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Palavras-chave
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 3, p. 791-806, jul./set. 2015. http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022015031914 791
The LGBT movement and gender and sexual diversity
education policies: losses, gains and challengesI
Abstract
This article explores the relation between the State and social
movements in the production of public education policies focused
on gender and sexual diversity. This reflection takes as its main
sources two recent investigations dedicated to understanding the
introduction of gender and sexual diversity into public education
policies in Brazil during the Luiz Inácio Lula da Silva government:
one livre-docência thesis (VIANNA, 2011) and another work
that investigated how the curriculum policies were understood,
appropriated and implemented by public school teachers in the
state of São Paulo (VIANNA, 2012). The purpose of this article is
to look at the production of these policies from the viewpoint of
the tensions present in the dialogue between the Lula government
and the social demands made by the LGBT (Lesbian, Gay, Bisexual,
and Transgender) movement to reduce inequality and to construct
social rights. By discussing gains, losses and future challenges,
the text highlights the contradictions found in the processes of
interlocution between the government and the LGBT movement.
When the government introduces gender and sexual diversity
demands in education, it seems to be willing to value the theme
without considering the power relations that determine the
traditional parameters supporting gender relations and teaching
I- A first version of this article was identities in daily school life.
presented as a work commissioned by
the Workgroup on Social Movements,
Subjects and Education Processes for Keywords
the 35th Annual Meeting of Associação
Nacional de Pós-Graduação e pesquisa
em Educação (ANPED) — National Education — Public policies — Gender — Sexual diversity — LGBT
Association of Graduate Studies and movement.
Research in Education), to whom the
author wishes to express her gratitude.
She also acknowledges the support of
CNPq and the invaluable collaboration
of the undergraduate student Natália da
Cruz and of the MA student Liane Rizatto,
as well as the careful reading of the text
made by Maria Cristina Cavaleiro and
Elisabete Oliveira.
II- Universidade de São Paulo, São
Paulo, Brazil.
Contact: cpvianna@usp.br
792 http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022015031914 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 3, p. 791-806, jul./set. 2015.
Os conceitos e o recorte de Cunha (2002), que o exame do processo de
análise elaboração das políticas educacionais deve
partir da identificação dos respectivos grupos
A reflexão aqui apresentada procura que reivindicam do Estado interesses concretos,
explorar alguns dos pontos para os quais venho de cunho material ou simbólico. Mais do que
buscando respostas ao longo de duas décadas uma análise lógica, as políticas públicas de
de investigações acerca da relação entre Estado educação exigiam uma análise sociológica dos
e movimentos sociais na produção de políticas campos sociais que disputam e/ou se articulam
públicas de educação, sob a ótica das relações em torno de interesses por vezes contraditórios.
de gênero e da diversidade sexual. São pontos Nessa arena de relações conflituosas, a busca
alinhavados ano a ano e, ainda hoje, resta a por compreensão dessas políticas implicou
impressão de que muito se tem por fazer. Os examiná-las enquanto respostas materializadas
resultados aqui expostos são modestos e tomam na forma de documentos, planos, programas e
como fontes principais duas investigações ações (VIEIRA, 2007).
mais recentes voltadas para a compreensão da Focada em um único governo, com dois
introdução do gênero nas políticas públicas mandatos, privilegiei a crítica à concepção
de educação no Brasil no governo Lula. A monolítica de Estado, dando destaque à
primeira delas, com resultados publicados compreensão de seu caráter dinâmico e
em minha tese de livre-docência (VIANNA, heterogêneo, que ao mesmo tempo produz
2011), examinou a produção acadêmica sobre e sofre as consequências da luta pela
a introdução do gênero e da sexualidade nas concretização de ideais democráticos e é posto
políticas educativas e constatou a ênfase dessas em ação pelos diferentes governos, sendo
políticas no currículo e na formação docente. o principal responsável pelo atendimento
A segunda investigação verificou como as dessas demandas (O’DONNELL, 1980, 1981;
políticas voltadas para o currículo – propostas POULANTZAS, 1980).
no âmbito do Estado – foram compreendidas, Foram de grande valia os estudos de
apropriadas e implementadas por professoras Debbie Epstein e Richard Johnson (2000) a
e professores de escolas públicas do estado de respeito do caráter sexuado do Estado e de
São Paulo (VIANNA, 2012). suas políticas nacionais e locais que interpelam
Com base nas informações obtidas nas e regulam várias das concepções de família,
investigações mencionadas, a intenção neste reprodução, educação, entrelaçadas com
artigo foi olhar a produção das políticas públicas a construção das relações de gênero e da
de educação voltadas para o gênero e para a diversidade sexual. Em suas investigações,
diversidade sexual, a partir dos tensionamentos ambos os autores demonstram a relação
presentes na interlocução do governo de Luiz entre nacionalidade e sexualidade presente
Inácio Lula da Silva em seus dois mandatos na regulação das identidades sociais, sendo
com demandas por diminuição da desigualdade a escola uma das instituições importantes
e construção de direitos sociais. de seleção, veiculação, reconhecimento ou
Nesse sentido, políticas públicas foram negação de direitos.
aqui entendidas como Estado em ação. Ou Nesse caso, o foco empírico do recorte
seja, o governo assume, por determinado proposto dirigiu-se para demandas de
período, as funções do Estado por meio de educação de apenas um movimento social:
programas e planos que envolvem diferentes o que representa lésbicas, gays, bissexuais,
órgãos públicos, organismos e instâncias da transexuais e transgêneros (LGBT)1 junto ao
sociedade relacionadas à política implementada 1- São muitas as representações envolvidas, além das várias mudanças
(HÖFLING, 2001). Considerei, com Luiz Antônio na sigla representativa desse movimento no Brasil. A mais comum, GLS
794 Cláudia Pereira VIANNA. O movimento LGBT e as políticas de educação de gênero e diversidade sexual: perdas...
O movimento LGBT recorre a uma rede pressionam por novas políticas públicas.
imensa com diversos protagonistas e posições (VIANNA, 2011, p. 209).
políticas distintas, aglutinando demandas e
reivindicações. Apesar de não ser o foco deste Foi nessa conjuntura que se deu o
trabalho, torna-se imprescindível registrar o crescimento das próprias políticas de educação
papel do feminismo e sua interlocução com o na área, mais “instigadas pelas tentativas de
movimento LGBT, além de sua influência junto corrigir as desigualdades”, como lembra Miguel
ao Ministério da Educação (MEC), materializada Gonzalez Arroyo (2010, p. 1381).
em muitas das pautas da Secretaria de Política A interlocução contínua com os
para as Mulheres. Eu diria até que a relação estudos de gênero permitiu a adoção do
tensa e contraditória entre esse movimento gênero enquanto categoria analítica capaz de
social e setores do governo responsáveis pelas produzir conhecimento sobre o processo social
políticas de educação introduziu (para não dizer e historicamente determinado de controle dos
impôs) novos conceitos e aprendizados. corpos, por meio de formas explícitas ou muitas
Esse é o caso do debate em torno da vezes não percebidas na produção de políticas e
homofobia nas escolas, da travestilidade, do nas relações estabelecidas no cotidiano escolar.
bullying homofóbico, entre outros (FERRARI, Somou-se a esse trajeto a reflexão crítica,
2004). Além disso, a formação docente que já no campo da diversidade sexual, sobre o
procurou descontruir identidades de gênero e que Judith Butler (1990, 2009) denomina de
veicular os principais conceitos nessa área teve matriz heterossexual, ou seja, a imposição da
como fortes protagonistas organizações não heterossexualidade como padrão.
governamentais e integrantes do movimen- A diferença como um possível critério
to LGBT, por meio dos editais do MEC e do para a defesa de interesses contra a discriminação
Programa Brasil Sem Homofobia. Ao organiza- passou a ser um foco importante nas tentativas
rem cursos e encontros, praticaram ações dire- de compreensão da produção das desigualdades
tas e criaram um campo de conflitos algumas na educação, cujas determinações mais amplas
vezes propício para a produção de novos apren- relacionavam-se com essa esfera específica.
dizados. Trata-se de um campo bem específico, Contudo, nos documentos e discursos
pois sei que, em outras articulações entre mo- que constituíam as políticas analisadas, a noção
vimentos sociais e governo, isso não ocorreu. de desigualdade foi muitas vezes subsumida ao
Mesmo com o foco dirigido apenas aos termo diversidade. O discurso da necessidade de
dois mandatos do governo mencionado, vale reconhecimento e do respeito à diversidade cul-
ressaltar, com relação à inclusão da ótica de tural teve seu início no final da Segunda Grande
gênero e da diversidade sexual nas políticas Guerra Mundial, quando as discussões acerca
públicas de educação, a importância das de raça, racismo, discriminação, etnocentrismo
mudanças ocorridas a partir de 1990, com adquiriram significativo redirecionamento.
maior evidência em meados dos anos 2000. O A utilização da ideia da diversidade tem na
contexto em que essas mudanças aconteceram UNESCO uma de suas principais propagadoras.
confirmou um Um dos exemplos encontra-se na Declaração
Universal sobre a Diversidade Cultural (UNESCO,
tenso processo de negociação que 2002), que destaca o respeito à diversidade como
determinou a supressão e/ou concretização meio de superação de conflitos:
de reformas, planos, projetos, programas
e ações implementados, separada ou [...] em nossas sociedades cada vez mais
articuladamente, pelo Estado e pelos diversificadas, torna-se indispensável
movimentos sociais e ações coletivas que garantir uma interação harmoniosa entre
796 Cláudia Pereira VIANNA. O movimento LGBT e as políticas de educação de gênero e diversidade sexual: perdas...
Educação para Todos (1990) e a Conferência de de acesso como via para a promoção da equidade
Cúpula de Nova Delhi (1993). O primeiro evento social, pressupondo igualdade de oportunidades,
foi convocado e financiado pelo Banco Mundial “compensação das diferenças, desenvolvimento
(BM), Organização das Nações Unidas para equilibrado e coeso do corpo social em seu
a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), conjunto, o que é promovido pela adequação à
Fundo das Nações Unidas para a Infância eficácia – metas – e à eficiência – meios” (CEPAL;
(UNICEF) e Programa das Nações Unidas para UNESCO, 1995, p. 201).
o Desenvolvimento (PNUD). Segundo seus Por meio da diversidade cultural,
patrocinadores, o evento preocupou-se em supunha-se diversificar o ensino, de forma a
discutir a formação de todos na educação incluir peculiaridades locais como, por exemplo,
básica e a qualidade do ensino, considerando a eliminação de atitudes discriminatórias e
o incremento das oportunidades educacionais a convivência com as diferenças a partir da
para o mundo em desenvolvimento. Resultou formação de valores pessoais. O problema é
também na assinatura da Declaração Mundial que, de acordo com essa concepção, incluir a
sobre Educação para Todos. Vale lembrar que: diversidade não mais abarcaria a superação das
bases materiais desiguais.
[...] o polêmico conceito de educação No caso das demandas do movimento
básica, sobre o qual divergem até mesmo os LGBT no âmbito das políticas públicas de
quatro patrocinadores do evento, prioriza a educação, cabe enfatizar que elas foram
educação primária, que, no caso brasileiro, precedidas por um longo processo de
correspondeu ao ensino fundamental. consolidação do movimento, cujas interlocuções
(SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, foram inicialmente voltadas para a área da
2002, p. 26). saúde, do combate à AIDS, que, aos poucos,
somaram-se ao combate à homofobia e às
Por sua vez, a Conferência de Cúpula agendas feministas.
de Nova Delhi, realizada em 1993, deu O movimento homossexual entrou
continuidade ao debate a respeito da proposta em cena no final de 1960 e início da década
de educação para todos, iniciada em 1990, dessa de 1970, na luta contra a ditadura militar
vez congregando os países mais populosos (GREEN, 2000), e, mais tarde, em diálogo com
do mundo, incluindo, portanto, o Brasil. No os movimentos sociais nascidos durante o
documento da Declaração de Nova Delhi processo de transição para a democracia, na
(1993), a inserção das reformas educacionais década de 1980. Foi também nessa década que
“sob o prisma de ajustes estruturais”, reforçava o movimento enfrentou a epidemia da AIDS e
a necessidade de universalização da educação concentrou-se na busca de respostas coletivas
elementar (educação básica) e da promoção ao seu combate, promovendo mudanças nas
de uma educação que favorecesse os valores políticas públicas de saúde.
humanos universais, incluindo o respeito à Em 1986, foi criado o Programa Nacional
diversidade cultural. de DST/AIDS, estruturado de modo mais efetivo
Nessa perspectiva, ganhou terreno a defesa a partir de 1988 e durante a segunda metade
da equidade como um dos pontos principais para de 1990, em função das urgências demandadas
a consolidação dos preceitos de uma sociedade pela epidemia da AIDS, de estudos a respeito
justa, igualitária e aberta à diversidade. A da homossexualidade na área de saúde (GÓIS,
educação recebeu centralidade estratégica e 2003). No campo das ações voltadas às políticas
passou a ser proclamada por diferentes organismos de prevenção das HIV/DST/AIDS, em 1994, o
e governos como eixo da produtividade com Ministério da Saúde elaborou o Programa
equidade, difundindo-se a ideia da oportunidade AIDS I com recursos financeiros oriundos
798 Cláudia Pereira VIANNA. O movimento LGBT e as políticas de educação de gênero e diversidade sexual: perdas...
com o objetivo de enfrentar várias dimensões organismos internacionais, como, por exem-
da desigualdade por meio da “articulação de plo, a Assembleia Geral da Organização dos
programas de combate à discriminação racial e Estados Americanos (OEA), organizada em
sexual com projetos de valorização da diversidade Medellín, Colômbia, em 2008. Por iniciativa
étnica” (BRASIL, 2004, p. 1). do Brasil, o evento aprovou a resolução Direitos
Com a inauguração dessa secretaria, te- Humanos, Orientação Sexual e Identidade de
mas antes marginalizados da pauta governa- Gênero. Nessa trajetória, vale destacar o obje-
mental começaram a ser negociados durante a tivo do MEC de construir novos direcionamen-
elaboração de algumas das políticas públicas de tos em suas políticas educacionais, de modo a
educação, já que esta foi incumbida de instituir contemplar a diversidade sexual.
uma agenda voltada para a inclusão da diver- É importante ressaltar que a elaboração
sidade, ampliando a participação da sociedade do BSH contou com aliados e adversários, esses
civil, reunindo gestores dos sistemas de ensino, últimos ligados à própria gestão pública, a parte
autoridades locais, representantes de movimen- da Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB) e
tos e organizações sociais. a parte de grupos evangélicos organizados,
Neste contexto, foi criado, em 2004, o tanto no legislativo quanto na sociedade civil.
Brasil Sem Homofobia: Programa de Combate Como aliados, dentro do próprio governo,
à Violência e à Discriminação Contra GLBT e gestores(as) e técnicos(as) acabaram por assumir
de Promoção da Cidadania Homossexual (BSH), sua sexualidade no processo de construção
cuja centralidade consistiu no combate à ho- do BSH, passando a apoiar o programa e a
mofobia, à violência física, verbal e simbóli- participar de sua elaboração (DANILIAUSKAS,
ca e na defesa das identidades de gênero e da 2011; JUNQUEIRA, 2009; ROSSI, 2010). Em
cidadania homossexual. A criação do BSH foi sua primeira gestão, o governo Lula contou
pautada pelo movimento social, iniciando-se com forte apoio das ONGs; na segunda, com
então o processo de construção do programa. parcerias de universidades.
Para tal, resgataram-se demandas históricas do No início, o BSH esteve mais voltado
movimento LGBT, além de parcerias com ONGs para questões de violência física e assassinatos
e universidades no processo de elaboração de de homossexuais. Porém, logo investiu em
justificativas, estruturação e formatação do do- outros temas, como, por exemplo, a cidadania,
cumento em questão. Sob a responsabilidade problematizando a questão da desigualdade de
da SDH, contou com o apoio do Ministério da direitos, identificada já no próprio título do BSH,
Saúde e do Programa Nacional de AIDS, prin- o que representou um avanço no tratamento da
cipal lócus de articulação do movimento LGBT questão por parte do governo e da agenda LGBT
com a referida secretaria. com a perspectiva de justiça social.
Durante a formulação do documento, Já no momento de lançamento do programa,
a SDH procurou dentro do governo quais os o problema que se apresentava era referente
ministérios e secretarias abertos ao tema e com aos parcos recursos a ele dispensados. Governo
acúmulo em relação à diversidade sexual. Esse e movimento LGBT travaram uma discussão
investimento reuniu a participação de vários acirrada acerca da possibilidade de se difundir
ministérios – entre eles Educação, Cultura, Saúde, tal programa sem uma estrutura orçamentária
Justiça, Trabalho e Emprego, Relações Exteriores – minimamente sólida (DANILIAUSKAS, 2011).
e várias secretarias, chegando a totalizar dezesseis O governo, porém, insistiu em seu lançamento,
ministérios envolvidos, em 2007. argumentando a favor de sua eficácia simbólica,
As pressões exercidas pelo movimento já que legitimaria as demandas LGBT no âmbito
feminista e pelo segmento LGBT somaram- das lutas por direito e cidadania, agora incluídas
-se também à ainda presente influência dos na agenda do governo Lula.
800 Cláudia Pereira VIANNA. O movimento LGBT e as políticas de educação de gênero e diversidade sexual: perdas...
movimentos de mulheres e LGBT - especialmente massivamente desenvolvido e produzido desde
quando se trata de introduzir demandas sobre um centro e transferido para as escolas. Porém,
diversidade sexual na educação -, as relações de programas e planos pensados pelo governo são
poder que determinam os parâmetros tradicionais incorporados de maneira complexa nas práticas
que sustentam as relações de gênero em nossa docentes, uma vez que nessa incorporação estão
sociedade ainda limitam as possibilidades de envolvidas ideias, experiências, significados e
consolidar conceitos como gênero e diversidade interpretações distintas. Essa maior visibilidade
sexual enquanto definidores de políticas públicas não garantiu que tais questões fossem abordadas
para a educação e de, assim, desestabilizar a em sala de aula da maneira considerada adequada
heteronormatividade e, sobretudo, a homofobia. pelo governo.
Resultados de investigação recente
Perdas, ganhos e desafios (VIANNA, 2012), com foco na introdução do gê-
futuros nero e da diversidade sexual nas políticas públi-
cas de educação voltadas para a formação, trou-
Um dos percalços a ser enfrentado é xeram elementos para a análise da relação entre
a própria fragilidade do uso do conceito de a formação continuada e alguns relatos sobre a
diversidade, o que: prática docente que supõem a necessária tensão
entre acolhimento, recusa e revisão de valores
[...] expressa, no limite, as disputas internas em relação ao gênero e à diversidade sexual.
e externas ao governo pela definição de Em um primeiro momento da investiga-
projetos educacionais propondo modos ção, realizei consultas na Secretaria de Estado da
distintos de responder às demandas de Educação de São Paulo e na Secretaria Municipal
movimentos sociais no reconhecimento de de Educação de São Paulo, e suas respectivas dire-
suas múltiplas diversidades. (MOEHLECKE, torias de ensino com a finalidade de mapear qual
2009, p. 484). a rede de ensino a ser escolhida. Ao final de 2010,
foram escolhidos doze docentes integrantes de um
Soma-se a esse entrave o fato de curso de formação continuada, com caráter opta-
que a própria inclusão da temática da tivo, voltado para o ensino fundamental II e para o
homossexualidade como um direito é ensino médio, da rede pública estadual de ensino
necessariamente marcada por disputas e da cidade de São Paulo. Conforme acordos com
resistências quanto à definição de suas a Secretaria de Educação, a Diretoria de Ensino
pautas e prioridades junto ao MEC (MADSEN, da região centro-oeste da rede estadual, na cidade
2008; JUNQUEIRA, 2009). Na tentativa de São Paulo, ficou responsável por sua coorde-
de apropriação pelo governo do discurso nação. Intitulado Convivendo com a diversidade
proposto pelo movimento, essa identidade sexual na escola, o curso foi oferecido, em 2006 e
tornou-se rotulada, os homossexuais foram 2007, por duas organizações não governamentais
tratados como se fossem todos iguais. Por sem fins lucrativos: Cidadania, Orgulho, Respeito,
outro lado, uma parte dessa identização Solidariedade e Amor (CORSA) e Comunicação
coletiva ainda segregada, tanto na sociedade em Sexualidade (ECOS), ambas com extenso cur-
quanto na escola, não conseguiu fazer valer rículo na realização de projetos de formação na
todos os seus mecanismos de reconhecimento temática de diversidade sexual e gênero.
nas políticas educacionais. Com base nos relatos das professoras e
Outro limite para a introdução dessas professores entrevistados, identifiquei, entre
temáticas a partir de políticas públicas de as dificuldades para a concretização de tais
educação gestadas no âmbito federal diz respeito políticas nas escolas, a defesa do caráter
à suposição de que um produto educativo seria privado da sexualidade e de sua restrição no
802 Cláudia Pereira VIANNA. O movimento LGBT e as políticas de educação de gênero e diversidade sexual: perdas...
O material é composto de um caderno As reivindicações do movimento
com atividades para uso de professores(as) em LGBT, as conquistas de direitos sociais de
sala de aula, seis boletins para discussão com sujeitos coletivos com história de segregação
alunos(as) e três audiovisuais, cada um com e o crescimento desses sujeitos enquanto
um guia, um cartaz e cartas de apresentação formuladores de políticas públicas impuseram
para gestores(as) e educadores(as). O convênio novos desafios teóricos e práticos para a própria
estabelecido com o MEC para a elaboração do kit elaboração dessas políticas, dando visibilidade
incluiu a capacitação de docentes e técnicos(as) ao caráter sexuado do próprio Estado (EPSTEIN;
da educação, além de representantes do JOHNSON, 2000). Mas não afirmo que esse
movimento LGBT de todos os estados do país, possa ser um caminho fácil.
visando à utilização apropriada do material Não cabe à política pública definir “quais
junto à comunidade escolar. expressões sexuais devem ser preferidas ou
Todavia, após pressão das bancadas observadas pelos indivíduos” (RIOS; SANTOS,
religiosas no Congresso Nacional, a presidente 2009, p. 153). Mas certamente a superação
Dilma Rousseff vetou o material em maio de da compreensão do sexo que nos funda,
2011, alegando sua inadequação. De acordo reduzindo-o às características físicas e naturais
com o MEC, o veto da presidente refere-se aos coladas à concepção biológica, à prevenção
três vídeos. O restante do conteúdo ainda será de doenças e à heterossexualidade, vista como
distribuído nas instituições públicas de ensino, universal e, portanto, a-histórica, é uma das
mas não há um prazo para tal. possibilidades de construção de uma educação
Enfim, a dinâmica de introdução do mais igualitária. O sistema educativo brasileiro
gênero e da diversidade sexual nas políticas segue ignorando a sexualização da infância e
públicas de educação envolveu desde os a existência das jovens e dos jovens LGBT. São
movimentos internacionais e nacionais que conflitos que configuram o próprio processo de
fizeram circular diálogos e protagonizaram identização docente, bem como as identidades
disputas até as contradições presentes no de gênero chanceladas nas relações escolares e
processo de negociação em torno das demandas nas ações governamentais. Portanto, o Estado
do movimento LGBT. Exemplo das contradições em ação, que envolve necessariamente os
inerentes a esse processo está no fato de que movimentos sociais na produção das políticas
o veto ao kit ocorreu no mesmo mês em que públicas e na prática de ações que modifiquem
o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu as identidades docentes e o cotidiano escolar,
a união estável para pessoas do mesmo sexo. supõe um processo educativo para todos nós,
São conflitos que estavam em jogo no processo em uma sociedade onde a segregação e as
de implantação de uma proposta ou reforma estratégias de esvaziamento das desigualdades
educativa e deveriam ser levados em conta são permanências históricas que devem ser
na criação e aplicação de planos e programas superadas também no âmbito das relações
elaborados no âmbito federal. sociais de gênero.
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Cláudia Pereira Vianna é professora doutora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e editora assistente
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