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REITOR

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SUPERINTENDENTE
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NadjaVladi Cardoso Gumes
Sérgio Augusto Soares Mattos (presidente)
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Rosineide Pereira Mubarack Garcia

EDITORA FILIADA À
Hugo Juliano Duarte Matias

Cruz das Almas/Bahia – 2019


Copyright©2019 Hugo Juliano Duarte Matias
Direitos para esta edição cedidos à EDUFRB.
Projeto gráfico, capa e editoração eletrônica:
Etevaldo Gomes de Meneses
Revisão, normatização técnica:
Reginaldo Vasconcelos
Depósito legal na Biblioteca Nacional, conforme
decreto nº 1.825, de 20 de dezembro de 1907.
A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio,
seja total ou parcial, constitui violação da Lei nº 9.610/98.

M378a Matias, Hugo Juliano Duarte


Alegoria da angústia: um estudo sobre a função da
angústia e o desassossego na literatura / Hugo Juliano
Duarte Matias - Cruz das Almas/BA: UFRB, 2019.
178 p.

ISBN: 978-85-5971-089-2

1. Psicologia e literatura 2. Angústia 3. Trauma


4. Metapsicologia I. Título.

CDD 159.942
Ficha Catalográfica elaborada por Ivete Castro CRB/1073

Rua Rui Barbosa, 710 – Centro


44380-000 Cruz das Almas – BA
Tel.: (75)3621-7672
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www.facebook.com/editoraufrb
Para Anaxsandra, minha esposa
e para HJ II e Olívia, meus filhos,
todos carne da minha carne e osso dos meus ossos.
AGRADECIMENTOS

Este livro é resultado de uma pesquisa desenvolvida durante doutorado


em Psicologia Clínica e Cultura. Ela foi financiada pela Capes, sob a for-
ma de uma bolsa de estudos, pelo que sou grato. Também preciso reco-
nhecer a valiosíssima contribuição do Prof. Dr. Augusto Monnerat Celes,
a Profa. Dra. Daniela Scheinkman Chatelard e a Profa. Dra. Terezinha
de Camargo Viana, cujo ensino foi instigante e decisivo durante este
período. Também a Profa. Dra. Elizabeth de Andrade Lima Hazin, cujo
prazer e empolgação com a literatura me marcou de modo tão grave. Por
fim, à Profa. Dra. Tania Cristina Rivera, orientadora neste trabalho, pelas
questões cortantes, pela escuta atenta e interessada, pela interlocução tão
proveitosa e paciente.
SUMÁRIO

Apresentação..................................................................................................9
A função da angústia..................................................................................13
A angústia em dois registros................................................................18
Angústia e o real, entre excesso e perda.............................................33
A função da angústia em causa: olhar e violência............................49
A angústia entre o trauma e a escrita..................................................71
A literatura como campo...........................................................................85
Ad augusta per angusta.............................................................................88
Alegoria, escrita e psicanálise..................................................................93
Aliud dicitur, aliud demonstratur .............................................................99
Verba volant, scripta manent................................................................. 104
Cominus et eminus.................................................................................. 113
A angústia na literatura.......................................................................... 125
A fissura do espaço............................................................................ 130
A fissura do tempo............................................................................. 139
A literatura e o metabolismo da angústia......................................... 151
Osman Lins e a literatura como selva............................................. 153
Da função da angústia ao desassossego na literatura.................... 157
Referências................................................................................................. 161
Hugo Juliano Duarte Matias

APRESENTAÇÃO

Há uma literatura cujo efeito é desconfiança. Trata-se de uma expe-


riência que nem sempre é agradável, e também não é sempre que nos traz
alguma vantagem, ao contrário do que muito se diz acerca das virtudes
da suspeita. Seria gratuita essa literatura não fosse por um ganho que ela
oferece: arranjar, com agitação, muito com o sentimento de não saber o
que fazer, as condições para uma travessia.
Essa literatura é desassossego. Não apenas porque o produz; mais
especificamente porque o configura, porque o demonstra, porque o realiza
no modo das palavras. O desassossego nos parece uma figura do deslo-
camento, da peregrinação, e é isto que tem uma função. A mesma função
na literatura que a angústia no psiquismo – assim o propomos. Ambos,
desassossego e angústia, cada um em seu próprio terreno, servem para
não sermos encontrados no mesmo lugar, para os encontros que podem
ser bons ou maus, afortunados ou desafortunados, com aquilo que na vida
nos acossa. A angústia testemunha a impossibilidade do psiquismo em
atender às exigências que lhe chegam. Trata-se de uma sobra de energia
psíquica, de um resto pulsional que sobeja do trabalho em que ela – a
pulsão – foi conquistada para a vida psíquica. Trata-se do metabolismo
da própria pulsão – metabolismo é outro nome para o que chamamos
travessia. Este é o tema do primeiro capítulo do texto que se segue: o
surgimento da angústia como figura teórica e clínica é apresentado como
o momento de corte a partir do qual se inicia esta investigação. Além
disso, esse primeiro capítulo explora, nas obras de Freud e Lacan, o que
seria a função da angústia e como ela se articula com outros fenômenos
da clínica e com algumas ferramentas da teoria psicanalítica. A função da
angústia é, então, comparada nos modos como se apresenta nos diversos
modelos explicativos que lhe oferecem inteligibilidade e, nesse processo,
se constrói o referencial teórico pelo qual perseguimos o nosso objetivo, a
saber, apresentar o desassossego na literatura em sua relação analógica com
a função da angústia, o que nos permite investigar esta por meio daquela.

9
Alegoria da angústia

O desassossego é, portanto, um fenômeno que concerne à escrita


literária, mas cuja estrutura é correlata à da angústia, de tal modo que faz
à literatura aquilo que a angústia faz ao corpo ou ao pensamento. Assim,
ele oferece contornos convenientes à viabilidade de consecução de nosso
objetivo de pesquisa. Ainda neste capítulo, portanto, uma hipótese “instru-
mental” é delineada, a de que a literatura interessa ao estudo da função da
angústia, à medida que seria a escrita um campo em que é possível à angústia
antecipar-se à ameaça de esquecimento do trauma, isto é, de um risco de
surpresa no mau encontro com o real. Assim se define a função da angústia,
ao mesmo tempo em que se estabelece o seu vínculo ao campo da escrita.
No capítulo seguinte se oferecem algumas indicações do próprio
percurso de investigação, isto é, um método. Os elementos fundamentais
da caminhada feita e mais algumas indicações do tipo de trabalho que
se realizou com a escrita literária, tomada não como objeto, mas como
campo de investigação – é preciso enfatizar mais uma vez. Assim, primei-
ramente se estabelece de que modo a literatura é abordada, desde uma
perspectiva psicanalítica, e se apresentam os operadores metodológicos,
o referencial analítico que orienta a investigação e, principalmente, os
conceitos da teoria, assim como os dispositivos da clínica que servem à
leitura empreendida. De modo simples e nuclear, a intenção é recolher os
testemunhos do inconsciente, tratar a experiência de leitura, transformar
o que é funcionamento em estrutura.
A língua, em sua incidência como literatura, nos agenciamentos pró-
prios do que em seu interior poderíamos dizer que pulsa, viabiliza a inves-
tigação da relação entre angústia e literatura. Estamos falando da natureza
alegórica, estrutural e constitutivamente alegórica da arte, de modo geral, e,
em particular, da escrita literária. Essa afirmação é desenvolvida no terceiro
capítulo. Nele definimos alegoria e pretendemos desmontar o seu mecanismo,
sua estrutura profunda. O campo da retórica condiciona o tratamento dado à
alegoria, mas apenas como uma passagem para que ela possa ser pensada, no
campo da psicanálise, como um operador da “imitação” do funcionamento
da angústia no interior da literatura. O que propomos é que o desassossego

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Hugo Juliano Duarte Matias

pode ser apresentado como uma alegoria da angústia. A angústia, que não
faz discurso, mas o exige, é reencontrada, como é possível, sob a forma
do desassossego, a forma pela qual ela pode se inscrever no discurso, se
constituir escrita. Assim, o conceito de escrita é construído no interior de
nosso referencial analítico pelo recurso à ideia de alegoria, a alegoria em sua
virtude de servir à formalização dos impasses na arte.
No quarto capítulo são apresentados os resultados da análise, pro-
priamente dita, do texto Avalovara, de Osman Lins, por nós escolhido
como campo de investigação. O que nos interessa não é tanto o conteúdo
dessa obra, senão os procedimentos por ele empregados, sob a suposição
de que seriam os procedimentos a revelar formas variadas de concernir
um trabalho de angústia pela escrita. A hipótese a ser verificada neste
capítulo é de que a própria angústia é alegorizada sob a forma de um
desassossego da escrita, algo como uma necessidade de estranhamento
canônico e a consequente transmissão de inquietude ao leitor por meio das
formas literárias alcançadas. Não apenas a angústia como efeito alcançado
no processo de leitura. Principalmente, a angústia como ontologia dessa
escrita desassossegada.
A análise da angústia pelo recurso ao texto de Avalovara se concentrou
em duas grandes dimensões que são problematizadas nessa obra: o espaço
e o tempo, elementos fundamentais da literatura como representação. Pela
exploração desses dois elementos, a possibilidade de representação é levada
ao seu limite, até o ponto em que seus primeiros vacilos se produzem. Essas
duas dimensões são exploradas no uso que o texto faz de seus recursos
estilísticos com que cria experiências inesperadas de leitura: as hipopitoses
e ecfrases, os ornamentos e sua preocupação com simetria, equilíbrio,
proporção e ritmo, a montagem rigorosa e ao mesmo tempo hiperbólica e
enigmática das cenas, das imagens e personagens, dos espaços. Do mesmo
modo, quanto ao tempo, as diversas formas de recursividade, repetição, si-
multaneidade, assim como a descontinuidade são um princípio de construção
da experiência de tempo na leitura. De modo geral, o aperspectivismo de
tempo e espaço, a transitividade entre ordem e conquista ou reconquista

11
Alegoria da angústia

de tempo e espaço, por um lado, e a indiferenciação, a fragmentação e a


anarquia das formas, por outro, são a grande tensão que o texto pretende
sustentar, o mecanismo de articulação em que os impasses funcionam, de
modo a configurar o desassossego da obra.
Por fim, no último capítulo, se pretende que tenham sido extraídas
do teste de nossas hipóteses acerca da angústia e seu correlato na literatura
as suas consequências para a avaliação dos modos atuais de metabolis-
mo – por assim dizer – da angústia na cultura contemporânea. Isso deve
conduzir a contribuições à crítica da cultura que tem sido realizada por
analistas, assim como contribuições, que seriam acidentais, mas nem tanto,
à crítica literária do autor posto em questão. Talvez – e isso seria muito
gratificante – também se possa conseguir disso alguma orientação clínica
para o analista que, em seu trabalho, encontra qualquer dificuldade em
lidar com as formas pelas quais a angústia se lhe apresenta em seu trabalho,
formas que, isso nos parece certo, têm mudado ao longo do tempo e que,
por isso, não têm sido as mesmas desde que a função da angústia cumpre
algum propósito entre os destinos do psiquismo nos dias em que estamos.

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Hugo Juliano Duarte Matias

A FUNÇÃO DA ANGÚSTIA

A modernidade assume formas peculiares, nos dias de hoje, as quais,


embora já estivessem anunciadas desde seu advento, causam surpresa e
comoção. É evidente que, em nossa sociedade, todo tipo de transformação
cultural ocorre com muito mais rapidez. Se olharmos com atenção para
esses fenômenos de mudança, também perceberemos que outra de suas
características marcantes é a sua profundidade. Zygmunt Bauman (2001)
adverte, acerca do momento em que vivemos, sobre a sua característica de
liquidez marcante. Esta é uma metáfora eloquente para dizer da mobilidade
de nossas instituições, da difícil fixação de nossas biografias, da aparência
indefinida de nosso mundo. E esse é um processo que sofre ainda novos
agravos, testemunhados, é certo, nas últimas décadas. Segundo ele, as “forças
de liquefação”, postas em movimento pela vocação da modernidade – é
preciso ressaltar – pelas quais foram promovidas as grandes transformações
culturais, sociais, econômicas e políticas dos últimos séculos, ganharam
recentemente um novo ímpeto e um novo alvo. Se em outro momento
essas forças faziam pressão aos sistemas sociais, à política, etc., ameaçam
agora, também, “os elos que entrelaçam as escolhas individuais em pro-
jetos e ações coletivas” (p. 12). Isso significa que o que notamos acerca
das grandes mudanças de nosso tempo também pode ser observado no
detalhe de nossas próprias vidas individuais, aliás, no modo como elas se
articulam, ou se articulariam, umas às outras. Tais forças têm operado no
enfraquecimento das instituições herdadas das sociedades tradicionais,
as poucas que ainda conhecermos, as quais têm função estruturante nos
modelos e processos de subjetivação, ora capturados em sequências de
ruptura e reordenação.
A liquefação do mundo de outrora, a liquidez do mundo em que
vivemos, aí está a fonte da vertigem do homem contemporâneo. Este
é um sintoma generalizado, assim o supomos, do que dão testemunho
abundante as mais diversas produções culturais – da arte ao pensamento
teórico, e mesmo as novas formas de vínculo social e de vida institucional

13
Alegoria da angústia

são leves e rarefeitas. E como é comum à vertigem do movimento e da


rapidez, às vezes é sentida como algo agradável, outras vezes, nem tanto.
Toda essa profusão de rupturas tem que ver com certa desintegra-
ção da anterior unidade da vida humana. Como aponta Giddens (2002),
a modernidade, desde seu início, sofre o efeito de três mecanismos assim
orientados. Em primeiro lugar, uma separação entre tempo e espaço,
consequência, por assim dizer, da ampliação do alcance da experiência
humana, isto é, do fato de que as relações sociais, na modernidade, foram
estendidas por tempos mais longos e espaços mais longínquos, produzindo
descontinuidade entre essas dimensões da vida. Estamos conectados com
os mais diversos tempos como nunca estivemos antes; nossa experiência
facilmente se estende para o passado ou para o futuro por causa da capaci-
dade de lembrar ou de antecipar eventos. Se a experiência se estende para
o passado e para o futuro, é o presente que se torna mais largo. Assim, a
unidade entre tempo e espaço se tornou dispensável para comportar as
relações sociais. Uma pessoa pode interagir com outra, mesmo que esteja
a milhares de quilômetros dela, ou as duas podem sustentar uma interação,
mesmo que não estejam atuando ao mesmo tempo, porque a tecnologia,
por exemplo, nos permite interromper e retomar a interação com grande
eficácia, sob a condição de que o tempo seja este, o do relógio, assim
como o espaço seja o do mapa, abstrações que acolhem novas formas
de coordenação das relações sociais. A interação entre pessoas pode ser
sincronizada de diversas maneiras, porque marcamos o tempo segundo
um padrão de referência comum bastante eficaz. Ela também pode ser
coordenada em um plano de orientação espacial absolutamente racional
e funcional. Tempo e espaço podem ser combinados, descombinados,
recombinados à vontade. A co-presença e a situacionalidade não são mais
condição necessária para sustentar a interação social.
Em segundo lugar, a modernidade produziu também mecanismos de
desencaixe de suas instituições, os quais desenraizam a experiência humana
de sua dimensão concreta, transportando-a para o interior de sistemas
abstratos. Exemplo disso é o sistema monetário, que permite trocas as

14
Hugo Juliano Duarte Matias

mais variadas, de bens ou serviços, sem nenhum tipo de constrangimento


de fronteira, sem a exigência de qualquer vínculo material e palpável entre
os que trocam, a não ser a entidade absolutamente virtual que é o crédito.
Em nossa vida comum, não trocamos coisas, às quais se ligam valores.
Trocamos valores, eventualmente, acompanhados por coisas. Não é à toa
que é tão difícil acompanhar os rumos da economia na maior parte dos
lugares: isso se deve a grande abstração das práticas de troca envolvidas.
Assim, a confiança necessária para sustentar a interação social, antes
investida em pessoas as quais se viam, ou coisas que se podiam pesar e
cheirar, ou mesmo instituições, por assim dizer, “concretas e palpáveis”,
agora pode ser investida por alguém em uma pessoa ou instituição com
a qual ele teve muito pouco contato anterior, desconectada de sua expe-
riência concreta, sobre a qual ele mesmo sabe muito pouco, ou mesmo
nada. E note-se que são exemplos disso a instituição médica, jurídica
etc. Confiamos as nossas vidas e a nossa felicidade sem sabermos muito
bem em quê. Intimamente relacionados e co-dependentes da separação
entre espaço e tempo, esses mecanismos de desencaixe afastam o homem
moderno das formas de conhecimento pré-estabelecido em seu próprio
espaço vital ou no de sua comunidade, levando-o em direção a uma cultura
pós-tradicional, extremamente fluida e desmaterializada.
O terceiro mecanismo, a reflexividade das instituições, acelera esse
movimento. Será necessário, aqui, fazer uma ressalva. Diferentemente do
controle reflexivo da ação, a reflexividade das instituições não é contingente,
mas constitutiva de um modo de agir do homem moderno. Enquanto age,
alguém pode se aperceber ou não do rumo, das razões ou consequências de
sua ação. Por outro lado, as instituições modernas, sem o arrimo da tradição,
sustentam suas práticas no conhecimento constantemente transformado pela
sociedade moderna. Portanto, o homem moderno, que recorre às instituições
de sua cultura para orientar a sua ação, também se entrega à influência do
conhecimento sobre as próprias instituições para orientar sua ação, o que
demanda sempre a novidade e se opõe à sedimentação de quaisquer formas
de ação. As instituições carregam em sua própria estrutura mecanismos

15
Alegoria da angústia

de automonitoramento e autocorreção, por cuja ação constantemente se


reformam, e assim dinamizam toda a organização social. Elas influenciam
e se deixam influenciar pela sociedade em que se inserem, e o que elas
trocam com a sociedade é conhecimento, sempre renovado pela avidez da
certeza, mais uma certeza que nunca chega a ser, que nunca se apresenta.
Assim, essas instituições não podem mais conviver com o conhecimento
tradicional, corroído pela dúvida constitutiva de sua natureza racionalizante.
Mesmo assim, e com tudo isso, é importante frisar que este momento
da modernidade não se caracteriza somente como uma experiência frag-
mentária. É também uma experiência em que a humanidade se observa
como um “nós”, como uma comunidade global. Isso certamente é efeito
da multiplicidade de abstrações em que a modernidade tardia se constitui.
Paradoxalmente, talvez haja cada vez menos espaço para a percepção de
“outros”. Nos dias de hoje, o encontro com a alteridade, muito embora seja
celebrado ou lamentado em qualquer lugar, apesar de todo o conhecimento
acumulado e de toda reflexividade moderna, produz susto e apreensão.
Mesmo assim, não obstante o seu dinamismo e fluidez, toda a di-
ficuldade de apreensão, há algumas constantes na experiência moderna,
uma das quais constitui justamente o tema aqui em foco. Ora, a despeito
da direção tomada nos mais diversos movimentos da história recente, de
suas idas e vindas, dos mais absurdos retrocessos ou mesmo dos avanços
patentes que concernem às conquistas humanas; e ainda que nesse vai-e-
-vem, ou nesse progresso – chamemos assim – se tenham tornado bem
sofisticadas as muito variadas formas pelas quais se pretende tranquilizar a
humanidade de sua experiência de viver, a angústia tem marcado e marca
essa experiência com as insígnias da fragilidade, pelas quais sofremos de
certo saber acerca de nossa condição.
É irônico e, mesmo assim, é exato dizer que a angústia é uma das
coisas que ainda dão unidade à frágil experiência moderna. Nossa existência
é precária, e saber sobre isso nos une e envolve uma parcela de angústia.
Ainda que o surgimento da experiência de angústia não possa ser localizado
na História, seu efeito sobre o pensamento e a vida espiritual de uma grande

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Hugo Juliano Duarte Matias

parte das sociedades ocidentais, no entanto, é, com toda certeza, moderno.


Segundo Baas (2000), foi a modernidade, não em seu início, mas somente
com Kierkegaard, que reproduziu a angústia como figura do pensamento,
como conceito. O significado dessa inflexão tem que ver justamente com
aquilo que o pensamento de Kierkegaard representa para a filosofia, a saber,
a denúncia dos fracassos produzidos pelos últimos grandes esforços de
construção de sistemas filosóficos abrangentes. O problema da verdade,
que tem marcado a cultura moderna como um projeto epistêmico, foi
redimensionado e realocado do espaço do conhecimento para o campo
da existência, o que deu um papel à angústia como conceito, sob a forma
de testamento da verdade do sujeito.
É preciso notar que a verdade do sujeito é diferente da simples
verdade. A verdade do sujeito consiste naquilo que se pode dizer como
verdade, mas que concerne à existência concreta de um sujeito, a qual está
aberta à possibilidade. A verdade sobre o que é um sujeito, que se dá conta
de existir, é descoberta em meio à angústia, por um ato desse sujeito. Para
Kierkegaard, a angústia seria o afeto puro diante da abertura daquele que
existe ao ser. Foi primeiro a filosofia que relacionou a angústia e a verdade
em sua dimensão mais subjetiva, não uma subjetividade transcendental,
como se propunha no sistema cartesiano e em outros sistemas filosóficos
modernos, mas uma subjetividade encarnada. Contudo, não foi a última.
Parece ter sido, de modo semelhante ao que ocorreu com a filosofia, que
a psicanálise teve de lidar com a angústia. Mas, diferentemente do que
ocorreu com a filosofia, a psicanálise recebeu a angústia entre os fatos da
clínica, assim como entre os enigmas da verdade do sujeito, ou seja, não
mais como testamento, agora como testemunha. Desse modo, essa teste-
munha, pela maneira como foi recebida no interior do dispositivo analítico,
ganha um encaminhamento diferente daquele do “conceito”, na filosofia.
A angústia é central, um dos fulcros do pensamento e das práticas
simbólicas modernas, por isso se impôs como tema da crítica da cultu-
ra moderna. No que concerne à psicanálise, é inegável que isso se deu,
num instante inaugural, sob as condições que lhe ofereciam, a Freud,

17
Alegoria da angústia

o seu próprio tempo. Essas condições configuraram a escuta pela qual a


angústia foi acolhida, pelo que somos conduzidos a ponderar o alcance
de tais processos históricos sobre o funcionamento da angústia. Assim, a
angústia marca a experiência moderna, e a psicanálise, que é produto dessa
experiência, é também marcada pela angústia. Não apenas nos primórdios
da modernidade e da psicanálise, mas ainda agora. A questão que se abre
ao analista, e não apenas a ele, é: por que insiste essa marca de nosso
tempo? “Deve haver uma razão para isso”, propõe Lacan (1963/2005a,
p. 48), fazendo ressoar a indicação freudiana, tão precisa quanto reticente,
segundo a qual a dor e a angústia não se podem dispensar em sua qualidade
de advertências (FREUD, 1930/1996).
Com isso, a partir da psicanálise temos notícia de uma dependência
– na verdade, confronto – entre a historicidade da experiência humana e a
operatividade da angústia. Trata-se, portanto, da função da angústia, não
somente de como funciona, mas – e principalmente – por que funciona.
Por fim, não somente uma questão sobre por que funciona, senão aquilo
que de fato aqui se persegue: a sua razão se renova? Por que, e como?

A angústia em dois registros

Quando fala a alma, ah, então já não fala a alma


– Schiller

A ideia segundo a qual se deve tratar da angústia como uma função


é, num certo sentido, tardia em Freud. Compõe o que ficou conhecido
como sua segunda teoria sobre a angústia. No entanto, ela é fundamental
para que se possa compreender todo o trajeto por ele percorrido em sua
investigação. Do mesmo modo, tal ideia é o que estrutura o percurso
lacaniano de investigação sobre a angústia.
Investigação sobre a angústia não é a expressão correta para designar
aquilo que realizou Lacan, tampouco Freud, no que concerne aos papéis
teórico e clínico desempenhados pela angústia. Isso tornaria a angústia

18
Hugo Juliano Duarte Matias

um objeto a ser conhecido. Trata-se aqui da diferença entre a angústia na


filosofia e na psicanálise, indicada aqui pela distinção entre testamento
e testemunha – apenas aludida acima. Assim, o testamento somente é
efetivo na ausência de quem ele representa. Ora, o testamento é o conceito,
e o conceito realiza uma operação de captura simbólica daquilo que não
mais se apresenta, daquilo que não está lá, a própria angústia ou o que lhe
causa. Por isso, na filosofia de Kierkegaard, a angústia não é um objeto
para o conhecimento. O conceito opera uma substituição e, desse modo,
condiciona os benefícios para a teorização filosófica, sem cuja ausência
do que é designado não poderiam ser outorgados. Uma filosofia, qualquer
que seja ela, somente é possível depois da angústia. Esse benefício consiste
apenas no que Kierkegaard foi capaz de indicar, o que na verdade não
foi pouca coisa, tendo em conta o poder de sua crítica ao pensamento
totalizante dos sistemas filosóficos que ele confrontou. O que ele indicou
foi um embaraço. É assim que Lacan (1963/2005a, p. 362) interpreta o
conceito de angústia de Kierkegaard, como um embaraço no campo da
filosofia, um embaraço ao pensamento, por sua natureza sui generis, mas
um embaraço que dá o que pensar. Aliás, uma filosofia do embaraço. O
conceito de angústia seria algo que se localiza num limiar e faz mediação
à coisa mesma, essa que garante a verdade do sujeito. Sob a referência
kierkegaardiana (uma das principais coordenadas oferecidas por Lacan),
o que comparece é Begrebet Angest – “conceito angústia” – e isso sugere1
algo muito diferente de conceito de angústia, pois esta expressão permite
a suposição de que o conceito é diferente da angústia, ela mesma, e a
toma como referente. A expressão de Kierkegaard (1844/2010), pelo
contrário, provavelmente pretende que a única realidade da angústia a
que se refere é a do conceito. Desde a filosofia, ele não acessa a angústia,
a angústia não é o seu tema, a angústia não está lá, e, mesmo assim, a an-
gústia faz uma entrada na cultura moderna, por meio de Kierkegaard, de
sua filosofia quebrada. Assim o toma Lacan (1970/1992) quando comenta
1 Ver nota do tradutor brasileiro na página 44 de Kierkegaard, S. O conceito de
angústia. Petrópolis, RJ: Vozes; São Paulo: Editora Universitária São Francisco, 2010.
(Originalmente publicado em 1844).

19
Alegoria da angústia

que a aparição que aí se faz é a do conceito, o que, relativamente ao seu


enquadre histórico, de modo algum é gratuito. Por isso, a relação entre o
“conceito angústia” e a angústia – tal como surge no discurso analítico – é
de disjunção exclusiva. Desse modo, ou não estamos diante da função ou
não estamos diante do conceito, pois o testamento não acompanha o real,
mas opera em sua ausência, ao passo que a testemunha acompanha o real
e nisso se constitui sua garantia. A angústia, tal como comparece na clínica
psicanalítica, e não apenas um simulacro seu, é a testemunha da verdade
do sujeito. Se estamos diante da angústia, estamos diante da verdade do
sujeito. Por isso, a angústia é a testemunha dessa verdade.
Freud (1926/1996) parece deduzir da origem e estrutura da angústia
a sua função, contudo, mais provavelmente, o movimento realizado por
ele, ao longo de seu percurso, seguiu a direção inversa. É isso que Lacan
(1963/2005a) esclarece com o seu seminário que trata da angústia. Na
verdade, a angústia é ali tomada como uma via de trabalho (MILLER,
2005a), um percurso, um caminho de pistas a seguir, ou uma testemunha
convocando o trabalho do analista ali mesmo onde ela aparece ou é an-
tecipada, seja por sintomas, inibições etc.
Aqui é preciso pontuar o que constitui uma demonstração prelimi-
nar das inflexões históricas da função da angústia, em seu efeito sobre o
discurso filosófico e sobre o discurso analítico. No discurso filosófico, a
angústia se faz notar na medida em que se torna eclipsada pelo próprio
discurso, ou nos termos de sua ruidosa evitação. Era isso que havia de
sistemático na filosofia até Kierkegaard, essa evitação da angústia. Então,
que função desempenhava a angústia na filosofia até Kierkegaard? A de
algo a ser evitado, uma coordenada em um mapa pelo qual alguém se desvia
de abismos. O que Kierkegaard faz pela filosofia? Aponta o fato de que a
filosofia não conhecerá o mundo sem olhar para os seus abismos, ainda
que isso provoque alguma vertigem. No discurso analítico, diferentemente,
a angústia alimenta um trabalho de cura que não cessa de se reinventar sob
a exigência de seus próprios impasses. O que isso significa é precisamente
o que se pretende indicar. Mais uma vez, na filosofia e na psicanálise, esses

20
Hugo Juliano Duarte Matias

são dois movimentos que se sucedem e, ambos, condicionados pelo lugar


da angústia na modernidade, não mais o lugar do silêncio. Ora, o recorte
que nos interessa é o analítico, pelo que importa esclarecer a natureza do
trabalho que a angústia põe em movimento.
O recorte analítico não deixa de ser – é preciso que se diga mais
uma vez – uma versão da verdade do sujeito tal como é testemunhada pela
angústia. É preciso esclarecer que nem o sujeito de que se trata tem con-
sistência fenomênica ou ontológica, tampouco a angústia, sua testemunha.
A escuta analítica acolhe o testemunho da angústia como de algo que está
fora do registro fenomênico, isto é, a verdade metapsicológica. É nesse
campo que tanto o trabalho freudiano como o lacaniano produziram seus
achados. Dentre as bruxas freudianas, os três registros de sua metapsicologia,
a saber, tópico, dinâmico e econômico, é sob a perspectiva econômica que
a angústia é finalmente descrita quanto à sua origem, estrutura e função2,
o que se ratifica na leitura lacaniana, já que, para Lacan (1970/1992),
“trata-se de economia” (p. 136). Aqui, portanto, o que primeiramente se
propõe é a construção de um esquema interpretativo que nos permita
lidar com os problemas que concernem mais diretamente nosso objetivo,
que é o estudo da função da angústia, mas dando à angústia um quadro
de referência econômico mais amplo na teoria freudiana.

***

Tratemos então do desenvolvimento das teorias freudianas da an-


gústia. É fundamental estabelecer que desde o início de suas formulações,
Freud apresenta a angústia como algo que “surge por transformação a
partir da tensão sexual acumulada” (FREUD, 1894/1996, p. 237). Isto
é, quando a pessoa se torna incapaz, por certas contingências, de obter
satisfação sexual, a tensão resultante é experimentada como angústia e
pode dar origem a diversos sintomas psicológicos. Esta é uma formulação
simples, na verdade seminal, que sequer era original – era o fundamento das
hipóteses vigentes sobre a neurastenia – mas que lhe serve como alicerce
2 Ainda que a assim chamada segunda teoria da angústia comporte um forte viés dinâ-
mico, como será demonstrado, sua orientação é, também, essencialmente econômica.

21
Alegoria da angústia

para os primeiros avanços teórico-clínicos. E assim, desde o princípio,


Freud insere a angústia num registro econômico. Não apenas isso – no-
te-se – a impossibilidade de escoamento dessa tensão acumulada, por vias
psíquicas, constituía a principal condição para se configurar o estado de
angústia. Segundo Strachey (1969/1996), é desta concepção que descen-
dem diretamente as proposições ulteriores acerca da situação traumática
em sua relação com a angústia. Antes disso, porém, a ideia de angústia
como estado de tensão acumulada se fez presente nas formulações sobre
a situação de perigo para o psiquismo, definida como “perturbação na
economia da libido narcísica” (FREUD, 1926/1996, p. 134) ou, de outro
modo, como “não satisfação” (p. 136).
Assim, esquematicamente, Freud propõe, a princípio, que a angústia
é tensão psíquica acumulada; em seguida, que sob certas contingências,
a energia psíquica dessa tensão estaria impossibilitada de tramitar pelo
aparelho mental, pondo em risco o próprio aparelho; e é por essa via que
Freud articula a angústia à situação traumática. Esta cadeia de raciocínio
– da tensão acumulada à impossibilidade de escoamento, por conseguinte,
ao risco para o aparelho mental – prenunciava o estatuto de função da
angústia, e se confirmou, de modo definitivo, em Inibição, sintoma e angústia
(FREUD, 1926/1996)3, em que se diz que esta função não pode ser outra
senão a de sinalizar uma situação de perigo. Esta última afirmação sobre
a função da angústia acrescenta um pequeno detalhe que faz uma grande
diferença, pois inscreve a angústia também num outro registro metapsico-
lógico, a saber, o dinâmico. Ela também altera um pouco a relação entre
a angústia e o trauma. Desde este ponto, para que estes detalhes possam
ser mais claramente notados, faz-se necessário o quadro de referência já
aludido, apresentado de maneira mais esquemática.
3 Muito embora a edição de referência para as citações das obras de Freud, pelas
facilidades que isso oferece, seja a Standard Brasileira – que consta entre as Referências
bibliográficas – esta versão foi frequentemente comparada com a tradução, para o caste-
lhano, de José Etcheverry e, eventualmente, com o texto alemão. Em função disso e de
nossas preferências de tradução, observar-se-ão algumas divergências entre o texto das
citações diretas e o texto da versão brasileira, o que inclui o texto dos títulos das obras
mencionadas.

22
Hugo Juliano Duarte Matias

O que caracteriza, então, a primeira teoria freudiana da angústia é


sua formulação em termos econômicos (não escoamento), assim como o
que caracterizará a segunda teoria é sua formulação em termos dinâmico-
-estruturais (sinal). Essas duas formulações não se excluem ou substituem,
mas parecem se sobrepor em diversos pontos e se associam em diferentes
momentos do trabalho teórico freudiano (HANS, 1999). A sua primeira
teoria foi gestada no contexto da pesquisa nosográfica pela qual Freud
pretendia isolar a neurose de angústia. Para isso, ele se aproveitou das des-
crições anteriores da neurastenia como efeito do esgotamento sexual, às
quais compara o seu modelo da neurose de angústia (FREUD, 1895a/1996).
Sendo a angústia transformação de energia sexual livre e flutuante, ela
acaba se fixando em acessos de angústia, vertigens, expectativas ansiosas
etc., ou em representações específicas, pelo que produz fobias.
Muito embora o modelo neurastênico da angústia funcione sob efeito
do paradigma fisiológico, a indicação da falta de competência para elaborar
psiquicamente a excitação de origem somática e sexual (o que produz a
angústia propriamente dita) abre espaço para a incidência psicológica nesse
modelo. Trata-se da intervenção aí do conceito de libido – energia sexual.
Na neurose de angústia, à medida que se acumula a excitação somática,
declina a libido. Essa perturbação econômica em que consiste a angústia
faz dela um índice da inadequação do processo de elaboração psíquica
dessa energia (o que tornaria esta energia disponível ao circuito ordinário
de investimento da libido). Por outro lado, ela também testemunha um
processo rudimentar de elaboração de energia, justamente aquilo pelo que
se produz a angústia como afeto, assim sustenta Laplanche (1993): uma
elaboração precária.
A angústia estudada no contexto das considerações sobre o sonho,
por exemplo, revela o caráter excessivo da excitação sexual, o que Laplan-
che (1993) descreve como violência. Lembremos de que o sonho teria por
função manter dormindo a pessoa que sonha. O sonho seria a realização
velada de um desejo recalcado (um desejo de natureza sexual). Entretanto,
como algo que fora recalcado retorna no sonho, isso produz angústia.

23
Alegoria da angústia

É a angústia que, num momento de sua culminância durante um sonho,


provoca o despertar e, portanto, opera o vacilo da função de proteção do
sono dessa formação do inconsciente. Já no estudo do sintoma fóbico, de
extrema importância para a compreensão da evolução da teoria freudiana
da angústia, esta assume caráter um pouco diferenciado. A angústia opera
como um marcador, fixada em uma representação consciente, mas ao
mesmo tempo atrelada a uma ameaça pulsional interna. Desse modo, a
representação consciente assume significação fóbica e opera como ameaça
externa, mas ela é, na verdade, angustiante, por sua ligação a uma ameaça
pulsional interna, embora não percebida como tal. A metapsicologia do
recalque e da montagem do sintoma fóbico, tal como é apresentada no
artigo sobre o inconsciente (FREUD, 1915a/1996), impõem ao trabalho
freudiano alguns desvios que antecipam aquela que será a sua segunda
teoria da angústia, a saber, da angústia como sinal.
A segunda teoria é desenvolvida principalmente em Inibição, sintoma
e angústia. Neste texto, Freud (1926/1996) se ocupa do trabalho de rever
a relação entre a angústia e os processos defensivos – sendo o recalque o
principal deles. Ele havia proposto que a angústia seria uma consequência
do recalque (FREUD, 1915b/1996), isto é, que a perturbação econômica
em que consiste a angústia seria efeito do corte entre libido e represen-
tação operado pelo recalque. No entanto, ele mesmo levanta evidências
clínicas para o modelo metapsicológico segundo o qual a angústia deve
causar o recalque – recalque secundário, é preciso frisar (HANS, 1999).
Assim, diante da aparente relação exclusiva entre os modelos e, portanto,
sua contradição, o escrúpulo freudiano o faz decidir provisoriamente pela
operatividade recalcante da angústia em detrimento da primeira hipótese,
ou seja, Freud prefere pensar que a angústia causa o recalque, e não o
contrário. Reconheçam-se aí as inflexões do paradigma de sua segunda
tópica4, já que Freud (1926/1996) reavalia o lugar do Eu, aliás, é o Eu que
4 No que ficou conhecida como primeira tópica freudiana, Freud descreve os lugares
(tópicos) do aparelho psíquico como sistema inconsciente (Ics) e sistema pré-conscien-
te/consciente (Pcs/Cs). Na segunda tópica, a descrição do aparelho mental recorre ao
Eu (Ich), Supereu (Überich) e Isso (Es).

24
Hugo Juliano Duarte Matias

se torna lugar e produtor da angústia. Na segunda teoria, a angústia se


destaca como uma antecipação e proteção diante de um perigo econômico;
ela está relacionada à ameaça de castração. Essa teoria, em que a angústia
se faz sinal, símbolo, é a que confere o caráter “funcional” da angústia.
Contudo, a segunda teoria depende de um acréscimo interessante e
importante: a produção da angústia como sinal se faz em dois momentos. É
preciso que se pense num momento inicial, em que o psiquismo é invadido
por um excesso de energia sexual e isso implica ameaça real ao psiquismo,
e um segundo momento, que mimetiza o primeiro, em menor grau, com a
finalidade de que o psiquismo se prepare para uma ameaça eventual. É só
nesse segundo momento que a angústia poderia funcionar como sinal. A
princípio, parece uma teoria muito diferente da primeira. Não obstante, a
postulação de diferentes processos de produção de angústia, um arcaico
e original, e outro como que uma reedição desse processo com função
de proteger, faz supor um esforço freudiano pela sustentação de suas
duas teorias em um modelo mais abrangente. A angústia como trauma
(primeira teoria) e a angústia como sinal (segunda teoria) seriam reunidas
num modelo em que se fala de angústia real (elemento da primeira teoria)
e angústia automática (elemento da segunda teoria). Esse modelo evita
tornar a angústia em apenas um mecanismo de adestramento, e sustenta
na tensão entre as formas de descrição e os modos de operatividade da
angústia (real e automática) o seu estatuto de testemunho de uma verdade,
a do desejo como inconciliável (LAPLANCHE, 1993).
Uma dimensão da angústia na teoria freudiana que é preciso ter em
conta ainda concerne à semântica mais elementar do uso que ele faz da
palavra Angst (traduzida geralmente por angústia no contexto das escolas
francesa e espanhola, e por ansiedade no contexto das escolas ingle-
sas5). Mais de uma vez, Freud distingue semanticamente, em seus textos,
as palavras Angst, Furcht e Schreck (FREUD, 1917b/1996; 1920/1996).
5 Hans (1996) observa que, muito embora a tradução mais adequada seja medo, a
literatura técnica do campo médico-psiquiátrico muito antes de Freud e da psicanálise
consagrou os termos angústia e ansiedade e, por essa razão seria difícil recomendar uma
outra tradução.

25
Alegoria da angústia

A distinção fundamental entre Angst e Furcht concerne à existência de um


objeto específico, o que é próprio de Furcht (significa, portanto, o terror
diante de algum objeto bem definido), enquanto Angst designa frequen-
temente o estado de comoção e/ou antecipação por vezes inespecífica de
um perigo (o que poderia ser traduzido simplesmente por medo, segundo
HANS, 1996). Já a distinção entre Angst e Schreck parece concernir ao
campo da economia. Freud sustenta que Schreck designa o efeito produ-
zido em alguém quando, diante de um perigo, não está protegido contra a
soma de excitação que o acomete. Esta ideia, segundo Laplanche (1993),
aparece nos Estudos sobre a histeria como condição para a impossibilidade
de ab-reação, no Projeto como transbordamento e no Além do princípio de
prazer como traumatismo. Neste último caso, a Angst que se lhe antecipa
aparece como preparação e proteção. Quase que nos termos dessa mesma
relação entre Schreck e Angst, podemos ler também o caso do Homem dos
Lobos. O susto, Schreck, funciona como um modelo para o entendimen-
to do trauma, segundo a ideia de que um excesso energético, de origem
interna ou externa, causa danos ao aparelho psíquico (autotraumatismo,
portanto, quando se trata de um excesso energético de origem interna).
Neste mesmo modelo tem um papel a angústia, como desempenhando
uma tentativa de metabolização do traumático.
Esta é mais uma evidência de que as duas teorias freudianas da angús-
tia, ao longo de quase todo o percurso de sua elaboração, não podem ser
facilmente separadas. Ao mesmo tempo em que o susto indica o fracasso
do aparelho, que o trauma indica a falta subjetiva e a vitória do econômico,
do autotraumatismo, a angústia cumpre o papel de simbolização – pois se
antecipa, como sinal, a qualquer nova situação traumática – tão precária
que se pode formular quase que inteiramente em linguagem econômica.

***

Parece oportuno inserir a discussão construída até aqui, sobre a an-


gústia na evolução do pensamento freudiano, num quadro mais abrangente
que descreva a sua concepção econômica do aparelho mental, a fim de

26
Hugo Juliano Duarte Matias

esclarecer certas nuanças da função da angústia. Ora, os processos relativos


à economia pulsional que concernem à vida mental dos neuróticos foram
detalhadamente descritos por Freud (1911/1996) em sua apresentação dos
princípios que organizam os acontecimentos psíquicos, os quais dão conta
da quantidade de estimulação que circula no aparelho mental. Partindo
da hipótese que identifica a redução de tensão no aparelho ao prazer e o
seu acúmulo ao desprazer, Freud propôs a existência de dois princípios:
de prazer e de realidade. O primeiro deles, e mais primitivo – assim po-
demos dizer – é figura da tendência à esquiva do desprazer e busca de
prazer pelo aparelho mental em sua tarefa de encaminhar os montantes
de estimulação interna para o escoamento, isto é, dar tramitação à pulsão
sexual que chega ao aparelho mental. O processo mental que corresponde
ao princípio de prazer é chamado por Freud de processo primário, e está
comprometido com a satisfação pulsional pela descarga imediata. A função
do princípio do prazer, portanto, seria manter o mínimo de excitação e
garantir estabilidade ao psiquismo, de modo que qualquer operação em
contrário seria considerada disfuncional. Seu funcionamento, no entanto,
não garante sempre o escoamento, sob a forma da satisfação pulsional.
De duas maneiras ele falha. Em primeiro lugar, o princípio de prazer falha
ao buscar reinvestir energia sexual em uma representação mnemônica de
um objeto com o qual o prazer já foi obtido anteriormente. Isto põe o
aparelho sob o risco de sua desconexão com a realidade, o que tornaria
impossível a sua sobrevivência. Este é o fracasso da via alucinatória. Por
este motivo, o aparelho mental é conduzido a buscar na transformação
da realidade externa a maneira pela qual realiza sua satisfação. Contudo,
as contingências externas ao psiquismo eventualmente não o favorecem
nessa aspiração, e nisso consiste a segunda maneira pela qual o princípio
de prazer fracassa, quando encontra os obstáculos da realidade. É aí que
entram em cena processos psíquicos secundários, cuja eficácia consiste
no adiamento da satisfação com o fim de torná-la flexível a tais contin-
gências. Para isso, é preciso fazer a energia pulsional tramitar no interior
do aparelho mental, percorrendo as ligações que o próprio aparelho se

27
Alegoria da angústia

encarrega de produzir entre as ideias. Isto é, sob a influência do princípio


de realidade, a pulsão sexual precisa ser ligada. O que marca a passagem
entre os dois princípios que organizam os acontecimentos psíquicos é
mesmo a mediação necessária à garantia dessa satisfação. Abaixo (Figura
1) apresentamos uma descrição esquemática da relação entre esses pro-
cessos. É preciso ler essa representação da esquerda para a direita, pois
essa é a direção em que o funcionamento psíquico se moveria segundo a
descrição freudiana, isto é, quando o processo primário falha, entra em
cena o processo secundário.

Satisfação pela descarga


imediata
Obstáculo à satisfação

Pulsão sexual Realidade externa

Processo primário Processo secundário

Princípio de prazer Princípio de realidade

Energia ligada
Tendência à estabilidade

Figura 1

O pensamento é a mediação por excelência no processo secundá-


rio. Segundo a formulação freudiana, o pensar consiste na tolerância, até
certo limiar, de um acúmulo de estimulação interna, o que o aparelho
realiza deslocando energia pulsional circulante no aparelho para alimentar
o “agir por ensaios” (FREUD, 1911/1996, p. 240) que o pensar alcança.
Quando pensamos estamos ensaiando o agir pelo qual obteríamos satis-
fação pulsional. Isso implica que a energia que circulava livremente no
aparelho é, com isso, apanhada em cadeias de tramitação que permitem
o adiamento de sua descarga. Esse pensamento não reconhece, desde o
início, tampouco passa a reconhecê-las sempre, as pressões do mundo

28
Hugo Juliano Duarte Matias

externo, de modo que muitas vezes não se submete ao teste de realidade


dos meios alternativos que propõe à satisfação. Tal é o caso da fantasia,
uma das maneiras do pensar. Por sua relação com as pulsões sexuais –
principalmente – e devido à característica originalmente auto-erótica destas
pulsões, a fantasia se torna menos sujeita à frustração, portanto, menos
sujeita ao princípio de realidade. A fantasia é capturada pela tendência
de satisfação imediata do princípio de prazer. Em todo caso, a ação do
mesmo princípio de prazer provoca, a partir de certo ponto, o recalca-
mento das pulsões sexuais, por causa da necessidade de evitar o acúmulo
de excitação e o consequente desprazer. Com elas, também as fantasias
sexuais são recalcadas, pela mesma razão, já que essas fantasias vão se
inviabilizando cada vez mais. A satisfação dessas fantasias, sob o efeito
dos modos posteriores de relação objetal, cada vez mais restringida pela
operação de ideais da cultura, pelas contingências da realidade, poderia
provocar desprazer.
No artigo Além do princípio do prazer (FREUD, 1920/1996), são re-
tomadas as considerações já apresentadas, principalmente em 1911, sobre
a economia pulsional. Ali, entretanto, os mais importantes postulados se
tornam objeto de problemática, de maneira que conduzem Freud à reo-
rientação radical de seu entendimento. Ora, entre o princípio de prazer
e o de realidade há uma relação de evidente continuidade, pelo que este
seria, na verdade, uma extensão daquele. Contudo, se o aparelho estivesse
plenamente submetido ao princípio de prazer, as experiências prazerosas
deveriam ser mais numerosas do que o são em verdade. É preciso, por
conseguinte, supor – tal é o juízo freudiano – que no próprio aparelho
mental há forças que fazem oposição ao princípio de prazer, as quais não
foram ainda elucidadas.
Consideremos as fontes de desprazer relativas a conflitos e cisões
no interior do próprio aparelho, isto é, há pulsões que, pela decalagem
própria de seu aparecimento e desenvolvimento, fazem ao aparelho exi-
gências de satisfação inconciliáveis, e, nessa mesma medida, põem em risco
a unidade do Eu. Assim, algumas dessas moções pulsionais se tornam

29
Alegoria da angústia

objeto de recalque. Essas moções, retidas sob a ação do recalque, ainda


conseguem produzir formas indiretas ou substitutivas de satisfação, de
modo que causam desprazer ao Eu. Isso provoca rupturas no processo
orientado pelo princípio de prazer, que, nos neuróticos, por exemplo,
promove formas de satisfação que não podem ser sentidas como praze-
rosas, e acabam sendo percebidas como desprazerosas. Ora, tal situação
somente é inteligível se tivermos em conta que prazer e desprazer são
sensações produzidas no Eu, para dar conta do manejo dos processos
de satisfação pulsional. Com isso, uma forma de satisfação pode levar ao
desprazer. Contudo, há certas situações que não podem ser explicadas
pela intervenção desses dois princípios, de que são exemplo os sonhos
traumáticos que se repetem, o jogo do Fort-Da, observado por Freud em
uma criança – seu neto – e a compulsão à repetição. O que essas situações
têm em comum é uma forma de cumprir-se a exigência pulsional que, de
nenhum modo, pode ser referida ao prazer, que deve ser mais primitiva
que o princípio do prazer, ou mais além dele. Nessas situações estariam
em jogo somas excessivas de excitação e uma energia não ligada que co-
locaria em risco o aparelho psíquico, e cuja fonte é endógena. Tratar-se-ia
do excesso pulsional. A defesa que o aparelho executa é a ligação dessa
energia, e para isso não pode contar com o princípio do prazer, tampouco
com o princípio de realidade.
A pulsão que Freud imagina ser a fonte desse excessivo pulsional
deve ter características diferentes daquelas que ele supunha a todas as
pulsões e, principalmente, à pulsão sexual. Ora, as pulsões sexuais como
que buscam satisfação e se ligam a um objeto e outro. Elas exercem
pressão constante e põem o aparelho psíquico em movimento. Já as
pulsões que Freud precisa postular para explicar os fatos clínicos acima
mencionados funcionariam de modo diverso, pois deveriam pretender
a descarga total e imediata, o que implicaria a morte do aparelho, que se
alimenta, ele mesmo, da energia que as próprias pulsões lhe fornecem. Por
tais características elas seriam as pulsões de morte, as mais fundamentais
de todas as pulsões. Assim, parece se tornar mais definida a natureza

30
Hugo Juliano Duarte Matias

da pulsão sexual. Deve haver pulsões com uma qualidade diferente das
pulsões de morte, que modalizariam a tendência à extinção da própria
pulsão, segundo o princípio da descarga total e imediata, chamado por
Freud de princípio de Nirvana. Essas pulsões – as pulsões sexuais – devem
produzir o adiamento da extinção da pulsão, delimitando a satisfação sob
condição determinada. Assim, essa pulsão constituiria uma resistência ao
fim pulsional primitivo e originário. Essa qualidade pertenceria às pulsões
sexuais. A consideração de sua nova dualidade pulsional fez Freud ree-
xaminar alguns problemas cruciais de sua clínica. Um deles é a aparente
tendência ao esgotamento das pulsões sexuais e do princípio de prazer,
seu processo mental correspondente. Na verdade, essa tendência passa
a ser identificado ao princípio de nirvana, e, por conseguinte, à pulsão
de morte.
A pulsão de morte deve ser transformada, resistida, sob pena de
não sobreviver ao aparelho mental. A exigência de trabalho que representa
a pulsão de morte – da pulsão em seu estado primordial – é, portanto, a
tarefa de ligação. É esse propósito que cumprem as pulsões sexuais, ou
a sexualização das pulsões. Essa tarefa é anterior, primeira, e garante a
possibilidade de operação do princípio do prazer sobre essa excitação
sexualizada, a possibilidade de proporcionar a tramitação da pulsão por
vias de ligação que adiem relativamente a satisfação, de modo a evitar o
colapso do aparelho. Esse seria o papel desempenhado pela fantasia em
sua função na sexualização da pulsão de morte (COUTINHO JORGE,
2005), uma fantasia anterior àquela já discutida, uma fantasia originária,
“funda-mental”. No processo de ligação, o prazer não ocupa o papel mais
importante; entra em cena a necessidade de proteção do aparelho psíqui-
co. Portanto, duas transformações importantes da descrição freudiana da
economia pulsional: o fato de que não se pode mais identificar energia
livre e energia ligada, respectivamente, a processo primário e processo
secundário, já que – e esta seria a segunda transformação – haveria um
trabalho de ligação anterior ao princípio de prazer, em cujo processo se
admite alguma proporção de angústia.

31
Alegoria da angústia

O tema da mescla de pulsões, ou da sexualização da pulsão, é


diretamente abordado em O problema econômico do masoquismo (FREUD,
1924a/1996). Neste texto, a relação entre masoquismo e princípio de prazer
é ponto fulcral da redescrição de seu modelo econômico para o psiquismo.
Ali se admite a existência de uma vertente propriamente masoquista da
pulsão, cuja satisfação está associada imediatamente à dor e ao desprazer.
Até então, o princípio de prazer dava inteligibilidade ao funcionamento
mental. A ligação, ora ignorada, entre masoquismo e pulsão é não somente
enigmática desde um ponto de vista econômico, mas parece mesmo, em
certa medida, perigosa às condições de sustentação do aparelho psíquico,
totalmente estranho a ele; e de tal modo que se descobre, de fato, uma
dessimetria entre masoquismo e aquilo que parecia a sua contrapartida
lógica, o sadismo. Este, ao contrário do masoquismo, se orienta, como os
outros fenômenos psíquicos, pela relação entre satisfação e prazer pela
descarga. Ora, tanto princípio de prazer quanto pulsões de vida, de algum
modo, aceitam a orientação da satisfação no sentido da conservação do
próprio psiquismo, para a qual masoquismo e pulsão de morte não es-
tariam disponíveis. Freud desfaz a identificação anteriormente aventada
entre princípio de prazer e de nirvana, pois isso implicaria a coincidência
de qualquer forma de prazer com a diminuição da excitação e qualquer
forma de desprazer com o seu aumento. De fato, o princípio de nirvana
coincide com a meta das pulsões de morte, cuja exigência orienta para a
produção de um estado de esgotamento energético do aparelho, ao mesmo
tempo em que alerta contra as exigências das pulsões de vida – libido –
que trabalham na direção oposta, não apenas tolerando, mas produzindo
certas quantidades de excitação. Isso não pode ser correto porque, se se
entendem as diferenças da magnitude do estímulo como engendrando
aumento e diminuição de tensão, nem sempre esse aumento correspon-
de a desprazer, assim como nem sempre a sua diminuição corresponde
ao prazer. Aqui acrescentamos ao esquema anterior o funcionamento
do aparelho em repetição, a pulsão de morte, o princípio do nirvana e a
tendência ao esgotamento (Figura 2).

32
Hugo Juliano Duarte Matias

Satisfação pela descarga


total e imediata
Satisfação pela descarga
imediata
Obstáculo à satisfação

Pulsão de morte Pulsão sexual Realidade externa

Compulsão à Processo primário Processo secundário


repetição
Princípio de nirvana Princípio de prazer Princípio de realidade

Energia ligada
Tendência à estabilidade
Tendência ao esgotamento

Figura 2

Conclui-se, de qualquer forma, que o princípio do prazer deriva do


princípio do nirvana, sendo este mais primitivo, assim como as pulsões de
morte o são em relação às pulsões sexuais. Freud (1924a/1996) argumenta
que essa operação somente poderia ter sido possível pela influência da
própria pulsão sexual sobre a pulsão de morte. As pulsões e os processos
que lhes correspondem não se anulam nem se substituem, mas convivem
no interior do aparelho, e de tal modo que, vez por outra, provocam certos
conflitos entre suas formas de exigência de trabalho. Sendo assim, não é o
princípio de prazer o guardião da vida, pois todos esses agentes concorrem
para o mesmo fim, que não é guardar a vida, mas assegurar certo percurso
vital. Isso se opera pelo fato de a libido conduzir a pulsão de morte a um
desvio, pelo que esta é lançada ao contato com a realidade externa e, então,
toma a qualidade de uma vontade de poder. Tal é o efeito da sexualização
da pulsão de morte, engendrando a meta sádica. Contudo, porque a mescla
de pulsões não consegue exteriorização completa, ainda sexualizada, ela
incide sobre o próprio aparelho mental desde o seu interior, o que produz
uma meta pulsional essencialmente masoquista, o masoquismo erógeno, que
permanece como originário, testemunho e resquício de uma ligação anterior
entre Eros e pulsão de morte. Essa é, então, uma hipótese a respeito do
domínio exercido pela libido sobre a pulsão de morte.

Angústia e o real, entre excesso e perda

Todos retrocedemos ante a luz meridiana da verdade


– Max Müller
33
Alegoria da angústia

É preciso agora sumarizar a descrição do modelo econômico até aqui


reconstruída. Para isso, desenvolvamos nossa representação esquemática
do aparelho psíquico pensada, sobretudo, nos termos que lhe confere a
proposta freudiana em Sobre o narcisismo (FREUD, 1914a/1996), segundo
a qual toma o aparelho mental como
um dispositivo destinado a dominar6 as excitações que de
outra forma seriam sentidas como aflitivas ou teriam efeitos
patogênicos. Esse trabalho realizado pelo aparelho mental
auxilia de forma marcante um escoamento das excitações
que são incapazes de descarga direta para fora, ou para as
quais tal descarga é, no momento, indesejável (p. 92).

É preciso lembrar que a conclusão obtida até aqui é de que há uma


função primordial, da qual está mais próxima a pulsão de morte, mas
que pode ser encontrada também nas pulsões sexuais, que é a função
de retorno do organismo ao inanimado, de alívio final da tensão em que
consiste a própria vida. Embora as pulsões e os processos psíquicos cor-
respondentes estejam submetidos (FREUD, 1920/1996) a essa mesma
função de retorno ao inanimado, ela se manifesta de modos diferentes
nas formas de exigência de cada pulsão e nas tendências representadas
pelos variados princípios que organizam o acontecer psíquico (ver Figura
2 acima). O vínculo entre cada forma de exigência pulsional e o princípio
correspondente delimita, nesta representação esquemática logo abaixo
(Figura 3), uma zona de influência de um processo particular – demarcada
por um quadrilátero como se vê abaixo. A primeira dessas zonas é aquela
designada pela compulsão à repetição. Ela demarca a relação entre pulsão
de morte e princípio do nirvana, tal como é descrita em Além do princípio de
prazer (FREUD, 1920/1996); a segunda zona de influência é aquela inscrita
como processo primário, para a relação entre pulsão sexual e princípio
de prazer; e a terceira zona de influência está inscritacomo processo se-
cundário, para a relação entre pulsão sexual, sob a influência da realidade
externa, e princípio de realidade (FREUD, 1911/1996).
6 O verbo aqui é bewätigen: indica, principalmente, a dificuldade de lidar satisfatoria-
mente com o excesso de estimulação que chega ao aparelho mental. É importante sa-
lientar – em função do que se segue na argumentação aqui perseguida – que esse é um
dos verbos em alemão que sugerem a ideia de violência.

34
Hugo Juliano Duarte Matias

Função de retorno à quiescência do mundo inorgânico

Satisfação pela descarga


total e imediata
Satisfação pela descarga
imediata
Obstáculo à satisfação

Pulsão de morte Pulsão sexual Realidade externa

Compulsão Processo primário Processo secundário

Princípio de nirvana Princípio de prazer Princípio de realidade

Teste de realidade
Tendência à estabilidade
Tendência ao esgotamento

Função de retorno à quiescência do mundo inorgânico

Figura 3

Esta é uma representação esquemática do aparelho mental, uma


espécie de máquina que metaboliza montantes de energia pulsional de
diferentes maneiras. Lendo-se este esquema da esquerda para a direita
devemos notar que os princípios mais abrangentes e primitivos situam-se
à esquerda. Assim temos uma tendência original ao esgotamento, que exige
descarga total e imediata. Esta tendência é transformada em outra, uma
tendência à estabilidade, a qual corresponde uma exigência de descarga
imediata, mas não total. Por fim, esta mesma tendência à estabilidade é,
para fins de preservação do aparelho mental, limitada por um teste de re-
alidade, em função de obstáculos de diversas naturezas à possibilidade de
satisfação imediata. Esse esquema permite apontar, de modo mais claro,
o que, segundo Dor (1991), diz respeito ao caráter paradoxal da econo-
mia pulsional. Ela determina, ao mesmo tempo, as formas que assumem
a sua própria ordem e desordem. Segundo ele, o aparelho psíquico, sob
essa descrição, se comporta como uma máquina biológica7, cujo trabalho
7 Talvez seja importante frisar que essa é uma descrição analógica do funcionamento
mental, que tem raízes na metapsicologia freudiana, e corresponde aos fins teóricos que
Freud buscou e ainda buscam os analistas.

35
Alegoria da angústia

transforma parte da energia que recebe com o fim de manter as condi-


ções de sua própria existência. Intervém nesse processo a tensão entre
entropia – que representa a medida de desordem no aparelho – e entropia
negativa – que representa a medida de ordem. Entropia e entropia negativa
metaforizam aqui, respectivamente, (a) a invasão do aparelho por somas
excessivas de energia pulsional – ou o seu esgotamento, o que se constitui
como desordem, risco ao funcionamento e existência do próprio apare-
lho – e (b) o trabalho realizado para a produção da satisfação pulsional,
de modo a produzir estabilidade, ordem, isto é, de modo que a energia
não se acumule nem se esgote. Assim, entropia e entropia negativa são
metáforas que não apenas destacam a dimensão econômica do aparelho
mental, mas o fato importantíssimo de que, nele, a energia pulsional assu-
me diferentes formas, as quais se encontram, se enfrentam e combatem.
Cada processo nessa economia representa entropia a ser compensada
pelo processo que lhe sucede. Isso é representado graficamente acima.
É preciso notar justamente aquilo que Freud pretendia indicar com sua
metáfora econômica, a saber, as trocas, a circulação, o fluxo de energia, o
que não pode ser apreendido de maneira simples.
Tomemos como exemplo a própria pulsão no modelo acima apre-
sentado: a pulsão de morte representa entropia e a pulsão sexual, que
lhe sucede, lhe resiste e transforma, representando entropia negativa, e
intervém contra a capacidade desordenadora e mortífera da pulsão de
morte. Se a pulsão de morte representa entropia é porque ela opera não
apenas como energia desligada – isto significa, sem vias de tramitação no
aparelho mental, ou possibilidades de escoamento – mas como força de
desligamento. A pulsão sexual opera ligação, portanto, entropia negativa
em relação à pulsão de morte, força de ligação; contudo, em sua relação
específica à pulsão de morte. A realidade externa, no texto freudiano, pode
ser pensada como função do real, desse modo, uma instância do aparelho,
como propomos no modelo acima. Lembremos, não obstante, que o real,
em Freud, não é um conceito simples muito menos unívoco, também
como já indicado. A função do real aqui é mais uma instância do próprio

36
Hugo Juliano Duarte Matias

aparelho mental em ação. Em sua relação com a pulsão sexual, a função


do real opera como entropia negativa. Isto significa que, se na relação com
a pulsão de morte a pulsão sexual opera como entropia negativa, há nela
uma dimensão de entropia, que deve ser compensada pela realidade (mais
uma vez, função do psiquismo).
Assim, o aparelho está em constante trabalho de estabilização, que
serve tão-somente ao adiamento da morte do próprio aparelho, pelo que
assegura o percurso vital mencionado por Freud (1920/1996). Isso deve
tornar mais inteligível a proposta freudiana de que a pulsão de morte, en-
tropia, levará inexoravelmente o aparelho ao seu ocaso. Também nos serve
para compreender que, assim como o aparelho mental, em sua dimensão
econômica, se comporta paradoxalmente, assim também a angústia guarda
essa mesma característica, operando, ao mesmo tempo, entropia e entropia
negativa, como se verá logo em seguida. É preciso, não obstante, apontar
aqui uma advertência. Pois se falamos de entropia isso não pode indicar
outra coisa senão que ela surge, em sua condição analógica, do interior
da situação analítica e do confronto com as suas antinomias (LACAN,
1955/1985, p. 149 et seq.). Entropia e entropia negativa não designam
apenas características abstratas das relações entre dimensões do aparelho
mental. Designam os termos do gozo e da castração na fala dos sujeitos
em análise, isto é, aquilo a que, em sessões de análise, os analisantes se re-
ferem ao tentar articular o que na experiência lhes escapa da fala, ou ainda,
ao tentar articular em palavras o que se pode dizer do prazer no corpo.
Trata-se do trabalho de elaboração psíquica que cumpre ao analisante e
isso designamos pelo trabalho realizado pelo aparelho mental. Embora
operadores teóricos, entropia e entropia negativa são ideias concebidas a
partir da clínica. Desse modo, se a pulsão de morte nos aponta entropia,
é como símbolo de uma perda ou de um gozo, de que algo permanece em
região sombria para o analisante, e não apenas que a máquina funciona.
Ora, podemos também apontar, nesse esquema, regiões de tran-
sição, em que o trabalho psíquico se realiza com maior esforço, onde o
metabolismo do excessivo pulsional é mais intrincado. A primeira dessas

37
Alegoria da angústia

regiões corresponde à incidência da pulsão de morte antes que esteja


operando o princípio de nirvana, ou seja, antes que o aparelho disponha
de quaisquer mecanismos de descarga pulsional. Trata-se de algo que pode
apenas ser suposto, portanto não se vincula a um fato da clínica stricto sensu.
Mas deve ser suposto para dar estabilidade ao modelo freudiano (aqui a
nossa abordagem segue uma orientação quase hermenêutica). Essa região,
portanto, pertencerá à mítica freudiana.
Podemos supor que Freud, em Inibição, sintoma e angústia (1926/1996),
descreve a experiência (traumática) do nascimento e indica a existência
dessa região: num momento que é primordial, a criança não dispõe de
nenhum recurso para se livrar da energia pela qual é invadida; ela apenas
sofre essa invasão. Essa energia, que é pulsional, somente pode ser pen-
sada como pulsão de morte, por seus efeitos e porque neste momento
primordial seria absurdo recorrer ao paradigma da pulsão sexual sem o que
lhe seria essencial, um esquema de satisfação, o que por definição exclui-
ríamos, e o próprio Freud (1926/1996) o exclui desse momento. Sequer
um mecanismo de descarga que mortiferamente operasse o esgotamento
da energia pulsional (o princípio de nirvana) intervém aqui. Esse modelo
será aproveitado por ele para designar o trauma. O trauma, podemos
dizer assim, do mesmo modo que em medicina, em que designa tanto a
situação que produziu a ferida como a própria ferida que desta situação
decorre, corresponde aqui à própria situação de invasão do psiquismoe à
consequência dessa invasão do excessivo pulsional.
A segunda dentre essas regiões corresponde à incidência da pul-
são sexual lá onde a pulsão de morte atua, produzindo uma mescla, a
sexualização da pulsão de morte. A terceira região sombria corresponde
à influência da pulsão sexual onde o princípio de prazer é inoperante. É
como que uma atualização do trauma anterior, por causa de sua homo-
logia àquela região em todas as suas condições estruturais; esta é a região
da angústia, por exemplo, aquela relacionada à castração. Note-se, desde
já, haver um princípio analógico que reedita a estrutura dessas regiões de
que falamos quando a estrutura das condições é semelhante. Na quarta

38
Hugo Juliano Duarte Matias

região, a realidade incide na qualidade de obstáculo à satisfação da pulsão


sexual, exigindo do aparelho que dê tramitação ao pulsional, ligando sua
energia. A quinta região corresponde à elaboração psíquica ainda sem o
apoio e a intervenção do princípio de realidade. Tal elaboração produz
a fantasia, como uma forma de pensamento ainda sob a influência do
princípio de prazer.
Função de retorno à quiescência do mundo inorgânico

Satisfação pela descarga


total e imediata
Satisfação pela descarga
imediata
Obstáculo à satisfação

Pulsão de morte Pulsão sexual Realidade externa

Compulsão Processo primário Processo secundário

Princípio de nirvana Princípio de prazer Princípio de realidade

Teste de realidade
Tendência à estabilidade
Tendência ao esgotamento

Função de retorno à quiescência do mundo inorgânico

Figura 4

Note-se que as cinco regiões indicadas como (a) trauma, (b) se-
xualização, (c) angústia, (d) ligação e (e) fantasia, todas elas circunscritas
à intervenção do aparelho psíquico, no interior de sua área de trabalho,
são, contudo, regiões sombrias, em que o trabalho se realiza de modo
limítrofe. São regiões de gasto, de perda de sentido no que concerne à
situação analítica e que, ao mesmo tempo, conduzem os analistas a recu-
perar, no campo da construção de mitos, da investigação das condições
lógicas de apreensão fenomênica de sua clínica, por exemplo, o sentido
de seu trabalho e de sua orientação ética. São regiões de perda de sentido
para os analistas porque são também regiões de perda de sentido para os
analisantes, portanto, onde a fala é mais difícil se interpretar e também de
se articular. Não somente a fala, mas todas as formações do inconsciente

39
Alegoria da angústia

que servem como material de análise. Ao mesmo tempo, são regiões de


incidência do excesso pulsional. Isso as coloca em circunstância paradoxal
(perda/excesso), por um lado, e, por outro, revela vínculo estreito entre
todas essas regiões, pois há relações analógicas entre (a) trauma, (c) angústia
e (e) fantasia, assim como entre (b) sexualização e (d) ligação, aquela de
que se trata no esquema acima.

***

É com essa indicação que retomamos a questão sobre a função da


angústia deixada em aberto anteriormente: em que sentido ela consiste em
ser sinal? Ora, a angústia é sinal de uma situação de perigo que, como vimos,
consiste no acúmulo de excitação, uma sobrecarga de exigência pulsional,
o que também corresponde à não satisfação. Esta é a configuração da situ-
ação traumática, a situação de completo desamparo do aparelho psíquico
diante do excesso pulsional, a incapacidade de lhe conduzir a qualquer
forma de tramitação ou satisfação. A angústia automática produzida na
situação originária de trauma – portando, consequência do trauma – sob
ameaça da pulsão mortífera, é apenas suposta por Freud (1926/1996), e
este teria sido o evento psíquico que serviria de protótipo para a produção
posterior do sinal de angústia – ao que de fato a clínica assiste – diante
da (voretwas) iminência de invasão do excessivo pulsional. Embora possa
ser considerada, em certo sentido, o oposto da angústia sinal, a angústia
automática, mítica, funciona como paradigma para o entendimento da
angústia-sinal, fenômeno clínico.

angústia automática = | ≠ angústia-sinal

Assim, se a angústia-sinal aponta para a angústia automática, aponta


também o trauma, mas em sentidos absolutamente opostos:

trauma → [angústia automática] ← angústia-sinal

Assoun (1996) sublinha o fato de que a postulação freudiana da


angústia como sinal implica, como corolários, (1) a atribuição da categoria

40
Hugo Juliano Duarte Matias

de “símbolo mnésico” à angústia, e (2) que ela é inserida em alguma ca-


deia de trabalho psíquico, à maneira de um “pensamento de angústia” (p.
161), nos mesmos termos em que o pensamento é uma forma de fazer
tramitar energia livre no aparelho. Então, temos que trauma e angústia, sem
serem iguais, partilham condições econômicas semelhantes, analógicas, e
estão conectados por algum modo de vínculo mnésico que conta com a
mediação da suposta angústia automática. Além do vínculo mnésico, uma
semelhança estrutural e econômica: ambos, trauma e angústia, testemunham
o desamparo do psiquismo frente à exigência pulsional, no entanto, sob a
condição de que a angústia imita o trauma.
Se, por um lado, a angústia (-sinal) aponta para o trauma e mantém
com ele uma relação analógica, por outro lado a posição da angústia na
cadeia de eventos ordenada pelo aparelho psíquico determina para ela
a tarefa de acionar trabalho mental, sendo este, precisamente, o aspecto
principal do vínculo analógico entre ela e a fantasia. Conforme já esta-
belecemos, pelo recurso da fantasia o aparelho mental dá tramitação a
uma soma de libido que não pode ser escoada nas relações com o mundo
externo, isto é, trata-se de mais uma forma pela qual o psiquismo lida
com o excedente. Por conseguinte, ao mesmo tempo em que ambas
se constituem como alternativas de manejo das carências e desacertos
do aparelho mental, a fantasia testemunha o fracasso do princípio de
realidade – conforme já vimos – do mesmo modo que, tudo o indica,
a angústia testemunha o fracasso do princípio do prazer – como agora
está claro. Angústia e fantasia são as evidências mais contundentes da
entropia irredutível, da impossibilidade estrutural de ab-reação do trauma
(FREUD, 1926/1996, p. 137), ou do desamparo irreversível, irreparável
e irremitente do aparelho mental.
Desse modo, devemos notar a sequência de modos de operar do
aparelho mental em nossa descrição esquemática como caracterizada por
analogias importantes (Figura 5, abaixo). Devemos ponderar em que essas
analogias esclarecem o sentido em que a angústia desempenha uma função
no aparelho mental, assim como o modo como a angústia funciona.

41
Alegoria da angústia

Pulsão de morte Pulsão sexual Realidade externa

≈ ≈

Figura 5

A angústia, não obstante, é o sinal por excelência, o que não engana


(LACAN, 1963/2005a), na medida em que aponta a verdade do sujeito
que, agora o compreendemos, concerne à verdade da pulsão, ou da falta
que constitui de modo necessário sua representação no psiquismo, a
verdade da sexualidade (LACAN, 1963/2005a, p. 293). O testemunho da
angústia é o da verdade do sujeito; a sua verdade é a verdade da pulsão,
da sexualidade, do desamparo. Muito precisamente, na angústia, não se
trata de significante, algo simplesmente arbitrário e que produz sentido em
uma sequência com outros significantes. Trata-se, isto sim, de sinal, pois
é como algo que se sente, uma presença; “a angústia é a afecção que nos
abandona à verdade” (BAAS, 2000, p. 281). Sendo a angústia ao mesmo
tempo entropia, é excesso e também perda. No que respeita à situação
analítica em que se inscreve, região sombria, a angústia é perda, pois a ver-
dade do sujeito, ali, sob o sinal da angústia, comparece como que adiante
do silêncio, faltam as palavras, vacila o sentido, isto é, por muitas vezes, a
angústia é o que precede e configura o silêncio do analisante em análise.
Endereçada a outro, a causa da angústia, como enigma a ser dissolvido
pelo saber suposto àquele a quem se demanda cura, é o que põe em mo-
vimento a análise (VIEIRA, 2001), produz a fala e faz abundar, no mesmo
movimento em que a própria angústia, indicando a verdade, interrompe
a fala do sujeito diante da presença do analista (LACAN, 1954/1986).
A angústia é perda e excesso também de fala.

***

42
Hugo Juliano Duarte Matias

Essa ambiguidade muito manifesta da angústia – ou ambivalência –


entre excesso e perda, é fundamental para a sua compreensão. Temos aí os
dois pontos entre os quais se opera uma passagem, cujo ponto médio é a
angústia, ponto de metabolismo, pois o excesso é feito perda, e assim se faz
por força da irredutibilidade da pulsão, contra a qual as defesas psíquicas
são “particularmente inadequadas” (FREUD, 1938/1996, p. 213). Nem
todo o excesso pulsional poderá ser metabolizado pelo aparelho, nem
tudo poderá ser ligado, sexualizado. Uma medida das moções pulsionais
mortíferas que invadem o aparelho permanecerá, irremediavelmente, como
entropia. Vejamos como ocorre.
Na relação com a realidade8 (das relações corporais, mas também,
social, cultural, etc.), o psiquismo produz um dispositivo bastante sofis-
ticado para o manejo da exigência pulsional que, note-se, é de origem
interna. Sob a vigência da organização fálica da libido9 e a influência do
complexo de Édipo, o aparelho consegue metabolizar, com algum sucesso,
esse excedente pulsional. E pela intervenção do complexo de castração,
consegue fazer resistência à entropia. Em maiores detalhes: lembremos
que a entropia corresponde à medida de desordem do aparelho psíquico
e uma das formas dessa desordem é pelo excesso pulsional. Esse excesso
pulsional ocorre pela invasão do psiquismo e por sua incapacidade para
fazer tramitar a energia que já circula em seu interior. Freud (1923/1996;
1924b/1996) delineia a existência desta fase da organização sexual –
a organização fálica – cujas disposições giram em torno do primado
de uma genitalidade diferenciada, sobremaneira daquela sexualidade
8 Esta realidade de que se trata aqui tem seu estatuto muito mais complexo e inde-
finido que aquela mencionada até aqui em alguns momentos, ou seja, na maior parte
das vezes relacionada ao mundo externo. Não custa sempre lembrar a complexidade e
multiplicidade de formas pelas quais Freud se refere à realidade. Estamos falando agora
de algo entre a realidade puramente psíquica, a realidade do aparelho mental, e o mundo
externo como realidade para o psiquismo.
9 Quando a libido, a energia sexual, é investida em objetos sob a influência de sím-
bolos de potência de natureza fálica. Lembremos também de que quando se fala em
objetos, na psicanálise, esses objetos são pessoas ou estão ligados a pessoas em meio a
relações de amor.

43
Alegoria da angústia

caracteristicamente adulta. Ela se organiza sob a primazia exclusiva do


órgão genital masculino, construído principalmente com os elementos
imaginários do pensamento infantil: trata-se do falo, objeto por meio
do qual se poderia obter satisfação pulsional, objeto por cuja mediação
se poderia fazer frente à entropia no psiquismo. Somente em relação à
lógica fálica, segundo a qual as pessoas se distinguem, não em relação a
masculinidade e feminilidade, mas em relação à posse ou não do falo, é
que o complexo de castração assume todo o seu sentido.
O efeito do complexo de castração sobre a lógica fálica depende de
uma suposição da criança para explicar a falta do pênis em algumas pes-
soas. É importante, no desenvolvimento desse processo – que resulta na
superação da organização fálica – o pensamento segundo o qual a falta do
pênis seria resultado de uma punição, infligida a algumas pessoas, por terem
sustentado moções de satisfação inadmissíveis, as quais a própria criança
também cultiva. As próprias mulheres – mormente a mãe – vistas como
castradas, sustentam a ameaça de castração, e anunciam esse interdito da
satisfação fálica sustentadas na autoridade de uma figura paterna. É preciso
notar que a suposição de eficácia do falo para sustentar a possibilidade de
satisfação é produzida fantasisticamente, e é, portanto, uma fantasia que
é ameaçada pela possibilidade de castração.
Assim, o paradigma da angústia como perda pode ser encontrado na
angústia de castração. A perda é, por exemplo, perda de sentido (por isso
a suplência da fantasia), entropia, e também sentido da perda (a fantasia
transforma o que é na verdade uma impossibilidade em uma contingência),
e assim toma o modo de funcionar da entropia negativa.
No primeiro momento dos processos de simbolização do interdito
à satisfação fálica, aquele que implica a ameaça de castração, o pai aparece
como aquele que priva o sujeito dessa possibilidade de satisfação. Ora, tal
possibilidade estaria também intrinsecamente relacionada ao complexo de
Édipo, nos termos de sua impossibilidade interna, por cuja ligação ambos
– o complexo de Édipo e a organização fálica – sucumbem sob a operação
do complexo de castração. Nessa operação, diversas outras experiências

44
Hugo Juliano Duarte Matias

de limites às possibilidades de satisfação em fases da organização libidinal


anteriores, situações de perda de objeto de satisfação, são então significadas
retroativamente – segundo a ideia de nachträglich, o a posteriori ou só-depois
freudiano. Esse processo atualiza ou rememora uma situação análoga ao
trauma, à angústia automática, quando faltavam recursos para a descarga,
para a satisfação pulsional, momentos de acúmulo, de maior entropia.
A partir desse momento, se farão particularmente úteis o vocabulário
e os modelos teóricos lacanianos para o detalhamento dessas operações.
Se, como propunha Lacan (1963/2005a), esses objetos que marcam outras
formas de organização libidinal se perdem, e todos podem ser colocados
juntos em uma série (seio, fezes, falo, olhar e voz, versões do objeto a,
objetos imaginários ligados ao Eu), é porque são cedíveis, todos eles. Mais
uma vez, se é possível que eles se soltem do corpo – do corpo como unidade
imaginária – e ficamos sem eles para a satisfação da exigência pulsional
que nos invade, este é o fundamento para a experiência de desamparo.
Assim, Lacan (1963/2005a) sugere que estar diante desses objetos,
sob os efeitos da aparição de a, a saber, sob efeito da ligação de todas
essas formas de perda em uma série histórica, em uma mesma estrutura,
estar diante de cada um deles sob a iminência de perdê-los, corresponde
ao “momento do desvelamento do traumático” (p. 339), nada mais do que
o desvelamento da impossibilidade de fazer frente, de maneira eficaz, à
entropia. Não temos escapatória, pois a satisfação plena está interditada
para sempre. A angústia permanece, por essa razão, excesso, ou gozo.
Aliás, ainda segundo Lacan (1963/2005a), o objeto fálico, especi-
ficamente, suporta a função do objeto a representando-o como falta, ou
seja, a satisfação é impossível porque o seu objeto, que deveria estar lá não
está por alguma contingência. Esta é a significação que torna possível as
fantasias fálicas e, portanto, a tramitação da pulsão sexual em jogo. Esta
operação articula, por conseguinte, desejo e gozo: desejo como função
da falta, mas da falta metabolizada, simbolizada como perda. Não have-
ria desejo diante do impossível como tal, mas o desejo é impossível no
contexto de uma fantasia em que o objeto de satisfação que não está lá,

45
Alegoria da angústia

não está por ter-se perdido. No entanto, gozo onde não haveria a falta,
pelo contrário, no corpo em que não falta, em que a pulsão seria capaz
de um curto-circuito, onde haveria excesso.
Segundo a descrição freudiana para o desenvolvimento habitual
desse processo de articulação entre desejo e gozo, o conflito entre o amor
incestuoso surgido no interior do complexo de Édipo e o interesse narcísico
dirigido ao falo é resolvido pelo predomínio do narcisismo, pelo qual a
criança aceita a interdição da satisfação fálica neste momento, na condição
de sustentá-la como promessa, e desinveste os pais. Com isso, o investi-
mento objetal neles é transformado em identificação, o que condiciona as
possibilidades posteriores de satisfação, pois também aquela autoridade
paterna é reconstruída subjetivamente, e isso perpetua a proibição do
incesto. Nesse processo, as novas possibilidades de satisfação são redese-
nhadas sob o paradigma fálico, o que, após um período de latência, vem
a se constituir como organização genital, herdeira nostálgica da satisfação
fálica e fadada também ao fracasso, juntamente com as outras formas
anteriores de organização. Isso representa muito bem a subjetivação neu-
rótica, como uma falha do processo, cheia de consequências, que Freud
descreve como “uma luta do Eu contra as exigências da função sexual”
(FREUD, 1925a/1996, p. 286).
Com isso, o complexo de castração exerce seus efeitos, não somente
como ameaça de perda do falo – numa relação com a realidade externa
– mas como arauto da insuficiência do próprio aparelho psíquico em
dar tramitação completa, destino final a todas as pulsões que o invadem,
isto é, do desamparo do psiquismo diante da pulsão (CELES, 1995). É
a castração, ou melhor, sua angústia, que mobiliza os détours de que fala
Freud (1938/1996), sofridos pela exigência de satisfação pulsional; ela é a
operadora da insistência estrutural da ameaça de dissolução do aparelho
mental. (VIEIRA, 2001, p. 64).
Angústia e castração são indissociáveis, no entanto, a castração é
produto final dos efeitos da contingência do mundo, isto é, produto de uma
fantasia que associa significação fantasiada da potência como virtualidade

46
Hugo Juliano Duarte Matias

e as contingências igualmente fantasísticas da relação do sujeito com o


mundo, ambas as condições que se associam, estruturadas, não obstante,
pelo aparelho mental. Ora, nessa região que não é dentro nem fora do
aparelho mental é que a angústia se posiciona como mediatriz, marca e
sinal do corte (Caesur) nos limites da passagem do excesso à perda. Ela
inscreve o aparelho na situação de passagem marcada por uma espécie de
disjunção conjuntiva, como bem o aponta Saliba (2006), a angústia é “ou”,
no modo como simultaneamente articula e separa; ela é oscilação, não
obstante seja, ao mesmo tempo, articulação: narcisismo ou satisfação →
nem um nem outro, ou um ou outro, um e outro. Entre S(A) e S◊a, isto é,
entre o desejo do Outro e a fantasia, como apontaria Lacan (1963/2005a),
para quem o desejo do Outro é o nome desse excesso pulsional (RABI-
NOVICH, 1995/2005).

Pulsão de morte Pulsão sexual Realidade externa

ou ou

Figura 6

Note-se como o raciocínio freudiano, que parece circular aqui, revela


essa estrutura de disjunção conjuntiva, como aqui o propomos. Este é um
trecho de Inibição, sintoma e angústia:
Quando a criança houver descoberto pela experiência que
um objeto externo perceptível pode pôr termo à situação
perigosa que lembra o nascimento, o conteúdo do perigo
que ela teme é deslocado da situação econômica para a
condição que determinou essa situação, a saber, a perda
do objeto (FREUD, 1926/1996, p. 136).

Aqui é preciso ponderar o conteúdo da formulação freudiana. Ele


investiga a relação entre a angústia automática, causada pelo traumatismo
do nascimento, e a posterior situação de perigo, também causadora de
angústia. Freud parece estar simplesmente distinguindo os dois momentos,

47
Alegoria da angústia

ao passo que também pretende demonstrar a continuidade entre eles. Con-


tudo, trata-se, na verdade, de um movimento dialético entre uma situação
e outra. O objeto é descoberto posteriormente, mas já na condição de
perdido. No meio do raciocínio, esse mesmo objeto passa da condição (a)
de remédio “à situação perigosa” para a condição (b) de causa do perigo,
no segundo momento, como perda de objeto. O raciocínio é dialético já
que, justamente por não haver continuidade entre o psíquico e o que lhe
é anterior – a saber, a existência mítica do sujeito como sujeito do gozo,
antes de seu encontro com o Outro – que o psiquismo forja uma conti-
nuidade, precisamente aquilo a que se refere Freud (1926/1996) quando
diz “há muito mais continuidade” (p. 136).
Note-se que a ausência da mãe como objeto caracteriza a situação
anterior, e também uma ausência da mãe como objeto caracteriza a situação
de perigo para o psiquismo; a diferença entre os dois momentos é a cesura,
a separação, que inverte os termos da experiência subjetiva num movi-
mento necessário à abertura da clínica ao mito – aquilo que seria anterior
ao psiquismo – pelo que a descontinuidade é, na verdade, continuidade.
Mais uma vez, uma explicação em maiores detalhes será útil: aquela mãe
que satisfazia todas as necessidades do feto com os recursos de seu corpo,
e por isso mesmo não estava na cena do sujeito do gozo, deverá fazê-lo,
após o corte, “por outros meios”, o que significa que, desde então, ela
terá que se virar. Quando ela aparece na cena para o pequeno sujeito que
não é mais sujeito do gozo, é com o mesmo corpo que terá de satisfazer
suas as exigências. Contudo, o corpo da mãe já não será um objeto para a
plena satisfação das mesmas exigências pulsionais, simplesmente porque
as mesmas condições não estão dadas. O corte, a separação entre mãe e
bebê, ao mesmo tempo e com o mesmo movimento, inseriu e retirou a
mãe de cena. No exato momento em que a mãe se faz objeto já é como
objeto perdido. Descontinuidade porque antes a mãe não era exatamente
objeto, pois integrava a mesma estrutura vital do sujeito do gozo, e depois
passa a ser um objeto. Continuidade porque quando a mãe comparece
como objeto perdido, descobre-se que ela sempre esteve perdida como

48
Hugo Juliano Duarte Matias

objeto, e este é o paradigma para todas as outras reedições de perda de


objeto com as quais cada sujeito irá se deparar.
O sujeito, aponta Freud (1926/1996), deu um grande passo em
direção ao que, posteriormente, se realizará na forma de “trabalho de re-
núncia”, aquele operado pelo complexo de castração, ou seja, converter a
impossibilidade de satisfação completa e o consequente fracasso do aparelho
em algo que devolva ao psiquismo o movimento. Este passo consistiu em
fazer com que as vias de escoamento organizadas pelo aparelho mental
passem pelo objeto – função do corte de que a angústia é sinal – com o
que a passagem do excesso à perda ganha sentido na teoria.

excesso angústia perda


Figura 7

Na condição de sinal, a angústia aciona, mas também alimenta, em


seu aspecto energético, o trabalho de produzir um circuito pulsional que
passe pelo objeto. Assim, tomamos por sua função, a função da angústia,
o fato de que ela faz funcionar algo e passamos a examinar o quê e como
desse funcionamento.

A função da angústia em causa: olhar e violência

Entre todas as coisas criadas, nenhuma há mais


desarrazoada no mundo, nenhuma mais perversa que os olhos.
E por quê? Porque são tais que veem para chorar
– Pe. Antônio Vieira

Com o objetivo de explorar essas últimas indicações acerca da


função da angústia é preciso considerar a ocorrência, em Freud, de ou-
tros modelos descritivos e explicativos para a figura teórica do trauma,
além do modelo do nascimento. A ideia de trauma, sabe-se, é algo que
aparece muito cedo nos trabalhos freudianos, inclusive como primeira

49
Alegoria da angústia

explicação para a neurose. Neste momento, trata-se da sedução da criança


pelo adulto, uma hipótese logo abandonada, do que temos o testemunho
na clássica afirmação: “não acredito mais na minha Neurotica” (FREUD,
1897/1996, p. 309). Contudo, essa hipótese nunca abandonou o trabalho
freudiano sobre o tema da origem da estrutura do psiquismo, sendo ainda
contada entre as mais perseguidas por ele – “presque angoissé”, diria Lacan
(1964/1998, p. 56) – na busca da cena traumática; contudo repensada
nos termos de uma hipótese filogenética. Tal movimento pode ser muito
bem representado nas duas grandes linhas de pesquisa desenvolvidas por
Freud neste campo: o “mito científico” (FREUD, 1921/1996, p. 146)
do pai da horda primitiva (Vater der Urhorde) e o tema da cena originária
(Urszene). O denominador comum aos temas do trauma da sedução, do
pai da horda primitiva e da cena originária concerne intimamente ao
modelo de trauma pelo qual doravante orientar-nos-emos: a relação entre
sexualidade e violência.
A violência é algo que atravessa toda a obra freudiana, e não se pode
dizer que é apenas um tema de suas considerações senão em alguns poucos
momentos. Ela é, na verdade, na maior parte das vezes, um fenômeno
com que ele se depara em sua clínica. Sob essa condição, de modo algum
pode ser entendida como algo secundário. Sua importância é tanta que
impõe um conjunto amplo de exigências ao trabalho teórico de Freud,
cujos resultados se podem achar dispersos nas sucessivas descrições que
faz dos processos de constituição psíquica, em suas considerações sobre
o ato, sobre certos processos defensivos, a fantasia, o par sadismo-ma-
soquismo e, principalmente, sua metapsicologia das pulsões. O termo
violência10, entretanto, em nenhum momento é claramente definido, muito
provavelmente em função de que não se julgava necessário. Ele ocorre na
obra de Freud designando o caráter impetuoso com que se realiza algum
processo e, na maior parte das vezes em que se refere à ação de alguém,
assinala alguma forma de coação, exercício de poder e domínio pela força.
No que concerne aos seus efeitos sobre o psiquismo e sua importância
10 Principalmente Gewalt e seus derivados.

50
Hugo Juliano Duarte Matias

para o trabalho clínico11, Freud leva em consideração tanto a violência de


fato praticada como a somente pretendida, imaginada ou fantasiada. De
fato, Freud (1915c/1996) escreveu que “o sadismo consiste no exercício
de violência ou poder12 sobre uma outra pessoa como objeto” (p. 133, grifo
nosso), o que sugere a equivalência aqui defendida. Não custa lembrar que
o mesmo Freud (1915c/1996) deixa claro que a dor e o dano não entram
aí em jogo desde o início, e isso nos leva a crer que nessa violência (Gewalt-
tätigkeit) restaria o que é essencial, o poder, o domínio, é disso que se trata.
Ora, não se pode ignorar, mesmo assim, o vínculo íntimo entre a
violência, definida nos termos acima – isto é, exercício de poder e domínio
– e a agressão, já que uma participa da outra e muitas vezes se confundem
no vocabulário freudiano. Por outro lado, outra relação muito menos ób-
via também se insinua no texto dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade
(FREUD, 1905a/1996), a propósito das diversas formas de relação entre
a vida pulsional e a sexualidade. Estamos falando do vínculo íntimo entre
ver e dominar.
De fato, Freud (1905a/1996) associa constantemente a pulsão de
ver (Schautrieb) com a pulsão de agressividade (Aggressionstrieb), e não so-
mente nos seus Três ensaios. A princípio, porque as duas guardam diversas
semelhanças e revelam, por assim dizer, a própria gramática da pulsão, ou
o circuito pulsional em seu funcionamento, no modo como sugerem os
movimentos pelos quais, para obter satisfação, a própria pulsão faz uma
volta em torno do seu objeto. Ao mesmo tempo, também se constituem
como signos da resistência da noção de pulsão ao trabalho teórico freudia-
no. Não é sem propósito, portanto, que essa associação retorna no artigo
em que Freud (1915c/1996) tenta dar forma mais nítida ao conceito de
pulsão. Lá, o seu circuito é esclarecido nos modos de destinos da pulsão – a
inversão de seu conteúdo e a reversão sobre a própria pessoa – e, mais uma
vez, a agressão e o olhar são tomados, simultaneamente, como modelos.

11 Por exemplo, com respeito à relação entre violência e sentimento de culpa, discutida
por Freud em O mal-estar na civilização (1930).
12 Machtbetätigung.

51
Alegoria da angústia

Em sua análise do amor, de seu desenvolvimento e de sua progressiva


distinção do ódio, no percurso que é o da passagem do amor narcísico
ao amor objetal, Freud (1915c/1996) menciona que, sob a organização
oral da libido, a relação do sujeito para com o objeto é a de incorporar ou
devorar, sendo esta uma finalidade para a satisfação de pulsões sexuais,
e sob a organização sádico-anal, trata-se de uma “ânsia de dominar”,
isto é, Bemächtigungsdrang (FREUD, 1915c/1996, p. 143)13. O caminho
que condiciona as transformações do amor, então, seria aquele em que
a pulsão é, inicialmente, auto-erótica e que, posteriormente, encontraria
no outro o seu objeto e o enlaçaria no seu próprio circuito de satisfação.
Ora, o mesmo sucede à pulsão escópica, cuja origem é auto-erótica e,
posteriormente, objetal. Mais que isso, a satisfação que se cumpre pela
conquista e domínio (Bemächtigung) do objeto, que a pulsão sexual encontra
sob a organização sádico-anal, parece ser um ponto de convergência entre
Schautrieb e Aggressionstrieb. Note-se ainda que nos Três ensaios essa relação
entre o ver e o conquistar é estabelecida por outra evidência, a pulsão de
saber (Wissentrieb). Sendo a Schautrieb o que estaria em sua origem, forne-
cendo-lhe a sua energia, é pelo alcance desta sobre a pulsão de conquista,
domínio ou apoderamento (Bemächtigungstrieb) que se configura a pulsão
de saber. Nas primeiras edições dos Três ensaios, Freud apresenta muito
diretamente essa ideia em palavras que são, no entanto, retiradas do texto
em 1915 – edição posterior. Ele escrevia, segundo nos informa nota de
Strachey, “a observação nos ensina, entretanto, que o desenvolvimento
sexual e o desenvolvimento das pulsões escopofílica e de crueldade estão
sujeitos a influências recíprocas que restringem a suposta independência
das duas classes de pulsões” (FREUD, 1905a/1996, p. 182). Pelo que temos
diante de nós uma pequena indicação freudiana para investigar aquilo que
postulava Jean Paris (1965), isto é, que ver é conquistar.
Assim, pulsão de ver e de agressividade se afetariam mutuamente
em função do que seria – admitamos mesmo que provisoriamente – sua
13 Com respeito a esse termo, é preciso lembrar que o sentido de sichbemächtigen (domi-
nar) está intimamente relacionado a uma dominação obtida por meio da força. Trata-se
mesmo do domínio de um objeto de que faz parte a violência (HANS, 1996).

52
Hugo Juliano Duarte Matias

origem comum, a pulsão para conquistar e dominar (Bemächtigungstrieb). Ao


que parece, Freud teria voltado atrás por dois motivos: (1) a dificuldade de
sustentá-la como uma pulsão não sexual; (2) em função de que, em 191514,
ao elaborar com maior clareza sua teoria da pulsão, chegou a uma hipótese
sobre o par sadismo-masoquismo que desfez o paralelo entre a pulsão de
crueldade e a pulsão escópica, pois, relativamente à moção de crueldade –
propriamente dita – não haveria uma fase anterior àquela em que o sujeito se
volta para o outro como objeto, fase auto-erótica. Desse modo, essa pulsão
teria perdido de maneira quase completa a sua importância metapsicológica.
Não apenas isso: segundo Denis (1992), Freud teria abandonado o esforço
de teorização metapsicológica da pulsão de conquista e domínio no contexto
de sua polêmica com Adler e Jung, em que estaria ameaçado o conceito
de libido em sua relação estrita à pulsão sexual (teorizar aquela pulsão, de
natureza não sexual, poderia contribuir para isso). O próprio Denis (1992)
sugere que, tendo em vista a função da pulsão de conquista e domínio no
texto dos Três ensaios, é preciso sustentar sua importância para a psicanálise.
Os dois problemas acima apontados são tratados mais uma vez em
texto posterior, Além do princípio do prazer (FREUD, 1920/1996). O problema
da explicação de uma suposta Bemächtigungstrieb é abordado a propósito da
apresentação do bem conhecido jogo do Fort-Da. Com relação a esse jogo,
em que o menino lança longe de si e para fora da vista um carretel preso em
um barbante, Freud o interpreta como representando a sua mãe, cuja ausência
o menino experienciava de forma desprazerosa e passiva e, no entanto, isso
se constituía como condição para a obtenção de prazer pelo reaparecimento
do carretel, o que representava o retorno da mãe. Contudo, a primeira parte
da brincadeira era a mais frequente e, muitas vezes, desacompanhada da se-
gunda parte, e isso constitui problema por sua contradição com o princípio
do prazer. Ora, se o princípio de prazer, como antes concebido por Freud,
governasse esse jogo, ele deveria ocorrer sempre, ou preferencialmente, em
sua forma completa, com a obtenção de prazer ao seu final.

14 Ano em que o trecho acima aludido é retirado dos Três ensaios e também o ano em
que foi publicado o texto A pulsão e seus destinos.

53
Alegoria da angústia

A explicação levantada por Freud, então, é a de que se tratava de


uma encenação comprometida com a satisfação da Bemächtigungstrieb15, cuja
operação instituiria o sujeito em uma posição ativa frente à situação e ao
objeto – embora não tão simplesmente quanto neste momento se possa
formular. Essa hipótese subverte a ideia de princípio de prazer, mas explica
satisfatoriamente a maior importância da primeira parte do jogo, como se
verá. Esse procedimento para a obtenção de satisfação seria o mesmo no
sonho traumático e na compulsão a repetir, todos eles eventos que tornam
problemática a concepção anterior de Freud sobre o aparelho mental, antes
de considerar a hipótese da pulsão de morte e antes de refinar seu modelo
acerca dos princípios que governam os acontecimentos psíquicos. Algo de
traumático sempre estaria por trás desse comportamento compulsivo, esse
do jogo do Fort-Da, pois concerne a um mecanismo do aparelho psíquico
para restabelecer sua própria viabilidade econômica que a grande quanti-
dade de excitação de origem traumática teria colocado em risco. O mesmo
estaria acontecendo nos sonhos traumáticos e na compulsão à repetição.
Esse mecanismo visa a produzir ligação para as somas de excitação que o
invadem, oferecendo a possibilidade de tramitação. Com isso, o seu estatuto
se particulariza, se autonomiza de modo impensado. A pulsão de conquis-
ta, ou esse modo de satisfação pulsional, é necessária para ligar, sexualizar
energia anárquica, destrutiva, mortífera. Trata-se de uma mediação pulsional
sem a qual a pulsão, em vez de alimentar, fazer exigência de trabalho ao
psiquismo, o poria em curto-circuito. Assim, a pulsão de conquista é estru-
tural e anterior, em sentido lógico, à pulsão sexual; na verdade, o seu papel
é estruturante. Sendo assim, essa Bemächtigungstrieb, em sua anterioridade
estrutural, se mostra pulsão da pulsão, relação a si da pulsão – como propõe
Derrida (1980/2007) – isto é, esse Bemächtigung se fazendo o que é suposto
concernir à própria Trieb como “deriva do gozo” (LACAN, 1973/1983, p.
153). Pulsão conquista pulsão, para viabilizar o aparelho psíquico, garantir
o percurso na energia pulsional e o percurso vital do aparelho.
15 Como tradução, sugiro também “pulsão de apoderamento”, como classicamente se
recomenda, mas prefiro “pulsão de conquista”. Em todo caso, uso com frequência o
termo em alemão para que o leitor decida o que lhe parece melhor.

54
Hugo Juliano Duarte Matias

Aqui é importante mencionar que outra palavra pela qual Freud


transmite, com frequência, a ideia de domínio e conquista, às vezes violên-
cia, é Bewältigung – muito semelhante a Bemächtigung, e a esta associada por
Laplanche e Pontalis (1967/1991) – que em seu léxico está geralmente – mas
nem sempre – associada a Bändigung e Bindung (ligação), em contextos em
que se trata de uma ligação de estimulação de origem interna ou externa
para o seu controle pelo psiquismo. Teríamos a princípio um paralelo
disso no Bemächtigung, em que o que se conquista e domina é o objeto. No
entanto, as indicações freudianas são imprecisas e em muitos momentos
esses dois termos se confundem na semântica do domínio da excitação.
Freud (1920/1996) nos apresenta a hipótese segundo a qual a criança
durante sua brincadeira de lançar e reaver o carretel estaria satisfazendo
essa Bemächtigungtrieb. Tratar-se-ia aí de um trabalho sobre um objeto, de
uma transformação de sua própria posição relativa a ele e à situação, da
passividade à atividade. Em seguida, nos diz que, nessa mesma brincadeira,
a criança adquire Bewältigung (domínio, controle ou maestria), isto é, o poder
lidar com a impressão forte deixada pelo episódio que desencadeou todo
o processo, a ausência da mãe (objeto). E isso ela o faz enlaçando (binden),
de alguma forma, a excitação pulsional, de modo a promover a viabilidade
do processo primário e, a fortiori, do processo secundário. Bemächtigung,
Bewältigung e Bändigung estão associados neste texto, desempenhando cada
um desses processos um papel no enfrentamento do traumatismo.
A exigência de trabalho da pulsão de morte ao aparelho psíquico é
uma exigência de ligação, de sua inserção em um circuito de tramitação,
que é o circuito da pulsão sexual – que Freud já havia esclarecido. Assim,
podemos pensar que a Bemächtigungstrieb é uma mediação pulsional, entre
a pulsão de morte e a pulsão sexual, e nisso consiste a sua especificidade
em relação a Bewältigung e Bändigung. O fato de ter perdido o seu estatuto de
pulsão autônoma neste texto, em que Freud reconhece a atopia excepcional
da Bemächtigungstrieb (ASSOUN, 1989), lhe condiciona novos contornos:
de funcionamento pulsional, mediação. Agora, retomando uma pequena
parte, um pequeno detalhe do esquema que estamos montando, é preciso
destacar onde a Bemächtigungstrieb opera, conforme vemos logo abaixo.

55
Alegoria da angústia

Figura 8

Haveria, portanto, um vetor de conquista e domínio de objeto na


pulsão de maneira geral (DENIS, 1992), e a sua operatividade, se é que
assim podemos dizer, consiste na construção de marcos para o circuito
pulsional, um percurso, isto é, a constituição de objetos – pelo que se opera
a travessia da posição passiva para a ativa. Talvez seja esse o mecanismo
em questão quando Freud alude à projeção (Projektion16), como a operação
pela qual o aparelho lida com uma estimulação de origem interna como se
ela fosse externa, e isso aproxima ainda mais Bemächtigung de Bewältigung.
Projetando as suas próprias exigências de trabalho interno na estrutura
do espaço externo, ou da realidade, como poderíamos dizer, o aparelho
mental arranja meios de lidar com essas exigências.
A postulação freudiana segundo a qual o aparelho pode lidar com
estimulação interna como se fosse externa torna problemática a ideia de
realidade, principalmente a ideia de realidade como espaço de vida. Não
podemos mais supor qualquer objetividade à sua ideia de realidade. Com
o recurso ao mecanismo da projeção, podemos pensar a realidade como
correspondente a um espaço, na verdade, descontínuo, rompido pela
16 De origem latina – proiacere –, lançar fora, diante.

56
Hugo Juliano Duarte Matias

intervenção de pelo menos dois écrans (PASCHE, 2000), sendo pelo menos
um deles de responsabilidade direta do aparelho mental, para seu propósito
de lidar com o excesso de estimulação interna. Desse modo, o traumático
se desloca entre registros ou écrans, pelo que também se transforma.
Com o recurso que essa compreensão da Bemächtigungstrieb nos ofe-
rece, examinemos novamente o jogo do Fort-Da!
O que ele fazia era segurar o carretel pelo cordão e com
muita perícia arremessá-lo por sobre a borda de sua ca-
minha encortinada, de maneira que aquele desaparecia por
entre as cortinas ao mesmo tempo que o menino proferia
o seu expressivo ‘o-o-ó’. Puxava então o carretel para fora
da cama novamente, por meio do cordão, e saudava o
seu reaparecimento com um alegre ‘da’ (‘ali’)... grande reali-
zação cultural da criança, a renúncia pulsional (FREUD,
1920/1996, p. 26, grifos nossos).

Nesse texto, há um jogo de palavras que merece atenção particular,


pois nos revela, podemos supor, o mecanismo fundamental da projeção
em sua função de oferecer condições para a satisfação da Bemächtigungstrieb.
Trata-se de verschwinden (desaparecer) e erscheinen (reaparecer). Não somente
esses dois verbos trazem consigo sentidos próximos da ideia de ver, do
que é visto ou da ideia de não ver, do que não é visto, mas também têm
a mesma raiz do verbo schauen (ver ou olhar). O verbo verschwinden, que
é utilizado para conotar o desaparecimento do objeto que representava
a mãe, é quase sinônimo do verbo schwinden, que também significa desa-
parecer. A diferença entre os dois verbos é que o primeiro remete a um
desaparecimento completo, total, de extinção, enquanto o segundo não
traz esse reforço da ideia do desaparecer. Sabemos que Freud concluiu este
texto ao mesmo tempo em que escrevia O estranho (FREUD, 1919/1996),
artigo em que extrai consequências importantes da intervenção do pre-
fixo Un- sobre a palavra heimlich, a saber, que esse prefixo seria indicador
da incidência do recalque17. Aqui, o prefixo Ver- tem uma importância.
Segundo Hans (1996), ele indica um prolongamento temporal ou espacial
da ação designada pelo verbo que transforma, e sugere também a sua

17 Isso pode remeter a algum trabalho com o texto sobre A negativa (FREUD,
1925b/1996).

57
Alegoria da angústia

intensificação, por vezes, excessiva. Sobre ele, dizia Lacan (1957/1995)


ser fundamental ao vocabulário psicanalítico, sendo também elevado à
categoria de função, por Assoun (1996), estruturante de quatro operações
fundamentais da lógica de ação do aparelho mental: Verdrängung (recalque),
Verneinung (denegação), Verleugnung (recusa ou desmentido) e Verwerfung
(rejeição ou foraclusão). Quanto a verschwinden, o prefixo indica justamente
uma negatividade que se acrescenta, assim como uma ideia de finalização,
ou de excesso. Tratar-se-ia então do banimento de algo. Inicialmente, o
carretel foi banido.
Por outro lado, isso que fora banido retorna – seria de se esperar?
– e para dizer desse retorno, o verbo erscheinen. Essa palavra também tem
como quase-sinônimo, muito próximo, outra que se forma apenas pela
subtração do prefixo: scheinen, cujos significados variam entre brilhar,
brilhante, radiante e também assemelhar-se, parecer; enquanto o primei-
ro verbo – erscheinen – guarda um sentido mais próximo ao de aparição,
comparecimento, fazer-se presente e visível. Ora, o prefixo Er-, por seu
turno, produz verbos com objeto acusativo, e sugere um atravessamento
até a consequência final da ação. Por outro lado, schein, quando utilizado
na formação de alguns outros verbos, lhes confere geralmente um sentido
relacionado àquilo que não é real, mas ilusório, situações em que prevalece,
então, a conotação de aparência, simulacro e dissimulação que o verbo
scheinen comporta. Assim, aquilo que fora banido não retorna como o
mesmo, mas como uma aparição dominada, apta à produção do prazer.
Erscheinung é apontado por Lacan (1960/1997) em sua relação com a
Vorstellung freudiana, isto é, em sua dimensão decepcionante relacionada à
composição imaginária do objeto, seu caráter de “substância da aparência”
e de “material de um engodo vital” (p. 79). Levemos adiante essa leitura
do texto freudiano e veremos que o que transforma aquilo que desaparecia
naquilo que reaparece é a incidência de uma cortina (Vorhang18), que barra a
visão daquilo que foi banido. Ora, se estamos recolhendo as consequências

18 Estamos nos referindo ao fato de que na descrição freudiana, trata-se de uma “cami-
nha encortinada” (verhängten).

58
Hugo Juliano Duarte Matias

mais oblíquas de um trabalho de escuta à escrita freudiana, não podemos


deixar de anotar o fato de ser Vorhang a cortina em que se projetam as
imagens do cinema e também o pano que esconde a cena (Schauplatz) no
teatro. Não são esses os elementos fundamentais da revelação freudiana?
O Ver- do Verdrängung funcionando como um véu (Vorhang) que obstrui
o vislumbre de uma outra Schauplatz – uma outra cena19.
A cortina é usada também por Lacan para explicar a possibilidade
de encontro entre sujeito e objeto. Segundo ele, trata-se de uma operação
de engodo: “ao querer enganar um homem, o que lhe apresentamos é a
pintura de uma cortina (voile), quer dizer, de algo cujo mais-além ele quer
ver” (LACAN, 1964/1998, p. 109). Aqui, a cortina funciona como uma
distração. Querendo saber o que há por trás da cortina, o que vê a pintura
da cortina não se dá conta de que se trata de uma pintura. Esta é uma
menção anedótica a caso muito conhecido da história da grande habilidade
técnica dos pintores da antiguidade, um exemplo de sua capacidade de en-
ganar. Ora, a função da cortina não é esconder qualquer coisa, mas, como
anteparo, realizar uma mediação entre esse mais-além (au-delà, jenseits) e o
mundo como aquém, o lado do sujeito, o mundo que recebe os objetos
reaparecidos de detrás desse véu. A imanência desses objetos depende da
ação pacificadora do véu, algo que é mais do que uma simples simboliza-
ção que se realiza na oposição entre fort e da, como vimos já pouco acima.
Segundo Lacan (1957/1995), a respeito da construção do objeto fetiche,
Sobre o véu pode se estampar, isto é, instaurar como captura
imaginária e lugar do desejo, a relação a um mais-além, que
é fundamental em toda instauração da relação simbólica.
Trata-se aqui na descida ao plano imaginário do ritmo
ternário sujeito-objeto-mais além, fundamental da relação
simbólica. Em outras palavras, na função do véu [voile],
trata-se da projeção [projection] da posição intermediária
do objeto (p. 159).

Recordemos o que é o objeto fetiche, em linhas muito gerais e muito


superficialmente, é algo que funciona substituindo o que de fato seria o
objeto de desejo em uma relação sinedóquica. Parece-me paradigmático
19 A “outra cena” é uma expressão lapidar pela qual Freud designou, memoravelmente,
o inconsciente.

59
Alegoria da angústia

do fetichista que se interessa por pelos pubianos femininos, justamente


porque eles se interpõem entre sua visão e aquilo de que ele não quer saber,
a castração. Esta função de “ídolo da ausência” (p. 157) desta cortina de
que ele trata aqui parece ser, contudo, a mesma que evocamos em nossa
discussão, se a tomamos na vertente pré-edípica da exposição lacaniana.
O que se desenha, então, é a grande diferença entre fort e da como dois
momentos de realização nesta função, a função do véu ou da cortina.
Há, na verdade, uma dessimetria entre esses dois momentos. O pri-
meiro momento é aquele em que intervém a falha aberta pela ausência da
mãe – fort, que quer dizer, longe – pois aí o que a criança vive é a situação
em que uma parcela de seus domínios dela mesma se afasta, sulcando o
campo de possibilidades de sua satisfação. O carretel que a criança lança
para fora de seu domínio não pode ser exatamente uma versão em mi-
niatura da mãe, senão “alguma coisinha do sujeito que se destaca embora
ainda sendo bem dele, que ele ainda segura” (LACAN, 1964/1998, p. 63).
Isto confere ao carretel, em sua qualidade de objeto, o primeiro grau da
transicionalidade a ele imputada por Lacan (1959).
No entanto, justamente porque o objeto – este que carregava o brasão
do sujeito – desapareceu no espaço vácuo aberto pelo Outro, porque não
está aqui e aqui não pode pertencer, é que Lacan (1964/1998) menciona
o fort como essencialmente marcado pelos mecanismos da alienação. O
carretel lançado para longe de si, que em sua qualidade de objeto transi-
cional carrega algo do ser do menino, é lançado no campo da alteridade
radical, no campo do Outro. Por este motivo ele rejeita a ideia de que aí
se trataria de “exercício de dominação”.
Contudo, afirmava Lacan (1963/2005a), no seminário sobre a an-
gústia, ser esse joguinho, justamente, “o primeiro exercício de dominação”
(p. 76). O que poderia, então, significar dominação num contexto e nou-
tro? Neste seminário, sobre a angústia, o exercício de dominação já não
corresponde a uma suposta reserva de autodeterminação; pelo contrário,
tendo sido a criança submetida às vicissitudes da demanda e tendo sido
fisgada em sua rede, o espaço vácuo aberto pelo Outro é o vazio a ser

60
Hugo Juliano Duarte Matias

por ela preservado, como lugar de possibilidade de sua assunção como


desejante. O objeto perdido é aquele que pode ser recuperado no campo
do desejo, no lugar do objeto do desejo. É por esse lugar que luta aquilo
que advirá como sujeito, com os recursos de que dispõe, e não há nada aí
que se assemelhe à escolha em que frequentemente pensamos; há, isto sim,
um primeiro aceno do Dasein – do ser-aí – já como perdido de si, isto é, em
sua origem, em seu momento de objeto a (LACAN, 1967). Muito embora
com a mesma cara, não terá o mesmo estatuto quando de seu retorno, este
objeto, como demonstra Lacan (1962) aludindo à relação entre o “é” que
liga as duas aparições sucessivas do carretel – o carretel é o carretel – e sua,
também intermediária, desaparição. Trata-se de uma operação explorada
por Lacan em sua investigação acerca da identificação. Em outras palavras,
se digo “o carretel é o carretel”, essa oração somente tem significado se
o primeiro carretel, embora seja o mesmo que o segundo, já não seja a
ele idêntico. Se preciso dizer que “o carretel é o carretel” somente pode
se dever ao fato de que o reconhecimento do carretel como carretel se
tornou problemático. Sem o desaparecimento do carretel embaixo da
cortina, não seria necessária, oportuna ou logicamente possível o meca-
nismo de identificação. Mais diretamente, na identificação eu comparo o
que é com o que é e, se se trata do mesmo na comparação, eu comparo
o que é antes com o que é depois. Entre antes e depois deve haver não
apenas um lapso de tempo, mas um lapso de presença. Por essa razão, e
por contra intuitivo que pareça, a relação de identidade entre as aparições é
sustentada pela diferença (!) produzida no momento de desaparição, o que
também sustenta a dimensão predominantemente imaginária da segunda
aparição – a rigor, única aparição do objeto como objeto imaginário – o
que corresponde ao segundo momento do Fort-Da. Entre um momento e
outro não é que não se tenha perdido nada, mas justamente nada é o que
se perde atrás da cortina. Esta filigrana que distingue o excesso da falta,
gozo e castração, real e imaginário.
O que este joguinho nos ensina, afinal de contas, não é outra coisa
senão que o sujeito, conforme acede ao campo do Outro, para que ali se

61
Alegoria da angústia

guarde a sua vida, é captado num traçado centrífugo, no qual estaria com-
pletamente desamparado não fosse a operação pela qual o sujeito se separa
da reserva libidinal, mais uma vez o apontamos, feita objeto, que para ele
representava um risco interno, “em razão de permanecer profundamente
investido no nível do próprio corpo, do narcisismo primário, daquilo a
que chamamos auto-erotismo, de um gozo autista” (LACAN, 1963/2005a,
p. 55). Ela representa risco por ser o que produz as fissuras na imagem
precoce e desorganizada do próprio corpo, aquela do momento anterior
à formação da imagem especular. Esta imagem implica agressividade, essa
“possibilidade sempre aberta ao sujeito, de um auto-quebramento, de um
auto-dilaceramento, de uma auto-mordida” (LACAN, 1961/1992, p. 341).
Ora, tal reserva não se transfere para o que retorna como imagem, porque
não pode ser projetada sobre ela. Trata-se do objeto a, como já dizíamos
e, com isso, descobrimos o parentesco entre a última versão do esquema
ótico lacaniano e aquilo que realiza o Fort-Da, conforme o esquema logo
abaixo (Figura 9). O que ele pretende sugerir é que o que é enviado para
trás do véu não é o mesmo que retorna e não se chega ao que desapareceu
no momento do Fort apenas somando o que retorna com o que teria se
perdido por trás do véu. Este é um processo de perda irreparável, portanto,
de transformação que ocorre entre um registro de outro.

(fort) (da)
A Ⱥ

x a -φ

(Ver)

Figura 9

Tomamos como modelo de operação da Bemächtigungstrieb a projeção


e o que se mostrou mais fundamental em sua realização é a constituição

62
Hugo Juliano Duarte Matias

de um véu. Este véu é o que comanda as funções do desaparecer e do


aparecer, nesta mesma ordem lógica – não necessariamente cronológica
– ou de um veto ao que não pode aparecer na imagem, ainda que se lhe
convoque, ao mesmo tempo em que estrutura “a possibilidade de uma
aparição” (LACAN, 1963/2005a, p. 55).
A projeção, cuja estrutura elementar descrevemos com a sequência
verschwinden-erscheinen, somente se completa pela intervenção do que ela tem
por função obturar, do que protege, em sua função imaginária (LACAN,
1960/1998), em sua ação de barreira anti-estímulo, para-gozo, o objeto
destacado, cedível, do sujeito como condição para ascender sua imagem
pacificada. Assim, a sequência completa deveria indicar o que é sua fun-
ção barrar, este objeto: schauen. Um objeto que não é fenomênico, que se
inscreve não no campo da objetividade, mas da objetalidade (LACAN,
1963/2005a).
Desse modo, a cadeia composta por schauen-verschwinden-erscheinen
descreve o circuito de satisfação da Bemächtigungstrieb aqui, oferecendo
situação propícia à operatividade do princípio de prazer, definindo marcos
para o percurso pulsional em sua passagem pelo campo da alteridade, e
pela intervenção do mecanismo de projeção, que refaz a eficácia da barreira
anti-estímulo pela construção de uma imagem do objeto. O essencial de
uma projeção é, num certo sentido, negação – negação da pulsão em sua
natureza primeira – mais especificamente, mediação pulsional. Sua fun-
ção é redirecionar a pulsão de sua orientação para o interior (orientação
autodilacerante) para o exterior, numa inversão pulsional fundamental.
Reorientando a violência pulsional para um objeto externo, a projeção
opera ao mesmo tempo “um ato de salvaguarda do aparelho psíquico
e o ato constitutivo do objeto externo” (ROSENBERG, 2000, p. 809).
O limite desse mecanismo – é preciso dizer para que o compreendamos
melhor – é, portanto, o masoquismo irredutível.
É interessante notar que a operação animada pela Bemächtigungstrieb
arranca do schauen as condições de produção de imagens, isto é, do ver,
o que se converte, de fato, numa operação de viabilização do aparelho

63
Alegoria da angústia

psíquico. Quanto a isso, lembremos a definição de aparelho mental acima


aludida – dispositivo de conquista e domínio de somas de excitação que
perturbam à medida que se acumulam – em que Freud (1914a/1996, p. 92)
já propunha a relação entre a necessidade de poder e conquista sobre as
somas de excitação que acossam o aparelho psíquico e as possibilidades de
sua estabilização. Por fim, a ligação entre o campo da violência e do olhar,
é preciso que se sublinhe, se insinua tão íntima quanto o sugere o próprio
campo da linguagem. Macht – que é o radical da palavra Bemächtigung – em
sua etimologia árabe, majd ou mjd, cujo espectro de significação comporta
as ideias de brilho, esplendor, glória, é também, sob certa inflexão, ver.
Retomamos a nossa representação esquemática (Figura 10) para
acrescentar que a Bemächtigungstrieb opera na sexualização da pulsão de
morte e podemos entender isso com o auxílio do paradigma da pulsão de
ver, no momento como ela é transformada e viabilizada. Ver é uma forma
de conquistar, assim o entendemos.

Bemächtigungstrieb
(ver e simbolizar)

Pulsão de morte Pulsão sexual

Figura 10

Há outros modos pelos quais Freud explora todo esse processo. O


trabalho de sonho é um outro exemplo de intervenção do mecanismo de
projeção (FREUD, 1916a/1996), quase que nos mesmos termos anterior-

64
Hugo Juliano Duarte Matias

mente formulados, isto é, uma exteriorização de uma perturbação interior.


E no sonho, indubitavelmente, se trata do olhar e das imagens, como o
revela a análise do Homem dos Lobos (FREUD, 1918/1996), em que, mais
uma vez, o campo do olhar e da violência se mostram interdependentes.

***

No relato do caso clínico do Homem dos Lobos encontramos uma


estrutura muitíssimo semelhante àquela já descrita para a compreensão do
jogo do Fort-Da. Nele, Freud (1918/1996) analisa o sonho angustiado de
um paciente seu em que uma janela se abre para a cena em que, de cima
de uma árvore, aquele que sonha é olhado por uma matilha de lobos.
Depois de um processo analítico longo e intenso, Freud chegou à cons-
trução do que ele determinou ser a cena originária (Urszene) do coito dos
pais (suporte traumático do sonho, aquele algo terrível em torno do que
girava a análise), em que o menino, aquele que sonha e relata o sonho em
análise, comparece como um espectador. Não se pode dizer que o olhar
entra aí apenas como o que se lança do espectador à cena – o olhar do
menino que se projeta pela janela – pois, com efeito, entra em cena, esse
olhar, de modo obtuso. A janela que se abre, por exemplo, corresponde
ao olhar, segundo Freud, assim como também o olhar surge, de outro
modo, projetado nos lobos – os lobos olham quem olha pela olhar que é
a janela. Os efeitos do olhar, no que ele realiza de ligação entre o sujeito
e essa cena – ao mesmo tempo, de conteúdo sexual e agressivo – seriam
as somas de excitação com as quais o aparelho não pode lidar, suscitando
angústia.
Sabemos que a relação entre a observação do coito dos pais, a
suposição de violência por parte da criança que observa e a produção de
angústia, ao que parece, já ocorria nas formulações apresentadas em A
interpretação dos sonhos (FREUD, 1900/1996). Essa mesma relação entre
esses mesmos três elementos também aparece em outros textos, sob a
forma de um item importante das teorias sexuais infantis, a saber, a con-
cepção sádica do coito (Freud, 1908a/1996). Mas com relação ao texto de

65
Alegoria da angústia

A interpretação dos sonhos, algo de particular interesse é que a angústia antecipe


o despertar. Sabemos, com Lacan (1964/1998), que esse é o momento em
que a função do sonho se inverte – de guardião do sono ao que perturba
– por efeito da invasão, nesta cena, do que é irredutível à sua montagem,
o real. No sonho de ser olhado pelos lobos, o que invade a cena é o olhar,
matizado de violência, o diante-de-quê da angústia desse sonho, e como
a função do sonho se inverteu, também foi invertido o olhar, pois o que
olhava passou a ser olhado. O olhar, assim, passou a ocupar o lugar, o
diante-de-quê da angústia.
Ora, quanto ao olhar, Freud (1910a/1996) argumenta – no que
concerne a algumas perturbações psicogênicas da visão – ser o olho, como
órgão, o palco de uma disputa entre moções do Eu e moções recalcadas,
ou melhor, ele seria o território dessa disputa, pelo que, no final, acaba
dividido, para o prejuízo da visão, que depende de um centramento de
todas as funções relacionadas ao olho. Poderíamos pensar nisso como
uma proto-formulação do que seria o olhar como objeto separado. Freud
(1915c/1996) escreve, sugestivamente, que na pulsão de olhar, “embora
o objeto também seja, no início, uma parte do próprio corpo, ele não é o olho
em si” (FREUD, 1915c/1996, p. 137, grifo nosso)20. É preciso considerar,
também, que o olhar é algo que se separa sob exigências do investimento
pulsional sobre o Eu. No texto sobre o narcisismo, Freud (1914a/1996)
sugere que o aparelho psíquico, em sua tarefa de zelar pela satisfação de
natureza narcísica, destacaria uma instância para a observação do próprio
Eu, medindo-o pelo ideal-do-Eu. Essa função de auto-observação, de
fato, seria tão destacada que estaria ainda na base do delírio de ser ob-
servado, e não somente no delírio. Do mesmo modo, no próprio sonho
estaria presente uma função semelhante, destacada e de auto-observação,
de forma que a imagem do sonho é uma imagem descentrada, oblíqua21.
20 É preciso lembrar que aqui Freud trabalha com a hipótese segundo a qual na pulsão,
em seu estágio auto-erótico, fonte e objeto da pulsão coincidiriam. Por isso a ressalva
quanto à relação entre o olho e a pulsão escópica e seu paralelo com a pulsão sádica.
21 Lembremos que, nos sonhos, a nossa imagem, a imagem do nosso corpo, comparece
na cena, o que não seria possível se essa imagem convergisse para os nossos próprios olhos.

66
Hugo Juliano Duarte Matias

Por tudo isso, o olhar, não o olho ou a cena, mas o olhar é que deve ser
pensado como objeto.
O olhar multiplicado no sonho com os lobos teria captado de modo
compacto – o que teria relação com a imobilidade que se destaca no sonho
– o circuito pulsional de que a cena do coito dos pais oferece uma imagem
estendida. E esse circuito seria aquele descrito por Freud (1915c/1996)
como sendo o do olhar-se/olhar/ser olhado, ou ainda, como indica Lacan
(1964/1998), olhar-se/olhar/fazer-se olhar, sublinhando, desse modo, a
onipresença da dimensão de atividade que concerne sempre à pulsão em
seu circuito. O “fazer-se olhar” se confirma no relato segundo o qual o
menino – o Homem dos Lobos – que observava o coito dos pais garan-
tiu que se o vissem pelo ato de evacuar. Foi como esse recurso que ele
garantiu a atenção, o olhar sobre ele mesmo nesta cena. O “olhar-se”,
de um momento anterior àquele de onde parece iniciar-se a cena, isto é,
da observação do coito, tem autorizada a sua suposição pelo efeito de
injúria narcísica que do momento de olhar se pode deduzir, sendo este o
fundamento da compaixão do menino sentida pelo pai, cujo pênis havia
desaparecido. O olhar, no circuito aqui descrito – todo ele contido no
desenrolar-se da cena originária – se presentifica no momento traumático,
por ser aquele da culminação da captura do sujeito no campo do Outro.
Um circuito que pode ser descrito nos termos em que Lacan (1964/1998,
p. 169) o formulou (Figura 11, abaixo).

Figura 11

67
Alegoria da angústia

Ora, assim como o sol e a morte – se nos permita acrescentar à


verdade da formulação de La Rochefoucauld – também “o olhar” não se
pode olhar de frente, principalmente nesse momento de “periélio” em
que se manifesta o objeto a na cena traumática. Embora seja o menino
o espectador, não é propriamente o espectador que olha. Diz-nos Lacan
(1964/1998) que o olhar é o que nos alcança de fora, como a fascinação de
uma luz, uma “luz violenta” (LACAN, 1961/2003, 185); ela, na verdade,
ofusca e confunde o espectador, ao mesmo tempo em que o atrai, pro-
veniente de um ponto de vazamento, cujo brilho encandeia, no que seria
uma tela refletora do Outro, pelo que surpreende o Eu do espectador e
balança sua imagem (NASIO, 1995). O traumatismo que aqui se opera é o
da separação entre o sujeito e o seu olhar, pelo efeito de elisão do sujeito,
de sua afânise. Quanto a isso, lembra Lacan (1952) que aí se produz uma
angústia fundamental por encontrar-se o sujeito em estado de sua absoluta
passivização, reduzido a um olhar.
Em A pulsão e seus destinos, Freud (1915c/1996) descreve o percurso
da pulsão mencionando as posições que o sujeito assume em relação aos
modos de sua satisfação, e o faz descrevendo, ao modo de uma gramáti-
ca, os percursos da pulsão de ver, entre voyeurismo e exibicionismo. Ele
ilustra essas fases ou posições subjetivas com frases que designariam o
sujeito em cada uma delas, por exemplo em uma fase passiva e em uma
fase ativa. Comentando a gramática do circuito pulsional em Freud, Lacan
retoma uma famosa ilustração freudiana e sugere que onde se traduzia
por “alguém olhando um órgão sexual”, a expressão freudiana (α) Selbs-
tein Sexualgliedbeschauen poderia indicar “ele se olha em seu órgão sexual”
(LACAN, 1964/1998, p. 184).
Esta indicação tornaria mais preciso o momento seguinte da pulsão
escópica, aquele da cena originária: “ele se olha no objeto que é o outro”
– (β) Selbstfremdes Objektbeschauen. É aí que o sujeito se (des)encontra. Por
outro lado, se há passivização nessa cena, não pode ser atribuída a esta
formulação, tampouco a qualquer outra das duas: (α), (γ). A quarta fór-
mula, aquela que Freud (1915c/1996) não chega a designar por uma letra,

68
Hugo Juliano Duarte Matias

que indicaremos aqui por (x), ele a apresenta como equivalente, em uma
dimensão, a (α), e em outra dimensão, a (γ). Embora (x) não tenha sido
explorada em sua relação com (β), propomos que justamente nessa rela-
ção ela corresponda à simultânea passivização na cena, o que, com efeito,
“isso mostra” no sonho: “o membro sexual se faz olhar por alguém” – (x)
Sexualglied von eigener Person beschautmachen22.

α x α x

β γ β γ
Figura 12

A formulação designada em (β) se constitui como núcleo de um


dispositivo dessubjetivante das fantasias que se produzem em conexão
com a cena originária, o que faz delas roteiros de múltiplas entradas,
como propõem Laplanche e Pontalis (1964/1988), em que aquele que
conta ou recupera suas fantasias pode “interpretar” o sujeito, o objeto
e até mesmo o verbo em qualquer formulação linguajeira da fantasia.
Assim, Freud aponta o fato de que a criança se coloca tanto na posição
de satisfazer o pai como a de satisfazer-se com a mãe, identificando-se a
um e a outro, ou, mais precisamente, identificando-se ora com o órgão
sexual masculino, ora com o feminino (FREUD, 1918/1996, p. 108-9).
É ao identificar-se com o órgão que o sujeito se separa do próprio olhar,
quando a formulação (x) passa a operar, e quando a passivização se torna
mais traumática, quando o Eu se torna vulnerável a toda contingência e
surpresa do movimento do órgão sexual. Capturado pelo Outro e sob
seu domínio – o que o verbo machen, em sua ligação com Macht, outra vez
insinua – ele está assujeitado à possibilidade de sua própria afânise, a qual
se ligou ao desaparecimento do órgão sexual do pai engolido pelo da mãe,
isto é, a angústia se produz por simpatia, em um artifício análogo àquele
descrito para o jogo do Fort-Da: verschwinden-erscheinen.
22 Também a substituição de werden por machen segue a indicação lacaniana.

69
Alegoria da angústia

durante a cópula, na cena originária, ele observa o pênis


desaparecer, que sentira pena do pai por causa disso e que
se alegrara com o reaparecimento daquilo que achara que
estava perdido. Ali estava, portanto, um impulso emocional
recente partindo uma vez mais da cena originária. Ademais, a
origem narcísica da compaixão (FREUD, 1918/1996, p. 96).

Uma outra analogia pode ser útil para esclarecer todo o processo
que se pretende indicar. O trauma aí encenado, causado pelo objeto olhar
que comparece na cena originária e, posteriormente no sonho, aquele que
convoca uma pulsão de conquista, tem a estrutura da trama trágica segun-
do a concepção aristotélica, que mói os afetos nas engrenagens de seu
mecanismo. A referência aqui é à tragédia em sua concepção clássica. O
mau encontro, a distuquía a que alude Lacan (1964/1998) parece ser aquela
mesma que na “Poética” realiza a psuchagogei de Aristóteles (2007), isto é,
a captura da alma.É assistindo o infortúnio do herói trágico que somos
tomados pela trama que se nos apresenta. Ela, a trama, induz eleosefobos –
respectivamente, compaixão (Mitleid, no modo como Freud a apresenta
na descrição da lembrança traumática do Homem dos Lobos) relativa ao
pai e o terror (Schreck) a ele associado, em Freud (1918/1996). Importante
lembrar o papel já destacado que desempenha Schreck no modelo freudiano
do trauma e no modo como isso se articula à angústia.
Desse modo, assim como compaixão e terror atraem a audiência
para a cena da tragédia e, com isso, cria condições para que os afetos dessa
mesma audiência sejam purgados na própria cena e pela participação que
é possível que quem a ela assiste, compaixão e terror são os mesmos afe-
tos que na cena traumática capturam o Homem dos Lobos, capturam-no
subjetivamente. A cena se mostra uma construção também para o próprio
Homem dos Lobos, estruturada como fantasia, mas que indica algo além
dela. Por fim, desvela-se, com isso o fato de que “se a cena primitiva é
traumática, não é a empatia sexual que sustenta as modulações do anali-
sável, mas um fato factício... a estranheza da cena do desaparecimento e do
reaparecimento do pênis” (LACAN, 1964/1998, p. 71, grifo nosso).
Esta cena já seria, então, o que podemos conceber como uma nar-
rativa mínima, a narrativa da perda do objeto, tanto quanto o jogo do
70
Hugo Juliano Duarte Matias

Fort-Da é uma narrativa mínima, nas palavras de Eagleton (1983/2006).


E esta é a estruturada fantasia originária (Urphantasie). Se ela é angustiante
é por estar situada/sitiada nas bordas do representável. A despeito da
veracidade histórica ou material da cena como experiência, o que temos
é que lá onde está o olhar não se encontra o sujeito, de onde se obteria
um vislumbre do gozo do pai também se contempla a castração da mãe.
O significado psíquico desta aporia imagética não será outro senão a
do gozo como inacessível, de sua impossibilidade – gozo e castração não
podem ser simultâneos – de modo que a condição do ascender subjetivo
é a deposição do olhar, operação inescapável relacionada à castração que
o próprio olhar implica – dompte-regard, como nos termos em que Lacan
(1964/1998) nos apresenta toda essa problemática. Essa é a mesma condição
pela qual a constituição de imagens, e de imagens do Eu, é possível, já que
o sujeito precisa preservar-se da angústia da castração, e o faz elidindo-se
do campo do olhar e da impossibilidade que nele é determinada. Essa
operação é a mesma pela qual Lacan (1964/1998) apreende o olhar como
uma versão do objeto a. Segundo ele, “o objeto a é aquilo que falta, é não
especular, não é apreensível na imagem” (LACAN, 1963/2005a, p. 278),
e, por isso mesmo, “é algo de que o sujeito, para se constituir, se separou
como órgão” (LACAN, 1964/1998, p. 101).

A angústia entre o trauma e a escrita

Eu sou o Senhor que te tirei de Ur


– Gênesis 15,7

No jogo do Fort-Da e na cena originária o que temos é, de um modo


ou de outro, a operação da angústia em que se realiza renúncia pulsional
(Freud, 1920/1996) e o repúdio à obtenção de satisfação sexual com o pai
(Freud, 1918/1996), isto é, a evitação do gozo – para usar a terminologia
lacaniana. Esta operação – se é que podemos tratá-la assim – é equipara-
da, dentro do esquema freudiano, a uma grande realização cultural, o que

71
Alegoria da angústia

localiza a separação e barramento do olhar num plano de maior abran-


gência que aquele da história individual. A história da civilização – assim
é o enquadre configurado por Freud – é também uma história em que os
homens saem de sua condição de passividade absoluta para outra em que
dispõem de recursos variados para a garantia de sua vida.
Nesta passagem, operada justamente por um ato de extrema violên-
cia – o assassinato do pai – teria surgido uma espécie de contrato em que
todos “contribuíram com um sacrifício de suas pulsões” para que ninguém
estivesse “à mercê da violência bruta [rohen Gewalt]” (Freud, 1930/1996, p.
102, grifo nosso) por parte de outra pessoa. Estamos nos referindo aqui
ao mito construído por Freud (1914b/1996) para dar conta do processo
civilizatório fundamental, em Totem e tabu, a saber, o mito do assassinato
do pai da horda. A violência, em tais narrativas (cena originária da história
individual ou da civilização) está ligada à satisfação pulsional, assim como
a renúncia a esta sustenta a cultura.
Na interpretação freudiana, somente é possível a cultura onde a
violência é submetida a alguma “ordem”, a alguma lei. Obviamente, a
renúncia pulsional, ainda que a contenha, de modo algum expurgou a vio-
lência da cultura – que já se constituía como seu fundamento e se mantém
na condição de seu arrimo – pois a própria sociedade deve se utilizar dela
para prevenir e punir a transgressão e o crime, e mesmo assim, conforme
o próprio Freud (1930/1996), “a lei não é capaz de deitar a mão sobre as
manifestações mais cautelosas e refinadas da agressividade humana” (p.
117). Ora, isto é índice de que tal renúncia não se faz de modo tranquilo.
Há, de fato, alguma coisa que permanece além do domínio da cultura, que
acossa o sujeito, que produz justamente o mal-estar, e essa é a principal
linha de argumentação em Mal estar na cultura.
De modo análogo àquele que descrevemos para o funcionamento
do aparelho mental, por um lado, as forças eróticas, alimentadas pela
pulsão sexual, que tendem a produzir ligações e laços entre as pessoas, se
orientam como forças civilizatórias; por outro, a pulsão de morte assume
a qualidade destrutiva, fazendo empuxo à desagregação. Sabemos que

72
Hugo Juliano Duarte Matias

não há equilíbrio e simetria entre essas forças, já que mesmo as pulsões


sexuais subsistem sob o signo do que opera silenciosamente. Assim, algo
acaba sendo refratado, como o indica Assoun (1993), na “luta da espécie
humana pela vida” (Freud, 1930/1996, p. 126). Aquilo que fica de fora e
não pode ser recoberto pelo dossel cultural é o mesmo objeto produzido
no encontro entre pulsão sexual e pulsão de morte, objeto do gozo pulsio-
nal, sobre cuja exclusão se funda, de fato, a civilização. Isso que se exclui
da civilização é o que não cessa de retornar, sob a forma de necessidade
de domínio, que toma o semelhante, o próximo:
os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas
e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo
contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se
levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em
resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um
ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém
sobre quem tenta satisfazer sua agressividade, explorar
sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo
sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de
suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo
e matá-lo (Freud, 1930/1996, p. 116).

É preciso retomar aqui um processo fundamental que concerne a


essa exclusão, a esse deixar de fora da realidade mental construída por nós a
vertente destrutiva da pulsão. A violência, parte dela sob a forma de mescla
entre pulsão sexual e de morte, de algum modo não se projeta, isto é, não
se dá a todo aquele processo já mencionado em que o aparelho constrói
caminhos para tramitação pulsional e descarrega a tensão produzida em
contornar objetos externos, como marcos em um percurso pulsional. Em
todo caso, de algum modo a violência deve contribuir para a sustentação
da cultura, segundo a proposta freudiana. Trata-se da tese segundo a qual
a pulsão destrutiva se torna sentimento de culpa, algum tipo de violência
autodirigida, exercida sobre o Eu por uma instância surgida nesse processo
de inscrição da impossibilidade, da renúncia: o Supereu. Esta instância fun-
ciona como uma espécie de garantia daquela renúncia pulsional que torna
possível a civilização. No entanto, esta é uma garantia que não opera pela
limitação pura e simples das formas de satisfação, mas de uma transformação
dessas mesmas formas de satisfação em outras. Não é preciso uma leitura

73
Alegoria da angústia

muito detalhada desse texto em Freud para que se perceba que o Supereu
é a instância que herda o exercício da violência, a qual se realiza sobre o
próprio Eu. O Supereu, na descrição freudiana, é o produto da introjeção
de uma figura de autoridade, ou, se quisermos, a construção interna de um
mecanismo de censura, mas com qualidades tais que pode promover até
mesmo a punição do Eu, infligir-lhe sofrimento sob a forma de angústia.
É preciso notar que os instrumentos de exercício de censura pelo
Supereu são muito específicos, decorrência da forma como essa instância se
faz herdeira de uma autoridade, do tipo de pulsão que a alimenta. A função
do Supereu “consiste em manter a vigilância23 sobre as ações e as intenções
do Eu e julgá-las” (FREUD, 1930/1996, p. 139, grifo nosso). Aqui, a me-
táfora freudiana descreve o Supereu como aquilo que observa o Eu, como
um olhar que lhe desvela as ações, mas que penetra também suas intenções.
Essa é uma propriedade que diferencia o funcionamento do Supereu de
outros mecanismos do aparelho psíquico em sua capacidade de produzir
angústia, já que “aqui, a renúncia pulsional não basta, pois o desejo persiste
e não pode ser escondido24 do Supereu. Assim, a despeito da renúncia efetuada,
ocorre um sentimento de culpa” (FREUD, 1930/1996, p. 131, grifo nosso).
A forte impressão que causa essa descrição do Supereu é a de que a
angústia – aqui, índice de gozo – parece ser decorrência de alguma forma
de exposição dos desejos. Ora, o fato de que a culpa se produz em relação
às características escópicas do Supereu sugere que a pulsão escópica é
transformada no processo civilizatório. Mais que isso, pois Freud apresenta
o Supereu como operador de algum tipo de excesso, produzindo o que
ele chama de “grande desvantagem econômica” (FREUD, 1930/1996, p.
131), um desequilíbrio que se relaciona a este objeto refratário à cultura que
é o objeto olhar, em sua dimensão mais pulsional. O olhar como objeto
que retorna de fora da cultura, na ação do Supereu, e produz mal-estar.
A indicação freudiana mais surpreendente quanto a isso é a de que
23 Überwachen – vigiar, ficar de olho em, supervisionar. Atenção para o prefixo Über, o
mesmo para Supereu (Über-Ich)
24 A palavra para escondido é verheimlichen. Considere-se, a respeito deste verbo, o papel
desempenhado pelo mesmo prefixo Ver-, já aludido.

74
Hugo Juliano Duarte Matias

A analogia entre o processo civilizatório e o caminho do


desenvolvimento individual é passível de ser ampliada sob
um aspecto importante. Pode-se afirmar que também a
comunidade desenvolve um Supereu sob cuja influência se
produz a evolução cultural. Constituiria tarefa tentadora para
todo aquele que tenha um conhecimento das civilizações
humanas, acompanhar pormenorizadamente essa analogia.
Limitar-me-ei a apresentar alguns pontos mais notáveis. O
Supereu de uma época de civilização tem origem semelhante
à do Supereu de um indivíduo (Freud, 1930/1996, p. 144).

Se tomarmos isso como um programa de pesquisa, não será difícil


encontrar na cultura um caminho a ser percorrido. Lembremos, então, de
algo que permanece como apenas sugerido no texto Moisés e o monoteístmo
(FREUD, 1939/1996). Ali, nos é apresentada a proposta segundo a qual
“a proibição mosaica contra adorar a Deus numa forma visível” (FREUD,
1939/1996, p. 129) teve importante papel no processo de desenvolvimento
espiritual do povo hebreu. Essa proposta certamente se insere num contexto
em que Freud discute avanços como esse, por um lado, segundo a ideia
de abandono da sensualidade em sua via cultural (e com ela, em alguma
medida, a violência que isso deve envolver), e, por outro lado, segundo a
ideia de renúncia pulsional. Lembremos ainda que, neste mesmo texto,
Freud sugere uma analogia entre o desenvolvimento espiritual/cultural do
povo hebreu e o desenvolvimento psíquico, e também que o início desse
processo evolutivo é situado no trauma. E o trauma, também ali, se define
como algo concernido por “impressões de natureza sexual e agressiva [...]
principalmente de algo visto ou ouvido” (FREUD, 1939/1996, p. 89).
Lacan (1963/2005b) esclarece as ponderações freudianas sugeridas
naquela analogia entre o destino do povo hebreu, sob a orientação de
Moisés, e os destinos da pulsão no psiquismo. Ele aponta para o fato de
que o gozo de Deus é justamente aquilo de que o povo hebreu foi exclu-
ído em função da herança de seu nome (LACAN, 1963/2005b), isto é,
a plena satisfação de ver a Deus e de simplesmente pretender a isso foi
interditada como condição de que o povo fosse tornado o povo de Deus,
herdando o seu nome, um símbolo de sua presença quando ele está ausente.
Ora, Deus se retira de seu mundo, do mundo visível, e passa ao mundo

75
Alegoria da angústia

espiritual25, de modo que o seu nome é a sombra de si que marca essa


hiância, que é a sua “presença ausente”. Esse atributo do nome, de que
Freud (1939/1996) nos lembra repetidas vezes como sendo a marca do
povo hebreu como escolhido, é, afinal de contas, o que sustenta a imagem
que o povo hebreu tem de si.
Essas postulações não devem ser estranhas à discussão anterior
sobre as operações de que o caso clínico do Homem dos Lobos nos dava
notícia. Seus sintomas obsessivos relacionados aos ritos religiosos apontam
em direção a algo semelhante. Se a consistência das imagens no sonho do
Homem dos Lobos depende de que o olhar a cena originária tenha sido
recalcado pela ameaça de castração que ela representa, e assim permaneça,
disso deduzimos o mesmo do que é sugerido em Moisés e o monoteísmo (Freud,
1939/1996), isto é, que “a consistência do campo visual [...] supõe a metá-
fora paterna, o Nome-do-Pai” (MILLER, 2005b, p. 317). E, no entanto, é
necessário, com Lacan, precisar ainda mais algumas nuanças desse raciocínio:
esse Pai que goza e opera a castração somente pode ser apreendido como
Pai-suposto-gozar, isto é, não um Pai que está ali, visível, mas o Pai morto/
ausente, pois em sua agência – estrutural diria Lacan – ele não faz mais do
que mascarar o real do gozo como impossível, operando a sua inscrição
simbólica. O Pai morto/ausente é aquele que funciona como um símbolo.
De modo que esse Pai real, o Pai do gozo, “nada mais é que um efeito da
linguagem, e não tem outro real” (LACAN, 1970/1992, p. 120), um nome.
O Pai do gozo, glorioso em sua potência, é uma necessidade lógica se es-
tamos diante da eficácia de seu nome em barrar o gozo do sujeito. Deve
ter havido esse Pai real para que o seu símbolo opere.
Esse raciocínio esclarece o sentido do “romance histórico” mon-
tado por Freud (1939/1996). Moisés era a figura que representava para
o povo hebreu a restrição à satisfação pulsional, portanto, a necessidade
de renúncia pulsional. Uma figura do Pai. As exigências rituais que sua
religião impunha eram exigências que barravam o acesso do povo ao gozo
25 A visão indireta da presença de Deus no monte Horebe quase destruiu o povo he-
breu e por isso Deus sustenta a Sua presença no meio do povo de modo indireto, por
meio de Seus símbolos, dentre os quais o mais importante é o Seu próprio nome.

76
Hugo Juliano Duarte Matias

de Deus, uma prática ritual inversa àquela dos outros povos com que
tinha contato. Isso teria levado ao assassinato de Moisés pelo povo e, no
entanto, sua figura retorna como culpa na tradição oral judaica, e é por
intermédio desta que a culpa se incorpora a apenas uma das tradições da
escrita hebraica (javista) e é rechaçada por outra (eloísta).
À época de Freud, os estudiosos das Escrituras hebraicas – especi-
ficamente, aqueles que estudavam os primeiros livros do cânon hebraico
– haviam popularizado uma hipótese sobre a forma que essas Escrituras
haviam tomado ao longo do tempo, conhecida como hipótese documen-
tária. Segundo ela, a forma gramatical, as características léxicas, o estilo e
a teologia desses livros eram consistentemente semelhantes entre certas
porções e diferentes das demais, como se os livros tivessem sido compi-
lados em pelo menos quatro camadas literárias distintas, cada uma com
características próprias segundo os parâmetros já aludidos. Essas camadas
ainda pareciam ser de momentos históricos diferentes do desenvolvimento
da religião e cultura hebraica (portanto, umas mais primitivas que as ou-
tras). Por tanto, a hipótese documentária sugeria quatro fontes diferentes
que se mesclaram para dar a forma final dos primeiros livros da Bíblia
hebraica. Uma dessas fontes, a mais antiga, geralmente designada como J,
identifica-se ao culto a YAHWEH, por isso, javista; outra delas, geralmente
designada por E, identifica-se ao culto de Eloí, por isso, eloísta.
Um dos estudiosos que endossava essa perspectiva, Ernest Sellin,
chegou mesmo a sugerir que havia evidências textuais do suposto assas-
sinato de Moisés pelo povo, e isso produziu grande excitação em Freud,
pois parecia confirmar na história as suas suposições. No entanto, antes
mesmo da publicação por Freud de seu livro sobre Moisés, Sellin já havia
desistido de sua hipótese. Mesmo assim, Freud insistiu nela, o que signifi-
cou que ela funcionava muito bem, mesmo que como mito. Essa hipótese
permitiria a Freud explicar, com o seu modelo metapsicológico, a Escri-
tura Hebraica e a própria religião mosaica. Como essas duas tradições em
conflito (javista e eloísta) são incorporadas pelo cânon escrito hebreu, o
domínio de uma delas sobre a outra é o que provocará, nos processos de

77
Alegoria da angústia

transcrição pelos quais a tradição escrita era transmitida, o recalque dessa


culpa e a sedimentação da lei que proíbe a adoração de Deus sob formas
visíveis e que exige a adoração a um único Deus. O traumático da cena do
assassinato de Moisés é justamente o que exige e ordena todo o trabalho
de escrita, ao mesmo tempo em que opera o recalque do olhar; antes, a
deposição do olhar é a assunção da lei.
A desmaterialização de Deus trouxe uma nova e valiosa
contribuição para o secreto tesouro desse povo... sua lite-
ratura... A precedência concedida aos labores intelectuais
através de cerca de dois mil anos na vida do povo judeu teve
naturalmente o seu efeito. Ela ajudou a controlar a brutali-
dade e a tendência à violência (FREUD, 1930/1996, p. 129).

Note o raciocínio de Freud: (a) a religião mosaica exigia a paternidade


exclusiva na relação entre o povo e o seu Deus, assim como interditava a
sensualidade nessa relação; (b) tal exigência levou à revolta do povo e ao
assassinato de Moisés; (c) esse assassinato retornou sob a forma de senti-
mento de culpa – uma variação tópica da angústia, segundo o que propõe
o próprio Freud (1930/996) – e, juntamente com ele, a religião mosaica;
(d) este sentimento de culpa foi primeiramente incorporado à uma das
tradições orais dos hebreus e, posteriormente, a uma de suas tradições
escritas; (f) durante o processo de compilação das diversas tradições es-
critas, o mecanismo de edição em que esta culpa foi apagada dos textos
operou, segundo Freud, como o recalque (Verdrängung); (g) essa edição/
recalque permitiu a unificação das tradições escritas entre os hebreus e
o desenvolvimento desse povo como uma “comunidade do livro”; (h)
uma das consequências desse desenvolvimento foi o abandono de sua
belicosidade ou agressividade. A citação acima resume o raciocínio assim:
(a) a desmaterialização de Deus – deposição do olhar, renúncia pulsional
– permitiu aos hebreus a sua literatura; (b) a sua literatura – em que ope-
rava o recalque da culpa – substituiu a violência e agressividade do povo.
Essa hipótese complexa não parece ter nenhum mérito para estabe-
lecer a história do povo hebreu ou da religião mosaica, mas é valiosa para
compreendermos como se imbricam, no pensamento freudiano, a sua
metapsicologia, sua clínica da angústia e suas ideias sobre a escrita literária.

78
Hugo Juliano Duarte Matias

Parece claro que a pulsão escópica e a pulsão de conquista desempenham


papel importante nisso tipo.
Esta relação com o campo escópico não é válida apenas na história
do povo hebreu, ainda que esteja a ela fortemente associada, como o
sugere, por exemplo, a discussão estética concernente ao tema do subli-
me que, conforme Seligmann-Silva (2000), “desdobra o tópos bíblico da
proibição da imagem divina” (p. 80). É preciso lembrar que também entre
os gregos – para citar outro exemplo importante – a imagem dos deuses
não se podia ver: “são terríveis os deuses se às claras se mostram”26. A
própria estrutura do teatro grego, não sendo pura mostração, implica uma
dimensão proibida do olhar, um lugar do teatro nomeado por Azevedo
(2001a) de opíso-skénion – mais simplesmente, ob-sceno – lugar invisível
onde se realizam as ações vetadas naquele que é o lugar visível a que este
se opõe, o mais conhecido proscênio. Conforme Azevedo (2001a), na
estrutura da cena do teatro grego intervém um dispositivo análogo ao
Nome-do-Pai que garante a representação pelo operar da lei que ordena
as condições de sua possibilidade. Com isso, o ob-sceno se torna o lugar
que guarda o proibido e o irrealizável, os quais, no entanto, fazem andar
a cena, que sempre recebe da ob-scena algo da ordem de um saber. Ainda
que no trabalho de Azevedo (2001a) ela tenha tratado dessa estrutura na
Oréstia de Ésquilo, o Édipo Rei de Sófocles nos oferece uma demonstração
eloquente deste dispositivo para um texto mais conhecido. Do interior
do palácio vem um criado e anuncia na cena: “Vimos, então, coisas terrí-
veis”27, e o que ele viu é apenas falado na cena: Jocasta é morta e Édipo
perfura os próprios olhos. O ob-sceno guarda a visão de uma violência
irrealizável como representação, uma “visão impossível”, como diria La-
can (1963/2005, p. 180), sendo este o momento da angústia. Não é que
o teatro não possa mostrar uma morte e um cegamento. É preciso notar
que aí temos duas figuras da castração às quais a letra do texto de Sófocles
faz justiça. Da castração, nós temos notícia.
26 Ilíada, canto XX, verso 130 – tradução de Haroldo de Campos.
27 Édipo Rei, verso 1502 – tradução de Mário da Gama Kury.

79
Alegoria da angústia

Herdeira de tal processo, isto é, do veto às imagens numinosas e


terrificantes, é o que poderíamos chamar de teologia da imagem. Debray
(1992) nos lembra o fato de que há uma relação de muita proximidade entre
ela, a teologia da imagem, e a violência – que a habita – o que a história dos
iconoclasmos evidencia. Talvez num raciocínio orientado à semelhança do
freudiano, ele sugere que o que hoje chamamos de arte seria resultado do
que sobrou às imagens separadas de seu poder de salvação ou danação,
de seu caráter epifânico, sem o quê essas imagens se constituem como
apenas promessas ou ameaças, trompe-l’oeil. O interessante é que – pode-
mos ler em Debray (1992) – a desmaterialização desse numinoso, assim,
deu lugar à escrita e, por conseguinte, por efeito de haver uma escrita, a
própria imagem, ainda que parcialmente, foi separada do campo escópico.
Tudo o indica, ela precisa ser.

***

É necessário esclarecer, por fim, que essa cena do assassinato, assim


como a cena originária, não é somente o que exige trabalho, senão produto
de alguma forma de trabalho também já realizado. Freud (1939/1996) nos
remete à cena do assassinato na medida em que aos poucos configura o que
são interstícios, entre os traços de que dispõe, e faz o mesmo para produzir
a cena originária no caso do Homem dos Lobos. Essa é a construção de
que nos fala (FREUD, 1937/1996). A construção, produzida em seções
de análise, é aquilo que se produz de sentido quando o analisante não
consegue mais lembrar, ou seja, o que vem em lugar de uma lembrança e
produz seus efeitos, ou cuja eficácia reside nos “elementos de verdade”
que traz à tona e nos “fragmentos de experiência perdida” que recupera
(FREUD, 1937/1996, p. 286). Desse modo, as cenas, nenhuma delas
constitui de qualquer modo o real, mas, ao que parece, a ele se referem.
O mais arcaico que parece haver, que deve estar por trás das cenas
traumáticas, são as impressões (Eindrücke) já referidas, aquelas relacionadas
às feridas narcísicas, que comparecem tanto no relato de caso do Homem
dos Lobos (FREUD, 1918/1996) quanto no Moisés e o monoteísmo (FREUD,

80
Hugo Juliano Duarte Matias

1939/1996). Essas impressões, como o propõe Lejarraga (1996), resultam


de um sobre-investimento do aparelho perceptual – referido em Freud
(1985/1996) como neurônios φ em seu Projeto – produzido por somas de
excitação provenientes do interior, isto é, de origem pulsional, daí o seu
caráter traumático. Por sua natureza, elas se constituem como marcas da
experiência que não se inscrevem como lembranças, senão como sinal
do acontecimento, sendo elas mesmas não representáveis, tanto quanto
o acontecimento de que seriam índice – supondo que ele tenha havido, já
que o próprio Freud conclui sobre isso com o seu non liquet. Assim, essas
impressões corresponderiam a somas de excitação não ligada. Essas pro-
posições, no entanto, acabam se aproximando muito da própria ideia de
angústia automática – muito embora Lejarraga (1996) aparentemente não se
dê conta disso –, principalmente se levarmos em consideração a proposta
já aludida de Assoun (1996), da angústia como “símbolo mnêmico”. Em
todo caso, é certo que a impressão participa do circuito da memória, e
não o faz de qualquer modo. Diz-nos Freud (1895b/1996), “a memória
de uma experiência (isto é, sua força eficaz contínua) depende de um fator
que se pode chamar de magnitude da impressão e da frequência com que
a mesma impressão se repete” (p. 352-3).
Ora, devemos entender a invasão do psiquismo pelo excesso pulsional
sob a etiqueta da pulsão de morte. Seria impróprio associar uma magni-
tude excessiva de excitação a uma força também excessiva da memória?
Neste caso, essa força ou poder, Macht, estaria por trás do vazamento
alucinatório da impressão traumática, por exemplo, no sonho de trauma.
Lejarraga (1996) cita, inclusive, um texto de Enriquez (1978), em que esta
argumenta que na mediação do intolerável e do inefável para a ordem do
que tem tramitação no psiquismo, é a figurabilidade dessa impressão que
realiza a passagem. Essa seria a operação da própria angústia na sexuali-
zação da pulsão de morte. Isso validaria, de alguma forma, o esquema há
pouco aludido na Figura 10.
Contudo, na interpretação de Lejarraga (1996), essa figurabilidade
consistiria na produção de imagens, o que parece equivocado. Por mais

81
Alegoria da angústia

que não se possa negar ao visível a condição de elemento fundamental


do sonho, a ideia de imagem não a apresenta adequadamente. É que se
se trata de figurabilidade, é porque o espaço em que ocorre o sonho, as
cenas de que falamos, concernem a um espaço que é, portanto, cênico,
diferentemente do espaço da imagem, aquele com o qual a associamos,
como sendo o espaço sensível. Não que o sensível mesmo tenha algum
papel aqui quanto a essa diferença, mas é que a figurabilidade se distingue
da imagem por transgredir tudo aquilo que a esta oferece viabilidade. Se-
gundo Lyotard (1971), pelo fato de se realizar no campo do inconsciente,
a figuralidade ali se enoda ao desejo pela transgressão do objeto, da forma
e do espaço. Ele chama a atenção para considerarmos a figura à medida
que ela vem em lugar do desejo, ao pé da letra, aliás, sendo o pé da letra, de
fato, a figura. Isto significa que Lyotard (1971) reconhece à figurabilidade a
sua dependência ao desejo e ao significante, muitas vezes, sua dependência
a algo mais real, como a letra.
O próprio Freud (1900/1996) o indica, o sonho é feito de uma
escrita pictográfica (Bilderschrift), escrita figural, para o que Derrida (1971)
aponta, algo a ser lido. E não apenas isso, mas o seu arranjo não pode ser
reduzido da figura ao símbolo ou do símbolo à figura. O espaço cênico do
sonho, em seu policentrismo enfatizado tanto por Lyotard (1971) quanto
por Derrida (1971), o mesmo a que aludimos em nosso exame do olhar
no sonho da observação dos lobos, permanece inconciliável à linearidade
da representação do discurso verbal, e isso revela um verdadeiro híbrido,
cuja linguagem permanece de escritura, arcaica para Derrida (1971). Isso
faz do sonho também um enigma figural (Bilderrätsel), pelo que Freud
(1900/1996) o expressa, algo que a aporia imagética que apontávamos
anteriormente ressoa, entre o umbigo do sonho (FREUD, 1900/1996) e
o caroço enigmático da cena originária (LACAN, 1959).
Com isso, temos que o trauma somente se apresenta como rastro,
pelo que não se apresenta, mas desaparece, e é disso que temos notícia.
Do trauma mesmo não sabemos e não podemos saber, somente de sua
escrita, ou transcrição, resíduo vestigial, lacuna. O trauma permanece fato

82
Hugo Juliano Duarte Matias

factício, impossível de ser reencontrado, senão em sua verdade, o que


somente pode ser efeito de uma escrita. É nessa medida em que a escrita
se diferencia sobremaneira do próprio campo que ela contorna, e desse
campo o que a escrita recorta é, na verdade, algo não havido, pelo que
articula a própria dimensão do mítico. Isso Lacan (1971/2009) o discute
sob a hipótese de que o campo do gozo se articula somente a partir da
escrita. O campo da linguagem, a estrutura de ficção que impõe a tudo que
articula, instaura o que ele chama de “diz-mansão da verdade” (LACAN,
1971/2009, p. 63), ou seja, ele estabelece a possibilidade de que sejamos
levados pela cadeia simbólica a supor o que da experiência fica sempre
de fora, que é a relação sexual, o próprio gozo sexual. Esse é o campo da
lógica, da escrita, que Freud (1914b/1996) soube desenvolver, pelo que
chegou ao mito do Pai do gozo que, morto, se faz Nome-do-Pai, mero
efeito de linguagem, operação estrutural, dedutível.
Não se suponha, portanto, que se trate de resíduo do que foi uma
presença. Isso é simples efeito de ter havido uma escrita, desde sempre
reencontrada e sempre como proteção contra aquilo de que não sabemos
e de que não podemos saber. Adicionemos a essas fórmulas a dimensão
temporal de nossa existência e de todas as formas de padecimento, o
trauma é algo que deve ter havido e ao qual é preciso se antecipar, para o
qual temos de estar preparados para que não nos pegue de surpresa e de
novo nos assole. A escrita articula esse suposto-havido e, por isso, tanto
se lembra dele como a ele se antecipa. De modo que “não há escrita que
não se constitua como uma proteção” (DERRIDA, 1971, p. 218). Ora,
trata-se aí, nessa proteção, da angústia que se antecipa à ameaça também
do esquecimento do trauma, do risco de ser novamente pego de surpresa
no mau encontro com o real. Há, portanto, uma analogia funcional e
estrutural entre um certo tipo de escrita e a angústia.
É preciso indicar, com Seligmann-Silva (2000), que o trauma seria
uma espécie de ferida da memória. Assim, o trauma não seria propriamente
uma memória, mas o não havido em torno do qual ela se constrói e, do
mesmo modo, a angústia também não seria memória, mas na memória

83
Alegoria da angústia

alguma coisa que a ela se adianta. Sendo o real a morte do aparelho, a


angústia é “a vida do real” (SALIBA, 2006, p. 76), e na angústia a escrita,
essa escrita, visita a verdade do trauma, em sua ausência, a verdade de um
aparelho mental que manca, de nossa fragilidade. Assim escreve Freud
(1918/1996): “O rompimento do véu era análogo à abertura dos seus
olhos e à abertura da janela. A cena originária transformara-se na condição
necessária para a sua recuperação” (p. 108). O véu aqui, nas formulações
do próprio Homem dos Lobos, está conectado com o tema de seu renas-
cimento, pelo que este é um dos casos prototípicos em que o revisitar o
trauma é atravessado por um “desejo de renascer” (SELIGMANN-SILVA,
2008, p. 68). Encontramos nessa falta que condensa o miolo do trauma
a possibilidade de cura e “a angústia é a única a almejar a verdade dessa
falta” (LACAN, 1963/2005, p. 253).

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Hugo Juliano Duarte Matias

A LITERATURA COMO CAMPO

A operatividade da função simbólica, como vimos, é condição sine


qua non da estabilização do registro imaginário, do campo do sentido. Ela
consiste no processo pelo qual as somas de excitação encontram meios
de tramitar no aparelho mental, investindo sequencialmente diversos ele-
mentos organizados em cadeia – isto é o pensamento, como já vimos. Essa
mesma função, como vimos, transforma a um só tempo tanto a pulsão
escópica e quanto a pulsão de conquistar, ou melhor, lhes oferece uma
gramática, um conjunto de possibilidades de percurso para a satisfação
pulsional. Ela permite que o sujeito se posicione de modos variados em
relação aos objetos com os quais a satisfação é viável, ainda que sempre
parcial. Nos mitos freudianos até aqui estudados, essa satisfação apenas
parcial – e, por esta razão, viável – depende da eficácia de um símbolo,
do pai que não está. Ele não está porque foi morto, porque se retirou;
em todo caso, uma figura terrível substituída por um símbolo. A função
simbólica somente é possível porque este símbolo ocupa, em relação a
outros símbolos, uma posição privilegiada, aquela onde estaria o objeto
com o qual a pulsão cumpriria o seu destino mais fundamental. Todos os
outros símbolos se ordenam em relação a este símbolo específico, o que
impõe ao conjunto dos símbolos a estrutura de uma cadeia.
Como vimos, o pensar como que pacifica a violência das pulsões
mais primitivas, como um canal para águas turbulentas, de grande volume
e ímpeto. Mas o pensar aqui não se refere à atividade privada da mente. Ele
é apenas uma figura de todo o campo do logos, do discurso ou da palavra,
todo um conjunto de práticas simbólicas que realizam essa função. No
campo do logos, onde opera o registro simbólico, quanto mais se avança,
menos se encontra a dimensão da violência. Ora, não é estranha a Freud
a ideia segundo a qual a palavra pode vir a substituir o ato de violência,
sendo aliás o que estaria na origem da possibilidade da cultura e da ci-
vilização. Freud (1893/1996), citando Hughlings Jackson sugere que “o
primeiro homem a desfechar contra seu inimigo um insulto, em vez de

85
Alegoria da angústia

uma lança, foi o fundador da civilização” (p. 45). Do mesmo modo, para
Lacan (1958/1999), não encontramos a violência, ato de agressão, onde
se faz presente a fala. Ainda, “acaso não sabemos que nos confins onde a
fala se demite começa o âmbito da violência, e que ela já reina ali, mesmo
sem que a provoquemos?” (LACAN, 1956/1998, p. 376). Assim, quanto
mais se avança nesse campo, mais distante se está da verdade que a relação
com a angústia torna possível, mais o mundo e sua imagem se tornam
ordenados, de modo pleno, pacífico e harmônico. São imagens como essas
a que Lacan (1964/1998) se refere como sendo pastagem para os olhos,
imagens pacificadoras. Destas que Rivera (2008) chama “imagens-muro”,
por sua qualidade de ilusão e seu efeito alienante, que falsificam a vida em
sua natureza claudicante. Por outro lado, Rivera (2008) as compara ao que
seriam “imagens-furo”, heterogeneidade vertiginosa, desilusão fulgurante,
se realiza – se assim se pode dizer – na vizinhança da prática simbólica em
que consiste a psicanálise, também em seu interesse pelo ponto de cons-
tituição do sujeito, na carne do mundo. É do escopo da arte produzir as
imagens-furo, sendo essa prática simbólica também um modo de construir
proteções, as quais, conforme Recalcati (2005), num jogo de perto-longe
(Fort-Da) com o real de que falamos, preservam respirável o “ar psíquico”
ao mesmo tempo em que buscam a verdade do sujeito.
A relação entre arte e psicanálise pode ser pensada como mais que
uma simples vizinhança. A literatura, por exemplo, em sua anterioridade,
constituiu, desde o início, a psicanálise, de modo que ainda lhe é interna
(RIVERA, 2007). Foi com o recurso à literatura que Freud, em diversos
momentos, fez andar a sua própria obra. Foi com os dispositivos nela
encontrados que Freud, inúmeras vezes, operou o refinamento de suas
hipóteses, de suas ideias, e também de sua clínica. É com isso que a litera-
tura se justifica como instrumento de pesquisa (não objeto, ou não apenas
isso), mas também porque em seu seio, no lugar que ela sustenta, também
muitos processos de grande importância na pesquisa psicanalítica se fazem
presentes. Como afirma Miller (2005a), a ficção literária tem a propriedade
de fixar experiências muito fugazes, acerca das quais, de outro modo, não

86
Hugo Juliano Duarte Matias

se poderia dizer muita coisa. Aliás, tais experiências, que ganham uma
dimensão muito abrangente na modernidade, têm na ficção literária uma
forma privilegiada de fruição, o que Kehl (2001) aponta como dizendo
respeito ao “sujeito literário”, que articula, pela mediação de um texto, a
sua experiência de mundo e a sua própria intimidade, inventando para si
um lugar no mundo. Assim, a literatura também se constitui como campo
de pesquisa.
Foi dessa forma que Freud parece ter dado atenção à literatura, assim
como Lacan, que fazia não psicobiografia, como afirma em Lituraterra
(LACAN, 1971/2003), mas fazia com que, da literatura, a psicanálise tivesse
algo a receber. Assim como se pesquisa em psicanálise sob transferência
às palavras de Freud e Lacan, também ao testemunho que a literatura dá
do inconsciente. O que se busca não é tanto o autor, o personagem, as
determinações do tempo sobre um ou outro, ou ambos, mas algo que os
articula a todos sem se confundir com nenhum, que é o próprio texto,
em sua independência constitutiva. Como descreve Mariri (1977), a pro-
pósito das tendências mais diversas nos estudos literários sob orientação
psicanalítica, trata-se do texto, muito embora ela mesma não faça justiça
a essa perspectiva como uma que se dirige à mediação operada pelo tex-
to, naquilo em que ela remete, ao mesmo tempo, ao autor e ao leitor. O
sujeito a que isso remete nem é um nem outro. Numa formulação mais
precisa, em paráfrase a Bellemin-Noël (1983), o texto “sabe mais” que o
autor. Isso tem que ver com a famosa fórmula lacaniana segundo a qual o
inconsciente é o discurso do Outro, pois, se é assim, também o autor – o
escritor? – foi atravessado por um discurso que o ultrapassa, para além
de suas intenções, de sua capacidade de arranjar fórmulas, de configurar
expressão.
Todorov (1966/2006) recomenda considerarmos na relação entre o
campo de estudos da linguagem e da literatura uma relação de mão dupla,
a saber, uma em que o que se apreende da linguagem lança luzes sobre a
literatura e vice-versa. Com isso, aponta o fato de que a literatura produz
teoria sobre a linguagem. É isso que perseguimos em nosso propósito de

87
Alegoria da angústia

investigar a literatura, para que em sua relação com o discurso do Outro


ela indique caminhos que concirnam ao inconsciente, já que “a língua
vai onde quer, mas segue as sugestões da literatura” (ECO, 2011a, p. 10).
Ora, o que o procedimento de escrita deve operar é “não reproduzir um
conteúdo, uma imagem, uma sensação”, o que seria correlato de uma in-
vestigação preocupada com os arranjos que faz um autor para expressar-se,
“mas imitar um funcionamento” (BELLIMIN-NOËL, 1983, p. 48), pelo
que o texto pode remeter, sim, ao inconsciente e os seus agenciamentos.
A preocupação é, portanto, o trabalho de transformação da experiência
em funcionamento, em estrutura, realizado na/pela escrita. Isso não se
realiza a despeito do escritor, mas com ele, muito embora, eventualmente,
também à sua revelia.

Ad augusta per angusta1

Há certas empreitadas em que uma desordem


cuidadosa é o método mais eficaz
– Herman Melville

Mais uma vez, esta que é uma hipótese instrumental em nossa in-
vestigação – que adotamos de Bellimin-Noël (1983), ainda que aqui lhe
conferindo um papel algo diverso – ou seja, que a escrita possa “imitar
um funcionamento”, somente pode ser pensada por força de sua relação
intrínseca com a psicanálise. Não apenas que Freud, Lacan e outros ana-
listas tenham se servido da literatura ou que esta participe, de um modo
ou de outro, de sua produção, mas que o próprio trabalho teórico da psi-
canálise, sob a forma de fala e escrita, se realiza sob o agenciamento dessa
imitação do inconsciente. Derrida (1980/2007), por exemplo, chegou a
demonstrar que no texto em que Freud trata mui detidamente do tema da
repetição – Além do princípio do prazer (1920) – a própria repetição como
funcionamento, no vir/ir/revir do “problema do princípio de prazer”,

1 “Àquilo que é elevado por meio da angústia”.

88
Hugo Juliano Duarte Matias

percorre todo o trabalho de escrita ali realizado. Já indicamos aqui a intuição


lacaniana segundo a qual os trabalhos em que Freud persegue o lugar de
fulguração da cena traumática, nos sonhos, nas associações de alguns de
seus analisandos, “quase” imita o funcionamento da angústia.
Claro é que esta última é uma referência trazida cum grano salis, e
talvez alguém venha a persegui-la. Em todo caso, é isto o que se pretende
buscar, mas em outro lugar. Dizíamos ser a função da angústia a proteção
que ela opera por antecipar-se ao esquecimento do trauma, à surpresa da
distuquía, do mau encontro com o real, e que a escrita interessa por sua
propriedade de poder visitar, na angústia, a verdade do trauma. O avanço
feito até aqui permite que tais indicações sejam mais precisas, de modo
que se pode fazer corresponder esse “visitar na angústia” ao “imitar o
funcionamento da angústia” de que a escrita é capaz, pelo que ela, a escrita,
se torna apta a almejar a verdade do trauma.
Dizíamos também que a angústia fundamental, de que todas as
formas de angústia são devedoras, se presentifica numa situação de abso-
luta passividade. Kehl (2000) nos faz notar três figuras dessa situação de
absoluta passividade: além da cena traumática, a morte e a mulher, como
mãe, as quais não podem ser nunca representadas; e também recomenda
a escrita, como “um dos recursos de que podemos nos valer para inverter,
ainda que precariamente, a posição passiva” (p. 139). Certamente, a escrita
não é o único recurso: fazer-se olhar – no campo do escópico – fazer-se
violentar – no campo da violência – são modos de satisfação da Bemäch-
tigungstrieb que realizam esta operação de inversão – segundo o raciocínio
desenvolvido até o momento. É aqui, portanto, que nos afastamos da
argumentação de Kehl (2000), pois o caráter de violência simbólica da
literatura2não se reduz à memória da violência, por ensaio, recordação, si-
mulacro de modos de satisfação que tiveram de ser abandonados. Também.
Mas essa violência que constitui a literatura concerne um modo atual de
satisfação da Bemächtigungstrieb. O belo, por exemplo, que na literatura e, de
modo geral, na arte se produzem é o resto do processo de domesticação
2 Por ela deduzido de Bataille, de seu livro A literatura e o mal.

89
Alegoria da angústia

do terrível. Assim, se pode dizer, com Clancier (1992), que o desejo de


escrever se funda na pulsão de conquista e domínio. Ela investiga a obra
sartreana como uma escrita que teria sido construída “sobre o esquema
estrutural de uma defesa contra a angústia” (CLANCIER, 1992, p. 1459).
Ora, isso de que falamos comparece na clínica. Tomemos o caso que
nos relata Quinet (2004), de um psicótico perseguido e atormentado por
pássaros, os quais realizam sobre ele a vigilância superegóica, presentificam
para ele o olhar diante do qual ele se angustia. Este mesmo homem, sob
cuidados terapêuticos, não para de desenhar pássaros, e isso Quinet (2004)
interpreta como um procedimento que tenta domesticar, domar, dominar
o que o acossa, invertendo sua posição diante do olhar. Há neste caso a
produção incessante de marcas, de algum trabalho no real da marca, um
fazer que se realiza com o aparelho que Freud designa como sendo o apa-
relho de que se serve a Bemächtigungstrieb, que é o aparelho motor. Trata-se
aí, é preciso notar, de um labor, no sentido mais preciso da palavra, que
incide sobre o traumático.
Para todos os casos é necessária a visada ao traumático. Ora, por este
motivo, as formas canônicas da arte e da literatura, a todo tempo, devem
ser postas em questão, na medida em que decantam formas harmonizadas,
anódinas, de representação, as quais já não servem ao trabalho de angústia,
por seu viés alienante. Jakobson (1935/1983) sugere que a descoberta dos
formalistas segundo a qual o desvio e a transformação de um determinado
cânon artístico não são importantes para a arte apenas em uma perspectiva
diacrônica, mas têm importância fundamental também em perspectiva
sincrônica. Por essa razão, desvio e transformação seriam estruturais e
constituintes de todo trabalho artístico. Mais radicalmente, Lacan (1977)
postula que “a poesia resulta de uma violência” (seminário de 15 de março,
inédito) ao uso amadurecido e cristalizado da língua. Sendo assim, ela – a
poesia, a literatura – se constituiria uma violência em que a linguagem se
revolve de encontro ao próprio interior, e esta ideia certamente ressoa as
pontuações de Jakobson (1973), que nos informa sobre o fato de que,
sendo o verso o que caracteriza a poesia, e contendo em seu sentido pri-

90
Hugo Juliano Duarte Matias

mitivo – isto é, da palavra versus – a ideia de retorno, a poesia seria feita


da linguagem do regresso e da repetição, pelo que produz a novidade, em
relação próxima – assim pensamos – ao que “não cessa de não se escrever”
(LACAN, 1973/1983, p. 127). Com efeito, a poesia e a literatura seriam,
no simbólico, o que faz violência à mesma estrutura que o sustenta, o que
o leva aos seus limites, revertendo, para fins de proteção, o seu dispositivo,
sendo este mesmo um dispositivo de vanguarda intrínseco. Isto significa
que a literatura – uma entre outras práticas simbólicas, entre outras formas
de arte – faz violência à estrutura que a sustenta, transformando-a a fim
de manter ativa a sua função psíquica, de não deixar o aparelho ser pego
de surpresa, sem palavras, sem novas palavras ou novas fórmulas, sem
saída ou escapatória.
Avançaremos, portanto, em nosso objetivo de investigar a função
da angústia, em marcha sobre o campo da literatura. Essa correlação já
foi abordada por Caldas (2006) em um estudo sobre a possível ligação
entre a angústia e a criação literária. Segundo ela, um estranhamento dos
cânones linguísticos pelos quais o mundo é construído pode ser o ponto
de partida de um trabalho de produção de literatura. A incerteza relativa
à ambiguidade que o estranhamento traz à tona, no processo de refeitura
dos tecidos simbólicos do mundo, poderia assim conduzir à radicalidade
do engodo simbólico, levando-o, com o imaginário, de vacilo em vacilo, a
uma ruptura, e, com isso, produzindo uma certeza desse engodo, no fim
do percurso. Já estariam, desde então, os escritores, no campo da angústia,
onde o simbólico se deixaria escoar pelo furo que o real produz, pelo co-
lapso de suas bordas. O mesmo ímpeto que os teria levado a esse campo,
diferentemente dos modos neuróticos de buscar reparos no simbólico,
restar-lhes-ia continuar fazendo com isso.
Nosso percurso, portanto, aquele que propomos aqui, seria o de
investigar a função da angústia na imitação dela de que a literatura nos
provê. Consequentemente, investigar e criticar a possibilidade desta imi-
tação no campo da literatura, digo, na literatura como campo, conforme
temos proposto. Os mecanismos de certa literatura, são os mecanismos

91
Alegoria da angústia

da pulsão de conquista, mimetizados. Na estrutura do texto uma projeção


da experiência, um vislumbre do que precisamos sustentar em termos
metapsicológicos, e talvez uma prova de que é necessária uma metapsi-
cologia. Este é um postulado metodológico básico de nossa investigação
da função da angústia.
Por fim, a proposta é de que leiamos os textos como quem escuta
o inconsciente, aferrados a essa hipótese fundamental, e em atitude de
atenção uniformemente suspensa à cadeia significante, assim como aos
processos de dispersão do saber dos quais a própria língua se serve, prin-
cipalmente quando atravessa o poeta, o escritor criativo.

92
Hugo Juliano Duarte Matias

ALEGORIA, ESCRITA E PSICANÁLISE

Segundo Freud (1914b/1996, p. 77), “a projeção de percepções in-


ternas para fora é um mecanismo primitivo”, nem sempre comprometido
com alguma forma de defesa, que “normalmente desempenha um papel
muito grande na determinação da forma que toma nosso mundo exte-
rior”. Se Freud diz aqui que a projeção tem algum papel na constituição
do mundo exterior, este não pode ser o mundo objetivo, completamente
alheio ao homem. Deve ser o mundo propriamente humano. Mas este
mundo em que vivemos, ou seja, este mundo de que temos consciência,
embora não seja exatamente equivalente à realidade psíquica, assim o
concebemos, de algum modo é pela realidade psíquica afetado. Essa ideia
subjaz à argumentação freudiana para explicar, dentro do modelo teórico
por ele desenvolvido, o sistema de pensamento totêmico/animista. Ele
mesmo compõe sua argumentação de maneira a tornar evidente a analogia
desse processo com a montagem do sonho. Já consideramos a natureza
cênica e figural do sonho assim como aquilo que explica essa natureza.
O que agora se nos aponta é a composição cênica e figural daquilo que
Freud por vezes designa realidade externa – algo já tratado aqui – pela
intervenção mais abrangente do mecanismo de projeção.
A projeção dessas percepções internas sobre o mundo constitui o
cerne de uma das primeiras teorias humanas sobre o mundo, a animista.
As percepções internas não são apenas exteriorizadas, mas se entrelaçam
de tal forma que compõem este sistema de pensamento, semelhante a
outros sistemas de pensamento, à maneira das “visões de mundo” [Wel-
tanschauung], semelhante às religiões monoteístas e à ciência moderna – o
próprio Freud (1914b/1996) o afirma. Ora, toda forma de pensamento
sistemático sofrerá as consequências da radical falta de elementos para a
representação completa dos acontecimentos concernentes ao psiquismo,
isto é, para a representação da realidade psíquica sob a influência do
desejo e do conflito psíquico. Já tratamos disso: a pulsão ela mesma não
pode ser representada no psiquismo. Além disso, o desejo não pode ser

93
Alegoria da angústia

completamente consciente, porque ele está intimamente ligado ao que foi


recalcado, e ele também denuncia um objeto impossível de ser encontrado
ou mesmo representado, do que sabemos a partir da clínica dos sonhos.
É disso que a expressão “umbigo do sonho” dá notícia.
Consideremos mais uma vez a famosa fórmula freudiana segundo
a qual o sonho é, geralmente, o cumprimento disfarçado de um desejo
recalcado (FREUD, 1916c/1996). Ela significa que nos sonhos atuam de-
sejos recalcados sob a condição de que o desejo recalcado seja disfarçado
e que o sonhador não se depare com aquilo que do inconsciente retornou.
Freud postula uma instância psíquica – chamada por ele, censura – que
opera essa deformação do desejo recalcado, que o desfigura. Mesmo assim,
a edição desse desejo ainda precisa servir ao trabalho de sonho de modo
a que ele produza uma narrativa pacificadora, de modo a que o sonhador
continue sonhando, pois essa é a função do sonho. Pois isso, note-se, para
que a narrativa do sonho funcione, deve deixar algo de fora, e assim a
sua estrutura ficcional, sua natureza factícia, se revelam. Se às vezes nos
enganamos e não sabemos se de fato estamos sonhando ou não, não é
porque as narrativas são efetivas em suas simulações, mas porque contam
com a capacidade sedutora do desejo. O recurso final com que o aparelho
mental conta para a proteção contra o retorno do recalcado é a angústia
como sinal. Por isso, há sonhos de angústia, quando os disfarces do dese-
jo recalcado não são efetivos. Então, produz-se angústia e o sonho falha
em sua função. É no ponto de maior angústia que o sonhador desperta,
quando a função do sonho não mais se sustenta.
Então, de que se trata? Tomamos o sonho como paradigma do me-
canismo de projeção. E como paradigma de várias outras elaborações do
psiquismo, principalmente, as que chamamos elaborações sistemáticas, por
causa de sua grande abrangência. E lembremos: a projeção opera quando
um acontecimento interno ao psiquismo não pode ser representado. Assim,
algo se constrói no “mundo externo” de modo a que o psiquismo possa
com isso lidar. Por isso, ao que se projeta faltará coerência, e é também
por isso, afirma Freud (1914b/1996), que o protótipo de todo pensamento

94
Hugo Juliano Duarte Matias

sistemático é o processo de elaboração secundária, tão íntimo ao trabalho


de sonho. Se o material de que é feito o sonho envolve o desejo, o real do
desejo, esse mesmo material é submetido a todo tipo de transformação. Não
apenas isso, mas o próprio material resiste à produção de sentido – já que,
em última instância, se trata do recalcado. Por isso, o sonho sofre essa outra
influência, cujo efeito é evitar a “desconexão e ininteligibilidade” (FREUD,
1914b/1996, p. 105) pelos disfarces proporcionados pelo trabalho do so-
nho, de modo que a revisão, ou seja, a elaboração secundária, recuperação
pacificada do que se lançou de um registro a outro – do inconsciente à
realidade – faz parte também do mecanismo de projeção. Assim, afirma
Lemaigre (1998) que a projeção é uma operação fundamental do traba-
lho de sonho, estruturalmente responsável pela formação de sistemas de
pensamento, da narrativa do sonho, do que ele deduz que qualquer outro
tipo de narrativa também dependerá dessa operação.
Contudo, é preciso considerar também que a mesma projeção,
ainda conforme o que já consideramos sobre os termos de sua operação,
“testemunha a fragilidade da organização defensiva” (BRUSSET, 2000,
p. 705) do aparelho psíquico. Por causa de suas próprias características e
também por sua associação aos mecanismos de produção de angústia, ou
de sua evitação, quando a projeção contribui para o processo de mediação
pulsional e viabilização do mesmo aparelho, ela também dá testemunho
da ineficácia estrutural do aparelho psíquico para se defender das exigên-
cias internas, pulsionais. Assim também, toda narrativa montada com o
auxílio do mecanismo de projeção sofrerá da mesma fragilidade estrutural.
Essa fragilidade não consiste em que a narrativa venha facilmente a se
desestabilizar ou corromper, mas é que a estrutura de sua composição
inevitavelmente a denuncia como montagem, fachada. Interessante é que
Freud (1914b/1996), no mesmo texto que agora lemos, denuncia a rever-
sibilidade da narrativa do mundo, isto é, a possível desmontagem da reali-
dade externa. A possível reversão do mundo aos processos endopsíquicos
que realmente o constituem se deve ao fato de “os resíduos sensoriais das
representações-palavra [Wortvorstellungen] terem sido ligados aos processos

95
Alegoria da angústia

internos” (FREUD, 1914b/1996, p.77). A intervenção dessas represen-


tações complexas, compósitas, feitas de imagens cinestésicas, visuais e,
principalmente, acústicas, que são as representações-palavra, obviamente
também ligadas às representações-objeto, engendra a significantização dos
mundos, interno e externo, e condiciona essa reversibilidade entre eles.
A impressão que temos inicialmente dessa proposição é que a mais
avançada engenhosidade científica é que é capaz de reverter os termos da
realidade humana em psicologia, isto é, que a visão de mundo científica,
por exemplo, poderia reverter as “distorções” do pensamento animista ou
coisa semelhante. E esse é um pensamento sedutor, comum em todos os
círculos da vida cotidiana e, é claro, também no meio acadêmico. Mas a
chave que o texto aponta não se funda em que um sistema de pensamento
venha a agir sobre outro, que o funcionamento mental interfira em nossa
visão de mundo, senão que a própria linguagem, as práticas simbólicas
que ela torna possível, é que sustentam isso, que o nosso mundo sempre
estará marcado pelos mecanismos da projeção. Nossa condição de falan-
tes é que se encarrega disso. Por isso, o pensamento científico, em última
instância, não corrige o animismo ou qualquer outra forma de pensamento
influenciado por mecanismos inconscientes, dentre os quais a projeção,
porque também ele, muito ao contrário do que geralmente supomos, tam-
bém está sob os efeitos desses mesmos mecanismos. Já nos referimos à
descoberta freudiana de que nas propriedades da língua se pode discernir
o mecanismo do recalque (FREUD, 1919/1996). Mas ele mencionou,
com mais especificidade, essa ideia em seu artigo A significação antitética
das palavras primitivas (1910b/1996), ao sustentar que a compreensão do
desenvolvimento da língua auxiliaria a ciência dos sonhos, a tradução de
seus elementos constituintes. Lacan (1957/1998) destaca essa ideia ao
apontar o fato de que Freud avança em sua ciência do inconsciente pelo
cotejar os sonhos e uma série de considerações sobre os fatos do campo
da filologia e da lógica.
O próprio Lacan (1957/1998), no mesmo texto, oferece ilustração
da ideia segundo a qual o conhecimento da estrutura da linguagem – isto

96
Hugo Juliano Duarte Matias

é, de certas propriedades da linguagem – oferece entendimento sobre


os fatos da vida mental. Trata-se da equiparação bem conhecida entre o
sintoma e a metáfora, pois o sintoma analítico, se ele tem um sentido é
porque comporta uma mensagem constituída pelos termos de uma cadeia
de substituições cuja origem remonta ao trauma sexual; por outro lado,
a equiparação entre metonímia e desejo, pois se trata, no desejo, da con-
tiguidade entre todos os termos pelos quais o desejo poderia se realizar,
mas nunca se torna apreensível como realizado. Aliás, outra indicação
importante que ele faz é a “conaturalidade” entre o mecanismo nomeado
por Freud de condensação [Verdichtung] e a poesia [Dichtung]. Isso não pode
ser sem importância!
Freud (1911/1996) sugere que o artista resolve o problema da re-
núncia pulsional – tarefa de todos nós – pela integração entre princípio de
prazer e de realidade, e se isso é possível não se achará outra razão senão
no fato de que a realidade do princípio de realidade, como o aponta Lacan
(1960/1997), é a realidade que encontra suas “garantias” no mesmo âmbito
em que funciona o princípio de prazer, a saber, a subjetividade, o interno
ao psiquismo. Por isso, o artista percorre, indo e vindo, os caminhos entre
a fantasia e a realidade. Assim, aquela dentre as práticas simbólicas a que o
próprio Freud faz constante remissão é a do escritor [Dichter], para quem a
mente humana é “seu campo mais legítimo” e, por isso, se faz “precursor da
ciência” (FREUD, 1907/1996, p. 47), cujo “testemunho deve ser levado em
alta conta” (FREUD, 1907/1996, p. 20). Esse testemunho, segundo Lacan
(1975/1976) não é outro senão o “testemunho do inconsciente” (p. 21).
Tanto a metáfora como a metonímia são tropos bem conhecidos,
figuras da retórica, cuja investigação ocorre principalmente em estudos
filológicos e no âmbito da crítica literária, cuja experimentação e deslinde
ocorre no escopo do fazer literário, da atividade mesma do escritor. Assim
o é, e de tal modo que a perspicácia de Jakobson (1963/2007) – de quem
Lacan (1957/1998) colheu tais apontamentos – o levou a considerar o
parentesco entre as formações do inconsciente e os desdobramentos
históricos da poética. Ele mesmo tentou demonstrar como na poesia são

97
Alegoria da angústia

dominantes os procedimentos metafóricos e na prosa, os metonímicos.


Sugere Todorov (1966/2006), em acordo com Jakobson (1963/2007),
sobre a estilística da composição poética, que muito da estrutura da li-
teratura corresponde à projeção das propriedades mais elementares da
língua, assim como das formas de relação mais fundamentais entre seus
elementos. Todorov (1966/2006) deduz essa ideia dos resultados das
pesquisas formalistas: por exemplo, ele cita a composição de tipologias
narrativas que revelam em seus tipos projeções de propriedades sintáticas
da língua, assim como algumas figuras narrativas parecem ser projeções
de figuras retóricas.
O sentido da ideia de projeção e o seu mecanismo de funcionamen-
to parecem diferentes quando falamos de suas ocorrências no campo da
linguagem e da literatura. Isso parece significar tão-somente uma amplia-
ção da operatividade de certas formas de relação para fazer cópulas entre
elementos mais complexos da linguagem. No entanto, é preciso notar
que o efeito é sempre o mesmo, a tomada e conquista de algum novo
território da realidade, na verdade, novo território da realidade subjetiva,
por exemplo, nas possibilidades de arranjo e significação do mundo. Se
atentarmos para a correção de sentido aqui operada sobre o entendimento
da velha fórmula freudiana segundo a qual a projeção consiste em tratar
como externo o que é interno, notaremos que essa diferença entre interno
e externo é menos topográfica que topológica. Na projeção se trata, isto
sim, de alguma forma de desvio e transformação, de alguma forma de
metabolismo. Como já enfatizamos, trata-se da criação de marcos para um
percurso, em que há, ao mesmo tempo, algo que se perde e algo que se
ganha, inclusive no campo do sentido. Assim, o metabolismo do trauma,
seu eclipse e sua reaparição em sintoma, ilustram perfeitamente o que
pretendemos com essa ideia de projeção.
Esse metabolismo causa, tanto no sintoma quanto no desejo, o
que Lacan (1957/1998) sugere ser o seu caráter enigmático. Assim, no
percurso do trauma ao sintoma, no percurso da falta ao desejo, constrói-
-se um enigma. Segundo ele, isso é consequência da estrutura da própria

98
Hugo Juliano Duarte Matias

cadeia significante, “a possibilidade que eu tenho... de me servir dela para


expressar algo completamente diferente do que ela diz” (Lacan, 1957/1998,
p. 508, grifo nosso). Tal é o caminho que leva à formação dos sintomas,
uma série de substituições, de metáforas, sendo que o resultado disso
é um ciframento da mensagem do sintoma. Estes que seguem são três
índices formais, três indicações de que podemos nos utilizar da figura
da alegoria para integrar nossos apontamentos ainda dispersos sobre
o mecanismo da projeção. Em primeiro lugar, concernente à série de
substituições, para Quintiliano – uma referência importante no texto de
Lacan (1957/1998) – a alegoria consiste em uma metáfora continuada1.
Esta é uma definição clássica de alegoria. Em segundo lugar, quanto ao
caráter enigmático do sintoma e do desejo, agora nas palavras de Santo
Agostinho, todo enigma se constitui como alguma forma de alegoria
cuja possibilidade de interpretação ou deciframento foi obscurecida2. Em
terceiro lugar, acerca da proposição lacaniana sobre uma das funções da
linguagem, etimologicamente, a alegoria consiste em falar o outro3, quer
dizer, expressar algo e dizer outro.
A alegoria, na retórica antiga, era considerada procedimento cons-
trutivo e contada entre as mais diversas modalidades de elocução. O papel
que ela desempenhará em nossa argumentação será o de integrar nosso
percurso de trabalho com o mecanismo da projeção e com a função da
angústia. Para isso serão necessários alguns esclarecimentos acerca de sua
natureza e pertinência.

Aliud dicitur, aliud demonstratur4

Sob a pele das palavras há cifras e códigos


– Carlos Drummond de Andrade

1 Institutio oratória – allegorian facit continua metaphora.


2 De Trinitate – aenigma est obscura allegoria.
3 Allós = outro | agourein = falar.
4 “Uma coisa se diz, outra se demonstra”.

99
Alegoria da angústia

Tratada por todos os grandes retores em todos os períodos da histó-


ria literária, assim como em diversos outros âmbitos, a alegoria está entre
os tropos mais polemizados. Além da definição clássica acima aludida, há
outras possibilidades encontradas na retórica antiga que a modificam, ainda
que bem pouco, como a definição oferecida por Cícero, em que se trata
de um sistema de metáforas5, ou aquela encontrada na Retórica à Herêncio,
segundo a qual a alegoria se compreende como permutatio, em um discurso
“cujas palavras demonstram uma coisa, o pensamento, outra”6. Durante a
antiguidade clássica, e ainda muito depois dela, a alegoria era tomada como
ornatus, acessório ao discurso, em certo sentido, para auxílio e incremento
da prática jurídica e enriquecimento da prática poética. O valioso trabalho
de Hansen (2006) nos garante boa instrução sobre a alegoria e, por isso,
o tomamos como principal referência para o que se segue.
A alegoria, como tropo de transposição que é, depende da relação
entre um significante presente (S2) e um significante ausente (S1)7, sendo
o significante ausente suposto por força da relação semântica entre S2 e
outros significantes: S1 → S28.
Nesta relação entre S1 e S2 podemos vislumbrar toda a problemá-
tica concernente a esta figura, a saber, a do sentido próprio e do sentido
figurado. É disso que se trata no estudo de qualquer alegoria, um sentido
próprio por trás de um sentido figurado. O sentido de S2, em uma alego-
ria, como sentido próprio, é sempre rejeitado por efeito da tensão entre
os significantes de uma cadeia de que S2 faz parte. Outro sentido para
S2 deve ser buscado, o sentido que seria próprio em S1, mas que, muito
embora compatível com o contexto produzido por outros significantes,
seria impertinente designá-lo por S2. No entanto, é justamente isso que
5 De Oratore.
6 Retórica à Herêncio – Permutatio est oratio aliud uerbis aliud setentia demonstrans.
7 Aqui foi invertida propositalmente a notação que ocorre em Hansen (2006) com o
fim de que se possa mais facilmente aproximá-la à matemática psicanalítica.
8 Seguindo a notação de referência lacaniana, propomos que o S2 represente a si mes-
mo e também, virtualmente, toda a cadeia associativa depois dele. Por isso, quando se
escreve S2, na fórmula S1 → S2, o que se pretende designar é S2, S3, S4... Sn.

100
Hugo Juliano Duarte Matias

faz com que, designado por S2, esse seja o seu sentido figurado. Para que
funcione o tropo, o sentido figurado não pode ser transformado em pró-
prio, tampouco o sentido próprio pode ser aniquilado. Ambos devem ser
mantidos em estado de tensão.
Tomemos um exemplo que Hansen (2006) resgata de Quintiliano,
um verso de Horácio: “Ó nave, levam-te ao mar novas ondas”. Sendo
este poema intitulado “À República”, sendo o contexto de recepção
desse poema conhecido como um período de agitação política e guerra
iminente, tanto a nave, o mar e as ondas encontram esse contexto com o
qual se põem em tensão, e isso lhes cinde o significado. Essa alegoria se
desenvolve no poema e faz proliferarem as cisões também na dimensão
sintática da composição dos versos, pois uma vez feita a nave substituto de
algo, tornar-se-á sujeito para predicações mais uma vez metafóricas (“filha
de ilustre floresta”, menção àquilo de que é feita a República). A alegoria
se desdobra ainda em operações sinedóquicas e metonímicas (“não tens
velas inteiras”, menção à falta de governo).
Do mesmo modo, consideremos o caso relatado por Freud
(1917b/1996) em que uma mulher que sofria com um sintoma obsessivo
interpreta o seu ato compulsivo analogicamente: uma mesa por uma cama
e lençóis por uma toalha de mesa etc. Neste caso, outra cena funcionava
como sentido próprio daquilo que era figurado pelos elementos do ato
compulsivo (arrumar a posição da toalha na mesa). Todos elementos
encadeados e não de maneira fortuita, mas facilmente discerníveis pelo
lugar-comum indicado por Freud (1917b/1996), o da associação entre
cama e mesa no contexto de um casamento, à maneira dos lugares-comuns
previstos pela retórica clássica para a montagem de boas alegorias, como
era o caso das analogias náuticas.
Não obstante muitos retores sustentem que a alegoria constitui-se
como uma forma enrijecida pela intervenção desses lugares-comuns – in-
clusive alguns modernos, como Perelman e Olbrechets-Tyteca (1988/2000)
– é na própria literalidade do texto que achamos os índices dessa tensão
que divide semanticamente os significantes entre o sentido imediato e

101
Alegoria da angústia

as suas virtualidades. O próprio, intenção oculta talvez, é, em todo caso,


algo a ser deduzido. Muito embora a alegoria, de fato, tenha conquistado
o estatuto definitivo de forma flexível somente diante da crítica do Século
XX, mesmo assim os retores antigos consideraram a existência da alegoria
em diferentes graus de clareza (supondo, é claro, a existência de um grau
zero da significação em que a palavra seria totalmente transparente à coisa),
pelo que se julgava a sua qualidade.
Assim, a alegoria como mais comumente a conhecemos é permixta
apertis allegoria (alegoria imperfeita), cujo desenvolvimento comporta alguns
índices do sentido próprio que se tornam chave para a inteligibilidade do
figurado. A alegoria é discernível em sua imperfeição, aliás, condição de
sua abertura. Outra forma de pensar a alegoria é como tota allegoria (alego-
ria perfeita), ou ainda, enigma. Este é o primeiro grau em que os antigos
retores encontravam a alegoria (tradição iniciada pelo próprio Quintiliano),
em que não se pode encontrar nenhum índice lexical ou qualquer outro da
literalidade do dito de que neste se desenvolve um sentido figurado. Esta
seria, então, uma alegoria completamente fechada e hermética. Esta estrutura
constitui para a alegoria um efeito muito específico sobre as suas condições
de recepção, a saber, a obscuritas (obscuridade). Por essa razão, o enigma é
uma espécie de alegoria, uma forma de dizer o outro, como existem várias.
Há algo de alegórico na estrutura mesma da linguagem. Como afir-
ma Lacan (1957/1998), “o que essa estrutura da cadeia significante revela é a
possibilidade que eu tenho... de me servir dela para expressar algo comple-
tamente diferente do que ela diz” (p. 508, grifo nosso). Esta bem poderia
servir como definição de alegoria. Do mesmo modo, enquanto apresentava
os fenômenos da linguagem no âmbito da psicose, ele também percebeu
algo de enigmático na linguagem, em sua radicalidade, ou seja, o fato de
ela sempre ser enigmática é “a característica de todas as palavras da língua
fundamental” (LACAN, 1955/1985, 119). A estrutura neurótica revela
essa característica, como já se disse, no sintoma. Se o sintoma tem algo de
obscuro e opaco é porque lhe falta, em sua linguagem, uma chave para a sua
decifração, um acesso à literalidade do trauma. Mas uma alegoria somente

102
Hugo Juliano Duarte Matias

se torna interpretável, um enigma somente se torna decifrável, um sintoma


só é tratável sob a condição de que permita uma entrada. Onde se encontra,
portanto, o índice da cisão semântica que vimos ser constitutiva da alegoria?
Lacan nos faz notar que a fórmula geral que descreve a composição
do relato do sonho, mas que também o ultrapassa, é a fórmula de um enun-
ciado marcado pela especificidade de um índice de enunciação, e nos diz que
essa é, na verdade, a fórmula geral do enigma: Ee (LACAN, 1959), fórmula
que ele retoma em outros seminários (LACAN, 1970/1992; 1976/2007).
A ideia segundo a qual a enunciação é um índice de interpretabilidade é
muito antiga, já ocorria em São Tomás de Aquino, inclusive como índice
do sentido literal de um texto (ECO, 1989). Lacan, no entanto, radicaliza
esta ideia. Isso é apreensível em sua crítica (assim podemos dizer) do re-
lato freudiano – acompanhado de interpretação – do sonho da injeção de
Irma. Diante da fórmula da trimetilamina, fulgurante e angustiosa visão
de letras, seu completo hermetismo, portanto, da “maneira pela qual ela
se enuncia, seu caráter enigmático” (LACAN, 1055/1985, p. 202), temos
o testemunho: isso mostra, para além de Freud, o inconsciente ali para
a posteridade de quem Freud, de algum modo, esperava uma leitura do
sexual inscrito na letra do sonho (a trimetilamina é um subproduto da de-
composição do esperma, talvez uma sinédoque deste). Note-se ainda: não
há enunciado, nada além da própria palavra, do mesmo simbólico, aquilo
em que se constitui a realidade do inconsciente, ou do inconsciente como
uma realidade escrita. Não estamos, portanto, no campo da representação,
mas do puro representante, da letra. Não há referente fora do próprio
simbólico. A realidade do enigma é a enunciação, “uma enunciação da
qual não se acha o enunciado” (LACAN, 1976/2007, p. 65).
O simbólico tem, por conseguinte, autonomia em relação ao mundo
referencial. Os significantes não se reportam a significados ou a qualquer
outra coisa senão ao próprio discurso (LACAN, 1973/1983). As associações
que comporta para produzir sentido não se podem medir pela suposta
coerência ou solidariedade de natureza entre as ideias que servem à mon-
tagem de metáforas, alegorias, enigmas, afinal, nada de natural preside a

103
Alegoria da angústia

substituição metafórica (LACAN, 1961/1998). Aliás, agir assim seria algo


contrário aos cânones da retórica clássica, condenável como mala affectatio
(incongruência – outro grau em que se podia avaliar a abertura da alegoria).
Não obstante, foi a intuição estética maneirista e barroca que demonstrou
o alcance da virtualidade linguística. Num exemplo extraído de Gregório
de Matos: “rio de neve em fogo convertido” e “incêndio em mar de águas
disfarçado”, temos que onde a incompatibilidade entre as naturezas das
coisas e ideias designadas pelas palavras que compõem as metáforas, onde
a dessemelhança entre elas tornaria as metáforas ininteligíveis, o que ela
realmente opera é a projeção da virtude poética contra os constrangimen-
tos da razão e imaginação clássicas e neoclássicas. Amplia-se, na verdade,
o alcance do pensamento analógico, inaugura-se, como enfatiza Lacan
(1961/1998) ao mencionar o caso do menino que diz “o gato faz au-au, o
cachorro faz miau-miau” (p. 905). Ora, a metáfora e a alegoria dependem
de que os termos escolhidos para a composição poética convenham um
ao outro em relação por serem em parte semelhantes e em parte desse-
melhantes, e se a dessemelhança toma a proporção que eventualmente
toma, é pela suplência que a dimensão alegórica da linguagem faz à sua
dimensão metafórica. Aliás, a natureza da alegoria potencializa o princípio
metafórico, “simbolismo proposicional analógico” (HANSEN, 2006, p.
82), pois ela não apenas aponta, arbitrária, para um outro que está ausente
da matéria de sua própria linguagem, além de metafórica, a alegoria é
anafórica, pois essa ausência se repete. Por sua necessária e insistente
repetição das diferenças no interior do discurso que promove, a alegoria
constitui em seu interior um princípio dedutivo que permite recuperar a
capacidade de significação de seu texto.

Verba volant, scripta manent9

Escrever é sempre esconder algo de modo que mais tarde seja descoberto
– Ítalo Calvino

9 “A palavra voa, o escrito permanece”.

104
Hugo Juliano Duarte Matias

Se aceitamos, na linguagem, a sua natureza alegórica, como sugerimos


acima, e se ela tem alguma importância para o que discutimos, isso não se
deve reduzir a uma propriedade de disfarce apenas. Na verdade, diria Lacan
(1957/1998) que a “função mais digna” da fala seria a de “indicar o lugar desse
sujeito na busca da verdade” (p. 508). Portanto, concebida assim, a linguagem
é vela e desvela, esconde e mostra o sujeito por que estamos interessados, o
que produz diferentes implicações para a nossa discussão. Seguindo a questão
do enigma, por exemplo, cuja problemática nos trouxe até aqui, a reencontra-
mos na teorização lacaniana como um semi-dizer (LACAN, 1970/1992), cujo
dito se diz desde uma posição imaginária, por conseguinte, com estrutura de
ficção. É aí que esse dito se faz diz-mansão da verdade10, ou seja, aquilo que
sustenta a verdade. Mas podemos evocar outra forma pela qual a questão da
verdade neste campo pode ser colocada, em outro registro, o simbólico, em
que a verdade se apresenta como inadequação (SAFATLE, 2006).
Há no interior do processo metafórico, segundo os termos da simbó-
lica lacaniana, um movimento dialético que relaciona símbolo e referência
(SAFATLE, 2006): em primeiro lugar, a metáfora opera a negação de
construções imaginárias sedimentadas, pelo que ela apenas desloca capital
semântico de formas já gastas, e assim ela denuncia a incompetência de-
notativa da linguagem; em segundo lugar, a metáfora opera a instauração
de novas relações entre sistemas de referência, um processo criativo de
engendramento de sentido, e não apenas deslocamento, pelo uso muito
imprevisto dos recursos de significação, o que revela a competência perfor-
mativa da linguagem. Desse modo, metáforas desfazem formas canônicas
de construção linguística e deslocam significado de um lugar a outro da
linguagem; metáforas fazem novas formas de ligar o mundo à linguagem
e assim criam sentido. Num caso e noutro, isso somente é possível, ou
necessário, porque a linguagem nunca termina o seu trabalho e sempre
falha em designar os seus referentes. Esta segunda operação, portanto, se
tem algo de positivo no que realiza, não deixa de ser ainda um mecanismo
da retórica lacaniana da negação do ser na linguagem.
10 Já exploramos anteriormente esta expressão lacaniana, na página 66.

105
Alegoria da angústia

Conforme o sistema proposto por Dunker (2011), essa primeira


operação dialética da simbólica lacaniana se realiza entre o imaginário –
registro do sentido – e o simbólico – registro do duplo sentido, da equi-
vocidade – e seu fracasso corresponde ao surgimento do sintoma. Por
outro lado, a segunda operação se realiza entre simbólico e real – lugar,
não registro, do fora de sentido – e seu fracasso – fracasso estrutural, é
preciso enfatizar – corresponde à produção de restos metonímicos, por-
tanto, ao surgimento do desejo. Dunker (2011) acrescenta que a segunda
operação, que podemos chamar de nominação, deve ser pensada como
concernindo um sistema peculiar de simbolização, um sistema de escrita,
diferente do sistema da fala na linguagem, que serve à inscrição no corpo
dos conflitos reais como sexuais. Se nessa segunda operação restos se
produzem é porque a nominação não pode fazer passar completamente
o real do conflito ao psiquismo. Justamente aí temos que a metáfora se
comporta como “escritura da verdade como inadequação” (SAFATLE,
2006, p. 107).
Podemos dizer que há dois níveis do enigma como enunciação:
esta em que se produz a diz-mansão da verdade, em que o enigma é um
semi-dizer; outra em que a enunciação não produz diz-mansão da verdade,
porque ex-siste ao dito (LACAN, 1973/2003). Isto significa que ainda
que em relação implicativa com o dito, é da mesma resistência que o dito
representa a essa enunciação que ele extrai a sua competência para desig-
nar. A enunciação ex-siste ao dito, ou seja, a enunciação e o que se diz se
implicam mutuamente e, ao mesmo tempo, se excluem. Isso é mais claro
no que concerne à escrita. Somos levados a isto: há um nível em que “a
enunciação é o enigma elevado à potência da escrita” (LACAN, 1976/2007,
p. 150), sendo a escrita como matéria, o que sustenta, a despeito dessa
opacidade, o valor de enunciação. Para diferenciarmos esses dois níveis,
transformemos um pouco a escrita lacaniana: Ee ≠ E-e. Como escrito, o
enigma se faz outra coisa. O escrito, segundo em relação à linguagem e
dela dependente, nada obstante não é a linguagem, mas dela resulta. Por
essa relação de ex-sistência ao dito, a escrita permite questionar esta estru-

106
Hugo Juliano Duarte Matias

tura de ficção que é a diz-mansão da verdade. Ora, se a verdade diz “Eu”,


à verdade o escrito diz “Tu”, pois ao escrito é possível tomar a verdade
como referente (LACAN, 1971/2009).
Em seus últimos seminários, Lacan nos leva a refletir sobre a rela-
ção entre fala e escrito, e estabelece hipóteses valiosas. É nesse contexto
que ele se serve do escrito para transmissão de seu ensino, em função das
propriedades muito específicas que concernem o escrito em sua relação
com a linguagem. Uma delas é que algo do que não se pode falar, se pode
escrever, isto é, algo do que não pode ser discurso, que não pode ser ima-
ginarizado, pode ser escrito. A função do escrito é interrogar a linguagem
em seus efeitos, e nisso ela teria algo de real. De fato, ele afirma que a letra
e o escrito estão no real, e o significante, no simbólico; por isso podemos
pensar o escrito como semblante, como ravinamento, como barranco do
significado (LACAN, 19971/2009). O escrito opera como furo na lingua-
gem, pelo que a linguagem opera seu domínio sobre o real, pelo que ela
toca o real (LACAN, 1976/2007). Nisso, o escrito revela sua capacidade
de prescindir da representação para oferecer um apoio ao pensamento,
um apoio real, aquele de uma espécie que somente pode ser articulado
pela escrita; e não apenas prescinde da representação, este pensamento,
mas cujo suporte se opera “contra um significante para pensar” (LACAN,
1976/2007, p. 151).
Em nota ao texto do seminário O sinthoma, Miller (LACAN,
1976/2007) nos informa que por trás dessa expressão – “contra um
significante” – havia uma reflexão suscitada no mesmo seminário sobre
a outra expressão: ezer kenegdo, da bíblia hebraica, usualmente traduzida
por auxílio idôneo, correspondente, isto é, que Eva, a mulher, seria para
Adão uma auxiliadora adequada (cf. Gn 2,18), colocada em face a ele. No
entanto, a tradição exegética judaica, por diversas vezes extrai consequências
do fato de que o radical ngd significa algum tipo de oposição, o que pode
designar “em face” ou “contra”, a depender de suas modulações. Se diz que
a mulher foi constituída ajuda “contra” o homem, para lhe favorecer, para
estar face a ele em seu mérito e se lhe opor ou resistir, para estar contra

107
Alegoria da angústia

ele, em ocasião oportuna, em seu demérito. Note-se que Lacan comenta


a importante distinção entre a representação geométrica, que nos coloca
face à sua verdade evidente, e o uso que ele faz dos nós (últimos recursos
topológicos), em que as evidências são esvaziadas. Os nós, assim como
o artifício da escrita posto em funcionamento por Joyce, operam contra
a representação, pelo que dão a pensar. Aliás, o verbo nagad – de mesma
raiz ngd – cujas possibilidades de significação lhe são adjacentes, assume
o sentido de demonstrar e dar prova escrita de algo, cuja conotação pode
assumir a forma de revelar a solução de um enigma, ou simplesmente
decifrar (cf. Jz 14,12).
Entre escrita e alegoria parece haver um princípio interpretante
que lhes é comum. Em tempo, allegorein, em seu uso pelos gregos, signi-
fica tanto escrever alegoricamente como interpretar alegoricamente. É
o caso de lembrar de uma distinção tão antiga quanto importante, entre
(a) alegoria dos poetas – processo construtivo, que envolve letras – e (b)
alegoria hermenêutica, ou dos teólogos – um processo de crítica, que
toma homens, coisas, acontecimentos, para interpretá-los. Principalmente
teólogos, ou místicos, das mais diversas tradições, sustentados pela hipó-
tese da natureza profunda e secreta da linguagem e da linguagem sagrada
(SCHOLEM, 1965/2009), pretenderam investigar não apenas textos, mas
também a história, sob a referência de um princípio alegórico. A suposição
básica, sistematizada, por exemplo, em São Tomás de Aquino (HANSEN,
2006), é que a coisa mesma (res tantum) corresponde à vontade e palavra
criativa de Deus, e o que existe é seu significado, em seu sentido espiritual
conferido pelo próprio Deus; por fim, essa significação é manifesta em
sentido literal, isto é, em matéria significante. Não apenas esta última
pode ser lida, mas também a história pode ser lida nos significantes de
sua narrativa e também na narrativa como tal. Desse modo, e se radica-
lizarmos esse princípio como fizeram alguns estetas pós-medievo, toda
composição literária pode ser pensada como sendo já uma interpretação.
A história funciona como mediação para acesso à coisa divina, ou mais
simplesmente, a coisa. Assim, a alegorização da História – aquela que

108
Hugo Juliano Duarte Matias

se desenvolve no contexto cristão, principalmente – cumpre o papel de


recordação de um saber ausente, o saber da vontade divina, tornando-o
em figura (HANSEN, 2006).
Esta concepção de alegoria como hermenêutica já é algo diferente
da alegoria praticada em outras escolas mais antigas que as cristãs, como
a alegorização rabínica ou a estóica. Estas duas correntes de pensamento
parecem ter produzido o método de Fílon de Alexandria. Em Fílon en-
controu Dunker (2011) a matriz de um procedimento que funciona em
torno de um princípio paranóico, que deve ser diferenciado da interpretação
freudiana. A alegorização inflaciona o sentido naquilo que se toma para
interpretar, e este é o cerne da crítica freudiana à interpretação realizada
por Jung, o que tornaria Freud um anti-alegorista (REGNAULT, 2001). Por
outro lado, o procedimento freudiano, a estratégia por ele empreendida,
conforme Dunker (2011), produz uma deflação de sentido, uma redução
e, em consequência, estabilização e organização de gozo. Dunker (2011)
menciona como exemplo a interpretação de um fetiche, caso muito co-
nhecido apresentado no texto Fetichismo (FREUD, 1927/1996). Contudo,
o que é salientado como estratégia propriamente freudiana é apenas a
sua “atenção ao equívoco metafórico” (DUNKER, 2011, p. 185). O que
Dunker (2011) vai delineando de estratégia não-alegórica ou contra-ale-
górica é na verdade o mecanismo inconsciente de produção do fetiche,
que resulta em um rébus, uma forma de alegoria enigmática teorizada
no campo da retórica como alegoria a partir da Renascença, quando as
concepções de alegoria se transformam radicalmente (HANSEN, 2006).
Na composição de um rébus trata-se do funcionamento de um sistema de
escrita, aliás, melhor do que qualquer outro procedimento, o rébus revela o
funcionamento desse sistema (MACHADO, 2000). Com ele o inconsciente
se serve da disponibilidade das representações de palavra (Wortvorstellung)
para engendrar o pensamento do sonho (LACAN, 1971/2009). Assim,
é impreciso dizer que a alegoria desconhece a heterogeneidade entre fala
e escrita (DUNKER, 2011), muito ao contrário, ela indica tal diferença
operando como mediação entre sistemas.

109
Alegoria da angústia

Há, conforme Allouch (1995), três operações pelas quais se realiza


alguma forma de escrita: a transcrição, a tradução e a transliteração. Trans-
crever seria fazer passar para o escrito algo fora do campo da linguagem
(uma operação, talvez, entre o real e o imaginário), como o som ou a ima-
gem, mas isto esbarra na impossibilidade da reprodução de coisa qualquer
fora do campo da linguagem em seu interior, de outro modo estaríamos
no âmbito de uma teoria realista, representacionista, referencialista da
linguagem. Não é o caso. Traduzir seria fazer passar para o escrito algo em
relação ao sentido (numa operação, talvez, entre o imaginário e o simbóli-
co), o que tropeça na equivocidade de captura do sentido. Quando se fala
em tradução, por exemplo, se fala em tradução literal, o que já denuncia
a fragilidade e volatilidade imaginária do sentido. Transliterar seria fazer
passar para o escrito algo em referência ao próprio escrito, mas em outro
registro (numa operação, talvez, entre o simbólico e o real), o que sofre
com o dispêndio e a gratuidade de seu próprio procedimento.
Transcrever, traduzir e transliterar constituem três operações de
projeção, no sentido que aqui está sugerido: uma forma de desvio e trans-
formação em que se produzem marcos para mediação pulsional, em um
percurso de contorno ao objeto. Tomaremos um exemplo fornecido por
Allouch (1995, p. 63 et seq.) e o desenvolveremos para além de seu escopo
original. Ele nos conta o relato de um analisando que teve um sonho, que
este sonho foi fomentado pela fala de sua esposa e que foi interpretado por
um chiste que o próprio analisando produziu quando, outro dia, jantava
com a esposa. Ora, tanto o sonho como o chiste estão ligados à economia
do escrito (LACAN, 1978).
Este homem ia se deitar com a sua mulher e, estando despido diante
dela, ouviu dela: “você engordou”, ao que ele respondeu que começaria
uma dieta na segunda-feira. Então ele teve um sonho: alguém carregava
um corpo humano dobrado em dois sobre o ombro e depois este corpo
aparecia como o corpo de um grande peixe. No dia seguinte, domingo,
um dia antes de começar a sua dieta, ele jantava com sua mulher, eles
comiam peixe. Ocorreu-lhe o seu sonho e, ao mesmo tempo, um chiste

110
Hugo Juliano Duarte Matias

que interpretava o sonho: o peixe que ele comia (poisson, em francês) lhe
parecia representar o seu peso (son poids), que ele carregava.
Em associação, na análise, o homem lembrou que, quando era criança,
a palavra “gordo” era censurada nas lojas de roupas que ele frequentava, e
substituída pela palavra “forte”. Esta palavra o incomodava pelo seu tom
condescendente e irônico. O seu analista interpreta o efeito da observação
da mulher de seu analisando como sendo o de uma castração imaginária.
Além disso, o analisando também lembrou que morava na vizinhança
de um açougue e que já testemunhara o açougueiro levar nos ombros
animais dobrados em dois. Então, ele associou a palavra ombro (épaule)
ao vocabulário do açougue. Tendo em conta que o corpo carregado era o
dele (trata-se de seu peso), surgiu uma outra homofonia de importância
para a interpretação do sonho: “eu sou carregado no ombro” (je suis porte
sur l’épaule) e “eu sou chegado a uma paleta”11. Assim um conflito se torna
patente: a satisfação de sua mulher e a de seu paladar.
Trata-se, segundo Allouch (1995), de transliteração no sonho, isto é,
passagem de letra (decorrência de serem esses os elementos significantes
da linguagem particular do sujeito em questão, isto é, o que não passa para
a linguagem geral) à figura, sob a condição de que a linguagem particular
desse homem interviesse como rébus de transferência. Até aqui nos trouxe
Allouch (1995), mas avancemos ainda mais, se se nos permite. O chiste,
mencionado anteriormente, na verdade foi elaborado no mesmo trabalho
de sonho, ou, ao menos assim, as condições de sua produção foram am-
plamente preparadas. Isso não é estranho à descrição freudiana, que prevê
a semelhança e até a identidade entre a elaboração onírica e a elaboração
do chiste. Aliás, segundo Freud (1905b/1996, p. 157), no chiste, “um
pensamento pré-consciente [correspondente à observação da mulher] é
abandonado por um momento à revisão do inconsciente [quando encontra
diversas associações] e o resultado disso é imediatamente capturado pela
percepção consciente”. Neste caso, pensar o chiste é o que nos permite
mais claramente articular algo da ordem da economia psíquica.
11 Êtreportuésurl’épaule é literalmente ser carregado sobre, mas também tem o sentido
de “ser chegado a alguma coisa”.

111
Alegoria da angústia

Note-se que o chiste é consentido pelo eu, portanto, deixa passar uma
“verdade a calar” (CASTEL, 1996, p. 86), mas cujos termos da confissão
foram forjados pelo sujeito arranjador do inconsciente. Vale a pena buscar
essa verdade nas linhas do relato da vinheta clínica para encontrar onde se
articula aquilo que nos interessa. Quando a mulher diz “você engordou”
e a isso o analisando responde prontamente que fará dieta, a fala aqui as-
sume qualquer coisa de imperativo, pois sua obediência lhe confere essa
qualidade. Esse imperativo parece ser correlato do mecanismo de produção
da imagem de si mesmo carregando o próprio peso, a saber, o peso de
um fardo, de uma culpa (poids de la conscience), a imagem, portanto, de uma
porção de angústia na articulação em dois níveis do circuito da pulsão: um
nível do objeto oral e outro do objeto voz. O conflito não é entre satisfa-
zer a mulher e o paladar, mas ceder ao imperativo superegóico ou a uma
compulsão no registro oral. Se se pode comer o peixe e brincar à mesa
com as palavras é porque o chiste conferiu leveza à situação, inscrevendo
o conflito de modo a operar um desvio, à moda daquilo de que fala Freud
(1905b/1996), contorno de um impossível, mediação pulsional. Há uma
escrita, quando retorna o recalcado nesses termos, isto é, quando como
letra retorna o significante recalcado, quando o significante, à deriva, se
transmuta em letra (LACAN, 1972/2012). A escrita da pulsão, podemos
dizer, ocorreu em duas etapas: (a) a tradução da culpa e da gula, isto é, das
versões do mais-de-gozar, da carne e da voz, em peso – ora, com isso elas
ganham corpo; (b) a transliteração do peso em peixe. Assim, a cifração do
pulsional, neste caso, se deu pela alegorização talvez irônica, talvez “bar-
roca”, da culpa e da gula, não uma escrita conciliatória ou integrativa – já
que nela se mantém a contradição, sem que se mantenha o conflito – mas
uma escrita que funciona como vau para a travessia de um impasse num
ponto da história do sujeito.
Essa escrita realiza, por assim dizer, uma operação muito particular
de inscrição, mas o seu fundamento, aquilo sobre o que ela se sustenta,
na verdade, o que a empurra é o fato de que o gozo sexual não pode
se escrever (LACAN, 19971/2009). Ora, todo escrito parte desse fato,

112
Hugo Juliano Duarte Matias

de que não se poderá escrever como tal a relação sexual, como vemos na
vinheta acima referida; do fato de que há um furo na linguagem, na fala.
O efeito da incompetência do discurso para dizer da relação sexual, é isto
o que chamamos escrita (Lacan, 1973/1983).

Cominus et eminus12

O tempo é este papel em que escrevo


– José Saramago

Retomemos nosso trabalho com a alegoria e consideremos a impor-


tante e frutuosa transformação do modo como era concebida. Se durante
a antiguidade clássica e a idade média a alegoria se caracterizava por seu
registro duplo no campo da retórica, por um lado, e da hermenêutica, por
outro, a Renascença se encarregou de tentar reinscrevê-la de outro modo,
como ponto de cópula entre os dois registros. Segundo a interpretação
neoplatônica de Marsílio Ficino, a alegoria opera onde o conceito encontra
o seu limite, para remeter ao irrepresentável que a poesia alcança. A teoria
da alegoria passa a concernir de modo mais profundo as questões estéticas.
Ela passa a servir à difícil tarefa de construção da inteligibilidade da arte,
mas não apenas isso, mais intimamente, ela passa a concernir à arte como
mecanismo fundamental de invenção (HANSEN, 2006). A problemática
da alegoria se converte, pouco a pouco, na problemática da arte em geral.
A teoria de Ficino visa a uma operação de redução (HANSEN, 2006)
da multiplicidade das formas artísticas a um princípio fundamental de
unificação. O seu trabalho com a recolha das muito diversas formas de
aparição do tema da trindade, por exemplo, lembra a tentativa de redução
freudiana do tema dos três escrínios (FREUD, 1913/1996). Dentro de
seu programa de investigação, o rébus comparece como forma sígnica
fundamental, pelo seu caráter compósito e transitivo. A arte para ele é
alegórica porque remete ao outro que não pode ser expresso como tal.

12 “De perto e de longe”.

113
Alegoria da angústia

Em muito essas ideias sobre a alegoria remetem à estética romântica,


a mesma que se encarregou da difamação da alegoria como forma inferior.
O que alimentou o furor difamatório ocorrido durante o romantismo foi
a oposição entre alegoria e símbolo, dois conceitos que eram indiscrimi-
nados até o Século XVIII (GADAMER, 1960/2005). Enquanto se dizia
do símbolo que ele, de maneira exclusiva e orgânica, designava uma ideia
elevada, em contraste, a alegoria era considerada vestimenta exterior e
gratuita de uma abstração. Por isso, a relação com a ideia, no símbolo é direta
e imediata, pura, mas na alegoria é mediada, imprópria e impura, mecânica
e artificial. A mediação temporal, o adiamento inerente à representação
alegórica, a diminuía como forma artística, para os românticos, e o seu
caráter convencional e mecânico – recuperado da retórica clássica, mas
congelado para prejuízo da própria alegoria – inflacionam o sentido no
campo da representação alegórica, em que tudo pode significar tudo para
dar figura esmaecida à mais vigorosa das abstrações.
Ainda conforme Gadamer (1960/2005), se a oposição artística entre
alegoria e símbolo ocorreu no campo da filosofia, “a desvalorização da
retórica no Século XIX é a consequência necessária da aplicação da teoria
da produção inconsciente do gênio” (p. 119). Sabemos que Freud, em
seu interesse pelo inconsciente – obviamente, sob inspiração romântica
– reencontra a retórica nos procedimentos do modo de operação incons-
ciente. Muito embora Freud tenha se referido abundantemente ao caráter
simbólico dos processos inconscientes, é a alegoria que originalmente
estava inscrita à esfera do discurso, do logos, enquanto o símbolo estava
ligado à esfera do ser, da metafísica. Por essa razão, não se poderia cogitar
a interdição da alegoria para enriquecer a teoria psicanalítica como fruto
de um “acidente” histórico?
Fato é que a alegoria foi reabilitada pela crítica e no meio artís-
tico. Uma interessante proposta integrativa se encontra em Heidegger
(1950/2010), segundo a qual a arte, em sua origem, não pode ser dis-
sociada da materialidade, ou melhor, da coisidade da obra; no entanto,
a sua coisidade somente serve à arte à medida que remete a algo outro

114
Hugo Juliano Duarte Matias

em relação à sua própria coisidade. Por outro lado, isso que é outro
é integrado, reencontrado, reunido à coisidade da obra de arte, pelo
que a obra de arte é alegoria e símbolo: alegoria por trazer e carrear o
outro, e símbolo por reuni-lo à coisa na obra de arte (HEIDEGGER,
1950/2010).
A reabilitação da alegoria pela arte e pela crítica contemporâneas foi
referida por Owens (1980) – em seu influente artigo sobre o tema – como
um verdadeiro impulso alegórico, que marca a estética contemporânea.
Ele demonstra isso com referência abundante a artistas dos mais diversos
registros da arte, em que tem muita importância reflexões no campo da
literatura. Ele retoma a discussão levantada por Jakobson (1960/2007)
acerca da função poética – como sendo a de projeção do “princípio de
equivalência do eixo da seleção sobre o eixo de combinação” (JAKOB-
SON, 1960/2007, p. 130) – e a aproveita para designar a operação geral
de projeção do que é estrutura na forma de uma sequência. Nisso essa
operação seria essencialmente alegórica. Esse princípio opera nas mais
diversas artes a produção de seu espaço e tempo próprios, mas sendo
esse princípio centrífugo, ele também arranja as mais diversas transições,
na arte contemporânea, entre as muito variadas categorias estéticas, do
naturalismo ao expressionismo, do surrealismo ao barroco etc. Por essa
virtude, a alegoria acentua a essência pictogramática e hieroglífica da arte
contemporânea. O que Owens (1980) sugere é que, na arte, a alegoria
participa de certa função de lidar com as contradições do homem con-
temporâneo, seu mal estar.
A alegoria é cara também a diversos movimentos literários con-
temporâneos e, principalmente, a algumas escolas de crítica literária,
como é o caso da tão influente escola de Yale, em cujo programa a
alegoria comparece como único dispositivo retórico a se aproveitar por
sua virtude polêmica contra os regimes logocêntricos de leitura (PLEBE
& EMANUELE, 1992). Em todo caso, mais do que isso, a alegoria é
tomada contemporaneamente em muitos espaços de crítica e teoria lite-
rária como um modelo para a compreensão da ontologia da obra literária

115
Alegoria da angústia

(KOTHE, 1986). São abundantes os testemunhos do alcance dessa figura


para prover sistemas de inteligibilidade ao literário, como o de Borges
(1949/1986) – para quem os romances, de maneira geral, trazem um
elemento alegórico – ou Frye (1969) – que aponta a natureza alegórica
da literatura – e ainda Todorov (1981) – segundo este, por efeito de sua
função interpretante, não há um texto que não seja, de algum modo
alegórico. Em todo caso, não é difícil observar: a alegoria conserva à
literatura, ainda que sob certas condições, o seu caráter propriamente
artístico, em outras palavras, o seu caráter artístico de “indeterminação
aberta” (GADAMER, 1998, p. 78).
Referência incontornável para entender a reabilitação da alegoria é
o trabalho de Walter Benjamim (1925/1984) sobre a alegoria no drama
barroco alemão. Este é considerado o seu trabalho mais difícil e, ao mes-
mo tempo, o mais importante texto teórico produzido por este místico da
linguagem – como o chama Gersom Scholem. Neste texto, a despeito do
que o seu título sugere, não se trata apenas do caso particular da alegoria
barroca alemã, mas da alegoria como princípio da escrita literária e os efei-
tos que ela alcança. Ele rejeitou com veemência o esforço romântico por
distinguir símbolo e alegoria, no entanto, reconhecendo como exceção o
vislumbre dessa distinção no modo como uma e outra se relacionam com
o tempo. Efetivamente, a alegoria revela algo em seu caráter ritualístico
e petrificado, que é a história como logro. E ela o faz pelo artifício em
que sustenta uma contradição, uma dialética que se confunde, segundo
o próprio Benjamin (1925/1984), com o que constitui internamente a
escrita: o fato de que a mesma escrita não apenas se presta à convenção e
à expressão – simultaneamente – mas é a moderna condição, a alegoria,
para que isso se realize no campo da arte literária. E isso a alegoria faz
pelas artes em geral, inclusive as artes plásticas, já que a alegoria, mesmo
na escrita, tende ao visual (foi assim que surgiu a expressão rébus, cuja
raiz é a palavra latina para coisa: res).
Por essa virtude, a alegoria despedaça a normatividade artística e
se faz a arte dos fragmentos da arte. Ela não pretende superações, mas se

116
Hugo Juliano Duarte Matias

realiza na formalização dos impasses, como sugere Kothe (1986), para quem
“a alegoria enxuga e concentra contradições: a leitura alegórica discerne
e desvela tais contradições” (p. 40). Isso concerne à alegoria literária no
barroco de modo muito especial, na tensão entre som e imagem, na tensão
entre palavra falada e palavra escrita. A palavra escrita tende a submeter
à palavra falada, de que ela mesma extrai o seu vigor, coisificando-a, o
que a alegoria radicaliza em seu “princípio dissociativo e pulverizador”
(BENJAMIN, 1925/1984, p. 230). Ao mesmo tempo, isso serve à sacrali-
zação da palavra, à sua imobilização. Por isso, não se pode compreender o
funcionamento alegórico da linguagem escrita sem o auxílio do repertório
teológico, particularmente o cristão.
A alegoria é bem-sucedida em seu duplo fracasso de dignificar e
garantir a linguagem ou de superá-la em forma mais elevada. Em sua ba-
talha no campo da significação, ela faz cicatrizes na face representacional
da linguagem e ruínas no paço em que a verdade faz morada. Na leitura
de Benjamin (1925/1984), a alegoria barroca, na medida em que retoma
a alegoria da antiguidade, serve à desocultação da história como logro.
Kothe (1976) sugere que a história como logro é revelada pela menção,
na alegoria barroca, da história não havida, cujo sentido permaneceu sob
recalque. Este efeito se produz pela intervenção não apenas dos temas
da história velada do sofrimento, mas pelo modo repetitivo em que se
arranja o tempo da alegoria barroca, por sua capacidade de inverter a
dimensão escatológica do tempo da experiência histórica com a qual a
alegoria barroca polemizava.
A dimensão temporal da estrutura da alegoria é outra de suas facetas
que lhe confere um papel importante em nossa argumentação. Para isso
chama a atenção Man (1969/1986), retomando a discussão sobre símbolo
e alegoria. Em sua dimensão temporal, pela temporalidade que a alegoria
instaura na escrita literária, ela combate qualquer “desejo de coincidência”
(p. 207) do símbolo. A repetição (kierkegaardiana, segundo Man), em que
consiste o procedimento alegórico de significação, é que é não coincidente.
Juntamente com a alegoria, a ironia (que o próprio Man tem dificuldades

117
Alegoria da angústia

em distinguir da primeira) destrói a pretensão mimética da literatura, de


representar organicamente o mundo da vida (talvez evocando o “imundo”
lacaniano); a alegoria, especificamente, o faz, dando duração ao que não
tem e fazendo colapsar o “tempo imaginário” (MAN, 1969/1986, p. 225)
da experiência subjetiva.
Azevedo (2001b) nos faz notar que a alegoria detém a propriedade
de realizar quebra de unidade no registro literário, pela intrusão da des-
continuidade em seu registro. E isto não implica apenas algo concernente
à literatura, mas sugere consequências de maior alcance, a saber, que a
alegoria pode fazer funcionar a articulação entre inconsciente, escrita e
temporalidade, especificamente em acepção lacaniana (AZEVEDO, 2007).
Ora, é por esta dimensão, a do tempo, do tempo da repetição, portanto,
em sua dimensão anafórica, tão própria à alegoria, que a escrita literária
remete à pulsão (FERREIRA, N. P., 2007), que ela escreve a pulsão como
gramática.
Para esclarecer de que modo a escanção do tempo operada pela
alegoria na literatura é importante para compreendermos a escrita da
pulsão, é preciso visitar a escrita lacaniana tal como ela é apresentada
em seu seminário, R.S.I. (LACAN, 1975). A pulsão, podemos dizer as-
sim, não coincidindo com o corpo, é o que parte do corpo, como uma
perturbação, um despertar, sendo algo a que lhe resistem o simbólico e
o imaginário. Nesses outros registros operam formas de defesa contra
essa perturbação do corpo como excesso. O que faz furo e ex-siste
ao real, Lacan (1975) o nomeia como “vida” e, no que isso se projeta
(KAUFMANN, 1996) sobre o registro imaginário, assume a forma de
angústia. Como nos faz notar Rabinovich (1995/2005), trata-se aí de
acúmulo energético, portanto, da angústia traumática, e se ela invade
o psiquismo no registro imaginário é porque faltam ali, para garantir
a possibilidade de tramitação pulsional, condições para a produção de
objetos contornáveis pela pulsão, para a sua satisfação. Trata-se de uma
vacilação da operatividadedai(a). O caso de Joyce é paradigmático: o
que vacila é algo da ordem da imagem do corpo – de que ele diz que

118
Hugo Juliano Duarte Matias

cai – e dos modos pelos quais se poderiam organizar os afetos – como


sustenta Lacan (1976/2007). A escrita de Joyce é algo do que ele faz
com a angústia (RABINOVICH, 1995/2005).
Agora vejamos: no texto sobre o tempo lógico, Lacan (1945/1998)
menciona o que seria a forma ontológica da angústia na moção suspen-
siva que introduz o momento de concluir – “por medo de que” (Lacan,
1945/1998, p. 207) – do qual brota um ato de afirmação contra um
risco de aderência a uma posição imaginária de objeto, isto é, contra o
risco de sua passivização. Em outro momento, Lacan (1974) desenvolve
a formalização de seu tempo lógico pelo recurso à lógica aristotélica,
especificamente, pelo recurso às categorias do possível e do necessário.
O possível se refere à contingência da verdade, sob a condição de sua
verificação posterior. Ao mesmo tempo em que introduz uma duração,
uma dilatação da experiência de relacionar-se com a verdade, também
testemunha o seu fracasso. Porge (1998) bem aponta o fato de que essa
categoria corresponde ao tempo de parada do sujeito no sofisma, sen-
do o que cessa, na verdade, o que cessa de se escrever, o que hesita em
seu ato, em sua formalização. Já o necessário não se relaciona com a
verdade, por tornar o seu conceito completamente trivial. Relaciona-se
com a certeza (verdade ≠ certeza), na medida em que organiza todo o
campo do possível em simultaneidade. Desse modo, o necessário é a
abertura da experiência a todo o possível e condiciona a partida, um
ato de antecipação contra o risco de identificação imaginária, contra
o risco de aderência à posição desolada de mero objeto. Em seu jogo
de palavras pelo que articula escrita e tempo, o tempo duplo, o tempo
dois, do possível e do necessário, Lacan (1974) identifica o que cessa de
se escrever ao possível e o que não cessa de se escrever ao necessário,
e o modo como o impossível do real faz aí a sua aparição pelo tempo
da expectativa, a saber, que o real é o possível à espera de que se lhe
escreva (LACAN, 1977).
A figura abaixo situa na escrita borromeana de Lacan o que pre-
tendemos indicar.

119
Alegoria da angústia

Figura 13

O perto-longe, a descontinuidade introduzida pela alegoria na tempo-


ralidade da escrita literária, tal como sugerem Man (1969/1986) e Benjamin
(1925/1984) é homóloga ao tempo lógico da experiência subjetiva, tempo
da pulsação parada-partida. Do mesmo modo, em ambos os casos, a an-
gústia participa como expectância e trabalho de antecipação, um trabalho
de decomposição de posições imaginárias pelo recurso da intervenção do
tempo sobre o simbólico. Assim o percebeu Bloom (1973/2002), para
quem a literatura, no seu sentido mais apropriado, “é a angústia realizada”
(p. 23, grifo nosso), só mesmo eventualmente produzida por pessoas an-
gustiadas. A literatura é angústia realizada porque se constitui como escrita
com valor de trauma, ao mesmo tempo em que, assim, torna possível que
haja desvios, transformação da potência que ela antecipa. Nesse processo,
a escrita opera a decomposição da fala, realiza um forçamento do sentido
que ela articula, na região em que se sobrepõem imaginário e simbólico
(LACAN, 1975), o que podemos tomar como válido para a escrita de
Joyce e também para a própria escrita borromeana (LACAN, 1976/2007).
Este é um princípio importante da última versão da estética laca-
niana – se é que se pode falar disso. Para introduzir as estéticas lacanianas
como estéticas do real, Safatle (2006) parte da versão oferecida por Lacan da
pulsão de morte freudiana. Lacan a transforma, alterando a ideia de morte:

120
Hugo Juliano Duarte Matias

em vez de retorno puro e simples ao inanimado, ele sugere a autodestruição


da identidade em sua natureza de autocoincidência simbólico-imaginária.
Esse é um processo de subjetivação que a sublimação viabilizaria. Então
Safatle (2006) sugere em Lacan três protocolos de sublimação, dentre os
quais o último, a literalização, consiste justamente em um trabalho do
simbólico com o real como impossível, nada mais do que um “modo de
formalização da irredutibilidade do não conceitual, como pensamento da
opacidade” (SAFATLE, 2006, p. 274). Cumpre papel chave nesse protocolo
o que Lacan (1975) chama nominação.
Qual o papel da nominação na discussão que Lacan (1975) levanta
no contexto de sua escrita do real, isto é, dos seus nós? É que haver três
cordas, real, simbólico e imaginário, não basta para que haja uma cadeia,
para que haja realidade psíquica. Um quarto termo é necessário para dar
estabilidade à estrutura das três cordas, para o que ele propõe o Nome-do-
-Pai. Rabinovich (1995/2005) levanta a hipótese de que essa intervenção
do Nome-do-Pai se realizará sempre pela operação do S1, como pai do
nome. No entanto, desde que essa operação do S1 tem mais de um modo
de ocorrência – esse é um dos mais fundamentais ensinos de Joyce à psi-
canálise – fala-se então em nomes do pai, tudo aquilo que funciona como
quarto termo, que faz furo e produz o enodamento entre real, simbólico
e imaginário. Rabinovich (1995/2005), em seu catálogo dos nomes do pai
cita o Complexo de Édipo, a realidade psíquica, o sinthoma, o fazer-se
um nome e o ego. Cada um deles realiza nominação, funcionando como
quarto elemento, e dentre eles – a escrita enigmática de Joyce o ilustra –
há os que se realizam pelo recurso à escrita como literalização. A figura
abaixo indica que a escrita, uma escrita que é enigma (E-e) sustenta um S1,
o qual, por sua vez, ordena toda a cadeia.

Figura 14

121
Alegoria da angústia

Aqui poderíamos situar uma diferença importante entre metáfora e


alegoria: a metáfora, na referência que já conhecemos, permite a possibili-
dade de significação pela troca de valor entre os significantes (sua substitui-
ção), assim como condiciona o deslocamento de libido de um significante
a outro. É o que sustenta o simbólico como cadeia, e o seu paradigma é a
concatenação. Concatenação e enodamento não são a mesma coisa. Para
que haja enodamento é preciso que haja furo (GRANON-LAFONT,
1990), esse furo que opera como o impensável. Há um pensamento opaco
na angústia, há uma nominação que concerne à angústia: a angústia é a
nominação do real (LACAN, 1975), talvez a nominação desse real que é
o Outro (LACAN, 1963/2005a, p. 366), o gozo do Outro sexo, com o
qual não há relação possível. Assim é que “nomear é sublimar... abrir pas-
sagem para si numa via obstruída” (ANDRÈS, 1996, p. 373). O trabalho
de angústia é trabalho de passagem que opera numa falha entre simbólico
e imaginário. Por isso a nominação do real é que é angústia, como se vê
no patema13 lacaniano. O nomear (nominação do real, Nr) opera como
quarto elemento, necessário para enodar os três registros do simbólico,
imaginário e real (figura 15).

Figura 15

Consideremos que os três registros – imaginário, simbólico e real


– correspondem, respectivamente, ao sentido, ao duplo sentido e ao
fora-de-sentido. A nominação do real como angústia consistirá numa
invasão do fora-de-sentido sobre o sentido, um modo de forçamento à
13 Muito embora seja mais conhecida na terminologia psicanalítica de orientação laca-
niana o termo matema, aqui seguimos a proposta de Rabinovich (1995/2005), que fala
também em patema.

122
Hugo Juliano Duarte Matias

desidentificação, e isso configura situação traumática (COUTINHO JOR-


GE, 2007). Por outro lado, com isso, essa invasão introduz um enigma (E-
e
), o que condiciona algum ressarcimento ao simbólico de sua capacidade
de equívoco, pela decomposição da fala, pela violência à homeostase da
significação e das formas canônicas e sedimentadas da linguagem.

Figura 16

Por seus efeitos sobre a possibilidade de constituição de sentido, por


sua temporalidade, a angústia opera como alegoria do trauma, do mesmo
modo, como temos sugerido, que o sexual opera como alegoria da morte.
Se essas operações de alegorização são possíveis é porque, em algum ponto,
se realiza um desvio, um metabolismo pelo mecanismo da projeção. É
assim que tanto trauma como morte podem ser literalizados. Não o real,
mas a realidade externa, da qual sabemos não ser exatamente externa, é
também assim construída pela nominação angustiada e do mesmo modo
transformada, siderada, pelo princípio alegórico que opera na escrita.

123
Hugo Juliano Duarte Matias

A ANGÚSTIA NA LITERATURA1

É chegado o tempo de submetermos o modelo até aqui desenvolvido


a algum tipo de teste. De maneira muitíssimo esquemática, dissemos da
angústia que ela protege do trauma porque permite ou cria condições para
algum domínio e conquista do aparelho psíquico sobre o real da pulsão, e
ela o faz impondo ao aparelho uma exigência de trabalho que é o da me-
diação entre perda e ganho, falta e excesso. Esse é, portanto, um trabalho
de memória, mas também de projeção. Sendo ainda, mediação entre perda
e ganho de sentido, a angústia faz efeito sobre o campo da linguagem.
Também a linguagem, ou mais precisamente, alguns experimentos em lite-
ratura, mimetizam a função da angústia, isto é, que assim como a angústia
faz algum trabalho de memória e construção na lida com o real da pulsão,
a literatura retorna ao fora-de-sentido, faz violência à própria linguagem,
pelo que lhe traz renovo e nela reinsere um elemento de vigor. A alegoria,
como instrumento teórico, nos permite formalizar todas essas operações:
a angústia alegoriza o trauma, e certa literatura alegoriza a angústia. Nos
serviremos da literatura de Osman Lins para uma avaliação deste modelo,
na verdade, para formalizá-lo, dar a ele maior inteligibilidade.
É preciso dizer as razões da escolha da literatura de Osman Lins.
Mais de uma vez, acerca de sua obra, ele afirmou se tratar de um trabalho
ao mesmo tempo de resistência e descoberta. Na conjuntura dos anos
60 e 70, em que ponderar o lugar da arte da narrativa parecia necessário
e urgente, o seu projeto literário se deparou com um embaraço fun-
damental, uma crise de representação, o que o fez empreender, dentre
outras aventuras, um retorno à estética medieval. Nesse processo se
fizeram notar não apenas efeitos sobre a estrutura narrativa de sua obra
mais importante – “Avalovara” (LINS, 1973/2005) – mas também “uma
maneira muito peculiar de apreender o belo e de alegorizar o mundo”
(DALCASNATAGNÉ, 2000, p. 63). Estes são os termos em que a
1 As incursões ao mundo da narrativaosmaniana, aqui apresentadas, devem demais, no
que acertam, às proveitosas conversas com a Profa. Dra. Elizabeth Hazin, do Departa-
mento de Teoria Literária da UnB, pelo que somos muito gratos.

125
Alegoria da angústia

crítica tem recebido essa obra, como um testemunho das “origens poéti-
cas romanescas” (ANDRADE, 1987, p. 178). O movimento de retorno
não se reduz, como se poderia supor, somente aos temas da narrativa
medieval, nem mesmo aos seus recursos formais – o que não deixa de
assumir grande importância. Na verdade, parece tratar-se de uma rever-
são ao que havia de mais primordial nessas origens, a saber, a intensa
força criativa resultante do empenho em lidar com o “desconcerto do
mundo” (LINS, 1979, p. 146).
O imaginário medieval era povoado de pensamentos acerca do
desconcerto do mundo. Disso é um memorável exemplo o Floreba tolim
studium2 – trecho das Carmina Burana. Aliás, o poema de Camões – Esparsa
ao desconcerto do mundo3– também desenvolve o mesmo tema. O tema do
“mundo às avessas”, como comenta Curtius (1948/1979), presente em
toda a literatura da Idade Média, é indispensável para compreender o
particularíssimo progresso das letras nesse período, já que boa parte das
grandes conquistas formais herdadas pelo romance que conhecemos se
operou como resistência e combate imperioso ao desconcerto. O trabalho
de escrita – isto é fundamental para a compreensão da estética medieval
– era um trabalho de conquista e ordenamento, um trabalho de ligação,
podemos dizer, entre os elementos mais aparentemente dessemelhantes,
entre as forças mais imperiosas e desproporcionais, as quais ofereciam
risco à própria vida, no contexto da Idade Média. Tal ânimo de domínio
se faz notado nas diversificadas e abundantes formas de metaforismo,
tão recorrentes e, em certa medida, estruturantes em Avalovara, como o
metaforismo náutico – que concerne à conquista dos caminhos das águas,
nos mares e nos rios – ou o metaforismo livresco – por exemplo, da escrita
como trabalho de sulcar a terra, trabalho de inseminar a experiência e,
com isso, produzir algo.
2 “Outrora o estudo florescia”.
3 Os bons vi sempre passar/ No mundo graves tormentos;/ E para mais me espan-
tar,/ Os maus vi sempre nadar/ Em mar de contentamentos./ Cuidando alcançar as-
sim/ O bem tão mal ordenado,/ Fui mau, mas fui castigado:/ Assim que só para mim/
Anda o mundo concertado.

126
Hugo Juliano Duarte Matias

Em Avalovara, navios e livros são imagens importantes, centrais e


eloquentes, metáforas que estruturam o questionamento do gênero roma-
nesco nesta obra. A operação desses dois metaforismos aqui é o confronto
da própria ideia de romance com os seus limites (Matias, 2013). Eles se
fundem, ou se unem, no metaforismo da escrita como viagem, a grande
figura-símbolo nesse texto, disseminada por toda a sua extensão e virtual-
mente presente em cada um dos eixos narrativos (HAZIN, 2010). Muito
mais que isso, sugere Hazin (2010), a ideia de viagem oferece elementos
para que se pense Avalovara em termos de gênero literário. Não que sirva
para decidir o gênero a que pertence, mas certamente “viagem” é o feitio
dessa obra, dessa escrita. Algo muito presente nas influências contraídas
pela escrita osmaniana, segundo a proposta de Nitrini (2010). Para ela,
Abel, personagem agregador da narrativa em questão, é feito da mesma
matéria de Dante – personagem em sua própria Divina comédia – Werther
– personagem que nomeia a obra de Goethe – e o capitão Ahab – de Moby
Dick, escrita por Melville. São personagens cada um deles comprometidos
com a busca do inapreensível.
Todas essas metáforas, todos esses metaforismos, ao mesmo tempo
em que fazem avançar a narrativa, remetem aos princípios de seu funcio-
namento, pelo que, aos poucos, vão digerindo o próprio fundamento do
caráter de ilusão do texto. Neste ponto, o caráter alegórico da escrita em
Avalovara se torna mais evidente. Contudo não é apenas desse modo que
este texto se revela alegórico, como veremos.
Segundo Nitrini (2010), como poucos, Osman Lins empenhou esforços
em tratar o problema da escrita literária, e de maneira a participar, como um
elo importante, da cadeia de muitas empresas literárias já realizadas antes
dele. Também em função de sua pertença a uma tradição de muita força no
campo da narrativa, o impulso alegórico em Avalovara, do mesmo modo que
todos os outros recursos estilísticos de que se serve Osman Lins, não é, de
modo algum, gratuito. Muito pelo contrário, a alegoria se constitui, podemos
assim dizer, num princípio estruturante das tentativas de conquista empreen-
didas por este autor justamente do que resiste e sempre resistirá à literatura.

127
Alegoria da angústia

Como sugere Hewitt (1984), o problema de que ele trata é o mesmo que
concerne o mais intimamente possível à literatura, a saber, a relação entre as
palavras e o que elas não podem dizer. Essa questão é radicalizada na obra e,
principalmente, no modo como ali é abordada, pois a tensão entre o exterior
e o interior à linguagem é feita motor da composição poético-narrativa em
Avalovara. Não apenas isso, pois essa tensão não deixa de aparecer inclusive
na superfície do texto, o que deixa a obra algo opaca. Por esta razão, até
certo ponto, não analisável. Pelo menos não se pode analisá-la sem desfazer
o trabalho que Osman Lins pretendia que sua escrita realizasse. O próprio
Osman Lins nos adverte sobre a tentativa de esclarecer seu texto, dizendo
que seria equivalente a reelaborar o texto de um sonho, pelo que o texto
perderia seu vigor originário, sua conexão à fonte mesma de sua própria
vitalidade (LINS, 1979). Aliás, o caráter aparentemente confuso, compósito
e, ao mesmo tempo, a exuberância da paisagem semiótica do texto – o que
o assemelharia ao sonho – é uma característica que, ao mesmo tempo em
que faz de Avalovara um híbrido, conecta esta obra às demais obras de arte
contemporâneas, a sua diversidade genética (PINTO, 2007).
O hibridismo dessa obra ainda não foi totalmente explorado, tampouco
o será aqui. Contudo, nossa análise de como este empreendimento literário
imita o funcionamento da angústia – este é nosso propósito – se fará pela
investigação de como ali se constroem principalmente duas dimensões tão
essenciais à estética literária. É tão antiga quanto conhecida e importante a
distinção, proposta por Lessing (1766/1998), segundo a qual a estética da
pintura se define por sua natureza espacial, assim como a da escrita concer-
ne ao tempo. Pois bem: em Osman Lins, tempo e espaço são essenciais às
pretensões estéticas da escrita, mas não funcionam como se poderia esperar.
Cada uma dessas dimensões é redefinida, reconquistada para a escrita, e a
relação entre as duas é subvertida (FRITOLI, 2006). Nestas duas dimensões
exploraremos – à maneira de viajantes – o texto de Avalovara.
Toda aproximação ao romance aqui investigado depende, como
pretendia o seu autor, de que o consideremos em duas dimensões, que ele
definiu no próprio âmbito da forma do texto pelas figuras da espiral e do

128
Hugo Juliano Duarte Matias

quadrado: a espiral figura a força pulsante e recorrente do tempo, como


algo a ser perseguido e colonizado pela significação. Cumpre esse papel,
na estrutura da obra o quadrado. Por sua vez, o quadrado figura o espaço,
serve para ordenar, setorizar, formalizar as diversas voltas do tempo. A
quadratura funciona como ponto de basta para a atividade da palavra que
inscreve o tempo e a sua força que move. O quadrado é dividido em 25
quadrantes menores, preenchidos com letras de uma frase palindrômica4:
SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Nos informa o autor que
esta frase pode ser traduzida como “O lavrador mantém cuidadosamente
a charrua nos sulcos” ou “O lavrador sustém cuidadosamente o universo
em sua órbita” (LINS, 1973/2005, p. 36). Nos dois casos, a frase se refere
à posse e ao domínio, uma ideia que traduz o verbo central do palíndromo
– TENET – e esse é o propósito que deve cumprir o quadrado em relação
à espiral, cuja linha percorre todos os espaços do quadrado, cada um dos
quadrantes mais de uma vez. Cada uma das passagens da espiral por um
dos quadrantes, por uma das letras, constitui uma linha narrativa no texto
de Avalovara. Nessa passagem ela arrasta elementos de uma linha narrativa
para o interior de outra. É desse modo que se articulam essas duas figuras.

Figura 17

4 O palíndromo é a palavra ou frase que pode ser lida nos dois sentidos, da direita para
a esquerda e da esquerda para a direita, sem que mude o dito, sem deixar de ser a mesma
palavra ou frase.

129
Alegoria da angústia

Essa figura já poderia ilustrar com clareza a ideia de algo que imita
o funcionamento da angústia, um trabalho de inscrição, de conquista da
força pulsante, inscrição do tempo da pulsão no espaço do psiquismo.
No entanto, como veremos, isso que o rosto da obra, o seu esquema, já
prenuncia, toda a sua estrutura o revela com muito mais profundidade e
espantosa eloquência.

A fissura do espaço

Longe de nós resolver o enigma.


A tarefa consiste em ver o enigma
– Martin Heidegger

Se Avalovara pode ser reduzida – não diremos resumida – a um


movimento mínimo, trata-se da viagem de Abel, por muitos lugares, e
em diversos instantes de sua vida, em busca de sua fortuna, de seu bom
encontro. Isto envolve tempo e espaço: mas de que maneira? Com respei-
to aos espaços, eles são muitos, produzidos no interior do texto. Muitas
e frequentes são as descrições de paisagens ao longo do texto, as quais
são feitas pela alusão aos menores detalhes, com a mais viva referência à
realidade sensível. Pela qualidade de suas descrições é muito celebrado o
texto osmaniano, e disso o autor se ocupava, aparentemente, com o mesmo
esmero que os antigos poetas latinos que ele lia. Tomados em ornamen-
tar os espaços por eles construídos com proporção, harmonia, ritmo e
simetria, os espaços assim construídos não apontavam a realidade vulgar.
O princípio de montagem das cenas no romance envolve movimentos
de decifração e de cifragem. Realiza-se, na verdade, quase que como puro
exercício de composição e ornamento, e somente sob certa inflexão, só
algumas vezes, tais movimentos adquirem funções propriamente dramá-
ticas e muito raramente se deixam completamente absorver à função de
situar. Este é o caso da descrição do que o próprio texto chama “cena” e
“quadro”: o cais em T. Este é um lugar, um cais em forma de “T”, uma

130
Hugo Juliano Duarte Matias

locação totalmente gratuita na narrativa, e, ao mesmo tempo essencial.


Trata-se de um vislumbre dos personagens – podemos dizer – principais:
Abel e 5. Ali, o autor se exercita na construção de uma bela hipotipose:
uma figura de retórica que envolve a capacidade do texto para evocar
imagens à memória pela alusão linguajeira. Se quisermos, uma espécie
de alegoria. Para ser efetiva, ela deve ser executada de maneira clara e
vigorosa, e a ela se opõe a diaptose: quando o texto, em função de sua
frouxidão, inadequação e prolixidade, é incapaz de evocar com vividez
essas imagens. A diaptose, portanto, consiste no fracasso da linguagem
em organizar a imaginação.
Trata-se, na hipotipose, da conquista, pela palavra, da imagem?
Talvez em algum lugar, mas não exatamente no modo como Osman Lins
se serve desse recurso. Segundo E. M. A. Ferreira (2007), há uma ambiva-
lência fundamental na ecfrase6 de maneira geral, o que pode ser aplicado
à análise do texto osmaniano. A ecfrase ao mesmo tempo representa as
tendências contrárias de iconofilia e iconofobia da escrita literária.
Voltemos ao texto do cais em T. Em vez de uma topografia desagre-
gada, Osman Lins nos oferece à imaginação sugestões bem construídas na
proporção de suas partes, na simetria que o texto enfatiza diretamente, assim
como ocorre com o ritmo da cena que surge etc. A perfeição imagética da
cena vai muito além da precisão das descrições de que é feita: ela consiste
também na submissão da imagem evocada aos princípios da montagem
do espaço da representação visual – fala-se em distribuição harmoniosa
de pesos, linhas de força que atraem a cena e os seus personagens para
ocuparem lugares precisos e bem distribuídos sobre os eixos dessa cena.
O equilíbrio rigoroso da imagem produz uma inquietante estranheza nos
personagens que a contemplam, os quais suspeitam do que veem. Os
próprios personagens da cena parecem hesitar e tentar resistir à ordem
que a estrutura da cena impõe, à medida que é desenvolvida, elaborada e
evolui durante a narrativa.
5 Esta personagem não tem nome a não ser este, o símbolo “ ”.
6 A fórmula linguística que realiza a hipotipose.

131
Alegoria da angústia

E. M. A. Ferreira (2007) se refere a esse procedimento como meta-


linguístico, pretendendo dizer com isso que Osman Lins realiza uma crítica,
interna à linguagem, de seus próprios limites: um sujeito da linguagem
tomando a linguagem como objeto. Isso produziria uma dessacralização
dos efeitos não notados da linguagem sobre a possibilidade de representa-
ção. Não pode ser isso. De fato, a cena descrita do cais em T perde o seu
caráter aurático pelo simples fato de ser elaborada, não diante dos olhos,
mas diante da leitura/escuta do leitor e dos personagens. Não obstante, ao
mesmo tempo ganha algo, pois o ritmo da escrita, a proporção com que
ela se desenvolve, a sua vibração intrínseca às palavras e sua montagem,
recuperam algo para a própria linguagem. O procedimento de desfazer/
refazer o espaço pela linguagem visa a garantir para o leitor algo como
uma restituição: trata-se da intuição de que o espaço ordenado é efeito
de uma “nostalgia”.
Assim, de modo algum é apenas uma denúncia contra a linguagem, o
que realiza Osman Lins, com pretensões de dizer a verdade sobre o logro
da linguagem. No horizonte disso estaria a transparência da linguagem por
efeito de uma referência a ela exterior, e isso é o contrário do que parece
buscar Osman Lins. Ou ainda, depurar a linguagem de seus problemas
de representação, curá-la. Desde o lugar da linguagem, realizar isso seria
impossível, e outro lugar para isso não existe. A linguagem como ins-
trumento não serve a esse propósito, do mesmo modo que a linguagem
como objeto seria opaca a essa intenção. O alcance do que pode ser feito
do espaço na literatura é este, “não há nenhum espaço real. Trata-se de
uma construção puramente verbal soletrada em três dimensões” (LACAN,
1976/2007, p. 83). Não se pode corrigir o espaço literário por referência
ao espaço real. Por outro lado, “não existe metalinguagem” (LACAN,
1966/1998, p. 882). Não se pode corrigir o espaço literário por referên-
cia aos índices da própria linguagem julgados pelos critérios de verdade
da própria linguagem. O efeito da escrita osmaniana é reinserir o espaço
literário no circuito de sua reconquista da experiência, isto é, combater a
inércia da representação.

132
Hugo Juliano Duarte Matias

Outros meios são ainda acionados. Ecfrases que operam de maneira


totalmente diferente, mas com efeitos semelhantes. Há cenários que impli-
cam, muitas vezes, certa inconsistência em sua montagem, o que pode ser
visto como defeituoso, e até o próprio mecanismo de seu engendramento,
abrupto, no espaço poético diversas vezes desfavorece as condições de
sua verossimilhança.
Assim, eu escapo e volto à igreja... Atraem-me, antes, o fogo
e os bichos que existem lá dentro. O fogo das velas, do azeite,
do incenso. A pomba que esvoaça de um vitral para outro, a
tainha nova que se move e nada na pia batismal, o carneiro
que bale entre as pernas das pessoas, o touro que não sei
onde muge e que espero descobrir, a águia cuja cabeça
impiedosa se ergueu no púlpito um instante, dardejando-me
com seu rude olho onde brilha o reflexo dos fogos, o leão
invisível que está deitado por baixo de algum banco e do
qual eu sinto o cheiro forte, um cheiro semelhante ao que
há no Martinelli (LINS, 1973/2005, p. 133).

Este trecho ocorre numa sequência de descrições que definiremos


como realistas somente em oposição ao estilo fantástico ou maravilhoso,
já que se sustentam num acordo entre autor e leitor de compartilharem
a mesma realidade com os mesmos elementos. Contudo, sem que nada
proponha uma mudança de acordo ou se insinue como uma solicitação de
concessão por parte do leitor acerca de aspectos da realidade partilhada, a
sequência toma um rumo totalmente inesperado. Num primeiro instante,
elementos como esses que ocorrem na sequência mencionada sugeririam
uma interpretação alegórica comum, algo que é muito rapidamente frus-
trado. A decepção aqui poderia funcionar segundo a proposta de Todorov
(1981), como índice de uma anti-alegoria. Em sua análise de O Nariz (de
Gogol), Todorov (1981) sugere que ali o nariz que se desprende e age, ao
mesmo tempo em que não causa nenhum assombro nos outros perso-
nagens da narrativa, sem que nenhuma explicação possa dar conta disso,
funciona simplesmente como um absurdo, algo com que o autor aponta
a falta de sentido. Osman Lins não pretende indicar falta de sentido, mas
do que é feito o sentido, ou melhor, em relação a que se produz o sentido.
Descrições assim, difíceis de serem refeitas em termos de uma
imagem coesa, organizam relações inesperadas entre o próprio romance

133
Alegoria da angústia

e a realidade. Elas desafiam sua própria relação com o real, descrições “de
alguns fragmentos à deriva na explosão do mundo... simulando coerência e
mesmo certo caráter augural”, mas organizados “segundo as leis da narrativa
e com precisão de todo improvável” (LINS, 1973/2005, p. 119). O espaço
em Avalovara não visa à realidade e também não a rejeita, mas a ultrapassa,
atravessa, propondo efeitos outros, obtidos com os mesmos procedimentos
de representação que poderiam servir para indicar a realidade. No caso do
romance aqui em questão, trata-se, na verdade, de hipérboles da realidade,
as quais pretendem produzir uma atitude contemplativa. Desse modo, o
mundo da ficção não dispensa o mundo da experiência; pelo contrário,
aquele é dependente deste, pois as condições de verossimilhança que
oferece ao mundo da experiência são condição para a realização da
inverossimilhança da ficção como realidade ficcional. Essa tensão entre
os dois mundos, que tende a ser eliminada na narrativa canônica não é,
aqui, em momento algum, eliminada; ao contrário, ela é valorizada por sua
virtude de oferecer as condições pretendidas para que a própria realidade
da experiência seja revisada. A representação, desse modo, conta com a
contradição e instabilidade entre expressão e significado.
Uma terceira forma de construir o espaço literário, em Osman Lins,
concerne ao modo como são construídos os seus personagens e a relação
deles como espaço. A técnica utilizada por Osman Lins faz uma referência
ao maneirismo de Giuseppe Arcimboldo, pintor milanês do Século XVI
muito conhecido por pintar rostos humanos em hábeis composições
feitas de outros objetos, como frutas e flores, animais, outros objetos
inanimados, fragmentos do espaço físico etc. Do mesmo modo, Osman
Lins produz alguns personagens encarnando-os como figuras compósitas:
Cecília feita de personagens, Roos feita de cidades e feita de palavras.
Vejamos um exemplo da representação osmaniana de seus personagens
e de sua relação como espaço: “O gato com cabeça de macaco e que ela
traz no corpo desde o nascimento salta para a tábua de engomar” (LINS,
1973/2005, p. 113).

134
Hugo Juliano Duarte Matias

Trata-se de uma referência ao gato que compunha o corpo da perso-


nagem Gorda, mãe do personagem Abel. É uma referência ao gataco – gato
com cabeça de macaco. Comenta E. M. A. Ferreira (2003) ser este um
ornamento com função icônica, à maneira das iluminuras que ocorriam
nos livros medievais. A figura do macaco, nessa iconografia, designava a
advertência quanto à dubiedade da representação, neste caso, uma adver-
tência quanto à natureza do corpo, da figura dos personagens que ocorrem
em Avalovara. O corpo dos personagens nesta obra não é feito segundo
os preceitos canônicos que definem a literatura moderna, sua construção
é regida por uma espécie de princípio grotesco, que estabelece a abertura
e indefinição desse corpo. É desse modo que um gato com cabeça de
macaco (figura já grotesca o suficiente para ilustrar esse ponto), pode
fazer parte do corpo de alguém e ainda saltar desse corpo na cena acima
aludida, como se desse corpo se desprendesse o que já seria difícil de ser a
ele atribuído. Por essa razão, um corpo assim montado se desmonta com
facilidade. Isso liberta a linguagem do corpo em Avalovara. Os corpos
desses personagens não são corpos miméticos, antes, sua configuração é
antimimética e justamente na medida em que sua linguagem, a linguagem
desses corpos, é logológica.
A indiferenciação dos corpos produz efeitos importantes: seu coro-
lário é a problematização da diferença sexual. A personagem Cecília tem
feições andróginas e a personagem é nascida duas vezes, ambas figuras
da dubiedade sexual recorrente em Avalovara, algo que contagia e se dis-
semina, atingindo outros elementos da narrativa e do mundo do texto. É
assim que o texto leva a crise da representação ao limite da sustentação
imaginária pela transformação das redes simbólicas de base. O que a lín-
gua estabeleceu como referência é subvertido em nome de um efeito, o
regresso à sua própria autonomia delirante. Como já nos advertia Lacan
(1973/1983), a escrita surge no pathos do discurso, em sua incapacidade
para estabelecer a diferença sexual, é aí que incide a linguagem do retorno
em Avalovara, do retorno contra si mesma. A escrita da diferença sexual
é sempre alegórica, alusiva, gorada, como mostra o texto osmaniano.

135
Alegoria da angústia

Note-se como a indiferenciação contagia as palavras em torno dos corpos


dos personagens:
Pequenos animais, leves como palavras, voam em torno de
mim e de Cecília ou passeiam em nossos corpos: aranhos,
grilas, formigos, efeméridos, vespos, vagaluzes, cantáridos,
escorpiãs... Planam em cima de nós como se fossem ala-
dos, bichos do chão e da água: rãos, lontros, peixes-vacas,
emos, búzias, tartarugos, camarãs, arraios, lesmos, calangas,
suçuaranos... (LINS, 1973/2005, p. 267-8).

No ato sexual narrado abaixo, o olhar é o objeto decantado do pro-


cedimento regressivo da escrita osmaniana ao miolo da representação, isto
é, no espaço lógico desenhado pela escrita de Osman Lins, ele, o olhar,
arrebata o seu lugar. Se os corpos não têm limites, se a objetividade do
espaço geométrico foi suspensa pela locação imprevista dos ornamentos
e a sequência disruptiva das descrições e ecfrases, aos personagens são
possíveis os deslizes segundo as vicissitudes do desejo. O personagem não
é mais uma baliza, o narrador também não, a perspectiva é indiscernível
porque a representação não tem um centro nem um princípio regulador
unificado. Ora, se a cena do mundo ganha estabilidade desde uma perspec-
tiva sexuada, sem essa perspectiva, o mundo se transforma numa coleção
de fragmentos, de posições intercambiáveis. Note-se como pulula o olhar
nisto que não pode mais ser um quadro.
Vejo-me, primeiro, durante o breve momento em que Ce-
cília, cravando os dentes no meu ombro, ordena rouca:
“Mais!”. Vejo-me à sua frente, ambos de pé e nus. Ela
segurando uma orquídea contra o peito raso, ostenta o
membro sedoso e desejável; sinto, eu, com o peso dos
seios, o peso de ser fêmea e espero que Cecília me penetre.
Meu pai, alegre, protege-nos com um pálio escarlate e traz
no ombro um garço. Vejo-o com o pálio e a ave, vejo-o
através dos meus olhos e também com os seus nos vejo
(Lins, 1973/2005, p. 267).

Como nos lembra Dunker (2006a), no seminário sobre a angústia,


Lacan (1963/2005a) inscreve o trabalho com esta função em uma teoria
da corporeidade. Se há desejo é porque há corpo, e se há corpo, é desde
sempre referido à fala. O corpo é a entidade fantasmática, agregada, que
é movida pelos afetos, de que a angústia é um dos seus tipos. O corpo
é possível porque algo é perdido e cedido, um elemento impertinente à
136
Hugo Juliano Duarte Matias

possibilidade de sua organização imaginária, isto é, o que não pode passar


à imagem, à imagem unificada e pacífica do corpo-Eu: o que se perde
produz um resto no simbólico e o que é cedido, trata-se de um objeto real,
objeto da angústia, o mesmo que comparece na fantasia. Antes do corpo,
isto é, antes da perda e da cessão, é a carne. A angústia é uma entidade
mediana entre corpo e carne, fazendo báscula entre os dois, do mesmo
modo que entre o espaço e o que também lhe é anterior. Ora, “antes do
espaço, existe um Um que contém a multiplicidade como tal” (LACAN,
1963/2005a, p. 247), e este é o tema até aqui tratado na construção da
topologia da escrita osmaniana. O espaço indiferenciado, a carne em vez
do corpo, é isso que está no horizonte da escrita.
Lacan (1963/2005a) menciona como paradigma dessa indiferenciação
o Avalokiteshvara, um bodisatva que esbarrou, no caminho para a ilumi-
nação, em seu interesse e amor pela humanidade e sua salvação, que por
esta razão se multiplicou em 33.333 versões de si. Ele expôs, no seminário,
ilustrações da estátua do Avalokiteshvara que ele visitou em Kamakura, no
Japão, e que lhe chamou a atenção pela ambiguidade: não se pode saber,
pela forma da estátua, para onde apontam seus olhos, não se pode saber
se é homem ou mulher. É uma figura da multiplicidade na unidade, que
Lacan (1963a/2005) sugere servir para designar alguma dimensão do desejo,
justamente na medida em que o seu sexo é “psicologicamente indetermi-
nável” (p. 251). Avalovara, palavra que nomeia o texto de Osman Lins, é
uma redução do nome desse mesmo bodisatva. No texto, é um pássaro
feito de pássaros que visita alguns personagens em momentos cruciais e
cumpre o papel de alertar para o grande tema alegórico que se desenvolve
no romance, assim como o seu princípio estruturante.
O trecho acima aludido, à maneira da composição da multiplici-
dade na unidade, revela a estrutura do fantema da cena originária, isto é,
a estrutura mínima de articulação da fantasia que, neste caso, configura
a fantasia de ser possuído e devorado por um olhar mântico (HARARI,
1997), o olhar mântico de Cecília (LINS, 1973/2005, p. 217), tornado
cena na narrativa do personagem Abel. Consideremos a ligação entre

137
Alegoria da angústia

Cecília, feita de animais (leões, principalmente), com a sua mãe (cujo cor-
po comporta um felino-símio), ambas mulheres fálicas – a androginia de
Cecília e, com relação à Gorda, seu ofício e desejo de puta, assim como
sua posição de chefe da família. Além do mais, a hostilidade da Gorda por
Cecília denuncia transitividade entre as personagens. O pai de Abel, que
surge do corpo de Cecília e que, segundo o próprio Abel, não é carnal ou
imaginário (LINS, 1973/2005, p. 196), é feito olhar para o ato sexual de
Abel e Cecília. Todas as entradas são possíveis nesta cena, além daquelas
que já são discerníveis na superfície no texto. O próprio texto assimila
Cecília e Abel (LINS, 1973/2005, p. 268): assim, além de serem substi-
tuíveis a Gorda e Cecília, são substituíveis, Abel e Cecília. Como Abel,
possuído por Cecília, experimenta uma feminilidade “pesada”, talvez seja
plausível a transitividade entre a Gorda e Abel. Cecília e o pai de Abel são
intercambiáveis pelo simples fato de que ele habita o corpo dela. Por fim,
Abel e seu pai trocam de posição no texto da própria narrativa. Todas
as posições são possíveis e deslizantes. É, contudo, uma cena impossível
desde que o corpo é narcísico, como sugere Freud (1924b/1996).
O trabalho de escrita de Osman é um trabalho de reduzir o espaço
geométrico ao espaço indiferenciado, reduzir o corpo dos personagens
à carne. Por essa razão, seus personagens e o espaço de sua existência se
compõem como rébus, porque a sua linguagem transcritiva – como sugere
E. M. A. Ferreira (2007) – não pode atravessar tudo nesta operação de
passagem, nesta invasão pretendida do imaginário pelo real (ALLOUCH,
1995). A transcrição, como já vimos, implica uma invasão do real no
imaginário, e é um trabalho de angústia (LACAN, 1975). É um trabalho
de cifração pulsional (por isso não deixa de ter elementos simbólicos), é
também de feitura de “objetos literários”, marcos na escrita da mediação
pulsional. Ele introduz hipérboles, justaposições, figuras arcimboldescas,
composições logológicas de toda espécie, como ele mesmo afirma, fustigan-
do as palavras, jogando-as umas contra as outras e produzindo demônios
inesperados (LINS, 1973/2005, p. 197). Sua intenção é restituir à linguagem
romanesca àquilo que ela teria perdido/cedido em sua origem, o que fazia

138
Hugo Juliano Duarte Matias

dela “metáfora imperfeita e viva da Memória” (LINS, 1973/2005, p. 266).


Uma vez que ele leve a sua escrita a essa origem, ao Heim da linguagem
romanesca, não mais localizável, isto é, a morada que essa língua nunca
conheceu, a cena do mundo desvanece, figurada na morte de Cecília. Ali,
o desassossego (émoi) do corpo que não sabe o que fazer, o desassossego
do que, na verdade, é palavra.
Os dentros de Cecília estão vazios... fico de quatro pés,
ponho a testa no chão, enfio os dedos nas beiradas do
sedenho, e brado, cago, brado, clamo para o mundo, puto
soluçando, puto da vida, falo pelo rabo, blasfemo pelo rabo,
entre os dentes do cu que a terra come, cago no chão com a
boca, todo eu me transformo no esgoto do verbo, cagando
palavras mortas, cascas de palavras, dentro da morta, nem
eu próprio as reconheço, estranhas, falar é nada e ninguém
mais me ouve, eu não me ouço, ninguém mais, ninguém. O
mar bate nas pedras (LINS, 1973/2005, p. 291).

A operatividade do corpo como corpo [i(a)] manca. As suas bordas


desordenam-se. A escrita produz na carne dos personagens a anarquia dos
objetos que se excitam e não se podem conter.

A fissura do tempo

O tempo é a tardança do que se espera


– Martín Fierro

Como designado na retórica antiga, o efeito da ecfrase, quando ela


obtém êxito, é o que desde a antiguidade se chamava phantasía. Esta é uma
tradição que percorre toda a antiguidade clássica e que está presente nos
mais importantes retores de forma muito semelhante (RODOLPHO, 2009).
Ela fez sua entrada na retórica pela polêmica levantada por Platão, que
criticava o efeito, sobre o espírito humano, da aparência das representações
imagéticas. Não as condenava simplesmente, mas apontava o fato de que
a sua imediaticidade deveria ser questionada, criticada em sua condição
de remeter à verdade. Assim, na direção inversa do que se costuma pensar
da teoria platônica da aparência, segundo Marques (2005), para Platão, a
aparição é um modo do ser, mas um modo imediato, que carece de crítica

139
Alegoria da angústia

e, portanto, deve estar em suspenso, não por ser menos real, mas por não
ser suficiente ao conhecimento. Em sua obra contra os sofistas, Platão
apresenta a phantasía como um pathos do discurso. Conforme sua proposta,
quando o discurso é interrompido, se torna doxa, opinião; e se se mistura
aos dados do mundo sensível, à percepção, no âmbito do pensamento, se
torna phantasía (MARQUES, 2005). Há, portanto, uma dimensão temporal
essencial à relação entre a ecfrase e a phantasía na proposta platônica, a
qual pretendemos aproveitar.
Sem assimilar o pensamento platônico à psicanálise – considerando,
no entanto, a proximidade entre ambos – mas aproveitando as deixas que
ele oferece, investiguemos a relação da fantasia com o tempo e as conse-
quências disso para a representação. No modelo econômico do aparelho
mental que delineávamos anteriormente, a fantasia é efeito da interrupção
do trâmite pulsional sobre o pensamento. Ao mesmo tempo, ainda no
registro do ensino lacaniano, sabemos que também o discurso, principal-
mente o discurso, funciona no registro do tempo e necessita de um ponto
de basta, de uma interrupção, a função do nachträglich freudiano (LACAN,
1958/1999). O mesmo Lacan (1958/1999) nos lembra que a significação
não teria lugar na forma temporal da simultaneidade, ao lado de Freud
(1908b/1996), para quem a fantasia opera como um fio que costura os três
termos da experiência temporal e desdobra-os, passado, presente e futuro.
Segundo ele, uma impressão atual evoca a lembrança de um desejo não
realizado, cuja realização é projetada no âmbito da imaginação, do futuro.
Segundo a proposta de Freud (1920/1996), o teorema kantiano se-
gundo o qual o tempo seria uma forma prévia e necessária do pensamento
não se sustenta diante das descobertas psicanalíticas. O inconsciente, ele
o declara, é intemporal, num sentido em que o tempo não altera o seu
funcionamento, ou, ao menos, que o modo como os eventos inconscien-
tes se organizam subvertem nossa percepção corriqueira de tempo, de
modo que essa ideia de tempo não pode ser aplicada ao inconsciente. No
entanto, é certo que, ao menos de um modo, o tempo se faz contar pelo
inconsciente, isto é, a demora (FREUD, 1911/1996), que corresponde a

140
Hugo Juliano Duarte Matias

uma precipitação da energia pulsional no abismo da não-satisfação. Na


verdade, é quando o desejo pode ser reconhecido como tal, insatisfeito,
reinserido no ciclo de suas revoluções cada vez mais abrangentes. Parte
dessa energia é investida para organizar novas formas de experiência com o
mundo, o que marca a diferença entre o princípio do prazer e o de realidade,
o que engendra a experiência temporal como tal. Surge o tempo da espera
e da insatisfação, uma de suas formas lógicas é a sequência. Qual o lugar
do sujeito nesse processo? Freud (1911/1996) menciona que a própria
“escolha pela neurose” deriva do hiato entre a exigência de satisfação e as
formas de satisfação adiadas, parciais, isto é, surge o sujeito na mediação
pulsional, no trabalho do pensar, por exemplo, que ele identifica à fantasia.
O tempo é mais uma subversão da escrita osmaniana. Entre os dis-
positivos de sua escrita, pelos quais queria garantir a tensão que lhe era tão
cara, tem especial apelo o que ele chamou aperspectivismo. Ele observou
que na arte moderna, de maneira geral, e, por conseguinte, também na
literatura, a representação ganhou autonomia. A pureza da representação,
a clareza e distinção de sua forma, eram alcançados pela produção de um
centro, em que sujeito e objeto se encontravam sob o signo da harmonia.
A invenção da perspectiva renascentista, em que o sujeito era localizado
como observador de uma obra em um único ponto de vista, na opinião de
Osman Lins, empobreceu não somente a realidade, mas acabou reificando
sujeito, objeto e suas relações. O aperspectivismo significaria, então, uma
violência ao que se havia produzido, pela fragmentação do ponto de vista
único. Não uma arte que elimina o ponto de vista, mas que o multiplica,
ou divide, em benefício do enriquecimento da experiência. Esse disposi-
tivo, já o vimos operar no espaço romanesco, mas a grande invenção seria
fazê-lo operar no tempo.
Isso se realizou, por exemplo, nas personagens que se inscrevem
no tecido do enredo com entradas muito diversas quanto ao tempo de
sua história. E, do mesmo modo, pela disseminação do foco narrativo, da
função narrativa em diversos narradores, que se alternam, que se misturam
e até se confundem em diversos momentos. A própria referência temporal

141
Alegoria da angústia

também é refeita em outro plano construtivo, algo ainda por se organizar,


pelo esforço suplementar da leitura, que exige e demanda. Veja-se abaixo:
Sob o signo de Roos, cujo símbolo parece ser o círculo, a
volta, o progresso ilusório, posso, ao invés de seguir rumo
a Lausanne, estar retornando à fria plataforma descoberta
da gare de Lyon. Se Roos e tu, Abel, de mãos dadas, girásseis
entre as gavelas de feno! Teu coração talvez se aquietasse e
talvez entrevisses o que procuras em vão (LINS, 1973/2005,
p. 30, grifo nosso).

O que poderia ser tomado, com algum esforço, por um movimento


reflexivo do personagem Abel enquanto narra o trecho, no contexto de
uma composição narrativa cheia de invasões das mais diversas perspectivas,
cheia de epifanias do mundo extradiegético e de outros lugares do mundo
interior à Avalovara, também assume, eventualmente, segundo a leitura que
se faça, o caráter de um deslocamento narrativo, de uma aparição. Essa
súbita mudança de foco narrativo, se assim o consideramos, pode passar
despercebida ao leitor, pode confundi-lo, mas, num caso ou noutro, lhe
oferece um desafio que o projeta para fora do espaço narrativo e o faz
contemplar desde outro lugar, dentro e fora, ao mesmo tempo, sob forte
tensão, diversas possibilidades que se lhe oferecem. A rotatividade do foco
narrativo, pois esse é o procedimento de que se trata não apenas aí, mas
em diversos outros pontos da narrativa, engendra e agencia a contempo-
raneidade das cenas e a presentificação do tempo diegético (FRITOLI,
2006). Exemplo disso é o arranjo das transformações de foco narrativo
entre as linhas que narram as estórias de Abel com Cecília e com Roos: do
narrador não se sabe quando ele vem, vai, de onde, para onde (SOARES,
2007). É um narrador desarraigado.
Isto é certamente um paradoxo, uma diegese presentificada, mas o
fato é que a narrativa progride, mas se ela avança é por arrasto, sem o que
supúnhamos necessário, a perspectivação temporal. No texto de Avalovara,
quase todas as cláusulas narrativas têm os seus verbos escritos no presente.
É porque há digressões, porque os personagens pensam e avaliam etc., que
há também verbos em outros tempos. Assim, as várias cenas, quase todas
escritas com verbos no tempo presente, arrastam umas às outras, como

142
Hugo Juliano Duarte Matias

que marcham lado a lado em alguma direção. Bem segundo o esquema


enunciado no início do texto, segundo o qual, no movimento da espiral,
os quadrantes em que as cenas se inscrevem são visitados e levados. Não
se trata apenas de acúmulo de quadros, portanto. Eles se interpenetram
sem se integrarem ao fluxo da experiência intuitiva do tempo que caminha
do passado para o futuro.
Segundo Soares (2007), a técnica básica em que se sustenta a operação
de ruptura do tempo linear e sequencial é a simultaneidade. Na macroes-
trutura do romance, trata-se da simultaneidade (i) em seu efeito sobre o
enredo, isto é, a progressão em arrasto das diversas linhas do enredo; (ii)
a reiteração temática em eventos situados muito distantemente. Em sua
estrutura nuclear operam como mecanismos da simultaneidade, (iii) no
plano da referencialização: a birrefringência dos personagens, dos eventos,
etc. (a sua duplicação em entes que coexistem e depois se reúnem, even-
tualmente); (iv) a distensão dos acontecimentos por efeito da enunciação
presente de um narrador épico (Abel).
Tomemos um trecho analisado por Soares (2007) para ilustrar a
forma (iv) da técnica da simultaneidade, por seu valor ilustrativo:
O parque de diversões, com as suas luzes perdidas na es-
curidão circundante, ela e eu no carrossel que range em
torno do eixo, rangem as tábuas do piso se passa algum
dos outros raros hóspedes; tendo, sem conseguir, com
faca afiada, cortar o olho desorbitado de um boi; a mala
de viagem tomba no assoalho, range o mar nas bocas e
nas barrigas dos peixes, ouço ou julgo ouvir, rosto contra
rosto, um crepitar de chamas, as pranchas de carvalho
rangem sob nossos pés, não sei se realmente pronuncia
nomes inventados ou se dou forma a vozes que na sua
carne, parece, subsistem, propaga-se em ondas amplas
o rumor do mar pela costa ainda meio inculta, giramos
abraçados no carrossel, range o leito vazio e o outro onde
estamos; como entender que tão duros instrumentos, os
olhos, recuem, queimem-se, tornem-se sobre si mesmos
tal um pedaço de seda?; o vento espalha sem constância
pelas casas pouco numerosas da praia Grande a música
estridente do parque e faz ranger a janela grossa, com as
aldravas pendentes, o calor do seu rosto advém talvez dos
olhos tórridos, desconheço o significado dos nomes que
ela escande, de factícia sonoridade latina (mas escande-os?),
rangem os baús e a cômoda, as luzes inquietas ou circu-
lantes da festa em meio às quais rodamos refletem-se nas

143
Alegoria da angústia

rugosas paredes e no seu rosto, ninguém conhece este olhar


que arde e não se extingue, só eu e algum homem a quem
ela – em outro seguimento do Tempo – deseje e ame, sua
voz é uma aragem e queima-me, rangem em mim os ossos,
rumor da mala sobre o assoalho no silêncio do ocaso, aves
noturnas passam ante a janela e rangem, escuras, rangem
no ar (LINS, 1973/2005, p. p. 21-2, grifo nosso).

Rangem: o carrossel, as tábuas do piso, o mar nas bocas e barrigas


dos peixes, as pranchas de carvalho (reiteração), os leitos, a janela grossa,
os baús e a cômoda, os ossos de Abel, as aves noturnas. Com todos os
verbos no presente, cada ranger que poderia estar sucedendo o outro, na
verdade ecoa, ressoa cada um dos anteriores. Cada ranger dura na experi-
ência de Abel que narra, mas também na diegese que assim se desdobra.
Não se pode dizer que o tempo passa ou deixa de passar, pois cada rangido
range do seu tempo, sem deixar de participar do Tempo. Muito facil-
mente, o mesmo ranger se projeta sobre as luzes, o vento, as paredes, os
olhos, o rosto, sem que notemos, pois a leitura nos confunde. Aliás, Freud
(1911/1996) menciona duas funções importantes e contemporâneas ao
surgimento do princípio de realidade para gerir o funcionamento psíquico
sob esse novo regime de trabalho, a atenção e a notação. A atenção que
se antecipa ao real, o que nos encontra do mundo externo, para estarmos
preparados, e a notação – sistema de marcação – registra os percursos da
consciência na realidade. Essas funções participam do que ele pretende
apresentar como senso de realidade. A técnica utilizada aqui por Osman
Lins cancela – ou suspende – a operatividade deste princípio e mais uma
vez realiza um impulso regressivo com que se compromete sua linguagem.
Em nível macroscópico, esse mecanismo organiza (?) o enredo de Avalovara.
O tempo dessa narrativa precisa ser constantemente decidido na
experiência de ler, de se relacionar com a obra. Não remetendo sempre ao
tempo vivido. Como Abel reflete, “nossa existência mesma nem sempre
é compreensível; isto por não ser, forçosamente, um evento completo.
As narrativas simulam a conjunção de fragmentos dispersos e com isto
nos rejubilamos” (LINS, 1973/2005, p. 32), ou ainda, “pode ser que tudo

144
Hugo Juliano Duarte Matias

exista simultaneamente e que tenhamos do tempo não uma ideia correta


ou verdadeira, e sim uma que preserve a nossa integridade” (p. 134).
De certo modo, o romance deve nos oferecer a possibilidade de
compreensão do fato de que, para uma ideia correta da vida é preciso
uma experiência contra-intuitiva do tempo na leitura, que nos remeta ao
que talvez tenha sido o tempo em outro momento da nossa experiência.
Essa ideia é adequada ao papel que Osman Lins atribuía a si mesmo e sua
escrita, sob influência de Dante, por exemplo, que (nos conta AUERBA-
CH, 1954/2007) se via comissionado por Deus para confrontar os seus
contemporâneos acerca de seu próprio estilo de vida. Trata-se, portanto,
de um intento de restituição, mais uma vez, ao mundo sensível, de sua
própria sensibilidade (do simbólico ao real). Uma sensibilidade avassaladora
e vertiginosa, como o é a própria vida. O desvio disso, para a literatura,
pode implicar o seu próprio esvaziamento. Osman Lins fala disso como um
erro, “ambicionarmos, para a representação do tempo, engenhos contínuos,
nunca interrompidos, sem pausas, renegando a nossa natureza, que pulsa
como pulsam os pulsos – e que tudo corta, como corta o pensamento,
em palavras, em sílabas, em letras” (LINS, 1973/2005, p. 300). Talvez um
exemplo do que possa ter sido esse tempo da escrita se possa encontrar
no estilo homérico que, segundo Auerbach (1946/2004), cultivava, muito
embora as abundantes interpolações em seu texto, um “presente unifor-
memente iluminado” (p. 5), bem à semelhança da recomendação freudiana
para a escuta clínica, isto é, de uma atenção uniformemente suspensa.
O fato é que a própria ideia de prosa que, conforme Jakobson (1973),
é reconhecida por não se deter, porque resolutamente segue em frente,
é assim subvertida, tendo em conta que o funcionamento desta escrita
depende da reiteração e da volta sobre si mesma. Os dispositivos desta
escrita, referentes à posição do narrador e ao tempo que lhe é constitutivo,
garantem para o texto a configuração de enigma e a capacidade de incitar
o estranho do sujeito surpreendido em sua própria suspensão – risco de
fading. Toda produção do campo do desejo de constituir a sua posição
como narrador, isto é, anuir às convocações que se lhe faziam, depende –

145
Alegoria da angústia

notemos o funcionamento do texto – de que isso seja “fundamentado no


tempo da angústia” (Lacan, 1963/2005a), que se lha supere e ultrapasse,
e não antes disso.
Lembremos com Freud (1908b/1996), é o desejo que costura as
pontas do tempo para produzir a fantasia. Com isso, a percepção do tempo
surge no psiquismo de modo simultâneo à fantasia, e não somente isso, a
fantasia e o tempo são co-dependentes. Este é justamente o problema que
a escrita osmaniana levanta. Segundo Kehl (2007), “o tempo que não passa
é um tempo sem prenúncio do devir. Tal estagnação tanto pode ser sentida
como mortífera quanto como paradisíaca” (p. 265). Ora, ela é mortífera
para a fantasia, pois suspende o desejo em seu circuito. Se o tempo que é
de espera, como tempo do desejo, perde a referência metonímica, o que se
opera é o congelamento da fantasia como fracasso consumado em responder
ao desejo do Outro. A cena da fantasia se fragmenta, precipitando a face
abjeta da imagem de si – inquietante estranheza (FREUD, 1919/1996),
como na cena da morte de Cecília – imagem derramada, fundamento da
experiência terrível de se achar fragmentado ou multiplicado. Ora, sabemos
que a escassez de tempo – do tempo como duração – deveria enriquecer
a fruição da vida (FREUD, 1916/1996), mas o que aconteceria se, em vez
de se tornar escasso, o tempo se tornasse superabundante?
O problema do tempo é fundamental à escrita osmaniana, como
já o indicamos, e o tempo tal como indicamos, aquele que concerne ao
inconsciente, isto é, como demora, que em seu texto se realiza à maneira
da simultaneidade. O interessante, a invenção que incrementa os temas
de sua literatura, diz respeito ao fato de que, no interior do que ele faz
operar como simultaneidade, se produz justamente a “forma ontológica da
angústia” (LACAN, 1945/1998, p. 207), a saber, a motivação para concluir.
Como tema, o tempo da asserção, de seu fracasso, é desenvolvido
na linha narrativa que conta a estória de Loreius. Escravo em Pompeia, em
200 a.C., lhe foi prometida a liberdade caso cumprisse a tarefa proposta
por seu amo, Publius Ubonius, de encontrar uma frase significativa que
pudesse ser lida em qualquer direção e sentido sem que o seu significado

146
Hugo Juliano Duarte Matias

fosse alterado. Loreius resolve, de maneira muito elegante a tarefa, mas


adia a entrega de seu resultado, gozando a possessão daquelas palavras
aparentemente mágicas. Confessa as palavras no leito de uma prostituta
da cidade, chamada Tyche – e esta cena representa o mal encontro, a dis-
-tuquía, o trauma a ser metabolizado. Esta vende o segrego a outra pessoa
de modo que ele chega ao poder de Publius Ubonius, o que instaura a
nova situação de passividade de Loreius diante de seu senhor. Loreius
se mata e Publius sofre de culpa. A frase palindrômica descoberta por
Loreius é aquela sobre a qual repousa a estrutura de Avalovara: SATOR
AREPO TENET OPERA ROTAS. Ela alegoriza, de maneira mais cor-
riqueira e anódina o que se faz princípio pulsante da escrita osmaniana,
a Bemächtigungstrieb, ânsia de conquista. Como ele mesmo escreve, exerce
“vigilância constante” (LINS, 1973/2005, p. 25) sobre sua obra enquanto
ela se produz, se cria.
O aperspectivismo de Osman Lins faz enxerto ao momento de
concluir – não o prolonga, mas o distende, de modo que o seu valor pu-
ramente lógico se conserva. O tempo da simultaneidade, ou o tempo em
sua inflexão co-lateral – nem progressivo (ainda), nem regressivo (sempre),
nem estático (nunca) – é aquele que se coloca ao lado do tempo impossível,
que vem em lugar do que se realizaria como iminência de desacerto e de
desencontro, o que designávamos como espera e que agora apontamos,
com Lacan (1964/1998), como souffrance. Consideremos sua exposição
do sonho do pai que não vê que seu filho está queimando. Neste sonho,
Lacan (1964/1998) aponta o real que se deixa entrever na repetição do
“não vês que estou ardendo?”, a falha constitutiva do que se desejara como
encontro, distuquía. O acordar do sonho, pela necessidade de fazer algo
e sob a impossibilidade de fazer algo, como bem o indica Caruth (2000),
é o lugar do trauma, na repetição da perda do filho que ardia em febre.
Ela apresenta a tragédia do sonho como o desencontro do ver e do saber.
Segundo Caruth (2000), no traumático, como distuquía, no mal
encontro, o essencial é a sua dimensão temporal, que se organiza como
um atraso. Essa ideia insere a teoria do trauma no registro de uma teoria

147
Alegoria da angústia

da ação já desenvolvida por Lacan (1945/1998) em seu trabalho com o


tempo lógico. Se as duas formas lógicas do tempo são a sequência e a
simultaneidade, as possibilidades praxeológicas vinculadas são: o atraso, a
antecipação e o justo tempo. Essas três possibilidades da ação equivalem
aos três tipos de relação do psiquismo à pulsão esboçados acima, respec-
tivamente: o trauma, a angústia e a fantasia. A angústia permanece em sua
função mediana, entre um sujeito que arranja os modos de sua própria
viabilização e o sujeito que se extravia alienado ao gozo do Outro. Há um
trabalho de angústia que articula tempo e ato. A escrita osmaniana imita
a angústia em sua alegoria apofática do tempo do trauma e do tempo da
fantasia. Poderíamos retomar aqui Benjamim (1925/1984) em sua proposta
para a relação entre escrita alegórica e história: é esta escrita capaz de lidar
com a história como fado, de percorrer a história como ruína. Essa é a
escrita que, na angústia, disputa com a intensão escatológica da fantasia e
a vibração aniquiladora do trauma a escassez de recursos lógico-temporais
para sustentar a ação, estruturada desde a posição do sujeito da fala.

Figura 18

A linguagem alegórica faz colapsar o tempo em sua inscrição imagi-


nária, sem entregá-lo ao desmoronamento no registro do real. Desmantela
o tempo e reabre-o, mais uma vez, para novas inscrições.
O mecanismo temporal em Avalovara opera um regresso, mas esse
regresso não leva à representação precária, simplesmente anti-ilusionista.
O retorno que pretende a escrita osmaniana é à operatividade da linguagem

148
Hugo Juliano Duarte Matias

do sobrevivente, daquele que atravessou os mundos e se viu, no mundo


em que acorda, desamparado. A descontinuidade, o corte na experiência
de travessia é perturbador, pelo simples fato de que o aparelho mental
ainda tem de lidar com o que lhe é anterior. O pior ao aparelho, já o sabe-
mos, é a sua própria inércia, o seu trabalho é o de fazer tramitar, por em
movimento. Há um saber, portanto, de que o aparelho poderia se servir,
um savoir-y-faire, para isso. A escrita funciona assim. Freud (1925c/1996)
especula que porque não confiamos na nossa memória, escrevemos, por
medo de que ela nos falte – neuróticos e normais se engajam nisso. Acres-
centamos: também para não confiar. É um ato, que se antecipa aos vacilos
da memória. Aliás, como nos lembra Eco (2011b), uma hipotipose, o que
inclui a cronografia, pode até criar a memória a ser evocada. Então Freud
(1925c/1996) se põe a considerar os aparelhos de escrita – para além do
aparelho como materialidade, pensemos nele como, por exemplo, estilo.
Eles sofrem de duas desvantagens: (a) se fecham à possibilidade de novos
registros ou (b) guardam registros que já não são mais importantes. A es-
crita osmaniana se pretende como um bloco mágico, ela acolhe diferentes
perspectivas simultaneamente – corrigindo a primeira desvantagem – e
estas perspectivas se transformam mutuamente – corrigindo a segunda
desvantagem. Isso é possível por meio do artifício da transformação da
temporalidade canônica nesta escrita, neste aparelho de escrita. Não se
trata, de modo algum, de almejar o intemporal inconsciente, mas de resti-
tuir o princípio de descontinuidade temporal que rege o aparelho mental
em sua tarefa de criar condições para a realidade que experimentamos.
A escrita como trabalho de angústia, este aparelho específico de escrita,
refaz os nós entre simbólico e imaginário
A pressa cumpre uma função em Avalovara, de maneira mais clara
desde a morte de Cecília, até a morte de Abel e . Na última linha narrativa
(N) vemos isso com clareza. Não há pontuação ou quaisquer indicativos
de interrupção, escanção, suspenção. As últimas suspensões já se fizeram.
Por medo de que não se encontrem e não possam se encontrar; por medo
de que não se possa concluir com um ponto final ao fim da narrativa,

149
Alegoria da angústia

de que não se chegue ao Jardim que se buscou, de que não possa con-
quistar o percurso de sua própria singularidade, por medo de se deixar
apreender alienado aos termos de uma autocoincidência organizada pela
ordem exterior representada por Olavo Hayano. Assim como o segundo
filho de Adão, este Abel se apressa, para se fazer primeiro, sacrificando
o próprio corpo na fala. Abel se apressa a concluir o seu ato de narrar.

150
Hugo Juliano Duarte Matias

A LITERATURA E O METABOLISMO DA ANGÚSTIA

A angústia é indispensável como advertência – é preciso retomar a


constatação freudiana (FREUD, 1930/1996), pois ela se renova na expe-
riência da contemporaneidade. Ainda que mude a sua forma, ainda que
sofra os efeitos das mais diversas estratégias, das mais atuais estratégias
de viver, o medo, ou a angústia, nos lembra Bauman (2008), se equivale
à nossa própria indefensabilidade. E ainda que estejamos indefesos, não
temos de estar desapercebidos. Do mesmo modo que os poetas se ante-
cipam à psicanálise no que concerne ao inconsciente, à própria literatura
é possível se antecipar ao infortúnio em seus efeitos, ou à morte, à nossa
insuficiência, enfim. Há uma literatura que realiza visitações, de maneira
proveitosa, às paragens mais precárias de nossa experiência, de modo a
extrair disso o que é possível: uma vereda. Isso significa que um desvio
em relação à rota mais curta de restituição do vigor humano ao nada
pode ser conquistado, isto é, que de alguma maneira é possível dar um
tratamento, afinal de contas, ao que é impossível. Desde que esse desvio
não se configure como apenas divertissement, pois isso não poderá con-
tornar a angústia. Aliás, é a isso que serve a angústia, essa é sua função,
reabrir um caminho. Este tem sido o testemunho da clínica psicanalítica,
que há também um trabalho de angústia, e se há o trabalho de angústia
não deixa de ser laborioso, pois implica a construção de marcos objetais
para a tramitação pulsional, essa tal vereda de que falamos. O trabalho de
fazer marcas é o trabalho de fazer marcos, e assim se articulam escrita e
a angústia como funcionamento.
A escrita osmaniana põe em funcionamento a angústia pelos meios
que temos indicado até aqui, e o faz atualizando o seu funcionamento.
Ora, consideremos a fragmentação da experiência moderna como efeito
da separação entre tempo e espaço (BAUMAN, 2001; GIDDENS, 2002),
sua consequência é o desenraizamento das possibilidades identificatórias, a
fragilização das proteções simbólicas e imaginárias contra o gozo. Badiou
(2007) anunciou que o que caracteriza a modernidade em que ora estamos

151
Alegoria da angústia

é o que ele chamou “paixão pelo real”, o que significa um impulso des-
mascarador, que pretende repelir ou denunciar a realidade como aparência
e simulacro, ou, pelo contrário, tentar resgatá-la a todo custo. Esses dois
impulsos estão em contradição, mas condicionam a radical reflexividade
moderna.
No entanto, esses dois impulsos, no campo da estética, também
organizam dois modelos pelos quais se costuma medir a representação
artística na contemporaneidade, segundo Foster (2005), o modelo refe-
rencial – que pretende um vínculo entre a representação e o mundo das
coisas – e o modelo do simulacro – que pretende que a representação está
sempre inscrita num sistema fechado e opaco ao mundo da experiência.
Foster (2005) também enxerga contradições nesses modelos, as quais de-
terminam sua incapacidade – de cada um deles – de dar conta do modo
como se organiza a representação hoje. Segundo ele, predomina uma
tendência ao que chama realismo traumático, a inclinação nas artes plás-
ticas ao ultrapassamento da representação em direção ao real, de modos
variados. Nesse realismo traumático, as artes plásticas ao mesmo tempo
investigam o real, mas também cumprem uma forma de proteção. Uma
das formas desse realismo, o ilusionismo traumático, em que se pratica
de maneira excessiva a ilusão, traz à tona algo da angústia como estamos
articulando. Trata-se de uma tentativa de sustentar uma tensão constante
entre o necessário e o impossível na representação.
Em todo caso, há acordo sobre a irrupção, nos mais diversos cam-
pos da cultura, de muitas tentativas de investigação dos limites do repre-
sentável – na arte, ciência, religião etc. As consequências disso seriam o
encontro com aquilo que exatamente não se pode representar, o que está
no cerne da função da angústia. Segundo Vieira (2005), uma manobra
eminentemente contemporânea de proteção contra o angustiante, nestas
situações, de eventual desnudamento do objeto da realidade é a sua fixa-
ção imaginária. Nem sempre no mesmo campo da arte, mas também aí, e
do mesmo modo em outras áreas, isso ocorre sob a forma de fixação em
bens de consumo, mercadoria. Estas são consequências de nossa sociedade

152
Hugo Juliano Duarte Matias

escópica (QUINET, 2004). Essa é uma operação que visa a recobrir os


objetos de ficção para sustentá-los como objetos de desejo. Além da fixação
imagética para evitação da superexposição do objeto real (VIEIRA, 2005),
o sacrifício de tudo ao Pai que declina, como manobra empreendida no
interior dos diversos fundamentalismos (KOLTAI, 2002), tem sido uma
compensação à angústia contemporânea. O que vemos, enfim, é uma busca
contemporânea por essas formas de lidar com o real que ameaça fazer
o seu retorno, formas em que lidar com a angústia é quase inevitável. A
própria clínica psicanalítica está às voltas com isso, e tenta articular, a este
propósito, o que seria um trabalho do real (DUNKER, 2006b).

Osman Lins e a literatura como selva

Ah! Que a tarefa de narrar é dura


essa selva selvagem, rude e forte,
que volve o medo à mente que a figura!
– Dante

Jakobson (1921/1971) negou à literatura a possibilidade de imitar a


realidade sensível extralinguística, pelo menos da mesma forma que as artes
plásticas são capazes. A única coisa que ela pode alcançar é a convenção
histórica de verossimilhança. A literatura, portanto, por sua condição, não
pode ser mimética. Por outro lado, o seu caráter convencional e imagina-
riamente enrijecido constitui o inconveniente para todas as possibilidades
de subjetivação visadas pela literatura contemporânea.
É disso que se trata na reinvenção do espaço e do tempo romanescos
operadas por Osman Lins, isto é, o enquadre do mundo por ele vai sendo
subvertido por efeito de todos os recursos estilísticos e dos procedimentos
de que lança mão, pela intensificação de certas virtualidades – segundo a
formulação do próprio autor – que necessariamente constituem a cena
do mundo. Ela perde a sua unidade, não pela dissolução de seus elemen-
tos, mas pela disseminação dos procedimentos da escrita osmaniana,

153
Alegoria da angústia

que acabam por produzir um espaço labiríntico no interior da escrita, tor-


nando a escrita alegórica, no sentido forte do termo, em que as metáforas
saem do campo referencial – se é que lá já estiveram – deixam um funcio-
namento representacional, e iniciam um funcionamento de desmontagem
da representação. E é nisso que essa escrita cria as condições pelas quais
ela mesma se torna acolhida para as antinomias anteriormente mencio-
nadas. A visada de Osman Lins parece ser a autonomia do discurso – a
literatura como mala affectatio!
À medida que a cena se esfumaça, que ela vacila em suas bordas, ou
em seu miolo, vacilam os véus que recobrem a natureza – no modo como
ele a formula – em sua dimensão pulsante, em sua dimensão cortante.
Como Rabinovich (1995/2005) bem o salienta, tais vacilos são próprios de
toda literatura que se aproxima, no fantástico, da inquietante estranheza.
Ela o aponta na fala de Lacan (1963/2005a, p. 91), “o inquietante é que,
no irreal, é o real que nos atormenta”, o que certamente ele recupera de
Freud (1919/1996). Ora, em Freud (1919/1996) não se trata de outra
coisa, no que concerne aos meios da escrita da literatura, senão de seus
modos para manejar os pontos de tensão entre as realidades. Ele sugere
que o estranho opera aí pela sugestão que ilude, prometendo a verdade, no
entanto, uma verdade que ele faz cernida pela “realidade comum” (FREUD,
1919/1996, p. 261). Esta promessa, contudo, se revela como semblante na
justa medida em que a verdade dessa promessa se excede. Tal expediente
se torna tão mais poderoso quanto mais ambíguo, obscuro e hesitante.
Lembremos o que Freud (1906/1996) chama de chiste cético: mentindo
quando fala a verdade, verdade por meio da mentira. A verdade é locali-
zada na enunciação, não no enunciado. Assim, o chiste ataca a certeza do
conhecimento, a lucidez imaginária da representação, por outro lado, não
quer a sua ruína, da qual extrai as condições de sua própria atividade. Em
todo caso, é no excesso de verdade que o semblante se faz apto a visitar o
real, o real como gozo que o semblante interpela (LACAN, 1973/1983).
Essa visitação ao real, esse ataque, já o mencionamos, Lacan (1977)
chama violência, a revolução da linguagem sobre si mesma na poesia.

154
Hugo Juliano Duarte Matias

O que pode ser extraído da relação entre simbólico e imaginário, nesse


procedimento, o imaginariamente simbólico, é a verdade (MILLER, 2009).
Trata-se aí de Bemächtigungstrieb, pulsão de conquista e domínio sobre a
literatura em seu devir-objeto. Não como um objeto ordinário, extraído
do campo da objetividade, mas o objeto da objetalidade. Não sendo mi-
mética, a literatura visa à destituição do objeto como suposição imaginá-
ria. Na literatura, na poesia, o objeto é submetido à “prova de sua falta”
(BADIOU, 1994). Num interessante contraponto à Lacan, Badiou (1994)
sugere que assim a literatura é delicadeza em vez de violência, enfatizando
sua dimensão construtiva, em vez de sua dimensão destrutiva. Em todo
caso, trata-se, mesmo assim, sempre de conquista.
As hipérboles na referência ao sensível, os anacolutos de tempo e
espaço, o caráter desencarnado de suas personagens, levam a narrativa de
Avalovara à iminência de sua insustentabilidade – muito além de uma escrita
meramente epidérmica – no momento exato em que a própria carne do
mundo se abre ao vislumbre. Avalovara versa sobre o despertar e se utiliza
do desassossego da escrita para isso, como ocorre à angústia que desperta
do sono quando falha o sonho em sua tarefa de guardião (LAPLANCHE,
1993). Essa escrita se revela como onírica por outras razões. Ela configura
o espaço como produto de uma projeção, o que lhe confere sua estrutura
descontínua (PASCHE, 2000), descentrada em relação à perspectiva única
do sujeito. Aliás, podemos dizer que o espaço osmaniano reverte o meca-
nismo da projeção (schauen – verschwinden – ershceinen, como vimos). Ele faz
isso com uma linguagem pictográfica, intersemiótica, transcritiva, como
é a do sonho, construída em substituição não ao sensível, mas ao desejo.
Por isso é policêntrica (DERRIDA, 1971; LYOTARD, 1971). Ora, se o
que dá consistência ao campo visual é o Nome-do-Pai (MILLER, 2005b),
muito mais no da representação literária, mas é lá que a nominação deve
operar. Antes de realizar tal operação, no entanto, Osman Lins brinca de
devolver, alusivamente, na sua escrita, a imagem ao escópico, pelo que
algo de angústia de fato se produz.

155
Alegoria da angústia

Assim conhecemos que o real, por tais meios concernido, “só se


pode inscrever por um impasse da formalização” (LACAN, 1973/1983,
p. 125), como na Exposição de gravuras, famosa litografia de Escher (1956),
como o impasse que impossibilita a nomeação da protagonista em Avalovara,
designada por . Ora, se, por um lado, o espaço e o tempo, dimensões
do enquadre fantasmático [ ], são assim violentados, ou simplesmente
tocados, isso se opera no contexto de uma visada à imagem-furo de que
nos fala Rivera (2008), em oposição à visada à imagem-muro; uma ima-
gem não de todo opaca àquilo mesmo que ela precisa recobrir, que é a
própria impossibilidade de representar [ (A)], de ligar no simbólico o que
seria do registro da natureza. É em relação a essa mesma impossibilidade
que se situa aquilo que estaria em causa na escrita de Osman Lins, cujo
trabalho se empenha em “construir com a imaginação um rosto que não
existe” (LINS, 1979, p. 211). Sendo esta uma busca cujo ponto de partida
é a impossibilidade, o reconhecimento da inexistência daquilo que se quer
imagem, o que resta desse trabalho é nada mais que i(a) →
Nas têmporas de , no espessor de seus ossos, de súbito,
um nome resplandece, intraduzível [...] Seu rosto acende-se
contra o horizonte vago e os cascos das barcaças: livro
transparente, iluminado, numa língua além do meu alcance
[...] O rosto de , alegre e talvez um pouco insubmisso,
passa pela sombra das árvores [...] Seu rosto, animado por
uma fugidia luz interior e uma espécie de sede [...] oculta
outro ser, velado e pressentido (LINS, 1973/2005, pp. 39-40)

Talvez ainda mais radical que a personagem cujo nome é uma imagem
– – seja a figura da Gorda, pois em seu corpo, nem sempre preso a ele,
vive o gataco, figura, por excelência, da dubiedade e crise representacional.
Colocado no corpo da mãe de Abel, dentro desse corpo se agita como se
dentro de uma jaula estivesse!
É preciso constituir uma estrutura vigorosa que suporte a tensão
e instabilidade das imagens tão precariamente emolduradas, das quais
diz que é “jaula dentro da qual se movem animais selvagens. Inquietude,
angústia, desespero” (LINS, 1979, p. 167). Tal estrutura não é outra coisa
senão comutar o que é causa, necessidade de ordenamento, pulsão de
conquista, em ato de leitura e decifração, e esta é uma operação homóloga
156
Hugo Juliano Duarte Matias

à travessia da angústia formulada segundo a hipótese de Dunker (2006a),


a saber, de que essa angústia progride ao passo que corta e, ativamente,
constitui objetos a serem cedidos, fazendo corpo. Ora, Osman Lins faz
de sua escrita a realização disso que chama “silêncio ativo” (LINS, 1974,
p. 20). Assim como as personagens são descarnadas para fazerem corpo,
as letras, sílabas e palavras o são para fazerem livro (para além de uma
narrativa), que somente pode ser finalizado pela leitura como ato, corte
último. Alguma violência é aí necessária: “na violência ao real, no con-
flito com o real é que o revelamos. Os retratos infiéis, onde a aparência
do mundo é subvertida, franqueiam-no à nossa conquista, através de um
conhecimento mais intenso” (LINS, 1974, p. 60).

Da função da angústia ao desassossego na literatura

Se não esperar o inesperado não se descobrirá,


sendo indescobrível e inacessível
– Heráclito de Éfeso

A escrita de Osman Lins, à maneira de Joyce, tem algo de enigmáti-


ca – claro está que não do mesmo modo. E como ocorre aos exegetas do
texto joyciano, que se supõem convidados ao deciframento dessa escrita
labiríntica, ocorre aos exegetas do texto osmaniano o mesmo, que haveria
uma demanda pelo deslinde de seus nós. Isso certamente seria de inte-
resse e muito divertido, mas é preciso considerar o fato de que a tessitura
desmoronaria sem os seus nós. O pior ao texto de Osman Lins seria que
uma leitura o pacificasse.
Aliás, a segunda operação da escrita osmaniana, além daquela com o
espaço, é com o tempo. Sua grande figura é a simultaneidade, a sincronia,
talvez aquela mesma a que, contam, Lacan teria se referido ao distinguir
a narrativa neurótica antes e depois da análise, a diferença entre romance
e conto, diacronia e sincronia, uma redução estilística. De fato, Avalovara
atravessa, transcende os gêneros. Mas se esse texto o faz é por sua visada

157
Alegoria da angústia

ao corte da leitura. Neste ponto, essa obra se insere na ordem canônica


da escrita alegórica, ironicamente descrita por Man (1979/1996, p. 233):
“as narrativas alegóricas contam a história do fracasso da leitura”.
Avalovara imita, em seu texto, o funcionamento da angústia, imita o
seu trabalho de mediação pulsional, de câmbio da palavra entre trauma e
fantasia. Faz isso por uma antecipação, no campo da palavra, aos encontros
do sujeito moderno com os impasses da representação de sua experiência,
não para extrair desses impasses o seu fator pulsante, mas o seu fator terri-
ficante. Trata-se de descobrir os impasses antes que eles não possam mais
ser descobertos, antes do desencontro entre a exigência de trabalho para
dar curso à vida e as suas possibilidades concretas. Portanto, trata-se de
organizar, em alguma medida, o percurso que fazemos pelo tempo em que
estamos. Aposta interessante seria, certamente, a de uma “certa abertura
ao real que faça passar o infinito da angústia ao entusiasmo do infinito,
ou ainda ao feliz encontro de um gaio saber” (VIEIRA, 2000, p. 138).
O trabalho de angústia permanece uma passagem, algo que se opera
nas entrelinhas, em que se introduz ou em que invade o que não pode figurar
nas linhas. Assim, Lacan (1976/2007) comenta que o enigma (E-e) é a arte
das entrelinhas, é o produto do enodamento, é o seu resto, na verdade.
Ocorre como na teologia apofática de Pseudo-Dionísio Areopagita, para
quem a sagrada verdade do Logos Divino deve estar oculta na mística das
alegorias, nos seus enigmas, na dessemelhança necessária para represen-
tar o que não pode ser confundido ou vulgarizado. O mesmo podemos
dizer do Hamlet de Shakespeare, seguindo T. S. Eliot, para quem se trata
aí de um fracasso artístico, o fracasso da representação como excesso em
Hamlet, sendo esta a natureza incontornável de seu enigma. Em Avalovara,
não o fracasso, mas a decepção que se vislumbrava, produto laborioso,
desassossegado da escrita, como propõe Osman Lins.
Empenho-me na conquista de uma afinação poética e legível
entre expressão e faces do real que permanecem como que
selvagens, abrigadas, pela sua índole secreta, da linguagem e
assim do conhecimento. Existem, mas veladas, à espera da
nomeação, este segundo nascimento, revelador e definitivo
(LINS, 1973/2005, p. 208).

158
Hugo Juliano Duarte Matias

A angústia está nas entrelinhas de Avalovara, ela tem a materialidade


de seu enigma. Aí está o ponto a partir do qual podemos interpelar, desde
a psicanálise, a função da escrita osmaniana, isto é, pensar Lins com Lacan.
Segundo este, “o real encontra-se nos emaranhados do verdadeiro. Foi
o que me levou à ideia de nó” (LACAN, 1976/2007, p. 83). Isto porque
somente no modo como os registros de nossa experiência invadem uns
aos outros é que vislumbramos os seus furos, isto é, no seu enodamento,
de que a angústia é um tipo. Do mesmo modo, na escrita de Osman Lins:
“A verdade tem sempre um fundo falso onde se esconde uma palavra ou
evento essencial. Aí reside a nossa integridade, o nó dos laços, o encon-
tro das forças, o centro do secreto, o verdadeiro Nome nosso” (LINS,
1973/2005, p. 209).

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Formato: 15 x 21 cm
Mancha: 11,8 x 18 cm
Tipologia: Garamond
Papel: Polén 80g
Impresão: Gráfica e
Editora RDS - 2019

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