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SUPERINTENDENTE
Sérgio Augusto Soares Mattos
CONSELHO EDITORIAL
Alexandre Américo Almassy Júnior
Celso Luiz Borges de Oliveira
Geovana da Paz Monteiro
Jeane Saskya Campos Tavares
Léa Araújo de Carvalho
NadjaVladi Cardoso Gumes
Sérgio Augusto Soares Mattos (presidente)
Silvana Lúcia da Silva Lima
Wilson Rogério Penteado Júnior
SUPLENTES
Carlos Alfredo Lopes de Carvalho
Robério Marcelo Ribeiro
Rosineide Pereira Mubarack Garcia
EDITORA FILIADA À
Hugo Juliano Duarte Matias
ISBN: 978-85-5971-089-2
CDD 159.942
Ficha Catalográfica elaborada por Ivete Castro CRB/1073
Apresentação..................................................................................................9
A função da angústia..................................................................................13
A angústia em dois registros................................................................18
Angústia e o real, entre excesso e perda.............................................33
A função da angústia em causa: olhar e violência............................49
A angústia entre o trauma e a escrita..................................................71
A literatura como campo...........................................................................85
Ad augusta per angusta.............................................................................88
Alegoria, escrita e psicanálise..................................................................93
Aliud dicitur, aliud demonstratur .............................................................99
Verba volant, scripta manent................................................................. 104
Cominus et eminus.................................................................................. 113
A angústia na literatura.......................................................................... 125
A fissura do espaço............................................................................ 130
A fissura do tempo............................................................................. 139
A literatura e o metabolismo da angústia......................................... 151
Osman Lins e a literatura como selva............................................. 153
Da função da angústia ao desassossego na literatura.................... 157
Referências................................................................................................. 161
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APRESENTAÇÃO
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Alegoria da angústia
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pode ser apresentado como uma alegoria da angústia. A angústia, que não
faz discurso, mas o exige, é reencontrada, como é possível, sob a forma
do desassossego, a forma pela qual ela pode se inscrever no discurso, se
constituir escrita. Assim, o conceito de escrita é construído no interior de
nosso referencial analítico pelo recurso à ideia de alegoria, a alegoria em sua
virtude de servir à formalização dos impasses na arte.
No quarto capítulo são apresentados os resultados da análise, pro-
priamente dita, do texto Avalovara, de Osman Lins, por nós escolhido
como campo de investigação. O que nos interessa não é tanto o conteúdo
dessa obra, senão os procedimentos por ele empregados, sob a suposição
de que seriam os procedimentos a revelar formas variadas de concernir
um trabalho de angústia pela escrita. A hipótese a ser verificada neste
capítulo é de que a própria angústia é alegorizada sob a forma de um
desassossego da escrita, algo como uma necessidade de estranhamento
canônico e a consequente transmissão de inquietude ao leitor por meio das
formas literárias alcançadas. Não apenas a angústia como efeito alcançado
no processo de leitura. Principalmente, a angústia como ontologia dessa
escrita desassossegada.
A análise da angústia pelo recurso ao texto de Avalovara se concentrou
em duas grandes dimensões que são problematizadas nessa obra: o espaço
e o tempo, elementos fundamentais da literatura como representação. Pela
exploração desses dois elementos, a possibilidade de representação é levada
ao seu limite, até o ponto em que seus primeiros vacilos se produzem. Essas
duas dimensões são exploradas no uso que o texto faz de seus recursos
estilísticos com que cria experiências inesperadas de leitura: as hipopitoses
e ecfrases, os ornamentos e sua preocupação com simetria, equilíbrio,
proporção e ritmo, a montagem rigorosa e ao mesmo tempo hiperbólica e
enigmática das cenas, das imagens e personagens, dos espaços. Do mesmo
modo, quanto ao tempo, as diversas formas de recursividade, repetição, si-
multaneidade, assim como a descontinuidade são um princípio de construção
da experiência de tempo na leitura. De modo geral, o aperspectivismo de
tempo e espaço, a transitividade entre ordem e conquista ou reconquista
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A FUNÇÃO DA ANGÚSTIA
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Energia ligada
Tendência à estabilidade
Figura 1
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da pulsão sexual. Deve haver pulsões com uma qualidade diferente das
pulsões de morte, que modalizariam a tendência à extinção da própria
pulsão, segundo o princípio da descarga total e imediata, chamado por
Freud de princípio de Nirvana. Essas pulsões – as pulsões sexuais – devem
produzir o adiamento da extinção da pulsão, delimitando a satisfação sob
condição determinada. Assim, essa pulsão constituiria uma resistência ao
fim pulsional primitivo e originário. Essa qualidade pertenceria às pulsões
sexuais. A consideração de sua nova dualidade pulsional fez Freud ree-
xaminar alguns problemas cruciais de sua clínica. Um deles é a aparente
tendência ao esgotamento das pulsões sexuais e do princípio de prazer,
seu processo mental correspondente. Na verdade, essa tendência passa
a ser identificado ao princípio de nirvana, e, por conseguinte, à pulsão
de morte.
A pulsão de morte deve ser transformada, resistida, sob pena de
não sobreviver ao aparelho mental. A exigência de trabalho que representa
a pulsão de morte – da pulsão em seu estado primordial – é, portanto, a
tarefa de ligação. É esse propósito que cumprem as pulsões sexuais, ou
a sexualização das pulsões. Essa tarefa é anterior, primeira, e garante a
possibilidade de operação do princípio do prazer sobre essa excitação
sexualizada, a possibilidade de proporcionar a tramitação da pulsão por
vias de ligação que adiem relativamente a satisfação, de modo a evitar o
colapso do aparelho. Esse seria o papel desempenhado pela fantasia em
sua função na sexualização da pulsão de morte (COUTINHO JORGE,
2005), uma fantasia anterior àquela já discutida, uma fantasia originária,
“funda-mental”. No processo de ligação, o prazer não ocupa o papel mais
importante; entra em cena a necessidade de proteção do aparelho psíqui-
co. Portanto, duas transformações importantes da descrição freudiana da
economia pulsional: o fato de que não se pode mais identificar energia
livre e energia ligada, respectivamente, a processo primário e processo
secundário, já que – e esta seria a segunda transformação – haveria um
trabalho de ligação anterior ao princípio de prazer, em cujo processo se
admite alguma proporção de angústia.
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Energia ligada
Tendência à estabilidade
Tendência ao esgotamento
Figura 2
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Teste de realidade
Tendência à estabilidade
Tendência ao esgotamento
Figura 3
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Teste de realidade
Tendência à estabilidade
Tendência ao esgotamento
Figura 4
Note-se que as cinco regiões indicadas como (a) trauma, (b) se-
xualização, (c) angústia, (d) ligação e (e) fantasia, todas elas circunscritas
à intervenção do aparelho psíquico, no interior de sua área de trabalho,
são, contudo, regiões sombrias, em que o trabalho se realiza de modo
limítrofe. São regiões de gasto, de perda de sentido no que concerne à
situação analítica e que, ao mesmo tempo, conduzem os analistas a recu-
perar, no campo da construção de mitos, da investigação das condições
lógicas de apreensão fenomênica de sua clínica, por exemplo, o sentido
de seu trabalho e de sua orientação ética. São regiões de perda de sentido
para os analistas porque são também regiões de perda de sentido para os
analisantes, portanto, onde a fala é mais difícil se interpretar e também de
se articular. Não somente a fala, mas todas as formações do inconsciente
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≈ ≈
Figura 5
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não está por ter-se perdido. No entanto, gozo onde não haveria a falta,
pelo contrário, no corpo em que não falta, em que a pulsão seria capaz
de um curto-circuito, onde haveria excesso.
Segundo a descrição freudiana para o desenvolvimento habitual
desse processo de articulação entre desejo e gozo, o conflito entre o amor
incestuoso surgido no interior do complexo de Édipo e o interesse narcísico
dirigido ao falo é resolvido pelo predomínio do narcisismo, pelo qual a
criança aceita a interdição da satisfação fálica neste momento, na condição
de sustentá-la como promessa, e desinveste os pais. Com isso, o investi-
mento objetal neles é transformado em identificação, o que condiciona as
possibilidades posteriores de satisfação, pois também aquela autoridade
paterna é reconstruída subjetivamente, e isso perpetua a proibição do
incesto. Nesse processo, as novas possibilidades de satisfação são redese-
nhadas sob o paradigma fálico, o que, após um período de latência, vem
a se constituir como organização genital, herdeira nostálgica da satisfação
fálica e fadada também ao fracasso, juntamente com as outras formas
anteriores de organização. Isso representa muito bem a subjetivação neu-
rótica, como uma falha do processo, cheia de consequências, que Freud
descreve como “uma luta do Eu contra as exigências da função sexual”
(FREUD, 1925a/1996, p. 286).
Com isso, o complexo de castração exerce seus efeitos, não somente
como ameaça de perda do falo – numa relação com a realidade externa
– mas como arauto da insuficiência do próprio aparelho psíquico em
dar tramitação completa, destino final a todas as pulsões que o invadem,
isto é, do desamparo do psiquismo diante da pulsão (CELES, 1995). É
a castração, ou melhor, sua angústia, que mobiliza os détours de que fala
Freud (1938/1996), sofridos pela exigência de satisfação pulsional; ela é a
operadora da insistência estrutural da ameaça de dissolução do aparelho
mental. (VIEIRA, 2001, p. 64).
Angústia e castração são indissociáveis, no entanto, a castração é
produto final dos efeitos da contingência do mundo, isto é, produto de uma
fantasia que associa significação fantasiada da potência como virtualidade
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ou ou
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11 Por exemplo, com respeito à relação entre violência e sentimento de culpa, discutida
por Freud em O mal-estar na civilização (1930).
12 Machtbetätigung.
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14 Ano em que o trecho acima aludido é retirado dos Três ensaios e também o ano em
que foi publicado o texto A pulsão e seus destinos.
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Figura 8
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intervenção de pelo menos dois écrans (PASCHE, 2000), sendo pelo menos
um deles de responsabilidade direta do aparelho mental, para seu propósito
de lidar com o excesso de estimulação interna. Desse modo, o traumático
se desloca entre registros ou écrans, pelo que também se transforma.
Com o recurso que essa compreensão da Bemächtigungstrieb nos ofe-
rece, examinemos novamente o jogo do Fort-Da!
O que ele fazia era segurar o carretel pelo cordão e com
muita perícia arremessá-lo por sobre a borda de sua ca-
minha encortinada, de maneira que aquele desaparecia por
entre as cortinas ao mesmo tempo que o menino proferia
o seu expressivo ‘o-o-ó’. Puxava então o carretel para fora
da cama novamente, por meio do cordão, e saudava o
seu reaparecimento com um alegre ‘da’ (‘ali’)... grande reali-
zação cultural da criança, a renúncia pulsional (FREUD,
1920/1996, p. 26, grifos nossos).
17 Isso pode remeter a algum trabalho com o texto sobre A negativa (FREUD,
1925b/1996).
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18 Estamos nos referindo ao fato de que na descrição freudiana, trata-se de uma “cami-
nha encortinada” (verhängten).
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guarde a sua vida, é captado num traçado centrífugo, no qual estaria com-
pletamente desamparado não fosse a operação pela qual o sujeito se separa
da reserva libidinal, mais uma vez o apontamos, feita objeto, que para ele
representava um risco interno, “em razão de permanecer profundamente
investido no nível do próprio corpo, do narcisismo primário, daquilo a
que chamamos auto-erotismo, de um gozo autista” (LACAN, 1963/2005a,
p. 55). Ela representa risco por ser o que produz as fissuras na imagem
precoce e desorganizada do próprio corpo, aquela do momento anterior
à formação da imagem especular. Esta imagem implica agressividade, essa
“possibilidade sempre aberta ao sujeito, de um auto-quebramento, de um
auto-dilaceramento, de uma auto-mordida” (LACAN, 1961/1992, p. 341).
Ora, tal reserva não se transfere para o que retorna como imagem, porque
não pode ser projetada sobre ela. Trata-se do objeto a, como já dizíamos
e, com isso, descobrimos o parentesco entre a última versão do esquema
ótico lacaniano e aquilo que realiza o Fort-Da, conforme o esquema logo
abaixo (Figura 9). O que ele pretende sugerir é que o que é enviado para
trás do véu não é o mesmo que retorna e não se chega ao que desapareceu
no momento do Fort apenas somando o que retorna com o que teria se
perdido por trás do véu. Este é um processo de perda irreparável, portanto,
de transformação que ocorre entre um registro de outro.
(fort) (da)
A Ⱥ
x a -φ
(Ver)
Figura 9
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Bemächtigungstrieb
(ver e simbolizar)
Figura 10
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Por tudo isso, o olhar, não o olho ou a cena, mas o olhar é que deve ser
pensado como objeto.
O olhar multiplicado no sonho com os lobos teria captado de modo
compacto – o que teria relação com a imobilidade que se destaca no sonho
– o circuito pulsional de que a cena do coito dos pais oferece uma imagem
estendida. E esse circuito seria aquele descrito por Freud (1915c/1996)
como sendo o do olhar-se/olhar/ser olhado, ou ainda, como indica Lacan
(1964/1998), olhar-se/olhar/fazer-se olhar, sublinhando, desse modo, a
onipresença da dimensão de atividade que concerne sempre à pulsão em
seu circuito. O “fazer-se olhar” se confirma no relato segundo o qual o
menino – o Homem dos Lobos – que observava o coito dos pais garan-
tiu que se o vissem pelo ato de evacuar. Foi como esse recurso que ele
garantiu a atenção, o olhar sobre ele mesmo nesta cena. O “olhar-se”,
de um momento anterior àquele de onde parece iniciar-se a cena, isto é,
da observação do coito, tem autorizada a sua suposição pelo efeito de
injúria narcísica que do momento de olhar se pode deduzir, sendo este o
fundamento da compaixão do menino sentida pelo pai, cujo pênis havia
desaparecido. O olhar, no circuito aqui descrito – todo ele contido no
desenrolar-se da cena originária – se presentifica no momento traumático,
por ser aquele da culminação da captura do sujeito no campo do Outro.
Um circuito que pode ser descrito nos termos em que Lacan (1964/1998,
p. 169) o formulou (Figura 11, abaixo).
Figura 11
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que indicaremos aqui por (x), ele a apresenta como equivalente, em uma
dimensão, a (α), e em outra dimensão, a (γ). Embora (x) não tenha sido
explorada em sua relação com (β), propomos que justamente nessa rela-
ção ela corresponda à simultânea passivização na cena, o que, com efeito,
“isso mostra” no sonho: “o membro sexual se faz olhar por alguém” – (x)
Sexualglied von eigener Person beschautmachen22.
α x α x
β γ β γ
Figura 12
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Uma outra analogia pode ser útil para esclarecer todo o processo
que se pretende indicar. O trauma aí encenado, causado pelo objeto olhar
que comparece na cena originária e, posteriormente no sonho, aquele que
convoca uma pulsão de conquista, tem a estrutura da trama trágica segun-
do a concepção aristotélica, que mói os afetos nas engrenagens de seu
mecanismo. A referência aqui é à tragédia em sua concepção clássica. O
mau encontro, a distuquía a que alude Lacan (1964/1998) parece ser aquela
mesma que na “Poética” realiza a psuchagogei de Aristóteles (2007), isto é,
a captura da alma.É assistindo o infortúnio do herói trágico que somos
tomados pela trama que se nos apresenta. Ela, a trama, induz eleosefobos –
respectivamente, compaixão (Mitleid, no modo como Freud a apresenta
na descrição da lembrança traumática do Homem dos Lobos) relativa ao
pai e o terror (Schreck) a ele associado, em Freud (1918/1996). Importante
lembrar o papel já destacado que desempenha Schreck no modelo freudiano
do trauma e no modo como isso se articula à angústia.
Desse modo, assim como compaixão e terror atraem a audiência
para a cena da tragédia e, com isso, cria condições para que os afetos dessa
mesma audiência sejam purgados na própria cena e pela participação que
é possível que quem a ela assiste, compaixão e terror são os mesmos afe-
tos que na cena traumática capturam o Homem dos Lobos, capturam-no
subjetivamente. A cena se mostra uma construção também para o próprio
Homem dos Lobos, estruturada como fantasia, mas que indica algo além
dela. Por fim, desvela-se, com isso o fato de que “se a cena primitiva é
traumática, não é a empatia sexual que sustenta as modulações do anali-
sável, mas um fato factício... a estranheza da cena do desaparecimento e do
reaparecimento do pênis” (LACAN, 1964/1998, p. 71, grifo nosso).
Esta cena já seria, então, o que podemos conceber como uma nar-
rativa mínima, a narrativa da perda do objeto, tanto quanto o jogo do
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muito detalhada desse texto em Freud para que se perceba que o Supereu
é a instância que herda o exercício da violência, a qual se realiza sobre o
próprio Eu. O Supereu, na descrição freudiana, é o produto da introjeção
de uma figura de autoridade, ou, se quisermos, a construção interna de um
mecanismo de censura, mas com qualidades tais que pode promover até
mesmo a punição do Eu, infligir-lhe sofrimento sob a forma de angústia.
É preciso notar que os instrumentos de exercício de censura pelo
Supereu são muito específicos, decorrência da forma como essa instância se
faz herdeira de uma autoridade, do tipo de pulsão que a alimenta. A função
do Supereu “consiste em manter a vigilância23 sobre as ações e as intenções
do Eu e julgá-las” (FREUD, 1930/1996, p. 139, grifo nosso). Aqui, a me-
táfora freudiana descreve o Supereu como aquilo que observa o Eu, como
um olhar que lhe desvela as ações, mas que penetra também suas intenções.
Essa é uma propriedade que diferencia o funcionamento do Supereu de
outros mecanismos do aparelho psíquico em sua capacidade de produzir
angústia, já que “aqui, a renúncia pulsional não basta, pois o desejo persiste
e não pode ser escondido24 do Supereu. Assim, a despeito da renúncia efetuada,
ocorre um sentimento de culpa” (FREUD, 1930/1996, p. 131, grifo nosso).
A forte impressão que causa essa descrição do Supereu é a de que a
angústia – aqui, índice de gozo – parece ser decorrência de alguma forma
de exposição dos desejos. Ora, o fato de que a culpa se produz em relação
às características escópicas do Supereu sugere que a pulsão escópica é
transformada no processo civilizatório. Mais que isso, pois Freud apresenta
o Supereu como operador de algum tipo de excesso, produzindo o que
ele chama de “grande desvantagem econômica” (FREUD, 1930/1996, p.
131), um desequilíbrio que se relaciona a este objeto refratário à cultura que
é o objeto olhar, em sua dimensão mais pulsional. O olhar como objeto
que retorna de fora da cultura, na ação do Supereu, e produz mal-estar.
A indicação freudiana mais surpreendente quanto a isso é a de que
23 Überwachen – vigiar, ficar de olho em, supervisionar. Atenção para o prefixo Über, o
mesmo para Supereu (Über-Ich)
24 A palavra para escondido é verheimlichen. Considere-se, a respeito deste verbo, o papel
desempenhado pelo mesmo prefixo Ver-, já aludido.
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de Deus, uma prática ritual inversa àquela dos outros povos com que
tinha contato. Isso teria levado ao assassinato de Moisés pelo povo e, no
entanto, sua figura retorna como culpa na tradição oral judaica, e é por
intermédio desta que a culpa se incorpora a apenas uma das tradições da
escrita hebraica (javista) e é rechaçada por outra (eloísta).
À época de Freud, os estudiosos das Escrituras hebraicas – especi-
ficamente, aqueles que estudavam os primeiros livros do cânon hebraico
– haviam popularizado uma hipótese sobre a forma que essas Escrituras
haviam tomado ao longo do tempo, conhecida como hipótese documen-
tária. Segundo ela, a forma gramatical, as características léxicas, o estilo e
a teologia desses livros eram consistentemente semelhantes entre certas
porções e diferentes das demais, como se os livros tivessem sido compi-
lados em pelo menos quatro camadas literárias distintas, cada uma com
características próprias segundo os parâmetros já aludidos. Essas camadas
ainda pareciam ser de momentos históricos diferentes do desenvolvimento
da religião e cultura hebraica (portanto, umas mais primitivas que as ou-
tras). Por tanto, a hipótese documentária sugeria quatro fontes diferentes
que se mesclaram para dar a forma final dos primeiros livros da Bíblia
hebraica. Uma dessas fontes, a mais antiga, geralmente designada como J,
identifica-se ao culto a YAHWEH, por isso, javista; outra delas, geralmente
designada por E, identifica-se ao culto de Eloí, por isso, eloísta.
Um dos estudiosos que endossava essa perspectiva, Ernest Sellin,
chegou mesmo a sugerir que havia evidências textuais do suposto assas-
sinato de Moisés pelo povo, e isso produziu grande excitação em Freud,
pois parecia confirmar na história as suas suposições. No entanto, antes
mesmo da publicação por Freud de seu livro sobre Moisés, Sellin já havia
desistido de sua hipótese. Mesmo assim, Freud insistiu nela, o que signifi-
cou que ela funcionava muito bem, mesmo que como mito. Essa hipótese
permitiria a Freud explicar, com o seu modelo metapsicológico, a Escri-
tura Hebraica e a própria religião mosaica. Como essas duas tradições em
conflito (javista e eloísta) são incorporadas pelo cânon escrito hebreu, o
domínio de uma delas sobre a outra é o que provocará, nos processos de
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uma lança, foi o fundador da civilização” (p. 45). Do mesmo modo, para
Lacan (1958/1999), não encontramos a violência, ato de agressão, onde
se faz presente a fala. Ainda, “acaso não sabemos que nos confins onde a
fala se demite começa o âmbito da violência, e que ela já reina ali, mesmo
sem que a provoquemos?” (LACAN, 1956/1998, p. 376). Assim, quanto
mais se avança nesse campo, mais distante se está da verdade que a relação
com a angústia torna possível, mais o mundo e sua imagem se tornam
ordenados, de modo pleno, pacífico e harmônico. São imagens como essas
a que Lacan (1964/1998) se refere como sendo pastagem para os olhos,
imagens pacificadoras. Destas que Rivera (2008) chama “imagens-muro”,
por sua qualidade de ilusão e seu efeito alienante, que falsificam a vida em
sua natureza claudicante. Por outro lado, Rivera (2008) as compara ao que
seriam “imagens-furo”, heterogeneidade vertiginosa, desilusão fulgurante,
se realiza – se assim se pode dizer – na vizinhança da prática simbólica em
que consiste a psicanálise, também em seu interesse pelo ponto de cons-
tituição do sujeito, na carne do mundo. É do escopo da arte produzir as
imagens-furo, sendo essa prática simbólica também um modo de construir
proteções, as quais, conforme Recalcati (2005), num jogo de perto-longe
(Fort-Da) com o real de que falamos, preservam respirável o “ar psíquico”
ao mesmo tempo em que buscam a verdade do sujeito.
A relação entre arte e psicanálise pode ser pensada como mais que
uma simples vizinhança. A literatura, por exemplo, em sua anterioridade,
constituiu, desde o início, a psicanálise, de modo que ainda lhe é interna
(RIVERA, 2007). Foi com o recurso à literatura que Freud, em diversos
momentos, fez andar a sua própria obra. Foi com os dispositivos nela
encontrados que Freud, inúmeras vezes, operou o refinamento de suas
hipóteses, de suas ideias, e também de sua clínica. É com isso que a litera-
tura se justifica como instrumento de pesquisa (não objeto, ou não apenas
isso), mas também porque em seu seio, no lugar que ela sustenta, também
muitos processos de grande importância na pesquisa psicanalítica se fazem
presentes. Como afirma Miller (2005a), a ficção literária tem a propriedade
de fixar experiências muito fugazes, acerca das quais, de outro modo, não
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se poderia dizer muita coisa. Aliás, tais experiências, que ganham uma
dimensão muito abrangente na modernidade, têm na ficção literária uma
forma privilegiada de fruição, o que Kehl (2001) aponta como dizendo
respeito ao “sujeito literário”, que articula, pela mediação de um texto, a
sua experiência de mundo e a sua própria intimidade, inventando para si
um lugar no mundo. Assim, a literatura também se constitui como campo
de pesquisa.
Foi dessa forma que Freud parece ter dado atenção à literatura, assim
como Lacan, que fazia não psicobiografia, como afirma em Lituraterra
(LACAN, 1971/2003), mas fazia com que, da literatura, a psicanálise tivesse
algo a receber. Assim como se pesquisa em psicanálise sob transferência
às palavras de Freud e Lacan, também ao testemunho que a literatura dá
do inconsciente. O que se busca não é tanto o autor, o personagem, as
determinações do tempo sobre um ou outro, ou ambos, mas algo que os
articula a todos sem se confundir com nenhum, que é o próprio texto,
em sua independência constitutiva. Como descreve Mariri (1977), a pro-
pósito das tendências mais diversas nos estudos literários sob orientação
psicanalítica, trata-se do texto, muito embora ela mesma não faça justiça
a essa perspectiva como uma que se dirige à mediação operada pelo tex-
to, naquilo em que ela remete, ao mesmo tempo, ao autor e ao leitor. O
sujeito a que isso remete nem é um nem outro. Numa formulação mais
precisa, em paráfrase a Bellemin-Noël (1983), o texto “sabe mais” que o
autor. Isso tem que ver com a famosa fórmula lacaniana segundo a qual o
inconsciente é o discurso do Outro, pois, se é assim, também o autor – o
escritor? – foi atravessado por um discurso que o ultrapassa, para além
de suas intenções, de sua capacidade de arranjar fórmulas, de configurar
expressão.
Todorov (1966/2006) recomenda considerarmos na relação entre o
campo de estudos da linguagem e da literatura uma relação de mão dupla,
a saber, uma em que o que se apreende da linguagem lança luzes sobre a
literatura e vice-versa. Com isso, aponta o fato de que a literatura produz
teoria sobre a linguagem. É isso que perseguimos em nosso propósito de
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Mais uma vez, esta que é uma hipótese instrumental em nossa in-
vestigação – que adotamos de Bellimin-Noël (1983), ainda que aqui lhe
conferindo um papel algo diverso – ou seja, que a escrita possa “imitar
um funcionamento”, somente pode ser pensada por força de sua relação
intrínseca com a psicanálise. Não apenas que Freud, Lacan e outros ana-
listas tenham se servido da literatura ou que esta participe, de um modo
ou de outro, de sua produção, mas que o próprio trabalho teórico da psi-
canálise, sob a forma de fala e escrita, se realiza sob o agenciamento dessa
imitação do inconsciente. Derrida (1980/2007), por exemplo, chegou a
demonstrar que no texto em que Freud trata mui detidamente do tema da
repetição – Além do princípio do prazer (1920) – a própria repetição como
funcionamento, no vir/ir/revir do “problema do princípio de prazer”,
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faz com que, designado por S2, esse seja o seu sentido figurado. Para que
funcione o tropo, o sentido figurado não pode ser transformado em pró-
prio, tampouco o sentido próprio pode ser aniquilado. Ambos devem ser
mantidos em estado de tensão.
Tomemos um exemplo que Hansen (2006) resgata de Quintiliano,
um verso de Horácio: “Ó nave, levam-te ao mar novas ondas”. Sendo
este poema intitulado “À República”, sendo o contexto de recepção
desse poema conhecido como um período de agitação política e guerra
iminente, tanto a nave, o mar e as ondas encontram esse contexto com o
qual se põem em tensão, e isso lhes cinde o significado. Essa alegoria se
desenvolve no poema e faz proliferarem as cisões também na dimensão
sintática da composição dos versos, pois uma vez feita a nave substituto de
algo, tornar-se-á sujeito para predicações mais uma vez metafóricas (“filha
de ilustre floresta”, menção àquilo de que é feita a República). A alegoria
se desdobra ainda em operações sinedóquicas e metonímicas (“não tens
velas inteiras”, menção à falta de governo).
Do mesmo modo, consideremos o caso relatado por Freud
(1917b/1996) em que uma mulher que sofria com um sintoma obsessivo
interpreta o seu ato compulsivo analogicamente: uma mesa por uma cama
e lençóis por uma toalha de mesa etc. Neste caso, outra cena funcionava
como sentido próprio daquilo que era figurado pelos elementos do ato
compulsivo (arrumar a posição da toalha na mesa). Todos elementos
encadeados e não de maneira fortuita, mas facilmente discerníveis pelo
lugar-comum indicado por Freud (1917b/1996), o da associação entre
cama e mesa no contexto de um casamento, à maneira dos lugares-comuns
previstos pela retórica clássica para a montagem de boas alegorias, como
era o caso das analogias náuticas.
Não obstante muitos retores sustentem que a alegoria constitui-se
como uma forma enrijecida pela intervenção desses lugares-comuns – in-
clusive alguns modernos, como Perelman e Olbrechets-Tyteca (1988/2000)
– é na própria literalidade do texto que achamos os índices dessa tensão
que divide semanticamente os significantes entre o sentido imediato e
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Escrever é sempre esconder algo de modo que mais tarde seja descoberto
– Ítalo Calvino
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que interpretava o sonho: o peixe que ele comia (poisson, em francês) lhe
parecia representar o seu peso (son poids), que ele carregava.
Em associação, na análise, o homem lembrou que, quando era criança,
a palavra “gordo” era censurada nas lojas de roupas que ele frequentava, e
substituída pela palavra “forte”. Esta palavra o incomodava pelo seu tom
condescendente e irônico. O seu analista interpreta o efeito da observação
da mulher de seu analisando como sendo o de uma castração imaginária.
Além disso, o analisando também lembrou que morava na vizinhança
de um açougue e que já testemunhara o açougueiro levar nos ombros
animais dobrados em dois. Então, ele associou a palavra ombro (épaule)
ao vocabulário do açougue. Tendo em conta que o corpo carregado era o
dele (trata-se de seu peso), surgiu uma outra homofonia de importância
para a interpretação do sonho: “eu sou carregado no ombro” (je suis porte
sur l’épaule) e “eu sou chegado a uma paleta”11. Assim um conflito se torna
patente: a satisfação de sua mulher e a de seu paladar.
Trata-se, segundo Allouch (1995), de transliteração no sonho, isto é,
passagem de letra (decorrência de serem esses os elementos significantes
da linguagem particular do sujeito em questão, isto é, o que não passa para
a linguagem geral) à figura, sob a condição de que a linguagem particular
desse homem interviesse como rébus de transferência. Até aqui nos trouxe
Allouch (1995), mas avancemos ainda mais, se se nos permite. O chiste,
mencionado anteriormente, na verdade foi elaborado no mesmo trabalho
de sonho, ou, ao menos assim, as condições de sua produção foram am-
plamente preparadas. Isso não é estranho à descrição freudiana, que prevê
a semelhança e até a identidade entre a elaboração onírica e a elaboração
do chiste. Aliás, segundo Freud (1905b/1996, p. 157), no chiste, “um
pensamento pré-consciente [correspondente à observação da mulher] é
abandonado por um momento à revisão do inconsciente [quando encontra
diversas associações] e o resultado disso é imediatamente capturado pela
percepção consciente”. Neste caso, pensar o chiste é o que nos permite
mais claramente articular algo da ordem da economia psíquica.
11 Êtreportuésurl’épaule é literalmente ser carregado sobre, mas também tem o sentido
de “ser chegado a alguma coisa”.
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Note-se que o chiste é consentido pelo eu, portanto, deixa passar uma
“verdade a calar” (CASTEL, 1996, p. 86), mas cujos termos da confissão
foram forjados pelo sujeito arranjador do inconsciente. Vale a pena buscar
essa verdade nas linhas do relato da vinheta clínica para encontrar onde se
articula aquilo que nos interessa. Quando a mulher diz “você engordou”
e a isso o analisando responde prontamente que fará dieta, a fala aqui as-
sume qualquer coisa de imperativo, pois sua obediência lhe confere essa
qualidade. Esse imperativo parece ser correlato do mecanismo de produção
da imagem de si mesmo carregando o próprio peso, a saber, o peso de
um fardo, de uma culpa (poids de la conscience), a imagem, portanto, de uma
porção de angústia na articulação em dois níveis do circuito da pulsão: um
nível do objeto oral e outro do objeto voz. O conflito não é entre satisfa-
zer a mulher e o paladar, mas ceder ao imperativo superegóico ou a uma
compulsão no registro oral. Se se pode comer o peixe e brincar à mesa
com as palavras é porque o chiste conferiu leveza à situação, inscrevendo
o conflito de modo a operar um desvio, à moda daquilo de que fala Freud
(1905b/1996), contorno de um impossível, mediação pulsional. Há uma
escrita, quando retorna o recalcado nesses termos, isto é, quando como
letra retorna o significante recalcado, quando o significante, à deriva, se
transmuta em letra (LACAN, 1972/2012). A escrita da pulsão, podemos
dizer, ocorreu em duas etapas: (a) a tradução da culpa e da gula, isto é, das
versões do mais-de-gozar, da carne e da voz, em peso – ora, com isso elas
ganham corpo; (b) a transliteração do peso em peixe. Assim, a cifração do
pulsional, neste caso, se deu pela alegorização talvez irônica, talvez “bar-
roca”, da culpa e da gula, não uma escrita conciliatória ou integrativa – já
que nela se mantém a contradição, sem que se mantenha o conflito – mas
uma escrita que funciona como vau para a travessia de um impasse num
ponto da história do sujeito.
Essa escrita realiza, por assim dizer, uma operação muito particular
de inscrição, mas o seu fundamento, aquilo sobre o que ela se sustenta,
na verdade, o que a empurra é o fato de que o gozo sexual não pode
se escrever (LACAN, 19971/2009). Ora, todo escrito parte desse fato,
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de que não se poderá escrever como tal a relação sexual, como vemos na
vinheta acima referida; do fato de que há um furo na linguagem, na fala.
O efeito da incompetência do discurso para dizer da relação sexual, é isto
o que chamamos escrita (Lacan, 1973/1983).
Cominus et eminus12
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em relação à sua própria coisidade. Por outro lado, isso que é outro
é integrado, reencontrado, reunido à coisidade da obra de arte, pelo
que a obra de arte é alegoria e símbolo: alegoria por trazer e carrear o
outro, e símbolo por reuni-lo à coisa na obra de arte (HEIDEGGER,
1950/2010).
A reabilitação da alegoria pela arte e pela crítica contemporâneas foi
referida por Owens (1980) – em seu influente artigo sobre o tema – como
um verdadeiro impulso alegórico, que marca a estética contemporânea.
Ele demonstra isso com referência abundante a artistas dos mais diversos
registros da arte, em que tem muita importância reflexões no campo da
literatura. Ele retoma a discussão levantada por Jakobson (1960/2007)
acerca da função poética – como sendo a de projeção do “princípio de
equivalência do eixo da seleção sobre o eixo de combinação” (JAKOB-
SON, 1960/2007, p. 130) – e a aproveita para designar a operação geral
de projeção do que é estrutura na forma de uma sequência. Nisso essa
operação seria essencialmente alegórica. Esse princípio opera nas mais
diversas artes a produção de seu espaço e tempo próprios, mas sendo
esse princípio centrífugo, ele também arranja as mais diversas transições,
na arte contemporânea, entre as muito variadas categorias estéticas, do
naturalismo ao expressionismo, do surrealismo ao barroco etc. Por essa
virtude, a alegoria acentua a essência pictogramática e hieroglífica da arte
contemporânea. O que Owens (1980) sugere é que, na arte, a alegoria
participa de certa função de lidar com as contradições do homem con-
temporâneo, seu mal estar.
A alegoria é cara também a diversos movimentos literários con-
temporâneos e, principalmente, a algumas escolas de crítica literária,
como é o caso da tão influente escola de Yale, em cujo programa a
alegoria comparece como único dispositivo retórico a se aproveitar por
sua virtude polêmica contra os regimes logocêntricos de leitura (PLEBE
& EMANUELE, 1992). Em todo caso, mais do que isso, a alegoria é
tomada contemporaneamente em muitos espaços de crítica e teoria lite-
rária como um modelo para a compreensão da ontologia da obra literária
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realiza na formalização dos impasses, como sugere Kothe (1986), para quem
“a alegoria enxuga e concentra contradições: a leitura alegórica discerne
e desvela tais contradições” (p. 40). Isso concerne à alegoria literária no
barroco de modo muito especial, na tensão entre som e imagem, na tensão
entre palavra falada e palavra escrita. A palavra escrita tende a submeter
à palavra falada, de que ela mesma extrai o seu vigor, coisificando-a, o
que a alegoria radicaliza em seu “princípio dissociativo e pulverizador”
(BENJAMIN, 1925/1984, p. 230). Ao mesmo tempo, isso serve à sacrali-
zação da palavra, à sua imobilização. Por isso, não se pode compreender o
funcionamento alegórico da linguagem escrita sem o auxílio do repertório
teológico, particularmente o cristão.
A alegoria é bem-sucedida em seu duplo fracasso de dignificar e
garantir a linguagem ou de superá-la em forma mais elevada. Em sua ba-
talha no campo da significação, ela faz cicatrizes na face representacional
da linguagem e ruínas no paço em que a verdade faz morada. Na leitura
de Benjamin (1925/1984), a alegoria barroca, na medida em que retoma
a alegoria da antiguidade, serve à desocultação da história como logro.
Kothe (1976) sugere que a história como logro é revelada pela menção,
na alegoria barroca, da história não havida, cujo sentido permaneceu sob
recalque. Este efeito se produz pela intervenção não apenas dos temas
da história velada do sofrimento, mas pelo modo repetitivo em que se
arranja o tempo da alegoria barroca, por sua capacidade de inverter a
dimensão escatológica do tempo da experiência histórica com a qual a
alegoria barroca polemizava.
A dimensão temporal da estrutura da alegoria é outra de suas facetas
que lhe confere um papel importante em nossa argumentação. Para isso
chama a atenção Man (1969/1986), retomando a discussão sobre símbolo
e alegoria. Em sua dimensão temporal, pela temporalidade que a alegoria
instaura na escrita literária, ela combate qualquer “desejo de coincidência”
(p. 207) do símbolo. A repetição (kierkegaardiana, segundo Man), em que
consiste o procedimento alegórico de significação, é que é não coincidente.
Juntamente com a alegoria, a ironia (que o próprio Man tem dificuldades
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A ANGÚSTIA NA LITERATURA1
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crítica tem recebido essa obra, como um testemunho das “origens poéti-
cas romanescas” (ANDRADE, 1987, p. 178). O movimento de retorno
não se reduz, como se poderia supor, somente aos temas da narrativa
medieval, nem mesmo aos seus recursos formais – o que não deixa de
assumir grande importância. Na verdade, parece tratar-se de uma rever-
são ao que havia de mais primordial nessas origens, a saber, a intensa
força criativa resultante do empenho em lidar com o “desconcerto do
mundo” (LINS, 1979, p. 146).
O imaginário medieval era povoado de pensamentos acerca do
desconcerto do mundo. Disso é um memorável exemplo o Floreba tolim
studium2 – trecho das Carmina Burana. Aliás, o poema de Camões – Esparsa
ao desconcerto do mundo3– também desenvolve o mesmo tema. O tema do
“mundo às avessas”, como comenta Curtius (1948/1979), presente em
toda a literatura da Idade Média, é indispensável para compreender o
particularíssimo progresso das letras nesse período, já que boa parte das
grandes conquistas formais herdadas pelo romance que conhecemos se
operou como resistência e combate imperioso ao desconcerto. O trabalho
de escrita – isto é fundamental para a compreensão da estética medieval
– era um trabalho de conquista e ordenamento, um trabalho de ligação,
podemos dizer, entre os elementos mais aparentemente dessemelhantes,
entre as forças mais imperiosas e desproporcionais, as quais ofereciam
risco à própria vida, no contexto da Idade Média. Tal ânimo de domínio
se faz notado nas diversificadas e abundantes formas de metaforismo,
tão recorrentes e, em certa medida, estruturantes em Avalovara, como o
metaforismo náutico – que concerne à conquista dos caminhos das águas,
nos mares e nos rios – ou o metaforismo livresco – por exemplo, da escrita
como trabalho de sulcar a terra, trabalho de inseminar a experiência e,
com isso, produzir algo.
2 “Outrora o estudo florescia”.
3 Os bons vi sempre passar/ No mundo graves tormentos;/ E para mais me espan-
tar,/ Os maus vi sempre nadar/ Em mar de contentamentos./ Cuidando alcançar as-
sim/ O bem tão mal ordenado,/ Fui mau, mas fui castigado:/ Assim que só para mim/
Anda o mundo concertado.
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Como sugere Hewitt (1984), o problema de que ele trata é o mesmo que
concerne o mais intimamente possível à literatura, a saber, a relação entre as
palavras e o que elas não podem dizer. Essa questão é radicalizada na obra e,
principalmente, no modo como ali é abordada, pois a tensão entre o exterior
e o interior à linguagem é feita motor da composição poético-narrativa em
Avalovara. Não apenas isso, pois essa tensão não deixa de aparecer inclusive
na superfície do texto, o que deixa a obra algo opaca. Por esta razão, até
certo ponto, não analisável. Pelo menos não se pode analisá-la sem desfazer
o trabalho que Osman Lins pretendia que sua escrita realizasse. O próprio
Osman Lins nos adverte sobre a tentativa de esclarecer seu texto, dizendo
que seria equivalente a reelaborar o texto de um sonho, pelo que o texto
perderia seu vigor originário, sua conexão à fonte mesma de sua própria
vitalidade (LINS, 1979). Aliás, o caráter aparentemente confuso, compósito
e, ao mesmo tempo, a exuberância da paisagem semiótica do texto – o que
o assemelharia ao sonho – é uma característica que, ao mesmo tempo em
que faz de Avalovara um híbrido, conecta esta obra às demais obras de arte
contemporâneas, a sua diversidade genética (PINTO, 2007).
O hibridismo dessa obra ainda não foi totalmente explorado, tampouco
o será aqui. Contudo, nossa análise de como este empreendimento literário
imita o funcionamento da angústia – este é nosso propósito – se fará pela
investigação de como ali se constroem principalmente duas dimensões tão
essenciais à estética literária. É tão antiga quanto conhecida e importante a
distinção, proposta por Lessing (1766/1998), segundo a qual a estética da
pintura se define por sua natureza espacial, assim como a da escrita concer-
ne ao tempo. Pois bem: em Osman Lins, tempo e espaço são essenciais às
pretensões estéticas da escrita, mas não funcionam como se poderia esperar.
Cada uma dessas dimensões é redefinida, reconquistada para a escrita, e a
relação entre as duas é subvertida (FRITOLI, 2006). Nestas duas dimensões
exploraremos – à maneira de viajantes – o texto de Avalovara.
Toda aproximação ao romance aqui investigado depende, como
pretendia o seu autor, de que o consideremos em duas dimensões, que ele
definiu no próprio âmbito da forma do texto pelas figuras da espiral e do
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Figura 17
4 O palíndromo é a palavra ou frase que pode ser lida nos dois sentidos, da direita para
a esquerda e da esquerda para a direita, sem que mude o dito, sem deixar de ser a mesma
palavra ou frase.
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Essa figura já poderia ilustrar com clareza a ideia de algo que imita
o funcionamento da angústia, um trabalho de inscrição, de conquista da
força pulsante, inscrição do tempo da pulsão no espaço do psiquismo.
No entanto, como veremos, isso que o rosto da obra, o seu esquema, já
prenuncia, toda a sua estrutura o revela com muito mais profundidade e
espantosa eloquência.
A fissura do espaço
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e a realidade. Elas desafiam sua própria relação com o real, descrições “de
alguns fragmentos à deriva na explosão do mundo... simulando coerência e
mesmo certo caráter augural”, mas organizados “segundo as leis da narrativa
e com precisão de todo improvável” (LINS, 1973/2005, p. 119). O espaço
em Avalovara não visa à realidade e também não a rejeita, mas a ultrapassa,
atravessa, propondo efeitos outros, obtidos com os mesmos procedimentos
de representação que poderiam servir para indicar a realidade. No caso do
romance aqui em questão, trata-se, na verdade, de hipérboles da realidade,
as quais pretendem produzir uma atitude contemplativa. Desse modo, o
mundo da ficção não dispensa o mundo da experiência; pelo contrário,
aquele é dependente deste, pois as condições de verossimilhança que
oferece ao mundo da experiência são condição para a realização da
inverossimilhança da ficção como realidade ficcional. Essa tensão entre
os dois mundos, que tende a ser eliminada na narrativa canônica não é,
aqui, em momento algum, eliminada; ao contrário, ela é valorizada por sua
virtude de oferecer as condições pretendidas para que a própria realidade
da experiência seja revisada. A representação, desse modo, conta com a
contradição e instabilidade entre expressão e significado.
Uma terceira forma de construir o espaço literário, em Osman Lins,
concerne ao modo como são construídos os seus personagens e a relação
deles como espaço. A técnica utilizada por Osman Lins faz uma referência
ao maneirismo de Giuseppe Arcimboldo, pintor milanês do Século XVI
muito conhecido por pintar rostos humanos em hábeis composições
feitas de outros objetos, como frutas e flores, animais, outros objetos
inanimados, fragmentos do espaço físico etc. Do mesmo modo, Osman
Lins produz alguns personagens encarnando-os como figuras compósitas:
Cecília feita de personagens, Roos feita de cidades e feita de palavras.
Vejamos um exemplo da representação osmaniana de seus personagens
e de sua relação como espaço: “O gato com cabeça de macaco e que ela
traz no corpo desde o nascimento salta para a tábua de engomar” (LINS,
1973/2005, p. 113).
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Cecília, feita de animais (leões, principalmente), com a sua mãe (cujo cor-
po comporta um felino-símio), ambas mulheres fálicas – a androginia de
Cecília e, com relação à Gorda, seu ofício e desejo de puta, assim como
sua posição de chefe da família. Além do mais, a hostilidade da Gorda por
Cecília denuncia transitividade entre as personagens. O pai de Abel, que
surge do corpo de Cecília e que, segundo o próprio Abel, não é carnal ou
imaginário (LINS, 1973/2005, p. 196), é feito olhar para o ato sexual de
Abel e Cecília. Todas as entradas são possíveis nesta cena, além daquelas
que já são discerníveis na superfície no texto. O próprio texto assimila
Cecília e Abel (LINS, 1973/2005, p. 268): assim, além de serem substi-
tuíveis a Gorda e Cecília, são substituíveis, Abel e Cecília. Como Abel,
possuído por Cecília, experimenta uma feminilidade “pesada”, talvez seja
plausível a transitividade entre a Gorda e Abel. Cecília e o pai de Abel são
intercambiáveis pelo simples fato de que ele habita o corpo dela. Por fim,
Abel e seu pai trocam de posição no texto da própria narrativa. Todas
as posições são possíveis e deslizantes. É, contudo, uma cena impossível
desde que o corpo é narcísico, como sugere Freud (1924b/1996).
O trabalho de escrita de Osman é um trabalho de reduzir o espaço
geométrico ao espaço indiferenciado, reduzir o corpo dos personagens
à carne. Por essa razão, seus personagens e o espaço de sua existência se
compõem como rébus, porque a sua linguagem transcritiva – como sugere
E. M. A. Ferreira (2007) – não pode atravessar tudo nesta operação de
passagem, nesta invasão pretendida do imaginário pelo real (ALLOUCH,
1995). A transcrição, como já vimos, implica uma invasão do real no
imaginário, e é um trabalho de angústia (LACAN, 1975). É um trabalho
de cifração pulsional (por isso não deixa de ter elementos simbólicos), é
também de feitura de “objetos literários”, marcos na escrita da mediação
pulsional. Ele introduz hipérboles, justaposições, figuras arcimboldescas,
composições logológicas de toda espécie, como ele mesmo afirma, fustigan-
do as palavras, jogando-as umas contra as outras e produzindo demônios
inesperados (LINS, 1973/2005, p. 197). Sua intenção é restituir à linguagem
romanesca àquilo que ela teria perdido/cedido em sua origem, o que fazia
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A fissura do tempo
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e, portanto, deve estar em suspenso, não por ser menos real, mas por não
ser suficiente ao conhecimento. Em sua obra contra os sofistas, Platão
apresenta a phantasía como um pathos do discurso. Conforme sua proposta,
quando o discurso é interrompido, se torna doxa, opinião; e se se mistura
aos dados do mundo sensível, à percepção, no âmbito do pensamento, se
torna phantasía (MARQUES, 2005). Há, portanto, uma dimensão temporal
essencial à relação entre a ecfrase e a phantasía na proposta platônica, a
qual pretendemos aproveitar.
Sem assimilar o pensamento platônico à psicanálise – considerando,
no entanto, a proximidade entre ambos – mas aproveitando as deixas que
ele oferece, investiguemos a relação da fantasia com o tempo e as conse-
quências disso para a representação. No modelo econômico do aparelho
mental que delineávamos anteriormente, a fantasia é efeito da interrupção
do trâmite pulsional sobre o pensamento. Ao mesmo tempo, ainda no
registro do ensino lacaniano, sabemos que também o discurso, principal-
mente o discurso, funciona no registro do tempo e necessita de um ponto
de basta, de uma interrupção, a função do nachträglich freudiano (LACAN,
1958/1999). O mesmo Lacan (1958/1999) nos lembra que a significação
não teria lugar na forma temporal da simultaneidade, ao lado de Freud
(1908b/1996), para quem a fantasia opera como um fio que costura os três
termos da experiência temporal e desdobra-os, passado, presente e futuro.
Segundo ele, uma impressão atual evoca a lembrança de um desejo não
realizado, cuja realização é projetada no âmbito da imaginação, do futuro.
Segundo a proposta de Freud (1920/1996), o teorema kantiano se-
gundo o qual o tempo seria uma forma prévia e necessária do pensamento
não se sustenta diante das descobertas psicanalíticas. O inconsciente, ele
o declara, é intemporal, num sentido em que o tempo não altera o seu
funcionamento, ou, ao menos, que o modo como os eventos inconscien-
tes se organizam subvertem nossa percepção corriqueira de tempo, de
modo que essa ideia de tempo não pode ser aplicada ao inconsciente. No
entanto, é certo que, ao menos de um modo, o tempo se faz contar pelo
inconsciente, isto é, a demora (FREUD, 1911/1996), que corresponde a
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de que não se chegue ao Jardim que se buscou, de que não possa con-
quistar o percurso de sua própria singularidade, por medo de se deixar
apreender alienado aos termos de uma autocoincidência organizada pela
ordem exterior representada por Olavo Hayano. Assim como o segundo
filho de Adão, este Abel se apressa, para se fazer primeiro, sacrificando
o próprio corpo na fala. Abel se apressa a concluir o seu ato de narrar.
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é o que ele chamou “paixão pelo real”, o que significa um impulso des-
mascarador, que pretende repelir ou denunciar a realidade como aparência
e simulacro, ou, pelo contrário, tentar resgatá-la a todo custo. Esses dois
impulsos estão em contradição, mas condicionam a radical reflexividade
moderna.
No entanto, esses dois impulsos, no campo da estética, também
organizam dois modelos pelos quais se costuma medir a representação
artística na contemporaneidade, segundo Foster (2005), o modelo refe-
rencial – que pretende um vínculo entre a representação e o mundo das
coisas – e o modelo do simulacro – que pretende que a representação está
sempre inscrita num sistema fechado e opaco ao mundo da experiência.
Foster (2005) também enxerga contradições nesses modelos, as quais de-
terminam sua incapacidade – de cada um deles – de dar conta do modo
como se organiza a representação hoje. Segundo ele, predomina uma
tendência ao que chama realismo traumático, a inclinação nas artes plás-
ticas ao ultrapassamento da representação em direção ao real, de modos
variados. Nesse realismo traumático, as artes plásticas ao mesmo tempo
investigam o real, mas também cumprem uma forma de proteção. Uma
das formas desse realismo, o ilusionismo traumático, em que se pratica
de maneira excessiva a ilusão, traz à tona algo da angústia como estamos
articulando. Trata-se de uma tentativa de sustentar uma tensão constante
entre o necessário e o impossível na representação.
Em todo caso, há acordo sobre a irrupção, nos mais diversos cam-
pos da cultura, de muitas tentativas de investigação dos limites do repre-
sentável – na arte, ciência, religião etc. As consequências disso seriam o
encontro com aquilo que exatamente não se pode representar, o que está
no cerne da função da angústia. Segundo Vieira (2005), uma manobra
eminentemente contemporânea de proteção contra o angustiante, nestas
situações, de eventual desnudamento do objeto da realidade é a sua fixa-
ção imaginária. Nem sempre no mesmo campo da arte, mas também aí, e
do mesmo modo em outras áreas, isso ocorre sob a forma de fixação em
bens de consumo, mercadoria. Estas são consequências de nossa sociedade
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Talvez ainda mais radical que a personagem cujo nome é uma imagem
– – seja a figura da Gorda, pois em seu corpo, nem sempre preso a ele,
vive o gataco, figura, por excelência, da dubiedade e crise representacional.
Colocado no corpo da mãe de Abel, dentro desse corpo se agita como se
dentro de uma jaula estivesse!
É preciso constituir uma estrutura vigorosa que suporte a tensão
e instabilidade das imagens tão precariamente emolduradas, das quais
diz que é “jaula dentro da qual se movem animais selvagens. Inquietude,
angústia, desespero” (LINS, 1979, p. 167). Tal estrutura não é outra coisa
senão comutar o que é causa, necessidade de ordenamento, pulsão de
conquista, em ato de leitura e decifração, e esta é uma operação homóloga
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QUINET, A.Um olhar a mais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
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Formato: 15 x 21 cm
Mancha: 11,8 x 18 cm
Tipologia: Garamond
Papel: Polén 80g
Impresão: Gráfica e
Editora RDS - 2019