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O Garoto que eu Abandonei

RAIZA VARELLA
Sumário
O Garoto que eu Abandonei
Parte I
Introdução
Prefácio
Capítulo 1 - Marcela
Capítulo 2 - Gustavo
Capítulo 3 - Marcela
Capítulo 4 - Gustavo
Capítulo 5 - Bárbara
Capítulo 6 - Marcela
Capítulo 7 - Gustavo
Capítulo 8 - Marcela
Capítulo 9 - Marcela
Capítulo 10 - Marcela
Capítulo 11 - Bárbara
Capítulo 12 - Marcela
Capítulo 13 - Marcela
Capítulo 14 - Bárbara
Capítulo 15 - Marcela
Capítulo 16 - Marcela
Capítulo 17 - Marcela
Capítulo 18 - Gustavo
Capítulo 19 - Marcela
Capítulo 20 - Marcela
Capítulo 21 - Gustavo
Capítulo 22 - Gustavo
Capítulo 23 - Marcela
Capítulo 24 - Gustavo
Capítulo 25 - Bárbara
Capítulo 26 - Marcela
Capítulo 27 - Gustavo
Capítulo 28 - Marcela
Capítulo 29 - Marcela
Capítulo 30 - Marcela
Capítulo 31 - Gustavo
Capítulo 32 - Marcela
Capítulo 33 - Gustavo
Capítulo 34 - Bárbara
Capítulo 35 - Marcela
Capítulo 36 - Ian
Parte III
Capítulo 37 - Marcela
Capítulo 38 - Marcela
Capítulo 39 - Ian
Capítulo 40 - Gustavo
Capítulo 41 - Gustavo
Capítulo 42 - Bárbara
Capítulo 43 - Marcela
Capítulo 44 - Ian
Capítulo 45 - Gustavo
Capítulo 46 - Ian
Capítulo 47 - Marcela
Capítulo 48 - Gustavo
Parte IV
Capítulo 49 - Marcela
Capítulo 50 - Bárbara
Capítulo 51 - Anna
Capítulo 52 - Lucas
Capítulo 53 - Marcela
Capítulo 54 - Marcela
Parte V
Epílogo – Bárbara
Para o garoto que eu nunca vou abandonar, para Lucca o
fruto do meu conto de fadas particular. Mamãe te ama
mais do que você pode imaginar.
“Em pé diante das cinzas. Em pé diante do céu de
inverno. Em pé diante do chamado. Ouça o choro da
batalha. Deixe-o gritar desde as montanhas, desde a
floresta até a capela. Porque a morte é uma boca faminta,
e você é a maçã.”

Branca de Neve e o Caçador


Parte I

Me lembro, como se fosse hoje, o dia em que escutei


a minha primeira história de conto de fadas. Eu estava me
escondendo atrás de uma porta e absorvi cada palavra
com o coração, ela se guardou lá dentro, se pregou a cada
buraquinho e, milagrosamente, foi quem o consertou por
muito tempo. Afinal, historinhas como aquela são
remendos que servem para conservar a esperança das
pessoas, e há dias que isso é tudo o que as mantém de pé.
Hoje, vou contá-la para vocês, mas de uma maneira
diferente, de um jeitinho só meu. Não se assuste, ela pode
ser triste no começo, mas tem um final feliz.
Isso é o que sempre desejei: um final feliz!

Era uma vez, uma moça comum que perdeu todos a


quem amava. Ela não tinha o cabelo da cor certa, nem
encontrou vários amigos anões para curar sua solidão,
mas definitivamente era a Branca de Neve de um certo
príncipe encantado. Só não sabia disso, ainda...
Introdução

Bárbara
Eu daria qualquer coisa para ser filha única. Minha
orelha esquerda, o dinheiro que tenho na poupança, meus
pares de sapatos e todos os sorvetes que estão escondidos
no meu freezer, embora não sejam de fato meus. Porque,
vou te dizer, ter irmãos é um pé no saco, principalmente
dois tão cabeças-duras como os meus. Para mim, é um
mistério o que minha mãe estava pensando quando
resolveu ficar com eles ao invés de colocá-los em uma
cestinha e deixar na porta de uma igreja qualquer. Ela
vive em outra dimensão na maior parte do tempo. Se eu
fosse julgar, diria que só se deu conta do tamanho da
burrada quando era tarde demais.
Augusto, meu irmão mais velho, é o menor dos meus
problemas, já que ele foi domesticado. E pensar que era o
mais descrente em se tratando de amor. Achei que mulher
nenhuma teria o poder de mudá-lo – e ele, com certeza,
pensava o mesmo –, mas não contávamos com a doce e
tímida Anna entrando em nossas vidas, tomando conta de
seu coração à força e fincando uma bandeira de
encoleirado nele. Monstro se transformara e agora exibe
uma postura muito diferente do homem mulherengo de
antes, que não valia nem uma moeda de um centavo. Uma
postura de homem de família. Meus olhos se enchem de
água todas as vezes em que ele abraça sua noiva e passa
as mãos por sua barriga minúscula que abriga uma vida.
A vida deles.
Eu sempre quis que eles se acertassem, encontrassem
uma garota boazinha de quem eu, obrigatoriamente,
gostasse e montassem no cavalo branco por elas. Eu sei,
eu sei, eu e os cavalos. Meu maior problema é que
Gustavo, meu irmão do meio, fez diferente; ao invés de
montar em um cavalo, ele encontrou uma égua e se
apaixonou por ela. Ele, agora, é minha maior decepção,
ele e aquele creme mágico que prometia diminuir celulites
e não passou de perda de tempo.
Só de pensar que ele estava namorando justo ela, a
mulher que tentou destruir minha felicidade e me fez
passar pela maior humilhação da minha vida, eu tinha
vontade de gritar, me jogar no chão e fazer birra que nem
aquelas criancinhas medonhas fazem no supermercado.
Nossa família é estruturada, é uma unidade
indivisível e inabalável. Eu morreria pelos meus irmãos,
mas, no momento, tudo que tenho vontade de fazer é matar
um deles. Não posso, simplesmente não posso, vê-lo
jogando a vida fora por um amor que não é de verdade, e
vou fazer o que for preciso para protegê-lo.
Se, para isso, eu tiver que jogar sujo, que seja. Mas
uma coisa eu digo: Gustavo não se casará com aquela
mulher, ou eu não me chamo Bárbara Vitorazzi.
Prefácio

Marcela, sete anos antes


Antes de abrir os olhos naquela manhã, minha
primeira reação foi sorrir.
Gosto de me lembrar daquele detalhe em especial,
daquele sorriso, ele seria único em muito tempo, por isso
merece ser lembrado. Sinto falta daquele sorriso, bem
como de todos os outros; o sorriso de preguiça ao me
levantar para mais um dia, o sorriso de deboche, o sorriso
de felicidade e aquele que indicava complacência, o
sorriso de vitória e o de amor.
Sinto falta de cada um deles.
Não é só dos sorrisos que sinto falta. Também sinto
falta de gostar de acordar cedo, correr alguns quilômetros
com os fones de ouvido, uma garrafa de água e nenhuma
preocupação. Sinto falta de gostar do trabalho, de moda e
de filmes com legendas. Sinto falta da sensação de
curiosidade viciante quando descobria que mais uma
temporada das minhas séries preferidas havia sido
lançada, sinto falta do café da manhã com comida de
verdade, de ir ao cinema e jantar fora. Sinto falta da
maquiagem nos olhos e o gosto diferenciado das cores
preferidas de batom.
Sinto falta do quanto minha vida era perfeita e
completa.
Sinto falta de mim mesma.
Faltas bobas, saudades vazias, admito. Eu as uso para
encobrir minhas verdadeiras saudades, aquelas que doem
e machucam a ponto de eu achar que meu coração está
literalmente sangrando. As saudades que me tiram o sono
e me obrigam a desejar, todos os dias, morrer antes de
acordar para não ter que encarar mais um dia. As
saudades que me tiram a vontade dos prazeres da vida e
fazem meus hábitos tão adorados parecerem insultos. As
saudades que me prendem aos soluços altos e à
desesperança, tiram-me a fome, a vaidade e o livre-
arbítrio.
São essas saudades que me matam dia após dia.
Minha vida é recheada de perdas, foram tantas que eu
mesma me perdi pelo caminho. A saudade que eu tenho de
mim mesma, da mulher forte, da mulher bem-sucedida, da
mulher bem resolvida e amada, não é nada comparada à
falta que eu tenho delas, das minhas perdas.
Todos os dias ainda espero acordar com o beijo
cálido do meu marido, muitas vezes sonho com seus
lábios encostando levemente nos meus, sonho com seu
hálito quente e suas mãos fortes me puxando para mais
perto em um abraço sonolento. É tão real que sempre
acordo antes que ele me diga as palavras que anseio
ardentemente, três palavras simples: “bom dia, querida”.
Nesses dias, me odeio por acordar, por despertar para
uma vida na qual não sou mais querida, na qual não há
beijos de bom-dia e nem abraços aconchegantes.
Todos os dias ainda espero me levantar, caminhar
alguns passos e abrir a porta em frente ao meu quarto para
encontrar meu filho aninhado à sua coberta favorita no
berço. Espero que seus olhos estejam abertos e que ele
sorria com doçura assim que note minha presença. Espero
que gargalhe quando o pegar no colo e beijar o topo de
sua cabeça. Até que me lembro que o quarto da frente se
transformou em um mausoléu recheado de poeira,
abandono, bichos de pelúcia esquecidos e um berço
vazio.
Todos os dias ainda espero receber a ligação matinal
da minha mãe com uma porção de reclamações, muito
amor maternal e sua advertência para que eu não esqueça
uma blusa quente porque pode esfriar. Até que me lembro
que seu número foi desligado há muito tempo.
Todos os dias ainda espero pelos e-mails engraçados
e sem nexo que chegavam pontualmente à minha caixa de
entrada todas as manhãs, lembretes de que meu pai estava
pensando em mim. Eles sempre terminavam com a mesma
frase: “Sorria, cada dia é uma conquista”. Até eu me
lembrar que não posso mais sorrir, nunca mais.
Eles se foram, perdi todos.
Então, sempre que volto para a lembrança daquele dia
fatídico, o que acontece com uma regularidade
impressionante, gosto de pensar primeiro naquele sorriso,
ele faz com que me recorde do quanto eu era feliz, do
quanto eu era completa, para que depois, só depois, eu me
recorde de que nunca mais serei. É uma boa forma de me
torturar e, ao mesmo tempo, nem que por um segundo,
matar a saudade que me mata.
Naquele dia, meu marido me acordou com um beijo,
meu filho me recebeu com um sorriso, minha mãe me
lembrou da blusa que eu estava esquecendo e meu pai
disse que me amava.
Pela última vez.
Capítulo 1 - Marcela
“Cara, eu ando na linha, o problema é que ela é
torta.”
Filme Assalto ao Banco Central

Eu e meu medo da companhia de energia


elétrica

Dias atuais
— Tomo mundo para o chão, isso é um assalto! —
berrou alguém por cima das vozes e do burburinho de
conversas no banco lotado.
Foi o suficiente para que eu revirasse os olhos e
arremessasse meu celular em um cesto de lixo, xingando
alto sem pensar duas vezes, antes de me jogar no chão e
colocar as mãos sobre a cabeça, igual nos filmes.
O banco próximo ao cubículo nunca havia sido
assaltado, disso eu tinha certeza – eu havia feito um
trabalho para o segurança –, e eu nunca, sob hipótese
alguma, ia àquele banco específico. Qual era a
probabilidade de duas coisas que nunca aconteceram
antes, ocorrerem simultaneamente? Tinha que ser comigo,
porque, na minha vida, a probabilidade estatística não era
confiável.
Retiro as mãos da cabeça e rolo de lado, tentando
achar meu alvo. O assaltante que se danasse! Eu estava em
uma pindaíba tão grande que perder aquele caso
significava dar adeus à eletricidade e voltar à época em
que as pessoas acendiam velas e ferviam água para tomar
banho. Isso, claro, se o gás também não resolvesse
acabar; como eu disse, as probabilidades eram sempre
negativas quando se tratava de mim.
Avisto o homem a um metro de distância, também
jogado no chão. Sua peruca está em uma posição esquisita
e sua testa pinga suor, parece realmente amedrontado. Dou
uma olhada em volta e vejo apenas dois assaltantes; um
está extorquindo a moça com cara de entediada sentada
atrás do caixa, e o outro está dando um sacode no gerente.
Então, me arrisco a girar cento e oitenta graus e me
arrastar com os cotovelos pelo chão sujo, até estar diante
do homem que levanta o olhar e me encara perplexo com
seu óculos pendendo do nariz rechonchudo.
— O senhor está bem? — pergunto, fingindo uma
preocupação que não existe.
— O banco está sendo assaltado! — responde,
atônito, como se eu fosse cega.
Reviro os olhos e ele limpa o suor rapidamente como
se estivesse com medo de se mexer mais do que o
necessário. — Como posso estar bem?
— Eu vi, parece que vamos todos morrer — lamento,
fazendo uso de sua covardia, até estalo a língua para
parecer realmente chateada com a ideia de levar uma bala
na cabeça.
Mas, pensando bem e lembrando com clareza da
minha fatura do cartão de crédito, aquela não chegava a
ser uma ideia de todo ruim.
— Vamos? — pergunta, com os lábios tremendo.
Tenho que morder a língua com força para evitar cair
na gargalhada.
— Pelo menos foi o que aquele cara — aponto para
um dos assaltantes, o mais mirradinho deles — disse antes
de ter batido naquela velhinha ali — aponto para uma
coisinha pré-histórica que dorme tranquilamente em uma
cadeira da recepção, alheia a toda a cena à sua volta. —
Você o viu bater na velhinha né? Acho até que deve ter
matado a coitada, não estou vendo o peito dela se mexer.
Ele me olha de olhos arregalados e encara a velhinha
com atenção.
— Oh, meu Deus, você tem razão, também não a vejo
respirar.
Ele apoia os cotovelos no chão e afunda a cabeça nas
mãos. Será que vai demorar muito para ele começar a
falar?
— Então, como eu estava te contando, ele também
falou que é um assassino cruel e impiedoso, mas que
prefere matar homens, principalmente aqueles que usam
óculos, algo sobre ter sido molestado por um tio míope na
infância.
Agora deu. Ele levanta a cabeça rapidamente e
arranca os óculos, jogando-os longe. Agora posso rir,
acho que ele não vai mais ver.
— Eu não posso morrer, não posso — lamenta, com
os olhos se enchendo de água. — Ainda não fiz nada na
minha vida, não pulei de paraquedas, não fiz fortuna.
Deus, eu nem saí do armário.
Engasgo, por essa eu não esperava.
— Posso imaginar o quanto seja claustrofóbico —
murmuro contente, jogando uma das mãos para trás e
tateando o bolso do jeans em busca do celular, mas não o
encontro. Merda, estava na lixeira. — Espera, eu já volto.
Abandono o homem, que agora chora silenciosamente
enquanto murmura para si mesmo as coisas que nunca
tinha feito até então, algo como “transar com um negão e
contar para a mãe que foi ele quem quebrou o cachorrinho
de cerâmica quando tinha 10 anos”. Cara estranho. Volto
me arrastando até a lixeira em busca do meu celular. Não
demoro muito para encontrá-lo; ele e dois ou três
chicletes mastigados que se grudaram na minha capinha
dos Minions. Depois, me arrasto de volta até o homem
choroso, apertando os botões para gravar nossa conversa.
— Nunca fiz algo estúpido, como, sei lá, ter filhos.
Não fui a nenhuma convenção de Supernatural, mesmo
achando os dois atores gatos pra caramba, nunca tive um
gato.
Ele não calava mais a boca, então resolvi interferir.
— Vamos voltar a falar do armário — comento, sem
paciência, quando a polícia anuncia nos megafones que o
prédio está cercado.
— Isso, e tem o armário. Eu vou morrer sem contar
para minha mulher que sou gay e apaixonado pelo irmão
dela desde antes de nos casarmos, isso não é justo —
lamenta, esfregando os olhos. — Não é justo que eu tenha
ficado casado com ela porque ele se recusa a me assumir.
Zé Alfredo sempre foi melhor de cama, sabe? — pergunta,
fungando. — Talvez por isso eu tenha concordado.
— Jura?
Agora estou verdadeiramente interessada na história
de vida deste homem e penalizada também, tanto que
ajeito sua peruca em um ato de solidariedade.
— Não entra, se não vou matar todo mundo! — berra
um dos assaltantes parado em cima de mim. Me viro de
barriga para cima ao me assustar com a sua voz, e ele olha
para baixo, me encarando, com a arma ainda apontada
para a porta de vidro. — Me dá essa porra aqui! —
murmura, tentando tomar o celular das minhas mãos.
— Ah, mas não dou mesmo! — replico, fazendo força
para puxar o celular de volta.
— Você não tem medo de morrer, não, mulher? —
pergunta, perplexo.
— Só tenho medo de ficar sem a funcionalidade do
meu micro-ondas, querido, agora larga esse celular ou vou
ser obrigada a te fazer largar! — resmungo, dando um
último puxão e arrancando o celular de seu aperto. Eu,
hein, cara arrogante.
Tenho mais medo da companhia elétrica e dos caras
que adoram cortar um fio no poste do que daquele menino
esquelético com uma arma que, está na cara, é feita de
plástico. Ele parece perceber no meu olhar que não vai
adiantar insistir e dá meia-volta me xingando baixinho,
para tentar assustar um cara de meia-idade que começa a
retirar o relógio do pulso assim que percebe sua
aproximação. O que está acontecendo com os homens?
Sacos de batata já me deixaram mais orgulhosa.
Enfio o celular dentro da calça para evitar que ele
seja tomado das minhas mãos novamente e me viro de
lado, colocando a cabeça em cima do antebraço. Fecho os
olhos e tento tirar uma soneca até que a polícia decida
invadir o banco com uma sensação de trabalho bem feito e
uma fome dos diabos. Porém, antes que eu consiga dormir,
escuto gritos, me sento rapidamente e encontro a velhinha
dorminhoca de pé, dando guarda-chuvadas no menino que
tentou tomar meu celular. Para a idade que tinha a mulher,
ela batia forte. Eu estava me sentindo vingada enquanto o
menino gritava tanto de dor que o comparsa foi ajudar, seu
erro foi ter guardado a arma antes; em sua cabeça, uma
velhinha não ia muito longe com as agressões. Mas ela foi
e só parou quando os dois moleques estavam no chão,
chamando pela ajuda da polícia.
— Você não disse que ela estava morta? — perguntou
o homem, se sentando também e arrastando a bunda para
frente para poder observar a cena ao meu lado.
— Devo ter me enganado.
Dou de ombros, já até tinha me esquecido que ele
existia. Como eu pudera? Seria ele quem iria pagar o meu
Amex aquele mês, eu deveria ser mais grata.
— Quem será que ganharia no ring: ela ou o Anderson
Silva? — pergunto para passar o tempo.
— Não sei, acho que ela — murmura distraidamente
—, mas eu torceria para ele. Aqueles músculos fortes e
bem torneados, hum, aqueles braços me envolvendo...
Decido, mais ou menos aí, lacrar meus ouvidos e me
arrastar que nem uma minhoca para debaixo de uma mesa
mais adiante. Eu já estava carente por mim mesma sem ter
que pensar em braços quentinhos e musculosos me
abraçando, então, é claro que imaginar aquele cara suado
e com a peruca ainda meio torta — mesmo depois de
todos os meus esforços — ganhando esse prêmio, me
deixou um pouquinho ressentida.
Em questão de minutos, o banco foi invadido por
cerca de quinze policiais perplexos com uma velhinha, e
os dois assaltantes machucados foram presos sem
nenhuma resistência, até porque a senhora ainda
empunhava o guarda-chuva. Escapei no meio do tumulto,
para evitar ficar horas plantada em uma delegacia feito
uma estátua enquanto algum delegado desinteressado
pegava os depoimentos de todos, e corri para meu carro,
dando a partida enquanto recuperava meu celular e
apertava algumas teclas no visor.
— Dona Telma, boa tarde, aqui quem fala é a
Marcela. Quando a senhora teria um tempinho para me
encontrar? — questiono, tentando soar profissional, mas
não consigo esconder a satisfação da vitória na minha voz,
porque a mulher do outro lado da linha começa a chorar.
Odeio quando elas choram.
— Você conseguiu, não foi? Pegou ele! — Funga e
soluça ao mesmo tempo. — Quem é a vadia que está
saindo com meu marido?
Sou obrigada a morder a língua de novo antes de
apontar o dedo e fazer “há-há” para o para-brisa por puro
prazer diabólico.
— Acho melhor conversarmos pessoalmente —
aconselho.
— Tudo bem, tem razão. Você pode vir até a minha
casa? — pergunta, assoando o nariz. Eca.
— Claro, chego em alguns minutos. — Enfio o
celular dentro da calcinha e canto pneus, feliz porque hoje
vou comer bem!
Vinte minutos depois, estou tocando a campainha de
uma mansão imponente em um bairro chique de
Florianópolis enquanto tiro meu celular da calcinha.
Depois de tantos anos, era bom ter algo vibrando dentro
das calças, mesmo que fosse o telefonema da moça que
trabalha para a operadora de cartão de crédito querendo
me cobrar. Ultimamente, não dava para escolher muito.
— Você chegou! — exclama ela, tentando sorrir e
falhando, então volta a cair no choro.
Não me mexo, tenho uma regra tácita: não consolo
mulheres traídas. Elas estavam naquela situação porque
queriam, e meu tempo era precioso demais para perdê-lo
com os problemas dos outros.
— Espero que você não se importe, mas chamei
minha cunhada para me dar apoio nesse momento tão
difícil da minha vida — disse, torcendo os lábios
pintados de vermelho em um lamento, enquanto eu ergo
minhas sobrancelhas com deleite.
— A senhora tem quantos irmãos? — tento soar
desinteressada, mas, porra, sério?
— Um só, querida.
Há poucas coisas que ainda têm o poder de me
surpreender quando acontecem na minha vida, mas essa,
com certeza, foi uma delas.
— Ela não estaria interessada em investigar o marido
também? — A ideia de pagamento em dobro fez minhas
pernas fraquejarem de felicidade. Uma garota poderia
sonhar, certo?
— Ah, não, não. Meu irmão é um príncipe, ela não
precisa se preocupar com ele. — Faz um aceno de mão,
abandonando minha ideia, enquanto me dá passagem para
entrar em um hall imenso, tão grande que meu apartamento
caberia dentro dele, duas vezes.
— Certo.
Vamos ver o que esta senhora vai achar quando eu
contar que o tal príncipe andava brincando de gata
borralheira com o peruzinho do seu marido. Será que,
dessa vez, eu apanho? Não é tão incomum assim as
pessoas descontarem a ira das descobertas que faço em
mim. Eu deveria ter me prevenido, mas deixei o spray de
pimenta no carro; essa senhora rica e refinada não me
pareceu uma grande ameaça, mas duas senhoras ricas,
refinadas e furiosas, bom, aí a coisa mudava de figura.
— Judith, essa é a moça sobre a qual eu lhe falei.
Uma senhora mais jovial e bem vestida ergue os
lábios do cafezinho que tem nas mãos para me olhar dos
pés à cabeça. Não deve ter gostado do que viu, porque
desvia o olhar e volta para o cafezinho sem se importar
em me cumprimentar, estalando a língua em reprovação.
Eu até estava planejando ter dó dela, mas agora a vontade
tinha desaparecido.
— Vamos logo ao que interessa, dona Telma.
Ela assente e se senta no sofá, cruzando as mãos
acima do colo como uma verdadeira dama. Eu reviro os
olhos e emendo:
— Primeiro, meu dinheiro! — Estendo a mão,
enquanto a mulher do cafezinho volta a estalar a língua,
fazendo meu sangue começar a ferver.
Só não pulo no pescocinho torrado de bronzeamento
artificial dela porque várias notas de cem presas a um
elástico são colocadas na palma da minha mão. Sorrio e
conto as notas por cima, não é porque a mulher é rica que
é honesta. Depois de conferir se estava tudo ali, saco o
celular e coloco o áudio para rodar.
— O que está acontecendo? — pergunta, alarmada
pelas vozes de fundo, paro o áudio para uma breve
explicação.
— Ah, nada de mais. Enquanto eu seguia seu marido,
o banco em que estávamos foi assaltado — ela coloca
uma das mãos sobre o coração e, com a outra, cobre sua
boca aberta —, mas não precisa se preocupar; ele ainda
está vivo para a senhora fazer o que quiser com ele, e
todo o pânico do momento foi essencial para que ele
saísse... — engasgo. — Para que ele se entregasse mais
facilmente.
— Como você pode ser tão fria, mocinha? — me
repreende. — Meu marido acabou de passar por um
trauma. Ah, Nossa Senhora — na minha opinião, não era
hora de chamar a santa, mas me calei —, eu não deveria
estar fazendo isso com o Arnaldinho, ele não merece toda
essa desconfiança.
Ela volta a chorar, um choro culpado dessa vez, já vi
muitos destes também. Não perco tempo, então enfio o
maço de notas dentro do bolso e aperto o play novamente,
antes que ela desista.
Ela tenta me mandar parar, até tapa os ouvidos com as
mãos, mas sua expressão começa a mudar enquanto escuta
a voz do seu marido entregando todos seus podres.
Quando o áudio termina, ela me olha, atônita, as duas
mãos caídas no sofá ao lado do corpo e os olhos
perdidos. Antes que eu tenha qualquer reação, ambas
congelamos ao ouvir um barulho alto de vidro se
espatifando e olhamos em sincronia para a mulher do
cafezinho, que arremessou a xícara com força no papel de
parede florido. Fiquei agradecida por não ser na minha
cabeça e comecei a fazer o caminho até a porta a passos
largos.
— Sua... sua...
Gente fina não xinga, não?
— Piranha? Safada? Vagabunda? — tento ajudar, mas
ela balança a cabeça.
— Mentirosa — cospe, por fim, estalando a língua
novamente.
Eu vou bater nessa mulher, ah, se vou!
— A culpa não é da menina, Judith, ela só estava
fazendo o trabalho dela. — Funga dona Telma, tentando se
recompor. — Era a voz do Arnaldinho... — Então, ela
explode em lágrimas novamente, agarrando o decote de
sua blusa e o puxando com força. Essa é nova, nunca vi
uma mulher tentar ficar pelada de raiva.
— Não tem como termos certeza — ralha a outra,
incrédula — e, mesmo se tivéssemos, isso não é algo que
alguém deva saber — emenda, franzindo os olhos e me
indicando com a cabeça.
— Tem razão — concorda dona Telma, soltando a
blusa alargada e alisando a saia, parecendo decidida —,
pega ela!
Nunca corri tão rápido na minha vida. O que salvou o
meu pescoço? O tal do Arnaldinho estava entrando pela
porta quando passei correndo por ela.
Santo Arnaldinho!
Mas, como alegria de pobre dura pouco, comigo não
foi diferente. Assim que estava chegando próximo ao Totó
— meu lindo Fusca azul —, tropecei e caí de cara no
asfalto. As últimas coisas de que me lembro antes de
apagar é ver Arnaldinho sair correndo da casa com duas
lunáticas enrugadas em seu encalço vindo em minha
direção, se agachar e passar a mão pelo meu braço, me
levantando e me escorando em seu corpo gorducho, me
levando até meu carro e tateando meu bolso em busca das
chaves, as quais não demorou a encontrar. Ele me joga no
banco do passageiro do Totó e dá a volta correndo, entra
pelo lado do motorista e dá a partida, arrancando com
tudo.
É, acho que, no fim das contas, eu gostava do
Arnaldinho!
Capítulo 2 - Gustavo
“E se eu puder fazer por ti o que ninguém jamais fez por mim, eu faço.”
Detonautas

O príncipe montado no cavalo branco

Passei a vida inteira ouvindo minha avó contar a


mesma história, uma sobre um certo cavalo branco. Dizia
ela que toda mulher tinha um cavalo selado pelo destino e
que, nele, montaria um príncipe que viria ao seu encontro.
Não era algo fácil de notar, por isso ela deveria ficar
atenta. Se o cavalo fosse embora, não voltaria, e a chance
do “felizes para sempre” se perderia.
Bárbara, minha irmã caçula, abraçou a ideia com os
dois braços e as duas pernas e fez dela sua meta de vida.
Meu irmão mais velho, Augusto, sempre que ouvia o
assunto, revirava os olhos e afirmava ser uma tolice sem
tamanho. Já eu... Bom, eu fingia não prestar atenção, mas
absorvia cada uma de suas palavras com interesse.
Eu acreditava nelas.
Queria ser o príncipe que montaria em um cavalo
branco por alguém e, finalmente, depois de tanto tempo,
eu havia encontrado a garota certa, a garota que merecia
esse gesto. Uma garota que não me daria as costas e sairia
da minha vida como se eu fosse nada, ou ninguém. Já tive
uma dessas antes.
De todos os três netos, eu era o único que ainda não
havia tomado um rumo definitivo nos assuntos do coração.
Bárbara estava casada com Ian há alguns anos e, juntos,
tinham dois filhos. E embora Augusto tenha vivido anos na
promiscuidade, como diria a vovó, tomou jeito quando
conheceu Anna – uma garota sozinha no mundo que tinha
um menininho agarrado na barra de sua saia – e, mesmo
que meu irmão fosse babaca o suficiente para não querer
roubar os dois para si, foi vencido por um sentimento
maior que ele. Hoje ele mora com Anna e Nicholas na
casa que dividíamos até duas semanas atrás e já estava à
espera do primeiro filho.
Claro que nenhum deles encontrou o “felizes para
sempre” em um estalar de dedos. Bárbara foi abandonada
no altar por um babaca, descobriu que estava grávida dele
e quase foi morta pelo mesmo cara e a amante que ela
costumava chamar de amiga. Ian foi fundamental para que
ela não sucumbisse diante de tanto sofrimento e, embora
eu e Augusto não gostássemos de ver um de nossos amigos
namorando nossa irmã, tivemos que dar o braço a torcer,
porque ele, definitivamente, era o melhor para ela. Eles se
encaixavam como poucos casais, tinham uma sintonia
própria e um tipo de amor que vemos apenas nos livros e
quase nunca na vida real.
Já Augusto teve que lidar com Anna entre a vida e a
morte, e os cuidados de um garotinho; esse era, com
certeza, um de seus piores pesadelos. Ele tinha aversão à
atitude que Ian teve para com nossa irmã, assumir um filho
que não era dele. Fora isso, a palavra “amor” o fazia ter
brotoejas. Quando decidiu se entregar ao que sentia por
Anna, o passado da moça voltou para assombrá-los, e meu
irmão quase morreu quando entrou na frente de uma bala
para salvá-la. Não que eu saiba de todos os detalhes,
porque agora meus irmãos pouco falam comigo e fofocas
infelizmente não são mais repassadas.
Como eu disse, a história de amor deles teve seu
preço, e sei que a minha também tem. O que a vida vai me
roubar pelo amor da mulher que venero? Minha família,
serão eles que terei que abandonar para viver esse
sentimento e, por mais que eu tente, não consigo me ver
resistindo.
Camila fazia parte do meu passado, já havia sido
minha um dia, e gosto de pensar que, embora não fosse o
regresso dela que eu esperava do destino, foi o melhor
que ele poderia ter feito por mim. Era uma história bonita,
uma garota com quem fiquei na adolescência se tornar
minha mulher no futuro, eu podia gostar daquela história.
Minha decisão já estava tomada e nada me faria
mudar de ideia.
Quando Camila chega ao restaurante, já estou sentado
na mesa que reservei enquanto torço o guardanapo de
pano nas mãos ansiosamente. Ainda me admiro com o
quanto meu coração bate rápido quando a vejo, como se
fosse pular do peito direto em suas mãos. Como sempre,
ela está linda e provocante em um minúsculo vestido de
renda preta com um generoso decote e uma fenda que
expõe a coxa direita, e eu tento não me sentir incomodado
com os olhares que os homens lançam para seu corpo ao
vê-la passar. Mas é quase impossível, eu já sabia do risco
quando me apaixonei por ela.
Camila era o tipo de mulher que tirava o fôlego de
qualquer um, uma mulher de capa de revista. Seios
grandes, coxas grossas, cintura fina e muita sensualidade.
Ela era irresistível e me deixava louco. Constatar que eu
não era o único que sentia isso não era nada agradável.
— Oi, gatinho — cumprimenta, se abaixando para me
beijar.
Interrompo o beijo rapidamente para que ela se
levante e pare de dar uma visão que o babaca da mesa ao
lado vai usar como lembrança no chuveiro mais tarde,
mas ela parece não notar minha pressa e sorri ao dar a
volta na mesa e se sentar à minha frente.
— Oi, gatinha, como foi seu dia? — questiono,
fazendo um aceno para o garçom que, de pronto, caminha
até nossa mesa.
— O de sempre, gente suada e muita malhação —
responde, encarando a mesa ao lado.
Seu olhar foi capturado pelos olhos do babaca que
ainda não os havia desgrudado dela. Camila sorri
maliciosamente para si mesma e se volta em minha
direção, cruzando as pernas e inclinando o corpo mais à
esquerda, deixando sua coxa aparente para ele.
— E o seu dia, como foi?
— Ótimo — respondo entredentes, cerrando os
punhos, tentando ao máximo evitar uma briga, hoje não é o
dia para isso. Porém, vê-la gostar tanto da atenção
masculina que recebe e se vangloriar dela me deixa puto.
Entendo o que ela sente, provavelmente sua autoestima dá
um salto, assim como seu ego; também sei que ela não
cairia nas investidas de ninguém, para ela é tudo um jogo
de sedução, mas nem por isso consigo ficar feliz ao
imaginar o que aquele homem está pensando da minha
namorada. — Começaram os rumores de quem vai
assumir o projeto do novo shopping, meu nome está na
lista.
— Isso é perfeito! De quanto seria o aumento no seu
salário?
Sorrio por seu interesse na minha vida profissional e
tento ignorar a voz da minha irmã gritando na minha
cabeça, me dizendo que essa não é a pergunta que uma
mulher apaixonada faria.
— Alto — respondo, ignorando minha irmã, afinal,
foi isso que fiz a vida inteira —, tão alto que você vai
poder deixar o trabalho na academia, se quiser.
Porque eu, secretamente, queria que ela deixasse. Ser
professora de dança só a deixava mais suscetível ao
bando de machos que malhava na academia em que ela
dava aulas. Embora imaginá-la vestida de lycra, cercada
por uma matilha, fosse um dos meus pesadelos
recorrentes, eu não a forçaria, queria que ela fosse feliz.
— Eu gosto do meu trabalho — diz, sorrindo
duramente, um aviso de que ela não está disposta a tocar
no assunto novamente. Sorrio de volta abertamente,
fingindo que não pisei em um território perigoso. — Mas
ele não paga muito bem.
— Você pode ficar com o trabalho. Eu já assumi todas
as contas da casa, posso te dar uma mesada por fora,
mesmo agora sem a promoção.
Me mudei há mais ou menos duas semanas para o
apartamento dela. Em parte, porque Augusto e Anna
estavam formando uma família e eu só atrapalharia
morando com eles, e também porque eu não aguentava
mais meus irmãos tentando me fazer mudar de ideia
quanto a seguir com esse relacionamento. O fato era que,
até eu e Camila nos casarmos e decidirmos onde vamos
morar, eu estava na casa dela e não conseguia deixar de
me sentir um aproveitador por causa disso, então foi
natural me oferecer para pagar todas as despesas.
— Você faria isso? — pergunta, encantada.
Assinto, me dando conta de que o garçom não havia
aparecido. Procuro com o olhar e o vejo respondendo
algumas perguntas de um casal de meia-idade que deve tê-
lo detido no caminho.
— É muita gentileza, gatinho, mas não posso aceitar
tanto. — Ela parece envergonhada.
— Para com isso, Cá, agora tudo o que é meu é seu.
— Incluindo dois irmãos pé no saco, mas não vou lembrá-
la desse fato; como eu disse, não era dia para brigas.
— Bom... sendo assim — ela sorri e morde o lábio
em expectativa, debruçando-se na mesa para me encarar
com deleite —, eu vi um sofá maravilhoso outro dia indo
para o trabalho em uma loja chique de móveis, e a
decoração do meu apartamento está tão passada —
exclama, fazendo beicinho.
Antes que eu pudesse lhe prometer um sofá novo, o
garçom chega até nossa mesa.
— Já decidiram o que vão beber, senhor? — pergunta
o garçom, olhando unicamente para Camila.
— Sim, nos traga sua melhor champanhe — peço com
voz de poucos amigos, querendo que ele olhe para mim, o
que faz quando percebe meu tom de voz ácido.
— Sim, senhor. Gostariam de ver o cardápio?
Ele não tem nem a decência de parecer constrangido,
me olha como se fosse culpa minha deixá-la sair na rua
vestida daquela maneira.
— Não será necessário, já conhecemos a casa, eu
quero uma salada — anuncia Camila, erguendo as
sobrancelhas para mim, deixando claro que não ficou
alheia à minha pequena demonstração de territorialidade.
— O mesmo para meu namorado — diz, frisando minha
posição, para deixar claro que estou sendo bobo.
— Na verdade, acho que vou querer o filé...
Ela me olha como se fosse me engolir.
— Pode ser a salada mesmo, obrigado.
Agora foi a vez do garçom erguer as sobrancelhas.
Eu tinha que considerar seriamente a opção de
encontrar um bom esconderijo e contrabandear algumas
comidas cheias de calorias e gorduras para nosso
apartamento. Estava ficando um pouco cansado de ter que
subir até o apartamento que Bernardo dividia com Malibu,
alguns andares acima do nosso, para comer comida de
verdade, e não aquela porcaria de tofu que tinha na nossa
geladeira. Estava ficando tão recorrente, que ele mandou
fazer uma chave extra e me deu para não ter que ser
acordado sempre que eu tivesse fome. Mais um mês à
base de gelatina light, queijo coalho e batata-doce, e eu
pularia de uma ponte.
— Eu já disse que você tem que melhorar seus
hábitos alimentares, não adianta nada ter tantos músculos
e não toma contar deles. Quando menos esperar, estará
criando barriga e seu tanquinho vai se transformar em uma
máquina de lavar — resmunga.
Eu adorava malhar, quase tanto quanto comer. Eu
seguia uma dieta, puxava peso com regularidade, corria
todos os dias, mas, nos finais de semana, queria comer a
porra de um filé. Não era o fim do mundo!
— Você tem razão, gatinha — optei por concordar,
era sempre mais fácil, mas eu me ressentia de ter que
deixar minha comida e minhas cervejas na geladeira
vizinha.
A champanhe foi servida, assim como os pratos, e
jantamos conversando sobre assuntos mais amenos. Ela
me contou sobre a nova professora de pole dance da
academia por quem nutria certa antipatia, e eu, bom,
escutei. Parece que a “vaca” havia falado para todo
mundo que era mil vezes mais gostosa que ela, e isso era
motivo para um assassinato e alguns cabelos arrancados.
Quando terminamos, pedi ao garçom para trazer a
sobremesa que eu já havia encomendado quando fiz a
reserva. Quando ela foi colocada à frente da minha
acompanhante, prendi a respiração.
— O que é isso, Gustavo? — perguntou, irritada. —
Não vou comer isso.
— O quê? — grunhi alarmado, soltando o ar em uma
lufada
Havia me esquecido de sua dieta idiota quando pedi
ao chef que colocasse a aliança de casamento dentro do
doce. Ah, ela ia comer, nem que, para isso, eu tivesse que
enfiar goela abaixo.
— Não vou comer esse “infarto fulminante” em forma
de brownie de chocolate, pode esquecer — sentenciou,
empurrando o prato, enquanto me lançava um de seus
olhares mordazes —, pode levar de volta! — ordenou ao
garçom.
— Não — praticamente gritei, o que chamou a
atenção das pessoas que estavam nas mesas próximas e
fez seu olhar se tornar mais duro pela vergonha. — O
petit gateau fica.
Eu estava me sentindo muito possessivo no momento
em que puxei o prato, arrancando-o das mãos habilidosas
do garçom.
— Já não havíamos conversado sobre a sua dieta? —
questionou, tamborilando as unhas longas e pintadas de
vermelho na mesa de maneira impaciente, assim que o
garçom se afastou e o barulho de conversas voltou a
preencher o silêncio incômodo.
Suspirei.
— Tem uma aliança dentro da sobremesa — revelei,
por fim, magoado, fazendo seu queixo cair.
Em um estalar de dedos, todo o romantismo que
imaginei ver na hora que ela descobrisse a surpresa por
conta própria evaporou.
— Você ia me pedir em casamento? — pergunta,
alarmada, puxando o prato de volta, dessa vez bem mais
interessada.
Ela não espera minha resposta em questão de
segundos e, com a ajuda da colher, assassinou a
sobremesa e resgatou o anel das garras malvadas do
açúcar, e, então, lá estava, a emoção pela qual esperei
desde que planejei esta noite. Seu sorriso se abriu ao
admirar os diamantes incrustados no ouro que manejava e
tudo o que eles representavam, e meu coração disparou.
— Eu ainda vou — anunciei, me enchendo de
coragem.
Me levantei e dei a volta na mesa, me ajoelhando à
sua frente, retirei o anel de suas mãos e o estendi em
frente ao seu rosto, abrindo um sorriso nervoso.
— Para, está todo mundo olhando — exclama,
envergonhada. — Levanta deste chão — pede entredentes,
dando olhadelas furtivas por cima do meu ombro, fazendo
com que meu coração afunde.
Me levanto imediatamente e me viro com a intenção
de voltar ao meu lugar, não era bem assim que eu tinha
planejado esse pedido. Mas ela me surpreende ao agarrar
meu braço com uma das mãos e, com a outra, pescar o
anel dos meus dedos.
— Eu aceito.
Sorri, admirando-o mais uma vez antes de colocá-lo
em seu dedo anelar.
— Agora volte a se sentar, pelo amor de Deus.
A salva de palmas que veio a seguir para nos brindar
de todas as direções mostrou que muitas outras pessoas
presenciaram a cena; eu não sabia se corava de vergonha,
ou de felicidade por ela ter dito sim.
— Mas que ideia foi essa de colocar a aliança na
sobremesa? Eu podia ter morrido engasgada. — Ralha,
sem tirar os olhos do anel.
Minha irmã teria adorado, penso, sorrindo torto
diante da sua felicidade.
Capítulo 3 - Marcela

“Ando tão azarada, que a única coisa que deve ter no


fim do arco-íris deve ser um boleto para pagar.”
Autor desconhecido.

O passado bate à porta quando menos se


espera

Quando acordo, constato imediatamente que estou em


um hospital, mas não sei precisar qual fator é o mais
determinante nessa descoberta. Não sei se é o burburinho,
o cheiro de álcool ou o som de máquinas tão conhecidas,
apenas sei, assim como sei que o céu é azul e que a água
do mar é salgada.
Odeio hospitais.
— Ei, você! — grito para uma enfermeira que
passava em frente ao meu leito tão rápido que parecia que
estava indo tirar o pai da forca. Ela se vira em minha
direção com agilidade o suficiente para fazer com que seu
coque se movimente e me lança um olhar impaciente. —
Eu quero ir embora — murmuro, levantando meu braço
para lhe mostrar o acesso que desejo que ela faça
desaparecer em um passe de mágica.
— Você precisa esperar o médico, querida.
Eu tinha um sério problema quando alguém me
chamava de querida. Tinha vontade de dar na cara da
pessoa, berrando: “Não sou sua querida, porra!”, mas me
contentei em lhe abrir um suspiro dramático, já que
precisava de sua ajuda.
— Vou pedir para que ele venha vê-la — responde,
antes de se virar e sumir das minhas vistas.
Não sei se foi a cara de poucos amigos, a pressa ou
seu desinteresse, mas eu sabia que ela não estava indo
atrás de um médico para resolver o meu problema, então
agi por conta própria.
Me sentei na cama e puxei a agulha do meu braço
como quem arranca um band-aid, encarando uma parede
cinzenta e sem graça durante o processo. Limpei o sangue
no lençol e me lancei para fora da cama depois de tomar
um impulso, constatando que ainda estava meio grogue
quando beijei uma parede na boca – e de língua – e saí
andando calmamente da sala de observação, me
embrenhando pelos corredores.
Só me toquei que minha bundinha branca estava do
lado de fora daqueles camisolões horríveis que os
hospitais obrigam os pacientes a usarem quando o
segurança assobiou para mim. Claro que não fiquei
envergonhada, eu fiquei é lisonjeada – qualquer tipo de
atenção era muito bem-vinda, obrigada – e continuei com
a bunda de fora mesmo, procurando a saída.
Eu era meio esquisita. Nunca me atinha aos fatos
importantes, talvez esse fosse o motivo do azar que me
perseguia como carrapato em cachorro vira-lata não me
dar uma folga. Meus primeiros pensamentos quando
acordei deveriam ter sido: “Será que estou bem? Vou
morrer? Tive um aneurisma cerebral quando minha testa
se chocou contra o asfalto?”, mas não foram. Só pensei em
dar o fora o mais rápido possível, pelo menos até que
perguntas verdadeiramente importantes começaram a
gritar na minha mente. Como por exemplo: “Cadê o
Arnaldinho e, puta que pariu, cadê minha grana?”. Como
pude me esquecer da grana? Só me lembrei dela quando
cheguei à rua e notei que não tinha bolsos, nem bolsa, nem
carteira, nem chave do carro; eu não tinha ideia de onde
estava a merda do meu carro. Pelo que sabia, Arnaldinho
poderia estar entrando na divisa do Paraguai com ele
naquele momento!
Tive um pequeno ataque histérico no meio da rua.
Gritei, bati os pés e puxei os cabelos de raiva, depois
respirei fundo e dei meia-volta, entrando no prédio gelado
e desinfetado novamente com a minha bunda de fora e uma
carranca mal-humorada no rosto. Minha intenção era
voltar para minha cama e pedir um rango enquanto
esperava o tal médico aparecer e, quem sabe, me dar uma
luz de onde haviam ido parar os meus pertences, mas não
fui muito longe. Trombei com alguém – um alguém bem
duro, por sinal – assim que virei no primeiro corredor.
Depois de bater com a cabeça de novo no peito da
criatura feita de concreto, caí sentada no chão por conta
do impacto.
— Puta que pariu! — exclamei, irritada, esfregando a
testa já dolorida, tentando não imaginar em quantos
germes eu estaria sentada.
— Ei, olha por onde anda, garota — reclamou o cara
que, além de ser desatento, era desagradável.
Que culpa eu tinha se ele vinha caminhando distraído
pelas palavras impressas nas folhas de papel que trazia
nas mãos? Folhas estas que estavam espalhadas ao meu
redor naquele momento. Quando ele terminou de juntá-las,
eu ainda estava no chão, encarando-o. Tinha certeza de
que conhecia aquela cara azeda de algum lugar, mas de
onde?
— Você não deveria estar em um leito? — pergunta,
erguendo a cabeça da pilha de folhas com aparente mau
humor, me olhando nos olhos, fazendo com que meu
coração martele no peito e minhas mãos suem em sinal de
reconhecimento.
Aquele olhar. Eu conhecia aquele olhar. Assim como
conhecia as maçãs do rosto proeminentes e sua estrutura
quadrada, as covinhas fundas e as sobrancelhas erguidas.
Eu não conhecia, de fato, aquele homem, mas todos seus
traços me fizeram lembrar de alguém que conheci e fiz o
possível e o impossível para esquecer, alguém de quem eu
realmente não queria me lembrar.
Eu queria ter feito muitas coisas: sair correndo, gritar,
talvez até chorar, mas não consegui fazer nada disso,
apenas permaneci no lugar o olhando de maneira
embasbacada. Eu sabia que ele não era ele, mas era
parecido o suficiente para que me sentisse na defensiva.
O irmão mais velho dos Bittencourt era mais alto e
mais forte, também era mais parrudo e duro em suas
feições; já o homem que voltava a invadir a minha
consciência sem a minha permissão era mais doce, sereno
e encantador. Ambos eram lindos, olhos castanhos,
cabelos negros, traços marcantes e postura refinada. A
diferença estava no olhar; o de um era ferino, o do outro
era deslumbrado.
O mais velho seria considerado mais atraente pelo
tipo de mulher que não pode ver um bad boy daqueles que
te comem com os olhos sem molhar as calcinhas, ele
parecia do tipo que fazia mil promessas de te jogar com
as mãos grandes em uma parede como uma lagartixa
atropelada, e, acima de tudo, faria você implorar por
mais. Já o outro, era mais atraente para o tipo de mulher
sonhadora, aquelas que ainda acreditavam que um homem
bom pudesse fazer valer o risco de amar. Um cara
preocupado, atencioso e divertido, um daqueles por quem
as mulheres se apaixonam nos filmes e nunca encontram
na vida real; ele era bom demais para ser verdade.
Quando o conheci, eu era uma garota do segundo tipo
– uma das iludidas –, e foi por causa dele que me tornei
uma do terceiro: aquele time de mulheres que procuram o
que perderam em qualquer um, sem dar uma segunda
olhada no nome do fabricante e na data de validade, e
acabam tomando no rabo.
Ele ainda estava agachado na minha frente. Diante da
minha falta de reação, ele semicerrou os olhos e me
estudou por alguns instantes. Percebi o exato momento em
que ele me reconheceu, o que jamais pensei que pudesse
vir a acontecer, já que nunca tivemos muito contato, a não
ser cumprimentos educados nas raras ocasiões em que nos
encontramos. Estremeci por dentro quando ele pronunciou
meu nome em forma de pergunta.
— Marcela Cantagallo? — perguntou, surpreso. — É
você? — Ele parecia não acreditar, assim como não
parecia nem um pouco feliz em me ver. — Você não deve
se lembrar de mim, sou Augusto Bittencourt — emendou
quando não respondi.
Eu lembrava, só não sabia se queria que ele soubesse
disso ou não.
— Oi, Augusto, como vai? — Dei um sorriso débil.
Ele ergueu as sobrancelhas e se levantou, me
estendendo uma mão, que aceitei. Quando fiquei de pé,
tive a decência de segurar a droga das pontas da camisola
e esconder minha bundinha carnuda.
— Está tudo bem. Pensei que ainda morasse em São
Paulo.
Olhei para o chão e encarei o esmalte verde abacate
das minhas unhas do pé ao responder a pergunta que ele
não havia me feito.
— Me mudei de volta há quase um ano, estou
trabalhando aqui agora.
— Está se adaptando? — Eu sei que existia mais por
trás dessa simples pergunta, então dei de ombros. — Está
trabalhando em quê? — Ele parecia interessado.
— Achei você, destruidora de lares de uma figa —
berrou uma voz afetada, me fazendo dar um pulo.
Olhei para o lado e encontrei Arnaldinho a dois
passos de distância com a minha bolsa nas mãos. Acho
que hoje era o dia das surpresas, não é que o idiota tinha
mesmo ficado?
— Fiquei com medo de você morrer antes de eu
colocar as minhas mãozinhas no seu pescoço safado. — O
mais estranho é que ele me disse isso com um sorrisinho
zombeteiro no canto da boca.
— Passa isso pra cá — ordenei, pegando minha bolsa
de suas mãos de forma desconfiada.
Abrindo a bolsa, achei de imediato minhas roupas e o
dinheiro que sua mulher havia me dado, então respirei
aliviada. Ele podia ser um traidor, mas ainda era honesto.
Fazia algum sentido? Nem eu sabia.
— Pensei que, a essa altura do campeonato, você
estaria cruzando a fronteira com o Totó — murmurei
distraidamente.
— Como é? Esse não é o nome do meu cachorro! —
Pareceu confuso.
Antes que eu pudesse explicar que esse era o nome do
meu carro, o celular do azedo tocou e não resisti em ficar
quietinha para ouvir a conversa.
— Oi, anjo. — Ele abriu um sorriso involuntário.
Não é que o desgraçado ficava ainda mais bonito
quando sorria? Arnaldinho não parecia pensar diferente
quando me deu uma cutucada nas costelas e piscou os
cílios em minha direção.
— Não acredito que perdi isso — disse, em um
lamento genuíno. — Eu só tenho mais três pacientes, logo
vou estar em casa, estou ansioso para sentir. — Ele
esperou que o “anjo” dissesse alguma coisa e encerrou a
ligação. — Amo vocês, até mais tarde.
A detetive em mim queria muito saber quem era o
“vocês” por curiosidade genuína e, para minha felicidade,
ele deu voz aos meus pensamentos.
— Era minha mulher, ela está grávida, nosso bebê se
mexeu pela primeira vez!
A alegria em sua voz esticou as duas mãos em direção
ao meu peito, penetrou minha carne e agarrou meu coração
com força, esmagando-o que nem a Rainha Má fazia em
Once Upon a Time com as pessoas das quais não gostava.
— Parabéns. — Dei um sorriso amarelo e abracei a
bolsa com força. — Foi bom te ver, mas agora temos que
ir.
Não esperei uma resposta, agarrei o braço gorducho
do meu acompanhante e saí andando rapidamente. Pelo
canto do olho, pude notar algo cair da minha bolsa, mas
não me virei para ver o que era exatamente, sabendo que,
mesmo que fosse algo importante, eu não teria coragem o
suficiente para voltar lá. Nem com a minha bunda à mostra
me preocupei naquele momento.
— Por que seus olhos estão marejados? — perguntou
o homem ao meu lado, me fazendo parar e constatar que
meus olhos ardiam.
Ele não parecia curioso, apenas preocupado. Será que
ele tinha noção que, mais cedo, eu fodi a sua vida por
alguns trocados? Muitos, muitos trocados, corrigindo.
— Tá maluco? Eu não tô chorando! — exclamei,
perplexa, soluçando involuntariamente.
A vida é muito engraçada, isso é o mesmo que dizer
que a mãe dela era uma quenga, se é que a vida algum dia
teve uma mãe. Sempre que pensamos estar livres, seja de
uma situação, uma pessoa, uma memória ou lembrança,
ela faz questão de jogar na sua cara que quem manda é ela
e, no jogo, você é apenas uma pecinha insignificante. Eu
poderia ter encontrado tantas pessoas nesse hospital hoje:
a Madonna, meu carteiro, a moça que trabalhava para a
operadora de cartão de crédito, mas não. Encontrei a
cópia do homem que me assombrava. Se antes meus
pesadelos já não tinham mais um rosto definido, mas
desfocado pela memória falha e os anos de distância, a
partir de hoje, passariam a ter.
— Deve ter sido um cisquinho, então. — Me deu uma
piscadinha matreira. — Já, já, passa, destruidora de
relacionamentos estáveis e cheios de amor — comentou
Arnaldinho, sorrindo para mim de maneira conspiratória
antes de voltar a andar.
Eu já disse que gosto dele? Pois é, eu gosto!
Capítulo 4 - Gustavo
“Para se ser feliz até um certo ponto é preciso ter-se
sofrido até esse mesmo ponto.”
Edgar Allan Poe

Eu escolho ela

Vou conseguir, penso, batucando os dedos no volante.


Tenho que conseguir!
Fecho os olhos aliviado quando sou obrigado a parar
em mais um farol vermelho, grato por ganhar mais um
minuto antes de encarar a morte. Por morte, quero dizer a
minha linda e agressiva irmã mais nova.
Eu não vou conseguir, não vou. A quem estou
querendo enganar? Ela vai me picar em pedacinhos e dar
para o cachorro comer. Talvez não, ultimamente não estou
mais sendo amado o suficiente para servir nem para o
cachorro.
Ela, provavelmente, vai me enfiar em alguns sacos de
lixo e jogar na beira da estrada ou, se estiver em um dia
bom, vai mandá-los para a mamãe ter, no mínimo, onde
chorar. Já estou imaginando minha mãe chorando sobre
meus pequenos e minúsculos pedaços. Vejo-a nitidamente
enxugando o rosto com um lencinho e sorrindo para minha
irmã, orgulhosa ao levantar a cabeça. Mamãe também não
está me amando muito ultimamente.
Ninguém da minha família está.
Não tenho mais o controle do portão nem as chaves
da casa, deixei tudo na caixa de correio quando fui
embora; no dia, me pareceu ser o correto já que, de certa
forma, estava rompendo laços. Não tive ajuda para
arrumar minhas coisas, nem para carregar o carro. Eles
não quiseram nem se despedir de mim e, para isso, cada
um saiu de casa com uma desculpa diferente. Augusto
disse que tinha que trabalhar, Ian fez o mesmo, Anna
sumiu para o parquinho com Nicholas e Valentina, e
Bárbara disse que me odiava e esperava que uma das
malas esmagasse minha cabeça no processo, que sairia
porque existia grande chance de ela fazer isso por conta
própria se minha bagagem não cooperasse.
Quando informei que iria me mudar para a casa da
Camila, eu e meus irmãos tivemos uma briga feia, que
acabou nos ouvidos dos meus pais e da minha avó,
logicamente. Bárbara tentou me bater de novo, e Augusto
não segurou, o que queria dizer que ele concordava com
cada um dos tapas que tomei no pé do ouvido, mas que eu
não valia o suficiente para que fosse ele a perder tempo
em bater por conta própria. Ian foi o único que pareceu se
compadecer, mas, no fim das contas, ou ele ficava do lado
da minha irmã ou seria obrigado a dormir no sofá; não foi
difícil imaginar que lado ele escolheu, não é? Anna se
recusou a opinar, mas também não precisou, eu tinha
aprendido a conhecê-la bem nos poucos meses em que
moramos juntos. Seus olhos observadores e a postura
rígida, assim como os lábios em linha reta e as mãos
torcendo o que estivesse por perto, me disseram que ela
também não estava feliz com a mudança. Desde então,
eles estavam me dando um gelo.
Bernardo era o único com quem eu não havia brigado,
até porque ele já sabia há muitos meses que eu e Camila
estávamos juntos e desistira de tentar me dissuadir depois
de algumas semanas guardando segredo. Ele continuava
mantendo as portas da sua casa e de sua geladeira abertas
pra mim, já Vivian fingia não me ver toda vez que me
encontrava perambulando por lá, mas também nunca me
mandou embora. Ela era fiel à minha irmã, mas tinha um
coração muito puro para negar um pedacinho de bolo de
chocolate a uma pessoa verdadeiramente necessitada.
Depois que Camila disse o sim que sonhei ouvir de
uma mulher por tantos anos, não perdi tempo em ligar para
Bê e pedir que ele me fizesse um favor. Eu queria que ele
reunisse minha família para que eu pudesse contar a
novidade e levasse sua arma, só por precaução, caso
alguém me amarrasse em uma cadeira, me trancasse em
um armário ou tentasse me furar com uma faca. Mas, agora
que estava de frente à minha, quer dizer, à casa do
Augusto, eu já não tinha mais certeza se tinha tomado a
decisão certa. Não sobre o casamento, e sim sobre contar
pessoalmente sobre ele para muitas pessoas furiosas. Eu
deveria ter feito isso por telefone ou por carta. Isso, uma
carta teria sido melhor, nenhuma interação, era isso o que
deveria ter feito.
Fico vinte minutos escondido dentro do carro feito um
covarde, pensando seriamente na possibilidade de ir
embora. Quando giro a chave na ignição, meu celular toca,
Camila.
— Oi, gatinha.
— Já contou para eles?
Eu estou bem, obrigado, e você, amor?
— Ainda não, acabei de chegar aqui — minto.
— Larga mão de ser mentiroso, Gustavo. Você saiu
daqui há mais de meia hora, e seus irmãos moram
praticamente na nossa esquina — bufa de raiva. — Não
seja covarde, entra lá e conta pra eles! — ordena sem
paciência.
— Mas... — Eles vão gritar comigo, provavelmente
vão me bater, podem até me matar.
— Não me venha com “mas”. Entra lá agora, ou nem
precisa voltar pra casa!
Abro a boca para tentar consertar as coisas, dizer que
não estou em dúvida sobre nossa união, e sim com receio
de entrar em mais uma briga de família que vai me deixar
exausto mental e fisicamente. É cansativo me defender de
tapas quando não se pode revidar, sabe? Eu até poderia
descer o braço na Bárbara, o que nunca fiz quando éramos
crianças, o problema é que eu sabia o quanto os socos do
Ian doíam; ele não sabia brincar e, sei lá, eu meio que
tinha dó dela... Veja bem, eu disse dó, e não medo.
Respiro fundo e resmungo por, aproximadamente,
cinco minutos, depois saio do carro e caminho até a porta,
tocando a campainha antes que minha coragem recém-
adquirida – pela ideia de ficar sem casa – me abandone e
eu volte para o modo “Na boa? Não vou, não”.
— Tem certeza de que vai fazer isso? — pergunta Ian,
assim que abre o portão e dá uma boa olhada em todo o
suor que escorre da minha testa.
Como ele sabe? A pergunta deve estar piscando dos
meus olhos confusos, como um letreiro, porque ele
resmunga e a responde:
— Bernardo me contou. Tem certeza de que está
fazendo a coisa certa?
— Você quer que eu case primeiro e conte depois? —
A ideia realmente havia me passado pela cabeça.
— Eu quero que você não se case, pelo menos até ter
certeza de que a Camila não... Eu o interrompo com um
suspiro irritado.
— Ela mudou, Ian. Pode ficar tranquilo que você
nunca mais vai encontrá-la na sua cama.
Ele revira os olhos, mas não consigo me controlar e,
quando vi, já tinha dito. Aquela história ainda me
incomodava, como não incomodaria? Saber que sua
mulher armou para destruir o relacionamento da sua irmã
ficando nua na cama do seu cunhado para armar um
flagrante falso... Mas já havíamos conversado sobre o
assunto, ela tinha se arrependido, e eu, acreditado nela.
Embora aquela fosse uma história que eu queria enterrar,
ninguém parecia me deixar fazê-lo, muito menos meu ego
ferido e enciumado.
— Eu só quero que você tenha certeza de que ela é a
mulher ideal — diz, dando um passo para o lado para que
eu entre. — Quero que tenha consciência de que é um
grande passo.
— Eu tenho — afirmo categoricamente.
— Se tivesse, não teria tanto medo a ponto de ficar
vinte minutos dentro do carro para tomar coragem antes de
entrar — comentou baixinho, trancando a porta. — No
fundo, você sabe que seus irmãos têm razão, só estão
preocupados.
— Eu tenho certeza de que quero me casar com ela,
só não tenho certeza se terei o apoio das pessoas mais
importantes para mim. Eles não estão preocupados, Ian,
estão tentando mandar na minha vida — disse, dando-lhe
as costas e começando a caminhar.
— Nada diferente do habitual, então por que você
está tão na defensiva?
Não respondi, apenas continuei andando.
Quando passei pela porta da cozinha e entrei no
jardim, encontrei quase todas as mulheres da minha vida
sentadas à mesa de madeira perto da churrasqueira se
virando para me encarar. Vovó, mamãe, Bárbara, Anna e
Vivian. Até Valentina, minha sobrinha, se empertigou no
colo da mãe e fechou a cara. Busquei ajuda. Augusto, ao
notar o silêncio que recaiu sobre a mesa da fofoca, se
virou com um espeto empunhado em uma das mãos – nota
para reparar na localização do espeto antes de dar com a
língua nos dentes –, papai e Bê estavam ao seu lado
tomando uma cerveja, ambos me olharam com pena. Foi
na direção deles que caminhei.
— Oi, gente — cumprimentei com um aceno, e só não
fui ignorado pelos homens, embora o resmungo do meu
irmão não pudesse ser considerado um apoio.
— Estamos todos aqui, o que você queria nos contar?
— pergunta minha irmã na lata, colocando Valentina no
chão para ter vantagem, caso precise correr para me
alcançar.
— Estamos aqui porque Gustavo quer nos contar
algo? — pergunta minha mãe, batendo palminhas; claro
que minha irmã a ignora com um revirar de olhos. — Boas
notícias, querido?
— Duvido muito, mamãe — sussurra Bárbara.
— Por que não almoçamos primeiro e conversamos
depois?
Ela semicerra os olhos e franze a boca. Não deixo de
notar a risadinha de Ian, que claramente sabe que estou
tentando ganhar tempo.
— Não, fala agora. Dependendo do assunto, vou fazer
questão de assar você — ameaça Bárbara.
Ela é esperta, sabe exatamente o que eu vim dizer,
mas parece estar tentando se convencer de que está
errada.
— Gustavo tem razão, ursinha, vamos ter um almoço
agradável em família primeiro — argumenta nosso pai
com uma voz severa, porém doce, aquela que ele usa
quando quer que ela faça algo sem parecer que está
realmente mandando nela, uma voz que sempre funciona e
nem Augusto, Ian ou eu sabemos imitar.
Ela, claramente, não fica feliz, mas assente, olhando
unicamente para ele, enquanto eu respiro aliviado.
— Não vou segurá-la — alerta Augusto, quando estou
perto o suficiente para que apenas eu escute.
Quando foi que ele segurou? Pelo que me lembro, no
dia em que ela descobriu sobre o meu namoro, tomei uma
verdadeira surra da Bárbara e da Vivian, e ninguém,
absolutamente ninguém, tentou me salvar.
— Se ela te bateu quando descobriu o namoro, não
quero nem pensar o que vai fazer hoje quando souber do
casamento.
— Você contou para ele também? — encaro
Bernardo, perplexo.
Ele apenas dá de ombros.
— Estou te ajudando, quanto menos pessoas surtadas,
melhor para você.
Pensando por esse lado...
— Você tem certeza disso, meu filho? Bárbara nos
contou tudo sobre essa moça e eu não tiro a razão dela em
achar que você merece coisa melhor.
Tento não me ofender por ele ter dito “coisa” e não
pessoa, apenas aceno afirmativamente, e ele balança a
cabeça, decepcionado.
O almoço não é tão agradável como meu pai sugeriu
que fosse. Todo mundo está mais quieto do que o normal,
e minha irmã, muito mais nervosa. Bernardo e papai fazem
de tudo para quebrar o gelo, Ian até tenta ajudar, mas o
clima está pesado e temo que o dia vai fechar nessa casa
em breve. Posso até ver alguns raios acertando minha
bunda!
— Desembucha de uma vez, eu não aguento mais —
implora Bárbara, quando enfio a última garfada do filé na
boca. Puta que pariu, como estava gostoso.
Se até os condenados que estavam no corredor da
morte tinham direito a uma última refeição de sua escolha,
por que eu não teria?
— Vou me casar com ela — cuspi rápido, sem pensar.
Apenas coloquei aquelas cinco palavras para fora como
se estivesse tossindo ou, no caso, engasgando, o que
aconteceria em breve...
Fechei os olhos e esperei pelas mãos finas agarrando
meu pescoço e pelo ar que não viria até uma boa alma
segurar a fera pelos braços magros, mas nada aconteceu.
Voltei a abrir os olhos e me assustei. Não encontrei a
raiva, a fúria assassina ou o ódio tão costumeiros no olhar
da minha irmã; o que encontrei foram dúzias e mais dúzias
de lágrimas.
Eu tinha feito minha ursinha chorar.
Fiquei sem reação. Embasbacado. Chocado. Teria
sido mais fácil e menos doloroso se ela realmente tivesse
me batido ou gritado comigo, mas ela me olhava com
olhos fundos e repletos de tristeza. Ali, eu entendi que o
que ela sentia não era apenas uma birra infantil, um desejo
de vingança tolo ou um ciúmes bobo, e sim uma dor
imensurável.
Virei o rosto para não ver sua decepção. Eu queria
que ela entendesse, me apoiasse e notasse o quanto a
mulher que ela não suportava me fazia bem, e o quanto eu
a amava, mas estava claro que ela não conseguia. Bárbara
sempre foi a primeira a pular na frente de Augusto ou de
mim, nos defender com unhas, dentes e socos e, por mais
que eu não quisesse suportar a ideia, daquela vez, ela não
faria o mesmo.
Era mais do que não querer, era muito mais, era
realmente não conseguir.
— Com quem você vai se casar, querido? — pergunta
minha mãe, com evidente interesse.
Ela parece um pouco assustada, não com o choro alto
de Bárbara, mas pelo fato de que, até então, ela
provavelmente nem havia prestado atenção na briga de
seus próprios filhos. Se eu tivesse que apostar, diria que
ela nem havia percebido que me mudei.
— Está feliz? Olha o que você fez com a nossa irmã
— exclama Augusto, furioso, puxando Bárbara pelo
braço, para que ela se levantasse, e a apertando contra o
peito.
Anna avisa que vai pegar um copo de água para ela e
some para dentro de casa, carregando duas crianças
curiosas consigo. Ian parece irritado ao colocar a mão nas
costas de Bárbara e afagá-la, Vivian também se levanta
preocupada com ela, até meu pai parece a ponto de me dar
uma reprimenda por fazer sua filha favorita romper em
prantos. Bernardo abaixa a cabeça e mamãe parece ter
voltado para Oz.
Todos estão contra mim, e os que não estão, não têm
coragem de admitir. Porém, um olhar em especial é o que
me marca. Minha avó está sentada na ponta da mesa, mãos
cruzadas em cima do tampo de madeira e os olhos
úmidos. Naquele olhar, encontro apenas desilusão e isso
me corrói por dentro, porque vovó nunca erra.
Para afugentar a tristeza e fazer meus olhos pararem
de coçar, eu sinto raiva. Vou mostrar para eles, todos eles,
que estão enganados, e que é a mulher que ninguém aceita,
aquela que eles julgam sem conhecer e não oferecem uma
segunda chance, que vai me fazer feliz.
— Pensei que, nessa família, não julgássemos
ninguém — falo, dando as costas e caminhando para
longe, antes que eles vejam que estou a ponto de chorar,
tamanha a rejeição que toma conta de todos os meus
sentidos.
— Nunca se esqueça de que foi você quem nos deu as
costas, você nos traiu com o inimigo. — As palavras de
Bárbara me fazem congelar no lugar, e uma raiva, até
então desconhecida, invade minha corrente sanguínea.
— Se a mulher que amo é o inimigo, então eu também
sou — respondo sem me virar, saindo do jardim. — A
partir de agora, é ao lado dela que vou lutar e, quanto
mais cedo você entender isso, melhor.
Dou as costas para as pessoas que sempre estiveram
ao meu lado, até hoje, para ir me encontrar com a pessoa
que vai ficar ao meu lado até o fim dos meus dias.
A garota que não vai me abandonar.
Capítulo 5 - Bárbara

“A família é a demonstração perfeita do amor


incondicional.”
Autor desconhecido

Decisões idiotas pedem medidas drásticas

Levo quase uma hora para parar de chorar depois de


vê-lo nos dando as costas por causa dela, justo ela. Eu sei
que sua intenção não era me ferir e, provavelmente, nem
fosse se apaixonar, porque, quando o coração resolve
assumir as rédeas, razão nenhuma no mundo faz com que
ele galope mais devagar, mas pensei que ele mudaria de
ideia, pensei que veria o erro sem tamanho que estava
cometendo. Ao invés disso, decidiu se casar com aquela
mulher.
Eu não suportava a ideia de imaginar meu irmão
esperando uma ordinária ao lado do padre no fim do
corredor, porque sabia que ele a olharia com olhos
brilhantes e marejados e com o coração batendo forte
dentro do peito. Eu teria que quebrar minha tradição;
naquela relação, o problema não seria o noivo. Tinha
certeza de que olharia para ela e veria um sorriso de
triunfo e deboche sendo direcionado para os convidados,
procurando unicamente os meus olhos. Ela não estaria
preocupada com o homem lindo e apaixonado que a
esperava, mas, sim, em tripudiar sobre o fato de tê-lo
tirado de mim.
Era oficial, eu ia pular de uma janela!
Não, não ia. Eu tinha um marido lindo e duas
pestinhas para criar, sendo assim, a equação era simples:
jogaria minha futura cunhada de uma janela. Se aquele
casamento realmente acontecesse – o que eu não pouparia
esforços para impedir –, provavelmente eu não
compareceria. Não daria esse gostinho para ela, mesmo
que, para isso, partisse o coração do meu irmão em um
milhão de pedacinhos doloridos. Eu estaria fazendo um
favor a ele, porque, nas mãos dela, aquele coração não ia
durar muito de qualquer maneira.
Quando a noite chega e todos já foram dormir, eu me
levanto da cama e me arrasto pela casa fazendo minhas
pantufas de dinossauro deslizarem no piso encerado, sem
rumo, triste e, ao mesmo tempo, brava, pensando no meu
irmão e na notícia que ele nos revelou hoje.
Eu precisava fazer alguma coisa a respeito, precisava
mostrar para ele que Camila não era a mulher certa, que
não estava nem perto disso. Mas como? Ele já tinha
deixado claro que não voltaria atrás, e era um moleque
teimoso. Provavelmente iria em frente com aquele
casamento só para me irritar, só para não me ouvir dizer o
famoso “Eu te avisei, mané, avisei que ela era uma
safada”.
Ele ia se ferrar, por que não via que ia se ferrar?
— Bá.
Olho para o alto da escada e encontro Ian no primeiro
degrau, ele se abaixa e me chama em voz baixa para não
acordar as crianças. Eu apenas o encaro a ponto de
desmoronar ou sair para comprar um rifle de caça, ainda
não decidi. Meu marido balança a cabeça e passa as mãos
pelo rosto para espantar o sono, descendo o restante da
escada para vir ao meu encontro.
— Perdeu o sono, meu amor? — pergunta, afagando
meus cabelos e me abraçando.
— Eu queria tanto, tanto matá-lo, Ian. — Suspiro. —
Queria ter enfiado a faca de churrasco nas costas dele
quando as virou para nós. Eu não queria ter chorado,
queria ter agido. Deveria tê-lo preso no porta-malas do
seu carro até ele deixar de ser um idiota iludido —
lamento, agarrando a camiseta surrada dele e enfiando
meu nariz em seu pescoço.
— Se esse relacionamento for em frente, todos nós
vamos ter que aprender a conviver com a Camila, amor.
Não podemos cortar relações com seu irmão por causa da
mulher que ele escolher, mesmo que não concordemos
com essa escolha.
Ele está tentando me consolar? Porque,
definitivamente, não está parecendo.
— Talvez devêssemos apoiá-lo.
Parei de ouvir aí e comecei a imaginar uma pequena
vozinha dentro da minha cabeça que dizia: “Você deve
apoiar seu irmão, Bárbara Cristina, por mais otário que
ele esteja sendo”. Ameacei pensar sobre essa
possibilidade até perceber que a vozinha não estava
dentro da minha cabeça, mas entrando pelos meus
ouvidos, saindo direto dos lábios sábios do meu marido,
então foi o suficiente para abandonar a ideia.
Desde quando eu fazia o que ele mandava?
— Você já está imaginando aquela cobra sentada à
nossa mesa de jantar, não é? — pergunto, me afastando.
— Como pode agir tão naturalmente diante desta
catástrofe? Ian, estamos diante do apocalipse, você não
vê?
Me frustro com a versão loira do Dalai Lama com
quem me casei. Não era hora de apaziguar a situação, ele
deveria estar lustrando minhas facas.
— Se é ela quem seu irmão ama, nós estamos de mãos
atadas. — Ele sorri fracamente quando abro a boca para
xingá-lo. Um sorriso tão bonito que desisto da ofensa e o
abraço de novo. — Vem, vamos para a cama. Quem sabe
ele não vê por conta própria quem aquela menina é de
verdade antes do casamento?!
— Quem sabe... — murmuro, distraída, deixando que
ele me arraste escada acima.
Sonho com um casamento. O noivo chora no altar
enquanto a noiva, vestida de preto, gargalha, apontando
um dedo na minha direção. Levanto-me do banco da
igreja, pronta para arrancar a mão dela a dentadas, quando
alguém segura meu braço. É Gustavo, ele me olha com
receio e implora: “Por favor, Babi, eu a amo e você terá
que entender que, a partir de hoje, ela será sua irmã
também.”
Quando acordo, estou arrasada. Arrasada e decidida.
Vou impedir esse casamento. Ainda não faço ideia de
como vou fazer isso, mas eu vou.
Nos juntamos na casa de Monstro e Anna depois do
almoço, e o assunto vem à tona na mesa da cozinha. Eu
pareço a mais inconformada, mas Augusto não está muito
distante desse sentimento, isso se formos julgar pelo seu
veredito: “Eu prefiro dar a bunda antes de ser obrigado a
ficar em cima daquele altar, vendo aquele moleque
estúpido cometer o erro de se casar com uma puta barata”.
Sim, sempre educado, mas também inteligente.
— Dar a bunda é exagero, mas concordo com você,
temos que dar um jeito de impedir esse casamento —
exclamo, quase animada pela maldade.
— Amor, acho que você não deveria se intrometer —
aconselha Ian com a voz suave e, ao mesmo tempo, firme.
O timbre que ele usa quando esta me mandando fazer
algo sem realmente mandar, o tipo de voz que serve para
quando ele quer evitar uma briga. Uma vozinha petulante e
irritante que só me enfurece mais.
— Você acha? — pergunto, cinicamente, faiscando de
raiva.
Se ele ficasse do lado do meu irmão, para mim seria
o mesmo que ficar ao lado dela, a vadia que ele
carinhosamente chama de noiva, e esse era o tipo de
motivo que levava ao divórcio. Ele deu sorte por eu estar
tão destruída na noite anterior e não ter descontado minha
raiva na carinha bonita dele.
— Se você se intrometer, ele vai ficar magoado com
você — tenta se explicar. — Deixe que descubra por si só
que ela não é a mulher certa e, se isso não acontecer, bom,
é como eu já disse, vamos ter que aceitar. — Ele dá de
ombros.
— Não posso fazer isso — lamento, me esquecendo
da raiva por um instante. — Ela vai partir o coração do
meu irmão, e isso é algo que não quero ver, porque, senão,
serei obrigada a partir a cara dela, o que, pensando bem,
eu já deveria ter feito há muito tempo. Porque,
convenhamos, motivos não me faltaram.
— Ele supera, ela não vai ser a primeira mulher que
partiu seu coração — murmura Monstro distraidamente,
chamando minha atenção e aguçando minha curiosidade.
Ele parece não ter notado que falou em voz alta,
estava perdido em lembranças e, naquele momento, eu
daria tudo para entrar em sua cabeça e ver por onde ele
anda. Mas decido que não seria uma ideia tão boa assim,
caso, acidentalmente, eu pisasse em seu passado sujo por
engano, tinha uma chance grande de acabar saindo de lá
com gonorreia e algumas calcinhas presas aos tornozelos.
— Como assim?
Pelo que eu sabia, Gustavo era tão puto quanto ele,
Ian e Bernardo, antes de se enrabichar para o lado da
cobra anoréxica. Augusto balança a cabeça em uma
negativa, tentando fugir do assunto que ele próprio
começou sem se dar conta.
— Teve uma moça há muitos anos — comenta vovó,
parecendo tão distraída quanto o neto, quando ele se
recusa a me responder. — Ele devia ter uns 20 anos, ela
era uma amiga. Uma história que não terminou bem e
deveria ficar no passado — frisa ao ver meus olhos
brilharem em expectativa sobre a fofoca recém-
descoberta.
— O que houve? — Pensando bem, tenho uma
pergunta melhor. — Por que não fiquei sabendo disso?
Olho em volta da mesa, Vivian parece tão interessada
na fofoca quanto eu. Levanto o olhar e encaro meu pai e
Bernardo na sala assistindo ao jogo de futebol. Fico
distraída pela risada dos dois por meio segundo antes de
voltar a atenção para minha avó.
— Você já estava em São Paulo — diz Augusto,
olhando feio para vovó por ela ter entrado no assunto
mais a fundo. — O que aconteceu foi simples: nada. Nada
aconteceu.
Reviro os olhos. Ele sabe tão bem quanto eu que
minha curiosidade é maior do que minhas coxas, que, por
sinal, estavam enormes.
— Ele se apaixonou por ela e não foi correspondido,
a moça foi embora e, logo depois, se casou com outro
rapaz — conta vovó, parecendo perdida em lembranças.
Ela franze o lábio, como se não gostasse dos próprios
pensamentos, e balança a cabeça, parecendo querer
afugentá-los. — Ele se escondeu na minha casa por quase
um mês, ficou arrasado, pobre menino.
— Ele nunca me contou isso — murmuro, meio
magoada, meio ofendida.
Por que eu sempre era a última a saber das coisas
nessa família?
— Ele não fala sobre o assunto, Bárbara. Eu só soube
porque vovó pediu ajuda na época e eu fui buscá-lo, foi
quando ele se mudou para o nosso apê — diz Augusto.
— Demorou um tempo até que voltasse a ser ele
mesmo — comenta Ian por cima; até ele sabia, agora eu
estava mesmo muito, muito ofendida. Ele percebe meu
olhar e emenda, tentando consertar sua intromissão. —
Ele também não me falou nada, mas dava para ver que
vivia pelos cantos lá em casa. Depois de um tempo,
simplesmente melhorou e voltou a viver.
— Oi, anjo — cumprimenta meu irmão, com o rosto
se iluminando, quando Anna entra sorrateiramente na
cozinha. Seus olhinhos de cachorro domesticado brilham e
ele estende uma mão para que minha cunhada a pegue, o
que ela faz sem hesitação.
Augusto a puxa para seu colo, e ela se senta em sua
perna, enquanto ele passa as duas mãos por sua barriga
minúscula que abriga a vida deles. É como eles o
chamam, a vida. Só rezo para que essa vida nasça mais
parecida com a mãe do que com o pai, tadinha da criança
se for o contrário.
— Sobre o que vocês estavam falando? — pergunta,
se virando de lado e abraçando seu pescoço.
— Estávamos falando sobre a moça, cuja existência
eu desconhecia, que partiu o coração do pescador de
piranhas.
Os olhos de Anna se iluminam em reconhecimento e
ela estreita os lábios. Até ela sabe? Eles estão tirando
com a minha cara?
— A moça que você encontrou essa semana no
hospital depois de anos, anjo? — pergunta para o
Monstro, fazendo com que ele feche os olhos com pesar e
murmure um palavrão baixinho.
Rá, te peguei, safado, estava escondendo o jogo, não
é?
— O que eu disse de errado? — pergunta, confusa.
— Nada — respondo, olhando unicamente para ele,
que sabe que não tem saída. Vai ter que desembuchar a
história completa.
— Parece que ela se mudou recentemente de volta
para Florianópolis — murmura, rendendo-se e olhando
feio para Anna, que dá de ombros e sorri na minha
direção.
Ela é mais esperta do que todos pensam, sabia que
essa não era uma informação que ele gostaria de dividir e
o forçou assim mesmo. A cada dia eu gostava mais
daquela menina.
— Ela ainda é casada? — pergunto, cheia de
expectativa, com um plano louco se formando na minha
mente.
Será que, se Gustavo encontrasse uma moça por quem
foi tão apaixonado, seu coração balançaria? Não sei se é
minha histeria, as mãos que voam para todos os lados
quando eu falo ou o brilho malicioso que tenho certeza de
que permeia meu olhar, mas todos eles, menos Anna,
fazem exclamações negativas.
— Tinha que contar pra ela, Monstro? — reclama Ian,
sabendo como minha criatividade funciona rapidamente.
— Esse assunto não é algo com o qual você queira
mexer, Bárbara Cristina — ralha Augusto, dando uma
olhada mais feia do que a anterior para Anna. Se ele
estava me chamando pelos dois nomes, o que era raro,
então o assunto era sério. — Se o Mala nunca contou nada
sobre ela, quer dizer que a parada foi feia, porque ele é
tão boca-aberta quanto você.
Não me deixo abater pelo insulto.
— Ele é tão boca-aberta que conseguiu esconder de
nós por meses que tinha virado criador de aviário.
Isso não é o que mais me surpreende, e sim o fato de
ele ter tido uma mulher aparentemente importante o
suficiente para fazê-lo pedir colo para a vovó e nunca ter
nos falado sobre ela. Esse era o tipo de história que fazia
minha curiosidade dar pulinhos de excitação no trampolim
da minha mente maléfica.
— Amor, só deixa seu irmão em paz, ok? — volta a
pedir Ian, dessa vez de forma mais gentil.
Sorrio como uma boa menina e encaro Anna com os
olhos astutos, ela assente imperceptivelmente e se levanta.
— Estou com vontade de comer manga — anuncia
eficazmente, fazendo beicinho para o Monstro; ela alisa a
barriga para evidenciar a urgência do pedido, e ele sorri.
Nunca pensei que veria meu irmão de quatro, e agora
olha só! Se ele abanar o rabo, eu juro que compro uma
coleira!
— Capacho — tosse Ian. Uma velha brincadeira que
meu irmão fez com ele por anos e que, agora, fazia
questão de se vingar sempre que tinha oportunidade.
— Ah, vê se cala a boca, bichona, e vamos comigo
atrás destas malditas mangas — exclama irritado, se
levantando, beijando Anna e saindo pela porta da cozinha,
decerto atrás da carteira e das chaves do carro.
Ian faz o mesmo, se levanta e me beija, seguindo-o
pela porta.
— Quem diria, ele nem questionou, só se levantou e
saiu — murmuro, embasbacada.
As atitudes gentis do meu irmão, embora fossem
frequentes desde que assumiu Anna, ainda tinham o poder
de me deixar maravilhada e surpresa. Acho que isso nunca
ia mudar.
— Ele nem reparou que tem manga na fruteira. — Ela
ri, pegando uma das frutas.
Rimos com ela, mas nem eu e nem vovó deixamos de
reparar no olhar apaixonado que ela lança sobre a porta
pela qual ele saiu.
— Agora vamos ao que interessa. Eu não sei por que
Augusto está fazendo tanto drama por causa desse assunto,
mas ele não contou um fato importante. A moça deixou
cair um cartão e não sei por qual motivo ele o guardou.
Ela não espera que eu peça, simplesmente o tira do
bolso da calça jeans, o que evidencia que ela achou que
eu precisava saber dessa informação antes mesmo que
descobrisse sobre a garota. Quando ela me estende o
pequeno retângulo de papel preto laminado, entendo o
porquê.

“Marcela Cantagallo - Detetive Particular


Se seu marido pula a cerca, minha câmera te prova”

Onde essa garota estava todos esses anos? Anna era


minha alma gêmea do mal. Ela completava o nosso trio
como se tivesse sido feita para caber dentro dele. Sempre
astuta e observadora, ela é a razão que faltava em mim e
na Barbie, que era feita só de carinho, amor e bondade,
tipo um dos ursinhos carinhosos. Leio as palavras escritas
no cartão com uma ideia se formando na mente, com
certeza a mesma ideia que Anna teve quando o viu, pois
ela me contempla com um sorriso cheio de dentes assim
que levanto a cabeça e entrego o cartão para a vovó ler.
Era tudo de que eu precisava, aquele cartão era a nossa
saída!
Ah, Marcela, já estou ansiosa para conhecer você,
garota!
— Vocês não estão pensando... — vovó balança a
cabeça como se a ideia fosse boba. — Claro que estão,
suas pestes — constata, alarmada.
— Não entendi — diz Vivian, virando o retângulo de
papel nas mãos, tão inocente a minha melhor amiga.
Não sei por que me dou ao trabalho de repassar o
papel para mamãe, já que ela parece estar em um
relacionamento amoroso e ardente com sua xícara de café
e não está ouvindo nada do que falamos há horas.
— Se Gustavo não vê quem ela é por bem... — deixo
o resto subentendido.
— Filha, nada garante que a menina faça mesmo
alguma coisa errada — diz minha mãe, pousando a xícara
na mesa e fazendo uma careta de reprovação.
Não é que às vezes ela dava o ar da graça no mundo
real?
— Ela já nasceu errada, mamãe — resmungo.
— Amiga, talvez contratar uma detetive seja exagero.
Quem sabe ele não vê por conta própria, daqui um tempo,
como meu irmão disse?— diz Vivian, parecendo se sentir
culpada por frustrar meu plano.
— Bárbara, toda família tem uma maçã podre — diz
minha mãe, pensativa —; eu achei que Augusto seria a
nossa, mas aí Anna chegou e, bom... Se eu fosse dar outro
chute, seria você.
Ergo as sobrancelhas.
— Convenhamos, querida, você sempre foi
avoadinha. Mas agora percebemos que era o Gustavo.
— Você está no mesmo planeta que eu neste momento,
mamãe? — pergunto, só para tirar a dúvida, já que não
entendi bulhufas do que ela falou, mas ela me ignora.
— O fato é que toda família tem seus problemas, e
seu irmão e aquela menina são os nossos, e temos que
lidar com isso. Você não deve se intrometer onde não foi
chamada. — Ela se vira para vovó, esperando que
concorde com ela, mas encontra apenas um olhar que se
abaixa depois de me dar uma piscadinha. — Ela puxou
você, sabia? Meu Deus, você não tem mais idade para
essas coisas, mamãe.
— Ah, deixa de ser tão rabugenta, Ruth Cristina. Quer
mesmo levar seu filho pela igreja até aquela... aquela...
— Biscate? — ajudo quando lhe faltam palavras.
— Piranha? — tenta Vivian.
— Vagabunda? — É a vez de Anna.
— Não — diz, balançando a cabeça. — Menina
promíscua, era o que eu ia dizer. — Ou seja, biscate,
piranha e vagabunda.
— Claro que não, mamãe, mas se ela for a escolha
dele, acho que não devemos nos meter. Gustavo tem que
aprender por conta própria.
Depois disso, ela se distrai com o esmalte da unha e
nem chega a reparar que vovó revirou os olhos para ela.
— Você tem certeza disso, amiga? Não acha que ele
vai ficar uma fera se descobrir, principalmente se essa
moça não achar nada contra a Camila? — pergunta Vivian,
ainda receosa.
— No momento, não estou me importando muito com
isso, Malibu. Ou ela descobre alguma coisa e a gente
afunda esse casamento, ou eu o mato e enterro na cozinha,
assim não vai ter tempo de se ressentir por eu tentar
salvá-lo daquela bruxa.
Dou de ombros.
— Vendo por esse lado... — ela diz, mais animada.
— Quanto será que custa um serviço desses? —
pergunto para ninguém em especial.
Mas, antes que alguém dê um palpite, vovó me
aconselha:
— Bárbara, só tem um detalhe. Não faça essa moça se
aproximar do seu irmão, você já sabe como terminou da
última vez, talvez não seja... — ela para de falar e seus
olhos ficam vidrados por um momento, como se tivesse
acabado de ter uma ideia. — Quer saber? Tenho alguns
trocados que ganhei no bingo.
— Eu tenho minha maleta — diz Anna, pulando
animada na cadeira.
Ela, mais do que ninguém, adoraria se livrar da
Camila, que chegou a humilhá-la por conta da cicatriz em
seu rosto, que ela se recusa a tirar com uma cirurgia
reparadora. Anna diz que a marca é a prova do quanto ela
é forte, e eu concordo.
— Vou entrar, também, só tenho que assaltar um
policial mais tarde — diz Vivian, rindo, ao se render.
— Aonde vocês vão? Fazer compras? — pergunta
minha mãe, quando termina de arrancar o esmalte roxo da
unha e mata o cafezinho.
Eu disse, ela não mora no mesmo planeta que as
outras pessoas.
Meus pais e minha avó foram embora naquela noite e
não falamos mais sobre o assunto por alguns dias. Não sei
se elas pensaram que eu estivesse brincando ou que não
teria coragem, simplesmente não pareceram levar a ideia
a sério, mas ela não saía da minha cabeça. Nem debaixo
do chuveiro, nem trocando fraldas, nem roubando o
sorvete do Ian, nem tirando um dos meus delinquentes do
xadrez, eu conseguia parar de pensar naquele maldito
cartão e o que aconteceria se eu fosse em frente com
aquele plano maluco.
O que eu tinha a perder? Se a tal moça, Marcela,
descobrisse alguma coisa, eu livraria meu irmão do maior
erro que ele estava prestes a cometer na vida; caso ela
não descobrisse, bom, eu teria que pensar em outra
maneira de acabar com aquele casamento. Subornar a
ordinária da noiva, colocar fogo no padre, amarrar o
noivo em uma cadeira com uma corda de nylon até ele
criar juízo, não importava. Gustavo só se casaria com
aquela menina por cima do meu cadáver, isso se eu não
arrumasse um jeito de voltar para puxar o pé dele e
assustá-lo na escuridão da sua noite de núpcias.
Na semana seguinte, invento uma desculpa para faltar
ao trabalho e levo as crianças para a creche com Anna.
Valentina e Nicholas andam à nossa frente de mãos dadas.
Por um momento, me perco na inocência das mãozinhas
gorduchas deles balançando para frente e para trás,
imaginando aonde aquilo ia dar quando crescessem. Volto
à realidade quando Zach puxa meu cabelo com força, me
fazendo dar um grito. Jesus, a missão de vida daquela
criança era me deixar careca, e olha que não faltava
muito, o que constatei olhando para sua mão cheia de
cabelos que ele ergueu e admirou encantado.
Mamãe também gostava de ser loira, muito obrigada!
— Por que você não foi trabalhar hoje? — pergunta
Anna, estendendo a mão para Zach, que aceita e se ergue
para ser pego.
— Porque nós vamos resolver a vida do Gustavo —
respondo, penteando os cabelos com os dedos para ver se
eles voltam ao lugar.
Anna franze as sobrancelhas e vira o rosto de maneira
confusa, igualzinho Vito, meu pitbull, quando assiste
televisão. Decido explicar.
— Marquei uma hora com a detetive particular, a
mulher que machucou meu irmão. — Tiro o cartão do
bolso de trás do jeans e o levanto para que ela possa ver.
— Vamos conhecer a misteriosa Marcela Cantagallo e,
não sei por quê, mas estou com a impressão de que vamos
gostar.
Capítulo 6 - Marcela

“A maior recompensa pelo nosso trabalho não é o que


nos pagam por ele, mas aquilo em que ele nos
transforma.”
John Ruskin

Caso novo

Passar a noite de tocaia enfiada em uma moita não é


tão desagradável quanto as pessoas imaginam. Claro que
eu teria aproveitado mais as horas de descanso se não
fosse aquele buldogue gorducho ter feito xixi em mim
enquanto eu estava distraída com uma folhinha, e por toda
a coceira que se instalou no meu corpo por causa daquela
plantinha verde maldita. O fato é que passei a noite em
claro, me coçando e cheirando a xixi de cachorro, ao
invés de dar umas pescadas enquanto o marido infiel de
alguém brincava de esconder salame com a amante.
Tudo o que eu queria, depois de tirar várias fotos do
cara com a garota que tinha metade da idade da mulher
dele, era ir para casa, tomar um bom banho e me aninhar
nas cobertas, quem sabe acompanhada de um bom vinho e
um filme antigo, já que eu não tinha a opção de me
enroscar com alguém. Mas eu não podia. Me xinguei o
caminho inteiro até o cubículo por ter aceitado marcar
uma hora com uma nova cliente tão cedo.
O fato é que a mulher exalava grana pela voz, e de
grana eu gostava. “Gostar” não chegava a ser a palavra
certa, eu precisava de grana, muita e urgentemente. Então,
assim que ela falou que gostaria de me encontrar porque
tinha um trabalho pra mim, passei o endereço.
O cubículo ficava a duas quadras do meu minúsculo
apartamento. Era uma salinha com apenas um ambiente
que continha uma mesa de madeira antiga e usada que
achei em um brechó de móveis, um notebook, um telefone
e muitos papéis. Nada de quadros alegres, porta-retratos,
tapetes felpudos nem cafezinho. Eu alugava aquela sala
unicamente para não ter que receber os clientes na minha
casa ou em algum lugar público; primeiro porque nunca
dava para ter certeza de que o cliente não era doido,
segundo porque não se fecha esse tipo de negócio perto de
olhares e ouvidos atentos.
Não deu tempo de ir para casa tomar banho e trocar
de roupas, então fui me encontrar com a tal mulher do
jeito que estava mesmo, quem sabe ela não pensava que
meu cheiro provinha de um novo perfume exótico
importado, e não do xixi de cachorro. Pensando bem, era
improvável, se eu fosse julgar pelos olhares que recebi
dentro da padaria da esquina quando parei para comprar
um croissant de chocolate no caminho. Fiquei tão irritada
pela falta de solidariedade das pessoas com a minha noite
difícil que, em vez de um croissant, comprei dois. Minhas
coxas ficaram extremamente irritadas, mas a opinião das
duas já tinha deixado de me afetar alguns anos antes,
quando eu vivia em dieta e passava sufoco contando
calorias. Eu não entrava em mais nenhum dos meus
vestidos, mas quem ligava? Eu não ligava, e não tinha
mais ninguém na vida para se preocupar se eu andava ou
rolava por aí.
Só tive tempo de entrar na minha sala, sentar a bunda
na cadeira e abrir o pacote da padaria, quando a
campainha tocou. Como toda boa esfomeada, dei uma boa
dentada em todo aquele chocolate e me levantei,
mastigando de qualquer jeito enquanto alisava a blusa
amarrotada na vã tentativa de parecer uma profissional
respeitável. Era perda de tempo, eu sabia, pois quem me
procurava não estava ligando se minhas roupas eram
largas e amassadas, ou se fediam, elas só queriam que
minha câmera fizesse o que sabia fazer melhor: flagras, e
nisso ela era craque.
— Marcela? — pergunta a moça, parecendo surpresa,
como se tivesse me imaginado de maneira completamente
diferente assim que coloco meu sorriso business no rosto
redondo e abro a porta para recebê-la.
Assinto e dou uma olhada no meu visual
disfarçadamente enquanto dou um passo para o lado,
deixando que ela e a amiga entrem na sala. Calças jeans,
camiseta branca, tênis confortáveis, quilos a mais e
algumas olheiras. Tirando o fato de que parecia que eu
tinha saído da lâmpada mágica do gênio azul do Aladin,
eu não entendia o porquê de tanto espanto.
— Sim, sou eu.
Fechei porta e caminhei até minha mesa, dando a
volta e me sentando de maneira esculhambada enquanto
fazia um aceno para que elas ocupassem as cadeiras
dispostas à minha frente.
— Imagino que você seja a Bárbara.
— Sim, e essa é Anna, minha cunhada.
Estudo as duas por um longo tempo, sem fazer questão
de ser delicada. Bárbara é linda, loira, magra (já a odeio
por isso), tem várias sardinhas no rosto e, como eu
pensava, também tem dinheiro, ou pelo menos é isso que
suas roupas de grife e postura dizem para mim. Já a outra
moça, Anna, parece humilde e desfocada nas roupas
caras, como se não tivessem sido feitas para ela, mas seus
olhos me fascinam por um momento: astutos,
observadores e radiantes. Quando ela se inclina na
cadeira, descubro o porquê, ela está grávida (também já
odeio essa daí). Mas o que mais me chama a atenção é a
extensa cicatriz que cobre o lado esquerdo de seu rosto,
que vai da bochecha até o supercílio.
— O que aconteceu com seu rosto? — disparo de
repente, fazendo com que ela dê um pulo na cadeira.
Eu não deveria ser tão curiosa, mas não conseguia em
controlar. Para minha surpresa, ela sorri.
— Você é a primeira pessoa que me pergunta isso —
diz, parecendo contente. — As outras só ficam me
olhando como se eu estivesse em uma jaula no zoológico.
— Eu sabia como era a sensação, por isso sorri de volta.
Talvez eu não a odiasse tanto, afinal. — Me machuquei em
um acidente de carro.
— Nunca pensou em consertar?
Dessa vez, ela gargalha. Bárbara parece, assim como
ela, se divertir com a minha língua solta.
— Não, ela faz parte de quem eu sou e é a prova do
que sou capaz de suportar.
Desvio o olhar, suas palavras entram como ferro pela
minha pele já machucada.
— Então, vamos aos negócios — sugiro, para fugir do
assunto, visivelmente desconfortável. — Vou seguir o
marido de qual das duas? — pergunto astutamente,
fazendo com que elas se entreolhem de forma
conspiratória e façam caretas, como se o assunto não
fosse dos mais agradáveis.
Reparo um pouco mais nas moças diante de mim, a
loira mexe apreensivamente em uma aliança larga no dedo
anelar assim que a palavra “marido” sai dos meus lábios,
mas não parece aflita, enquanto a outra tem os dedos lisos.
Aposto nela, ou o pai do bebê fugiu ou...
— Nossa cu... — A loira engasga e tosse. — A
vagabunda com quem meu irmão acha que vai se casar.
É impressão minha ou ela frisou o “acha”?
— Certo, então vou seguir a cunhada de vocês?
Ela balança a cabeça negativamente e estala a língua.
— Quer dizer, a vagabunda com quem seu irmão acha
que vai se casar? — tento outra vez.
Essa é nova, nunca segui uma cunhada, quer dizer,
uma vagabunda... ah, vocês entenderam.
— Isso mesmo — replica Anna, agarrando a mão da
loirinha, que parece ter ficado triste de repente. — Não
fica assim, estamos fazendo pelo bem dele e, acima de
tudo, pelo nosso bem — exclama, acalmando a moça que
parece à beira das lágrimas.
— Certo, vou precisar de algumas informações.
Nome completo, o e-mail dela, se vocês tiverem,
endereço e uma foto dela e do seu irmão, para eu não o
confundir com um possível amante.
Empurro uma pilha de papéis para o chão para
encontrar meu bloco de notas e pesco uma caneta da
gaveta sendo rápida, não quero dar tempo para que a
moça desista.
— Só temos o nome, uma foto que peguei em uma das
redes sociais dela e o endereço. Mas não tem erro, assim
que você vir um idiota inútil com cara de apaixonado com
um metro e oitenta, cabelos e olhos castanhos e um nível
de burrice que ultrapassa qualquer limite, vai saber que é
meu irmão! Ah, ele também tem covinhas fofas, não que
isso compense o resto.
— Certo, covinhas e burrice, entendi — digo,
anotando, assim como faço com o endereço e o nome. —
Agora, o que essa menina fez para levantar suas
suspeitas? Talvez possa ser algo útil, um ponto de
partida...
— Ela nasceu. Fora isso, não temos nada — exclama
a morena com a cicatriz. — O problema é o que ela fez
antes.
Ergo as sobrancelhas e a loira sente a necessidade de
me explicar, e eu deixo. Qual é? Estou curiosa.
— Quando éramos crianças, ela e meu irmão
namoraram por um curto período de tempo. Quando o
relacionamento acabou, eu terminei uma noite sentada
dentro de um rio, ainda vestida, na frente de dúzias de
pessoas apontando e rindo de mim. — Não sei por que,
nessa parte do relato, ela sorri como se aquilo fosse a
melhor coisa que tivesse lhe acontecido. Mulher doida. —
Mas, até aí, eu superei. O problema foi ter pego a biscate
sem roupa na cama do meu marido.
— Tem certeza de que não estamos seguindo a pessoa
errada? — pergunto, sem pensar.
Ela balança a cabeça e sorri.
— Posso fazer um preço bacana...
— Ela armou a cena toda. Meu marido estava
trabalhando, mas ela mentiu que ele estava tomando banho
depois de... — Ela cora. — Você sabe. Terminei com ele
por causa disso.
— Mas que cadela mais sem vergonha — exclamo,
perplexa.
Normalmente, não me envolvo nos casos, não tomo
partido e nem penso nele duas vezes mais do que o
necessário. Mas eu havia gostado das duas garotas e,
incrivelmente, já tinha detestado meu próximo alvo. Que
tipo de mulher tem coragem de fazer uma coisa dessas?
Com certeza alguém com quem a gente não quer que nosso
irmão se case.
— Viu, então você entende! — diz, parecendo
aliviada por ter apoio.
Claro que eu entendia, o irmão dela, bom, essa seria
outra história.
— Eu vou fazer o possível — prometo, sendo
sincera. Nada de sonecas relaxantes nesse caso. — Que
tal se, agora, falássemos sobre valores? — Eu era
boazinha, mas nem tanto.
Ela assente e lhe passo o valor total do meu trabalho.
— Metade agora e a outra metade quando eu te enviar
o material, mesmo que não haja material para ser enviado
— saliento, já que meu tempo custava dinheiro.
— Uau, isso é... — Ela olha para Anna, receosa. —
Tudo bem, dou um jeito — afirma categoricamente, me
estendendo uma mão, que não hesito em apertar.
— Eu pago a segunda parte, Bá, não tenho com o que
usar o dinheiro da maleta agora que seu irmão, bom... —
A moça cora. — Está me dando.
Moça sortuda... Eu nunca achei um filho da puta nem
para me pagar um chiclete nesses anos de solteirice
absoluta.
— Isso não é problema seu, Anna, eu vou dar um
jeito.
— Por “jeito” você quer dizer assaltar o Ian? —
pergunta, rindo. — É melhor mantermos isso entre nós e,
sim, é um problema meu. Esqueceu que ela também vai
ser minha cunha...
— Não fala — corta a moça com um aceno e uma
expressão sofrida.
— Bom, então está combinado — dizemos eu e a
moça em uníssono.
Pois bem, Camila, eu vou pegar você.
Capítulo 7 - Gustavo

“A maior de todas as ignorâncias é rejeitar uma coisa


sobre a qual você nada sabe.”
H. Jackson Brown

Péssima ideia

— Por que temos que ir? — Camila pergunta, fazendo


beicinho. — Não podemos ficar em casa? Eu queria sair
com as minhas amigas amanhã — murmura contrariada e
começa a jogar as roupas na mala de qualquer jeito,
quando balanço a cabeça negativamente.
— Eles têm que conhecer você melhor — afirmo, me
levantando da cama e retirando peça por peça de suas
roupas da mala, dobrando-as e as guardando de volta de
maneira organizada.
— Mas você disse que foi tudo bem no almoço —
exclama, parecendo desconfiada. — Disse que eles
aceitaram, que aquela sonsa não causou problemas.
— Não a chame assim — peço com veemência
demais, tanto que ela congela e me lança um olhar
ameaçador.
Mas não retiro o que disse. Se eu não gostava que
minha irmã a xingasse, não deixaria que ela fizesse o
mesmo. Bárbara podia ser o que for, intrometida,
fofoqueira, idiota, mas ainda era minha irmã caçula
intrometida, fofoqueira e idiota, e eu a amava.
— Você sabia que minha irmã não ia aceitar, gatinha
— não era uma novidade, caramba —, e, enquanto meus
pais e minha avó não te conhecerem, vão continuar
pensando que a Babi tem razão sobre tudo o que falou de
você.
— Por que isso tem importância, afinal? — questiona,
irritada. — Vou casar com você, e não com eles.
— Mas eles são minha família, Camila. — Embora
não me apoiem e, aparentemente, não me amem o
suficiente para ficar ao meu lado.
No dia seguinte ao almoço, meu pai me ligou e se
desculpou, disse que ele e mamãe queriam conhecer
minha noiva. Estava mentindo, é claro; eles, com certeza,
prefeririam enfiar agulha nos olhos a receberem com
gentileza alguém que fez mal para minha irmã, mas tinham
que ceder, esse era o trabalho deles. Serem meus pais
também.
— E daí, Gustavo?
Ela bate as portas do guarda-roupa.
— Não precisa se preocupar, gatinha, tenho certeza
de que eles vão acabar gostando de você — minto
novamente, me levanto e a puxo para meus braços.
Ela está rígida, tenta empurrar meu peito, mas não a
solto e, pouco depois, ela amolece, então eu a beijo.
A viagem é tranquila. Camila ainda se recusa a falar
comigo porque, do seu ponto de vista, estou obrigando-a a
ser gentil e cortês, algo que ela não sabe fazer muito bem,
ou talvez quisesse mesmo sair com as amigas, mas não me
importo. Já que vamos nos casar, ela precisa entender que
terá certas obrigações, e isso inclui aturar a porra da
minha família. Tenho certeza de que, assim que meus pais
colocarem os olhos nela, vão entender o porquê de eu
estar tão firme na minha decisão, ela é linda, isso não há
como negar. Mas também espero que vejam o que há por
baixo de tanta beleza, assim como eu vi.
Estou sendo idiota, claro. No fundo, sei que há mais
chances de eles sorrirem amarelo e levantarem a bandeira
da Bárbara ao final da visita, mas um cara tem o direito
de sonhar, certo? Camila já perdeu pontos por ter
machucado a filhinha preferida do meu pai, mas ele é
sensato. Minha mãe talvez nem a note, de tão atrapalhada
e ausente do próprio corpo que é, mas minha avó me
preocupa. Por aquela ali, não passa nada.
— Não importa o que aconteça, coma tudo o que
minha avó te oferecer, entendeu? — aconselho, que é a
palavra mais bonita para descrever a ordem que estou
dando assim que estaciono o carro no meio-fio.
Ela revira os olhos e desce, me deixando falando
sozinho.
Será que é um bom momento para começar a rezar?
Meu pai abre a porta e a cumprimenta com um beijo
no rosto, depois me olha e torce o nariz. Eu já deveria
saber, ele não era o tipo de homem que se enganava com
um rostinho bonito. Minha mãe foi gentil, a única, porque
minha avó fez questão de ser gelada em seu cumprimento
e em seus movimentos.
— Chegaram na hora certa, querido — exclama, me
dando um beijo estalado na bochecha.
Ela nos encaminha até a mesa de jantar e faz com que
nos sentemos, enquanto carrega a travessa de massa da
cozinha até a mesa, depositando-a com agilidade e
graciosidade à nossa frente. É aqui que Camila comete o
primeiro erro.
— Não como carboidratos — cospe secamente. — A
senhora não teria nada saudável? Como verduras ou uma
fruta?
Se olhares pudessem matar, minha avó já teria
escalpelado a menina. Ela sorri mecanicamente e some
cozinha adentro, voltando com uma banana. Jesus, isso vai
degringolar!
— Obrigada — agradece Camila, aceitando a fruta
com cara de nojo e a depositando dentro de seu prato
vazio. — Mas perdi a fome.
— Sabe, querida, você deveria comer mais, está
muito magrinha — provoca minha avó acidamente,
fazendo com que Camila finque as unhas na minha coxa
por debaixo da mesa. Como dói. — Mulheres bonitas têm
que ter onde pegar, que nem a minha neta Bárbara. —
Vovó não costumava rasgar seda dos netos, então concluí
que ela estava jogando sujo.
— Você trabalha em quê, Camila? — pergunta meu
pai, para tentar amenizar a situação, quando minha noiva
encara minha avó com raiva.
Não tem como ela responder uma pergunta tão
simples da maneira errada, ou foi o que pensei.
— Eu danço, mas é por prazer. Minha mãe pagava
todas as minhas contas antes de o Gustavo se mudar,
agora, como ele é o homem da casa, tem obrigação de
fazer isso.
Veja bem, meus pais não são machistas, mas creem
que um homem deveria realmente pagar as contas. O
problema foi a forma como ela disse aquilo, como se meu
dinheiro valesse mais do que eu. Aquele foi seu segundo
erro, o terceiro matou de vez suas chances de ser aceita.
— Fiz aquele pudim que a Babi ama, você pode levar
um pedaço para ela quando voltar, querido? — questiona
minha avó, claramente dizendo que não sou mais bem-
vindo para dormir com minha noiva em sua casa.
Entendo o recado.
— Claro, eu passo lá e entrego para ela antes de ir
para casa — respondo, derrotado.
— Me deixa em casa primeiro, Gustavo — Camila
ralha no meu ouvido, acreditando que o resto da mesa não
vai escutar. Ledo engano. Ela não consegue parar de dar
bola fora.
— Seria bom que você começasse a se entrosar com
o resto da família, se quiser fazer parte dela, querida —
aconselha vovó, começando a tirar os pratos, incluindo o
com a banana.
Ela olha para a fruta e estala a língua, resignada pelo
fato de sua comida ter sido rejeitada. Naquela casa,
aquele fato era um crime inafiançável.
— Não me dou bem com a Bárbara e, depois que eu
me casar com Gustavo, pretendo vê-la apenas em
casamentos e funerais — responde com convicção,
achando que está arrasando no discurso.
Prostro os cotovelos em cima da mesa e afundo meu
rosto nas mãos, pensando que não teria como aquilo ficar
pior.
— Acredito piamente que não devemos conviver com
quem nos faz mal.
— Você está completamente certa — murmura meu
pai, se levantando. — Foi ótimo te ver filho, mas esqueci
de comentar, a casa vai ser dedetizada. É uma pena que
vocês não possam ficar para passar a noite, mas quem
sabe outro dia, não?
Eu sabia que a casa havia sido dedetizada há pouco
tempo, mas não questionei. Eu queria acabar com aquela
tortura tanto quanto eles.
— Não gostei dela — sussurra minha mãe no meu
ouvido quando a abraço para me despedir. — Você fez a
cama, então vai ter que se deitar sobre ela, todas as
noites. Lembre-se disso, querido.
Começo a não entender mais nada.
— Espero que tenha saco pra isso! Mas acho que
enlouquece no primeiro ano de casamento.
Sorrio amarelo olhando por cima do ombro. Camila
já se despediu de todos rapidamente e me espera na porta,
batendo o pezinho no chão, um tique que acho
particularmente irritante.
— Nem vou comentar, moleque — murmura meu pai
quando é sua vez de se despedir.
— Você também vai me falar algo extremamente
desagradável, não é? — Sorrio fracamente quando puxo
minha velhinha para um abraço apertado. — Me desculpe
pela lasanha; eu amei, de verdade.
Ela revira os olhos e espalma as mãos no meu peito
com carinho.
— Não ligo para a comida, só ligo para você.
Sorrio e ela planta um beijo em cada uma das minhas
covinhas.
— Mas, se montar no cavalo por essa moça, você vai
cair, filho.
Voltamos para casa com um clima pesado entre nós.
Camila reclama que não se sentiu bem-vinda e não
entende o porquê. Santa ignorância. Assim que entro no
meu apartamento, devoro o pudim que vovó havia
embalado para viagem sem remorso, minha irmã odeia
aquela coisa, mas eu achava que tinha um gosto bom.
Durante toda a noite, fico com a frase da minha avó
martelando na minha cabeça.
Eu já havia caído do cavalo uma vez, por que não me
arriscar novamente?
Não tinha nada a perder, além da minha família.
Capítulo 8 - Marcela
“A gente não faz amigos, reconhece-os.”
Vinicius de Moraes

Hóspede indesejado

Acordei naquela segunda-feira chuvosa, sonolenta e


triste. Tive um sonho bom, mas, na minha vida, até eles
eram pesadelos. Sonhos que envolviam lembranças felizes
eram os piores, porque eu acordava com um enorme peso
no peito ao lembrar que não era mais tão feliz. Chuva
também me deixava triste, ela me fazia lembrar de um dos
piores momentos da minha vida, e ser acordada pelo
barulho das gotas batendo na janela do quarto enquanto a
memória do sonho ainda estava vívida dentro da minha
mente foi o suficiente para quase me fazer chorar, quase.
Me sentei na cama e dei dois tapas bem dados na
minha cara, daqueles que estalam e, em dez segundos, já
me sentia eu mesma outra vez. Me levantei, tomei um
banho gelado e uma dose de vodca direto da garrafa para
conseguir enfrentar o dia, porque, convenhamos, o cara
que inventou a segunda-feira deveria ser um belo de um
filha da puta desumano. Me vesti e saí para trabalhar, já
que eu tinha uma cunhada – ops, quer dizer, uma
vagabunda – para desmascarar. Mas não fui muito longe.
Caí de cara no chão depois de tropeçar em um monte
de banha que estava acomodada dormindo feito uma
bolinha rechonchuda e exprimida no meu tapete de boas-
vindas. Espalmei as duas mãos no chão, respirando fundo,
pensando que não era saudável ter vontade de matar uma
pessoa antes das sete da manhã, mas, quando a criatura
berrou de susto, repensei a ideia. Me sentei e encarei a
peruca torta e os óculos fundo de garrafa ainda presos ao
seu rosto de maneira desordenada e retorcida.
Quanto tempo demorariam para encontrar o corpo do
Arnaldinho enrolado no meu tapete de boas-vindas,
enfiado dentro da lixeira comunitária do prédio? Isso,
claro, se o tapete cobrisse toda aquela avalanche de
incômodo.
— O que está fazendo aqui? — perguntei sem
paciência, desejando ter trazido a garrafa de vodca junto
comigo esta manhã.
— Telminha me expulsou de casa e, para piorar,
aquela víbora podre de rica e vingativa bloqueou todos os
meus cartões de crédito. Como ela pôde fazer isso
comigo, destruidora de lares alegres? — pergunta, com os
beicinhos tremendo e os olhos se enchendo de água.
— Ah, corta essa. Você não tem mais idade pra fazer
essa cara; não parece fofo, parece um velho com prisão de
ventre!
Faço um aceno com a mão e me levanto do chão,
puxando-o junto pelo paletó amarelo ovo. Empurro–o
para o lado sem ser gentil e entro pela porta do meu
apartamento, ainda aberta, em busca de uma faca, mas sou
distraída pela garrafa de vodca que ainda está em cima da
mesa. Eu a pego e sorvo uma boa golada, limpando a boca
com a manga da blusa antes de voltar a encará-lo. Ele
parece horrorizado.
— Menina, sabia que ainda não são nem... — Ele
confere o relógio. — Sete da manhã de uma segunda-
feira? — Estala a língua em reprovação, enquanto balança
a cabeça de forma quase imperceptível ao colocar as
mãos na cintura avantajada.
— Você sabia que não é de bom tom dormir no tapete
das pessoas? — contra-ataco em meio a outro gole, esse
só para irritá-lo.
— Eu não tinha mais para onde ir — murmura, com o
lábio voltando a tremer.
Dou uma boa estudada na criatura à minha frente.
Rosto bonito e bem barbeado, cerca de 60 anos, peruca –
ainda torta –, óculos redondos e grandes como fundo de
garrafa, terno amarelo e camisa preta, com alguns pelos
grisalhos aparecendo. Alto, forte, imponente e cor-de-rosa
por dentro, tenho certeza. Uma figura.
— O que você queria que sua mulher fizesse? Te
desse alguns tapinhas nas costas por dormir com o irmão
dela? — pergunto, ficando exausta de repente.
Minha vontade é me jogar no chão e me arrastar até a
cama, mas, com as forças que ainda tenho, duvido que
consiga chegar sequer ao sofá.
— Não precisava ser tão maldosa a ponto de me
deixar na rua da amargura, não acha? — pergunta, olhando
para a garrafa de vodca que voltei a depositar na mesa.
Reviro os olhos, pego a garrafa e entrego para ele,
desistindo de me arrastar e andando até o sofá.
— Mas ainda não são nem sete...
Eu o corto.
— Cala a boca e bebe, vai ficar melhor, garanto —
murmuro, me sentando e jogando a cabeça para trás,
enquanto agarro uma almofada.
Pela visão periférica, vejo-o me seguir e se sentar em
uma das poltronas à minha frente. Ele olha incerto para a
garrafa antes de resmungar baixinho e beber um generoso
gole.
— Por que você entrou nessa?
Levanto a cabeça e ergo as sobrancelhas, encarando a
garrafa, então ele se apressa em emendar.
— Não, não nessa de se embriagar antes de o sol
raiar, nessa de destruir o casamento esplendoroso das
pessoas.
Bufo de indignação.
— Se você não fosse um pervertido, seu casamento
esplendoroso ainda estaria de pé, querido — cuspo, me
sentindo um tantinho culpada.
Era por isso que eu nunca me aproximava demais dos
clientes, para não correr o risco de ficar com dó deles.
Para mim, eles tinham que ser apenas dinheiro e nada
mais. Às vezes, eu pensava neles como a conta de luz, a
de água ou a da internet, mas nunca, nunquinha, como
alguém que ia sentar no meu sofá, beber a minha vodca e
me julgar ao mesmo tempo.
— Ah, não culpo você. Mais um ano casado com
aquela jararaca e eu ia ser obrigado a dar cabo da vida
dela e enterrá-la em uma cova rasa, depois aterrar tudo
com uma linda piscina. — Suspira. — Mas sinto falta do
dinheiro e do mordomo. Virgem Maria, como sinto falta
daquele mordomo — termina com uma risadinha.
— Você traçou até o mordomo? — pergunto, chocada.
— Claro que não — ele diz, fechando a cara, mas
seus olhos ainda sorriem, agora é a minha vez de colocar
a mão na cintura e fazer careta de quem não está
convencida. — Tudo bem, tudo bem, mas foi só uma
vezinha, eu juro!
Abro a boca para dizer alguma coisa, mas penso
melhor e caio na gargalhada.
— Agora me conta: quem traiu você, boneca?
— Ninguém — respondo, rápido demais e na
defensiva.
Ele me olha com paciência e cruza as pernas, fazendo
careta ao beber mais um gole da garrafa. Olho para além
do seu ombro, para a cortina azul-marinho sem vida e
para depois dela, para a janela molhada sendo atingida
pelas gotas de chuva, tão triste.
— Meu marido me traiu.
— Oh, sinto muito, bonequinha.
Ele parece realmente lamentar, como se eu não fosse
a culpada por ele ter ficado sem mordomo. Sua expressão
doce quase me faz querer chorar de novo, quase.
— Ele morreu, não tem mais importância.
Ele fica chocado, cobre a boca com as mãos em uma
expressão espantada, mas, antes que possa me perguntar
alguma coisa, eu emendo uma pergunta para me livrar do
assunto que tanto machuca.
— Mas o que você pretendia dormindo na minha
porta?
— O Zé Alfredo...
— Quem? — eu o corto.
— Meu ex-amorzinho — lamenta —, também
conhecido como meu ex-cunhado. Bom, como eu ia
dizendo, o Zé Alfredo terminou tudo comigo, por
telefone!
É mais ou menos aí que ele explode em lágrimas.
Quando dou por mim, já levantei do sofá e estou batendo
nas suas costas para acalmá-lo, como se ele fosse uma
criança. Até esqueço de perguntar que porra aquilo tem a
ver com ele dormir no meu capacho.
— Shhh, vai ficar tudo bem. Esse homem não tem
coração? Por telefone? — pergunto, irritada.
Quem esse Zé Alfredo pensa que é?! Quando ele,
finalmente, se acalma, continua a explicação, enxugando
os olhos enrugados com um lenço de linho rosa pink que
tira do bolso. Sério que dona Telma nunca percebeu nada?
Mulherzinha mais tapada.
— No mesmo dia, a jararaca da Telminha me
expulsou de casa só com a roupa do corpo, e eu fui para
um hotel, de luxo, claro. Qual não foi a minha surpresa
quando meus sete cartões de crédito foram recusados?
Sete? Bom, agora que a Telminha está solteira, talvez
eu a chame para um café um dia desses. Adoraria ter um
mordomo.
— Não tenho mais família e nenhum amigo para quem
eu realmente possa contar sobre o que estou passando, aí
me lembrei de você.
— Não sou sua amiga — lembro rapidamente,
ignorando o olhar magoado que ele me lança.
— Mas está em dívida comigo. Além de eu ter
salvado a sua vida, foi você a causadora dos meus cartões
de crédito terem virado enfeite, os sete — frisa. — Então,
pensei que poderia me ajudar.
— Você disse que não me culpava — me defendo,
tomando a garrafa de suas mãos e levando-a aos lábios,
enquanto volto para o sofá e me jogo novamente sobre ele,
me arrependendo de o ter convidado para entrar na minha
casa no dia em que me levou embora do hospital.
Passei algumas horas conversando com ele, pelo visto
ele tinha entendido errado a minha gratidão. Eu não estava
procurando por um amigo, muito menos um que achava
que tinha intimidade o suficiente para dormir na minha
porta.
— Não a culpo, boneca, mas ainda preciso de um
lugar para dormir. — Ele sorri, me mostrando mais do que
dois dentes de ouro fora de moda.
Quero aqueles dentes como pagamento pela merda
que estou prestes a fazer.
— Por favorzinho? — termina, com cara de cachorro
pidão.
Com aquelas rugas, me lembra o buldogue que fez
xixi em mim um dia desses. Estou para falar não, mas meu
coração de manteiga é um desgraçado.
— Fica com o quarto de hóspedes.
Ele dá vários pulinhos e bate palminhas, abandonando
as lágrimas de crocodilo na mesma hora.
— Mas não vai ser de graça. — Ao que parece,
ganhei sua atenção, já que ele para de fazer festa e me
encara de forma confusa. — Você vai ter que trabalhar!
Até parece que eu disse que ele será obrigado a
escalpelar gatinhos indefesos, de tão chocado que ficou.
— Mas eu nunca trabalhei na vida.
Como se não fosse óbvio! As unhas dele eram mais
bem cuidadas que as minhas, que admito roer
secretamente sempre que lembro que elas existem.
— Nem sei como se faz, eu...
— Sabe tirar foto? — pergunto, sendo prática.
Ele assente.
— Sabe ser discreto... — Eu vejo a merda que estou
falando e balanço a cabeça, com aquela peruca e aquele
terno no mínimo cafona, discrição ia ser um problema. —
Vai para o meu escritório e fica lá atendendo o telefone.
— Ah, que cansativo.
Olho feio para ele, que levanta as mãos em forma de
rendição.
— Ok, chefinha. Mais alguma ordem?
— Na verdade, eu tenho. Aproveita e começa a
procurar um emprego de verdade, porque Deus sabe que
eu não tenho dinheiro nem para ter uma barata de
estimação, muito menos para um funcionário e, se você
vai ficar aqui, vai ter que aprender a pagar contas.
Ele tapa a boca com as mãos.
— Bem-vindo ao meu mundo, Arnaldinho!
— Mas, mas...
— Sem “mas” — eu o corto, bebendo mais um gole
da garrafa antes de deixá-la na mesa de centro, levantar e
o puxar pela manga do paletó. — Vamos lá, vamos
detonar essas suas unhas bonitinhas tirando grampos de
todos os papéis que eu encontrar naquele cubículo.
Uma hora depois, deixei um Arnaldinho chateado e
inconformado sentado na minha cadeira, tomando um
cafezinho e sendo apresentado a milhares de sites de
empregos, enquanto saio com Totó em busca da minha
vítima. Estaciono o carro em frente ao prédio bonito e de
luxo que Bárbara me indicou como sendo o covil da cobra
e espero.
Estou quase cedendo e indo em busca de açúcar em
forma de croissant de chocolate, quando a vejo sair. Ela
finge não notar o cumprimento alegre – alegre demais – do
porteiro, que volta para a portaria cabisbaixo, e passa
pelo portão de ferro ganhando a rua com um narizinho
empinado, parando no meio-fio e olhando para os dois
lados de maneira cuidadosa.
Dou uma boa olhada nela. Para resumir, se eu fosse
homem, pegava, até se não fosse, porque, vou te dizer,
minha carência estava nas alturas ultimamente. Camila tem
cabelos longos, lisos e brilhantes, é alta, magra e tem mais
curvas do que o autódromo de Ímola. Bunda grande,
peitos fartos e um par de pernas que eu mataria para ter. É
definitivo, realmente já odeio essa mulher. Depois de
olhar para ela, se torna impossível não encarar meus
peitos achatados e minha bunda gorda emoldurada por um
quadril do tamanho do Atlântico. Com uma rápida olhada
pelo espelho retrovisor, constato que minha juba de leão
continua armada e que, sem maquiagem, minhas olheiras
se transformaram em dois buracos negros de minhoca,
iguais aos do espaço sideral. Se olhar por muito tempo,
elas te sugam.
Quando a biscate – porque é assim que vou chamá-la
de agora em diante, porque sim, estou com inveja daquele
corpo de modelo anoréxica com curvas de academia –
atravessa a rua, já estou trancando meu Fusca azul. Não
que eu realmente acredite que alguém vai se dar ao
trabalho de roubá-lo, mas não custa nada ser precavida, já
que, na minha vida, as coisas são do contra. Caminho
atrás dela pela rua por duas quadras, até uma padaria.
Graças a Deus, finalmente vou ter minha dose cavalar
e obrigatória de açúcar. Paro atrás dela na fila e me
surpreendo quando ela pede apenas uma vitamina; não
escuto do que é, mas vejo que um copo com algo verde e
gosmento é entregue em suas mãos antes mesmo que eu
tenha a chance de fazer meu pedido, já que o cara atrás do
balcão ainda está olhando para os peitos dela.
— Quero um croissant de chocolate, por favor —
informo, tentando chamar sua atenção.
Ele não dá o mínimo sinal de que me ouviu, mas ela,
sim, já que se vira na minha direção tão rápido, que chego
até a tomar um susto. A primeira coisa que penso é:
“ferrou, fui descoberta”, mas ela apenas balança a cabeça
com desgosto e encara meu quadril com curiosidade.
— Sabe, se um dia quiser diminuir isso aí — diz,
fazendo um meneio de cabeça para minhas pernas —,
você deveria abandonar o açúcar e fazer uma dieta. Um
desses é muito mais saudável.
Quem perguntou a sua opinião, sua... sua... Nem em
pensamento consigo achar a palavra adequada para o
quanto aquela garota era biscate. Sorrio amarelo e lhe dou
as costas, abandonando a ideia da comida, pensando
seriamente em atropelar a mulher com meu Fusca; ele já
tinha visto dias melhores mesmo. Quem sabe Bárbara até
me pagasse uma generosa gorjeta pelo serviço extra, bem
feito e permanente.
Em pouco mais de algumas palavras, ela tinha me
feito ficar mal com meu próprio corpo, desistir do meu
santo croissant de todo dia e começar a planejar uma dieta
que eu nunca faria. Não engano nem a mim mesma; dois
dias na sopa e no suco diet e eu virava a Rainha Má,
pronta para arrancar um coração humano por puro prazer.
Não, eu preferia ser gordinha e não passar fome, muito
obrigada.
Mudo de ideia e entro na padaria de novo, peço meu
croissant, olhando ameaçadoramente para ela, desafiando-
a a dizer mais alguma coisa, enquanto me imagino batendo
sua cabeça no tampo de pedra do balcão. Mas ela nem
nota minha presença, está ocupada, chupando a gosma
nojenta de seu copo com um canudinho, tentando parecer
sexy para o cara do outro lado do balcão, que baba em sua
direção ao invés de ir buscar a porra do meu doce.
Hoje o dia ia ser longo!
Capítulo 9 - Marcela
“Sei que você se acha gorda
Mas estou aqui para te dizer que
Cada pedacinho de você é perfeito, lá de baixo até o
topo.”
Meghan Trainor

Invasão à domicílio, quem nunca?

Acordo depois de outro sonho bom recheado de


lembranças, novamente por causa do barulho da chuva e,
dessa vez, eu choro. Só um pouquinho, coisa de um minuto
ou dois, antes de me estapear e me levantar em um pulo,
tomar banho e procurar a garrafa de vodca. Eu a encontro
nos braços de Arnaldinho, vazia. Então, choro mais um
pouquinho. Que hóspede mais inconveniente; será que ele
não sabe que não é educado acabar com a bebida das
pessoas que o estão abrigando?
Me arrasto de volta para a cama, ainda sonolenta,
triste e muito irritada com o homem de cueca samba-
canção com estampa de gatinhos e óculos escuros que está
apagado no meu sofá. Tento, desesperadamente, parar de
pensar no meu sonho, no homem que corria ao meu
encontro dentro dele, na cópia do médico que encontrei
dias atrás, mas é inútil. Ele está em todo canto, dentro da
minha cabeça, batendo na porta do meu coração e até
marcado na ponta do meu pé, o mesmo pé que usei para
chutar a bunda dele.
Tentei não pensar no assunto nos dias que se seguiram
ao encontro, deixar para lá, mas claro que não consegui.
Ruminei esse assunto na cabeça tantas vezes, que até em
sonho ele apareceu. Como estaria hoje? O que estaria
fazendo? Será que havia se casado? Tinha filhos? Eu não
queria saber, não queria saber nada sobre ele, mas não
conseguia parar de pensar. Eu precisava beber!
Não ia rolar, a cama estava quentinha, e nada nesse
mundo me faria sair de casa atrás de uma bebida, nem
mesmo aquele safado sorrateiro que deixei no passado.
Em vez disso, me distraio pensando em tudo o que
descobri, no dia anterior, sobre a mulher que eu já deveria
estar seguindo àquela hora.
* Muito bonita. Bonita demais, na minha opinião. Por
que Deus foi tão generoso com ela e me deixou nascer
com esse quadril medonho? Essa era uma boa pergunta!
* Vive em dieta. A mulher consumiu uma gosma verde
indefinida no café da manhã, uma salada no almoço e uma
barrinha de cereal à tarde. Como a criatura ainda não
tinha morrido de fome era um mistério para mim. Já eu,
comi um croissant de chocolate com um refrigerante de
600 ml no café, um salgadinho de queijo (com cheiro de
chulé) no meio da manhã, um prato modesto (mentira, era
de pedreiro) de lasanha à bolonhesa no almoço e terminei
a refeição com um belo pudim de leite condensado. À
tarde, eu me contentei com uma barra de chocolate branco
com pedacinhos de amendoim (comi a barra inteira, se
quer saber), jantei estrogonofe congelado e, para terminar
o dia, comi um pedaço de bolo de chocolate e tomei um
chazinho antes de dormir para fazer a digestão (a vodca
dentro dele foi pelo mesmo motivo).
* Adora atenção masculina. Mas até aí, quem não
gostava? Na minha atual situação, eu estava planejando
passar em frente a uma obra mais tarde, só para aumentar
minha autoestima. Umas cinco vezes, no mínimo, até ela
estar bem inflada.
* É professora de dança. Está aí a razão para ela ter
aquele corpo, então, não veio tudo de Deus. Embora seja
discutível ele ter lhe dado força de vontade para se
exercitar e uma preguiça dominadora para mim. Injusto.
* Deve ter dinheiro, porque mora em um prédio de
luxo. Mais uma coisa que eu não ganhei na lista de
benefícios antes de nascer: grana.
* Tem uma linda aliança no dedo. Então, o coisa fofa
de covinhas e burrice para dar e vender já tinha se
adiantado e feito o pedido. Talvez tenha sido esse o
motivo que levou sua irmã a me procurar, mas isso não
importa, não de verdade. A única coisa que importa é a tal
maleta cheia de dinheiro que a bonitinha de rosto marcado
mencionou. A mesma maleta que vem parar nas minhas
mãos gordinhas no fim do trabalho.
* Se acha o último ventilador do verão. Porque, vou
te dizer, está quente pra cacete esse ano, mas, enfim... Ela
não cumprimenta ninguém, principalmente pessoas que
pensa serem menos importantes que ela. O porteiro, a
recepcionista da academia, o manobrista etc. Isso também
inclui a olhada que ela deu para o meu quadril e a
recomendação de dieta que eu queria que ela enfiasse no
rabo. Para resumir, ela é uma vaca esnobe!
Depois de fazer a lista, penso em como vou me
aproximar dela. Seguir mulheres é sempre mais difícil;
não estou sendo feminista nem nada do tipo, mas acredito
que somos mais inteligentes para trair do que os homens,
fazemos um trabalho mais limpo e na surdina. Como quase
nunca aparece um caso assim, tenho certa dificuldade em
ter ideias, na verdade, eu só tenho uma e não gosto
nadinha dela.
— O que você está fazendo? — pergunta Arnaldinho,
colocando a cabeça dentro do meu quarto.
— Pensando se me matriculo em uma aula de dança
ou se deixo cortarem a luz no fim do mês — murmuro,
abraçando um travesseiro que estava jogado perto da
minha perna. — Eu nem gosto tanto assim de banho
quente, sabe?
— Se quer ficar em forma, tenho uma maneira melhor
do que aulas de dança — diz, com os olhos brilhando de
expectativa, o que me faz ter certeza de que não vou gostar
da sua ideia.
— Está dizendo que preciso perder peso, é? Quer
ficar sem casa de novo? — ameaço, meio magoada por
ele não ter falado: “Pra que academia, boneca? Você já
está linda de viver”, ou qualquer mentira do tipo.
— Não, estou dizendo que não posso viver o resto da
vida vestindo essa cueca e meu paletó amarelo.
Em que momento ele achou que tivesse intimidade
para andar pela minha casa, aparecer no meu quarto e me
apontar sua cueca ridícula? Não sei, mas aconteceu.
— Não tô entendendo, meu cérebro só começa a
funcionar às dez.
Rolo de lado e afundo o rosto na coberta, desejando
voltar a ser uma pessoa solitária que mora sozinha.
— Quero sua ajuda para roubar as minhas coisas —
diz, batendo palminhas.
— Como é?
Me sento e o encaro, erguendo as sobrancelhas, o
sono desaparecendo feito uma miragem de um lago com
peixinhos coloridos no deserto.
— Eu disse exatamente o que você ouviu. Vamos
invadir a minha... — ele engasga — a casa da Telminha
mais tarde e roubar as minhas coisas. — Ele parece
decidido; pior, parece muito decidido de que vou
acompanhá-lo.
— Por que eu faria isso? — questiono, com um
sorriso sarcástico.
— Porque tenho dinheiro e várias joias lá, posso te
pagar.
Hum, vamos conversar sobre isso mais um pouco,
amigo.
— E eu sei que de dinheiro você gosta, acabou com a
minha vida por causa dele — resmunga, fazendo um
muxoxo com a boca.
— Não é gostar, é precisar — me defendo, mesmo
achando inútil. — Mas não preciso de dinheiro a ponto de
ser presa por causa dele. O que você vai fazer é roubar,
eu tô fora!
Me levanto, já que está mais do que claro que não vou
conseguir dormir de novo, e tento passar por ele. Para
minha surpresa, Arnaldinho se ajoelha no chão e agarra
minhas pernas, fazendo aquela cara de buldogue de novo,
dessa vez fico com dó e endireito sua peruca, pensando
seriamente em lhe dar a ideia de colar aquela porcaria no
lugar.
— Por favor, não vou sobreviver se tiver que
comprar roupas no supermercado. — Aí, ele chora.
Qualquer hora dessas ele vai me afogar nessas
lágrimas fajutas que solta sempre que quer ajuda.
— Te juro que não é roubar, só vou pegar o que é
meu.
— Como vamos fazer isso, criatura?
Ele funga e sorri, sabe que me ganhou e que eu cedi.
As lágrimas? Mais uma vez sumiram. Ele se levanta e me
empurra até a cama, me sento e escuto seu plano maluco.
— Simples, você pula o muro e distrai os cachorros,
eu entro, pego minhas coisas e te encontro do lado de fora
depois.
Eu tinha que rir, a outra opção era chorar.
— Deixa eu ver se entendi: você quer que eu seja
devorada pelos cães, enquanto recupera seus ternos
ridículos e um punhado de relógios de ouro de mau gosto?
— Não, você vai brincar com a Tiffany e o Tyler,
enquanto eu recupero meus belos ternos e meus relógios
que valem mais do que sua vida, o que acha? — Ele
parece tão esperançoso, que chega a ser patético. Não me
conhece.
— Não, não vou virar ração de cachorro, eu nem
gosto de cachorro! Não, não e não! — Mas eu ia!
Meia hora depois, estou entrando pela porta da
academia Viva Feliz – o que, claro, não era o meu caso,
pois fui obrigada a passar pelas portas de vidro e me
deparar com o polo norte, de tão gelado e potente que era
o ar-condicionado daquele antro de cabos de vassoura em
forma de mulheres.
— Olá, posso ajudar? — a recepcionista pergunta
para minha barriga de tanquinho (quebrado), mas já
parece saber a resposta.
— Sim, eu gostaria de me matricular na aula de
dança. — Sorrio fingidamente, jogando uma praga nos
seus peitos de borracha. Tomara que eles estourem e ela
saia voando e bata na parede, como acontece em desenho
animado.
— Temos vagas nas duas turmas, da professora Bruna
e da professora Camila. Eu, particularmente — ela abaixa
o tom de voz e olha para os lados rapidamente antes de
continuar —, escolheria a Bruna, se fosse você.
Bom, mais uma nota. Seus colegas de trabalho te
odeiam, Camila!
— Eu quero a aula da Camila.
Ela parece decepcionada, também estou, adoraria
ainda estar dormindo.
— Não diga que não te avisei — murmura, me
entregando um maço de papéis. — Preenche isso, o exame
físico é feito somente às sextas, depois você pode
começar a frequentar as aulas. A mensalidade é...
Parei de ouvir depois do terceiro zero. Sério? Isso ia
para uma nota de reembolso para a loirinha que havia me
contratado, com certeza.
— Não tem nenhuma aula rolando agora? — Sei que
tem, não sou cega. De onde estou apoiada, consigo ver
várias esqueléticas pulando ao ritmo da Rihanna em uma
salinha no fundo da academia. — Eu gostaria de fazer uma
aula teste para saber se me adapto. — Porque minha
carteira, claramente, não se adaptava.
— Claro — diz, com um sorriso diplomático,
pegando um crachá e o estendendo em minha direção. —
A aula está acontecendo na sala dos fundos. Divirta-se e,
quando acabar, volte aqui para terminar de preencher a
papelada e assinar os cheques.
Sonha, gatinha, sonhar não custa nada.
— Obrigada.
Dou meia-volta e passo pela catraca, me dirigindo
para a sala de aula de dança, como quem vai para a
cadeira elétrica, feliz da vida, como o nome daquela porra
de academia sugeria. Entro na sala sorrateiramente e fico
atrás das demais, tentando não chamar atenção, mas quase
todas olham para trás, como se fôssem um castelo de
cartas; a primeira cai, e as outras vão logo atrás. Camila
me vê no meio de um rebolado, porque segue o olhar das
alunas; não parece me reconhecer, mas talvez reconheça
minhas coxas, já que é para elas que está olhando.
— Aluna nova? — pergunta, jogando os braços para
o alto.
Não sou interessante o bastante para que ela pare a
aula por mim.
— Talvez, vim conhecer a aula — respondo,
envergonhada pela atenção completamente desnecessária.
— Ótimo! Mas, se vai ficar, vê se mexe essa bunda,
você está precisando!
Ela se vira de volta para o espelho, mas continua me
encarando pelo reflexo. Consigo saber o que ela está
pensando só de olhar em seus olhos: “Meu Deus, que
horror, nem minhas aulas dão jeito naquilo ali”. Vou amar
entregar esse trabalho concluído e bem feito e apresentar
várias fotos comprometedoras dela, nem que, para isso, eu
tenha que montá-las no Photoshop.
Mexo a bunda e, no final da aula, estou suando mais
do que porco em véspera de Natal. Apoio as mãos nos
joelhos, tentando lembrar se passei ou não desodorante
antes de sair de casa – não quero correr o risco de
levantar os braços e matar tantas mulheres – é quando eu
noto... Camila está falando no celular baixinho enquanto
acena em despedida para as moças.
O que mais chama minha atenção é seu olhar, está...
feliz.
Não está imponente, empinado ou soberbo, aquele é o
olhar de uma mulher completamente sedutora e
provavelmente apaixonada. É um tiro no escuro, eu sei,
mas aposto metade da minha banha (porque realmente
quero me livrar dela um dia) que ela não está falando com
o noivo. Assim, como quem não quer nada, eu chego
perto, me abaixo e volto à posição do “Estou morrendo”,
mas ainda não escuto nada, por isso tento de novo. Ela me
olha de esguelha, mas não pareço uma ameaça, então ela
continua o assunto e, dessa vez, eu finalmente escuto o que
ela diz.
— Amanhã? — ela pergunta, com interesse. — Não
sei se posso, tenho que ver se ele não vai notar minha
ausência — ela frisa o ele, então sei que a peguei.
Camila se cala e escuta o que a pessoa do outro lado
da linha diz, com o sorriso se alargando, suas bochechas
coram e ela remexe na blusa ansiosamente.
— Tudo bem, então, amanhã, às oito, te encontro lá.
— Ela escuta novamente. — Vou sair de casa lá pelas
sete, tudo bem? — Ela suspira. — Até lá. Também estou
ansiosa para saber o que você vai fazer comigo.
Pausa para uma risadinha desavergonhada, e uma
ânsia de vomito. A risada dela, e a ânsia minha, claro. O
que me impede de botar o café da manhã para fora é
pensar no meu cheque, consigo até sorrir, embora esteja
quase morrendo de cansaço.
Depois da minha fantástica descoberta, e de descolar
o e-mail da safada com a recepcionista, encerro o
expediente. Necessito muito de um banho depois de suar
tanto e comprei uma garrafa de vodca novinha em folha,
pois vou precisar dela se quiser ter coragem de invadir
uma casa para ajudar meu novo amigo a roubar suas
coisas e o resto que sei que suas mãos levianas vão pegar
no processo.
Quando Arnaldinho me levou de volta para casa
depois de sair do hospital, no dia em que afundei seu
casamento igualzinho o Titanic afundou o Di Caprio – eu
sei que não foi assim que aconteceu exatamente, mas a
metáfora foi ótima –, acabamos conversando e eu vi que
gostava mesmo do cara, o que era um avanço, porque, de
uns anos para cá, eu não gostava nem de mim mesma.
Mas, se eu soubesse que aquela recente amizade ia me
fazer terminar com um hóspede indesejado e uma possível
prisão por invasão de propriedade, eu o teria atropelado
com o Totó, sem dó (até rimou).
Repenso a possibilidade depois de matar meia
garrafa e vê-lo enfiar aquela peruca esquisita e antiquada
pela minha porta.
— Não acredito nisso! Você tem sérios problemas
com a bebida, sabia, boneca? — diz, de forma
desaprovadora, retirando a garrafa das minhas mãos.
Eu tento brigar por ela, mas é inútil, quase caio da
cama. Minhas habilidades motoras não estão lá muito
funcionais naquele momento.
— Eu preciso de você esperta, e não caindo de
bêbada.
— Você ainda não me viu cair de bêbada, mas, se
quiser ver, é só me devolver a maldita garrafa —
murmuro, tateando com as mãos em busca de álcool.
Ele conseguiu me deixar meio chateada com seus
julgamentos. Aquela garrafa era a melhor amiga que eu
poderia ter, a única que faria alguma coisa por mim, a
única capaz de me ajudar.
— Já pensou em procurar o AA? — questiona,
escondendo a garrafa atrás das costas largas.
— Já pensou em arrumar essa droga de peruca
direito?
Os lábios dele tremem, e eu me sinto culpada.
— A bebida ajuda — conto, baixinho, depois de
quase um minuto de silêncio que ele leva para decidir se
chora ou não, não quero que chore —, ela ajuda a
esquecer o que mais dói.
— Não para sempre — alerta, sentando-se ao meu
lado na cama e passando um dos braços em volta de mim.
Minha garganta se fecha, e meus olhos ardem. Espere,
isso está errado. Comecei a beber para comemorar o fato
de que amanhã vou pegar a minha vítima com a boca na
botija (ou em outro lugar), por que fiquei triste? Eu sei
por que: faz tantos anos que não ganho um abraço que, se
ele me apertar só um pouquinho mais forte, sou capaz de
desmoronar em seus braços.
— O que você tanto quer esquecer, boneca?
— Tudo, eu quero esquecer tudo — respondo na
defensiva, me levantando e engolindo em seco. — Vamos
ou não nos vestir de preto, colocar máscaras e roubar
alguns ternos cafonas? — pergunto rapidamente, dando-
lhe as costas e esfregando os olhos para que ele não
perceba a umidade dentro deles.
— Vamos.
Ele também se levanta. Ao escutar seus movimentos,
respiro fundo e me viro novamente, encarando-o.
— Você pode vestir o que quiser, mas eu vou ter que
ir com esse paletó mesmo, é o único que tenho.
Dou risada.
— Nem queira saber quantas vezes já virei essa
cueca do avesso e o quanto passei a odiar a cor amarelo-
canário!
— Não quero mesmo saber, principalmente a parte da
cueca — exclamo, enojada.
Eu adoro um bom drama, então me visto de preto
mesmo e improviso uma máscara com touca de inverno,
depois me arrependo de ter cortado dois buracos na altura
dos olhos, porque, assim que a coloco, quase morro
sufocada. Está calor demais para brincar de bandido,
então estraguei a touca à toa, por isso acabo saindo de
casa com shorts, uma camiseta regata e chinelos. Também
me arrependo dos chinelos quando chegamos à mansão da
Telminha, porque, claro, sobrou justamente para mim ter
que pular o muro.
— Por que eu? — questiono pela terceira vez me
lançando para frente e para trás, sem tirar os pés do lugar,
meio irritada, inconformada e cheia de expectativa.
Uma corrente elétrica passa pelo meu corpo, me
abastecendo de adrenalina. Estou só bancando a difícil,
porque, por dentro, estou achando extremamente divertido
invadir o lugar. A única coisa que não me deixa feliz são
os cães.
— Eu já disse, estou velho, se eu pular esse muro, é
bem capaz que quebre o pescoço — explica novamente,
com menos paciência do que nas duas primeira vezes. —
É simples, boneca, pule e distraia os meus bebês; quando
eu passar correndo, você vem atrás. Não tem segredo.
— Se formos pegos, vou dizer que me obrigou! —
murmuro, enfiando um dos pés por um buraco redondo no
muro, encaixo uma das mãos em outro e tomo impulso
para cima. Nada acontece. Claro que nada acontece, com
todo esse peso, como achei que iria conseguir subir nessa
droga de muro preconceituoso? Depois da terceira
tentativa e do riso baixinho da criatura ao meu lado, me
frustrei. — Será que dá para me ajudar?
— Pensei que não fosse pedir. — Ele entrelaça as
mãos e eu as uso para me erguer e, alguns segundos e
muitas gotas de suor depois, estou pulando o muro. — Vê
se não machuca meus cachorrinhos, hein, eles são
inofensivos. — Escutei-o gritar quando aterrissei do outro
lado com a graça de um avestruz.
Olhei para os lados e depois para a casa, tudo estava
escuro, exceto por algumas luminárias espaçadas no
jardim, então comecei a procurar os tais cachorrinhos dos
quais eu nem me lembrava dos nomes. Não demorei para
encontrá-los e, assim que pus os olhos nos dois, decidi
que, sim, eu ia matar aquela bicha velha, enrolá-lo no meu
tapete de boas-vindas e abandonar o corpo em uma
lixeira, ele merecia coisa até pior. Merecia ficar o resto
da vida casado com a enrugada da Telminha.
Fiquei petrificada, olhando para aqueles dois
monstros devorarem um osso gigante, provavelmente
humano, sem conseguir me mexer, muito menos respirar.
Nesse momento, perdoei Arnaldinho, porque, se ele não
tivesse me salvado da ex-esposa e da ex-cunhada no dia
em que lhes contei o resultado do meu trabalho, aquelas
criaturas poderiam estar devorando uma das minhas
costelinhas naquele momento. Quando me dei conta de que
isso ainda podia acontecer, voltei a odiá-lo.
Sim, eu era bipolar, até aqui nenhuma novidade.
Dei alguns passos para trás, saindo do torpor e
tentando controlar meu medo de ser devorada, mas não
deu certo, porque os dois cães – não dois pequenininhos e
fofinhos cães –, dois Dobermans monstruosos e com cara
de assassinos seriais, levantaram a cabeça em sincronia e
me mostraram os caninos... Quase fiz xixi nas calças. Se
eu fosse vingativa, faria xixi neles, ainda estava ressentida
com aquele buldogue.
— Cadê as coisas fofas da tia — falei debilmente —,
cadê, hein? Cachorrinhos bonitinhos...
— Rrrrrrrrrrrrr.
— Ah, puta merda.
Corri. Corri muito. Corri pra cacete. Corri em
círculos, porque pessoas idiotas correm assim. Corri até
ver Arnaldinho correndo também. Ele havia saído pela
porta principal, arrastando uma mala enorme com
Telminha em seu encalço.
— Vai, vai, vai — berrou, apontando um objeto preto
e pequeno para frente e, como mágica, os portões de ferro
se abriram.
Nem olhei para trás, ele que fosse devorado. Voei em
direção ao Totó, abrindo a porta, me jogando para dentro
e virando a chave na ignição. Só respirei aliviada quando
escutei o rugido (ou no casso, tosse) do meu motor. Mas
não arranquei, eu era mole demais.
— Tudo bem, vou contar até três. Se ele não aparecer,
eu o largo aqui. Ouviu, Deus? Não vem querer me punir
depois. Nada de “Não, não, Marcela, você vai para o
inferno. Lembra quando deixou Arnaldinho para trás
naquela invasão? Pois bem!”. Um, dois...
— Cheguei, boneca! — gritou, abrindo a porta e
levantando o banco mais rápido do que o Batman. Jogou
primeiro a mala e depois se jogou para dentro do carro de
qualquer jeito, berrando: — Venham, crianças, venham
com o papai.
— Como é?
Minha resposta foi ver um Doberman pular no colo de
Arnaldinho, ele voltar o banco para o lugar, e ver outro
entrar e se sentar ao meu lado, como se tivesse modos e
não tivesse rosnado pra mim pouco antes.
— Não, pode esquecer, não vamos levar esses
monstros diabólicos!
— Eu vou chamar a polícia — berrou Telminha, sem
fôlego, aproximando-se do carro e sacando um celular
rosa pink, erguendo-o em nossa direção para enfatizar sua
ameaça.
Ah, merda! Por que comigo? Arranquei com o carro,
cerrei os lábios e olhei para frente com raiva, pelo menos
até sentir alguém respirando no meu cangote algumas ruas
adiante.
— Vê se sossega, boneca, eles conseguem sentir o
cheiro do medo. — Riu Alfredinho.
— Cala essa boca, se não vou parar o carro e pôr
você, a mala e eles para fora — cuspi, me afastando do
bafo de carne do cachorro, e tudo o que consegui com isso
foi uma lambida na cara.
— Parece que o Tyler gostou de você!
Sorri involuntariamente, agarrando mais o volante. Eu
era trouxa mesmo, não é? Mas, poxa, ele me lambeu em
vez de fazer xixi em mim, isso deveria valer alguma
coisa!
— Você não é o meu tipo, Tyler — sussurrei, me
virando de lado para olhá-lo. O cachorro virou a
cabeçona e colocou a língua para fora, como se risse para
mim.
Como, por Deus, fui me meter nisso?
Capítulo 10 - Marcela

“Olhos fechados pra te encontrar.


Não estou ao seu lado, mas posso sonhar.
Aonde quer que eu vá, levo você no olhar.”
Paralamas do Sucesso

O garoto que eu abandonei

— Arnaldinho! — grito, tomando um susto. Acordei


com dois pares de olhos me olhando de maneira suspeita
e, claro, me senti encurralada. — Tira esses bichos daqui!
Tyler e Tiffany, dois nomes bem idiotas para cães, por
sinal, estavam sentados ao pé da minha cama, em uma
postura excelente, me observando dormir.
— Eles só querem te fazer companhia — observa,
abraçando o batente da minha porta com cara de sono.
Devo tê-lo acordado. Bom, eu não estava nem um
pouquinho preocupada com isso, estava ocupada me
sentindo violada.
— Bom, eles estão com cara de que querem me comer
no café da manhã!
Olho feio para Tyler, pensei que tivéssemos nos
entendido no dia anterior, sua orelhinha se mexe e ele
pisca.
— Meus bebês são inofensivos — argumenta,
ameaçando voltar para seu quarto. Ops, quero dizer meu,
meu quarto de hóspedes.
— Leve-os de volta para a Telma, um hóspede
inconveniente já é demais — grito para ser escutada e,
logo depois, ele aparece na minha porta de novo.
— Que tipo de bruxa sem coração é você? —
pergunta teatralmente. — Vai ter coragem de deixar esses
dois anjinhos — De anjinhos aqueles dois não tinham
nada, isso eu podia apostar — nas mãos cruéis da
Telminha? Não posso acreditar!
— Não só eles, estou a ponto de levar vocês três de
volta para ela. — Volto a me deitar. — Assim que eu
conseguir dormir mais um pouco. Enquanto isso, se eu
fosse você, começaria a procurar outro lugar para morar,
se quiser manter essas coisas.
— Por favorzinho, boneca, é só por alguns dias,
prometo — implora. — Assim que eu conseguir vender as
joias que eu roub... — ele gagueja — recuperei, vou
poder começar a te pagar o aluguel ou arrumar outro lugar
para morar.
Eu o olho feio e ele muda de tática.
— Eu não tenho mais ninguém. — Velho dramático e
manipulador, sabe que estou com dó de sua situação e que
também me sinto culpada por ela.
— Só por alguns dias. Poucos, bem poucos dias,
entendeu? — friso, agarrando um travesseiro e fechando
os olhos ao me aninhar nas cobertas.
— Ah, obrigado, obrigado! Eu amo você, destruidora
de lares, a boneca mais linda da minha vida — exclama,
contente. — Venham, crianças, vamos deixar a titia
dormir! — Arnaldinho chama os monstros e, assim que
volto a ficar sozinha, sorrio para o nada.
Fazia anos desde que tive pessoas na minha vida pela
última vez, desde que dei algumas risadas verdadeiras e
espontâneas, ou fiz alguma coisa louca ou imprudente por
diversão, algo que fizesse a adrenalina gelar meus ossos e
o medo esquentá-los, como, por exemplo, invadir uma
casa. Eu não podia negar que estava gostando de tê-los
por perto. Mas a presença de Arnaldinho, e até a de Tyler
e Tiffany, também me trazia lembranças ruins e uma
vontade absurda de querer chorar, o que eu detestava
fazer, mais do que qualquer outra coisa.
Eles faziam com que me lembrasse do quanto eu
gostava de ter vida ao meu redor, algo que eu já tinha me
esquecido do quanto era bom. Ter alguém para jogar
conversa fora, rir de algo sem sentido e até sem graça, o
som de passos se arrastando pela casa na madrugada, uma
constante: tinha mais alguém ali. O quanto eu me sentia
viva por ter alguém dentro de casa para me dar bom-dia,
assistir à televisão, ou simplesmente deixar a pasta de
dente aberta em cima da pia para que eu pudesse
reclamar. O quanto eu estava grata por, finalmente, não
estar mais sozinha. Porém, também me faziam lembrar de
outra vida, uma em que eu tinha tudo, e o que aconteceu
para que eu deixasse de ter.
Uma vida em que perdi tudo. Então, eu me sentia
culpada por estar feliz.
Eu merecia a solidão, esse era o meu castigo.
Sempre me refiro a essas perdas assim, colocando a
palavra “tudo” no final. Nunca digo que perdi “todos”,
porque perdi muito mais do que pessoas. Eu me perdi,
também. Isso inclui todas as minhas realizações e os meus
sonhos, toda uma vida. Então, não estar mais sozinha era
bom e ruim ao mesmo tempo. As horas passavam mais
rápido, e eu tinha muitas outras coisas para me distrair ou
em que pensar, além de me torturar por coisas que nunca
mais poderia ter – agora, sim, eu estava falando das
pessoas. Eram eles quem não podiam voltar, porque, por
mais que eu desejasse esse retorno, ele nunca aconteceria.
O que atrapalhava? Uma coisinha chamada morte. Na vida
real, não existe nova rodada após o game over. Quando a
morte chega, é o fim.
Foi o meu fim.
***
Às sete horas em ponto, eu já estava dentro do Totó
com um copo de café fumegante nas mãos, de tocaia em
frente ao prédio da Camila Assunção, com uma bicha
louca vestida de roxo dos pés à cabeça ao meu lado, que
não conseguia parar quieta. Mais alguns minutos e ele
faria chover purpurina dentro do Fusca azul, tamanha sua
inquietação.
— Vai demorar muito, boneca? — questionou, pela
terceira vez desde que estacionei o carro. Reclinei o
banco e cruzei as pernas.
Revirei os olhos e o encarei de canto de olho.
— Ela combinou de se encontrar com ele às oito.
Será que dá para ter um pouquinho de paciência, criatura?
— respondi, conferindo o relógio; faltavam apenas vinte
minutos para o horário do encontro.
— Pensei que esse seu trabalho fosse um pouquinho
mais glamouroso do que isso aqui — resmunga, fazendo
um aceno para nossos corpos, enquanto tenta cruzar as
pernas com elegância e acaba por bater o joelho no porta-
luvas.
Depois era eu quem precisava de um regime? Não
sei, não!
— Até agora, não fizemos nada além de ficar
sentados aqui, sem fazer algo divertido ou perigoso —
reclama, bufando.
— Ela já deve estar saindo — murmuro, encarando o
prédio.
O que eu não contei para o Arnaldinho é que eu tinha
a leve sensação de que passaríamos a noite em claro
dentro do carro, fazendo o mesmo que estávamos fazendo
agora, ou seja, nada.
— Acho que vou dar uma esticada nas canelas, então
— anuncia, colocando a mão gorducha no trinco da porta.
Dou um murro em seu braço instintivamente.
— Não saia do carro, criatura burra, e se ela sair e
vir você?
Ele só ia me atrapalhar, estava chamando mais
atenção do que um outdoor com foto de mulher seminua.
Eu deveria tê-lo deixado em casa, pensei, não pela
primeira vez desde que ele me informou que adoraria me
ver trabalhar e apareceu na sala parecendo um pedacinho
do arco-íris.
— Sabe quando disse para vestir alguma coisa
discreta? O que você entendeu?
Ele olha para baixo e analisa o paletó roxo, alisando-
o com esmero, arranca alguns pelos de cachorro e sorri
para mim, esfregando o braço dolorido.
— Eu fico bem com essa cor, não é?
É, ele ficava, sim. Absurdamente bem. Bem e
chamativo pra cacete.
— Uau, que mulher linda! — exclama, antes que eu
possa lhe responder. — É ela?
Sigo seu olhar e encontro minha vítima passando
pelos portões de ferro do prédio com um microvestido
verde-oliva, e sapatos dourados com saltos gigantemente
altos, e assinto. Seus cabelos voam com o vento, e tenho a
impressão de que estou presa no set de filmagens de um
comercial de xampu. Estalo a língua e cruzo os braços,
ofendida. Ele só me chamava de bonita, mas chamou
aquela safada de linda. Eu e meus quadris tinham
sentimentos, sabe? Ficávamos magoados com muita
facilidade.
— O que foi? — pergunta, erguendo uma sobrancelha
grossa e grisalha na minha direção, com um ar
absurdamente divertido.
— Nada — resmungo, mal-humorada —, não foi
nada!
— Que coxas, não? Se eu gostasse do negócio...
Eu o corto.
— Quer calar a boca, por favor?
Ligo o carro e engato a marcha, fechando a cara.
— Não acredito que, por baixo da pose de durona,
temos uma bonequinha ciumenta — diz, fazendo graça.
Sou mesmo! Me recuso a responder, ao invés disso,
me preparo para seguir o táxi que acaba de parar no meio-
fio, mais ou menos um segundo depois de ela ter erguido a
mão para chamá-lo. Será que tudo na vida daquela garota
era tão fácil? Eu precisava, urgentemente, de um par de
pernas iguais!
— Agora a diversão vai começar!
Arnaldinho estava parcialmente errado.
Camila realmente se divertiu naquela noite, já eu?
Fiquei de frente para um dos meus piores pesadelos e, ao
mesmo tempo, um dos meus maiores sonhos. Mas é
normal, não é? Uma pessoa que sempre foi seu sonho se
transformar no monstro que você guarda dentro do
armário. Meu armário estava cheio deles!
Seguimos Camila até um restaurante. Nós a vimos se
encontrar com um homem bem apessoado, vestido com um
terno preto alinhado sobre uma camisa branca engomada.
Só a gravata vinho pendurada em seu pecoço,
provavelmente, pagaria meu aluguel por alguns meses. Ela
o beijou no canto da boca (flash), riu feito uma menininha
ao agarrar sua mão (flash) e o conduziu pelo caminho que
o garçom estava mostrando (flash, flash, flash).
Ficamos sentados por cerca de meia hora dentro do
fusquinha, e consegui algumas fotos interessantes. Mãos
dadas por cima da mesa, sorrisos afetados e um beijo
demorado nos lábios, quando ela se levantou, depois de
ter atendido rapidamente o celular, agarrando a bolsa.
Não pensei que aquele encontro terminaria antes mesmo
do prato principal que, com certeza, seria salada (ela) e
galinha frita (ele) – há há –, mas, pelo visto, alguém tinha
dado falta da safada. Se eu fosse apostar, apostaria no
noivo. Como minha curiosidade tinha as proporções da
minha massa corpórea, decidi segui-la de novo; eu queria
conhecer o cara que tinha uma irmã leoa e uma noiva
vaca.
Era hoje que eu ia botar meus olhos no dono do
zoológico!
— Você já não fotografou tudo? — pergunta
Arnaldinho, quando saio da vaga com a delicadeza de uma
mula, fechando uma moto, para embicar o carro na bunda
do táxi à nossa frente. — Por que ainda vamos seguir a
moça?
— Porque estou curiosa, quero ver a cara do corno!
Abro um sorriso malicioso e aperto seu braço em um
movimento eufórico e contente. Vai saber Deus por que,
mas, ultimamente, eu me alegrava bastante com a desgraça
alheia. Era até melhor do que ver televisão.
— Você é perversa, boneca, alguém já te disse isso?
— perguntou, rindo, com uma pontinha de culpa na voz.
Ele volta a falar, dessa vez com um tom mais brando: —
Não sei como consegue fazer esse trabalho. Ela parece
uma moça tão boazinha, e você está a ponto de... — Ele se
cala, decerto para não me magoar, mas eu não ligo para
esse tipo de crítica.
— Eu sou só a ponte. — Dou de ombros. — Se as
pessoas que sigo realmente tivessem caráter, eu não teria
o que apresentar para os clientes. Eles só colhem o que
plantaram e, no caso, sou a jardineira!
— Eu sei que faz sentido, mas ainda parece, não sei...
errado? — diz, como se se desculpasse e aí, sim, ele
mexe em uma ferida. — Alguns, simplesmente, traem
porque é a única solução, porque estão apaixonados —
diz, com voz sonhadora, pensando provavelmente em seu
próprio relacionamento secreto e fracassado.
— Eu sei que você gostaria de acreditar nisso, mas
não é verdade.
Corto um caminhão em uma guinada de volante
brusca, que faz Arnaldinho dar um gritinho sexy pra
caramba e agarrar no puta-merda, chamando-o pelo nome.
— Sempre existem soluções, a melhor delas é a
verdade. — Buzino para um motoqueiro, mudo de faixa e
continuo falando. — Ninguém deveria ser traído. — Outra
cortada, o mesmo caminhão. Diminuo e mostro o dedo
médio para o motorista, que xingou minha mãe segundos
antes.
— Tudo bem — grita Arnaldinho, agarrando-se no
cinto de segurança. — Concordo com você, agora, pelo
amor de Deus, tome cuidado. Você vai matar nós dois.
— Melhor assim. — Colo no taxista barbeiro e
reduzo a velocidade. — Porque estou certa!
— Seu marido devia ser um cretino — diz, baixinho,
pensando consigo mesmo.
Ele não sabe o quanto está certo. Cretino, para aquele
lá, era só apelido.
Camila salta do carro em um bar de esquina, faz
questão de rebolar para o motorista ao passar à sua frente,
e ele, claro, espera que ela atravesse antes de arrancar o
carro e lhe dar uma buzinada. Estaciono o Totó na rua
lateral e obrigo Arnaldinho a sair do carro.
— Vamos segui-la de perto, estou mesmo precisando
de uma cerveja ou duas.
— Vamos atuar? — pergunta, animado.
Eu ergo as sobrancelhas e ele explica.
— Atuar, sabe? Fingir que estamos juntos ou algo
assim, para disfarçar?
Caio na gargalhada.
Diferentemente da Telminha, eu me recuso a dar o
braço para um homem vestindo um terno roxo, uma camisa
rosa com os botões abertos, expondo vários pelos brancos
e uma corrente de ouro com um pingente em forma de
coração do tamanho do meu punho. Eu tenho uma
reputação a zelar, qual é! Tá na cara que não faço o tipo
dele, já que eu vim sem a mangueirinha do xixi de fábrica.
Ele me olha de forma confusa, mas estou ocupada, rindo
da ideia de fingir que somos amantes. Quando consigo
voltar a respirar e paro para enxugar algumas lágrimas do
meu rosto, o destino aparece de trás de uma porta e faz bú,
me dando um puta susto e um verdadeiro motivo para
chorar e para não conseguir respirar.
Camila se joga nos braços de um homem, ele a aperta
e a puxa para mais perto, sorrindo em meio ao seu cabelo.
Então, eu me lembro, a voz da Bárbara preenchendo a
minha consciência: “Mas não tem erro, assim que vir um
idiota inútil com cara de apaixonado com um metro e
oitenta, cabelos e olhos castanhos e um nível de burrice
que ultrapassa qualquer limite, vai saber que é meu
irmão! Ah, ele também tem covinhas fofas, não que isso
compense o resto”. O problema é que eu conheço aquelas
covinhas fofas, conheço até bem demais, e ela tinha razão,
elas não compensavam sua burrice.
Não penso, apenas ajo. Olho para os dois lados da
rua, procurando uma solução, e ela vem até mim em forma
de caçamba de lixo. Me jogo no chão de concreto e me
escondo atrás das pilhas de cadeiras de madeira que
alguém jogou fora; espalmo as duas mãos no asfalto e caio
no choro, do nada e sem aviso, só porque preciso chorar.
— O que houve, boneca? — pergunta Arnaldinho.
Ele agarra meus ombros e tenta me endireitar, mas
forço mais a cabeça para baixo, não quero que ele me
veja chorar. Não quero que veja o quanto sou fraca diante
de um turbilhão de lembranças ruins.
Porque aquele homem do qual eu me escondi é uma
das minhas piores lembranças.
— Eu... — gaguejo, sem conseguir articular nem uma
maldita frase.
Deixo que ele me puxe para seu colo e, em instantes,
acabamos abraçados, ambos sentados no chão. Eu
recostada na barriga fofinha dele, e ele, na caçamba de
lixo fedorenta. Arnaldinho vai acabar estragando o terno
roxo desse jeito, e a porcaria do terno até que era bonito.
— Quem é aquele rapaz que a moça que estávamos
seguindo abraçou?
Escondo o rosto no seu peito, sem me importar com a
coceira que seus pelos fazem na ponta do meu nariz.
— Foi ele, não foi? Foi aquele rapaz que fez a minha
boneca chorar.
Não lhe respondo. Ainda estou muito ocupada
ensopando sua camisa e tendo um piti verdadeiramente
histérico e fora de hora para conseguir lhe contar alguma
coisa. Respiro fundo sendo embalada por suas mãos, que
passeiam lentamente e de forma gentil pelo meu cabelo, e
sou invadida por uma sensação já conhecida. Saudade.
Meu pai me acariciava daquela maneira sempre que me
encontrava triste e queria que eu compartilhasse o motivo.
Foi por isso que contei.
— Ele é o garoto que eu abandonei.
Capítulo 11 - Bárbara
“Só é teimoso se estiver errado. Se estiver certo, é seguir
os seus princípios.”
Dr. House

Uma promessa que vou quebrar

Termino de tomar banho e decido comer alguma coisa


antes de dormir. Mais cedo, senti cheiro de bolo vindo da
casa vizinha, então meu alvo é o forno da Anna e do idiota
do meu irmão. Entro na cozinha deles sorrateiramente,
arrastando minha pantufa de patinhas de dinossauro,
tentando ao máximo não fazer barulho. Entretanto, desisto
quando escuto um grasnado conhecido vindo do andar de
cima. Só tem uma pessoa que fala “bá, bú, má, dá”
daquele jeito, e é meu filho. O que ainda era bonitinho, e
não a garota que já roubava meus batons e saía pela casa
fantasiada de palhaça de circo, de mãos dadas com um
garotinho apaixonado que insistia em chamar o bicho-
papão de papai.
Me escoro na porta do quarto principal e fico
admirando a cena por alguns minutos. Zach está deitado na
cama, olhando de forma divertida para meu irmão,
enquanto este o admira como se ele fosse um
eletrodoméstico quebrado, compenetrado e com as
sobrancelhas franzidas. Anna está sentada nos pés da
cama, olhando para os dois; ela parece não saber se se
diverte ou se frustra com a situação.
— Vamos lá, anjo, não é tão difícil — incentiva,
abrindo um sorriso quando ele a olha feio.
Augusto revira os olhos e mexe na fralda de Zach com
desinteresse.
— Essa porcaria não veio com manual de instrução, o
que eu tenho que fazer?
Penso em defender a honra do meu neném, mas, diante
do espetáculo à minha frente, me mantenho em silêncio e
espero, pesando se daria ou não tempo de fazer umas
pipocas de micro-ondas enquanto Anna o convence a
trocar uma fralda.
— Primeiro, abre a fralda, puxando as duas abas
laterais.
Ele obedece e faz uma careta de nojo, voltando a
fechá-la.
— Não, obrigado. Esse moleque está estragado —
argumenta, torcendo o nariz.
— Não pode ser tão ruim assim, larga a mão de ser
covarde! — Ela está quase se irritando.
Eu deveria ter ido fazer as pipocas.
— Tô falando sério, essa criança comeu um gambá.
— Os olhos de Anna brilham, e ele resmunga, mas faz o
que ela mandou, abrindo a fralda como quem desarma uma
bomba. — E agora?
— Tira o excesso com a própria fralda, dobrando-a
embaixo dele, e limpa o bumbum do Zach com o lencinho
umedecido — ordena, estendendo-lhe o pacote de lenços,
que ela deve ter pego junto com meu filho mais cedo.
— Isso é mesmo necessário? — questiona, com uma
esperança patética na voz. — Ainda faltam uns meses até
o nosso chegar, acho que eu poderia aprender essa parte
depois.
— Ou você troca essa fralda ou dorme no sofá da
Bárbara; a escolha é sua, Monstro — sentencia, cruzando
os braços.
Tenho que me segurar para não cair na risada por
causa das expressões de repulsa do meu irmão; ele já teve
que engolir duas ânsias de vômito, uma quando abriu a
fralda e outra quando melecou a mão. Eu deveria estar
filmando. Tateio o bolso do roupão felpudo e me dou
conta de que esqueci o celular na pia do banheiro de casa,
droga!
— E agora? Acabou?
— Não, passa a pomada e coloca uma fralda limpa, aí
acabou — responde, parecendo orgulhosa.
— Eu vou, mesmo, ter que fazer isso? Com quantos
anos eles aprendem a fazer na privada?
Mais tempo do que ele gostaria, suponho.
— Foi bom na hora de fazer, não foi? — contra-ataca
minha cunhada.
— Uma delícia, mas, se eu me lembro bem, a culpa
foi sua. — Ele a encara de forma divertida. — Ah, hum,
isso. Ah, Augusto. Tá lembrada dessa parte? Então, nada
mais justo do que você ficar com o cocô.
— Não sabemos em qual das duas vezes eu
engravidei, então nem vem. Te lembrei da camisinha na
segunda, você não colocou porque não quis — argumenta,
decidida. — Como não sabemos ao certo de quem é a
culpa, o cocô vai ser compartilhado!
— Vocês roubaram meu filho? — me intrometo,
porque não quero ouvir mais nada que me dê pesadelos,
como o fato de o meu irmão mais velho fazer sexo. Essas,
com certeza, não são imagens que eu quero rondando a
minha cabeça.
— Só peguei emprestado, Babi, eu já ia devolver —
diz Anna, não parecendo nem um pouco arrependida. —
Por falar nisso, sua outra filha está dentro da barraca do
Nicholas na sala. Disseram que vão dormir no
acampamento esta noite.
— Ian a tira de lá, assim que chegar. — Eu rio.
Incrível como ele conseguia ter ciúmes de uma
menina que não usava nem sutiã ainda. Se continuar assim,
quando fizer 15 anos, terá um cinto de castidade vitalício
e, aos 18, uma passagem só de ida para o convento mais
próximo.
— Eu não duvido. — Ela ri.
— Quando vamos saber o sexo do bebê? — pergunto,
me jogando na cama ao lado de Zach.
Ele se vira e sorri pra mim, esticando as mãozinhas
para o meu cabelo. Ô, tara, viu.
— Amanhã... Quer ir com a gente? — oferece Anna.
— Seria ótimo, porque tenho uma cirurgia logo
depois, assim você poderia trazer a Anna de volta para
casa — argumenta meu irmão, sempre prático.
— Eu estou bem, anjo. — Ela revira os olhos, mas
sorri com a preocupação.
— Você quase desmaiou hoje, sua pressão está baixa.
Não quero você andando sozinha por aí, muito menos
dirigindo. — O carro novo que ganhou de presente.
Quando, na minha vida, imaginei ver meu irmão
arrastar uma mulher vendada até um carro com uma fita
enorme de presente em cima? Nem em sonho eu era tão
criativa, mas aconteceu.
— Amanhã tenho que acompanhar um cliente em um
interrogatório de manhã e depois posso pegar o dia de
folga. Para que horas está marcado o ultrassom? — Eu
nem amava ter uma desculpa para fugir do trabalho, não
é?
— Depois do almoço — responde Anna, brincando
com os pezinhos de Zach.
— Ótimo, então dá tempo. Podemos almoçar no
shopping antes de ir.
Ela revira os olhos, mas concorda. Nunca vi uma
mulher não gostar de shopping!
— Amor — grita Ian, andando pelo corredor.
— Aqui — berra Augusto, fazendo graça.
— Oi, amor — Ian o cumprimenta com uma piscada e
se volta para mim, sorrindo de maneira estranha ao me
estender o meu celular. — Uma ligação pra você.
— É trabalho? — pergunto, baixinho, para não ser
ouvida, embora ele esteja tapando o microfone do
aparelho.
— Não, ela disse que é uma amiga.
Ele não parece acreditar nessa afirmação por um
minuto sequer, sua dúvida e seu olhar incriminador me
fazem ter a sensação de que estou encrencada.
— Ela te deu um nome? — Por que eu só não peguei
o maldito celular? Por quê?
— Marcela Cantagallo — responde, chacoalhando o
aparelho para que eu o pegue, o que faço na velocidade da
luz, olhando de canto de olho para Augusto, que parece ter
ficado sem reação. Quando ele volta a si, me encara com
um olhar assassino.
Devolvo o mesmo olhar e sou tão boa nisso quanto
ele. Um olhar que diz, mais ou menos, assim: “Abre o
bico e eu arranco as suas bolas!”. Então, saio do quarto e
vou atender no andar de baixo.
— Marcela, o que houve? — Porque deve ter
acontecido alguma coisa para ela me ligar a uma hora
dessas.
— Eu estou fora do caso, Bárbara, me desculpe —
diz, baixinho, com a voz anasalada.
— O quê? Por quê? — Me desespero. Eu estava
apostando todas as fichas naquele plano. Sem ele, voltaria
à estaca zero.
— Eu não consegui nada — diz, de forma firme. — A
menina está limpa.
— E se tentássemos por mais tempo? — Tento, em
vão, buscar uma alternativa, enquanto ando de um lado
para o outro da sala, encarando minhas pantufas. Anna vai
ficar feliz porque estou encerando seu piso. — Faz só
alguns dias...
Ela me corta.
— Não é necessário, ela realmente não tem nada a
esconder.
Isso é impossível! Como alguém tão biscate feito ela
não tem um único segredinho sujo?
— Tudo bem, então, quanto eu te devo? — pergunto,
chateada, confusa e pensativa.
O que faço agora, porra? Escolho meu vestido para a
cerimônia ou contrato um matador de aluguel? Alguns dos
meus clientes devem ter um amigo para indicar, eles
sempre têm. Semana passada, um deles se ofereceu para
roubar meu carro e, na anterior, um deles perguntou se eu
não estaria disposta a distrair alguns seguranças enquanto
ele e uns amigos roubavam um carro forte.
— Nada — diz com veemência. — O primeiro
cheque cobriu todas as despesas, e eu sei que combinamos
um segundo pagamento, mesmo que não houvesse provas
contra a... moça, mas não quero. — Suspira e, antes que
eu possa responder, ela já está se despedindo. — Talvez
seu irmão seja feliz com ela.
E é aí que eu a pego.
Tenho uma hábil experiência em duas coisas: fugir e
detectar mentiras. Não sou uma ótima advogada
criminalista à toa. Sei jogar perfeitamente com as mentiras
dos meus clientes e vou descobrir como fazer isso com
ela também. Porque, algo em sua voz me diz que ela não
acha que meu irmão será feliz naquele casamento, e mais,
também me diz que ela não quer que ele seja.
— Me desculpe, Bárbara, adeus.
— Adeus. — Murmuro para o nada, porque Marcela
já havia desligado.
Ou eu deveria dizer até logo? Marcela Cantagallo
ainda ia me ver porque, aparentemente, hoje ela havia
visto meu irmão, o reconhecido e se abalado com algumas
lembranças e com duas covinhas lindas que ele tinha
naquela carinha de pastel de feira passado. Aquela garota
era minha salvação e, o quanto antes ela aceitasse isso,
melhor!
— Que porra você fez, sua sem noção? — pergunta
Augusto, na sua melhor voz de Monstro, o apelido não foi
lhe dado à toa. — Não fala, eu tenho até medo de ouvir —
diz, colocando as mãos na cabeça e andando até a janela
do quarto, assim que piso novamente dentro dele.
— Eu não fiz nada.
Ele se vira e me encara, estreitando os olhos. Por que
ninguém nunca caía nessa?
— Bárbara, por que você não consegue refrear essa
ânsia que tem de se meter nas nossas vidas, cupido fajuta
de merda? — Aquilo tinha ofendido, tanto que fiz
beicinho. Meu príncipe não tardou em me defender.
— Olha quem fala, o cara que tentou socar minha cara
em diversas ocasiões porque eu estava namorando a irmã
dele — contra-ataca Ian, passando seus braços em volta
da minha barriga, de forma protetora.
— Não é a mesma situação, você era meu amigo e
estava profanando o corpo puro da minha irmã... — Ele se
interrompe e passa uma das mãos pelo rosto. — Bom, era
puro, tirando a Valentina.
— Este corpinho não é puro desde os 16, querido.
Ian estreita o aperto na minha barriga e bufa na minha
orelha.
— Informação demais, não tenho a necessidade de
saber quando, como ou por quem seu corpo foi profanado
— resmunga, chateado.
— Estamos saindo do foco, eu quero saber o que
você fez — diz Augusto, sem paciência, o que não era
novidade, ele já nasceu sem um grama dela no organismo.
— Você disse que não queria ouvir.
Ele respira fundo e se prepara para gritar, mas, antes
que o faça, Anna se intromete.
— O que nós fizemos, você quer dizer — diz,
resoluta, cruzando os braços e o desafiando a gritar com
ela.
— Não posso acreditar, você está metida nessa
também, anjo? — pergunta, perplexo.
— Você quer aquela garota como cunhada?
Ele franze os lábios em repulsa e balança a cabeça
negativamente.
— Nem nós! A diferença é que fizemos algo para
impedir.
— O que, exatamente, vocês fizeram? — questiona
Ian, curioso.
— Contratamos a tal moça, Marcela, para seguir a
Camila — responde Anna por mim. Os rapazes fazem
barulhos de descontentamento, mas ela me encara. — O
que ela tinha para contar? Deu certo?
— Não — lamento, me jogando ao seu lado na cama,
percebendo que Ian não pareceu surpreso, então Monstro
já havia lhe contado sobre o cartão e o que ele dizia. —
Marcela saiu do caso, disse que a Camila está limpa.
— Bom, então não há mais nada que possamos fazer,
além de roubar o noivo, não é? — pergunta Augusto,
sarcasticamente. — Vocês só jogaram dinheiro fora, nosso
dinheiro — aponta para o próprio corpo e para Ian —,
aposto.
— Em primeiro lugar, pagamos do nosso bolso. —
Mentira. Superfaturamos na manicure, na feira, e no
dinheiro do lanche das crianças; Marcela era cara. — Em
segundo lugar, ainda há uma coisa que podemos fazer.
Marcela não desistiu simplesmente do caso, ela pulou fora
porque viu Gustavo e, logicamente, o reconheceu —
explico, olhando unicamente para Anna. — Ela ainda
sente alguma coisa pelo meu irmão.
— Ela te disse isso? — pergunta Monstro.
— Não com todas as letras, mas...
Ele me corta.
— Mas, nada, Mãe Diná. E, só para te lembrar, o
irmão é nosso. E você está, oficialmente, demitida do
cargo de cupido dele, estamos entendidos? — pergunta,
colocando ambas as mãos na cintura. — Você também,
dona Anna! — afirma, olhando para a noiva, que assente.
— Mas...
Dessa vez, quem me corta é Ian.
— Amor, vocês foram longe demais dessa vez.
Gustavo vai ficar muito chateado se descobrir que
mandaram seguir a Camila, mais ainda por não terem
descoberto nada. Melhor parar por aqui — aconselha,
tentando ser complacente, mas sua voz firme não nega que
aquilo foi uma ordem.
— Mas eu tenho quase certeza de que aquela garota
ainda sente alguma coisa por ele. Eu sei que, se nós...
Mais uma vez sou interrompida, novamente pelo meu
irmão.
— Bárbara, será que dá para você nos escutar uma
vez na vida? — se exaspera. — Aquela garota saiu da
vida do nosso irmão por um motivo, e deve continuar no
passado dele pelo mesmo motivo.
— Você sabe qual é? — pergunto, curiosa.
— Não, mas sei que foi feio, então, por favor, não se
intrometa mais.
Mordo o lábio, visivelmente mais curiosa do que já
estava antes dessa conversa.
— Eu não gosto desse olhar. — Ian suspira e se volta
para Augusto. — É o olhar de quem está pensando em
aprontar alguma. Bárbara, se eu souber que você foi atrás
dessa moça de novo... — começa, com a voz cortante,
perdendo o humor, e eu sinto medo, então o distraio.
— Valentina está dormindo dentro da barraca com
Nick.
Quando as coisas esquentam para o seu lado, o
melhor a fazer é foder outra pessoa, no caso, a escolha da
vez tinha sido nossa filha. Nada que uma boneca nova
para aplacar a culpa não desse jeito.
Não precisei falar mais nada. Ian nos deu as costas e,
em questão de milésimos de segundos, estávamos ouvindo
os sons da barraca chacoalhar quando ele, provavelmente,
tentou entrar para resgatar nossa filha das mãos de um bad
boy que adora sucrilhos com leite e brinquedos do Mc
Donald’s.
— Isso golpe foi baixo até para você — comenta meu
irmão, tentando segurar o riso.
— Eu vou ainda mais baixo, Gustavo está me
obrigando a isso.
Antes que ele possa me questionar, saio pela porta e
desço as escadas. Pouco depois, meu celular apita.

De: Anna
Para: Babi
Qual é o plano? Bom, foda-se! Independente de qual
seja, eu estou dentro.

De: Babi
Para: Anna
Ainda não sei bem, mas vou pensar em alguma coisa.
Passo por um Ian tendo uma “conversa séria” com
uma menininha sonolenta sobre como é errado dormir na
barraca de garotos e, em vez de ajudar nossa filha, digito
o número da Barbie e espero que a ligação se complete.
— Desculpe ligar tão tarde, mas preciso da voz da
minha consciência neste momento. Tem alguns minutos,
grilo falante? — pergunto, falando rápido e baixo,
enquanto me sento no banco do jardim e contemplo o anjo
cuspindo água na fonte que dei de presente para os meus
irmãos quando eles se mudaram.
— Está em que temporada de Once Upon a Time? —
pergunta, rindo por causa da minha referência ao grilo.
— Na terceira, mas não é sobre isso que eu quero
conversar. — Levanto o olhar para conferir se estou
sozinha e desembucho de uma vez. — Marcela me ligou
agora há pouco para dizer que caiu fora do caso, e que
Camila está mais limpa do que o carro do meu irmão.
Não era segredo para ninguém que Augusto só faltava
colocar aquele Audi dentro da banheira e lhe dar um
banho de espuma com final feliz. Depois de alguns
barulhos de desagrado de Vivian, que espelhava
exatamente o que eu estava sentindo, voltei a falar.
— O problema é que ela disse que talvez o Mala
fosse feliz com aquela mulher, mas algo na voz dela... —
Faço uma pausa, olhando novamente para o anjo. — Não
sei, Vi, mas tenho a impressão de que ela nunca conseguiu
esquecer o meu irmão.
— Você tirou toda essa conclusão porque ela disse
que talvez a Piranha o fizesse feliz? — pergunta.
É por isso que amo a minha amiga, ela não parece
nem em dúvida, nem confusa, parece apenas estar tentando
entender meu ponto de vista.
— O tom de voz dela sugeria que não quer que isso
aconteça de verdade — conto, ansiosa com muitos
pensamentos martelando na minha cabeça. — Eu não sei,
posso ter confundido ressentimento com amor encubado,
mas algo me diz que, se alguém pode fazer esse casamento
afundar, é aquela garota.
— Mas ela não quer mais trabalhar no caso, não é?
— questiona Barbie, batucando uma das unhas no celular.
Eu já disse que ela tinha TOC? Pois é, tinha e era
muito irritante.
— Pare de bater no telefone! Assim não consigo
pensar — reclamo.
— Desculpe, só estou nervosa. Achei que ela
conseguiria alguma prova contra aquela mulher asquerosa,
mas, já que não conseguiu, não há muito o que possamos
fazer, até porque os sentimentos da moça não nos ajudam
em nada. Seu irmão é quem deveria ser afetado.
— Você é um gênio! — grito e depois tapo a boca,
olhando para a porta novamente, a barra ainda está limpa.
— Gustavo tem que rever a Marcela.
— Como vamos fazer isso? — pergunta, animada.
Com ela era sempre “vamos”, nunca “vai”. Existe
amiga melhor e mais perfeita?
— Não sei. — Era esse o problema, eu não conseguia
ter nenhuma ideia.
— Ah, ia ser tão bom se o Gustavo tivesse um podre,
não é, amiga? — murmura de forma pensativa. — Mas ele
é muito bonzinho para fazer alguma coisa errada...
Não escuto mais nada do que ela diz, porque alguma
coisa estala na minha cabeça. Um neurônio que acabou de
pegar no tranco.
— Eu já disse que você é um gênio hoje? — pergunto,
empolgada.
— Já, com essa foram duas vezes. — Ela ri. — Qual
foi a brilhante ideia que eu te dei, Dr. House?
— Você não vai querer saber... — murmuro
perversamente.
Quando Ian entra no quarto, finjo que estou dormindo.
Ele vai tentar me fazer prometer que não vou mais
interferir na vida do Mala, e minha resposta só pode ser
considerada uma mentira se ele a ouvir, mas, como estou
dormindo...
— Pare de fingir, eu sei que está acordada —
exclama, me fazendo cócegas.
— Pare, por favor — imploro, rindo. — Não, nas
costelinhas, não!
Ele ri e me puxa para seu peito,enquanto me viro e
fico de frente para ele. Ah, aqueles olhos. Eles estão
decepcionados hoje, e me odeio por saber que é por
minha causa. Mas não posso, simplesmente não posso,
ficar sem fazer nada enquanto meu irmão enterra o “felizes
para sempre” dele a sete palmos do chão.
— Amor, por favor — implora, cravando os olhos
azuis-piscina nos meus.
— Ian — lamento, fechando os olhos para não me
deixar ser ludibriada por tanta beleza e encantamento. —
Não posso não fazer nada.
— Bárbara, você já foi longe demais. — Sua voz se
endurece e eu me encolho. — Olha pra mim, amor —
pede, mais afável. — Se eu descobrir que você foi
procurar essa moça outra vez, ou falou dela para o seu
irmão, vou ficar extremamente decepcionado com você,
entendeu?
Inexplicavelmente, sinto vontade de chorar.
— Você não entende — falo, com a voz embargada.
— É claro que entendo, Bá. — Ele me puxa
novamente para seu peito e eu deito minha cabeça nela,
sentindo sua mão em meus cabelos. — Mas o Gustavo já
se machucou por causa dessa moça uma vez, você só vai
piorar as coisas ao tentar se livrar de um problema lhe
dando outro. O lugar dela é fora da vida dele.
— Como você pode saber? — questiono, fazendo
birra.
— Eu vi como ele ficou da última vez em que a viu, e
você, não — me lembra, me empurrando gentilmente até
que eu me sente, voltando a me encarar de forma decidida.
— Se tivesse visto o nome dela, estaria na lista de
inimigos ao lado do da Camila. Ela não é a solução que
você está buscando, entendeu?
— Sim. — O que mais eu ia dizer?
— Me promete que vai ficar de fora dessa vez?
Lembro da voz da Marcela ao telefone: “Talvez seu
irmão seja feliz com ela”, e toda a dor que senti em cada
uma de suas palavras, e minto para o meu marido.
— Sim, prometo.
Ian beija minha boca com doçura e me abraça, me
puxando para baixo dos lençóis.
Naquele momento, eu ainda não sabia o quanto aquela
mentira me custaria. Se soubesse, talvez tivesse feito
exatamente o que ele me mandou fazer. Nada.
Capítulo 12 - Marcela

“Já parou pra pensar em


quantas lágrimas você
derramou por alguém que
não merecia nem um
sorriso?”
Demi Lovato

Os homens que me destruíram


Não pude cumprir meu trabalho, e isso me deixava
com um gosto amargo na boca, gosto de derrota. Não era a
primeira vez que sentia aquele gosto por causa daquele
homem, e talvez não fosse a última. Eu odiava que ele
ainda tivesse esse poder sobre mim. O poder de me
desestabilizar.
Quando cheguei em casa, depois de ficar calada pelo
caminho de volta e deixar Arnaldinho dirigir o Totó,
guardei a câmera com as fotografias onde eu não tivesse
que vê-la por algum tempo, depois liguei para minha
cliente, irmã dele, e lhe disse que estava fora do caso, que
sua cunhada, que era mais suja do que o Rio Tietê, não
escondia nada e que eu acreditava que ela poderia fazê-lo
feliz. Eu estava mentindo, é claro.
Será que Bárbara sabia quem eu era?
Não, era impossível. Ele nunca havia me apresentado
para sua família. Uma coincidência, uma terrível e
agoniante coincidência. Mais uma dentre tantas que
aconteceram na minha vida. Vê-lo não mudava nada, era
nisso que eu tinha que me concentrar. Eu nunca mais veria
sua irmã, e ele se casaria com aquela mulher, isso daria
um fim à nossa história e a esse reencontro que nunca
deveria ter acontecido.
Mas por que chorei? Por que vê-lo me abalou tanto?
Será que era porque eu sabia que ele estava entregando
seu amor a uma mulher que não o merecia? Ou era apenas
porque ele não quis entregá-lo a mim, que o amava tanto?
Talvez fosse porque eu nunca havia conseguido esquecê-
lo completamente, mesmo tentando tanto. Não fazia
diferença, eu não iria me meter na sua vida, nem para
alertá-lo.
Eu não queria fazer parte daquilo.
— Você escondeu minha garrafa de vodca? —
pergunto, abrindo e fechando os armários da cozinha com
violência.
Quando eu não a encontro, paro no meio da cozinha,
me virando em sua direção. Não deixo de notar meu olhar
refletido no material espelhado da geladeira; se pensei
que veria raiva nele, estava enganada, tudo o que eu via
era tristeza.
— Claro que não, mas você bebe feito um gambá,
deveria diminuir a dose — responde evasivamente,
conseguindo, enfim, me deixar irritada. — Não faz bem
para sua saúde.
Mentiroso de uma figa!
— Hoje foi um dia difícil, criatura, cadê a garrafa?
Meus olhos se estreitam e eu coloco ambas as mãos
na cintura para enfatizar a firmeza do pedido. Ele nem
liga, dá de ombros e caminha até a sala, se sentando no
sofá enquanto eu o sigo.
— Não faça isso, bebê — recrimina baixinho quando
nota o mesmo que eu, Tiffany comendo um dos meus
chinelos. Ele esconde a prova do crime embaixo do sofá e
tenta disfarçar. — Não precisamos dar mais nenhum
motivo para a boneca me devolver para aquele capacho
fedorento que não deve ser lavado, desde que ela se
mudou.
Tiff me olha com atenção e vira a cabecinha de lado,
depois se deita e a coloca sobre as patas, exibindo as
unhas pintadas de vermelho.
Eu suspiro e passo a mão pelo rosto, depois ando
pelo apartamento olhando embaixo dos móveis e dentro
de qualquer coisa que tenha portas. Não encontro a
garrafa em lugar nenhum, estou em dúvida entre torturá-lo
para obter minha resposta ou sair para comprar outra. O
problema é que tenho sérias dúvidas se o dinheiro dá pra
isso. Me decido por torturá-lo e volto para a sala,
encontro-o fingindo ler uma revista. Como eu sei que está
fingindo? A porcaria da revista está de cabeça para baixo!
— Arnaldinho, eu quero beber. Ou você colabora ou
vai cair acidentalmente desse parapeito — aponto para a
sacada —, lembrando que estamos no sétimo andar!
— Talvez não tenha notado, mas eu percebi que a
garrafa sempre é nova, de uma marca diferente, ou com a
medida do líquido em seu interior alterado no dia
seguinte. Escuto seus passos silenciosos no assoalho de
madrugada se dirigindo para a cozinha, quando pensa que
estou dormindo, mas nunca estou. Você sempre pisa em
falso no mesmo assoalho apodrecido e barulhento, sem
querer. Fora esse, o barulho do armário sendo aberto
também é inconfundível.
Ele faz uma pausa para recuperar o fôlego, e sou
obrigada a me sentar, porque minhas pernas parecem
muito cansadas de me manterem de pé de repente.
— Você, talvez, tenha problemas com a bebida e se,
por sorte, ainda não tiver, está muito, muito perto de ter.
Então, sim, eu escondi sua garrafa porque estou muito
preocupado com você.
— Não precisa se preocupar comigo — digo em um
fio de voz, abandonando a irritação e me comovendo com
seu gesto.
Há quanto tempo alguém não se preocupa comigo a
ponto de esconder uma das minhas garrafas? Eu nem me
lembro mais.
— Nossa aproximação foi tão natural, eu gostei de
você logo de cara, mesmo que seja por culpa sua que a
Telminha esteja tentando transformar a minha vida em um
inferno, mas, em anos, eu não me sentia tão vivo, boneca.
Você me deu algo precioso e raro ao me desmascarar, me
devolveu minha liberdade.
Meus olhos se umedecem e desvio o olhar, encarando
a mesa de jantar, como se ela fosse uma obra de Leonardo
da Vinci e não uma porcaria de mesa horrível que
encontrei em um brechó.
— Não pensei em outra pessoa quando a jararaca
com a qual me casei me colocou para fora de casa apenas
com a roupa do corpo, um terno amarelo-canário, que é
um arraso, por sinal, você sabe de qual estou falando, e
vim até sua casa. Me senti envergonhado ao pensar em
bater na porta e decidi tirar um cochilinho enquanto a
coragem não vinha, mas você me achou e, melhor ainda,
me abrigou.
— Eu sei, mas...
Ele me corta com um aceno e continua falando.
— Somos amigos agora, ou eu gosto de pensar assim,
e amigos protegem uns aos outros. Amigos se preocupam,
querida.
Agora não consigo mais esconder, são muitas
lágrimas que saem dos meus olhos para que eu consiga
enxugar antes que ele perceba.
— Sim, nós somos — sussurro.
— Eu gostaria de não ter visto o que aconteceu mais
cedo, só me deixou mais perturbado. Em um momento,
você estava gargalhando com a minha ideia de nos
disfarçarmos de namorados para não chamarmos a
atenção, que, por sinal, até agora não achei a graça da
piada. Logo depois, estava de quatro, com as mãos
espalmadas no asfalto sujo da cidade, se escondendo atrás
de uma lixeira porque viu um homem, um homem lindo,
claro. Antes de me jogar no chão ao seu lado e tentar fazê-
la parar de chorar, e antes que seus olhos inchassem e
você virasse um baiacu, dei uma boa olhada no espécime
masculino que causou tanto burburinho.
— Arnaldinho, não quero falar sobre isso... — sobre
ele.
— Adorável seria a palavra que eu usaria para
descrevê-lo, se eu precisase fazê-lo em uma única
palavra. Talvez muito adorável ou extremamente adorável.
— Ele suspira, e eu reviro os olhos. — Quero saber quem
ele é e o que fez para você chorar daquele jeito.
Balanço a cabeça em uma negativa e escondo o rosto
nas mãos, molhando-as com as minhas lágrimas, que
escapam dos meus olhos cada vez mais rápido e em maior
quantidade.
— Se realmente me considera um amigo, vai me
contar...
— Você é meu amigo. — Soluço. — O único que
tenho.
— Então, me conte o que está te afligindo tanto, talvez
eu possa ajudar.
Levanto o rosto e, vendo minha expressão de
escárnio, ele emenda:
— Ou, pelo menos, quem sabe se sinta mais aliviada
depois que colocar tudo para fora.
— Eu nem sei por onde começar — sussurro,
voltando a esconder o rosto.
— Que tal começar com a resposta sobre motivo pelo
qual você o abandonou? — pede, com paciência. —
Porque tem que ter um ótimo motivo para você deixar um
homem daqueles!
— Porque ele não me amava — falo, com a voz
embargada. — O que é muito comum na minha vida.
— Eu pensei que você fosse assim por causa do
marido que perdeu, mas tem mais, não tem? Tem mais
coisa no meio da sua história.
Eu me calo, porque ele está certo.
— Se eu te der aquela garrafa, você vai se abrir, pelo
menos um pouco?
— Três perguntas, é o que eu te dou em troca da
garrafa! — Eu era uma negociante, o que podia fazer?
— Estou querendo te ajudar, e você quer fazer uma
transação de negócios?
Dou de ombros, ainda chorando, ainda mantendo meu
rosto longe de seu olhar pesaroso.
— Tudo bem, três perguntas, três goles. Depois a
garrafa volta para o esconderijo.
Ergo a cabeça e o olho feio, abandonando
parcialmente as lágrimas.
— É pegar ou largar, boneca, você decide.
— Eu pego!
Era melhor do que nada, a outra opção era pular da
janela que ameacei jogá-lo pouco antes. Mas, em uma
coisa ele estava certo, o álcool era o band-aid que eu
usava nas minhas feridas, e o usava com muita frequência.
O que eu podia fazer se ele era o único que tinha o poder
de fazer as lembranças se anuviarem por algum tempo?
Infelizmente, o efeito durava pouco e eu tinha que beber
mais e mais e mais para me sentir um pouco melhor outra
vez.
Aproveito sua ausência para dar os famosos tapas do
“Para com esse choro logo, filha da puta” na minha cara, e
eles surtem efeito; devo estar toda vermelha, mas, pelo
menos, me sinto seca outra vez. A bebida vai ajudar, ela
sempre ajuda.
A maioria das pessoas que bebem se sentindo tristes
choram com mais facilidade. Comigo era diferente, a
bebida me fazia entrar em um torpor onde nenhuma
lembrança tinha o poder de me alcançar, e eu gostava
daquela sensação, gostava de não lembrar.
— Primeira pergunta — diz, voltando do corredor
com a garrafa nas mãos, eu estendo uma das mãos para
ela, mas ele a ergue. — Primeiro a resposta. Como seu
marido morreu?
— Foi um vampiro.
Ele revira os olhos e se senta, cruzando os braços,
abraçando meu remédio.
— Eu juro, foi um vampiro, agora me dá a garrafa.
— Marcela, isso é sério... — começa, com a voz
cansada.
E deve estar mesmo, depois de tudo o que fizemos
hoje, mas eu estava falando a verdade, tinha sido culpa de
uma porra de um vampiro. O que amenizava a situação?
Ele não brilhava. Porque ter o marido morto por conta de
um vampiro que brilha mais do que atriz da Broadway era
motivo para se demitir da vida!
— Eu sei que é sério.
Estendo a mão para a garrafa, ele ameaça abraçá-la
mais, mas pensa melhor e a entrega para mim. Dou um
longo gole, sentindo a bebida queimar minha garganta e
meu estômago, até se alojar dentro de mim; agora faltava
pouco para ela começar a fazer efeito.
— Próxima pergunta. — Porque eu quero mais um
gole.
— Quem é aquele rapaz? O noivo da moça que
estávamos seguindo? — Ele me olha atentamente,
esperando que eu minta, mas vou ser sincera, assim como
fui na pergunta anterior.
Seguro o gargalo com força e respiro fundo antes de
falar um nome que não pronuncio há mais de seis anos.
— Gustavo, o nome dele é Gustavo. — Solto a
respiração e olho para baixo, mexo as mãos e os dedos
dos pés que estão presos pelos chinelos. Eu disse seu
nome e ainda estou bem, vou ficar bem. Tudo vai ficar
maravilhosamente bem. A quem estou enganando? Nem a
mim mesma, pelo visto. Eu deveria ter pressentido,
encontrar o irmão dele naquele hospital deveria ter me
dado a dica de que ele estava por perto. — Éramos
amigos na faculdade.
— O que aconteceu? — pergunta, arrancando a
peruca e passando as mãos de forma aflita pela careca.
Aquela era a primeira vez que eu o via sem aquele
bicho morto em cima da cabeça, e até que ele ficava bem
sem ele.
— Esta é sua terceira pergunta? — Bebo mais um
gole.
— Não, ainda é continuação da segunda.
Eu o olho feio, mas ele não se abala, joga a peruca no
sofá e cruza as pernas.
— Eu me apaixonei, ele não. — Passo a língua pelos
lábios, tentando recuperar o máximo de bebida que ficou
presa nas reentrâncias da minha boca, preciso de cada
mililitro hoje. — Então, fui embora. Próxima pergunta.
— Você disse que entrou nesse trabalho de
desmascarar pessoas infiéis por causa do seu falecido
marido...
Assinto.
— Mas hoje chorou porque encontrou uma paixão
antiga. Não entendo, qual desses homens te tornou a
mulher que você é hoje? Essa mulher... — Ele se cala e
inclina a cabeça em dúvida, me estudando. Eu assinto,
quero escutar que tipo de mulher ele imagina que sou. —
Amarga.
— Os dois.
Bebo o terceiro gole com ânsia, aquela conversa
estava acabando com meus nervos, que já estavam em
frangalhos antes que ela começasse. Nunca conversei
sobre nenhum desses dois homens com mais ninguém, e
não sei por que estava concordando em falar agora. Eu
sabia que não era somente pela bebida, era também um
misto de sensações. Arnaldinho falou que se preocupava
comigo, e eu tinha tanta saudade de ver alguém fazendo
isso, que me desarmei e me abri, ou pelo menos tentei.
— Os dois acabaram com a minha vida, cada um à
sua maneira.
Depois daquela conversa, Arnaldinho decidiu me
deixar em paz e sumiu para seu quarto, levando consigo
minha garrafa de vodca. Depois de andar pela casa sem
destino, tentei dormir, mas foi impossível. Não consegui
parar de pensar nele. Pensar em um passado onde eu
acreditava que ele fosse a chave para um baú repleto de
felicidade. Foi pensando nessa chave que me lembrei de
outro baú, um que guardava algo diferente de alegria,
aquele que eu escondia dentro do guarda-roupa, na parte
mais funda do maleiro, e continha apenas dor. Eu o abro,
evitando propositalmente as fotografias, e peguei um
cordão reluzente, voltando a fechá-lo, guardando-o em seu
devido lugar.
Com o objeto em mãos, caminho até a sala, evitando
pisar na tábua que range e acordar meu hóspede, e me
sento no sofá com um impulso, batendo as costas com
força no encosto. Mal noto a dor, no momento, sou uma
mulher com uma missão: me torturar. Ergo as pernas,
apoiando os pés no alto, e levanto a bainha da calça jeans
da perna direita, deixando o tornozelo à mostra. Prendo a
joia nele e encaro o pingente com um meio sorriso e uma
lágrima – talvez algumas – se formando no canto dos
olhos.
Já se passaram anos desde que aquela corrente de
ouro foi aprisionada em uma pequena caixa de joias e
escondida na parte mais funda do guarda-roupa. Não
importa quanto eu tenha tentado esquecê-lo, nunca
consegui jogar a tornozeleira fora.
Brinco com o pingente, me lembrando do dia em que
o ganhei. Fiquei em êxtase quando ele retirou a caixinha
de veludo cor de vinho do bolso do jeans e o estendeu em
minha direção, como presente pelos meus 20 anos. Me
sentei em uma cadeira e ergui a perna na mesma hora,
apoiando o pé na madeira e abrindo o fecho da corrente,
mas ele me impediu, se abaixando e tomando-a das
minhas mãos, fazendo questão de colocá-la ele mesmo.
— Por que a âncora? — perguntei, admirando os
cristais incrustados no pingente da tornozeleira dourada
com admiração.
— Para que seus pés nunca saiam do chão —
murmurou Gustavo, abaixando meu pé e me estendendo a
mão.
Quando a peguei, ainda sem fala por causa da
intensidade da sua reposta, ele me puxou para um abraço.
Ainda me lembro do cheiro da sua camiseta quando meu
rosto encostou nela. Tinha cheiro de esperança, promessa,
café forte e loção pós-barba. Tinha cheiro de felicidade.
No dia seguinte, eu o abandonei pela primeira vez.
Repenso na pergunta do meu novo amigo: qual
daqueles dois homens que passaram pela minha vida me
deixaram amarga? Não há resposta diferente da que eu lhe
dei. Foram os dois. Um deles me ludibriou, fez com que
eu me apaixonasse e depois deixou bem claro que não
sentia o mesmo. Então, eu e meu amor platônico fomos
embora, fomos procurar consolo em qualquer pessoa que
nos quisesse. Então, o encontramos, o homem que me traiu
e me tirou tudo.
Os dois haviam me destruído, e eu odiava ambos por
isso, cada um à sua maneira.
Capítulo 13 - Marcela

“Tantas decepções eu já
vivi
Aquela foi de longe a mais
cruel
Um silêncio profundo e
declarei:
‘Só não desonre o meu
nome’.”
Pitty

Traição

Sete anos antes


Desperto com o barulho sereno e ritmado das gotas de
chuva batendo na janela de madeira do quarto, me aninho
mais nas cobertas, e Lucas estreita nossa distância me
puxando para mais perto em direção ao seu corpo, então
eu sorrio. Sorrio porque adoro sentir os braços do meu
marido à minha volta e porque não tem nada mais
romântico do que ser abraçada assim ao som da sinfonia
da chuva. Pingos batem em diversas superfícies, criando
uma música própria que me embala e me acalma.
Eu amo a chuva. Eu amo o Lucas. Eu amo a minha
vida.
Também amo os barulhos que começamos a escutar
vindos do quarto da frente. Pequenos sons desconexos e
sem sentido que nos avisam que mais alguém acordou.
Lucas me aperta mais forte e beija meu pescoço, antes de
me soltar.
— Se quiser, eu posso ir — se oferece, depois que
me viro e beijo seus lábios.
Sinto o sopro fraco que suas palavras emitem
entrando pela minha boca e dançando sob minha língua,
então o beijo de novo, mais demoradamente dessa vez.
— Não, eu vou.
Ele sempre se oferece, e eu sempre recuso sua oferta,
gosto de ir até lá. Tem algo de especial no sorriso que
ganho de bom-dia todas as manhãs quando entro no quarto
da frente. Para mim, ele é uma espécie de combustível. Se
eu receber aquele presente, nada de ruim que aconteça no
meu dia terá o poder de me afetar.
Porque aquele sorriso é mais importante do que tudo,
ameniza tudo, cura tudo.
Me levanto e visto a camisola e o roupão jogados no
chão na noite anterior, com ansiedade e desejo, e sorrio
para meu marido ao sair pela porta. Caminho alguns
passos e agarro a maçaneta do quarto em frente ao nosso,
a giro, e alguém solta um pequeno gritinho de alegria
quando me vê.
— Bom dia, príncipe, como foi sua noite?
E lá está o sorriso que eu esperava. Ele deixa duas
covinhas fundas e irresistíveis aparentes, assim como dois
pequenos e únicos dentinhos de leite na parte inferior da
boca. Mesmo agora, com pouca idade, ele é muito
parecido com o pai; olhos abrasadores, intuitivos e
carismáticos. Constatar isso me desestabiliza por apenas
um milésimo de segundo, antes que eu me perceba
sorrindo de volta e esticando as mãos para que ele as
pegue.
— Ma-ma-ma-mãe — sibila, jogando as mãozinhas
para o alto em direção às minhas.
Eu me abaixo sobre a beirada de madeira do berço
colonial e agarro suas costelas, erguendo-o em direção ao
meu corpo. Dou-lhe um abraço forte enquanto ele se
enrosca no meu pescoço e acha o pingente do meu colar.
— O que temos aqui?
Eu o ergo e dou uma boa espiada em sua fralda,
depois o deposito em cima do trocador para tirá-la, quase
sendo enforcada no processo, já que ele não soltou o
pingente e o puxou consigo. Puxo o ar e recoloco a
corrente no lugar, escondendo-a por debaixo da camisola.
Ele faz menção de querer fugir, por isso o distraio com
muitos beijos na barriguinha saliente, arrancando muitas
risadas de seus lábios.
— O que vai ser hoje, príncipe? Leite ou leite para o
café da manhã?
Ele coloca um dedinho na boca e o morde.
— Hum, leite. Foi o que pensei.
Volto a colocá-lo no berço e ele se distrai com alguns
brinquedos que arremesso para ele. Saio do quarto e
preparo sua mamadeira, ganhando mais um sorriso quando
a entrego em suas mãos. Ele se aninha e a leva à boca, o
que eu sei que vai lhe garantir mais algumas horas de
sono.
Volto para o meu quarto na ponta dos pés e pego uma
roupa confortável no guarda-roupas e os tênis de corrida
na sapateira. Dou mais uma olhada em Lucas, que voltou a
dormir profundamente, e saio do quarto. Para não acordá-
lo, me troco no banheiro, passo uma água no rosto, escovo
os dentes e prendo o cabelo longo e escorrido em um rabo
de cavalo frouxo. Saio de casa levando apenas o iPod e
uma maçã.
A chuva se transformou em uma fina garoa, que não
me incomoda enquanto corro. Adoro isso! Adoro o fato de
jogar os pés um na frente do outro com a mente vazia,
escutando uma boa música e sentindo o vento bater
levemente no rosto. Há algo em se exercitar pela manhã
que deixa o corpo mais leve, mais preparado para
enfrentar o dia pesado atrás de uma mesa de trabalho. Mas
hoje estou correndo por diversão, já que é meu primeiro
dia de férias. Assim que voltar para casa, vou acordar a
família, arrumar as malas, aproveitar alguns dias na praia
e, claro, curtir muito meus pais.
Eles chegaram hoje de manhã. Ambos tinham uma
reunião de negócios em São Paulo e, como estávamos
planejando ir para a casa deles em Florianópolis mais
tarde, decidiram voltar para casa conosco. Faria mais
sentido do que pegar novamente um avião.
Escuto o barulho do meu celular tocando quando
estou tirando os tênis no tapete de boas-vindas em frente à
porta do meu apartamento. Me atrapalho em tentar tirá-los
rapidamente e desisto, provavelmente o barulho já deve
ter acordado Lucas, já que deixei o celular carregando na
mesa de cabeceira do meu lado da cama. Vejo que tinha
razão quando ele aparece na sala com o aparelho nas
mãos, com uma delas ele o estende para mim e com a
outra tenta afugentar o sono do rosto.
Meu marido talvez não seja considerado bonito, mas
ele tem um charme que poderia ser notado a quilômetros
de distância. Não era muito alto e tinha o corpo esguio,
cabelos rebeldes e bagunçados – muito mais evidente
depois de terem sido amassados pelos travesseiros –, uma
barba rala que ele quase nunca se dava ao trabalho de
tirar e um sorriso de canto de boca que tinha o poder de
me fazer fraquejar.
— É da Editora, é a Mada — explica, com a voz
grossa, quando tomo o aparelho de suas mãos, ergo as
sobrancelhas e faço uma careta. Qual é, eu estou de férias!
— Atende, amor, vai que é importante.
Suspiro e assinto, levando o aparelho até o ouvido.
— Bom dia, Mada.
Eu nem poderia xingá-la, eu tinha uma chefe
espetacular, que, além de gestora, depois de alguns anos
havia se transformado em uma amiga. Havia sido por
causa dela que hoje saíra de uma simples estágiaria em
Letras, para uma importante editora em uma das melhores
casas literárias do país. Ela disse que viu o potencial que
havia dentro de mim assim que me estatelei no chão do
seu escritório, depois de tropeçar na saia, no dia da
entrevista.
— Desculpe te ligar, Má, mas preciso de você —
avisa, em meio a um suspiro frustrado.
Ela não precisa explicar, já sei exatamente para o que
ela precisa de mim. Mada não consegue controlar apenas
um dos nossos autores, mas, por sorte, o cara me adora.
— O que o nosso jovem astro fez agora?
Reviro os olhos e encaro Lucas, dando de ombros, me
desculpando. Porque, instintivamente, acredito que não
vamos mais viajar hoje. Ele coloca ambas as mãos na
cintura e espera.
— O que ele não fez, você quer dizer, não é? Ele está
se recusando a assinar o contrato do livro novo, a não ser
que seja você a levá-lo.
Ela estala a língua em reprovação e a escuto beber um
gole de café, provavelmente da sua caneca com a bandeira
do palmeiras estampada, odeio aquela porcaria. O que ela
não sabe é que aquela não é a caneca que trouxe consigo
quando começou a trabalhar na editora, aquela eu já havia
quebrado há mais de um ano. Sorte que achei outra igual
para pôr no lugar, porque, diferentemente de mim, ela ama
o objeto e o time.
— Eu viajo hoje, talvez dê tempo...
Ela me interrompe:
— Ele só pode recebê-la hoje à noite — conta, como
se se desculpasse pelo nosso excêntrico pote de ouro em
miniatura.
Tapo o bocal do telefone.
— Vamos poder ir só amanhã, tudo bem por você? —
pergunto para Lucas, ainda de pé na minha frente.
Ele assente, meio contrariado, e eu sorrio em
resposta.
“Obrigada”, murmuro sem fazer som.
— Deixa o contrato pronto, eu passo aí para pegar e o
faço assinar.
Jonas Lima era um garoto de apenas 17 anos,
introvertido e com várias fobias: detestava sair de casa,
tinha aulas particulares para não frequentar a escola, não
tinha amigos e muito menos um celular. Mas escrevia
histórias sobre vampiros maravilhosamente boas e
inigualáveis. Ele podia se dar ao luxo de me obrigar a
adiar minhas férias e me fazer dirigir mais de cem
quilômetros até o sítio, onde se escondia na maior parte
do tempo, somente para vê-lo rabiscar seu nome em um
papel.
— Obrigada, Má, sabia que podia contar com você!
— diz Mada, aliviada, voltando para o seu café.
— Sem problemas.
Encerro a ligação e encaro Lucas, pronta para
reclamar do meu trabalho por uma hora ou duas, mas meu
celular volta a tocar e a vibrar. Olho para o identificador
de chamadas: mamãe.
— Oi, querida — diz, alegre. — Acabamos de pousar
nesta cidade odiosa em que você mora e, veja só, já
estamos sendo molhados por essa garoa fina e irritante
que é a marca registrada deste antro de poluição.
— Oi, mamãe.
Dessa vez, Lucas me dá as costas e se senta no sofá,
pois sabe que vai demorar. Eu o sigo e coloco a ligação
no viva-voz
— Já fizeram as malas? Estou doida de saudades do
meu garotinho.
Depois que meu filho nasceu, ela praticamente havia
me esquecido, e eu tentava ao máximo não ficar com
ciúme dessa preferência.
— E da sua garotinha, não está com saudades?
Mas eu não conseguia.
— Larga mão de ser ciumenta, menina. — Ela ri, e
escuto a risada do meu pai ao fundo, eu também devo
estar no viva-voz. O riso dele sempre teve som de sinos
pra mim. — E quanto às malas?
— Ainda não, mamãe, vou ter que trabalhar à noite —
conto, entediada. — Tudo bem se formos amanhã?
— Não dá, filha, temos outra reunião amanhã de
manhã — diz, com um estalar de línguas. — Mas nós
podemos voltar de avião, não há problemas.
— É melhor a Marcela ir de avião amanhã, então, e
eu levo vocês e o bebê hoje. O que acha, querida? —
Lucas se intromete.
Eu pisco, assimilando sua ideia, estou pronta para
recusar, mas minha mãe fala antes de mim.
— Isso seria ótimo, querido. Uma passagem de avião
sai mais barato do que duas. Pode ser, filha? — pergunta,
esperançosa.
Isso não tem nada a ver com as passagens, ela adora
Lucas e claro que não deixaria de concordar com ele.
— Tudo bem, pode ser — concordo, finalmente.
— Então, nos vemos em breve. Lucas, você nos pega
na empresa? Eu te passo o endereço por mensagem mais
tarde — pede minha mãe.
Então, eu não os veria hoje. Fico triste e xingo
mentalmente nosso micropote de ouro. Por que aquele
garoto tinha que ser tão bom e suas histórias sobre
vampiros tinham que ser tão legais?
Fomos almoçar em família em um restaurante próximo
de casa que tinha uma comida caseira divina. Me diverti
horrores vendo meu bebê fazer careta ao tomar
refrigerante pelo canudinho e sentir o nariz coçar com o
gás. Na volta, assistimos a um filme infantil sobre uma
princesa e um príncipe, ambos em forma de sapo, e
brincamos com carrinhos no chão até que ele se cansasse.
Um dia normal, como outro qualquer. Pelo menos até ali.
Quando a tarde caiu, eu lhe fiz uma nova mamadeira e
o deixei quase adormecido com Lucas, então fui até a
editora pegar o contrato. Prometi para mim mesma que
iria entrar e sair em questão de minutos, mas acabei
demorando duas horas para conseguir voltar para o carro,
isso porque fugi com a desculpa de que ia ao banheiro.
Todos, sem exceção, acharam algum motivo para me
prender entre as paredes verde-água por mais tempo do
que o necessário.
Quando cheguei em casa, encontrei Lucas se trocando,
e a toalha molhada jogada em cima da cama. Revirei os
olhos, mas não disse nada. Não ia comprar uma briga
sabendo que ficaríamos longe um do outro durante uma
noite, uma noite inteira. Desde que nos casamos, essa
seria a primeira vez. Olhei para o chão e encontrei suas
malas arrumadas em um canto, com uma para o bebê
também, o que fez minha garganta ameaçar se fechar.
— Eu prefiro que o bebê fique, ele pode ir comigo
amanhã de avião.
Ele se assustou por não ter notado minha presença
observando-o antes, mas logo se recompôs.
— Você vai ter que soltá-lo uma hora dessas, sabe?
Ele não vai querer levar a mãe nos encontros.
Eu sabia que, dentro daquela frase, tinha uma pequena
crítica ao fato de eu ser muito cuidadosa com meu filho.
Eu sei que, às vezes, exagerava, mas era um sentimento de
proteção mais forte do que eu.
— Temos tempo até ele chegar nessa fase — comento,
me sentando na cama.
Ele me acompanha com o olhar e me dá aquele
sorriso de canto de boca que adoro.
— Vou cuidar dele, prometo. — Ele cruza os dois
indicadores e os beija para completar sua promessa.
Não sei, ainda não é suficiente.
— Tem certeza, Lucas?
Não era falta de confiança, não mesmo. Era só muito
amor. Aquele menino era a razão da minha vida.
— Tenho, não se preocupe. — Ele se volta para o
guarda-roupa e pega uma camiseta, vestindo-a. — Afinal,
o que pode acontecer de pior?
Eu detestava essa pergunta.
Muita coisa, muita coisa podia acontecer.
Quinze minutos depois, eu estava prendendo meu filho
à cadeirinha de segurança no banco de trás do carro do
meu marido, com os olhos marejados e um punhado de
areia na garganta. Eu queria pegá-lo nos braços e proibi-
lo de sair sem mim.
— Você está sendo boba, amor — reafirmou Lucas
pela terceira vez, quando notou meus olhos apertados. —
Ele vai ficar bem.
— Tudo bem. — Eu também nunca tinha passado
nenhuma noite sem meu filho, por que era tão difícil? Se
alguém me dissesse que eu amaria outra pessoa mais do
que a mim mesma, antes de eu tê-lo, não teria acreditado.
— Tchau, querido. — Beijei sua testa e baguncei seus
cabelos.
— Ma-ma-mamãe. — Ele sabia poucas palavras e as
pronunciava sempre de forma arrastada, mas eram as mais
lindas, e aquela era a que eu mais amava: mamãe.
— Eu te amo, meu príncipe. — Sorri, querendo muito
chorar. — A mamãe te ama.
Ele balançou as duas mãozinhas no ar de forma
desordenada e me mandou um beijo.
— Nenem ama. — Murmurou em um grunido infantil
e delicado, e foi o suficiente para que minha garganta se
fechasse de vez. Limpei uma lágrima safada que escorreu
pela minha bochecha, antes que Lucas a visse. Por sorte,
naquele momento, ele me abraçou e me deu um beijo
demorado e molhado, me soltando mais rápido do que eu
gostaria.
— Eu também amo você, viu? — dito isso, ele me
deu as costas e entrou no carro, dando a partida e saindo
de ré da vaga no subsolo do prédio.
A última imagem de que me lembro do meu filho foi
seu rosto colado no vidro ao lado de sua mãozinha suada
e fofinha. Seus olhos brilhantes e aquele sorriso destinado
apenas para mim, aqueles dentinhos de leite que eu nunca
veria cair, e uma criança que eu nunca veria crescer. Um
castigo que eu podia ter evitado, para nós dois, se tivesse
sido mais firme.
Subi para o apartamento para matar o tempo e
naveguei na internet por algumas horas. Quando a noite
caiu, tomei banho, vesti um terninho e agarrei a pasta com
o contrato de cima da mesa saindo pela porta. Enquanto eu
me atrapalhava com a chave, meu celular vibrou na minha
mão, eu estava ficando realmente cansada dele.
— Não esqueça a blusa, sempre esfria nesta cidade
horrorosa — alertou minha mãe do outro lado. — Só
queria te avisar que Lucas acabou de nos pegar. Nos
vemos amanhã, querida.
— Obrigada, mamãe, dá um beijo no bebê por mim e,
por favor, cuide dele — pedi, com o aperto no peito
voltando com força total.
Eu sempre me sentia assim quando tinha que me
separar do meu filho, nem que fosse por poucas horas. A
despedida era a pior parte da vida, eu era péssima nesse
quesito, sentia saudades de tudo. Sabe, tive um jeans
quando era adolescente, um jeans que deixava minha
bunda linda...
— Eu sempre cuido — disse minha mãe,
interrompendo meu devaneio. — Agora vê se pega aquela
blusa antes de sair para trabalhar.
Ah, sim, a blusa, eu já tinha me esquecido dela. Fiz o
que me foi mandado, corri até o guarda-roupa,
escancarando-o, e passei a mão na primeira jaqueta que
vi, fechando suas portas com força. Se eu não fosse
rápida, chegaria muito tarde e não seria recebida. Mas,
antes que eu pudesse me virar e disparar para fora do
quarto, tive o anseio de abrir as portas que eram de Lucas
e passar as mãos por suas roupas e sentir seu cheiro.
Mesmo estando atrasada, foi o que fiz. Depois de alguns
momentos, ameacei fechar as portas, mas algo reluzindo
pela fresta de uma das gavetas chamou minha atenção,
então a abri.
Um celular pequeno e brilhante me olhou de volta, eu
nunca o havia visto antes. Provavelmente se tratava de um
aparelho que fora descartado e não estava mais
funcionando, mas não resisti em abri-lo, estava ligado.
Esqueci-me do horário e me sentei na cama, intrigada,
procurando o ícone das ligações. Várias feitas e
recebidas, apenas de um número. Fui para as mensagens,
sentindo minhas mãos suarem, e um frio subir pela minha
barriga e se alojar nas minhas costelas. Era medo.
O que encontrei abalaria meu mundo e minha
confiança para sempre.

Lucas: Eu vou contar para ela, você precisa ter


calma, Heloisa.

Heloisa: Quando? Quando você vai contar? Quando


sua filha nascer?

Lucas: Claro que não, até lá tudo já estará


resolvido.
Heloisa: Eu não acredito nisso! Conta de uma vez,
ou eu vou contar. Você deveria estar ao meu lado neste
momento, tem noção do quanto está me magoando?

Lucas: Eu estou com você sempre que posso, amor,


tenha só mais um pouquinho de paciência. Logo estará
na minha casa, dormindo comigo todas as noites,
enquanto nossa filha estará em seu berço no quarto da
frente. Seremos a família mais perfeita e feliz que você
já viu.

Milhares de mensagens. Desde quando meu marido


conheceu aquela mulher até o dia em questão. Eu li todas.
Quando terminei, já estava escuro do lado de fora, e eu
sabia que teria sérios problemas no trabalho. Eles haviam
se conhecido por acaso, ela era sua cliente no consultório
odontológico que ele abriu quando se formou na
faculdade, saíram para jantar algumas vezes e se
apaixonaram. Estava tudo ali, naquelas mensagens. Meu
marido lindo, amoroso e sensível tinha uma amante há
cinco meses e a engravidara há três, e eu não fazia a
menor ideia.
Lucas me arruinou naquele dia, no dia em que
descobri que ele tinha planos de substituir a mim e ao meu
filho por outra família. Mas quem podia culpá-lo? Ele
finalmente teria algo seu de verdade. Nós? Nós nunca
fomos dele. Não como ele desejava.
Liguei incontáveis vezes para o celular de Lucas, mas
ele não me atendeu. Aconteceu o mesmo com os celulares
da minha mãe e do meu pai. Me lembrei do seu e-mail que
havia chegado na minha caixa de entrada assim que o dia
raiou: “Sorria, cada dia é uma conquista”, o dia de hoje
havia conquistado apenas ira, raiva e repulsa. O que eu
não sabia, ainda, é que também havia conquistado
saudade, dor e abandono.
Naquele dia, eu morri.
Capítulo 14 - Bárbara

“Não existem regras e limites quando se trata de


amor.”
Lady Gaga

Jogando sujo

— Eu quero que você saia da vida do meu irmão,


Camila — lhe digo, sem rodeios, agarrando seu braço
antes que ela entre na academia onde trabalha.
Ela não parece assustada e sim, irritada, suas
sobrancelhas se erguem e ela ri. Não foi nem um pouco
difícil fazer Vivian conseguir o endereço com uma das
vizinhas que vivia elogiando as tais aulas de dança que
aquela piranha dava.
— Por que eu faria isso? — pergunta, puxando o
braço de volta e colocando a alça da bolsa que havia
escorregado para seu braço no ombro, me encarando
desafiadoramente.
— Você não é boa o bastante para ele.
Balanço a cabeça, indignada. Como ela pode não
saber?
Não consegui dormir na noite passada, não consegui
parar de pensar. Eu estava tão desatenta, que só descobri
que meu cliente tinha confessado quando o delegado caiu
na risada e me ofereceu um café após o interrogatório que
acompanhei pela manhã. Fiasco definiria a situação.
Horas depois, cheguei em casa para buscar Anna com a
intenção de levá-la ao hospital para seu exame, mas mudei
de ideia na metade do caminho. Liguei para Vivian para
que me conseguisse o endereço e acabei indo até o
trabalho daquela golpista sem nem me dar conta do que
realmente estava fazendo. Voltei a mim somente quando
sua risada perversa e irritante penetrou pelos meus
ouvidos, em forma de picador de gelo, e uma vontade
avassaladora de enfiar a mão na fuça dela me etingiu por
inteiro.
— Por que você não cuida da própria vida, hein? —
pergunta, estreitando os olhos. — Não só não vou sair da
vida dele, como acabei de voltar do cartório, nos
casaremos em três meses — conta, orgulhosa, com um
brilho de vitória no olhar, enquanto meu coração se
despedaça. — Faça um favor para Gustavo e não
compareça à cerimônia, ok? — Ela me dá as costas e
dispara o golpe final: — Seu irmão tem dó de lhe fazer
esse pedido, mas eu não.
— Ele te disse isso? — Não consegui me controlar
antes de perguntar, e me arrependi mortalmente por ter a
língua solta, assim que um sorriso provocativo aflorou em
seus lábios. Machucou saber que meu próprio irmão não
me queria em seu casamento, mesmo que ir àquele evento
fosse o último lugar aonde eu gostaria de ir. Meus olhos
se encheram de lágrimas.
— Claro que sim. — Ela ri. — Ele é meu agora,
Bárbara, não seu. Fique longe dele ou as consequências
podem ser ruins — alerta, friamente.
— O que você quer dizer com isso? — falo alto para
ser ouvida, pois ela já está vários metros adiante.
— Quem sabe eu acabo na cama do seu marido de
novo, se meu noivo resolver me abandonar. Nada é
impossível, não é? — Ela ri.
Quando processo o que ela disse, estou disposta a lhe
arrancar cada um dos fios de seus cabelos longos, vou
para cima dela e acabo quase tombando de frente, quando
uma mão firme segura meu braço antes mesmo que eu saia
do lugar. Tento me debater, mas a mão é forte.
— Vamos resolver isso de outra maneira — cochicha
Anna no meu ouvido.
— Olha, o monstrinho de estimação da família
também veio para a festa. — Camila ri e passa pela porta.
Dou mais um tranco no meu braço, tentando me soltar
para pegá-la, mas Anna não permite. EU. QUERO.
MATAR. ESSA. MULHER.
— Vamos embora.
Ela não espera minha resposta, me arrasta até o carro,
enquanto permaneço olhando para uma Camila dona de si
e soberba, que me encara de braços cruzados atrás das
portas de vidro da academia. Minha cunhada me joga no
banco do passageiro e dá a volta para ocupar o lugar do
motorista.
— Você não deveria dirigir — comento, absorta, sem
conseguir desgrudar os olhos daquela vagabunda barata.
— Me diz agora se você teve ou não alguma ideia, se
não vamos deixar o exame pra lá e fazer tocaia aqui até
ela sair, matá-la, colocá-la no seu porta-malas e entregá-
la para Bernardo antes do jantar — murmura, agarrando
meu braço e me chacoalhando para ter minha total
atenção.
Me lembro do que pensei quando Marcela abriu a
porta para mim e para Anna no dia em que a conhecemos.
Ela, nem de longe, era a mulher que eu esperava
encontrar. Não era só o tipo físico que estava longe de ser
o preferido pelo meu irmão, mas ela era distinta.
Diferente de todas as mulheres por quem já vi Gustavo se
interessar.
Mais intensa, mais firme, sincera e durona. Muito
mais triste. Marcela Cantagallo tinha personalidade e uma
carga de dor guardada dentro do peito que não cheguei
nem perto de conseguir estimar, mas ela estava de pé. Era
como se fosse presa por marionetes e tivesse uma camada
protetora, uma casca forte e abrasadora e, só por isso,
conseguisse continuar respirando.
Me encantei por ela.
Seu corpo era cheio de curvas e um pouco
rechonchudo. Não era muito alta, tinha cabelos lisos, de
um ruivo quase alaranjado, na altura dos ombros, e
penetrantes olhos cinzentos. Eu nunca tinha visto olhos
daquela cor antes, e foi impossível não estudá-los. Era
como se, um dia, eles tivessem sido azuis, cheios de vida
e de cor, e hoje fossem apenas uma sombra, duas enormes
bolas de gude opacas e vazias. Mas ela era tão, mas tão
linda, que entendi de imediato o que ele viu nela.
Marcela era apaixonante.
Marcela era minha esperança, ela e aqueles olhos
infelizes.
Por que será que eram tão infelizes?
— Sim, eu tive uma ideia — me pego falando.
Penso em Ian, nos olhos azuis mais bonitos, felizes e
meus que eu conhecia, e um sentimento de culpa me
invade, fazendo com que meu corpo se arrepie dos pés à
cabeça, tomada por uma sensação ruim, como se eu o
estivesse traindo por quebrar a promessa que lhe fiz. Mas,
se tem algo que aprendi nessa vida, é que família vem em
primeiro lugar. Quando o mundo te vira as costas, e
pessoas cruéis machucam o seu coração, são aqueles que
têm o mesmo sangue que você que jamais deixarão de te
estender uma mão.
Quando meu casamento fracassado me partiu ao meio,
e eu me vi sem amigos, sem casa e sem perspectiva, foram
as mãos de Augusto e Gustavo que me levantaram e me
ampararam e, por eles, iria até o inferno se fosse preciso,
virava o mundo, mostrava meu amor a cada maldito
segundo.
Era por esse amor tão grande que eu estava a ponto de
deixar de ser eu mesma. Eu me tornaria amarga e
manipuladora, cruel e um tanto vingativa, assim como a
mulher errada com quem meu irmão estava prestes a se
casar. Se os rapazes acharam que passei dos limites
somente por procurar Marcela, eu esperava que eles
nunca descobrissem o que estava prestes a fazer. Eu ia
jogar sujo e, por mais que aquela fosse uma atitude
terrível, não me sentia nem um pouco culpada.
O amor era a minha desculpa, e era uma das boas,
não?
— Ótimo, assim não vou ter que parir essa criança na
prisão — murmura, girando a chave na ignição e saindo
da vaga. — Agora vamos descobrir se você vai ter um
sobrinho ou uma sobrinha; enquanto isso, me deixe a par
do nosso plano.
Mais uma; ela não disse “seu”, ela disse “nosso”.
Anna e Vivian eram muito boas para serem de verdade,
talvez por isso eu estivesse tendo azar na escolha da
terceira cunhada. Nada podia ser perfeito, não é? Bom,
isso era algo que eu ia descobrir.
— Se Camila não tem nada a esconder que possamos
usar como prova, Gustavo vai nos dar isso, é ele quem
vamos pegar no flagra.
Me abaixo e tiro os sapatos, jogando-os de qualquer
jeito no assoalho do carro, e coloco os pés para cima.
— Mas Gustavo é correto, não vamos encontrar nada
contra ele também, esse plano não faz sentido — comenta,
buzinando para um caminhão, depois morde a bochecha.
Ela está nervosa, e adoro esse tique dela, é tão fofo.
— Faz, se pagarmos a Marcela para forjar essas
provas.
Sorrio para mim mesma diante do meu brilhantismo
para ideias malvadas. Estou cada vez mais certa de que
todas as pessoas têm dois lados, o bom e o ruim, dentro
de si. Basta saber quando usar cada um deles e, no
momento, meu lado ruim estava tomado conta de tudo.
— O quê? — ela berra e quase o bate o carro naquele
bendito caminhão, que, por sorte, nos salvou cortando uma
van. — Dessa vez, vamos contratar a moça para seduzir
seu irmão? — pergunta, confusa.
— Sim, só precisamos que ela se aproxime dele e tire
algumas fotos comprometedoras. Duvido que Camila vai
ficar com ele se pensar que está sendo traída, ela se adora
demais para isso — cuspo, revirando os olhos.
Anna morde o lábio com mais força, e paro de achar
aquele tique fofo e começo a concordar com meu irmão, é
meio irritante depois de um tempo.
— Aquela vagabunda narcisista.
— E, por eles já terem sido apaixonados no passado,
você acha que será mais fácil? — pergunta, me olhando
de canto de olho, enquanto eu assinto afirmativamente e
desvio o olhar. — Tem mais, não tem? Você acha que eles
vão voltar a gostar um do outro, acha que ela é a mulher
certa para o Gustavo. — Não foi uma pergunta, mas
respondo mesmo assim.
— Ainda não a conheço para saber se ela é ou a não a
mulher certa para ele. — Estou mentindo, é claro.
Espero que meu planinho sujo os relembre do que
quer que tenham vivido no passado, enquanto eu vou rezar
para ter sido importante o suficiente para cancelar um
casamento, porque, sim, eu acho que Marcela Cantagallo é
a mulher certa para aquele iludido de merda que minha
mãe pariu. Era uma sensação esquisita de saber e
acreditar, de confiar e querer. Mas, sim, eu apostaria
minha bunda nesse pressentimento.
Algo nos olhos daquela menina me faz lembrar de
tudo o que mais amo no meu irmão. Sua honestidade, sua
bondade (às vezes, confundida com burrice), seu bom
humor, o sorriso aberto cheio de dentes e iluminado,
aquelas covinhas lindas que ele sempre usava para se
safar das broncas quando era criança. Enfim, na minha
mente, os dois eram perfeitos juntos, e imaginá-los unidos
me trazia certa serenidade como se fosse o certo.
— Augusto quer que ela fique o mais longe possível
do Gustavo — comenta, em dúvida. — Será que é mesmo
uma boa ideia jogá-la de volta na vida do seu irmão? Não
sabemos o que aconteceu entre os dois no passado e, se
tem algo que eu sei, é que passado bom é passado morto.
— Mas, e se sobrou um pouquinho só que seja de
sentimento? — pergunto, tentando convencê-la. — Será
que não devemos arriscar?
— Você sabe que está arriscando o coração do seu
irmão, não sabe?
Ela para em um farol e se vira, me encarando com
firmeza, me observando e me analisando. Odeio quando
faz isso, porque ela é boa, muito boa, em descobrir o que
as pessoas estão pensando e sentindo. Os anos que passou
quietinha, se escondendo, fizeram maravilhas para sua
percepção.
— É, eu sei, sim.
O coração dele já estava em mão erradas, de qualquer
forma; o que poderia ser pior do que deixá-lo se casar
com a pior mulher do mundo? Marcela não poderia fazer
um estrago maior do que Camila faria, nem mesmo se
quisesse.
***
— Ansioso, Dr. Bittencourt? — perguntou Dr. Arthur
Albanez, o mesmo médico que havia feito o parto dos
meus dois pestinhas.
Monstro sorri forçado e nega com a cabeça. Uma
pinoia que não está. Ele alisa o jaleco para esconder as
mãos suadas e ajuda Anna a se deitar na maca, pegando
em uma de suas mãos para fugir de mais perguntas,
enquanto eu dou a volta e pego a outra, apertando-a em
solidariedade ao seu nervosismo. Me lembro de alguns
anos antes, quando esse mesmo homem simpático me
deixou ouvir o coração de Valentina pela primeira vez e,
mais recentemente, o coração de Zach, que, assim como o
da irmã, era frenético e ritmado, as canções da minha
vida.
Eu estava, assim como Anna, nervosa nas duas
ocasiões.
— Como estão as apostas, Anna? — pergunto, para
aliviar a tensão e, ao mesmo tempo, para saber se vou ou
não ficar mais rica, já que vovó levou a uma bolada
acertando sozinha a reação que meu irmão teria com a
notícia da gravidez.
Caso eu vá em frente com o plano, imagino que
Marcela vá me cobrar um rim, um fígado e alguns
trocados pelo serviço.
— Todas as apostas estão em menina. Ian e Bernardo
apostaram alto, mas acho que queriam apenas zoar o seu
irmão, para variar. Como eles disseram, mesmo? Ah, é,
fornecedor! — Ela ri.
— Ian não deveria brincar com isso, até porque meu
filho, um dia, vai acabar se vingando por mim, se é que
vocês me entendem. — Reviro os olhos e Anna ri mais
alto. — Ontem ele me perguntou o que ele e Tina
precisavam para fazer um bebê.
— O que você respondeu? — pergunto, alarmada.
Ele era péssimo para responder a esse tipo de
pergunta, que era frequente. Semana passada, fiquei duas
horas inteiras tentando explicar o que era a posição
“frango assado”, que escutaram Monstro comentar. Eu
expliquei como pude, mas eles só me deram paz quando
os levei até a padaria para verem os frangos rolarem no
forno industrial.
— Fingi um ataque alienígena e saí correndo assim
que eles piscaram.
Ufa.
— Babi, ainda quer apostar? — pergunta Anna,
quando o Dr. Arthur termina de preparar o equipamento e
pinga aquele gelzinho gelado pra chuchu na barriga dela.
— Vou em menino, então. Se eu ganhar, pelo menos
ganho sozinha! — murmuro, depois de pensar um
pouquinho.
— Mas e você, mamãe, não tem um palpite? —
pergunta o médico.
Ela me olha, como se estivesse se desculpando, antes
de responder.
— É uma menina.
Olho para ela, franzindo os lábios. Me sinto como se
ela tivesse me traído ao guardar essa informação só para
si. Ela era a mãe, poxa, claro que ia acertar.
— É a Angélica — diz, baixinho, levantando a cabeça
para fitar meu irmão.
Sigo seu olhar e o encaro também. Seus olhos
penetrantes e iluminados mostram o quanto ele está de
quatro por ela. Ele assente, apoiando a escolha do nome
com afinco.
— Não teria um nome melhor para a nossa linda
anjinha — murmura, fechando os olhos e logo depois
encarando o lustre sem graça, para que não notemos que
eles ficaram marejados. Quando se sente seguro o
bastante, volta a baixá-los e beija o rosto de sua noiva,
bem em cima da cicatriz que cobre boa parte dele. — Tão
linda quanto a mãe.
E pensar que, um dia, meu irmão já escolheu as
mulheres com quem saía baseando-se somente na beleza
delas. Hoje, ele ama uma mulher marcada por fora,
inteiramente por quem ela era por dentro e, em nenhum
momento, deixava de achá-la linda. O que me faz pensar
em Camila e Marcela, duas mulheres tão diferentes por
fora e por dentro. Eu queria que Gustavo tivesse a chance
de ver o que Augusto viu quando se apaixonou por Anna,
que uma casca nada mais é do que uma ilusão, o que
importa é o que tem em seu interior. Porque, por mais que
eu não conhecesse Marcela a fundo, soube de cara que seu
interior tinha uma perfeição que o de Camila nunca
atingiria.
Eu queria que ele se apaixonasse novamente pela
lagarta, e a visse virar uma borboleta, fizesse parte disso,
ajudasse-a a voar pela primeira vez, ao invés de se
contentar com um lobo em pele de cordeiro.
— Parabéns, papai, a mamãe tinha razão; Angélica
está vindo aí — saúda Dr. Arthur com um sorriso largo,
tão largo quanto sua barriga redonda.
Ele alisa o bigode e liga o som, deixando o coração
do bebê preencher o silêncio da sala de exames. Ah, como
amo esse som, é o som da vida, o som do amor entre duas
pessoas. Mesmo que uma delas não seja, de fato, o genitor
daquele pequeno ser, como era o caso de Ian e Valentina
ou de Monstro e Nick.
— Oh, meu Deus, anjo. Uma garotinha — soluça
Anna, apertando sua mão com mais força, deixando que
seus olhos transbordem.
Olho novamente para o meu irmão. Lágrimas caem de
seus olhos abertos, ele não pisca, continua olhando para o
monitor embasbacado. Anna aperta novamente sua mão,
trazendo-o de volta à vida, e ele a olha. Ah, aquele olhar.
Ele compensou tudo o que enfrentamos para proteger,
cuidar e acreditar em Anna. Aquele olhar me dizia que
nada no mundo poderia fazê-lo mais feliz do que aquela
mulher marcada e aquele neném com nome de anjo.
— Nick vai ter uma irmãzinha. — Ele ri, enxugando o
rosto. — E eu, eu vou ter uma filhinha. — Ele me olha,
sorrindo.
Eu fungo e sorrio de volta.
— Você tem mais um filho, doutor? Eu não sabia.
Fico com medo dessa pergunta. Monstro sempre
deixou bem claro que não era o tipo de homem que
assume um filho que não seja seu. Ele tem se mostrado um
excelente pai para Nicholas e até permitiu que o menino o
chamasse por esse título, mas eu tinha receio de que, com
uma criança com seu DNA na jogada, ele passasse a fazer
diferença entre os dois. Minha cunhada jamais permitiria.
— Sim, eu tenho. — Ele olha para o médico e
emenda, com um amor evidente nas palavras. — Um
garotão de 3 anos que é a nossa vida, agora teremos uma
garotinha para completar a família.
— Falta um cachorro — comento, com orgulho,
soluçando.
Eu acho que nunca o amei tanto quanto naquele
momento.
Meu irmão cresceu, como não vi isso antes? Saber
que ele mudou era pouco, agora eu tinha certeza de que
nunca mais voltaria a ser o homem que era, e eu,
definitivamente, admirava esse homem.
— Nós temos o seu, tá de bom tamanho — exclama,
revirando os olhos. — Ele e aquela gata traiçoeira que
dorme em cima da minha geladeira e rouba nossa comida.
É, ela tinha mesmo essa mania, igualzinha a mim.
Ver Augusto e sua vida só me fazia sofrer mais por
Gustavo.
Eu queria que ele também tivesse o seu final feliz, e
se, para isso, eu precisasse me fantasiar de Fada
Madrinha, comprar uma abóbora ou voar por aí com um
vestido bufante, então era o que faria. Começando por
sacudir a varinha (ou notinhas de cem) para uma detetive
particular linha-dura e cheia de segredos obscuros que
envolviam meu irmão. Eu estava contando com o fato de
esses segredos serem bons o suficiente para fazer ele
tremer na base e repensar sua vida quando a visse.
— Eu amo o seu irmão, Bárbara — murmura Anna,
sonhadoramente, quando saímos do Hospital. — Amo de
verdade, amo você também.
— Eu sei, e nós também te amamos. — Sorrio para
um farol de trânsito. O amor me deixava assim, alegre. —
De verdade!
— Bom, só quero reafirmar, vai que eu estou na lista
de cunhadas para dar um fim. — Ela ri, e eu a empurro de
brincadeira.
Meia hora depois, estamos batendo na porta do
escritório da Marcela, se é que aquela sala minúscula com
cheiro de mofo pode ser considerada um escritório.
— Boa tarde — cumprimenta um senhor de idade
gordinho, vestindo um terno rosa claro, com um sorriso
simpático.
— Boa tarde! Gostaríamos de falar com a Marcela,
por favor — pede Anna, porque nota que ainda estou
ocupada analisando o homem à nossa frente. Nunca soube
que camisa de bolinhas ficavam bem com ternos cor-de-
rosa; acho que era porque não ficavam, mas eu tinha que
admitir que ele tinha estilo. Quando eu estava quase
perguntando onde ele comprou o colar com o pingente
enorme de coração que estava aparecendo por debaixo da
camisa entreaberta, ele respondeu.
— Ela não veio hoje, não estava se sentindo bem. —
Hum, é mesmo?! — Mas, se eu puder ajudar em alguma
coisa....
— Na verdade, contratamos os serviços dela, e ela
me ligou ontem para dizer que minha cunhada não está
escondendo nada, então decidimos que agora é a vez de
ela seguir o meu irmão — conto, tentando descobrir se ele
está ou não por dentro do assunto; suas piscadas rápidas e
a mão que puxa a camisa grudada no pescoço indicam que
sim, ele sabe de alguma coisa. — Só para ter certeza,
sabe como é, né?
Ele fica me encarando por quase um minuto, mudo,
decerto pensando no que fazer.
— Vou te dar o endereço do apartamento dela. Entrem
— pede, nos dando as costas e caminhando até a mesa de
maneira decidida.
Dou uma piscadinha para Anna e o sigo.
— Vocês podem ir até a pé, se quiserem, é pertinho
— conta, me estendendo um pedaço de papel amarelo.
— Muito obrigada, senhor...
Sorrio, agradecida.
— Arnaldinho, podem me chamar de Arnaldinho.
Aperto sua mão e lhe dou as costas, caminhando até a
porta.
— Muito obrigada, Arnaldinho — murmuro ao passar
por ela e agarrar o braço de Anna.
— Isso foi estranho — ela comenta quando chegamos
à rua. — Gostei dele, sem contar o gosto peculiar para
roupas.
— Peculiar é uma maneira interessante de dizer. —
Eu rio. — Acho que vou comprar um terno daqueles para
o Augusto de presente.
— Ele vai fazer uma fogueira com ele para as
crianças brincarem de índio. — Ela ri.
— Índio não usa roupa, não é? Ian vai acabar
rapidinho com essa brincadeira.
Tadinha da minha filha! Se ela for uma garota
esperta, só nos apresentará o namorado quando for se
casar, e se o namorado vir a ser mesmo o Nick, só depois
que já tiver se casado. Ah, de que adiantaria? Ian ia
encher o saco de todo jeito!
Encaro o papel e paro, digitando o endereço no GPS
do celular.
— Vamos, é por aqui.
Dois minutos depois, estamos paradas na frente de um
prédio antigo de sete andares. Não há porteiro e, para o
azar de Anna, também não há elevador. Embora esteja
abandonado, o lugar é limpo e até reconfortante. Respiro
fundo antes de bater na porta do apartamento indicado,
pensando seriamente no que vou dizer.
Pelo amor de Deus, acaba com o casamento do meu
irmão! Essa é a única coisa que vem à minha cabeça!
Capítulo 15 - Marcela

“Você pode encarar um erro como uma besteira a ser


esquecida ou como um resultado que aponta uma nova
direção.”
Steve Jobs

E se esse tempo todo eu estivesse errada?

Sou acordada por batidas insistentes na porta da


frente. Abro os olhos e volto a fechá-los depois que eles
reclamam da luz que transpassa a cortina, já é dia. Agora,
qual era o dia, eu não saberia responder. Ontem à noite,
acabei me afundando tanto no passado e em toda a dor que
ele trouxe de volta – como se ela, alguma vez, tivesse ido
embora –, que saí à procura de trocados e caminhei até o
posto de gasolina duas quadras adiante para comprar
bebida.
Pelo gosto rançoso e envelhecido na minha boca, já
dava para ter uma noção que não achei muito dinheiro nos
bolsos dos meus jeans. Fora isso, o cheiro de vômito
estava quase insuportável. Esfreguei os olhos e tentei
mantê-los abertos dessa vez e, com muito custo, me sentei,
encarando o chão.
Oi, jantar; oi, lasanha! Eles me cumprimentaram de
volta de uma poça no chão ao lado do sofá. Eu deveria
estar tão mal, que nem ao menos tive força para levantar e
vomitar na privada. Devo ter me virado de lado e
despejado tudo ali mesmo.
— Marcela, você está aí?
Eu era tão boa em guardar fisionomias quanto em
guardar vozes, e sabia exatamente quem estava do outro
lado da porta, a irmã dele. O que ela queria aqui tão
cedo? Mordi os lábios e pensei em não atender, mas
minha curiosidade era um bichinho com vida própria, me
levantei e cambaleei, tendo que me sentar novamente.
Oi, ressaca!
Me agarrei ao estofado, fincando as unhas, até que
minha visão normalizasse, e tentei levantar outra vez,
agora com sucesso. Corri até a cozinha e peguei um pano
e uma garrafa de produto de limpeza.
— Só um minuto — gritei em direção à porta,
correndo para limpar toda a sujeira, antes de deixar que
ela entrasse e visse minha bela vida de merda derramada
no chão da sala.
Só então a pergunta me atingiu como um raio: como
ela sabia onde me encontrar? Eu vou matar aquela bicha
excêntrica do Arnaldinho; prometo para mim mesma que,
dessa vez, eu não vou ter a mínima dó de enfiar uma faca
naquele intrometido!
— Olá — resmungo, com a voz grossa por causa da
bebedeira. Minha cabeça dói, e simplesmente não consigo
ser mais simpática do que isso.
— Você está bem? — pergunta a moça com a cicatriz
tenebrosa no rosto, Anna era o nome dela. Parece gentil e
preocupada, por isso aliso minha roupa e pigarreio,
tentando ficar mais apresentável.
— Ótima. — Morrendo, essa era a verdade.
Eu só queria uma aspirina e minha cama. Se alguém
me arrumasse uma canja de galinha de brinde ganharia um
beijo na boca.
— Desculpa, mas não parece.
Ela ri, e eu escuto sinos. Arfo e fecho os olhos. Como
é possível? Será que, a partir de hoje, tudo o que eu visse
ou ouvisse me traria lembranças dolorosas do meu
passado? Como isso começou? Se bem me lembro,
começou com o médico, que agora sei ser o pai do bebê
que estava dentro da barriga daquela moça. Afinal,
Gustavo não tinha mais irmãos.
— O que vocês querem? — perguntei, concordando
com ela e entrando no meu apartamento, abandonando-as
na porta.
Como eu disse, minha educação deveria estar, junto
com meu bom senso, passeando por aí. Me jogo no sofá e
olho para trás; elas não pareceram ofendidas, entraram,
fecharam a porta e caminharam na minha direção.
— Queremos contratar os seus serviços — explica
Bárbara, sentando-se na poltrona à minha frente, enquanto
a outra moça senta na que está ao seu lado.
Eu bufo pela falta de paciência.
— Eu já disse, sua cunha.... — Ela me olha feio, e eu
escolho melhor minhas palavras. — A tal moça, ela não
está fazendo nada que possa colocar o relacionamento
dela em risco. — Tirando o galho bem merecido que
enfeita a cabeça do seu irmão...
— É, foi o que você disse.
Então, ela sorri diabolicamente em minha direção, eu
pisco e tento sair do torpor alcoólico em que ainda me
encontro. Tenho a nítida sensação de que estou perdendo
alguma coisa.
— Agora queremos que você siga meu irmão.
Como é?
— Eu não posso fazer isso! — quase grito,
balançando a cabeça negativamente, e olho ao redor,
procurando desesperadamente a garrafa que abandonei na
noite passada. Um gole, só um gole, e ela vai desaparecer.
Por que deixei meu tom de voz me trair dessa
maneira?
— Por que não? — Seus olhos brilhantes me dizem
que ela sabe exatamente o porquê, nada é coincidência
nessa vida, não é?
Ela sabia quem eu era, antes mesmo de me procurar
pela primeira vez, mas por quê? Por que ela veio até
mim?
— Porque não é ético — arrisco uma mentira que não
convence ninguém.
Nesse momento, sou salva pelo gongo, Tyler entra na
sala e pula em cima no sofá. Não deixo de notar que Anna
se encolhe, já Bárbara tem que se obrigar a permanecer no
lugar para não dar uma de Felícia e agarrar o cachorro,
chamando-o de “coisinha fofa”. Sim, ela era daquele tipo,
eu tinha certeza.
— Que tal colocarmos nossas cartas na mesa e
sermos sinceras? — pergunta Anna, seguindo Tyler com o
olhar.
Ele se senta e lambe a pata, sem nem ao menos notar
que está sendo observado.
— Podem começar.
É claro que eu ia mentir. Era praticamente impossível
não fazê-lo quando alguém me pedia para ser sincera
daquela maneira, era quase como um desafio. Mas eu
queria ver no que essa conversa ia dar.
— Meu irmão não tem nada a esconder — começa
Bárbara —, ele é um bom garoto, embora seja mais burro
do que uma porta.
Até aí, não vou discordar.
— Então, queremos que alguém arme pra ele.
Ela parece envergonhada de sua ideia, e deveria
mesmo ficar, quem tem coragem de fazer isso com o
próprio irmão? Então, me lembro de todos os meus
segredos e dos de Camila, que eu também estou
guardando, e abandono o julgamento, entendendo
exatamente quais são suas razões para chegar tão baixo.
Ela não tem mais alternativas.
— Você deveria procurar uma garota de programa —
aconselho.
Garrafa, cadê você?
— Ele é certinho demais para se deixar levar por
qualquer uma — diz, com uma voz que insinua algo mais,
então entendo onde Bárbara quer chegar.
— E o que te faz pensar que não sou qualquer uma?
— A pergunta de um milhão de dólares.
Ela encara a cunhada, respira fundo e fala, e eu
desejo que ela engula cada uma de suas palavras, para que
não fiquem se repetindo e repetindo dentro da minha
cabeça bagunçada e alcoolizada, mas é tarde demais, elas
estão por toda parte.
— Porque ele já amou você.
Cinco palavras foram o suficiente para me fazer
fraquejar, meus olhos correm pela sala para se
esconderem dos dela e, finalmente, encontro a garrafa.
Tenho duas alternativas, beber ou chorar. Não precisa ser
um gênio para saber qual escolhi.
— Você está enganada!
Balanço a cabeça, indignada, e me levanto,
recuperando a garrafa que estava parcialmente escondida
embaixo do sofá. Novamente, deixo que minha voz me
traia, há um quê de esperança e incerteza impregnado nela
que me enlouquece. Bebo um gole, o primeiro de muitos
daquele dia.
— Estão servidas?
— Não, obrigada — recusa Anna, me olhando com
atenção.
— Eu aceito — diz Bárbara, estendendo a mão. Eu
lhe passo a garrafa e ela sorve uma boa golada; tosse,
respira, se recupera e bebe de novo. — Isso é nojento,
mas muito útil.
— Concordo com você.
Ela me devolve a garrafa, e a levo à boca novamente.
— Meu irmão te amou o suficiente para sofrer por
você — ela diz pausadamente. — O que você fez, eu não
sei e, sinceramente, não quero saber. Mas estou contanto
com isso para conseguir uma boa foto, Marcela.
Eu engasgo e limpo a boca com as costas da mão,
enquanto tento controlar um acesso de tosse. Pelo menos
não preciso inventar um motivo para que meus olhos
estejam marejados; posso fingir que é culpa da bebida que
entrou pelo lugar errado, ao invés de deixar que vejam
que as causadoras foram suas palavras, que, infelizmente,
chegaram um pouco tarde demais na minha vida.
— Isso é impossível!
Ele nunca tinha me amado. Me usado, talvez, mas
amado? Não.
Isso não era verdade, não podia ser!
— Alguma coisa aconteceu entre vocês, algo que fez
meu irmão procurar abrigo no lugar mais seguro da
família, a casa da nossa avó. — Ela ergue as sobrancelhas
e umedece os lábios antes de continuar. — Augusto teve
que ir até lá para fazê-lo se levantar da cama.
Normalmente, é ele quem vai quando um de nós pira, e
esse tipo de intervenção acontece mais do que
gostaríamos na nossa família.
— Você tem noção do que está me dizendo? —
pergunto, antes que consiga evitar.
Não, ela não tem. Claro que não tem. Ela não faz
ideia de como aquela revelação bagunçava meus
sentimentos. Como me arrasava.
Se o que aquela garota estava me falando era
verdade, eu cometi um erro terrível.
Um erro que eu jamais poderia consertar. Um erro
sem volta.
— A única coisa que sei é que vou afundar esse
casamento, com ou sem a sua ajuda. Mas gostaria de tê-la.
— Ela se exaspera e passa as mãos pelo rosto, parece
muito mais cansada do que da última vez em que a vi.
Provavelmente, aquele relacionamento que ela não
aprovava estava acabando mesmo com sua paz. — O
trabalho é simples, Marcela: se aproxime do meu irmão,
tire uma foto e receba o quanto desejar por ela em
dinheiro vivo.
— Como acha que vou conseguir fazer isso?
É inacreditável! O que ela está me pedindo é demais,
muito mais do que sou capaz de fazer.
Tive um ataque de pânico ao vê-lo, o que vai
acontecer comigo se eu falar com ele? Tocar nele? O
cheiro de álcool, remédios, sofrimento e loucura,
característico de alas psiquiátricas, chega até mim com
força. Conheço aquele aroma, e agora parece que ele está
impregnado em mim, nas minhas roupas, no meu cabelo e
na minha alma.
Minha história é um vespeiro que não quero cutucar
porque ainda me lembro da dor das ferroadas.
— Pelo que sei, foi você quem partiu o coração dele,
e não o contrário.
Ela está jogando comigo, quer me fazer falar, está
curiosa. É tempo perdido, não vou contar nada.
— E se, por ventura, algum dia você chegou a gostar
do meu irmão, acho que não vai querer vê-lo jogar a vida
fora ao se casar com alguém que teria que viver mil vidas
para merecê-lo.
Fico muda. Eu não gostei dele, eu o amei. Amei tanto
que chega a machucar somente de lembrar. Olho para ela e
sinto meu coração se comprimir, como se mãos fortes o
estivessem apertando, tentando fazê-lo parar de bater. As
malditas mãos estão quase lá.
— Não posso.
Me levanto em um impulso e lhes dou as costas,
caminhando até a porta e a abrindo, um belo de um
convite para que elas caiam fora. Eu preciso pensar,
chorar e beber, para conseguir parar de pensar e chorar,
depois de começar.
— Sinto muito!
Elas se encaram e levantam. Bárbara olha para o
chão, mas Anna olha para mim enquanto caminham até
onde estou.
— Pense bem, pagamos o preço que você pedir —
ela murmura, agarrando o braço de uma Bárbara quieta e
pensativa, puxando-a para fora do meu apartamento, mas
ela para e se vira antes que eu feche a porta.
— Você acha que ele não merece o seu envolvimento,
não é? — Bárbara pergunta, me analisando friamente,
embora suas palavras sejam sutis, quase doces. — Acho
que me enganei quando imaginei que você havia partido o
coração dele. Não que não tenha sido verdade, mas ele
também partiu o seu. — Ela parece lamentar por mim, o
que só me deixa mais angustiada. — Sinto muito por isso,
Marcela, sinto mesmo. — Dito isso, ela me dá as costas
definitivamente e desce as escadas, me abandonando na
soleira da porta, olhando sua partida.
Do que adianta ela ter ido embora? Suas palavras
estão aqui, agora, dentro do apartamento, em cada canto,
cada cômodo e, pior, dentro de mim. “Ele te amou o
suficiente para sofrer por você”, foi isso que ela disse.
Mas como poderia ser verdade? Sempre acreditei que eu
estava virando as costas para um homem que não tinha um
pingo de sentimento por mim que não fosse amizade, mas,
e se eu estivesse errada? E se eu abandonei um homem
que sentia o mesmo que eu?
Se fiz isso, nunca vou conseguir me perdoar.
Por causa dessa crença de que ele não merecia o meu
amor, e seria mais feliz sem minha presença em sua vida,
tomei uma atitude no passado que me consumiu por
dentro, até que eu me convenci a odiá-lo, era mais fácil
assim. Desde que o mundo é mundo, o ódio e o amor
andam lado a lado, um encobrindo o outro, como
cúmplices em um crime. Não é tão difícil assim se
confundir entre eles. Um não existe sem o outro e, por
causa desse ódio e desse amor, eu guardei um segredo que
eu tinha a obrigação de ter dividido.
O que... que eu fiz?!
Essa ideia é muito dolorosa, tanto que me forço a
quebrar alguma coisa que não seja minha cara, que é o que
realmente gostaria de fazer no momento. Estou a ponto de
jogar a garrafa na parede, quando a porta se abre e a
Pantera Cor-de-Rosa, em pessoa, passa por ela,
assobiando feliz da vida, e estaca no lugar quando me vê,
olhando-me com um misto de reprovação e preocupação.
— Sabe, se tem algo que acho encantador de ver pela
manhã é uma boneca tão bonita quanto você dormindo em
cima do próprio vômito — ele recrimina, olhando para a
garrafa em minhas mãos com irritação. — Você tem que
parar com isso, Marcela, e dar um jeito nessa sua vida!
Uau, era a primeira vez que ele me chamava pelo
nome e, mais uma vez, tive um flashback do meu pai me
dizendo a mesma frase. Naquele momento, a janela se
abre com o vento, me fazendo dar um pulo de susto,
trazendo uma rajada com aroma de terra molhada e
saudade que me desarma. Então, em vez de brigar com ele
por ter passado meu endereço para um cliente, ou por
estar se intrometendo na minha relação de amor e
dependência com a garrafa, eu me jogo sobre ele; assim
como Tyler e Tiff, até derrapo no piso e estremeço quando
suas mãos se fecham em volta dos meus ombros e ele
beija o topo da minha cabeça antes de me abraçar.
— Você parece meu pai quando faz isso — sussurro,
mordendo a língua com força para não chorar.
Porra, isso já estava virando rotina, e eu que pensei
que já tivesse chorado por uma vida inteira.
— Onde ele está? — pergunta, esfregando meus
braços e me empurrando até o sofá. — Talvez ele possa te
ajudar...
Olho para ele e dou de ombros, com lágrimas se
formando nos meus olhos, então eu sorrio fracamente e
elas escorrem.
— E sua mãe?
Dessa vez, apenas balanço a cabeça em uma negativa
veemente.
— Nossa Senhora, você não tem ninguém?
Balanço a cabeça novamente, soluçando dessa vez.
— Isso não é verdade. Agora você tem a mim! Eu
sempre quis uma filha, sabe?
Não consigo mais me controlar, agarro sua camisa de
bolinhas cor-de-rosa e enfio o rosto nela, deixando todo
rancor e saudade saírem de dentro de mim.
Eles me deixaram, todos eles. Não havia um único dia
em que eu não pensasse nas minhas perdas, um único
minuto da vida em que elas não me fizessem falta. Se eu
quis morrer junto com eles? Deus, como quis. Eu tentei.
Mas quem matou a todos que eu amava não queria me ver
morta, queria que eu ficasse alerta para assistir uma vida
esdrúxula e vazia me consumir, até que eu me tornasse a
mulher que sou hoje.
A mulher amarga que procura consolo no fundo de
uma garrafa. A mulher que pode ou não ter cometido uma
injustiça sem proporções ao homem que mais amou na
vida. Pensar nele faz as lágrimas voltarem com força total.
Preciso descobrir se sua irmã falou a verdade, preciso
descobrir se algum dia ele me amou.
Minha sanidade dependia da resposta para aquela
pergunta.
Capítulo 16 - Marcela
“Saudade tem rosto, nome e sobrenome.
Saudade tem cheiro, tem gosto.
Saudade é a vontade que não passa.
É a ausência que incomoda.”
Autor desconhecido

O acidente que mudou tudo

Sete anos antes


Ninguém atendeu minhas ligações, nem Lucas, nem
meus pais. Eu estava tão furiosa com a descoberta da
traição que nem cheguei a ficar preocupada com eles,
apenas me concentrei em reler todas aquelas mensagens
apaixonadas que meu marido trocou por meses com a
amante. Quantas vezes ele esperou que eu dormisse,
levantou-se e andou até o guarda-roupa para lhe dar boa-
noite sem que eu notasse? Pelos horários das mensagens,
muitas vezes, mais do que eu era capaz de suportar.
Joguei o celular na parede com força, mas logo me
arrependi. Fui buscá-lo e ousei respirar aliviada quando
constatei que ele não havia parado de funcionar, embora
eu tivesse feito um estrago que não deixaria de ser notado.
Como ele pôde? Como Lucas pôde fazer isso comigo,
com a nossa família?
Nos conhecemos assim que me mudei para São Paulo
para morar em uma república e terminar a faculdade de
Letras contra a vontade dos meus pais, que entenderam
que eu precisava fugir apenas quando descobriram meus
motivos meses depois. Tudo aconteceu muito rápido:
antes que eu tivesse terminado de desfazer as malas, eu já
tinha sido contratada como estágiaria pela Editora e
esbarrado em Lucas. Não tinha mais como voltar atrás,
voltar para minha antiga vida. Não tinha para o que ou
quem voltar.
Nos casamos sete meses depois.
Eu rio sozinha, não foi amor à primeira vista. Foi
necessidade à primeira vista. Ele era mais velho, dono de
uma carreira sólida e um bom humor contagiante; ele me
quis, e eu queria desesperadamente ser de alguém, então
aceitei ser dele. O amor veio depois, com o tempo, se
fundiu e se misturou à admiração que eu já nutria por ele e
criou algo bonito ou, pelo menos, bonito para mim.
Eu havia me empenhado em amá-lo e em fazer nosso
casamento dar certo, enquanto ele estava me apunhalando
pelas costas, me traindo e engravidando outra mulher. Era
tanta ingratidão que eu nem sabia como reagir àquela
notícia. Eu seria capaz de perdoá-lo? Não saberia
responder a essa pergunta, nem ao menos tive a chance de
respondê-la. O destino não deixou.
Meu celular tocou, demorei até me dar conta do
barulho, me levantar e me arrastar até a sala, abrir a bolsa
e pegá-lo. Eu não conhecia o número no identificador de
chamadas e hesitei em atender, incomodada com meus
olhos secos e toda a raiva que estava sentindo. Eu
precisava chorar, precisava pensar no que faria dali em
diante, e não bater papo com alguém ao telefone. Demorei
tanto para me decidir, que ele parou de tocar e eu respirei
aliviada por não precisar falar com ninguém naquele
momento.
Fosse quem fosse, era insistente, porque o celular
voltou a tocar. Pensei em acabar de uma vez por todas
com aquela obrigação, porque, possivelmente, era alguém
da Editora que me perguntaria por que eu havia furado
com o autor dos livros vampirescos mais incríveis dos
últimos tempos, então atendi.
— Alô?
Me sentei no sofá e passei as mãos pelos rosto,
afastando os cabelos ruivos para trás, eu estava cansada e
impaciente.
— Boa noite, eu gostaria de falar com a esposa do
senhor João Lucas Martinez — informou uma voz rouca e
firme do outro lado da linha, fazendo com que eu me
empertigasse.
— Pois não, sou eu — respondi, ressabiada.
Quem seria a uma hora dessas? Fazia tempo que
estava escuro do lado de fora, provavelmente não era
mais hora de ligar à procura de ninguém.
— Qual é seu nome, senhora? — questionou
mecanicamente.
Foi ali que um mau pressentimento me invadiu. Eu
ainda não sabia, mas aquela ligação mudaria a minha vida
de todas as formas possíveis.
— Marcela Cantagallo Martinez — falei, com medo
de onde aquela conversa terminaria.
O homem ficou em silêncio por alguns segundos, e
tudo que pude ouvir foi estática e barulhos de papéis
sendo remexidos. Pouco depois, ele suspirou e pigarreou,
limpando a garganta. Àquela altura, meus olhos já estavam
úmidos.
— A senhora é parente de Iara e Murilo Cantagallo,
senhora? — perguntou pausadamente.
— Sim, são meus pais — falei alto, alto demais, já
estava nervosa. — Por quê? O que houve?
— Eu sinto muito em dizer, mas o carro que seu
marido dirigia sofreu um acidente...
Eu o corto com brutalidade.
— Um acidente? Como assim?
Me levantei e dei dois passos pela sala antes de cair
sentada no chão. Minhas pernas pararam de me sustentar,
todos os meus sentidos estavam ocupados tentando fazer o
pânico e o medo, que tentavam me dominar, não me
sufocarem.
— Sim, senhora. O carro se chocou com outro veículo
na Rodovia Regis Bittencourt, eu sinto muito.
Minha mente ficou vazia, a única coisa que ela
repetia, como se fossem flashes piscantes e intermináveis,
era a caricatura de um rosto. Um pequeno rosto infantil
imprensado contra uma janela, ao lado uma mão
embaçando o vidro, e aquele sorriso.
Sempre aquele sorriso.
— O bebê.... — gaguejei, sentindo dificuldade em
conseguir falar, em conseguir respirar, em conseguir
pensar. — Tinha um bebê no carro...
Eu amava meus pais e Lucas, amava do fundo do
coração, mas, naquele momento, eu só conseguia pensar
no pedaço de mim que estava dentro daquele maldito
carro, no pedaço que eu queria que tivesse ficado comigo,
no pedaço que já fazia minha carne sangrar, como se
tivesse sido arrancado de mim, e realmente foi.
— Senhora... — diz, em forma de lamento. — Eu
realmente sinto muito.
É difícil narrar tudo o que aconteceu depois que
recebi aquele telefonema. Mesmo se eu me esforçasse,
não lembraria de tudo. A realidade se misturaria com
meus pesadelos e poucas verdades sairiam da minha
sofrida narrativa, mas, se alguém me perguntasse em que
momento eu morri, seria aquele. Não foi quando descobri
que ninguém saiu com vida daquele acidente, nem quando
as pessoas que eu amava fecharam os olhos pela última
vez, muito menos quando me vi sozinha e abandonada, foi
naquele “Senhora, eu sinto muito”. Foi ali que tudo
acabou pra mim.
Foi naquele momento que a Marcela Cantagallo
morreu, e deu lugar a uma réplica, uma que não sabia
como se portar dentro daquele corpo. Uma que sofreria
pela eternidade por causa de um telefonema e jamais se
permitiria ser feliz outra vez, uma que havia passado a
odiar histórias de vampiros.
Parte II

Ela se fechou, se anulou, se armou com seu sarcasmo


para viver. Mas não poderia se esconder para sempre
dentro da sua teia de mentiras e segredos, porque o
príncipe estava se aproximando e, com ele, viria todo o
amor que um dia ela jurou enterrar. Esse amor seria
suficiente para que ela, finalmente, lhe contasse a
verdade?
Capítulo 17 - Marcela
“Lembra que fui eu, não esquece que fui eu
Que te amou demais desde o dia em que te conheceu.”
Jorge e Mateus

Esbarrando no passado

Depois que me acalmo, decido que chegou o momento


de fazer exatamente o que meu melhor e único amigo
estava me aconselhando. Foi como se meu pai tivesse
chegado por trás dele, colocado as mãos em seu ombro e
falado por ele. “Você tem que parar com isso, Marcela, e
dar um jeito nessa sua vida”. Era isso que eu faria,
começando por algo que estava me incomodando, algo
que eu não conseguiria varrer para debaixo de um tapete
ou esquecer depois de umas doses.
Eu tinha que descobrir se Gustavo me amou. Eu
precisava saber se eu havia sido injusta com ele e lhe
escondido algo que ele merecia saber. Eu já me afogava
em culpa antes mesmo de cogitar a hipótese de ter sido
correspondida, agora eu estava sendo engolida por ela;
havia virado uma questão de caráter, se é que eu ainda
tinha algum depois do que havia feito.
Eu gostava de acreditar que tinha feito o que fiz por
um bom motivo, mas era difícil acreditar na minha própria
desculpa, às vezes. Esse era um daqueles momentos!
— Pega isso. — Estendi a garrafa para Arnaldinho,
ele a retirou das minhas mãos de imediato, mas me olhou
de forma confusa, como se não soubesse o que fazer com
ela. — Jogue na pia e suma com a garrafa, por favor.
— Graças a Deus! Eu já estava pensando em te levar
nos Alcoólicos Anônimos, nem que fosse à força.
Não mencionei que, dependendo do que eu
descobrisse, nem o programa para alcoólicos seria capaz
de me ajudar, então tive medo. Como eu ficaria se não
gostasse do que descobrisse?
— Agora, vai procurar o que fazer, eu tenho que
trabalhar — anunciei, enxotando-o e caminhando até o
corredor.
— Caso novo? — perguntou, quando eu já estava fora
da sala.
Não sei por quê, mas tive a impressão de que ele já
sabia a resposta.
— Não, o mesmo, já que você fez o favor de dar meu
endereço a um cliente. Sabe o quanto isso foi errado?
Me viro e coloco as mãos na cintura, tentando parecer
mais irritada do que, de fato, estava.
— Imaginei que esse caso merecesse tratamento
especial — diz, evitando meu olhar e disfarçando ao
brincar com os cães, que faziam festa aos seus pés.
— Não banque o cupido, criatura. Combina com você
sendo fofinho e tudo o mais, mas você não tem cabelo e há
uma grande chance de eu enfiar a flecha na sua bunda —
resmunguei.
— Mas pensei que não quisesse mais o trabalho —
argumenta, confuso. — Vai entregar as fotos da moça
traindo o seu rapaz, então? — pergunta, me ignorando.
Faço o mesmo e ignoro o termo “seu rapaz”, já que
ele me espeta e lhe conto a verdade, ou parte dela.
— Não, não vou.
Por enquanto.
— Não entendo, se a moça trai...
Eu o corto.
— Elas ainda não sabem disso e vão me pagar o
preço que eu quiser, se eu conseguir fotos dele fazendo
algo errado. Você tem que admitir que é uma proposta
muito tentadora.
Sorrio pesarosamente, pensando no quanto precisava
daquele dinheiro, sabendo muito bem que eu não iria
aceitá-lo. Por que eu não podia ser uma filha da puta
mesquinha e ter coragem de matar dois coelhos com um
único tiro de doze, se tivesse oportunidade? Maldita
honestidade! No fim, eu acabaria contando a verdade.
— Hum — resmunga, pensativamente —, ele não
tinha cara de safado, me pareceu um bom moço...
Eu o olho feio e ele se cala.
— Elas pensam o mesmo.
Mas eu tenho as minhas dúvidas. Anos na mesma
profissão me faziam acreditar que todo mundo guarda
segredos. Era bem possível que Gustavo não fosse o santo
que Arnaldinho, sua irmã e sua cunhada imaginam e, antes
de sequer chegar perto dele, eu ia investigar, só depois me
aproximaria para conseguir tentar lhe arrancar a verdade
sobre seus sentimentos por mim no passado e então
entregaria a elas as fotos da Camila, claro!
Quem sabe eu não encontrava algum podre dele
também e conseguia um pagamento maior de forma justa?!
Não custava nada sonhar. Bárbara parecia do tipo mão
aberta.
— Não estou entendendo nadica de nada! — comenta
Arnaldinho, franzindo as sobrancelhas.
— A irmã dele quer que eu o seduza.
Eu rio. Não havia a menor chance de eu fazer da
maneira que ela havia me sugerido, como se elas não
tivessem visto a noiva dele. Nem se eu quisesse
conseguiria seduzir aquele homem. Quem come
churrasquinho grego na rua, se tem um banquete de lagosta
em casa?
— Claro que não vou fazer isso, mas, quem sabe eu
consiga descobrir algo de ruim sobre ele sem precisar
sujar as mãos? Se conseguir, entrego a prova contra os
dois e recebo um pagamento maior sem precisar enganá-
las, afinal, já tenho as fotos da Camila. Tenho certeza de
que Bárbara pularia de felicidade com um pacote
completo.
— Boneca, isso não faz o menor sentido. Você pode
muito bem entregar logo essas fotos e se ver livre desse
rapaz. Talvez se aproximar dele não valha o dinheiro a
mais, um dinheiro que é apenas uma suposição. — Ele se
cala e franze as sobrancelhas, como se tivesse tido um
estalo. — Mas você não quer, não é? Você quer um motivo
para reencontrá-lo, não quer?
É, eu queria, sim, mas não pelos motivos que ele
estava imaginando. Eu precisava adiar o fechamento desse
trabalho, precisava de tempo. Por mim, Arnaldinho ia
continuar quebrando a cabeça. Sorri e lhe dei as costas,
indo para o meu quarto. Peguei o notebook da gaveta do
criado-mudo e me acomodei sob minhas cobertas,
abrindo-o e começando o trabalho.
Primeiro, reuni todas as informações que eu
descobrira sobre Camila em uma pasta e enviei as fotos
que havia tirado dela com o amante para uma empresa já
conhecida para que fossem reveladas. Depois, fui
procurá-los nas redes sociais. Ignorei a angústia e o
sentimento, que era um misto de culpa e carinho, ao ver a
foto dele do perfil, e coletei as informações. Onde
trabalha, quais amigos são mais presentes nas suas
postagens, e coisas do tipo. Com Camila, não tive a
mesma sorte, seu perfil era bloqueado, mas seu e-mail
recompensou sua desconfiança.
Não precisei de mais do que três tentativas para
acertar sua senha. Primeiro, tentei a frase “eu sou uma
vaca fitness”; depois, “eu me acho gostosa pra cacete”;
por fim, optei pelo seu nome. Sério? Quem coloca o
próprio nome como senha?
Em poucos minutos de busca, encontrei diversos e-
mails que vinham do servidor da empresa onde Gustavo
trabalhava, mas seus conteúdos não eram nem um pouco
inofensivos, estavam mais para comprometedores. Não
era com ele que ela estava se correspondendo, e sim com
um homem chamado Gael Montezan. Voltei para o
Facebook. O mesmo homem aparecia em algumas fotos
com o Gustavo em eventos fora da empresa; escolhi uma
onde eles se abraçavam e a salvei para, depois, ler os
comentários.
Puta que pariu, como aquela mulher era baixa. O
homem não era ninguém menos do que o chefe de seu
noivo, e o caso durava pouco mais de um mês, coincidia
com outra foto que encontrei nas redes sociais. Eles
haviam trocado o primeiro e-mail um dia após uma festa
de confraternização da empresa.
Não consegui descobrir a senha do e-mail dele, por
isso me levantei e me vesti. Eu ia fazer à moda antiga, ia
colocar a mão na massa e segui-lo. Não encontrei
Arnaldinho quando saí de casa, e foi melhor assim, ele
veria logo de cara o quanto eu estava nervosa. Pulei para
dentro do Totó e disparei pelas ruas de Florianópolis até a
empresa, com o endereço já salvo no GPS depois de
procurá-lo no Google. Estacionei e esperei, roendo a unha
do polegar até chegar ao sabugo, depois passei para o
indicador. Minutos depois, já estava no mindinho e me
sentia pronta para devorar as unhas da outra mão, quando
o vi.
Ele nunca esteve mais bonito, e eu nunca senti tanta
pena de alguém, fora eu mesma, antes. Eu já estive na pele
dele um dia e podia dizer, com certeza, de que era uma
das piores humilhações que alguém pode passar na vida.
Dar amor a alguém que não o merecia.
Gustavo saiu caminhando pelas portas principais da
empresa. A construtora onde trabalhava se situava em um
prédio de mais de dez andares, eu conhecia o lugar, já
estivera naquele endereço muitas vezes antes. Na época
em que nos conhecemos, ele já era funcionário da casa e,
pela minha pesquisa, eu sabia que havia galgado cargos
com o passar dos anos. Seu nome estava assinado
embaixo de diversos artigos importantes sobre
arquitetura, e também havia sido cotado como o provável
futuro responsável pela construção de um shopping center
na região, o maior da cidade, dizia uma nota sobre o
empreendimento em um jornal local.
Se eu contasse que sua noiva estava liberando a
periquita fitness para seu querido chefe, ele poderia dar
adeus ao trabalho do shopping, que só lhe seria útil caso
desejasse comprar algum produto para lustrar os chifres
de corno que enfeitavam sua testa.
Fiquei feliz por não ter contado para sua irmã sobre
as fotos. Poderia parecer que eu estava me aproveitando
da situação e da grana a mais que ela havia me oferecido,
se as fotos fossem dele, mas aquele não era o meu
objetivo. Escondi as fotos porque não queria me envolver
na sua vida, e agora estava feliz por tê-lo feito. Assim que
o vi, passei a torcer para encontrar algo incriminador
sobre ele. Se eu conseguisse, ele ganharia sua promoção e
ainda sairia por cima na história, ao invés de sair dela
como um homem traído, e eu esconderia as fotos de sua
noiva para sempre.
Mesmo depois de tudo que ele me fez, eu ainda queria
protegê-lo.
Eu era uma cretina mesmo.
— Como pode? Ele não mudou nada, enquanto eu
virei uma rolha de poço! — falei para mim mesma,
admirando-o.
Gustavo vestia um terno cinza claro, com uma camisa
branca engomada por baixo; duvido que tenha sido sua
noiva quem a passou a ferro. A gravata azul-marinho
estava perfeitamente alinhada, lhe conferindo um ar de
homem de negócios, importante e intocável.
Algo se agitou dentro do meu peito, como se urubus
voassem em cima da carniça, que, no caso, era meu
coração. Era um bater de asas irritante, que me deu dor de
barriga. Nada romântico, eu sei, mas significativo. Eu
estava feliz por não estar chorando atrás da caçamba de
lixo mais próxima; esse era, com certeza, um avanço. Eu
até gostava de urubus!
Maldito homem lindo! Seu cabelo estava maior, ele
havia abandonado o topete usual e havia deixado crescer
até pouco acima das orelhas; sua barba estava feita, e a
aliança de ouro em sua mão direita brilhava mais do que
Arnaldinho em seu melhor dia. Suas feições
amadureceram, ele não parecia mais um garoto. Os olhos,
sempre tão cativantes, encaravam os dois lados da rua
com atenção, me abaixei, batendo a testa do volante e
gritando alto um palavrão de baixo calão para não ser
vista. Quando me ergui, ele já tinha atravessado a rua; não
perdi tempo, saltei do carro e o segui a pé.
Gustavo caminhou até o bar da esquina onde outro
homem o esperava. O rapaz vestia uma calça jeans de
lavagem clara, camisa rosa e sapatos sociais. Além da
beleza delicada e dos olhos verdes penetrantes e
observadores, o que mais chamou minha atenção foi a
arma em seu coldre e o distintivo preso a uma corrente
posicionada em seu pescoço, um delegado da Polícia
Civil. Me mantive afastada, entrei debaixo de um orelhão
próximo e fingi fazer uma ligação, deixando meu cabeção
ruivo pender para a direita o suficiente para enxergá-los.
Eu estava a poucos metros de distância do homem que
um dia conheci tão bem, e nunca me senti mais distante
dele.
Eles pediram uma cerveja e conversaram por alguns
minutos, pareciam muito amigos e íntimos. O assunto
parecia ser sério e, pelas costas tensionadas de Gustavo,
estava claro que lhe desagravada. Criei coragem e dei
uma corridinha até uma mesa que ficava a duas de
distância da deles, me escondendo atrás de um cardápio.
— Deseja alguma coisa? — pergunta um garçom,
surgindo do nada.
Minha resposta sincera seria algo como: “Sim, ser
deixada em paz”, ou o usual: “Dá o fora, cacete”. Mas não
quero chamar a atenção.
— Um café, por favor.
Nem de café eu gostava, pelo menos não do gosto.
Mas amava o aroma de café que o homem que eu seguia
exalava. Será que ainda teria o mesmo perfume? Café
forte e loção pós-barba, não sei, mas ele não tinha mais o
cheiro de esperança, promessa e felicidade, ou era isso
em que eu queria desesperadamente acreditar.
O garçom assentiu e me deu as costas, enquanto
agucei os ouvidos para tentar escutar a conversa que os
dois estavam tendo.
— Eu não sei mais o que fazer, Bê. A Camila me
ligou puta da vida hoje à tarde, a Bárbara está passando
de todos os limites. O que ela estava pensando quando foi
até o trabalho dela ameaçá-la? — pergunta, com um misto
de decepção e revolta.
Escutar sua voz depois de tanto tempo é estranho e
reconfortante ao mesmo tempo. É como se eu nunca
tivesse parado de escutá-la, e talvez seja verdade, talvez
ela sempre tenha estado presente dentro da minha cabeça.
Pensei tanto naquela voz rouca e sonora antes de dormir,
que ela ficou gravada na minha consciência. Ela, e só ela,
era o motivo de eu ainda estar viva.
“Viva, Marcela; por mais que você não deseje, viva.
Era isso que eles iriam esperar de você, nada menos do
que isso.” Era naquela frase em que eu pensava sempre
que tinha o desejo de desistir de tudo.
Como pude acreditar que seria capaz de odiá-lo?
— Isso não faz o gênero da sua irmã, cara. Tem
certeza de que a Camila não exagerou?
Acho que não conhecíamos a mesma Bárbara, ou ele
tinha outra irmã, uma mais normal. Porque, a que eu
conhecia, iria, sim, até o trabalho da cunhada – ops, da
vagabunda – sem medir as consequências.
— Minha irmã me deu a maior surra quando
descobriu sobre o nosso relacionamento, ou você já se
esqueceu? — Eu adoraria ter visto essa cena. — Você
realmente acha que ela não iria até lá?
— O que você esperava, hein? Que ela recebesse sua
namorada na família de braços abertos? — pergunta o
rapaz, exasperado. — Às vezes, parece que já se
esqueceu de tudo o que a Camila fez para ela.
— Eu não esqueci — responde, evasivamente,
endurecendo mais a postura. — Mas acho que ela merece
uma segunda chance. Você se lembra de como eles ficaram
do lado da Anna quando nem sabíamos ainda se ela era ou
não perigosa?
Hum, isso era interessantíssimo, porque a Anna que
eu conhecia não tinha cara de conseguir matar nem um
mosquitinho.
— Ninguém pegou a Anna na cama do Ian.
Gustavo enterra o rosto nas mãos, seus cotovelos
estão apoiados na mesa, e ele se encurva. Vergonha. Ele
sente vergonha.
— Desculpa, eu não queria dizer isso.
— Eu pensei que estivesse do meu lado. — Há um
certo rancor em suas palavras.
— Eu estou, e sou o único — responde o rapaz, com a
voz firme. — Afinal, se não fosse na minha casa, onde
mais você poderia esconder a sua comida? — Ele ri e
consegue aliviar a tensão. — Não que minha mulher esteja
contente com isso; por ela, você ficaria sofrendo e
sobrevivendo de ar até desistir desse casamento.
— Estou estudando as tábuas do assoalho, para
quando Vivian deixar de ser gentil. — Ele ri. — Estou
planejando esconder meus salgadinhos dentro de uma
delas.
— Três meses, é isso mesmo? Vocês se casam em três
meses? — pergunta o rapaz, não querendo deixar o
assunto de lado. Ele não parece feliz, embora tente
esconder com todas as forças seu desagrado pela decisão
do amigo. — Por que tão rápido?
Três meses, parecia uma sentença para mim.
— Quanto mais rápido, melhor. — Então ele
realmente a ama. — Quem sabe, assim, Bárbara para de
tentar me fazer mudar de ideia. Depois que eu assinar os
papéis, sua única alternativa será aceitar minha escolha.
Então, era isso, o casamento apressado nada mais era
do que uma saída rápida.
Noventa dias; era esse o tempo que eu tinha para
mostrar para ele o seu erro, ou para Camila, se fosse o
caso. O fato era que aquele casamento já estava destinado
ao fracasso antes mesmo de ser realizado. Uma união
onde não há verdade pode ter apenas um resultado: dor.
— Tenho as minhas dúvidas quanto a isso —
murmura, mais para si mesmo.
— Você vai estar lá, não vai? — pergunta, com
esperança. — Porque não sei se meus irmãos vão...
— Eu e Vivian estaremos lá, nem que, para isso, eu
tenha que levá-la à força. — Ele ri novamente. —
Provavelmente terei que usar minha arma. Devo mesmo
gostar de você.
— Eu agradeço por isso. — Ele relaxa pela primeira
vez desde que se sentou.
— Agora, preciso ir; os dentes do João estão
nascendo, Vivian está ameaçando afogá-lo na banheira por
causa de tanta manha.
Ele se levanta no exato instante em que o garçom
pousa minha xícara de café na mesa. Retiro uma nota do
bolso e enfio em suas mãos, me levantando com pressa e
me abrigando embaixo do orelhão outra vez. O rapaz me
olha como se eu fosse maluca, mas guarda a nota no bolso
e vai até a mesa dos rapazes fechar a conta.
O delegado, que tem um relacionamento com uma
moça chamada Vivian – que aparentemente é meio
homicida, já que quer matar o filho do casal –, se levanta
e caminha até um Corolla, desligando o alarme. Ele acena
antes de entrar, dar a partida e desaparecer rua abaixo,
enquanto Gustavo termina seu copo. Quando ele se
levanta, comete o erro de olhar para o chão ao caminhar.
Ele está vindo em minha direção.
Três meses; noventa dias; duas mil, cento e sessenta
horas, esse era o meu prazo.
Não penso, eu ajo, mesmo sabendo que vou me
arrepender. Solto minhas mãos do apoio e me jogo à sua
frente, me chocando contra seu corpo sólido, cambaleando
com o impacto, que não pensei que seria tão forte; caio de
bunda no chão, torcendo o tornozelo no processo.
Perfeito. Simplesmente perfeito, eu não poderia ter
sido mais fina.
Capítulo 18 - Gustavo

“Ela é um filme de ação com vários finais


Ela é política aplicada em conversas banais
Se ela tiver muito a fim, seja perspicaz
Ela nunca vai deixar claro, então entenda sinais.”
Projota

A mulher que sempre abala meu mundo

Estou distraído, pensando na conversa que tive com


Bernardo. Ultimamente, ele era a única pessoa com quem
eu podia falar sem me sentir um imbecil, mas não hoje. Eu
não conseguia tirar sua acusação da cabeça: “Ninguém
pegou Anna na cama do Ian”. Se ele soubesse o quanto
me machucava lembrar daquela atitude repugnante da
Camila, não teria dito nada. Mas ele estava certo, eu
entendia que, para minha família, havia sido mais fácil dar
um voto de confiança para Anna, afinal, não sabíamos
nada sobre ela. Já sobre a Camila, sabíamos até demais.
Será que aquela história seria o fantasma que sempre
me assombraria?
Imaginar minha mulher nua, na cama de um dos meus
melhores amigos, acabava comigo. Não era apenas ciúme,
era vergonha. Eu me envergonhava dela quando era
lembrado até onde ela havia ido pela obsessão que me
revelou sentir por ele. Mas isso não se comparava à
decepção que eu sentia em saber que eles haviam,
realmente, ficado juntos, que ele havia tocado nela depois
de ela já ter sido minha. Quando namoramos na infância,
durante uma de nossas férias de verão, foi algo inocente,
puro. Ian conheceu Camila por completo antes de mim,
antes que ela entrasse permanentemente na minha vida, e
isso me incomodava, embora não devesse.
Era notório que meu relacionamento com Ian havia
esfriado depois que o segredo do meu namoro veio à tona.
Em parte, porque chegamos a um momento em que todos
da família tiveram que se posicionar e, claro, ele pendeu
para o lado da minha irmã; e também, porque eu não
conseguia olhar para ele sem lembrar. Ian me fazia
recordar tudo o que eu mais queria esquecer. Ele tocou na
minha noiva, usou-a e depois a descartou, então ele tinha
sua parcela de culpa pelos atos dela. Será que só eu via
isso?
Me levantei da mesa, me virei e caminhei, encarando
meus sapatos. Eu precisaria ter uma conversa séria e
definitiva com minha irmã, e não fazia ideia de como faria
isso. Ela estava planejando uma guerra, armazenando
munição e recrutando soldados, estava sendo infantil e
mimada, até ali nenhuma novidade. Mas ela tinha que
entender que nossa família não precisava sofrer tendo que
escolher um lado, que aquela briga era apenas nossa, e
que estava na hora de terminarmos com ela.
Perdido em meus próprios pensamentos, não notei que
alguém estava andando em minha direção e me choquei
contra outro corpo. Em um primeiro momento, me assustei
com o grito feminino alto e esganiçado, e o choque do
impacto que havia me tirado o fôlego por alguns segundos,
mas logo me recompus e me agachei diante do amontoado
de cabelos alaranjados, para me certificar de que a moça
estava bem. Coloquei as mãos em sua perna
instintivamente, porque ela estava agarrando o tornozelo
com força, sinalizando que o havia machucado. A moça se
assustou e se esquivou, fazendo com que a bainha de sua
calça jeans subisse alguns centímetros; foi o suficiente
para que eu visse um pingente em forma de âncora
incrustado de cristais, que reconheci de imediato.
Eu o havia comprado.
Levantei o olhar no mesmo instante em que ela e
fiquei hipnotizado de imediato por um par de olhos
cinzentos e opacos, a mesma cor do céu pouco antes de
desaguar uma tempestade. Era um misto de trovões,
relâmpagos, infelicidade e reconhecimento, que me
obrigaram a retirar as mãos de cima dela com rapidez e
arfar em surpresa, porque eu conhecia aqueles olhos.
Quando nos conhecemos, eram de um tom de azul
único, sombreado e vivo. Eles me lembravam raios de
Sol, calor e água salgada. Um mar tranquilo, convidativo
e infinito, onde eu poderia nadar sem nunca me afogar.
Eram olhos de uma mulher cheia de sonhos, felicidade e
de personalidade própria. Mas, da última vez que a vi,
eles já tinham mudado de cor, se transformando em uma
trovoada melancólica que me arrasava por dentro.
Um par de olhos lindamente infelizes, era isso o que
eram.
E também eram dela.
— Marcela? — perguntei, quando o contato visual
passou de surpreso para desconfortável, unicamente para
quebrar o clima tenso que se instalou sobre nós.
Ela continuava no chão, com uma das mãos agarradas
ao tornozelo, me encarando boquiaberta, enquanto eu
estava sendo carregado por uma avalanche de lembranças
dolorosas. Eu não tinha qualquer dúvida de que era ela,
embora estivesse muito diferente de como eu me
lembrava.
— Gustavo — ela pronunciou meu nome de forma
firme. Não havia me feito uma pergunta.
Ela piscou e desviou o olhar para o pé machucado, eu
fiz o mesmo. Retirei suas mãos de cima dele e o olhei,
estava vermelho e começando a inchar.
— Você está bem?
Ela assentiu, olhando para o chão.
— Vem, vou te ajudar a levantar.
Ela não respondeu, mas também não se opôs, quando
me ergui e a peguei pelos braços, levantando-a junto
comigo. Eu a ajudei a chegar em uma cadeira de uma das
mesas do bar e a sentei sobre ela, fazendo um aceno para
o garçom.
— Você pode trazer um pouco de gelo, por favor?
— Claro, só um instante — prontificou-se, nos dando
as costas e caminhando com agilidade para atender meu
pedido.
Ficamos em silêncio até que ele voltasse trazendo um
copo com gelo e um pano de prato, que eu rapidamente
transformei em uma bola e coloquei sobre seu pé, me
agachando novamente à sua frente. Ela reclamou da
sensação da queimação com um curto gemido dolorido,
mas se manteve calada.
— Obrigada — agradeceu pouco depois, retirando o
pano das minhas mãos e comprimindo sozinha o
machucado.
Entendi a deixa e me afastei, dando a volta na mesa e
me sentando à sua frente.
— Como você está?
Ela se virou abruptamente na minha direção, ainda
encurvada, e me observou atentamente antes de responder;
sabia que eu não estava perguntando sobre o ferimento,
pelo menos não aquele. Seus olhos tinham um brilho que
me enfeitiçava, um misto de carinho, arrependimento e
ressentimento que fazia meu coração bater mais forte.
— Eu estou bem — anuiu, tentando sorrir, mas suas
feições a traíam.
— Eu não sabia que você tinha voltado para
Florianópolis. Está aqui há muito tempo? — perguntei,
com interesse, olhando-a com atenção, pela primeira vez
desde que nos esbarramos.
Não eram apenas seus olhos que haviam mudado: o
cabelo, que antes batia na cintura, estava agora acima dos
ombros em um corte que lhe caia bem, deixando seu rosto
mais à mostra e seus olhos maiores. Seu corpo também
não era o mesmo, nem a vaidade, se eu fosse julgar pela
falta de maquiagem, pelos chinelos de dedo e a camiseta
branca sem nenhum atrativo que ela vestia.
Ela era e não era a mesma mulher, e nunca a achei
mais linda como naquele momento.
— Você não sabe muitas coisas sobre mim — frisou,
franzindo o cenho.
Ela tinha razão. Eu lhe havia prometido, em nosso
último encontro, que não a procuraria mais, e cumpri
minha promessa. Eu não sabia mais nada sobre ela, mas
fui invadido por uma urgência em querer saber.
— Por que não tomamos um café e você me atualiza?
— ofereci, sorrindo aberta e falsamente.
Eu não sabia o que sentia de fato. Era uma mistura de
vontade de conversar com ela, quase uma necessidade, e
uma ânsia em me afastar o mais rápido que pudesse.
Marcela tinha esse efeito sobre mim: bagunçar minha
vida, virar tudo de pernas para o ar e me abandonar, para
ter que devolver tudo ao seu devido lugar, completamente
sozinho.
— Claro, eu adoraria.
Dessa vez, seu sorriso é mais amplo, mas ele ainda
não chega até seus olhos. Ela chama o garçom e faz o
pedido.
— Você pode trazer dois cafés, por favor? —
pergunta, mordendo os lábios apreensivamente.
Ele estreita os olhos e abre a boca para questionar
alguma coisa.
— Mas a senhora...
Ela o corta com um meio grito e uma risada
desconfortável, então eu me lembro de um detalhe sobre
ela.
— Na verdade, traga só um café — interrompo. — E
traga também milkshake de chocolate.
Ele assente e some de vista, enquanto ela pisca,
atônita por eu ter me lembrado.
Marcela sempre odiou o gosto de café, embora não
resistisse ao perfume que ele exalava. Sempre que eu
tomava a bebida em sua frente, ela aproximava o rosto,
absorvia o aroma e se decidia por provar, terminando a
experiência com uma careta de repulsa. Marcela dizia que
o café era irresistível o tanto quanto era amargo. Comecei
a pensar o mesmo sobre ela alguns anos depois.
— Obrigada — agradece novamente, recostando-se
na cadeira, parecendo indiferente.
Claro, por que ela se abalaria em me ver outra vez,
se, na nossa relação, sempre fui o único a me apaixonar?!
— Não tem de quê, mas me fale sobre você. Em qual
editora está trabalhando agora?
Não quero deixar a conversa morrer. Vou me sentir
demasiadamente constrangido se tiver que encará-la em
meio ao silêncio, porque ele é tudo o que minha
consciência precisa para começar a remoer lembranças.
— Não trabalho mais no ramo — comenta, dando de
ombros, mas suas sobrancelhas se unem, me mostrando
que ela sente muito por isso. — Mas, e você? Virou o
arquiteto de sucesso que sempre desejou ser?
Há uma pontada de mágoa em sua voz que não me
passa despercebida.
— Estou chegando lá.
Sim, eu cheguei aonde queria na vida. Tinha uma
família amorosa (às vezes), um ótimo emprego (quase
sempre), e uma noiva linda, com quem eu me casaria em
pouco tempo. Tudo estava indo perfeitamente bem,
conforme o meu plano de vida. Ao vê-la suspirar diante
da minha resposta, me arrependo de ter parecido tão
contente ao pronunciá-la, porque me lembro que ela
sofreu um baque que nem cinco, nem dez, muito menos mil
anos, consertariam.
— Se tudo der certo, vou assumir um novo projeto e,
se eu fizer bem feito, aí, sim, terei chegado aonde
planejei.
Infelizmente, eu não podia fazer mais nada por ela,
não depois de ter tentado e ela não ter permitido.
— Isso é ótimo, qual é o projeto? — pergunta,
aparentando interesse genuíno.
— A construção de um novo shopping. Ainda não é
oficial, então estou tentando não criar muitas expectativas.
Embora Gael, meu chefe, tenha praticamente me dado
uma certeza na última reunião de pessoal que fizemos na
empresa. Eu estava contando com aquela promoção,
porque as contas do casamento já estavam começando a
chegar, e minha noiva não era muito de economizar.
— Você vai conseguir, sempre foi competente — diz,
sem dúvida na voz.
Não deixo de comparar sua reação com a de Camila;
Marcela não me perguntou quanto vou ganhar a mais,
apenas me elogiou. Essa constatação chega até minha
consciência na voz da minha irmã, meu guru interno
particular e irritante me afirmando que aquela, sim, era a
reação que eu desejava que minha noiva tivesse tido.
— Há quanto tempo você voltou?
Por que não me ligou? Era a pergunta que eu queria
ter feito, mas eu sabia por quê. “Nunca mais vou querer
te ver outra vez.” Essa era uma das frases que lhe falei
em nosso último encontro, seis anos antes, e já perdi as
contas de quantas vezes me senti arrependido por tê-la
pronunciado.
— Há mais ou menos um ano, ainda estou me
estabelecendo — responde, desconfortavelmente.
— Está na casa que era de seus pais?
Assim que começo a falar, descubro que toquei em um
assunto proibido, um terreno perigoso. Eu gostaria de
retirar o que disse, mas, claro, era impossível.
— Não — diz, ríspida.
Nesse momento, o garçom aparece com nossas
bebidas, e eu respiro aliviado, ele levou consigo parte da
minha aflição. Eu queria perguntar se ela havia voltado
sozinha, mas imaginei que essa também era uma das
perguntas proibidas, então apenas bebi o meu café,
encarando um ponto atrás de suas costas. Pouco depois,
fui capturado por seu olhar, ela encarava minha xícara
com desejo.
— Quer experimentar? — ofereci, sorrindo.
Ela assentiu, então lhe estendi a xícara. Ela cheirou o
conteúdo e salivou, depois a levou as lábios e sorveu um
pequeno gole, tentando esconder a repulsa ao me devolver
rapidamente meu café. Não consegui evitar de pensar que,
não importa o que aconteça, algumas coisas simplesmente
nunca mudam.
O quanto eu era atraído por ela, feito um ímã, era uma
delas.
— Onde você está morando? — perguntou, brincando
com o canudinho de sua bebida.
— Eu estava morando com meu irmão até algumas
semanas atrás, mas me mudei... — gaguejei — para outro
lugar. Ele vai se casar.
Não me senti bem em lhe falar sobre Camila e isso
fez com que eu me sentisse culpado. Fez com que eu
quisesse ir embora.
— Foi ótimo te ver, mas preciso ir para casa. Tenho
que terminar um projeto, então...
Ela assentiu, parecendo chateada, e se levantou.
Assim que seus pés tocaram o chão, ela cambaleou e
voltou a se sentar.
— Eu te levo pra casa, você não deveria colocar o pé
no chão — me ofereci prontamente.
— Eu estou bem — garantiu, retirando algumas notas
do bolso de trás da calça e as depositando na mesa. —
Posso pegar um táxi.
— As bebidas e a carona são por minha conta, afinal,
foi por culpa minha que você se machucou.
Sorri, procurei algumas notas na carteira, deixei-as
sobre a mesa, peguei as dela e me levantei. Caminhei até
ela e lhe estendi o dinheiro, o qual ela recusou com um
aceno. Agarrei-a pelo braço, levantando-a, e tomei a
liberdade de colocá-lo no bolso da frente de sua calça,
antes de passar seu braço por detrás do meu pescoço e
firmar minha mão em sua cintura.
Não importa quanto tempo tenha se passado sem que
nos víssemos, a sensação de proximidade que sempre
pensei ter com ela não havia desaparecido, pelo menos
não para mim.
Ela estava rígida com meu toque, demonstrando que
não se sentia confortável, mas era algo necessário. Levei-
a até meu carro, no estacionamento da empresa e, com
apenas uma das mãos, abri a porta para que ela entrasse e
a ajudei se acomodar. Não falamos por algum tempo, pelo
menos até eu ter que lhe perguntar o endereço. Não era
muito longe de onde eu morava, quatro ou cinco quadras,
no máximo.
Ela esteve perto esse tempo todo.
— Vamos, atende, criatura — murmura para o celular,
tentando fazer uma ligação. — Arnaldinho. — Pausa para
ouvir o que o homem do outro lado da linha fala.
Travo o maxilar e me concentro no trânsito à minha
frente, tentando não imaginar quem seria ele e o que
significava para ela. Não era do meu interesse.
— Você pode me esperar na porta do prédio daqui
uns cinco minutos? — Outra pausa. — Não interessa por
que! — sibila, irritada. — Só faz o que tô pedindo,
homem!
— Você está morando com alguém? — pergunto,
assim que ela desliga, antes que consiga evitar.
No momento em que escuto minhas próprias palavras,
tenho vontade de bater a cabeça no volante. Muitas e
muitas vezes.
— Sim — responde, sorrindo.
Seus lábios ainda não chegam aos olhos, mas esse foi
o sorriso mais verdadeiro que vi em seu rosto hoje. Fosse
quem fosse aquele homem, ele a fazia feliz. Fechei os
olhos com pesar e endureci as feições, agarrei o volante
com mais força e suspirei. Eu nunca tive essa chance.
Nunca tive a chance de fazê-la feliz, porque ela nunca
permitiu.
Não conversamos mais até que eu estacionasse no
endereço que ela havia me informado, um prédio antigo,
sujo e que parecia não ter elevador. Então,
provavelmente, havia sido por isso que ela pediu ajuda.
Desliguei o motor e saí do veículo, ajudando-a a fazer o
mesmo. Quando bati a porta, olhei ao redor, procurando o
homem com quem ela estava, mas tudo o que vi foi um
senhor de idade acima do peso, vestindo um terno rosa
cafona, correndo em nossa direção.
— O que houve, boneca? — perguntou, olhando
diretamente para mim; no começo, com irritação, depois
com... cobiça? Hum, interessante.
— Eu caí em cima dele — ela aponta pra mim —,
vou precisar da sua ajuda para subir até o apartamento —
diz, de forma suplicante, desprendendo-se de mim e
mancando até o homem, agarrando na lapela de seu terno
para se firmar.
— Boneca, são sete andares — ele frisa, olhando
para o prédio de relance, e depois olha para ela, que faz
uma careta. — Olha para essa barriguinha bem torneada,
acha mesmo que eu consigo subir com você até lá em
cima?
— O que quis dizer com esse seu tom sarcástico? —
pergunta, ofendida. — Se embutir em mais uma das suas
frases a necessidade que tenho de fazer um regime, vou
abrir sua cabeça com um machado! — sibila perto de seu
ouvido, baixinho, mas não o suficiente para que eu não
escute.
Me pego rindo, e ela se volta para mim, com uma
carranca no rosto.
— Quem precisa de mim, tendo ele? — o homem
pergunta, apontando pra mim.
Na verdade, ele aponta para meu peito e me dá uma
piscadinha travessa, me arrancando uma risada.
— Eu posso te ajudar a subir, não tem problema... —
tento oferecer, mas ela me corta com um aceno
exasperado.
— O Arnaldinho dá conta. Obrigada, Gustavo! —
resmunga, desviando os olhos.
Conheço aquela expressão, é vergonha.
— Não seja boba, Marcela.
Não lhe dou tempo de insistir, encurto nossa distância
com dois passos e passo uma das mãos pela dobra de suas
coxas, erguendo-a do chão. Ela grita e se agarra
abruptamente ao meu pescoço, enquanto a aperto com
mais força.
Eu não estava preparado para o que senti quando a
toquei. Desejo. Um homem comprometido não poderia
desejar outra mulher, é errado. Eu não poderia desejar
aquela mulher, era tortura. Me convenci de que a
sensação passaria assim que não estivesse mais com as
mãos sobre ela, assim que eu voltasse para minha vida, e
ela para a dela.
Era só uma associação, não era real.
Eu já havia superado Marcela de Souza Cantagallo há
muito tempo.
Mesmo sabendo disso, não consegui sair do lugar; eu
estava tão ocupado tentando não sentir nada por estar
tocando nela, que minha mente me jogou na pior
lembrança da minha vida. A última vez em que a peguei
no colo daquela maneira, no dia em que achei que ela
morreria nos meus braços.
Pisco, saindo do transe.
— Qual andar? — pergunto, andando até as portas do
prédio e entrando no hall empoeirado, tentando fazer de
tudo para que a cena que imaginei vá embora.
— Sétimo.
Olho para ela, erguendo as sobrancelhas, e ela ri, ela
finalmente ri, de verdade dessa vez. Talvez Camila tenha
razão, talvez eu tivesse que definir melhor a minha dieta e
aumentar meus treinos na academia, porque, quando
chegamos ao quinto andar, já estou sem fôlego, não que eu
vá deixá-la perceber.
— Você está ficando meio verde. Arnaldinho tem
razão, não tem? Eu preciso, mesmo, fazer uma dieta! —
sussurra, envergonhada, mais uma vez.
— Você está linda como está, Marcela — respondo,
sorrindo, chegando ao andar indicado e colocando-a no
chão.
Não há como negar que ela engordou nos últimos
anos, criou curvas e algumas reentrâncias que não tinha,
mas eu não conseguia ficar encanado com isso. Para mim,
ela continuava linda, como sempre foi, e, aos meus olhos,
isso nunca mudaria.
— Não precisa mentir para mim, ok? Eu tô ligada
que, se você der um pontapé na minha bunda, no topo
dessa escada, eu chego na padaria da esquina rolando! —
ela tenta brincar, mas parece estar se sentindo
constrangida.
— Eu estou falando sério — afirmo, tentando passar
segurança.
Como um raio, a voz da Camila me repreende. Ela
não compartilharia da mesma opinião, já que tinha orgulho
de pesar o mesmo que uma pluma, e era nela em quem eu
tinha que pensar, só nela.
— Preciso ir. — Sorrio fracamente e lhe dou as
costas, querendo ficar. — A gente se vê por aí? —
pergunto na metade do hall, sem me virar.
— Claro, por que não?! — ela grita pelas minhas
costas, depois bate a porta.
Dirijo para casa com uma sensação esquisita dentro
do peito, sem saber, ao certo, se gostei ou não de rever
Marcela. Mas eu tinha uma certeza: fosse quem fosse
aquela mulher, ela não era mais a mesma que conheci. Ria
da mesma maneira, tinha o mesmo humor ácido, a mesma
cor de cabelo e os mesmos gostos peculiares. Porém, não
era a mesma, aquela era uma versão mais devastada da
original, mais sem vida e muito mais infeliz. Não dava
para ver a olho nu. Se alguém a conhecesse agora, duvido
que notaria quantas peças faltam dentro dela, porque ela
fingia com um brilhantismo impressionante, mas eu sabia.
Como não saberia? Eu havia me apaixonado por
aquela mulher que não existia mais.
— Oi, gatinha — cumprimento Camila, entrando em
casa, caminhando pelo corredor, me dirigindo para o
nosso quarto.
Preciso muito que ela me abrace, me beije e me faça
perceber que está tudo bem. Que absolutamente nada
mudou depois do encontro com o passado que tive hoje.
Mas estaco no lugar e fico chocado assim que passo pela
porta e a vejo arrumando uma mala. Ela não me responde,
muito menos se vira, continua jogando as roupas com
força dentro da mala aberta.
— Aonde você vai?
— Viajar! — resmunga, caminhando até a cômoda
para buscar mais uma leva de roupas.
— O quê? Para onde?
Ela não me responde, então caminho até ela e agarro
um dos seus punhos, fazendo com que ela levante o olhar e
me encare com raiva.
— Fale comigo, gatinha, por favor.
— Vou passar as festas de final de ano em Curitiba,
com a minha família.
Ela podia muito bem ter me dado um tapa de mão
aberta na fuça, um daqueles bem dados, que eu teria
ficado menos surpreso e atordoado.
— Não estou convidado? — pergunto, sem conseguir
esconder a mágoa, soltando seu braço.
— Gustavo, eu não estou nem um pouco a fim de
passar o Natal com a sua família, eles são um pé no saco!
Estou pronto para defendê-los, mas não o faço.
Primeiro, porque ela não poderia ter outra opinião sobre
eles, já que ninguém se esforçou para conhecê-la, e
também porque estou começando a ficar preocupado com
a possibilidade de perdê-la.
— Acho que você deveria aproveitar a minha
ausência para se resolver com eles.
— Eu posso fazer isso em outro momento, eu...
Ela me corta.
— Ainda não contei para minha família sobre nós
dois, pretendo fazer isso nesta viagem. Não quero chegar
lá com um noivo a reboque que ninguém nem sabe que
existe. — Agora ela tem a decência de parecer
envergonhada, o que só me deixa mais puto.
— Como assim, não contou sobre a gente, porra? O
casamento está marcado, as contas não param de chegar, e
agora você me diz que a sua família não sabe?
— Tudo aconteceu muito rápido, esse não é o tipo de
coisa que vou contar para minha mãe por telefone —
responde, irritada.
— Você não acha que esse é mais um motivo para que
eu te acompanhe? Eu deveria pedir sua mão para ela.
Camila bufa e se joga na cama, sentando-se.
— Eu vou contar para eles e convidar minha mãe e
meu padrasto para passarem uns dias aqui no começo do
ano, aí você pede para ela meu corpo inteiro, se quiser.
Estou pronto para argumentar novamente, quando ela
emenda:
— Porra, Gustavo, você deveria estar mais
preocupado em fazer a sua irmã parar de se intrometer na
nossa vida.
— Quando você viaja? — pergunto, cedendo, porque
definitivamente não quero enfrentar mais uma briga com
ela por causa da Bárbara.
— Amanhã de manhã — responde, erguendo um dos
cantos dos lábios, ciente de que me venceu, embora esteja
claro que estou longe de me sentir feliz com a sua decisão.
— Não gosto da ideia de você ir sozinha, Camila.
Esse é o nosso primeiro final de ano como um casal, acho
importante que passemos juntos.
Ela revira os olhos para o meu romantismo, levanta-
se e se pendura no meu pescoço.
— Vamos ter muitos finais de ano para passarmos
juntos.
Então, ela me beija. Fico reticente no começo, ainda
estou com raiva, mas acabo por beijá-la de volta. Camila
me joga na cama e eu me deixo levar, faço o que ela
deseja com movimentos mecânicos e ensaiados,
esforçando-me para me concentrar, mas não consigo.
Quando tudo termina, me viro de lado e finjo dormir para
não ter que encarar uma conversa.
Se acreditei que chegar em casa e ver minha noiva
traria normalidade para dentro de mim, me enganei. A
única coisa em que eu conseguia pensar quando fechei os
olhos para dormir era dois olhos cinzentos que clamavam
por ajuda, os olhos da mulher que sempre abalou meu
mundo, minha Branca de Neve.
Capítulo 19 - Marcela

“Me fiz em mil pedaços para você juntar.”


Legião Urbana

Me abraça?

De: camilagata@vivafeliz.com
Para: gaelmontezan@construpark.com
Está tudo certo para nossa viagem. Ele realmente
acreditou que eu estava indo passar as festas de final de
ano com minha família em Curitiba. Claro que tive que
fazê-lo acreditar, se é que me entende. Mas valeu a pena
cada segundo, afinal, eu estava mesmo pensando em
você em cada um deles.
Teremos dez dias só para nós dois, gato, mal posso
acreditar. Estou tão animada!!!!!
Bjs, bjs, bjs! ;)

Li e reli o último e-mail enviado pela noiva de


Gustavo na noite anterior. Havia sido despachado às duas
horas da madrugada, provavelmente enquanto ele dormia
ao seu lado. Senti ódio dela. Eu sabia o que era dormir
profundamente acreditando em um “felizes para sempre”,
enquanto alguém me apunhalava pelas costas às
escondidas. Ele não merecia isso. Na verdade, era ela, ela
não merecia Gustavo, e acabara de me dar de presente dez
longos dias para lhe mostrar isso.
Como se meu dia já não estivesse ruim por si só, eu
ainda tinha tempo e disposição para me preocupar com o
cara. Era o dia anterior à véspera de Natal; eu odeio, com
todas as minhas forças, aquela data estúpida. Odeio o
homem de barba branca e olhos azuis que trazia presentes
para as crianças, aquela farsa idiota. Odeio peru, pernil,
tender, qualquer derivado com asas, árvores enfeitadas e
sininhos. Eu odeio sininhos! Também odeio a Camila.
Pelo menos, eu tinha uma missão. Poderia passar o
dia me preocupando com a vida de alguém que não estava
nem aí para mim, ao invés de fazer um bonequinho de
vodu com a cara do Papai Noel para encher de agulhas. O
plano era simples, esbarrar nele de novo, porque fui burra
o suficiente para esquecer de lhe pedir seu número de
telefone, já que o antigo, que eu ainda sabia de cor, havia
sido desligado. Sim, tentei ligar. Oito vezes.
Quem poderia me culpar? Eu estava sendo carregada
em seus braços, sentindo suas mãos em diversas partes do
meu corpo (que, há muito tempo, sequer eram tocadas) e
tinha aquele maldito aroma no ar que vinha dele. Ô, cheiro
bom do caramba!
Não penso muito, apenas sigo a porcaria do meu
instinto. Me levanto, tomo um banho e passo
aproximadamente quinze minutos na frente das portas
abertas do guarda–roupa, olhando para seu interior, com
revolta e pena. Estavam tão pobres as coitadinhas das
minhas gavetas e meus cabides. No dia anterior, eu não
estava planejando me jogar na frente dele de havaianas,
não estava mesmo, mas aconteceu. Eu não tinha nenhum
bom motivo para querer estar apresentável em nosso
próximo encontro, mas queria. Como não tinha muita
opção, escolhi um jeans, uma camisa rosa e botas de cano
curto, que deveriam estar na moda quando minha avó
ainda era uma garotinha na flor da idade. Até me obriguei
a passar batom. Ficou uma merda, mas, pelo menos, fez
com que eu me sentisse melhor.
Gritei um “até logo” para Arnaldinho – acordando-o
de seu soninho de beleza pós-almoço, embora ele devesse
estar no cubículo há mais ou menos umas cinco horas,
atendendo meu telefone e desencardindo meu tapete – e
saí de casa. Fui até a construtora onde ele trabalha e
esperei. Dessa vez, eu estava planejando ser mais sutil,
afinal, não estava nem um pouco a fim de ganhar uma
ordem de restrição.
Meia hora depois do final do expediente, finalmente
seu carro passou pela cancela do estacionamento. Pelo
vidro, que não era totalmente escuro, pude ver seu rosto
parcialmente; ele parecia cansado e pensativo. Depois,
não consegui ver mais nada, já que ele colocou óculos
escuros, o que cobriu seu rosto.
Eu o segui até perto de sua casa, mas ele não parou
em seu prédio; ao invés disso, entrou no estacionamento
de um supermercado. Sorri, animada; fazer compras era a
desculpa perfeita para encontrá-lo, porque eu também
morava ali perto. Estacionei mais perto da entrada do que
ele e corri para dentro do mercado, ignorando as fisgadas
no pé ainda dolorido. Roubei um carrinho de algum
desavisado e saí pelos corredores, jogando dentro dele
tudo o que sabia ter açúcar a esmo.
— Marcela?
Aquele cara tinha um time impecável, sorte a minha!
Me virei em direção à voz que eu desejava ouvir, sem
realmente prestar atenção ao que estava fazendo, e acabei
batendo o carrinho nas pernas de um cara mal-encarado
com uma caixa de cerveja nos ombros no processo.
Encarei Gustavo, ignorando o grito de dor da minha mais
nova vítima ao lado.
— Olha por onde anda, baleia! — reclama o cara em
voz alta, me fazendo ficar da cor de um pimentão (do
vermelho, não do amarelo), abaixar a cabeça sem
conseguir olhar nos olhos de Gustavo e ver sua reação
naquele momento.
Queria muito que um dos lustres se despregasse do
teto e caísse em cima da cabeça daquele cretino, ou da
minha!
— Ei, ela não fez por mal, não precisa falar assim. —
Ouço a voz de Gustavo mais perto, perto demais. Ela está
fria e impassível.
Meio segundo depois, sinto sua mão segurar meu
braço e me puxar de forma protetora para mais perto de
seu corpo.
— Ela deveria ter mais cuidado — cospe o cara, de
mau humor.
— E você deveria calar a sua boca, se quiser
continuar com todos os dentes dentro dela.
Vejo, pelo canto do olho, ele se inclinar para frente,
estufando o peito, e me encolho, me sentindo humilhada.
Nem ao menos consegui ficar feliz por estar sendo
defendida, e olha que eu deveria. Gustavo não era do tipo
que arrumava briga.
Eu, normalmente, não ligava para ofensas
constrangedoras sobre o meu peso ou qualquer um dos
meus outros defeitos, mas escutar um deles na frente do
cara por quem sempre tive uma quedinha era
constrangedor demais. O homem não responde, apenas
bufa em sinal de irritação e continua seu caminho com
pose de machão, mesmo tendo ficado óbvio que se
intimidou com a reprimenda.
— Está tudo bem, isso é mais normal do que pensa. Já
me acostumei.
Sua própria noiva me aconselhou a mudar a dieta
um dia desses, penso, amarga.
— Não deveria — diz, com os dentes cerrados,
apertando meu braço a cada uma das palavras, sem
perceber.
Eu o encaro com atenção e vejo o exato momento em
que ele se dá conta do que fez, e ainda está fazendo.
Gustavo solta meu braço e dá um passo para trás,
arrependido.
— Me desculpe, eu não sei o que deu em mim, eu...
— gagueja. — Você está mesmo bem? — pergunta,
preocupado, quando fico muda, encarando minhas botas.
Poderia ser pior, eu podia estar de chinelo, com meus
dedinhos aparentes, aqueles mesmos dedinhos que
estavam com uma mão de esmalte laranja cítrico há mais
de um mês – se bem que nem parecia mais laranja, àquela
altura, e sim a cor do vômito do gato de alguém.
— Vai jogar pôquer ou dar uma festa do pijama? —
pergunto, ignorando sua pergunta e mudando de assunto,
porque, claro que não estou bem. Talvez ficasse, se
estivesse no mar, meu habitat natural.
Admiro todas as porcarias em seu carrinho, tentando
engolir o nó de escoteiro que entalou na minha garganta,
quando percebi que ele se arrependeu da atitude que
tomou.
— Não — responde, distraído, olhando para um
saquinho de amendoins. — Resolvi sair da dieta por
alguns dias...
Claro, os dias em que a sua noiva anoréxica estaria
viajando. Eu apoiava, adorava sair da dieta. Fiz isso sete
anos atrás e nunca mais voltei, de tanto que gostei.
— E você, preparando-se para o Natal? — pergunta,
encarando um pernil congelado dentro do meu carrinho
roubado; um pernil que, obviamente, não era meu e cuja
existência eu não tinha me dado conta até o presente
momento.
— Mais ou menos — minto, com vergonha de sumir
com o pernil. — Eu ia comprar, mas me dei conta de que
vim a pé, então...
Que mentirinha mais deslavada. Pego a ave e a
levanto com a intenção de abandoná-la à própria sorte na
primeira prateleira desocupada que encontrar, mas
Gustavo me faz parar ao oferecer:
— Não seja por isso, eu te dou uma carona.
Ele sorri, abaixando minhas mãos. Eu olho para a
ave, rolando de volta para dentro do carrinho, com
desespero; eu nem sei assar aquele bicho!
— Eu jamais deixaria uma garota sem uma ceia de
Natal por falta de carona.
— Não precisa, eu posso voltar para comprar outro
dia.
Eu nem gosto de pernil, Jesus Cristo.
— Eu insisto, Marcela.
Estou a ponto de recusar mais um vez, quando uma
senhora magricela de cabelos azulados resolve escolher
aquele exato momento para se dar conta de que alguém
(provavelmente uma trombadinha de botinhas com franjas)
havia roubado seu carrinho de compras sem o menor
remorso.
— Eu o deixei aqui — fala, confusa, para um
adolescente, que nem se dá ao trabalho de tirar os fones
de ouvido para escutá-la. — Que porcaria, demorei vinte
minutos para escolher o pernil perfeito.
A senhora começa a olhar em volta, suspeita, e
percebo que chegou o momento de dar no pé antes que ela
me veja, ou melhor, veja o carrinho dela.
— Quer saber? Aceito a carona, vamos indo — falo,
rápido demais, agarrando a manga de sua camisa e o
arrastando dali.
— Mas eu ainda queria...
Não queria nada, não. A fila estava imensa, e eu ainda
tinha que chegar em casa e dar um jeito de descobrir como
se assava a penosa sem apanhar dentro do mercado. Eu o
ignoro, girando o carrinho em um ângulo de 180 graus e
disparo pelo corredor, sua única saída é correr atrás de
mim.
— Tudo bem, então, acho que posso deixar o vinho
para lá.... — comenta, derrotado.
— Você falou vinho? Temos tempo para pegar o
vinho. — Eu sempre tinha tempo para álcool, mesmo que
acabasse apanhando por isso. — Vou precisar de algumas
garrafas, também. — Umas dez, se quisesse sobreviver a
mais um Natal.
No final das contas, foi bem divertido fazer compras
com ele. Demoramos meia hora discutindo os prós e os
contras de todas as garrafas de vinho com rótulos
esquisitos (escolhemos os três piores), depois fomos atrás
de chocolates e uma bandeja de queijos. Achei até
croissants congelados. Como sobrevivi esse tempo todo
sem saber da existência deles? Eu estava me divertindo
vendo Gustavo imitar uma das clientes, fingindo que tinha
peitos enormes com dois melões, quando percebi uma
agitação próxima, pela visão periférica.
Um garotinho, que não devia ter mais do que cinco
anos, chorava enquanto uma mulher o imprensava com
mais força do que o necessário em uma pilastra. Ela
estava fincando as unhas no braço dele com força,
enquanto o mandava calar a boca. O garotinho não estava
fazendo birra, tentando se jogar no chão ou gritando; ele
apenas estava congelado no lugar, os lábios tremendo
enquanto as lágrimas caíam de seus olhos, mas notei que
apertava com força um brinquedo preso a uma das mãos.
Eu odiava esse tipo de cena, elas mexiam comigo de
forma intensa. Quando dei por mim, já estava caminhando
até eles.
— Me solta, mamãe, por favor — implorou, quando
me aproximei.
— Solte-o — ordenei com uma voz sussurrada, que
em nada se parecia à minha.
Estava furiosa, seca e ressentida.
— Eu já disse que você não vai levar o brinquedo,
moleque, vou ter que te bater para entender? — perguntou,
chacoalhando-o, sem ter se dado conta da minha presença.
— Solte-o — dessa vez, eu gritei.
Senti vários pares de olhos se voltando para nós, mas
não me importei, sequer olhei ao redor; continuei
encarando a nuca da mulher, cerrando os punhos, até que
ela se virou em minha direção.
— Cuida da sua vida, sua vaca intrometida — cuspiu
rudemente, puxando o garoto para junto do corpo com um
tranco. — Isso não é da sua conta!
— Você não deveria tratar seu filho assim — falei,
abandonando a raiva.
Minha voz se transformara em um misto de indignação
e tristeza profunda. Então, senti pena dela, aquela mulher
não sabia o quanto era sortuda por ter um filho a quem
comprar um maldito brinquedo no Natal. O que eu não
daria por aquela chance?
— O filho é meu, e eu faço o que quiser com ele —
falou firme, franzindo o cenho. Seus olhos se estreitaram,
e ela me mediu dos pés à cabeça antes de abrir um sorriso
de deboche. — Vá caçar um marido e fazer um pra você,
se quer tanto assim ser mãe.
Pelo seu tom de voz e pela olhada a mais que me deu,
ela parecia achar que encontrar um marido seria um
problema, e eu não podia discordar. Fiquei sem reação, a
boca aberta pronta para lhe dar uma resposta grosseira
que estava na ponta da língua e, mesmo assim, não vinha,
então mudei de ideia. Resolvi bater naquela vadia!
Larguei a garrafa e impulsionei meu corpo para frente,
esticando as mãos, enquanto ela se espatifava no chão
entre nós; onde eu pegasse estaria ótimo, mas não fui
muito longe.
— Não, Má — sussurrou alguém no meu ouvido bem
baixinho, a mesma pessoa que tocava um dos meus braços
com gentileza —, não faz isso, não na frente do garotinho.
Então, desmoronei, caindo com as mãos espalmadas
sobre os fragmentos da garrafa.
Era horrível lembrar do quanto eu estava morta por
dentro. A dor era sempre a mesma, e era sempre
insuportável. Mas, daquela vez, eu não estava sozinha.
Gustavo, que ainda me tocava quando perdi o controle,
mas não foi rápido o bastante para me segurar, me ergueu
e me puxou de encontro ao seu corpo. Eu fui e enterrei o
rosto em seu pescoço, agarrando sua gravata. Eu
precisava me firmar em algo sólido, porque o vazio que
se apoderou de mim era desalentador demais, resumia
tudo a nada. Resumia anos tentando, sem sucesso, superar
a perda do meu filho a um monte de cacos de vidro.
Porém, no fundo, minha vida era assim há anos.
Quando meu filho nasceu, consegui contornar toda a
dor e dançar sobre os cacos de vidro. Cortar os pés
sempre me pareceu um preço justo a pagar pela felicidade
que ele me proporcionava, mas, quando ele me deixou,
ambos morremos sobre os mesmos estilhaços.
— Você se cortou.
Não era uma pergunta. Senti–o erguer uma das minhas
mãos e passar o polegar por sua extensão, a dor era
efêmera perto da dor do meu coração mutilado. Obriguei-
me a respirar fundo, abrir os olhos secos e me afastar.
Muitas pessoas estavam à nossa volta, cochichando,
curiosos, e me surpreendi ao perceber que Gustavo nem
ao menos se importou de ser visto comigo; ele estava
preocupado em não soltar minha mão.
— Precisamos limpar isso, Má, parece feio — ele me
chamou de novo daquela maneira, o apelido que eu tanto
gostava de ouvir em outra vida.
— Sua camisa — falei, chocada, puxando minha mão
de volta.
Ele demorou um segundo, seguindo-a antes de abaixar
o olhar e ver as marcas de sangue em sua roupa.
— Me desculpe, eu... — gaguejei, consternada. — Eu
estraguei sua camisa.
Meus lábios tremeram. Depois de tudo o que
aconteceu, eu estava a ponto de chorar por uma maldita
camisa. Qual era o problema comigo?
— Está tudo bem, é só uma porra de camisa, é você
que me preocupa.
Ele ergueu as mãos, um sinal claro para que eu me
acalmasse.
— Vou levar você para casa.
Jogou sua cesta dentro do meu carrinho e colocou uma
das mãos nas minhas costas de forma protetora, enquanto
assumiu o controle do meu carrinho roubado. Caminhei
em silêncio ao seu lado. Só voltei a falar quando a moça
do caixa terminou de passar minhas compras, e Gustavo
fez menção para que ela passasse as suas junto ao retirar a
carteira do bolso da calça social.
— Não precisa, eu posso pagar... — minhas palavras
foram morrendo, enquanto eu tateava meus próprios
bolsos vazios. Só podia ser brincadeira. Nunca mais eu
voltaria ao mercado. Ô, lugarzinho infernal para as coisas
darem errado. — Esquece o que eu disse.
Ele levantou as sobrancelhas e assentiu, erguendo um
dos cantos da boca. Se fosse em outro momento, ele
provavelmente cairia na risada, mas sua testa vincada e os
olhos observadores me diziam que ele ainda estava
preocupado com meu pequeno surto no meio do hortifrúti.
— Você está bem? — perguntou, assim que assumiu o
volante de seu carro.
Voltei a ficar em silêncio, nem me dei ao trabalho de
reclamar quando ele não me deixou levar as sacolas.
Quando abriu a porta do carro, eu entrei e fiquei sentada
lá, sentindo o cheiro de perfume vagabundo de sua noiva
no banco do passageiro, com vergonha de mim mesma,
enquanto ele estava guardando as compras no porta-malas.
— Ótima, por que não estaria? — Lancei-lhe meu
sorriso fabricado em Taiwan e pisquei de forma inocente,
me desintegrando por dentro.
— Marcela, você quase bateu naquela mulher, na
frente do filho dela.
Precisava lembrar com essa riqueza de detalhes? Eu
sabia, também estava lá.
— Sei que se magoou pelo que ela disse e quero
saber se você quer conversar sobre isso. — Há dor em
sua voz, o que só me machuca mais. — Sobre seu filh...
Eu não deixo que ele termine.
— Não. — Minha voz sai mais alta e esganiçada do
que eu tinha planejado, agarro as laterais do banco com
força e sinto meu coração disparar no peito. — Não —
sussurro, depois de quase um minuto de silêncio, com o
timbre mais controlado.
Ele ainda está virado de lado no assento, me olhando
com atenção e pena. É natural do ser humano sentir pena
de qualquer um que ele ache que seja mais desprovido do
que ele. Não deveria ser. Nós, os merecedores de pena,
não queremos isso. Na maioria das vezes, queremos só
ser deixados em paz, e é exatamente o que Gustavo faz.
Ele assente e se volta para frente, ligando o carro, mas
posso ver que o vinco em sua testa não some, isso me diz
que ele não vai deixar o assunto de lado.
Chegamos em casa, e sou obrigada a aceitar sua ajuda
com as sacolas. Realmente machuquei as mãos, subi os
degraus atrás dele, imaginando o que eu conseguiria ferir
no próximo encontro, rezando para não ser a droga do meu
coração. Eu não queria nem imaginar a hipótese de voltar
a sentir alguma coisa pelo homem gentil que pagou pelo
meu frango, porém, a cada minuto ao seu lado, eu percebia
que havia uma grande chance de nunca tê-lo esquecido.
Eu não deveria ficar surpresa, não se esquece
facilmente alguém como Gustavo Bittencourt, com toda
aquela perfeição. Sabe o que era pior? Ele não era como a
maioria dos homens, não fingia ser o que não era para
conquistar corações, ele era realmente daquela maneira.
Educado, divertido, paciente, prestativo e apaixonante.
Como eu disse antes, bom demais para ser de verdade,
mas ele era, só nunca quis ser meu.
Capítulo 20 - Marcela

“Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar


que tudo era pra sempre?
Sem saber que o pra sempre, sempre acaba...”
Legião Urbana

O dia em que eu me apaixonei por ele

Dez anos antes


Essa é a história de uma flor e um beija-flor. Ele se
alimentou de mim até a alma, depois bateu as asinhas
coloridas, me deixando plantada, literalmente, em um
maldito jardim.
Eu odiava as festas da faculdade, odiava de verdade,
mas ia em todas, mesmo assim. Se quiser me chamar de
Maria-vai-com-as-outras, fique à vontade, mas eu
gostava de pensar que era descolada. Naquele dia, não
havia sido diferente. Eu havia vestido uma roupa
brilhante, calçado saltos altos, rebocado a cara com dois
quilos de maquiagem e saído de casa para me encontrar
com algumas amigas para mais uma noitada cheia de
expectativas.
Naquela noite, a festa seria no apartamento de alguns
veteranos de Medicina, em um bairro chique de
Florianópolis. Um dos donos do apartamento era irmão de
um rapaz que fazia Engenharia na sala da frente à que eu
estudava, um rapaz que muito me interessava. Nem me
pergunte o que tive que fazer para conseguir essa
informação e o tal convite para a festa, ou melhor, nem me
pergunte quem subornei. Mas, para matar a sua
curiosidade, envolveu um nerd fissurado por peitos e meu
sutiã de listrinhas roxas. Sinto falta do sutiã até hoje.
Eu só sabia três coisas sobre o rapaz: seu nome era
Gustavo, seu cheiro aguçava e confundia todos os meus
sentidos e, toda vez que o via, minhas pernas tremiam. Era
o bastante para que tivesse me apaixonado por um cara
que nem sabia que eu existia. Enfim, eu esperava que ter
dado aquele sutiã para um tarado me trouxesse alguns
frutos, talvez alguns beijos. Pensando nisso, bati na porta
do apartamento setenta e três com uma garrafa de vinho
barato nas mãos e um sorriso ansioso nos lábios, com
duas garotas nervosas e tímidas atrás de mim.
Ah, é. Eu também sabia quem era seu irmão, mas isso
não contava. Todo mundo na faculdade sabia quem era
Augusto Bittencourt, afinal, ele tirou as calcinhas de
metade da população feminina daquele lugar, a outra
metade foi tirada por seu melhor amigo, um loirinho boa-
pinta. Os dois, juntos, faziam história no campus, e não
era raro encontrar vários cadernos com os nomes deles ao
lado de corações e, vez ou outra, assistir a algum
espetáculo estrelado por uma das garotas abandonadas,
deixada pelo caminho.
Gustavo andava com os dois, mas sempre me pareceu
mais reservado, tímido e intocável, porque não se
comportava como eles. Ele tinha olhos gentis e covinhas;
eu era louca por aquelas malditas covinhas desde o dia
em que ele me deu um encontrão em um corredor e fez
chover as cópias que eu havia acabado de tirar.
Foi uma cena digna de filme: vários papéis voando,
enquanto nós dois erguíamos o olhar ao mesmo tempo e
nos olhávamos intensamente. A cena durou poucos
segundos, tempo suficiente para que eu me imaginasse
jogando meu buquê de noiva para um bando de amigas
encalhadas e desesperadas se matarem para pegar. Era
oficial, eu estava caidinha por ele, que se desculpou e
recolheu todas as folhas sozinho, enquanto eu sonhava
acordada com o nome dos nossos filhos. Se fosse menino,
se chamaria Bento, decidi quando ele me entregou as
folhas amassadas.
Depois daquele dia, comecei a procurá-lo com os
olhos, desde a hora em que eu chegava na faculdade até a
hora que ia embora; até sonhava com ele quando dormia
na aula, e o seguia pelos corredores feito uma psicopata.
No entanto, nunca tive coragem de me apresentar e
perguntar se ele topava tomar um suco, dar uns amassos
ou, quem sabe, um matrimônio, até que ouvi falar sobre a
tal festa.
Eu tinha que ir, estava pressentindo que alguma coisa
muito boa sairia daquilo.
Eu deveria ter ficado em casa assistindo TV.
Jojo e Sofia eram os nomes das minhas colegas de
turma que arrastei junto comigo naquela noite. Não
precisei fazer drama, implorar de joelhos, nem ameaçá-
las. Assim que a frase “vai ser no apê dos médicos
gostosões” saiu dos meus lábios, elas salivaram e
abanaram os rabinhos, contentes em me acompanhar. Me
livrei das duas assim que um rapaz abriu a porta, e fui à
caça, adentrando o apartamento com os olhos aguçados e
uma calcinha pegando fogo. Não, não me envergonho
disso!
Eu procurei, procurei e procurei, e fiquei cansada de
tanto procurar. Me frustrei por não encontrá-lo em lugar
nenhum e acabei na cozinha, roubando uma garrafa de
uísque escondida em um dos armários. Conversei com
algumas pessoas e admirei o lugar, o antro de perdição
que era aquela festa. Se eu fosse contar, não havia uma
única pessoa ali que não estava fazendo algo que
garantisse uma passagem só de ida pro inferno quando
batesse as botas. Seu irmão não era um deles, com uma
garota sentada em cada uma de suas pernas, enquanto ele
abraçava as duas. Ô, cara arrogante aquele. Estava escrito
na testa dele que se achava o máximo, e não estava
errado, mas não fazia mal algum ser um pouquinho
humilde. Estava batendo um papo amigável com seu
amigo loirinho, e não me surpreendi por ver Jojo sentada
no colo do rapaz, parecendo uma carnavalesca, feliz e
sambando, como se o mundo fosse acabar em confete.
Contudo, não encontrei Sofia. Imaginei que ela estaria
bêbada em algum dos cômodos daquele apartamento lindo
e gigante e, como eu não tinha nada melhor para fazer,
resolvi ir atrás dela, mas não fui muito longe. Quando
entrei no corredor que levava aos quartos (mais quartos
do que eu podia contar), eu a vi ser colocada para fora de
um deles. Me empertiguei toda e estufei o peito, pronta
para arrumar briga; como assim, ela estava sendo
expulsa? Até que cheguei mais perto e encontrei Gustavo
mandando-a sair de seu quarto, enquanto a ajudava a
vestir a blusa. Fui obrigada a gritar internamente e resistir
ao impulso de arrastá-la pelos cabelos até o hall eu
mesma.
— Amiga. — Cadela safada, chamei de forma
inocente, me aproximando mais. — Está tudo bem?
Ela me olhou ou, pelo menos, tentou, e começou a
chorar. Seus olhos estavam desfocados e ela cheirava a
gasolina; deveria ter sido mais esperta e ter procurado
bebida de verdade, assim como eu, e não aquela porcaria
que estava no copo das garotas desavisadas.
— Bem, bem, num tá não, Marrrrcela — disse,
arrastando meu nome.
— Acho melhor você levar sua amiga para casa —
comentou Gustavo, que ainda segurava o braço dela e
tentava fazer a blusa de lantejoulas se desprender da parte
de trás do seu sutiã. — Quem sabe lhe dar um banho
gelado e uma aspirina, ela vai precisar amanhã de manhã.
— Como é que é, seu pervertido preguiçoso?
Ele arregalou os olhos e a soltou de imediato, fazendo
com que ela caísse em cima de mim. — Você usou e
abusou, e quem aguenta a pior parte da bebedeira sou eu?
— Peguei-a pelo braço e empurrei de volta para ele, que
ficou sem reação. — Pode ficar, eu não quero, obrigada.
— Mas eu não fiz nada, foi ela — se defendeu,
ofendido, empurrando-a levemente de volta para mim, o
que só me deixou mais irritada.
Acabei parando a brincadeira de pingue-pongue com
a menina e a puxei pelo corredor em direção à sala.
Quando estávamos quase chegando, ela contou:
— Acho que acabei de tomar um fora — sussurrou,
limpando as bochechas e caindo na gargalhada. — Você
precisava ver a cara dele quando tirei a roupa.
— O quê? — Parei no lugar e agarrei seu braço. —
Vocês não fizeram nada?
— Nadinha de nada. Ele não deve gostar de mulher,
eu acho — comentou, pensativa.
Talvez ele não gostasse das que tinham bafo de tanque
de combustível. Finquei minhas unhas no seu braço para
ela não escapar e a arrastei até o sofá, sentando-a ao lado
do loirinho.
— Cuide dela, Jojo — ordenei, dando as costas.
— Espera aí, Má — ela berrou, pulando do colo do
moço e encurtando nossa distância com uma corridinha.
— Não dá, eu acho que vou me dar bem hoje —
confidenciou, com uma risadinha animada, e se virou,
olhando por sobre o ombro para o rapaz, que nem parecia
ter dado por sua falta. — O Ian disse que me acha bonita e
que já tinha reparado em mim há um tempão, acredita
nisso?
Não, e também não sabia como ela podia acreditar.
— Ótimo para você, amiga.
Dei as costas, mas ela me fez parar de andar quando
voltou a falar, fazendo com que eu me voltasse em sua
direção.
— Mas, e a Sofia? — pergunta, aflita, me fazendo
procurar nossa amiga cachaceira com o olhar.
— Não acho que ela vá ser um empecilho —
resmungo, apontando adiante.
Sofia se juntou às duas meninas que estavam no colo
de Augusto e se colou ao seu corpo, inclinando-se sobre
ele. Se fosse chutar, diria que, naquela noite, ele ia bater
um recorde, tamanho seu sorriso safado de felicidade.
Abandonei Jojo, recuperei minha garrafa de uísque
roubada e bati na porta do quarto de Gustavo com a cara
lavada. Ele abriu logo depois e me encarou, com a testa
franzida.
— A garota que me chamou de pervertido — constata,
escorando-se na porta. — O que posso fazer por você? —
pergunta, abrindo um sorriso. — Não tem mais nenhuma
amiga sua aqui, eu juro.
Dou uma boa olhada no quarto, enquanto ele fala.
— Me dar essas duas covinhas seria bem legal, mas,
se não der, aceito que me deixe entrar e te vencer naquilo
ali — respondo, apontando para a televisão ligada e para
o jogo pausado. — Aposto que sou melhor do que você.
— Vai tirar a roupa, como sua amiga? — pergunta,
erguendo as sobrancelhas ao me observar, decerto
medindo meu teor alcoólico com o olhar.
— Depende, se for isso que você quiser como prêmio
se eu perder, mas já aviso que isso não vai acontecer. —
Rio, passando por debaixo do seu braço, sem esperar um
convite.
— Isso é uma aposta? — pergunta, rindo atrás de
mim. — O que acontece se você ganhar?
— Você paga o preço, camarada!
Rio, pegando um dos controles e me jogando em sua
cama desfeita. Ele balança a cabeça, como se não
acreditasse na minha ousadia, e faz o mesmo que eu.
— Você é maluca! — constata, apertando alguns
botões para me incluir no jogo de luta.
— Quer? — ofereço a garrafa, e ele faz cara de nojo
ao recusar. — É dos bons, roubei do armário ainda
lacrado.
Não precisei falar mais nada para ele retirar a garrafa
das minhas mãos e dar uma golada.
No final da noite, eu tinha certeza de que o que
teríamos era um amor para vida inteira. Eu já tinha
planejado onde seria o casamento, em qual maternidade
teríamos nossos filhos e até em que bairro iríamos morar.
Nunca tinha me divertido tanto com alguém, até deixei ele
ganhar para ver se pedia mesmo para eu tirar a roupa.
Quando nos cansamos de jogar, decidimos descer para o
jardim do prédio, brincamos no escorregador que nem
crianças e terminamos dividindo a garrafa nos balanços
feitos de pneus.
Eu havia descoberto bem mais coisas sobre ele do
que apenas três. Quando o assunto começou a ficar
escasso, decidi criar coragem e fazer a pergunta que
estava me deixando ansiosa.
— E então, o que vai querer como prêmio por ter
ganhado a aposta?
Beijo. Beijo. Beijo de língua, rezei em silêncio.
— A sua amizade por uma vida, Marcela Cantagallo.
Sorriu, inclinando-se e beijando minha bochecha. O
estalo que ouvi poderia muito bem ser do beijo, mas,
naquele momento, eu tinha certeza de que era o meu
coração se partindo em dois.
Eu dei o que ele me pediu, em parte. Me transformei
na sua melhor amiga, naquela para quem ele ligava
quando queria desabafar, falar sobre outras meninas ou
convidar para um filme com pipoca. Entrei na sua vida
pela porta da frente como um furacão, deixando minha
presença marcada em cada canto, cada espaço, e saí dela
de forma diferente, pela porta dos fundos, como alguém
que não era mais bem-vinda, como uma fugitiva.
Não suportei ficar.
O amor que eu sentia por ele foi o responsável por
aniquilar aquela amizade que não durou uma vida.
Capítulo 21 - Gustavo

“O que ela aguenta sorrindo, você não aguenta nem


gritando.”
Charlie Brown Jr.

Natal em família

Quando Marcela abre a porta de seu apartamento e


minha visão é praticamente ofuscada pelas luzes
coloridas, meu coração bate mais forte, porque sei,
simplesmente sei, que aquilo vai dar merda. O que havia
acontecido no mercado há pouco era uma prova do quanto
aquela data em especial a consumia. Senti uma vontade
louca de agarrar sua mão, dar meia-volta e arrastá-la para
longe para que não se magoasse, mas não fui rápido o
bastante. Ela fica rígida ao meu lado, ainda com a mão na
maçaneta, e ambos encaramos, em silêncio, Arnaldinho de
pé, no centro da sala de estar.
— Boneca, você chegou — exclama, animado —, e
olha só quem veio junto. Oi, bonitão!
Ele me dá uma piscadinha e volta ao seu projeto:
enfeitar a árvore de natal mais decorada e luminosa que se
tenha registro. Prende uma estrela dourada no galho mais
alto do pinheiro como quem coloca a cereja no topo do
bolo, depois dá dois passos para o lado, encarando
Marcela com entusiasmo.
— E então, o que achou? — pergunta para ela, que
nem pisca. — Você não adora esse clima? — Ele aponta
com alegria para algumas luzinhas piscantes, sem se tocar
da bola fora.
— Não. — Sua resposta sai mais dura do que aço,
embora não passe de um sussurro.
— Por que não? — pergunta, sentido.
Ela não responde. Marcela cai no choro.
Largo de imediato as compras, que fazem um estalido
alto ao baterem no chão, e a puxo novamente para um
abraço, o que só piora tudo. Ela chora mais, tentando me
afastar, mas não permito; continuo com minhas mãos ao
seu redor, enquanto se debate, até que se acalme o
suficiente para me agarrar de volta.
— Vai ficar tudo bem — consolo, afagando seus
cabelos curtos.
— Nada nunca mais vai ficar bem, Gustavo —
murmura, escondendo o rosto no meu pescoço, molhando-
o com suas lágrimas.
Ela tem razão. O que aconteceu com ela não tinha
conserto, e não havia nada que eu pudesse dizer que a
faria se sentir melhor, então me calei e apertei mais forte.
Isso era tudo o que eu podia fazer por ela.
— O que fiz de errado? — pergunta o homem de
paletó salmão, roendo uma unha. Ele parece arrependido e
culpado, embora nem saiba o que fez.
— Nada, você não fez nada errado — garanto, me
sentindo mal por Arnaldinho. Afinal, como ele poderia
saber?
Eu tinha certeza de que Marcela não contara nada
para ele, a árvore me dizia isso. Ela nunca falava sobre o
acidente que matou sua família com ninguém. Mesmo que
a matasse por dentro todos os dias, ela sofria calada.
Marcela se solta dos meus braços e se abaixa, abre
algumas sacolas com pressa, procurando alguma coisa.
Pouco depois, levanta-se, erguendo uma garrafa de vinho.
Ela não faz cerimônia, arranca a rolha com os dentes e
sorve o líquido direto do gargalo.
— Não acredito que você voltou a beber! —
Arnaldinho põe as mãos na cintura e estala a língua em
reprovação. — O que aconteceu com a abstinência?
— Melhor você ficar quieto, porque, se eu não beber,
há uma grande chance de enfiar essa árvore na sua bunda
com enfeite e tudo, criatura — ela murmura, andando até o
sofá e sentando, deixando que seus olhos se percam nos
galhos enfeitados com melancolia.
Pouco depois, as lágrimas voltam, em menor
quantidade dessa vez, o que é pior. Seu choro é contido e
silencioso, e algo me diz que aquelas lágrimas sorrateiras
são muito mais dolorosas.
— Ainda não entendi — murmura Arnaldinho,
confuso —, o que você está fazendo com o bonitão? Por
que está chorando? E qual o seu problema com a minha
data preferida no ano todo? — Ele se senta ao seu lado e
pega suas mãos nas suas, tomando um susto. — E o que
houve com as suas mãos? — essa pergunta é feita com um
olhar feio em minha direção.
Não o culpo, é a segunda vez que ela se machuca
estando comigo, e realmente estou me sentindo culpado
por não tê-la segurado a tempo, antes que caísse sobre os
cacos de vidro.
— Encontrei por acaso, caí em cima dos vidros de
uma garrafa quebrada, briguei no mercado, comprei um
pernil e perdi minha família pouco antes da sua data
preferida no ano todo. Não necessariamente nessa ordem
— diz, em um rompante, encostando-se nele e passando
uma de suas mãos por sua barriga larga, limpando as
lágrimas remanescentes em sua camisa branca.
Era incrível a facilidade que ela tinha para se abrir
com aquele homem com um gosto esquisito para roupas e
os olhos mais gentis que eu já tinha visto.
— Não acredito que fiz isso. — Ele a empurra e se
levanta em um pulo, caminha até a árvore e começa a
retirar os enfeites. — Vou sumir com ela rapidinho,
boneca, prometo.
Ele volta a roer a unha e ataca o pinheiro com a mão
livre.
— Não — ela grita e se levanta, agarrando seu braço
e o puxando para trás. — Não faz isso — pede, retirando
um enfeite de suas mãos e o colocando no lugar.
— Não quero que fique triste ao olhar para ela —
contesta, com os lábios tremendo, quase à beira das
lágrimas.
— Não vou ficar, e sabe por quê? — ela pergunta,
tentando muito sorrir. Seu rosto quase se parte ao meio,
mas ela consegue. Só eu sei que aquele não é um sorriso
de verdade. — Porque esse ano, em muito tempo, não vou
passar sozinha. — Então, ela o abraça para esconder a
tristeza.
Puta que pariu.
Sou forçado a comprimir os lábios e encarar o teto,
respirar fundo e fechar os olhos, tudo para esconder o
quanto fiquei emocionado por suas palavras. Quem não a
conhecesse e olhasse para Marcela, veria uma mulher
durona e corajosa, dona de um humor negro impagável e
uma beleza exótica e cativante. Mas eu via muito mais:
via a carência desmedida que ela tentava esconder; a dor
sem proporção que fingia não ter; e o vazio, que era a
marca registrada de seus olhos cinzentos.
Eu via tudo isso, porque havia amado aquela mulher
um dia e, ao olhar para ela fingindo que estava tudo bem
em ser tão solitária, descobri que estava longe, muito
longe, de ter conseguido matar esse sentimento.
Fui salvo de cair no choro diante da cena
emocionante daquele abraço por gritos.
— Arnaldo, amor — berrou uma voz grossa de
homem —, você está aí? — ele fez uma pausa e berrou
outra vez. — Arnaldo, eu vim te buscar!
Arnaldinho e Marcela chegaram a se atropelar para se
debruçar no parapeito da sacada.
— Zé Alfredo? — perguntou, chocado.
— Esse é o Zé Alfredo? — perguntou Marcela,
surpresa.
Não me aguentei de curiosidade e caminhei até eles,
olhando para baixo também.
— Eu amo você, homem, não vou te perder! — gritou
o tal do Zé Alfredo, fazendo diversos pedestres pararem e
olharem para cima, muitos deles olhando para mim.
— Sétimo andar, sobe aqui — gritou Marcela,
parecendo feliz de repente.
Ela se ergueu e correu pelo apartamento, abrindo a
porta da rua enquanto enxugava com rapidez o rosto
molhado. Minutos depois, um homem bem-vestido e bem-
apessoado passou por ela; ele parecia ver apenas
Arnaldinho e ninguém mais, correu até ele e se ajoelhou.
— Me perdoe, eu não deveria ter abandonado você
— implora.
Arnaldinho alisa o paletó salmão e, não se contendo,
abre um sorriso gigante. Já eu, me jogo no sofá,
recuperando a garrafa de vinho que Marcela abandonou na
mesa de centro e bebendo um bom gole.
— Só se me prometer que vai largar aquela bruxa e
me assumir; se não, eu não te perdoo — diz, empinando o
nariz.
Sinto o estofado do sofá afundar e olho para o lado;
Marcela estende a mão e toma para si a garrafa, bebendo
e assistindo a cena, assim como eu.
— Aposto que ele está mentindo, essa putinha sem
amor-próprio — resmunga, baixinho. — Olha o sorriso da
criatura, estou vendo três dentes de ouro daqui! Nem para
fazer o cara sofrer um pouquinho. — Ela bebe mais um
gole. — Será que dá tempo de estourar pipoca? —
pergunta, virando-se para mim com um brilho no olhar.
— Podemos tentar.
Eu rio e me levanto, correndo até a cozinha para
procurar pelas pipocas de micro-ondas, pensando naquele
olhar. Ela podia até tentar esconder, mas estava animada
pelo amigo e, se estava feliz, eu poderia ficar um pouco
menos preocupado com a possibilidade de ela fazer
alguma besteira.
— O que eu perdi? — pergunto, estendendo a ela um
balde de pipoca alguns minutos depois, voltando a me
sentar ao seu lado.
— Ele disse que vai largar a bruxa, mas que eles têm
que ir com calma, porque parece que ela é meio
psicopata, e eu concordo. Ela parece ter mesmo um
parafuso a menos, não que eu tenha todos no lugar, mas,
pelo menos, nunca tentei matar ninguém! — resmunga,
enchendo a mão de pipoca e levando até a boca.
— Você a conheceu? — pergunto, quando Zé Alfredo
começa a chorar.
— Aham, conheci no dia em que contei para a mulher
do Arnaldinho, a Telminha, que ele estava tendo um caso
com o irmão dela, ou seja, ele. — Aponta para o homem
arrependido na nossa frente.
— Por que você fez isso? — pergunto, espantado.
Por que ela entregaria um amigo dessa maneira? Ela
dá de ombros e pensa antes de responder, posso ver que
está em um conflito interno, mas acaba revelando sua nova
profissão.
— Fui paga para isso, sou detetive particular. Ele não
era meu amigo, nem nada, na época — explica, ainda
prestando atenção na conversa dos dois. — Se eu
soubesse que ele ia acabar dormindo no meu capacho e
que, depois, me convenceria a deixar os monstros que ele
chama de cachorrinhos morarem aqui, teria guardado a
informação pra mim e nem teria me importado em tomar
banho de canequinha por alguns meses.
Absorvo a novidade e acabo caindo na risada.
— O que é tão engraçado?
— Imaginar você em uma moita!
Ela gargalha. O som é tão maravilhoso, que eu
poderia ouvi-lo para sempre e, mesmo assim, tenho
certeza de que nunca me cansaria dele.
— Mas isso só acontece nos filmes, não é?
— Não conte com isso. Decidi que chega de moitas
para mim por um tempo, depois que tive um pequeno
problema com um buldogue, que adoraria castrar com uma
faquinha de pão — responde, parecendo ressentida.
— Que tipo de problema? — pergunto, curioso, e
quase perco o beijo.
Pelo visto, Arnaldinho realmente tinha perdoado Zé
Alfredo, que parecia muito mais aliviado, enquanto seu
antigo/novo namorado secava suas lágrimas com um lenço
de linho cor de abóbora.
— Urinário — responde, distraída, sorrindo
involuntariamente para o casal apaixonado que temos
diante de nós. — Sabe, até que vou ficar triste quando ele
se mudar, eu gosto do Tyler. — Ela me encara e nota
minha expressão confusa. — O cachorro que,
provavelmente, está dormindo nos meus travesseiros neste
momento.
— Eu tenho uma surpresa para você — diz Zé
Alfredo, tirando um papel dobrado de dentro do bolso
interno do terno caro e entregando a Arnaldinho, que o
olha com entusiasmo.
Mas, aos poucos, a alegria do que quer que estivesse
escrito ali vai embora, dando lugar a incerteza, e ele
desvia o olhar para Marcela, parecendo dividido.
Não gosto daquele olhar.
— Não posso ir, amorzinho, eu sinto muito — recusa,
ainda olhando para ela, que, assim como eu, está tentando
entender a situação com curiosidade.
— Mas são passagens para Bali, amorzinho — revela
Zé Alfredo, arregalando os olhos de preocupação. — São
só alguns dias, mas no melhor hotel cinco estrelas da
cidade. Por que você não iria? Voltamos depois do Ano-
Novo.
Porque ele não queria deixar Marcela sozinha. Ela
pensou o mesmo, pois se levantou e empurrou Arnaldinho
até o corredor, sem lhe dar chance para defesa.
— Vá fazer as malas, criatura, você vai para Bali e
vai me dar alguns dias de paz sem ver essa sua cara feia
perambulando por essa casa — ordena, em uma voz que
não permite recusa.
— Mas... — ele tenta argumentar e leva um tapa
estalado no braço.
— Passagens para Bali, estadia em hotel cinco
estrelas, vários dias com o seu amorzinho, você é idiota?
— pergunta, enquanto ele esfrega o braço com uma careta
de dor no rosto. — Você vai e não tem discussão.
— Mas e você, boneca? — pergunta, em dúvida, com
as feições tristes. — Não quero te deixar sozinha... — ele
não termina, mas não precisa; nós três sabemos o que
aconteceu pouco antes.
— Ela vai ficar comigo. — Não pensei para falar.
Quando percebi, estava ouvindo minha própria voz, como
se não fosse eu falando. Mas não me arrependi do convite,
nem mesmo quando ela me olhou com uma desculpa na
ponta da língua. — Você vai passar o Natal na casa da
minha família, e não tem discussão — friso, imitando suas
palavras.
— Ah, isso é perfeito, bonitão! — exclama
Arnaldinho, batendo palminhas. — Bali, aí vou eu — diz,
saltitando pelo corredor feito uma gazela drogada,
provavelmente indo fazer as malas.
— Vê se cuida dele — Marcela se vira e aponta um
dedo na cara de Zé Alfredo —, se não vou testar as
técnicas de castração animal que pesquisei na internet
com você!
Ele se assusta e dá um passo para trás, assentindo
com afinco.
— Ótimo!
Meia hora depois, estamos dando tchauzinho para um
casal apaixonado, feliz e nada convencional. Se eu tivesse
que imaginar um parceiro para Arnaldinho, nunca
conseguiria visualizar o homem imponente, rico e boa-
pinta que era o Zé Alfredo. Entretanto, embora eles
fossem um casal fora do comum, pareciam se encaixar
com uma sincronia impressionante. Os sorrisos, as mãos
dadas e o amor que demonstravam me pareciam certos,
tão certos quanto não permitir que Marcela passasse uma
data tão cheia de significados ruins para ela sozinha.
— Obrigada por ter me ajudado com o Arnaldinho; eu
não queria que ele tivesse deixado de viajar por minha
causa, seria muito egoísta da minha parte — agradece, me
dando as costas, mas não rápido o suficiente para que eu
não visse o lampejo de tristeza que passou por seus olhos.
— Eu não estava blefando, você vai mesmo passar o
Natal comigo e minha família.
E que Deus nos ajude, porque ela estava a ponto de
ser solta na cova dos leões, e por leões eu estava falando
da minha irmã caçula enxerida.
— Você não precisa fazer isso — me avisa, ainda de
costas.
Sua postura se encurva um pouco e ela se vira em
minha direção, vem até mim com os olhos grudados no
chão, desvia e volta a procurar alguma coisa nas sacolas;
agora sei que ela está atrás da outra garrafa de vinho que
compramos. Será que é assim que encobre o que a
machuca? Se for, está indo pelo caminho errado. Não há
garrafa no mundo que contenha felicidade, por mais que
muitas pessoas a procurem justamente dessa maneira.
— Eu sei — respondo quando ela chega até o sofá e
se senta, tentando abrir a garrafa para evitar me olhar —,
mas eu quero fazer.
Ela não responde de imediato. Sorve uma boa golada,
limpa a boca com as costas da mão e, finalmente, me
encara, antes de perguntar:
— Por quê?
Porque eu não esqueci você. Essa foi a resposta que
chegou até a ponta da minha língua, mas eu sabia que ela
não era verdadeira. Não completamente. Parte de mim
realmente nunca a tinha esquecido; a outra, a maior parte,
estava noiva.
— Porque ninguém merece passar uma data tão
importante sozinho.
Ela assente, parecendo decepcionada pela minha
resposta, e bebe mais, depois me estende a garrafa, que
aceito de bom grado. Eu estava começando a perceber por
que ela bebia, porque era mais fácil do que sentir ou falar.
Dividimos aquela garrafa e depois abrimos outra.
O silêncio entre nós dois não era mais incômodo.
Dentro dele estavam guardadas muitas palavras não ditas,
muitos sentimentos sufocados e muito amor reprimido,
tudo da minha parte, e isso era sufocante. Eu queria lhe
perguntar por que nunca me deu uma chance, mas esse
assunto não era apropriado. Estar no seu apartamento
também não era, nem deixar que ela se encostasse no meu
corpo de forma sonolenta e distraída, e vê-la dormir com
a cabeça apoiada no meu peito sem afastá-la.
Ergui as mãos e estava a ponto de pousá-la em seus
cabelos, quando meu celular vibrou no bolso, me fazendo
congelar e me dar conta do que estava prestar a fazer.
Então, deixei que minha mão tombasse ao lado do corpo,
me sentindo péssimo. Me mexi o mínimo possível para
não acordá-la e o peguei, abrindo-o para me deparar com
uma mensagem da noiva que não me lembrava que existia
há algumas horas. Que tipo de babaca se esquece de algo
assim? Li suas palavras com um punhado de culpa
entalado na garganta.

“Cheguei, amor. Minha mãe está ansiosa para te


conhecer. Te amo.”

Guardei o celular e empurrei delicadamente o corpo


de Marcela, até que ela estivesse apoiada no sofá, e me
levantei. Andei pela sala com a mão no rosto, sem
acreditar no homem que eu estava me tornando, o homem
que não se lembra da noiva, que passa a noite na casa de
outra mulher e que tinha o desejo de tocá-la enquanto ela
dormia. Eu já odiava esse homem, pensei, sentindo o
celular queimar no bolso. Eu não tinha nem coragem de
responder a mensagem; se o fizesse, era bem possível que
me abrisse e lhe contasse como estava me sentindo.
Confuso, era assim que eu me sentia. Extremamente
confuso.
Olhei para Marcela, tão serena entregue ao sono. Os
cabelos bagunçados cobrindo parte do rosto e as mãos
abertas, voltadas para cima, mostrando as feridas feitas
pelos cacos de vidro, um lembrete do quanto ela era
quebrada por dentro. Tudo o que senti foi uma
necessidade absurda de tentar consertá-la, mesmo que não
pudesse. Fui até ela e parei a sua frente, pensei por meio
segundo e me decidi, peguei-a no colo com cuidado e a
levei pelo corredor, colocando-a na cama do primeiro
quarto que encontrei, imaginando que seria o dela. Eu a
cobri e lhe dei as costas, mas, antes que eu chegasse à
porta, ouvi suas cobertas se mexerem e seu corpo se
debater.
— Por que você não me amou? — sussurrou, ainda
dormindo. — Por que você não conseguiu me amar? —
Suas palavras emboladas, cheias de dor e desconexas me
atingiram fundo, rasgando minha carne e expondo a ferida
no meu coração, que há muito eu pensava estar fechada.
Estaria ela fazendo aquelas perguntas para mim? Não,
claro que não. Ela deveria estar sonhando com ele, com
Lucas.
Não suportei ficar perto dela naquele momento e saí
do apartamento, ganhando as ruas em busca de ar puro e
distância para pensar. Abandonei meu carro e fiz sinal
para um táxi que passava, sem pensar e lhe dei meu
endereço. Mas não consegui pedir que ele fosse embora
quando chegamos, não consegui deixá-la sozinha. Subi até
meu apartamento, fiz uma mala de roupas e voltei para
ela, pensando no quanto me machucou ouvir suas
perguntas, assim como machucou vê-la se casar com ele.
Se eu fechasse os olhos, ainda podia vê-la vestida de
noiva, matando todos os meus sonhos com alegria. O dia
em que ela decidiu amar outro, foi um dos piores da minha
vida.
Capítulo 22 - Gustavo

“Pessoas, muito mais do


que coisas,
devem ser restauradas,
revividas, resgatadas e
redimidas: jamais jogue
alguém fora.”
Audrey Hepburn

Matando o amor

Nove anos antes


Machuca. Doí. Queima. Fere.
Marcela partiu meu coração em um milhão de
pedaços irreparáveis.
Me devasta completamente por dentro vestir um terno
cinza chumbo alinhado e dar um nó na minha gravata
dourada preferida, me olhar no espelho e chorar, porque
estou me arrumando para o casamento da mulher que amo.
Doí mais ainda saber que não serei o noivo que a aguarda
no final do tapete vermelho estendido para que ela
caminhe rumo a uma nova vida, que, ao término daquele
dia, eu seria obrigado a matar o amor que sinto por ela
definitivamente. Marcela jamais será minha e, a partir de
hoje, eu tenho o dever de esquecê-la.
— Filho, você está bem?
Mordo os lábios para evitar que um soluço escape e
encaro os nós brancos dos meus dedos agarrados com
ferocidade à bancada de mármore da pia do banheiro,
balançando a cabeça em uma negativa. Não há por que
mentir, ela está vendo o quanto estou ferido. Eu gostaria
de poder me esconder.
“Homens não choram”, diria meu irmão se me visse,
mas dona Eva não pensa assim; ela passa os dois braços
pela minha cintura e me aperta forte ao sussurrar.
— Vai passar, querido, a vovó promete que vai passar
— garante, mesmo sem saber o que me aflige e, naquele
momento, eu a amo mais, se é que isso é possível.
Me viro e enterro o rosto na curva de seu pescoço.
Tenho que me abaixar para chegar até ela, e ela tem que
ficar na ponta dos pés para me embalar, mas aquele é o
colo mais gostoso do planeta. Dentro dele, dói menos.
— Ela vai se casar hoje — murmuro, absorvendo seu
cheiro.
Ele nunca muda, o mesmo perfume adocicado
misturado ao aroma de terra molhada e batom de cereja.
— E você vai ao casamento dela, não é? — me
pergunta, com doçura, mesmo que ela não saiba quem é
ela.
Eu apareci no portão da minha avó no dia anterior,
com um convite de casamento amassado no bolso, a roupa
do corpo, um saco plástico contendo um terno, uma
gravata e muito arrependimento. Ela não me fez perguntas,
me colocou para dentro, me alimentou e me cobriu à noite
antes de beijar a minha testa. Mesmo que eu tenha passado
há muito tempo da idade de precisar desse gesto, me senti
grato, porque ele era tudo de que eu precisava, e vim
buscar em sua casa.
Amor, eu vim buscar amor. É isso que se busca
quando arrancam seu coração, não é?
— Eu preciso ir — soluço. — Preciso ver com meus
próprios olhos que acabou.
Meu Deus, nem chegou a começar, e eu já a perdi.
— Então, acho que devo me vestir.
Ela me empurra pelos ombros e me encara sem sorrir;
seus olhos estão tristes, mas ela não desmantela a postura
durona. Tento balançar a cabeça, lhe dizer que devo fazer
isso sozinho, mas ela sequer me dá a chance de começar a
falar.
— Você não está em condições de dirigir. Se quer ver
essa moça se casar com outro rapaz, eu não vou te
impedir, mas também não vou deixar você ir sozinho.
Assinto, enxugando o rosto e abrindo um minúsculo
sorriso de gratidão. Várias horas depois, minha avó
estaciona meu carro no estacionamento lotado da igreja
em São Paulo, desliga o motor e me encara com
severidade.
— Tem certeza de que quer ver isso, filho?
— Tenho.
Não, eu não tinha. Minhas mãos suavam, e a gravata
parecia me enforcar sem sequer se mexer. Balancei a
cabeça para reafirmar minha decisão, mas não saí do
lugar, pelo menos até que minha avó descesse do carro,
desse a volta no veículo e abrisse a minha porta, me
estendendo uma mão.
Seus olhos estavam duros. Eu sabia, por anos de
experiência, que ela discordava do que eu estava prestes a
fazer, mas me amava demais para me impedir.
Ela sabia que esse era um capítulo da minha vida que
eu precisava concluir.
— Então, vamos.
Aceitei sua mão, bati a porta do carro e a vi
pressionar o alarme por cima do ombro, enquanto cerrava
os lábios vermelhos em uma linha rígida e descontente.
Passei seu braço por dentro do meu e caminhamos até a
porta da igreja, entramos e nos sentamos na última fileira,
na ponta. Eu seria a primeira pessoa que Marcela veria
quando passasse.
Quando a cerimônia começou, levantei o olhar e
encarei o homem que a esperava ao final do tapete
vermelho. Ele parecia apático, não denotando nenhum
nervosismo; ou ele era muito seguro de si ou não a amava
como eu. Naquele momento, quis roubar sua noiva, mais
do que já quis qualquer outra coisa na vida.
Fecho os olhos quando a marcha nupcial começa a
tocar e deixo seus acordes chegarem até o meu coração,
aquela música tão conhecida e tão tradicional era a trilha
sonora do meu sonho mais íntimo. Era a música que eu
queria escutar quando estivesse prestes a receber a mulher
que, aos meus olhos, seria perfeita, amada e
insubstituível. Marcela era tudo isso e, mesmo assim,
quando apontou nas portas daquela igreja, não foi para
mim que ela sorriu, e sim para ele, para o homem que teve
a coragem que eu não tive.
Me levanto e a encaro encantado, ela nunca esteve tão
linda. Essa constatação é o suficiente para fazer minha
garganta se trancar e meus olhos se iluminarem com
discrição. No entanto, eu já havia decidido que não
choraria ali, deixaria a tristeza que me dominava vazar
mais tarde, por isso mordi os lábios com força e respirei
fundo, fazendo de tudo para me controlar, desejando que
ela me visse. E ela o fez como se meu olhar fosse um ímã,
sua cabeça se voltou em minha direção e ela piscou,
surpresa. Recebi o convite dois dias antes do casamento,
talvez porque minha presença não fosse bem-vinda, mas
seria falta de educação de sua parte omitir aquela decisão.
O motivo não importava, eu estava ali.
Nossos olhares se prenderam por poucos segundos,
mas anos se passaram dentro deles. Todas as nossas
lembranças, todas as nossas brigas, todas as memórias
daquela amizade que poderia ter virado algo mais. Ela
não sorriu, seus olhos se fecharam brevemente e deles
saiu uma única lágrima. Naqueles poucos segundos, eu
poderia jurar que ela sentia o mesmo que eu, porém aquilo
era apenas meu coração procurando ar em meio ao
afogamento do amor platônico que eu sentia por ela.
Minha intenção era abaixar os olhos e encarar o chão para
esconder meu sofrimento, mas eles pararam na metade do
caminho e repararam em seu corpo, pela primeira vez em
meses.
Foi quando notei sua barriga arredondada.
Choque. Surpresa. Raiva. Ciúme. Minha mente se
transformou em um caleidoscópio de emoções, então
levantei o olhar, tendo a certeza de que cada uma delas
estava estampada em minha face. Os olhos dela ainda se
mantinham nos meus, e mais lágrimas se formaram dentro
deles, que brilharam ao serem ofuscados pela luz.
Naquele momento, eu quis me levantar, pegá-la nos
braços, jogá-la sobre meus ombros e fugir com ela e com
a criança que carregava. Eu não me importava, eu a amava
o bastante para dividir aquele sentimento. Eu a amava a
ponto de aceitar aquele bebê como sendo meu, desde que
ela ficasse comigo. Mas, antes que eu pudesse ter
qualquer reação, ela se voltou para frente, enrijeceu o
aperto no braço do pai e encarou o homem que a
esperava, abrindo um sorriso largo nos lábios que eu
sempre quis beijar, mas nunca tive coragem.
Foi ali que soube que a havia perdido, naquele
sorriso.
Minha avó apertou meu braço com força, porém não
tive reação, não até seu pai entregá-la para ele e ela
agarrar suas mãos, ainda com aquele sorriso. Eu o
conhecia, era o seu sorriso de certeza, aquele que dizia
que ela não voltaria atrás da decisão tomada. Me levantei,
puxei minha avó e a arrastei pelas portas da igreja, ainda
abertas.
Antes de passar por elas, olhei para trás, mas foi
inútil; Marcela não me viu desistir dela.
Voltei para casa imerso em pensamentos densos, em
dor, abandono e rejeição. Não falei, não gritei e nem
chorei, eu não fiz nada além de me culpar por nunca ter
tido coragem de lhe dizer o quanto era apaixonado por
ela; aquele era o preço da minha covardia, e eu precisava
aceitá-lo, eu teria que conviver com ele. Mas como faria
isso?
— Eu a perdi, vó, eu perdi a Marcela.
Ao chegar em casa, me desespero quando a realidade
do que eu tinha visto me dá um tapa na cara, me fazendo
acordar.
— Se é para ela ser sua, um dia ela volta, filho —
diz, afagando minha mão com carinho, enquanto abre a
porta com a outra. — O destino não erra.
Naquele dia, me arrastei tirando a roupa pelo
caminho e largando-a no chão de qualquer jeito. Subi na
minha cama de quando eu era criança e passava todas as
férias naquela casa, me cobri e me afundei naquela ferida
aberta, como se ela nunca fosse sarar. Me neguei a
conversar com minha avó, a comer, nem dormir eu
conseguia. Não sei quanto tempo fiquei daquele jeito...
Horas, dias, semanas, não sei.
Só notei que o tempo havia passado, e que eu ainda
estava vivo, quando ouvi uma voz conhecida berrar da
porta:
— Larga mão de ser bicha, moleque, e levanta dessa
porra de cama.
Tomei um susto com o grito de Augusto e me sentei
rapidamente, encarando-o, enquanto ele abria as cortinas
que eu insistia em manter fechadas. Ele estava com a
postura de sempre, carrancudo, durão e inflexível. Eu o
olhei e meus olhos se encheram de lágrimas pela milésima
vez desde que vi a mulher que eu amava se unir a outro
cara.
— Homem que é homem não chora. Se você brilhar
esses olhinhos molhados pra mim mais uma vez, vou te
dar um bom motivo, um motivo de verdade — grita outra
vez — para chorar.
— Monstro, eu...
Como eu ia dizer para o cara que tinha uma pedra de
gelo no lugar do coração que, diferentemente dele, eu era
humano e estava machucado? Talvez, se ele não visse as
mulheres como quem vê um produto no supermercado,
aqueles que a gente compra, usa e joga a embalagem no
lixo, ele se tocasse que eu estava sofrendo.
— Não quero saber! — me corta com um aceno de
mão, como se meus motivos não importassem e, pensando
bem, talvez não importassem mesmo. — Eu só quero que
você se levante dessa cama, tome um banho, vá para casa
e faça as malas.
Ergo as sobrancelhas de forma confusa.
— Moleque, não testa a minha paciência, a vó não
tem mais idade para suas birras. Ou você faz o que eu tô
mandando, ou vou encher sua cara de porrada.
— Por que eu tenho que arrumar as malas? —
pergunto, ainda sem entender, ignorando sua ameaça,
mesmo sabendo que era exatamente aquilo que ele faria
sem um pingo de remorso.
— Porque você vai morar comigo — diz, me dando
as costas, com uma voz que não permite questionamentos.
Para ele, estava decidido e pronto, ele era assim.
— Por quê? — grito, antes que ele saia pela porta.
— Porque já está mais do que na hora de você sair da
casa dos nossos pais e crescer. Está na hora de virar
homem, Gustavo Bittencourt, e um homem de verdade não
se abala por uma mulher, o mundo tá cheio delas. —
Monstro se vira e sorri. — Você vai superar essa merda,
porra!
Então, ele sai e me deixa com meus próprios
pensamentos.
Ele tinha razão, mas eu demorei muito tempo para
descobrir isso.
Um homem de verdade não deveria ficar em uma
cama lamentando a perda de ninguém, um homem de
verdade lavaria o rosto, assumiria a culpa e viveria,
porque era isso o que eu deveria fazer; viver, assim como
ela havia feito. Era isso que meu irmão rude e sem dom
para as palavras estava tentando me dizer, e foi ele quem
me deu um sopro de esperança, quem me fez acreditar que
eu realmente poderia superar aquele amor, aquela dor, e
ser feliz.
Realmente tentei viver a minha vida; prometi para
mim mesmo que nunca mais sonharia com a marcha
nupcial e com uma mulher que abalava meu mundo; nunca
mais sonharia em encontrar uma Marcela, nem esperaria a
minha voltar. Não pensaria mais nela, não procuraria
saber de sua vida e não a veria outra vez, eu a
esqueceria. Claro que, naquela época, eu não sabia que
essas eram promessas que eu quebraria, mas tentei mantê-
las.
Me mantive afastado até o dia em que ela ficou sem
chão. Naquele dia, ainda acreditei que pudesse ser tudo
de que ela precisava, mas, novamente, eu estava errado;
ela me jogou fora como se eu não valesse nada.
Capítulo 23 - Marcela

“Meu riso é tão feliz contigo.”


Tribalistas

O seu olhar tem cheiro de mar

Ressaca maldita, é meu primeiro pensamento pela


manhã. Cadê a privada?, é o segundo. Deixo para me
perguntar que fim levou o homem que bebeu comigo noite
passada depois de me arrastar até o banheiro e despejar
alguns litros de vinho no vaso, mas logo me esqueço dele,
porque, no meio desse processo, me lembro do Totó. Ah,
hoje o dia vai ser longo. Decido prolongar seu início mais
um pouco ao voltar para o quarto e me deitar no meio de
dois cachorrinhos espaçosos. Abraço Tiffany, e Tyler joga
suas patas traseiras por cima das minhas costas, ou vice-
versa; eu quase nunca sabia quem era quem, e durmo
novamente, sonhando com o Papai Noel comendo
biscoitos caninos.
Quando volto a acordar, estou mais esperta e me
sentindo meio envergonhada pela noite passada. Que tipo
de pessoa doente da cabeça chora quando olha para uma
árvore enfeitada? Não é à toa que Gustavo se sentiu
obrigado a me convidar para passar o Natal com sua
família, até eu fiquei com pena de mim. Mas meu orgulho
tinha um certo limite, que sempre era estendido em datas
comemorativas e feriados. Eu estava feliz pelo convite
por dois motivos: primeiro, eu estava curiosa para
conhecer sua família (se todos fossem doidinhos que nem
sua irmã, minha diversão estaria garantida); segundo, eu
não queria passar o Natal sozinha com o pernil congelado
que eu não sabia assar, e dois cachorros folgados que me
amavam menos do que o brinquedo de morder em forma
de porquinho.
Tomei vergonha na cara e passei alguns minutos no
chuveiro esfregando a língua para acabar com o gosto de
vinho estragado e raspando as pernas, porque uma mulher
tinha que estar preparada para qualquer eventualidade.
Não que eu tivesse alguma esperança de que ele iria
enfiar a língua na minha boca ou alisar as minhas canelas,
mas quis me sentir um pouquinho mais bonita naquela
manhã em especial.
Fazia tanto tempo que um homem não dormia em casa
– isso se ele não tivesse se escafedido durando a noite, o
que, pensando bem, era provável –, que eu poderia soltar
rojões de alegria e encher algumas bexigas para
comemorar, mesmo que ele não tivesse nem encostado em
mim. Exceto pelas vezes em que nossos dedos se roçaram
sem querer, enquanto passávamos a garrafa de mão em
mão, mas não dava para levar isso em conta, não é?! O
calorzinho que subia pelo meu corpo sempre que nossas
mãos se tocavam deveria ter me dado a dica de que eu
estava entrando em um terreno perigoso e que, se não
tomasse cuidado, acabaria pisando em uma bomba e
sendo explodida em vários pedacinhos rosados e lindos
de mim mesma.
Fazia tempo que eu não brincava de amarelinha sobre
um campo minado, e eu já tinha me esquecido do quanto
era divertido gostar de alguém. Ah, gostar? Bosta. Velhos
hábitos nunca morrem, eu ainda devorava as unhas quando
estava nervosa, ainda escovava os cabelos cem vezes
antes de dormir e, aparentemente, ainda gostava um
pouquinho da minha antiga paixão. Por pouquinho, eu
queria dizer pouquinho mesmo, um tiquinho, quase nada.
Um pouquinho do tamanho do infinito, mais ou menos.
Encontrei Gustavo babando no meu sofá. Fiquei dez
minutos admirando-o dormir. Quando comecei a me achar
esquisita e psicopata demais, fui resgatar meu fusquinha e
ouvir calada a bronca do gerente do supermercado por
pensar que sua quitanda era meu estacionamento
particular. Na volta, eu ainda estava em um torpor alegre
por ter companhia, então me aventurei a preparar a joça
da penosa com a ajuda de um site de receitas meio
duvidoso.
— Que cheiro bom é esse?
Dei um pulo, fazendo com que metade do molho de
laranja fosse parar na parede, e me virei para encontrá-lo
escorado na porta da cozinha com cara de sono. Gustavo
passou uma das mãos pelo rosto e pelos cabelos e sorriu.
Covinhas dos diabos, tinham que ser tão bonitinhas?
— Minha colaboração para o jantar — contei,
corando, envergonhada.
Nem cheguei a pensar na possibilidade de o convite
não estar mais de pé, pelo menos antes que eu tocasse no
assunto.
— Não precisava, Má, mas é muito gentil da sua
parte.
Ele faz uma careta e tenta escondê-la com um bocejo.
Será que ele é idiota? Não se lembra de que eu conheço
muito bem aquela cara de fuinha com dor de barriga?
— O que foi? — Jogo a panela em cima da pia e
coloco as mãos na cintura. — Você não precisa me levar,
se não quiser, eu te disse que ia ficar bem...
Ele me corta.
— Para de ser boba, é claro que eu quero levar você.
— Ele ri, achando graça da minha postura defensiva.
— Então, o que foi?
Pego de volta a panela e olho para seu interior, o
resto do molho que não estava grudado nos azulejos tinha
dado uma leve queimadinha, nada muito grave. Nada
comparado a quando tentei fritar um ovo e acabei
precisando da ajuda de um caminhão de bombeiros para
apagar o fogo.
— Minha avó não deixa ninguém chegar perto da
cozinha no Natal — disse, ainda rindo.
Senti falta daquele riso, bem mais do que eu gostaria
de admitir.
— Ela ameaça de morte quem ousar chegar a menos
de um metro do seu fogão.
Ah, graças a Deus. Porque aquele molho escurecido e
com cheiro de fumaça não devia estar muito apetitoso. Até
me atrevo a sorrir, enquanto me imaginava debruçada no
parapeito da janela, tentando fazer o pernil voar até a
calçada.
— Mas ela, com certeza, vai amar o gesto. Ninguém
se preocupa em levar nada há anos.
Merda. Sorrio amarelo e encaro novamente o molho.
O que vou fazer com você, belezinha? Será que misturar
uma penca de temperos dá jeito nessa sua cara feia e
defumada?
— Espero que eles gostem da penosa.
Internamente, já estou planejando não comer aquela
porcaria que vou levar, então seria ótimo se a família dele
realmente gostasse.
— Eles vão adorar, também vão adorar você.
Levanto o olhar da panela e a coloco de volta no
fogão, como se tivesse levado um choque, e me volto para
ele. A risada sumiu, foi substituída por um sorriso aberto
emoldurado por suas covinhas. Seus olhos, sempre tão
doces, estão sorrindo também. Por que esse homem não
me amou? Teria sido tudo tão mais simples, tão mais feliz.
— Você não tem que buscar algumas roupas, ou algo
assim? — pergunto, me sentindo desconfortável com seu
olhar.
Era o tipo de olhar que iludia mulheres fragilizadas
como eu, um olhar que aquecia meu coração e servia de
anestésico para tantos machucados irreparáveis.
— Sim — ele responde, desconcertado. — Eu já
peguei uma mochila com roupas, estão no carro, mas
ainda preciso fazer uma coisa.
Eu assinto, me ocupando em jogar todos os temperos
que encontro no armário dentro daquele molho de
aparência esquisita.
— Venho te buscar às seis, tudo bem?
Assinto de novo e ergo a mão em sinal de despedida
sem me virar para ele. Quando escuto a porta finalmente
bater, respiro aliviada.
Que tipo de criatura masoquista comete o erro de se
apaixonar por um homem, que está visivelmente fora do
seu alcance, duas vezes na vida? Quem seria tão retardada
a esse ponto? Pois é, eu. Eu era a retardada com
Alzheimer. Naquele momento, enquanto preparava um
pernil idiota, eu tinha deixado aquelas covinhas me
ludibriarem e tinha esquecido tudo o que ele me fez sofrer,
e isso era algo que eu nunca poderia esquecer.
Esquecer a dor que Gustavo causou me obrigaria a
lhe contar sobre ela.
Ele não merecia saber.

***

Às seis horas da tarde, em ponto, eu me sento no sofá


como se fosse feita de concreto. Dura. Muda. Estática.
Tento me controlar para não assaltar meu pequeno
esconderijo de bebida que fica dentro de um porta-
revistas no canto da sala. Quando Arnaldinho começou a
jogar minhas biritas fora, o jeito foi ser criativa. Como eu
tinha certeza de que ele nunca chegaria nem perto dos
meus mangás, minha vodca poderia respirar aliviada.
Eu estava me sentindo como uma adolescente que ia
conhecer a família do primeiro namorado que teve na
vida. Minhas mãos suavam, e eu estava preocupada se iam
ou não gostar de mim, assim como havia trocado de roupa
uma dúzia de vezes até encontrar um look menina de
família no meu guarda-roupa da guerra civil para garantir
que eu estava parecendo pura e meiga, mesmo que, depois
de vinte minutos na minha presença, eles fossem descobrir
que eu estava bem longe disso. O único detalhe que me
animava era saber que sua família não concordava com
seu relacionamento com aquela safada traidora, e que
qualquer porcaria seria mais bem aceita do que ela.
No caso, a porcaria era eu.
Eu estava sendo ridícula. Mas não conseguia me
controlar.
Ele não era nada meu, era nisso que tinha que me
concentrar. Eu tinha que parar de me sentir possessiva
com as coisas que não me pertenciam, aqueles dois
cachorros eram um bom exemplo disso. Eu já tinha feito a
malinha dos dois com vários biscoitos, ração, alguns
bichinhos de morder e meu travesseiro, já que eles tinham
desenvolvido um amor gigantesco por ele. Eu deveria era
trancar os dois no apartamento com uma cuia d’água e um
“até logo”.
Gustavo está atrasado. Meia hora se passa, e eu me
canso de olhar para a parede com um cachorro enorme de
cada lado (ambos olhando para a mesma parede) e me
levanto. Quando estou chegando perto da minha garrafa
contrabandeada, a campainha toca e eu sou acometida por
uma dor de barriga inquietante. Merda.
— Oi — murmuro, abrindo a porta.
Ele sorri assim que nota minha roupa cafona: meu
vestido rodado, com vários corações cor-de-rosa
estampados, e minhas botas de cano curto de franjinhas.
— Quantos anos você tem? Doze?
Ele passa por mim e caminha até o sofá, mas estaca
no lugar, olhando para minhas feras, antes que eu possa
xingá-lo.
— Hum, eles têm uma carinha de cachorrinho
bonzinho.
— Esse é o melhor momento para eu dizer que não
posso deixá-los sozinhos? — pergunto, ansiosamente,
jogando o peso do corpo de um pé para o outro, enquanto
ele encara meus cachorrinhos com receio.
Tyler abana o rabo para me ajudar, e Gustavo relaxa,
se sentando entre os dois, ganhando uma lambida molhada
de Tiff na bochecha.
— Depois desse beijo, é o momento perfeito.
Ele sorri e afaga os dois, que tentam se virar de
barriga para cima e acabam por soterrá-lo em um
amontoado de pelos negros brilhantes e cotoquinhos, que
se balançam felizes em seus bumbuns caninos.
— Tem certeza de que vão gostar de mim? — Não sei
de onde a pergunta fora de hora saiu, mas, quando me dei
conta, estava no meio da sala de estar, rodando aquele
vestido que não tinha nem um pouco a minha cara, com
mais apreensão do que queria que ele visse.
Porém, para meu alívio, ele não ri, ou eu pensei que
seria um alívio, porque ele faz algo pior. Ele me mede de
alto a baixo com lentidão e uma expressão compenetrada.
Quando termina, ele sorri, fazendo meu coração palpitar.
— Eles vão amar você, de qualquer jeito — frisa. —
Principalmente, se você for você mesma. — Ele pisca
seus cílios longos na minha direção, e eu entendo o que
ele quis dizer.
— Me dá cinco minutos?
Não espero a resposta. Voo para meu quarto e abro a
porta do guarda-roupa, jogando várias peças para o alto,
até encontrar as que procuro. Cinco minutos depois, estou
de volta na sala, vestindo meus jeans preferidos, uma
camiseta branca e as malditas botas, gostei delas. Faço
uma careta e pulo na frente dele, fazendo um rodopio. Ele
tem razão, preciso ser eu mesma, independente de quem
estiver tentando impressionar. Eu não era mais a menina
de vestido rodado, nem a garota de vestido provocante.
Era a mulher que vestia jeans e camiseta, a mulher que
não queria ser notada e, se alguém tinha que gostar de
mim, seria daquela forma.
— Você não poderia estar mais bonita, Má — elogia,
quando me jogo em cima dos cães ao seu lado.
Sei que ele não está mentindo, ele está fazendo o que
sabe fazer de melhor, sendo o cara que a gente procura
nos filmes da Disney quando criança, e no fundo de uma
garrafa quando adulta. Gustavo está sendo ele mesmo.
— Isso porque você ainda não viu o look do jantar.
— Eu rio.
— Ele inclui essas botas? — Indica meus pés,
fazendo um meneio com a cabeça. — Gostei delas.
Agora incluem.
— Não é melhor irmos?
Ele assente e se levanta, me estendendo uma mão para
que eu consiga me erguer, já que estou embolada em um
monte de orelhas e patas, depois me ajuda a colocar as
coleiras nos cães, pega minha mochila e abre a porta para
que eu passe por ela. Porém, antes de sair, vou até a
cozinha e pego o pernil embrulhado com papel alumínio, e
que Deus nos ajude.
Desço as escadas na sua frente, rezando para não
matar nenhum dos seus parentes com meus dotes
culinários espetaculares. Acabo por colocar aquela coisa
no porta-malas, rezando para ele morrer em alguma curva.
Quando chegamos à estrada, eu já estou descalça,
com meus pés confortavelmente apoiados no painel de seu
carro, enquanto fuço nas músicas do seu pendrive.
— Só tem porcaria aqui — reclamo, depois de um
tempo olhando feio para ele. — Você ainda não aprendeu
a ter bom gosto para música, não é? — Só encontrei
músicas eletrônicas. — Cadê as músicas de corno? —
Que eu amava, e que faziam bem mais o seu estilo, mesmo
que ele não soubesse.
— Coloquei algumas antes de sair de casa para você,
sua reclamona. — Ele ri, bate na minha mão para afastá-la
do rádio e começa a procurar as músicas, enquanto eu me
distraio com seu braço bem torneado praticamente enfiado
debaixo do meu nariz. Hum, fortes. — Gostou, é? —
pergunta, com uma risada, seguindo meu olhar.
— Amei, quero um igualzinho, mas quero conseguir
comendo croissant de chocolate!
Quando foi que nossas conversas pararam de ser
constrangedoras para se tornarem as velhas conversas,
brigas e provocações de antes?
— Essa, deixa nessa — grito, me animando, ao ver o
nome da música no visor.
Ele faz o que peço e volta a se concentrar na estrada.
Escuto a batida conhecida, balançando a cabeça no ritmo,
distraída, pensando que a última vez em que tive prazer
em ouvir uma música, minha família ainda respirava,
quando notei que ele estava de olho nas marcas que meus
dedos gordinhos estavam fazendo no seu para-brisa.
— Quer que eu tire? Porque, se quiser, vai custar
caro, eu tô confortável pra caramba nessa posição.
Ele não responde, parece perdido em pensamento. O
que só piora quando uma música sertaneja começa a tocar.
— Por que fui andar por caminho de pedra
querendo encontrar, na noite buscar, o amor de um amor
que não ia me amar? Você esteve tão perto, perfeita,
amiga, eu não pude enxergar, que era a exata pessoa, e
hoje, na boa, eu começo a gostar, do seu olhar, do
sorriso lindo, o jeito de falar. Quando me liga, brinca,
muda a voz, pede pra adivinhar e no meu aniversário,
virou meia-noite, é a primeira a lembrar, e as minhas
melhores risadas somente você consegue arrancar.
Como não me apaixonar?
— Não, Má, deixe-os onde estão.
Franzo as sobrancelhas sem entender seu tom de voz;
não é sarcástico, nem irritado, ele parece... encantado?
Ele deixa seus olhos correrem pelas minhas pernas até
meu rosto e sorri, franzindo os lábios e virando um pouco
a cabeça, como se não pudesse acreditar que estou ao seu
lado. Como se eu fosse uma espécie de miragem que vai
sumir em um piscar de olhos. Ele sente falta da amizade
que deveria ter durado uma vida, penso.
— Se quiser, posso fazer uns coraçõezinhos em forma
de agradecimento — ofereço, contornando um coração
com o dedão, enquanto continuo cantando a música a
plenos pulmões; ela era perfeita para nós dois, ele só
tinha que enxergar.
Não, estava errado.
Ele deveria ter enxergado, agora não adiantava mais.
Em questão de um milésimo de segundo, passei de feliz a
triste. Como eu podia estar ao lado dele dentro desse
carro, cantando, enquanto meu filho estava em uma cova
funda, sozinho e sem vida? Eu não tinha esse direito. Em
um ímpeto de raiva, bati a mão no botão do rádio,
desligando-o, e me endireitei no banco, mordendo a parte
inferior da boca com força para não cair no choro. Pisquei
repetidamente, tentando fazer com que as lágrimas não
caíssem, e olhei para o lado, para o homem que causou o
começo de toda essa dor. Ele parecia perdido nos
próprios pensamentos, mas, assim que a música
desapareceu, ele se virou em minha direção, entendendo
exatamente o que se passava em minha cabeça ao notar
meus olhos marejados.
Eu não estava preparada emocionalmente para o que
ele fez.
Gustavo volta a ligar o som e aumenta o volume no
máximo, abre a minha janela, fazendo com que eu seja
atingida por uma rajada de vento com aroma de água
salgada, e canta. Ele canta a plenos pulmões uma música
que não conhece, de um estilo musical do qual não gosta,
ele erra a letra e tenta de novo mais alto, enquanto eu
continuo olhando-o embasbacada, até que ele joga seu
braço em volta do meu pescoço e me puxa para perto,
beijando o topo da minha cabeça com carinho em um
movimento ágil e preciso.
— Canta comigo, Má. — Ele me dá uma olhada de
rabo de olho e completa. — Está sentindo esse cheiro?
Seus olhos, para mim, tinham esse cheiro, cheiro de mar.
Quero ver o oceano outra vez no seu olhar... Canta
comigo!
Eu não sei se é possível se apaixonar duas vezes pela
mesma pessoa, ou se nunca chegamos a esquecê-la, mas,
naquele momento, não importava.
Eu o amava.
Capítulo 24 - Gustavo

“Pra te ver sorrir, eu posso colorir o céu de outra cor.”


Pollo

Novamente o melhor amigo

Um vislumbre do mar, foi tudo o que eu vi.


Uma onda se quebrou em seu olhar, e o tempo voltou
a se fechar, então surgiram os relâmpagos, a tempestade
começou logo depois. Ela nublou tudo, resumiu a mulher
ao meu lado a nada, fez calar a voz que cantava e a alegria
que ela sentia se dissipou. Marcela não suportou ser feliz,
nem por alguns minutos, e ameaçou se afundar de novo na
infelicidade que era sua marca registrada.
Eu não podia deixar.
Naquele momento, achei que teria feito tudo para vê-
la sorrir outra vez; quando passei meu braço em volta de
seu corpo e beijei seus cabelos alaranjados com aroma de
limão, eu tive certeza.
Meu coração palpitante falava por mim.
— Por favor, Má, canta.
E ela cantou. Ela cantou, ela sorriu e colocou a
cabeça para fora da janela para sentir o vento, depois
agarrou meu braço com os olhos secos e vivos. Não sei
como eu consegui, se foi uma palavra mágica, o sorriso
certo ou o beijo no momento oportuno, mas ela sorriu, e
fui eu quem a fez sorrir.
Meu peito explodiu em um milhão de sentimentos
distintos quando voltei a passar o braço em volta dela e
senti sua cabeça se aconchegar em meu pescoço. O amor
que eu sentia por ela era um deles, ele ainda estava lá,
vivo dentro de mim, esse tempo todo. Olhei para a estrada
à nossa frente e meu pensamento foi um só: eu quero fugir
com ela.
Aquela mulher agarrada a mim era meu melhor sonho
e meu pior pesadelo. Por ela, acreditei no amor, no cavalo
branco, na fantasia de príncipe e no “felizes para sempre”
e, por ela, descobri que a vida não era tão perfeita quanto
eu pensava e que, no final das contas, aceitar o que se
pode ter dói menos, muito menos, do que amar uma ilusão.
— Posso dirigir? — pergunta, de repente, me
arrancando dos meus pensamentos, quando a música
acaba e outra começa.
Eu nem precisava pensar para lhe responder.
— Claro que sim.
Eu não tinha nem um pouco da neura que meu irmão e
Ian tinham com seus carros, eram só carros. Dei seta para
a direita e joguei o veículo no acostamento, colocando-o
em ponto morto, saindo e dando a volta, enquanto Marcela
sofria para pular de um banco para o outro por cima do
câmbio.
— Está difícil aí? — brinquei, me agachando ao lado
da porta, amparando meu braço na janela aberta.
— Eu preciso, mesmo, daquele regime que o
Arnaldinho vive sugerindo. Não estaria tão difícil se eu
fosse só um quilinho mais magra, mas vou conseguir —
murmura, irritada. — Gus... eu não vou conseguir —
lamenta, quase um minuto depois. — Uma ajudinha seria
bem-vinda, sabe? Acho que entalei.
Sou obrigado a soltar a porta do carro para apoiar as
mãos nos joelhos, fico sem fôlego de tanto rir e,
incrivelmente, mesmo presa entre os assentos, ela
consegue me chutar.
— Pare de rir da minha desgraça e me tire daqui!
— Posso tirar uma foto antes? — brinco, esfregando
minhas costelas, constatando que ela ainda chuta forte.
— Gustavo, estou perdendo a paciência. Quando eu
sair daqui, vou mirar bem melhor meu próximo chute.
Sua ameaça é o suficiente para que eu me mexa e a
empurre em direção ao banco do motorista. Minhas mãos
apoiam em sua bunda, e eu dou um tranco, desentalando-a
com rapidez. Minhas mãos queimam.
Camila entra na minha mente, batendo porta, me
insultando aos gritos. Novamente, eu me esqueci que ela
existia. Esqueci da igreja reservada, do buffet alugado,
das flores compradas e do vestido que me custou uma
fortuna. Esqueci que não podia desejar fugir por uma
estrada arborizada com uma mulher que não era minha, e
que me lembrar do amor que jorrava de mim por ela era
errado.
Mesmo assim, tudo o que eu queria era sumir no
mundo com a Marcela e com os dois cães esquisitos, com
as orelhas em pé e coleiras de pedrinhas brilhantes que
nos olhavam com atenção, sentados no banco de trás do
meu carro. Eu queria aqueles três como minha família,
como a promessa de uma vida feliz, como nunca quis nada
na vida; eu queria o que eu não podia ter, e deveria me
contentar com que, de fato, eu tinha: uma noiva.
— Desculpe — peço, sem jeito, quando ela se ajeita
no banco e se vira para me encarar com uma expressão
estranha.
Olho para o assoalho do carro e sou surpreendido por
sua risada musical. Levanto a cabeça tão rapidamente que
chego a ficar tonto, é a vez de ela chorar de rir às minhas
custas.
— Você é o primeiro cara que pega na minha bunda e
depois me pede desculpas — fala, depois de tomar
fôlego. — Para de ser besta, é só uma bunda.
Ela balança a cabeça para indicar que aquilo é
mesmo muito engraçado para ela. Assim como pensei
sobre o carro. Era incrível o quanto éramos parecidos.
— Sabe, hoje descobri o que aquelas pobres baleias
que encalham na areia sentem, eu me senti parte da família
das coitadas, Gustavo. — Ela muda de assunto, porque
nota que ainda estou desconfortável, e funciona.
— Olha pelo lado bom: mesmo encalhada, você ainda
consegue respirar.
Entro no carro e bato a porta, enquanto ela respira
aliviada por meu constrangimento ter ido embora (rápido
demais, muito rápido) e vira a chave na ignição, pisando
fundo no acelerador e cantando pneus.
— Amei esse carro, amei tanto que estou pensando
em matar o Totó, batendo-o contra um poste. Ele não
ronrona que nem esse gatinho, aquela lata-velha late —
resmunga, alisando o painel com deslumbramento.
— Você ainda tem aquele Fusca azul? — Ele já era
velho na época em que estávamos na faculdade, nem
conseguia imaginá-lo agora. — Por quê?
— Lembra do dia em que você o encontrou para mim?
Ela não responde e, na verdade, não me importo,
estou dentro daquela lembrança. Os dois meses que tive
que garimpar por aí para achar um bendito Fusca azul
porque ela queria um motivo para bater nas pessoas
sempre que tivesse vontade. O que seria melhor do que
um Fusca azul para isso? Todo mundo sabia as regras da
brincadeira.
— Claro que lembro. Você quis me levar para dar
uma volta em agradecimento e se esqueceu de conferir a
gasolina, então me pagou um sorvete de palito, que nós
tomamos sentados na cabine do caminhão do guincho.
Ela sorri, olhando para a estrada presa, dentro da
mesma lembrança. Não parece mais a mesma mulher que,
há pouco, quase caiu no choro ao se lembrar de uma
família perdida. Por falar em família, eu ainda precisava
cuidar da minha. Pego o celular com a intenção de avisá-
los sobre a nossa convidada, uma convidada que eu quero
que se divirta a ponto de se esquecer o quanto machuca
ser sozinha. Se é que, no meio da minha família, alguém
seria capaz de se sentir sozinho. Todos eram tão
enxeridos, que nem para mijar se tinha privacidade.

Grupo: Machos-Alfa (alguns)


Gustavo: Estou chegando e não estou sozinho.
Alguém põe uma coleira na Bárbara, por favor?!
Monstro: Puta que pariu, Mala!
Bernardo: Indo pegar a Glock e as algemas no carro!
Por falar nisso, te comprei uma arma de choque de
presente; espero que goste, porque aproveitar, eu sei que
você vai.
Ian: Comprou uma pra mim também?!
Bernardo: Não, você não tem coragem de usar nem
em um mosquito, muito menos na sua mulher! É tão inútil
quanto eu, até porque seria bem capaz de elas encontrarem
e usarem na gente. Apelei para um daqueles sapatinhos de
bicha que você gosta, aqueles de camurça.
Monstro: É Natal, Mala, não dava pra ter deixado a
irmã gêmea do satanás em casa? Você sabe o quanto a
vovó ama essa data, ela já está a todo vapor no fogão, até
colocou o avental com a estampa de mulher pelada que
dei pra ela ano passado. E a Bárbara está de bom humor,
sabe o quanto isso é raro?
Monstro: O que você comprou pra mim, Bernardo?
Ian: Relaxa, Mala, vou preparar o terreno, qualquer
coisa a gente segura ela.
Bernardo: Um pacote de fralda, Monstro! Kkkkkkkkk
Monstro: Diga só por você, Ian, eu não vou segurar
ninguém. Quem sabe umas porradas bem dadas de salto
fino de sapato fazem ele acordar pra vida ou ficar em
coma. Ultimamente, qualquer uma das opções tá valendo
pra mim.
Monstro: Você é um imbecil, Gustavo! Por que não
deixou pra lidarmos com a sua noiva endiabrada ano que
vem?
Gustavo: Não estou levando a Camila.
Bernardo: Está trazendo quem, então?
Monstro: ???????
Gustavo: Estou levando uma amiga e adoraria se
todos vocês se comportassem que nem gente. Façam um
esforço, não sejam babacas. Quero que ela se divirta.
Monstro: ???? Não vou perguntar de novo!
Gustavo: Marcela, estou levando a Marcela, criatura
insuportável!
Bernardo: Quem é Marcela?
Monstro: Sério???
Monstro: Quando eu acho que mais nada que você
faça vai me surpreender, você se supera e me mostra que
eu estava errado.
Gustavo: Vê se cala essa boca! Não sei por que
ainda peço as coisas pra vocês, bando de inúteis.
Ian: Essa magoou.
Bernardo: Essa magoou 2.
Monstro: Foda-se.
Vovó foi adicionada ao grupo.
Gustavo: Vó, tá aí?
Vovó: Ah, de novo, não. A última vez que vocês me
colocaram nessa porcaria, o Augusto me fez ter pesadelos
com as fotos daquela menina promíscua como veio ao
mundo. Ainda me pergunto onde estão os pais daquela
moça sem-vergonha.
Monstro: Eu já disse que foi sem querer, vovó!
Vovó: Fala rápido, querido, estou ocupada com o
pudim.
Gustavo: Estou levando uma convidada, você pode
fazer todos se comportarem? Pedir pra minha mãe voltar
de Oz, amordaçar a Babi, e coisas do tipo?
Monstro: Ele está trazendo a Marcela, vó. Onde ele
achou, ainda é um mistério.
Gustavo: Nos esbarramos na rua, assunto pra outra
hora, Monstro. Cuidar da sua vida faz bem, às vezes,
sabia? Pensei que você tivesse uma mulher barriguda pra
te ocupar.
Monstro: Dou conta da minha vida, da minha mulher
barriguda e da sua burrice, e ainda sobra tempo pra
infernizar o Ian, muito obrigado!
Vovó: Aquela Marcela?
Gustavo: É, vó, aquela Marcela.
Bernardo: Qual Marcela, gente?
Vovó: Claro, querido, ela será muito bem-vinda.
Gustavo: Ah, finjam que gostaram do assado e, por
nada no mundo, perguntem sobre a família dela,
entenderam? É IMPORTANTE!
Bernardo: Assado? Ela está trazendo comida? Já
gosto dela.
Ian: Por quê, Mala?
Gustavo: Porque ela não sabe cozinhar e perdeu a
família. Sejam legais, ou seja, por nada no mundo sejam
vocês mesmos, apenas finjam!
Ian: Como assim, perdeu a família?
Gustavo: Eles morreram em um acidente, Ian. Os
pais, o filhinho e o marido estavam no carro quando ele
bateu em outro e capotou.
Ian: Meu Deus. Coitada da moça.
Vovó: Vou pegar o meu chinelo e resolver isso antes
de vocês chegarem, pode deixar. Vovó te ama!
Vovó: Augusto, vai arrumar a mesa!
Vovó: Ian, vai varrer as folhas do jardim!
Vovó: Bernardo, vem aqui provar o molho!
Vovó: Vocês estão muito desocupados.
Vovó: AGORA, MENINOS!
Gustavo: Obrigado, vovó, também amo você.
Vovó saiu do grupo
Monstro: Bichinha. Tem sempre que correr pra vovó,
não é?
Monstro: Não é que ela pegou mesmo a porra do
chinelo! Kkkkkkkkkkk
Monstro: É bom essa menina valer a pena, porque ela
acabou de estalar aquela merda na minha bunda!
Bernardo: Ainda quero saber quem é Marcela!
Gustavo: Tem mais uma coisa: ela não sabe sobre a
Camila, e eu quero que continue assim. Então, não toquem
no assunto.
Monstro: Sabe, Gustavo, você me irrita. Faz a gente
engolir a seco aquela coisinha insignificante que você
chama de noiva, depois pede para que sejamos gentis com
outra mulher, uma mulher que não sabe que você está
noivo e, acima de tudo, uma mulher que fodeu a sua vida
da primeira vez que entrou nela. Não sei se fico puto com
você, ou se me compadeço da merda em que está se
metendo. O que pretende com isso?
Gustavo: A Marcela é só uma amiga, Monstro, uma
amiga para quem eu ainda não tive oportunidade de contar
que tenho uma noiva, vou dizer na hora certa.
Monstro: Você se casa daqui a três meses, quando
vai ser a hora certa?
Gustavo: Não vou mudar de ideia sobre o casamento,
se é isso que está pensando.
Monstro: Imagina, nem me passou pela cabeça que
tivesse mesmo criado juízo. Quem falou alguma coisa de
desistir do casamento foi você, e não eu! Tá devendo, é?
Gustavo: Eu não estou pedindo, estou MANDANDO
vocês calarem as malditas bocas. Fim de papo. A porra da
vida ainda é minha, Augusto Bittencourt.

Fecho o celular e respiro fundo. Merda. Eu era


mesmo transparente, ou meu irmão era intrometido além
da conta? Antes de ler suas suposições, nem havia me
passado pela cabeça que minha família poderia estar com
a ideia errada sobre minha relação com Marcela. Já
bastava eu ter minhas dúvidas, não precisava deles em
cima de mim fazendo as mesmas comparações com as
quais eu estava me torturando.
Marcela era sem igual. Por mais que eu tentasse não
compará-la à minha futura esposa, eu sempre falhava.
Camila jamais sairia de casa sem maquiagem, vestindo
uma calça jeans surrada e uma camiseta branca, jamais
ficaria nervosa com a possibilidade de não ser aceita pela
minha família; ela não se importa com eles, mas se
importa com a sua beleza. Jamais tiraria os sapatos e faria
algo tão banal quanto corações em um vidro com o dedo
do pé, e jamais ficaria tanto tempo com um esmalte até a
cor se desgastar. Eu gostava de sua vaidade, do poder que
eu exercia ao desfilar com uma mulher monumental e de
seu jeito arisco de ser.
Eu gostava dela, mas eu amava corações desenhados
no vidro.
Amava a simplicidade de uma mulher que não
precisava agradar ninguém, mas queria, por mim. Uma
mulher que se preocupou em fazer um assado, colocar a
roupa certa e me perguntar se eles gostariam dela. Não,
eles não gostariam, eles amariam Marcela e, quanto a
isso, eu não tinha a menor dúvida, porque veriam nela o
que eu vejo. Eles, assim como eu, veriam que ela era a
mulher certa para mim, é uma pena que ela nunca tenha
visto.
Eu sentia falta de ter uma mulher divertida, que
criticava minhas músicas e não ligava para a quantia
disponível na minha conta corrente. Uma mulher forte, que
nunca precisou diminuir ninguém para se sentir bem
consigo mesma; uma mulher que jamais teria coragem de
arrancar as roupas e se espreitar na cama de um homem
comprometido, apenas com a intenção de machucar outra
mulher.
Me forcei a parar de pensar, aquilo não me levaria a
lugar algum. Eu estava com a Camila por um motivo,
porque Marcela nunca me quis. Caso contrário, eu nunca
teria deixado que ela saísse da minha vida. Me martirizar,
imaginando um futuro que nós não teríamos, não podíamos
ter, era a pior decisão que eu podia tomar. Na verdade,
era a segunda pior, me apaixonar novamente por ela era a
pior. Então, respirei fundo e tentei aceitar meu papel nesse
jogo, novamente eu seria seu melhor amigo.
Um melhor amigo que nunca deixou de sentir algo
mais.
Capítulo 25 - Bárbara

“Eles se amam. Todo mundo sabe, mas ninguém


acredita. Não conseguem ficar juntos. Simples. Complexo.
Quase impossível.”
Tati Bernardi

Toda brincadeira tem um fundo de


verdade

— Estamos oficialmente ferradas — sibilei no ouvido


de Anna com urgência, assim que consegui cercá-la em um
canto da casa, depois de uma boa meia hora andando de
um lado para outro feito barata tonta.
Por cercá-la, quero dizer que esperei (nada
pacientemente) que sua bexiga (que andava sendo
exprimida por uma certa anjinha) desse sinal de vida, e
ela se levantasse para ir ao banheiro. Antes que ela
pudesse fechar a porta, eu já tinha passado por ela às
pressas.
— Já podemos cavar nossas covas e esperar pelo
Monstro e pelo Ian com as pás para terminar o serviço.
Tudo bem se eu ficar com o canteiro de margaridas?
Sempre gostei delas.
— Se importa de falar enquanto faço xixi? Tô mesmo
apertada.
Ela não espera a resposta e vai logo abaixando as
calças. Incrível como se pega intimidade rápido com as
pessoas hoje em dia.
— O que nós fizemos dessa vez? — pergunta,
erguendo as sobrancelhas em dúvida; por nós, ela quer
dizer eu.
Sempre dou um jeito de botar a culpa das minhas
burradas em mais alguém, mas não dessa vez, dessa vez
eu não fiz sozinha, não mesmo.
— Gustavo está chegando, e o chinelo da vovó me
disse que ele não está vindo sozinho.
A chinelada ainda estava doendo, ganhei-a por fazer
perguntas demais, Augusto ganhou a dele por chamar o
Gustavo de otário, e a minha mãe ganhou a dela só para
acordar. O resto correu.
— Ele está vindo com ela?
Anna torce o nariz e morde os lábios, tenta fazer uma
careta reprovadora, mas seus olhos acuados a traem.
Medo. Ela ainda tem medo das pessoas que não conhece
ou das que ela julga não serem boas de caráter, então é
claro que está falando da Camila, e nem vamos começar a
discutir que aquela lá nem caráter tem. Temos que nos
preocupar com uma coisa mais importante, como, por
exemplo, salvar nossos pescocinhos intrometidos.
— Não, pior: ele está vindo com a Marcela.
Os olhos dela se iluminam, mas o brilho dura poucos
segundos, tempo suficiente para entender o porquê
estávamos ferradas. Eu sei, tive a mesma reação.
— Será que ela vai falar alguma coisa? — pergunto,
mastigando uma cutícula, esse estresse todo me deu fome.
— Não, claro que não. Ela pareceu ser profissional.
— Anna parece pensativa, não entendo, ela deveria estar
apavorada. — Interessante, realmente achei que ela não
iria aceitar aquela proposta maluca de seduzir seu irmão.
Porque, convenhamos, isso é baixo, principalmente para
alguém que tem um passado com ele.
— Eu também, mas esse não é o ponto. Podemos
discutir nossas teorias de conspiração depois. — Me
exaspero, passando-lhe um pedaço de papel higiênico, ela
agradece e eu continuo: — O ponto é que alguém vai
acabar descobrindo. Nunca fui boa atriz, Anna, vou
entregar a gente assim que alguém me oferecer um pedaço
de peru — lamento, dramaticamente. — O Ian vai me
matar!
— Bárbara, não exagera. — Revira os olhos, fazendo
com que eu queira chacoalhá-la. — Nós só temos que
fingir que não conhecemos a Marcela, não é tão difícil
assim — reclama, levantando as calças.
— Fácil para você dizer, não é?! Levou anos para
cultivar essa sua cara de planta artificial — resmungo,
irritada. — Como você consegue? — pergunto, enquanto
ela ri do meu desaforo.
Se ela escondeu de nós que era o bichinho de
estimação de um maluco, para ela seria fichinha fingir que
nunca viu a Marcela na vida.
— Simples, fique quieta — aconselha, enquanto lava
as mãos. — Não abra essa sua boca grande nem para
bocejar, e ficaremos bem. — Ela seca as mãos na minha
blusa e sai do banheiro, enquanto eu continuo pensando na
enorme intimidade que tínhamos desenvolvido.
Por que Gustavo não podia ser um irmão bonzinho e
arrumar uma Anna? Era uma pena que ela não tivesse uma
irmã!
Tudo bem, ficar quieta, não devia ser tão difícil
assim. Saio do banheiro e ando pelo corredor, roendo uma
unha, a cutícula já tinha ido para o saco. Claro que era
difícil, pelo amor de Deus. Quando consegui ficar quieta
nessa vida?
— Está tudo bem, amor? — pergunta Ian, surgindo do
nada, assim que piso na sala, me fazendo dar um pulo de
susto. — Está assustada? — pergunta, franzindo as
sobrancelhas. — O que você está aprontando?
Está vendo?! Eu nem tinha aberto a boca, e ele já
percebeu que eu estava tensa.
— Nada, só me assustei. Seria legal você avisar antes
de sair do bueiro, não acha? — Me viro para ele, tentando
parecer irritada, mas deve estar estampado na minha testa
que sou culpada de alguma coisa, porque ele assume uma
carranca zangada.
— Nem pense em encher o saco do seu irmão,
Bárbara. Dê-se por feliz que ele não está trazendo a
Camila e, por tudo que é sagrado, não pergunte para a
menina sobre a família dela.
Essa é nova. Meus olhos se arregalam, e ele emite um
palavrão em alto e bom som. Antes que eu possa perguntar
o porquê, ele me conta.
— Não sei os detalhes sórdidos, sua fofoqueira, mas
parece que ela perdeu toda a família em um acidente.
— Toda a família? — Meus olhos se enchem de água,
e ele me abraça mais forte.
Sinto que ele não quer responder minha pergunta, mas
cravo meus olhos nos seus e ele se vê sem saída. Seu
brilho azulado se intensifica, ele tenta desviar o olhar,
mas não permito, me movendo na sua frente até que ele
fale.
— Pais, filho e, se não me engano, o marido.
Então, era isso, esse era o peso que vi nos olhos
infelizes dela. Toda a aura de dor que senti ao seu redor, a
camada protetora e a pose de durona como se nada mais
tivesse o poder de derrubá-la. Estava tudo explicado.
Marcela, assim como Anna e eu, era marcada. Mas,
diferentemente de nós, ela havia perdido mais.
Eu perdi a confiança, Anna perdeu a mãe, mas
Marcela havia perdido tudo.
— Filho? — Penso em Zach e em Valentina, e meu
peito dói.
Não consigo pensar em nada, absolutamente nada, que
seja mais doloroso do que perder um filho. Eu morreria se
perdesse um dos meus pestinhas, barulhentos e
bagunceiros.
— Sim, um filho — diz, desconfortável. Pelo seu
olhar assombrado, posso ver que a ideia também é
inimaginável para ele. Uma sombra passa por seu olhar e
ele balança a cabeça, decerto para afugentá-la. — Pelo
que entendi, ela e seu irmão se esbarraram na rua,
Gustavo não quis entrar em detalhes e, ao descobrir que
ela ia passar o Natal sozinha, resolveu trazê-la — conta,
mudando de assunto.
— Foi muito gentil da parte dele. — Mas isso não me
surpreendia, ele era assim.
Certa vez, em um Natal, apareceu com um garoto de
rua que estava pedindo esmolas no farol. O menino tomou
banho, jantou com a nossa família e, ainda, de quebra,
ganhou o presente de Natal do meu irmão. Não importa o
quanto ele tivesse perturbado a vida dos nossos pais por
aquele skate, ele entregou o embrulho nas mãos do menino
com um sorriso largo e olhos contemplativos. Gustavo até
conseguiu um emprego para ele na padaria a duas quadras
da casa da vovó, certo tempo depois. Eu amei o gesto,
amei mais ainda ganhar pãezinhos doces de graça sempre
que aparecia por lá.
— Ele pediu para que fôssemos gentis, isso quer
dizer que você não deve bancar o cupido ou importunar a
menina com várias perguntas.
Isso explicava muita coisa, a chinelada que minha avó
havia me dado não explicou tanto. Ela só gritou que
Gustavo estava vindo com Marcela, e que era para nós
nos comportarmos ou o chicote ia estalar mais tarde, o
que eu, particularmente, achei bem estranho, porque ela
nunca nos bateu antes, pelo menos não com tanta vontade.
Ela deveria estar tensa, ou nós havíamos esgotado sua
paciência. Também, depois de tantos anos aprontando,
uma hora ela ia acabar mesmo, até que demorou.
— Claro, vou ser simpática.
Ian ergue as sobrancelhas, como se não acreditasse
em mim, o que me é confirmado pela veia em seu
pescoço. Uma hora dessas, aquela veia ia acabar
explodindo.
— Prometo.
Ele ainda parece não acreditar.
— Para de ser chato, eu vou tentar, caramba!
— Tem mais... — Ian franze o cenho e desprende uma
de suas mãos para passá-la em seu cabelo cor de areia. Eu
ainda não entendia como o dele sempre estava mais bonito
do que o meu; usávamos o mesmo condicionador, poxa!
— Ele não quer que comentemos sobre a Camila, ele
ainda não teve a... — Ele faz uma pausa, decerto tentando
encontrar a palavra correta, mas, àquela altura, meu
sorriso já estava estampado na minha cara —
oportunidade de lhe contar. — Oportunidade, é? Meu
marido era um iludido. Eu chamaria aquilo de safadeza,
mas, conhecendo bem o meu irmão, o mais coração
manteiga derretida deles, eu apostava que o nome correto
era dúvida.
— Você está com aquele olhar — comenta Ian,
alarmado.
— Qual? — pergunto, mostrando mais dentes do que
o gato da Alice no País das Maravilhas.
Nem se eu trombasse com o Johnny Depp em pessoa
na rua e ele me convidasse para um passeio no Pérola
Negra, eu estaria mais animada.
— Aquele sorriso estranho que você dá quando está
pensando em fazer merda. — Lá se vai a veia outra vez.
Eu tinha que admitir, ela era resistente.
— Cheguei — berra a voz conhecida de Gustavo na
garagem, me dando a oportunidade perfeita para ignorar
meu marido e saltitar até a porta com mais entusiasmo do
que o Bambi (antes da mãe dele... você sabe).
— Bom, ele sabia do risco ao trazê-la, não é? —
escuto Ian murmurar para si mesmo ao me afastar. — Não
é como se ele não conhecesse a própria irmã.
Pelo visto, não sou a única curiosa. Toda a família,
milagrosamente, apareceu na sala, assim que a voz dele
foi ouvida. Dou uma boa olhada ao redor. Anna está no
colo do Augusto e parece que está levando uma bronca,
assim como levei há pouco. Vivian brinca com as crianças
no chão com o olhar na porta, e até Bernardo parece
ansioso enquanto arruma um enfeite de Natal que nem
torto estava. Papai assiste ao jornal, mas posso ver seus
olhos se desviando para a porta a cada segundo, e minha
mãe... Bom, minha mãe está em Marte batendo um papo
com um ET, sentada em uma poltrona.
— Olá, filho — diz vovó, alegre, ao abrir a porta. —
Você deve ser a Marcela. Seja bem-vinda, querida. —
Seus olhos brilham em reconhecimento, e ela sorri com
afeição, traindo suas palavras. Eu não sei como, mas
tenho certeza de que vovó já a vira antes.
— Olá! A senhora deve ser dona Eva. — Marcela
aparece em nosso campo de visão, e paramos de fingir
para encará-la sem a menor educação.
Fazemos questão, também, de ignorar o olhar
reprovador de Gustavo. Ele apresenta sua amiga (sei)
para todos e, quando chega a minha vez, me levanto e lhe
dou um beijo na face. Nem respiro até me sentar
novamente, enquanto ela passa para o próximo da fila.
Marcela não olha duas vezes nem para Anna, nem
para mim. Minha cunhada tinha razão, ela era mesmo
profissional. Tudo o que ganho é um levantar de
sobrancelhas e um sorriso doce, depois de ficar, mais ou
menos, cinco minutos sem conseguir desviar o olhar dela.
Amei as botinhas de franjas.
Por um lado, eu estava decepcionada. Eu não queria
que ela tivesse aceito meu pedido de seduzi-lo somente
por dinheiro, já que eu não era tapada o bastante para
acreditar que eles, acidentalmente, tinham se esbarrado
em uma rua qualquer. Mas, por outro, estava feliz da vida
por vê-los juntos. Secretamente, eu tinha esperança de
que, ao se aproximarem, o que quer que tivessem vivido
faria com que ele balançasse em sua decisão de se casar
com Camila. Trazê-la para o Natal era um grande passo;
com exceção do menino do farol e alguns cães famintos,
ele nunca trouxe ninguém, especialmente uma mulher.
— Espero que não se importem, mas eu tive que
trazer meus... é... — Ela olha para Mala, em busca de
ajuda, com olhos suplicantes e bochechas coradas.
— Cachorrinhos — ele responde, e Marcela ri, se
escorando nele levemente em um gesto casual.
Ele se volta para sua risada sem nem ao menos
perceber, como se tivesse sido atraído por ela, como se
ela fosse o Sol e ele tivesse o impulso de girar ao seu
redor, lhe lançando um sorriso cúmplice ao encostar seu
braço sutilmente ao dela.
Sintonia, essa é a palavra para o que vejo.
Pouco depois, dois cachorrinhos do tamanho de uma
casa (cada um) chegam à porta, sendo trazidos por Mala
na coleira. Ignoro a cara de mau de ambos e corro até lá,
me agachando e passando a mão por suas cabeças. Ian
tenta gritar alguma coisa, mas estou distraída coçando
orelhinhas. Meu marido não precisava se preocupar que
eles me mordessem, eles estavam me ignorando
completamente, ambos olhando para Marcela, como dois
robôs esquisitos.
— Eles são é... meio... estranhos — diz, como se se
desculpasse. — São de um amigo meio excêntrico.
Ah, sim, agora faz todo sentido. Eles devem ser do
senhor com o gosto duvidoso para ternos que nos atendeu
em seu escritório; eu deveria ter imaginado logo de cara
pelas coleiras enormes cravejadas de cristais, que não
pareciam nem um pouco falsas.
— Bom, eles gostaram de mim — se gaba Gustavo.
Claro que gostaram, devem ter sentido o cheiro da
cadela vira-lata com a qual ele morava.
— Vou levá-los para brincar com Vito.
Pego as coleiras e os levo para o quintal. Todos, sem
exceção, se encolhem quando nós passamos. Solto os dois
na grama, e eles se sentam, enquanto meu cachorro
ansioso cheira seus bumbuns com afinco. Depois de
conferir o material, Vitório começa a correr em círculos
em volta das duas estátuas, que nem ao menos o olham.
Ele se agacha nas patas dianteiras e late, pegando impulso
para mais uma corrida feliz da vida, o pobrezinho foi
ignorado.
— Sejam bonzinhos e brinquem com ele! — lhes dou
uma bronca que, em nada, adianta, pois eles continuam
olhando para mim com cara de poucos amigos, sentados
um ao lado do outro. — Mamãe tentou, Vito, boa sorte em
fazer amizade com esses dois — exclamo e lhe dou as
costas.
Quando chego à porta da cozinha, me viro novamente
para trás; Vito ainda está mordendo a coleira de um deles,
enquanto o cão continua parado.
Ele vai acabar vencendo-os pelo cansaço.
Duras horas depois, a comida ainda não está pronta, e
eu estou entediada. As crianças brincam com os cães do
lado de fora, e meus pais estão na cozinha, recebendo
ordens frenéticas de Hitler vestido com um avental que
exibe uma mulher seminua com peitos invejáveis. Gustavo
e Marcela se refugiaram em um dos sofás e parecem ter
assunto para uma vida, o que aguça ainda mais o meu lado
intrometida. Resolvo me meter na história. Era isso, ou
assistir Anastácia pela milésima vez na TV aberta.
— Onde vocês se conheceram?
Quando dou por mim, minha voz saiu do meu corpo
sem a minha permissão e se jogou no vento, batendo no
rosto de Marcela e Gustavo como um tapa. Eu tive meu
castigo. Um Ian que nem tinha notado sentado ao meu lado
me deu um belo de um beliscão na coxa, aquela merda ia
ficar roxa.
— Em uma festa, no apartamento onde Gustavo
morava com eles — ela responde, apontando para
Monstro e Ian.
Foi impressão minha, ou meu marido congelou ao meu
lado?! Dou-lhe uma olhada feia, anotando mentalmente
para lhe perguntar que tipo de festinhas ele dava em seu
apartamento antes de eu voltar para sua vida.
— Ela invadiu meu quarto com uma garrafa de uísque
roubada e me desafiou em uma partida de videogame. —
Mala ri, apoia o cotovelo na perna e vira sua cabeça em
direção a ela, dando-lhe um sorriso torto. — Claro que eu
ganhei, e, em troca, ela me prometeu uma amizade para a
vida toda.
O sorriso continua em seus lábios, mas seu olhar
divertido muda. Eu vi um lampejo de tristeza nele, tenho
certeza de que vi. Olho para Vivian e a encontro me
encarando com nosso olhar particular, ela também viu.
Monstro parece pensar o mesmo, se é que eu conheço a
cara indignada do meu irmão. Então, eu não estava
imaginando.
— Acho que poderíamos brincar de alguma coisa
para passar o tempo, enquanto a vovó termina o jantar, o
que acham? — Não espero a reposta de ninguém, continuo
encarando Vivian, ela sabe o que fazer a seguir. Me
apoiar, logicamente.
— Ótima ideia, amiga. — Ela parece a única
animada. Bernardo dá de ombros, Monstro reclama, Ian
não fala nada, e Anna olha para Monstro com cara de
adoração, nem ao menos parece ter me escutado. — O que
você sugere?
— O jogo do “Eu conheço você”. — Todos me olham
com cara de idiotas. — Você ama esse jogo, Monstro.
Ele me olha por apenas um segundo em dúvida,
depois encara Gustavo, que ainda olha para Marcela,
acreditando que ninguém o está observando, e concorda,
se rendendo.
— Claro, eu amo esse jogo. Vai ser divertido! —
Vamos ignorar que ele está sendo sarcástico, e que eu
acabei de inventar aquela merda de jogo. — Por que você
não explica as regras para todo mundo? — pergunta, com
um sorriso zombeteiro, acreditando que me pegou.
Não tenho dificuldade, já que sou muito mais esperta
do que ele pensa.
Me levanto e vou até a árvore de Natal, apanho a
caixa de papelão com os presentes e volto para o meu
lugar sorrateiramente. Se vovó nos vir abri-los antes da
meia-noite, o chinelo vai cantar, de novo.
— Cada um pega um dos seus presentes e oferece à
pessoa que imagina conhecê-lo mais. Você vai fazer três
perguntas para essa pessoa; se ela errar, tem que pagar um
castigo para ganhar o presente. Na vez do Mala, ele pode
incluir a Marcela, e ela brinca com ele, já que não
conhece nenhum de nós.
— Não posso brincar, não deu tempo de comprar
presentes — diz Marcela, sem jeito.
Não, querida, você não vai frustrar os meus planos,
esquece.
— Não tem problema, você me paga depois —
oferece Gustavo, pulando de peito aberto dentro da minha
armadilha de pegar irmão tapado. — Mas eu não conheço
esse jogo — exclama, olhando de mim para Monstro com
suspeita.
Levanto o olhar, e vovó está de braços cruzados ao
lado do papai na porta da cozinha. Ambos me encaram
com confusão. Ela olha de mim para a caixa de presente e
franze os lábios, mas fica quieta, esperando para ver até
onde vou chegar.
— Inventamos depois que você se mudou.
Ele ameaça falar, mas sou mais rápida.
— Dá para fazer várias coisas em semanas, você nem
imagina o quanto.
Sei que ninguém está entendendo nada. Ian continua
congelado ao meu lado, e eu não me atrevo a encará-lo;
Bernardo parece estar se divertindo com a minha
imaginação fértil; Vivi e Anna são as únicas que parecem
estar perto de um entendimento. Eu sei que vi um olhar de
tristeza quando ele mencionou a amizade que, obviamente,
não durou uma vida, muito menos chegou perto disso –
tirando o fato de que, se ele realmente se casasse, o fim da
vida dele estaria bem próximo, eu ia cuidar pessoalmente
para que sofresse um acidente –, então eu queria saber o
quanto esses dois se conheciam. O quanto combinavam e,
acima de tudo, queria ver lampejos do que eles
representaram um para o outro, um dia.
Marcela pareceu ficar surpresa quando eu disse que
meu irmão a amou, e ele pareceu ter saído magoado dessa
relação. Estavam faltando peças nesse quebra-cabeça.
— Por que você não começa, amor? — pergunta
Bernardo para Vivian, com uma risada.
— Ok — ela bate palmas —, eu escolho a Babi, é ela
quem me conhece melhor.
O sorrisinho de deboche do Bê se escafedeu naquele
momento. Monstro teve um ataque de riso, e até Ian tirou
um sarro. Vivian parece não se importar ao andar até o
centro da sala e vasculhar a caixa atrás do presente que
comprou para mim.
— Desculpa, amor, mas é verdade. — Vivi dá de
ombros, alheia à cara azeda do marido. — Vamos brincar,
então, hum, me deixa pensar... — Ela coloca um dedo
sobre os lábios e se recosta sobre Bê no sofá, mas ele a
empurra de volta, fazendo-a rir. — Sem o que eu não
suportaria viver? O que mais gosto de fazer? Liste três
das minhas manias.
— Fácil — murmuro, me empolgando com a minha
brincadeira inventada. — Maquiagem, dar aulas para
aqueles pirralhos mimados e, por fim: limpar, organizar e
assustar as pessoas enquanto elas dormem.
— Isso está errado — reclama Bê, me olhando torto
—, a resposta da primeira pergunta sou eu! Ela não
consegue viver sem mim. — Ele olha para Malibu em
busca de uma confirmação, mas ela volta a dar de ombros.
— Não, amor, é isso mesmo. Viver sem maquiagem
seria um apocalipse na minha vida. Outro marido eu até
encontro, sair na rua sem corretivo e base? Ah, aí não dá!
Dessa vez, o acesso de riso do Monstro dura mais
tempo, e só é contido quando Bernardo joga uma almofada
em sua cara. Fico bem contente com as Havaianas de
pedrinhas que ela comprou para mim, e ela não parece
nem um pouco consciente de que seu marido está a ponto
de ter um ataque.
— Ok, minha vez. Como eu não posso escolher o
Vitório, vou escolher você, Mala. — Pego outro presente,
levando mais um beliscão de Ian. Penso seriamente em
dar na cara dele, mas resisto. Eu tenho uma missão a
cumprir.
— Ria de mim agora, seu imbecil! — diz Bernardo,
provocando Ian.
— Quais foram os três dias mais felizes da minha
vida? Qual foi o dia em que eu mais me senti humilhada?
Qual dos meus irmãos me ama mais a ponto de se
preocupar comigo na hora de se apaixonar?
Seus olhos se arregalam e ele comprime os lábios,
parece surpreso e sem jeito com as minhas perguntas. Ian
ameaça colocar a mão na minha bunda outra vez, mas eu
seguro seu punho:
— Se me beliscar de novo, vou arrancar seus olhos
com uma colher enquanto você dorme — sussurro
baixinho, enquanto Mala ainda parece desconfortável em
me responder.
— Vamos logo, Gustavo, não temos a noite toda —
ralha Monstro, finalmente contente por ter entrado na
minha onda, ele me olha e dá uma piscadinha.
Está visivelmente adorando o fato de ter posto nosso
irmão em um paredão de fuzilamento imaginário.
— Os dias em que as crianças nasceram, e o dia em
que você pisou em um tapete vermelho e disse sim ao Ian.
— Ele faz um aceno para o meu marido, que me puxa para
seu colo com afeto. — O dia em que uma garota te jogou
em um rio e, por fim... — ele trava e, de onde estou, posso
ver seus olhos marejarem. — Eu, eu te amo mais. O
Monstro só ama a si mesmo e aquele carro estúpido.
— Ei, ele me ama também! — grita Anna, ultrajada.
— Desculpa, e a Anna, ele também ama a Anna —
diz, sorrindo torto para ela. — Como você se sente feliz
com isso é o que não entendo. Você pode achar coisa
melhor, sabia? — pergunta, provocando nosso irmão que,
instintivamente, passa um dos braços sobre a Anna de
maneira possessiva. Às vezes, eu ainda acho que ele tem
medo de que ela fuja.
— Bom, você errou a última resposta — alfineto —,
mas, mesmo assim, vou te dar o presente. — Porque eu
sou uma pessoa má, muito má. Ele abre o embrulho todo
feliz e se depara com a vaquinha de pelúcia que eu lhe
comprei. — Achei a sua cara!
Para minha surpresa, ele não pira, nem me xinga, ele
ri. Ele ri tanto que chega a sair lágrimas de seus olhos.
Encaro Monstro, ele parece tão surpreso quanto eu.
— Então, é minha vez, certo? — pergunta Mala, se
virando para Marcela. — Você está pronta?
Ela sorri e estreita os olhos, cruzando as mãos no
colo nervosamente.
— Do que eu tenho mais medo? O que gosto de fazer
para pensar? Qual a minha maior saudade?
— Você tem medo de avião e de fantasmas, tanto
medo que quase fez xixi nas calças na última vez em que
te contei uma história de terror antes de dormir. Lembra?
Naquele sítio em que fomos com o pessoal da faculdade?
Te encontrei dormindo sentado no chão com a cabeça no
pé da minha cama, porque você disse que estava
escutando barulhos estranhos no quarto dos meninos. —
Ela ri. — O que você mais gosta de fazer é correr, porque
diz que sua mente fica em branco, e que só nesses
momentos consegue pensar no que realmente é
significativo e importante; e, por fim, acho que você não
tem saudade de nada, não precisa ter, você tem tudo. —
Os olhos dela brilham levemente e ela pisca para tentar
esconder seu desconforto.
— Não. — Ele balança a cabeça em uma negativa. —
Minha maior saudade é você. — Sua voz é firme e seu
olhar é duro.
Marcela pisca repetidas vezes, incrédula. Não é a
única. Meu queixo cai, o dela também. Porra, o queixo de
todo mundo cai, até o da vovó, que ainda está assistindo a
tudo da porta da cozinha.
Dessa vez, a tristeza permeia por mais tempo no olhar
do meu irmão, mesmo que ele tente escondê-la com um
sorriso, ela permanece em suas íris como se fosse uma cor
disforme e exótica. Nunca o vi com aquele olhar antes.
— Mesmo você tendo errado, eu vou te dar o
presente. — Ele retira uma caixinha quadrada de veludo
vinho do bolso da calça, e eu prendo a respiração.
Deus, você me ouviu, não foi? Obrigada, obrigada,
obrigada. Mas aquela história de nunca mais chegar perto
do sorvete de café era blefe, você sabe, não sabe? Inclino
meu pescoço o máximo que consigo e fico decepcionada
ao ver que é só uma droga de pingente. Eu estava
brincando, poxa, o cara lá de cima não tem mesmo senso
de humor.
— Por que a asa? — ela pergunta, embasbacada,
olhando para o pequeno pingente dourado preso dentro da
caixinha, que ele estende em sua direção com
encantamento.
Ela deveria erguer a cabeça, deveria olhar para cima,
o sorriso que ele está lhe dando deveria ser contemplado.
Era o mesmo sorriso que via no rosto do meu irmão
sempre que olhava para Anna; no rosto do Bê ao olhar
para Malibu, e no rosto do Ian, quando olhava para mim.
Bingo!
— Da última vez, eu te dei a âncora. Você se lembra o
que te respondi quando me perguntou o significado?
Ela assente e não esconde os olhos marejados dessa
vez, suas mãos estão caídas ao lado do corpo e ainda
encara o pingente, como se fosse a coisa mais bonita que
já viu na vida.
— Para que meus pés nunca saíssem do chão. — Ela
sorri involuntariamente, mas o sorriso não chega nem na
metade de seu rosto redondo e bem esculpido. — Mas,
por que, agora, ganhei a asa?
— Porque é hora de mudar. — Ele puxa sua perna
para cima de seu colo e, com uma mão ágil, arranca sua
bota, erguendo a calça jeans, até que uma tornozeleira
fique aparente. Ele a abre e retira o pingente preso a ela, a
âncora que ele havia lhe dado, e o substitui pela asa. —
É hora de você voar, Marcela.
Antes que ele possa soltar sua perna, ela o envolve
em um abraço apertado e desajeitado, jogando seus
braços em volta de seu pescoço, afundando o rosto em sua
curvatura, enquanto ele a aperta de volta com a mesma
intensidade. Ambos permanecem colados, até que o
silêncio que pairou na sala se torne constrangedor, então
Marcela pigarreia e o solta como se, de uma hora para
outra, ele pegasse fogo.
Meu irmão a olha como se não quisesse tê-la soltado.
É um misto de saudade, abandono e carinho extremo, que
me faz ter a certeza de que ele nunca conseguiu esquecer
aquela mulher. Em contrapartida, ela olha para mim. No
olhar dela, eu vejo remorso, arrependimento e esperança.
Aquele olhar me diz que ela não entrou nessa pelo
dinheiro.
Ela não está tentando seduzi-lo, ela está apaixonada
por ele.
Capítulo 26 - Marcela

“Desculpa meu jeito, meu mal jeito, falta de jeito.”


Caio Fernando Abreu

O pernil assassinado

Sinto meu tornozelo latejar no exato lugar em que,


agora, mora uma asa. Eu gostaria de poder arrancar os
sapatos e colocar as pernas para o alto para admirar a
beleza de mais um gesto simples que me desarmou
completamente. Voar, ele quer que eu voe. Como eu
poderia? Tenho um peso tão grande dentro do peito, que
jamais conseguiria planar sem cair no chão. Peso esse que
vem do segredo que escondo justamente do homem que
quer que eu me liberte.
Um segredo que pesa o equivalente a uma tonelada de
culpa.
Não vou pensar nesse segredo hoje.
Me encosto nas portas duplas de vidro que levam ao
jardim e admiro a família em polvorosa em volta da mesa;
todos riem, falam alto, xingam uns aos outros, brigam, se
abraçam e brigam de novo. Desde que minha família
morreu, nunca mais passei um Natal assim, cheio de vida,
alegria e sons, a não ser os sons produzidos pelos meus
soluços altos e entrecortados ecoando em um cômodo
vazio. Pelo contrário, em todos eles fui dormir mais cedo,
cobri meu rosto com o edredom e chorei até pegar no
sono. Milagrosamente, eu não tinha a mínima vontade de
chorar naquele ano, pelo menos não até ver a dona Eva
trazendo meu pernil assado ao molho de laranja tostada e
o depositar no centro da mesa de jantar, com um sorriso
doce pregado aos lábios.
— Você palece tiste, po quê? — pergunta uma voz
infantil ao meu lado, me fazendo levar um susto.
Me volto para ela e encontro um garotinho de olhos
verdes brilhantes me olhando de com atenção. Ele parece
curioso e ansioso. Muito mais preocupado do que eu
acreditaria ser possível para alguém da sua idade.
— Não gosta do Papai Noel? — Ele franze as
diminutas sobrancelhas loiras e aguarda minha resposta.
Eu já havia notado as crianças, mas tentei ignorá-las e
fingir que não existiam, era mais fácil assim. Virar o rosto
para o outro lado, tapar os ouvidos para ignorar uma
risada sonora e pura, fechar os olhos para não ver um
sorriso aberto com dentes faltando. Se eu fingisse não ver,
podia fingir não me importar. Podia fingir que algo não
estava se quebrando dentro de mim em todas as vezes que
eu via uma delas.
Havia um casal na casa e mais dois bebês, mas eu não
sabia se eram meninos ou meninas; eles ainda não haviam
deixado o berço, embora pudesse ouvi-los vez ou outra
conversando entre si com grunhidos e grasnados
indecifráveis em um dos quatros.
— Eu não... eu — gaguejo, tentando articular uma
frase coerente. — Qual seu nome?
Olho-o com atenção. Seus cabelos claros contrastam
com a pele bronzeada e, embora seja franzino, seu rosto é
lindo. Mas são os olhos que mais chamam minha atenção.
São marcantes e expressivos. São olhos de uma criança
que sabe demais para a idade que tem.
— Nicholas, mas pode me chamá de Nick. — Então,
ele sorri, e minha garganta se aperta como se uma mão
invisível estivesse tentando me estrangular; não passa
nada sob essas mãos ágeis, nem ar, muito menos palavras.
— Quer dar uma volta?
Me vejo assentindo e pego, sem pensar, a mão que ele
me estende. Foi um erro.
É a primeira vez que sinto as mãos de uma criança
nas minhas desde a morte do meu filho. A sensação é
indescritível, maravilhosa e torturante ao mesmo tempo.
Ela me remete a lembranças que tento nunca acessar.
Abraçá-lo e encostar o nariz em seus cabelos fartos,
negros e finos, sentir seu cheiro de bebê, um misto de
colônia, inocência e doçura que apenas ele exalava. Sentir
seus braços se fechando atrás do meu pescoço e os leves
puxões nos meus cabelos, enquanto suas mãos se
emaranhavam ao tentar brincar com os fios. Sua risada
sonora e infantil, um pequeno grasnado acompanhado de
um sorriso quase banguela. O choro sentido e cheio de
lágrimas na hora de trocar a fralda, ou as mãozinhas
batendo na água da banheira com afinco e alegria na hora
do banho. Mãos esticadas em minha direção, me pedindo
colo, abrigo e carinho. Uma criança que não pude puxar
para meus braços, que não pude salvar antes que perdesse
a vida sob um amontoado de ferragens, uma criança que
eu perdi.
Se eu fechar bem os olhos e me permitir imaginá-lo,
consigo vê-lo sendo colocado nos meus braços por
alguém na sala de parto, não me lembro de quem eram as
mãos, porque eu olhava apenas para ele. Um pequeno
bebê rosado, um amontoado de cabelos negros, que
chorava sem parar.
Naquele dia, minha vida ganhou uma trilha sonora
vitalícia, ou foi o que pensei; eu acreditei que todos os
melhores sons que escutaria na vida viriam dele, e foi
assim enquanto ele pôde produzi-los, o que não foi por
muito tempo.
Consigo vê-lo dando sua primeira gargalhada, me
pegando de surpresa pelo barulho alto e espontâneo; ou no
tapete branco e felpudo da sala de estar, sentado e
inclinado sobre um brinquedo novo, um protótipo de
volante feito de plástico que ele adorou, enquanto eu o
admirava, recostada sobre as almofadas do sofá. Sua
cabeça se levantou abruptamente e ele me encarou, com os
olhos mais profundos, abrasadores e perspicazes que eu já
vira; depois veio o sorriso, o mesmo sorriso que anseio
todas as manhãs, o sorriso que tinha o poder de curar
tudo. Como se aquele momento já não fosse mágico o
bastante, sua boca se abriu e ele pronunciou sua primeira
palavra: mamãe. Eu chorei.
Eu estava errada quando acreditei que seus sons e
palavras seriam eternos porque, depois de um tempo, não
teve mais choro, nem gargalhadas, não teve mais ninguém
me chamando de mamãe. A música da minha vida foi
abruptamente interrompida por aquele “sinto muito,
senhora”; aquela, agora, era minha trilha sonora, a frase
que regia minha vida.
Nenhuma mãe deveria ser obrigada a enterrar um
filho, não está certo. Ele deveria crescer, e eu deveria
estar lá para ver isso, essa é a ordem natural da vida, meu
maestro errou. O primeiro dente colocado embaixo do
travesseiro na esperança de ganhar uma moeda da Fada do
Dente, a primeira festa à fantasia na escolinha, a primeira
competição de natação, a primeeru ira prova, a primeira
nota baixa, o primeiro beijo, a primeira namorada, a
primeira vez atrás do volante de um carro. Meu filho
perdeu tudo isso.
Você também perdeu, Marcela, você perdeu tudo, diz
uma voz que não se cala.
— O que vocês estão fazendo? — pergunta uma
menininha para Nicholas, me arrancando dos meus
pensamentos.
O garoto me arrasta pelo jardim até um banco de
madeira embaixo de um pé de figo, enquanto ela nos
segue.
— Ela tá tiste, mas eu não sei po quê — ele diz, me
empurrando gentilmente, tão gentilmente quanto uma
criança consegue, para o banco, e eu me deixo levar, me
sentando.
Ambos se sentam aos meus pés, na grama, e me
encaram como se eu fosse um quebra-cabeça nível hard.
Não estão errados. Ainda não me sinto capaz de falar,
minhas mãos suam e o nó na minha garganta fica cada vez
maior. Já posso sentir meus olhos se umedecerem e meu
nariz pronto para começar a escorrer.
— Já tentou perguntar para ela? — pergunta a
menininha, alisando uma das marias–chiquinhas,
estudando meu rosto com sobrancelhas erguidas.
Ele assente e faz o mesmo. Começo a me sentir meio
desconfortável em ser encarada dessa maneira,
principalmente porque sei que estou a ponto de chorar, e
vou acabar assustando essas duas pestinhas bem
intencionadas.
— Moça do cabelo bonito, por que você está tão
triste?
Eu pisco sem acreditar na polidez com a qual aquela
pergunta foi feita. Ela parece genuinamente interessada e
preocupada, mas não só comigo; a garotinha estende uma
das mãos e pega a de Nick nas suas, para confortá-lo, e
depois coloca a outra no meu joelho, em um claro
incentivo para que eu divida meu problema com eles.
Então, eu falo. Mais tarde, revivendo aquela cena na
cabeça, chego à conclusão de que falei porque ela disse
que meu cabelo era bonito, estava difícil conseguir
elogios ultimamente.
— Meu filho — gaguejo. Eles assentem e esperam,
com paciência, que eu continue. Sinto sua mãozinha na
minha perna e fecho os olhos, me concentrando apenas no
calor de seu toque —, eu queria estar com meu filho hoje.
Queria vê-lo desembrulhar seu presente com a velocidade
de um animal faminto, fazendo chover papel com estampa
de rena, eu queria ver seu sorriso contemplativo para o
brinquedo novo, ganhar um beijo e admirá-lo brincar por
horas a fio.
— Onde ele está? — pergunta Nick, se animando de
repente. — Papai pode buscar ele para você, papai
consegue fazer qualquer coisa.
— No céu, ele está no céu, Nick. — Sorrio
fracamente, sentindo uma lágrima escapar dos meus olhos
e rolar pela minha bochecha gorducha.
— Bom, isso nem seu papai nem o meu conseguem
fazer, Nick. Quando alguém é chamado para trabalhar no
céu, não pode voltar — diz a menininha, com pesar.
Nick não parece entender as proporções do que é
estar no céu, mas ela, sim. Suas feições, antes serenas e
observadoras, se tornam tristes e ela se levanta,
cutucando-o e lhe apontando o banco onde estou sentada
para que ele a siga. Quando entendo o que estão fazendo,
rompo em lágrimas de uma vez. Eles se sentam ao meu
lado e envolvem, com seus braços pequenos e magrelos, o
meu corpo redondo; a força é quase nula, mas nunca me
senti tão protegida como me senti dentro daquele abraço.
— Não chora — consola Nick, enquanto afundo o
rosto nas mãos.
— Deixa ela chorar, Nick. Mamãe diz que, depois
que a gente chora, a gente fica melhor.
Tudo o que sinto são braços enrolados na minha
cintura, mãozinhas se emaranhando nos meus cabelos em
um afago desajeitado e uma tristeza sem fim, até que uma
voz conhecida berra a certa distância.
— Merda, as crianças — consigo escutar Gustavo
correndo em nossa direção e o baque surdo produzido por
seus pés batendo na grama ao longe.
Sei precisar o exato momento em que ele nos alcança
e levanto o rosto em um ímpeto de coragem, mesmo
sabendo que vou me arrepender no instante em que nossos
olhares se cruzarem. Eu acreditava não estar pronta para
vê-lo com pena de mim, mas, quando vi seus olhos
marejados, descobri que existia algo pior do que pena.
Não suportei vê-lo daquela maneira por minha causa, por
causa de Bento, ver sua tristeza era demais para suportar.
— Devemos entrar, titio? — perguntou a menininha,
sem me soltar.
— Sim, por favor, Tina.
O abraço, por um momento, se tornou mais forte,
depois os braços sumiram. Me senti desalentada sem eles
à minha volta.
— Pede seu filhinho de volta para o Papai Noel.
Mamãe diz que o Papai Noel não recusa um presente se
você se comportou direitinho durante o ano todo — Nick
diz no meu ouvido, antes de pular para fora do banco.
Eu o encaro sem saber o que lhe responder quando
ele se volta para a menininha, Tina, e ela revira os olhos
diante da ideia. Se fosse assim, eu estava lascada, porque,
definitivamente, não fui uma boa menina, mais ou menos,
desde que nasci. Se Papai Noel tivesse mesmo uma lista
negra, meu nome estaria entre os dez primeiros.
— Não custa tentar. — Ela não parece convencida de
que vai resolver. Antes de nos dar as costas, ela tira meu
cabelo do rosto e beija minha bochecha molhada
demoradamente. — Você parece a Ariel, a sereia. — Dito
isso, joga o braço para frente, agarra a mão de Nicholas e
dispara pelo jardim com ele em seu encalço.
— Não, você é a Branca de Neve, e não a Ariel, a
minha Branca de Neve.
Olho para Gustavo sem entender, enxugando o rosto
rapidamente com as costas da mão, como se me
envergonhasse por chorar em um dia que ele fez de tudo
para que eu sorrisse. Vendo minha confusão, ele parece
notar ter dito as palavras em voz alta pela primeira vez,
balança a cabeça, como se afugentasse a ideia, e se senta
ao meu lado.
Eu olho para o chão, e não dizemos nada por um
longo tempo.
— Me mata não saber como te ajudar — ele sussurra,
baixinho, em uma voz carregada de sentimento. — Não
entendo nem um milésimo da dor que você sente e não
posso trazê-los de volta. Me perdoa, Má, eu não posso
fazer nada por você... — sua voz se embarga e meu peito
se enche de culpa. — Nada além disso. — Ele passa um
braço em volta dos meus ombros e me puxa para perto de
seu corpo, eu me enrijeço no banco de madeira sob seu
toque.
Não ouse me pedir perdão. Você não pode. Não
pode. Você não me deve nada.
Tento me afastar, mas o calor do seu corpo me atrai e,
antes que eu possa me impedir, estou me sentindo segura
em seus braços outra vez.
— Desculpa... — por tudo.
Não consigo começar a enumerar todos as razões
pelas quais eu deveria me redimir perante ele, assim
como não sei se realmente merece essas desculpas, a
única coisa que sei é que não mereço seu perdão. Por
isso, me calo.
Não quero perdê-lo, ele é tudo o que me restou.
— Me fala sobre ele... sobre seu filho — ele fala tão
baixo, que fico na dúvida se realmente escutei alguma
coisa. — Como ele era?
Entrelaço minha mão na sua, a que ainda está em volta
do meu ombro, e me viro para ele; seus olhos ainda estão
marejados.
— Ele... ele foi a melhor coisa que aconteceu na
minha vida e a razão de ela ter se acabado. Eu sinto falta
de todos eles, Gustavo, mas é a saudade dele que não me
deixa viver.
Pisco para afugentar mais lágrimas, enquanto vejo
uma se formar em seus olhos, mas ele a esconde,
espalmando sua mão livre no meu rosto e o puxando até
seu peito, onde eu me aninho.
Olho para cima, para as folhas verdes escurecidas
pela noite, e sinto o vento açoitar meu rosto. Respiro
fundo o ar puro com cheiro de mar e vegetação, depois
enterro o rosto em seu peito, agarrando sua camisa,
sentindo o cheiro dele. Loção pós-barba, café forte,
esperança e promessa. Cheiro de felicidade.
Pois é, realmente, algumas coisas nunca mudam.
Não sei quanto tempo se passa enquanto ficamos
abraçados embaixo da figueira, mas é tempo suficiente
para que eu saiba que tenho que lhe contar a verdade. Ele
ter ou não me amado não significa mais nada, porque
aquela amizade que não durou uma vida sempre foi o que
me manteve de pé, mesmo que ele não soubesse disso.
— Acho que precisamos entrar.
Levanto o rosto e encaro a porta de vidro. Vejo
muitos rostos curiosos procurando rapidamente outra
coisa para olhar, todos fingiram não estar prestando
atenção em nós dois do lado de fora; todos, menos uma
pessoa, e é ela quem caminha em minha direção quando
estou na metade do jardim em direção à casa. Pedi ao
Gustavo que entrasse primeiro e me desse um minuto para
me recompor, eu sabia que ela queria um momento a sós,
então aproveito para pensar em que porra vou dizer
quando estivermos cara a cara.
— Isso quer dizer que você aceitou minha proposta?
— Ela não espera a resposta. — Quanto vai custar ao meu
cofrinho?
Bárbara pisca inocentemente, mas sabemos que tem
muitas outras perguntas embutidas nas que ela me fez. Ela
tenta manter a postura e o olhar duro, mas posso ver a
esperança brilhar dentro dos seus olhos gelados.
— Não, eu não aceitei sua proposta. — Ela pisca,
surpresa, mas acaba por assentir, tentando não demonstrar
desapontamento. — Não se preocupe, no que depender de
mim, esse casamento não vai acontecer, mas não quero ser
paga por isso.
E que Deus nos ajude porque, se cortarem minha luz,
vou tomar banho na casa dela, e também porque não tenho
a menor noção do que fazer para que aquele homem não se
case.
— Por quê? — Ela estreita os olhos e cruza os
braços. — Por que não vai cobrar, Marcela?
— Porque o que eu sinto pelo seu irmão não tem
preço. — Dou-lhe as costas, mas não sem antes ver seu
sorriso iluminar a noite.
***
— Sabe, vocês podiam ser que nem a Marcela e ter
se dado ao trabalho de trazer alguma coisa — murmura
dona Eva, olhando feio para os netos, um de cada vez —,
fora suas bocas. Eu não sou empregada de ninguém.
— Você não deixa a gente nem chegar perto... — tenta
Augusto, mas ela o corta com um revirar de olhos.
— Essa não é a questão aqui, querido. — Ela se senta
à cabeceira da mesa e todos rapidamente tomam seus
lugares, incluindo eu. Ela puxa uma cadeira ao seu lado
assim que me aproximo da mesa e não faço cerimônia em
me sentar nela. — Que tal se agradecêssemos antes?
Todos concordam, e eu congelo por dentro. Sinto
minhas mãos suarem e as esfrego na calça jeans, pensando
em que raio vou dizer quando chegar a minha vez.
— E você, Marcela? — Sou a última e ainda não sei
pelo que devo agradecer. Deus não tem sido muito
bonzinho comigo ultimamente, convenhamos.
— Eu... é... — gaguejo e olho para o outro lado da
mesa; Gustavo está na minha frente e assente
imperceptivelmente, me incentivando a falar alguma
coisa, o problema é que não sei o que dizer. — Eu sou
grata pelo convite de poder me juntar a vocês — digo
rapidamente, mas ela faz um sinal com a mão para que eu
continue... Hum, então tá, né. — Sou grata por ter
esbarrado em Gustavo na rua, mesmo que ele quase tenha
quebrado meu tornozelo no processo; sou grata por ele
saber o quanto essa data, em especial, é importante para
mim e não ter me deixado passá-la sozinha; sou grata por
todos os maridos infiéis que traem as esposas e pagam as
minhas contas; sou grata por um velhote esquisito que tem
mania de usar ternos coloridos ter dormido no meu
capacho e ter se tornado meu melhor amigo; e sou grata
por eles — aponto para meus cães deitados no tapete da
sala de estar —, mesmo que eles sejam meio esquisitos.
O cachorro da Bárbara está sentado ao lado dela na
mesa de olho no meu pernil, enquanto os meus nem se dão
ao trabalho de olhar para alguma coisa que não sejam seus
próprios umbigos caninos.
— Que lindo, querida — diz dona Eva, sem jeito,
enquanto Gustavo cai na risada. — Bem, vamos atacar.
Antes que ela pudesse terminar a frase, Augusto tem
os dentes afiados em uma coxa de frango, que ele segura
com afinco.
— Augusto, tenha modos, é isso que você vai ensinar
para seus filhos? — ela repreende, fingindo estar brava,
mas todos podemos ver um pequeno sorriso dançando nos
cantos de seus lábios enrugados.
— Filho, nunca faça isso — ordena para Nick,
mordendo novamente o frango como um animal faminto e
ganhando mais um olhar reprovador de sua avó. — Ué,
estou dando aulas práticas!
— O que é isso? — pergunta o delegado, que estava
conversando com Gustavo no dia em que “nos
esbarramos”, olhando para minha colaboração para o
jantar. Lá vamos nós, fecho os olhos e lamento a maldita
ideia de ter tentado cozinhar. Eu tinha problema até para
fritar batatas. As congeladas!
— É um pernil assado ao molho de laranja —
Gustavo fala, com a boca cheia de orgulho, para
impressioná-los, porque ele é isso mesmo, a minha única
dúvida é se está comestível. — Foi Marcela quem fez.
Eu o olho feio, não precisa declarar para todo mundo
quem fez o bicho! Ele sorri para mim e encara o amigo,
franzindo as sobrancelhas em uma comunicação não
verbal, que assente fervorosamente, como se soubesse
exatamente o que ele está tentando dizer.
— Hum, legal! Corta um pedaço dele para mim,
então, vamos ver do que ela é capaz. — O delegado me dá
uma piscadinha, e Gus apanha uma faca da mesa e se
levanta, se encaixando entre os assentos do amigo e de sua
irmã, para ter melhor acesso, e apoia a faca no assado...
por tempo demais.
Pelos próximos cinco minutos, o assistimos tentando
cortá-lo, sem sucesso, até que sua avó se cansa e vai ela
mesma fazer o serviço. Diferente do neto, ela vem pelo
meu lado da mesa e parece alarmada depois de duas
tentativas. Ela se ergue novamente e encara Gustavo, que,
por sua vez, encara Bárbara. Hum, será que ele... Não,
não pode ser. Não tem como aquela porra ainda estar
congelada!
Tudo o que escuto depois de ouvir Bárbara gritar por
alguém ter chutado uma de suas canelas, que ela esfrega
com lágrimas saindo pelos olhos, é o barulho da assadeira
despencando no chão, que ela, acidentalmente, derrubou
com um tapa bem dado.
Todos nos levantamos de nossas cadeiras para
espiarmos o estrago, mas o pitbull branco, que estava à
espreita, foi o primeiro a chegar ao local do crime; ele
cheira meu pernil e nos dá as costas, parecendo magoado,
para ir se deitar com meus próprios cães.
— Oh, meu Deus, que coisa mais triste — murmura
dona Eva, em um arquejo falso, levando uma das mãos ao
coração. Mas ela não parece nem um pouco chateada, nem
pelo pernil, nem pelo molho de laranja impregnado em
seu tapete.
Bárbara também não parece se sentir nem um pouco
culpada quando me pede desculpas, dando de ombros toda
sorridente. Olho para Gustavo, que parece respirar
aliviado, enquanto faz de tudo para reprimir uma
gargalhada, seu rosto está contorcido e ele esconde os
lábios que está mordendo com força com uma das mãos,
então eu rio. Todos nós rimos. Rimos tanto, que a maioria
de nós se curva, ou tem que usar os guardanapos para
enxugar as lágrimas das bochechas molhadas.
Embora nem o cachorro tenha se arriscado a dar uma
provadinha, eu não poderia estar mais feliz por ter assado,
ou quase, aquele bicho. Nunca me diverti tanto quanto
naquela noite, em que uma família fez o que pôde para me
receber de braços abertos. Fora que, eu tenho que admitir,
Bárbara assassinou minha penosa com uma delicadeza
impressionante.
Capítulo 27 - Gustavo

“Todas as riquezas do mundo não valem um bom


amigo.”
Voltaire

Conversa entre amigos

Já é madrugada, a casa está em completo silêncio,


mas meus pensamentos não se calam. Quanto menos sons
são produzidos ao meu redor, mais minha consciência
grita para ser ouvida. Quanto barulho cabe dentro de uma
mente vazia? Quanto de uma pessoa é o bastante para
preenchê-la por completo? Não consigo me obrigar a
dormir, não consigo parar de pensar, nem por um segundo,
nela. Marcela toma conta de cada um dos meus
pensamentos, e sei que estou me aproximando de uma
situação sem volta, sinto que estou de pé em frente a um
precipício: ela está lá embaixo, perdida, e minha noiva,
atrás de mim, me espera. A única alternativa que me atrai
é pular.
— Ela é perigosa, Gustavo — sussurra alguém,
próximo ao meu ouvido, me fazendo arquejar de susto —,
e não estou falando daquele tijolo em forma de pernil,
embora, se ela o jogasse na cabeça de alguém, matava,
sem sombra de dúvidas.
— Do que está falando, então?
Nós, rapazes, estamos dormindo em um dos quartos, e
as meninas no outro. Somente Monstro e Anna estão
dormindo juntos em um terceiro quarto, ele se recusou a
se separar dela por uma única noite. Marcela deveria
estar dormindo com as meninas, mas a encontrei encolhida
no sofá da sala. Me levantei, depois de ficar claro que
dormir não seria uma opção, e decidi me esgueirar até o
jardim para tentar parar de pensar nela, o que não
consegui, pois me deparei com ela aninhada em uma
almofada, sem coberta alguma cobrindo seu corpo.
Voltei para o quarto, peguei minha própria coberta e a
cobri; embora eu fosse adorar contemplar mais um pouco
seu pijama da Hello Kitty, fazia frio. Ergui a manta até seu
pescoço e fiquei ali, em pé, olhando-a dormir. Tinha a
impressão de que só nos momentos em que estava
entregue ao sono ela tinha alguma paz. Porque, quando
estava acordada, ora estava tentando parecer forte, ora
estava à beira de um colapso emocional. O que me
deixava mais confuso e um tanto ludibriado era o fato de
eu sempre conseguir fazê-la rir e, por um ou dois
segundos, conseguir fazê-la se esquecer do que tanto lhe
assombrava.
Eu tinha quase certeza de que ela não se comportava
daquela forma com mais ninguém, e isso me assustava.
Fazer Marcela feliz era uma responsabilidade e tanto.
Uma responsabilidade que eu queria
desesperadamente para mim. Se eu olhasse bem a fundo e
vasculhasse nos amontoados de sentimentos que tentava
negar sentir, veria que a queria, mas também que não
poderia tê-la. Eu não aguentaria uma vida sendo seu
melhor amigo, por mais que fizesse bem a ela ter a mim
por perto, eu queria mais. Mas também sabia que, por ela,
eu me obrigaria a viver uma vida de mentira.
— Estou tentando lhe dizer que o que sente por essa
moça é perigoso — murmura Bernardo, olhando-a
ressonar. — Você não é um homem descompromissado,
embora ninguém fique feliz com isso, você tem uma noiva
e deve se lembrar disso.
— Não sou o tipo de homem que se esquece de algo
assim.
Eu realmente não era, mas não conseguia me lembrar
de quando fora a última vez em que pensei, ou sequer falei
com Camila. Não precisava ser um gênio para saber que,
assim que ligasse meu celular, descobriria exatamente
quanto tempo fazia.
— O que vocês tiveram no passado? — Pelo seu tom
de voz, alguém já deveria tê-lo posto a par das poucas
informações que minha família possuía.
— Éramos apenas amigos, Bê, muito amigos e, um
dia, sem mais nem menos, ela foi embora. — Ainda me
lembro do desespero que senti quando sua mãe abriu a
porta e me informou que Marcela tinha se mudado para
São Paulo. Ela não mandou uma carta, não ligou, não
disse adeus. Também não me recebeu quando fui vê-la,
embora eu tivesse ouvido sua voz do outro lado da porta
fechada. — O convite do seu casamento chegou alguns
meses depois, e não demorou muito até que a notícia de
que ela havia perdido todos também viesse.
— Você não olha para ela como se olha para uma
amiga, era assim antes também? — Ele se encosta na
parede e não tira os olhos dela ao me encher de perguntas.
Eu deveria dar respostas evasivas, mas sinto que
preciso dividir minhas dúvidas com alguém. Pego-o pela
camiseta e o arrasto até as portas duplas de vidro
temperado, abrindo-as e caminhando com ele pelo jardim,
até o banco de madeira.
— Sim, era. — Ele fecha os olhos por um momento
com pesar quando o solto, depois encara o céu negro e
sem estrelas e senta ao meu lado. — Não fui
correspondido. Depois do casamento, tomei a decisão de
deixá-la viver a vida em paz, de todo modo, não pareceu
que ela me queria por perto. Marcela se tornou fria e
distante, não atendia as ligações, não as retornava, a
amizade esfriou e depois acabou.
— Você sabe o motivo? Fez alguma coisa que a
magoou?
Nego com a cabeça, eu jamais a magoaria.
— Vocês não se viram mais depois que ela se casou?
— Eu fui atrás dela em muitas ocasiões. — Dessa
vez, quem mira o céu sou eu, como se ele pudesse me dar
coragem o suficiente para me lembrar de todas as
rejeições. — Um dia, eu estava sentado na minha mesa no
escritório, com o jornal aberto diante de mim e um copo
de café na minha frente, quando vi uma notícia
perturbadora. Seus pais tinham sofrido um acidente de
carro nos arredores de Florianópolis, quem dirigia era
Lucas, seu marido, mas o que mais me arrasou foram as
palavras no final da nota. Um bebê, de quase 2 anos,
estava entre os mortos. — O que eu não lhe conto é que
aquela notícia acabou comigo.
Monstro se envergonharia se soubesse que, quando
abaixei o jornal, meu rosto estava molhado por lágrimas
que eu nem notara. Cancelei minhas reuniões e saí
correndo da empresa, dirigi até São Paulo com as mãos
tremendo, com o peito sufocando e o coração em chamas,
eu achava que ela também estava morta.
Eu não estava errado.
— O que aconteceu depois? — pergunta, com
interesse e uma careta de espanto, provavelmente
pensando por que nunca lhe contei sobre ela, por que
nunca contei a nenhum deles.
Marcela era meu sonho proibido, eu a enaltecia
dentro de mim. Se contasse para alguém o que eu sentia
por ela, se tornaria mundano, perderia o encanto, ela seria
apenas a mulher que não me amou de volta.
— Eu cheguei tarde, não me atentei para a data no
jornal. Sua família já estava morta há dois dias. Quando
cheguei ao hospital, ela havia fugido da... — engasgo —
ala psiquiátrica, e uma das enfermeiras me contou que o
menininho seria enterrado naquela tarde. Eu a encontrei
sozinha, no meio de um temporal, abraçada na sua lapide.
— Dói reviver aquela lembrança, mas sinto como se,
novamente, estivesse lá, de pé, ao seu lado. Meus punhos
estavam cerrados dentro dos bolsos do sobretudo e meus
olhos vertiam lágrimas escondidas pelos óculos escuros.
— Ela fugiu de mim.
— Então, você foi embora? — a pergunta sai como
uma acusação, e ele tem razão.
Eu não deveria ter ido, mas fui. Fui, porque nem todos
que ela amava morreram naquele acidente.
— Só voltei a vê-la seis meses depois e, aquela sim,
foi a última vez em que a procurei.
Ele espera que eu continue, mas não posso lhe contar
sobre essa lembrança. Sobre o dia em que ela se tornou a
Branca de Neve, sobre o dia em que eu finalmente desisti
dela.
— Agora, nós nos esbarramos na rua e parece que
nenhum dia se passou, embora tenham sido anos. Como
isso é possível?
— Eu acho que é algo que vai ter que descobrir
sozinho. — Ele coloca uma das mãos em meu ombro. —
Você tem pouco menos de três meses para fazer isso, antes
que se case com alguém que, claramente, ama menos do
que um dia amou aquela menina.
— Você acha que isso importa? O tamanho do amor?
Não é Bernardo quem responde. Alguém sai das
sombras e me olha com um misto de pena e carinho, minha
avó.
— Importa, sim, filho.
Bernardo sorri fracamente, dá um tapinha no meu
ombro para se despedir e some noite adentro.
— Você deve ficar com a pessoa que mais amou na
vida, não importa quem seja. Se ama sua noiva menos do
que amou essa menina, quer dizer que Camila não é a
mulher certa para você. — Ela não se senta, permanece de
pé, enquanto absorvo suas palavras. — Também não quer
dizer que Marcela seja. Não quer dizer que, depois delas,
não haverá outra que você ame ainda mais.
— Não haverá. — Eu sei, eu procurei. — O que eu
faço, vovó? — pergunto, enterrando o rosto nas mãos e
respirando fundo.
— O que seu coração está te dizendo para fazer?
Não posso seguir meu coração, já passei da idade de
ser inconsequente. Então, lhe respondo o que a minha
razão ordena que eu faça.
— Me afastar de Marcela o quanto antes e honrar o
compromisso que assumi com a Camila. É o certo.
Ela pisca, atordoada, não era a resposta que
esperava.
Não importa o quanto eu goste da Marcela; se ela não
sente o mesmo, e eu permanecer ao seu lado, estarei me
entregando a uma vida de solidão sem tamanho, na qual
sei que, inevitavelmente, vou me machucar. Dói pensar em
me afastar dela e deixá-la à mercê de todo seu sofrimento,
mas não vejo outra solução. Eu vou me casar, construir
uma família e ser feliz. Não consigo enganar nem a mim
mesmo com essa ladainha. Mesmo que me case, sei que
não vou conseguir abandoná-la, como ela fez tantas vezes
comigo. Mas sei que não vai doer tanto, enquanto outra
mulher estiver dando o que ela me nega.
— O cavalo só passa uma vez, querido. No seu caso,
ele já passou vezes demais, e você nunca o montou. Estou
te dizendo, um dia desses, ele não volta. — Ela passa uma
das mãos pelo meu rosto e afasta o cabelo para trás para
me olhar profundamente.
— Não sou uma princesa — debocho, me sentindo
sufocado.
— Mas é um príncipe. O mais gentil dos meus
encantados. — Ela sorri. — Um dia, você me disse que
havia perdido essa moça, e eu lhe falei que, se fosse para
ela ser sua, ela voltaria. O destino nunca erra, filho, quem
erra são as pessoas.
Antes que eu possa responder, ouvimos um grito
estridente, e eu saio em disparada para dentro da casa sem
olhar para trás. Posso ouvir os passos da minha avó me
seguindo ao longe, mas só consigo pensar em alcançar
Marcela o mais rápido possível. Eu a encontro no sofá,
ela está sentada, com o rosto coberto por lágrimas e tem
os olhos acuados. Está assustada e envergonhada, então
não penso duas vezes antes de puxar a coberta e me sentar
ao seu lado. Ela se joga nos meus braços, e eu a aperto
contra meu peito, trazendo-a para o meu colo. Minha avó
nos alcança, olha com astúcia para nossos amontoados de
braços, pernas e saudade, sorri e nos dá as costas,
murmurando algo que acredito ser “eu nunca erro”, mas
não posso ter certeza porque a voz de Marcela é tudo o
que consigo ouvir.
— Me perdoa, Gus, me perdoa.
Não sei por quê, mas sinto que ela não está me
pedindo perdão apenas por acordar a casa inteira com
seus gritos após um pesadelo. Um medo abrasador eriça
os pelos do meu corpo, e eu a aperto mais forte. O
remorso, a melancolia e a tristeza em sua voz me fazem ter
a certeza de que eu não quero saber do que se trata, quero
apenas que ela fique onde está, nos meus braços.
Quando passo as mãos pelos seus cabelos e eles
chegam ao fim, me lembro de que ela os cortou, eu amava
seus cabelos, mas, inexplicavelmente, não sinto falta dos
fios cumpridos, eu só sinto falta dela. Quando o cheiro de
limão invade meus sentidos, tenho certeza absoluta de que
não vou a lugar algum, pelo menos não até que ela fuja de
mim outra vez. Porque a amo.
Eu amo a mulher que sempre me abandonou.
Capítulo 28 - Marcela

“O espelho pode
mentir, não mostra como
você é por dentro.”
Demi Lovato

O segredo do meu pai

Se eu tivesse que resumir meu Natal com a família


Bittencourt e agregados em uma única palavra, diria que
foi perfeito, e olha que eu nunca usava essa palavra para
descrever nada, a não ser meus croissants de chocolate.
Naquela noite, até me atrevi a seguir o conselho de Nick e
pedi para o Papai Noel minha família de volta, mirando
com os olhos a estrela dourada no topo da árvore. Todos,
sem exceção, me trataram como se eu também fosse da
família, mas foi o abraço apertado de dona Eva que selou
minha partida. Tão cheio de carinho, que fez com que eu
me sentisse como se estivesse sendo abraçada por meus
pais. Talvez aquilo fosse o melhor que Papai Noel
conseguiu de última hora, já era um começo.
O Ano-Novo é sempre mais fácil do que o Natal.
Talvez por não ser uma data com o rótulo Família, ou por
causa dos fogos. Eu amo os fogos. O barulho que me
lembra que ainda estou viva, as cores brilhantes no céu, a
promessa de que, naquele ano que está chegando, minha
vida vai melhorar, ou eu finalmente vou abotoar o paletó.
Ela nunca melhorava, e eu nunca morria, mas, depois de
tudo o que passei, ninguém podia me criticar por ter
esperança. Esse ano, diferentemente dos anteriores, minha
esperança era concreta, tinha covinhas e me ligou para
dizer que estava chegando com uma garrafa de
champanhe.
Eu estava me enganando, me iludindo, e estava
funcionando incrivelmente bem. Enquanto pensava, com
cobiça e interesse, no homem que ainda não havia me
contado que estava noivo, eu havia deixado de pensar no
quanto minha vida era uma bosta. Não estava sendo
inteligente e sabia disso, assim como sabia que,
novamente, já havia passado do estágio de poder fazer
alguma coisa a respeito.
Aquela não foi a primeira vez.
Estou sentada no sofá com a carta presa entre os
dedos, quando o telefone toca. Nós não nos falávamos
desde a noite em que ele me trouxe de volta para casa e
me dispensou depois de plantar um beijo suave na minha
testa, enquanto murmurava um “até logo” com a voz rouca.
Viro o papel amarelado e amarrotado pelo tempo nas
mãos com melancolia, enquanto o espero chegar.
Desdobro a folha de caderno, fito a caligrafia desleixada
e tento imaginar como seria o rosto da mulher que o
escreveu. Eu nunca conseguia, não importava o quanto me
esforçasse.
Leio novamente suas palavras:

Murilo,
eu desejaria nunca ter tido a necessidade de lhe
mandar essa carta. Sei que você é casado, assim como é
um homem honesto e justo. Vi isso no seu olhar no dia
em que nos conhecemos. Também sei que minhas
palavras podem destruir sua família, e essa não é, nem
nunca foi, minha intenção. Mas preciso que me ajude.
Eu vivo à base de medo e tenho um dono cruel. Um
homem importante que controla minha vida e faz dela
um verdadeiro inferno. Quando te vi pela primeira vez,
perdido pelos campus, me aproximei unicamente para
lhe pedir socorro. Você andava distraído, perdido e com
a cabeça baixa; eu vi quando você se abaixou e deu o
pouco de água que ainda restava em sua garrafa para
um cão, então pensei que Deus havia te enviado para ser
a minha salvação.
Eu não esperava me apaixonar por você.
O que vivemos naqueles vinte dias foi muito
importante para mim, foi o combustível para que eu
suportasse esses doze anos de tortura nas mãos do meu
carrasco. Por que eu não implorei para que você me
levasse embora e me desse abrigo? Porque, quando
falou da sua filha, seus olhos brilharam e, no meio
daquele brilho, eu também vi sua esposa. Você se deixou
levar, mas sempre as colocou em primeiro lugar. Quando
me disse que ia embora, que ia voltar para elas, eu me
calei.
Aqueles dias de felicidade foram tudo o que tive
desde então, pois, além da lembrança, você me deixou
algo sólido ao que pudesse me agarrar. Uma pequena
garotinha, a quem dei o mesmo nome que o meu, na
esperança de que ela conseguisse o que não consegui
nessa vida: ser feliz e não ter medo. E é por causa dela
que, hoje, lhe escrevo.
Ele sabe que ela não é filha dele e a pune por isso.
Fora os castigos, as surras e toda a privação, eu o
peguei se aproveitando dela. Ele nunca me bateu tanto
quanto o dia em que entrei na frente da minha filha, da
sua filha, para protegê-la.
Não faça por mim, faça por ela. Minha menina tem
seu sangue e precisa de ajuda.
Por favor, venha buscá-la, Murilo, eu te imploro.
Com amor, Helena.

Meu pai sempre repetiu a mesma fala durante muitos


anos da minha infância e adolescência: “Mentir é errado,
Marcela”. Ele disse isso em muitas ocasiões diferentes.
Quando eu disse que foi o cachorro quem quebrou o vaso
egípcio pelo qual minha mãe tinha um amor descomunal,
muito maior do que o amor que tinha por mim e um pouco
menor do que tinha pelo bendito cachorro. Quando eu
disse que tinha saído com seu carro escondido porque
queria lhe fazer uma surpresa, mandando-o lavar como
presente de aniversário, mas o lava jato havia pegado
fogo e eu perdi a hora enquanto estava no shopping
comprando um sapato novo. Quando eu disse que iria
dormir na minha melhor amiga e, na verdade, fui acampar
com três surfistas de tirar o fôlego. Ele falava que mentir
era errado até quando eu dizia a verdade.
Eu acreditei nele.
No dia em que descobri que ele próprio não honrava
aquele ensinamento, já era tarde demais para tirar
satisfações. Eu tenho uma irmã. Uma irmã bastarda, mas
quem se importa com rótulos?
Pelas minhas contas, a carta foi enviada sete anos
atrás, mais os doze que a mulher menciona, então minha
irmã deve ter por volta dos 19 ou 20 anos de idade, e eu
tinha apenas 10 quando ela nasceu. Tenho uma vaga
lembrança dessa época. Foi a única vez que ele fez uma
viagem longa de trabalho, e a única vez em que me lembro
de ver minha mãe e ele brigarem e dormirem em quartos
separados quando ele regressou. E eu só me lembro disso
porque ele voltou dois dias antes do meu aniversário, e
aquele foi o único ano em que eles não se importaram nem
um pouco com a data. Não tive tempo de me preocupar
com os dois; além do fato de que minhas bonecas eram
bem mais interessantes, eles logo se acertaram e eu nunca
soube o motivo da discussão, pelo menos não até eles
morrerem.
Demorou certo tempo até que eu tivesse coragem de
voltar para Florianópolis e, quando o fiz, foi para morar,
há exatamente um ano. Por todos os anos anteriores, a
casa deles permaneceu fechada e inabitável; fora uma
moça que contratei por telefone para limpar os cômodos,
ninguém mais pisou naquelas tábuas de assoalho que
refletiam a minha infância, até que eu voltasse.
Depois de me instalar no único apartamento
encontrado que eu conseguiria pagar, criei coragem e
decidi que era hora de me desfazer de suas coisas. Eu não
queria ficar com nada que pudesse me lembrar da perda à
altura dos olhos, embora ela fosse cativa dentro do meu
coração. Girei a chave na fechadura e adentrei na casa
onde nasci e cresci com o rosto seco e uma determinação
inabalável. Tudo se desintegrou quando cheguei ao sótão.
Pensei que seria lá onde eu encontraria as lembranças
mais dolorosas, álbuns de família, fantasias da época de
escola, recordações da juventude, uma vida ao lado dos
dois, mas me surpreendi quando encontrei bem mais do
que isso.
Era lá que a carta estava, dentro de uma das revistas
de culinária da minha mãe. O envelope não estava mais
lacrado, mas eu tinha sérias dúvidas de que, algum dia,
meu pai chegou a colocar os olhos nele. Se tivesse visto,
teria atendido ao pedido da mulher. Ele era assim; mesmo
que tivesse traído a minha mãe, não era o tipo de homem
que deixaria uma de suas filhas, mesmo que não a
conhecesse, à mercê do perigo. Também não esconderia a
carta no meio das coisas de sua esposa, se não quisesse
que ela visse. Foi ela. Ela decidiu não nos contar que
nossa família envolvia mais uma pessoa além de nós três.
Por culpa dela, hoje eu estava sozinha.
Não consegui me impedir de odiá-la naquele
momento. Ela, seu ciúme e sua imaturidade. Não deixei de
pensar: e se minha irmã realmente estivesse em perigo?
Será que, no auge do seu ego ferido, ela não pensou
naquela pobre menina nenhuma vez sequer, não se
preocupou com ela? Eu estava desolada por me desfazer
de seus pertences e de tudo que me trouxesse lembranças
e, naquele momento, aquela carta me trouxe um sopro
novo de esperança.
Eu estava sendo patética, claro. Não poderia
substituir meus pais, meu filho e meu marido por uma
garota que nem ao menos conhecia. Ela não seria capaz de
suprir a falta que eles me faziam ou de diminuir a minha
dor. Mas, talvez, fosse capaz de dissipar a solidão. Na
minha cabeça, a equação era simples: nem toda minha
família estava a sete palmos do chão. Eu tinha uma irmã;
se a encontrasse, nunca mais ficaria sozinha.
O tempo passou e eu não consegui descobrir
absolutamente nada sobre aquela carta, além da cidade
onde havia sido postada. Todo o dinheiro que eu ganhava
era repassado para um colega de profissão da região para
que ele a procurasse, mas foi em vão. Das duas uma: ou
ele era um safado trambiqueiro, ou a menina vivia em uma
toca no chão. Eu estava cansada de esperar, por isso
passei a aceitar qualquer caso que aparecesse, eu
precisava do dinheiro para poder procurá-la por conta
própria.
O desejo nunca sumiu, mas deixei de ter raiva da
minha mãe. Ela não era a única a esconder um segredo,
com proporções de um apocalipse, para se livrar da dor
do constrangimento. Meu pai a havia imitado, então decidi
que teria raiva dele. Pelo menos, até que me olhei no
espelho e encarei uma hipócrita me olhando de volta. Por
acaso, eu não havia feito a mesma coisa que eles? Eu não
tinha a ficha mais limpa do mundo. Quando dizem que a
maçã não cai muito longe da árvore, bom, não estão
mentindo.
Era estranho constatar que não conhecemos de fato as
pessoas, nem as mais próximas. Todo mundo tem algum
segredo. Alguns são coisas bobas: quebrar um objeto
importante de alguém e sumir com as provas; ter um caso
com a empregada; bater o carro do namorado, enquanto
olha as atualizações na timeline do Facebook; e mentir
que alguém bateu no estacionamento do shopping,
enquanto não tinha ninguém por perto, coisas bestas. O
segredo de outras pessoas, porém, pode destruir vidas. O
da minha mãe salvou seu casamento e pode ter arruinado a
vida de uma menina inocente; o do meu pai, o mesmo, e o
meu? O meu arruinou apenas a mim mesma, e seria assim
enquanto apenas eu soubesse o que fiz. Caso contrário,
seria minha vez de arruinar a vida de um menino, um
menino também inocente.
— O que está fazendo?
Eu quase como a carta no susto. Dou um pulo e acerto
o punho no meu próprio queixo, fazendo com que a
beirada do papel entre em meu olho esquerdo.
— Puta que pariu, moleque, eu tenho campainha —
grito, estridentemente, largando o papel para esfregar meu
olho machucado.
Estou prestes a perguntar para Gustavo se ele está
vendo sangue em algum lugar, quando noto que ele está
quieto, quieto demais. Não preciso ser muito inteligente
para saber o que está fazendo.
— Isso é pessoal! — recrimino, arrancando a carta de
suas mãos, que permanecem esticadas para frente.
Ele levanta o olhar, mas não pede desculpas, como
imaginei que faria.
— Você quer encontrá-la? — Seus olhos brilham, ele
está fazendo as contas assim como eu fiz, e chega à mesma
conclusão.
Se eu a encontrasse, teria uma parte da minha família
de volta, uma parte do meu pai que ainda anda, fala, se
mexe e respira.
— Quero, mas não tive sucesso até agora. Contratei
um investigador de uma cidade próxima, mas tudo o que
aquele vigarista fez foi transformar o meu dinheiro em
confete — lamento, deixando de lado o fato de ele ter lido
uma correspondência que eu nunca dividi com ninguém,
afinal, que mal tem ele saber?
Provavelmente, nunca dividi a informação contida
naquela carta porque não sobrou ninguém na minha vida
para isso.
— Por que você mesma não vai até lá? — pergunta,
confuso, jogando-se ao meu lado no sofá. — Não é tão
longe, é uma cidade do interior de São Paulo
— É, eu sei ler — reviro os olhos —, mas nunca
sobra dinheiro para ir e... Bom, eu sou meio cuzona, disso
você já sabe, não é?
Para o meu horror, ele assente.
— Tenho medo de chegar lá e... — penso no que dizer
antes de continuar, mas ele não espera.
— Você tem medo de não encontrá-la ou, se sim, de
que ela não queira te conhecer, ou que tenha realmente
acontecido algo ruim com ela. — É, ele me conhecia bem.
— Seu pai... — Ele morde o lábio e não continua a
desenvolver sua pergunta.
— Provavelmente, não. Encontrei nas coisas da minha
mãe quando tive coragem de ir até a casa deles. — A casa
que eu voltei a fechar do jeitinho que estava e nunca mais
visitei. — Ela leu, com certeza.
Gustavo não responde nada, apenas pega uma garrafa
de champanhe, que eu não o vi depositar no chão, levanta-
se e me oferece uma mão, olhando para o relógio de
pulso. Ele xinga e não espera que eu agarre a mão
estendida, pegando a minha com rapidez e me puxando do
sofá. Ele me obriga a correr até a varanda no exato
instante em que os primeiros fogos brilham no céu. Estou
olhando para as centenas de luzinhas brilhantes e
coloridas, quando escuto a rolha da garrafa explodir.
Pouco depois, ela é colocada à minha frente, como em
uma passe de mágica. Sigo as mãos que a oferece para
mim e encontro duas covinhas fundas perdidas no meio de
um sorriso de tirar o fôlego.
— Um brinde — diz, enquanto pego a garrafa de suas
mãos, dou uma golada e a devolvo para ele, que faz o
mesmo. — Um brinde ao fato de você deixar de ser
covarde, a partir de hoje. Nós vamos encontrar a sua irmã,
Marcela, juntos!
— Qual parte do eu não tenho dinheiro nem um
pingo de valentia você não entendeu? — pergunto,
carrancuda.
Sempre quis ir atrás dela, mas, entre querer e ir, tinha
um longo caminho pela frente. Eu ainda não estava
preparada para descobrir que, de fato, não havia me
restado família nenhuma.
— Eu vou pagar.
Olho para ele, surpresa, arqueando uma sobrancelha,
e pego a garrafa de suas mãos, sorvendo uma golada que
deixaria os fregueses do bar do Moe com inveja.
— Eu tenho uma semana de folga, contando a partir
de amanhã. Hoje mesmo reservo nossas passagens para
Araçatuba.
— Você está falando sério?
Ele assente.
— Vai mesmo abdicar de uma semana da sua vida,
provavelmente a única que vai ter de folga no ano, para ir
atrás da minha irmã comigo? — pergunto, embasbacada.
Deixa de ser perfeito, filho da puta, não está
ajudando em nada os urubus dançantes do meu
estômago se aquietarem, recrimino em pensamento.
— É, eu vou sim. — Ele toma a garrafa das minhas
mãos e, com a mão livre, me puxa para perto em um
abraço apertado, plantando um beijo no topo da minha
cabeça.
Eu apoio a cabeça no vão do seu queixo e olho para o
céu, bem a tempo de ver um coração vermelho explodir
por entre as estrelas.
Algo explode dentro de mim, também.
Admiração.
Capítulo 29 - Marcela

“É fácil apagar as pegadas; difícil, porém, é


caminhar sem pisar no chão.”
Lao-Tsé

Uma gravata cinza e um punhado


de lágrimas

É manhã de sábado, dia primeiro de janeiro. Ainda


estou meio sonolenta, completamente mal-humorada, e
estou fazendo uma mala. Por que eu disse sim quando Gus
sugeriu a viagem? Por que não fingi uma diarreia, uma
mudança de país ou um coma? Não sei, mas culpo aquelas
malditas covinhas, estou começando a ficar com raiva
delas. São tão bonitinhas quanto manipuladoras.
Não demorou nem doze horas para toda a empolgação
dos nossos planos da véspera virarem uma fumaça de
pavor e ansiedade. Toda a expectativa acabou me
deixando uma pilha de nervos, porque eu tinha
consciência de que procurar por aquela menina era um
grande passo que poderia mudar minha vida, para melhor
ou pior.
Gus não perdeu tempo. Assim que a garrafa de
champanhe acabou, ele já estava com o celular em mãos,
reservando nossas passagens. O único lado positivo de
toda essa história era o divertimento que eu teria quando
chegássemos ao aeroporto.
Ele morre de medo de avião.
Já eu, estava morrendo de medo de não encontrar a
bastardinha, ou de encontrá-la e ela me mandar plantar
batatas. E se ela me odiar? Ou melhor, e se eu odiá-la? E
se ela for uma cópia exata do meu pai, eu me apaixonar e
ela me enxotar porta afora? São tantos “e se” que
realmente começo a ficar com dor de barriga. Irmãos...
não são bons nem quando não os conhecemos. Pelo
menos, ela não tem mais idade para roubar as minhas
bonecas.
Depois de verificar com Arnaldinho que ele está
chegando para ficar com os cães, fechar o gás, tomar
banho, pegar as chaves, abrir a porta e começar a descer
as escadas para me encontrar com Gustavo, que já me
esperava impacientemente dentro do táxi, me lembro de
uma coisinha banal, fazer uma mala. Jogo dentro dela
algumas camisetas, shorts, um biquíni e algumas
calcinhas. Tenho a leve impressão de que estou
esquecendo alguma coisa, mas só no aeroporto me lembro
de que esqueci o desodorante, a escova de dentes e minha
dignidade.
Gustavo anda de um lado para o outro, enquanto
aguardamos nosso voo ser anunciado pela mulher tesuda
do alto-falante, e eu me distraio com uma revista
abandonada em uma das cadeiras, mas não por muito
tempo, seu tique nervoso começa a me tirar do sério. Tudo
começa com uma inquietação, seguida por uma dorzinha
entre os olhos, no centro da testa, onde eu adoraria levar
um tiro de doze. Então, minhas mãos ganham vida própria
e eu explodo, jogando-as para o alto.
— Para com isso! — grito, histericamente, fazendo o
homem sentado ao meu lado dar um pulo e levar uma das
mãos ao coração. — Mais um pouco você chega no Japão,
criatura inquieta — reclamo, mudando de páginas com
tanta brutalidade, que rasgo a folha. — Eu já estou
nervosa, e você não está ajudando.
— Não gosto de voar — murmura, dando de ombros.
Se eu não soubesse disso, o suor brilhando em sua
testa, suas mãos cerradas e o desfile digno de um Fashion
Week na minha frente teriam me dado uma dica. Quem
viaja de terno e gravata, quando está indo para o meio do
nada procurar uma indigente na companhia de uma mulher
de havaianas?
— Aviões são o meio de transporte mais seguro...
Ele me lança um olhar gelado, cortante, e eu me calo.
Gustavo enxuga as mãos molhadas de suor na calça,
voltando a andar.
— Qual é a desse terno? Vamos assaltar um banco no
caminho? — pergunto, admirando-o.
Ele veste um terno cinza chumbo bem alinhado, uma
camisa rosa justa que marca seu peitoral sarado, e uma
grava também cinza. Os cabelos compridos foram
penteados com gel, e a barba não foi feita. Se ele não
estivesse tendo um piti, veria que todas as mulheres que
passaram por nós viraram a cabeça em sua direção e
depois, claro, na minha. Não tem como não reparar em um
cara bonito daqueles andando com uma gordinha de calça
jeans, chinelos e uma camiseta de Star Wars. Eu nem tinha
penteado o cabelo, para você ter uma ideia da situação.
— Se eu morrer, quero estar apresentável. — Ele
morde o canto da boca apreensivamente e revira os olhos,
quando escuta minha gargalhada sonora.
Eu rio tanto, que a revista voa das minhas mãos,
aterrissando no colo do homem ao meu lado, fazendo o
pobre coitado levar mais um susto.
— Querido, se aquela bodega cair, não vai sobrar
muito de você. Provavelmente, seu corpo vai ficar em
pedacinhos e virar comida de tubarão...
Ele me corta.
— Marcela, faz um favor?
Assinto, solícita.
— Cala a porra da boca?
— Você deveria ter pensado antes de pagar de herói
de novo. Nós poderíamos estar em casa agora, comendo
alguma coisa congelada e bebendo um bom vinho, mas
não, tinha que me arrastar para outro estado, atrás de uma
garota que pode nem estar mais lá. — Reviro os olhos. —
Se o avião cair, a culpa é sua, sua e da sua mania de ser o
bom moço. Não sei se você sabe, mas eles sempre se
fodem.
Seus olhos se arregalam e sua boca se abre, mas ele
não fala nada. Volta a fechá-la e assume uma carranca
preocupada, enquanto deixa seus olhos se perderem na
janela assombrosamente grande, em direção aos aviões
enfileirados na pista de pouso.
— Eu só queria ajudar, sua mal-agradecida —
murmura, ressentido.
Pouco depois, nosso voo é anunciado, e eu me sinto
bem mais animada por ter alguém para torturar até nosso
destino. Fui empolgada até a fila de embarque, sendo
seguida por um homem se arrastando atrás de mim, como
se tivesse duas bolas de ferro presas aos tornozelos. É
extremamente engraçado e relaxante ver Gustavo tão
preocupado. Ele é sempre centrado, gentil e calmo, que
quase tenho um orgasmo ao vê-lo agarrar os braços da
poltrona com força e começar a rezar quando o avião
decola.
— Quer segurar na minha mão? — pergunto,
sarcasticamente.
— Quero, obrigado!
Ele agarra minha mão e a aperta com força, me
fazendo arquejar. Nem notou que eu estava tirando uma
com a cara dele e, para ser bem sincera, quero que se
dane, porque o calor da sua pele na minha me faz ter uma
sensação muito esquisita e deliciosa de normalidade. Viro
nossas mãos unidas e as admiro, enquanto ele está
distraído, terminando mais uma Ave Maria e começando
outro Pai Nosso; elas se encaixam tão perfeitamente bem
juntas. Seus dedos longos e a palma grande aconchegam
minha mão pequena como se tivesse sido feita na medida
para recebê-la, como se ali, e apenas ali, fosse seu lugar.
— Sua mão é bonita — comenta, baixinho, esfregando
o polegar em círculos na minha pele.
Levanto o olhar e vejo que, assim como eu, ele as está
admirando com um olhar perdido.
— Isso é um elogio? — pergunto, sentindo minhas
bochechas pegarem fogo.
Ele sorri e assente sem parar de me acariciar e de
encarar nossas mãos entrelaçadas. Parece melancólico.
— Eu vou me casar, Má — a confissão foi dita em um
tom tão baixo, que me movi em sua direção
instintivamente para ouvir melhor.
Quando entendi o que foi dito, fechei os olhos e
respirei fundo, porque, mesmo que eu já soubesse, ouvi-lo
dizer aquelas palavras me fez ter uma vontade absurda de
me debulhar em lágrimas.
— É mesmo? — Finjo estar chocada e faço uma nota
mental para comprar um novo óleo de peroba para minha
cara de pau, o meu estava quase no fim. — Você a ama?
— De todas as perguntas que eu poderia ter feito, fiz
aquela, a única para a qual eu não queria, de fato, saber a
resposta.
Gustavo trava o maxilar, endurecendo as feições, e
assente uma única vez rigidamente. Me obrigo a engolir as
lágrimas e desatar o nó na garganta, dar umas piscadas,
respirar fundo algumas vezes e fingir.
— Parabéns — a palavra sai mais ácida do que eu
pretendia, mas ele não parece perceber. — Como ela é?
— Encaro a poltrona na minha frente, porque olhá-lo
enquanto ele fala dela vai doer. — Eu vou gostar dela?
Ele se mantém rígido ao meu lado e fica em silêncio
por quase um minuto.
— Ela é diferente... — de você.
Ele não termina, mas sei que era exatamente isso que
ia dizer. Solto nossas mãos com um puxão desajeitado, me
sentindo humilhada. Claro que éramos diferentes. Eu não
tinha aquele par de coxas de franga grossas criadas com
uma rica dieta de milho importado, não tinha aquele
bumbum grande e empinado, nem a cintura de cabo de
vassoura. Meus cabelos não mais eram longos, e minha
vaidade tinha feito uma mala e se despedido ao sair da
minha vida, batendo a porta da rua com força suficiente
para fazer as dobradiças dançarem. Sua noiva era linda,
tão linda quanto era ordinária e, mesmo sabendo que eu
tinha muito mais caráter, tive inveja dela.
— Mas, não, você não ia gostar dela. — Suspira. —
Ninguém gosta — conta, com uma pontinha de
ressentimento na voz.
— Por que você gosta? — Se for pelas coxas, eu
entro na academia, cacete!
— Porque ela estava lá... — Ele faz uma pausa, e o
escuto respirar fundo. — Porque ela não me abandonou.
Eu quero algo concreto, quero um casamento, quero filhos,
quero uma família. Ela pode me dar tudo isso, ela quer
dar.
Não deixo que ele fale mais nada. Me levanto
abruptamente da poltrona e passo por cima de suas pernas
às pressas. Ele tenta me chamar, mas eu o ignoro,
correndo pelo corredor do avião. Para minha sorte, o
banheiro está desocupado, eu entro, fecho a porta e me
escoro nela.
Chora, filha da puta, chora, lava esse rosto e prega
um sorriso nessa sua cara de mentirosa, ordeno a mim
mesma. Mas não é isso que faço. Por mais que eu queira,
não consigo me obrigar a chorar. O remorso e a culpa que
me consomem como labaredas de fogo não podem ser
saciados com lágrimas, elas pedem mais do que isso.
Pedem a verdade. Aí, sim, tenho certeza de que as
lágrimas virão e, com elas, uma dor já conhecida, a dor de
perder alguém amado. Nessa escola, eu tenho três pós-
graduações e um mestrado. Tenho diploma a dar com pau.
— O que houve? — pergunta, preocupado, assim que
abro a porta do banheiro, depois de me recompor.
Gustavo está encostado no último acento da fileira.
Por encostado, quero dizer agarrado ao estofado, como se
fosse um bote salva-vidas em pleno naufrágio da sua
canoa furada. Seus olhos estão arregalados e sua postura
está rígida. Deve ter exigido muito esforço de sua parte
conseguir chegar até ali. Medroso de merda.
— Bexiga pequena — mentira grande, culpa do
tamanho do oceano e um amor platônico mal curado
infinito. Tudo imenso, incluindo meu peso. Murcho a
barriga, prendo a respiração, viro de lado e me espremo
entre ele e outra poltrona para conseguir voltar para o
corredor, então deixo-o para trás. — Vou receber um
convite para o seu casamento? — pergunto,
sarcasticamente, antes que eu consiga me controlar, assim
que ele cria coragem o suficiente para voltar a se sentar
ao meu lado.
Ele estava concentrado em prender o cinto de
segurança rapidamente, mas abandona a ideia para se
virar em minha direção, surpreso.
— Você quer ir?
Eu preferia arrancar uma perna com uma lixa de
unhas. Seus olhos brilham e ele morde o canto da boca
apreensivamente. A mesma boca que eu adoraria rachar
com um gancho de direita. Ela está te chifrando, seu
cretino, era o que eu queria gritar, mas me pego
concordando, como se realmente quisesse vê-lo se casar
com aquela cadela vira-lata.
— Claro, claro que vou te mandar um convite, afinal,
você fez o mesmo no seu casamento com Lucas, seria
deselegante da minha parte não convidá-la. — A menção
ao nome do meu marido me desconcerta.
Gustavo parece perceber a mudança, porque me
encara profundamente e busca minha mão novamente,
apertando-a na sua. Não me importo em retirá-la dessa
vez, estou ocupada me despedaçando por dentro.
— Não... — gaguejo. — Não toque no nome dele —
ordeno fracamente com um misto de fúria, abandono,
traição, revolta e saudade.
Se existiu um homem capaz de me fazer acreditar ter
esquecido Gustavo, esse homem foi Lucas. Gustavo reage
como se eu tivesse realmente socado sua cara. Seus olhos
se arregalam e ele suspira, parecendo magoado.
— Desculpa, eu...
Eu o corto.
— Ele está morto, nunca mais repita o nome dele,
Gustavo — dessa vez, falo com mais convicção, me
virando e cravando meus olhos nos seus.
Ele arqueja, surpreso pelo meu tom de voz gelado,
pisca atordoado e desvia o olhar, no exato momento em
que penso ter visto um lampejo de tristeza. Gustavo não
fala mais nada, eu também não. Ele não solta minha mão,
eu também não. Mas seu humor mudou, e acabo me
arrependendo de ter sido tão dura com ele.
— Eu sei que ele não morreu — fala, baixinho, me
fazendo fechar os olhos com pesar.
— Pra mim, ele morreu. — Ele volta a circular seu
polegar nas costas da minha mão e, em um instante, a
raiva some, dando lugar à aceitação. Eu já deveria ter
deixado para lá toda essa mágoa que tenho de Lucas, mas
é muito difícil perdoar quem matou todos que eu amava.
— Ele estava tendo um caso. Eu descobri no dia do
acidente.
— Eu sinto muito — diz, perplexo —, eu não sabia.
Sua fisionomia muda. Ele não parece mais chateado, e
sim arrependido, ao passar o braço por trás do meu
pescoço, então eu me deixo levar e tombo minha cabeça
em seu ombro. Pouco depois, eu o vejo tatear o encosto da
poltrona na frente, sem encontrar o que procura, depois
ele se inclina e olha para o chão.
— Está procurando minha dignidade? Não vai achar,
deixei-a em casa.
Mentira, eu a perdi há alguns anos, quando escondi
desse homem um segredo assombrosamente feio e
perturbador. Foi ali que minha dignidade e eu fomos para
a lama, chafurdar como dois porquinhos roliços.
— Um lenço, estou procurando um lenço — responde,
com a voz rouca, asperamente.
Estou a ponto de lhe perguntar para que porra ele quer
um maldito lenço, quando escuto um soluço alto, meio
abafado, meio dolorido. Olho ao redor, procurando sua
fonte, e a encontro quando ele xinga baixinho e limpa meu
rosto com a própria gravata cinza, na falta de algo mais
apropriado. Era eu quem estava chorando.
— Você não merecia... Ele... — ele faz uma pausa e
passa a mão livre por seu rosto de maneira frustrada. —
Ele não deveria ter feito isso, Marcela, não com você —
condena, irritado.
— Você acha que me importo? — Rio por entre as
lágrimas. — O caso que ele teve se tornou algo
insignificante naquele dia, Gus. Não vou mentir que eu
esperava que ele me pedisse perdão, ao invés de acordar
no hospital chamando pela amante. — Agora não estou
mais rindo, estou me lembrando... — Eu havia ligado para
ela, avisado que ele tinha sofrido um acidente; até hoje
não sei por que fiz isso, mas achei que ela deveria saber.
Quando ele acordou, chamou seu nome e, quando teve
alta, foi em direção a ela. Ele me deixou para trás, e não o
recrimino por isso, não mesmo.
— Como pode dizer algo assim? — Gustavo perde a
calma.
Seus braços se retesam e se contraem, e ele me puxa
mais para perto, enquanto vejo suas mãos se fecharem em
punhos cerrados ao enxugar meu rosto desajeitadamente
com a gravata ainda presa ao seu pescoço. Era mesmo
uma linda gravata.
— Ele escolheu a saída mais fácil. Todos me
abandonam, Gustavo, eu me tornei... amarga. Heloisa
estava grávida dele, era sã, bonita e cheia de vida, a
escolha foi óbvia até para mim. Ele escolheu a casa onde
teria uma criança, risadas, alegria, cor e uma mulher de
verdade, teria tudo o que não tinha mais na nossa. Eu não
podia oferecer mais nada para ele. — Tento dar de
ombros desajeitadamente, mas ele está me apertando tão
forte, que não vou muito longe na tentativa.
— Puta que pariu, Marcela. — Ele me solta e me
chacoalha, agarrando meus ombros para me virar em sua
direção. Levanto o olhar e vejo seus olhos brilharem de
revolta. — Por que você não me procurou? — pergunta,
franzindo as sobrancelhas. — Por que ficou sozinha?
Nesse tempo todo achei, que Lucas estivesse cuidando de
você.
— Eu fiquei bem, Gus...
Ambos sabemos que estou mentindo.
— Não acredito que ele te abandonou logo depois da
morte do filho de vocês. Que tipo de homem imprestável,
cruel e sem caráter faz algo assim?
A fúria se abranda, e seus olhos brilham por algo
mais. Brilham mais do que deveriam. Esse é o Gustavo. É
o homem que me protege, envolto em pura ira, e depois
deixa seus olhos marejarem ao se compadecer da minha
dor.
É o homem que, definitivamente, eu não quero ver
chorar pelas minhas perdas.
— Como eu disse, Lucas está morto, e esse assunto é
passado.
Ele assente, resignado, e eu olho pela diminuta janela,
deixando meu olhar se perder em uma nuvem. Consigo vê-
lo, pela visão periférica, usar a mesma gravata para secar
rapidamente os cantos internos dos olhos, e pergunto a
mim mesma se a perfeição existe ou se o amor é o
responsável por criá-la. A única coisa que sei, com
certeza, é que, se ela for real, Gustavo foi formulado a
partir dela, ele e os meus croissants de chocolate.
Penso em Lucas e em tudo o que acabei de lhe contar.
Não é tão difícil matar uma pessoa. Não estou sugerindo
que alguém pegue uma faca e enfie nas costas de uma
pessoa, há maneiras mais fáceis, porém menos divertidas.
Maneiras que, obrigatoriamente, não façam você ver o sol
nascer, dia após dia, por entre grades de metal.
Basta matá-la dentro de você.
A receita é simples: pare de pensar na pessoa, de
querer que ela ligue, te procure, volte. Destrua qualquer
coisa que faça se lembrar dela: presentes, fotos, memórias
e, aos poucos, você vai esquecer o rosto dela, o timbre da
voz, o brilho do olhar, a magnitude do sorriso, de tudo o
mais que um dia foi a razão da sua vida. Tudo o que você
viveu com ela vai parar de fazer sentido. As piadas vão
perder a graça, e a saudade vai ser quase nula e, quando
você menos esperar, bum, ela vai estar morta. Para matar
uma pessoa, você só precisa aniquilar o amor que sente
por ela. Não dá certo quando tudo o que mais quer é ela
de volta, ao invés de esquecê-la, quando são seus pais ou
seu filho; eu sei, eu tentei, mas, quando é um marido
cretino e traidor, pode apostar que dá.
Lucas matou tudo o que eu amava e, mesmo assim, se
recusou a ficar ao meu lado e conviver com o que fez.
Ambos sabemos que ele bebeu escondido antes de sair de
casa, o exame de sangue não mentia, a polícia também
não. Mas tenho que admitir que o invejo por ter
conseguido passar por cima da culpa e ter reconstruído
sua vida. Hoje, ele tem uma linda mulher, que não está
morta por dentro, e uma bela filhinha para chamá-lo de
papai, enquanto eu tenho apenas saudade e rancor.
Nem sempre o mundo é justo.
Capítulo 30 - Marcela

“(...) Quando você fica ao lado de uma pessoa


E ela, mesmo em silêncio, lhe faz bem
Quando você fecha os olhos
E no pensamento está
Fotografado o rosto desse alguém (...) Isso é amor.”
Matheus e Kauan

Poucas horas depois, fazemos uma conexão, uma


parada no aeroporto de Viracopos, em Campinas, para
trocar de aeronave. Aproveito o tempo livre para me
entupir de comida e todo o açúcar que encontro, na
esperança de conseguir me acalmar um pouco, enquanto
Gustavo parece tentar se controlar para não beijar o chão
de alegria por estar vivo. Mas não demora até que nosso
próximo voo seja anunciado; àquela altura, eu já tinha
ganho dois quilos e ele já estava de volta às andanças
irritantes.
— E se alugássemos um carro e fôssemos dirigindo?
— pergunta, agarrando meu braço na fila de embarque.
Eu tento, juro que tento não revirar os olhos, mas é
impossível.
— E se você parasse de agir feito um rato e entrasse
no avião em silêncio?
Quanto mais nos aproximávamos do nosso objetivo,
mais nervosa eu estava. Nem as paçocas que comprei para
a viagem e estava devorando que nem balinhas estavam
me ajudando. A conversa sobre Lucas e meu passado só
tinha piorado meu ânimo.
— Eu posso te dar a mão de novo — ofereço, como
se fosse um grande sacrifício. Ele assente, mas não solta
meu braço.
Quando, finalmente, pousamos em Araçatuba, no
interior de São Paulo, eu já podia me candidatar para ser
freira, porque havia aprendido todos os tipos de orações
imagináveis e sabia recitá-las de cor. Droga, eu sabia
cada uma delas até de trás para frente. Entramos em um
táxi e pedimos para sermos levados para uma pousada em
Lavínia, um município da região. Começaríamos nossa
peregrinação no dia seguinte, pois, além de já estar
escurecendo, estávamos cansados. Ele, de rezar, e eu, de
tentar criar coragem.
— Mentira, seu João, ele morreu aqui? — Uma
adolescente de, no máximo, 15 anos estava encostada
preguiçosamente ao balcão da pousada, se é que aquela
espelunca poderia ser definida daquela forma, batendo um
papo amigável com um senhor de idade, calvo e de
aparência cansada, quando adentramos o estabelecimento.
— No quarto dezessete, minha filha, foi um Deus nos
acuda. Não tínhamos polícia na minha pousada desde a
vez em que uma hóspede tentou sufocar o marido com o
travesseiro, uma tragédia — conta, com um lamento falso.
Posso ver que ele está se divertindo bastante com a
história pelo sorrisinho que tenta esconder da garota.
— É verdade que dá para ouvi-lo gritar à noite? —
pergunta, animada, fazendo Gustavo congelar ao meu lado.
Quando me viro em sua direção, ele já está me
encarando com um misto de pavor e arrependimento.
Posso apostar que ele está pensando sobre o vinho e a
comida congelada que poderíamos estar aproveitando, se
tivéssemos ficado quietinhos em casa.
— Ouvi uns hóspedes falando sobre isso ontem.
— Não posso negar, menina, eu mesmo já ouvi umas
coisas bem esquisitas.
Os dois ainda não se deram conta da nossa presença,
a fofoca deve mesmo estar boa. Gus agarra com força a
alça da mochila que tem nas mãos e dá um passo para trás,
olhando com afinco para a porta, na qual acabamos de
passar para adentrar no lugar.
— Posso jurar que, esses dias, ouvi alguém pedindo
socorro, mas não tinha nenhum hóspede registrado.
— Vamos embora — anuncia Gustavo, falando alto,
ao agarrar no meu braço com força e me arrastar em
direção à porta.
Antes que eu conseguisse ter uma reação, somos
interrompidos pelo carequinha.
— Posso ajudar, meninos?
Me viro em sua direção, enquanto Gustavo ainda tenta
me puxar porta afora. O homem sorri e olha com interesse
para meu amigo covarde.
— Sim, vamos nos hospedar, queremos dois quartos
— anuncio, feliz da vida.
— Está maluca? — pergunta Gustavo no meu ouvido.
Não sei por que se deu ao trabalho de se inclinar na minha
direção, porque ele gritou as duas palavras. — Não vou
dormir neste lugar — anunciou mais baixo, lançando
olhares de suspeita para as paredes brancas encardidas.
— Nem sabemos onde tem outra pousada, pelo amor
de Deus, vê se cresce. — Eu estava pressentindo que ia
me divertir muito naquela madrugada. — Não temos
opção, então pare de ser medroso.
Ele faz uma careta descontente, e eu me acabo de rir
por dentro.
— Escutamos, sem querer, a conversa de vocês...
Alguém morreu aqui? — pergunto, provocando-o.
— Sim, uma fatalidade. — Novamente, o lamento não
é verdadeiro, eu podia apostar que aquela história de
assombração estava lhe rendendo uma boa grana. —
Vocês não são daqui, né?
Balançamos negativamente a cabeça em sincronia.
— Tem um presídio aqui perto. Um dia, um assassino
perigoso fugiu e se hospedou aqui. Pareceu um bom
homem, eu não tinha como saber.
Balanço a cabeça em uma expressão de “Hum, é
mesmo? Conte-me mais”, e ele conta.
— No meio da madrugada, alguém entrou enquanto eu
dormia e deu sete tiros no sujeito para acertar umas
contas. Só descobri no dia seguinte, tenho o sono pesado,
sabe?
Gus assente, visivelmente apavorado, sorri amarelo e
me arrasta para longe do balcão, apertando meu braço
com mais força.
— Pelo amor de Deus, Marcela, vamos embora —
sussurra urgentemente no meu ouvido. — Ter um fantasma
aqui já não é bom, agora um fantasma de um assassino que
pode estar querendo vingança é demais.
— Algum problema? — pergunta o homem, com
curiosidade, erguendo os óculos até o alto do rosto com o
indicador.
— Nenhum, tenho certeza de que vamos adorar nossa
estadia.
Gus fala um palavrão, e eu me aproximo do balcão,
sacando meus documentos. Não deixo de reparar que ele
ainda segura no meu braço, e não parece querer soltá-lo
em algum momento próximo; ele está distraído, olhando
para os quatro cantos da recepção, com uma expressão
cabreira no rosto.
— Não quer comer alguma coisa? — pergunta,
rapidamente, quando chegamos à porta do meu quarto. —
Conversar?
Balanço a cabeça em uma negativa, reprimindo uma
risada.
— Desabafar? Dar uma volta? Ver TV, talvez?
Indico que não novamente e enfio a chave na
fechadura, abrindo a porta.
— Não quer companhia enquanto dorme? Eu posso
vigiar, se quiser — se oferece, tentando esconder o pânico
por ter que ir para seu próprio quarto.
— Gus, seu quarto é ao lado do meu, parede com
parede. Se o fantasma aparecer, basta gritar, que eu te
salvo, ok?
Ele arregala os olhos castanhos, depois fecha a
expressão em uma carranca, se empertigando e estufando
o peito.
— Agora, me deixa dormir.
— Eu não estou com medo — afirma, se aprumando,
e eu olho para sua mão no meu braço, provavelmente sua
palma já deve estar marcada nele, de tanto tempo em que
está lá.
Ele segue meu olhar e finalmente me solta, mas não
parece interessado em se mexer.
— Eu. Não. Estou. Com. Medo — repete,
pausamente, com o timbre irritado. Se para convencer a
mim ou a ele mesmo, não faço ideia.
— Claro que não está — concordo, em uma voz doce,
agarrando a beirada da porta e fechando-a na sua cara. —
Boa noite, Gus.
Enquanto a porta se fecha lentamente, posso ver a
expressão dele mudar de zangado para decidido, e depois
de decidido para apavorado.
— É sério, eu não estou com medo. Mas, se você
estiver, eu posso ficar — diz, para a porta fechada, depois
que escuto um barulho oco, provavelmente de suas mãos
sendo espalmadas nela.
Sua voz é tão carregada de esperança que, por um
momento, penso em ceder. Mas que graça teria?
— Boa noite, Gustavo — repito com um sorriso,
embora ele não possa vê-lo.
— Boa noite, Marcela. — Ele permanece lá,
esperando que eu mude de ideia, mas logo desiste e escuto
a porta do quarto ao lado bater.
Ele volta, eu sei que sim.
Estou tão cansada, que decido deitar um pouquinho na
cama para relaxar antes de tirar as roupas e tomar um
banho, e acabo caindo em um sono pesado e turbulento.
Não sei quanto tempo se passa até que acordo com o
barulho de batidas insistentes na porta. Pisco e passo as
mãos pelo rosto, tateando a cama em busca do meu
celular. Três da manhã. Nossa, eu apaguei. Antes que
consiga despertar totalmente, escuto um trovão e o vento
uivando do lado de fora. A janela de madeira treme, e as
batidas na porta se tornam mais altas.
— Quem é? — pergunto, com uma das mãos na
maçaneta, enquanto, com a outra, tento arrumar meu
emaranhado de cabelos embaraçados, tentando ficar um
pouco mais apresentável, porque sei exatamente quem está
do outro lado da porta.
— Eu — responde Gustavo, com a voz rouca,
absurdamente sexy e apavorada.
— O que você quer? — pergunto para torturá-lo,
enquanto me livro de algumas remelas e tento desamassar
as roupas. Franzo o cenho quando a chuva se intensifica e
agarro a maçaneta com mais força.
— Marcela, para de graça e me deixa entrar, agora
— grita.
É o suficiente para que eu abra a porta, ele passa por
ela parecendo um furacão.
— Você está bem? Ouvi um barulho... — ele faz uma
pausa. — Fiquei preocupado com você.
— Sei — murmuro sarcasticamente. Ele não parece
se importar e se joga sobre a minha cama, fecho a porta e
me volto para ele, a pergunta ainda está em seu olhar. —
Estou bem, sim.
Mas não consigo me controlar quando outro trovão
estoura no céu, dando um salto no lugar e levando as mãos
ao coração. Odeio chuva, odeio tempestades, odeio
quando água cai do céu; esse, provavelmente, é o motivo
de meu sono estar tão inquieto e, com certeza, será a razão
de não conseguir voltar a dormir.
— Você já pode voltar para o seu quarto — anuncio,
fazendo um aceno para a saída.
— Nem fodendo! — Ele vai mais para trás e abraça
meu travesseiro. — Vou dormir com você.
Eu deveria expulsá-lo, ele tem uma noiva e é um
medroso de merda, mas tudo o que faço é abrir um sorriso
involuntário.
— Se você gostou mais desse quarto, deveria ter dito,
eu posso dormir no seu — ameaço me virar, mas ele me
faz parar.
— Por que você está me torturando? — pergunta,
visivelmente irritado.
— Porque eu quero que você confesse.
Cruzo os braços e espero. Ele solta o travesseiro,
levanta da cama e estufa o peito, caminhando em minha
direção. Merda, será que ele vai mesmo embora? Quando
passa por mim, eu cometo o erro de abaixar a cabeça, e é
nesse exato momento em que ele me surpreende, me
tirando do chão e me jogando sobre a cama, investindo
contra mim.
Cócegas, odeio cócegas. Não consigo parar de rir,
não consigo respirar, não consigo mensurar o quanto isso
é divertido e o quanto ter seu corpo sobre o meu é
delicioso. Eu queria que aquele momento durasse para
sempre, Gus prendendo minhas pernas com as suas e
minhas mãos acima da cabeça com apenas uma das suas,
enquanto com a outra ele me arrancava... alegria.
— É sério, Má, ouvi mesmo um barulho e achei que
estivesse precisando de mim — murmura, jogando-se ao
meu lado, sem fôlego, quando se cansa da brincadeira.
Eu me viro e olho para ele com deboche, então ele se
rende.
— Ok, este lugar me deixa apavorado, e eu não vou
voltar para aquele quarto. Fim de papo.
— Buuuuuu — provoco, rindo. — Bom, mas você vai
ter que voltar, eu preciso tomar um banho e... — Aponto
para o minúsculo banheiro sem porta, tentando lhe mostrar
o box sem cortina.
— Posso enfiar a cabeça até debaixo da coberta, mas
não vou sair daqui, e você também não. Se vira, querida.
— Dito isso, ele arranca os tênis com os próprios pés e se
aninha na cama, dando as costas para o banheiro.
Sério isso? Bom, que seja. Fuço em minha mochila
atrás de uma calcinha limpa e algo para vestir, mas, como
não pensei que fosse ter companhia, tudo o que encontro é
uma camisola com cupcakes amarelos estampados.
Maravilha!
Estou debaixo do chuveiro (frio, apenas um fio de
água) quando a chuva se torna uma tormenta. Portas
começam a bater, janelas tremem, e o vento grita do lado
de fora. Nunca consigo dormir quando o tempo está assim
e sempre acordo triste quando me levanto para um dia
chuvoso. Estar longe de casa intensifica a sensação de
solidão, mesmo que hoje eu esteja acompanhada. É um
misto de vazio, derrota e saudade que a chuva não
conseguiria levar embora, mesmo se eu me arriscasse a
ficar embaixo dela.
Visto meu pijama e me arrasto até a cama, a luz foi
apagada e Gus parece dormir, então me deito com cautela
para não acordá-lo e encaro o teto na penumbra.
— Você está mesmo bem? — Sua voz rouca é apenas
um sussurro, mas faz meus urubus de estimação
acordarem.
— Não gosto de chuva, não consigo dormir quando o
tempo está assim, sempre faz com que eu me lembre... —
Me calo.
Sei que não vou precisar explicar, ele estava lá, sabe
exatamente por que aquilo me atormenta tanto. Gustavo
não diz nada por um longo tempo, tanto que acho que ele
acabou pegando no sono, mas me surpreendo com o
farfalhar das cobertas e um braço que é posto ao meu
redor.
Se a sensação de ser acolhida por ele me invadiu
como um vendaval, quando ele me puxou em direção ao
seu corpo quente e rijo, fui jogada dentro de um furacão.
Não há nada que passe mais segurança do que ser
abraçada em uma cama quente por um homem bom. Há
anos eu não tinha essa experiência, e quase chorei quando
me aninhei em seu corpo de forma casta. Queria continuar
encolhida para sempre dentro daquele abraço firme e
calmante. Envolta por seu carinho e pelo amor sem
medidas que sentia por ele.
— Feche os olhos — sussurrou com os lábios
próximos aos meus cabelos antes de beijá-los —, eu estou
aqui.
Minha última reação foi um bocejo, depois não me
lembro de coisa alguma. Não chorei sendo assediada pelo
barulho das gotas no telhado, nem me revirei na cama de
olhos abertos, não pensei em absolutamente nada, apenas
adormeci.
Sonhei com uma vida na qual eu nunca tinha lhe
escondido nada, uma vida onde eu não precisei fugir, e ele
permaneceu ao meu lado. Uma vida na qual eu não tinha
motivos para lhe pedir perdão, nem ele para me odiar.
Sonhei com a vida que eu nunca teria.
Capítulo 31 - Gustavo
“Nós fizemos estas memórias para nós mesmos
Onde nossos olhos nunca fecham
Nossos corações nunca estiveram partidos
E o tempo está congelado para sempre.”
Ed Sheeran

O elo perdido

Eu poderia beijar o chão quando chegamos em terra


firme, se não estivesse tão ocupado tentando organizar
meus pensamentos conflitantes e meus sentimentos
confusos. Uma raiva abrasadora daquele desgraçado que
tirou Marcela de mim, a magoou e depois a abandonou à
míngua em uma rua qualquer da solidão, me dominava.
Me enfureceu saber que todos esses anos, enquanto eu
acreditava que Lucas estivesse tomando conta dela,
Marcela estava lambendo suas feridas sozinha. Era dor
demais para se suportar sem dividi-la com ninguém.
Eu devia tê-la procurado, ao invés de ter desistido
dela, esse pensamento me consumia.
Quando chegamos à pousada e nos separamos, eu me
sentei na cama em meu quarto e olhei para a parede por
horas, pensando, tentando decifrar exatamente o que eu
estava sentindo. Tomar a decisão de trazê-la até aqui para
procurar sua irmã foi algo natural e não premeditado, eu a
conhecia bem, bastou ler a carta para saber o que seu
coração desejava. Ela não queria mais ser sozinha, mas
também tinha medo do que poderia encontrar. Eu quis
acompanhá-la, quis fazer parte daquele capítulo da sua
vida e estar lá quando ela escutasse a notícia, sendo boa
ou não.
Queria, de maneira desesperada, fazer parte da sua
vida, ser o fio condutor para um sorriso, curá-la, embora
não houvesse remédio para sua dor. Saudade é algo que
nunca vai embora, ela não passa e não ameniza, apenas se
esconde para aparecer nos momentos mais inoportunos e
sugar tudo que conseguir de você.
Por mais que eu quisesse encurtar nossa distância e
conversar com ela sobre como estava me sentindo, não
tinha coragem. Não tive, dez anos atrás, e também não
tinha agora. Eu nem sabia por onde começar a lhe contar
sobre meus sentimentos, afinal, nem mesmo eu os
entendia.
Eu não contava com a ajuda de um fantasma.
Não sou o tipo de homem que se esgueira para a cama
de uma mulher tendo uma em casa, simplesmente não
consigo ser leviano e não pensar nos sentimentos das
outras pessoas, Camila merecia mais de mim. Mas eu sou,
sim, o tipo de homem que morre de medo de assombração.
Qual é? Um assassino tinha morrido ali, bastou o primeiro
trovão para eu dar um salto e correr para o quarto do
lado. Se tivesse, mesmo, visto o cara, nem quem era
Camila eu me lembraria antes de pular no colo da
Marcela, que nem o Scooby Doo. Mas foi só quando ela
se deitou ao meu lado e me contou sobre o seu medo, que
realmente entendi a gravidade do que tinha feito.
Eu, justo eu, estava na cama com uma mulher que não
era a minha. Para ser mais preciso, minha noiva não fazia
ideia de onde eu estava. Conversei com ela antes de
viajar e menti, eu menti, dizendo que teria que me
ausentar por causa do trabalho por alguns dias. Não sabia
mais quem eu era, só sabia que, fosse quem fosse, havia
me tornado aquela pessoa pela Marcela.
Eu tinha um bom motivo, ela precisava de mim,
precisava que eu segurasse sua mão e tivesse coragem por
ela. Mas sabia que Camila nunca entenderia meus motivos
nobres, se é que realmente eram tão nobres assim. Eu
tinha minhas dúvidas. Não estava apenas sendo altruísta e
fazendo uma boa ação, eu também queria sumir no mundo
com a Marcela, ansiava por um motivo para ficar a sós
com ela.
Eu estava dividido.
Parte de mim era fiel ao compromisso que havia
assumido com minha noiva, a outra, a maior parte, não
pensou em mais ninguém quando a dor da mulher que
abalava meu mundo me cegou, e eu a puxei de encontro ao
meu peito, sussurrando que estava ao seu lado. O que ela
não sabia é que aquela promessa era verdadeira, e não se
estendia apenas àquela noite. Sempre estive lá, e
continuaria assim.
Quem mais resgataria minha Branca de Neve do
caixão de vidro?
Envolta em um sono raso, ela se virou e me abraçou,
pousando a cabeça desajeitadamente em cima do meu
peito. Pouco depois, vi Marcela finalmente se entregar à
exaustão e suspirar. Seus lábios se ergueram em sorrisos
fracos mais de uma vez, talvez estivesse tendo um sonho
bom. Eu não consegui dormir, só fiquei lá, segurando-a
com força, sentindo sua pulsação no meu próprio peito,
embalando-a e sendo embalado pelo calor do seu corpo,
que se encaixava perfeitamente ao meu.
Se eu tivesse que escolher um único momento da vida
para parar no tempo, seria aquele. O momento no qual eu
tinha a mulher que sempre amei nos meus braços. Mas a
vida não era um conto de fadas, e o tempo jamais pararia
de correr.
Eu me casaria em apenas três meses, e estava na hora
de tomar uma decisão.

***

Na manhã seguinte, fui acordado por seu corpo se


colando mais ao meu, respondi a sua ação com o mesmo
gesto. Permaneci dentro daquele momento, que me parecia
mais um sonho do que realidade. Marcela ainda estava
nos meus braços, e eu ainda a apertava contra meu corpo,
estávamos de lado, aninhados um ao outro de maneira tão
intensa, que eu não sabia onde ela começava e eu
terminava. Mas sabia que tê-la tão perto era um erro,
embora a sonolência não me deixasse fazer nada a
respeito.
Pisquei algumas vezes e senti, de imediato, que nossa
proximidade estava, evidentemente, me transtornando.
Merda. Me afastei rapidamente dela e me levantei em um
pulo, necessitando urgentemente de um banho gelado.
Qual era a porra do meu problema? Com vergonha e
repulsa de mim mesmo e do desejo que senti ao olhá-la
adormecida, com o seio parcialmente exposto pela
camisola engraçada, voltei para meu próprio quarto.
Não consegui parar de pensar no seu corpo por toda a
manhã e tive certeza de que aquela imagem que beirava a
perfeição, mesmo não estando nos padrões de beleza
equivocados da sociedade, nunca mais sairia da minha
cabeça.
Eu a queria, e isso era um problema.
Peguei meu celular, segurei-o e respirei fundo antes
de fazer a ligação. Camila atendeu pouco antes da
chamada se encerrar, parecia sem fôlego e cansada. Devo
ter interrompido uma série de exercícios diários que ela
nunca dispensa.
— Oi, gatinha — cumprimentei, com um nó na
garganta e um aperto no coração.
Eu sabia que o nome daquilo era culpa, só não sabia
por que havia ligado para ela. Não fazia ideia se estava
procurando absolvição pelos meus pecados, ou apenas
querendo reafirmar a normalidade da minha vida. Eu só
queria ouvir sua voz.
— Oi, gatinho, estou ocupada. Posso ligar depois?
Ela não perguntou como eu estava, nem disse estar
com saudades, apenas se esquivou de uma conversa.
— Claro. — Encerrei a ligação sem esperar sua
despedida.
Ela não sabia, mas, a cada vez que eu me lembrava do
seu corpo, pensava no seu rosto ou ouvia sua voz, eu me
afastava mais dela.
— Gus — gritou Marcela do lado de fora da porta,
sem se importar em bater —, está vestido?
Sorri. Ela não esperou a resposta, apenas entrou.
— Ah, você está aí. Sabia que é deselegante dormir
com alguém e fugir antes que a pessoa acorde? — Sua
pergunta foi feita em tom de brincadeira, mas seus olhos
brilharam ao fazê-la.
Marcela havia substituído a camisola por um vestido
leve na altura dos joelhos e prendido os cabelos curtos em
um rabo de cavalo alto e desleixado, que os deixava
parcialmente soltos. Estava linda, como sempre.
— Desculpa, eu não quis te acordar — minto, me
levantando. — Me dá um minuto? Vou me trocar e te
encontro lá fora — peço, desconcertado, percebendo que
meu desejo por ela não havia sumido. Pelo contrário,
estava crescendo a cada minuto na sua presença.
— Comigo, desculpa requer pagamento e, já estou
avisando, sou cara. — Ela revira os olhos, mas me dá as
costas, abrindo a porta. — Ou você encontra um croissant
de chocolate para mim, ou terá que enfrentar as
consequências.
Não demoramos para achar uma padaria. Não havia
croissants nela, Marcela reclamou por cerca de um minuto
antes de ser fisgada por um brigadeiro. Ameacei pedir
apenas um suco, mas ela me olhou, como se eu tivesse
pedido para a moça do balcão arrancar as roupas, então
acabei comendo um sanduíche gorduroso e maravilhoso.
Como era bom comer exatamente o que eu tinha vontade,
na hora em que desejava. Era ainda melhor estar
acompanhado por uma mulher que roubou metade do meu
sanduíche sem cerimônia e ainda zombou do próprio peso.
Eu gosto de mulheres vaidosas, que homem não
gosta? Unhas feitas, cabelo impecável, pernas grossas e
muitas curvas. Mas o amor não é medido por beleza e
porte físico, afinal, é conhecido como o sentimento que
não enxerga, não escuta e não fala, ele apenas existe e se
firma sem fazer julgamentos. É muito melhor admirar uma
mulher que se ama pelo que ela realmente é, do que
admirá-la pelo número da etiqueta de sua roupa.
Se eu pudesse, não mudaria nem um fio de cabelo da
Marcela. Ela é perfeitamente mágica da maneira que é.
Seus cabelos curtos são exóticos, suas unhas sempre feitas
pela metade são autênticas e seu corpo é tão
maravilhosamente desenhado que é a única coisa na qual
consigo pensar. Ela é linda. Linda e incrivelmente sexy.
Se pudesse ficar com ela pelo resto da vida, jamais
desejaria outra mulher.
Mais e mais eu me embrenhava nos sentimentos por
ela. Temia chegar o dia em que me perderia em meio a
eles e não encontraria mais uma saída. Não importava
como me sentia a respeito dela, a única coisa que
importava é que ela nunca seria minha. Eu tinha que criar
juízo e parar de deixar a imaginação correr solta, reprimir
meus desejos e agir com cautela. Eu não queria errar. Não
queria me magoar e magoar minha noiva a troco de um
amor que deveria ter ficado no passado. Ambos não
merecíamos isso.
— Está pronta? — perguntei, para me ocupar com
algo real, algo que pudesse usar como desculpa para fugir
da minha mente confusa.
Ela assente, mas posso ver que está nervosa. Não
para de puxar o rabo de cavalo e morder os lábios. Não
tenho outra opção a não ser arrastá-la até o correio mais
próximo.
Ela entra comigo, mas faz um aceno para que eu fale.
O carimbo já está gasto, mas o CEP no envelope ainda
está parcialmente legível; com ele, fomos instruídos a ir
até um município próximo no meio do nada. Perdemos a
pista quando nos deparamos com a divisa das cidades de
Mirandópolis e Lavínia, não havia nada lá ao que
pudéssemos nos agarrar. Marcela quis desistir, porém,
continuei pedindo que o taxista fosse em frente a esmo, até
que avistei uma escola. Quantas haviam naquela região?
Não muitas. Na segunda escola que visitamos, tivemos
sorte.
— Não posso dar nenhum tipo de informação sobre
os alunos, sinto muito.
A diretora era uma mulher na faixa de uns 60 anos,
magra e dinâmica. Foi taxativa em sua negativa, mas eu
sabia bem como usar meu charme, uma pequena herança
de família. Enquanto Monstro o usava para o mal, eu o
usava apenas em situações de emergência. Julguei que
aquela, excepcionalmente, fosse uma delas.
— A garota que procuramos pode estar em perigo,
minha amiga — apontei para Marcela com a cabeça — é
irmã dela, ela só quer achar o pedaço da sua família que
lhe foi tirado. Por favor, nos ajude — implorei, franzindo
os olhos, com as mãos espalmadas em sua mesa, abusei da
minha voz grossa, transformando-a em um sussurro áspero
e sentido.
Quando seus cílios se movimentaram rapidamente, e
ela levou a mão até o decote da blusa para afrouxá-lo, eu
sabia que tinha vencido e lhe mostrei minhas covinhas.
Bárbara dizia que não havia nada que elas não pudessem
conseguir.
— Está bem, vou ver o que posso fazer. — Sorriu
calorosamente em minha direção.
Levantando-se, ela passou pela porta no exato
momento em que outra senhora mais corpulenta e de
aparência doce entrou com uma vassoura nas mãos.
— Isso foi baixo, até para você, galã — Marcela
sussurra, segurando a cadeira com força, reprimindo uma
risada.
— Sabe, querida, minha avó me chama de Encantado.
Na verdade, ela diz que sou o mais gentil dos seus
encantados, deve ter uma boa razão para isso.
Claro que tinha, a outra opção era o Monstro, então
estava claro por que eu ganhava a disputa.
— Encantado? — pergunta, com um sorriso de canto
de boca. — Gostei disso, príncipe.
— Queridos, eu sinto muito — anuncia a diretora,
voltando até a sala.
Ela se senta em sua cadeira e fala, olhando
unicamente para mim. Pela visão periférica, posso ver
Marcela revirar os olhos, mas ela se endireita mesmo
assim para receber a notícia ruim.
— Não há nenhum registro de mãe de aluna que se
chame Helena na época em que a mocinha estudou aqui, se
é que isso realmente aconteceu — lamenta, franzindo os
lábios. — Vocês disseram que ela estudava aqui há mais
ou menos sete anos, e que hoje deve ter entre 19 e 20,
certo?
Assentimos.
— Procurei alunas na faixa de 10 a 12 anos e não
encontrei nada.
— Tudo bem, agradecemos por sua ajuda.
Me levanto e espero que Marcela me siga, mas ela
permanece na cadeira, olhando para a parede, sem dar
sinal de que vai me acompanhar. Volto até ela e a pego
pelo braço, quando ela está de pé, entrelaço nossas mãos
e a tiro de lá.
— Esperem — grita alguém, quando estou abrindo a
porta do táxi para ela entrar.
Levanto o olhar e vejo a senhora que estava limpando
a sala correndo em nossa direção com dificuldade.
Quando ela nota que eu a vi, faz uma pausa e apoia as
mãos nos joelhos para recobrar o fôlego; antes que se
levante, estamos à sua frente.
— Vocês procuram uma menina, certo? Filha da
Helena?
— Sim, procuramos. Não sabemos se ela ainda mora
aqui, mas morava sete anos atrás — confirmo, o que a faz
parecer triste. A senhora não fala, apenas olha para
Marcela com atenção.
— É sua irmã? — pergunta, com desconfiança.
— Sim, descobri recentemente que meu pai também
era pai dela.
A senhora balança a cabeça em uma negativa, como
se não fosse possível, mas fala mesmo assim.
— Uma mulher chamada Helena viveu aqui nessa
época, ela tinha uma menina.
Ela passa o braço pela testa para se livrar do suor e
olha ao redor, procurando ouvidos atentos antes de
continuar. Quando volta a falar, suas palavras não passam
de um sussurro.
— Não me lembro de ver a menina na escola, mas a
vi algumas vezes na cidade. Sempre acompanhada de um
fazendeiro, com quem ninguém se atrevia a mexer.
Conversei com a mulher uma vez dentro de uma loja, a
única vez em que a vi, mas ele apareceu e a arrastou para
fora. No dia, a menina gritou. — Ela parece perdida na
lembrança, assim como parece não gostar dela. — Nunca
vou esquecer do olhar de pavor daquela criança enquanto
aquele homem arrastava sua mãe até a saída.
— Você sabe onde elas estão? — pergunta Marcela,
aflita, sem conseguir esconder a preocupação na voz.
— Nunca mais as vi depois daquele dia. Tem um
boato... — então, ela se cala. — Não é nada, desculpe não
poder ajudar mais.
— Por favor — implora Marcela, agarrando seu
braço assim que ela ameaça nos dar as costas.
A senhora levanta o olhar e se penaliza com o que
encontra nos olhos da Marcela. Da minha posição, não sei
dizer o que ela viu, mas é o suficiente para que ela conte
tudo o que sabe.
— Tem um boato de que ele as matou, não só elas,
mas uma vizinha também. Essa vizinha todo mundo
conhecia, e ela sumiu sem deixar rastro dias depois de
contar a duas amigas que a tal Helena era prisioneira
desse homem.
Marcela vacila e passo meu braço ao seu redor antes
que ela caia, ouço-a respirar fundo e sinto suas mãos
apertando as minhas em sua cintura.
— Pouco tempo atrás, o homem também sumiu, mas
sua senhora ainda vive aqui. Se alguém sabe de alguma
coisa, é ela.
— Onde a encontramos? — pergunto, quando
Marcela se vira e coloca a cabeça em meu ombro. Suas
lágrimas molham meu pescoço, e eu começo a me
arrepender de tê-la arrastado até aqui.
— Está vendo a estrada? — pergunta, apontando
adiante sem tirar os olhos de Marcela. — Segue por ela;
no trevo, vire à direita e vá até o final; depois, vire à
esquerda em uma porteira e, logo adiante, vão dar de cara
com os portões de bronze da fazenda mais cara da região,
é lá.
— Muito obrigado — agradeço e começo a refazer o
caminho até o táxi, amparando uma mulher muda e
retraída, que se escora em mim para ficar de pé. Ajudo-a
a se sentar, quando a senhora grita:
— Tenham cuidado, ele não é flor que se cheire.
Assinto e entro no carro, dando as coordenadas ao
motorista.
— Você está bem? — pergunto, retirando os cabelos
de seu rosto com a mão e deixando-a pousada sobre sua
bochecha. Ela nega. — Não perca as esperanças ainda,
ok? Isso não acabou.
Meia hora depois, saltamos do carro e olhamos para
uma imponente mansão, ela parece uma miniatura vista do
lado de fora dos portões. O caminho para se chegar à casa
é longo, feito de paralelepípedos e cercado de ambos os
lados por pinheiros altos. Avisto um interfone.
— Pois não? — responde uma voz feminina de
prontidão.
— Gostaríamos de falar com a proprietária, por favor
— tento soar autoritário.
Não quero e não vou tolerar uma recusa, nem que,
para isso, acampemos do lado de fora até que ela nos
receba.
— Quem devo anunciar, senhor?
— Diga para ela apenas que é sobre Helena.
Um tiro no escuro, eu sei, Marcela também sabe,
porque me olha em dúvida, mas nem um minuto se passa
até que os portões se abram para que entremos, sem que
mais nenhuma palavra seja dita.
Leva uma eternidade até que a construção ganhe
contornos.
— Parece que demora mais para chegar do portão até
aqui, do que nosso voo.
Eu não concordava; para mim, o voo havia sido
longo.
— Estou com medo, Gus — sussurra, me olhando de
forma perdida ao esfregar as mãos umas nas outras, em um
sinal claro de ansiedade.
Não respondo nada. O que eu diria? Não tinha um
bom pressentimento.
Descemos do táxi e nos voltamos para as imensas
portas de carvalho entalhadas, uma senhora bem
apessoada nos espera na porta, mexendo nervosamente em
um colar de pérolas muito bem posicionado em seu
pescoço. Ela é esguia e elegante e, embora more em uma
fazenda afastada, se veste com requinte. Vejo, pelo canto
do olho, Marcela encará-la, depois olhar para seus
chinelos de dedos com pesar, e faço o possível para
esconder o sorriso involuntário que se abre nos meus
lábios.
— Boa tarde, senhora. Eu me chamo Gustavo
Bittencourt e esta é Marcela Cantagallo.
Seus olhos se arregalam e ela parece nervosa, mais
um pouco e seu colar vai se arrebentar. A senhora alinha o
terninho e assente, esperando que eu fale.
— Viemos conversar com a senhora sobre Helena.
Eu, sinceramente, não sei o que esperava, mas sua
reação me desconcerta. Ela enterra o rosto nas mãos e se
escora na porta, aos prantos. Tudo acontece tão rápido,
que me deixa sem reação. Vejo seus ombros se
chacoalharem, até que uma moça corre em sua direção,
saindo da casa, e a ampara, agarrando em seu cotovelo e a
conduzindo para dentro. Marcela não perde tempo em me
puxar, pega a manga da camiseta e as segue, fechando a
porta.
— Eu sabia que, um dia, isso aconteceria. Vocês são
policiais?
Vejo que minha bela parceira sorri cinicamente e abre
a boca, pronta para mentir, mas intervenho.
— Não — ignoro o beliscão nas minhas costelas ou,
pelo menos, tento, e continuo falando com os olhos se
franzindo de dor. — Estamos interessados na filha dela, a
moça é irmã da Marcela. — Faço uma indicação para a
garota ao meu lado.
— Impossível. — Ela para abruptamente de chorar e
levanta a cabeça, analisando Marcela dos pés à cabeça.
— Meu Deus, quem é sua mãe?
Ela cobre a boca com uma das mãos, surpresa,
tentando esconder algo que imagino se assemelhar à
vergonha... É quando entendo o que ela realmente está
pensando.
— O pai delas era um viajante. Helena entrou em
contato com ele há alguns anos para que ele viesse buscar
a menina, mas só tomamos conhecimento da carta há
pouco tempo.
Ela parece atordoada, aceita, sem nem mesmo olhar
para sua criada, o copo de água que é entregue em suas
mãos, mas não o leva até os lábios.
— Isso é impossível — repete, com um suspiro
cansado.
Ela não parece se importar em esconder as lágrimas,
apenas aperta mais forte o copo em suas mãos, até que os
nós de seus dedos fiquem brancos.
— Seu marido é nossa última pista. Na carta, Helena
alertava que minha irmã corria perigo, eu preciso achá-la
— intervém Marcela, começando a perder a paciência.
— Não posso ajudá-los, não sei onde ele está —
anuncia, encarando os sapatos.
Noto que, desde o seu descontrole emocional à porta,
ela não nos olhou mais nos olhos, preferiu mirar apenas
seus sapatos de salto baixo.
— Meus pais, eles...
Vejo que Marcela está a ponto de perder o controle
também; ela não vai sair dessa casa sem uma resposta,
mas a abordagem dura não vai funcionar com uma mulher
tão abalada.
— Eles morreram, a menina é tudo o que restou a ela.
Precisamos achá-la, por favor — imploro, com a voz
gentil, fazendo com que ela levante o olhar.
Tento passar transparência e delicadeza nas palavras,
caminho até ela e me sento ao seu lado no sofá, apoiando
a mão na sua, ainda em volta do copo.
— Só ele poderia responder a sua pergunta, só Heitor
sabia onde a menina estava. — Ela volta a se envergonhar
e abaixa o olhar, virando-se para depositar o copo em
uma mesa de apoio. — Mas ele desapareceu, depois....
— E Helena, você sabe onde está Helena? — tento
outra abordagem.
— Morta — responde e irrompe em prantos
novamente.
Marcela parece a ponto de chacoalhar essa mulher
pelo colarinho da camisa social, e se eu não for rápido, é
exatamente isso o que ela vai fazer.
— Não somos policiais e não viemos aqui para julgar
ninguém, mas precisamos saber o que aconteceu. —
Decido me arriscar. — Ouvimos um boato na cidade...
— O que... o que vocês ouviram? — pergunta,
assustada. — Há muito tempo ninguém fala mais nada,
vocês não deveriam sair por aí fazendo perguntas. Têm
alguma noção de quanto isso arrasou minha vida? —
pergunta, exaltando-se.
— E a senhora tem noção de que uma mulher inocente
e sua filha podem estar mortas porque a senhora foi
covarde demais para descer do seu salto para ajudá-las?
Pelo amor de Deus, eu deveria ter pensado em trazer
uma fita adesiva para tapar a boca grande de Marcela. Eu
estava pronto para tentar contornar as coisas, quando vi a
senhora assentir.
— Desculpe minha falta de delicadeza, mas a senhora
não nos disse seu nome.... — evidencio, chamando sua
atenção.
— Maitê Magalhães — responde, fungando.
— Nós gostaríamos de ouvir a sua versão dos fatos,
senhora.
Ela assente, desconcertada, abre a boca para
responder, mas pensa melhor e volta a fechá-la. Quase um
minuto se passa até que ela consiga dizer alguma coisa.
— Helena era amante do meu marido e foi uma das
empregadas da Fazenda. Eu demorei muitos anos para
descobrir sobre o caso porque um dia ela simplesmente
parou de vir trabalhar e nunca mais escutei falar em seu
nome — começa, corando, visivelmente envergonhada da
atitude do marido. — Ele a tratava como uma... — Faz
uma pausa e volta a pegar o copo de água abandonado na
mesa, dando um gole generoso. — Prisioneira. Imagino
que meu marido tenha lhe obrigado a abandonar o trabalho
na casa principal quando decidiu que ela seria dele e a
escondido dos meus olhos.
— O que a senhora quer dizer com isso?
Os pelos dos meus braços se arrepiam e sinto que vou
detestar a resposta, vou detestar mais ainda que Marcela a
escute.
— Ele mantinha Helena e a menina presas em um
casebre. Comecei a desconfiar porque Heitor se mantinha
muito tempo ausente e, um dia, curiosamente decidi que
iria seguir meu marido, foi assim encontrei a casinha
simples no meio do campo onde viviam. Ele estava
levando suprimentos para elas. Fora isso, cidade pequena
fala. Ele colocou a menina na escola por um tempo e era o
responsável por ela. — Ela toma fôlego para continuar, e
agora pressinto que está chegando na pior parte. — Eu me
mantive calada como uma boa esposa faria — Marcela
revira os olhos, frustrada e ofendida — até o dia em que
ele me contou que ela teve um menino, um filho dele.
— Um menino? — perguntamos, eu e Marcela em
coro, surpresos.
— Sim, um garotinho de colo. Veja bem, nós nunca
conseguimos ter filhos e eu sempre, sempre quis uma
criança. Perdi tantas...
A dor em sua voz me faz oscilar. Marcela se joga em
uma poltrona com os olhos perdidos, sendo tomada por
pena dessa desconhecida que tem tanto em comum com
ela. Não preciso de mais do que um olhar para saber que
elas criaram uma conexão invisível, Marcela agora a
respeita. Embora eu ache que é muito cedo para se ter
certeza de alguma coisa.
— Então, eu lhe disse que o perdoaria se ele me
trouxesse o menino.
— Você o fez tirar o bebê dela? — Marcela pergunta,
ultrajada. A conexão que ela imaginou virou poeira e se
transformou em revolta. — Onde ele está?
— Nunca chegou até mim. Naquele dia, aconteceu um
acidente... — Ela se levanta e caminha até a porta. — Isso
é tudo o que sei. Naquele dia, Helena sumiu, assim como
seus filhos, e Heitor nunca mais foi o mesmo.
— Ele os matou? — Marcela também se levanta e
cruza os braços, indicando que não vai se dar por vencida
tão facilmente.
— Eu não...
O grito de Marcela a corta:
— Fala! — ruge, encurtando a distância entre as
duas.
Antes que eu sequer tenha tempo de piscar, as mãos
de Marcela estão no ombro da senhora em um aperto
firme.
— Eu não sei — grita a senhora, tentando esconder o
rosto nas mãos, mas Marcela não permite e lhe chacoalha,
fazendo com que seus cabelos ruivos voem no processo.
— Eu o ouvi... ouvi pedir para alguém enterrar dois
corpos, “duas vagabundas”, foi como ele as chamou.
— Então, minha irmã está em uma cova rasa no seu
quintal? — Marcela a solta e cambaleia para trás, e eu me
levanto correndo até ela, bem a tempo de ampará-la.
Empurro-a em direção à porta, mas, antes que passemos
por ela, Maitê sussurra.
— Alguém fugiu com aquele garotinho, uma delas não
morreu. — Estacamos no lugar. — Ele passou anos
procurando-os. Eu nunca soube se de fato os encontrou,
mas acredito que sim, já que em sua última busca não
voltou mais para casa. Há alguns meses recebi um
telefone de um policial de outro estado me dizendo que
um homem foi morto e que poderia ser meu marido, mas
aquela altura nem mesmo me importei em saber a verdade,
ele não fazia mais parte da minha vida e me fez mais mal
do que bem. Infelizmente isso é tudo o que eu sei, posso
mandar alguém mostrar o casebre se quiserem...
— Você nem mesmo foi reconhecer o corpo? —
Pergunta Marcela chocada e para ser sincero, também
estou.
— Porque eu iria? Aquela mulher e a família dela
eram a obsessão do meu marido, morto ou vivo, ele nunca
foi meu. — Ficamos sem palavras diante da frieza
daquela mulher machucada e aceitamos a oferta de
conhecer o lugar onde Helena e sua filha viveram.
Um dos empregados nos levou no carro da família por
uma trilha até uma pequena clareira, de lá, tivemos que
seguir o caminho a pé. Ele estacionou e indicou o caminho
correto, nos avisando que esperaria por nós no veículo.
Não demorou muito para ficarmos de frente para um
casebre caindo aos pedaços. Eu o avistei primeiro, pois
Marcela estava caminhando distraída em chutar as folhas
caídas no chão de terra, estaquei no lugar e agarrei sua
mão para que parasse também. Somente nesse momento,
ela levantou a cabeça.
— Está preparada? — pergunto, preocupado,
apertando sua mão.
Ela assente, mas não se move.
— Quer esperar aqui?
Ela nega, mas novamente não se mexe. Então, eu
espero até que ela realmente esteja pronta.
— Vamos acabar logo com isso, Gus — diz,
momentos depois, respirando fundo e começando a
caminhar.
Em nenhum momento, ela solta a minha mão.
Capítulo 32 - Marcela
“Nós mantemos este amor numa fotografia
Nós fizemos estas memórias para nós mesmos
Onde nossos olhos nunca fecham
Nossos corações nunca estiveram partidos
E o tempo está congelado para sempre.”
Ed Sheeran

Um casebre, uma fotografia e um


Príncipe

Tudo o que ouvi hoje me deu apenas uma certeza: ela


está morta. Tinha que estar; se não, onde estaria? Eu
preferia jogar com a pior das hipóteses, machucava menos
quando a vida realmente fazia essa jogada.
Enquanto eu caminhava decididamente até a
construção maltratada pelo tempo em que ela morou,
pensei no que a senhora que nos abordou na escola nos
contou. Ele era suspeito de ter matado Helena e uma
vizinha. Maitê reafirmou a teoria quando nos contou sobre
dois corpos femininos. Meu sexto sentido me dizia que
havia uma grande chance da minha irmã ter conseguido
fugir com o menininho, mas eu não podia me dar ao luxo
de criar expectativas a essa altura da vida. Depois de ter
passado por tudo o que passei, fé era um luxo que eu não
poderia ter.
Ele havia ido atrás do garotinho e nunca retornara.
Estaria com eles? Mantendo-os prisioneiros em algum
lugar que eu nunca encontraria? Teria matado ambos e
fugido?
Ter viajado até esse lugar havia me trazido mais
dúvidas do que respostas. Se eu não achasse nada na casa,
voltaria de mãos abanando e coração em frangalhos.
Porque, por mais que eu sempre me recuse a ter
esperança, ela é um bichinho traiçoeiro que se infiltra
pela menor das aberturas sem que nos demos conta. O
homem me amparando era um bom exemplo disso.
Maldita esperança... Foi feita apenas para arrasar
corações.
Parei na porta do casebre, mas não tive coragem de
continuar, então olhei para Gustavo, que já esperava por
aquele olhar. Com um chute, ele pôs a porta abaixo e
passou por ela, me deixando lá com ordens claras para
esperar até que fosse seguro. Depois de verificar todos os
cômodos, fez um aceno para que eu entrasse.
Parecia que ninguém vivia ali há muito tempo. Era
tudo muito simples e coberto de poeira. Na cozinha, havia
copos sujos em cima da mesa de plástico e louça
atulhando a pia minúscula, como se os moradores
tivessem saído às pressas. O lugar mal tinha espaço para
um armário, o mesmo acontecia na sala. Havia um sofá
velho e um tapete encardido, nada mais. O único quarto
estava equipado por um guarda-roupa com as portas
despencando e uma cama de casal com os lençóis
embolados.
Caminhei até o guarda-roupa e o abri. Algumas
roupas velhas aguardavam por mim. Entre vestígios de
vestimentas de uma mulher, uma menina e roupas de bebê,
não consegui me controlar e, antes que pudesse pensar no
que estava fazendo, abracei um macacão de bebê amarelo,
trazendo-o para junto do peito, enquanto lágrimas se
formavam nos meus olhos. Não o vi se aproximar, mas
senti suas mãos nos meus ombros e deslizando por meus
braços, em um sinal claro de que eu não estava sozinha.
Gustavo me virou em sua direção e, ao invés de tirar
o macacão de tricô das minhas mãos, ele o segurou junto
comigo e uniu nossas testas depois de plantar um beijo no
topo da minha cabeça, enquanto eu fechava os olhos.
Foi gentil de sua parte. Meu encantado.
— Ele tinha um igual — sussurro, apertando os olhos
para evitar que as lágrimas escapassem deles. — Minha
mãe tricotou.
— Tenho certeza de que ele era perfeito, assim como
você. — Seu hálito morno faz cócegas no meu rosto. Sua
voz rouca sendo pronunciada baixo, com doçura, quase
com reverência, me faz abrir os olhos lentamente. Quando
nossos olhos se encontram, a centímetros de distância, sou
invadida por um sentimento arrebatador de adoração e
uma vontade absurda de me inclinar e encostar meus
lábios aos seus. — Eu queria tê-lo conhecido.
É suficiente para fazer a mágica evaporar, então me
afasto dele, dando-lhe as costas.
— Desculpe, sei que não gosta de falar sobre ele... —
pede, evidentemente se sentindo culpado.
Não deixo de pensar que é uma ironia. Assinto e saio
do quarto sem olhar para trás. Preciso fazer alguma coisa,
usar as mãos para algo, me manter ocupada para conseguir
manter a boca fechada. Saio, abrindo gavetas e portas,
jogando no chão tudo o que encontro, abrindo cada
compartimento que avisto.
Na terceira gaveta do armário da cozinha, eu encontro
a foto.
Olho ao redor, mas não vejo Gustavo em lugar algum,
então refaço o caminho até o quarto e o encontro parado
no mesmo lugar onde o abandonei há pouco. A ponta de
seus dedos está pressionada contra seus lábios finos e
bem desenhados – lábios que, há pouco, quase beijei –, e
seu olhar está distraído.
— Olha isso. — Estendo a foto, fazendo com que ele
levante o olhar.
Não me encara ao pegá-la nas mãos e admirá-la, mas
fica surpreso com o que encontra. Ele me devolve a
fotografia, e me sento na cama, observando-a. Nela, uma
garotinha segura na barra da saia de uma mulher
envelhecida e de aparência cansada, provavelmente sua
mãe. A cena em família não emociona, não passa nem
perto. Tem algo nos olhos da garota que me corrói por
dentro, um horror absoluto, a sensação de que ela teme
algo. Seus olhos estão apavorados enquanto ela olha para
a pessoa por trás da câmera.
Roubo a foto. Ela é minha, assim como aquela menina
judiada. Porém, antes de sair do quarto, avisto um cordão
no vão da porta, escondido em uma brecha no assoalho.
Me abaixo e o pego nas mãos, volto a olhar para a
fotografia e encontro a medalha no pescoço da mulher.
Roubo o colar também. Fora isso, não tem mais nada lá
dentro que possa me ajudar nas buscas; no entanto, de uma
coisa estou certa, não vou parar de procurá-la.
Voltamos com o motorista de Maitê até sua
propriedade, mas não entramos. Caminhamos diretamente
para nosso táxi, que ainda nos aguarda, e voltamos para a
pousada para pegar nossas coisas. Decidimos nos
hospedar em outro lugar, Gustavo resolveu fazê-lo. Se foi
por causa do fantasma ou do fato de que lá teria que
dividir uma cama comigo, eu não sei. Mas ficaríamos em
um hotel melhor em Araçatuba, mais perto do aeroporto,
para embarcar em um voo para casa no dia seguinte.
Não conversamos muito no caminho até nossas novas
acomodações. Eu não sei bem o que aconteceu naquele
quarto, mas algo se rompeu quando quebrei nosso contato,
me afastando dele. Gustavo ficou calado, concentrado e
distante. Mal se despediu quando me deixou na porta do
meu quarto e rumou até o seu, em um andar diferente dessa
vez. Tentei não pensar no assunto, mas era inevitável.
Minha cabeça estava tão cheia e eu não tinha ninguém
para conversar. Bom, isso não era completamente
verdade. Corri até minha bolsa e peguei meu celular,
digitando uma mensagem de texto, que eu esperava que
fosse respondida logo. Arnaldinho já estava por dentro de
tudo, quer dizer, quase tudo.

Marcela: Criatura, tá aí?


Traste sem teto: Sabe quantas vezes eu já te liguei
desde ontem?
Traste sem teto: Você viajou e não disse exatamente
para onde foi, nem avisou se chegou bem. Eu já estava
imaginando que tinha ganhado esse apartamento. É tão
difícil fazer um sinal de fumaça?
Marcela: Não seja iludido. Se eu tivesse morrido,
tudo o que você ia ganhar era o aluguel para pagar.
Traste sem teto: Agora eu tenho quem me banque,
meu bem, morra de inveja.
Marcela: Zé Alfredo sabe que você está pensando em
explorá-lo daqui para frente?
Traste sem teto: Se não sabe, vai descobrir.
Traste sem teto: Teve sucesso nas buscas? Ainda
não acredito que tem uma miniatura sua em algum lugar.
Como Deus pode ser tão espirituoso para botar no mundo
duas de você? Ele não imaginou que isso seria problema
na certa?
Marcela: Nada, bem. Ela não mora mais aqui. Não a
encontrei.
Traste sem teto: Alguma pista de para onde ela foi?
Marcela: Não sei nem se ela está viva.
Traste sem teto: Santo Deus, como assim?
Marcela: Tem boatos na cidade de que o cara que as
prendia matou a mãe dela e mais uma mulher. Não tenho
como saber se foi ela ou se, no último minuto, minha irmã
conseguiu escapar, mas ela não foi mais vista depois
desse dia.
Marcela: Descobri que ela tinha um irmãozinho, um
bebê.
Marcela: Ele também nunca foi encontrado.
Traste sem teto: Que horror, boneca, isso parece
enredo de filme barato.
Traste sem teto: Será que ela pode ter fugido com
ele?
Marcela: Talvez, é uma suposição.
Traste sem teto: Acho que já está mais do que na
hora de você envolver a polícia, o tal cara pode ter as
respostas.
Traste sem teto: Você não o viu, viu?
Traste sem teto: Boneca, não quero que chegue perto
desse cara. Na verdade, eu quero você em casa, agora!
Traste sem teto: Conhecendo-a como a conheço, não
duvido de que você queira tirar satisfações com ele, pode
ser perigoso.
Marcela: É aí que chegamos ao ponto. Ele também
sumiu, não na mesma época. Parece que estava
procurando o filho, o bebê, e quem o levou, e também
desapareceu.
Marcela: Também queria estar aí. Mas, na verdade,
eu queria conversar com você sobre outro assunto.
Traste sem teto: O bofe? Porque, se for, Zé Alfredo
me deve uma boa grana.
Marcela: Vocês estão apostando sobre minha vida
amorosa?
Traste sem teto: Aquela que você não tem? Estamos,
sim.
Traste sem teto: Desembucha! Parou de ser tapada e
viu que ele é o tipo de homem de quem a gente não foge?
Traste sem teto: Boneca, já está mais do que na hora
de você ser feliz.
Traste sem teto: Só você não vê como ele a olha,
por que insiste em fugir do bonitão?

Ele não sabe, mas suas palavras atingiram fundo uma


ferida.
Abandono as mensagens e disco seu número; assim
que ele atende, já estou fungando. São tantas lágrimas de
frustração pelas descobertas do dia, pelo medo de nunca
encontrar minha irmã e pelos meus sentimentos por
Gustavo, que corro um sério risco de morrer afogada
nelas.
— O que você fez?
Noto que ele não perguntou “O que ele fez para
você?”, e, sim, o que eu havia feito. Sua pergunta parte
algo dentro de mim. Para ser mais precisa, parte meu
coração. É o suficiente para que a verdade que escondi de
todos se esgueire para fora dele e saia pela minha boca.
Eu nunca contei para ninguém o meu segredo, nem para os
meus pais. Sempre fui a única portadora daquela tragédia
que mudou o rumo da minha vida e, eficientemente, me
transformou no que sou hoje. Uma mulher cheia de perdas.
Arnaldinho não me interrompe, ele mal respira
enquanto ponho tudo para fora. Minha história começa há
exatamente dez anos, no dia em que uma âncora foi posta
em meus pés. Gustavo não sabia, mas, naquele dia, ele
próprio me impediria de sair do chão.
Ele tratou de cuidar para que eu nunca mais fosse
capaz de voar.
— Você tem que contar para ele, Marcela — é tudo o
que meu melhor amigo responde. Ele não faz arquejos
surpresos, não chama por seus Santos, nem me faz
nenhuma pergunta.
— Não importa mais, já passou muito tempo. O que
iria mudar? — pergunto, com raiva de mim mesma,
enxugando o rosto molhado.
— Você o ama, não?
Ele não espera minha resposta, ele sabe. Vai saber
Deus como, mas aquele homem, que caiu no meu colo sem
aviso, aprendeu a me conhecer bem.
— Vocês nunca poderiam ter qualquer tipo de futuro
sem que ele soubesse de uma coisa dessas.
— Ele não quer um futuro, nunca quis. — Meu tom de
voz não esconde a mágoa que guardo por nunca ter sido
notada.
— Você não sabe, e isso não importa. — Arnaldinho,
em nenhum momento, se exalta, seu timbre é calmo e
controlado. No momento, é a voz da razão da qual eu tanto
precisava. — Ele tem que saber, Marcela!
Sei que ele tem razão, mas não consigo me obrigar a
lhe contar.
— O que ele significa para você? Não quero saber
apenas desse momento. O que ele significou desde o
primeiro instante que você colocou os olhos sobre ele?
— Tudo. — Não preciso pensar para responder a
essa pergunta. — Não tem um momento dessa minha vida
de merda que ele não estivesse em pé, nos bastidores,
pronto para me socorrer. Eu nunca precisei pedir, ele
simplesmente aparecia.
— Ele tem o direito de saber o que aconteceu naquela
noite, e você lhe deve isso.
— Eu sei — lamento, afundando o rosto no
travesseiro, depois de me jogar sobre a cama.
— Então, faça — ele suspira — e, se der errado,
volta pra mim, eu ainda vou estar aqui.
— Claro que sim, você está na minha casa —
reclamo, fazendo com que ele ria.
Nos despedimos e sou forçada a novamente me
aguentar apenas com a minha companhia. Soco o
travesseiro, choro mais, limpo o rosto e visto um biquíni.
Eu não precisava de Arnaldinho para me dizer o que era a
coisa certa a fazer, disso eu já sabia. Mas precisava que
ele fosse meu sopro de coragem.
Ele podia se vestir de uma maneira péssima, mas era
um ótimo amigo. O melhor.
— Está tudo bem? — pergunta Gustavo, preocupado,
com voz de sono ao abrir a porta.
Devo tê-lo acordado, mas esse é o menor dos meus
pecados. Eu olho para ele com atenção, seus cabelos
bagunçado, as sobrancelhas franzidas e o peito largo
desprovido de tecido. Os ombros fortes retesados,
exibindo contornos seguidos pelos gomos da barriga
impecável... Ô, inveja.
— Marcela?
Merda, ele me pegou olhando para seu tanquinho mais
do que deveria, posso vê-lo abrir um sorriso preguiçoso e
debochado.
— Sim, vou nadar, quer vir? — Na verdade, esse não
era o plano. Eu ia contar a verdade para ele, depois ia me
afogar na piscina do hotel, mas mudei de ideia assim que
o vi sem camiseta. Eu era mesmo muito suscetível.
— Agora? — pergunta, olhando a hora no relógio de
pulso e constatando o que ambos já sabíamos: era tarde,
bem tarde.
Assinto, ele olha para trás, ao redor do quarto, como
se procurasse algo e, quando penso que vai recusar meu
convite inventando uma desculpa qualquer, ele me
surpreende, passando pela porta e a fechando.
Como sempre, meus planos tinham falhas. Só me
atentei para o fato de que ele ia me ver de biquíni depois
que ele pulou na piscina e emergiu, esperando que eu o
seguisse. Claro que, naquele momento, eu estava ocupada
tendo algumas fantasias bem loucas com ele molhado
daquele jeito. Sorri, sem graça, tirei a roupa mais rápido
do que os batedores de carteira da Praça da Sé, e pulei na
água atrás dele, em um salto digno de uma orca, nadando
cachorrinho em sua direção. Nem vamos comentar sobre
os vinte litros de água que engoli naqueles poucos metros.
— Não acredito que você ainda não aprendeu a nadar
que nem gente grande!
Ignoro sua provocação e tento colocar os pés no chão,
mas acabo por afundar. Merda, acho que não dava pé.
Entro em desespero assim que me vejo cercada por água e
sem ar. Me debato, braços e pernas voando em todas as
direções, até que meu pé esquerdo acerta alguma coisa...
Hum, isso não é bom. Não demora muito até que alguém
me puxe para cima pela cintura, e eu consiga agarrar a
borda da piscina. Respiro com gana, sugando o ar, me
acalmo e levanto a cabeça, virando-a de lado para
encontrar Gustavo encurvado, com uma expressão de dor
no rosto.
— O que foi? — pergunto, inocentemente.
Ele apenas me encara com perplexidade.
— Sua mira é excelente. — Se eu fosse tentar
adivinhar, diria que o acertei onde mais dói, já que é
exatamente naquela parte do seu corpo que suas mãos
estão pressionadas. — Marcela?
Merda, novamente ele me pegou e, dessa vez, eu
estava encarando algo mais constrangedor do que seus
bíceps.
— Isso porque foi de esquerda, você ainda não viu o
que posso fazer com uma bica de direita, é épico!
Desvio o olhar e sou surpreendida por ele agarrando
minha cintura e me puxando da borda. Sua mão firme me
conduz até suas costas e eu me agarro a elas, cruzando
minhas pernas na sua cintura, enquanto ele caminha mais
para o centro da piscina.
— Na próxima, deixo você se afogar! — Ri,
agarrando minhas pernas, passando suas mãos pela curva
dos meus joelhos.
— Como eu ia saber que era funda? Deveriam
colocar uma plaquinha — exclamo, indignada.
— Eles colocaram, a piscina infantil é aquela ali. —
Aponta para uma piscina minúscula ao lado da que
estávamos, ganhando um tapa no alto da cabeça.
Ficamos em silêncio por um tempo. Ele continua
andando a esmo pela piscina comigo presa em suas
costas, feito um filhotinho de coala, enquanto eu respiro
aliviada pela tensão entre nós ter se dissipado.
— Já faz tempo, não? Que ficamos assim... —
comenta, distraidamente.
— Faz, sim.
Um dia antes do meu aniversário, passamos a noite
rindo e brincando na piscina do prédio onde seu irmão
morava com Ian, foi uma das nossas melhores noites.
Estávamos sozinhos, unidos, nos divertindo e fazendo
planos para o dia seguinte.
— O que mudou? — Eu não esperava ter uma
abertura para lhe contar. Aquela era uma pergunta que ele
nunca tinha me feito, embora devesse. Era a pergunta de
um milhão de dólares. — Por que você foi embora?
Respiro fundo e abro a boca, mas sai apenas ar de
dentro dela. Tento outra vez e nada, não vou conseguir.
Não posso contar. Não tenho coragem.
— Eu queria outra vida — minto, estreitando o aperto
das minhas pernas em volta da sua cintura, Gus não fala
nada. — Se eu soubesse como terminaria, teria ficado. —
Dessa vez, eu falava a verdade. Se eu sequer imaginasse
que perderia minha família, teria enfrentado as
consequências do que fiz.
— Do que mais sente falta da sua antiga vida?
Das pessoas, claro, mas sinto que não é isso que ele
quer saber.
— Sinto falta da sensação de pertencer a alguém.
De ter alguém para dividir a vida, o sanduíche e a
cama. As alegrias e as tristezas. Sinto falta de amor, de
apoio e de ser casada. Mas, estranhamente, não sinto falta
de Lucas.
— Sente falta dele? — pergunta Gustavo, lendo meus
pensamentos.
Sua pergunta não passa de um sussurro, respondo com
a mesma tonalidade de voz.
— Não, mas sinto falta de algumas coisas que ele me
proporcionava.
Como a segurança de estar sob a guarda de alguém e,
claro, coisas mais mundanas, que, no dia a dia, pesavam
mais do que as importantes.
— Que tipo de coisas?
Novamente, tenho que me esforçar para ouvi-lo e
penso antes de responder. Nunca conversei sobre isso
com ninguém e me parecia estranho, e até errado, contar
justamente para ele. Mas a normalidade da conversa e o
fato de eu me sentir completamente à vontade com ele,
como sempre me senti, me fizeram falar.
— Sinto falta de dormir de conchinha, de beijos e de
sexo, sinto muita falta do sexo.
Dizem que transar é igual andar de bicicleta, não
importava quanto tempo sem praticar, era algo que nunca
se esquecia de como fazer, mas eu tinha lá as minhas
dúvidas. De uma coisa eu tinha certeza: caso algum dia
quisesse tentar de novo, um dedetizador teria que estar
presente para me ajudar a matar as aranhas e tirar as teias
lá de baixo.
— É disso que você mais sente falta? — perguntou,
surpreso, me puxando de suas costas para que eu ficasse
na sua frente, ainda presa ao seu corpo, sempre tomando
cuidado para que ele não se colasse ao meu de forma
indevida. — Do sexo? Eu pensei que, nesses anos todos,
você tivesse... tivesse... — Ele franze os lábios
timidamente, sem saber como continuar.
— Não, nunca namorei, nem saí com ninguém, depois
do que aconteceu... — Eu também não sabia como
continuar, então resolvi responder à sua pergunta. — E
não, não é do sexo que eu mais sinto falta, e sim de ser
beijada.
Sua fisionomia muda, ele não está mais surpreso, por
meio segundo parece indeciso e depois nervoso, como se
não soubesse como agir. Sua cabeça se inclina levemente
na minha direção, e eu prendo a respiração, não ouso
fechar os olhos, quero continuar sendo arrebatada por seu
olhar gentil e abrasador.
— Então, deixa eu te beijar — sussurra com a voz
rouca, me fazendo arfar.
Solto uma lufada de ar, somente para voltar a prender
a respiração e a parte inferior dos lábios entre os dentes.
— O que... quê? — gaguejo.
Puta merda, não acredito no que acabei de ouvir.
Alguém me belisca? Movo minha mão para baixo e aperto
minha coxa para ter certeza de que não estou sonhando.
Não estou, doeu pra cacete, mas não estou nem aí para a
marca arroxeada que vai se formar ali; só estou
interessada no homem que me abraça, pedindo permissão
para me beijar.
— Me deixa suprir uma das suas faltas.
Seus olhos se fecham pesadamente e voltam a se
abrir, existe dor dentro deles, e não desejo. Então, era
isso, ele estava apenas tentando ser o bom-moço
novamente, me oferecendo algo de que sinto falta como
se, por mágica, o resto fosse desaparecer.
— Eu não preciso que tenha pena de mim! —
exclamo, em um fio de voz, sentida e magoada.
Ele parece chocado com minha acusação, mas não
demora em abrir um sorriso imenso, me presenteando com
duas covinhas alucinantemente atraentes.
— O que eu sinto por você, Marcela, está muito longe
de ser pena.
Suas palavras me inflam e depois me estouram, como
se eu fosse um maldito balão. Não que, fisicamente, eu
não seja! Porque eu era um lindo balãozinho redondo e
ruivo.
— Não faz isso — imploro, fechando os olhos e os
espremendo com força para evitar as lágrimas que se
aproximam. Posso senti-las se formando, e sei que não vai
demorar para as vermos.
— Te beijar?
Sinto suas palavras roçando na minha pele. Ele está
mais perto, perto demais. Uma de suas palmas é colocada
em minha bochecha, e eu inclino a cabeça, deixando meu
rosto sobre ela, sentido o aroma da sua pele misturado ao
aroma do cloro.
— Não. Palavras como as suas são armas poderosas
capazes de iludir alguém como eu facilmente — solto, de
repente. — Gestos como os seus fazem as pessoas se
apaixonarem, e tudo de que menos preciso é amar você.
Abro os olhos rapidamente quando sua mão
interrompe o contato com meu rosto, levanto a cabeça e
encontro Gustavo atordoado pela minha mentira. Eu
deveria ter lhe dito que era tarde demais, que já estava
apaixonada há muito tempo para poder fazer algo a
respeito, mas não tive coragem.
Quando se tratava dele, eu nunca tinha.
— Se apaixone por mim, então, eu posso ser tudo o
que você precisa — pede, me encarando duramente,
firmando o aperto na minha cintura.
Quando dou por mim, nossos rostos estão a
milímetros de distância, tão perto que nossos narizes
chegam a se encostar. Seria muito simples tê-lo para mim
naquele momento, bastaria que eu fechasse os olhos, e eu
sabia que ele faria o resto. Porém, não consegui me
obrigar a realizar o desejo do meu coração, eu já havia
sido egoísta o suficiente com aquele homem.
— Para quê? Para você partir meu coração mais uma
vez?
Em vez de contar a verdade, fiquei na defensiva, tinha
como eu conseguir piorar aquela situação? Claro que
tinha. Fazia anos desde que ele não chegava tão perto, mas
ele já tinha ido mais longe, e lembrar de tudo o que
aconteceu me fez ter vergonha do nosso passado.
Vergonha de mim mesma.
— Eu nunca... eu...
Parecia que eu tinha lhe dado um tapa na cara,
tamanho seu atordoamento. Me senti culpada de imediato,
mas eu já tinha começado a falar e ia continuar, era hora
de colocar algumas coisas às claras.
— Você dormiu comigo, Gustavo, mas não se lembra
disso, não é?
Seus olhos se arregalam e eu me afasto sutilmente de
seu corpo. Ele tenta me puxar de volta, mas sabe, tão bem
quanto eu, que nosso afastamento emocional é enorme
para o físico valer para alguma coisa. Ele pisca repetidas
vezes, seu queixo está caído e ele desvia o olhar, mirando
a água, tentando fazer minhas palavras terem sentido, mas
nunca terão, não para ele.
— No dia do meu aniversário, depois que você foi
embora, entrou em um bar.
— Eu sei, mas...
Eu sabia que sua memória só ia até algumas doses.
— Você me ligou, e eu fui te buscar, nós dormimos
juntos naquela noite. Você tirou minha virgindade, e nem
ao menos se lembrou no dia seguinte.
Quando acordei, saí para comprar algumas coisas e
lhe preparar o café da manhã. Eu o tinha levado para o
apartamento do seu irmão, não queria que seus pais o
vissem bêbado. Quando voltei, ele me perguntou o que eu
estava fazendo lá. O mundo despencou na minha cabeça
como um balde de água fria, assim como as sacolas que
rolaram pelo chão.
— Você partiu a porra do meu coração. Um coração
que só batia por você.
Eu pensei que ele não iria acreditar, que ia tentar me
contradizer ou rebater minha acusação, então o que ele faz
me pega de surpresa.
— Me perdoe — implora, emocionado, puxando meu
pescoço em sua direção.
Ele esconde o rosto nos meus cabelos e respira
pesadamente na minha nuca, amparando minha cabeça
com uma das mãos trêmulas.
— Eu não sabia... não lembrava. Eu... me perdoa,
Marcela.
Fico em silêncio, de olhos fechados, absorvendo suas
palavras ditas com a voz embargada. Cedo demais, sinto-
o se afastar, quando minhas mãos são postas pelas suas na
beirada da piscina. Ele se ergue e sobe, pisando em terra
firme.
Então, eu o vejo me dar as costas.
— Gustavo — chamo, sem saber o que mais lhe dizer.
— Eu não sou melhor do que ele, não mereço você —
diz, se virando em minha direção parcialmente, é o
suficiente para que eu veja seus olhos marejados
brilharem.
Depois, ele parte, me deixando sozinha na imensidão
escura da madrugada, remoendo meu próprio pecado.
Eu deveria ter previsto isso, deveria saber que ele
iria se culpar. Ele não era o tipo de homem que aceita de
si mesmo uma atitude como aquela. Mas a verdade é que
eu sabia que ele estava bêbado e, mesmo assim, deixei
que acontecesse, eu queria ser dele. Queria me entregar
para o homem que amava, no calor da emoção não me
pareceu um erro tão enorme, mas foi.
Eu pagava por aquele erro até hoje.
Capítulo 33 - Gustavo

“E, aos poucos, a vida vai me mostrando por quem eu


devo lutar e de quem eu devo desistir.”
Autor desconhecido

O segredo dela

Precisei de todo meu autocontrole para não chorar,


porra, eu não podia chorar. Meu irmão me ensinou que
homem não chora, já meu pai me ensinou algo diferente.
Se quiser chorar, vá em frente, mas não diante da garota.
Então, foi o que fiz, eu fugi.
Não consegui articular nenhuma frase concreta além
do óbvio. Eu não a merecia. O que eu lhe diria para
consertar o que fiz? “Me perdoe” parecia pouco, muito
pouco, para o tamanho do meu erro. Dei-lhe as costas e
me afastei, caminhando pelo jardim. Me encostei em uma
árvore, agarrando-a com ambas as mãos, e a observei,
sabia que ela não nadava bem e não queria que nada de
ruim acontecesse por eu ser imprudente. Mas, logo ela
saiu da piscina, enrolou-se em uma toalha e entrou, com
os olhos mirando apenas seus pés, cabisbaixa e derrotada.
Bom, aí eu chorei.
Chorei de verdade, me escondendo dela. Mas sabia
que não poderia me esconder do que ela havia me
contado. Eu era mesmo a bichinha que meu irmão me
acusava de ser. Eu sentia, amava e me arrependia. Todas
as sensações eram intensas para mim. Eu era honesto, fiel
e correto. Mas, naquela noite, pedi para beijar uma mulher
enquanto minha noiva estava sabe lá Deus onde, e depois
descobri que havia feito algo horrível que acabou
magoando a mulher que mais amei.
Eu era a porra de um cretino!
Ter descoberto que havia passado uma noite com ela
partiu meu coração, então eu não suportava pensar no que
havia acontecido ao dela. Tento voltar no tempo, para o
dia em questão, mas não me lembro de muita coisa. Eu sei
que, depois que lhe dei a âncora e a fiz cortar o bolo que
levei, fui embora e parei em um bar para afogar todas as
mágoas que tinha por não ter coragem de lhe falar sobre
meus sentimentos mais uma vez, foram doses demais.
Minha próxima memória é a de acordar em um dos
quartos de hóspedes do Ian, me levantar e encontrá-la
entrando pela porta, com algumas sacolas nas mãos e um
sorriso no rosto.
— O que você está fazendo aqui? — perguntei,
curiosamente, com uma ressaca dos diabos. — E que
horas são?
Passei a mão pelo rosto para espantar o sono, escutei
um barulho alto e, quando voltei a abrir os olhos, ela não
estava mais lá, havia ido embora, abandonando as sacolas
pelo chão. Dei de ombros e voltei para o quarto, eu
dormiria mais um pouco, depois ligaria pra ela.
Nada, nunca mais, foi igual depois daquele dia.
Marcela se tornou fria e distante, poucas semanas depois
foi embora, e o resto é história.
Muitos fatores na descoberta sobre aquela noite me
machucavam. Era irreal saber que eu havia tido a
oportunidade de tocar nela, sentir seu cheiro, descobrir
seu corpo e jamais me lembrar disso. Virgem, ela disse
que era virgem. Marcela havia me escolhido para ser o
primeiro homem da sua vida, e eu perguntei o que ela
estava fazendo ali, no dia seguinte. Puta que pariu! Nunca
tinha sentido tanta vergonha de mim mesmo como naquele
momento.
“Um coração que só batia por você.” Ela me amou.
Marcela realmente me amou o suficiente para parar na
minha cama, e eu a machuquei. Machuquei a nós dois.
Foram tantos anos com a dúvida permeando meus
pensamentos, e agora, saber não mudava nada, só piorava
tudo. Ela me amou e eu matei aquele sentimento.
Eu mereci tudo o que aconteceu depois.
Mereci cada um dos abandonos, cada uma das vezes
em que ela me deu as costas e saiu da minha vida, me
deixando para trás. Eu merecia bem mais, meu castigo
seria saber e nunca mais poder tê-la para mim.
Naquela noite, eu não dormi. Não consegui. Quando o
dia clareou, eu me coloquei de pé, tomei um banho e
troquei de roupa. Joguei a mochila nos ombros e me sentei
no chão, na porta do seu quarto, sem nenhuma intenção de
bater. Eu esperava que ela fosse me procurar, mas não foi.
Marcela passou pela porta no horário combinado com o
taxista que nos levaria de volta ao aeroporto sem
conseguir me olhar nos olhos.
Novamente, aquele segredo destruiu tudo, Marcela
não falou uma palavra durante nossa viagem de volta, a
não ser “por favor”, “obrigada” e “com licença”.
Mecânica, fechada e reprimida. Ter me contado nosso
segredo havia transformado nossa relação mais uma vez.
Toda facilidade e espontaneidade que adquirimos de
volta, havia partido.
— Obrigada por... — Ela olha para os pés, ergue os
dedos e se balança. — Tudo.
Não respondo, ergo o olhar e encaro a fachada de seu
prédio, fazendo um aceno contido. Ela não se afasta, ainda
espera por algumas palavras minhas. Mas nenhuma delas
é boa o suficiente para consertar as coisas. Eu encurto
nossa distância e planto um beijo na sua testa, afago sua
cabeça, desarrumando seu cabelo, e vou embora me
sentindo péssimo.
Opto por ir até meu apartamento a pé. Quando sou
forçado a diminuir o ritmo e esperar o farol fechar para
atravessar a rua na esquina, volto a olhar para o ponto
onde a deixei; Marcela ainda está na porta de seu prédio,
me observando partir.
Enfio a chave na fechadura do meu apartamento, mas
estaco no lugar quando escuto uma movimentação
constante do lado de dentro. Eu não havia atendido nem
respondido as tentativas de contato da Camila desde a
véspera e me sentia extremamente exausto para encarar
uma briga que sabia que viria naquele momento. Retiro a
chave com cuidado, para não fazer barulho, e abro a porta
da escadaria de serviço, subindo os três andares que me
separam de um dos meus melhores amigos.
Não preciso bater, uso minha chave reserva e entro,
me sentindo muito mais em casa do que na minha própria
casa. Quando Bernardo chega, estou na segunda cerveja,
confortavelmente sentado em seu sofá, com os dois pés
cruzados em cima da sua mesa de centro, assistindo ao
jogo de futebol na TV a cabo.
— Quem está ganhando? — pergunta, parando ao meu
lado.
Ele afrouxa a gravata e boceja, parece cansado e nem
um pouco irritado por me encontrar tão à vontade.
— Não faço ideia.
Nem ao menos sei quem está jogando.
— Está se escondendo?
Assinto, tomando mais um gole do gargalo.
— Você não vê a sua noiva há vários dias e, em vez
de correr para matar a saudade, está se escondendo? —
Tenta novamente e ganha mais um aceno positivo da minha
parte. — Ok, o que aconteceu?
Eu demoro para responder e ele caminha até a TV,
desligando o aparelho e se jogando ao meu lado no sofá,
me encarando com insistência.
— Fiz merda. — Acho que isso resume bem a
situação.
— Caralho, você ficou com a Marcela? — Ele não
parece nem um pouco decepcionado com a ideia; na
verdade, parece um tanto surpreso, como se achasse que
eu jamais teria coragem de fazer algo assim. E estava
certo, eu não teria, se não estivéssemos falando da
Marcela.
— Eu transei com ela.
Depois dessa, ele rouba minha cerveja e sorve o
líquido, completamente atônito e de olhos arregalados.
— Vai buscar mais duas, porque a história é longa. —
Aponto para a garrafa, e ele não faz objeção, voltando em
seguida com duas garrafas fechadas. Espero ele me
entregar uma, já aberta, para voltar a falar. — Por isso ela
foi embora, há dez anos.
— Puta, que susto, achei que tivesse acontecido
alguma coisa entre vocês na viagem...
Eu o corto.
— Quase aconteceu.
Ele passa a mão pela barba rala, mas não parece
aliviado como pensei que ficaria. Se eu fosse julgar, diria
que ele está mais para decepcionado, por não ter
acontecido nada.
— Ela te contou que foi por isso só agora? — Ele
ergue os pés e os cruza em cima da mesa de centro ao
lado dos meus, retirando completamente a gravata e
jogando-a em cima de mim.
— Na verdade, eu descobri só agora — continuo
bebendo, deixando meu olhar se perder na porta fechada
do apartamento.
— O quê? Como assim? — Vejo sua expressão
confusa pela visão periférica e respiro fundo. — Como
você poderia não saber de algo assim?
— No dia do aniversário dela, eu tinha planejado
tudo. Comprei o presente perfeito, apareci em sua casa
com um bolo e um discurso na ponta da língua. Algo
parecido com “Eu te amo pra caralho, fica comigo”, não
necessariamente nessas palavras, mas não tive coragem de
falar e fui embora. — Por que não falei? Tudo poderia ser
diferente se eu não tivesse sido tão covarde. — Parei no
primeiro bar que encontrei e tomei um porre, minha
memória só chega até aí.
— Mas a dela chega mais longe, não é? — pergunta,
entendendo aonde minha história vai chegar, faço um
aceno afirmativo e ele xinga alto. — Caralho, como você
não se lembra de algo assim? Passou uma noite com a
mulher que sempre quis.
Eu o corto novamente.
— Acha que já não me fiz essa pergunta um milhão de
vezes? — Machucou em todas elas. Esse é o tipo de coisa
que vira a melhor lembrança da sua vida, e não a única
que você esquece. — Ela era virgem, se entregou para
mim e, no dia seguinte, quando a vi aqui, nesse
apartamento, perguntei o que ela estava fazendo. Eu nem
me lembrava de ter ligado para ela.
— Virgem?
Porra, isso era o que mais me incomodava. Eu não era
como a maioria dos outros caras, não ficava alucinado por
menininhas puras, mas sabia dar valor quando uma me
escolhia. Esse tipo de coisa é importante, é o tipo de data
que, para uma mulher, tem que ser perfeita, especial e
inesquecível. Eu teria feito tudo isso por ela se tivesse
tido a chance.
— Mas ela não foi embora naquele mesmo dia, foi?
— Não, mas foi ali que as coisas mudaram. Eu ainda
não sabia, mas, naquele dia, eu perdi a Marcela. O que
veio depois foi só consequência — lamento. — O que eu
faço agora? Descubro que ela me amava e depois
descubro que matei esse amor; como agir diante de um
erro desse tamanho? Deixe o “pule da minha sacada” fora
da lista de opções, por favor.
— Peça desculpas, acho que dá para começar por aí.
— Ele aperta meu ombro em sinal de solidariedade. —
Ela sabia que você estava bêbado, deveria ter imaginado
os riscos.
— Não, não vou jogar a culpa em cima dela, o erro
foi meu. — Sou taxativo.
Bernardo revira os olhos, mas não insiste no assunto.
— Você disse que quase aconteceu alguma coisa, qual
é a desse “quase”?
Ele se levanta e volta com mais duas cervejas,
retirando a garrafa vazia da minha mão e a alinhando junto
com as outras em cima do tampo da mesa. Senta-se mais
uma vez e eu mudo de posição, jogando minhas pernas por
cima dele.
— Eu pedi para beijá-la — começo, com receio.
— Esse tipo de coisa não se pede, idiota, se faz —
reclama, empurrando minhas pernas, mas as volto para a
posição, estava confortável demais.
— Está falando o cara que babou na Vivi por um ano
antes de criar coragem para chegar nela.
Ele revira os olhos, mas se cala. Sabe tão bem quanto
eu que é fácil falar, mas é difícil ser o Augusto, que,
pensando bem, poderia abrir uma escola e dar aulas de
como se pegar uma mulher em vinte e sete segundos. Sim,
esse foi o seu recorde, e ele se orgulha muito dele.
— Eu achei que ela fosse ceder, mas ela me disse
para parar, que aquele tipo de coisa ia fazer ela se
apaixonar, então eu disse que podia ser o que ela
precisava.
— Aí você tomou um fora?
Ele sorri. Posso não ser o meu irmão, mas só aquela
ruiva me rejeitou até agora. Primeiro, porque eu não
chegava em mulher nenhuma, elas que sempre chegavam
em mim; e segundo, porque eu nunca abria esse tipo de
assunto, nem com ele nem com os outros. Eu não contava
vantagem.
— Aí Marcela disse que parti o coração dela e
contou a merda toda. — Passo as mãos pelo rosto e
suspiro. — Eu não consigo parar de pensar em como ela
se sentiu, cara. Deve ter se sentido humilhada e arrasada,
não consigo acreditar que fiz isso com ela.
— Você não lembrava, porra — ele se irrita. — Não
pode ficar se culpando o resto da vida por um erro.
— Eu deveria ter lembrado.
Essa era uma constante, eu deveria ter lembrado!
Nunca vou aceitar o fato de que a magoei, nunca.
— E o casamento? Enquanto a gente está aqui
discutindo sobre uma coisa que você fez há dez anos,
estamos esquecendo de uma que você vai fazer em poucos
meses. Se ela te amou mesmo, pode ser que tenha voltado
a sentir alguma coisa, você mesmo disse que parecia que
ela queria o beijo. Não é o fim, cara, ainda não. Pelo
menos não enquanto você não assinar nada.
— Eu não sei.
Se existisse um reino dos babacas confusos, eu seria
o rei. Com direito a cetro, manto e um punhado de súditos
descontentes.
— Se ela te amou uma vez, pode se apaixonar por
você de novo — murmura, como quem não quer nada.
Eu sei que ele, assim como o resto da minha família,
vai soltar fogos se eu cancelar o casamento. Bárbara já
deve ter até comprado os rojões depois que levei Marcela
para passar o Natal conosco, mas provavelmente eu iria
decepcioná-la, iria decepcionar a todos eles, incluindo a
mim mesmo.
— Você está errado — não consigo esconder a
tristeza na minha voz —, não tem como ela gostar de mim
depois do que eu fiz.
— Você partiu o coração da menina uma vez, não
precisa fazer isso de novo. — Eu o encaro, com surpresa,
e ele dá de ombros. — Vi como você olha para ela, está
de quatro, e, vou te dizer mais, ela não te olha muito
diferente.
— Tem noção do que está me dizendo? O casamento
está pago, tudo está organizado, é um puta passo desistir
agora. — Só de pensar na ideia, já sinto uma angústia
crescente dentro do peito. — E não vou me casar sozinho,
tem a Camila também, tenho que pensar nos sentimentos
dela.
— Não, Mala, você tem que pensar nos seus. — Ele
se levanta e cruza os braços na minha frente. — Quando
se casar com a Camila, pode esquecer a Marcela, ela não
vai ficar na sua vida. Se está pensando que pode ter as
duas, amigo, você está enganado.
— Posso ter uma esposa e ainda cultivar a amizade
da Marcela.
Não consigo enganar nem a mim mesmo, quanto mais
a ele, que faz um muxoxo de descontentamento e uma
careta sarcástica para minha ideia.
— Se gostasse dela só como amigo, até poderia dar
certo, mas você ama aquela garota com péssimo dom para
cozinhar. — Ele ri. Aquele pernil congelado ainda ia ser
história para muitos almoços de domingo. — Não tem
nada pior do que casar por obrigação com alguém que a
gente não ama. Amando já é difícil, cara. Tem dia em que
eu só não meto uma bala na testa da Vivian e escondo o
corpo no meu porta-malas, porque me lembro de que não
consigo viver sem ela.
— Bê, e se eu desistir do casamento e, mesmo assim,
a Marcela nunca me quiser? E se, daqui a algum tempo, eu
olhar para trás e me arrepender porque abandonei uma
chance legal de ser feliz, por alguém que nunca vai
conseguir me perdoar? — E aí estão, minhas piores
dúvidas, meus medos mais egoístas. — Essa decisão
muda tudo, e não tem volta.
— Se está vendo um futuro feliz sem a Camila agora,
não importam as circunstâncias, no futuro, vai ver outra
vez.
Assinto, sorvendo mais um gole. Antes que eu possa
responder, a porta se abre e Vivian entra carregando João
no colo que, assim que nos vê, abre seu sorriso banguela e
meu peito arde. Eu nunca vou conseguir olhar para uma
criança sem pensar na Marcela, sem pensar em tudo o que
ela perdeu.
— Bernardo, tira os pés da minha mesa — ralha,
arrancando seu rabo de cavalo das mãos ágeis de João. —
Gustavo, tira os pés de cima do meu marido. — Ela joga o
bebê nos meus braços e puxa o laço dos cabelos,
deixando-os soltos. — Vão fazer alguma coisa da vida,
como, por exemplo, comida! Tô morta de fome e
superestressada! Acredita que hoje peguei um dos meus
alunos me mostrando a língua? Eu deveria ter cortado a
língua do pestinha com a minha tesourinha sem ponta.
Ela se joga ao nosso lado no sofá, parecendo exausta.
— Eu disse que, uma hora ou outra, eles vão te deixar
maluca. Vou pedir uma pizza, pode ser, amor? — Bê a
encara com um olhar visivelmente apaixonado, enquanto
brinca com as mãozinhas de João.
— Desde que eu não precise levantar daqui para
nada, eu topo qualquer coisa. — Ela sorri, agradecida, e
me encara, batendo os cílios imensos, sua marca
registrada. — Acho que ele precisa de uma fralda limpa
— argumenta, apontando para o próprio filho.
Ergo as sobrancelhas, fingindo resignação, mas me
levanto com João e sumo pelo corredor até seu quarto,
como ela sabia que eu faria.
Não vai ser a primeira fralda que vou trocar na vida
e, tendo uma irmã que é uma folgada de primeira, duvido
que seja a última.
Eu fiquei exultante de felicidade quando descobri que
Bárbara estava grávida de Valentina. Pouco me importou a
situação incomum que estávamos vivendo, eu estava
animado e empolgado por termos, finalmente, uma criança
na família e, claro, muito emocionado em ver a nossa
caçulinha se tornando mãe. Não fiquei apavorado, muito
menos rejeitei nossa sobrinha, como Augusto; ele só
queria protegê-la e, embora eu entendesse, não
concordava. Tive orgulho da mulher que minha irmã havia
se tornado quando decidiu levar a gravidez adiante e tive
muito respeito e admiração pela atitude de Ian. Eu
acreditava que teria feito o mesmo em seu lugar, se
Marcela tivesse me dado essa chance.
Achei impossível desgrudar os olhos daquele ser
minúsculo dançando dentro da barriga da minha irmã em
uma tela, mas, quando o fiz, a primeira coisa que vi foram
os olhos apaixonados do Ian olhando para ela. Ele me
ganhou ali. Eu teria aceitado e apoiado o relacionamento
dos dois somente pelo fato de minha irmã querer aquilo,
mas, daquele dia em diante, deixei o ciúme que sentia
dela de lado e realmente torci para que eles dessem certo.
Não era mais uma questão de apoiar sua decisão, eu
passei a concordar com ela.
O que ganhei com isso? Um emprego de babá não
remunerado. Eu amava crianças e não me importava em
cuidar da Tina. Mas, naquele dia, anos depois, com João
gargalhando em meu colo, meu pensamento foi para outro
canto, um muito mais obscuro. O que teria acontecido se
eu tivesse roubado Marcela no dia do seu casamento? Se
a tivesse pego para mim com o bebê que estava em sua
barriga? Será que ele estaria vivo hoje? Será que
seríamos felizes? Eu podia apostar que sim.
Naquela noite, dormi no meu antigo quarto. Havia
decidido que tiraria a noite para pensar no que fazer em
seguida. De que maneira me redimir perante Marcela, e
como começar uma conversa séria com Camila sobre as
minhas dúvidas, eu ia jogar limpo. Porém, não tive muito
tempo para pensar. Da maneira que me joguei na cama,
fiquei, sendo vencido pela exaustão de uma noite em claro
e muitas dúvidas na cabeça.
Quando acordei, ainda me sentia exausto, mas não
quis mais protelar o inevitável. Assim que entrei em casa,
encontrei Camila à minha espera no sofá, e ela não
parecia nem um pouco feliz em me ver. Imaginei que,
assim que a visse, me sentiria culpado pelo que quase
rolou com a Marcela, mas não, eu só senti apatia. Não tive
vontade de correr até ela, beijá-la e confessar meus
pecados, só tive vontade de voltar a fechar a porta, descer
as escadas e ir atrás de outra mulher.
— Onde você dormiu, Gustavo?
Ela parecia já saber a resposta, então não vi razões
para mentir. Franziu o cenho, cruzou as pernas e começou
a balançar um dos pés de forma impaciente, enquanto eu
respirava fundo e diminuía nossa distância.
— No vizinho. — Jogo minha mochila no sofá e
espero sua reação.
— Você não faz ideia de como adorei saber que meu
noivo tinha voltado de viagem pelo zelador, aquele
mendigo analfabeto!
Meus punhos se cerram e uma raiva alucinante me
invade.
— Não fala assim, porra! — recrimino, asperamente.
Todos nós tínhamos um imenso carinho pelo senhor
Otávio; se não fosse por ele, provavelmente não teríamos
encontrado Bárbara a tempo de salvar sua vida e a de
Valentina, que ainda estava em sua barriga na época. Deus
colocou aquele homem em nosso caminho, que, mesmo
não sabendo ler, se lembrou do logotipo da locadora de
veículos que Miguel usou para sequestrar minha irmã e se
dispôs a desenhá-lo para nós.
Ele havia abandonado a vida nas ruas e morava em
nosso prédio, trabalhando arduamente para ganhar o pão
de cada dia, e nunca deixava de frisar o quanto era grato
pela confiança de Ian em lhe dar aquela segunda chance.
Ele podia não ter ensino algum, mas era um homem bom,
digno e honesto. Não merecia, de forma alguma, aquele
preconceito gratuito.
No entanto, me dou conta de que Camila
simplesmente não se importa com nada disso. Puxando
pela memória, percebo que ela já fez muitas críticas a
diversas outras pessoas em circunstâncias similares, mas
essa é a primeira vez que saio do sério, antes eu apenas
relevava. Sempre preferi pensar que ela não fazia por mal
ao invés de comprar uma briga.
Como pude ser tão cego?
— Estou falando alguma mentira? — Ela devolve no
mesmo tom, áspero e seco.
— Não, mas está sendo ridícula.
Seu queixo cai e ela se levanta, caminhando em minha
direção. Ela para a um passo de distância e ergue o rosto,
se impondo na esperança de me intimidar.
— Quem é você para falar alguma coisa, seu
mentiroso de merda? — Ela espalma as mãos com
agressividade no meu peito e me empurra para trás com
força, meus punhos cerrados são dobrados nas minhas
costas para deixar o acesso livre para ela. — Ou acha que
não sei que você não viajou a trabalho coisa nenhuma?
Pensa que sou burra? — Novamente, ela me empurra, meu
corpo não se move dessa vez porque já espero sua
agressão e não revido. Não há nada que ela possa falar
que seja capaz de me fazer encostar um dedo nela.
— Como você sabe? — Não nego, mas fico curioso.
Ela se cala, se desconcerta por um curto período,
antes de me responder.
— Liguei para lá. — Então, ela não confiava em mim.
Não me surpreendi, ultimamente eu não merecia
confiança. — Para onde você foi? Não — ela grita —,
essa não é a pergunta certa. Eu quero saber com quem
você estava.
— Com uma amiga — respondo, ainda me mantendo
na decisão de ser sincero.
Ela fecha os olhos e empunha os punhos, me socando
com força repetidas vezes. Quando me canso da sua
maneira infantil de resolver as coisas, agarro seus braços.
— Se encostar em mim novamente, a conversa acaba
— alerto, com um timbre de voz que não passa de um
sussurro.
Por sua expressão perdida, imagino que ela preferia
ouvir gritos, mas não vai conseguir.
— Você tá me chifrando, porra?
Nós brigávamos muito, minha família normalmente
era o principal motivo das discussões e, em todas elas,
Camila saía por cima. Ela jogava sua ira para cima de
mim, e eu apenas desviava, depois vinham as ameaças que
eu sempre cedia e, por fim, ela saía vitoriosa, porque eu
nunca deixava de concordar com ela, mas não daquela
vez.
Posso ver em seu olhar acuado que ela sabe que
alguma coisa mudou para mim, ainda não sabe o que ou
quem operou essa mudança, mas vou contar a ela.
— Não. — Não estou, mas queria, e como queria. —
Eu estava ajudando uma amiga. Mas desenvolvi
sentimen...
Para minha surpresa, ela chora antes que eu possa
terminar de falar.
— Sinto muito, gatinha.
Sinto mesmo. Tento encostar nela, mas Camila se
afasta. No começo, seu choro é de raiva, mas depois se
transforma em algo mais. Ela se joga nos meus braços,
soluçando alto. Eu a abraço e amparo sua cabeça,
deixando meus dedos se emaranharem em seus cabelos
longos.
— Você vai me deixar? — pergunta com um fio de
voz, imprensando seu rosto no tecido da minha camiseta,
enquanto suas unhas se fincam na minha pele. — Você não
pode me deixar, não pode, Gustavo. — Ela se afasta o
suficiente para me olhar nos olhos, e eu concordo.
Não suporto vê-la chorar, acaba comigo saber que
causei cada uma de suas lágrimas. Ela não tinha culpa por
eu ter um passado e, principalmente, por ele ter voltado
para nos assombrar.
Depois que ela tem a minha confirmação de que não
vou a lugar algum, ela se recompõe, me soltando, alisando
a roupa e enxugando o rosto, e sorri como se nada tivesse
acontecido, aniquilando meu coração. Ela não perguntou
por quem eu havia me apaixonado, não quis saber seu
nome, nem onde eu estive; ao invés disso, esqueceu o
assunto e passou para outro que julgava mais importante.
— Seu talão de cheques ainda tem folhas? — Não me
movo, nem ao menos respiro, ao escutar sua pergunta. —
Preciso pagar os bem-casados.
— Você não acha que devemos conversar?
Quando foi que ela se tornou tão fútil?
— Sim, nós temos. — Ela assente, se sentando no
sofá e cruzando os braços. — Além do fato de que
realmente precisamos trocar este sofá, eu pensei bem e
não quero ninguém da sua família na cerimônia.
Meu queixo cai enquanto seu nariz se empina. Antes
que eu possa mudar de ideia e mandá-la para puta que
pariu, meu celular vibra no bolso, chamando minha
atenção. Pego o aparelho para conferir a mensagem
recebida, com o coração batendo mais forte depois que
leio o nome do remetente:

Marcela: Estou em frente ao seu prédio, temos que


conversar.
Marcela: Você pode descer, por favor?
Naquele momento, não me importei com a minha
noiva que me olhava de forma interrogativa e nada
amigável, muito menos com a resposta que ela queria
ouvir, uma que, por sinal, nunca viria. Eu jamais me
casaria sem a presença da minha família, eles gostando da
noiva ou não. A única coisa que me importava era sair
daquele apartamento e descer as escadas correndo, sem
olhar para trás.
Abri o portão de ferro da portaria abruptamente e
olhei para os dois lados da rua à sua procura. Marcela
estava encostada em uma cerejeira cor-de-rosa, olhando
para os próprios pés. Fechei a porta e corri até ela com os
braços abertos, puxei-a ao meu encontro e a abracei com
força, dando-lhe um susto. Em vez de me xingar, ela riu e
passou os braços em volta do meu pescoço. Antes que eu
pudesse começar a lhe pedir perdão novamente, o que eu
sabia que faria, fomos interrompidos.
— Você só pode estar brincando, Gustavo, é com essa
aí que você estava? A amiga fodida que precisava de
ajuda?
Marcela se afasta de mim ao ouvir a voz da minha
noiva às nossas costas e dá um passo cambaleante para
trás, eu continuo na mesma posição esperando Camila se
aproximar. Em sua voz, noto apenas surpresa.
— Você ao menos podia arrumar uma vagabunda
decente. — Então, ela ri, e os olhos de Marcela se enchem
de água. Eu nunca quis calar uma mulher com um tapa
antes, mas para tudo tem a primeira vez.
— Camila — alerto, friamente, ainda sem me virar,
meu olhos estão apenas em Marcela. Tenho um péssimo
pressentimento de que essa cena não vai terminar bem.
— Eu não queria.... — Marcela se interrompe e dá
mais um passo para longe de mim, jogando os olhos
novamente no chão, envergonhada. — Me desculpe por ter
vindo, você me disse onde era, então...
— É bom não querer mesmo, querida. Não sei o que
ele te fez acreditar, mas ele vai se casar, sabia? Fora isso,
você não faz o tipo dele. Mas isso você já descobriu
quando me viu, não é? — Camila envolve minha cintura
com as duas mãos e olha para Marcela por cima do meu
ombro com soberba. — Fala sério, gatinho, ela pesa uma
tonelada! — sussurra no meu ouvido em tom alto para que
Marcela escute.
— Cala a boca, porra. — Me viro para ela e arranco
suas mãos de cima de mim, segurando seus punhos com
força o suficiente para machucá-la.
Se ela sente dor, não esboça nenhuma reação, está
concentrada na sua atuação. Camila pisca e sorri mais
uma vez com os olhos em movimento, me viro
parcialmente para seguir seu olhar e vejo Marcela
correndo pela rua, me abandonando mais uma vez.
— Qual é o seu problema, caralho?
— Qual é o seu? É por aquela gorda que você
desenvolveu sentimentos? Está brincando comigo? — Sua
fachada de mulher cínica e segura de si cai, e ela me
fulmina com o olhar.
Não respondo, solto seus braços e lhe dou as costas.
Quando me afastei um pouco mais de um metro, escuto-a
me chamar.
— Gustavo, aonde você vai?
— Não sei — respondo, me virando para olhar em
seus olhos. — Mas não vou voltar para casa.
— O que deu em você para agir assim? Foi sua irmã,
não foi? Foi aquela cadela intrometida. — Ela não espera
minha resposta, é sua vez de me dar as costas. — Ela vai
pagar por isso — ameaça.
Camila empina o nariz e entra no prédio, sem olhar
para trás.
Toda determinação que senti some em um piscar de
olhos. Eu deveria ter defendido Marcela, corrido atrás
dela e me desculpado quantas vezes fossem necessárias,
ou ter ido atrás da minha noiva e ter feito o mesmo, mas
não consegui me obrigar a sair do lugar. As duas estavam
na mesma balança, fodendo com a minha cabeça, razão e
coração, e eu não consegui determinar quem pesava mais.
Fui para um bar, quem sabe lá encontrasse as malditas
respostas.
Capítulo 34 - Bárbara

“Coragem é aquilo de que a gente precisa para se


levantar e falar, e é também aquilo de que precisamos
para sentar e ouvir.”
Autor desconhecido

Quando uma promessa é quebrada, um amor


pode ser perdido

Eu amava meu trabalho, amava ainda mais as horas de


folga no Facebook que ele me permitia. Uma xícara de
café em uma das mãos, girando feito um pintinho no lixo
na minha cadeira, enquanto eu descobria as atualizações
da vida dos meus amigos e colegas de trabalho. Fofocava
um pouco e relaxava. Mas hoje o dia havia sido corrido,
um dos nossos maiores clientes fora preso, coitadinho.
Foi pego com meio milhão de dólares em uma maleta,
proveniente de um trabalhinho simples e honesto, tentando
fugir do país. Então, eu tive mesmo que trabalhar.
Tudo o que eu queria quando chegasse em casa era
uma taça de vinho, uma massagem nos pés e um carinho
do James, meu travesseiro. Mas meus planos foram
frustrados, porque alguém me barrou assim que embiquei
o carro no portão de casa.
Quando ela bateu com os punhos no vidro, eu dei um
pulo. Estava distraída, cantando junto com a música que
saía dos alto-faltantes e não me atentei ao fato de que
alguém estava à espreita, me esperando. Depois de dar
uma boa olhada nela, soltei minha bolsa, que havia
abraçado em um instinto protetor, e acionei o botão para
abaixar o vidro.
— Perdeu meu irmão? — perguntei, sarcasticamente,
claro que a frase tinha duplo sentido. — Ele não está aqui
— murmuro, depois de olhar no bolso largo da minha
camiseta branca, ironicamente.
— O que você fez? — ataca, apoiando as mãos na
janela aberta, se abaixando e inclinando o corpo em minha
direção, de forma ameaçadora. — O que você falou pra
ele?
— Não vejo Gustavo desde o Natal. — Sorrio
cinicamente. — Mas, pelo visto, temos problemas no
paraíso, não é? Não sei por que, mas não estou surpresa.
— Você é uma vaca mentirosa! — urra, batendo as
mãos na lataria e se levantando.
Ela gira atordoada, agarrando o rabo de cavalo com
uma das mãos, com a outra me aponta um dedo acusador.
— Eu não sei o que fez, mas você não vai estragar
meu casamento.
— Veremos, não é?
No que depender de mim, aquele casamento ia ficar
só no convite caro que o trouxa do meu irmão pagou. Volto
a erguer os vidros, decidida a ignorá-la e beber a garrafa
inteira de vinho, mas sou surpreendida quando ela chuta
minha porta com raiva.
— Você vai pagar por isso, Bárbara. Nunca falei tão
sério em toda minha vida, juro que vou fazer você pagar!
— berra, descontroladamente.
Ignoro o frio na espinha que suas palavras me fizeram
sentir e o arrepio que percorreu todo meu corpo e entro
com o carro na garagem. Permaneço sentada no banco do
motorista por cerca de dois minutos. Se ela pretendia me
assustar com sua ameaça, havia conseguido, mas nem o
medo envolto em humilhação constante que eu sentia
emanar do nosso passado, me faria deixar de ficar feliz
por descobrir que as coisas não andavam bem entra ela e
meu irmão.
Jogo a bolsa em cima da mesa da cozinha de qualquer
jeito e saio pela porta, caminhando pelo jardim até a porta
que liga minha casa à de Anna, com um sorriso faceiro
nos lábios e os pelos dos braços ainda arrepiados.
Encontro minha cunhada de costas, com a bunda seca
empinada para cima, procurando algo na geladeira.
— Conseguimos, Anna — conto, assustando-a,
fazendo com que ela bata a cabeça na porta e se levante
em um rompante. — Contratar a Marcela para seduzir o
Gustavo foi a melhor coisa que... — Minhas palavras vão
morrendo conforme ela vai se virando para me encarar.
Seus olhos procuram o meu com obstinação, estão
acusando e assustados. Não gosto daquele olhar.
— Você fez o quê?
Minha voz se esconde em algum lugar das minhas
entranhas quando sigo o olhar de Anna mais adiante e vejo
Ian, apoiado no balcão da cozinha americana, com uma
xícara de café a meio caminho dos lábios.
— Eu... eu... — Eu fiz merda, uma grande merda.
Olho feio para Anna, que parece feita de pedra. Seus
olhos se fecham quando meu irmão aparece atrás de Ian,
já de braços cruzados, mas ela não se move.
— Escutei certo, Bárbara Cristina?
Ouvidinhos bons do caramba. Monstro nem pisca ao
me questionar, mas não é dele que tenho medo. Ian ainda
segura a xícara no ar, seu olhar aturdido me faz ter
vontade de chorar, mas engulo as lágrimas e assinto,
abaixando a cabeça.
Não quero estar olhando em seus olhos azuis quando
ele vir a confirmação de que traí sua confiança.
— Não foi bem assim, nós... — Anna não parece
muito melhor do que eu, ela volta à vida e contorna a
mesa, se prostrando ao meu lado e agarrando minha mão
na sua. — Nós apenas...
— Você quebrou sua promessa. — A voz de Ian é
apenas um sussurro, mas eu o conheço bem para saber que
o timbre contido está mascarando uma ira sem tamanho.
Aperto mais a mão de Anna e continuo olhando para meus
sapatos. — Olha pra mim, Bárbara — ordena,
asperamente. Não obedeço, e Ian arremessa a xícara na
parede, me fazendo arquejar de susto. — Olha pra mim
— berra.
Quando obedeço, meu mundo cai.
Seus olhos azuis-cobalto, que sempre refletiram
adoração por mim, neste momento, exibem apenas repulsa
pelos meus atos. Dizer que ele parece decepcionado me
parece pouco para toda a raiva que vejo refletido dentro
deles.
— Ian, se acalma — começa Monstro, tentando
consertar as coisas, apoiando uma de suas mãos no ombro
do meu marido. — Tenho certeza de que ela não fez por
mal.
Os ombros retesados do meu irmão e sua postura
rígida contradizem suas palavras. Eu sei que ele está puto
comigo, mas vai fazer o possível para que Ian não fique e,
depois, só depois, vai me dar um esporro.
— Não, Augusto. — Ian tira as mãos de Monstro de
cima de seu corpo com um puxão. — Ela passou dos
limites.
Ele me encara uma última vez e balança a cabeça
resignado, antes de sair para o jardim; nesse momento,
começo a chorar. Ameaço segui-lo, mas Anna me segura.
Se ela quer que Ian esfrie a cabeça ou companhia para a
bronca que vai levar do Augusto, não faço ideia, mas
permaneço no lugar, fungando.
— Vocês vão me contar exatamente o que fizeram, ou
vou ter que começar a gritar? — pergunta, voltando a
cruzar os braços. Ele não parece mais alguém pronto para
me defender.
— Contratamos a Marcela para seguir a Camila e,
como você já sabe, ela não encontrou nada incriminador
— Anna fala rapidamente, como se a velocidade das
palavras fosse amenizar as consequências.
Augusto fecha os olhos e passa as mãos pelo rosto,
depois volta a abri-los e um lampejo de esperança passa
por eles.
— Então, mudamos o trato, oferecemos mais dinheiro
para ela seduzi-lo e nos conseguir provas contra ele.
— Vocês ficaram malucas, porra? — Então, ele
estoura. — O que deu na sua cabeça de armar algo assim
para o próprio irmão? — pergunta, revoltado, encarando
apenas a mim com olhos flamejantes.
— Eu achei que, se Marcela entrasse na vida dele
outra vez, ele poderia relembrar o passado... Achei que se
apaixonariam novamente...
Ele me corta com um aceno.
— Bárbara, aquela mulher arrasou com o Gustavo da
primeira vez. — Monstro suspira. — Ela trincou o
coração dele, de uma maneira que mulher nenhuma
conseguiu. O que te fez pensar que dessa vez será
diferente? — pergunta, impaciente.
— Mas, no Natal, ele parecia tão encantado...
Ele me corta novamente.
— Esse é o problema, sua idiota, ele sempre amou a
Marcela, mas ela nunca mereceu esse sentimento. — Ele
cerra os punhos e morde um deles com força. — Você fez
merda, porra.
— Nós só queríamos o melhor para ele e, com
certeza, o melhor não é a Camila. — Anna deveria ter
ficado quietinha, mas, ao tentar me defender, sobrou para
ela.
— Eu não acredito que você deixou ela te meter
nisso! — ruge, fazendo-a se encolher. — Estou
extremamente decepcionado com você, Helena.
Ela congela ao meu lado ao ouvir seu nome
verdadeiro. Só escutei meu irmão chamando-a por ele
uma única vez, no dia em que a pediu em casamento. O
que queria dizer que ele estava, mesmo, muito irritado.
Augusto nos dá as costas e some pelas escadas sem olhar
para trás, assim como Ian.
— Melhor a gente falar com eles... — comento,
baixinho, começando a me sentir culpada pela encrenca
em que nos meti.
— Eles não vão escutar nada agora, sua boca de
caçapa — ralha Anna, revirando os olhos. — Senta a
bunda aí e bebe uma cerveja comigo, depois a gente se
revolve com esses dois idiotas.
Depois de quatro cervejas – três e meia minhas e
meia que a anjinha/feto/miniatura do meu irmão quis –,
volto para casa. Elas amenizaram minha culpa e me deram
coragem para encarar Ian e, quando entro em nosso
quarto, o encontro recostado na cabeceira da cama
encarando uma parede com os olhos cerrados. Eu podia
até escutar os pedidos de ajuda da tal parede, morta de
medo daquele olhar irritadiço.
— Eu fiz o que achei que tinha que fazer para
proteger meu irmão — disparei, ao passar pela porta,
chamando sua atenção para mim. Ele morde os lábios com
força e não responde. — Ela não é a mulher certa para
ele, Ian.
— Não é você quem tem que decidir — grita,
levantando-se.
Nunca, sob nenhuma circunstância, Ian havia gritado
comigo assim. Perceber que eu realmente havia
ultrapassado um limite proibido fez minha coragem bater
asas e voar para longe. Meus lábios tremeram e meus
olhos se encheram de água.
— Quando você vai entender que as pessoas têm que
aprender com os próprios erros? — pergunta em um tom
mais baixo, quase ameaçador.
— Casamento é um erro sem volta, eu sei... — Quase
cometi o mesmo erro, era o que eu ia falar, mas ele me
corta, levando o indicador à frente dos lábios, em um
sinal claro para que eu me cale.
— Você nem deu uma chance para ela, é isso que mais
me atormenta. — Ele balança a cabeça em uma negativa,
como se não pudesse acreditar que estamos mesmo tendo
essa discussão. — A mulher por quem me apaixonei
jamais teria negado uma segunda chance a alguém, o que
aconteceu com ela?
Um soluço involuntário escapa pelos meus lábios, e
eu tapo a boca com uma das mãos.
— Ela está perdendo o irmão. — Nesse momento,
não consigo mais segurar o choro.
Ian ergue ambas as mãos por instinto, mas, antes que
ele me puxe em sua direção e me abrace, ele deixa que
elas despenquem, rente ao seu corpo, me negando
consolo.
— Você está sendo egoísta. Enquanto Camila não
passa de mulher sem valor para todos nós, ela pode ser a
melhor mulher do mundo para ele, já pensou nisso?
Não, eu não havia pensado, porque ele estava errado.
— Não importa o que você pensa sobre ela, só o que
ele sente, e isso eu não vou permitir que você manipule —
cospe, voltando a se sentar.
Ele passa as mãos pelos cabelos claros e sua veia
pulsa em seu pescoço.
— Se Marcela encontrar alguma coisa, não vou
precisar manipular nada... — minto, me sentindo culpada
por ele não me dar uma abertura para que eu seja sincera.
— Você acha que sou idiota? — grita. — Acha que
não escutei sua conversa com o Monstro? Acha que não
sei que você mandou aquela menina seduzir o Gustavo?
Abaixo a cabeça, constrangida.
— Quem é você? — pergunta, com um sussurro
descrente.
É o suficiente para que minha parca paciência vá para
o inferno.
— Quem sou eu? Eu sou a mulher que não vai deixar
o irmão cair nas garras de uma safada — respondo,
asperamente. — E você é o cara que não vai se intrometer
onde não foi chamado. É o cara que vai dormir na porra
do sofá!
— Então, é assim que vai ser? — pergunta,
levantando os olhos para me encarar, ele abandonou a
raiva e seus olhos refletem apenas tristeza. — Você
quebrou uma promessa que fez para mim, você mentiu, e
vai continuar agindo como se estivesse certa?
— Eu estou certa. O irmão é meu, Ian, e eu sei o que é
melhor para ele.
Ele assente, mesmo sem concordar, e se levanta,
apanhando seu travesseiro. Antes que ele saia pela porta
do quarto, disparo:
— Não no nosso sofá, não quero você nem na mesma
casa que eu hoje.
Ele assente novamente e sai do quarto, sem me olhar
nos olhos, nem falar boa-noite, muito menos o “eu te amo”
habitual, e eu me acabo de chorar embolada nos lençóis.
Odeio brigar com Ian, odeio ter que mentir, ter que
quebrar uma promessa que era importante para ele, mas
odeio mais ainda saber que meu irmão está a ponto de se
jogar em uma vida infeliz porque está cego, dominado por
um sentimento avassalador repleto de mentiras.
Eu amava Ian, mas amava ainda mais Gustavo.
Sangue é sangue.
Capítulo 35 - Marcela
“Você fez meu coração sangrar e você ainda me deve uma
razão.”
Ben Cocks

Você também me amava? Tem certeza disso,


cara?

— Eu deveria ter esfregado a cara de pau daquela


filha de uma puta no asfalto — berro para Arnaldinho,
depois de contar sobre o vexame pelo qual passei. — Eu
deveria tê-la partido ao meio e trazido os restos para
alimentar essas duas estátuas que você insiste em chamar
de cachorros — esbravejo, jogando as mãos para o alto e
chutando o canto do sofá com o pé descalço. — Ai, porra.
— Meu dedinho pega bem na quina do móvel, na tentativa
frustrada de descontar minha raiva em alguma coisa.
— Por que você não fez exatamente isso, boneca? —
pergunta a criatura sem-teto, voltando os olhos para o
livro em seu colo.
Seus óculos escorregam pelo nariz gorducho, e ele
volta a prestar atenção na história dos outros, ao invés da
minha. Vou bater nele.
— Porque eu... eu... — Merda, eu saí correndo que
nem uma idiota.
— Você queria que ela fizesse o que quando pegou o
noivo agarrado com você? Te desse os parabéns? — Ele
endireita os óculos e me encara, com um misto de
divertimento e pena no olhar, o que me irrita ainda mais.
— Ela disse que eu pesava uma tonelada — conto,
magoada. — Não precisava descer tanto o nível.
Meus lábios tremem, e ele joga o livro longe,
fazendo-o cair com as páginas abertas com um baque
surdo no tapete encardido de baba de cachorro.
— Ela disse o quê? — pergunta, irritado, levantando-
se. — Só eu posso te lembrar do regime que você precisa
fazer, aquela vareta não tem esse direito.
Será que ele realmente pensa que está me ajudando
em alguma coisa?
— Ele não veio atrás de mim — soluço, chegando à
verdadeira raiz do problema. — Eu fui até lá tentar
conversar, dizer que ele não me deve desculpas e... — Ele
decidiu ficar com ela.
— Não fica assim, boneca — sussurra Arnaldinho,
me dando um beijo estalado na bochecha, depois me
abraçando.
Eu encosto minha cabeça no seu ombro e passo ambas
as mãos por sua pança fofinha (muito mais fofinha do que
a minha) até conseguir me acalmar.
— Merda, eu nunca chorava antes daquele idiota
aparecer de volta na minha vida. — Não por problemas
atuais.
As lágrimas salgadas de saudade que eu depositava
no meu travesseiro noite após noite não entravam na
conta; elas já faziam tão parte de mim quanto os aviões
fazem do céu.
— E o que você vai fazer agora? Vai deixar ele para
ela de presente?
Pisco, atordoada... Claro que não. Ele pode ser um
imprestável que me trocou por uma cadela vira-latas, mas
ainda é o homem que amo, e não merece se casar com uma
mentirosa.
— Eu vou preparar a pasta do caso e entregar tudo
para a irmã dele, ela assume a partir daí.
Arnaldinho assente, concordando com afinco. Depois,
me expulsa da sala, me manda tomar um banho e esperar
na cama, pois vai me fazer um chá para que eu possa me
acalmar. Como um chá vai me acalmar é um mistério para
mim, eu quero álcool. Um balde de “tequila ouro esquece
tudo” para me afogar!
Depois de beber o chá com gosto de xixi de gato –
não, nunca tomei, mas o gosto era igualzinho –, eu o
escuto atender uma ligação do Zé Alfredo e abrir minha
porta para conferir como estou antes de concordar com o
que quer que seu namorado tenha pedido, então finjo que
estou dormindo para que ele possa sair. Não é porque
estou na fossa que vou arrastá-lo junto comigo; ele merece
curtir seu amor cor-de-rosa, até descobrir que a vida é
uma droga e que relacionamentos são utopia. Eles sempre
terminam na merda, muitas vezes com as minhas fotos.
Me viro de lado e tento dormir, mas não consigo
parar de pensar. Se Camila não tivesse me interrompido,
eu teria dito a Gustavo tudo o que pretendia? Teria lhe
contado que eu tinha uma parcela de culpa pela noite que
passamos juntos e tudo o que aconteceu em decorrência
dela? Provavelmente, não, mas era um bom material para
impedir o sono de vir me encontrar.
Estou a ponto de engolir um ou três comprimidos para
dormir, quando escuto alguém bater à porta. Me levanto
preguiçosamente e me arrasto pelo corredor, xingando
Arnaldinho por ter esquecido as chaves, mas me
surpreendo quando abro a porta e encontro Gustavo
encostado no batente de forma preguiçosa. Seus olhos
estão desfocados e cheios de remorso, e o cheiro de
bebida me atinge forte e eu sinto inveja. Não sei quando
Arnaldinho encontrou meu esconderijo de bebidas, mas
ele limpou todo meu estoque, me obrigando a ficar sóbria
na marra.
— O que você faz aqui? — pergunto, encarando-o
com espanto.
Ele se desencosta e cambaleia, então agarro seu braço
e o puxo para dentro do apartamento. Como ele pesa, meu
Deus, depois sou eu quem precisa de regime.
— Gustavo, te fiz uma pergunta! — lembro-o, quando
o jogo no sofá e ele afunda o rosto nas mãos, sem
conseguir me encarar. — Por que bebeu desse jeito?
— Eu precisava de coragem. — Sua cabeça se
levanta, e seu olhar triste me desconcerta.
Não deixo de me sentir magoada por aquela cena ser
semelhante à que me destruiu no passado. Ela também
começou com o mesmo homem precisando beber.
— Para que você precisa de coragem?
Seus olhos se focam e eu prendo a respiração. Não
importa o que seja que ele acha que preciso saber, sei que
vai mudar tudo, outra vez.
— Para fazer isso.
Ele se levanta e dá um passo incerto na minha
direção, ergue ambas as mãos e segura meu rosto com elas
de forma gentil, amparando minhas bochechas coradas, me
olhando com um par de olhos abrasadores. Fico tão
atordoada, que não tenho nenhuma reação quando sua
boca roça na minha, mas ele não vai em frente.
— Não, não está certo. — Ele se afasta e balança a
cabeça, se deixando cair novamente no sofá, com o rosto
sendo escondido pelo antebraço.
Mas ele não é rápido o bastante em esconder suas
emoções, um turbilhão delas, mas eu me concentro em
apenas uma: vergonha. Então, me lembro do que fazer
para conseguir me mexer e ando pelo apartamento que
nem uma maldita barata tonta, esperando que ele fale mais
alguma coisa, mas, quando volto a olhar em sua direção, o
vejo de olhos fechados.
O filho da puta apagou bêbado no meu sofá, logo
depois de me rejeitar.
Sou tomada por uma raiva ferina, absurda e
descomunal. Antes que eu possa pensar no que estou
fazendo, caminho até meu quarto e reviro toda a bagunça
de roupas e pastas jogadas pelos cantos, até encontrar
minha câmera. Sei que é errado, também sei que é golpe
baixo, mas não estou mais nem aí. O que é um erro a mais
para quem já está condenada a uma vida de danação
eterna? Nada, nadinha de nada.
Volto para perto dele e arranco minha blusa, ficando
apenas de sutiã. Me deito na beirada do sofá, colando meu
corpo ao seu e sorrio para a câmera; fecho os olhos e
encosto meu rosto no dele, mais um flash; por último, eu
finjo beijá-lo e bato a última foto. Pelas horas seguintes,
eu me visto, jogo as fotos no computador, as imprimo e as
anexo em uma pasta, onde está escrito Bárbaraem negrito,
em uma etiqueta na capa. Ali, também, estão as fotos de
Camila com Gael, e a troca de e-mails entre os dois.
Quando termino, me sinto um lixo. A vingança não é,
nem de longe, tão saborosa quanto imaginei. Seguro
firmemente a pasta nas mãos, pensando no que fazer a
seguir. Parte de mim quer abandoná-lo com um balde ao
seu lado e ligar para sua irmã, marcar um encontro e
entregar todas as provas que reuni; a outra parte quer
apenas chorar. Não preciso dizer qual parte está levando
vantagem em uma briga interna dentro dos caquinhos do
meu coração, preciso? Quando a primeira lágrima rola, o
poder de escolha me abandona e ele me chama.
Giro nos calcanhares até a porta, enxugando o rosto
rapidamente, e o encontro parado, de pé, no centro da
sala. Seus olhos estão mais alertas, suas mãos estão nos
bolsos do jeans, e sua postura rígida e desconcertada
indica que ele está em dúvida se deve ou não encurtar
nossa distância. Quando ele toma uma decisão, os papéis
em minhas mãos passam a pesar uma tonelada, e eu jogo a
pasta pelos ares, fazendo-a parar debaixo da cama,
enquanto ele está concentrado em sustentar nosso olhar ao
caminhar em minha direção.
— Sabe, as coisas nunca terminam bem quando você
enche a cara e me procura.
Era para soar engraçado, pelo menos foi na minha
cabeça, mas, na vida real, eu tinha lhe dado um tapa de
mão aberta bem no meio da fuça, ou foi isso que pareceu
quando ele estacou no lugar, atordoado.
— Eu não sabia mais para onde ir... — Ele dá de
ombros, enquanto seus olhos brilham de arrependimento.
— Eu precisava me desculpar.
— Pelo quê? — pergunto, desviando o olhar, quando
ele finalmente encurta nossa distância em poucos passos.
— Por tantas coisas, Má. — Ele suspira, parecendo
mais sóbrio. — Por hoje, por aquela cena ridícula que a
Camila fez e por tudo o que ela te falou, por não ter saído
correndo atrás de você para te dizer que você é a mulher
mais linda do mundo e, principalmente, por nosso
passado. Eu quero me desculpar por ter te machucado dez
anos atrás. — Ele passa as mãos pelos cabelos, enquanto
eu tomo coragem para assumir minha parcela de culpa por
aquela noite.
— Você não me deve desculpas, Gustavo. Há dez
anos, eu... eu deixei acontecer, eu... — gaguejo,
envergonhada. — Eu sabia que você tinha bebido, mas...
— Mas acreditei que era o que você queria. Porém, não
tenho coragem de lhe dizer isso.
— Não foi culpa sua, Marcela, eu me aproveitei de
você, nunca deveria ter feito isso. — Ele faz uma pausa e
respira fundo. — Puta que pariu, eu nem tenho uma
explicação pra te dar, porra.
— Não fala mais nada. — Não quero ouvi-lo se
explicar. Eu sabia que, se ele tivesse em perfeito juízo,
jamais teria encostado um dedo em mim, não precisava
ouvir da sua boca. — Eu não quero ouvir.
— Você me amava?
Ele fecha os olhos ao fazer a pergunta, o que é ótimo,
assim ele não pode ver o constrangimento me inundar.
Achei que tivesse deixado claro, mas parece que ele quer
ouvir com todas as letras. Respiro fundo e falo, pela
primeira vez, abertamente sobre meus sentimentos, não
posso mais protelar.
— Sim, eu amava você. Amava tanto... — lamento.
Era muito amor para terminar da forma que terminou.
Era amor demais, tanto que nem os anos que se passaram
foram suficientes para acabar com ele ou, no mínimo, o
diminuírem. Ele continuava lá, imenso em toda sua
grandeza, com um potencial de destruição ainda maior.
— A noite que tivemos...
Sua pausa faz meu coração começar a bater forte
dentro do peito, é o suficiente para os meus urubus de
estimação acordarem de um sono de beleza e começarem
a bater as asinhas atrás da carniça, no caso, meu coração.
— Eu sei.
Eu sei que você acha que foi um erro.
— Não, você não sabe. Eu sonhei com ela tantas e
tantas vezes, que perdi as contas. — Ele me dá as costas e
passa as mãos pelos cabelos, prendendo-as atrás do
pescoço. Respira fundo e se vira na minha direção, me
prendendo a um olhar torturado, ele começa a falar e, no
mesmo instante, as lágrimas voltam a rolar pelas minhas
bochechas. — Nunca vou conseguir me perdoar por ter te
perdido.
— O quê? — pergunto, espantada.
Meus olhos se arregalam, o que só faz com que as
lágrimas caiam mais rápido. Ele dá um passo em minha
direção, me envolvendo em seus braços fortes, e enxuga
meu rosto. Não quero perder nenhuma de suas palavras,
não quero desviar os olhos do seu olhar, então levanto
minha cabeça e deixo que ele me veja chorar de emoção
ao ouvir a declaração que meu coração sempre almejou.
— Naquele dia, eu ia te dizer que não queria apenas
ser seu amigo, mas não tive coragem. Eu estraguei tudo,
Má, me perdoa.
Seus olhos brilham, refletindo minhas próprias
lágrimas. Estou boquiaberta e fascinada, assim como sinto
um pesar imenso me sufocar.
— Você também... você também me amava? —
pergunto, em um fio de voz, sem acreditar no que estou
escutando. Impossível, isso é impossível. Ele não podia
ter me amado. — Tem certeza?
— Eu nunca deixei de te amar. — Ele sorri
fracamente. — Foi preciso que você esbarrasse em mim
mais uma vez para que eu me desse conta de que nunca
consegui te esquecer.
Abro a boca para falar alguma coisa, embora eu não
faça ideia do quê, mas ele me cala ao se inclinar na minha
direção e roçar seus lábios levemente nos meus. O gesto é
tão inesperado, puro e desprovido de maldade, que choro
mais quando, finalmente, mato a saudade do seu gosto
dentro da minha boca. Mas o beijo acaba rápido demais,
ele se afasta e me dá as costas.
— Adiciona isso na minha lista de motivos para me
desculpar, eu nunca paro de errar com você.
Vejo-o caminhar até a janela e olhar para o lado de
fora, torturando-se pelos erros que acha que cometeu. Não
posso deixá-lo se culpar pelos meus próprios pecados,
não mais. Quando fui embora, eu acreditava estar fugindo
de um garoto que nunca sentiria por mim o mesmo que eu
sentia por ele, me convenci de que estava fazendo a coisa
certa ao deixá-lo livre e arcar com as consequências
daquela noite sozinha. Mas ouvi-lo dizer que me amava
mudava tudo.
Eu acreditava que, quando deixasse de carregar o
peso daquele segredo, as amarras em meus pés cairiam e
eu alçaria voo. Contudo, o preço daquela conquista era
alto, eu teria que lhe dar adeus definitivamente e vê-lo se
tornar cada vez menor no chão que antes me prendia.
Eu não tinha mais nenhuma desculpa para me enganar,
era hora de contar a verdade.
Era hora de abandonar a âncora e usar a asa.
Capítulo 36 - Ian

“Agora eu posso ver que eu não


saberia acordar todo dia, olhar do meu
lado e não te sentir.
Não me aceitaria olhar mais no
espelho sabendo que um dia te deixei
partir”
Zé Neto e Cristiano

Cave a minha cova, Augusto

— Boa tarde, doutor Vitorazzi, sua primeira paciente


já está te esperando no consultório — cumprimenta Nina,
a secretária dos cardiologistas, com um sorriso aberto
cheio de dentes.
Dou um meio sorriso por educação e assinto. Não
estou no meu melhor dia, odeio brigar com a minha
mulher, e a briga de ontem foi feia, feia o suficiente para
que eu tivesse sido expulso da minha cama direto para o
sofá do vizinho. Tivemos poucas dessas em todos os anos
em que estamos juntos, e magoá-la ainda tem o mesmo
efeito sobre mim, me deixa péssimo e louco para me
desculpar, mesmo que seja ela que esteja errada.
Naquele dia, eu queria me desculpar, principalmente
pela dor lancinante que estava sentindo no pescoço, o sofá
do Monstro é uma droga!
Ver Bárbara se intrometer de maneira tão excessiva
na vida de Gustavo me incomodava ao extremo. Por que
ela não conseguia ser uma esposa normal, que se viciava
em revistas de banca, programas de culinária ou em algum
ator qualquer, ao invés de ser fissurada pela vida amorosa
dos coitados dos irmãos?
Tudo tinha que ter limites, Bárbara não conhecia
nenhum.
Dessa vez, ela havia passado do limite trazendo de
volta para a vida do Gustavo alguém que deveria ter
permanecido no esquecimento. Bárbara tinha que colocar
o dedinho dela na história, tinha que ir atrás da mulher que
mais havia magoado seu irmão para atingir seu objetivo:
se livrar da Camila, mas não pensou nele nem por um
único momento.
Pela primeira vez, desde que a conheci, eu vi minha
mulher ser egoísta, e detestei a sensação de que meu
orgulho por ela havia sido abalado de alguma maneira.
Pego a ficha da paciente do suporte e abro a porta do
consultório, encarando os papéis em minhas mãos.
Adentro a sala e levanto o olhar abruptamente, assim que
meus olhos registram o nome no topo da página.
— O que está fazendo aqui? — pergunto para a raiz
de todos os problemas, os meus, os dos Gustavo e do
resto da família, a mulher que ninguém queria aceitar.
Ela gira na cadeira e pisca os cílios para mim ao
abrir um sorriso contido e malicioso.
Fosse o que fosse, eu sabia que ia dar merda.
— Eu precisava falar com você.
Mas ela não fala, apenas se levanta e me brinda com
uma visão que me desconcerta. Seu vestido de botões está
completamente aberto. Levanto rapidamente o olhar para
encarar seu rosto e o sorriso de escárnio que ela me lança
pelo meu constrangimento, não sem antes ter reparado na
minúscula lingerie preta de renda e nos seios fartos e
empinados.
— Eu estou sentindo uma dor no peito recorrente, que
chega a me deixar sem ar.
— Por que você não está vestida? — pergunto,
desviando o olhar e encarando a ficha como se ela fosse
extremamente interessante, e não um refúgio.
— Acabei de lhe dizer que a dor me deixa sem ar, eu
estava me sentindo claustrofóbica vestida.
Com aquele vestido minúsculo? Eu duvido. Sei que
deveria mandá-la embora, mas o médico em mim não
permitiu.
— Deita na maca, vamos ver. — Levanto o olhar e
meus olhos são capturados novamente por seus seios, não
que essa fosse a minha intenção. — Mas fecha essa porra
de vestido primeiro — cuspo, de maneira irritadiça,
encarando o chão e andando até minha mesa. Abro a
gaveta e pego o estetoscópio.
— São só peitos, Ian, e você é médico... — diz,
rindo. — A não ser que não consiga se concentrar olhando
para eles, mas aí eu diria que sua mulherzinha tem um
problema.
Mando a ética para o caralho naquele momento,
levantando o rosto e encarando-a com ferocidade.
— Não fala da minha mulher, garota, porque nem em
sonho você chega aos pés dela.
Foi a minha vez de sorrir com escárnio. Nem se
Camila nascesse de novo chegaria a se parecer com
Bárbara, mesmo que ela não fosse minha pessoa favorita
no momento, não depois daquele sofá estofado com
pregos pontiagudos no qual fui obrigado a dormir.
— Tem certeza? — pergunta, se levantando.
Antes que eu pudesse ter qualquer reação, ela
encurtou nossa distância e se prostrou a um palmo do meu
nariz. Respirava com dificuldade, tamanha sua ira;
provavelmente eu a tinha ofendido e estava feliz com isso.
— Tem certeza de que, depois de dois filhos, sou eu
quem não chega aos pés dela?
Para minha surpresa, ela agarra os seios e os balança,
é mais ou menos aí que perco de vez a compostura.
Agarro seu braço e a arrasto até a porta, eu ia colocá-la
para fora do meu consultório mesmo quase nua, pouco me
importava a vergonha que passaria, já que, na cara dela,
estava claro há muito tempo que não havia nem vestígios.
Camila me surpreende ao puxar o braço com força
antes que chegássemos à porta e se virar abruptamente em
minha direção. Ela foi rápida e, antes que eu possa piscar,
sua boca está colada à minha e suas mãos se chocam
contra meu peito. Não leva mais do que um milésimo de
segundo para que eu a empurre com força o suficiente
para fazê-la perder o equilíbrio e dar vários passos
incertos para trás. Mas o mal já estava feito.
A boca de outra mulher havia se chocado contra a
minha, e essa mesma mulher ainda estava quase nua na
minha frente. Eu havia, mesmo que inocentemente, traído a
Bárbara, ou, pelo menos, seria assim que ela enxergaria a
situação. Ela me mataria antes que eu conseguisse
explicar alguma coisa. Quanto à cova, eu não duvidava
que Monstro a abriria com prazer antes de me jogar
pessoalmente dentro dela e me enterrar debaixo das
roseiras.
— Eu estava com saudades do seu gosto — murmura,
alheia ao fato de eu tê-la empurrado vários metros,
tocando os lábios com um misto de prazer e encantamento.
— Quantas porras de vezes vou ter que repetir que eu
amo a minha mulher, caralho? — pergunto, exaltado. —
Ela tinha razão, você não serve para o Gustavo.
Por que eu, justo eu, que prometi no altar ficar ao
lado dela em todas as situações, não confiei no julgamento
da minha mulher? Ela estava certa em ser egoísta, sabia o
que estava fazendo porque, mais do que eu, sabe o que é
melhor para seu irmão.
— Mas agora ela não vai poder fazer mais nada
quanto a isso — gargalha diabolicamente, fazendo os
pelos dos meus braços se arrepiarem de repulsa.
Camila caminha até minha mesa e retira o celular de
dentro da bolsa, virando-o em minha direção, me exibindo
um vídeo do que tinha acabado de acontecer.
— Que bom que você gravou, assim vou ter uma
prova do quanto você é ridícula — cuspo.
Eu nunca, na minha vida, tinha falado assim com uma
mulher, não foi a educação que recebi e nem faz parte do
meu caráter, mas aquela mulher em especial pedia por
isso e muito mais.
— O vídeo não existe mais, Ian — sorri, apertando
alguns botões do celular —, mas esse print, sim. — Ela
volta o aparelho novamente em minha direção, onde uma
imagem de nossas bocas coladas era exibida na tela. — E
é exatamente isso que Bárbara vai ver, se você não tirá-la
do meu caminho.
— Por que está fazendo isso? — Porque ela é uma
filha da puta, isso eu sabia, mas estava tentando ganhar
tempo, enquanto decidia se pegava o celular e o tacava na
parede, ou se esquecia todos os meus princípios e a
jogava na parede.
— Porque o meu noivo adora aquela cadela com
quem você se casou, e eu não duvido, nem por um minuto,
de que ele é suscetível o bastante para lhe dar ouvidos
uma hora dessas. — Parecia ter mais no meio dessa
história, mas Camila fecha os botões da blusa e guarda o
celular na bolsa. — Sabe, Ian, sempre preferi você. Se
você me pedisse para largar o Gustavo hoje, eu largaria,
mas você continua cego por ela, então não tenho outra
opção, vou ficar com ele mesmo. — Dito isso, ela sai da
sala, me deixando boquiaberto e morto de medo.
Gustavo não podia se casar com aquela mulher, e eu
não podia fazer nada para impedir, porque Bárbara ia
arrancar o meu coro e fazer um casaco com ele antes que
eu tivesse a chance de alertá-lo. Eu iria ficar sem teto,
sem esposa e, provavelmente, até sem as minhas cuecas,
já que ela é uma advogada brilhante.
Camila tinha acabado de foder a minha vida, e com a
minha maldita ajuda. Parte de mim sabia que deveria tê-la
expulsado assim que a vi; a outra parte, a parte que ainda
estava furiosa por causa da briga de ontem à noite, queria
provar para Bárbara que ela estava exagerando e que
aquela vagabunda, que éramos obrigados a engolir como
cunhada, poderia ter mudado. Eu já deveria ter imaginado,
Bárbara sempre tinha razão, até quando não tinha.
Eu jamais a traíra com outra mulher; eu não era fútil,
não era um corpo perfeito o que me encantava. Claro que
o corpo de Bárbara tinha passado por diversas mudanças
depois de duas gestações: seus seios não eram mais tão
empinados; e a barriga, antes chapada, tinha se alargado
um pouco. Também não era para menos, ela vivia do meu
sorvete desde que nos conhecemos, mas ela ainda é linda
e é minha.
Era o corpo dela que eu ansiava tocar, e só o dela.
Eu era fiel, sempre seria fiel ao que lhe prometi
diante do padre no dia com o qual ela mais sonhou na
vida. Eu ainda a olhava todos os dias com os mesmos
olhos que a olhei no final daquele tapete vermelho, meu
amor não era medido em beleza, embora isso ela tivesse
de sobra, ele era medido na admiração que eu sentia por
ela como um todo.
Bárbara é a mulher da minha vida, mas também é a
mulher que vai me escalpelar, eletrocutar ou me esfaquear
sem dó quando tomar conhecimento sobre o que havia
acabado de acontecer naquela sala.
Andei de um lado para o outro apavorado e confuso.
Eu tinha, claramente, duas opções: fazer o que a Camila
mandou e trair a confiança da minha mulher, ou lhe contar
a verdade e enfrentar as consequências da sua ira. Quem
sabe ter que tirá-la da cadeia quando ela me preparasse
no jantar galinha assada ao molho madeira, porque eu
sabia que, dessa vez, Bárbara acabaria com a raça de
Camila sem nem pestanejar. Mexer comigo seria, para ela,
a última gota, aquela que faria o copo transbordar.
Ambas as opções magoariam a mulher que eu amava.
Eu sabia qual era a decisão certa, mas será que seria
covarde a ponto de lhe esconder aquele fato?
Parte III

Quando, finalmente, a Branca de Neve e o Príncipe


descobrem que o amor deles é mais forte do que qualquer
maçã envenenada, o destino decide colocá-los à prova. O
amor mais puro e verdadeiro é capaz de perdoar até o
mais feio dos erros?
Capítulo 37 - Marcela

“Você nunca sabe a


força que tem. Até que a
sua única alternativa
seja ser forte.”
Johnny Depp
Meu pecado

Sete anos antes


Paro em frente aos portões de bronze e olho para o
céu.
Como se estivesse esperando ser notado, ele devolve
meu olhar, transformando o dia em noite. Nuvens cinzas
preenchem a imensidão, e pequenas gotas começam a cair
violentamente em meu rosto. Não me protejo delas. Eu
merecia um castigo pior do que sentir as lágrimas que o
céu derrama por ele.
Ele está chorando sua partida, e eu não.
Puxo as mangas de minha blusa até conseguir enrolar
minhas mãos dentro delas, não sinto o frio, não sinto a
chuva. Há muitos dias eu não sinto nada. Caminho
lentamente, passando pelos portões e olhando à minha
volta, procurando rostos conhecidos, pretendendo evitá-
los. Ninguém sabe que estou aqui, e acho melhor assim.
Piso na grama com uma determinação que não tenho e
começo a procurá-lo, penso em voltar e ir embora, uma,
duas, três vezes.
Mas não posso.
Seguro com todas as minhas forças as rosas
vermelhas que trago nas mãos e continuo em frente. O
cheiro e os sons do sofrimento chegam até mim antes que
eu os veja. Estão todos à sua volta, não consigo vê-lo. É
tanta dor que sou obrigada a abaixar a cabeça e fitar meus
pés, proibindo a mim mesma de correr para longe. Avisto
uma árvore alguns passos adiante e caminho até ela, estou
longe o suficiente para que ninguém me veja. Me encosto
no tronco úmido por um momento, respirando fundo,
criando coragem, matando lembranças...
Olho para as rosas, ele adorava sentir o perfume das
flores. Adorava. Pensar sobre ele no passado faz com que
minha garganta se aperte e meus dentes se cerrem, faz com
que eu odeie a vida, a Deus, e a mim
mesma. Principalmente a mim mesma. Me viro de frente e
abraço a árvore, espiando pelo lado do tronco, cheguei
tarde demais. Tenho apenas um vislumbre do caixão
branco descendo para debaixo da terra, com uma parte
minha trancada dentro.
Flores são jogadas no buraco por diversas pessoas
com lágrimas nos olhos. Alguns rezam, outros caem de
joelhos na terra molhada, eu apenas olho. Vejo quando
cada grão de terra é colocado sobre ele e sinto dentro de
mim quando tudo termina. Minha mente fica livre de
pensamentos, me transformo em uma folha de papel em
branco, me sinto vazia. Vejo quando as pessoas dão as
costas e correm pela chuva para se proteger do vento e do
frio, muitas delas vão se abrigar em seus carros, ligar o ar
quente para se aquecer e esquecer o que presenciaram.
Para muitas, vir aqui se despedir era apenas uma
obrigação, acordarão na manhã seguinte e não pensarão
nele nenhuma vez, já eu...
Eu nunca vou esquecê-lo.
Quando todos se vão, eu me aproximo. Conto os
passos pelo caminho até estar de frente para a cova recém
fechada. Trezentos e oitenta e oito. Olho para a placa e
caio de joelhos, sem me importar por estar coberta de
lama e encharcada de chuva. Deposito as flores sobre o
túmulo e coloco as mãos na terra, tentando senti-lo.
Ele não está lá.
Não choro. Não consigo, e de nada adiantaria.
Ele não voltaria, está morto.
Meu bebê está morto.
Ainda estou deitada sobre o túmulo dele. Não sei
quanto tempo se passou até que ele me encontra, eu
reconhecia sua maneira de caminhar em qualquer lugar.
Ele para na minha frente e espera, sem dizer uma única
palavra. Ele me conhece bem. Tento levantar a cabeça,
mas ainda estou entorpecida. Ele se abaixa e me oferece
uma mão, que eu aceito sem questionamentos.
Gus me levanta do chão e me puxa para seus braços,
aperto seu sobretudo negro com ambas as mãos, sentindo
a aspereza do tecido e seu cheiro. Um misto de roupa
guardada há muito tempo, loção pós-barba e café forte.
Tão conhecido e, ao mesmo tempo, tão distante, um cheiro
que desperta muitas lembranças dolorosas.
Lembranças guardada por anos.
Não pergunto o que ele faz ali depois de tanto tempo
sem nos vermos, como soube ou me achou, ou por que
achou que deveria vir. Também não deixo que me abrace,
empurro seus braços, que estavam a ponto de me
envolver, e cambaleio para trás, me afastando de seu
toque.
Eu o empurro e saio correndo quando a chuva volta a
desaguar sobre nossas cabeças.
Quando chego ao portão do cemitério, sem fôlego e
transbordando de remorso e saudade, me viro em sua
direção. Ele ainda está parado no mesmo lugar, mãos nos
bolsos, postura dura. Gustavo ainda me observa. Eu
gostaria de saber o que ele está pensando, saberia se
pudesse ver seus olhos, mas, em nenhum momento, ele
levantou os óculos escuros.
Ali, eu decido lhe dar adeus para sempre. Não estou
enterrando apenas um amor sob aquela tempestade que vai
me assombrar dia após dia, estou enterrando dois. Dói
demais ser abraçada por ele pisando sobre o corpo do
bebê que jamais voltarei a ver.
Sobre o corpo do bebê que era dele.
Capítulo 38 - Marcela

“Tornou-se pedra a menina que um dia foi flor.”


Autor desconhecido

A verdade por trás da farsa

— Sabe o que mais me mata? — pergunta, com os


olhos perdidos do lado de fora, na rua movimentada
abaixo de nós.
Ele não espera que eu responda, ele me conta.
— Saber que, se eu tivesse feito tudo certo, você
poderia ter sido minha e que tudo teria sido diferente. Eu
podia ter feito você feliz, poderíamos ter tido filhos, nos
casado, construído uma vida, e você nunca teria perdido
ninguém.
— Teria sido perfeito, mas eu não trocaria a vida que
tenho hoje por nada.
Ele me olha por sobre os ombros espantado, e eu
explico.
— Nessa vida, meu filho existiu, é o suficiente para
que eu aguente todas as partes ruins dela.
Ele assente.
— Acho que eu vou embora... — Ele se balança e se
solta do peitoral, virando-se completamente em minha
direção. — Eu queria que tudo pudesse ser diferente,
queria não ter acabado com tudo de bom que você sentia
por mim...
Eu o interrompo.
— Você é idiota?
Seus olhos se arregalam, denotando supressa.
— Você não acabou com nada — faço um muxoxo
exageradamente infantil.
— Não? — Um brilho de esperança dança em seu
olhar e, antes que eu possa pensar nas consequências,
deixo minha boca falar mais do que deve.
— Esse amor que eu tenho por você parece uma
maldita erva daninha; quanto mais eu tento arrancar, mais
cresce. — Dou de ombros. — Nunca consegui me livrar
dele, e olha que tentei. Sou mesmo uma péssima
jardineira!
Ele nem espera que eu termine de falar antes de me
tomar nos braços.
— Eu não sei se esse é o melhor momento para te
contar, mas você também é uma péssima cozinheira.
Eu bato em seu peito com os punhos cerrados, mas
não consigo esconder o sorriso bobo no rosto.
— Fica comigo, Marcela? — pede, me pegando de
calças curtas, como diria meu pai.
Aperto os olhos, tentando entender exatamente o que
sua pergunta significa, sentindo suas mãos se acomodarem
firmemente no meio das minhas costas.
— Eu largo tudo por você; minha noiva, o casamento,
tudo.
Caralho. É a única coisa em que consigo pensar, um
palavrão. Mamãe diria que moças não falam palavrão,
apenas comprimem os lábios. Mamãe estava errada,
caralho! Sua proposta é mais do que tentadora, ela é tudo
o que eu mais queria na vida. Uma chance.
Então, meu coração se parte, porque não posso
aceitá-la, ainda não.
— Onde você esteve todos esses anos?
Fecho os olhos com um misto de pesar e esperança,
que dilacera meu coração de dentro para fora.
— Com as mulheres erradas, esperando a certa voltar
para mim — sussurra, rouco.
Ele agarra minhas mãos nas suas, me puxando mais
para perto, até que eu esteja a um palmo de distância de
seu peito rijo. Abro os olhos e ergo o rosto, arfando pela
intensidade do calor que emana de seus olhos profundos e
sedutores, ele ia me beijar, eu tinha certeza de que ia me
beijar. Me obriguei a me afastar, dando um passo para
trás, mas não encontrei forças suficientes para soltar
nossas mãos e o olhei apreensivamente.
— Eu preciso te contar uma coisa antes, algo que
pode fazer você mudar ideia sobre nós... sobre tudo... eu
não mereço você, Gus — falo, baixinho, detonando todo o
medo que sinto em cada uma das minhas palavras.
Gustavo sorri ao tentar me tranquilizar.
— Você pode me contar o que quiser. Qualquer coisa.
Seja o que for, eu vou entender.
Naquele momento, minhas amarras se soltam, eu
acredito nele, eu quero acreditar. Quero acreditar que ele
não me odiará por saber do meu segredo, que ele ficará
do meu lado e não me culpará. Tão, mas tão ingênua.
Ele me olha com um misto de ansiedade e
expectativa, seus olhos brilham e o aperto nas minhas
mãos se intensifica, fazendo com que a culpa aflore por
todos os meus poros, inclusive pelos meus lábios. Então,
eu conto.
— Bento ​— uma única palavra, mas tão carregada de
sentimentos. Um nome.
Quase não consegui dizê-lo, tamanha a sensação que o
chão se abriria e me sugaria de volta para os dias de
tormenta chafurdada na perda. Saudade, dor e amor, tudo
guardado em um cantinho escuro da minha memória e do
meu peito, um cantinho só dele, saíram do esconderijo em
que eu os havia trancafiado e jorraram dos meus lábios
naquela única palavra que eu não pronunciava em voz
alta há muito tempo.
— Bento — repito, testando a voz, prestando atenção
na minha respiração. Eu não entendia como podia chamá-
lo em voz alta e ainda estar viva. Era torturante sentir a
ferida se abrir e o remorso escorrer dela em todas as
direções e saber que eu ainda respirava. — Ele era seu.
Não existia palavra mais dolorida na minha vida, era.
Ela me lembrava de tudo o que perdi, tudo o que eu não
poderia mais ter e que me fazia falta do instante em que eu
abria os olhos pela manhã, até o instante em que eu os
fechava. Gus soltou minhas mãos em um movimento
instintivo, deixando-as caírem ao lado de seu corpo, seus
olhos astutos me estudaram por um breve instante antes de
se fecharem com pesar para esconder sua abrupta umidade
e a vermelhidão que davam tom à sua reação imediata.
Naquele momento, a esperança de um futuro nos
abandonou.
Se pensei que ele não acreditaria ou que teria que
explicar, eu estava errada; ele entendeu exatamente o que
eu quis dizer, e eu me dei conta de que não deveria ter
dito nada. O dono daquele nome, aquele bebê feliz, alegre
e possuidor dos mesmos olhos abrasadores do pai, deixou
de existir há muitos anos. Ele era meu segredo amado e
falecido, que deveria ter continuado enterrado para
sempre.
Gustavo permaneceu em silêncio por um longo tempo,
tempo esse em que eu me dediquei a amaldiçoar minha
consciência. Sua postura dura fez toda a esperança de que
ele me perdoaria me abandonar, sem nem ao menos uma
despedida. Seu afastamento já era visível, mesmo que ele
não tivesse se movido nem um milímetro depois da minha
revelação. Comecei a chorar e estiquei uma das mãos em
sua direção de maneira insegura, mas ele deu um passo
para trás de forma decidida, erguendo uma das mãos para
me deter.
— Não ouse — é tudo o que ele diz com a voz
embargada, antes de abrir os olhos com rapidez, quando
ouve meu primeiro soluço, assim que repara na mão que
nunca chegou a tocá-lo.
Eu gostaria de não estar olhando para seus olhos
naquele momento, mas estava. O que vi ali me afundou.
Minhas pernas fraquejaram e não fui rápida o bastante
para evitar minha queda. Quando dei por mim, estava no
chão, abraçada ao meu próprio corpo, me entregando a
todos os sentimentos que evitei por mais de uma década.
Os olhos do garoto que um dia eu amei estavam tomados
de fúria e desprezo, mas não foram esses sentimentos que
me desestabilizaram, foi a dor.
Estava doendo nele ter perdido um filho, mesmo que
nunca o tivesse conhecido. A morte fazia isso com as
pessoas; fazia amá-las o que desconheciam, criava laços
inexistentes, florescia saudades do que nunca se teve. A
morte era ardilosa e cruel, cruel o suficiente para levar a
criança de sorriso doce que fazia nossos corações se
despedaçarem. O dele, naquele momento; o meu, por anos
a fio. O sentimento de perda e incapacidade nunca se
tornava ameno e, naquela noite, eu o entreguei para um
homem que os desconhecia. Gustavo não merecia sofrer
pela minha omissão. Não merecia chorar por um filho que
eu havia escondido e perdido.
— Eu nunca deveria ter lhe contado — murmuro,
tendo dificuldade em conseguir fazer as palavras saírem,
tamanha a intensidade do meu choro descontrolado.
Ele volta a fechar os olhos, suspira e os abre,
travando o maxilar de forma obstinada. Os sentimentos em
seu olhar mudam; ódio, rancor, ressentimento e raiva me
brindam, fazendo com o que eu desvie o olhar, o que foi
bom, assim ele não veria o amontoado de destroços em
que me transformo quando escuto suas próximas palavras.
— Você tem noção do que tirou de mim, Marcela? —
sussurrou asperamente, antes de me dar as costas e me
abandonar no chão, chamando pela morte que levou nosso
filho para que me levasse até ele.
Eu estava pronta, não havia me restado mais nada.
Acabara de perder a última pessoa que amei que ainda
respirava e, embora isso não fosse uma surpresa, sugou
tudo de bom que ainda havia dentro de mim, tomou todas
as minhas forças.
Quem era eu para ousar ter esperanças?
Eu não era ninguém.
Capítulo 39 - Ian

“Não há melhor escudo para o imbecil do que o erro


do homem honrado.”
Alonso de Varros

As lágrimas de Bárbara

Meus olhos se abrem com dificuldade, minha cabeça


está explodindo e a luz do sol que transpassa a janela cega
meus olhos pesados. Volto a fechá-los, me remexo na
cama, resmungando, e jogo o braço para o lado na
intenção de puxar Bárbara para junto do meu corpo e
esconder o rosto em meio aos seus cabelos. Quero sentir
seu cheiro e tentar voltar a pegar no sono por mais
algumas horas, mas não encontro ninguém dormindo ao
meu lado, a não ser meu celular e um pedaço de papel.
Faço força para voltar a abrir os olhos e, com muita
dificuldade, olho ao redor, não estou no meu quarto. Pisco
algumas vezes, tentando clarear a visão e entender onde
estou, sem conseguir; nada é familiar, e isso me assusta.
Agarro o celular e pego o papel, trazendo-o para perto
dos olhos, ainda grogue de sono. É um bilhete:

“Você vai querer ver as fotos da noite passada antes


de ir embora. Você foi incrível, bem como eu me
lembrava. Elas, com certeza, são uma arma melhor do que
uma foto desfocada, que você facilmente conseguiria
explicar.”

Não tem assinatura, mas aquelas palavras fazem um


bolo se formar na minha garganta e uma sensação horrível
me invadir, como se eu soubesse, antes mesmo de
conferir, que o quer que eu tenha feito, foi errado. Estou
assustado e muito confuso. Meu corpo dói, minha cabeça
pesa, estou tonto, e o gosto rançoso de bebida está
impregnado na minha boca. Respiro fundo e volto a cair
no travesseiro com o celular firmemente preso nas mãos,
sem coragem de apertar os botões e encontrar as tais
fotos, mas uma constatação muda tudo. Noto, pela
primeira vez desde que acordei, que os lençóis estão
verdadeiramente grudados na minha pele; levanto a
beirada do tecido e olho para baixo, não há uma única
peça de roupa cobrindo meu corpo.
O sono sumiu, e sou invadido por outra sensação, o
desespero.
— Caralho, o que eu fiz?
Deslizo o dedo pela tela do aparelho e não tenho
dificuldade em achar a galeria de fotografias, mas tenho
dificuldade em fazê-la se abrir tamanha minha aflição.
Aperto alguns botões errados e me frustro, não mais do
que quando começo a ver cada uma das cenas da noite
passada.
— Puta que pariu, o que eu fiz? — repito.
Eu sou um covarde. Não, eu não era, mas o amor que
sentia pela minha mulher havia me transformado em um.
Não tive coragem de voltar para casa quando o último
paciente deixou o consultório. Fiquei vagando pela sala,
imerso em pensamentos densos e confusos por quase uma
hora, antes de me decidir por pensar, me beneficiando de
uma ajuda extra, e partir em direção ao bar que ficava a
duas quadras de distância.
Eu sabia que, assim que olhasse para Bárbara,
acabaria lhe contando tudo ao mesmo tempo, me jogaria
no chão e agarraria suas pernas, para que ela não fugisse
antes de me deixar explicar. Só não sei por que, naquele
momento, me pareceu uma boa ideia me entupir de uísque,
como se ele não fosse me deixar mais culpado e ávido por
uma confissão, do que eu já estava.
Como sempre, o álcool não se mostrou uma boa
ferramenta, tudo o que ele fez foi me fazer tomar uma
decisão errada e precipitada. O medo de machucá-la foi o
que mais me inibiu, o que me fez fraquejar e me obrigou a
bolar um plano, que já estava fadado ao fracasso antes
mesmo que eu o executasse. Mas, o que eu tinha a perder?
A lista era enorme, começando por uma mulher, dois
filhos, um cachorro, uma gata e uma Land Rover. O risco
valia a pena, ou foi isso que pensei.
Fui atrás daquela vagabunda exigir para que apagasse
a foto e deixasse a minha família em paz, eu esperava não
encontrar Gustavo em casa e tive sorte. Camila me
recebeu como se já esperasse minha visita, disse que
estava arrependida do que tinha feito e aceitou apagar a
foto do celular na minha frente, depois começou a chorar.
Ela me disse que amava o Gustavo e tinha feito o que
fez apenas para não perdê-lo. Me contou o quanto a
intromissão de Bárbara a magoava e sobre o medo que
tinha de perdê-lo por culpa da minha mulher. Fiquei com
dó da menina e meu desagrado com o comportamento da
Bárbara voltou como uma lança perfurando meu peito.
Camila me pareceu tão sincera, por isso fiquei e
conversei com ela, disse para que nos mostrasse sua
mudança e que seus atos falariam por si. Todos
acabaríamos aceitando, se víssemos que ela o merecia.
Durante a conversa, aceitei uma cerveja, que bebi
com pressa de ir embora e me livrar dela e daquela
história.
Essa é minha última lembrança, o gosto daquela
única cerveja.
Não preciso mais me preocupar em descobrir o que
fiz. As fotos chegavam ao fim, deixando meu coração na
boca e apenas um buraco no lugar onde ele estava há
alguns minutos, mas eu queria saber o porquê. Por que eu
fiz aquilo. Por mais que eu tente, não consigo fazer minha
memória funcionar de maneira cronológica, tudo o que
chega até minha consciência são flashes, um mais
assombroso do que o anterior.
Lembro da Camila saindo pela porta do banheiro e
caminhando em minha direção completamente nua. Eu
queria, desesperadamente, desviar o olhar, mas não sei
por que, não consegui. Consigo me lembrar nitidamente de
cada curva, cada detalhe de seu corpo e, infelizmente, da
sensação da sua pele contra a palma da minha mão.
Ela parou na minha frente e me olhou de cima a baixo.
Nesse momento, me lembro de ter acompanhado seu olhar
e ter notado que minhas roupas também haviam sumido.
Lembro de sentir suas mãos no meu corpo, em todas as
partes dele, enquanto eu ainda pensava onde minhas
roupas tinham ido parar e em como cheguei àquela
situação. Eu queria pedir para que parasse, não me
tocasse e se afastasse, mas tudo o que consegui fazer foi
cambalear para trás e cair de costas na cama sem reação,
sem forças físicas para fugir ou sequer articular uma frase
lógica.
Depois disso, tudo é um borrão.
Forço as lembranças a todo custo, me empenho em
lembrar e minha consciência me engana, tudo o que vejo é
Bárbara nua na minha frente, como vi tantas outras vezes;
seu sorriso malicioso, seus cabelos loiros e sua voz me
pedindo para tocá-la, mas ela não estava lá. Minha mulher
estava me esperando em casa, enquanto eu estava sob os
lençóis de outra. Então, presumo que tudo o que veio a
seguir tenha acontecido com a Camila, embora não seja
seu rosto que eu veja nas minhas lembranças nubladas.
Ela montando em cima de mim; agarrando minhas
mãos e colocando em seus seios empinados e rijos sob
meu toque; seu gemido de prazer e o sorriso de vitória e
sarcasmo, enfiando a língua dentro da minha boca ao se
esfregar em mim. Sua boca descendo e descobrindo
muitos outros lugares, lugares que mulher nenhuma, a não
ser a minha, havia tocado desde que a conheci.
Algo estava errado, parecia errado. Eu já havia
levado Camila para a cama antes e todos os meus
fragmentos de lembranças não pareciam corretos, muito
menos correspondiam ao que eu me recordava da época
em que saíamos. Por um momento, penso que posso estar
enganado, sonhando, alucinando, ou qualquer porra do
tipo, porque transar com aquela mulher, definitivamente,
era algo que eu nunca havia cogitado, nem mesmo quando
ela apareceu sem roupa no meu consultório.
Naquela manhã, o que senti estava longe de ser
excitação, foi repulsa, então não entendo o que me fez
parar nessa cama. Esse não sou eu. Mas minhas teorias
vão por água abaixo quando tento me levantar e avisto um
pacote de camisinha aberto no criado-mudo ao lado da
cama; ergo a mão e pego a embalagem, trazendo-a para
mais perto do meu olhar desfocado, segurando o choro. A
camisinha estava usada, as fotos eram reais, eu realmente
tinha feito aquilo.
Tinha acabado com a minha vida e com meu
casamento.
Me viro de lado e vomito no tapete, não consigo
controlar a ânsia de colocar toda aquela merda para fora
de mim, como se a culpa e a vergonha fossem me
abandonar tão facilmente. Me levanto e cambaleio, me
escorando na parede até chegar ao banheiro, agarro a pia
e levanto a cabeça para encarar meu reflexo no espelho,
odiando o homem que me olha de volta.
Sinto um misto de nojo e repulsa de mim mesmo que
chega a me sufocar. Um turbilhão de sentimentos doentios
me invade. Medo, revolta, culpa e arrependimento são
alguns deles. Tudo o que consigo pensar é no corpo
daquela mulher enroscado ao meu e nas minhas mãos
agarrando seus seios com força, e sinto uma urgência
absurda de lavar toda aquela sujeira do meu corpo. Abro
o chuveiro, entro debaixo da água escaldante e esfrego
cada centímetro de carne até que ela fique esfolada,
querendo me livrar do suor e do perfume dela
impregnados na minha pele.
Quando me enrolo na toalha, o peso imenso que
aquele erro teria sobre a minha vida me invade, um soluço
escapa da minha garganta, enquanto outras imagens
invadem minha mente deturpada; Bárbara, seu sorriso
matreiro, os olhos expressivos e toda sua doçura. Mas,
logo essas imagens dão lugar a outras, seus lábios
cerrados em uma linha fina, rígida e amarga, seus olhos
acusadores e toda a sua ira, o ódio que ela vai sentir de
mim.
O quanto vou fazer a minha mulher chorar.
Penso em todo amor que sinto por ela, um amor tão,
mas tão grande, que se tornou o centro da minha vida
desde que eu a tive de volta. Tudo girava em torno desse
amor, meu empenho no trabalho, minha dedicação como
pai, minha disposição em tentar cada vez mais ser um
marido melhor e mais comprometido. Tudo o que eu fazia
era pensando nela, era para me tornar um homem melhor
para ela. Bárbara não merecia o lixo que eu havia me
tornado depois do que fiz na noite passada.
Eu não a merecia mais.
Capítulo 40 - Gustavo
“Você tem estado tão
indisponível,
Agora, infelizmente, eu sei por
que.
Seu coração é inalcançável,
mesmo assim, o senhor sabe que
você possui o meu.”
Sam Smith
Como te perdoar?

Era inacreditável como absorvi todas as informações


tão rapidamente. Suas palavras entraram pelos meus
ouvidos e se alojaram na minha consciência de forma
prática e abrasadora, tomando conta de tudo, como se
tivessem vivido ali desde sempre. A mágoa e a surpresa
que senti ao descobrir que havia, de fato, tido uma noite
com a mulher que tanto amei, embora nunca tenha me
lembrado disso, deu lugar ao desespero, quando ela me
contou que o filho que teve era meu.
Eu sou pai.
Não, eu não sou. Eu fui pai.
Era isso que mais me machucava e exauria. Meu filho
estava morto, e eu nem pude me despedir. Que porra, eu
nem pude conhecê-lo. A constatação de tudo o que perdi
no pouco tempo de vida que ele teve me fez odiá-la como
nunca havia odiado outra pessoa na vida. Uma raiva que
fez meus punhos se cerrarem, meus dentes trincarem e meu
coração pegar fogo. Um ódio cego que me obrigou a
abandoná-la no chão frio, se despedaçando enquanto eu
lhe dava as costas.
Por mais que meu instinto me mandasse tomá-la nos
braços, passar as mãos por seus cabelos, enxugar suas
lágrimas e lhe dizer que tudo ficaria bem, eu não consegui,
não pude controlar a revolta por ter perdido tantos
momentos. Nada ficaria bem. Talvez nunca mais ficasse.
Fui embora, desejando ardentemente que tudo não tivesse
passado de um pesadelo ou, no mínimo, que palavras
pudessem ser engolidas de volta. Mas os desejos
descabidos e absurdos deram voz à minha imaginação
assim que entrei no carro e deixei a cabeça tombar no
encosto do banco.
Eu não vibrei com a notícia de uma mulher por quem
eu era loucamente apaixonado me dizendo que seria pai,
mas imaginei as sensações que eu sentiria; medo, alegria,
medo novamente e amor, eu tinha certeza de que o amor
estaria lá. Eu era jovem, mas tive uma criação que não me
permitiria cogitar fugir da responsabilidade, teria ficado
ao seu lado. Porra, eu teria desejado ficar ao seu lado.
Não andei preocupado de um lado ao outro do
corredor; não fui o típico pai de primeira viagem,
preocupado, que sempre pensei que seria; não segurei sua
mão quando ele nasceu, nem tentei fingir que não estava
emocionado quando ele chorou.
Perdi o primeiro sorriso, a primeira gargalhada, o
primeiro dente. Perdi as noites em claro, perdi o momento
em que ele deu o primeiro passo, aprendeu a usar o copo
pela primeira vez, perdi a primeira palavra. Nunca o ouvi
me chamando de papai. Ela deu esse presente a outro,
alguém que, claramente, não o merecia, quando era para
ele ser meu por direito.
Perdi tudo e nunca mais poderia recuperar o tempo
perdido.
Depois de socar os punhos no volante por diversas
vezes e com força suficiente para arrancar sangue dos nós
dos dedos, passei a mão pelo rosto e virei a chave na
ignição. Era tanta tristeza, que eu não conseguia pensar em
mais nada, a não ser na dor de descobrir algo tão
desumano e cruel. Só tinha dois lugares no mundo onde eu
queria estar agora, duas casas diferentes. Optei pela mais
próxima.
Eu precisava da minha família, precisava dos meus
irmãos, mesmo que eles não me quisessem por perto
naquele momento. Percebi, de súbito, que sempre foi
assim; não importava o quanto eles me irritassem, o
quanto me magoava que eles não me apoiassem, ainda
seria o acolhimento deles que eu procuraria se algo desse
errado, porque sabia que não importava o que tivesse
acontecido ou o quanto estivessem bravos, ainda abririam
a porta para mim, e foi exatamente o que aconteceu.
— O que aconteceu, Mala? – perguntou Augusto,
assim que abriu o portão da rua. Sua testa vincou e ele
encarou meus olhos avermelhados e ainda úmidos com
interesse e evidente preocupação. — Bárbara — gritou
por sobre o ombro, sem desviar o olhar do meu.
— Quem é, Monstro? — perguntou minha irmã, ao
longe.
Pouco depois, ela saiu pela porta da sala e ameaçou
caminhar em nossa direção, mas estacou no lugar quando
viu que era eu quem estava à porta.
Ela me estudou com os lábios em uma linha rígida por
alguns instantes, evidentemente descontente, depois
abandonou a carranca e balançou a cabeça, fazendo o
mesmo que Augusto, encarando meus olhos. Os seus se
fecharam e ela abriu os braços sem dizer uma palavra, foi
o suficiente.
Corri para os braços da minha irmã, como se eu fosse
o caçula, como se ainda fosse um garotinho assustado
ansiando por um colo seguro. Me joguei no meio de seu
abraço apertado, e ela fechou as mãos ao redor do meu
pescoço.
— Eu sabia, aquela cadela — disse, acidamente. —
Vou estripar aquela cachorra — ameaçou, em uma voz
congelante.
— Não foi ela — sussurrei, apertando minha irmã
mais forte.
Naquele momento, o fato de ela estar xingando minha
noiva era a última das minhas preocupações.
— Então, o que houve? — perguntou, franzindo o
cenho, me afastando de seu corpo pelos ombros, onde ela
ainda me agarrava com força, ao estudar meu rosto mais
uma vez em busca de respostas.
— Marcela —— murmurei incertamente, fazendo
com que os olhos dela brilhassem de curiosidade e
apreensão.
Agora era tudo ou nada. Bárbara não me deixaria ir
embora sem arrancar de mim o motivo que me levou até
eles, e eu precisava mesmo de colo, então respirei fundo e
lhe contei tudo, terminando pelo principal.
— O filho dela era meu! — E explodi em lágrimas.
Mesmo com a visão embaçada, vi vários sentimentos
passando pelo rosto da minha irmã. Incredulidade, pena, e
algo que, em um primeiro momento, me pareceu culpa,
mas, àquela altura, minha visão já estava um tanto
embaçada para que eu tivesse certeza. Ela virou o rosto e
abriu a boca, porém nada saiu de dentro dela. Antes que
ela pudesse se recompor, braços pesados me puxaram
com força, e eu parei no abraço do Monstro.
Não sei ao certo o motivo, mas o conforto vir
justamente dele só fez com que eu chorasse mais, começou
a ficar difícil respirar, falar estava fora de cogitação. Se
fosse em outra época, meu irmão chutaria minha bunda e
me mandaria engolir o choro, mas o novo Augusto, o
Augusto da Anna, me apertou contra seu peito e empurrou
minha cabeça para seu ombro, sussurrando:
— Calma, Gus — ele nunca me chamava assim —,
nós estamos aqui.
Senti os braços da minha irmã passarem pela minha
cintura e sua cabeça tombar nas minhas costas. Não sei
quanto tempo ficamos abraçados na garagem, mas foi
tempo o suficiente para que eu conseguisse me acalmar
para pôr para fora o que mais me perturbava antes de
voltar a chorar.
— Por que ela não me contou? Por que ela tirou ele
de mim? — solucei. — Eu nunca vou poder conhecer o
meu filho, como ela pôde? — O abraço se tornou mais
apertado a cada uma das minhas perguntas. Eles não as
responderam, me afastei um tanto envergonhado e eles me
cercaram; eu sabia que minha irmã estaria chorando e,
mesmo assim, foi difícil ver suas lágrimas. Mas, o que
mais me surpreendeu, foram os olhos marejados do meu
irmão.
Secretamente, eu queria que ele me desse um tapa e
me mandasse ser homem, me mandasse parar de agir feito
uma menininha e encarasse a situação. Não sei por que ele
não fazia exatamente isso, mas me lembrei do motivo
quando alguém tocou meu ombro e me estendeu um copo
de água. Olhei para o copo e vi a barriga redonda parada
atrás dele, levantei o olhar e encontrei os olhos doces da
Anna; ela não disse nada, apenas me entregou o copo e me
puxou pela mão até a sala de jantar, enquanto eu me deixei
levar.
— Desculpa, mas acabei pegando a mania feia da sua
família de ouvir atrás das portas — sussurrou, com um
sorriso culpado, ao me empurrar até o sofá. — Beba —
ordenou, indicando o copo.
Eu ameacei negar, água não seria minha primeira
opção, mas achei melhor obedecer e suspirei de alívio
quando o gosto da vodca preencheu minha boca.
— Como você queria que uma moça apaixonada por
você lhe contasse que estava grávida, sendo que você nem
ao menos sabia que tinham passado uma noite juntos?
Levantei os olhos, chocado, mas ela fez um aceno
para que eu ouvisse.
— Como essa mesma moça deve ter se sentido
quando acordou ao lado do homem que amava e descobriu
que ele não se lembrava de ter dormido com ela? Como
ela deve ter se sentido ao ter descoberto que desse
segredo nasceria uma criança? Eu entendo que você esteja
com raiva, se sentindo lesado e magoado, mas tente
pensar por um minuto em como a Marcela se sentiu.
— Não é desculpa, Anna, eu estava a ponto de
abandonar tudo por ela, enquanto ela estava guardando
esse segredo de mim há anos.
Balancei a cabeça negativamente. Eu não me
importava que minha cunhada estivesse se intrometendo
na minha vida, mas me importava com o fato de que, em
poucos segundos, ela fez com que parte da raiva se
dissipasse do meu corpo. Eu queria sentir aquela raiva, eu
dependia dela. Porém, acabei fazendo o que ela me pediu,
me coloquei no lugar de uma garota assustada e grávida
de alguém que não se lembrava de ter tocado nela.
— Mala, você pensou na possibilidade de a Marcela
ter feito isso para te proteger? — perguntou Bárbara, se
sentando no chão e encostando a cabeça na minha perna.
Não respondi, não precisei.
— Eu quero falar com ele a sós, meninas. Saiam, por
favor — pediu Monstro, com a voz firme.
Ambas se entreolharam e saíram da sala sem
questionar.
— Não importa por que ela fez isso, Mala, não mais.
O menino morreu, foi uma fatalidade que ninguém pode
reverter.
Assenti, emocionado.
— O que importa, agora, é se você vai deixar que ela
saia da sua vida de novo. Acho que Anna tem razão, ela
teve seus motivos para fugir e não te contar nada e, antes
que você fale, não, eu não concordo com o que ela fez.
Mas não acho que deixar de perdoá-la seja o certo.
— Como se perdoa uma mulher que te tirou tanto? —
questionei, ávido por uma resposta, porque, dentro de
mim, eu sei que não a encontraria.
— A pergunta que você deveria me fazer é: como se
perdoa uma mulher que já perdeu tanto? — devolve,
frustrado. — Até hoje, você não sabia da existência do
menino, Gustavo, foi ela quem perdeu um filho, e não
você. Não só ele, ela perdeu os pais e um marido. A
garota não tem mais ninguém e não precisaria te contar
nada depois de tantos anos, mas, por algum motivo, ela
contou.
— Ainda não entendo, o que está tentando me dizer?
— questiono, olhando para meu irmão de maneira
perdida.
Eu queria que ainda fôssemos crianças, quando ele
tomava meu problema para si e o resolvia. Mas eu tinha
crescido, e estava mais do que na hora de assumir a
responsabilidade pela minha vida.
— O motivo que a fez te contar esse segredo agora é
a razão pela qual você deve perdoá-la. Quantas vezes já
perdeu essa mulher?
— Algumas — murmurei, distraidamente.
Suas palavras estavam tomando forma nos meus
pensamentos, estavam tentando se encaixar. Eu sabia que
o que ele tinha me dito era importante, contudo, eu ainda
não sabia o que fazer com aquilo.
— Vai deixá-la ir embora da sua vida mais uma vez?
— questionou, sentando-se ao meu lado no sofá.
— Monstro, você sabe que eu tenho a Camila, eu vou
me casar com ela, eu...
Que escolha eu tinha agora, fora honrar com o
compromisso que havia assumido com a minha noiva? O
que restava para mim sem aquele casamento? Ele era tudo
o que eu tinha.
— Você vai jogar a felicidade pela janela, é isso o
que vai fazer — diz, friamente, me cortando.
Meu corpo se enrijece e eu me levanto, dando-lhe as
costas.
— Não acredito que você, justo você, príncipe
encantado de quinta, vai esperar uma mulher que não ama
no altar, enquanto a mulher que tira seu sono está
abandonada e ferida em algum lugar, completamente
sozinha e entregue à própria sorte. Que tipo de homem é
você? Já não bastava o fato de ter se aproveitado da
menina?
Não quero ouvir mais nada, vir aqui havia sido uma
má ideia no final das contas; eu estava saindo muito mais
furioso, magoado e confuso do que havia entrado. Pude
ouvir as últimas palavras do meu irmão antes de bater a
porta com força.
— Você me envergonha, seu covarde de merda. Nunca
mereceu aquele menino.
Se eu já não estivesse destruído, aquelas palavras
teriam me aniquilado.
Ele tinha razão, nunca mereci o Bento, talvez fosse
esse o motivo de Marcela tê-lo escondido de mim.
Sempre fui o cara covarde que não teve coragem de lhe
contar que a amava, o cara que tirou sua virgindade
bêbado e não se lembrou no dia seguinte. O cara que não
era confiável, o cara errado para ser pai do seu filho. Mas
ele era meu.
Quando peguei a estrada, já tinha amanhecido há
algumas horas. As lágrimas não paravam e eu ainda
buscava respostas, buscava o consolo de alguém que eu
confiava o bastante para me aconselhar. Eu precisava da
minha avó. Dela e da sua crença de que todos os seus
encantados mereciam um final feliz, eu queria saber onde
estava o meu.
Meu pai abriu a porta com um sorriso que morreu
assim que olhou dentro dos meus olhos e analisou meu
rosto com mais cuidado.
— O que houve, filho? — perguntou, segurando meu
queixo com força e o virando em sua direção, enquanto eu
tentava desviar meu olhar do seu.
— Preciso de vocês, todos vocês.
O lado bom de ter uma família grande e unida era o
fato de que jamais eu precisaria passar por uma situação
como aquela sozinho; eu sempre teria um colo, um ombro,
alguém para gritar comigo e alguém para ficar ao meu
lado. Me entristecia saber que Marcela não teria isso e,
mais uma vez, me perguntei como ela estaria.
— Não consigo sozinho, pai, não consigo.
Assim como meu irmão, ele me puxou para um abraço
forte e desajeitado na calçada, me fazendo chorar pra
caralho. Ele não se importou se tínhamos ou não plateia,
sua única preocupação era eu.
— Meu Deus, Gustavo, que porra aconteceu? Você
está me assustando — perguntou, me soltando e segurando
meu rosto com ambas as mãos. Seus olhos estavam
desesperados por uma resposta que eu não conseguia dar.
— Seus irmãos... eles estão bem?
— Sim, acabei de sair de lá, e eles não me ajudaram
em nada, então... — Então, eu corri para vocês.
Ele estava tão assustado pelas minhas lágrimas, que
não conseguiu dizer mais nada, até me arrastar para dentro
de casa com o braço sobre meu ombro. Ele não estava
acostumado a me ver chorar. Ninguém estava.
Eu só chorava por ela, e escondido, assim como ele
me ensinou. Chorei no dia do seu casamento, no dia em
que descobri que ela havia perdido tudo, no enterro do
meu filho sob a tempestade, quando achei que ela
morreria nos meus braços e agora, quando finalmente
descobri por que ela foi embora. Todas as minhas
lágrimas eram dela.
— Quem era, Henrique? — pergunta mamãe, saindo
da cozinha. — Filho? — pergunta, espantada por me ver
tão acabado. — Mãe — berra, chamando por minha avó.
Nós amamos muito nossa mãe, nós três, mas vovó era
melhor quando o assunto era sério. Ela dava colo, nossa
mãe dava um soco. Ela não tinha paciência para narizes
escorrendo, nem joelhos ralados, também não era muito
boa com corações destroçados.
— Vá pegar um copo de água para o menino, Ruth —
pede meu pai, me sentando no sofá.
Ele se agacha na minha frente e passa a mão pelo meu
rosto, enxugando-o no momento em que minha avó entra
pelas portas duplas do jardim com um ancinho na mão,
sujo de terra.
— O que está acontecendo aqui? — pergunta, batendo
a terra dos sapatos, sem se dar conta da minha presença.
Quando ela levanta o olhar, corre em minha direção,
jogando a ferramenta longe. — Filho, o que houve? — Ela
empurra meu pai pra longe e me puxa do sofá, tenho que
me abaixar para caber no seu abraço e deitar a cabeça em
seu ombro. — Oh, meu menino... — murmura, esfregando
minhas costas com doçura.
O movimento repetitivo e o cheiro de terra molhada e
café, cheiro de casa, é o que me dá forças para lhes
contar.
— Descobri por que ela foi embora, vovó.
Ela não me pressiona, apenas me aperta mais forte.
— O bebê... — engasgo, soluçando alto. — O
menininho era meu. — Então, eu perco o controle. Não
consigo falar mais nada, me sinto tonto, fraco e arrasado.
Me lembro de vê-la vestida de noiva, linda, de
branco, em toda sua glória, da barriga esticada e do
quanto desejei roubá-la. Naquele dia, ela carregava algo
que me pertencia, alguém que eu nunca chegaria a
conhecer. Uma parte minha que havia se perdido antes que
eu pudesse sequer abraçar, mas que, em contrapartida, eu
já amava, apenas por ter nascido dela.
Me lembro da matéria de jornal anunciando sua
solidão e da nota no fim da página que lamentava a morte
de uma criança tão pequena, minha criança pequena. Me
lembro de caminhar por um cemitério embaixo de uma
tempestade com lágrimas nos olhos e desejar que ele
descansasse em paz, olhando para sua lápide com pesar.
Um pedaço do meu coração estava enterrado ali e
tudo o que eu disse foi “Descanse em paz”. Eu queria
aquele menininho. Queria pegá-lo no colo, ensiná-lo a me
chamar de papai, queria defendê-lo em uma briga, ensiná-
lo a dirigir, queria lhe dar conselhos sobre o amor e
ensiná-lo a nunca ser um covarde, como eu fui.
Eu queria que a morte não fosse eterna, ou que o
tempo pudesse ser revertido.
Só queria a chance de um começo antes de ser
obrigado a lhe dar adeus.
Tudo fica em absoluto silêncio. Meu pai e minha avó
mal respiram, minha mãe, que estava batendo todas as
portas dos armários na ânsia de protelar para me trazer
um simples copo de água e não me ver tão arrasado,
também para abruptamente com o barulho, e é ela quem
fala primeiro. Vejo-a sair pela porta da cozinha com um
copo vazio nas mãos e o olhar perdido no rosto molhado...
Ah, mamãe.
— Um netinho? — pergunta, olhando para meu pai
com um sorriso triste. — Nós tivemos um netinho seu?
Seus ombros chacoalham e o copo cai de suas mãos,
se espatifando no chão. Minha mãe podia ser meio aérea,
mas sempre voltava para a mesma dimensão quando um
de seus filhos precisava dela. Os cacos de vidro são
esquecidos e ela corre em nossa direção, se juntando ao
nosso abraço desajeitado. Não demora muito para que
também sinta as mãos grandes e firmes do meu pai ao
redor de nós três.
— Eu ia desistir do casamento, eu contei para ela,
contei que a amo — soluço.
— Então, ela te contou a verdade? — pergunta minha
avó, entendendo tudo. — Como você pode não ter nem
mesmo desconfiado, meu filho? — pergunta, confusa.
— Eu não sabia que nós tínhamos... eu estava
bêbado... eu não me lembrava.
O abraço se desfaz e meu pai me empurra até o sofá.
Ele está fazendo uma força descomunal para se manter
controlado, seus olhos marejados me dizem que ele está
arrasado com tudo que lhes contei, mas também me
mostram a decepção que sente por minhas atitudes.
— Não posso acreditar que você, justo você, fez algo
assim. Se fosse o Augusto, te juro que eu não ficaria
surpreso, mas você, Gustavo? — pergunta, asperamente.
— E depois queria que aquela moça tivesse lhe contado
sobre a criança?
— Ela deveria ter contado — se intromete minha mãe
—, era direito do nosso filho saber que seria pai.
— O que você fez quando ela te contou? — pergunta
meu pai, passando a mão pelos cabelos quase escassos.
— Você deu todo o apoio emocional para a menina, não
é?
Balanço a cabeça negativamente, fazendo-o praguejar
baixinho.
— Filho, você tem toda a razão por estar magoado,
mas ela também tem esse direito. Ela não errou sozinha —
murmura vovó de olhos secos.
Eu sabia que ela não estava muito melhor do que o
resto de nós, mas ela era assim. Ficaria firme e seria o
meu suporte enquanto eu precisasse e, assim que eu lhe
desse as costas, ela se permitiria sentir a dor que ardia
dentro de si.
— Imagina o quanto deve ter sido difícil para ela sair
da sua vida ainda te amando e ter criado aquele garotinho
sozinha? Tenta pensar em como ela se sentiu quando o
perdeu...
— Ela morreu, foi isso que aconteceu.
Minhas palavras despertam algo dentro de mim, uma
dor absurda e um pavor feroz. É o suficiente para fazer a
raiva se dissipar, o amor reinar e o medo me dominar.
Eu me lembro abruptamente de uma memória que fiz o
impossível para esquecer. O pior dia da minha vida, o dia
em que ela se transformou na minha Branca de Neve e eu
fui forçado a tirá-la de um caixão de vidro.
— Gustavo, aonde você vai? — berra meu pai,
quando chego à porta.
Me viro e olho para o rosto dos três, ele parece
confuso, minha mãe chora e assente, concordando que
preciso ir, mas é minha avó quem me faz ter a certeza de
que estou tomando a decisão certa.
— Monta no cavalo, querido, e depois galopa para
cá, quero dar um abraço naquela menina. — Ela sorri
abertamente. — Quero que ela me conte tudo sobre o meu
bisnetinho. Vai, filho. Vai logo!
Mal vejo os contornos da estrada na minha frente,
piso fundo no acelerador, deixando minha mente voar. O
amor que sinto pela Marcela é maior do que tudo. É um
amor grande o suficiente para me fazer sonhar com ela por
anos a fio, para me fazer abandonar uma mulher à porta do
altar. É imenso o bastante para me fazer entrar em um
avião.
Minha pior lembrança começa por aí. Começa comigo
vencendo um dos meus piores medos para ir atrás dela
pela última vez. Eu não deveria ter ido embora, não
deveria tê-la deixado sozinha, abandonada e estilhaçada.
Meu Deus, o que eu fiz? E se ela tentasse de novo? Eu
jamais me perdoaria.
Não vou suportar se Marcela tentar morrer mais uma
vez
Capítulo 41 - Gustavo

“Eu sei que vou te amar


Por toda a minha vida eu vou te amar
Em cada despedida eu vou te amar
Desesperadamente
Eu sei que vou te amar”
Vinicius de Moraes

Branca de Neve

Sete anos antes


— Quer mais uma, Gus? — pergunta a garota,
encostando a porta da geladeira parcialmente para me
encarar.
Olho para a garrafa estendida em minha direção e
assinto de forma desinteressada. Monstro me cutuca com o
cotovelo e reviro os olhos quando vejo seu sorriso safado
ao indicar a garota com a cabeça e formular um “Se deu
bem” sem emitir som, enquanto alisa as pernas da amiga
dela, sem o menor pudor, por baixo da saia jeans. Babaca.
Eu costumava me perguntar se ele era mesmo meu irmão,
se não havia sido trocado na maternidade por engano e
vindo parar na casa errada, aquele era um desses
momentos.
Ele havia aparecido no apartamento com duas
morenas à tiracolo, uma para si e outra para Ian, mas não
contava que nosso amigo já tinha se arrumado pela festa
na qual passou boa parte da noite e voltado para casa
acompanhado. Liana, a garota que sobrou, nem se
importou, pelo menos não desde que colocou os olhos em
mim ao entrar em casa e me encontrar em um
relacionamento sério com o videogame. Eu queria apenas
ser deixado em paz para voltar para o meu jogo, era pedir
demais?
Aquele dia fora particularmente ruim, sonhei com ela,
a mulher que sempre abalava meu mundo, e acordei me
sentindo esquisito e incomodado. Transbordando de
saudades. Eu não tinha notícias suas há seis meses, desde
o dia em que ela saiu correndo de mim debaixo de um
temporal, dentro um cemitério, sem me dizer uma única
palavra.
Não importa quantas vezes eu ligasse, ela nunca
atendia, então parei de ligar, mas nunca consegui parar de
me preocupar com ela. Eu a conhecia bem para saber que
ela sofrera perdas irreparáveis e jamais se recuperaria
por completo. Eu queria ter ficado ao seu lado, queria ter
segurado sua mão e enxugado suas lágrimas, mas ela tinha
alguém fazendo isso em meu lugar.
— O que acha de bebermos essas no seu quarto? —
pergunta a garota, me estendendo uma mão, enquanto tenta
abraçar algumas garrafas com a outra.
Eu balanço a cabeça negativamente, ainda distraído,
mas o olhar incrédulo e irritado do meu irmão chama
minha atenção. Quer saber? Ele tem razão, não posso
passar o resto da vida esperando uma mulher que não vai
voltar.
Sinto um misto de pesar e conformismo ao agarrar a
mão da garota e a empurrar pelo corredor, enquanto ela se
vira a cada passo para sorrir maliciosamente para mim.
Depois de abrir a porta do quarto e deixar que ela passe
na minha frente, retiro uma das garrafas de sua mão, a
abro e devolvo para ela, fazendo o mesmo com a outra,
que pego para mim.
— Que tal uma música? — pergunto, forçando um
sorriso ao tatear o bolso da bermuda atrás do meu celular.
Quando olho para a tela do aparelho, vejo que tenho
uma mensagem de voz.
Eu não o sentira vibrar, esperava que a ligação não
fosse do trabalho. Olhei novamente para as palavras
piscando em negrito e depois para a garota cheia de
expectativa esparramada na minha cama. Bom, se fosse do
trabalho, eu não ia reclamar.
— Podemos fazer muitas outras coisas além de beber
e escutar algumas músicas.
Ah, eu não duvidava, só não estava no clima. Sorrio e
balanço o aparelho no ar, indicando que precisava usá-lo.
Ela revira os olhos e eu a ignoro, apertando alguns botões
para ouvir a mensagem.
Meu coração para de bater quando escuto sua voz
— Me perdoa, Gus, me perdoa... por tudo — ela
soluça. — Eu sei que não tenho o direito de te ligar
depois de sumir da sua vida, mas você é a única pessoa
com quem eu queria falar, a única com quem me importo
que ainda respira. Eu tinha tantas coisas para te dizer, mas
agora elas parecem tão sem importância... Eu não aguento
mais viver assim, me perdoa Gus, por favor. — Estática e
mais soluços entrecortados, depois nada.
Eu podia sentir em cada célula do meu corpo que
aquela mensagem era um adeus, Marcela ia fazer merda.
Se eu tentar forçar as lembranças que tenho daquela noite,
do momento em que a ouvi se despedir de mim até o
momento em que cheguei ao aeroporto, me lembrarei
apenas de borrões. Uma garota irritada por ter sido
abandonada, um irmão confuso, uma corrida eufórica,
medo, medo e medo.
Chego ao aeroporto e corro em direção ao balcão,
furando a fila sem nem pestanejar. Uma mulher aguarda
ansiosamente sua vez, é a próxima a ser atendida. Grudo
em seu braço, lhe dando um susto que a fez arquejar. Ela
me olha feio, mas é arrebatada pelas minhas palavras.
— Eu preciso comprar uma passagem, por favor —
imploro, à beira do desespero. — É um caso de vida ou
morte. — Quem dera minha firmação fosse metafórica.
Ela assente rapidamente, me fazendo um aceno para
que eu passe na sua frente e me dá um minúsculo sorriso
de incentivo.
— Preciso de uma passagem para São Paulo no
primeiro voo disponível — cuspo, aos berros para a
atendente, espalmando as duas mãos no balcão.
Em contrapartida ao meu nervosismo, a garota boceja
e se inclina calmamente por sobre o computador. O
barulho das suas unhas longas batendo no teclado por
tempo demais estava me enlouquecendo ao ponto de eu
querer chacoalhá-la para que andasse mais rápido. Eu
estou a ponto de apressá-la, quando ela ergue a cabeça.
— Você está com sorte, tenho um assento disponível
em um voo que parte em vinte minutos — comunica, de
forma desinteressada.
Assinto fervorosamente.
— Eu fico com ele. — Saco o cartão de crédito,
entregando-o e, em poucos minutos, tenho a passagem nas
mãos.
Corro para fazer o check-in. Tudo o que consigo
escutar naquele ambiente barulhento são meus passos
apressados e o som da desolação que toma conta de mim.
Mas algo se sobrepõe na minha consciência, sua voz.
Marcela clamando por ajuda, Marcela fazendo besteira.
Marcela morrendo.
Eu posso estar delirando, imaginando coisas,
deduzindo. É o que penso ao adentrar no avião,
procurando pelo meu assento. Janela. Odeio voar,
principalmente no assento da janela. Não tenho tempo de
ficar com medo de altura, tem um medo maior e torturante
me consumindo. O medo de perdê-la definitivamente, e
esse medo, sim, me assusta de verdade, e é por ela que
rezo durando a viagem.
Marcela não ser minha já era difícil, mas era
suportável. Me acostumei a amar alguém que não
correspondia aos meus sentimentos, porém não suportaria
viver sabendo que ela não existia mais. Não falava, não
andava, não sorria. Tinha dias em que eu só conseguia
ficar bem sabendo que, em algum lugar, não importa onde
fosse, ela respirava. O que aconteceria se ela morresse?
O voo demora uma eternidade. O percurso que faço
com o carro alugado, o dobro do tempo. Nenhum farol
aberto. O trânsito está caótico e meu coração, na boca.
Quando, finalmente, consigo estacionar em frente ao seu
prédio, só me resta rezar para que ela não tivesse tido
coragem de fazer nada ainda, não antes que eu possa
impedi-la.
— Você pode interfonar para o apartamento da
Marcela Cantagallo, por favor? — peço,
apreensivamente, depois de apertar o botão de
comunicação preso ao portão de ferro por diversas vezes
ininterruptas.
— Claro, senhor, só um momento. — Ele interrompe
nossa conversa para fazer o que pedi e volta um longo
tempo depois com uma negativa. — Sinto muito, mas ela
não está em casa. Ninguém atende — murmura, em meio a
um bocejo, evidenciando que o acordei.
— Tente mais uma vez.
Ele resmunga algo indecifrável e, dessa vez, não me
manda esperar quando interrompe o contato. Eu temia que
isso acontecesse, temia que ela não fosse atender. Teria
que dar um jeito de entrar.
— É, ela não está mesmo, não — murmura o homem,
contrariado por minha insistência, me fazendo praguejar
em alto e bom som.
— Eu preciso entrar, quero verificar eu mesmo. —
Não vou embora até vê-la e saber que está bem.
— Sem autorização do morador, não pode subir,
senhor — responde com desdém.
— É uma emergência, ela pode não estar bem, me
deixa entrar — grito, socando o portão com força.
— Se o senhor insistir mais, vou ser obrigado a
chamar a polícia.
Puta que pariu. Dou mais um soco no portão
enfurecido. Olho ao redor, desolado, e avisto um morador
que está saindo com o carro pelo portão da garagem. Não
penso duas vezes antes de correr e passar pelo portão
aberto. Posso ouvir o porteiro berrando algo que não
entendo, mas não paro. Daqui só saio com a Marcela ou
com a polícia.
Subo correndo os lances da escadaria de serviço e
chego ao hall do seu andar. Bato repetidas vezes na porta
do apartamento, implorando a Deus que ela abra a porta
com cara de sono e me mande para o inferno por acordá-
la.
Ver seu rosto já teria valido a maldita viagem de
avião.
Pego meu celular no bolso da calça e aperto alguns
botões para ligar para ela mais uma vez, mas, antes que a
chamada se complete, alguém agarra meu braço por trás.
— Você tem que sair. Ou sai por bem ou sai por mal.
Não pode ir entrando assim no prédio dos outros sem
autorização, rapaz.
Me viro e encontro um senhor de idade, calvo e bem-
vestido, exalando autoridade, provavelmente o síndico, e
outro homem, mais simples e enfezado, que acredito ser o
porteiro que tentou me barrar.
— Não vou a lugar algum até saber que ela está bem
— murmuro acidamente, me soltando e me virando para
esmurrar a porta mais uma vez, sem sucesso.
— Essa moça nem deve estar em casa — argumenta o
síndico, sem paciência.
Ele volta a agarrar meu braço, porém, antes que
consiga me puxar em direção a um dos elevadores, seu
celular toca em algum lugar dentro do apartamento. Eu
arranco meu braço do aperto com um puxão e vou em
direção à porta fechada.
Não penso. Não havia tempo. Eu reajo. Chuto a porta
com toda minha força, fazendo-a se abrir imediatamente e,
antes que eles possam falar alguma coisa, corro para
dentro do apartamento com o coração na boca. Olho ao
redor e não demoro a encontrá-la, entretanto, quando o
faço, não consigo me mexer.
Marcela está no centro da sala, embaixo dos
destroços de uma mesa de jantar que era feita de vidro,
desacordada. No chão, próximo ao seu rosto, há um frasco
de remédio aberto com a tampa ao lado, mas sem nenhuma
cápsula, apenas uma maçã mordida que deve ter rolado
quando a mesa não suportou seu peso quando ela desabou.
Escuto os passo dos homens que me seguiram também
pararem abruptamente e alguém murmurar um palavrão, é
quando finalmente encontro minha voz.
— Chamem uma ambulância — grito, assustado.
Vacilo no lugar, mas, por fim, consigo criar coragem
para correr em sua direção. Derrapo em meio aos
fragmentos e tenho que apoiar as mãos no chão para
conseguir me ajoelhar ao seu lado. Não me importo com a
dor lancinante dos cacos rasgando minha pele, a única
coisa que me importa é a mulher presa a um caixão de
vidro destroçado, minha Branca de Neve.
— Não faz isso comigo, Má, por favor, não morre. —
Agarro seu rosto, sentindo o vidro perfurar minha calça
jeans e arranhar meus joelhos.
Seu rosto fica marcado pelo meu sangue e pelas
lágrimas que não notei estar derramando.
Aproximo meu rosto a milímetros do seu, contudo, no
desespero, não consigo saber se ela ainda respira. Passo
as mãos pelo seus cabelos e me inclino sobre ela,
apoiando minha testa em seu peito, é quando a sinto se
mexer. Não ouso respirar aliviado, pelo contrário, entro
em desespero.
Não vou suportar se a mulher que amo morrer nos
meus braços.
O socorro demora quase meia hora para chegar. Não
a soltei nem por um único segundo, não consegui parar de
chorar e implorar para que ela seja forte enquanto rezava
em meio aos meus soluços desalentadores. Sigo com ela
na ambulância, segurando firmemente em sua mão.
Quando a maca é descida e levada por alguns enfermeiros
para dentro de uma sala, e eu sou barrado na porta, tomo
uma decisão.
Se ela sobreviver, finalmente vou lhe dizer que não
consigo viver sem ela.
— Senhor.
Levanto a cabeça, que tenho apoiada nas mãos, para
encontrar uma enfermeira me olhando com atenção.
— O senhor é o acompanhante da senhora Marcela
Cantagallo?
— Sim, sou eu.
Me levanto e estudo sua expressão, ela não deixa
transparecer nada em sua fisionomia, mas eu já deveria
saber, tendo um médico em casa. Esses filhos da puta são
ensinados a não demonstrarem nenhum tipo de emoção.
Claro que, para o meu irmão, era mais fácil, ele não
precisava fingir, realmente não se importava com mais
ninguém além dele próprio.
Pensei mais de uma vez em ligar para ele. Augusto
poderia vir até aqui me encontrar, ele saberia o que fazer,
conseguiria informações. Eu confiava nele, mas não
consegui me obrigar a fazer a ligação.
— Ela teve que passar por uma lavagem estomacal
por causa dos comprimidos que ingeriu, mas vai ficar
bem.
Suspiro, aliviado, jogando a cabeça para o alto.
Obrigado, meu Deus, obrigado!
— Ela chegou com o RG no bolso da calça, mas não
com o seguro-saúde, o senhor sabe se ela tem convênio?
— pergunta, parecendo envergonhada.
— Não, eu não sei.
Balanço a cabeça em uma negativa, e a moça faz uma
expressão pesarosa. Não lhe dou tempo para argumentar e
me dizer que teriam que transferir Marcela para outro
hospital.
— Eu pago a conta, com quem devo falar?
Depois de assinar um cheque, finalmente me deixam
vê-la. Entro no quarto na ponta dos pés e caminho até o
leito. Marcela está pálida e tem um acesso intravenoso
preso a uma veia. Parece arrasada até mesmo adormecida.
Sempre acreditei que poderia viver dentro de um
conto de fadas, e aquela era a mulher por quem eu
galoparia em um cavalo branco. Machucava saber que, em
sua vida, a Rainha Má era a morte e que a maçã era uma
ilusão.
Ela mesma tentou acabar com a própria vida.
Como pôde tentar se matar?
Passo a noite sentado em uma poltrona ao seu lado,
sem conseguir pegar no sono. Quando o dia amanhece, ela
acorda. Assim que escuto o farfalhar de cobertas, me
levanto e me inclino sobre ela, afastando seus cabelos
ruivos do rosto. Ela pisca e franze o cenho fracamente.
— Me perdoa — novamente o mesmo pedido.
Seus olhos se enchem de água, e eu balanço a cabeça
em uma negativa, alisando seu rosto com as costas da
mão.
— Por quê? — pergunto, com a voz embargando. —
Por que fez isso, Má? Sabe o quanto eu me sentiria
culpado por não ter ouvido o celular tocar? — Aquilo me
mataria dia após dia.
— Eu não aguento mais viver sem eles, Gus. —
Então, ela irrompe em prantos, enquanto eu enxugo cada
umas das suas lágrimas com os dedos desajeitadamente,
me sentando ao seu lado no leito hospitalar.
— Viva, Marcela, por mais que você não deseje, viva
— sussurro, emocionado. Eu preciso de você viva, queria
gritar. — Eles não esperariam nada menos de você.
— Mas é tão difícil, Gus. — Ela esconde o rosto na
lateral do meu corpo e eu passo um dos meus braços ao
seu redor, com o outro, aliso seu ombro. — É difícil ser
sozinha.
— Você não está sozinha. Eu estou aqui, agora, Má, e
vou ficar o tempo que você precisar. Não vou sair do seu
lado.
Ela se enrijece ao meu lado e se afasta. Marcela se
reclina sobre os travesseiros e fecha os olhos.
— Não me afaste de você, por favor.
— Estou com fome — murmura, virando o rosto
parcialmente para o outro lado, então eu me pergunto onde
estaria seu marido, que não previu que isso aconteceria,
nem estava lá para impedir. Ele nem ao menos apareceu
no hospital.
— Vou buscar alguma coisa para você comer, já
volto.
Ela não responde, e meu coração se comprime em
agonia.
— Marcela, se fugir de mim novamente, nunca mais
vou querer te ver.
Não reconheço minha voz, não reconheço nem a mim
mesmo naquele momento, mas eu reconhecia o sentimento
de impotência. Eu respirava sua rejeição, que era tão
evidente quanto o oxigênio que preenchia o cômodo.
Novamente, ela não responde, mas assente, ainda de
olhos fechados.
Quando volto para o quarto depois de buscar algo
para ela comer, sou informado por uma das enfermeiras
que ela teve alta. Antes que eu agarrasse a maçaneta e
abrisse a porta, eu já sabia o que iria encontrar: um quarto
vazio.
Por quê? Por que ela havia me abandonado
novamente, enquanto eu fui o único a ir em seu auxílio?
Decidi que a promessa de não querer vê-la, feita como
uma ameaça falsa e sem sentido, não valia para nada e
decidi ir atrás dela em seu apartamento, mas, quando
ganhei a rua, a vi entrando em um carro. Lucas bateu a
porta do passageiro e deu a volta para entrar pelo lado do
motorista, e eu desisti. Desisti completamente de tê-la
para mim e jurei nunca mais procurá-la.
Me sento na calçada e choro mais uma vez por tudo o
que queria ter vivido ao seu lado e não pude. No meio de
um soluço e outro, ligo para meu irmão. Ele leva horas
para chegar e me encontra na mesma calçada, com o rosto
entre as mãos e os ombros ainda tremendo. Quando para o
carro e desce, vejo Ian prostrado ao volante.
— Mala, o que houve? — pergunta, se ajoelhando na
minha frente e agarrando meus joelhos.
— Acabou. — É tudo o que digo.
Ele franze o cenho e me levanta do chão.
Eles me levam até o apartamento dela, e Monstro vai
até o aeroporto com o carro alugado, enquanto Ian não
para de me olhar com olhos preocupados. Voltei para casa
com eles, que não me fizeram mais perguntas, enquanto
meus olhos marejados permaneceram o tempo todo do
lado de fora da janela.
Eu mantive meu juramento.
Capítulo 42 - Bárbara

“Me desculpa se eu não consegui te dar o mundo.”


Autor desconhecido

O que eu fiz?

Eu e Anna damos um pulo para trás quando a porta da


cozinha que dá acesso ao jardim é aberta abruptamente,
ela leva as mãos ao coração, enquanto eu finjo estar muito
interessada nas minhas unhas.
— Peguei pesado demais, não peguei? — pergunta
Monstro, passando a mão pelo rosto, aparentando
cansaço.
Ele não parece bravo por termos escutado tudo, na
verdade, isso parece exatamente o que ele queria que
fizéssemos, ou o que sabia que faríamos de qualquer
forma.
— Pegou. Será que vai resolver? — pergunto,
apreensiva.
Anna morde o lábio e o encara em busca de resposta.
— Não sei — murmura, em forma de lamento,
fechando a porta e se escorando nele. — Isso é tudo culpa
sua, Bárbara Cristina, você tinha mesmo que enfiar o dedo
na ferida, não é? Tinha que trazer essa garota para a vida
dele outra vez.
— Anna ajudou — murmuro, ganhando uma olhadela
feia dela, que morde mais uma vez o lábio, quando
Augusto a encara friamente, balançando a cabeça. — Mas,
pelo que entendi, você entrou nessa também, quer que ele
vá atrás da Marcela.
— Claro que eu quero que ele vá atrás dela, ele ama
aquela garota mais do que eu acreditei ser capaz — ele
lamenta. — Ela é nossa chance de nos livrarmos da
Camila, é a chance dele de uma porra de final feliz, mas a
que preço? Acho que ele já se magoou o suficiente.
— Droga, achei que ele ia ficar balançado e começar
a repensar o casamento, eu não imaginava que tinha tanta
coisa enterrada nessa história — comento, me sentindo
extremamente culpada por ter interferido. Ian tinha razão,
por que não o escutei?
— Não deveríamos brincar de cupido dessa maneira,
isso já tomou proporções que não imaginávamos. Um
filho, Babi? Ele tinha um filho? Não consigo nem imaginar
o que ele está sentindo — comenta, puxando uma Anna
ainda silenciosa com tanta força que sua cabeça bate em
seu peito, ele parece não ter notado ao envolver a barriga
dela com as mãos. — Eu só queria abraçá-lo, porra. Mas
ele nunca vai aprender a andar com as próprias pernas se
eu sempre resolver tudo por ele. Gustavo precisa entender
o que é prioridade e, na minha opinião, é a Marcela.
— Vou atrás dela — comenta Anna, baixinho,
ganhando nossa atenção, ambos olhamos para ela de
forma confusa. — Vou atrás da Marcela.
— Por quê? – questiona meu irmão, virando-a para
olhar para seu rosto.
— Porque eu sei o que é não ter ninguém, anjo, e sei
como machuca.
Ele assente, mas posso ver em seu olhar que não
concorda que ela se envolva. Do que adianta discutir? Já
estamos todos afundados nessa história até o pescoço.
— Vou com você — me ofereço, porque, a essa
altura, não posso fazer mais nada pelo meu irmão.
Eu o havia machucado e não sabia se algum dia
conseguiria me perdoar por isso, mas rezava para que ele
conseguisse, não só a mim, mas a Marcela também.
Depois de tudo o que passaram, o destino tinha
obrigação de lhes dar uma chance de serem felizes.
Capítulo 43 - Marcela

“Todo mundo é capaz de dominar uma dor, exceto


quem a sente.”
William Shakespeare

Eu perdi tudo

— Boneca — chama Arnaldinho, desesperado, na


porta do meu quarto. Escuto seus passos pesados abrindo
buracos no meu chão de tacos, enquanto ele corre em
minha direção. Não tenho mais forças para chorar, mas
permaneço no chão, quietinha e machucada. — Marcela.
— Ele chacoalha meus ombros.
Posso ouvi-lo, sentir suas mãos pesadas nas minhas
omoplatas, mas não consigo reagir. Estou presa dentro de
uma névoa densa feita de uma mistura de sentimentos ruins
o bastante para me incapacitarem.
— Marcela — grita a voz de uma moça de algum
lugar da casa.
— Podemos entrar? — grita outra voz, também
feminina.
Sei que não são estranhas, mas não consigo me
concentrar o suficiente para lembrar de onde as conheço.
Arnaldinho se levanta em um pulo, instantes depois,
escuto sua voz.
— Ela está aqui, preciso de ajuda — berra, tirando o
paletó de forma tão desajeitada que fica preso em uma
confusão de mangas, até que elas nos alcancem.
— Marcela, o que você fez? — Quando uma delas se
agacha ao meu lado, eu a reconheço, Anna. Está desolada
e aflita. Ela aperta com força a mão que trago junto ao
peito, sobre o coração, e abre meus dedos para revelar um
frasco de comprimidos. — Quantos você tomou?
Penso que ela vai gritar ou me bater para que eu
reaja, mas me surpreendo quando duas lágrimas descem
por seus olhos apavorados.
O brilho dos seus olhos é o que me dá forças para
falar.
— Nenhum — sussurro, dando de ombros
desajeitadamente.
Eu não tomei nenhum. Não consegui. As palavras que
ele me falou, anos atrás, depois de me encontrar quase
morta no chão do meu antigo apartamento, não pararam de
ecoar na minha cabeça. Minha família não ia querer que
eu desistisse e, por mais que eu quisesse engolir aquele
frasco inteiro, sabia que ele tinha razão.
— Acho que devemos ligar para o Ian ou para o
Augusto, ela não parece bem — argumenta Bárbara,
entrando no meu campo de visão.
Se eu fosse tentar julgar como ela se sente pela
maneira que se porta, diria que ela está imersa em culpa.
Sei reconhecer os sinais. Mãos que não param, olhos que
não se fixam, lábios que se repuxam para baixo... Eu vi
aquela mesma expressão no espelho muitas e muitas
vezes.
— Ela vai ficar — garante Anna, apertando a barriga
com uma mão e agarrando minha nuca com a outra.
O esforço que ela faz é descomunal, não quero que
seu bebê se machuque, por isso reúno todas as forças que
me restaram e tento me levantar. Quando falho, Bárbara
agarra meus braços e Arnaldinho enlaça minha cintura.
— Vem aqui — sussurra Anna, depois que estou
deitada sobre meus travesseiros. Ela se senta ao meu lado
e pousa a mão na minha cabeça, que eu, instintivamente,
movo para o seu colo. — Nunca vai passar, querida,
nunca — fala, baixinho, fazendo meu coração se
fragmentar. — Mas vai melhorar. Um dia, alguém
preenche os buraquinhos, por mais difícil que seja
acreditar.
— A única pessoa que podia preencher alguns
buraquinhos foi embora.
Ela tem que se abaixar para conseguir me escutar e,
pela falta de perguntas, imagino que elas já saibam.
— Você contou, não foi? Contou para ele. —
Arnaldinho sobe pelo outro lado da cama e afaga meus
cabelos. — Eu sinto muito, querida. Estou me sentindo
culpado por ter te aconselhado a ser sincera.
— Também estou me sentindo culpada por ter
obrigado vocês dois a se reencontrarem, eu não fazia
ideia, Marcela. — É a vez de Bárbara tomar seu lugar aos
meus pés, ela esfrega minhas pernas carinhosamente e
começa a chorar. — Se eu soubesse...
Não posso deixar que ela também se culpe, então eu
lhes conto minha história. No começo, ela sai em
pequenos lamentos, até que minha voz vai ganhando
volume.
— No começo, fiquei com vergonha. Eu não queria
contar para Gustavo que estava grávida, porque não
queria que ele soubesse que nós... que eu, mesmo ele
estando bêbado, aceitei... Depois, pensei que seria melhor
ele não saber — digo, com um pouco mais de confiança,
agarrando sua mão na minha. — Gustavo teria que fazer
sacrifícios, eu sei, eu fiz. Não achei justo que ele tivesse
que arcar com a responsabilidade de algo que eu, apenas
eu, deixei que acontecesse.
— O erro foi dos dois, boneca, ele também estava lá.
Não deveria ter chegado nem perto de você não estando
em seu juízo perfeito. — O tom de Arnaldinho é frio, ele
está tentando me proteger, é lindo, mas é um erro.
— Sempre acreditei que o que ele sentia por mim não
passava de amizade, então não criei esperanças. Uma
criança ia mudar tudo na vida dele, então fui embora. Mas
ele sempre ficava aparecendo, e eu sempre tinha que lhe
dar adeus mais uma vez... — A cada vez que partia, um
pedaço do meu coração ficava com ele. Não restara mais
nada.
— Ele é um homem bom. Não é porque é meu irmão,
mas sei que o coração dele é puro. Ele vai te perdoar,
Marcela...
Balanço a cabeça tristemente em uma negativa.
— Não, ele não vai. — Eu não merecia aquele
perdão.
— Não, eu realmente não vou.
Me levanto abruptamente, Gustavo está de pé em
frente à minha cama com as mãos nos bolsos e uma
expressão indecifrável no rosto. Eu não esperava vê-lo e
não sei como reagir à sua presença.
— Porque não há nada para ser perdoado.
— Vamos sair, eles precisam conversar — ordena
Bárbara.
Ela olha para o irmão com orgulho, enquanto arrasta
um Arnaldinho descrente e possesivo pela manga da
camisa verde menta. Anna beija minha testa e murmura
baixinho:
— Vou estar na sala, não vou embora até saber que
você está bem.
Assinto, sentindo um carinho imenso e inesperado por
ela. Antes que ela possa se levantar, minha mão esbarra
em sua barriga e eu sinto o bebê se mexer. Anna sorri e a
alisa por cima da bata. Pela primeira vez, não fiquei
desconfortável com sua barriga, pelo contrário, minha
vontade foi pedir que ela me deixasse tocá-la mais um
pouquinho.
Depois que todos saem e a porta é fechada, Gustavo
caminha até a cama e se senta ao meu lado, ele segura
minhas mãos e brinca com os anéis de prata que tenho em
todos os dedos, distraidamente.
— Não quero mais que você se culpe. — Ele não
olha pra mim, ainda não consegue me encarar por tempo
demais. Deve doer.
— Como pode dizer isso? Eu tirei um filho de você.
— Como castigo, a vida o tirou de mim. Bento, ah, que
saudade, filho.
— Se eu disser que isso não parte meu coração,
estarei mentindo. — Seu olhar me perfura, mas ele não é
mais acusador, é apenas solitário. — Se tivesse me
contado, eu teria ficado, não só ao seu lado, mas com
você. Eu teria me casado com você, teria visto Bento —
sua voz fraqueja — nascer, nós o teríamos criado juntos.
Se ele arrancasse meu coração do peito com as mãos
não teria doído tanto quanto escutar suas palavras. Por
que eu não fiquei? Por que não contei a verdade?
Ouvi-lo dizer o nome do meu... do nosso filho, era
torturante.
— Se eu pudesse voltar no tempo... — lamento —,
mas não posso. — Ninguém pode. Os erros existem para
que nós, reles mortais, nos esbanjemos e, no final do
processo, aprendamos algumas coisas básicas. Como
nunca mais repetir a mesma cagada.
— Mas eu também entendo seus motivos. Posso
acreditar o quanto quiser que dormi com você porque te
amava, mas isso não anula o fato de que foi uma atitude
abominável da minha parte. — Ele vira minhas mãos nas
suas e passa seus polegares por elas em círculos. — Foi
uma avalanche de erros que culminou em nós dois aqui,
hoje. Alguns meus, outros seus. Não somos inocentes,
Marcela, mas o que sentimos um pelo outro é verdadeiro,
e quanto a isso eu não tenho dúvidas.
— Nada resiste tanto tempo se não for — murmuro,
agarrando suas mãos com mais força, preciso me segurar
em alguém, porque, mesmo deitada, a sensação que tenho
é de que vou cair.
— Eu quero apagar isso, esses segredos, esse tempo
perdido, toda essa dor. — Ele solta minhas mãos, seus
dedos se encaixando na curvatura do meu queixo, e ele o
ergue até que nossas cabeças estejam na mesma altura,
mas ainda me recuso a olhar em seus olhos.
— Mas não pode — lamento, irritada. — Você não
vê? Essa perda sempre vai nos afastar. — Embora Bento
não existisse mais fisicamente, sempre estaria entre nós
dois, impedindo que chegássemos completamente um ao
outro.
— Olha para mim, por favor, Má.
Mesmo contra a vontade, obedeço.
— O problema é que eu não vejo um futuro feliz se
não for com você. — Então, ele me desarma, me empurra
contra um muro e mete o cano de uma pistola na minha
nuca. — Podemos passar os próximos anos nos amando
mais para compensar nossos erros. Nunca mais vou beber,
e você me conta tudo sobre nosso filho. Quero saber como
ele era, do que gostava, qual foi sua primeira palavra,
qual era sua cor favorita...
Minhas mãos tremem quando me inclino e abro a
gaveta do criado-mudo. Puxo a fotografia amassada e
gasta pelo manuseio das mãos de muitas madrugadas em
claro de dentro da Bíblia que pertencia à minha mãe e a
trago para junto do peito. Ele olha ansiosamente para ela,
com certeza morrendo de vontade de arrancá-la das
minhas mãos, mas espera até que eu esteja preparada para
lhe mostrar.
— Tiveram alguns “mamãe” meio arranhados antes,
mas foi “gato”.
Suas sobrancelhas se erguem, e ele me olha, confuso.
— A maldita vizinha tinha um gato folgado que vivia
dormindo na nossa varanda, a primeira palavra audível
dele foi “gato”.
Então, ele ri, e eu estendo a fotografia, aí ele chora.
No começo, seus olhos ficam vidrados na criança de
sorriso alegre de pé, olhando para a câmera ao exibir dois
lindos e perfeitos dentinhos, os únicos dentro de sua boca,
depois eles marejam e, por fim, seus ombros tremem
incontrolavelmente. Em nenhum momento, ele desvia o
olhar, nem quando fica claro que seus olhos estão
embaçados o suficiente para que ele não consiga enxergar
mais nada.
— Lindo, ele era lindo. — Ele funga e sorri,
mostrando as duas covinhas pelas quais eu era alucinada.
— Não é para menos, ele é a minha cara.
— Você não precisa de mais nenhum motivo para ser
convencido, mas não era apenas fisicamente. Ele era
teimoso igual a você, e gentil, muito gentil. Era sorridente
e feliz, carinhoso e meigo. Era perfeito, igual ao pai. —
Fungo também.
Quando me dou conta, ambos estávamos nos
acabando de chorar agarrados um ao outro. Minhas mãos
seguram com firmeza o tecido de sua camisa, e seus dedos
pressionam meus ombros com força em um abraço
sincero, verdadeiro e triste. Muito triste. O abraço
devastado pelo luto que deveríamos ter dado antes, na
noite em que eu fuji dele em meio a uma tempestade
quando nosso filho partiu.
Não sei quanto tempo se passa até que um de nós se
mexa, mas pareceram dias inteiros dentro da proteção
daquele amor doentio e inabalável. Gustavo se mexe
primeiro, descendo suas mãos pelas minhas costas até
minha cintura, elas se unem no centro da minha barriga e
ele me encara com doçura.
— Não acredito que nós o fizemos, que Bento saiu de
dentro de você. Como pudemos fazer algo tão incrível?
O deslumbramento em seu olhar me faz sorrir, mas o
sorriso dura pouco.
— Como pudemos perdê-lo, Gus?
Ele não me responde, mas suas mãos calam meus
pensamentos nebulosos, subindo pelas minhas costelas até
meu pescoço e param em meu rosto. Dessa vez, quando
ele tenta suprir uma das minhas faltas com um beijo, não
resisto, eu quero aquele contato.
— Deixa eu te beijar? — murmura, roucamente.
Não lhe respondo. Ao invés disso, tomo uma atitude.
Grudo minha boca na sua de forma afoita. Ele responde no
mesmo instante, emaranhando os dedos pelos meus
cabelos e deslizando sua língua de encontro à minha.
Não é nosso primeiro beijo, mas é como se fosse.
Dessa vez, é um beijo de verdade, entre duas pessoas
arrependidas e apaixonadas e, enquanto estamos unidos
por ele, o mundo perde a cor ao nosso redor, os segredos
diminuem de tamanho e a dor se acalma.
Dentro daquele beijo, me sinto, pela primeira vez em
anos, como eu mesma, esperançosa e viva.
Quando ele ameaça se afastar, eu não permito. Quero
mais do seu calor, do seu gosto, do remédio que
anestesiou minhas feridas, quero mais dele. Quero ser
dele outra vez, pela primeira vez, para sempre. Deslizo
minha mão por seu peito sólido até suas coxas, me
inclinando mais em sua direção. Quando ele me dá
abertura, eu fico de joelhos e subo em seu colo, passando
os braços em volta do seu pescoço.
— Tem certeza disso? — questiona, entendendo de
imediato minhas segundas intenções. Ele morde os lábios,
indeciso, e eu estreito os olhos.
— Qual o problema? — pergunto, começando a corar
de vergonha.
— Não me leve a mal, eu quero. Mas temos que nos
livrar de três pessoas de boas intenções que,
provavelmente, estão com os ouvidos colados à porta, e
eu tenho que me livrar de uma noiva. Não é certo fazer
amor com você enquanto não acabar com o compromisso
que assumi com ela.
Era brincadeira, né? A periquita da noivinha dele era
mais gasta do que minhas Havaianas.
— Vocês três, obrigada, mas caiam fora! — grito e
escuto uma risada que reconheço como sendo de Anna, um
suspiro de alívio que imagino ser de Bárbara e um
muxoxo de descontentamento que, obviamente, é do meu
melhor amigo paternalista.
— Falta a noiva. — Ele desvia o olhar incrivelmente
desconfortável.
Eu tinha, claramente, duas opções: deixava-o sair
pela porta com a esperança de que conseguisse acabar
com seu relacionamento, me dando tempo para ligar para
o dedetizador, e corria o risco da vareta oxigenada
convencê-lo a mudar de ideia; ou o instigaria a ficar e
torceria para ele não ter medo de aranhas.
Não era difícil deduzir qual opção escolhi.
Inseticida e eu, aí vamos nós!
Capítulo 44 - Ian

“Nunca devemos
envergonharmo-nos das
nossas próprias lágrimas.”
Charles Dickens
A garota do rio

Quando saio do quarto, não tem ninguém em casa.


Desço até meu carro e me recosto no banco, jogando a
cabeça para trás, o celular pegando fogo em minhas mãos.
Tanto pelas fotos que eu gostaria de poder esquecer,
quanto pelas diversas ligações perdidas da minha esposa.
Decido parar de protelar e ler suas mensagens; ela deve
estar preocupada, e eu já errei o suficiente por uma vida
inteira na noite passada.

Bárbara: Amor, onde você está?


Bárbara: Ian, estou preocupada. Você está no
hospital?
Bárbara: Estou começando a ficar irritada. Eu sei
que nós brigamos, mas é ridículo da sua parte fazer greve
de silêncio, vê se cresce!
Bárbara: Seu idiota arrogante, custava me avisar que
ia passar a noite fora?
Bárbara: Amor, volta para casa, vai.
Bárbara: Eu te amo, precisamos conversar. Detesto
brigar com você.
Ian: Fiquei preso em uma cirurgia, desculpa.

Essa é a primeira vez que minto para ela, e nunca me


senti mais imprestável em toda a minha vida, como se eu
tivesse quebrado uma joia rara de valor inestimável, algo
que não pudesse ser consertado. Sei que estou
transpassando um limite e que, depois da curva, não
haverá retorno. Mas, se eu contar a verdade para Bárbara,
ela vai embora, vai fugir levando meu coração. Só de
imaginar Tina e Zach, Vito e Vick, alguma malas, minha
esposa e o nosso final feliz partindo, sinto o ar sumir dos
meus pulmões e o chão desaparecer sob meus pés.
Eu sei qual atitude é a certa, só não sei se sou
corajoso o bastante para deixá-la ir.
Lendo suas palavras, volto a chorar e sorrio também.
Sempre bipolar, sempre única e excêntrica. Tão minha.
Ela passou a noite toda me esperando chegar, suas
mensagens têm poucas horas de distância, a última foi
enviada esta manhã. Parte meu coração saber que ela
ficou acordada, olhando para a porta, sem conseguir
dormir, preocupada com a nossa briga, que agora não tem
mais importância alguma, com uma promessa que eu sabia
que ela ia quebrar antes de fazê-la jurar.
Fecho os olhos e me entrego ao medo de perdê-la sem
pudor algum. Quando volto a abri-los, estou novamente
dentro daquele rio, posso sentir a água encharcando meus
tênis, posso sentir a pressão que meus punhos cerrados
exercem sobre o resto do meu corpo e o corte que meus
dentes trincados fazem na minha bochecha. Nunca estive
tão puto em toda minha vida, nunca quis tanto defender
alguém.
Caminho pela multidão com um único propósito,
salvá-la.
Abaixo o olhar e fixo meus olhos na garota loira, na
garota do rio. Ela chora e tem as mãos no rosto,
envergonhada, humilhada e encharcada. O barulho que
faço ao parar diante dela faz com que ela levante a cabeça
e me olhe nos olhos, meu coração acelera e eu estendo a
mão sem pensar. Ela pisca e, imediatamente, a pega, ela
não tem opção.
O contato com a sua mão parece a coisa certa, como
se elas fossem feitas para se encaixarem e,
instantaneamente, eu me sinto mais calmo, porém, não
tenho tempo de apreciar a sensação, eu tenho que tirá-la
de lá. As pessoas à nossa volta não param de olhá-la e rir
às suas custas, seu aperto fica mais forte e eu trinco os
dentes novamente. Assim que passamos, a multidão de
adolescentes abre caminho e relaxa as expressões,
ninguém ousaria debochar dela nesse momento; minha
expressão denuncia minha raiva, denuncia que o primeiro
que tentar vai acabar sem os dentes.
Caminhamos a passos lentos, e eu a levo até o
calçadão da praia, paro de frente para ela e a olho; ela
está arrasada, tem o rosto coberto por lágrimas que limpo
desajeitadamente com meu polegar depois de soltar suas
mãos. Eu tenho que lhe dizer alguma coisa, tenho que fazer
com que ela fique bem, essa vontade bate dentro de mim
como se fosse o destino que me impede de dar as costas e
voltar para minha vida...
As rosas... Abro minha mochila e tiro o ramalhete de
rosas brancas que seriam de outra pessoa, elas
pertenceriam a ela agora. Entrego-lhe as flores, que ela
pega com uma expressão surpresa no rosto bonito.
— Não escuta o que ela falou — lhe digo, sorrindo.
— Eu sei que, algum dia, alguém vai notar você.
Não teria como alguém não notá-la, mas tenho a
sensação de que ela não sabe disso, não sabe o efeito que
exerce nas pessoas.
— Sabe por quê?
Ela nega com a cabeça, corando.
— Porque eu notei.
Não sei de onde tiro a coragem, mas, assim que
termino de falar, encosto os lábios nos seus e sinto o gosto
da boca que, há dias, não sai do meu pensamento. O beijo
é simples e delicado como ela, é mágico, assim como o
toque de nossas mãos, parece destinado a acontecer,
parece certo, embora a situação esteja totalmente errada e
eu esteja me aproveitando de uma garota magoada.
Me afasto, sorrio, respiro fundo e caminho de volta
para a praia, tenho que encontrar minha irmã e voltar para
buscá-la; ainda temos muito para conversar, quero saber
tudo sobre ela, quero beijar sua boca novamente, de
preferência quando não estiver tão triste.
Quero que seu beijo tenha gosto de promessa e não de
água salgada.
Repasso a cena do beijo na cabeça repetidas vezes,
seu olhar perdido, sua meiguice e a maciez de seus lábios.
Porém, quando volto para o lugar que a deixei, ela não
está mais lá. Não há sinais de que um dia esteve, não há
evidência nenhuma do que aconteceu entre nós, me sinto
arrasado.
Ela deve ter ficado assustada com a minha ousadia, é
quando me lembro de que ela não disse palavra alguma,
eu não ouvi sua voz, nem ao menos sei seu nome. Eu saí
tão apressado, tão eufórico, que não pedi que ela me
esperasse, não disse que voltaria. Por anos, não ter
pedido que ela não saísse do lugar me assombrou.
Aquela garota do rio ficou com metade do meu
coração naquela noite. Eu vivi por muito tempo com o
coração batendo pela metade até que, finalmente, a
reencontrei e ela o devolveu, intacto, para mim o pedaço
que havia guardado. Eu estava a ponto de lhe dar motivos
para arrancar meu coração do peito completamente e de
forma definitiva.
Entro no hospital pisando duro, distraído, sendo
consumido pela culpa. Não respondo ao bom-dia da
recepcionista, muito menos dou importância para suas
perguntas ou meus recados; caminho direto até minha sala,
girando a maçaneta rapidamente, desejando apenas me
esconder e pensar. Pensar em que porra farei agora. No
entanto, a sorte não está ao meu favor, assim que entro na
sala e bato a porta, levanto o olhar e encontro um par de
olhos me encarando de volta, eles não estão felizes.
Augusto tem os braços cruzados e uma expressão
extremamente furiosa no rosto, ele gira na minha cadeira e
espera, mas não tenho nada para lhe dizer. Nada que não o
faça me matar antes que eu sequer conclua a frase. Ele não
tem muita paciência e, instantes depois, quebra o silêncio,
inclinando-se sobre a minha mesa, cruzando ambas as
mãos acima dela.
— Eu devo socar a sua cara primeiro ou perguntar
onde você dormiu? — pergunta, me fulminando com o
olhar, um olhar mortal e irritadiço. — Porque eu sei que
aqui você não estava.
Minha boca fica seca e meus olhos ardem.
— Fala, porra!
Não consigo, ao invés disso, caio no choro.
— Puta merda, Ian, o que você fez? — pergunta,
empurrando a mesa e afastando a cadeira para trás. Ele se
levanta e caminha em minha direção de forma preocupada,
mas sem abandonar a suspeita e a ira. — Não vou
perguntar de novo, o que você fez? — grita, me
empurrando com apenas uma das mãos.
Enfio a mão dentro do bolso traseiro da calça e lhe
estendo meu celular.
— Olhe as fotos — ordeno, com a voz embargada.
Ele o pega da minha mão brutalmente com um puxão.
Augusto se prostra na minha frente, pernas afastadas e um
olhar incrédulo, que vai de mim até o aparelho em suas
mãos. Agora parece em dúvida se realmente quer saber o
que estou escondendo. Quando ele decide fazer o que
mandei e começa a apertar algumas teclas para acessar a
galeria de fotos, eu fecho os olhos e choro com mais
intensidade.
Contar para meu melhor amigo, o irmão da minha
mulher, é o começo do meu fim. Posso adicioná-lo à lista
do que é importante na minha vida e que também vou
perder. Ele jamais vai conseguir me perdoar, assim como
ela. Quando a primeira foto se abre e seus olhos se
arregalam, fecho os meus mais uma vez. Me sinto tonto e
perdido, meus ombros tremem violentamente. Sei que
chorar não vai resolver nada, mas não consigo me
controlar.
— Ian — chama em uma voz dura, fazendo com que
eu levante a cabeça.
Não tenho tempo de reagir quando sua mão aberta
acerta meu rosto. Eu já esperava por isso, continuo com as
mãos caídas ao lado do corpo e volto a fechar os olhos,
esperando por mais. Ele não vai parar em apenas um tapa
e, secretamente, quero que ele bata. Eu mereço.
— Esse foi pra você parar de chorar que nem uma
bicha. Vê se se controla!
Abro meus olhos, surpreso. Seu tom de voz deixou de
ser irritado para se tornar perplexo.
— Augusto, eu não... eu não queria... eu não me
lembro de nada!
Um tapa não foi o suficiente para que eu conseguisse
controlar minhas emoções. Ele suspira, irritado, e me dá
as costas. Passa as mãos pelo rosto e o esconde por
alguns segundos, antes de se virar novamente em minha
direção.
— Por que você não está socando a minha cara?
— Você comprou seu diploma, seu inútil de merda?
Ele agarra a gola da minha camiseta e me puxa em sua
direção, olhando dentro dos meus olhos de perto, depois
me arrasta até a maca no canto da sala, me jogando sobre
ela com força.
— O quê? — pergunto, confuso.
— Você está tonto e nauseado, certo?
Assinto, ainda sem entender.
— Suas pupilas estão dilatadas. O que ela deu para
você beber?
Ameaço responder, mas ainda não entendo aonde ele
quer chegar.
— Ela te drogou, seu animal estúpido. Sua mãe nunca
te disse para não aceitar nada de estranhos?
— Claro que não. — Ela não teria coragem, teria? —
Eu bebi... — Mas não ao ponto de ter amnésia. Claro que
aquela puta teria coragem! — Eu não bebi tanto assim,
Augusto, não bebi — constato, alarmado.
— Só vê se cala essa maldita boca — cospe, irritado.
Ele caminha até o telefone na minha mesa e o tira do
gancho. — Nina, pede para alguém me trazer um kit de
coleta de sangue para a sala do Ian.
Ele escuta o que ela fala e franze os lábios em
desagrado.
— Agora, Nina, não daqui a pouco, agora —
vocifera ao telefone e depois o bate com força. Depois ele
se questiona por que todas as funcionárias e enfermeiras
amaram se vingar dele com agulhas e comida ruim quando
ficou internado.
— O que eu faço agora, Monstro? — Me sento na
cama e enterro o rosto nas mãos, desolado.
— Neste momento? Você cala a sua boca, como eu
mandei! — Suspira e o escuto se jogar na minha cadeira.
— Porque estou me controlando pra caralho pra não te
matar!
— O que te impede? — pergunto, levantando o rosto
para olhá-lo.
Augusto parece surpreso com a minha pergunta e fica
em dúvida se vai ou não respondê-la, mas ele fala.
— Eu conheço você — murmura, desviando o olhar.
— Conheço seu caráter.
— Eu não tenho caráter! — grito. — Você não viu
aquelas fotos, porra?
— Você não teria feito aquilo se não estivesse
chapado. — Ele parece firme em sua opinião e nada feliz
de ter que rasgar seda para mim, palavras de afeto nunca
fizeram seu estilo. — Você não magoaria minha irmã.
Estou a ponto de lhe dizer que já magoei, ela apenas
ainda não sabe disso, quando batem na porta, ele se
levanta e caminha até ela, abrindo-a.
— Cancele todas as consultas do doutor Vitorazzi. —
Sem nem mesmo lhe agradecer, ele ameaça fechar a porta,
mas pensa melhor e volta a abri-la. — Cancele as minhas
também, não atendo, nem opero ninguém hoje.
— Mas doutor...
— Mas, nada, Nina. A menos que um dos meus
pacientes esteja tão próximo da morte que tenha uma
etiqueta no dedão do pé ou já esteja dentro de um saco,
você não me viu hoje! — Ele a corta, fechando a porta
definitivamente em seu rosto e caminhando em minha
direção.
Ele não me olha ao colocar as luvas, abrir e preparar
o kit. Monstro, com toda sua delicadeza, me espeta quatro
vezes antes de achar uma veia.
— É para me torturar, ou você não sabe mesmo pegar
uma maldita veia? — resmungo, enquanto ele tira meu
sangue.
— Eu tenho cara de enfermeiro, porra? Cada um com
seu trabalho! — Ele balança o vidrinho e sai da sala
apressado, me deixando sozinho com meus pensamentos.
— Vem, capacho, você precisa comer — resmunga,
colocando a cabeça pela porta aberta da sala minutos
depois. Eu me levanto e o sigo até a cafeteria.
— Não estou com fome. — Como poderia estar?
— Não perguntei se você quer comer, só disse que
precisa e, se for necessário, eu posso te obrigar! —
resmunga, fazendo o pedido por mim.
Enquanto aguardamos, uma das médicas da pediatria
se prostra ao nosso lado, esperando pelo atendente, que
não demora em vir em sua direção.
— Pois não, doutora? — pergunta, solícito.
— Um suco de laranja e ele, por favor — pede,
apontando para Augusto com um dedo.
Ele se vira em sua direção ultrajado, lançando-lhe um
olhar feroz antes de apanhar nossa bandeja do balcão e
lhe dar as costas.
— Oferecida — murmura, alto o suficiente para fazê-
la corar.
— Você já ficou com ela, se bem me lembro —
comento, seguindo-o de perto.
— Ian, se não lembro, não fiz — afirma, sentando à
mesa e empurrando a bandeja para mim. — O mesmo
serve para você!
— Como pode dizer isso? — Passo a mão pelo rosto
e cubro a boca com ela, fazendo uma força descomunal
para que nenhuma lágrima pingue no meu café. — Você
tem noção do que isso vai fazer com a Bá?
— Ela não vai saber. — Notando minha expressão de
escárnio, ele completa: — Você não vai contar.
— Não posso fazer isso, ela tem o direito de saber.
— Eu já havia pensado muito e decidido que ela não
merecia outra coisa de mim, a não ser a verdade.
— Eu te proíbo de machucar o coraçãozinho da minha
irmã, está ouvindo? — Ele se inclina sobre a mesa
ameaçadoramente. — Você estava drogado, não respondia
pelas suas ações. Fim de papo. — Ele respira fundo. —
Agora eu, sim, quero saber. Pode desembuchar.
Então, lhe conto tudo. Do momento em que Camila
apareceu no consultório até o bilhete abandonado sobre o
colchão. Ele não pede por detalhes extremos, e eu também
não falo. Realmente não preciso lhe dar um empurrão para
passar com seu carro por cima de mim.
— Aquela ordinária! — murmura ferozmente em voz
alta, fazendo com que mais de uma pessoa se vire em
nossa direção. — O Gustavo precisa saber disso, Ian. Ele
não pode se casar com ela. Enquanto eu viver, aquele
moleque não vai se unir a uma prostituta barata, nem que
eu mesmo precise arrastá-lo daquele altar.
— Eu sei.
Mas, se o Gustavo soubesse, não poderíamos
esconder da Bá, chegaria nela de uma maneira ou de
outra, e Monstro parece chegar à mesma conclusão que eu.
— Puta que pariu. Vou ter escolher qual dos meus
irmãos machucar, não é? — Ele apoia o cotovelo na mesa
e passa as mãos pelo cabelo apreensivamente.
— Se pensar bem, não faz diferença. Se contarmos
para qualquer um dos dois, a primeira coisa que eles vão
fazer é procurar o outro. Então, prefiro contar para minha
mulher primeiro, não quero que ela saiba pelo irmão ou
qualquer outra pessoa — lamento.
— Não vamos contar para nenhum dos dois —
contra-argumenta Monstro, com ar pensativo. — Primeiro,
vamos esperar o resultado do seu exame e aí a gente pensa
no que fazer.
— Como vou olhar pra ela quando chegar em casa,
Augusto? — pergunto, apavorado só de pensar nisso.
— Ian, não podemos dar bobeira. Se fizer as coisas
com pressa, Camila pode reverter a situação a favor dela.
Já pensou se a Babi resolve enfrentá-la e ela lhe disser
que foi você quem a procurou? Que dormiu com ela
porque quis? Ela pode fazer tanto a Babi quanto o
Gustavo se voltarem contra você, se for inteligente. — Ele
balança a cabeça negativamente em uma careta torturada.
— Antes de mais nada, precisamos de provas contra
aquela vadia.
— Tudo bem, você tem razão. Mas não estou
convencido de que um exame será suficiente para que
Bárbara acredite em mim.
— Pode ser que não, mas Gustavo vai acreditar. —
Então, respira fundo. — Ele já está triste o suficiente,
duvido que outra bomba o surpreenda.
— Outra bomba? — pergunto, franzindo as
sobrancelhas. — O que mais aconteceu?
— Marcela aconteceu — suspira. — Ela finalmente
contou para ele por que vive fugindo.
Eu aguardo que ele me conte, mas levo um baque
quando o faz.
— O filho dela era do Gustavo, o menininho que
morreu era nosso sobrinho.
Os olhos dele estão marejando, ou eu ainda estou
alucinando?
— Acredita que o idiota bebeu uma noite, dormiu
com a menina e nunca se lembrou? Que tipo de cretino faz
isso?
Ergo as sobrancelhas de modo questionador, estou na
frente de um deles, mas ele me ignora, dando de ombros.
— Porra, que merda! — É tudo o que digo, e ele
concorda com um aceno afirmativo. — Como ele está?
— Péssimo, e eu não fiz nada para ajudar. Em vez de
consolar, sugeri que procurasse Marcela e a desculpasse.
— Ele dá de ombros, parece arrependido e conformado.
Posso bem imaginar como ele “sugeriu” ao irmão alguma
coisa. — Ele ia desistir do casamento para ficar com a
garota, e ela dá um fora desses. É pra foder mesmo, né?
— Então, Bárbara realmente conseguiu o que queria,
juntar novamente os dois reascendeu o amor deles. — Por
que não confiei no julgamento dela? Bárbara pode ter
metido os pés pelas mãos, mas estava certa o tempo todo.
— O problema é que nem ela e nem ninguém sabia o
quanto era fundo o buraco que aqueles dois cavaram no
passado. Babi está se sentindo culpada.
Posso imaginar. Provavelmente, ela deve estar
pensando o mesmo que eu, por que não me ouviu?
— Eu vou para casa, Monstro.
Me levanto, e ele faz o mesmo.
— Eu vou com você. — Eu o encaro, surpreso, e ele
emenda: — Vou ficar de olho para ter certeza de que não
vai foder com tudo.
***
Quando chegamos em casa, Nicholas acaba distraindo
Augusto.
— Papai, me leva no paque? — Bastou um singelo
pedido para que eu fosse esquecido.
Augusto me deu uma olhada firme que exigia silêncio,
antes de beijar Anna e sair com Nick pela porta todo feliz.
Ele era um ótimo pai, como eu bem sabia que seria.
Somente eu havia acreditado nele, e hoje ele fez o mesmo
por mim, ficando ao meu lado antes mesmo de me fazer
perguntas. Ele nunca poderia imaginar o quanto eu era
grato.
Caminho até minha casa e encontro Tina dormindo no
sofá, fico admirando minha princesa por alguns minutos
com lágrimas se formando no canto dos olhos. Lutei tanto
para tê-la para mim, não era justo perdê-la. Pisco para
afastar as lágrimas e subo as escadas, quando abro a porta
do quarto, encontro Bárbara sentada na nossa cama,
distraída com o celular; assim que me vê, joga-o para
longe. Por um momento, fico com medo do que quer que
seja que ela estivesse olhando, mas o sorriso que ela abre
me diz que ela ainda não faz ideia do que aconteceu.
Só então noto que ela não veste nada além de uma
lingerie.
Capítulo 45 - Gustavo

“Não foi o fato de teres mentido, mas


o de não poder crer em ti, que me
abalou profundamente.”
Nietzche
O sonho de uma vida

Marcela se levanta e fica de joelhos sobre a cama,


fazendo meus olhos se arregalarem e minha boca secar.
Em questão de milésimos de segundos, deixo de me sentir
maravilhado para me sentir extremamente nervoso, como
se nunca tivesse ido para a cama com uma mulher antes.
Nem ao menos consigo distinguir todos os sentimentos que
me invadem quando ela agarra a bainha da camiseta e a
puxa sobre a cabeça, revelando um par de seios grandes e
expressivos, mas sei que o desejo está no topo da lista.
Ela coloca as mechas soltas de cabelo atrás das
orelhas e agarra minhas mãos, levando até seu corpo,
então eu levanto a cabeça e a encaro, com as mãos em
seus seios e as suas as cobrindo, sem reação. Marcela
pisca e sorri, mordendo a bochecha, cheia de vergonha e
expectativa.
Preciso tomar uma decisão rapidamente. Ser fiel à
noiva que descobri não amar e correr o risco de perder
para sempre a chance de ter em meus braços a mulher que
realmente amo, ou fazer algo errado em nome desse amor.
Não preciso nem mesmo pensar para me jogar de
cabeça dentro do sonho de uma vida. Sonhei com aquele
momento muitas vezes. Eu a quis muitas vezes. Me
incomodava ser infiel, mas imagino que doeria muito mais
ser desleal a mim mesmo. Eu merecia aquele momento.
Nós dois merecíamos.
Em um movimento instintivo, minhas mãos se fecham
em seus seios macios em um aperto firme, e ela joga a
cabeça para trás, entreabrindo os lábios, seus cabelos
voam e eu avanço. Passo uma das mãos por sua cintura e a
pouso no meio de suas costas; com a outra, agarro seus
cabelos cor de fogo e a deito na cama, pairando acima
dela, apoiando meu peso em um dos cotovelos. Então, a
beijo.
No começo, é apenas um encostar de lábios. Uma.
Duas. Três vezes. Quando me canso de esperar, minha
língua desliza pela fenda de seus lábios e se une à sua em
um beijo urgente, carente e obsessivo. Minhas mãos se
movem e se fixam em suas omoplatas, eu as desço por
suas curvas, tocando todas as partes de seu corpo até
chegar nas laterais de seu quadril.
— Fecha a cortina, Gus — Marcela murmura,
voltando a morder a bochecha.
Ergo minhas sobrancelhas, e ela vira o rosto em
direção à janela, parecendo desconfortável.
— Não — nego, puxando sua calcinha gentilmente,
até tê-la em minhas mãos por completo. — Eu quero olhar
para você.
— Não estará perdendo nada se não olhar. —
Suspira. — Não sou tão gostosa quanto ela. — Marcela
dá de ombros, como se sua afirmação não fosse séria. —
Você me viu de biquíni, então sabe do que estou falando.
Não respondo, apenas movo minhas mãos para seu
bumbum e ergo seu corpo de encontro ao meu, me
sentando e encaixando-a entre as minhas pernas. Beijo seu
pescoço lentamente, descendo meus lábios até seus
ombros e, por fim, até seus mamilos rosados, onde me
demoro por mais tempo. Depois, refaço todo o caminho,
até que meus lábios estejam próximos ao seu ouvido.
— Não há, no mundo, uma mulher que seja mais linda
do que você.
Minha afirmação sincera é o suficiente para que
Marcela pisque, surpresa, e abra um sorriso tímido,
porém sincero. Ela se move e sai de baixo de mim,
pulando para fora da cama e me estendendo uma mão.
Quando a pego, ela me puxa e agarra minha camiseta com
ambas as mãos, puxando-a para cima ferozmente e com
rapidez. Depois, passa para o botão da minha calça jeans.
Quando estamos completamente despidos, nos
olhamos por um longo tempo sem nos tocarmos. Apenas
ficamos um de frente para o outro, parados, imóveis,
presos dentro de um olhar que quer dizer muitas coisas.
Me perdoa. Senti saudade. Sempre esperei por esse
momento. Não me abandona. Isso é tudo o que o meu
olhar diz. Antes que eu possa decifrar o dela, Marcela
suspira apaixonadamente e estende as mãos, buscando as
minhas, terminando de derrubar todas minhas defesas.
Encurto nossa distância com um passo, pegando-a no
colo. Suas pernas se firmam em um aperto em volta da
minha cintura e minhas mãos apertam com força suas
coxas. Em vez de levá-la de volta para a cama, caminho
até uma parede, encostando seu corpo a ela, enquanto
encaixo nossos quadris perfeitamente.
— Espero que ache aranhas fofinhas, porque eu amo
você.
A primeira parte não faz sentido nenhum para mim,
mas a segunda, sim. Ouvir aquelas três palavras aquece
meu coração e me faz transbordar de deslumbramento.
— Você é o meu sonho de uma vida — sussurro
roucamente, apertando-a com mais força —, e eu amo
você — é o que digo ao deslizar para dentro dela com
lentidão, sentindo-a, tornando-a minha como deveria ter
acontecido na primeira vez. — Não quero me esquecer de
nenhuma detalhe deste dia.
Marcela geme baixinho, e nossas bocas voltam a se
encontrar, nos unindo por completo, um ao outro.
Nunca havia me sentido tão feliz por poder,
finalmente, vislumbrar um futuro com a minha Branca de
Neve. Acordo e, ainda grogue de sono, tateio a cama com
medo de não encontrá-la, de ter apenas sonhado com seu
corpo, seus beijos, suas carícias e gemidos, e respiro
aliviado quando a escuto ressonar. Puxo-a de encontro ao
meu corpo e me aninho a ela, encostando meu nariz em
seus cabelos. Quero que o aroma adocicado de limão seja
minha última lembrança antes de adormecer outra vez.
Mas não importa o quanto tente, não consigo deixar que o
cansaço e a felicidade me vençam.
Não consigo parar de pensar que ainda existe uma
barreira entre nós dois e, enquanto eu não derrubá-la,
minha consciência não vai se aquietar. Decido não
acordar Marcela; se tudo correr bem, devo voltar antes
que a madrugada chegue. Me levanto e começo a procurar
minhas roupas, enquanto o sol se esconde no horizonte.
Paro por um momento e contemplo o pôr do sol,
depois volto o olhar para a mulher adormecida sobre os
lençóis, acreditando, do fundo do coração, que tinha meu
final feliz diante de mim.
A ilusão não durou muito tempo.
Ela terminou assim que me abaixei para procurar
minha camiseta, que havia sido empurrada por um de nós
dois para debaixo da cama e, ao invés dela, encontrei uma
pasta. Puxei o pedaço fino de papelão e ameacei descartá-
lo, jamais tocaria nos registros de um dos seus casos sem
permissão, mas, antes que eu pudesse soltá-la, o nome
gravado na etiqueta chamou minha atenção: Bárbara.
Era irracional da minha parte pensar que se tratava da
minha irmã, porém, a ideia me alfinetou com tanta
intensidade, que se tornou impossível resistir à ânsia de
conferir. Não sei exatamente o que me levou a abrir
aquela pasta, mas me arrependi no momento em que o fiz.
Me sentei ao pé da cama e olhei para o material em
minhas mãos. Fotos da Camila saindo do nosso prédio.
Fotos dela indo trabalhar. Fotos dela com um homem em
um restaurante. Uma série de e-mails trocados. Mal posso
aguentar o sentimento de desgosto quando reconheço o
endereço de e-mail de Gael e sua fisionomia nas imagens.
Meu chefe, meu amigo. Aquilo é absurdamente errado e
insensível. Enquanto eu imaginava que Camila estivesse
com seus pais no fim do ano, ela estava tendo um caso.
Por que eu não estava surpreso?
Infelizmente, não encontrei apenas as provas de que
minha noiva não valia nada. Se fosse assim, teria
arrumado os papéis e devolvido a pasta ao lugar onde a
encontrei com um puta sorriso no rosto. Toda sua falta de
caráter era o remédio para a sensação de deslealdade que
eu vinha sentindo por não amá-la. Além disso, também
encontrei fotos minhas e da Marcela. Fotos ousadas, que
eu não me lembro de ter tirado, muito menos de ter dado
permissão para que ela as tirasse. Mas me lembro da
roupa e sei exatamente quando aconteceu.
Ela se aproveitou do meu porre para me trair.
Misturado a tudo isso, encontrei mais de um relatório
do meu caso. Os passos da Camila, os meus passos, a
proposta que minha irmã havia feito a ela sublinhada duas
vezes por uma caneta cor-de-rosa. Todos os nossos
primeiros encontros transcritos. Ela me seguiu, me
observou e se aproveitou do que eu sentia por ela sem
pudor algum.
Marcela havia se vendido para alguém que tinha a
obrigação de me proteger e apenas me magoou. Marcela
havia me vendido. Trocou meu amor por um punhado de
notas, me mostrando exatamente qual era o valor
rabiscado no fim da página. Eu não valia muito.
Joguei a pasta longe, me levantando, ambas as mãos
na cabeça, sem conseguir acreditar no quanto aquela
mentira era absurda. No quanto ela doía. Avistei seu
computador sobre uma cadeira parcialmente encoberto
por peças de roupas, caminhei até ela e o peguei nas
mãos, abrindo-o e o apoiando em cima da mesa que ficava
na lateral do quarto. Me sentei e esperei a tela carregar.
Em uma página minimizada, encontrei o e-mail da Camila
aberto. Passei os olhos pelos e-mails sem saber o que
procurava, provavelmente eu estava apenas tentando
absorver o quanto Marcela era boa em seu trabalho, e no
quanto havia me machucado, quando algo chamou minha
atenção.
Camila havia mandado dois e-mails para ela mesma
naquela manhã. Eu os abri. Em um deles, havia um vídeo
que demorou a carregar, enquanto eu esperava, abri o
outro. Meus olhos se encheram de lágrimas assim que a
primeira foto estampou a tela. Ela foi suficiente para que
eu abandonasse todas as outras evidências. Conectei o
cabo da impressora no notebook quando a primeira
lágrima rolou e imprimi a foto.
Se eu chorava por mim? Não. Saber que Marcela me
usou e depois me traiu me deixou em um torpor de
descrença. Naquele momento, eu chorava por outra
pessoa.
— Gus, tudo bem? — pergunta Marcela, se apoiando
nos cotovelos com cara de sono. Ela pisca repetidas vezes
e tenta focar seu olhar no meu rosto. Fecho o notebook e
me levanto, apanhando o papel na bandeja da impressora
e a pasta, antes de caminhar até a cama e parar ao seu
lado. — O que aconteceu?
— Isso aconteceu. — Jogo a pasta em cima dela,
fazendo-a se abrir em seu colo.
Ela encarou os papéis que deslizam pelos lençóis até
o chão com o queixo caído e um olhar assustado.
— Eu posso explicar. — Ela ameaça se levantar, mas
se inibe quando dou um passo para trás, me afastando
dela. — Gus, por favor, não é o que está pensando. —
Seus olhos ficam rasos de água. — Eu juro.
— Se eu soubesse que você estava à venda por tão
pouco, eu mesmo teria pago, Marcela. — Ela se
surpreende com as palavras duras e meu tom gelado, mas
ainda não terminei. — Teria pago muito tempo atrás.
— Eu não sou uma vagabunda para estar à venda —
ela grita, ofendida, se empertigando, quando lhe dou as
costas.
— Minha irmã te pagou para dormir comigo. Te
pagou para me seduzir e acabar com o meu casamento.
Você não apenas se vendeu: você me vendeu — grito,
fazendo-a se encolher. — Como pude confiar em você?
Você já me tirou tanto, enquanto eu nunca parei de te dar
tudo, o melhor de mim, a propósito.
— Gus, eu te amo, pelo amor de Deus, me escuta —
implora, ficando de joelhos.
Balanço a cabeça em uma negativa, completamente
decepcionado.
— Isso não é amor, Marcela — faço um aceno para as
folhas dispersas —, mas o que senti por você era. Você
nunca mereceu esse sentimento. Nunca parou de me
abandonar e de me magoar, mas agora chega.
— O que isso quer dizer? — pergunta, com um par de
lágrimas escorrendo por sua bochecha.
Acaba comigo vê-la nua, de joelhos sobre a cama
onde dormimos abraçados, chorando e mentindo.
— Eu mereço uma mulher de caráter — dou de
ombros, franzindo o cenho —, o que, obviamente,
nenhuma de vocês duas tem. — Aponto novamente para os
papéis e fecho os olhos com pesar para evitar as lágrimas.
Não vou chorar mais por ela, nunca mais.
Dou-lhe as costas pela última vez e saio pela porta,
segurando firmemente a foto impressa. Disparo pela
escadaria e não paro ao chegar à rua, continuo em frente
por uma quadra, depois outra e mais uma. Não paro de
correr. Sentir o vento açoitando meu rosto e minhas pernas
ágeis me levando para longe é o suficiente para que eu
consiga pensar com clareza.
Tudo o que vejo é Camila montada em Ian. O rosto
dele virado parcialmente para a cabeceira da cama, e o
dela para a câmera. Os dois nus, e o sorriso vitorioso e
ensandecido da minha noiva. Seus cabelos bagunçados e
suas mãos guiando as dele por seu corpo. Diante daquela
imagem arrasadora, outra chega à minha consciência: o
olhar decepcionado da minha irmã quando eu lhe contar
Meus olhos ainda ardem, e a culpada é Bárbara. O
que sinto por ela é um misto de raiva e amor que me
enlouquece. Mas não importa o que ela tenha feito ou pelo
o que é culpada, vou protegê-la até o instante em que meu
coração parar de bater, talvez até depois disso. Descobrir
que Ian tinha sido desleal com a minha irmã, implodiu
tudo.
Ele ia pagar por cada uma das lágrimas que eu
arrancaria dela.
Capítulo 46 - Ian

“A magia do primeiro amor está em se ignorar que


pode acabar um dia.”
Benjamin Disraeli

Toda falta de verdade também é uma


mentira, mas com uma roupa mais bonita

— Oi — diz Bárbara, tímida de repente, se


levantando.
— Oi — respondo, dando-lhe as costas e entrando no
banheiro para fugir de seu olhar culpado e desolado.
Machuca ver minha mulher me esperando em casa,
apenas de calcinha, uma atitude que claramente significa
que ela quer fazer as pazes.
Não posso tocar nela. Se tocasse, jamais me
perdoaria.
— Amor, precisamos conversar. — Ela vem atrás de
mim e me puxa pelo braço, eu me viro em sua direção, e
ela joga seus braços em volta do meu pescoço, levantando
a cabeça para me encarar. — Por que seus olhos estão
vermelhos? — pergunta, franzindo o cenho.
— Não é nada, só estou cansado, podemos conversar
depois? — pergunto em um fio de voz.
Seus olhos se estreitam e ela não me solta, ao invés
disso, gruda sua boca na minha afoitamente, como se um
beijo pudesse consertar alguma coisa. Uma briga, sim; o
filha da puta que eu havia me tornado, claramente não. Eu
poderia chorar, mas tudo o que faço é empurrá-la com
delicadeza para longe.
— Ian, por favor, me desculpa — implora, com os
olhos se enchendo de água.
Eu não vou aguentar, não vou. Não suporto vê-la
chorar e implorar, quando quem deveria estar fazendo isso
era eu.
— Esquece, Bárbara, só me deixa em paz, ok? —
Novamente lhe dou as costas, e ela me puxa, mas, dessa
vez, não me viro, muito menos a encaro.
— O que aconteceu? — sussurra, mortificada. Não
sou bom em esconder as coisas dela. — Amor, olha pra
mim — pede, com desespero. Eu obedeço e,
imediatamente, ela nota que meus olhos estão iguais aos
seus, rasos de água. — Ian, o que aconteceu? — repete,
espalmando as mãos no meu peito com cuidado. Suas
mãos sobem e param no meu rosto, me fazendo fechar os
olhos para saborear a ternura do seu toque pela última
vez.
Já sinto saudade dele.
— Não consigo — sussurro, arrasado. — Não
consigo ficar aqui.
Seguro seus ombros com força e a afasto do caminho,
passando por ela em direção ao guarda-roupa. Abro as
portas, retiro uma mala do maleiro e jogo algumas roupas
a esmo dentro dela, fechando a porta antes que ela consiga
sair do torpor em que se encontra e reagir.
— O que está fazendo? — Ela para ao meu lado e
segura a alça da mala. Posso ouvir seus soluços e encosto
a cabeça na madeira, de forma torturada. — Aonde você
vai, Ian?
— Embora, amor, eu vou embora — sussurro, me
segurando para não me jogar aos seus pés e lhe revelar a
verdade. Mas penso em Augusto, ele tem razão. Se eu
contar agora, Camila pode manipular Gustavo a seu favor,
e meu cunhado, meu amigo, vai acabar preso a ela sem se
dar conta de seu erro antes que seja tarde demais.
— Ian, não faz isso — ela funga, fazendo com que eu
me odeie de verdade por ter procurado Camila. Onde eu
estava com a cabeça, porra? — Vamos conversar, por
favor.
— Não temos mais nada para conversar. — Passo por
ela e caminho para a porta. Antes que eu passe por ela,
não resisto em me torturar mais um pouco e olho para
Bárbara. Ela está de costas, com o rosto escondido nas
palmas das mãos, seus ombros tremem violentamente e
seus soluços chegam a fazê-la se engasgar. — Eu não
mereço você.
Desço as escadas correndo, se eu não for rápido o
bastante, vou mudar de ideia. Tudo o que menos quero na
vida é deixá-la, mas não vejo outra opção. Mal consigo
olhá-la nos olhos, como vou ficar? Eu nunca teria coragem
de beijar, abraçar ou tocar na minha mulher sabendo que a
traí. Porque é exatamente assim que vejo a situação. Não
importa o que dirá o resultado do exame, eu traí sua
confiança antes de me deitar com outra mulher, eu a traí no
exato momento em que não saí correndo do consultório e
lhe contei a verdade antes de aquela história virar um
problema real.
— Papai — chama Tina, com a voz sonolenta.
Estaco no lugar, próximo à porta da garagem, e olho
para o sofá. Ela se sentou rapidamente e tem o cobertor
preferido nas mãos. Ela olha de mim para a mala e
arregala os olhinhos azuis. Meu coração se parte naquele
momento.
— Vai viajar? — pergunta, desconfiada.
— Ian — grita Bárbara, descendo as escadas
correndo. — Ian, por favor, não vai.
— O que está acontecendo aqui? — berra Monstro,
alarmado, passando pela porta da cozinha. Ele chega até
Bárbara e a agarra pela cintura para fazê-la parar.
— Me solta. — Ela tenta se debater, mas ele a aperta
mais. Quando se dá por vencida, deita a cabeça no peito
do irmão. — Não deixe-o ir embora, Augusto, não deixe
— implora.
Ele passa as mãos por seus cabelos e me olha com um
olhar assassino, o que quer dizer que estou fodido por não
ter lhe dado ouvidos.
— Você vai embora, papai? — pergunta Tina,
jogando o cobertor longe e pulando do sofá.
Ela não está muito melhor do que a mãe. Me agacho e
abro os braços no exato momento em que ela se joga em
cima de mim, gritando que não posso ir a parte alguma
sem levá-la junto. É o suficiente para que eu volte a
chorar com força total. Sempre mantenho a calma e a
compostura na frente da Valentina porque tenho
consciência de que ela me enaltece como a um herói, mas
eu havia me afastado muito do heroísmo naquele dia.
— Por que você tá chorando, papai? — pergunta,
soluçando, jogando suas mãozinhas em volta do meu
pescoço em um aperto firme e desesperado.
— Eu te amo, filha, amo você, seu irmão e a mamãe
mais do que tudo — murmuro, aparando sua cabeça e
encostando o nariz em seus cachinhos claros que
cheiravam a bebê e balas. — Mas tenho que ir embora por
alguns dias. — Eu poderia ter mentido para ela, ter dito
que precisaria viajar a trabalho, como ela perguntou, mas
eu já estava farto de mentiras.
— Não, papai — Balança a cabeça negativamente,
fungando —, você não pode.
— Valentina, sobe para o seu quarto — ruge alguém
de modo firme.
Todos nós viramos para olhar para o dono da voz,
incluindo minha filha, que está com uma expressão
surpresa por ele nunca ter falado com ela daquele modo.
Gustavo está na porta da cozinha americana, com os
punhos cerrados e os olhos fixos no meu olhar. Não vejo
nada de bom dentro deles.
— Obedeça seu tio, princesa — tento ser firme
porque, pelo olhar do Gustavo, fica claro que ele já sabe
de tudo e, definitivamente, não quero que minha filha veja
o que acontecerá em seguida.
Como eu sabia que faria, ela acata minha ordem por
conhecer bem os meus diferentes timbres de voz. Beija
meu rosto e o enxuga com as mãozinhas pequeninas, então
eu a coloco no chão e ela dispara pela sala, sumindo pela
porta aberta da cozinha, sem olhar para trás.
Sinto dentro de mim o quanto ela está assustada e sei
que está correndo em busca de outra mãozinha, uma que
mora na casa ao lado. Me enche de ciúme saber que Nick
é seu porto seguro, ela é muito nova para ter um. Mas sei,
tão bem quanto o resto de nós, que o amor não escolhe o
melhor momento da vida para aparecer.
Gustavo está cego. Ele não vê nada à sua frente
enquanto encurta nossa distância. Não me movo, mal
respiro, apenas me preparo para o que ele fará em
seguida. Seu soco acerta minha mandíbula.
— Gustavo — gritam Bárbara e Augusto em coro.
Mais um soco e, provavelmente, ganho um olho roxo;
no terceiro, levo as mãos aos lábios e as encaro, vendo
meu sangue. Não vou detê-lo.
— Gustavo, para — grita Bárbara, furiosamente.
Monstro parece em dúvida se me ajuda ou não,
porque, para isso, terá que soltá-la, e nada de bom vai
acontecer se ela chegar até nós. Mas ele opta por vir me
defender e tira seu irmão de cima de mim, agarrando seu
braço antes que ele fosse arremessado em minha direção
mais uma vez.
— Seu filho de uma puta, desgraçado — urra, sendo
puxado para longe.
Fecho os olhos ao sentir as mãos da Bárbara no meu
rosto e dou um passo para trás, ela mal percebe a
rejeição, pois já está indo em direção ao irmão, de punhos
erguidos, para defender um homem que não merece defesa
alguma.
— Que merda deu em você, moleque estúpido? —
cospe Bárbara.
Monstro se vira, ainda segurando firme o braço de
Gustavo, e se prostra entre os dois.
— Me solta, Augusto — ele urra, puxando o braço e
se libertando do aperto.
Antes que ele possa vir em minha direção, minha
esposa contorna Augusto e coloca ambas as mãos em seu
rosto contorcido de raiva.
— Mala, o que está acontecendo? — Ela não parece
mais furiosa e sim, com medo, sabe tão bem quanto nós
que ele não agiria assim facilmente. Quando ele não
responde, ela se vira para mim. — Amor? — me chama,
em tom de pergunta, enquanto abaixo a cabeça.
— Não chama ele assim, porra — Gustavo se exalta
mais e, pela primeira vez, vejo Monstro sem saber como
agir.
— Não vou perguntar de novo, o que está
acontecendo aqui? — Os lábios de Bárbara começam a
tremer. — Vocês ficaram malucos, todos vocês? — Então,
ela irrompe em prantos, procurando os braços do Augusto,
um lugar onde ela sempre se sentia segura.
— Ele comeu a Camila. — Meu único desejo era que
um buraco se abrisse no chão e me sugasse para o meio do
nada. Para um lugar onde minha mulher não franzia o
cenho e ria diante da hipótese de uma traição por minha
parte. — Ele comeu a porra da minha noiva! — Gustavo
lhe estende um papel, e posso imaginar o que tem nele.
Quando os olhos dela recaem sobre a imagem, ela
desmorona visivelmente. Ameaço correr em sua direção,
mas Gustavo se prostra diante dela como um muro, e
estaco no lugar.
— Não foi isso o que aconteceu, Gustavo, caralho —
berra Augusto, segurando Bárbara pela cintura.
Ela parece ter perdido o chão e a fala. Está apática,
com os olhos ainda grudados na foto que tem nas mãos.
— A Camila armou para ele!
Dessa vez, quem ri em sinal de deboche é Gustavo.
— Não é o que parece.
Passo as mãos pelo rosto sem saber mais o que fazer.
Encaro minha mulher com o coração ameaçando sair pela
boca, minhas mãos suam e minha boca fica seca. Merda,
isso vai dar merda. Ninguém vai acreditar em mim.
Bárbara levanta o olhar. Seus olhos estão vermelhos e
perdidos. O choro cessou por ora. Ela caminha em minha
direção, Gustavo tenta impedi-la, mas ela o empurra e
para na minha frente, me estendendo a foto. Olho
rapidamente para o corpo de Camila em cima de mim e
abaixo a cabeça.
— Você... você... — Ela passa a língua pelos lábios
para umedecê-los, enquanto cria coragem para me
perguntar. — Você dormiu com ela, Ian? Era onde você
estava ontem? — Ela avalia minhas roupas por um
momento, reconhecendo-as da imagem, e arfa.
Eu apenas assinto, constrangido e culpado.
— Por que fez isso comigo? — Seu choro volta
lentamente, de forma muito mais dolorida. Quando as
lágrimas caem aos poucos é porque o machucado é mais
profundo. Estendo uma mão para enxugar seu rosto, mas
ela não permite, agarrando meu punho. — Por quê? —
Sua voz não passa de um sussurro mortificado.
— Você ainda quer uma explicação? — questiona
Gustavo, de maneira irritada.
Ele ameaça vir em minha direção novamente, mas
Augusto não permite.
— Ela tem que escutar, eles têm dois filhos, porra. —
Ele parece desesperado, tomado pela minha dor. Ele, tão
bem quanto eu, sabe que chegamos ao fim.
— Ela foi me procurar no consultório e me beijou
quando tentei colocá-la para fora.
Bá fecha os olhos e assente, esperando que eu
continue.
— Ela filmou a cena toda e tirou um print do vídeo
para me chantagear, então fui procurá-la, eu queria que ela
apagasse a foto. Minha outra opção era fazer o que ela
mandou, te tirar da vida do Gustavo...
Ela me corta.
— Você podia ter me contado a verdade — fala,
ainda sem conseguir me encarar.
— Eu tive medo. — Dou de ombros e Gustavo
balança a cabeça negativamente, como se não acreditasse
em nenhuma das minhas palavras. — Quando cheguei ao
apartamento deles, ela me manipulou, apagou a foto,
chorou, me fez ter pena dela e me deu uma cerveja.
— Aí, você viu o quanto ela é gostosa e não resistiu a
uma reprise — alfineta Gustavo, fazendo o choro da
minha mulher se intensificar.
Estou a ponto de devolver os socos que ele me deu,
mas ela me encara, à espera da resposta para a afirmação
que ele insinuou.
— Eu só lembro de beber a cerveja, amor, não
lembro de mais nada depois disso, eu sinto muito. —
Deus, como eu sentia. Nunca conseguiria me perdoar por
ter sido tão inocente.
— Você dormiu com ela, Ian? — volta a perguntar.
Um aceno não será suficiente, ela quer ouvir com todas as
letras. — Você transou com aquela mulher?
— Eu não lembro, eu...
Ela me corta.
— Responde a minha pergunta — grita, exaltando-se
pela primeira vez.
— Sim, eu transei com ela — assumo, escondendo o
rosto nas mãos, minhas lágrimas fazendo par com as suas.
— Quando acordei, tinha uma camisinha lá... — Não
preciso dizer que estava usada, ela entende. — Eu sinto
muito, amor — volto a repetir, mesmo sabendo que
palavra nenhuma no mundo será suficiente para consertar
seu coração machucado.
— Ele foi drogado — relembra Monstro. — Não
pode ser culpado...
Bárbara não deixa que ele termine.
— Isso realmente importa, Augusto? — pergunta,
tomada de dor. — Eu não consigo nem mesmo olhar para
você — sussurra em minha direção. — Não consigo te
olhar sabendo que você... — ela faz uma pausa. — Me
desculpa, Ian.
Se eu já não estivesse me sentindo o pior homem do
mundo, o fato de ela ter sentido a necessidade de se
desculpar fez isso. Bárbara não foi grosseira, nem
sarcástica, apenas sincera.
Estava doendo nela tanto quanto estava doendo em
mim.
Não era questão de acreditar se eu tinha culpa ou não.
Ela não suportava saber que toquei em outra mulher, e eu
entendia isso. Os motivos que me levaram até aquela
cama que não era a minha não importavam, o fato de eu ter
me deitado sobre ela é o que ela levaria em consideração.
— Bárbara, você não está vendo os fatos com
clareza, não jogue sua felicidade fora por causa de uma
armação — Augusto implora por mim.
— Eu? Uma mentira e uma cerveja fizeram isso por
mim — lamenta, enxugando o rosto ressentida. —
Gustavo, faz minha mala e pega o Zach para mim, e você
— aponta para Augusto —, vá buscar a Tina. Espero
vocês no carro.
— Você não precisa sair, Bá, eu saio.
Ergo a mala em minhas mãos, desejando tomá-la nos
braços. Mas não vou fazer isso, eu já machuquei o amor
da minha vida o bastante.
— Tudo aqui me lembra você. — Dá de ombros,
fungando.
Ela não me espera, simplesmente pega a bolsa em
cima do sofá e sai pela porta.
— O que eu faço, Ian? — Monstro me olha, com
pena, enquanto Gustavo já estava na metade das escadas
com a intenção de atender o pedido da irmã.
— Faz o que ela mandou.
Ele assente e vai até a sua casa, resignado, enquanto
eu caio de joelhos no chão, com o rosto enterrado nas
mãos. Não escuto Gustavo se aproximar, mas ele esbarra
a mala no meu braço ao passar por mim.
— Me perdoa, eu não queria te magoar, eu não queria
magoar nenhum de vocês dois.
— Acha que me importo com aquela mulher? —
pergunta, surpreso, fazendo com que eu erga a cabeça para
encontrar suas sobrancelhas erguidas. Ameaço levantar a
mão para encostar em Zach, adormecido em seus braços, e
Gustavo o afasta de mim. — Eu só me importo com a
mulher por quem ameacei desistir de um casamento, a
mesma mulher que tinha as fotos de você e Camila no
computador, e com a minha irmã, que foi impulsiva
quando a contratou. Bárbara não fazia ideia do quanto se
machucaria ao se intrometer na minha vida. Do quanto nos
machucaria.
Antes que eu possa responder, ele sai pela porta,
levando minha mulher, meus filhos e meu cachorro
embora.
— O que a gente faz agora? — pergunta Monstro,
reaparecendo na sala minutos mais tarde, me encontrando
ainda ajoelhado no chão.
Me arrasto até uma parede e me escoro nela, sentando
no chão.
— Obrigado por levar Valentina pelo seu portão, eu
não queria que ela me visse assim — agradeço.
— Bárbara também me mandou pegar a Vick.
Não era surpresa o fato de ela roubar minha gata. Eu
realmente ficara sem nada. Afundo outra vez o rosto nas
mãos e me surpreendo quando sinto Monstro se sentar ao
meu lado e passar um braço ao redor do meu pescoço, me
puxando em sua direção; tombo minha cabeça em seu
ombro e encaro a casa vazia diante de nós. Não faz muito
tempo que fiz o mesmo por ele, e sou grato ao coração
mole que mora dentro de sua fachada de pedra por não me
abandonar.
— Como ele descobriu, Ian? — Ele parece
decepcionado e incrédulo.
— Marcela. — Suspiro. — Ele encontrou as fotos no
computador da Marcela.
— O quê? — Ele me empurra para longe, e eu o
encaro. — Como ela pôde ter acesso a essas fotos?
— Não faço ideia. — Meus ombros caem. — Não
importa.
— Nós vamos descobrir — resmunga, levantando-se
e me estendendo uma mão, que ignoro.
Ele revira os olhos e me puxa do chão pela camisa
sem tato algum, depois me arrasta pela porta até meu
carro, me jogando no banco do passageiro e assumindo o
volante.
Não sei como Marcela pode nos ajudar. Só consigo
pensar na minha história com a minha menina do rio, cada
pedacinho dela. A primeira vez em que a vi, nosso
primeiro beijo, a primeira vez em que me dei conta de que
a havia perdido.
Depois, anos mais tarde. Nosso segundo encontro e
minha emoção disfarçada de raiva quando ela me deixou
trancado do lado de fora de casa. Meu instinto protetor
quando peguei um avião para impedi-la de parar um
casamento sobre o qual ela não deveria saber. As batidas
frenéticas do meu coração quando conversamos debaixo
de um céu estrelado. Minha ira e meu ciúme ao dirigir
pelas ruas ensandecido para buscá-la na porta de um
motel. O êxtase que me dominou no nosso segundo beijo.
O medo quando vi os testes de gravidez darem positivo, e
todo amor que senti por aquele ser minúsculo ao ouvir seu
coração bater. A primeira vez que fiz amor com ela e tive
a certeza de que nunca mais tocaria em outra mulher
enquanto vivesse. O dia em que a esperei em um altar e a
vi vestida de branco, caminhando em minha direção. O
sonoro sim que pronunciei e todas as promessas que lhe
fiz.
Eu a amava e a havia perdido mais uma vez.
Eu morreria todos os dias sem eles. Não suportava
imaginar ter que acordar e não ouvir a risada do Zach, não
ter o abraço da Valentina, não ganhar um ronronado da
Vick, nem uma lambida do Vitório. Não ler para meus
filhos na hora de dormir e beijar a testa dos dois ao lhes
desejar bons sonhos, não vê-los crescer. Lutei tanto para
construir aquela família, para mantê-la feliz e nunca
deixar que lhes faltasse nada.
Bastou uma noite para que anos de dedicação fossem
por água abaixo.
Capítulo 47 - Marcela

“Decidi não esperar as


oportunidades e sim buscá-
las. Decidi ver cada dia
como uma nova
oportunidade de ser feliz.”
Walt Disney
Eu estava aqui agora mesmo. Para onde
eu fui?

Destino filho de uma égua, maldito e ingrato. Depois


que ele sai pela porta, me pego a pensar: que raio fiz na
minha vida passada para ter que passar por todas essas
provações? Provavelmente, meu crime foi além de pregar
o famoso chiclete na cruz, eu devo ter arquitetado aquela
porra; matado centenas de pessoas ao lado do tio de
bigode esquisito; ou inventado o primeiro pernilongo em
laboratório.
O que quer que tenha sido, foi feio.
— Boneca, posso entrar? — pergunta Arnaldinho do
corredor. Posso ver sua sombra na parede próxima à porta
aberta do quarto.
— Eu quero morrer, mas fique à vontade.
Cruzo as pernas uma sobre a outra, meu rosto está
inchado e meus olhos devem estar vermelhos. Arnaldinho
leva a mão ao coração quando me vê, seu olhar surpreso
diz que não estou muito diferente daquelas personagens
psicóticas de filme de terror que ficam se balançando para
frente e para trás na cama com um olhar desmiolado.
— O que houve com seu rosto? — Sempre tão gentil,
que me faz ter vontade de empurrá-lo da janela. — O que
está acontecendo aqui? — pergunta, preocupado,
desviando o olhar do meu para encarar o chão do quarto
repleto de sacos de lixo cheios com tudo o que consegui
enfiar dentro deles. — Está pensando em fugir com o
bonitão, ou com o lixeiro?
— Vou me mudar. — anuncio, me levantando. Ele
tapa os olhos quando nota que estou usando apenas uma
camiseta e uma calcinha velha e sem elástico, me
encarando por cima dos dedos. — Ah, pelo amor, criatura
sem-teto. Nem da coisa você gosta — reclamo com um
muxoxo.
— Por isso mesmo, boneca, por isso mesmo. — Ele
faz uma careta de nojo que, obviamente, me ofende e
ganha uma travesseirada no meio das ideias. Depois que
se recompõe e ajeita os óculos por cima do narizinho
lindo de batata, minha resposta parece começar a fazer
sentido. — Você vai se mudar? — Seus lábios tremem, e
eu caminho até ele, abraçando seu pescoço. — Só estão
acontecendo coisas ruins hoje. Primeiro, uma mulher de
calcinha me abraça, e eu jurei pra mim mesmo que nunca
mais tocaria em uma nem com luvas, e agora você diz que
vai me deixar? — Seus lábios se torcem para baixo e seus
olhos se enchem de água. — Como vou sobreviver assim?
— Terminou, bicha dramática? — pergunto, depois de
alguns minutos, sorrindo, tempo suficiente para ele se
recompor. — Também ensaquei suas coisas, você vai
comigo.
— Jesus cristo, meus ternos em sacos de lixo. —
Então ele se apavora de verdade, correndo para seu
próprio quarto.
Aproveito a deixa para me enfiar em uma calça jeans
e chego a tempo de vê-lo suspirar aliviado ao constatar
que usei minha única mala decente para colocar as
porcarias que ele chama de roupa dentro.
— Pensando bem, vou deixar você e as estátuas aqui.
Por falar nelas, estavam na minha cama, lindos e
confortáveis, desde que eu me acabara de chorar, depois
de ser abandonada pelo homem que sempre abandonei, até
o presente momento. Me ofereceram ajuda para ensacar os
brinquedos e a ração? Não, claro que não.
— Não vai, não — murmura, olhando maravilhado
para o carinho com o qual posicionei cada um dos paletós
de circo dele. — Para onde vamos? — pergunta, animado.
— Por mais que eu quisesse mudar para outro país,
vamos nos mudar para uma casa a alguns minutos de
carro. — Mordo a bochecha, apreensiva, e me encosto no
guarda-roupa. — Vamos morar na casa dos meus pais.
Tem mais espaço, e todas as coisas que guardei da minha
antiga vida estão lá.
— Está na hora de encontrar a Marcela, não é,
boneca? — Seu sorriso orgulhoso e aberto me faz ter
vontade de voltar a chorar, mas belisco minha banha em
um dos culotes e fica tudo certo. — Quando partimos?
Olho para meu relógio imaginário e o encaro.
— Agora! Vamos logo, preciso me instalar e rastejar
para algum cantinho escuro para chorar. — Dou-lhe as
costas, mas ele me faz parar ao me puxar pela camiseta,
quase fazendo com que eu caia de bunda no chão.
— Essa sua cara inchada não foi causada por
lágrimas de felicidade provenientes de uma tarde de sexo
espetacular, não é?
Apenas balanço a cabeça negativamente.
— Ah, não vai me dizer que o bonitão é ruim de
cama. Eu sabia, bonito daquele jeito, tinha que ter algum
defeito. — Ele leva o indicador aos lábios de forma
pensativa. — É o tamanho? Porque ele não importa, meu
bem, não é varinha que faz a mágica, e sim o cara da
cartola...
Eu o corto.
— O tamanho é perfeito, e a habilidade da varinha
dele é magnífica, o que fodeu tudo foram minhas mentiras
— lamento, olhando para meus pés, balançando meus
dedinhos distraidamente. — Ele encontrou a pasta e
descobriu tudo.
— Isso é ótimo, boneca, agora ele sabe que a
noivinha dele é mais rodada do que os pneus do seu
Fusquinha, aquela coisa sem classe e barulhenta. —
Arnaldinho chega até a bater umas palminhas, mas para
quando nota minha careta. — O que mais tinha lá dentro,
Marcela Cantagallo? — Estreita os olhos e coloca ambas
as mãos na cintura larga, afastando o paletó uva.
— Então... — começo, esfregando meu dedinho gordo
no chão de um lado para o outro, apreensivamente, como
uma criancinha que sabe que fez merda e agora vai ouvir
uma bronca. — Eu fiz uma pequena besteirinha, desse
tamanho mais ou menos. — Abro os braços o máximo que
consigo. — Ele chegou bêbado aqui ontem, e eu me
aproveitei da situação para tirar as fotos que a irmã dele
queria — conto, baixinho.
— Você fez o quê? — grita, alarmado, se deixando
cair sentado na cama em meio aos seus lençóis de
trocentos fios egípcios inconformado.
— Eu fiquei ofendida, ora bolas. Da última vez que
ele me procurou caindo de bêbado, fiquei sem minha
castidade e com um guri pra criar. Fora doze quilos a mais
e algumas celulites, que mais parecem buracos negros. —
Dou de ombros. — Não pensei nas consequências. Eu ia
me livrar de tudo, mas...
— Não deu tempo — completa minha frase em um
lamento, levantando-se para me abraçar, mas o empurro
antes que ele me toque.
Abraços me fazem chorar, e ainda não posso me dar a
esse luxo. Tenho uma missão antes de me entregar à dor de
tê-lo perdido mais uma vez: preciso ir atrás da mulher por
quem ele se apaixonou, ela vai me dizer o que fazer.
Preciso encontrar a Marcela original, a que tinha
caráter, cabelos longos e uma moto. A Marcela que
sorria, vivia e era feliz. Preciso encontrar a mim mesma e
recuperar minha vida, só então poderei ir atrás dele.
Preciso encontrar a mulher que tinha tudo e aprender
novamente a ser ela, mesmo que agora eu não tenha mais
nada.
Antes que Arnaldinho possa soltar os cachorros em
cima de mim (figurativamente, porque os de verdade não
iam sair de cima das minhas cobertas por tão pouco), a
campainha toca e eu corro para atender, com a intenção de
fugir do seu olhar decepcionado e irritadiço. Mas, quando
abro a porta, me arrependo de ser tão covarde, porque
quem me aguarda do outro lado não parece mais feliz do
que meu melhor amigo.
— Precisamos falar com você — Augusto Bittencourt
não espera um convite, adentrando meu apartamento com
o nariz em pé, arrastando um pobre coitado pela camisa
completamente amassada.
Ian parece acabado, seus olhos inchados denunciam
que havia chorado recentemente. Essa era a merda de ser
um loiro branquelo, não dava para esconder as emoções.
Eu sabia, por experiência própria, acontecia o mesmo
com as ruivas branquelas. Estávamos formando uma boa
dupla naquele dia de merda. Nossa única diferença era
que ele era um pouquinho mais bonito do que eu e
infinitamente mais magro.
— Em que posso ajudar? — pergunto, com a voz de
poucos amigos, batendo a porta com força, me virando
para encará-lo com uma carranca no rosto.
Será que ninguém ia me dar paz para que eu pudesse
me esconder e chorar, porra?
— Você pode nos oferecer uma bebida, para começar
— ordena, sentando a bunda (uma boa bunda; eu era
apaixonada pelo irmão dele, mas não era cega) no meu
sofá.
— Não temos álcool em casa. — Ele me olha, como
se eu tivesse falado que tenho a cabeça de um cadáver no
freezer, e eu não deixo de concordar.
Nunca odiei tanto Arnaldinho, como naquele dia, por
me obrigar a ficar sóbria.
— Serve um café, fazer o quê, não é?!
Eu não vou fazer um café para você, azedo, pode
esquecer, penso amargamente.
— Pode deixar, boneca, eu faço o café! —
Arnaldinho aparece na sala, como se estivesse sintonizado
com meus pensamentos.
Ele sorri para meus não-convidados e os mede de
cima a baixo, assobiando baixinho ao caminhar até a
cozinha.
— Vamos direto ao assunto, antes que vocês bebam o
café com o boa-noite cinderela do Arnaldinho e acordem
em uma banheira sem um dos rins e a bunda doendo. —
Faço um aceno com as mãos para indicar a minha pressa e
tudo o que consigo é que eles me olhem com expressões
chocadas, como se eu tivesse falado algo errado.
— Como conseguiu as fotos da Camila com o Ian? —
Ergo as sobrancelhas, confusa. — Gustavo disse que viu
no seu computador.
— Não sei do que você está falando. — Dou de
ombros. — Gustavo viu outra foto... — Faço uma pausa,
sem saber como continuar. — Enfim, as únicas fotos da
Camila no arquivo são com o chefe dele.
— O quê? Ela estava tendo um caso com o Gabriel?
— Seus punhos se fecham diante do choque da minha
fofoca fresquinha.
— Gael — corrijo —, ela estava tendo um caso com
o Gael.
— Quão puta uma única mulher pode ser? —
pergunta, para ninguém em especial, mas respondo mesmo
assim.
— Não sei, mas aquela lá bate qualquer record.
Ele assente, concordando. É quando me lembro de um
detalhe, Gustavo estava mexendo no meu notebook
quando acordei, e eu tinha quase certeza de que havia
esquecido o e-mail de sua noiva aberto em uma das
janelas minimizadas.
— Esperem aqui um minuto. — Ergo um dedo para
enfatizar meu pedido e saio correndo.
Quando me sento em minha mesa, sinto o bafo de
Augusto no meu cangote.
— Sério isso? — questiono, me afastando ao agarrar
o mouse.
— Não confio em você — ele diz isso, como se
dissesse: “Que lindo dia, não?!”
Não perco tempo me sentindo ofendida, porque achei
algo interessante no e-mail da biscate. Olho o último e-
mail recebido (dela própria) e analiso cada uma das fotos
que ele contém.
— Isso é mesmo necessário? — Ô, se era.
Pornografia gratuita? Eu não ia perder.
— Cala a boca, sim? — Não consigo ver o rosto de
Ian completamente em nenhuma das fotos, mas o
reconheço nas imagens.
Escondo o choque do que vejo diante de mim o
máximo que posso – dois estalar de línguas e um “filha da
puta” sussurrado internamente acabam escapando sem
querer – e passo para o próximo e-mail. Nesse, existe um
vídeo, que aguardo que carregue com ansiedade,
novamente enviado por ela.
— Antes que pense mal dele, Ian foi drogado. O
resultado do exame chegou no meu e-mail pessoal cinco
minutos atrás. — Me viro para ele, embasbacada, de
olhos arregalados e boca escancarada. — Ainda não
contei para ele, não quero que se empolgue à toa. Preciso
de mais provas contra a Camila antes de incentivá-lo a se
jogar diante da minha irmã com o maior buquê de rosas
que encontrarmos no caminho, para implorar seu perdão.
— Como Bárbara ficou sabendo?
Ele estreita os olhos, e eu entendo.
— Dedo-duro! — recrimino Gustavo, com raiva.
Nesse momento, o vídeo carrega, e sou obrigada a me
recostar na cadeira e tapar os lábios com as mãos,
tamanha minha surpresa e espanto.
— Aquela filha de uma puta safada — sussurro,
quando ele termina.
Camila era incrivelmente mais perversa do que supus.
Eu poderia até ter inveja do seu brilhantismo quando o
quesito era lutar pelo que queria, se ela não estivesse
tentando ficar com o homem que eu amava.
— Quanto uma cópia dessa porra vai nos custar,
Marcela?
Olho para Augusto e o vejo cruzar os braços, ele não
consegue esconder a ira, e sei, simplesmente sei que, se
Camila cruzar seu caminho, vai acabar no hospital. Ele é a
segunda pessoa hoje que pensa que tenho um preço (não
tenho e, se tivesse, não seria barato). Não respondo,
apenas o fulmino com o olhar e pego um pendrive da
gaveta da mesa, fazendo uma cópia do arquivo. Quando
ele termina de ser carregado, o arranco do notebook e o
estendo para ele.
— Por que está fazendo isso? — pergunta, com
suspeita.
— Porque gosto da Bárbara e não quero que ela sofra
por um teatro.
Um espetáculo muito bem feito, por sinal. Esse era
apenas um dos meus muitos motivos, e ele parece saber
disso.
— Gustavo brigou com você quando descobriu sobre
as fotos?
Assinto.
— Eu lamento, Marcela, de verdade. — E realmente
parecia lamentar.
Éramos dois, então.
— Ele precisava saber, então, eu não lamento. —
Suspiro. — Mas ele também descobriu que fui
contratada... — deixo as palavras morrerem.
O que eu tinha na cabeça quando aceitei sua irmã
como cliente? Por que tirei aquelas malditas fotos? Eu sei
por que: porque sou uma anta quadrada que não sabe
identificar a felicidade, nem se ela morder minha bunda.
— Não sei o que acontece entre você e meu irmão,
mas, se eu tivesse que escolher alguém, escolheria você.
— Ele sorri fracamente e me dá as costas, caminhando
para longe.
— Claro, porque eu nunca droguei ninguém, certo? —
grito, quando ele chega à porta.
Augusto para e se vira, colocando as mãos nos bolsos
da bermuda.
— Por isso, também. — Ele ri. — Mas eu escolheria
você porque meu irmão te ama. É uma pena que vocês
sempre estraguem tudo! — Dito isso, ele vai embora e
nem chega a tomar o seu café.
“Vocês sempre estragam tudo” é uma definição
perfeita para meu relacionamento com Gustavo. Embora
nos amássemos, não sabíamos viver esse amor. Era
sempre uma guerra de poder sobre quem machucava mais
o outro e, embora eu soubesse disso, tinha certeza de que
não era capaz de desistir dele, não ainda.
Choro mais um pouquinho para não perder o costume,
me culpando por ser tão imbecil, depois limpo o rosto e
me levanto.
Tenho uma mudança para fazer.
São necessárias apenas quatro viagens no Totó para
que eu leve todos os meus sacos de lixo, minhas duas
estátuas de cães vivos e meu brilhoso de terno uva. Como
bem imaginei, não encontrei minha dignidade em lugar
nenhum para obrigá-la a me seguir.
— Virgem Maria, uma aranha! — exclama
Arnaldinho, dando um pulo para cima do sofá coberto por
um lençol, e eu suspiro.
— Me desculpa pela teia, querida. Pode reconstruir
sua casa porque, em um futuro próximo, não haverá mais
expedições na região — murmuro, me agachando para
conversar com a pernudinha. — Pode voltar para a
periquita da titia!
— Tá maluca, boneca? Mata esse bicho! — ordena,
entre gritinhos histéricos e o fingimento de um princípio
de infarto fulminante, que eu claramente ignoro.
Não vou matar a bichinha.
Quando entro na casa dos meus pais, a solidão me
invade, mas não me deixo fraquejar. Abro todas as
cortinas e começo a tirar os lençóis de cima dos móveis
cuidadosamente e com o peito em chamas, enquanto
Arnaldinho continua empoleirado, olhando para o chão
com suspeita e medo. Busco um balde, uma vassoura e
alguns produtos de limpeza e tento obrigá-lo a me ajudar.
Ele reclama tanto (algo como: vou estragar as minhas
unhas, fui à manicure ontem) que eu me irrito, expulsando-
o de casa, empunhando o cabo de vassoura.
— Tem certeza de que vai ficar bem aqui sozinha? —
pergunta, apreensivamente, agarrado à soleira da porta,
enquanto chuto sua bunda. — São muitas lembranças...
— Esse é o propósito, preciso enfrentá-las. — Por
mais que eu não queira.
— Posso ficar por perto, caso você precise. — Ele
olha para o pedaço de madeira nas minhas mãos com
receio, mas não se mexe.
Esse não teme a morte, admiro isso.
— Vou ficar bem, chegou a hora de parar de me
esconder. Eles estão mortos, criatura sem-teto, não vão
voltar, e eu preciso encarar isso. — É torturante dizer
aquelas palavras em voz alta, é como se eu os tivesse
traindo.
— Se precisar de mim, grita que venho correndo —
anuncia, me mandando um beijinho no ar, que agarro e
guardo no coração. Ridículo, eu sei. Ele já estava me
afetando mais do que imaginei ser capaz.
— Com essa pança? Duvido muito.
Ele revira os olhos e parte, me deixando sozinha com
uma montoeira de tralhas e lembranças dolorosas.
Fecho a porta e me escoro nela, olhando ao redor com
atenção. Encaro o primeiro degrau da escada; a lasca na
madeira que fiz com um skate quando tinha 9 anos; a
marca funda na parede, que fiz com uma bola quando era
adolescente; o tapete manchado de suco de morango ainda
estava lá, uma das poucas artes de Bento. Mas não
importa o quanto eu me esforçasse para reviver o
passado, a dor de um machucado recente se sobressaía.
Estive tão perto de ganhar uma segunda chance. Entrar
em uma vida nova, na qual minha dor poderia ser
dividida, e a felicidade, multiplicada. Mas deixei que ela
voasse para longe, usando minhas asas, enquanto isso, a
âncora pesava em meus pés, um pequeno lembrete de que
eu ainda estava presa ao homem que a havia me ofertado.
Eu poderia ir atrás deste mesmo homem, tentar me
explicar e implorar por seu perdão. Mas sabia que não
adiantaria. Ele queria um final feliz, a frase completa, mas
eu entendia apenas de finais, a parte do feliz nunca foi o
meu forte.
Me sento no chão frio e choro.
Preciso chorar, quem sabe assim, algum dia, eu
consiga finalmente sorrir.
Capítulo 48 - Gustavo

“Eu ficarei com cada parte da


culpa, se você quiser
Mas você sabe que não tem
nenhum inocente nesse jogo para
dois.”
Justin Bieber

A arte de quebrar um vaso

— Como você fez para ficar bem da última vez? —


pergunto, olhando o perfil da minha irmã sentada ao meu
lado no sofá.
Não tínhamos mais para onde ir, então fugimos para a
casa da vovó, mas, quando chegamos, não tinha uma única
alma viva em casa para fazer um bolo ou nos dar um
consolo. Então, fomos obrigados a pular o muro e depois
abrir os portões para as crianças, que agora dormiam
tranquilamente em um dos quartos. Agora estávamos há,
mais ou menos, vinte minutos imóveis e calados, sentados
um ao lado do outro, encarando a mesma parede sem
graça, na esperança de que ela criasse vida e resolvesse
nossos problemas.
Em vez de me responder, Bárbara se levanta e se
abaixa diante da mesa de centro, pegando um vaso nas
mãos e o entregando para mim.
— Quebra — ordena, sem expressão.
— Não vou quebrar, está louca? Vovó vai ficar brava.
— Mas não posso negar que a ideia é tentadora.
— Você perguntou como fiz para ficar bem —
resmunga, olhando ao redor da sala à procura de algo.
Ela dá mais alguns passos e chega perto do aparador
próximo à televisão, pegando mais dois vasos, um em
cada mão. Fecho os olhos quando uma de suas mãos é
jogada para trás e escuto um deles se espatifar na mesma
parede para onde olhávamos há pouco.
— Vamos lá, quebra, é sua vez — informa, com um
sorriso maquiavélico nos lábios.
Faço o que ela manda, expulsando toda a raiva dentro
de mim em forma de arremesso. Me sinto ótimo por cerca
de trinta segundos, depois toda a tristeza e revolta me
preenchem novamente.
— Até que é gratificante, mas a sensação boa acaba
rápido demais — me queixo.
— Funciona apenas a curto prazo; se você quer algo
mais duradouro, procura um psicólogo — murmura,
jogando o vaso restante no chão com toda sua força,
quando as lágrimas começam a cair.
— Você acredita nele? — pergunto, me prostrando
atrás dela, enquanto pouso ambas as mãos em seus
ombros. — Acredita no Ian?
— Sim, acredito.
Eu estava tão furioso quando entrei em sua casa e bati
em um dos meus melhores amigos para defender a honra
da minha irmã, que nem por um minuto pensei em escutar
o que ele tinha para contar.
— Eu também acredito.
A reação de Ian me abalou. Só depois que ganhei a
estrada pensei em tudo o que ele estava perdendo por
minha causa. Passei a viagem inteira me culpando por ter
interferido no casamento da minha irmã; talvez, se eu
tivesse me calado e esperado, as coisas tivessem se
assentado. Eu sabia bem o que era se sentir responsável
por algo que você fez estando fora de seu juízo normal, eu
sabia o que era magoar a mulher que amo e não me
lembrar no dia seguinte. Eu havia sido hipócrita.
— Nós acreditarmos não muda o fato do que ele fez,
Gus. — Seus ombros tremem, e eu a abraço por trás,
apoiando meu queixo no alto da sua cabeça. — Eu
entendo que ele podia estar sob o efeito de sabe-Deus-o-
quê, mas não consigo aceitar que ele tocou nela. Só de
pensar no que vi naquela foto... meu coração se parte. —
Ela se vira e passa ambas as mãos pela minha cintura.
— Me perdoa por ter contado — peço, alisando seus
cabelos loiros desajeitadamente.
— Eu ia acabar descobrindo, não ia permitir que ele
saísse de casa sem me contar o motivo — funga.
— Acho que nós dois fizemos merda quando
decidimos nos meter na vida um do outro — lamento,
fazendo com que ela erga a cabeça para me olhar de forma
confusa. — Encontrei o meu arquivo na casa da Marcela,
ela fez um excelente trabalho ao tirar fotos minhas bem
incriminadoras sem que eu percebesse. Por que você fez
isso? — pergunto, magoado.
— O quê? Fotos suas?
Ela se solta e coloca as mãos na cintura, deixando seu
olhar se perder, como se estivesse concentrada, tentando
entender uma situação complicada.
— Gus, ela caiu fora. Primeiro, ela disse que não
tinha encontrado provas contra a Camila, só aí eu mudei o
trato e pedi para que ela te seduzisse. Essa não era minha
intenção, eu queria apenas que vocês se aproximassem...
— E conseguiu — assinto. Conseguiu arrasar com o
meu coração, maninha. — Mas ela mentiu para você; ela
tinha, sim, encontrado provas sobre a Camila.
Provavelmente, negou para que você pagasse mais.
Babi nega com veemência.
— Quando eu a vi no Natal...
Nossa avó escolhe aquele exato momento para entrar
pela porta. Como sempre, ela está linda. Veste um biquíni
e uma canga de praia, está bronzeada e tem uma long neck
nas mãos que terminam em unhas pintadas de vermelho-
sangue.
— Ah, de novo, não — exclama vovó, pesarosa,
olhando para os destroços de seus vasos cobrindo o chão
da sala de estar. — O que fiz para merecer vocês? —
questiona, entornando o resto de sua cerveja em uma
golada.
— Contou uma maldita história sobre cavalos quando
sabia, claramente, que nenhum de nós sabia cavalgar —
responde Babi, de mau humor, sentando-se no sofá. —
Nós dois levamos um coice novamente. Sabe o que é
muito contraditório? Augusto, que sempre foi o mais filho
de uma puta, é o único que está feliz. Para vocês verem
como o destino é um ser desprovido de emoção e entupido
de um humor negro intrigante.
— Só faltava ele aparecer também! — comenta,
alarmada.
— Vó — berra Monstro, passando pela porta, como
se sua bunda pegasse fogo. Babi não errava quando dizia
que o timing dele era perfeito e pontual. — Ah, achei
vocês, seus dois previsíveis de merda! — cospe,
caminhando em nossa direção. — Tenho um filminho para
nós assistirmos.
— Alguém morre no final? — pergunta Babi,
esperançosa. — Só gosto desses quando tô na fossa.
— Não, mas alguém te mandou isso aqui — informa,
entregando-lhe uma sacola de papel pardo.
Ela abre e enfia as mãos lá dentro, retirando um pote
de sorvete de café. Não consigo reprimir meu sorriso,
nem ela.
— Seu marido está esperando do lado de fora e disse
que só vai entrar se você concordar.
— Não quero vê-lo, mas aceito ficar com o sorvete.
— Ela tenta fazer graça, mas se trai quando seus olhos
trasbordam e sua cabeça se ergue, procurando-o com os
olhos fixos na porta aberta.
— Você vai mudar de ideia quando vir o que tem aqui
— murmura, retirando um pendrive do bolso.
— Alguém me explica o que está acontecendo? —
pede vovó, impacientemente.
— Melhor não. — Augusto balança a cabeça
negativamente e a pega pelo braço, levando-a até a porta.
— Lembra quando você entrou no nosso grupo do
Whatsapp e eu, sem querer, mandei aquele vídeo...
Ela o corta.
— O da menina promíscua sem roupas? — pergunta,
fazendo uma careta de repulsa.
— Bom, o vídeo que vamos assistir é pior do que aquilo.
— Antes que ela possa reclamar, ele emenda. — É melhor
não perguntar, vai por mim — aconselha, fazendo com que
ela concorde de má vontade.
— Vou voltar para a praia, não deixe que eles
quebrem mais nada — ordena, dando uma olhada feia
para mim e minha irmã, e sai pela porta, reclamando algo
que se parece com: “Sério que vocês têm que vir até aqui
para assistir pornô?”
— Vamos acabar logo com isso, eu não sirvo para
essa vida de cupido — exclama Monstro, caminhando até
a televisão. Ele conecta o pendrive nela e pega o controle
remoto, depois se senta no sofá, empurrando Bárbara para
o canto para que ele fique no meio e bate no tecido
enquanto me encara. Com ele, não adianta resistir, ele tem
o dom de fazer com que todos façam suas vontades, então
apenas me arrasto até lá e me sento ao seu lado.
— O que tem aí? — pergunto curiosamente, já
sabendo que boa coisa provavelmente não é. Mas ele me
ignora, concentrando-se apenas em nossa irmã.
— Pode ser difícil ver isso, mas, se não fosse
necessário, jamais te sujeitaria a tamanha baixaria — diz,
de forma gentil, pegando a mão de Bárbara na sua, ela
parece tão pequena em seu aperto, que meu coração se
comprime por ela. — Se quiser, posso te dar a mão, Mala,
também não vai ser nada fácil para você ver esse vídeo.
— Eu agradeço, mas passo. — Essa gentileza
repentina dele chegava a me assustar.
— Você quem sabe, depois não diz que não avisei. —
Dá de ombros, apertando alguns botões.
Quando ele dá o play, me arrependo de não ter
aceitado sua oferta, porque eu adoraria ter algo para
apertar até se partir, enquanto assisto Camila nos mostrar
seu pior lado.
Camila liga a câmera e posiciona o celular em cima
da penteadeira, usando algum apetrecho para deixá-la em
um ângulo que seja visível o quarto inteiro. Ela sai pela
porta e, vários minutos depois, volta para o quarto,
amparando um Ian extremamente grogue, que, se não fosse
pelos braços da ordinária que o segura, facilmente
despencaria no chão. Ela o joga sobre a cama e tira sua
roupa com dificuldade, ele não para de se debater.
— Fica quietinho, querido, colabore comigo — pede,
tentando fazer sua calça passar por suas panturrilhas com
esforço.
Quando consegue, ela sorri, um sorriso diabólico e
cruel, e começa a tirar a própria roupa. Olho para meus
irmãos, Monstro parece resignado e Babi chora
abertamente, apertando a mão dele com força. Me levanto
e dou a volta no sofá, me sentando no encosto e puxando-a
parcialmente para meu colo, ela vem sem reclamar.
Camila entra no banheiro e, quando sai, Ian conseguiu
se firmar de pé. Ele a olha e não se move enquanto ela
caminha em sua direção. Ele não tem reação alguma nem
quando ela pega suas mãos e as coloca em seus seios, por
isso, ela o empurra sobre a cama, subindo em cima dele.
— Porra, Ian, coopera! — ruge, esfregando-se nele
em uma cavalgada ensandecida.
O rosto de Ian está parcialmente virado para a
cabeceira da cama, mas vez ou outra ele mexe a cabeça, e
podemos notar em sua expressão o desagrado que sente
pela situação, embora esteja claro que não a entende.
Ele tenta empurrá-la com as mãos, mas, com a pouca
força que possui, não vai muito longe, fazendo-a tomar
uma atitude pavorosa. Camila desce os lábios pelo corpo
dele, até engolir o objeto do seu desejo. Não importa o
quanto ela se esforce, ele não corresponde.
— Bárbara — o escutamos sussurrar, baixinho.
— Ele me chamou? — pergunta Babi, como uma
Fênix, ressurgindo de uma pilha de cinzas. — Ele falou
meu nome, não falou? — Ela parece ansiosa e aliviada,
como se um peso tivesse sido retirado de suas costas.
— Ele falou, sim. Ele falou! — comemora Monstro,
orgulhoso do nosso cunhado. — Eu sabia!
Fico quieto, não quero que eles vejam meus olhos
marejarem de alegria. Com aquela vagabunda, que um dia
pensei que subiria no altar comigo, eu não estava nem um
pouco preocupado. Parte de mim sempre soube que ela
era uma espécie de tapa buracos na minha vida, eu a
estava usando para sanar um pouquinho da falta que sentia
da Branca de Neve. Confundi carência com amor. Quem
nunca fez o mesmo?
— Sim, sou eu — responde Camila, com uma careta
repulsiva no rosto. Ela deixa claro por sua expressão que
se sente ofendida, até humilhada, em ter que se passar
pela minha irmã, mas sabe que é sua única chance de
conseguir seu objetivo.
— O que você está fazendo, amor? — pergunta Ian,
com um arremedo de sorriso, esticando as mãos e
agarrando seus seios com gentileza, alisando seus
mamilos com os polegares. Ele pisca e levanta a cabeça,
como se tivesse tido um lapso de consciência e abre as
mãos, usando-as para empurrar a mulher que tem em cima
do corpo longe. — Você não é a minha mulher, porra —
exclama, voltando a deixar a cabeça cair sobre o colchão.
— Você é um otário, Ian. — Camila bufa, indignada.
— Quem precisa daquela ridícula quando tem a mim? —
Dito isso, ela volta a subir nele e bate em seu rosto com
toda sua força, mas ele não reage mais.
Ian apagou.
— Eu vou depenar essa franga — murmura Bárbara,
ameaçadoramente, se levantando.
— Eu te ajudo torcendo o pescoço — comenta
Monstro, puxando-a de volta para o sofá. — Mas depois.
Ainda tem mais uma parte do vídeo para assistirmos. Pelo
menos, agora sabemos como ela arrumou fotos tão boas,
são prints.— Aponta para a tela, onde Camila caminha de
um lado ao outro do quarto com o celular nas mãos,
enquanto uma ligação é feita no viva-voz.
— Gostosa, eu já estava com saudade de você —
reconheço imediatamente a voz do outro lado da linha, é
Gael. — Você está bem? Gus desconfiou de alguma coisa?
— Eu não tenho um chefe maravilhoso? — pergunto,
sarcasticamente.
Bárbara entende errado minhas emoções e aperta
firme minha mão caída em volta de seu pescoço em sinal
de solidariedade.
— Claro que não — bufa, irritada. — Ele é
apaixonado demais para desconfiar de mim, ele beija o
chão que eu piso, Gael.
Não consigo controlar uma risada. Meus irmãos me
olham espantados, e eu dou de ombros.
— Em vez de beijar o chão que ela pisou, eu estava
tentando beijar a Marcela enquanto eles tinham um caso
— explico, fazendo-os se entreolharem e sorrirem,
satisfeitos.
Estávamos mais do que quites. Isso, claro, sem contar
o fato de que ela tinha ainda muito o que pagar por ter
machucado a minha irmã, e eu ia fazer questão de cobrar a
dívida.
— Estou com saudade de você e daquela coisa
gostosa que você faz com os pés.
Ambos voltam a me encarar, segurando uma risada,
dou de ombros novamente. Aquela dos pés era nova para
mim.
É extremamente irritante transar com uma mulher que
não se concentra em sentir ou dar prazer, como se o ato
fosse uma obrigação e não uma entrega. Camila sempre se
preocupava em gemer de maneira sexy, enquanto conferia
se sua barriga estava chapada ao cavalgar em cima de
mim. Era chato. O que me faz pensar em Marcela, que
viveu nosso momento como se fosse a coisa mais
maravilhosa que tinha acontecido em sua vida nos últimos
tempos. Pensar nela me entristece.
— É exatamente por isso que estou ligando — fala,
de maneira impaciente. — Preciso te ver hoje, pode vir
até meu apartamento?
— Não é arriscado demais? — Ele parece receoso.
— Não quero que o Gus saiba de nós dois, ele é meu
melhor arquiteto.
Deixaria de ser em breve.
— Não, ele não vai dormir em casa — conta,
desinteressada. — Ele foi desencalhar uma baleia.
Meus punhos se cerram e meus dentes se trincam.
— Além de quebrar o pescoço e depenar, o que mais
se faz com uma galinha? — pergunto, entredentes.
— Só resta comer — responde Babi, sem graça.
— Não, também dá para destrinchar. O que você
prefere, Mala?
Meu olhar feroz responde a pergunta do meu irmão.
Camila observa Ian com ressentimento, até que a
campainha toque, depois ela some por vários minutos
intermináveis. Quando pensei que mais nada aconteceria,
Monstro coloca mais à frente e a vemos entrar no quarto,
depositar uma camisinha usada na cabeceira da cama e
desligar a câmera.
— Isso foi genial, não foi? — Monstro parece nem ter
se dado conta de que falou em voz alta.
— Vá buscar meu marido, Augusto, agora — ordena
nossa irmã, pulando do sofá e andando de um lado para o
outro na sala atulhada de móveis, enquanto rói uma unha
pensativamente.
Ian passa pela porta logo depois, com um ramalhete
gigante de rosas brancas, fazendo-a chorar, enquanto corre
para seus braços. Minha irmã pega as flores e as joga
longe, pulando no colo do marido, que a rodopia pelo ar.
— Me perdoa. Me perdoa. Me perdoa — ele implora,
enquanto ela o beija.
Fico maravilhado e invejoso da cena que tenho diante
de mim. Marcela não me procurou depois que saí de seu
apartamento, nem ao menos me ligou. Pedir desculpas não
fazia o seu gênero, silêncio, sim.
— Nunca mais minta para mim — grita, depois que
se cansa dos beijos.
Para nosso deleite, ele se ajoelha aos seus pés.
— Eu juro nunca mais esconder nada de você, mesmo
que me mate por isso.
Ela assente, carrancuda.
— Vou passar o resto da minha vida te compensando,
amor, eu realmente acreditei que estivesse fazendo o
certo.
Quando eles voltam a se abraçar, decido escapar de
fininho para minha antiga cama. Pretendo me enrolar nas
cobertas e pensar um pouco na vida, quem sabe derramar
algumas lágrimas e praguejar. Mas Ian me faz parar no
lugar com as seguintes palavras:
— Se não fosse pela Marcela, jamais teria você nos
meus braços. Devo minha felicidade a ela.
Enquanto Monstro tosse um sonoro “capacho” pela
quinta ou sexta vez nos últimos dez minutos, eu me viro
novamente para eles.
— Quanto custou? — pergunto, acidamente, com a
mágoa me sufocando.
— Ela não cobrou, Gustavo, disse que gostava da
Babi e não queria vê-la sofrer — quem responde é
Augusto.
— E você acreditou? — soou mais sarcástico do que
tinha planejado, e ele me surpreende, assentindo.
Justo ele, que não põe a mão no fogo nem por sua
sombra.
— Ela não disse, mas também fez por você. Marcela
estava péssima — emenda.
— Ela me seduziu por dinheiro — cuspo, irritado,
sem poder acreditar que ele vai defendê-la.
— Na verdade, era sobre isso que estávamos falando
quando a vovó chegou. Marcela não aceitou meu dinheiro.
Claro, ela ficou com a primeira parte do pagamento para
seguir a Camila e, mesmo tendo encontrado as tais provas
que você mencionou, não aceitou o resto do pagamento —
conta Bárbara, afoitamente.
— Claro que não, provavelmente ela estava
planejando cobrar mais caro depois que lhe entregasse as
fotos que tirou comigo bêbado em seu sofá. Ela não é nem
um pouco diferente da Camila. — E era exatamente isso
que estava me matando.
— Você foi procurá-la bêbado, de novo? — Monstro
se mete na história, parecendo irritado. — Não passou
pela sua cabeça o que ela imaginou quando você fez isso?
Franzo o cenho sem entender o que ele está tentando
dizer.
— Ela deve ter pensado que a cena da primeira vez
de vocês estava prestes a se repetir e deve ter se sentido
humilhada com a sua atitude idiota — ralha Babi. — Não
vejo outra explicação. No Natal, quando ficamos
sozinhas, eu perguntei para ela o que sua presença
significava, e se ela tinha aceitado meu acordo...
— O que ela respondeu?
Tenho medo de ouvir a resposta. Meu coração está
batendo forte no peito e uma urgência em vê-la toma conta
de mim. Desejo, em pensamento, que minha irmã fale as
palavras certas, preciso apenas de um leve empurrão para
me desarmar.
— Que o que ela sentia por você não tinha preço. —
Sorri, encantada.
— Gustavo? — chama Monstro, fazendo com que eu
me vire em sua direção. — Quantas vezes você vai perder
essa mulher antes de grudá-la no seu rabo com Super
Bonder? — É o bastante para que eu saia correndo da
casa da minha avó, mais uma vez, para encontrá-la.
— Boa sorte! — gritam os três, em coro, e agradeço
em pensamento, porque sinto que vou precisar.
Subo correndo os lances de escada do prédio da
Marcela com o coração na boca e o discurso pronto.
Sinto, bem fundo dentro de mim, que não mereço mais
seus perdões, mas a esperança brota de todos os meus
poros. Bato na porta enlouquecidamente, vez após vez, até
que ela se abre.
— Posso ajudá-lo? — pergunta Zé Alfredo, apenas de
cueca samba-canção, com uma carranca zangada,
indicando que atrapalhei alguma coisa.
— Eu gostaria de falar com a Marcela — respondo,
olhando por sobre seu ombro.
— Ela não está aqui, bonitão, e é muita cara de pau
sua aparecer depois de fazer a boneca do meu amorzinho
chorar, de novo. — Até ele já estava por dentro dos
últimos acontecimentos; não era para menos, o namorado
dele tinha mesmo cara de ser língua solta.
— Eu preciso vê-la, por favor — imploro, agarrando
a porta, quando ele ameaça fechá-la na minha cara.
— Marcela não mora mais aqui e, por nada nesse
mundo, vou lhe dizer para onde ela foi — ataca, retirando
minha mão do aperto da madeira. — Deixa a menina viver
em paz, você já causou mal o suficiente a ela. — Então, a
porta é batida na minha cara, e meu coração despenca
dentro do peito.
Sem ter mais lugar para ir, volto para minha casa e,
diferentemente de Marcela, Camila não foi a lugar algum;
encontro-a sentada à mesa da cozinha e, quando abro a
porta, ela ergue a cabeça, me olhando com adoração. Ela
se levanta e corre em minha direção, se jogando contra
meu peito. Estou tão ferido, machucado e carente que não
a afasto. Ela pode ser incrivelmente diabólica, mas ainda
tem um cheiro que reconheço como sendo o de segurança,
e eu estava tão necessitado de um abraço, que teria aceito
um até do bandido da luz vermelha.
— Onde você estava? Eu estava tão preocupada com
você — murmura, cravando as unhas em meu pescoço. —
Tentei te ligar tantas vezes, gatinho.
— Eu estava assistindo a um ótimo filme — comento,
ainda não me sentindo pronto para soltá-la.
Não importa quanta raiva se tenha de uma pessoa, o
quanto ela tenha te traído, muito menos se há ou não amor
na relação; o adeus é sempre difícil. Tento me concentrar
no quanto Bárbara ficou abalada com suas atitudes, e esse
é o fio condutor para que eu a enfrente.
— Os atores principais eram Ian e você.
Ela congela visivelmente. Imagino que vá perguntar
como descobri, ou que vá negar, mas ela me surpreende,
desfalecendo nos braços, ao ser inundada por um choro
animalesco.
— Não existe desculpas para o que fiz — lamenta
para si mesma, deixando o peso de seu corpo recair sobre
o meu. Seguro sua cintura com mais firmeza e me sento no
chão, amparando-a. — Também sei que você,
provavelmente, não quer escutar nenhuma palavra que
saia da minha boca. — Pelo contrário, enquanto ela
falava, me distraía da verdadeira razão do meu
desconsolo. — Eu tive tanto medo de te perder, medo de
que você me trocasse por aquela... — Me reteso, achando
que Marcela será rebaixada mais uma vez, mas me engano
— mulher. Então, culpei a Bárbara, eu queria me vingar
dela e, ao mesmo tempo, que Ian fosse forçado a tirá-la do
nosso caminho — soluça, desesperançosamente.
— Minha irmã sempre vai ser a mulher mais
importante da minha vida, Camila. Se eu a tivesse
escutado, teria menos motivos para me sentir humilhado
hoje.
Mal sabia ela quantos motivos a menos eu teria.
— Você já machucou alguém que amava? — Sim,
respondo em pensamento. — Já fez algo abominável em
nome desse sentimento? Algo para o que não houvesse
perdão? — Meus olhos ardem e marejam. “Sim” é a
resposta para todas àquelas perguntas. — Se sim, por
favor, não me abandona. Não tem nada pior do que ser
abandonado por quem a gente ama, Gus. — Eu sei,
gatinha, sei exatamente o quanto dói. Já fui abandonado
vezes demais. — Eu posso ser o seu final feliz, se você
deixar.
Naquela noite, entro no meu carro beirando o
desespero, sem saber o que fazer. Procuro meu celular no
bolso e ligo para Marcela. Uma voz mecânica me diz que
o número não existe mais, me levando ao ápice da
loucura. Me empurrando para uma decisão que eu
definitivamente não queria tomar, mas que escolha eu
tinha? Aperto o pedaço de papel creme com letras
douradas que tenho nas mãos e abro o porta-luvas,
alcançando uma caneta, rabiscando fervorosamente
algumas palavras no verso do cartão e colocando-o dentro
do envelope. Quando termino, novamente vou até sua
casa, subo as escadas e passo o papel fino pela porta com
um nó na garganta.
Eu havia lhe prometido um convite para o meu
casamento.
E eu sempre cumpria minhas promessas.
Parte IV

Sete anos foram o suficiente para transformar a moça


em uma pessoa amarga. Cansada de se olhar no espelho
todos os dias e enxergar apenas saudade, ela tomou uma
atitude drástica, que a aprisionou dentro um caixão de
vidro. O príncipe a resgatou, mas jamais poderia tirar a
dor que ela carregava em seu peito. Então, escondida aos
olhos de todos, ela se mantinha presa aos estilhaços, até
que um milagre aconteceu.
Capítulo 49 - Marcela

“E, entre tudo que ele poderia ser pra mim, ele
escolheu ser saudade.”
Caio Fernando Abreu

O convite prometido

Um mês depois
Finalmente, depois de várias semanas na casa dos
meus pais, na minha casa nova, eu conseguia respirar
aliviada ao andar por entre os cômodos. É engraçado
como a gente se acostuma com as lembranças, até as mais
dolorosas.
Não foi fácil. Despejei um litro de lágrimas ao
arrancar os lençóis que cobriam cada um dos móveis, ao
olhar por tempo demais para cada um dos porta-retratos
ou tocar cada um dos pertences que foram das minhas
perdas. A situação se tornou tão caótica, que Arnaldinho
me obrigou a andar com um balde pendurado no braço,
porque estava cansado de escorregar nas poças que
minhas lágrimas formavam no chão.
Sempre dramática minha criaturinha sem-teto que
morava debaixo do meu teto.
Com o passar do tempo, doía menos estar dentro do
meu lar. Criei coragem para me desfazer da maior parte
dos móveis e objetos. Assim, em vez de chorar, sorri
quando vi um punhado de crianças de um orfanato
próximo ficarem eufóricas ao botar os olhos nos
brinquedos de Bento, e os senhores do um asilo anexo
ficarem emocionados com as sacolas de roupas.
Também guardei algumas coisas. Roupas da minha
mãe, pelas quais eu era apaixonada quando ela estava
viva, um relógio do meu pai e o protótipo de volante, o
brinquedo preferido do meu filho. Espalhei fotos de todos
pela casa e mandei embora o resto, junto com parte da
minha dor.
Eu me libertei.
Saí para jantar com meu casal de amigos preferidos
(os únicos que eu tinha), fui ao cinema e corri com uma
garrafa de água nas mãos e os fones presos aos ouvidos,
me sentindo realizada e mais magra a cada meio metro
percorrido. Cantei junto com a música. Assisti a milhares
de séries e fiquei meio viciada em uma coisinha do
demônio chamada Netflix, aquilo era do mal, sem dúvida
obra do tinhoso para que não conseguíssemos fazer mais
nada da vida depois de botar os olhinhos em sua criação.
Inclusive, até me arrisquei e saí para dançar, e ver
Arnaldinho dançando tango valeu cada minuto torturante
do passeio. Chorei em muitas dessas ocasiões, mas
permaneci firme na decisão de aceitar o passado.
A única coisa que não consegui, de fato, fazer, foi
esquecer um certo par de covinhas e seu dono.
Eu sonhava com elas dormindo e até acordada, mas
não o procurei. Ele tinha razão quando me acusou de não
ter caráter algum. Não merecia uma mulher que havia
cedido às suas investidas, quando sabia que ele não
estava em condições sequer de saber o que fazia; uma
mulher que havia fugido com o filho dele e sido uma fonte
de problemas por anos a fio. Ele não merecia alguém que,
ao invés de lhe mostrar o erro que estava cometendo ao se
casar com a mulher errada, escondeu as provas para
poder se aproximar dele e depois o traiu, mesmo que sem
intenção.
Ele merecia alguém melhor do que eu, uma chance de
escrever uma nova história em páginas que ainda estavam
em branco. Nossas páginas estavam manchadas com
muitas mentiras, abandonos e sangue para que pudéssemos
prosseguir com elas.
Visto minha fantasia de mulher light para fazer uma
caminhada com um propósito naquela manhã: comemorar
os setecentos gramas que perdi com os novos exercícios,
comendo um croissant de chocolate da padaria. No
caminho, me lembro de que preciso urgentemente da
minha fatura do cartão de crédito, não que eu tenha
dinheiro para pagá-la, mas precisava pôr os olhos no
valor antes de assaltar alguém.
Zé Alfredo saiu de casa definitivamente. Ele e
Arnaldinho estavam construindo a própria casa dos
sonhos em um terreno próximo e, por ora, ele havia ficado
com meu antigo muquifo – ops, apartamento, meu antigo
apartamento. Ele era tão gentil e maravilhoso quanto
Arnaldinho, mas tinha uma memória digna de uma ameba
com Alzheimer, nunca se lembrava de entregar minha
correspondência.
Uso minha chave para entrar e o silêncio que encontro
me diz que não há ninguém em casa. Encontro uma pasta
em cima da mesa de centro com meu nome. Com uma
rápida olhadela dentro, confirmo que são minhas cartas,
faturas, contas e uma revista gracinha sobre dietas que
assino, mas nunca usei para nada. Pego a pasta e vou
embora, compro meu croissant e volto correndo para casa.
No final da noite, eu adoraria bater na minha cabeça
com um martelo por não ter aberto as cartas quando
cheguei, mas já mencionei meu problema com o Netflix,
não é?
Quando a noite caiu e meus olhos não viam mais
bulhufas à minha frente, de tanto tempo que passaram
grudados no carinha da série White Collar (ele tinha
covinhas lindas, não chegavam nem perto das do Gus, mas
já era alguma coisa), decidi me abastecer de cafeína e,
finalmente, abrir a pasta.
Despejei tudo na mesa com desleixo e espalhei os
papéis sobre ela com uma das mãos espalmadas. Foi
quando perdi o ar, o ânimo e a minha recém-adquirida
vontade de viver. Os movimentos, a fala e o paladar. Em
instantes, me transformei em um amontoado de nada ao
pegar um envelope caro, engomado e bonito. Assim que
meus olhos se fixaram nele, eu soube do que se tratava:
era um convite de casamento. Do casamento dele.

Gustavo Bittencourt e Camila Assunção lhes


convidam...

Quantas vezes alguém podia morrer ainda estando


vivo?
Diferentemente do que eu teria feito algumas semanas
atrás, não me acovardei. Empurrei o convite para dentro
do envelope novamente depois de conferir o endereço e o
horário e o joguei longe, me levantando abruptamente no
chão, tomada pela força de um amor descomunal que me
permitia algumas loucuras. Bati os olhos no relógio. Vinte
minutos, eu teria apenas mil e duzentos segundos para
parar um casamento.
Não daria tempo, a menos que eu fosse voando.
Penso rápido e saio em disparada até a garagem,
fazendo algo que eu ainda não havia tido coragem de
fazer: arrancar o último lençol da casa. Eu ainda não
havia encostado no objeto embaixo do pano, porque não
me sentia capaz de voar enquanto meus pés estavam
presos ao chão por uma âncora, por um amor que não
sarava, e eu sabia que ela me daria aquela sensação de
liberdade.
Constatar que ele estava a ponto de implodir qualquer
chance de ser feliz me fez mudar de ideia. Não o procurei
porque desejava que ele encontrasse alguém melhor do
que eu, porém jamais permitiria que se unisse a alguém
que era menos valiosa do que uma pedra falsa.
Simplesmente não ia acontecer, se dependesse de mim.
Voo, literalmente voo, pela noite, montada na minha
Kawasaki Ninja preta brilhante, sentindo o vento açoitar
meu corpo, com os pensamentos a um milhão de
quilômetros por hora. Voo por ele, como ele queria que
eu fizesse.
Chego à igreja e salto da moto, tirando o capacete no
meio de uma corrida. A rua está deserta e a noite está fria
e apagada. É uma bela noite para dar adeus ao homem
amado, penso amargamente, quando constato que cheguei
tarde demais.
Olho para o alto, para os sinos, e peço ajuda. Mas eu
já deveria saber que a mesma divindade que me tirou
tudo, não me olharia compadecida diante do que havia me
tornado pela dor que ele me impusera.
— Querida, você veio para o casamento? — pergunta
dona Ruth, saindo por uma das portas laterais, com um
imenso vaso de margaridas nas mãos.
Assinto, sem encontrar minha voz. Caso eu tente falar,
provavelmente nunca mais pare de gritar.
— Ele acabou há dez minutos, os noivos já partiram
para a recepção. — Ela não nota meu olhar mortificado,
nem as minhas lágrimas silenciosas, apenas continua
falando. — Meu filho estava encantador em cima daquele
altar à espera da mulher que ele escolheu...
Dou-lhe as costas e saio correndo, deixando-a falar
sozinha, para que não me veja desmoronar.
Como eu disse, eu não era boa com o “felizes”, mas
de finais eu entendia.
Meu encantado escolhera outra mulher, e eu nunca
havia me sentido mais miserável em toda minha vida
como naquele momento, quando percebi que realmente o
havia perdido para sempre.
Capítulo 50 - Bárbara

“Já era amor antes de ser


Já era seu antes do sim
Já era nós antes que eu pudesse escolher
Eu te encontrei e me perdi
Eu permiti acontecer, aconteceu sem avisar
Isso que é amar”
Henrique e Juliano

O casamento do século

O noivo caminha até o altar com graça e leveza, sorri


para todos e acena para alguns. Parece relaxado, até se
prostrar diante do padre, então sua postura muda e seu
sorriso desaparece. Quando o grande momento da entrada
triunfal se aproxima, seus punhos se fecham, um deles é
mantido rente ao meio fraque cinza chumbo, já o outro é
levado até seus lábios, seus dentes se prendem a ele com
força, evidenciando todo seu nervosismo, e seus olhos se
franzem. Então, os tambores rufam e suas lágrimas
descem. Ele não parece se importar com elas. Naquele
momento, suas lágrimas são minhas também.
O tamanho de sua perfeição jamais conseguiria ser
descrito em palavras. Nunca, em toda minha vida, vi um
noivo tão deslumbrante quanto ele. O cravo rosa na
lapela, o rosto molhado de emoção e o brilho intenso de
seus olhos faziam do meu irmão, meu maior e mais bonito
orgulho.
Ele não procura os olhos de ninguém, seu olhar se
mantém fixos nas portas da igreja, ainda fechadas, à
espera dela.
Ele só tem olhos para ela.
Então, os trompetes cantam e as portas da igreja se
abrem, nos revelando um céu negro e apagado, imerso no
breu de uma noite gelada. Mas uma estrela brilha à nossa
frente. Ela está incandescente, iluminando a tudo, vestida
de branco. Quando a vê, ele arqueja e seus olhos se
arregalam de espanto e júbilo, ah, aquele olhar. Seu
choro deixa de ser contido, ele soluça tão alto, que os
ecos percorrem os quatro cantos da igreja lotada. Ela não
chora, apenas sorri. Um sorriso de fascinação e vitória.
Um sorriso de amor puro e verdadeiro.
No momento em que ela dá o primeiro passo no tapete
vermelho, deixa a escuridão para trás e, acredito, não
apenas figurativamente. Ela está deixando uma vida de
medo, fuga e dor, para entrar em uma onde haverá apenas
amor. Foi isso que ele lhe prometeu, amor, e não tenho
nenhuma dúvida de que essa promessa será severamente
cumprida. Seus dias nunca mais serão negros.
Ela caminha até ele como quem caminha até os
portões do paraíso, e ele a espera como quem está diante
da personificação de seu maior sonho. Os olhos de ambos
estão fixos um no outro, uma corrente invisível,
inquebrável e inabalável. O amor que flui da troca de
olhares daquele casal tem o poder de aquecer até o
coração mais gelado do recinto.
E, quando imaginei que nada poderia ser mais
sublime e belo, eles finalmente se encontram no final do
corredor. Ele busca as mãos de sua noiva e contempla seu
rosto, abrindo um sorriso esplendoroso em meio a um mar
de lágrimas. Depois, se ajoelha, espalmando as mãos em
sua barriga redonda, beijando-a com ternura, antes se
levantar e se virar, chamando por alguém. O menininho
vestido igual ao pai corre em sua direção e prontamente é
tomado em seus braços.
Naquele momento, a Fera parte definitivamente,
deixando para trás apenas o Príncipe.
O casamento tão aguardado por todos que os amam
acontece com Nicholas nos braços do meu irmão e
Angélica dentro da mãe. Suas vidas. É assim que Anna e
Augusto entrelaçam, definitivamente, seus destinos,
vivendo o começo de seu felizes para sempre.
— Ele me superou, não foi? — pergunta Ian,
baixinho, sem conseguir conter a felicidade que sente por
seu melhor amigo, enquanto enxuga meu rosto com um
lenço de linho retirado do terno.
Assinto, embasbacada e emocionada. Augusto havia
superado a todos. Mas não tenho tempo de responder ao
meu marido, meus olhos são capturados por outro olhar.
Gustavo faz um meneio de cabeça em minha direção e
sorri, apontando para nosso irmão; parece orgulhoso e
imensamente triste. Não sei como ele está se aguentando
de pé dentro daquela igreja no dia do casamento que era
para ser seu, olhando para o padre que uniria sua vida à
de outra pessoa, sentindo o perfume das flores que
embelezariam o seu tão aguardado sim. Existe apenas uma
razão para que ele esteja firme naquele altar, seu amor por
Augusto. O mesmo amor que o fez presentear nosso irmão
com seu próprio casamento, sem pedir nada em troca,
apenas que vivessem seu sonho por ele.
Ele pisca para afugentar algumas lágrimas, mas sei
que elas não são de emoção. Ele deve estar se
perguntando o porquê de o seu final estar tão distante do
feliz, e meu coração se parte, porque a culpa é minha. Se
eu o tivesse deixado decidir os rumos da própria vida sem
interferência, ele estaria se casando hoje; eu não estaria
feliz dentro de um vestido de festa, mas ele não estaria
triste.
Demorei a perceber que eram os seus sentimentos
com os quais eu deveria ter me importado, e não os meus.
Uma parte de mim se sente aliviada por ele não se
entregar a alguém que não o merecia, a outra parte se
sente extremamente arrasada por seu coração ter fugido
para o peito de outra mulher, uma que desapareceu do
mapa, levando mais uma vez parte dele embora.
Durante a recepção, não ouso tirar os olhos de
Gustavo, ele permanece a festa inteira sentado à primeira
mesa do salão, de frente para a porta, com os olhos
grudados na rua, não preciso lhe perguntar nada para
saber que ele está à espera dela, Marcela. Porém, ambos
sabemos que ela não virá, assim como não veio nas
últimas semanas.
Ela não ia aceitar o pedido feito no verso de um
convite de casamento.
— Casa comigo de novo? — sussurra uma voz
urgente no meu ouvido.
Me viro para meu marido e agarro os colarinhos de
seu paletó, sorrindo abertamente, me esquecendo por um
tempo da dor que emana da alma do meu irmão.
— Hoje eu senti saudade de te ver vestida de noiva.
— Você está falando sério? — Ergo as sobrancelhas,
fazendo com que seus olhos azuis brilhem. — Você se
casaria comigo mais uma vez?
Eu jamais conseguiria esquecer o que aconteceu entre
ele e Camila. Ian sendo usado era uma imagem que me
atormentaria enquanto eu vivesse. Mesmo se Marcela não
tivesse encontrado o vídeo, provavelmente teria lhe
perdoado por ter ido até ela, porque eu, melhor do que
ninguém, conhecia o tamanho da inocência do homem que
eu amava. Teria engolido meu orgulho e o aceitado de
volta. Mas foi infinitamente melhor assisti-lo rejeitar uma
linda mulher e chamar por meu nome enquanto ela tentava,
de mil maneiras, ser notada. Ele me amava, até mesmo
com um sonífero poderoso correndo por sua corrente
sanguínea, e isso compensava toda sua ingenuidade.
— Eu me casaria com você um milhão de vezes, Bá.
Você sempre será minha escolha, sempre.
Ele se inclina na minha direção lentamente, mas tenho
urgência para que aquele beijo aconteça e encurto nossa
distância, fazendo com que ele cambaleie para trás e ria
quando nossas bocas finalmente se chocam.
— Não teria como te amar mais nem se eu tentasse,
garoto dos olhos azuis — sussurro, me afastando para
olhar nos olhos que eram meu caminho rumo à felicidade.
Mas ele não me olhou de volta, como pensei que
faria, seus olhos estavam perdidos na entrada do salão.
Segui seu olhar e avistei Gustavo passando pelas portas
duplas de madeira em direção à saída com a cabeça
baixa.
Poucos minutos de distração foram suficientes para
que eu perdesse meu irmão.
Capítulo 51 - Anna

“Pare de ser um prisioneiro de seu passado.


Transforme-se no arquiteto do seu futuro.”
Autor desconhecido

Como as noivas fazem xixi? Temo nunca


saber!

Estou vivendo o dia mais feliz da minha vida. Isso é


um fato. Também é certo que é o dia mais estressante que
já tive que suportar. Nem quando eu fugia de um assassino
tinha menos paz do que no dia do meu casamento. Eu já
estava cega com tantos flashes e cheia de cãibras por
tantas poses diferentes para as fotos. O anjo parecia estar
adorando toda a atenção. E eu? Eu queria apenas fazer
xixi.
O problema era o vestido. Ele era lindo, mas enorme
e rodado, nem se eu rebocasse todas as minhas madrinhas
(no caso, apenas duas) para o banheiro para me ajudar,
conseguiria me livrar dele.
Quanto será que custa o aluguel de uma escavadeira?
Não tenho tempo de perguntar para meu maravilhoso
marido, porque vejo, pela visão periférica, seu irmão
escapulir pelas portas no meio de um brinde. Ter
cunhados era um grandessíssimo pé no saco, ainda mais
uns tão cabeças-duras quantos os meus. Eu os amava do
fundo do coração, mas vivia querendo esganar um deles.
Aquele era um daqueles momentos.
Entrego minha taça para o anjo e caminho por entre as
mesas, assim como Bárbara, que viu exatamente a mesma
cena se desenrolar à sua frente. Gustavo fugindo. Ela
segue para a porta, mas eu não. Algo chama minha atenção
sobre a mesa onde ele estava sentado. Caminho até lá e
encontro um bilhete preso a uma carta, seguro com firmeza
os papéis e sigo Bárbara a tempo de vê-lo olhar para ela
com tristeza, parado diante da porta aberta de um táxi. Ela
grita seu nome, e ele sorri pesarosamente entrando,
batendo a porta e desaparecendo noite adentro.
Quando paro ao seu lado, entrego-lhe o bilhete, que
ela lê rapidamente. Abraço sua cintura, deixando que ela
tombe a cabeça no meu ombro quando as lágrimas
chegam. Todos nós sabíamos que isso aconteceria.
Gustavo havia se demitido do trabalho e se mudado para
um hotel, enquanto vendia tudo o que tinha em posses.
Assim que o assunto chegou aos meus ouvidos, reconheci
os sinais, ele ia fugir. Eu sabia, porque era expert nessa
arte, só não esperava que ele escolhesse o dia de hoje
para nos dar adeus.
— O que está acontecendo? — pergunta o anjo,
parando ao nosso lado.
Ele encara a rua, mas não vê nada, então suas
sobrancelhas se franzem ao notar as lágrimas de Babi. Ele
estende uma das mãos, e ela muda de colo, aninhando-se
em seu peito. Eu amava ver os dois juntos, a maneira
como se protegiam e se amavam. Eles precisariam um do
outro nos dias que se seguiriam.
— Gus foi embora — funga, limpando o rosto
disfarçadamente em seu meio fraque, sem que ele note.
— Santo Deus, você me assustou — reclama, irritado.
— Ele não está no clima de festa, não sei como aguentou
tanto tempo.
— Não, ele realmente foi embora, Monstro — ela
soluça e lhe entrega o bilhete.
Ele suspira, parecendo triste e decepcionado ao ler as
palavras do irmão.
— Tudo isso era para ser dele, e isso me deixa
incomodado, como se eu tivesse usurpado sua felicidade
de alguma maneira — exclama, apertando Bárbara mais
forte com uma das mãos, enquanto pego o bilhete da outra,
lendo-o mais uma vez.

Eu amo vocês mais do que tudo na vida, e é


exatamente por esse motivo que não tenho forças
suficientes para me despedir. Vou viajar, ver o mundo e
curar as feridas. Preciso de um tempo para mim e sei
que, se dividisse meus planos, vocês me convenceriam a
ficar. Eu faria isso por vocês sem pestanejar, mas
preciso fazer algo por mim.
Eu preciso desse tempo.
Augusto e Anna, espero que não fiquem tristes com a
data que escolhi para ir embora. Sei que vão todos
sentir minha falta, e queria sair em um dia alegre, um
dia de comemoração. Se lembrem sempre de viver meu
sonho da melhor maneira possível e beijem Angélica,
quando ela chegar ao mundo, por mim.
Bárbara, por favor, não chora. Isso não é um adeus.
Com amor, Gustavo
Ps.: Anna, leia o verso da carta.

— Vamos deixá-lo ir? Simples assim? — pergunta


Babi, afastando-se de Monstro, para olhar em seus olhos.
Aproveito o momento e abro a mão, olhando para a
carta que tenho presa a ela, chamando a atenção dos dois
para a última frase do irmão deles para a qual não deram
importância imediata.
— Ele disse “Anna” — ralho, me afastando.
Ambos me olham zangados, mas não se aproximam,
então leio as palavras escritas no verso da carta em letras
de forma, destinadas a mim.

Preciso deixá-la para trás, mas ainda não. Não sem


uma última tentativa. E é aí que você entra. A carta é
para Marcela. Encontre-a para mim, eu sei que você
pode e, quando estiver com ela, lhe pergunte sobre a
fotografia, não se esqueça disso.
Com amor, Gustavo.
Ps.: Não me conformo com o fato de que escutei seu
verdadeiro nome pela primeira vez da boca do padre.
Helena é um lindo nome, Anna, você deveria usá-lo.

— O que diz aí?


Babi se inclina sem conseguir se controlar, mas
recolho o papel contra meu peito, balançando a cabeça
sem conseguir acreditar em seu pedido. Meu cunhado
fujão e covarde quer que eu abandone meu próprio
casamento para ir atrás de seu final feliz por ele, mas que
ousadia. Sorrio, agradecida por me livrar de mais fotos e
três dúzias de parentes distantes que olham para minha
cicatriz, como se eu fosse o Fred Krueger versão Barbie
Noiva, levanto meu vestido na altura das canelas e
disparo pela rua em direção ao carro alugado, quando
Bernardo, Malibu e Ian aparecem.
— Anna, aonde você vai? — berra meu marido,
alarmado.
— Fiquem e entretenham os convidados até que eu
volte, não sigam o Gustavo e façam xixi por mim — grito
por cima da minha cabeça.
— Nem pensar, eu vou atrás dele — confronta
Monstro.
— Não, você não vai — impede Bernardo, assentindo
para mim.
Seu olhar me diz que ele sabia do plano do amigo, e o
havia ajudado, os demais apenas me encaram confusos.
— Eu fui abandonado, gente? — escuto o anjo
perguntar ao longe.
— Se ela fosse te abandonar, não teria casado,
imbecil — ralha Babi, enganchando seu braço ao de
Malibu.
— O que a gente faz agora? — ele pergunta, quando o
motorista abre a porta para que eu entre.
— Toma um porre! — oferta Bernardo.
Eu também queria, mas tenho uma nova missão.
Nunca vi uma fada madrinha com a cara marcada, mas o
que me falta em varinhas, me sobra em autenticidade.
Passo para o motorista o endereço do antigo
apartamento de Marcela. Não tenho sorte, está vazio,
então tento seu escritório e vibro de alegria ao ver uma
luz fraca acesa, provavelmente de um abajur. Será que as
pessoas nunca se tocam de que luzes apagadas são
convites a invasores? Pelo amor de Deus, estou pensando
seriamente em escrever um livro de sobrevivência, ia
vender horrores. Agarro a maçaneta e abro a porta com
um tranco, fazendo um senhor gordinho pular de susto na
cadeira giratória que fica presa em seus quadris.
— Pai amado, você me assustou.
Caminho até ele e espalmo as mãos sobre a mesa,
fazendo com que ele se incline para trás, alisando a
gravata de borboletas vermelhas em um gesto ansioso.
— Cadê a Marcela? — pergunto, sem rodeios e sem
humor.
A cada minuto, minha bexiga se comprimia mais, eu
estava a ponto de me livrar do vestido dentro do carro
para fazer xixi em uma garrafa.
— Não posso dizer. — Ele cruza os braços e faz
beicinho. Estou a ponto de lhe dar um soco, mas me
contenho. — Se o bonitão quer saber dela, ele que vá
atrás.
— Ele foi atrás dela, mas Marcela sumiu no mundo
— exclamo, perplexa.
— O quê? Quando? — ergue os óculos, soando
confuso.
— Há mais ou menos um mês. Seu namorado se negou
a lhe contar onde ela estava. Seus telefones foram
desligados e nunca tinha ninguém aqui. Ele deixou um
convite do seu casamento com algo escrito para ela atrás,
mas ela nunca o procurou de volta.
— Onde esse convite foi deixado? — Ele afrouxa a
gravata, claramente constrangido.
— No apartamento onde ela morava.
Fala logo, homem, ou vou molhar o seu tapete, estou
avisando.
— Virgem Maria, eu vi esse convite. Estava no
apartamento que agora é do Zé Alfredo, mas eu não fazia
ideia de que era dele. Marcela não o viu. Ela abandonou a
profissão, voltou a trabalhar em uma editora há menos de
uma semana, e eu fiquei cuidando de tudo, mas quase
nunca fico aqui. — Ele se levanta rapidamente e agarra
meu braço, me puxando pela porta. — Temos que ir atrás
dela.
Me deixo ser arrastada e o vejo exclamar de surpresa
e encantamento ao encontrar minha limusine e meu
motorista nos aguardando.
Augusto e sua mania de grandeza. Por mim, eu ia até
de jegue se fosse para me casar com ele.
Cinco minutos depois, paramos em frente a uma
construção antiga, um sobrado muito bem acabado e
bonito. Ela esteve tão perto esse tempo todo. Saio do
carro no exato momento em que uma moto ronca e sobe a
rampa da garagem. O motociclista desce e se livra do
capacete, fazendo voar cabelos ruivos como fogo ao
balançá-los ao vento. Eu sei exatamente o que ele vê nela,
Marcela é incrível em todos os aspectos. Bom, menos nos
olhos, que posso ver que estão inchados mesmo de longe.
Corro em sua direção o máximo que meu vestido
permite. Ou seja, caminho feito um pato, enquanto ela me
aguarda na soleira da porta, devastada. Ela me olha e vira
o rosto, um sinal de que se sente fragilizada ao me ver,
mas não entendo o porquê, até que ela fala.
— Foi um casamento duplo? — Seu tom não chega a
ser sarcástico, mas está quase lá. Ergo as sobrancelhas,
estou confusa, e ela percebe. — Acabei de voltar da
igreja, e dona Ruth me disse o quanto seu filho estava
bonito no altar.
— Estava mesmo, lindo de morrer. — Quando seus
olhos se comprimem e um soluço escapa dos seus lábios,
entendo o que ela está pensando. — Meu marido estava
lindo — friso.
— Gustavo, ele não... — ela arfa e é obrigada a
caminhar para trás e se escorar na porta, mas, por pouco
tempo; seu amigo parte em sua direção e a ajuda a entrar
em casa.
Eu os sigo.
— Respondendo à sua pergunta, não — lhe conto,
vendo-a se sentar no sofá, embasbacada e sem reação. —
Ele não se casou com ela.
— Mas ele... — ela gagueja. — Ele me mandou um
convite. — Então, ela havia recebido. — Peguei-o ainda
há pouco na minha antiga casa e corri para tentar detê-lo.
Eu... eu cheguei tarde demais...
Ainda não, querida. Prazer, fada madrinha da cara
torta!
— Pegue o convite e leia o verso, por favor.
Me sento e espero que ela faça o que mandei. Sei de
cor as palavras nele, Gustavo as recitou como um mantra
nesse último mês nos meus ouvidos, já que eu era a única
em casa em período integral para ouvir suas lamúrias,
consolá-lo e assar bolos, um pequeno vício de sua
depressão.
Meus dedinhos estavam todos queimados.
— O que ele escreveu? — pergunta Arnaldinho.
Não espero que ela responda, já que fica claro que
não vai conseguir desgrudar os olhos de suas palavras tão
cedo, então recito para ele:

Eu te prometi um convite de casamento, e aqui está


ele. Esse papel em suas mãos é a prova do amor que
tenho por você, do que eu abandonaria por você. Venha
até mim e, em breve, você segurará em suas mãos o
convite do nosso felizes para sempre.
Venha armada com um sim, Marcela, porque a
primeira coisa que vou fazer quando te vir é me
ajoelhar.
Com amor, Gus.

— Onde ele está? — pergunta, afoita.


— Você não apareceu, então ele foi embora — conto
parte da verdade.
Quero ver sua reação. Caso ela não pareça a ponto de
se jogar em frente a um caminhão, não entregarei a carta,
ele não merece ser descartado mais uma vez se ali eu não
vir amor. Me levanto e caminho pela sala, vendo-a chorar.
Estou a ponto de lhe revelar a verdade quando algo chama
minha atenção em um porta-retrato de prata. A voz do
Gustavo invade minha cabeça: “Lhe pergunte sobre a
fotografia. Não se esqueça disso.” Mas eu havia me
esquecido.
Sinto, por um momento, que o chão se abriu diante
dos meus pés, a sala gira e agarro o porta-retratos, antes
de me esgueirar lentamente para o chão. Mamãe, que
saudade. Marcela corre em minha direção e se joga de
joelhos ao meu lado, tocando minha barriga com as duas
mãos. Ela se desespera quando começo a chorar.
— O bebê vai nascer, Anna? — sua voz sai
esganiçada.
Balanço a cabeça e lhe estendo a fotografia.
— Onde você conseguiu isso, Marcela?
Ela olha com carinho para minha mãe, enquanto levo
minhas mãos ao meu pescoço nu, em busca de algo que me
pertencia e, naquela imagem, estava no pescoço dela. Eu
havia lhe emprestado o cordão com o medalhão da
santinha no dia do parto de Nicholas.
— É minha irmã. Quando meus pais morreram,
descobri uma carta que meu pai nunca chegou a abrir. Uma
senhora, Helena, lhe contava que ele havia tido uma filha
com ela.
Fecho os olhos e tento absorver rapidamente suas
palavras, querendo que elas façam sentido para mim.
— Gus me levou para procurá-la no interior de São
Paulo, mas essa foto e uma corrente foram tudo o que
encontrei. Parece que um homem as matou.
Ela retira as fotos da minha mão completamente e
alisa o vidro.
— Ela deve estar morta... — lamenta, voltando a
soluçar, dessa vez, por mim.
— Não, eu não estou — sussurro, chocada, fazendo
com que ela arqueje. — Essa menininha sou eu, Marcela,
Helena era minha mãe. Mas não posso ser sua irmã,
porque o homem que tirou a vida dela era meu pai.
Ela não responde, ao invés disso, pula sobre o meu
pescoço em um abraço firme e apertado, que retribuo
desajeitadamente, ainda sem conseguir assimilar os fatos.
Quando ela se reclina para trás, alisa meu rosto com as
duas mãos e o beija. Ela beija exatamente por cima da
minha cicatriz, fazendo com que eu me espante e me
maravilhe ao mesmo tempo, depois se levanta e me puxa
consigo.
Marcela remexe em uma gaveta da cristaleira e me
entrega uma carta. São, claramente, palavras da minha
mãe revelando um segredo sobre o qual eu não fazia ideia.
Então, entendo muitas coisas: por que sempre fui preterida
por Heitor, seu inexplicável carinho por Nicholas, e os
olhares sonhadores que eu podia jurar ver minha mãe
lançar para os campos.
Sim, esse era, definitivamente, o melhor dia da minha
vida.
Capítulo 52 - Lucas

“Quando Deus me perguntar por que matei o maior


milagre dele, o que vou responder?”
Filme À espera de um milagre

Perdão

Nunca cogitei a hipótese de que voltaria a ver


Marcela depois que fui embora de sua vida. Cometi
muitos erros que me faziam ser indigno de sequer querer
estar no mesmo ambiente que ela. Eu não queria vê-la.
Me casei com Marcela mesmo sabendo que seu
coração era de outro homem. Eu a traí mesmo sabendo
que ela nunca teria coragem de fazer o mesmo. Ingeri
bebida alcoólica e dirigi com sua família dentro do carro
mesmo sabendo dos riscos.
Como se encara alguém de quem você tirou tudo?
Não há uma resposta honesta e fiel para essa
pergunta. Eu sei que não consegui. O ódio e a revolta
brilharam dentro de seus olhos cinzentos, desde o instante
em que abri os meus depois do coma até o momento em
que olhei para trás ao sair do hospital, sendo empurrado
na cadeira de rodas por Heloisa.
Eu escolhi a saída mais fácil, abandoná-la.
Preferi uma vida ao lado de uma mulher que eu não
havia destruído, a mesma mulher que me presenteou com
uma filha, quando eu não merecia nem minha própria vida
por ter matado a família de Marcela. Não suportei
conviver com a culpa do que havia feito. Não suportei
viver ao seu lado sabendo que fui eu o responsável por
matar tudo o que florescia em sua existência. Não suportei
o peso dos meus próprios erros.
Como eu disse, cometi muitos.
Virar as costas para ela talvez tenha sido o pior deles,
e descobri isso da pior maneira, quando nosso antigo
síndico me ligou dizendo que ela havia tentado cometer
suicídio. Fui buscá-la, mesmo que minha esposa tivesse se
oposto e, ao invés de cuidar dela, internei-a em uma
clínica por quatro meses. Não a visitei, apenas paguei.
Não estava lá quando ela saiu sem rumo, sem carreira,
sem amigos ou família, apenas me abstive.
Eu não merecia seu perdão, não ousava nem almejá-
lo.
Então, um milagre aconteceu.
Capítulo 53 - Marcela
“Me devora, me consome
Quando some
Eu fico louco a procurar.
Vou na sombra,
Mergulho na escuridão
E sem aviso, você volta pra me iluminar”
Jorge e Mateus

Uma fotografia, um reencontro e um


milagre

Anna chora silenciosamente enquanto lê a carta, e eu


faço o mesmo. Quando termina, ela me entrega outra,
destinada a mim. Reconheço a letra de Gus
instantaneamente, por isso me recuso a abri-la em um
primeiro momento.
— Teremos muito tempo para nos conhecer, Marcela
— ela funga e enxuga o rosto com um dos dedos
delicadamente, depois alisa a barriga redonda. — Mas
essa é sua última chance de ficar com ele.
— Estou com medo, Anna — sussurro, olhando
novamente para o papel.
— Helena, meu nome verdadeiro é Helena, acho que
você precisa saber disso. — Ela ri e agarra minha mão,
levando-a até sua barriga. — E essa é Angélica, sua
sobrinha.
Sorrio em meio às lágrimas, que ainda escorrem pelo
meu rosto.
— Você nunca mais ficará sozinha outra vez, nem eu.
Você não sabe o quanto desejei uma família e sei que
carece do mesmo. Nosso sangue nos une, e quero que
laços maiores se criem.
— Isso é tão lindo — exclama Arnaldinho, com os
olhos inchados.
Ele retira um lencinho azul bebê do bolso interno do
paletó e seca os olhos, sorrindo em nossa direção.
— Sei que você é minha irmã mais velha, Marcela,
mas escute meu conselho. Gustavo lhe deu tudo o que ele
tinha de bom, cada pedacinho de gentileza, amor e
carinho. Ele merece, ao menos, que você abra essa carta.
— Seu incentivo é um bálsamo para minhas dúvidas,
desdobro a carta e um papel grosso cai de dentro dela.
— É uma... uma... — gaguejo. — Isso é uma
passagem de avião para a Inglaterra — sussurro. Olho
para a carta e leio suas palavras.

Tem algo mais romântico do que ser pedida em


casamento em um aeroporto? Estarei te esperando no
desembarque do London Heathrow no horário de
chegada do seu voo. Ainda pretendo me ajoelhar. Mas,
se você não aparecer, vou saber que não compartilha do
mesmo amor que eu e vou entender, então nunca mais
vai ouvir falar de mim.

— O que você vai fazer agora, Marcela? — pergunta,


de forma ansiosa, minha irmã linda, grávida e com a
maquiagem toda borrada.
Encaro a passagem, o voo era naquela noite. Não
havia tempo para pensar, apenas para fazer as malas.
— Eu vou para a Inglaterra dizer sim para esse
homem! — grito, me levantando.
Ela bate palmas, e Arnaldinho passa a chorar
copiosamente, por me perder ou por finalmente se livrar
de mim, temo nunca saber.
— Graças a Deus, isso é lindo — parabeniza,
exultante. — Agora, antes que eu te ajude a fazer as malas,
preciso te pedir um favor...
***
— Puta que pariu, para que tanto pano, Anna? —
resmungo, tentando puxar o máximo que posso de babados
sobre sua cabeça para que ela consiga fazer xixi com o
vestido de noiva. Ela era minha irmã há apenas alguns
minutos, e eu já tinha uma bela visão da sua periquita. Isso
que era apego instantâneo.
— Ainda bem que a gente só casa uma vez, porque eu
vou tacar fogo nessa merda! — devolve, mais aliviada.
Pela próxima hora, nos ocupamos em fazer a minha
mala. Bom, Anna se ocupa de fazer minha mala, eu me
ocupo de pegar os objetos do chão antes que eles caiam,
quando seu vestido imenso esbarra em alguma coisa.
Quando ela, finalmente, fecha o zíper, me jogo novamente
em seus braços magros e sou abraçada com firmeza. Para
alguém tão pequena, ela era bem forte. Onde Anna estava
quando eu arrumava brigas no colégio?
— Boa sorte, minha irmã, mal posso esperar para que
você volte — sussurra, emocionada.
Ela beija meu rosto, e eu sorrio.
— Dessa vez, vai dar certo! — exclamo, caminhando
pelo corredor, arrastando minha mala atrás de mim em
uma das mãos e apertando firmemente a passagem de
avião com a outra.
Beijo e abraço meu melhor amigo e olho ao redor, me
despedindo em silêncio da minha família, me sentindo
pronta para partir atrás da minha felicidade e de duas
covinhas alucinantes.
Depois de tantas tentativas, simplesmente não tinha
como algo dar errado. Ou foi o que pensei antes de ouvir
a campainha e abrir a porta para encarar o meu passado.
De todas as pessoas que eu poderia cogitar estarem atrás
da minha porta, meu ex-marido e um fantasma eram os
mais improváveis.
— Lucas? — pergunto, com o sorriso desaparecendo
do rosto.
Meu ex-marido me olha com receio, ombros
retesados e postura dura. O mesmo homem mecânico que
ele havia se transformado depois do acidente, com apenas
uma única diferença: um brilho novo no olhar que me
incomodava e intrigava ao mesmo tempo. Era quase como
se... como se parte da sua culpa tivesse sido retirada com
as mãos por alguém de bom coração.
— O que você faz aqui?
Minha intenção era contemplar por mais um curto
período de tempo meu passado, antes de lhe dar adeus
definitivamente para entrar em um avião e voar, mas meus
olhos foram fisgados por outro olhar, um olhar conhecido.
Pequenos olhinhos ansiosos, alegres e vivos que se
escondiam atrás de seu corpo.
— Marcela — sussurra, emocionado, me lançando um
resquício de sorriso.
Sua postura relaxa e ele parece aliviado por me
encontrar. Se eu fosse julgar, diria que ele se permitiu
respirar pela primeira vez em quase sete anos. E eu? Eu
não ousava nem me mexer, quanto mais respirar, tamanho
o medo de que a miragem que eu tinha na minha frente
pudesse desaparecer para sempre. Eu não suportaria.
Nas muitas noites em que minha intenção era me
torturar, me peguei pensando se eu seria capaz de
reconhecer meu filho, mesmo depois de tantos anos, se
por milagre tivesse a oportunidade de vê-lo mais uma vez,
mesmo que em espírito. Eu acreditava que meu amor era
imenso o bastante para conseguir.
Eu estava certa.
Posso distinguir as vozes das pessoas ao meu redor.
Arnaldinho está chamando todos os seus santos, minha
irmã arqueja confusa, e Lucas tenta me explicar como
aquilo é possível, mas não consigo, de fato, compreender
nem uma única palavra do que dizem.
O motivo não importava, eu tinha recebido um
milagre.
Olho para trás em busca do olhar de Anna. Minha
irmã está visivelmente aturdida, mas sorri, demonstrando
o quanto é afetuosa e sensível. Depois, busco novamente o
olhar que havia chamado a minha atenção, ainda sem
conseguir acreditar em tamanha felicidade que me é
oferecida pelo homem que me tirou tudo.
Em um primeiro momento, minha reação foi apenas
olhar para o céu e pensar: Obrigada, Deus, por sorrir
para mim. Depois, deixei que o furacão de sentimentos
que estava ganhando força dentro de mim viesse à tona.
Surpresa. Medo. Incredulidade. Amor. Receio. Saudade.
Por fim, felicidade. Quando o último sentimento chegou,
trouxe consigo minha voz:
— Bento? — seu nome não passava de um sussurro,
tamanho o medo de ele não ser real.
Ele sorri, assentindo, e irrompe em prantos
emocionado. Um choro infantil de carência e lealdade,
que é a razão de meus braços se abrirem rapidamente, sem
que eu nem mesmo me dê conta do movimento. Meu filho
salta do chão diretamente para meu abraço, molhando meu
rosto com as suas lágrimas, e eu o envolvo fortemente,
ainda temendo que ele se transforme em fumaça e
desapareça.
Não sei quanto tempo se passou até que eu tivesse
coragem o suficiente para soltá-lo parcialmente e afastá-
lo pelos ombros para admirar seu rosto. Ele estava tão
grande. Meu bebê havia se transformado em um pequeno
rapaz encantador e doce.
Ele ainda tinha os mesmos olhos abrasadores do pai.
— Mamãe — sussurra sem parar, alisando meu rosto,
como se nunca tivesse visto alguém tão bela.
Ele sorri e chora. Entrelaça as mãozinhas no meu
cabelo e se joga sobre mim mais uma vez.
— Minha mamãe. Eu tenho uma mamãe. — Seus
murmúrios sofridos me despedaçam.
O que havia acontecido com meu filho em todos esses
anos em que pensei que ele estivesse morto?
— Não me deixa, mamãe — implora meu filho,
olhando para o chão, notando a mala que soltei quando o
vi, me apertando com mais força.
Ele funga amedrontado.
— Eu sabia que você estava em algum lugar, sempre
soube. Não me deixa agora que eu te achei, mamãe.
Me levanto ainda sem soltá-lo e o ergo. Bento
entrelaça suas pernas na minha cintura e beijo seu rosto
repetidas vezes para acalmá-lo.
Lucas olha para minha mão com atenção e lê o que diz
na passagem de avião, franzindo o cenho.
— Ele não pode sair do país, Marcela. Não enquanto
a investigação do que aconteceu não terminar, eu sinto
muito — lamenta, como se eu realmente me importasse
com qualquer outra coisa além do fato de ter meu filho de
volta sob a minha proteção e o meu amor.
É quando me lembro de que me importo com mais
alguém. Seu pai. Não o homem que o devolveu, mas, sim,
o que me deu aquele ser por quem eu seria capaz de
morrer e por quem eu, de fato, havia morrido por anos a
fio.
Nenhum final feliz custa barato. Naquele dia, eu havia
recuperado parte da minha família e, em contrapartida,
seria obrigada a abandonar meu príncipe pela última vez.
O encantado que me esperaria na manhã seguinte
ajoelhado em um aeroporto.
Como ele se sentiria quando todos os passageiros
desembarcassem e visse que eu não estava entre eles? Me
odiaria? Eu esperava que não.
Meu coração se reconstrói e se parte vez após vez,
em questão de milésimos de segundo. Aperto com força a
passagem aérea que tenho nas mãos, me despedindo
silenciosamente, e a solto.
— Eu não vou a lugar algum, Bento — sussurro minha
promessa com a voz embargada. — Nunca mais vou me
separar de você, filho.
Ele estremece de alívio, e eu volto a beijá-lo.
— A mamãe está aqui. A mamãe sempre esteve aqui,
à sua espera.
Me perdoa, príncipe, por tirar nosso filho de você
mais uma vez, sussurro baixinho, sentindo minhas
palavras se misturarem ao vento, torcendo para que a
brisa suave daquela noite de verão viaje pelos céus e
chegue até ele, lhe beije o rosto e cuide de seu coração
partido por ser, mais uma vez, abandonado por sua Branca
de Neve. Depois, me viro e passo pela porta de madeira,
decidida.
Entro em casa carregando o melhor pedaço do meu
encantado nos braços. O nosso milagre, e também o
porquê daquele amor não poder ser vivido, ainda.
Capítulo 54 - Marcela

“Para continuar vivendo, preciso da


parte de mim que não está em mim, mas
guardada em você.”
Caio Fernando Abreu

O felizes para sempre da Branca de Neve


e do Príncipe Encantado

Um ano depois, Dublin - Irlanda


Não foi difícil encontrá-lo. Uma vez detetive
particular, sempre enxerida. Acompanhei seus passos
rigorosamente pelos relatos da minha irmã e das minhas
novas melhores amigas – uma dupla de loiras que passou
a completar minha vida, juntamente com um gordinho com
uma leve quedinha por um bom drama mexicano e seu
namorado boa-pinta. Mas, fora isso, eu era ótima em
rastrear registros bancários. Um pequeno segredinho
aprendido ao longo da minha vida no crime. Sim, já fiz
mais do que invadir uma casa para roubar um punhado de
ternos de péssimo gosto e dois cães esnobes.
Por mais, quero dizer que aprendi a fazer ouvindo
uma conversa no buzão. Mas não vamos tirar o mérito dos
meus ouvidos apurados e da minha inteligência para
repetir todos os passos e, ainda por cima, acertar.
Paris era incrivelmente linda, mas eu estava tão
nervosa que mal notei a Torre Eiffel, eu o perdi lá, duas
vezes. Depois, mais uma vez na Espanha, e outra em
Portugal.
Dessa vez, eu não ia deixá-lo escapar.
Avisto o hotel em que Gus está hospedado no exato
momento em que ele passa pelas portas, ganhando a rua.
Ele para e olha para o mapa aberto em suas mãos com
interesse e confusão, distraído, enquanto eu procuro um
lugar para me esconder. Olho ao redor e encontro um
cartaz enorme proveniente de um café de esquina; não
penso, apenas pulo atrás dele e me agacho, segurando
firmemente o que tenho nas mãos.
Ergo a cabeça o suficiente para admirá-lo. Gus
continua lindo. Meu coração, já meio ruim das pernas,
começa a bater forte dentro do peito, minhas mãos suam e
meus urubus dizem olá batendo suas asinhas negras dentro
de mim com afinco. Eu estava com tanta saudade dele. Vê-
lo é o suficiente para que eu seja invadida por um
turbilhão de sentimentos, bons e ruins. Amor, esperança,
medo, apreensão, receio.
Um ano era muito tempo.
Tanta coisa poderia ter mudado, e se ele não me
amasse mais?
Sou obrigada a deixar essa pergunta para outro
momento quando ele, finalmente, se decide. Para minha
sorte, ele opta por caminhar em minha direção.
Novamente, não tenho muito tempo. Respiro fundo, fecho
os olhos e salto do meu esconderijo sobre ele, fazendo-o
tropeçar e cambalear para trás de forma aturdida.
Velhos hábitos nunca mudam.
Gus levanta a cabeça e seus olhos se arregalam ao me
ver. Se eu cheguei a sonhar com um abraço caloroso e um
beijo roubado no calor da emoção, eu estava equivocada.
Seu olhar revela apenas ressentimento e surpresa. Nada
bom, penso comigo mesma. Seus olhos se estreitam, e ele
dá um passo incerto em minha direção, sem desviar o
olhar do meu. Suas mãos se erguem, depois voltam a cair
ao lado do corpo. Como se tivesse desistido de me saudar
com um abraço e pensado melhor, optou por guardar
ambas as mãos no bolso do sobretudo e me estudar com
apatia.
É, realmente ele não ia facilitar a minha vida.
— Marcela? — pergunta em um fio de voz.
— Gus. — Sorrio, dando de ombros, sorriso esse que
ele não devolve.
— Seus olhos... — Faz uma pausa e me olha com
mais intensidade. — O que houve com seus olhos? Eles
estão... vivos... — Ele parece confuso e maravilhado ao
mesmo tempo. — Eu vejo um oceano brilhando no seu
olhar.
— Um milagre — murmuro, mordendo os lábios para
evitar as lágrimas. — Aconteceu um milagre.
Ele assente, mesmo que não entenda. Percebe que
esteve ao ponto de derrubar todas as barreiras que nos
separam e ainda não se sente pronto para tanto,
escondendo a fascinação por meus olhos azuis de
imediato.
— O que você faz aqui? — questiona, desafiador.
Sua voz dura e fria faz com que eu me encolha de medo e
perca a fala. — Veio entrar na minha vida para me
abandonar mais uma vez? — pergunta, com mágoa,
fazendo com que meu coração afunde dentro do peito.
— Eu não sou mais a mulher que te abandona,
Encantado — respondo, tomando fôlego, criando
coragem. — Eu sou a mulher que te encontra.
Ele arfa, surpreso com minha resposta, mas tenta
esconder suas emoções, desviando o olhar para o céu
límpido acima de nós, enquanto eu não tiro os meus olhos
dele.
A vontade que tenho de pular em seus braços e beijá-
lo, nem que seja a força, me consome como labaredas de
fogo, mas não quero ser presa por assédio em um país
estrangeiro, minha advogada criminalista tinha ficado no
Brasil, roendo as unhas de apreensão por meu plano
maluco de reaver meu Príncipe Encantado.
— O que você realmente está fazendo aqui, Marcela?
Sua voz está impassível, mas seus lábios tremem,
traindo-o, denunciando seu nervosismo e o fio de
esperança que se permite abrigar. Ele ainda me ama,
posso sentir. Talvez seja apenas dor de barriga
proveniente de ansiedade, mas gosto de pensar que o que
se remexe dentro de mim, além de um bando de urubus, é
um sexto sentido apurado que fareja saudade.
— Vim te contar um segredo que deveria ter te
contado há dez anos. — Firmo mais o aperto no punho do
garotinho que tenho escondido atrás das costas, o
garotinho que ele ainda não notou. Gustavo me encara,
perplexo e confuso. Vejo a indecisão e o amor reprimido
em seu olhar, travando um duelo. Antes que um deles
possa vencer a batalha, lhe conto a verdade. — Você tem
um filho — anuncio, puxando Bento até que ele esteja
diante de nós.
Eu pensei que ele me faria perguntas ou duvidaria das
minhas palavras, mas não é o que acontece. Nunca é o que
acontece. Os olhos do meu príncipe marejam de imediato
e suas mãos são levadas até os lábios, enquanto ele olha
fixamente, perplexo, para nosso filho. Ele pisca sem
conseguir acreditar no que está vendo diante de seus
olhos.
— Bento? — sussurra, com duas lágrimas rolando,
sem se importar com a plateia que se juntou à nossa volta.
Gustavo não parece envergonhado por estar tão
emocionalmente abalado. Pelo contrário, ele não vê mais
ninguém além do garotinho que responde à sua pergunta.
— Papai — murmura, encantado com o homem na sua
frente, como se olhasse para um de seus sonhos em carne
e osso. — Não acredito que achamos você!
Nosso filho se joga sobre ele sem esperar por um
convite. Quando Gus escuta sua voz, cai de joelhos no
chão, abrindo os braços para ganhar o tão sonhado abraço
da criança que acreditava ter perdido antes mesmo de
conhecer. Seu choro deixa de ser silencioso e passa a ser
avassalador, abafado e incrivelmente belo.
— Papai. Papai. Papai — repete Bento, vez após vez.
Acho que ele gosta daquela palavra, assim como gosta de
repetir mamãe.
Quanto tempo ele esperou para poder dizê-las em voz
alta? Eu não sei, mas sei que jamais nos cansaremos de
ouvir.
Contemplo o abraço dos homens da minha vida tendo
a certeza de que nunca vi uma cena mais emocionante do
que aquela. Percebo que tudo aconteceu por uma razão.
Gustavo tinha que se esquecer da noite que passamos
juntos. Eu tinha que fugir com uma criança no ventre.
Bento tinha que morrer, porque nós dois tínhamos muito o
que aprender. Quando, finalmente, estávamos prontos, ele
nos foi devolvido. Aquele abraço entre pai e filho tardou
a acontecer, mas não poderia ter sido mais perfeito.
Escondo o rosto nas mãos, me dando conta das
minhas próprias lágrimas, e me surpreendo quando sinto
um braço envolver meu ombro e me puxar até eles. Sou
incluída naquele abraço mágico pelo homem dos meus
sonhos, que beija meus cabelos sem soltar nosso filho.
Gustavo o ergue e o pega em um de seus braços, me
apertando forte com o outro.
— Como isso é possível? — sussurra, com a voz
embargada. Mas ele me cala antes que eu responda. —
Não quero saber, não agora.
Pisco repetidas vezes, tentando desembaçar minha
visão coberta de água salgada e o encaro, com receio do
que ele vai fazer em seguida.
— Tudo o que eu preciso saber, agora, é se você
aceita ser minha mulher.
Arfo, levando uma das mãos ao coração.
— Vocês são a minha família, Marcela, por favor,
sejam a minha família — implora.
— Você ainda quer... você ainda vai me pedir...
você... — gaguejo, surpresa.
Nem em meu melhor sonho acreditei que o carregaria
ao altar tão rápido, sem nem mesmo precisar pegar a arma
do seu melhor amigo delegado para um leve incentivo.
— Ou eu te peço em casamento e você aceita,
Marcela Cantagallo, ou serei obrigado a aceitar o
conselho do meu irmão e te colar em mim com Super
Bonder — resmunga, revirando os olhos. — Pelo menos,
assim, vou ter certeza de que você não vai fugir nunca
mais.
— Por falar no azedo, será que pode me emprestar
uma grana? — pergunto, distraidamente. — Devo quase
um carro popular para ele em viagens. — E muita, muita
gratidão por ele ter financiado minha busca por seu irmão.
Não que ele não tenha me dado um esporro todas as
vezes em que liguei para lhe contar que o havia perdido,
mas ele pagou cada centavo.
— Eu dei um casamento para ele, sua dívida já está
mais do que paga — conta, rindo. — Mas não foge do
assunto, garota problema que sempre abala o meu mundo.
Você quer se casar comigo?
Ele sempre foi bom demais para ser de verdade, e
temo que, de fato, não seja, temo que tudo seja um sonho,
mas ele me prova o quanto é real ao se ajoelhar diante de
mim, colocando nosso filho sentado em uma de suas
pernas, e agarrar minha mão, me olhando com expectativa.
— É claro que sim! Afinal, por qual outro motivo nós
teríamos atravessado o país por você? Viemos te levar
para casa!
Gus se levanta e me toma em seus braços
apaixonadamente, com um sorrisinho zombeteiro nos
lábios.
— Você nunca desistiu de mim, não é? — pergunto,
fascinada.
— Prometi que, se você não pegasse aquele avião,
nunca mais ia ouvir falar de mim, não prometi te esquecer.
Eu nunca desisti de você, Branca de Neve.
Ele sorri abertamente, me mostrando as duas covinhas
das quais quase morri de saudade.
— Nunca. — Gus me beija com intensidade, me
tirando do chão. O contato só é interrompido quando
Bento pigarreia.
— Eu amo vocês, amo muito, mas estão me deixando
com vergonha — murmura, dando de ombros com um
sorriso travesso nos lábios.
Crianças.
Quando você pisca, já cresceram!

Fim
Parte V

Eu aconteci. Eu, o filho da Branca de Neve e do


Príncipe Encantado.
Eu, o menino que sempre quis ser filho de uma
princesa e fazer parte de um conto de fadas com final
feliz. O menino que se escondeu atrás da porta para ouvir
uma história e, a partir daquele dia, desejou todas as
noites um papai e uma mamãe de verdade.
Eu, o menino que sempre sonhou em ter um lar, uma
família.
Eu, o filho da Marcela Cantagallo e do Gustavo
Bittencourt.
Eu, Bento, o garoto mais sortudo do mundo. O mais
bem agradecido pelos esbarrões que permearam a vida
dos meus pais e por todo amor que sempre os uniu, o
mesmo amor que me trouxe de volta.
Eu, a prova viva de que o amor é real.
Eu, apenas eu, eles e nosso final feliz.
Epílogo – Bárbara

Sempre me considerei uma advogada criminalista


incrível. Era a profissão dos meus sonhos. As brechas na
lei, a aura intimidativa de uma delegacia de polícia, a
astúcia para lidar com um juiz e a sensação de poder ao
pisar em um júri popular e convencer a todos os presentes
de que eu estava certa; eu amava tudo aquilo. Meus
irmãos sempre me recriminam por causa da minha
profissão, me chamando de advogada de porta de cadeia,
mas, incrivelmente, eu era sempre a primeira a receber
uma ligação clamando por ajuda. Ajuda essa que nunca,
sublinhe esse nunca aí no mínimo duas vezes, era paga.
Mas, daquela vez, eu nem ao menos reclamei.
Aquele era meu maior e mais importante caso.
Marcela me procurou um dia depois de descobrir que
meu sobrinho Bento estava vivo e me deixou a par de tudo
o que seu ex-marido havia lhe contado. Há mais ou menos
dois meses, um novo arquivista começou a trabalhar no
hospital para onde todos haviam sido levados após o
acidente de carro que vitimou parte de sua família, bem
como a família que estava no veículo com o qual eles
colidiram, um casal e um garotinho da idade, cor e porte
físico de Bento. Todos morreram na hora, menos Lucas e
um dos garotinhos.
Os socorristas cometeram um erro ao trocar a
identificação das duas crianças.
Bento chegou ao hospital sem nenhum arranhão, mas
com outro nome. Para todos, ele era o filho do casal
falecido, um casal que não possuía mais família, e foi
encaminhado para o conselho tutelar, passando a morar
em um abrigo em São Paulo por algum tempo com outro
nome, foi realocado para uma dúzia de lares adotivos,
mas não se adaptou a nenhum deles. Sempre teve a crença
de que seus pais estavam em algum lugar lá fora, à sua
espera, mesmo que todos lhe dissessem o contrário.
Ele estava certo.
Determinado dia, as pastas desse acidente pararam na
mão do bendito arquivista, um garoto curioso e muito
honesto que, de imediato, percebeu uma discrepância
entre as duas crianças socorridas. A distinção do tipo
sanguíneo em um exame feito em Bento antes de sua alta
não batia com o da certidão de nascimento na ficha, mas
batia com o da certidão do garotinho que julgavam ter
morrido. Ele levou o caso aos seus superiores, que, por
sua vez, levaram ao seus superiores que, por sua vez,
quiseram abafar o assunto. Foi quando o garoto foi até
uma delegacia e jogou toda a merda no ventilador.
Muitas pessoas foram envolvidas, e Bento foi,
finalmente, encontrado.
Lucas era o contato de emergência dele no hospital, e
foi para ele que o delegado de polícia ligou com a notícia
de que seu filho estava vivo, já que, na época, Marcela
teve que ser internada em outro hospital, em choque por
suas perdas. Ela não chegou a olhar o corpo do bebê que
enterrou, muito menos Lucas, que permaneceu em coma
por quase trinta dias depois do acidente. Ele contou a
Marcela que, em um primeiro momento, se recusou a
acreditar e ameaçou não ir conferir, não queria reviver
aquela história, mas sua nova esposa o aconselhou a
ceder, afinal, poderia ser mesmo Bento, e era.
Era seu nome que permanecia na certidão de
nascimento do meu sobrinho, e Lucas não encontrou
dificuldades em lidar com a situação sozinho. A certeza
de que era mesmo Bento veio por conta de uma marca de
nascença comprovada à justiça por meio de uma
fotografia. Quando ele teve permissão para retirá-lo do
abrigo, enfiou-o no carro e o levou até Marcela
imediatamente. Ele era a sua absolvição.
Tudo casou perfeitamente.
Se Marcela não tivesse se mudado de volta para a
casa dos pais para se reencontrar após a briga com meu
irmão, Lucas teria batido com a cara em uma porta
fechada e não saberia como encontrá-la. Se ela tivesse
chegado a tempo de encontrar Gustavo no casamento do
nosso irmão mais velho, teria pego um avião com ele e
novamente perderia a chance de reencontrar o filho. Se eu
não tivesse metido meu bedelho onde não deveria, meu
irmão não seria o homem mais feliz e realizado dentro de
um perímetro de um universo inteiro.
Para resumir, eu fiz tudo, e ele deveria me agradecer.
Se possível, com potes e mais potes de sorvete de
café, algumas flores e um cartão de crédito sem limites.
Principalmente depois de eu perturbar tanto a vida de um
certo juiz para autorizar a saída do meu sobrinho do país
para que Marcela pudesse procurá-lo. Eu tinha até
ganhado uma ordem de restrição que havia emoldurado
com orgulho e pendurado na minha parede do escritório
por conta de tanta insistência. Eu seguia o homem até na
porta do banheiro, me tornei sua sombra. De onde ele
tirava seu pé, eu colocava o meu. Nunca vou me esquecer
da carranca zangada em seu rosto quando ele acordou de
um cochilo na praia e me viu sentada na pontinha de sua
canga, balançando um pote de filtro solar nas mãos de
maneira solícita, vestindo meu melhor terninho.
No final das contas, o tal juiz autorizou a viagem,
depois de eu garantir que ele nunca mais veria minha cara
outra vez. Ele ficou bem animado com a promessa, mas
não se convenceu. Tá aí o motivo da tal ordem restritiva.
No começo, apenas eu e Anna sabíamos, e Deus tem
noção do quanto foi difícil segurar minha língua por tanto
tempo. Depois de seis meses, anunciei em um megafone e
tratei de apresentar Bento para a família com o
consentimento e a presença de Marcela, desde que eu
garantisse que ninguém ia bater com a língua nos dentes
para Gustavo antes da hora. Ela queria que o reencontro
fosse especial, e todos nós concordamos. Monstro até
pagou pelas despesas. Afinal, ela era sua cunhada duas
vezes.
Um anos depois, ela voltou com meu irmão na mala
de Dublin.
O relacionamento deles finalmente engrenou quando
regressaram, Gustavo abriu sua própria empresa de
arquitetura, se mudou para a casa de Marcela e foi morar
com sua família e, juntos, tentavam recuperar o tempo
perdido com seu filho. Bento era um menino incrível,
meigo e gentil, extremamente parecido com meu irmão.
No começo, pensei que ele precisaria de aconselhamento
psicológico, que deveria ter uma carência sem tamanho e
uma insegurança patológica depois de viver por anos
sendo cuidado pelo governo, mas não demorei muito para
perceber o quanto eu estava errada.
Bento tinha uma força de espírito descomunal, era
loucamente apaixonado pelos pais e irrevogavelmente
grato por ter uma família que o idolatrava. Os três eram
perfeitos juntos. Gustavo e Marcela se esforçavam para
ser os melhores pais que ele poderia ter e, em
contrapartida, ele lhes oferecia todo o amor que guardou
por anos.
Ele foi recebido na família com festa e emocionou a
todos com sua simpatia e carisma, fora que era uma babá
incrível, que eu não precisava pagar.
Quanto à Camila, bom, essa é uma história engraçada.
Estávamos todos reunidos na casa da vovó para um
almoço de domingo, quando a campainha tocou. Minha
mãe foi abrir a porta e voltou com aquela mulher a
reboque para dentro de casa, levando-a até o jardim.
Sempre avoada, nem se tocou de quem era, de fato, aquela
mulher.
— Olá, Gustavo — disse, caminhando até meu irmão,
deixando todos incrédulos com sua ousadia. — Fiquei
sabendo que voltou para o país e vim pessoalmente lhe
entregar meu convite de casamento com Gael — conta,
cheia de si, com um sorriso de escárnio. — Seria muita
falta de educação minha não convidar você e a orca que
você cria dentro de casa para a cerimônia.
Ela assinou o atestado de óbito dela ali.
Gustavo cerrou os punhos e teve que mordê-los para
não esbofeteá-la. Não sei precisar qual de nós ficou mais
puto da vida, mas Monstro foi o que mais gritou.
Anna, Marcela e eu nos entreolhamos, tendo uma
conversa séria e silenciosa para decidir qual de nós três
arrebentaria a cara daquela safada. Éramos malucas, mas
não jogávamos sujo, apenas uma poderia se divertir e
deveria, explicitamente, descontar a raiva pelas outras.
Ainda estávamos debatendo, enquanto Monstro gritava um
desaforo mais eloquente do que outro, mas fez-se o
silêncio quando o estalido de um tapa foi ouvido.
Nós voltamos para o som e encontramos minha mãe
balançando a mão como se estivesse doendo, e Camila
esfregando o rosto em meio às lágrimas raivosas.
— Ah, então foi você, não é? Vou te ensinar a não
mexer com nenhum dos meus bebês!
Todos nós nos sentamos para ver nossa mãe, sempre
avoada, voltar de sabe lá Deus onde, para dar uma surra
merecida em Camila. Quando ela terminou, minha avó
pegou a safada pelo braço e a levou até a porta,
expulsando-a de nossa casa, enquanto dávamos os
parabéns para uma dona Ruth bem satisfeita.
Dias depois, seu casamento milionário com Gael saiu
em todas as colunas sociais. Tínhamos que admitir que
aquela mulher era ardilosa no final das contas, mas não
era muito esperta, porque as mesmas colunas anunciaram
o fim da relação quando ele foi flagrado saindo de um
motel com duas prostitutas.
Como diz o ditado: aqui se faz, aqui se paga,
queridinha.
Esse, provavelmente, deveria ser o exato momento em
que eu terminaria meu relato, mas eu não me chamaria
Bárbara Vitorazzi se não fizesse questão de narrar o olhar
do noivo no dia de seu casamento, certo? Que tal se eu
adiantasse o tempo em mais alguns meses e contasse como
foi o casamento do último Encantado do trio?

O casamento e o cavalo branco!

— Como você se sente casando o último dos seus


netos, vovó? — pergunto, enganchando meu braço ao seu,
quando pisamos na grama com um sorriso aberto nos
lábios, fazendo com que ela revire os olhos, fingindo uma
reprovação que não existe.
— Exausta — reclama, com um suspiro exagerado. —
Nunca pensei que vocês fossem dar tanto trabalho para
encontrar o bendito cavalo.
— Arrependida de encher nossas pobres cabecinhas
com essa história? — pergunto, achando graça, quando
chegamos ao começo do tapete azul-marinho e nos
juntamos ao resto da família.
— Estou é arrependida de não ter usado mulas, teria
sido bem mais rápido. Vocês tiveram uma coleção delas
no passado.
Rio e beijo seu rosto afetuosamente.
Então, a cerimônia começa. Eu e Ian somos o
primeiro casal a caminhar até o altar improvisado no
campo de futebol de um grande sítio; seguidos por Malibu
e Bernardo, que foi o maior responsável por ajudar
Marcela a rastrear os passos do meu irmão; depois é a vez
de nosso pai e vovó. Então, o casal sensação ganha a
noite, Arnaldinho desfila agarrado ao braço de Zé
Alfredo, vestindo um terno sob medida branco (ele disse
que ficaria mais bonito do que Marcela vestida com a cor,
rolaram até algumas apostas) e, por fim, Monstro e Anna,
que parecem em êxtase pelo acontecimento.
Olho para a primeira fila de cadeiras brancas
enfileiradas. Valentina e Nick estão tentando fazer todos
os pirralhos ficarem quietinhos, o que, com certeza, é uma
missão impossível. Enquanto Zach e João brincam de
lutinha no chão, mandando para o vinagre a limpeza de
suas roupas, a doce Angélica se mantém sentada no chão,
alisando os cabelos de uma boneca. Ela é tão, tão linda,
mas tem o gênio do meu irmão. Anna estava
completamente ferrada com aquela garotinha de humor
ácido e beleza descomunal, ela era a única que apreciava
o sarcasmo do pai, e isso porque nem o entendia direito
ainda.
Volto minha atenção para frente e vejo Gustavo
caminhando em nossa direção de braço dado com dona
Ruth; ela, assim como vovó, parece aliviada em se livrar
de seu último filho solteiro. O sorriso do noivo é
resplandecente, não consigo detectar nenhum resquício de
ansiedade. Ele parece apenas realizado e feliz, muito
feliz.
Quando Gustavo chega ao altar, me encara e
pronuncia uma única palavra sem fazer som: obrigado.
Começo a chorar naquele momento. Sei que sou
sentimental demais, mas estava completamente
emocionada. Ele merecia aquele dia, merecia aquela
mulher, merecia aquele sonho sendo realizado. Meu irmão
nunca desistiu de Marcela, nem mesmo quando ela lhe deu
motivos para fazer exatamente isso. A força de seu amor
era um recorrente motivo de orgulho para todos nós, e ela
não ficava por baixo. Minha futura cunhada e amiga já
havia sofrido demais, era hora de uma vida recheada de
dor e perdas ser deixada para trás.
O melhor de tudo aquilo? Eu gostava dela, de
verdade. Não foi só com sua irmã recém-descoberta que
Marcela criou um vínculo. Eu e Vivian, e o resto da
gangue, fomos incluídos naquela rajada de amor e ficamos
imensamente felizes de termos passado a fazer parte de
sua família. Fora que nosso gosto para séries era idêntico,
não tinha como eu não cair de amores por ela. Jamais
substituiríamos as pessoas que ela perdeu, mas
tentávamos suprir suas faltas diariamente.
Quando a marcha nupcial começa, Gus une as mãos
como se fosse fazer uma oração, e é realmente o que ele
faz. De onde estou, posso vê-lo agradecer aos céus,
depois as mãos são levadas próximo ao seu rosto e
encostadas em seus lábios, que permanecem com um
sorriso fixo de encantamento ao ver sua amada vestida de
noiva. Linda, é o que ele diz inúmeras vezes sem som,
enquanto ela desliza ao seu encontro.
Marcela é levada até ele por Bento, e recebida com
afeto.
Meu irmão beija e abraça o filho e pega as mãos de
sua futura esposa com firmeza, ambos se prostram um
diante do outro, e a cerimônia continua sem interrupções
até quase seu término. Mas, antes que o padre pudesse
declará-los, enfim, casados, um microfone é entregue nas
mãos do meu irmão. É quando noto que nem mesmo ele é
imune ao nervosismo. Suas mãos tremem visivelmente ao
segurá-lo.
— Antes de me unir a você por uma vida, desejo lhe
falar algumas palavras, Marcela Cantagallo.
Ela parece surpresa, não esperava pelo gesto, olha em
minha direção interrogativamente, mas dou de ombros. Eu
havia organizado o casamento inteiro ao lado de Malibu,
menos aquela parte.
— Quero te agradecer por ter, deliberadamente, se
jogado em cima de mim há mais de uma década somente
para que eu a notasse. — Ela franze o cenho com os
lábios tremendo ao reprimir as lágrimas, e ele continua.
— Eu sei que foi de propósito, não precisa admitir.
Naquele dia, eu me apaixonei por você pela primeira vez.
Quero te agradecer por, novamente, ter esbarrado em mim,
também de propósito, anos mais tarde, e ter me lembrado
daquele imenso amor. E, por fim, eu quero te agradecer
por ter se jogado nos meus braços há pouco mais de um
ano, novamente de propósito, me fazendo ter certeza de
que o que sinto por você vai permanecer dentro de mim
para sempre. Tudo isso serviu para me provar que o que
sinto por você é duradouro e estável, para que eu
percebesse que jamais haveria outra mulher capaz de
abalar tanto o meu mundo e me fazer acreditar que o “para
sempre” pode existir. Nosso amor sempre foi assim, cheio
de esbarrões e encontros e, em todas as vezes que você
apareceu, eu te amei. Obrigada por ter me encontrado em
todas elas.
Enquanto Gus enxuga as lágrimas de Marcela, ela
rouba o microfone, fazendo com que ele se surpreenda
dessa vez. Suas mãos também tremem e ela respira fundo
antes de responder à altura aquela declaração de amor.
— Engraçado você mencionar apenas nossos
encontros, porque nosso amor também foi recheado de
abandonos. — Ela soluça involuntariamente, fazendo com
que ele sorria docemente e toque seu rosto com afeição.
— Mas não importava para quão longe eu corresse, meu
coração nunca me seguia, tinha uma âncora o prendendo
ao seu peito. Cada um desses abandonos me mostrou que
meu lugar era dentro dele, para onde eu sempre era
condicionada a voltar. — Os olhos do meu irmão
marejam, e as lágrimas escorrem, enquanto eu comemoro.
Não há nada mais singelo do que ver um noivo chorar
diante de uma plateia de convidados. — O destino
enlaçou bem nossas vidas e, quer saber? Sou feliz por
isso, porque eu jamais iria aceitar voar sem que você
estivesse no chão, pronto para me receber quando minhas
asas falhassem.
Eles se olham apaixonadamente, e o padre anuncia:
— Pode beijar a noiva!
Há tanto amor envolvido naquele beijo, que chega a
ser inebriante. Então, de repente, o noivo se afasta, sorri
atrevidamente e corre para longe sem dizer nenhuma
palavra.
Marcela, eu e todos os convidados ficamos
estarrecidos e inquietos.
— Que porra aquele moleque está fazendo? —
pergunta Monstro, para ninguém em particular, com
curiosidade e receio.
Mas, antes que mais questionamentos surjam, ele
aparece no lombo de um cavalo branco, saindo de trás de
um estábulo, galopando com rapidez em direção à sua
noiva. Ele puxa a rédea, o cavalo para e ele lhe estende
uma mão, que ela aceita, rindo de sua loucura.
Eu sempre soube que ele acreditava na história do
cavalo branco, mas nunca imaginei que gostaria de viver
aquele momento ao pé da letra. O “felizes para sempre”
do meu irmão termina assim, com ele montado no bendito
cavalo por uma mulher que vale ouro, enquanto eu choro
copiosamente de alegria e deleite.
Vejo meu irmão fugir com a noiva, enquanto o
silêncio é quebrado por minha avó, que parece
completamente realizada. É ela quem inicia uma salva de
palmas, que eles serão capazes de ouvir mesmo ao longe.
Eu amo tanto os finais felizes, e vocês?!

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