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1891: ESCRAVIDÃO, LIBERDADE, PRIVILÉGIOS E TRADIÇÃO1

Hilton Costa2

Nós nem cremos que escravos outrora


Tenha havido em tão nobre País...
Hoje o rubro lampejo da aurora
Acha irmãos, não tiranos hostis.

Somos todos iguais! Ao futuro


Saberemos, unidos, levar
Nosso augusto estandarte que, puro,
Brilha, ovante, da Pátria no altar !
(Hino à Proclamação da República)

Aos quinze dias do mês de novembro do ano de mil oitocentos e oitenta e nove, uma
articulação entre Militares insatisfeitos com as suas possibilidades de ação política com integrantes
e representantes da Agricultura nacional somados a uma juventude letrada deu início a República
dos Estados Unidos do Brasil. Esta fórmula explicativa, extremamente sintética, de evento tão
central à História do Brasil – a modificação de Regime Político – proporciona a percepção de
algumas ideias bastante importantes da forma como a trajetória nacional é interpretada.3
O Governo Imperial em suas ações imediatamente anteriores a Proclamação da República
levou as elites brasileiras visualizar no horizonte próximo a possibilidade do rompimento dos
princípios estamentais postos a organizar o país. O elemento chave para tal circunstância se deu aos
treze dias do mês de maio de mil oitocentos e oitenta e oito: a Abolição da Escravidão. As
1Texto apresentado no 8º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Porto Alegre (UFRGS), de 24 a 27 de
maio de 2017. Anais completos do evento disponíveis em http://www.escravidaoeliberdade.com.br/

2 Doutor, Universidade Estadual de Maringá, hcosta@uem.br.Este trabalho está vinculado à minha pesquisa de
pós-doutoramento, realizada no Programa de Pós Graduação em História da UFPR, A República dos Estados Unidos
do Brasil: a igualdade desigual e outras peculiaridades (2015) e ao meu projeto de pesquisa na Universidade
Estadual de Maringá, Cidadania Política e Teorias Raciais no início da República no Brasil.

3 Versões diferentes da presente discussão foram apresentadas no VII Seminário Nacional Sociologia e Política,
realizado em Curitiba de 11 a 13 de maio de 2016, com o título: “Nós nem cremos que escravos outrora/tenha havido
em tão nobre país...”: As Teorias Raciais e a Constituição de 1891; e no XIII Encontro Regional de História da ANPUH-RS.
Ensino, Direitos e Democracia realizado em Santa Cruz do Sul – RS – de 18 a 21 de julho de 2016, com o título: Antes
da lei a política cidadania política, teorias raciais e a constituição de 1891.

1
discussões acerca do fim do escravismo, bem como os debates e alterações nas condições para a
posse da cidadania civil e política que se estabeleceram com maior vigor na década de 1870, na
relação aos períodos anteriores, atingindo maior fôlego na década seguinte, os anos 1880, onde, por
exemplo, se efetivaram a Reforma Eleitoral de 1881, a Lei dos Sexagenários em 1885 e a Lei Áurea
de 1888. A crise e o subsequente fim da escravidão foi elemento relevante senão central para
viabilizar a instalação da República no Brasil. A combinação destas situações podem ter suscitado a
visualização de uma possível queda dos princípios estamentais.
A instalação da República dos Estados Unidos do Brasil – de modo empírico – pelos
Militares, notadamente, pelo Exército. A participação civil, dos denominados republicanos
históricos, responsáveis pela propaganda republicana foi relativamente pequena, no que diz respeito
a instalação de fato do Regime Republicano. A atuação popular em prol da República ou em defesa
da Monarquia foi reduzida. Como registrado por Aristides da Silveira Lobo, 1838-1896, e discutido
por José Murilo de Carvalho.4 Os Militares também conduziram a formação do Governo Provisório,
1889-1891.
Esta interpretação acerca da Proclamação da República é em muito derivada da versão
monarquista dos fatos.5 Tal interpretação se não é predominante é muito corrente. Entretanto, esta
versão não se configuraria na versão dos “vencidos”? De modo a ser viável a indagação como a
interpretação dos “vencidos” tornou-se hegemônica e ou recorrente? A argumentação que se segue
busca colaborar nesta discussão.
Em se retornando ao Governo Provisório, 1889-1891, coube ao Marechal Manuel Deodoro
da Fonseca, 1827-1892, a chefia do Governo. Em tal condição o Marechal Deodoro da Fonseca
convocou eleições parlamentares em 1890 para a formação de um Congresso Constituinte. Ao final
deste mesmo ano começaram os trabalhos do primeiro Congresso Constituinte da história da
republicana do Brasil.
Para a discussão que segue as principais fontes são os Annaes do Congresso Constituinte do
Brasil e a Constituição de 1891. Entende-se aqui que estas fontes são bastante importantes para a

4 CARVALHO, José Murilo. Os bestializados. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.

5 Esta observação me foi feita por Alexandro Dantas Trindade no VII Seminário Nacional Sociologia e
Política, realizado em Curitiba de 11 a 13 de maio de 2016.

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argumentação que se seguirá, pois tal documentação é elucidativa de que tipo de República se
pretendia instalar no Brasil. E isto pode ser tratado em pelo menos duas chaves interpretativas: a da
República que veio – aquela que empiricamente se instalou; e aquela que se gostaria de ter.
As discussões presentes nos Annaes do Congresso Constituinte do BrasiI, bem como o texto
final da Constituição de 1891 permitem perceber as articulações entre a escravidão, a liberdade, os
privilégios e a tradição se articularam. Em meio a este cenário almeja-se visualizar se o desejo de
rompimento com a ordem de base estamental estava presente ou não na organização da nascente
República.
Ao se caminhar nesta direção a observação da questão da cidadania, da cidadania política se
torna bastante elucidativa da tentativa ou não de rompimento com os princípios estamentais, isto
porque com a República vislumbrar a ampliação do universo da igualdade não seria despropositado.
Entretanto, concomitantemente a crise do escravismo, seu consecutivo fim e ao início do período
republicano está o auge da circulação, apropriação e utilização das teorias raciais pelas elites
brasileiras.6 A utilização mesmo que instrumental das teorias raciais pode ser interpretado como
uma forma de inovar para manter. As teorias raciais eram naquele contexto o novo, uma forma de
conhecimento cientificamente validada à época, que serviria bastante bem para manter a tradição
brasileira: as bases estamentais da sociedade.
Os debates que levaram ao estabelecimento da Constituição de 1891 se realizaram em um
ambiente marcado pelas teorias raciais, o novo em termos da ordem científica daquele momento,
que poderia ser utilizado para manter o antigo. Desta feita, mostra-se viável indagar: nos debates
parlamentares as teorias raciais tiveram algum espaço? Na nascente República dos Estados Unidos
do Brasil o racialismo marcou a discussão sobre a cidadania? O texto final da Constituição de 1891
não possui elementos abertamente racialistas, todavia antes da lei existe a política, neste espaço o
racialismo teve lugar? Estes questionamentos encontram nos Annaes do Congresso Constituinte do

6 SKIDMORE, Thomas E.. Preto no Branco. Raça e Nacionalidade no Pensamento Brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1976; CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: A escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. 2.ª.
Bragança Paulista: Editora da Universidade São Francisco, 2001; VENTURA, Roberto. Estilo Tropical: história
cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Cia. das Letras, 1991; SCHWARCZ, Lilia Katri
Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Cia. das
Letras, 1993.

3
Brasil um ambiente interessante para serem verificados permitindo ainda verificar a articulação
entre escravidão, liberdade, privilégios e tradição.

Que se registre: sobre as fontes

Os Annaes do Congresso Constituinte do Brasil são as fontes centrais para discussão aqui
colocada, de modo a se mostrar pertinente algumas considerações metodológicas sobre este tipo de
documentação. Registro oficial da atividade parlamentar os Annaes são isto, tal condição faz com
que eles sejam submetidos a um processo de editoração, depuração até sua liberação para a consulta
pública. Este processo não é obliterado no Annaes, os pedidos de alterações por parte dos
parlamentares é usual e registrado na documentação algo que evidencia a elaboração do discurso
público, em termos daquilo que é construído para ser público e legado para a posteridade.
Destaca-se aqui um momento onde é possível observar a referida situação, ela ocorreu na
50.ª Sessão do Congresso Constituinte ocorrida em 7 de fevereiro de 1891.

O Sr. Antão de Faria – Sr. Presidente, pedia a palavra para fazer rectificação, formular um reparo e levantar um
protesto.
Quando, respondendo ao repto que desta tribuna lançou á maioria da representação rio-grandense o Sr.
Demétrio Ribeiro, fallava meu illustre comproviciano Assis Brasil, eu no momento em que S. Ex., referindo-se
a um telegramma que daqui fora passado para o Sul, dizia que, fazendo aquella revelação, não tinha o
propósito de offender a quem quer que fosse, observei em aparte, que o orador era incapaz de, sem motivo
dirigir offensa a qualquer de seus collegas. Este aparte foi de certo mal tomado, pois, no discurso de S. Ex. vejo
substituída a palavra – offensa – pelo termo injustiça.
Ora, Sr. Presidente, como V. Ex. sabe, qualquer de nós pode, por circumstancias diversas formular apreciações
erroneas emittir conceitos injustos, e, portanto, facil é comprehender que apesar da elevada consideração que
me inspira o meu patrício, eu não poderia julgar isento desta fraqueza tão própria da natureza humana. (Annaes
do Congresso Constituinte tomo III p 512-13)

O deputado Antão de Faria promoveu a retificação de seu aparte na tribuna, marcando a


necessidade de se depurar, ajustar o discurso publicado nos Annaes. Em 30 de janeiro de 1891, na
44.ª Sessão do Congresso Constituinte o deputado Thomaz Flôres opinou de maneira contrária a
ajustes/omissões nos Annaes, disse o parlamentar:

Lastimo também as questões que se têm agitado no seio da honrosa Assembléa, alheias á materia
constitucional. Sei bem neste recinto se deve cogitar, especialmente, da confecção da lei fundamental da nossa
Pátria; sou egualmente, refractario á controversia de questões domesticas partidarias que não interessem ao

4
Congresso Constituinte, sendo certo que, por índole, também afasto-me, quanto posso de contendas pessoaes, o
que sempre escandaliza a respeitabilidade desta Casa.
Assim é que, bem a pezar meu, Sr. Presidente, fui levado a bem da verdade e da justiça, a dar apartes ao meu
contraposição Sr. Demétrio Ribeiro, em contraposição ao que dizia então esse meu comprovinciano. Taes
apartes não figuram em seu discurso publicado no Diario Official de hoje.
(Annaes do Congresso Constituinte tomo III p 396).

O sentido da edição dos Annaes, provavelmente era realizado no intuito de deixar nítido – do
ponto de vista do parlamentar – as opiniões a serem legadas para a posteridade. Apesar de em
inúmeras ocasiões, em exercícios de retórica, os parlamentares afirmarem o contrário. Uma fala do
deputado Thomaz Flôres é elucidativa nesta direção

Venho uma reclamação acerca da omissão de apartes mim dados, quando em sessões passadas occupavam esta
tribuna alguns membros deste Congresso – apartes que desejo ver publicados no Diario Official, - não pela
vaidade (que não tenho) de ver minhas palavras lavradas nos Annaes da Constituinte brazileira, pois que me
contento com a minha obscuridade, que muito prezo, de brazileiro republicano e soldado, mas pelo motivo de
que os apartes por mim proferidos, eu os reputo de importancia moral para o julgamento de homens e cousas
da actualidade política. (Annaes do Congresso Constituinte tomo III p 396).

A edição, alteração dos Annaes, mais do que algum tipo de “fraude”, inverdade é um
elemento revelador da construção do discurso público dos parlamentares. Ação que também
demonstra o esforço dos parlamentares em controlar a maneira como a sua atividade política seria
lembrada. A fala construída para ser pública, para ser utilizada no debate público é a que interessa
aqui, por se ter no horizonte a intenção de compreender como formalmente o parlamento
constituinte pensou trajetória do país para elaborar a Carta que deveria dar novo rumo ao país. 7 A
ideia de recomeçar do zero o Brasil transparece no Hino à Proclamação da República nos seguintes
versos: “Nós nem cremos que escravos outrora/Tenha havido em tão nobre País.../Hoje o rubro
lampejo da aurora/Acha irmãos, não tiranos hostis.” O modo como a Escravidão extinta apenas um
ano antes da instalação do regime republicano no Brasil foi tratada no Hino República é igualmente
perceptível nos debates da Assembleia Constituinte de 1890-91. Esta relação com o passado
escravista teve implicações na Constituição de 1891, pois aspectos básicos daquilo usualmente
compreendido como direitos de cidadania republicanos continuavam apresentar forte característica
de privilégios. Direitos Civis e Direitos Políticos mantiveram sob a República uma aura de

7 POCOCK, John G. A.. Linguagens do Ideário Político. São Paulo: Edusp, 2003.

5
privilégio. O deslocamento de Direitos a condição de privilégios pode ser tratado na condição da
persistência da tradição, no caso em questão a escravista, em uma ordem pós-escravista e pós-
monárquica.

A década de 1890 e as Teorias Raciais no Brasil8

No que consiste o pensamento racialista? Tzvetan Todorov oferece em Nós e os outros, um


interessante panorama de como esta forma de pensar se organizava. Assim seguindo Todorov o
racialismo teria como base: 1) A crença na existência das raças: Os grupamentos humanos
apresentariam características físicas comuns, e as diferenças entre esses grupos evidenciariam a
existência da noção de raças, aqui assimiladas às espécies animais. Haveria entre duas raças a
mesma distância que entre o cavalo e o jumento: não é o bastante para impedir a fecundação
natural, mas suficiente para estabelecer uma fronteira que salta aos olhos de todos. Os racialistas
normalmente não se contentam em contar esse estado de coisas, mas desejam, ademais, que se
mantenham. São, portanto, contra os cruzamentos entre as raças 9; 2) A continuidade entre o físico e
o moral: Esta proposição caminha na direção de um determinismo específico, o físico ditando o
moral e predominando sobre o segundo. As raças não seriam simplesmente grupamentos humanos
de características físicas próximas, mas com características morais igualmente semelhantes,
definidas pelas primeiras; 3) A ação do grupo sobre o indivíduo: O racialismo apresenta suas
características de doutrina coletiva. As ações e comportamentos do indivíduo seriam determinados e
regidos pelo grupo racial ao qual pertence; 4) A hierarquia universal dos valores: O racialista, além

8 O trecho que se segue é uma versão de passagem de igual teor presente em COSTA, Hilton. O parasitismo como
herança: o conceito de hereditariedade social em Manoel Bomfim. Que por sua vez é versão alterada de uma discussão
presente em minha dissertação de mestrado em História defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
UFRGS, em 2004, sob o título de: Horizontes Raciais: A idéia de raça no pensamento social brasileiro – 1880-1920. p.
39-40. Esta discussão também está presente em “Nós nem cremos que escravos outrora/tenha havido em tão nobre
país...”: As Teorias Raciais e a Constituição de 1891, comunicação apresentada no VII Seminário Nacional Sociologia
e Política, realizado em Curitiba de 11 a 13 de maio de 2016 e em Antes da lei a política cidadania política, teorias
raciais e a constituição de 1891, comunicação apresentada no XIII Encontro Regional de História da ANPUH-RS.
Ensino, Direitos e Democracia, realizado em Santa Cruz do Sul – RS – de 18 a 21 de julho de 2016.

9 TODOROV, Tzvetan. Nós e os Outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. Vol. 1. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar editor, 1993, p. 108.

6
de apontar para as diferenças raciais, que também seriam culturais, aponta para a superioridade de
umas sobre as outras. Tal hierarquia quase invariavelmente é montada em cima de uma base
etnocêntrica, no caso abordado aqui, o eurocentrismo. Os valores que serviriam de ponto de partida
à mencionada hierarquia seriam os da Europa ocidental; 5) A política baseada no saber: O saber
acumulado pela cultura superior geraria uma proposição sobre uma política de harmonização do
mundo, segundo as considerações anteriores. “Assim, a submissão das raças inferiores, ou mesmo
sua eliminação, pode ser justificada pelo saber acumulado a respeito das raças”. 10 Então, a política
baseada no saber também pode ser lida como uma forma de legitimar a dominação de outros povos,
por eles não compartilharem do mesmo código de valores do dominador. 11
As teorias raciais chegaram ao Brasil com o “bando de ideias novas” trazidas ao Brasil nos
anos 1870. Na década seguinte o diálogo das elites brasileiras com as teorias raciais teve um fôlego
maior. O ideário racialista foi ganhando força no Brasil conforme o escravismo caminhava para o
seu fim. O auge da circulação, apropriação das teorias raciais teria ocorrido nos anos 1890,
justamente, no momento de instalação da República e da Promulgação da Constituição. 12 É
verificável que até os anos 1930 o ideário racialista ainda se manterá como um referencial
importante.
O ruir do sistema escravista no Brasil conduziu a sociedade local a se repensar,
notadamente, no que diz respeito ao seu ordenamento básico. A escravidão se constituía no marco
fundamental da organização da sociedade brasileira, o seu fim representaria o encerramento de um
sistema fundado na desigualdade: entre pessoas livres e pessoas escravizadas. A consequente
instalação da República em termos formais significaria o complemento da passagem para um

10 TODOROV, Tzvetan. Nós e os Outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. Vol. 1. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar editor, 1993, p. 110-111.

11 TODOROV, Tzvetan. Nós e os Outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. Vol. 1. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar editor, 1993, p. p 107-110.

12 SKIDMORE, Thomas E.. Preto no Branco. Raça e Nacionalidade no Pensamento Brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1976; CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: A escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. 2.ª.
Bragança Paulista: Editora da Universidade São Francisco, 2001; VENTURA, Roberto. Estilo Tropical: história
cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Cia. das Letras, 1991; SCHWARCZ, Lilia Katri
Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Cia. das
Letras, 1993.

7
sistema fundado na igualdade. Todavia, uma sociedade alicerçada em trezentos anos de escravismo
13
tende a manifestar alguma dificuldade em aceitar uma organização social pautada pela igualdade.
Concorda-se com Maria Clementina Pereira da Cunha quando a autora indica que: “Tampouco era
desejável para uma assustada classe senhorial, mesmo sua parte mais ‘esclarecida’, perder o posto e
mesmo a velha atitude diante daquela massa de libertos que iam adquirindo rapidamente o estatuto
de cidadãos.”14 “Ou seja, atitudes e posturas incorporadas desde muito tempo não mudam com
facilidade, ainda mais quando expressam vantagem as pessoas que as praticam.” 15 Ao se caminhar
nesta direção torna-se viável pensar que o fim do escravismo teve um impacto maior na visão de
mundo da sociedade brasileira que a Proclamação da República. Uma vez que a primeira, ao menos
em termos formais, rompeu com a ordem social anterior. O término da escravidão forçou as elites
brasileiras a formularem um novo discurso e uma nova narrativa para manterem as antigas
hierarquias. Saía o Direito adentrava a sala a Biologia. A Biologia era a Ciência que fornecia as
bases científicas, dava corpo às teorias raciais.16
As elites brasileiras fizeram, por assim dizer, uma adesão instrumental as teorias raciais, ela
se realizou numa relação direta com as demandas empíricas destas mesmas elites. Como já
mencionado o auge do pensamento racialista no Brasil teria sido nos anos 1890 (adentrando os

13 COSTA, Hilton. O parasitismo como herança: o conceito de hereditariedade social em Manoel Bomfim.
Monografia de Conclusão de Curso de Graduação em Ciências Sociais defendida no Departamento de Ciências Sociais,
DECISO, da Universidade Federal do Paraná, UFPR, 2009; _____________.A vida do senso comum: do racismo
científico do pós-abolição ao dia-a-dia contemporâneo. In: COSTA, Hilton; SILVA, Paulo Vinicius Baptista da. (orgs.).
Notas de História e Cultura Afro-brasileiras. Ponta Grossa/PR: Editora da UEPG/UFPR, 2007 p 129-144.

14 CUNHA, Maria Clementina Pereira. “Cousas futuras”: a previsão da cabocla do morro do castelo sobre os gêmeos
que começaram a brigar no ventre. In: ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e
cidadania negra no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 2009 p 15.

15 COSTA, Hilton. O parasitismo como herança: o conceito de hereditariedade social em Manoel Bomfim.
Monografia de Conclusão de Curso em Ciências Sociais defendida no Curso de Ciências Sociais da Universidade
Federal do Paraná, sob a orientação do Prof. Dr. Alexandro Dantas Trindade, 2009, p 15.

16 CUNHA, Maria Clementina Pereira. “Cousas futuras”: a previsão da cabocla do morro do castelo sobre
os gêmeos que começaram a brigar no ventre. In: ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da
dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 2009 p 18; COSTA, Hilton.
O parasitismo como herança: o conceito de hereditariedade social em Manoel Bomfim. Monografia de
Conclusão de Curso em Ciências Sociais defendida no Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do
Paraná, sob a orientação do Prof. Dr. Alexandro Dantas Trindade, 2009.

8
primeiros anos do século XX). Neste período surgem, por exemplo, obras como as de Raymundo
Nina Rodrigues, José Pereira da Graça Aranha e Euclides da Cunha. Estes autores (e vários outros
do período) ofereceram interpretações do Brasil (bem como soluções para o país) calcadas no
racialismo. A coincidência entre a instalação da República e o auge do pensamento racialista pode
ser tratado de diversas formas. Concorda-se aqui com as autoras e autores que propõe ser tal fato
diretamente vinculado. O estabelecimento da igualdade jurídica teria alimentado a utilização do
ideário racialista – uma vez que este daria suporte à manutenção as desigualdades anteriores. 17 A
palavra República traz consigo, desde pelo menos fins do século XVIII, a ideia de igualdade,
todavia uma República não precisa do princípio da igualdade entre as pessoas para existir. Para o
período abordado o entendimento do que deveria ser a igualdade era algo extremamente ambíguo.
Era recorrente tomar que a igualdade só valeria para as pessoas admitidas como iguais. Tal maneira
de entender a igualdade alimentava o debate acerca de quem poderia a ser admitido no mundo dos
iguais. O liberalismo Lockeano, por exemplo, defendia que a igualdade era para os titulares da
propriedade, o racialismo pressupunha a igualdade para as pessoas no mesmo “patamar de
evolução”.

1891: Escravidão, Liberdade, Privilégios e Tradição

A tradição só é negada por aqueles que jamais a romperão, porque não percebem seus traços e portanto são
incapazes de enfrentá-la; o que é diferente não teme as afinidades eletivas com aquilo de que se afastou. 18

Theodor Adorno, 1903-1969, em um texto sobre Joseph Freiherr von Eichendorff, 1788-
1857, afirma que a tradição, no caso deste autor, a literária era negada somente pelas pessoas que
jamais romperiam com ela. E ao contrário as pessoas que não negavam a tradição dialogavam com
ela, seriam as pessoas capazes de se despreender da tradição e trazer o diferente. As considerações

17 CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: A escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. 2.ª. Bragança
Paulista: Editora da Universidade São Francisco, 2001; SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz. O Espetáculo das Raças:
cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Cia. das Letras, 1993; ALBUQUERQUE,
Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 2009

18 ADORNO, Theodor. Em memória de Eichendorff. In: Notas de Literatura I. 2.ª ed. São Paulo: Duas
Cidades/Editora 34, 2012 p 92

9
de Adorno são inspiradoras para pensar a forma como os fundadores da República brasileira lidaram
com a tradição, eles a negavam veementemente no discurso, mas na prática o que se via era, em
grande medida, o contrário. A tradição, notadamente, os princípios estamentais eram colocados e
mantidos sob novas vestimentas. Nesta direção, as considerações Arno J. Mayer são bastante úteis.
Mayer busca demonstrar na obra A força da tradição, a persistência do Antigo Regime como os
ideais aristocráticos foram se reinventando para se manter na França depois da Revolução de 1789,
durante a Era Napoleonica, passando pela Monarquia de Julho, pelo II Império. As premissas da
ordem aristocrática teriam se mantido mesmo com a ascensão da burguesia e dos valores burgueses
a condição hegemônica. O exemplo mais evidente desta situação dentro da obra de Mayer está no
momento em que o autor discute a formação do racialismo francês. Este teria se estabelecido muito
mais para manter ou reforçar as hierarquias internas da França do que para justificar o domínio
colonial francês em diferentes partes do mundo. O racialismo francês, para Mayer, argumentava que
as elites dirigentes, notadamente, a aristocracia seriam descendentes dos conquistadores Francos.
Portanto, de origem germânica, ariana assim racialmente superior ao povo que por esta linha
raciocínio teria suas origens na miscigenação entre gauleses e romanos, logo considerados
racialmente inferiores. A constituição de um argumento “científico”, “moderno”, “novo” para
justificar o antigo, as posições sociais tradicionais. Este esquema explicativo abria, evidentemente,
espaço para incorporar elementos da burguesia em ascensão, tal flexibilidade permitia a renovação
dos antigos valores sob novas vestimentas. Insere-se algumas pessoas para manter a maioria fora,
ou melhor, dentro, mas nos seu lugar específico.19
Todas as pessoas dentro, mas cada qual no seu lugar, esta premissa é bastante nítida no que
diz repeito a parte prática da instalação da República brasileira. É a igualdade desigual combinada a
a inclusão hierárquica. Estes mecanismos foram bastante presentes na era a imperial, a Constituição
Imperial revela isso. Outorgada aos vinte quatro dias do mês de março de mil oitocentos e vinte e
quatro, 1824 pelo Imperador Dom Pedro I, após a dissolução da Assembleia Constituinte, a
Constituição do Império do Brasil, vigorou até novembro de 1889, a mais duradoura do Brasil
independente. A Carta Magna do Império trazia já no Título 2.º Dos Cidadãos Brazileiros em seu
Artigo 6.º quem seria civilmente considerado cidadão brasileiro

19 MAYER, Arno J.. A força da tradição. A persistência do antigo regime 1848-1914. São Paulo: Cia. das Letras. 1987.

10
Art. 6. São Cidadãos Brazileiros
I. Os que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingenuos, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez
que este não resida por serviço de sua Nação.
II. Os filhos de pai Brazileiro, e Os illegitimos de mãi Brazileira, nascidos em paiz estrangeiro, que vierem
estabelecer domicilio no Imperio.
III. Os filhos de pai Brazileiro, que estivesse em paiz estrangeiro em sorviço do Imperio, embora elles não
venham estabelecer domicilio no Brazil.
IV. Todos os nascidos em Portugal, e suas Possessões, que sendo já residentes no Brazil na época, em que se
proclamou a Independencia nas Provincias, onde habitavam, adheriram á esta expressa, ou tacitamente pela
continuação da sua residencia.
V. Os estrangeiros naturalisados, qualquer que seja a sua Religião. A Lei determinará as qualidades precisas,
para se obter Carta de naturalisação

O texto constitucional do Império não obliterava, muito pelo contrário, evidenciava a


presença de níveis diferentes de cidadania. De modo a ser a cidadania civil uma espécie de primeiro
nível, necessário para alcançar os demais, todavia ela não era garantia o acesso aos outros níveis de
cidadania. Assim, era preciso, obviamente, possuir a cidadania civil, para possuir a cidadania
política, esta por sua vez também possuiria níveis distintos. Veja-se o Título 4.º Capítulo VI Das
Eleições

CAPITULO VI.
Das Eleições.

Art. 90. As nomeações dos Deputados, e Senadores para a Assembléa Geral, e dos Membros dos Conselhos
Geraes das Provincias, serão feitas por Eleições indirectas, elegendo a massa dos Cidadãos activos em
Assembléas Parochiaes os Eleitores de Provincia, e estes os Representantes da Nação, e Provincia.
Art. 91. Têm voto nestas Eleições primarias
I. Os Cidadãos Brazileiros, que estão no gozo de seus direitos politicos.
II. Os Estrangeiros naturalisados.
Art. 92. São excluidos de votar nas Assembléas Parochiaes.
I. Os menores de vinte e cinco annos, nos quaes se não comprehendem os casados, e Officiaes Militares, que
forem maiores de vinte e um annos, os Bachares Formados, e Clerigos de Ordens Sacras.
II. Os filhos familias, que estiverem na companhia de seus pais, salvo se servirem Officios publicos.
III. Os criados de servir, em cuja classe não entram os Guardalivros, e primeiros caixeiros das casas de
commercio, os Criados da Casa Imperial, que não forem de galão branco, e os administradores das fazendas
ruraes, e fabricas.
IV. Os Religiosos, e quaesquer, que vivam em Communidade claustral.
V. Os que não tiverem de renda liquida annual cem mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou
Empregos.
Art. 93. Os que não podem votar nas Assembléas Primarias de Parochia, não podem ser Membros, nem votar
na nomeação de alguma Autoridade electiva Nacional, ou local.
Art. 94. Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de
Provincia todos, os que podem votar na Assembléa Parochial. Exceptuam-se
I. Os que não tiverem de renda liquida annual duzentos mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou
emprego.

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II. Os Libertos.
III. Os criminosos pronunciados em queréla, ou devassa.
Art. 95. Todos os que podem ser Eleitores, abeis para serem nomeados Deputados. Exceptuam-se
I. Os que não tiverem quatrocentos mil réis de renda liquida, na fórma dos Arts. 92 e 94.
II. Os Estrangeiros naturalisados.
III. Os que não professarem a Religião do Estado.
Art. 96. Os Cidadãos Brazileiros em qualquer parte, que existam, são elegiveis em cada Districto Eleitoral para
Deputados, ou Senadores, ainda quando ahi não sejam nascidos, residentes ou domiciliados.
Art. 97. Uma Lei regulamentar marcará o modo pratico das Eleições, e o numero dos Deputados relativamente
á população do Imperio.

A diferenciação em quem podia votar daqueles que podiam votar e ser votado vigorou até
1881. A lei eleitoral de 1881 acabou por extinguir as eleições em dois graus, eliminando, em termos
formais, as figuras do votante e do eleitor, todos os alistados passariam a ser eleitores. Sinal de
possível quebra dos princípios estamentais. Essa forma de pensar a cidadania, em diferentes níveis,
se adequava bem para uma sociedade fundada em princípios estamentais como a do Império do
Brasil. Entretanto, até os anos 1880 não se configurou necessário e mesmo se evitou fazer uso das
premissas oriundas das teorias raciais para justificar e ou sustentar o ordenamento social vigente. Os
políticos imperiais optaram, em grande medida, por estabelecer critérios de ordem institucional
como filtros a inclusão hierárquica das pessoas à sociedade. Acreditava-se que as instituições
moldavam as pessoas e não naquilo proposto pelo racialismo que as pessoas moldavam as
instituições.20
Se por um lado é possível inferir que os princípios estamentais eram coerentes com a
ordem monárquica, a manutenção deles na Constituição da República é algo a chamar a atenção,
notadamente, quando se pensa no discurso e na promessa republicana de modernidade e igualdade.21
A Carta de 1824 procurou logo de início indicar quem seriam os cidadãos do Império, uma
interpretação possível para esta ação é a de que como a cidadania era um privilégio dizer de
imediato quem teria poderia acessá-la conformava-se em uma premissa essencial. A Carta de 1891,
por sua vez, apresentou somente no Título IV Dos cidadãos brazileiros as informações acerca de

20 COSTA, Hilton. O navio, os oficiais e os marinheiros: as teorias raciais e a reforma eleitoral de 1881. Tese de
Doutorado defendida no Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, sob a orientação
do Prof. Dr. Carlos Alberto Medeiros Lima. Curitiba, 2014.

21 SCHWARCZ, Lilia Moritz. ___________________. “Os povos não sentem da mesma maneira”: Nina Rodrigues e
o Direito Penal. In: HOCHMAN, Gilberto; TRINDADE, Nísia. Médicos intérpretes do Brasil. São Paulo: Hucitec,
2015. p 3-26.

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quem seriam os cidadãos da nascente República. Este título está na segunda metade da Carta
Constitucional, a opção da Assembleia Constituinte de 1890-91, foi primeiramente definir as
instituições republicanas e posteriormente a cidadania republicana. Observe-se o referido Título IV
Dos cidadãos brazileiros

TITULO IV
Dos cidadãos brazileiros
SECÇÃO 1
DAS QUALIDADES DO CIDADÃO BRAZILEIRO
Art. 69. São cidadãos brazileiros:
1º Os nascidos no Brazil, ainda que de pae estrangeiro, não residindo este a serviço de sua nação;
2º Os filhos de pae brazileiro e os illegitimos de mãe brazileira, nascidos em paiz estrangeiro, si
estabelecerem domicilio na Republica;
3º Os filhos de pae brazileiro, que estiver noutro paiz ao serviço da Republica, embora nella não venha
domiciliar-se;
4º Os estrangeiros, que, achando-se no Brazil aos 15 de novembro de 1889, não declararem, dentro em seis
mezes depois de entrar em vigor a Constituição, o animo de conservar a nacionalidade de origem;
5.º Os estrangeiros, que possuirem bens immoveis no Brazil, e forem casados com brazileiras ou tiverem
filhos brazileiros, comtanto que residam no Brazil, salvo si manifestarem a intenção de não mudar de
nacionalidade;
6º Os estrangeiros por outro modo naturalisados.
Art. 70. São eleitores os cidadãos maiores de 21 annos, que se alistarem na fórma da lei.
§ 1º Não podem alistar-se eleitores para as eleições federaes, ou para as dos Estados:
1º Os mendigos
2º Os analphabetos;
3º As praças de pret, exceptuando os alumnos das escolas militares de ensino superior;
4º Os religiosos de ordens monasticas. companhias, congregações, ou communidades de qualquer
denominação, sujeitas a voto de obediencia, regra, ou estatuto, que importe a renuncia da liberdade individual.
§ 2º.São inelegiveis os cidadãos não alistaveis

A evidente presença de diferentes níveis de cidadania em uma Constituição Republicana que


pregava a igualdade em sua promessa chama a atenção. Pois, como indicado por José Murilo de
Carvalho, Lilia Schwarcz entre outros autores e autoras os militantes republicanos divulgavam o
novo regime como um marco para o fim dos privilégios. Todavia, o próprio José Murilo de
Carvalho anotou que no Brasil “a igualdade jacobina do cidadão foi aqui logo adaptada às
hierarquias locais: havia o cidadão, o cidadão-doutor e até mesmo o cidadão-doutor-general.” 22
Na prática o que se percebe é a manutenção cidadania civil um tanto quanto ampliada de um
lado, coadunando com o aquilo que ocorreu no Império pós 1881 e 1888, todavia de outro persistiu

22 CARVALHO, José Murilo. Entre a liberdade dos antigos e a dos modernos: A República no Brasil. In:
Pontos e Bordados. Belo Horizonte: Ed. UFMG. 1998 p 94.

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uma cidadania política em níveis. A igualdade desigual republicana manifesta-se, por exemplo, no
tratamento dado aos mendigos e analfabetos, estas pessoas são excluídas da cidadania ou de alguns
níveis da cidadania. De modo a ser viável questionar a definição de mendigo, pois se por um lado
pode ser relativamente fácil definir quem é analfabeto, afirmar categoricamente quem é mendigo
não é tão simples. Como definir mendigo? Mendigo seria a pessoa sem a residência fixa? As
pessoas sem emprego fixo? As pessoas que vivem de doações? A legislação sobre a vadiagem
estabelecida pelo Código Penal da República visava responder tais questões, todavia ela primava,
justamente, pela fluidez. Fluidez da categoria vadio/mendigo, esta característica permitia aos
operadores legais ora incluir mais (portanto, excluir mais pessoas da cidadania), ora excluir (assim
incluindo mais pessoas na cidadania), assim ela poderia ser tomada como um grande “filtro” de
acesso a cidadania.
Este “filtro” a priori não teria nada de racialista, entretanto, na década de 1890 quais pessoas
se enquadrariam na categoria mendigo/vadio se ela contemplasse ausência de emprego fixo,
residência fixa, qual grupo populacional seria o mais atingindo pelo analfabetismo? Muito
provavelmente as pessoas egressas da escravidão. Uma desagradável coincidência. Não é
demasiado mencionar que o fim da escravidão não foi acompanhado de nenhuma política específica
de apoio para as pessoas egressas do mundo do cativeiro.23
A República mais do que o Império visou dissimular seu viés estamental, desta feita ações
que prejudicariam mais diretamente a população negra foram formalizadas na condição de leis
universais. Evitaram-se políticas abertamente segregacionistas e ou racialistas, como por exemplo,
sugeria Raymundo Nina Rodrigues24 a opção foi por aquilo muito bem definido por Wlamyra
Albuquerque por um jogo de dissimulação. 25 Fazer sem parecer que fez, parecer igual mantendo a

23 O mundo do cativeiro aqui é uma referência a todo o mundo de relações sociais que o escravismo criou.
Ademais o fim da escravidão não foi acompanhado de nenhuma política de distribuição de terras, de
alfabetização, por exemplo.

24 SCHWARCZ, Lilia Moritz. ___________________. “Os povos não sentem da mesma maneira”: Nina
Rodrigues e o Direito Penal. In: HOCHMAN, Gilberto; TRINDADE, Nísia. Médicos intérpretes do Brasil.
São Paulo: Hucitec, 2015. p 3-26.

25 ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São
Paulo: Cia. das Letras, 2009.

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desigualdade. Deste modo, os versos do Hino da República, citados no início deste artigo, “Nós
nem cremos que escravos outrora/tenha havido em tão nobre país...”, podem ser interpretados sob a
seguinte conotação: os parlamentares encarregados de fazer a primeira Constituição republicana do
Brasil em suas falas tratam a escravidão como algo pertencente a um passado muito, mas muito
distante daquele momento onde eles atuavam na elaboração da carta constitucional republicana.
Vale lembrar que os parlamentares constituintes trabalhavam em 1890-1 a escravidão havia se
encerrado em 1888.
A Moção, apresentada pelo deputado baiano José Joaquim Seabra (1855–1942), na 13.ª
Sessão, em 20 de dezembro de 1890, de apoio ao Governo Provisório pela destruição dos arquivos
da escravidão é reveladora desta posição.26

O Sr. Seabra (pela ordem): Peço a palavra, Sr. Presidente para apresentar a consideração da Casa uma moção
que me parece não poder deixar de ser approvada pelo Congresso. Refere-se Ella ao facto de haver o Governo
mandado extinguir os últimos vestígios da escravidão. A moção acha-se assignada por grande numero de
senadores e deputados, e espero que o Congresso, fará justiça e prestará devida homenagem ao patriótico
Governo Provisório, que acabou de uma vez para sempre com aquillo que era a nossa vergonha, a pagina negra
da história do Brazil.
Vem a Mesa, é lida e posta em discussão a seguinte

Moção

O Congresso Nacional congratula-se com o Governo Provisório por ter mandado fazer eliminar dos archivos
nacionaes os últimos vestígios da escravidão no Brazil.

Em 10 de dezembro 1890.27
(Annaes do Congresso Constituinte tomo I p 787)

Com efeito, esta maneira de tratar o passado escravista é coerente com o modo como a Carta
de 1891 e as leis complementares trataram as pessoas egressas do mundo do cativeiro: sem
nenhuma política específica. Não existiu uma política abertamente segregacionista como também
não se assumiu nenhuma política reparatória. Eis o jogo de dissimulação evitar a segregação aberta
não significa necessariamente incorporar em igualdade mínima de condições as pessoas egressas do

26 A posição de J. J. Seabra e a dos signatários da moção não foi aceita de maneira inconteste, o deputado
por Minas Gerais, Francisco Coelho Duarte Badaró, mostrou-se contra, Annaes do Congresso Constituinte
Tomo I p 788, contudo posições como a de J. J. Seabra são majoritárias.

27 A moção foi votada e aprovada.

15
cativeiro. A elaboração e a efetivação de políticas específicas de auxílo (ou de segregação) para as
pessoas egressas do cativeiro foram, em grande medida, interpretadas como uma ação posta a
manter a escravidão “viva” no presente e a escravidão era algo que queria “apagar”. De outro lado a
ausência de políticas específicas (de auxílio ou de segregação) para a população egressa do cativeiro
pode ser lida numa chave racialista: deixar esta população a sua própria sorte “na luta pela
sobrevivência do mais apto”. A expectativa era que esta população desaparecesse “naturalmente”.
De maneira, semelhante aos políticos imperiais, os políticos republicanos (aliás, eram basicamente
as mesmas pessoas) até onde se pode verificar fizeram a opção por posições mais próximas do
institucionalismo, no sentido já indicado aqui, as posições racialistas eram mobilizadas sempre
dissimuladas em ações supostamente universais. Os contornos, ou melhor, alguns dos contornos que
a República de 1889 assumiu, em especial, sua dificuldade em reconhecer a tradição para com ela
romper, como se prometia, pode ter sido um elemento importante para que a narrativa dos
“vencidos” – mencionada no início desta argumentação – tenha adquirido tanta circulação e
aceitação. Tudo mudou para que ficasse o mais parecido possível com aquilo que já existia. 28 A
República em termos práticos fez pouco para efetivar o rompimento com os princípios estamentais.
A República instalada em 1889 que teve sua Carta Constitucional Promulgada em 1891
lançou a Escravidão a um passado distante, manteve a Liberdade como uma quimera para as
pessoas egressas do cativeiro, uma vez que as políticas reparatórias pós-escravismo não vieram, a
cidadania seja a civil, seja a política continuou a ser na prática um Privilégio assim 1891 foi o novo
colocado para manter o antigo: a Força da Tradição.

28 Difícil não recordar do romance o Leopardo. LAMPEDUSA, Giuseppi Tomasi di. O Leopardo. São Paulo: Nova
Cultural, 2003.

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