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Passiva à Brasileira
Luiz Werneck Vianna
Tal Estado está posto, diante da sua sociedade civil, em posição de radical
autonomia, embora inexista a intenção de fazer da política um recurso de
alavancagem ou de favorecimento da modernização econômica, como atesta a má
sorte dos empreendimentos de notáveis homens de negócios, como Mauá, e dos
intelectuais de adesão americana que buscaram fazer da empresa econômica um
lugar de transformação do mundo, como Tavares Bastos e os irmãos Rebouças
(Rezende de Carvalho, 1993, pp. 193 e ss.).2 Daí que, como bem notou José Murilo
de Carvalho, não se possa compreender o Estado imperial como um caso de
modernização conservadora (Carvalho, 1980, p. 39).
No futuro e pelo decurso natural dos fatos, em sua progressão molecular, sob o
escrutínio de suas elites políticas, o Estado vai se encontrar com a sua sociedade. A
antítese deve ceder diante da tese, a dialética se resolve em" tranqüila teoria", 4 o
protagonismo deve caber aos fatos, e não ao ator,5 e ninguém melhor que Joaquim
Nabuco fixou os traços dessa cultura política:" Há duas espécies de movimento em
política: um, de que fazemos parte supondo estar parados, como o movimento da
Terra que não sentimos; outro, o movimento que parte de nós mesmos. Na política
são poucos os que têm consciência do primeiro, no entanto, esse é, talvez, o único
que não é uma pura agitação" (Nabuco, 1957, p. 133).
Contudo, se o Estado é moderno no seu liberalismo, essa sua condição deve ser
reprimida, apenas vivenciada no plano da consciência das suas elites, constrangido,
inclusive por sua índole constitutivamente territorialista, a consagrar o
patrimonialismo e a estrutura anacrônica do sistema produtivo que herdou da
Colônia. No Estado e na sociedade nacionais, como escreveu F. Fernandes em
páginas clássicas sobre a Independência, o liberalismo era "um destino a ser
conquistado no futuro" (Fernandes, 1975, p. 35). Autocontido, sem mobilizar a
política como instrumento de mudança econômica, esse Estado, que aparenta
cultuar o quietismo, quer ser o administrador metafísico do tempo, fator que estaria
dotado, em si, da inteligência de produzir, por movimentos quase imperceptíveis, a
mudança que viesse a reparar a irremediável incompletude e rusticidade da
sociedade e do homem brasileiros. Um e outro, como vieram ao mundo, não lhe
poderiam servir como ponto de partida para sua obra civilizatória.
A expansão da ordem burguesa, e com ela seus personagens sociais da vida urbana
— empresários, intelectuais, operários, os militares recrutados nas camadas médias
citadinas— , vai tornar-se em caldo de cultura ideal para ativação do "fermento
revolucionário" do liberalismo de que falava Florestan Fernandes, no contexto de
uma sociedade ainda permeada pela ordem patrimonial. E vai ser em torno do
cânon liberal, principalmente por meio do sindicalismo operário, em suas
postulações por direitos sociais, e da juventude militar, em sua denúncia do
sistema eleitoral a serviço das oligarquias agrárias, que o elemento da antítese
encontra a sua primeira raiz na sociedade brasileira com a formação do Partido
Comunista Brasileiro — PCB — e com a rebelião do tenentismo que culminou com a
Coluna Prestes. As amplas demandas por modernização econômica e social são
acolhidas por setores tradicionais das elites, sob a liderança dos estados de Minas
Gerais e do Rio Grande do Sul, que, com o apoio de parte do tenentismo, das
camadas médias e da vida popular nos centros urbanos, iniciam, com a chamada
Revolução de 1930, um novo andamento à revolução burguesa, já agora sob a
chave clássica de uma modernização conservadora.
Nos anos 50, sob o governo de Juscelino Kubitschek — lembrar que Juscelino foi
prefeito "biônico" de Belo Horizonte à época do Estado Novo, e eleito presidente
pela coalizão PSD-PTB, partidos criados por Vargas na transição daquele regime
para o da democracia de 1946 —, o transformismo se traduz em uma "fuga para a
frente", o ator em luta contra o tempo — os "cinqüenta anos em cinco" —,
queimando etapas como na construção de Brasília e na abertura da fronteira oeste
para o capitalismo brasileiro. A vitalidade do processo de transformismo empresta,
por suas realizações, principalmente econômicas, legitimidade às elites políticas
territorialistas — objetivos de território e de população faziam parte das orientações
dominantes do governo Juscelino —, isolando social e politicamente as elites do
liberalismo econômico e a esquerda, como a que marcou a sua posição
no Manifesto de Agosto, de 1950, do PCB, que desejavam, por motivações de
sentido oposto, interromper o seu curso.
A atividade desse ator aparece, porém, como prisioneira dos fatos, cabendo a eles
— "ao desenvolvimento capitalista nacional" — o papel de "elemento progressista
por excelência da economia brasileira", "desenvolvimento inelutável" que induziria o
avanço do moderno sobre o atraso (idem, p. 4). A esquerda descobria o tema do
transformismo como uma nova alternativa para a mudança social, mas esta
descoberta, porém, se fazia em um terreno estranho ao seu — o do Estado, da
burguesia nacional e das elites políticas de tradição territorialista. O ator que devia"
ativar" o transformismo dependia de movimentos sobre os quais não possuía
controle, na confiança de que eles respondiam a necessidades objetivas,
"inelutáveis", o que, a rigor, significava abdicar do seu protagonismo em favor
dos fatos. Nesse sentido, a Declaração de Março vinha a confirmar, "por baixo", a
cultura política das elites territorialistas, com que, ademais, se identificava na
centralidade concedida ao papel do Estado como organizador social.
A esta ruptura no campo das elites se acrescenta aquela que vai ocorrer no sistema
de orientação da esquerda, quando uma parte significativa dela faz a opção em
favor do caminho da ruptura revolucionária, denunciando a política do gradualismo
reformista, como no enunciado da Declaração de Março, como a responsável pela
vitória do golpe militar. Segundo o seu argumento, as coalizões pluriclassistas
deveriam dar lugar a uma política definida a partir dos setores subalternos, em
particular do movimento operário. A democracia populista do pré-64 "não procedia
de qualquer pluralismo real", constituindo-se em uma aberta manipulação
consentida das massas populares, implicando, na verdade, "uma autocracia
burguesa dissimulada" (Fernandes, 1975, pp. 339-40). A antítese não poderia
nascer do nacional-popular, e sim do terreno da luta aberta de classes, e, se o
capitalismo não poderia prescindir do autoritarismo, marca intrínseca ao seu modo
de manifestação no país, as lutas pela democracia incorporavam uma carga de
sentido anticapitalista (Fernandes, 1975, pp. 364 e ss.; Velho, 1976, p. 241).
Não por acaso, é da intelligentzia de São Paulo que virão os fundamentos mais
persuasivos em favor da ruptura revolucionária. Estado de economia vigorosa, com
uma estrutura de classes assemelhada à européia, com suas clivagens definidas em
termos de interesse, a via do transformismo em São Paulo, como em Florestan
Fernandes, relevava sobretudo a sua dimensão societária — a lenta e gradual
transição da ordem patrimonial para a ordem social competitiva, cujos efeitos,
entre nós, se revestiriam de um alcance comparável às revoluções burguesas na
Europa (Fernandes, 1977, p. 36).8 Para a intelligentzia paulista, ainda antes de
1964, a aliança da esquerda com as elites territorialistas em torno do Estado e de
um projeto nacional-desenvolvimentista implicava convalidar a reciclagem do
domínio das elites tradicionais, "como se o ‘ Brasil arcaico’ devesse sempre
preponderar sobre o ‘ Brasil moderno’ " (idem, 1976, p. 329). O nacional-
desenvolvimentismo, simulando representar os" interesses da comunidade como
um todo" (idem, p. 221), traduziria, no fundamental, os interesses privilegiados das
elites. Daí que o programa intelectual paulista, já na passagem dos anos 50 para os
60, não ponha ênfase na questão do Estado, centrando-se nos personagens de
mercado, do mundo dos interesses e da realidade fabril (Rezende de Carvalho,
1994, p. 46).
A revolução passiva fora uma obra da cultura política dos territorialistas, e seus
momentos de reformismo, sob o regime populista, teriam produzido o efeito
negativo da cooptação dos seres subalternos, o cancelamento da sua identidade e o
aprofundamento das condições do estatuto da sua dominação. Acresce que, com o
novo ciclo iniciado pelo segundo presidente do regime militar — o general Costa e
Silva —, territorialista era também a ditadura com sua doutrina expansionista de
Brasil-grande potência. Romper, no plano da política, com o contexto intelectual da
revolução passiva, se fazia, assim, associar a uma idéia igualmente de ruptura com
o próprio legado histórico formador da sociedade brasileira: a cultura política da
Ibéria considerada como um peso opressivo pelo seu autoritarismo-burocrático,
parasitismo e natureza cartorial, tal como na tradição liberal de um Tavares Bastos,
à qual se concedeu uma nova animação com o clássico Os Donos do Poder de
Raimundo Faoro, cujo êxito tardio — o livro é de 1958, mas só foi incorporado
como presença obrigatória nos estudos sociais brasileiros em fins da década
seguinte — veio a coincidir, e não à toa, com a nova valorização concedida à matriz
do interesse como estratégia de organização social.