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scientiæ zudia, São

Modalidade, Paulo, v. 2, n.
abordagem 1, p. 85-97, 2004
semântica e mecânica quântica

Modalidade, abordagem semântica


e mecânica quântica*
Otávio Bueno

resumo
De acordo com o argumento da indispensabilidade, devemos nos comprometer ontologicamente com
entidades matemáticas, por serem elas indispensáveis às nossas melhores teorias científicas. Hartry Field
(1980) notoriamente opõe-se ao argumento, desenvolvendo um programa de reformulação de teorias
científicas sem quantificação sobre objetos matemáticos. Em particular, Field elaborou detalhadamente
a nominalização da teoria gravitacional de Newton, indicando como ela poderia ser formulada sem
quantificação sobre números reais. Field forneceu também um argumento de por que o uso de operado-
res modais não garante uma estratégia adequada para nomear teorias científicas. Neste artigo, discuto o
argumento de Field contrário à afirmação de que a modalidade possa ser um substituto geral para a
ontologia. Após opor-me a esse argumento, indico um quadro alternativo que esclarece as razões pelas
quais a modalidade pode desempenhar esse papel.

Palavras-chave ● Abordagem semântica. Mecânica quântica. Modalidade. Nominalismo. Van Fraassen.


Empirismo construtivo.

Introdução

Nas últimas duas décadas, testemunhamos o crescente interesse pelo nominalismo na


filosofia da matemática. Não é impreciso afirmar que, de uma forma ou outra, esta re-
tomada surgiu a partir do provocativo programa de nominalização de Hartry Field (cf.
Field, 1980, 1989). Como ele argumentou, é possível reformular certas teorias físicas
sem qualquer quantificação sobre objetos matemáticos. Em particular, introduzindo-
se predicados comparativos adequados, a teoria da gravitação de Newton pode ser
reformulada de modo tal que se exija quantificação apenas de regiões do espaço-tem-
po (e assim nenhuma quantificação sobre números reais deve ser investigada). Desse
modo, na concepção de Field, o argumento da indispensabilidade de Quine-Putnam

* Gostaria de agradecer a Steven French pelas proveitosas discussões.

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pode ser refutado. Afinal, segundo esse argumento, não é possível formular teorias
físicas sem quantificação sobre entidades matemáticas (cf. Putnam, 1971). Entretan-
to, Field mostrou que se pode obter essa formulação ao menos para uma, admitidamente
importante, teoria física.
Duas características significativas devem ser salientadas sobre o programa de
Field. Primeiramente, para que ele desenvolva uma concepção nominalista da mate-
mática, é preciso que ele assuma uma concepção realista da ciência. Em particular,
porque a quantificação de Field das regiões do espaço-tempo exige que ele compro-
meta-se ontologicamente com elas.1 Em segundo lugar, Field não assume, e de fato
rejeita, a afirmação de que a modalidade possa ter qualquer papel na nominalização da
ciência. Como veremos, ainda que de forma breve, Field afirma que poderíamos privar
a ciência de seu conteúdo empírico, se a modalidade fosse usada nesse nível.
O problema com essas duas características é que elas parecem limitar dramati-
camente a abordagem de Field. Como argumentou David Malament, a estratégia de
nominalização de Field não pode ser estendida à mecânica quântica, dado que – por
oposição ao que ocorre com a teoria da gravitação newtoniana – não existe qualquer
substituto nominalista adequado sobre o qual quantificar (cf. Malament,1982). Seria
importante então ter-se à mão estratégias adicionais de modo que resultados
nominalistas mais abrangentes pudessem ser obtidos. E neste ponto o uso da modali-
dade se torna atrativo, dado que provê tal estratégia de nominalização. Por exemplo,
em vez de afirmar que há estruturas matemáticas de tal e tal tipo, podemos dizer que tal
e tal tipo de estruturas são apenas possíveis (cf. Putnam,1967; e, para uma articulação
detalhada desta concepção, Hellman, 1989).
Pode-se contrastar meu procedimento com o de Mark Balaguer. Em um trabalho
recente, ele afirma ter respondido à objeção de Malament, explicando como a mecânica
quântica pode ser nomeada, e “realizando muito do trabalho necessário para fornecer
a nominação” (Balaguer, 1998, p. 114). Entretanto, como Balaguer reconhece, ele não
nomeou completamente a mecânica quântica, mas apenas refez, em termos “no-
minalistas”, a estrutura algébrica dos espaços de Hilbert (Balaguer, 1998, p. 114). Mas
para refazer essa estrutura, ele se compromete com a afirmação de que “enunciados de
probabilidade quântica são sobre propensões fisicamente reais de sistemas quânticos”
(1998, p.120; grifos meus). Para dizer o mínimo, é questionável que o compromisso
com propensões, entendidas como modalidades reais na natureza, seja um avanço! Isto
é inconsistente, por exemplo, com algumas interpretações da mecânica quântica (tais
como a interpretação modal de Van Fraassen; cf. 1991, p. 273-337). Mais do que isso,

1 Em todo caso, Field pensa que se deve preferir o realismo do espaço-tempo à alternativa anti-realista, indepen-
dentemente das questões do nominalismo (1989, p. 171-226).

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como Van Fraassen argumentou minuciosamente, o compromisso com modalidades


objetivas na natureza acarreta sérias dificuldades para qualquer interpretação da ciên-
cia (cf. 1989, p. 65-93).
Como veremos, o que apresento aqui é muito diferente. Não introduzirei substi-
tutos para objetos matemáticos, e sim procurarei explorar a interpretação modal-es-
trutural de Hellman. A idéia principal é deixar aberta a possibilidade – rejeitada tanto
pela estratégia de Field como de Balaguer – de assumir uma descrição anti-realista da
ciência enquanto se desenvolve uma concepção nominalista de matemática.

1. O desafio de Field

De acordo com Field, a modalidade não tem qualquer papel na nominalização da ciên-
cia. Afinal, mesmo se obtivéssemos sucesso nomeando a matemática pela introdução
de operadores modais convenientes, algo ainda faltaria. Pois o que é necessário é uma
descrição da aplicação da matemática, e isso envolve enunciados matemáticos mistos,
isto é, enunciados que não se refiram apenas a objetos matemáticos, como também aos
físicos (cf. Field, 1989, p. 252-6). Ora, Field afirma que, com relação a este tipo de enun-
ciados, a estratégia de nominação modal vai longe demais. Pois, ao nomear enuncia-
dos mistos, prefixando-os com um operador modal, não só o conteúdo matemático dos
enunciados (isto é, a referência aos objetos matemáticos) como também o conteúdo
físico torna-se modal. Suponha-se que T seja uma teoria mista (que faz referência tan-
to a objetos matemáticos como físicos). Se a modalizássemos “diretamente” estabele-
cendo que ◊T, estaríamos eliminando simultaneamente seu conteúdo físico. Portanto,
o uso de operadores modais não auxilia as discussões ontológicas: é demasiado restri-
tivo. Nas próprias palavras de Field:

[Enunciados mistos] não podem ser tratados prefixando-os com o operador


modal ‘◊’. Pois, embora prefixando-os com ‘◊’ se obtivesse o efeito desejável de
substituir a exigência de que haja realmente entidades que satisfaçam a teoria
matemática pela exigência mais fraca de que possa haver tais entidades, isso teria
igualmente o efeito indesejável de substituir a exigência de que o mundo físico
realmente seja tal que satisfaça a lei científica pela exigência mais fraca de que o
mundo físico possa ser tal que satisfaça a lei. Isto certamente eliminaria completa-
mente todo o conteúdo físico da lei. O problema então é que não é nada óbvio que
haja algum modo de ‘desmodalizar’ o conteúdo matemático da lei física (isto é, o
compromisso com entidades matemáticas) sem ao mesmo tempo ‘desmodalizar’
o conteúdo físico (1989, p. 253; grifos meus).

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Apesar de sua aparente plausibilidade, é importante resistirmos ao argumento


de Field. Embora ele não ofereça qualquer evidência para sua afirmação de que a
“modalização exaustiva” do conteúdo matemático de uma teoria “removeria comple-
tamente todo o seu conteúdo físico”, fica claro, a partir desta passagem, o que ele po-
deria ter em mente: ao invés da afirmação de que a teoria é o caso, “desmodalizando-a”
afirmaríamos apenas que poderia ser assim. Mas, por que isto removeria “todo o con-
teúdo físico da lei”? Comparemos as duas afirmações seguintes:

(R) Poderia chover em 27 de agosto de 2006.


(R’) Choverá em 27 de agosto de 2006.

É claro que se afirmo (R) ao invés de (R’) ainda estou elaborando um enunciado
com conteúdo físico, apesar de fazer uma afirmação decididamente mais fraca. Pois
“Poderia chover em 27 de agosto de 2006” não é uma verdade lógica (ela não tem a
requerida forma lógica), e não é uma afirmação fictícia, em nenhum sentido interes-
sante.2 Mais do que isso, esta sentença não é uma inconsistência lógica. Assim, trata-
se de uma afirmação contingente, consistente, não fictícia sobre o mundo, e neste sen-
tido ela tem conteúdo físico.
Poder-se-ia argumentar no entanto que não tem conteúdo físico, dado que não
importa como o mundo é, “Poderá chover em 27 de agosto de 2006’ é verdadeira. Mas
não é este o caso. Há circunstâncias em que (R) é falsa. Para ilustrar essa possibilidade,
suponhamos que estivéssemos falando sobre Riyadh (na Arábia Saudita), um lugar bem
conhecido pela falta de chuva no período de julho a dezembro. Dada a pressão baixa, a
pouca umidade e características climáticas inter-relacionadas, simplesmente não é
possível que chova naquela parte do mundo durante aqueles meses. Portanto, dadas es-
tas condições, “Poderia chover em Riyadh em 27 de agosto de 2006” é falsa. Similar-
mente, pode haver circunstâncias meteorológicas – relacionadas à pressão, à umidade
etc. – que tornarão impossível chover em 27 de agosto de 2006. Assim, “Pode chover
em 27 de agosto de 2006” pode ser falsa e, portanto, também neste sentido ela tem
conteúdo físico.
É possível a queixa de que isso só se sustente porque estou operando com uma
noção de possibilidade física. Entretanto, prosseguindo com a objeção, para a noção de
possibilidade lógica isso nunca será o caso. Pois, para este tipo de possibilidade, (R) é
verdadeira, independentemente de como o mundo é. O problema com essa sugestão é

2 Certamente, (R) poderia ocorrer em um texto de ficção. Mas isso vai além do ponto, dado que ela se distingue
claramente de uma sentença como ‘Sherlock Holmes viveu em Londres”.

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que ela parece tornar (R) algo similar a uma verdade lógica – e isto é algo que ela não é,
dado que lhe falta a necessária forma lógica. O ponto dessa discussão é que afirmações
modais são ligadas a condições iniciais de tal modo que elas podem ser consideradas
como plenas de conteúdo. Concluo que (R) tem conteúdo físico, mesmo que não seja a
afirmação mais informativa sobre o tempo que possamos alcançar.
Contudo, mesmo se este ponto for concedido, Field poderia argumentar que as
teorias científicas obtêm seu conteúdo físico de maneira diferente. Certamente, le-
vanta-se assim a questão de como uma teoria científica obtém seu conteúdo físico. Dada
a generalidade do argumento de Field, talvez o que ele esteja assumindo seja uma liga-
ção estreita entre a forma lógica de um enunciado e seu conteúdo físico; o que lembra
uma das primeiras tentativas dos empiristas lógicos para decifrar essa conexão, tais
como, as regras de correspondência, a redução de sentenças e uma série de estratégias
similares que foram pensadas para solucionar esse problema. Todos sabemos por que
falharam aquelas tentativas. A ciência não pode ser subordinada ao modo requerido
por essas propostas a fim de que elas se estabeleçam.
Mas se avançarmos até descrições mais sofisticadas da relação entre teoria e evi-
dência, tais como a abordagem semântica (cf. Van Fraassen, 1980, 1989, 1991), torna-
se claro que o conteúdo físico de uma teoria não se conecta a sua forma lógica. O que
importa é a família de estruturas que consideramos – os modelos da teoria – e como
eles estão relacionados às estruturas que descrevem os fenômenos. Esta relação é pen-
sada como uma inserção ou encaixe parcial, e como tal nada tem a ver com a forma
lógica dos enunciados que sustentam a teoria. O conteúdo físico de uma teoria T resul-
ta da interconexão estabelecida entre as subestruturas empíricas de T (que representam
fenômenos observáveis) e as aparências (as estruturas descritas em registros de
mensurações e experimentais). Se houver um modelo de T tal que as aparências sejam
isomórficas às subestruturas empíricas de T, poderemos dizer que T é empiricamente
adequada (cf. Van Fraassen, 1980, p. 64).3 Em outras palavras, o conteúdo físico deriva
do modo como T representa os fenômenos e da relação estrutural que T mantém com
eles (isomorfismo, isomorfismo parcial etc.).
Se retornamos ao exemplo da chuva acima considerado, a teoria nos informa sob
que condições é possível chover (a conjunção da pressão alta, alta umidade e fatores
meteorológicos relacionados). Isto é, a teoria tem um modelo que atribui a cada compo-
nente e de sua subestrutura empírica E uma contraparte nas aparências A, tal que as
relações que e mantém com outros componentes de E são preservadas em A. Desse
modo, a teoria provê a possibilidade de que poderia chover dispondo de um modelo

3 Para uma discussão e generalização desse aspecto, cf. Bueno, 1997.

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que descreve as condições nas quais isso acontece. O ponto aqui é que o discurso modal,
ao invés de ser externo à ciência empírica como sugere Field, é realmente parte dele.
Afinal, as teorias científicas não concernem apenas aos fenômenos reais, mas também
aos possíveis.4 E uma vez que nos direcionemos para a abordagem semântica, este com-
ponente modal pode ser prontamente ajustado focalizando-se os modelos da teoria.
Como Van Fraassen indica:

Nós podemos afirmar que algo é possível se a teoria o permitir, sob certas condi-
ções, e não tivermos informações contrárias. Esta é a possibilidade da ignorân-
cia, sub espécie a crença envolvida na aceitação da teoria. Pois nossa asserção assi-
nala que os fatos em questão são ajustados em algum modelo que nossa teoria
provê e não temos nenhuma evidência em desacordo com aquele modelo (Van
Fraassen, 1989, p. 92).

Mas, como pode um modelo de ajuste expressar possibilidades? O exemplo fa-


miliar do espectro de cor como um ‘espaço lógico’ ilustra isso (cf. Van Fraassen, 1980,
p. 200-1). Suponha-se que uma pessoa use uma linguagem que lhe permita afirmar
sentenças como as seguintes:

(a) A é verde, A não é amarelo, B é amarelo etc.


(b) Nada que é verde é amarelo.
(c) Não é possível que um objeto seja simultaneamente verde e amarelo.

Claramente, enquanto as sentenças (a) e (b) são sobre o que é realmente o caso,
a sentença (c) vai além disso, dado que ela envolve uma afirmação sobre o que não po-
deria ser. Ora, uma vez que fomos dotados com um modelo – o espectro de cor – pode-
mos explicar essa diferença . O espectro pode ser pensado como um segmento de reta
(os comprimentos de onda), tal que cada predicado de cor, como ‘é amarelo’, é atribu-
ído a uma parte daquele espectro. Mais do que isso, partes separadas são atribuídas a
diferentes predicados, tais como ‘é amarelo’ e ‘é verde’. E dizer que um objeto é verde
é atribuir uma localização para ele no espectro. Ora, (b) afirma que nenhuma localiza-

4 O número de idealizações envolvidas na ciência – dos gases ideais e superfícies sem atrito a agentes oniscientes –
é certamente outro aspecto dessa questão. Ao descrever essas possibilidades idealizadas, os cientistas tentam en-
tender algo sobre o mundo; nomeadamente, como ele se comportaria se algumas de suas características fossem
diferentes. Ao simplificar, de alguma forma, os fenômenos a serem ajustados, essas idealizações ajudam a inter-
relacionar os vários modelos apresentados na ciência: de modelos teóricos altamente abstratos passando por
subestruturas empíricas e modelos de fenômenos até modelos de dados e experimentos de nível baixo (cf. French,
1997; French e Ladyman, 1998; Bueno, 1997).

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ção ocupada pertence de imediato às partes atribuídas a ‘verde’ e ‘amarelo’ enquanto


(c) estabelece que nenhum ponto do espectro pertence a ambas as partes. Como Van
Fraassen assinala:

Obviamente sentenças modais (tais como [c]) ocorrem de fato, mas essa pessoa
as avalia como verdadeiras ou falsas refletindo sobre a estrutura do espectro que
dirige todos os seus usos dos termos de cores. [...] Sua teoria de cor consiste na
família de modelos das quais cada uma é uma classificação de objetos pela locali-
zação no espectro (Van Fraassen, 1980, p. 201).

Este ponto pode ser examinado posteriormente se considerarmos a relação en-


tre modalidade e probabilidade. Na interpretação modal de probabilidade articulada
por Van Fraassen (cf. 1980, p. 158-203), a expressão modal restringe-se a modelos de
uma teoria.5 Sob essa interpretação, espaços de probabilidade relacionam-se a famí-
lias de experimentos ideais. Eles podem ser pensados como divididos em duas partes:
um espaço K simples (os “resultados possíveis” do experimento) e os experimentos
possíveis E, isto é, uma partição contável de K, e uma seqüência contável de membros
de K (a “seqüência resultado” do experimento). Com algumas pressuposições adicio-
nais, garantindo que uma função de freqüência relativa é bem definida para cada even-
to significativo, não é difícil estabelecer um resultado de representação para o efeito
de que dado um espaço de probabilidade, há dele uma correspondente família de ex-
perimentos ideais (cf. Van Fraassen, 1980, p. 193-4). Desse modo, a probabilidade de
um evento A pode ser equacionada com a freqüência relativa com que ele poderia ocor-
rer, se um experimento adequadamente designado fosse realizado com freqüência su-
ficiente sob condições adequadas (cf. Van Fraassen, 1980). É claro, portanto, que a
probabilidade é uma modalidade, uma possibilidade-com-graus (1980, p. 158, 198).
Ora, que haja teorias irredutíveis na ciência – tais como a mecânica quântica –
deveria dizer-nos algo sobre o papel irredutível que a modalidade possui na descrição
científica do mundo. Dado que as predições que podem ser derivadas da mecânica
quântica são tipicamente probabilísticas, e visto que isso pode ser entendido em ter-
mos da descrição de probabilidade acima, temos aqui um forte elemento modal o qual
mostra não ser o mero uso de modalidade suficiente para nos desembaraçarmos do
conteúdo físico de uma teoria. A mecânica quântica é provavelmente a nossa teoria
física mais bem testada, e apesar de seu ponto de vista inerentemente modal, é inegá-
vel que ela tem conteúdo físico.

5 Como Van Fraassen assinala, o locus de possibilidade é o modelo, não a realidade por trás do fenômeno (cf. 1980,
p. 202).

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Se avançarmos para a interpretação da mecânica quântica, a modalidade ainda se


manifesta. Ao menos na descrição de Van Fraassen, com relação aos fenômenos não
observáveis, a teoria quântica apenas estabelece como o mundo poderia ser. Este ponto
é articulado desenvolvendo-se uma interpretação modal de mecânica quântica, que
novamente enfatize o papel das modalidades em nossa compreensão da teoria (cf. Van
Fraassen 1991, p. 273-337). A idéia principal é que enunciados estudados em lógica
quântica, expressando fatos sobre estados mecânicos quânticos de um sistema físico,
são modais. A informação fornecida por eles concerne ao que pode e deve acontecer;
apenas indiretamente é sobre o que realmente acontece (cf. Van Fraassen, 1981, p. 229;
1991, p. 279, 314-7).
Poder-se-ia argumentar que essa conclusão sobre o papel irredutível da moda-
lidade apenas se sustenta para teorias não determinísticas. Pois, continua o argumen-
to, a mecânica clássica tem conseqüências não probabilísticas sobre sistemas físicos.
E, para este tipo de teoria, se “desmodalizarmos” a matemática utilizada em sua formu-
lação, “desmodalizamos” seu conteúdo físico. Em resposta, note-se primeiramente
que esta já é uma concessão substancial ao defensor do argumento de “desmodalização”
de Field. Por ora, o argumento aplica-se apenas a um tipo particular de teoria científi-
ca – as determinísticas. Entretanto, mesmo nesse caso, penso que o argumento não se
sustenta. Acontece que, para algumas teorias determinísticas, poderíamos oferecer re-
formulações nominalistas sem recurso a modalidade (como Field argumentou minu-
ciosamente em sua obra de 1980, no contexto da teoria da gravitação de Newton). Em
outras palavras, até onde chegam algumas dessas teorias, não precisamos desmodalizar
a matemática para obter reformulações com conteúdo físico. E, assim, ainda que o argu-
mento de “desmodalização” fosse bem sucedido para teorias determinísticas, há um
procedimento de nominalização com que tratá-las sem perda de seu conteúdo físico.

2. Um quadro alternativo

Como se sabe, a estratégia de Field assume uma visão realista da ciência – em particular,
um compromisso com pontos espaço-temporais – para articular uma abordagem anti-
realista da matemática. Ora, essa estratégia não está de imediato disponível a um em-
pirista na ciência, que precisa defender o anti-realismo matemático. Mais do que isso,
aqueles empiristas que também adotam a abordagem semântica parecem colocar-se
em uma posição mais difícil. Pois, eles parecem ser realistas sobre matemática (em
particular, sobre os modelos matemáticos da teoria considerada) com o objetivo de
serem empiristas na ciência. Na apresentação da abordagem espaço-temporal, Van
Fraassen afirma:

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Modalidade, abordagem semântica e mecânica quântica

Para definir um tipo de sistema físico, especificamos antes de tudo o conjunto de


estados aos quais ele está capacitado. Fazendo isso formalmente, o que especifi-
camos é uma coleção de entidades matemáticas (números, vetores, funções) a ser uti-
lizada para representar esses estados; a essa coleção posso denominar o espaço
estado (desse tipo de sistemas) (Van Fraassen, 1972, p. 311; grifo meu).

Eu argumentarei, então, que a proposta de Van Fraassen não tem que assumir
uma perspectiva realista em matemática para deslanchar. E, dessa forma, o empirismo
construtivo pode tornar-se compatível com o anti-realismo matemático.
A idéia principal, que posso apenas esboçar aqui, é combinar a interpretação
modal-estrutural da matemática de Hellman (1989) com a versão de Van Fraassen de
abordagem semântica. O ponto de Hellman é que, embora seja do interesse da mate-
mática o estudo de estruturas, isso pode ser feito focalizando-se apenas estruturas pos-
síveis e não reais. Assim, a interpretação modal não se compromete com estruturas
matemáticas; não há referência a elas como objetos, ou a quaisquer objetos que acon-
teça “constituir” tais estruturas. Assim, evita-se o compromisso ontológico com estru-
turas: a única afirmação é que as estruturas consideradas sejam possíveis.
Para articular esse ponto, são tomados dois passos: o primeiro é apresentar um
esquema de tradução em termos do qual cada afirmação matemática ordinária S é con-
siderada como elíptica para um enunciado hipotético, nomeadamente: que S poderia
inserir-se em uma estrutura de tipo apropriado.6 Por exemplo, se estamos consideran-
do enunciados número-teoréticos, tais como aqueles articulados na aritmética de Peano
(abreviando, PA), as estruturas que nos interessam são “progressões” ou “ω-seqüên-
cias” que satisfaçam os axiomas de PA. Em tal caso, cada enunciado particular S deve
ser (grosseiramente) traduzido como

∀X(X é uma ω-seqüência que satisfaz os axiomas de PA → S se insere em X)

Este é o componente hipotético da interpretação estrutural-modal, que recebe de Hellman


uma análise detalhada e uma formulação precisa (cf. Hellman, 1989, p. 16-24). O com-
ponente categórico constitui o segundo passo (p. 24-33). A idéia é assumir que as estru-
turas de tipo apropriado são logicamente possíveis. Nesse caso, temos que:

◊∃ X (X é uma ω-seqüência que satisfaz os axiomas de PA).

6 A interpretação estrutural-modal é formulada em uma linguagem modal de segunda-ordem baseada em S5. En-
tretanto, para não se comprometer com uma caracterização conjunto-teorética dos operadores modais, Hellman
considera esses operadores como primitivos (cf. 1989, p. 17, 20-3).

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Seguindo essa abordagem, as traduções preservadoras da verdade dos enuncia-


dos matemáticos podem ser apresentadas sem custos ontológicos, dado que se assume
apenas a possibilidade das estruturas em questão. E como Hellman mostra, em deta-
lhes, usando o esquema de tradução e de instrumentos de codificação apropriados, a
aritmética, a análise real, e mesmo a teoria de conjuntos podem ser nominalisticamente
englobadas (cf. Hellman, 1989, p. 16-33, 44-7, 53-93). Em particular, Hellman en-
fatiza que “utilizando-se instrumentos de codificação, virtualmente toda a matemáti-
ca comumente encontrada nas teorias físicas correntes pode ser nominalizada no in-
terior da [análise real de segunda ordem]” (1989, p. 45-6).
Ora, a abordagem de Hellman se defronta com as exigências de Van Fraassen de
que não deveríamos reificar a modalidade. Como visto, na perspectiva de Van Fraassen,
a modalidade tem uma função crucial tanto na ciência como na interpretação que dela
fazemos, mas este papel não é reificado, porque “o discurso modal descreve carac-
terísticas dos nossos modelos, não características do mundo” (Van Fraassen, 1989,
p. 214). Na abordagem de Hellman, operadores modais são usados para restringir as
“características de nossos modelos”, restringindo as estruturas que satisfariam certas
afirmações matemáticas. Como Hellman faz notar, na interpretação modal,

possibilia não são reconhecidos como objetos (...). Mais do que isso, nós não
quantificamos sobre mundos possíveis ou intenções; simplesmente usamos ope-
radores modais (Hellman, 1989, p. 59).

Em outras palavras, o discurso modal é, similarmente, não reificado. Ele é em-


pregado como um substituto para a ontologia, permitindo ao nominalista reformular a
matemática de uma forma “ontologicamente” aceitável.
As abordagens de Hellman e Van Fraassen têm uma atitude similar para com a
modalidade: em ambos os casos, resiste-se à necessidade de reificação do discurso
modal. Nesse plano, tudo que o empirista precisa ajustar é o papel representacional da
matemática, a saber, seu uso para representar estados de um sistema físico. Como vi-
mos, esta é uma característica da matemática requerida pela abordagem do estado-
espaço. Mas este papel não pode ser prontamente ajustado pela interpretação de
Hellman, dadas as traduções modais preservadoras da verdade das afirmações mate-
máticas. Ora, ao invés de quantificar sobre números, vetores e funções, tudo que o
empirista precisa é da possibilidade de estruturas que satisfaçam as condições impos-
tas pela matemática platônica sobre esses objetos. Isso é suficiente para cumprir o pa-
pel representacional exigido.
Exemplificando: a possibilidade de que haja estruturas na análise funcional que
satisfaçam as condições de um espaço Hilbert (separável) é suficiente para o empirista

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Modalidade, abordagem semântica e mecânica quântica

representar estados de um sistema quântico em termos de operadores Hermiteanos


convenientes. E a nominalização modal-estrutural de análise real de segunda-ordem
provê o quadro no qual os conceitos requeridos para se formular espaços de Hilbert
podem ser adequados. A idéia é mostrar que podemos codificar esses conceitos em
termos de números reais – os últimos são obtidos nominalisticamente, é claro, via in-
terpretação modal da análise real de segunda-ordem.
Como é usual para os fundamentos da mecânica quântica, podemos pensar em
estados quânticos em termos de quadrado-integrável, funções de valorização-com-
plexa em um dado espaço real. Além disso, tendo por base o espaço de Hilbert, temos
uma coleção contável de funções contínuas. Como Hellman indica,7 podemos repre-
sentar estados quânticos arbitrários neste espaço por uma seqüência contábil de fun-
ções básicas, cada uma delas codificada por um número real. Resulta que obtemos – no
nível de variáveis de segunda-ordem de análise real – não apenas operadores lineares
nestas funções, como também subespaços fechados do espaço de Hilbert (que são
identificados com operadores de projeção). Finalmente, se o espaço de Hilbert é sepa-
rável, podemos identificar cada subespaço S com uma coleção contável C = {fι} de vetores
básicos tais que C transpõe S e C é denso em S. E, dado que podemos codificar cada fι
como um real, cada subespaço também pode ser codificado. Portanto, podemos repre-
sentar qualquer medida de probabilidade como uma função de reais a reais, isto é, no
nível da análise real de segunda ordem. Em outras palavras, não é necessário reificar o
discurso matemático para formular a mecânica quântica. A possibilidade das estruturas
relevantes na análise real de segunda ordem acrescida de instrumentos de codificação
adequados é suficiente para a representação.
Convém notar que apenas a matemática é “desmodalizada” nessa estratégia. Pois,
como dissemos acima, usando simplesmente a modalidade, não esvaziamos o conteú-
do físico da teoria. Desse modo, o agnosticismo de Van Fraassen para com entidades
inobserváveis na ciência (tais como elétrons, prótons, neutrinos etc.) é inteiramente
compatível com esse avanço na filosofia da matemática.
Em outros termos, uma vez que desviemos a discussão da ciência para a aborda-
gem semântica, torna-se claro que o conteúdo físico de uma teoria T não é removido
modalizando-se a matemática. Provê-se o conteúdo físico por meio de um apropriado
isomorfismo (parcial) entre os modelos da teoria e os modelos dos fenômenos. Ora,
utilizando-se a abordagem de Hellman, o empirista dispõe de uma estratégia para
adequar essa afirmação “estrutural” sem custos ontológicos. A noção de isomorfismo
pode ser formulada na lógica de segunda ordem, e os modelos relevantes podem ser

7 Neste ponto, sigo Hellman, 1989, p. 112-3.

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Otávio Bueno

formulados em termos de uma interpretação modal-estrutural. O conteúdo físico de T


surge da existência de morfismos apropriados entre tais modelos. Mas este é um fato
empírico no sentido de depender, em primeiro lugar, dos fenômenos que estejamos
tentando ajustar. Portanto, torna-se claro que o conteúdo físico de T não é “desmoda-
lizado” pela modalização do quadro matemático subjacente.
Dessa forma, refuta-se a maior objeção de Field à idéia de que a modalidade possa
ser um substituto geral para a ontologia. Além disso, dispomos aqui de um acondicio-
namento que permite ao empirista construtivo ser um anti-realista não só na ciência,
como também na matemática.

Traduzido do original em inglês por Carolina Ferreira Ribeiro do Val

Otávio Bueno
Department of Philosophy
University of South Carolina
Columbia, SC 29208, EUA
obueno@sc.edu

abstract
According to the indispensability argument, we ought to be ontologically committed to mathematical
entities, given that they are indispensable to our best scientific theories. Hartry Field (1980) has famously
resisted the argument, developing a program to reformulate scientific theories without quantification
over mathematical objects. In particular, Field worked out in detail the nominalization of Newtonian
gravitacional theory, indicating how the theory could be formulated without quantification over real num-
bers. Field also provided an argument why the use of modal operators doesn’t providean adequate stra-
tegy to nominalize scientific theories. In this paper, I discuss Field’s argument against the claim that
modality can be a general surrogate for ontology. After resisting this argument, I indicate an alternative
picture that makes it clear why modality can play such a role.

Keywords ● Semantic approach. Quantuum mechanics. Modality. Van Fraassen. Constructive empiricism.

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Modalidade, abordagem semântica e mecânica quântica

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