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CAPÍTULO 2

A DIMENSÃO SEMIÓTICA DO CÓDIGO BRAILLE


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2.1 Introdução

Você tem diante de si um texto Braille e deixa que sua mão aberta

passeie ao acaso pelo papel. Uma sensação de aspereza estimula sua pele e nada

mais. Aí você experimenta olhar para o texto e a princípio não vê senão um

emaranhado de pontos, que ora podem assemelhar-se a um labirinto, ora lembram

um bordado abstrato, ora uma pauta musical, ora parecem sugerir flores ou

pequenos peixes. Como num jogo de quebra-cabeça você pode se perguntar: Qual

é a senha ou a chave que me fará acessar a lógica desse jogo? Aqui a pergunta a

ser feita não é exatamente esta: aqui, importa-nos saber como é que o código Braille

fez sentido, convertendo-se num alfabeto? Importa-nos estabelecer, quais os

elementos básicos do sistema Braille, em que tipos de relações eles se combinam

a fim de que o código possa ser entendido como um sistema de informação-

comunicação, um sistema de tradução intersemiótica, integrando, assim, essa rede

de códigos de tradução que forma a cultura.

Ao longo do capítulo precedente, cuidamos de apresentar as condições

históricas e socioculturais de surgimento do código Braille, além de intentarmos

fundar um lugar para esse sistema alfabético dentro da história da escritura.


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Chegamos, àquele momento em que buscaremos demonstrar a qualidade semiótica

desse código em relevo, onde nos permitiremos avaliar de que modo o código Braille

se constitui como um objeto afeito aos estudos semióticos.

Sabemos da difícil missão que se nos impõe: compreender o Braille a

partir de tal viés implica aventurar-se por um caminho que, por sua característica

inaugural, estará aberto à críticas e reparos, susceptível a enganos que buscaremos

evitar. Nossa aventura é singular. Estamos em um terreno virgem, onde nada ainda

está plantado, propício, pois, a especulações e devaneios. Estes últimos precisam

ser recalcados, para que possamos elaborar um discurso viável a uma compreensão

da qualidade semiótica do nosso objeto. É assim que buscamos alguns pontos de

apoio que nos permitam aplicar alguns dos achados semióticos à escrita em relevo.

Esses pontos de apoio são alguns dos contributos da semiótica peirceana, assim

como da semiótica da cultura, aliados a algumas pistas suscitadas pela Lingüística e

pela Teoria da Informação.

Partimos para uma espécie de inventário, onde ao mesmo tempo que

situamos o lugar das análises do código Braille nos campos teóricos propostos,

aliando-o ao campo da escrita fonográfica, nos desviaremos para um ponto de

bifurcação. Parece-nos que, para melhor compreender a especificidade do alfabeto

Braille e para caracterizar a sua semiose genuína, não basta evidenciar as ligações

que esse alfabeto estabelece com a linguagem oral, por considerarmos que, em se

tratando de uma tradução em relevo do alfabeto greco-latino, carrega naturalmente,

de empréstimo desse código original, também a sua função eminentemente

fonográfica. Aqui se evidenciará, pois, sua qualidade de sistema de signos táteis,

correspondentes a um código tátil de comunicação.


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2.2 Um alerta necessário

Se a Filosofia clássica e a ciência de um modo geral discorreram sobre

escrita, tendencialmente reservando-lhe um lugar de mera tradução dos atos de fala,

há um profundo silêncio sobre o alfabeto Braille, que, conforme frisamos no capítulo

1, não tem sequer um lugar reservado na própria história da escritura. A

responsabilidade que nos cabe é, pois, imensa. É certo que muitos dos problemas

aqui suscitados não passarão de pistas para futuras investigações. Assim, um alerta

se nos afigura como necessário: os objetos semióticos são, em geral, também os

objetos da visualidade. Quando se aplica, por exemplo, a concepção de tradução

intersemiótica a um fenômeno concreto, na prática esse fenômeno advém das

produções artístico-estéticas dirigidas a uma cultura da visualidade. Do mesmo

modo, a idéia de corporificação de coisas em texto, no geral advém de aplicações da

análise semiótica a fenômenos de escrita eminentemente visuais. Fazemos tal alerta

porque o nosso trabalho transpõe frontalmente essa fronteira dos objetos visuais

para flagrar, na malha de uma compreensão semiótica, um objeto tátil com

movimentos e características muito próprias a essa especificidade.

Quando estivermos tratando dos processos de associação dos pontos

Braille para a composição das letras, palavras, do texto escrito, enfim, de todas as

outras linguagens que a pontografia traduz, o leitor poderá sentir alguma estranheza

ante a análise. Igualmente, quando estivermos tratando a célula Braille como um

ícone diagramático, nos seus processos de associação e combinação, nas suas leis

e regularidades, muitos poderão afirmar que tal abordagem está equivocada. Na


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verdade o equívoco reside unicamente no fato de se pensar uma matriz tátil por um

viés eminentemente visuocêntrico.

Para o leitor dessas páginas impõe-se, pois, também um exercício de

transposição do paradigma da aferição somente por via do olhar, para que se

estabeleça um diálogo convergente entre código da visualidade e código tátil. É

certo que falar de escrita em relevo é sair-se de um panorama em que o texto escrito

afeito ao olho se transmuda em texto escrito, em que mão e cérebro exercitam a

alternativa de tocar as palavras para a decodificação dos sinais da cultura.

Se essa matriz pontográfica desvia-se, fundamentalmente, de uma

matriz gráfica em sua forma de pontos, o faz para atender unicamente a uma

exigência do código tátil de percepção e para garantir, no âmago da sua comunidade

de pertença, na sua lógica de uso, o seu estatuto de escrita.

De fato, se as coletividades cegas reconhecem no Braille a sua escrita

primeira, no âmbito da cultura, da ciência, do movimento do conhecimento, esse

estatuto ainda precisa ser validado por uma teorização competente e por estratégias

que reforcem o reconhecimento das instituições sociais em relação a ele.

2.3 O código Braille como objeto semiótico: primeira aproximação

Estudiosos da comunicação tátil não têm ido muito longe na

abordagem do universo da percepção tátil, tampouco têm analisado o código Braille

como um capítulo novo e fundamental dentro das investigações de tal realidade.

Nöth esclarece:
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[...] Em analogia à cinésica e como uma extensão da prossêmica (ver V.7),


Kauffman (1971) propõe um programa de pesquisa em comunicação tátil
que ele chama tacésica. O termo deveria ser corrigido para tactésica [do
latim tactus 'tocar', não de tacere, 'ficar calado']. Outra designação para
este campo de pesquisa proposta por Wescott (1966), Key (1975) e Raffler-
Engel (1980: 3) é haptics. Kauffman (1971: 156) propõe aplicar uma
estrutura êmica para estudar o toque. Na sua opinião, um sistema de
comunicação tátil consiste de tactemas, tactemorfias, construções
tactemórficas e finalmente tacteventos. Porém, estas analogias ao modelo
estrutural da linguagem, códigos cinéticos e prossêmicos permaneceram
até agora programáticas. (In: Manual de Semiótica, no prelo)

Nöth chega a reconhecer: “[...] É duvidoso que as características

culturais do comportamento tátil possam ser de alguma forma sistematizadas, a fim

de que a aplicação dos princípios de estruturação da lingüística funcional possam

ser justificadamente aplicados ao comportamento tátil.” (Ibidem).

É tempo, pois, de inaugurarmos uma discussão do problema a partir de

algum lugar. Supomos mesmo que o lugar privilegiado para essa saída é o relevo, o

ponto Braille, que, na história do desenvolvimento de uma cultura tátil, traduz-se ao

mesmo tempo como um ponto de partida inovador e como a retomada de um

processo de refinamento e qualificação desse mesmo código perceptivo. É, aliás, a

escrita em relevo que, do ponto de vista do processo da comunicação tátil, reúne um

maior potencial analítico que nos propicie uma caracterização adequada desse

sistema de tradução intersemiótica, permitindo uma mais clara apreciação do

complexo tátil em seus vários aspectos.

Assim como frisáramos, no primeiro capítulo, que toda uma história dos

meios de produção e distribuição do texto Braille e do seu armazenamento e

codificação em bibliotecas está por ser levantada, do mesmo modo, no campo

lingüístico, uma gama de questões aliadas ao aprendizado e uso da linguagem oral

e escrita também se manifestam no campo pedagógico onde se institui a escrita em

relevo.
60

O sistema Braille, ao instaurar o cego leitor-escritor, suscita toda uma

variedade de fenômenos relativos aos problemas de afasias, agrafias tão apreciados

pela Lingüística, os quais estão ainda por ser explorados no campo da escrita

pontográfica, na qual são tão comuns os tropeços com problemas de distúrbios da

aprendizagem claramente refletidos na escrita Braille e que provavelmente se

sedimentam no modo particular de estruturação da percepção tátil nos seus

condicionamentos intracerebrais.

A descrição e análise detalhada de tais problemas não serão objeto

desse nosso trabalho, que, sobretudo nesse capítulo, tem um caráter

eminentemente exploratório. Sua realização, no entanto, poderia alargar a

aplicabilidade das concepções lingüísticas e semióticas a esse campo específico,

propiciando uma compreensão mais aprofundada do complexo tátil. Poderia mesmo

impulsionar pesquisas capazes de sistematizar um programa novo de investigações,

de interesse, sobretudo para os educadores e outros profissionais.

Por enquanto nos ocuparemos de uma primeira questão: Há de fato um

lugar para situarmos o sistema Braille no campo dos estudos semióticos? Nossa

resposta só pode ser afirmativa. A escrita em relevo envolve um campo de

percepção e ação, portanto um campo da comunicação humana, o qual, por assim

dizer, envolve um modo próprio de semiotização da realidade.

De um modo geral, de acordo com o esquema proposto por Deely, para

definir os campos e fronteiras dos objetos semióticos, diremos que a análise do

código Braille, dum ponto de vista mais genérico, acha-se circunscrita ao campo da

antropossemiose, definida por Deely do seguinte modo:


61

[...] Em termos da nossa experiência, o nível mais alto de semiose e


também o mais próximo de nós: a antropossemiose. Visto a partir de uma
certa perspectiva, o termo ‘antropossemiose’ inclui todos os processos
sígnicos em que os seres humanos se envolvem. Visto de outra maneira, o
termo nomeia todos os processos sígnicos que são específicos à espécie
humana. Dentro da segunda perspectiva, a antropossemiose inclui, em
primeiro lugar, a língua e, em segundo, aqueles sistemas de signos que
sucedem a língua e que com ela estruturam a percepção e modificam o
meio ambiente, mesmo para animais não-humanos.1 (DEELY, 1990, p.45)

É na Lingüística de Jakobson que vamos encontrar apoio para definir o

locus específico de abordagem semiótica do nosso alfabeto. De fato, ele pode ser

situado no círculo daqueles sistemas que Jakobson já havia classificado como

sistemas de tradução intersemiótica, conforme a citação seguinte:

[...] Distinguimos três maneiras de interpretar um signo verbal: êle pode ser
traduzido em outros signos da mesma língua, em outra língua, ou em outro
sistema de símbolos não-verbais. Essas três espécies de tradução devem
ser diferentemente classificadas:
1) A tradução intralingual ou reformulação (rewor ding) consiste na
interpretação dos signos verbais por meio de outros signos da mesma
língua.
2) A tradução interlingual ou tradução propriamente dita consiste na
interpretação dos signos verbais por meio de alguma outra língua.
3) A tradução intersemiótica ou transmutação consiste na interpretação
dos signos verbais por meio de sistemas de signos não-verbais.
(JAKOBSON, 1970, p. 63-64).

Essa importante concepção tem encontrado aplicabilidade sobretudo

em abordagens ligadas às artes, inclusive à Literatura. Um clássico trabalho na área

foi realizado por Plaza, que também reconhece como contribuições importantes sob

a visada de tal abordagem, trabalhos de diversos outros estudiosos:

1
Deely apresenta um esquema de classificação dos objetos semióticos da seguinte forma:
Antropossemiose – “[...] através do desenvolvimento de modalidades semióticas entre os humanos
e outros animais, da linguagem da espécie humana e, conseqüentemente de tradições históricas e
culturais em geral [...]”
Zoossemiose – “[...] através do desenvolvimento de modalidades semióticas entre plantas e animais,
entre animais, e entre animais e o ambiente físico [...]”
Biossemiose – “[...] no mundo orgânico como tal (incluindo processos endossemióticos) [...]”
Fitossemiose – “[...] através do desenvolvimento de modalidades semióticas entre vegetais e entre
plantas e o ambiente físico [...]”
62

[...] A tradução criativa de uma forma estética para outra, no âmbito da


poesia, dispensa apresentação, tanto pela tradição qualitativa e quantitativa
de trabalhos produzidos na história, quanto pela reflexão teórica relativa a
este tipo de operação artística. Teorias produzidas sobretudo por artistas
pensadores abriram caminho para investigações sobre a tradução que vão
além de características meramente lingüísticas. É impossível deixar de
mencionar a este respeito os trabalhos de Walter Benjamin, Roman
Jakobson, Paul Valéry, Ezra Pound, Octavio Paz, Jorge Luís Borges e
Haroldo de Campos, entre outros. (PLAZA, 1987, p. 1).

Plaza também alerta para a inexistência de uma consolidada teoria da

tradução intersemiótica até a década de 1980 − o que de fato caracteriza esse tipo

de abordagem como ainda bastante recente. No entanto, de acordo com o que foi

proposto por Jakobson, além das abordagens artístico-estético-literárias, outros

sistemas de signos cabem perfeitamente dentro da moldura conceitual da tradução

intersemiótica, a exemplo das linguagens convencionais, como o código Morse, o

sistema de sinalização do trânsito, a linguagem dos sinais utilizada pelos surdos, ao

lado do sistema Braille.

Curiosamente, é em Saussure que vamos encontrar uma referência ao

código Braille, quando intentou estabelecer uma classificação dos sistemas

lingüísticos como objetos semiológicos:

[...] No Curso de Lingüística Geral, Saussure se refere a sistemas sígnicos


além da língua no seguinte contexto: ‘A língua‚ um sistema de signos que
exprimem idéias, e é comparável, por isso, à escrita, ao alfabeto dos
surdos-mudos, aos ritos simbólicos, às formas de polidez, aos sinais
militares etc., etc. Ela é apenas o principal desses sistemas’ (1916d: 24).
Outros sistemas de signos mencionados por Saussure, em outras
passagens, como típicos de pesquisa semiológica são o Braille, o código
de bandeiras marítimo, sinais militares de corneta, códigos cifrados e os
mitos germânicos. (Cf. WUNDERLI, 1981a: 20-1). (apud NÖTH, 1996, p.
20).

Para um aprofundamento da compreensão do sistema Braille como um

mecanismo de tradução intersemiótica, será necessário que examinemos de per si a

pequena conformação da sua célula primordial. De fato, esse pequeno arranjo


63

pressupõe, no seu processo de desdobramento, associação e combinação, uma

espécie de gramática.

Tocar nesse pequeno filete de seis pontos justapostos, para

compreender seu movimento no sentido da composição das letras, nos permite

vislumbrar de saída a possibilidade de sessenta e quatro combinações,

multiplicidade de arranjos singulares aptos a ser percebidos pela polpa do dedo

indicador. Cria-se numa nova escrita por sulcos, o rastro onde pode ser percebida

uma primeira base de tradução intersemiótica, ou seja, a tradução da escrita gráfica

convencional em uma matriz de pontos e, com ela, todas as inter-relações entre

escrita e linguagem verbal.

Nessa nova matriz de escrita, é o relevo que dá o tom, expandindo

suas regras básicas de associação e combinação para promover a tradução de

outros sistemas lingüísticos, a exemplo da pauta musical, da linguagem matemática

e dos sinais químico-físicos. Reservamos um item específico para o detalhamento

dessas formas de associação e combinação. Por enquanto desejaríamos nos deter

num aspecto mais sutil em que pode ser apreciado o processo de tradução

intersemiótica do Braille.

Enquanto a maior parte das tentativas anteriores para instituir métodos

de leitura e escrita para as pessoas cegas fundava-se, eminentemente, num

paradigma da visualidade (ver capítulo 1), o grande achado da célula de Braille foi

de fato reconhecer a especificidade da percepção tátil. Parece que, para além de

uma tradução do alfabeto convencional em uma matriz de pontos, a escrita em

relevo institui uma nova assinatura para o campo da percepção tátil. Assim, o

campo legítimo onde essa matriz de pontos se propõe como tradução intersemiótica

é o campo mesmo da percepção tátil, ao qual, a célula de Braille, ao mesmo tempo


64

que propicia uma espécie de especialização ou qualificação, permite uma espécie

de atualização.

Do ponto de vista do conhecimento científico, mesmo de forma lenta e

gradual, o relevo Braille deu uma maior visibilidade a esse complexo tátil. Do mesmo

modo, na cultura, uma espécie de semiotização da realidade por via do relevo

passou pouco a pouco a ser exercitada, ora de forma mais tímida, ora de forma mais

perceptível.2

É sobretudo com a instituição do indivíduo cego leitor que fica

demonstrada a qualidade dessa ferramenta, em termos de valorização e refinamento

do sentido do tato. Num processo de alfabetização normal, o cérebro de uma criança

cega aprende cedo a gramática própria do método, combinando espaços em branco

e pontos em relevo. Antes de ler as primeiras sílabas, frases e palavras, o cérebro

do pequeno leitor conhece as palavras básicas formadas pela combinação do relevo

e do vazio. O dedo toca suavemente as letras e realiza, numa codificação nova, o

velho exercício de outros homens leitores que há milhares de anos habitavam o

mundo da cultura.

Leitores cegos de livros de verdade feitos não mais em madeira ou em

metal, mas impressos em papel, reproduzindo em relevo, a codificação tradicional

da cultura livresca, antiga máquina de memorização da informação, com sua

multiplicidade de hipertextos, no sentido dado ao conceito por Pierre Lévy.3

Pode-se dizer que, a partir do Braille, o relevo presidiu inúmeras outras

codificações, a exemplo do desenho, da geometria, da cartografia. A xilogravura,

imprimindo o relevo Braille em camisetas e outros tecidos, é um dos exemplos mais


2
O problema do aparecimento de signos que sinalizam o modo como se vem dando o problema da
integração do Braille na cultura será objeto de análise do quarto capítulo deste trabalho.
3
Para Pierre Lévy, hipertextos são “essas marcas aptas a ‘hierarquizar e selecionar áreas de sentido,
tecer ligações entre essas zonas, conectar o texto a outros documentos, arrimando-o a toda uma
memória que forma como que o fundo sobre o qual ele se destaca e ao qual remete [...]’” (LÉVY,
1996, p. 37).
65

recentes desse tipo de aplicabilidade do sistema de Braille. Vemos assim que é no

solo mesmo da percepção tátil que o signo primordial (a célula Braille) deflagra uma

semiose rica e complexa, firmando o relevo como a base fundamental para a

codificação e decodificação das vagas de sinais produzidos pela cultura humana.

Pensar nesta matriz básica como uma espécie de lugar por onde

caminham mãos é encontrar um espaço milimetricamente geometrizado, em que as

curvas das letras tradicionais em tinta são substituídas por marcas de pequenas

perfurações em relevo, firmes fragmentos do retangular que caracteriza os seis

pontos da matriz básica do sistema.

É certo pensar que, para além da escrita e da leitura, o sistema Braille

traduz um modo particular de caminhar no mundo, uma fórmula básica para o

esquadrinhamento do espaço, uma espécie de mapeamento do mundo apta a

refinar o desempenho dos cérebros dos seus usuários. 4

Parece-nos que seria infrutífera uma análise que buscasse encontrar

as relações, dissecá-las e mesmo acentuar as diferenças entre escrita Braille e

escrita gráfica, ou mesmo uma análise que se detivesse a esmiuçar as relações

entre escrita Braille e linguagem verbal. No nosso entender, é para o complexo tátil

que a matriz de pontos se converte em uma tradução intersemiótica fundamental.

Em função dessa determinação tátil, uma diferença básica entre a

escrita em relevo e a escrita gráfica merece ser avaliada: a matriz de pontos,

conforme a expressão já indica, desprezará o traço, estratégia básica da escrita

convencional, para privilegiar o ponto, formação mais sensível ao seu canal de

decodificação, isto é, a percepção tátil.

Nesse sentido, Vítor Reino (2000, p.45) argumenta:

4
O tema aqui sugerido será mais convenientemente explorado no quarto capítulo deste trabalho.
66

[...] o Sistema encontra-se perfeitamente dimensionado de modo a que


cada caractere ou símbolo não exceda jamais o âmbito perceptivo
correspondente à polpa de um só dedo.

A célula Braille, ou sinal fundamental, está concebida com um rigor de tal


ordem que a supressão de um dos seis pontos que a compõem daria lugar
a um número de combinações insuficiente para traduzir os principais signos
da escrita vulgar, enquanto a adição de um ou mais pontos faria exceder o
âmbito perceptivo da polpa do dedo, implicaria um perigoso acréscimo das
dificuldades de discriminação sensorial, no caso de se optar por uma
redução propositada da distância que separa os pontos.

Reino salienta a sofisticada lógica da matriz de Braille, quando afirma:

[...] O símbolo Braille, pois, suficientemente grande para evitar problemas


perceptivos exagerados e um conseqüente aumento indesejável do número
de erros de identificação, e suficientemente pequeno para caber na área
mais sensível da polpa do dedo sem necessidade de movimentos laterais
ou verticais de confirmação que constituiriam inevitavelmente um sério
obstáculo a uma leitura rápida e fluente (Ibidem).

E prossegue:

[...] Esta perfeita adequação ‘ergonômica’ e psico-fisiológica, juntamente


com uma enorme simplicidade, facilidade de utilização, sistematização,
coerência lógica e grande equilíbrio geral, conferem ao Braille uma
incontestável atualidade e significado sociocultural e fazem dele um
instrumento insubstituível na vida pessoal, social e profissional dos
deficientes visuais. (Ibidem).

Encerrada essa rápida discussão acerca do Braille como código de

tradução intersemiótica, na qual qualificamos a escrita em relevo não apenas como

sistema de tradução intersemiótica da linguagem escrita e de outras simbologias

afins, mas afirmamos seu caráter de sistema de tradução do código tátil de

percepção, retomaremos a análise da célula Braille em seu processo de associação

e combinação de pontos. Isto porque julgamos necessárias algumas explicações

para uma compreensão mais aprofundada da análise proposta.

Partimos da apreciação de duas questões fundamentais:

1. Como se dá o desdobramento da célula Braille no seu processo de

associação e combinação dos seis pontos, para a composição das letras

e de todas as outras representações que o sistema em relevo intenta

representar?
67

2. Até que ponto esse processo de associação e combinação traduz a idéia

e o campo concreto onde se configura a informação como diferença?

2.4 Pontos significantes: breve incursão por dentro da célula Braille

No primeiro capítulo, fizemos uma breve descrição dos processos de

associação e combinação da célula Braille. Agora, retomaremos o problema para

compreendê-lo sob o ponto de vista da percepção, envolvendo assim o diálogo entre

mão, cérebro e essa matriz de pontos.

Da sua célula básica (ver figuras 4 e 5, capítulo 1), Louis Braille

depreendeu em princípio três subsistemas, conferindo a cada um distinções de

percepção importantes, a fim de que pudessem ser convenientemente decodificados

por meio do tato. 5

Falamos sobre o sistema das letras propriamente dito, o sistema das

pontuações e o sistema da acentuação das palavras, ou seja, tratamos das relações

possíveis construídas por Braille, para representar em sua escrita, as bases do

alfabeto gráfico convencional.

Quais as soluções encontradas pelo inventor, para distinguir e

demarcar cada um dos subsistemas, no ato da leitura e da escrita?

Observamos que, se, no sistema das vinte e três letras do alfabeto

convencional, o código Braille permite combinações de pontos nas diversas

posições da cela da reglete, contando com um símbolo correspondente a cada letra,

5
Vimos no primeiro capítulo que sessenta e quatro combinações possíveis dos seis pontos de Braille
geram as chamadas sete séries fundamentais do relevo Braille. Por agora nos ocuparemos somente
da análise das séries que representam as pontuações e as letras acentuadas.
68

o subsistema das pontuações ocupa, fundamentalmente, a parte inferior da referida

cela. Uma leve diferença de nível permite uma perfeita distinção entre letra e

pontuação no ato da percepção pelo tato, engendrando aquilo a que poderíamos

chamar de processo de dissimetria, conforme ilustra a figura 6.

Vírgula , É,
Ponto de vírgula ; É;
Dois pontos : É:
Ponto final; apóstrofo . É.
Ponto de interrogação ? É?
Ponto de exclamação ! É!
Reticências ... É...
Hífen ou traço de união - é-
Travessão − é--
Círculo ●
éõo
Abre e fecha parênteses ()
é()
Abre e fecha colchetes []
é[]
Abre e fecha aspas “”
É«
Asterisco *
É*
Barra /
É^,
Barra vertical |
É|
FIGURA 6 - Sinais de pontuação e acessórios6

Para compor o subsistema das vogais acentuadas, Braille retomou

diversas possibilidades de combinação. No entanto, operou com o que poderíamos


6
A Nova Grafia Braille da Língua Portuguesa instituiu inúmeros outros sinais que não aparecem nesta
figura.
69

chamar de processo de dissimilitude em relação às letras. De fato, as letras

acentuadas são visivelmente diversas das letras não acentuadas, o que demonstra a

preocupação em evitar ambigüidades e ao mesmo tempo fortalecer, por meio de tais

distinções, o aprendizado da Fonologia, da Gramática, da Ortografia etc., conforme

a figura 7.

Vogais
a a e e i i o o u u
Acento Agudo
á á é é í í ó ó ú ú
Acento grave
à à - - - - - - - -
Acento cicunflexo
â â ê ê - - ô ô - -
Til
ã ã - - - - õ õ ü ü
Trema
- - - - - - - - - -
FIGURA 7 − Vogais acentuadas em Braille

O leitor treinado em Braille, já tendo incorporado em sua mente o

diagrama organizacional do sistema, não pensará, no ato automático da leitura, nas

idéias de dissimetria e dissimilitude que acontecem nesse arranjo de combinações

possíveis de pontos no espaço do papel. O leitor treinado seguirá o caminho firme

de suas mãos, decodificando fragmentos, seqüências de formações pontilhadas,

reproduzindo, nesse gesto particular de tocar os sulcos do papel, o modo mesmo de

construir a percepção de mundo por meio do complexo tátil.

Até aqui discorremos sobre os processos de formação das letras, da

representação dos sinais de pontuação e das vogais acentuadas. Recordando o que


70

já fora apreciado no primeiro capítulo, com respeito aos outros subsistemas

depreendidos do código em relevo, será conveniente que retomemos os chamados

processos mistos de seleção e combinação, adotados para essas outras

representações.

2.4.1 Os subsistemas do código Braille e a idéia de metatexto

Na impossibilidade de romper os limites da cela da reglete e, assim,

aumentar o tamanho da letra para conferir-lhe a qualidade de letra maiúscula,

artifício que comprometeria o processo de decodificação pelo canal de percepção

tátil, Braille adotou para tal representação o processo das chamadas combinações

mistas, em que um sinal convencional precede sempre a primeira letra da


palavra que deve aparecer em maiúsculas. O mesmo processo, com um sinal

diverso, foi ainda observado na representação dos números. Aqui, são de

novo as letras que, precedidas de tal sinal, convertem-se nos números (ver

figura 8).

0 #j
1 #a
2 #b
3 #c
4 #d
5 #e
6 #f
7 #g
8 #h
9 #i
FIGURA 8 − Os números em Braille
71

Podemos mesmo dizer que as letras assumem dupla e às vezes até

tripla significação. Saídas do seu contexto inicial, convocadas a funcionar como

tradutoras de outros sistemas simbólicos, elas podem representar, por meio de

associação com sinais convencionais, a simbologia matemática, a musicográfica, a

estenografia Braille, entre outras.

Um processo exemplar de tripla associação é percebido, sobretudo na

musicografia, em que o sistema das letras e o das pontuações combinam-se a sinais

matemáticos para a representação de uma pauta musical. Vemos que aqui se

reproduz um princípio presente na musicografia produzida em escrita convencional,

que também toma de empréstimo da simbologia matemática alguns dos seus sinais

que funcionam como informação sígnica nas divisões e tonalidades dos sons.

Embora, no ato da sua invenção, a célula Braille já trouxesse em si o

diagrama das possibilidades de combinação e associação de pontos para a

representação das letras e dos outros fonemas da língua, as necessidades de

tradução de outras linguagens, a exemplo da musicografia, estenografia Braille,

sinais matemáticos e outros ditaram a sua expansão e o seu aperfeiçoamento.

Criaram-se no mundo, sobretudo no século XX, as chamadas

Comissões Braille, aptas a fixar as modificações e os novos usos do código.

Atualmente, os países de língua portuguesa têm trabalhado no sentido de unificar a

utilização do código em seus subsistemas diversos, esforço que culminou em

recente publicação da nova grafia Braille unificada, propondo-se alterações nas

simbologias das ciências exatas, Musicografia e Matemática, documento que está

sendo objeto de treinamentos nas diversas instituições voltadas ao atendimento

educacional das pessoas cegas.


72

Normas, manuais descritivos e legislações específicas revelam a

história do desenvolvimento do sistema em seu uso cotidiano pelas pessoas cegas.

Todos esses saberes podem ser articulados naquilo que poderíamos chamar de

metatexto explicativo-descritivo do uso do Braille. O conceito de metatexto de

Posner é utilizado aqui como mera aproximação. Ele explica:

[...] padronização de um código é alcançada quando este código é


exaustivamente descrito num metatexto completo, tal como a gramática de
uma língua, o manual de composição musical ou um sistema de leis para a
regulamentação de sinais de trânsito. A exaustiva fixação confere a tais
metatextos um papel peculiar no funcionamento do código em questão.
Originalmente concebidas apenas como uma descrição de regras em uso
no momento da fixação, eles se convertem em prescrição cujas regras
devem ser seguidas. Deste modo, o metatexto torna-se não apenas um
elemento de padronização, mas também um obstáculo para um maior
desenvolvimento do código, a partir do momento em que cada item num
metatexto prescritivo deve ser primeiro modificado antes de se começar
uma nova prática. (POSNER, 1999, p. 44).

Esta concepção pode mesmo alimentar novas discussões a partir da

incorporação das tecnologias informáticas aos processos de produção e distribuição

do texto em relevo.7

2.5 A idéia da informação como diferença

A análise do alfabeto Braille a partir das suas formas de seleção e

combinação evidencia um outro aspecto fundamental que deve presidir todos os

sistemas sígnicos. Na idéia latente do seu inventor em aparar possíveis

ambigüidades (ruídos) no processo de codificação e decodificação das mensagens,

nota-se uma preocupação que, um século depois, seria fundamental para os

7
O chamado Braille informático, ou Braille de oito pontos, agrega à célula original mais dois pontos
para a representação dos múltiplos sinais que emanam da própria informática.
73

estudiosos da chamada Teoria da Informação, ou seja, a qualidade ótima da

informação nos seus processos de codificação, transmissão e decodificação por um

destinatário final. Observa-se ainda que as estratégias básicas de dissimetria e

dissimilitude contêm em si a idéia da diferença como possibilidade e condição para a

informação.

De fato, são esses dois processos básicos que vão dar corpo à

informação organizada em um alfabeto de relevo pontilhado, o qual só faz sentido e

só se converte em mensagem passível de ser decodificada, na medida em que cria

a informação como diferença. Diferença esta que se estrutura a partir do processo

de combinação dos pontos em diferentes posições no espaço do papel, alterando

assim aquela estrutura retangular primordial (a matriz dos seis pontos) e propiciando

a decodificação pela via da percepção tátil.

Importa-nos agora discutir essa idéia da informação como diferença, na

perspectiva de compreendermos a sua relevância na ilustração do processo da

percepção tátil. Tais idéias são fundamentais tanto em ciências cognitivas como em

Teoria da Informação.

Nöth (1996, p. 234).explica:

[...] O principal proponente desta teoria, Gregory Bateson (1979:29, 98-9),


seguido mais recentemente por Merrell (1992: 207), afirmou: ‘A percepção
opera somente por diferença. Toda recepção de informação é
necessariamente a recepção do novo a partir da diferença, e toda
percepção da diferença está limitada por um limiar. Diferenças que se
apresentam mui fracas ou vagarosamente não são perceptíveis. Não são
alimento para a percepção... Precisamente porque a mente pode somente
receber o novo a partir da diferença, há necessariamente um limiar de
gradiente abaixo do qual não se pode perceber’ [...]. A informação consiste
de diferenças que fazem a diferença.

É assim que do interior da conformação da matriz Braille podemos

depreender um arranjo singular de associação e combinação de pontos em relevo,

dando vida ou quem sabe, engendrando um padrão que é primordialmente


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organizado no cérebro, um ingrediente novo da percepção tátil, por meio do qual, os

sujeitos cingidos pela condição da cegueira, nas suas práticas diárias de leitura e

escrita, tomam posse de uma variedade inimaginável de textos culturais e revificam,

desse modo singular, o processo da codificação e decodificação das vagas de

informação, isto é, apossam-se sobretudo de territórios novos e insuspeitados da

sua natureza semiósica específica.

O Braille não é senão mais uma réplica das transações que se

estabelecem entre o cérebro e o mundo exterior, criando assim o processo de

significação da realidade, conforme o que estabelece Morin (1986, p. 101):

[...] O nosso cérebro só conhece o mundo exterior através de


variações/diferenças, e os receptores sensoriais são, cada um à sua
maneira, sensíveis a variações de estímulos:
• Químicos (olfacto, gosto);
• Mecânicos (tacto, ouvido);
• Luminosos (olhos).
O que, portanto, se pode no mínimo dizer do mundo exterior é que
apresenta diferenças, variações, similitudes, constâncias. As
variações/diferenças recebidas/analisadas pêlos receptores sensoriais são
codificadas/transmitidas sob a forma de outras diferenças, em que os
neurónios codificam a magnitude e não a natureza das perturbações
sentidas.

Pensando o cérebro como um complexo computador, Morin reforça o

fato de que o trabalho cerebral se organiza a partir das diferenças, dissimetrias,

dissimilitudes:

[...] As policomputações cerebrais tratam/transformam/organizam as


diferenças recebidas em função dos princípios polilogiciais do
espírito/cérebro até estabelecerem, de modo quase simultâneo, a
representação, a palavra, a idéia que emergem de maneira global do
processo. [...] Os esquemas recognitivos flexíveis tratam as formas dos
objectos desconhecidos considerando simetrias, dissemetrias, analogias,
diferenças. (Ibidem).

O esboço traçado até aqui, ao mesmo tempo que aproximou o alfabeto

Braille de um lugar viável à sua investigação na teoria semiótica, já nos permite

avançar um pouco mais nesse campo de conhecimento, a fim de que possamos


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abordar, de modo mais específico, o nosso objeto de estudo em sua natureza

sígnica e conhecer a semiose que a célula Braille pôde deflagrar no âmbito da

cultura.

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