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Curitiba
2013
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Sumário
Resumo.............................................................................................3
Introdução.........................................................................................4
1. Delimitação do Tema........................................................................5
2. A Gênese da fantasia.........................................................................8
2.1 – Das cavernas à Babel...............................................................8
2.2 – O século XIX..........................................................................11
2.3 – O Romance Histórico e A Idade Média...................................13
2.4 – A Idade Média.........................................................................15
2.5 – A Idade Média aos olhos do Romantismo...............................18
2.6 – Tolkien.....................................................................................21
3. Aspectos formais da High Fantasy...................................................24
3.1 – A high fantasy tolkeniana e sua herança.................................24
3.2 – A esquematização do enredo...................................................27
3.3 – A High Fantasy em outras mídias...........................................29
4. A High Fantasy no Brasil.................................................................33
4.1 – De Lobato à Draccon...............................................................34
4.2 – Dragões de Éter........................................................................36
Conclusão..........................................................................................51
Bibliografia.......................................................................................52
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Resumo
3
Introdução
O ano de 2013 foi a vez de o Brasil ser homenageado na Feira Literária de Frankfurt.
Como de costume, uma organização no país se responsabilizou por convocar os grandes
nomes da literatura brasileira atual. A grande lista de setenta escritores contou com figuras
célebres do cenário brasileiro contemporâneo, como Cristóvão Tezza, Ignácio de Loyola
Brandão e João Ubaldo Ribeiro.
Porém, muitos mostraram-se descontentes por esta lista não contemplar alguns dos
segmentos literários. Foi o caso dos autores da chamada Literatura Fantástica Brasileira
que, embora tenha alcançado consideráveis recordes de vendas e aceitação popular,
sentiram-se ignorados. Um de seus maiores nomes e porta-voz, o escritor Raphael
Draccon, chegou a escrever diretamente para o Comitê Organizador mostrando seu
descontentamento. Intensificando a polêmica, outros autores manifestaram seu apoio,
dentre eles alguns contemplados pela lista, como foi o caso de Paulo Coelho que,
inclusive, recusou o convite e apontou a escolha do Comitê como nepotismo.
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Capítulo 1
Literatura Fantástica: Delimitando o tema.
Sob essa ótica, também grande parte dos autores brasileiros se encontram nessa
definição. Joaquim Manuel de Macedo, Claudio Manoel da Costa, José de Alencar,
Machado de Assis, Guimarães Rosa, Mario de Andrade. Em todos eles o sobrenatural
aparece em maior ou menor intensidade. Mas que semelhanças narrativas e estruturais
podemos encontrar entre eles?
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Assim sendo, a definição Literatura Fantástica não nos bastaria aqui. Estamos nos
referindo, nesse trabalho, a uma literatura onde o fantástico é visível e palpável, onde
seres mitológicos surgem diante de nossos olhos e, por mais horror que cause aos
personagens, pertença naturalmente ao mundo onde se passa a narrativa.
Todorov elenca em seu livro “Introdução a Literatura Fantástica”, quatro formas básicas
do Fantástico, denominados “estranho puro”, “fantástico estranho”, “fantástico
maravilhoso” e enfim “maravilhoso puro”. Destes, podemos destacar o “maravilhoso
puro” como objeto de nossa atenção. Todorov o aponta como um gênero em que o
mágico, o sobrenatural e o maravilhoso emergem na história sem causar estranheza aos
personagens e para ele, os contos de fada são o melhor exemplo.
No Brasil, por sua vez, convencionou-se até o momento chamar de Literatura Fantástica
toda a recente produção que envolva essa fantasia, colocando numa mesma estante
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autores como Draccon, André Vianco, Eduardo Spohr e Carolina Munhoz, o que por
vezes gera certa confusão com as linhas fantásticas já mencionadas.
Assim sendo, para evitar tal confusão usaremos o termo Fantasia, ou Literatura
Fantástica quando se tratar do gênero mais abrangente – que pode envolver da mitologia
ao realismo fantástico – ehigh fantasy para designar aquela que, como veremos adiante,
surgiu e se firmou no século XX e que é, por certo, o tema de nossa pesquisa.
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Capítulo 2
A gênese da Fantasia.
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de várias compreensões. O ciclo da natureza, as estações do ano e seu período são
desvendadas. O homem torna-se sedentário, o que também resulta em mais
desenvolvimento. Cavernas e taperas que lhes serviam de abrigos temporários são aos
poucos substituídas por aldeias com casas feitas do material à sua disposição, como a
argila ou madeira.
É assim que o deus babilônico Marduk venceu a serpente Tiamat, ou o deus asteca
Huitzilopotchli derrotou a dragão Quetzalcoatl. Hércules triunfa sobre o cão do inferno,
e Telebino – um possível ancestral de São Jorge – vence o dragão como também o faria
Sigurd ou Siegfried nórdico.
Percebemos então que se muda não somente a figura do mito, mas também sua
função. O imaginário, dentro da esfera religiosa, apresenta-se como uma possibilidade de
diálogo entre os vivos e os ancestrais heróicos. Essa função abriu caminho para uma
rudimentar idéia de identidade cultural, o que seria quase impensável no período
paleolítico.
Fora da esfera religiosa, o mito ainda ganha uma função pedagógica, ou seja,
repassar os valores da sociedade para as novas gerações. Os atos de bravura e inteligência
dos ancestrais deveriam ser vistos como exemplos e motivo de orgulho para suas tribos
Quando estas tribos crescem e alcançam aos poucos a era das civilizações, as lendas
também se organizam em epopéias. O épico de Gilgamesh, a Ilíada, o Ramayama, A
Canção dos Nibelungos, e até mesmo o Antigo Testamento – que sob vários aspectos
pode ser considerada uma epopéia do povo hebreu – e vários outros vãos surgindo, seja
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na oralidade, seja por escrito. Nas epopéias, aqueles ancestrais rudes e maltrapilhos
tornam-se, grandes guerreiros de força e honra sem igual, e seus feitos, muitas vezes o
saque de uma cidade, tornam-se batalhas de proporções imensas dentro desse imaginário.
Quase junto à epopeia, surge também uma figura peculiar que são os bardos e
rapsodos, os homens que se especializarão em contar e recontar essas histórias e assim
entreter sua gente, seja ao redor da fogueira, seja num palácio. É assim que aos poucos a
figura do poeta começa a se figurar como individual.
Apesar desse otimismo em relação à natureza, o medo dela ainda era presente. Os
muros que se erguiam ao redor da cidade deixavam para fora não só os inimigos mas
também o mundo sobrenatural. Ouvir ou ler os épicos, ou participar de uma cerimônia
religiosa era também ter a certeza de que os demônios não mais entrariam em suas vidas.
Segundo assiriólogos como Mella e Garelli, os sumérios tinham tal medo de retornar à
barbárie que confiaram cada instrumento de trabalho ligado à civilização à um deus.
Arados, comércio, tijolos e carruagens tinham suas divindades que zelavam por sua
continuidade, formando um panteão de aproximadamente 2 mil deuses.
O homem era vitorioso, mas a figura divina ainda estava acima, e ela deveria conduzir a
civilização.
Estes elementos nos possibilitaram localizar o gosto do homem por ouvir e criar
histórias fantásticas, e conseguimos até aqui identificar vários motes comuns à high
fantasy, como grandes heróis, seres fantásticos e proezas maravilhosas. Mas há ao mesmo
tempo um grande abismo separando uma Epopeia de Gilgamesh de um Senhor dos Anéis
ou Dragões de Éter. Não o sentimento de compromisso religioso que norteia um Tolkien
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em sua composição do Senhor dos Anéis. Da mesma forma, não procura um Draccon
glorificar a memória dos ancestrais ou dedicar suas páginas ao triunfo do homem sobre a
natureza, e o mais importante: nem Tolkien e nem Draccon acreditam na existência dos
seres mágicos sobre os quais escrevem.
Não é a este serviço que está a high fantasy. É necessário que avancemos alguns
séculos para localizar outras influências.
Para a História da Literatura ele também tem um significado especial, pois, entre
outras coisas, celebrizou os primeiros escritores profissionais, não mais dependentes de
um patrono, tanto menos continuaram a se verem como uma importante peça de
moralização da sociedade.
Trezentos anos após sua consolidação, o regime absolutista mostrava amplos sinais
de decadência. A nobreza, cada vez mais exprimida em seus palacetes, endividava-se e
não raro vendia seus títulos para se salvar da ruína total. O que lhes restava era sua
influência, intelectualidade e posse do estabelishment cultural, mas isso tudo também
logo ela teria que dividir com a burguesia ascendente.
Tal foi o final do século XVIII e início do XIX na Europa. A Revolução Francesa
e as guerras napoleônicas desbancaram momentaneamente as mais tradicionais
monarquias da Europa, que logo o mais se restaurariam após a derrota do corso em
Waterloo apenas para ver seu poder novamente vacilante. A população desses países,
ávidas por um regime democrático, pautado nos ideais iluministas que também guiaram
a Revolução Francesa, logo fariam a bandeira da revolução tremular do Porto à Palermo.
Entre os rios Reno e Vístula estava a região que talvez mais tenha sofrido nessas guerras.
Servindo involuntariamente de palco de várias batalhas, a Alemanha ainda se encontrava
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tão fragmentada quanto na Idade Média. Nenhum reino ali tinha voz o suficiente para se
impor naquele contexto. As pequenas monarquias gastavam seu dinheiro numa ampla e
inútil burocracia. Ao povo cabia apenas a tarefa de cuidar de sua felicidade individual.
Norbert Elias também observa o apolitismo do povo alemão. Para ele, a aceitação
da autoridade absoluta de Hitler no lugar da República de Weimar, nos ano de1930, tinha
como origem a catástrofe da Guerra dos 30 anos. Guerra esta que causou tamanha
destruição na Europa Central, que restou aos alemães uma submissão às autoridades
locais, numa tentativa de sobreviver. E naquele contexto, as autoridades mais próximas e
fortes eram as regionais.
O poeta e dramaturgo Shiller dizia que era “apanágio do alemão não se deixar
obcecar pela política, mas viver a vida do espírito”. Ele e vários outros intelectuais
esperavam fazer da Alemanha uma Grécia moderna, uma fragmentada terra de filósofos
e artistas. Parecia, enfim, um terreno bastante desfavorável para o surgimento de um
nacionalismo.
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Foi nesse contexto de conflitos que surgiu a escola Romântica. E vários escritores
e filósofos passaram a aderir ao movimento de unificação. Os obstáculos, porém, eram
vários. Não apenas na pessoas dos príncipes locais que não queriam perder seu
privilégios, mas também das próprias massas que não se identificavam com a ideia de
uma única nação.
Nesse contexto, a Idade Média, agora redescoberta, ganha novo significado e para
ela os artistas passam a se voltar e usá-la como inspiração.
A Inglaterra sempre foi um pais pequeno e com menos divisões regionais do que a
maioria dos reinos na Europa continental. Quando a Revolução Industrial se iniciou, ela
conheceu um rápido inchaço das cidades, e o Liberalismo econômico trouxe uma nova
mentalidade que entrou em choque com a tradição.
Até meados do século XVIII um homem comum na Europa pouco saia de sua vila.
Conhecia relativamente bem os moradores de seu distrito, e seguia a mesma profissão de
seus pais e avôs. Nas oficinas, patrão e empregado dividiam a mesma mesa e relação entre
eles era praticamente paternal. A igreja era o centro da comunidade, e não raro também a
juíza de muitas questões.
Perdido nessa sociedade, o homem se fecha e busca nessa nova arte um refúgio,
um escape.
O Romantismo levou seu individualismo a extremos como uma compensação
para o materialismo do mundo e uma proteção contra a hostilidade dos
burgueses filisteus às coisas do espírito(HAUSER, 2000, p677)
A Inglaterra foi o primeiro país que experimentou essa situação, e por isso o
romantismo encontrou lá um terreno fértil para se expandir. E a grande contribuição
inglesa foi o Romance Histórico.
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Neste momento, antes de prosseguirmos, é importante fazermos um parêntese e
explicar em linhas gerias a Idade Média. O que ela foi, como ela se viu e o que dela foi
interessante ao homem do século XIX, e, enfim, que importância isso tem para a high
fantasy.
Até lá, a chamada Idade Média mostrou-se uma era de incerteza. Sob as ruínas de
Roma, os povos de além do Reno se estabeleciam, misturando-se com as populações
locais.
Tal foi com Carlos Magno ou Eduardo o Confessor. Ambos reis que, em devido
lugar, procuraram unificar um agregado imenso de povos e assegurar essa unidade através
de sua pessoa reforçada pela igreja. As velhas religiões seriam então substituídas. É dito
que Carlos Magno, por exemplo, teria mandado derrubar uma árvore sagrada para os
saxões e com sua madeira construiu uma igreja.
Por volta do ano 700 d.C novas Invasões chacoalham a Europa. Magiares, árabes,
eslavos e principalmente vikings ameaçam esses novos reinos. A forma encontrada para
sobreviver é inspirada nos monastérios, e assim a Europa cristã se fragmenta e o
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feudalismo vai tomando forma. O poder dos reis diminui, ao passo que aumenta o poder
da nobreza guerreira local.
O historiador Jacques Legoff nos aponta a Europa medieval como uma grande
floresta, e sua civilização é construída em clareiras. Para além delas, o mundo pagão
perdurava, e, em seu imaginário, toda a sorte de criaturas e espíritos ruins estavam prontos
para assaltar os homens. Elfos e dríades percorriam as florestas, enquanto, no interior das
cavernas, kobolds estavam prontos para matar qualquer minerador incauto. As cachoeiras
tinham suas ninfas e até as ilhas podiam ter suas criaturas mágicas e maléficas.
Tal contexto nos leva a concluir que estamos diante de uma espécie de retrocesso:
uma dinâmica muito semelhante àquela apontada no capítulo anterior toma forma aqui.
O imaginário dava forma ao mundo ameaçador da natureza ao redor das vilas e aldeias.
Um imaginário que lentamente apenas cede espaço para o cristianismo, e não raro
fundindo-se a ele, transformando heróis em santos e mártires.
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Por todo o lugar os trovadores apareciam, dando forma cantada à lendas pagãs
misturadas com o mundo cristão. A Canção de Rolando, Tristão e Isolda, A Canção dos
Nibelungos além das histórias do rei Arthur eram histórias conhecidas já faziam séculos,
mas é apenas por volta de 1100 d.C que elas ganham forma escrita.
Enfim, os caminhos se abriam aos poucos para um novo tempo, enquanto os traços
tipicamente medievais – a fragmentação política, o imaginário cristão-bárbaro, a cultura
dos cavaleiros – passavam cada vez mais para o mundo das artes.
E foi nesta arte que o medievalismo seduziu o século XIX. Os contos do Rei Arthur
ou do ciclo de Carlos Magno, trazem uma versão bastante idealizada e até superestimada
da lealdade medieval. Os cavaleiros são sempre homens bravos, prontos a se ajudarem
mutuamente e não temem inimigos, mesmo quando eles vem aos milhares. Se um deles
é morto, é de obrigação dos demais vingarem sua morte, ainda que isso, na realidade, não
ocorresse como atesta Dominique Barthélemy. Também o amor era sempre poético e
inspirador, digno de total submissão do amante ao sentimento pela amada.
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A clemência também era apanágio do cavaleiro. Uma vez vencida a batalha, o
inimigo sobrevivente merecia o batismo. Ferrabráz, após violenta luta contra Oliveiros,
rende-se e é batizado, tornando-se grande amigo. Ainda que na realidade, como atestam
os estudos sobre as cruzadas, as guerras da Reconquista e a expansão alemã no leste, esta
clemência fosse muito menos praticada.
Esta Literatura, que costuma ser referida como Romance de Cavalaria, celebrizava-
se por estas características, e sua escrita foi bem além da Idade Média. Ainda no século
XVIII na Península Ibérica, onde a memória das lutas entre Carlos Magno e os
muçulmanos permaneceu mais intensa, um certo Flaviense escrevia novas histórias sobre
este homem que se tornou lenda medieval.
Este gênero também foi reconhecido mais tarde por Frye, que o chamou de História
Cavaleiresca. Um conto de personagens e situações arquetípicas, baseados neste romance
de cavalaria. Voltaremos a falar dele mais adiante
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A high fantasy também se apropriou deste universo, e cenários inspirados na Idade
Média se figuram entre os favoritos pelos autores e consumidores do gênero. A própria
idealização dessa Idade Média como uma era dourada, em que as relações sociais eram
mais saudáveis também é contemplada por este nicho. Os personagens arquetípicos, no
estilo do romance de cavalaria, também são grandemente contemplados. No Senhor dos
Anéis, o personagem Aragorn é uma transposição deste Ricardo Coração de Leão, e nos
Dragões de Éter, o príncipe Axel personifica estas mesmas virtudes.
Sir Horace Walpole(1717-1797) em seu Castelo de Otranto nos traz uma história
peculiar passada na Itália medieval, e também nos descreve certos ambientes com esta
carga sombria, propícia ao fantástico, quando a personagem Isabela foge de Manfredo,
usurpador do castelo, pelo calabouço.
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A parte subterrânea do castelo era escavada numa série de vários claustros
interligados e não era fácil para alguém em tal estado de ansiedade encontrar a
porta que abria para a caverna. Um silêncio assustador reinava nessas regiões
subterrâneas, exceto quando, vez por outra, algumas rajadas de vento sacudiam
as portas pelas quais ele havia passado e os gongos de ferro ecoavam através
daquele longo labirinto de trevas. Cada rumor deixava-a possuía por um novo
terror; mas ainda assim temia, acima de tudo, a voz irada de Manfredo
ordenando seus criados a perseguirem-na. Ela pisava tão levemente quanto sua
impaciência o permitia, ainda assim, com frequência estancava para ouvir se
estava sendo seguida. Num destes momentos acreditou ter ouvido um suspiro.
(Walpole, 2010, p41)
Porém, estas situações ainda estão no campo do imaginário, isto é, o fantástico não
nos salta os olhos, e quando o faz – no Castelo de Otranto há um fantasma – sua aparição
é breve, desconsertando a lógica dos personagens que a presenciam. A high fantasy se
utiliza muito da criação do suspense e ambientes como floresta e masmorras estão entre
seus favoritos. Mas ela, o fantástico está lá, apenas esperando o leitor virar as páginas
para surgir. No Senhor dos Anéis, a comitiva atravessa um complexo subterrâneo
infestado de duendes, trolls e demônios ancestrais.
O tema de seus dramas tinha forte apego mitológico. Estas lendas medievais,
redescobertas pelo pesquisadores dos séculos XVIII e XIX, eram transpostas para o palco.
A lenda nórdica do Navio Fantasma, a história de Parsifal e Lohengrin – ambas
pertencentes ao ciclo do Santo Graal – bem como o amor de Tristão e Isolda ganharam
músicas que se tornaram icônicas.
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Em 1876 seu trabalho mais importante foi representado: tratava-se da tetralogia O
Anel do Nibelungo. O drama trazia ao palco a mitologia germânica, com seus deuses,
ninfas, gigantes e anões numa trama que misturava diversas histórias mitológicas
provindas da Canção dos Nibelungos e das sagas nórdicas. A música, somada aos efeitos
cênicos, traziam uma sensação semelhante ao que hoje nos traz o cinema.
O homem do século XIX encontrou ali uma obra de arte que correspondia às suas
ânsias escapistas e aos seus desejos grandiosos. Nas letras o compositor deixou a desejar,
e sua poesia é considerada fraca, e a filosofia que coloca na boca de seus personagens são
frutos de uma mistura de ideias confusas. Alguns musicólogos como Rolland de Candé o
apontam como possuidor de uma cultura vasta, mas superficial e de efeito por vezes
confuso.
(...) Posto em estado hipnótico por uma música sublime, pode acreditar-se
iniciado numa sabedoria superior, ao passo que está intoxicado por uma mescla
desordenada de dogmas religiosos, lendas e teosofia nebulosa que convergem
na exaltação do super-homem(CANDÉ ,2001 p 69)
2.6. Tolkien
“Numa toca no chão vivia um Hobbit”, foi assim, com esse esboço que um certo
professor de Oxford, e ex combatente da Primeira Guerra Mundial, começava seu
romance que resultaria numa das mais famosas obras literárias. John Ronald Reuel
Tolkien publicou seu romance O Hobbit em 1937. Nela, um hobbit(um ser humanóide de
baixa estatura criado por Tolkien) acompanha uma comitiva de anões para recuperar seu
tesouro guardado por um dragão. A jornada é marcada por perigos como aranhas gigantes,
trolls que tentam devorá-los e florestas sombrias. Em meio à esses momentos, o hobbit,
chamado Bilbo, encontra um misterioso anel que o faz invisível
Esse tipo de literatura já era razoavelmente comum na época. Ainda nos últimos
anos do século XIX, diante do grande sucesso do mercado literário, algumas editoras
resolveram apostar num público menos exigente do que se referia à qualidade literária e
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mais dispostos a livros que trariam uma distração e um prazer rápido. Nasciam as Pulp
Magazines, revistas literárias que traziam contos de gêneros que faziam sucesso entre as
massas na época, como o horror, aventura e policial.
Em seu pico de sucesso, entre os anos 20 e 30, um novo estilo começou a aparecer
em suas páginas. Trata-se das weird tales, contos estranhos, em que misturava numa única
história vários gêneros como o gótico, o aventuresco e o horror. Um de seus maiores
escritores, o americano Robert Howard(1906-1936), aos poucos misturou também
elementos épicos e da mitologia medieval e céltica.
Assim sendo, O Hobbit não caiu num terreno árido, e sim num momento em que
uma literatura aventuresca e caráter sobrenatural já fazia algum sucesso. Na época, o
personagem Conan, o bárbaro de Robert Howard já era célebre. Mesmo assim, o livro de
Tolkien parecia trazer uma proposta um tanto diferente, e com uma estética mais branda
em sua forma e conteúdo, em comparação àquela atmosfera bizarra e por vezes de
linguagem violenta das pulp magazines.
O público não tardou a pedir por mais histórias sobre hobbits e aquele mundo
fantástico. Foi então que, numa obra de maior fôlego, Tolkien escreveu O Senhor dos
Anéis.
Nessa obra descobre-se que o tal anel encontrado por Bilbo era um anel de
dominação. Seu criador, Sauron, o fez para dominar os seres da chamada Terra Media –
mundo criado pelo autor – e aprisioná-los na escuridão. Assim, a questão vai muito além
dos hobbits e dos anões, alcançando praticamente todas as esferas da Terra Media.
Esse novo livro apresentava aos leitores todo o mundo criado por Tolkien.
Descrevia com bastante precisão e detalhe suas criaturas, com suas terras e costumes e
principalmente sua língua. Tolkien era professor de anglo-saxão e estudioso de outras
línguas antigas, chegando ele mesmo a inventar suas línguas não só em sua morfologia,
mas também em sua sintaxe. Criar seu mundo fantástico era para ele criar uma lenda que
desse força a essas línguas inventadas.
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Aquilo o que Wagner havia feito na ópera com O Anel no Nibelungo, Tolkien fazia
agora na Literatura, isto é, baseado em seus estudos de Literatura e Línguas antigas,
principalmente no mundo germânico e fínico, o professor de Oxford misturava criaturas
do imaginário medieval num mundo de ambientação rústica, semelhante à Idade Média,
e o chamou de Terra Media. Porém, enquanto o mundo de Wagner era limitado pelo palco
e por um enredo, o mundo de Tolkien assumia proporções bem maiores. Livros,
apêndices, contos e simples anotações que o autor fez durante anos passaram a compor
este novo mundo.
Como classificar essa nova literatura ensaiada no século XIX, apresentada pelas
pulp magazines e celebrizada por Tolkien? Não eram romances históricos, também não
podiam ser classificados, como vimos, como contos de fadas. Era uma fantasia, uma
fantasia que se fez utilizar de elementos mágicos, mitológicos e folclóricos para contar e
recontar as velhas histórias de lutas entre o bem e o mal. Surgia então a high fantasy.
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Capítulo 3.
Aspectos formais
A Fantasia de Tolkien gira em torno de certos aspectos e formas próprias dos contos
de fadas, ou seja, por mais que seu mundo seja mais adulto e seu enredo e personagens
mais complexos do que “um príncipe num reino distante”, eles cumprem um papel
estereotípico. O bem e o mal são facilmente percebidos e se mantém em seus devidos
lugares por toda a história. O triunfo do bem sobre o mal, aliás, é iminente. A composição
social também é típica dos contos de fada. A Monarquia é bem estabelecida, remetendo
a era dos contos de cavalaria, e os reis são monarcas guerreiros como o rei Arthur ou
Carlos Magno.
A virtude dos protagonistas, aliás, beira o impecável. Vê-se muito dos Doze Pares
de França de Vasconcelos nos personagens Aragorn, Legolas e Gimli de Tolkien. Os
defeitos deles resumem-se, como na Literatura Medieval, à ingenuidade ou hesitação. A
violência praticada pelos protagonistas é também legitimada: se Oliverio e Roldão matam
um sem número de pessoas, essas mortes estão todas perdoadas por se tratarem de infiéis,
apresentados em suas obras como quase sub-humanos. Na literatura de Tolkien, o
opositor É o próprio sub-humano, representado pelas criaturas de aparência bestial. Seis
mil muçulmanos, ou seis mil orcs, não importa. O número de mortos é antes um troféu
do que uma vergonha quando ele representa o mal.
Essas aproximações são mais do que coincidência. Tolkien era grande estudioso da
literatura medieval, chegando a publicar livros e ensaios sobre o tema. A presença desses
elementos também nos remete ao catolicismo do qual o criador da Terra Media era grande
adepto, chegando inclusive a converter amigos.
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prosa tolkeninana é simples. A linearidade é clara e em momento algum o autor tenta um
recurso estilístico ousado. O tempo é cronológico e linear, retrocedendo apenas em certos
momentos em que o foco passa para outros personagens.
Esse conservadorismo talvez seja fruto do próprio estilo, mas também há muito do
Tolkien pessoa nele. O professor de Oxford era um homem que olhava a tecnologia com
muito receio, e até o final da vida manteve-se com pé atrás para com a industrialização, a
eletricidade, a comida congelada, os trens e o próprio cinema – mal imaginaria ele que a
tecnologia reviveria e expandiria suas obras para as próximas gerações.
Em sua obra, a tecnologia quase não faz parte do mundo. O único a se utilizar dela
é justamente o maligno feiticeiro Saruman, que derruba árvores e faz fábricas de uruk-
hai(um ser humanóide bestial) e até cria a pólvora. Em contraparte a ele, existe os magos
como Gandalf, cuja magia é apresentada como fruto do conhecimento e da sua sintonia
com a natureza. Gandalf é um andarilho, homem de vestes simples e de grande sabedoria.
É neste ponto que podemos, então, apontar que sua obra pode não ser alegórica,
mas também não é despretensiosa. Tolkien talvez não quisesse criticar abertamente a
sociedade moderna, mas o fez afastando o leitor dela, e numa única referência à
modernidade, ela é apresentada como algo maligno. E assim, torna-se talvez
compreensível que um autor do século XX tenha feito tanto sucesso e influenciado tantos
outros autores mesmo em seu estilo conservador. Um conservadorismo que talvez seja
uma reação menos ruidosa à mesma modernidade criticada ruidosamente por autores mais
ousados e declaradamente engajados.
O que talvez haja de mais ousado em sua obra seja a ampliação dos limites da
imaginação. Um desafio difícil para se alcançar quando se leva em conta a mentalidade
ocidental que preza pelo verossímil mesmo numa obra das mais ficcionais. O que o
romance histórico e o gótico do século XIX flertaram com o fantástico, mas eram ainda
dependentes demais de uma verossimilhança histórica. O leitor do romance histórico se
encanta com a ambientação de época, busca a plausibilidade histórica e tolera certas
adulterações e até algum anacronismo em prol de um efeito de sentido. Mas estas
fronteiras são limitadas, o leitor de Walter Scott não admitiria um Ricardo Coração de
Leão chegando na Inglaterra num barco à vapor, e tanto menos um Ivanhoé portando
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armas mágicas ou um Wamba capaz de ficar invisível. Não era essa a proposta do
romance histórico, mas é a da high fantasy.
A estética também tende a seguir não o mundo que o autor representa, e sim aquele
no qual vive. Autores mais recentes de romance histórico, como Bernard Cornwell,
procuram descrever o cenário e as pessoas tais como eram. Em seus livros ambientados
na Idade Média, seus personagens tem cheiros de sujeira, marcas da vida pelo corpo,
como ausência de dentes em plena juventude, entre outras coisas que podemos considerar
como bem adequadas ao tempo. A high fantasy, pelo contrário, segue a linha inaugurada
pelos primeiros romances históricos do século XIX, ou seja, os personagens seguem os
padrões de beleza do público leitor. Na Guerra das Sombras, de Jorge Tavares, e também
nos Dragões de Éter de Draccon o corpo esbelto é não só atribuído como também
almejado pelas mulheres. Todas as mulheres são, aliás, devidamente depiladas, nenhum
dente lhes falta. A musculatura dos homens segue também o padrão burguês de um
homem nascido em boas condições financeiras, que se exercita regularmente e come
carne com frequência, ou seja, uma musculatura regular e estética à nosso tempo, e não
aquela desproporcional de quem desde os cinco anos carregava peso, como de fato
ocorreria numa Idade Média.
Como isso tudo é possível? O leitor não questiona, apenas aceita. A magia talvez
seja uma das grandes explicações. Em mundos onde vivem magos e a feitiçaria é de certa
maneira comum, talvez possa-se atribuir a ela estes efeitos. Frederick Jameson em seu,
Archeologics os Future, aponta essa questão da magia como uma peça chave para se
entender a high fantasy.
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A moderna fantasia está organizada ao redor da magia, inclusa na busca do
poder por grandes magos em sua reconstituição cósmica na luta entre o Bem
e o Mal que, como vimos, expressa as idéias aristocráticas da estética
medieval. Mágica é sem dúvida o elemento mais problemático do gênero
“espada e magia”, visto que uma luta armada é mais fácil de ser
compreendida como uma regressão a era pré-industrial e apta a recriar o
conflito imediato face a face entre indivíduos(JAMESON, p 66)
Tolkien foi sem dúvida um marco e é até hoje uma referência nesse gênero, mas
por certo não foi o único escritor. Seu contemporâneo e amigo, C.S.Lewis(1898-1963),
também se aventurou neste mundo em suas Crônicas de Nárnia(publicados entre 1950 a
1956). Anos depois, Michael Ende(1929-1995) escreve seu clássico A História Sem
Fim(1979), enquanto Fritz Leiber (1910-1992) resgata o espírito das weird tales
misturando com a herança tolkeniana em vários romances contos à partir de 1943 que
ficaram conhecidos como espada e feitiçaria
Autores novos surgiam, trazendo muitas vezes seu próprio estilo e contribuindo à
sua maneira com novo gênero. Porém, são vários os pontos de semelhança entre estes
autores que chegam, inclusive, aos atuais em nosso solo.
A high fantasy, como estamos vendo, tem uma liberdade criativa muito grande,
possibilitando elementos que até mesmo a chamada ficção científica não poderia criar:
uma conto de high fantasy admitiria dois personagens no espaço sideral respirando e
conversando, graças principalmente à magia. Na ficção científica, esse ato seria
impensável a menos que os personagens portassem equipamentos devidamente
explicados e fundamentados, o que não seria fácil para o autor.
Apesar disso, a high fantasy, como já vimos, tem seu lado conservador. Dá-se isso
não somente na permanência de certos elementos como as estruturas sociais que, no dizer
de Jameson, corresponderiam à estética aristocrática, mas também na própria estrutura da
história.
27
Northrop Frye(1912-19919) e também Joseph Campbell(1904-1987) estudaram à
fundo os mitos e também os contos de fadas e apontaram certas constantes. Para Frye, o
arquétipo faz parte do mito e também de contos do gênero romance de cavalaria.
Campbell não só percebeu essa semelhança, como inclusive esquematizou-a formado o
conceito da Jornada do Herói. Segundo ele, o herói das histórias épicas, passaria por uma
série de doze etapas.
O autor Cristofer Vogler toma por base essas ideias e os transcreve em seu livro A
Jornada do Escritor(1990), no qual esquematiza formas de se criar roteiros de histórias
épicas baseados nesses passos. Hollywood apropriou-se desta fórmula, e clássicos do
gênero blockbuster(grandes produções com grandes audiências) usaram e abusaram deste
esquema. Matrix, Guerra nas Estrelas, o Gladiador são apenas alguns dos exemplos. A
transposição cinematográfica do Senhor dos Anéis, livro onde este esquema já era
perceptível, encaixa-o ainda mais neste esquema.
Os passos tornaram-se tão populares e aceitos entre escritores que se tornou comum
ensiná-los em cursos de escritores. Eduardo Spohr, autor da Batalha do
Apocalipse(2007), juntamente com Raphael Draccon não só admitiram a influência desta
jornada na elaboração de seus livros, como deram cursos e palestras sobre o tema.
É curioso como um estilo tão livre possa acabar dependendo tanto de esquemas
prontos, e ainda nem falamos de um elemento que tornará estes passos ainda mais
próximos dessa literatura – O RPG. As origens deste jogo, qual seria seu primeiro
representante, são controversas, mas podemos localizar um marco como responsável por
sua popularização.
28
3.3. High Fantasy em outras mídias – RPG, jogos eletrônicos e cinema.
Em 1974 a empresa TSR lançou nos Estados Unidos um jogo de tabuleiro chamado
Dungeons&Dragons. O jogo tinha como cenário um mundo de fantasia, no estilo Senhor
dos Anéis, e contava com um bestiário semelhante ao encontrado na obra de Tolkien.
Nele, os jogadores controlavam heróis que passam por desafios controlados por um
jogador denominado “mestre de jogos”. Este mesmo jogo, inicialmente considerado uma
variação do wargame(jogo de guerra, estilo WAR) possibilitava não só a criação de
personagens, como também a criação de novas aventuras. Assim, uma forma incomum
de jogo ganhava forma. Os jogadores não apenas jogariam dados, mas também
interpretavam seus personagens, vindo daí o conceito do RPG – RoleplayingGame(Jogo
de interpretação)
O jogo gozou de grande popularidade nos Estados Unidos, e aos poucos ganhava
novas versões, como o Advanced Dungeons&Dragons. Neste as possibilidades se
expandiram. Era possível agora criar os mais variados tipos de heróis, tais como
paladinos, clérigos, ladinos ou patrulheiros. As raças possíveis aos personagens também
eram vastas, como humanos, elfos, anões, gnomos ou halflings. No lado oposto, o mestre
de jogos teria um livro inteiro de monstros para se colocar na aventura. Tesouros, itens
mágicos e armadilhas eram também comuns.
Outros sistemas surgiam, alguns mais focados nos esquemas de combate, outros
mais na interpretação e outros ainda trazendo novos cenários, mas a fantasia medieval
manteve-se como favorita entre os jogadores, em geral adolescentes ou pós-adolescentes
introspectivos.
A high fantasy tornou-se tão próxima do RPG, que hoje nos parece pouco crivel
um autor do gênero que nunca tenha jogado este jogo, ou que simplesmente o desconheça.
Principalmente porque lojas especializadas começaram a surgir, como as comic shops.
Vende-se nelas os jogos, dados, miniaturas e é claro, bastante literatura do gênero, além
29
de um espaço onde os compradores poderiam também se juntar e jogar ali mesmo – É a
criação de um espaço e uma sociabilidade para os jogadores de RPG e leitores de high
fantasy.
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todo um mundo de high fantasy com grande qualidade para os monitores. É o caso de
World of Warcraft, lançado em 2005 e que atualmente espera sua quinta expansão, e
também Skyrim(2011).
O cinema, aliás, também soube explorar este tema, e, assim como ocorreu com os
jogos eletrônicos, sua evolução dependia diretamente dos recursos tecnológicos
disponíveis. Filmar batalhas entre orcs e humanos, disputa de magos ou dragões
sobrevoando cordilheiras nunca foi uma tarefa simples. Aliás, os próprios leitores de
Tolkien costumavam dizer, até a década de 1990, que a transposição do Senhor dos Anéis
para o cinema era uma tarefa impossível. Isso não impediu, porém, que vários diretores
adaptassem outras obras já canônicas deste nicho ou tentassem criar as suas próprias. E a
década de 1980 trouxe boas novidades nesta área
Mas a década seguinte, apesar de seus avanços tecnológicos, pareceu menos fértil
à filmes deste gênero. A História sem Fim ganhou duas continuações fracas, que
desagradaram aos fãs. O universo do RPG ganhou também um filme chamado Dungeons
e Dragons, de audiência e aprovação quase tão baixa quanto seu orçamento. O próprio
RPG, aliás, começou a se aventurar, principalmente nos Estados Unidos, por outros
gêneros e cenários, trazendo como tema e personagens os vampiros, lobisomens e outros
seres obscuros e sua convivência com suas bestas interiores num mundo moderno.
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as aventuras do bruxo mirim Harry Potter, saga que se estendeu por toda aquela década.
Logo o mais, eram as Crônicas de Nárnia que ganhavam suas versões, também bastante
aclamadas pelos fãs, embora quantitativamente inferiores aos dois primeiros citados.
Cinema, RPG, jogos eletrônicos e literatura fantástica. Estava formado todo um nicho
cultural que formou o escritor de high fantasy desta primeira década do século XXI.
32
Capítulo 4
A high fantasy no Brasil
Não resta dúvida de que foram os sucessos cinematográficos do Senhor dos Anéis
e Harry Potter que de fato abriram o mercado editorial brasileiro para a high fantasy, uma
vez em que nossa produção e consumo do gênero era, até aquele momento, muito inferior
ao europeu ou americano.
Foi só nos fins da década de 70 que a editora Artenova trouxe a primeira Edição de
O Senhor dos Aneis. Esta obra foi, aqui no Brasil, dividida em seis volumes, lançados
entre 1974 e 1979.
O fim do regime militar nos anos 80 e o advento dos computadores domésticos são
duas características marcantes no fim do século XX no Brasil. O primeiro devolve à
Literatura e a Leitura a sua dinâmica sem as amarras que caracterizaram as décadas
anteriores, e o segundo é o responsável por apresentar ao público a high fantasy através
de jogos eletrônicos, como visto no capítulo anterior.
Uma série literária já havia feito algo semelhante na década anterior, eram os livros
do gênero Enrola Desenrola, série de livros narrados na segunda pessoa, onde o leitor era
o personagem e poderia, por vezes, escolher o caminho a seguir. Os livros deste gênero
possuíam cenários variados, como aventuras, cotidiano, viagem no tempo, ficção
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científica e enfim high fantasy. Os livros de Steve Jackson eram quase todos high fantasy,
em cenários criados pelos autores mas amplamente inspirados em Tolkien.
No mesmo ano, foi traduzido também o RPG Aventuras Fantásticas, dos mesmos
autores. Era o primeiro RPG que chegava ao Brasil e nos anos seguintes traduziram-se
também os suplementos, livros que traziam maiores possibilidades para os
personagens(Dungeoneer), uma descrição do bestiário das masmorras(Out of The Pit), e
enfim um livro que descrevia o mundo onde ocorriam estas histórias(Titan).
A Dragão Brasil, inaugurada em 1994 pela editora Trama, e conduzida por Marcelo
Cassaro, trazia dicas e jogos para vários sistemas de RPG, além de apresentar sistemas
novos, e moldar aos poucos o perfil do RPGista no Brasil. A revista também trazia uma
sessão importante. Os contos. Foi nesta sessão que muitos escritores amadores arriscaram
suas primeiras empreitadas no mundo da high fantasy. Entre estes escritores, destacou-se
um constante colaborador – Roberto de Souza Causo.
Apesar desses avanços numéricos, este mundo da high fantasy parecia ainda
exótico demais para as maiores editoras brasileiras. Os números de vendas dos RPGs e
revistas do gênero ainda estavam aquém de jogos eletrônicos de ação, filmes e literatura
de outros gêneros. Traduzir autores de high fantasy parecia ainda arriscado, e apenas
vagarosamente isso era feito. Editar autor brasileiro tanto menos; o espaço para estes
autores ficou mesmo em revistas ou então nos primeiros blogs literários.
No ano 2000 a editora Martins Fontes enfim reeditou o Hobbit e o Senhor dos
Anéis. As vendas foram rápidas e nos próximos anos apenas aumentariam, graças,
principalmente às estreias do Senhor dos Anéis no cinema.Foi, em grande medida, o
primeiro contato que muitos aqui no Brasil tiveram com um filme e uma literatura deste
gênero.
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Na medida em que o público consumidor aumentava, agremiações de fãs e leitores
se juntavam em revistas e principalmente na ferramenta que seria outra e grande aliada
desse gênero. A Internet passou a abrigar páginas, fóruns e blogs que envolvesse a
temática desses dois mundos, principalmente de Tolkien. Essas páginas, à semelhança do
que ocorreu com a revista Dragão Brasil uma década antes, também começaram a abrir
espaço para contos enviados pelo leitor, muitos deles fanfics – como chamamos uma
continuação ou releitura de uma obra feita por um fã.
Até esse momento, porém, a Literatura Fantástica produzida por autores brasileiros
era pouco consumida, mesmo entre os fãs do gênero. Por preconceito ou falta de
informação, esses livros tiveram uma circulação ainda restrita. A própria editora Novo
Século, que lançou o escritor de horror André Vianco, também tinha um política bastante
reservada para a publicação dessa literatura: os livros dos supracitados Jorge Tavares e
RenataCatanhede pertenceram ao selo Novos Talentos da Literatura Brasileira, focada
no público juvenil e que por vezes atuava como editora sob demanda – o autor paga, a
editora lança.
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4.2. Os Dragões de Éter
A trilogia Dragões de Éter se passa num fictício mundo chamado Nova Ether. O
mundo é dividido em vários países, sendo Arzallum o principal. É nele que governa o
sábio rei Primo Brandford, pai de Anísio e Axel. O primeiro filho é criado e apresentado
como um legítimo herdeiro do trono, ao passo que o segundo se comporta como um
príncipe do povo, praticante de pugilismo, conhecedor de tabernas e arrebatador de
corações das plebeias. “Tudo feito de propósito, planejado pelo rei para agradar à nobreza
e ao povo”, como afirmava outro personagem, o professor Sabino von Fígaro.
O professor, aliás, leciona na Escola do Saber, onde estudam João e Maria Hanson,
ambos personagens saídos do clássico João e Maria e cuja história somos apresentados já
no início da narrativa. Junto a eles, estuda também outro ícone dos contos infantis – a
chapeuzinho vermelho, que leva o nome de Ariane Narim.
Em contrapartida, a bruxa da casa dos doces, citada quando Draccon nos introduz
João e Maria Hanson, é uma clássica personagem maléfica dos contos de fada. E a
presença dela traz à tona a histeria e o medo das bruxas, surge então o mote do primeiro
livro da trilogia, “Caçadores de Bruxa”.
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Na linguagem, o autor também evita o arcaísmo, uma armadilha muitas vezes mal
usada pelos autores do gênero. Pelo contrário, ele encontra um caminho mais simples,
que é considerar que jovens se expressam em sua própria maneira, e assim utiliza-se de
bordões e expressões atuais, típicos de adolescentes principalmente cariocas: Ariane
Narim, personagem que na escrita de Draccon ganhou uma personalidade mais
extrovertida, faz-se valer da expressão “caraca!” um sem número de vezes. Os
personagens da nobreza usam seu linguajar mais formal, que pode variar de acordo com
a situação, sem apelar para o rebuscado arcaísmo cavalheiresco.
Maria, por sua vez, também precisa lidar com o fim de seu romance com o príncipe
Axel, enquanto sua amiga Ariane mergulha cada vez mais em seu aprendizado enquanto
bruxa, tendo sempre que esconder tais dons de seus amigos e da sociedade.
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A presença destes foras da lei contestadores aborrece o reino de Minotauro, que
exige dos demais soberanos que se unam a ele para novamente prender e executar os
“desordeiros”.
As referências, aliás, vão neste livro muito além dos contos de fada, como
predominantemente ocorreu no primeiro volume. O campeão do mundo oriental que toma
parte do torneio de luta é descrito como um “homem forte, de cabelos longos e lisos,
traços orientais e olhos cortados”, tendo como estilo de luta uma espécie de kung-fu. Uma
alusão clara à Bruce Lee, um dos ídolos do autor.
A luta final, da qual tomam parte o príncipe Axel e Radamisto, o “urso branco” de
Minotauro, parece ter saído dos filmes de Rocky Balboa, em especial a parte quatro, onde
o mesmo enfrenta o campeão soviético.
Mas Axel, apesar da referência dessa luta, e do ideal da superação tão cara ao autor,
possui uma descrição física e habilidade como pugilista quenos lembra uma personagem
homônima de um jogo bastante conhecido na década de 1990. Trata-se do mesmo Axel
presente na série Streets of Rage.
As referências à essa chamada “cultura pop” não param por aí. O professor Sabino,
apresentado no primeiro volume e aprofundado no segundo, foi também tirado de um
jogo eletrônico da série Final Fantasy. Desta série foi ainda tirado o sobrenome da família
real de Arzallum: Terra Brandford.
Talvez o conceito mais importante dos Dragões de Éter inspirado nesta saga seja o
conceito do mundo. Madame Vioti, bruxa “do bem” que ensina Ariane Narim, conta à
sua pupila que o mundo em que eles vivem é formado por magia e sonhos, à partir da
vontade de um criador, mas mantido por sonhos de seres de outros mundos. Ideia também
oriunda desse mesmo jogo eletrônico.
Quando Ariane Narim sonha, sua mente por vezes vaga por esses mundos, e assim
somos apresentados a realidades que um leitor contemporâneo de Draccon saberá
reconhecer muito bem:
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(...) – Havia um homem e uma espada tipo... Mística, sabe? E o cara cavalgava
uma espécie de lagarto verde que lembrava um dragão!
-É! Havia só um pouco de pele, mas você via o... Esqueleto dele, sabe? E tinha
coisas que voavam, como aquela coisa que a gente viu ontem. E tinha um
castelo sombrio formado de pedras grandes em forma de caveira! A ponte fazia
um barulho horrível e, quando ela abria, o portão parecia uma... Boca,
entendeu? Tipo, parecia que ela comia a nossa alma, sabe? Muito sinistro, cara!
(...)[dentro] havia uma bruxa, muito bonita, que parecia uma fada de Nova
Ether. Só que ela não era humana...
-Era o que?
- Não
- É que ela era... Meio humana e meio... Águia. Isso é muito louco?”
Ariane sonhou, em outras palavras, que estava em Eternia, terra onde se passa
o desenho animado do He-man, e os personagens que ela viu, nesta ordem,
foram o He-man, o Esqueleto e a Feiticeira.
“(...) – Eles também eram humanoides. Mas tipo... Esses sim eram irados! Eles
eram meio... Tigres ou meio gatos, sabe? E, caraca, vocês tinham de ver! Eles
eram capazes de coisas incríveis! Tinha um bonitão, que liderava o grupo e
cortava todo mundo com uma espada estilosa! Ele vestia uma sunga que eu
não entendia para que, afinal, você já viu um gato ou um leão usando sunga?
Ou precisando de uma? Mas ele usava; tinha até cinto! E tinha uma luva com
garra que o Axel iria ficar babando para ter igual! Mas o melhor era a mulher!
Ela corria com um bastão e dava porrada em todo mundo, na maior! E ainda
corria pra caramba!
- Sim, havia! Tinha um que desaparecia, meio fantasma! E ele não usava cinto,
mas um macacão no corpo todo, é mole? Se já é esquisito um gato que usava
sunga e cinto, imagina macacão? Tinha outro forte pra dedéu, que saía de um
outro gato gigante e metálico! E com rodas, feito rodas de carruagem, mas
muito mais grossas! E tinha dois irmãos um pouco um pouco mais baixos do
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que eu, que lembravam a relação da Maria e do João! Assim, eles pareciam
bem unidos, sabe?(Draccon, 2010, vol 2)
O comum seria o contratado, até mesmo aquele negro de dois metros e dez,
abaixar a cabeça e dizer com voz mansa: “sim, senhor”. Obviamente, isso fazia
o ego do senhor de um metro e meio subir a três
E imagine então o que foi para ele ver o negro gigantesco se aproximar com
olhar furioso, exalando fúria naqueles olhos poderosos e bufando:
- Então quer dizer que três brutamontes como vocês gostam de assaltar
velhinhas bastante perigosas e com certeza cheias de ouro, como suas
inteligências limitadas? – Axel já havia chamado a atenção do Caneco de Ouro
muito antes disso. Ao começar a falar diretamente com os humanoides, o
recinto se calou
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Os orcos, de cor variada entre o anil e o plúmbeo, bateram a caneca com raiva
no balcão, esparramando cerveja das mais fortes. Olharam para o príncipe e,
acredite se quiser, o que não deve ser tão difícil assim, não reconheceram o
reconheceram. As inteligências limitadas, contudo, haviam entendido que
aquele homem sabia do assalto à velha na entrada da cidade – fato agora
compartilhado pela taverna inteira – e, o pior, queria ainda tirar um sarro deles
- Tu falou com eu, cumpai? – não tente entender ou aprender a falar a língua
orca. Você nunca, nem no dia em que um anão nascer alto, vai conseguir usá-
la com perfeição, ao menos se não crescer no meio deles, o que deve ser uma
desgraça, desculpe a franqueza.
A contenda é resolvida numa briga, em que Axel põe os bandoleiros para correr,
como um típico príncipe mantenedor da ordem, e como normalmente faria um
personagem de RPG. Draccon, porém, evita um erro muito comum em livros desse gênero
– como o Guerreiros de Darinka, por exemplo – e não faz de cenas como esta uma
constante, tampouco faz da busca de Axel parecer descrita por um “narrador de jogo”.
Falamos então de uma referência, que busca a identificação momentânea do leitor, muitas
vezes também RPGista, com uma cena que ele próprio já vivenciou tantas vezes.
Outros tantos elementos estão dispostos de maneira mais esparsa e sutil. O guarda-
costas de Axel é um troll, na forma e no jeito que por vezes são encontrados em montanhas
ou masmorras por grupos de aventureiros num RPG – altos, cinzentos, fortes e de
inteligência limitada. Os personagens SnailGalford e LirielGabbiani, que protagonizam
algumas das melhores cenas “por detrás dos panos”, agem como duas classes conhecidas
deste jogo. Ele, um ladino ágil de corpo e de raciocínio, e ela uma espécie de psionista,
também ágil mas capaz de movimentar objetos com a mente. E enfim, Ruggero e
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Bradamante, capitã da guarda de Arzallum, enfrentando aberrações conjuradas por um
lorde feiticeiro numa fazenda amaldiçoada.
A espada longa de duas mãos dela chocou-se uma, duas, três, quatro vezes com
lâminas de um aço negro. Dois grandes seres, com crostas de sombra no lugar
da pele, atacavam portando armas de lâminas finas e curvas que quase
lembravam uma foice transformada em espada de lâmina grossa. O rosto oval
de tais criaturas não tinha nariz ou orelhas, e, no lugar dos olhos, havia apenas
uma protuberância cheia de nervuras, como se fossem duas cascas de ovos
cheias de nervos ali cicatrizados. Tinham a boca constantemente aberta e
apenas um espaço negro representando um breu dentro delas.
A pele de tais criaturas deixava escorrer uma espécie de óleo, que escorregava
como suor. O cheiro desse óleo lembrava enxofre e putrefação. E, a cada vez
que eram cortadas em algum ponto, não saía sangue propriamente dito; saía
mais desse óleo.
(...)
E assim por diante, com referências à cultura de massas bem colocadas, o autor vai
construindo sua obra.
O próprio conceito de Nova Ether, se por um lado é utilizado no jogo Final Fantasy,
por outro é semelhante àquele utilizado em outro ícone da Literatura Fantástica: Michael
Ende, em seu História sem Fim, apresenta o mundo “Fantasia” como sendo formado
através dos sonhos dos mortais.
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Estão presentes ainda os personagens Merlim, Baba Yaga e até Don Juan. Algumas
leis também carregam nomes célebres que remetem à esta Literatura canônica, como a
Lei de Arthur, referente à uma pendência entre duas pessoas, e também o Pacto de
Swift(que impedia os humanos de subirem para o mundo dos gigantes e vice versa.
A quebra deste pacto de Swift desencadeia a guerra entre Arzallum e seus aliados
contra os gigantes, aliados ao reino de Minotauro. Dentre os gigantes, um velho
conhecido também se faz presente. Trata-se de Polifemo, que tem o destino semelhante
ao personagem homérico. Antes da batalha começar, ele faz um duelo de campeões com
a capitã humana Bradamante. Desprezando o tamanho e o fato dela ser mulher, o gigante
afirma “Para mim, ela é ninguém”.
A lua renhida ocorre, e, por astúcia e força, Bradamante vence e então a cena da
Odisseia é recriada nas páginas de Dragões de Ether.
-Pergunte a ele quem sou – ela [Bradamante] ordenou ao bardo com a voz de
uma campeã
Bradamante, com uma expressão demoníaca, foi até o ciclope, subiu em uma
de suas coxas e segurou-se em um dos chifres do elmo inimigo com a mão
esquerda. A mão direita agarrou um espinho que servia de adorno e cruzava o
queixo perfurado de uma ponta a outra, e, gritando como uma bruxa louca, em
um momento de pura ira, em um súbito e violento movimento, ela o arrancou
(...)
-Quem furou sou olho, Polifemo – ela bradou como uma semideusa. O bardo
arzallino bradou a tradução igualmente.
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- Quem furou seu olho, Polifemo? – ela repetiu
- Quem...
-...foi...
-...ninguém
A espada de duas mãos fez um arco tão poderoso, que o gume atravessou mais
da metade do pescoço protegido pelas peles grossas de animais. Quando a
campeã retirou a lâmina, a cabeça tombou para frente, ficando presa por
metade da pele. E então ela aplicou um segundo golpe. E, no terceiro, o imenso
crânio enfim rolou, separando-se do elmo” (p.400)
A ação tem o mesmo efeito dramático da obra homérica, porém a astúcia de Ulisses
é substituída pela perserverança de Bradamante. O desfecho é uma imagem quase
cinematográfica, ao gosto do jovem do ano 2000.
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- Pare de me fazer de alienado por hoje. Conte-me de uma vez: quando mudou
seus ideais mundanos e, de pecador, virou santo?
- O povo o considera
- Mas e quando esse levantar exige que outro se ajoelhe? Qual a diferença entre
as situações?
- A ternura atenua
- E é isso que se deve esperar de jovens, Locksley? Que eles cresçam tendo de
compreender que não basta a ternura, pois é necessário o embrutecimento?
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Houve um silêncio entre os dois. Um silêncio em que as palavras de um
absorveram as do outro.
- Entendo que você pense em liberdade como conquista. Mas a liberdade não
pode ser tomada, Robin. Não é possível uma liberdade sem uma cooperação
entre antigo opressor e antigo oprimido. É preciso modificar o opressor e fazê-
lo compreender o que você compreende. Do contrário não há evolução na
humanidade.
- A liberdade não deveria ser dada. Deveria ser um direito nosso ao nascer.
(p.429)
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O argumento de que, para o mundo social de Nova Ether, uma social democracia
representa já uma grande revolução é quebrada justamente por essa mesma conversa de
Robin. Mais do que isso, Dragões de Ether não é um romance histórico. Enquanto este
necessita de grande pesquisa e verossimilhança, do contrário será rejeitado pelo leitor, a
high fantasy pode se dar ao luxo de criar e recriar o mundo. De todas as formas literárias,
talvez seja a que mais dê liberdade criativa ao escritor. Até mesmo a ficção científica que
fala de viagens intergalácticas e de seres de outros planetas depende de um mínimo de
coerência científica.
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o protagonista, à beira do desespero, procura por algo em que se apoiar para continuar a
luta.
Minotauro, por sua vez, lembra-nos uma Alemanha ou Rússia. Seu campeão
pugilista é descrito como um urso branco, e a luta entre ele e Axel nos remete ao filme
Rocky IV, em que o campeão americano enfrenta o gigante soviético. Além disso, o rei
de Minotauro, Ferrabráz, tem ambições de ser reconhecido imperador pelos outros países
além de professar ideal de raça pura.
Em Corações de Neve, o rei Anísio, em sua coroação, pede a seus colegas de trono
que não façam uso da pólvora, recém inventada. Uma arma destas colocaria em xeque
não só as estruturas de poder, como também toda a simbologia da guerra no mundo de
fantasia: as armas dignas são, e sempre deverão sê-lo, as armas brancas. Axel combate
com os punhos, Locksley com o arco e Snail com adagas. Mas de todas as armas, é a
espada que continua a mais simbólica. Com ela Bradamante vence Polifemo, Ruggiero
combate os demônios da fazenda amaldiçoada e Hanson vence o duque do ódio. Ela
caracteriza a habilidade, a coragem e a força de quem a empunha. É o vínculo com a
tradição dos romances de cavalaria medieval que celebravam as espadas Durindana de
Carlos Magno, a Excalibur do rei Arthur ou Gram de Siegfried. Tradição depois resgatada
pelo romance histórico do século XIX e enfim reafirmado pela high fantasy.
Seu trunfo pode ser justamente este, ele escreve para uma juventude pós-internet e,
assim como tantos blogs famosos de internet, mistura toda a forma de conteúdo de
maneira vasta, embora rasa. Nesse aspecto, lembra-nos o Wagner libretista, quando junta
em seus escritos grande parte da contribuição acadêmica do século XIX. Se aqueles
musicólogos, como Carpeaux e Candé, apontaram-no como possuidor de uma cultura
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“vasta, porém superficial”, provavelmente diriam o mesmo de Draccon. Os dois
escreveram para um público que se adaptava às novas tendências provindas da
industrialização. Os ouvintes de Wagner da II Revolução Industrial, que introduziu a
eletricidade, a imprensa à vapor e a combustão, e os leitores de Draccon, frutos da
intensificação da III Revolução Industrial, que se focou nas telecomunicações, como a
internet.
A própria divulgação dos livros de Draccon se deu menos pelas revistas e meios
mais tradicionais do que pelo boca a boca e principalmente as redes sociais, como o Orkut,
na época em seu ápice. Esta rede social, aliás, também é referenciada em seus livros. Em
Corações de Neve, quando Axel desfila rumo à arena, suas fãs juntam-se em um grupo
denominado “comunidade Axel no meu quarto”. Típico daquela primeira grande rede
social que fez sucesso no Brasil.
Mas Draccon é menos pretencioso com sua filosofia, que ele entende não pertencer
a ele e sim ser fruto de mistura, apenas para acrescentar mais um sabor à sua receita. As
reflexões e pensamentos filosóficos estão colocados com cautela na boca dos
personagens, não do narrador, e são sempre dependentes do contexto, como a conversa
entre Locksley e Tuck, ou quando o professor Sabino aconselha João, Maria e Ariane.
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Mas não nos apressemos em aponta-la como digna de entrar para o rol das grandes
obras, levando-as obrigatoriamente às escolas, ao vestibular, às feiras internacionais e aos
prêmios da academia. Draccon conquistou seu lugar na História da Leitura no Brasil, e
para isso seu requisito é o alcance e aceitação. Mas para entrar na História da Literatura,
é necessário algo mais, e muito embora suas páginas nos tragam bons momentos de
deleite, seu gênero é dependente demais de construções prontas.
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Conclusão:
O leitor deve ter percebido a ausência de nomes notáveis do cenário da high fantasy
atual, como George S. Martim, autor da Guerra dos Tronos, uma fantasia baseada mais
no drama dos personagens e em jogos políticos do que nas velhas formas arquetípicas tão
caras a este gênero.
A questão é que este autor, embora já célebre nos Estados Unidos há mais de uma
década, ganhou espaço no Brasil muito recentemente, graças à transmissão da minissérie
baseada em seu livro e à tradução dos mesmos a partir de 2010. Recente demais para
influenciar ou para que sua influência se possa perceber mais abertamente no cenário
brasileiro atual.
Ora, a high fantasy é por certo um gênero que se inspira em cenários e bestiários
de mitologias da antiguidade. A sua estética e sua função enquanto gênero literário de
entretenimento surgiram a partir do Romantismo europeu do século XIX, ganhou forma
e espaço com grandes autores do século XX como Tolkien, Lewis e Ende, e chegou até o
XXI agregando influências da cultura de massas.
No Brasil, apenas na terceira etapa é que este gênero ganhou autores e leitores em
números expressivos. Um gênero recente e bastante ligado a formas prontas e
arquetípicas, além disso a influência da cultura de massas ainda a deixa bastante vinculada
à cultura estrangeira, principalmente anglo-americana. Ainda que as cores locais já se
mostrem presentes em livros como Dragões de Éter, parece-nos cedo demais para chamar
esta literatura de Literatura Fantástica Brasileira, ou high fantasy Brasileira, e sim de high
fantasy no Brasil. E, se assim for, talvez de fato seja cedo demais para apresentar ao
mundo, numa feira literária internacional, um Raphael Draccon como um nome da
Literatura Brasileira.
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Bibliografia
Obras Literárias:
DRACCON, R. Dragões de Éter: Caçadores de Bruxas. Leya. São Paulo. 2009
Obras historiográficas:
Críticas Literárias
52
HAUSER, A. História Social da Arte e da Literatura. Martins Fontes. São Paulo,
2000
Outros:
CANDÉ, R: A História Universal da Música. Martins Fontes. São Paulo, 2001.
Na internet.
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