PECULIARIDADES DE
E. P. THompson*
Alexandre Fortes
Antonio Luigi Negro
Paulo Fontes
[.«]ahistéria nfo pode ser comparada a
‘um tinel por onde tum trem expresso corre
até levar sua carga de passageiros em dire-
‘slo a planicies ensolaradas, Ou entio,
caso 0 seja, geragdes apés geragées de
passageitos nascem,vivem na escuridio e,
enquantoo trem ainda esté no interior do
‘winel, af também mortem. Um historia
dor deve estar decididamente inceressa
ddo, muito além do permitide pelos teleo-
logistas, na qualidade de vida, nos sofri-
mentos¢ satisfages daqueles que vivem
‘e morrem em tempo no redimido.
E. P. THoMrson, “As peculiatidades dos ingleses”
* Agradecemos a Adelaide Gonsalves, Cliudio Nascimento ¢ Huw Beynon
a cessfo de virios textos usados aqui
anVida ¢ historia
ascido em Oxford a 3 de fevereiro de 1924, Edward
Palmer Thompson cra uma pessoa de muitas idéias, muit:
palavras ¢ muitas atitudes, Isso ndo significa que fosse vol
vel; a0 contrario, suas motivagoes foram bastante estaveis,
nente,
nodo duradouro, Dono de um
Idéias, palaveas € atitudes se alimentaram mutu
refletindo-se na sua vida de
pensamento habil e original, elogiiente e apaixonado, lan-
gou-se em imimeros “combates pela histéria”. Nao se tra-
tou, aligs, de campanhas circunscritas 4 u
salas de aula € a encontros académicos. Muito além desses
recintos, sua biografia foi marcada pela imbricag3o entre a
histéria estudada a historia vivida
Durante a Segunda Guerra Mundial, Thompson inter-
rompeu seus estudos na Universidade de Cambridge (onde,
NK
iversidade, as
a acompanhar 0 caminho do irmio mais velho Fr
havia aderido ao Partido Comunista) e foi servir no E
cito, sendo deslocado para as frentes africana ¢ italiana, (Hé
registros sobre ter sido oficial de comando.)? No fim do
conflito, carregava consigo as esperangas abert
t6ria sobre o nazi-fascismo € com a ascensio de forsas de
esquerda em virios paises europeus, tanto no “Leste” como
no “Ocidente”. Porém, igualmente, trazia uma grande dor,
a morte de Frank, capturado € executado em 1944 na Bul-
giria (a quem Eric Hobsbawm — como se pode ler nessa
coletinea — reputa ainda mais brilhantismo).?
Formado em 1946, Thompson alistou-se como volu
tério em uma brigada de solidariedade 4 Iugoslivia e co}
tribuiu para 0 reerguimento do pais ao lado de outros vo-
luntérios (com origens as mais diversas), participando da
construgio de estradas de ferro. Ai ficou até 1947. No ano
seguinte, casou-se com Dorothy Towers, com quem parti-
s coma vi-
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Ihara nao sé a experiéncia de brigadista como também o
interesse pelo ativismo politico e pela histéria social (de
fato, Dorothy € uma das maiores especialistas em histéria
do cartismo).?
Entre fins dos anos 40 € meados dos 50, Thompson
dedicou-se intensamente a grandes predilegOes suas: a tra-
digo da dissidéncia,* a educagio “popular” (ou de adultos),
num ramo universitério elassificado como “extramuros”,
xtracurricular”, porque dirigido a um publico nao acadé-
mico, ¢ 0 Partido Comunista da Gra-Bretanha (Peon), do
gual sairia em 1956, convencido da necessidade de um “so-
cialismo humanista”, indo engajar-se na New Left (Nova
Esquerda),
Em 1963, foi impresso seu mais famoso livro, A for
magao da classe operdria inglesa, instantaneamente acolhido
como profundamente renovador — nao s6 no campo da
histdria operiria, diga-se. Dois anos depois, jf reconhecido
como pesquisador, publicou “As peculiaridades dos ingle-
ses”, ensaio que constitui o nucleo fundador desta cole-
tinea, Em ambos os trabalhos, desponta seu dom de aliar
4 boa escrita, a incisividade de suas afirmasées € 0 pendor
& polémica. Além da epigrafe deste artigo, destacamos do
preficio de A formagao® nio 86 a tradicional passagem na
qual afirma pretender resgatar os excluidos da histéria dos
imensos ares de condescendéncia da posteridade”, mas
ainda outro trecho — lido com igual entusiasmo em di-
ferentes épocas e lugares — no qual rejeita a leitura histé-
rica feita “2 luz da evolugao posterior”, apontando “causas
[--] perdidas na Inglaterra”, mas que podem ser “ganhas
na Asia ou na Africa”. (E na América Latina, acrescen-
ramos.)
Em meio a tantos outros, esses momentos da obra de
‘Thompson, que versou nao s6 acerca do movimento oper’
23rio, mas também sobre crime, protestos (individuais e cole-
tivos) € o cardter tradicional e ativo da cultura popular,
concorreram decisivamente para inspirar ¢ dar forma e con-
tetido a um modo diverso de se pensar, pesquisar, analisar
€ redigir a historia, vista a partir “de baixo”. A amplidio
de suas pesquisas ¢ a forga de suas interrogagdes € reflexio
Ihe garantiram 0 que o tradicional establishment universi-
tério britinico Ihe negou: uma recep¢io entusidstica. Se-
gundo Christopher Hill, na Europa, India, Austrilia, Bra-
sil e Estados Unidos, cle tem sido o historiador britinico
mais reconhecido.® Essa disseminagio mundial se deve,
centre varias razdes, a uma postura caracteristica: “somente
ao encarar a oposig4o sou minimamente capaz de organi
zar meus pensamentos”, Thompson revelou.”
debate, a polémica e os compromissos politicos
assumidos, aspectos determinantes tanto para sta distancia
unite a academia quanto para o largo alcance de seu trab:
Iho, so decorréncia nao s6 da experiéncia da luta antifas-
cista ou da militincia no Partido Comunista, na Nova Es-
querda, no movimento pacifista, ou ainda da sta formasao
familiar. As bases para a repulsa ¢ o apoio foram angariadas
nas salas de aula onde Thompson encontrava interlocugio
€ estimulo, classes freqiientadas por homens e mulheres
comuns (trabalhadores manuais, bancérios, funciondrios de
escrit6rio, profissionais da seguridade social e professores
da rede de ensino nao universitéria), durante os cursos de
educagio de adultos da Universidade de Leeds. “Quando
falava com eles do mundo do trabalho”, relembrou,
percebia uma tradigio oral muito vivaz ¢ um grande
ceticismo com relasio a histéria oficial. Com fre~
aglleneia, esse ceticismo est4 bem fundamentado. Por
4
exemplo, os livros dizem simplesmente que em ral
ou qual ocasiso foi aprovada uma série de leis sobre
a jornada de trabalho, Porém nao contam como me-
ninos eram escondidos em cestas erguidas até 0 eto.
quando da passagem dos inspetores.*
Os desdobramentos desse encontro the valeram o fei-
to de enfrentar, com firmeza de opiniao € original anilise,
varias visdes consagradas da Historia Inglesa Oficialmente
Correta. Mencionadas no preficio de A formagao, a escola
funcionalista, a marxista estruturalista, a ortodoxia fabiana,
4 ortodoxia dos historiadores econdmicos empiricos, bem
como a ortodoxia do Progresso do peregrina, foram cncata-
das com posigdes cultivadas desde 1948, quando se mu-
dou para Halifax e trabalhou para a Universidade de Leeds
Lecionando extramuros
Aos 24 anos, Thompson foi admitido nos quadros do
Departamento de Cursos de Extensio da Universidade de
Leeds. Fundado em 1946, o departamento fazia parte da
expansio da universidade inglesa no pés-guerra, ¢ seu che-
fe era 0 economista Sidney Raybould, muito reputado na
época. Apontado como o grande responsivel pela respeita-
bilidade adquirida pelo departamento — um dos maiores
no setor extramuros —, Raybould se notabilizou por sua
atuagio na drea administrativa e por sua iniciativa quanto
a publicagées, ganhando a confianga da diregao da ut
sidade.”
Como vimos, Thompson foi militante do Partido
Comunista até 1986 € foi, portanto, como membro dese
partido que viveu o periodo de euforia e retragio politicas
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