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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS

FACULDADE DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

A cosmologia construída de fora:


A relação com o outro como forma de produção social entre
os grupos chaquenhos no século 18

Guilherme Galhegos Felippe

São Leopoldo
2013
Guilherme Galhegos Felippe

A cosmologia construída de fora:


A relação com o outro como forma de produção social entre
os grupos chaquenhos no século 18

Tese de Doutorado apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em História da Unisinos
como requisito à obtenção do grau de
Doutor em História

Orientadora: Profa. Dra. Eliane Cristina


Deckmann Fleck

São Leopoldo
2013
F319c Felippe Guilherme Galhegos
A cosmologia construída de fora: a relação com o outro
como forma de produção social entre os grupos chaquenhos
no século 18/ Guilherme Galhegos Felippe -- 2013.
267 f. :il. ; 30cm.

Tese (Doutorado) -- Universidade do Vale do Rio dos


Sinos. Programa de Pós-Graduação em História, São
Leopoldo, RS, 2013.

Orientadora: Profª Drª Eliane Cristina Deckmann Fleck.


1. Historiografia. 2. Índios do Chaco. 3. Mitologia. 4. Guerra
indígena. 5. Produção - Consumo alimentar. Século 18. I. Título. II.
Fleck, Eliane Cristina Deckmann.
CDU 930.1

Catalogação na Publicação:
Bibliotecário Eliete Mari Doncato Brasil - CRB 10/1184
Guilherme Galhegos Felippe

A cosmologia construída de fora:


A relação com o outro como forma de produção social entre
os grupos chaquenhos no século 18

Banca Examinadora

Profª. Drª. Eliane Cristina Deckmann Fleck (Orientadora) – Unisinos

Prof. Dr. Guillermo Wilde – CONICET e Universidad de San Martin/Argentina

Prof. Dr. Fernando Torres Londoño – PUCSP

Profª. Drª. Maria Cristina dos Santos – PUCRS

Prof. Dr. Jairo Henrique Rogge – Unisinos


Agradecimentos
Primeiramente, quero agradecer à pessoa que possibilitou que esta Tese alcançasse os
objetivos da maneira como eu almejava. Desde o início do Doutorado, a professora Eliane
concordou com a minha incursão na Antropologia, área com a qual eu não estava muito
familiarizado e, por isso, precisava de todo o incentivo possível – algo que a Eliane nunca
deixou faltar. Por isso, agradeço pelo apoio, pela confiança e por toda ajuda intelectual que a
professora despendeu a mim durante estes quatro anos. As conversas produtivas, que sempre
me encaminhavam para a melhor forma de desenvolver as ideias, a erudição e o
impressionante conhecimento bibliográfico, que me ajudaram a adicionar mais conteúdo à
Tese, e as minuciosas leituras e revisões dos capítulos, que não deixavam escapar um detalhe,
foram as bases de uma orientação precisa e fundamental.
Aos professores da Unisinos que me apoiaram e sempre demonstraram interesse e
preocupação em relação à minha pesquisa, em especial Maria Cristina Bohn Martins, Ana
Silvia Volpi Scott, Eloísa Capovilla da Luz Ramos e Marluza Marques Harres, com quem tive
ótimas aulas e saborosas discussões, e que me dispensaram palavras fundamentais de
incentivo. Agradeço também ao professor Paulo Moreira, que confiou em mim e em meu
trabalho, especialmente pelo seu apoio à composição da banca de avaliação desta Tese.
Também não posso deixar de agradecer à Janaína Trescastro, cujo trabalho na secretaria do
PPG de História da Unisinos sempre foi motivo de orgulho para os alunos, professores e
demais funcionários. Com a sua ajuda, pude organizar os documentos que me possibilitaram
concorrer e ganhar as duas bolsas de pesquisa no exterior, fundamentais para o
desenvolvimento da Tese.
Agradeço imensamente à professora Beatriz Vitar, que, de imediato, aceitou me
coorientar em Sevilha, durante o doutorado sanduíche de quatro meses que fiz na Espanha.
Sempre com um humor agradável, recebia-me de braços abertos para longas e instrutivas
conversas, que me ajudavam a pôr em ordem as ideias que iam surgindo no decorrer da
pesquisa nos arquivos, bem como na escrita do segundo capítulo, cujas mais importantes
inspirações tiveram origem em seu gabinete. Além dos ensinamentos que tive oportunidade
de adquirir pessoalmente com uma das maiores especialistas sobre o assunto de que trata esta
Tese, a sua história de vida foi um aprendizado à parte, provocando-me profundas reflexões.
Dois amigos foram muito importantes para o desenvolvimento da pesquisa. Carlos Paz
foi o melhor anfitrião que eu poderia ter nos meses que passei em Buenos Aires. Um amigo
com quem dividi as ansiedades da pesquisa e tive agradáveis conversas, daquelas que só se
têm com uma grande pessoa. Mónica Ferraro, o coração e o cérebro da biblioteca do Museo
Etnográfico de Buenos Aires, que tive a oportunidade de conhecer e admirar pelo seu domínio
bibliográfico e pela atenção que dá a todos que a procuram.
Também quero agradecer o carinho com que os meus sogros sempre me trataram e a
preocupação que tinham em relação à minha pesquisa. A dona Marta, sempre um poço de
generosidade, dispensa a mim uma atenção pela qual sou muito grato. E o seu Olivar, que,
quando podia, nunca deixava de, discretamente, perguntar como estava a Tese. Hoje, também
discreto, peço-lhe a sua bênção.
Agradeço, com a sinceridade que só o amor pode providenciar, aos meus pais e às
minhas irmãs, com quem sei que posso contar incondicionalmente. Minha mãe e meu pai, que
me apoiam todos os dias, todas as horas e me proporcionam uma segurança emocional sem a
qual os caminhos seriam muito mais árduos. À Raquel e à Elisa, que, além do fraterno
companheirismo, vêm dando novas lições de amor à nossa família com o Vinícius e a
Catarina.
Estes agradecimentos não estariam completos se eu não citasse a pessoa que mais me
motivou e me tranquilizou ao longo destes últimos quatro anos, porque só o estar ao seu lado
já me acalma o corpo e me alivia a alma. Ninguém sentiu tanto quanto ela as minhas
mudanças de humor, as minhas fraquezas, os meus silêncios e os meus cansaços. Mas foi ela
também que assistiu às minhas vitórias, minhas genuínas demonstrações de felicidades e ao
meu amadurecimento. Sempre respondia com otimismo e com um olhar que declarava paixão
e orgulho durante os meus momentos de angústia ou introspecção. À Angelina, meu maior
agradecimento, meu carinho e minha dedicação.
“À Espera dos Bárbaros”
(Konstantínos Kaváfis)

O que esperamos na ágora reunidos?


É que os bárbaros chegam hoje.

Por que tanta apatia no senado?


Os senadores não legislam mais?

É que os bárbaros chegam hoje.


Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.

Por que o imperador se ergueu tão cedo


e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?

É que os bárbaros chegam hoje.


O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.

Por que hoje os dois cônsules e os pretores


usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?

É que os bárbaros chegam hoje,


tais coisas os deslumbram.

Por que não vêm os dignos oradores


derramar o seu verbo como sempre?

É que os bárbaros chegam hoje


e aborrecem arengas, eloquências.

Por que subitamente esta inquietude?


(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?

Porque é já noite, os bárbaros não vêm


e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.

Sem bárbaros o que será de nós?


Ah! eles eram uma solução.
Contando com a memória e com seus próprios recursos,
ela emendou ritos esquecidos, misturou medicina
europeia com nativa, escritura com lendas, e lembrou ou
inventou o significado oculto das coisas. Encontrou, em
outras palavras, um jeito de estar no mundo.
(Toni Morrison, “Compaixão”)
Resumo
Após mais de um século e meio de perigosos e esporádicos contatos com os nativos do
Chaco, a Coroa espanhola iniciou, na segunda metade do século 17, um projeto de
catequização através do incentivo à atuação de missões evangélicas na região, a fim de
estabelecer uma aproximação pacífica com os diversos grupos indígenas e permitir uma
passagem segura à rota comercial entre o porto de Buenos Aires e as minas andinas do Chile.
Ainda que esta nova abordagem colonizadora não tenha resultado na pacificação dos índios
chaquenhos, o contato foi intensificado por causa da proliferação de reduções evangélicas
naquela região ao longo do setecentos, levando muitos missionários e expedicionários a
aventurarem-se no interior do Chaco, com o intuito de contatarem grupos mais afastados do
convívio colonial. Esta oportunidade gerou uma série de impressões, críticas, descrições de
caráter etnográfico, relatórios oficiais, acordos e negociações documentados ao longo de todo
o século 18, que permitem a análise não apenas do discurso que os espanhóis produziram a
respeito do contato, mas também da postura, do entendimento e das escolhas que os índios
tiveram em relação ao convívio com os agentes e instituições coloniais. A presente tese tem
como objetivo, a partir da análise de registros históricos produzidos por observadores civis e
religiosos, de uma historiografia sobre o contato entre nativos e europeus no Chaco e de
etnografias produzidas a respeito de grupos chaquenhos contemporâneos, demonstrar que os
índios tomavam suas decisões e atitudes a partir de uma lógica que não era espontânea ou
casuística, nem fruto do improviso frente às novas situações postas pelo avanço colonial. Esta
lógica se sustentava num complexo sistema mitológico que guiava as percepções e o
pensamento indígena, dotando-lhes de uma cosmologia própria e distinta da dos
colonizadores modernos. Para comprovar tal hipótese, analiso três características do cotidiano
socioeconômico indígena, cujos fundamentos práticos respaldam-se na relação com elementos
mitológicos e, consequentemente, no entendimento cosmológico que os índios possuíam do
mundo: a guerra, as trocas reciprocitárias e o sistema econômico de produção e consumo
alimentar.

Palavras-chave: Índios do Chaco; Mitologia; Guerra indígena, reciprocidade,


produção e consumo alimentar; Século 18.
Abstract
After more than one and a half century of dangerous and sporadic contacts made with
natives from Chaco, the Spanish Crown began, in the second half of the seventeenth century,
an evangelizing project by the encouragement of evangelical missions in that region, in order
to establish a peaceful approach with the various indigenous groups and to ensure a safe
transit to the trade route between Buenos Aires harbor and Chilean Andean mines.
Although this new colonizing approach has not resulted in a native pacification, the contact
between them was intensified by the proliferation of Reductions in the region over the
referred century, leading many missionaries and explorers to venture into the interior
of Chaco, with the purpose of having a broader contact with the uncontacted groups. This
opportunity has generated a series of impressions, criticism, ethnographic descriptions,
official reports, agreements and negotiations, which had been documented throughout the
eighteenth century, enabling an analysis not only of the Spanish speech concerning the
contact, but also the posture, the understanding and the choices indians made regarding the
contact with agents and colonial institutions. This thesis details, as a result of studies carried
out in a variety of historical records produced by civil and religious observers, from a
historiography on the contact between natives and Europeans in Chaco and from
ethnographies produced about Chaco’s contemporary groups, that indians made their own
decisions and took actions on the basis of a logic that was not spontaneous or case-by-case,
neither the result of improvisation with the new situations posed by colonial advance. This
logic is held in a complex mythological system which guided the indigenous way of thinking
and perceptions, providing their own cosmology, unlike that of modern colonizers. To
demonstrate this hypothesis, I analyze three indigenous socioeconomic features on a daily
basis, whose practical backgrounds rely on the relationship with mythological elements and
thus on the cosmological understanding that indians possessed about the world: the war, the
trade and the economic system of production and food consumption.

Key-words: Indians of Chaco; Mythology; Indigenous war; reciprocity, food


production and consumption; Eighteenth Century.
Sumário

Introdução ......................................................................................................................... 10

Capítulo 1. Os mitos indígenas como construção da realidade ........................................ 29


1.1 “Natureza” e “cultura” ................................................................................. 29
1.2 Os mitos ....................................................................................................... 43
1.3 As oposições duais ....................................................................................... 61

Capítulo 2. A guerra como motor social ........................................................................... 74


2.1 O lugar da guerra indígena .......................................................................... 74
2.2 A inconstância: aliados e inimigos .............................................................. 89
2.3 O pós-guerra: espólios e reprodução social ................................................. 116

Capítulo 3. Economia dos índios chaquenhos I – A captação de bens materiais:


reciprocidade, roubos e comércio ....................................................................................... 144
3.1 A influência dos chaquenhos nas rotas comerciais portenho-andinas ......... 144
3.2 O comércio de bebida como potencializador da sociabilidade indígena ..... 159
3.3 A atividade comercial sem fins lucrativos ................................................... 172

Capítulo 4. Economia dos índios chaquenhos II – A produção e o consumo alimentar


como métodos econômicos de relação cosmológica ......................................................... 188
4.1 A internalização de métodos e tecnologias modernas ................................. 190
4.2 A produção sem excedentes: uma cosmologia da prodigalidade ................ 206
4.3 Sobre a domesticação: a liberdade de ação do outro ................................... 229
Conclusão .......................................................................................................................... 238

Referências ........................................................................................................................ 249


Introdução

Os fatos são sonoros, mas entre os fatos há um


sussurro. É o sussurro o que me impressiona.
(Clarice Lispector, “A Hora da Estrela”)

O Universo não é uma ideia minha. A minha


ideia do Universo é que é uma ideia minha.
(Fernando Pessoa [Alberto Caeiro])

O jesuíta Martín Dobrizhoffer, em seu livro sobre os índios Abipone do Chaco, relata
uma curiosa manifestação xamânica que teve a oportunidade de presenciar durante seus anos
de convívio com o grupo. O missionário descreve a ocasião em que um feiticeiro ameaçava
transformar-se em uma onça para matar os demais índios.1 Escondido em sua choça, proferia
ruídos e grasnidos como os de uma fera, enquanto os espectadores, muito assustados, corriam
em desordem. Algumas mulheres, mesmo sem ver o xamã ou a sua zoomorfização, gritavam:
“¡Comienzan a brotarle por todo el cuerpo manchas de tigre! ¡Oh! ¡Ya le crecen las uñas!”.
De maneira a tentar acalmar os índios, o jesuíta alemão racionalizava: “vosotros que
diariamente matáis sin miedo tigres verdaderos en el campo, ¿Por qué os espantáis como
mujeres por un imaginario tigre en la ciudad?”. Mas, ele logo era contestado: “vosotros,
Padre, no comprendéis nuestras cosas. A los tigres del campo no les tememos y los matamos,
porque los vemos; tememos a los tigres artificiales porque no podemos ni verlos ni matarlos”.
Obviamente, o missionário manteve sua posição incrédula quanto à transformação do xamã e,
a partir da resposta que obteve, comprovou, para si, a impossibilidade de convencer os índios
do contrário, constatando que “no hay discusión con ellos, adheridos a la opinión de sus
mayores, y pertinaces ante todo razonamiento” (1784, t. 2: 85).
Não só a questão do zoomorfismo parecia incoerente à Dobrizhoffer, mas,
principalmente, o fato de os indígenas terem um grande medo da onça na qual o xamã se
transformaria. Mesmo insistindo que as feras reais – aquelas que eram quase que diariamente
encontradas na mata e que, muitas vezes, atacavam as cidades e reduções – eram as que
deveriam ser temidas, e não a onça que supostamente surgiria por meio da feitiçaria. Como no
próprio relato fica claro, os índios sabiam que a diferença entre o animal verdadeiro e aquele
que seria o resultado da metamorfose xamânica era, justamente, o fato de o segundo não

1
No original, o autor se refere a “tigre” como o animal no qual o xamã pretende se transformar. A documentação
colonial não é unânime quanto à denominação dos felinos que habitavam a região meridional da América. De
maneira a evitar confusões, e de acordo com o habitat natural destes animais, priorizarei a denominação de
“onça” sempre que a citação se debruce sobre estes carnívoros do gênero Panthera, típicos de regiões quentes de
toda a América.

10
poder ser combatido como costumeiramente se fazia com o primeiro. Os índios não
duvidavam da capacidade do xamã tornar-se uma onça: duvidavam, sim, da possibilidade de
derrotá-la.
O aspecto a ser destacado neste relato é, sem dúvida, a discordância em relação à
possibilidade de seres não visuais alterarem as relações entre as pessoas. Para além da
capacidade de os xamãs se transformarem em animais ou prejudicarem pessoas com suas
feitiçarias, o que perturbou Dobrizhoffer foi verificar que os índios temiam igualmente –
senão mais – a onça imaginária. De acordo com a concepção do jesuíta, este era um medo
provocado pela falsidade de um enganador e resultado da superstição daqueles índios. Este
tipo de conflito, que não pode ser resumido à simples divergência de percepções, dava-se em
decorrência da compreensão que cada um dos grupos – os ameríndios e os europeus – faziam
do mundo, da realidade e das relações que existiam e que eram seu produto: “o problema não
era empírico, nem tampouco prático: era cosmológico” (Sahlins, 1994: 163).
Com isso, não pretendo afirmar que qualquer possibilidade de relação ou de
entendimento entre as partes fosse nula ou impossível. Tampouco as diferenças se restringiam
à ordem da percepção ou da cognição, como se houvesse uma maior capacidade mental de
compreensão por parte dos europeus, munidos da ciência empirista dos setecentos, em
comparação com o entendimento primitivo que os grupos tribais sustentariam:
Toda sociedade parece selvagem ou bárbara quando se julgam seus costumes
pelo critério da razão; mas, julgada por esse mesmo critério, nenhuma sociedade
deveria parecer selvagem ou bárbara, pois que para todo costume recolocado em
seu contexto um discurso bem conduzido poderá achar fundamento (Lévi-
Strauss, 1991: 192).2

Se dois povos divergem quanto à compreensão do que é real ou irreal, não é porque
um deles possui maior acesso à realidade como coisa-em-si, estando mais próximo de
desvendar as verdades que regem o universo. Seja por meio do empirismo do século 18, seja
por métodos xamânicos de comunicação com o além, o homem sempre buscou uma forma de
compreender o mundo em que vive e o resultado sempre foi uma aproximação, uma
percepção parcial da realidade: “Apenas colhemos desse real (que é mesmo virtual) diversas
realidades, ou seja, atualizações de diversas ordens: cognitivas, sensitivas, metafóricas,
metonímicas, hiperbólicas etc.” (Gordon, 2003: 6, grifos no original). Em outras palavras, o
mundo não é um repositório de significados à espera de uma visão sofisticada o suficiente

2
“Toda cultura observada de fora ou sob a ótica de outros valores aparece como irracional. Em suma, toda e
qualquer cultura é um sem sentido que faz sentido para as pessoas que nela vivem. Nenhuma cultura é, assim,
racional, ao mesmo tempo em que todas o são do ponto de vista de seus próprios valores” (Porto-Gonçalves,
1990: 96, grifo no original).

11
para acessá-los e codificá-los, garantindo, assim, a estes privilegiados a compreensão
embrionária dos funcionamentos do cosmos. Lévi-Strauss já afirmava, há muitas décadas, que
os significados não eram criados a partir do mundo – era este que se formava a partir dos
primeiros: “o universo nunca significa o bastante, e o pensamento sempre dispõe de um
excedente de significações para a quantidade de objetos aos quais pode associá-las” (1958:
199).
A história da civilização ocidental nos ensina que os conceitos possuem o seu próprio
desenvolvimento histórico, pautado pelas mutações que os seus valores e significados sofrem:
“se ignorarmos que as nossas concepções do céu, das cores e do lucro, justificadas ou não,
não são pelo menos eternas, não teremos a ideia de interrogar os documentos sobre estes
capítulos, ou melhor, não perceberemos mesmo o que eles nos dizem” (Veyne, 1987: 16).
Ora, se é sabido que o pensamento ocidental é uma construção desencadeada desde, digamos,
o período greco-romano, então seria no mínimo ingênuo acreditar que o conhecimento
científico moderno, que se desenvolveu na esteira daquele, seja o parâmetro evolucionário de
todo o pensamento lógico humano. Ignorar que os povos tribais também possuem uma
história do seu próprio pensamento filosófico é menosprezar um conhecimento humano
engendrado em construções mentais operadas a partir de uma lógica racional e voluntária.
O contato cultural que ocorreu ao longo do século 18 na região chaquenha entre os
nativos que habitavam aquele território e os agentes coloniais – civis, políticos ou religiosos –
foi o responsável pela oscilação entre o conflito e a convivência entre estas duas cosmologias
diametralmente opostas, mas que se mostraram possivelmente relacionais. O que pretendo
neste trabalho é analisar este contato histórico, privilegiando, ao máximo, a análise do
comportamento indígena. Por mais que as dificuldades metodológicas imperem no processo
de análise do conhecimento de outra cultura, é fundamental que exista espaço para o estudo
de sua lógica particular. Se “toda compreensão de uma outra cultura é um experimento com a
nossa própria cultura” (Wagner, 1975: 41), cabe, portanto, à História mostrar-se confortável
com o estudo de outros grupos humanos e seus sistemas de pensamento tão distintos do
modelo dominante: “não se pode fazer uma história de qualidade, nem mesmo história
contemporânea, sem respeito às idéias, ações e ontologias que não são e nunca foram as
nossas próprias. Diferentes culturas, diferentes racionalidades” (Sahlins, 2001: 29).
Antes de pontuar os objetivos pretendidos e os pressupostos teórico-metodológicos
que orientaram a investigação, faz-se necessário apresentar um breve histórico acerca da
região chaquenha ao longo do período colonial e de seus habitantes.

12
Desde a década de 1520, a região do Chaco foi alvo de expedições espanholas que
procuravam, incessantemente, o “mítico país del oro” (Kersten, 1968: 18). Porém, esta vasta
região, que compreende parte dos atuais territórios do Paraguai, da Bolívia, da Argentina e do
Brasil, viu as frentes pioneiras de colonização diminuírem seu interesse em relação a ela após
constatar-se que não havia metais preciosos naquele território, nem em posse dos nativos que
ali habitavam (Vitar, 1997: 169). Isso desviou a empresa colonizadora para as regiões
circundantes, fazendo do Chaco um território de conexão entre as minas alto-peruanas e as
cidades e os portos da região platina. Até então, a única comunicação direta entre os colonos e
o território chaquenho ocorria através do trânsito inseguro que alguns espanhóis aventuravam-
se a realizar, resultando, geralmente, no confronto violento com os índios da região.
O interesse da Coroa espanhola em estender de vez seus domínios no Chaco e fazer da
região uma parte importante de suas possessões na América meridional não foi uma decisão à
parte dos acontecimentos que vinham marcando a passagem do século 17 para o 18. A disputa
sucessória do trono espanhol (1700-1713) e as consequentes reformas bourbônicas
impulsionaram importantes mudanças não apenas nas relações burocráticas – que, no estado
que estavam, faziam confundir “autoridades, homens de negócio e contrabandistas” (Prado,
2003: 85) –, mas também no que competia à administração do território colonial, instalando
um controle mais rígido e sério sobre as áreas já dominadas e buscando ampliar as fronteiras
internas àquelas regiões pouco conhecidas.
Através de medidas mais racionais e efetivas relativas ao controle dos espaços
coloniais, a monarquia reformista perseguia como objetivo a “incorporación de aquellas áreas
– aun las que se encontraban controladas por los ‘salvajes e inhumanos enemigos’ – que
estaban ubicadas en las márgenes y escapaban al dominio colonial” (Battcock et al, 2004: 17).
O Chaco, que cobria grande parte da rota das minas dos Andes até o principal porto de
escoamento de produtos americanos em Buenos Aires, foi justamente uma das regiões em que
se procurou resolver a ausência do Estado. Buscou-se fazer dela um espaço habitável para
colonos e funcionários reais através de forte investimento na penetração da região e na
pacificação dos seus moradores autóctones.
Assim, além da fronteira com as possessões portuguesas, a Coroa espanhola possuía
uma nova frente de avanço e defesa do território na região interna de sua própria colônia.3

3
Sobre as frentes de defesa no território colonial, Lía Quarleri (2009: 70-71) chama a atenção para as fronteiras
que haviam se formado em decorrência da expansão na América. Tanto a Espanha como Portugal disputavam
espaços nos limites que haviam sido acordados pelo já caduco Tratado de Tordesilhas. Porém, internamente aos
seus territórios coloniais, esforçavam-se para ampliar seu domínio junto aos espaços pouco ou quase nada
habitados pelos colonos. Sendo assim, formavam-se duas fronteiras distintas: a externa, que remetia aos acordos

13
Para melhor organizar a investida ao Chaco, criou-se a Governação de Tucumã, em 1563, que
ficaria sob jurisdição da Audiência de Charcas e deveria ser responsável pela consolidação de
uma via de acesso à região. Disto resultou a fundação de cidades, reduções e fortes que
buscavam reverter a ordem demográfica da região, trazendo para dentro do Chaco um
contingente significativo de espanhóis que fizesse frente aos incontáveis grupos indígenas e
possibilitassem a formação de um mercado diretamente ligado às minas sub-andinas. As
cidades de Santiago del Estero (1553), San Miguel de Tucumán (1565), Córdoba (1573),
Santa Fe (1573), Salta (1582), La Rioja (1591) e Jujuy (1593) converteram a região de
Tucumã num dos mais ativos provedores de mercadorias às minas peruanas, “mediante el
envio de mano de obra indígena, ganado, alimentos y ropa” (Vitar, 1997: 38).
As cidades e as fazendas fundadas na região, que serviam como um corredor para o
escoamento de produtos da costa para o interior e vice-versa, oportunizaram uma
aproximação com os nativos que logo se mostrou bastante perigosa. Ao longo do século 17, o
contato com os índios do Chaco tornou-se insustentável para a segurança dos moradores,
devido à série de ataques e roubos cometidos pelos grupos indígenas (Astrada, 1987: 172;
Kersten, 1968: 19-20).4 A resposta dos funcionários coloniais foi a de tentar combater estas
invasões através de medidas bélicas, que só insuflaram ainda mais os conflitos. Frente a estas
dificuldades, a Coroa espanhola passou a incentivar uma nova frente de interiorização do
Chaco, optando pela fundação de missões religiosas. Pretendia-se catequizar os índios por
meio do emprego das mesmas estratégias de conversão que já vinham sendo adotadas na
região dos rios Paraná e Uruguai, fundando-se, no entorno do Chaco, reduções administradas
e supervisionadas por missionários católicos. A partir da segunda década do século 18, um
sem-número de reduções foi fundado na região chaquenha, dentre as quais San Esteban
(1714), de índios Lule; San José (1734), de índios Vilela; San José (1753), de índios
Mataguayo; San Ignacio (1756), de índios Toba; San Francisco Javier (1743) e San Pedro
(1764), de índios Mocoví; San Jerónimo (1748), Concepción (1749), San Fernando (1750) e

e conflitos diplomáticos entre as duas Coroas, marcados por um “carácter variable por sus contracciones y
expansiones de orden espacial y por la coexistencia de altos niveles de violencia y circulación de mercaderías e
información, redes de parentesco y agentes religiosos”; e a fronteira interna, de responsabilidade específica de
cada Estado, que se caracterizava pela área de contato com os grupos indígenas que não haviam sido
incorporados de fato ao sistema colonial, provocando um tipo particular de interação com estes grupos: “en los
momentos de paz, en los dominios hispánicos se llegaba a acuerdos y se firmaban tratados; en los
conmocionados por el enfrentamiento bélico, se realizaban campañas de ‘pacificación y exterminio’ mientras
permanecía el intercambio económico y cultural entre ambos frentes”.
4
Beatriz Vitar (1997: 59) lembra que, após investidas mal sucedidas tanto de viajantes, como de missionários,
houve a tentativa de se fundar duas cidades no Chaco: Concepción del Bermejo, no século 16, na região
periférica; e Santiago de Guadalcázar, no século 17, no interior. Ambas foram arruinadas pelas investidas bélicas
de grupos Guaicuru.

14
Timbó (1763), de índios Abipone (Lucaioli e Nesis, 2007: 2; Vitar, 1997: 227-257; cf. a
tabela em anexo). Com isso, a Metrópole procurava não só acalmar as hordas indígenas hostis
às investidas coloniais, como também inaugurar uma nova frente missionária que, em
conjunto com as incursões realizadas em direção à região patagônica, constituíam-se em
tentativas de alcançar os benefícios conseguidos com as missões guaraníticas na mesopotâmia
platina.
A partir da fundação das primeiras reduções, a penetração no Chaco foi mais eficiente,
sobretudo devido ao auxílio que alguns grupos indígenas prestavam aos missionários para
contatar tribos isoladas. O resultado foi uma convivência direta entre os índios e os espanhóis,
fossem estes autoridades civis, moradores das cidades ou missionários, o que possibilitou uma
grande quantidade de registros escritos nos quais afloram descrições sobre os costumes, as
práticas cotidianas e ritualísticas, as ferramentas e armas utilizadas, as características físicas e
linguísticas, os métodos de produção e consumo alimentar e a organização familiar e política
destes grupos. Daí as tentativas de sistematização de um padrão para cada grupo indígena,
com descrições que buscavam acumular dados e conhecimento sobre os nativos da região.
Em relação a este ponto, Beatriz Vitar (1997: 72) lembra que os nomes atribuídos aos
grupos indígenas do Chaco – e se poderia estender isto a toda América – foram denominações
que não correspondiam à maneira como estes povos se autodesignavam. Os agentes coloniais,
na tentativa de facilitar a descrição dos diversos e distintos grupos que habitavam a região,
procuraram utilizar denominações que pudessem identificar certos contingentes humanos que
mantivessem costumes parecidos ou línguas semelhantes. Assim, os viajantes ou missionários
coloniais referiam-se genericamente aos Guaicuru para diferenciá-los dos Mataco, devido à
grande distinção linguística entre estes dois complexos étnicos. Porém, reconhecia-se que os
Abipone, Mocoví ou Payaguá eram grupos falantes da língua Guaicuru, apesar de
apresentarem costumes e condutas que os diferenciavam. Houve, ainda, cronistas setecentistas
que ressaltaram as diversas parcialidades que formavam um grupo indígena, como Félix de
Azara, que, ao se referir aos Guaná, grupo do tronco linguístico Lengua (Maskoi), informa
que existiam oito “hordas diferentes, llamadas layana, ethelenoé o quiniquinao, chabaraná o
choroaná, o tchoaladi, caynaconoé, nigotisbué, yunaeno, tay y yamoco” (1809: 47).
Estas denominações podem ser criticadas do ponto de vista histórico, por acabarem
resultando em generalizações a serviço do projeto colonial. Assim, quando o padre Jaime de
Aguilar descrevia os índios Vilela como “gente capaz y madura para el Evangelio, porque
tienen moradas fijas, ganan su sustento con su trabajo, tienen nociones de justicia y equidad”
(CA, 1730-1735: 104), ou declarava que os Chiriguano eram possuidores de um “genio

15
arrogante e inconstante, mostrándose hasta ahora menos capaz para el Evangelio” (id. ibid.:
113), está menos atribuindo-lhes características para possíveis comparações do que
construindo um mapa étnico de orientação aos demais missionários. Assim, quanto mais
generalizante fosse a denominação de um grupo, maior seria a impressão de controle sobre os
índios: padronizar os nomes de grupos indígenas cumpria importantes funções para a empresa
colonizadora, que poderia dinamizar a comunicação e a atuação por meio das classificações
destes povos.
Outro ponto importante a ser ressaltado é que muitos dos nomes de grupos indígenas
amplamente utilizados pelos espanhóis eram, de fato, autodesignações que tinham como
significado uma atribuição de identidade relacional. A palavra Guaná, nome pelo qual ficou
conhecido um dos grupos chaquenhos, significa a palavra “homem” (Azara, 1809: 48), bem
como Nivaclé, nome de outro grupo da região, que significa “ser humano” (Cruz Sánchez,
1998: 284). Os nomes pelos quais as tribos chamam a si mesmas designam antes pronomes do
que substantivos, afirmando o ponto de vista do sujeito que está falando, e não uma
designação objetiva. Desta forma, os índios não estavam atribuindo-se um nome como forma
de se distinguir de outros grupos, mas, sim, de se afirmar enquanto pertencentes a uma
espécie distinta: “Longe de manifestarem um afunilamento semântico do nome comum
próprio (tomando ‘gente’ para nome da tribo), essas palavras fazem o oposto, indo do
substantivo ao perspectivo (usando ‘gente’ como a expressão pronominal ‘a gente’)”
(Viveiros de Castro, 2002a: 371). Assim, os Toba,5 grupo chaquenho do tronco linguístico
Guaicuru, atualmente se autodenomina Qom, que
deriva do pronome pessoal da primeira pessoa do plural (qo'omi) e designa,
como tal, uma posição relacional. Essa posição abarca, em sentido estrito,
aqueles que falam uma mesma língua (qom lactaq, literalmente “a palavra qom”)
e compartilham certas práticas e representações. [...] De fato, o etnônimo qom se
6
opõe à categoria “não-indígena” ou “branco” (docshic) (Salamanca, 2009: 179).

Apesar da imposição que representam estas classificações etnonímicas, não há como


fugir completamente delas. Já não é uma novidade para a historiografia atual o fato de as
reduções de índios Guarani fundadas na região platina ao longo dos séculos 16 e 17 – e que se
5
O termo Toba é a denominação que outros grupos indígenas atribuíram a esta etnia chaquenha, cujo significado
em guarani é “frentones” (“testudos”), pois tinham o costume de raspar as sobrancelhas (Salamanca, 2009: 179).
O mesmo ocorre com a palavra Guaicuru: nome pelo qual os Guarani chamavam estes índios do interior do
Chaco, mas que se autodenominavam Eyiguayeguis (cf. Sánchez Labrador, 1770, t. 2: 58-59).
6
Entende-se, em parte, a famosa relação que os Bororo fizeram ao afirmarem que os Bororo são araras: “eles
não estão associando ‘humanos’ e ‘aves’ numa sentença predicativa: não são os humanos que são aves, são os
Bororo; eles não são qualquer ave, eles são araras. [...] Bororo e arara são antes posições ocupadas do que
essências” (Gordon, 2003: 5, grifos do autor). O termo “bororo” não restringe o conceito de pessoa aos homens
e mulheres; ele estende-se até – no mínimo – às araras. As implicações que esta extensão conceitual de pessoa
tem no pensamento ameríndio serão analisadas no primeiro capítulo.

16
concretizaram como modelo de catequização indígena no século 18 – terem sido, ao longo de
toda sua história colonial, um espaço etnicamente heterogêneo, em que a maioria dos
habitantes eram Guarani, mas não sua totalidade. Como demonstrarei no segundo capítulo, a
prática de apresamento de inimigos em guerras indígenas era muito frequente entre os
chaquenhos, que, muitas vezes, incorporavam estes prisioneiros – mulheres ou crianças de
outras etnias – como familiares no seio da tribo. Mesmo as aldeias afastadas do convívio com
o mundo colonial constituíam-se de uma mistura significativa entre seus membros. Qualquer
rigorismo acadêmico acerca de um revisionismo etnonímico não daria conta das mudanças
que, ao que tudo indica, ocorriam dentro das aldeias nativas desde antes da invasão espanhola
na América. Seria inviável realizar uma análise sem a utilização destas classificações.
Contudo, não se deve negar a importância de uma crítica analítica das fontes como um
esforço para a realização de um trabalho sério e honesto em relação ao passado destes grupos
nativos. Porém, não acredito ser um caminho viável anular completamente a utilização das
denominações consagradas pela documentação e, posteriormente, pela historiografia.
Uma classificação etnonímica bastante útil que servirá como modelo é a organizada
por Ludwig Kersten (1968: 39-40), em que o autor identifica os troncos linguísticos
chaquenhos e os grupos referentes. Neste trabalho será recorrente a aparição dos Abipone,
Mocoví, Toba, Mbayá e Payaguá, do tronco Guaicuru; os Mataco, do tronco Mataco-
Mataguayo; os Vilela e os Lule, do tronco Vilela-Lule; os Lengua e Guaná, do tronco Maskoi
(também chamado Lengua); e os Zamuco e Chamacoco, do tronco Zamuco. O autor ainda cita
os Chiriguano, que formam grupos no noroeste do Chaco, na região alto-peruana,
pertencentes ao tronco linguístico Tupi – uma provável parcialidade Guarani que migrou até
esta região. Beatriz Vitar, em sua Tese (1997: 23), afirma que a documentação evidencia dois
espaços distintos no Chaco, habitados cada um por grupos cujas condutas frente à empresa
colonizadora foram bastante distintas: uma zona periférica habitada pelos Lule, Vilela e
Mataco – índios “de a pie” e menos agressivos; e a zona interior, habitada pelos grupos
Guaicuru, mais violentos na sua relação com o mundo colonial e costumeiramente equestres.
A documentação produzida no século 18 – cartas administrativas, crônicas de viajantes
ou memórias de missionários que atuaram no Chaco – possui como temas recorrentes a
inclinação beligerante destes grupos indígenas e a facilidade com que eles efetuavam trocas
comerciais percorrendo longas distâncias. Neste sentido, para os agentes coloniais, existiam
basicamente dois conjuntos de índios: os que se mantinham aliados ao projeto colonial – e
deixavam-se reduzir pelos missionários – e os que ficavam à parte deste sistema. Por isso, os
índios que aderiram ao projeto colonial acabavam sendo introduzidos como aliados dos

17
espanhóis na proteção das cidades contra grupos hostis, além de serem integrados no meio
reducional com a função também de produzir bens comercializáveis tais como erva mate e
gado. Inseridos no sistema, estes índios se tornavam parte do projeto colonial, mas não de
maneira passiva.
Exemplo disto são as redes de comercialização que os índios movimentaram dentro do
sistema colonial. Muito dos produtos vendidos ou trocados pelos nativos a outros grupos, ou
mesmo aos espanhóis, tinham origem nos assaltos realizados em outras cidades ou fazendas.
Armas, roupas, ferramentas, alimentos ou cativos de guerra eram roubados de uma
determinada localidade para serem consumidos pelo próprio grupo ou vendidos em outra
região: “Así, mientras se atacaba a algunos pueblos, se concertaban tratados o pacificaciones
con otros, en los cuales, a su vez, vendían o intercambiaban lo que se había sustraído” (Ruiz
Moras, 2001: 204). Miguel Palermo (2000: 373-374) exemplifica isto por meio da atitude que
os Abipone mantiveram em relação à cidade de Corrientes. A convivência pacífica entre os
moradores e os índios permitia que estes últimos entrassem livremente na cidade para realizar
trocas comerciais. O assassinato de um cacique resultou no rompimento desta aliança,
fazendo com que os Abipone passassem a roubar os moradores de Corrientes e vender os
espólios na cidade de Santa Fe, que passou, consequentemente, a ser a sua nova aliada.
Constatam-se ainda as reclamações feitas pelo cacique Abipone Don Miguel Benavides (c.
1780) que denuncia as investidas furtivas que índios Mocoví das reduções de San Javier e San
Pedro fazem em sua redução, San Jerónimo, roubando gado para revender aos espanhóis (cf.
Paz, 2009).
Nestas situações, ficavam evidentes as alianças e inimizades que os índios
estabeleciam como forma de posicionarem-se frente à situação colonial. Muitos líderes
indígenas impunham-se aos seus seguidores por meio das negociações com os colonos,
administrando aproximações pacíficas ou hostis de acordo com os interesses de seu grupo.
Daí que, para muitos caciques, a guerra era antes uma opção do que uma alternativa (Paz,
2007a: 11). Assim, em conjunto com as trocas comerciais, as investidas armadas às cidades,
fazendas ou reduções eram uma forma de os grupos indígenas movimentarem bens para o seu
próprio consumo ou para comercialização em outras regiões. Além dos cativos de guerra que
poderiam ser incorporados ao grupo – pela antropofagia ou pela aliança matrimonial (Perusset
e Rosso, 2009: 67) –, produtos como erva mate, armas ou bebidas alcoólicas eram muito
comuns na lista de butins. O álcool, inclusive, foi um dos produtos mais cobiçados pelos
índios, sendo o ingrediente imprescindível às festas aldeãs denominadas borracheras. A
associação entre a bebida alcoólica e o estado violento que resultava de seu consumo fez, por

18
exemplo, com que a cidade de Buenos Aires fosse proibida de vender este produto aos índios
(Salas [14/04/1773], fl. 12v) – o que, de fato, não interrompia o seu consumo, já que os
nativos podiam conseguir aguardente através de trocas realizadas com colonos de outras
regiões (CA, 1735-1743: 580).
Para a análise desta questão, deve-se também considerar a redução dos grupos
indígenas junto às missões jesuíticas fundadas no Chaco do século 18. Dos grupos
chaquenhos, os Abipone e os Mocoví foram os maiores colaboradores do projeto reducional
proposto pela Companhia de Jesus, pelo menos em número de reduções fundadas –
diferentemente, por exemplo, dos Toba, cuja inimizade não se restringia apenas aos Vilela e
aos Mataco, mas, também, aos colonos em geral (Ruiz Moras, 2001: 205), e dos Payaguá,
hostis ao projeto missionário, mas aliados próximos dos colonos citadinos (Azara, 1790: 365).
Ainda assim, os grupos que se submetiam ao convívio jesuítico eram alvo de críticas
relacionadas à sua imprevidência no trabalho produtivo, como se pode constatar nas queixas
feitas por Florián Paucke (Paucke, 1767, t. 2: 66) sobre a lentidão com que trabalham os
Mocoví reduzidos em San Javier, ou as que foram feitas pelo padre Sánchez Labrador (1770,
t. 2: 110), ao noticiar o fracasso da missão de Belém, instalada junto aos índios Mbayá,
devido à imprevidência dos nativos e aos furtos cometidos pelos próprios índios reduzidos.
É a constatação desta oscilação que caracterizava as relações que os índios mantinham
com os brancos, ora manifestando uma aproximação amigável e de conduta prestativa, ora
mostrando-se contrários à presença colonial e hostis aos colonizadores, que justifica a
investigação da qual resultou esta Tese. Nela, analiso o contato entre os grupos chaquenhos e
os espanhóis ao longo do século 18, de forma a compreender por que, naquela situação
contextual específica, os nativos escolheram promover, manter e até verticalizar o contato,
partindo de esforços deliberados, a fim de colocarem-se – de forma pacífica ou violenta –
como agentes ativos naquela situação.
Com isso, busco compreender como os indígenas se portaram frente à situação
colonial que avançava sobre seu território, procurando de várias formas integrá-los em seus
sistemas econômico, militar e religioso. As atitudes tomadas pelos nativos não foram de
maneira alguma homogênea, mas antes distintas de um grupo para o outro – e, por vezes,
inconstantes entre os membros de um mesmo grupo. Daí a relação que se estabeleceu entre os
índios e os brancos ter sido bastante conturbada, principalmente para os últimos, que,
presenciando momentos de aproximação pacífica, acompanhados de uma inclinação à
conversão religiosa e ao estabelecimento de trocas comerciais, também defrontavam-se com a
hostilidade bélica praticada através de violentas guerras e ações furtivas. Porém, estas

19
atitudes, apesar de terem sido vistas como contraditórias, associavam-se à conduta indígena
de construção das relações sociais, fossem elas de aliança ou de inimizade.
A partir deste objetivo geral, apresento como objetivos específicos três conjuntos de
subtemas que serão discutidos ao longo dos capítulos: a guerra, a reciprocidade e o regime de
produção e consumo alimentar – todos eles responsáveis pela construção e conservação das
relações sociais tanto do grupo, como dos indivíduos. Para que estes três subtemas possam
dialogar entre si e não se dispersem em análises autônomas, partirei de um tema que
conduzirá o desenvolvimento do texto da Tese. A mitologia indígena, para além de uma
tradição oral que visava à reprodução de um conhecimento anterior ao mito, era uma forma de
produção de conhecimento geradora de práticas rituais, simbólicas e sociais. Tanto a guerra
como as trocas e o regime de produção e consumo da economia indígena fundamentavam-se
como práticas relacionadas à mitologia, que dava razão às suas existências e atualizava-se de
acordo com a situação vivenciada. Daí a importância de uma discussão teórica que considere
a análise dos mitos indígenas coletados e reproduzidos pelos viajantes e missionários.
Para tal, fundamentei a análise a partir do entendimento que Lévi-Strauss faz da
mitologia dos grupos ameríndios, ao analisar a estrutura discursiva dos mitos (1958, 1964,
1971, 1991) e a sua função enquanto sistema de conhecimento (1962, 1981). A principal
marca da obra do antropólogo belga é a questão da dualidade presente no pensamento
indígena, em que a lógica das relações simbólicas ou sociais se dá por meio das oposições
binárias, porém não excludentes – frio e quente; alto e baixo; próximo e distante; estrangeiro e
cognato. Lévi-Strauss também procurou mostrar que a ciência das sociedades industriais e o
conhecimento tradicional de grupos tribais, ainda que completamente opostas em seus
resultados, assemelham-se na medida em que ambas buscam compreender o funcionamento
do universo. Os índios, portanto, não agem de forma instintiva ou arbitrária, como se suas
ações estivessem fundamentadas na busca crônica pela sobrevivência e como se os
significados que atribuem ao mundo fossem um composto de simbolismos e abstrações.
Segundo Bruno Latour (1994), o pensamento indígena parte de uma lógica de
compreensão do mundo em que não existe a separação entre a “natureza” e a “cultura”.
Assim, diferentemente do pensamento moderno, o homem não é o detentor de uma visão
privilegiada sobre os objetos que compõem a sua realidade: natureza e cultura fazem parte de
um mesmo grau ontológico que coloca o indígena em uma relação subjetiva com o ambiente
que o cerca. Se para o pensamento moderno toda a realidade é inata, porque faz parte da
natureza, possibilitando apenas sua observação, para o pensamento indígena a realidade é uma
construção, passível de ser transformada a partir da relação que os índios estabelecem com os

20
demais seres, entidades e fenômenos. Autores como Roy Wagner (1975), Philippe Descola
(1998, 1999, 2002) e Eduardo Viveiros de Castro (2002a, 2002b) aplicam esta análise em
seus estudos. Wagner demonstra que a compreensão de uma natureza é, mesmo para as
sociedades complexas, uma invenção da mente humana, resultando que nenhuma realidade é
inata, mas que a ideia de existir uma realidade é que é inata. Descola foca-se na relação entre
o homem e a ideia que este possui a respeito do lugar ontológico que os animais ocupam.
Segundo o antropólogo francês, os ameríndios não se diferenciam dos animais
espiritualmente, na medida em que entendem haver uma condição ontológica compartilhada
por todos os seres: a humanidade. Viveiros de Castro, ampliando estas teorias, estabelece o
conceito de Multinaturalismo, em que, ao contrário do multiculturalismo ocidental, os
ameríndios entendem haver uma única cultura compartilhada por todos os seres, mas uma
diversidade de naturezas que os diferenciam; e o conceito do Perspectivismo, afirmando que,
para os índios, a maioria dos seres possui um ponto de vista que é formador de um mundo.
Os estudos referidos acima também serão fundamentais para que se possa delimitar o
conceito de cosmologia. Se há uma característica do pensamento indígena que, desde Lévi-
Strauss, é apontada como o cerne para o seu entendimento, é o fato dele operar à base de uma
filosofia específica de compreensão e relação com o mundo. Cosmologia, portanto, é um
conjunto de teorias a respeito do mundo, que compreende e explica o seu funcionamento
físico, o lugar ocupado pelos seres e entidades que o habitam, as relações formais e
simbólicas entre eles e, principalmente, a disposição de percepções sobre a realidade. Daí a
importância de se ressaltar a compreensão que os índios constroem a respeito da natureza –
não como um cenário anterior e independente da atuação humana, mas antes como parte de
um todo composto por seres e entidades que se relacionam “mediante nexos de carácter social
y jurídico que son del mismo tipo de los que se establecen entre los hombres” (Mashnshnek,
1975: 35). Em suma, para os ameríndios “natureza e cultura são parte de um mesmo campo
sociocósmico” (Viveiros de Castro, 2002a: 369). Para além das diferenças de práticas e de
costumes entre um grupo chaquenho e outro, acredito haver uma cosmologia que os identifica
como pertencentes a um pensamento distinto, não em grau, mas sim em gênero, da
cosmologia das sociedades europeias modernas.
Para confrontar este aporte teórico, recorri à documentação manuscrita produzida ao
longo do século 18, à produção historiográfica clássica e mais recente – das áreas de História
Indígena e História da América Colonial – e a produções etnográficas resultantes da pesquisa
de campo junto a grupos chaquenhos contemporâneos.

21
As fontes históricas estão divididas, fundamentalmente, em dois grupos: a
documentação religiosa, produzida por membros da Igreja Católica; e a documentação laica,
proveniente dos agentes burocráticos ou coloniais. A documentação religiosa é composta por
cartas escritas, em sua maioria, por membros da Companhia de Jesus – desde aqueles que
integravam a alta hierarquia da Ordem até os que atuavam em contato direto com os índios
nas reduções. São correspondências que informam a situação de contato, pontuando, por um
lado, as dificuldades enfrentadas pelos padres, que procuravam impor um modelo de vida
muitas vezes incompatível com a dos índios, e por outro os sucessos conquistados com uma
aproximação amistosa e a consequente convivência entre os nativos. Além das missivas dos
jesuítas que atuavam na colônia, acrescentam-se as memórias escritas pelos inacianos, antes
ou após a expulsão da Companhia de Jesus dos territórios da Coroa espanhola, em 1767, que
formam um patrimônio bibliográfico, em sua grande maioria, de inegável caráter apologético.
São escritos que fornecem importantes dados culturais sobre os nativos, devido ao seu caráter
etnográfico, ao abarcarem detalhes da vida religiosa, cerimonial, doméstica, alimentar e
cotidiana dos índios. Por isso, as publicações de Pedro Lozano (1733), Florián Paucke (1767),
Pedro Guevara (1764), José Sánchez Labrador (1770), José Jolís (1789) e Martín
Dobrizhoffer (1784) estarão presentes ao longo de todos os capítulos da Tese. Também fazem
parte da documentação religiosa as correspondências enviadas por membros eclesiásticos,
como os bispos que atuaram nos principais centros urbanos da região, e cartas e memórias
escritas por membros de outras Ordens religiosas que também promoveram missões junto aos
índios do Chaco, como os franciscanos, os mercedários e os dominicanos.
Ainda em relação às fontes primárias, a documentação laica produzida sob a forma de
cartas escritas por agentes ligados à burocracia colonial tem grande importância para a análise
pretendida, já que questões que envolviam a administração da Colônia esbarravam nos
conflitos bélicos com os índios ou em suas transações comerciais. São correspondências,
memórias, interrogatórios, diários de expedições, testemunhos, descrições e informes legais
que contemplam uma ampla variedade de dados e informações sobre o contato e convívio
com os índios, relatados a partir de experiências, pacíficas ou violentas, que moradores das
cidades, funcionários reais, autoridades coloniais ou viajantes tiveram a oportunidade de ter
junto aos nativos. As cartas e os relatórios escritos pelos governadores de Tucumã e de
Buenos Aires, que, devido à responsabilidade de seu cargo, tinham a obrigação de manter a
Coroa constantemente informada, foram, dentre a documentação laica, os textos mais
consultados, dada a riqueza de informações contidas nas descrições de eventos e situações
ocorridas. Esta documentação está, em parte, publicada na Coletânea de obras coloniais

22
organizada por Pedro de Angelis (1836-1837), na coleção de documentos sobre a expulsão
jesuítica organizada por Francisco Brabo (1872) e nos livros publicados por Don Félix de
Azara (1790 e 1809). Porém, tive acesso à maior parte desta documentação, bem como à de
cunho religioso, através da consulta a manuscritos não publicados e que se encontram
disponíveis em arquivos públicos e bibliotecas localizadas na Argentina e na Espanha.
É importante sublinhar que a utilização de um corpo documental variado se deve,
justamente, ao propósito de acessar, com maior amplitude, os dados referentes ao contato
entre a sociedade colonial e os grupos nativos. As cartas jesuíticas, inegavelmente, fornecem
valiosas informações sobre as práticas culturais indígenas, devido às orientações no sentido de
promover a sistematização e a socialização do conhecimento adquirido pelos padres que
guiavam a sua produção e circulação, tendo em vista o aprimoramento da experiência
missionária. Cabia a esta correspondência unir, por meio da escrita, os diversos e esparsos
membros da Companhia de Jesus, mantendo a hierarquia da Ordem; promover uma
propaganda edificante que inspirasse novas adesões; e dividir as experiências alcançadas de
maneira a tornar as missões mais frutíferas pela troca de informações (Eisenberg, 2000: 49-
50; cf. Londoño, 2002 e Palomo, 2005). Já a documentação laica estava voltada ao
atendimento de demandas burocráticas ligadas aos mecanismos relacionais entre os agentes
administrativos que serviam na Colônia. Apesar disto, suas informações são importantes na
medida em que denunciam atuações indígenas ou fornecem posições tomadas por agentes
coloniais em relação às conversações com os nativos. Assim, por exemplo, são frequentes as
denúncias encontradas na correspondência laica, informando assaltos e roubos indígenas em
estâncias que podem ser confrontadas com as descrições sumárias que os jesuítas faziam
sobre o tipo de montaria, as armas, o tipo de investidas bélicas que os diferentes grupos
indígenas realizavam. Apesar do grande volume e da diversidade que caracterizam a
documentação que analiso, entendo que ela foi de fundamental importância para a
investigação proposta.
Utilizei como bibliografia principal os autores que pesquisaram sobre o mesmo
contexto temporal que considero na Tese ou autores que trabalham com os grupos indígenas
do Chaco, mesmo que seus estudos contemplem períodos posteriores ao século 18. Por isso, a
bibliografia consultada abarca desde livros e artigos de análise histórica sobre o contato entre
os espanhóis e os índios na região chaquenha até trabalhos de campo realizados por
antropólogos que visitaram ou conviveram por certo tempo com os nativos.
Um dos temas explorados por autores que vêm se ocupando com a região do Chaco é
o relativo à liderança indígena. Beatriz Vitar, por exemplo, analisa em seus trabalhos (2001,

23
2004) tanto o espaço que os tradicionais líderes indígenas possuíam na nova situação
reducional quanto a participação que as mulheres, em especial as dos grupos Mocoví,
exerciam neste mesmo espaço. Ainda sobre os conflitos bélicos, a obra de Daniel Santamaría
aborda a relação de guerra e de paz existente entre os agentes coloniais e os indígenas
chaquenhos, tendo como objetivo a análise dos seus efeitos tanto em termos administrativos
coloniais (1999) quanto para as relações comerciais com os nativos (1993). Enfocando as
lideranças indígenas e as redes sociais que se formavam entre os grupos reduzidos e os grupos
indígenas dispersos, Carina Lucaioli (2009a, 2011), Carlos Paz (2007b, 2009) e Guillermo
Wilde (2003, 2009) contribuem significativamente com suas investigações sobre as relações
de poder que se confrontaram entre o sistema político imposto pelos espanhóis e a
organização tribal que os grupos indígenas mantinham.
Dentre os trabalhos realizados por antropólogos, destaco os que contemplam estudos
sobre grupos indígenas chaquenhos atuais e que serão utilizados com a finalidade teórico-
metodológica de aprimorar a leitura e análise documental e, com isso, possibilitar o
levantamento de um maior número de informações sobre estes grupos. Autores como Alfred
Métraux (1944, 1948) e Branislava Susnik (1982, 1985) são referências obrigatórias no que
toca à etnologia chaquenha, tendo se dedicado, principalmente, a estudos sobre a mitologia
destes grupos. Dentre os estudos realizados por antropólogos argentinos sobre as populações
chaquenhas atuais, destaco os de Anatilde Idoyaga Molina (1998), Celia Mashnshnek (1975),
Flavia Ottalagano (2007) e de Ezequiel Ruiz Moras (2001). Deve-se acrescentar ainda a
coletânea editada por José Braunstein e Norma Meichtry (2008), que conta com artigos de
antropólogos empenhados em investigar a representação social e de prestígio que mantêm as
lideranças de grupos indígenas da região chaquenha e dos rios da Bacia do Prata.
A Tese está dividida em quatro capítulos, sendo que cada um deles está direcionado
para a discussão de um tema específico.
O primeiro capítulo, de caráter teórico, abordará a questão da mitologia indígena como
fonte de conhecimento do pensamento ameríndio. Para tal, parto da diferença entre o
conhecimento objetivo – abordagem tipicamente científico-moderna – e o conhecimento
subjetivo – cuja teoria levistraussiana aponta como o tipo de saber de grupos tribais. Esta
distinção surge da diferença que tais grupos humanos – a sociedade ocidental moderna e os
povos sem escrita – possuem em relação aos conceitos de “natureza” e “cultura”, observação
teorizada, principalmente, por Bruno Latour. É com estas bases teóricas que analiso os
discursos mitológicos coletados pelos agentes coloniais ao longo do século 18 entre os índios

24
chaquenhos. A teoria do Multinaturalismo e a do Perspectivismo Ameríndio servem como
base também para a análise de certos comportamentos relacionados à mitologia.
O segundo, o terceiro e o quarto capítulos têm como ponto principal a análise das
relações práticas que os grupos chaquenhos mantinham com o outro, ou seja, a maneira como
estabeleciam a dinamicidade da construção da pessoa e do coletivo através da internalização
de bens materiais ou simbólicos, ou da incorporação, no seio familiar, de indivíduos de fora
do grupo. Se, no primeiro capítulo, busco demonstrar, com a análise da mitologia, que o
conhecimento indígena fundamenta-se na absorção de elementos exógenos, configurando-se
um pensamento aberto ao que vem de fora, no segundo, analiso a guerra indígena como um
meio de internalização do inimigo no grupo familiar, quer através da ingestão antropofágica
ou da socialização das partes do inimigo morto, como a cabeça-troféu, quer através da
incorporação do cativo de guerra como membro cognático. Assim, ao invés de partir da ideia
de que a guerra promovida pelos chaquenhos intencionava o extermínio do inimigo, analiso as
investidas bélicas como um produtor de relações sociais entre os índios.
O terceiro e o quarto capítulos dividem-se entre a análise de aspectos da economia
indígena. No terceiro capítulo, partindo do contexto comercial implantando pela colonização
da região chaquenha, analiso como os nativos integraram-se no sistema mercantil colonial,
adotando-o, até certo limite, como um modo de potencializar suas trocas tradicionais. A
reciprocidade, enquanto prática de manutenção das alianças entre membros de uma mesma
tribo ou entre grupos amigos, foi amplamente praticada pelos chaquenhos como forma de
circulação de bens, aproveitando-se das redes mercantis estabelecidas pelos colonos.
Contudo, pretendo mostrar que, mesmo integrados ao sistema de comércio colonial, os índios
não incorporaram o sentido patrimonialista do lucro e do enriquecimento – o que, na prática,
gerava críticas por parte dos espanhóis, que frequentemente descreviam os indígenas como
maus comerciantes.
Já no quarto capítulo, ao contrário do anterior, apresento e analiso as razões por que os
chaquenhos não incorporaram alguns métodos e técnicas do sistema econômico moderno, em
especial a prática da agricultura moderna, a produção de excedente, o armazenamento
alimentar e a domesticação de animais em cativeiro para reprodução. Para esta análise, retomo
a questão da cosmologia indígena como aporte teórico para evidenciar que o modo de
produção e consumo implantado a partir da lógica do sistema colonial e aquele que era
tradicionalmente realizado pelos índios não se diferenciavam apenas por questões técnico-
instrumentais, mas antes, e fundamentalmente, pelo modo como ambas as culturas entendiam
e se relacionavam com os demais seres que coexistiam na natureza.

25
(Mapa do Chaco argentino, retirado de Lucaioli, 2009a: 78)

26
(Adaptado do Handbook of South American Indians, volume 1)

27
Reduções do Chaco fundadas no século 18

Ano Nome Grupos Local Observação


1711 San Juan Batista de Balbuena Lule Rio Salado Sob jurisdição de Salta

17147 San Esteban de Miraflores Lule Rio Salado Sob jurisdição de Salta
Fundada pelos jesuítas Agustín Castañares
1724 San Ignacio Zamuco
e Ignacio Chomé
Vilela; Hipas;
1735 San José8 Rio Salado Sob jurisdição de Santiago de Estero
Humaguampas
Fundada pelo jesuíta Ignacio Burges; sob
1743 San Francisco Javier Mocovi Rio Paraná
jurisdição de Santa Fe
1748 San Jerónimo del Rey Abipone Rio Paraná Sob jurisdição de Santa Fe

1749 Purísima Concepción Abipone Rio Salado Sob jurisdição de Santiago del Estero

1750 Jesús, María y José Mataguayo Durou menos de um ano

1750 Nuestra Señora de los Dolores Malbalae Durou menos de um ano

1750 Nuestra Señora del Buen Consejo Mataguayo Rio Salado Sob jurisdição de Salta

1750 San Fernando del Río Negro Abipone Rio Paraná Sob jurisdição de Corrientes
Toba; Também conhecida como San Ignacio de
1756 San Ignacio de Ledesma
Mataguayo Río Negro; sob jurisdição de Jujuy
Fundada pelo jesuíta José Sánchez
1760 Nuestra Señora de Belén Mbayá Rio Ypane
Labrador
1760 San Juan Nepomuceno Guaná Rio Paraguai Fundada pelo jesuíta Manuel Durán

1762 Nuestra Señora del Rosario Abipone Rio Pilcomayo Chaco Central

1762 Nuestra Señora del Bermejo Abipone Rio Bermejo Chaco Central

1763 San Carlos del Timbó Abipone Rio Paraguai Chaco Central; sob jurisdição do Paraguai

1763 San Joaquín de Ortega9 Umoampa Rio Salado Sob jurisdição de Salta
Nuestra Señora del Pilar de Pasaíne; Também conhecida como N. S. de la
1763
Macapillo10 Atalala11 Columna; sob jurisdição De Salta
1764 San Pedro Mocovi Rio Paraná Sob jurisdição de Santa Fe

1773 Santa Rosa de Lima Vilela Rio Salado


San Francisco Solano de
1776 Mocovi Cacique Atasorín12
Remolinos
1776 Nuestra Señora de las Mercedes Mocovi

1780 Santiago de los Dolores Mocovi Rio Bermejo La Cangayé

1781 San Bernardo el Vértiz Toba Rio Bermejo

7
Fundada em 1711, só se consagrou como redução em 1714.
8
Em 1761, foi transladada para a região de Petacas. Sobre a redução, ver Bruno, 1968, t. 4: 482 e ss.
9
Local onde faleceu o Governador Matorras.
10
Redução onde se encontrava o padre Jolís no ano da expulsão dos jesuítas.
11
A Redução Nuestra Señora del Pilar de Macapillo também tinha índios Vilela (do cacique, Lumpulampana) e índios
Toba (dos caciques Paktoque e Quetaydi): estavam aguardando novas reduções (Matorras [15/03/1775]: fl. 3v).
12
Falecido em 1776.
Capítulo 1
Os mitos indígenas como construção da realidade

Os seus olhares eram iguais, mas não viam o


mesmo. Eram o mesmo olhar a ver duas coisas.
(José Luís Peixoto, “Nenhum Olhar”)

No firmamento há mudança. A montanha e a


estrela são indivíduos e os indivíduos caducam.
(Jorge Luis Borges, “O Aleph”)

1.1 “Natureza” e “cultura”


Já afastado dos serviços que prestava à Coroa espanhola, Don Félix de Azara termina
e publica seu último livro sobre as viagens realizadas na região platina em 1809, em
Barbuñales – cidade em que veio a falecer doze anos depois. Com um vasto conhecimento
apreendido em anos de convívio direto com os nativos da região, Azara descreve em seus
relatos ricos detalhes sobre os usos e costumes ameríndios sob uma ótica descritiva própria de
seu tempo. Foram nessas condições que o viajante espanhol não conteve sua surpresa diante
de um fato aparentemente contraditório:
Las naciones agrícolas siembran algodón, maní o mandubí (cacahuet), maíz,
batatas, pimientos, judías, manioc y camanioc, calabazas y muchas especies
diferentes de cada una de estas plantas. No se concibe de dónde las han sacado,
pues ninguno de estos vegetales crece espontáneamente en el país. Nuestros
agricultores, a fuerza de meditaciones, de abonos, de combinaciones y de injertos
consiguen perfeccionar las flores, los frutos y las semillas, pero no poseen aún
muchas especies de maíz, de batatas, de judías, de calabazas, etc, que los indios
han sabido procurarse, aunque estos pueblos sean salvajes y no empleen ni
rozamientos, ni abonos, ni injertos, y se limiten a hacer un agujero en tierra con
un palo, metiendo allí la semilla y no volviendo al sitio generalmente hasta el
momento de la recolección (Azara, 1809: 92).

O incompreensível para Azara era a capacidade que aqueles silvícolas possuíam sobre
a manipulação dos recursos que dispunham sem mostrarem-se aptos às técnicas e
conhecimentos científicos esperados nestas ocasiões. O jesuíta Dobrizhoffer, mais
conformado com a perícia indígena, atesta que os seus companheiros Abipone “son expertos
conocedores de la utilidad de las hierbas medicinales que crecen en increíble abundancia allí”
(1784, t. 2: 250), e um pouco mais adiante na sua narrativa descreve o uso que os índios
faziam da substância contida no chocalho da cauda das cascavéis para curar dores de dentes e
outras doenças (id. ibid.: 257). O padre Sánchez Labrador descreve o uso que os Chiquito
faziam da resina retirada de uma árvore que, queimada como incenso ou aplicada como
emplastro, curava dores do corpo (1770, t. 1: 19). O conhecimento de ervas medicinais era
difundido entre os sul-ameríndios e utilizado em diversos tipos de doenças, até mesmo em

29
ferimentos ocasionados por onças (CA, 1735-1743: 501). Também é frequente os
observadores espanhóis constatarem que para cada erva utilizada ou conhecida pelos
indígenas havia um nome diferente (Doblas, 1785: 8) – e, como afirma Dobrizhoffer (1784, t.
2: 250), quase todos conheciam seus usos mais importantes.
Esse conhecimento dos elementos naturais que os indígenas demonstravam não era o
resultado do acaso, ao qual frequentemente se atribuem as noções dos grupos sem escrita.
Longe de serem descobertas involuntárias de pessoas que estariam entregues a um regime de
subsistência ditado por uma carência de recursos, foram, sim, domínios empíricos oriundos
daquilo que Lévi-Strauss chamou de um “pensamento desinteressado” (1981: 26). Em outras
palavras, estes grupos tribais tinham a necessidade de compreender o mundo em que viviam e
as suas relações com o meio, cujo impulso inicial não decorria de alguma espécie de instinto
de sobrevivência, mas sim da possibilidade de manejar os elementos à sua volta. Esse
conhecimento vasto e profundo que os índios possuíam derivava de métodos diferentes do
empírico-científico incipiente na Europa setecentista, porque tinha como base um pensamento
diverso. Não que os conterrâneos de Azara ou Dobrizhoffer pensassem melhor ou pior que os
ameríndios – “o homem sempre pensou igualmente bem” (Lévi-Strauss, 1958: 248) –, mas as
posturas desses pensamentos é que diferiam.
Sahlins (2001: 174) propõe que a diferença ocorre porque os europeus partiam de uma
“racionalidade prática” para conhecer o mundo, enquanto os nativos partiam de um “realismo
empírico”. Sendo assim, o primeiro tem como fundamento a objetividade “de um mundo de
puros objetos em si mesmos” (eod. loc.), não havendo aí “uma relação sujeito-objeto, mas sim
uma relação do sujeito consigo mesmo através de um método geral” (Porto-Gonçalves, 1990:
56):
[C]onhecer é objetivar; é poder distinguir no objeto o que lhe é intrínseco do que
pertence ao sujeito cognoscente, e que, como tal, foi indevida e/ou
inevitavelmente projetado no objeto. Conhecer, assim, é dessubjetivar, explicitar
a parte do sujeito presente no objeto, de modo a reduzi-la a um mínimo ideal
(Viveiros de Castro, 2002a: 358).

Já o realismo empírico opera de forma oposta: “as coisas são conhecidas pelas suas
relações com um sistema de conhecimento local” (Sahlins, 2001: 191). Isso quer dizer que ao
invés de conceber um mundo de “objetos mudos” (id. ibid.: 174), os grupos tribais entendem
a sua relação com o meio de forma subjetiva, ou melhor, somente colocando os elementos na
posição de sujeitos é que a apreensão destes pode ser possível. Desta forma, “o bom
conhecimento é aquele capaz de interpretar todos os eventos do mundo como se fossem
ações, como se fossem resultado de algum tipo de intencionalidade” (Viveiros de Castro,

30
2002a: 488). Em outras palavras, as coisas não são do mundo, elas estão no mundo:13 é essa
posição relacional que faz com que os grupos tradicionais entendam “que as espécies animais
e vegetais não são conhecidas porque são úteis; elas são consideradas úteis ou interessantes
porque são primeiro conhecidas” (Lévi-Strauss, 1962: 25) – e o contrário vale para o
pensamento ocidental, cuja ânsia em descobrir coisas sempre veio antes de dar motivos a
elas.14
A lógica objetivante das sociedades complexas tem como exemplo as descrições
utilitaristas que os primeiros conquistadores fizeram da fauna, da flora e dos nativos
americanos. À ideia de uma natureza reificada vinculava-se a necessidade de apreendê-la por
meio de sua domesticação. Para além (ou aquém) das questões mercantilistas da época, a
utilidade prática dada às plantas, às ervas e até aos animais – alguns sendo levados ao Velho
Mundo como amostras grátis do laboratório divino perdido no Mar Tenebroso pronto a ter
suas delícias exploradas – prova que a concepção ocidental da época dos primeiros contatos
seria o adubo da ideologia Iluminista do século 18:
É desta forma que o século XVII e o seguinte tornam-se testemunhos
emblemáticos de quanto as ‘descobertas’ tenham incidido enormemente na
elaboração de teorias, cada vez mais complexas e freqüentes, sobre o Estado e
sobre o Direito de natureza, sobre o ‘relativismo’ das normas e das crenças,
sobre as origens dos povos americanos, até fomentar as teorias libertinas –
paradoxalmente apoiadas nas informações dos Jesuítas – que abriam espaço para
a possibilidade de um poligenismo, numa curiosa convergência em direção a um
humanismo aberto à utopia e que podia ver a sua realização exemplificada em Il
Cristianesimo Felice del Paraguay [título da obra do iluminista (católico)
italiano Antonio Ludovico Muratori]” (Agnolin, 2007: 470).

Como propõe Guillermo Giucci, as transformações sócio-ambientais que


acompanharam a Revolução Industrial provocaram uma mudança de comportamento do
ocidente em relação à natureza, que passou de um posicionamento utilitarista objetivo-
instrumental para uma visão objetiva-tutelar:
A “natureza” não possui no século XVI a autoridade moral que adquire a partir
da Revolução Industrial, consolidada, hoje, nos encontros internacionais sobre
ecologia. Não tem autonomia, é secundária frente à exportação de matéria-prima,
e sobretudo não se interpõe ainda a imagem maquínica da indústria como
predadora. Quando em 1570 o cronista português Pero de Magalhães Gândavo
exalta a natureza do Brasil, ele o faz, como perceberia Jaime Cortesão, com claro
interesse propagandístico. Necessidade de idealizar a natureza brasileira que
atesta, precisamente, as dificuldades do processo de colonização, e que só

13
Pensando na alegoria que Viveiros de Castro criou para outra situação – mas providencial no momento –, os
povos que entendem a realidade de maneira subjetiva não são “como um peixe dentro do oceano em que nada”; a
relação entre as pessoas e o mundo seria a do “oceano que nada dentro do peixe, penetrando-o e constituindo-o
como figura do (e não apenas no) oceano” (2002a: 430).
14
O exemplo mais claro disto é o fogo. Para a lógica ocidental, ter certeza de que o fogo foi descoberto pelos
nossos antepassados é mais importante do que se questionar qual foi a sua utilidade para os primeiros homens
que o manejaram. O motivo pelo qual o fogo transformou-se em bem cultural é secundário; fundamental sempre
foi precisar quando deixou de ser da natureza e passou ao controle humano.

31
parcialmente pode ser aduzida como prova do prazer pelo natural. A natureza
também devia ser domesticada e trabalhada (Giucci, 1993: 17).

As riquezas naturais intensamente exploradas pelos desejos dos primeiros séculos de


colonização se transformaram na matéria-prima das necessidades de um mercado em
expansão (tanto horizontal como vertical) e do “solipsismo burguês do indivíduo necessitado
do objeto” (Sahlins, 2001: 175), que enxergava a natureza como fonte de sua vida moderna e,
por isso, necessitada de tutela e resguardo. O homem moderno entendia que não podia
controlar a natureza, já que esta era antecultural – a natureza sempre fez parte do mundo, o
homem e suas máquinas, não –, mas nada o impedia de agrimensurá-la de todas as formas. A
aproximação ontológica a uma natureza cosmologicamente distante se deu por rigorosas
medições e categorizações em inventários, cujo objetivo era alargar “o processo de
racionalização da natureza e das atividades produtivas” (Raminelli, 2000: 37) para, assim,
conseguir descrever com maior precisão a realidade como de fato ela é.
Foi a Era das Luzes o palco em que estreou a racionalidade prática do homem
iluminista “necessitado do mundo”, que “pressupunha um certo tipo de sujeito agindo em
relação específica a objetos externos” (Sahlins, 2001: 175) e preexistentes. O universalismo
cristão, abastecido pela fé incondicional dos crentes e por uma educação controlada
estruturalmente pela Igreja, passa a ser escanteado pelo empirismo científico dos letrados
iluministas. Mais eficaz que a fé, a bomba de ar de Boyle, a maçã de Newton, o sujeito
transcendental de Kant e o selvagem de Rousseau foram fundamentais para o entendimento
do homem e da sociedade, da física e da natureza: “da transcendência à imanência, a natureza
tornou-se redutível a leis” (Raminelli, 2000: 32). O próximo passo foi adequar os nativos
americanos a esta nova realidade compreendida e medida cientificamente:
Este re-pensamento e esta rearticulação, enfim, tornaram-se possíveis no
momento em que, entre a(s) alteridade(s) interna e externa à Europa, encontrou-
se (constituiu-se) a garantia de uma humanidade que, pondo-se como
subjetivamente única, pôde permitir o constituir-se de uma nova análise do
homem enquanto obiectum homo (isto é, o homem “objetivado” em termos
antropológicos modernos), sem que se corresse o risco de uma “fragmentação”
da unidade humana que pudesse por em risco essa nova e frágil categoria
(Agnolin, 2007: 469-470).

Ou seja, o homem encontrado na América não era a alteridade genérica do europeu,


mas sim seu fóssil vivo, espacial e temporalmente distante – e já impossível de se varrer para
baixo do tapete criacionista. É nestas condições que surge, no século 18, “uma Science de
l’homme, das viagens científicas e das disciplinas que começam a estudar as línguas, a
literatura, os costumes, as crenças, a sociedade dos povos extra-europeus: é o momento do
afirmar-se dos trabalhos dos Observateurs de l’homme” (Agnolin, 2007: 471). O esforço era

32
claramente voltado a resgatar o animal-homem da natureza para compreender seu estado de
selvageria15 e dar explicações de como o europeu civilizado da Era Moderna alcançou seu
bem-estar industrial. Se o homem era essencialmente o mesmo, lá e cá, então a diferença não
estava na natureza – apesar de suas particularidades regionais –, mas sim na forma como o
homem se relacionava com ela, culturalmente. O mundo era igual para todos – europeus,
americanos, chineses; o que se fez e fazia nele é que era alvo de controvérsias e estudos
científicos. O jesuíta Florián Paucke já havia constatado isso em seus escritos sobre os índios
chaquenhos:
Lo que concierne a su alma y a la conformación de los miembros del cuerpo,
ellos son hombres como todos nosotros aunque tengan escaso parecido con
nosotros en su color, modo de vivir y otras costumbres porque se han
desarrollado en selvas conforme a sus impulsos sin la menor instrucción,
mientras nosotros hemos sido inducidos a una conducta moral por la educación y
la enseñanza, por la vida moral de otros, por lectura de las historias y hechos de
nuestros antepasados (Paucke, 1767, t. 2: 134).

Para os europeus, era inquestionável a existência de uma única realidade


compartilhada por todos, diferindo-se, sim, a situação em que se encontravam: o mundo só
podia ser um; múltiplos eram os graus evolutivos de cada grupo humano. O grande problema
desta compreensão ocidental sobre a sua realidade – que vem a ser, consequentemente,
também a realidade dos ameríndios – é que ela faz crer que, se existe um mundo como pano
de fundo a todas as subjetividades culturais – o que comumente se chama de relativismo
cultural –16, então nós, ocidentais, estamos coincidentemente mais próximos de apreender
esta realidade como ela é de fato, muito à frente dos demais grupos humanos que ainda
insistem em culturalizar a natureza, ao invés de racionalizá-la, como faz a nossa ciência.
Flávio Gordon, em um artigo bastante elucidativo, critica o posicionamento que o
relativismo ocidental conserva a respeito dos povos que não compartilham desta racionalidade
prática. A partir de uma discussão com seu professor de Filosofia da Ciência a respeito de um
dado etnográfico – que, para os Azande da África Central, os aipins andam à noite17 –, em
que o último aferra-se à impossibilidade de esta afirmação ter fundamento prático, Flávio
Gordon escreve:

15
Como bem lembra Agnolin, o selvagem deixa de ser uma categoria à parte do bloco europeu-cristão-civilizado
e “torna-se, finalmente, o ‘grau zero’ fundamental e indispensável para pensar e medir a civilização enquanto
processo” (2007: 483-484). Nesta nova medida, vestiam-se os ameríndios com novos conceitos: Bárbaros eram
os costumes; Selvagem era sua situação; Humana era sua essência; e Civilidade, um devir.
16
A lógica do relativismo cultural encontra-se no fundamento ontológico de uma “separação dos domínios
subjetivo e objetivo, o primeiro concebido como o mundo interior da mente e do significado, o segundo, o
mundo exterior da matéria e da substância” (Tim Ingold apud Viveiros de Castro, 2002a: 349, nota 2).
17
Os Dobu, da Nova Guiné, também parecem compartilhar esta ideia em relação aos inhames que “são pessoas”
e “à noite eles passeiam” (Lévi-Strauss, 1962: 135).

33
[S]e o professor “sabe” que os aipins não andam à noite [...] – e que por isso,
como ele disse, não devemos acreditar nisso – que mal haveria em se considerar
realmente tolos aqueles que enunciam tais afirmações? Se, de fato, aipim, andar
e à noite são termos que não se podem conjugar daquela forma sem que se caia
no absurdo, o professor deveria levar adiante seu pensamento e concluir: os
Azande são mesmo idiotas por dizerem isso! Mas não, ele preferiu relativizar:
eles estão atribuindo valor ao mundo (os pobrezinhos, poderia ter acrescentado!).
Este é um dos dilemas do politicamente correto: ou traímos a virtude pública, ou
somos incoerentes com nosso vício privado. Em suma: os Azande, os Bororo, os
Ese Eja, os trobriandeses, enfim, “eles” atribuem valor ao mundo o tempo todo;
“nós”, em contrapartida, atribuímos valor em algumas ocasiões, mas em outras
nós apenas descrevemos o real tal como ele é de verdade! Ou seja, “nós” temos
natureza e cultura; “eles” só têm cultura, visto que sua natureza é interior e
inerente à sua cultura (Gordon, 2003: 4, grifos no original).

Se afirmamos que a natureza é a mesma para todos, fazendo-a um produto dado da


realidade – “o senso absoluto de um mundo-em-si” em que “o espírito e a subjetividade foram
há muito tempo despejados”, regulando a “intuição dos predicados universais dos objetos”
(Sahlins, 2001: 185) –, então tudo que é artificial é fruto da criação laboral e simbólica do
homem, e devemos entender como sendo cultura. Esta é a distinção denominador comum do
mundo ao qual pertencemos e a qual chamamos naturalismo, “que supõe uma dualidade
ontológica entre natureza, domínio da necessidade, e cultura, domínio da espontaneidade,
regiões separadas por uma descontinuidade metonímica” (Viveiros de Castro, 2002a: 362).
Ora, se as coisas realmente são assim, então teremos que admitir também que invariavelmente
algumas culturas são mais culturais que outras e, por isso, entendem menos aquela distinção
natureza/cultura. Além disso, nenhuma cultura ganharia da nossa no que compete ao melhor
entendimento do real, já que com nossos instrumentos precisos, cálculos irrefutáveis e uma
taxonomia inquestionável de categorias hierarquizadas por Lineu no século 18 temos acesso a
verdades a que as demais culturas só teriam se seguissem o nosso processo civilizatório.18 Por
mais que o relativismo cultural tente desfazer o absolutismo eurocêntrico que reinou durante
séculos nas academias e no senso comum, seu discurso nunca passou de uma
condescendência velada do cartesianismo ocidental.19

18
Sobre isso, Viveiros de Castro faz um questionamento providencial: “Haveria talvez uma só grande
penitenciária ‘natural’, com diferentes alas ‘culturais’, umas com celas talvez um pouco mais espaçosas que
outras?” (2002b: 122).
19
A partir disto, muitos grupos tribais mostram-se hábeis em formular discursos que oscilam entre a vitimização
histórica e a negociação de seus patrimônios ambientais: “Há uma espécie de defesa acadêmica da integridade
cultural dos povos indígenas que, embora bem-intencionada, acaba entregando-os intelectualmente ao
imperialismo que os vem afligindo econômica e politicamente. Refiro-me ao paradoxo contido na defesa de seu
modo de existência dotando-o dos mais altos valores das sociedades ocidentais. Desse modo, supõe-se que os
cree, os maori ou os caiapós sejam modelos de sabedoria ecológica” (Sahlins, 2001: 139). Ou, como bem
colocou Descola: “freqüentemente, a retórica ecológica de alguns líderes indígenas exprime menos as
concepções cosmológicas tradicionais — complexas e diversificadas, logo difíceis de formular no código
simplificador de nossa economia política da natureza — do que um desejo de obter o apoio de organizações
internacionais influentes, graças a um discurso facilmente reconhecível, e com a finalidade de conduzir lutas de

34
Tome-se o exemplo da classificação científica dos seres vivos. Para a nossa taxonomia
é imprescindível que os agentes classificáveis possuam organização celular para então serem
compartimentados em setores categóricos específicos de acordo com características
morfológicas distintivas. Assim, seria um absurdo abrigar no mesmo nicho categórico o
avestruz e o cogumelo. O que quero dizer com isso é que a ciência moderna preferiu
apropriar-se de uma característica extensiva – a organização celular – e, a partir dela,
distribuir variações intensivas de subclassificação – Domínio, Reino, Filo, Classe... Dentre
uma infinidade de aspectos morfológicos, comportamentais e sensoriais que poderiam servir
de parâmetros para uma classificação dos seres, essa taxonomia optou por um conjunto de
características referenciais à sua compreensão do que é ser (ou não ser) vivo. Obviamente este
é um referencial válido; mas não pode ser tomado como o único possível, ou o mais correto:20
“não há tal coisa que seja a imaculada percepção” (Sahlins, 1994: 183).
A classificação científica se baseia “em propriedades sensíveis do mundo para propor
seus imperativos categóricos; mas, por outro lado, ela descarta de sua escolha outras
propriedades tão sensíveis quanto” (Gordon, 2003: 6). Lévi-Strauss já havia identificado que a
importância depositada em elementos de referência se dá por atribuições relacionais e não
pela imanência de seus fatores:
Entretanto, levando em conta a riqueza e a diversidade do material bruto, do qual
apenas alguns elementos, dentre tantos possíveis, são utilizados pelo sistema, não
se poderia duvidar de que um considerável número de sistemas do mesmo tipo
teria demonstrado igual coerência e que nenhum estivesse predestinado a ser
escolhido por todas as civilizações. Os termos nunca têm significação intrínseca;
sua significação é “de posição”, por um lado, função da história e do contexto
cultural e, por outro, da estrutura do sistema em que são chamados a figurar.
(Lévi-Strauss, 1962: 72, grifo meu)

Daí que para os Chewa, do Malawi, os cogumelos estão mais próximos de uma
associação com a carne (de animais de caça) do que com os fungos ou as plantas, pois o

reivindicação territorial [...]. De selvagens, espera-se que tenham a linguagem de filhos da natureza; como eles
deixariam de fazê-lo se, por aí, podem precaver-se da espoliação fundiária?” (1998: 24).
20
Penso aqui nos debates científicos que discutem a categorização dos vírus como seres vivos – e então passíveis
de uma vaga na taxonomia moderna – ou não vivos – já que incapazes de uma metabolização autônoma e
independente, por não possuírem uma organização celular esperada dos seres ditos vivos. Roy Wagner atenta
para certa arbitrariedade no que compete à importância de certas vidas: “E se os ecologistas, com seu instinto
certeiro para ir ao fundo da moralidade e da seriedade, falam da coisa toda em termos de ‘vida’ e
‘sobrevivência’, deveríamos considerar uma coisa. Um rio ou um lago poluído (poluição é Cultura do ponto de
vista da natureza) fervilha de vida. Trata-se de ‘sobrevivência’ no máximo de sua efervescência: onde umas
poucas células ganhavam a vida com dificuldade, agora pululam milhões. Uma ‘cultura de massa’
bacteriológica, de fato, mas uma ‘vida’ que ninguém realmente quer” (1975: 119), e Edgar Morin completa:
“Assim, a cadeia trófica mostra-nos que toda podridão se converte em alimento, que todo o resíduo se converte
em ingrediente, que todo o subproduto se converte em matéria-prima, que todo resíduo morto é reintroduzido no
ciclo de vida. As decomposições, excreções, defecações são os festins dum fervilhar de insetos e
microorganismos; adubam e remineralizam os solos que alimentam a vegetação (apud Porto-Gonçalves, 1990:
69).

35
fundamento da relação “está mais na textura e comestibilidade do que na morfologia”, sendo
esta associação “provavelmente difundida na cultura tradicional” (Brian Morris apud Sahlins,
2001: 178-179, nota 11, grifo no original). Os índios chaquenhos também apresentam
associações particulares, como demonstra Flavia Ottalagano em seu estudo sobre a
representação das aves nos registros mitológicos, afirmando que a
clasificación del mundo zoológico de los tobas orientales entrelaza el
conocimiento de los animales con la mitología que lo justifica o sanciona. […]
La taxonomía indígena marca asociaciones no equiparables a las taxonomías
occidentales; por eso es posible que la categoría de ave sea implementada de
diferente manera según distintas lógicas de asociación (Ottalagano, 2007: 217).21

Por ora, é interessante ressaltar que a diferença entre as classificações científicas e dos
grupos tribais encontra-se, fundamentalmente, nos atributos escolhidos como referenciais para
determinar os agrupamentos categóricos que definem os organismos participantes. Isso quer
dizer que as características selecionadas como fundadoras da taxonomia de qualquer grupo
humano estão baseadas em apreciações particulares:
As pessoas superestimam sua objetividade porque percebem apenas uma fração
das características empíricas das coisas, uma atenção e avaliação seletivas que
correspondem a um ato de categorização. Observem que não estamos lidando
simplesmente com sensação fisiológicas mas com juízos empíricos. Nem os
mecanismos biológicos da percepção nem a universalidade deles estão em
questão. O que está em questão é a organização da experiência, inclusive o
treinamento dos sentidos, de acordo com os cânones sociais de relevância
(Sahlins, 2001: 176, grifo meu).

A taxonomia de Lineu tomou como base de referência a distinção entre os seres vivos
e os não vivos – ou seja, a posse de uma organização celular – para então distribuir os
primeiros em categorias secundárias que teriam sempre como parâmetro aspectos ligados à
biologia dos organismos: este é o seu “cânone social de relevância”. Já para as classificações
tribais, o parâmetro categórico parece estar mais ligado a aspectos vinculados à relação (tanto
social, como sensorial) entre os organismos do que à morfologia destes: “as características
atribuídas às entidades que povoam o cosmos dependem menos de uma definição prévia de
sua essência do que das posições relativas que ocupam umas em relação às outras” (Descola,
1999: 121). Como já havia posto, o conhecimento de grupos tribais vincula-se a uma relação
subjetiva com o meio – “a subjetividade como instância difundida na ‘natureza’ e como foco
de um modo de conhecimento” (Calavia Sáez, 2004: 241, grifo meu) –, diferente da visão
objetiva das sociedades complexas, que gera relações neutras a partir de “um Sujeito humano

21
Interessante notar as palavras de Foucault quando foi apresentado a uma classificação zoológica chinesa: “No
prodígio dessa taxonomia, a coisa que apreendemos num grande salto, a coisa que, pela fábula, é demonstrada
nos encantos exóticos de um outro sistema de pensamento, é a limitação do nosso, a completa impossibilidade de
pensar aquilo” (Michel Foucault apud Sahlins, 2001: 184-185, grifo no original).

36
ativo e um Outro inerte e naturalizado” (Viveiros de Castro, 2002a: 166-167). Compreende-se
então o fundamento impositivo da taxonomia moderna: só é ser vivo aquilo que cumpre pré-
requisitos morfológicos mínimos do que se considera vida.22
Retomando o relato do início do capítulo, cuja premissa era o conhecimento que os
índios possuíam acerca dos elementos naturais, é interessante notar que, além do uso eficiente
com técnicas rudimentares, o que parecia ser incompreensível a Azara era a grande variedade
de vegetais que os nativos conheciam. Essa “diversidade biológica” é explicada pela
etnobiologia como sendo proveniente de um cultivo “in situ”, em que “as plantas coevoluem
com seu meio ambiente” – muito diferente da agricultura de mercado, cuja preferência está na
“hiper seleção das variedades” (cf. Carneiro da Cunha, 2009: 332-333). Longe de ser o
produto casual de uma natureza indecifrável para os nativos, o cultivo desta diversidade de
alimentos era fruto de uma longa relação entre os indígenas e o meio do qual faziam parte. O
maior erro que se pode cometer aqui é entender o conhecimento nativo como motivado pela
busca incansável da subsistência, partindo-se de uma visão utilitarista de seus métodos e
incapacidade técnica inventiva.23 Aqueles índios não só haviam produzido e mantido uma
variedade das espécies, como o que estava por trás disso era um conhecimento apurado sobre
o comportamento das amostras e os cruzamentos que se podiam efetuar entre elas. E é o
próprio Azara que manifesta este apurado conhecimento que os nativos possuíam dos
elementos que estavam ao seu redor:

22
Não quero com isso militar contra a taxonomia moderna (o que seria um absurdo!). O que pretendo é mostrar
que as categorias objetivas são tão arbitrárias quanto as categorias subjetivas, visto que “a mesma espécie pode
vir a ser animais de tipos inteligíveis inteiramente diferentes”, já que “identificados por diferentes qualidades
perceptivas, que não são sempre, ou não são simplesmente, morfológicas” (Sahlins, 2001: 178) – e se forem,
nada impõe que sejam estas categorias mais reais que as outras. Em relação à arbitrariedade, Flávio Gordon
exemplifica: “gatos e cachorros são muito diferentes e, no entanto, a ciência os agrupou na mesma Ordem,
Carnívora, em oposição, por exemplo, aos Rodentia (os roedores); gatos e cachorros são bastante parecidos e,
desta feita, a ciência deixa de lado essa propriedade concreta para optar por outra: o fato de eles possuírem
algumas características diversas que os fazem pertencer a Famílias diferentes, respectivamente, Felidae e
Canidae. As possibilidades de classificação e de discrição nesse continuum que é a natureza são infinitas.
Poderíamos, por exemplo, ainda sem trair o sensível, agrupar os homens, gatos e cachorros no conjunto dos
portadores de orelha em oposição às moscas, minhocas e abacaxis” (2003: 6). Insisto: o problema não está na
classificação; está no imperialismo científico que não admite a existência de outras categorias organizacionais –
ou pior: admite só para alimentar seu discurso relativista: “Enfim, na verdade não existem sociedades humanas
que não tenham feito um inventário bastante avançado de seu meio zoológico e botânico e que não o tenham
descrito em termos específicos” (Lévi-Strauss, 1962: 180).
23
O entendimento funcionalista do sistema produtivo de grupos tribais ainda existe no senso comum, que atribui
a necessidades básicas qualquer conquista técnica, acomodando-a no lugar vazio da descoberta casual. Seria
como se o fogo tivesse sido acendido por acaso por algum grupo perdido na pré-história, e cujo esforço voltava-
se para manter viva a primeira chama descoberta. Sobre isso, Lévi-Strauss nota que “quando cometemos o erro
de ver o selvagem como exclusivamente governado por suas necessidades orgânicas ou econômicas, não
percebemos que ele nos dirige a mesma censura e que, para ele, seu próprio desejo de conhecimento parece mais
bem equilibrado que o nosso” (1962: 17); e Sahlins completa: “E por que apenas os ocidentais deveriam ter tal
‘véu de idéias’ diante de seus olhos?” (2001: 20, nota 3).

37
La sal que usan no es la nuestra, sino la que fabrican quemando una planta que
da cenizas y carbón salados, que mojan y amasan en pelotas para ponerlas en la
olla. No conozco tal planta que debiera examinarse por los químicos, porque
quizás sería más útil que la sosa y salicota (Azara [1793]: fl. 248).

Como demonstrou Lévi-Strauss, os aprimoramentos técnicos e de produção de


conhecimento correspondem antes “a exigências intelectuais em vez de satisfazer às
necessidades” (1962: 25).
Assim, torna-se evidente que a diferença entre os saberes científico, dos modernos, e o
tradicional, dos grupos tribais, não se explica pela superioridade técnica daquele em contraste
à rudimentaridade do segundo – menos ainda a alguma suposta diferença cognitiva. Se, como
vimos no início, o conhecimento cunhado pelos europeus ao longo da Era Moderna tinha
como base a objetividade, em contraste com a subjetividade que os povos sem escrita
demonstram ter em sua relação com o meio, a diferença entre as duas lógicas não é de gênero,
e sim de grau: “A ciência moderna hegemônica usa conceitos, a ciência tradicional usa
percepções. É a lógica do conceito em contraste com a lógica das qualidades sensíveis”
(Carneiro da Cunha, 2009: 303). Isto não significa, como sublinhou Viveiros de Castro, que
os ameríndios “cognizem” diferentemente de nós – o que difere não é o pensamento, mas sim
as referências:
Não é o caso de imaginar os índios como dotados de uma neurofisiologia
peculiar, que processaria diversamente o diverso. No que me concerne, penso
que eles pensam exatamente “como nós”; mas penso também que o que eles
pensam, isto é, os conceitos que eles se dão, as “descrições” que eles produzem,
são muito diferentes dos nossos – e portanto que o mundo descrito por esses
conceitos é muito diverso do nosso (Viveiros de Castro, 2002b: 124, grifo no
original).

Nestas diferenças (conceito/percepção; objetividade/subjetividade) o que parece haver


realmente são mundos diferentes – um mundo inato e imóvel para uns; um mundo dinâmico e
relacional para outros:
Enquanto os americanos e os outros ocidentais criam o mundo incidental ao
tentar constantemente prevê-lo, racionalizá-lo e ordená-lo, os povos tribais,
religiosos e camponeses criam seu universo de convenção inata tentando mudá-
lo, reajustá-lo e impor-se a ele. Nossa preocupação é inserir as coisas em uma
relação ordenada e consistente – seja esta uma relação de “conhecimento”
organizado de modo lógico ou de “aplicação” organizada de modo prático –, e
chamamos a soma de nossos esforços de Cultura. A preocupação deles pode ser
pensada como um esforço para “desestabilizar o convencional” e assim tornar-se
poderosos e únicos em relação a este (Wagner, 1975: 144).

O que Roy Wagner procura mostrar é que, independente da sociedade, do grupo ou


cultura em que está inserido, o homem inventa o seu mundo – e, consequentemente, o mundo
dos outros. A diferença é que nós, os ocidentais (ou os modernos, enfim) mascaramos essa
invenção convencionalizando o que é inato (a natureza) e o que é artificial (a cultura, a

38
sociedade) (id. ibid.: 94 e ss.).24 O resultado é que tornamos o nosso mundo o pano de fundo
existencial de todos: todos os povos vivem no mesmo mundo que nós; e temos certeza disto,
porque ninguém conhece melhor que nós este mundo. Deparamo-nos, então, com distintas
formas de conhecimento:
O conhecimento científico se afirma, por definição, como verdade absoluta, até
que outro paradigma o venha a sobrepujar [...]. Essa universalidade do
conhecimento científico não se aplica aos saberes tradicionais – muito mais
tolerantes –, que acolhem frequentemente com igual confiança ou ceticismo
explicações divergentes, cuja validade entendem seja puramente local. “Pode ser
que, na sua terra, as pedras não tenham vida. Aqui elas crescem e estão portanto
vivas.” (Carneiro da Cunha, 2009: 301).

O universalismo do pensamento científico instala em todos os cantos do planeta (e do


universo) as leis de uma natureza dada e coisificada. Esta imutabilidade que os ocidentais
atribuem à natureza25 contrasta com a tolerância que os índios demonstram frente a saberes
que contradigam os seus, como em um caso descrito pelo antropólogo Peter Gow, em que
uma professora em missão junto aos Piro da Amazônia peruana alertava a uma índia para os
perigos de contrair diarreia por não ferver a água ao preparar os alimentos. Esta teria
respondido: “Talvez para o povo de Lima isso seja verdade. Mas para nós, gente nativa daqui,
a água fervida dá diarréia. Nossos corpos são diferentes dos corpos de vocês” (In: Viveiros de
Castro, 2002b: 137 e ss.).26 Além de essa colocação feita pela mulher Piro corroborar aquilo a
que Manuela Carneiro da Cunha referia-se como um saber que não ignora a coexistência de
conhecimentos paralelos tão eficazes quanto o seu, ela rompe com a universalidade (e
infalibilidade) da natureza projetada pelos modernos. Dito de outra forma, a questão aqui não
é a diferença de visões de mundo, mas de mundos visíveis:
A anedota dos corpos diferentes convida a um esforço de determinação do
mundo possível expresso no juízo da mulher piro. Um mundo possível no qual os
corpos humanos sejam diferentes em Lima e em Santa Clara – no qual seja
necessário que os corpos dos brancos e dos índios sejam diferentes. Ora,
determinar esse mundo não é inventar um mundo imaginário, um mundo dotado,
digamos, de outra física ou outra biologia, onde o universo não seria isotrópico e
os corpos se comportariam segundo leis diferentes em lugares distintos. Isso
seria (má) ficção científica. O que se trata é de encontrar o problema real que
torna possível o mundo implicado na réplica da mulher piro. O argumento de que
“nossos corpos são diferentes” não exprime uma teoria biológica alternativa, e,
naturalmente, equivocada, ou uma biologia objetiva imaginariamente não-
standard. O que o argumento piro manifesta é uma idéia não-biológica de corpo,

24
“Criamos a natureza e contamos a nós mesmos histórias sobre como a natureza nos cria!” (Wagner, 1975:
214).
25
Mas que às vezes prega peças à comunidade científica, como no caso da recente descoberta de bactérias em
um lago na Califórnia cujo metabolismo é gerado pelo arsênio – elemento tóxico aos organismos vivos –, ao
invés do fósforo, como até então se conhecia.
26
Situação parecida é relatada por Florián Paucke que presencia, num acampamento de índios Mocoví, que estes
estavam assando e comendo carne embarrada. Ao sugerir que limpassem o alimento, um dos índios retrucou que
“el fuego consumía todo” (1767, t. 2: 181).

39
idéia que faz com que questões como a diarréia infantil não sejam tratadas
enquanto objetos de uma teoria biológica. O argumento afirma que nossos
‘corpos’ respectivos são diferentes, entenda-se, que os conceitos piro e ocidental
de corpo são divergentes, não que nossas ‘biologias’ são diversas. A anedota da
água piro não reflete uma outra visão de um mesmo corpo, mas um outro
conceito de corpo, cuja dissonância subjacente à sua ‘homonímia’ com o nosso
é, justamente, o problema (Viveiros de Castro, 2002b: 139-140, grifos no
original).

O corpo não é apenas um pretexto para o esboço de uma teoria: ele é o lugar em que a
diferença se faz presente. Ora, se o que é corpo é um ponto de discordância entre a professora
(representante do pensamento científico moderno) e a índia Piro, é porque “a diferença está
menos na qualidade das operações intelectuais do que na natureza das coisas a que elas se
referem” (Lévi-Strauss, 1958: 248). Ou seja, as referências é que são distintas justamente
porque o que se percebe (ou, para usar o termo de Roy Wagner, o que se inventa) como
mundo é idiossincrático. Neste entendimento, “não há mundo pronto para ser visto, um
mundo antes da visão, ou antes, da divisão entre o visível (ou pensável) e o invisível (ou
pressuposto) que institui o horizonte de um pensamento” (Viveiros de Castro, 2002b: 123).
Daí que para Roy Wagner o “que está em pauta nessa discussão é como as pessoas criam suas
próprias realidades e como criam a si mesmas e suas sociedades por meio destas” (1975: 195,
grifo no original). Em outras palavras, o que os homens fazem é colocarem-se em um mundo
inventado por eles mesmos, separando o campo do inato do artificial:
Contudo, o que é arbitrário e imposto não é apenas a cultura do homem – a qual,
como seu ser físico, é tanto quanto criada conscientemente –, mas a distinção
entre natureza e cultura. Essa distinção é o artefato (e a essência) de nossa
ideologia, e por essa razão aprisiona qualquer empreendimento intelectual que a
subscreva dentro dos limites de nossa maneira de pensar autoimposta. Não
existe, nem nunca existiu, um homem exclusivamente “natural” ou uma cultura
exclusivamente “artificial” (Wagner, 1975: 213; 222).27

O que pretendo mostrar com estas primeiras reflexões é que a concepção de uma
divisão entre “natureza” e “cultura” foi estabelecida pela revolução científica do século 17 e
estendida como uma “Constituição” (Latour, 1994) a todos os povos contatados e a serem
descobertos. O que mantêm ambos – “natureza” e “cultura” – em pólos separados é a certeza
de que certos elementos constituem a esfera transcendental e que só podem ser entendidos
como pertencentes ao dado, ao natural, ao contrário do que se concebe como produzido pelo

27
Sobre isso, Wagner ainda escreve: “[...] todo o nosso leque de controles convencionais, nosso ‘conhecimento’,
nossa literatura sobre realizações científicas e artísticas, nosso arsenal de técnicas produtivas, são um conjunto de
dispositivos para a invenção de um mundo natural e fenomênico. Ao assumir que apenas medimos, prevemos e
arregimentamos esse mundo de situações, indivíduos e forças, mascaramos o fato de que o criamos. Em nossa
crença convencional de que esse mensurar, prever e arregimentar é artificial, parte do domínio da manipulação
humana e do ‘conhecimento’ e da Cultura cumulativos, herdados, precipitamos esse mundo fenomênico como
parte do inato e do inevitável” (1975: 123, grifo no original; cf. também Porto-Gonçalves, 1990: 44).

40
homem, como a sociedade, e que tem como pano de fundo, como o seu canteiro de obras, a
natureza. Essa certeza pauta-se pela capacidade que o homem moderno tem de, por meio de
suas máquinas e instrumentos, recriar a natureza no laboratório “como ela é” (id. ibid.: 34)28,
o que provoca a ilusão de uma natureza idêntica para todos – mesmo que nem todos saibam
disso. O resultado é que incorporamos as demais culturas “no interior da nossa realidade, e
dessa forma incorporamos seus modos de vida no interior da nossa própria autoinvenção. O
que podemos perceber das realidades que eles aprenderam a inventar e viver é relegado ao
‘sobrenatural’ ou descartado como ‘meramente simbólico’” (Wagner, 1975: 217, grifo no
original).
Porém, se “a concepção que os homens têm das relações entre natureza e cultura é
função da maneira pela qual suas próprias relações sociais se modificam” (Lévi-Strauss,
1962: 142), então são os processos sociais os verdadeiros geradores do pensamento e da
concepção de mundo. Isto quer dizer que os membros de um grupo nômade de caçadores
possuem uma compreensão de realidade bastante distinta de pessoas oriundas da sociedade
moderna ocidental. Para a análise aqui pretendida, interessa-me justamente o contraste entre
as ontologias que estabelecem a “Grande Divisão” – natureza versus cultura – e as que Latour
(1994) denominou “pré-modernas”, nas quais a relação entre o inato e o artificial não é tão
simples. Isto não quer dizer que para os segundos não exista alguma referência do que é inato
e do que é artificial em sua ontologia. Porém, diferente do que se passa com os modernos –
cujos termos acabaram por se tornarem fixos e irredutíveis29 –, natureza e cultura, para os pré-
modernos, não seria como uma “oposição do tipo A não é B, mas uma oposição onde A
partilha necessariamente da qualidade de B” (Gordon, 2003: 12, nota 21, grifo no original).
Dito isto, é importante notar que a separação estabelecida pelos modernos entre a
natureza e a cultura resulta em “duas zonas ontológicas inteiramente distintas, a dos humanos,
de um lado, e a dos não-humanos, de outro” (Latour, 1994: 16). Aos primeiros deposita-se
toda capacidade agentiva que seria um absurdo esperar dos segundos. Dos humanos esperam-
se ações conscientes movidas pela razão e pelas emoções características dos únicos seres cuja

28
Mas como não questionar a validade de experimentos que só funcionam mediante a intervenção de
instrumentos específicos: “Se é verdade que a ciência não está fundada sobre idéias, mas sim sobre uma prática,
se ela não está do lado de fora, mas sim do lado de dentro do recipiente transparente da bomba de ar, se ela tem
lugar no interior do espaço privado da comunidade experimental, então como ela poderia estender-se ‘por toda
parte’, a ponto de tornar-se tão universal quanto as ‘leis de Boyle’?”. E conclui-se: “Nenhuma ciência pode sair
da rede de sua prática” (Latour, 1994: 30).
29
“Pareceria que deveríamos sempre escolher entre dois males, como uma gota que um golpe de vento faz passar
de um lado a outro de uma linha de divisão das águas. Ou a gota vai juntar-se à vertente da inventividade
humana, cuja história é fácil de formular porque ela impõe categorias mais ou menos arbitrárias a uma realidade
que jamais se poderá conhecer, ou vai para a outra vertente, a da natureza, a dos objetos sem história sempre já
presentes e que os humanos se contentariam em descobrir” (Latour, 1995: 19).

41
capacidade cognitiva lhes separa dos demais, que no máximo agem conforme seus instintos.30
Nestes termos, a humanidade é concebida como identificação biológica da espécie e, ao
mesmo tempo, como um ideal moral de uma “entidade singular, composta não mais de
indivíduos, mas de sujeitos que são simultaneamente criadores e criaturas do mundo das
regras” (Viveiros de Castro, 2002a: 298; cf. também Wagner, 1975: 205-206). Aos não-
humanos, “privados de alma, mas aos quais é atribuído um sentido” (Latour, 1994: 29), cabe
o papel passivo de serem pesados, medidos, dissecados, analisados para que ajudem, sem
muitas perturbações, aos humanos na compreensão da natureza.31 Independentemente se o
homem é quem faz a história, ou se ele é guiado por ela, o fato é que ele é o único
privilegiado no seu decurso – entende-se, assim, a razão pelas quais a mitologia indígena,
geralmente protagonizada por animais, corpos celestes ou outros entes, seja identificada como
um relato fantasioso. Oscar Calavia Sáez resume bastante bem a diferença entre as
cosmologias moderna ocidental e a dos grupos tribais:
[O]ra o mundo se entende como um vasto conjunto de sujeitos capazes de uma
agência e uma visão específica, ora estes sujeitos são reduzidos a objetos mais ou
menos inertes, dependentes de um sujeito superior concentrado no exterior deles
– a razão humana, Deus etc. Uma e outra alternativa estão ligadas, aliás, a
diferentes ritmos: à instabilidade no primeiro caso; à fixação das formas e dos
atributos no segundo (Calavia Sáez, 2004: 241).

É sobre este ritmo instável que pretendo me debruçar na continuidade.

30
Essa divisão não só propiciou aos humanos uma condição naturalmente superior, como praticamente destilou
qualquer traço que os vinculasse à sua animalidade: “Começou-se por separar o homem da natureza, e por
constituí-lo em reino soberano; acreditou-se assim apagar sua característica mais inquestionável, a saber, que ele
é antes de mais nada um ser vivo. A cegueira diante dessa propriedade comum abriu caminho para todos os
abusos. Nunca como agora, ao cabo dos quatro últimos séculos de sua história, pode o homem ocidental se dar
conta de como, ao se arrogar o direito de separar radicalmente a humanidade da animalidade, concedendo à
primeira tudo aquilo que negava à segunda, ele abria um cicio maldito, e que a mesma fronteira, constantemente
recuada, servia-lhe para afastar homens de outros homens e para reivindicar, em beneficio de minorias cada vez
mais restritas, o privilegio de um humanismo que já nasceu corrompido, por ter ido buscar no amor-próprio seu
princípio e seu conceito” (Lévi-Strauss apud Viveiros de Castro, 2002a: 370, nota 27). O mesmo antropólogo já
havia atentado a que “[é] a linha de demarcação entre a natureza e a cultura que já não segue tão exatamente
quanto se acreditou no passado o traçado de nenhuma das linhas que servem para distinguir a humanidades da
animalidade” (Lévi-Strauss, 1964: 39, nota 6).
31
Exemplo disto está na análise que Bruno Latour (1995) faz em relação aos microorganismos que provocaram a
fermentação no ácido láctico que Louis Pasteur teve o privilégio de descobrir na Universidade de Ciências, em
Lille, no ano de 1857. Para Latour, todos estes eventos – o local, a data, o químico, o Segundo Império – fazem
parte de um encadeamento historicizante ao qual a lógica ocidental jamais negaria a importância em relacioná-
los para se fazer entender a descoberta que inaugurou a bioquímica. Porém, o antropólogo francês milita a favor
do que ele chama de “simetria generalizada”, colocando a fermentação como protagonista desta história: a
“história de Pasteur e de seu fermento, do fermento e de seu Pasteur” (id. ibid.: 16), já que, “é preciso admitir, o
jovem Louis Pasteur de Lille deve ser contado como um episódio no destino, na essência, na trajetória do
fermento láctico”, que “sempre esteve lá” (id. ibid.: 13). Latour sabe que esta empresa seria vista como um
absurdo pelos modernos que entendem que a natureza “não intervém nas interpretações que fazemos a seu
propósito” (id. ibid.: 9).

42
1.2 Os mitos
Em sua descrição da região banhada pelos rios da Prata e Paraguai, o padre Pedro
Guevara distingue milimetricamente o lugar dos assuntos que abordam aspectos da natureza
daquele dos assuntos voltados aos costumes dos povos que o habitavam, evitando ao máximo
misturá-los. Ao tratar dos usos e costumes autóctones, o jesuíta não deixa de dar atenção a
algumas narrativas mitológicas que coletou ou ouviu de terceiros – não deixando igualmente
de atribuir-lhes algum juízo de valor. Veja-se, por exemplo, o descrédito com que o padre
descreve alguns traços da mitologia Mocovi:
Lo particular es que a la luna llaman cidiago, y juzgan que es hombre, cuyas
sombras son sus tripas que le sacan unos perros celestes cuando se eclipsa. […]
Al sol conciben como mujer y le llaman gdazca, que significa compañera. De él
fingen algunas trágicas aventuras. Una vez cayó del cielo y enterneció tanto el
corazón de un Mocobí que se esforzó en levantarlo y lo amarró para que no
volviese a caer. La misma fatalidad sucedió al cielo: pero los ingeniosos y
robustos Mocobís, con puntas de palos lo sublevaron y repusieron en sus ejes
(Guevara, 1764: 34, grifo no original).

Neste sucinto relato, alguns eventos ocorridos em tempos míticos são narrados com
certa indiferença pelo jesuíta que, obviamente, não admite que tais situações possam ter
realmente ocorrido em qualquer tempo que fosse. É certo que sua formação religiosa e,
consequentemente, sua fé, inclinavam-no a acreditar em fenômenos que fugissem ao
comportamento natural. Atribuía-se isto aos milagres que frequentemente eram relatados nas
missivas jesuíticas, principalmente dos séculos 16 e 17, a fim de explicar e comprovar a
validade da ação divina. Nestes casos, o homem estaria subjugado à ação de Deus, servindo-
Lhe apenas com propósito de sua vontade, sem interferir em suas escolhas. Esta lógica dos
fenômenos miraculosos satisfaz-se em testemunhar o admirável, aquilo que foge à razão
prática. Por isso, associa-se o efeito milagroso a uma ocorrência sobrenatural: façanhas que
trasbordam uma natureza fixa, finita e ajustável apenas pelas mãos divinas. Entende-se
porque, na compreensão de Guevara – e de seus conterrâneos –, as narrativas indígenas são o
fingimento de “algunas trágicas aventuras”. Para o pensamento moderno, a natureza que
figura nas histórias contadas pelos índios é incomodativamente instável e facilmente acessível
aos personagens: a formação do eclipse lunar como resultado do ataque de uma fera, o céu e o
sol que caem, as amarras e colunas que os sustentam e a personificação da lua como homem e
do sol como mulher. É justamente este o motivo que leva o padre Guevara a desconfiar destas
histórias: nenhum dos fatos ocorridos está associado a alguma entidade superior, pelo

43
contrário, são os próprios ascendentes dos Mocovi que resolveram os problemas
cosmológicos – que também não possuíam qualquer adoração por parte dos índios.32
O que o trecho pode nos mostrar é que, para o entendimento nativo, o homem não está
sozinho no mundo: suas ações correspondem a associações diretamente relacionadas aos
demais agentes que povoam e formam a realidade. Se o sol é entendido como uma mulher – e
perceba-se: não se trata de representar uma mulher específica ou a imagem projetada de o que
se entende por mulher: o conceito é que o sol é uma pessoa, do sexo feminino, na figura de
sol, e o mesmo vale para a lua –, então a sua subjetividade é tão fundamental para a formação
da realidade como a dos homens que contam este mito. A natureza deixa de ser um pano de
fundo objetificado e inato, para ser entendido como o ambiente onde transitam subjetividades
que o constroem.33 Dito de outra forma, se os Mocovi dizem que o sol é uma mulher, isto
quer dizer que ambos, os índios e o astro, estão ontologicamente mais próximos do que
Pasteur esteve de suas bactérias: “entidades divinas, espíritos de animais, de vegetais e
espectros de mortos, homens e objetos, fazem parte de um mesmo Universo, no qual inexiste
uma separação radical dos elementos” (Souza, 2002: 241).
Segundo o entendimento ameríndio, e como demonstram os mitos, os seres que
habitam o mundo – ou pelo menos uma grande parte deles – possuem um mesmo espírito:
assim como o homem, muitos animais, plantas, mortos, corpos celestes, objetos – e poder-se-
ia estender o leque até mesmo aos fenômenos meteorológicos, como se verá – assemelham-se
pela sua essência anímica. Para esta filosofia, “o espírito é o fundo universal do cosmo, é
aquilo que atravessa a realidade; o que comunica as coisas entre si é antes o espírito que a
matéria” (Viveiros de Castro, 2006: 108). Isso quer dizer que os seres estão ligados por uma
continuidade anímica que os relaciona socialmente – ao passo que o parâmetro de nossa
ontologia moderna é uma continuidade natural entre o homem e os demais entes. A
implicação disto é que ali onde percebemos atividades naturais, como a perseguição de uma
onça a um porco-do-mato ou a aparição de cometas no céu, existe, para os índios, a ação
intencional de agentes portadores de consciência.

32
Vale lembrar as afirmações feitas desde os primeiros contatos com os grupos chaquenhos sobre a ausência de
alguma entidade superior a qual os índios pudessem venerar. E esta constatação ainda era frequente no século 18,
como se constata no relato do padre Sánchez Labrador sobre as narrativas mitológicas indígenas: “La vida
embrutecida no les deja levantar la consideración a la nobleza del ser increado que con divino acuerdo sacó a luz
la más bella imagen de sus indecibles perfecciones” (1770, t. 2: 49). A esta constatação também chegaram os
padres Pedro Lozano (1733: § VIII, fl. 59) e Guevara (1764: 22), bem como Félix Azara (1790: 358; 1809: 8,
95), Blas Joaquim de Brizuela (1774: 30) entre outros.
33
Tomando de empréstimo a lógica deleuziana, se para o pensamento moderno são as relações que variam no
mundo, no pensamento indígena são as variações que se relacionam, “pois o que varia crucialmente não é o
conteúdo das relações, mas sua idéia mesma” (Viveiros de Castro, 2002b: 120).

44
O que o animismo pressupõe é que os não-humanos implicam sempre a projeção
anímica do homem (Susnik, 1985: 47), conferindo a estes entes os “principais atributos da
humanidade”: esta cosmologia “exibe uma escala de seres em que as diferenças entre os
homens, as plantas e os animais são de grau, não de natureza” (Descola, 1999: 117). Por isso,
esta lógica tem seu fundamento nos mitos contados pelos índios, cuja narrativa descreve um
tempo em que os homens e os demais seres viviam em um “fundo de socialidade virtual [...]
longe de qualquer indiferenciação originária entre humanos e não-humanos” (Viveiros de
Castro, 2002a: 419, grifos no original). Os mitos contam histórias do tempo em que os seres34
viviam sob os mesmos princípios ontológicos, compartilhando uma existência antes cultural
que natural – daí a recorrência de mitos em que os seres agem como humanos. Os
acontecimentos relacionados à metamorfose destes seres, ou seja, a passagem a uma distinção
externa entre eles, não os teria desumanizado: os mitos relatam como surgiram os animais, as
plantas ou os corpos celestes, a partir de mudanças morfológicas, externas à essência que
sempre permaneceu a mesma – a humana.
Recorrente entre os mitos chaquenhos é a narração de eventos que desencadeiam o
processo de zoomorfismo dos seres primigênios. Isto quer dizer que a passagem de um estado
em que inexistia alguma forma de diferenciação entre os personagens mitológicos para a
multiplicidade morfológica que se presenciou depois decorreu de alguma situação inesperada
que reconfigurou o mundo.35 Os animais, portanto, não surgem a partir de um processo
evolutivo e, tampouco, por algum tipo de geração espontânea acionada pela transformação do
mundo: sua origem está ligada diretamente aos homens, na medida em que os animais são a
transformação que algumas pessoas sofreram devido a acontecimentos como um grande
incêndio, um dilúvio ou em função de alguma transgressão cometida:
Los relatos míticos guaycurúes y mataco-mataguayos narran que en el principio
de los tiempos los animales tenían apariencia y esencia humana. De esta
humanidad primigenia debieron permanecer en tierra quienes que no tuvieron la
oportunidad de escapar al cielo en ocasión de producirse “el gran incendio” o “el
gran diluvio”, emergiendo luego de sus refugios convertidos en distintas especies
de fauna actual (Ottalagano, 2007: 218).

Já os Mocovi contam que, após a segunda queda do sol – a que se seguiu àquela já
narrada no trecho que iniciou este sub-capítulo –, um grande incêndio se espalhou por toda a

34
Por “seres” refiro-me aos animais, humanos, plantas e corpos celestes que os índios chaquenhos narram como
personagens protagonistas dos seus relatos míticos como fazendo parte de um conjunto de indivíduos
semelhantes tanto nos aspectos físicos, como comportamentais – e que passam a diferenciar-se após algum
evento cataclísmico.
35
O tema do zoomorfismo já estava presente nos mitos indígenas registrados pelos europeus desde os primeiros
contatos do século 16, como é o caso do mito Tupinambá, publicado em 1575 pelo Frei André Thevet, em que a
transformação dos seres nas espécies atuais já era narrada (cf. Lévi-Strauss, 1991: 50).

45
parte. Alguns dos sobreviventes, para fugir das chamas, refugiaram-se nos rios e lagos,
transformando-se em capivaras e jacarés. Outros dois Mocovi, um marido e sua mulher,
subiram em uma altíssima árvore procurando proteger-se, mas foram atingidos no rosto pelas
chamas, transformando-se ambos em macacos (Guevara, 1764: 35). Já para os Mbayá “las
aves acuáticas sufrieron su zoomorfización por haber – como seres primigenios – abusado de
la pesca” (Susnik, 1985: 45).
Sobre o mesmo tema, os Toba explicam que alguns animais surgiram a partir de um
teste proposto aos primeiros humanos pelo demiurgo Nedamik: aqueles que riram foram
transformados em animais terrestres (e, consequentemente, presas da onça) ou aquáticos
(capazes de escapar do felino). Os humanos que se mantinham sérios transformaram-se em
onças ou caçadores capazes de matá-las (Lévi-Strauss, 1964: 148).36
Com isso, os animais figuram nas narrativas mitológicas como seres provenientes da
mesma constituição ontológica que os homens, sendo, então, portadores de uma alma
humana. Porém, saliento que o animismo não se restringe aos índios e aos animais: assim
como já foi dito, alguns corpos celestes são entendidos pelo pensamento indígena como
possuidores de uma humanidade constitutiva. Daí que, para os Mataco, a queda de um
meteoro é, na realidade, a “caída de un anciano de cabellos grises” (Métraux, 1944: 15) – cuja
relação com a formação das plêiades será analisada adiante. Já os Mbyá-Guarani identificam
nas árvores uma alma que pode ser dócil ou indócil, sendo a segunda responsável por alguns
males que atingem os homens (Cadogan, 1950: 331).
Ao atribuir a humanidade como condição mínima, o animismo identifica os não-
humanos como gente, portadores de subjetividade e capacidade agentiva. Não é a simples

36
É interessante notar que a risada é o evento/expressão que define a metamorfose dos homens, sendo atribuído
mitologicamente como um desencadeador de transformação da pessoa. Para os Mataco, a risada conota a
mudança do mundo: no tempo em que a “existência bio-natural era ‘igual’ para animales y hombres”, era
necessário haver silêncio para que os pássaros de fogo, entre eles o avestruz, mantivessem o controle do mundo.
Porém, um pássaro forneiro rompeu o equilíbrio ao rir, provocando o grande incêndio (Susnik, 1985: 17). A
partir disto, entende-se a descrição que Félix de Azara fez dos índios com que teve contato ou recebeu notícias,
ressaltando seu comportamento geralmente sisudo e discreto, “en que nunca ríen a carcajadas” (1809: 102). Não
estou propondo com isto a ausência de expressão de alegria, graça ou gozo entre os índios: penso, sim, que tais
expressões são fruto de uma construção cultural estabelecida a partir da relação entre um grupo (e seu
pensamento) e a realidade que lhes pertence e é conhecida. A exteriorização de determinados sentimentos não
advém de uma formulação natural à espécie humana – não é a questão de existir ou não, por exemplo, a
comicidade entre os diversos grupos humanos, mas sim o fato de o que é engraçado e as regras sociais de quando
e como expressar o cômico poderem ser tidas como repercussões específicas de um sistema de pensamento. Roy
Wagner afirma que “boa parte do ‘inato’ é criada da mesma maneira transitória, repetitiva e estilisticamente
condicionada com que são criadas pontas de flechas, refeições e festividades. A natureza constitucional e
comportamental do homem não é simplesmente a parceira um tanto letárgica de sua criação deliberada, de sua
‘cultura’: seu envolvimento é mais imediato e mais complexo do que isso. [...] Não são apenas ferramentas, tipos
de habitação, pinturas, vestimenta e cerimonial, mas também medo, raiva, agressividade e desejo – e estes
últimos são tão ‘artificiais’ (e tão ‘naturais’) quanto os primeiros” (1975: 211).

46
integração de outros num mundo definido pelos homens: é o compartilhamento de
subjetividades construtoras de suas próprias realidades: na ontologia do tempo mítico, “não há
partição definitiva entre sujeitos e objetos” (Fausto, 2008: 337-338). Daí que o animismo
possibilitou pensar a sócio-cosmologia ameríndia como uma “‘teoria da mente’ aplicada pelo
nativo” (Viveiros de Castro, 2002b: 130, grifo no original), em que seus integrantes não só
guardam em si uma subjetividade compartilhada com todos – todos são gente – como também
são portadores de pontos de vistas particulares, perspectivas de mundos em que eles são, por
assim dizer, os protagonistas:
[o perspectivismo], que nega aos humanos o ponto de vista de Sirius, afirmando
que múltiplas visões de mundo podem conviver sem se contradizerem. Isso
acarreta uma conseqüência ética importante: se os animais se vêem a si mesmos
como pessoas empenhadas em atividades culturais, então não é possível negar-
lhes a humanidade que pretendem encarnar. Ao contrário do dualismo moderno,
que desdobra uma multiplicidade de diferenças culturais sobre o fundo de uma
natureza imutável, o pensamento ameríndio encara o cosmos inteiro como
animado por um mesmo regime cultural, diversificado não tanto por naturezas
heterogêneas quanto por modos diferentes de se apreender uns aos outros
(Descola, 1998: 28).

Estes “modos diferentes de se apreender uns aos outros” conotam o conceito de


multinaturalismo, entendido como a inversão ontológica do multiculturalismo moderno. Neste
último, prefigura-se a existência de um mundo pronto e original alvejado por uma variedade
de pontos de vista, todos partindo de seu entendimento sobre o funcionamento da realidade.
Desta forma, compreende-se que cada grupo humano dispõe de sua visão de mundo peculiar e
que todas são relativas a uma verdade preexistente. Já para a cosmologia ameríndia, se todos
os seres compartilham da mesma essência (humana) – e por isso todos são um ponto de vista
–, é a cultura que é una e universal; a natureza, ou seja, o mundo que se vê, é que é
diversificado e múltiplo: “O modo de ver o mundo não muda, o mundo é que muda”
(Viveiros de Castro, 2006: 106):
Este hecho implica la percepción del mundo en su totalidad como cultura, más
aún si pensamos que el indígena concibe al animal como dotado de voluntad,
intención y responsabilidad. Los animales, en la conciencia mítica, hablan, están
organizados bajo la dependencia de un Dueño, aman y odian, se entregan al
cazador o huyen de él (Mashnshnek, 1975: 34).

Disto resulta que a cultura, ou seja, o sistema de parentesco, os rituais e cerimônias, as


bebedeiras festivas, o uso de adornos corporais, os jogos e o ócio produtivo, enfim, todos os
aspectos da vida em sociedade são iguais – ou pelo menos as suas referências – para todos os
seres humanos ou não-humanos; o que não são iguais são os mundos em que esta cultura se
aloja, pois cada ente vê os mesmos tipos de coisas de formas diferentes:
Com efeito, cada espécie, em sentido amplo, apreenderia as outras espécies em função
de seus critérios próprios, de sorte que um caçador, em condições normais, não notará

47
que sua presa animal se vê como um ser humano, nem que vê a ele como uma onça. [...]
Graças à troca permanente das aparências gerada por esses deslocamentos de
perspectiva, os animais se consideram de boa-fé dotados dos mesmos atributos culturais
dos humanos: os tufos de sua cabeça são para eles cocares, sua penugem, uma tanga,
seu bico, uma lança, e suas unhas, facas (Descola, 1999: 121; cf. também Viveiros de
Castro, 2002a: 350-351).

Neste sentido, e como o mesmo antropólogo ressalta, a identidade de cada ser está
sujeita a “mutações ou metamorfoses, já que fundada em campos de relações que variam
segundo os tipos de percepção recíproca ou não recíproca atribuídos às entidades em jogo”
(Descola, 1998: 28). Dependendo da situação, ou melhor, da perspectiva acionada, o
protagonista não é o índio que pretende atirar sua lança em um macaco, mas sim este último
que, após fugir, pode voltar e contar aos seus como foi escapar do ataque de uma fera. A
diferença entre natureza e cultura, como é estabelecida pela ontologia moderna, não faz
sentido para a filosofia indígena, que não restringe a capacidade agentiva nem a
intencionalidade consciente aos homens: “Os ameríndios não somente passariam ao largo do
Grande Divisor cartesiano que separou a humanidade da animalidade, como sua concepção
social do cosmos (e cósmica da sociedade) anteciparia as lições fundamentais da ecologia,
que apenas agora estamos em condições de assimilar” (Viveiros de Castro, 2002a: 370).37
Isto não significa que o mundo se traduz por uma harmonia entre os seres: os povos
americanos que compartilham esta filosofia não vivem, como lembrou Carlos Fausto, em uma
“província da igualdade e da simetria, em contraste com a hierarquia e a assimetria reinantes
no Velho Mundo e no altiplano andino” (2008: 329). Os índios sabem que ataques de feras,
doenças, espíritos vingativos, possessões e feitiços são perigos iminentes aos quais estão
expostos. Os mitos mostram que o homem “se colocou” como parte do mundo após os
eventos cataclísmicos e os processos de metamorfose dos seres, sendo consciente que o
“existente puede reaccionar contra él, cuando se transgrede ‘el equilibrio de la vida’” (Susnik,
1985: 53). Se esta hostilidade é tão presente, os sinais que se anunciam são importantes

37
Mesmo que a ecologia contemporânea milite a favor de um discurso que promova a igualdade entre os
humanos e os não-humanos, para Roy Wagner, ela ainda sustenta o cânone da separação entre o inato e o
artificial, depositando ainda na cultura humana o parâmetro norteador das políticas ambientais: “Discutir os
abusos sociais, os excessos da indústria corporativa e outras insuficiências de nossa Cultura coletiva diretamente
em termos sociais tem o efeito de pôr em questão a totalidade de nosso sistema conceitual (ou seja, nossos meios
de inventar nossa própria ‘realidade’). [....] O movimento ecológico é portanto um esforço para controlar a
cultura por meio da natureza, para criticar e restringir a invenção maciça e impensada da força natural como
‘produto’ e ‘energia’ em termos da exaustão e espoliação de sua base de recursos. É uma inversão ‘criativa’ do
ponto de vista ‘explorador’ tradicional, uma maneira de ver a cultura como ‘algo que é feito’ à natureza.
Identificando-se com a natureza, os ativistas ecológicos estão fundamentalmente preocupados com a reforma da
Cultura, com criar e restaurar um equilíbrio entre as necessidades do homem e sua satisfação – ou seja, um
equilíbrio no interior da sociedade humana – em nome da relação do homem com a natureza. Assim, eles são tão
‘conservadores’ quanto ‘conservacionistas’, pois ao fazer da distinção entre a ‘Cultura’ artificial do homem e
uma ‘natureza’ inata e circum-ambiental o cerne de sua ‘mensagem’, reafirmam essa distinção e a ideologia que
nela se baseia” (1975: 217-218, grifos no original).

48
indicativos de alerta para o mal que se aproxima. Os cometas, por exemplo, são temidos por
todos os índios, “porque lo creen preanunciador e instrumento de calamidades” (Dobrizhoffer,
1784, t. 2: 90). A possibilidade de que algo ruim ocorra é anunciada nas transformações do
ambiente, e o homem tem de ficar atento para poder atuar frente às intempéries e revertê-las.
Apesar das atividades maléficas não poderem ser evocadas ou controladas pelo
homem comum – ficando restritas à capacidade xamânica –, os índios sabem que podem
contornar estes fenômenos por meio de práticas que os liguem a eles. Os mitos ameríndios
mostram que os fenômenos meteorológicos ou astronômicos são acionados por agentes
personificados responsáveis pelos eventos que afetam bem ou mal o homem. Esta
aproximação em uma escala mítica dá aos índios o conhecimento necessário para
interferências em determinados fenômenos. Segundo Métraux, os índios entendem que “um
eclipse solar ou lunar anuncia doença. Quando o sol ou a lua se zanga com os homens, o astro
se esconde. Para que se descubra, é preciso tocar tambor, gritar, cantar, fazer todo tipo de
ruído” (apud Lévi-Strauss, 1964: 340). Esta reação pôde ser presenciada pelo padre
franciscano Antonio Lapa que, em uma expedição no Chaco junto aos Mocovi, observou a
agitação dos índios durante o eclipse lunar total que se fez no dia 30 de julho de 1776. Os
índios colocaram-se em uma excitação ruidosa tão extrema, que o padre narrou a
impossibilidade de se manter qualquer comunicação com eles até que a lua se fizesse
novamente visível: “procure saber la causa y me dijeron que cuando la luna se ponía en
aquellos términos, ciertamente les había de sobrevenir algunas enfermedades graves a los
muchachos, y para que no sucediera así, daban aquellos golpes y alaridos, para que, entre
ellos, se perturbara y perdiera la peste” (Lapa [23/10/1776]: fl. 40-40v). Os alaridos, cânticos
e todo o tipo de barulho que os índios possam fazer servem como forma de chamar a atenção
dos astros. Ocorre assim também com os Chiquito, que atribuem aos eclipses solar e lunar o
ataque de cachorros a estes astros e, para interromper as investidas das feras, atiram flechas ao
céu, vociferando (Dobrizhoffer, 1784, t. 2: 90). Os Payaguá, durante uma tempestade, saíam
armados com tochas ameaçando os ventos, ou dando socos no ar (Azara, 1809: 73) – bem
como os Guaicuru, que “no dejaban las armas de las manos hasta que se disipaban” as
tempestades (Alvear y Ponce [1791]: fl. 215v; cf., para os chaquenhos em geral, Bueno
[1775]: fl. 4v). Os Guayaki contemporâneos procedem de outra forma: queimam o humo do
mel para afastar os eclipses, os maus espíritos e o “gênio” da onça (Cadogan, 1959: 44).
Ressalte-se a semelhança entre o mito do eclipse lunar dos Chiquito e o dos Mocovi
citado no início deste sub-capítulo por Guevara: em ambos, as mesmas feras são culpadas
pelo eclipse da lua. O mesmo autor também afirma que os Lule atribuem ao eclipse solar um

49
grande pássaro que tapa o astro com suas asas, constatando que para os índios chaquenhos
estes eclipses significavam a “muerte de estos hermosos planetas” (Guevara, 1764: 34). Daí
que grupos indígenas, como os Mbayá (id. ibid.: 23) e os Payaguá (Azara, 1809: 73), têm o
costume de festejar a aparição da lua nova pelo fato de ela representar a ausência de eclipse.
Mas o interessante é notar que apesar de a catástrofe que representa a morte destes astros – ou
as doenças que dela decorrem –, os índios conseguem sobressair-se destas situações por meio
de atitudes diretas, verdadeiros conflitos bélicos e intimidatórios com as demais
subjetividades. Por meio das cantorias, danças e gritos, “o céu reage ao ruído como se fosse
uma ofensa pessoal” (Lévi-Strauss, 1964: 355, grifo no original), e o homem percebe-se
inserido por completo no mundo – não à parte deste.
A partir disto entende-se a praticidade contida na resposta que os Chiriguano deram
aos jesuítas, quando estes procuraram ensiná-los que o destino dos pecadores era o inferno e o
fogo eterno: “respondían que ellos apartarían de si las brasas fácilmente” (Lozano, 1733: §
VIII, fl. 59; ver também Guevara, 1764: 33). Se os relatos míticos ensinavam aos índios que a
queda do sol podia ser remediada com seu soerguimento, ou que as feras que atacavam a lua
podiam ser mortas com flechas atiradas ao céu, com as chamas do inferno não deveria ser
diferente. O discurso sobre a punição máxima aos pecadores, que atormentava e preocupava
os crentes do ocidente cristão (cf. Delumeau, 2003: 100 e ss.), não tinha o mesmo efeito entre
os ameríndios, justamente porque o inferno, para um pensamento mitológico, não se
restringiria a um lugar na sobrenatureza. Uma das maiores dificuldades que os europeus
entendiam nos índios era a “propensión natural que tienen a estas cosas visibles y temporales”
que não “les da lugar a apreciar las eternas, cuyo valor es incomparable” (Imbert
[11/02/1678]: 1). Como se pode perceber, isto não decorre de uma possível incapacidade de
os nativos compreenderem o transcendental, isto é, não conseguirem estabelecer algum
vínculo simbólico-imaginativo com seres e ambientes do campo da abstração:38 o que ocorre
é que na ontologia ameríndia o mundo mítico é “permeado por um fundo de continuidade
subjetiva, um fluxo comunicacional envolvendo todos os existentes” (Fausto, 2008: 338), em
que o indígena sabe que as suas ações – ritualísticas ou não – são tão fundamentais para a
produção da realidade como as dos demais agentes. Para o pensamento mitológico, “o que

38
Retomamos aqui o relato com que iniciamos a Introdução desta Tese. Nele, o jesuíta Martín Dobrizhoffer
descreve o processo de zoomosfismo de um xamã em onça, e o medo que toma conta dos índios frente ao perigo
de serem devorados pela fera-xamã. Na ocasião, os espectadores mostraram-se preocupados com a possibilidade
de serem atacados por um ser que não podiam ver, mas que podia efetivamente matá-los. Não apenas sabiam que
os xamãs possuíam a faculdade da metamorfose, mas também que eram estas onças as mais perigosas que
existiam. No entendimento do missionário, a contradição residia no fato de o perigo estar justamente naquele ser
que não podia ser visto – logo, para ele, não poderia existir de fato.

50
chamamos natureza não é aqui um objeto a socializar, mas o sujeito de uma relação social;
prolongando o mundo familiar, ela é verdadeiramente doméstica até em seus redutos mais
inacessíveis” (Descola, 1999: 118). O mal, nesta concepção, não é entendido como uma chaga
punitiva, mas sim como um acontecimento que está no mundo, porque faz parte dele. O
homem procura meios de tentar afastá-lo. Assim, a primeira coisa que os Mbayá fazem
quando conseguem olhar novamente as plêiades no céu é desfazer seus toldos, tirar as esteiras
de suas moradias e sacudi-las. A razão disto é “para asegurar la felicidad lo restante del año, y
que sacudían las esteras para echar de ellas las enfermedades a palo” (Sánchez Labrador,
1770, t. 2: 13).39
Junto a isto é interessante notar a inserção de figuras demoníacas em uma narrativa
mítica dos Guaicuru, descrita pelo padre Guevara. Segundo o jesuíta, os índios, durante uma
tempestade, saem com suas armas a enfrentar os demônios que provocam o fenômeno
meteorológico, “hasta que se desvanecen las nubes, quedando ellos en la vana persuasión de
que los diablos, temerosos de sus armas, huyen a sepultarse en los abismos” (1764: 23). Entre
os Mocovi, ainda o padre Guevara afirma que o eclipse solar é entendido pelos nativos como
o ataque de um demônio que pretende comer o astro, restando aos índios a súplica ululante
“déjala; compadécete de nuestra compañera, no nos la comas” (id. ibid.: 34, grifo no
original).
A aparição da figura demoníaca nestas narrativas está associada à deliberação indígena
de acrescentar personagens em seu panteão mitológico, dinamizando-o.40 Isto decorre da
relação temporal que o mito estabelece em sua estrutura entre eventos primigênios, ligados à
origem do mundo que se conhece, e os acontecimentos vivenciados no presente, ligados ao
contexto em que se situam a necessidade de resgatar a narrativa mitológica e a possibilidade
de entrelaçá-la com a situação vivencial. O mito, longe de ser uma estrutura
morfologicamente fixa e temporalmente inerte, tampouco faz do passado um escravo dos
eventos históricos. O movimento que o mito faz não é o de atualizar os elementos de sua
estrutura de acordo com as experiências no presente. Se fosse assim, a mitologia seria

39
Beatriz Vitar nos oferece uma ótima descrição do que são as plêiades: “constituyen un conjunto estelar de la
constelación del Toro, que tiene la apariencia de una nube o mancha blanquecina; a simples vista se pueden
percibir hasta siete estrellas principales, conocidas como las ‘siete cabrillas’” (2001: 21, nota 71).
40
Não se pode excluir a hipótese de que esta inserção do diabo nos relatos tenha sido uma livre associação que o
padre Guevara evocou como substituto de algum ente autóctone que, aos olhos do autor, representasse o mal.
Desde o século 16, os relatos de religiosos que tentavam a todo custo catequizar e converter os nativos têm
presentes Deus e o Diabo como personagens conflitantes em visões e aparições milagrosas ou terrificantes.
Porém, estou inclinado à ideia de que Guevara conheceu estas histórias já com a presença da figura demoníaca
como protagonista, já que nos demais relatos citados anteriormente pelo padre não existe qualquer menção ao
diabo. Aparentemente, não haveria motivo para que o jesuíta justificasse um tipo de eclipse como obra
demoníaca e outro ao ataque de cachorros celestes...

51
renegada a uma fábula vazia de conhecimento – e saturada de simbologia –, subordinada aos
fatos de uma realidade que possui veracidade. Em outras palavras, se é o mito que se atualiza,
então deve existir um conhecimento ante e anti-mitológico que possibilitaria a locomoção da
narrativa mítica em trilhos de verdade e fatos históricos: descobrir-se-ia, assim, um pano de
fundo que sustenta e mobiliza o mito. Mas este não é o caso. Não é o passado mítico que se
move com o intuito de se adequar aos acontecimentos do presente; seria justamente o
contrário: a mitologia “não explica o presente mas efetua uma triagem entre os elementos do
presente, outorgando a apenas alguns dentre eles o privilégio de ter um passado” (Lévi-
Strauss, 1962: 270). Em outras palavras, é o presente que adquire um passado (mítico), e não
como formulou Anatilde Idoyaga Molina ao propor que o “tema del mito se nutre de los
hechos históricos y revela la conciencia histórica del grupo” (1998: 15).41 O presente é
atualizado em termos mitológicos, enquanto o passado mítico se expande, dinamiza: “sempre
lhe resta algo a perfazer. Como os ritos, os mitos são in-termináveis” (Lévi-Strauss, 1964: 24,
grifos no original).
Portanto, não são os elementos externos que atualizam o mito, e sim este último que se
apropria dos primeiros, integrando-os em sua estrutura. É nesta condição que o diabo das
narrativas mitológicas supracitadas figura como um dos agentes difusores de atividades a
serem combatidas pelos índios, sem com isso representarem os mesmos valores
simbólicos/funcionais com os quais atuavam no ocidente cristão. A adição deste personagem
nos mitos implicou sua ressignificação, e não o contrário. Ao que parece, dentro da
cosmologia mítica ameríndia, o diabo figuraria como um ser potencialmente relacional e
passível de enfrentamento – pelos cânticos, entonações xamânicas, alvejamento de flechas,
etc. – do mesmo modo como o são os demais entes mobilizadores dos fenômenos que atingem
o homem.
O pensamento ocidental entendia o mal como toda atuação demoníaca que se dava por
meio da possessão corporal e que, de acordo com a representação já formulada no século 13,
resultava numa espécie de “antidisciplina feita de maus gestos, gritos, espasmos e sujidade” –
e que, a partir do século 17, adquire a fórmula da melancolia através do “desequilíbrio dos
humores corporais” (Calavia Sáez, 2004: 236). Já o pensamento mítico não vinculava a
existência de doenças, desorientações ou qualquer desequilíbrio que pudesse afetar o homem
à atuação de forças ou seres sobre-humanos.

41
Deve-se, para tanto, considerar a inserção do homem branco na mitologia ameríndia, em que não é ela que se
modifica para poder acomodá-lo. A referência não é o homem branco, mas sim a indigenidade: o europeu é
antes de tudo um não-índio, e é esta condição que lhe permite ter espaço na mitologia. Este assunto será melhor
analisado adiante, quando forem tratados os mitos chaquenhos de criação do homem.

52
Se considerarmos o que prefiguram o perspectivismo e o multinaturalismo, de que
humanos e não-humanos compartilham as mesmas ações culturais de formas distintas, então
seria do entendimento dos índios que os demais seres também praticam a caça, as danças e
cantorias rituais, e que possuem também seus xamãs que interagem com os espíritos e
qualquer outro costume relacionado ao socius. Assim como aqueles cachorros que atacam a
lua, os demônios, ao atacarem o sol, estão colocando em ação sua prática predatória comum a
todos, já que “uma das dimensões básicas, talvez mesmo a dimensão constitutiva, das
inversões perspectivas diz respeito aos estatutos relativos e relacionais de predador e presa”
(Viveiros de Castro, 2002a: 353).42 Segundo a teoria do perspectivismo, o demônio – que se
vê como pessoa – estaria caçando uma presa de gente comum; na perspectiva dos índios, esta
caça, em específico, resultava o eclipse solar. Da mesma forma, os índios sabem que muitas
de suas ações cotidianas (ou sazonais, ou anuais...) infligem eventos catastróficos ou
benéficos aos demais agentes, como se à perspectiva de algum animal, as danças circulares de
um grupo indígena fossem vistas como a formação de tornados – iguais àquelas tempestades
mobilizadas por demônios. Aliás, isto sustentou Susnik (1985: 26), para quem os grupos
chaquenhos davam “vida” e “alma” aos fenômenos meteorológicos.
Nestas condições, as interdições alimentares seriam providências a serem tomadas por
um pensamento que entende que as ações do homem não estão isoladas das relações com os
seres, resultando sempre em interferências à revelia de suas intenções. O animal de caça não é
visto como um recipiente proteico assimilado pelos homens do paleolítico como uma fonte de
subsistência: o caçador sabe que sua presa é uma subjetividade com a qual se comunica e por
isso deve manter uma série de precauções. Desta forma, a não ingestão periódica da carne de
uma determinada presa cumpriria uma função direta de manutenção da ordem daqueles
animais, daí que “as proibições não são resultado das propriedades intrínsecas da espécie
visada mas do lugar que lhes é designado em um ou vários sistemas de significação” (Lévi-
Strauss, 1962: 118).
Em um detalhado estudo sobre os mitos relacionados aos bens culturais dos índios
Mataco, Celia Mashnshnek (1975) aborda inúmeros casos de proibições a que estão
submetidos homens e mulheres de todas as idades. Com ajuda dos mais jovens, que serviam
como intérpretes, a antropóloga recolheu diversas narrativas mitológicas junto aos idosos que

42
Viveiros de Castro ressalta este aspecto relacional do perspectivismo ameríndio ao identificar sua recorrência
em grupos caçadores que necessitam conhecer a fundo não só os hábitos e costumes de suas presas e predadores,
como também o seu ponto de vista – “como o animal pensa”: “Prestar atenção ao modo como as espécies com as
quais você interage vêem o mundo me parece mais vital para uma cultura de caçadores do que para uma cultura
de pastores, ou de agricultores” (2006: 108).

53
mantêm a oralidade destas histórias. Os Mataco sabem, por exemplo, que o consumo da carne
de tatu é proibido – exceto aos velhos. Esta restrição está ligada ao hábito alimentar destes
animais, que, segundo a mitologia, comem homens mortos e bruxos, ficando interditado seu
consumo aos jovens e adultos. O narrador desta proibição – o Capitán Zebedeo, um dos
informantes mais presentes no artigo da autora – termina afirmando que “antes si comían”
(Mashnshnek, 1975: 15), remetendo-se a um tempo mítico em que não existia a interdição
alimentar aos tatus porque, possivelmente, seus hábitos alimentares não provocavam
procedimentos restritivos. Não porque comiam outras coisas, mas porque as coisas que
comiam eram as mesmas que os homens comiam – porque ambos partilhavam a mesma
essência e o mesmo sociomorfismo. Deve-se lembrar que os mitos relatam o tempo em que os
homens e os animais – e os corpos celestes e as plantas e os espíritos e os mortos... – eram
iguais, isto é, humanos. Os mitos mostram como alguns seres metamorfosearam-se nos
animais que os índios conhecem, como “os animais perderam os atributos herdados ou
mantidos pelos humanos [...]. Os humanos são aqueles que continuaram iguais a si mesmos:
os animais são ex-humanos, e não os humanos ex-animais” (Viveiros de Castro, 2002a: 355).
Daí que, hoje em dia, é bom que os Mataco não comam tatus.
Como Celia Mashnshnek lembra, no horizonte mítico Mataco, “todos los animales
fueron, en el tiempo original, seres humanos que luego se metamorfosearon en ellos” – mas,
nem por isso, todos têm proibido o consumo (Mashnshnek, 1975: 15). O que a autora mostra
é que aqueles que sofrem alguma restrição alimentar são também os que na mitologia têm sua
transmutação morfológica especificada, como o caso do tabu de consumo dos tamanduás
(suláh). Segundo o mito que contam os Mataco, o tamanduá era uma mulher idosa em quem
foi colocada uma vara no nariz, tendo sido também envolvida em um couro que usava para se
cobrir, transformando-se na espécie atual – “por eso la gente no lo come, porque era una
persona” (eod. loc.).
Deixar de comer determinadas espécies de animais é, portanto, “afirmá-las como
significativas” (Lévi-Strauss, 1962: 121) dentro de uma ordem que busca estabelecer algum
grau de diferenciação entre os homens e os animais. Se o fundo virtual entre todos os seres é a
humanidade, então a interdição alimentar não deixa de ser uma relação com o animal que está
sob a restrição de consumo – uma relação que se baseia na desaproximação para resultar na
diferenciação:
Se por meio de proibições alimentares os homens negam uma natureza animal
real em relação a sua humanidade, é porque lhes é necessário assumir os
caracteres simbólicos com o auxílio dos quais eles distinguem os animais uns
dos outros (e que lhes fornecem um modelo natural de diferenciação) para criar
diferenças entre si (Lévi-Strauss, 1962: 131).

54
Mas, insisto, a interdição alimentar não pode ser generalizada a todos os animais só
porque os homens e os bichos têm a mesma origem humana. A proibição do consumo tem
que ser restrita a alguns animais justamente porque ela não tem a função de esclarecer que
todos guardam a mesma essência ontológica: ela intenciona, antes de tudo, lembrar ao homem
que o mundo em que ele vive está em constante metamorfose. Se é a natureza que muda, a
proibição ao consumo de certos animais lembra o homem que ele pode se transformar naquele
animal. Justifica-se assim a recorrência à origem mítica dos animais sob o tabu alimentar: eles
eram gente e agora são bicho; e o índio sabe que se comê-los corre o risco de não ser mais
índio:
Son ellos [índios Pampa cordobeses e mendozanos] muy insignificantes en
número, llegando apenas a setenta familias; y, sin embargo, han causado ellos
muy graves perjuicios a los españoles, habitantes de Luján y de sus alrededores,
como también a viajeros que iban a Mendoza. Se alimentan ellos de la carne de
potros, de avestruces, y de liebres, muy abundantes en aquellas tierras; y, aunque
abundes en estos campos también los puercos, no los tocan, porque creen que
habían sido hombres (CA, 1735-1743: 581-582, grifo meu).43

A lógica da restrição alimentar parte do entendimento de que os animais ocupam o


mesmo lugar ontológico que os homens e por isso a necessidade em diferenciá-los de alguma
maneira. O padre José Sánchez Labrador, em sua convivência junto aos Mbayá, pôde verificar
que algumas aves não faziam parte de seus hábitos alimentares. Exceto pelas perdizes e
“alguna otra moradora del aire, ninguna otra les paladea el gusto, por más sabrosa que sea su
carne”, concluindo que tal atitude fundamenta-se “en la vana creencia de que son
descendientes de las aves” (1770, t. 1: 204). Esta suposta “descendência” é verificada em um
dos mitos de criação que o jesuíta coletou entre os índios:
No había en la tierra Eyiguayeguis ahora muchos años. Pero se remedió este
defecto por un medio peregrino. En una encumbrada montaña buscó su
habitación un pájaro de corporatura extraordinaria. Halló en las concavidades de
las peñas agujeros espaciosos, en uno de los cuales formó su nido: puso sus
huevos y los calentó. Veis aquí que en lugar de aves de la misma especie, por
metempsicosis admirable, los que habían de salir pollos, salieron Eyiguayeguis.
Estos fueron poblando la tierra, enseñoreándose de las gentes. El origen es

43
Ao autor da Carta Ânua só era possível explicar a interdição ao consumo de pecaris pela confiança que os
indígenas depositavam no seu sistema de crenças. É como se o jesuíta soubesse algo que escapasse aos nativos,
restando-lhes acreditar. “Não dizemos que ‘nós acreditamos’ exatamente porque não acreditamos que
acreditamos: estamos convencidos de que falamos das coisas como elas são. É por isso que é apenas o descrente
que acredita que o crente acredita” (Jean Pouillon apud Sahlins, 2001: 191, nota 22). Sahlins ilustra a questão da
crença/descrença por meio de um diálogo ocorrido por volta de 1794 entre o capitão Vancouver e o rei havaiano
Kamehameha: “O cap. Vancouver estava muito ansioso para cristianizar essas pessoas, mas isso é impossível até
que elas estejam mais civilizadas. O rei Amma-amma-hah [Kamehameha] contou ao cap. Vancouver que iria
com ele para a montanha alta Mona Roah, e que ambos pulariam de lá juntos, cada um clamando a seus próprios
deuses por proteção, e se o deus do cap. Vancouver o salvasse, mas se ele mesmo não fosse salvo pelo seu deus,
então seu povo passaria a crer naquilo em que o cap. Vancouver cria”. O capitão inglês recusou a proposta e ali
“terminou a discussão sobre religião” (Sahlins, 2008: 29).

55
desatinado; bien que no puede negarse que los Guaycurús fueron y son buenos
pájaros y todos de rapiña (Sánchez Labrador, 1770, t. 2: 50-51).

Da forma como Sánchez Labrador expõe, o protagonista deste mito é a grande ave, da
qual teriam descendido os homens, os figurantes do processo mitológico de criação. Visto
assim, parece haver uma determinação evolutiva no que compete ao surgimento de uma
espécie – ideia que já começava a estabelecer-se e expandir-se como teoria nos estudos de
biologia evolutiva de Pierre-Louis Moreau de Maupertuis, já na década de 1740 (Ramos,
2003). Porém, a mitologia ameríndia não trata sobre o processo evolutivo dos seres: para que
um pensamento possa construir este tipo de lógica, ele deve partir de uma cosmologia
naturalista fundamentando-se nas determinações naturais que regulam as relações entre os
seres por meio de pressupostos biológicos, físicos, químicos, instintivos, etc. – genericamente
sintetizados em leis naturais.44 É imprescindível, portanto, que este pensamento evolutivo
reconheça alguma ordem de semelhança externa aos seres que compõem o mundo: “nós
somos iguais aos macacos pelo DNA, somos iguais a todos os mamíferos pelo DNA, todos os
animais são iguais entre si pelo DNA, todos serão iguais às estrelas pelas moléculas, pelos
átomos... Portanto, todos compartilhamos alguma coisa pela dimensão corporal” (Viveiros de
Castro, 2006: 107). O pensamento mitológico não comporta o evolucionismo como processo
de aperfeiçoamento dos seres, pois o que assemelha humanos e não-humanos não está no
corpo, e sim na alma.45
Os mitos tratam de um tempo em que “os homens se confundiam com os animais”
(Lévi-Strauss, 1964: 141), em que a diferença entre os humanos e os não-humanos ainda
estava virtualmente acionada, sendo “interna a cada personagem ou agente” (Viveiros de
Castro, 2002a: 419). A exteriorização desta diferença viria a marcar o estágio de metamorfose
e o consequente surgimento da multiplicidade subjetiva que povoa o mundo do homem. Por
isso é comum nos relatos míticos já haver uma diferenciação nominal entre os seres – o
gavião que ficou de guarda, os urubus que possuíam o fogo, o sol ou a lua que se zangam –
mas que não se projeta como especificação identitária de espécie. Em outras palavras, no
44
A teoria da Evolução das Espécies de Darwin pauta-se pela explicação seletiva, segundo a qual uma população
“modifica-se, não porque cada indivíduo passe por desenvolvimentos paralelos durante a vida, e sim porque
existe variação entre os indivíduos e algumas variantes produzem mais descendentes do que outras”, concluindo-
se que o organismo “aparece como objeto, e não como sujeito, das forças evolutivas” (Richard Lewontin apud
Caponi, 2005: 235, grifos meus). Esta passividade naturalista dos seres não se configura como característica
ontológica do animismo.
45
Vale recordar a anedota contada por Lévi-Strauss sobre os primeiros contatos entre europeus e ameríndios no
final do século 15: “Nas Grandes Antilhas, alguns anos após a descoberta da America, enquanto os espanhóis
enviavam comissões de investigação para indagar se os indígenas possuíam ou não alma, estes últimos
dedicavam-se a afogar os brancos feitos prisioneiros para verificarem através de uma vigilância prolongada se o
cadáver daqueles estavam, ou não, sujeito a putrefação” (1952: 19). A dúvida dos índios nunca recaiu sobre o
espírito dos estrangeiros, mas sim sobre a qualidade de seus corpos.

56
estado primordial, “a diferença está pressuposta, embora não ainda posta” (Fausto, 2008:
338): o mito distingue os personagens pelos atributos que fundarão as qualidades de sua
espécie, sem negar-lhes a humanidade que lhes precede: 46
[A] questão de saber se o jaguar mítico, digamos, é um bloco de afecções
humanas em figura de jaguar ou um bloco de afecções felinas em figura de
humano é rigorosamente indecidível, pois a metamorfose mítica é um
acontecimento ou um devir (uma superposição intensiva de estados), não um
‘processo’ de ‘mudança’ (uma transposição extensiva de estados). A linha geral
traçada pelo discurso mítico descreve a laminação desses fluxos pré-
cosmológicos de indiscernibilidade ao caírem no processo cosmológico:
doravante, o aspecto humano e o aspecto jaguar do jaguar (e do humano)
funcionarão alternadamente como fundo e forma potenciais um para o outro
(Viveiros de Castro, 2002a: 419, grifo meu).

Em outras palavras, e retomando o trecho de Sánchez Labrador, os Mbayá


descenderam de humanos que se tornaram grandes aves – e por isso preferiam não as comer.
O que ocorreu a estes índios e ao pássaro pertence a um passado mítico, e não histórico; e se
dependesse deste último, o que teria acontecido seria o inverso do que relatam os mitos: o
estudo da pré-história, por exemplo, trata sobre como nós deixamos de ser animais e, através
de um processo de desnaturalização, fomos nos humanizando em detrimento da nossa
animalidade. Esta “mitologia evolucionista” (Viveiros de Castro, 2002a: 481) tem como
ponto crucial a invenção da escrita, que, para além de uma consequente tecnologia que veio a
suprir as necessidades de sociedades em expansão (registros de armazenamento, codificação
de normas, encurtamento das distâncias), tornou-se o meio mais eficaz de manter registrada a
história que acabava de iniciar com o fim de uma pré-história. Daí que o domínio da escrita
permite também que se domine a memória: a função da história vai ser a de resguardar um
passado de conquistas, de façanhas, de heróis, mas também de derrotas. O resultado disto é
uma história construída por meio do acúmulo sucessivo de eventos, gerando a ideia de que “o
mundo está terminado, maduro; é assim que nós próprios descrevemos a história da espécie
humana como a passagem do macaco ao homem: o macaco tornou-se o homem actual, está
feito, o conto terminou” (Veyne, 1987: 90, nota 4). Na mitologia dos povos ágrafos a lógica é
diferente. Ela tem como função servir como um “sistema de referência” (Schaden, 1976: 306)
aos seus interlocutores, sem fundamentar-se em preceitos evolutivos, nem procura utilizar o
passado como o domínio das causas do presente. É neste sentido que o mito se revela como

46
Assim como o cachorro que, segundo o mito Mataco, era um homem que conseguia correr tão rápido quanto
as presas que os demais caçadores não alcançavam. Por isso, Tokwáh, o herói cultural que ensinou e fez surgir
diversas coisas aos Mataco, disse ao cachorro que ele deveria seguir os homens e ajudá-los na caça, concluindo-
se que “el perro sabe las palabras del hombre porque antes era hombre y hablaba con él" (Mashnshnek, 1975:
11).

57
um “guía para la acción del indígena” (Idoyaga Molina, 1998: 15), uma maneira não tanto de
explicar a origem das coisas, mas de colocá-las no mundo e proporcionar ao homem a
possibilidade de dinamizá-lo.47
Diante disto, e retomando o mito dos Mbayá e da grande ave, Sánchez Labrador,
quando, ao final, afirma que “los Guaycurús fueron y son buenos pájaros y todos de rapiña”,
procura estabelecer uma relação entre os assaltos e hostilidades que estes índios praticavam e
sua suposta ascendência mitológica, como se esta tivesse sido criada para justificar aquela.
Porém, como alertou Lévi-Strauss (1958: 222), o mito não pode ser um reflexo da estrutura e
das relações sociais do grupo. Esta seria uma leitura por demais objetivista, típica do
pensamento moderno, e que reduz o mito a uma fantasia sem qualquer pretensão que
ultrapasse o de ser uma história simbólica dos acontecimentos incompreensíveis aos nativos.
Longe disto, os mitos se prestam como uma fonte de conhecimento – como sempre insistiu
Lévi-Strauss – e também dão razão às manifestações coletivas e individuais dos grupos que os
contam. Ora, se a mitologia evoca uma proximidade entre uma espécie de aves e os Mbayá, é
porque estes pássaros são significativos num sistema de conhecimento48 e, com isso,
permitem a estes homens pensarem suas ações: o mito constitui uma referência às possíveis
investidas bélicas que os Mbayá possam tomar – e não o contrário.
Em outra versão deste mito sobre o surgimento dos Mbayá, é interessante notar a
tradução de um elemento mítico feito pelo autor do relato:
Que Dios (a quien no adoran ni algunas de sus criaturas) crió a todas las naciones
y les repartió las tierras del mundo y que después crió a solos dos Mbayá, a
quienes envió a decir por un Caracará (pájaro) que por olvido los había criado
cuando ya no tenía tierras que repartir, y que para que subsistiesen anduviesen
vagos: y que respecto a que sólo eran dos y las demás naciones eran numerosas;
que hiciesen la guerra continua a todas, y adoptasen los cautivos para aumentarse
con ellos. Uno y otro practican y a esto se reducen sus ideas morales (Azara,
1790: 376; cf. também 1809: 58-59).

47
Por isso, como argumentou Lévi-Strauss (1962: 113), é um erro acreditar que os mitos procuram explicar o
que são os fenômenos naturais, quando na verdade tentam explicar realidades por meio destes fenômenos. A
diferença entre os pensamentos científico e mitológico reside justamente na compreensão que cada um debruça
sobre os fenômenos observáveis: enquanto o pensamento científico “consiste em avançar etapa por etapa,
tentando dar explicações para um determinado número de fenómenos e progredir, em seguida, para outros tipos
de fenómenos, e assim por diante”, a mitologia é um “modo de pensar que parte do princípio de que, se não se
compreende tudo, não se pode explicar coisa alguma” (Lévi-Strauss, 1981: 27); ou, como bem resumiu José
Héctor Lüdy, “los mitos intentan salvar al hombre de la inconsistencia de la nada” (2005: 77).
48
“[os mitos] não explicitam verdadeiramente uma origem e não designam uma causa, mas invocam uma origem
ou uma causa (insignificantes em si próprias) para realçar qualquer detalhe ou para ‘marcar’ uma espécie. Esse
detalhe e essa espécie adquirem um valor diferencial, não em função da origem particular que lhes é atribuída
mas pelo simples fato de que são dotados de uma origem, ao passo que outros detalhes ou espécies não a
possuem” (Lévi-Strauss, 1962: 270).

58
Tendo o mesmo tema do pássaro como ente responsável por adicionar atributos aos
homens, resultando na formação de uma conduta ou prática social específica, 49 esta versão
coletada por Azara tem a diferença substancial de apresentar uma figura mobilizando-a.
Azara, enquanto funcionário da Coroa espanhola, designa o ente criador do mundo mítico
mbayá pelo nome da entidade que na sua cosmologia cumpria essa importância. Mas o
próprio autor do relato assume que os indígenas que contam o mito não adoram este Deus e
apenas atribuem a ele a criação dos homens – em especial, dos Mbayá que recebem
orientações específicas de como se portarem no mundo.
Os demiurgos são figuras emblemáticas na mitologia ameríndia, comumente
denominados de heróis civilizadores ou culturais, responsáveis por ensinarem os homens
alguns costumes, como a caça, a pesca, a fabricação de cestos e vasilhas e o manejo do fogo.
São menos criadores que transformadores: ainda que o céu, a terra ou os homens tenham sido
criados por eles, “sempre é sua obra parcial e incompleta. Só posteriormente, à custa de
incidentes diversos, consegue tal obra o seu acabamento” (Métraux, 1979: 01). Disto resulta
que os índios não estabelecem uma dependência específica com esta entidade (Susnik, 1985:
64), como bem percebeu Azara.
Interessa ainda notar que o demiurgo citado no mito dos Mbayá pode muito bem ser a
própria ave caracará que alertou aos índios chaquenhos sobre seu destino de andarilhos. Esta
ave da família dos falcões (Polyborus plancus) aparece em um mito dos Toba como um
“homem-carancho”, que ensina aos índios principalmente como caçar e usar o arco e flecha
(Susnik, 1985: 64) e também protagoniza uma versão muito semelhante à do mito de criação
dos Mbayá contada por Azara, em que a ave é responsável por levar os índios à obtenção
violenta de sua subsistência (id. ibid.: 65). Isto decorre do fato de o demiurgo, assim como os
demais entes mitológicos, não possuírem distinções morfológicas dos homens. Comprova-se
isto em um mito de criação abipone:
Ignoran a Dios y al nombre de Dios. Llaman con gran complacencia al mal
espíritu Aharaigichi, o Queevèt, y a su antepasado Groaperikie. Proclaman que
éste es tan antepasado suyo como de los españoles, con esta diferencia: de que en
el de éstos los vestidos son espléndidos, de oro y plata; en el suyo en verdad lo
excusarían de magnificencia por el nombre de sus herederos. Consideran sin
embargo, que ellos son más intrépidos y valientes que cualquier español. Si te
place preguntarles: qué fue en otro tiempo aquel antepasado, en qué consistía, te
dirán llanamente que lo ignoran. Si insistes otra vez, te dicen que este su
antepasado es semejante a cualquier indio de los que viven (Dobrizhoffer, 1784,
t. 2: 75).

49
“Muitos dos mitos etiológicos indígenas narram menos uma origem-gênese do que o modo pelo qual atributos
que irão caracterizar a sociabilidade humana foram apropriados de animais” (Fausto, 2008: 338).

59
A convivência diária ao longo de sete anos com os Abipone permitiu que Martín
Dobrizhoffer tivesse acesso a detalhes concernentes ao pensamento nativo, levando-o a
afirmar que qualquer figura semelhante ao Deus cristão não estava presente nas narrativas
indígenas sobre a criação do homem. O jesuíta já havia percebido que o responsável pelo
surgimento dos índios não era narrado como uma divindade distante e adorada pelos nativos
justamente porque antes de ser uma entidade superior era um ente cosmológico, cujas
propriedades enquanto ser assemelhavam-no aos demais homens, ao invés de diferenciá-lo. O
que o trecho informa é que a mesma origem reservada aos índios também é compartilhada
pelos brancos, fazendo de ambos parentes mitológicos, formados pela mesma razão de ser,
mas diferentes em suas qualidades adquiridas. Resulta daí a posição assimétrica entre eles,
sem com isso existir alguma desigualdade do tipo hierárquico de poder – se os brancos
traziam consigo o esplendor dos objetos moldados em ouro e prata (e a vantagem de dominar
a ciência de fabricação de uma tecnologia jamais vista), os índios tinham o privilégio de
possuir a valentia que só era conseguida pelos primeiros à custa de suas armas. 50 O que se
percebe nisto não é a simples inserção do europeu na mitologia ameríndia a fim de atualizá-la
e de alguma forma explicar a aparição dos estrangeiros. O homem branco é integrado num
complexo de oposições formadoras do universo como o elemento contrário do referencial
indígena. Dito de outra forma, o branco, na mitologia, é acima de tudo um “não-índio”
(Viveiros de Castro, 2000: 50), o que de maneira alguma o diminuía. Muitas práticas e objetos
trazidos pelos europeus foram integrados no cotidiano nativo, bem como a própria relação que
se estabeleceu entre ambos, seja em acordos comerciais, seja em alianças bélicas. O homem
branco, com todas as suas diferenças (e, pode-se dizer, por causa delas), foi integrado ao
complexo mitológico ameríndio pela mesma via de origem que os índios. Muito menos
cordial foi a imagem que os estrangeiros fizeram dos nativos, como lembrou Félix de Azara:
“los primeros españoles que frecuentaron los indios o americanos no los consideraron como

50
Segundo a etnologia contemporânea, o evento da má escolha é recorrente em grande parte da mitologia
ameríndia, em que os instrumentos bélicos e manufaturados em geral pertencem aos brancos, porque os índios
“poderiam ter escolhido ou se apropriado desses recursos, mas fizeram uma escolha equivocada” (Carneiro da
Cunha, 1992: 19). Anatilde Idoyaga Molina atenta para o fato de que, entre os grupos chaquenhos, é comum esta
opção tecnológica partir do herói cultural que “ofrece a los indígenas por ejemplo las armas de fuego, estos las
rechazan y por consiguiente las aceptan los blancos” (1998: 16, nota 3). E mesmo em uma realidade reducional,
em que os jesuítas se esforçavam para ensinar a solidariedade divina, a cacique mbayá Margarita é contundente
ao afirmar que Deus deu aos espanhóis “miel, azúcar, pan, carne y zapatos: y no ha hecho estas liberalidades a
los Eyiguayeguis” (Sánchez Labrador, 1770, t. 2: 52). Em contra-partida, os índios sabem que possuem
qualidades físicas que faltariam aos brancos. Assim os Mbayá se consideravam superiores aos europeus no que
competia à valentia e à força (Azara, 1809: 58). Se a má escolha resultou na inferioridade material dos índios,
pelo menos “fica salva a dignidade de terem moldado a própria história” (Carneiro da Cunha, 1992: 19).

60
hombres que tuvieran el mismo origen que nosotros, sino más bien como una especie
intermedia entre el hombre y los animales” (1809: 98).
O que pretendo analisar na sequência é como estas oposições surgem nas narrativas
míticas e determinam relações que se desdobrarão em situações ligadas ao cotidiano indígena,
tendo inclusive implicações no contato com os europeus.

1.3 As oposições duais


Os mitos tratam fundamentalmente sobre oposições que compõem não apenas a vida
social, mas também a estrutura cósmica que possibilita a existência de uma realidade. Estas
oposições, longe de se anularem, conspiram para que haja a possibilidade de um equilíbrio do
mundo: assim, por exemplo, os Toba contemporâneos entendem o mundo como um todo
formado por estratos e setores topográficos unidos por um eixo que os “traviesa y los
mantiene ordenados, diferenciados e interconectados”, cabendo a esta ordem “la confirmación
de la condición humana” (Ruiz Moras, 2001: 213).
É dentro desta configuração ordenada por oposições que se completam, mas que
mantêm distinções entre si, que resulta, por exemplo, o entendimento de que a terra cria
necessariamente a existência do céu, sendo este – ou aquele, dependendo do ponto de vista – a
oposição necessária para sua formatação. A mitologia, por tratar principalmente sobre a
transformação que o mundo e seus seres primigênios sofreram para constituir a realidade que
se presencia hoje, tem, como base de sua narrativa, a formulação destas oposições, como se,
para a existência do mundo atual – pós-cataclísmico –, tivesse antes que se criar o motivo da
distância entre céu e terra, dos animais aquáticos dos terrestres, do índio e do não-índio. Por
isso, os mitos
representam a organização progressiva do mundo e da sociedade na forma de
uma série de bipartições, mas sem que entre as partes resultantes em cada etapa
surja jamais uma verdadeira igualdade. De algum modo, uma é sempre superior
à outra. Desse desequilíbrio dinâmico depende o bom funcionamento do sistema,
que, sem isso, estaria constantemente ameaçado de cair num estado de inércia. O
que tais mitos proclamam implicitamente é que os pólos entre os quais se
organizam os fenômenos naturais e a vida em sociedade – céu e terra, fogo e
água, alto e baixo, perto e longe, índio e não-índio, conterrâneos e estrangeiros
etc. – nunca poderão ser gêmeos. O espírito se empenha em juntá-los em pares,
sem conseguir estabelecer uma paridade entre eles. Pois são essas distâncias
diferenciais em série, tais como concebidas pelo pensamento mítico, que
colocam em movimento a máquina do universo (Lévi-Strauss, 1991: 65-66).

Neste sentido, a incorporação do europeu obedeceu a um expediente do pensamento


mitológico – “um operador dicotômico que faz com que toda posição de um termo seja
inseparável da contraposição, tratada como pressuposição, de um termo contrário” (Viveiros

61
de Castro, 2000: 49-50). A origem mítica do homem branco é um dos elementos constitutivos
do complexo de oposições que fez do estrangeiro um similar do índio, mas diferente no que
compete às suas qualidades e deficiências. Por isso, Lévi-Strauss (1991: 66-67) afirma que a
gemelaridade é apenas uma condição aparente na mitologia ameríndia, já que, apesar da
semelhança entre as partes, a falta de simetria sempre resulta em desequilíbrio.
É certo que a “chegada desses excêntricos estrangeiros, com seus maravilhosos
objetos, enriqueceu o velho mito de novos elementos” (Métraux, 1979: 10), o que não
significa uma submissão do mito ao apelo estrangeiro. Deve-se entender que o homem branco
não foi um catalisador para a atualização dos mitos – quem teve seus atributos reavaliados e
sua posição na relação ressignificada foram os europeus. O sistema mitológico absorveu a
presença estrangeira de acordo com suas possibilidades de encarnar o outro, visto que a
existência de um nicho cosmológico no mito que abrigou o europeu não era a novidade em si
neste contato: “os brancos estavam contidos virtualmente, isto é, estavam previstos, formal
senão historicamente, em uma estrutura constitutiva do pensamento indígena” (Viveiros de
Castro, 2000: 49; cf. Lévi-Strauss, 1991: 66). Os Payaguá, ainda no século 18, relatavam o
mito de criação dos homens sem esquecer de incluir outros povos:
“Nuestro primer padre fue el pez que llamamos pacú; el vuestro fue el pez que
llamamos dorado, y el de los guaraníes fue un sapo. Por esto vuestro color es
más claro y más bello, único ventaja que tenéis sobre nosotros, porque os
superamos en todo lo demás; por esto también los guaraníes son ridículos y
despreciables como los sapos” (Azara, 1809: 74; também em 1790: 358 e 1793:
fl. 231v).

Os Payaguá são descritos na documentação do século 18 como índios canoeiros, cujas


investidas bélicas são muito famosas pela rapidez tanto no ataque como na fuga. O fato de
sempre serem vistos navegando nos rios do Chaco levou a considerar-se este grupo como
“desordenados [...] que viven ordinariamente en el agua” (Lozano, 1733: § VII, fl. 55),
criando-se a lenda que “son más peces que hombres” (Paucke, 1767, t. 2: 44). Martín
Dobrizhoffer ressaltou a eficiência da pesca payaguá afirmando que “ellos se echan a los más
profundos abismos de los ríos, permanecen en ellos por mucho tiempo y resurgen [en un lugar
distante] después de un buen rato con un pescado que agarraron debajo del agua” (1784, t. 1:
214). A similaridade entre a vida cultural destes índios e a narrativa de sua origem mitológica
não deve ser tomada como uma coincidência das fontes: o que se poderia questionar é se sua
mitologia foi formulada a partir de um cotidiano vivencial ligado ao ambiente aquático. Se
assim fosse, então teríamos homens mais preocupados em forjar criativamente sua origem do
que estabelecer prioridades relacionadas à sua existência enquanto grupo. Considerando o que
foi exposto e discutido até aqui, inclino-me a afirmar que, de maneira alguma, o mito de

62
criação payaguá ou sua estrutura cultural foram produzidos independentemente um do outro.
A inserção do homem branco no mesmo nicho originário que os índios demonstra que a
experiência vivencial e a reformulação do pensamento mitológico não se dissociam: são ações
que se desenrolam simultaneamente como construção do socius. E se os três personagens do
mito, os Payaguá, os europeus e os Guarani, possuem uma mesma origem marinha, seus
destinos pós-mitológicos distanciam-se de tal forma que os dois primeiros, aparentemente
gêmeos, possuem dessimetrias fundamentais, fazendo-os, por assim dizer, dizigotais. Já os
Guarani emergem no mito por uma peculiaridade que deve ser observada mais atentamente.
O mito payaguá se refere aos Guarani como descendentes do sapo que, no mito tupi de
criação do fogo, é um dos protagonistas da captura do elemento. Autores como Cadogan
(1959: 109-111) e Schaden (1976: 309-310), para os Guarani, e Lévi-Strauss (1964: 171),
para os Guarayo, reproduzem o mito sobre o roubo do fogo que pertencia aos urubus: conta-se
que, ainda em um estado de indiferenciação entre os seres, um homem – geralmente associado
com o demiurgo – combinou com os animais, dentre eles o sapo, seu parente, que se fingiria
de morto para que os urubus descessem até o solo e o comessem. Após chegarem perto do
suposto defunto com o fogo, o homem se mexe e espalha brasas pelo chão. O único que
consegue pegar uma brasa é o sapo. O resultado é que os urubus, por perderem a posse do
fogo, tornam-se animais carniceiros, diferentemente dos Guarani, que passam a cozinhar seu
alimento. O sapo é identificado, nestes mitos, como o responsável pela captura do fogo,
aquele que possibilitou aos Guarani a posse de tal elemento. Se, no mito Payaguá, o sapo se
diferencia dos peixes pela sua inferioridade – “son ridículos y despreciables” – é porque sua
origem anfíbia o vincula ao habitat terrestre: sua não permanência nos rios e mares o
desqualifica perante os Payaguá – mas o coloca como um agente que transita entre o ambiente
aquático e o terrestre, estabelecendo, a partir dele, a oposição entre os animais de terra (seco)
e os animais marinhos (molhado). E, de acordo com a análise que Lévi-Strauss (1971: 551,
562) realizou sobre os mitos ameríndios, o roubo do fogo narrado no mito tupi estabeleceria a
diferença entre o céu – fogo celeste pertencente aos urubus – e a terra – o fogo culinário
dominado pelos Guarani: uma oposição muito comum dentro do complexo mitológico do
Chaco – e Flavia Ottalagano (2007: 220) atenta para a participação de aves neste processo de
possessão mítica do fogo como intermediárias entre os estratos celeste e terrestre.
Alguns mitos de origem chaquenhos assemelham-se por geralmente possuírem dois
mundos específicos como cenários interligados por algum elemento-ponte que comunica as
duas realidades. Estas narrativas mitológicas tratam, portanto, do momento em que há uma
transgressão de fronteiras e, por consequência, o rompimento entre os mundos. O que vem

63
depois é a formação da realidade que se conhece hoje, composta pelas oposições que foram
pressupostas no tempo mítico: terra e céu, subterrâneo e superfície, antepassados e
descendentes. Assim, um dos mitos de criação dos Mbayá conta que estes índios viviam no
subterrâneo até serem resgatados por um cachorro que os farejou e os trouxe à superfície,
dando-se, desta forma, o surgimento deste grupo (Sánchez Labrador, 1770, t. 2: 50; cf.
também Muriel, 1766: 137). Métraux conta uma versão parecida deste mito para os também
chaquenhos Chamacoco, com a diferença de que os seus ancestrais puderam sair do
subterrâneo por uma corda que, depois, foi rompida por um cachorro, impossibilitando seu
retorno (1948: 15; cf. também Susnik, 1985: 11). A passagem do subsolo à superfície conota,
miticamente, o surgimento destes grupos indígenas e o rompimento de acesso entre eles. Dito
de outra forma, se no tempo primígeno estes ambientes eram acessados e acessíveis,
atualmente não há mais a possibilidade de transgredi-los, pois já não compõem mais as partes
de um todo. Isto também ocorre com outro grupo de mitos chaquenhos que tratam sobre a
separação definitiva do céu e da terra, resultando na organização atual entre os seres terrestres
e os entes que habitam a região celeste. Geralmente, estes mitos têm como elemento
fundamental uma grande árvore que, por ter sido o acesso entre estes dois ambientes, unia-os
até ocorrer o evento de sua disjunção. Assim, contam os Mocovi que uma árvore chamada
“nalliagdigua” servia como acesso para que os homens – os ascendentes dos índios que
narram essas histórias51 – pudessem pescar no seu topo, onde conseguiam facilmente seu
alimento. Um dia, ao ver recusado o seu pedido de ajuda, uma mulher idosa irritou-se com os
demais, transformando-se em capivara e “tomó el ejercicio de roer el árbol por donde subían
al cielo, y no desistió hasta derribarlo con increíble sentimiento y daño irreparable de toda la
nación” (Guevara, 1764: 32-33).
Este é um modelo mítico bastante difundido entre os grupos do Chaco, com a
diferença de que entre os Mataco (Lévi-Strauss, 1964: 278; Susnik, 1985: 10-11) e os Toba
(Susnik, 1985: 8-9) as consequências do rompimento da grande árvore fez com que os
homens que se encontravam no céu ficassem presos lá, o que gerou a formação da plêiade.
Daí que os Abipone festejam quando se dava a aparição destas estrelas no céu, pois assim
sabiam que tudo ia bem com os seus avôs (Dobrizhoffer, 1784, t. 2: 76) – reação também
encontrada entre os Guaná e os Payaguá (Azara [1793]: fl. 241v).

51
Interessa notar que no relato reproduzido pelo padre Pedro Guevara os personagens do mito são referenciados
como “almas”, o que, para o jesuíta, deve ter sido a tradução mais correta, em seu entendimento, para as
entidades às quais se estavam referindo os seus interlocutores.

64
O que estes mitos narram é a constituição do mundo que os índios conhecem a partir
da separação entre os estratos que já formaram um todo unificado e hoje compõem oposições
dissociadas, cada uma formada por seu ambiente e entidades específicos. Se os mitos
chaquenhos narram, por exemplo, a desunião da terra e do céu após o corte da grande árvore –
os Lengua contam que o acesso até o céu era realizado por uma corda feita da fibra de
caraguatá (Susnik, 1985: 10) –, e a consequente retenção de alguns homens que se tornaram
seus antecedentes/estrelas, se deu porque foi o mundo que mudou, e não as relações entre os
seres. Como já foi dito anteriormente, os mitos ameríndios narram uma época em que os seres
não se distinguiam morfologicamente, porém já possuíam – pressupostamente – alguns de
seus atributos qualificativos de espécies – daí os homens que iam até o céu, pela grande
árvore, para caçar ou pescar, ou o cachorro que farejou os Mbayá que estavam no
subterrâneo. As relações sociais, por assim dizer, já estavam postas: a cultura sempre esteve
lá; foi a natureza que se transformou. Assim, quando os homens passaram do subsolo para a
superfície, ou a terra e o céu se separaram definitivamente, o que disto resultou foi uma
natureza-outra. A formação das oposições é fundamental antes para a construção do mundo
em que se vive do que para as relações sociais que se estabelecem. Estas últimas garantem a
sustentabilidade do mundo, e não o contrário. Por isso Lévi-Strauss (1971: 562) afirmou que o
esquema cosmológico tem sua duplicata no esquema sociológico, no qual se adere
estreitamente: os mitos de surgimento das mulheres são um profícuo exemplo.
A aparição das mulheres é narrada pelos grupos chaquenhos como um evento
mitológico de inserção de elementos externos à organização já estabelecida entre os homens.
De acordo com Susnik (1985: 12-13), é bastante comum entre os grupos do Chaco os mitos
que contam como os “caçadores integraram as mulheres em seu mundo”, introduzindo a
possibilidade de procriação e divisão do trabalho produtivo. Porém, o surgimento mitológico
das mulheres não deve ser analisado apenas como a inserção da oposição entre macho e
fêmea, cabendo consequentemente a cada um uma função específica na construção do socius.
Se analisados juntamente os mitos e as práticas culturais destes grupos, notar-se-á que a
mulher, para o pensamento indígena, conota acima de tudo a existência da alteridade. Veja-se
o mito do surgimento das mulheres para dois grupos indígenas chaquenhos:
Los Toba y los Mataco del Gran Chaco hablan de una época en la que los
hombres vivían solos, sin mujeres. Estas descendían del cielo por medio de una
cuerda y robaban las provisiones de pescado seco que tenían los hombres; eran
tanto más ávidas de comida cuanto que poseían dos bocas, es decir que tenían
una vagina dentada. Los hombres, sorprendidos por la repetición de estos robos,
colocaron diversos animales a modo de centinelas para descubrir al ladrón. Estos
guardias se mostraron incapaces de sorprender a los autores de los robos, hasta el
día en que el Halcón decidió vigilar por si mismo las provisiones. Vió a las

65
mujeres descender del cielo y con un bastón mágico cortó la cuerda de que se
servían para visitar la tierra. (Aquí se añaden diversos episodios cómicos que no
mencionamos). Los hombres recibieron cada uno una mujer, pero se les previno
de abstenerse de toda relación sexual. El Zorro, el burlador, no obedeció esta
orden y fue mutilado. El Halcón rompió los dientes de la vulva, arrojándole un
bastón, y a partir de este día los hombres pudieron utilizar a sus esposas
(Métraux, 1948: 19-20).

Esta versão do mito reproduzida por Alfred Métraux pode servir como referência para
os demais mitos chaquenhos que narram o surgimento das mulheres, devido à semelhança de
estrutura que eles têm entre si. Outras versões do mito possuem alguns elementos distintivos,
como a versão reproduzida por Flavia Ottalagano (2007: 220), em que o mito narrado pelos
grupos de língua guaicuru e mataco teria o carcará como protagonista da captura das mulheres
e responsável pela consequente possessão sexual das mesmas. Em outra versão do mito toba,
salienta-se que as mulheres desciam do céu por uma corda feita de caraguatá (Métraux apud
Susnik, 1985: 12-13; cf. também Tola, 2005: 118-119), planta muito utilizada como matéria
prima no artesanato chaquenho. A versão deste mito que Célia Mashnshnek (1975: 20)
coletou entre os Mataco contemporâneos enfatiza a indistinção entre os seres primígenos,
ressaltando que durante o evento em que as mulheres foram descobertas e capturadas pelos
seres que viviam na terra, estes só vieram a se zoomorfizar após o estabelecimento da
diferença entre os mudos e os falantes: aqueles que se tornaram mudos transformaram-se em
animais, diferente dos homens que falavam. As mulheres que ficaram com os primeiros
também se transformaram em animais fêmeas e as que ficaram com os segundos são as
mulheres dos índios.
Para além das diferenças entre uma versão e outra, o que este mito sobre o surgimento
das mulheres narra é a aparição de um elemento de fora que é interiorizado pelos membros
que já compartilham um socius. E nesse movimento de internalização que ocorre por uma via
de acesso entre o céu e a terra, as mulheres representam o Outro, aquilo que não pertence ao
grupo no qual são inseridas, fazendo surgir a distinção entre o estrangeiro e o conterrâneo, o
distante e o próximo, o externo e o interno. Nestas condições, atribui-se às mulheres a posição
que se vincula aos seres cuja existência aproxima-se da imortalidade.
Segundo o pensamento ameríndio, a mortalidade entre os homens é ocasionada por
influências externas, geralmente resultado de alguma magia xamânica ou da retaliação do
espírito de algum animal ou homem vingativos. Por isso, os Mbayá afirmavam que a morte
não era “condición inseparable de la naturaleza humana, y que ninguno muere naturalmente”,
concebendo-a como um “agente furioso que sin piedad arremete y corta el hilo de la vida a
quien y cuando quiere” (Sánchez Labrador, 1770, t. 2: 45). Os Lule atribuíam a morte à ação

66
do Ayaquá: um caruncho que, munido de arco e flecha, causa doença ou a morte do seu alvo
(Lozano, 1733: § XVI, fl. 97; cf. também Guevara, 1764: 29). Já os Mocovi atribuem a morte
aos malefícios de um xamã (Paucke, 1767, t. 2: 236); diferentemente dos Abipone, que se
diziam imortais até a aparição das “artes maléficas de los españoles, a las cañas que
vomitaban fuego, o a otras causas diversas” (Dobrizhoffer, 1784, t. 2: 89). Já os Mataco
afirmam que a morte é a consequência de um engano que os primeiros homens cometeram:
daí que certos animais, mais atentos, “comprendieron correctamente el consejo que se les
daba y por ello se conservan eternamente vivos, renovando la piel” (Métraux, 1948: 29).
A imortalidade, portanto, é um atributo mitológico que somente alguns seres têm o
privilégio de possuir – o que, definitivamente, não ocorre com os homens. Geralmente,
serpentes e árvores são relacionadas como entes que possuem uma vida longa – em oposição
à vida breve dos índios –, devido a sua troca periódica de pele/casca. É neste sentido que as
mulheres, enquanto estrangeiras e possuidoras de um ciclo menstrual, cumpriam uma função
determinante nas relações reprodutivas do grupo: sua troca periódica de sangue denotava não
só o reinicio de um ciclo de fertilidade individual, como também a possibilidade de se manter
a integridade sociológica do grupo. Beatriz Vitar (2004: 63) ressalta a posição dúbia que as
mulheres possuíam entre os Mataco, sendo associadas tanto à vida como à morte, cabendo-
lhes a responsabilidade de acompanhar a morte de um membro do grupo com cantos e danças
fúnebres. Daí que, em geral para os grupos sul-ameríndios, as mulheres representavam “seres
fértiles, poderosos y peligrosos”, outorgando-lhes certa ambiguidade que “requirieran ser
controladas en determinadas ocasiones” (Perusset e Rosso, 2009: 72). Assim, algumas
proibições alimentares recaíam sobre as mulheres, que deveriam abster-se de alguns alimentos
como forma de prevenção. É certo que tal situação provocou embates entre os índios e os
missionários no meio reducional, onde a distribuição de comida deveria ser realizada de
forma igual a todos, o que acabava esbarrando nas especificidades dos resguardos. Assim, por
exemplo, o cacique mocovi Cithaalin ameaça abandonar a redução com seus índios caso o
padre Florián Paucke não fornecesse carne de vaca à sua mulher, já que ela não poderia comer
a carne de boi que estava sendo servida (Paucke, 1767, t. 2: 28). Às mulheres payaguá
também estava interditada a ingestão de carne, “porque dicen que les hace daño” (Azara,
1809: 69).
Mas as principais precauções estavam relacionadas à época menstrual, que parecia ser
o período que mais necessitava atenção por parte das mulheres, razão pela qual estava sujeito
a resguardos e interdições alimentares:

67
Entre los mbayás los hombres comen de todo, pero las mujeres casadas no
emplean nunca en su alimentación ni vaca, ni capibara, ni mono, y cuando tienen
su evacuación periódica no comen más que legumbres y frutas, y jamás prueban
con pretexto alguno nada que tenga o pueda tener grasa (Azara, 1809: 61).

Entre os Mataco, a antropóloga Celia Mashnshnek (1975: 19) observou a cerimônia


em que os membros do grupo celebravam a menarca, em que a menina deveria beber hatés,
uma bebida fermentada do alfarroba, enquanto o xamã tocava e recitava suas memórias. A
mesma antropóloga também refere as proibições alimentares ligadas ao período menstrual, no
qual “las mujeres con reglas no comían miel”, sob o risco deste escassear (id. ibid.: 24),
podendo ainda sofrer uma doença chamada tiáh caso comessem peixes neste período (id.
ibid.: 28).
O que se pode evidenciar é que a condição menstrual, que coloca a mulher como
elemento fundamental de aproximação da vida longa/reprodução social do grupo, implicava
em um perigoso estado, não só no que se relacionava à sua integridade física, como ao meio
social a que ela estivesse integrada. Os índios Toba e Mataco conhecem um mito em que uma
mulher, ao sair para caçar aves com o seu marido, acabava comendo todas as presas ainda
vivas e depois o atacava, devorando-o. Ao retornar à aldeia com a cabeça do homem numa
cesta, na versão mataco, a mulher devora seus filhos e torna-se uma onça, dando origem a
estes animais; na versão toba, a mulher devora toda a aldeia, transformando-se em onça, e
seus filhos a matam, queimam e enterram suas cinzas, de onde nasceu o tabaco (cf. Lévi-
Strauss, 1964: 126-127; também para a origem do tabaco em meio às cinzas da “mulher
canibal”, cf. Métraux, 1948: 25). Entre os Mbyás, um sub-grupo guarani, estas pessoas são
chamadas de “ivaí-kué ye-potaá”, ou seja, pessoas com desejo de comer carne crua. Tomados
por esta vontade, são encarnados pela alma de uma onça (Susnik, 1985: 44). Os Mataco, sob
prevenção, não permitem que as mulheres em período menstrual comam a carne de animais
que sangram (Mashnshnek, 1975: 17) recomendando a obediência a uma proibição bastante
peculiar:
Los indios hablan de buena gana de los lewo, animales míticos que viven en las
lagunas y que tienen la apariencia de serpientes. Su aliento forma el arco iris
(lewo-tutsax igual a aliento de lewo). Los lewo tienen horror de las mujeres en la
época de la menstruación y si una de ellas se aproxima en este estado a un
estanque o a un río, ellos suscitan una tempestad (Métraux, 1944: 15).52

52
Os Nivaclé do Chaco também estabeleciam uma relação entre a menstruação e a presença de entidades
anímicas próximas a rios – além de ressaltar a proibição de a menina menstruada chegar perto da água: “cuando
una jovencita tiene su primera menstruación, todos los hombres se reúnen y van al río, ya que consideran que los
espíritus de la naturaleza les son favorables; pero la joven no podrá salir de su casa para evitar la maldición sobre
la tarea” (Cruz Sánchez, 1998: 306).

68
Para além da similaridade entre o rastro deixado pelos lewo e o sangue menstrual das
mulheres, este mito evoca uma relação entre a menstruação e o surgimento do arco-íris no
céu: segundo Lévi-Strauss (1964: 283 e ss.), este fenômeno meteorológico, além de anunciar
o fim da chuva, é o responsável pelas doenças e por diversos cataclismos naturais. A relação
que procuro estabelecer aqui é a do duplo e oposto significado que ambos os eventos – a
menstruação e o arco-íris – possuem, por representarem um período de recomeço, tanto para o
corpo feminino em seu ciclo fértil, como para o fim das precipitações num ciclo ambiental
que envolve a calmaria pós-chuva, as novas chuvas, as tempestades e instabilidades do céu e
da terra. Num âmbito sociológico, a menstruação também interfere no ciclo relacional
indígena, envolvendo os resguardos, as interdições, a fertilidade feminina e a gravidez. É
curioso notar que tanto a mulher como o lewo, que se assemelha a uma serpente, são seres que
se aproximam da vida longa por trocarem seus fluidos e pele durante a vida.53
As mulheres, portanto, respondiam socialmente por sua condição especial, já que
agregavam em si a importância da reprodução sociológica do grupo e, acima de tudo, por
representarem aquilo que vem de fora. Mitologicamente, elas formam a parcela de alteridade
que é componente fundamental na construção da sociabilidade54 interna de um grupo: isto
decorre do fato de no sistema ameríndio “a relação fundante não ser a identidade consigo
mesmo” (Fausto, 2008: 341), mas sim com o Outro que, por carregar uma subjetividade
externa, é o principal galvanizador do sistema relacional ameríndio. Muito diferente da
concepção ocidental de identidade mônada e fechada em si, tal modalidade ontológica
implicava uma constituição do corpo social aberta ao exterior, no qual, o socius ameríndio
viabilizava a incorporação de elementos alienígenas à sua topografia sociológica:
Tratava-se, em suma, de uma ordem onde o interior e a identidade estavam
hierarquicamente subordinados à exterioridade e à diferença, onde o devir e a
relação prevaleciam sobre o ser e a substância. Para esse tipo de cosmologia, os

53
A relação entre serpentes e menstruação pode ser encontrada em um mito toba, onde uma mulher que sempre
ria estava em sua fase menstrual e não parava nunca de sangrar – exceto quando estava com seu marido, uma
cobra píton. Após um tempo, ela deu à luz seis pequenas cobras e transformou-se em iguana (Lévi-Strauss, 1964:
152). Acrescenta-se a este mito o relato do padre Manuel de Fonseca, do Colégio de jesuítas de Santiago do
Chile, que ficou sabendo de uma índia que pariu “una culebra, un pedazo de carne como un pequeño pan con una
boca en medio y unos ojos como de sapo” (In: Torres, 1611: 103-104).
54
Devo esclarecer o que entendo pelo termo sociabilidade – e, consequentemente, socialidade. Apoio-me no
estudo de Cecilia McCallum (1998) que, partindo de sua leitura de autores como Terence Turner, Philippe
Descola e Carlos Fausto, define sociabilidade como a prática “da vida diária, focalizando a questão da
alteridade”, em que, por exemplo, os homens controlam as trocas de esposas e a guerra, fazendo existir, portanto,
uma sociabilidade interna e uma externa ao grupo. Já a socialidade parte de um “estado momentâneo na vida
social de um grupo, definido pelo sentimento de bem-estar e pelo auto-reconhecimento como um grupo de
parentes em plena forma”. Dito de outra forma, a socialidade é o que dá forma às relações sociais de um grupo,
conceitualizando-as por meio de noções como afim, cunhado, inimigo, cognato... Pode-se dizer então que a
sociabilidade é praticada para que a socialidade seja construída, ou, como colocou Viveiros de Castro, “a
socialidade termina onde a sociabilidade acaba” (2002a: 414).

69
outros são uma solução, antes de serem – como foram os invasores europeus –
um problema (Viveiros de Castro 2002a: 220-221).

Este nicho sociológico aberto ao exterior para incorporação de elementos estranhos e


diversos era um mecanismo de acionamento da reprodução do corpo social indígena. A
relação com a alteridade era o motor social destes grupos, produtores de subjetividades
internas. Dito de outra forma, as sociedades indígenas (re)produziam pessoas, grupos e
relações sociais, por meio do englobamento do interior pelo exterior: “cada unidade social,
portanto, depende simbolicamente da relação com o que lhe é externo e diverso, para o
desenvolvimento das capacidades criativas de seus membros” (Fausto, 1999: 265-266). Daí o
papel fundamental que cumpriam aqueles que são de fora na formação e manutenção
sociológica do grupo. Definitivamente, a cosmologia ameríndia – por tudo o que se discutiu
até agora – é um complexo anti-solipsista.
Entende-se, a partir disto, o papel reservado e a atuação social que exerciam as
mulheres no cotidiano dos grupos chaquenhos. Se os seus mitos declaravam que as índias
originavam-se no exterior e tiveram que ser integradas ao meio interno, então elas carregavam
uma subjetividade outra, uma possibilidade de se ter acesso ao que é de fora. A união de um
homem e uma mulher – e a consequente procriação – concretizavam a consubstanciação dos
eixos de oposição que a mitologia tanto referia. Daí que, como se verá com mais detalhes no
capítulo subsequente, as investidas bélicas promovidas pelos grupos chaquenhos a outros
grupos indígenas ou a cidades e reduções coloniais tivessem como objetivo também o
apresamento de mulheres. É muito comum encontrar relatos setecentistas descrevendo
assaltos promovidos por grupos de homens que intencionam roubar animais, armas, bens de
consumo imediato e homens, mulheres e crianças como prisioneiros de guerra. A questão é
que somente os dois últimos eram visados como potenciais membros cognáticos – os homens
cativos de guerra ou tinham suas cabeças e/ou escalpes arrancados e levados como troféus de
guerra, ou eram destinados aos rituais antropofágicos na aldeia. As mulheres, bem como as
crianças, passavam por um processo de cognatização de modo a serem incorporados ao grupo
como parentes. Tal atitude fundamenta-se por aquilo que os mitos comprovam: os homens
pertencem ao meio; as mulheres é que sempre tiveram de ser introduzidas no grupo. A cria
gerada desta união, por óbvio, é a fusão ontológica dos elementos conterrâneos e estrangeiros
que coexistem em toda família indígena: tanto as mulheres como as crianças deveriam ser
incorporadas para serem familiarizadas.
Recordando o mito de surgimento das mulheres citado supra, inicialmente há a
impossibilidade de concretizar o ato sexual por causa de suas vaginas dentadas – o que

70
impediria o processo de incorporação da mulher/Outro no seio do grupo/nós. Para além de
algumas distinções entre uma versão e outra, estes dentes são rompidos por algum animal,
geralmente pelo bico de uma ave, possibilitando então a procriação entre os homens e as
mulheres. Este evento narrado mitologicamente explicita o processo de integração da
subjetividade externa à relação sociológica interna: até que se integre totalmente estes Outros
no grupo, eles continuam sendo parcelas do que não pertence ao mesmo. Isto valia também
para os filhos recém-nascidos de pais e mães que viviam na mesma aldeia – o que provocava
os resguardos necessários durante e após o parto.
Se, mitologicamente, as mulheres são estrangeiras e, por isso, guardam em si uma
subjetividade que é estranha ao grupo dos homens, que se entendem como pertencentes a uma
identidade a priori, da união destes dois recipientes ontológicos resulta a formação de um
sujeito compósito que sustenta uma fractalidade “Eu/Outro” (Kelly, 2001). As precauções
ligadas à gravidez, portanto, estão relacionadas ao esforço de eclipsar ao máximo a parte
alienígena do feto que, caso nasça sem qualquer atenção dirigida a isto, correrá o risco de não
ser incorporado como um parente de fato: explica-se, assim, porque as descrições de
missionários que conviveram diariamente com índios chaquenhos durante o século 18 são
quase unânimes em afirmar que os resguardos referentes à gravidez e ao parto eram práticas
muito frequentes.
Sobre as mulheres recaíam precauções e resguardos específicos em relação à gravidez
e ao parto. Entre os Toba contemporâneos, as mulheres deixam de comer peixe durante a
gestação – ao contrário dos homens, que passam a consumi-lo mais. O que ocorre é uma
“associação metonímica entre o esperma e a medula do peixe, pela cor e pela consistência”,
levando à crença de que a ingestão de pescado por parte dos homens fortalece sua substância
geradora, enquanto por parte das mulheres ocasione hemorragia e a interrupção da gravidez
(Tola, 2007: 508). Já as Mataco, assim que pariam, deixavam de comer alguns alimentos por
um tempo, como peixes, carne de tatu e de iguana (Mashnshnek, 1975: 28; Métraux, 1944:
10). Dom Félix de Azara lembra que as mulheres Lengua não comiam carne com gordura por
um curto período após darem à luz e ressalta que “durante el parto no las asiste nadie, y a
continuación de él no dejan de hacer sus trabajos ordinários” (1809: 81).55
Mas não eram apenas as mulheres que deveriam se submeter às restrições. O padre
Martín Dobrizhoffer é enfático ao afirmar que, para os Abipone, “el parto da menos trabajo a

55
As mulheres payaguá também costumavam dar à luz sem ajuda de ninguém, exceto quando o processo
tornava-se muito demorado e suas dores aumentavam: isto levava a outras mulheres sacudirem chocalhos da
cauda de cascavéis sobre a sua cabeça durante um instante, repetindo a ação, caso achassem necessário (Azara,
1809: 71).

71
las parturientas que a sus maridos”, pois, logo após o nascimento da criança, o pai se afastava
de qualquer esforço físico, ficando “tendido en el lecho rodeado de flores y pieles para que no
lo lastime el viento, ayunando de cualquier alimento en público durante unos días de
abstinencia”, exclamando ao final: “jurarías que él ha parido” (1784, t. 2: 211). Pedro Lozano
(1733: § XV, fl. 91-92) acrescenta ainda que os índios Abipone deixavam de comer carne de
peixe após o nascimento de seu filho, evitando que a criança ou a mãe adoecessem. Os
homens Mocovi também se isolavam em algum lugar que não lhes trouxesse perigo tão logo
as dores do parto iniciassem, ficando cerca de seis dias afastado “como si él estuviere enfermo
a la muerte”, cabendo à parturiente “cocinarle y darle bien de comer” (Paucke, 1767, t. 2:
222). O padre Guevara (1764: 17) destaca o jejum que acompanhava a couvade, além do fato
de o pai de recém-nascido não sair para caçar por um certo período.
Isto evidencia que, ao nascer a criança, cabia ao pai não só a responsabilidade sobre
sua saúde – por meio de interdições alimentares e físicas –, como também havia uma ligação
imediata entre ambos que fazia refletir no recém-nascido as atitudes do pai. Não se tratava
apenas de uma prevenção: a couvade tinha como objetivo principal assegurar que a criança
fosse cognatizada ao grupo por via dos componentes que só o homem possuía. Diferente das
relações parentais sustentadas pela descendência hereditária e consanguínea, a afinização
estabelecida pelos grupos indígenas previa a incorporação de sujeitos de fora como membros
familiares – como as mulheres ou as crianças cativas de guerra. E mesmo os filhos nascidos
na aldeia não deixavam de possuir uma parcela estrangeira herdada de sua mãe: a couvade e
as interdições alimentares do pai, bem como todos os rituais de passagem a que os filhos
deveriam se submeter tinham como objetivo torná-los um membro familiar – e diferenciá-lo
dos Outros/inimigos.
Entende-se por que os pais eram proibidos de praticar certos afazeres, sob o risco de
prejudicar diretamente seu filho, pois, segundo Dobrizhoffer, “creen que la intemperie del
padre influye en la prole recién nacida por un lazo y simpatía natural entre ambos. Así si un
niño muere prematuramente, las mujeres atribuyen la muerte a la intemperancia del padre”
(1784, t. 2: 212).56 E, caso um Mataco utilizasse instrumentos cortantes, a criança poderia
nascer com feridas, como se o pai tivesse, ele mesmo, provocado cortes em sua pele
(Métraux, 1944: 8). A influência que o pai exercia sobre o recém-nascido era tão íntima e

56
O jesuíta, em tom jocoso, chega a elencar as falhas que um pai poderia cometer e, por isso, acabaria levando
seu filho à morte: “Ya sea porque no se abstuvo de vino mezclado con miel, o porque llenó su estómago con
carne de puerco acuático, o porque cruzó a nado algún río con viento fresco, o porque fue negligente en rasurarse
las cejas, o porque comió miel subterránea pisoteando a las abejas, o porque se había cansado con la equitación”,
finalizando que era com este “tipo de delirios las mujeres incriminan a los padres como autores de la muerte, y
aún cuando es inocente del siniestro” (Dobrizhoffer, 1784, t. 2: 212).

72
intensa a ponto de um índio, após o nascimento de seu filho, isolado em resguardo, afirmar
contundentemente “yo he parido”, quando foi questionado pelo padre Florián Paucke sobre
sua condição (1767: 223).
A explicação para o fato de o pai ter uma ligação direta não só com a criação do filho,
mas também com a sua gestação encontra-se no funcionamento do sistema de parentesco e
das relações familiares que vigoravam nos grupos chaquenhos, cuja base de funcionamento
era a construção do parentesco. Diferentemente da ontologia ocidental, em que o parentesco é
dado pela consanguinidade, nos grupos chaquenhos o parentesco era construído: assim, as
crianças nascidas na aldeia deveriam ser internalizadas no grupo desde a gestação, por meio
de rituais de resguardo e da couvade – e, após seu nascimento, estas eram submetidas a
modificações corporais de forma a serem incorporadas no grupo; o mesmo ocorria às crianças
apresadas em guerras e internalizadas como membros familiares. Evidencia-se, assim, a
ligação entre a guerra, como meio de internalização do Outro, e a construção do parentesco,
temas que serão analisados no próximo capítulo.

73
Capítulo 2
A guerra como motor social

Eu só lembrava, então, de como meu pai


costumava dizer que a verdadeira razão de se
viver era preparar-se para ficar morto durante
muito tempo.
(William Faulkner, “Enquanto Agonizo”)

Quis dizer que quando se tira uma vida, passa-se


a ser o dono dela. A gente se torna responsável
por ela. Não nos livramos de alguém quando o
matamos. A pessoa continua do outro lado, e
passa a ser nossa.
(Toni Morrison, “A Canção de Solomon”)

2.1 O lugar da guerra indígena


O mestre de campo, Tenente de Governador e Capitão de Guerra da cidade de
Santiago del Estero, Don Alonso de Alfaro, é citado nos Autos da convocatória geral de
entrada ao Chaco de 1710 como um dos feudatários que mais deu auxílios materiais à
expedição que seria comandada pelo Governador da Província do Tucumã, Don Esteban de
Urízar y Arespacochaga. Isto porque, antes de dar início à convocação de fato, Alonso de
Alfaro já havia entrado no Chaco com 400 homens armados – entre espanhóis e índios – a fim
de resgatar as vacas que haviam sido roubadas pelos chaquenhos para doá-las ao exército da
expedição. Apesar de ter despendido três mil pesos, a sua entrada não surtiu qualquer efeito.
Mesmo assim, o mestre de campo ainda enviou à expedição do Governador 600 cavalos, 14
carroças e 100 bois, algumas armas de fogo e lanças, além de suprir os gastos com correio e
envio dos materiais (Saenz [08/07/1710]: fl. 2).
Assim como o Capitão Alonso de Alfaro, outros sete mestres de campo 57 – incluindo o
próprio Governador, que rendeu a maior contribuição à expedição – e as cidades de Jujuy,
Santiago del Estero, Tucumã, Catamarca, Rioja e Salta enviaram homens, armas, munições,
alimentos, animais e a ajuda que podiam para aquela que pretendia ser a expedição que

57
Além de uma obrigação, era imprescindível que os homens que possuíssem direitos de encomienda
auxiliassem nas entradas militares ao Chaco, podendo enviar ajudas materiais, humanas ou simplesmente uma
quantia em dinheiro para os eventuais gastos. Cabia aos Governadores emitirem bandos de convocação, que
deveriam incluir as punições referentes às deserções: “ordeno y mando a todos los vecinos feudatarios y
moradores de esta ciudad y tercio y los oficiales de él se aperciban y hagan apercibir sus milicias para el día
diecisiete del mes de mayo prójimo venidero en que se ha de marchar a campaña precisa e indispensablemente
pena a los feudatarios y reformados de cincuenta pesos aplicados por nuestra real cámara y pendiente guerra, y a
los soldados de un año de destierro al Real Presidio de San José, lo que ejecutarán puntualmente y el vecino
feudatario, morador, reformado o soldado que tuviere legítimo impedimento lo manifieste en este gobierno y los
oficiales de dicho tercio procederán a su más puntual ejecución y cumplimiento, dando cuenta con las listas de la
citación y apercibimiento que hicieren de sus compañías” (Monteros [24/04/1745]: fl. 1v-2).

74
colocaria um fim às agressões impostas pelos índios da região chequenha às cidades e
estâncias que formavam a sua fronteira com o mundo colonial.
Como um anel no entorno do Chaco (Lucaioli, 2009a: 79), a presença colonial era
composta por cidades fundadas no século 16 com o intuito de acessar as cordilheiras sem ter
que atravessar o interior chaquenho, que sempre foi uma região hostil para os colonizadores.
Assim, as cidades que compunham a Província de Tucumã, situadas na fronteira oeste do
Chaco, passaram a ser, no final do século 17, frequentemente acometidas por invasões e
ataques indígenas. Na fronteira leste com o Chaco, as cidades de Assunção e Corrientes e a
cidade de Santa Fe, ao sul, também foram frequentemente invadidas pelos índios –
principalmente grupos Payaguá, Mocovi e Abipone. As estâncias e as vilas que compunham
os seus perímetros jurisdicionais, da mesma forma, viviam sob constantes alertas de ataque,
em que eram comuns os roubos de animais e a morte e apresamento de pessoas.
Nesta situação, as retaliações pretendidas pelos espanhóis eram dificultadas também
por causa do extenso território: “operando desde el círculo del Chaco”, os índios atacavam em
qualquer direção, e quando “la oposición española comenzaba a presionarlos desde un ángulo,
podían siempre redirigir sus ataques hacia otro” (Socolow, 1987: 102). Situada neste
contexto, a entrada de 1710 comandada pelo Governador Arespacochaga fez com que os
Mocovi, que assolavam a Província de Tucumã, dirigissem-se até o rio Paraná “para continuar
sus saqueos en perjuicio a las ciudades de Santa Fe y Corrientes” (CA, 1735-1743: 574).
Além disso, os altos gastos revertidos a estas entradas faziam com que muitos
feudatários e cidades tentassem evitar o envio de ajuda material ou humana, visto que os
resultados eram geralmente desoladores e prejudiciais.58 A campanha empreendida pelo

58
As autoridades provinciais tentavam manter um ritmo anual de entradas contra os índios do Chaco, além da
coleta das contribuições revertidas à guerra, que eram cobradas dos moradores também no espaço de um ano. As
contínuas guerras e o isolamento comercial daquela região – que ficava entre dois polos mais bem-sucedidos
financeiramente, o porto de Buenos Aires e as cidades próximas a Potosi – geravam mais gastos que
prosperidade, levando as cidades à quase ruína. É comum encontrar relatos dos Cabildos alertando para a crise
de seus moradores, que não conseguiam mais administrar seu sustento. As autoridades da cidade de Catamarca
foram mais longe: alegando que “tiene ya a los vecinos y moradores de su jurisdicción tan consumidos sus cortos
caudales”, solicitaram ao Rei para “que en algún modo se les de alivio a los vecinos exonerándoles en delante de
la pensión de las corredurías anuales”, já que “dichas corredurías continuas han sido y es la total destruición de
esta ciudad, por lo mucho que pierden sus vecinos, envíos de sus mantenimientos y cabalgaduras” (Cabildo de
Catamarca [30/09/1733]: fl. 1). Ao que indica uma passagem da carta do Governador de Tucumã, Don Juan
Victorino Martínez de Tineo, a cidade foi atendida em seu apelo, pois na expedição ao Chaco que ocorreu no
início da década de 1750, “por falta del tercio de Catamarca, no se han muerto cien indios y corrido de
quinientas seiscientas presas, castigo que hubiera dejado reprimida y contenida por algunos años la indiada”
(Tineo [28/07/1752]: fl. 23-23v).
Já os encomenderos eram obrigados a prestar ajuda nas expedições convocadas pelos Governadores e deviam
contribuir com os fundos para guerra. Mesmo assim, havia aqueles que preferiam não se envolver. O
encomendero Don Felipe Martín de Zarate y Murguia, por exemplo, dá ordem ao seu irmão, o administrador de

75
Governador também não deu resultados convincentes. Considerando-se os fins para os quais
foi planejada e executada, a entrada foi um fracasso que só gerou mais dívidas às cidades e
não afastou o perigo iminente de novos ataques indígenas. Pelo contrário: a expedição
inaugurou um marco na vida política deste novo ciclo de contatos (Paz, 2009: 75). Dali em
diante, a relação entre os hispano-crioulos e os chaquenhos foi pautada por uma guerra de
ataque e contra-ataque de ambos os lados e pela busca da rendição dos índios à submissão e
vassalagem ao Rei da Espanha.59 Até o início da segunda metade do século, as hostilidades
vão reger a relação, com aparente vantagem dos índios, que protagonizaram dramáticos
relatos hispanófonos sobre mortes, apresamento de pessoas e roubos de animais.
Já em meados do século, houve um aumento significativo da fundação de reduções de
índios chaquenhos que optaram pela aproximação pacífica. Muitas parcialidades de grupos
como os Mocovi, Abipone, Toba, Mataguayo e Vilela vão aceitar o abrigo reducional junto a
ordens religiosas – o que, definitivamente, não cessará os conflitos. Além do mais, a região
interiorana do Chaco ainda era uma zona inabitável para os espanhóis: 60 mesmo após o
estabelecimento de alianças com algumas parcialidades, as cidades continuaram sendo
atacadas pelos índios que ainda viviam no Chaco e também por aqueles que estavam sob a
tutela do Estado nos povoados missionários. Ainda havia os índios da região pampiana, que
passaram a ser os principais algozes dos espanhóis: se os chaquenhos ainda eram um
problema para a pacificação da região meridional da Colônia espanhola, pelo menos havia-se
obtido alguns ganhos com a fundação das reduções, ao contrário da longa relação que se tinha
com os índios do pampa, de difícil redução e tão violentos quanto os chaquenhos.61

sua fazenda, que não envie os índios em sua posse à convocação para guerra no Chaco. Como punição, o
Governador de Tucumã mandou preso o irmão de Don Felipe (Arespacochaga [24/11/1708a]: fl. 1-1v).
59
Os hispano-crioulos de Tucumã se viram em uma situação bastante complexa: ao mesmo tempo que
necessitavam abrir um caminho seguro e mais econômico até o Peru para o transporte e venda de gado, estariam
colocando em risco a principal fonte de renda da província ao confrontarem-se com os chaquenhos, que
poderiam vir a desestabilizar um comércio já regular. Mesmo assim, o cabildo de Jujuy aprovou as entradas do
Governador em 1710, apoiando uma confrontação ofensiva para garantir o domínio da região (Vitar, 1997: 52).
Porém, em 1734, com o conflito entre espanhóis e índios chaquenhos já estabelecido, o mesmo cabildo expressa
que a guerra só trouxe complicações ao comércio da província, levando-o à quase desativação: “ha tanto extremo
la osadía del expresado enemigo que totalmente a impedido y embarazado el trafico de carretas, cargas y
ganados, que transitaban por el camino carril de la Provincia a esta ciudad, se halla serrado o mandable, porque
el dicho enemigo Mocovi, Toba y demás naciones se ha apoderado de las tierras y parajes contiguas al referido
camino” (Autos [1734]: fl. 14-14v).
60
Em 1759, o Governador Joaquín Espinosa y Dávalos conseguiu, por meio de uma expedição militar, entrar
pelo flanco oeste do Chaco, partindo da cidade de Tucumã, e atravessá-lo até chegar à cidade de Corrientes (cf.
cabildo de Córdoba [09/08/1760]: fl. 1-2; e Informe [1764]: fl. 1v e ss.). O feito foi celebrado pelos seus
coetâneos esperançosos que daí resultasse um canal de acesso entre estes dois extremos – o que não aconteceu.
As transmigrações pelo interior chaquenho continuaram sendo realizadas apenas por expedições armadas.
61
Os 13 anos que se seguiram após a fundação da primeira redução de índios pampianos, Concepción de los
Pampas, em 1740, não foram muito frutíferos à empresa missionária. Somente mais duas reduções foram
erguidas: Nuestra Señora del Pilar de Puelches, em 1746, e Desamparados de Tehuelches, em 1749 – todas na

76
Neste cenário, em que o avanço colonial se voltava cada vez mais em direção às
aldeias de índios do Chaco, as guerras se fizeram muito frequentes, fossem movidas pelos
ataques indígenas às cidades e estâncias, fossem pelas expedições militares que visavam
subjugar os índios. São recorrentes, nas cartas e informes da época, relatos que
responsabilizavam as invasões indígenas pelo início dos conflitos, geralmente salientando a
atitude bárbara dos nativos. Exemplo disso são os relatos contidos nos Autos, iniciados em
1734, sobre as invasões que os índios haviam cometido às cidades da Província de Tucumã.
Em um deles, o padre reitor da cidade de Salta, Don Francisco Castellanos, descreveu com
detalhes uma invasão indígena e a subsequente perseguição mal sucedida que empreenderam
os milicianos daquela cidade. A forma como é narrado o evento e os elementos pontuados
pelo padre reitor fazem necessária a sua citação na íntegra:
Hallándome como me hallo de cura rector vicario, juez eclesiástico de esta
ciudad y ella ha vista del mayor estrago, lastima y desolación que jamás ha
padecido, llena sólo de lamentos y tragedias, se me hace preciso a la obligación
de mis cargos, fidelidad y amor de la patria representar a Vuestra Alteza el grave
daño y ruina que antes de cinco del corriente se experimentó en una cruel
invasión del bárbaro enemigo de estas fronteras el que entrándose a esta calle
con crecido número de indios y dividiéndose en trozos por distintas partes
inundando, talando y demoliendo desde un cuarto de legua de la ciudad hasta en
distancia de cinco leguas todas las haciendas, chacras y casas que había, que
pasan de veinte poblaciones, pasando en ellas al cuchillo y cautivando toda la
gente que halló, acabando familias enteras sin que quedase algún vivo,
excediendo el número de los que han perecido al de doscientos y cincuenta en
tan lastimoso estrago, que se han visto los campos regados de sangre de
hombres, mujeres y niños y sus cuerpos despedazados y destrozados con tan
atroz crueldad. Con cuya noticia, puesta en arma la ciudad, careciéndose el
mujerío, con intrépido sobresalto y temor, del seguro de los templos, salieron
prontamente hasta setenta hombres, los que habiendo alcanzado al enemigos a
tiempo que este se hallaba mejorado del sitio y favorecido de lo fragoso del
paraje en una cuesta, no dio lugar a los nuestros la muchedumbre de ellos a que
pudiesen ofenderlos, porque volviéndose con ímpeto furioso, sitiándolos sin
dejarles hacer cuerpo para defenderse o resistir, consiguió el enemigo
derrotarlos, habiendo muerto más de quince hombres (y de los contrarios solos
tres), a vista de muchos degollado las cautivas y criaturas de pechos que llevaban
sin poderlas socorrer, porque demás de las ventajas del enemigo estaban los más
de los soldados sin suficientes providencias de armas y municiones, porque no ha
habido ni hay en esta ciudad tal disposición de que resultó que cuando se había
de castigar al enemigo y recuperar algo se le dio más osadía y se padeció mayor
daño y estrago que visto todo junto en el tiempo de un día. Natural se ha hecho la
corta vecindad que ha quedado de tal suerte al despecho horror y sentimiento que
se halla conmovida de dolor, temor y asombro (Autos [1734]: fl. 87v-88v).

região meridional à Buenos Aires, formando uma barreira ao ataque de índios não-reduzidos. Em 1753, todas já
estavam abandonadas, muito em função da dificuldade que era manter os índios reduzidos e adeptos aos
ensinamentos propostos pelos missionários (Arias, 2006: 560 e ss.; cf. também Martín, 1994. Sobre as
negociações com os caciques para a fundação destas reduções, cf. Irurtia, 2008). Na época em que foi fundada a
primeira redução de índios pampianos, o padre Pedro Lozano, em Carta Ânua, queixa-se da dificuldade em
convertê-los, pois, por manterem contínuo contato com os espanhóis, “jamás se aficionaron con la ley cristiana,
al contrario, constantemente, quedaron desafectos a ella” (CA, 1735-1743: 585).

77
A diferença deste relato em relação aos demais que foram feitos sobre aquela época
dos conflitos com os índios reside nas minúcias e na dramaticidade com que o autor descreve
o encontro. A estrutura discursiva deles é muito parecida: um grupo indígena ataca uma
cidade, estância ou povoado e, em sua fuga, é perseguido pelos soldados ou pelos moradores
armados. Os nativos são apresentados como sinônimo de barbárie, e suas atitudes rendem
todo tipo de apologia à sua retaliação e extermínio. Os hispano-crioulos da região sentiam-se
constantemente ameaçados pelo que podia acontecer aos seus bens e às suas próprias vidas,
fazendo com que os representantes do cabildo de Jujuy, nos mesmos autos, declarassem – sem
notarem a contradição histórica – que os moradores sentiam-se “como extraños de su misma
pátria” (Autos [1734]: fl. 13v).
Fugir das cidades e morar em lugares mais seguros ou distantes dos ataques indígenas
foi uma alternativa escolhida por alguns, despovoando as regiões de fronteira com o Chaco. A
cidade de Córdoba sofreu com o êxodo de grande parte de seus moradores, que preferiam
viver junto à jurisdição de Buenos Aires ou do Chile (Lopez [26/09/1734]: fl. 1-1v), bem
como em Santa Fe, que “por haber perecido la mayor parte de sus vecinos, a manos de los
indios enemigos, […] muchos de ellos han abandonado su vecindad” (Conselho de Índias
[07/06/1726]: fl. 1). Os moradores de Catamarca e Santiago del Estero provocaram fugas em
massa durante a primeira metade do século 18 (Fradkin, 2000: 253).
A Companhia de Jesus também optou por fugir da zona de ataque dos índios: em
1719, a Ordem adquire uma nova estância ao seu Colégio da cidade de Santa Fe para que
ficasse longe dos ataques dos Abipone, pois os índios já haviam arruinado “casi por completo
la fortuna de este colegio por la guerra, quemándose la casa del campo y robándose todo el
ganado” (CA, 1720-1730: 104). Este tipo de situação fez com que as autoridades coloniais
sentissem a necessidade de proteger o território já colonizado e garantir a oportunidade de
expandi-lo. Daí que o século 18 foi marcado pelo florescimento de fortes, entre os rios
Pilcomayo e Salado, que, junto com as missões e estâncias guarnecidas, formavam uma linha
defensiva contra os nativos (Vitar, 2000: 5-6).
Porém, mesmo com todo o gasto de recursos para a formação de defesas contra os
chaquenhos, ainda havia o problema da manutenção destes expedientes. Já no início do
século, o padre Bartolomé Jiménez denunciava que os caminhos para as fazendas das
reduções do rio Paraná estavam fechados por causa das invasões de índios não-reduzidos – o
que afugentava os neófitos e dificultava o trabalho missionário. O jesuíta finaliza, relatando
que, devido às constantes guerras contra os índios, faltava-lhes munição para enfrentar os
invasores (Jiménez [19/08/1708]: fl. 5v). A cidade de Santa Fe também enfrentou a falta de

78
recursos, ficando seus fortes praticamente abandonados: o cabildo da cidade resolveu, então,
relocá-los no entorno da cidade com o intuito de “tener unidas sus pocas fuerzas para la
resistencia de las invasiones que intentan efectuar” (Cabildo de Santa Fe [02/10/1720]: fl. 1v).
A falta de recursos para prover a segurança das cidades e estâncias também afetou
muito a Província de Tucumã. O recém-empossado Governador Baltasar Abarca solicita ao
Rei, em 1726, um reajuste na distribuição das rendas das minas de Potosi que eram revertidas
às Províncias, pedindo que 20 mil pesos fossem incorporados à caixa de Tucumã, já que “las
rentas reales no son suficientes para la mitad de los costos que se contraen” – todos gastos,
segundo o Governador, referentes à segurança. A ideia era redirecionar os 20 mil pesos
revertidos à Audiência do Panamá à Província de Tucumã, já que aquela, por contar com
menos fortes, possuía menos gastos que a segunda (Abarca [16/08/1726]: fl. 1-1v). Em carta
de 1729, o Vice-rei do Peru ainda solicitava ao Rei o auxílio de 20 mil pesos anuais vindos de
Potosi (Marquês de Castelfuerte [25/06/1729]) – o que leva a crer que este reajuste na
distribuição das rendas nunca entrou em vigor.
A falta de recursos humanos e materiais, decorrente das frequentes guerras com os
índios, foi um dos grandes problemas enfrentados pelos colonos. Apesar da superioridade
técnica de suas armas e estratégias militares, os soldados hispano-crioulos, muitas vezes,
viam-se impossibilitados de lutar, como ocorreu em 1721 à cidade de Corrientes que, “sin una
carga de pólvora para municionar a los soldados españoles”, teve de solicitar auxílio aos
Guarani das reduções para se defender dos Payaguá (Anônimo [1735]: fl. 4v). A cidade de
Santa Fe, seriamente comprometida pela presença indígena, também reclamava
insistentemente às autoridades por recursos materiais e humanos para defesa e resguardo da
sua jurisdição (Battcock et al, 2004: 5). Esta carência fica evidente em um apelo que o mestre
de campo Francisco Antonio de Vera Mujica fez ao Governador do Rio da Prata ao solicitar
homens armados para defesa da cidade de Santa Fe, que, por si só, não conseguia enfrentar as
investidas bélicas dos índios Charrua. O mestre de campo enumera os três principais
problemas enfrentados, sendo o primeiro o reduzido número de homens armados para cobrir
os fortes nas fronteiras; o vasto espaço não policiado devido às longas distâncias entre as
guardas; e a falta de dinheiro investido em homens que pudessem prestar a segurança da
cidade (Vera Mujica [08/03/1743]: fl. 1).
As dificuldades enfrentadas pelos hispano-crioulos resultaram na formação de
companhias regionais não-oficiais, compostas por moradores das cidades que tentavam fazer
frente aos ataques indígenas. Chamados comumente de Blandengues, eram organizados pelos
próprios citadinos e pagos através de soldos recolhidos em impostos municipais. Sua

79
existência parece ter se restringido apenas a algumas cidades, tendo sido, muitas vezes,
acionada em Santa Fe. Tiveram suas primeiras atuações na década de 1740, quando os
colonos passaram a tomar para si a responsabilidade de defender suas cidades, evidenciando
que, “a pesar de los intentos del reformismo por fortalecer y perfeccionar los cuerpos de
milicias, los resultados obtenidos no fueron muy diferentes de los del siglo anterior”
(Battcock et al, 2004: 11; cf. também Lucaioli e Nesis, 2007: 5; e, principalmente, Arias,
2006: 592-601). Os moradores sentiam-se mais seguros mantendo um corpo miliciano
alternativo ao oficial, que, muitas vezes, mostrava-se defasado. Assim, os santafesinos
aplicavam todos seus recursos “para la paga de la milicia, que llaman allí vulgarmente
Blandengues, y para hacer la guerra al enemigo” (Larrazábal [25/06/1748]: fl. 1v). O
problema era que as pretensões de formar essa milícia esbarravam na carência de
financiamento, já que todo recurso monetário para sustentação das companhias vinham da
arrecadação de impostos nas cidades – cuja cobrança deveria ser aprovada pelo Rei.62
O que se percebe é que as estratégias adotadas pelos colonos ou pelas autoridades para
defender as cidades e povoados dos constantes ataques indígenas não foram de todo
eficientes. Os fortes – que representavam a atuação do Estado na defesa do território –, além
de não contarem com um contingente apropriado, tornavam-se ineficazes devido às grandes
distâncias que existiam entre eles, isolando-os e oferecendo aos índios “caminos abiertos para
introducirse” (Sobremonte [06/11/1785b]: fl. 1v). Já as milícias, fossem as oficiais, fossem as
companhias de Blandengues, atuavam de maneira muito restrita: ou não havia recursos
suficientes, ou eram os preços das armas que encareciam suas atividades, por causa do
“subido precio a que se vende una escopeta, y lo caro que cuesta la pólvora” (Flores, 1756:
33).63

62
O grande obstáculo para a formação destas milícias foi a falta de dinheiro para sustentar as suas atividades
militares. O recolhimento de impostos foi proibido pelo Rei até 1760, justificando-se frente à “gran cantidad de
vecinos que existían y a la suficiencia de los recursos defensivos que el Real Erario invertía en la guarnición
local del Ejército”. Assim, os pedidos realizados entre 1737 e 1752 para cobrança de impostos que seriam
revertidos às companhias eram negados pelas autoridades municipais. Porém, os Governadores do Rio da Prata
Domingo Ortiz de Rozas, em 1745, e José de Andonaegui, em 1752, aprovaram um conjunto de impostos sem o
aval da Coroa, fazendo surgir, já em 1745, a primeira companhia de Blandengues sustentada pelo dinheiro
público. Segundo Félix de Azara, foi o Governador Andonaegui o principal responsável pela organização desta
milícia, dividindo-a em três companhias de paisanos campestres armados com lanças que, ao contrário dos
soldados oficiais, não deveriam fixar-se em uma praça, mas manter-se sempre em movimento. Somente em
1760, os Blandengues passariam a ser reconhecidos pelo Rei, quando este aprovou em 07 de setembro a criação
de um Ramo de Guerra que cobriria os gastos da milícia (Azara, 1796: 36; Arias, 2006: 592-593).
63
A má administração também prejudicava muito a saúde financeira das Províncias circunvizinhas do Chaco.
Pode-se acompanhar, durante todo o século 18, denúncias que os cabildos apresentavam ao Rei sobre a atuação
de alguns Governadores, cujo descaso em relação às cidades e o mau uso dos recursos monetários eram os
principais pontos reclamados. O cabildo de Tucumã queixou-se da desatenção que os Governadores vinham
tendo em relação às visitas às cidades da Província – expediente de suma importância para a produção de
relatórios sobre as necessidades e segurança de suas fronteiras jurisdicionais. Segundo a reclamação do cabildo,

80
Mas estes problemas materiais e práticos só eram uma realidade porque o regime de
guerra que se estabeleceu foi bastante intenso. Nota-se, pelos relatos dos espanhóis, que a
frequência com que os nativos empreendiam ataques era devastadora para os povoados e
cidades coloniais. No início do século 18, a cidade de Assunção já estava “sin la defensa
necesaria para rebatir los enemigos Guaycurús, los cuales con repetidas invasiones molestan
grandemente a dicha ciudad con muertes y robos a los españoles” (Jiménez [14/02/1717]: 11).
Assim, também a cidade de Santa Fe, que “fue la más florida de esta diócesis y la del
Paraguay”, sofreu com as invasões contínuas de índios Guaicuru e Charrua, formados sempre
em uma “especie de milicia con los caballos” (Peralta [08/01/1743]: fl. 1v). E a Província de
Tucumã, segundo o procurador geral da Companhia de Jesus, Juan José Rico, estava
tornando-se “incomerciable por las frecuentes invasiones, robos y muertes con que de veinte
años a esta parte [os chaquenhos] pertinazmente la afligen y destruyen”, declarando, por fim,
que cada contra-ofensiva espanhola não tinha outro efeito que “el de irritarlos más contra el
español y perder este en dicha provincia cada día más de sus tierras y ganados” (Memoriais
Cia. de Jesus [1741-1746] doc. 3: 2).
E os exemplos de ataques indígenas se repetem à exaustão, sendo bastante comum
encontrar relatos que estão longe de subestimar o poderio bélico dos chaquenhos. Mesmo que
os espanhóis possuíssem armas tecnologicamente mais eficazes, sabiam que a destreza com
que os nativos manejavam as suas faziam-nos extremamente perigosos. Daí a comparação que
Sánchez Labrador estabelece entre os Guaicuru e as onças: “Armado o apercibido con estas
armas el Guaycurú parece en su intrepidez terror del animal que hace temblar las selvas y
sobresaltar los ánimos. Entra y sale y el Guaycurú armado, por todas partes, compitiendo
entre sí la barbaridad osada del hombre y la ferocidad arrojada del bruto” (1770, t. 1: 189).
Neste mesmo contexto, Domingo Muriel atenta para a violência dos ataques que os Abipone
faziam à cidade de Córdoba até alguns anos antes da instalação de San Jerónimo, o primeiro
povoado erguido para a redução desta etnia. O temor era tão grande que, ao menor sinal de
aproximação destes índios, todas as luzes eram apagadas e os moradores saíam à procura de

os Governadores, que residiam na cidade de Córdoba, raramente deslocavam-se até as outras cidades, e faziam-
no “de paso y de cumplimiento más garbosa que provechosa a sus moradores” (Cabildo de Tucumã
[26/04/1702]: fl. 1v). Já os cabildos de Jujuy e de Assunção denunciaram o desvio das verbas provinciais: o
primeiro referia-se à canalização de maior parte dos lucros com produção, comércio e impostos da Província de
Tucumã à cidade de Salta – que, sozinha, conseguia manter-se, não necessitando de tamanha doação (Autos
[1734]: fl. 1v-2) –; e as autoridades da cidade de Assunção denunciaram o esvaziamento dos cofres públicos
daquela Província pelo mau uso que os Governadores faziam do dinheiro, além de que “ellos ponen sujeto de su
satisfacción, que lo administre; ellos imparten las libranzas para los gastos, que les parece practicar; ellos
mandan tomar las cuentas a dichos administradores cuando les parece y ellos mismos se las aprueban” (Cabildo
de Assunção [29/05/1776]: fl. 2-2v).

81
abrigo em meio à escuridão. A violência com que os índios empreendiam seus ataques era
tamanha, que, segundo o jesuíta, havia boatos que os Abipone chamavam os cordobeses de
“gente de algodón” – além de acrescentar que “ni las aves se atrevían a pasar más allá del río
Tercero, de puro temor” (Muriel, 1767: 60-61).64 Da mesma forma, os Payaguá foram um dos
grupos que mais inspirou desconfiança e medo nos espanhóis. Famosos pela facilidade com
que se locomoviam nos rios, eram tidos como irredutíveis e traidores, sendo protagonistas de
relatos bastante dramáticos:
Cadáveres a montones, muchachos y niñas raptados, casas en cenizas,
mercancías y avíos robados e iglesias devastadas son monumentos tanto de la
astucia de los bárbaros como también de la ferocidad de estos piratas fluviales
que a mi llegada a Paracuaria estaban todavía en la fresca memoria de todos
(Dobrizhoffer, 1784, t. 1: 215).

A principal estratégia de combate aos índios consistia no uso de armas de fogo, mais
eficientes do que o emprego de lanças, pois, como alerta o governado Juan José de Vértiz em
uma solicitação ao Rei, os nativos não temiam estas armas por usá-las com mais destreza que
os soldados milicianos e, principalmente, porque atacavam “vestidos de un coleto de cuero de
Toro, donde no es fácil hagan impresión las mencionadas chuzas y así temen en poco a estas
armas y al contrario a las de fuego” ([20/10/1780]: 7). Fazia-se imprescindível, então, o
acesso e uso de pistolas “a que tanto horror tiene el indio, y a la que principalmente se debió
la conquista del vasto imperio americano, tuviese más extensión” (Flores, 1756: 33).
Mesmo assim, havia o problema da umidade: as buscas para retaliação aos grupos
hostis eram impedidas, em grande parte, por causa dos terrenos alagadiços e seus extensos e
profundos rios, que deixavam a pólvora e a corda – que acendia a ignição das armas de fogo –
inutilizáveis, como reclamou o Governador da Província de Tucumã, ao relatar a
impossibilidade com que se deparavam sempre que se pretendia ir à busca dos Mocovi que
atacavam as cidades da região (Argandoña [10/01/1689]: fl. 5-5v). A experiência mostrou e
ensinou aos espanhóis que mesmo as suas armas possuíam defeitos no que se referia à guerra
contra os índios. Sendo assim, Arespacochaga alertava que a cidade de Salta deveria ser

64
Obviamente, deve-se atentar aqui para o engajamento que o autor tinha em relação ao trabalho missionário da
Companhia de Jesus. À data de escrita do seu livro, Domingo Muriel presenciava o processo de expulsão da
Ordem de todos os territórios espanhóis, oficializado pelo Rei Carlos III. Em vista disto, era importante que os
membros da Companhia edificassem os trabalhos realizados junto aos fiéis ou na conversão dos pagãos. Nota-se,
então, no discurso destes autores – aos quais se incluem Dobrizhoffer, Paucke, Sánchez Labrador e Jolís – a
divisão temporal entre o antes do contato com os jesuítas e o depois do contato, em que se descrevem índios
selvagens, hostis e vingativos, no primeiro momento, e índios alinhados e em processo de civilidade e boa
conduta cristã, no segundo. No caso da referência acima citada, Muriel deixa claro que toda esta violência com
que os Abipone tratavam os colonos remetia-se a “por los años de 1746”, ou seja, dois anos antes da fundação de
San Jerónimo. O interessante é notar que mesmo estes discursos engajados transparecem situações em que até os
índios reduzidos mantêm costumes e condutas incompatíveis com a vida cristã, como pretendo mostrar adiante.

82
especialmente protegida por soldados enviados de Catamarca e Rioja – que estavam em
situação mais segura65 – “por los cuatro meses en que son muy continuas las lluvias, con cuyo
socorro se defienda de los asaltos que en este tiempo frecuenta el bárbaro con mayor vigor,
mediante la experiencia que tiene de que la demasiada humedad inhabilita nuestras armas”
(Arespacochaga [20/11/1708]: fl. 1-1v). Da mesma forma, recomenda que os encomenderos
de Jujuy que possuíssem muitos índios pagassem um soldado cada um para os meses
chuvosos e que aqueles que possuíssem poucos índios se juntassem “entre dos o tres para esta
contribución” (id. [22/11/1708b]: fl. 1-1v).66
Estes esforços, fossem materiais, fossem monetários, canalizados para a defesa das
cidades e estâncias, eram o reflexo de uma conturbada relação bélica, cujo propulsor principal
eram os ataques indígenas. Estes, segundo Pedro Lozano, eram desordenados e movidos por
um frenesi bárbaro, “porque ni guardaban orden ni formaban escuadrones, ni escogían lugar,
ni usaban otro modo de batalla que una casual envestida, furiosos al principio con la ira que
no se les resistía fácilmente”. Esta falta de táticas militares, segundo o jesuíta, só poderia ser
solucionada mediante uma aprendizagem militar formal, oferecida aos índios que se
permitiriam reduzir junto às missões cristãs, onde ganhariam disciplina e aprenderiam o
correto “manejo de todas las armas, aun las de fuego” (Lozano, 1754: 388). Assim, também o
Bispo de Quito, então Vice-rei do Perú, em carta ao Governador de Buenos Aires, sabendo da
importância que os índios das reduções do rio Paraguai representavam para a segurança
daquelas fronteiras, recomenda que sejam instruídos por um “General y cabos y algunos
65
No início do Século 18, as cidades de Córdoba, Rioja e Catamarca estavam em situação privilegiada se
comparadas às outras cinco cidades da Província de Tucumã – Santiago del Estero, San Miguel de Tucumã,
Esteco (que em poucos anos já estaria arruinada), Salta e Jujuy –, que padeciam de “asaltos de un bárbaro
enemigo del nombre español, Caribe, prescitos e irreductibles a la fe católica, llamados Mocovíes” (Cabildo de
Tucumã [26/04/1702]: fl. 1). Pode-se justificar esta situação pela posição geográfica em que as cidades se
encontravam, já que as três primeiras estavam mais afastadas da fronteira com o Chaco, ficando as cinco outras
cidades imediatas aos ataques. Além de sofrerem menos com os assaltos indígenas, conseguiam manter seus
cofres mais cheios. Mas esta vantagem durou pouco: Córdoba passou a ser alvo da “sangrienta hostilidad con
que los indios bárbaros la insultan desde el año de veintisiete” (Arrascaeta [c. 1750]: fl. 1v); Catamarca, como já
citado em nota supra, solicita, em 1733, ser exonerada da obrigação de envio de ajuda às expedições, devido a
pobreza que assolava seus moradores; e Rioja, em 1785, tornou-se um “pueblo pobre y corto, pues contiene sólo
dos mil doscientos ochenta y siete almas, el único comercio de que subsisten es el vino y aguardiente”
(Sobremonte [06/11/1785a]: fl. 10v-11).
66
Aparentemente, este período chuvoso situava-se nos primeiros meses do ano, em que a frequência de chuvas
inundava os rios chaquenhos, deixando a região com difícil acesso aos espanhóis. O Governador Don Juan
Victorino Martínez de Tineo, em uma reclamação ao Rei, queixava-se dos motivos que levavam os moradores da
Província de Tucumã a não querer fazer guerra contra os índios: “pero es cosa risible oír que en los meses del
año no hay adecuado para salir, porque enero, febrero, marzo, abril y mayo son lluvias y pantanos, los que
embarazan; junio y julio las siembras; agosto, setiembre, octubre, noviembre y diciembre, debilidad de las
caballadas y cosechas; vuelven a entrar las lluvias con que no hay tiempo acomodado” (Tineo [28/07/1752]: fl.
9v-10, grifos meus). Nota-se o mesmo receio dos moradores da cidade de Salta que, no dia 23 de fevereiro de
1767, negam-se a tratar com um grupo de índios Mocovi, acompanhados de seu cacique, que pediam redução,
pois, “dudando de su sinceridad, no se atrevieron por las muchas aguas de aquella estación salir a su encuentro”
(Campero [17/07/1767]: fl. 1).

83
soldados españoles, cuyo ejemplo sigan sin tanto perjuicio propio en el ejercicio de la guerra”,
já que “les falta la prudencia y arte militar” (Guevara [16/10/1710]: fl. 262). Isto só vinha a
reforçar a ideia de que os nativos estavam à mercê de seus instintos e, quando guerreavam,
faziam-no tomados pela fúria e descontrolada selvageria, não dando lugar à disciplina e
ordem que deveriam ser os dirigentes da eficaz beligerância. Além disso, insolência e ousadia
eram as principais formas buscadas pelos hispanófonos para descrever os ataques indígenas,
devido, em parte, à crença que a técnica bélica espanhola superava em muito a nativa, e
também porque os indígenas, no entendimento dos espanhóis, pareciam atacar de qualquer
forma, somente movidos pela gana de fazer guerra:
[…] siendo una cosa vergonzosa que unos miserables indios sin más armas que
bolas, algunas espadas y lanzas tengan atrevimiento de venir en tan corto
número, a un país tan poblado de gente como lo es el de esa jurisdicción y
ejecuten en él las muertes y robos que cada día se están experimentando
(Cevallos [04/11/1758]: 1).

O que deixava o Governador do Rio da Prata consternado era o fato de, como militar,
presenciar a incapacidade dos hispano-crioulos de se defenderem de um ataque que lhe
parecia amador e despreparado – além dos gastos com a guerra que, segundo o Governador,
não resultavam “al enemigo golpe alguno que le dejase escarmentado” (Cevallos
[04/11/1758]: 2). O padre Sánchez Labrador também compartilhava desta ideia, afirmando
que o modo de milícia guaicuru era tão desorganizado quanto sua economia, não possuindo a
menor disciplina militar (1770, t. 1: 307). Era inconcebível às autoridades coloniais – que
eram, geralmente, homens ligados à carreira militar – presenciar “los españoles tan bien
armados, montados, vestidos y mantenidos” e memo assim “los indios desnudos,
hambrientos, en un solo caballo flaco nos dan tanto que hacer a pesar de tantas diligencias”
(Tineo [28/07/1752]: fl. 24-24v).
Talvez, para estes homens, o que fosse incompreensível era o fato de a guerra ser uma
prática tão presente na vida dos nativos e, mesmo assim, ser realizada de forma tão
desorganizada – de acordo com os parâmetros da educação militar europeia. O caso é que,
conceitualmente, eram guerras muito distintas, cujos objetivos diferenciavam-se
fundamentalmente. A ordem da organização dos ataques, os tipos de armas usadas, os padrões
de comando, as escalas de mando e obediência são alguns dos expedientes que correspondiam
à guerra moderna. Mas estes podiam ser expedientes que, à lógica indígena, não existiam
como dados a serem pensados ou organizados, cabendo-lhe outras preocupações que
respeitavam o sistema bélico nativo.

84
Por ora, é importante ressaltar que a lógica da guerra indígena tinha suas próprias
razões e que os índios, apesar do que aparentava aos observadores estrangeiros, pensavam a
seu respeito e mantinham fundamentações lógicas, de tal maneira que as investidas não eram
atos mecânicos e descontrolados. Assim percebeu o Governador de Tucumã: “se han hecho
expertos en ella, los indios, y usan varios ardides buscando cada día diferentes sendas para
lograr sus invasiones” (Arespacochaga [22/11/1708a]: fl. 1-1v). E uma das maneiras mais
usuais entre os chaquenhos para empreender seus ataques – e que provocava um contínuo
estado de tensão entre os moradores e soldados das cidades – era dar “intermedio de tiempo
para ejecutar con mayor número y fuerza” (Mendiola [23/06/1692]: fl. 1v), provocando
ataques intermitentes e não regulares, aproveitado assim a desprevenção e o descuido das
defesas coloniais:
No obstante han conocido que no todos los soldados españoles en estas tierras
son diestros en su manejo, como también que en días lluviosos es fácil evitar los
destrozos que en buen tiempo pueden causar las balas. Por esto procuran asaltar
en tiempo que les sea ventajoso y de embarazo a los españoles. Buscan también
aquellas lunaciones en que la gente española o trabaja en sus labores de campo, o
se recoge en gran parte a celebrar sus devociones, como en la Semana Santa y
otras de concursos a los templos (Sánchez Labrador, 1770, t. 1: 309-310).

Os ataques surpresas, “estilo de todos los bárbaros que habitan estos países” (Peralta
[08/01/1743]: fl. 1v), tinham um efeito psicológico sobre os colonos, que nunca sabiam
quando e onde podiam ser atacados, já que, devido à rapidez dos índios e destreza em
ultrapassar obstáculos como banhados, rios e esteiros, “no se dejan ver, ni sentir cuando
vienen a invadir las estancia y puestos de estos Pueblos” (Barbosa [10/11/1770]: fl. 1v). Outra
tática utilizada pelos chaquenhos que, aparentemente, já estavam acostumados à dinâmica da
guerra hispano-crioula, foi invadir as cidades ou fortes que estivessem sem sua força militar
presente.
Assim, por exemplo, em meados de 1690, índios Mocovi invadiram a cidade de
Tucumã, degolando 53 moradores. A resposta hispano-crioula foi imediata: o Governador da
Província, Don Tomás Félix de Argandoña, que estava em Córdoba durante o corrido, foi até
a cidade de Esteco, uma das principais portas de entrada às terras chaquenhas daquele
momento,67 e convocou quem pôde para uma entrada em busca dos índios. Após juntar 300
homens, deu início à perseguição e, sem conseguir alcançá-los, regressou imediatamente, pois
67
Até o final do século 17, a cidade de Esteco ainda podia ser considerada como uma importante fronteira
ofensiva e defensiva às incursões chaquenhas. Porém, em grande parte devido aos ataques indígenas, a cidade foi
reduzida a um forte onde, em 1699, havia “veinte o treinta soltados sin armas y sin que comer” (Bispo de
Tucumã [07/06/1699]: fl. 1-1v). Já em 1702, o número de soldados havia diminuído consideravelmente (Cabildo
de Tucumã [26/04/1702]: fl. 1) e, no final da mesma década, o Governador de Tucumã informa que a cidade foi
totalmente destruída pelas repetidas hostilidades dos índios e por um terremoto que a assolou em 1692
(Arespacochaga [24/11/1708b]: fl. 1v; cf. também Vitar, 1997: 47-48).

85
“como se tiene por experiencia que luego que se salen los españoles se vienen tras ellos los
indios enemigos a buscar nuevas ocasiones de descuido para lograr sus traiciones” (Bispo de
Tucumã [07/01/1691] fl. 2). Décadas mais tarde, o Governador Don Félix Manuel de Arche
reuniu as cidades de Jujuy, Salta, Tucumã, Santiago, Catamarca e Rioja para uma entrada
contra os índios chaquenhos. Porém, além de uma epidemia de sarampo que enfraqueceu a
tropa provincial, a saída em busca dos índios mostrou-se prejudicial: sem defesas, as cidades
foram novamente alvo de ataques indígenas, que mataram e apresaram diversas pessoas
(Cabildo de Córdoba [18/07/1732]: fl. 1v-2).
Até o final do século 18, este tipo de assalto indígena vai ser um ponto fundamental
nas discussões sobre segurança das cidades. Azara preocupa-se em alertar à Coroa as falhas
de defesa que ainda ocorriam junto aos fortes, principalmente quando os pelotões milicianos
faziam suas “partidas” de rastreamento:
La experiencia ha hecho ver siempre que cuando los indios resuelven un insulto,
espían oportunamente una de dichas partidas por la tarde y la cortan con
facilidad, poniéndose de noche tras de ella para matarla por la madrugada
infaliblemente: hecho este lance irremediable, se introducen por entre dos
fuertes, hallan en pocas horas nuestras estancias y arreando el ganado, en el
mismo día o la noche siguiente, salen de la frontera sin ser sentidos (Azara,
1796: 38).

A engenhosidade indígena gerou discussões nas pautas sobre segurança das cidades e
estâncias que faziam o anel de fronteira com o Chaco. A guerra defensiva sofreu críticas dos
altos dirigentes coloniais, que chamavam a atenção para sua ineficácia frente às novas
estratégias indígenas de contra-ataque. Assim, o Governador de Tucumã noticia ao Rei as
desvantagens de se incentivar tal modalidade de combate, muito em razão do baixo número
de moradores daquelas cidades,
porque el modo ordinario de seguir la guerra defensiva ha sido despachar una
patrulla al reconocimiento de las venidas con orden de que, en caso de hallar
huella de los bárbaros, diesen aviso para salir a su oposito y reconocidas todas
las sendas se volviesen como lo ejecutaban. Mediante esta diligencia, se
juzgaban los habitadores de las haciendas de campo con alguna seguridad, pero
el bárbaro conociendo que retirado el español quedaba la tierra por suya. Venia
sobre sus mismas huellas y así salvo ejecutaba el asalto, robando los ganados y
pasando a cuchillo a cuantos no se valían de la fuga o de el amparo de algún
cercano bosque (Arespacochaga [24/11/1708b]: fl. 5v, grifo meu).

Décadas mais tarde, o Governador Don Juan Tineo aprova a utilização da guerra
ofensiva utilizada por Arespacochaga, afirmando que sua eficácia foi reconhecida pelos
“partidarios em aplauso de su Gobierno”, aproveitando para elogiar tal tática que intimida e
afasta os índios, ficando “imposibilitados a no poder en todos tiempos repetir sus irrupciones”
(Tineo [28/07/1752]: fl. 7-8). Porém, frente às inúmeras dificuldades que se seguiam – como

86
a falta de armas e munições, homens dispostos à guerra e fundos para financiar as entradas –,
a guerra ofensiva tornava-se uma opção pouco praticada – e as retaliações aos ataques
indígenas eram feitas na medida do possível. Aos moradores e às autoridades coloniais
restava a esperança de que os nativos cessassem seus ataques ou, pelo menos, fizessem-nos
com menos frequência.
As constantes incursões militares que os indígenas promoviam e a forma com que
eram postas em prática pressupõem que a guerra indígena não era um reflexo do avanço
colonial, como se, antes da chegada dos colonizadores no Chaco, reinasse a harmonia e paz
entre os índios da região. A guerra era uma prática não apenas consolidada, como
generalizada entre os índios, sendo esta uma das características mais relatadas e menos
celebradas pelos observadores hispanófonos. Não apenas a guerra em si, mas tudo o que
estava relacionado ao seu preparo e aos seus resultados eram aspectos recorrentemente
interpretados ou criticados pelos observadores. Assim, os rituais anteriores aos combates, a
formação das alianças e, principalmente, o tratamento que os vencedores despendiam aos
inimigos sobreviventes ou aos seus cadáveres eram motivos para que os hispano-crioulos, as
autoridades e os missionários julgassem as investidas indígenas como ações bárbaras,
desmedidas e inconsequentes.
Porém, a guerra indígena possuía uma lógica própria e estava inserida num complexo
sociológico que fazia movimentar relações internas e externas ao grupo. A guerra era mais do
que uma ação violenta dos nativos, comportando significados que fugiam ao entendimento
dos brancos – ou não lhes interessavam. À visão colonial, as ações bélicas nativas eram a pura
e simples selvageria de povos incultos, descontrolados pelos seus próprios instintos:
Viven entregados a una vida muy licenciosa y brutal, sin observancia ni rastro de
policía, porque la sensualidad, la vergüenza, la crueldad, la embriagues, soberbia
y envidia con otros mil vicios heredados con la sangre y que han crecido con
ellos, los han convertido en naturaleza, y parece poco menos que imposible
desterrarlos de sus obstinados y brutales corazones (Bueno [1775]: fl. 4).

Este tipo de análise assombrava o imaginário europeu ao misturar a pureza do estado


de natureza com a violência da barbárie instintiva naquelas pessoas que deveriam ser os
“representantes de uma ante-(e anti-) sociedade civil, modelo de um estado prístino da
humanidade” (Fausto, 1999: 253). Daí a guerra indígena ter sido um tema tão investigado e
incômodo desde os iluministas (e sua arqueologia da espécie humana) até os antropólogos
modernos, que encontraram, por exemplo, em Napoleon Chagnon umas das mais

87
convincentes justificativas para este estado de violência: o axioma do ser ameríndio era a
guerra (id. ibid.: 254-255), o que fazia deles seres brutos – no sentido geológico da palavra.68
Por isso, é importante estabelecer alguns parâmetros para as análises que realizarei
neste capítulo. Para fins analíticos, identifico como relato que versa sobre a guerra indígena
aquele que contempla informações relativas aos preparativos (sejam rituais e cerimônias ou
festas de coaptação de alianças), aos resultados (saldo dos vencedores, descrições acerca do
uso dos inimigos e de seus corpos) e/ou às batalhas em si.69
Entendo como guerra indígena um complexo de ações que ultrapassam a refrega em
campo de batalha. Sendo assim, ela estava muito mais ligada a medidas tomadas antes e
depois dos conflitos, sendo estes os lugares onde recaía o fundamento da guerra. Daí que,
como pretendo demonstrar, as investidas armadas que os índios provocavam eram apenas
uma interseção de um sistema muito maior que a violência ou selvageria que os espanhóis
viam. O fundamental não ficava restrito ao campo de batalha – situava-se aquém e além dele.
Por isso, pode-se afirmar que a guerra indígena era diametralmente oposta à guerra moderna,
praticada pelos europeus: a primeira não se fundamentava na extinção do inimigo, nem na
busca pela paz. Era, em realidade, o método mais eficaz de se estabelecer relações e,
consequentemente, movimentar o meio social.
A guerra compunha uma importante parte da vida indígena. Sua relevância
ultrapassava os limites do grupo, pois, no que se referia à guerra, ser aliado ou ser inimigo era
puramente uma questão de posição vetorial – e não ideológica. Assim, ser vitorioso era um
fato tão necessário quanto ser derrotado, já que, tanto num, quanto no outro, se encontravam

68
Visão que ainda permanece no imaginário coletivo, muito em função da construção que se fez dos índios como
fósseis vivos dos nossos antepassados: “A imputação de violência aos povos nativos foi uma justificativa comum
para sua redução, expulsão e extermínio. Figuras como ‘guerra justa’ e ‘resgate de cativos’ tiveram sua função e
sua época na história colonial. O espectro da antropofagia serviu como rótulo classificatório para legitimar a
escravização de índios em partes da América hispânica. Hoje, a manipulação do estigma da selvageria pela mídia
e por certos setores econômicos e políticos surge – em momentos pontuais, mas cruciais – como arma em uma
luta ao mesmo tempo ideológica e prática, que visa restringir direitos constitucionais adquiridos” (Fausto, 2001:
18). Bem como apontou Pierre Clastres: “as sociedades primitivas não são os embriões retardatários das
sociedades ulteriores, dos corpos sociais de decolagem ‘normal’ interrompida por alguma estranha doença; elas
não se encontram no ponto de partida de uma lógica histórica que conduz diretamente ao termo inscrito de
antemão, mas conhecido apenas a posteriori, o nosso próprio sistema social” (1974: 216).
69
Atento para o fato de que a documentação, obviamente, não estabelece diferenciações entre os assaltos/furtos
cometidos às cidades e estâncias e as investidas militares com o intuito de produzir guerra. Estes conceitos
devem ser atribuídos pelo pesquisador que, baseado em seu objetivo e fundamentação teórica, delimita e analisa-
os. O que percebi na leitura dos relatos setecentistas é que, no que compete às investidas indígenas contra outros
grupos nativos ou contra os espanhóis, há pelo menos dois grupos de espólios buscados nos ataques: aqueles que
são inseridos imediatamente no grupo vencedor, dando subsídios instrumentais para a reprodução do meio social
ou de indivíduos (como as mulheres ou crianças raptadas, os inimigos que serão consumidos antropofagicamente
ou partes do corpo dos mortos); e os espólios que foram submetidos à circulação de bens por meio de trocas ou
comercializações (como os armas e animais roubados ou inimigos capturados vivos). Neste capítulo, analisarei o
primeiro grupo de espólios recolhidos nos ataques indígenas, cabendo ao segundo grupo ser analisado no terceiro
capítulo.

88
os propulsores da guerra: a sua continuidade como mecanismo de sociabilidade é que deveria
ser mantida. Em outras palavras, a vitória não era maior do que a guerra em si. Obviamente, o
êxito no combate se convertia em espólios, que se revertiam em ganhos tanto para o grupo –
por meio da adoção dos cativos, por exemplo –, como individualmente aos guerreiros ou seus
familiares – como a doação das cabeças-troféus ou a hemofagia. A guerra era uma produtora
sociológica, galvanizando relações que só eram possíveis por meio dela. Para isto, tomo a
guerra como instituição geradora de – e não gerida das – relações sociais entre os índios. A
guerra era um dos meios mais eficientes de se formar a pessoa indígena e de se criar vida
social entre os índios – por isso era fundamental a sua continuidade, sua violência70 e sua não-
extinção. Analisarei estes aspectos na última parte deste capítulo. Agora é importante discutir
os expedientes que possibilitavam a guerra: a organização das alianças e inimizades.

2.2 A inconstância: aliados e inimigos


O padre Pedro Lozano conta que os Guaicuru que estavam assentados no rio Paraguai,
à margem oposta à cidade de Assunção, mantinham uma convivência pacífica com os
citadinos – ou, pelo menos, de não-agressão. Porém, ao final do ano de 1677, os assuncenhos
notaram que os índios mostravam-se mais hostis, já que os que frequentavam a cidade
“venían armados con cuantos géneros de armas podían cargar, cosa que también causaba
extraña novedad”. A situação deixou os moradores da cidade em alerta, desconfiados que os
Guaicuru planejassem assaltá-la. Descobriu-se, por fim, que em poucos dias os índios
invadiriam a cidade, fazendo com que o Governador da Província, junto com o bispo de
Assunção, tramassem uma emboscada:
Esta fue que Don José de Avalos, su teniente general y persona de mucho valor
diese a entender a los Guaycurús principales como aficionado de una india de su
nación, hija de un cacique principal había determinado casarse con ella, si
gustaba su padre: diosele a este cuenta del caso y vino fácilmente en ello, con
que para mayor disimulo desnudándose el teniente general Avalos del traje
español, se vistió a la moda de los Guaycurús andando como ellos con su arco y
flechas cubierto sólo de plumas y señalando el día para las bodas que había de
ser el de San Sebastián a 20 de enero de 1678, nombraron padrino y madrina de

70
Violência tem aqui um problema conceitual, já que, para os índios, os conflitos bélicos e suas consequências
não eram entendidos ou sentidos como atitudes injustas, desmedidas ou repreensíveis. As ações postas em
prática no campo de batalha ou nas aldeias após as refregas, como a decepação da cabeça dos inimigos, o
apresamento de cativos e a antropofagia, eram expedientes relacionados à guerra, que correspondiam ao objetivo
da mesma e davam a razão de ser do grupo. Não acredito, portanto, que os índios submetessem estas práticas a
um juízo de valor que oscilasse entre certo e errado, como se tivessem que ponderar a respeito de sua
manutenção ou extinção: “Com maior ou menor ironia, pedaços da cultura/sociedade serão analisados como
tradicionais, e outros como modernos, contemporâneos, pós-coloniais, globais, ou o que quer que seja. Haverá
ironia, pois os antropólogos sabem que a tradição só sobrevive se for reinventada, e sabem que uma tradição
valorizada e explícita não é o mesmo que uma tradição não manifesta, implícita, visível apenas para o
observador, porque, para seu portador, ela não é tradição, mas vida” (Strathern, 1998: 118).

89
ellos y para la celebridad, convidaron a los principales de la nación dividiéndolos
en tres casas muy grandes que fueron las del novio, padrino y madrina, con
pretexto de que no cabrían todos en una por ser muchos. Al mismo tiempo
ocultaron en cada una de las tres casas soldados armados en buen número que
diesen sobre los convidados a quienes habían de procurar embriagar luego que se
hiciese cierta señal con una campana: y dispusieron que a la misma sazón se
embarcase caballería e infantería española que acometiese a las tolderías, al
mismo tiempo que se oyesen la señal de asaltar en la ciudad a los convidados.

O plano só não ocorreu perfeitamente, porque os Guaicuru, desconfiados, mantiveram-


se precavidos frente a toda situação, mantendo alguns índios escondidos espionando os
movimentos dos colonos. Os Guaicuru, “tan versados en traiciones”, descobriram a trama
pretendida pelos espanhóis no dia que havia sido marcada a festa, provocando então o embate
entre os dois grupos. Como a maior parte dos índios já estava na cidade, a refrega foi
favorável aos assuncenhos, que deram baixa de cerca de 300 nativos e obtiveram o resultado
que pretendiam: o afastamento dos índios. Porém, como finaliza o autor do caso, “desde
entonces ha quedado toda esta nación con más odio contra los españoles con quien después
acá nunca han renovado la paz y mantienen la guerra con todo empeño” (cf. Lozano, 1733: §
IX, fl. 60-62).
O caso contado pelo jesuíta narra uma situação que estava longe de ser incomum
àquelas paragens da América meridional, a saber, a convivência estreita em que se
mantiveram os índios chaquenhos e os moradores das cidades situadas no entorno do Chaco.
O que a documentação setecentista apresenta é que o estabelecimento dos hispano-crioulos
naquela região, desde meados do século 16, não alcançou uma situação de tranquilidade e
prosperidade pretendidas pelas autoridades coloniais. A proximidade destes dois mundos – o
chaquenho e o colonial – ocasionou uma oscilação entre as alianças acordadas por ambos os
grupos e a hostilização marcada por conflitos violentos. Presenciam-se com frequência estas
duas relações extremas no que compete ao contato entre brancos e índios que, de algum jeito
ou de outro, foram levados a estabelecer. E o que o relato descrito pelo padre Lozano
evidencia é que tal situação de descompasso entre aproximação e hostilização foi motivada e
sustentada tanto pelos espanhóis, como pelos chaquenhos.
Nem uma passiva defesa mantida por grupos vitimizados pelo cruel avanço da sórdida
empresa colonial, nem a resistência de bravos homens que lutavam para manter vivo o núcleo
cultural de sua identidade trucidada e aculturada pelos forasteiros, a posição tomada pelos
índios do Chaco parece ter sido mais complexa do que estas que apontavam para um dos dois
extremos de um gradiente em que, no final das contas, o protagonista seria sempre o homem
europeu. O contato, seja para o bem, seja para o mal, foi tão experenciado como fabricado
pelos agentes envolvidos. As atuações indígenas não podem ser entendidas como uma simples

90
“conseqüência das perturbações na visão de mundo decorrentes do contato com o Ocidente”
(Vilaça, 2008: 190), muito menos como atitudes esvaziadas de sentido ou autocompreensão.
Do contrário, estaríamos conservando a imagem de alienação e passividade de índios que não
sabem por que fazem o que fazem.
Inseridos no contexto em que a fronteira entre o sistema colonial e a região chaquenha
mantinha uma constante e conturbada relação de contato, os índios manifestaram suas
escolhas e vontades por meio de atuações regidas por sua cultura, tradições e o seu
entendimento do mundo. As atitudes indígenas, por mais embaraçosas ou excêntricas que
pudessem parecer aos espanhóis, estavam norteadas por uma cosmologia que compreendia a
realidade – e as relações que a constroem – de forma idiossincrática, própria daquela visão de
mundo e, muitas vezes, compreensível somente a ela.71
Assim ocorreu, por exemplo, com a questão da inconstância. Uma das adjetivações
mais frequentemente usadas pelos autores que conheceram e conviveram com os índios da
América meridional, fundou um perfil pejorativo sobre a conduta e, inclusive, caráter dos
nativos. Sem entender por que os índios eram tão voláteis e aparentemente desapegados a
praticamente tudo o que lhes ensinassem, os observadores hispanófonos acusaram um crônico
déficit cognitivo e inaptidão à conduta civilizada – situação que só seria contornada,
acreditava-se, com o persistente ensino cristão, por meio da tutela missionária:
[...] si han de emplear su celo entre gente la más pobre y desfavorecida de la
fortuna por su innata desidia y sobre esto inconstante, vagabundo y no
acostumbrada al trabajo, gente bárbara en todas sus costumbres, es necesario que
el exordio y progreso de este apostolado americano le formen y acompañen otras
bien distintas e inopinadas fatigas (Montenegro [15/08/1745]: fl. 12).

Antes de tentar vasculhar qualquer resposta, acredito ser importante analisar como esta
inconstância manifestava-se entre os índios do Chaco, tendo em mente que estas atitudes eram
impressões do observador branco em relação a atitudes que lhes pareciam ilógicas e
inconvenientes. Porém, e o que quero demonstrar aqui, é que a inconstância indígena descrita
pelos observadores dizia menos sobre a conduta nativa do que como os índios entendiam o
Outro. Para isso, preciso voltar ao trecho supracitado de Pedro Lozano.
O relato que o jesuíta faz em relação à situação entre os assuncenhos e os Guaicuru no
final do século 17 tem a importância não somente de fornecer um exemplo da complexa
situação em que estavam envolvidos os índios e os moradores das cidades, mas também por
expressar uma situação que me parece fundamental para a discussão proposta: a brusca

71
“Acontece que os nativos não são incapazes de enxergar as verdadeiras causas de seus costumes, apenas que
estas talvez não sejam suas verdadeiras causas mas, por assim dizer, as causas verdadeiras do pesquisador”
(Gordon, 2003: 3, grifos no original).

91
mudança da condição dos índios na sua relação com os colonos, passando de possíveis
invasores a potenciais parentes. O que parece ter acontecido é que o Governador, percebendo
os índios como oscilantes em suas relações, articulou uma emboscada cujo fundamento fosse
utilizar esta falta de perseverança indígena contra eles mesmos: partia da ideia de que,
mesmo intencionados a invadir a cidade, aceitariam facilmente o estabelecimento de uma
união parental – como se as relações indígenas fossem todas tão superficiais como efêmeras.
O Governador articulou uma emboscada baseando-se na imagem que se construiu acerca dos
índios ao longo das décadas de contato, na qual os nativos eram inconstantes em suas relações
e, acima de tudo, não confiáveis.
Porém, para o jesuíta José Francisco de Arce, estas atitudes eram provocadas pelos
colonos que faziam com que os índios tornassem-se arredios ao contato. Num contexto de
reafirmação do jesuitismo frente aos conflitos com os colonos, o discurso do missionário
apoia-se na história do contato repleta de abusos cometidos pelos espanhóis contra os índios.
O missionário exemplifica, relatando um caso em que os índios Payaguá, depois de terem sido
atendidos em sua solicitação para serem reduzidos pelos padres da Companhia de Jesus, são
atacados por espanhóis que se aproveitaram “que se habían juntando muchos de dichos indios
con sus canoas en la playa del río” (Arce [23/07/1707]: fl. 2). Já o padre Angelo Petragrassa
([22/07/1707]: fl. 1v) alertava que os chaquenhos também eram hostis com os missionários,
devido os maus tratos que sofriam dos colonos, dificultando a conversão.
Culpavam-se, assim, os costumes viciosos dos hispano-crioulos pelos fracassos que se
seguiam nas tentativas de contato, conversão e redução dos índios do Chaco, principalmente
porque, no início do século 18, as missões jesuíticas estabelecidas nos rios Uruguai e Paraná –
de maioria Guarani – eram festejadas como o exemplo máximo de sucesso reducional.72
Justificava-se este avanço em relação ao caso Guarani pelo fato de que estas reduções
mantinham os índios afastados do convívio com os espanhóis, inclusive no que compete ao
idioma.73 E mesmo assim, os Guarani foram alvos de uma cautela que os via como

72
Este discurso do sucesso das missões jesuíticas junto, principalmente, aos Guarani foi produzido já desde a
instalação das primeiras reduções no início do século 17, quando a própria Companhia de Jesus tratou de
difundir uma postura apologética apoiada nas hagiografias e relatos de façanhas e penúrias dos mártires que
compunham a Ordem (Wilde, 2001: 1-2).
73
Segundo José de Aguirre, a Companhia de Jesus já vinha sofrendo críticas desde sua fundação, sendo
“especialmente perseguidas del infierno y de los hombres de este siglo, que imaginan grandes intereses”
([18/01/1721]: fl. 221-222). Mas foi no contexto das missões por redução que a Ordem inaciana tornou-se
constante alvo de críticas em relação ao seu modo de atuação junto aos índios. O projeto reducional jesuítico
buscava isolar o máximo possível os neófitos do contato com os colonos, inclusive impondo que, “en estas
Santas Doctrinas [...] no admitan ni permitan que se admitan en ellas o en algunos de sus pueblos a personas
seculares de cualquier estado o condición que sean, eclesiásticos o religiosos, españoles, mestizos, indios
extraños o negros” (De la Roca [17/04/1724]: fl. 235). Surgiram daí diversos panfletos antijesuíticos na Europa e

92
inconstantes: em carta ao Rei da Espanha, o Conselho de Índias expressa urgência ao
atendimento das solicitações que o Procurador Geral da Companhia de Jesus faz em relação
ao envio de novos missionários, pois “por cualquier accidente se inquietasen dichos indios,
despoblarán las misiones y se volverían a su antigua idolatría y infidelidad, perdiéndose de
ese modo el fruto que por tan continuados años de trabajo han conseguido los padres de la
Compañía” (Conselho de Índias [07/11/1715]: fl. 1).
Algumas décadas depois, o padre José de Barreda, baseado nos relatos dos seus
colegas que atuavam nas missões, escreve que “en ningún golfo o estrecho de mar había tanta
variedad de flujo y reflujo, como tiene ocurrencias y agitaciones el corazón del indio” (CA,
1750-1756: 45-46). O desabafo do Provincial da Companhia de Jesus já insinuava as
dificuldades por que passavam seus membros na tentativa de converter e civilizar os Guarani.
Mas somente após a expulsão da Ordem dos territórios da Coroa espanhola, em 1767, as
autoridades coloniais visualizaram a real situação em que estava o processo de conversão
daqueles índios, descobrindo uma série de complicações que foram encobertas pelo discurso
apologético jesuítico.74
Neste contexto em que as reduções, antes sob tutela da Companhia de Jesus, passavam
agora aos cuidados do Estado, o Governador Francisco de Paula Bucarelli alerta para que os
novos curas das reduções usassem “de la mayor suavidad en todos los medios que se
propusieren para conseguir civilizar estas gentes”, tendo em vista a possibilidade de deserção
indígena caso algum método lhes desagradasse ([1768/1770]: fl. 2v). Décadas mais tarde,
Félix de Azara constata que o século e meio de redução guaranítica pouco resultou nos
benefícios da conversão, “porque aunque sean bautizados, ellos no saben ni guardan el menor

na América, que alegavam que a Companhia de Jesus estaria criando um Estado à parte, utilizando a mão-de-
obra indígena de forma abusiva a seu favor. A questão do idioma repercutiu neste sentido: alegava-se que, ao
não ensinarem o espanhol aos índios e ministrarem a doutrina católica em guarani, os jesuítas afastavam
qualquer possibilidade de realmente introduzir os nativos à vida civilizada. Os inacianos defendiam-se: “¿No
habéis oído decir que en la jurisdicción del Paraguay, en que hay como veinte mil personas de sangre española,
no se usa comúnmente otra lengua que esta guaraní, aunque mal, con muchos solecismos y barbarismos? ¿Qué
das mujeres pocas se encuentran que sepan el castellano, y los varones lo saben muy mal, y esto poco que saben
es porque en las escuelas (que allí muchas, más que en otras partes) les obligan a puro azotes a que lo hablen, y
allí raro es el que no va a la escuela?” (Declaração contra libelo [19/09/1758]: fl. 13v, punto 56). A justificativa
do autor jesuíta recai no fato de que a maioria dos moradores daquela região, indígenas ou não-indígenas,
comunicava-se em guarani – informação que pode ser encontrada em um reclame realizado pelo Governador da
Província do Paraguai, que, ao solicitar a fundação de um convento de monjas, enfatiza que os colonos são
pouco instruídos na língua do Reino: “las más personas de esta Provincia ni la entienden, especialmente las
mujeres, y sólo hablan el idioma del indios Tape, con que se dificulta y aún por lo común se imposibilita que
entiendan la palabra de Dios y su doctrina, que comúnmente se expone y explica en castellano” (Sanjust
[12/05/1750]: fl. 1). É interessante notar que no Brasil colonial passava-se a mesma situação: na cidade de São
Paulo, até o final do século 18, as pessoas falavam comumente o Nhangatu, derivação do Tupi (Viveiros de
Castro, 2008).
74
Ver, por exemplo, a investigação iniciada em 1775 contra os índios Don Christoval Guiray y Silverino Cate,
acusados de praticarem feitiçaria desde a época jesuítica, na redução de Loreto (Wilde, 2009: 241 e ss.).

93
de los preceptos eclesiásticos, a pronunciar el Bendito, santiguarse y tal cual otra friolera a
que se les obliga, se reduce todo su culto que mezclan con supersticiones ignorantes” ([1793]:
fl. 263).
No caso dos índios chaquenhos, a constatação a respeito da inconstância só foi mais
explícita porque a empresa reducional demorou muito para se efetivar junto a eles. Os
contatos estabelecidos com os chaquenhos foram praticamente sempre pautados na violência
de ambas as partes, o que distanciava as possibilidades de se implantar um projeto de
conversão. Há uma diferença brusca entre a sócio-economia dos grupos do Chaco e os grupos
Tupi, já que o regime semi-sedentário e a prática de horticultura dos segundos tornaram
possível uma experiência reducional com sucessos de longo prazo; ao contrário do
nomadismo da maioria dos grupos chaquenhos, que se revelou um obstáculo às pretensões
missionárias – assunto que analisarei com maior profundidade no capítulo 4.
Porém, a inconstância dos índios do Chaco não se manifestava apenas para os
missionários: há quase uma unanimidade nos discursos administrativos do século 18 sobre a
dificuldade em manter uma relação estável e sem sobressaltos com os nativos. A formação e
manutenção de acordos comerciais ou bélicos era um importante instrumento político para os
espanhóis, que não entendiam a indisciplina indígena e a instabilidade nas relações que
estabeleciam. Assim, aos observadores, os chaquenhos pareciam “ignorantes de toda la ley de
la razón” (Cabildo de Assunção [30/05/1763]: fl. 2v). Criou-se a imagem de que os índios
eram traidores e interesseiros, de difícil trato devido a sua inconstância no modo de agir: se,
num primeiro momento, davam toda a certeza de uma aceitação irrestrita e completa, em
seguida já apresentavam total descaso e descompromisso. Viveiros de Castro (2002a: cap. 3),
em seu importante artigo sobre a inconstância dos Tupinambá, constatou que os índios no
Brasil colonial não rechaçavam as novas ideias ou as pregações que os missionários lhes
instruíam, aceitando-as de imediato e sem questionamentos, mas desinteressando-se por
completo logo em seguida: “a aceitação entusiástica mas altamente seletiva de um discurso
totalizante e exclusivo, a recusa em seguir até o fim o curso desse discurso, não podiam deixar
de parecer enigmáticos a homens de missão” (id. ibid.: 191).
No Chaco não parecia ser diferente. O jesuíta José Sánchez Labrador responsabiliza os
próprios Mbayá pelo fracasso da redução Nuestra Señora de Belén, pois “de una hora para
otra se ve deshecho lo que parecía más bien fundamento contra los vaivenes de sus genios
inconstantes” (1770, t. 1: 252). Esta conduta volátil também era observada nos Mataguayo,
que solicitavam reduções e até mudavam-se para elas, mas “sin motivo alguno las han
desamparado, huyendo a sus antiguas guaridas” (Bueno [1775]: fl. 5). O Governador do Rio

94
da Prata, durante as primeiras negociações com os Abipone para o estabelecimento de uma
redução, alerta que “no se puede afianzar constancia de sus genios y poca estabilidad para
permanecer en ella, lo que precisa a vivir con el cuidado conveniente para evitar cualquiera
estrago repentino”, aconselhando, assim, o envio de “500 Dragones de refuerzo para el
aumento de esta plaza por ser indispensable y preciso haya en ella mil hombres para ocurrir a
la asistencia de guardias y guarniciones” (Salcedo [20/07/1734]: fl. 1-2).
Este sempre voltar atrás que os índios realizavam nos acordos ou tratos com os
espanhóis resultou numa imagem quase estanque não só dos nativos, como também de seu
comportamento, que acabou sendo vinculada ao discurso edificante dos missionários. A
paciência e o esforço prestado pelos padres justificavam-se como os principais instrumentos
para se alcançar resultados eficientes na conversão e civilização de índios tão instáveis. Daí a
relação que o padre Alonso Sánchez fez desta tarefa apostólica com o trabalho manual:
En una palabra es menester haberse con ellos como el escultor con un tosco leño,
que primero emplea el hacha para desbastar y después el escoplo y otros
instrumentos más sutiles para formar y perfeccionar las facciones de una estatua.
Así es forzoso enseñarles primero a vivir como hombres, para que después
aprendan a vivir como cristianos. O como quien quiere amansar fieras bravas,
que sólo a fuerza de mucha paciencia y de apacentarlas bien, lo consigue (Padre
Alonso Sánchez in Furlong, 1939: 63).

A relação entre o trabalho missionário de catequese e a conversão das almas indígenas


parece ter sido frequentemente comparada ao árduo trabalho manual, já que, para além dos
ensinamentos espirituais e dogmáticos, era um ofício que demandava paciência e habilidades
técnicas para o convívio com os nativos, que requeriam muitos esforços práticos dos
missionários. Daí a alegoria do mármore e da murta que o padre Antonio Vieira havia feito,
em meados do século 17, em relação aos Tupinambá da costa brasileira (Viveiros de Castro,
2002a: cap. 3). No final do século 18, motivados pela dificuldade em estabelecer uma relação
com os índios, estas comparações ainda eram realizadas pelos missionários, como fez o padre
Martín Dobrizhoffer:
Deducirás seguramente que transformar a estos bárbaros en cristianos fue trabajo
más lento y de mayor arte que modelar una estatua de Mercurio de una estaca y
no te admirarás en absoluto de que a tan grandes esfuerzos de nuestros hombres
hayan respondido frutos tan pequeños, los cuales no obstante no deben
despreciarse si se sopesa la dificultad de la obra (1784, t. 3: 351).75

75
A comparação da inconstância indígena com a instabilidade do mercúrio já havia sido feita, décadas antes,
pelo padre Pedro Lozano: “Pero precisamente esta costumbre de salir de su pueblo, los malos ejemplos, la
flojedad, el embrutecimiento y no sé qué oculto influjo siniestro, los volvió inquietos como el mercurio, así,
viendo ellos andar a sus parientes, luego se echaban ellos a andar también, sin saber a dónde” (CA, 1735-1743:
406).

95
A inconstância indígena foi incorporada como o discurso do colonizador que
antecipava o trato com os nativos: definia-se o comportamento volátil dos índios como sendo
a origem de todos os problemas enfrentados não só pelos missionários como pelos colonos em
geral, tanto na questão da conversão e do trabalho apostólico, como nos tratos cotidianos que
iam desde as relações comerciais até a convivência nas cidades. Segundo Viveiros de Castro,
ainda em sua análise sobre os Tupinambá da costa do Brasil colonial, a inconstância dos
índios derivava da ausência da centralização de poderes tanto políticos como religiosos aos
quais os nativos deveriam obedecer sob o risco de infrações sociais. Assim, a religião dos
Tupinambá, por mais contraditória que pudesse parecer, não se baseava em um conjunto de
crenças e, por isso, não tinha como fundamento a prática pela obediência ou coerção:
Os selvagens não crêem em nada porque não adoram nada. E não adoram nada,
no fim das contas, porque obedecem a ninguém. A ausência de poder
centralizado não dificultava apenas logisticamente a conversão [...]; ela a
dificultava, acima de tudo, logicamente. Os brasis não podiam adorar e servir a
um Deus soberano porque não tinham soberanos nem serviam a alguém. Sua
inconstância decorria, portanto, da ausência de sujeição (Viveiros de Castro,
2002a: 216-217).

Os observadores setecentistas também notaram que os chaquenhos não prestavam


cultos a divindades superiores:
No reconocen deidad alguna a quien rindan culto o adoración, ni creen otra
bienaventuranza que la brutal de dar en esta vida todo gusto a sus desenfrenados
apetitos y gozar de una perniciosa libertad nacida de una voluntad sin rastro de
sujeción, ni a Dios, ni a los hombres (Lozano, 1733: § XVI, fl. 96).

Como tentei mostrar no capítulo anterior, a relação que os índios mantinham com
entidades sobre-humanas não vinculava cultos ou práticas de submissão a elas – pelo
contrário: os chaquenhos estabeleciam um contato direto com praticamente todos os seres que
compunham sua realidade, fossem os espíritos de seus parentes mortos, ou os trovões de uma
tempestade. Em relação às pessoas, não seria diferente. O trato que os índios possuíam com
suas lideranças não estava pautado pela incondicional obediência ou uso de qualquer tipo de
coerção. As relações seriam, portanto, vazias de mando e sujeição, fazendo com que os índios
não conhecessem “más sumisión que su absoluta voluntad” (Rozas [29/10/1744]: fl. 1v).
O problema visualizado pelos espanhóis foi que os índios, apesar de parecerem
reconhecer uma liderança entre os membros do grupo, não despendiam a esta pessoa mais
deveres que a qualquer outro membro – inclusive podendo deixar de segui-la como líder a
qualquer momento: “Generalmente no tienen gobierno alguno civil, ni observan vida política:
solo en cada tierra ay un Cacique, á quien tienen algún respecto, y reverencia, que sólo dura
mientras se les da alguna ocasión de disgusto, por el cual fácilmente se separan” (Lozano,

96
1733: § VII, fl. 55). Isto acabava se refletindo no ambiente reducional, em que os índios,
como em suas aldeias, não obedeciam a tudo o que lhes mandavam. Assim, a disciplina dos
Abipone, mesmo após décadas de experiência missionária, foi alvo de crítica dos funcionários
coloniais, que concluíram que os “doctrineros no tienen fuerzas para castigarlos, ni para
sujetarlos, porque no los obedecen: se van cuando se les antoja y vuelven cuando quieren”
(Autos [02/09/1775]: fl. 1v). Florián Paucke alerta que os missionários não deveriam usar de
“una voz demasiado alto” com os índios, sob o risco de acreditarem que o padre “quiere
obligarlos a la fuerza y está enojado con ellos” (1767, t. 2: 57). A ausência de uma
centralização política ou expedientes que vinculassem sujeitos a um cargo de mando ou
administração social dificultava a lógica da relação sociopolítica imposta dentro das reduções,
resultando que os índios não se subjugavam nem aos padres, nem aos demais neófitos: “Ni
aún en la reducción hacían caso del corregidor, ni le obedecían” (Andreu [22/11/1757]: fl.
26).
A atitude indígena de tomar as suas próprias decisões, obedecendo as suas vontades e
necessidades, sem pautá-las por procedimentos relacionais que precederiam a relação em si,
não era uma conduta opcionalmente canalizada para o contato com os brancos: os índios
agiam com os espanhóis como agiam entre si, fazendo desta inconstância – seja qual o for o
nome dado a este proceder indígena – um traço da sua sociabilidade. Assim, os índios podiam
ignorar ou interessar-se por tudo o que lhes conviesse, e, de qualquer forma, estariam
emitindo algum tipo de relação social. Mas, frente a todas as inconstâncias e instabilidades
que podiam apresentar em suas relações e estabelecimento de acordos, os grupos chaquenhos
estavam longe de dispersarem-se em unidades nucleares autônomas umas das outras.
Dito de outra forma, a inexistência de uma obediência político-hierárquica dentro do
grupo não resultava numa consequente fragmentação tribal que provocaria o
desmantelamento das aldeias enquanto unidade. Sem estarem às margens do estabelecimento
de um Estado mediador e tutelar das relações sociais e políticas, nem do perigo de extinção
devido a um estiramento das instáveis relações intrapessoais, os grupos chaquenhos possuíam
mecanismos e expedientes sociológicos que, ao mesmo tempo em que movimentavam
centrifugamente os índios para o estabelecimento de relações com o estranho, forçavam a
internalização de bens simbólicos e materiais por meio da sociabilidade tribal. Eram estas
relações cotidianas, galvanizadas pelos elementos externos, que davam razão ao grupo
enquanto tal, possibilitando sua atualização, reprodução e integração.
Ora, se a quase unanimidade das descrições que são feitas sobre as relações que os
nativos cultivavam direciona-se para uma oscilação aparentemente desregrada entre a

97
cooperação amistosa e a hostilidade, talvez se deva questionar os conceitos de aliança e
inimizade na compreensão indígena. Ao entendermos que, segundo os relatos, a inconstância
era a frequência com que os nativos voltavam atrás e rompiam alianças ou acordos
estabelecidos tanto com outros índios como com não-índios, então podemos pontuar que o
Outro, para o indígena, prestava um papel muito mais complexo do que o maniqueísmo moral
figurativo entre o bom e o mau. As relações indígenas não estavam estabelecidas na rigidez
destes dois extremos de oposição, ou, pelo menos, não fixavam neles diretrizes convencionais
de sociabilidade – como se as relações de cooperação uma vez estabelecidas entre dois grupos
não pudesse ser rompida sem ver nascer a marca da traição. As alianças, como ressaltou
Carina Lucaioli, foram “muy flexibles, esporádicas y limitadas a situaciones específicas”, não
havendo “una cooperación sistemática frente a los intentos del dominio español ni alianzas
duraderas entre los grupos” (2011: 81). Ou seja, a guerra prevalecia sobre a aliança: “é a
guerra como instituição que determina a aliança como tática” (Clastres, 1980: 260). Assim,
entre os grupos nativos, o que parecia ocorrer era a atribuição de uma maior importância à
relação em si, que se poderia resumir como sendo um estado de afinidade generalizada.
Viveiros de Castro entende a afinidade como o axioma relacional da socialidade
amazônica, contrapondo-a à consanguinidade, na medida em que a primeira é a “função do
dado na matriz relacional cósmica, ao passo que a consanguinidade irá constituir a província
do construído, daquilo que toca à intenção e ação humanas atualizar” (2002a: 406). O que o
antropólogo está afirmando é que, se para as sociedades complexas os laços consanguíneos
são a marca inquestionável do parentesco cognático, aos grupos tribais das terras baixas sul-
americanas estes devem ser construídos, pois não são dados. Disto decorre o fato de os grupos
sul-ameríndios não só permitirem a internalização de pessoas de fora ao grupo cognático,
como manterem rituais de afinização de seus próprios membros, numa constante
transformação da pessoa em um membro consanguíneo.76
Isso também parece ser válido para os grupos chaquenhos setecentistas. Ao
mostrarem-se inconstantes em suas atitudes frente aos colonos e mesmo em relação a outros
grupos nativos, os índios do Chaco viabilizavam, para si, as possíveis alternativas de relações
que estavam em jogo. Se todos eram passíveis de uma relação – e este é o ponto focal –, então
a aliança e a inimizade eram os coadjuvantes em uma peça cujo cenário era o ator principal: a

76
Viveiros de Castro lembra que, apesar desta teoria genericamente referir-se às relações do parentesco, também
nas relações supralocais – “interaldeão, inter-regional, intertribal, interétnico etc.” –, e até mesmo em diferentes
esferas sócio-cosmológicas – na relações com “animais, plantas, espíritos e divindades” –, a afinidade é o fundo
de valor relacional que fundamenta a coexistência dos seres: em outras palavras, “o Outro, em suma, é primeiro
de tudo um Afim” (2002a: 416).

98
afinidade era a base que suportava as correlações. Sendo assim, ser aliado ou inimigo era uma
situação, e não uma condição – era o estar antes do ser. A inconstância dos chaquenhos era,
portanto, uma via de possibilidade relacional: quanto maior a oportunidade de estabelecer
relações sociais – fossem de aliança, fossem de inimizade –, maior as chances de conformar a
coesão tribal. Daí a constatação dos observadores hispanófonos sobre um dos poucos
momentos em que os índios mostravam-se unânimes:
Son vagabundos, sin pueblo en forma, sino donde el campo les ofrece más
conveniencia. No hay entre ellos cacique dominante a muchas parcialidades, sino
muchos caciques sin subordinación entre sí, ni más unión que para hacer la
guerra al español o a otras naciones sus enemigas (Conde de Superunda
[15/02/1751]: 17-18).

Florián Paucke, missionário entre os Mocovi, afirma que os “indios obedecen a su


cacique cuando ellos quieren”, exceto quando este “los invita a cometer un robo o a pelear
contra otros o invadir las estancias españolas y matar los habitantes, entonces todos corren
junto a él” (1767, t. 2: 104-105, grifos no original). A união do grupo girava em torno de uma
mesma causa e, não necessariamente, de um líder:
Lo que únicamente puede decirse es que un consentimiento tácito los une y
coliga para mirar por su conservación y mutuamente no destruirse. En fuerza del
mismo, toman las armas arbitrariamente y se ayudan a hacer a otros la guerra, si
conciben, o que volverán con un rico botín de despojos, y cautivos, o que así
conviene para rebatir la fuerza de su enemigo. (Sánchez Labrador, 1770, t. 1:
306)

A guerra, como já haviam constatado os espanhóis desde os primeiros contatos com os


sul-ameríndios, era uma das práticas mais constantes nas quais eles se engajavam. Ainda que
a guerra indígena não fosse praticada por um exército formal, organizada a partir de patentes
hierarquicamente dispostas, os índios obedeciam a uma lógica em suas incursões que se
baseava, fundamentalmente, na cooperação de aliados que extrapolavam o grupo familiar: daí
a importância de se manter a sociabilidade através de cerimônias ou práticas comunitárias,
como a reciprocidade de dádivas ou os convites festivos. Fazer parte de uma aliança
implicava a responsabilidade de manter uma constante prática social com os grupos
amistosos, caso contrário, a relação enfraqueceria, podendo converter-se em hostilidade. Por
isso, mesmo reduzidos, os índios mantinham contato com grupos não-reduzidos – e o próprio
espaço reducional era apropriado para a formação de novas alianças. Além de possibilitarem
aos índios a continuidade de suas guerras, as reduções acabaram fomentando-as.
Se comparadas com as missões realizadas nos rios Uruguai e Paraná de índios
Guarani, as missões chaquenhas não oportunizaram resultados tão significativos ou
duradouros. Nas últimas décadas do século 17, coincidindo com a conquista do Vale de

99
Calchaqui, a região do Chaco passou a ser um importante alvo das missões religiosas
empreendidas, principalmente, por jesuítas. Resumiam-se a missões itinerantes que tentavam
alcançar um maior número possível de aldeias e toldos indígenas da região (Bruno, 1968:
289-290). No início do século 18, as investidas no Chaco tornam-se mais enérgicas,
principalmente com as entradas ofensivas que o Governador Esteban de Urízar y
Arespacochaga empreendeu durante o seu mandato, que se estende de 1708 a 1724, ano de
sua morte. Com o intuito de pacificar os índios por meio da força, o Governador também
objetivava atrair os nativos para a vida civilizada, ajudando a fundar pelo menos duas
reduções que se mostraram, por um tempo, consistentes: San Juan Batista de Balbuena,
erguida em 1711, e San Esteban de Miraflores, consolidada em 1714, ambas de índios Lule e
sob os cuidados dos jesuítas (Vitar, 2000: 8-9). Mas, já em 1725, no relatório de visita do
padre Juan Patricio Fernández, constatou-se que os índios reduzidos em Miraflores haviam
fugido para suas antigas moradas (id. ibid.: 387). Desde esse período já se podia notar as
grandes dificuldades que obstaculizavam a empresa reducional, em especial a falta de
comprometimento dos índios com as coisas da fé:
A todos los he examinados uno por uno desde el primer hasta el último de toda la
Provincia y ni en el idioma castellano, ni en el suyo natural, de que tengo
bastante uso, y ha convenido el tenerlo, para el mejor expediente del oficio
episcopal, he hallado ninguno que sepa enteramente la Doctrina, como está
obligado a saberla todo fiel cristiano. Muchachos y viejos aun no saben bien
hacer la señal de la cruz y persignarse: los más no pasan de las cuatro primeras
oraciones, raros saben los preceptos de Dios y de la Iglesia y sacramentos de ella
(Bispo de Córdoba [20/04/1729]: fl. 2).

A partir da década de 1730, as missões chaquenhas intensificaram-se sob a forma de


reduções: até o final do século, fundaram-se inúmeras delas com o objetivo de dinamizar a
pacificação dos índios – algumas, inclusive, sendo erguidas no interior do Chaco. Mesmo
assim, os resultados em relação à conversão dos índios ainda mostravam-se ineficazes. Foi o
caso, por exemplo, da redução de San José, fundada em 1734, de índios Vilela, que
aparentava ser promissora no seu início. Porém, já em 1757, as notícias sobre os sucessos
conquistados em relação à conversão dos índios eram desoladoras. O padre Clemente Jerez,
cura da redução, lamentou que,
sin embargo del natural manso, dócil y humilde de dichos indios, es casi ninguno
el adelantamiento espiritual que en ellos se ha logrado, así en la instrucción de la
doctrina cristiana y noticia de las obligaciones de nuestra santa ley, como en el
destierro de sus costumbres, abusos y supersticiones gentílicas, en que hasta
ahora permanecen, entregados a las borracheras públicas y otros desórdenes de
su gentilidad (apud Bruno, 1968: 491).

No mesmo ano, o padre Juan Andreu também queixa-se da falta de comprometimento


dos Mataguayo que, reduzidos desde o ano de 1750 (Vitar, 1997: 294), “nada depusieron de

100
sus brutales costumbres, nada se les pego de la vida racional, nada dejaron de sus
supersticiones a que están aferrados con obstinada porfía” (Andreu [22/11/1757]: fl. 25). Mas,
em se tratando dos Mataguayo, essa foi uma reação das menos piores, já que, alguns anos
antes após solicitar reduções, haviam matado os padres Agustín Castañares (Montenegro
[15/08/1745]; Nusdorffer [30/08/1745]: 4) e Francisco Ugalde (CA, 1750-1756: 11-12;
Andreu [22/11/1757]), além de, por várias vezes, terem solicitado reduções e fugido das
mesmas após seus princípios. Sendo assim, os Mataguayo não se submeterem à religião e aos
ensinamentos dos missionários não era uma atitude inesperada.
Já os Mocovi mostraram-se mais interessados em fazer parte das reduções. No auge da
atuação jesuítica no Chaco, fundaram-se dois povoados exclusivamente mocovis: San Javier,
em 1743, e San Pedro, em 1765. Se considerarmos a longevidade da redução de San Javier –
que se manteve em funcionamento mesmo após a expulsão da Companhia de Jesus em 1767 –
e o fato de ter sido erguida uma segunda redução para este grupo em 65, com a finalidade de
suprir o continente mocovi desejoso de juntar-se às missões, chegar-se-ia à conclusão que os
Mocovi foram neófitos mais interessados na conversão. Porém, os registros mostram o
contrário. O Tenente da cidade de Santa Fe, alguns meses após a expulsão dos jesuítas,
escreve ao Governador Bucarelli sobre a fuga dos Mocovi da redução de San Pedro:
Tengo por imposible que estos indios se sujeten a reducción, por la suma
rebeldía que la experiencia de hechos semejantes ha manifestado en ellos; pues
aunque en tiempo que estuvieron a cargo de curas jesuitas ejecutaron iguales
hechos, volvían a su pueblo por el empeño con que dichos curas pasaban en su
seguimiento (apud Bruno, 1970: 222).

E, mesmo após o estabelecimento de uma terceira redução mocovi – San Francisco


Solano de Remolinos –, fundada em 1776 por curas franciscanos, os índios ainda não se
resignavam à tutela missionária, muito menos à conversão: “demuestran pocos deseos de
abrazar nuestra Fe, porque no hay ninguno bautizado y repugnan se bauticen sus párvulos”
(Fernández [08/06/1779]: fl. 2v). O mesmo ocorria aos Mbayá, que, mesmo em redução, não
abandonavam “sus prácticas supersticiosas y las bárbaras y perversas costumbres” (Jolís,
1789: 306).
Esse comportamento que os índios mantiveram em relação às reduções pode ser
generalizado a todos os grupos que foram abrigados pelas missões religiosas no Chaco: um
estar na redução que não significava um estar reduzido. E, para os padres, tal atitude tornava-
se mais difícil de compreender, principalmente se levarmos em conta que eram, na maior
parte das vezes, os próprios grupos indígenas que vinham solicitar povoados. Esta aparente
contradição ganhava destaque entre os missionários, que esperavam atitudes que atestassem a

101
efetiva conversão dos índios que optavam juntar-se ao espaço reducional. Se os índios não se
interessavam pelas coisas da fé e tampouco mostravam qualquer progresso nos ensinamentos
catequéticos, o que lhes atraía para dentro das reduções? A resposta imediata que os
missionários encontravam para essa pergunta era a inconstância dos índios: sem saberem ao
certo o que queriam, movidos principalmente pelos seus instintos e dados a tudo o que lhes
conviesse, sem com isso mostrarem-se afeitos a nada, os chaquenhos também não conseguiam
compreender a importância de uma vida cristã – daí seu desinteresse em relação às práticas
catequéticas. Já as autoridades civis, com outra mirada sobre a situação, tinham respostas
mais práticas:
Por cuanto después de los repetidos tratados de paces y treguas que ha habido
con las naciones bárbaras Toba y Mocovi, y sus confederados, se han
experimentado varias hostilidades de su infidelidad y cruel naturaleza,
habiéndose justificado ser sus propuestos sólo a fin de contener nuestras armas,
por diferir el castigo que de ellas han esperado y merecen por sus traidoras
operaciones, sin que les deba valer la escusa que hasta aquí han tenido de
atribuirse unas o otras parcialidades los insultos que se han ejecutado en las
fronteras (Monteros [24/04/1745]: fl. 1-1v).

O Governador da Província de Tucumã refere-se, no início do trecho, ao acordo de


fundação da redução de San Javier de índios Mocovi – que também contava com
parcialidades Toba e de grupos aliados. Mesmo sob um acordo de paz e já instalados em uma
redução, os índios ainda cometiam suas ações furtivas às cidades e estâncias, levando o
Governador a concluir que os nativos só aceitavam estabelecer aproximações amistosas com
os espanhóis para continuar suas incursões bélicas. O autor do trecho não parece estar de todo
errado, se levarmos em consideração que os índios, mesmo após ingressar nas reduções,
mantinham suas guerras – e não apenas contra espanhóis, como constatou Azara sobre os
Mbayá reduzidos desde 1756:
No sólo han hecho guerra a los españoles, y Guaraní, sino también a los
Chiquitos, de los cuales hoy tienen más de 150 cautivos, y hace como 15 años
que con apariencias pacíficas se llegaron a los Pueblos que los portugueses han
fundado uno en cada banda del Rio Paraguay hacia la latitud de 19º-30’ y en
ellos mataron 125 personas. Desde el año de 1756 en que hicieron la paz con
nosotros no la han quebrantado, y sólo hacen la guerra a los pusilánimes Caaguá
o Monteses que habitan los bosques vecinos al Rio Xexuy, y alguna vez a los
Lengua en el Chaco (Azara, 1790: 374, grifos no original).

Os índios, ao juntarem-se às reduções, não abdicavam de seus tradicionais costumes


em função de uma nova perspectiva de vida – no caso, a cristã. Pelo contrário: o que a
documentação evidencia é a manutenção de práticas autóctones e, inclusive, a permanência
das atuações violentas. O meio reducional proporcionou aos índios vantagens materiais e
estratégicas que acrescentavam elementos à dinâmica relacional nativa – ao invés de substituí-

102
la. Pode-se mesmo afirmar que os acordos de aliança e redução potencializaram certos setores
da sociabilidade indígena, como se constata na guerra.
Para além da questão espiritual e catequética, as reduções eram pensadas como
espaços de integração geográfica e de delimitação territorial que fundamentavam as fronteiras
coloniais – tanto para os limites entre os territórios luso-hispânicos, como para as
demarcações inter-regionais do próprio território colonial espanhol – como era o caso das
reduções que demarcavam os limites do Chaco. Sendo assim, era importante que suas
fundações fossem pensadas como instrumentos a favor da presença do Estado colonial em
regiões estratégicas, que, consequentemente, implicariam em conflitos armados. As próprias
autoridades civis e religiosas incentivaram os grupos reduzidos a interferirem militarmente
nas questões das fronteiras e na proteção das cidades.
Foi pensando assim, por exemplo, que foram canalizados esforços, na década de 1740,
para a fundação de uma redução de índios Calchaqui próxima à cidade de Santa Fe, que
estava sendo constantemente atacada pelos Abipone. Sendo assim, era imprescindível a
cooperação dos futuros neófitos para a segurança da região, como percebeu o Promotor Fiscal
da Coroa: “Como más convenga digo que es constante y notoria la pretensión de dichos
indios Calchaquís y su perseverancia en solicitud de su reducción a Nuestra Santa Fe
Católica” (Expediente Calchaquis [21/12/1740]: 24).
Duas parcialidades do mesmo grupo étnico, divididas por um rio, poderiam manter
guerras intermitentes que oportunizariam aos hispano-crioulos aproveitarem-se destes
conflitos como estratégia de defesa. Em julho de 1790, a expedição promovida pelo Coronel
de Salta, Adrian Fernandez Cornejo, foi atacada por índios Mataguayo, que os esperavam em
uma emboscada nas margens do rio Bermejo. No dia seguinte ao incidente, outro grupo desta
mesma etnia veio ter com o Coronel, por meio de uma índia Toba casada com um cacique
mataguayo. Desarmados, os índios procuraram convencer os espanhóis que não tiveram
qualquer participação naquela emboscada y “que habían tenido muy a mal las operaciones de
los de su nación”. O Coronel, acreditando na versão dos nativos, procurou selar uma aliança
informal dando-lhes alguns objetos que trazia na expedição. Em troca, os índios levaram
“carneros, conejos y carne de corzuela” num ato de retribuição (Cornejo, 1790: 21-23).
Uma década antes, o militar Francisco Gavino Arias já havia identificado, em uma
expedição realizada no mesmo rio, que os Mataguayo diferenciavam-se em pelo menos dois
grupos: os “Coronados”, que, além do seu idioma nativo, falavam também o Guarani; e os
“Churumatas”, que “entienden, a más de la nativa, diferentes lenguas por los varios cautivos
que tienen entre ellos” (Arias [1780]: fl. 321v). Estas diferenças dentro de um mesmo grupo

103
foram usadas na estratégia colonial, visando empreender o domínio da região. As alianças
firmadas entre alguns grupos indígenas e os brancos possibilitavam aos últimos a ampliação
de suas defesas aos assaltos de outros indígenas. Assim, em 1725, um grupo armado de índios
Guarani das missões dos Rios Paraná e Uruguai são encaminhados para ajudar na defesa da
cidade de Santa Fe, que estava sob ataque dos Abipone e Mocovi (Anônimo [1735]: fl. 5). A
situação foi momentaneamente controlada, mas as invasões mantiveram-se, o que resultou na
fundação de uma redução de índios Calchaqui próxima à cidade, em 1740, aos cuidados dos
missionários franciscanos. A justificativa para o empreendimento foi bastante pontual:
“dichos indios sirven de ante mural y defensa a la referida ciudad de Santa Fe, contra los
bárbaros, que con frecuentes hostilidades han muerto y cautivado antecedentemente mucha
gente” (Conselho das Índias [12/08/1747]: 2).
Ainda que os índios fossem, no entendimento dos espanhóis, inconstantes e violentos,
o benefício que se poderia ter com a fundação de reduções em locais específicos para a
segurança do território colonial era fundamental. Pretendia-se, com as missões do Chaco,
interromper as hostilidades praticadas pelos índios por meio da sua pacificação e, assim, atrair
um contingente indígena que auxiliasse a Coroa a defender seu território contra portugueses e
índios não-reduzidos que oferecessem perigo. Daí os projetos de fundação das reduções
priorizarem locais estratégicos, posicionando-se como um “cordón fronterizo” (Paz, 2007b:
280), que intencionava barrar os avanços das hordas de índios não-reduzidos hostis aos
espanhóis, funcionando, consequentemente, como “enclaves defensivos antes que
civilizatorios y religiosos” (Lucaioli, 2011: 102). Foi neste sentido que o Governador do
Paraguai, “reconociendo los insultos que practican los indios infieles contra esta Provincia y
mayormente los del Chaco”, buscou contatar os grupos indígenas que mais assolavam a
região. Propôs “a sus caciques si gustaban concertar la paz con esta Provincia y al mismo
tiempo fundar reducción”, que serviria “de antemural y defensa de ella de aquellas naciones
no reducidas” (Sanjust [21/01/1754]: fl. 1-1v).
Porém, nem sempre o local de fundação das reduções foi um tópico de simples
resolução. Era necessário escolher um local que servisse aos fins estratégicos pretendidos
pelas autoridades coloniais e, ao mesmo tempo, dificultasse o convívio dos índios com os
demais grupos não-reduzidos – o que se mostrou um grande obstáculo à empresa missionária:
Los anales antiguos de esta Provincia enseñan que varias naciones han pedido
reducciones y que habiéndoseles dado en el propio Chaco, conforme las
facultades y arbitrios lo permitían, al poco tiempo, ya con la comunicación diaria
con los no reducidos, ya por flexibilidad, imbecilidad y flaco juicio de estos
naturales, se han retirado y desamparado los ranchos (Baldovinos [12/12/1797]:
fl. 186-186v).

104
Os índios, além de manterem contato com grupos que viviam fora das reduções,
também procuravam negociar a fundação dos povoados missionários, de forma a ficarem
próximos às suas antigas moradas, no interior do Chaco – muitas vezes recusando o lugar
proposto pelos missionários para a fundação das reduções. A fundação da redução de San
Francisco de Remolinos, em 1776, teve problemas iniciais que giraram em torno da
negociação do lugar em que os índios seriam assentados. Após contatar os Mocovi, os
missionários decidiram erguer o povoado junto ao rio Paraguai, o que gerou o
descontentamento dos nativos, “pues, sin embargo de haber aportado a la otra banda de este
Río varios caciques con sus familias, nunca quisieron pasar al lugar que se les destinó,
regresándose a sus antiguas habitaciones en el Chaco” (Cabildo de Assunção [29/01/1777]: fl.
1v-2).
Mesmo com as reduções de grupos chaquenhos que haviam sido fundadas em locais
afastados do Chaco, as relações mantidas entre os índios reduzidos e os selvagens também era
uma realidade enfrentada pelas autoridades coloniais. Assim constatou o Bispo de Tucumã,
em carta do Governador da Província escrita em novembro de 1764, que os Abipone
reduzidos no rio Paraná, “confederados con los indios salvajes, hacían correrías en nuestro
territorio y hostilizaban nuestros pueblos” – concluindo que estes eram “reos de muerte,
porque pasarse al enemigo quien es de nuestra parte me parece un crimen acreedor a pena
capital” (Autos [02/09/1775]: fl. 2).77 Criou-se uma situação delicada, em que as reduções
eram importantes para a defesa do território e pacificação dos nativos, mas não davam a
garantia de uma colaboração irrestrita por parte dos índios.
De qualquer forma, os missionários e as autoridades civis tentaram tirar o máximo de
proveito destas atuações bélicas, fazendo com que os índios direcionassem-nas aos interesses
da Coroa, como foi o caso dos índios Zamuco, reduzidos em San Ignácio no atual Chaco
boliviano. O padre Agustín Castañares, fundador daquela redução na década de 1720,
intentando reduzir os índios Terena – e, com isso, abrir um caminho que ligasse o rio Paraguai
e o alto Peru pelo Rio Pilcomayo (CA, 1730-1735: 193) – levou os neófitos Zamuco para
auxiliá-lo no convencimento dos índios. Porém, no caminho, o grupo depara-se com índios
Caypotarade, uma parcialidade zamuco, que, além de negar a redução, ataca-os, matando o
cacique Luis Gozocoerade,
77
O Bispo de Tucumã, em carta de 1768 ao Rei da Espanha, deixa clara sua preocupação em relação à segurança
das cidades e fazendas da província. Em um posicionamento rigorosamente antijesuítico, cita alguns exemplos
de grupos reduzidos que se voltaram contra os espanhóis ou mantiveram contato com índios selvagens,
concluindo que muitas reduções são “albergue de hombres salvajes, que salían de allí a robar y matar cuanto
hallaban” (Brabo, 1872: 136-137).

105
el cual fue atravesado por las lanzas del enemigo, por lo cual se enfurecieron
tanto los zamucos, que no volvieron hasta haber vengado la muerte de su cacique
con la muerte de ciento cincuenta caypotarades. Quería poner fin el Padre
misionero a esta sangrienta batalla, pero al llegar él al campo encontró a los
suyos tan fuera de sí, que le era completamente imposible conseguir, que se
moderasen estos neófitos recién convertidos. De este modo se ha frustrado la
expedición misional del Padre Agustín a los terenas, en este año (CA, 1735-
1743: 499-500, grifos meus).

A situação saiu do controle porque os índios reduzidos não partiram da lógica que as
autoridades coloniais tentaram impor em relação a estas investidas militares: só seriam
permitidas guerras defensivas ou que tivessem como pretexto atuações favoráveis à empresa
missionária.78 Não estavam, então, permitidas incursões beligerantes sem a aprovação das
autoridades, muito menos aquelas que cumprissem interesses dos indígenas, como as
vinganças. Para os índios, esta divisão entre uma guerra permitida e uma guerra condenável
pode não ter feito muito sentido, ainda mais porque, ao serem admitidos pela empresa
reducional, deveriam também cumprir funções militares – recebendo, inclusive, suporte
bélico autorizado pela realeza:
[…] atendiendo a lo referido me dé por bien servida de dichos indios y sus
doctrineros así en haber tenido los dichos arcabuces, como en el modo con que
han usado de ellos y los dejan ahora y mande poner presidio de españoles en la
frontera por cuya cuenta corra la defensa y seguridad de esa Provincia y señale a
los dichos indios un Protector desinteresado cristiano y celoso del servicio de
Dios y bien universal, y habiéndose visto en el Consejo Real de las indias con los
demás papeles tocantes a esta materia y lo que sobre todo dijo y pidió el Fiscal
en el (Orleans [30/04/1668]: fl. 138-138v).

Nesta Cédula Real, emitida pela Rainha Consorte da Espanha, oficializa-se a


permissão para o uso de armas de fogo nas reduções submetidas aos cuidados da Companhia
de Jesus. Já desde a primeira metade do século 17, os padres da Ordem Inaciana,
principalmente por meio de Ruiz de Montoya, solicitavam a permissão Real para o
abastecimento e uso de armas nas reduções, como forma de proteção aos ataques de índios
não-reduzidos e dos bandeirantes portugueses (cf. Quarleri, 2009). O que levou a Rainha a
permitir a introdução dos instrumentos bélicos foram os argumentos usados pelo padre Pedro
Bermudo, Procurador Geral da Companhia de Jesus, que giraram em torno dos exemplos
benéficos do uso de milícias indígenas para a defesa das fronteiras coloniais. Com isso,
autorizava-se a formação de grupos militares oriundos das missões fundadas e cuidadas pelos

78
Uma situação parecida ocorreu no conflito entre os Payaguá e os índios da redução de Yapeyú, povoado
jesuítico situado no rio Uruguai, responsável pela fronteira com a região pampiana e formado por “parcelas
consideráveis de Charruas, Yarós e alguns Guenoas” (Santos e Baptista, 2007: 243-244). Após serem atacados
pelo grupo chaquenho, os índios da redução foram ordenados a “atacar enérgicamente a estos bárbaros,
capturarlos y llevarlos a su reducción, tratándolos allí benignamente, en cuanto fuese posible”. Porém, “no
obedecieron a esta última advertencia los de Yapeyú, y mataron a muchos de ellos, o hicieron matarlos por los
charrúas” não-reduzidos (CA, 1735-1743: 410).

106
jesuítas, armando-se os índios para eventuais convocações militares. Para o contexto
chaquenho, a decisão foi uma vitória para os missionários que atuariam junto aos índios da
região.
Apesar de a empresa reducional no Chaco ter se iniciado somente algumas décadas
depois da promulgação da Cédula supracitada, o uso de armas de fogo pelos chaquenhos
reduzidos foi um importante expediente empregado naquelas missões, principalmente no
Chaco meridional, limitado pelo rio Salado, por onde os índios pampianos faziam seus
ataques. Na virada para o século 18, quando as missões jesuíticas no Chaco passaram a ter um
caráter sedentário em detrimento das visitas itinerantes realizadas até então, formar um corpo
de defesa armado e instruído – para, além do combate a invasores, a promoção de investidas
de cooptação de aliados indígenas – foi um dos principais tópicos da agenda das autoridades
coloniais. Aqueles grupos indígenas que eram hostis e violentos em relação à presença
colonial foram os principais alvos na tentativa de uma conciliação de paz, sobretudo por causa
de suas habilidades de guerreiros. O padre José Jolís informa que, a partir de 1748, os
Abipone, já em “comunicación y amistad” com os espanhóis, “se apoderaron y todavía están
provistos de gran cantidad de caballos, sables, lanzas y espadas”, superando os europeus na
guerra a cavalo e já bastante habilidosos no manejo de armas de ferro (1789: 288-289). O
mesmo havia afirmado o Bispo de Tucumã, em 1768, sobre o perigo em manter os índios
armados, afirmando que “mientras no se les desarme y se les deje a pié, siempre hemos de
vivir sobresaltados”, concluindo que estavam “más bien armados que nuestros españoles”
(Brabo, 1872: 139-140).
E foi, justamente, esta rápida aptidão adquirida pelos nativos que deixou os espanhóis
receosos. Ao mesmo tempo em que era importante manter os índios das reduções aptos para
os confrontos, a imagem que se estabeleceu sobre suas atitudes por meio da ideia da
inconstância preocupava as autoridades: armar e preparar os índios para a guerra, tendo em
consideração suas ações muitas vezes inesperadas, podia ser muito perigoso e contrariar os
objetivos iniciais. Por isso, durante os acordos de paz e redução de parcialidades Mocovi e
Toba, na década de 1770, o Governador da Província de Tucumã, Gerónimo Matorras,
estabelece 11 pontos a serem cumpridos pelos índios – representados pelo cacique mocovi
Paikín. Contemplaram-se preocupações variadas a respeito desta aliança, desde a
responsabilidade em manter o acordo sem agressões, até a prestação de auxílios para busca de
novos aliados (para uma análise do acordo estabelecido entre os espanhóis e o cacique Paikín,
cf. Nesis, 2008). No último tópico, fica evidente a preocupação em relação a armar os futuros
neófitos:

107
Que sin embargo de habérseles negado por el Señor Gobernador armas de pistolas,
lanzas y machetes, que le habían pedido para defenderse de sus enemigos, quedaban
ciertos de la promesa que les había hecho de atender a su pretensión cuando hubiesen
dado pruebas de su fiel vasallaje al Rey de España, con la buena amistad y buena
correspondencia que profesarían con todos los españoles (Brizuela, 1774: 23, grifos
meus).

Para o Governador era imprescindível que os índios provassem a sua disposição em


firmarem alianças com os espanhóis, pois sem ela a relação se tornaria fraca e a distribuição
de armas seria suspensa. Porém, no próprio trecho fica evidente pelo menos uma das
intenções que levou este grupo a acordar paz com os espanhóis: a procura por novas alianças
para suas antigas guerras. Ao que parece, Paikín e seus seguidores estavam investindo na
atualização de suas redes de aliança e, com isso, os espanhóis eram integrados como parte da
mecânica bélica. Aliás, se é verdade – como procurei demonstrar até aqui – que os índios não
possuíam uma centralização política representada por um líder, havendo, sim, uma união do
grupo em torno da guerra, então o que Paikín estava fazendo era mediar acordos de aliança,
como era de se esperar de um guerreiro chaquenho, e não estava representando os demais
índios como um líder político. Assim, os índios iam fabricando suas alianças e inimizades –
os principais motores de suas guerras – e também adquirindo instrumentos para colocá-las em
prática.
Foi o que parece também ter acontecido, na década de 1740, com os índios Pampa.
Uma parcialidade “de dichos indios [fue] solicitar la protección del Gobernador contra otros
indios que les hostilizasen”, sendo prontamente atendidos mediante um acordo em que os
nativos deveriam aderir à cristandade, mostrando-se fiéis ao Rei e à Igreja Católica,
recebendo, em troca, a garantia de que, “en caso de ser invadidos por enemigos, se les den
algunas armas, y dando aviso al Gobernador se les socorra con alguna gente para su defensa”
(Anônimo [11/08/1741]: 1-2). Deste acordo resultou a fundação da redução Concepción de
los Pampas, em 1740, às margens do Rio Salado, nas proximidades de Buenos Aires. E foi
justamente esta proximidade que levou à sua desativação: no início de 1753 já estava
completamente abandonada, em função das reclamações que os moradores de Buenos Aires
haviam feito em relação aos perigos que a redução trouxera àquelas paragens, alegando que os
neófitos mantinham relações de amizade com índios não-reduzidos:
Los indios de el referido pueblo distante cincuenta leguas de aquella capital
mantienen trato y comunicación con los infieles, que bajan de la sierra a insultar
las fronteras, matando gente, robando ganado y haciendo otras hostilidades, sin
que se les pueda escarmentar por su acelerada fuga y pronta internación a sus
tierras, ocasionada de las noticias que los primeros les subministran de
cualquiera providencia o disposición, que se toma contra ellos (Conselho de
Índias [22/11/1753]: 2).

108
O Bispo de Buenos Aires já havia alertado para a conveniência que havia sido a
adesão dos índios à redução, alertando que “los pocos que han quedado en este pueblo se
comunican con los desertores y más parece que miran esta reducción como un asilo para
evitar el castigo de algunas maldades y robos que hacen juntos con los totalmente bárbaros
contra los españoles, refugiándose después al mismo pueblo para indemnizarse” (Peralta
[12/08/1745]: 3). Algo parecido ocorreu com os Payaguá, que, vendo-se em território
marcado pela presença dos espanhóis no Paraguai e pelos portugueses de Cuiabá,
“reflexionando que no había para ella ningún medio de escaparse”, resolveram “hacer la paz
de buena fe con los españoles, aliándose a ellos del modo más estrecho”. Sem
comprometerem-se de fato com alguém, os Payaguá faziam “una alianza ofensiva y defensiva
contra todo el mundo, sin excepción” (Azara, 1809: 65).
Para os índios, integrar-se ao projeto missionário não significava aderir à causa
espanhola – o que foi uma das maiores decepções das autoridades coloniais. Os inimigos dos
espanhóis não seriam automaticamente seus inimigos – e o mesmo ocorria com as alianças. A
lógica de alianças e inimizades, para os chaquenhos, não se alterava em função do evento
reducional. Isto acabava reforçando a imagem de índios “incapaces de admitir y mantener
verdaderas paces, aunque en ellas se les proporcionen conveniencias ventajosas, a las que
desfrutan de sus tiranas hostilidades” (Cabildo de Assunção [30/05/1763]: fl. 2v-3). Os índios
aceitavam tratar com os espanhóis buscando, obviamente, vantagens para si que, muitas
vezes, giravam em torno do seu interesse em manter vivas as guerras com outros grupos
indígenas.
Assim, os objetivos destes acordos divergiam de tal forma que, aos índios, era
interessante criar estas alianças com os espanhóis buscando novas formas de enriquecer
materialmente seus conflitos. E não só as alianças em si, mas também as armas
providenciadas para as reduções jesuíticas somaram uma importante vantagem à dinâmica da
guerra indígena – bem como a montaria, que foi absorvida por alguns grupos chaquenhos
muito rapidamente, atualizando as suas incursões bélicas (como mostrarei no capítulo 4).
Florián Paucke, a fim de rebater as críticas sobre o perigo de as armas existentes nas reduções
serem roubadas, assume que os povoados administrados pelos padres da Companhia de Jesus
estavam bem supridos de armamentos:
Lo que concierne a los arsenales es muy infundado pues bien quisiera yo saber
cuántas armas los Españoles y Portugueses (que hasta durante diez años han
inspeccionado y revisado la reducción a orillas del río Uruguay) han quitado de
tales arsenales de los indios pero jamás se ha oído algo de esto. Sin embargo en
cada pueblo que han establecido cerca de las fronteras portuguesas, han
guardado en una cámara algunas armas de fuego y esto tan luego por orden del

109
Rey de España como también [era la orden] que se los capacitara de tratar
[manejar] el arma de fuego para que pudieren defenderse en parte contra los
indios salvajes, en parte contra los invasores paulistas o mamelucos y los
Portugueses invasores pues de estas dos razas han tenido poca tranquilidad desde
el comienzo de su fundación hasta el día de hoy y muchas reducciones de los
indios han sido destruidas por ellas (Paucke, 1767, t. 2: 291, grifos no original).

Além de terem sido armados pelos próprios missionários, treinados e capacitados para
fazer guerra em nome da Coroa espanhola e terem ficado perigosamente próximos de grupos
indígenas hostis aos espanhóis, os índios que viviam nos povoados missionários tiveram
também a seu favor a organização do espaço reducional, que lhes proporcionava uma
proximidade importante com outros grupos ou parcialidades de sua mesma etnia. A união,
que era motivada pelos missionários no interior do povoado, fazia as vezes da convivência
por meio dos convites e festas promovidos pelos grupos em suas aldeias. Na forma
tradicional, os índios convidavam grupos familiares de outras etnias ou parentes que vivessem
em outras aldeias para se unirem a rituais ou cerimônias que iam desde a simples troca de
dádivas até as bebedeiras pré-guerra ou o compartilhamento antropofágico que estabeleciam
relações de aliança e afinidade.
No meio reducional, os padres procuraram manter um cotidiano que se dividia entre os
afazeres econômicos (ligados à produção de alimentos e produtos manufaturados) e as
práticas litúrgicas que, além de envolverem o ensinamento das doutrinas, integravam os
neófitos em cerimoniais de convivência, como as festas religiosas e a própria comunhão.
Porém, como já mostrei, os chaquenhos não internalizaram os ritos cristãos como era
necessário para o processo de conversão, nem submetiam-se aos ofícios ligados à agricultura
e domesticação de animais como esperavam os missionários (o que discutirei no último
capítulo).
O que fez os grupos indígenas estabelecerem acordos para sua redução e, assim,
manterem-se nos povoados, além dos ganhos materiais, dos armamentos e animais para o
abate e montaria, foi a existência de um ambiente que propiciava alianças fraternais entre
grupos que, na forma tradicional, viveriam distantes. Assim, os jesuítas, por meio da
reorientação e administração das festas e da guerra, conseguiam “mantener grandes
concentraciones poblacionales sin destruir la autonomía relativa de las unidades políticas
previas que constituía la base de su funcionamiento económico” (Wilde, 2009: 79). Os índios
aderiam à rotina reducional, mas utilizavam-na a favor de seus interesses sociológicos – o
que, na prática, resultava em uma disciplina não muito rigorosa em relação à agenda
catequética e resultava em fugas e longas ausências do espaço reducional. As reduções foram
uma alternativa para a sociabilidade de muitos grupos chaquenhos, sendo a comunhão cristã

110
interpretada e inserida na sua dinâmica relacional de tal forma que possibilitava a geração de
alianças para guerra dentro dos povoados. Florián Paucke descreve o momento que os
Mocovi, sob sua tutela na redução de San Javier, preparavam-se para a guerra:
La noticia de los enemigos en marcha había llegado también a oídos de los
cuidadores de ganado a cinco leguas de los cuales uno llegó al galope a la aldea
en seguida y pidió ayudantes para recoger durante la noche el ganado del campo
al que también di veinte indios en ayuda. Los demás se prepararon y se
colocaron en orden delante del pueblo en el campo. Ya todos habían vestido sus
corazas de cuero de buey y estaban [pintados] en la cara y por todo el cuerpo
como vivos fantasmas diabólicos. Ahí yo hubiera deseado que mis señores
compatriotas hubieran oído y visto este aparato, la ferocidad de los indios en
armas, el sonido de las cornetas, trompas indias y de otros diversos pífanos, el
griterío desaforado, pues me es imposible describirlo tan vivamente como lo fue.
Así estuvieron por toda la noche hasta la mañana a las nueve (Paucke, 1767, t. 2:
301, grifos no original).

Os Mocovi preparavam-se para ir ao combate contra índios não-reduzidos que, após


sofrerem baixas num conflito anterior, estavam dirigindo-se para o povoado missioneiro
buscando vingança. Mesmo inseridos num lugar/situação em que eram instruídos
constantemente nos ensinamentos cristãos em detrimento de seus costumes e práticas
autóctones, mantinham os rituais que prenunciavam o seu modo de fazer a guerra – que, por
sinal, era incentivada pelos próprios missionários e autoridades hispânicas na medida em que
os índios aliados formavam um importante corpo defensivo colonial. Os preparativos que
antes eram realizados dentro da aldeia transportaram-se para as reduções; a “vocinglería de
sus caracoles y flautas” (Sotomayor [c. 1711]: fl. 1), que antes ressoava de dentro da mata
fechada, sem se saber ao certo de onde se originavam, agora faziam vibrar as construções de
pedra de suas novas casas.
A união que se estabelecia entre os índios de uma mesma redução foi, até certo ponto,
um fator favorável para os missionários. Se a defesa das reduções e, até mesmo, de toda uma
região estava assegurada pela formação de milícias indígenas, era por causa delas que a
situação podia sair do controle. Os Mocovi foram os causadores, ao lado dos Abipone, de uma
grande dor de cabeça para as autoridades coloniais. Estes dois grupos, apesar de terem sido
responsáveis pela fundação de pelo menos onze reduções, provocaram situações
constrangedoras e até violentas, que obrigaram a intervenção dos Governadores para se tentar
estabelecer acordos.
A primeira redução prioritariamente de índios Mocovi foi San Javier, fundada em
1743, à margem do rio Paraná, em um ponto estratégico para a defesa da fronteira santafesina
contra os índios pampianos. Segundo o padre Pedro Lozano, após alguns contatos com o
colégio jesuítico da cidade de Santa Fe, os índios “declararon abiertamente que querían

111
hacerse cristianos, con tal que tuviesen por misioneros a Padres de la Compañía” (CA, 1735-
1743: 575). A redução é erguida e os esforços para sua manutenção estão retratados no pedido
que o Governador do Rio da Prata faz ao Rei para que as cidades daquela Província
fornecessem “una voluntaria limosna”, cuja ajuda “ha de ser suficiente para la prosecución y
existencia del referido pueblo, sin el menor cuesto al Real Erario de Vuestra Majestad”
(Rozas [20/12/1743]: fl. 2). Não demorou muito para que a redução já mostrasse efeitos
benéficos à defesa da região: Paucke relata o violento confronto ocorrido entre os Mocovi de
San Javier, em uma rara aliança com os Abipone de San Jerónimo, contra índios não-
reduzidos que, alguns dias antes, haviam atacado o missionário e seus índios, ferindo a mão
do padre. A batalha é vencida pelos índios reduzidos, que somaram mais de 70 inimigos
mortos, além de voltarem “de la batalla con cuatro cabezas enemigas cortadas que eran las
cabezas de los caciques salvajes más principales que se habían mostrado los más valientes en
el combate”. Os vitoriosos também fizeram colares com orelhas e narizes decepados dos
inimigos mortos para adornar seus cavalos e apresaram “cuarenta y seis niños cautivos de
ambos sexos”. No final do relato, Paucke, em tom crítico, escreve que os Abipone de San
Jerónimo “se habían dedicado más bien a saquear que a pelear”, além de terem apresado 30
crianças, já que “tenían entre los salvajes, que también se llamaban Abipones, muchos
parientes consanguíneos” (Paucke, 1767, t. 2: 311-312).
Os atos cometidos pelos índios após a batalha – que nos permitem imaginar um
ambiente reducional com cabeças fincados em lanças e colares de narizes e orelhas
distribuídos em vários cavalos – parecem não ter despertado tanto interesse no autor do relato,
que prefere ressaltar o fato de os inimigos serem da mesma etnia que os moradores de San
Jerónimo – situação que não era novidade: no mesmo livro, o ex-missionário narra o
confronto entre 18 índios não-reduzidos e um pequeno grupo de Mocovi que estavam
cuidando de alguns gados próximos à redução. O conflito se iniciou quando um dos Mocovi,
que atuava como capataz, avistou os inimigos e partiu em sua direção, desferindo flechas e
matando alguns deles. Ao final, o grupo acaba por matar o índio e retira-se em fuga. Seus
filhos, que presenciaram o confronto e a morte do pai, passaram a “alistar gente de pelea para
buscar los asesinos”, que acreditavam ser os Abipone. Porém, logo todos ficaram sabendo que
o grupo invasor era Mocovi, guiado por um cacique chamado “El indio crespo”, famoso entre
os espanhóis e que, daquela redução, “había ya muchos de sus amigos cuyos caballos él no
había respetado” (Paucke, 1767, t. 2: 34-37).
O conflito entre parcialidades de uma mesma etnia conotava uma complexa relação
que permeava os grupos chaquenhos, e as autoridades coloniais tiveram que saber lidar com o

112
fato de, por vezes, estas parcialidades se digladiarem e, por outras, se ajudarem. O cacique
abipone Miguel Benavides da redução de San Jerónimo denunciou, através de uma carta
escrita em espanhol, os inúmeros ataques cometidos pelos Mocovi das reduções de San Javier
e San Pedro que, “convocados con las naciones bárbaras, nombradas Tobas, Vilelas,
Chunupis, Lenguas y Mocobies”, hostilizavam o povoado e sua fazenda, afirmando que desta
forma poderiam “culpar a los infieles y descargase ellos de sus atentados” (Benavides [c.
1780]: fl. 2 e 10).79 Assim, além da incerteza a respeito do tipo de relação que as parcialidades
mantinham entre si, havia ainda o conflito entre os Abipone reduzidos em San Jerónimo e os
Mocovi de San Javier e San Pedro, que passou a ser destacado pela documentação após a
expulsão dos jesuítas. Atuando a partir de suas reduções, estes dois grupos provocaram uma
série de confrontações que iam desde furtos às fazendas até ataques violentos aos moradores
dos povoados missionários. A interferência do Estado colonial se fez na tentativa de selar um
acordo de paz entre os grupos envolvidos em 29 de março de 1772 (Bruno, 1970: 223).
Porém, o acordo se mostrou inútil e as hostilidades mantiveram-se. Em uma carta escrita na
cidade de Santa Fe para o Governador do Rio da Prata, alerta-se quanto à intenção dos índios
das reduções de San Pedro e San Javier, junto com índios Toba, Vilela e Mocovi não-
reduzidos, de atacar e destruir San Jerónimo (eod. loc.). A resposta abipone não demorou: em
1776, os índios de San Jerónimo, liderados por Benavides, atacaram a redução de San Pedro e
roubaram todos os seus cavalos (id. ibid.: 225).
Frente a estes impasses, o Governador Juan José de Vértiz mandou o Tenente de Santa
Fe reunir os caciques e os corregedores das três reduções a fim de “establecieren una paz
firme”. Na presença do Bispo Sebastián Malvar y Pinto, do Administrador dos povoados José
Tarragona, do Capitão Francisco Solano e dos missionários responsáveis por San Jerónimo e
San Javier, os índios concordaram com os 13 tópicos que compunham a nova tentativa de
uma paz entre as reduções. Os itens do acordo giravam em torno do perdão mútuo pelos
agravos cometidos, sem que pudessem vir a alegar direitos sobre bens roubados até então.
Mandava a redução de San Jerónimo devolver “los dos niños cautivos que tiene del pueblo de
San Pedro”, e que todos os três povoados convencessem os seus aliados não-reduzidos a se
reduzirem “y que de no conseguirlo, no los trataran como a deudos, sino como a enemigos de
la religión cristiana y no los consentirán en su pueblo, ni las darán ayuda alguna, auxilio, ni
favor”. Também ressaltava a importância das práticas litúrgicas para o bom funcionamento

79
Apesar da carta de Benavides não possuir uma data, é possível situá-la entre as décadas de 1770 e 1780 pelas
situações descritas na missiva e com base em outros registros que citam as atuações do cacique abipone no
contexto do conflito com os Mocovi. Para uma análise biográfica e política de Benavides, ver Paz, 2009: 20, 147
e ss.

113
das reduções, pontuando que a hierarquia de obediência deveria ser respeitada. O último item
mandava os corregedores proibirem os índios de pintarem seus corpos, “y que conforme
puedan se vayan vistiendo como los españoles, para que la mudanza del traje quite de algún
modo las especies antiguas del gentilismo” (Echagüe y Andia [19/06/1779]; cf. também
Bruno, 1970: 226-227).
Além de tentar solucionar o vergonhoso conflito armado que existia entre as reduções,
o acordo buscava diminuir o contato com os selvagens e, daí, melhorar os hábitos indígenas.
Para as autoridades havia uma relação direta entre a dificuldade em converter os índios – e
civilizar seus costumes – e o contato que eles mantinham com os grupos não-reduzidos. Esta
lógica já era acionada pelos missionários desde os primeiros contatos com os nativos, dando
razão ao argumento, segundo o qual, por meio das reduções, os índios estariam livres dos
maus exemplos que os colonos poderiam passar-lhes. Partia-se, assim, da ideia de que os
índios não tinham uma cultura – e, muito menos, uma cosmologia que a estruturasse –, mas
sim hábitos viciados, tão mutáveis quanto uma troca de roupas.
Porém, a situação mostrava-se mais complexa: o tratado de 1779 também não surtiu os
efeitos pretendidos e os índios continuaram hostilizando-se. No final do ano seguinte, o
missionário responsável por San Pedro informa, em carta enviada ao explorador Francisco
Gavino Arias, que já não conseguia mais conter os seus índios na redução, “no porque
aquellos Mocobies sean inconstantes en su religión, sino porque los Abipones los hostilizan
de tal modo que no hay luna en que no los asalten”, provocando mortes, apresamentos de
cativos e roubando os recursos de suas estâncias (Arias [1780]: fl. 278).
Mesmo reduzidos, os índios não mudaram a sua lógica social, nem o seu entendimento
sobre as relações de guerra ou trocas. Mantiveram-se constantes em sua inconstância,
produzindo as alianças e as inimizades ao sabor de sua sociologia: reduzidos ou não, aliados
de outros grupos nativos ou com espanhóis ou portugueses, os índios mostraram-se mais
interessados na manutenção das relações em si do que como elas formulavam-se – daí a quase
negligência que os chaquenhos demonstravam em relação aos acordos de paz ou não-agressão
que as autoridades coloniais esforçavam-se em, burocraticamente, implantar. A consequência
disto era um aparente descaso dos índios em relação a tudo e a todos, como se fossem
impenetráveis ao diálogo e aos acordos oficiais – salvo raríssimas exceções, diriam os
colonos. Porém, as nuances da documentação setecentista indicam o contrário: sem a
arrogância própria do pensamento moderno, os índios estavam abertos à internalização de
elementos físicos e simbólicos de fora, que não implicavam uma dessingularização ou
aculturação do sistema cosmológico interno.

114
E, como tentei mostrar no primeiro capítulo, esta internalização de elementos externos
não era o simples empréstimo instrumental de aprimoramento técnico das práticas nativas: a
cosmologia sul-ameríndia estruturava-se na via da transposição entre o interno e o externo,
num movimento bidirecional, em que o segundo possibilitava o bom funcionamento do
primeiro. Assim, os índios não deixariam de ser índios se aderissem aos rituais cristãos como
uma forma de resolver problemas particulares à sua cosmologia em um determinado contexto
– a prática era um acrescentar novas possibilidades, e não um subjugar o conhecimento
tradicional. Como pontuou Aparecida Vilaça, os grupos nativos também eram afetados por
crises decorrentes da ineficiência de alguma prática tradicional que já não respondia mais a
certas demandas – como, por exemplo, a cura xamânica frente às novas doenças trazidas nas
caravelas europeias: “os modelos cosmológicos tradicionais eram colocados em xeque não
por sua irracionalidade ou escopo limitado, mas por sua ineficácia em um contexto histórico
específico” (2008: 190-191). Daí a decepcionante constatação do padre José Jolís sobre os
Mbayás: “Fuera del tiempo de enfermedad o de epidemia era escaso el fruto que se obtenía de
ellos” (1789: 306). Apesar da aparente contradição, o meio externo era a via de reprodução do
grupo em uma cosmologia em que o diálogo com o Outro era o fundamento para a construção
de si.
Aos índios, não significava uma rendição cultural admitir a eficácia de práticas
exógenas em detrimento das autóctones: os elementos advindos do exterior só eram
“absorvidos pela cultura indígena porque se inseriam num preciso contexto significativo, isto
é, faziam sentido” (Pompa, 2003: 25, grifo no original). O perigo desta análise é determinar
as relações indígenas pela carência de recursos ou total submissão às técnicas das sociedades
complexas – mas, como mostrarei no último capítulo, os índios do Chaco foram bastante
seletivos quanto a este último tópico. Carlos Fausto, partindo da oposição nós/eles – de onde
derivam as correlações do tipo aliado/inimigo, sogro/genro, nativo/forasteiro... –, mostra que
o sistema indígena, ao internalizar elementos exógenos, como técnicas, práticas, objetos e
subjetividades, voltava-se “primariamente para a produção de pessoas e grupos, e não de
bens”. O problema, para os índios, não era a ausência material, mas sim a incompletude
ontológica: o nós que representava o grupo era um “ens incompletum, pois não é concebido
como capaz de se auto-reproduzir isoladamente” (1999: 265-266).80

80
“Trata-se de economias que produzem pessoas e não objetos, que concebem a relação com o exterior como
sendo necessária à reprodução interna e que se articulam com esse exterior primariamente por meio da predação.
Ou, dito de outro modo, temos economias que predam e se apropriam de algo fora dos limites do grupo para
produzir pessoas dentro dele” (Fausto, 1999: 266-267).

115
Se, realmente, o sistema ameríndio decorre “do fato de a relação fundante não ser a
identidade consigo mesmo” (Fausto, 2008: 341), o Outro era indispensável, bem como toda
sua gama de objetos materiais e simbólicos. A guerra passava a ser uma das principais formas
de acesso a estas substâncias de fora, já que possibilitava o contato direto com o Outro,
servindo como via de canalização entre o interno e o externo. Como os índios administravam
estas substâncias internalizadas é o que pretendo analisar agora.

2.3 O pós-guerra: espólios e reprodução social


A morte foi um tema presente na filosofia chaquenha. Longe de ser ignorada, fazia
parte das preocupações e temores do cotidiano indígena, fazendo render uma série de
intervenções sociais que não visavam evitá-la. Como já apontado no primeiro capítulo, os
grupos chaquenhos pensavam a morte sempre como uma perturbação externa: como um
acidente que acometia a pessoa, ou fruto de uma desavença que levaria a vítima a ser
enfeitiçada. Também poderia ser resultado da má administração da cura de algum xamã, que,
ao tentar salvar um enfermo ou ferido, ficava responsável por manter corpo e alma unidos –
caso contrário, o primeiro perderia sua substância ontológica e o paciente morreria, culpando-
se diretamente o xamã. Os Payaguá, por exemplo, afirmavam que o curandeiro da tribo tinha
“en su mano la muerte y la vida”, resultando que “si mueren muchos enfermos seguidamente
suelen matar al médico” (Azara, 1790: 356; cf. também Dobrizhoffer, 1784, t. 2: 249).
Entre os Guaicuru, o padre Sánchez Labrador conta que o Nigienigi – o curandeiro da
tribo –, munido de seus instrumentos e adornos especiais, cantava em voz alta até parecer
alcançar um estado de transe, em que – diziam os nativos – encontrava-se com as almas dos
seus parentes mortos que o questionavam: “Lleno el Nigienigi de arrogancia, les responde que
ha venido a buscar el alma de tal y tal enfermo, que se ha huido del cuerpo, y quiere restituirla
a su morada y dueño”. Voltar dali com a alma do paciente significava a recuperação deste;
porém, muitas vezes, sua alma preferia fugir e se esconder, “y si prevalece el espíritu
paseandero, se vuelve el médico lleno de melancolía” (Sánchez Labrador, 1770, t. 2: 35-36).
O mesmo ocorria com os Mbayá, que diziam que “el alma del difunto se anda paseando por
los montes” – obrigando, certa vez, um xamã a sair correndo “por el campo dando gritos en
busca del alma, que decía, no quería venir al cuerpo” (Flores [16/08/1763]: fl. 11-11v).
Pensar a morte, para os índios, era antes de tudo pensar o morto: no momento em que
a alma desprendia-se do corpo e passava a vagar independente, era sobre a sua nova
existência que as precauções recaíam. As informações sobre os costumes funerários

116
chaquenhos evidenciam que existia o que se pode chamar de um mundo dos mortos, onde o
espírito do defunto mantinha um cotidiano muito semelhante ao que havia tido em vida:
De los preservativos con que enterraban los muertos, se deja entender,
conocieron aunque confusamente la inmortalidad del alma, cuyo destino parece
consideraban en las celestiales regiones, mas vivían persuadidos de que
permanecían en este mundo cierto tiempo después de la muerte, comiendo y
bebiendo de aquellos manjares y chicas que les ponían para su regalo, usando de
las armas ya para la caza, ya en la guerra contra sus enemigos (Alvear y Ponce
[1791]: fl. 216v).

Após a morte, a alma se mantinha ocupada com afazeres e práticas que não fugiam à
sua tradição aldeã, como descreveram os mais velhos entre os Lule, afirmando que os
espíritos “vaguean y beben como cuando vivían en este mundo” (Lozano, 1733: § XVI, fl.
96). O além chegou a ser descrito como um lugar em que “viven los muertos mejorados de
estado, en bailes, diversiones y otros ejercicios que no les causan fatiga” (Sánchez Labrador,
1770, t. 2: 53-54). Mas não havia apenas dança e canto no pós-morte: a predação também se
fazia presente. Assim como os vivos, os mortos encontravam-se em uma zona de interação
entre os seres, fazendo com que as relações de aliança e inimizade, ou presa e predador
existissem. Era, então, imprescindível que fossem tomadas precauções que possibilitassem ao
morto atuar frente a situações e seres que pudessem infringir-lhe tanto o bem como o mal. Por
isso, os mortos eram enterrados com objetos de uso cotidiano, como vasos, ferramentas e
adornos, além de suas armas:
Bien es verdad que creen son las almas inmortales y a sus difuntos los entierran
poniéndoles en la sepultura algunas viandas y sus arcos y flechas para que en la
otra busquen a costa del trabajo de sus manos, con que poder vivir y de esta
manera quedan persuadidos que no les precisará el hambre a querer volver a este
mundo (Fernández, 1726, v. 1: 58-59).

Os objetos depositados na sepultura deveriam servir ao morto como haviam lhe


servido e em vida, já que passaria por eventos semelhantes. Assim, os índios preferiam
colocar os seus pertences o mais próximo possível do local de enterramento, “pues creen que
las almas de los muertos se agitan alrededor de ellas, preparan comidas y bebidas para su
alimento sobre las tumbas” (Jolís, 1789: 315). O padre Pedro Guevara lista alguns destes
objetos: “Alrededor de la sepultura, o dentro, ponían el arco, las flechas, ollas y cascos de
calabazo, que por acá llaman mates, con alguna porción de comida y chicha” – e completa:
“El arco y las flechas, dicen unos, que son para que el alma se defienda de los acometimientos
y asaltos de sus enemigos” (1764: 30). Sendo a guerra uma realidade também para os mortos,
estes deveriam estar preparados para possíveis refregas. E assim constatou o Governador de
Tucumã Matías de Angles que, numa das expedições ao Chaco, descobriu várias covas
comuns, cada uma com seis a sete corpos, sobre as quais pousavam “todas las armas de cada

117
uno que se recogieron” – além de encontrar “anchas, cuñas, frenos, espuelas y unos pesos de
plata” enterrados junto aos mortos ([02/06/1736]: fl. 2).
Mas nem todos os grupos contentavam-se em enterrar apenas os objetos do morto,
como percebeu Dobrizhoffer, ao descrever que, além das lanças, os cavalos dos caciques ou
dos “más célebres por su fama de guerreros” são colocados na tumba de seus donos, sendo
este um costume praticado “por la mayoría de los pueblos ecuestre de Paracuaria” (1784, t. 2:
267-268; cf. também Sánchez Labrador, 1770, t. 2: 46-47). O mesmo é descrito por Cosme
Bueno em sua expedição ao Chaco: “Así, cuando mueren algunos principales entre ellos, se
hacen enterrar y que entierren con ellos el mejor perro, las armas que usaban en vida y
muchas veces su caballo, en la creencia que les han de servir para cazar en la otra vida”
([1775]: fl. 4).81
O pós-morte indígena era povoado por entidades personificadas, cujos hábitos eram
culturalmente semelhantes aos dos vivos. Por isso, os enterramentos necessitavam de todo um
aparato material e ritualístico que possibilitasse ao morto vivenciar experiências cotidianas
como um sujeito ativo em sua nova realidade – daí que para os índios era tão importante ser
enterrado à sua maneira: o padre Pedro Andreu comprovou isso ao consentir não “enterrar en
la iglesia, sino a su modo” a um Mataguayo que “se dejó bautizar en el artículo de la muerte”
([22/11/1757]: fl. 25).
Além de continuar com suas bebedeiras, danças e cantos, havia ainda a preocupação
em relação à caça e à guerra no pós-morte. A busca por alimentos ou o combate aos inimigos
que ali existissem são indícios de que o mundo dos mortos mantinha aquilo que é a pedra
angular da cosmologia sul-ameríndia: as relações sociais. Nesta lógica, a pessoa, após sua
morte, tornava-se uma nova subjetividade em uma cosmologia que, segundo a teoria do
perspectivismo, comportava quase infinitas possibilidades de pontos de vistas de naturezas
distintas – mas todas compartilhando o mesmo espectro cultural. Os mortos continuariam
praticando os rituais, as danças, os cantos, a caça e a guerra, mas em um mundo distinto
daquele em que interagiam em vida, já que o que mudava era o mundo em perspectiva, e não
a cultura. Isso porque, para a cosmologia indígena, o corpo era o recipiente ontológico que
permitia a subjetividade e, consequentemente, a pertença de um ponto de vista idiossincrático.
A teoria do Perspectivismo parte da ideia de que o corpo é entendido pelos ameríndios como

81
O jesuíta ainda relata que este costume de enterrar cavalos junto aos mortos existia também entre os índios
patagônicos. Os Charrua também levavam para a sepultura suas armas e objetos como vasilhas e jarras, além de,
em alguns casos, os cavalos serem mortos e enterrados junto aos donos (Azara, 1809: 17). E esse costume parece
ter sido difundido em grande parte da América meridional, existindo um relato do descobrimento de uma
sepultura em que o cadáver havia sido enterrado com suas armas e quatro cachorros (id. ibid.: 40-41).

118
o operador distintivo do holismo anímico, sendo o lugar em que cada ser reserva as
peculiaridades de sua espécie:
Os animais veem da mesma forma que nós coisas diversas do que vemos porque
seus corpos são diferentes dos nossos. Não estou me referindo a diferenças de
fisiologia – quanto a isso, as ameríndios reconhecem uma uniformidade básica
dos corpos –, mas aos afetos, afecções ou capacidades que singularizam cada
espécie de corpo: o que ele come, como se move, como se comunica, onde vive,
se é gregário ou solitário... A morfologia corporal é um signo poderoso dessas
diferenças de afecção, embora possa ser enganadora, pois uma figura de humano,
por exemplo, pode estar ocultando uma afecção-jaguar. O que estou chamando
de corpo, portanto, não e sinônimo de fisiologia distintiva ou de anatomia
característica; é um conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um
habitus (Viveiros de Castro, 2002a: 380, grifos no original).

Se a consciência e a cultura humanas partiam da alma – e as pessoas, animais, plantas,


entidades sobrenaturais e até astros possuíam-na em semelhança –, então era no corpo que as
diferenças moravam.82 Daí os mortos terem os mesmos hábitos que os vivos, mas em um
mundo à parte, próprio de sua nova condição, em que a matéria havia se alterado, e não a
substância: “A distinção fundamental entre os vivos e os mortos passa pelo corpo e não,
precisamente, pelo espírito; a morte é uma catástrofe corporal que prevalece como
diferenciador sobre a comum ‘animação’ dos vivos e dos mortos” (Viveiros de Castro, 2002a:
395). Sendo assim, quando uma pessoa morria, a carne apodrecia e os ossos entravam em
decomposição, alterando a sua condição corporal e afetando sua perspectiva: o morto ainda
mantinha sua condição humana, mas seu corpo já não era o mesmo.
Por isso, a morte era um momento delicado para os índios, em que a participação dos
parentes se fazia fundamental, tanto para o fornecimento dos objetos que o morto iria utilizar
no pós-morte, quanto para a própria tribo, que precisava reconhecer e reafirmar o defunto
como tal. Tanto os rituais junto à sepultura, como o luto prestado pelos membros do grupo
tinham como objetivo distinguir o morto dos vivos, numa ação preventiva ao bem estar da
tribo. O pranteamento e os rituais de luto eram antes o estabelecimento de posições, do que a
formalização de uma memória ao morto:
As práticas de luto de muitos povos tribais pretendem invocar e universalizar o
sofrimento da morte individual. Elas “inventam” a morte como morte, por assim
dizer. Mas a necessidade sob a qual operam é a de diferenciar os mortos dos

82
A concepção de uma alma prévia ao corpo, que é fabricado, ainda persiste no entendimento dos Toba
contemporâneos. De acordo com Florencia Tola, os índios identificam a essência lqui’i como a pessoa virtual,
que já existe previamente no céu, e desce até o ventre da mulher onde vai tornar-se corpo após as constantes
relações sexuais – gerando, assim, a pessoa potencial. Tola conclui que a pessoa indígena, por ser um “lqui’i
corporizado”, nunca acaba de construir seu corpo, justamente porque esta essência não é privilégio dos índios:
“O lqui’i permite tanto aos humanos quanto aos não-humanos (espíritos xamânicos, mortos, mestres das espécies
etc.) a capacidade reflexiva, a intencionalidade, a comunicação, assim como a percepção visual” (2007: 505,
grifo no original). Daí decorre que “a ausência do corpo não é uma limitação para pensar a existência humana”
(id. ibid.: 504).

119
vivos, inventando a morte explicitamente para que ela não seja contrainventada
implicitamente como seu próprio estado existência (Wagner, 1975: 150).

Buscava-se, assim, comunicar ao morto sua nova condição, evitando que a alma viesse
a atormentar as pessoas – “no visiblemente tratando y comunicando con los vivos, sino
invisiblemente tratando y comunicando, jugueteando como duendes” (Guevara, 1764: 32).
Havia ainda o grande temor de que a alma do morto, desorientada ou raivosa, invadisse o
corpo de um dos membros do grupo, causando-lhe o mal ou controlando o corpo invadido, e
ferisse ou matasse alguém contra a vontade do hospedeiro.83
Não é coincidência, portanto, que o luto geralmente envolvesse prevenções físicas.
Entre os Guaicuru, a morte de um membro levava seus parentes a absterem-se de comer peixe
e pintar seus corpos por um tempo, além de todos integrantes da tribo terem de mudar seus
nomes (Lozano, 1733: § X, fl. 69-70). Costume este que não era difundido entre todos os
Abipone, mas reservado somente aos parentes do principal: “No todos los bárbaros que eran
sus súbditos, cambian su nombre por otro a la muerte del cacique, sino sólo los parientes del
muerto” (Jolís, 1789: 288) – assim como a abstinência alimentar, que era realizada pelas
mulheres, considerando o grau de proximidade parental:
La mujer del muerto se cubre la cabeza y se abstiene de alimentarse de carne o
de peces. Las otras mujeres se abstienen también del mismo modo en la muerte
de su cacique, pero sólo por un tiempo, ya no por un año entero como es
costumbre para la consorte (Jolís, 1789: 288).

Havia, ainda, o costume entre os Lule (Lozano, 1733: § XVII, fl. 101) e os Mocovi
(Guevara, 1764: 30; e Paucke, 1767, t. 2: 238) de os parentes cortarem o próprio cabelo logo
após o enterro.84 Tanto a cerimônia funerária como o luto visavam marcar a morte como uma

83
Segundo Alfred Métraux, os Tupinambá evitavam aproximar-se de tumbas receando que as almas lhes
atormentassem, podendo vir-lhes a causar doenças ou o fracasso na guerra, ou ainda “apoderando-se das próprias
pessoas, batiam-nas e atormentavam-nas de mil maneiras” (1979: 56). O mesmo podia ocorrer com a morte
indevida de um animal, cuja alma, semelhante a dos índios, vingativa, “era perigosa por si mesmo depois da
separação do corpo” (id. ibid.: 150-151). Os Guarani também tinham medo do potencial perigo que as almas dos
animais podiam causar-lhes (Susnik, 1985: 58). Dobrizhoffer conta que, durante uma cura xamânica entre os
Chiquito, o curandeiro procura saber se o doente alimentou cachorros com a carne de algum animal de caça.
Caso confirme-se, conclui o médico: “El alma de aquel animal ha entrado en tu cuerpo para vengar la injuria y te
atormenta; éste es el origen del dolor que sientes”. Começavam, assim, os procedimentos de cura para que a
alma do animal injuriado abandonasse o corpo da sua vítima (1784, t. 2: 260-261). Já para os Guaicuru, os
espíritos poderiam ser bons ou maus: assim como temiam que “las almas de los buenos ya muertos entren en sus
cuerpos”, diziam que “las de los malos y malhechores pasan a los cuerpos de las fieras” (Jolís, 1789: 315).
84
Entre os índios pampianos, o luto se mostrava mais rigoroso em relação ao corpo: os observadores
hispanófonos notaram o costume da mutilação entre as viúvas e alguns parentes mais próximos do morto, que,
com a confirmação do falecimento, cortavam um dos seus próprios dedos – ou o pedaço, a partir da falange:
“Los antiguos Charrúas en la muerte de sus parientes se cortaban un artejo de los dedos, sucediendo a veces, que
en edad provecta carecían de falanges, y se inhabilitaban para el ejercicio de las armas” (Guevara, 1764: 30;
também em Lozano, 1754: 408 e Azara, 1809: 17). Paucke afirma que o costume era tão difundido entra as
viúvas charrua que “quien quiere saber cuántos maridos se les han muerto, puede conocerlo por las faltantes
falanges de sus dedos” (1767, t. 2: 238). Essa prática também foi verificada entre os índios Pampa (Lozano,

120
nova condição do indivíduo, que, desprovido do corpo que as pessoas possuem, passava a ser
um “sujeito outro” – “no sentido de outro que o sujeito” (Viveiros de Castro, 2002b: 117) –,
pois foi sua subjetividade que se alterou com a morte do corpo, não cessando sua existência.85
Ora, se a cosmologia indígena admitia uma gama incontável de seres e entidades que se
igualavam pela posse de uma alma, o corpo, em contrapartida, era “a sede da diferença entre
os entes” (Tola, 2007: 512) – e por isso, frente à morte, os vivos deveriam exibi-lo por meio
de prevenções ou modificações físicas, reafirmando sua subjetividade em contraponto à do
defunto.86
A modificação do corpo em cerimônias foi – e é – difundida entre vários grupos sul-
ameríndios, fundamentando-se em “uma ordenação da vida social a partir de uma linguagem
do corpo”, em que a “couvade, os resguardos por doença ou morte, as reclusões, o luto –
todos estes momentos acionam o corpo segundo regras estruturais bastante consistentes e
recorrentes” (Seeger et al., 1979: 22, grifo no original). Mas estes costumes não tinham o
objetivo único de servir como resposta às inquietudes da vida e da morte: as modificações
corporais eram um expediente sociológico empregado por grupos que entendiam o corpo
como a representação da individualidade da espécie – e, por isso, marcado pela incompletude.
O corpo era o lugar das transformações, onde se operavam alterações (perfurações,
escoriações, pinturas e tatuagens, cortes do cabelo e dos pelos) e inserções (por meio da
ingestão de partes do inimigo) que visavam singularizá-lo dentro de um contexto social e em
contraste com a diversidade corporal dos outros:
Además, aun si el cuerpo no es la condición suficiente de la existencia de la
persona humana en la medida que otros tipos de persona poseen un cuerpo, la
persona humana existe como tal y se diferencia de las otras personas por el
tratamiento gradual y colectivo llevado a cabo sobre su cuerpo (Tola, 2005: 110).

1754: 431) e os Minuano (Azara, 1809: 22). Azara também descreve o costume entre os Charrua (id. ibid.: 17-
19) e entre os Minuano (id. ibid.: 22) de os parentes mais próximos do defunto atravessarem a carne de seus
braços e pernas com bambus, espinhas de peixes ou mesmo a lança usada pelo morto. “Con este triste y
espantoso aparato sale el salvaje que está de duelo, y se va solo y desnudo a un bosque o a cualquier altura, sin
temer al jaguareté ni a los otros animales feroces porque están persuadidos de que huirán viéndolos ataviados de
tal modo” (id. ibid.: 18), evidenciando que o luto era, acima de tudo, uma exposição do corpo.
85
É importante esclarecer que, na cosmologia ameríndia, os conceitos de pessoa e corpo sofrem um
entendimento diverso daquele que lhes atribuímos, muito em função da operatividade que estes possuem no
meio social em que estão incluídos. Ao longo do texto buscarei especificar o significado e importância que estes
conceitos revelam no sistema indígena. Para tal, apoiarei-me, entre outros, nos estudos de campo realizados por
Florencia Tola (2005, 2007), que afirma que, entre os Toba contemporâneos, “o que chamamos de corpo e
pessoa são concebidos e vividos por gente que não tem uma noção restrita de pessoa e que, portanto, não limita a
condição de pessoa à pessoa humana; para quem a pessoa não termina nos limites impostos pelo corpo e para
quem este último não constitui uma fronteira entre os seres existentes” (id., 2007: 499).
86
“Daí todo um cuidado ritual importante para manter clara a humanidade dos homens, visto que ela é uma
propriedade que não nos distingue de uma maneira muito nítida das demais espécies, não nos garante
automaticamente nenhuma superioridade metafísica evidente” (Viveiros de Castro, 2006: 110).

121
As outras pessoas a que se refere a autora, em contraposição à pessoa humana, são os
demais seres cujo corpo é distinto daquele que os índios possuem. É neste sentido que a
interação que os nativos mantinham com o seu corpo objetivava uma maneira de diferenciá-
lo, carregando-o de características próprias de um grupo que se reconheceria como tal pelas
associações visuais e ritualísticas. Porém, quando os ameríndios pintavam ou perfuravam sua
carne, não visavam à personalização do corpo, mas sim à da pessoa: é o que Tola identifica
como o processo em que o índio “se corporifica ou se ‘torna corpo’” (2007: 502),
diferenciando-se de outrem. Os Payaguá afirmavam que o costume de arrancar os pelos do
corpo e do rosto (cílios, sobrancelhas e barba, no caso dos meninos), desde o nascimento da
criança e estendendo-se pelo resto de sua vida, tinha como objetivo distingui-los: “dicen que
no son animales y que los hombres y mujeres no deben sufrir otro pelo que el de la cabeza”
(Azara [1793]: fl. 232v). Lozano percebeu a mesma preocupação entre os Guaicuru, que
arrancavam todos os pelos do corpo, “sin perdonar aun a las cejas ni a las pestañas”, pois
assim “no quedan parecidos a los avestruces, como ellos dicen, parecen los españoles”
(Lozano, 1733: § IX, fl. 64). Sánchez Labrador notou que este costume era difundido entre os
chaquenhos, que chegavam a passar “mañanas y tardes enteras” (1770, t. 1: 246) dedicando-se
a eliminar todos seus pelos.
As modificações corporais produzidas pelos índios não visavam apenas a ressaltar as
distinções físicas ou estéticas de seus corpos, mas também as suas qualidades capacitivas.
Anthony Seeger, em sua análise sobre os Suyá do Brasil central, elabora uma interessante
relação entre o significado e importância que os índios atribuem a determinados sentidos e o
uso de ornamentação nos órgãos referentes. Assim, afirma o antropólogo, o “ornamento das
orelhas e da boca pode perfeitamente indicar a importância simbólica da audição e da fala na
medida em que essas faculdades são definidas por uma sociedade especifica” (Seeger, 1980:
45).
No Chaco, ainda que cada grupo indígena tenha mantido peculiaridades e distinções
próprias de seu sistema social, percebe-se um padrão geral nas intervenções corporais
realizadas pelos nativos. Os observadores que atuaram na região e mostraram-se mais
interessados em descrever os costumes e práticas autóctones foram, como já se sabe, os
jesuítas, que parecem ser unânimes em seus registros sobre o uso de adornos labial e auricular
entre os índios, além das difundidas práticas ligadas à pintura corporal e ao corte do cabelo e
dos demais pelos. A ornamentação nasal e as escarificações parecem ter sido práticas de
modificação corporal restritas a determinados grupos. O padre Lozano descreve o uso de uma
pena no nariz perfurado entre os Guaicuru, acrescentando que se poderia substituí-la por “una

122
planchilla de plata muy resplandeciente” (1733: § IX, fl. 65). Já os Mbayá (Jolís, 1789: 313) e
os Payaguá (Paucke, 1767, t. 2: 45) provocavam incisões com pontas de flechas ou espinhos
em várias partes do corpo, inclusive no rosto, a fim de criarem cicatrizes (Jolís, 1789: 313).
Ainda assim, os costumes de pintar o corpo e cortar o cabelo de alguma forma específica
podem ser tomados como práticas de modificação corporal generalizada entre os chaquenhos,
bem como o uso de adornos nos lábios e orelhas perfurados. Os adornos auriculares, que
chegaram a ser identificados como “cosa de galantería” (Lozano, 1733: § IX, fl. 65),
consistiam em argolas ou tocos cilíndricos de madeira atravessados nos lóbulos, em alguns
casos desde o nascimento, “poniendo toda la vida cada vez palos y roldanas más gruesas”
(Azara [1793]: fl. 250).
Os cortes de cabelo e as pinturas faciais e corporais obedeciam a um padrão de
distinção interna no grupo, separando os homens das mulheres, as crianças dos adultos e os
guerreiros dos demais membros – fazendo com que o indivíduo fosse “projetado para o palco
social por seu figurino” (Lévi-Strauss, 1958: 286). Alguns grupos, como os já citados acima,
raspavam todos os pelos da cabeça e do corpo; outros cortavam apenas uma faixa vertical do
cabelo que ia da testa até o alto da cabeça, deixando o restante crescer com liberdade – prática
muito comum entre os Toba, os Mocovi e os Abipone, que, por causa deste corte, eram
denominados frentones pelos espanhóis, já que suas testas pareciam mais amplas que as dos
demais índios (Jolís, 1789: 285-286). Estes grupos que deixavam algum cabelo, costumavam
pintá-lo, como os Payaguá, que untavam “sus cabellos con un jugo rojo que tiene aspecto de
sangre de toro y así los tornan relucientes” – pintando também todo o corpo, “desde la cabeza
hasta el talón con colores variados” (Dobrizhoffer, 1784, t. 1: 212).
Apesar de as pinturas corporais e faciais serem difundidas entre praticamente todos os
grupos ameríndios, as descrições que correspondem aos chaquenhos são pouco detalhadas em
relação às cores utilizadas e aos motivos desenhados – e mesmo um narrador detalhista como
foi Félix de Azara preferiu não se ocupar nesta tarefa: “Se trazan en la cara y el cuerpo
dibujos imposibles de describir” (1809: 68). Frente a esta ausência, resta registrar que as
pinturas distinguiam os homens das mulheres – como no caso dos Mocovi, em que os
homens, “en lugar de las pinturas o dibujos que las mujeres tienen sobre su pecho y ambas
piernas”, perfuravam o peito e os braços com o espinho da cauda da raia, tatuando-se (Paucke,
1767, t. 2: 142) – e que, em época de guerra, os índios realçavam a pintura corporal,
“creyendo que así se hacen formidables a sus enemigos, y sirviéndose de la fealdad para la
fiereza” (Lozano, 1733: § VII, fl. 54).

123
Já a ornamentação labial, o tembetá, suscitou descrições mais detalhadas por parte dos
observadores. Segundo Dobrizhoffer, os Payaguá “colocan en el labio inferior que perforan,
una larga varilla de madera o de metal reluciente que les llega hasta el pecho” (1784, t. 1:
212) que parece ser o modelo geral usado entre os chaquenhos (Lozano, 1733: § IX, fl. 65). O
adorno labial lengua, por sua vez, diferenciava-se dos demais: consistia em um “perfecto
semicírculo de 18 líneas de diámetro hecho de una tablita delgada, cuyo diámetro introducen
en una cortadura horizontal, que tiene el labio inferior atravesándolo hasta la base de los
dientes” (Azara, 1790: 391). Assim, ao invés de ser um adorno atravessado no lábio e
pendente perpendicularmente ao queixo, o tembetá dos Lengua imitava uma saliência do
próprio lábio, que era alargada com o passar dos anos – segundo Azara, foi devido à
impressão de que era a língua do índio que estava escapando da boca que os espanhóis
passaram a chamá-los de Lenguas (id. ibid.; e idem [1793]: fl. 250-250v). Em geral, as
descrições sobre o tembetá justificam o seu uso pelo aspecto visual que os índios adquiriam,
“no para ser bellos sino para hacerse terroríficos ante los otros” (Paucke, 1767, t. 2: 142).
Mas, para além disso, o padre Sánchez Labrador identificou que o adorno labial
possibilitava aos Guaicuru comunicarem-se através de assobios que imitavam o som de
algumas aves: “Sírveles mucho para avisarse, conocerse y llamarse en las expediciones contra
sus enemigos”, concluindo que já estavam tão práticos nisto que “al oírlos conocen la
distancia en que unos de otros se hallan y se comunican las ideas por su medio” (1770, t. 2:
10-11).87 O adorno labial, bem como as demais ornamentações ou modificações do corpo, não
se justificavam por questões estéticas. Estavam associados à importância de marcar uma
distinção interna ao grupo – como a passagem do tempo ou a diferenciação entre homens e
mulheres –, ressaltando qualidades ou aptidões próprias de uma categoria. Ou ainda
reforçavam a condição do grupo enquanto espécie distinta das demais.
De qualquer forma, a escolha por determinados órgãos ou regiões do corpo para sofrer
adaptações ou acréscimos de adornos não era arbitrária: estes estavam associados a
determinadas funções que cumpriam faculdades específicas – e cada uma dessas faculdades
também estava associada “com certos tipos de ser humano ou animal e com certos tipos de
comportamento” (Seeger, 1980: 51). Os ameríndios partiam do pressuposto de que cada ser
possuía propriedades capacitivas sensitivas ou motoras específicas decorrentes de alguma

87
Já para o padre José Jolís, a melhor explicação era de ordem prática: “Los hombres con perforarse el labio
inferior, donde llevan el Tembetá o sea un pedacito de madera o metal a la manera de los Chiriguanos, creen
acrecentar gracia y belleza a la conseguida con los nombrados colores; pero no sé si también la alcanzan con tal
medio. Lo que por cierto consiguen (cuando no se la destapan como hacen algunos para comer con más
comodidad y sin obstáculo), es evitar la salida de las bebidas por la apertura artificial que queda cerrada por el
Tembetá” (1789: 313).

124
característica corporal idiossincrática. Assim como as penas davam às aves a capacidade de
voar, os desenhos na pele das onças conferiam a estas feras a bravura para a caça. Eram
atributos que não estavam associados à espécie em si, mas ao seu corpo e ao uso que lhe era
dado. Os índios concluíam que a plumagem, o couro, as escamas, a pele, enfim, eram antes
instrumentos que serviam às aptidões sensoriais ou motoras do que aspecto estético:
Quando você veste uma roupa de mergulho, não é para se fantasiar de peixe, é
para poder respirar debaixo d’água. A idéia deles é que quando os homens-onças
colocam a sua roupa de onça, se tornam capazes de realizar o que uma onça
realiza, dar saltos de tal distância, matar tais e tais animais (Viveiros de Castro,
2006: 112).

No Chaco, a caça providenciava aos índios não apenas o seu abastecimento proteico,
como também peças instrumentais que viriam a ornamentar seus corpos. Após matar um
veado, os índios procuravam esfolar o seu couro que, ao ser vestido, protegeria-os das picadas
de cobras, pois estes animais “pelean con casi todas las serpientes que les salen al encuentro”
(Dobrizhoffer, 1784, t. 1: 381-382). A mesma eficácia era notada em relação aos dentes de
crocodilos, que, levados num cordel atado ao braço, serviam como um meio “preservativo o
curativo contra las mordeduras de las serpientes” (id. ibid.: 393-394). Os Mbayá, por
atribuírem sua ascendência mítica ao pássaro caracará – como já exposto no primeiro capítulo
–, usavam penas de aves como adornos (Sánchez Labrador, 1770, t. 2: 50) – costume,
segundo o padre Lozano, difundido entre os chaquenhos, que usavam “por la cintura una
cuerda de que penden alrededor muchas plumas de varios colores”; alguns também usavam
“una corona de plumas en la cabeza” (1733: § VII, fl. 55). Já a onça, fera que inspirava
simultaneamente medo e coragem aos índios, tinha reservada a sua pele o uso como “unas
zamarras o jaquetillas que se ponen principalmente cuando van a la guerra, porque creen que
el coraje del animal muerto en la piel se le comunica al que la lleva” (Sánchez Labrador,
1770, t. 1: 189).88 Os Mbayá iam mais longe: perfuravam os braços, costas e panturrilhas com
ossos afiados destes animais, a fim de se fazerem mais resistentes à penetração de lanças e
flechas (idem, 1770, t. 2: 21).
Essa modelagem da pessoa de acordo com esquemas específicos, elementares ou
categóricos tem consequências não apenas físicas, mas também psicológicas.
Uma sociedade que define seus segmentos em função do alto e do baixo, do céu
e da terra, do dia e da noite pode englobar na mesma estrutura de oposição
modos de ser sociais ou morais: conciliação e agressão, paz e guerra, justiça e
política, bem e mal, ordem e desordem etc. Por isso ela não se limita a
contemplar no abstrato um sistema de correspondências; ela fornece um

88
Além disso, a carne de onça era motivo de socialização entre os membros do grupo e seus aliados, “porque
dicen que con las carnes de esta fiera se les infunden bríos y valentía” (Lozano, 1733: § XV, fl. 90). Entre os
Chiriguano, por exemplo, os meninos, para se converterem em homens, tinham que caçar sua primeira onça e
comer “el corazón crudo del animal y adquirir así el corajú de éste o el coraje” (Cruz Sánchez, 1998: 302, grifo
no original).

125
pretexto aos membros individuais desses segmentos para se singularizarem
através de comportamentos e às vezes incita-os a isso (Lévi-Strauss, 1962: 199,
grifo meu).

Evidencia-se, na documentação, que os índios do Chaco dedicavam grande parte de


sua vida atuando sobre seu corpo, em práticas que podem ser compreendidas como o esforço
empreendido na busca por completá-lo. As interdições alimentares durante e após o parto, os
rituais prestados pelos jovens para avançar à fase adulta, bem como as incisões na carne ao
longo da vida ou aquelas específicas para a guerra e a caça e todas as demais intervenções
realizadas em sua estrutura, fazem com que o corpo não seja pensando “sob o modo do fato,
mas do feito (Viveiros de Castro, 2002a: 390, grifo no original). Dito de outra forma, o corpo
não pertencia à ordem do dado, mas sim do artificial: o nascimento não prefigurava a sua
completude, resultando que o índio deveria construí-lo ao longo de sua vida – sob o risco de
não se formar enquanto subjetividade. O corpo “afirmado ou negado, pintado e perfurado,
resguardado ou devorado” era, acima de tudo, uma forma de construção da pessoa (Seeger et
al., 1979: 13).
Diferentemente do conceito ocidental moderno, em que ser humano é uma condição
associada a características fisiológicas e racionais que pré-concebem uma individualidade
anterior ao próprio ser, o sistema chaquenho – que pode ser estendido aos nativos da América
do Sul – entendia-o como uma construção motivada por ações sociais contínuas,
intermináveis e conscientes. Se praticamente todos os seres – e até algumas entidades – eram
humanos em sua essência, então ser humano (pessoa) era uma posição relacional que deveria
ser muito bem marcada pelas distinções idiossincráticas – caso contrário, um índio na mata,
caçando, poderia muito bem ser confundido com alguma presa.89 Sobre a Amazônia, Descola
afirma que o referencial “às entidades que povoam o mundo não é o homem enquanto
espécie, mas a humanidade enquanto condição” (1998: 28). No Chaco não parecia ser muito
distinto, já que a pessoa deveria passar por remodelações físicas que lhe fabricaram enquanto
tal: o ser estaria no nível do construído, e não do inato. Em outras palavras, para os nativos
nenhum índio nascia já índio – ou melhor, nenhum Mocovi nascia já Mocovi; nenhum
Mataguayo nascia já Mataguayo; nenhum Lule nascia já Lule.

89
Um exemplo bastante ilustrativo disto foi um caso relatado pelo padre Pedro Romero, na Carta Ânua de 1633,
em que conta a morte acidental de uma índia que fora flechada por seu marido e seus filhos ao confundirem-na
com um animal enquanto caçavam. A mulher, preocupada com um dos seus filhos, vai até o monte em que eles
estavam e, ao aproximar-se, é alvejada mortalmente por terem confundido-a com uma anta (em Baptista, 2004:
cap. 3 encontramos uma excelente análise deste caso, sob a luz do Perspectivismo Ameríndio de Viveiros de
Castro).

126
A humanidade era uma condição universal; já o ser, uma construção. E era exatamente
isto que pretendiam os Payaguá ao aprisionarem um indiozinho de 10 anos de idade que
pertencia à outra etnia. Após ser feito cativo de guerra durante um ataque indígena ao
povoado em que vivia, o garoto permaneceu entre os Payaguá até conseguir escapar durante
uma bebedeira dos índios e retornar a sua casa. Contou aos padres que “el motivo de su huida
era el miedo de que le perforasen su labio inferior y las orejas, como ellos acostumbran hacer
con los suyos” (CA, 1735-1743: 418). As modificações que pretendiam fazer no menino eram
muito mais profundas que as perfurações em sua carne: ao adaptarem seus ornamentos no
garoto, eles estariam colocando em prática o processo de construção da pessoa – momento
pelo qual todo e qualquer índio deveria passar em sua vida. Como um ritual de passagem, as
crianças e jovens eram submetidos a uma transformação em seus corpos que resultaria na sua
internalização no grupo como membro cognático de fato. Isto é, ainda que uma criança
nascesse na aldeia, de pais que ali vivessem, ela só seria verdadeiramente um integrante do
grupo após passar por rituais que a reconheceriam como um parente. Antes disto, sua
condição era idêntica a de qualquer outra pessoa que fosse de fora, ou seja, a relação
estabelecida com a criança era a afinidade – entendendo-a como um valor preestabelecido, ao
contrário da consanguinidade como a relação a ser construída: “a afinidade predomina sobre a
consanguinidade como princípio relacional” (Viveiros de Castro, 2002a: 411, grifo no
original).
Entre os Guaicuru, as crianças recém-nascidas de ambos os sexos têm suas orelhas
furadas, seu cabelo é cortado de acordo com especificidades de cada gênero e, durante a
infância, é costume “embijarse de negro todas las mañanas hasta que creciendo suben al grado
de jóvenes”. A partir desta fase passam a usar braceletes e cordas na cintura, além de pintarem
o corpo de maneira característicamente adulta (Lozano, 1733: § IX, fl. 63-64). O padre
Lozano também informa que a perfuração e inserção do tembetá no lábio inferior das crianças
eram acompanhadas de uma renomiação dos pequenos, que deixariam para trás seus antigos
nomes, adquirindo novos (id. ibid.: § X, fl. 68).90 Já os Mbayá, desde criança, deviam
acostumar-se com as perfurações em seus corpos, “porque quieren desde esa edad dar señales
de su ánimo valeroso y del coraje que debe distinguirlos en adelante” (Jolís, 1789: 314). Estes

90
Entre os grupos sul-ameríndios era frequente a mudança de nome dos membros de um grupo em determinados
eventos festivos ou situações cerimoniais ligadas à reestruturação da pessoa. O nome era antes uma extensão do
sujeito do que um título identificatório (Tola, 2007: 510), não podendo, portanto, ser vitalício: ele mudava
conforme as mudanças que a pessoa ia sofrendo em sua construção como tal. Entre os Guarani, por exemplo,
uma doença que afetasse um indivíduo ou qualquer crise que lhe sobreviesse eram interpretadas como um
descompasso entre o nome e a pessoa – um “desapego del nombre, de donde deriva la importancia del rito de
imposición del nombre y los rebautismos en caso de enfermedades y de otros problemas” (Chamorro, 1995: 73).

127
rituais marcavam não só o início de uma nova fase etária da pessoa, mas também aprovavam a
sua internalização no grupo como membro efetivo – um parente consanguinizado, que teve de
ter sua condição fabricada e aceita pelos demais. Isto explica, em grande parte, porque os
relatos setecentistas estão repletos de casos narrando o aprisionamento de inimigos pelos
índios vitoriosos na guerra:
[…] porque todos los años sin falta han de mover guerra contra alguna nación de
indios (fuera de la declarada que siempre tienen contra los españoles) la cual
hacen con bárbara crueldad, matando en el primer encuentro a cuantos pueden
haber a las manos, excepto los muchachos que reservan para criarlos conforme a
sus costumbres y aumentar así su nación casándolos con sus hijas (Lozano,
1733: § IX, fl. 67).

Ao grupo vencedor interessava capturar pessoas e levá-las à sua aldeia como cativos
de guerra, porém sem a intenção de mantê-los prisioneiros ou fazer deles escravos. Os
observadores hispanófonos notaram que os índios, mesmo nos ataques mais violentos,
preservavam a vida de alguns inimigos, em especial das crianças e das mulheres. Estes eram
levados para a tribo dos seus captores a fim de, futuramente, serem adotados como membros
cognáticos. Assim, na guerra, “acaban cruelmente con todos; menos con la tierna edad, a la
cual educan a su manera, y con las mujeres más parecidas y jóvenes, a las cuales conservan
para servirse de ellas en su inmoralidad” (CA, 1730-1735: 4). O padre Sánchez Labrador
também constatou que os Guaicuru preferiam que alguns inimigos ficassem vivos depois de
um ataque bem sucedido, principalmente as crianças – “Aunque sean de pecho se los llevan y
hacen criar según sus bárbaros ritos y modales” –, resultando que muitas crianças de outras
etnias –, e mesmo filhos de colonos de cidades como Assunção –, já estavam vivendo há
muito tempo entre os Guaicuru. O jesuíta finaliza informando que as mulheres também eram
alvo de apresamentos (Sánchez Labrador, 1770, t. 1: 311).
Pela frequência com que aparece na documentação setecentista e por sua difusão entre
praticamente todos os grupos chaquenhos, a prática do apresamento de cativos de guerra
parece ter sido fundamental para a sociologia nativa, que, mesmo tendo renunciado a
costumes como a antropofagia, não deixou de apresar inimigos. O padre Lozano escreve que
os Chiriguano já haviam perdido o costume de comer carne humana, mas não o de
“conquistar y cautivas a sus comarcanos”, principalmente as mulheres (1733: § VIII, fl. 58;
cf. também Jolís, 1789: 256).91

91
Muitas vezes, ao longo da documentação, as referências aos apresamentos de cativos aparecem apenas como
um registro contábil, sem maiores informações qualitativas, servindo somente como dados estatísticos.
Geralmente estão associados ao número de mortos resultante do ataque inflingido pelos inimigos, como no relato
da invasão de índios Payaguá, em 1735, a uma redução jesuítica do rio Paraná que, “siendo el número de los
muertos, en cuanto se pudo averiguar, unos 88, el de los cautivos, incluyendo las mujeres y los párvulos, a lo

128
Este tipo de relato é bastante recorrente na documentação analisada, ressaltando-se,
inclusive, que os apresamentos que objetivavam o cativeiro restringiam-se às crianças de
ambos os sexos e às mulheres jovens ou adultas. Diferente da antropofagia ou de qualquer
outra interação predatória que se tinha em relação ao inimigo – como a escalpelação ou a
captação de cabeças-troféus –, o apresamento que visava à internalização do cativo como
membro cognático tinha restrições etárias e de gênero: a adoção, por assim dizer, era um
expediente que não admitia homens adultos. O motivo que justificava esta restrição encontra-
se na mitologia. Como mostrei no final do capítulo anterior, os mitos de origem chaquenhos,
além de pontuarem uma origem comum entre homens e animais – sendo estes provenientes
daqueles –, faziam uma distinção entre o sexo masculino e o feminino, na medida em que as
mulheres eram consideradas, socialmente, estrangeiras. A mitologia explicava de que maneira
elas haviam aparecido e como foram internalizadas no grupo dos homens, passando a
conviver juntos. Assim, o apresamento de mulheres explicava-se não só mitologicamente,
como sociologicamente: a reprodução do grupo passava pela comunhão carnal entre o homem
e a mulher, cabendo a ambos a importância da fecundação do feto.
Nos casos em que se levavam cativas para a aldeia, os índios estavam colocando em
prática um costume que a mitologia lhes assentia – sem, com isso, impedir-se as relações
conjugais endogâmicas (aquelas entre mulheres e homens da mesma aldeia, não-incestuosas).
Sánchez Labrador notou que, entre os Guaicuru, nada lhes obrigava a “casarse con los de su
nación misma” (1770, t. 2: 28), e que os Chiriguano tinham preferência por mulheres cujo
parentesco não fosse muito próximo: “procuran que sean ellas de la más remota parentela o de
sangre extranjera” (Jolís, 1789: 256-257). E até mesmo os Abipone da redução de San
Jerónimo permaneceram praticando o apresamento de mulheres e a sua internalização no
grupo, como evidencia um relato sobre o assalto cometido por índios não-reduzidos à estância
deste povoado em janeiro de 1802, em que seis Abipone (quatro homens e duas mulheres)
foram mortos e uma índia Mocovi com seu filho, além de outro garoto, foram levados pelos

menos unos 60” (CA, 1735-1743: 407); ou como o ataque dos Mbayá a uma estância, em 1763, em que os
invasores mataram o padre Antonio Guasp, “pasaron a ensuciarse las manos en la sangre de los neófitos y
condujeron consigo en servidumbre a seis mujeres, nueve muchachas y seis muchachos” (Jolís, 1789: 308). O
número de mortos e cativos aprisionados ainda poderia ser elencado junto ao de bens roubados pelos invasores:
“A 8 de septiembre de 1748 en nuestra estancia de San Joseph que está hacia el Paraná mataron los Mocobíes
dos indios estancieros, tres mujeres y una criatura; y se llevaron un muchacho, tres muchachas, 87 caballos y 76
yeguas” (Tata [26/02/1758]); ou, como na carta do Tenente de Governador José Barbosa sobre o ataque mocovi
a três postos pertencentes ao povoado de Santa María de Fe, que resultou na morte de “trece entre indios, indias
y dos criaturas”, além de “haberse llevado tres muchachos y tres muchachas, como también todo el ganado de
uno de los dichos tres puestos nombrado San Antonio” ([10/11/1770]: fl. 1). Não acredito que esta maneira de
informar os dados, muito difundida na documentação mais cotidiana, tenha sido um menosprezo da importância
dos fatos: era, ao que me parece, uma maneira expressiva de denunciar os sucessivos ataques cometidos pelos
grupos indígenas, enunciando objetivamente os estragos resultantes.

129
invasores (Interior [1802]). Mas, se o apresamento e a internalização das mulheres
encontravam respaldo na mitologia, o que justificava estas mesmas práticas em relação às
crianças de ambos os sexos? A resposta encontra-se no corpo.
Os índios entendiam que o seu ser – o espírito mais o corpo – não formava uma
unidade indivisível e mônada. No âmbito social, os corpos moldados e modificados
preveniam a homogeneidade entre as distintas espécies, garantindo a identidade de um
coletivo frente a outro. Porém, no âmbito individual, os índios atribuíam à pessoa um
compósito de elementos internos e externos, que a definiam como “uma pluralidade de níveis,
estruturados internamente” (Seeger et al., 1979: 22). A isto, José Antonio Kelly (2001)
chamou de fractalidade, entendendo que a pessoa, para os ameríndios, é uma reunião de
substâncias e elementos de outrem, que lhe foram sendo somados desde sua gestação e
geridos em seu corpo, formando assim sua composição pessoal – resumida pelo autor como
sendo a dualidade “Eu/Outro”:
A natureza relacional do divisor canônico Eu/Outro, juntamente com as
passagens de Outro a Eu que têm que ocorrer devido à necessidade do exterior
para a reprodução social, permitem-nos avançar a sugestão analítica de que,
capazes de tomar as posições de Eu e de Outro, pessoas são constituídas como
relacionalmente duais. Dessa maneira, podem ser vistas como compósitos de
Eu/Outro – ou nós/inimigos, consangüíneo/afim, predador/presa, e assim por
diante. Uma segunda derivação analítica, tomando emprestado de M. Strathern, é
que a pessoa é divisível: em certos contextos, sua integridade pode ser rompida
(ainda que por extração forçada). É em virtude dessas duas condições –
dualidade e divisibilidade –, então, que pessoas podem assumir ou ser forçadas a
assumir uma posição em um dos lados do divisor canônico Eu/Outro (Kelly,
2001: 98, grifos meus).

A cosmologia indígena funcionava como um sistema que continha “em sua estrutura
central um lugar a ser ocupado por um outro” (Vilaça, 2008: 194), por meio da internalização
de elementos ou pessoas de fora, responsáveis pela reprodução social do grupo.92 Assim, os
índios sabiam que uma parte de si era a alteridade encravada e internalizada em seu ser
dividual, possuidor de uma personalidade e de uma coletividade intercambiáveis. A relação
com os inimigos, por exemplo, era uma relação além que visava aquém: era uma “tentativa de
engolir no outro aquilo que ele tem de outro” (Gordon, 2006: s/p.). Na prática, tudo começava
na gravidez.

92
“Não há sociedade humana sem indivíduos. Isto, porém, não significa que todos os grupos humanos se
apropriem do mesmo modo desta realidade infra-estrutural. Existem sociedades que constroem sistematicamente
uma noção de indivíduo onde a vertente interna é exaltada (caso do Ocidente) e outras onde a ênfase recai na
noção social de indivíduo, quando ele é tomado pelo seu lado coletivo: como instrumento de uma relação
complementar com a realidade social. É isso que ocorre nas sociedades chamadas tribais e é aqui que nasce a
noção básica de pessoa que queremos elaborar agora” (Seeger et al., 1979:13).

130
Toda gestação gerava uma dualidade proveniente dos elementos advindos do homem
(substâncias endógenas) e da mulher (substâncias exógenas). Assim, para os índios, as
crianças eram um recipiente tanto da identidade do grupo, quanto da alteridade. As interdições
alimentares e as precauções tomadas pelo pai e pela mãe, durante e depois do parto, eram uma
forma de fazer sobrevaler a metade endógena sobre a parte forasteira do filho. Caso fossem
relapsos em algum destes expedientes, fracassariam na formação da criança como membro
cognático, inviabilizando o processo de consanguinização.
Mas, como mostrei anteriormente, os rituais que controlavam a formação da criança –
e, consequentemente, da pessoa – não cessavam nunca por toda a sua vida: os rituais de
passagem da infância para a vida adulta e as práticas de ornamentação e modificações
corporais permaneciam até sua morte. Daí que a adoção de crianças estrangeiras não era um
tabu para os grupos ameríndios – diferentemente das sociedades modernas ocidentais que, até
hoje, depositam no filho adotivo a marca da incompletude parental. Nascer dentro da aldeia
não resolvia nenhum problema, nem provava nada: a consanguinidade, para qualquer caso,
deveria ser construída. Nesta lógica, o apresamento de cativos passava a ser uma maneira de
dinamizar o grupo por meio da internalização dos inimigos aprisionados. Independente de sua
origem, cor ou etnia, estes futuros membros deveriam ser integrados ao grupo como cognatos
através dos rituais e cerimônias de construção da pessoa. E, apesar das críticas que a prática
do apresamento sofria por parte dos funcionários reais e dos missionários, os relatos
setecentistas evidenciam a sua eficácia, explicitando casos muito bem sucedidos de cativos
que já viviam há anos como um membro do grupo que lhe capturou em algum momento do
passado:
¡Cuántos españoles, llevados desde niños entre los abipones, imbuidos de sus
tiros, costumbres y artes para matar, se han convertido en verdugos de
Paracuaria, su patria! Cuántas veces éstos se encontraban unidos en las
expediciones de los bárbaros para destruir a los cristianos, no como
acompañantes sino como conductores, partícipes de todas las rapiñas, muertes e
incendios, e instrumentos de las calamidades públicas. (Dobrizhoffer, 1784, t. 2:
140)

Além de queixar-se dos inúmeros raptos empreendidos por grupos indígenas, o jesuíta
Dobrizhoffer parece não se conformar com o fato de os cativos, ainda que de ascendência
ibérica, assimilarem de maneira tão rápida e profunda os costumes e vícios dos seus captores.
Era uma realidade que não condizia com a distância cultural que os ocidentais asseguravam
existir entre os civilizados e os selvagens. Seria admitir que, independente de todo o lastro
moral e educacional que a família preservou por décadas para assegurar um modelo de
distinção social e moral, e que seria oferecido na forma de uma criação, ainda que não

131
perfeita, mas esforçadamente cristã, não resultariam frutos em uma criança criada no mato,
por silvícolas violentos e instintivos, que simplesmente anulariam sua origem e berço. E o
espanto era maior ainda quando os observadores notavam que mesmo estes rudes nativos
dispensavam um afeto que não parecia combinar com suas atitudes: “Lo extraño está en que
apetecen y crían con esmero a todos los niños cautivos que toman en la guerra aunque sean de
pechos” (Azara, 1790: 377-378). Aceitar que os índios eram cuidadosos e até afetuosos com
os cativos de guerra era uma ideia que não condizia com a imagem que se fazia dos nativos –
o mais esperado é que tratassem os apresados com hostilidade e brutalidade, exatamente como
o homem branco tratava os seus prisioneiros; enfim, como escravos:
Si la indiada se contentara con sólo robar el ganado y volverse sin hacer muertes,
respondiera yo al hacendado que se me quejara, señor mío ponga unos peones
que le guarden la hacienda. Pero si el primer objeto de los indios es matar los
hombres, esclavizar mujeres y niños para servirse de ellos (Tineo [28/07/1752]:
fl. 22v).

Mas os próprios relatos hispanófonos mostram que a forma como os índios tratavam
os cativos estava longe de ser opressiva ou baseada em alguma privação que os colocasse em
posição constrangedora ou humilhante. Um médico escocês que, infelizmente, não assinou
seu nome no registro que deixou de sua viagem de Buenos Aires até o Chile, percebeu que os
nativos daquela região não destratavam os seus cativos, chegando ao ponto de preferirem
permanecer na aldeia de seus captores intencionalmente:
[…] sacrifican a todos los españoles exceptuando a los niños. Estos se crían
junto a ellos y pueden ser rescatados, mediante el pago de una suma
considerable. Las españolas criadas en cautividad rara vez desean abandonar la
compañía de sus amos entre los que viven como animales salvajes. Yo conozco
dos muchachas, capturadas en su infancia y luego rescatadas, que escaparon,
poco después, para volver junto a los salvajes, prefiriendo vivir como esclavas y
satisfacer así su pasiones, que residir entre los de su raza (tan corrompida es la
naturaleza humana) (Anônimo, 1756: 367).

Azara afirma que entre os Mbayá não só inexistia a escravidão como o cativo era bem
tratado, sem jamais ser repreendido ou castigado e que em sua nova residência, ele
come y se sirve de lo que hay, vistiéndose con la ropa de su amo cuando quiere,
sin que nadie le ponga pleito, resultando de todo casi una igualdad entre el señor
y su cautivo, de donde nace que ninguno de ellos quiere volver a su patria,
aunque sea español (Azara [1793]: fl. 247v).

O resultado disto é que muitos cativos estabeleciam-se entre os índios, integrando-se a


sua nova família em uma longa convivência, que podia durar anos – como o caso de um
espanhol chamado Juan Garcia, que passou “muchos años cautivo entre los infieles Payaguás”
(Lozano, 1733: § III, fl. 20); ou Cristóbal Almaraz que, raptado quando criança pelos
Abipone, foi criado a sua maneira, tendo chegado à idade adulta falando e agindo como os

132
índios, além de ter casado com a filha de um cacique (Dobrizhoffer, 1784, t. 3: 193); e José
Ramón de Quiroga, protagonista de um caso de considerável repercussão. Nascido na cidade
de Santa Fe, em “una de las más distinguidas familias de ella”, e casado com uma mulher de
mesma linhagem social, “se retiró al pueblo de indios Abipones titulado San Jerónimo, en el
cual ha muchos años que vive amancebado (según se dice) con una china de la misma
nación”. Conseguindo sempre com êxito escapar das autoridades coloniais, tornou-se
procurado pela acusação de ser “uno de los principales consejeros de los Abipones en las
hostilidades que han causado a los Mocobíes” (Echagüe y Andia [22/08/1781]: fl. 1-1v).93
Isso não significa que todo e qualquer inimigo apresado permanecesse no grupo
independente de sua origem, idade ou sexo. Obviamente, quanto mais jovens as crianças
raptadas, maiores eram as chances de elas crescerem integradas ao novo meio. Homens
adultos, se apresados, tinham um final mais trágico: ou eram mortos e comidos no ritual de
antropofagia, ou eram trocados num comércio ilegal de bens com os colonos ou outros grupos
indígenas. As fugas ocorriam, geralmente, entre os homens e as mulheres de origem europeia
– apesar de haver a possibilidade, não rara, de optarem viver junto aos índios, muito em
função da marginalização que sofriam após regressarem de um cativeiro indígena, pois o
contato com os nativos deixava “un estigma que los marcaba por vida, especialmente a las
mujeres” (Operé, 2001: 21).94 No caso supracitado de Quiroga, ainda que não haja
especificidades nos registros, conclui-se que foi apresado já adulto, depois de ter casado com
sua esposa no Paraguai. Também não se sabe em que condições e para qual finalidade ele fora

93
Quem primeiro denunciou José de Quiroga foi sua mãe por meio de uma dramática carta às autoridades, na
qual suplica ajuda para que consiga afastar seu filho do convívio dos índios – motivada, aparentemente, mais
pela vergonha e embaraço que esta relação trazia à reputação de sua família do que pelos possíveis perigos à
integridade física do rapaz. Percebe-se melhor o tom do apelo da mãe de Quiroga pelo último trecho da carta:
“[…] y conforme a sus obligaciones sin que en muchos años haya podido conseguir apartarlo de la compañía y
comunicación de dichos indios, causándome muchas pesadumbres y penas sobre las que acompañan a una madre
viuda que carece de muchos arbitrios para remediar a unas otras cosas de menos entidad por todo lo que suplica
a la obra benignidad de Vuestra Excelencia se sirva tomar la providencia que hallare más conveniente, a fin de
que dicho mi hijo no vuelva con los referidos indios porque sería perderlo enteramente y con algún destino en el
servicio del rey o de otra suerte apartado de semejantes compañías, podrá al cabo de algún” (Tomasa de Jiménez
[22/08/1781]: fl. 1v-2).
94
Fernando Operé (2001: 24-25), ao analisar casos de cativeiros indígenas tanto na América inglesa como na
América espanhola, constatou um interesse geral em relação às histórias dos colonos que haviam sido
aprisionados por índios na Nova Inglaterra, ao contrário do descaso, ou até desprezo, em relação aos espanhóis,
homens e mulheres, que conseguiam fugir do seu cativeiro. Segundo o autor, no caso das 13 colônias norte-
americanas, o pensamento puritano implicava uma visão constante sobre a luta do bem contra o mal, em que os
índios eram a “encarnaciones del demonio”, fazendo do cativeiro uma provação espiritual tanto para o cativo
como para a comunidade puritana. Assim, os relatos de pessoas que haviam sido aprisionadas pelos índios
adquiriam o tom heroico, cujo interesse dos demais levava-os a narrar a sua história. Já na América espanhola, o
Estado Monárquico, através de um rígido controle sobre o sistema colonial, focava-se na produção de um
discurso que enaltecesse os avanços e os sucessos da presença metropolitana sobre o território americano,
procurando excluir as narrações depreciativas de tal intento. O interesse, portanto, estava nas histórias que
“pretendían ser, fundamentalmente, las narraciones de una civilización y su energía expansiva y civilizadora, no
de sus fracasos”.

133
levado, porém é muito provável que sua permanência tenha decorrido de suas próprias
intenções.
Já as mulheres adultas eram apresadas com a finalidade de serem integradas como
membros cognáticos, estabelecendo uma nova família, o que, entre as brancas, não consistia
num costume cultural, nem encontrava embasamento em sua cosmologia. Ainda assim,
muitas mulheres optaram por viver junto aos seus raptores. Em sua análise sobre a prática do
cativeiro entre grupos indígenas da região de Buenos Aires – geralmente índios pampianos –,
Susan Socolow, com base em testemunhos de ex-cativos fugitivos ou recapturados pelos
colonos, além de corroborar com o perfil dos apresados,95 justifica a opção das mulheres pela
permanência no cativeiro pelo “temor a retornar al mundo español, que podría segregarlas
como descastadas” (1987: 124).
Mas o apresamento de cativos não se dava apenas entre espanhóis, tendo sido uma
prática muito comum nas guerras intertribais, em que índios de outras etnias eram capturados
e internalizados no grupo vencedor. E, longe de ser uma situação tranquila para os nativos,
ainda que nascido em uma realidade onde esta era uma prática conhecida e fundamentada em
princípios cosmológicos, o cativeiro era temido e evitado a todo custo:
[…] y en viendo o sintiendo extraños en su país huyen desaforadamente sin
dejarse hablar; porque creen o que los van a matar, o que les buscan para
robarles las mujeres, como estilan entre si, por lo cual, si tienen tiempo, la
primera diligencia es ponerlas en cobro, retirándolas con sus hijos a lugares
ocultísimos (Lozano, 1754: 419, grifos meus).

Se capturados, o destino dos cativos dependia da bem-sucedida realização dos rituais e


cerimônias de consanguinização ou, para o caso das mulheres adultas, a aceitação de sua nova
condição. Ao que indica Azara, pelo menos para os Payaguá, o cativeiro dos inimigos
apresados pendia quase sempre para a internalização como membro cognático, concluindo
que, na guerra, “matan a todo enemigo adulto, pero recogen las mujeres y muchachos,
llamándolos cautivos, aunque luego son como ellos” ([1793]: fl. 236v-237). A semelhança
não passava apenas pelas questões físicas – relativas às modificações corporais –, mas
também pelos costumes apreendidos e a visão de mundo. Dobrizhoffer oferece dois exemplos

95
“Se proporcionan las edades específicas o aproximadas para el 97,8% de los cautivos. La edad media de las
mujeres es de 21, 26 años, mientras que la de los hombres es de sólo 13, 07. El mismo tipo de discrepancia de
edad puede verse en las edades promedio; la de las mujeres es de 19 años, mientras que la de los hombres es de
13. […] Entre los niños debajo de los 10, había más del sexo masculino que femenino. El grupo mayor de
cautivos recayó en el de 10-19 años, el cual era modal para cautivos de ambos sexos. Sin embargo, por encima
de la edad de 19 los perfiles masculinos y femenino difieren ampliamente. Por ejemplo, entre las edades de 30-
39 y 40-49 había grupos considerables de mujeres prisioneras, pero virtualmente ningún hombre” (Socolow,
1987: 119).

134
de internalizações bem-sucedidas de cativos entre os Abipone: no primeiro, o jesuíta explica o
costume dos índios de mudarem seus nomes perante a morte de algum membro e, citando um
caso específico, finaliza afirmando que “imponían con miles de ceremonias nuevas nombres a
cada uno de los hermanos de la muerta, y hasta a un cautivo de su madre y de su hermano”
(1784, t. 2: 275); no segundo, onde comenta o caso de um índio que teria visto a alma de uma
índia morta, afirma que
también muchos españoles que pasan toda su vida cautivos entre los abipones
desde niños, están convencidos que los manes se hacen visibles por el
nigromántico llamado de los hechiceros para responder a sus preguntas, sin que
intervenga en este asunto ningún engaño (Dobrizhoffer, 1784, t. 2: 82).

Na mesma época, porém advindos de um relato laico, temos também dois exemplos
que ilustram a eficácia do processo de internalização que os grupos chaquenhos punham em
prática nos seus apresamentos. Durante uma expedição, promovida para fins de
reconhecimento do interior do Chaco e para a fundação de reduções naquela região, o coronel
D. Francisco Gavino Arias refere o contato que teve, em duas ocasiões distintas, com dois
homens de idade avançada que viviam entre os índios há tantos anos que já não conseguiam
mais lembrar ou falar em sua língua nativa, o espanhol. Entre um grupo de índios Mocovi,
haviam encontrado “un cristiano cautivo natural de Salta que se apellidó Ybacachi”, “cuyo
nombre aún el mismo ignora por haberlo cautivado muy pequeño” e há muitos anos era
“casado a su ley” com uma índia com quem teve filhos. O segundo ex-espanhol citado por
Arias foi encontrado entre um grupo de índios Toba, um “viejo llamado Domingo, que dijo
que es cautivo de Salta y absolutamente no sabe hablar la española” ([1780]: fl. 259 e 281).
A internalização no grupo passava pela eficácia dos rituais de construção da pessoa.
Isto viabilizaria um viver na tribo indispensável a todos os membros, tanto como indivíduos,
quanto como integrantes de um coletivo que associava as unidades num todo. No nível
aldeão, esta dicotomia indivíduo/coletivo era convertida para a dicotomia interno/externo, em
que subjetividades exógenas – as mulheres mitológicas ou as crianças compósitas –
misturavam-se às subjetividades autócnotes. O que procurei mostrar até aqui é que a guerra
servia como um caminho aberto entre o interior e o exterior, possibilitando que a alteridade –
em sua forma concreta – se instalasse no seio tribal. Veja-se, por exemplo, a modificação
corporal que, apesar de se tratar de intervenções individuais, ocorria naquele que talvez fosse
o expoente máximo da coletividade tribal: o corpo.
Assim, os meninos, prestes a se transformarem em homens (seres sociais),
devem ter lábios e orelhas furadas. É essa penetração gráfica, física, da sociedade
no corpo que cria as condições para engendrar o espaço da corporalidade que é a
um só tempo individual e coletivo, social e natural. Quando tal trabalho se
completa, o homem está completo, sintetizando os ideais coletivos de manter a

135
individualidade, tal como nós a concebemos, reforçando a coletividade e a
complementariedade com ela (Seeger et al., 1979: 24).

Esta fusão entre o individual e o coletivo na construção da pessoa se mostrava mais


presente nas práticas que envolviam a predação do inimigo, no caso, o canibalismo ritual e a
hemofagia. Novamente, a guerra cumpria o papel de possibilitar o acesso a estes elementos.
Há indícios de que alguns grupos chaquenhos praticavam a antropofagia com prisioneiros de
guerra. Se nem todos cativos eram mulheres ou crianças, cabia aos demais um final mais
trágico: a sua internalização não era por via da consanguinização, mas sim da manducação.
Pelo menos os Guarayo, (Cartas Ânuas [1717/1718]: fl. 8; CA, 1730-1735: 189; e CA, 1735-
1743: 504), os Toba e os Mataguayo (Lozano, 1733: § VII, fl. 53), os Chiriguano (Lozano,
1733: § VIII, fl. 57) e os Mocovi (Paucke, 1767, t. 2: 179) são grupos que ainda preservavam
a prática da antropofagia no Setecentos. Infelizmente, os relatos que tratam sobre a
antropofagia na região do Chaco são bastante escassos e imprecisos. Em geral, são citações
esparsas e não detalhistas, que dificultam uma análise mais precisa de como era – se era –
praticada a antropofagia por estes grupos ainda no século 18. Para a região estudada aqui, a
melhor descrição encontrada foi a de um escritor anônimo, que informa alguns passos do
processo festivo que envolvia a manducação da carne do inimigo. Para além de todos os
detalhes do ritual, o mais importante a ser salientado é seu apelo coletivo:
Entonces se convocan las parcialidades de la nación y se determina día en que
deben concurrir a la solemnidad de la fiesta. Todos asisten indefectiblemente:
caciques, vasallos, hombres, mujeres, grandes y pequeños, aunque sean de
96
pechos, cargados sobre los brazos de sus madres (Anônimo [1758]: fl. 16-16v).

Após a morte do inimigo, todos os convidados tocavam no defunto, num ato de


ampliação de sua morte e da vitória dos guerreiros. Nesta solenidade, “los que conservan el
nombre del nacimiento le mudan luego a su arbitrio luego que tocan el cadáver” (id. ibid.: fl.
17). A sua carne era partilhada por todos em um caldo ingerido tanto pelas crianças, como
pelos adultos e velhos. Estes, em especial as idosas, tinham o privilégio da hemofagia: “las
viejas ejecutan su principal ministerio recogiendo la sangre y entrañas” (eod. loc.). Beber o
sangue do inimigo morto era um costume que parecia estar relacionado à condição feminina,
em que as garotas, num ritual de passagem para a vida adulta, deveriam ingeri-lo de modo a
estarem aptas à gestação (id. ibid.: fl. 20v). Aqui, cabe lembrar que a gravidez era um ato
compartilhado pelo pai e pela mãe, em que o primeiro colaborava com o esperma e a mulher
96
Apesar de ser um registro sem assinatura, a data em que foi escrito e o título dado ao texto remetem à obra
Historia del Paraguay, Río de la Plata y Tucumán do padre Pedro Guevara. A semelhança de alguns trechos e,
inclusive, outros que são idênticos levam a crer que este escrito anônimo fora um rascunho da obra de Guevara.
Porém, a ausência de alguns temas na obra publicada, como a antropofagia, mantém a incerteza da autoria do
manuscrito.

136
com o seu sangue menstrual e intrauterino – o que explica a ausência de menstruação durante
a gestação (Tola, 2007: 507). O fato é que a hemofagia e a antropofagia estavam associadas e
que suas práticas eram garantidas pelos convites festivos (Lozano, 1733: § VIII, fl. 57).
Outra prática que teve uma importância significativa para os chaquenhos e,
considerando sua frequência nos registros setecentistas, participou mais da vida dos nativos
do que a antropofagia foi a decapitação dos inimigos de guerra: 97 “no obstante de los muchos
asaltos sangrientos de parte de los bárbaros, tan crueles, que ellos no creen haber vencido,
sino después de haber cortado la cabeza a sus victimas” (CA, 1730-1735: 49). O uso dessa
prática explica os corpos que eram encontrados decapitados, como ocorreu a dois moradores
da cidade de Santa Fe, que haviam saído para pescar e não retornaram. Mais de 24 horas
depois, “fueron hallados sus cuerpos desnudos y descabezados en el río Salado” (Vega
[20/03/1732]: fl. 2). As cabeças, porém, nunca eram encontradas junto aos corpos, já que o
objetivo desta prática era justamente levá-las para dentro da aldeia. Isto pode ser comprovado
pelo capitão Luis Ribeiro Raposo:
Caminamos al rincón de Arroyo de María y antes de llegar a él, como una legua,
fuimos hallando cuerpos muertos, descabezados. Y caminando a corta distancia
dimos en el paraje en donde encontraron con los indios. Así hallamos tres
cuerpos y adentrando como un cuarto de legua a la costa, dimos con los ranchos
que, al parecer, serían hechos de diez días antes y en ellos, dieciocho fogones.
Junto a ellos estaban las cabezas de los muertos (Raposo [18/09/1732]: fl. 1v,
grifos meus).

A decapitação, portanto, era acompanhada de sua exibição no ambiente familiar, numa


maneira de “ostentación a sus compañeros y dar así testimonio, ante su pueblo, de su
fortaleza” (Dobrizhoffer, 1784, t. 2: 138). Os guerreiros vitoriosos na batalha cortavam a
cabeça dos inimigos mortos e as levavam para os seus parentes de modo a, como no
canibalismo ritual, integrá-los na vitória conquistada. Daí o padre Dobrizhoffer afirmar que,
após um confronto, “conservaban las cabezas de los españoles como trofeos” (1784, t. 2: 137)
– sentido também atribuído pelo padre Guevara às cabeças dos inimigos, que, após cortá-las,

97
Metodologicamente, há um limite de análise acarretado pelas informações presentes da documentação. Relatar
a captura de parentes ou vizinhos durante um ataque indígena é, do ponto de vista discursivo, muito diferente do
que especular a respeito de um ritual como a antropofagia, que era realizado dentro das aldeias, longe da vista
dos observadores hispanófonos. A menos que um espanhol estivesse em uma destas cerimônias, ou pudesse
presenciar os vestígios físicos de seus resultados, a antropofagia continua sendo um tema delicado para
afirmações concretas – não pela dúvida de sua existência, mas pela incerteza de sua prática ainda no século 18
entre os grupos chaquenhos. Por outro lado, o tema do apresamento de cativos, por exemplo, permite uma
análise mais vertical, não só porque é uma prática muito frequente nos relatos hispanófonos, mas principalmente
porque os espanhóis tiveram a oportunidade de coletar testemunhos das pessoas aprisionadas, bem como de
contatá-las no próprio ambiente do cativeiro. O mesmo ocorre com os casos de decapitação: além de existirem
muitas citações referentes a índios cortando as cabeças de seus inimigos mortos – ou defuntos serem encontrados
nessa condição –, há relatos presenciais de observadores hispanófonos que descrevem o tratamento dado às
cabeças – existindo, inclusive, situações ocorridas dentro das reduções.

137
“llevaban por trofeo enristrada en las puntas de las lanzas” (1764: 12). O Governador de
Tucumã também já havia notado que esta prática indígena envolvia questões concernentes ao
êxito guerreiro, constatando que, após matarem os inimigos, levavam “consigo las cabezas
como triunfo de su victoria” (Arespacochaga [24/11/1708b]: fl. 2v).
Porém, esta não era uma atitude individual: apesar de um guerreiro ou um grupo de
varões serem os responsáveis pela vitória na refrega e por levarem o espólio até seus parentes,
o ato deveria ser socializado com os demais membros que ficaram na aldeia, principalmente
as crianças, as mulheres e os idosos. A importância de se levar a cabeça-troféu era a de
integrar o grupo como responsável tanto pela morte do inimigo quanto pela vitória: a sua
coesão dependia destas internalizações de elementos exógenos, cabendo a todos uma
participação efetiva. É por isso que as cabeças-troféus não ficavam em posse dos guerreiros
quando estes retornavam ao grupo: elas eram dadas às mulheres, que, vestidas e adornadas a
caráter – “con las mejores mantas y la cabeza de plumas la frente con planchas de plata y el
cuello de collares y sartas de cuentas” – saíam em procissão pela aldeia, empunhando as
cabeças encravadas em lanças e “bailan y cantan a la redonda alabando a sus maridos
ensalzando su valor y gloriándose de tenerlos por suyos” (Lozano, 1733: § X, fl. 71).
Isto pôde ser presenciado pelo padre Paucke na redução San Javier de índios Mocovi,
quando o jesuíta promoveu a realização de uma cerimônia em que os índios, “como vasallos
españoles”, oferecessem “al Rey de España una especie de homenaje”. A ideia de Paucke era
realizar uma solenidade que se assemelhasse às festas espanholas dos patronos das cidades,
com uma procissão em que os participantes se distribuiriam de acordo com a importância de
seu cargo ocupado. E assim foi feito em San Javier, no dia do patrono que emprestava seu
nome à redução, com todos os índios empenhados em cumprir o seu papel no desfile, que, de
acordo com a descrição do jesuíta, fora cheio de pompa e circunstância. 98 O que mais chama

98
A solenidade é descrita desta maneira: “Igualmente realizaba tal procesión en mi reducción en el día de la
fiesta del Santo Xaverij y eso en la siguiente manera: de entre los caicques se nombraba uno que debía
representar al Alférez Real Koeniglicher Faehndrich, instituí de quince a dieciséis compañías, por cada
compañía veinticinco hombres y un oficial que siempre cabalgaba sobre un caballo de diferente color que los
demás; las compañías de los villanos tenían todos sus caballos de un mismo color; también tenían sobre sí
ponchos o paños de un solo color con los cuales estaban vestidos. Tras el oficial cabalgaban dos tambores y dos
alféreces con sus banderitas que a su vez se diferenciaban de las otras por su color; luego seguían los villanos y
así también por todas las demás compañías in completo. Al último seguía una compañía sobre mulares y unas
sobre burros; una compañía tenía sobre la cabeza sombreros con penachos teñidos; otra tenía únicamente
turbantes de las mejores plumas de papagayos, otra gorros de campaña; otra [casquetes] rojos y finalmente
también casquetes azules a manera prusiana que yo había fabricado también en sus viseras con piel de buey
perforada y vestida de mica quemada lo mismo como en el primer altar en mi iglesia. Mientras ahora estas
compañías se trasladaban al campo extenso para hacer en orden la entrada, se hacía en la aldea todo el
preparativo para recibir debidamente al Alférez Real junto con su séquito. Al lado de la iglesia estaban parados a
ambos lados todos los niños de la aldea; de un lado los varones, del otro las niñitas, pero las mujeres esperaban
la entrada en el centro de la plaza, en parte con calabazas huecas en las cuales tenían granos de cucurus [maíz] y

138
atenção na procissão narrada por Paucke é a mistura de elementos ocidentais – que não só
inspiraram a celebração, como eram a base de organização da cerimônia – e elementos nativos
que, a princípio, foram permitidos com o intuito de compor uma festa que tentasse construir
uma identidade relacionada à situação daquelas missões que uniam aspectos culturais dos
índios em uma solenidade formal que respeitava os preceitos católicos.
E, provavelmente, os indígenas levaram ao pé da letra essa ideia, ao introduzirem na
solenidade as suas cabeças-troféus ostentadas por mulheres que, “con las cabezas de enemigos
muertos en la mano o sobre varas, bailaban en derredor entre la entrada y cantaban victoria en
su lengua” (1767, t. 3: 14).99 Na mesma página, em nota, Edmundo Wernicke – tradutor e
comentarista da obra de Paucke – escreve: “No debe extrañar la aparente indiferencia con que
Paucke se refiere a estos trofeos macabros, pues los jesuitas eran muy cautelosos al quitar
poco a poco los crueles hábitos a los salvajes”. Prefiro ver a situação por outro prisma:
decapitar o inimigo vencido não era uma prática restrita aos índios, e os jesuítas sabiam bem
disso. O Governador de Tucumã, por exemplo, expressa sua satisfação ao narrar as vitórias
obtidas na guerra contra os Mocovi que atacavam a Província. Em um dos casos citados, o
Governador enaltece suas tropas que, mesmo lutando no interior do Chaco, “no me han
muerto ni un hombre, antes si han traído algunas cabezas de los enemigos” (Argandoña
[10/01/1689]: fl. 3v).
Mais emblemático foi o caso ocorrido após um assalto de índios à cidade de Salta, em
que os espanhóis, através de uma retaliação, tiveram grande êxito, localizando os índios,
recapturando os cativos e animais levados durante o assalto e vencendo a batalha que se
seguiu, na qual os homens do capitão Don Domingo de Ysasmedí “mataron catorce indios
gandules y guerreros y les cortaron las cabezas sin haberse escapado ninguno de los que
entraron en dicha quebrada” (Angles [11/05/1736]: fl. 1v). Estas cabeças foram levadas para a
cidade e, a mando do Governador, foram exibidas “por todas las calles, puestas en lanzas, y
no cesó la gente de manifestar su entrañable consuelo a vista de una función tan pronta como

hacían un ruido; en parte con las cabezas de enemigos muertos en la mano o sobre varas, bailaban en derredor
entre la entrada y cantaban victoria en su lengua especialmente cuando llegaba el Alférez Real que vestido a la
alemana con botas y espuelas cabalgaba entre dos acompañantes que sostenían a ambos lados las bordas de la
bandera” (Paucke, 1767, t. 3: 13-14).
99
Deve-se considerar aqui o contraste da situação em relação à imagem que se tinha do sexo feminino. À
mentalidade moderna ocidental, as mulheres cumpririam um papel social doméstico e pacífico, em contraposição
à virilidade do homem, de quem se esperava atitudes viris e agressivas. Justifica-se por esta mentalidade o tom
de espanto com que o padre José Jolís descreveu a participação das mulheres Mbayá nas cerimônias indígenas:
“Las mujeres, que deberían ser menos bárbaras, más dulces y compasivas por su índole, no pocas veces se
muestran más crueles que sus maridos; ellas los mueven y excitan no como venganza, sino más bien como
diversión, a llevarles de regalo un cráneo, la cabeza entera o la cabellera humana enemiga, para poder bailar en
las indicadas fiestas con ella en la mano” (1789: 314).

139
feliz, que se ha logrado sin haber perdido soldado alguno” (id. ibid.: fl. 3). Com a mesma
proposta, os dois réus, José Quiroga e José Domingo Rojas, índios Toba que participaram de
um ataque à região de Tucumã, foram condenados à morte e tiveram seus corpos
esquartejados de modo a exibi-los ao público. A sentença pronunciada por Tadeo Dávila
deixava bem claro que as suas cabeças deveriam ser expostas em lugares visíveis: a de José
Quiroga num poste na redução de índiso Toba e a de José Domingo Rojas num cruzamento de
estradas, de modo “que en ellos vean el fin que ha tenido su principal cabeza de motin”
(Autos [04/03/1782]: fl. 196).
Quando Paucke comenta discretamente a presença de mulheres ostentando as cabeças
de inimigos em suas mãos ou fincadas em lanças está fazendo o mesmo que seus
contemporâneos: exaltando a vitória sobre o inimigo – que, para o jesuíta, eram os índios não
reduzidos. Apesar de não especificar de quem eram aquelas cabeças que as índias exibiam na
solenidade, acredito que Paucke não teria permitido sua exibição caso fossem de hispano-
crioulos. Na mesma lógica, o padre Domingo Muriel narra a vitória dos índios Abipone da
redução de San Jerónimo sobre um grupo de Abipone não reduzidos, em que os primeiros,
após expulsar a ameaça inimiga, veem o seu líder, o cacique Benavides, cravar “las cabezas
de los muertos en palos, después de haberlas cortado: ‘Para escarmiento – decía – de los que
se apartan de su pueblo’” (1767: 70; também em id., 1766: 180).
Por mais violenta que pudesse ser esta atitude, ela correspondia ao discurso que
defendiam os missionários e, enquanto prática bélica, não fugia das atrocidades cometidas
pelos colonos – que eram, inclusive, incentivadas pelo estado e pelas autoridades locais.100
Porém, se a prática era semelhante, o objetivo nela depositado, diferia. Os índios, pelo que
evidenciam os registros, não cortavam a cabeça do inimigo motivados apenas pelo furor da
batalha ou pela necessidade de expor suas qualidades enquanto guerreiros. O objetivo da
decapitação estava relacionado diretamente ao grupo, e não apenas a um triunfo individual.
Em outras palavras, a cabeça do inimigo deveria ser levada para dentro da aldeia e
compartilhada por todos numa exibição festiva ou, numa abordagem mais prática, por meio
de sua manipulação direta. Segundo Sánchez Labrador, entre os Guaicuru, as cabeças-troféus
eram levadas até a aldeia, servindo “de incentivo al furor de las viejas y de juguete a las
flechas de los muchachos” (1770, t. 1: 311). O ato de flechar a cabeça do inimigo pode ser

100
Paucke, na mesma obra, já havia mostrado que as atuações belicosas dos índios reduzidos, caso estivessem
atuando a favor da Coroa, rendiam-lhes benefícios concretos – ainda que suas atitudes fossem de extrema
violência. O jesuíta comemora a eficiência dos Mocovi de sua redução que estavam escoltando uma carreta
espanhola no momento em que fora atacada por índios Abipone não reduzidos. Além de manterem a integridade
dos bens, conseguiram matar cinco inimigos, decapitando-os e levando suas cabeças para o povoado. Como
recompensa pelo bom trabalho, cada índio recebeu sete pesos e alguns objetos (Paucke, 1767, t. 2: 300).

140
relacionado com as pessoas que tocavam no defunto durante o ritual de antropofagia, numa
maneira de difusão de sua morte: estas celebrações visavam à “ampliação quase irrestrita do
número de matadores”, multiplicando os ganhos que se obtinham com a guerra em detrimento
de “ranquear os homens em função de seu poder predatório” (Fausto, 2008: 344).
Outra forma de socializar os ganhos obtidos com a morte do inimigo entre os Mocovi
era usar a cabeça como taça, na qual “beben y comen los niños” (Zamudio [22/05/1702]: fl.
1v), costume também enfatizado pelos funcionários da cidade de Catamarca (Cabildo de
Catamarca [01/12/1692]: fl. 2v) e por Cosme Bueno, que acrescenta uma informação nova:
depois de arrancarem a cabeça
la desuellan desde los ojos hasta la nuca, y aquella piel con sus cabellos la estiran
y guardan para en la celebración de sus mayores fiestas ostentar su valentía, y el
cráneo, para que sirva de calabazo con que beber en sus solemnes borracheras.
Esta inhumana costumbre es común casi a todas las naciones del Chaco (Bueno
[1775]: fl. 4v).

Segundo Lozano, a escalpelação do crânio era uma prática bastante difundida entre os
grupos chaquenhos que, depois de cortarem a cabeça, “la desuellan desde los ojos hasta la
nuca, y aquella piel con sus cabellos la estiran, secan y guardan para celebrar sus mayores
fiestas y demostrar su valentía” (1733: § XII, fl. 79; cf. também Conde de Superunda
[15/02/1751]: 17).
As cabeças-troféus, fincadas na ponta de lanças e exibidas no pátio da aldeia, faziam
as vezes dos adornos corporais fornecedores de qualidades capacitivas – que já foram
discutidas em outro tópico – como a pele da onça vestida pelo guerreiro que buscava coragem
na caça. Encravadas em lanças como estandartes, usadas como taças ou escalpeladas, geravam
a união do grupo e lhes conferiam bravura e coragem, renovando o ambiente de guerra para a
futura refrega. Era a internalização de elementos externos que promovia a reprodução do meio
interno, estendendo a todos os membros as qualidades para o êxito na guerra: “Esses objetos –
como troféus, instrumentos e adornos – mais que representar subjetividades alheias,
presentificam-nas, corporificam-nas e permitem que sejam colocadas sob o controle dos
oficiantes no ritual” (Fausto, 2001: 416).
Em suma, estas subjetividades traduzidas em órgãos, sangue ou sujeitos
desempenhavam um ato coletivo abrangente a todos, mesmo àqueles que não foram para
guerra. Desta forma, a morte do inimigo, ocorrida no campo de batalha ou na aldeia, não era
um ato solipcista: a guerra não visava o extermínio dos grupos inimigos nem a anulação da
relação com eles. A sua internalização por meio de práticas predatórias, como a antropofagia
ou a decapitação, integravam todos os membros como uma unidade social concisa e dinâmica,

141
na medida em que sua reprodução enquanto grupo necessitava do inimigo – o outro.101 Como
tentei mostrar ao longo deste capítulo, os grupos chaquenhos necessitavam tanto dos aliados
como dos inimigos para manter a dinamicidade de sua sociologia – fundamentada em
princípios cosmológicos, advindos de uma razão mitológica. O inimigo, antes de ser um
problema, era um gerador de relações sociais, e a guerra, uma ação positiva:
Assim, uma imagem bem diferente da atividade guerreira se esboça através da
leitura das obras antigas: não mais unicamente negativa, mas positiva; não
traindo necessariamente um desequilíbrio nas relações entre os grupos e uma
crise, mas fornecendo, ao contrário, o meio regular destinado a assegurar o
funcionamento das instituições; pondo em oposição, sem dúvida, psicológica e
fisicamente, as diversas tribos; mas, ao mesmo tempo, estabelecendo entre elas o
vínculo inconsciente da troca, talvez involuntária, mas em todo o caso inevitável,
dos auxílios recíprocos essenciais à manutenção da cultura (Lévi-Strauss, 1942:
327).

A guerra era um acrescentar de vida; era um modo “privilegiado para adquirir a


nuevos sujetos e incorporarlos sea por vía de la antropofagia o por la naturalización y las
alianzas matrimoniales” (Perusset e Rosso, 2009: 67). Ao contrário da guerra promovida pelo
estado colonial, que objetivava o extermínio do seu inimigo – “de modo que si la enfermedad
de esta Provincia la causan los indios, en tanto que estos no se exterminen, enferma de indios
ha de estar la Provincia” (Tineo [28/07/1752]: fl. 23) –,102 a guerra indígena não deveria
cessar jamais: os índios não só precisavam de seus inimigos se reproduzindo, como era este
florescimento que possibilitava a manutenção do sistema cosmológico. A lógica era quase a
mesma apontada por Dobrizhoffer, que comentou que “estos bárbaros se parecen a los
antiguos romanos que no querían destruir a Cartago para no quedarse sin un enemigo con
quien ejercitar su virtud militar” (1784, t. 3: 126). Mas a guerra não era só um exibicionismo
das qualidades viris de seus guerreiros. Ela fornecia o combustível à sociabilidade:
A subjetivação do inimigo é, enfim, condição para a captura de identidades e
qualidades no exterior que servem para a constituição de pessoas no interior do

101
Segundo Florestan Fernandes (1952: 252-253), a guerra, entre os Tupinambá, era uma expressão social com
fundamento religioso, na medida em que o sacrifício ritual do inimigo era “um dos processos rotineiros, mas
geral, de intercâmbio dos homens com o sagrado”, sendo, inclusive, a forma mais eficiente de os “indivíduos
bem-sucedidos na guerra e no sacrifício de vítimas” alcançarem o status xamânico: “a aquisição de carisma por
intermédio da guerra e do sacrifício ritual representava uma condição básica do xamanismo”. Diferentemente, os
índios chaquenhos não pareciam almejar a transformação de seus bravos guerreiros em futuros xamãs. A
ausência de relatos setecentistas em que o xamanismo é protagonista nas relações bélicas e de envolvimento
sacrifical dos inimigos não interfere de maneira alguma na prática do homicídio e repartição dos elementos
fisiológicos dos adversários de guerra entre os membros do grupo. O escalpelamento, a decapitação, a hemofagia
e qualquer outra utilização que os índios do Chaco poderiam atribuir ao corpo do inimigo morto estava antes
associada à produção de relações sociais do que religiosas.
102
“[…] vendrá esta ciudad a su total asolación por hallarse sin fuerzas, ni medios que poden defender por si,
menos que siendo socorrida, asistida y fomentada de Vuestra Real mano, no sólo para su defensa, sino también
para efectuar contra el enemigo la guerra ofensiva, continuando su castigo, hasta extinguirlo, escarmentarlo y
retirarlo de estas cercanías” (Cabildo de Santa Fe [02/10/1720]: fl. 1v).

142
grupo. Não se trata, contudo, apenas da captura de algo que pertence à vítima –
sua alma, seu nome, sua cabeça. Com freqüência, o inimigo é apenas suporte
para uma operação produtiva em escala ampliada. A lógica do consumo
produtivo não é a de transferências de unidades iguais de uma parte a outra, mas
a da multiplicação dos efeitos a partir de uma única causa. Essa lógica se
expressa em vários estágios do complexo de guerra (Fausto, 2001: 330, grifos no
original).

A guerra indígena era uma troca momentaneamente desigual em que a dívida sempre
acabava sendo quitada e renovada no próximo confronto: o extermínio do inimigo anularia
este devir que galvanizava a vida na aldeia. Ela, contudo, não era o único meio que os índios
possuíam para coletar elementos externos, a fim de motivarem a sociabilidade do grupo: as
trocas de bens, articuladas por meio da reciprocidade, e o envolvimento dos chaquenhos com
o comércio colonial foram importantes formas de mobilizar a circulação de bens materiais
entre os grupos indígenas, garantindo-lhes a reprodução social. Este será o tema do próximo
capítulo.

143
Capítulo 3
Economia dos índios chaquenhos I
A captação de bens materiais: reciprocidade, roubos e comércio
A propriedade é um roubo.
(Pierre-Joseph Proudhon)

Se roubavam era para nunca ficarem ricos.


(Mia Couto, “Estórias Abensonhadas”)

3.1 A influência dos chaquenhos nas rotas comerciais portenho-andinas


No sistema econômico de produção e comercialização da América Espanhola, as
cidades que formavam a fronteira com o Chaco, na Província de Tucumã, sempre ocuparam
um papel periférico, exercendo a função de abastecedoras dos grandes centros produtivos. Na
ocasião da fundação das primeiras cidades da região chaquenha, o objetivo principal não era
inaugurar uma nova fonte produtiva ou explorar possíveis riquezas ali existentes: o Chaco
sempre foi tomado como um caminho obstaculizado pelos perigos que ofereciam os humanos
e os animais ali residentes. A passagem da costa do Atlântico para as minas andinas – e,
consequentemente, os prósperos centros urbanos daquela região – tinha como rota mais lógica
a planície chaquenha, especialmente por meio do Rio Salado, que a atravessa de sudeste a
noroeste, facilitando o acesso ao Alto Peru. Resultava disto que, no entorno do Chaco, as
cidades se desenvolviam às custas dessa passagem.
Já desde o final do século 16 havia uma rede de comércio regular que unia as cidades
de Santa Fe, Córdoba, Santiago del Estero e Potosí, comprovando que o surgimento dos
assentamentos espanhóis confundia-se com a “aparición de corrientes internas de
intercambios, en el momento mismo en que despuntaba el comercio atlántico” (Moutoukias,
1999: 90). Além de servirem como rota de passagem das caravanas que empreendiam a
comercialização ou transporte dos produtos, essas cidades abrigavam em sua jurisdição as
haciendas, propriedades dedicadas ao cultivo agrícola e à criação de gado que, apesar de
possuírem em sua origem uma apropriação ilícita, como lembra Beatriz Vitar, “funcionaron
como unidades de producción destinadas al abastecimiento de los núcleos urbanos,
participando también en el tráfico interregional” (1997: 54).
Na Província de Tucumã, as fazendas foram surgindo ao longo do século 17, quando
vários moradores das cidades passaram a assentar-se em regiões propícias ao cultivo da terra,
beneficiando-se com o aumento do tráfego em direção ao Peru para se instalarem “en las
cercanías del camino real – que unía a diferentes ciudades del Tucumán –, atento a las

144
ventajas que suponía esta localización para una participación lucrativa en el comercio con
Potosí” (id. ibid.: 55).
No século seguinte, a produção mineira nos Andes sofreu um impulso que pôde ser
observado com a triplicação de prata explorada em Potosí entre as décadas de 1720 e 1780
(Bakewell, 1999: 145). Além disso, a produção já não estava mais centrada exclusivamente
em Potosí, havendo-se expandido por outras regiões ao largo da Cordilheira. O aumento da
produção de prata e o seu escoamento em direção a Buenos Aires, com destino ao Atlântico,
elevaram as condições mercantis das cidades de Salta, San Miguel e Córdoba, não só por
causa do posicionamento estratégico delas, como também devido à “importante participación
de los comerciantes de larga distancia como habilitadores” (Zamora, 2011: §8). San Miguel
de Tucumã é um ótimo exemplo de como as cidades daquela província administraram suas
economias em torno do fluxo comercial que se formou na rota da prata andina. O cabildo da
cidade outorgava ordenanças e autos destinados a favorecer as atividades agrícolas,
comerciais e industriais, fomentando os setores do comércio, da intermediação e dos serviços.
Resultou daí que os moradores da cidade de San Miguel especializaram-se na construção de
carretas e no negócio de frete (id. ibid.: §10-11).
Mas até a metade do século 18, Córdoba e Salta foram as duas cidades que mais se
beneficiaram com a alta produtividade mineira andina, fazendo de ambas, sob o ponto de vista
comercial, “una de las periferias de los núcleos sudamericanos del imperio español” – no
caso, o Alto e o Baixo Peru (Moutoukias, 1999: 55). Ambas basearam sua economia na
produção agrícola e, principalmente, na criação de gado para o abate e de mulas para o
transporte de mercadorias, fazendo-se dependentes das necessidades da região mineradora. O
cultivo da terra orientava-se para a produção de excedente visando ao abastecimento das
regiões centrais, exportando – sempre que possível – quantidades de vinho, trigo, farinha,
gordura e carne (id. ibid.: 57). Outro produto que foi impulsionado por causa da produção
andina foi a manufatura têxtil, que transformou a Província de Tucumã em um dos mais
importantes fornecedores deste produto ao Peru (Vitar, 2000: 5; id., 1997: 40).103
Ainda que a prosperidade do comércio estabelecido na rota Potosí-Buenos Aires
tivesse alavancado a economia de Tucumã, a proximidade das cidades da província com o

103
O aumento da produção de prata nas minas andinas e o consequente incremento da economia portenha –
principal porta de escoamento deste minério para a Europa – resultaram no enriquecimento dos proprietários de
terras e dos comerciantes locais. A projeção comercial e econômica da região platina fez as autoridades coloniais
criarem o Vice-reino do Rio da Prata, em 1776, como uma das reformas político-administrativas de
revigoramento da colônia empreendidas durante a dinastia dos Bourbons. Buenos Aires voltou a ser também a
porta de entrada dos produtos importados europeus, fomentando ainda mais a rota comercial que passava pelas
cidades de Tucumã (Moutoukias, 1999: 53).

145
Chaco sempre foi o maior empecilho ao desenvolvimento da produção e comercialização da
região, como se pode observar pela preocupação do Bispo de Tucumã, que, ao reforçar a
importância daquela província como “la garganta de todo este reino para la comunicación,
tratos y contratos de los géneros de estas provincias en el Perú”, denuncia a falta de segurança
tanto nas cidades frequentemente invadidas pelos chaquenhos, como “por estar infestados
todos los caminos de dichos enemigos” (Bispo de Tucumán [07/01/1691] fl. 1v-2). Um mês
depois, era a vez dos moradores de Catamarca reclamarem os perigos de transitarem pelas
estradas, solicitando, então, um maior contingente no forte de Esteco para que se evitasse
“tantas hostilidades como comete este enemigo, impidiendo el comercio de Córdoba,
Paraguay, Buenos Aires, Santa Fe y Corrientes, con quienes había de militar la misma razón
por la conducción que de sus frutos, mulas, vacas, yerba y tabaco tienen a los Reinos de Perú”
(Cabildo de Catamarca [01/12/1692]: fl. 5) – reclamação que persiste e é ratificada pelo
Mestre de Campo da mesma cidade, que alerta para a impossibilidade de ser mantido o
comércio naquelas condições (Aguirre [28/04/1702]: fl. 1).
Daí a investida militar promovida contra os índios do Chaco em 1710, para a qual o
Governador Don Esteban de Urízar y Arespacochaga convocou as cidades da Província de
Tucumã a enviarem ajudas materiais e humanas à expedição militar chaquenha, que, como foi
visto no capítulo anterior, além de não alcançar os resultados pretendidos, acabou
inaugurando um novo ciclo de conflitos generalizados entre os espanhóis e os nativos. As
hostilidades indígenas continuaram a ser o fator de desarticulação do comércio de Tucumã,
provocando não apenas o prejuízo pelas incontáveis perdas de mercadorias roubadas ou
danificadas em decorrência dos assaltos, como também a debandada de um considerável
número de moradores que, em fuga, buscavam terras mais seguras. E aqueles que não podiam
fugir, ou preferiam ficar para tentar proteger o que lhes restava, viviam com receio do que
poderia vir a acontecer. O Alferes do cabildo de Santa Maria informou o Governador do Rio
da Prata sobre os diversos assaltos cometidos pelos índios que habitavam o Chaco ocidental
àquela cidade e suas fazendas, ressaltando o medo com que viviam os moradores:
En nuestra estancia se dejan ver de continuo a los estancieros para
amedrentarlos, y así impiden el rodeo y cuidado de las vacas, caballos y demás
animales. En el Pueblo ya uno, ya dos se entran de noche a reconocer lo que
hacemos: así mismo se dejan ver por las chácaras, poniendo miedo, por lo cual
nuestras mujeres amedrentadas no se atreven a ir en busca de los frutos que
necesitamos para el sustento cotidiano (Aracureza [21/02/1758]).

Mesmo quando as cidades ou fazendas não eram atacadas pelos índios, a economia da
qual dependiam os moradores e os estancieiros hispano-crioulos sofria sérios danos por causa
dos assaltos cometidos nas estradas, implicando perdas materiais e humanas e fazendo do

146
comércio inter-regional uma prática muito onerosa aos comerciantes. O Capitão de Dragões
da cidade de Santa Fe conta que, em 1730, 33 homens a cavalo e armados não conseguiram
defender uma caravana com mais de 20 carretas que estava se dirigindo à cidade a fim de
comercializar diversos produtos. Além dos bois que acompanhavam o grupo, vários produtos
da última carreta foram levados pelos chaquenhos, totalizando mais de 780 pesos em perdas.
O assalto também deixou dois mortos e uma cidade temerosa em relação ao seu destino, já
que “la indiada infiel que hostilizaba a la gobernación del Tucumán se a recostado sobre las
cercanías de esta ciudad”, diminuindo, segundo o Capitão, o fluxo de imigrantes e
comerciantes que procuravam Santa Fe (Cardona [1730]: fl. 1-1v). O padre Florián Paucke
também narra o trágico assalto a uma caravana escoltada realizado por índios Abipone não
reduzidos, que provocaram mortes e perdas materiais irreversíveis:
Un rico negociante español, de nombre Don José de Andino, resolvió transportar
por medio de carros de carga a la región peruana sus mercaderías. El dio a cada
carro de carga o carreta como era usual, tres y medio tiros de bueyes, en número
diez bueyes, tomó a sueldo catorce soldados para acompañar sus mercaderías por
las regiones más peligrosas. Ellos no llegaron más lejos que a algunas cuarenta
leguas de la ciudad, ahí fueron asaltados por una banda de indios salvajes,
muchos de los Españoles fueron asesinados, otros [fueron] hechos prisioneros.
Se escapó un solo soldado que emprendió la huída a tiempo. Después del
asesinato cometido los indios arrearon los bueyes y caballos, tomaron de las
mercaderías lo que podían llevar consigo; al resto, carretas junto con las
mercaderías, hicieron ceniza mediante el fuego (Paucke, 1767, t. 2: 300, grifos
no original).

Estes constantes assaltos empreendidos pelos índios criavam um ambiente de


insegurança tanto para os mercadores que transitavam pelas rotas comerciais como para os
moradores das cidades, que conviviam com o perigo iminente de assaltos e ataques indígenas.
Há também relatos sobre investidas fluviais, em que grupos indígenas canoeiros assaltavam
embarcações espanholas que navegavam os rios da rota comercial entre a região portenha e o
Alto Peru. Estes ataques eram realizados principalmente pelos índios Payaguá, bastante
conhecidos por sua facilidade de locomoção pelos rios da região, que lhes proporcionava
vantagens nas emboscadas e na fuga – como pôde testemunhar o Capitão Don Salvador
Ascencio Lopez durante o rápido assalto e fuga que empreenderam a um barco que saía da
cidade de Santa Fe, do qual levaram tudo o que podiam (Vergara [25/08/1722]: fl. 3). O
mesmo grupo indígena também foi responsável pelo assalto a uma embarcação espanhola que
viajava desde Assunção carregada de erva mate, em que teve como resultado, além do roubo
da mercadoria, algumas mortes e apresamento de cativos (CA, 1735-1743: 406-407).
Mesmo que nem todos estes assaltos fossem realizados na região da Província de
Tucumã, as perdas materiais e a insegurança que provocavam resultavam diretamente na

147
dinâmica comercial de que dependia a província. Decorriam disto as principais reclamações
acerca do local escolhido para a fundação das reduções, visto que os moradores das cidades
associavam a proximidade dos índios – mesmo que reduzidos – aos assaltos e roubos às
fazendas que abasteciam os centros urbanos.
Assim, por exemplo, os pecuaristas que viviam na jurisdição da cidade de Santiago del
Estero frequentemente acusavam os Abipone da redução de Concepción pelos prejuízos que
sofriam na perda de gado – além de reclamarem dos próprios missionários que, ao adquirirem
terras do estado, afetavam os seus interesses comerciais (Vitar, 2000: 32). E, como pôde ser
constatado no capítulo anterior, o receio dos colonos não era exagerado: a documentação
setecentista – principalmente aquela produzida após a expulsão da Companhia de Jesus de
1767 – mostra que muitos grupos chaquenhos, mesmo habitando o espaço reducional,
mantinham práticas e condutas antigas, condenadas pelos colonos. Não eram raros os relatos
que denunciavam a participação de índios reduzidos em atitudes suspeitas, sendo coniventes
ou protagonistas de roubos, “experimentándose en los referido daños y perjuicios en las
haciendas de los vecinos cercanos y lejanos de cada ciudad, villa y lugares” (Acevedo [1792]:
fl. 2-2v).
Reclamações provenientes da cidade de Buenos Aires condenavam os Mocovi recém-
reduzidos em Remolinos, no rio Paraguai, por acobertarem índios não reduzidos que
praticavam roubos nas fazendas na Província do Paraguai, concluindo-se que estes Mocovi
“permanecen infieles y enemigos con capa de amistad” (Fernández [08/06/1779]: fl. 3v). Mas
o mais grave era o que relatavam sobre os Mocovi da redução de San Pedro, já que,
auxiliados por seus parentes que não viviam na redução, mantinham os moradores da cidade
de Santa Fe em constante insegurança:
Pero es la colonia de los indios infieles del río Bermejo de la misma nación que
bajan a este Pueblo donde tienen su parentela e incorporados con ellos entran
hasta esta ciudad fiados en nuestra buena fe y se hacen prácticos de todas las
entradas y salidas y estancias de la frontera y a la retirada roban las haciendas
que pueden, ayudados muchas veces de los mismos de la reducción y pasan con
ellas hasta el río Bermejo donde es su habitación y aun a las cercanías del
Paraguay, donde hay una reducción en el paraje de los remolinos sobre el río
Paraguay del cargo de aquella gobernación y dista cuando menos 28 leguas de
esta frontera de Santa Fe (Lassaga [06/10/1785]: fl. 4).

Na década de 1760, o Bispo Manuel Abad Illana já havia alertado sobre os prejuízos
que esta frequente comunicação entre os índios reduzidos e os não-reduzidos trazia à empresa
evangélica. Illana pôde presenciar, na redução de Concepción de índios Abipone, a
dificuldade em manter os nativos focados na catequese e na disciplina reducional devido à
proximidade que mantinham com os índios que insistiam em viver no interior do Chaco.

148
Constatava que, mesmo após 15 anos de contato missionário permanente, “aún son infieles al
Español, con quien, para reducirse, hicieron paz” (in Vitar, 2000: 45). É justamente a menção
a esta paz o ponto de questionamento do Bispo, que alerta para o fracasso da empresa
reducional não em decorrência da ineficiência dos missionários, mas sim devido à
impossibilidade de manter os indígenas focados na doutrina cristã e engajados na rotina
reducional.
Segundo esta visão, a comunicação que os reduzidos insistiam em manter com os não-
reduzidos desconcentravam-nos das recomendações dos missionários e da atenção para as
atividades a serem desenvolvidas dentro do espaço reducional. Se os índios não se
comprometessem ao esforço de concentração e disciplina, o trabalho dos missionários não
alcançaria seus objetivos – o que, na prática, ficou bastante claro com as missões itinerantes
praticadas no século 16, que, sem fundar espaços próprios para a doutrina dos índios nem
manter a permanência de sacerdotes em direto e constante contato junto aos nativos, criavam
uma situação de aparente conversão: os índios que se batizavam na presença dos padres já
deixavam de praticar qualquer rito ou ensinamento cristão no momento da partida dos
missionários.
A fundação de reduções permanentes foi uma maneira de centralizar os indígenas em
um ambiente quase que exclusivamente voltado para a sua conversão e civilização. Mesmo
assim, como se percebe dos relatos setecentistas, além da dispersão – fugas temporárias ou o
abandono em massa –, a interrupção do processo catequético devido ao contato entre
reduzidos e não-reduzidos reaproximava os índios dos seus antigos costumes. Os missionários
e os agentes governamentais, de modo a atrair total atenção e empenho dos índios, passaram a
investir na captação de recursos para melhor aparelhar as reduções e munir os internos com
objetos que pudessem persuadi-los a permanecer junto aos missionários.
Havia todo um esforço de convencimento por parte dos agentes eclesiásticos para que
as autoridades governamentais investissem recursos financeiros na ocasião da fundação de
novas reduções. Recursos que fossem além do mínimo necessário para erguer o espaço
missionário e que pudessem também prover os índios de instrumentos e alimentos em
abundância – tudo o que, na teoria, manteria-os disciplinadamente focados na empresa
reducional. Foi justamente isto que o procurador geral da Companhia de Jesus, o padre
Francisco Burges, solicitou ao rei, por meio do Conselho de Índias, ao sugerir uma correção
na distribuição dos auxílios pecuniários às missões dos índios Chiquito, procurando igualar os
fundos revertidos a estas reduções com os que a Coroa enviava para as reduções dos rios
Paraná e Uruguai. Segundo o jesuíta, este valor – “446 pesos y 5 reales para cada cura de cada

149
reducción, con su compañero” – deveria ser o suficiente para a aquisição dos “donecillos de
cuchillos, anzuelas, agujas y otras cosillas, que se compran con la mayor parte del sínodo
asignado por Vuestra Majestad a los misioneros” (Conselho de Índias [16/06/1706]: fl. 3).
Os missionários, que viviam a experiência direta do trabalho apostólico, sabiam da
facilidade de se atrair os índios quando havia uma disponibilidade maior de recursos para
abastecer as reduções e presentear os nativos. Chegava-se à situação em que um acordo de
aproximação entre os índios e os missionários só se efetivava mediante o oferecimento de
objetos que selariam um status de confiança entre eles: os padres abasteciam os indígenas
com instrumentos acreditando que os atraíam pelo sentido da cobiça ao dar-lhes um pouco
daquilo de que teriam em abundância, caso aderissem às reduções. Logo, os missionários
perceberam que a maneira mais eficaz de distribuir estes presentes era individualmente –
índio por índio sendo agraciado com objetos simples e quase sem valor para os espanhóis –,
mas que estas quantidades também sobrecarregavam os fundos destinados às reduções: “Esto
obliga al pobre misionero a perder mucho tiempo en conquistar y persuadir a cada uno de por
sí, y a agenciar y solicitar mayor porción de abalorios, hachas, cuchillos y otras cosas
semejantes para ganarlos” (Padre Alonso Sánchez in Furlong, 1939: 62).
Perceberam, ainda, que mesmo após o ingresso à redução, estabelecida a convivência
cotidiana com os missionários e mantida uma regularidade de distribuição de objetos e
instrumentos, os índios pareciam nunca estar satisfeitos. Em meio a tantas inconstâncias
citadas pelos curas para descrever a conduta indígena, uma constante revelava-se imperativa
entre os índios reduzidos: o fato de sempre estarem pedindo aos padres qualquer objeto,
alimento ou o que quer que fosse – “ropa, un sombrero, cuchillo, anillo, bolitas, hacha, sal,
tabaco, etc.” (Dobrizhoffer, 1784, t. 3: 355). Os Mbayá, por exemplo, caso tivessem seus
pedidos negados – por “haberles dado ya tres o cuatro cosas de alguna estimación que tienen
en las manos” – acusariam o padre de ser “un menguado, miserable, mezquino y nada liberal”
(Sánchez Labrador, 1770, t. 1: 251-252). O padre Florián Paucke narra uma situação bastante
parecida entre os Mocovi:
Otras proceden de este modo: cuando ven a alguna ir a la casa del misionero,
espían en casa hasta que ella regresa; entonces ya van a su encuentro en la plaza
y preguntan qué le ha dado el Pater. Sea lo que fuere, ya llega una después de la
otra hacia mí y pide igualmente lo mismo. Si ocurría que una mujer ha venido a
mí con sus hijos enfermos para consultar y pedir algo para su restablecimiento y
yo participé tal vez un pedacito de azúcar, tenía ya en seguida una corrida de
indias con sus hijos; todos estaban enfermos y todas querían tener azúcar.
(Paucke, 1767, t. 2: 157, grifos no original)

A conclusão à qual chegavam os missionários era de que os índios preocupavam-se


mais com o fornecimento de bens materiais do que com a busca espiritual oferecida por eles:

150
“más los atrae un interés de tan poco momento, que entran desde luego a gozar y disfrutar,
que no la predicción de la bienaventuranza eterna” (Solalinde, 1799: 4). E quanto mais os
padres davam coisas aos índios, mais estes pareciam querer, criando e difundindo a ideia de
que os nativos eram interesseiros e materialistas.
No final das contas, a distribuição de presentes chegou a surtir algum efeito, na
medida em que atraía a atenção dos indígenas para dentro das reduções; porém, logo acabaria
se tornando um infortúnio para os missionários, pois “al indio le parece que el caudal del
español es inagotable, y atribuye a mezquindad el que se le niegue algo de lo que pide,
suponiendo que no falta la cosa, sino la voluntad de darla” (Andreu [22/11/1757]: fl. 24) –
resultando daí a ideia de que “por mucho buen que se les haga, todo imaginan que se les debe:
con que ni lo agradecen, ni lo reconocen por beneficio” (Lozano, 1733: § XVI, fl. 95, grifo
meu). A impressão que o padre Lozano teve era a de que os missionários estavam vivendo
submersos em uma dívida inesgotável, cobrada por credores incansáveis em sua tarefa de
lembrá-los disso. Não era uma impressão que destoava muito da realidade: não que os índios
cobrassem uma dívida de caráter financeiro-mercadológico, pautando-se em regras
econômicas de perdas e ganhos; o que estava em jogo, para os indígenas, não era uma
cobrança de valores financeiros, mas sim simbólicos:
A riqueza nessas sociedades corresponde a um valor diferenciante que
suplementa seu aspecto coletivizante. Essa riqueza não é “dinheiro” porque sua
significância como “dádiva” – como algo em si mesmo – sempre predomina
sobre seu valor de troca. Nas trocas sociais não se “compram” mulheres e
crianças: o que se faz é “dar” e “receber”, ou no máximo “substituir”. A
valoração coletiva é elicitada pelo ato de dar muito ou pouco, dar o que é
precioso ou o que é menosprezado, conforme o caso. Cria-se a adequação do
relacionamento entre doador e receptor, e isso se dá mediante o
“reconhecimento” de sua imanência. Mas não se cria o relacionamento per se
apelando-se a um valor explícito, e é isso o que distingue a dádiva do dinheiro, a
“reciprocidade” tribal de uma economia mercantil (Wagner, 1975: 149-150,
grifos no original).

O que os indígenas estavam cobrando dos missionários eram atitudes e ações na forma
de objetos que, dentro da sociabilidade nativa, não corresponderiam ao mesmo valor de
propriedade que possuíam na economia moderna. Isto porque, para a economia tradicional, os
elementos que entravam no grupo por meio das trocas valiam antes pela sua função de
geradores de reciprocidade do que como bens consumíveis. No que competia à organização
socioeconômica nativa, um sistema baseado na transmissão coletiva dos elementos extraídos
do exterior entre os seus membros fazia com que a economia não fosse “um setor com
desenvolvimento autônomo no campo social” (Souza, 2002: 222):
A exogamia lingüística e a rede de circulação dos artefatos geram uma situação na
qual cada tribo, cada grupo local, se percebe como um elemento no seio de um

151
metassistema regional, elemento que deve sua perenidade material e ideal às trocas
regradas com as outras partes do todo (Descola, 1998: 38).

Diferente da ontologia ocidental, que visa ao enriquecimento por meio da apropriação


de bens almejando a intensificação das distinções sociais, a ontologia sul-ameríndia buscava a
repartição dos elementos em um sistema de redistribuição. A reciprocidade, portanto, seria
um “valor cardinal” (Descola, 1998: 30) que articulava não só as relações e o crescimento
social do grupo interno, mas também gerenciava o que era externo à esfera reciprocitária. Dito
de outra forma, as trocas generalizadas funcionavam como uma dobradiça sociológica que
regulava a geometria virtual do grupo, colocando os aliados dentro do regime de consumo dos
bens materiais e simbólicos extraídos na esfera externa: “Não se troca coisas com qualquer
pessoa. [...] É preciso dar, receber e retribuir, mas apenas com um certo tipo de pessoas que
estabelece com alguém um certo tipo de relação” (Villela, 2001: 208).104
A insistência dos índios em pedir objetos aos missionários seria, portanto, uma
tentativa de introduzi-los na relação de trocas reciprocitárias e formadoras de alianças no meio
social nativo. Assim como os primeiros colonizadores iniciavam o contato com os grupos
indígenas através de escambos – que, muitas vezes, incluíam mulheres –, os missionários
também estabeleciam a distribuição de presentes como forma de efetivar uma aproximação
com os nativos que pretendiam reduzir. O que talvez os padres não compreendessem é que,
para os índios, mesmo após o estabelecimento da redução, havia ainda a necessidade de
manter as trocas como forma de não deixar a relação esgotar-se.
Como analisado no capítulo anterior, os chaquenhos pautavam a sua sociabilidade por
meio da constante construção de suas relações, evitando a inércia que desaproximaria os
grupos aliados. Ao insistirem nos pedidos, os índios mantinham ativas as relações – ainda que
para os padres fossem tidas como atitudes pouco colaborativas e impertinentes. Em resposta,
os nativos mantinham o sistema de reciprocidade em pleno funcionamento por meio de
doações constantes, sem negar nada do que lhes pedissem:
La causa se encuentra en que ellos tienen la costumbre de no negar nada de lo
que otros, sean quienes fueren, solicitan de ellos. Cuántas veces los he
vituperado por este despilfarro pero sin resultado pues ellos no pueden aguantar
de modo alguno que se diga de ellos ser mezquinos lo que en su lengua denota:
Acimatcaet. Para que entonces esto no les sea reprochado, entregan todo cuanto
se les pide. Yo he tenido que oír muchas veces esta denominación porque ellos
se creían que yo sentiría igual impresión cuando me llamaran Acimatcaet o

104
“Se, em uma economia mercantil, as coisas e as pessoas assumem a forma social da coisa, então em uma
economia do dom elas assumem a forma social da pessoa” (Marilyn Strathern apud Viveiros de Castro, 2002a:
359, nota 15).

152
mezquino y les daría todo lo que ellos me pedían (Paucke, 1767, t. 2: 155-156,
grifos no original).105

O padre Pedro Andreu, em uma situação que lhe pareceu bastante incomum,
descreveu como os Mataguayo chegavam a furtar objetos da redução para oferecer ao cura em
troca de outros itens novos, que, “por evitar mayor daño, daba al indio lo que podía,
comprando lo que era suyo” ([22/11/1757]: fl. 25v). Para os índios importava menos o que era
trocado do que a troca em si – a possibilidade de efetuar uma transição material, cujos valores
seriam coadjuvantes de uma encenação em que os gestos de dar e receber protagonizavam
toda a ação cênica. Isto porque,
não apenas a reciprocidade é redutível à proposição de que as pessoas tendem a
atribuir valorações relativas às coisas, como essa proposição é ela mesma
redutível ao fato de que esses valores são constantemente criados e
transformados no ato de se referir a eles ou de lidar com eles (Wagner, 1975:
149-150).

Os itens, portanto, assumiam valores relativos no ato da troca, fazendo com que os
índios envolvidos preterissem a capitalização de bens de forma a priorizarem o
estabelecimento de uma proximidade pautada na aliança entre as partes. Na prática, a
reciprocidade era um ato de sociabilidade que deveria ser realizado frequentemente,
contrariando a lógica dos agentes coloniais que acreditavam ser necessário estabelecer apenas
uma troca com os nativos ou dar-lhes alguns objetos de presente para que a aliança fosse
confirmada. Daí as reclamações dos missionários acerca da insistência dos chaquenhos
reduzidos que cobravam presentes a todo o momento: os nativos estavam, na verdade,
reivindicando a manutenção dos acordos realizados durante as negociações entre os agentes
eclesiásticos e os caciques na ocasião da fundação das reduções, quando os missionários
faziam questão de presentear os grupos potencialmente reduzíveis. Eram situações em que,
além de se atrair os índios às reduções para catequizá-los, buscava-se a pacificação destes
grupos e a sua cooperação para poder alcançar outros grupos mais hostis.

105
Em contrapartida, o padre Paucke tinha orgulho em declarar sua avareza: “Especialmente las indias hicieron
diversas pruebas conmigo; ellas pedían eso o aquello. Aunque yo me disculpara que lo pedido por ellos no
existía, tuve que ser llamado sin embardo un Acimatcaet. Pero yo me remedié y dije que yo no podía oír un
nombre más agradable como que yo fuera un mezquino. A más pedí que comunicaran en la aldea que yo era un
mezquino pues (dije) en esto tengo el mayor provecho; si todos en el pueblo supieran que yo era dadivoso y daba
todo, no me bastaría el día para atender a todos y darles lo que yo no podría rehusar. Pero si ellos saben que yo
soy un mezquino, tendré paz con todos pues ellos sabrán ya de antemano que vienen en vano hacia mí y deben
volver [con manos] vacías” (1767, t. 2: 156, grifos do autor). À lógica moderna, a atitude perdulária dos índios
servia para reafirmar a teoria de que os povos tradicionais eram imprevidentes e incapazes de administrar seus
próprios bens, já que, aparentemente, não davam o mesmo valor e importância aos objetos que os espanhóis.
Mais adiante, mostrarei como isto se refletia na participação dos nativos no mercado monetário da Província de
Tucumã.

153
Foi com este intuito que, em 1743, o Mestre de Campo da cidade de Santa Fe,
intermediando as negociações entre o cacique Aletin e a Coroa espanhola para a redução dos
índios Mocovi, fez a solicitação de “una limosna entre este vecindario para el principio de la
fundación del pueblo” – apostando na captação de recursos como a forma mais eficaz para
atrair os índios (Vera Mujica [26/04/1743]: fl. 1-1v). Um mês depois desta solicitação, o
Mestre de Campo volta a insistir pedindo “algún ganado y demás providencias”, já que os
índios permaneciam ao lado de Aletin a fim de se reduzirem, só esperando o envio dos
recursos para dar início ao povoado (id. [22/05/1743]: fl. 1). Alguns meses depois, os esforços
do Mestre de Campo resultaram na fundação da redução de San Javier de índios Mocovi (cf.
Paucke, 1767, t. 2: cap. 1).
Em outra ocasião, a distribuição de presentes também foi usada pelos agentes
coloniais como forma imediata de conquistar a confiança dos índios. Após sucessivos
conflitos com os Mocovi e os Abipone, um indígena foi capturado e levado ao colégio da
Companhia de Jesus estabelecido na cidade de Santa Fe. Lá, o índio foi recebido
“cariñosamente, obligándoselo cada día con nuevos favores” até tornar-se confiável aos olhos
dos padres. Acordou-se, então, que retornaria à sua aldeia e convenceria os demais índios a
aceitarem a amizade dos espanhóis – e que, para que isso funcionasse, enviaram o índio com
“aquella clase de regalillos, de que más gusta aquella gente”. O índio realmente cumpriu com
a promessa e retornou à cidade com o seu grupo, que, por meio de uma negociação liderada
pelo cacique, firmou paz com os moradores de Santa Fe – ainda que, como sublinhou o autor
do relato, “ella todavía no es muy segura, tomándose en cuenta la inconstancia de los
bárbaros” (CA, 1730-1735: 54-55).
Já o padre Domingo Muriel sustenta que, somente num curto período da década de
1750, houve uma certa retração dos índios que se mantiveram reclusos no Chaco após as
duras ofensivas empreendidas a mando do Governador de Tucumã, Dom Juan Martínez de
Tineo. O jesuíta se recorda da breve tranquilidade que se fez na região, possibilitando a
retomada das rotas comerciais e, principalmente, do cultivo da terra e dos animais, “aunque
no dejaba de estar la seguridad acompañada de alguna sombra de temor”. Isto porque a
atuação do Governador foi eficaz somente para afastar os índios temporariamente das
proximidades das cidades, sendo ainda possível avistá-los em pequenos e dispersos grupos à
espreita das fazendas (Muriel, 1767: 7-8) – como notificaram ao Governador do Rio da Prata
os membros do cabildo de Santa Rosa, de cuja fazenda estavam sendo levados animais: “los
Abipones infieles juntos con los Guaycurús por el decurso de muchos años nos están

154
molestando y no como guerra, sino que llegan hasta hurtarnos nuestros animales y hacer
muertes” (Cabildo de Santa Rosa [26/02/1758], grifos meus).
O mais interessante é que os próprios membros do cabildo identificaram as investidas
indígenas não como um ato inicialmente militar, em que os nativos teriam se mobilizado para
a guerra, mas sim como um empenho coletivo a fim de captar recursos através de ações
furtivas, com o mínimo de contato com as vítimas. Por isso, os relatos sobre roubos ou furtos
cometidos pelos grupos indígenas são descritos como ações discretas e com poucas ou quase
nenhuma morte. Mas não é somente neste sentido que se podem diferenciar as investidas
bélicas (voltadas para a guerra) daquelas cuja intenção era somente furtar itens: os próprios
bens que moviam estas ações acarretavam uma tênue distinção entre a guerra e o roubo.
Pode-se dizer que, no caso da guerra, os índios buscavam essencialmente bens
simbólicos cujo consumo tinha respaldo imediato dentro do coletivo – ou, pelo menos, eram
botins captados para a internalização, diferente dos adquiridos através dos roubos, cuja
utilização parecia ter função contrária: eram captados para serem trocados ou
comercializados, raramente ficando no grupo. Estabelece-se a distinção entre roubo e guerra
na medida em que cada uma destas atividades possuía objetivos e resultados próprios, ainda
que complementares dentro do sistema sociológico indígena. Se a guerra era acionada como
mobilizadora da vingança para que fossem provocadas as reações de dinamicidade e
atualização sociais, os roubos cometidos pelos índios possuíam a função de capitalizar
recursos para que estas práticas sociais e simbólicas pudessem continuar existindo. O
combustível da socialidade indígena era oportunizado através dos furtos, munindo os índios
de montaria e armas, por exemplo.106
Além disso, é importante alertar que o conceito de roubo é uma classificação que
pertence ao entendimento dos espanhóis acerca das atitudes indígenas em relação à captação
de recursos. Se, para os primeiros, que compartilhavam a lógica ocidental moderna, que prevê
o senso de propriedade privada regendo a economia e as relações sociopolíticas, para os
nativos a compreensão da posse exercida sobre objetos e outros seres não necessariamente
balizava-se pelo entendimento de uma propriedade individual. Assim, os assaltos e furtos
cometidos pelos índios – ainda que cientes do prejuízo que podiam estar causando aos

106
Distingue-se, assim, a guerra do roubo, ou, pelo menos, ficam mais evidentes as distintas intenções que os
grupos indígenas tinham ao promover um ataque a alguma redução, fazenda ou cidade. O Bispo de Buenos
Aires, em um informe ao Rei da Espanha, descreveu a atuação dos índios Guaicuru e dos Charrua a partir da
postura que estes grupos assumiam em épocas de paz e de guerra: “[…] porque en medio de la paz se roban
todos los ganados, que por descuido en el campo se quedan, diciendo que la paz sirve sólo para no hacer muertes
de hombres ni mujeres, pero no para dejar de robar cuanto pudieren: y sin embargo, también hacen muertes en
algunos caminantes por robarlos” (Peralta [08/01/1743]: 1v).

155
colonos, em função da reação a estes atos – não visavam à usurpação da riqueza alheia para o
acúmulo e capitalização de bens; pelo contrário, manejavam os recursos como combustíveis à
sua dinamicidade social: se havia algum acúmulo era de relações sociais, e não de bens. Dito
de outra forma, os grupos indígenas não se diziam donos dos objetos ou seres que habitavam
sua realidade, estando mais inclinados a se dizerem proprietários dos resultados que obtinham
através de sua manipulação coletiva. Entre os Nivaclé do Chaco, por exemplo, “todo lo
recolectado se compartía, porque la tierra que lo producía no era propiedad de nadie” (Cruz
Sánchez, 1998: 297). Os bens produzidos ou coletados eram sempre coletivizados entre os
membros do grupo, com o intuito de fazer o ganho individual – na caça, na pesca, na coleta
ou na colheita – render enquanto bem socializante, isto é, livre do sentido de posse solipsista:
não eram os meios que lhes pertenciam, mas sim o uso ritualístico e social que estes itens lhes
facultavam. Os furtos, na verdade, supriam as demandas do coletivo, assim como a guerra,
que também cumpria esta função.
Segundo o padre Dobrizhoffer, os Abipone, que investiam contra fazendas e levavam
animais, não se diziam ladrões, justificando que “todas las cabezas de ganado de los españoles
les pertenecían, porque nacieron en sus tierras que en otro tiempo éstos ocuparon a sus
mayores sin que nadie los rechazaran, y que se las usurparon sin ningún derecho” (1784, t. 2:
138). Se, de acordo com as regras impostas pelos invasores, as coisas e os seres eram
propriedades de alguém, os índios então se apoiaram na explicação que melhor lhes convinha:
aquelas terras não eram apenas habitadas pelo seu povo há mais tempo,107 elas também
haviam sido criadas para que eles ali vivessem como bem especificavam os seus mitos.108 A
questão passava a ser de ordem prática, e não uma disputa de direitos de propriedade sobre as
coisas: se estavam há mais tempo naquelas terras, e foram seus antepassados que receberam
as instruções dos heróis civilizadores de como relacionar-se com a fauna e a flora, era de se
107
O próprio padre Dobrizhoffer constatou que os índios já viviam no Chaco há muito tempo, afirmando, ainda
que com certa ressalva, que “es muy probable que mucho tiempo antes de la llegadade los españoles hayan
vivido indígenas en este país, pero no dudamos menos que más tarde otros bárbaros, por su seguridad, se les han
agregados” (1784, t. 1: 222). É interessante notar que, mesmo conhecendo os nativos após décadas de convívio e
a história da Conquista da América pelos espanhóis, o jesuíta preferiu não ser contundente em sua afirmação
porque, segundo sua apreciação dos fatos, os índios – por serem ágrafos – estavam impossibilitados de registrar
– e, com isso, comprovar – a sua existência pré-colombiana: “Como el arte de escribir no se usaba entre los
bárbaros, creo que todo lo que los historiadores han escrito sobre esta época, hay que considerarlo como
suposiciones” (eod. loc.).
108
Exemplifico esta percepção através do mito de criação dos Mbayá, segundo o qual as coisas não pertenciam
aos índios porque, de acordo com a maneira como elas foram postas no mundo, não havia lhes sido dada a posse,
mas sim o direito de uso delas. Diziam que “el Dios de los Cristianos no los crió, porque si los hubiera criado,
dierales a ellos como a los Cristianos vacas, ovejas y zapatos” (Muriel, 1766: 137). Para os índios, portanto,
havia uma relação lógica entre a criação das pessoas e o sentido de propriedade dos objetos e recursos
disponíveis. Pelo menos, no que se pôde analisar da mitologia ameríndia, a criação do homem não o colocava
numa condição exclusiva ou distintiva em relação aos demais seres do mundo – bastante diferente do
criacionismo cristão, cujo homem havia sido feito à imagem e semelhança de Deus.

156
esperar que nenhum índio e nenhum branco reivindicasse o direito de propriedade sobre
algum animal ou coisa. A relação entre eles é que deveria ser priorizada, como tentaram
explicar os índios Mocovi que acompanhavam o padre franciscano Antonio Lapa em sua
expedição ao Chaco. Nesta ocasião, o cacique Lachiquitin informou ao missionário que seus
índios pretendiam ir até a redução de San Jerónimo, onde viviam os Abipone do cacique
Benavides, com a finalidade de “proveerse de algún ganado, que no iban con intención de
pelear, sino de arrear lo que pudiesen”. Lapa, então, aconselha-os dizendo que tal atitude não
seria correta, justificando que “nunca era bueno tomar cosa alguna sin la voluntad de su
dueño”. A resposta foi
que bien lo conocían y que si estuvieran en reducción, no lo harían así por estar
sujetos a otra ley, como porque en ese caso hallarían proveído de sus menesteres,
pero que al presente no se los impidiese, porque los dichos abipones, antes de
estar en reducción, también les solían robar a ellos, cuando tenían necesidad, que
al presente se hallaban ellos muy necesitados, porque las frutas silvestres se iban
acabando y quedaban a perecer por cuyo motivo, como cobrando lo que los
abipones en otros tiempos les habían robado, querían ellos ir a traer dicho
ganado y es cierto que según experimente el poco tiempo que allí estuve las
gravísimas necesidades, que estos miserables padecen les obliga a cometer estos
y otros insultos (Lapa [23/10/1776]: fl. 41).109

Os Mocovi partiram de dois argumentos interessantes para justificar suas intenções:


primeiro, que não estariam sob as regras impostas pelos missionários, deixando claro com
isso que o conceito de roubo pertencia à esfera mental dos missionários e à circunscrição de
suas reduções; segundo, que estariam apenas respondendo a uma atitude que tinha respaldo
num costume praticado pelos dois grupos há muito tempo. Estariam, portanto, inseridos num
contexto que pertencia ao sistema relacional indígena, por mais que pudesse parecer estranho
aos espanhóis. Ainda assim, não se excluíam as chances de a empreitada mocovi ser a
responsável pelo início de um conflito armado, alterando o objetivo inicial dos invasores e
deslocando-os para a guerra. Isto porque, ainda que houvesse um costume por trás destas
capturas, as vítimas não tinham que encarar o sumiço de seus animais de forma pacífica,
procurando defender-se da maneira que pudessem.
O fato é que estes assaltos cometidos pelos índios foram uma constante durante o
século 18, sempre marcados pelo medo que provocavam nos colonos e pelos prejuízos
decorrentes das perdas econômicas para a região. Pode-se ter uma ideia da truculência destes
assaltos pela descrição realizada por Don Ignacio de Plazada, morador da cidade de Salta:

109
Sob a mesma lógica, os Abipone, sempre que acusados de terem cometido algum roubo, negavam estar
praticando qualquer atitude ilegal, argumentando que “sus tierras les fueron quitadas por los españoles; y
afirman que todo lo que allí haya, es con derecho de ellos, ya que ha nacido en sus tierras” (Dobrizhoffer, 1784,
t. 3: 359).

157
Según se han conjeturado por los trozos que se descubrieron y se vieron en tantas
partes, no serían menos de mil indios, porque unos daban en las casas y otros
corrían las campañas recogiendo todos los ganados con que llevan un trozo
considerable de despojos muchos de ropa, armas, vestidos, plata labrada y cuanto
han topado, quedando lo han dejado inservible, de suerte que no se ve en todas
las casas más que lamentos y aflijones ni se verá más que lutos quedando
familias enteras pasadas a cuchillo y otras destruidas sin que se haya visto
dejasen niño ni mujer, que no destrozasen haciendo pedazos los cuerpos (Autos
[1734]: fl. 98).

A descrição, apesar de provavelmente exagerar na quantidade de índios que invadiram


a cidade, é interessante ao elencar alguns dos itens que foram furtados pelos invasores. Ainda
que muitos objetos fossem de interesse dos índios por terem valor de troca, foram sempre os
animais, em especial, os cavalos e o gado, os principais alvos destas expedições de captação
de recursos. Foi, por exemplo, o que motivou um grupo de cinco índios Abipone a invadirem
sorrateiramente o povoado de índios Calchaqui, pertencente à jurisprudência da cidade de
Santa Fe. Após conseguirem capturar alguns cavalos, foram descobertos durante a fuga pelos
soldados que cobriam o forte da região, ocasião em que morreram três índios e os outros dois
foram levados à prisão da cidade (Vera Mujica [12/11/1746]: fl. 1-1v).
Em outra ocasião, um grupo de índios Abipone também não conseguiu triunfar no
assalto que promoveram à fazenda da redução de San Jerónimo. Apesar de serem da mesma
etnia que a dos moradores daquele povoado, os índios que pretendiam furtar animais eram de
um grupo não reduzido e estavam acompanhados de outros Toba e Mocovi. O grupo, que
totalizava cerca de 400 homens, chegou a conseguir roubar “cuatro mil cabezas de ganado
astuto y todos los caballos tanto de la comuna del pueblo como los propios de los indios”. Sua
fuga, porém, foi interceptada porque os Abipone da redução solicitaram ajuda aos Mocovi de
San Javier e, após formarem uma milícia, alcançaram o acampamento dos ladrões, reavendo
cerca de “tres mil cabezas de ganado astudo y más de ochocientos caballos los que
devolvieron todos al pueblo perjudicado” (cf. Paucke, 1767, t. 2: 302-303).
Conseguir capturar os invasores era uma situação bastante rara para os colonos, que ou
confrontavam-se com os índios sem resultados satisfatórios, ou só percebiam a sua visita após
a contabilização das perdas. Além disso, muitos animais que eram levados nestas investidas
furtivas acabavam sendo utilizados como montaria destes grupos para outras ações bélicas ou
até mesmos assaltos, como se pôde comprovar quando alguns Toba foram detidos pelos
moradores da redução de San Juan tentando furtar sua fazenda. Os dois cavalos que foram
utilizados pelos índios para cometer o assalto eram “marcados, como suelen marcarlos los
españoles”, comprovando que ambos foram roubados das estâncias coloniais (CA, 1735-
1743: 532-533). Confirmava-se o que o padre Dobrizhoffer viria a constatar décadas depois,

158
ao afirmar que, para os índios, era mais interessante manter uma frequência de ataques aos
espanhóis, já que assim “conseguían armas y firmada la paz era imposible obtenerlas” (1784,
t. 2: 133). Estes roubos não só proporcionavam recursos para a guerra indígena, como
poderiam ser os desencadeadores de conflitos bélicos, fazendo com que a guerra e o furto
estivessem à beira de uma relação muito próxima, quase confundindo-se como práticas da
ordem da sociabilidade e do cotidiano relacional indígena.
Para além disso, em termos práticos, os índios também perceberam que estes materiais
coletados através de suas incursões furtivas eram moeda de troca dentro de um tráfico ilícito
de mercadorias existente na economia colonial. A via legal, o comércio oficializado pelo
Estado, também foi experimentado pelos grupos chaquenhos, o que motivou discussões
acerca dos benefícios e prejuízos que tal costume poderia acarretar a estes povos. O fato é que
os índios souberam não só aproveitar o contexto em que estavam inseridos, como também
adicionaram estes expedientes próprios do mundo colonial às suas necessidades sócio-
cosmológicas. O exemplo mais claro talvez seja a introdução da aguardente, produzida e
distribuída através de meios modernos, nas tradicionais bebedeiras indígenas.

3.2 O comércio de bebida como potencializador da sociabilidade indígena


O padre Florián Paucke presenciou a seguinte cena que ocorreu na redução de San
Javier, onde exercia a função de cura:
Ellos tenían a la vez algunos pequeños tambores y diversos instrumentos de
viento mediante los cuales hicieron unos estrépitos espantosos durante la noche
entera. A la mañana el asunto se tornó serio; todas las mujeres y niños salieron
corriendo de sus chozas y se salvaguardaron en nuestro patio. Vimos una
cantidad de indios con lanzas correrse los unos a los otros; nadie pudo atreverse
a apaciguar este tumulto. Los indios completamente desnudos se perseguían
mutuamente pero todavía sin herirse hasta que al fin un indio de la nación
Mataguay, aún un pagano, vino a dar en las lanzas de dos indios que las metieron
a éste hasta siete veces en el vientre y lo dejaron tirado en el lugar con los
intestinos echados para afuera (Paucke, 1767, t. 2: 67, grifos no original).

Esta poderia muito bem ser a descrição dos acontecimentos sucedidos durante uma
invasão indígena e o dramático embate que teria se seguido. A morte em um combate não
seria nenhuma novidade dentro dos relatos setecentistas sobre as hostilidades praticadas
naquele contexto. Além das guerras serem uma constante nas descrições dos observadores
hispanófonos, a violência dava o tom do discurso para carregá-lo de veracidade e denunciar as
atitudes indígenas. Porém, a violência, que também se faz presente neste trecho assinado por
Paucke, não era direcionada ao inimigo, nem ao menos tratavam-se de investidas bélicas
movidas pela intuito de se fazer a guerra: o que está sendo narrado pelo missionário é, na

159
realidade, o resultado de uma festa promovida pelos Mocovi daquela redução aos seus
parentes não reduzidos e grupos aliados, tais como os Mataguayo. A celebração consistia em
uma confraternização em torno da bebida alcoólica, comumente chamada chicha, feita à base
de alfarroba (Lozano, 1733: § IV, fl. 28) ou mel (Dobrizhoffer, 1784, t. 3: 362), ou ainda
utilizando-se o chañar e o mistol misturados a raízes e outras frutas (Brizuela, 1774: 30; cf.
também Lucaioli, 2009b: 131).
Durante toda a noite, os participantes embebedavam-se até atingirem um estado de
total embriaguez, que os impulsionava a praticar atitudes violentas uns contra os outros.
Mesmo que este não fosse o objetivo destas festas, o ferimento e a morte de alguns
participantes não eram consequências incomuns. Com certeza, o alto valor etílico ingerido
pelos índios era um dos fatores que os lançava a essas hostilidades – que se tornaram a
principal característica ressaltada pelos missionários em seus registros sobre as festas
indígenas, de modo a depreciá-los e buscar sua extinção. Porém, não devem ser ignorados
outros fatores que, acionados durante estas bebedeiras, provocavam uma guinada nas relações
entre os participantes.
Ainda que não seja o caso de identificar esta brusca mudança entre os integrantes da
confraternização como a passagem de um estágio de aliança para o de inimizade, a violência
para a qual a situação inclinava-se deixa claro que não apenas os ânimos se alteravam, mas
também a postura dos participantes. As bebedeiras envolviam, portanto, muito mais do que a
simples embriaguez e o desatino dos índios – daí a importância de tomá-las como rituais
celebrativos de integração social e, também, como uma forma de potencializar as qualidades
individuais, mais ou menos como ocorria nas socializações promovidas no pós-guerra (com as
cabeças-troféus ou a antropofagia). A questão, aqui, é que nas bebedeiras a celebração
situava-se num momento anterior à guerra.
Em sua descrição sobre as bebedeiras entre os Lule, Pedro Lozano mostra o caráter
ritualístico destas celebrações, em que homens e mulheres ocupavam tarefas próprias, além de
um cronograma a ser seguido pelos participantes. A sociabilidade se fazia presente não apenas
na confraternização e repartição da bebida alcoólica, mas também na ornamentação corporal,
em que os participantes apresentavam-se a caráter:
Esta se reduce a que los varones pintan sus cuerpos remedando las manchas del
tigre: cíñanse unos plumajes y se ponen una cola de raposa y en las cabezas unas
corozas de cuero adornadas de plumas de varios colores y en las manos traen dos
plumas a modo de aspas. Las mujeres se tiznan la cara de negro y colorado y
ciñen la cabeza con un plumaje rojo y el mismo adorno de plumaje trae la que
lleva el compás, que ordinariamente no bebe de manera, que se prive (Lozano,
1733: § XVII, fl. 102-103).

160
Paucke também descreve as práticas coletivas que envolviam a celebração na aldeia,
ressaltando as pinturas corporais realizadas durante o festejo – que, segundo o missionário,
envolviam centenas de pequenas perfurações no peito e nos braços –, além da perfuração da
língua com espinhas de peixes. Os índios também utilizavam estas ocasiões, segundo Paucke,
para trocar seus nomes (1767, t. 2: 209), fazendo das festas de bebedeira uma importante
oportunidade de integração social entre os parentes e aliados.
Como tentei mostrar no capítulo anterior, ao mesmo tempo em que as pinturas e as
modificações físicas no corpo imprimiam-se individualmente, elas projetavam padrões sociais
de integração do coletivo: a individualidade de cada pessoa complementava-se pela
coletividade dos corpos. O caráter social e a importância da integração do grupo nestas
celebrações evidenciavam-se também pelas danças e cantorias praticadas antes e durante toda
a bebedeira. E, assim, os índios passavam a noite toda cantando, dançando e bebendo, até que
toda a bebida estivesse consumida – e, como consequência, a embriaguez se fazia presente
entre os participantes. Ao final, “empiezan los garrotazos, flechazos, estocadas y pendencias
en que se hieren malamente y a veces se matan”. Exauridos, caíam pelo chão adormecidos e
ensanguentados até que “volviendo en si al otro día nadie se queja del otro por más que haya
maltratado en la gresca, ni sirve esto de escarmiento para que deje de asistir a las otras
borracheras” (Lozano, 1733: § XVII, fl. 103).
A violência desencadeada nestas festas de bebedeira, que acabava marcando seu
encerramento, parecia ser uma situação recorrente entre os grupos chaquenhos, ainda que se
deva levar em consideração que a maior parte dos relatos são provenientes da observação de
missionários, cuja intenção era buscar meios de afastar os índios da bebida alcoólica. Por isso,
deve-se ter cautela em relação aos registros que dão a impressão de que todas as celebrações
deste tipo resultavam em pelo menos uma morte. Não obstante, admite-se que estas
celebrações estavam longe de terminarem de uma forma pacífica: o padre José Jolís,
referindo-se genericamente aos chaquenhos, afirma que a bebida alcoólica, “vicio común a los
salvajes”, é a “causa de tantas riñas, de no pocos homicidios y de la multitud de pequeños
villorrios en los que están divididos” (1789: 318). Lozano tentou expressar, com pungentes
adjetivos, o estado de espírito que tomava conta dos índios durante suas bebedeiras:
[…] les deja tan feroces que parecen les animan las mismas furias y uno de sus
festines, es una representación vivísima de aquel desorden y sempiterno horror
del abismo; unos, con el calor del vino, desentonadamente cantan, otros
amargamente lloran; estos gritan, aquellos dan suspiros, aquí corren, allá saltan;
y todos se ensayan en los ejercicios de que cada uno más se precia, con la
destreza que se puede presumir de quienes tienen, no solo turbada sino perdida la
cabeza contrahacen y remedan las voces de los animales, braman, silban, rugen,

161
aúllan, ladran, relinchan e imitan los cantos de las aves, con una intolerable
confusión (Lozano, 1754: 426).

Mesmo que a violência tomasse conta da parte final das festas de bebedeira, o
ressentimento não parecia acordar com os índios no dia seguinte. Os relatos deixam entender
que as hostilidades cometidas durante os festejos não se manifestavam como atitudes de
represália pessoal: não era como se estas ocasiões fossem praticadas e cultivadas com o
intuito de relembrar e resolver desavenças internas do grupo. Daí que, no dia seguinte à
celebração, “echan en olvido los golpes pasados, y ninguno forma queja ni querella, porque el
otro descargó sobre él, los ímpetus de su borrachera” (Guevara, 1764: 15). Em uma Carta
Ânua encontra-se o relato de um padre missionário que se mostrou surpreendido porque os
índios Lule, que “vinieron muy alegres, a consecuencia de la chicha, todos ensangrentados,
perfurados los brazos con huesos agudos”, não demonstraram sentir raiva ou ímpeto de
cometer alguma violência (CA, 1735-1743: 554).
É inegável que esta exaltação dos humores, que podia resultar em violência física ou
até em situações mais dramáticas, tinha sua origem nos efeitos do álcool. Porém, analisar a
situação apenas por este viés é reduzir uma celebração ritualística a um entretenimento sem
grandes motivações. Não quero, com isso, negar a possibilidade de os índios possuírem
práticas que se fundamentavam apenas no exercício do ócio ou da vontade, que fossem
desprovidos de um caráter simbólico-ritualístico, como se toda cultura não-ocidental fosse
movida de magia e simbolismos. A questão é que, segundo os relatos setecentistas, a ocasião
das bebedeiras parecia vir acompanhada de significados ou motivos que eram muito maiores
do que a confraternização em si.
Para além do desfecho trágico que estas celebrações poderiam ter, nota-se que havia
um envolvimento coletivo voltado à preservação do grupo e, principalmente, da memória.
Florián Paucke observou que, entre os Mocovi, quando o álcool tomava conta dos presentes,
estes começavam a recordar “todas las injusticias y ofensas que les han ocurrido por otros;
lloran de ira, gritan y desafían a éstos aunque no estén presentes”. As lembranças uniam o
grupo, que começava a cantar num “sonido y melodías tan salvajes durante toda la noche que
es muy terrible” (1767, t. 2: 199, grifo no original).
As bebedeiras eram celebrações indispensavelmente coletivas em que os parentes e os
aliados deveriam compor o quadro de presentes, a fim de se alcançar o objetivo de integração
do grupo. Isto porque, segundo revelam os relatos documentais, nessas festas recorria-se à
preservação da memória dos feitos antigos e dos parentes mortos em batalhas. Porém, não era
uma preservação que visava homenagear o passado através das recordações, mas sim garantir

162
a continuidade das guerras futuras: a memória trabalhava para a vingança, e esta, para o devir.
E, assim como os observadores setecentistas notaram uma relação entre as bebedeiras e a
violência, também perceberam uma aproximação entre esta violência e a memória: “Son
vengativos, conservando con gran disimulo por muchos años la memoria de los agravios hasta
lograr la coyuntura para despicarse, que ordinariamente suele ser en sus borracheras”
(Lozano, 1733: § XVI, fl. 95). Nas palavras do Bispo Manuel Abad Illana, a embriaguez “es
la que excita en sus ánimos la pasión de la ira, y despertándoles las especies dormidas de las
pasadas injurias, les aviva los deseos de la venganza” (in Vitar, 2000: 63).
A lembrança das guerras passadas e dos parentes que sucumbiram nas mãos dos
inimigos eram os temas que insuflavam os índios durante os festejos. A bebida alcoólica
acionava as dolorosas recordações do passado – nem sempre tão distante – e inspirava os
participantes a promover um acerto de contas que os impulsionava à posteridade: era – como
pontuou o padre Bernardo Castro – o “tiempo de las venganzas” (Furlong, 1939: 53). As
celebrações não se destinavam aos mortos, mas sim aos guerreiros que se lançariam a vingar
seus parentes nas vindouras refregas com os inimigos:
Pois não se tratava de haver vingança porque as pessoas morrem e precisam ser
resgatadas do fluxo destruidor do devir; tratava-se de morrer (em mãos inimigas
de preferência) para haver vingança, e assim haver futuro. Os mortos do grupo
eram o nexo de ligação com os inimigos, e não o inverso. A vingança não era um
retorno, mas um impulso adiante; a memória das mortes passadas, próprias e
alheias, servia à produção do devir (Viveiros de Castro, 2002a: 240, grifos no
original).110

A festa de confraternização entre parentes e aliados era a ocasião escolhida para que os
homens aptos à guerra recolhessem-se à reunião com seus caciques e decidissem as medidas a
serem tomadas com relação aos inimigos. E faziam tudo isso, segundo o padre Pedro
Guevara, inspirados pelo alto teor alcoólico presente nas bebidas, que “tomados del vino y
faltos de juicio decretan la guerra, por las utilidades que se prometen en los despojos del
enemigo, en los prisioneros que aspiran a cautivas, y en el honor de valientes que esperan
adquirir” (1764: 11). As bebedeiras, portanto, eram as responsáveis por acionarem o ímpeto

110
Florestan Fernandes (1952) já havia ressaltado a relação entre a guerra e a construção social dos Tupinambá
na América portuguesa, a partir da questão da vingança como propulsora da atividade bélica. Segundo o autor, a
função social da guerra encontrava-se, justamente, na necessidade de manter o vínculo com os mortos ou os
antepassados do grupo, fazendo da vingança um mecanismo de retribuição aos parentes já falecidos: “Em uma
linguagem técnica, essa seria propriamente a função manifesta da guerra na sociedades tupinambá. Como a
‘vingança’ definia obrigações dos vivos para com os mortos, a guerra já se apresenta, nesta perspectiva, como
um modo de ligação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos” (id. ibid.: 411). É neste ponto que as
reflexões feitas por Viveiros de Castro se distanciam das realizadas por Florestan Fernandes, ao sustentar que a
vingança, ao contrário de uma ação que visava ao passado, projetava o futuro. Afinal, matar o inimigo, para além
de recordar os parentes mortos, era uma ação que necessariamente deveria desencadear novos conflitos e, por
isso, gerar novas mortes e novas vinganças.

163
guerreiro dos índios, que, marcados pelos antigos danos cometidos ao seu grupo, juravam
vingança aos assassinos de seus parentes, conservando “por largo tiempo en su pecho la
memoria de las injurias recibidas” (Fernández, 1726, v. 2: 218). Em suma, as bebedeiras eram
“la antesala de la guerra” (Vitar, 2004: 47).
Os índios acabavam sendo julgados como incapazes de manter uma ordem pacífica e
civilizada entre os seus, além de não colaborarem com uma das principais premissas do
cristianismo: perdoar ao próximo. Esta é a razão para que a vingança, enquanto prática social,
tenha sido alvo de duras críticas por parte, principalmente, dos missionários, que a
condenavam como um dos maiores obstáculos a serem superados na empresa catequética,
argumentando que “esta pobre gente está muy inclinado al odio y la venganza, y es muy
difícil desarraigar esta pasión de su corazón, porque son de genio rudo y tosco” (CA, 1735-
1743: 291).
Ainda que a visão geral caracterizasse a vingança indígena como obra da barbárie e do
temperamento irascível dos nativos, havia procedimentos a serem cumpridos pelos envolvidos
que davam a esta prática um caráter cerimonial – no sentido de prezar uma ordem e observar
condutas específicas. Por isso, a vingança não era um ato imediato: as festas de bebedeira
davam o tempo necessário para a ocorrência da vendeta, além de alimentá-la de e com
memória. E mesmo com os preparativos para a execução da vingança, Dobrizhoffer
identificou um procedimento que deveria ser respeitado pelos Abipone que incursionariam ao
inimigo:
Uno de ellos, pariente cercano del muerto, reúne sin demora a otros compañeros
y los guía contra los enemigos que han dado muerte a su familiar. El debe
realizar el primer ataque contra los contrarios, y no se reúne con los suyos hasta
haber vengado cruelmente la muerte de su pariente. Aunque no siempre los
hechos responden a sus deseos, y éstos bárbaros vuelven sin gloria y sin haberse
vengado de sus enemigos (Dobrizhoffer, 1784, t. 2: 282).

O padre Lozano identifica, entre vários outros grupos chaquenhos, a mesma


preocupação de o parente mais próximo do falecido ser o primeiro a vingar a perda, cabendo
ao mesmo a tarefa de socializar o ato através do convite aos demais guerreiros (1733: § XII,
fl. 81). Como se percebe, a vingança não tinha nada de arbitrária, mantendo certas regras
sociais que pareciam ser obedecidas pelos indígenas. Isto fazia com que a vingança tivesse
significados maiores do que uma simples punição pelos atos cometidos:
A vingança não era assim um simples fruto do temperamento agressivo dos
índios, de sua incapacidade quase patológica de esquecer e perdoar as ofensas
passadas; ao contrario, ela era justamente a instituição que produzia a memória.
Memória, por sua vez, que não era outra coisa que essa relação ao inimigo, por
onde a morte individual punha-se a serviço da longa vida do corpo social. Daí a
separação entre a parte do individuo e a parte do grupo, a estranha dialética da

164
honra e da ofensa: morrer em mãos alheias era uma honra para o guerreiro, mas
um insulto à honra de seu grupo, que impunha resposta equivalente. É que a
honra, afinal, repousava em se poder ser motivo de vingança, penhor do
perseverar da sociedade em seu próprio devir. O ódio mortal a ligar os inimigos
era o sinal de sua mútua indispensabilidade; este simulacro de exocanibalismo
consumia os indivíduos para que seus grupos mantivessem o que tinham de
essencial: sua relação ao outro, a vingança como conatus vital (Viveiros de
Castro, 2002a: 233-234, grifo no original).

Vingança e memória andavam juntas no complexo de relações sociais indígenas, e


ambas tinham como motor propulsor as bebedeiras. Essas festas alcoólicas de
confraternização com os amigos/aliados eram uma forma de capitalizar um bem entre os
integrantes, acumulá-lo e, antes que a celebração findasse, consumi-lo inteiramente. Ao invés
de empilhar riquezas de valor material, as festas reuniam memórias: a situação incentivava a
ampliação dos limites da aldeia por meio das lembranças de guerras vencidas, de pais, avós
ou tios bravamente mortos em conflitos e das façanhas individuais que cada guerreiro possuía.
Estas lembranças eram acumuladas ao longo da festa, conforme a bebida era sorvida
pelos homens já com os ânimos exaltados, até a erupção de agressões físicas. Neste momento,
a memória alcançava seu auge e a sede de vingança aflorava entre os guerreiros, que
passavam a enaltecer os seus próprios feitos e sua bravura em guerras passadas. Aqui, a
confraternização, que se apoiava no convite aos amigos como dispositivo de união do
coletivo, dava uma brusca guinada em direção aos indivíduos – ou melhor, aos guerreiros
engajados na vingança:
Cada uno teje prolija relación de sus proezas militares con sobrada ponderación
de sus méritos, y particularizando los combates en que se ha hallado, las victorias
que ha conseguido, los enemigos que ha muerto, y los vestigios que conserva
para eternizar su memoria (Guevara, 1764: 11).

Os homens passavam a enaltecer seus feitos e suas qualidades enquanto guerreiros


capazes de abater os inimigos. Chegava-se, assim, ao momento mais tenso da festa de
bebedeira, em que os participantes, já alcoolizados, iniciavam uma discreta disputa entre si,
exaltando sua bravura nas guerras e sua valentia frente ao inimigo. Bêbados, passavam a
vangloriar-se de maneira tão ostensiva que suas entonações transformavam-se em
provocações e ofensas, como atestou Azara entre os Payaguá: “Entonces el borracho empieza
a cantar en voz baja, diciendo: ‘¿Quién osará ponerse ante mí? Que vengan uno o dos o más:
estoy lleno de ardimiento y valor y los haré pedazos.’ Repite lo mismo muchas veces, y da
luego puñetazos al aire como si se pelara” (1809: 71-72).
O grupo tribal – acrescido pelos convidados de outras aldeias –, que formava um todo
durante a festa, e que havia sido incentivado pelos rituais fundamentados pela coletividade,
passava a fragmentar-se nos impulsos violentos de cada guerreiro que pretendia se vingar. A

165
união da aldeia, assegurada pelos inúmeros rituais de coletivização, abalava-se frente ao
solipsismo que tomava conta dos homens embriagados: a agressividade que acometia os
participantes bêbados não era apenas resultado da ação do álcool – que fazia ferver o sangue
de homens dispostos a praticar o acerto de contas contra o inimigo –; a exaltação pessoal de
cada guerreiro aflorava como distintivo do indivíduo, provocando o temporário
obscurecimento do coletivo. As lembranças e os sentimentos despendidos aos mortos e
compartilhados por todos fracionavam-se perigosamente.
A violência a que chegavam os índios embriagados marcava o momento em que a
singularidade opunha-se à pluralidade dos rituais; em que os impulsos de cada um
sobressaíam-se às deliberações do grupo.111 Esse era o momento em que os guerreiros se
distinguiam dos demais, atribuindo-se um papel distintivo e exclusivo. A violência que se
manifestava ao final da festa e que podia colocar, temporariamente, um contra o outro era o
resultado tanto do sentimento de vingança, que partia de todos, como da ostentação de
bravura e coragem, que se tornava motivo de disputa entre os homens. Ao mesmo tempo em
que esse afastamento do coletivo era importante para a formação do guerreiro, ele trazia riscos
à integridade do grupo, que podia vir a se fragilizar com a fragmentação.
Porém, a unidade tribal conseguia manter a sua integridade justamente porque as
bebedeiras eram, acima de tudo, uma confraternização que fazia não só o grupo aldeão como
também os grupos aliados interagirem em uma celebração coletiva e no compartilhamento das
lembranças dos membros falecidos. É neste sentido que a festa de bebedeira possuía um
caráter dualista: ainda que permitisse a exaltação dos feitos individuais dos guerreiros
inflamados pela bravura de suas vitórias sobre o inimigo, era um importante momento da
prática de sociabilidade e de reprodução do grupo enquanto coletivo social.
Inseridas na lógica das oposições duais dos mitos ameríndios analisados no primeiro
capítulo, as bebedeiras tornavam-se possíveis justamente por conseguirem manter o equilíbrio
entre a exaltação do sujeito e a construção do coletivo. Daí que as festas não se resumiam
apenas à ingestão de chicha: a confraternização previa também as danças e cantorias, a
realização das pinturas corporais e, em alguns grupos, a oportunidade da renomeação dos
participantes112 – todas estas práticas voltadas à formação do indivíduo e que resultavam na

111
Não é coincidência que a guerra – motivada pelo sentimento de vingança – era também um ato solitário do
guerreiro, que não obedecia a nenhuma ordem militar ou hierárquica e que, a cada inimigo morto, adquiria para
si prestígio e o respeito dos demais. Porém, fora do campo de batalha, já dentro da aldeia, esta morte era
socializada com os parentes, principalmente aqueles que não podiam ir à guerra, sendo esta a forma de proteger a
integridade do grupo, afastando o perigo de desintegração do mesmo.
112
A renomeação, bastante comum entre os ameríndios, não era realizada apenas nas festas de bebedeira, tendo
sido também uma prática recorrente em eventos como os rituais de modificação corporal e na ocasião da morte

166
composição do coletivo. Dentro desta lógica, as bebedeiras acionavam a memória e
impulsionava a vingança, que desencadearia toda a ação bélica da guerra e da formação de
novos aliados ou novos inimigos, dando continuidade ao sistema.
O constante retorno às práticas coletivas era uma forma de resgatar e garantir a união
tribal – e as próprias festas de bebedeira cumpriam esse papel, o que exigia dos índios o
abastecimento de bebida alcoólica. Decorria daí uma das maiores celeumas entre os
missionários e os colonos no que tocava à relação que mantinham com os nativos: para os
primeiros, o álcool aflorava os instintos mais agressivos e selvagens dos índios, impedindo a
aplicação dos ensinamentos cristãos e afastando-os do convívio civilizado; já os colonos viam
nesta prática uma ótima oportunidade para comercializar os seus produtos com os índios, que,
desejosos de terem acesso à aguardente e a outros itens que os europeus traziam, estabeleciam
trocas vantajosas para estes. O resultado disto era que os grupos indígenas que procuravam
manter-se isolados do mundo colonial abasteciam suas festas da forma tradicional, através da
coleta de frutas e raízes; e os grupos indígenas que escolhiam viver junto aos missionários ou
próximos às cidades tinham fácil acesso à bebida alcoólica por meio de tratos, muitas vezes
ilegais, com os colonos.
O discurso dos padres dividia-se entre o menosprezo às bebedeiras indígenas e a
crítica ao comércio com os colonos – comércio que passou a ser a principal fonte de
denúncias por parte dos missionários, de que é exemplo o relato sobre a insistência de
mercadores espanhóis em convencer os Lule de San Esteban de Miraflores a fugirem da

de algum membro do grupo, que podia levar seus parentes próximos ou até a aldeia inteira a trocar seus nomes,
como foi descrito por Azara sobre os Lengua: “Lo más extraordinario es que a la muerte de cualquiera de ellos
todos cambian de nombre; de modo que en toda la nación no queda ninguno de los antiguos nombres. Cuando
uno de ellos muere dicen que la muerte estaba en su casa y que se llevaba la lista de los que vivían, para volver a
matarlos en seguida, y que cambiándose el nombre la muerte no los encontrará e irá a buscar a otro lado” (1809:
81). Adquirir um novo nome não era apenas uma reidentificação do sujeito, mas como sujeito: o nome lhe
atribuía uma identidade extensiva ao seu ser individual. Daí ocorrer a mudança de nome a fim de escapar da
morte ou buscando a construção da pessoa como complemento nos rituais de construção do corpo. Nas festas de
confraternização e bebedeira, a identificação do indivíduo também passava, para alguns grupos, pela renomeação
dos sujeitos – ainda que muitos observadores hispanófonos declarassem que esta era uma prática vazia de
sentido ou realizada sem qualquer comprometimento, como, por exemplo, quando o padre Paucke descreve a
renomeação entre os índios como se fosse uma mudança desnecessária e fugaz: “Lo mismo que estos indios por
su naturaleza son muy sometidos a la mutabilidad, no tienen tampoco en su nombre una continuidad. […] Esta
modificación de nombres ocurre entre los adultos por lo general cuando celebran la reunión en la confraternidad
de borrachines. Basta que en esa ocasión uno de sus buenos amigos comience a decir: - este nombre no me gusta
y sería más de mi agrado que tu tomaras el nombre de tu abuelo o de algún otro de tu amistad. Esto basta para
que en lo futuro él quiere ser nombrado en el modo como desea el otro. Así (si es permitido decirlo) así el agua
bautismal corre por la garganta y no por sobre la cabeza” (1767, t. 2: 175-176, grifos no original). O problema é,
justamente, que estas descrições, por partirem de premissas que visavam a menosprezar os hábitos ritualísticos
nativos, desviavam a atenção ao fato de que, como nem todos os participantes das bebedeiras eram guerreiros
exaltando-se pelos seus feitos contra os inimigos, os demais membros do grupo acabavam participando da
confraternização por meio de rituais como as danças, os cantos ou a renomeação. Garantia-se, assim, a
integridade e união do grupo por meio dos esforços individuais.

167
redução “para poder comerciar libremente con aquella gente”. E a situação chegou a tal ponto
que os próprios índios passaram a aconselhar os demais a afastarem-se dos jesuítas e a
optarem pela guarda dos párocos, “opinando que estos serían menos opuestos a la codicia de
los españoles, y no los estorbarían tanto” (CA, 1730-1735: 100-101). Anos depois, o padre
Manuel Querini, em sua relação sobre as missões jesuíticas enviada ao Governador de Buenos
Aires, corrobora os malefícios que o fácil acesso à aguardente vinha provocando aos Lule
daquela redução, “por la cercanía y trato con los españoles que les venden la materia para
conservar este feo vicio” (1750: 115).
Por outro lado, a produção da chicha pelos índios podia ser bastante rentável aos
missionários, que, apesar de todas as implicações que as bebedeiras ocasionavam,
aproveitavam-se da matéria-prima com que era feita a bebida alcoólica para incrementar a
renda das reduções, como constatou o Bispo de Tucumã Manuel Abad Illana, em sua visita às
cidades e missões da Província entre os anos de 1765 e 1767, durante o período de expulsão
da Companhia de Jesus:
La inclinación de estos indios a andarse por los campos y atravesar las espesuras
de los bosques, los hace ricos de cera y miel. Ésta la gastan ellos en confeccionar
el brebaje que llaman guarapo para conseguir su último fin que es la embriaguez,
y se aprovechan los padres de la cera. Dícese que de la que sobra al servicio de
sus iglesias venden grandes porciones, y esto es muy notorio, porque en la
Procuraduría de esta Provincia que está en el Colegio de Salta, y en la que se
benefician no los bienes de dicho Colegio sino los de las misiones, se está
vendiendo públicamente (Manuel Abad Illana in Vitar, 2000: 79-80).113

Neste dilema, entre permitir a coleta de mel e cera na mata, a fim de proporcionar às
reduções produtos economicamente rentáveis, e impedir os índios de produzir a chicha com a
finalidade de eliminar o consumo da bebida e as violentas borracheras, os missionários
fizeram o que podiam para evitar que uma coisa anulasse a outra. Ainda que deixassem os
índios terem acesso ao mel, procuravam orientá-los, por meio dos ensinamentos bíblicos, a se
afastarem do consumo do álcool. Porém, os esforços pareciam não render resultados
favoráveis aos intentos dos padres, já que os índios não deixaram de produzir e consumir a
chicha. A preocupação dos missionários em eliminar a prática das bebedeiras pode ser
evidenciada na resposta que o cacique dos Mocovi dá ao pedido que o cura fez para que ele se
abstivesse do álcool:

113
Segundo um estudo de etnobiologia (Medrano e Rosso, 2010), o mel que os chaquenhos coletavam era
proveniente de colmeias de abelhas do gênero meliponas, nativas da América, cuja característica é não possuir o
ferrão ou tê-lo atrofiado – o que permitia aos índios um fácil e seguro acesso ao mel e à cera, como já havia
constatado o soldado e viajante alemão Ulrich Schmidl na primeira metade do século 16 (id. ibid.: 148-149).
Porém, no início do século 19, os europeus introduziram no continente americano as abelhas do gênero Apis
mellifera. Esta espécie produzia mel em maior quantidade, mas, por ser mais agressiva, acabou suplantando as
abelhas nativas (id. ibid.: 153).

168
Yo tengo objeción alguna o dificultad en lo que tú me dices – dijo Cithaalin – yo
puedo dejar de matar, robar, mentir y engañar; no me será difícil tampoco vivir
con una sola mujer; lo único que no podré dejar será el beber y embriagarme. Yo
lo he acostumbrado hasta ahora durante mi vida, de tal modo, que esta costumbre
ha arraigado profundamente mi vida, de tal modo, que esta costumbre ha
arraigado profundamente en mí. Yo espero bien que nuestro Creador tomará en
consideración mi edad y permitirá más a mí como cacique que a un indio común.
Si tú me permitieras esto, yo te obedecería muy dispuesto en todo lo demás
(Paucke, 1767, t. 2: 118, grifos no original)

Mesmo nas reduções, os índios não só mantiveram o costume de consumir bebida


alcoólica em suas festas, como chegaram a intensificar o regime de coleta de mel e cera,
influenciados direta ou indiretamente pelos padres. Pois além de terem a permissão para sair
em busca da matéria-prima e acabarem usando parte dela para a produção da chicha, os
nativos também foram responsáveis pelo agenciamento comercial da cera extraída na mata:
“Los Guaycurús se aprovechan con bastante frecuencia de la miel, más para hacer el brebaje
con que se embriagan que para comerla. Recogen la cera y la venden ahora a los españoles, y
antes a los Payagúas infieles, que la llevaban a la ciudad de la Asunción” (Sánchez Labrador,
1770, t. 1: 239). Este tipo de procedimento facilitou o ingresso dos índios no mercado da
região e, ainda que não deixassem de produzir a chicha, o acesso a outras bebidas alcoólicas
através da comercialização passou a ser uma prática muito difundida entre os chaquenhos.
Raúl Fradkin propõe que a virada para o século 18 foi marcada pela maior integração
dos produtos que formavam as redes mercantis de intercâmbio, com o cruzamento e
superação das barreiras étnicas e regionais, através da “conformación de áreas de frontera con
las sociedades indígenas que no pudieron ser conquistadas”. O resultado, segundo Fradkin, foi
observado na segunda metade do século, com o “creciente mercantilización de las relaciones
sociales” (2000: 245-246). Neste contexto, os índios se aproveitaram da expansão do
comércio de vinho e aguardente das cidades de Catamarca e Mendoza, iniciado no século 17 e
estabelecido no 18, alcançando extenso mercado consumidor desde Buenos Aires até Potosi
(Moutoukias, 1999: 58). A consequente facilidade com que os nativos conseguiam a bebida
alcoólica gerava protestos por parte dos religiosos e alerta às autoridades governamentais, que
associavam a violência e a dispersão indígena às bebedeiras: “una vez introducida la
embriaguez, ni habrá subordinación, ni respecto, ni pueblos” (Zavala, 1784: 167).
Não demorou para que fosse feita a associação entre a facilidade que os índios tinham
para conseguir acesso às bebidas alcoólicas e a frequência com que visitavam as cidades. Daí
o promotor fiscal residente em Buenos Aires ter alertado que “por la propia razón se debe
evitar el inmediato trato con españoles, pues si los indios no frecuentaren en esta ciudad y los
españoles estuvieren apartados de ellos no tendrán esta ocasión próxima de embriagarse”

169
(Valladeros [09/04/1740]: 12). Com a intenção de solucionar este problema, foram
outorgados bandos de proibição de venda de bebida e artigos considerados perigosos nas
mãos dos índios, tais como as armas brancas:
Que los pulperos ni otra ninguna persona venda armas, aguardiente, vino ni otros
licores a los indios que entran en la ciudad y sus inmediaciones, en poca ni
mucha cantidad, pena de veinte y cinco pesos aplicados en la misma forma por la
primera vez y por la segunda, cincuenta pesos y dos años de destierro a dicho
presidio (Salas [14/04/1773]: fl. 12v).

O Governador do Rio da Prata, Francisco de Paula Bucarelli, foi taxativo em suas


instruções acerca das missões dos rios Uruguai e Paraná, ao tratar do caráter nocivo e
prejudicial do comércio de bebidas alcoólicas com os índios. Aconselhou à Coroa que não
consentisse “que los frutos de estos pueblos se permutan por géneros que a los indios no les
sean útiles y precisamente necesarios para su decente vestido y mucho menos por aguardiente
u otra bebida”, finalizando que se deveria castigar “ejemplarmente a los que los introdujeren”
([1768/1770]: fl. 6).
Mais rígido foi o argumento do alcaide da cidade de Santa Fe, referindo-se ao
comércio com as reduções de San Pedro, San Jerónimo e San Javier – palco do conflito
ocorrido nas décadas de 1760 e 1770 entre os Mocovi e os Abipone discutido no capítulo
anterior. Influenciado pela violência que marcou a relação entre aqueles povoados, Gabriel de
Lassaga opina a favor da extinção do comércio com os índios, pedindo a proibição da
aproximação de qualquer colono, comerciante ou não, àquelas reduções. O alcaide justificou
tal medida alegando que este comércio, além de ser ilegal, incitava os índios a cometerem os
furtos que tanto assolavam o bem-estar daquela região: “aniquilados los pueblos con el
comercio clandestino de los Españoles, han de robar para mantenerse si no se evita el
desorden” (Lassaga [06/10/1785]: fl. 6v-8).
A associação entre o comércio ilegal e a incidência de roubos cometidos pelos
indígenas também preocupava a região limítrofe à Cordilheira, junto às reduções de índios
Chiriguano (Mendoza [13/12/1789]: fl. 145-145v). Esta acabava sendo uma região de
escoamento de muitos dos produtos traficados desde o porto de Buenos Aires, e ainda mais a
partir de quando os colonos identificaram nos índios não só um rentável mercado consumidor
de armas e aguardente, como também importantes fornecedores de produtos como couro e
ponchos. Segundo Raúl Fradkin, a segunda metade do século 18 foi marcada pela extensão do
comércio “hacia el interior del área dominada por las sociedades indígenas y, a su vez, estas
sociedades comenzaron a participar del mercado colonial llegando con sus productos a los
fortines y poblados y hasta la misma Buenos Aires y algunos de ellos – como los ponchos –

170
circulaban ampliamente” (2000: 254). Mas, desde a década de 1740, bandos de proibição do
comércio com os indígenas – principalmente com os grupos pampianos, que facilmente
acessavam produtos do mercado portenho – já marcavam o estado de cautela e prevenção à
fácil circulação ilegal de mercadorias que, segundo as autoridades coloniais, eram perigosas
quando em posse dos índios.
Este é o teor da proibição que o Governador do Rio da Prata sanciona em 1742,
justificando que as armas e bebidas alcoólicas eram os principais produtos procurados pelos
índios Pampa, resultando “en grave perjuicio por las malas consecuencias que de ellos
resultan en deservicio de ambas”. A proibição deste comércio era imposta aos moradores da
região, bem como a qualquer pessoa de fora, pontuando-se, ainda, que “ni tampoco vendan
dichas armas a otros indios de cualquier nación que sean” (Rozas [27/10/1742]: fl. 14-14v).
Três anos mais tarde, o novo Governador do Rio da Prata não apenas ratifica a proibição de se
comercializar armas e bebidas com os índios Pampa, como também estipula punições àqueles
que descumprissem o bando: “pena de cien pesos por la primera vez aplicado para el ramo de
guerra contra dichos indios; y por la segunda, la pena al doble y cuatro años de destierro al
dicho presidio de San Felipe de Montevideo a servir en las obras de Vuestra Majestad a razón
y sin sueldo” (Andonaegui [06/12/1745]: fl. 79v-80).
O rigor do castigo comprova a importância do caso: era inadmissível que os índios
tivessem acesso a armas, ainda mais frente ao contexto de violência em que se encontravam.
Mas era, justamente, por meio do comércio ilegal que os índios acabavam se armando, o que,
na prática, implicava a utilização do arsenal bélico moderno contra os próprios espanhóis. Na
contagem dos Chiriguano mortos em uma batalha contra soldados espanhóis, em 1729, em
uma região próxima à cidade de Tarija – onde o mercado ilegal escoava seus produtos na
região andina –, contabilizaram-se diversas armas modernas, brancas e de fogo: “Cerca de los
muertos y de los prisioneros, se encontraron varios tipos de armas, de espadas, sables, pistolas
y arcabuces” (Jolís, 1789: 261). O contexto já forçava aos observadores espanhóis a
acrescentarem novos armamentos ao lado dos tradicionais, em suas minuciosas descrições
sobre os grupos indígenas: “Sus armas son flechas sin aljaba, macana y lanza, con algún sable
si lo han podido comprar” (Azara [1793]: fl. 247).
Recorria-se à mesma precaução a fim de impedir a facilidade com que os nativos, já
perigosamente belicosos, tivessem acesso às bebidas que lhes potencializavam o espírito
vingativo e guerreiro. Em 1780, além de ainda haver a necessidade de se emitirem bandos de
proibição ao comércio de certos bens, o então Governador do Rio da Prata também alertava
para as constantes comunicações realizadas entre colonos e grupos indígenas em situações de

171
guerra, em que a troca de informações podia provocar sérios prejuízos à estratégia dos
soldados espanhóis:
[…] últimamente con que se prohíba con pena de la vida el comercio con los
indios bárbaros durante la guerra, con que incomodan y acometen dichas
fronteras de manera que cualquiera que en el tiempo de ella fuere probado haber
pasado y residido voluntariamente con los dichos indios por el mismo caso y sin
necesidad de otra prueba le será impuesta la dicha pena en la forma que se usa y
practica en el ejercito, con las espías y desertores que se pasan al enemigo, lo que
se hará saber y publicar por bando en esta capital y partidos de dicha frontera,
para que así lo tengan entendido y se ejecute inviolablemente (Vértiz
[20/10/1780]: 19).

Enquanto o governo procurava meios para desincentivar o comércio com os índios,


dificultando o fluxo de produtos através da proibição formalizada em leis que impediam que
colonos tratassem com os nativos, pouco conseguia fazer frente à rede de comércio que os
próprios indígenas mantinham ativa. Ainda que os bandos de proibição pudessem coibir a
atuação de mercadores espanhóis – e mesmo assim de maneira bastante discreta, como se
percebe pela insistência na promulgação de leis até o final do século 18 –, a concentração do
foco na restrição da via comercial que partia dos colonos acabava deixando livre o trânsito de
mercadorias movimentado pelos índios.

3.3 A atividade comercial sem fins lucrativos


Não era raro que índios já reduzidos, muitas vezes auxiliados por grupos de outras
reduções, cobrissem vastas áreas, comercializando os itens que coletavam em suas investidas
furtivas ou os próprios bens que coletavam do meio reducional, como denunciou o padre
Muriel a respeito dos Mbayá: “Crían manadas de yeguas para montrar y vender a los
Paraguayos por alfanjes y otros géneros” (1766: 135). Pela perspectiva das autoridades
coloniais, o grande problema era a pouca ou nenhuma responsabilidade que os índios
demonstravam ter em relação aos bens da comunidade instalada na redução. Não era raro
haver reclamações por parte dos curas ou dos agentes coloniais alertando para os altos gastos
de manutenção dos povoados em que os indígenas despendiam, a seu ver, exageradamente os
recursos existentes – que já eram, muitas vezes, escassos.114
Toma-se como exemplo as conclusões do relatório realizado na redução de San Javier
de índios Mocovi, onde se identificou um ativo comércio manejado pelos nativos que
articulavam a coleta e venda de couro. Segundo o relator, este tipo de atitude era tomada
justamente porque os índios possuíam uma noção deturpada a respeito do que eram os bens

114
A prodigalidade do regime econômico chaquenho, tanto nas reduções, como nos meios tradicionais, será tema
do capítulo 4.

172
comunitários, resultando que “cada individuo se hace dueño de las haciendas de la
Comunidad al tenor de sus facultades”. A consequência disto era o “vender los cueros en la
misma campaña a los que van a comprarles clandestinamente por tierra y por el río, con el
abrigo de la distancia y bosques” (Lassaga [06/10/1785]: fl. 2-2v).
Ao que parece, os chaquenhos não só inseriram-se nas trocas comerciais estabelecidas
pelos colonos – ainda que ilegais –, como também foram incentivadores desta circulação de
mercadorias. Isto gerou uma demanda entre os colonos, que conseguiam ter acesso aos
produtos nativos – como o couro, a cera de abelha e a erva-mate – sem o intermédio da
burocracia mercantil colonial. Criava-se, assim, uma relação à base de tratos comerciais que,
“en virtud del contacto constante y fluido con las poblaciones indígenas del espacio
fronterizo, habían establecido lazos personales con algunos indios en pos de la obtención de
determinados objetivos dentro de los cuales el comercio se presentaba como el vínculo más
notorio” (Ratto, 2005: 186). Prova disto era a demanda das cidades pelos produtos que os
grupos indígenas ofereciam para troca, que resultava em frequentes tratos responsáveis pela
circulação de grandes quantidades de objetos. Evoca-se, como exemplo, a declaração que o
capitão de Corrientes, Don Martín Gutiérrez de Valladares, prestou sobre o comércio
articulado pelos índios às cidades da região: “Con los vecinos de la ciudad de la Asunción y la
Villa Rica, quienes a trueque de lienzo de algodón, cueros de toro, mulas, frutos y minestras
con algunos géneros de castilla cambiaban y conseguían gruesas porciones de yerba, que
llaman de palos, y tabaco” (Aquino [1734-1735]: fl. 13v).
Os animais foram um dos principais produtos que figuravam no comércio promovido
pelos índios – ainda mais se tratando dos cavalos e do gado das estâncias das cidades e das
reduções. Muitas vezes soltos em vastos terrenos, estes animais eram capturados por grupos
não reduzidos e comercializados em regiões distantes, dificultando a sua identificação de
origem115 – como exemplificou o padre Domingo Muriel, ao descrever a constante
comunicação que os nativos reduzidos mantinham com grupos dispersos, mediante a qual
estes levavam animais de regiões distantes até a redução de índios Toba, “para que en ninguna

115
Raúl Fradkin, ao analisar o direito sobre a propriedade dos recursos naturais das áreas circunvizinhas às
fazendas ou cidades, afirma que este foi um problema de difícil resolução, já que não havia uma legislação
específica para o uso de fontes de água ou bosques situados fora das propriedades. A situação tornava-se mais
complexa quando a dúvida recaía sobre os animais: “La propiedad efectiva sobre los ganados tampoco estaba
plenamente afirmada y el ganado cimarrón era disputado por los vecinos de las diferentes ciudades y entre ellos
por aquellos que tenían o no acciones de vaquear; a su vez, dado que ante la carencia de cercos y la escasez de
aguadas artificiales, el ganado continuamente alzaba, las disputas por su propiedad entre quienes aludían títulos
legítimos eran frecuentes, como las que se entablaban con los pobladores rurales que habían desarrollado toda
una tradición cultural basada en su derecho a la propinación directa” (2000: 279). E ainda que não existissem
normas específicas que resolvessem esta questão, uma coisa era certa para os hispano-crioulos: os índios não
deveriam ter a posse desses animais.

173
parte se conozcan por el hierro”. A troca se concretizava mediante a entrega de quantos
“cuchillo, ropa o cuñas al Misionero le habían hurtado” (1766: 165-166). Os chaquenhos,
desta maneira, beneficiavam-se da discrição que as longas distâncias oportunizavam,
garantindo-lhes vantajosas trocas comerciais com seus aliados.
Os próprios índios reduzidos foram os responsáveis pelo deslocamento dos animais,
como descreveu Félix de Azara, referindo-se aos Toba, Mocovi, Abipone e Lengua, que,
desde as reduções da Província de Tucumã, viviam “de las mulas que roban en Santa Fe para
venderlas en el Paraguay” (1790: 397). O padre Manuel Arnal, Procurador das Missões da
Companhia de Jesus, descreveu uma situação muito parecida entre os Abipone reduzidos,
que, mesmo encontrando-se sob a tutela dos missionários, tinham assegurada a posse de
“caballos, lomillos [...] y frenos y armas que dicen haber comprado a los indios de adentro”
(in Vitar, 2000: 47).
As longas distâncias não eram o único motivo para a manutenção das trocas, cabendo
à comunicação entre os diversos grupos aliados o principal fator de articulação para que os
bens circulassem efetivamente e gerassem ganhos aos envolvidos. Volta-se, assim, a reiterar a
importância, para os nativos, da formação de uma rede de alianças possibilitadora na captação
de bens e galvanizadora de sociabilidade. Exemplo bastante contundente de um bem
elaborado esquema de trocas envolvendo aliados, os índios Nivaclé conseguiam suas cabras e
ovelhas “de los matacos y chanés […] por medio del intercambio de productos recolectados,
principalmente frutos silvestres o miel”. Com estes animais, obtinham lã, com a qual “hacían
grandes ponchos que después intercambiaban con los chiriguanos” (Cruz Sánchez, 1998:
317).
Enquanto alguns grupos aparentemente preocupavam-se com a discrição dos seus atos,
utilizando-se, por exemplo, da distância e da variação das marcas que se faziam a ferro quente
nos cavalos, outros pareciam não se importar em serem descobertos. Como se percebeu no
capítulo anterior, confrontar os índios que se aproximavam das cidades – ou invadiam-nas –
era uma situação bastante comprometedora para os espanhóis, que ou acabavam sofrendo
muitas baixas no conflito, ou perdiam-nos de vista devido à capacidade dos nativos de fugir
habilmente pelas matas embrenhadas. Estas habilidades para confrontar os inimigos ou fugir
caso necessitassem permitia aos índios tomar atitudes que, às autoridades coloniais, eram, no
mínimo, insolentes. Somava-se a isto a ganância dos colonos que preferiam comprar os
produtos que os nativos traziam por preços bem mais em conta. Ainda que soubessem da
ilegalidade deste comércio, os colonos acabavam incentivando situações bastante peculiares,
como no caso denunciado pelo padre Lozano:

174
[…] y son temidos, lo que obliga a la ciudad a estar en continua vigilancia
cuando están de guerra, que es más ordinario aunque algunas veces estuvieron de
paz, pero tal como es la de todos estos bárbaros, pues sucedía que de noche
robaban las estancias o heredades de los españoles y de día venían a vender a sus
mismos dueños lo que les habían hurtado (Lozano, 1733: § IX, fl. 60).

A situação sustentava-se, segundo o jesuíta, em função da livre circulação que os


índios tinham nas cidades, “cuando ningún español la tenía en la de los Guaycurús, pues con
la facilidad que a una vaca, degollaban a cualquiera cristiano que entraba allá” (eod. loc.). Em
suma, as hostilidades entre os índios e os colonos – que os levavam a evitar embates diretos,
por vezes, cedendo espaço aos nativos –, somadas à ganância manifestada em querer manter
um comércio sem os empecilhos da burocracia colonial e cujos valores agradavam muito aos
colonos, acabavam resultando em problemas legais que necessitavam da intervenção das
autoridades governamentais. Em 1748, o Governador do Paraguai, Marcos José Larrazábal,
direciona uma missiva ao Rei da Espanha solicitando sua interferência em um acordo de paz
entre os moradores das cidades de Santa Fe e de Corrientes com os índios do Chaco. Apesar
da aparente contradição do pedido, o que Larrazábal quer é o fim de um trato comercial,
fundamentado na pacificação entre os hispano-crioulos daquelas cidades e os índios, mas
prejudicial à Província da qual é Governador:
[…] por lo que se hace preciso el que Vuestra Excelencia provea del modo más
vigoroso al remedio, mandando a la ciudad de Santa Fe y de las Corrientes
declare guerra a las naciones del Chaco, por ser la paz que tienen con dichas
ciudades de gravísimo perjuicio a esta jurisdicción y ser aquellas ciudades el
principal nido de los infieles, que abrigados y aún defendidos, como ha sucedido
alguna vez de sus vecinos, quedan sin castigo sus irrupciones, llevando a vender
los despojos de esta Provincia a las Corrientes y Santa Fe, por lo que se le hará a
Vuestra Excelencia más intolerable dicha paz tan fecunda de males para el
Paraguay y los Pueblos de Misiones a cargo de los padres jesuitas (Larrazábal
[25/06/1748]: fl. 1-1v).116

Estes casos – em especial os dois últimos – são interessantes por demonstrarem um


aspecto da sociabilidade dos chaquenhos que foi pontuado no capítulo anterior: a
maleabilidade das relações sociais que os índios podiam manter com os outros. Assim como,
na guerra ou na paz, ser inimigo ou ser aliado era uma questão de contexto, as questões que
envolviam os tratos comerciais ou o escambo de produtos também implicavam uma
flexibilidade no trato com o outro. Da mesma forma como, para a consideração das questões
beligerantes não era o grau de parentesco ou de etnicidade que implicavam os arranjos de

116
Mas o próprio Governador admite que a solução para este caso estava longe de ser resolvida. Os constantes
ataques que hordas indígenas infligiam àquela região resultavam em altos gastos revertidos à defesa dos
moradores e de seus bens. Larrazábal assume que os impostos cobrados e revertidos para a defesa eram um forte
motivo para que os colonos procurassem não apenas manter uma situação de paz com os índios, como também
aproveitarem-se dos produtos que estes nativos vinham vender-lhes por preços muito mais em conta do que o
oficial ([25/06/1748]: fl. 1v).

175
aliança ou inimizade, os índios não entendiam os hispano-crioulos como um grupo
homogêneo em que, ainda que tratassem pacificamente com os moradores de uma cidade,
consequentemente todos os demais colonos deveriam partilhar do mesmo acordo:
Portanto, não apenas a guerra se inscreve no campo do sociológico, mas recebe
seu ser e seu sentido último do funcionamento particular da sociedade primitiva:
as relações entre comunidades (tribos, bandos, grupos locais: pouco importa) são
antes de mais nada comerciais, e é do sucesso ou do fracasso desses
empreendimentos comerciais que dependem a paz ou a guerra entre as tribos.
Não apenas guerra e comércio devem ser pensados na continuidade, mas é o
comércio mesmo que detém, em relação à guerra, uma prioridade sociológica,
uma prioridade de certo modo ontológica por se instalar no núcleo mesmo do ser
social (Clastres, 1980: 246).

Daí as situações que, aos olhos das autoridades civis e religiosas, só vinham a reforçar
a ideia de que os nativos não eram confiáveis nem para a guerra, nem para tratos de qualquer
espécie – como notou Carina Lucaioli, ao constatar que a integração dos grupos indígenas
com os espaços de fronteira em uma “dinámica del robo de bienes y ganados en determinadas
jurisdicciones para luego intercambiar esos botines en las ciudades amigas” podia ser
resumida a partir das dualidades “cercanía-lejanía y paz-hostilidad” (2011: 56). Os produtos
comercializados ou trocados pelos índios provavelmente teriam origem nos furtos às cidades
ou estâncias e comprovavam um comércio não permitido pelos agentes coloniais – o que, na
prática, não chegava a coibir a sua existência.
E se os próprios hispano-crioulos eram coniventes com esta situação, não surpreende o
fato de os portugueses que conseguiam vencer as maleáveis fronteiras entre os territórios
coloniais ibéricos também terem procurado beneficiar-se através deste comércio articulado
pelos nativos. Quer fosse para espanhóis ou para portugueses, os índios mantinham suas
trocas comerciais, tendo apenas o cuidado de fazerem-nas de modo discreto, sem chamar a
atenção da polícia colonial: “Muitos deles desenvolveram naquela conjuntura a possibilidade
de ir e vir de um lado para outro, podendo, em muitos casos, passar sem maiores problemas
de vassalos do rei espanhol para o monarca português e vice-versa” (Garcia, 2011a: §7).117
Ainda assim, era inevitável que transações ilícitas fossem descobertas pelas autoridades, que

117
Analisando esta questão a partir das estratégias administrativas lusitanas, Elisa Frühauf Garcia demonstrou
que a Coroa portuguesa tinha um interesse muito grande em estabelecer uma relação de aliança com os grupos
indígenas que estavam assentados no lado espanhol da linha de Tordesilhas. Porém, segundo a autora, o interesse
não se resumia ao acesso material que os nativos poderiam proporcionar – neste sentido, cabia mais aos colonos
buscarem bens junto aos índios do que ao Rei português mobilizar-se a fazê-lo, tendo em vista que, mesmo
tratando-se de itens valiosos como ouro e prata, as trocas não chegavam a ultrapassar quantidades de grande
vulto. “Assim, os lusitanos não estavam interessados exclusivamente em se apropriarem dos rebanhos das
missões e de particulares: eles pretendiam ‘seduzir’ os vassalos do rei espanhol, especialmente os indígenas. Tais
práticas eram decorrentes da aplicação da política indigenista pombalina, cujo objetivo principal nas regiões de
fronteira era utilizar os índios com fins estratégicos, atraindo-os a partir da oferta de uma série de benefícios e
sempre lhes dispensando o melhor tratamento possível” (2011a: §6).

176
tratavam de denunciá-las à Coroa, como fez o Conselho de Índias ao comunicar um ativo
comércio de “faenas de cuero, sebo y grasa” entre os índios e os portugueses. Sabendo do
risco que corriam pelo trânsito destas mercadorias, tudo era feito de maneira ardilosa,
“ejecutándolo con tal cautela y maña que no se puede coger a ninguno” (Conselho de Índias
[20/12/1727]: fl. 1v). Em 1743, o Governador do Paraguai informa ao Rei sobre uma suspeita
aproximação entre os portugueses e os índios Chiquito, que pareciam estar “trabajando
poderosos minerales de plara y oro” (Moneda [16/07/1743]: fl. 1).
É certo que, tanto pela impunidade quanto pela ousadia dos lusitanos, no final do
século 18 ainda existiam denúncias de uma constante comercialização entre os índios que
estavam em território colonial espanhol e os portugueses que se aproximavam das províncias
fronteiriças. O Vice-rei do Rio da Prata atenta para as incursões de portugueses à região
limítrofe com o atual estado do Mato Grosso, que, auxiliados por um oficial português, “han
hecho un comercio tan ventajoso para ellos, cuanto perjudicial a los indios, a quienes compran
sus ganados por bagatelas de ninguna importancia” (Arredondo, 1795: 32).118
A preocupação do Vice-rei – somada ao desagrado em relação à existência de um
comércio proibido pelas autoridades coloniais – estava focada nos prejuízos que as trocas e a
comercialização estariam causando aos indígenas, que, sem a devida noção dos valores,
deixavam-se enganar pela ganância dos brancos. Segundo este ponto de vista, os colonos –
espanhóis ou portugueses – estariam aproveitando-se da incapacidade dos índios de
administrarem seus próprios recursos, já que eram ineptos no que competia à gestão
econômica – aspecto que será analisado com maior profundidade no próximo capítulo.
Esta visão, muito comum entre aqueles que entraram em contato direto com os
nativos, partia do pressuposto de que os indígenas não possuíam as capacidades mínimas das
quais dependia uma civilização. Ao ânimo belicoso e à inconstância de seus atos, somava-se a
falta de habilidade para questões econômicas – pelo menos no que competia à valoração dos
produtos que comercializavam. Originava-se aí a reclamação de que, ao não saberem o real

118
E isso valia também para os Guarani. Há mais de um século sob a tutela jesuítica nas reduções da bacia do
Rio da Prata, surpreenderam os padres em 1735 quando, em uma expedição militar à Colônia do Sacramento,
não cumpriram de fato as ordens do Governador de Buenos Aires. Um grupo dos quatro mil índios que
compunham o exército desgarrou-se e, ao invés de atacar os portugueses, “se atrevieron a entrar a la colonia
sitiada y tratar con el enemigo lusitano” (CA, 1735-1743: 398). Frente a esta situação, os padres puniram
severamente os índios infratores e abortam a expedição, mandando de volta todos os quatro mil soldados nativos.
Este tipo de situação evidencia que a relação entre os índios e os portugueses não era uma novidade para nenhum
dos dois e que, provavelmente, já vinha ocorrendo há muito tempo. Com base nisto, Elisa Frühauf Garcia associa
as frequentes fugas ocorridas das reduções que integravam os Trinta povos a este contato, até certo ponto
amistoso, afirmando que, “se as fugas não eram uma novidade, tampouco o era a escolha dos domínios
portugueses como um destino, pois o recurso a estabelecer-se nestas paragens e de realizar negócios com os
portugueses foram comuns ainda no período dos jesuítas” ( 2011a: §16).

177
valor das coisas, os índios vendiam tudo o que lhes vinham comprar, desfazendo-se de bens
que, segundo as autoridades responsáveis, acabariam fazendo falta no futuro.
A possibilidade de os chaquenhos serem capazes de administrar de maneira lucrativa
um comércio ou escambo de bens permeava as celeumas entre aqueles que acreditavam ser
possível conceder aos indígenas a permissão de manter pequenos comércios ligados à
produção reducional e os que procuravam distanciá-los destas relações mercantis. Estes
últimos alegavam que os índios eram incapazes de administrar corretamente os bens que
estavam em sua posse, já que movidos por seus instintos. Assim, não conseguiam racionalizar
de maneira condizente as necessidades econômicas do meio reducional, partindo de ações
impulsivas e precipitadas, sem a preocupação com o futuro. O Alcaide de Santa Fe, em um
informe ao Governador de Buenos Aires, noticia a diminuição de mulas que preocupava os
administradores da redução de San Javier de índios Mocovi. Segundo o funcionário
municipal, isto devia-se ao comércio desregrado que os próprios nativos moradores do
povoado mantinham, aparentemente, sem observar o excedente: “venden quanta pueden a los
que furtivamente entran a comerciar a los Pueblos de Córdova, Santiago y de esta misma
ciudad, cuya introducción ha sido la ruina de los Pueblos y de los mismos indios” (Lassaga
[06/10/1785]: fl. 2).
Desta forma, por implicar consequências diretas à administração dos bens dos
povoados, os missionários posicionavam-se contra a possibilidade de se promover a
autonomia comercial indígena, argumentando que os espanhóis “aprovechaban el
desconocimiento del valor de las cosas y la incapacidad de comerciar por lo cual hacían un
gran perjuicio a los indios” – abrindo-se uma exceção apenas para os casos em que “estuviere
presente el misionero en cuya presencia debía hacerse el negocio con el indio” (Paucke, 1767,
t. 2: 87, grifos no original). Não faltavam, então, medidas apelativas acionadas pelos próprios
missionários às autoridades coloniais a fim de que fossem criados impedimentos à
continuidade do comércio com os índios.
O Conselho de Índias, após averiguar os relatórios em que o Procurador Geral da
Companhia de Jesus, o padre Jerónimo Herran, atestava os malefícios que o comércio trazia
aos índios Chiquito, declarou sua posição contrária à manutenção desta prática, alegando à
“causa de las fraudes y engaños con que tratan a los indios en sus comercios, añadiéndose a
esto sus escandalosas operaciones” (Conselho de Índias [30/10/1726]: fl. 1-1v). Alguns meses
depois, provando que as constatações do Procurador Geral da Companhia de Jesus acerca dos
prejuízos que acarretavam o envolvimento comercial dos índios haviam sido ouvidas na
cúpula monárquica, é o próprio Rei da Espanha que assina uma missiva ordenando a

178
interrupção das relações mercantis que envolvessem os nativos, justificando que os
comerciantes “les quitan a los indios lo poco que tienen, y si entran a los pueblos, no están
seguras sus hijas y mujeres” (Filipe V [06/07/1727]: fl. 1-1v).
Em contrapartida, havia os defensores da autonomia econômica dos índios, alegando
que os benefícios não se restringiriam apenas ao comércio regional: os próprios nativos
ganhariam uma importante experiência de aproximação com as relações sociais almejadas
pelos espanhóis. O objetivo de civilizar os índios – que já se fazia presente desde os primeiros
contatos – necessariamente passava pela introdução dos costumes ocidentais à vida indígena.
O comércio, somado ao ensinamento de conceitos específicos do sistema econômico moderno
– valores monetários, propriedade privada, concorrência –, instalaria na sociabilidade
indígena práticas e condutas viabilizadoras de um processo civilizatório destes grupos.
Somente assim, por meio da atuação espontânea em áreas como o comércio e a administração
de bens, as autoridades, que defendiam o livre comércio com os nativos, acreditavam que os
índios iriam encaminhar-se a relações regradas por valores mais sólidos e condizentes com a
vida em sociedade:
Entre los medios que pueden conducir cualquier república a una completa
felicidad ninguna es más eficaz que la introducción del comercio, porque
enriquece los pueblos y civiliza las naciones, y para que los indios de estos
pueblos logren estos conocidos bienes no omitirán Vuestra Merced diligencia
alguna proporcionada a facilitar el comercio reciproco, haciéndoles
demostrativa, logrando utilidad que les ha de resultar de vender por su justo
precio los frutos que cultivaren y los demás géneros que adquieran por su
industria y trabajo, atendiéndose siempre a que se verifique aquel ramo de
negocio que le pueda ser más proficuo (Bucarelli [1768/1770]: fl. 5).

Na prática, alguns agentes ligados à administração colonial não só incentivaram como


também permitiram a atuação mercantil indígena ao facilitar o acesso dos grupos nativos aos
produtos coloniais ou através de acordos de não-agressão. Permitida a livre circulação, os
índios poderiam transitar pelas cidades, sem qualquer impedimento, a fim de comercializar
com os moradores e, daí, iniciar um processo de efetivo contato pacífico e de cooperação, que
viria a resultar na civilidade indígena. É com esta lógica que o Governador do Paraguai alerta
aos moradores das cidades que não impissem ou dificultassem a passagem dos índios Payaguá
por aquelas terras, já que, em processo de pacificação, o melhor que se poderia fazer era não
criar novos atritos com os nativos (Barúa [18/03/1730]: fl. 1v-2).
Além de fazerem notar o benefício de construir uma aproximação amistosa com os
índios do Chaco, através de acordos que viabilizassem as trocas comerciais – e daí apostarem
em uma diminuição das agressões beligerantes –, os defensores da manutenção deste mercado
insistiam em que tanto os nativos, como o comércio regional obteriam vantagens. Para o

179
Intendente de Buenos Aires, o trato comercial somaria um conhecimento importante aos
índios sobre os trâmites do mercado, ensinando-lhes, por exemplo, “la comodidad de baja en
los efectos que tras consigo la concurrencia de vendedores, que cada uno desea salir con más
brevedad de sus géneros”. A introdução de conhecimentos como o sentido de propriedade e a
ideia da concorrência como viabilizadora de negociação de preços e acesso à diversidade de
produtos eram ensinamentos necessários para que a própria região se beneficiasse,
comprovando tais benefícios ao ver “entablado el comercio y giro franco en todas partes”
(Intendente de Buenos Aires [1785]: fl. 29v-30).
Para além dos argumentos provenientes das autoridades governamentais ou religiosas,
os próprios índios possuíam uma postura em relação ao comércio efetuado com os brancos.
Não existem dúvidas acerca da participação ativa de muitos grupos indígenas nesta rede de
mercado que movimentava produtos por toda a região que abarcava desde o porto de Buenos
Aires até as cidades andinas, e a documentação é bastante expressiva no que compete a
exemplos de índios envolvendo-se e aproveitando-se do comércio colonial. Porém, raras
foram as vezes em que os nativos puderam posicionar-se de forma argumentativa a este
respeito, declarando suas intenções e vontades. Num destes poucos casos, o cacique abipone
Miguel Benavides, da redução de San Jerónimo – já destacado anteriormente por sua
habilidade na escrita –, declara as intenções de seu grupo em manter o comércio dos produtos
do povoado com os mercadores que ali quisessem negociar. Além disso, Benavides insiste
que nenhuma autoridade ou agente colonial deveria intervir nos trâmites comerciais que
envolvessem a redução e seus moradores, deixando-os atuar livres de qualquer controle
tutelar:
Nosotros no queremos administrador que tenga intervención alguna en los bienes
y frutos de nuestro Pueblo, ni que tenga intervención ninguna en nuestros
(pleitos), digo, contratos, el administrador ni el protector. Lo que solicitamos es
que todo español entre y salga libremente a contratar sus mercaderías con los
frutos y ganados que produce nuestra población, pues gracias a Dios nos
hallamos capaces de tratar y contratar por nosotros mismos y nuestros bienes son
adquiridos por nuestra industria y conocimiento trabajo y no por los auxilios y
consejos de el administrador y protector (Benavides [c. 1780]: fl. 4v-5).

Entende-se o apelo do cacique abipone no contexto pós-expulsão da Companhia de


Jesus, quando houve uma mudança na administração das reduções: procurou-se aproximar os
grupos indígenas reduzidos à cultura ocidental através da introdução de valores e costumes
espanhóis, priorizando a civilização dos índios à sua catequese. Dentre as medidas tomadas,
passou a ser obrigatório o ensino da língua castelhana nas reduções, reforçou-se a importância
dos cabildos de índios – reafirmando-se a liderança cacical –, introduziram-se curas de
Ordens religiosas que já vinham mostrando-se críticas ao trabalho jesuítico – como os

180
franciscanos, os mercedários e os dominicanos – e adotou-se a presença de administradores
leigos que ficavam incumbidos do cuidado com relação à produção e distribuição dos bens
comunitários (Wilde, 2009: 211-212). Era justamente esta tutela que o cacique Benavides
atacava em sua missiva, argumentando que, “siendo nuestros bienes y personas libres”, o
tratamento dispensado aos índios não deveria privá-los do seu arbítrio nas escolhas e
vontades, “pues sería hacernos de una condición de siervos” (Benavides [c. 1780]: fl. 5).
Finaliza afirmando que “aun cuando sea capaz de engañarnos en el contrato el español
mercader, sufriríamos con gusto el engaño primero que la violencia del administrador y
protector” (id. ibid.: fl. 7).
Independente das discussões entre as autoridades civis e religiosas, os reais
protagonistas desta celeuma burocrático-administrativa mantinham suas incursões comerciais
com ou sem a permissão governamental. E o fato de os índios estabelecerem trocas, tidas
como desleais, já que vendiam produtos a preços muito inferiores aos seus valores de
mercado – fato, inclusive, admitido pelo próprio cacique Benavides –, não parecia impedir ou
distanciar os nativos das práticas comerciais. Se, de fato, os índios procediam desta forma,
estabelecendo acordos mercantis desfavoráveis que lhes rendiam pouco ou quase nada de
retorno financeiro, é porque havia algum conflito de conceitos que levavam ou os indígenas a
não serem capazes de articular suas finanças – e, por isso, darem a oportunidade de
mercadores e colonos em geral aproveitarem-se da sua ingenuidade –, ou havia uma distinção
de valores que distanciava os interesses de cada parte. De acordo com a primeira ideia, os
índios seriam inaptos não só à prática comercial, como também lhes faltaria a capacidade para
absorver novos conhecimentos devido a algum problema cognitivo ou ligado a sua condição
selvagem. Já a ideia de uma atribuição distinta de valores parece condizer de maneira mais
apropriada com a forma como os índios relacionavam-se não só com os objetos
comercializados, como também com as pessoas envolvidas nestas trocas.
Ora, se é fato que os chaquenhos se envolviam em transações comerciais – e, pelo que
indica a documentação, foram agentes ativos nestas trocas –, seu interesse não devia estar
relacionado à produção de riquezas ou à captação de bens acumuláveis; pelo contrário, os
próprios observadores hispanófonos notaram que os índios pareciam não atribuir qualquer
valor a itens que, aos espanhóis, eram preciosos – concluindo-se que daí resultava a facilidade
com que vendiam produtos de alto valor comercial por preços módicos. Há indícios, por
exemplo, de que os nativos chegaram a comercializar metais preciosos nas cidades, muito
provavelmente, a custos baixos, como relatou o Conselho de Índias, no final do século 17, ao
afirmar que, das minas da região andina, “sacan los infieles piedras que se han visto en

181
Buenos Aires, pesadas de plata muy fina” (Conselho de Índias [12/05/1684]: 2). O
Governador do Paraguai também denunciou um ilícito comércio entre índios Payaguá e
colonos portugueses, na prática do qual os nativos, de posse de uma “cantidad prodigiosa de
oro que, ignorante de su estimación”, vendiam-na aos moradores da cidade de Cuiabá
(Moneda [01/03/1745]: fl. 1-1v; cf. também Anônimo [1758]: fl. 18). Da mesma forma, um
ex-cativo que viveu junto dos Abipone, ao descrever os costumes de caça e pesca deste grupo,
referiu o descaso dos nativos em relação às pérolas que encontravam no fundo do mar,
afirmando que “las arrojaban como cosa inútil” (Lozano, 1733: § II, fl. 11).
Tomando como parâmetro a experiência de vida dos índios em detrimento da visão de
mundo ocidental, o padre Alonso Sánchez, em um raro momento de autocrítica, constatou que
as ambições indígenas diferiam muito das dos europeus, ao afirmar que “viven contentos,
sanos y robustos, y llegan a una edad muy avanzada, sin conocer las sedas, el oro, plata, ni
tantas especies diferentes de manjares exquisitos y otras muchas cosas que por el capricho o
delicadeza de nuestros antepasados miramos ya nosotros como necesarias” (Furlong, 1939:
61).119 Alonso Sánchez, como poucos, conseguiu ir além da rasa constatação de que os índios
possuíam uma noção de valores – que eram atribuídos a bens materiais – bastante distinta
daquela aplicada pelos modernos. A sua constatação acerca do desapego dos nativos e da
cobiça dos europeus em relação aos metais preciosos evoca os primeiros contatos ocorridos
no Chaco, quando aventureiros espanhóis – motivados pelas riquezas que se acreditava existir
naquela região – encorajaram-se a desbravar as matas em expedições de reconhecimento de
campo. Além de tentar estabelecer uma rota mais rápida entre Buenos Aires e o Chile, cada
expedicionário que chegava à região almejava ser o descobridor dos tesouros que se tornaram
lendários desde a primeira expedição, em 1528, promovida por Francisco César, que
descreveu o Chaco como um “espacio de las riquezas, del oro, la plata, las buenas tierras y la
población indígena abundante” (Bixio e Berberián, 2007: 4):
Las primeras referencias al espacio chaqueño se remontan a los inicios mismos
de la colonización, cuando los formidables recursos mineros de Potosí no
alcanzaron para saciar la sed de riqueza de los conquistadores, haciéndoles
volver la mirada sobre geografías inexploradas. Es así que este espacio fue en su

119
Apoiados nesta ânsia de querer mais, que resultava em um poder de captação de bens valiosos, acumuláveis e
geradores de distinção social, os homens modernos estabeleceram um parâmetro de evolução civilizatória
pautado, entre outras coisas, pelo apreço que uma sociedade despendia a certos objetos e suas utilidades nas
relações sociais. O desapego que os sul-ameríndios demonstravam frente a objetos preciosos para a cultura
europeia só vinha a provar a barbárie e atraso em que viviam estes povos. Em um exercício de suposição,
Viveiros de Castro ensaia o que poderia ser uma resposta indígena: “Sua gigantesca superioridade cultural
(técnica, ou objetiva) se dobra de uma infinita inferioridade social (ética, ou subjetiva): são quase imortais, mas
são bestiais; são engenhosos, mas estúpidos; escrevem, mas esquecem; produzem objetos maravilhosos, mas
destroem o mundo e a vida...” (2000: 50-51).

182
comienzos, como tantos otros, un territorio míticamente construido sobre la
existencia de ilusorios tesoros y riquezas legendarias (Lucaioli, 2009b: 120).120

Para entendermos em que termos foi estabelecido o contato entre os espanhóis e os


índios e em que medida eles se diferenciavam no que compete às relações interpessoais que
mantinham, é bastante significativo que se leve em consideração que o que levou os colonos
ao Chaco foi a busca pelas riquezas que a terra poderia fornecer-lhes; em contrapartida, o que
aproximou os nativos dos estrangeiros foi justamente a possibilidade de ampliação das redes
de aliança, que forneceriam elementos materiais e simbólicos galvanizadores da sociabilidade
do grupo tribal – e a consequente reprodução deste. Se, por um lado, os índios privilegiaram
as relações humanas como motivadoras do contato – chegando, inclusive, ao oferecimento de
mulheres com a finalidade de estabelecerem-se relações parentais –,121 por outro, os
colonizadores apostaram em uma aproximação com os índios objetivando não a relação em si,
mas o que ela poderia providenciar: “La discursivización casi obsesiva del oro, la riqueza y
las tierras fértiles pone en evidencia que éste fue un foco atencional privilegiado para los
conquistadores” (Bixio e Berberián, 2007: 9). E o interessante é que, na promoção da região
chaquenha como um local em que estariam escondidos tesouros e riquezas de fácil acesso, os
próprios conquistadores, já desde o início do contato, referiam-se aos nativos pelo seu
desapego aos metais preciosos ali existentes, muito em função da necessidade de justificar a
invasão:
[…] decíase que había tanta cantidad de metal de plata e oro que no lo tenían los
indios por nada, e así mismo se vieron piedras preciosas de esmeraldas, e yo

120
Guillermo Giucci abordou a questão dos tesouros místicos, que se faziam mais presente no imaginário
europeu do que de fato no continente recém-descoberto, relacionando-os ao discurso do fantástico e do
desconhecido germinados na mentalidade da Idade Média: “O maravilhoso medieval construiu-se de anomalias,
desde monstros pavorosos, como arimaspos e blêmios (acéfalos com olhos e boca no peito), até paraísos
fantásticos. Não obstante, do conjunto de elementos que o formou destacaram-se os metais preciosos, em
particular o ouro e a prata. No Novo Mundo, prolongou-se – embora ao mesmo tempo tenha se complicado e
esgotado – esta tradição milenar de projeções deslumbrantes que depositava tesouros inconcebíveis nos espaços
inexplorados ou semiexplorados que se consideravam afastados do eixo referencial dos europeus” (1992: 13). O
desconhecido acabava sendo o local em que se alocavam os elementos fantásticos do imaginário coletivo,
acionados de tal maneira que, ainda que tudo houvesse germinado em lendas e narrativas de origens incertas e
questionáveis, sua veracidade dependia não só de um espaço apropriado, mesmo que sempre distante e quase
inalcançável, como de um propósito que o justificasse. Daí que, “na América, o maravilhoso e a imagem das
riquezas coincidiram. O fundo do maravilhoso americano foi, quase exclusivamente, econômico” (eod. loc.).
121
Quando os índios ofereciam suas filhas, irmãs ou sobrinhas aos colonizadores, estavam tentando colocar em
prática o sistema de uxorilocalidade, em que, após o estabelecimento da união matrimonial, o casal deveria
residir na casa da noiva. Essa prática tinha como objetivo reunir o maior número possível de homens na mesma
casa, além de colocar o noivo em dívida com o pai ou os irmãos de sua mulher, internalizando-o no grupo
familiar. Essa relação, que a antropologia denomina de cuñadazgo, era “central para la definición de alianzas
interétnicas y la explotación en el nuevo marco colonial. Los encomenderos eran tratado por los indios de
cherobaia, mi cuñado, y viceversa. Entonces, es posible pensar que cuando las fuentes usaban términos como
‘padre’ o ‘hijo’, en la perspectiva indígena se estaba incluyendo a todos los sujetos de una generación, incluso a
los venidos del exterior del grupo, de un nivel supralocal, en una clara actitud de ‘apertura hacia el otro’ y una
proclividad estructural a la alianza” (Wilde, 2009: 142, grifo meu).

183
conocí a Francisco de César […] que también es de los antiguos conquistadores
de aquella provincia e muchas veces le oía hablar e afirmar con juramento que
vieron mucha riqueza […] E como la fama de aquella riqueza estuviese
extendida por todas partes, codiciaban muchos hallarse en ella (Pedro Cieza de
León apud Bixio e Berberián, 2007: 4).

Se para os índios o ouro e as pérolas possuíam uma qualidade de valor distinta daquela
que tem para os modernos, é de se esperar que outros itens menos raros também não
sofressem uma valoração especial. Daí ser comum encontrar registros de grupos indígenas
transportando uma série de produtos que, a princípio, seriam vendidos a quem quisesse
comprá-los – e pelo preço que quisessem pagar. Era esse o provável destino da “plata sellada,
alojas y ropa” que um grupo de índios Abipone, interceptado por soldados da Província do
Rio da Prata, havia roubado (Rozas [06/09/1745]: fl. 2v). No comércio, os nativos não se
importavam com o prejuízo que tinham após um intercâmbio altamente desfavorável,
justamente porque os produtos que colocavam à venda tinham um valor tão insignificante
para eles quanto a quantidade em itens ou a quantia em dinheiro que receberiam na troca.
A diferença valorativa chegava a tal ponto que os observadores espanhóis contavam
situações em que os índios, só pelo ato de estabelecer uma troca, ofereciam os seus próprios
pertences pessoais à venda. Em sua expedição ao Chaco pelo rio Bermejo, o Coronel da
cidade de Salta, Adrian Fernandez Cornejo, depara-se com um grupo de índios Mataguayo
que, segundo o militar, chamavam a atenção por manterem poucos bens pessoais, que podiam
ser resumidos basicamente por suas armas, montaria e roupas – e, mesmo assim, mostravam-
se interessados em comercializar com os espanhóis: “son muy aficionados al comercio, y
cuanto tienen procuran vender, sin reservar los pellejos con que se visten” (Cornejo, 1790: 4).
Como constatou Manuela Carneiro da Cunha, ao procurar uma definição que melhor
explicasse o que são as populações tradicionais, partindo da eliminação do que não são: “se as
definirmos como populações que estão fora da esfera do mercado, será difícil encontrá-las
hoje em dia” (2009: 278).122 Ao que tudo indica, no setecentos, esta afirmativa já se fazia
valer.
Não demorou até que alguns observadores mais atentos notassem que os índios não só
atribuíam valores diferentes aos itens comercializáveis, como também não compartilhavam
das mesmas intenções e objetivos ao realizarem comércio. Ao contrário dos espanhóis, que

122
A antropóloga, por fim, define seu conceito: “populações tradicionais são grupos que conquistaram ou estão
lutando para conquistas (prática e simbolicamente) uma identidade pública conservacionista que inclui algumas
das seguintes características: uso de técnicas ambientais de baixo impacto, formas equitativas de organização
social, presença de instituições com legitimidade para fazer cumprir suas leis, liderança local e, por fim, traços
culturais que são seletivamente reafirmados e reelaborados” (Carneiro da Cunha, 2009: 300, grifos no
original).

184
pretendiam suprir necessidades materiais através da reposição de produtos pelo mercado e do
acúmulo de capital, os nativos visavam à relação em si, fosse comercial, fosse à base de
simples trocas ou escambos. Esta percepção não deve ignorar o fato de que os índios também
buscavam o comércio como forma de abastecerem-se de itens que lhes eram importantes e
para consumo imediato, como pontuou Félix de Azara, ao descrever que o dinheiro em posse
dos Payaguá durava somente o tempo de encontrarem algum comerciante para então
comprarem “sal, frutas, legumbres, tabaco, miel y principalmente en aguardiente” –
sublinhando o fato que “no atesoran” (Azara, 1790: 365).
Ainda que os chaquenhos não atribuíssem os valores que se acreditava serem
adequados aos produtos comercializáveis, nem intencionassem produzir acúmulo de bens ou
monetário, é inegável a participação ativa dos nativos no comércio regional. Foi de fato uma
maneira eficaz de conseguirem comprar certos itens que lhes interessavam e de venderem
produtos como couro, erva-mate e animais roubados. Para além disso, não se pode negar que
tal comércio possibilitava uma aproximação amistosa entre os índios e os mercadores,
fazendo criar, para as cidades que mantinham acordos com os indígenas, uma situação
temporária de estabilidade pacífica, a qual preferiam manter independente das críticas que
podiam sofrer.
Aos índios, tais acordos comerciais rendiam não apenas os produtos que conseguiam
adquirir, como também a oportunidade de aproximarem-se das cidades para conseguir
eventuais benefícios – situação que os Payaguá souberam muito bem aproveitar. Suas visitas
às cidades eram tão frequentes que os moradores passaram a ver esta constância com
naturalidade, permitindo a livre circulação dos índios e incentivando-os à compra e venda de
produtos.123 Porém, a fama que os Payaguá tinham entre as autoridades coloniais, e mesmo
entre os colonos, colocava sob suspeita qualquer tentativa de aproximação destes índios,
originando-se um estado de alerta, principalmente entre os missionários, que sabiam das
dificuldades próprias de relacionar-se com os Payaguá: “y si bien se muestran muy amigos
para con los Españoles, los visitan en sus ciudades y venden los peces pescados en el Paraná,
nadie se fía de ellos a causa de su falsedad” (Paucke, 1767, t. 2: 44).

123
Liberdade que acabou gerando problemas de convivência internos às cidades. Os moradores de Assunção, por
exemplo, reclamaram ao padre Diego de Haze a respeito de um grupo de índios Payaguá que havia ganho a
permissão de visitar a cidade dentro de um acordo que deveria resultar na catequização dos índios. A
acomodação dos nativos fez com que eles frequentassem a “ciudad desnudos en veros como siempre
acostumbran andar con grandísimo escándalo y andando entre españoles entraban por todas sus casas e iban por
las chácaras y valles” ([20/12/1721]: fl. 1) – e, ao ver os índios assim, ninguém protestava “por miedo de irritar a
estos enemigos feroces y bárbaros” (CA, 1735-1743: 148)

185
Mesmo correndo riscos, muitos hispano-crioulos preferiram apostar nesta relação,
visando à pacificação dos índios, ainda que o principal objetivo dos nativos fosse “comerciar
con ellos o proveerse de cuchillos y otras armas de hierro, de agujas de coser, anzuelos para la
pesca y muchas otras cosas que necesitan” (Jolís, 1789: 291). E era, justamente, a compra de
armas a principal preocupação das autoridades. Estas tentavam denunciar a facilidade com
que os mercadores das cidades vendiam aos Payaguá, tornando-se coniventes com a situação
e cúmplices, em grande parte, do poderio bélico destes índios.
Para se ter uma noção do arsenal que os Payaguá adquiriam nestas investidas
comerciais feitas às cidades, o Governador do Paraguai elaborou um relatório no qual, além
de referir as hostilidades causadas pelos índios, responsabilizava os moradores de Assunção
pela venda indiscriminada de armas:
[…] salían los indios guerreros armados y venían a esta ciudad así los del río
arriba como los de abajo y se señoreaban de ella sin ningún recelo, armados y
desnudos en cueros sin el menor recato y se entraban por cuantas casas querían
que hubiesen hombres o mujeres y con el motivo de rescate por esterillas de paja,
que hacen pedacillos de cera que sacan de los montes y conchas, compraban
cuñas, hachos, machetes y cuchillos de la gente ignorante por cosas tan menudas
y de ninguna estimación, siendo lo más nacido de la novelería del servicio. Con
estas herramientas pasaba la introducción de ellos a casa de los herreros, quienes
les hacían mojarras y recatones de lanzas, terciados y casquillos de flechas con
que en más tiempo de año y medio se rehicieron de mejores armas que los
españoles, pues hasta sus macanas que eran de madera a forma de garrotes las
llegaron a poner ruedas de bronce con puntas agudas en los remates que
conseguían de los plateros y otras armas ofensivas (Balmaceda [24/07/1719]: fl.
2-2v).

Assim, o incentivo à circulação de índios nas cidades, como forma de ensaiar uma
aproximação pacífica, que potencialmente gerasse uma importante aliança, esbarrava no
generalizado receio em relação à presença armada não só dos nativos, mas também dos
negros, mulatos e mestiços. Incomodados com a facilidade com que os indígenas acessavam
as cidades, muitos moradores solicitavam às autoridades um controle mais rígido, que os
impedisse de entrarem armados, como se constata na reclamação formal por parte do Cabildo
de Córdoba à Coroa, em que foi ressaltada “la audacia de dicho gentío pide las más severas
providencias para su sujeción, que sólo podría conseguirse con pena capital imponiéndola a
todas y cualesquier personas, sin excepción alguna que se les encontrarse dichas armas cortas,
punzantes o semejantes ofensivas” – havendo uma preocupação especial com relação às
boleadeiras usadas pelos índios, “que imitan en lo violento a la bala” (Cabildo de Córdoba
[16/10/1755]: fl. 1v).
Apresentados e adaptados ao sistema econômico colonial – até onde era permitida tal
interação, obviamente –, os nativos priorizaram o ato da troca em detrimento dos movimentos

186
de circulação e acúmulo de bens. E era este desapego aos bens materiais o principal alvo de
críticas por parte dos espanhóis, que acabavam menosprezando os interesses indígenas nestas
relações justamente porque estes não eram focados na posse, característica que denotaria um
certo progresso no processo de civilidade destes povos: “Uma cultura dominada pelas ideias
de propriedade só pode imaginar a ausência dessas ideais sob determinadas formas” (Marilyn
Strathern apud Carneiro da Cunha, 2009: 328).
Porém, os chaquenhos não eram movidos pela ânsia do enriquecimento monetário ou
pela fruição de graus de posse socialmente distintivas, mas antes pela oportunidade da
aproximação reciprocitária entre aliados em potencial, que, no estabelecimento das trocas,
acordavam uma aliança restrita, excluindo aqueles que não a praticassem. Utilizaram, assim,
os meios que podiam para dar continuidade às suas práticas de sociabilidade, adaptando-as à
sua lógica relacional. O comércio acabou sendo absorvido pelas e nas práticas dos índios
porque não comprometia a ontologia tradicional – pelo contrário, somava oportunidades que
ampliavam sua gama de aliados em potencial. Mas nem todas as práticas modernas foram
internalizadas pelos chaquenhos, que eram extremamente seletivos quanto à adoção de novas
técnicas ou costumes a serem inseridos em seu sistema ontológico na medida em que podiam
desestabilizar a sua socialidade ou regime econômico. Este é o tema do próximo capítulo, no
qual analisarei a relação que os chaquenhos mantinham com sua produção alimentar e a
ausência de escravidão em suas relações com os cativos.

187
Capítulo 4
Economia dos índios chaquenhos II
A produção e o consumo alimentar como métodos econômicos
de relação cosmológica

O senhor fala em folhas e galhos. Eu estou


falando sobre o que está debaixo da terra.
(Philip Roth, “Adeus, Columbus”)

Ahora soy definitivamente un axolotl, y si pienso


como un hombre es sólo porque todo axolotl
piensa como un hombre dentro de su imagen de
piedra rosa.
(Julio Cortázar, “Axolotl”)

No capítulo anterior, procurei mostrar como as trocas – enquanto modalidade de


circulação e captação de objetos e constituição da sociabilidade chaquenha – foram
amplamente praticadas pelos nativos da região durante o século 18, devido, por um lado, à
permanente existência de uma rede de comércio e escambo vinculada ao sistema econômico
colonial e, por outro, à capacidade dos índios de integrarem as práticas comerciais modernas
ao seu regime econômico baseado na reciprocidade. As trocas estabelecidas entre os grupos
chaquenhos e os mercadores hispano-crioulos foi interessante para estes últimos até o
momento em que perceberam que os índios não mantinham a mesma lógica mercantil que
fundamentava os seus objetivos econômicos. A comercialização que os índios realizavam não
se pautava no cumprimento de acordos que honrassem contratos, algo fundamental para os
comerciantes coloniais, principalmente porque, em pouco tempo, notaram que os índios não
só comercializavam com o primeiro que aparecesse, como também chegavam a vender
produtos furtados, algumas vezes, dos próprios compradores.
Esta aparente falta de comprometimento que os chaquenhos demonstravam frente às
relações comerciais – somada aos constantes furtos cometidos contra estâncias ou cidades, de
onde os índios levavam animais, armas ou objetos que, muitas vezes, eram introduzidos na
circulação de produtos pela via do comércio ilegal – incitava duras críticas não só àqueles que
estimulavam as trocas mercantis com os nativos, como também aos próprios índios, que eram
declarados incapazes de exercerem atividades que exigissem o raciocínio lógico. Baseados
nestas análises simplistas acerca das atitudes dos nativos, missionários e agentes coloniais
optavam ou por proibir o comércio com os índios, distanciando-os o máximo possível da
presença de mercadores, ou buscavam assessorar o comércio por meio de intervenção direta

188
na compra e venda de produtos das reduções. De qualquer maneira, concordavam que a tutela
colonial deveria se fazer presente através de um controle sistemático da atuação indígena.
Aos espanhóis, parecia ser mais importante instruir os índios – aparentemente
desinteressados em bens materiais – na lógica das trocas modernas, introduzindo-os às
técnicas e regras mercantis e à ideia de capitalização de bens. Presos a esta visão, os
observadores hispanófonos acabaram ignorando o fato de os índios não apenas terem sido
agentes ativos nos envolvimentos comerciais, como também o de terem adaptado o sistema
mercantil moderno ao seu sistema de reciprocidade tradicional. Ao contrário do que
esperavam os espanhóis, os grupos chaquenhos que se envolveram diretamente no mercado
colonial não adequaram seu sistema de trocas tradicional à economia imposta pelos modernos
– como se a única alternativa viável aos nativos fosse modificar o seu sistema econômico para
que ele pudesse comportar os novos conhecimentos trazidos pelos estrangeiros. O que ocorreu
foi justamente o inverso: os índios internalizaram apenas os elementos do novo modelo que
fariam sentido dentro do sistema tradicional, mas sem transformá-lo a ponto deturpar seus
objetivos originais, que, no caso, eram a manutenção do regime de reciprocidade e o
consequente estabelecimento da sociabilidade. Por isso se pode afirmar que os chaquenhos
não mudaram seu comportamento naquilo que lhes possibilitava a construção de relações
sociais – ainda que algumas de suas atitudes pudessem, aos olhos dos espanhóis, não
aparentar em nada esforços voltados à reprodução social.
Sendo assim, pôde-se observar, no capítulo anterior, como um dos aspectos da
economia chaquenha – a reciprocidade – não apenas manteve-se ativo no século 18, como
também foi galvanizado pela situação colonial específica daquela região: a presença da rota
comercial que se estabeleceu entre o porto de Buenos Aires e o Peru. Sem substituir sua
prática econômica tradicional, os chaquenhos internalizaram novos elementos que lhes
propiciaram enriquecer a experiência de seus costumes e objetivos, sem perturbá-los de sua
senda original.
Porém, nem todas as práticas nativas foram abertas à incorporação de elementos
exógenos que pudessem atualizá-las, considerando a realidade colonial. Ainda que algumas
técnicas ou objetos trazidos pelos espanhóis tivessem sido adaptados pelos índios à sua vida
prática – sem, com isso, desestruturar ou substituir a sua lógica tradicional –, dois expedientes
relacionados à economia nativa mostraram-se impermeáveis à internalização de qualquer tipo
de modificação proveniente do contato com os colonizadores: a produção e consumo de
alimento e a conduta que os indígenas tinham em relação à predação e à domesticação de
animais. Neste capítulo, analisarei a forma como os chaquenhos administraram estes

189
expedientes relacionados à sua produção econômica, que, devido principalmente à intensa
experiência de contato reducional, sofreu diversas críticas por parte dos agentes coloniais e
missionários dada a percepção, por parte destes, de uma incompatibilidade entre a meta de
produção considerada adequada pelo sistema colonial e a produção realizada pelos nativos.
Porém, antes de analisá-los, abordarei, como contraponto, alguns exemplos de internalizações
bem sucedidas que os índios não só permitiram como operaram ativamente, tomando para si a
responsabilidade pela introdução de elementos exógenos em suas práticas tradicionais.
Partirei do pressuposto de que, se houve alguma incorporação externa, ela não comprometia a
estrutura lógica interna, colocando-a em risco de extinção ou substituição pela adoção de
técnicas modernas. Qualquer modificação permitida pelos índios viria a atualizar suas
práticas, beneficiando-as na medida em que aperfeiçoavam seus objetivos originais – sendo
este critério o parâmetro para que as internalizações fossem aceitas e realizadas, como
mostrarei adiante.

4.1 A internalização de métodos e tecnologias modernas


A proximidade que passou a existir entre os grupos indígenas e os hispano-crioulos,
após a fundação e o estabelecimento das cidades na região do Chaco, ensinou duas lições aos
espanhóis: 1) os índios, quando queriam, podiam ser extremamente hostis e violentos; e, ainda
assim, 2) podiam optar por construir uma aproximação pacífica, sustentada ou pela aliança
armada, ou pelo compartilhamento de experiências simbólicas ou materiais – como, aliás, foi
bastante comum nas reduções. A facilidade com que os chaquenhos transitavam de um tipo de
relação a outra resultava na desconfiança que os espanhóis depositavam em qualquer
possibilidade de aproximação com os nativos. A desconfiança traduzia-se no conceito de
inconstância, que, como discutido no segundo capítulo, representava para os modernos a
incapacidade de os índios se manterem fiéis a acordos e tratos. Porém, com o tempo de
contato, perceberam que algumas de suas técnicas ou práticas acabavam sendo incorporadas
pelos nativos, que – esperavam os espanhóis –, aculturados em razão dos novos métodos,
alcançariam, assim, a sua civilidade e, consequentemente, sua pacificação por meio do projeto
colonial.124 Porém, como já destacado no capítulo anterior, ainda que houvesse a

124
Ao demonstrarem-se adeptos às técnicas modernas, os índios estariam, segundo os espanhóis, comprovando
também sua afeição à vida civilizada e a um passo de converterem-se à fé cristã. Isto porque, de acordo com a
lógica ocidental, os três níveis de relações institucionais (a política, a economia e a religião) não estavam
dissociados um dos outros – ainda mais no contexto colonial, que os previa como necessários tanto à conquista
temporal quanto à espiritual: “Os projetos de colonização, longe de serem reduzidos à esfera do econômico,
devem ser vistos em sua perspectiva global de empreendimento político, econômico e religioso. Afinal, na
Europa do Antigo Regime, sobretudo nos países ibéricos, o temporal e o espiritual estavam fortemente

190
internalização de alguma prática ou objeto derivados do mundo moderno, estes não
provocavam a extinção dos expedientes tradicionais. Isto porque, quando eram incorporados,
ao invés de confrontarem o sistema sócio-cosmológico nativo, as novidades trazidas pelos
estrangeiros eram associadas como elementos complementares à estrutura autóctone. Dito de
outra forma, nenhuma internalização seria realizada em detrimento das condutas e práticas
tradicionais, justamente porque os índios optavam pela incorporação daquilo que não os
afetaria.
Deve-se levar em conta que, partindo do que se analisou no primeiro capítulo acerca
da mitologia sul-ameríndia, entre os índios o conhecimento vinha do exterior, através de
ensinamentos provenientes dos chamados demiurgos ou heróis culturais, que revelavam as
diretrizes da vida social, material e espiritual a serem incorporadas pelos nativos. Isso
significa que grande parte do conhecimento, das técnicas e das tradições de um grupo
indígena tinha origem exógena – e eram os próprios nativos os responsáveis pelo
agenciamento da alocação destes elementos na estrutura autóctone. Aos chaquenhos, portanto,
não era recente, muito menos inédito, ter que lidar com novidades vindas de fora – ou, como
bem colocou Oscar Calavia Sáez ao tratar dos Yaminawa do Acre, “apenas a novidade em si é
que não era nova em absoluto para eles” (2005: 45)
Um exemplo que ilustra a internalização e alocação de elementos externos sem
acarretar o prejuízo das práticas tradicionais foi a adoção, por parte de alguns grupos
indígenas, das roupas de pano trazidas pelos espanhóis. Sem substituir ou interferir em seus
adornos corporais – que, como foi analisado anteriormente, cumpriam funções muito além da
estética –, as vestes dos estrangeiros foram aceitas e introduzidas, por exemplo, pelos Vilela
reduzidos:
[…] el vestido ordinario de esta gente era de pieles de animales, aunque ya
hacían también sus vestidos de lana según les alcanzaba la lana de sus ovejas;
procuraban siempre la decencia en las mujeres mozas y en os párvulos de suerte
que cuando más no alcanzaban, a los menos lo preciso para la decencia habían de
tener. También los hombres mozos andan decentemente vestidos, pero los viejos
de setenta años adelante van todo desnudos, pero las viejas llevan una redecilla
con dobleces pendiente de la cintura, ancha como un geme (Padre Bernardo
Castro apud Furlong, 1939: 47).

No espaço reducional, os índios, além de serem iniciados na catequese e nas diretrizes


de uma vida civilizada, eram instruídos em diversos ofícios manuais e incentivados à
produção artesanal. Insistia-se para que os reduzidos investissem seu tempo na confecção de
bens tanto para venda como para o consumo dos próprios internos. E os resultados foram

associados e os ideais da conquista e da colonização tiveram sempre um forte conteúdo religioso” (Almeida,
2003: 80).

191
satisfatórios: “De todos los oficios mecánicos que hay en los pueblos no se halla alguno que
puedan dejar de comprehender con la perfección que se lo enseñan, todos tienen aprendices”
(Zavala, 1784: 169). Porém, não se deve ignorar o fato de estes trabalhos manuais terem sido
incentivados justamente por não se tratarem de ofícios mais complexos, já que, como queriam
acreditar os próprios jesuítas, os índios não eram capazes de executar trabalhos que exigissem
criatividade ou inventividade: “aficionados en las manifacturas, aprenden los oficios cuanto
basta a imitar con perfección el ejemplar, sin la gloria de inventores” (Guevara, 1764: 36).
Ainda assim, admitiam uma importante participação dos nativos na produção de bens, como
no caso dos tecidos e roupas – fundamentais para o processo de catequização dos neófitos. O
padre Florián Paucke, por exemplo, foi um defensor e entusiasta da produção de lã e tecidos
nas reduções, afirmando que a fabricação destes bens era tão intensa que existiam verdadeiras
fábricas de mantas (1767, t. 2: 274). A tecelagem, assim, passava a ser um dos ofícios mais
frequentes nas reduções, possibilitando a fabricação de roupas paras os índios, cobrindo-lhes a
nudez e garantindo a sua imersão em atividades manuais:
La confección de tejidos y prendas, conducentes en definitiva a la protección del
cuerpo y sobre todo a ocultar la pecaminosa desnudez, se transformaría en el
baremo para medir la laboriosidad femenina, los misioneros celebraban la
dedicación de las indígenas a unas labores que favorecían los hábitos sedentarios
(aunque en ciertos casos el tejido estuviese precedido de la práctica recolectora a
fin de obtener algunos de los materiales necesarios para elaborar los vestidos)
(Vitar, 2004: 53-54).125

Ainda que houvesse todo um aparato manufatureiro de produção têxtil, e que os índios
não apenas colaborassem com a produção, tendo a elevado a um patamar que impressionou os
curas, o acesso a tecidos e roupas não provocou uma aculturação indígena. Fossem para
protegê-los das intempéries do clima, ou como forma de os índios integrarem-se entre os
espanhóis, o caso é que as roupas não interferiram no modo como os nativos interagiam com
os seus corpos. Os adornos corporais não perderam seu lugar nem sua função no momento da
adoção das vestimentas ocidentais: estas é que foram acrescidas ao conjunto, adquirindo uma
razão específica em função de sua incorporação.
Outro exemplo que pode ser explorado é o da adoção dos cavalos por alguns grupos
chaquenhos. Como estes animais não eram encontrados no continente americano, os

125
Sobre a colheita de algodão e a produção têxtil, o jesuíta Juan de Escandón descreveu como as índias
administravam a matéria-prima e os produtos nas relações de troca dentro das reduções: “Porque todas o casi
todas siembran sus algodonales y cogen algún algodón, y la que no lo quiere hilar para si, lo da al común y éste
le da en paga algunas varas de tejido, según la mayor o menor cantidad de libras o arrobas de algodón que de la
india recibe. Algunas, no obstante, lo hilan para hacer sus velitas y emplearles en sí, en sus maridos y en sus
hijos, y traerlos más bien vestidos que los demás. Y si lo hila, el tejerlo nada le cuesta, sino llevar el hilado a la
oficina de los tejedores, en donde se les teje de balde y sin que tenga que darle los agradecimientos al que los
tejió” (1760: 116).

192
espanhóis trataram de introduzi-los na região, de maneira a buscar a autorreprodução da
espécie e difundi-la em benefício dos hispano-crioulos. Rapidamente os ameríndios
mostraram interesse pelos cavalos e adotaram a montaria equestre como forma de locomoção
alternativa. Já desde o final do século 16, segundo o censo encomendado por Juan de Garay,
os Guaicuru possuíam mais cavalos que os próprios colonos de Assunção (Palermo, 2000:
350) – índice que se confirmaria com a constatação do padre Pedro Lozano de que vários
grupos chaquenhos, dentre os quais os Mataguayo, os Toba, os Mocovi e os Abipone, no
século 18, já eram “más diestros en cabalgar que los mismos españoles” (1733, § XII, fl. 79).
Além dos ganhos em termos de mobilidade – e por causa desta –, a nova montaria
proporcionou aos índios maior dinamicidade em suas investidas bélicas e a possibilidade de
se locomoverem com uma quantidade maior de bens espoliados durante assaltos ou guerras
(Lucaioli, 2011: 41). Félix de Azara chegou a afirmar que a introdução dos cavalos entre os
grupos chaquenhos facilitou suas incursões guerreiras, pois, antes da chegada dos europeus,
os índios “no conocían el uso de los caballos, y que, estando muy alejadas unas de otras, no
podían sino con mucha dificultad hacerse la guerra” (1809: 93). O interessante é que o
funcionário real não deixa dúvidas em relação à existência da guerra antes da chegada dos
europeus: a montaria não foi o elemento que deu início às refregas; ela foi, na realidade,
adicionada como um facilitador para uma realidade que já existia e estava estabelecida entre
os chaquenhos. E era a própria dinâmica das guerras e dos assaltos que possibilitava a
retroalimentação do sistema, já que, quanto mais ágeis ficavam os índios em seus ataques,
maiores eram as chances de capturarem novos animais:
Antiguamente andaban a pie, pero después se han hecho grandes jinetes, porque
han hecho grandes presas de caballos de las estancias y poblaciones de los
españoles de manera que de sólo la ciudad de Santa Fe en solos veinte años que a
la persiguen con empeño habrán cogido más de quince mil caballos (Lozano,
1733, § XII, fl. 79).

A montaria foi, de fato, um recurso difundido entre alguns grupos de índios


chaquenhos, que adotaram e incorporaram a mobilidade equestre na medida em que esta
viabilizava o aperfeiçoamento das tradicionais investidas bélicas. Além disso, os cavalos
também adquiriram importância nas trocas promovidas pelos nativos, que introduziram estes
animais em suas relações reciprocitárias. Se é verdade que parte dos animais capturados pelos
índios era destinada à “venta a hispano-criollos de localidades alejadas” (Palermo, 2000: 351),
alguns grupos indígenas acabavam tendo acesso aos cavalos apenas por causa das trocas
intertribais, como é o caso dos Terena, que só aprenderam a “guerrear montados a caballo
después de haber entrado en comercio con los guaycurúes” (CA, 1730-1735: 193). Ainda

193
existem relatos afirmando que grupos como os Toba, Mocovi e Abipone integravam a carne
de cavalo em sua dieta, além de usarem “cueros equinos para hacer sus toldos: dos usos
distintos a los que daban los europeos a esos animales” (Palermo, 2000: 350).
Ainda no que compete a internalizações bem sucedidas, pode-se citar a introdução do
ferro como uma tecnologia apropriada pelos indígenas, tanto mediante suas trocas de animais
ou prisioneiros de guerra por instrumentos de ferro, quanto por meio do preparo da terra entre
os grupos horticultores (Fradkin, 2000: 246).126 Mas foi principalmente no acesso às armas
que o ferro se fez mais presente entre os índios, chegando a levar as autoridades coloniais a
sancionarem bandos de proibição de comércio de armas com os nativos, como foi visto no
capítulo anterior – já que, ironicamente, “estas clases de armas desconocidas de sus
antepasados” (CA, 1735-1743: 584) eram quase sempre introduzidas entre os nativos através
de comércio mantido com hispano-crioulos. Outra alternativa de acesso às armas se deu
através das trocas realizadas pelos próprios indígenas, como as que promoviam os índios
Pampa, instalados próximo a Buenos Aires, ao venderem “a esta ciudad ponchos de los que
compran a los de tierra adentro y que en esta ciudad compran sables y los llevan y se los
venden a los indios de tierra a dentro por ponchos” (Cabildo de Buenos Aires [15/10/1752]:
7). Nesta circulação, a internalização do ferro não apenas possibilitava aos nativos o acesso a
novos artigos, tais como ferramentas, instrumentos agrícolas e armas, como também
possibilitou a introdução de mais um elemento dinamizador das trocas intertribais.
De uma maneira ou de outra, a internalização de elementos exógenos não agrediu a
estrutura cosmológica nativa; o que fez foi ampliar a potencialidade de algumas práticas
tradicionais como a guerra e a reciprocidade sem afetá-las em sua essência motivadora, pois
as “reavaliações funcionais sempre aparecem como extensões lógicas dos conceitos
tradicionais” (Sahlins, 1994: 176). Os índios não passaram a ser outros sujeitos – ou sujeitos
outros –, nem viram sua identidade ser deturpada, justamente porque – e esta é a ideia que

126
Se estivéssemos tratando de grupos contemporâneos, a lista de objetos incorporados contemplaria tecnologias
de última geração, tais como celulares e GPSs. Desta percepção resulta, no senso comum, a ideia de aculturação
indígena, como se 1) os índios estivessem fazendo um esforço hercúleo para adaptarem-se ao mundo
contemporâneo, correndo o risco de perderem o avanço evolutivo promovido pela civilidade dos brancos; e 2)
como se esta fosse uma declaração da extinção dos povos nativos, que, ao apropriarem-se de elementos de uma
sociedade cuja realidade material é bastante distante da sua, estivessem entregando à derrota sua existência, que
deveria ser pautada pela imobilidade de sua cultura. Assim, os povos indígenas não têm escolha: ou sobrevivem
à margem de um Estado inapto no que compete à proteção e à fiscalização dos direitos humanos extensivos a
todos povos que vivem em seu território e acabam sendo julgados pelo senso comum como obstáculos ao
desenvolvimento da nação, devido à sua condição tradicional, ou aproximam-se do mundo dos modernos,
incorporando elementos exógenos e, com isso, adquirindo a chaga social do discurso da aculturação. Como bem
colocou Viveiros de Castro, “uma cultura não é um sistema de crenças, mas antes – já que deve ser algo – um
conjunto de estruturações potenciais da experiência, capaz de suportar conteúdos tradicionais variados e de
absorver novos” (2002a: 209).

194
procuro defender aqui – esta não era a intenção dos nativos ao incorporarem elementos de
fora do grupo.
Como demonstrei nos dois primeiros capítulos, a cosmologia ameríndia não só era
propícia à infiltração de expedientes externos como necessitava desta abertura para a
reprodução da socialidade do grupo. Daí os mitos reservarem um importante espaço na sua
narrativa à descrição da internalização de pessoas – as mulheres, as crianças e os inimigos –
no seio do grupo, a fim de regenerá-lo enquanto unidade tribal. Com os objetos ou técnicas
trazidos e/ou ofertados pelos espanhóis não era diferente: o pensamento mitológico nativo
explicava a adesão de tecnologias e seus usos pela tribo como um movimento natural de
apreensão do conhecimento do mundo. Por isso, o diálogo entre os índios e os colonizadores,
nas situações iniciais de contato, não era obstaculizado pelos nativos até estes perceberem que
as intenções dos estrangeiros não correspondiam às suas propostas sociológicas. No final das
contas, o problema para os índios não era, de modo algum, absorver o conhecimento que os
colonizadores traziam, mas sim transformar-se, por causa disso, neles:
Pois o desafio ou enigma que se põe aos índios consiste em saber se é realmente
possível utilizar a potência tecnológica dos brancos, isto é, seu modo de
objetivação – sua cultura – sem se deixar envenenar por sua absurda violência,
sua grotesca fetichização da mercadoria, sua insuportável arrogância, isto é, por
seu modo de subjetivação – sua sociedade (Viveiros de Castro, 2000: 51).

Internalizar, portanto, não significava o abandono da identidade nem individual, nem


social dos nativos, cuja cosmologia, na prática, partia do princípio de que “a mudança se
manifesta de fato no esforço para permanecer igual” (Carneiro da Cunha, 2009: 372). E
quando a mudança implicasse na extinção do conteúdo sociológico tradicional, havia uma
refração da incorporação dos elementos exógenos por parte do grupo, ou uma absorção
superficial, sem plena internalização – como ocorreu, por exemplo, em relação à instituição
do cacicado. Liderança reservada a um seleto grupo de indígenas, o título de cacique foi tão
difundido no discurso colonial que, mesmo no século 18, as autoridades administrativas e
clericais nem sequer questionavam a continuidade do uso do termo. Desde os primeiros
contatos, o título de cacique foi empregado como um expediente de distinção e de
qualificação daqueles membros de um grupo apontados pelos colonizadores como os
principais, através dos quais podiam acessar os demais indígenas. Os espanhóis não se
preocuparam em entender a extensão que tal função ocupava entre os nativos, muito menos
verificar se ela realmente existia. Com isso não pretendo questionar a existência de algum tipo
de liderança entre os índios – algo que, no meu entendimento, fazia realmente parte da
socialidade tribal –; pretendo, sim, analisar a maneira empregada pelos colonizadores para

195
impor uma realidade política que, na prática, não correspondia à forma como os grupos
indígenas mantinham suas relações sociais.127
Desta forma, pode-se afirmar que havia dois cacicados: a liderança indígena de nível
familiar ou suprafamiliar, fundamentada na sociabilidade e na convivência doméstica
responsável pela gestão da reciprocidade; e a representação que os espanhóis criaram, baseada
em uma relação hierárquica político-diplomática aos moldes do poder vitalício e hereditário
moderno. O que ocorreu no contexto do contato, desde o século 16, estendendo-se pelo 18, foi
a tentativa dos agentes coloniais de, aproveitando-se da organização social indígena, impor a
forma de governo político-estamental europeia para, por meio de suas lideranças parentais,
integrar os índios ao modelo administrativo colonial. Para os colonos, ainda que fosse um
interessante ponto de partida para se tentar chegar a um contato eficiente com o grupo nativo,
a chefia indígena não representava, de acordo com o modelo ocidental, uma consistente
instituição política, apta a lidar com os trâmites administrativos e burocráticos necessários à
vida em civilização. E foi justamente este o engano que os espanhóis cometeram em sua
interpretação sobre a liderança indígena: ao entendê-la como um nível rudimentar de governo,
acabaram por ignorar a sua função dentro das relações sociais nativas.
Diferentemente de um governante centralizador, poderoso e autoritário, a liderança
indígena – que poderia excercer sua influência tanto no âmbito familiar como sobre o aldeão –
não era detentora da ordem, nem criadora de normas, e a sua função não implicava em um
controle sobre os atos de seus seguidores – um “chefe que não é chefe de Estado” (Clastres,
1974: 222). O seu cargo estava relacionado antes à sua capacidade de conseguir manter a
sociabilidade em funcionamento do que a administrar ou controlar o grupo. O chefe seria, em
suma, um possibilitador, e não um detentor das relações estabelecidas entre os seus
seguidores: “El buen líder es aquel que evitaba las disensiones o resolvía las tensiones que
podían quebrantar la unidad grupal” (Perusset e Rosso, 2009: 68). Para isto, era fundamental
que o líder garantisse a presença do maior número possível de pessoas no seu entorno,
fazendo, por exemplo, com que os arranjos matrimoniais direcionassem os maridos de suas
filhas a sua casa:
Cada maloca dentro de uma aldeia tinha um “principal”, que era alguém que
conseguia reunir em torno de si uma grande parentela. O processo de
constituição da unidade residencial dependia da capacidade de um homem de

127
Segundo Guillermo Wilde, foi através dos expedientes legais que os espanhóis conseguiram impor não
apenas um controle sobre as populações nativas, mas também estabelecer os parâmetros políticos pelos quais o
discurso colonial iria basear suas análises sobre os grupos indígenas: “La legislación indiana era en sí misma un
eficaz dispositivo de control inscripto en el discurso por medio del cual se inventaba una realidad política nativa
mediante el uso de clasificaciones y se prevenían los riesgos derivados de reconocer autoridades locales” (2009:
56).

196
atrair o maior número possível de genros e, ao mesmo tempo, reter alguns dos
seus filhos de sexo masculino. Em outras palavras, alguém que pudesse fazer
valer a “regra” uxorilocal para suas filhas, e pudesse burlá-la para seus filhos (e
para si mesmo) (Fausto, 1992: 389; cf. também Villar e Bossert, 2008: 276).

Estes esforços eram voltados para a formação de um séquito que permitisse a plena
circulação de bens materiais e simbólicos entre os integrantes, mantendo, assim, a união e
estabilidade do grupo. O chefe se comportava como um mediador capaz de, se fosse
necessário, galvanizar as relações sociais, destacando-se na capacidade de “reacción,
perspicacia y talento puestos en juego” frente a novas situações (Irurtia, 2008: 204). Daí que a
liderança indígena fazia-se “visible temporalmente en los momentos de guerra y de fiesta”
(Wilde, 2003: 222), justamente quando era imprescindível reunir um contingente suficiente
para as práticas de sociabilidade necessárias à união do grupo. Mas, para isto, diversos chefes
locais deveriam conseguir ampliar sua zona de influência, restrita a um grupo ou aldeia, até
alcançar outras lideranças que estivessem dispostas a estabelecer uma rede de alianças,
através de um “complejo sistema de preeminencias y atributos simbólicos que definían las
relaciones entre los representantes de los grupos locales” (Braunstein, 2008: 22). Portanto,
ainda que os territórios próprios de cada liderança fossem delimitados, os “movimientos con
fines de intercambio, en busca de ganado o para atacar otras agrupaciones de indios o
poblaciones fronterizas” eram necessariamente extensos (Irurtia, 2008: 204). Tudo dependia
do carisma que o líder possuísse para cooptar seguidores para o seu grupo e para manter a
constante comunicação com outras lideranças:128
Assim, o acesso à chefia e seu exercício dependiam antes do processo de
constituição das unidades domésticas, das estratégias matrimoniais e das virtudes
pessoais do indivíduo, do que de uma autoridade emanada de um “lugar da
chefia”. Era preciso ser capaz de articular uma parentela forte, ser temido e
respeitado como guerreiro, e ser, como os xamãs, grande orador (alguns
principais eram também pajés). A poligamia e a virilocalidade não eram
privilégios da chefia, mas antes elementos do processo político de constituição
de um chefe: ter muitas mulheres, e não se sujeitar ao “serviço da noiva” devido
ao sogro, é para quem pode (e pode quem é temido e respeitado). Guerra e troca
matrimonial articulavam-se no desenvolvimento das parentelas e na política
aldeã (Fausto, 1992: 390).129

128
Sobre a capacidade carismática das lideranças indígenas, José Braunstein faz uma interessante analogia:
“Como si el carisma fuera la fuerza atractiva de un imán y las familias extensas, unidades elementales de la
organización social, estuvieran constituidas de hierro, las bandas crecían o se disgregaban según el monto de esa
fuerza mística” (Braunstein, 2008: 26).
129
Parte da dificuldade de se entender como funcionava a liderança indígena reside na imprecisão que existe
sobre a escolha ou sucessão do chefe entre os membros do grupo. Mesmo que se possa inferir a hipótese da
hereditariedade – descrita como prática sucessória do cacicado indígena por jesuítas como Martín Dobrizhoffer
(1784, t. 2: 107) e Pedro Lozano (1754: 384), bem como por Félix de Azara (1809: 36), e observada entre grupos
contemporâneos, como os Chané (Villar e Bossert, 2008) –, cabe questionar até que ponto este conceito não
sofre de uma imposição eurocêntrica, baseado no modelo de governo formal conhecido pelos ocidentais. Sobre
isto, Guillermo Wilde é providencial, ao alertar para o cuidado que se deve ter em relação à sucessão parental
que, em cada cultura, assume significado e prática próprios: “En este sentido, de ‘padre a hijo’ es una metáfora

197
Ainda que não representasse o tipo de governo, nem a forma hierárquica do sistema
político conhecido na Europa, os espanhóis admitiram que a chefia indígena era a responsável
pelo estabelecimento de laços de aliança e relações parentais muito úteis aos interesses do
projeto colonial. Logo, trataram de fazer dessas lideranças uma porta de comunicação aos
demais índios de uma família extensa ou de uma aldeia, conferindo aos chefes uma influente
posição de intermediadores. O primeiro passo, portanto, foi buscar a otimização deste acesso,
de forma a garantir a aproximação pacífica com um maior número possível de índios, dotando
a liderança indígena “de un carácter estable y sancionado exteriormente que antes no poseía”
(Wilde, 2009: 57). Desta maneira, categorizava-se o cacicado e institucionalizava-se a relação
com os chefes por meio de expedientes formais que conferiam sentido ao empenho
civilizatório da colonização:
[…] y considerando que en las repúblicas civiles debe haber diversa graduación
de personas a proporción de los ministerios que ejercen y las que persuaden la
misma razón sean tratadas con aquellas honras que se les deben a sus empleos,
recomiendo a vuestras mercedes que así en público como en particular traten con
distinción a los caciques, corregidores y a todos los indios que fueren jueces y
ocuparen algún empleo honorífico, para que con este estímulo cuiden de su buen
nombre y procedimiento y vayan desterrando aquellas bajas imaginaciones que
los han reducido al presente abatimiento (Bucarelli [1768/1770]: fl. 2).

Iniciavam-se, assim, os acordos formais entre os agentes coloniais e as lideranças que


se mostrassem inclinadas a estabelecer uma relação de aliança ou, até mesmo, reduzir-se às
missões religiosas. Daí as instruções sobre o tratamento que deveria ser despendido aos
caciques, que passavam a ocupar uma função distintiva nas relações com os funcionários
reais: estes índios não seriam apenas os intermediadores do contato, mas também receptores
das sugestões, ordens e bens materiais destinados ao grupo. Acreditava-se que, ao identificar
um líder entre os índios e manter o contato direto com ele, providenciar-se-ia uma
mobilização geral entre seus seguidores, “porque ganado éste, toda la nación siguiera su
ejemplo” (Padre Alonso Sánchez in Furlong, 1939: 22).130 Da mesma forma, muitos

que posee un significado mucho más amplio del que suele dársele, incluyendo en cada categoría a los individuos
de toda una generación, lo que además pone en evidencia un malentendido de las autoridades españolas. La
sucesión al hijo tenía que ver con la cercanía familiar mayor al cacique, probablemente incluso con la co-
residencia (y todas sus implicaciones), no con la predominancia de un linaje genealógica y vertical en sentido
europeo” (2009: 141).
130
Por conta disto, este título foi conferido a qualquer índio que, dentre os demais, tivesse se mostrado mais
colaborativo em relação aos interesses e às causas missionárias. Chegou-se, inclusive, a ampliar a designação, ao
incluírem-se mulheres no cargo que, originalmente, era ocupado apenas por homens: “Día 26 [junio]: Me mandó
decir la Cacica Generala que con otras mujeres se iba al campo a buscar algunos cogollos de palmas y frutas para
regalarme, que no notase su defecto en la doctrina, agradecile la atención y mande decir que podía ir cuando le
pareciese con esto se fueron y volvieron luego sin dilación” (Lapa [23/10/1776]: fl. 39). Atualmente, a utilização
do termo pede certa prudência frente à indeterminação que tal conceito sugere, devido, acima de tudo, à
generalização em que incorre: “falar em cacicado não me resolve os problemas, não me diz como a sociedade se

198
moradores das cidades ou da zona rural “utilizaron sus contactos previos con caciques de
importancia para actuar como mediadores entre estos y el gobierno, en ocasión del inicio de
relaciones diplomáticas” (Ratto, 2005: 186).
Se os caciques foram personagens revelados pelos agentes coloniais a partir dos
interesses provenientes do contato com os índios, o cacicado, enquanto seu complemento, foi
instituído como uma necessidade administrativa vinculada, geralmente, às missões religiosas.
Com isso, integrava-se o cacique, enquanto conceito e figura moldados pelo projeto colonial,
às questões de cunho político das reduções, a fim de permitir a sua participação no âmbito
administrativo, ainda que restrita e controlada pelos funcionários coloniais.131 Assim, os
missionários buscaram uma síntese entre a burocracia típica das instituições políticas,
formalmente praticada nos cabildos, e a liderança tradicional indígena, fundamentada pelo
sistema da reciprocidade e pelas relações parentais. Neste contexto, os caciques eram
nomeados para o exercício de funções específicas dentro das reduções, e, ainda que a maior
parte “se ocupaba de supervisar el reclutamiento de los miembros de su familia para las faenas
colectivas, varios de ellos, los llamados ‘principales’, formaban parte del cabildo, siendo el
más importante el que ocupaba el cargo de corregidor” (Wilde, 2003: 212).132
Na prática, tanto o título (cacique), como o cargo (corregedor, p. ex.) eram, ambos,
frutos da necessidade administrativa de se estabelecer, na situação do contato e convívio com
os índios, um ambiente de cooperação e aliança entre as partes envolvidas, fosse para os
desígnios da conversão ao cristianismo, ou para a formação de grupos aliados à defesa das
fronteiras com a América lusitana. Nas reduções, os chefes tradicionais deveriam ser dotados
de novas funções e responsabilidades, o que, para os espanhóis, determinará a atualização da

organizava, não me explica uma série de questões que me interessam. Falar em cacicado só vai me permitir
colocar aquela cultura num escaninho, numa tipologia. ‘Isto aqui é um cacicado.’ Ótimo, e o que eu faço com
isto?” (Fausto, 2006: 57-58).
131
“Ressalte-se que ser súdito cristão não implicava absolutamente uma condição de igualdade. Na sociedade tão
hierarquizada do Antigo Regime, cada súdito ocupava seu lugar na escala social (inclusive os escravos), mas
todos tinham, além das obrigações, direitos, dentre os quais o de pedir e obter mercê e justiça do seu rei. Os
índios aldeados eram sujeitos à legislação especial e ao trabalho compulsório, todavia, apesar dessas condições
limitadas e opressivas, os aldeamentos indígenas lhes facultavam algumas garantias que, inicialmente junto com
os padres, e depois por conta própria, esforçaram-se em defender” (Almeida, 2003: 102).
132
O Governador das Missões, Francisco Bruno de Zavala, esquematizou da seguinte maneira os cargos
administrativos existentes nas reduções: “En cada Pueblo, para el régimen interior del, hay un Corregidor indio,
un Teniente Corregidor y el Cabildo que se compone de Alcaldes de 1º voto e 2º voto, uno o dos, Alcalde de
hermandad un Alguacil mayor, cuatro Regidores, Procurador, Mayordomo y Secretario. El Cabildo se elige
anualmente y la confirmación la da el Gobernador es muy conveniente la de, porque los diputados que traen la
elección informan el estado del Pueblo, y si hay algo que remediar se remedía; al corregidor y el Teniente
corregidor, según la necesidad, compuesta de los Tenientes de Gobernador con informes o conocimiento del
sujeto se les daba interinamente el nombramiento por el Gobernador y se traía la confirmación de la Capitanía
General que da enviada con la circunstancia de que si no hubiese inconveniente lo ejerciese y, a veces, era
menester mudar por experimentarle pernicioso o inútil” (1784: 163-164).

199
liderança de fato. É esta a razão que levou os próprios antigos líderes tribais a ocuparem
cargos administrativos nos povoados, formalizando-se uma transição daquela para esta:
“dicho discurso se orientaría, pues, a establecer términos y clasificaciones que hicieron más
estáticas las organizaciones políticas nativas” (Wilde, 2009: 57):
Diversas fueron las designaciones utilizadas por los españoles a los efectos de
introducir un rígido orden jerárquico en la vida de los grupos indígenas, tales
como la de “cacique mayor”, “cacique menor”, “principal gobernador”,
“capitán”, etc. El otorgamiento de grados militares y políticos era un modo de
“convertirlos”, en forma paralela y aun anterior a su bautismo, llevándose a cabo
una asimilación de los indios al universo cultural de los colonizadores, mediante
la proyección de los valores de éstos y favoreciendo así la diferenciación en el
seno de sus comunidades. Esto constituía un elemento altamente peligroso, ya
que atentaba contra el carácter igualitario de las sociedades primitivas, modelo
en el que se insertaban los pueblos guerreros chaqueños (Vitar, 1991: 264).

O problema foi que, aos demais índios, aqueles que eram conhecidos pelos
colonizadores como seguidores dos chefes indígenas, não foi dispensada, a rigor, qualquer
modificação de tratamento, nem funções específicas – exceto a obediência que deveriam
prestar aos caciques. Típico do pensamento moderno ocidental, em que aos súditos é
oferecida tão somente a função de obedecer aos seus superiores, garantindo-lhes que, através
da honrosa submissão, desfrutem dos favores decorrentes da fidelidade. Porém, aos índios, tal
pensamento não era compatível com a lógica tradicional da reciprocidade, tampouco com a
sociabilidade praticada na aldeia. As antigas lideranças não subjugavam, passiva ou
coercitivamente, os seus seguidores, e não passaram a fazê-lo mesmo após terem assumido
cargos ou títulos nas reduções.
Ao que tudo indica, apesar da formalização decorrente da instituição do cacicado nas
missões, as relações tradicionais indígenas não sofreram profundas alterações, principalmente
no que competia à questão do tratamento que os chefes tribais dispensavam aos membros do
grupo. E foram os próprios funcionários reais que confirmaram a ausência de sujeição dos
índios em relação aos seus chefes, mesmo que ocupassem cargos nas reduções, como
constatou o alcaide da cidade de Santa Fe, Gabriel de Lassaga: os Mocovi de San Javier
“tienen su Corregidor que comúnmente es un cacique principal, a quien obedecen muy
remisamente” ([06/10/1785]: fl. 2v-3). Não era uma questão de desobediência coletiva ou
uma subversão provocada por alguns membros avessos à nova ordem estabelecida: os índios
não estavam enfrentando seus superiores, bem como os caciques não estavam deixando de
proceder como de costume – ou melhor, como seu costume ditava. A liderança não operava
por meio do controle ou mando: ao contrário da tradição ocidental, em que poder e domínio
estavam amalgamados desde a formação política romana, “los casos chaqueños demuestran

200
que puede existir jerarquía sin autoridad, o mejor sin ‘postetad’” (Braunstein, 2008: 28-29).
Em suma, entre os grupos indígenas, a liderança se expressava através de “jefes sin poder”
(Saignes, 1985: 108). Percebendo isto, Azara, no final do século, quando o Estado regalista já
havia alcançado seu auge e já não se conseguia mais esconder a ineficácia das missões junto
aos chaquenhos, critica a imagem que se construiu sobre a figura do cacique:
Se tiene en Europa ideas falsas de los caciques, creyendo que son indios de
distinción, y soberanos que dictan leyes, pero nada de esto hay, porque el
cacique nada manda ni es obedecido, obsequiado, servido no considerado para
más que para permitirle que tome algún pescado o comida, y esto no siempre; es
un bruto hediondo como todos, y si no es valiente o anciano ninguna cuenta
tienen con él (Azara, 1790: 355).

Apesar da existência de uma classificação categórica que diferenciava alguns


integrantes dos demais, vinculada geralmente à idade, não se reservava a eles um lugar
especial na organização social do grupo. Em outras palavras, se existia uma liderança ou um
grupo de pessoas destacadas, estas não estavam dispostas hierarquicamente na topografia
tribal – e nem os demais membros sentiam-se forçados a prestar contas ou seguir estas
pessoas: “la obediencia que suelen prestar a sus caciques es espontánea y gratuita”
(Dobrizhoffer, 1784, t. 3: 352). Nada impedia, inclusive, que membros de um grupo optassem
por abandonar um chefe, em decorrência de alguma desavença ou pela simples conveniência,
e fossem “instalarse con otro jefe más promisorio” (Irurtia, 2008: 203). Isto não significa que
houvesse rixas ou conflitos entre os índios e os caciques, como se a existência destes gerasse
o desagrado dos demais membros do grupo. A relação não estava pautada nestes termos: aos
caciques, os índios “tienen algún respecto y reverencia”, porém, até que “se les da alguna
ocasión de disgusto, por el cual fácilmente se separan” (Lozano, 1733: § VII, fl. 55). A
exemplo disto, pode-se destacar um relato que ilustra a atitude espontânea e arbitrária dos
índios Guenoa que estavam juntos de um cacique enquanto este estabelecia um acordo com
jesuítas:
Concluida la negociación de la paz, intentó el Padre invitar a los bárbaros a la
aceptación de la religión de Cristo; lo cual era el otro fin de esta expedición.
Pero, (como los bárbaros que tratan con los españoles, llegan ordinariamente
hasta a despreciar la religión de ellos) le era imposible a convencer a uno sólo de
este centenar de indios a aceptarla. Lo único que consiguió era, que los caciques
se comprometiesen a dar libertad de conciencia a los suyos; pero ni aún así se
halló a nadie, quien se ofreciera a esto, contestando ellos a lo que se les exigía
con silbidos y cánticos bárbaros, tomando a chacota los consejos de sus caciques,
ya que ellos mismos no marcharon adelante con su ejemplo (CA, 1730-1735:
152).

201
Aos chefes indígenas não era reservada nenhuma distinção expressiva que lhes
rendesse prestígio social ou recursos extras que justificassem o cargo assumido.133 Tampouco
lhes eram dispensados tratamentos de honraria ou notabilidade, colocando-os em condição de
paridade com os demais indígenas. Porém, como já foi exposto, a união do grupo,
principalmente nas ocasiões das festas e da guerra, dependia da atuação da liderança, que
deveria angariar aliados por meio de sua eloquência e capacidade de unir o maior número
possível de pessoas em seu entorno. Para isto, os bens materiais auxiliavam de maneira
prática, atuando como galvanizadores no sistema de trocas recíprocas – como foi analisado no
capítulo anterior. O contato com os espanhóis, principalmente com os missionários, mostrou-
se uma eficaz fonte de recursos e vantagens que, na lógica moderna, deveriam ficar restritos
aos líderes. Por exemplo, ao assumirem algum posto nas reduções, os caciques mais
influentes poderiam usar o título de Don, e com isso adquiriam direitos e privilégios pessoais
– “prerrogativa que generalmente no fue más allá del reconocimiento local” (Wilde, 2009:
55).
Ainda assim, este reconhecimento resultava na possibilidade de os caciques,
assentados no cabildo do povoado, concentrarem certo poder de diálogo com os agentes
coloniais, ainda que limitado pela origem étnica destas lideranças. Dentre os fatores que
indicavam esta elevação de status estavam os símbolos agregados ao novo posto adquirido e
que os caciques deveriam incorporar, tais como o uniforme, referido pelo padre Lorenzo
Suárez de Cantillana Arcediano, Superior das reduções, e que os chefes deveriam usar, e a
distribuição de “ponchos, camisas, chupas, calzones, sombreros, gorros, cuchillos, carne y
biscocho” aos seguidores do cacique (Arias [1780]: fl. 261-261v). Com a mesma intenção, o
Governador de Tucumã, Jerónimo Matorras, em visita às missões, atenta para que “se
gratifique anualmente a los Caciques [...] a fin de tenerlos gratos, porque de esto resulta la
seguridad de estas fronteras”, além de elaborar uma lista de itens que deveriam ser
distribuídos entre os índios daquele cacicado:
[…] al Cacique principal de cada una se le dará vestuario entero de paño azul
con vueltas encarnadas; a tres de los principales oficiales y mandones, camisa,
chaleco, calzones y sombrero; seiscientas varas de ropa de la tierra, en bayeta y
pañeta, para vestuario de toda la gente de cada Reducción; cincuenta varas de

133
Em sua descrição sobre as lideranças entre os chaquenhos, o jesuíta Alonso Sánchez ressalta o fato de os
próprios chefes indígenas, além de não possuírem bens privados, precisavam contribuir na produção econômica
do grupo como qualquer outro indivíduo: “Es verdad que tienen todos sus caciques y ordinariamente es el más
valiente o el mejor hablador de cada nación; pero sacando el caso de haber de hacer guerra a sus vecinos o a los
españoles, es un título desnudo de toda autoridad para mandar y mucho más desnudo de renta. El cacique más
respetado y de mayor representación entre ellos ha de ir a cazar y pescar si quiere comer, y su mujer todos los
días ha de ir a buscar raíces o frutas, como las demás indias, tan mal vestida como ellas; y en sus borracheras, tan
buenos golpes lleva el Cacique como los otros” (in Furlong, 1939: 22).

202
lienzo de algodón, cuatrocientos mazos de tabaco, dos tercios de yerba del
Paraguay, doscientos rosarios, otras tantas medallas, cuatro millares de agujas
capoteras, dos libras de hilo azul de sastre, ocho cuñas de fierro para sacar cera y
miel, cien cuchillos para desollar reses (Matorras [15/03/1775]: fl. 7-7v).

O fato de estarem integrados a uma instituição administrativa, ainda que local,


oportunizava a determinado grupo de índios não só o acesso a materiais, que lhes forneceriam
um importante combustível sociológico, como também permitia o engajamento dos nativos,
por meio da voz do líder, em questões políticas, diplomáticas ou econômicas que lhes
interessasse enquanto grupo. Mesmo com atuações limitadas, o ritual do cabildo instituiu,
consagrou e atualizou “un orden político en el que los líderes nativos han negociado una
posición a la vez subordinada y ventajosa” (Wilde, 2009: 81), principalmente quando os
caciques, capacitados para tanto, conseguiam se fazer notar através da habilidade da escrita.
Consagrada como meio oficial de comunicação, a correspondência permitia que um
restrito número de pessoas produzisse e consumisse informação, desfrutando de uma
vantajosa posição de diálogo com autoridades governamentais. Obviamente, saber ler e
escrever não garantia que as vontades dos letrados fossem atendidas, mas permitia que
colocassem em circulação suas ideias, denúncias ou solicitações. Ainda que a imprensa já
fosse, no século 18, um recurso bastante difundido, os manuscritos não deixaram de ser
largamente produzidos, sendo inclusive voltados para um público interessado especificamente
nesta forma de escrita mais rápida de se produzir, e cuja circulação não dependia do aval
editorial ou de trâmites burocráticos, e servindo, geralmente, a textos críticos e de oposição
política (Bouza, 2001: 66).134
O mais interessante é que, pelo menos nas escolas rurais européias, a alfabetização
continuava sendo realizada fundamentalmente por meio de manuscritos, fazendo com que a
função dos copistas não perdesse sua importância, tanto no que tange à reprodução dos textos
como para a formação de novos escritores, na medida em que permitiam que mais pessoas
tivessem acesso aos escritos (id. ibid.: 31-34). Fiéis a este modelo, em algumas reduções
jesuíticas os missionários ensinaram os caciques a ler e a escrever, garantindo, por intermédio
de cópias manuscritas, a reprodução e a circulação dos textos religiosos, inclusive, em língua
nativa: “Por meio da prática da ‘reescritura cristã’ ou de tradução, eles foram iniciados na

134
De acordo com Fernando Bouza, o advento da imprensa, ao contrário do que se poderia imaginar, não
suplantou a ampla produção de textos manuscritos, nem freou sua circulação entre os leitores europeus e
americanos. O autor demonstra que a velocidade com que se podia produzir informações por meio dos
manuscritos manteve-os como formato usual tanto nas correspondências oficiais como de material didático:
“[…] para obtener una imagen completa de lo que fue la circulación de los textos en la alta Edad Moderna hay
que superar el esquematismo que, de un lado, reduce lo tipográfico exclusivamente a difusión, así como sus
copias a productos de mercado, y que, de otro, imagina que lo manuscrito es sinónimo de una voluntad no
difusionista” (2001: 18).

203
alfabetização em seu idioma, estimulando o exercício de recriação lingüística e estilística”
(Neumann, 2007: 50).
Não demorou para que as lideranças dessem início à produção de inúmeros textos de
cunho político-administrativo, muitos deles ligados a reivindicações coletivas. A utilização da
escrita foi uma eficaz maneira de os caciques se fazerem notar entre as autoridades coloniais,
ainda que suas solicitações pudessem não ser atendidas. Muitas das denúncias eram feitas
com a finalidade de mobilizar alguma ajuda oficial, como a do cacique abipone Miguel
Benavides que, aproveitando-se da função que ocupava e de sua habilidade de escrever em
espanhol, procurou denunciar – por vias legais – os assaltos que os Mocovi estavam
realizando à redução de San Jerónimo, pontuando os prejuízos causados pelo grande número
de animais que eram subtraídos. Benavides chega, inclusive, a enfatizar que esta não era sua
primeira denúncia, revelando que o Tenente Governador de Santa Fe, Don Melchor de
Echagüe, nunca havia tomado qualquer atitude em relação aos inúmeros roubos cometidos
pelos Mocovi, para finalizar em tom indignado: “pues ahora quiero yo que el teniente diga
que remedio a proveído a estos daños y que castigo ha verificado en los Mocobies y adonde
está la restitución que nos ha mandado hacer de nuestros bienes” ([c. 1780]: fl. 11v).
A reclamação de Benavides está inserida no contexto de conflitos entre os índios das
reduções de San Javier e San Pedro e os Abipone da redução de San Jerônimo – analisados
nos capítulos anteriores –, que já haviam desencadeado inúmeros confrontos armados em
decorrência dos roubos. O próprio Benavides havia realizado violentos ataques, tornando-se
também ele alvo de denúncias de administradores e de curas. Assim, é plausível supor que a
escrita tenha sido o último recurso – formal e oficial – que o cacique abipone empregou para
denunciar as investidas mocovi. Denúncias como esta acabavam ressoando pelos meios
legais, criando, pelo menos, o desconforto dos agentes administrativos que tomavam
conhecimento de certos problemas pela voz e visão dos próprios nativos: “Sin duda, en una
cultura que reverencia la escritura, pero que también recela de ella” (Bouza, 2001: 76).
Alfabetizada e amparada pelas instituições administrativas das reduções, uma elite
indígena conseguiu posicionar-se de maneira mais eficiente, utilizando-se dos meios formais e
modernos. Facilitadora da expressão dos interesses dos indígenas, a prática da escrita foi
inquestionavelmente adotada pelos índios, tornando-se cada vez mais usual entre o cacicado:
“De un liderazgo con base en el prestigio como guerrero y como negociador en las fronteras,
lentamente, se fue dando paso a un liderazgo basado en nuevas tecnologías qué, como el
dominio de la escritura, permitía incorporar nuevas variables de control y dominio” (Paz,
2009: 148).

204
Apesar de terem aprendido a escrever durante o período jesuítico, foi após a expulsão
da Ordem que houve uma profusão de textos redigidos pelos nativos, “momento no qual
buscavam interlocução direta com as autoridades provinciais, atuando dentro do legalismo das
normas administrativas do Império Espanhol” (Neumann, 2007: 70). A adoção da solenidade
protocolar da escrita textual produziu uma interessante fusão entre a técnica moderna e os
interesses tradicionais:
Por un lado está la doctrina europea de los tratados, que culmina en la
elaboración de un documento escrito, refrendado por la firma de los
negociadores y ratificado por las autoridades, al que se atribuye un carácter
oficial. Por el otro, la antigua institución indígena de las juntas, reuniones de
carácter político y ritual a las que asisten los caciques con una abultada escolta
de capitanejos, mocetones y chusma. La multitudinaria concurrencia escucha en
un silencio reverente los discursos de sus jefes, participa de la distribución de
regalos, comida y bebida con la que se sellan las paces y se convierte en testigo
de los acuerdos concluidos. Se encuentran por lo tanto un derecho positivo y otro
consuetudinario, una tradición escrita y otra oral, una que ve en la diplomacia
una acción meramente política y otra que inscribe el hecho político en un marco
mucho más vasto, con sus correlatos económicos, sociales, religiosos y
simbólicos. En la frontera sur del imperio colonial hispanoamericano, ambas
corrientes confluyen en el parlamento, una institución de carácter híbrido y
transcultural (Roulet, 2004: 313-314).

O que procurei demonstrar até aqui foi que os índios souberam incorporar a instituição
do cacicado sem comprometer a ordem sociológica autóctone. Se, por um lado, alguns líderes
passaram a designar-se caciques, adotaram o título de Don e assumiram cargos
administrativos nas reduções, por outro lado, a relação que os índios mantiveram com seus
chefes não se alterou. A escrita, neste contexto, foi o instrumento utilizado por estas
lideranças para o estabelecimento de diálogo com um Estado que requeria a comunicação
através dos meios formais oficiais. Sem desviarem-se de suas propostas enquanto grupo
étnico nem deformarem a estrutura que o sustentava – o que representava, também, o sustento
de sua cosmologia – os índios reduzidos
puderam aprender ali novas práticas culturais e políticas que lhes permitiam
colaborar e negociar com a sociedade colonial em busca das possíveis vantagens
que sua condição lhes permitia. O projeto colonial estava em construção e os
limites e possibilidades de sua realização dependiam das populações indígenas
que, no contato com os europeus, aprenderam a manejar e a manipular novos
instrumentos em busca de seus interesses (Almeida, 2003: 34)

Proponho aqui a mesma linha de interpretação empregada por Elisa Garcia, para quem
os nativos americanos souberam lidar politicamente com os colonos depois que “aprenderam
a ser ‘índio’, ou seja, aprenderam a instrumentalizar tal condição em busca de melhores
possibilidades de sobrevivência” (2011a: §38). A autora se baseia nos estudos de Alcida
Ramos para constatar que o termo índio foi “destituído de seus caracteres negativos para se

205
transformar em um mecanismo utilizado pelos grupos assim designados e autodesignados
para agir politicamente” (id. ibid.: §40).135 No caso acima analisado, pode-se considerar a
tomada de posição das lideranças como uma tentativa de aprender a ser cacique, para, através
deste aprendizado, ter facultado o acesso aos domínios políticos que tal cargo possibilitava.
Pode-se constatar que, assim como a designação generalizante índio foi transformada – pelos
nativos – em um instrumento de relação com os europeus, o termo cacique foi por eles
empregado para que pudessem, enquanto coletivo, acionar as instituições legais aptas a
fornecer os auxílios ou os recursos de que necessitavam para mobilizar a sociabilidade do
grupo.
Desta maneira, os índios estariam garantindo a aquisição de recursos humanos e
materiais para fazer a guerra, além de manterem a circulação de objetos através de trocas com
outros grupos, com missionários, expedicionários e colonos, ao passo que também estariam
assegurando a sua produção de alimentos. Esta última, em especial, foi motivo de uma
torrente de críticas e juízos pejorativos emitidos pelos missionários e agentes coloniais em
relatos que analisavam e descreviam a forma como os indígenas administravam a produção e
o consumo alimentar. Diferentemente do que ocorreu com a internalização da fabricação
têxtil, dos cavalos ou da instituição do cacicado, os métodos modernos de produção e
armazenagem de alimentos não foram adotados pelos grupos indígenas, nem mesmo por
aqueles que optaram por viver nas reduções, na medida em que se chocavam com sua lógica
econômica e de subsistência, cujos fundamentos, como se verá mais adiante, tinham
embasamentos cosmológicos.

4.2 A produção sem excedentes: uma cosmologia da prodigalidade


Quando chegava a época do cultivo da terra, os indígenas das reduções eram instruídos
na utilização mais adequada das sementes, das ferramentas agrícolas e dos bois a serem

135
Em outra oportunidade, Elisa Garcia destaca o aspecto figurativo que cada personagem assumia em razão das
variantes históricas próprias do contato: “Os diferentes momentos e situações mencionados [...] demonstram
como as grandes categorias utilizadas para designar os diversos grupos presentes na região, índios infiéis,
missioneiros, portugueses e espanhóis, eram fundamentalmente históricas. Sendo mutáveis, os seus próprios
significados variavam de acordo com as diferentes conjunturas imperiais, com as dinâmicas locais e com os
interesses individuais e coletivos dos sujeitos em interação” (Garcia, 2011b: 70). Partindo também das variações
históricas a que são submetidos os agentes mobilizadores destes contatos, Maria Regina Celestino de Almeida
atenta para a metamorfose que os índios vivenciaram em decorrência da expansão colonial e da consequente
convivência com o mundo ocidental. A autora se vale da expressão “resistência adaptativa” para referir-se à
capacidade de resiliência indígena frente aos contingentes do contato, afirmando que a “compreensão da cultura
como produto histórico, dinâmico e flexível, formado pela articulação contínua entre tradições e experiências
novas dos homens que a vivenciam, permite perceber a mudança cultural não apenas enquanto perda ou
esvaziamento de uma cultura dita autêntica, mas em termos do seu dinamismo, mesmo em situações de contato,
quando as transformações se fazem com muita intensidade e violência” (2003: 33).

206
usados no arado. Contando, porém, com recursos limitados, era comum que alguns dos
povoados não possuíssem animais para todos os índios, como alertou o procurador da
Companhia de Jesus, Juan de Escandón (1760), ao descrever que a parelha de bois disponível
deveria ser usada por um grupo, enquanto “los otros hacen otras cosas, como desmontar,
quemar la maleza, cercar la tierra en que han de sembrar, etc. y en acabado de arar los otros,
les dan a éstos los bueyes”. O jesuíta, portanto, ressaltou a importância de os índios estarem
organizados em cacicados e que, cada um destes, fosse supervisionado pelo corregedor e
alcaide da redução, de modo a dinamizar a produção e tirar o maior proveito possível da
colheita. Os caciques ficariam encarregados de assessorar os membros do seu grupo, não
apenas na questão do rodízio dos bois para arar a terra, mas também na disciplina do trabalho
agrícola. Além disso, também aos caciques cabia o cultivo da terra – assim como aos demais
índios –, a fim de aumentarem a produção alimentar:
Si las cosas hubieran de ir en rigor y por sus cabales, al Cacicazgo debieran los
demás arar sus tierras, sembrar y recoger, pero él suele ceder a éste su derecho y
trabajar como todos para sí, contentándose con que cada uno de los suyos
trabajen para sustentar sus propias familias, y él debe cuidar que así lo hagan
todos, aunque como él suele ser tan flojo y descuidado como cualquiera de ellos,
no se fía el Padre, ni se puede fiar de sólo el cuidado del cacique, sino que él
mismo va en persona varias veces, y otras envía al Corregidor y a otros para que
vean si las tierras están todas ya preparadas para la siembra (Escandón, 1760:
114-115, grifo meu).

Como se já fizesse parte da rotina de produção do povoado, Escandón alerta que, além
dos índios, até mesmo os caciques deveriam ser observados e assistidos em seu trabalho, tanto
pelos altos funcionários da redução quanto pelo próprio padre responsável. À semelhança de
uma instrução técnica, a carta escrita pelo jesuíta evidencia muito mais a percepção de
Escandón sobre os indígenas e seus comportamentos do que a real preocupação quanto às
possíveis dificuldades que poderiam se abater sobre a produção agrícola das reduções. À sua
visão sobre a disciplina de trabalho dos nativos foi acrescida a crítica ao regime alimentar que
os índios observavam, apesar de já estarem vivendo nas reduções. Segundo Escandón,
aparentemente sem se preocuparem com a quantidade de alimento produzido, os índios
consumiam toda a comida que conseguiam, sem armazenar nada para o futuro: “los
particulares tienen tan poca providencia que, ordinariamente, comen o desperdician todo lo
que cogieron sin reservar nada que sembrar al año siguiente” – concluindo que a forma de
tentar solucionar este problema seja que “se les manda dar su vuelta de azotes, y otra medida
de maíz hasta que en efecto lo siembre, aunque sea menester dársela dos o tres veces” (1760:
115).

207
O procurador da Companhia de Jesus acreditava que a maneira de reverter esta
situação preocupante para a economia das reduções, além da aplicação de punições físicas,136
era oferecer maior incentivo à produção nas terras comunitárias do povoado, já que, seguindo
o pensamento ocidental, a origem do problema era, justamente, o “dejamiento, flojedad, y
ningún cuidado” que os nativos tinham em relação ao trabalho agrícola (id. ibid.: 116). As
justificativas para isto, provenientes, como se verá, tanto de relatos de missionários como de
agentes administrativos, oscilavam entre a indisciplina laboral dos índios e a preguiça
congênita, que os afastavam das metas de produção esperadas pelos administradores
coloniais.137
O Bispo Manuel Abad Illana, em sua visita às reduções do Chaco, constatou que os
índios ali assentados eram “holgazanes y enemigos del trabajo, que sólo cuidan de comer
carne y beber chicha, y si en alguna parte trabajan algo, es poco y cuando quieren ellos” (In
Vitar, 2000: 54). A observação que o Bispo faz em relação à postura que os indígenas
adotavam frente ao trabalho se aproxima dos registros feitos por observadores hispanófonos
que tanto destacaram a inconstância nas atitudes dos índios, já discutida no segundo capítulo.
A imprevisibilidade e a arbitrariedade de suas ações foram um problema tanto para o
estabelecimento de acordos com os espanhóis e na catequese pretendida pelos missionários
quanto para as funções do plantio e da colheita, nas quais, de acordo com os métodos
empregados e com os objetivos estabelecidos pelos modernos, a disciplina e a regularidade
136
O uso das chicotadas como método de punição e de instrução dos nativos, visando à adoção de condutas que,
partindo da lógica moderna, eram consideradas adequadas à vida civilizada, foi ostensivamente defendido por
alguns missionários, dentre eles o jesuíta Antonio Sepp, que assume ter sido “absolutamente necesario azotar a
algunos indios, que no habían labrado y aún ni se habían procurado un arado” (c. 1733: 217), e seu companheiro
de Ordem, o padre Provincial Antonio Machoni, que, em carta ao padre Superior da Companhia de Jesus,
questiona a proibição do uso das punições físicas, exceto em casos de pecados mortais: “Si esto es así, no sólo no
apruebo, sino que revoco dichos ordenes. ¿Qué males no deben temerse de castigarse los pecados mortales
solamente, y que se disimule con la natural pereza y desidia de los indios? Sí aún obligándolos con el castigo a lo
que es necesario para sustento y conservación del pueblo, son tan descuidados y con tanta violencia lo hacen,
cuando sin este freno entiendan que sólo por pecados mortales pueden ser castigados, ¿qué de ociosos y de gente
perdida no habrá en los pueblos? ¿Quién cultivará las tierras para sustento de su familia, para las viudas,
huérfanos, culto Divino y servicio del Rey” ([28/06/1740]: fl. 290). A motivação para o uso dos açoites como
forma de instrução aos índios certamente estava relacionada ao difundido pensamento de que os nativos
precisavam de uma orientação tutelar devido a sua condição infantil: “el misionero ha de ser como el padre de
familias, pues el indio, en cualquier edad, necesita como el niño de instrucción y castigo para su bien” (id. ibid.:
fl. 291). A ideia de que se deveria proceder com os índios “igual que con un niño” (Paucke, 1767, t. 2: 57) fazia
parte do discurso jesuítico de promoção do trabalho catequético da Ordem, que buscava justificar a empresa
missionária. Em um texto apologético, escrito como resposta a um libelo antijesuítico, um autor anônimo
sentencia a respeito dos índios da América e, em especial, dos sul-ameríndios: “Los indios, según todos los
historiadores de la América, testigos de vista y experiencias, son de índole y genio de niños, y estos de todo este
contorno, más niños que los demás” (Declaração contra libelo [19/09/1758]: fl. 15, punto 60).
137
Segundo o Governador de Córdoba, a imprevidência dos indígenas impedia que fosse produzido o necessário
para o pagamento dos tributos à Coroa: “su poca aplicación al trabajo los hace inútiles y dificulta la cobranza de
tributos y ha sido la causa de la decadencia en que están” (Sobremonte [06/11/1785a]: fl. 16v-17). Se, para os
missionários, a inconstância dos indígenas prejudicava a conversão, para as autoridades civis, era um problema
de ordem econômica, que colocava sob questionamento a própria existência e a função das reduções.

208
eram fatores essenciais. De acordo com o padre Florián Paucke, os Mocovi reduzidos em San
Javier “eran tan inconstantes y despaciosos en su trabajo que apenas hacían en ocho días lo
que unos pocos [diferentes] en tres” (1767, t. 2: 66), afirmando que “[n]o saben nada de
agricultura y son perezosos y haraganes” (id. ibid.: 180). Os Guaicuru, segundo Sánchez
Labrador, só eram constantes em “no trabajar y en embriagarse”, resumindo suas tarefas em
não mais que “cuidar de sus caballos, de hacer flechas y algunas cositas para sus adornos”
(1770, t. 1: 254).
Se a produção nas fazendas não agradava aos missionários e nem às autoridades
coloniais, a situação complicava-se ainda mais quando muitos nativos ameaçavam fugir das
reduções e retornar às suas aldeias, alegando que lhes faltavam os suprimentos prometidos.
Nesta situação, para atrair os índios, buscava-se a maior quantidade possível de alimentos –
entre animais, sementes e outros como erva-mate e tabaco –, através da arrecadação dos
fundos coloniais ou da doação de moradores das cidades. A redução de San Francisco Javier,
fundada em 1743, passou pela dificuldade de angariar recursos suficientes para o sustento dos
Mocovi: no ano de sua fundação, foram recolhidos “ciento y cincuenta cabezas de ganado
vacuno; cuatrocientas ovejas y un poco providencia de yerba y tabaco”, quando eram
necessários “hasta mil y quinientas o más cabezas de ganado vacuno, para que de su crianza
se sustenten los recién convertidos, por no ser estos capaces de oprimirlos al trabajo de
chacras, ni buscar por propia industria y diligencia suya manutención” (Vera Mujica
[28/06/1743]: fl. 1-1v). Da mesma forma, foram investidos esforços para a aquisição de
alimentos para a redução de San Ignacio de Ledesma, de índios Toba, “a fin de que
proporcionase el fermento que necesitaban aquellos miserables”. Meses antes da fundação –
ocorrida em 1756 –, o jesuíta reitor do colégio de Salta, Francisco Larden, conseguiu
mobilizar alguns recursos, ainda que isto não dispensasse a necessidade de se “comenzar a
disponer las sementeras de maíz y otras legumbres para alimento de aquellos indios, y que
respecto no tenían útiles para la labor” (Chumacero [02/09/1755]: fl. 2v-4). Duas décadas
depois destas orientações, com o povoado ainda em funcionamento, o Governador de
Tucumã, Gerónimo Matorras, alerta para o fato de que haviam sobrado pouquíssimos animais
daqueles inventariados pelos padres da Companhia de Jesus antes da expulsão, constantando a
“falta de un celoso e inteligente mayordomo o capataz que cuidase de dichas haciendas y su
consumo arreglado al régimen” ([15/03/1775]: fl. 1v-2).
Os chaquenhos foram, por conseqüência, estigmatizados como índios imprevidentes
no trabalho agrícola, sendo responsabilizados pela baixa produtividade das reduções e pelo
atraso econômico decorrente tanto dos altos custos de manutenção dos povoados quanto da

209
tributação devida à Coroa. A situação chegou a tal ponto que algumas famílias guaranis das
reduções dos Rios Paraná e Uruguai foram enviadas à redução de Nuestra Señora de Belén
com a finalidade de auxiliarem os índios Mbayá e Guaná a trabalharem melhor a terra. Tinha-
se a ideia de que os Guarani dos 30 povos, por estarem reduzidos há mais tempo, seriam
como “la levadura de la nueva Reducción”, já que os índios ali residentes não “habían
plantado un solo grano de maíz” desde a sua fundação em 1760 (Muriel, 1766: 140-141).
Segundo relatos do padre Muriel, os resultados satisfatórios na produção surgiram logo após a
chegada das famílias guaranis, sendo ampliados ano após ano. É, no entanto, curioso notar
que em um registro coetâneo, também produzido por um jesuíta, encontra-se a informação de
que apesar da chegada dos Guarani à redução de Belén, os Mbayá e os Guaná continuaram
mantendo seu regime de trabalho abaixo do esperado, somando-se a isto os frequentes furtos à
colheita, que não podiam ser repreendidos “sin riesgo de que nos desamparasen” – sem contar
quando o próprio “cacique era el primero de los ladrones” (Sánchez Labrador, 1770, t. 2:
110).
É compreensível – e até esperado – que o padre Domingo Muriel, em uma narrativa
laudatória, procurasse exaltar e ressaltar as mudanças havidas nas condutas dos nativos, tanto
das missões instaladas nos Rios Paraná e Uruguai, implantadas pela Companhia de Jesus a
partir do ano de 1609, como das reduções da região chaquenha. Vale lembrar que o relato do
padre Muriel se insere no contexto da expulsão dos jesuítas de todos os territórios espanhóis,
o que motivou muitos membros da Ordem a produzirem textos ressaltando os sucessos do
trabalho evangelizador da Companhia de Jesus em suas missões pelo mundo. O jesuíta Muriel
buscava, especialmente, exaltar as qualidades dos guaranis, que se encontravam já havia cerca
de um século e meio sob a tutela missionária, e em particular o estágio de civilização em que
se encontravam, que deveria servir como prova dos benefícios que os jesuítas haviam trazido
para aqueles índios mediante sua conversão e redução.138
Mas até mesmo os guaranis foram alvo de críticas por sua indisciplina no trabalho
agrícola. Mesmo após cem anos de contato direto com os jesuítas nas reduções, alertava-se
que “apenas con la dirección de dichos religiosos alcanzan a sustentarse por su corto y pobre
talento y grande incapacidad” (Cabildo eclesiástico de Assunção [18/07/1711]: fl. 1). E os
próprios jesuítas admitiam – ainda que para edificar o seu trabalho religioso e temporal – que

138
Cabe ressaltar que o relato do padre Muriel, que foi missionário nos 30 povos, gira em torno da exaltação das
virtudes dos Guarani frente aos recém reduzidos Mabayá e Guaná; já o relato de seu companheiro de Ordem, o
padre Sánchez Labrador, que viveu entre os chaquenhos, não objetivava a desqualificação dos Guarani, mas sim
alertar para a arraigada imprevidência dos índios e a dificuldade que isto significava para o processo de
conversão.

210
os Guarani eram dependentes de sua presença e cuidado, como afirmou o padre Juan José
Rico, ao escrever que “en ninguno de los treinta pueblos se hallarán doce familias que tangan
lo suficiente para comer y vestirse con lo que cogen de sus cosechas o adquieren por su
particular industria si no los socorre su Cura con lo que es del común” ([1741]: fl. 7v). Uma
década depois, em meio à chamada Guerra Guaranítica, desencadeada após a assinatura do
Tratado de Madri entre a Coroa espanhola e a portuguesa, o jesuíta José de Barreda também
registra a indisciplina e descomprometimento dos Guarani em relação ao trabalho ao relatar
que era “visible esta repugnancia a los que inmediatamente tratan y conocen a estos indios,
que de suyo son poco, o por mejor decir, nada aplicados a trabajos extraordinarios”
([29/04/1752]: fl. 1v-2). Após a expulsão da Ordem, e com as antigas reduções jesuíticas sob
controle das autoridades civis, a crítica e o julgamento quanto ao desempenho dos guaranis
não parece ter mudado: “son de ánimo vagabundo y ambulativo dados a la ociosidad, sino no
los mueven a que trabajen se están atendidos en la hamaca” (Zavala, 1784: 167).
Fossem eles guaranis ou chaquenhos,139 ao que tudo indica, os índios instalados nas
reduções não se submeteram ao modelo de trabalho regrado, ainda que os esforços dos
missionários e os gastos investidos pelas autoridades coloniais tivessem sido canalizados para
o ensino e a introdução dos métodos de plantio e colheita entre os neófitos. Para além das
críticas ao comportamento indígena, decorrentes dos julgamentos que os espanhóis faziam
acerca da tecnologia nativa, cabe questionar se o modelo econômico de produção moderno foi
efetivamente o real motivo para que os índios não só não se disciplinassem no trabalho
realizado nas reduções, mas chegassem a optar por não incorporar os métodos oferecidos
pelos espanhóis. Dito de outra forma, ao invés de nos perguntarmos por que os índios não
incorporaram a agricultura moderna, talvez seja mais produtivo questionar se esta era uma
técnica considerada útil e necessária pelos nativos a ponto de quererem adotá-la. A análise, a
partir desta ótica, permite verificar a economia tradicional como um método que nada deve ao
modelo moderno, tendo em vista que o foco passa a ser a relação das pessoas com o meio de
produção, e não os aspectos técnico-instrumentais; o importante passa a ser o grupo humano,
e não as ferramentas.

139
A estes grupos indígenas, pode-se acrescentar os pampianos, que, com a instalação das missões na região
patagônica, a partir de 1740, também se mostraram arredios à forma rotineira de trabalho imposta pelos
missionários, sofrendo críticas e julgamentos acerca de seu comportamento e caráter, como fez Juan Galeano,
soldado da Companhia de Dragões, em uma declaração ao Cabildo de Buenos Aires: “Que trabajan poco o nada,
que algunos siembran sus surcos de zapallos y maíz y tienen sus juntillas de bueyes y sus baquillas, que estos
serán seis u ocho, que los demás son muy haraganes y no se aplican a nada, sino a estar todo el día jugando en la
cancha o la pluma” (Cabildo de Buenos Aires [15/10/1752]: 10).

211
A economia moderna, cujo fundamento apoiava-se no método de produção de bens
excedentes para o mercado e na domesticação de plantas, mediante o sedentarismo e o
domínio sobre a terra, chocava-se diretamente com o propósito de produção indígena que, a
partir de um nível doméstico-familiar, não tinha pretensões de dominar ou controlar as suas
fontes alimentares de modo a potencializá-las a ponto de permitir ganhos excessivos. Como
analisado no primeiro capítulo – e retomado mais adiante –, os índios não partiam de uma
noção objetivista do mundo e dos seres que o habitavam, eliminando, assim, o senso de
propriedade sobre os recursos naturais, já que, para uma cosmologia que não determinava a
humanidade como privilégio dos índios nem sua soberania cultural em relação à natureza, isto
seria um contrassenso (socio)lógico.
Não é incomum, inclusive, encontrar, associadas às críticas acerca da indisciplina
indígena, afirmações de que os índios não eram gananciosos, justificando-se, assim, a
imprevidência pela falta de cobiça: “No tienen constancia ni empeño en nada, son muy
dejados, flojos y espaciosos, no tienen apego a cosas de esta vida, ni codicia de atesorar”
(Cardiel [1759/1760]: § II, fl. 3v, grifo meu; cf. também Muriel, 1766: 138).140 Sendo assim, a
produção econômica configurava-se antes como um feito social do que mercantil, fazendo da
produção nesses grupos indígenas uma “simbolização mesmo das mais íntimas relações
pessoais” (Wagner, 1975: 59). Enquanto na lógica moderna a relação dos trabalhadores
dependia do bem produzido, já que o que sustentava esta relação era a sua capacidade
produtiva somada à rentabilidade no mercado – daí os esforços não apenas para ensinar os
índios a dominar as técnicas de plantio e colheita, mas também para inseri-los nos trâmites
comerciais da colônia –, a economia indígena partia de uma lógica oposta, ao prever uma
integração social como dinamizadora dos meios de produção: “A economia, como é
conhecida nas sociedades complexas, é inexistente nas sociedades simples. Nessas últimas, o
econômico não é um setor com desenvolvimento autônomo no campo social” (Souza, 2002:
222). A coesão do grupo, portanto, era fundamental para a sua produtividade, na medida em
que as práticas sociais, como os rituais, as interdições e restrições, as trocas reciprocitárias, as
bebedeiras e a guerra eram determinantes para a união do grupo e formação de seus membros.
Quando Roy Wagner afirma que a “família é ‘produção’”, o antropólogo não está se referindo
apenas à capacidade produtiva que um núcleo familiar tinha a partir da relação entre o número

140
O Bispo dominicano Don Fray José de Peralta chegou a solicitar que não se cobrasse o dízimo dos índios,
alegando que a ausência de cobiça entre os nativos impedia-os de arrecadar as quantias necessárias: “Y aunque
no faltaban personas que me instigaron a obligarlos a pagar diezmos, no lo juzgué conforme a la razón, sino me
incliné prácticamente a lo contrario, ya que veo, que estos indios de ninguna manera trabajan para enriquecerse a
si mismos” (apud CA, 1735-1743: 480-81).

212
de indivíduos e a quantidade por eles produzida. Na verdade, Wagner pretende demonstrar a
associação existente entre a construção cultural do grupo – que o autor chama de invenção
cultural – e a sua autossuficiência produtiva, já que na economia tribal a produtividade é que é
dependente da estrutura social, e não o contrário: “A demanda não é pelos produtos em si
mesmos, ou pelo dinheiro para comprar produtos, mas por produtores; uma vez que todos os
aspectos importantes da subsistência cabem à família, a preocupação principal passa a ser
constituir e manter uma família” (Wagner, 1975: 59).141
Compreende-se, portanto, que a estabilidade do grupo era a pedra angular do meio de
produção tradicional, fazendo com que a união dos seus membros e o trabalho em conjunto
fossem essenciais para a sua existência – algo inconcebível para o sistema colonial
“impregnado de una lógica económica excedentaria, extractiva y mercantilista” (Fradkin,
2000: 244), que partia de pressupostos técnico-instrumentais para medir a capacidade
produtiva de uma economia. Esta é a razão para que o nomadismo indígena tenha sido alvo de
críticas tanto pelos missionários quanto pelas autoridades civis, que declaravam a
impossibilidade deste modo de vida coexistir com as pretensões evangelizadoras e de
exploração econômica próprias do projeto colonial:
Y aunque la pacificación y conversión de dichos indios del Chaco y otros de las
sobre dichas es muy dificultosa, por no tener habitación fija y no cultivar la tierra
para sustentarse, pues unos se mantienen con la caza, otros con la pesca, otros
con frutas silvestres y no pocos de ellos con las vacas y yeguas cimarrones que
andan en aquellas campañas, y que reducidos con mucha dificultad a pueblos no
perseveren en ellos dejándolos con facilitad y volviéndose a su antiguo modo de
vivir (Burges [1709]: fl. 3v).

Neste relato, o jesuíta Francisco Burges responsabilizou a constante mobilidade dos


grupos como empecilho à sua civilização. Este foi um argumento bastante comum nas
descrições feitas sobre os grupos nativos por religiosos e leigos a serviço da Coroa espanhola
que pretendiam inferiorizar não só o modo de vida indígena, como também seu sistema
econômico, tido geralmente como de baixa produtividade, justamente por não se utilizar de
técnicas agrícolas: “Toda es gente pescadora que no siembran cosa alguna para su sustento, ni

141
Esta afirmação remete para a diferença existente entre o individualismo econômico moderno – que não só
permite a aquisição privada de bens, como estimula o enriquecimento por meio da propriedade individual – e o
método de produção comunitário empregado pelos indígenas, que, além de socializar os ganhos produtivos, força
a aproximação familiar dos sujeitos, fazendo com que o casamento seja “essencial para formação familiar, logo
econômica” (Souza, 2002: 228): “Assim, as culturas tribais encarnam uma inversão de nossa tendência a fazer
das técnicas produtivas o foco das atenções e a relegar a vida familiar a um papel subsidiário (e subsidiado). E
essa inversão não é trivial: ela permeia ambos os estilos de criatividade em todos os seus aspectos. Na medida
em que produzimos ‘coisas’, nossa preocupação é com a preservação de coisas, produtos, e com as técnicas de
sua produção. Nossa Cultura é uma soma dessas coisas: conservamos as ideias, as citações, as memórias, as
criações, e deixamos passar as pessoas. Nossos sótãos, porões, baús, álbuns e museus estão repletos desse tipo de
Cultura” (Wagner, 1975: 60).

213
tienen Pueblos formados: viven en casas de esteras, las cuales mudan con facilidad de unas
leguas a otras, buscando pescado, caza y frutas silvestres” (Lozano, 1733, § VII, fl. 53). Sem
se fixarem permanentemente em um território, muitos dos grupos chaquenhos circulavam
entre diversas regiões, movidos pela oferta de alimentos – fato que, além disso, gerava a
possibilidade de, eventualmente, aproximarem-se ou distanciarem-se de outros grupos aliados
ou inimigos. A dinâmica socioeconômica dos índios, portanto, dependia da sua mobilidade
pelo território, desfavorecendo a fixação dos grupos que visava à efetiva colonização. O Vice-
rei do Peru, ao narrar uma expedição no Chaco, realizada em 1685 e que pretendia formalizar
um acordo de aliança com os nativos, relata a facilidade com que os grupos, que não queriam
o contato, afastavam-se dos espanhóis, “porque, no teniendo poblaciones, ni ranchos, chacras,
ni otra cosa que los pueda tener en parajes ciertas y la facilitad de irse en tropas pequeñas la
tierra adentro, nunca podría lograrse el conseguir su aprensión por estas dificultades del país y
de no hallarlos juntos (Duque de la Palata [06/10/1687]: fl. 1-1v). Além disso, mesmo
vivendo nas reduções, os índios eventualmente saíam do povoado – com ou sem a concessão
dos missionários – a fim de coletar recursos na mata, como um grupo de índios Mocovi que
pede ao padre “para ir con sus mujeres a solicitar por el campo alguna miel y frutas, porque le
iba escaseando el bastimento con que me regalaban” (Lapa [23/10/1776]: fl. 39v).
O nomadismo, este “andar en continuo movimiento en busca de la caza para sus
comidas” (Flores [16/08/1763]: fl. 9v), longe de colocar em perigo a coesão do grupo,
garantia a união dos seus membros, devido às responsabilidades impostas pela manutenção
dos indivíduos dependentes do trabalho um do outro. A constante busca por alimento na mata
ou nos rios forçava os membros de uma família a ocuparem funções específicas não
necessariamente dependentes umas das outras, porém altamente complementares: ao mesmo
tempo em que a caça não necessitava da pesca para ser praticada – e vice-versa –, os
integrantes do grupo sabiam que nem sempre os caçadores voltariam com uma presa, fazendo
com que os pescadores pudessem fornecer o necessário. Assim, mesmo nos momentos de
mobilidade, em que um grupo familiar ou uma aldeia migravam de uma região para outra, não
havia o perigo da dispersão generalizada, justamente porque a circulação pelo território era
um das características fundamentais da economia de produção alimentar da maioria dos
grupos chaquenhos.
Ainda que a expressão caçadores e coletores já tenha sofrido críticas em relação à
generalização superficial que seu uso implica,142 ela ainda é comumente empregada como

142
Em relação a esta questão, destaco a posição de Guillermo Madrazo que, com muita propriedade, aponta para
as restrições que o emprego da categoria caçadores e predadores provoca ao ignorar as idiossincrasias que cada

214
distintivo para o sistema de produção alimentar genericamente adotado por grupos não
praticantes da agricultura ou da domesticação de animais em cativeiro. A categoria originou-
se como expressão de classificação entre os grupos humanos ditos predadores, em oposição
aos grupos produtores. A ideia era a de separar ontologicamente aquelas sociedades em que a
produção de alimento se dá através de uma reposição de espécies animais e vegetais, através
de seu cativeiro e/ou domesticação, diferenciando-as dos grupos humanos que obtêm seu
alimento a partir da oferta de recursos proteicos disponíveis no próprio território em que se
encontram. Neste sentido, as chamadas sociedades complexas teriam experimentado uma
evolução em suas técnicas e ferramentas, de forma a potencializar a sua capacidade
reprodutiva dos recursos naturais – controlados em cativeiro –, sem, com isso, esgotar as suas
fontes de alimento. De modo distinto, os grupos tribais, por não seguirem o progresso técnico-
instrumental dos modernos, mantiveram sua conduta predatória do meio ambiente, tornando-
se dependentes da incerta disponibilidade de alimentos na natureza. Disto resultaria, de
acordo com a lógica da economia moderna, um acesso sempre limitado a alimentos e aquém
das necessidades dos integrantes do grupo, conotando-se, pejorativamente, um regime de
subsistência – como se o único motivo de suas vidas fosse a busca incansável, porque árdua,
por comida.
De modo a corroborar este pensamento, alguns relatos sobre o Chaco procuravam
descrevê-lo como uma região de escasso aproveitamento alimentar, onde “no se encuentra
venado, avestruz, ni otro animal montaraz o silvestre”. Nestas condições, os nativos que ali
habitavam passavam “su vida en la mayor estrechez y miseria”, alimentando-se com os
“cogollos de las palmas, algunas frutas silvestres, como son la algarroba, las raíces de los
cardos caraguata, la miel que recogen en los bosques, y el poco marisco que sacan de las
lagunas y arroyos a fuerza de trabajo e industria” (Solalinde, 1799: 5, grifo no original). Além
de descrever um cenário de carência e privação, o autor do relato ressalta a dificuldade que os
índios tinham em conseguir os poucos recursos disponíveis.

tarefa praticada pelos membros de um grupo possui no conjunto do sistema socioeconômico nativo: “Yo ya
había caracterizado a estos grupos como cazadores a larga distancia evitando la denominación demasiado
genérica de ‘cazadores y recolectores’. La razón principal fue que necesitaba distanciarme en este punto de los
planteos histórico culturales pero, además, porque no me parecía adecuado reunir en una misma denominación,
sin distinguir niveles de importancia, a la caza y a la recolección. Todo era un poco impreciso. ¿Quiénes habían
recolectado y qué cosas? Además ¿qué significaba recolección? Los pequeños animales, desde armadillos hasta
ratones no se recolectan, se cazan. Eso sería caza inferior. Se recolectan elementos inmóviles: los moluscos,
ciertas raíces comestibles o las frutas, por ejemplo. En síntesis, me parecía que el término ‘cazador y recolector’,
aplicado a cualquier grupo depredador, puede conducir a que se uniformicen en un mismo patrón entidades
étnicas con diferencias que quizás sean significativas” (2005: 8).

215
Há, porém, outros relatos que descrevem o Chaco como uma região de abundância
tanto vegetal como animal, contradizendo a visão de escassez de alimentos Don Francisco
Arias, por exemplo, em uma expedição que pretendia mobilizar os nativos para a fundação de
reduções no interior do Chaco, afirmava que aquela região era propícia para tal empresa, pois
havia “grande copia de animales monteses por lo que los naturales de este países aseguran en
esta abundancia el patrimonio de su sustento” ([1780]: fl. 314v). Em outra descrição, o padre
Dobrizhoffer sustenta que os chaquenhos tinham fácil acesso aos recursos de que
necessitavam, devido ao conhecimento que possuíam das plantas e dos hábitos dos animais
daquela região:
Mientras estaban libres como las aves que vuelan de aquí para allá y sin ningún
conocimiento de la agricultura, la liberal naturaleza les proveía espontánea y
magníficamente de todo lo que necesitaban para vivir. Supieron por la práctica y
la experiencia en qué lugar y en qué tiempo podían buscar y encontrar jabalíes,
ciervos, gamos, distintos tipos de conejos, avestruces, huevos de avestruz, osos
hormigueros, carpinchos, nutrias, raíces comestibles, frutos de palmeras y otros
árboles. Y cuando la tierra no les ofrecía todo eso en alguna época, emigraban
aquí o allá, cambiando consigo sus casas (Dobrizhoffer, 1784, t. 3: 352).

Tanto o acesso a essa variedade de alimentos disponíveis, quanto a origem desta


diversidade eram decorrentes do trato e do conhecimento que possuíam e mantinham com as
entidades e os seres do Chaco. Como abordado no primeiro capítulo, a experiência resultante
do convívio e da observação, somada a uma necessidade de conhecer – e não exclusivamente
de um conhecer movido pela necessidade –, proporcionaram aos índios as faculdades
cognitivas e instrumentais propícias para que se constituíssem enquanto consumidores e
fornecedores de recursos no ambiente em que viviam:
Para transformar uma erva silvestre em planta cultivada, uma besta selvagem em
animal doméstico, para fazer aparecer em uma ou em outra propriedades
alimentares ou tecnológicas que, em sua origem, estavam completamente
ausentes ou apenas podiam ser suspeitadas; para fazer de uma argila instável
prestes a esfarelar-se, a se pulverizar ou a rachar uma cerâmica sólida e vedada
[...]; para elaborar técnicas, muitas vezes longas e complexas, que permitem
cultivar sem terra ou sem água; para transformar grãos ou raízes tóxicas em
alimentos ou ainda utilizar essa toxicidade para caça, a guerra ou o ritual, não
duvidemos de que foi necessária uma atitude de espírito verdadeiramente
científico, uma curiosidade assídua e sempre alerta, uma vontade de conhecer
pelo prazer de conhecer, pois apenas uma pequena fração das observações e
experiências (sobre as quais é preciso supor que tenham sido inspiradas antes e
sobretudo pelo gosto do saber) podia fornecer resultados práticos e
imediatamente utilizáveis (Lévi-Strauss, 1962: 30-31).

Seria uma ingenuidade analítica – ou uma presunção ontológica –, achar que os índios
não só desconheciam a dinâmica do ambiente em que viviam, como também não eram
agentes ativos e, em parte, responsáveis pela geração de vida neste meio. Segundo as teorias
do etnobiólogo William Balée, a atuação humana sobre o ambiente é geradora de uma

216
importante contribuição para a existência da agrobiodiversidade, mesmo nos recantos mais
isolados do mundo. Assim, “boa parte daquilo que parece mata primária é floresta há muito
tempo manejada por indígenas” (Carneiro da Cunha, 2009: 332; cf. também Descola, 1998:
25).143 Entende-se, daí, a quantidade de plantas e a variedade de espécies que formavam o
cenário da região chaquenha, em que, por exemplo, podiam-se encontrar cerca de 16 tipos de
milho diferenciados pela cor, “como lo hay blanco, amarillo, morado, rojo, azul turquía,
rojizo y negro” (Jolís, 1789: 91-92; cf. também Lozano, 1733, § IV, fl. 33).
O conhecimento que possuíam acerca dos animais, das plantas e da influência que os
astros e os fenômenos meteorológicos provocavam sobre o meio em que viviam permitia que
os índios não apenas soubessem onde e como conseguir alimento, como também que
reconhecessem que havia um ciclo autoprodutivo que deveria ser respeitado. A circulação
pelo território acabava sendo uma maneira de não abusar dos recursos disponíveis e permitir
que a vida da mata mantivesse seu curso. Isso, inclusive, põe em questionamento a afirmação
de que os grupos nômades mudam-se de região assim que constatam a retração dos bens
consumíveis, que os obriga a procurar um novo local que possa garantir sua subsistência. Se
fosse assim, de nada adiantaria o seu conhecimento, além de estarem fadados a viver sempre
no limite da sobrevivência – o que, nestes termos, asseguraria a confirmação de que, na
evolução natural dos grupos humanos, a prática do plantio é um progresso não só esperado,
como vital. É neste sentido que Félix de Azara, ao relatar a existência de grupos chaquenhos
praticantes do trabalho na terra, através de rústicos métodos de plantio e colheita, questiona
por que a “Natureza”, ao proporcionar terra e sementes a alguns grupos, “no hace el mismo
presente a todas las naciones de aquellas regiones que viven de la caza y de la pesca y que
están privadas de plantas” (1809: 92-93). Pela lógica de Azara, os índios estariam aptos a
cultivar a terra, faltando-lhes apenas o incentivo natural da “Natureza”, ou mesmo uma
predisposição coletiva que os impulsionasse para tal prática. O que o funcionário real não
questionou foi até que ponto estes poucos grupos chaquenhos, que mantinham uma produção

143
A partir destes dados, é interessante pensar que a economia de predação é uma denominação
convencionalmente atribuída aos grupos aldeões, cujo sistema produtivo não implica no uso de técnicas de
controle reprodutivo em cativeiro das espécies vegetais ou animais. São essas economias simples, de tecnologia
rudimentar e população (semi-) nômade que se relacionam de maneira justa e equilibrada com o ambiente, sem
esgotá-lo; ao passo que as chamadas economias complexas, ao mesmo tempo que se estruturam em uma
produção baseada na reposição dos recursos por meio da agropecuária, são justamente as responsáveis pelo
desmatamento de florestas, pela poluição das águas, pelo esgotamento do ar puro, pelo derramamento de lixo
industrial, tóxico e radioativo, pela extinção de espécies animais e vegetais e pela usurpação de terras – todas
ações justificáveis em nome dos avanços tecnológicos e que buscam suprir a necessidade de se conseguir uma
produção alimentar inversamente proporcional ao tempo dedicado.

217
agrícola, diferenciavam-se economicamente dos demais grupos caçadores e coletores – e se a
sua produção agrícola aproximava-os do modo de vida dos modernos.
Ao partir deste ponto de vista, afastamo-nos de uma análise – que considero
superficial – que coloca em lados opostos dois grupos de indígenas: aqueles que exploram a
terra e aqueles que apenas caçam, pescam e coletam recursos. Foi desta maneira que o sistema
colonial espanhol buscou classificar os chaquenhos, acreditando que, com muito esforço e
dedicação, poder-se-ia elevá-los a uma economia moderna. Porém, as próprias análises feitas
pelos espanhóis sobre o cultivo que estes grupos praticavam descrevem uma produção
rudimentar, de consumo doméstico e, principalmente, dependente de outros modos de
produção alimentar. O padre Lozano, por exemplo, ao tratar dos Gualacho, afirma que “se
aplican con tesón a la agricultura”, ainda que a caça fosse “gran parte de su alimento”, e que
migravam regularmente “para que no se consuma toda en un paraje” (Lozano, 1754: 424). Já
em relação às técnicas usadas no plantio, os instrumentos e o modo de preparo da terra eram
bastante simples, aparentemente sendo utilizados apenas expedientes necessários para uma
produção familiar. Sem precisar arar ou regar a terra, os Mataguayo, com um “palito, como
dos dedos de grueso, hacen unos agujeros en el suelo y echando en cada uno dos o tres granos
de maíz y cubriéndolos de tierra con el pié” (id., 1733, § IV, fl. 33). Da mesma forma é
descrito o cultivo realizado pelos Guaná, em que “los cuchillos de sílice, los bastones de
madera dura y las zapas de Guayacán ocupan entre ellos el lugar de los instrumentos”,
conseguindo produzir “maíz, mandioca, judías de muchas clases, batatas y calabazas”.
Quando, por algum motivo, ocorria de não conseguirem plantar, recorriam “a las frutas
silvestres, a las raíces del campo y al arroz, natural y espontáneo allí y en muchos sitios, y así
reemplazan su falta o escasez” (Jolís, 1789: 325). Azara, preferindo estender sua descrição a
todos os grupos chaquenhos que cultivavam na terra, afirmou que, como “son más o menos
errantes, los indios siembran en cualquier parte donde pasan lo que se les ocurre, y luego
vuelven para hacer la recolección” (1809: 85).
Não é interessante, portanto, dividir os grupos chaquenhos entre caçadores e coletores
e agricultores, tendo em vista que as técnicas produtivas não provocavam diferenças
estruturais nos seus modos de vida. Ao que parece, a circulação pelo território, a utilização de
métodos simples e a combinação do cultivo na terra com a caça e da coleta demonstram que o
sistema econômico indígena mantinha um tipo de produção que visava ao abastecimento
doméstico ou, no máximo, ao limite dos intercâmbios ligados à reciprocidade entre grupos
aliados. Desta forma, a produção dos grupos agricultores provocava um tipo de consumo
semelhante ao praticado pelos grupos caçadores. Com base nisso, não pretendo partir de uma

218
análise em que os questionamentos recaiam sobre o método de produção indígena e suas
técnicas, mas sim sobre a prática alimentar que os indígenas mantinham. Assim, antes de nos
perguntarmos por que a maioria dos índios não cultivava a terra ou por que suas técnicas e
instrumentos eram rudimentares, acredito que seja mais eficiente questionar o tipo de
consumo que estes grupos praticavam e qual o lugar que a alimentação ocupava nas suas
vidas. Proponho, por ora, que a economia dos grupos chaquenhos baseava-se em uma
necessidade produtiva inferior à disponibilidade de recursos existentes, do que resultava o
fácil acesso a alimentos e a sua consequente satisfação. Dito de outra forma, os índios podiam
“desfrutar de uma fartura material ímpar – com um baixo padrão de vida” (Sahlins, 1972:
106).144
Se, por um lado, a produção ficava aquém do que o ambiente oferecia, por outro ela
nunca ficava abaixo das expectativas dos índios, que, praticantes da agricultura ou apenas da
caça e coleta, não produziam alimentos a mais do que podiam consumir, mas consumiam tudo
o que produziam imediatamente, sem criarem excedente ou praticarem o armazenamento. Isso
contribuía para que as críticas relativas à imprevidência no trabalho fossem acentuadas, com
destaque para o hábito dos chaquenhos de não guardarem alimento para possíveis
necessidades futuras: “son poco labradores y se sustentan de pesca y caza, sin reservar para
alimento ningún animal, ni corteza de árbol” (Domínguez [10/07/1695]: fl. 2). Ao perceberam
que os índios não criavam algum tipo de sobra ou excedente produtivo que pudessem reservar
para os próximos dias, os espanhóis passaram a apontar tal ausência como demonstração da
incapacidade dos nativos de sustentarem-se. Em se tratando de comer, os nativos pareciam
não pensar em outra coisa do que saciar sua fome, já que “no se acuerdan del día de mañana,
ni se apuran por conservar algo” (Sánchez Labrador, 1770, t. 1: 288). Buscando entender por
que os índios agiam assim, os espanhóis atribuíam à vida selvagem, desprovida de regras e de
condutas civilizadas, o despreparo para a garantia de sua própria sobrevivência, como se
constata na avaliação feita sobre os Payaguá, que agiam “sin pensar en conservar nada para
mañana, por tenerlo todo en el río y en sus orillas, que, en no haberse convertido, no proviene

144
Baixo padrão de vida, neste contexto, não se refere a uma condição de necessidades materiais impulsionada
pela distinção econômico-social entre pessoas ou grupos. Sobre a relação que comumente se faz entre as poucas
posses de um povo e sua condição econômica, Sahlins escreve: “Os povos mais primitivos do mundo têm poucas
posses, mas não são pobres. A pobreza não consiste em uma determinada quantidade reduzida de bens, nem é
apenas uma relação entre meios e fins; acima de tudo, é uma relação entre pessoas. A pobreza é um status social.
Como tal, é uma invenção da civilização. Cresceu com a civilização, imediatamente como uma distinção odiosa
entre as classes e, o que é mais importante, como uma relação tributária – capaz de tornar os camponeses
agricultores mais suscetíveis às catástrofes naturais do que qualquer acampamento hibernal de esquimós do
Alasca” (1972: 146, grifos do autor).

219
de la comunicación con los cristianos, sino de habérsele dejado en su libertinaje” (Casal
[07/06/1796]: fl. 147).
Contudo, essa não era uma atitude específica dos nativos que optaram por manterem-
se longe do convívio com os espanhóis, como se o não armazenamento dos recursos
comprovasse a incapacidade para garantirem seu próprio sustento a médio ou longo prazo.
Mesmo os índios que viviam nas reduções, sob a assistência dos missionários, continuaram
não se preocupando em guardar alimento para o futuro, fazendo com que os missionários
alertassem as autoridades coloniais sobre a aparente imprudência dos índios, que, havendo
pouca ou muita comida na redução, não deixavam de consumi-la como bem queriam, sem se
preocupar com a criação de um estoque. Dobrizhoffer, por exemplo, informou que os Mocovi
das reduções de San Jerónimo e San Fernando abatiam mais animais do que estava previsto
na cota diária, carneando, “despreocupados por el futuro, hasta las vacas más jóvenes y más
gordas” (1784, t. 3: 354). O mesmo alerta era emitido sobre a brusca diminuição do número
de cabeças de gado da redução San Javier de índios Mocovi que, das dezesseis a vinte mil
cabeças de gado inventariadas na época jesuítica, “por la indolencia natural de los Indios”,
não haviam sobrado mais do que duzentos animais (Lassaga [06/10/1785]: fl. 1v-2).
Outro aspecto importante a ser salientado é que o armazenamento também foi uma
prática ausente entre os grupos horticultores, que, mesmo cultivando a terra, não seguiam os
procedimentos de estocagem usuais na agricultura moderna. Assim, os índios Lule, tão logo
recorriam ao alimento que produziam em suas roças, já tinham que procurar alternativas:
“Hacen sus cortas sementeras de maíz, calabazas y legumbres, con que se sustentan hasta que
se acaban que es muy en breve: después se mantienen de la miel, que sacan de los árboles y
debajo de tierra, donde labran sus panales algunas abejas y también con frutas silvestres”
(Lozano, 1733, § XVII, fl. 102). Os Mataguayo – que já praticavam o trabalho agrícola –, ao
se instalarem nas reduções, não passaram a armazenar o alimento, consumindo, inclusive,
mais comida do que esperavam os padres: “Lo que se les daba de ración para 4 días, que para
estómagos regulares había de sobra, se lo comían en uno” (Andreu [22/11/1757]: fl. 27v). E
mesmo os Guarani, recorrentemente apontados como o exemplo bem-sucedido da empresa
reducional, também foram alvos de críticas sobre a administração dos alimentos. O jesuíta
Juan de Escandón reafirma a importância em manter um lote de terra para o plantio coletivo
nos povoados, porque os índios “tienen tan poca providencia, que ordinariamente comen o
desperdician todo lo que cogieron, sin reservar nada que sembrar el año siguiente”
([18/07/1760]: § VI, fl. 7v). Os bens produzidos nessas terras comunitárias eram, segundo os
missionários, a garantia mais segura de que os nativos teriam comida no mês, já que, em

220
relação às suas terras particulares, não estocavam nada para o futuro: “contentándose con
poco, hacen las sementeras cortas, pareciéndoles bastante para su sustento y se hallan faltos
en la cuenta a los últimos tercios del año” (Peralta [08/01/1743]: fl. 2v-3).
Ainda que a ausência de armazenamento fosse uma constante entre os grupos
chaquenhos e decididamente não uma questão de os índios estarem ou não vivendo nas
reduções, analisá-la como um fator isolado seria incorrer no erro de não entender uma prática
indígena dentro de um sistema de ações e significados. A não criação de um estoque alimentar
não era, como entenderam os espanhóis, uma consequência direta da imprevidência que os
índios apresentavam no trabalho; era, antes, uma evidência de que os nativos não trabalhavam
com fins de produzir excedente: “A produção de excedente é perfeitamente possível na
economia primitiva, mas é também totalmente inútil: que se faria com ele?” (Clastres, 1980:
253). A questão, portanto, não era de ordem produtiva, como se uma inoperância no modo de
produzir ou a inferioridade técnico-instrumental gerassem uma série de falhas, das quais
resultaria, no final do sistema produtivo, a incapacidade de armazenar os bens. Prefiro partir
da ideia de que, ao contrário de uma sucessão de erros, a não criação de excedente produtivo e
de um estoque de comida para o futuro se constitui em um procedimento de uma lógica
econômica que não tinha como fundamento a produção, mas, sim, o consumo. Desta forma, o
que, do ponto de vista da lógica ocidental, eram ausências, pela lógica indígena eram ganhos:
não ter que se preocupar em deixar sobrar alimento para o futuro permitia aos índios terem, a
cada refeição, um banquete. E é, justamente, esta a imagem que os espanhóis vão ter – e
difundir – sobre o hábito alimentar dos chaquenhos.
Os hábitos alimentares dos índios sempre impressionaram os colonizadores, não tanto
pelo que comiam, mas pela provisão diária de alimentos que podiam ingerir. Florián Paucke,
evocando sua convivência junto aos nativos, afirmou que “un solo indio puede devorar más
en una sola sentada que ocho personas de países helados”, acrescentando que um dia de
refeição indígena correspondia ao que ele comia em três semanas (1767, t. 2: 192, grifo no
original). O padre Miguel Benavides parecia concordar com estas comparações, ao relatar que
se fossem dadas 100 vacas aos Calchaqui, “las acabarán en cuatro días” ([02/06/1730]: fl. 1).
Este comportamento descrito pelos espanhóis gerou a ideia de que os índios eram movidos
pela voracidade, sendo seu único objetivo de vida o de saciar a fome, dando-se, assim, origem
à máxima de que não “adoran otro Dios que a su vientre” (Fernández, 1726, v. 1: 59; também
em Sánchez Labrador, 1770, t. 2: 13 e Padre Alonso Sánchez in Furlong, 1939: 49).
Ao devorarem toda comida que tinham à sua disposição, prática inserida no que se
pode chamar de um regime de prodigalidade, os chaquenhos acabavam incitando os

221
missionários a serem temerosos em relação à distribuição de alimentos, como bem ilustra o
padre Paucke, que, junto aos Mocovi, buscando convencer o cacique Cithaalin, o seu porta-
voz junto aos demais índios, de que a redução deveria racionar seus recursos, escreveu: “Mi
querido Cithaalin, de esta manera en que tú quieres carnear diariamente cinco bueyes o vacas,
no habrá dentro de algunos meses ganado alguno sobre estos campos y se dirá de ti y los
tuyos que tú has consumido todo” (1767, t. 2: 28, grifo no original). Porém, na prática, os
índios não só continuavam comendo tudo o que lhes era oferecido, como também buscavam,
fora do povoado, ainda mais comida, caso sentissem necessidade: “Dáselos ración de carne de
cinco en cinco días, la bastante para una familia racional y económica; pero los Tobas la
consumen en la primera sesión y han de desparramarse para buscar que comer en los cuatro
días restantes, porque en el pueblo no la hay” (Muriel, 1766: 165-166). Em uma situação
parecida, porém envolvendo os Guarani, o jesuíta Antonio Sepp relata o caso em que um
índio, “que parecía ser de los más laboriosos”, tomou os dois bois destinados ao arado e, ao
invés de trabalhar na terra, abateu um dos animais, de modo que “el pobre buey de arado se
deshizo en humo durante un solo desayuno” (c. 1733: 219-220; cf. também Paucke, 1767, t. 2:
192-193).
Apesar de os relatos descreverem um hábito aparentemente desregrado, acredito que a
prodigalidade dos chaquenhos não era uma resposta desesperada de indivíduos que
enfrentavam a fome e estivessem compensando os momentos de escassez com uma
voracidade desmedida. Confiar em uma análise que compreende a ausência de excedente
produtivo e o regime de prodigalidade como situações decorrentes do despreparo, no meu
entendimento, implica ignorar todo um sistema econômico formalizado a partir de um
pensamento filosófico-reflexivo e de uma ontologia experienciada na vida prática e,
sobretudo, acreditar que estes grupos favoreciam “a gula em detrimento do bom senso
econômico” (Sahlins, 1972: 138). Porém, isto não quer dizer que os chaquenhos, durante os
séculos de circulação pelo território, antes e depois da invasão ibérica, não tenham conhecido
a fome e a privação de recursos. Tampouco foram os modernos, com sua tecnologia
inquestionavelmente mais avançada, que introduziram entre os nativos a abundância
alimentar. A antropóloga Celia Mashnshnek, em seu estudo sobre a economia dos Mataco,
descreve duas épocas dentro do ciclo anual de produção dos índios: “una que denominan
neslós (tiempo de escasez) y que traducen literalmente como ‘nada para comer’ y otra llamada
nihlokés masnéy (lit. ‘todo de diferentes cosas’), que comprende obviamente el tiempo de
abundancia” (1975: 8, grifos no original). A mesma perspectiva sobre oscilações cíclicas
entre opulência e privação é constatada pelo padre Alonso Sánchez entre os Mataguayo no

222
século 18. O jesuíta, em tom crítico, advertiu para o fato de os índios, mesmo tendo passado
por uma situação de fome, não mudarem seu regime alimentar nas épocas de abundância:
Lo peor es que después de haber experimentado un año todos los rigores de un
hambre rabiosa, no por eso escarmientan el siguiente, ni toman contra ella
mayores precauciones que el pasado, ni son más liberales en sembrar ni más
diligentes en hacer sus provisiones. […] Y después de todo esto, llegando el
tiempo de la sementera del maíz, siembran un puñado y algunas calabazas, ni
más ni menos que el año antecedente, en unos hoyitos que hacen con una estaca,
a que está reducido su arado y todos los instrumentos de su labranza. Cuando el
maíz llega a sazón, comen como si no se hubiera de acabar, y lo que pudiera
durarles dos o tres meses bien repartido, no les dura dos semana (Padre Alonso
Sánchez in Furlong, 1939: 54-55).

Escassez e abundância não eram períodos excepcionais da vida dos chaquenhos, e


tampouco configuravam situações inéditas ou originalmente introduzidas pelos espanhóis – o
que não nega o fato de terem sido potencializadas com a presença dos colonizadores. Estes,
por sinal, tentaram impor, a todo custo, a sua lógica de produção econômica em detrimento da
forma tradicional indígena, buscando implantar os métodos e instrumentos que acreditavam
ser fundamentais para a substituição de um sistema pelo outro. Tentaram, também, implantar
um senso crônico de falta, buscando introduzir nos índios a insegurança que os modernos
tinham em relação ao futuro. Talvez, assim, os índios buscassem produzir uma agricultura em
larga escala, visando à formação de um excedente produtivo, através da utilização de
ferramentas e técnicas sofisticadas, a fim de criar um estoque alimentar. O caso é que a
produção econômica e o consumo dos recursos não se desenvolvem apenas a partir da ordem
prática: estão relacionados antes à estrutura cosmológica de um grupo do que à sua
infraestrutura material.
Considero pertinente retomar aqui as discussões feitas no primeiro capítulo acerca da
oposição cosmológica prefigurada pelos modernos entre cultura e natureza e do
multiculturalismo que prevê a existência de um mundo pronto como palco universal para a
atuação de uma pluralidade cultural. De acordo com esta lógica, a natureza, unitária e
germinal, não pode ser controlada pelo homem, porque lhe precede e engloba. Porém, por ser
dotado de cultura, é-lhe permitido atuar no mundo de maneira objetivista, como um
observador que, tendo acesso ao real funcionamento da dinâmica da natureza, consegue
medir, contabilizar, pesar, prever, enfim, matematizar seus elementos e fenômenos – daí as
classificações taxonômicas, zoológicas, botânicas; as medições que vão do astronômico ao
nuclear; as previsões precisas da química e as não tão precisas da meteorologia. Sendo
incontrolável, mas não imensurável, a natureza passa a ser um desafio para as pretensões
ontológicas do homem: como atuar em um cenário tão independente, mas que se conhece tão

223
bem? A cultura é a resposta. Partindo de um instrumental criado por eles mesmos para medir
a natureza, os modernos desenvolveram técnicas, métodos e instrumentos que lhes
possibilitam estabilizar, até certo limite, os fenômenos naturais de maneira a permitir uma
atuação precisa e controlada sobre eles.145
Assim, a lógica econômica moderna possibilita ao homem um controle sobre o modo
de produção de bens e alimentos, por meio da eficácia do instrumental desenvolvido durante
centenas de anos de avanços tecnológicos; ao passo que o consumo, ou seja, a etapa final do
sistema produtivo, não lhe é garantido, justamente, por ser dependente dos fenômenos
naturais. Dito de outra forma, a botânica, por exemplo, ensina que as plantas, sob condições
específicas, mas conhecidas, tendem a germinar a partir de uma semente, cabendo ao homem
criar métodos de cultivo (porque culturais) que possam atuar mediante as especificidades
fisiológicas das plantas ou criar meios para possibilitar seu florescimento em determinadas
regiões menos férteis. Desta maneira, os modernos não modificam a dinâmica cosmológica da
natureza, na medida em que instrumentalizam métodos para nela potencializar sua atuação – o
que, no final das contas, pode vir a falhar devido a uma invasão de pragas, um tornado, uma
estiagem ou inundação e, assim, dificultar, ou mesmo impedir, o consumo.
Diametralmente oposta, a lógica econômica indígena garantia o consumo, mas não
tinha quaisquer garantias em relação ao sucesso da produção. Isto porque, segundo a
cosmologia multinaturalista, a relação que os nativos mantinham com o ambiente e os seres à
sua volta era baseada no subjetivismo, ou seja, em um colocar-se enquanto elemento
constituinte do todo, inseparável da sua dinâmica e funcionamento, justamente porque todos
compartilhavam da mesma cultura, apesar de relacionarem-se a partir de mundos perceptíveis
distintos. Daí que não pode haver uma objetivação do modo de produzir, porque os recursos
que estão disponíveis em um mundo – ou seja, que estão dispostos em um conjunto de
significados específicos sob uma perspectiva – são componentes que também estão

145
Sobre este ponto, Bruno Latour demonstra como os modernos vêm atuando na criação de técnicas e
instrumentos que possibilitam o estudo da natureza. Ao partir dos experimentos do físico e químico Robert
Boyle, no século 17, Latour constata que, ao objetivarem a natureza, os cientistas acreditam poder analisá-la, em
escala reduzida, por meio do instrumental que desenvolveram para isto. Boyle “inventa o laboratório, no interior
do qual máquinas artificiais criam fenômenos por inteiro. Ainda que artificiais, caros, difíceis de reproduzir e
apesar do pequeno número de testemunhas confiáveis e treinadas, estes fatos representam a natureza como ela é.
Os fatos são produzidos e representados no laboratório, nos textos científicos, admitidos e autorizados pela
comunidade nascente de testemunhas. Os cientistas são os representantes escrupulosos dos fatos. Quem fala
quando eles falam? Os próprios fatos, sem dúvida nenhuma, mas também seus porta-vozes autorizados. Quem
fala, então: a natureza ou os homens? Questão insolúvel com a qual a filosofia das ciências irá defrontar-se
durante quase três séculos. Em si, os fatos são mudos, as forças naturais são mecanismos brutos. Os cientistas,
porém, afirmam não falar nada: os fatos falam por si mesmos. Estes mudos são portanto capazes de falar, de
escrever, de significar dentro da redoma artificial do laboratório ou naquela, ainda mais rarificada, da bomba de
vácuo” (1994: 34).

224
disponíveis para outro ponto de vista, e qualquer tentativa de formular um controle preciso
para efetuar a produção pode desequilibrar o sistema de uma destas naturezas. Além disso, se
todos os seres compartilham a mesma cultura – que, no caso da filosofia ameríndia, seria a
humanidade como denominador comum cultural –, então todos os seres caçam, pescam,
coletam mel e têm que cuidar das suas roças. Isso significa que, para um índio, entrar na mata
munido de suas armas não impede que a anta para a qual sua flecha está apontada não esteja
caçando também, e se, no final do embate, o animal atropelar e matar o índio, este, que entrou
na floresta como caçador, sairá dela como presa.
Da mesma forma, a coleta de recursos ou a horticultura são procedimentos que não
podem ser simplesmente realizados sem cuidados específicos que os delimitem como
produção. A coisa não é tão simples quando aquele que quer retirar algo da natureza faz,
literalmente, parte dela: “Entidades divinas, espíritos de animais, de vegetais e espectros de
mortos, homens e objetos, fazem parte de um mesmo Universo, no qual inexiste uma
separação radical dos elementos” (Souza, 2002: 241). Além disso, as atividades econômicas e
tudo com o que elas se relacionam
tienen un origen mítico; sin referencia a ese origen pierden su sentido y
significación ya que, por un lado, las técnicas y los instrumentos han sido
otorgados por un tesmóforo y, por el otro, los animales cazados y las plantas de
consumo tienen este mismo origen o bien son el producto de la transformación
de un personaje originario (Mashnshnek, 1975: 8).

Daí porque os Nivaclé, para conseguirem aproveitar o maior benefício possível dos
recursos que o ambiente poderia lhes fornecer, acreditassem ser “necesaria una relación
estrecha con los espíritus de las diferentes manifestaciones de la naturaleza” (Cruz Sánchez,
1998: 296). A produção, para que pudesse ser praticada, dependia de uma relação estável,
equilibrada e em permanente troca entre os indivíduos e o ambiente. Já o consumo estava
garantido, justamente, porque sempre haveria alimento disponível – tudo dependia da forma
como os índios iriam manejar sua relação com o ambiente. A circulação pelo território, por
exemplo, era uma maneira de evitar o esgotamento – pelo abuso – dos recursos disponíveis,
fazendo de qualquer prática que incentivasse o sedentarismo uma ameaça ao estilo de vida
indígena:
A armazenagem fixaria o acampamento numa área que não tardaria a ter seus
recursos naturais alimentares esgotados. Assim, imobilizadas por seus estoques
acumulados, as pessoas poderiam ficar em pior situação, quando comparada com
uma pequena quantidade de caça e coleta que poderiam obter em outro lugar,
onde a natureza houvesse feito, por assim dizer, uma considerável armazenagem
por sua própria conta de víveres possivelmente mais apetecíveis por sua

225
variedade e também pela quantidade maior do que os homens poderiam guardar
(Sahlins, 1972: 139).146

Mudando-se de uma região para outra, não só permitiam a manutenção do ciclo de


autoprodução dos recursos naturais, como davam-se a oportunidade de conseguir melhores
provisões de alimentos. Se o pensamento ocidental baseava-se na ideia de que o amanhã era
incerto e de que a natureza podia pregar uma peça ao escassear os recursos, os índios sabiam
que nunca lhes faltaria comida, pois não era a quantidade ou disponibilidade de recursos que o
ambiente poderia oferecer, mas antes o acesso a eles que exigia a atenção, o conhecimento e a
habilidade individuais. Evocando, novamente, o cacique Cithaalin, o padre Paucke reproduz a
defesa que ele fez em relação à vida que ele e seus seguidores levavam na mata:
Yo tenía en la tierra selvática la suficiente comida para mí y mis amigos sin tener
que preocuparme de dónde recogerla; los bosques me la daban sin otro trabajo
que sólo tomarla. Cuando yo tenía hambre y había tiempo bueno, cazaba de a
caballo y esto era mi placer; si había tormenta, me dejaba estar sentado debajo de
mi choza en algún lugar, dormía por el mayor tiempo o me servía chicha que
jamás me faltaba y venía a ser igual a un alimento (Paucke, 1767, t. 2: 116, grifo
no original)

O modo de vida itinerante e a ausência de uma jornada fixa de trabalho faziam com
que os índios tivessem, em seu dia-a-dia, um regime de produção intermitente, nivelado pela
necessidade de abastecimento do grupo – algo, inclusive, observado pelo padre Sánchez
Labrador, que constatou que os Guaicuru, durante uma viagem, pararam “muchas veces en el
camino, o para seguir la caza, o para sacar fuego con dos palitos y encender la tabaquera, o
para cortar alguna palma y sacarle el cogollo ó meollo” (1770, t. 1: 11). Se comiam em
grandes quantidades, não deixando sobrar nada para os dias vindouros, para além das
questões já discutidas acima, é porque o consumo sempre estaria garantido no futuro. A
prodigalidade era, em suma, a certeza de que o amanhã traria comida aos índios: “o que dá o
tom a seus arranjos econômicos é a fartura original, a confiança na abundância dos recursos
naturais, e não o desespero pela insuficiência de recursos humanos [...] uma confiança que é o
atributo humano razoável de uma economia geralmente bem sucedida” (Sahlins, 1972: 135).

146
Sobre a questão da mobilidade, o padre Alonso Sánchez já havia notado que, durante as migrações, os grupos
extrafamiliares deveriam dispersar-se para que o núcleo familiar pudesse viajar com mais comodidade e menos
dificuldade de acessar alimentos: “su modo de vivir no consiente que viva junto mucho gentío, porque en dos
días acabarían con la caza, pesca y con los frutos, que son los únicos depósitos que tienen para su subsistencia,
ordinariamente sólo viven juntos los de una parentela” (Padre Alonso Sánchez in Furlong, 1939: 55). Era
importante também, devido à constante circulação pelo território, os índios levarem o mínimo possível em suas
viagens, porque “en un año suelen hacer varias mudanzas cargando todos sus muebles con la casa que también es
mueble” (Muriel, 1766: 135). A sobrecarga atrasaria a mobilidade do grupo e impediria-os de ir tão longe quanto
necessitassem: “É verídico dizer-se do caçador que sua riqueza é um fardo. [...] A mobilidade e a propriedade
estão em contradição” (Sahlins, 1972: 117). Percebe-se o quanto era distinto o modo de vida que os chaquenhos
levavam em relação àquele que os missionários e as autoridades coloniais queriam que os índios aderissem nas
reduções.

226
Ou, como colocou o padre Antonio Sepp: “La palabra de Cristo: Nolite soliciti esse in
crastinum (No os preocupéis por mañana!), se adapta a los indios como a ningún pueblo bajo
el sol” (c. 1733: 217-218, grifo no original). A passagem bíblica a que o jesuíta se refere –
ainda que com a intenção de criticar a conduta dos nativos –, parece fazer mais sentido em
relação aos preceitos indígenas do que à vida que levavam os modernos: “Não vos inquieteis
com o dia de amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados; basta o dia o seu próprio mal”
(Mateus 6.34). Paradoxalmente, foi o Ocidente cristão que ignorou uma recomendação dada
pelo seu messias, ao dar primazia à acumulação de bens como forma de assegurar – de forma
privada – o futuro, o que acabou por ampliar a distância socioeconômica entre os fiéis e o
consequente desrespeito aos preceitos cristãos. Ainda assim, alguns espanhóis do século 18 já
admitiam que o modo de vida indígena tinha qualidades que compensavam a inferioridade
técnico-produtiva de sua economia:
No se puede creer tampoco que un gran número de niños indios perezca por falta
de alimento o a causa de la dureza de su género de vida, pues que tienen siempre
qué comer y su modo de vivir, lejos de debilitarlos y matarlos, los vuelve a todos
más fuertes que nosotros, les hace disfrutar mejor salud, prolongar la vida más
tiempo y conservar hasta la muerte no sólo los cabellos, sino también todos sus
dientes, mientras que entre los españoles que habitan la misma región hay
muchas cabezas calvas y muchas personas sin dientes, que yo he visto por todas
partes (Azara, 1809: 95-96).

Mesmo que tivessem uma produção irregular e, para os padrões coloniais, inferior em
quantidade de alimento, admitia-se que os nativos viviam mais tempo e em melhores
condições físicas do que a maioria dos europeus, e que, em geral, morriam apenas “en las
guerras, o en sus lides privadas, por contagio o viruela” (Jolís, 1789: 312). Além disso, não
expressavam uma fisionomia de “pesares, y aun cuando no tienen qué comer, están echados
con el mismo sosiego y paz que si estuvieran hartos” (Padre Alonso Sánchez in Furlong,
1939: 61). Por vezes, responsabilizava-se a natureza pelos benefícios físicos que os indígenas
possuíam: “Es tan benigno aquel temperamento y tan saludable sus aguas que sin ropas,
sementeras, ni crías de ganado se mantienen robustos” (Nota [25/08/1774]: fl. 2v).
De qualquer forma, a maneira como os índios encaravam a produção e o consumo
alimentar permitia-lhes dedicar mais tempo ao ócio e à sociabilidade. Isto porque, no sistema
econômico indígena, os nativos não viviam para trabalhar, e sim, o contrário, o que lhes
rendia tempo para suas práticas sociais como a reciprocidade, as festas e as bebedeiras, a
guerra e os rituais ligados à predação física ou simbólica do inimigo, além de, provavelmente,
disporem de mais tempo livre para o descanso do que tinham a maioria dos trabalhadores
rurais europeus. Volta-se, assim, à questão inicial a respeito da relação que os índios
mantinham com o trabalho: a produção dependia da união do grupo, e só com a formalização

227
desta união, por meio da eficiência dos seus membros agindo em conjunto pelo bem de todos,
é que a produção poderia ser efetuada. Esta é a razão para Roy Wagner depositar nas pessoas
o fundamento econômico destes sistemas tradicionais e afirmar que a “produtividade das
sociedades tribais não é obcecada por instrumentos ou técnicas na medida em que constitui
uma parte das relações interpessoais e encarna valores humanos, e não valores abstratos”
(1975: 60). Se os índios eram imprevidentes, de acordo com a visão do colonizador, é porque
suas metas eram baseadas em parâmetros distintos: a quantidade de alimento que pretendiam
produzir era menor do que a almejada pelos espanhóis na mesma razão em que a quantidade
de tempo livre que esperavam ter para o ócio era muito maior do que a oferecida por eles.
Qualquer tentativa de substituição do modo de produção econômico tradicional pelo
modo moderno viria a desestruturar o maior patrimônio de que dispunham os índios: a
coletividade. A incorporação de um sistema econômico que prevê a formação de um
excedente produtivo para o abastecimento privado está a um passo de instalar a
patrimonialização de bens e da própria produção – seria o momento em que a “economia
torna-se política” (Clastres, 1974: 214, grifo no original). Isto inverteria a lógica indígena de
sociabilização tanto da produção quanto do consumo:
Os sistemas tradicionais têm suas próprias regras de atribuição de conhecimentos
que podem ou não ser coletivos, esotéricos ou exotéricos. Mas essas regras
frequentemente entram em conflito com exigências de confidencialidade ou de
monopólio. Introduzi-las pode ter consequências sérias e o uso e
desenvolvimento dos resultados do conhecimento tradicional não pode se dar de
forma que o paralise e destrua (Carneiro da Cunha, 2009: 309, grifo meu).

A incorporação dos métodos e técnicas produtivas da agricultura moderna, além de


implicar na modificação estrutural do regime de consumo indígena, subverteria a cosmologia
nativa, já que a intervenção na ordem social agravaria todo um sistema de trocas e formação
de alianças responsável pela dinamicidade e construção do grupo. Em suma, abalaria todo o
preceito mítico de construção da pessoa.147 Neste sentido, como bem colocou Bruno Latour, é
“a impossibilidade de mudar a ordem social sem modificar a ordem natural – e inversamente

147
Procuro, aqui, ir um pouco além da teoria formulada por Pierre Clastres de que a passagem de uma economia
rudimentar, baseada na caça, na pesca e na coleta, para uma produção agrícola e pastoril é, antes de tudo, uma
“ruptura política – e não a mudança econômica”, sustentando que a “verdadeira revolução, na proto-história da
humanidade, não é a do neolítico, uma vez que ela pode muito bem deixar intacta a antiga organização social,
mas a revolução política”, que, segundo o autor, “é essa aparição misteriosa, irreversível, mortal para as
sociedades primitivas, o que conhecemos sob o nome de Estado” (1974: 219-220). Sob o meu ponto de vista, a
revolução política, para usar a expressão de Clastres, não poderia ocorrer sem antes haver uma interferência nos
elementos constitutivos da Cosmologia do grupo indígena, ou seja, a forma de relacionamento com o mundo, os
seres e entidades que povoam a realidade deveria sofrer uma transformação para que resultados práticos, como a
administração sócio-jurídica entre os membros, viessem a alterar-se.

228
– que obriga os pré-modernos, desde sempre, a ter uma grande prudência” (1994: 46).148 Isto
não contradiz, de forma alguma, a teoria levistrosiana de que a cosmologia ameríndia é aberta
ao que vem de fora: o “efeito de inércia não impede a aquisição de novas técnicas, mas ele
limita geralmente a sua envergadura” (Descola, 2002: 96).
A incorporação da agricultura moderna não seria uma simples adesão como a realizada
em relação aos cavalos ou à introdução do uso de ferro pelos índios. Estas não implicaram em
uma reestruturação da lógica relacional indígena; pelo contrário, potencializaram as
tradicionais práticas da sociabilidade, tais como a guerra e a reciprocidade. Já a domesticação
de plantas, visando à formação de excedente produtivo, implicava numa “revolução mental
tanto na apreensão, como no tratamento de fronteiras de si e do outro” (id. ibid.: 99), a que os
chaquenhos, pelo que pude constatar na documentação analisada, não estavam dispostos a
encarar – ocorrendo a mesma rejeição também em relação à implantação de cativeiros de
animais.

4.3 Sobre a domesticação: a liberdade de ação do outro


Como analisado anteriormente, a produção de alimento acabava sendo uma prática que
despendia esforços dedicados ao estabelecimento de uma relação com o ambiente que, não
necessariamente, providenciaria o sustento necessário. Os índios sabiam que poderiam não ser
bem sucedidos em um dia de caça, porém também sabiam que haveria comida no futuro: era
tudo uma questão de manter uma relação de comprometimento e respeito com os seres que
habitavam os espaços da produção alimentar indígena. Porém, para a lógica moderna, estes
esforços poderiam ser minimizados, a médio e longo prazo, caso os indígenas aderissem não
apenas à prática de domesticação de plantas, como também à domesticação de animais. Ao
manterem um espaço restrito e controlado, de modo a buscarem a reprodução em cativeiro de
uma espécie, os nativos conseguiriam libertar-se, segundo o entendimento econômico dos
espanhóis, do perigoso e nem sempre produtivo ato de predação.
Para tanto, os missionários procuraram ensinar a prática da domesticação aos
chaquenhos, instruindo-os no cuidado e na reprodução de animais em cativeiro nas reduções.

148
Além disso, como já pontuado em outro momento da Tese, a substituição de um modo de produção por outro,
antes de qualquer discussão que se verticalize para uma análise cosmológica, bate de frente com a necessidade
que um grupo humano tem de atualizar um método já estabelecido pela incerteza de um novo expediente: “é
virtualmente impossível compreender por que os membros de uma cultura sofisticada, ‘bem adaptada’,
desejariam trocar seus costumes bem testados por alguma melhoria ‘prática’ cujos ‘benefícios’ contradigam seus
valores” (Wagner, 1975: 207). Sobre isso, Philippe Descola acrescenta: “A idéia de escolha não significa
portanto nada mais que a proposição quase tautológica, segundo a qual uma técnica emerge e é retida por ser
compatível com toda uma série de elementos no interior de uma totalidade considerada fechada por razões
puramente analíticas” (2002: 95)

229
Buscava-se, assim, diminuir a importância que a caça possuía no sistema econômico indígena.
Porém, como já apontado, mesmo os índios que optaram viver nos povoados missioneiros não
se dedicaram à domesticação dos animais, tampouco eram cuidadosos em relação à
manutenção do “stock de subsistencia” oferecido nas haciendas (Lucaioli e Nesis, 2007: 11,
grifo no original). Acusava-se os índios de “consumir con desorden el ganado destinado a su
manutención” (Fernández [08/06/1779]: fl. 2v-3), principalmente, porque pareciam nunca
estar satisfeitos com a quantidade de comida disponibilizada, querendo “todos los días una
carne recién carneada” (Paucke, 1767, t. 2: 20). Desta forma, não só o tipo de consumo que os
nativos mantinham, mas também a maneira como encaravam a produção eram incompatíveis
com o modelo econômico moderno, levando os espanhóis a crerem que a existência de
cativeiros sob supervisão indígena não era garantia de rendimento.
Com base nisto, procuro entender por que os chaquenhos, que não admitiram
incorporar os métodos modernos de produção na terra, também não passaram a domesticar
animais em cativeiro, mesmo após o contato com os espanhóis e seu rebanho nas reduções e
fazendas.149
A incorporação do sistema de produção agrícola moderno implicaria transformações
no modo de consumo alimentar indígena, e, por isso, traria menos benefícios à sociabilidade
do que os nativos estavam dispostos a aceitar. Além disso, esta mudança traria transformações
que se chocariam com toda uma visão cosmológica que os chaquenhos possuíam em relação
ao seu lugar e à sua participação no mundo. A instalação de uma economia moderna atingiria

149
Faz-se necessário alertar para a diferença entre a domesticação enquanto modo de produção alimentar por
meio da reprodução em cativeiro, proposta para análise neste tópico do último capítulo, e a prática de adoção de
animais em ambiente doméstico. Minha proposta é mostrar que, mesmo que os chaquenhos não tenham
praticado a domesticação em confinamento, a adoção de filhotes no seio familiar do grupo não se tornava um
impedimento aos índios, que mantinham alguns animais em regime de filiação, sem pretensões de abatê-los:
“enfatiza[-se] bem, ademais, a diferença de atitude dos ameríndios com relação aos animais capturados para ser
consumidos, mas mantidos coletivamente, separados da aldeia, e os indivíduos de mesma espécie que não são
comidos, pois eles foram tratados de maneira maternal e socializados nos lugares habitados” (Descola, 2002:
103). Mais uma vez, a análise não deve partir do questionamento sobre a capacidade de os índios conseguirem
domesticar animais em cativeiro para o sustento econômico do grupo, mas sim, sobre o que vem bem antes e é
muito mais profundo do que as questões materiais para se realizar tal prática: a relação de equidade que os
indígenas mantinham com os animais ao não os colocar em um patamar ontológico inferior ou superior de uma
possível escala anímica. Alguns relatos setecentistas enfatizaram a dedicação prestada pelos indígenas aos
animais adotados, que eram incorporados ao grupo como membros familiares com privilégios que causavam
estranhamento nos observadores. Florián Paucke, por exemplo, descreve, admirado, uma índia amamentando a
um filhote: “Yo he visto a una india salvaje en el camino, que viajaba desde la tierra silvestre a nuestra aldea, la
cual amamantaba en el pecho de un lado a un niño y del otro a un perrito chico” (1767, t. 2: 233, grifo no
original). Já Cosme Bueno, em tom crítico, observa a mesma cena: “Son amantísimos de perros. Las mujeres
que pasan de un paraje a otro, más bien llevan en brazos a estos animales que a sus hijos, y, a veces, dejan de dar
de mamar a estos para dar de mamar a los perros” ([1775]: fl. 4; cf. Também Anônimo [1758]: fl. 21v-22).
Ocorria, também, de os índios solicitarem o batismo de seus animais aos padres: “No negaban sus hijos para lo
bautismo, pero pedían el mismo para sus cabritos, dando a entender que creían y estimaban igual el efecto para
unos que para otros” (Andreu [22/11/1757]: fl. 25).

230
seriamente não apenas o entendimento do que era e o que compunha o ambiente em que
estavam inseridos, mas também a relação que mantinham com ele e os demais seres. Ao
contrário da cosmologia ocidental, em que o entendimento humano partia da divisão
ontológica entre natureza e cultura, sendo o homem uma parte dissociada da natureza e, ao
mesmo tempo, seu único espectador, a cosmologia ameríndia tinha como protagonista não o
homem ou alguma entidade, mas sim as relações que todos os seres estabelecem entre si. O
que possibilitava o funcionamento da dinâmica existencial eram as interações entre as partes
envolvidas, e os índios sabiam que eram peças integrantes deste esquema.
Branislava Susnik, ao tratar dos eventos cataclísmicos responsáveis pela separação
mitológica do céu e da terra, afirmou que ao “terminar el mundo de ‘la caza en el estrato
celestial’, los hombres tenían que ‘ubicarse’ en la tierra, interpretando también este ‘mundo
mudable’” (1985: 14). Situar-se, neste contexto, significava que os índios deveriam construir
sua posição relacional no mundo frente às demais perspectivas existentes. Os nativos não
possuíam o ponto de vista privilegiado nestas relações, tampouco suas escolhas e ações
determinavam a vida dos demais seres que compunham a sua realidade: o índio “no se siente
‘dueño’, dominador de la naturaleza o del mundo circundante; se siente parte del mismo,
buscando una buena relación con lo existente, la que la permita ‘disfrutarlo’, conviviendo,
coparticipando, compitiendo o recelando” (id. ibid.: 7). Os índios entendiam-se como parte de
um mundo no qual não controlavam as ações dos demais seres, não só porque estes possuíam
pontos de vista, mas justamente porque todos compartilhavam da mesma essência humana e,
por isso, eram detentores de livre-arbítrio. E, ainda que se assemelhassem neste sentido,
diferenciavam-se ao ocuparem naturezas distintas; cada espécie vendo um mundo diferente de
acordo com a sua perspectiva e, com isso, restringindo o poder de ação sob o seu domínio:
O mundo pós-mítico que surge dessa dinâmica inicial é um mundo de múltiplos
domínios. Esses domínios são constitutivos da estrutura do cosmos, de tal modo
que um dos pressupostos a reger a ação humana sobre o que chamaríamos de
mundo natural é o de que tudo tem ou pode ter um dono. [...] O mundo não-
humano nem é de todos, nem tampouco é terra de ninguém (Fausto, 2008: 339,
grifo no original).

Se a realidade para a qual os índios projetam o seu ponto de vista era um composto de
fronteiras separando domínios que, mesmo sendo autônomos, compunham setores
interligados pelas relações estabelecidas entre si, então toda ação que envolvia a produção
econômica gerava uma intervenção do homem em um espaço que não lhe pertencia: “para
plantar, caçar, pescar é preciso adentrar nos espaços alheios, quase sempre com intenções
predatórias” (id. ibid.: 340). Em outras palavras, a mata, os rios e lagoas, as montanhas, e
também as colmeias, a germinação das sementes, a ação do fogo nos alimentos, as onças, as

231
capivaras, os peixes, enfim, uma série de domínios controlados por Donos ou Mestres que
impunham suas regras de controle, tais como “normas de pesca, de extracción melífera y
explotación maderera” (López, 1998: 56).
Assim, qualquer intervenção no ambiente colocava os índios em choque com seres e
entidades aos quais se devia todo o respeito por aquilo que significavam para a construção
daquela realidade: “a floresta e os campos de cultivo são teatros de uma sociabilidade em que,
dia após dia, os índios vêm agradar seres que somente a diversidade da aparência da
linguagem distingue na verdade dos humanos” (Descola, 1999: 118). Cabia aos indígenas
saber interagir com os outros seres e entidades, com os quais era fundamental manter uma
relação estável e amigável e que não deturpasse a ordem estabelecida de um mundo que
estaria configurado em “diferentes espaços de domesticidade pertencentes a humanos e a não-
humanos, cada qual com os seus donos-mestres” (Fausto, 2008: 339).150
Ainda que o conceito de domínio faça referência a uma ampla variedade não só de
seres vivos (animais e vegetais), como também de espaços (floresta, campo), a análise será
focada nos chamados Donos dos Animais, que compunham entidades representantes de
indivíduos de uma mesma espécie, regulando a prática da caça sobre eles. O animal de caça,
portanto, é um ser “con voluntad e intención, que está organizado socialmente y que se halla
bajo la dependencia de un Dueño”, fazendo com que o ato de caçar seguisse uma série de
“relaciones entre el cazador, el animal y su Dueño” (Mashnshnek, 1975: 8). Sendo assim, o
aprisionamento de animais em cativeiro não era uma prática que os índios pudessem realizar
sem antes chocarem-se com preceitos cosmológicos e sociojurídicos, tendo em vista a posição
que os demais seres ocupavam no mundo: além de retirarem os animais de seu ambiente e de
seu grupo, estariam dotando-se de um senso de propriedade sobre seres tão livres e
capacitados de vontade e escolha quanto eles. Ao sustentarem a explicação cosmológica de
que tanto as pessoas quanto os animais eram equivalentes em sua essência sociocultural, os
índios procuravam manter as relações com os Donos da maneira mais honesta possível, já que
dependiam deles para o seu sustento alimentar:

150
Lévi-Strauss reproduz uma interessante analogia que procura retratar a relação entre a substancialidade e a
função que o conceito de Dono implicava para os grupos ameríndios: “Entre os humanos, não há um chefe único
que comande toda uma tribo mas tantos chefes quantos são os bandos; da mesma forma, as espécies animais e
vegetais não têm um patrono único: existem patronos diferentes para cada localidade. Os patronos são sempre
maiores que os outros animais ou plantas da mesma espécie, e, no caso das aves, dos peixes e dos quadrúpedes,
são sempre de cor branca. Acontece, de tempos em tempos, que os índios os avistem e os matem, mas no mais
das vezes, eles se mantêm fora das vistas dos humanos. Como o fazia observar um velho índio, eles se
assemelham ao governo, em Otawa. Nunca um índio comum pôde ver ‘o governo’. Enviam-no de uma
repartição a outra, de funcionário a funcionário, e cada um desses pretende, muitas vezes, ser ‘o patrão’; mas o
verdadeiro governo nunca é visto, pois tem o cuidado de se manter oculto” (Diamond Jenness in Lévi-Strauss,
1962: 279, nota 78).

232
Esta equiparação exprime-se principalmente na prática muito comum de
negociar com um espírito, o Senhor dos Animais, ou com um ser representando a
figura prototípica da espécie, a autorização de empreender uma caçada em
contrapartida de almas humanas, de tabaco, ou mais simplesmente, às vezes, da
perpetuação de uma afinidade ideal [...]. Quando o contrato não é respeitado, ou
quando intervém uma grave falta de ética da caçada, o Senhor dos Animais
vinga-se nos humanos, enviando doenças, espíritos canibais ou serpentes
venenosas, violando as mulheres ou delas retirando os filhos. Em outras
palavras, a relação dos animais com seu senhor é, ela mesma, concebida à
maneira de uma domesticação: ele os conserva na sua casa ou num cercado, os
protege de predadores humanos, e deles se alimenta quando necessário (Descola,
2002: 106; sobre esta última sentença, cf. também Fausto, 2008: 334).

Este sistema cosmológico impedia os índios de aprisionar os animais com a finalidade


de reproduzi-los em cativeiro, sob o risco de ocasionarem uma subversão da ordem relacional
entre o homem e o ambiente. Porém, não lhes era proibida a caça, contanto que ela fosse
realizada sob algumas condições estabelecidas para que não ocorressem exageros e
desrespeitos que provocassem a ira dos Donos. Isto obrigava o caçador a obedecer a
determinadas regras, além de fazer valer a disponibilidade dos animais para caça:151 “su
impunidad de cazar-matar a estos animales depende de una tácita regla de ‘equilibrio’ y
también de la ‘comunicación’ de los shamanes con los mismos ‘guardianes’” (Susnik, 1985:
35). As penalidades para quem descumprisse as regras poderiam ser o impedimento da
atividade produtiva, em decorrência de uma doença, ou, até mesmo, a morte do infrator
(López, 1998: 56). Segundo a mitologia mataco, o Dono das onças, cujo nome é Ohkán,
percebeu que os índios matavam muitos dos seus animais porque usavam cachorros para
caçá-los. Assim, Ohkán ordenou que os cães não fossem mais levados nas caçadas, porque “si
el hombre no cumple y lleva el perro, cuando el hombre mataba tigres, el hombre era muerto
por el tigre” (Mashnshnek, 1975: 12). Já entre os Toba contemporâneos, conta-se que Dapik
Lta, “el dueño de la miel”, certa vez, dirigiu-se a um homem, que praticava a coleta em seu
território, dizendo-lhe: “Si no te vas de aquí, la pasarás muy mal” (Medrano e Rosso, 2010:
162, nota 12). Se na atualidade os índios encontram-se impedidos de domesticar as abelhas,
também o estavam no século 18, como nos mostra o padre José Jolís. Ao destacar a
abundância de mel e de cera existente no Chaco, Jolís registra a sua surpresa ao constatar que
não existiam colmeias em cativeiro, sugerindo que “sería necesario acercar estas especies a
los lugares poblados y propicios, poniéndolas en colmenas preparadas a este fin, en lugares
adaptados a ellas, llenos de flores y de plantas, para domesticarlas” (1789: 230).

151
Isto não significa que uma onça, por exemplo, estivesse disponível enquanto presa: o conflito entre o índio e o
animal permanecia sendo a mesma incógnita predatória já discutida anteriormente, em que tanto um quanto o
outro poderiam assumir a posição de caçador ou de presa, dependendo de qual perspectiva saísse vitoriosa no
confronto. E mesmo se tratando de animais pequenos, como o porco do mato, o sucesso do caçador ainda
dependia da sua eficiência em emboscar e abater o animal.

233
A leitura dos relatos setecentistas evidencia a ausência da prática de domesticação de
animais por parte dos chaquenhos, que, além de não internalizarem a técnica da reprodução
em cativeiro, continuavam a caçar e abater os animais disponíveis na natureza ou nas
reduções e fazendas espanholas. Os relatos, principalmente os escritos por missionários,
geralmente descrevem, em tom de denúncia, o grande consumo de carne por parte dos índios,
que, sem se preocupar com a quantidade de cabeças de gado disponíveis no curral, matavam
quantos animais queriam para sua alimentação. As autoridades convenciam-se de que era
necessário manter peões nas fazendas dos povoados, que pudessem organizar o abate dos
animais e manter o estoque sempre cheio, “a fin de que los indios no destruyesen el ganado y
con esta reserva tenga la subsistencia que no tendría si estuviera en el todo a cargo de los
mismos indios” (Lassaga [06/10/1785]: fl. 3v-4).
Ainda que a glutonice indígena possa parecer contraditória, já que os nativos sabiam
que os abusos na caça ou matança de animais resultariam em penalidades infligidas pelos
Mestres, os relatos descritos pelos observadores hispanófonos apresentam situações que não
implicavam na relação de domínio: assim como os índios, os espanhóis não poderiam ser os
Donos dos animais, não cabendo a eles as funções devidas. A confiança demonstrada pelo
homem branco, que afirmava ser proprietário da terra em que erguia sua casa, os fazia
acreditar que eram também proprietários dos animais e que deveriam, por direito, tutelá-los.
Só haveria contradição, portanto, se os índios aderissem ao sistema econômico moderno e
concordassem com a domesticação em cativeiro.
Ao desrespeitar as normas de consumo impostas pelos espanhóis, os chaquenhos não
estavam infringindo o seu sistema cosmológico; pelo contrário, aproveitavam-se da afluência
dos recursos disponíveis para pôr em prática sua prodigalidade. E mesmo que os índios
furtassem uma grande quantidade de vacas que estavam soltas pelos campos e pastos, todos
os animais ou eram trocados ou vendidos, ou serviam como alimento para o grupo, já que,
como constatou o padre Alonso Sánchez, “no hay en todo el Chaco un infiel que tenga una
sola vaca” – concluindo que um “sin número que ha caído en manos de los indios ha
desaparecido en un instante, como si hubiera caído en una sima profundísima o se las hubiera
tragado la tierra” (in Furlong, 1939: 59). Como era de se esperar, as explicações para a
ausência da prática de domesticação entre os chaquenhos girava em torno da incapacidade
indígena de administrar uma economia mais complexa:
Lo que hay de seguro es que prefieren hoy la caza a la vida pastoril y a la
agricultura. Aunque les fue fácil a todos procurarse nuestros animales
domésticos, los que los han adquirido no tienen más que poco o ningún cuidado
con ellos, a excepción del caballo, que les es necesario. Parece, pues, que la
primera ocupación del hombre libre fue la caza; la de la pesca depende menos de

234
la elección que del azar, que motiva el estar colocado al borde del agua. [...] En
el país había muchas naciones agrícolas, pero ninguna llevaba la vida pastoril: lo
que prueba que esta vida es bastante posterior a la del hombre salvaje y que éste
es el último de los medios de subsistir que adopta (Azara, 1809: 91-92).

Se fosse, realmente, uma questão de evolução técnica, em que um grupo humano,


partindo de um estágio primitivo de subsistência, fosse alcançando – por impulsos comteanos
– patamares mais elevados de uma escala de complexidade técnico-instrumental até atingir
um pleno desenvolvimento de suas faculdades laborais, então os espanhóis do século 18 eram
péssimos instrutores. Definitivamente, não foram poupadas tentativas, por parte dos
missionários e das autoridades coloniais, no sentido de ensinar e implantar o modelo de
produção e consumo da economia moderna entre os índios. Mas esta não era uma questão de
caráter evolucionista, tampouco poderia ser resolvida através do empenho didático. Como
bem colocou Pierre Clastres, não existe uma “hierarquia no campo da técnica, nem tecnologia
superior ou inferior; só se pode medir um equipamento tecnológico pela sua capacidade de
satisfazer, num determinado meio, as necessidades da sociedade” (1974: 209). O que estava
em jogo, efetivamente, eram disparidades cosmológicas: se para os modernos – que
entendiam a natureza como um espaço ontologicamente distinto da cultura –, o mundo era um
lugar repleto de coisas a serem objetificadas, para os nativos, a relação estabelecia-se de
dentro, na medida em que qualquer grau de contato realizava-se sempre subjetivamente,
nunca separando as ações do outro das suas próprias. O ato de tutelar a outro ser é uma
abordagem que, necessariamente, parte de mentes que seccionam a natureza em coisas
objetivantes, passíveis de serem analisadas de fora:
Para que haja “coisa”, com efeito, é preciso que tenha havido objetivação de uma
relação particular, que se pode provisoriamente qualificar de separação
ontológica. Que ela seja um elemento do ambiente natural ou um artefato, a coisa
acontece somente como uma existência autônoma quando sua essência –
diferentemente de seu modo de produção – é concebida como inteiramente
independente, ou de uma natureza totalmente distinta daquela dos homens
(Descola, 2002: 98).

Os animais, para os modernos, são seres domesticáveis, justamente porque sua


constituição espiritual e sua capacidade mental diferem das do homem, que possui as
condições culturais e racionais para protegê-los, alimentá-los, reproduzi-los e controlá-los. Os
chaquenhos negavam-se a dar este passo ontológico em direção à objetificação dos animais,
porque o caminho cosmológico não lhes permitia:
A recusa da técnica de domesticação na América do Sul não-andina é pois menos
o produto de uma escolha consciente que teria sido independentemente efetuada
por milhares de culturas do que o efeito de uma impossibilidade –
necessariamente conjuntural, mas de muito longa duração – de transformar
profundamente seu modelo de relação com o animal selvagem e, mais
geralmente, com a natureza (Descola, 2002: 107).

235
Com base na mesma lógica, os grupos chaquenhos não empregavam a escravização
como relação possível de ser estabelecida com os cativos aprisionados em guerra. Mesmo que
o apresamento de cativos de guerra fosse uma prática frequente e difundida entre os índios do
Chaco, como já analisado em outro capítulo, o destino daqueles inimigos que não eram
mortos em rituais antropofágicos, nem vendidos ou trocados no comércio ilegal da região, era
a internalização no grupo como membros cognáticos, e não como escravos. A relação de
escravidão não só era ausente entre os grupos chaquenhos, como o trato que os índios
dispensavam aos cativos era digno de constrangidos elogios por parte dos espanhóis: “Nunca
consideraron a los prisioneros de guerra, ya sean españoles, indios o negros, como siervos o
esclavos; casi diría que los atendían con cierta indulgencia y afabilidad” (Dobrizhoffer, 1784,
t. 2: 139). O padre Sánchez Labrador, procurando descrever as funções que os cativos
exerciam no grupo que o apresou, descreve que estes “esclavos lo son en todo: a su cuenta
corre abastecer el toldo de sus señores de agua, leña y cosas semejantes. Componen y guisan
sus tales cuales manjares. Mientras sus amos duermen, se embriagan o hacen otras cosas”
(1770, t. 1: 251). Mesmo que sua posição não se configurasse, de fato, em serventia forçada e
ausência de liberdade e implicasse na realização de trabalhos excessivos, o termo escravo era
usado como se fosse o único referencial possível em uma relação estabelecida a partir da
convivência entre um cativo de guerra e o grupo que o apresou. Vale lembrar que esta relação
não se baseava na imposição de sua permanência, pois, ainda que tenham diariamente
“oportunidad de huir nunca lo hacen ya que están contentos con su suerte” (Dobrizhoffer,
1784, t. 2: 140).
Em um suposto diálogo entre o cacique mocovi Ariacaiquin e os jesuítas da redução
de San Javier, o líder indígena denuncia o tratamento violento a que os índios eram
submetidos quando eram presos pelos espanhóis, afirmando que o mesmo não ocorria com os
seus cativos:
Ellos son hombres atrevidos y cuando cautivan alguno de los míos, lo tratan peor
que nosotros a ellos. Preguntad a sus hijos que llevamos cautivos con nosotros
[y] los que tenemos aún aquí con nosotros si carecen de algo y si no están
contentos a nuestro lado. Los queremos y los tratamos como a nuestros propios
hijos; no los cargamos con otros trabajos fuera de que de cuando en cuando
miren en el campo por nuestros caballos. Pero los Españoles tratan a nuestros
hijos como si fueren perros (Paucke, 1767, t. 2: 10, alteração no original).

O próprio Félix de Azara, leal funcionário da Coroa espanhol, admitiu que o


tratamento dispensado pelos índios aos cativos era diferenciado, porque “jamás les mandan de
un modo imperioso, nunca les riñen, ni los castigan”, de maneira que “ningún prisionero de

236
guerra, aunque esclavo, quiere dejarlos”, exclamando de forma taxativa: “¡Qué contraste con
el trato que los europeos dan a los africanos!” (1809: 59-60). Se os espanhóis conseguiam
dizer-se proprietários dos negros africanos que compravam nos mercados de escravos, não é
porque – e hoje pode-se dizer com tranquilidade – almejassem uma posição de destaque na
escala da evolução civilizatória.
Quando os grupos indígenas do Chaco recusaram a internalização dos métodos
produtivos e do regime de consumo do sistema econômico moderno, não estavam, de forma
alguma, criando mecanismos de refração generalizada à penetração de conhecimentos
exógenos, como se fossem os bastiões de uma cultura tradicional – e ainda imaculada – que,
com resistência heróica, procuravam defender da extinção. Era, justamente, para não
deixarem de estar abertos à incorporação de elementos de fora que os chaquenhos rechaçaram
a agricultura moderna e a sua forma de administrar os bens, evitando, assim, a proliferação de
práticas individualistas focadas no enriquecimento privado. Por isso, quando os índios
utilizaram o comércio colonial como uma alternativa às trocas tradicionais, aproveitando-se
das rotas mercantis para fazer circular os bens, não substituíram o valor simbólico da troca
pelo valor financeiro dos produtos. Assim, a reciprocidade, enquanto mobilizadora social, não
perdeu sua função para o individualismo monetário das relações mercantis. Da mesma forma,
o modo de produção alimentar moderno implicava na reestruturação de elementos
cosmológicos ligados à compreensão que os índios possuíam da realidade que os cercava,
enfraquecendo, por consequência, a influência da sociabilidade tradicional. Talvez a
economia moderna até pudesse proporcionar aos índios uma maior quantidade de alimentos e
menos incertezas sobre o abastecimento futuro, porém, com certeza, reduziria sua razão social
ao individualismo de uma vida de servidão ao trabalho e à insatisfação crônica.

237
Conclusão

Mas homem nenhum pode pôr o mundo todo em


um livro. Do mesmo jeito que um livro com o
mundo todo desenhado não é ele.
(Cormac McCarthy, “Meridiano de Sangue”)

A própria escrita já constitui uma rejeição, outro


“personagem” acrescido ao passado.
(Thomas Pynchon, “V.”)

As ideias que motivaram a realização desta pesquisa tiveram origem durante o período
em que realizei o meu Mestrado, entre 2006 e 2007. Apesar de o tema e os contextos –
espacial e temporal – daquela investigação serem distintos dos aqui analisados, as perguntas
que foram surgindo – e, naquele momento, careceram de respostas mais consistentes –
perduraram, porque iam além das dúvidas pontuais que cercam um objeto de pesquisa,
tratando-se de questionamentos a respeito de como os índios pensavam e não sobre o que
pensavam.
Assim, o projeto da Tese foi elaborado em torno da questão de por que os índios não
só foram permissivos em relação ao contato com os brancos, como optaram pela sua
intensificação através da construção de alianças, de trocas culturais e do convívio nas
reduções. Partiu, também, da premissa de que qualquer análise que não se baseasse em
discussões acerca de uma filosofia indígena, ou seja, do modo particular do pensamento
nativo, falharia em alcançar os objetivos pretendidos.
Percebendo que eu necessitava de um aporte teórico que permitisse uma análise que
fosse além das descrições materiais ou que não se limitasse apenas a uma verificação do
comportamento que os nativos mantiveram frente ao avanço colonial, decidi partir de
questões que a antropologia já há muito tempo tem como foco de análise e sobre as quais a
historiografia que trata dos povos indígenas há algumas décadas se debruça. São questões que
se focam em comportamentos e práticas indígenas que independiam da relação com o mundo
colonial: aspectos da vida socioeconômica, cultural e simbólica dos índios que, antes do
contato, já compunham a socialidade dos grupos indígenas. Desta forma, o objeto de análise
passaria a ser a compreensão que os índios tinham do contexto em que estavam inseridos e no
qual eram uma das partes responsáveis pela relação que havia se estabelecido. E o discurso
ocidental não seria a única fonte de conhecimento para se entender como foi construída e se
manteve a relação entre os espanhóis e os índios.

238
As ações, reações, escolhas e condutas que os nativos tiveram – se entendidas como
sendo fruto de sua própria disposição – demonstram que o contato, acima de tudo, foi uma
relação baseada em concessões de ambas as partes e que analisar apenas a visão ocidental
seria ignorar metade desta história. Daí a necessidade de ampliar horizontalmente a pesquisa
nas fontes documentais, sem limitá-la a apenas um tipo de registro histórico. Optei, então, por
buscar o maior número possível de pontos de vista e coletar documentos que contemplavam
desde o testemunho de colonos a respeito de assaltos indígenas até as cédulas reais emitidas
pela Coroa espanhola a fim de sancionar leis em relação ao trato com os índios. Em relação a
estes relatos, pude identificar dois tipos: os que trazem descrições, muitas vezes minuciosas,
elaboradas a fim de reunir informações sobre as práticas, os costumes e o comportamento dos
índios, garantindo registros quase etnográficos sobre os diversos grupos nativos; e os que
foram produzidos enquanto narrativas do cotidiano colonial, cujo objetivo era noticiar os
sucessos ou infortúnios decorrentes do convívio com os índios.
O primeiro tipo de relato geralmente é encontrado nas obras escritas por missionários
jesuítas que, inseridos no contexto posterior à expulsão da Companhia de Jesus,
sistematizavam através delas as experiências e os conhecimentos adquiridos ao longo de anos
de convívio com os índios. Estes livros possuem uma estrutura que os aproxima das
enciclopédias temáticas, descrevendo, capítulo a capítulo, dados referentes à botânica, à
fauna, à geografia e ao clima da região do Chaco, reservando também um importante espaço
para a descrição dos grupos indígenas que ali habitavam, pontuando suas características
físicas e seus costumes de uma maneira quase didática, a fim de compilar informações
minuciosas que pudessem auxiliar no contato com os nativos ou mesmo servindo de base para
estudos e análises de outros missionários ou autoridades civis. Já o segundo tipo de relato é o
que se pode classificar como cotidiano ou casual, em que as informações são provenientes da
correspondência, dos diários de campo dos expedicionários, dos relatórios oficiais e
burocráticos, dos atos legais emitidos por autoridades coloniais e demais registros que tinham
como objetivo relatar situações pontuais a respeito do dia-a-dia na colônia. Denúncias,
reclamações, pedidos, declarações ou a simples narração de eventos ocorridos em uma
determinada ocasião cumpriam a função de manter a comunicação entre os diversos níveis de
autoridades da colônia e da metrópole. Inevitavelmente, uma série de informações sobre os
índios acabavam fazendo parte destes registros – porém, não necessariamente com a intenção
de descrever etnicamente os grupos.
O primeiro resultado da pesquisa que realizei para a Tese veio justamente do
confronto entre estes dois tipos de relatos. Pude comprovar, ao cruzar as informações que

239
traziam, que muitas descrições sobre o comportamento cultural dos nativos podiam ser
presenciadas em prática no cotidiano, ou seja, os relatos que se preocupavam em narrar os
acontecimentos diários corroboravam as descrições sobre as armas utilizadas nas guerras,
sobre as vestimentas, o regime alimentar e o comportamento social e ritualístico dos grupos
nativos contatados. Muitas das características elencadas e descritas pelos missionários, que
conviveram diariamente, por meses e anos, com os índios, apareciam discretamente nas
correspondências, cujo objetivo não era propriamente fazer descrições, mas sim noticiar casos
do dia-a-dia que fossem relevantes. Assim, por exemplo, o uso de adornos e pintura corporal
eram tópicos quase sempre presentes nas descrições que buscavam caracterizar os nativos –
chegando, inclusive, a ter um caráter etnográfico quando os autores esclareciam as diferenças
existentes entre, digamos, os ornamentos usados por dois grupos diferentes. Nas
correspondências, estas informações acabam revelando-se – e confirmando as descrições –
quando, por exemplo, um expedicionário, em seu diário de campo, registrava o contato com
algum grupo no interior do Chaco e comentava o adorno labial ou o tipo de corte de cabelo
que usavam. Ou, então, em relação às festas de bebedeiras, apontadas nas descrições como
práticas frequentes entre os índios, constadas não apenas no cotidiano das reduções, mas
também nas denúncias emitidas sobre a venda irregular de bebida alcoólica aos nativos ou nos
bandos de proibição deste comércio.
A análise e o cotejo desses relatos permitiram-me constatar que os índios foram
agentes ativos no contexto colonial, na medida em que não se limitaram apenas a fazer
adaptações de elementos de sua vida cultural para adequar-se à situação posta, mas
engendraram as relações com os agentes coloniais, civis ou religiosos de tal forma que estes
tiveram de fazer uma série de concessões às práticas e costumes indígenas. Assim ocorreu,
por exemplo, em relação ao regime de trabalho indígena: por mais que os missionários ou os
administradores coloniais reclamassem da imprevidência e da pouca colaboração dos índios
na produção agrícola nas reduções, a Coroa e os altos funcionários continuaram prestando
todos os esforços possíveis para abastecer os povoados com alimentos e recursos necessários
para o seu sustento.
Partindo destas premissas – uma análise focada nas características identitárias dos
índios (e não nas relações que se estabeleceram por causa do contato com os espanhóis) e no
cruzamento das informações contidas na documentação consultada –, defini a estrutura da
Tese, considerando o objetivo geral e os específicos que viriam a ser discutidos em cada
capítulo. A opção pelo aprofundamento dos temas da guerra, da reciprocidade e do regime de
produção e consumo alimentar entre os chaquenhos decorreu da leitura e da análise

240
documental, na medida em que os percebi como fios condutores para o atendimento dos
objetivos propostos.
Porém, ainda era necessário basear estes subtemas em um aporte teórico que pudesse
guiá-los e impedir a dispersão da análise. Constatei, balizado pela bibliografia e por estudos
realizados sobre os povos ameríndios, que o pensamento indígena estava diretamente
relacionado à mitologia, usada tanto como explicação da criação e destruição do mundo como
fonte de conhecimento. Os mitos, portanto, foram analisados como um referencial para os
demais subtemas, permitindo que estes fossem encadeados em torno do tema central: a
relação que os índios promoveram e construíram com o outro. Com isso, pude chegar à
primeira resposta em relação ao tema central da pesquisa, demonstrando, através dos registros
escritos durante o século 18 – e muitos deles comprovados pelos relatos coletados por
antropólogos atuantes no século 20 –, que o sistema mitológico dos grupos chaquenhos era
construído a partir de uma lógica centrípeta, em que os elementos externos tendiam a ser
absorvidos por um eixo – que, como tentei mostrar ao longo da tese, era a sociabilidade. Essa
prática de mobilização e atualização social alimentava-se dos objetos materiais ou
simbólicos originários no exterior do limite do grupo – limite demarcado, justamente, pela
prática da sociabilidade. Daí, por exemplo, a razão para que o inimigo fosse internalizado
quando em cativeiro: sua condição de não-aliado colocava-o como elemento exógeno ao
grupo que o capturou, possibilitando que, vivo ou morto, a sua pessoa ou as partes de seu
corpo fossem internalizadas enquanto combustível para a mobilização do meio social.
A mitologia indígena, ao contrário do que comumente se acredita, não era uma
narrativa fantástica que servia como uma reserva de explicações metafísicas para suprir
carências filosóficas de povos incapazes de descobrir o mundo por sua própria investigação.
Tanto as obras acadêmicas quanto a documentação setecentista mostram o contrário: os mitos
formavam um sistema de referência do conhecimento prático e conceitual que, além de prover
os índios de importantes saberes a respeito dos seres e do ambiente no qual estavam inseridos,
permitiam aos nativos um grau de interação com a realidade. Para a lógica ocidental, isso
soava mais como uma visão ingenuamente mágica em relação ao mundo, como se pôde
observar pelos relatos analisados no primeiro capítulo em que destaquei o comportamento dos
indígenas frente a fenômenos como os eclipses ou as tempestades – ou então era visto como
um engodo dos mais velhos para manipular os demais índios de uma aldeia, como no caso
que abriu a introdução, sobre o feiticeiro que ameaçou transformar-se em uma onça. O caso é
que se os mitos continham alegorias sobrenaturais e estavam baseados em narrativas
peculiares que, aos olhos ocidentais, soavam como contos místicos, fantasiosos e

241
inverossímeis, é justamente porque eram operados a partir de um pensamento cosmológico
próprio, que colocava humanos e não-humanos em uma mesma categoria de relação social.
Os chaquenhos partiam da ideia de que conviviam em uma relação ontologicamente
simétrica com os demais seres e com o ambiente em que estavam inseridos, o que fazia com
que estivessem associados ao mundo, e não, como no pensamento moderno, dissociados dele.
Os índios não estavam separados do mundo como se fossem seus observadores inertes ou
como se estivessem submetidos às casualidades de fenômenos incontroláveis. Era justamente
o contrário: a cosmologia dos grupos chaquenhos formava um sistema de pensamento que
entendia o mundo como um local de interação e troca, fazendo com que os índios tivessem
uma visão subjetiva da realidade que os cercava. A questão não é que os índios podiam mudar
a realidade ou transformá-la – a mitologia ensinava justamente que os seres, as entidades e os
fenômenos que compunham o mundo eram independentes e autônomos, não existindo a
possibilidade de os humanos transgredirem seu espaço. Porém, aos índios cabia administrar a
influência que estes indivíduos e elementos externos poderiam exercer nas suas práticas
cotidianas, fosse para auxiliar, fosse para que não interferissem no bom andamento da
sociabilidade do grupo.
O meio social indígena – ou seja, a posição, as funções e os cargos que as pessoas
ocupavam uma em relação à outra dentro de um grupo –, longe de ser estático e pré-
concebido, possuía um alto grau de mobilidade. As narrativas mitológicas sempre giravam em
torno da dinamicidade que o mundo e os seres possuíam. Os mitos de criação, por exemplo,
narram a origem dos animais como um processo resultante de uma grande transformação
cataclísmica envolvendo um dilúvio ou um incêndio. As mulheres, como também narram os
mitos, foram incorporadas ao grupo dos homens depois do rompimento da corda que ligava os
dois mundos: sua internalização provocou uma reacomodação das relações sociais
anteriormente estabelecidas. O mundo pós-mitológico não haveria de ser diferente: os
chaquenhos sabiam que as relações sociais e a própria constituição individual deveriam ser
constantemente construídas e reorganizadas. A atuação subjetiva no mundo e a internalização
de elementos exógenos eram expedientes possibilitadores desta dinamicidade social que
impedia a inércia do grupo e da pessoa.
Grande parte do esforço indígena, portanto, voltava-se para a manutenção do sistema
social em pleno funcionamento, através da dinâmica da circulação de bens e da internalização
de pessoas e objetos exógenos ao grupo. Nesta lógica, as práticas ritualísticas, ligadas à
construção da pessoa, funcionavam como catalisadores das relações sociais, sendo
responsáveis pela inserção e adaptação tanto dos elementos movimentados pela reciprocidade,

242
como dos trazidos de fora. Desta forma, rituais como as interdições ligadas à gestação e ao
pós-parto, as modificações corporais, as confraternizações pré-guerra e as práticas de luto e de
construção do morto estavam associados diretamente à formação da pessoa enquanto
indivíduo reconhecido pelos demais membros do grupo, formalizando a sua contraposição aos
não-membros. Em outras palavras, para o indígena não era suficiente estar presente na aldeia,
participando das trocas ou das festas; também era necessário integrar-se ao grupo através de
sua incorporação literal, ao passar por rituais que o identificassem como membro, e não como
outro. Tanto as crianças aprisionadas em guerras como as recém-nascidas deveriam passar por
esta subjetivação que as internalizariam no grupo. Da mesma forma, as festas de bebedeira ou
a reciprocidade formalizavam a condição de aliança entre os indivíduos participantes destas
atividades, definindo, assim, que os inimigos eram aqueles com quem não se confraterniza,
nem são realizadas trocas.
A integridade do grupo estava diretamente ligada à capacidade de os seus membros
interagirem socialmente entre si e também com indivíduos de outros grupos, aliados ou
inimigos. Como discutido no segundo capítulo, a sociabilidade assumia a forma de ações
cotidianas ligadas ao estabelecimento de vínculos de aliança fundamentais para a revitalização
das relações sociais do grupo e para o fortalecimento da sua unidade. Porém, ainda que estas
ações fossem exclusivamente praticadas pelos membros de um mesmo grupo, era
imprescindível a existência do outro, na figura do inimigo ou do estrangeiro potencialmente
aliado, como fornecedor de elementos para que o sistema social funcionasse. Assim, ainda
que houvesse um esforço centrípeto para manter os membros em torno do mesmo eixo – no
caso, o próprio grupo –, era necessário um deslocamento para fora, não só a partir da
internalização de pessoas e elementos exógenos, como também do estabelecimento de
relações intermitentes, que poderiam resultar do conflito bélico.
Daí a impressão dos espanhóis de que os índios eram inconstantes em suas atitudes,
alegando que os nativos não firmavam acordos permanentes, ora atacando grupos com os
quais mantinham uma relação neutra, ora estabelecendo aliança com grupos inimigos. Os
colonos logo perceberam que este desprendimento em relação à formalização de contratos e
parcerias não se restringia apenas às questões bélicas: os índios não obedeciam aos seus
caciques como líderes políticos e nem às ordens que os missionários davam a fim de
organizar as reduções e manter seus moradores vivendo de acordo com as regras
estabelecidas. Longe de ser a desobediência resultante da rebeldia de alguns grupos nativos,
este comportamento impedia que um indivíduo se colasse acima dos interesses do grupo. A
centralização política ou o estabelecimento de ordens hierárquicas de comando

243
enfraqueceriam o sistema de relações sociais entre os membros do grupo, já que delimitaria a
atuação dos indivíduos a normas preestabelecidas, além de se constituírem em fatores
promotores da desigualdade social e do enriquecimento de uma minoria.
Da mesma forma que os chaquenhos não possuíam uma centralização política em sua
estrutura social, a formação de alianças e inimizades ocorria por meio de relações voláteis e
não contratuais para que a sociabilidade pudesse se manter saudável e em funcionamento.
Quanto maior fosse a circulação de pessoas e objetos dentro de um grupo, maiores eram as
possibilidades de seus membros produzirem meios concretos ou simbólicos para a realização
de rituais que proporcionariam integração, união e atualização do grupo enquanto tal. Por
isso, como foi discutido no terceiro capítulo, o envolvimento que os chaquenhos tiveram em
relação ao mercado colonial não se baseava nas premissas da economia moderna de acúmulo
de bens e atribuição de valor monetário aos objetos. Os interesses dos índios e os dos colonos
eram divergentes justamente porque, para os primeiros, os atos eram mais importantes do que
os bens: diferente da lógica comercial europeia, em que as trocas visavam o acesso a valores
ou aos objetos em si, as trocas indígenas baseavam-se na circulação de bens entre o maior
número possível de indivíduos, a fim de criar laços de aliança ao invés de acordos mercantis.
Desta forma, a lógica que movia os índios era a da reciprocidade, segundo a qual quanto mais
pessoas compartilhassem os itens em circulação, dando, recebendo e retribuindo, mais
produtivo era aos envolvidos. Dito de outra forma, a centralização de bens em poder de uma
minoria não era boa nem para estes poucos índios que a compunham, nem para a
socioeconomia indígena – o que era o extremo oposto das premissas do comércio moderno,
que permitia e incentivava o acúmulo monetário.
Obviamente, nem todas as trocas promovidas pelos índios almejavam apenas a
circulação em si e a produção de bens simbólicos: alguns objetos tinham funções práticas que
já bastavam para justificar a sua troca entre os índios, como era o caso, por exemplo, das
bebidas alcoólicas produzidas pelos espanhóis. Assim, diferentemente das trocas que visavam
à formação de alianças por meio da reciprocidade, o comércio que envolvia o álcool
justificava-se pelo interesse no produto em si. Mesmo assim, o objetivo final acabava sendo a
realização de rituais – no caso, as bebedeiras – que catalisavam a sociabilidade do grupo. Em
suma, os produtos que os chaquenhos adquiriam por meio das trocas tradicionais ou do
comércio colonial não eram valiosos em si: eles somente passavam a ter utilidade quando
incluídos na lógica social, ou seja, quando serviam de combustível para as práticas rituais –
assim como os adornos corporais, que, para os nativos, cumpriam funções sociológicas que
iam muito além da questão estética ou monetária.

244
Da mesma forma que a guerra indígena não tinha como pretensão exterminar o
inimigo, mas sim manter com ele uma relação através da qual sempre pudesse ser reiniciado o
conflito, a fim de haver a captação dos espólios, o comércio que os índios realizavam afastava
qualquer possibilidade de inércia do sistema de trocas, permitindo que os indivíduos, parentes
ou aliados, se aproximassem por meio da relação que se formava. Assim, tanto na guerra
como na reciprocidade, o fundamental era a construção da pessoa e a sua integração ao grupo,
e não a eliminação de indivíduos ou seu isolamento social. O comércio realizado pelos índios,
consequentemente, não se guiava pelo valor de mercado dos produtos em circulação, mas sim
pela potencialidade que eles possuíam enquanto bens sociais. Isto explica por que os
chaquenhos, mesmo aderindo ao comércio colonial, não incorporaram a lógica monetária que
regia o mercado capitalista. Ao não atribuírem os valores de mercado aos produtos que
comercializavam, vendendo itens por preços abaixo do valor de compra, os chaquenhos eram
criticados pela sua falta de cobiça ou apontados como incapazes de autogerirem suas
economias. Por isso, as discussões entre os missionários e as autoridades coloniais giravam
em torno da forma como o Estado deveria tutelar os índios, permitindo ou não a sua
participação no comércio colonial.
Ao adotarem certos elementos do sistema comercial moderno e ignorarem outros, os
chaquenhos demonstraram que estavam dispostos a inserir-se no modelo colonial até o ponto
em que este interferisse na sua cosmologia. Os índios estavam abertos à incorporação de
práticas, técnicas e objetos exógenos – tomando sempre o cuidado, porém, de verificar se
destas internalizações poderiam resultar ganhos ou perdas à sua produção social. Por isso, a
incorporação ao cotidiano indígena de técnicas como a montaria e a tecelagem, ou de certos
objetos ou materiais, como o ferro, não representaram qualquer problema, já que, longe de
perturbarem a ordem social, produziam efeitos benéficos à sociabilidade nativa por
dinamizarem a produção sociológica. Diferentemente, qualquer internalização que pudesse
abalar a lógica das relações pressupostas pelos mitos, por exemplo, em relação à condição
social ocupada pelos demais seres, era interditada enquanto prática a ser incluída. Foi por
causa disso que os métodos de agricultura, pecuária e armazenamento de alimentos foram
rechaçados por aqueles grupos chaquenhos que mantinham, mesmo durante o contato, uma
economia de produção alimentar baseada na predação e no regime de prodigalidade. Os índios
administravam sua produção de alimentos por meio de uma relação subjetiva com o ambiente
em que estavam inseridos, obrigando-os a respeitar o ciclo de vida dos demais seres para,
assim, ter acesso aos recursos que lhes eram disponíveis. Adotar o modo de produção
alimentar moderno, que se baseava no método de controle dos recursos naturais, seria uma

245
contradição aos fundamentos da mitologia e uma incompatibilidade cosmológica que
subverteria as relações sociais do grupo. A domesticação de animais e plantas, bem como a
produção de excedente, faria dos índios agentes estranhos em seu próprio ambiente.
Os resultados da pesquisa apresentados acima decorrem de um aporte teórico-
metodológico específico, empregado em detrimento de tantos outros, e que orientou a leitura,
a análise e a crítica de um corpo documental que também sofreu uma seleção, já que outras
fontes poderiam ter sido utilizadas para a realização da Tese. Desta forma, qualquer conclusão
alcançada aqui é decorrente de uma série de procedimentos que funcionaram dentro destas
delimitações teóricas e práticas e que, de nenhuma forma, encerram ou esgotam os temas
pesquisados. Há, ainda, muito para ser analisado, por exemplo, sobre a mitologia dos grupos
indígenas do passado e sobre sua relação com os demais seres, entidades e fenômenos que
compunham a sua realidade. De igual modo, devem ser incentivados estudos sobre a
produção e o regime de consumo alimentar indígena que vão além de análises quantitativas,
descritivas ou materiais, fugindo das explicações funcionalistas.
Toda análise que se propõe a apurar o entendimento que os índios tiveram das relações
estabelecidas a partir do contato sofre com diversos complicadores que giram em torno,
principalmente, da interpretação das fontes coloniais. Considerando que a documentação a
que temos acesso é, em sua esmagadora maioria, composta de relatos produzidos por
europeus – e que até mesmo as cartas assinadas por índios eram, em grande parte,
supervisionadas ou traduzidas por espanhóis, o que acabava influenciando seu conteúdo –,
uma das maiores dificuldades na realização da investigação foi a de identificar, no discurso
ocidental, evidências que pudessem apontar para as atuações dos índios enquanto agentes
articuladores do contato e da convivência que se estabeleceu. Ainda assim, as informações
que delas podemos extrair, o cruzamento que podemos fazer entre os diferentes tipos de
relatos e o cotejo com a bibliografia permitem ao pesquisador ir muito além de simples
hipóteses acerca da maneira de agir dos nativos.
Neste sentido, analisar o pensamento de grupos humanos que possuem um sistema de
saberes e preceitos sobre a realidade distintos daqueles que vigoram entre os ocidentais torna-
se uma tarefa arriscada, na medida em que a minha maneira de ver o mundo e entender as
relações que o compõem está muito mais próxima do modo de pensar de um europeu do
século 18 que da de um mocovi da mesma época. Porém, ainda que uma análise desta
natureza tenha grandes chances de incorrer em conclusões distorcidas ou equivocadas, ignorar
a possibilidade de se fazer uma história do outro é, mais uma vez, calar a sua voz e, além
disso, perder uma importante oportunidade de aprender mais sobre a nossa própria cultura,

246
que, ao ser colocada em contraste com outra, deixa mais visíveis algumas características que,
usualmente, tratamos como naturais.
Assim como em qualquer pesquisa histórica, os agentes e suas ações analisadas nesta
Tese são provenientes de um tempo pretérito e a este pertencem. A análise realizada aqui
nunca pretendeu explicar as relações indígenas ou indigenistas do presente, ainda que
exemplos da situação contemporânea tenham sido evocados a fim de ilustrar certas
continuidades do pensamento ocidental ou ameríndio setecentistas. No presente, os espanhóis
e os chaquenhos, que lutaram, trocaram e comercializaram entre si, aprenderam novas
técnicas, novas línguas, novas formas de comunicação e aproveitaram o contato e as novas
experiências dele resultantes para refletir e questionar suas verdades, são apenas linhas
tracejadas em documentos agredidos pelo tempo – o mesmo tempo que permitiu que a ciência
e a tecnologia ocidental avançassem em uma progressão que suplantou até mesmo sistemas de
pensamento mais antigos e alóctones a eles. Porém, algo que aprendi ao longo da pesquisa e
da escrita desta Tese é que, por mais que o pensamento ocidental tenha se difundido e se
tornado dominante, nenhuma cosmologia, ainda que não dedicada ao investimento no
aprimoramento tecnológico de ferramentas ou bens materiais, e nenhum povo, por mais
brutalizado que possa ter sido, deve ser ignorado, menosprezado ou excluído da condição de
protagonista de uma análise que os contemple. Assim como a ciência tem a sua história,
parece bastante claro que o pensamento mitológico também tem o seu devir.

247
Eles partiram de vez. Fugidos, banidos pela morte ou
pelo exílio, esquecidos, destruídos. Sobre a terra, o sol e
o vento ainda se movem para queimar e vergar as
árvores, as ervas. Nenhum avatar, nenhum herdeiro,
nenhum vestígio resta dessa gente. Nos lábios da
estranha raça que agora habita aquelas paragens os seus
nomes são mitos, lendas, poeira.
(Cormac McCarthy, “O Guarda do Pomar”)

248
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1726. AGI, Charcas 159.
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comerciar a los pueblos de indios que llaman Chiquitos. Madri, 30 de outubro de
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