeitório, a cercadura de
pastos para os cavalos, a preparação
de áreas para acampamento
dos foliões, a construção ou a
melhoria de banheiros coletivos,
a instalação de pontos de água,
de tablados para as catiras e de
espaço para danças e bailões, acordo com o gosto e as posses palha de coqueiro ou folhas de
o reforço da rede elétrica e de seus moradores. As cozinhas bambu e enfeitado com fitas e
melhorias nas estradas que davam receberam o reforço de fogareiros, flores de papel. Diante dele, por
acesso ao local.58 Na Folia do e somente em alguns poucos meio de cantoria, é pedido o
Padre, também foram preparados pousos a cozinha e o refeitório pouso. Com versos rimados e/ou
alguns pousos comunitários em foram improvisados no quintal. improvisados, os embaixadores
pequenos povoados, com grande Chegando aos pousos, as folias saúdam os donos da casa, dando
envolvimento dos moradores. seguem sempre os mesmos rituais. início ao enredo que louva o
Para a Folia da Rua também Nas fazendas, depois da cavalgada Espírito Santo, entremeado de
foram necessárias algumas em “S” na frente da casa, os foliões peditórios e agradecimentos.
adaptações. Os altares foram chegam ao arco da entrada, uma Ao aceitar o pouso, os donos
montados na sala das casas, de espécie de portal erguido com da casa recebem as bandeiras.
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 50

ES QU ERDA , DE C IM A PA RA BA I X O
FOL IÃ O M OS T RA O “PRES ENT E ” A O S
C OM PA NH EIROS DA FOL IA DA R UA
(OU DA C IDA DE).
FOT O: S A U L O C RU Z . 2 008.

A XÍ C A RA INDIC A O “PRES ENT E ” ,


NO A RC O DE ENT RA DA DOS
POU S OS .
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

PÁ GINA A O L A DO
A L T A RES EM POU S O DA FOL IA
DA C IDA DE.
FOT OS : S A U L O C RU Z , 2 008.

Havia uma xícara pendurada familiares, velas, flores frescas


no arco, sinal da existência de ou de papel, arranjados sobre
um presente, normalmente toalhas vermelhas ou brancas
uma garrafa de pinga que com renda. As visitas também
deve ser encontrada pelos podem colocar seus santos na
regentes.59 Enquanto o presente mesa do altar. As bandeiras
não é encontrado, a folia não foram depositadas no altar,
pode ir adiante: seus músicos enquanto os músicos entoavam
permaneceram ao pé do arco, orações, benditos e louvados.60
cantando em versos suas Seguiu-se a dança do chá, na
características. Em seguida, qual circulou entre os foliões a
os foliões se dirigiram ao cruzeiro xícara com o presente encontrado
de bambu, onde estava a toalha pelos regentes, e todos beberam
que foi entregue pelo dono da seu golinho de pinga. Fez-se, cavaleiros ou na casa do
fazenda ao servente, responsável então, uma pequena pausa até imperador: mandioca com
pela distribuição de alimentos aos a hora do jantar, quando os costela bovina, arroz, feijão,
foliões. Um dos regentes retirou foliões retornaram ao altar para macarrão e salada de tomate
o cruzeiro, e a folia avançou até o mais orações e cantorias. Depois com repolho, com pequenas
altar, que também foi descrito em seguiram em direção à mesa, variações de pouso para pouso.
versos entoados pelos músicos. já servida, para mais orações As refeições restringiram-se aos
Geralmente, os altares e cânticos de agradecimento, foliões e à família e aos convidados
são enfeitados com imagens chamados benditos de mesa. do fazendeiro. Nesse contexto,
e estampas do Espírito O jantar foi farto e variado, chamaram a atenção os números da
Santo, com os santinhos que semelhante ao que se costuma Fazenda Seringueira, que costuma
protegem a casa, fotografias de oferecer nas farofadas dos ser um dos pousos mais concorridos
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 51

da Folia da Roça: “Aqui a gente servida nos tabuleiros, panelas, o peditório de esmolas. Cada
preparou comida pra 4 mil pessoas, assadeiras e bacias. Em geral doador recebe um verso dos
arroz com pé de porco, caldão de são usados copos, pratos e músicos. Nesse verso, são descritos
carne com mandioca, macarrão talheres descartáveis. Sempre os motivos ou pedidos, que devem
com caldo de carne e salada. Foram há sobremesa, geralmente doce chegar, com os donativos, aos
120 quilos de carne, 90 quilos de de leite ou de mamão. Porém, ouvidos do Divino Espírito Santo.
arroz, 25 quilos de feijão, 40 quilos o que importa é a abundância Depois do peditório, é hora
de pé de porco, tudo doação”.61 – não só da comida, como de dançar a catira e cantar moda
A comida quente, preparada também das preciosas bênçãos de viola, para passar a noite.
em grandes tachos (onde que circulam com ela. Essa prática é observada na
normalmente se cozinha Após o jantar e os Folia do Padre. Já nas Folias da
rapadura), geralmente é agradecimentos de mesa, inicia-se Roça e da Cidade, tem início
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 52

DE C IM A PA RA BA IXO
PEDIT ÓRIO DE ES M OL A S NA
FOL IA DO PA DRE.
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

FOL IA DA ROÇ A FA Z A DA NÇ A D O
C H Á NA C H EGA DA A O POU S O .
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

o “bailão” ou forró que, como


sempre, reuniu um grande
número de participantes, entre
os quais os foliões de atalho.62
Os donos de pouso da Folia da
Roça montam grandes estruturas
de som e, em alguns deles, abre-
se espaço para os vendedores
ambulantes, que ajudam a “fazer
a festa”, tratando de alimentar
a multidão que comparece aos
forrós, mas não tem acesso ao
jantar. Nas barracas, os visitantes
e foliões encontram sanduíches,
churrasquinhos, caldos,
refrigerantes e bebidas alcoólicas.
Pela manhã, do café até a
hora do almoço, é tempo de
preparar a saída para o próximo
pouso. Nas folias rurais, é preciso
preparar os cavalos e desmontar os
acampamentos. Os caminhões de
apoio, que conduzem os músicos
e carregam barracas, fogões,
vasilhames, colchões, cobertas
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 53

D E CI MA P A RA B AI X O
F O LI Õ ES DA R O ÇA F A Z E M O
A GR ADECI MEN TO DA M E SA
A NTES DA J AN TA .
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

“ B A I LÃO ” EM U M P OUSO D E
F O LI A DA R O ÇA .
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

C H EG ADA DA F OLI A DA ROÇ A


À CASA DO I MP ERADOR.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

etc., devem sair antes dos foliões


e aguardá-los no próximo pouso.
Durante o almoço, são seguidas
as mesmas formalidades rituais
do jantar, com agradecimentos,
benditos e orações antes e depois
da refeição, os quais se estendem
até a hora da partida. A folia
se despede dos donos da casa,
recolhe suas bandeiras e agradece
o pouso, cantando: “O Divino
vai-se embora. Na bandeira
retratado, ele está se despedindo
de todos os convidados.
Despedida, despedida, despedida,
despedida de Belém.
O Divino se despede pra voltar
ano que vem”. Normalmente,
os donos do pouso renovam
o convite para a folia voltar
no ano seguinte. ¢
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 54

ES QU ERDA
ENT REGA DA BA NDEIRA DA FO LI A
DA C IDA DE A O IM PERA DOR.
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

DIREIT A

a entrega ROQU E DE FONT ES , A L FERES


DA FOL IA DA ROÇ A , ENT REGA A

das folias BA NDEIRA A O IM PERA DOR.


FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

A pós a finalização dos giros,


os foliões entregam as folias.
A Folia do Padre chegou,
realizadas rezas e agradecimentos
diante do altar e em torno da
grande mesa de refeições, onde
O ritual de chegada foi
cumprido com a entrega das
bandeiras e das esmolas, seguida
em 24 de abril de 2008, ao o lanche já estava servido. de rezas e agradecimentos diante
salão paroquial, já que, como A Folia da Roça, após do altar da coroa. Seguiram-se
mencionado, ela não serve ao realizar um trajeto circular os agradecimentos de mesa,
imperador, e sim à Igreja: os pelas principais ruas da cantados solenemente em volta
donativos recolhidos foram cidade, onde, mais uma vez, dos alimentos que estavam à
entregues ao pároco local.63 Sem foi recebida pela população, espera dos foliões. Então, mais
levar esse fato em consideração, chegou à casa do imperador, uma vez, a folia se fez festa.
o imperador Adão Pires com seus mais de trezentos Como vimos, as folias
ofereceu, gentil e generosamente, cavaleiros, ao final da tarde. divulgam a devoção ao Divino
o lanche aos participantes
no próprio salão.
As Folias da Rua e da Roça
foram entregues na casa do
imperador. No dia 4 de maio
de 2008 (terceiro dia da novena
do Divino), a Folia da Rua foi a
primeira a chegar, em torno do
meio-dia, e, diante do altar,
os alferes entregaram ao festeiro as
bandeiras e as esmolas recolhidas
durante o giro. Comandadas
pelos músicos da folia, foram
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 55

Espírito Santo e ampliam os no parentesco, nas relações de devem ser transmitidas às novas
territórios da festa, ao circular vizinhança e compadrio e na gerações. O modo de inserção
por grandes áreas do município, solidariedade dos trabalhos nas folias também é ditado pela
dinamizando a sociabilidade coletivos, realizados em tradição de envolvimento das
local. Festas rurais e masculinas, regime de mutirão. famílias com os festejos: há
as folias do Divino de Pirenópolis Assim como nas demais famílias que oferecem pousos,
refazem no presente condições celebrações que compõem a famílias de alferes, de músicos,
que são fundamentais à festa, Festa do Divino de Pirenópolis, de cozinheiros e de foliões.
pois promovem a acumulação seus participantes enfatizam a É com base nessas redes de
e a distribuição de bênçãos importância da preservação das sociabilidade que os participantes
e alimentos, e se apoiam em tradições das folias, que foram das folias praticam sua devoção ao
redes de sociabilidade baseadas recebidas de seus pais e que Divino e perpetuam a festa. ¢
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 56

o império e as
cavalhadas
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 57

MOU R O S E CRI STÃ O S SE


E N F REN TAM N O CAMPO DAS
C AVALHA DAS.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

D esde o século XVIII, há registro


de cavalhadas em todas as
regiões do Brasil, quase sempre
Cascudo, que sintetizou: “O mouro
viajou para o Brasil na memória
do colonizador. E ficou”.65
Embora frequentes no Brasil,
as cavalhadas foram pouco
encenadas em Pirenópolis durante
associadas às Festas do Divino. As cavalhadas consistem, assim, o século XIX e a primeira metade
Do mesmo modo que outras na representação das batalhas do século XX, segundo os registros
manifestações populares, essas entre mouros e cristãos, que disponíveis.68 A apresentação
encenações foram utilizadas pela remontam às lutas travadas por sistemática das cavalhadas durante
Igreja Católica como instrumento “Carlos Magno e os Doze Pares de os festejos do Divino se iniciou
de conversão por se basearem França, contra os sarracenos, pela a partir da década de 1960,
sempre no mesmo enredo, que libertação da península Ibérica”.66 coincidindo com o processo
reafirma a vitória e a supremacia do Foram introduzidas na Festa do de patrimonialização da festa,
cristianismo: “guerreiros cristãos Divino de Pirenópolis em 1826, impulsionado principalmente pela
destroçando ferozes mouros”.64 As pelo padre Manuel Amâncio da intervenção de órgãos estaduais de
encenações de mouriscas, Luz. Entretanto, tais batalhas turismo, empenhados em construir
ou mouriscadas, que reproduziam equestres nem sempre desfrutaram uma identidade cultural regional.
os muitos séculos de batalhas da notoriedade que se observa Esse processo, por sua vez, facilitou
das Cruzadas, encontraram no atualmente, mesmo que tenham a transformação da memória
Brasil colonial o campo ideal para sido desde sempre adequadas para cultural local em “consciência
expressar novas representações expressar símbolos, representações da tradição”, mobilizando
da antiga Ibéria, por meio da e valores bastante significativos para também a população no esforço
literatura de cordel, das cavalhadas, uma sociedade de base rural como a do resgate de suas tradições.
das cheganças e dos fandangos, pirenopolina: o cavalheirismo, As cavalhadas são, para muitos,
manifestações que fascinavam a virilidade, a habilidade o principal espetáculo e sinônimo
estudiosos da cultura popular na montaria, a coragem e o da festa, porque reúnem o maior
como Mário de Andrade e Câmara destemor diante de desafios.67 público entre todos os eventos que
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 58

ES QU ERDA
C A V A L H A DA S NO L A RGO DA MA T R I Z,
M EA DOS DO S ÉC U L O XX
FOT O: A U T OR DES C ONH EC ID O .
A C ERV O DA FA M Í L IA GOM ES F I LH O .
FONT E: A RQU IV O ET EC / IPH AN -
PIRENÓPOL IS .

DIREIT A
REU NIÃ O DOS C A V A L EIROS N A CA SA
DO IM PERA DOR.
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

compõem os festejos do Divino de é firmado, na casa do imperador, em que surgem novas vagas,
Pirenópolis. Para a comunidade o Termo de Compromisso das mudanças de patente ou troca
local e para os cavaleiros, Cavalhadas. Nessa ocasião são de castelo, isto é, mudança de
as cavalhadas representam também votadas, registradas e assinadas um cavaleiro do exército cristão
um ato de devoção e renovação medidas referentes às encenações para o mouro, ou vice-versa.69
da fé no Divino Espírito Santo. que se iniciarão no domingo Em fevereiro de 2008,
Tradicionalmente, é o de Pentecostes, ou domingo do bem antes da abertura dos festejos,
imperador quem decide se, em Divino. Para os cavaleiros, esse é os cavaleiros e o imperador deram
seu ano imperial, haverá ou não um momento de suma importância, início ao terço dos cavaleiros, um
cavalhadas. No domingo de Páscoa, pois “a festa é o ano inteiro, conjunto de 25 terços cantados duas
dia em que oficialmente se inicia mas o pontapé inicial mesmo é vezes por semana diante da coroa
a Festa do Divino de Pirenópolis, o Domingo da Ressurreição”, do Divino. As rezas começam na
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 59

casa do imperador e prosseguem nas


residências dos cavaleiros.
Os terços obedecem à hierarquia dos
exércitos (ou castelos),
na sequência cristão-mouro, isto é,
dos que irão vencer e dos que serão
vencidos, já que “a imposição da fé
pela espada” é o fio do enredo que
move as cavalhadas.70 Desse modo,
após o primeiro terço na casa do
imperador, o terço seguinte foi
rezado na casa do rei cristão, seguido
pelo terço na casa do rei mouro; os
próximos dois terços foram rezados masculinas, embora em 2008 obrigatória pela Igreja do Bonfim,
na casa do embaixador cristão e na tenham sido excepcionalmente os cavaleiros frequentaram
casa do embaixador mouro, e assim puxados por Maria José Pires, diariamente a casa do imperador,
por diante. Em geral, o exército esposa do imperador. Quase que sempre os esperava com a
cristão entoa as primeiras estrofes da sempre, as mulheres da casa mesa posta. Houve dois ensaios
“Ave-Maria”; as estrofes finais são acompanham o terço dos diários, com o objetivo de treinar
reservadas aos cavaleiros mouros. cômodos adjacentes, enquanto os cavalos “que podem se assustar
Os “Padres-Nossos” e preparam os comes e bebes que no campo, principalmente com
“Glórias ao Pai” são cantados serão servidos ao final da reza. os tiros dos cavaleiros. Manter a
por todos os presentes.71 Durante os ensaios, que ordem e a beleza das carreiras”72
Os terços dos cavaleiros ocorreram de 27 de abril a 7 de também é um resultado esperado
são cerimônias essencialmente maio de 2008, além da passagem dos ensaios. Os cavaleiros
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 60

ainda se beneficiam dos ensaios vínculo com os cavaleiros, a primeira é feita de madrugada,
para “judiar o corpo”, isto é, com o imperador ou com a antes dos ensaios matutinos
acostumá-lo com as longas própria festa. As farofadas são (o desjejum); a segunda é
horas em que permanecerão “[...] a alegria de receber as oferecida à noite, após os
montados e em cena, durante pessoas que participam das ensaios do entardecer (o jantar).
os três dias das cavalhadas. cavalhadas, uma forma de participar Nesses momentos, os cavaleiros,
Como de costume, enquanto indiretamente das cavalhadas”.73 reunidos, simulam uma entrada na
duraram os ensaios, aconteceram Em casa pobre ou rica, o casa que oferece a farofada tocando
as farofadas, lautas refeições cardápio é sempre semelhante: uma caixa de couro e cantando:
oferecidas aos cavaleiros pelo arroz, feijão, carnes, salada, “A rolinha foi mandou dizê, um
imperador ou por outras pessoas refrigerantes e, às vezes, cerveja. golim de pinga pra nós bebê. A
da comunidade que tinham algum Há duas farofadas por dia: rolinha foi mandou falá, um golim
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 61

E SQU ERDA
E N SAI O DO S CAVALEIROS.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

D I REI TA
F ARO F ADA N A F A ZEN DA SARD INHA.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

de pinga pra nós tomá”. Seguiram-se, então, os comes do imperador. Enquanto este tem
Os cavaleiros entram, e bebes, a dança da catira e os a honra de representar o poder
se alimentam, cantam ao redor cantorios. As varas recolhidas do Espírito Santo apenas durante
da mesa para agradecimento, foram colocadas no altar da coroa seu ano imperial, os cavaleiros,
dançam catira e, em seguida, e lá permaneceram até o fim das em geral, galgam lentamente os
se despedem cantando.74 cavalhadas. Tratou-se de um degraus hierárquicos próprios das
No último dia, após o ensaio da momento simbólico importante, cavalhadas. Nessa ascensão,
tarde, realizou-se a cerimônia de no qual os cavaleiros confirmaram a dedicação ao grupo, a
entrega das lanças ao imperador. a supremacia do Império e sua capacidade de liderança e as
Na porta da casa, os cavaleiros devoção ao Espírito Santo, habilidades pessoais fazem a
entregaram ao festeiro as varas informando ao imperador que diferença. Gari, fazendeiro
de madeira que utilizaram nos estavam prontos para as batalhas. ou comerciante, ser cavaleiro
ensaios. Também essa cerimônia O Império – por intermédio da das cavalhadas – soldado,
se desenvolveu de acordo com a figura do imperador – investiu embaixador ou rei, mouro ou
hierarquia dos dois exércitos: os de legitimidade as batalhas entre cristão – faz de cada um deles
dois reis (cristão e mouro) foram mouros e cristãos, que teriam pessoa altamente prestigiada na
os primeiros a entregar as lanças, início no domingo de Pentecostes. sociedade local. Mesmo assim,
seguidos dos dois embaixadores Nessa mesma noite, os cavaleiros embora as cavalhadas venham cada
(cristão e mouro) e dos dez pares de prestaram suas homenagens vez mais ganhando notoriedade
cavaleiros, que se apresentaram na ao Espírito Santo na matriz, no contexto das comemorações e
mesma sequência. Após a entrega, participando, com o imperador, eventos que conformam a Festa
cada cavaleiro dirigiu-se ao interior da chamada missa dos cavaleiros, do Divino Espírito Santo de
da casa e prestou sua homenagem que se realizou após a novena. Pirenópolis, os cavaleiros insistem
à coroa do Divino, beijando-a A natureza do prestígio dos em afirmar que “as cavalhadas
e rezando diante do altar. cavaleiros, entretanto, é oposta à servem ao imperador”.75 ¢
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 62

os
protagonistas

O s cavaleiros, personagens
principais (ou protagonistas)
das cavalhadas, organizam-se
em dois castelos – mouro e
cristão. Em cada castelo, há
doze participantes: um rei, um o cavaleiro usa elmo (capacete) ou
embaixador e dez soldados. chapéu. As cores predominantes
No campo das cavalhadas, são a vermelha e a dourada para
encenam, ano a ano, as lutas de os mouros e a azul e a prateada
Carlos Magno e os Doze Pares de para os cristãos. Nos dias de
França para libertar a península encenação, mães, filhas e esposas
Ibérica do domínio sarraceno. ajudam a aprontar seus cavaleiros.
As vestimentas usadas durante As montarias também recebem
as encenações são minuciosamente adornos especiais. As arreatas são
preparadas por armeiros, enfeitadas com veludo ou metal e
costureiras, bordadeiras e floristas. o dorso do cavalo é coberto por
Sobre a calça e a camisa, são uma manta bordada de veludo
colocados vários adereços, como vermelha ou azul, dependendo do
cintos e peças de armadura, além castelo a que pertence o cavaleiro.
da murça, capa ricamente bordada Nas patas dos cavalos, são usadas
com símbolos cristãos (cálices, caneleiras enfeitadas com
ostensórios, cruzes, divinos e pedrarias, além de peitoral com
coroas) ou mouros (brasões, guizos. Uma máscara de metal,
águias, cartas de baralho, lua e artesanalmente trabalhada, cobre
dragão). Dependendo da patente, o focinho do cavalo. Sobre a crina
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 63

PÁ GINA A O L A DO, DE C IM A
PA RA BA IXO
T ONINH O DA BA BIL ÔNIA , R E I MO UR O .
FOT O: M A U RÍ C IO PINH EIR O , 2 0 0 8 .

DET A L H ES DE A DEREÇ OS D E
M ONT A RIA DE C A V A L EIRO MO UR O .
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

ES QU ERDA , DE C IM A PA RA B A I X O
A DA IL C A RDOS O, REI C RIST Ã O .
FOT O: M A U RÍ C IO PINH EIR O , 2 0 0 8 .

DET A L H ES DE A DEREÇ OS D E
M ONT A RIA DE C A V A L EIRO CR I ST Ã O .
FOT O: C H RIS T OPH E S C IA N N I , 2 0 0 8 .

vem a cachaceira, feita com flores cavaleiros e de cada um com


de pano e fitas coloridas. A anca sua família. Esses são papéis
recebe a rabeira, uma grande flor desempenhados com seriedade e
de tecido, circundada por flores fervor por familiares ou pessoas da
menores, das quais descem as fitas comunidade, que, dessa maneira,
que caem sobre o rabo do cavalo. demonstram solidariedade para
O luxo dos arranjos deve com os cavaleiros, as cavalhadas
destacar as montarias dos e o Divino Espírito Santo. ¢
reis e embaixadores dos
cavalos dos soldados.
É bastante comum que os
cavaleiros tenham auxiliares,
principalmente para cuidar
dos cavalos durante os ensaios,
além dos lanceiros, que lhes dão
apoio durante as encenações das
batalhas e nos jogos de argolinhas.
Cabe a eles recarregar as armas,
recolher e entregar lanças e
fazer a comunicação entre os
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 64

DA ES QU ERDA PA RA A DIREIT A E D E CI MA
PA RA BA IXO
O C A V A L EIRO EV OL U I À FREN T E D O CA ST E LO
M OU RO, NO PRIM EIRO DIA DA S CA V A LH A DA S.
FOT O: M A U RIC IO PINH EIRO, 2 0 0 8 .

o grande O REI C RIS T Ã O C A V A L GA À FR E N T E D E SE U


C A S T EL O, NO PRIM EIRO DIA DA S CA V A LH A DA S.

espetáculo FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

T ORNEIO DE T IRA - C A BEÇ A CO M LA N ÇA .


FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

T ORNEIO DA S A RGOL INH A S .


FOT O: C RIS T OPH E S C IA NNI, 2 0 0 8 .

A s cavalhadas são apresentadas


durante três tardes, a partir
do domingo de Pentecostes,
24 horas ao rei cristão, que a
aceita com as seguintes palavras:
“Volta e diz ao teu Monarca
Os mouros, de um em um, são
batizados, em uma cerimônia que é
considerada por muitos cavaleiros
ou domingo do Divino, que, que lhe concedo a trégua que “o momento mais importante
em 2008, caiu no dia 11 de maio. me propõe e que, amanhã, por das cavalhadas”.76 A partir daí,
No primeiro dia, os cavaleiros estas horas, ele, tu e os teus, os cavaleiros passam a andar
mouros entram pelo lado do debaixo de minhas armas, estarão “engrazados”, ou seja, colocando-se
nascente, dão uma volta pelo mortos ou prisioneiros”. de forma alternada cristão/mouro,
campo e se posicionam diante da No segundo dia, os cristãos são ou um azul e um vermelho.
torre moura. Da mesma maneira, os primeiros a entrar, seguidos Na terça-feira, último dia das
os cavaleiros cristãos entram pelo dos cavaleiros mouros. A batalha encenações, ocorrem os jogos
lado do poente e tomam seus continua com várias carreiras, até equestres, nos quais os cavaleiros
lugares diante da torre cristã. que os cavaleiros cristãos conseguem colocam à prova suas habilidades
Nesse dia, o soldado encurralar os mouros, do lado do e homenageiam as autoridades
cerra-fila cristão mata o espião poente. O rei cristão exige, então, presentes, inclusive o imperador.
mouro, a onça das cavalhadas. que os mouros aceitem o batismo, A primeira carreira é o Florão,
Após várias embaixadas, a batalha a que o rei mouro responde: “Sim! na qual os cavaleiros trocam
se inicia com o trato proposto Aceito as águas do Santo Batismo e flores, formando buquês que serão
pelo rei mouro: “Vamos ao campo reconheço o seu Deus como o único oferecidos a pessoas previamente
pelejar. A lei do vencedor será e verdadeiro!”. Nesse momento, escolhidas. A segunda carreira,
firme e valiosa. A do vencido, todos os cavaleiros mouros se a Luxúria, antecede os jogos
falsa, infame e mentirosa”. ajoelham diante dos cavaleiros do torneio de tira-cabeça com
Ao fim do dia, o rei mouro, cristãos, que permanecem de pé, espadas, lanças e garruchas.
por intermédio de seu encostando, cada um, sua espada Em seguida, ocorrem as
embaixador, propõe trégua de sobre os ombros dos vencidos. tradicionais retiradas de argolinhas.
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 65
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 66

D E C IMA P A RA B AI X O
O R E I CR I STÃ O HOMEN AGE IA O IM PE RADOR,
E NT REG AN DO -LHE A P R IM E IRA ARGOL INHA,
D U R A N TE OS J O G OS DO TE RCE IRO D IA DAS
C A V A LHA DAS.
F O T O : SAU LO CRU Z, 20 08.

S A L V A DE TI R O S A P Ó S O E NCE RRAM E NTO DAS


C A V A LHA DAS, N O LARG O DA IGRE JA DO BONFIM .
F O T O : SAU LO CRU Z, 20 08.

As carreiras que se seguem são


Quatro fios de lenço e Despedida,
em que os cavaleiros acenam
lenços para o público ao som de
“Cavalhada acabou, só no ano que
vem...”, composição de Antônio
da Costa Nascimento – o Tonico
do Padre77 – tocada pela Banda
Phoenix, que conduz as 24 carreiras
que compõem o espetáculo.
A seguir, em fila alternada,
cristãos e mouros se retiram do
campo, encerrando as cavalhadas
ao fim do terceiro dia de
encenações. Sempre em fila,
e seguidos pelos mascarados,
os cavaleiros se dirigem ao largo da
Igreja do Bonfim para agradecer
por mais um ano de cavalhadas.
Depois de rezar, descarregam
suas armas, configurando
outro dos rituais mais bonitos
e emocionantes da festa, assim
explicado por Adail Cardoso,
rei cristão: “No último dia, já
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 67

o campo das
cavalhadas

descemos, todo mundo junto,


engrazados, mouros e cristãos,
uma fila só. Vamos lá no Bonfim.
A té a metade do século XX,
as cavalhadas de Pirenópolis
foram encenadas no largo da
nada impedia o livre contato entre
público, cavaleiros e mascarados
durante as cavalhadas: “É porque,
Chegando lá, a gente desengraza, Matriz. Entretanto, desde 1966, assim, a gente aqui, de Pirenópolis,
formam-se os castelos novamente, com pequenas interrupções, tem que manter as tradições,
castelo mouro e castelo cristão o espetáculo vem sendo apresentado manter o que era antigo. A gente
[…] no seu devido lugar, ficamos em um campo de futebol onde, acostumou com aquele pessoal
de frente com o outro, fazemos a atualmente, ergue-se o campo das que ficava debaixo do camarote
nossa oração e agradecimento. E a cavalhadas.79 Para muitos, assistindo, todo mundo misturado
salva de tiro na sequência, é a hora o novo campo é “um privilégio, ali. Agora parece que distanciou
que a gente se sente realizada. Aí uma bênção, um presente que o povo um pouco dos cavaleiros,
fala: ‘graças a Deus que terminou, Pirenópolis ganhou”. Segundo distanciou os mascarados”.81
que passou tudo em paz’ […]”. o rei mouro, “no mundo inteiro De fato, no campo das
Reiterando a profunda não tem um lugar pra correr cavalhadas, os camarotes e
religiosidade e o respeito à cavalhada igual Pirenópolis tem”. arquibancadas foram construídos
instituição do Império do Divino, E o embaixador mouro concluiu: em um nível muito superior ao
na festa de 2008, o embaixador “Os pirenopolinos não acordaram da arena, restringindo o papel da
cristão, Márcio Estácio de Sá, ainda pra entender que eles só têm plateia a assistir, mais do que a
falou das razões que mobilizam aquele campo por causa da cultura participar do espetáculo. Da mesma
os cavaleiros em torno dessa pirenopolina. Não é por causa de maneira, a ausência de espaço
cerimônia: “Acabou as cavalhadas, jogo de futebol, não. Pirenópolis e de passagens livres na frente e
a gente vai no Bonfim agradecer, não tem cacife pra ter um estádio atrás dos camarotes impede a livre
saudar o Divino Espírito Santo, daquele tamanho […]”.80 circulação dos mascarados – a pé ou
saudar o imperador do Divino Entretanto, outros se recordam a cavalo –, que, tradicionalmente,
e o novo imperador”.78 ¢ com saudade do tempo em que interagiam permanentemente com
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 68

DE C IM A PA RA BA IXO
C A M A ROT ES NO C A M PO DA S CA V A LH A DA S.
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

REV ES T IM ENT O DA ES T RU T UR A D O S CA MA R O T E S
C OM FOL H A S DE PA L M EIRA .
FOT O: V A NDERL EI A L C A NT A R A , 2 0 0 8 .

DIREIT A
M A S C A RA DOS (Ì NDIOS , U M G R UP O CO N SI D E R A D O
T RA DIC IONA L ) NO C A M PO DA S CA V A LH A DA S.
FONT E: S A U L O C RU Z , 2 008.

o público. As características da domínio da comunidade e vêm


construção também dificultaram se mantendo desde a época em
o acesso dos mascarados que se realizavam as encenadas
ao campo e modificaram o no velho largo da Matriz.
modo como disputam com os Os camarotes mais privilegiados
cavaleiros a atenção da plateia. localizam-se atualmente no alto
Ainda assim, as cavalhadas das torres que simbolizam os dois
são frequentadíssimas e adoradas castelos – mouro e cristão – e são
pela população local, sendo o utilizados pelas famílias dos reis
espetáculo mais visível e polarizador e seus convidados. A tribuna de
da Festa do Divino Espírito Santo honra fica à direita, no alto e no
de Pirenópolis. Antes mesmo do centro da arquibancada. Do lado
início das encenações, as famílias direito da tribuna, localiza-se o
pirenopolinas tratam de erguer seus camarotes são produzidos de camarote da Banda Phoenix e, do
camarotes do modo como sempre acordo com o tamanho e as posses lado esquerdo, o do imperador.
fizeram – estrutura de madeira de cada família. A aparência A área desses camarotes é bem
coberta de ramos de jasmim ou deles não estabelece distinção de maior que a dos demais.
folhas de coqueiro, enfeitada classes ou de poder. O que os Na arquibancada – abaixo dos
com panos de chita ou tecidos diferencia é sua apropriação de camarotes – ficam os “sem
coloridos –, encaixados sobre as acordo com critérios familiares de camarote”, num ir e vir no decorrer
“esperas” que marcam o chão vinculação com as cavalhadas (ser de cada tarde de espetáculo.
da última laje das arquibancadas filho, neto ou irmão de cavaleiro, Os camarotes constituem o
do campo das cavalhadas. soldado, rei ou embaixador espaço de uma das várias festas que
A decoração interna e os Esses critérios, invisíveis para o acontecem durante a encenação
equipamentos colocados nos observador comum, são de amplo das cavalhadas. Durante três dias,
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 69

as famílias, representadas por ou em grupos, divertem a plateia, Os ranchões são boates


várias gerações, praticamente se em um espetáculo que une improvisadas durante o período da
mudam para o campo, carregando deboche, brincadeira e habilidade Festa do Divino. Anteriormente,
consigo bancos, bebidas e uma Trata-se de uma histórica eram montados na praça central
infinidade de doces e pratos parceria que acontece entre – largo da Matriz –, mas desde
tradicionais, como queijo- mascarados e cavaleiros: “[…] não o final da década de 1980 foram
leite, canudinho, paçoca, são só os cavaleiros que representam transferidos para as proximidades
farofa de frango e salgados. as cavalhadas. Os mascarados do campo das cavalhadas.
Enquanto se desenvolvem as também representam, porque eles Bem próximo à entrada principal
carreiras, as famílias circulam também são parte da nossa festa”.82 do campo funciona o Ranchão
por trás dos camarotes, fazendo Outras formas de sociabilidade Mangueira, o mais antigo deles.
visitas, colocando a conversa em se desenvolvem na arquibancada e Um pouco acima, na mesma rua,
dia e revendo amigos e parentes. no estreito corredor de circulação instala-se o Ranchão Deurípides.
Para uma tradicional moradora de que lhe dá acesso. Crianças, Ambos os ranchões têm nos
Pirenópolis, ouvida pela pesquisa, vendedores de algodão-doce, mascarados um público certo,
“a maior graça dos camarotes famílias e mascarados gracejam e do qual não cobram entrada
é poder ficar sentada de costas conversam. O mesmo acontece na durante as matinês. Encerrada a
para o campo, conversando, escada de acesso ao campo, diante apresentação das cavalhadas,
acompanhando o desenrolar da entrada principal, na área a cada noite, muitos mascarados
das cavalhadas de ouvido...”. onde se aglomeram vendedores voltam para os ranchos e ficam até
Tradicionalmente, acontece ambulantes e nas ruas próximas, que desliguem o som, já na alta
outra festa durante os intervalos das território dos mascarados. madrugada. Esse modo de ser dos
carreiras, quando os mascarados – Nos ranchões, próximos ao mascarados da Festa do Divino de
normalmente exímios cavaleiros – campo, a música corre solta e Pirenópolis será detalhadamente
invadem o campo. Individualmente são realizadas outras festas. descrito no próximo capítulo.¢
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 70

Máscaras
máscaras e
mascarados
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 71

MA SCA RADO P OSA N O L ARGO


DA MATRI Z.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

D I REI TA
MA SCA RADOS A G UARDAM
P ARA EN TR AR N O CAM PO
DAS CAVALHA DAS.
F O TO : CR I STOP HE SC IANNI, 2008.

A marcante presença dos


mascarados na Festa do
Divino Espírito Santo de
Pirenópolis vai além da histórica
parceria que desempenham
com os cavaleiros durante as
cavalhadas. De fato, é na véspera
do domingo de Pentecostes
– sábado do Divino – que os
mascarados fazem sua primeira
grande aparição na festa,
apresentando-se à cidade no
largo da Matriz, ao meio-dia,
após a tocata da Banda Phoenix barulho das polaques83 penduradas Os mascarados a cavalo são
Eles surgem coloridos, no pescoço de seus cavalos. em maior número no domingo
brilhantes, com máscaras de Dotados de grande visibilidade, do Divino, primeiro dia das
capetas, onças e bois que exibem mas protegidos pelo anonimato, cavalhadas, quando, ao som da
grandes chifres enfeitados de os mascarados podem tudo: pedir canção “O rio de Piracicaba”,85
flores, vestidos de cetim, mesmo dinheiro, dançar, pular, brincar, entram em cena durante a
pano que cobre e esconde o flertar, provocar, gracejar. Eles abertura do espetáculo e entre os
cavalo. A partir desse momento, os sempre pedem insistentemente intervalos das carreiras encenadas
mascarados são da festa, e a festa “um dinheirinho”84 para comprar por mouros e cristãos. Nesses
é dos mascarados. A cavalo ou a bebida, mesmo que raramente momentos, o campo enche-se
pé, sozinhos ou em bando, tomam bebam em público, para não de cores e movimento, já que
conta das ruas, anunciados pelo ser vistos sem as máscaras. os mascarados aproveitam a
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 72

M A S C A RA DA S A PÉ A C A M INH O D O
C A M PO DA S C A V A L H A DA S .
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

ocasião para exibir ao público a Banda Phoenix até a casa do


suas vestimentas e suas exímias imperador e, depois, dirigem-
qualidades de cavaleiros. se à rua Nova, onde fica a sede
Durante a execução do Hino da banda, e dali se dispersam,
do Divino – ponto máximo encerrando as festividades. Muitos
da cerimônia de abertura das ainda permanecem na praça
cavalhadas –, é comum que central, nas imediações do teatro,
muitos mascarados se aglomerem no largo da Matriz ou
em frente ao camarote central circulando pelas ruas da
(composto dos camarotes da cidade, transgredindo o
prefeitura, da banda e do horário dos mascarados, que
imperador) e permaneçam em são legalmente proibidos de
pé sobre suas montarias com a circular depois das 19 horas.
mão sobre o peito, em sinal de descansar as montarias e sair a Cabe notar que, embora o
devoção ao Divino. Também pé, quando, então, fazem graça espaço dos mascarados na Festa
faz parte de sua performance e pedem dinheiro circulando do Divino seja garantido pelos
resistir às ordens de saída do pelas arquibancadas, camarotes, organizadores e pela sociedade de
campo para o início ou reinício ranchões, praças e bares nas Pirenópolis do sábado do Divino
das encenações. Enquanto as imediações do campo. até Corpus Christi, período em que
cavalhadas estão sendo encenadas, Na terça-feira, ao final do eles podem sair às ruas desde
os mascarados desfilam pelas ruas, espetáculo, alguns mascarados meio-dia até o anoitecer, a polícia
brincando com quem passa. costumam acompanhar os e o poder Judiciário sempre
Segunda-feira, conforme cavaleiros à Igreja do Bonfim para tentaram coibir e controlar a
informaram mascarados a cerimônia de encerramento atuação desses personagens.86 ¢
ouvidos pela pesquisa, é dia de das cavalhadas. Outros seguem
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 73

M A S C A RA DOS DEM ONS T RAM SUA


H A BIL IDA DE OU S E PÕEM E M
POS IÇ Ã O DE RES PEIT O S OB R E O S
C A V A L OS , DU RA NT E A EXE CUÇÃ O
DO H INO DO DIV INO, NO C A MP O
DA S C A V A L H A DA S .

“sair de FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

mascarado”

N ão há requisitos para “sair de


mascarado”, como se diz em
Pirenópolis, a não ser o uso de
máscaras e a vontade de brincar,
tendo o anonimato como uma das
premissas fundamentais. A maioria
dos mascarados é pirenopolina,
independentemente do lugar de
moradia ou da renda mensal – com
a máscara no rosto, todos ficam
“iguais”. E todos saem: velhos,
moços ou crianças. Até os cavaleiros
saem no sábado, quando não estão
correndo nas cavalhadas, porque “sair
de mascarado é um gosto”, como
afirmaram muitos participantes da
festa ouvidos durante a pesquisa.
Desde muito pequenas, sair de mascarado” ou de “sair de Disse um entrevistado: sair de
crianças – meninos e meninas – cavalo com a máscara de boi”.87 mascarado “pra mim é tudo. Eu vou
saem de máscaras com seus pais Durante a pesquisa, em 2008, morrer em cima de um cavalo com
ou parentes, já que esse é um a importância de ser mascarado foi máscara”.87 O artesão de máscaras
gosto aprendido em família e reiterada o tempo todo por ser o Lucinho, que adora a festa e seu
transmitido de geração a geração. meio mais livre, descompromissado trabalho, reafirmou: “Mascarado
Muitos entrevistados declararam e democrático de participação na representa para mim só alegria;
ter, desde pequenos, “o sonho de Festa do Divino de Pirenópolis. é festa, é brincadeira, é uma farra”.89
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 74

A TURMA “OS ” PA S T ORINH A S .


FOTO: JOÃ O GU IL H ERM E C U RA DO, 2 008.

Tradicionalmente, o universo a presença de catolés durante as


dos mascarados é masculino, mas as cavalhadas. Os Índios – que se
mulheres também têm encontrado apresentam de sunga, com o corpo
nele um lugar. Um exemplo é a pintado de preto, máscaras de pano
Turma da Telma, formada por e montados em pelo (sem selas nos
um grupo de amigas que costuma cavalos) – participam da festa desde
sair a pé às segundas-feiras, 1988, reunindo atualmente cerca de
desde 1978, segundo informaram setenta integrantes, todos cadastrados
algumas participantes à equipe de na promotoria do município, pois
pesquisa. Pode-se observar, ainda, têm fama de causar tumultos. Desde
nos últimos anos um número 2005, “Os” Pastorinhas mostram
crescente de mulheres que se sua irreverência e fazem graça
exibem com os cavalos mascaradas. usando o figurino do tradicional
Sair de mascarado é uma A Turma da Maromba – auto de Natal, encenado durante
atividade coletiva, o que se atualmente inativa, mas ainda viva a Festa do Divino de Pirenópolis
evidencia pela existência de na memória de muitos – chegou a desde 1927. A Turma do Caixão
muitos grupos que participam ter cinquenta integrantes, que saíam sai a pé desde o ano 2000, sempre
(ou já participaram) dos festejos, com máscaras de boi e roupas que de terno e gravata e carregando
como a Turma do Caixão, “Os” chamavam a atenção pela beleza. um caixão de madeira.90 De todo
Pastorinhas, Os Catolés, Os Catolés, também conhecidos modo, durante os dias de festa são
Os Índios e a Turma da Maromba, como “os gordos”, usam macacões incontáveis as turmas de amigos
formados a partir da década listrados cheios de palha, chapéus de que se vestem e se disfarçam juntos,
de 1960 e frequentemente palha com flores de papel e máscaras formando assim a grande massa dos
mencionados durante o de tecido. Embora não se apresentem mascarados, em que cada um inventa
período da pesquisa. mais como turma, ainda é recorrente sua máscara e a própria roupa. ¢
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 75

D E CIM A PA RA BA IXO
M ASCA RA DOS EM FA M Í L IA C IRC U L A NDO
NAS R U A S PRÓXIM A S A O C A M PO DA S
CAVAL H A DA S .
FOTO: S A U L O C RU Z , 2 008.

os A TURM A DO “C A T U L É”.
FOTO: C RIS T OPH E S C IA NNI, 2 008.

preparativos

M esmo quando os grupos não


se vestem da mesma maneira,
“aprontar-se” para sair de
disfarçados, cobertos com pano,
folhas secas de bananeira ou
erva-de-são-caetano.91 As máscaras
mascarado é uma atividade coletiva, mais tradicionais são feitas de pano
feita normalmente entre amigos ou papel pintado. As máscaras
e parentes, os quais se reúnem industrializadas – geralmente de
em casas com grandes quintais, monstros – vêm ganhando espaço,
espaços que também servem de já que podem ser adquiridas
pasto para os cavalos. Enquanto facilmente e a baixo custo.92
comem, bebem e ouvem música, Entre os adereços, são muito
compartilham o que porventura usadas as flores de papel crepom
possa compor suas vestimentas: colorido. Entretanto, os mascarados
meias, chapéus, luvas, calças, lançam mão de muitos outros
camisas, botinas, sapatos etc. recursos para compor seu visual
É assim, em meio a muita diversão, e chamar a atenção, como buchas
que os mascarados se preparam vegetais, cabaças e folhagens em
para sair, a cavalo ou a pé. rama, cartazes, faixas, malas, óculos,
Geralmente, os mascarados urinóis e instrumentos musicais
usam calças com elástico e uma de brinquedo. Os cavalos também
bata de mangas compridas de cetim podem receber enfeites, semelhantes
colorido. Como regra, o corpo aos utilizados nas montarias dos
todo é coberto, e o mascarado cavaleiros, como flores, máscaras,
não deve ser reconhecido nem tornozeleiras e cachaceiras.
pelos mais próximos. Por isso, As vestimentas não precisam
também os cavalos são trocados, ser planejadas, e qualquer roupa
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 76

DA ES QU ERDA PA RA A DIREIT A , D E CI MA
PA RA BA IXO
M A S C A RA DOS EM FA M Í L IA C I R CULA N D O N A S R UA S
PRÓXIM A S A O C A M PO DA S C AV A LH A DA S.
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

A T U RM A DO “C A IXÃ O”.
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

C A V A L O DE M A S C A RA DO C OM MÁ SCA R A
S EM EL H A NT E À S U S A DA S NOS CA V A LO S D O S
C A V A L EIROS .
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

C A V A L O DIS FA RÇ A DO C OM E R V A -D E -SÃ O -CA E T A N O .


FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

serve para sair de mascarado.


Mesmo assim, a cada ano, muitos
mascarados investem mais em
seus figurinos, o que pode ser
constatado pelo grande número
de vestimentas sofisticadas,
principalmente as dos “bois” que
desfilam no campo das cavalhadas.93
Não por acaso, o processo
de espetacularização dos
mascarados – especialmente
daqueles que dividem a cena
com os cavaleiros no campo –
acompanha o das cavalhadas, aproveitando-se largamente das
promovido desde a década de prerrogativas do anonimato.
1960, como já mencionado. Desde Nesse período de festa, todos
então, tornou-se praticamente podem atuar em uma dimensão de
impossível dissociar a Festa transgressão consentida, que
do Divino Espírito Santo de “se justifica no que a máscara
Pirenópolis das cavalhadas e dos permite e propicia: a desforra,
mascarados. Entretanto, para a a paquera e a sedução, a alegria
grande massa dos mascarados, o solta, o descompromisso e a
improviso ainda é o ponto alto liberdade totais – na diluição do eu
de sua caracterização, e sua maior em milhares de identidades,
alegria é circular pelas ruas, em ser o outro, em ser ninguém”.94 ¢
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 77

M ASCA RA DOS DIA NT E DO H OT EL REX, EM


FRE N T E À PRA Ç A C ENT RA L , ONDE OC ORRIA M A S
CAVAL H A DA S , 19 47.
FONT E: C A RV A L H O, A ., 2 007.

origens e
transformações

N ão existem registros relativos


ao início da presença dos
mascarados na Festa do Divino
origem” dessa forma de expressão,
entre os quais se destacam as
seguintes versões: a vontade dos
de Pirenópolis, embora seja escravos de participar dos festejos
possível admitir que eles sempre à revelia de seus proprietários,
participaram dos festejos. já que, protegidos pelas máscaras,
Em seus relatos, os viajantes95 não eram reconhecidos;
que estiveram nessa região em a desforra de exímios cavaleiros
1819 mencionam a presença de excluídos do grupo restrito que
mascarados em Festas do Divino formava, na época, os exércitos
nas cidades de Santa Cruz e das cavalhadas; uma recriação
Santa Luzia (atual Luziânia). ou desdobramento da figura
Com base em relatos do século do espião, o único mascarado
XIX sobre Festas do Divino em que participa oficialmente do
São Paulo e no Rio de Janeiro, enredo das cavalhadas.97
por sua vez, sabe-se que nelas Existem, portanto, várias
não faltavam os encamisados e versões acerca da localização
as cavalhadas burlescas, muitas histórica dos mascarados e
vezes encenadas pelos próprios do contexto de sua origem:
cavaleiros das cavalhadas, dentro, fora ou anterior às
sempre exibindo suas grandes cavalhadas; dentro ou fora da
habilidades sobre o cavalo.96 Festa do Divino. Para alguns,
No estudo já citado sobre os os mascarados já foram mais
mascarados, Ana Claudia Lima e numerosos e presentes, e nem
Alves identifica alguns “mitos de sempre atrelados às cavalhadas.
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 78
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 79

E SQU ERDA
A ON ÇA – O ESP I Ã O MOURO – É O ÚNIC O
“ MA SCA RADO” QU E P ARTIC IPA DO
E N REDO DA S CAVALHADAS.
F O TO : MA U R ÍCI O P I NHE IRO, 2008.

D I REI TA
MA SCA RADO B EB EN DO CE RVE JA
C OM CAN UDI N HO.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

Para outros, são o termômetro


da animação de cada festa. Para
muitos, são personagens cuja
importância cresce ano a ano, já
que se transformaram em um dos
ícones da Festa do Divino e da
própria cidade, na qual se veem
várias estátuas de mascarados
instaladas em pontos estratégicos,
para deleite dos turistas.
Essas diferentes representações
se perdem no tempo e convivem na
memória local, refazendo-se
permanentemente. Antes de
tudo, entretanto, confirmam a
onipresença dos mascarados e
sua importância na construção
não só da dinâmica da festa,
como também da identidade
local. Para os pirenopolinos,
o brincar coletivo – ou o saber
brincar – tem uma forma, um
tempo e um lugar: os mascarados,
durante a Festa do Divino Espírito
Santo de Pirenópolis. ¢
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 80

o reinado da senhora
e do santo
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 81

B A N DEI RAS DE N OSSA SE NHORA


D O R O SÁRI O DO S P R E TOS
( À ESQU ERDA ) E DE SÃO BE NE D ITO
( À DI REI TA) , HASTEA DAS NO
LA RG O DO B O N F I M.
F O TO S: SAU LO CRU Z, 2008.

O Reinado de Nossa Senhora


do Rosário e o Juizado de
São Benedito ou, respeitando a
Os critérios étnicos e
socioeconômicos foram substituídos
pelos critérios de pertencimento a
linguagem local, simplesmente famílias historicamente envolvidas
Reinado, eram realizados desde com os festejos (tal como na Festa
o século XVIII, em Pirenópolis, do Divino Espírito Santo),
por irmandades que congregavam de devoção aos santos
negros (escravos e forros).98 e/ou de resgate e reafirmação de
A celebração dos dois santos tradições da comunidade local.99
foi deslocada de suas datas Assim como o Império,
originais (em outubro e abril, as folias e as demais cerimônias
respectivamente) e incorporada que compõem a Festa do Divino
à Festa do Divino há mais de de Pirenópolis, o Reinado é
um século. Manteve, porém, Senhora do Rosário, e na profundamente ritualizado e
sua identidade como Reinado terça-feira, em honra contém bandeiras, coroas, cetros
e continua sendo considerada de São Benedito. e outras insígnias próprias. Entre
a “festa dos pretos”, ou “outra Ao longo do tempo, o Reinado os principais objetos rituais
festa”, contida na Festa do Divino. sofreu constantes redefinições e simbólicos que compõem o
Para organizadores e participantes e reelaborações: de festa de Reinado estão: as bandeiras de
ouvidos durante a pesquisa, negros, nos séculos XVIII e XIX, Nossa Senhora do Rosário e de São
o Reinado não é compreendido transformou-se em festa de brancos Benedito, que anunciam o início
como duas festas distintas, pobres, até se tornar a manifestação dos festejos, quando são hasteadas
mas como uma celebração que cultural atual, da qual participam nos mastros em frente à Igreja do
se realiza em dois dias: pirenopolinos pertencentes às mais Bonfim; as quatro coroas de prata
na segunda-feira, dedicada a Nossa diversas camadas sociais. usadas pela rainha, pelo rei e pelos
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 82

DE CIMA PA RA BA IXO
OS JUÍ ZES DE S Ã O BENEDIT O S E
DIRIGEM À C A S A DA RA INH A E DO REI
DE NOS S A S ENH ORA DO ROS Á RIO PA RA
FORM AÇÃ O DO C ORT EJO DO REINA DO.
FOTO: S A U L O C RU Z , 2 008.

C ORTE J O DA S BA NDEIRA S DO REINA DO


ATÉ A IGREJA DO BONFIM .
FOTO: S A U L O C RU Z , 2 008.

juízes do Reinado;100 o prato de


prata conhecido por comenda, usado
desde o tempo das irmandades para
colher as esmolas, que atualmente
é utilizado para levar a coroa
da rainha de Nossa Senhora do
Rosário durante o cortejo até a
igreja; as varas de madeira e prata,
que, no cortejo, compõem a
estrutura hierárquica do Reinado
ao ser conduzidas, como cetros,
pelos participantes, demonstrando
seu envolvimento com os festejos
e sua intenção de promover a
festa; os quadros (varas roliças
de madeira pintadas de azul que
formam dois quadrados), usados
para organizar o cortejo e compor
a estrutura do Reinado, separando
as cortes: em um quadro, seguem
a rainha e o rei de Nossa Senhora
do Rosário e, no outro, o juiz e
a juíza de São Benedito. A corte
que vai à frente define o santo
homenageado. Também à frente
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 83

M ISS A DO REINA DO NA
IGRE JA DO BONFIM .
FOTO: C RIS T OPH E S C IA NNI, 2 008.

do cortejo são conduzidas as


bandeiras de Nossa Senhora do
Rosário e de São Benedito, que
completam as insígnias do Reinado.
A distribuição de salgados e
doces em quantidades exageradas
é também característica marcante
do Reinado, sendo importante,
segundo a tradição, apresentar
pratos coloridos.101 Normalmente,
quatro festas de doces se realizam
na casa de cada um dos reis e juízes
do Reinado. As casas são enfeitadas
com bandeirolas brancas e azuis Ele é o responsável por iniciar e missas com o pároco (e, às vezes,
na véspera dos festejos e, encerrar os cortejos, guardar os até com o bispo) e estabelecer o
em geral, são montados pequenos objetos rituais e escolher os reis local de realização do Reinado –
altares aos santos homenageados. e rainhas dos próximos anos. a igreja, os trajetos dos cortejos
Os comes e bebes são servidos O andador acumula ainda os ou as casas onde acontecerão
na porta, pois, dependendo do cargos de mordomo da fogueira as festas – são atribuições do
tamanho do local, somente a e de mordomo do mastro, andador. Ele é um agente ou
corte e os participantes diretos além da função de convencer mediador essencial dos festejos,
da cerimônia entram na casa. o padre a realizar as missas de chegando a arcar pessoalmente
O principal organizador do Nossa Senhora do Rosário e com despesas para que o Reinado
Reinado é o andador (em 2008, São Benedito, que nem sempre se realize a cada ano, e de
Geraldo Herculano de Oliveira). acontecem. Assim, negociar as acordo com a tradição. ¢
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 84

ES QU ERDA
C ONGOS NO C ORT EJO DO RE I N A D O .
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

DIREIT A
L EV A NT A M ENT O DOS M A S T RO S D O

os rituais do REINA DO NA IGREJA DO BON F I M.


FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

reinado

N o domingo anterior ao domingo


de Pentecostes (em 2008,
no dia 4 de maio), após a novena na
matriz, ocorreu o primeiro ritual do
Reinado: a bênção das bandeiras do
Reinado pelo pároco, na presença
do imperador do Divino e dos
irmãos do Santíssimo. Em seguida,
ao som da Banda de Couro, uma
pequena multidão dirigiu-se
à frente da Igreja do Bonfim para
a cerimônia de levantamento
dos mastros de Nossa Senhora
do Rosário dos Pretos e de São mamona –, sinalizava o lugar onde Os festejos foram retomados na
Benedito, seguida da queima de duas haveria uma festa do Reinado. manhã da segunda-feira (segundo
fogueiras, uma para cada santo. Nesse dia foram comunicados e dia das cavalhadas), 12 de maio
Depois, as pessoas desceram confirmados os locais de realização de 2008, com a realização do
pela rua da Aurora, ladeando da festa na semana seguinte. Reinado de Nossa Senhora do
a igreja, para a apreciação do Nessa etapa do ritual, Rosário. O cortejo saiu da casa do
cruzeiro, uma antiga tradição da era dispensável a participação juiz e da juíza de São Benedito103 às
festa recentemente resgatada.102 dos reis e rainhas, pois não havia 7 horas da manhã, acompanhado
O cruzeiro, formado por troncos quadros nem coroas e cortejo, de poucos participantes, e seguiu
de bananeira – enfeitados com e o grupo liderado pelo andador para a casa da rainha de Nossa
luminárias feitas com cascas de Herculano e seus ajudantes se Senhora do Rosário e depois
laranja, pavio de algodão e azeite de organizou de modo informal. para a casa do rei.104 Em seguida,
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 85

o cortejo dirigiu-se à Igreja do Após a missa, o Reinado caixas pertencentes ao Reinado.


Bonfim, para a celebração da ganhou novamente as ruas, com Por último, veio o fogueteiro.
missa do Reinado. Naquele dia, a estrutura do cortejo montada: Da porta do Bonfim,
a missa, geralmente concorrida, à frente, as bandeiras dos santos, o cortejo seguiu para as casas dos
contou apenas com a presença seguidas pelos condutores homenageados do dia, a rainha e
dos reis e juízes do Reinado e das varas, pelos figurantes do o rei de Nossa Senhora do Rosário
de pouquíssimos participantes, congo e pelos dois quadros que dos Pretos. Entre músicas e orações,
pois o toque dos sinos que delimitavam o território dos reis em cada casa foram realizadas
anunciam a celebração “acordou” e rainhas, com suas insígnias. distribuições de salgados e doces aos
as abelhas que viviam no forro Atrás dos quadros vieram a participantes dos cortejos e à pequena
do templo, o que afugentou congada e a Banda de Couro, multidão que foi se formando
quase todos os presentes. ampliada com os tocadores das durante o trajeto do Reinado.
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 86

DA E SQU ERDA P A RA A DIRE ITA PÁGINA A O L A DO


C O R TEJ O DE SÃO B EN EDITO SE GUINDO C ORTE J O DE S Ã O BENEDIT O S EGU E PA RA
PA R A MI SSA N A CASA P A ROQUIAL . A FE STA DOS DOC ES .
F O T O : CR I STOP HE SCI ANNI, 2008. FOTO: S A U L O C RU Z , 2 008.

NA F ESTA DO J U I ZA DO, O AL TAR DE


S Ã O BEN EDI TO.
F O T O : SAU LO CRU Z, 20 08.

Na terça-feira, dia de das caixas – e seguiram todos uma farta mesa de doces.105
homenagens a São Benedito, para o salão paroquial. Nesse Na entrada da casa, foi
repetiu-se o ritual de formação do local, realizou-se a missa de São montado um bonito altar em
cortejo, que saiu da casa da rainha Benedito, bem mais concorrida louvor a São Benedito, cercado
de Nossa Senhora do Rosário e que a celebração do dia anterior. por um arco de flores de papel,
dirigiu-se à casa dos juízes de Após a missa, acompanhado alhos e cebolas, já que um dos
São Benedito. Lá se organizou a pela Banda Phoenix e seguido atributos do santo é proteger
estrutura do cortejo – com cada pela multidão, o cortejo os cozinheiros e as cozinhas e
conjunto de reis e juízes em seus percorreu a rua do Rosário garantir a fartura de alimentos.
quadros, as bandeiras dos santos até o início da rua Aurora, Na mesa de doces, uma imagem
adiante, os condutores das varas, chegando ao local onde os juízes da pomba do Divino Espírito
o congo, a congada e os tocadores de São Benedito ofereceram Santo ocupava lugar central. ¢
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 87

os reis e
rainhas

D iferentemente do imperador
do Divino, o rei e a rainha
de Nossa Senhora do Rosário e
o juiz e a juíza de São Benedito
não são escolhidos por sorteio,
mas pelo andador do Reinado,
de acordo com as possibilidades
de realização da festa pelos
numerosos candidatos.
A rainha do Reinado de 2008,
dona Laurita, havia muitos
anos se candidatava ao cargo
para pagar uma promessa feita
a Nossa Senhora do Rosário.106
O rei de Nossa Senhora do
Rosário, Antonio Parrila,
por sua vez, declarou estar
participando para manter a festa
e contribuir com a tradição.
Esse sentimento de
manutenção das tradições é
recorrente no Reinado, como
constatou-se na pesquisa.
Observou-se entre os
participantes a preocupação de
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 88

D E C IMA P A RA B AI X O
F A R T U R A N A F ESTA OF ERE CIDA PE L OS
J U Í Z ES DE SÃO B EN EDI TO.
F O T O : SAU LO CRU Z, 20 08.

M E S A DE DOCES N O J U I Z ADO D E
S Ã O BEN EDI TO.
F O T O : CR I STOP HE SCI ANNI, 2008.

A casa do patriarca situava-se de declarar na abertura da festa


em frente à antiga Igreja de Nossa do Juizado de São Benedito:
Senhora do Rosário dos Pretos “Agradeço à minha família, que
(onde hoje funciona a Pousada trabalhou bastante para que este
Walkiriana), local onde as Juizado pudesse ser realizado
irmandades se reuniam e do qual Agradeço principalmente a
partiam os festejos do Reinado. presença de vocês, a presença do
Ely de Sá também foi imperador povo que dá brilhantismo a esta
do Divino em 1979 e sua família festa. Estou aqui para cumprir o
tem tradição de compromisso meu dever, e espero que os meus
e grande envolvimento com o filhos amanhã deem continuidade,
Reinado, como ele fez questão façam a parte deles para que

manter as características rituais


dos festejos e de assumir as
funções festivas, outrora ocupadas
por seus antepassados. Esse era
o caso de Manoel (Ely) Inácio
de Sá, juiz de São Benedito em
2008. Ele é neto do coronel
Chico de Sá, homem de posses
que foi imperador do Divino
em 1917, festa relembrada pela
comunidade como uma das mais
grandiosas já realizadas na cidade.
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 89

D ON A L A U RIT A , NA PORT A DE S U A
CASA, JU NT A M ENT E C OM O REI DO
ROSÁRIO E O JU IZ DE S Ã O BENEDIT O,
CONT A U M A PROM ES S A E A GRA Ç A
AL C A NÇ A DA POR INT ERC ES S Ã O DE
NOSSA S ENH ORA DO ROS Á RIO.
FOTO: S A U L O C RU Z , 2 008.

Pirenópolis continue sempre


cumprindo suas tradições”.107
Essas manifestações contradizem
a dicotomia apontada na década
de 1970 por alguns autores
(principalmente Carlos Rodrigues
Brandão),108 que afirmavam
não haver comunicação entre os
principais personagens do Reinado
e da Festa do Divino, associando o
primeiro a festejos de pobres e o
segundo, aos territórios das elites
socioeconômicas locais. Do mesmo
modo, esses estudos apontavam a
decadência definitiva do Reinado
e sua iminente extinção. Em
vez disso, verificou-se que, nas
últimas décadas, os festejos do
Reinado se revigoraram, já que de 2008 especialmente por
alguns grupos de pirenopolinos dois aspectos: a capacidade de de revitalização das tradições
assumiram a responsabilidade atualização desses festejos – locais como referências culturais
de mantê-los como tradição historicamente confinados a com as quais a comunidade se
e referência cultural. minorias sociais – e a consciência envolve e se identifica: a “festa
A revitalização do Reinado da tradição, que nos anos dos pretos” pertence agora a
foi comprovada na pesquisa recentes intensificou o processo todos os pirenopolinos. ¢
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 90

a cavalhadinha
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 91

C AVALHA DI N HA N A V IL A M ATUTINA.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

D I REI TA
O I MP ER ADORZI N HO ENTRE RAINHAS
D O R O SÁRI O E SÃ O B E NE DITO NA
P RAÇA DA SA N TA , N A NOITE D E
C OR P US C H R IS TI, I N ÍCI O D OS
F ESTEJ OS DA CAVALH ADINHA.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

A s crianças de Pirenópolis
sempre brincaram de
cavaleiros, de mascarados, de
A organização das atribuições
de cada cargo fica sob a
responsabilidade dos respectivos
cavalhadas, de pastorinhas, pais, visto que os personagens
especialmente nas proximidades principais são crianças de
da festa.109 Nos anos 1980, foi no máximo doze anos.
criada, no bairro da Vila Matutina, Os festejos propriamente ditos
por iniciativa de seus moradores iniciam-se na quinta-feira de Corpus
e com a participação exclusiva de Christi (onze dias após o domingo
crianças, a cavalhadinha: do Divino) e se encerram no
a reprodução-mirim dos festejos domingo seguinte. Em 2008, ano
do Divino Espírito Santo e da pesquisa, roqueiras e fogos de
momento máximo de socialização artifício acordaram os moradores
de uma nova geração e de praça da Santa. É lá também do bairro para as alvoradas, como é
transmissão de valores culturais que acontecem as rezas durante costume, durante toda a semana de
essenciais aos pirenopolinos.110 a semana que precede a festa. Corpus Christi (de 22 a 25 de maio).
A cavalhadinha foi incorporada À semelhança da Festa do Divino As alvoradas foram conduzidas pela
oficialmente à Festa do Divino em Espírito Santo de Pirenópolis, os Banda de Couro da Vila (também
1989.111 Com exceção das folias, preparativos para a cavalhadinha formada por crianças), que, depois
agrega os principais eventos se iniciam com cerca de um de percorrer as principais
da Festa do Divino, como ano de antecedência, no último ruas do bairro, dirigiu-se à
cavalhadas, Império e Reinado. dia dos festejos, a partir do casa do imperadorzinho para
A maioria das celebrações religiosas momento em que são sorteados o tomar o café da manhã.
é realizada na praça conhecida imperadorzinho e os reis e Os ensaios dos cavaleiros-mirins
pelos moradores do bairro como rainhas-mirins do ano seguinte. – oito para cada castelo – também
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 92

E SQUE R DA
M ASC AR A DINH O EXIBE S U A H A BIL IDA DE
C OM O C A V A L O NO C A M PO DA
C AVAL H A DINH A .
FOTO: S A U L O C RU Z , 2 008.

DIRE ITA
C ORTE J O DO REINA DO DE NOS S A
SE NHOR A DO ROS Á RIO.
FOTO: S A U L O C RU Z , 2 008.

foram realizados naquela semana,


no fim da tarde, em uma rua
próxima à beira do rio das Almas,
que os moradores da vila chamam
“Lages”. Nos ensaios, a maioria das
crianças utilizava cabos de vassoura
como cavalos de pau ou lanças.
Na mesma semana, foi montado
o altar da coroa na sala principal
da casa do festeiro, com as cores
do Divino: branca e vermelha.
Bem no centro do altar, abaixo
da pomba que simbolizava o
Divino Espírito Santo e acima
da coroa e do cetro, colocou-se
uma foto do imperadorzinho.112
Nos dias que antecederam a festa,
a casa do festeiro teve sua rotina
modificada pela intensificação
dos preparativos, passando a ser
ponto de encontro de moradores
e vizinhos, que iam ajudar a
preparar verônicas e quitandas,
cortar bandeirolas ou simplesmente
visitar o altar do Divino. ¢
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 93

o início dos
festejos

N a manhã do feriado de Corpus


Christi (uma quinta-feira,
como sempre), no campinho
funcionários da prefeitura, que,
após a realização das cavalhadinhas,
fazem a limpeza do local.
Após a cerimônia na praça
da Santa, o cortejo voltou à casa
do imperadorzinho, onde os
das cavalhadinhas, foi realizado Na noite de Corpus Christi, cavaleirinhos fizeram a entrega
um ensaio geral com todas as iniciaram-se oficialmente os simbólica de suas lanças, simples
crianças envolvidas: cavaleiros, festejos da cavalhadinha, com o cabos de vassoura com uma fita
pastorinhas, porta-bandeiras e cortejo do imperadorzinho e dos na ponta, azul para os cristãos e
catireiras. O campinho já estava reis e rainhas seguindo de suas vermelha para os mouros. Esse ritual
preparado para a apresentação das casas até a praça da Santa para a e todos os outros que compõem a
cavalhadinhas, com arquibancada cerimônia de levantamento dos cavalhadinha reproduzem os que
para cerca de 150 pessoas e catorze mastros com as bandeiras de ocorrem na Festa do Divino. Assim,
camarotes, feitos como os do Nossa Senhora do Rosário e de do mesmo modo como procedem os
cavalhódromo: cercados por paus São Benedito, seguida da queima cavaleiros adultos, durante o ritual de
roliços, cobertos com folhas de da fogueira. O imperadorzinho entrega das lanças, os cavaleirinhos
palmeira e enfeitados com panos fez todo o percurso dentro de um permaneceram engrazados – um
coloridos. Um deles destinava-se quadro – quatro cabos de vassoura cristão, um mouro – em duas filas,
ao imperadorzinho e sua família e pintados de vermelho – levado com as lanças cruzadas durante todo
outro aos mestres de cerimônia ou por quatro crianças. o percurso. O primeiro cavaleirinho
locutores e aos músicos da Banda O cortejo foi acompanhado pela a entregar a lança foi o rei cristão,
Phoenix, que, do mesmo modo Banda de Couro da Vila e por seguido do rei mouro e, depois,
que nas cavalhadas, marcaram a porta-bandeiras do Divino. alternando-se sempre os castelos,
ordem e o ritmo das carreiras do O imperadorzinho seguiu os embaixadores e soldados. Após
espetáculo. Conforme se apurou coroado e uma menina levou ao o ritual, o imperadorzinho e sua
na pesquisa, toda a estrutura altar do Divino a bandeja que foi família ofereceram uma galinhada aos
do campinho fica a cargo de utilizada como suporte da coroa. cavaleirinhos e demais presentes. ¢
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 94

sexta-feira da
cavalhadinha

N a manhã seguinte, festejou-se


Nossa Senhora do Rosário.
O cortejo saiu da casa da
rainha em direção à casa do rei,
acompanhado pelo rei e pela
rainha de São Benedito. Da casa
do rei, o cortejo seguiu para a
praça da Santa, onde, diante
do pequeno altar que existe ali,
todos os presentes rezaram um
Pai-Nosso e uma Ave-Maria e
cantaram o Hino do Divino.
Terminadas as rezas, formou-se
o cortejo de entrega do rei e da apresentação das cavalhadinhas, cavalhadas, alguns mascaradinhos
rainha. Como acontece no Reinado com participação do colocaram seus cavalos de
dos adultos, na casa do rei de Nossa imperadorzinho, das pau no chão e ficaram em
Senhora do Rosário, foram servidos porta-bandeiras, das pastorinhas pé sobre eles, em sinal de
salgadinhos e doces para infantis e das catireirinhas. reverência. Como os grandes,
todos os presentes. Em seguida, Após a cerimônia de abertura, os mascaradinhos animaram a
o cortejo dirigiu-se à casa da rainha os mascaradinhos puderam entrar plateia: fizeram seus cavalinhos
de Nossa Senhora do Rosário, no campo, ao som de “O rio disparar, empinar e rodopiar,
onde houve nova distribuição de Piracicaba” – a música oficial e só se retiraram do campinho
de quitandas aos presentes. dos mascarados – e do Hino depois de muitas advertências.
À tarde, no campinho, do Divino. Nesse momento, Os primeiros a entrar em
teve início o primeiro dia de do mesmo modo que nas campo foram os cavaleirinhos
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 95

E SQU ERDA
C E R I MÔ N I A DE AB ERTURA
DA CAVALHA DI N HA .
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

D I REI TA, DE CI MA P A RA BAIXO


C RI STÃ O S E MO U R O S SE
E N F REN TAM N O P R I ME IRO
D I A DA CAVALHA DI N H A.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

MA SCA RADI N HOS N O CAM PO


DA CAVALHA DI N HA .
F O TO : MA U R ÍCI O P I NHE IRO, 2008.

mouros, que se perfilaram


do lado do nascente. Depois,
entraram os cavaleirinhos
cristãos, que se colocaram
no lado oposto, do poente.
À semelhança das cavalhadas,
a batalha se iniciou após
o soldado cerra-fila
descobrir o espião mouro
disfarçado de oncinha.
Em continuidade, os reis
dialogaram por intermédio
de seus embaixadores e, não havendo
consenso, começaram as batalhas,
representadas por diversas
carreiras, lutas de espadas e trocas
de tiros. No intervalo, como
de costume, os mascaradinhos
invadiram o campo e
demonstraram suas habilidades
com os cavalinhos de pau,
resistindo às ordens de retirada.
Em seguida, os cavaleirinhos
retomaram as carreiras, que
duraram até o entardecer. ¢
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 96

DE C IM A PA RA BA IXO
A ONC INH A REPRES ENT A O E SP I Ã O
M OU RO, C OM O NA S C A V A L H ADA S
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

C A V A L EIRINH OS S A EM DO C AMP O

o sábado da “ENGRA Z A DOS ” NO S EGU NDO D I A


DA C A V A L H A DINH A .

cavalhadinha FOT O: S A U L O C RU Z .

C ORT EJO DO IM PERA DORZ IN H O ,


NO DOM INGO DO DIV INO
DA C A V A L H A DINH A .
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

O Reinado (Juizado) de São


Benedito aconteceu no sábado
pela manhã, com o cortejo
orações da véspera e cantaram
o Hino do Divino. Depois, o
cortejo voltou à casa da rainha
saindo da casa do rei e seguindo de São Benedito, onde foram
em direção à casa da rainha, servidos salgados e quitandas. Em
acompanhado pelos reis de seguida, dirigiu-se à casa do rei de
Nossa Senhora do Rosário. São Benedito, onde houve nova
Após reunir os quatro reis e distribuição de salgados e doces.
rainhas, cada um partindo da Após o almoço, no campinho
respectiva casa, o cortejo completo da Vila Matutina, teve início
seguiu para a praça da Santa, o segundo dia de batalhas da
onde os presentes repetiram as cavalhadinha, que culminou

com a rendição e o batismo


dos cavaleirinhos mouros.
Ao pôr do sol, os cavaleirinhos
deixaram o campo, engrazados
– um cristão e um mouro –,
pelo lado do castelo cristão. ¢
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 97

o domingo do
divino

E m 2008, como de costume,


o domingo do Divino da
cavalhadinha (nesse ano, dia
25 de maio), iniciou-se bem
cedo, com alvorada às 5 horas da
manhã, com alguns músicos da
Banda Phoenix percorrendo as
principais ruas da Vila Matutina.
Um pouco mais tarde, começaram
os preparativos para o cortejo do
imperadorzinho, chamado de
cortejo do Divino Espírito Santo.
Os reis e rainhas do
Reinado se reuniram na casa do moradores da Vila Matutina a tradição, foram distribuídas
imperadorzinho para a saída do acompanharam o cortejo. verônicas às crianças, aos convidados
cortejo completo em direção à As ruas do trajeto a percorrer e aos demais presentes.
praça da Santa. Participaram as tinham sido enfeitadas com No terceiro e último
virgens, as porta-bandeiras, bandeirolas vermelhas e brancas, dia de apresentação da
a Banda de Couro e músicos da assim como a praça da Santa. cavalhada-mirim, os cavaleirinhos
Banda Phoenix, também moradores Nessa praça, mais uma vez, entraram engrazados no campo
da vila. Um grande foguetório repetiram-se as orações e todos pelo lado do poente. Esse foi o
anunciou o cortejo, acompanhado cantaram o Hino do Divino dia de confraternização entre os
pelos pais, familiares e amigos Espírito Santo, com muita emoção. dois castelos, compreendendo
dos principais personagens da Depois, o cortejo voltou à casa muitas carreiras que desafiaram a
cavalhadinha daquele ano. Muitos do imperadorzinho e, reiterando perícia dos pequenos cavaleiros.
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 98

T O R N EI O DA A RG OLI N H A, NO TE RCE IRO D IA


DA C AVALHA DA -MI R I M.
F O T O: SAU LO CRU Z, 20 08.

do simples
folguedo à
transmissão
da tradição

O auge foi a carreira para a


retirada das argolinhas, na qual
cada cavaleirinho demonstrou sua
tios), moradores da vila, estiverem
presentes no momento do sorteio,
para assumir o compromisso de
N a maioria dos depoimentos
recolhidos durante a pesquisa,
a cavalhadinha da Vila Matutina
habilidade com a lança. realização da festa no ano seguinte. foi descrita como um importante
As argolinhas conquistadas foram Findo o sorteio, a banda e os instrumento de transmissão das
oferecidas como homenagem a presentes dirigiram-se às Lages, tradições locais às novas gerações
pessoas especialmente escolhidas, na beira do rio, onde foi realizada e como o reviver das experiências
tendo sido a primeira oferecida a queima de fogos, promovida pela e lembranças de brincadeiras
ao imperadorzinho. família do imperadorzinho, com a de infância dos entrevistados.
Após o encerramento das ajuda dos moradores do bairro. De fato, brincar de cavaleiro,
encenações da cavalhadinha, A queima de fogos foi o último evento mascarado ou pastorinha não é
os músicos da Banda Phoenix dos festejos da cavalhadinha.113 ¢ privilégio dos moradores da vila,
seguiram tocando até a praça da Santa, mas uma prática comum a todas
acompanhados por uma pequena as crianças de qualquer bairro de
multidão. Lá ocorreu o sorteio do Pirenópolis. Entretanto, segundo
imperadorzinho e dos reis e rainhas os próprios entrevistados,
do Reinado do ano seguinte. a partir da década de 1960 – por
Os nomes foram colocados em iniciativa das crianças e sob a
dois copinhos, um com os nomes coordenação do ex-cavaleiro João
e o outro com os cargos. Como no Luiz Pompeu de Pina –,
sorteio do imperador do Divino, a cavalhadinha da vila começou a
a cada nome retirado, uma função crescer e acabou tomando ares de
também era sorteada. A confirmação festa grande, sendo oficialmente
dos nomes só ocorre se a criança incorporada à programação
e seus pais ou responsáveis (avós, da Festa do Divino em 1989.
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 99

D E CI MA P A RA B AI X O
C AVALEI R I N HO S MO URO E CRISTÃO
R E P RESEN TA M A CO N FRATE RNIZ AÇ ÃO
E N TRE O S DO I S CA STE L OS.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

C RI STÃ O S E MO U R O S DISPUTAM
O TO RN EI O DE TI R A-CABE ÇA
C OM ESP ADAS, N O ÚLTIM O D IA
DA CAVALHA DI N HA .
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

Para tanto, contribuíram pais,


avós, parentes e vizinhos,
que, diante do entusiasmo das
crianças, empenharam-se em
refazer a festa nos territórios
da Vila Matutina. Os olhos dos
moradores da vila, contudo, não
estão exatamente – ou sempre –
voltados para a “festa grande”.
Os membros da comunidade
também podem ter, por
exemplo, a intenção de preparar
cavaleiros para as cavalhadas,
mas o que eles exprimem é definindo regras de participação historicamente estruturaram e
um sentimento profundo de e realização dos festejos. dinamizaram a Festa do Divino
pertencimento à vila e o desejo Sendo a Vila Matutina a Espírito Santo – acumular para
de preservar um estilo de vida primeira área de expansão redistribuir, valorizar as relações
que é próprio do local. urbana de Pirenópolis, ocupada de parentesco e vizinhança
Desse modo, embora na pelos filhos das principais e o trabalho voluntário e
cavalhadinha se procurem famílias locais, os organizadores comunitário – mantêm-se firmes
reproduzir as principais da cavalhadinha se sentem e revigorados na cavalhadinha. ¢
cerimônias da Festa do Divino, legítimos representantes das
cada evento e cada celebração tradições. Nesse processo,
são construídos de um jeito é interessante notar que os
próprio, reinventando ou princípios fundamentais que
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 100

as artes na festa
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 101

V ÁR I OS A RTESÃ O S LOC AIS RE TRATAM E M


C E R ÂMI CA OS P ERSO NAGE NS DA FE STA.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

D I REI TA
“ DAN ÇA DE MA SCA RAD OS”.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

N os capítulos iniciais deste


dossiê, procuramos descrever
a Festa do Divino Espírito Santo
o universo de representações
dos pirenopolinos, uma vez que
se encontra profundamente
em seu contexto social e histórico, imbricada na vida social local.
destacando seus principais agentes. Em seguida, descrevemos seus
Também buscamos identificar os principais eventos, devidamente
mecanismos responsáveis por sua contextualizados, tal como acontecem
dinâmica: o catolicismo popular; habitualmente e como ocorreram
um sistema de circulação de no ano de 2008, focalizando
bênçãos, alimentos e outros bens Império, Reinado, cavalhadas,
simbólicos e materiais baseado na mascarados, folias e cavalhadinha.
reciprocidade, em que se acumula Trataremos agora de apresentar
somente para redistribuir; a forma os muitos ofícios e artes que fazem
coletiva de produção da festa, por da Festa do Divino um grande
meio de uma rede solidária que se espetáculo, abordadas até aqui em
estabelece no âmbito de cada família associação aos principais eventos
e entre as famílias, acionando outras dos festejos. Ao mesmo tempo que
redes de vizinhança e parentesco, atestam a diversidade e a riqueza de
de maneira que os territórios da suas expressões, essas artes e ofícios
celebração passam a coincidir asseguram outros tantos modos
com o território do município. de inserção na festa, orientando a
Procuramos ainda descrever formação de biografias e vocações.
o modo como a festa conforma a Por meio delas, muitos pirenopolinos
cidade, estrutura suas principais e famílias locais praticam e
formas de sociabilidade e configura confirmam sua devoção ao Divino.¢
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 102

T IROS DE T OC O OU ROQU EIR A .


FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

os sons
da festa

A Festa do Divino Espírito Santo


de Pirenópolis se faz de muitos
e diferentes sons,1 14 a começar
pelos foguetes, que anunciam e
pontuam cada ritual e, bem antes
da abertura dos festejos, avisam
que eles vão começar. Também
são indispensáveis as descargas
de roqueira (ou tiros de toco),115
que, para os pirenopolinos, são
sinônimos da festa. Elas indicam
a chegada das folias a cada pouso,
bem como a saída, anunciam os
cortejos do Império e as procissões quando, ao meio-dia, Além do foguetório e dos sinos,
do Reinado, além de marcar os realiza-se a tocata, e os sinos da embalam a Festa do Divino os sons do
numerosos eventos que acontecem matriz repicam, anunciando o início coral de Nossa Senhora do Rosário,
na casa do imperador. Além da novena. Para outros, a festa inicia- da Banda Phoenix e da Banda de
disso, a partir do primeiro dia da se bem antes, no domingo de Páscoa, Couro. O coral participa da novena
novena, são lançadas diariamente quando, após a tocata e o repique de do Espírito Santo cantando em
às quatro horas da manhã, sinos, ocorre a cerimônia de bênção latim um repertório tradicional de
ao meio-dia e após a novena. da coroa na matriz. O repique dos música sacra, acompanhado por
O toque dos sinos também marca sinos também marca momentos uma pequena orquestra formada
o ritmo das celebrações. Para muitos, distintos da festa, como o final das por músicos da Banda Phoenix.116
a Festa do Divino começa dez dias missas e as cerimônias ligadas ao O coral também costuma
antes do domingo de Pentecostes, sorteio e à coroação do imperador. se apresentar na missa solene
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 103

DA ESQ U ERDA P A RA A D IRE ITA,


D E CI MA P A RA B AI X O
A B AN DA P HOÊN I X SA I TOC AND O PE L AS
R UA S P A RA MAI S U M DIA DE CE L E BRAÇ ÕE S
D O DI V I N O ESP ÍR I TO SANTO.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

O AN DADOR DO R EI N AD O RE PICA OS SINOS


N O ÚLTI MO DI A DA N OVE NA.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

C OR AL N OSSA SEN HORA DO ROSÁRIO,


D URAN TE A N O VEN A DO DIVINO.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

número de eventos ligados ao


Império, como cortejos, novena,
missas, tocatas na porta da matriz,
alvoradas, queimas de fogos e
levantamento do mastro do Divino.
Nas cavalhadas – e também nas
cavalhadinhas – a Banda Phoenix
executa as marchas que dão ritmo
às encenações entre mouros e
cristãos. Ela também participa dos
festejos do Reinado sempre que
é contratada, como ocorreu no
Juizado de São Benedito de 2008.
do domingo do Divino e e encerra a festa, em Corpus Christi. O Hino do Divino foi composto
nas missas do Reinado, O repertório da Banda Phoenix, por Tonico do Padre (outra
dedicadas a Nossa Senhora do no qual se destaca o comovente Hino grande referência da música em
Rosário e a São Benedito. do Divino, já foi incorporado à Pirenópolis), em 1899. Desde
A Banda Phoenix participa da história da festa e à memória coletiva. então, é referência obrigatória
Festa do Divino desde 1893, ano Com exceção das folias, a Banda não só da festa, como também dos
em que foi fundada por mestre Phoenix está presente na maioria grandes eventos locais. O hino é
Propício, um dos principais das celebrações e eventos que executado ao final das novenas e
nomes da música local.117 Para os compõem a Festa do Divino, sob o nas missas do Divino, na abertura
pirenopolinos, “sem a banda não há patrocínio da prefeitura municipal das cavalhadas, nas alvoradas,
Festa do Divino”. É ela que inicia os de Pirenópolis. Ela ocupa lugar nas folias, nas cerimônias do
festejos, no domingo de Páscoa, ritualmente definido em um grande Reinado de Nossa Senhora do
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 104

DE CIMA PA RA BA IXO
TOC AD ORES DE C A IXA DO REINA DO.
FOTO: V A NDERL EI A L C A NT A RA , 2 008.

A BANDA DE C OU RO T OC A NA A L V ORA DA
DO IM P ERA DOR DO DIV INO.
FOTO: S A U L O C RU Z , 2 008.

Rosário e de São Benedito, na inclui ainda modinhas tradicionais


cavalhadinha e, constantemente, das festas juninas, como “Cai, cai,
na casa do imperador. A letra é balão”, e cantigas de roda, todas
simples e conhecida por todos os muito conhecidas e apreciadas
pirenopolinos, que cantam o hino pela comunidade, tocadas no
com grande respeito e emoção.118 saxofone pelo organizador da
A Festa do Divino de Pirenópolis banda, Vicente Melani.
conta, ainda, com duas outras A Banda de Couro integra os
bandas: a Banda de Couro, festejos do Divino participando das
ou Zabumba, e a Banda do Reinado. alvoradas, das noites de novena, da
A Banda de Couro é um abertura das cavalhadas e das tocatas
conjunto de percussão que remonta no largo da Matriz. Nos cortejos
às festas dos negros escravizados, do Reinado e do Juizado, participa
realizadas na extinta Igreja de Nossa da cerimônia do levantamento dos pequeno trajeto até uma esquina
Senhora do Rosário dos Pretos. mastros e queima das fogueiras nas imediações, onde se desfaz.
É a banda mais antiga da cidade, em homenagem a São Benedito A Banda do Reinado, por sua vez,
e dela se tem notícia desde o século e a Nossa Senhora do Rosário. compõe-se de tambores de madeira
XVIII. Compõe-se de um saxofone, Atualmente a banda é formada e couro de dimensões menores que
tambores (caixas) de couro, por crianças e adolescentes, que os da Banda de Couro. São utilizados
zabumba, rufadeira e várias caixas assumem o compromisso de exclusivamente nos cortejos de
pequenas que dão ritmo e cadência acordar de madrugada e tocar nas Nossa Senhora do Rosário e de São
aos cortejos. Seus toques sugerem alvoradas. Também ao final de cada Benedito, já que atualmente a Banda
a letra que é cantada mentalmente reza da novena, a banda aguarda de Couro não acompanha todos os
por quem a conhece: “Vamo, vamo, a saída do imperador da igreja cortejos do Reinado, em razão de sua
vamo comê doce”. Seu repertório e o acompanha tocando em um participação em outros momentos da
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 105

C O N G ADA EM CORTEJO D O RE INAD O


F OTO : SAU LO CRU Z, 2 008.

autos e
folguedos

Festa do Divino. As caixas são tocadas


por voluntários, simpatizantes dos
festejos, que, nas primeiras horas
A esse conjunto de elementos
sonoros, que criam a
ambiência festiva das celebrações
constitutivas ou associadas às
cavalhadas e às folias, sobre as
quais não vamos nos estender.
da manhã, buscam os reis e rainhas do Divino, agregam-se A respeito das óperas e peças
em suas casas e levam-nos à igreja, danças, coreografias, autos de teatro encenadas durante
sem qualquer preparação ou ensaio. e representações, que foram a festa, falaremos adiante.
Assim como a Banda de Couro, incorporados à programação ao Começamos aqui por analisar os
a Banda do Reinado reproduz os longo do tempo e têm modos autos de origem afrodescendente
toques “vamo, vamo, vamo comê diferentes de inserção na festa. – a congada e o congo – e a
doce”, cantados mentalmente pelos Entre essas manifestações, cabe contradança, que integram a
participantes durante os cortejos. ¢ mencionar as catiras, as cantorias festa em vários momentos.
e as modas de viola, expressões A congada que se apresenta na
Festa do Divino de Pirenópolis é
formada por vinte dançadores,
em média, e mais um capitão,
a porta-bandeira e uma guardiã,
conhecida como dona Maria
da Congada. As coreografias
são simples e os instrumentos,
artesanais: caixa de couro,
reco-reco e pandeiro. O grupo,
que mora no entorno de Goiânia,
é convidado (e patrocinado pela
prefeitura de Pirenópolis) todos
os anos para participar dos festejos
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 106

do Reinado, “já que em todo o A dança do congo, originária que, enquanto tocam tambores e
Brasil as Irmandades de Nossa do município de Jaraguá, chocalhos, encenam embaixada
Senhora do Rosário estão associadas é apresentada em Pirenópolis e cantam músicas em louvor aos
a rituais como os de Coroação desde 1935. “Trata-se de um auto santos do Reinado. Vestem-se
do Rei do Congo, Congadas ou que reúne elementos temáticos de branco, com saias vermelhas,
Reinados”.119 Além de participar africanos e ibéricos, cuja difusão fitas coloridas e cocares de penas.
do Reinado, os integrantes da vem do século XVII”120 e, como Assim como os integrantes da
congada se apresentam no sábado a congada, tem por padroeiros congada, o grupo de congo se
do Divino, ao meio-dia, na Nossa Senhora do Rosário e São apresenta no sábado do Divino na
porta da matriz, e acompanham Benedito. Antigamente dançada porta da matriz, acompanha os
as cerimônias de abertura e de por adultos, hoje é executada por cortejos do Reinado e participa
encerramento das cavalhadas. duas alas de crianças de Pirenópolis da coreografia de abertura das
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 107

DA ES QU ERDA PA RA A DIRE I T A
GRU PO DA C ONT RA DA NÇ A, O U P A U-D E -
FIT A , EM A PRES ENT A Ç Ã O N O CA MP O DA S
C A V A L H A DA S .
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

C ONGO EM C ORT EJO DO R E I N A D O .


FOT O: M A U RÍ C IO PINH EIR O , 2 0 0 8 .

cavalhadas, no primeiro e no apresentação de dramas e operetas


último dia das encenações. desde 1837. Muitos deles foram
O grupo de contradança – incorporados definitivamente
ou pau de fitas – costuma fazer ao repertório da festa, como
sua primeira apresentação no ocorreu com o auto As pastorinhas.
domingo de Pentecostes, pela dramas e Assim como produziu seus
manhã, quando casais de crianças operetas músicos, Pirenópolis sempre
vestidas de branco, com fitas produziu seus atores, seus
vermelhas na cintura e chapéus espetáculos e seus espaços de
de palha, dançam no largo da atuação, contando, ainda hoje,
Matriz. Depois, o grupo participa com um grupo de teatro atuante,
da procissão do Divino, atrás das tradicionalmente formado pela
porta-bandeiras e seguido dos família Pompeu de Pina. Em
congos, do andor, do séquito
imperial, da banda e dos demais
componentes do cortejo. Ainda
A lém da grande encenação das
cavalhadas, outros palcos e
cenários fazem parte da festa.
2008, a Companhia de Theatro
de Pirenópolis apresentou o
recital Operetas, com trechos de
no domingo do Divino, há uma Em Pirenópolis, é tradição textos e músicas de duas obras de
nova apresentação na cerimônia afirmar que, durante seu ano Antônio José da Silva, o Judeu:
de abertura das cavalhadas, imperial, um bom imperador Anfitrião e Alcmena e Guerras de Alecrim
quando as crianças trançam e leva peças de teatro, o que fica e Manjerona, esta encenada pela
destrançam fitas em movimentos evidenciado pelas programações primeira vez durante a Festa do
coreográficos em torno do pau mais antigas dos festejos, em Divino de 1838. É digna de nota
de fitas. A mesma coreografia é que muitos espetáculos eram a continuidade histórica desse
repetida na terça-feira, dia do apresentados ao ar livre ou repertório, que ainda faz sucesso
encerramento dos festejos. ¢ em barracões. Há registros da entre os pirenopolinos. ¢
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 108

C E NA DO A U T O “A S PA S T ORINH A S ”,
E NCE NA DO DU RA NT E A FES T A DO DIV INO
NO THEA T RO PY RENOPOL IS , DES DE 19 2 3 .
FOTO: S A U L O C RU Z , 2 008.

Espaço para
pastorinhas
todos

O espetáculo As pastorinhas, um
auto de Natal muito popular no
Nordeste, foi levado pela primeira
C omo mencionado, muitas
festas religiosas populares
que permanecem vivas no
vez em Pirenópolis durante a Brasil, como a do Divino, são
Festa do Divino de 1923 e, a reprodução e a atualização
desde então, é incorporado das festas medievais europeias
à programação oficial. trazidas pelos colonizadores,
A peça divide-se em três atos e comportando a reinvenção local
compõe-se de 46 canções e doze de bufões e jogos equestres,
árias. Participam do elenco as filhas assim como de uma infinidade
de famílias tradicionais locais, no de danças, músicas e folguedos.
papel das 24 pastoras que integram Nessa dinâmica, convivem a
o cordão vermelho e o cordão transformação, a permanência
azul, além das demais personagens sábado do Divino, após a e a continuidade histórica dos
femininas: Fé, Esperança, Caridade, cerimônia do queima, diversos elementos constitutivos
Cigana, Anjo, Diana e Religião. na beira-rio. Participar desse dessas festas, nas quais o importante
Aos homens cabem os papéis de espetáculo é o sonho mais acalentado é rezar, comer e festar.
Simão (o velho – representado pelas meninas de Pirenópolis, que Com tantos rituais e atividades,
por Pompeu de Pina por mais de brincam de pastorinhas desde a a Festa do Divino de Pirenópolis
30 anos), Benjamin (o menino) e mais tenra infância. A encenação é um grande palco para a
Luzbel (o capeta). Uma pequena do auto durante os festejos do expressão de seus moradores,
orquestra participa do espetáculo. Divino representa também o seja ela religiosa, plástica, cênica,
Dirigido por Natália de espaço por excelência de lúdica ou musical. Como diz um
Siqueira,121 em 2008 o auto apresentação das jovens historiador local, em “Pirenópolis
foi encenado na sexta-feira e no pirenopolinas à sociedade local. ¢ quem não é estrela é artista”.122
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 109

E STA NDA RT E FEIT O DE RET A L H OS ,


E XIBIDO NA M OS T RA AS AR T E S DO DI VI NO .
FOTO: S A U L O C RU Z , 2 008.

Todos encontram espaço nas Parte desse grande acervo que


atividades de produção da festa se espalha por toda a cidade
ou no desempenho do papel de foi reunida na exposição As
cavaleiros, mascarados, foliões, artes do Divino, que integrou a
alferes e mordomos dos numerosos as artes do programação oficial da festa
rituais, ou mesmo nos personagens do Divino Espírito Santo de
das pastorinhas e das peças teatrais
divino em Pirenópolis em 2008. Promovida
que são invariavelmente levadas exposição pelo Ministério da Cultura e peIo
durante os festejos, e nas expressões Iphan, a mostra teve lugar na
dos músicos, das bandas, do coral Sala do Artista Popular do Museu
e da catira. Quem não interpreta de Folclore Edison Carneiro,
ou desempenha algum desses no Rio de Janeiro, em abril, e
papéis demonstra sua devoção na Casa de Câmara e Cadeia de
e participa da festa produzindo
quitutes e verônicas, assim como
flores, máscaras, bandeiras do
E xistem, ainda, outros modos
de participar da festa,
ou seja, outras formas de
Pirenópolis, em maio e junho.
Na exposição, foram apresentados
trabalhos de 35 artistas locais
Divino, roupas, bordados e expressão da devoção ao inspirados nos vários personagens
adereços para vestir atores e compor Divino, visíveis no trabalho e rituais que compõem a Festa
os vários cenários da festa. ¢ dos muitos artistas da cidade. do Divino Espírito Santo,
Nos mais variados suportes e expressando a grande diversidade
linguagens, eles representam de formas e linguagens que
permanentemente “a festa, seus contribuem para fazer dela
símbolos e personagens para um grandioso espetáculo. ¢
transmitir ao mundo os valores de
sua identidade cultural […]”.123
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 110

recomendações de salvaguarda
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 111

P O MB A DO DI V I N O .
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

fatores de
risco e ameaças

C om base no que a pesquisa


possibilitou constatar e
tratamos de demonstrar neste
conservados e atuantes: uma
religiosidade profunda que
encontra seu lócus privilegiado de
O s riscos à continuidade são
inerentes à vida. Algumas
ameaças às condições de produção
dossiê, a Festa do Divino Espírito expressão na devoção ao Divino; da Festa do Divino Espírito
Santo de Pirenópolis está com sua redes de sociabilidade baseadas em Santo de Pirenópolis foram
cadeia de transmissão garantida e relações de parentesco e vizinhança; observadas durante a pesquisa,
não corre risco de extinção, produção coletiva e formas mas são pontuais e constitutivas da
pelo menos em médio prazo. tradicionais de inserção na festa por celebração. São fenômenos que
A comunidade local encontra-se meio do envolvimento das famílias. encontram soluções no âmbito
envolvida com os festejos e utiliza Essas condições se entrelaçam e da festa, já que, como todas
maneiras próprias de transmitir promovem a circulação abundante as celebrações populares, a do
seus valores para as próximas de bens materiais e simbólicos Divino tem a dinâmica própria de
gerações, criando, até mesmo, durante o período dos festejos, transformação, incorporação ou
modos de festejar voltados traduzidos em formas específicas de rejeição dos fatos e acontecimentos,
para a formação do gosto pela participar da festa: acumular para sejam eles de natureza cultural,
tradição em jovens e crianças. redistribuir, rezar, comer e festar. religiosa, econômica ou social.
Além disso, os pirenopolinos A festa organiza a sociabilidade Vale citar como exemplo um
referem-se à festa como patrimônio local, já que os ciclos de preparação dos fatores que mais interferem na
local de valor inestimável, e de festejos jamais se interrompem. festa, historicamente: os conflitos
investindo conscientemente na Ou seja, ciclos de dormência e de entre os representantes da Igreja –
manutenção de suas tradições. efervescência da festa sucedem-se aos quais cabe desempenhar alguns
Os principais mecanismos de indefinidamente, gerando as noções papéis fundamentais nas cerimônias
produção e reprodução da festa, de tempo e outras representações – e os modos tradicionais de
indicados em vários momentos da sociedade local. A cidade faz produção da festa pela população
deste dossiê, mantêm-se a festa e a festa faz a cidade. ¢ local. Embora sejam constitutivos
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 112

da celebração, esses conflitos O capital simbólico do AS FOLIAS


representam riscos à continuidade imperador estrutura-se no lugar A criação da Folia do Padre
da festa como patrimônio, que ele ocupa na grande rede atesta uma série de conflitos que
mas há medidas de salvaguarda de descendência e envolvimento dinamizam as relações entre as
que podem ser implementadas familiar com os festejos. folias, que se estendem na disputa
sob a responsabilidade de todos: Os imperadores distantes dessa pelos pousos, patrocínios, doações
dos produtores, da sociedade rede são, em geral, rejeitados e, principalmente, foliões.
envolvente e do poder público pela comunidade. Cabe a ele No discurso de seus participantes
em todas as instâncias. superar essa condição, dando destaca-se a dicotomia entre folia
Abordaremos a seguir as provas de habilidade política e tradicional (a da Roça,
principais áreas de conflito capacidade de negociação, já que a mais antiga) e a do Padre, que
identificadas durante a pesquisa. é o principal responsável pela se imbui da missão de valorizar
preparação e realização dos festejos. os aspectos religiosos da folia.
O SORTEIO DO IMPERADOR De qualquer maneira, Entretanto, os registros
Nos últimos anos, a Igreja local o imperador sem capital simbólico históricos mostram que as folias
vem interferindo diretamente no não é empecilho para a realização sempre se constituíram de práticas
sorteio do imperador, fazendo até das celebrações, uma vez que toda a religiosas entrelaçadas a práticas
uma seleção prévia dos candidatos: comunidade faz a festa, de acordo profanas, o que permite enxergar
o imperador sorteado deve ser com os modos tradicionais de esse conflito por outro aspecto:
católico praticante e manter inserção das famílias nos festejos. o de sua dimensão.
compromissos pessoais com Ou seja, a dinâmica da festa tem A Folia da Roça vem tomando
os programas da Igreja (como os próprios mecanismos para lidar uma escala de massa, reunindo,
pastorais, grupos de evangelização com essas situações, impedindo em determinados pousos, até 4
etc.), o que não lhe garante que elas inviabilizem a manutenção mil pessoas, atraídas pelos bailões,
prestígio diante da comunidade. e a reprodução da celebração. movidos por som eletrônico,
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E SQU ERDA
S A ÍDA DA F OLI A DA R OÇ A.
F O TO : MA U R I CI O P I NHE IRO, 2008.

D I REI TA
C OR TEJ O DO R EI N A DO
A CO MP A N HA DO P ELA BANDA
D E CO U R O .
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

somente formas de convivência


(e incluímos aqui a Folia da
Cidade), como também as
dimensões e maneiras de regular
suas cerimônias e celebrações,
já que congregam públicos
diferentes, com modos próprios de
participar da festa. Obviamente,
na folia que vem assumindo escala de
massa, é necessária a interferência
de outras instâncias – públicas ou
não –, principalmente no que se
refere à educação dos participantes,
que só terminam ao amanhecer. alcoólicas. As cerimônias giram visando à preservação dos pousos
Nos últimos anos, a Folia da Roça em torno das rezas e a diversão e à segurança dos foliões.
chegou a perder pousos – até se resume à catira, à dança
mesmo para a Folia do Padre – por do chá e à moda de viola. O CAMPO DAS CAVALHADAS
motivos relacionados às enormes De fato, as folias disputam a Alguns pirenopolinos têm
dimensões de seus festejos, legitimidade simbólica e novos orgulho do campo das cavalhadas,
como a destruição de plantações, espaços para a expressão da “o único no mundo” construído
brigas e acidentes nas estradas. festa, sendo os conflitos parte para abrigar tais batalhas entre
Na Folia do Padre, por sua de sua dinâmica, bem como os mouros e cristãos. Entretanto,
vez, os pousos são essencialmente encaminhamentos ou soluções na maioria dos depoimentos
familiares e não se permitem encontrados. Acreditamos que colhidos durante a pesquisa, os
oficialmente as bebidas as folias seguirão buscando não entrevistados apontaram restrições,
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 114

sobretudo em relação a dois Do mesmo modo, a distribuição determinados casos, impossibilitar


aspectos. O primeiro deles é a dos camarotes – quem ocupa gestos de doação ou contribuição,
posição das arquibancadas e das tal ou qual espaço – continua tornando imprescindível a presença
áreas de camarotes, levantadas em reproduzindo os critérios do trabalho remunerado, mesmo
um nível muito superior ao do tradicionais de envolvimento de que ao lado do trabalho voluntário
gramado em que se encenam as cada família com as cavalhadas. e inserido em grandes mutirões.
cavalhadas, e a supressão do espaço Como se observou, a comunidade Mantém-se, entretanto, um
de circulação para os mascarados local tem procurado formas de aspecto primordial da festa:
pela frente e por trás dessas preservar e refazer suas relações a circulação e sacralização de
áreas. Com isso, quebraram-se festivas também no que diz respeito bens, mesmo com a perda pontual
os modos de festejar que antes ao campo das cavalhadas. de alguns de seus parâmetros
marcavam as relações entre o tradicionais. A maioria dos
público, cavaleiros e mascarados. TRABALHO VOLUNTÁRIO E participantes continua doando
O segundo está relacionado TRABALHO REMUNERADO trabalho, pois essa é uma das
às tentativas de padronizar os Outro aspecto de transformação maneiras mais tradicionais de
camarotes que são levantados da festa é de natureza histórica: um praticar a devoção ao Divino. Além
durante as cavalhadas, o que não é dos fundamentos do Império do disso, a máxima “acumular para
aceito pela comunidade. Divino Espírito Santo é o imenso redistribuir” permanece atuante
Os pirenopolinos procuram circuito de trocas, donativos e na doação e no recolhimento
manter ou reorganizar seus padrões trabalho voluntário que, em última de víveres e donativos, na
tradicionais de sociabilidade no instância, permite a realização produção coletiva dos eventos
campo, preservando o modo dos eventos e cerimônias. e celebrações e nos incontáveis
de erguer, fechar, decorar e A transformação das relações rituais que se baseiam na partilha
ocupar os camarotes e as formas sociais nas sociedades rurais, também de bênçãos e alimentos, gesto
de festejar e de se comunicar. observadas em Pirenópolis, pode, em fundamental que permeia a festa.
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E SQU ERDA
C H EG ADA DA F OLI A DA ROÇ A.
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D I REI TA
C H EG ADA DA F OLI A DA CIDAD E .
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O TURISMO DE MASSA E O Chantilly. Órgãos estaduais de visitam Pirenópolis, embora sua


TURISMO CULTURAL turismo e de cultura, bem como presença durante a Festa do Divino
A política de turismo o poder público municipal, vêm ainda seja pouco significativa. No
implementada em Pirenópolis sistematicamente colaborando entanto, para os moradores mais
desde a década de 1970 tem-se com a realização da festa por meio tradicionais da cidade,
voltado para a espetacularização da da doação de serviços, a festa “vem perdendo a graça”,
Festa do Divino, especialmente das matérias-primas, verbas deixando de ser um espaço de
cavalhadas, levadas a representar o ou patrocínios. encontro e reconhecimento para a
estado de Goiás em muitos eventos, O turismo tem assumido população local, que, antes, usufruía
como ocorreu no Ano do Brasil na importância crescente na economia plenamente dos festejos, num
França (2005), em que cavaleiros do município, pois ano a ano universo cultural próprio e sem
e mascarados se apresentaram em aumenta o número de turistas que interferências externas. A ampliação
das dimensões da festa e a presença
de forasteiros – permanentes
ou passageiros – dispersam os
referenciais tradicionais da
população, até então plenamente
inseridos em seus modos de viver a
celebração: as redes de sociabilidade
local, com seus códigos de usufruto
e convivência, seus ícones e
referências espaciais e culturais.
Diante disso, verifica-se a
necessidade de conscientizar o poder
público a abordar com cautela a
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utilização da Festa do Divino e de Folia da Roça na tarde em que saía da houve a última cerimônia do Império
seus elementos constitutivos como cidade. Seus participantes e outros – a transferência definitiva da coroa
atrativo turístico, assim como depoentes informaram que esse ao imperador de 2009 –, a prefeitura
a evitar ações que desrespeitem tipo de bloqueio já havia ocorrido impediu o trânsito de automóveis
a celebração e resultem em em anos anteriores, durante outros na rua Direita, no trecho que liga
impedimento de cerimônias em festivais de cultura e gastronomia. a matriz à casa do novo imperador,
favor do turismo ou de outra Do mesmo modo, os cortejos do garantindo a passagem do cortejo.
iniciativa de qualquer natureza. Império tiveram de se espremer entre Essa medida deveria ser adotada em
Em 2008, por exemplo, para automóveis e competir com o alto relação a todos os cortejos da festa.
a realização do Piri Jazz Festival, volume dos sons de automóveis, de Observa-se, assim,
foi montado um palco, na rua do bares e de lanchonetes. Entretanto, a importância de fomentar nas
Rosário, que bloqueou a passagem da na noite de Corpus Christi, quando instâncias públicas locais uma atitude
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E SQU ERDA
S E MP R E A CAVALO, OS AL FE RE S
C ON DUZEM AS B AN DE IRAS D O
D I VI N O , LI DER AN DO A FOL IA
DA R O ÇA .
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

D I REI TA Medidas de
A L TAR DA F OLI A DA R OÇ A.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008. salvaguarda

permanentemente comprometida
com o respeito à cultura local e
com a garantia dos espaços de
P ara enfrentar os problemas
observados, as medidas de
salvaguarda de curto, médio
– fomentar, por meio
das iniciativas públicas e
empresariais de Pirenópolis,
expressão da Festa do Divino. e longo prazos construídas e o compromisso permanente
Em conclusão, os maiores sugeridas no âmbito da pesquisa com o respeito à cultura local e
problemas identificados durante a da festa são as seguintes: com a garantia dos espaços de
pesquisa dizem respeito tanto à Festa expressão da Festa do Divino;
do Divino como às atividades – reconhecer a Festa do Divino – aprofundar estudos e
turísticas do município, que acabam Espírito Santo de Pirenópolis documentar o repertório
resultando na quebra da escala de como patrimônio cultural musical das folias – benditos,
redes de sociabilidade familiar e brasileiro, por meio do seu cantorias, repentes e catiras –,
na introdução de uma escala de registro no Livro das Celebrações; dos rituais religiosos do Império
massa. Entretanto, enquanto a
festa apresenta dinâmica própria
de resolução de conflitos e tensões
constitutivos, a solução dos problemas
de infraestrutura do município
depende de políticas públicas que,
em muitos casos, ultrapassam o âmbito
da cidade, pois se encontram na
esfera estadual ou na federal. Caberá
ao Iphan, no âmbito de sua atuação
e no limite de suas possibilidades,
participar das negociações necessárias
à solução desses problemas. ¢
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 118

e, especialmente, da orquestra – estudar e descrever a produzido durante a pesquisa


e do coral de Nossa Senhora do história da Igreja de Nossa à sociedade de Pirenópolis;
Rosário e da Banda Phoenix; Senhora do Rosário dos – criar mecanismos de
– estudar e documentar Pretos, demolida na década consulta à população, para que esta
os ofícios e os modos de fazer de 1940 – o local onde ela se manifeste a respeito dos modos
aplicados na preparação de se situava é hoje considerado de proteção e manutenção da
personagens e atividades da território afro-brasileiro pela festa que considerem adequados,
festa, considerando a história Fundação Cultural Palmares; orientando e fortalecendo a
de envolvimento familiar que – estudar a história da Banda construção de políticas de proteção
dá forma à produção desses de Couro, a Zabumba, a primeira e medidas de salvaguarda;
saberes: fundição de armas e banda da cidade, e recuperar – regulamentar as atividades
acessórios para cavalos e cavaleiros, alguns toques de percussão que turísticas no município a fim de
preparação da pólvora e dos não são mais executados; promover o turismo cultural e o
tiros de toco, levantamento do – publicar glossário da respeito às atividades da festa;
mastro do Divino, confecção Festa do Divino Espírito Santo – implantar uma escola
de flores, máscaras, bordados, de Pirenópolis, com base na superior ou conservatório
bandeiras e adereços, entre descrição dos bens culturais no de música para fortalecer a
outras habilidades e expressões; INRC, para ser distribuído às vocação musical da cidade e
– estudar e descrever a escolas, bibliotecas e centros apoiar os talentos locais;
história das irmandades de de atendimento ao turista; – reivindicar às
Nossa Senhora do Rosário dos – realizar exposições de autoridades competentes
Pretos e de São Benedito de fotografia e exibir os vídeos a implantação de políticas
Pirenópolis, que remontam produzidos para a instrução do públicas de infraestrutura,
ao período da mineração e há processo de registro, como forma saúde e educação. ¢
muito tempo desapareceram; de devolução do conhecimento
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 119

T O N I N HO DA B AB I LÔNIA,
R E I MOU R O .
F O TO : MA U R ÍCI O P I NHE IRO, 2008.
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NOTAS

1. Os giros constituem-se no 6. A propósito, em 2014, ano e Bom Jesus. Em março/abril,


trajeto a ser percorrido, a cada em que se elaborava este livro, na cidade, realizam-se os festejos
ano, pelas folias. As folias giram foi encerrada uma polêmica da Semana Santa, com missa e
no sentido anti-horário (do ação judicial que – alegando procissões (de Nossa Senhora das
nascente para o poente), sem a necessidade de combater a Dores, de Nosso Senhor dos Passos
repetir, voltar ou cruzar caminhos. crescente violência urbana (que e da Ressurreição). Em maio/
2. Atualmente existem hoje aterroriza qualquer cidade do junho, tem lugar a Festa do Divino
outras cavalhadinhas além Brasil) e possíveis crimes cometidos Espírito Santo, com suas folias,
da que se realiza na Vila pelos mascarados – desde 2010 Reinado e cavalhadas. Em junho,
Matutina, documentada obrigava a prefeitura municipal realiza-se a Folia de São João, em
durante a pesquisa de 2008. a identificar e cadastrar esses Lagolândia. Nos meses de junho
3. Ver nomes e funções dos personagens da festa do Divino e julho, ocorrem a Festa de Nossa
profissionais que participaram (para saber mais, ver adiante, em Senhora Aparecida e São Judas
da documentação na página de “Máscaras e mascarados”, a nota Tadeu, no povoado de Jaranópolis,
créditos e nos vídeos editados. 86). Também em 2014 faleceu o a Festa de Nossa Senhora de
4. Os nomes e funções dos mais notório guardião das tradições Santana, no povoado da Capela, a
profissionais que participaram da festa de Pirenópolis, Pompeu de Festa de Nossa Senhora do Rosário
dos trabalhos de pesquisa estão Pina, que também foi o imperador e São Benedito, em Lagolândia,
listados na página de créditos. do mesmo ano. A história contará a Festa do Divino Pai Eterno,
5. Ver a “Introdução” do dossiê o que vai acontecer com a festa em Lagolândia e Caxambu, a
descritivo e, nela, a descrição do sem sua presença vigilante. Festa de Santo Antônio e São
trabalho de campo. Para ter uma 7. Em janeiro, ocorre a Geraldo, a Festa do Senhor
ideia mais precisa do fôlego exigido Folia de Reis, em Radiolândia, e Bom Jesus, no povoado de
da equipe para o acompanhamento Lagolândia e nos povoados de Bom Jesus, e a Festa do Morro
da festa, ver o relatório do INRC. Capela, Goianópolis (Maiador) (Santíssima Trindade), no morro
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 121

CAVAL H A DINH A .
FOTO: S A U L O C RU Z , 2 008.

dos Pireneus (na lua cheia de 11. Veiga, F. B. A Festa do Divino


julho). Em setembro, na cidade, Espírito Santo, Goiás: polaridades
realizam-se a Festa de Nosso simbólicas em torno de um rito.
Senhor do Bonfim e a de Nossa Niterói, 2002. Dissertação
Senhora Aparecida e São Vicente (Mestrado) – Departamento
de Paula, no povoado da Placa. de Antropologia, Universidade
Em outubro, ocorre a Festa de Federal Fluminense.
São Judas Tadeu. Em dezembro, 12. MORAES FILHO,
é realizada a Festa da Nossa José Alexandre Mello. Festas e
Senhora da Imaculada Conceição. tradições populares do Brasil. São
(Informações disponíveis no site Paulo/Belo Horizonte: Edusp/
da prefeitura de Pirenópolis: Itatiaia, 1979. p. 117.
<www.pirenopolis.go.gov.br>. 13. Para Gilberto Freyre, uma
Acesso em: 16 set. 2015.) de Fiore (1132-1202), que espécie de “catolicismo lírico, com
8. MAUSS, M. Ensaio defendia a teoria dos três tempos muitas reminiscências fálicas e
sobre a dádiva. In: ____. da humanidade, com base na animistas das religiões pagãs”,
Sociologia e antropologia. São Santíssima Trindade: a Era com “os santos e anjos só faltando
Paulo: EPU/Edusp, 1974. do Pai, a Era do Filho e a Era tornar-se carne e descer
9. TORRES, J. Fastos do Espírito Santo, cujos sete dos altares nos dias de festa para se
açorianos. O Panorama: semanário de dons constituiriam a fonte de divertirem com o povo”. (Freyre,
literatura e instrução, Lisboa, 1856. todo saber e de toda ordem. Gilberto. Casa-grande & senzala.
10. De acordo com Maria (Apud: SILVA, M. M. A Festa do Rio de Janeiro: Record, 1994. p.
Fernanda Enes, a Festa de Divino: romanização, patrimônio 23. Apud: MACEDO, Valéria. Os
Pentecostes está associada às e tradição em Pirenópolis. impérios da festa: a festa do Divino
profecias do monge Joaquim Goiânia: Agepel, 2001.) no Rio de Janeiro do XIX. Sexta-
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Feira: Antropologia, Artes e Humanidades, e tradição em Pirenópolis lona pintada, onde ficava o trono
São Paulo: Pletora, n.2, abr. 1998. (1890-1988). 1.ed. Goiânia: do imperador, com a música, a
14. SILVA, M. M. Agepel, 2001. v. 1. 229 p. Corte e as principais figuras da
Op. cit., p. 24-29. 20. MACEDO, Valéria. freguesia local”, em Pirenópolis,
15. A Festa do Divino Espírito Op. cit., p. 4. tradicionalmente, o império
Santo de Paraty também teve seu 21. SAINT-HILAIRE, sempre foi instalado na residência
registro aprovado pelo Conselho Auguste de. Viagem à província de do imperador. (MARQUES, R. A
Consultivo do Patrimônio Goiás. São Paulo: Edusp, 1975; coroa do Divino Espírito Santo,
Cultural e foi inscrita no Livro das POHL, John Emanuel. Viagem ao 2005. Disponível em: <www.
Celebrações em 3 abril de 2013, interior do Brasil. São Paulo/Belo portaldodivino.com.br/artigos>.
sendo assim reconhecida como Horizonte: Edusp/Itatiaia, 1976; Acesso em: 23 mar. 2008;
patrimônio cultural do Brasil. Ferrez, Gilberto. O Brasil do Primeiro SANTOS, F. A arquitectura dos
16. ALVES, Ana Claudia Lima Reinado visto pelo botânico William John impérios do Divino Espírito Santo
e. Minotauros, capetas e outros bichos: Burchell. Rio de Janeiro: Fundação no Brasil meridional: herança
a transgressão consentida na festa Instituto Moreira Salles, 1981. cultural açoriana. Portal do Governo
do Divino de Pirenópolis de 22. JAYME, J. Esboço dos Açores. Disponível em: <www.
1960 ao tempo presente. Brasília, histórico de Pirenópolis. s. l., azores.gov.pt>. Acesso em: 31
2004. Dissertação – Programa 1971. Edição do autor; mar. 2009; MORAES FILHO,
de Pós-graduação em História, BRANDÃO, Carlos Rodrigues. José Alexandre Mello. Op. cit.)
Universidade de Brasília. O Divino, o santo e a senhora. Rio 24. MORAES FILHO,
17. VEIGA, F. B. Op. cit. de Janeiro: Funarte, 1978. José Alexandre Mello. Op.
18. MORAES FILHO, José 23. Enquanto no Rio de Janeiro cit.; CAMPOS, Eudes. Ecos
Alexandre Mello. Op. cit. “o Império era o palanque, o paulistanos da vinda da Família
19. SILVA, M.M. . A Festa do tablado, levantados por ocasião Real para o Brasil. Informativo
Divino: romanização, patrimônio da Festa, fabricados de sarrafos e Arquivo Histórico Municipal, ano 3, n.
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 123

RIO DA S A L M A S (BEIRA - RIO), C OM A


IGRE JA NOS S A S ENH ORA DO ROS Á RIO,
M ATR IZ DE PIRENÓPOL IS , A O FU NDO.
FOTO: M A U RÍ C IO PINH EIRO, 2 008.

17, mar.-abr. 2008. Disponível para crianças de até 12 anos. toda a comunidade de Pirenópolis.
em: <www.arquiamigos.org.br/ (CARVALHO, A. Pirenópolis: Também em 2014, Pompeu
info/info17/i-estudos.htm>. coletânea 1727-2007. s. l., s.d., completou 80 anos, logo após a
Acesso em: 21 set. 2015. p. 165. Edição do autor.) Festa do Divino, cujas principais
25. A única exceção foi 29. Assim se denominam cerimônias ocorreram entre 23 de
Alexandre Pompeu de Pina, os nativos de Pirenópolis. maio e 10 de junho. Faleceu no
que, em 1971, aos sete anos, 30. GONÇALVES, José mesmo ano, em 10 de dezembro.
assumiu o lugar do pai como Reginaldo dos Santos. Patrimônio, 32. No período que precede
imperador, quando este faleceu. memória e etnicidade: reinvenções a festa, a prefeitura municipal
26. BRANDÃO, Carlos da cultura açoriana. In: ____. convida os alunos das escolas
Rodrigues. Op. cit., p. 37. Antropologia dos objetos: coleções, públicas a participar da
27. Ibidem, p. 67. museus e patrimônios. Rio de contradança. Além disso, algumas
28. Brincar de cavalhada é Janeiro: MinC/Iphan, 2007. escolas desenvolvem programas
costume antigo das crianças de 31. Pompeu Cristóvão de Pina específicos para a difusão de
Pirenópolis, que, assim, nos também foi o imperador do ano algumas tradições, como a catira.
quintais e nas ruas da cidade de 2014 (enquanto se elaborava 33. Tanto é assim que casos
aprendem os rituais e ordens da este livro) e realizou uma festa esporádicos de participação de
festa. A cavalhadinha documentada memorável, apesar da saúde mulheres como “mascarados”
durante a pesquisa foi a da Vila debilitada pela diabetes, condição – especialmente a cavalo –
Matutina, a mais antiga e a primeira agravada pela perda de sua esposa, permanecem como fatos audaciosos
a ser formalizada, em 1989. Nos no início do mesmo ano. Contou e memoráveis. É o caso de Telma
últimos anos (1997), foi criada para tanto com o empenho dos Lopes Machado, esposa do rei
a cavalhadinha do centro, que sete filhos, dos netos e dos demais mouro, Toninho da Babilônia, uma
também trata de reproduzir os parentes próximos e com muita das primeiras mulheres da cidade
diversos rituais da Festa do Divino ajuda dos amigos, dos vizinhos e de a sair a cavalo como “mascarado”.
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 124

Segundo uma integrante da Turma 37. As farofadas são refeições a igreja e as casas dos reis e rainhas,
da Telma, um grupo composto coletivas oferecidas para os sem passar pela casa do imperador.
de cerca de quinze amigas, hoje cavaleiros e seus auxiliares, antes 42. Depoimento de Rafael
em dia, elas costumam sair a pé de cada ensaio das cavalhadas, Donato à equipe de pesquisa,
no segundo dia de apresentação realizados durante dez dias antes em 12 de maio de 2008.
das cavalhadas. (ALVES, Ana da festa. São duas farofadas por 43. A preparação da pólvora para
Claudia Lima e. Op. cit.) dia: às 5 horas da madrugada, a confecção das roqueiras (ou tiros
34. Existem registros de antes do ensaio do amanhecer, e de toco) é um dos ofícios essenciais
peças teatrais “levadas” durante às 8 horas da noite, após o ensaio à festa, que requer cuidado e
a festa nas quais os homens do entardecer. Essas refeições habilidade especiais. Ver informações
representavam os papéis geralmente são oferecidas por mais detalhadas adiante, no capítulo
femininos. (Jayme, J. Op. cit.) famílias amigas do imperador e/ou “As artes na festa”.
35. Como principal guardião devotas do Divino Espírito Santo. 44. Na véspera e no domingo
das tradições, Pompeu foi ouvido 38. VEIGA, F. B. de Páscoa, devotos do Divino,
especificamente a propósito desse Op. cit., p. 54. pagadores de promessas e amigos
fato durante as pesquisas, em 39. Ibidem. do imperador percorrem ruas
depoimento gravado pela equipe 40. VEIGA, F. B. A Festa do da cidade a pé com a coroa do
de documentação audiovisual. Divino Espírito Santo, Goiás: polaridades Divino, abençoando casas e
36. Segundo depoimento de simbólicas em torno de um rito. recebendo donativos para a festa
Telma Lopes Machado, durante Niterói, 2002. Dissertação – o chamado “peditório”. Em
o Festival Gastronômico de (Mestrado) – Departamento 2008, no domingo de Páscoa, o
Pirenópolis, em 2007. Nessa de Antropologia, Universidade cavaleiro cristão Chico Pedruca,
ocasião, Telma e dona Terezinha Federal Fluminense. após realizar o peditório, foi à
de Salvador, exímia doceira da 41. Outra exceção são os cortejos igreja matriz, ao meio-dia, para a
cidade, ensinaram a fazer verônicas. do Reinado, que se realizam entre cerimônia de bênção da coroa.
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 125

DA ESQ U ERDA P A RA A D IRE ITA


MA SCA RADO SE EX I B E NA PORTA
DA I G R EJ A DO B O N F I M .
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

R E I MOU R O DA S CAVAL HADAS,


A NTÔN I O MACHA DO.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.

romanização, patrimônio e
tradição em Pirenópolis. Goiânia:
Agepel, 2001.) Em Pirenópolis
não é diferente: a existência de
uma Folia do Padre é apenas um
exemplo emblemático dos conflitos
permanentes com a Igreja local.
48. AMARAL, R. Festa à brasileira.
São Paulo, 1998. Tese (Doutorado)
– Departamento de Antropologia,
Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo.
45. A cerimônia de com espetos e forquilhas na ponta 49. A descida do mastro é
levantamento do mastro, na noite e, assim, levantam o mastro. feita nos mesmos moldes de
do sábado do Divino, é uma das 46. Essa fala também faz parte seu levantamento, ou seja,
mais impressionantes da festa. da entrevista realizada em 12 pelo hábil manejo de grandes
O mastro tem 23 metros de de maio de 2008, já citada. varas, em trabalho coordenado
altura e, depois de hasteado, fica 47. Tradicionalmente, as pelo mordomo do mastro.
mais alto que as torres da igreja Festas do Divino reivindicam 50. Diferentemente de outras
matriz. Sob a coordenação do autonomia em relação à Igreja folias, como as de Reis, que
mordomo do mastro, um grupo oficial, geralmente mantendo giram à noite e pousam de dia.
de vinte homens, quase todos com ela relações de conflito 51. A Folia do Padre foi criada
da mesma família, maneja com e negociações permanentes. com a pretensão de recuperar o
habilidade e perícia grandes varas (SILVA, M. M., A Festa do Divino: caráter religioso desses rituais
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 126

DE C IM A PA RA BA IXO
V ERÔNIC A FEIT A DE M A S S A D E A ÇÚ CA R .
FOT O: M A U RÍ C IO PINH EIRO, 2 0 0 8 .

FORM A DE V ERÔNIC A ES C U L P I DA
EM PL A C A DE C H U M BO.
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

de peditório, aumentando as
rezas e proibindo o consumo de
bebidas alcoólicas e os forrós – ou
bailões – que animam as noites
nos pousos das Folias da Roça e
da Cidade. A Igreja toma para si,
e não reparte com o imperador,
os donativos angariados no giro.
Essa folia é formada exclusivamente
por homens que frequentam
a igreja, para os quais “forró
não pode ser feito na folia; a
tradição mesmo é o catira. Está
errado; o pouso virou comércio”
(depoimento gravado pela equipe
de documentação audiovisual).
52. Na dança do chá, os
foliões, “[…] de modo bastante
descontraído, saúdam a cultura
de engenho e a cachaça”.
(VEIGA, F. B. A Festa do Divino
Espírito Santo, Goiás: polaridades
simbólicas em torno de um rito.
Niterói, 2002. Dissertação
(Mestrado) – Departamento
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 127

de Antropologia, Universidade apoio, houve o envolvimento Otávio de Moraes faleceu em


Federal Fluminense.) da comunidade na realização 1994, minutos após entregar as
53. Os tropeiros são os dos pousos. A folia chegou de bandeiras da folia ao imperador,
aspirantes a foliões, geralmente volta à cidade pela rodovia que fato registrado em reportagem
quatro ou cinco jovens que liga Planalmira a Pirenópolis especial do Globo Rural sobre a
demonstram seu interesse pelas e desceu a avenida Benjamim Festa do Divino Espírito Santo
folias cuidando das montarias. Constant até o salão paroquial, em Pirenópolis. (CARVALHO,
54. A Folia do Padre saiu da e não havia muitos espectadores A. Pirenópolis: coletânea 1727-
cidade pelo bairro do Carmo, acompanhando a chegada, 2007. s. l., s. d. p. 199 – edição
seguindo para o primeiro pouso diferentemente do que se do autor.) Após o falecimento
na fazenda de Luiz Figueiredo e observou na Folia da Roça. As da viúva do senhor Otávio – que
Ireni Leite Figueiredo, na região esmolas e as bandeiras, por não deixou herdeiros diretos –,
do São João. Num percurso sua vez, foram entregues na alguns sobrinhos tentaram manter
circular de leste para o oeste, igreja, onde o festeiro ofereceu a tradição do junta da folia na
o giro seguiu para os povoados um lanche para os foliões. casa da rua Direita, o que se
de Bom Jesus e Santo Antônio, 55. “[…] Seu Otávio Francisco realizou até o ano 2010, quando
passando pelas comunidades de de Moraes, nascido em 1922, foi feito o registro da Festa do
Santa Mônica, São Benedito, […] durante mais de 60 anos, Divino. Desde então, o junta
Castelo e Retiro, região do dedicou sua vida à Folia do Divino tem ocorrido em locais variados
Catingueiro e Comunidade de Pirenópolis. Nela exerceu as da cidade, perdendo-se a visão
Barbosa, e teve seu último pouso mais diversas funções, de tropeiro do longo desfile de cavaleiros
nas comunidades de Fogaça, a músico, depois embaixador, foliões que se descortinava
Sardinha, Mar e Guerra e até chegar a alferes, o posto mais desde a rua do Rosário.
Jenipapo. Nos povoados, apesar alto na hierarquia do grupo.” 56. A Folia da Roça percorreu
da presença de uma casa de (VEIGA, F. B. Op. cit., p. 33.) o seguinte trajeto em 2008: o giro
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 128

A G R ADECI MEN TO S DE M E SA NO JANTAR DE


E NT REG A DA F OLI A N A CASA D O IM PE RADOR.
F O T O : SAU LO CRU Z, 20 08.

acesso entre as várias fazendas e


povoados. Na chegada, os foliões
percorreram as principais ruas da
cidade, perfazendo uma trajetória
circular. A jornada terminou na
casa do imperador – ou festeiro –,
quando os alferes lhe entregaram
os donativos e as bandeiras. Em
retribuição, o imperador ofereceu
um grande jantar aos foliões.
57. Após o junta na casa de
Mané Chato, a Folia da Rua
seguiu para o primeiro pouso,
saiu no dia 24 de abril, pelo trevo Os pousos seguintes foram ainda no bairro do Bonfim. Os
de Goianésia em direção à Fazenda realizados na Fazenda Pulador, pousos seguintes foram no bairro
Seringueira, lugar do primeiro no povoado de Santo Antônio, na do Carmo, na rua do Carmo e
pouso; o segundo pouso foi realizado Fazenda Engenho e na Fazenda na Vila do Couro, seguidos por
na Fazenda Raizama, o ponto mais Sabão. A chegada ao último dois pousos no Alto da Lapa. Para
distante do circuito. Partindo em pouso, na Fazenda Caiçara de o sexto pouso, o giro ficou um
direção ao próximo pouso – e já Cima, ocorreu no sábado, dia pouco maior, pois os foliões se
desenhando um círculo –, o giro 3 de maio. O grupo voltou pela deslocaram do Alto da Lapa para
seguiu para a Fazenda Santa Rita, estrada que liga Pirenópolis a o Alto do Bonfim, onde também
pouso que reúne os descendentes do Planalmira, realizando uma se situavam os últimos pousos,
senhor Sebastião de Arruda, antigo grande volta em torno da cidade, organizados para que não se
organizador dessa folia. percorrendo trilhas e estradas de cruzassem os caminhos já trilhados.
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 129

DE C IM A PA RA BA IXO
PREPA RO DE C OM IDA EM P O USO
DE FOL IA .
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

M A C A RRÃ O A S ER S ERV IDO E M P O USO


DE FOL IA DA ROÇ A .
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

58. Para a realização dessas 62. No período das folias, a


melhorias, muitos pousos recebem prefeitura municipal de Pirenópolis
a ajuda da prefeitura municipal. disponibiliza ônibus que fazem o
59. Na Folia do Padre, trajeto entre a cidade e os pousos.
o presente foi uma garrafa 63. Durante entrevista realizada
de refrigerante. pelas equipes de pesquisa e de
60. Na Folia do Padre, além documentação audiovisual,
das bandeiras, os participantes ficou registrada a pergunta do
carregam uma imagem do imperador: “Por que a Folia
Espírito Santo durante todo o do Padre entrega os donativos
giro. Essa imagem, que pertence à Igreja? Não é função da
à igreja, também é colocada no folia recolher donativos para o
altar, com as bandeiras. Outra imperador?” (bilhete manuscrito
exceção é a missa, que em 2008 pelo imperador, entregue a Luiz
foi realizada no último pouso. Pereira da Silva, ministro da Igreja
61. Depoimento de dono da e coordenador da Folia do Padre).
Fazenda Seringueira, gravado 64. MEYER, M. De Carlos
pela equipe de documentação Magno e outras histórias: cristãos e
audiovisual durante a pesquisa. mouros no Brasil. Natal: Ed.
A fazenda dispõe de infraestrutura UFRN/CCHLA, 1995. p. 15.
para receber os foliões, pois há dez 65. CASCUDO, Luís da
anos oferece pouso à Folia da Roça. Câmara. Mouros, franceses e judeus.
Os empregados da fazenda São Paulo: Perspectiva, 1984. p.
são treinados para ajudar na 115. PEREIRA, N. S.; JARDIM,
preparação do pouso. M. P. S. V.: Ao invés de - Uma
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 130

M ASC AR A DOS S E DIV ERT EM


NO RANC H Ã O.
FOTO: S A U L O C RU Z , 2 008.

festa religiosa brasileira - festa do pela equipe de documentação


Divino em Goiás e Pirenópolis. audiovisual da festa do
São Paulo: Secretaria da Cultura, Divino em 2008.
Ciência e Tecnologia, 1978, p. 82. 71. O terço dos cavaleiros é
66. PEREIRA, N. S.; JARDIM, uma iniciativa recente na festa.
M.P.S. V. Op. cit.,p. 82. Segundo seus participantes,
67. Consultar, entre outros: ele foi acrescentado a festa
ALVES, Ana Claudia Lima e. As artes para “unir os cavaleiros e
do Divino de Pirenópolis – Goiás. Rio de rezar para que as cavalhadas
Janeiro: Iphan, 2008. (Catálogo de se realizem a bom termo”.
exposição – Sala do Artista Popular, 72. Conforme entrevista dada
n. 142); MAIA, C. E. S. A tradição por Adail Luís Cardoso, já citada.
cavalheiresca em Pirenópolis. 73. Conforme depoimento
In: CHAUL, N. F.; RIBEIRO, de Tales Jayme, em farofada
P. R. (Orgs.). Goiás: identidade, que ofereceu aos cavaleiros em
paisagem e tradição. Goiânia: 2008, registrado pela equipe de
Ed. UCG, 2001. p. 143-157. documentação audiovisual.
68. JAYME, J. Esboço 74. As demais músicas cantadas
histórico de Pirenópolis. s. l., pelos cavaleiros em diversos
1971. Edição do autor. momentos dos festejos podem
69.Conforme entrevista ser encontradas em: PEREIRA,
concedida por Adail Luís Cardoso, N. Cavalhadas no Brasil: de cortejo
rei cristão, à equipe de pesquisa. a cavalo a lutas de mouros e
70. Conforme depoimento cristãos. São Paulo: Escola do
de Pompeu de Pina, gravado Folclore, 1983. p. 140-157.
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 131

75. Conforme depoimento 77. Tonico do Padre (1834- 80. Depoimentos de


de Toninho da Babilônia, 1903), pintor, compositor e autor Inácio Rosicler de Pina,
rei mouro das cavalhadas, à do famoso Hino do Divino, deixou embaixador mouro, e de
equipe de pesquisa do INRC, um enorme legado de missas, peças Toninho da Babilônia, rei
em 23 de março de 2008. sacras, quadrilhas e obras profanas. mouro das cavalhadas, gravados
Embora as cavalhadas estejam Sobre o assunto, consultar, entre pela equipe de pesquisa e
sempre associadas aos festejos outros: PINA FILHO, B. W. documentação audiovisual.
e à devoção ao Divino Espírito Antonio da Costa Nascimento 81. Conforme entrevista
Santo, como entendem os (Tonico do Padre): um músico no concedida por Adail Luís
cavaleiros e os pirenopolinos sertão brasileiro. Revista Goiana de Cardoso, rei cristão, durante
em geral, não deixam de existir Artes, Goiânia: Cegraf/UFG, 1986. as pesquisas em 2008.
iniciativas voltadas para sua 78. Depoimento prestado à 82. Depoimento de
promoção e apresentação isolada. equipe de pesquisa durante o Márcio Estácio de Sá.
Em 2005, por exemplo, os INRC da Festa do Divino. 83. Nome dado
cavaleiros viajaram à Europa 79. Campo das cavalhadas, pelos pirenopolinos aos
para encenar as cavalhadas em cavalhódromo ou simplesmente guizos pendurados no
Chantilly, representando a campo: assim os pirenopolinos peitoral dos cavalos.
cultura goiana na programação se referem ao estádio de múltiplo 84. Como sabe e se conforma
do Ano do Brasil na França. uso Campo das Cavalhadas, obra toda gente de Pirenópolis, só
76. No ano de 2008, o realizada pelo governo estadual dando o dinheiro fica-se livre
batismo foi realizado por de Goiás, anunciada em 2003 do assédio dos mascarados.
Eduardo Tadeu do Nascimento e inaugurada em 2006. A obra, 85. Composto por Tião
– o Dudu –, coroinha e zelador entretanto, permanecia inacabada Carreiro, Piraci e Lourival
da Igreja de Nossa Senhora do em 2014, quando se preparava Santos, “O rio de Piracicaba” é
Rosário, matriz de Pirenópolis. a publicação deste livro. considerado, em Pirenópolis, o
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 132

GRUPO DE M A S C A RA DOS S E PREPA RA ,


E SC OND IDO PEL OS M U ROS DA C A S A ,
PARA MA NT ER O A NONIM A T O.
FOTO: JOÃ O GU IL H ERM E C U RA DO, 2 008.

hino dos mascarados. A canção foi


gravada pela primeira vez por Tião
Carreiro e Pardinho no LP A força
do perdão, lançado em 1970 pela
gravadora Chantecler-Continental.
86. As tentativas de controle
dos mascarados pelo poder
público estão registradas desde
as origens da festa, no século
XIX, em trabalhos publicados
por historiadores e estudiosos
da cultura popular. Entre outros
autores citados na bibliografia,
as folcloristas Pereira e Jardim
informam que “em 1975 o juiz
proibiu sua [dos mascarados]
circulação depois das dezoito
horas” (op. cit., p. 66).
A pesquisa realizada em 2008
também levantou a legislação
municipal que, desde 1992,
determinava que os mascarados
se recolhessem a partir das 19
horas. Durante a elaboração
desta publicação, o Escritório
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 133

Técnico do Iphan em Pirenópolis No entanto, o processo só foi pela equipe de documentação


informou sobre a ação judicial que concluído em junho de 2014, audiovisual em 2008.
determinou o “emplacamento” por ocasião da Festa do Divino, 88. Depoimento de Antônio
dos mascarados – cadastramento com a emissão de um comunicado Zanini Neto à equipe de pesquisa,
e identificação de cada um por conjunto do juiz de direito da em 11 de maio de 2008.
meio de números –, ato que teve comarca de Pirenópolis, do 89. Depoimento de Lúcio
ampla divulgação e motivou grande comandante do 37o Batalhão da Flávio Abranches (Lucinho),
reação da sociedade local em 2011, Polícia Militar de Pirenópolis e artesão de máscaras, na
um ano depois do registro e do do representante da Associação documentação audiovisual da Festa
reconhecimento da Festa do Divino para Preservação dos Mascarados do Divino gravada em 2008.
Espírito Santo de Pirenópolis como de Pirenópolis, senhor Eudes 90. O caixão foi feito para as
Patrimônio Cultural do Brasil. Para Pina Forzani, que trouxe ao gravações do filme O tronco, de
se contrapor à ação civil pública conhecimento do Iphan toda João Batista de Andrade (1999),
que obrigava a prefeitura municipal a documentação citada. Nesse e posteriormente doado ao
a cadastrar os mascarados, a comunicado são divulgadas as Museu da Família Pompeu. Para
sociedade pirenopolina instituiu normas a ser observadas pelos obter mais informações sobre o
a Associação para Preservação mascarados em relação aos horários assunto, consultar, entre outros:
dos Mascarados de Pirenópolis permitidos para o uso de máscaras ALVES, Ana Claudia Lima e.
e mobilizou o Instituto Cultural e utilização de montarias e ao bom Minotauros, capetas e outros bichos: a
Cavalhadas de Pirenópolis, criado tratamento dos cavalos, além da transgressão consentida na festa
em 2004. Por fim, a ação rescisória proibição de atrasar ou perturbar as do Divino de Pirenópolis de
do cadastramento foi deferida cavalhadas, sob as penas da lei. 1960 ao tempo presente. Brasília,
em maio de 2012, cancelando a 87. Depoimentos de Lucio 2004. Dissertação – Programa
obrigação municipal de identificar Flávio Abranches (Lucinho) de Pós-graduação em História,
e cadastrar os mascarados. e de Edilson Lobo, gravados Universidade de Brasília.
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 134

91. A erva-de-são-caetano, ou sempre existiram, constituem


melãozinho (Momordica charantia), um recurso antigo e universal
é uma trepadeira muito comum, de improviso para brincar o
encontrada em cercas e terrenos carnaval ou qualquer outra festa
baldios das áreas urbanas, como à fantasia. Já as máscaras de
tantas outras plantas silvestres que borracha vêm sendo combatidas
se propagam em Pirenópolis. pelos organizadores da festa,
92. As máscaras de papel são por meio de concursos e outras
produzidas por artesãos locais medidas, desde o início da década
não só no período que antecede de 1990. Concursos também são
a Festa do Divino, mas durante realizados na cavalhadinha.
todo o ano, uma vez que são 93. Em registros orais e
comercializadas nas lojas de fotográficos, observa-se que,
artesanato da cidade ou mesmo tradicionalmente, a máscara de 95. Consultar, entre outros:
na Piretur, associação de artesãos onça é a mais usada. A máscara de SAINT-HILAIRE, Auguste de.
mantida pela prefeitura. São feitas boi foi transformada nas últimas Viagem à província de Goiás. São
de papel e grude, colados, camada décadas em um dos ícones da festa Paulo: Edusp, 1975; POHL,
sobre camada, em um molde do Divino de Pirenópolis, como John Emanuel. Viagem ao interior do
de cabeça de cimento, e não de também em símbolo de identidade Brasil. São Paulo/Belo Horizonte:
papel machê, como geralmente da cultura goiana, por causa da Edusp/Itatiaia, 1976.
se divulga. As máscaras de pano, representação e da identificação da 96. Consultar, entre outros:
feitas em sacos ou fronhas de sociedade local e regional com as CAMPOS, Eudes. Ecos paulistanos
tecido, com caveiras pintadas ou atividades ligadas ao meio rural. da vinda da Família Real para o
com olhos e bocas recortados e 94. ALVES, Ana Claudia Brasil. Informativo Arquivo Histórico
rabiscados, são toleradas porque Lima e. Op. cit., p. 153. Municipal, ano 3, n. 17, mar.-abr.
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 135

BANDEIRA S DO REINA DO DE
NOSSA S ENH ORA DO ROS Á RIO DOS
PRE T OS E DE S Ã O BENEDIT O.
FOTO: S A U L O C RU Z , 2 008.

97. Muitos pirenopolinos 2006. Dissertação (Mestrado) –


informaram que, antigamente, Universidade Federal de Goiás.)
cada exército das cavalhadas – 99. LÔBO, Tereza
mouro e cristão – tinha seus Caroline. Op. cit.
espiões que se dedicavam a obter 100. Símbolos do poder
informações sobre o castelo associados à representação de
oponente. Consultar, entre cortes de negros, as coroas
outros: ALVES, Ana Claudia são usadas somente durante
Lima e. Op. cit., p. 132. os cortejos pelas ruas, na
98. Segundo Tereza Caroline segunda e na terça-feira. Desse
Lôbo, estudiosa do Reinado, as modo, reis e juízes do Reinado
irmandades de Nossa Senhora manifestam sua autoridade sem
do Rosário dos Pretos e de São que haja, entretanto, um ritual
2008. Disponível em: <www. Benedito – a primeira fundada de coroação. Diferentemente
arquiamigos.org.br/info/info17/i- em meados do século XVII e a da Festa do Divino, na qual
estudos.htm>. Acesso em: 21 set. segunda, nos primeiros anos do a coroa fica entronizada e é
2015; MACEDO, Valéria. Os século XIX – permaneceram ativas alvo de veneração, as coroas
impérios da festa: a festa do Divino até as últimas décadas do século do Reinado e do Juizado não
no Rio de Janeiro do XIX. Sexta- XX, organizando e participando ocupam lugar de destaque
Feira: Antropologia, Artes e Humanidades, do Reinado. (LÔBO, Tereza nem são objeto de visitação de
São Paulo: Pletora, n. 2, abr. Caroline. A singularidade de um devotos na casa dos festeiros.
1998; MORAES FILHO, José lugar festivo: o Reinado de Nossa 101. Vinhos e licores são
Alexandre Mello. Festas e tradições Senhora do Rosário dos Pretos elementos tradicionais das
populares do Brasil. São Paulo/Belo e o Juizado de São Benedito em festas de Reinado, assim como
Horizonte: Edusp/Itatiaia, 1979. Pirenópolis – Goiás. Goiânia, o pastelinho, o queijo-leite e
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 136

doces de frutas cristalizadas, de Nossa Senhora do Rosário era candidato a vereador na época
responsáveis pelo colorido dos Pretos (hoje demolida), da festa (e acabou por se eleger
da mesa. Outros itens foram em forma de estrela de Davi. em outubro daquele ano).
acrescentados à tradição, como 103. Foram juízes Manoel Inácio 106. Antes da distribuição de
chás, sucos, refrigerantes, D’Abadia Aquino de Sá Filho (Ely doces na porta de sua casa, dona
cerveja e quitutes, entre os quais de Sá) e sua esposa, dona Neusa Laurita, visivelmente emocionada,
broa, pipoca (peta), biscoito, Yoko Dehira Aquino de Sá. declarou que 31 anos antes havia
roscas, canudinho, mané-pelado 104. A rainha de 2008, dona pedido a Nossa Senhora que “desse
(espécie de bolo da mandioca), Laurita da Veiga, e o rei, Antônio vida” a sua irmã: “O médico disse
bolos e doces em pedaços. Os Parrila dos Santos, já assumiram que minha irmã não tinha cura.
mais comuns atualmente são os esse cargo do Reinado em anos Se ela escapasse era por milagre.
salgadinhos, como empadinha anteriores, para pagar promessa Hoje ela já está ajudando a criar
de galinha, quibe, pastel, rissole ou, simplesmente, para não deixar os netos e tem até bisnetos […]
e pão-pereira, uma tradicional de cumprir a tradição da festa. Então, pra mim, é uma sensação
quitanda muito apreciada 105. A missa e os festejos do muito maravilhosa dizer que
em Pirenópolis (pãozinho de Reinado de 2008 foram muito Nossa Senhora me deu esse grande
trigo recheado de carne). concorridos na terça-feira, dia milagre” (depoimento gravado pela
102. No passado, no dia de do juizado de São Benedito, não equipe de pesquisa e documentação
Corpus Christi, os reis e juízes do apenas porque não houve ataque no dia do Reinado de Nossa Senhora
Reinado costumavam acender cada de abelhas, mas também porque dos Pretos, 12 de maio de 2008).
qual um cruzeiro em sua porta havia banda de música e notícias 107. Depoimento gravado
para indicar o local de realização sobre fartura de doces, pois o pela equipe de pesquisa e
dos festejos do ano seguinte. festeiro, juiz Manoel Inácio de documentação no dia do
Um grande cruzeiro também Sá, antigo devoto do Reinado e de juizado de São Benedito,
era erguido na porta da Igreja tradicional família pirenopolina, 13 de maio de 2008.
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 137

A IL IRA M , IM PERA DORZ INH O D E 2 0 0 8 E


A U GU S T O, IM PERA DORZ IN H O D E 2 0 0 9 ,
A PÓS O S ORT EIO NA PRA Ç A DA SA N T A .
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

108. BRANDÃO, rituais da Festa do Divino para 113. A entrega da coroa ao novo
Carlos Rodrigues. O Divino, crianças de até 12 anos. imperadorzinho costuma acontecer
o santo e a senhora. Rio de 111. SILVA, F. A. Já faz dez dias após o encerramento
Janeiro: Funarte, 1978. parte da alma da criança: as dos festejos, sem formalidades.
109. “Porque foi sempre Cavalhadinhas de Pirenópolis: 114. “Muito tiro, muito barulho,
costume dos meninos de reinventando uma tradição. In: muita fartura e muita alegria, assim
Pirenópolis brincarem de Anais do XI Congresso Brasileiro de é a nossa Festa do Espírito Santo”,
cavalhadinha, depois das Folclore. Goiânia: Kelps/Unesco/ como Pompeu de Pina a definiu.
cavalhadonas, né, depois da festa CNF-CGF, 2004. p. 321-335. 115. Preparar a pólvora
maior. No caso aqui da Vila, 112. Ailiram Peixoto Alexandrino usada nos tradicionais tiros de
os meninos tiveram um apoio Gomes Pompeu de Pina foi o toco é um antigo ofício ligado
maior da comunidade” (Itamar imperadorzinho de 2008. às tradições locais. Em 2008,
Gonçalves, em depoimento
à equipe de documentação
audiovisual, 2008).
110. A cavalhadinha do centro
foi criada em 1997, reunindo
crianças e famílias residentes
nas ruas do entorno do campo
das cavalhadas. (CARVALHO,
A. Pirenópolis: coletânea 1727-
2007. s. l., s. d. p. 165.)
Como na cavalhadinha da Vila
Matutina, na do centro também
se trata de reproduzir os diversos
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 138

a pólvora era produzida por Pompêo de Pina, que também e a senhora. Rio de Janeiro:
Chico Pedruca e André Abadia foi maestro da Banda Phoenix. Funarte, 1978.
de Fontes, respectivamente 117. Joaquim Propício de Pina 120. CASCUDO, Luís da
cavaleiro cristão e cavaleiro (1867-1943), o mestre Propício, Câmara. 2008. p. 149.
mouro das cavalhadas. A foi imperador do Divino em 121. Durante décadas, esse auto
prefeitura se encarrega da compra 1923 e prefeito da então Meya foi dirigido pelo casal de violinistas
dos ingredientes, que exige Ponte em 1927. Além disso, Ita e Alaor de Siqueira, grandes
autorização especial do Exército. dirigiu o Theatro Pyrenopolis incentivadores da cultura local,
Todo o processo é altamente e sempre foi muito atuante já mencionados na nota 116.
inflamável e, por isso, a produção durante as Festas do Divino. 122. Declaração atribuída
da pólvora é realizada em lugar Até 1935, a Banda Phoenix a João Guilherme Curado.
afastado da cidade. Anualmente, dividia com sua rival, a Banda 123. ALVES, Ana Claudia
são produzidos mais de mil Euterpe, a participação nos Lima e. As artes do Divino de Pirenópolis
quilogramas de pólvora para ser festejos, que era decidida pelo – Goiás. Rio de Janeiro: Iphan,
utilizado na Festa do Divino e em imperador de cada ano. 2008. (Catálogo de exposição –
outras festividades do município. 118. Consultar, entre outros: Sala do Artista Popular, n. 142).
116. Até poucos anos atrás, a MENDONÇA, B. A Música em Goiás.
orquestra era composta de dois Goiânia: Editora da UFG, 1981;
violinos, tocados por dona Ita PINA FILHO, B. W. Antonio
(já falecida) e pelo senhor Alaor da Costa Nascimento (Tonico
de Siqueira, um casal de músicos do Padre): um músico no sertão
e compositores tradicionais de brasileiro. Revista Goiana de Artes,
que os moradores da cidade Goiânia: Cegraf/UFG, 1986.
muito se orgulham. O coral era 119. BRANDÃO, Carlos
dirigido por Alexandre Luiz Rodrigues. O Divino, o santo
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 139

E STA N DA RTE DE CLÁ UD IA AZ E RE DO


C OM F LO RES DE CREPOM D E
MA RI A DU A RTE.
F O TO : SAU LO CRU Z, 2 008.
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 140

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dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 143

Anexo 1
pessoas
entrevistadas
durante a
pesquisa

(POR ORDEM ALFABÉTICA) – Cirilo Rodrigues Vidal – Inácio Rosicler de Pina –


(Chico Pedruca) – cavaleiro embaixador mouro das
– Adail Luiz Cardoso – rei cristão das cavalhadas/preparador cavalhadas
cristão das cavalhadas
de pólvora/coroa do Divino
– Adão Rosa Pires – – Itamar Gonçalves de Bastos
imperador em 2008 – Divina Marques – funcionário da Secretaria
Ferreira – participante da de Cultura da Prefeitura
– Alaor Siqueira – integrante cavalhadinha/pouso de folia Municipal/camarotes/cavalhadas/
do coral Nossa Senhora do
– Eduardo Tadeu do Nascimento cavalhadinha/congada
Rosário/Pastorinhas
(Dudu) – participante da novena
– Alexandre Pompêo de Pina e das missas do Divino/sorteio do – João Luiz Pompeu de
– maestro da Banda Phoenix Pina – participante das
novo imperador/cavalhadinha
cavalhadas/cavalhadinha/
– André Abadias de Fontes – Esmeralda Arlinda Ferreira preparador de máscaras
– preparador de pólvora da Costa – preparadora de
máscaras e flores de papel – Joel Alves de Oliveira
– Antônio Roberto Machado (padre Joel) – participante da
(Toninho da Babilônia) – rei – Geraldo Herculano novena e das missas na matriz/
mouro das cavalhadas Oliveira – organizador do
sorteio do imperador
Reinado e do juizado
– Benedita D’Abadia Lopes
Siqueira (dona Ita) – integrante – Gleidys Morgana Gonçalves – José Divino Pereira (seu
do coral Nossa Senhora do Jaime – participante do Zuca) – músico das folias/
Rosário/Pastorinhas Reinado da cavalhadinha terço dos cavaleiros

– Célio Antônio Pompeu de – Gleyci Patrícia Rosa Pires – – José Inácio Nascimento
Pina (Bala) – participante da participante do Império como (Zé Inácio Santeiro) – artista
cavalhadinha/Banda do Reinado cuidador do andor e dos altares plástico/Exposição Artes do Divino
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 144

M A S C A RA DINH O NO C A M PINH O
DA C A V A L H A DINH A .
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

– José Maria de Oliveira – Maria Adélia Alves de Siqueira


– cruzeiro do Reinado – participante da cavalhadinha

– Laurita Vitoriano da Veiga – Maria Delma de Melo –


– participante do Reinado/ preparadora de máscaras, arte de
rainha de Nossa Senhora prata/Exposição Artes do Divino
do Rosário dos Pretos – Maria José Rosa Pires –
participante do Império
– Lúcio Flávio Abrantes
(Lucinho) – preparador de – Marta Eniza de Oliveira Lôbo –
máscaras/Exposição Artes do Divino artista/Exposição Artes do Divino

– Luís Carlos Basílio de – Natália de Siqueira –


Oliveira (Natureza) – funcionário participante do auto
da prefeitura municipal/ As pastorinhas/Operetas
locutor das cavalhadas – Rafael Samuel Nominato
– Oscar Vasconcelos de Souza – participante da bênção da
Filho (padre Oscar) – participante bandeira do Divino/mordomo
– Luiz Pereira da Silva
– participante da Folia do da novena e das missas na matriz/ da bandeira do Divino
Padre/Império do Divino sorteio do novo imperador
– Rogério Abreu Figueiredo –
– Pompeu Cristóvão de Pina prefeito municipal/participante
– Lunildes Oliveira Abreu – – participante das Alvoradas/
artista/Exposição Artes do Divino das farofadas/folias/cavalhadas
Pastorinhas/Banda Phoenix/
– Manoel Inácio D’Abadia cavalhadas/congo/congada/ – Ronaldo Rodrigues da Cunha –
Aquino de Sá Filho (Eli de Sá) contradança/irmandade do integrante do campo das cavalhadas
– participante do juizado de São Santíssimo Sacramento/novena/ – Roque Alves de Fontes –
Benedito (Reinado)/Império Reinado/terço dos cavaleiros alferes da Folia da Roça
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 145

CORT EJO DO REIS E RA INH A S .


FOTO: C RIS T OPH E S C IA NNI, 2 008.

– Sebastião da Veiga – Terezinha de Arruda Camargo – Vanderlei da Costa (Delei)


(Tião Russo) – funcionário da (dona Terezinha de Salvador) – – armeiro/cavalhadas
prefeitura municipal/camarotes/ preparadora de verônicas/folias/
– Vicente Sebastião de Pina
levantamento do mastro cozinha da casa do imperador/ (Vicente Melani) – integrante
cruzeiro de tronco de bananeira/ da Banda de Couro
– Sebastião Profeta do vestimentas de mascarados
Amaral (Sebastião de Chica) – Victor Bruno Gomes de
– integrante da irmandade – Uirá Ayer – participante das Araujo (Vitão ou Vitinho)
de Nossa Senhora do folias/Camarotes – participante do Império/
Rosário/Irmandade de São cavalhadas/Reinado/cavalhadinha
Benedito/Reinado/Tapuia – Valdo Lúcio Cardozo – integrante
do coral Nossa Senhora do Rosário/ – Wilno Luiz Pompeu de
– Selma D’Abadia de Oliveira Repique de sinos/Império Pina – ex-imperador
– participante da Novena/
sorteio do imperador

– Sérgio Pompeu de Pina


(seu Cafu) – integrante da
Banda Phoenix

– Suelene Aquino Afonso


Gonçalves – participante
da cavalhadinha

– Telma Lopes Machado –


participante das cavalhadas/
mascarados/culinária da festa
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 146

1. RELATÓRIO encontra-se listado às fls. 157/158.


O presente pedido de registro A instrução incluiu audiência da
da Festa do Divino Espírito comunidade. A 14a SR/IPHAN
Santo de Pirenópolis, GO, como esteve sempre presente, assim
Anexo 2 patrimônio cultural brasileiro foi como a supervisão do DPI/IPHAN
encaminhado pelos Imperadores (com o acompanhamento da
parecer do do Divino de 1970-2009 Câmara do Patrimônio Material).
relator (série quase completa), pelo O bem elaborado Parecer
Instituto Cultural “Cavalhadas Técnico de Ana Cláudia Lima e
de Pirenópolis”, pelo Prefeito Alves, de 27.10.2009 (fls. 154 a
Municipal e pela Irmandade do 172) conclui pela procedência do
Santíssimo Sacramento, com apoio pedido. Parecer do Procurador
da AGEPEL – Agência Goiana de Chefe da PF/IPHAN, Antônio
Processo: Cultura “Pedro Ludovico” e da Fernando Leal Neri (fls. 178 a
01450.000715/2010-15 Câmara Municipal de Pirenópolis. 194), datado de 12.03.2010,
Assunto: A instrução técnica, iniciada em reconhece a legalidade do pedido
Registro da Festa do Divino Espírito 2007, comportou a execução e a observância de todas as
Santo de Pirenópolis – Goiás de uma pesquisa de campo normas processuais pertinentes.
(2008) e bibliográfica, sob Está assim o processo em
responsabilidade de Restarq condições de ser submetido
– Arquitetura, Restauração e ao Conselho Consultivo do
Arte Ltda., coordenada pela Patrimônio Cultural, para decisão.
antropóloga Marina A. M. de É o que cumpria relatar.
Macedo Soares e que resultou
num Dossiê Descritivo de 125 páginas, 2. ANÁLISE DE MÉRITO
com texto competente, boa DO PEDIDO DE REGISTRO
ilustração e bibliografia adequada.
A documentação audiovisual foi A) FESTAS: RELEVÂNCIA
realizada por Set Filmagens. HISTÓRICO-CULTURAL
O material que instruiu o
processo (relatórios do INRC, Faz pouco mais de duas
DVDs de fotos digitalizadas, décadas, apenas, que o tema das
programas das festas entre festas passou a despertar a atenção
1991-2007, cartazes, vídeos, como objeto cultural de pesquisa
autorizações do uso de imagem, histórica ou sociológica. A meu
um livro sobre a Festa, um catálogo ver, duas razões explicam essa
de exposição com texto de síntese marginalização. Antes de mais
e duas dissertações de Mestrado) nada, contavam os compromissos
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 147

assumidos pelos pesquisadores com “festa redescoberta”, trata-a em pagamento de promessa


macroquestões, como produção, como “maravilhoso campo atendida. É plausível que elas
organização do trabalho, estruturas de observação” de atitudes e tenham chegado a nossas terras
e relações sociais, que pareciam comportamentos coletivos, reflexos nos primórdios da colonização,
carecer de vinculação com um inconscientes das sensibilidades embora a atestação mais antiga se
tema à primeira vista incapaz de e expressões do imaginário, das encontre na Bahia, 1765,
motivar ultrapassagem do nível das ideologias e identidades. pela intermediação de açorianos.
abordagens folclóricas. Contudo, “Com efeito, as festas são eventos A difusão do culto ao Espírito
as sucessivas contribuições especiais criados por toda uma Santo e respectiva festa pelo
da antropologia à história e à comunidade de forma simbólica território colonial foi muito
sociologia mudaram tal panorama e e ativa, para exibir a vida essencial rápida e extensa e, além disso, com
demonstraram que a festa é um lugar dessa comunidade – de um só notável manutenção de elementos
estratégico para o conhecimento golpe destilação e tipificação de comuns e muita repercussão.
de toda uma sociedade. Por sua existência coletiva”. Estas são No Rio de Janeiro, até meados
outro lado, os cientistas sociais, as expressões da antropóloga Edith do século XIX, nenhuma festa
vivendo em sociedades cada vez Turner (Feasts and Festivals, a superava em importância e
mais fragmentadas e conflituosas, in: David Levinson & Melvin brilho. Presença significativa
olhavam com desconfiança para Ember, eds., Encyclopedia of ela também teve (e ainda em
o que parecia essencialmente Cultural Anthropology. New muitos casos continua a ter) em
um instrumento de integração e York, Holt, 1996, v.2: p. 484); São Paulo, Rio Grande do Sul,
coesão social. A percepção de que, ela vai além com uma metáfora Santa Catarina, Minas Gerais,
na festa, integração e coesão não sugestiva, ao identificar na Pará, Amapá, Rondônia, Piauí,
significam forçosamente superação festa um ato primordial de Maranhão, Tocantins, Mato
dos conflitos e segmentações, reflexividade, pelo qual a sociedade Grosso e Goiás – tendo chegado
abriu novos horizontes. projeta para fora um braço por ao Centro-Oeste quando já se
Estas considerações não são assim dizer dotado de um olho espalhara por todo o país.
gratuitas, pois explicam por que, e se contempla a si própria. Cumpre notar que tal
depois do Modernismo, presença e seu peso vêm
as políticas culturais não trataram B) A FESTA DO DIVINO/A suscitando uma leva de bons
o fenômeno como dotado de FESTA DE PIRENÓPOLIS trabalhos de documentação e
potencial merecedor de interesse pesquisa (focados na festa ou
– potencial que, no entanto, Os especialistas acreditam indiretamente iluminando
logo a indústria do turismo que celebrações em honra do aspectos centrais), merecendo
percebeu e explorou, ao constatar Divino Espírito Santo sejam de citação, entre outros, os nomes
sua crescente vitalidade. remota origem medieval. Em de Rita Amaral, Léa Freitas Perez,
Portugal, teriam surgido no Carlos Rodrigues Brandão,
O historiador francês século XIII, instituídas por Dona Martha Abreu, Beatriz Ricardina
Michel Vovelle, quando fala da Isabel, mulher de D. Diniz, de Magalhães, Ana Cláudia
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 148

Lima e Alves, Maria Cristina É possível que a Festa do que, a pé ou a cavalo, circulam
Bohn Martins, Maria Isaura Divino tenha sido adotada no irreverentes pelas ruas e no Campo
Pereira de Queiroz, Roberto arraial de Meia Ponte desde seus das Cavalhadas. A encenação de
da Matta, Mary Del Priore. primórdios, mas o primeiro dramas e operetas e do auto ‘As
Pirenópolis se localiza numa registro disponível data de 1819. Pastorinhas’, além de ranchões,
das três zonas povoadas durante bailões sertanejos e outras formas
o século XVIII, que tiveram seu A pesquisa coordenada por de expressão associadas à festa.
período áureo na segunda metade Marina A. M. de Macedo Soares O Reinado de Nossa Senhora do
desse mesmo século) graças ao produziu uma descrição bastante Rosário dos Pretos e o Juizado de
garimpo de aluvião. Fundada minuciosa das celebrações, São Benedito (deslocados de suas
como Arraial de Minas de Nossa identificando as diversas unidades, datas originais, outubro e abril
Senhora do Rosário de Meia Ponte os agentes e suas ações, os espaços e respectivamente), antigas festas de
em 7 de outubro de 1727, teve temporalidades, pretos, com seus congos e congadas
seu nome mudado para o atual em os cenários e a cultura material, e suas tradicionais distribuições
1890. Hoje, cidade com cerca de os recursos, comportamentos, de doces. A Cavalhadinha
20.000 habitantes, conta com um transformações, etc. Para fins de complementa a festa: realizada
perímetro urbano já configurado minha análise e para caracterizar essencialmente por crianças, é a
em 1750 e tombado pelo IPHAN a festa nos seus componentes reprodução-mirim dos festejos...”
em 1990, como conjunto essenciais, ao invés de seguir passo
arquitetônico, urbanístico e a passo seu desenvolvimento por À primeira vista, a
paisagístico. Conta, ainda, com unidades, preferi reproduzir complexidade da festa parece
áreas naturais protegidas. Da a síntese que consta do Dossiê expressar mera multiplicação e
exploração de quartzito a cidade Descritivo (fls. 30 e 31): superposição de elementos, sem
retira 60% de sua renda; do que se possa distinguir claramente
restante, uma boa parte se deve “A festa é composta por um algum eixo de ordenação.
à movimentação econômica grande número de eventos e Valeria a pena, portanto, situar
de toda ordem produzida pelo celebrações. As folias da Roça, tais componentes em relação
renome e interesse despertado da Rua e do Padre, que ‘giram’ os a categorias que se costuma
pela celebração do Divino bairros da cidade e a zona rural do apontar como definidoras da
Espírito Santo. Movimentação município, recolhendo donativos festa tratada na sua dimensão
que, a rigor, se processa ao para a festa. As celebrações do de fenômeno sociocultural.
longo do ano inteiro, embora Império, com os cortejos do Antes de mais nada duas
seus momentos de condensação Imperador, jantares, novena, categorias simbioticamente
se situem no Domingo de missas cantadas, alvoradas, presentes são seminais
Pentecostes (prolongando-se levantamento do mastro e queima aqui: o jogo e o rito.
nos dois dias imediatamente de fogos. As Cavalhadas, encenação Comecemos pelo jogo.
seguintes) e no período anterior, de batalhas medievais entre A conceituação de Johan Huizinga
dos 50 dias depois da Páscoa. mouros e cristãos. Os mascarados continua luminosa:
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 149

“O jogo é uma atividade ou à frugalidade do cotidiano. por exemplo, requerem disciplina


ocupação voluntária, exercida Contraponto patrocinado por corporal e ensaios extenuantes,
dentro de certos e determinados recursos comunitários ou, porque os combates a cavalo
limites de tempo e de espaço, quando bancado pelo Imperador, obedecem a coreografias precisas e
segundo regras livremente pela troca de patrimônio por minuciosas. As folias,
consentidas, mas absolutamente prestígio. Ou então, como uma ao se aproximarem dos pousos,
obrigatórias, dotado de um fim responsabilidade coletiva em precisam evoluir em “S” e têm
em si mesmo, acompanhado de relação às centenas de pessoas que chegar atravessando o arco de
um sentimento de tensão e de que por 30 ou 40 dias precisam entrada, todo decorado;
alegria e de uma consciência de renunciar às atividades com o petitório, a seguir,
ser diferente da ‘vida cotidiana’.” que normalmente se sustentam. deve cumprir uma etiqueta
(Homo ludens: o jogo como Tirando as brincadeiras e bem definida.
elemento da cultura. São Paulo, deboches dos mascarados, que As coroações, o levantamento
Perspectiva, 1996: p. 33). se metamorfoseiam em onças, do mastro, os diversos cortejos,
O jogo, portanto, institui bois, capetas, caveiras ou as esmolas, as missas cantadas,
“um outro caminho” – do latim monstros, as regras sempre etc., também vão nesse rumo.
“di-verto”, particípio passado se fazem valer nas demais O rito, principalmente na festa
“diversus”, é o que quer dizer circunstâncias e são sempre barroca como a nossa, assegura
o termo “diversão”: significa respeitadas, pois decorrem de a visibilidade que o torna eficaz:
mudança de direção, busca consenso entre os interessados, ele estabelece, assim, uma
de um atalho diverso da estrada e não de uma autoridade externa. mediação estética, que exige uma
rotineira. Isto abre espaço para as Não se pode deixar de observar pletora de objetos e atributos
brincadeiras, para as competições, que os mecanismos de inversão funcionais ou simbólicos para
mas também para as transgressões (de papéis, comportamentos), singularizar a festa e suas unidades
e os excessos. O objetivo tão presentes em certas festas e contingências: cores, vestes e
intrínseco do jogo é o próprio populares como o carnaval, não adereços, insígnias e brasões,
jogo: as folias do Divino, por deixaram traços relevantes no bandeiras (a do Divino, com
exemplo, se destinam a coletar núcleo mais remoto da festa do a pombinha branca, é a mais
recursos para a própria festa, Divino (em torno do Imperador), vistosa), as coroas, o cetro,
mas se realizam como parte dela autorizando a suposição de uma armaduras, capas bordadas,
mesma – e em meio a situações origem clerical e dinástica. elmos, arreios das montarias,
prazerosas. Comida e bebida flores de papel, as asas dos anjos
comparecem com abundância Para que a flexibilidade do das procissões, o palanque,
nos jantares, almoços, farofadas, jogo não provoque dispersão o “quadrado”, o andor e por aí vai.
mesas de doces, bebidas, em e garanta permanência, o rito Foguetórios, músicas (inclusive
vários momentos – há quem fornece os elementos formais o Hino do Divino, composto em
fale em desperdício, mas na de controle e as prescrições dos 1899) e o repicar de sinos e sons
verdade se trata de contraponto modos de fazer. As cavalhadas, de todo tipo juntam-se
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 150

ao cheiro dos alimentos e da conservadora: há rezas em latim, rígidas hierarquias (as diversas
pólvora, para alimentar uma nas novenas, que permitem categorias de mordomo,
memória sinestésica. O papel supor uma reificação do rito, mordomo da novena, das
das corporações musicais e, reduzido essencialmente à forma velas, da bandeira, do mastro,
principalmente, da Banda sonora, cujos significados podem da fogueira; nas folias, os
Phoenix (a mais antiga delas, ser dispensados por escaparem alferes, embaixadores, regentes,
criada em 1893) é vital. A cidade talvez à totalidade dos orantes. procuradores, salveiros) –
inteira (e muitos espaços rurais) A necessidade de conhecer mas sem conotação de classe
também se torna mais visível, (e respeitar) os ritos tem a ou patrimônio. A própria
com adornos nas ruas, praças ver com uma outra categoria disponibilidade de recursos,
e nas fachadas, assim como no que define a festa: a agregação, de que o Imperador é responsável,
interior das casas dos principais o estar junto, que faz dela não constitui obstáculo para
atores e nas igrejas. A relevância um potenciador de energias aqueles de condição mais
do rito obriga a conhecer os coletivas, em “estado de modesta. As diferenciações
códigos que se espalham por toda efervescência” (como dizia principais, porém (sobretudo nas
parte: se as folias encontrarem Durkheim), canalizando-as para candidaturas), são determinadas
no arco decorado dos pousos ações coletivas. Ações em que pelas relações das famílias nos seus
uma xícara, devem saber que o protagonismo não é mais da compromissos tradicionais com a
não poderão prosseguir antes Igreja, nem do poder civil, nem festa. Por outro lado, há outros
de localizar o presente que ela de outras esferas de poder, mas conflitos manifestos.
indica. (A xícara, aliás, é depois do povo comum sem distinções Os mais importantes no presente
utilizada no ritual da “dança do – embora as tensões políticas, são entre festeiros e a Igreja,
chá”.) O rito é importante mesmo religiosas, econômicas e outras motivando, por exemplo, o
quando os significados originais possam atuar nos bastidores. aparecimento da Folia do Padre,
se perderam: as cavalhadas O estar junto não elimina as que arrecada recursos que não
seguem o roteiro previsto, ainda diferenças, mas não impede o agir passam pela contabilidade do
que se tenham transformado junto. Já se propôs (Carlos R. Imperador; além disso, a Igreja
numa exibição de destreza e Brandão) uma dicotomia, gostaria de ter meios de coibir
virilidade, e não mais legitimação em que o Reinado de Nossa “excessos” e “grosserias” nas
da “imposição da fé pela espada” Senhora do Rosário (na origem, celebrações e, mais ainda,
(fórmula, aliás, mencionada “festa dos pretos”) constituiria a oportunidade de interferir
pelos cavaleiros); o que importa a celebração dos escravos e, na escolha (por sorteio) do
agora, porém, é a heroificação a seguir, de brancos pobres, Imperador do Divino, exigindo
dos combates entre cristãos e opondo-se à festa dos ricos, que seja sempre “católico de
mouros, ainda que culminem da “corte imperial”. Todavia, vida exemplar”. Também se tem
com a conversão compulsória a homogeneização hoje é manifestado conflitos de gênero:
destes últimos. Outro caso completa. As diversas funções e numa celebração por excelência
sintomático da tendência ritual encargos estão subordinados a masculina, as mulheres vêm
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 151

procurando infiltrar-se (p. ex., gerações com as cavalhadinhas, os participantes em espectadores.


entre os mascarados, desde 1970, o imperadorzinho, De notar, igualmente,
e em outros eventos, como em os mascaradinhos etc., a transformação ou incorporação
2008, até no terço dos cavaleiros! festa-mirim incorporada em de componentes ao longo do
– não sem provocar contrariedade 1989. Da mesma forma deve ser tempo: as cavalhadas foram
e escândalo nos homens). considerada a participação de revitalizadas a partir de 1960;
crianças e adolescentes, como em as folias da roça têm 140 anos,
A festa é, também, uma certos cortejos, manifestações as folias de rua, 50 e as folias
plataforma do imaginário e na teatrais ou musicais. do padre são recentes.
do Divino as oportunidades O Reinado (ou “Festa dos Pretos”)
são múltiplas, a começar pela Finalmente, a festa é também desenvolvido por irmandades de
construção de uma ordem social um espaço de misturas, hibridações – negros, escravos e forros,
imaginária, que dispensa a presença e mediações. Antes de mais nada, se incorporou há mais de um
da Igreja e da autoridade civil, e de sagrado e de profano. Nada século e hoje desenvolveu trânsito
reitera os arquétipos monárquicos de estranho, pois o sagrado é a livre entre personagens do Divino
de nossa formação social, com marca absoluta da alteridade na e os seus. Em suma, a festa é
o Imperador do Divino e sua quebra do cotidiano, da rotina um poderoso mecanismo de
corte, ou com os componentes – quebra que também distingue interação, diálogo, comunicação,
do Reinado de Nossa Senhora do a festa. Orações, benditos, em que as singularidades
Rosário dos Pretos e o Juizado de louvados, terços, novenas e missas se mantêm em fecunda e
São Benedito. cantadas se combinam com rituais permanente interlocução.
O imaginário se realiza, de “petitório” ou as alvoradas e
também, nos “dramas” catiras, forrós, ranchões, bailões C) PREMISSAS/MÉRITO
e operetas, nos autos (Pastorinhas), sertanejos, jogos de argolinha...
representados desde 1837. A coroa do Imperador fica exposta A Festa do Divino em
à visitação – no altar montado Pirenópolis é parte de um
A festa é ainda vetor de na casa do Imperador. Privado e amplo sistema de celebrações
comunicações materiais e simbólicas. público não são mais categorias populares que tem merecido
Por intermédio dela se reforçam excludentes. A casa do Imperador, atenção especial da Câmara do
laços de vizinhança, de parentesco as casas urbanas e as de fazendas Patrimônio Imaterial – inclusive
ou compadrio, e se estabelecem e chácaras visitadas no “giro” das pelo número de propostas de
redes de redistribuição de folias, assim como as igrejas, as registro recebidas – e motivado
recursos, de apoio mútuo e ruas, as praças, se transfiguram ações de documentação e estudo.
solidariedade. A hospitalidade em espaços de festa. A exceção é o Mais precisamente, a Festa de
se erige como obrigação, virtude único espaço especializado: Pirenópolis é modalidade de
e prazer. Não se pode esquecer o campo da cavalhada que, por ter uma celebração que, como se
de incluir nas comunicações os suas arquibancadas e camarotes viu, ocorre há muito tempo
objetivos de enculturação das novas muito acima da arena, transforma em amplas áreas do território
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 152

nacional. Por isso mesmo, estão vizinhas), com líderes civis e de ações e trocas de serviço.
em debate na Câmara – além, religiosos, associações e entidades “Pode-se dizer que é sobre estas
é claro, dos requisitos exigidos de todo tipo, trocas simbólicas de modos de
pela Resolução 001/2006 – a população em geral e em participação que se constitui,
critérios de amostragem ou particular os responsáveis pela na prática, a Festa do Divino.
representação, de prioridades festa, seus patrocinadores Ela instaura uma transformação
e de hierarquias, etc., para e colaboradores, etc. – tal não apenas na vida da sociedade
selecionar candidatos ao registro. mobilização é de altíssima local, como também na vida pessoal
No entanto,independentemente escala. Embora haja alguns dos participantes, como de resto
de eventuais extensões ou inclusões bolsões de espetacularização, os acontece com todas as festas,
futuras, a proposta de Pirenópolis, participantes externos não são mas especialmente com as festas
pela sua consistência, amplitude e meros espectadores, mas sujeitos devocionais (Rita Amaral, Festa à
irradiação, pode ser examinada à ativos e afetivamente envolvidos. brasileira. São Paulo, Departamento
parte. Aliás, até o presente, uma Apesar dos momentos de maior e de Antropologia/USP, 1998: p.
única celebração foi registrada menor intensidade, a mobilização 203/tese de doutorado).
como patrimônio cultural é permanente, pois a preparação iii) A Festa conta com
brasileiro, o Círio de Nazaré, da festa seguinte começa apenas antiguidade respeitável – quase 200
em Belém, em 2004, que também se encerra a edição do ano. Os 64 anos e talvez mais –, o que significa
se fazia notar pela manifesta dias que vão da Páscoa a Pentecostes consistência que passou pelo teste
relevância, dispensando o apoio (incluindo a 2a e 3a-feiras do tempo, isto é, demonstra solidez
de um quadro de referência imediatas), estendendo-se até Corpus capaz de assegurar identidade na
que permitisse situá-lo dentro Christi, são inteiramente dominados mudança. Há razão para crer que
de escalas de interesse. pelo Divino (ensaios, organização, a Festa existe desde os primeiros
Com efeito, as informações e rituais específicos). tempos do arraial primitivo (1727).
análises acima expostas permitem ii) A Festa do Divino em De notar a preocupação dos festeiros
fundamentar essa proposta. Pirenópolis constitui um com manter registros, como a
Podemos resumir tais fundamentos verdadeiro sistema complexo, Lista dos Imperadores do Divino
em apenas quatro tópicos: que articula elementos religiosos e e outros documentos, a começar
i) Para o art. 216 da profanos, cria ou recicla sentidos, pelos programas anuais e cartazes.
Constituição Federal de 1988 um valores, expectativas, aspirações e os A “consciência da tradição” é
bem integra o patrimônio cultural faz circular intensamente. Intervém uma referência frequentemente
brasileiro – sem necessidade, para na produção, na organização do lembrada. Enfim, não se pode
tanto, aliás, da homologação pelo trabalho, na economia, esquecer que as “cavalhadinhas” são
poder público – quando representa no imaginário e assim por diante. uma forma de garantir a reprodução
referência de memória, ação e Intervém profundamente nas das celebrações no futuro.
identidade coletivas. A mobilização relações intersubjetivas (encargos, iv) Há uma forte e evidente
de uma cidade inteira (incluindo hierarquias, vizinhança, família, singularidade local que dá a
sua área rural e comunidades etc.). Cria ou reforça redes personalidade própria à Festa do
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 153

Divino de Pirenópolis e fomenta do Parecer de Ana Cláudia Lima E) SALVAGUARDAS


as demandas de identidade e e Alves (fls.166-167), componho
pertencimento e justifica, por a seguinte lista de atributos: A curto prazo, a Festa do Divino em
acréscimo, sua irradiação regional. i) As folias da roça e as da rua, Pirenópolis está com sua cadeia de
Mais que isso, a ressonância da festa rituais “petitórios” que percorrem transmissão garantida e não corre
diz respeito a uma multiplicidade com a bandeira do Divino, a pé e a riscos de extinção, como afirmam
de interesses que se estende muito cavalo, o território urbano e rural; o Dossiê Descritivo (fls. 115-120) e o
além dos horizontes regionais ii) As cerimônias do Império Parecer Técnico de Ana Cláudia
e atrai a atenção dos múltiplos do Divino, com os rituais da Lima e Alves, que retomo aqui no
segmentos que compõem nossa coroa, alvoradas, cortejos do essencial, com algumas alterações.
sociedade. Onde o foco de tal Imperador, novenas, terços, De passagem, cumpre lembrar
atração? Sem dúvida, contam, jantares, cafés, missas cantadas, que as autoridades municipais têm
e muito, as ofertas de beleza, levantamento do mastro, queima desenvolvido políticas públicas de
assim como as ofertas lúdicas e de fogos, jogos, distribuição de preservação do núcleo tombado,
gastronômicas. Acredito, porém, “verônicas” e doces, sorteios e comportando investimentos na
que essa raiz deva ser mais profunda coroação do novo Imperador; restauração de edifícios históricos e
e se localize na oportunidade iii) As cerimônias das cavalhadas; na preservação do meio ambiente.
rara de uma experiência de vida iv) As estripulias dos mascarados No entanto, durante a pesquisa
representada pelo agir junto e pela que circulam em bandos, a pé foram observados alguns
“efervescência da ação”. Em outras ou a cavalo pela cidade e no conflitos pontuais, quase sempre
palavras, trata-se da oportunidade Campo das Cavalhadas; constitutivos da festa, mas cujas
de viver, numa sociedade complexa v) As manifestações musicais, soluções são continuamente
e desarticulada como a nossa, uma o Hino do Divino, a Banda de negociadas no âmbito da própria
experiência de totalização da vida Música Phoenix, o Coral de festa. Infelizmente, tais conflitos
social: uma cidade inteira – seus Nossa Senhora do Rosário, as me parecem sintomas de riscos
habitantes, seu espaço físico, sua Bandas de Couro ou Zabumba, maiores, a longo prazo. Entre
energia e capacidade de ação – tudo e a Banda do Reinado; estes foram apontados no Dossiê e
convergentemente mobilizado vi) As celebrações das antigas no mencionado Parecer Técnico,
numa celebração multiforme. “festas de pretos”, incorporadas as tentativas de manipulação do
como Reinado de Nossa Senhora sorteio do Imperador, por parte
D) OBJETO DO REGISTRO do Rosário e de São Benedito; da Igreja, que desejaria preservar a
vii) A encenação de dramas dimensão religiosa do evento;
Dada a complexidade da Festa e operetas, do auto natalino a escala de massa que vem
do Divino de Pirenópolis impõe-se das Pastorinhas, assim como os adquirindo a Folia da Roça,
explicitar os componentes do objeto ranchões, os bailões e similares; com impactos negativos sobre a
cujo registro está sendo proposto. viii) As “cavalhadinhas” estrutura física dos pousos e sobre
Tomando como ponto de partida (“imperadorzinhos”, a expressão cultural e a devoção
as propostas do Dossiê Descritivo e “mascaradinhos”). religiosa;
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 154

as crescentes dificuldades de acesso preparação da pólvora e dos - criar mecanismos de consulta


dos mascarados e dos cavaleiros ao tiros de toco; levantamento do à população, para que esta se
público das cavalhadas, causadas mastro do Divino; confecção manifeste a respeito dos modos
pelo projeto do novo campo, de flores, máscaras, bordados, de proteção e manutenção da
popularmente denominado bandeiras e adereços, entre festa que considerem adequados,
cavalhódromo; a espetacularização das outras habilidades e expressões; orientando e fortalecendo a
cavalhadas e o impacto negativo - estudar e descrever a história construção de políticas de proteção
da utilização da Festa como das Irmandades de Nossa Senhora e medidas de salvaguarda;
atrativo turístico de massa. do Rosário dos Pretos e de São - regular as atividades turísticas
Se reconhecida a Festa do Benedito de Pirenópolis, que no município de modo a promover
Divino Espírito Santo como um remontam ao período da mineração o turismo cultural e o respeito à
patrimônio cultural brasileiro, e há muito tempo desapareceram; natureza e significados da festa;
por meio do seu registro no Livro - estudar e descrever a - implantar uma Escola Superior
das Celebrações, as medidas de história da Igreja de Nossa ou Conservatório de Música, para
salvaguarda, de curto, médio e Senhora do Rosário dos Pretos, fortalecer a vocação musical da
longo prazos seriam as seguintes: demolida na década de 1940 e cidade e apoiar os talentos locais;
- fomentar nas iniciativas cujo local é hoje considerado - lutar, junto às autoridades
públicas e empresariais de “Território Afro-Brasileiro” pela competentes e à sociedade local,
Pirenópolis o compromisso Fundação Cultural Palmares; pela implantação de políticas
permanente como respeito à cultura - estudar a história da Banda públicas de infraestrutura,
local e com a garantia dos espaços de Couro, a Zabumba, a primeira saúde e educação.
de expressão da Festa do Divino; banda da cidade, e recuperar
- realizar a documentação alguns toques de percussão que 3. CONCLUSÃO
dos repertórios musicais das não são mais executados;
Folias – benditos, cantorias, - publicar glossário da Por todo o exposto,
repentes e catiras; dos rituais Festa do Divino Espírito Santo convictamente sou de parecer
religiosos do Império, de Pirenópolis, com base na que deva ser aceito o pedido de
especialmente da Orquestra e descrição dos Bens Culturais registro da Festa do Divino Espírito
do Coral de Nossa Senhora do no INRC, para ser distribuído Santo em Pirenópolis, GO, no
Rosário e da Banda Phoenix; às escolas, bibliotecas e centros Livro das Celebrações, como
- estudar e documentar os de atendimento ao turista; patrimônio cultural brasileiro.
ofícios e modos de fazer aplicados - realizar exposições
na preparação de personagens e das fotografias e exibir os Rio de Janeiro, 15 de abril de 2010
atividades da festa, considerando a vídeos produzidos para a instrução Ulpiano T. Bezerra de Meneses
história de envolvimento familiar do processo de Registro, como Conselheiro
que dá forma à produção destes forma de devolução,
saberes: fundição de armas e à população, do conhecimento
acessórios para cavalos e cavaleiros; produzido durante a pesquisa;
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Anexo 3
certidão de
registro

Serviço Público Federal as folias, a coroação de um cidade, levando as bandeiras do


Ministério da Cultura imperador e o império. A esta Divino e angariando donativos
Instituto do Patrimônio estrutura básica, os agentes da para a festa; a coroa, a figura
Histórico e Artístico Festa do Divino de Pirenópolis do Imperador,
Nacional – IPHAN vêm incorporando outros as cerimônias e rituais do
  ritos e representações, como Império, com alvoradas,
CERTIFICO que do Livro as encenações de mascarados e cortejos, novena, jantares e
de Registro das Celebrações, cavalhadas, responsáveis pela outras refeições coletivas, missas
volume primeiro, do Instituto do grande notoriedade da festa, que cantadas, levantamento do mastro,
Patrimônio Histórico e Artístico se realiza nesta cidade a cada ano, queima de fogos, distribuição de
Nacional/Iphan, instituído desde 1819, durante cerca de 60 “verônicas”, sorteio e coroação
pelo Decreto número três mil dias, com clímax no Domingo de do Imperador;
quinhentos e cinquenta e um, Pentecostes, cinquenta dias após as Cavalhadas, encenações de
de quatro de agosto de dois mil, a Páscoa. Constituída por vários batalhas medievais entre mouros e
consta à folha dois, verso, o rituais religiosos e expressões cristãos, em honra do Imperador e
seguinte: “Registro número dois. culturais, do Espírito Santo; os Mascarados
Bem cultural: Festa do Divino a Festa do Divino é uma celebração com máscaras de papel pintado,
Espírito Santo de Pirenópolis, no profundamente enraizada no que circulam a pé e a cavalo
Estado de Goiás. Descrição: É uma cotidiano dos moradores de pela cidade e pelo Campo das
celebração de origem portuguesa, Pirenópolis e determinante dos Cavalhadas;
disseminada no período colonial padrões de sociabilidade local. o Hino do Divino; o Coral de
pelo território brasileiro, com Seus elementos essenciais, por Nossa Senhora do Rosário; a
variações em torno de uma ordem de ocorrência, são: Banda de Música Phoenix e a
estrutura básica e dos símbolos as Folias “da Roça” e “da Rua”, Banda de Couro ou Zabumba,
principais do ritual – que “giram” pela zona rural e pela que marcam os diversos rituais e
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 156

C A V A L H EIROS NA S RU A S DA C I DA D E .
FOT O: S A U L O C RU Z , 2 008.

cerimônias da celebração. Além corresponde à síntese do conteúdo


destas, também constituem a do processo administrativo
Festa do Divino de Pirenópolis no 01450.000715/2010-15 e
outras expressões e rituais Anexos, no qual se encontra reunido
agregados – desde seu início ou o mais completo conhecimento
há várias décadas – e constantes sobre esta celebração, contido em
da programação oficial, como a documentos textuais,
encenação de dramas, operetas e bibliográficos e audiovisuais.
do auto natalino “As Pastorinhas”; O presente Registro está de acordo
o Reinado de Nossa Senhora do com a decisão proferida na 63a
Rosário e de São Benedito, com reunião do Conselho Consultivo
seus Congos e Congadas, realizados do Patrimônio Cultural, realizada
na segunda e terça-feira seguintes em quinze de abril de dois mil e
ao Domingo de Pentecostes; dez. Data do Registro: 13 de maio
os ranchões dançantes; a feira de 2010. E por ser verdade, eu,
livre e a Cavalhadinha, que é a Márcia Genesia de Sant’Anna,
reprodução-mirim dos rituais da Diretora do Departamento do
festa. Realizada no feriado de Corpus Patrimônio Imaterial do Instituto
Christi por crianças de até 12 anos, do Patrimônio Histórico e
a Cavalhadinha busca transmitir Artístico Nacional – IPHAN,
para as novas gerações os valores e lavrei a presente certidão que vai
referências da identidade cultural por mim datada e assinada.
da sociedade de Pirenópolis, de
modo a estimular a continuidade Brasília, Distrito Federal,
da Festa do Divino. Esta descrição 14 de maio de 2010.
dossiê iphan 17 {Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás } 157
JOGOS DA C A V A L H A DINH A .
FOTO: S A U L O C RU Z , 2 008.

Este livro foi produzido na


primavera de 2017 para o
Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional.

Foi composto nas tipografias


Rosewood (títulos) e MrsEaves
(textos), corpo 12/14.4, em papel
couché matte 150 g/m (miolo).
F418 Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás /
Coordenação, Yêda Barbosa. – Brasília, DF : Iphan,
2017.
157 p. : il. color. ; 25 cm. – (Dossiê Iphan ; 17)

ISBN: 978-85-7334-285-7

1. Festa religiosa. 2. Festa do divino – Pirenópolis (GO).


3. Patrimônio Imaterial – Pirenópolis (GO). I. Barbosa,
Yêda. II. Série.

CDD 394.2

Elaborada por Márcia Oliveira de Almeida Lima CRB-1/2403

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