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Organizadoras

Nádia Laguárdia de Lima


Márcia Stengel
Vanina Costa Dias

Anais do

1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital

Corpo e Virtualidade

1ª Edição

UFMG / PUC Minas

Belo Horizonte
2017

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

1
1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital

Comissão Organizadora

Coordenação:

Márcia Stengel
Nádia Laguárdia de Lima
Vanina Costa Dias

Integrantes:

Cândida Rosa da Silva


Daniela Teixeira Dutra Viola
Ernesto Anzalone
Helena Greco Lisita
Isadora Del Vecchio Neves Maizatto
Juliana Tassara Berni
Júnia Graziele de Almeida Couto
Libéria Neves
Luiz Henrique de Carvalho Teixeira
Márcio Rimet Nobre
Marina Margotti
Natália Fernandes Kelles
Patricia da Silva Gomes
Pedro Ramos de Cruz Chaves
Samara Sousa Diniz Soares
Rafaela Ruiz
Vanessa Guimarães da Silva

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

2
Comissão Científica do Simpósio:

Daniela Teixeira Dutra Viola


Ernesto Anzalone
Helena Greco Lisita
Juliana Tassara Berni
Libéria Rodrigues Neves
Márcia Stengel
Márcio Rimet Nobre
Nádia Laguardia de Lima
Samara Sousa Diniz Soares
Vanina Costa Dias

Comissão Editorial dos Anais:

Daniela Teixeria Dutra Viola


Ernesto Anzalone
Helena Greco Lisita
Júnia Graziele de Almeida Couto
Márcia Stengel
Márcio Rimet Nobre
Nádia Laguárdia de Lima
Patricia da Silva Gomes
Samara Sousa Diniz Soares
Vanina Costa Dias

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Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital (1. : 2017 : Belo
Horizonte, MG)
S612a Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital
[recurso eletrônico] : corpo e virtualidade / Nádia Laguárdia de Lima, Márcia
Stengel, Vanina Costa Dias . 1.ed. - Belo Horizonte :UFMG : PUC Minas,
2017.

1 recurso online (392 p.)

ISBN: 978-85-62707-97-1

1. Tecnologia e civilização. 2. Redes sociais online. 3. Cibercultura. I.


Lima, Nádia Laguárdia de. II.Stengel, Márcia. III.Dias, Vanina Costa. IV.
Título. .

CDD: 303
CDU: 316.422

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Sumário

1 Apresentação 11

2 Eixos temáticos 12

3 Trabalhos apresentados 13

3.1 Eixo 1 13

A influência das redes sociais nos números da vacinação contra o


HPV
Ana Luisa Lanna Pinto

Amizade virtual: uma relação entre hipercorpos


Samara Sousa Diniz Soares e Márcia Stengel

A oferta de um mundo sem limites: a virtualidade em “Westworld”


Cecília Batista e Jônatas Lança de Queiroz Casséte

Ativismo nas redes sociais: uma reflexão a partir de Zygmunt


Bauman
Thatiane Rabelo Gonçalves

Cibercultura na organização do Sujeito


Aline Luiza de Carvalho e Viviane Andrade Pinheiro

Compreensão das postagens de um grupo de automutilação no


Facebook à partir do modelo de prevenção de recaídas de Marlatt
Aline Conceição Silva e Nadja Cristiane Lappan Botti

Constituição do Self e anonimato nas redes sociais: considerações


a partir de uma antropologia da cibercultura
Virgilio de Araújo Mendes e Davi Teófilo

Criadores de conteúdo do YouTube: uma análise das ações


YouTube negro e mulheres criadoras
Magno Henrique Martins Alves

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Discurso de ódio nas redes sociais: O luto pela morte do filho sob
os olhares de muitos algozes
Anna Carolina de Oliveira Azevedo e Rômulo Magalhães Fernandes

Entre a boca e o seio, a tecnologia: discussões psicanalíticas sobre


o encontro mãe-bebê
Luana Nogueira de Farias Moura e Silvia Maria Abujamra Zornig

Entre celulares, tablets, consoles e computadores: práticas digitais


no cotidiano de adolescentes
Guilherme Carvalho Franco da Silveira

Entre smartphones e quatro paredes: os espaços dos adolescentes


em suas casas
Marilza de Lima Friche e Marcia Stengel

(Ex)posta: gênero, sexualidade e internet na pornografia de


vingança
Daniella Orsi

Multiplicadores da democracia: sujeitos vigiados em defesa da


liberdade de expressão
Rômulo Magalhães Fernandes e Anna Carolina de Oliveira Azevedo

O marco zero da criança na cena da cibercultura


Heloisa Lopes Silva de Andrade

O Self na Selfie: os semblantes da atualidade


Fabrizia Izabel Meira Souto e Luciana Costa Pires

Políticas das linguagens computacionais e humanas: planos


temporais de Instagram
Caio Roberto Saldanha

Pornografia e internet: reflexões sobre as convenções do altporn


Carolina Parreiras

Questões de gênero na internet: o Facebook como espaço de


(re)produção de binarismos de gênero
Mayra Reis Felipe

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Reminiscência e memória em Black Mirror
Érica Silva do Espírito Santo e Olívia Loureiro Viana

Segregação e virtualidade
Raquel Marinho

Terror à moda brasileira? Os “terroristas” no Twitter antes das


Olimpíadas Rio 2016
Carlos d'Andréa e Roberta Firmino

3.2 Eixo 2 178

A eliminação das diferenças entre os sexos: uma leitura


psicanalítica
Ronaldo Sales de Araujo, Nádia Laguárdia de Lima, Adilson Pereira dos
Santos e Alice Oliveira Rezende

Aprendizagem, cultura digital e déficit de atenção: reflexões no


Ensino Médio
Jordane Trindade de Jesus, Iago Jonathan Santos Ferreira e Gabriel
Fernandes de Lima

Apropriações do conhecimento: o sujeito e o saber na sociedade


em rede
Cristina Petersen Cypriano e Maria Bernadete de Carvalho

O corpo como o que resiste: considerações sobre o saber e a


adolescência na cultura digital
Daniela Teixeia Dutra Viola, Márcio Rimet Nobre, Helena Greco Lisita e
Isadora del Vecchio

O mal-estar docente na era da cultura digital


Marcelo Fonseca Gomes de Souza, Vanina Costa Dias e Viviane M.
Alvim Campi Barbosa

Profissionais da saúde, adolescentes grávidas e a cultura digital:


desafios e possibilidades
Patrícia Pinto de Paula, Márcia Stengel, Luiza de Abreu França e Natália
Katielle Oliveira Ferreira

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Saber e laço: avanços e limites na construção de uma metodologia
de trabalho com jovens
Débora Matoso e Ângela Vorcaro

Saberes D’Avó: conexão entre gerações através de aplicativos


desenvolvidos por estudantes de escolas públicas de Belo
Horizonte
Laura Ituassu, Manuela Gomes Lopes Cotta, Regina Mara Ribeiro Cruz
e Vanina Costa Dias

3.3 Eixo 3 241

Adolescência, feminino e Moda: um saber tecido na rede?


Fabiana Cerqueira

A exteriorização do desejo facilitada pela tecnologia


Anna Maria Soares de Brito, Taynara Silva Carvalho e Cláudia Ferreira
Melo Rodrigues

A produção da subjetividade em cibercartografias sensoriais


Renata Crisóstomo

A virtualização do espaço urbano cotidiano


Laura Fonseca de Castro

Cartografia das etiquetas: as controvérsias da literatura de


Santiago Nazarian
Gabriela Lopes

Cibercultura e subjetividade: algumas reflexões


Edson Santos de Oliveira

Dos arcos ao subterrâneo de um viaduto: cidade ocupada pela


palavra e pelo corpo
Bruna Simões de Albuquerque e Ana Lydia Santiago

O “Eu” e o Eu Virtual em uma proposta de reflexão: a construção


do Personagem nos jogos de videogame e o "Eu" primordial
Diego Gessualdo Sabádo de Souza, Marlise Aparecida Bassani e
Zakiee Castro Mufarrej Hage

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3.4 Eixo 4 302

A clínica psicanalítica face ao transhumanismo


Charles Elias Lang e Juliana Falcão Barbosa de Araújo

A contraposição entre ética e estética na construção de valores


acerca do corpo feminino ideal
Ramon Sousa de Assis e Gloria Dias Soares Vitorino

A governamentalidade algorítmica e as tecnologias de controle dos


corpos
Edson Teles

A subversão das modelos plus size nas redes sociais ao modelo


normatizador de beleza da contemporaneidade
Patrícia Eliane de Melo

Corpos utópicos e distópicos em Black Mirror: dilemas subjetivos


nos espaços biográficos das redes sociais online
Polyana Inácio Rezende Silva

Emagrecendo em rede: um estudo acerca do universo das


#instafitness
Bruna de Sousa Madureira e Junia de Vilhena

(In)Dócil: a resistência do corpo feminino diante da violência de


gênero
Juliana Ribeiro

Mulheres militantes – a exposição do corpo, a divulgação das


ideias e a construção de coletivos nas redes sociais
José Heleno Ferreira

O sofrimento endereçado ao outro: a automutilação no espaço


virtual
Juliana Falcão Barbosa de Araújo e Terezinha de Camargo Viana

Reflexões acerca da constituição psíquica e da sociedade de


consumo: um diálogo entre psicanálise e tecnologia
Paula Pegado e Junia Vilhena

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Reflexões sobre a vivência da privacidade no Facebook
Eliane C.F. Rocha

“Seus filhos falam através de imagens”: considerações sobre o uso


do aplicativo Snapchat pelos jovens
Taciane Caldeira

Transmasculinidades na rede: discutindo pressupostos


repressivos do sexo no universo do netporn
Ulisses Gonçalves de Oliveira e Vincent Rosa de Lima Silva

4 Além da Tela: Psicanálise e Cultura Digital 391

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1 APRESENTAÇÃO

1° SIMPÓSIO INTERNACIONAL SUBJETIVIDADE E CULTURA DIGITAL

Vivemos na cultura digital. As novas tecnologias da informação e da


comunicação promovem uma reconfiguração da realidade, incidindo em todos os
setores da vida humana. Os avanços das ciências biológicas e das tecnologias digitais
permitem remanejar os corpos, criar um saber sobre o seu funcionamento e prolongar
a vida. Cercado por dispositivos tecnológicos, o sujeito faz de seu corpo uma extensão
da própria máquina. As imagens de corpos perfeitos nas telas eletrônicas cativam os
olhares, criam a ilusão da unidade corporal que resiste à fragmentação, ao
envelhecimento e à morte.
Num mundo de espelhos, os sujeitos se confundem com as imagens que
produzem, numa exaltação narcísica que negligencia o corpo como furo, ausência ou
imperfeição. As selfies testemunham a presença do ser neste mundo instável, que
busca no olhar do outro a confirmação de sua existência. As experiências perdem o
valor se não forem registradas por meio dos dispositivos da imagem. O mercado,
aliado às ciências, estabelece novos padrões de vida e de culto ao corpo,
desconsiderando as diferenças subjetivas. O corpo passa a atender a uma instância
normativa que busca exercer um controle sobre a vida e a morte. O imperativo de
conexão à internet produz um indissolúvel enlace entre os corpos e dispositivos
digitais.
Quais as incidências dessa hiperconexão sobre os corpos? De que forma a
cultura digital incide nas percepções do eu sobre si, sobre o próprio corpo e sobre o
outro? Quais os recursos e as possibilidades que essa cultura engendra? O que a
virtualidade tem introduzido nos diferentes campos do saber? O que os jovens nos
ensinam sobre as possibilidades inventidas deste mundo em constante mutação? De
que forma a arte pode provocar questionamentos, perturbações e aberturas a novos
sentidos na atualidade?
Eis algumas indagações que agitaram o 1º Simpósio Internacional
Subjetividade e Cultura Digital.

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2 EIXOS TEMÁTICOS

1 Sociabilidade e cultura digital


- Reconfiguração do espaço e da estrutura social pelas tecnologias de comunicação e
informação (TIC’s);
- Alteração dos novos modos de comunicação e da vida social imersa no mundo
virtual;
- Relação entre práticas sociais/culturais e a sociabilidade por meio das TIC’s;
- Práticas de socialização on-line e as diversas expressões na formação do laço social.
Coordenadores: Fábio Bispo; Eduardo Antonio de Jesus; Valéria Freire de Andrade;
Daniela Costa, Vanina Costa Dias e Helena Greco Lisita.

2 Saber e transmissão na cultura digital


- Estatuto do corpo na transmissão e na apreensão do saber na cultura digital;
- Ensino e aprendizagem sob incidência da cibercultura no laço social;
- Relação com o saber e com o conhecimento na sociedade da informação;
- Novidades e impasses na transmissão do saber para os diferentes campos:
educação, clínica, comunicação social, dentre outros.
Coordenadores: Daniela Teixeira Dutra Viola e Marcelo Fonseca Gomes de Souza.

3 Arte e invenções na cultura digital


- Relações entre arte, corpo e tecnologias digitais;
- Invenções no ambiente virtual e seus impactos sobre o corpo;
- Arte, corpo e territorialidade na cultura digital;
- Invenção, singularidade e laço social na virtualidade.
Coordenadores: Libéria Neves e Pedro Castilho.

4 Tecnologias, política e regulação dos corpos


- Corpo exigido como máquina de alta performance na cultura digital;
- Regulação dos corpos por meio do olhar/ser olhado da hiperconexão;
- Hipermedicação dos corpos e singularidade;
- Lugar do outro e política dos corpos na experiência do corpo no espaço virtual.
Coordenadores: Ernesto Anzalone; Juliana Tassara Berni; Paula Ângela de Figueiredo
e Paula e Lisley Braun Toniolo.

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3 TRABALHOS APRESENTADOS

3.1 EIXO 1

A influência das redes sociais nos números da vacinação contra o HPV

Ana Luiza Lanna Pinto


RESUMO
O trabalho pretende articular a nossa pesquisa de pós-graduação na PUC/MINAS ao
tema deste simpósio. Ao investigar o discurso das mães de meninas a respeito da
vacinação contra o HPV a partir do referencial teórico da psicanálise, a pesquisa na
INTERNET surgiu como um rico campo de trabalho. Ao mesmo tempo, possibilitou,
através de sua análise, criarmos a hipótese de que os dados sobre a vacinação
divulgados neste campo podem ter interferido nos números de adesão à política pública
de imunização contra o HPV. Para comprovar nossa hipótese, utilizamos o conceito de
identificação em psicanálise.

Palavras–chave: Pesquisa; Internet; Psicanálise; Números; Identificação.

Este trabalho pretende articular a nossa pesquisa de pós-graduação na


PUC/MINAS ao tema deste simpósio. Trata-se de uma investigação sobre o discurso
das mães de meninas a respeito da vacinação contra o HPV a partir do referencial
teórico da psicanálise. O HPV é transmitido por via sexual e a melhor forma de
prevenção é a vacinação de meninas e meninos antes do início da atividade sexual.
A exemplo de outros pesquisadores como Greco (2010) e Lima (2009), a
pesquisa está sendo feita no ciberespaço. Estamos pesquisando postagens e comentários
em grupos no Facebook que incluem depoimentos, reportagens, fóruns de discussão.
Segundo Levy (apud GRECO, 2010), este campo tem a capacidade de colocar em
sinergia e ―interfacear‖ todos os dispositivos de criação da informação, de gravação, de
comunicação e de simulação, ou seja, é fundamentalmente um lugar de trocas e de
potenciais relações. Para ele, o virtual não é o oposto do real, mas sim uma esfera
singular da realidade, onde as categorias de espaço e tempo estão submetidas a um
regime diferenciado. Para Mantae Sena (apud GRECO, 2010), podemos considerar que
o ciberespaço é uma camada eletrônica superposta ao mundo real, mas não
completamente dissociada deste, que o complexifica.

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Consideramos que a pesquisa na Internet apresenta a possibilidade de colher o
discurso das mães de forma mais espontânea. Desse modo, pode capturaros
significantes mais marcantes de suas falas, o que interessa à pesquisa em psicanálise, a
qual busca interpretar o que há de material inconsciente em seu objeto de estudo.
A pesquisa seguiu um percurso que deve ser destacado:
Em 2014 teve início no Brasil, a exemplo de outros países, a campanha de
vacinação de meninas entre 9 e 13 anos contra o HPV. Recentemente esta campanha foi
estendida aos meninos.
Acompanhando o processo pela mídia1, verificamos a divulgação de alguns
casos de meninas que tiveram reações não esperadas à vacina, como desmaios,
formigamentos e paralisações das pernas, dificuldades de locomoção, levando-as aos
postos de saúde e aos hospitais que atenderam-nas como supostas vítimas de efeitos
colaterais da vacina.
Formulamos uma primeira hipótese de que estas reações poderiam se configurar
como uma histeria pós-vacina. Algo no corpo, a conversão, sinaliza algo do psíquico. A
partir daí, formulamos a hipótese de que as mães consideram que a vacina pode levar à
antecipação da vida sexual de suas filhas, já que previne contra o câncer de colo do
útero, que é transmitido sexualmente. Daí o nosso interesse em pesquisar o discurso das
mesmas.
Constatamos, através da mídia, que em uma segunda etapa da campanha houve
uma queda muito grande no número de meninas vacinadas, em comparação à primeira
etapa que teve 80% de adesão. Em Belo Horizonte este número caiu para 20%.
Começamos a nos perguntar: o que levou a esta grande queda na procura pela
vacina? Por que os pais não levaram as meninas para dar prosseguimento ao processo de
imunização?
Fomos às mídias buscar possíveis respostas. E encontramos em grupos no
Facebook denominados ―Sou contra a vacina HPV‖ ou ―Contra a vacina HPV‖ e nos
comentários, algumas pistas.
A divulgação dos casos citados gerou uma rede de manifestações e protestos de
mães que começaram a se recusar a levar o esquema de vacinação, que envolve três
etapas, adiante. O assunto tomou conta de blogs de saúde e família e criou discussões

1
Jornal ―O Estado de Minas‖, site G1, Jornal Folha de São Paulo Coluna de Cláudia Collucci, Blog do
Dráuzio Varela, dentre outros.
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sobre a necessidade e a segurança da vacina. Páginas específicas foram criadas no
Facebook contra a vacina, divulgando fotos de meninas de outros países em cadeiras de
rodas, com paralisias, tetraplegia, sintomas adquiridos supostamente após a vacinação,
mas sem comprovação científica.
Pais e mães indignados queixavam-se de não ter recebido orientação a respeito
de possíveis sintomas da vacina. Tomaram como exemplo a polêmica sobre outra
vacina que nos EUA estaria provocando autismos nas crianças. Buscaram casos em
outros países como EUA e Japão no qual houve a suspensão da vacinação do HPV
devido aos sintomas e efeitos colaterais supostamente atribuídos à vacina.
Apesar de as autoridades de saúde não terem confirmado esta associação direta
entre casos de paraplegia, paralisias irreversíveis, convulsões e síndrome de Guillain
Barre e a vacinação contra o HPV, estas notícias viralizaram e criaram um forte
movimento de resistência à vacinação. Nossa hipótese é de que este alastramento de
notícias tenha levado à queda do número de meninas vacinadas em uma segunda etapa
da campanha.
O desmaio de característica reversível, após a vacina do HPV é uma reação
esperada, não levando a uma incapacitação permanente.
Curiosamente, dois casos que viralizaram nas redes sociais chamaram atenção devido a
sua peculiaridade.
Em Bertioga, interior de São Paulo, 10 meninas de uma mesma escola tiveram
desmaios após a vacina. E na Colômbia, na Cidade de Carmem del Bolivar,de apenas 60
mil habitantes, mais de 200 meninas foram atendidas no hospital da cidade e centros de
saúde, constituindo o que o prefeito da cidade chamou de epidemia.
Na atualidade, os sintomas histéricos costumam se configurar na forma de
―novos sintomas‖, como as enxaquecas, a tensão pré-menstrual, a fibromialgia, a
anorexia e a bulimia, dentre outros (COSTA e MATTOS, s/d. p.4). Então indagamos:
poderiam estes sintomas pós-vacina estar situados aí? Como a psicanálise contribui para
a compreensão destes fenômenos corporais?
Considerando estes acometimentos do corpo como sintomas histéricos, apoiamo-
nos em um aspecto importante da teoria psicanalítica: a identificação.

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Em 1921, Freud descreve três tipos de identificação formadoras de sintomas. A
identificação histérica, na qual há um ―apoio do desejo sobre o desejo do Outro‖
(MILLOT, 1986, p.126), corresponde ao terceiro tipo de identificação descrita por ele.

Contrariamente à identificação do segundo tipo, que se forma a partir de um


traço tomado emprestado da pessoa amada (identificação regressiva), ou da
pessoa rival em relação a um objeto de amor, o terceiro tipo de identificação
se efetua sobre a base de um desejo comum, de uma ―mesma disposição
afetiva‖, sem que a pessoa a quem a histérica se identifica seja
necessariamente o objeto de um investimento libidinal. Esta identificação
sobre a base de um desejo comum se efetua frequentemente pelo sintoma. O
sujeito histérico se apropria do sintoma de um outro no ponto em que esse
sintoma expressa essa comunidade de relação com o desejo.

Freud (1921, p. 96) toma o exemplo das meninas de um pensionato para falar
desta identificação:

[...] uma jovem aluna de um pensionato recebe de seu secreto amor uma carta
que provoca ciúmes e à qual reage com um ataque histérico. Algumas de suas
amigas, conhecedoras dos fatos, serão vítimas do que poderíamos denominar
de afecção psíquica e sofrerão, por seu turno, um igual ataque. O mecanismo
a que aqui assistimos é o da identificação, tornada possível pela aptidão ou
vontade de colocar-se na mesma situação.

Costa (s/d) destaca que Lacan, em seu Seminário 9 (1962 inédito) mostra que
por este tipo de identificação o sujeito se constitui como desejo do Outro. A histérica
não pode fazer outra coisa que buscar o desejo do Outro ali onde este deixa seu vestígio
(ou sinal) no Outro.
A autora propõe, com base no texto de Freud, uma discussão sobre o universal e
o individual do sintoma histérico, a partir de dois significantes: ser a única e ser a outra.
A ―única‖, uma unidade inconfundível, completamente destacável da multidão. A
―outra‖, a indicação de uma semelhança, de algo compartilhado, de algo comum –
normalmente relativo ao objeto amoroso.
O que teriam essas meninas para ter o ―mesmo‖ ataque histérico? Seria possível
encontrar uma proposta de universal – alguma coisa que pudesse ser comum a todos –
na histeria? Pergunta ela. Buscando a resposta em Freud, seria aquilo que ele propôs
como modelo de identificação histérica: a identificação ao sintoma. O que é comum na
histeria toca então a um ponto de desfalecimento, através do qual o ataque histérico se
torna uma caricatura e produz esse compartilhamento, esse ―como se fosse um‖. Algo
do falso aparece aí, e Freud o chama de imitação.

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Lacan (Apud Costa, s/d, p. 2), complementa Freud:

[...] este é todo o trabalho da organização, da organização imaginária, se


podemos dizer: simular...- e sempre temos de lidar com isso para daí recolher
um grupo – simular com a multidão algo que funcione como um corpo.

A equiparação do grupo a um corpo ou a vertente da simulação no lugar do


corpo remete, para a autora, a algo bastante presente na sintomatização histérica: a
condição de tomar para si qualquer discurso sobre o corpo e, principalmente, sobre um
corpo que nãofunciona.
Assim, a autora considera o grupo funcionando como um corpo na organização
da comunidade e do indivíduo. Podemos pensar que é a isto que se referem os
fenômenos dos desmaios, dos desfalecimentos das meninas vacinadas, várias em um
mesmo lugar.
Na interpretação da psicanálise, trata-se de um sintoma do sujeito que é
compartilhado pela via da identificação histérica. Ou seja, são sintomas que atendidos e
tratados, tendem a desaparecer. Para Freud (apud Eidelberg, 2009, p. 15) a histérica
toma o sintoma comoinstrumento: ―A identificação por meio do sintoma assinala assim
o ponto de contato dos dois eus, ponto de encontro que devia manter-se reprimido‖.
Este número significativo de casos de meninas com reações à vacina nos leva a
pensar no contorno epidêmico que vão ganhando, como analisaram Eidelberg [et al.]
(2009) ao demarcarem os pontos de encontro entre a identificação histérica e a epidemia
anoréxica.
Casos epidêmicos podem ser tratados. Mas os casos compartilhados pelas redes
sociais são irreversíveis e sua divulgação é capaz de interferir negativamente em uma
política de saúde.

Referências

COSTA, A. O tempo da histeria: Considerações sobre o coletivo e o sujeito do


inconsciente. Disponível em:
<https://www.unijui.edu.br/arquivos/clinicapsicologia/informativos/falandonisso18/ensa
io.pdf>. Acesso em: 15 de abr. de 2017.

COSTA, A.M.M.; MATTOS, J.B. Histeria e corporalidade: o corpo histérico através


dos tempos. Disponível em:
<http://www.psicopatologiafundamental.org/uploads/files/v_congresso/mr_41_-
_janaina_bianchi.pdf>. Acesso em: 15 de abr. de 2017.
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17
EIDELBERG, A. [et al.] – “Porciones de nada. La anorexia y la época”. – 1ª ed.
Buenos Aires: Del Bucle, 2009.

FREUD, S. Psicologia das Massas e análise do eu. Apud COSTA e MATTOS. Porto
Alegre, RS: L&PM, 2013.

GRECO, M. Declinações da dismorfofobia: estudo psicanalítico da distorção da


imagem corporal. Tese de Doutorado, UFMG, 2010.

LIMA, N. L. Escrita virtual na adolescência: os blogs como um tratamento do real da


puberdade, analisados a partir da função do romance. Tese de Doutorado, UFMG, 2009.

MILLOT, C. Deseo y Goce em La Histerica, in: Histeria y Obsesion. Manantia, 1986.

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Amizade virtual: uma relação entre hipercorpos

Samara Sousa Diniz Soares


Márcia Stengel

Resumo:
Este trabalho objetiva discutir a sociabilidade contemporânea por meio do conceito de
amizade virtual e sua relação com o corpo a partir de comunidades do Facebook.
Lançando mão da Netnografia como método de pesquisa, compreendendo a amizade e o
corpo como construtos sociais e tendo como referência o contexto social atual
intensamente marcado pelas tecnologias de informação e comunicação (TIC‘s), este
artigo aponta algumas repercussões destes imbricamentos. Nas relações amicais
virtuais, o corpo não deixa de existir, mas adquire um novo estatuto marcado pela
virtualidade. Nesse sentido, as amizades virtuais são marcadas não pela acorporeidade,
mas pela intercorporeidade e hipercorporeidade virtual.

Palavras-chave: amizade virtual; Facebook; intercorporeidade; hipercorporeidade.

A amizade, enquanto sentimento e prática, é historicamente demarcada e, por


isso, não é algo natural e nem imutável. Por ser fruto de construção social, ela se
transforma ao longo do tempo, incorporando e refletindo práticas sociais vigentes, o que
faz dela, inclusive, uma poderosa ferramenta para compreensão da sociedade de
determinada época (REZENDE, 2002),
Entender a amizade como fruto de construção social é também compreendê-la
em sua faceta psicossocial. Em oposição à ideia moderna que encara a amizade como
algo estritamente pessoal e pouco sujeita a interferências sociais (REZENDE, 2002),
encara-se, neste trabalho, o social e o pessoal como duas facetas que coexistem,
interagem e se modificam constantemente, ocasionando mudanças subjetivas,
intersubjetivas e sociais. Acredita-se, portanto, em um sujeito que cria práticas amicais e
que, simultaneamente, é criado por elas.
Tomando como referência o contexto social vigente, intensamente marcado e
atravessado pelos avanços constantes das tecnologias de informação e comunicação
(TIC‘s) cujos primórdios recaem sobre a revolução digital iniciada no final do século
XX e amplamente difundida e permeada no cotidiano das pessoas a partir do século
XXI, questionamentos acerca da estreita relação entre amizade e virtualidade florescem

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

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inevitavelmente. Questionamentos que são intensificados diante do fato de que o maior
site de rede social atual, o Facebook, utiliza-se do termo ―amigo‖ para se referir ao
usuário que possui um perfil em seu website. Realidades sociais como esta,
necessariamente, nos remetem ao termo amizade virtual, aquela cujo exercício é
mediado por telas e teclas e cuja presença físico-corpórea é prescindível, e que povoa o
ambiente do Facebook com suas inúmeras comunidades, grupos e frases.
Frente à realidade social contemporânea percebe-se, de um lado, a apropriação
perversa da semântica da amizade pelo mercado capitalista já denunciada por Gomes e
Silva Júnior, ao afirmarem que ―a palavra amizade ou amigo tem sido deturpadamente
apropriada pelos agenciamentos neoliberais‖ (2007, p. 61) e que este artifício de
associação da afetividade humana ao consumo articula-se ao processo de subordinação
da cultura e da subjetividade ao registro econômico. E, por outro, há a assimilação de
novos dispositivos e formas para exercício da amizade e, consequentemente, sua
ressignificação, visto que a prática de confidenciar algo a alguém que não está presente
fisicamente usando meios de comunicação não é algo novo. Vincent-Buffault (1996)
deixa isso evidente ao afirmar que, nos séculos XVIII e XIX, o exercício da amizade era
realizado por meio da troca de bilhetes. A amizade virtual aparece, então, como uma
ressignificação das relações de amizade vividas nesses séculos na medida em que se
apropria das ferramentas tecnológicas atuais como artefato ora de reprodução do
controle e subordinação desejados pelo capitalismo, ora como método de contraconduta
para construção de si mediante as trocas com o outro por meio da escrita.
Lançando mão da Netnografia, metodologia que adapta os procedimentos
etnográficos comuns de observação participante às contingências peculiares da
interação social mediada por computador (KOZINETS, 2014), foram realizadas buscas
no Facebook, entre os meses de novembro/2016 e janeiro/2017, sobre comunidades que
remetessem ao tema da amizade virtual. Como resultado, foram encontradas 42
comunidades e, para escrita deste artigo, foi realizado um recorte do material
encontrado, analisando-se somente as descrições contidas no campo ―Sobre‖2 de cada
uma. Este campo é destinado à explicitação de características relacionadas à
comunidade, tais como objetivo, data de criação, sites e blogs relacionados e são
preenchidos pelo administrador/criador da página.

2
Os textos e frases encontrados são citados neste artigo de forma literal, respeitando, inclusive, a maneira
como foram escritos.
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

20
Com a mediação da tela para o exercício da amizade, vemos dois cenários se
formando: o daqueles que acreditam e aderem a essa nova modalidade de estar junto e o
daqueles que, ao contrário, não são adeptos a essa prática, bem como não acreditam ser
possível exercer este tipo de relação virtualmente.
Os praticantes da amizade virtual defendem que, ao contrário do que muitos
pensam, esse tipo de relação é totalmente possível de ser exercitada de forma
verdadeira, plena e real, tal qual na presencialidade, termo usado por Stengel (2016)
para se referir à realidade experimentada fora do ciberespaço, no corpo a corpo. O título
da comunidade mais curtida, dentre as que abarcam a temática no período pesquisado,
―Amizade virtual existe sim‖3, denota a expressa existência da exequibilidade dessa
nova modalidade de estar junto, refutando quaisquer tentativas de descrédito, irrealidade
e falta de plenitude. Acompanhados por esta mesma ideia, vemos outras afirmações
nesse sentido ―E quem disse que a amizade virtual não pode ser verdadeira?‖4; ―É
virtual? Foda-se, é bem real! ❤‖5.
Essa realidade nos remete à inevitável e até mesmo errônea comparação entre
real e virtual, como se um fosse o antônimo do outro. Lévy (1996) aponta que,
corriqueiramente, virtual é usado para definir a ausência de realidade e esta, por sua vez,
seria a efetuação material, a presença tangível. Ou seja, virtual seria o inapreensível e
real o apreensível. Entendendo virtual como potência, Lévy (1996, p. 15) aponta que o
virtual não se opõe ao real, mas ao atual, ou seja, ―virtualidade e atualidade são apenas
duas maneiras de ser diferentes‖. A mistura do virtual no presencial aparece como a
marca da contemporaneidade, daí poder afirmar, inclusive, que as barreiras que separam
estes ambientes estão justapostas, tornando opacas ou movediças suas fronteiras,
conforme apontam Rosa, Santos e Faleiros (2016). Dessa forma, amizades virtuais e
presenciais seriam formas diferentes, porém reais de exercitar a amizade.
A realidade e a veracidade das relações amicais virtuais tão enfatizadas por seus
praticantes, não impedem, entretanto, um estranhamento inicial; compartilhar questões
íntimas com alguém que nunca vira presencialmente causa perplexidade. ―Quem diria
sermos amigos de quem nunca vimos! Pois é, a amizade transpõe a presença física e nos

3
https://www.facebook.com/pg/AmizadeVirtualExiste/about/?ref=page_internal
4
https://www.facebook.com/pg/AmizadeVirtualPT/about/?ref=page_internal
https://www.facebook.com/pg/Amizade-Virtual-576679915811415/about/?ref=page_internal
5
https://www.facebook.com/pg/Amizade-virtual-1504077356561219/about/?ref=page_internal
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21
pegamos dividindo nossas vidas sonhos, felicidades!!‖6. Essa admiração e pasmo em ser
amigo de quem nunca esteve junto fisicamente, inclusive por parte daqueles que
exercitam a amizade virtual, contém uma tendência apontada por alguns pesquisadores
(GOMES; SILVA JÚNIOR, 2007; REZENDE, 2002; STENGEL, 2011) que é a de
estabelecer amizade com quem é próximo (em idade, gênero, opção sexual, classe
social, etc.) e, portanto, conhecido, visto que o estrangeiro é, na maioria das vezes,
compreendido como uma ameaça.
Gomes e Silva Júnior (2014) ressaltam que é justamente essa estranheza diante
do desconhecido que as amizades virtuais proporcionam que configura a grandiosidade
e a qualidade enobrecedora da amizade naquilo que ela traz consigo da experiência do
estrangeiro. A relação com o desconhecido aparece assim como condição propiciadora
de entrar em contato com os próprios valores, opiniões, hábitos, habilidades, etc., e
poder relativizá-los. Para esses autores, exatamente o que poderia separar é o que põe
efetivamente em relação.
Embora exista esse estranhamento, a prática da amizade virtual tem se tornado
cada vez mais comum e considerada, por muitos, como mais verdadeiras que as
amizades ―invirtuais‖7 – neologismo usado para se referir às amizades não virtuais.
Entretanto, uma não exclui a outra, visto que há possibilidade de exercitar uma amizade
―comum‖8, isto é, presencial, e outra virtual. O uso da palavra ―comum‖ traz consigo a
ideia de que a amizade virtual não é a forma natural de exercer relações amicais, não é a
norma, daí ainda haver tantas resistências por parte de alguns.
Todavia, a forma como os adeptos veem esta modalidade é diferente. ―Ao
contrário do q mtas pessoas pensam, a amizade virtual ñ é fria, impessoal e desprovida
de sentimento. pelo contrário, a amizade virtual é singela, surpreendente e sincera‖9.
Nesta frase, o autor explicita três características que acredita pairar no imaginário social
sobre as práticas virtuais da amizade, a saber, frieza, impessoalidade e falta de
sentimento, descrição que suscita algumas reflexões. Seriam estes sentimentos
exclusivos daqueles que não estão fisicamente presentes? Calor, pessoalidade e
expressão de sentimentos só seriam possíveis quando em contato físico? Corporalmente
haveria garantias de não simulação?
6
https://www.facebook.com/pg/Amizade-virtual-417444508327521/about/?ref=page_internal
7
https://www.facebook.com/pg/Amizade-virtual-existe-464748343585225/likes/?ref=page_internal
8
https://www.facebook.com/pg/Uma-Amizade-Virtual-988265454525295/about/?ref=page_internal
9
https://www.facebook.com/pg/AmizadeVirtualExiste/about/?ref=page_internal
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22
Ao que indica, imaginariamente, o contato físico e a presença corpórea ainda são
vistas como garantia de realidade. A tendência errônea, mas corriqueira, apontada por
Lévy (1996) e mencionada acima, de que virtual é usado para definir o inapreensível e
que o real seria a efetuação material, isto é, o apreensível, ainda é predominante. Esta
constatação remete ainda a outra pergunta: se no ambiente virtual o corpo materializado
não está presente, qual seria, então, o caráter diferenciador das relações amicais virtuais
verdadeiras? O que diferenciaria um verdadeiro amigo virtual daquele que não é? ―Suas
letrinhas são iguais a de todos os outros, apenas suas palavras são firmes…‖10. No meio
de tantas palavras iguais, o que é apontado como diferença é a firmeza, a assertividade
com que as palavras são proferidas e dirigidas ao outro. Palavras firmes capazes de
demonstrar pessoalidade, reconhecimento e de transmitir segurança, estabilidade,
resistência e solidez.
O diferencial de uma amizade verdadeira estaria, então, no rechaço de qualquer
indício de instabilidade, cenário bastante diferente, para não dizer oposto, do vivido
atualmente na era da liquidez. Bauman (2004), ao falar dos relacionamentos
contemporâneos, afirma que eles são marcados por grande ambivalência, pois as
pessoas querem os benefícios, mas não a responsabilidade e o investimento que esse
tipo de relação exige, ou seja, há conflito entre apertar os laços e, concomitantemente,
mantê-los frouxos. São relacionamentos profundamente marcados pela lógica do
consumismo, da usabilidade, da conveniência, do utilitarismo, do hedonismo, da
descartabilidade, da fragilidade e da efemeridade. Relacionamentos de bolso, do tipo
que pode se dispor quando necessário e depois tornar a guardar, uma vez que as
relações, por si só, não têm sido consideradas plena e verdadeiramente satisfatórias.
O verdadeiro amigo é aquele que, de forma concreta (e não líquida), prova sua
amizade, esclarece o autor internauta: ―Amizade Virtual Verdadeira Não É Aquela Que
Você Diz Que Gosta Da Pessoa, É Aquela Que Vc Prova Que A Ama (...).‖11. O
verdadeiro amigo é também aquele que se alegra com sua alegria e se entristece com
sua tristeza, isto é, participa da sua vida de forma efetiva e contínua e não apenas
quando há interesse, visto que ―A felicidade de um amigo deleita-nos. Enriquece-nos.

10
https://www.facebook.com/pg/Amizade-virtual-777564118937937/about/?ref=page_internal
11
https://www.facebook.com/pg/Amizade-Virtual-%C3%89-Outro-N%C3%ADvel-
372815076190244/about/?ref=page_internal
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23
Não nos tira nada. Caso a amizade sofra com isso, é porque não existe‖12. Nesse cenário,
as amizades virtuais verdadeiras, diferenciadas pela firmeza e estabilidade seriam,
então, uma busca de coconstrução de si e afirmação do sujeito? Uma válvula de escape
contra a objetalização que marca as relações em tempos líquidos? Uma forma de
contraconduta frente à lógica consumista que assola e mina os relacionamentos
contemporâneos? Parece que sim.
Um dos pontos cruciais da amizade virtual é a distância. Amizade virtual é um
tipo de ―Amor à Distância‖13, um amor de amigo que é diferente de um ―afeto virtual‖ 14.
―É ter alguém pra contar, msm estando do outro lado do mundo!‖15. São ―Amigos que
―Moram Login e que se Amão‖16, isto é, amigos que moram longe e se amam e,
justamente por isso, ―moram‖ em um login e ―a-mão‖, via teclas, exercitam sua
amizade. É comum, pelas postagens e falas, perceber como que estes amigos se gostam
e sofrem por não poder se abraçar, se beijar, se encontrar fisicamente. Frases como:
"Você sabe o que é ter uma amizade virtual e sofrer demais por querer ver e abraçar seu
amigo virtual?"17 e ―Amizade Virtual, só quem tem sabe como é doloroso se ver longe
dos amigos.‖18 ilustram bem essa situação. O que a amizade virtual supera - a presença
física - é também sua dificuldade. O corpo, nessa modalidade de sociabilidade, torna-se,
portanto, uma questão.
No espaço cibernético e, por conseguinte, nas relações amicais virtuais, o corpo
biológico é colocado entre parênteses, ―deixa de se impor como materialidade‖, afirma
Le Breton (2013, p. 142) e passa a adquirir outro estatuto: de virtual. Nos termos de
Sibilia (2015, p. 60), ele passa a ser ―uma entidade de nova classe, virtualizada, capaz
de extrapolar seus antigos confinamentos espaciais. Um organismo ubíquo, portanto,
desligado da própria materialidade, conectado e estendido pelas redes informáticas‖.
Nas relações amicais há a virtualização do corpo, transformação que não pode ser
reduzida a um processo de desaparecimento ou desmaterialização, mas sim como
mudança de identidade.
Como aponta Lévy (1996, p. 33), a virtualização do corpo não é ―uma

12
https://www.facebook.com/pg/Amizade-Virtual-495137403914770/about/?ref=page_internal
13
https://www.facebook.com/pg/AmorDiistancia/about/?ref=page_internal
14
https://www.facebook.com/pg/meunamoroouamizadevirtual/about/?ref=page_internal
15
https://www.facebook.com/pg/Amizade-Virtual-S2-1626321204309784/about/?ref=page_internal
16
https://www.facebook.com/pg/Amizade-virtual-frases-1444134885612145/about/?ref=page_internal
17
https://www.facebook.com/pg/amizadeevirtual/about/?ref=page_internal
18
https://www.facebook.com/pg/AAmizadeVirtual/about/?ref=page_internal
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24
desencarnação, mas uma reinvenção, uma reencarnação, uma multiplicação, uma
vetorização, uma heterogênese do humano‖. O corpo físico/biológico não deixa de
existir e nem de ter o seu papel, pois ainda não se tornou completamente obsoleto, mas
no ciberespaço, ele é reinventado, reelaborado de forma a superar obstáculos e
limitações; ele é reencarnado nos inúmeros perfis que podem ser criados a gosto, sendo
condizentes ou não com o corpo que possui fora das telas; um corpo que pode ser
multiplicado se repartindo em ―múltiplos eus‖ (NICOLACI-DA-COSTA, 2002),
possibilitando a não unicidade e, que, por isso mesmo, pode ser propagado na
imensidão do ciberespaço de forma quase onipresente; um corpo que se torna um vetor,
isto é, um ser vivo, que embora incorpóreo fisicamente, abriga, transporta e transmite
ideias.
Virtualmente, há um hipercorpo ―individual que se torna parte integrante de um
imenso hipercorpo híbrido e mundializado‖ (LÉVY, 1996, p. 31), bem como
heterogêneo que transcende barreiras espaço-temporais, assim como adquire um status
de quase ilimitação. Como complementa Sibilia (2015), no ciberespaço, há a anulação
de toda restrição espacial, ignorando as distâncias geográficas e as fronteiras nacionais.
E esta virtualização do espaço se conjuga com um desdobramento da dimensão
temporal, dispensando tanto a organicidade do corpo presente quanto a materialidade do
espaço e a linearidade do tempo.
Le Breton (2013, p. 146) afirma que ―o espaço cibernético é uma ferramenta de
multiplicação de si, uma prótese de existência quando não é o próprio corpo que se
transforma em prótese de um computador onipotente‖. São os ―corpos plugados‖
nomeados por Santaella (2003, p. 202-203), usuários que se movem no ciberespaço
enquanto seus corpos ficam plugados no computador para a entrada e saída de fluxos de
informação, ou seja, ciborgs (cib-ernética + org-anismo) interfaceados no ciberespaço.
As relações amicais atuais, mediadas pela internet, aparecem, portanto, como
uma nova maneira de estar junto em que os sujeitos são afetados no registro da
subjetividade, ou seja, ambos se afetam mediante as trocas simbólicas que se dão no
registro discursivo das conversas on-line e mediante as novas experiências oferecidas
com a virtualização dos corpos no ciberespaço e não estritamente por meio do contato
físico presencial. Nesse sentido, as amizades virtuais são marcadas não pela
acorporeidade, visto que os corpos ainda continuam existindo, embora sob outra forma

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

25
que não passa pela organicidade, mas pela intercorporeidade e hipercorporeidade
virtuais.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

GOMES, Lívia Godinho Nery; SILVA JÚNIOR, Nelson da. Sobre a amizade em
tempos de solidão. Psicologia & Sociedade, 19(2), 57-64, 2007.

GOMES, Lívia Godinho Nery; SILVA JÚNIOR, Nelson da. Experimentação política da
amizade na internet. Psicologia & Sociedade, 26(2), 384-396, 2014.
KOZINETS, Robert V. Netnografia: realizando pesquisa etnográfica online. Porto
Alegre: Penso, 2014.

LE BRETON, David. Adeus ao corpo: Antropologia e sociedade. Campinas, SP:


Papirus, 2013.

LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 1996.

NICOLACI-DA-COSTA, Ana Maria. Revoluções tecnológicas e transformações


subjetivas. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 18, n. 2, p. 193-202, mai/ago.
2002.

REZENDE, Claudia Barcellos. Os significados da amizade: duas visões de pessoa e


sociedade. Rio de Janeiro: FGV, 2002. 168p.

ROSA, Gabriel Artur Marra e; SANTOS, Benedito Rodrigues dos; FALEIROS,


Vicente de Paula. Opacidade das fronteiras entre real e virtual na perspectiva dos
usuários do Facebook. Psicologia USP, volume 27, número 2, 263-272, 2016.

SANTAELLA, Lúcia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à


cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.

SIBILIA, Paula. O homem pós-orgânico: a alquimia dos corpos e das almas à luz das
tecnologias digitais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015.

STENGEL, Márcia. Discursos de pais e mães sobre a amizade em famílias com filhos
adolescentes. Paidéia, v. 21, n. 49, p. 217-225, mai./ago. 2011.

STENGEL, Márcia. Notas de aula ministradas no dia 17 de agosto de 2016. Belo


Horizonte, 2016.

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26
VINCENT-BUFFAULT, Anne. Da amizade: uma história do exercício da amizade nos
séculos XVIII e XIX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

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27
A OFERTA DE UMA VIDA SEM LIMITES:
A virtualidade em “Westworld”

Cecília Velloso Gomes Batista19


Jônatas Lança de Queiroz Casséte20

RESUMO
Tendo em vista o tema do simpósio: ―corpo e virtualidade‖, fomos movidos a pensar a
psicanálise através da série de televisão, lançada pela HBO em 2016, chamada ―Westworld‖. A
série nos coloca frente à experiência virtual e o que ela pode proporcionar a cada um. Nela é
apresentada uma espécie de parque, habitado por androides. Os ―visitantes‖ – humanos que
pagam para viver nesse parque uma ―vida sem limites‖ – podem encarnar personagens e fazer
tudo que querem sem as restrições da lei ou do corpo, uma vez que não se machucam ou
morrem dentro desse mundo virtual. Para o propósito desse artigo, temos como objetivo estudar
pela lente da psicanálise lacaniana, a função da Lei simbólica e os efeitos de seu declínio no
laço social. Pensar como a virtualidade pode oferecer a ilusão de uma experiência sem a
incidência da castração, subvertendo a dialética presente no laço social, dado que suspende os
fatores de renúncia de gozo.

Palavras-chave: Lei; Virtualidade; Laço social; Gozo.

INTRODUÇÃO

A todo tempo nos deparamos com vivências comuns que se tornam, através do olhar de
um pesquisador, objetos de estudo e investigação. As representações artísticas explicitam,
muitas vezes, o mal-estar social de um momento e contribuem para as reflexões e o
desenvolvimento da teoria psicanalítica. A psicanálise está em constante desenvolvimento e se
mantém atualizada frente às configurações contemporâneas – toma aquilo que vivemos no
automatismo do nosso tempo e do dia-a-dia, como enigmas que denunciam os sintomas de uma
época.
A tecnologia, a internet, o contato com o mundo virtual, cada vez mais presentes na
contemporaneidade, tornam quase inevitável a pergunta: quais os efeitos disso no laço social?
19
c.vgomesbatista@gmail.com
20
jonataslqc@hotmail.com

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

28
Utilizaremos ao longo do artigo a série ―Westworld‖ lançada em 2016 pela HBO, como
uma ilustração da experiência virtual, que irá contribuir para pensarmos a teoria. Para isso
faremos primeiramente uma breve apresentação da história retratada em ―Westworld‖. Na série,
há um mundo virtual habitado por androides que foram criados à imagem e semelhança dos
seres humanos. Esses androides, que não são cientes de sua condição de máquina, vivem dentro
de algumas ―story lines‖ (roteiros), que se repetem a todo tempo para o usufruto dos seres
humanos que pagam – um preço alto – para visitar esse mundo virtual. O mundo ―Westworld‖ é
vendido aos humanos através do seguinte slogan: ―viva sem limites‖, dado que a entrada nessa
realidade permite que eles encarnem o personagem que quiserem e façam o que quiserem como
matar e estuprar sem a intervenção da lei e sem o risco de se machucarem, ou morrerem, pois
estão protegidos disso. Retiramos frases da série21 que nos causaram algum incômodo. Cada
frase colocada como tópicos, portanto, introduz um ponto de questionamento a partir do qual é
possível pensar a teoria.

“EU VIM SOZINHO, FUI TOTALMENTE MAL, FORAM AS MELHORES TRÊS


SEMANAS DA MINHA VIDA”

Para pensarmos essa crescente forma de relação humana mediada pela tecnologia
acreditamos ser importante compreender como, para a psicanálise, nos estabelecemos na
cultura. Freud (1912-13/1996), em seu texto Totem e Tabu, desenvolve o mito do pai primevo
para, através dele, narrar a instituição do contrato social que tem como fundamento a proibição
do incesto, que se faz valer como um tabu. Freud (1913-14/1996) ao tratar da proibição do
incesto, percebe que nas tribos primitivas, essa questão era primordial e acarretava na instituição
de regras e leis para tentar assegurar que ela seria respeitada. O autor propõe que a forte rejeição
ao incesto e os esforços despendidos por essas tribos indicava que isso se devia à presença de
desejos inconscientes de natureza incestuosa, que poderiam se apresentar como tentações na
fantasia. Após essas considerações o autor apresenta a discussão sobre o tabu, como aquilo que
instaura a rejeição ao incesto -uma proibição original - indicando que ele carrega em si um
sentido ambivalente visto que por um lado, representa o que é sagrado e, por outro, o que é
proibido, impuro. Em sua essência reside algo misterioso de difícil captura: ―Assim, ‗tabu‘ traz
em si um sentido de algo inabordável, sendo principalmente expresso em proibições e
restrições. Nossa acepção de ‗temor sagrado‘ muitas vezes pode coincidir em significado com
‗tabu‘‖ (Freud, 1913-1914/1996, p. 37, grifos do autor). Por esse caráter de ―temor sagrado‖, o

21
Salvo enquanto títulos de tópicos do artigo, as citações de trechos da série se encontram em itálico.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

29
tabu se difere das leis expressas, que têm sua função e objetivos declarados e explicados ao
grupo, pois, pelo contrário, sua função de proibição se faz valer sem um fundamento aparente, é,
portanto, sem sentido. Esse caráter sem sentido aproxima o tabu de Freud, ao que Lacan (1969-
70/1992) aponta como a função do primeiro significante do discurso, que incide como uma
interdição ao gozo que abre o campo do desejo. Entendemos que: ―O mito freudiano ensina que
há um impossível do gozo, o qual não se pode conhecer e, ao renunciá-lo, o sujeito pode ter
acesso ao desejo‖ (ASSAD; BARRÊTO, 2012, p. 139). Porém a renúncia tem um efeito
colateral, o mal-estar.
Posteriormente em O mal-estar na civilização, Freud (1930/2011) nos ensina que as
principais fontes de sofrimento do homem são ―a prepotência da natureza, a fragilidade de nosso
corpo e a insuficiência das normas que regulam os vínculos humanos na família, no Estado e na
sociedade‖ (FREUD, 1930/2011 p. 30). Frente a esses impasses o agrupamento de pessoas
trabalhando em prol de um bem comum se apresenta como uma saída. Paradoxalmente, no
entanto, essa saída ao tratar as duas primeiras fontes de sofrimento, acaba por causar o terceiro
sofrimento apontado por Freud: o mal-estar social. Algo sempre escapa à tentativa de regulação
dos vínculos e na manutenção dos laços algo, que para Freud, é oriundo de uma tendência à
agressividade inerente ao ser humano.

Portanto, em tudo o que segue me atenho ao ponto de vista de que o pendor


à agressão é uma disposição de instinto original e autônoma do ser humano,
e retorno ao que afirmei antes, que a civilização tem aí o seu mais poderoso
obstáculo. (FREUD, 1930/2011, p. 67).

Porém, os mecanismos utilizados pela civilização para conter essa ―tendência‖ são
sempre falhos, como vemos em Freud: ―a lei não tem como abarcar as expressões mais
cautelosas e sutis da agressividade humana‖ (FREUD, 1930/2011, p. 58). Ela sempre é
insuficiente, faltosa na empreitada de limitar a agressividade.
O mal-estar na civilização, ou seja, esse fator que se opõe à felicidade se deve ao fato de
que ao estabelecer laços, leis e regras para viver em conjunto, barreiras são colocadas às
tendências agressivas do homem, frustrando-as. Entende-se que ―se a cultura impõe tais
sacrifícios [...] ao pendor agressivo do homem, compreendemos melhor porque para ele é difícil
ser feliz nela‖ (FREUD, 1930/2011, p. 61).

“ESSE LUGAR SEDUZ A TODOS EVENTUALMENTE, ESSE LUGAR É A


RESPOSTA À PERGUNTA QUE VOCÊ TEM FEITO A SI MESMO – QUEM É
VOCÊ?”

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

30
Em seu Seminário XVI, De um Outro ao outro, Lacan (1968-1969/2008) nos ensina que
existe uma impossibilidade, ou seja, um limite Real na tentativa de identificação e de captura
daquilo que nos falta. É da própria relação do ser com o Outro, o campo da linguagem e dos
significantes, que se produzem simultaneamente as identificações e a perda de objeto que nos
marca como sujeitos de falta ao longo da existência. Nesse contexto, o campo do gozo e,
portanto, do Real, se abre como o que escapa ao sentido produzido pelas cadeias significantes.
A lógica da castração se exprime como o efeito da entrada no discurso, pois a
identificação a um primeiro significante qualquer, apesar de abrir alguma possibilidade de laço
social, também incide no sujeito como um limite Real, uma vez que a identificação nunca é
completa, ela falha, o que gera um efeito de causa expresso na função do objeto a como causa
de desejo, que cai dessa operação. Com a abertura do campo do gozo abre-se também a vertente
do objeto a como mais-de-gozar.
O mito do pai primevo opera como uma metáfora original frente à falta do objeto
primordial e permite a Lacan (1969-70/1992) introduzir a teoria dos discursos como laços
sociais. O caráter mítico está presente no Discurso do Mestre representado pelo S1, traço unário
sem sentido, pois o saber se encontra no lado do escravo. O S1 simplesmente é – ―no princípio
era o verbo‖ – e, por esse caráter, não se sabe nada dele e assim cumpre a função de regulação.
Isso foi o que Freud nos elucidou através da noção de tabu.
Lacan (1969-70/1992) observa que algo mudou nesse discurso ao longo da história
ocidental. Com o advento da ciência o saber do mestre escamoteia o ponto de non-sense e passa
a representar-se em si mesmo ―o que esse discurso tem de natureza afim à da matemática, onde
A representa a si mesmo sem precisar do discurso mítico para dar-lhe suas relações‖ (LACAN,
1969-70/1992, p. 94). Lacan nomeia essa alteração no discurso do mestre moderno como o
discurso universitário que já carrega em si um caráter capitalista. Posteriormente, na conferência
de Milão, Lacan (1972/1978) introduz o discurso do capitalista como um quinto discurso. Nele,
o efeito da transformação entre os Discursos do Mestre clássico e o Moderno, é apresentado em
sua última consequência: não há mais a barreira impossível entre o sujeito e o objeto. Desmente-
se a castração uma vez que o objeto é apresentado como algo ao alcance das mãos – desde que
tenha o dinheiro para comprá-lo – o que não é sem consequências.

“É incrível! – é bom que seja mesmo pelo que estamos pagando.”

“SEM ORIENTAÇÃO, SEM DIRETRIZES.”

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

31
Miller (2012) faz ponderações sobre a mudança do discurso do Mestre ao capitalista e
alguns de seus efeitos na contemporaneidade. Suas reflexões indicam que atualmente as pessoas
vivem uma ausência de sentido, de direção, ―os sujeitos contemporâneos, (...) são desinibidos,
neo-desinibidos, desamparados, desbussolados. (...) Ah! Sim, sim, sim! Como somos
desbussolados! Como isso é verdade! (MILLER, 2004, p. 1)‖. A percepção de que na atualidade
as pessoas estão ―perdidas‖ é quase um consenso, mas, à que se deve tal realidade? A ideia é
que isso se relaciona com um enfraquecimento da moral civilizada, ou seja, pelo próprio
enfraquecimento do laço social. A virtualidade se apresenta como um campo marcado por esse
enfraquecimento, onde há uma menor regulação – dos corpos, do espaço, do tempo.
A realidade do parque ―Westworld‖ segue os moldes do discurso do capitalista, vende uma
ilusão de que dentro dele é possível encontrar o que falta, o sentido da vida. Tudo isso sem as
limitações morais que são inerentes ao laço social. Ao longo da série nos é apresentado a
existência de um labirinto o qual um dos visitantes desse mundo passa trinta anos de sua vida
tentando encontrar o centro. Para ele, esse roteiro é o que revela o verdadeiro sentido da
experiência em ―Westworld‖. O centro do labirinto se apresenta nesse momento como que
ilustra o objeto a numa leitura lacaniana, o qual por estrutura está perdido e nunca poderá ser
encontrado, verdade que, inevitavelmente, o personagem se depara. O final da temporada ilustra
o destino mortífero desse jogo perverso, final que deixaremos que cada um experimente ao
assistir a série.

“Esses deleites violentos, tem fim violentos.”

REFERÊNCIAS

ASSAD, Margarida Maria Elia; BARRETO, Elisângela Ferreira. Nomeação, um savoir-y-faire


para além do pai. In: De que real se trata na clínica psicanalítica? Rio de Janeiro: Cia. de
Freud: PROAP/CAPES, 2012.

FREUD, Sigmund. Totem e tabu e outros trabalhos, In. Obras psicológicas completas: Edição
standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Vol.13

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo:
Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.

MILLER, Jacques. Uma fantasia. Fita I. In. Conferência de Jacques-Alain Miller em


Comandatuba por Jacques-Alain Miller. IV Congresso-AMP – Comandatuba. 2004

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

32
LACAN, Jacques. Discurso de Jacques Lacan na Universidade de Milão em 12 de maio de
1972, lançado na obra bilíngue: Lacan in Itália 1953-1978. Na Itália Lacan, Milão, La
Salamandra, 1978.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Texto estabelecido por
Jaques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

LACAN, Jacques. O seminário livro 16: de um outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2008.

WESTWORLD. Direção: Jonathan Nolan, Lisa Joy. HBO. Out, 2016. Série de televisão
exibida originalmente em 2016 na rede HBO.

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33
Ativismo nas redes sociais:
uma reflexão a partir de Zygmunt Bauman

Thatiane Rabelo Gonçalves22

Resumo
A expansão da internet e do ciberespaço vem permitindo uma remodelação da atuação
dos indivíduos com a expansão da liberdade de expressão, de atuações da sociedade
civil e com a experimentação de novas formas de democracia. Para Zygmunt Bauman
(2001), vive-se uma sociedade marcada pelo individualismo, em que as sociedades em
rede são mais fáceis de serem formadas do que comunidades, mas são frágeis e líquidas.
Este trabalho busca refletir, à luz dos ensinamentos de Zygmunt Bauman (2001) e
utilizando-se de uma pesquisa jurídico-sociológica, se as redes sociais possibilitam a
formação de uma coletividade capaz de reivindicações dentro e fora da rede. Embora
Bauman (2001) seja pessimista com a globalização e com o advento da sociedade da
informação, suas reflexões ajudam a compreender que um movimento ativista na
internet pode tanto surgir quanto ser esquecido facilmente. É preciso transformar o uso
das redes sociais enquanto prática social em uma prática inclusiva, ativa, sólida, com
conhecimento das demandas que necessitam de maior compromisso social e político.

Palavras-chave: Internet; Redes; Ativismo; Coletividade; Bauman.

1. INTRODUÇÃO

O século XXI vivencia a expansão da internet e do ciberespaço, permitindo a


formação e a realização da personalidade dos indivíduos com a expansão da liberdade
de expressão, de atuações da sociedade civil e até mesmo na experimentação de novas
formas de democracia.
Por um lado, a internet possibilita uma interação humana cada vez maior a nível
quantitativo, pois é possível que um indivíduo se comunique, ao mesmo tempo, com

22
Thatiane Rabelo Gonçalves é graduada em Direito pela UFMG e mestranda do Programa de Pós-
Graduação em Direito da UFMG, com ênfase de pesquisa nas áreas de Direito Civil e Direito de Internet.
E-mail: thatiane.rabelo@yahoo.com.br.
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

34
inúmeras pessoas oriundas de diversos lugares. A princípio, tem-se a sensação de que
um indivíduo pode, no meio digital, livremente exercer seu direito de se expressar,
defender suas opiniões, identificar pessoas com interesses comuns, contribuir em fóruns
de discussão ou em publicações em redes sociais, criando uma esfera pública mais
democrática.
No entanto, é possível afirmar que o uso da internet, mais precisamente das
redes sociais, proporciona, de fato, quantitativamente e qualitativamente, maiores
discussões políticas, sociais e econômicas entre os cidadãos? As discussões que nascem
nas redes sociais têm bases fortalecidas para surtirem efeitos no mundo off-line? As
redes sociais são realmente uma ferramenta a favor da democracia?
Sendo assim, este trabalho busca refletir, à luz dos ensinamentos de Zygmunt
Bauman (2001) e utilizando-se de uma pesquisa jurídico-sociológica, se as redes sociais
possibilitam a formação de uma coletividade capaz de reivindicações dentro e fora da
rede, fazendo desse espaço um caminho para a socialização dos impasses e a busca por
reconhecimento e efetivação dos direitos humanos. São breves reflexões para
compreendermos as transformações do nosso ―mundo líquido‖, impulsionado pela
modernização e pelos avanços tecnológicos.

2. A SOCIEDADE LÍQUIDA DE ZIGMUNT BAUMAN

Zigmunt Bauman (2001, p. 8) afirma que vivemos no que ele denomina de


―modernidade líquida‖. Sobre a escolha do adjetivo ―líquida‖, o sociólogo explica que:

O que todas essas características dos fluidos mostram, em linguagem simples,


é que os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com
facilidade. Os fluidos, por assim dizer, não fixam o espaço nem prendem o
tempo. Enquanto os sólidos têm dimensões espaciais claras, mas neutralizam
o impacto e, portanto, diminuem a significação do tempo (resistem
efetivamente a seu fluxo ou o tornam irrelevante), os fluidos não se atêm
muito a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a
mudá-la.

Compreende-se que uma sociedade marcada pela liquidez, embora flexível e


dinâmica, seria combinada da falta de garantias de posição e sobrevivência, da incerteza
em relação à sua continuação e estabilidade futura e de insegurança do corpo, do eu e de
suas extensões (BAUMAN, 2001).

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

35
O ‖derretimento dos sólidos‖, traço permanente da modernidade, adquiriu,
portanto, um novo sentido e, mais que tudo, foi redirecionado a um novo alvo e, um dos
principais efeitos desse redirecionamento foi a dissolução das forças que poderiam ter
mantido a questão da ordem e do sistema na agenda política. Os sólidos que estão para
ser lançados no cadinho e os que estão derretendo neste momento, isto é, na
modernidade fluida, são os elos que entrelaçam as escolhas individuais em projetos e
ações coletivas, os padrões de comunicação e coordenação entre as políticas de vida
conduzidas individualmente, de um lado, e as ações políticas de coletividades humanas,
de outro (BAUMAN, 2001. p. 13).
Essa liquidez pode ser observada nas mais diversas relações sociais. Nas
relações amorosas e sexuais, Bauman (2004) afirma que as conexões predominam.
Conexão é o termo que o autor usa para descrever as relações frágeis. A vantagem não
está só em ter várias conexões, mas, principalmente, em conseguir desconectar sem
grandes perdas ou custos. A conexão é frágil, porque o sujeito líquido lida com um
mundo de consumo e opções, mas esse mundo ainda causa frustrações e insegurança.
Na modernidade líquida, as cidades são espaços de guerra nos quais os poderes
globais e as identidades locais se relacionam e lutam para se equilibrarem entre a
liberdade de convivência com novas e diversas identidades e o medo do desconhecido,
daquele que não é um semelhante. A existência de identidades diferentes na cidade faz
crescer o sentimento de medo de conviver com o diferente, o que o Bauman (1999)
chama de mixofobia (medo de misturar-se), sendo que, ao mesmo tempo, o desejo pelo
o novo e diferente faz surgir a mixofilia (abertura e valorização do diferente e do
desigual), que impulsiona o crescimento das cidades e dos conglomerados urbanos.
Nesse contexto, Bauman (2001) explica que vivemos um tempo em que a
individualização é uma fatalidade, não uma escolha. Já não se tem mais a opção de
escapar à individualização. Contudo, o indivíduo nascido desse processo é o pior
inimigo do cidadão, já que este tende a ser indiferente ou descrente em relação ao bem
comum ou à noção de uma sociedade justa.
Bauman (2001) afirma que hoje nós não temos líderes, mas sim conselheiros. Os
líderes agem como intermediários entre o bem individual e o bem de todos, entre as
preocupações privadas e as questões públicas. Já os conselheiros não saem da área
fechada do privado. Como as preocupações são privadas, assim como o meio de lutar

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

36
para resolvê-las, as orientações dos conselheiros se referem ao que as pessoas podem
fazer para si próprias, cada uma para si, não ao que podem realizar em conjunto se
unirem forças.
Ainda, nessa linha de pensamento, o sociólogo defende que:

O que está ocorrendo não é simplesmente outra renegociação da fronteira


notoriamente móvel entre o privado e o público. O que parece estar em jogo é
uma redefinição da esfera pública como um palco em que dramas privados
são encenados, publicamente expostos e publicamente assistidos. A definição
corrente de ―interesse público‖, promovida pela mídia e amplamente aceita
por quase todos os setores da sociedade, é o dever de encenar tais dramas em
público e o direito do público de assistir à encenação. (BAUMAN, 2001. p.
90-91)

Assim, pelo exposto, o autor acredita que o contexto de autoidentificação e


individualização têm efeitos colaterais altamente destrutivos, pois divide as situações
humanas e induz à competição mais ríspida, crescem as ameaças de desestruturação,
fragmentação e desarticulação, em vez de unificar uma condição humana inclinada a
gerar cooperação e solidariedade.

3. A LIQUIDEZ DOS DEBATES DAS REDES SOCIAIS

Primeiramente, é importante ressaltar o problema da falta de inclusão digital. A


internet ainda não atinge a todos, nem todos tem acesso a ela, nem todos a usam em sua
completude. Ainda, nem todos que têm acesso à internet usam a ferramenta para
ampliar o acesso à informação. Como John Gray (2006, p. 182) ressalta o uso de vídeo
games, internet, televisão e de outros instrumentos da cultura do entretenimento que
oferecem descanso ao indivíduo em suas horas fora do ambiente de produção visa
satisfazer o homem, e não estimular reflexões mais profundas, adormecendo uma
possível crítica sobre o modo como as relações sociais hoje se desenvolvem.
Diminui-se o potencial democrático das redes sociais quando o indivíduo não
enxerga o uso da internet como forma de exercício da cidadania ético e inclusivo. A
maioria, em busca de um momento lúdico, pode ignorar o uso livre desse espaço para
debates mais profundos e para manifestação por grupos em luta por seu reconhecimento
social e político. Nesse sentido, ―o discurso lúdico massificante prejudicou a articulação
horizontal dos segmentos sociais, por exemplo, à medida que acirrou o individualismo‖

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

37
(SOUZA, 2012. p. 179-180).
Mesmo dentre aqueles que fazem uso do potencial democrático da rede,
percebe-se, nas redes sociais, a individualidade mencionada por Bauman (2001), onde
facilmente é possível adicionar e deletar amigos, comentários políticos ou
posicionamentos sociais, confirmar presença em eventos, assinar petições on-line,
responder pesquisas. Nesse contexto, as habilidades sociais não são tão necessárias
quanto seriam na família, na escola, no trabalho ou na vizinhança, onde se tem uma
interação razoável.
As redes sociais não ensinam a dialogar porque é muito fácil evitar a
controvérsia. A maioria das pessoas curte a página de SEU interesse, de SEU
movimento político, daquele grupo a qual ela se identifica. Castells (2001, p. 151) dá o
exemplo de que uma rede de apoio on-line para pacientes de câncer atrai principalmente
os enfermos e seus entes queridos e, talvez, alguns médicos e investigadores sociais,
mas não supera isso.
Com efeito, quando acontece algum fato político/social, por exemplo, as redes
sociais são bombardeadas de publicações a respeito do assunto, de expressões políticas,
de críticas, mas raramente aquele ativismo no mundo virtual tem alguma concretude. Se
por um lado, as manifestações nas redes sociais são rápidas e flexíveis e podem ser
feitas por todos os usuários, elas também são fugazes. Basta acontecer outro fato de
grande repercussão, para aquele primeiro assunto ser esquecido e as pessoas voltarem
seu olhar para o novo fato, que logo também será esquecido. Observa-se, assim, a
liquidez dos debates virtuais.
Bauman (2001) afirma que a sociedade da ―modernidade líquida‖ fez da crítica
da realidade, da insatisfação com ―o que aí está‖ e da expressão dessa insatisfação uma
parte inevitável e obrigatória dos afazeres da vida de cada um de seus membros.
Da igual modo, Anthony Giddens (1991) ensina que os indivíduos hoje estão
engajados na ―política-vida‖, são ―seres reflexivos‖ que olham de perto cada movimento
que fazem, que estão raramente satisfeitos com seus resultados e sempre prontos a
corrigi-los. De alguma maneira, no entanto, essa reflexão não vai longe o suficiente para
alcançar os complexos mecanismos que conectam os movimentos com seus resultados e
os determinam, e menos ainda as condições que mantêm esses mecanismos em
operação. Os indivíduos hoje são talvez mais ―predispostos à crítica‖, mais assertivos e

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

38
intransigentes nas suas críticas, que seus ancestrais em sua vida cotidiana, mas a crítica
é sem fundamentos sólidos.
Castells (2001. p. 153) pontua que:

Existe uma variedade de redes de fácil entrada e de baixos custos, o que


resulta em grande flexibilidade, já que os indivíduos constroem e
reconstroem seus modelos de interação social. Por outra parte, como o nível
de compromisso exigido é relativamente baixo, as formas de apoio social
podem ser mais frágeis. (...) Putnam teme que isso produza uma
―ciberbalcanizacion‖ que pode acentuar a dissolução das instituições sociais e
a crise da participação cidadã. (tradução pela autora do artigo) 23

No entanto, diante da inovação e das possibilidades que a internet oferece, deve-


se pensar em mecanismos que a transformem, de fato, em uma ferramenta de ampliação
do diálogo e da democracia.
Primeiramente, uma ferramenta tecnológica não é eficaz em fomentar discussões
democráticas se não existe educação tecnológica. Os artigos 2624, 2725 e 2826 da Lei
Federal 12.965/14 – Marco Civil da Internet – estabelecem o cumprimento do dever
constitucional do Estado na prestação da educação, em todos os níveis de ensino, o que
inclui a capacitação integrada a outras práticas educacionais para uso da internet como
ferramenta para o exercício da cidadania. Sendo assim, as iniciativas públicas devem
fomentar a cultura digital e promover a internet como ferramenta social e devem,
sobretudo, promover a inclusão digital (BRASIL, 2014).
Além disso, as redes sociais são um novo campo de debate público sobre
políticas públicas, mas é preciso refletir sobre o seu modo de funcionamento, já que a
interação no mundo virtual exige mecanismos próprios para ampla e clara acessibilidade

23
―(...) en una variedad de redes de fácil entrada y bajos costos de oportunidad. De ello se deriva, por una
parte, una extremada flexibilidad en la expresión de la sociabilidad, ya que los individuos construyen y
reconstruyen sus modelos de interacción social. Por otra parte, como el nível de compromisso exigido es
relativamente bajo, las formas de apoyo social pueden resultar un tanto frágiles (...) como Putnam, temen
que se produzca una <<ciberbalcanizacion>> que pueda acentuar la disolución de la instituciones sociales
y la crisis de la participación ciudadana. ‖
24
―Art. 26. O cumprimento do dever constitucional do Estado na prestação da educação, em todos os
níveis de ensino, inclui a capacitação, integrada a outras práticas educacionais, para o uso seguro,
consciente e responsável da internet como ferramenta para o exercício da cidadania, a promoção da
cultura e o desenvolvimento tecnológico‖.
25
―Art. 27. As iniciativas públicas de fomento à cultura digital e de promoção da internet como
ferramenta social devem: I - promover a inclusão digital; II - buscar reduzir as desigualdades, sobretudo
entre as diferentes regiões do País, no acesso às tecnologias da informação e comunicação e no seu uso; e
III - fomentar a produção e circulação de conteúdo nacional‖.
26
―Art. 28. O Estado deve, periodicamente, formular e fomentar estudos, bem como fixar metas,
estratégias, planos e cronogramas, referentes ao uso e desenvolvimento da internet no País‖.
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

39
a conteúdos e fóruns de discussão, mas que nem sempre são oferecidos à população
brasileira de maneira suficiente.
Nesse sentido, os Estados também devem se adaptar para poder contribuir com
as novas formas democráticas, como fornecimento de redes de ágoras e de parlamentos
virtuais, redes de simulações e de cenários interativos. Alguns sites do governo como e-
democracia da Câmara dos Deputados e o e-cidadania do Senado Federal já avançaram
neste sentido. Contudo, ainda faltam melhores possibilidades de debate e maior
disseminação de suas existências para a população em geral. Os fóruns e discussões
criados ainda não tomaram a devida importância e não integram a maior parte da
população. O número de usuários que contribuem e que acessam é insignificante se
comparado com o tamanho da população brasileira.
A inclusão digital também significa a tomada de consciência do indivíduo diante
do uso e das potencialidades daquela ferramenta tecnológica. Isso significa não apenas o
diálogo com semelhantes e que pertencem ao mesmo grupo social, mas também a
possibilidade de debates com aqueles que estão distantes do seu ―filtro‖. Sendo assim,
os usuários não se separariam de acordo com seu partido ou com seu grupo de
identidade, mas construiriam discussões sólidas, promovendo diversidade e
contribuindo para elaboração e a resolução concretas de problemas comuns. A
construção coletiva e a possibilidade de solução de conflitos por meio da colaboração
exigem que se abra mão de pontos de vista preestabelecidos e de partidos e opiniões
formadas, para caminhar para o desenvolvimento de um discurso válido e de uma
opinião pública fundada na cooperação mútua.
Desse modo, a democracia digital nas redes sociais deve ter por pressupostos a
ética, a inclusão de todos os cidadãos, a alteridade para que se pense além das questões
privadas, alcançando também questões de interesse público, o respeito aos direitos
fundamentais individuais e coletivos e a qualidade política dos debates, aqui
compreendida como participações sólidas com bases fortalecidas cuja atuação extrapole
o mundo virtual.

4. CONCLUSÃO

O exercício da democracia digital tem aspectos bastante controversos, uma vez

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

40
que, ao mesmo tempo em que o ciberespaço amplifica as possibilidades de atuação
direta dos indivíduos, nem por isso assegura sempre uma participação qualitativa e
crítica dos mesmos.
No campo virtual, as mobilizações sociais são, muitas vezes, fluidas, efêmeras,
com coalizões frouxas, as decisões são tomadas por consenso, não há regras nem
enquadramentos. Uma organização iniciada na internet pode ser facilmente aquecida
quanto esquecida. Muitas das mobilizações da era da tecnologia da informação não têm
bases fortalecidas e, por isso, são aderidas com facilidade e também descartadas com
rapidez.
Para assegurar a inclusão e a ética nas relações humanas desenvolvidas na
internet, há de se garantir acesso tecnológico efetivo, orientações adequadas à
população, empenho estatal em promover a participação qualitativa dos cidadãos e
empatia social para reconhecer problemas que vão além do privado. Para que a atuação
seja crítica, democrática e não fluida, é preciso transformar o uso das redes sociais
enquanto prática social em uma prática inclusiva, ativa, sólida, com conhecimento, de
modo a evitar que o indivíduo apenas ―esteja online‖ e participe de forma fluida e fugaz
de demandas que necessitam de maior compromisso social e político.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Ana. Marco Civil da Internet no Brasil. Rio de Janeiro: Alta Books,
2014.

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução: Marcus


Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de


Janeiro: Zahar, 2001.

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos.


Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

BRASIL. Marco Civil da Internet. Lei nº 12.965 de 23 de abril de 2014. Brasília:


Senado Federal, 2014.

CASTELLS, Manuel. La Galaxia Internet. Tradução: Raúl Quintana. Barcelona: Plaza


& Janés Editores, 2001.

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41
GIDDENS, Anthony. Modernity and Self-Identity: Self and Society in Late Modern
Age. Stanford: Stanford University Press, 1991.

GRAY, John. Cachorros de palha: reflexões sobre humanos e outros animais.


Tradução. Maria Lúcia de Oliveira. Rio de Janeiro: Record, 2006.

LEMOS, André. LÉVY, Pierre. O futuro da internet: em direção a uma


Ciberdemocracia planetária. São Paulo: Paulus, 2010.

SOUZA, Luciana Cristina de. Aplicação do princípio de resiliência às relações entre


Estado, Direito e Sociedade Civil. Tese de Doutorado. Belo Horizonte: Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, 2012.

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42
Cibercultura na organização do sujeito

Aline Luiza de Carvalho


Viviane Andrade Pinheiro

Resumo:
Com o avanço tecnológico dos últimos tempos, a internet e os jogos eletrônicos
ganharam popularidade. Tal fato incrementa a comunicação entre pessoas das mais
variadas origens, encurtando espaço e o tempo na propagação das informações. Tanta
representatividade aponta-nos uma tendência contemporânea à vinculação a ambientes
virtuais e redes sociais, assim como jogos, acesso a serviços online e até mesmo a
administração do lar. Ponderemos com isso que o ser humano lida com esta amplitude
de meios conectados na maior parte do seu tempo, gerando relações cada vez mais
estreitas com a tecnologia, mas falhas nas relações interpessoais. Considerando alguns
estudos, podemos analisar que, assim como os jogos, as redes sociais tornaram-se
envolventes, já que são desenhados com base nos desejos e necessidades das pessoas.
Não obstante, possuem ainda uma narrativa complexa dando ao público a possibilidade
de criar seus próprios personagens e histórias, proporcionando um alto grau de imersão.
Estas novidades parecem casar uma necessidade narcísica pessoal a ponto de gerar
transtornos psicopatológicos importantes, além de dificuldades no desenvolvimento
cognitivo e social. Muito pode ser considerado a respeito desse novo sujeito (submerso
na cibercultura), as ―novas patologias‖ e as novas estratégias de lidar com o real,
entretanto não há como desconsiderar estes novos espaços que possibilitam a vazão das
demandas pessoais contidas.

Palavras Chave: Sujeito real, Cibercultura, Psicopatologia, Virtualidade.

Introdução
Com avanço tecnológico dos últimos tempos, a internet e os jogos eletrônicos
ganharam popularidade. Tal fato incrementa a comunicação entre pessoas das mais
variadas origens, encurtando espaço e o tempo na propagação das informações. Tanta
representatividade aponta-nos uma tendência contemporânea à vinculação a ambientes
virtuais e redes sociais, assim como jogos, acesso a serviços online e até mesmo a
administração do lar, como por exemplo, o monitoramento de seus lares através de
câmeras com transmissão em tempo real.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

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Ponderemos, também, que o sujeito lida com esta amplitude de meios
conectados na maior parte do seu tempo, gerando relações cada vez mais estreitas com
as tecnologias, mas falhas nas relações interpessoais, basta considerar que, quaisquer
que sejam as relações construídas entre sujeitos ou entre sujeitos e objetos, quando em
excesso, trará algum prejuízo em outras áreas importantes para ele.
Pesquisando por algumas fontes importantes sobre os temas virtualidade,
cibercultura e internet, pudemos avaliar que, assim como os jogos, as redes sociais
tornaram-se envolventes o suficiente para que possa encantar as pessoas a consumi-la de
maneira que participem cada vez mais das atividades para os fins os quais ela foi
designada, assim como envolva-as a querer novas versões que atendam aos seus anseios
e desejos.
Neste sentido, com a maior inclusão no ambiente virtual e suas intersecções, que
chamamos neste texto de cibercultura, criou-se um momento em que é necessário um
envolvimento maior desse sujeito nesta realidade para que consiga lidar com as
demandas pessoais e culturais. Um exemplo disso é o uso de aplicativos como
whatsapp, hangout e webmessenger, programas configurados para que mantenhamos
conversas com inúmeras pessoas ao mesmo tempo, em horários variados, e ainda capaz
de enviar símbolos que podem resumir sensações, sentimentos ou situações
rapidamente. O que auxiliava em contatos sociais rápidos e objetivos, agora garante
praticidade com o trabalho e/ou estudo por meio do envio de documentos, fotos, vídeos,
áudios, conversas em grupo e por conferência em vídeo (que permitem visualizar o
outro enquanto está em contato).
A praticidade e o baixo custo de manutenção dos programas supracitados
atendem as demandas atuais de facilitar e aproximar contatos, mesmo distantes
geograficamente. Fala-se muito e com mais pessoas, porém nunca foi tão complicado
compreender as relações atuais no que diz respeito à qualidade desses contatos. O que
tornou prático por um lado, tem dificultado por outro, quando pensamos no quão
distantes estão as pessoas do encontro com os anseios do outro e de sua compreensão
mais completa.
As relações se tornam estreitas com a tecnologia, porém distantes e/ou falhas
entre as pessoas, mesmo que intermediadas pelas redes sociais já que não há a leitura de
outros aspectos situacionais importantes e que auxiliam no contato com a realidade

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

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alheia. Falta espaço para uma comunicação empática efetiva. Então, como podemos
pensar as relações e a formação do sujeito na atualidade? Como isso pode influenciar no
desenvolvimento e ações dele?
Não há como deixar de considerar o que precede esta realidade para entender
como chegamos à condição atual. O que se apresenta atualmente é um composto de
experiências anteriores sobre as relações sociais da época e o que se construiu além
delas, uma nova forma de ver o mundo, de maneira que se torna importante discorrer
sobre a modernidade.
Ressalta-se que este artigo discorre sobre o valor da cibercultura na organização
do sujeito, apontando inclusive sobre o uso abusivo das tecnologias que podem
provocar desorganizações e ou patologias ao sujeito. Entretanto o objetivo deste, não é a
demonização do uso das tecnologias, nem desconsiderar aspectos positivos da internet
na vida das pessoas, mas demonstrar que o excesso desta relação, como em quaisquer
outras, pode trazer prejuízos.

Modernidade e a Cibercultura

A modernidade se baseia na ideia ou numa perspectiva de um futuro de


progressos, de glórias e a avanços da ciência e tecnológicos constantes. Desde a
Revolução Industrial as expectativas eram de desenvolvimento e de construção de um
mercado crescente que consumisse tudo o que estava sendo produzido em espaço de
tempo reduzido.
Hebert Marcuse (1973), um dos mais conhecidos representantes do pensamento
da escola de Frankfurt e estudioso das mudanças culturais e tecnológicas na
modernidade, apresenta a ideia de que foi com a revolução industrial e seus avanços que
se pôde observar uma nova forma de organizar as relações sociais de modo a beneficiar
a ideologia dominante, neste caso a do consumo, que serviu desde então como um
instrumento de controle e dominação.
Marcuse (1973) já observava e se preocupava com a vinculação entre tecnologia
e poder, temendo um envolvimento que dificultasse a crítica humana quanto as
consequências dessa abertura para o mercado tecnológico. Ou seja, o autor já apontava

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

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para um processo sociocultural que levava à alienação das pessoas, que passaria a existir
em apenas uma dimensão de pensamentos, anseios e ações.
Estudiosos como o antropólogo Bauman (2008), Charles e Lipovetsky (2004),
afirmam que este período é concebido como uma nova vertente da modernidade. Para
ambos autores a fragilidade dos laços e as relações superficializadas são características
deste período. Este é o momento quando ambos enfatizam o movimento e a cultura da
modernização técnica, sugerindo que exista uma excitação nas relações construídas e
que não estão previstas para durar. Estas formas já existiam no período da modernidade,
entretanto, estão cada vez mais superficiais e rápidas, o que dificulta vivências
profundas, assim como a conscientização de necessidades e de desejos mais íntimos.
Sebastien Charles e Lipovetsky (2004, p. 109) chegam a afirmar que:

Longe de desencadear o homem unidimensional, a lógica o consumo-moda


favoreceu a emergência de um indivíduo tornado senhor e possuidor de sua
vida, profundamente lábio, sem ligações afetivas profundas, que favorece a
personalidade e os gostos flutuantes.

Neste sentido, com as demandas cada vez mais ligadas ao consumo, as


perspectivas de realização e felicidade tenderam a acompanhar as inovações da ciência e
tecnológicas. A satisfação que antes estava relacionada à capacidade produtiva do
indivíduo e valores morais, dá lugar ao indivíduo que está atrás de novidades de
mercado de forma incessante e/ou compulsiva, instituindo com isso a cultura da
realização de desejos, surgindo daí importantes dificuldades para o sujeito.
Por mais que busquemos atender aos desejos mais difíceis, a velocidade das
inovações aumenta em uma espécie de progressão geométrica, de modo que não somos
capazes de acompanhar tantos lançamentos.
Nossas expectativas e certezas baseadas nestas perspectivas, devem ser revistas a
todo o momento, pois essa necessidade extrapola o mundo da tecnologia e chega a
constituição da própria subjetividade humana de forma que o que se modifica
velozmente não são apenas modelos de celulares, computadores, carros e demais
artefatos tecnológicos por exemplo, mas também nossa forma de se relacionar com as
pessoas, perceber nossas emoções, nossas considerações sobre saúde, bem estar e
sofrimento (CHARLES; LIPOVETSKY, 2004).
Com tantas mudanças e a rapidez com que elas ocorrem, torna-se fator
dificultador o tempo de reflexão sobre momentos, caminhos e escolhas que realizam,
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provocando de certa maneira, um futuro sem quaisquer planejamentos, expectativas e
segurança. A superficialidade e as incertezas do que está por vir, provoca, ou mesmo
pode ser consequência, das transformações na subjetividade dos sujeitos, inclusive com
o aparecimento de patologias importantes na psique.
O uso abusivo ou inadequado da internet, redes sociais e jogos eletrônicos pode
gerar síndrome aditiva, o que não é incomum de se observar nos dias de hoje. Muitas
pessoas, inclusive crianças, estão sendo convidadas a adaptarem-se a produtos e
tecnologias que são criadas para atender os mais variados gostos e sentidos. Para cada
grupo, um perfil, uma atenção, um zelo na realização de seus desejos mais
diferenciados.
A questão sobre o excesso do uso da internet foi pesquisada inicialmente em
1996, através de um estudo que examinou mais de 600 casos de usuários que
apresentavam sinais clínicos de dependência (YOUNG, apud TAVARES, 2013). Para
defini-los, vários termos são utilizados, a saber: uso excessivo, uso compulsivo, uso
problemático e alto envolvimento e dependência de jogos eletrônicos.
Epidemiologicamente, a dependência da internet pode ser encontrada em
qualquer faixa etária, nível educacional e estrato sócio econômico como resposta a
adaptação de tecnologias em rotinas do dia a dia, deixando o computador de ser um fato
ocasional para uma necessidade diária (ABREU, KARAM, GOES E SPRITZER, 2008).
Nos levantamentos realizados por estes autores, tal incorporação pode comprometer a
realização de atividades diárias básicas, além de trazer prejuízos físicos como problema
de visão, privações de sono, fadiga, problemas com alimentação e desconforto
musculoesquelético.
Na Psiquiatria, estudos apontam para a relação desse tipo de dependência e
algumas comorbidades: depressão e transtornos do humor, transtornos de ansiedade,
transtornos de déficit de atenção e hiperatividade, dependências de substâncias e
transtornos de personalidade são os mais comuns (ABREU, et al, 2008).
Não menos importante está a interferência nas relações sociais do indivíduo:
(...) Tal isolamento se dá em função da não interação do indivíduo com o meio social
(face-to-face). O sujeito resguarda-se das trocas sociais não mediadas, pelas mediadas
pelos ecrãs dos computadores. A família e os amigos, geralmente, são deixados em
segundo plano. A relação com a Internet promove a criação de ―barreiras‖ virtuais que
circunscrevem a presença física dos usuários. O que acontece depois disso (e paralelo a

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

47
isso) é a criação de identidades virtuais e processos de supervalorização do ―eu‖ (...). (
SÁ, 2012, p.138)

Observa-se que, investigando as repercussões da contemporaneidade na


subjetividade das pessoas, apontam o narcisismo como uma característica marcante do
homem contemporâneo, que, centrado no seu presente, busca o prazer individual e
permanece alheio às questões coletivas e sociais.
A tecnologia envolve e admite que nos bate-papos, assim como nas redes
sociais, as pessoas possam ser quem queiram ser, permite criar novos personagens e
histórias que satisfaçam a ideia de que se pode ter o que quiser, no jeito e no tempo que
decidir. Um casamento com a necessidade narcísica pessoal, a busca nas suas próprias
fantasias e desejos, sem considerar as consequências desta imersão.
Não podemos deixar de considerar esta observação já que em momentos pós-
modernos a busca pela individualidade e experiências que contemplem a satisfação
pessoal estão cada vez mais intensas enquanto a realização coletiva se enfraquece como
resultado desse interesse. Neste sentido, o sujeito está numa constante busca de atender
as suas necessidades e desejos de maneira particular, com vivências escolhidas a dedo,
por consumo rápido de objetos e relações do que considera atender o seu perfil,
enquanto dedica pouco tempo e atenção aos interesses do coletivo.
A tal ―busca de prazer‖ está, em certa medida, ligada com o que é
proporcionado pelas rápidas aquisições de novas tecnologias, que oferecem ilusões e
fantasias que levam o sujeito a uma falsa sensação de alegria, felicidade plena e de
poder absoluto. Por se tratar de algo que vai além da questão do ter (consumo), estes
aspectos acabam por alimentar ilusões e dificuldades de cada um, conduzindo às
dificuldades ainda maiores até as patologias, como as citadas anteriormente.

Considerações finais

As diversas possibilidades oferecidas ao homem contemporâneo tem uma grande


relação com as formas de consumo. A subjetividade construída com esta base, nos leva
para a escolha de produtos que mais nos atraem, como na anexação de atrativos em nós
mesmos na condição de produtos à escolha dos outros. Os membros da sociedade de
consumo são eles próprios mercadorias de consumo. A satisfação nunca alcançada

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

48
transforma a ideia de felicidade como algo a ser projetado, estilos de vida, valores,
práticas e relacionamentos difíceis de se estabelecerem e se manterem.
Não é incomum observamos que existe uma tensão ao observar estas mudanças e
os consequentes problemas que estas relações estão trazendo para o dia-a-dia.
Transferências, incidência de transtornos elevados, definição de novas patologias,
queixas em consultórios com solicitação de apoio pela insatisfação principalmente nas
questões sociais, crescem vertiginosamente nos comentários entre colegas da saúde.
O momento, então, nos convida a reflexões sobre os sujeitos submersos na
cibercultura e as novas estratégias em busca de lidar com as realidades. Não se deve
desconsiderar a importância destes novos espaços na formação do sujeito e nas novas
formas relacionais, mas sim as dificuldades que são apresentadas pelo mesmo em lidar
com a realidade e a resolução de algumas demandas reprimidas.
É interessante ainda pensarmos nas novas tecnologias enquanto instrumentos
que submergem a repressão. As ferramentas eletrônicas podem sim possibilitar espaços
para a descarga do que é inibido, são possibilidades de vazão para a pressão da vida
cotidiana, uma espécie de permissão para o que seria proibido de ser realizado. Os
espaços virtuais criam então um ambiente de maior autonomia e liberdade. A atenção
que o texto pretende demonstrar é para as questões apresentadas para todo e qualquer
excesso.

Referências:

ABREU, C.N. KARAM. R. G. GÓES, D.S. SPRITZER, D.T. Dependência de


Internet e de jogos eletrônicos: uma revisão. Disponível em:
www.scielo.br/pdf/rbp/v30n2/a14v30n2.pdf. Acesso em 23 mar.2017.

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

____. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

LIPOVETSKY, G.; CHARLES, S. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla,


2004.

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49
MARCUSE, H. A ideologia da sociedade industrial. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar,
1973.

SA, Gustavo M. À frente do computador: a internet enquanto produtora de dependência


e isolamento. In: Sociologia, Revista da Faculdade de Letras da Universidade do
Porto. vol.24. Porto, 2012. p.133-147. Disponível em:
http://www.scielo.mec.pt/pdf/soc/v24/v24a07. pdf. Acesso em 15 jul.2017

TAVARES, G. C. Uso abusivo de jogos eletrônicos: definição e tratamento. Artigo


de conclusão de curso de psicologia apresentado para obtenção do grau de Psicólogo
pela Universidade Luterana do Brasil – Santa Maria/RS, 2013.

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50
Compreensão das postagens de um grupo de automutilação no Facebook
a partir do modelo de prevenção de recaídas de Marlatt

Aline Conceição Silva27


Nadja Cristiane Lappann Botti28

RESUMO:
O objetivo do trabalho foi compreender a autolesão não suicida a partir do fenômeno no
contexto on-line e através do modelo de prevenção de recaídas de Marlatt e Gordon
(1985). Foi realizado estudo qualitativo, exploratório, sendo o cenário um grupo sobre
automutilação na rede social virtual Facebook. Foram coletadas postagens com mais de
10 comentários no período de dezembro de 2014 a dezembro de 2015. A análise do
material foi apoiada no referencial de análise de conteúdo de Bardin (1987). Após
leitura exaustiva, o material foi elencado de acordo com as etapas propostas pelo
modelo de prevenção de recaídas de Marlatt. A autolesão não suicida em ambiente on-
line perpassa pelas mesmas características do fenômeno descritas em textos clínicos e
científicos. A manifestação do fenômeno em ambiente on-line possui características
similares às etapas do modelo de prevenção de recaídas de Marlatt. A utilização do
modelo com enfoque na autolesão não suicida pode auxiliar profissionais e estudiosos
na identificação e condução de casos e automutilação.

Palavras-chave: Automutilação; Internet; Enfermagem.

INTRODUÇÃO

De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais –


DSM (2013) o comportamento autolesivo não suicida configura-se como
comportamento de se autoinfligir lesões repetidamente sem intencionalidade suicida.
27
Enfermeira, Mestre em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de São João del-Rei. E-mail:
csilvaaline@hotmail.com
28
Enfermeira, Psicóloga, Doutora em Enfermagem Psiquiátrica pela Universidade de São Paulo,
Professora Adjunta da Universidade Federal de São João del-Rei. E-mail: nadjaclb@terra.com.br

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51
Pode se manifestar ao longo de todo ciclo vital, entretanto é mais frequente e
característico da puberdade. Dentre os vários fatores de risco para o comportamento,
destacam-se o pobre manejo das habilidades sociais e o sistema de resolução de
problemas ineficaz, particularidades da adolescência (SKEGG, 2005). A expectativa ao
se engajar nesse tipo de comportamento está associada à obtenção de alívio ou
sentimentos negativos, dificuldades interpessoais ou induzir sentimentos positivos
(DSM-5, 2013).
Referem-se duas teorias psicopatológicas baseadas na análise de
comportamentos funcionais relacionadas à manifestação da autolesão não suicida. A
primeira é fundamentada na teoria da aprendizagem sendo o reforço positivo ou
negativo que mantém o comportamento. Assim, a autolesão não suicida induz estado de
relaxamento, gerando atenção ou expressão de raiva, ou ainda na expressão de
sentimentos negativos. A segunda teoria, a autolesão se mantém de forma autopunitiva,
como forma de apagar estados emocionais desagradáveis (DSM-5, 2013). Para Favazza
(1998) e DSM-5 (2013) o comportamento episódico da autolesão não suicida pode se
transformar em episódios recorrentes, tornando o sujeito adicto desse comportamento.
Dessa forma se tem o aumento da frequência e intensidade da autolesão, com dispêndio
de grande tempo em pensamentos e organização do comportamento (GIUSTI, 2013).
Percebe-se que as características da autolesão não suicida são similares às
características do comportamento de dependentes químicos, ou seja, comportamentos
complexos que se originam a partir de processos socioculturais, vulnerabilidades
psicológicas, predisposições traços de personalidade, ausência de repertório de
habilidades de enfrentamento, baixa autoeficácia e expectativas positivas sobre os
efeitos e consequências do consumo da substância ou do ato de autolesionar (COELHO;
OLIVEIRA, 2014). Frente ao problema dependente, Marlatt e Donovan (2009)
postularam o modelo biopsicossocial de forma a proporcionar mais clareza aos
comportamentos e aumentar a probabilidade de evitar recaídas (COELHO; OLIVEIRA,
2014).
O modelo de prevenção de recaídas (PR) constitui uma estratégia de intervenção
terciária para reduzir a probabilidade e gravidade de recaída após a cessação ou redução
de comportamentos dependentes. Mesmo após três décadas de sua introdução, continua
sendo importante e influente modelo cognitivo comportamental para abordagem e

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52
estudo dos comportamentos dependentes. Este modelo engloba técnicas que enfatizam o
desenvolvimento de habilidades comportamentais para elaboração de respostas de
enfrentamento eficaz (HENDERSHOT et al., 2011). Com o intuito de ampliar novas
possibilidades de compreensão da autolesão não suicida, o presente estudo tem por
objetivo compreender a autolesão não suicida a partir do fenômeno no contexto on-line
e através do modelo de prevenção de recaídas de Marlatt e Gordon (1985).

METODOLOGIA

Trata-se de estudo com abordagem metodológica qualitativa, de cunho


exploratório e apoiado no referencial teórico de Bardin (1987). Elegeu-se para pesquisa,
grupo sobre automutilação na rede social virtual Facebook. O grupo foi encontrado a
partir da ferramenta de busca da própria rede social e foi escolhido por possuir
postagens diárias e maior número de participantes, na data de coleta 7.471 membros. Na
página inicial do grupo encontra-se breve descrição do intuito de auxílio aos praticantes
da automutilação, não sendo necessária a prática do comportamento como pré-requisito,
e regras relacionadas à participação dos membros.
A coleta aconteceu entre os meses de abril e maio de 2015 por meio de
formulário específico construído para a pesquisa. Optou-se por incluir na pesquisa
postagens com mais de 10 comentários, referentes ao período de dezembro de 2014-
dezembro de 2015. Foram atribuídas às postagens as iniciais ―P‖ e ―C‖ designando
postagem e comentário, respectivamente. Para análise dos dados foi utilizado a análise
de conteúdo (BARDIN, 1987) a qual permite inferir conhecimentos (explícitos ou não)
da pluralidade de mensagens. Dessa forma se sucedeu a análise das postagens e
comentários a partir de etapas pré-elaboradas de acordo com a análise de conteúdo e que
permeava o seguinte questionamento: As postagens de participantes de um grupo de
automutilação traduzem o modelo de prevenção de recaídas proposto por Marlatt e
Godon (1985)?
Os preceitos éticos da pesquisa estão em consonância com a resolução 466/2012,
sendo aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos da Universidade
Federal de São João Del-Rei sob o parecer nº 975.511 de 19/03/2015. Importante frisar
que dados que possuíam identificação com o nome do grupo estudado, foram trocados

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53
ou omitidos para que não haja identificação ou exposição dos participantes.

RESULTADOS

A partir da análise do material coletado e do objetivo proposto para o estudo,


elencaram-se as postagens que condiz com as falas dos sujeitos de um grupo de
automutilação no Facebook que correspondiam às etapas do modelo de prevenção de
recaídas proposto por Marlatt e Gordon (1985). Abaixo se encontra a figura 01 que
elucida o modelo de prevenção de recaídas traduzido pelas autoras e ilustrado com as
postagens dos participantes do grupo de automutilação no Facebook.
Figura 01: Representações da autolesão não suicida a partir da compreensão do
modelo de prevenção de recaídas através de postagens de participantes de grupo
de automutilação no Facebook.

Fonte: Elaborado pelas autoras.

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54
DISCUSSÃO

De acordo com Hendershot et al. (2011) o modelo de prevenção de recaídas


representa uma importante ferramenta para trabalhos com comportamentos
dependentes. Baseia-se na psicologia social cognitiva e incorpora conjunto de
estratégias cognitivo comportamentais para prevenir ou limitar os episódios de recaídas
(LARIMER; PALMER; MARLATT, 1999). O ponto mais interessante do modelo é a
compreensão da recaída não como algo negativo, mas algo produtivo, um período de
transição e autoconhecimento, ou seja, com ajuda profissional, o indivíduo pode
identificar situações de alto risco e contornar a fissura do comportamento.
Marlatt e Gordon (1985) destacam que existem situações que podem anteceder
as recaídas, estas situações podem se dividir em estados emocionais (raiva, tristeza,
frustração), podem ser causados por percepções intrapessoais ou reações ambientais;
conflitos interpessoais entre outra pessoa ou um grupo e podem levar a estados
emocionais negativos; e, por último, a pressão social, incluindo persuasão verbal ou não
ou pressão indireta (LARIMER; PALMER; MARLATT, 1999). De acordo com Skegg
(2005), no comportamento autolesivo não suicida também existem situações que
contribuem para o engajamento no comportamento. Abaixo se encontra o quadro 01
com as situações de risco para a autolesão não suicida.

Quadro 01: Fatores de risco para o comportamento autolesivo não suicida em


adolescentes.
Fatores sociodemográficos e educacionais

• Sexo (feminino)
• Status socioeconômico baixo
• Orientação sexual
• Baixa escolaridade
Eventos negativos de vida e Adversidades familiares

• Divórcio/separação
• Morte de parentes

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55
• Experiências adversas na infância
• História de abuso físico ou sexual
• Transtornos mentais na família
• Histórico de suicídio na família
• Discórdia conjugal ou familiar
• Bullying
• Dificuldades Interpessoais
Fatores psicológicos e psiquiátricos

• Transtornos mentais (depressão, ansiedade, TDAH)


• Drogas/Álcool
• Resolução de problemas pobre
• Perfeccionismo (Transtornos alimentares)
• Desespero
Fonte: Traduzido pelas autoras com dados extraídos de SKEGG (2005, p. 1474).

A partir da elaboração ou adaptação dessas situações o indivíduo pode engajar-


se ou não no comportamento dependente. No ambiente online, respostas de
enfrentamento podem ser influenciadas por questões pessoais, de outros participantes ou
regras do grupo. Assim, tem-se a religiosidade, vinculação institucional religiosa e
apoio mútuo entre os participantes como algo a colaborar para resposta de
enfrentamento eficaz e exposição de fotos de cortes e comentários destrutivos de outros
participantes que colaboram para diminuir a resposta de enfrentamento. Para Marlatt e
Gordon (2009) um determinante importante para o engajamento é a autoeficácia, ou
seja, quando alguém se propõe a realizar determinada tarefa. Dessa forma, a
autoeficácia no grupo de automutilação no Facebook pode ser percebida pelo tempo em
que os participantes do grupo se propõem a ficar sem se autolesionar.
Dessa maneira, com resposta de enfrentamento eficaz e autoeficácia aumentada,
o indivíduo tem a redução da probabilidade de recidiva e controle do comportamento.
No caso oposto se vê, somado à resposta de enfrentamento ineficaz e à autoeficácia
diminuída, a expectativa de resultados positivos do comportamento (HENDERSHOT et
al., 2011). Em algumas situações, os integrantes do grupo de automutilação percebem a
lâmina (objeto para se autolesionar mais mencionado pelos integrantes do grupo) como

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56
única saída. Assim, se tem o lapso inicial do comportamento, que é seguido de
sentimentos de culpabilização e tristeza, ou seja, efeitos de violação de abstinência
concomitante aos efeitos percebidos do comportamento, aumentando a probabilidade de
recidiva no comportamento dependente (HENDERSHOT et al., 2011).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se que o desenrolar do comportamento autolesivo não suicida em


ambiente online é compatível com o comportamento descrito em estudos científicos e
clínicos. O grupo de automutilação no Facebook atua como espaço onde os
participantes se sentem à vontade para expor o próprio comportamento, vivências e
frustrações, ou seja, um grupo de ajuda mútua. Entretanto, o grupo também pode operar
de forma contrária, como ambiente de risco para os participantes.
A compreensão do fenômeno online a partir do modelo de prevenção de recaídas
de Marlatt e Gordon (1985) possui impacto direto no manejo clínico do comportamento.
O estudo pode auxiliar e/ou incentivar profissionais da área da saúde a trabalhar junto
aos casos identificados, a caracterizar as situações de alto risco que funcionam como
gatilhos para a autolesão não suicida, bem como manejo de habilidades sociais, sistema
de enfrentamento às situações adversas de forma a reduzir recaídas. É importante
enfatizar também, que se faz necessário a inclusão de informações sobre acesso e uso de
redes sociais virtuais no acompanhamento de casos e novos estudos com diferentes
perspectivas.

REFERÊNCIAS

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1987.

COELHO, Leda Rúbia Maurina; OLIVEIRA, Margareth da Silva. Avaliação dos


comportamentos dependentes. Aletheia, vol. 43-44, p. 248-251, jan./ago., 2014.

DSM-V-TRTM - Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. trad.


Maria Inês Corrêa Nascimento; - 5.ed. rev. - Porto Alegre: Artmed, 2014.

FAVAZZA, Armando. The coming of age of self-mutilation. Journal of Nervous and


Mental Disease, vol. 186, n. 5, p. 259-68, maio, 1998.

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57
GIUSTI, Jacqueline Suzie. Automutilação: características clínicas e comparação com
pacientes com transtorno obsessivo compulsivo. 2013. 184 f. Tese (Doutorado) -
Universidade de São Paulo, Programa de Pós Graduação em Psiquiatria, São Paulo,
2013. Disponível em: < http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5142/tde-
03102013-113540/pt-br.php> Acesso em: 27 maio. 2017.

HENDERSHOT, Christian. et al. Relapse prevention for addictive behaviors.


Substance Abuse Treatment, Prevention, and Policy, vol. 6, n .17, p.1-17, jul., 2011.

LARIMER, Mary; PALMER, Rebekka; MARLATT, Alan. Relapse Prevention - An


Overview of Marlatt‘s Cognitive-Behavioral Model. Alcohol Research & Health, vol.
23, n. 2, p. 151-60, fev., 1999.

SKEGG, Keren. Selfharm. The Lancet, vol. 366, n. 9495, p. 1471-1471, out., 2005.

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58
CONSTITUIÇÃO DO SELF NAS REDES SOCIAIS:
considerações a partir de uma antropologia da cibercultura

Davi Teofilo Nunes Oliveira


Virgílio de Araújo Mendes

RESUMO
O trabalho tem como objetivo analisar a construção do self nas redes sociais e distinguir
em que medida as relações entre atores virtuais alteram a construção do self e de que
maneira está associada ao anonimato que aparece como uma ―ferramenta‖ de proteção
da intimidade. Serão expostos e analisados os estudos desenvolvidos por Sherry Turkle
e Paula Sibilia sobre as redes sociais e a subjetividade contemporânea, especialmente
nos livros Alone together (2011) e O show do eu (2008). Ponto importante a se pensar é
a ideia de exteriorização do self introduzida por Sibilia e a comunicação e reconstrução
das identidades nas relações estabelecidas com os dispositivos informacionais, segundo
a análise realizada por Turkle. O trabalho também tem por objetivo promover uma
discussão acerca de como as relações virtuais possuem um papel constitutivo na
formação do self, partindo da concepção interacionista de Goffman (2002). Objetiva-se,
por fim, explanar o que resultou do sistema de relações que constitui as redes sociais.

Palavras-chave: Self; Redes Sociais; Cibercultura; Anonimato.

INTRODUÇÃO

A discussão acerca da construção do self, da personalidade e de como o


indivíduo se vê perante a sociedade sempre despertou interesse ao ser humano.
Entretanto, a sistematização dessa discussão começa a tomar forma nas ciências
humanas em meados do século XX com a discussão e criação do termo self no
interacionismo simbólico, onde limitaremos a contextualizar a abordagem feita por
Goffman (2002) e transitaremos para as novas adequações do conceito levando em
conta o papel das novas tecnologias na formação do self.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

59
Para cunhar e trabalhar o conceito de self, Goffman (2002) busca fazer uma
analogia com o teatro, onde é possível que o ator demonstre uma fachada que aparenta
ser natural, mas na realidade suas ações são previamente racionalizadas. Ou seja, dessa
maneira o indivíduo espera que os outros acreditem na impressão que ele deseja
transmitir, de modo que seu papel representado implique nas consequências pretendidas
por ele. Tais atores racionalizam características que são adequadas ao grupo ao qual
estão inseridos, acreditando que assim mostrarão qualidades que serão admiradas e
respeitadas pelo mesmo, gerando assim uma impressão positiva. Essas características
seriam então incorporadas por outros indivíduos, presentes no mesmo meio, que
também as racionalizariam e as incorporariam em seu self.
Através das contribuições dadas por Goffman (2002) no campo da sociologia,
estudando as relações simbólicas nos grupos sociais, buscamos aprofundar as análises
relacionadas às novas maneiras de construção e exibição do self nos dispositivos
informacionais e nas redes sociais através das obras de Sherry Turkle (2011) e Paula
Sibilia (2008).
É inevitável que com os novos tipos de mídias eletrônicas e interativas ocorram
mudanças e surjam novas maneiras de relacionar e interagir com outras pessoas. Assim,
temos novas demandas socioculturais que emergem no final do século XX e início do
século XXI que exigem novas formas de ser e estar no mundo.
Um ponto também importante a se pensar é a ideia de exteriorização do self
introduzida por Paula Sibilia (2008) com a qual o anonimato dialoga. Este se faz
presente como ferramenta de transformação na construção do self e nas interações
sociais relacionadas a ele, e também pode ser visto como a omissão ou o distanciamento
do self real. Esse diálogo consiste na reconstrução das identidades dos atores associado
às mídias digitais, que gera a transição de personalidades introdirigidas para
personalidades alterdirigidas.
Trataremos o papel substancial que a cibercultura possui na reformulação das
relações humanas intermediadas pela rede e dispositivos informacionais, também de
como o papel constitutivo da internet afeta as relações face-a-face. A interação mediada
pela rede estudada por Turkle (2011) abre o campo para diversas abordagens a respeito
de como as relações vêm se transformando e nos moldando, afetando nossas relações
reais e exportando as vidas estereotipadas como perfis ideais nas redes, que consiste em

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

60
um movimento de substituição que a autora identifica como simplificação das relações
reais para a conexão na rede, o Paradoxo da Solidão (Alone Together).

A EXTERIORIZAÇÃO DO SELF DE PAULA SIBILIA NO ANONIMATO

A sociedade do século XIX e início do século XX era estabelecida com rígidas


separações entre o âmbito público e o âmbito privado. Atualmente, as personalidades
são convocadas a se mostrarem, imperando o fascínio pela visibilidade, pela sensação
do ser celebridade, de estar sempre em foco. Percebe-se a transformação das
personalidades introdirigidas para personalidades alterdirigidas, personalidades
voltadas para o espetáculo, para o outro. Ademais, tem-se o movimento de privatização
dos espaços públicos concomitantemente com o movimento de publicização do
privado, citando a autora: ―percebe-se um deslocamento daquela subjetividade
‗interiorizada‘ em direção às novas formas de autoconstrução‖ que acabam por
promover personalidades ou ―construções de si orientadas para o olhar alheio ou
‗exteriorizadas‘, não mais introspectivas ou intimistas‖ (SIBILIA, 2008, p. 23, grifo da
autora). O exibicionismo do íntimo que se expande captura campos que, mesmo em
tempos recentes, seriam impensáveis. Novas tecnologias, presentes em movimentos de
mutação da construção do Eu, deslocam os eixos do eu em direção a outras zonas: do
interno para o externo; da alma para a pele; da subjetividade para as telas de vidro.
Fato a se considerar é o processo de exteriorização do Eu subjetivo analisado
pela autora que está sumamente interligado ao anonimato, já que a identidade oculta
leva à ideia de segurança, assim como um indivíduo recluso em um cômodo isento do
público e fora do escopo das opiniões alheias. A ferramenta do anonimato é algo
imprescindível para a construção de pensamentos e sentimentos omitidos em uma
relação real - relação face a face. Porém, no que concerne a este recurso, percebemos
que ele extrapola a preocupação e os interesses particulares buscados por cada
indivíduo, que também revela as escolhas essenciais que o mesmo faz sobre si, escolhas
que envolvem grupos ou pessoas relacionadas à política, ética e moralidade. Outro
ponto não menos importante é o anonimato como recurso utilizado pelos usuários para
explorar e exportar o self que desejam ter no ciberespaço, construindo novas faces,
características e interações. Essa ferramenta pode ser idealizada como uma atitude de

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

61
proteção do Eu privado que se envelopa por trás das várias ―fachadas‖.
A partir da possibilidade do anonimato e outros recursos, os usuários criariam
espetáculos de si mesmos para exibir sua intimidade criada, pautada em testemunhos
falsos, desejáveis ou meramente imaginários. Ponto a se pensar é se todas essas palavras
e imagens não são retratos fieis de uma realidade nua e crua, ou por outro lado, se
expõem de um personagem fictício.

Uma consideração habitual quando se examinam esses costumes ainda


estranhos – embora já não tão novos assim – é que os sujeitos neles
envolvidos ‗mentem‘ ao narrar suas vidas na web. Aproveitando vantagens
como os diversos graus de anonimato e a facilidade de recursos que oferecem
as mídias interativas, por exemplo, os habitantes desses espaços montariam
espetáculos de si mesmos para exibir uma intimidade inventada (SIBILIA,
2016, p. 55 – 56).

A COMUNICAÇÃO E A RECONSTRUÇÃO DO SELF PELA REDE EM


SHERRY TURKLE

Levando em consideração a abordagem de Turkle (2011) a respeito da


construção do self no Paradoxo da Solidão (Alone Together) devemos nos ater aos
dispositivos informacionais e à rede social como recursos tecnológicos que se propõem
a arquitetar nossas intimidades nos provendo um mundo virtual capaz de criar uma
―nova vida‖, novos ―avatares‖ e novas relações.
A tecnologia, de acordo com Turkle (2011, p.1), nos seduz quando nos oferece o
diálogo com nossas vulnerabilidades e ela nos atinge justamente neste ponto, pois como
a autora diz, ―nós estamos sozinhos, mas com medo da intimidade‖. Desse modo ela nos
oferece a ilusão de companhia (companheirismo) sem a demanda da amizade que
produz simplificações das relações reais através da internet, ou seja, substituímos o
diálogo face-a-face pela conexão. E quando protegemos nossa intimidade na rede nós
idealizamos a sensação da conexão como a solução de estar sempre conectado.
Fato interessante do paradoxo abordado por Turkle (2011) é a simplificação das
relações sociais no ciberespaço, em que as pequenas conexões intermediadas pela rede
substituem a interação face-a-face. Esta simplificação nas relações geram uma lacuna na
construção de relações reais, que acaba por interferir ou comprometer a capacidade de
autorreflexão dos indivíduos, visto que quando nos sentimos sozinhos ou isolados é que
encontramos a necessidade de conexões reais e essa busca por conexões é resultado da
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

62
autorreflexão que o indivíduo realizou em um momento de isolamento.
Essa promessa que os dispositivos informacionais e a rede provêm, de sempre
estar disponível à nossa atenção, de sempre nos ouvir e de nunca dar a sensação de
solidão, é o ponto crucial que deve ser repensado, pois é justamente no isolamento e na
solidão que os indivíduos aprendem a conversar e a se conhecer, fato que nessas
circunstâncias estimula-se a autorreflexão.
Os relacionamentos humanos são ricos, complexos e exigem muita dedicação.
Com a tecnologia, adquirimos a facilidade de organizá-los melhor. A mudança da
conversa face a face para a simples conexão faz parte desta mudança. Mas, neste
fenômeno, estamos criando novas maneiras de nos enganar. Catastroficamente, aparenta
que com o tempo, paramos de nos importar e esquecemos que há uma diferença entre as
duas formas de se relacionar.
Nas relações reais existe uma consistência onde as mudanças relacionais
ocorrem gradualmente. Por outro lado, na atmosfera digital é possível perceber um
constante aumento no ritmo das relações, onde as paixões e desilusões acontecem de
maneira volátil. No momento em que não sentimos afinidade pelas ideias e
posicionamentos de um indivíduo é possível ao alcance de um clique deixar de conviver
com posicionamentos contrários e encontrarmos convívios que sejam de alguma forma
mais convenientes para nós. O problema que essa nova dinâmica nos apresenta é que se
antes ao ter algum tipo de problema em uma relação era necessário adaptações e
convívio com o diferente, hoje é possível nos isolarmos de maneiras de agir que não
estão de acordo com aquilo que acreditamos. Ou seja, a tecnologia nos dá cada vez mais
daquilo que pensamos que queremos e podemos presumir que o que queremos é estar
sempre em contato e nunca sozinhos, pouco importando com quem estamos em contato,
desde que estejamos em contato. E com isso, nos acomodamos a estar em uma tribo de
uma pessoa só, leal aos nossos próprios ideais.
Através do uso de mensagens de texto, e-mails e atualizações de status podemos
mostrar o ―eu‖ (self) que desejamos ser. Isto significa que podemos editar e, caso
desejarmos, podemos deletar. Dessa maneira podemos mostrar o nosso Eu racionalizado
e objetivado. Nem muito, nem pouco – na medida certa, Goldilocks effect (TURKLE,
2011, p. 15).
As novas relações advindas do ciberespaço constituem uma nova realidade e

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63
uma nova vida social dos usuários levando-os a integrar-se a grupos ou núcleos
chamados de ―famílias pós-familiares‖ (postfamilial families) (TURKLE, 2011, p. 280).
Neles os integrantes refugiam-se da realidade representando o paradoxo da solidão
(Alone Together), cada um conectado em seu próprio quarto idealizando a conexão para
a supressão da solidão. Essa atitude sintomática nos leva a refletir como as relações
cibernéticas nos ―desconecta‖ dos verdadeiros problemas, mascarando medos e
fragilidades e dando a ilusão desejável de ter relações submissas ao nosso controle.

ERVING GOFFMAN NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES DIGITAIS

Erving Goffman (2002) viveu num período anterior à era digital, entretanto
através de sua contribuição teórica é interessante analisar os novos modelos de
interações sociais e de que maneira essas interações geram alterações na maneira de
exibição do self.
As comunicações eletrônicas estabeleceram uma nova maneira de interação e
construção do self. Embora aparentemente mais limitadas e superficiais que as
interações face-a-face, ela cria novas perspectivas e oportunidades para a apresentação
do self. Nos últimos decênios do século XX Goffman (2002) trabalhou para descrever
as estruturas das interações face-a-face e como essas interações estão envolvidas nas
tarefas diárias dos indivíduos.
Durante uma interação os atores necessitam de apresentar-se aos outros criando
uma imagem positiva – apresentar-se a outros atores que participam do grupo social
transpassando uma imagem de ―personagem aceitável‖: uma pessoa possuidora da
conduta correta a ser considerada, que é experiente, que tem uma moral sem máculas e
assim por diante. E os indivíduos inseridos no mesmo universo social do ator têm
técnicas e recursos para ajudá-las a realizar isto. Preparações nos "bastidores" podem
ajudar na apresentação de uma efetiva "fachada", e mais, Goffman (2002) vê o
embaraço como um importante indicador de onde as pessoas falham ao apresentar um
self aceitável, o que o torna um importante motivador de melhorias. Processo
semelhante ocorre quando uma pessoa deseja apresentar-se de maneira efetiva para
minimizar o constrangimento de uma apresentação fracassada, porém, em contrapartida,
os outros participantes das interações também são motivados a ajudar o desempenho

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64
pelo seu desejo de evitar o embaraço que sentem ao partilhar o fracasso. Desse modo,
na maioria das vezes, interagimos em uma conspiração em que parece que todos sabem
o que estão falando, conseguem lembrar o nome daqueles que interagem e têm na
aparência uma presença que é agradável e irrepreensível dentro das normas e condutas
morais do grupo.
No primeiro momento do surgimento das mídias sociais, percebemos a criação
de websites e páginas "estatizadas" que consistiam em homepages pessoais que exibiam
informações acerca de um indivíduo, comunidade ou algum tipo de interesse. Por serem
ferramentas ―estáticas‖, o foco era voltado para o autor e não para o leitor, e de certo,
buscavam interagir com a visão expressada pelo autor. Entretanto, com o avanço das
mídias sociais e com a crescente "democratização" do acesso à rede podemos notar uma
nova maneira de relacionar no ciberespaço, a lógica da ―estaticidade‖ das homepages
foi suplantada pelo ideal de ―confiança‖ nos usuários como codesenvolvedores. A web
2.0 se consolida e o caráter imediático das novas maneiras de comunicação gerados por
essa mudança permite que as pessoas troquem informações em tempo real.
Com essa inovação na estrutura da rede, o efeito instantâneo propiciado pela
internet e a possibilidade de iniciar uma comunicação visual entre os indivíduos,
aproximou esse meio de comunicação a algumas características que ocorrem em uma
interação face-a-face. Dessa maneira, em função da crescente interação, os usuários
mesmo que não estejam se relacionando com uma copresença, passaram a realizar uma
variação de apresentação do Eu, de preservação da fachada e de manipulação da
impressão que querem mostrar de si, de uma forma cada vez mais próxima das relações
em que os atores demonstram fisicamente. Entretanto, a manipulação da impressão que
se quer causar sofre intensa ampliação nos meios digitais, o que permite o indivíduo
demonstrar características racionalizadas do seu Eu ou até mesmo características que
não são inerentes ao seu self. As relações sociais tomam novas formas de ocorrência e
os atores podem então assumir papeis diferentes das suas identidades previamente
construídas, sendo assim, não ficam sujeitos a representarem determinados papéis
sociais que seriam exibidos de imediato em uma interação face-a-face.

CONCLUSÕES

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

65
Dada a exposição de ideias apresentadas no curso do texto identifica-se alguns
pontos que demandam enfoque maior, dentre eles estão a nova forma de interação
proporcionada pelas mídias digitais, o avanço tecnológico que permitiu modificações na
constituição e construção do self e o questionamento levantado por essas novas
transformações, se o processo referente às comunicações eletrônicas altera a natureza do
self real ou ocorre um processo de complexificação nesta constituição.
Quanto ao processo que elevou a rede virtual a um patamar em que desenvolve
efeitos ―identitários‖ das experiências on-line sobre os usuários, percebemos que
representa um fenômeno totalmente novo, que engloba inúmeras interdisciplinaridades.
Isto se vê pela permeabilidade em que se constituem as fronteiras do real e do virtual
como nos atenta Turkle (2011), esses limites vêm se tornando cada vez mais complexos
e miscigenados dificultando a separação de ambos os campos. Principalmente quando
há dispositivos informacionais que se fazem presentes em todos os momentos do nosso
cotidiano, eles contribuem para a desconstrução dos limites de cada campo e acabam
por ressignificar nossas relações, tanto face-a-face quanto virtuais.
Com os limites de cada esfera tangenciando-se de forma assustadora, temos o
processo de complexificação do self cada vez mais evidente. Este processo integra-se ao
cotidiano das pessoas dando versatilidade e multiplicidade nas suas relações, o que
permite aos atores desempenhar diferentes papeis e assumir diferentes personalidades na
medida em que se integram a distintos grupos virtuais ―elevando os aspectos da vida
cotidiana a um grau superior‖ (TURKLE, 1999, p. 119). Essa versatilidade, enfim,
―permite uma expressão mais livre dos inúmeros aspectos de si mesmas‖ (TURKLE,
1999, p. 119).
A problematização que enfrentamos ocorre quando encaramos as ferramentas e
as praticidades que o meio nos fornece com as utilidades que damos a eles. O recurso
em si não é algo negativo ou positivo, mas o juízo de valor a que devemos associá-lo
está conectado ao modo como usufruímos deste recurso em meio a infinitas
possibilidades. As novidades que a internet permitiu não é o foco da questão, mas sim a
forma que a utilizamos, o pensamento de que ela resolverá todos os nossos problemas é
mero sofismo.
Por fim, muito mais do que nos posicionarmos acerca das posições entre aqueles
que acreditam que a tecnologia é uma ferramenta capaz de acabar com todas as

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66
dificuldades humanas e aqueles que são resistentes ao avanço tecnológico, buscamos
refletir sobre como essas novas tecnologias trazem inevitáveis mudanças na maneira de
ser e estar no mundo.

O desafio que os investigadores sociais têm agora de enfrentar consiste em


saber quais as alterações que os novos media vão provocar na forma como os
indivíduos interagem no quotidiano, já que, segundo Fdida (1997: 101),
«l‘apparition d‘une nouvelle technologie est souvent le moteur d‘une
transformation de notre société» (MARCELO, 2001, p. 66).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Vozes: Petrópolis,


2002.

LIMA, Mariana Marques de. A exibição da intimidade em meio à sociedade do


espetáculo. Campinas, Revista Rua, v. 1, n. 22, p. 639-644, jun. 2016.

MILLER, Hugh. The Presentation of Self in Eletronic Life: Goffman on the


Internet. University of London, June 1995.

MACEDO, Lídia; SILVEIRA, Amanda. Self: Um conceito em desenvolvimento.


Ribeirão Preto, Paidéia, v. 22, n. 52, p. 281-289, 2012.

MARCELO, Ana. Internet e Novas Formas de Sociabilidade. Universidade da Beira


Interior, Covilhã, Portugal, 2001.

SIBILIA, Paula. O Show do Eu: A intimidade como espetáculo. Nova Fronteira S.A:
Rio de Janeiro, 2008.

SIBILIA, Paula. O Show do Eu: A intimidade como espetáculo. Contraponto: Rio de


Janeiro, 2016.

TURKLE, Sherry. Fronteiras do real e do virtual. Famecos. Porto Alegre. n. 11. Dez./
1999, p. 117-123.

TURKLE, Sherry. Alone Together: why we expect more from technology and less
from each other. Basic Books: New York, 2011.

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CRIADORES DE CONTEÚDO DO YOUTUBE:
UMA ANÁLISE DAS AÇÕES YOUTUBE NEGRO E MULHERES CRIADORAS

Magno Henrique Martins Alves29

Resumo:
Objetivo: analisar as ações criadas pela plataforma do YouTube para discussão de
vertentes sociais para mulheres e negros no ambiente digital e na sociedade.
Metodologia: qualitativa.
Discussão: com o crescimento da plataforma de vídeos do YouTube no universo digital
e suas diferentes vertentes para conscientizar por meio de informações no formato
audiovisual, é preciso discutir e difundir ações importantes para que a sociedade se
beneficie de diferentes formas para a evolução do ser humano.
As ações propostas pela plataforma, intituladas Youtube Negro e Mulheres Criadoras,
abriram espaços para discutir e informar para diferentes audiências os universos que
precisam de atenção para quebras de paradigmas sociais. A ação YouTube Negro propôs
a reunião de vários canais com Criadores de Conteúdo do YouTube da etnia negra para
discutir diversas vertentes que envolvem a cultura negra, o preconceito racial, dentre
outros. A ação Mulheres Criadoras nasceu da necessidade de estimular mulheres a
criarem suas contas no YouTube para disseminar informações para audiências diversas,
além de discutir sobre o papel da mulher no universo digital.
Resultados: Com a análise dessas ações, é possível criar novas ideias para novas
propostas de ações para diversos nichos sociais, além de acompanhar, via comentários
da audiência, as discussões sobre os temas propostos de cada ação realizada.

Palavras-chave: YouTube, Criadores de Conteúdo, Sociedade, Ações

Um ecossistema chamado YouTube

A plataforma YouTube hoje, certamente, é a grande referência para pessoas e


empresas criarem seus canais para disseminar seus vídeos pela Internet. Lançada em
2006, hoje forma-se um ecossistema amplo, com foco em difundir informações por
meio de materiais audiovisuais. A ideia central é o conteúdo, o que ele pode engajar
audiências que buscam diversas informações no ambiente digital, seja para aprender ou
até mesmo para entreter.

29
Produtor Multimídia (Centro Universitário de Belo Horizonte UniBH), Pós-Graduado em EMBA
Gestão Empreendedora em Marketing Digital (B.I. International). E-mail: magnohmartins@gmaill.com
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68
Mesmo com a gama de redes sociais existentes no mundo contemporâneo, o
YouTube é considerado a primeira plataforma digital que proporcionou aos usuários as
funções de produção, seleção e distribuição. O autor Henry Jenkins abre uma análise
mais específica:

O YouTube emergiu como um site fundamental para a produção e distribuição


de mídia alternativa – o marco zero, por assim dizer, da ruptura nas operações
das mídias de massa comerciais, causada pelo surgimento de novas formas de
cultura participativa. (JENKINS, 2009, p. 348).

Uma das vertentes do sucesso desse ambiente, a plataforma conta com seus
Criadores de Conteúdos do YouTube (conhecidos pela mídia de massa como
YouTubers), em que os mesmos criam vídeos em diversos formatos para repassar
quaisquer informações para suas audiências. As audiências, a vertente mais importante
do sucesso do YouTube, são as pessoas da Internet que consomem esses conteúdos,
levando engajamento e envolvimento desses Criadores de Conteúdo de acordo com suas
propostas em seus canais.
Com essa proposta de cultura participativa, na qual os usuários utilizam da
plataforma para a divulgação de seus conteúdos em formatos de vídeos e, ao mesmo
tempo, construindo no ambiente infinitas possibilidades de disseminação de informação
para a construção de entretenimento e também conhecimento para grande parte do
mundo, o YouTube ganha uma visibilidade e abrangência cada vez maiores no mercado
digital, assim como divulgado seus números em seu site:

O YouTube tem mais de um bilhão de usuários, quase um terço dos usuários da


Internet e, a cada dia, as pessoas assistem a milhões de horas de vídeos no
ambiente e geram bilhões de visualizações. O tempo de exibição tem crescido
pelo menos 50% a cada ano por três anos consecutivos, sendo que 80% das
visualizações são de fora dos EUA com versões locais em mais de 88 países.
Mais da metade das visualizações são feitas em dispositivos móveis e o número
de canais que recebem seis dígitos por ano pelo ambiente cresceu 50% ao ano.
(YOUTUBE, Estatística)30.

Ações sociais na plataforma digital

Assim como a mídia de massa, o YouTube também é um reflexo de reproduções


da sociedade como um todo. Há muitos Criadores de Conteúdos extremamente famosos
com seus canais, tornando-se celebridades da WEB e também da mídia da massa.

30
https://www.youtube.com/yt/press/pt-BR/statistics.html - Acessado em 20 de dezembro de 2015.
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

69
Porém, conforme dito, a maior parte desses canais de sucessos é segregada para
determinados grupos.
Com todo o seu crescimento, o YouTube deixa de ser apenas um ambiente digital
para armazenamento de vídeos para se transformar em uma das maiores ferramentas de
divulgação de conteúdo no mundo. Oferecendo as possibilidades de criação de canais
gratuitos para quaisquer usuários que tenham uma conta no Gmail do Google, a
ferramenta democratiza o acesso e também a disseminação de informação para qualquer
indivíduo interessado em compartilhar suas ideias e conhecimento para determinadas
audiências com interesses em seus conteúdos. Henry Jenkins destaca:

Ao fornecer um canal de distribuição de conteúdo de mídia amador e


semiprofissional, o YouTube estimula novas atividades de expressão. Ter um
site compartilhado significa que essas produções obtêm visibilidade muito
maior do que teriam se fossem distribuídas por portais separados e isolados,
significa também a exposição recíproca das atividades, o rápido aprendizado a
partir de novas ideias e projetos e, muitas vezes, a colaboração, de maneiras
imprevisíveis, entre as comunidades. (JENKINS, 2009, p. 348).

Como uma forma de abrir o diálogo entre causas-canais-audiências, o YouTube


realizou em 2016 duas ações que engajaram a plataforma de uma forma interessante. A
primeira ação foi ―Mulheres Criadoras‖, em que a Criadora de Conteúdo do YouTube
Julia Tolezano, conhecida como Jout Jout Prazer, foi convidada para dar visibilidade
entre outros canais. A ideia nasceu da necessidade de estimular mulheres a criarem suas
contas no YouTube para disseminar informações para audiências diversas, além de
discutir sobre o papel da mulher no universo digital.
Já a ação YouTube Negro foi liderada pela Criadora de Conteúdo Nataly Neri, do
canal Afros e Afins, com o foco de dar visibilidade para canais de outros criadores de
etnia negra. O foco central foi a reunião de vários canais com Criadores de Conteúdo do
YouTube da etnia negra para discutir diversas vertentes que envolvem a cultura negra, o
preconceito racial, dentre outros.
Vale ressaltar que ambas Criadoras de Conteúdos do YouTube não possuem
dados volumosos de inscritos em seus canais. Na época, o canal de Julia Tolezano não
chegava a 1 milhão de inscritos e o o canal de Natalie Nery não chegava a 100 mil
inscritos. A forma que o YouTube selecionou essas duas Criadoras de Conteúdo foi com
o foco de seus engajamentos com suas respectivas audiências, mostrando que o

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

70
ecossistema vai muito além de números: é interação, envolvimento e, mais uma vez,
engajamento com o público, conforme dados:
YouTube Negro
Lançamento: Novembro 2016 | Total de Vídeos: 10
Total de Visualizações de Playlist: 12.443
Total de Visualizações de Vídeos: 717.260
Total de Interações por Gostei: 95.317
Total de Interações por Não Gostei: 5.645
Total de Comentários: 7.238
Extração de Dados: 07/03/2017
Mulheres Criadoras
Lançamento: Março 2016 | Total de Vídeos: 13
Total de Visualizações de Playlist: 173.573
Total de Visualizações de Vídeos: 2.472.175
Total de Interações por Gostei: 201.468
Total de Interações por Não Gostei: 4.164
Total de Comentários: 11.386
Extração de Dados: 07/03/2017
Há uma vertente que é muito pouco explorada e que possui uma grande
relevância nos vídeos de canais, que é os comentários. Diferentemente de qualquer
relação com a Televisão, o YouTube abre espaço para o diálogo com o público
diretamente. Uma dessas mensurações são os comentários, nos quais os usuários
acessam a plataforma para interagir com seus Criadores de Conteúdos de preferência e
até mesmo dialogar com demais usuários, abrindo discussões sobre os temas que foram
repassados pelo vídeo.

Comentários YouTube Negro

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Comentários Mulheres Criadoras

Questões sociais entre YouTube e sociedade

Ao proporcionar a criação de comunidades e audiências específicas para os


canais criados em seu ambiente, o YouTube torna-se uma grande referência para nichos
de mercados diversos, despertando interesses em produtores de conteúdos e também

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

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para discussões de fatores importantes para a sociedade como um todo. Com isso, a
ferramenta torna-se uma das maiores apostas do mercado com suas três vertentes,
conforme citado por Henry Jenkins:

Em primeiro lugar, o YouTube representa o encontro em uma série de


comunidades alternativas diversas, cada uma delas produzindo mídia
independente há algum tempo, mas agora reunida por esse portal
compartilhado. Em segundo lugar, o YouTube funciona como um arquivo de
mídia onde curadores amadores esquadrinham o ambiente à procura de
conteúdos significativos, trazendo-os a um público maior. Em terceiro lugar, o
YouTube funciona em relação a uma série de outras mídias sociais, onde é
recomposto para públicos diferentes e se torna o ponto focal para as discussões.
(JENKINS, 2009, p. 348 e 349).

A conversão principal dessas ações do YouTube é dar visibilidade e, ao mesmo


tempo, criar espaços para novos canais que buscam dialogar com públicos, sejam eles
novos ou nativos do ecossistema. Porém, mesmo com a repercussão positiva das ações,
é preciso analisar alguns critérios:
1. Em qual ponto da linha da história que o YouTube tornou-se uma plataforma de
discussão direta com audiências, principalmente para disseminar informações
coerentes para quebras de paradigmas?
2. Até que ponto as interações, via comentários, são benéficas no ambiente digital?
Os diálogos construídos são realmente informativos o suficiente para que os
usuários pesquisem e agreguem novos conhecimentos?
3. A discussão realmente sai do mundo virtual e abrange o mundo real, elevando
discussões e combatendo preconceitos e prerrogativas da sociedade? Até que
ponto esses diálogos são explorados para novos conceitos emergentes?
4. Criadores de Conteúdos do YouTube realmente são bem preparados para lidar
com possíveis crises de imagem por conta da exposição de seus conceitos e
ideais? Esse reconhecimento da plataforma realmente vai além do buzz
midiático?
5. Seria o YouTube uma plataforma realmente ideal para discutir temas relevantes
para a sociedade, com base em opiniões que podem ser vistas de forma
distorcida ou mal compreendidas?
Diante das questões citadas é preciso refletir e reavaliar as informações que
trafegam no ambiente digital e ver até que ponto se torna um agente transformador na
sociedade. Muitos veem o YouTube apenas como plataforma de entretenimento, mas há

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muitas vertentes sociais e também pessoais sendo debatidas no ecossistema, trazendo o
foco da experiência do dia a dia de cada usuário.
Seria então o YouTube uma mera reflexão da sociedade em formato de vídeo,
porém pronto para mudar visões e paradigmas por meio da força das opiniões de seus
usuários?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Jenkins, Henry. (2009). Cultura da convergência: nova edição ampliada e atualizada.


São Paulo: Editora Aleph.

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DISCURSO DE ÓDIO NAS REDES SOCIAIS:
O luto pela morte do filho sob os olhares de muitos algozes

Anna Carolina de Oliveira Azevedo31


Rômulo Magalhães Fernandes32

RESUMO:
No dia 12 de dezembro de 2016, poucas horas após a morte do filho, Yuri Lourenço da
Silva (19 anos), baleado pela Polícia Militar na comunidade Cidade de Deus no Rio de
Janeiro, a cantora Tati Quebra Barraco disse na sua conta no Twitter: ―A PM tirou um
pedaço de mim que jamais será preenchido (...). Essa dor nunca irá cicatrizar‖. A notícia
nas mídias sociais da funkeira sobre a dor de sua perda deu lugar, rapidamente, a
centenas de comentários de ódio e preconceito. Nesse contexto, o presente artigo busca
analisar a relação entre o discurso de ódio e a liberdade de expressão nas redes sociais,
tendo como ponto de partida a repercussão nas mídias sociais sobre a morte do filho da
cantora Tati Quebra Barraco. A partir de um estudo sobre a dinâmica e os limites da
liberdade de expressão, este trabalho aprofunda o contexto de intolerância no país, com
destaque para a interação realizada no espaço virtual e a violência associada a discursos
de ódio. Dentre os resultados, identifica-se a intensificação do discurso de ódio nas
redes sociais, que reduz a interação social direta entre os atores, assim como
potencializa a figura do anonimato e permite a publicação instantânea de conteúdos.

PALAVRAS-CHAVE: Discurso de ódio; Liberdade de Expressão; Redes Sociais;


Violência.

1. A morte de Yuri Lourenço da Silva

No dia 12 de dezembro de 2016, os jovens Yuri Lourenço, de 19 anos, e Jean


Rodrigues de Jesus, de 22 anos, foram mortos a tiros durante uma operação policial na
Cidade de Deus, na Zona Oeste do Rio (PAULA, 2016). O primeiro jovem era filho da
cantora de funk Tati Quebra Barraco, que fez um desabafo emocionado sobre a perda do
filho em seu perfil da rede social Twitter:

Desde cedo na correria, se eu não tinha ninguém para olhar, eu levava pra
trabalhar comigo. Meu filho, volta pra mãe.

31
Servidora Pública do Estado de Minas Gerais, Mestranda em Administração Pública (Fundação João
Pinheiro – FJP/Minas Gerais, 2016), annac.azevedo@hotmail.com.
32
Servidor Público do Estado de Minas Gerais, Doutorando em Direito Público (PUC/Minas, 2016). E-
mail: romulopn@yahoo.com.br.
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A PM tirou um pedaço de mim que jamais será preenchido. A PM matou o
meu filho. Essa dor nunca irá se cicatrizar.
É impressionante como uma pistola fez milagre. Uma pistola bateu de frente
com seis fuzis. Justiça já, eu quero justiça!
A foto do meu filho morto circulando cheio de sangue foi quem que tirou? A
médica?

Na rede social Facebook, Tati também desabafou:

Meu filho tá sendo difícil de acreditar viu? Como deve ser pra você receber
uma mensagem, ligação em meio ao show dizendo que seu filho está morto?
Não queira passar nunca pelo o que estou passando. Não queira sentir nunca
o que estou sentindo.

Em suas mensagens, a cantora faz referência à versão da Polícia de que Yuri e


seu amigo Jean estariam portando grande quantidade de drogas e uma pistola. Tati
Quebra Barraco questionou, também, a circulação de fotos do corpo do filho, já morto,
apontando, inclusive, uma possível participação de profissionais que atuaram na
ocorrência criminal.
Segundo a Polícia, a Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro está
investigando as mortes de Yuri e de Jean e apurando as circunstâncias do ocorrido (G1
RIO, 2016).
Desde que a notícia da morte de Yuri veio a público, e diante de suas
manifestações, a cantora vem sofrendo ataques nas redes sociais, com comentários
preconceituosos e com conteúdo de ódio. Muitos dos comentários abordam um suposto
envolvimento do jovem com o tráfico, a justificar a sua morte, e exaltam a atuação da
corporação policial. Em meio às mensagens de ódio, também foram endereçadas
mensagens de condolências e de solidariedade, muitas das quais também repudiavam o
―linchamento virtual‖ que se instalara nas redes sociais da cantora.
O presente artigo busca analisar a relação entre o discurso de ódio e a liberdade
de expressão nas redes sociais, tendo como ponto de partida a repercussão nas mídias
sociais sobre a morte do filho da cantora Tati Quebra Barraco. A partir de um estudo
sobre a dinâmica e os limites da liberdade de expressão, este trabalho aborda o contexto
de intolerância no país, com destaque para a interação realizada no espaço virtual e a
violência associada a discursos de ódio.

2. Discurso de ódio e liberdade de expressão

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Tendo ganhado notoriedade a partir de experiências como a do Holocausto na
Alemanha nazista, a noção de discurso de ódio abrange, atualmente, uma diversidade de
práticas cotidianas, marcadas por preconceito e intolerância à diferença.
Segundo Winfried Brugger (2007, p. 118), o discurso de ódio refere-se a
―palavras que tendem a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça,
cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião, ou que têm a capacidade de instigar
violência, ódio ou discriminação contra tais pessoas‖.
Thweatt (apud FREITAS; CASTRO, 2013, p. 345) considera, ainda, que, para
além das discriminações de grupos minoritários, o foco central do ódio é a
desvalorização do outro.
Por motivações diversas, o discurso de ódio resulta em privação de Direitos
Humanos a pessoas e grupos sociais. Em situações limite, esses motivos podem dar
razão a agressões, homicídios e outras práticas de violência física.
Tiburi (2015, p. 77) chama a atenção para o entrelaçamento existente entre o que
se denomina de ―violência simbólica‖ e a violência física, destacando que toda violência
simbólica pesa materialmente e que todo sofrimento é físico.
O discurso de ódio compreende uma variável da liberdade de pensamento e,
como tal, quando representa um sentimento de rejeição ou ódio no âmbito interno, não
adquire importância significativa para o mundo jurídico. Por outro lado, ao ser
exteriorizado, o discurso de ódio apresenta-se como manifestação do pensamento, com
repercussões no âmbito jurídico e na relação com os direitos de outros indivíduos,
grupos e da sociedade como um todo (FREITAS; CASTRO, 2013, p. 344).
Assim, a seguinte questão é colocada: como enfrentar o discurso do ódio sem
que isso signifique uma ameaça ao direito à liberdade de expressão? Ou, em outros
termos: a defesa da liberdade de expressão pode justificar a exteriorização de conteúdos
de qualquer natureza, inclusive, de discurso de ódio? Isso demonstra a complexidade do
tema e, da perspectiva jurídica, a importância de Tratados, Convenções, leis e decisões
judiciais que definam parâmetros aplicáveis na resolução do conflito.
A organização não governamental (ONG) ―Artigo 19‖, por exemplo, recomenda
a adoção de alguns critérios para enquadrar um discurso como sendo de ódio, tornando-
o passível de punição. Tais parâmetros são considerados pela referida ONG como

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77
elementos constitutivos da incitação, conforme o artigo 20 do Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966), e foram elaborados para servir de orientação
aos tribunais na identificação do discurso de ódio. São eles:

i. severidade: a ofensa deve ser ―a mais severa e profunda forma de


opróbrio‖;
ii. intenção: deve haver a intenção de incitar o ódio;
iii. conteúdo o forma do discurso: devem ser consideradas a forma, estilo e
natureza dos argumentos empregados;
iv. extensão do discurso: o discurso deve ser dirigido ao público em geral ou
à um número de indivíduos em um espaço público;
v. probabilidade de ocorrência de dano: o crime de incitação não necessita
que o dano ocorra de fato, entretanto é necessária a averiguação de algum
nível de risco de que algum dano resulte de tal incitação;
vi. iminência: o tempo entre o discurso e a ação (discriminação, hostilidade
ou violência) não pode ser demasiado longo de forma que não seja razoável
imputar ao emissor do discurso a responsabilidade pelo eventual resultado;
vii. contexto: o contexto em que é proferido o discurso é de suma importância
para verificar se as declarações tem potencial de incitar ódio e gerar alguma
ação (ARTIGO 19).

Os parâmetros descritos acima não pretendem legitimar a limitação da liberdade


de expressão pelo simples fato de rejeitarem opiniões majoritárias ou divergirem de
posicionamentos oficiais, mas chamam a atenção quanto à excepcionalidade dessa
restrição, que deve ser baseada em justificativas fundamentadas e devidamente
contextualizadas.

3. Redes sociais e discurso de ódio

A crescente revolução tecnológica tem consequências tanto na constituição dos


sujeitos quanto na forma como eles se relacionam uns com os outros. À medida que
adquire centralidade na sociabilidade contemporânea, o ambiente virtual emerge como
palco relevante de práticas de intolerância e de discurso de ódio.
Conforme Boyd e Ellison, citados por Silva (2010, p. 37), uma rede social digital
é um serviço baseado na internet, que permite ao indivíduo construir um perfil público
ou semi-público, dentro de um sistema delimitado, de forma a articular uma lista
de outros usuários com quem compartilha a conexão e ver e recorrer a sua lista
de conexões e a outras que estejam dentro do sistema. A rede social pode ser
definida, ainda, como uma rede de computadores que conecta uma rede de pessoas e

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78
organizações (GARTON, HAYTHORNTHWAITE E WELLMAN, 1997 apud
BRASIL, 2014a, p. 8).
Como toda rede social, aquela mediada pelo computador é composta por dois
elementos: atores (pessoas, instituições ou grupos; os nós da rede) e suas conexões
(interações ou laços sociais) (RECUERO, 2009, pp. 24-25).
Levantamento realizado pelo projeto Comunica que Muda, iniciativa coordenada
pela agência de publicidade Nova/sb, deu uma mostra da intolerância virtual no Brasil.
Entre abril e junho de 2016, um algoritmo vasculhou plataformas como Facebook,
Twitter e Instagram atrás de mensagens e textos sobre temas sensíveis, como racismo,
posicionamento político e homofobia. Foram identificadas 393.284 menções, sendo
84% delas com abordagem negativa, de exposição do preconceito e da discriminação
(MATSUURA, 2016).
Embora não se possa atribuir à internet a propagação do discurso de ódio, muitos
autores afirmam que a comunicação em ambiente virtual intensifica a força e o alcance
dos discursos, os quais adquirem, facilmente, caráter global. Além disso, o anonimato
da interação virtual – por vezes, aparente – funciona como um escudo protetor, um
estímulo à emissão de manifestações ofensivas e despreocupadas com a polidez
comumente buscada na conversação verbal.
A internet e o ambiente virtual figuram, assim, numa posição ambígua: ao
mesmo tempo em que propiciam o desvelamento de intolerâncias invisíveis existentes
na sociedade, e o respectivo debate público, garantem ressonância a esses discursos,
tornando-os mais legítimos e menos marginais.
Segundo Marco Aurélio Moura dos Santos (2016), parece haver um ―ganho‖
para quem incita ódio em redes sociais, que se materializa em visibilidade,
popularidade, reputação e influência, aspectos associados a pertencimento a um grupo
ou afirmação de identidade.
Tiburi (2015, p. 79) elenca três elementos que, combinados entre si, possibilitam
a realização de um linchamento por um grupo. O primeiro, e mais fundamental, é a
anulação da subjetividade: ―quem participa de um linchamento não é capaz de pensar no
que faz‖. O segundo elemento é ―a ausência de compaixão, a capacidade humana de se
colocar no lugar do outro, de imaginar a dor do outro‖. Por fim, o terceiro elemento é o

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79
desejo de fazer parte da massa: ―um estranho ‗ter lugar‘ pode chamar qualquer um a
destruir alguém ‗junto‘ com outros‖.
Tal análise parece aplicável, também, às situações de linchamento virtual, como
a vivenciada pela cantora Tati Quebra Barraco, que evidenciam uma conjugação
covarde de individualidades cheias de ódio. No caso analisado, trata-se de
manifestações de ódio proferidas diante da morte de um jovem negro, pobre e morador
da periferia, pertencente, portanto, a um dos grupos sociais ―contra quem‖ a violência é
tolerada no país (BRASIL, 2014b, p. 6).

4. O ódio até mesmo no luto

A palavra luto é utilizada para indicar uma variedade de processos psicológicos


provocados pela perda de uma pessoa amada, quaisquer que sejam os seus resultados
(SALMAZO-SILVA et al, 2012, p. 189).
Embora objeto de transformações ao longo dos últimos séculos, as atitudes
diante da morte e as formas de sentir o luto permanecem dotadas de caráter social e
público, em geral, associadas à ideia de respeito às experiências pessoais daqueles que
vivenciam a perda.
Na concepção de Freud (apud TIBURI, 2015, p. 90), o luto refere-se a uma
perda de objeto e ao trabalho psíquico para se acostumar à vida depois dessa perda. O
luto seria normal quando superado e anormal quando insuperável (TIBURI, 2015, p.
90).
O luto materno é um dos mais estudados pela literatura e um dos mais
significativos em nossa cultura. Conforme Freitas (2013, p. 100), no contexto das
relações familiares, uma das questões colocadas pela psicologia refere-se à função
materna frente ao luto: ―como a mãe que perde um filho se vê, agora, sem seu filho?‖,
―quais são os sentimentos emergentes nesse processo (culpa, vazio, medo, revolta ou
outros)?‖.
Para Daniel Pereira de Andrade, a recusa de compaixão no momento da morte
de familiares é indício grave de insensibilidade e desumanização própria e do outro, a
indicar que ―não se reconhece no outro a humanidade nem em casos limites, projetando
nele apenas o mal‖ (ANDRADE, 2017, p. 2). Nesse sentido, o episódio vivenciado pela

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cantora Tati Quebra Barraco evidencia uma situação de deslegitimação do sofrimento e
da suspensão da empatia com o outro, no limite desumanizando-o.
Essa desumanização contribui para o empobrecimento da interação social e
possibilita a corrosão da sociedade por meio da destruição da subjetividade das pessoas,
conforme afirma Tiburi (2015, p. 78):

Cada um deve ser aniquilado como pessoa, ou seja, precisa ter perdido a si
mesmo para poder sentir que a vida do outro não vale a pena e que deve ser
aniquilada de qualquer modo. Ele se entrega ao ato de atirar a primeira pedra
porque está iludido de que a sua vida pode valer alguma coisa. Não há futuro
para uma sociedade cujo pensamento comum é este.

Considerações finais

Os últimos anos têm sido marcados pela percepção do aumento de posturas


autoritárias e intolerantes em todo o mundo. Exemplo desse cenário é a intensificação
de discursos de ódio nas redes sociais, plataformas de comunicação caracterizadas pelo
anonimato e pela publicação instantânea de conteúdos, cada vez mais centrais na vida
dos indivíduos.
No caso brasileiro, discriminações e preconceitos históricos, fundamentados na
desigualdade racial e social que marcam o país, articulam-se com o contexto atual de
crise política e institucional, que eleva as tensões sociais e acirram posições intolerantes.
A trajetória dos Direitos Humanos buscou consolidar a convicção de que os
seres humanos são, acima de tudo, iguais em sua diversidade e dignos de respeito por
parte dos ―outros‖. Nesse sentido, os Estados democráticos devem pautar-se pelo
equilíbrio entre liberdade de expressão e respeito à dignidade humana, a qual precisa ser
garantida em todas as situações da vida, e até na morte.
O discurso de ódio apresenta desdobramentos na esfera comportamental que não
condizem com os ideais democráticos, nem com o respeito aos direitos humanos
fundamentais. Assim, constitui um limitador da liberdade de expressão, estando sujeito
a responsabilizações em âmbito jurídico.
O tratamento da questão pelo Direito é relevante e precisa ser mais efetivo.
Contudo, não se pode perder de vista a dimensão ético-política envolvida no combate às
práticas de discurso de ódio, que exige a reflexão sobre equidade, respeito à diversidade
e empatia na construção democrática brasileira.

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81
Referências Bibliográficas

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TIBURI, Marcia. Como conversar com um fascista. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2015.

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83
ENTRE A BOCA E O SEIO, A TECNOLOGIA:
Discussões psicanalíticas sobre o encontro mãe-bebê

Luana Nogueira de Farias Moura

RESUMO
O objetivo deste trabalho é problematizar o lugar de aplicativos digitais que prometem ―controle
sobre a amamentação‖ e ―análise do choro do bebê‖ no momento em que o encontro da mãe e
seu bebê se processa pela via do sensível. Na contemporaneidade, a ênfase sobre o cuidado na
primeira infância e na parentalidade tem sido cada vez mais regulada pela tecnologia, a qual
pode ―mediar‖ e, ao mesmo tempo, ―atrapalhar‖ os vínculos iniciais. Winnicott, com seu
conceito de ―preocupação materna primária‖, indica que a maternidade é regulada pela
identificação sensível da mãe com o seu bebê a partir do holding, fundamentalmente corporal. A
partir da psicanálise winnicottiana e de observações clínicas em ambulatório de atendimento
materno-infantil, assim como a partir de sites e blogs da internet, destacamos a ilusão presente
no contexto das promessas digitais e as dificuldades aterrorizantes diante do ―não saber‖ e da
―falta de controle‖ no momento das adversidades presentes no início da relação mãe-bebê,
principalmente na amamentação. A ética do cuidado com o bebê inclui um conjunto de normas,
mas com a primazia da aceitação do direito a equivocar-se, à incompletude, cada vez menos
presente nos apetrechos tecnológicos, os quais regulam uma nova estética da subjetivação, cujo
conhecimento sensorial e rítmico, dos sentidos do corpo, recebe a marca de outro conhecimento,
o digital.

Palavras-chave: primeira infância; parentalidade; amamentação; aplicativos digitais.

2 INTRODUÇÃO

A partir da minha atuação clínica no Banco de Leite Humano (BLH) do Instituto


Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz),
no atendimento a mulheres com dificuldades para amamentar seus filhos, observei o crescente
lugar que as múltiplas vozes de blogs, sites especializados, guias e manuais sobre aleitamento
materno estavam ocupando no discurso de mães e pais que buscavam o serviço. Após tentarem
resolver seus problemas com a ajuda desses ―peritos‖ virtuais, os pais chegavam ao BLH
confusos e angustiados por não acharem uma solução, mesmo com tanta informação.

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84
Em uma pesquisa33 realizada em 2015 no BLH do IFF/Fiocruz, intitulada ―Sentidos do
cuidado à amamentação: limites, paradoxos e complexidade‖, compreendemos, com o aporte
teórico de Winnicott, o quanto é essencial o cuidado à mulher em suas dificuldades iniciais no
relacionamento com seu filho, não para ensiná-la simplesmente a técnica do aleitamento
materno, mas para mediar a ―comunicação‖ que se dá entre a mãe e o bebê, o qual Winnicott
(1994) considera ser uma ―canção sem palavras‖.
Esta pesquisa mostrou que a demanda de atendimento no BLH em grande parte era
provocada por angústias em decorrência de pressões familiares e cobranças exageradas das
próprias mães, o que apontou para uma exigência de que a mulher seja uma mãe perfeita, que
saiba como fazer todos os cuidados para com o seu bebê com excelência, sem espaços para
dúvidas ou erros. Na maioria dos casos em que a demanda de atendimento dos pais estava
relacionada ao ―não saber como cuidar‖, as angústias giravam em torno do não entendimento da
demanda do bebê, se estava com fome ou não, o que determinado choro indicava, porque a mãe
não conseguia saciar o bebê com seu leite, dentre outros motivos que apontavam para uma
dificuldade na interpretação dos sinais do bebê e do que fazer diante do choro, para eles
considerado ―incomunicável‖.
É aí que os aplicativos digitais encontram seu lugar e se mostram como uma das
melhores saídas para ―ensinar‖ o modo como a mãe deve cuidar de seu bebê em suas
necessidades mais básicas, já que ele ainda não pode lhe falar como gostaria de ser cuidado ou
do que precisa para sobreviver.
Entretanto, de acordo com Winnicott, a capacidade da mãe para compreender seu filho
melhor que ninguém, de uma forma natural, instintiva, por assim dizer, não há como ser
ensinada. Este autor nos diz que ―... uma boa mãe é o melhor juiz para decidir o que é bom para
o seu próprio filho, desde que esteja informada quanto aos fatos e educada quanto às
necessidades‖ (WINNICOTT, 1985, p. 197).
Atualmente, o saber que constrói o ―ser mãe‖ e o ―ser pai‖ está cada vez mais cerceado
pelo conhecimento especializado, eminentemente informativo e generalizante. ―São dicas,
conselhos, procedimentos e passo-a-passos que procuram conduzir os responsáveis por aquilo
que se tornou uma grande empreitada: a criação de filhos‖ (TOMAZ, 2016, p. 197). Além disso,
com apenas um clique os pais podem ter acesso a uma variedade de aplicativos digitais para

33
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e
do Adolescente Fernandes Figueira, CAAE: 45779015.3.0000.5269. Os resultados ainda não foram
publicados, mas se encontram disponíveis no banco de monografias da Biblioteca do IFF/Fiocruz.

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smartphones que ofertam ajudas tecnológicas para lidar com todos os tipos de situação, desde a
gestação até os cuidados básicos com os bebês, como alimentar e colocar pra dormir34.
Tomamos como objeto de análise deste trabalho alguns aplicativos digitais voltados
para traduzir o significado do choro de bebês, veiculados pelo mercado tecnológico. Devemos,
contudo, indicar que se trata de uma aproximação inicial da temática, a partir da clínica
psicanalítica de mães e pais envoltos nos percalços dos cuidados iniciais de seus filhos e da
produção cultural de nosso tempo. Não devemos nos esquecer de que, segundo Golse (2010),
precisamos refletir sobre isso levando em conta, por um lado, ―a ilusão que nossa civilização de
mídia veicula e, por outro, a nocividade de determinadas proposições mercantis‖ (p. 26).

3 O PROCESSO DE AMAMENTAÇÃO: COMUNICAÇÃO SENSÍVEL

Diante de um cenário social em que a mulher é exigida em suas múltiplas facetas, dentre
as exigências inerentes à função materna, o aleitamento materno implica em grande devoção e
dedicação ao bebê que se encontra em um nível de extrema dependência dos cuidados maternos,
já que a nutrição é literalmente a fonte que lhe garantirá a vida – biológica e psíquica.
Quando as mulheres que amamentam ao seio estão sem dificuldades, elas sabem a hora
de amamentar porque o próprio corpo lhes indica – o leite ―vaza‖ e molha sua roupa. Elas
também conseguem identificar a necessidade de mamar pela agitação motora dos bebês, que
lhes indicam que estão preparados para a sucção. Nesse sentido, observamos que a
amamentação pode ser uma experiência de satisfação quando o tempo do encontro da boca do
bebê com o seio da mãe se dá mais ou menos no momento em que ambos estão sensivelmente
preparados para isso.
Quando um bebê mama no seio de sua mãe ele experiencia, transitoriamente, diferentes
percepções sensitivo-sensoriais advindas do corpo dela, como seu cheiro, sua imagem visual, o
sabor do leite, seu calor, seu tato, seu embalo... no tempo de uma mamada tais percepções não
são independentes umas das outras, elas são integradas de maneira dinâmica entre momentos de
intersubjetividade primária e de possíveis momentos de indiferenciação – o que garante a
possibilidade de continuidade do ser para o bebê. Durante a mamada, o sentir, o provar e o
integrar estão presentes no ballet do encontro da mãe com o seu bebê, compondo as nuances
rítmicas dos diversos fluxos sensoriais. O arranjo e o desarranjo dessas sensações
experimentadas pelo bebê lhe possibilita o acesso à intersubjetividade se o pêndulo dessa
dialética pesar cada vez mais para o arranjo, o qual só é possível se fatores facilitadores

34
http://www.mundopositivo.com.br/noticias/mulher/20329867-
5_aplicativos_gr%C3%A1tis_para_quem_%C3%A9_m%C3%A3e.html

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estiverem presentes na coprodução da mãe e do bebê, levando-se em consideração tanto o
aparato biológico do recém nascido como a vida fantasmática materna (GOLSE, 2013).
De acordo com Assis (2004), a mãe que amamenta experimenta emoções profundas, as
quais remontam outro tempo, bem antigo, de quando foi cuidada pela sua própria mãe. As
experiências vivenciadas nesse tempo são inconscientes, mas permanecem influenciando no
tempo presente o modo que a mulher vai construindo sua posição de mãe. E cada mulher
vivencia situações diferentes, coloridas de distintos afetos, os quais serão reatualizados no
processo de tornar-se mãe. O reconhecimento da singularidade de vida de cada mulher e das
suas possibilidades subjetivas faz parte de um cuidado atento e voltado para as necessidades
dela, e não por causa de uma norma ou vontade do agente cuidador.
Segundo Winnicott (1990), o estado emocional da mãe afeta a habilidade do bebê em
tomar o seio. Algumas mulheres, por exemplo, tem um timing diferente, não conseguem lidar
com a inexistência de uma forma definida, por isso precisam de uma programação rígida,
baseada em marcações rigorosas comandadas pelo relógio, para não serem avassaladas pelo
aborrecimento.
A forma de lidar com o tempo e com as sensações corporais tem a ver com as
experiências particulares de cada mulher, assim como com sua disposição para ―dar de mamar‖,
já que quando ela amamenta, ―oferece uma parte de si para ser comida‖. (WINNICOTT, 1990,
p. 89).

4 AS PROMESSAS DA MÍDIA DIGITAL E A SENSIBILIDADE MATERNA

Segundo Winnicott (1968), a forma de comunicação mais primitiva entre o bebê e sua
mãe é a amamentação. Quando essa comunicação inicial passa por turbulências, a família e os
especialistas podem oferecer um cuidado sensível para ajudar nesse processo. Mas será que os
aplicativos digitais podem substituir esse cuidado, como prometem em suas propagandas?
A revista online Pais&Filhos35 e a Crescer divulgaram em seus sites um aplicativo que
―traduz‖ o choro do bebê, The Baby Cry Translator, ferramenta promete identificar o motivo do
choro do bebê apenas com um clique. Ele identifica, após 10 segundos, se ele está com fome,
sede, fraldas molhadas, cansaço, incômodo, estresse, chateação ou se está pedindo um pouco de
atenção. A eficácia estimada é de 96%! Esse aplicativo foi criado pelo professor taiwanês da
universidade de Ciência da Tecnologia da Universidade Nacional de Yulin, Chan Chuan-yu, que
fez uma análise do choro de 100 mil bebês e encontrou uma maneira de categorizar e identificar
o que os choros queriam indicar. Quando o aplicativo foi lançado teve milhões de acessos na
35
http://www.paisefilhos.com.br/noticias/aplicativo-traduz-o-choro-do-bebe/

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Europa e EUA, apesar de não ser gratuito. ―Em vez de seguir o instinto, é possível apelar para a
tecnologia‖36, diz uma notícia de um site especializado em tecnologia.
Golse (2010), baseado nas ideias de Bion, nos lembra que o pensar e,
concomitantemente, a produção de saber, não é só um processo cerebral e individual, pois ―não
pensamos somente com nosso cérebro, pensamos também com nosso corpo e nossas emoções, e
isto sobre a base de nossas interações com o outro‖ (p. 27). Com isso, nos questionamos sobre
como as novas tecnologias digitais atuam na constituição do processo de parentalidade, o qual
passa pela construção de um tipo de conhecimento que não se dá pela via racional tão somente,
mas pelo desenvolvimento da capacidade emocional de interpretação da corporeidade do bebê.
Winnicott (1994) coloca que a mãe que acabou de dar à luz encontra-se em um estado
de sensibilidade aumentada – é um momento crítico onde forças imensas atuam. Nas palavras
do autor:

... seus instintos naturais não conseguirão se desenvolver se ela estiver


amedrontada ou não vir seu bebê quando ele nascer, ou ainda se o bebê só lhe
for trazido em momentos preestabelecidos pelas autoridades como sendo
ideais para a alimentação. Desta forma, as coisas simplesmente não
funcionam. O leite da mãe não flui como uma excreção; é uma resposta a um
estímulo, e este estímulo é a visão, o cheiro e o tato de seu bebê, e o choro do
bebê, que expressa necessidade (p. 69).

Winnicott denominou esse estado de ―preocupação materna primária‖, o qual tem a ver
com o laço amoroso que se desenrola na relação primitiva mãe-bebê. Este estado em que a mãe
se encontra é o que vemos quando ela cuida das necessidades de seu filho a partir da
identificação que faz com seu bebê, o qual, por sua vez, é dependente dela. Assim, ela constitui
um meio ambiente suficientemente bom, capaz de permitir ao bebê alcançar satisfações,
ansiedades e conflitos inatos apropriados a cada momento no processo de desenvolvimento
(WINNICOTT, [1956]1978).
O lactente e o cuidado materno juntos formam uma unidade. A célebre sentença ―não há
tal coisa como um lactente‖ significa que sempre que se encontra um lactente se encontra o
cuidado materno, e sem cuidado materno não poderia haver um lactente. Os lactentes humanos
não podem começar a ser exceto sob certas condições. O cuidado materno satisfatório pode ser
compreendido a partir da noção de holding (WINNICOTT, 1983).
O holding protege da agressão fisiológica; leva em conta a sensibilidade cutânea do
lactente – tato, temperatura, sensibilidade auditiva, visual e à queda; inclui a rotina de cuidados
dia e noite; segue as mudanças instantâneas do dia a dia que fazem parte do desenvolvimento

36
https://www.tecmundo.com.br/app-store/39503-aplicativo-para-ios-analisa-e-diz-o-significado-do-
choro-de-um-bebe.htm

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88
físico e psíquico. Nas palavras de Winnicott (1983, p. 49): ―o holding inclui especialmente o
holding físico do lactente, que é uma forma de amar... Há aquelas que podem suster um lactente
e as que não podem...‖.
A mãe, através de sua identificação com o lactente sabe como ele se sente, de modo que
é capaz de prover quase exatamente o que necessita em termos de holding e provisão do
ambiente em geral. Sem tal identificação ela não seria capaz de prover o necessário no começo,
que é uma adaptação viva às necessidades do lactente. Com ―o cuidado que ele recebe de sua
mãe‖ cada lactente é capaz de ter uma existência pessoal, e assim começa a construir o que pode
ser chamado de continuidade do ser (WINNICOTT, 1983).
De acordo com Winnicott, a capacidade da mãe para compreender seu filho melhor que
ninguém, de uma forma natural, instintiva, por assim dizer, não há como ser ensinada.
Entretanto, Winnicott (1985) nos diz que ―... uma boa mãe é o melhor juiz para decidir o que é
bom para o seu próprio filho, desde que esteja informada quanto aos fatos e educada quanto às
necessidades‖ (p. 197).
De acordo com Golse (2010), nós só temos acesso ao bebê real pelo viés das
identificações regressivas ao bebê que fomos, que em parte escapa à tradução, a partir de uma
simples observação. Por isso é que somente pelo trabalho psíquico do adulto que cuida do bebê
que os índices e sinais do bebê podem ser interpretados. Além disso, a dimensão emocional do
bebê que não é passível de interpretação, que tem a ver com o ―clima‖ afetivo, só pode ser
apreendida e acolhida na relação com o outro.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cada bebê e cada relação parental é singular, por isso não existe a priori uma resposta
pronta baseada em generalizações da espécie humana que possa traduzir o que a comunicação
sensorial, sem palavras, quer dizer. Segundo Golse (2010, p. 27), ―cada mãe ou pai dispõe de
sua própria capacidade emocional de interpretação, e devemos temer que o fato de levar os pais
a acreditarem que não sabem, só pode mesmo conduzi-los a sentir-se incompetentes e
desqualificados‖. E é isso que pode ocasionar a produção e veiculação de aplicativos digitais
com essa promessa ilusória de que as respostas estão lá, prontas para serem acessadas.
Nas palavras de Golse (2010, p. 27), ―...a criança só tem acesso ao mundo dos signos,
das significações e dos símbolos dentro de sua relação ao outro. Ela fundamentalmente necessita
de seu corpo e do trabalho psíquico do outro‖. Para esse autor, os decodificadores automáticos
de gritos de bebês incorrem no risco de deixar os bebês sozinhos, fora da relação e, portanto,
diante de um mundo que para eles é impossível de metabolizar.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

89
Entretanto, se o uso dos dispositivos digitais está a serviço de pais que se acalmam
diante da ―resposta‖ do tradutor, esse ―suporte‖ tecnológico pode funcionar como o relógio que
marca o tempo de cada mamada para aquela mãe que precisa de um suporte ―temporal‖, um
controle mais rígido, como apontado por Winnicott (1990). Entretanto, podemos pensar sobre
como estamos produzindo culturalmente dispositivos que se engancham no mal-estar atual de
onipotência do cuidado aos filhos, de um fechamento narcísico que impede qualquer rachadura
no tempo de esperar, no tempo de observar o outro, de ―sentir com‖ e agir no segundo tempo.
Se o olhar está na tela do smartphone, a relação com o outro se dá através desse objeto que
―tudo sabe‖, colocando o ―não saber‖ dos pais em um lugar de menos valor, o que os faz
sentirem-se incompetentes e desqualificados.

REFERÊNCIAS

GOLSE, B. O autismo infantil, a intersubjetividade e a subjetivação entre neurociências e


psicanálise. In: Do que fala o corpo do bebê. Isabel Kahn Marin, Regina Orth de Aragão
(organizadoras). São Paulo: Escuta, 2013.

____. O bebê nas interfaces: entre psicanálise e apego, entre neurociências e psicopatologia,
entre prevenção e predição. In: ARAGAO, R.O. de; ZORNIG, S.M.A-J. (Orgs.). Nascimento:
antes e depois – cuidados em rede. 2 ed. Curitiba: Honoris Causa, 2010, p. 15-32.

GÓMEZ, M; MAIA, M.S. Amamentação: contextualização histórica e processos de


subjetivação. In: Do que fala o corpo do bebê. Isabel Kahn Marin, Regina Orth de Aragão
(orgs.). São Paulo: Escuta, 2013.

TOMAZ, R.O. Vendem-se conselhos: poder pastoral, mídia e maternidade. Rizoma, Santa
Cruz do Sul, v. 4, n. 1, p. 196, agosto, 2016.

WINNICOTT, Donald W. Preocupação materna primária. (1956). In: Textos selecionados: da


pediatria à psicanálise. Trad.: Jane Russo. Rio de Janeiro: F. Alves, 1978, p. 491-498.

____. A amamentação como forma de comunicação. (1968). In: Os bebês e suas mães. São
Paulo: Martins Fontes, 1988.

____. O ambiente e os processos de maturação: estudo sobre a teoria do desenvolvimento


emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.

____. A criança e o seu mundo. Trad.: Álvaro Cabral. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

____. Natureza humana. Trad.: Davi Litman Bogomoletz. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1990.

____. Os bebês e suas mães. Trad.: Jefferson Luiz Camargo e Maria Helena Souza Patto. São
Paulo: Martins Fontes, 1994.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

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ENTRE CELULARES, TABLETS, CONSOLES E COMPUTADORES:
Práticas digitais no cotidiano de adolescentes

Guilherme Carvalho Franco da Silveira


Centro Pedagógico da UFMG

RESUMO
O presente texto apresenta resultados parciais de pesquisa de Doutorado em Estudos do Lazer, cujo
objetivo é compreender usos e sentidos que emergem de práticas mediadas pelas mídias digitais no
cotidiano de adolescentes do terceiro de uma escola de ensino fundamental de tempo integral. A
metodologia de pesquisa, na perspectiva da etnografia, envolveu os seguintes procedimentos: a)
observação participante das práticas digitais dos adolescentes na escola; b) oficina de práticas digitais na
escola; c) entrevistas com os adolescentes. As principais questões que surgiram da pesquisa de campo
dizem respeito a: a) nativos digitais; b) relação online/offline; c) proibição de práticas digitais e burla e d)
práticas digitais e discurso de riscos/benefícios. Em função da limitação de espaço, neste artigo será
apresentada apenas a discussão sobre nativos digitais.

Palavras-chave: Práticas Digitais; Mídias Digitais; Nativos Digitais; Adolescentes.

Introdução

As coisas mais importantes para mim são minha família, meus amigos e o
Wi-Fi (Luna37)

O acesso às mídias digitais tem crescido vertiginosamente, em especial na vida


de adolescentes e jovens. Como afirma Coleman (2010, p. 489), ―o fato de que as
mídias digitais interessam culturalmente é inegável, mas é necessário mostrar como,
onde e porque, para confrontar presunções peculiarmente míopes a respeito da
universalidade da experiência digital‖.
Parafraseando Geertz (1989), a intenção da pesquisa aqui apresentada é entender
a cultura digital em que vivem os adolescentes, não como um poder ao qual podem ser
atribuídos os comportamentos, os acontecimentos sociais ou os processos, mas como
um contexto (em transformação), algo dentro do qual comportamentos, acontecimentos,
processos podem ser descritos e interpretados de forma inteligível. Assim, busca-se uma
interpretação da relação entre adolescentes e mídias digitais capaz de esclarecer o que

37
Todos os nomes neste texto se referem aos adolescentes pesquisados e são fictícios, para preservar a
identidades dos sujeitos da pesquisa.
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

91
ocorre no cotidiano desses adolescentes para reduzir a perplexidade (que relações, usos
e sentidos são esses?!) de quando se olha de fora os adolescentes e suas práticas digitais.
Esta pesquisa se caracteriza como uma etnografia, buscando uma descrição
densa (GEERTZ, 1989), que, para além de meramente descrever fenômenos,
acontecimentos e de apresentar dados não interpretados, se constitui numa leitura do
que acontece, numa interpretação.
A metodologia de pesquisa envolveu os seguintes procedimentos, no segundo
semestre de 2016: a) observação participante das práticas digitais dos adolescentes na
escola (em especial, nos tempos de recreio e no horário de almoço); b) oficina de
práticas digitais na escola; c) entrevistas com os adolescentes. Para a pesquisa de
campo38, o contexto de estudo foi uma escola pública federal de ensino fundamental de
tempo integral, com cerca de 500 estudantes, tendo sido sujeitos da investigação
adolescentes entre doze e quatorze anos de idade.
As principais questões que surgiram da pesquisa de campo dizem respeito às
seguintes categorias: a) nativos digitais; b) relação online/offline; c) proibição de
práticas digitais e burla; e, d) práticas digitais, riscos e benefícios. O presente texto, pela
limitação de espaço, apresenta apenas a discussão sobre o conceito de nativos digitais.

Adolescentes: nativos digitais?

Eu não me acho entendido de tecnologia. Tem muita coisa que eu queria


saber e não sei. (Vitor)

O que seria um nativo digital? Um adolescente sempre conectado, competente


tecnologicamente, intelectualmente diferente em função de sua imersão na cultura
digital? Seria possível pensar numa geração de nativos digitais uniformemente
competente? Provavelmente não, uma vez que ainda há problemas com o acesso básico
a certos dispositivos digitais (computadores, consoles de videogame e tablets,
inacessíveis para grande parcela da população), com a aprendizagem do uso para além
do banal (UNICEF, 2011) e com a qualidade do acesso à internet, o que limita a
experiência digital e, consequentemente, dificulta a aprendizagem de habilidades para o
uso instrumental e crítico de tais dispositivos.

38
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da UFMG.
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

92
Prenski (2001), por exemplo, criou o conceito de nativos digitais sugerindo que
os jovens de hoje são diferentes como resultado do input digital que eles recebem, sem,
entretanto, apresentar evidências empíricas deste fato. Boyd (2014, p. 22) afirma que
o termo nativo digital é [apenas] um para-raio para os intermináveis medos e
esperanças que muitos adultos anexam à nova geração. […] A chave para
entender como os jovens navegam nas mídias sociais é se afastar das
manchetes – tanto as boas quanto as ruins – e mergulhar nas realidades cheias
de nuances das pessoas jovens.

Segundo a pesquisa TIC Educação 2015 (CGI.BR, 2016), adolescentes de ambos


os sexos (75%) consideram saber usar a internet melhor do que seus pais. Entretanto,
chama a atenção de que, segundo os próprios adolescentes, a comparação de
informações de diferentes sites, algo que se aproximaria de uma visão crítica do uso da
internet, é uma habilidade pouco desenvolvida (48% dos sujeitos investigados considera
não ter tal competência) (CGI.BR, 2016). Além disso, retomando a discussão de que as
práticas digitais não se limitam ao uso da internet e de jogos e aplicativos online, ainda
é necessário investigar em que nível estão habilidades de uso offline, de resolução de
problemas de funcionamento das mídias digitais, de apropriação crítica da mídia e de
produção midiática
Na minha pesquisa de campo, pude observar os adolescentes em diferentes
práticas digitais. Com o cuidado de não generalizar, parece razoável afirmar que cada
adolescente investigado tem se tornado especialista apenas naqueles aplicativos que
interessam a ele, em particular: numa rede social em particular (Instagram, Facebook,
Twitter, Snapchat, Whatsapp etc.) ou num jogo específico (GTA, FIFA, Slither etc.),
mas não um nativo digital que transita competentemente por quaisquer mídias.
Na escola pesquisada, foi comum encontrar adolescentes com o celular nas
mãos, tirando fotos, jogando, mas sem acesso à internet, uma vez que vários deles
relataram não poder pagar 3G/4G, além de não poderem acessar a internet sem fio da
escola por não terem a senha do Wi-Fi. Como eu estava sempre com meu tablet, era
comum nas minhas aulas alguns adolescentes (admirados com o tablet, como se o
considerassem um dispositivo incomum, extraordinário em suas vidas) pedirem para
jogar, desenhar ou tirar fotos das aulas com ele. Aparentemente, aquele não era um
dispositivo com o qual estivessem acostumados (um nativo digital não deveria conhecer
todas as mídias digitais?!).

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

93
Um exemplo interessante foi quando solicitei a Juan que me ajudasse a religar os
consoles de Playstation 2 da sala de videogames da escola, após eu ter dificuldade de
ligá-los. Juan me disse: ―Ah, professor, não posso te ajudar. Não sou muito ligado em
videogame. Eu gosto mesmo é de jogar bola de verdade‖. Além da questão da
competência, a ideia de que o interesse nos videogames ou no digital é ―natural‖ nas
gerações mais novas precisa ser questionada.
Quando se fugia um pouco do seu domínio de interesse, muitos adolescentes
apresentavam sérias dificuldades. Por exemplo, quando realizavam um trabalho sobre
esportes, em computadores do laboratório de informática da escola, vários adolescentes
tiveram dificuldade de trabalhar no LibreOffice Impress (os que tinham computadores
em casa utilizavam o PowerPoint e tiveram sérios problemas em lidar com os comandos
apropriados no aplicativo que desconheciam). Além disso, alguns que iniciaram o
trabalho escrevendo no Writer sofreram bastante para transpor o conteúdo para o
Impress. Quando decidiu-se salvar todos os trabalhos no Onedrive, solicitando que os
alunos transpusessem a apresentação do Impress para o PowerPoint, vários estiveram a
ponto de desistir, tal a dificuldades de transpor o conteúdo de um aplicativo para outro.
Da mesma forma, quando tiveram que continuar a edição do documento abrindo-o no
Onedrive e editando-o no PowerPoint online, mais uma rodada de lamentações teve
lugar. Outro problema que tiveram foi de transpor imagens encontradas na internet para
o aplicativo, uma vez que as estratégias de copiar e colar que utilizavam em casa não
funcionavam nos computadores da escola (não seria de se esperar que um nativo digital
fizesse a ―transferência‖ de habilidade no uso de um aplicativo a outro com mais
facilidade?).
Ficou patente, na observação participante, que o tipo de experiência prévia (ou
ausência da mesma), não apenas com mídias digitais, mas também na escola e na
família, implicava em diferenças enormes no manuseio dos aplicativos, que variavam
do desconhecimento completo, passando pelo uso básico e chegando, apenas em raros
casos, ao uso competente.
Os adolescentes observados tentavam aprender a dominar o controle de
privacidade, as opções de publicar nas redes, manipular imagens, ―enganar‖ um jogo
(como no caso do adolescente que burlou a necessidade de andar fisicamente pelos
espaços da cidade, no Pokemon Go), entre outras possibilidades. Enfim, desejavam ser

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

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experts naqueles jogos e aplicativos de seu interesse. Entretanto, foram poucos os
adolescentes que encontrei que transitavam bem em diferentes aplicativos, em
diferentes suportes (computadores, tablets, consoles e celulares) e em diferentes
sistemas operacionais (alguns adolescentes, por exemplo, se complicavam no trânsito
entre iOS e Android ao lidarem com celulares diferentes). Num caso extremo da minha
pesquisa, Flávia, filha de uma família de classe média, que tinha computador em casa,
após alguns minutos em frente ao computador da escola, sem saber o que fazer para
iniciar um trabalho, me perguntou: ―Professor, o que eu faço? Como eu escrevo o texto
no computador?‖. Ela não sabia sequer como abrir o aplicativo nem como fazer as letras
aparecerem na tela, como se nunca tivesse visto um teclado na vida (um nativo digital
que não sabe digitar um texto num computador?!). Depois, ao conversar com sua mãe,
compreendi que, o computador de casa não era utilizado por Flávia, uma vez que seus
pais a incentivavam à leitura e, consequentemente, desestimulavam (e, às vezes,
proibiam) o uso de computadores, tablets e celulares
Carvalho (2014, p. 92) também observou, em sua pesquisa de campo com
adolescentes e jovens, uma ―grande dificuldade dos usuários em relação ao computador,
contrariando a ideia de que as novas gerações ‗já nascem sabendo‘ utilizá-lo‖, citando o
caso de uma adolescente de onze anos que se limitava, no computador, a entrar em um
único site (cujo endereço estava escrito em um cartaz do telecentro pesquisado), porque
não sabia ler e escrever, ou seja, apresentava dificuldades nas práticas digitais em
função de seu contexto de vida ampliado (escolaridade, renda, classe social, relações
familiares).
Buckingham (2008) afirma que, na maior parte do tempo, os jovens usam a
mídia digital não de maneiras espetaculares, criativas, críticas ou inovadoras, mas de
maneiras bastante simples de mera comunicação e coleta de informação. Esse autor
aponta que os jovens, na média, são bem menos letrados ou fluentes tecnologicamente
do que se tem assumido, não muito distantes nem mais competentes que os adultos que
os cercam, além de um número significativo de jovens que rejeitam (ou não acessam) as
mídias digitais. O autor ainda alerta para o fato de que os discursos sobre a mídia
digital, mais do que descobrir fatos novos, podem estar na verdade construindo o objeto
de que se deseja falar, descrevendo uma minoria de usos espetaculares e usuários
especiais como se ela fosse a maioria.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

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É preciso chamar a atenção para a preponderante banalidade do uso das novas
mídias pelos jovens. Essa banalidade se expressa, por exemplo, na pouca diversidade de
jogos e aplicativos que vi os adolescentes utilizarem. Pokemon Go, Clash Royale,
Colour Switch, Slither-io eram os jogos mais comuns no caso dos celulares. Sempre que
realizavam uma atividade na sala de informática da escola, se sobrasse algum tempo ao
final da aula e fosse permitido aos alunos jogar no computador, Color Switch e Slither-
io eram quase que unanimidade nos computadores. Quanto aos aplicativos, Whatsapp,
Facebook, Snapchat, Instagram, Twitter, Youtube praticamente resumiam a amplitude
do que se via nos celulares. Ou seja, a não ser que em casa os adolescentes estejam
realizando práticas espetaculares em seus celulares, tablets, consoles e computadores (o
que parece bastante improvável), o que se vê é que a maioria deles navega num
conjunto nada especial de práticas digitais, mais focadas no seu próprio lazer, na
comunicação com os pares e na autoexpressão do que em aprendizagens distintivas ou
altamente especializadas.
A questão da competência digital está, certamente, ligada também a questões de
desigualdade no acesso ao universo digital, online e offline. No universo pesquisado, há
adolescentes cujo plano de celular não tem 3G ou 4G, acessando a internet apenas pelo
Wi-Fi que, muitas vezes, não está disponível, como é o caso da escola. Isso significa
uma limitação no uso do celular, dificultando baixar aplicativos, jogar online, conversar
por Whatsapp, postar no Facebook etc. Outros adolescentes relataram, por exemplo, que
a velocidade da internet em casa dificultava ver Netflix (―Não consigo ver filmes e
seriados sem que a transmissão pare‖, relatou Célia) e jogar online com outros
jogadores. Uma adolescente, às vezes, ia até minha sala, ao final das aulas, para baixar
músicas e sempre ficava surpresa com a velocidade com que conseguia fazer o
download.
Além da não uniformidade na competência técnica e no acesso, da mesma forma
que na pesquisa TIC Educação 2015 (CGI.br, 2016), na minha pesquisa de campo
também foi possível perceber diferenças de gênero quanto às práticas digitais. No caso
das redes sociais mais acessadas pelas meninas, elas diziam que o que mais interessava
era compartilhar fotos, contar os ‗babados‘, conversar sobre ou com os boys. Segundo
Célia, meninas têm mais amigos e amigas nas redes sociais que os homens, por isso elas
passam mais tempo nas redes. Para Vitor, o motivo pelo qual meninas gostavam mais

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

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de redes sociais era porque elas tinham mais assunto para conversar, que é o que mais se
faz nas redes sociais. ―Aqui mesmo na escola, elas têm muito mais para falar do que
nós, meninos‖.
Com relação aos jogos eletrônicos, mais praticados pelos meninos, os
adolescentes também tinham suas ―teorias‖ para as diferenças de gênero, algumas das
quais naturalizantes, desconsiderando a dimensão cultural das diferenças, como sugere a
seguinte conversa:

Gegê: ―Playstation era um jogo só de menino! O Playstation 2016 até teve


futebol feminino, mas pouca gente jogou, ninguém se interessava e aí tiraram
da atualização de 2017‖.
Pereira: ―Os jogos têm muito mais temas masculinos: guerra, luta, por
exemplo, por isso os meninos gostam mais de jogar do que as meninas‖
Estela: ―É mesmo, menina acha chato aquele negócio de ficar matando os
outros, ficar correndo atrás de gente e matando‖.
Pietra: ―Eu acho que é um problema cultural. Quando nasce pai dá bola, dá
roupa azul, bola para o menino; quando é menina, ganha boneca, coisas
rosas.‖.
Luna: ―Jogo para menina é o Amor Doce‖.
Gegê: ―É mesmo! Como assim que os meninos vão criar meninas para
namorar meninos?!‖

Eles e elas diziam que jogos eram mais para meninos porque têm a ver com
emoção, aventura, que, segundo eles e elas, eram emoções que combinavam mais com
os meninos. Ainda com relação ao gênero, meninos e meninas concordavam que, na
maior parte dos casos, os meninos eram mais entendidos de tecnologia digital e que os
meninos gostavam mais de computador e videogame, ficavam mais por dentro de
assuntos técnicos e ―fuçavam‖ mais do que as meninas.
Boyd (2014, p. 159) contribui para esta reflexão, afirmando que

quando olhamos como a mídia social é adotada pelos jovens, torna-se óbvio
que a internet não nivela a desigualdade de modo prático ou generalizado. Os
padrões são muito familiares: preconceito, racismo e intolerância são
penetrantes. Muitas divisões sociais que existem no mundo offline têm sido
replicadas, e em alguns casos amplificadas, online. (p. 159)

Além das questões de acesso e competência, se também há diferenças


significativas no uso das mídias digitais entre os gêneros, como seria possível supor um
nativo digital universal?

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É importante destacar ainda uma dificuldade de vários adolescentes no sentido
de analisar criticamente informação disponível no universo digital, de ―desfazer a
opacidade por trás das mídias digitais‖ (MOREIRA; NASCIMENTO, 2012, p. 58), bem
como de avaliar, antecipadamente, as consequências de suas práticas digitais. Na escola
pesquisada, foi possível perceber uma atitude acrítica dos adolescentes, seja na
utilização de informações conceitual e factualmente equivocadas, retiradas da internet
sem qualquer avaliação quanto à sua origem, seja na postagem irrefletida de afirmações
preconceituosas ou ofensivas em redes sociais ou em mensagens para amigos e colegas.
Num caso emblemático, uma adolescente, após uma briga com uma colega, publicou no
Facebook ofensas à colega, das quais se arrependeu no dia seguinte, quando deletou a
publicação, que, entretanto, já havia sido visualizada pela maioria dos alunos da escola.
Nativos digitais não deveriam compreender as consequências de suas práticas digitais?

Conclusão

Como afirmam Helsper e Eynon (2010), a diversidade de usos, a experiência, o


gênero e o nível educacional são tão ou mais importantes do que o pertencimento a uma
certa geração na definição de quem é um nativo digital.
Alinhados com essa afirmativa, os dados da minha pesquisa de campo permitem
questionar o conceito de nativos digitais da forma homogeneizante apresentada por
Prenski (2001), sugerindo que, apesar de haver adolescentes digitalmente competentes,
um grande número deles ainda apresenta dificuldades em suas práticas digitais
relacionadas à classe social, ao gênero, ao acesso, à limitação técnica e à apropriação
crítica do uso das mídias digitais. Abre-se, assim, uma possibilidade (necessidade?) de
intervenção para as escolas, no sentido de possibilitar aos adolescentes uma formação
mais sólida na busca da natividade digital.

Referências

BUCKINGHAM, David. Introducing identity. In.: BUCKINGHAM, David (org).


Youth, identity, and digital media. Cambridge: The MIT Press, 2008.

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CARVALHO, Olívia Bandeira de Melo. Jogar, encontrar amigos ou espalhar o
currículo por aí: uma etnografia na Lan House e no Telecentro. 27 ago. 2010. 180 p.
Dissertação (Mestrado). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2010.

COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL – CGI.br. Pesquisa sobre o uso das


tecnologias de informação e comunicação nas escolas brasileiras – TIC Educação
2015. Coord. Alexandre F. Barbosa. São Paulo, 2016. Disponível em: http://www.
cetic.br/publicacoes/2012/tic-educacao-2012.pdf. Acesso em: 5 fev 2017.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

HELSPER, Ellen Johanna; EYNON, Rebecca. Digital natives: where is the evidence?
British Educational Research Journal, vol. 36, n. 3, june 2010, p. 503-520

MOREIRA, Claudia Martins; NASCIMENTO, Norma Suely Macedo. Letramento


digital e cultura tecnológica: uma apropriação escolar urgente. Linguagens, identidades
e letramentos, vol. 2, n. 2, jul./dez. 2012, p. 53-66.

PRENSKY, Marc. Digital Natives, Digital Immigrants, Part II: Do they really think
differently? On the Horizon, v. 6, dez 2001, p1-9.

UNICEF. The state of the world‟s children. Adolescence: an age of opportunity. New
York: Unicef, 2011. Disponível em: <www.unicef.org>. Acesso em 23/10/2016.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

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ENTRE SMARTPHONES E QUATRO PAREDES:
Os espaços dos adolescentes em suas casas

Marilza de Lima Friche


Psicóloga Clínica e Mestre em Psicologia
Márcia Stengel
Programa de Pós-graduação de Psicologia da PUC Minas

Resumo
A partir da pesquisa ―A casa dentro da casa: o sentido do quarto para o adolescente na
contemporaneidade‖ que investigou os modos de vida contemporânea dos adolescentes
e analisou, na perspectiva dos adolescentes, os significados dos seus quartos em suas
casas, verificou-se a importância desse ambiente na formação da identidade dos
adolescentes, assim como nas relações parento-filiais nessa etapa do ciclo vital.
Concluiu-se que os quartos dos adolescentes são espaços multifuncionais, onde eles
passam a maior parte do tempo quando estão em casa e representam um lugar de
proteção e de resguardo da sua individualidade. No quarto eles fazem de tudo: estudam,
recebem amigos e se interagem com eles presencial e virtualmente, utilizam a internet e
as redes sociais, sendo um espaço de compartilhamento e de sociabilidade, como
também de diferenciação de seus pais. Espaço físico e virtual, cultura do quarto e
cultura digital se mesclam e corroboram mutuamente para a vivência da adolescência.

Palavras-chave: Adolescente; Quarto; Espaço físico e virtual; Relações familiares.

Esse trabalho trata-se de um recorte da pesquisa ―A casa dentro da casa: o sentido do


quarto para o adolescente na contemporaneidade‖, que investigou os modos de vida
contemporânea dos adolescentes, tendo como objeto de estudo seus quartos. Nessa pesquisa
objetivou-se analisar, na perspectiva dos adolescentes, os significados dos seus quartos em suas
casas, discutir a importância na formação da identidade do adolescente e as relações dos pais
com seus filhos. Foi realizada uma pesquisa qualitativa, por meio de entrevistas com
adolescentes e fotografias de seus quartos e respectiva análise de conteúdo e de imagem do
material coletado.
A análise dos dados evidenciou que os adolescentes hoje têm os seus quartos como
espaço de seus domínios, utilizando-os para múltiplas atividades, como estudo, lazer,
alimentação, descanso, convívio com os amigos, interagindo com eles presencial ou
virtualmente, utilizam a internet e as redes sociais, assistem televisão e utilizam o computador.
A adolescência é marcada pelo sentimento de insegurança procedente das severas
transformações físicas, psicológicas e sociais que o indivíduo sofre. Diante das mudanças
incontroláveis do corpo, que acarretam perdas irreparáveis, o adolescente se vê às voltas com
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

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seu ―novo‖ corpo, sua ―nova‖ sexualidade, seus ―novos‖ pais e sua ―nova‖ vida. Vive, assim,
um período de grandes incertezas, que geram intensa instabilidade emocional e,
consequentemente, uma insegurança explícita e velada em distintos aspectos de sua vida
(CALLIGARIS, 2009; KNOBEL, e ABERASTURY, 1981).
Esse sentimento, característico dessa fase da vida, encontra-se potencializado pelos
modos de vida da sociedade contemporânea. Para Birman (2011), os adolescentes vivem mais
intensamente o sentimento de abandono de seus pais do que outrora, já que a presença destes em
suas vidas encontra-se em tempo reduzido, denotando uma precariedade de investimentos
afetivos por parte dos pais. Acrescido a isso, o crescente aumento da violência urbana reduz
significativamente a liberdade de ir e vir dos adolescentes.
Dessa maneira, os adolescentes contemporâneos encontram-se cada vez mais reclusos,
limitando suas relações afetivas ao contexto escolar e doméstico. O autor faz um alerta para o
que ele denominou ―engaiolamento espacial‖ e uma consequente fragilização psíquica das
crianças e adolescentes.

Os jovens hoje, no Brasil dos grandes centros urbanos, não mais dominam a
cartografia da cidade e nem mesmo do bairro em que habitam, ficando
aprisionados ao exíguo espaço de suas casas e escolas, sem evidenciarem
muita potência de movimento. A restrição e o engaiolamento espacial
incidiram marcadamente sobre o psiquismo, pois se restringe no jovem o
imperativo do ir e vir, incidindo assim no registro da liberdade. Qualquer
coisa pode se tornar perigosa e assustadora, pela fragilização juvenil.
(BIRMAN, 2011, p.39)

A privação da liberdade provocada pelo aumento da violência urbana e a consequente


restrição das relações interpessoais ao âmbito familiar e escolar referidos por Birman (2011) são
minimizadas pelo crescente uso das tecnologias que os adolescentes fazem para se relacionarem
e se comunicarem. Por meio das redes sociais os adolescentes não só se comunicam e se
―encontram‖ com os amigos presenciais, como também ampliam sua rede de relacionamentos.
Dessa maneira, o ―engaiolamento espacial‖ vem sendo compensado pela liberdade no
espaço virtual, num espaço sem fronteiras. Por meio das redes sociais, os adolescentes
contemporâneos exercitam sua autonomia e sua sociabilidade, sem precisarem sair de casa. Com
o afastamento das ruas, ocorre uma mudança do público ao privado nas vidas dos adolescentes,
o que reforça o ideal individualista da sociedade contemporânea. Eles são empurrados para
dentro de casa, para a vida privada, mas ao mesmo tempo nunca tiveram suas vidas tão
amplamente publicizadas, denotando um enfraquecimento das barreiras entre o público e
privado.
Livingstone (apud CARDOSO, 2012) ressalta duas grandes diferenças entre os jovens

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

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da década de 1950 e os de hoje. Os jovens dos anos 1950 buscavam seu lazer nas ruas e hoje
exercitam grande parte de seu lazer dentro de suas casas. Outra mudança significativa nos
modos de vida dos jovens dessas diferentes épocas refere-se à presença e ao uso das mídias em
suas vidas. Para a autora, tais mudanças denotam a individualidade como paradigma da
subjetividade e da intimidade na sociedade ocidental.
Nesse contexto, os adolescentes em suas casas elegem seus quartos, inaugurando o que
Cardoso (2012) alcunhou como a ―cultura do quarto‖.

Dá-se o nome de cultura de quarto à tendência crescente que empurra os


jovens, cada vez mais, para o espaço do seu quarto. Este empurrão toma
várias formas: o do tempo lá passado (a dormir, mas também a socializar com
outros jovens) e o do conjunto de tecnologias de mediação que o jovem tem à
sua disposição. A televisão no quarto, o rádio no quarto, o leitor de CDs no
quarto, o computador no quarto, a consola no quarto – uma série de
equipamentos recreativos, de trabalho e mediáticos que são levados (ou, ao
nível da casa, replicados) para o quarto. É aí que o jovem pode ter os seus
momentos de individualidade – a ombreira da porta marca um espaço
diferente, um ponto de alternância na casa, com uma importância não muito
diferente daquela que tem a própria porta da rua. (CARDOSO, 2012, p. 57).

Esse espaço torna-se, assim, um lugar de proteção e recolhimento para o adolescente,


possibilitando sua individuação e, também, é onde se comunicam com o mundo e estabelecem
suas relações afetivas e sociais. Tais espaços, apesar de muitas vezes reduzidos fisicamente,
também possibilitam a inserção social e política dos adolescentes. O quarto passou a ser mais
um espaço de ocupação, onde os jovens transitam, se encontram, estabelecem relações e
subjetivam suas experiências, adquirindo lugar de destaque no espaço doméstico. Pelas telas dos
computadores e dentro de seus quartos, eles ampliam suas relações, comunicando-se com um
grande número de pessoas pelas redes sociais. Por meio dessas, tornam pública suas fotos
pessoais, de suas casas, de seu quarto, elementos de sua vida privada.
Dessa maneira, o quarto de dormir, esvaziado de sua função original fundada na
modernidade, tem sofrido severas alterações para atender as demandas individualistas
contemporâneas, multiplicando suas funções e transformando-se em um espaço essencialmente
individual e de multiuso.
Esse ambiente como símbolo da intimidade, individualidade e privacidade,
privilégio das camadas médias e altas da sociedade, ganhou novos reforços com o
desenvolvimento tecnológico e a multiplicação dos aparelhos eletrônicos, cada vez mais
populares e acessíveis. Os aparelhos de televisão, que antes concentravam-se na sala de
estar e a família se reunia em torno deles, hoje estão espalhados pelos vários cômodos
das casas, sendo que cada quarto passou a ter a sua televisão. Foram equipados com

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102
todo o arsenal tecnológico, destacando-se aqui o computador individual, esse conectado
à internet e ao mundo.

Quando cada membro da família passa a ter seu próprio


computador, o aparelho toma dimensões individuais: é o
programa que aquele indivíduo escolhe, com as ferramentas
instaladas por ele, seus arquivos, suas pastas, sua agenda que,
juntos, formam um diário íntimo ou um arquivo íntimo da vida
daquela pessoa. É a individualidade evidenciada no ambiente de
rede pelos possessivos ―meu computador‖, ―meus documentos‖,
minhas imagens‖ etc. (SCHITTINE, 2004, p.56).

No quarto os adolescentes fazem de tudo: estudam, recebem os amigos, se interagem


com eles presencial e virtualmente, utilizam a internet e as redes sociais, assistem televisão ou
os programas no computador, comem e dormem. Nessa lógica, o quarto passa a ser, também,
um espaço do compartilhamento e da sociabilidade. O depoimento de uma das entrevistadas
ratifica o quarto como espaço para múltiplas e variadas atividades:

Eu estudo, eu assisto televisão, eu converso com os meus amigos, é... Eu


durmo, assisto televisão, eu danço aqui, às vezes. Quando eu fazia aula de
canto, eu ensaiava tudo aqui. É basicamente é isso. Eu faço unha aqui, essas
coisas, faço escova ou faço cacho, tudo aqui. É basicamente isso, eu durmo,
assisto TV, aí estudo, aí...

Para os adolescentes esse ambiente adquire uma importância ainda maior, pois é no
quarto que o jovem se afasta de seus pais, numa tentativa de se diferenciar deles e construir seu
mundo particular.

Há também uma componente psicológica e de maturação pessoal que os


jovens investem no seu quarto – a ideia de que a porta do quarto (ou o
consumo de media dentro do quarto) encoraja um fechamento e um
isolamento dos jovens face à família ignora qual o objectivo desse suposto
isolamento: a experimentação identitária e a descoberta das diferenças e
autonomização do self face aos outros, a família. (CARDOSO, 2012, p.58).

Em relação a seus pais, os adolescentes também guardam seus segredos com o intuito
de fugir do controle parental e para burlarem as regras impostas por eles, exercitando a
autonomia e a liberdade.
Os adolescentes apoderam de seus quartos e neles exercitam sua liberdade, tanto na
configuração, como na maneira como usam o espaço, num claro exercício de autonomia e
diferenciação de seus pais. Seus depoimentos corroboram como tão importante é para os

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103
indivíduos dessa faixa etária poder exercitar a liberdade de escolha, como descrito por Aline
sobre a importância de seu quarto:

Mais para ter privacidade mesmo, de poder escolher as coisas, de ter mais
espaço. E podendo bagunçar, podendo mudar a organização das coisas dentro
do quarto mesmo, de móvel pra móvel, entendeu? É ser do seu jeito,
exatamente. É você poder organizar do jeito que você quiser, acordar a hora
que quiser, dormir a hora que quiser, sabe.

Com os adolescentes fazendo uso constante das redes sociais e mais reclusos em seus
quartos, novas questões surgem nas relações parento-filiais. Para os adolescentes torna-se mais
fácil burlar as regras e o controle de seus pais, tornando-se mais autônomos e ―livres‖. Seus pais
se sentem mais seguros em relação à violência urbana, com seus filhos dentro de casa, mas, em
contrapartida, a reclusão de seus filhos e a falta de acesso às suas vidas trazem outras
preocupações, potencializando novos conflitos nas relações familiares (CARDOSO, ESPANHA
e LAPA, 2008).
A presença de equipamentos eletrônicos no quarto dos adolescentes entrevistados foi
constante, sendo que a televisão, mesmo que existente em dois dos quartos dos entrevistados, é
muito pouco utilizada e valorizada por eles. Parece que o aparelho, cobiçado outrora, hoje é
dispensável e vem sendo substituído pelos computadores. Esses, por sua vez, vêm sendo
substituídos pelos smartphones com suas múltiplas funções. Aos computadores ficam
reservados os trabalhos escolares.
Pelos smartphones os adolescentes se socializam e se conectam ao mundo externo, para
além dos limites da casa e da família. Uma das adolescentes entrevistadas denuncia a
fundamental importância de se manter conectada ao mundo exterior, ao social e ao grupo de
amigos, valorizando, curiosamente, as tomadas elétricas que ficam atrás de sua cama em seu
quarto. Em suas palavras: ―Tipo assim, no meu quarto as coisas que eu mais gosto é a televisão,
as tomadas que têm atrás da minha cama, porque dá pra ficar mexendo no celular deitada...‖
Assim, os adolescentes fazem de seus quartos o local de maior permanência em suas
casas, encontrando nesse espaço privacidade e conforto, o que facilita seu processo de
individuação. Por outro lado, a tendência do quarto como espaço individual também é um
espaço de convívio social, reforçado com o crescente uso das tecnologias, destacando-se aqui os
smartphones que, cada vez mais, dominam os interesses dos adolescentes, por cumprirem
múltiplas funções.
Apesar da mobilidade desses aparelhos permitir que eles sejam utilizados em
qualquer ambiente da casa sem que os adolescentes percam a privacidade, o quarto é o
local preferido por quatro dos adolescentes entrevistados para ficarem conectados à

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104
internet. Esse dado sugere que, mesmo que os adolescentes se mantenham conectados
ao mundo virtual e exercendo a sociabilidade por meio das redes sociais quase que
continuamente, o quarto oferece uma ancoragem para eles desenvolverem o sentido de
pertencimento e se sentirem mais seguros diante das instabilidades inerentes a essa fase
da vida e aos perigos do mundo externo. É um lugar de privacidade, individualidade e
pertencimento, como é também o lugar do conforto, de segurança e onde se sentem
aconchegados, protegidos e diferenciados de seus pais. Nesse sentido, espaço físico e
virtual, cultura do quarto e cultura digital se mesclam e corroboram mutuamente para a
vivência da adolescência.

REFERÊNCIAS

BIRMAN, J. Tatuando o desamparo: A juventude na atualidade. In CARDOSO, M. R.


Adolescentes. São Paulo: Editora Escuta, 2011.

CALLIGARIS, C. A Adolescência. São Paulo: Publifolha, 2009.

CARDOSO, D. S. A cultura do quarto e o uso excessivo da internet. In Ponte, C. et al.


Crianças e internet em Portugal. Coimbra: Minerva Coimbra, 2012.

CARDOSO, G.; ESPANHA, R.; LAPA, T. Dinâmica familiar e interacção em torno dos media:
autonomia dos jovens, autoridade e control paternal sobre os media em Portugal. VI Congresso
Português de Sociologia, 2008. Disponível em:
<http://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=4560413>. Acesso em 20 ago. 2015.

KNOBEL, M.; ABERASTURY, A. Adolescência Normal: Um enfoque psicanalítico.


Porto Alegre: Artmed, 1981.

SCHITTINE, D. Blog: comunicação e escrita íntima na internet. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2004.

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105
(Ex)posta: gênero, sexualidade e internet na pornografia de vingança

Daniella Orsi39

Resumo:
Neste texto apresento reflexões iniciais sobre a pornografia de vingança, fenômeno da
publicização da intimidade sem o consentimento de suas protagonistas na internet e redes
sociais, perguntando como convenções de gênero, articuladas a outras diferenças, operam na
veiculação e recepção das imagens íntimas. Para isso, foram analisadas a produção, a circulação
e o consumo dessas imagens, incluindo comentários sobre elas. A questão central remete às
moralidades que circulam no recente debate sobre pornografia de vingançainstaurado na
internet, de modo a perceber o lugar social das mulheres nesse contexto.

Palavras-chave: Gênero; Internet; Pornografia de vingança.

Em 2006, Eduardo Gonçalves Dias enviou imagens íntimas de sua ex-namoradaRose


Leonel para mais de 15 mil destinatários. O material, que anunciava Rose como ―garota de
programa‖, foi divulgado semseu consentimento e rapidamente se espalhou pela internet.Além
das imagens, Eduardo expôs os dados pessoais da ex-namorada, incluindo seu telefone e de seus
filhos. Com isso, Rose passou a ser intimidadae assediada por desconhecidos, inclusive
recebendo propostas para encontros sexuais40.
Eduardojá havia ameaçado a ex-companheira de exposição, prometendo ―destruir sua
vida‖ caso ela não permanecesse no relacionamento. Após três anos de ataques e violência via
internet, Rose, fundadora da ONG Marias da Internet, se tornou uma das primeiras brasileiras a
ganhar causa na Justiça contra umex-parceiro41, um importante marco no combate à pornografia
de vingança no Brasil.
Pornografia de vingança se refere à publicização edisseminação não consensual de
imagens íntimasatravés da internet e redes sociais. A maioria das imagens nesse contextoé de
mulheres42 e, como afirmam vários relatos, sãogeralmente concedidas ou produzidas com seu
consentimentoem relacionamentos afetivo-sexuais heterossexuais. No entanto, muitas vezes

39
Graduanda em Comunicação Social –Midialogia na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
40
Disponível em: <http://www.compromissoeatitude.org.br/o-que-difere-a-pornografia-de-vinganca-dos-
outros-crimes-e-a-continuidade-diz-rose-leonel-epoca-16022016/>. Acesso em: abr. 2017.
41
Rose Leonel moveu quatro processos na Justiça contra Eduardo Gonçalves Dias. No primeiro, ela
recebeu três mil reais, mas os ataques continuaram. Em 2010, Eduardo foi condenado a cumprir pena de
um ano, 11 meses e 20 dias de detenção, além de pagar durante esse tempo R$1.200 mensais à Rose. Em
outra ação, ele foi condenado a pagar trinta mil reais de indenização por danos morais à ex-namorada
(BUZZI, 2015, p.45-46).
42
Segundo a Safernet Brasil, as mulheres representaram 84% das denúncias de sexting/exposição íntima
feitas ao canal HelpLine em 2014. Em 2015, foram 75% e, em 2016, 68%. Disponível em:
<http://helpline.org.br/indicadores/>. Acesso em: abr. 2017.
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106
com o rompimento da relação, os ex-parceiros tornam esses conteúdos públicos sem a sua
autorização, com o intuito de humilhá-las.
O termo em inglês revenge porn, traduzido para o português como pornografia de
vingança ou de revanche, ganhou visibilidade justamente a partir de sites que se diziam
especializado sem uma ―vingança pornográfica‖ contra ex-namoradas43. Assim, alguns
agressores, como Eduardo, parecem movidos por um sentimento de retaliação: a exposição seria
uma espécie de castigo ou punição para a ex-companheira.
Esse caráter é reforçado por adjetivos que geralmente acompanham tais publicações,
como ―puta‖ e ―vadia‖, julgamentos morais quesugerem regulações em relação aos corpos
femininos quando vinculados à prática sexual, apontando para convenções de gênero.
Conforme Scott (1994, p.12-13), ―gênero é um saberque estabelece significados para
as diferenças corporais‖. As adjetivações para as mulheres expostasindicama naturalização das
diferenças de gênero, que marcam comportamentos distintos para homens e mulheres no
exercício da sua sexualidade (BELELI, 2010). Esses modelos de conduta são ancorados em
convenções que indicam uma feminilidade ―apropriada‖, reafirmada na família, na escola, na
igreja etambém na mídia.
Os casos de exposição íntima noticiadospelos meios de comunicação, como de Rose
Leonel, são constantemente retomados pela literatura brasileira sobre pornografia de vingança,
especialmente na produção jurídica. Salvo importantes exceções, algumasnotícias e poucos
estudos dialogam com relações de poder percebidas na prática, que estão na base da violência
contra mulheres.
Segundo Gail Manson (2002, p.11, tradução livre), ―a violência é mais do que uma
prática que atua sobre sujeitos individuais para lhes infligir danos e ofensas. Ela é,
metaforicamente falando, também uma forma de olharmos para esses assuntos‖. Portanto, para
além de colocar em risco a segurança de certos grupos de pessoas, a violência mantém e
reproduz formas de pensar, contribuindo para a construção de imaginários estereotipados e
preconceituosos.

43
O cenário ganhou atenção da mídia internacional a partir de dois sites de pornografia de vingança. O
primeiro, IsAnyoneUp (―Tem alguém afim?‖), criado em 2010, possuía uma média de 350 mil
visualizações diárias, expondo entre 15 e 30 mulheres por dia. Seu criador, Hunter Moore, ficou
conhecido como o ―rei da pornografia de vingança‖ e ―o homem mais odiado da internet‖. O segundo,
UGotPosted (―Você foi postada‖), de Kevin Bollaert, expôs, entre 2012 e 2014, imagens íntimas e
informações pessoais de mais de 10 mil pessoas. Bollaert administrava ainda uma segunda página, a
ChangeMyReputation (―Mude minha reputação‖), onde cobrava pela retirada do material íntimo da
internet.
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

107
Nesse sentido, este trabalho44 propõe refletir como gênero opera na veiculação e
recepção das imagens íntimas envolvidas na pornografia de vingança, privilegiando maneiras
de olharmos para as mulheres expostas. Diante disso, busca-se compreender como essa prática
violenta aponta para o lugar das mulheres na sociedade.
Para tanto, através de relatos de doze vítimas de pornografia de vingança e de
comentários dirigidos a mulheres expostas em notícias de jornais, reportagens e sites
pornográficos, foram analisadas a produção, a circulação e o consumo das imagens
publicizadas. De forma interdisciplinar, colocando em diálogo o campo da Comunicação
Social e das Ciências Sociais, o trabalho retoma a discussão sobre o lugar ocupado pelos
corpos femininos, privilegiando o recente debate que se instaura na internet.
Os conteúdos de pornografia de vingança costumam circular em grupos e fóruns (por
vezes restritos) em redes sociais, em sites pornográficos (nas seções dedicadas à divulgação de
ex-namoradas) e em sites especializados, no Brasil nomeados como ―caiu na net‖ ou de
―flagras‖. ―Vazou‖ e ―caiu na net‖ (ou ―na rede‖) são expressões que se referem à publicização
e propagação dos conteúdos na internet. No caso aqui analisado, são as imagens íntimas que
vazam e as mulheres quecaem na net. O responsável pela disseminação – o agressor–
permanece oculto, tendosua identidade preservada.
Nesses espaçosdestinados à divulgação de conteúdos não consensuais, os pequenos
textos que acompanham as publicaçõesdas imagens íntimas, de nudez ou sexo costumam ser
bastante descritivos. As descriçõesinformam, ainda, aorigem do material, relatando se o celular
foi roubado, se foi uma gravação escondida ou, mais comum,responsabilizam as mulherespela
disseminação desses conteúdos: ―amadora deixa o tarado filmar tudo e vídeo cai na net‖;
―confiou no namorado, caiu na net!‖; ―morena safada se declarou e caiu na rede‖.
Essas narrativas destacama vítima como culpadapelo vazamento das imagens, mesmo
quando o consentimento na produção (que remete à intimidade) é, entretanto, estendido para o
consumo público sem a sua autorização.
Outras descriçõessugerem que as imagens evidenciariamcerto tipo de ―caráter‖ dessas
mulheres: ―adora se exibir‖; ―mostra que é realmente uma putinha de verdade‖.Tais
adjetivações acionam moralidades que reforçam a ideia de lugares considerados apropriadospara
mulheres no exercício de sua sexualidade, cuja exposição não causa comoção ou empatia,
aindaque elas venham a público denunciar seus agressores.

44
Os resultados apresentados nesta reflexão foram obtidos por meio da pesquisaA exposição da
intimidade: consentimento e vulnerabilidade na era das redes sociais, financiada pelo SAE e CNPq e
desenvolvida,entre 2015 e 2017, no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), sob
a orientação da Dra.Iara Beleli, do Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp.
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

108
―Flagrar‖ remete à ideia de ―ser descoberto‖, geralmente por cometer algo impróprio
ou até ilegal. Dessa maneira, osregistros da intimidadeexibidos nossites de ―flagras‖ são
tratados como evidências da ―imoralidade‖ das mulheres expostas.
A internet tem sido apontada como lugar de produção de subjetividades (BELELI,
2012). Conforme Sibilia (2008), certos usos de ferramentas como blogs, webcams e redes de
sociabilidade, são estratégias utilizadas pelos sujeitos contemporâneos para sua autoconstrução,
enaltecendo tanto formas inovadoras de ser e estar no mundo, quanto de se relacionar com os
outros e com as próprias mídias digitais. Se, por um lado, a subjetividade que emerge desses
contextos deseja conquistar visibilidade e ser apreciada, a pornografia de vingançaevidencia
que ainda é exigido certo recato às mulheres em relação a sua sexualidade.
Tradicionalmente ligada ao espaço privado e doméstico, a mulher que se exibe (ou que
é exibida) é, por vezes, desprestigiada na vida social, tendo sua decência questionada no espaço
público. Ao contrário, aquelas que sustentam que jamais se deixariam filmar ou fotografar em
cenas íntimaspassam a ser percebidas como ―mulheres sérias‖. Desse modo, a pornografia de
vingança sustenta um discurso que hierarquiza tipos de feminilidade, colocando em polos
opostosdignas/indignas, decentes/indecentes, retomando a clássica dicotomia divinas/impuras
(SIBILIA, 2015).
Ao observar a pornografia sem roteiros e imagens que remetem a abusos sexuais no
documentário Pornland: How the Porn Business has Hijacked our Sexuality, Gail Dines
argumenta que essas diferenciações são necessárias para legitimar o consumo das imagens
pornográficas entre seus públicos: ―Sua mãe, sua filha, sua irmã, sua namorada, ela não faria
isso. Mas essa vadia imunda, ela é diferente‖ (PORNLAND, 2014). Segundo ela, é como se
nesses espaços não houvesse mulheres, somente bitches (cachorras), whores (putas), sluts
(vadias), rótulos classificatórios que apontam para posições de sujeitopautadas por julgamentos
morais que estigmatizam essas mulheres.
Logo, ainda que sejam consideradas desejáveis, as mulheres expostas não são vistas
como ―respeitáveis‖ e, por isso, seriam ―compartilháveis‖, uma forma de legitimar tanto o
consumo de material íntimo não consensual quanto o linchamento moral, relacionado à
intimidação, perseguição e assédio aosquais muitas dessas mulheres são submetidas a partir da
exposição (BUZZI, 2015, p.29-30).
Osinúmeros sites dedicados à exposição não consensual não somente sugerema
existência de um espaço privilegiado para a veiculação e o consumo de conteúdos de
pornografia de vingança, mas também de uma audiência interessada, que incentiva a prática e
colabora para a viralização de seus conteúdos. Essa demanda aponta ainda para o não
questionamento dos discursos violentos aí produzidos.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

109
Essa violência aparece também em comentários encontrados nas discussões geradas
pelas notícias de casos depornografia de vingança, onde o ato de registrar-se é repetidamente
visto como ―atestado‖ de uma conduta moralmente contestada.As classificações que
caracterizam as mulheres expostas vão desde ―burras‖, ou porque escolheram registrar sua
sexualidade, ou porque teriam escolhido ―pessoas erradas‖ para se relacionarem, até ―fáceis‖,
―ingênuas‖,―irresponsáveis‖.Algumas delas também são acusadas de procurar dinheiro ou
famaatravés da exposição.
Por vezes, a própria redação das notícias enfatiza a conduta e a vida pessoal das
mulheres expostas, intensificando sua exposição. Essas informações, muitas vezes não
relacionadas com a disseminação das imagens íntimas, contribuem para a identificação dessas
mulheres e de seus hábitos, colocando as vítimas no centro do debate.
Em 2015, o grupo ―Ousadia & Putaria‖, formado por cerca de cem participantes
através do aplicativo Whatsapp, foi denunciado por compartilhar imagens íntimas não
consensuais de jovens mulheres e meninas da cidade de Encantado e do Vale do Taquari, no Rio
Grande do Sul.
Adriano Mazzarino, colunista do jornal local Antena,divulgou duas fotografias de uma
das garotas expostas e declarou que a moça ―decidiu se soltar frente à câmera‖45. Juremir
Versetti, proprietário do jornal, publicou em sua página pessoal do Facebookque ―essas moças
não se valorizam‖, afirmando que elas não precisariam de acompanhamento psicológico, mas de
―uma boa cinta de couro de búfalo com uma fivela de metal fundido‖46.
Essas ideias, refutadas pelas jovens organizadas no Coletivo de Mulheres de
Encantado e do Vale do Taquari47, sugerem que, como menores de idade, elas não deveriam
exercer nenhum tipo de sexualidade e, quando exercem, deveriam ser repreendidas e castigadas
pelos responsáveis, culpabilizando também seus pais. Por outro lado, a busca e o consumo
dessemesmomaterial pelos homens nem sempre são problematizados, evidenciando uma dupla
moral sexual.
Nesses discursosnão há discussão do crime em si, visto quea falta de consentimento na
divulgação dos conteúdosíntimosjá marca uma violação de direitos (LOWENKRON, 2015),
mas um debate moral acerca do comportamento das mulheres. Como nos anos 1970, quando os
argumentos jurídicos da legítima defesa da honra ou da violenta emoção justificavam o crime
por meio da culpabilização da vítima, garantindo impunidade ou diminuição da pena para
agressores e assassinos de mulheres (PIMENTEL; PANDJIARJIAN; BELLOQUE, 2006,

45
Disponível em: <http://www.jornalantena.com.br/adriano-mazzarino/5652-coluna-do-mazzarino-
edicao-247>. Acesso em: abr. 2017.
46
Disponível em: <http://facebook.com/juremir.versetti/posts/461925407294752>. Acesso em: abr. 2017.
47
Disponível em: <http://facebook.com/coletivodemulheresdeencantado/posts/497408837073564>.
Acesso em: abr. 2017.
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110
p.80),as vidas das mulheres expostas continuam a ser vasculhadas em busca de justificativas
para a prática dapornografia de vingança,transformando as vítimasem rés48.
Como a exposição não consensual surge nos comentários como uma punição
considerada merecida e até apropriada para as mulheres expostas, ora porque são ex-namoradas,
ora porque são percebidas como ―indecentes‖, ―burras‖, ―fáceis‖, ―ingênuas‖ e ―irresponsáveis‖,
elas parecem inseridas em uma lógica que permitiriasua penalização: sãocastigadaspela
sociedadetanto com a disseminação de seus conteúdos íntimos quantocomseu julgamento moral
no cenário público. Dessa forma, a noção de vingança aparece ampliada nesta prática.
O termo pornografia de vingança parece, então, útil na análise do fenômeno. De um
lado, evidencia a percepção da audiência sobre as imagens íntimas não consensuais, vistas como
material para excitação sexual, permitindo que sejam disseminadas e consumidas em espaços
pornográficos. De outro, revela a intenção dos agressores de punir e humilhar as mulheres que
expõem e que foram expostas, seja em razão do sentimento de posse que impulsiona os ex-
parceiros a divulgar conteúdos produzidos em contextos de intimidade, seja porque elas
rompem com normas e expectativas de gênero.
Esses julgamentos morais também são sentidos pelas mulheres que relatam essa
violência: muitas das ofensas e insultos, vários deles sexuais, são dirigidos diretamente a elas. A
repercussão negativa dos conteúdos de pornografia de vingança atinge a vida das mulheres
expostas e suas subjetividades e não são raros os casos de jovens que tentam suicídio49.
Ainda assim, as regulaçõesda sexualidade feminina sãocriticadasnos relatos das
interlocutoras que dialogaram com a pesquisa, que reivindicam autonomia, liberdade sexual e
respeito. Segundo Tatiana (18 anos), exposta aos 15, a troca de imagens sexuais é uma ―forma
de sexo‖ possibilitada pelas relações online e ela reclama o direito de enviar tais imagens como
forma de ―agradar o parceiro, seja namorado ou com quem você quer transar‖. Porém, ela
reforça que as imagens íntimas devem permanecer restritas entre aqueles que tiveram a sua
permissão para ver seu corpo.
Nesse sentido, asreflexões iniciais apresentadas sobre o tema sugerem a existência de
um vínculo fundamental entre pornografia de vingança e internet. As imagens íntimas
envolvidas na prática são produzidas, veiculadas e consumidas no espaço digital, onde também
circulam comentários sobre elas, indicando que apornografia de vingança é construída na
internet, mas quetambém se beneficia de seus ambientes para tomar vida (LINS, 2016).
48
Sobre os ―crimes de honra‖, ou até ―crimes da paixão‖, ver o pioneiro trabalho de Mariza Corrêa,
autora do clássico livro ―Morte em Família‖ (1983), uma perspectiva feminista sobre os homicídios entre
casais.
49
Em 2013, a mídia brasileira destacou os suicídios de Giana Laura Fabi (16 anos) e de Júlia Rebeca dos
Santos (17 anos), ocorridos após suas imagens íntimas terem sido expostas na internet. Esses casos
apontam para a humilhação às quais as jovens foram submetidas a partir da circulação de seus corpos nus,
que pode ser um dos motivos que as levaram ao suicídio.
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

111
Contudo, não estamos tratando aqui da internet como um mundo à parte, mas,
conforme Beleli (2015), um continuum on/off-line, cujas imagens no contexto atual parecem ser
imperativas.Ainda, se as novas tecnologias possibilitam espaços inéditos de violação de direitos,
elas também são ferramentas importantes para contestar, relatar e combater práticas
violentas,onde se destacamas redes de apoio e compreensão.

Referências

BELELI, Iara. Amores online.In: PELUCIO, Larissa (org.). Olhares plurais para o
cotidiano: gênero, sexualidade e mídia. Marilia, SP: Cultura Acadêmica, 2012. p.56-73.

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Carlos, SP: EdUFSCar, 2010. p.75-102.

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Campinas, n. 44, p.91-114, jun.2015.

BUZZI, Vitória De Macedo. Pornografia de vingança: contexto histórico-social e abordagem


no direito brasileiro. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.

CORRÊA, Mariza. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de


Janeiro, RJ: Graal, 1983.

LINS, Beatriz Accioly. Vazou na internet:gênero, violência e internet nos debates sobre
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LOWENKRON, Laura. Consentimento e vulnerabilidade: alguns cruzamentos entre o abuso


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n.45. p.225-258, dez. 2015.

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PIMENTEL, Silvia; PANDJIARJIAN, Valéria; BELLOQUE, Juliana. ―Legítima Defesa da


Honra‖. Ilegítima impunidade de assassinos: um estudo crítico da legislação e jurisprudência da
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Produção: Media Education Foundation. 2014. 35min, color.

SCOTT, Joan Wallack. Prefácio a Gender and Politics of History. Cad. Pagu, Campinas, SP,
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SIBILIA, Paula. A nudez auto-exposta na rede: Deslocamentos da obscenidade e da beleza.


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______. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira,
2008.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

112
MULTIPLICADORES DA DEMOCRACIA:
Sujeitos vigiados em defesa da liberdade de expressão

Rômulo Magalhães Fernandes50


Anna Carolina de Oliveira Azevedo51

RESUMO
A Secretaria de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania do Estado de Minas
Gerais, em parceria com movimentos sociais, realizou o Curso ―Multiplicadores da
Democracia‖. Durante uma semana, 50 comunicadores reuniram-se com o objetivo de
qualificar coletivos para elaboração de propostas de implementação de rádios
comunitárias, web TV‘s e outros veículos eletrônicos que contribuam com a
democratização da mídia. A iniciativa propôs a criação de um percurso formativo
voltado para multiplicadores locais, estimulando a consolidação de uma rede
colaborativa de novas tecnologias e uma agenda política capaz de se opor à ofensiva da
criminalização dos comunicadores alternativos no país. Nesse sentido, o presente artigo
busca analisar as experiências de sujeitos sociais que sofrem cotidianamente os efeitos
da vigilância e do monitoramento digital na sua prática comunicativa. A partir de um
estudo teórico, que considera a exposição de elementos-chave da teoria foucaultiana da
obra ―Vigiar e Punir‖, este trabalho aprofunda a relação entre a disciplina, o controle
social e o cerceamento da liberdade de expressão e do direito à comunicação.

Palavras-chave: Liberdade de expressão; Comunicadores populares; Vigilância.

1. INTRODUÇÃO

Em 2016, a Secretaria de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania


do Estado de Minas Gerais (SEDPAC), em parceria com o Fórum Nacional pela
Democratização da Comunicação (FNDC), realizou o Curso ―Multiplicadores da
Democracia‖. Durante uma semana, aproximadamente, 50 comunicadores populares
reuniram-se com o objetivo de qualificar seus coletivos para elaboração de propostas de
implementação de rádios comunitárias, web TV‘s e outros veículos eletrônicos que
contribuam com a democratização da mídia no país
Nesse cenário, o presente artigo busca analisar as experiências de sujeitos
sociais que sofrem cotidianamente os efeitos da vigilância na sua prática comunicativa,
tendo, muitas das vezes, os direitos a liberdade de expressão e a comunicação cerceados

50
Mestre e Doutorando do Programa de Pós-graduação em Direito Público da PUC Minas. E-mail:
romulopn@yahoo.com.br.
51
Mestranda em Administração Pública na Escola de Governo da Fundação João Pinheiro. E-mail:
annac.azevedo@hotmail.com.
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direta ou indiretamente. A liberdade de expressão, em termos gerais, compreende a
possibilidade da exteriorização de crenças, convicções, ideias, opiniões e sentimentos,
nos quais a sua proteção alcança não apenas o ato de pensar, mas também o de divulgar
o que se pensa em diferentes formas comunicativas (ROTHENBURG; STROPPA,
2015, p. 03).
Entretanto, mesmo que a liberdade de expressão se apresente como um direito
fundamental amplamente reconhecido e associado à própria noção de democracia, essa
não está imune a restrições, inclusive, na existência de condicionantes capazes de
assegurar o seu exercício por intermédio da prática do direito humano à comunicação.
A partir de um estudo teórico, que considera a exposição de elementos-chave
da teoria foucaultiana da obra ―Vigiar e Punir‖, este trabalho aprofunda a relação entre a
disciplina, o controle social, o monitoramento e o cerceamento da liberdade de
expressão e o direito de comunicação de comunicadores populares no Brasil.
Tais elementos serão distribuídos a seguir em quatro ítens, organizados,
respectivamente, pelos temas da proteção jurídica à liberdade de expressão, do exercício
do direito à comunicação, da experiência do Curso ―Multiplicadores da Democracia‖ e,
por último, dos efeitos da vigilância e do controle social na prática dos comunicadores
populares.

2. LIBERDADE DE EXPRESSÃO

O processo de consagração da liberdade de expressão nas Constituições dos


Estados Modernos, historicamente, foi influenciado pelos movimentos jurídicos e
filosóficos de ascensão da burguesia, sendo concebidos com ―o mesmo germe do
liberalismo, do absoluto respeito à propriedade privada particular, do individualismo
exacerbado, do Estado meramente assegurador desses valores‖ (CARVALHO, 1994, p.
2).
No âmbito jurídico, especificamente das Declarações de Direitos dos séculos
XVIII e XIX, percebe-se a predominância dos direitos de primeira dimensão
(BONAVIDES, 1993, p. 525), representados, sobretudo, pelos direitos à vida, à
liberdade, à igualdade (formal) e à segurança (STROPPA, 2010, p. 33).
Nesse período, afirmaram-se os direitos de liberdade, ou seja, todos aqueles

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direitos que tendem a limitar o poder do Estado e a reservar para o indivíduo, ou para os
grupos particulares, uma esfera de liberdade em relação à ação estatal (BOBBIO, 1992,
p. 32).
Com o decorrer dos anos, os diferentes povos acrescentaram novas exigências ao
Estado de Direito, as quais não poderiam ser compatibilizadas pela concepção liberal
(STROPPA, 2010, p. 122). Surgiu, assim, um processo de configuração do Estado
Democrático de Direito que, no âmbito de liberdades e garantias, admite a possibilidade
de uma perspectiva positiva do poder estatal.
Mesmo que ainda secundária, tal postura do Estado contribui na organização,
regulação e prestação de ações que têm em vista a função social consagrada no texto
constitucional (STROPPA, 2010, p. 101).
Se, no passado, a principal preocupação do Estado liberal era contrapor o poder
dos governos e seus instrumentos de controle social e livre manifestação do
pensamento, no Estado Democrático de Direito contemporâneo, há uma preocupação
crescente com o conflito entre liberdades individuais, ou ainda, com os excessos da
exteriorização do pensamento de conteúdo discriminatório e preconceituoso contra
indivíduos ou grupos sociais (CARVALHO, 1994, pp. 13-14).
Para ilustrar o processo de formalização jurídica da liberdade de expressão, vale
citar a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 que, de forma expressa,
reconheceu a proteção à liberdade de expressão no seu artigo 19. Tal dispositivo afirma
que toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão, incluída ―a liberdade de,
sem interferências, ter opiniões e procurar, receber e transmitir informações e ideias por
quaisquer meios e independentemente de fronteiras‖ (ONU, 1948).
O Brasil, por sua vez, não ficou imune a essa tendência, reconhecendo na sua
Constituição de 1988, o valor da liberdade de expressão e seu rol de direitos e garantias.

3. DIREITO À COMUNICAÇÃO

Nos últimos anos, de forma recorrente, o tema da comunicação tem sido


debatido pela sociedade brasileira no sentido de assegurar a cada cidadão o exercício do
direito à comunicação livre e plural. Isso se deve, principalmente, ao processo de
revolução das tecnologias da informação, como a digitalização e a internet, que passam

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a ser apropriadas por indivíduos ou grupos sociais das maneiras mais diversas
(FERNANDES et. al, 2013, p. 5).
Nota-se, contudo, que o direito à comunicação não é um assunto novo, apesar de
muitas vezes ser tratado dessa forma. Como alerta Rolim (2011), ―referir-se ao direito à
comunicação como algo novo envolve carga simbólica nada desprezível‖ (ROLIM,
2011, p. 21), o que pode esconder o processo histórico marcado por conflitos entre o
direito individual dos proprietários dos veículos de comunicação e o direito coletivo dos
cidadãos a informações plurais (ROLIM, 2011, pp. 21-22).
Desse longo processo de lutas surgiram iniciativas de consolidação dos seus
resultados em normas jurídicas sobre o tema da comunicação. Percebe-se, dessa forma,
um movimento jurídico em que o aprofundamento do direito à liberdade de expressão e
à opinião, gradativamente, despertam a real noção do direito à comunicação.
Vale lembrar que o direito à liberdade de expressão e à comunicação, por
exemplo, não tiveram a mesma trajetória no que se refere ao reconhecimento jurídico.
Diferente da liberdade de expressão, o direito à comunicação não fora assegurado de
forma explícita nos principais documentos de defesa dos direitos humanos
(FERNANDES et. al, 2013, pp. 5-6).
Nesse cenário, conforme Lima (2012), ―o direito à comunicação significa, além
do direito à informação, a garantia da circulação da diversidade e da pluralidade de
ideias existentes na sociedade, isto é, a universalidade da liberdade de expressão
individual‖ (LIMA, 2012, p. 44). Em outros termos, além de ser um direito fim, o
direito à comunicação é um meio de garantir e ampliar o surgimento de novas formas de
reconhecimento tanto na dimensão jurídica, quanto na da estima social (BRAZ, 2011, p.
61).
Outro aspecto fundamental a ser considerado é a concentração dos meios de
comunicação, na medida em que não existe no Brasil um sistema de mídias
democráticas plural. Pelo contrário, o que se percebe neste país é o convívio da prática
comunicativa com a extrema concentração da indústria da mídia, políticos e grupos
religiosos entre os principais proprietários de empresas de comunicação, o uso da
publicidade oficial como ―moeda de troca‖ e o frágil sistema de regulamentação do
acesso à informação e da atividade da comunicação social (VIVARTA, 2009, pp. 13-
19).

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A partir dessa leitura, em que ganha centralidade na agenda política a
necessidade da democratização dos meios de comunicação e do enfrentamento às
limitações da liberdade de expressão e do direito à comunicação vivenciadas por
comunicadores alternativos à grande mídia, é que surgiu a proposta do Curso
―Multiplicadores da Democracia‖.

4. MULTIPLICADORES DA DEMOCRACIA

Os comunicadores populares, como os considerados neste trabalho, englobam


qualquer pessoa ou grupo social que é regularmente ou profissionalmente envolvido
com a coleta e a divulgação de informações ao público, por qualquer meio de
comunicação que seja (CIDH, 2015, p. 2), contribuindo com práticas comunicativas
alternativas àquelas definidas pelas grandes empresas do ramo da comunicação.
Nesta perspectiva, o Curso ―Multiplicadores da Democracia‖, reuniu
aproximadamente 50 comunicadores populares de 13 dos 17 territórios de
desenvolvimento do estado de Minas Gerais, incluindo representações de diversas
organizações governamentais e não-governamentais, tais como SEDPAC, FNDC, Rede
Minas, Rádio Inconfidência, MST, CUT, CTB, UJS, Asa, Fora do Eixo, Secretaria de
Estado da Cultura, MAB, Detel e Associações Quilombolas.
O Curso possibilitou a troca de experiência entre pessoas de várias regiões do
estado, onde a vivência de cada comunicador foi apresentada e a realidade de cada
território foi colocada em discussão. Nesse ponto, Daniel Perini, representante da
SEDPAC, afirma que o objetivo do Curso ―é capacitar os comunicadores para a
produção de conteúdo e para que consigam estruturar seus próprios meios de
comunicação‖ (Apud, DOTTA, 2016, p. 1).
A partir da dinâmica de oficinas temáticas, o Curso buscou potencializar a
construção de redes de mídia colaborativas nos territórios e, assim, fortalecer a
comunicação pública, popular e alternativa como estratégia concreta de democratização
dos meios de comunicação (MINAS GERAIS, 2016, p. 1).
Esse panorama pode ser exemplificado pelo relato da participante Lívia
Montenegro, feminista, da luta LGBT, moradora de Santa Luzia: ―Este curso é
importante para eu aprender formas de disseminar, de democratizar em Santa Luzia. Eu

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sou uma agente que saio daqui hoje e multiplico, faço brotar, nascer mais um canal de
mídia, mais uma forma de levar outro tipo de informação para o povo da cidade‖
(MAGALHÃES; AFONSO, 2016, p. 1).
Dentre os temas abordados no Curso, destacam-se o Plano Nacional de Outorga
(PNO), Canal da Cidadania, Rádio Web, Sustentabilidade Financeira, Aspectos
Jurídicos, Indústria Cultural e Hegemônica e Montagem de Rádios Comunitárias.
Outra ação promovida pelos comunicadores populares foi a participação na
audiência pública da Assembléia Legislativa de Minas Gerais no primeiro dia do Curso,
onde os comunicadores apresentaram questionamentos à Empresa Mineira de
Comunicação (EMC) e à casa legislativa do estado, principalmente, sobre a necessidade
de maior incentivo a comunicação pública e a participação da sociedade civil (DOTTA,
2016, p. 1).
Por último, ressalta-se o ambiente oportuno promovido pelo Curso para se
analisar a situação de vigilância a qual, muitas das vezes, comunicadores populares
estão submetidos, o que acaba por restringir o exercício de seus direitos, compreendidos
neste texto, tanto no aspecto individual, quanto coletivo.

5. COMUNICADORES VIGIADOS

Com o desenvolvimento de tecnologias de informação e comunicação das


últimas décadas, torna-se imprescindível refletir acerca do problema da vigilância e do
controle social na sociedade, em particular, para aqueles que se contrapõem à visão
hegemônica da mídia. Para tanto, dentre os diferentes modelos teóricos apresentados
pela doutrina sobre tal tema, este artigo aprofunda o pensamento de Michel Foucault.
Apesar do filósofo francês não analisar a mídia especificamente em suas obras
(GROHMANN, 2010, p. 1), o livro ―Vigiar e Punir: nascimento da prisão‖ possui
grande relevância para o tema e é frequentemente utilizado por áreas de estudo distintas,
tais como direito, história, educação, etc.
Para efeitos deste artigo, destaca-se o Foucault genealogista de ―Vigiar e Punir‖,
na medida em que o livro aborda os processos de sujeição, disciplinamento e
normalização dos indivíduos na sociedade moderna (OLIVEIRA, 2017, p. 8). Assim, o

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que se pretende analisar é a ―sociedade disciplinar‖ e seus possíveis desdobramentos
para a prática comunicativa popular.
Foucault, desde os primeiros capítulos de ―Vigiar e Punir‖, denuncia o suposto
humanismo dos reformadores penais que, na esteira do Iluminismo, propuseram a
substituição dos suplícios pela prisão como método punitivo e ressocializador de
delinquentes. Desse modo, o pensador francês sustenta a tese de que a troca das penas
corporais por meios menos sanguinários não constitui senão um subproduto da
emergência de um novo tipo de sociedade, por ele chamada de ―disciplinar‖
(OLIVEIRA, 2017, p. 8).
Foucault alerta, ainda, como os sistemas punitivos estão conectados a uma
economia política do corpo, marcada por uma docialização do corpo por intermédio de
normas disciplinares. E, nesse sentido, a disciplina é necessária para que haja
obediência, originando um corpo dócil e útil.
Conforme o filósofo francês ―somos bem menos gregos que pensamos. Não
estamos nem na arquibancada, nem no palco, mas na máquina panóptica‖
(FOUCAULT, 2014, p. 210). Isto é, a vida social é inserida numa sociedade de
vigilância e não de espetáculo. Este ponto também é caracterizado com o uso da
alegoria do Panóptico52, de Jeremy Bentham, no qual Foucoault retrata o poder
disciplinar da sociedade como ―o ver sem ser visto, o poder do olhar, automatizando e
desindividualizando o poder‖ (OLIVEIRA, 2017, p. 5).
Em comparação com o período estudado por Foucault, a sociedade atual possui
características distintas, especialmente, no que se refere à vigilância e ao exercício do
poder sob indivíduos e grupos sociais. Nota-se, contudo, que existem aproximações
possíveis com o pensamento de Foucault. Hoje, com o avanço das tecnologias de
comunicação, a vigilância e o controle social como analisadas pelo autor continuam
presentes, mas em outras dimensões, sendo, cada vez mais, onipresentes e compostas
por redes interligadas de informação (BARRICHELLO; MOREIRA, 2015, p. 64).
Ao se analisar a internet, por exemplo, mesmo com o surgimento de novas e
diversas possibilidades de interação social e do uso de ferramentas comunicativas, essas
iniciativas não estão imunes a dispositivos de controle e disciplina. Em toda a rede
virtual existem regras, direitos autorias, limites, penas, controles de conteúdos, critérios

52
―O Panóptico é uma máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se é totalmente visto,
sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto‖ (FOUCAULT, 2014, p. 195).
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de visualização, logarítimos publicitários, direcionamento das buscas, venda de dados
pessoais, etc., isto é, um controle cotidiano por intermediários do Estado ou pelos
proprietários de grandes empresas de comunicação que definem o que pode ou não ser
visto (GROHMANN, 2010, p. 8).

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As experiências dos comunicadores populares que participaram do Curso


―Multiplicadores da Democracia‖ levantaram questionamentos fundamentais sobre os
efeitos da vigilância e do controle social na sociedade atual. Apesar dos avanços
jurídicos na proteção da liberdade de expressão e do direito à comunicação, bem como
do desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação, a prática comunicativa
popular convive com o cerceamento de tais direitos, agora, numa perspectiva ampliada
de monitoramento. Nesse sentido, e sem desconsiderar as peculiaridades de cada
período histórico, nota-se que é possível estabelecer aproximações entre o modelo teório
de vigilância e controle social desenvolvido por Foucault e os fenomênos sociais da
atualidade.

REFERÊNCIAS

BARRICHELLO, E. M. M. da R.; MOREIRA, E. H.. A análise da vigilância de


Foucault e sua aplicação na sociedade contemporânea: estudo de aspectos da vigilância
e sua relação com as novas tecnologias de comunicação. Intexto, Porto Alegre, UFRGS,
n. 33, p. 64-75, maio/ago. 2015.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

BONAVIDES, Paulo. Constituição aberta. Belo Horizonte: Del Rey, 1993.

BRAZ, Rodrigo Garcia Vieira. Direitos Humanos Fundamentais e Direito à


Comunicação: entre a redistribuição e o reconhecimento. Brasília: Revista
Contemporânea. Ed. 17, Vol. 9, n. 1, 2011. pp. 60-77.

CARVALHO, Luís Gustavo Grandinetti Castanho de. Liberdade de informação e o


direito difuso à informação verdadeira. Rio de Janeiro: Renovar, 1994.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

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CIDH. Situação da violência contra comunicadores no Brasil. 2015. Disponível em:
<http://www.abraji.org.br >. Acesso em: 2 mar. 2017.

DOTTA, Rafaella. Curso em Belo Horizonte investe em novos comunicadores. 2016.


Disponível: <https://www.brasildefato.com.br>. Acesso em: 10 mar. 2017.

FERNANDES et. al. Direito à comunicação de crianças e adolescentes em proteção no


estado de Minas Gerais. 2013. Disponível em: <http://coral.ufsm.br/congressodireito>.
Acesso em: 2 mar. 2017.

GROHMANN, Rafael do Nascimento. Michel Foucault, discurso e mídia. Anagrama,


São Paulo. v.3, n. 2, p.1-11. 2010.

LIMA, Venâncio A. Liberdade de expressão x liberdade de imprensa. 2. ed. São Paulo:


Publisher Brasil, 2012.

MAGALHÃES, Eloá; AFONSO, Maria. Curso Multiplicadores da Democracia reúne


comunicador@s em Belo Horizonte. 2016. Disponível em:
<https://medium.com/@fndcmg>. Acesso em: 10 mar. 2017.

MINAS GERAIS. Multiplicadores da Democracia qualifica jovens em mídias


alternativas e comunitárias. 2016. Disponível em:
<http://www.direitoshumanos.mg.gov.br >. Acesso em: 10 mar. 2017.

OLIVEIRA, Luciano. relendo vigiar e punir. Olhares Plurais, 1.14 (2016): 5-30. Web.
7 Mar. 2017.

ONU. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos


Humanos, adotada em 10 de dezembro de 1948.

ROLIM, Renata. Direito à comunicação. Possibilidades e contradições. Para a lógica


dos movimentos sociais. Recife: Oito de Março, 2011.

ROTHENBURG, Walter Claudius; STROPPA. Tatiana. Liberdade de expressão e


discurso do ódio: o conflito discursivo nas redes sociais. 2015. Disponível em:
<http://coral.ufsm.br/congressodireito>. Acesso em: 10 jan. 2017.

STROPPA. Tatiana. As dimensões constitucionais do direito de informação e o


exercício da liberdade de informação jornalística. Belo Horizonte: Fórum, 2010.

VIVARTA, Veet (coord.). Direitos, infância e agenda pública: uma análise


comparativa da cobertura jornalística latino-americana 2005-2007. Tradução de Sandra
Pérez. Brasília: ANDI; Rede ANDI América Latina, 2009.

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O marco zero da criança na cena da cibercultura

Heloisa Lopes Silva de Andrade

RESUMO
Este estudo pretende investigar O marco zero da criança na cena da cibercultura. O
objetivo consiste em cartografar as imagens inaugurais da criança na cena
contemporânea da cibercultura. Para tal, escolheu-se como corpus dois anúncios de
vídeos produzidos por Smuggler Films e dirigido por Guy Shelmedine nos anos de 2014
e 2015. A abordagem teórica metodológica ancora-se nos estudos da cibercultura e da
Teoria-ator-rede, visto que a narrativa dos anúncios tem como pano de fundo a cultura
digital. Desta forma, discute-se o reconhecimento e a iniciação da criança nesse
contexto, antes e durante o nascimento, como actante na relação com humanos e não
humanos, numa total mobilidade no domínio da tecnologia. Os principais interlocutores
na discussão foram Bruno Latour, André Lemos e Everardo Rocha. O resultado da
discussão foi: antes do nascimento, já impera sobre o corpo do sujeito a condição de
uma ―existência em conexão‖, cuja construção da subjetividade está vinculada aos
rastros das experiências na cibercultura.

Palavras-chave: Criança. Cibercultura. Existência em conexão.

1 INTRODUÇÃO

Estudar a criança imersa na cultura contemporânea e, mais particularmente, na


cultura digital, é reconhecer que se trata de um fenômeno exponencial. Dados de
pesquisa da Media Lab da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) de São
Paulo, sob a coordenação de Luciana Corrêa, demonstraram que canais de You Tube,
voltado ao público infantil, apresentaram um crescimento de 564% entre 2015 e 2016
no Brasil (CORRÊA, 2016). Diante disso, indaga-se: é possível localizar um marco
inicial da imersão da criança na cibercultura? Assim, tem-se como objetivo identificar
os ―registros‖ inaugurais que apresentam as crianças sob a égide das práticas da cultura
digital. Para tal, recorre-se à publicidade veiculados no YouTube.
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

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Com o desenvolvimento tecnológico da comunicação por satélite e da internet,
consolidou-se o reaparecimento de uma publicidade produzida e veiculada
mundialmente, direcionada a um público global nas mídias sociais. Visto isso, têm-se
como corpus os anúncios em formato de vídeos produzidos por Smuggler Films e
dirigido por Guy Shelmedine nos anos de 2014 e 2015. O diretor Guy Shelmedine é um
profissional do marketing e publicidade formado pela Central Saint Martins. Ele atua
em Los Angeles, Nova York e Londres. Sua produção ancora-se em temas como
cultura, arte, crianças e tecnologia. Assim, este estudo considera que a criação
publicitária de Guy Shelmedine inaugura e abre a possibilidade de pensar o corpo
mergulhado numa existência conectada no mundo, locomotiva tecnológica, como o
―marco zero‖ no registro da criança imersa nas práticas da cibercultura.

2 ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS DE GUY SHELMEDINE COMO


POSSIBILIDADE DE MARCO ZERO.

Para operar argumentação buscou-se em Magia e Capitalismo - um estudo


antropológico da publicidade de Everardo Pereira Guimarães Rocha (1995) a
fundamentação para discutir as implicações do mundo dos anúncios e a relação desse
conhecimento da ―sociedade do eu‖. Para ele, ―o mundo dos anúncios publicitários pode
ser visto e pensado‖ (ROCHA, 1995, p. 25). Pensar a partir de anúncios significa
concebê-los como base para o ―exercício da reflexão‖, principalmente numa sociedade
voltada para absorção imediata das informações em ritmo alucinante.
Para ele, urge-se pensar a ideia de ―mundo como um caleidoscópio‖ (ROCHA,
1995, p. 56) avançando nas múltiplas possibilidades (re)combinatórias. Esta reflexão
não propõe como pauta a discussão da ―função manifesta da publicidade [...] de vender
produto [...] e abrir mercados‖ (ROCHA, 1995, p. 26), mas sim conceber os anúncios
como ―documento‖, um produto de criação publicitária com elementos sólidos, fonte
estável e rica para análise. Os vídeos anúncios tomados como documento neste estudo
ancoram-se na compreensão de que tal documento não é apenas ―uma fonte de
informação contextualizada, mas surgem num determinado contexto e fornece
informações sobre esse mesmo contexto‖(LUDKE e ANDRÉ, 1986 p. 39). Isto é,
possibilita a reflexão analítica sobre o cotidiano da sociedade da cibercultura.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

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Pierre Lévy (1999), em Cibercultura, exprime que a ―cibercultura é um conjunto
de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, atitudes, de modos de pensamento e de
valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço‖ (LÉVY,
1999, p. 17). Assim, pode-se dizer que a cultura digital é um conjunto de todas as
manifestações humanas, produzidas, consumidas e transformadas no ambiente digital. É
um fenômeno histórico que a marca a cultura contemporânea e encontra-se em
constante construção e renegociação.
A busca orientou-se pelo movimento ―caleidoscópio mundo‖, com um olhar
―netnográfico‖ (FRAGOSO, RECUERO e AMARAL, 2013) para os ―anúncios
referências‖ (ROCHA, 1995), ou seja, aqueles que têm algo em comum ou que apontam
na direção de um tema recorrente. Nesse sentido, não poderia ser qualquer anúncio, mas
sim aquele guiado por um princípio, a constituição de um corpus que permitisse efetivar
a análise pretendida.
Neste sentido, privilegiaram-se os vídeos anúncios cuja argumentação afirmasse
a ideia guia que vem orientado pelo seguinte objetivo: registrar o marco zero da criança
na cibercultura. Para enfrentar tal propósito, formou-se um corpus para análise
composto de dois anúncios comerciais da 3G da indiana MTS, que utilizam na sua
narrativa videográfica a ideia de bebês que dominam a tecnologia. Os vídeos serão
identificados como ―anúncio referência A‖ e ―anúncio referência B‖.
O anúncio ―referência A‖ foi publicado em dezoito de fevereiro de 2015, com o
título MTS Homepost- Instant wife for the #MTS Internet Baby, com duração de um
minuto e onze segundos e com 96.087 visualizações. E o segundo, ―anúncio referência
B‖, foi publicado em vinte quatro de fevereiro de 2014, pela mesma empresa, com
duração de um minuto e quatorze segundos com 111.981 visualizações. A síntese
norteadora de nossa captura apoia-se na perspectiva de Rocha (1995) na qual o mundo
do anúncio não é [...] ―nem enganoso, nem verdadeiro, simplesmente porque seu
registro é o da mágica‖ (ROCHA, 1995, p. 25).

2.1 Anúncio “Referência A”

O enredo do anúncio ―referência A‖ se desenvolve em dois cenários. O primeiro,


numa maternidade, apresenta uma gestante em trabalho de parto, sendo atendida pelo

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médico e enfermeira com a presença do acompanhante. As imagens demonstram a
gestante em situação de grito e de dor e, simultaneamente, a câmera focaliza sua barriga
no movimento de ―esvaziamento‖. O segundo cenário ocorre, não mais na maternidade,
mas em outro cenário, no céu. A cena inicia com um carrinho com um bebê entrando no
céu. Para nossa surpresa, é um bebê capaz de falar. No desenvolvimento da narrativa, o
bebê produz uma pauta contestatória e reivindicatória junto ao seu interlocutor que é um
senhor - supostamente ―Deus‖ - sentado numa cadeira. Estes são os atores principais. Os
demais que estão na sala de parto ou na maternidade são como coadjuvantes ou
figurantes.
Para André Lemos (2013), em A comunicação das Coisas Teoria Ator-Rede e
Cibercultura, a ―TAR é uma teoria, a Cartografia da Controvérsia (CC) é a sua
metodologia‖ (LEMOS, 2013, p. 105). O desafio está em ―tentar aplicar a TAR e a CC
ao campo da comunicação, mais especificamente, [...] da cibercultura‖ (LEMOS, 2013,
p. 106). Este é um campo originário da ciência e tecnologia e avança para o ―domínio
epistemológico de uma ontologia social‖ (LEMOS, 2013, p. 107).
Ao ater-se à trajetória da criança no anúncio, entende-se que ela (a criança)
aponta para os ―mapas gerados pela sociologia da mobilidade‖ (LEMOS, 2013, p. 110).
Isso requer uma análise cuidadosa frente à complexidade do fenômeno da cibercultura.
A criança é um ator ou um ―actante humano‖ que conclama estar no mundo conectada
com os ―actantes não humanos‖ como condição para nascer. O anúncio vídeo do diretor
Guy Shelmedine é potente para uma possível amostra da abundante floração de ideias
sobre o mundo contemporâneo. Uma das condições de estar no mundo é o da
―existência em conexão‖.
Na condição de ―actante humano‖ esta criança, mesmo antes de nascer, emerge
como uma ―mediadora‖. Mediadores são um termo técnico da TAR, com forte
capacidade de ler o real social, transformá-lo, traduzi-lo, distorcê-lo e modificar o seu
significado. Assim, esta criança ―produz uma ação sobre os outros, podendo ser tanto
humanos como não humanos‖ (LEMOS, 2013, p. 11). A ausência de conexão é uma
posição ―estável‖, uma estabilidade, uma (caixa preta) e é justamente aí, que a criança
se revela contestadora e se recusa a nascer nesta estabilidade de ―não conexão‖, isto é,
nascer no seio de uma família não conectada com as tecnologias da informação e
comunicação. Esta criança movimenta-se para abrir a ―caixa preta‘‘ e desestabilizar o

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125
―estável‖.
Numa entrevista realizada por Casalegno (1999), a pesquisadora Sherry Turkle,
num artigo publicado com o título Sherry Turkle: Fronteiras do real e do virtual, diz
que existe uma ―importância do sonho contido na comunicação quase instantânea [...]
que dá às pessoas o sentimento de pertencimento. [...] Produz sentimento de filiação‖
(CASALEGNO, 1999, p. 121). Entende-se que este ―pertencimento‖ significava, não
apenas a conexão ―humanos‖, mas, principalmente, o ―não humanos‖. Para esta criança
estar no mundo significa ―existência em conexão‖, o que é uma tradução da experiência
do contemporâneo.
Observou-se no diálogo que o dilema da criança consistia na recusa de ―nascer
num ambiente não conectado‖. O seu interlocutor (homem no céu) propõe remediar esta
falha dos familiares oferecendo um ―actante não humano‖, ou seja, o produto do
anúncio da 3G indiana à venda. Este ―actante não humano‖ anunciado pelo ―actante
humano‖ age como trunfo para que a criança retorne à maternidade para que ocorra o
nascimento sem frustração. A cena encerra com a criança manuseando com seus
polegares o seu smartphone em mãos e indaga aos familiares qual é a senha.
Entende-se que este smartphone na mão da criança é uma imagem singular e
emblemática que traduz a cena contemporânea latente da segunda década do século
XXI. Isto é, o contexto digital transforma profundamente a cultura, os conhecimentos e
as identidades. Finalizo a análise do vídeo ―anúncio referência A‖ com uma síntese de
Bruno Latour (2001), em A Esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos
estudos científicos, no qual diz: ―todo artefato tem seu script, seu potencial para agarrar
os passantes e obrigá-los a desempenhar um papel em sua história‖ (LATOUR, 2001, p.
204). A ponta de lança é a exacerbação máxima do fenômeno da conexão no qual pode
ser analisada a partir da marcha das polarizações humanas e não humanos na
perspectiva da Teoria Ator Rede (LEMOS, 2013). Diante disso, o vídeo dirigido por
Guy Shelmedine pode ser considerado um marcador da criança na prática da
cibercultura, cuja cena traz como conteúdo elementos presentes na Teoria Ator- Rede.

2.2 Anúncio “Referência B”

O anúncio ―referência B‖ pode ser lido como uma continuidade do enredo

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

126
anterior, porém, numa outra perspectiva. A narrativa também se desenvolve numa
maternidade, porém com a potencialidade dos ―actantes humanos‖ e ―não humanos‖. O
cenário é apresentado com a conexão e interconexão máxima, ou seja, em toda
maternidade: a sala de parto acoplada com diversos aparelhos, médicos a beira do leito,
conectados com seu laptop, enfermeiras com seu dispositivo móvel no bolso do
uniforme, o pai com seu smartphone em mãos filmando e a gestante em trabalho de
parto. O ponto de partida é o nascimento da criança.
A criança entra em cena como uma protagonista, de forma surpreendente,
impacta a todos os demais personagens que compõem o cenário. Assim que nasce, já
inaugura o primeiro movimento motor da cibercultura: o ato de ―clicar‖. O clique,
porém, acontece nas lentes do óculos do médico. Este, por sua vez, leva um susto e
desequilibra e cai no chão, derrubando também o laptop. A criança age com destreza,
uma ―existência em ação‖ (LATOUR, 2001), autorizada, habilitada para um aguçado
alcance na composição de forças. Ela demonstra um raciocínio veloz e toma o
smartphone do pai, executando o segundo ato da cibercultura ao acionar os motores de
busca na internet, ou seja, realiza a ―busca no Google‖. Ela pesquisa como cortar o
cordão umbilical.
Após a pesquisa ser realizada, num gesto rápido, o bebê toma a tesoura da
enfermeira e executa o ato do corte do cordão umbilical. Inaugura-se, neste primeiro
momento de vida, uma existência em contextos digitais marcada pelo contínuo
online/offline. Em seguida, a enfermeira de forma amigável aproxima-se da criança para
vesti-la. A criança imediatamente aproveita desta proximidade corporal e com a mão
alcança o bolso do uniforme, retira o celular e posiciona a câmera do smartphone,
tirando a sua primeira self com a enfermeira, inaugura-se assim ―o self‖ na exposição de
si. Para Dominique Cardon (2012), em A Democracia da Internet, ―a exposição de si
não é mais direcionado a desconhecidos, mas aos próximos, a maneira de representar a
identidade se modifica sensivelmente‖ (CARDON, 2012, p. 57). Pensar a exposição de
si em contextos digitais como formas de apresentação nas interações sociais são chaves
para ampliar reflexões sobre a maneira como as crianças percebem a si mesmos.
A câmera fotográfica acoplada ao celular permite a possibilidade de fotografar o
cotidiano, soma-se a isso, o ato de partilhar imagens. A criança escorrega da cama, vai
engatinhando, fotografa o médico deitado no chão, vai até o laptop e realiza uma série

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127
de operações, isto é, realiza uma série de atos de compartilhamentos de imagens e
publica as fotos nas redes sociais, como Instagram, faz transmissão ao vivo via Stream,
na busca por audiência mais ampla. Para completar a narrativa, na saída da maternidade,
a criança utiliza com maestria o aplicativo GPS, para ajudar seu caminho para fora do
hospital maternidade. Todos são atos da cibercultura e são realizados neste anúncio
publicitário.
Observa-se uma leitura de caleidoscópio mundo sobre criança na cena da
cibercultura. Esta demonstra, desde muito cedo, a ―performar a si mesma‖. Tal
percepção nos permite aproximar novamente das ideias de Rocha (1995), na qual
salienta que ―o anúncio não se confunde com consumo de produtos. [...] Ele distribui-se
indistintamente. Em cada anúncio vende-se estilo de vida, sensações, emoções, visões
de mundo, relações humanas‖. (ROCHA, 1995, p. 27).
Tomar estes dois anúncios publicitários como registro do marco zero da criança
na cibercultura só foi possível, na medida em que, pode-se compreender a publicidade e
seu conteúdo pela ótica do instrumento antropológico. ―O anúncio, como fato cultural,
possui também um significado que é de domínio público‖ (ROCHA, 1995, p. 32). E
continua: ―O modelo caleidoscópio é [...] uma ordenação do conjunto composto pelos
pedaços de vidro‖. E estes, por sua vez, ―são fragmentos [...] de saberes, de
representações da vida social e de experiências subjetivas.‖ (ROCHA, 1995, p. 58).

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As considerações apresentadas nesta reflexão podem ser compreendidas a partir


de dois aspectos. O primeiro situa um percurso de registro e mapeamento para compor
cartografias futuras de crianças em contextos digitais. A busca pelos registros possibilita
a imersão na cultura digital como exercício de experimentação analítica dos vídeos
anúncios na plataforma do YouTube. Tal tarefa permitiu entender os vídeos anúncio
como um ritual, ou seja, a sociedade falando de si mesma. O segundo aspecto trata-se de
afirmar que foi possível identificar o ―marco zero‖, isto é, os primeiros registros de
criança em imersão nas práticas da cibercultura. A produção publicitária de Guy
Shelmedine indicou o ―marco zero‖, não apenas das tecnologias comunicacionais, mas
também apresenta com maestria as imagens de crianças cuja existência encontra-se

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

128
num contínuo online/offline. Entende-se que este movimento contínuo subjaz à conexão
mundo como um caleidoscópio.

REFERÊNCIAS

CARDON, Dominique. A Democracia Internet: promessas e limites. Rio de Janeiro:


Forense Universitária, 2012.

CASALEGNO, Federico. Serry Turkle: Fronteiras do real e do virtual. Revista


Famecos. Porto Alegre, nº 11- dezembro 1999.

CORRÊA, Luciana. Audiência nos Canais consumidos por crianças atingiu 50


bilhões de visualizações no Brasil. Resultado da 2ª fase pesquisa geração YouTube.
Outubro de 2016-ESPM Mídia Lab. pdf. Disponível em: <
http://pesquisasmedialab.espm.br/wp-
content/uploads/2016/10/Resultados_2a_fase_pesquisa_Gera%C3%A7%C3%A3o_You
Tube_outubro_2016_ESPM_Media_Lab.pdf > . Acesso em: 20 fev. 2017.

FRAGOSO, Suely; RECUERO, Raquel; AMARAL, Adriana. Métodos de pesquisa


para internet. Porto Alegre: Sulina, 2013.

LATOUR, Bruno. A Esperança de Pandora. Ensaios sobre a realidade dos estudos


científicos. Bauru: EDUSC, 2001.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1999.

LEMOS, André. A Comunicação das Coisas Teoria Ator Rede e Cibercultura. São
Paulo: Annablume, 2013. (Coleção ATOPOS).

LUDKE, Menga. Pesquisa em Educação: Abordagens Qualitativas, São Paulo: EPU,


1986.

MTS Internet Baby Full Version. Direção: Guy Shelmedine. Produção: Smuggler Films.
Duração: 1 minuto e 14 segundos. Publicado em: 24 de fevereiro de 2014. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=rg37kafMsWk>. Acesso em: 22 de fev. 2017.

MTS Homespot-instant wifi for the # MTS internet Baby. Direção: Guy Selmedine.
Produção: Smuggler Films. Duração: 1 minuto e 11 segundos. Publicado em: 18 de
fevereiro de 2015. Disponível em:
<18vhttps://www.youtube.com/watch?v=qctwgC10NM0>. Acesso em: 23 de fev. 2017.

ROCHA, Guimarães Pereira Everardo. Magia e Capitalismo um estudo


antropológico da publicidade. 3 ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1995.

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129
O Self na Selfie: os semblantes da atualidade

Fabrizia Izabel Meira Souto*


Luciana Costa Pires 
53

RESUMO
Este artigo aborda o fenômeno da virtualidade enquanto um acontecimento que tem
transformado a configuração dos modos dos indivíduos se relacionarem. No cenário que
denominamos como pós-moderno, observamos novas práticas de ser e estar no mundo.
Nota-se que a via imagética destacada no ciberespaço fornece aos indivíduos acesso a
um universo de possibilidades cujo limite desconhecemos. Essa via imagética, por sua
vez, personificada pelas selfies é compartilhada pelos usuários das redes sociais
disponíveis pelo advento da Internet. Partindo de um viés teórico psicanalítico que
busca circunscrever a teoria do self, perguntamos: serão as selfies os semblantes da
atualidade?

Palavras-chave: Semblantes. Selfies. Virtualidade.

Na atualidade, é notório como o fenômeno da virtualidade vem ocupando um


espaço importante na vida dos indivíduos e nos modos como eles se socializam. Neste
espaço que aqui consideramos como uma realidade virtual, novas possibilidades são
inauguradas de maneira que as pessoas possam vivenciar experiências já corriqueiras,
porém, em um novo cenário que parece corresponder às características difundidas por
estudiosos sobre este momento que, dentre outros nomes, chamamos de pós-moderno.
Ainda que não encontremos um consenso entre os autores que discutem a respeito do
contexto em que vivemos atualmente, fazemos coro a Kumar (1997) ao
compreendermos que a pós-modernidade é ―[...] um mundo no qual é impossível achar
um centro ou qualquer ponto ou perspectiva do qual seja possível olhá-lo firmemente e
considerá-lo como um todo; um mundo em que tudo que se apresenta é temporário,
mutável [...]‖. (KUMAR, 1997, p. 157).
Logo, a pós-modernidade se apresenta enquanto um momento cujos referenciais
se liquidificaram, isto é, o que Bauman (2001) denominou de modernidade líquida
representa bem esta ideia de um contexto social, cultural, histórico e político
descontínuo, efêmero e sem sólidas bases, como outrora sustentaram os tempos
modernos. É, pois, a partir destas considerações que vamos começar a observar
significativas mudanças, por exemplo, nos meios de comunicação que foram se
tornando, gradativamente, mais abrangentes e acessíveis. Com o surgimento da Internet,

 Psicólogas. Mestrandas em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.


53

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

130
―[...] nada havia possibilitado grau tão elevado de interatividade e participação, não
apenas no compartilhamento de informações, mas, principalmente, no provimento de
conteúdo por parte de cada usuário‖. (NOBRE, 2010, p. 37).
Não é pretensão aqui, aprofundarmos na análise da pós-modernidade e nem da
Internet enquanto um fenômeno original desta época. Entretanto, faz-se necessária uma
breve menção disso para que possamos, além de contextualizarmos nosso trabalho,
refletirmos sobre os impactos que este cenário tem provocado na vida das pessoas.
Muitos autores têm procurado estudar o advento da era digital e as mudanças efetuadas
no sujeito depois da vinda da Internet. Quais os impactos que o mundo digital tem
provocado na vida das pessoas? Além da mudança na forma de pensar e agir, dos
hábitos, conceitos, pode-se pensar numa nova configuração psíquica? Alguns autores
afirmam que sim.
De acordo com Nicolaci-da-Costa (2005), o advento da era digital vem trazendo
profundos impactos em praticamente todos os setores da vida social e pessoal de
milhões de pessoas ao redor do mundo, inclusive daquelas que nunca tiveram contato
com a Internet. Para a autora, são vários os impactos diretos e indiretos causados pela
revolução tecnológica operada pelo mundo digital. Pelos impactos diretos podemos
entender como aqueles que são gerados pela interação dos usuários com a rede de
computadores ou pela interação entre usuários por meio dela. No segundo caso, os
impactos indiretos, observa-se que são aqueles que incidem tanto sobre os usuários da
rede quanto sobre indivíduos que jamais tiveram qualquer contato ou experiência direta
com a rede.
A Internet faz parte de um conjunto de tecnologias que viabilizou o surgimento
de uma nova era que tem como principais características a integração, a globalização, a
relativização, o imediatismo, a agilidade, a derrubada de fronteiras, a
extraterritorialidade e o nomadismo, pontua ainda Nicolaci-da-Costa (2005). Mas as
mudanças e possibilidades não param por aí. De acordo com ela, além das mudanças
comportamentais, houve também uma mudança significativa na forma das pessoas
verem o mundo e também na forma das pessoas estarem no mundo. A era digital pode,
desta forma, ser entendida como um elemento que faz parte de um conjunto de fatores
que estão mudando a configuração social do mundo em que vivemos. Dentro deste novo
contexto, torna-se fundamental a compreensão destas mudanças, caso contrário,

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

131
podemos perder o acesso àqueles sobre os quais queremos atuar ou, correremos o risco
de nos tornamos preconceituosos e inadequados por desconhecermos as características
das subjetividades contemporâneas. (NICOLACI-DA-COSTA, 2005).
É na pós-modernidade que vivenciamos essas novas experiências trazidas pela
virtualidade. Este momento contemporâneo se caracteriza, inclusive, por uma realidade
factível ao que Lacan (1972) nos apresentou como sendo o discurso capitalista.
Diferentemente das considerações lacanianas sobre os quatro discursos radicais, o
discurso capitalista foi proposto como aquele que não faz laço social. Nesta lógica, o
sujeito é escamoteado ao ser colocado em relação direta apenas com os objetos
(gadgets) enunciados pelo capitalismo e produzidos pela Ciência, numa promessa
(porém, compreendida como uma verdade) de satisfação absoluta, já que o sujeito passa
a acreditar ser possível, por meio da obtenção desses objetos, tamponar a sua falta, que
lhe é, todavia, constitutiva.
Desde Freud [1930]/(1996) podemos notar a preocupação da Psicanálise com o
social, ou melhor dizendo, com os efeitos causados no sujeito a partir da sua inserção na
cultura. No seu celebrado ensaio O Mal-Estar na Civilização, Freud afirma que,
enquanto o indivíduo tiver que sacrificar algo em troca da sua felicidade, ele não
conseguirá alcançar o que tanto almeja, a satisfação irrestrita e completa dos seus
desejos. Para o autor, existe um conflito permanente entre a civilização e o indivíduo
que se expressa pela condição de desamparo, que é singular para cada um. A partir
disso, pretendemos analisar o conceito de self e como este pode ser articulado ao que se
disseminou como selfie54. Destarte, Guanaes e Japur (2003) postulam que o conceito de
self tem se constituído como tema central na maioria das teorias psicológicas da área
clínica. São as teorias psicanalíticas que melhor demonstram o uso da noção de
psiquismo e self no entendimento do funcionamento humano. Para além deste campo
específico, o conceito de self e a forma como a palavra tem sido utilizada se
diversificam no contexto social pós-moderno.
Ainda que o nosso objetivo com este trabalho não seja propor uma discussão
teórica diferenciando o conceito de self entre alguns autores, acreditamos ser pertinente
apresentar algumas ponderações sobre o assunto, especialmente, à luz da Psicanálise. O

54
Foto de uma pessoa tirada por ela mesma, utilizando-se de um smartphone, webcam ou outro
dispositivo que viabilize sua publicação em alguma rede social online. Inclusive, em 2013, este foi o
verbete do ano escolhido pelo Dicionário Oxford (disponível em: <https://en.oxforddictionaries.com>.
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

132
conceito de self tem sido descrito em algumas abordagens psicanalíticas, segundo
Guanaes e Japur (2003), a partir de três vertentes clássicas: a psicologia do ego, a teoria
das relações objetais e a psicologia do self. A psicologia do ego é, de acordo com estas
autoras, derivada da teoria psicanalítica clássica de Freud. A obra freudiana apresenta a
sua descrição a respeito da existência de um mundo psíquico intrínseco ao indivíduo,
cuja organização se dá a partir de uma conflitiva entre o superego e o id, ao lidarem com
certas exigências pulsionais, sexuais e agressivas, que demandam por sua expressão e
abrandamento. De acordo com as autoras, percebemos que:

Este conflito gera ansiedade, que sinaliza ao ego a necessidade de


mecanismos defensivos, isto é, de processos mentais que defendam o ego do
perigo da invasão de impulsos e conteúdos inconscientes. O modo como o
aparelho psíquico organizará a experiência pessoal, lidando com as
necessidades pulsionais próprias a cada estágio do desenvolvimento (descrito
por Freud a partir do esquema clássico das zonas erógenas), fundamenta a
compreensão da personalidade e da formação de traços de caráter.
(GUANAES & JAPUR, 2003, p. 136).

Já na teoria das relações objetais, destacamos Winnicott no que diz respeito aos
seus conceitos de falso self e verdadeiro self. Para Naffah Neto (2007), os adjetivos
―falso‖ e ―verdadeiro‖, utilizados pelo autor, têm um sentido eminentemente clínico, ou
seja, aquilo que infindas análises revelam: ―[...] que alguns pacientes sentem a sua vida
psíquica como eminentemente falsa, o que quer dizer: destituída de vida emocional,
de sentido de realidade, repleta de lacunas de memória‖. (NAFFAH NETO, 2007, p.
230). O conceito de self na visão de Winnicott, apresenta-se de uma maneira muito
particular, ou seja, ―[...] o self, que não é ego, é a pessoa que eu sou, que é somente eu,
que possui uma totalidade baseada na operação do processo maturativo. Ao mesmo
tempo, o self tem partes e é, na verdade, constituído destas partes‖. (WINNICOTT apud
GUANAES & JAPUR, 2003, p. 137).
De acordo com essas autoras, foi Heinz Kohut quem deu a maior contribuição na
proposição de uma psicologia do self, de maneira a representar ―[...] um marco no curso
do pensamento psicanalítico, gerando polêmica quanto à possibilidade de constituir uma
abordagem teórico-clínica nova e, portanto, distinta das correntes psicanalíticas
precedentes‖. (GUANAES & JAPUR, 2003, p. 137). Citando Mello Filho (1995), ainda
asseveram que Kohut assegura que o desenvolvimento do indivíduo depende da
consolidação de um self que é por ele definido como uma estrutura supra-determinada

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

133
que, ao mesmo tempo, resulta das interações com o meio psicológico e independe do
modelo estrutural freudiano. (GUANAES & JAPUR, 2003).
Por este viés, nos interessa observar a forma como o self tem se apresentado na
atualidade, considerando a articulação entre o que é interno e externo ao indivíduo.
Diante disso, destacamos o alastramento das selfies compartilhadas entre os indivíduos
através dos diversos aplicativos ofertados com a chegada da virtualidade. A demasiada
exposição dos sujeitos por esta via nos coloca a questão: serão estas os semblantes da
atualidade? Semblantes cuja dimensão atravessaria o simbólico e o real, concernindo,
portanto, à verdade própria do sujeito. Os semblantes funcionariam, nesta realidade
virtual, como rearranjos inventados pelo sujeito para lidar com uma falta que lhe é real,
mas que também diz de uma falta do Outro. No momento que as identificações
modeladas pelo ideal vacilam, a prevalência das imagens, sobretudo, online, faz com
que os sujeitos explorem e até criem traços de self que não corresponderiam à sua
realidade offline, já que parece não haver limites para se constituir neste mundo digital.
As redes sociais tornam-se, então, meios facilitadores para o fomento à centralização do
eu que a pós-modernidade evidencia.
A partir desses semblantes propagados na pós-modernidade, nos permite pensar
essa grande disseminação de selfies nas redes sociais correlacionada a uma busca
infindável pela imagem do ideal do eu que foi perdida na infância. Tal como a criança,
ao perceber que a imagem ―no espelho‖ não é sua, mas, é o que os outros reconhecem
como sendo, isto é, o que ela aparenta ser para as demais pessoas, o indivíduo
contemporâneo, ao fazer uso dessas tecnologias, estaria, portanto, retratando modelos de
comportamento que são esperados socialmente: pessoas felizes, famílias perfeitas,
viagens, roupas, ou seja, tudo corrobora para uma imagem idealizada do eu. Assim,
fica-nos uma questão: estas pessoas, através de suas selfies publicadas e compartilhadas
online, estariam realmente felizes ou seriam personagens em uma sociedade do
espetáculo?
Em vista disso, não poderíamos deixar de nos referenciar a Guy Debord [1931-
1994]/(1992), cuja menção à sociedade do espetáculo nos faz inferir acerca de um
mundo real convertido em imagens automatizadas que passam a gerenciar as relações
pelo domínio da aparência e daquilo que é espetacular. Para melhor compreendermos o
sentido dado à palavra ―espetáculo‖, torna-se necessário lançar mão do aporte teórico

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134
utilizado pelo autor que descreve o tempo atual como aquele que prefere ―[...] a imagem
à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser [...] O que é
sagrado para ele não passa de ilusão, pois a verdade está no profano‖. (FEUERBACH
apud DEBORD, 1992, p. 13). O que podemos observar é que a conversão do mundo
real em imagens não ocorre de modo ingênuo e despretensioso.
Isto pressupõe a fusão do real e do ficcional, ou seja, a experiência vivida
anteriormente cede espaço à mais pura representação, ressaltando ainda que ―toda a vida
das sociedades das quais reinam as condições de produção se anuncia como uma imensa
acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se esvai na fumaça da
representação‖. (DEBORD, 1992, p. 13). O espetáculo não é definido pelo autor como
apenas um complemento do mundo real, mas sim, como o próprio ―[...] coração da
irrealidade da sociedade real‖. (DEBORD, 1992, p. 15). Afirmando que as imagens
fluem desligadas de cada aspecto da vida, para o autor, nesta medida, a unidade da vida
não pode ser restabelecida.
A realidade só é considerada parcialmente e reflete, desta forma, um pseudo
mundo à parte. Mundo este, objeto de pura contemplação. É a este pseudo mundo que
nos referimos neste trabalho, ao apresentar-se, na atualidade, o self na selfie como um
objeto de pura apreciação, ao passo que ―a especialização das imagens do mundo acaba
numa imagem autonomizada, onde o mentiroso mente a si próprio. O espetáculo em
geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não-vivo‖.
(DEBORD, 1992, p. 14). Observa-se também no contexto da atual sociedade, uma
recriação da vida humana.
Neste aspecto, os conceitos de simulacro e simulação de Jean Baudrillard
[1981]/(1991) merecem atenção, ao ilustrarem com clareza as relações que se
estabelecem na sociedade contemporânea, onde a imagem vale mais que o objeto e o
simulacro, mais que o real. Sobre isso, o autor assevera que ―já não existe o espelho do
ser e das aparências, do real e do seu conceito [...] Na verdade, já não é o real, pois já
não está envolto em nenhum imaginário. É um hiper-real, produto de síntese irradiando
modelos combinatórios num hiperespaço sem atmosfera‖. (BAUDRILLARD, 1991, p.
8). Apreendemos com Baudrillard (1991) que o simulacro se apresenta como uma cópia
de determinados elementos que nunca existiram ou que não possuem mais o seu
equivalente na realidade.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

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A sociedade atual vive uma simulação da realidade. Seriam as selfies a
personificação do simulacro que objetiva ocultar a realidade em que vivemos? O autor
pontua que neste hiper-real toda a expectativa de um mundo transcendente e ideal
desvanece, pois, a simulação fez cair o andar de cima da casa da idealização humana,
que nos coloca ―por trás do espelho‖, ou mesmo, ―por trás da selfie‖, onde buscamos
nos refugiar em elementos que já não possuem (e até mesmo nunca possuíram) o seu
equivalente na realidade. Com atitudes hedonistas, individualistas e imediatistas, o
indivíduo pós-moderno nos provoca uma reflexão acerca do que Lasch [1984]/(1986)
assentou sobre este cenário que para ele se caracteriza enquanto uma cultura de massas
atravessada por duas lógicas: consumista e narcísica.

O exercício repetido da autovigilância constrangida [...] falseia as percepções


das pessoas tanto em relação a elas mesmas como ao mundo que as rodeia.
Estimula um novo tipo de autoconsciência que tem pouco a ver com a
introspecção ou a vaidade [...] o indivíduo não apenas aprende a avaliar-se
face aos outros mas a ver a si próprio através dos olhos alheios; aprende que
a auto-imagem [sic] projetada conta mais que a experiência e as habilidades
adquiridas. (LASCH, 1986, p. 21).

Diante de uma precariedade simbólica típica da pós-modernidade, o indivíduo


empreende novos modos de laços que o signifique socialmente. A Internet, como um
meio de enlaçamento e, também, de potencialização de simulacros, possibilita aos
indivíduos o acesso a um universo de possibilidades que preconizam um empuxo a um
mais-de-gozar que não lhe impõe limites ao deleite do seu corpo e dos objetos a ele
ofertados. A via imagética destacada no ciberespaço ―[...] afirma a autonomia e esconde
a posição de dependência do sujeito: dependência da imagem, que funciona como
referência identificatória e como ilusão de completude‖. (LIMA, 2006, p. 48).
Por fim, mas, não com o intuito de esgotarmos aqui as discussões acerca da
temática proposta, compreendemos que, ao mesmo tempo que a pós-modernidade
favorece significativas mudanças através do avanço tecnológico, evidencia também a
condição de desamparo do indivíduo, ao provocar nele uma certeza que, ao contrário de
tamponar o que lhe falta e assim, satisfazê-lo totalmente, confere-lhe um prolongamento
do seu mal-estar.

REFERÊNCIAS

BAUDRILLARD, Jean. Simulacro e Simulação. Lisboa: Relógio D‘água, 1981-1991.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

136
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. São Paulo: ContraPonto Editora, 1931-


1994/1992.

FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. In: FREUD, Sigmund. Edição


Standard brasileiras das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago, 1930-1996, vol. 21, p. 67-148.

GUANAES, Carla.; JAPUR, Marisa. Construcionismo Social e Metapsicologia: Um


Diálogo sobre o Conceito de Self. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, vol. 19, n. 2,
mai./ago. 2003, p. 135-143. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/ptp/v19n2/a05v19n2>.

KUMAR, Krishan. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna: novas teorias sobre o


mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

LACAN, Jacques. (1972). Du discours psychanalyrique. Disponível em:


<http://www.praxislacaniana.it/wordpress/download/lacan_in_italia.pdf>.

LASCH, Christopher. O mínimo eu – sobrevivência psíquica em tempos difíceis.


Brasília: Editora Brasiliense, 1984-1986.

LIMA, Nádia Laguárdia de. O fascínio e a alienação no ciberespaço: uma perspectiva


psicanalítica. Arquivos Brasileiros de Psicologia. Rio de Janeiro, vol. 58, n. 2, 2006, p.
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NAFFAH NETO, Alfredo. A noção de experiência no pensamento de Winnicott como


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NICOLACI-DA-COSTA, Ana Maria. Primeiros contornos de uma nova configuração


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NOBRE, Márcio Rimet. Realidade virtual, realidade psíquica na pós-modernidade:


um encontro com Freud na infinitude fantasística do ciberespaço. 2010. 161 f.
Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-graduação em Psicologia, Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

137
POLÍTICAS DAS LINGUAGENS COMPUTACIONAIS E HUMANAS:
Planos temporais de instagram

Caio Roberto Saldanha


Letras, CEFET-MG

Resumo:
A partir do estudo de Peter Pál Pelbart sobre o tempo na obra de Gilles Deleuze, propõe-se a
problematização do tempo na lógica proposta pelo software Instagram. Tempo em uma noção
fabulosa, alucinada, abre possibilidades para a reflexão das reterritorializações provocadas pelos
enunciados que em interações emergem nesse sistema de interface computacional. Pretende-se,
portanto, o esforço filosófico de desvelar formas de pensamentos que incutidos estão na
arquitetura do Instagram, discutindo, tangencialmente, a noção de ―organismo vivo como
mensagem‖ (Breton) e, consequentemente, a virtualização de corpos. Para tanto, será realizada a
categorização das possibilidades que a interface gráfica do software inaugura, bem como sua
distribuição entre plataformas de acesso, identificando, principalmente, suas características
rizomáticas de tempo. Da estrutura do software surgem vestígios sobre o uso provocado em
corpos, expondo-os ou provocando-os a emoções, criando impasses (Didi-Huberman) variados,
sendo aqui descritos em suas energias, em seus destroços, em seus fragmentos. Passividade e
atividade aqui se entrelaçam em uma política das linguagens computacionais e humanas.

Palavras-chave: Linguagem, Instagram, Tempo, Corpo, Interface.

Usuário. Palavra para qualificar quem utiliza um software, uma máquina, um


serviço, e em alguns casos, um objeto. Um ser que usa algo, distanciado, aparentemente,
de outras atividades, que não essa de dar utilidade às coisas. Adjetivo ou substantivo
fácil de compreender, simples, objetivo — mais mecânico, impossível. Talvez, quando
nos textbooks de design de interfaces a palavra usuário apareça, não esteja ali a
referência a um ser pensante, sensível, humano. Talvez, a imagem mental que tentam
evocar seja a de um cyborg, um ser — ou não ser, não sei — regido por um
matematismo absoluto e infalível. Um botão aqui, e aqui haverá o clique. Um aviso
aqui, e aqui será avisado. Lógicas em loop para um usuário nessas premissas mecânicas
e viciantes tornam-se fetiche para quem projeta, arquiteta, edita interfaces homem-
máquina.
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

138
O tempo nesse loop arquitetado, nesses ritornellos, no e para o fetiche, é um
tempo não-linear, mesmo que time-lines sejam construídas, no entanto. Como a própria
lógica de programação transparece, o tempo talvez seja rizomático, dentro e fora de
interações premeditadas, programadas, já escritas, com a possibilidade de o sistema
falhar, de o erro ocorrer, de o tempo escorrer. Pensemos juntos, então, no loop
imperfeito, sempre aberto e múltiplo, a ocorrer em um software de compartilhamento e
relacionamentos por imagens primariamente: o Instagram. Sem nos preocuparmos com
o conteúdo produzido nessa mídia, mas sim com sua arquitetura, aproximando-nos
assim da fala de McLuhan (2013) de que ―the ‗content‘ of any medium is always
another medium‖, visionaremos os percursos alucinantes dos discursos engendrados
pelas linguagens humanas e computacionais presentes nesse software, nesse ambiente
de políticas de linguagens e, portanto, de tensões entre tempos, corpos e sensações de
realidade, talvez contra-tempos.
Quando a ideia de políticas de linguagens é colocada, considera-se a noção de
discurso como ―espaço incerto entre dois maciços‖ (MAINGUENEAU, 2015, p. 31),
mas como uma lógica ilógica, como paradoxo essencialmente. Atende-se, portanto, o
oposto do que Platão tentaria conduzir a pensar filosoficamente, perseguimos o efêmero
e o mutável. Discurso volátil — não instrumentalizado pela linguística, pela sociologia,
pela psicologia, pela filosofia — torna-se espaço, e espaço torna-se tempo, mais uma
vez. Talvez linguagem seja isso: espaço e tempo; e sua política: seu jogo. Variações
entre espaços e tempos: sons. Talvez música para além de sons. Sinfonias improvisadas,
belas em suas ―puras misturas‖, mesmo que nem sempre agradáveis, harmônicas, em
suas existências.
Nesse sentido, a orquestração presente no Instagram nos faz perceber, ou ter a
ilusão de perceber, um marulho particular. Pensemos em sons do mar à orla, e sons da
orla ao mar. Dos editores maestros do software a seus usuários cyborgs, e de seus
usuários cyborgs a seus editores maestros. Ir e vir: devir em imagens estáticas e
cinéticas, um oceano temporal de jogos incertos, um caos arquitetado e falível, sempre.
O que está lançado é o corpo ao mar aberto do tempo e do espaço virtualizado, em

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

139
ondas ativas e passivas de ―impasses55‖ (DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 21), em
rizomas56 de espaços incertos de sentidos humanos e computacionais simultaneamente.
O corpo, condição biológica do conhecimento (MATURANA, 2014, p. 23)
exposto à externalidade dessa lógica algorítmica de software, o Instagram, e hardware,
seus dispositivos, experimenta jogos temporais entre a ilusão e a percepção, em imagens
arquivadas ou efêmeras (contra-arquivamentos). Nesses jogos, ora há lembranças de
uma grande fototeca — como a que se pode encontrar em Veneza, na Itália, no Istituto
di Storia dell‘Arte da Fondazione Giorgio Cini — ora há lembranças de um grande
painel de live vídeo, como aqueles encontrados na Times Square de New York.
Na lógica arquivística do Instagram, temos uma racionalização do tempo como
supostamente uma sequência cronológica, geolocalizada, em alguns casos, e com uma
série de informações acessórias passíveis de interagirem com a memória. Assim, criam-
se vestígios, rastros, do enunciado ali expresso. Os likes, ou hearts, índices de adesão
social, que constituem-se como partes desses vestígios, alteram qualitativamente a
existência dessas imagens compartilhadas, inaugurando (in)certas valorações sociais ao
passo em que registra o impacto numérico de interações que esse discurso imagético foi
capaz de provocar. Sem traçar relações estatísticas quanto aos tipos de discursos com
maiores índices de adesão social nessa rede social, pode-se corroborar tal leitura por
meio de estudos como o realizado na Arizona State University, What We Instagram: A
First Analysis of Instagram Photo Content and User Types (2014), e, mais
recentemente, o livro em quatro partes do teórico Lev Manovich, Instagram and
Contemporary Image (2016).
Assim em sentido inverso, pensando na lógica efêmera do software,
recentemente implementada em uma de suas edições emerge o hábito do self-streaming
ao vivo, a co-presença virtualizada, a possibilidade rizomática do tempo elevada à
enésima potência, ou talvez, uma visão deleuziana de

um conjunto infinito de imagens agindo e reagindo umas sobre as outras em


todas as suas faces: variação universal, ondulação universal, marulho

55
―A emoção seria assim um impasse: impasse da linguagem 9emocionado, fico mudo, não consigo achar
as palavras); impasse do pensamento (emocionado, perco todas as referências), impasse de ação
(emocionado, fico de braços moles, incapaz de me mexer, como se uma serpente invisível me
imobilizasse). ‖ (DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 21)
56
―Num rizoma entra-se por qualquer lado, cada ponto se conecta com qualquer outro; ele é feito de
direções móveis, sem início ou fim, mas apenas um meio, por onde ele cresce e transborda; um rizoma
não remete a uma unidade nem dela deriva; não tem sujeito nem objeto. ‖ (PELBART, 2010, p. XX)
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

140
cósmico, sem eixo, nem centro, nem alto, nem baixo — o próprio mundo
como cinema. (PELBART, 2010, p. 4)

Portanto, temos assim o estímulo a um comportamento — seja lá qual for sua


leitura possível, se de simulacro, de co-presença, de rizoma ou de mundo como cinema
— constituído pela vontade dos editores desse software. Logicamente que um universo
de aparatos e programações permitiram o funcionamento dessa categoria de uso dentro
da lógica do Instagram, porém, há uma tomada de decisão editorial, e é isso o que nos
interessa, o que me interessa.
Percebo qualquer software como livro, ancorando-nos no pensamento de ―texto
aberto‖, de Roland Barthes, em S/Z (2002), para isso. Instagram, portanto, texto aberto,
livro aberto, ―opera aperta‖, possibilita tanto a adição, a subtração ou a modificação
infinita de suas categorias iniciais, quanto o prolongamento dos conteúdos que nessas
estruturas são produzidos. Identificamos com isso o direcionamento editorial fortemente
presente nesse software. Os usuários mais do que antes são apenas usuários, agem
dentro de uma lógica relativamente perfeita, pré-concebida, programada, matematizada.
Mas não é isso, ainda, o que me importa. Importa dizer que além dessa lógica que
identifico, há a manifestação de corpos nessa rede premeditada. Corpos que se
transformam em mensagens. Há também a manifestação e apropriação, dessas
categorias disponibilizadas, por sujeitos que se comunicam em linguagens, em signos
culturais — hoje, primariamente, imagens.
Digladiam-se, portanto, linguagens humanas e linguagens computacionais.
Imbricam-se em uma narrativa total, sempre incompleta, em temporalidades
rizomáticas, múltiplas, alucinadas. As possibilidades computacionais de partilha do
sensível imagético e de alguma quantidade de texto verbal, inaugura uma forma de
escrita além-suportes, além-códigos ali manipulados. Há uma lógica narrativa tangente
ao ali manejado. Talvez, nesse livro coletivo de milhões de sujeitos, não estejamos a
vincular o tradicional início-meio-fim, mas fim-fim-início-fim-meio-meio-início: Caos.
E não só uma escrita inauguramos talvez, mas também uma nova maneira de ler, de ver
o mundo, de perceber a alteridade em outras autorias.
Nesse sentido, talvez também percebendo essas novas práticas de escrita e
leitura, a publicidade procure nesse meio se infiltrar, confluindo corpos e suas práticas
de significação, com a vida que se dá pelo consumo em uma lógica capitalista. Vejo

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

141
então apelos mercadológicos imiscuídos em narrativas de instagramers profissionais.
Sujeitos que nesse livro aberto constroem, cedendo seus corpos e categorias do
software, narrativas para o comércio de produtos e serviços em contraprestação
pecuniária ou trocas outras. Têm-se, portanto, a pulverização da publicidade em sujeitos
influentes localmente, escritores de narrativas visuais e verbais potenciais em serviço de
outro tema que não sua expressão sígnica intima, mesmo que ainda sempre coletivas ou
em intenções dessa ordem.
Nesse virtual livro que escorre como água para telas de celulares, computadores
e televisores, imagens e verbo não formam memórias de instantes. Penso que
desformam memórias, deformam instantes. A lógica computacional possibilitando uma
narrativa coletiva nunca antes experimentada, imagética primariamente, com acesso
praticamente global, dá indícios de uma realidade possível de narrativas do por vir. Já
materializada a rizomática negociação do tempo, em categorias programadas por
editores, e a entrega da construção de uma transnarrativa57 de tangentes coletivas
alucinadas, temos um livro digital sem precedentes na história.
Os planos temporais de Instagram, iniciam formas que a literatura eletrônica
pode se valer para manifestar o signo literário, assim como a publicidade já realiza seu
discurso de variegadas maneiras. Mais do que isso, há o exercício de criação, de edições
dentro de programações, por parte de milhões de pessoas, simultaneamente, em rede,
em diálogos, em intertextualidades e extra textualidades implodidas em infinitos e
deslocados planos temporais.
Uma nova imagem do tempo surge. Corpos formam essa nova imagem disforme.
Mas entrecorpos há programações, categorizações, cerceamentos algorítmicos. O que
está ativo e o que está passivo nesse jogo wittgensteiniano? O Todo ainda é o Tempo e
o Tempo ainda é o Aberto, representação indireta.

REFERÊNCIAS

DIDI-HUBERMAN, Georges. Que emoção! Que emoção? Tradução de Cecília


Ciscato. São Paulo: Editora 34, 2016. 1ª edição.

57
Conceito que aqui crio para ilustrar o discurso que se constitui em negociações caóticas, que rompe
barreiras em um labirinto temporal e é estimulado a exceder planos sígnicos.
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142
LE BRETON, David. Adeus ao corpo: Antropologia e sociedade. São Paulo: Papirus,
2003.

MCLUHAN, Marshall. Understanding media: the extensions of man. Berkeley: Gingko


Press, 2013.

MAINGUENEAU, Dominique. A noção de discurso. In: Discurso e análise do


discurso. São Paulo: Parábola, 2015. p 21-33.

MATURANA, Humberto R.. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte,


Editora UFMG, 2014.

PELBART, Peter Pál. O tempo não-reconciliado. São Paulo: Perspectiva, 2010.

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143
Pornografia e internet: reflexões sobre as convenções do altporn58

Carolina Parreiras59

Resumo:
A partir da pesquisa etnográfica que desenvolvi em meu doutorado, reflito sobre um ramo
específico de pornografia, diretamente ligado aos avanços tecnológicos: a pornografia
alternativa ou altporn. Deste modo, trago neste breve texto, indícios que permitem entender
quais são as convenções da pornografia alternativa e, em que medida, ela se diferencia de outros
nichos pornográficos. Meu foco central neste paper é a relação entre altporne internet, buscando
mostrar como este gênero de produções só pode se desenvolver graças à tecnologia.

Palavras-chave: pornografia; internet; sexualidades.

Discuto, neste trabalho, ainda que de forma bem breve e sintética, algumas questões
suscitadas pela pesquisa de campo etnográfica que realizei em meu doutorado (Parreiras, 2015).
Neste estudo, meu objetivo foi compreender os possíveis encontros entre pornografia e internet.
Ainda que o digital esteja repleto de manifestações consideradas pornográficas, optei por centrar
as discussões em gêneros de pornografia diretamente influenciados pelo uso das tecnologias de
comunicação e informação. Parti do amplo tema ―pornografia online‖, a fim de compreender
quais as particularidades na interface entre pornografia e internet, utilizando, para tal, a chamada
pornografia alternativa (altporn). A internet, desde suas origens, vem sendo associada à
veiculação de produções pornográficas e às trocas envolvendo materiais sexualmente
explícitos60.
Como seria impossível fornecer uma quadro amplo das manifestações pornográficas
online, meu foco aqui são os vídeos e fotografias associados ao que se denomina de netporn,
qual seja, produções produzidas e difundidas a partir dos avanços tecnológicos e que se
configura como um nicho de mercado diverso daquele representado pela pornografia mais
convencional.

58
Este texto tem como base minha tese de doutorado em Ciências Sociais, defendida, em 2015, na
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Esta pesquisa contou com financiamento da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Para mais informações ver: PARREIRAS,
Carolina. Altporn, corpos, categorias, espaços e redes: um estudo etnográfico sobre pornografia online.
Tese de doutorado. IFCH/Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, 2015.
59
Pós-doutoranda em Antropologia – Universidade São Paulo.
60
Parto de uma perspectiva que não opõe erotismo e pornografia, mas sim, toma estas nomenclaturas
como contextuais e relacionais.
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

144
O netporn se caracteriza por representar pornografias próprias das plataformas e redes
online. Os maiores exemplos são o altporne os vídeos amadores. A bibliografia que discute o
tema aponta algumas características gerais que podem ser encontradas nestas produções: revisão
das fronteiras entre produtores e consumidores, crescimento na quantidade de manifestações
alternativas ou independentes, tentativa de modificação nas convenções do pornô mais
convencional, referencial queer e não-normativo, busca de quebrar com práticas consideradas
opressoras e encontradas no mainstream, aplicação de novos modelos de produção e negócios.
Neste sentido, o altporn pode ser entendido como um gênero diretamente atrelado ao
desenvolvimento das novas tecnologias de conexão. Apesar desta tentativa de agrupar as
representações sob um mesmo rótulo, vale salientar que, nem sempre, todas as características
elencadas devem estar presentes para que se dê o nome de pornografia alternativa. Há, assim,
uma diversidade de enfoques possíveis para ser considerado ou não altporn.
Os estudos sobre o tema (Attwood, 2007; Paasonen, 2010) parecem ser unânimes
quanto a dois pontos específicos. Há, nas produções alternativas, uma tentativa de quebrar com
as convenções da pornografia mainstream. Este objetivo vem da percepção de que, no pornô
mais convencional, uma série de corpos, desejos, atos sexuais e prazeres não estão incluídos. Há
um script a ser seguido e ele, por vezes, é bastante excludente.
O segundo ponto em comum é o uso constante das novas tecnologias, seja com
equipamentos ou por meio da internet, com suas possibilidades interativas e produtivas. Ao
contrário do que se vê no pornô mainstream, há uma ressignificação da própria ideia de
produção, sendo que, por vezes, apenas um celular com câmera e acesso à web são o bastante.
Deste modo, falar em pornografia alternativa é tratar de um gênero de produções que surge com
base nos avanços tecnológicos e que deles se apropria de diferentes modos.
Algumas perguntas nortearam minha pesquisa e são elas o guia para este paper: o que
significa falar de pornografia alternativa no Braisl? Quais são suas convenções?Como
pornografia, tecnologia, redes sociais, gênero e sexualidade se relacionam?
Todas as reflexões se baseiam em meu trabalho de campo etnográfico com a XXP61,
única produtora do gênero alternativo no Brasil. Em minha tese, proponho compreender as
convenções que particularizam o gênero altporna partir de alguns eixos: os padrões de corpos; a
centralidade das mulheres; as cenas e performances; e os limites entre realidade representação,
com a exibição de gravações em tempo real e as apropriações muito particulares do espaço
urbano por meio da tecnologia e do erotismo/pornografia. Tudo isto nos permite pensar sobre as
convenções de gênero e sexualidades encontradas neste ramo de produções pornográficas.

61
O nome da produtora, bem como o de todXsXs colaboradores de pesquisa foram modificados. Isto se
deve à tentativa de proteger suas identidades, ainda que isto seja muito complicado em tempos de
conexão e exposição na web.
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

145
Assim, para entender o que particulariza a pornografia alternativa, é necessário voltar a
atenção para questões que vão desde os usos do aparato tecnológico, passando pelas circulações
no espaço urbano. Obviamente, ao iniciar a pesquisa, eu sequer poderia supor que terminaria
discutindo temas aparentemente tão distantes. No entanto, ao seguir os muitos fluxos e conexões
– de pessoas, tecnologias, corpos, desejos, prazeres, trajetórias -, descobri que falar de
pornografia não é algo relativo apenas aos estudos de gênero e sexualidade, mas também
implica em colocar em cena outras relações. Chamo atenção para aquelas entre pessoas e
tecnologias, que só podem ser compreendidas de modo contextual.
Além de pensar especificamente nas convenções de gênero e sexualidade,
mostro, na tese, quais são as apropriações do espaço urbano, as quais colocam em
relação lugares, tecnologia e pornografia (e, consequentemente, nos dizem muito sobre
as convenções deste gênero de produções). Deste modo, o primeiro ponto é a
materialidade e a mobilidade da tecnologia. Algo notável, durante todo o trabalho de
campo, foi o uso constante das mais diversas tecnologias, por eles, mas também por
mim. Trabalhei, então, com a infinidade de telas que foram aparecendo, não apenas a do
computador, onde imagens e vídeos são exibidos, mas também telas de smartphones,
tablets e câmeras. Em relação à mobilidade, a discussão está centrada nas ferramentas,
programas e aplicativos de geolocalização e no modo como estes foram utilizados pelos
meus sujeitos de pesquisa (e por mim) em seus deslocamentos e trajetórias. Reflito
sobre as imagens da cidade que aparecem nestes deslocamentos. Para tal, analisei as
muitas imagens que eles postavam constantemente em programas específicos para isso
(especialmente o Instagram e o Foursquare) e de que modo a cidade e seus trajetos são
apresentados. Por fim, propus uma discussão sobre os conceitos de submundo e
subcultura, mostrando que, para entender a XXP, é necessário pensar em redes do
alternativo e na ideia de estilos.
A XXP é uma produtora de pornografia alternativa, é parte do mercado pornográfico,
mas extravasa estas definições. Com seus experimentos e ações, ela une em torno de si pessoas,
práticas sexuais, desejos, fantasias, estilos de vida, estéticas e espaços. Contar sua história é
contar muitas outras histórias paralelas, que passam pelas trajetórias de vida de seus criadores e
produtores e pelas muitas conexões que foram sendo construídas ao longo dos anos. Há uma
pretensão de representar o subversivo e o transgressor, de ir contra o senso comum e a
pornografia mainstream, mas não se descarta utilizar referências que venham de qualquer um
deles, seja como reiteração ou como crítica.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

146
Por mais que exista uma lista de características normalmente imputadas ao gênero
pornográfico alternativo, não acredito que elas explicam tudo ou que serão encontradas
invariavelmente em qualquer manifestação que receba este rótulo. Por este motivo, resolvi
destrinchar os vídeos e fotografias, buscando perceber as recorrências, os roteiros, as práticas,
os movimentos e tudo aquilo que pudesse definir o significado de altporn para a XXP. Faz
sentido, então, falar em convenções do altporn, constituídas por suas características específicas
e distintivas, por sua estética e pelas normatividades que instituem: os corpos valorizados e em
cena; a centralidade das mulheres; a preferência por cenas fetichistas e ligadas ao BDSM; e o
jogo entre real e representação, no qual a pornografia seria um gênero a ser produzido por
qualquer um de nós.
Assim, há uma preocupação de exibir diferentes corpos e, neste processo, mostrar seu
caráter construído, moldado, inventado e reinventado. As mulheres são colocadas no centro,
sendo que aí pode ser encontrado o lado mais político da XXP. Os prazeres e fantasias das
mulheres contam e devem ser encenados. Do mesmo modo, as atrizes não são definidas apenas
por seus corpos, mas têm voz ativa e são empoderadas nas produções. Privilegia-se a estética
fetichista e BDSM, mostrando serem muitos os prazeres possíveis. E, por fim, há a brincadeira
constante com os limites entre realidade e representação, com a crença subjacente de que
qualquer um, munido de uma câmera (seja ela qual for) pode se tornar um produtor de
pornografia.
Fazer pornografia implica também em traçar caminhos e andanças pelo espaço urbano e
pelo online e, nestes percursos, estabelecer relações e parcerias. Com a mediação da tecnologia,
os integrantes da XXP se caminham e se deslocam pela cidade de São Paulo, sendo que vão,
nestes trajetos, criando narrativas e relatos – textuais e imagéticos - sobre cada lugar. Estas
narrativas passam, assim, a compor a história de cada um destes lugares e fazem parte de suas
construções e desconstruções.
Ao ocuparem prioritariamente espaços do Centro e do Baixo Augusta, na cidade de São
Paulo, aparece a ideia de submundo, o agregador de estilos e de estéticas alternativos. Mas,
assim como os sujeitos, as tecnologias e os espaços são fluidos, as categorias e definições
também o são. Submundo é, então, um termo nativo que poderia ser melhor expresso se
pensarmos em redes de relações – as redes do alternativo.

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‗Transport‘: A Case Study of Two Group Cycle Rides. In: Sociology. nº 46 (3), 2012.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

147
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http://sexualities.sagepub.com/cgi/content/abstract/10/4/441.

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Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

148
Questões de gênero na internet: o Facebook como espaço de
(re)produção de binarismos de gênero

Mayra Reis Felipe

Resumo
A internet possibilita o acesso a informações, a venda e a troca de produtos, o diálogo entre
povos de diferentes culturas e a aproximação das pessoas, contudo, permite também a
normatização de crenças e comportamentos relacionados a ideais de beleza, vivências e outros
estereótipos reforçados pela mídia. Várias são as possibilidades construídas e descontruídas
dentro dos ciberespaços o que evocam comportamentos fora desse contexto. Política, economia,
cultura, música, esportes e tantos outros assuntos são difundidos a partir desse universo em rede.
Assim, questionamentos acerca das relações de gênero também perpassam esse universo e
ganham atualmente grandes destaques. Diante das transformações políticas, econômicas e
socioculturais que estão acontecendo na contemporaneidade torna-se relevante a prática de
ações reflexivas e dialógicas dentro e fora do contexto escolar. Nesta perspectiva, buscou-se a
partir desta pesquisa, possibilitar reflexões quanto aos binarismos de gênero produzidos e
reproduzidos no Facebook; permitindo assim problematizações quanto a importância e
abrangência dessa rede social para mobilizações quanto as normas de gênero estabelecidas em
nossa sociedade, bem como reconhecer esse espaço social como um campo de discussões, de
novos modos de pensar e repensar as questões de gênero.

Palavras-chave: binarismos de gênero – facebook – internet

Introdução
O interesse em pesquisar as questões de gênero na internet e analisar os binarismos de
gênero no Facebook surgiu a partir das discussões fomentadas nos encontros presenciais e
virtuais do Curso de Especialização em Gênero e Diversidade na Escola - GDE, financiado pelo
Ministério da Educação e ofertado pela Universidade Federal de Minas Gerais. Oferecido na
modalidade semipresencial, o GDE foi ofertado aos profissionais da educação básica da rede
pública de ensino de Minas Gerais, tendo por objetivo fomentar a capacidade crítica e
emancipatória dos cursistas de compreenderem e se posicionarem diante das transformações
políticas, econômicas e socioculturais.
O Curso, ofertado entre 2014 e 2016, possibilitou várias discussões, o
compartilhamento de experiências, de saberes e muitas angústias. Muitos professores cursistas
apresentavam os mesmos sentimentos e dificuldades quanto ao fazer pedagógico. Apontavam as
questões de se trabalhar a sexualidade e as relações de gênero na escola como mais um dos
desafios do ensino escolar. Os estudos compartilhados nesse curso trouxeram grandes
contribuições acerca dos binarismos de gênero presentes no contemporâneo.
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149
Os binarismos de gênero são expectativas que se criam daquilo que se espera de um
sujeito. As identidades sociais da mulher e do homem são construídas através de papéis que a
sociedade espera que as diferentes categorias de sexo cumpram. A sociedade delimita e reitera
os campos em que homens e mulheres podem atuar, bem como os comportamentos que os
mesmos devem ter. Os binarismos de gênero marcados pela matriz heterossexual estão
presentes em nossa sociedade, sendo produzidos e reproduzidos nos mais diversos tipos de
relações (SAFFIOTI, 1987).
Nos últimos anos, novos processos de comunicação e interação foram proporcionados
pela tecnologia. A sociedade contemporânea vive em rede, uma vez que, a maioria das pessoas
estão conectadas, produzindo e reproduzindo informações o tempo todo. As redes sociais,
como o Facebook, têm vindo a constituir-se como um espaço alternativo, onde se fazem e
reforçam amizades e que, como espaço social que são, dão igualmente lugar a processos de
construção de identidade dos jovens (PORTO E SANTOS, 2014). Assim, torna-se relevante que
os professores contemporâneos atentem às formas de se utilizar a internet e outras tecnologias
como ferramentas de mobilização e problematização das transformações sociais e não apenas
como recursos para informatização das aulas.
A fim de identificar e analisar os binarismos de gênero (re) produzidos no Facebook
buscou-se apresentar discussões quanto as transformações possibilitadas pela tecnologia e
analisar recortes de posts de usuários em páginas do Facebook, autodenominadas feministas,
que evidenciam normas de gêneros (re) produzidas nesse espaço. Considerou-se para a
realização da pesquisa os estudos sobre Feminismo, Gênero e Internet.

Feminismo

O Feminismo é um movimento que produz sua própria teoria e reflexão crítica. É conhecido
a partir das suas próprias ações e da produção teórica feminista nas áreas da História, Ciências
Sociais, Crítica Literária e Psicanálise (PINTO, 2010). ―Em sentido amplo, feminismo ou
feministas designam aqueles e aquelas que se pronunciam e lutam pela igualdade dos sexos‖
(PERROT, 2015, p.154).
O feminismo procurou, em sua prática enquanto movimento, ―superar as formas de
organização tradicionais, permeadas pela assimetria e pelo autoritarismo‖ (ALVES, 1981, p.8).
Luta contra um sistema sexual que se objetiva e materializa nos âmbitos da sociedade onde
mulheres se encontram em situação de menor poder que os homens e contra um conjunto de
dispositivos que interferem na sociedade, com finalidade de manter o patriarcado (MAYORGA,
2008).

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

150
O movimento feminista que temos hoje mudou muito. ―O feminismo brasileiro vem
mudando a cada dia, a cada enfrentamento, a cada conquista, a cada nova demanda, em uma
dinâmica impossível de ser acompanhada por quem não vivencia suas entranhas‖ (COSTA,
2005, p.9).

Gênero

Gênero é um conceito que nasce a partir das discussões do movimento feminista. Os


movimentos feministas trouxeram grandes contribuições para a nossa sociedade, contudo,
colocaram em discussão valores culturais, tais como o rompimento dos modos de ser e viver da
mulher em nossa sociedade e os questionamentos acerca das marcas da diferença entre homens
e mulheres (MISKOLCI, 2010).
O conceito gênero também pode ser compreendido como uma categoria que serve para
analisar as diferenças percebidas entre os sexos, portanto, uma categoria de análise das relações
sociais. Como elemento constitutivo de relações sociais baseado nas formas de como a
sociedade vê o homem e a mulher, o gênero permite a noção de fixidade e de opressão que leva
a aparência de uma permanência externa na representação binária dos gêneros nas instituições e
organizações sociais, tais como a família, a escola e as redes sociais.
A construção dos corpos masculinos ou femininos é marcada pela linguagem,
estabelecida nas relações de poder e na repetição de atos e gestos com a finalidade de naturalizar
e reforçar os binarismos de gênero (BUTLER, 2013). Pode-se compreender gênero a partir da
perspectiva de que o corpo e os sujeitos são construídos pela reiteração de normas através de
processos identificatórios. Esses processos consistem em se afirmar o que se é, mas também o
que se não é. Os sujeitos se constituem, logo, a partir de uma matriz excludente (LOURO,
2000).

Gênero na Internet

Os seres humanos criam e recriam significados por meio da articulação entre seu
ambiente natural e social, conectando pensamentos, ideias e sentimentos a partir dos processos
de comunicação. Com a transformação dos processos de comunicação surge uma sociedade
hipersocial, onde as tecnologias estão presentes no cotidiano, conectando o mundo real ao
virtual. Para os jovens contemporâneos as redes sociais compreendem a continuação de suas
vidas offline. Os mundos reais e virtuais fundem-se ampliando perspectivas de novas interações,

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

151
relacionamentos e comunicação. Novos conceitos são criados caracterizando as formas
contemporâneas de sociabilidade e de noções de privacidade, constituindo assim mudanças
expressivas em nosso funcionamento social e mental (PORTO E SANTOS, 2014).
Atualmente, estar nas redes sociais constitui uma forma de gerir a própria identidade,
estilo de vida e relações sociais. Quando um jovem faz comentários positivos sobre os seus
amigos, está a favorecer a possibilidade de também os seus amigos fazerem comentários
positivos sobre si próprio. Desta forma, entre outras, assiste-se nestas redes à co-construção de
identidade, processo em que a relação com os pares assume particular relevância (PORTO E
SANTOS, 2014, p.35).
Para a realização da pesquisa foram selecionados posts e comentários de usuários em
três páginas do Facebook. Para a preservação da identidade dos usuários, seus nomes bem como
os nomes das páginas não serão divulgados. A escolha dos posts se deu a partir da observação
dos conteúdos abordados e a relevância dos mesmos quanto às discussões dos binarismos de
gênero ainda presentes em nossa sociedade: o primeiro post selecionado está relacionado à
ascensão profissional das mulheres, o segundo post quanto à dinâmica da opressão que leva a
submissão e o terceiro, quanto aos direitos das mulheres ainda não permanentes e a importância
de sua intensa vigilância.
O primeiro post selecionado destaca a ascendência profissional das mulheres e
apresenta um grande exemplo de suas conquistas ao longo dos anos. É um relato sobre a
composição de mulheres na equipe de astronautas da NASA. Por muito tempo a posição que a
mulher ocupava era a de inferioridade (o que ainda encontramos em muitos contextos
contemporâneos). A sociedade delimitava e reiterava os campos em que homens e mulheres
poderiam atuar bem como os comportamentos que os mesmos deveriam ter. As mulheres eram
camponesas e trabalhavam na zona rural. Por influência do mercado, das comunicações, da
industrialização e do êxodo rural, a vida nos campos muda e a das mulheres também. A partir
daí as mulheres passaram a assumir outros trabalhos. Com o advento do Feminismo e o passar
dos anos, as mulheres assumiram comportamentos e posições sociais antes impensáveis.
No primeiro comentário de um usuário, sobre o fato da presença de mulheres na equipe
de astronautas da NASA, foi possível observar mais uma das formas de discriminação em
relação aos movimentos feministas e das conquistas das mulheres ao longo dos anos: ―E
ninguém reclamou que nenhuma delas é negra? Ou lésbica, ou trans, ou deficiente, ou sei lá o
que mais que vocês, desocupadas tanto reclamam...‖ (Página 1 – B.F – Post publicado em 14 de
janeiro de 2016). O usuário com identificação masculina se utiliza dessa ―falha‖ para
desqualificar toda questão.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

152
O segundo post apresenta uma imagem e uma frase que objetivam destacar a dinâmica
de opressão sofrida pelas mulheres em nossa sociedade. Sinaliza a importância de se observar a
imposição dos papéis de gênero firmemente fixados em nossa sociedade. Percebeu-se nos
comentários que a divisão dos papéis de gênero socialmente constituídas em nossas relações
ainda existe e mobiliza grandes discussões.
Nos dois primeiros comentários, de perfis com identificação masculina, os usuários
corroboram a ideia da matriz heterossexual, que atribui caraterísticas, gestos e ações de cada
gênero: ―HOMEM, sempre será o "Homem da casa" e "macho alpha" porém sempre mantendo
respeito ao sexo oposto...‖ (Página 2 - F S D – Post em 25 de janeiro de 2016). Os
comentaristas também levantam críticas relacionadas ao fato de algumas mulheres só aderirem
às ideias dos movimentos por não conseguirem relacionamentos estáveis. Um dos usuários
acredita que o simples fato de algumas mulheres não se relacionarem seja motivo de lutarem
pela destruição da sociedade patriarcal e opressora: ―Se chama síndrome de Feminazi, ela ataca
mulheres de idade entre 19 a 40 anos de idade. Existem dois tipos de vítimas. O primeiro tipo
geralmente fracassou na dieta e não arranjou homem e por conta disso quer destruir a
sociedade patriarcal e opressora. O segundo tipo são as mulheres de meia idade que não
conseguiram se casar, são de humanas, vivem sozinhas com gatos e bebidas e por conta da sua
amargura também quer destruir a sociedade patriarcal opressora” (Página 2 - F S D – Post em
25 de janeiro de 2016).
No terceiro comentário, o usuário (perfil feminino) afirma que as mulheres são
educadas para serem submissas. Desde a infância, são realizadas imposições às mulheres, no
sentido de eliminar qualquer tendência que fuja das características então ditas femininas: ―As
mulheres são educadas por suas famílias para serem submissas, sob o pretexto de encontrarem
sua cara metade. Triste realidade...” (Página 2 - F S D – Post em 25 de janeiro de 2016). O
comentarista pressupõe a ideia dos papéis bem definidos, sem ideais de igualdade e partilha
entre os gêneros. Já no quarto comentário, com identificação feminina, o usuário concorda que
as mulheres não devem ser submissas e comenta que os tempos mudaram: ―Concordo que não
devemos ser submissas! Devemos lembrar também que os tempos mudaram muito e agora é
talvez ao inverso... conheço muitas mulheres incríveis que acabam sustentando o marido e os
filhos! E ressaltando, mulher que é mulher consegui tudo que quer basta usar a cabeça!”
(Página 2 - F S D – Post em 25 de janeiro de 2016)
O terceiro post traz a seguinte frase de alerta de Simone de Beauvoir: ―Nunca se
esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres
sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

153
durante toda a sua vida‖. Esse alerta corrobora a ideia de que apesar de tantas conquistas e
avanços quanto as políticas de direito das mulheres, ainda caminhamos a passos lentos.
A definição de violência contra a mulher no Brasil surgiu na década de 80. O
movimento feminista trouxe à tona os conflitos e a violência percebidos entre homens e
mulheres como resultados de uma relação de dominação. A questão de desigualdade, ainda
encontra muitas resistências nas práticas e nos saberes que compõem o campo de aplicação e
efetividade das leis, como visualizamos em dois comentários de usuários com identificação
feminina: “E aqui onde moro, que só esse ano começou a funcionar um local para atender
mulheres vítimas de violência, porque o Governo do estado está com uma campanha por causa
do número crescente de feminicídio. Eu moro na Bahia”, “Aqui não tem ainda, e muito se vê de
casos assim. Interior da Bahia”. E mesmo diante da complexidade da questão, um usuário
(perfil masculino) questiona: ―Me diz um direito que as mulheres não tem q os homens tem?”
(Página 3 – E D M – Post em 22 de fevereiro de 2016).
Nos comentários selecionados percebeu-se a necessidade de políticas públicas mais
efetivas, a fim de reduzirem a violência contra as mulheres em nosso país e a ideia de que os
questionamentos acerca dos direitos das mulheres só aparecem quando outros movimentos estão
em discussão.
Os meios de comunicação de massa, como a internet de forma geral e as redes sociais
surgem como suportes de grande importância e abrangência para a discussão das temáticas de
gênero que direcionam e naturalizam a presença dos binarismos de gênero. Desse modo, torna-
se necessário ―fugir das armadilhas impostas pelas normas e convenções sociais, por toda uma
prática social e uma produção cultural que direcionam e relacionam o feminismo e o gênero sem
o entendimento da liberdade dos corpos‖. (BERNARDES, 2014, p.12)
Percebe-se que o Facebook tem sido um espaço de grande importância e a abrangência
para as discussões acerca da visibilidade das mulheres em nossa sociedade como também das
formas de opressão ainda existentes. A rede social virtual configura um espaço de produção e
reprodução dos binarismos, uma vez que por meio dos posts e comentários analisados foi
possível perceber a dificuldade ainda permanente de elaboração de políticas públicas efetivas de
atenção às mulheres, as formas de submissão e opressão ainda persistentes em nossa cultura e a
dificuldade de inserção da mulher no mercado de trabalho com condições de igualdade.
Problematizar as questões de gênero reforçadas pelos suportes midiáticos ainda é um
grande desafio. Torna-se necessário reflexões quanto a abrangência e a importância do
Facebook, como uma rede social virtual que possibilita a reafirmação de ideias e pensamentos.
É preciso reconhecer esse espaço social como um campo de discussões, de novos modos de

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

154
pensar e repensar as questões de gênero e não simplesmente como mais um marcador normativo
das diferenças entre os gêneros.

REFERÊNCIAS

ALVES, B. M.; PITANGUY, J. O que é feminismo. São Paulo: Brasiliense, 1981.

ARAÚJO, J. B. A desconstrução dos processos identitários dos gêneros sexuais em Judith


Butler. Revista Multidisciplinar da Uniesp. Saber Acadêmico – n º 11 - Jun. 2011/ ISSN 1980-
5950 .Disponível em: www.uniesp.edu.br/revista/revista11/pdf/artigos/03.pdf. Acesso em 20
jun. 2015.

BERNARDES, M. Uma reflexão inicial sobre feminismo na internet: gênero e corpo. 4º


Encontro de GTs- Comunicon, realizado nos dias 08, 09 e 10 de outubro de 2014. Universidade
do Vale do Rio dos Sinos.

BEAUVOIR, S. O segundo sexo: fatos e mitos. 4ª ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro,
1970.

BUTLER, J. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade; Trad. Renato


Aguiar. 6º ed. Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 2013.

____. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade; Trad. Renato Aguiar. –


2º ed. – Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 2008.

CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet.


Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. 271 p.

COSTA, A. A. A. O movimento Feminista no Brasil: Dinâmicas de uma Intervenção


política, 2005. Disponível em: http://www.ieg.ufsc.br/admin/downloads/artigos/01112009-
115122costa.pdf. Acesso em 27 de fevereiro de 2016.

DEBERT, G. G.; GREGORI, M. F. Violência e gênero: novas propostas, velhos dilemas.


Revista brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 23, n. 66, fev. 2008.

FOUCAULT, M. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro:


Graal, 1988.

LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pós-estruturalista.


Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

____. O corpo educado: Pedagogias da Sexualidade. 2ª Edição. Autêntica: Belo Horizonte,


2000.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

155
MAYORGA, C. O feminismo e as lutas pelos direitos sexuais. Núcleo de Psicologia
Política/UFMG Maio 2008. Aula 1.

MISKOLCI, R. (org). Marcas da Diferença no Ensino Escolar. São Carlos: EdUFSCAR,


2010.

MONTE, I. X. O debate e os debates: abordagens feministas para as relações


internacionais relações internacionais. Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 424, janeiro-
abril/2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
026X2013000100004. Acesso em 13 de março de 2016.

PERROT, M. Minha História das Mulheres. 2.ed. 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2015.

PINTO, C. R. J. Feminismo, História e Poder. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 18, n. 36., p. 15-
23, jun. 2010.

PÖTTKER, É. S. Gênero, sexualidade e educação: em torno da normalização. Programa de


Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná. Curitiba: 2001.

PORTO, C., e SANTOS, E., orgs. Facebook e educação: publicar, curtir, compartilhar.
Campina Grande: EDUEPB, 2014, 445 p.

SAFFIOTI, H. O Poder do Macho. São Paulo: Moderna LTDA, 1987.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

156
Reminiscência e memória em Black Mirror: uma discussão metapsicológica

Érica Silva do Espírito Santo


Olívia Loureiro Viana

Resumo
Este trabalho propõe uma discussão sobre a memória à partir do episódio The entire
history of you, da série britânica Black Mirror e à partir de textos metapsicológicos. O
objetivo é realizar uma leitura freudiana de um fragmento da cultura contemporânea,
com enfoque nas aproximações e distanciamentos entre a interferência dos aparatos
tecnológicos na sociabilidade e as descrições de Freud sobre o aparelho psíquico. A
hipótese deste texto é que o episódio em questão apresenta uma tecnologia que visaria
certo apagamento do inconsciente.

Palavras-chave: Metapsicologia freudiana; Black Mirror; Reminiscências; Cultura


Digital.

A série britânica Black Mirror, exibida desde 2011, causa impressão a quem
quer que se proponha a assisti-la. Com seus episódios independentes, o que não obriga o
espectador a acompanhar a sequência de uma história, ela traz especulações sobre um
futuro próximo, encharcado de diversos avanços tecnológicos. Portanto, nos parece
bastante relevante discuti-la a partir da metapsicologia no Simpósio de Psicanálise e
Cultura Digital
A teoria psicanalítica explica a construção do que denomina reminiscências e
por que essas lembranças suspeitas traziam sofrimento corporal às histéricas. (FREUD,
1893). Nosso trabalho expande essa discussão em aspectos mais contemporâneos à
partir da análise do episódio 3 da primeira temporada da série, intitulado The entire
history of you (―Sua história total‖). Neste episódio, as pessoas têm um grão implantado
atrás da orelha - que serve como um aparelho de armazenamento de memória, acessado
com a ajuda de um botão externo e visualizado internamente (pelo olho) ou
externamente (por uma tela). As cenas são gravadas pelos olhos e ouvidos quando a

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

157
pessoa se encontra em estado de vigília. Assim, alguém pode acessar suas antigas
lembranças e mostrá-las aos outros em uma tela.
O episódio se inicia com uma cena de entrevista de emprego. Liam, o
personagem principal, é advogado. Na entrevista ele é interpelado se seria capaz de
fazer um trabalho, aparentemente questionável do ponto de vista ético ou moral, pois
teria que ficar vasculhando os arquivos dos grãos dos clientes para encontrar provas de
que seus pais foram negligentes.
Liam sai da entrevista e vai correndo para encontrar sua esposa, Fiona, em uma
festa na casa de amigos dela. No caminho podemos perceber a magnitude do ―grão‖ na
vida das pessoas, pois é inclusive um mecanismo de vigilância utilizado pela polícia. Ao
passar por um posto de controle de um aeroporto ou uma estação de trem, o personagem
deve mostrar as lembranças de suas últimas horas.
Fiona, chamada sempre por seu apelido ―Fi‖, está na festa esperando por ele e é
a partir de uma cena que ocorre durante o jantar que podemos refletir sobre o aparelho
psíquico, não apenas nesse episódio da série, mas também, em alguma medida, na
alteração dos novos modos de comunicação e da vida social imersa no mundo virtual
contemporâneo.
Na festa, chega uma única pessoa que não faz uso do grão, pois teve o seu
arrancado em um assalto. Em um diálogo sobre isso, uma das personagens diz que a
necessidade de uso do grão é uma questão de confiabilidade das lembranças, uma vez
que metade das memórias orgânicas são lixo e que é possível induzir uma pessoa sem o
grão a se lembrar de coisas que nunca aconteceram. É a partir desse ponto que nos
parece claro se tratar de um mecanismo contra o inconsciente, contra as interferências e
deformações da fantasia sobre a memória, como se fosse possível o acesso a uma
lembrança pura, intacta.
Freud, na Carta 52, datada de Viena, 6 de dezembro de 1896, ao relatar a Fliess
suas hipóteses sobre os mecanismos psíquicos, escreve:

...o material presente em forma de traços da memória estaria sujeito, de


tempos em tempos, a um rearranjo segundo novas circunstâncias - a uma
retranscrição. Assim o que há de realmente novo a respeito da minha teoria é
a tese de que a memória não se faz presente de uma só vez, mas se desdobra
em vários tempos; que ela é registrada em diferentes espécies de indicações.
(Freud, 1996, p.281)

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

158
Um pouco mais adiante na Carta, ele acrescenta:

Gostaria de acentuar o fato de que os sucessivos registros representam a


realização psíquica de épocas sucessivas da vida. Na fronteira entre essas
épocas deve ocorrer uma tradução do material psíquico. (...) Cada transcrição
subsequente inibe a anterior e lhe retira o processo de excitação. Quando falta
uma transcrição subsequente, a excitação é manejada segundo as leis
psicológicas vigentes no período anterior e consoante as vias abertas nessa
época. Assim, persiste um anacronismo: numa determinada região ainda
vigoram os ―fueros”, estamos em presença de ―sobrevivências‖. (idem)

O episódio da série Black Mirror, que tem por título a ideia de englobar toda a
história, dar conta de sua completude, faz alusão a algo dessa estratificação, porém com
o uso de um instrumento que parece exatamente eliminar as possibilidades de erro no
processo de produção e armazenamento dessa memória. Algo semelhante nos parece
ocorrer com artifícios que já existem, quando pensamos sobre os efeitos de se fotografar
atualmente cada etapa da vida, tendo como efeito a impressão de que se algo não foi
fotografado e postado, não aconteceu ou não teve tanto valor. Tais artifícios deixam
efeitos nas formas de se relacionar com as próprias memórias.
No texto ―O Inconsciente, Freud diz que a lembrança latente é "um indubitável
resto de um processo psíquico‖. (FREUD, 2010 [1915], p.102). Em seguida, ele coloca:
"...ideias consistem em cargas investidas - basicamente em traços de lembranças - ao
passo que os afetos e sentimentos correspondem a processos de descarga cujas
manifestações finais são percebidas como sensações" (idem, p.30). Podemos pensar,
assim, que a função do grão seria possibilitar o desinvestimento libidinal dessas ideias.
No lugar de traços de lembranças, haveria apenas as lembranças, sem o traço ou
vestígio. Além disso, parece uma tentativa de localizar em um só local, em um aparato
tecnológico, o armazenamento da memória humana, o que interferiria diretamente na
topografia, economia e dinâmica psíquica. Nossa hipótese é, portanto, que o grão seria
uma tecnologia que visaria suprimir o inconsciente.
Se a descoberta do inconsciente foi, segundo o próprio Freud, a terceira grande
afronta ao narcisismo humano pelo pensamento científico (FREUD, 2010 [1917],
p.245), podemos pensar o grão - e outras tecnologias que já se encontram ao nosso
alcance - como uma tentativa de restituição da ideia de um sujeito plenamente
consciente, senhor da verdade, inclusive da verdade sobre si. Entretanto, a operação é
falha - as alternativas contemporâneas que visam suprir ou reduzir o espaço da lacuna

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

159
acabam por enfatizar o vazio, criando finalmente uma armadilha de dependência. Como
assistimos no episódio The entire history of you, o grão é um recurso que serviria para
garantir ao sujeito alguma soberania sobre si mesmo, mas acaba tornando-o escravo, ou
mesmo viciado no próprio dispositivo que prometeu libertá-lo. É o que podemos
perceber, por exemplo, na cena de sexo em o casal de personagens passa todo o tempo
com o dedo plugado ao pequeno controle remoto que dá acesso ao infinito de
armazenamento de imagens. Cena que nos pareceu fundamental para considerarmos a
falha no próprio dispositivo.
Segundo J.B. Pontalis (1999), todas nossas lembranças são encobridoras e
garantem nosso sentimento de continuidade pessoal:

Não que escondam outras, anteriores, como afirmamos com frequência, mas
porque, em seu estatuto de pequena cena, de quadro que oferece uma certa
forma que permite sua evocação, ao mesmo tempo contêm e dissimulam
(servem de cobertura a) traços. É a estes traços, a estes detalhes sensíveis
aparentemente insignificantes e na verdade super-significantes [...] que a
lembrança deve sua vivacidade. (PONTALIS 1999, p.7).

Ora, se são o caráter encobridor e a super-significação de certos traços da


lembrança que garantem a ideia de continuidade de si, o armazenamento organizado
falha exatamente na proposta de encobrir as lacunas do próprio sujeito. Um exemplo
disso é a cena em que, durante uma briga, Liam diz a Fiona "às vezes você é uma
vadia". Ela sai da sala e, enquanto ele pede desculpas, ela repete para ele a recente
lembrança: "você é uma vadia", diversas vezes. E ele responde: "às vezes! Você não
pode editar". Vemos aí que até mesmo o grão está submetido a essa super-significação,
ao afeto, ao rearranjo.
Se há uma estratificação, uma justaposição das temporalidades do inconsciente
como ruínas sobrepostas, o acesso à memória na linha do tempo do armazenamento
também não consegue equalizar esses tempos. Na mesma briga, o casal acessa uma
memória antiga, de sua primeira noite juntos, para que Liam desminta Fiona sobre algo
dito por ela. Ao revisitarem essa lembrança depois de novos acontecimentos, Liam diz:
"essa era uma ótima memória". Mais uma vez, as recordações antigas continuam
completamente permeáveis ao depois, ao a posteriori.
Concluímos, então, que apesar de enunciar um avanço tecnológico, esse
episódio de Black Mirror nos mostra a solidez do mais forte golpe ao narcisismo. Dessa

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160
maneira, o suposto apagamento do inconsciente que restituiria o indivíduo a seu
centramento, a uma unidade perdida - seja pelo sujeito em sua história individual, seja
pela noção de humano em sua história ampla - , acabou por não atingir seu fim. Trata-se
de mais uma tentativa de preencher a lacuna que acaba por revelar exatamente aquilo
que pretende esconder, o que pode ser concluído a partir da cena final do episódio em
que Liam retira, ele mesmo, munido de alicate e lâmina, o grão. Isso para tentar retirar
de sua história uma parte tão importante quanto devastadora, a lembrança de sua
decepção amorosa.
Para além das questões de temporalidade, dinâmica, topografia e economia
psíquica que aqui discutimos, resta ainda outra lacuna do grão. Se ele registra o que
vemos e ouvimos - nos permitindo rever e reouvir a memória -, ele parece imune a
outras dimensões da experiência. O casal pode acessar as memórias de seu neném e
controlar as idas e vindas da babá quando ele chora. Mas não pode, nunca, acessar a
memória do cuidado que é gravado não por um aparato tecnológico, mas pelo corpo.

Referências

FREUD, S (1940-41[1892]). Esboços para a ―Comunicação preliminar‖ de 1893. IN:


Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v.
1. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 189-198

FREUD, S (1896). Carta 52. IN: Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud. v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 281-187

FREUD, S (1915). O inconsciente. IN: Introdução ao narcisismo: ensaios de


metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
p.99-150.

FREUD, S (1917). Uma dificuldade da psicanálise. IN: História de uma neurose


infantil: (“O homem dos lobos”) : além do princípio do prazer e outros textos
(1917-1920). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 240-251.

PONTALIS, J. ISSO em letras maiúsculas. IN: Revista Percurso. N. 23. 2/2009. Pp.5-
15.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

161
Segregação e virtualidade

Raquel Marinho62

Resumo:
O breve trabalho aqui apresentado está dividido em duas partes. A primeira é uma
exploração quanto a ideia de segregação e generalização adolescente – tema de nossa
pesquisa de doutorado63 – a partir de Jaques Lacan em ―Alocução sobre as psicoses da
criança‖. A segunda compreende perguntas ainda incipientes a respeito de uma possível
relação dessa temática com o funcionamento das redes sociais virtuais, a exemplo do
Facebook, quando nos referimos a Zygmunt Bauman.

Palavras-chave: Segregação, corpo, adolescência, virtualidade.

A segregação: adolescente generalizado?

Em 1967, Jacques Lacan, no escrito ―Alocução sobre as psicoses da criança‖,


aponta um equívoco nos modos como a noção de liberdade vinha sendo considerada:

[...] O fator de que se trata é o problema mais intenso de nossa época, na


medida em que ela foi a primeira a sentir o novo questionamento de todas as
estruturas sociais pelo progresso da ciência. No que, não somente em nosso
próprio domínio, o dos psiquiatras, mas até onde se estende o nosso universo,
teremos que lidar, e sempre de maneira mais premente, com a segregação.
(LACAN, 2003, p. 360).

Ele assim indica que o efeito de uma certa busca pela liberdade não é bem o que
se experimenta como liberdade, visto que resulta em dificuldades de laços entre homens
que ocupam um mesmo espaço, geográfico e até familiar. Dificuldades que se tornariam
cada vez mais presentes, caracterizando a segregação como nova ordem mundial
(LAIA, 2015) e desafiando a resposta a ser dada pelos psicanalistas.

62
Psicóloga, psicanalista, especialista em Teoria Psicanalítica pela UFMG, mestre em Psicologia Social
pela PUC-SP e doutoranda em Estudos Psicanalíticos na UFMG.
63
A tese ―Adolescente generalizado?‖ vem sendo pesquisada sob a orientação da Professora Dra. Andréa
Máris de Campos Guerra.
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

162
Afinal, há uma ética na base da psicanálise, que implica seu ―principal
tormento‖: o fato de que ―toda formação humana tem, por essência, e não por acaso, de
refrear o gozo‖ (LACAN, 2003, p. 362), quer dizer, de delimitar, por via da linguagem,
a afetação dos corpos. Nesse sentido é interessante sublinhar o que mais adiante ele
toma como um problema levantado pela época, dado que exatamente relacionado à
concepção de corpo:

Problemas do direito de nascimento, por um lado, mas também, no impulso


do ―teu corpo é teu‖, no qual se vulgarizou no início do século um adágio do
liberalismo, a questão de saber se, em virtude da ignorância em que é
mantido esse corpo pelo sujeito da ciência, chegaremos a ter o direito de
desmembrá-lo para troca. (LACAN, 2003, p. 367, grifos nossos).

E então Lacan se pergunta, como consequência dessa ignorância corporal, sobre


a generalização do termo criança, sugerindo a ideia de uma subjetividade que não chega
a se adultizar, o que, por sua vez, qualificaria ―a entrada de um mundo inteiro no
caminho da segregação‖. (LACAN, 2003, p. 367).
Contudo, não seria a adolescência o que se encontra na travessia da infância à
vida adulta? Por que a ela Lacan não se referiu? É certo que a adolescência, tal como
hoje a conhecemos no mundo ocidental, nem sempre existiu. Nas sociedades
tradicionais, a passagem de condição de criança para de adulto era feita por meio de
rituais iniciáticos, isto é, momentos em que os corpos dos jovens eram tomados pelo
coletivo e submetidos a provações físicas dolorosas, marcações e alterações,
simultaneamente à transmissão por ancestrais de um saber de mitos, de valores, de
como proceder como homem e como mulher. Dessa forma, é como se os corpos, no
tempo da puberdade, fossem deslocados ao social e a realização da metamorfose física
provocasse uma mudança de identidade e permitisse o acesso às relações sexuais, além
da participação nas relações comunitárias.
Logo, as características da transição à vida adulta nas sociedades marcadas pela
tradição, de um corpo que se torna inscrito no social, pertencido pelo coletivo, são
distintas na sociedade moderna ocidental com sua sentença liberalista ―teu corpo é teu‖.
Aliás, cabe destacar que inclusive nas primeiras, os que não passavam pelas
cerimônias de iniciação permaneciam considerados crianças ou mesmo chegavam a ser
expulsos da convivência social. Mas, nas palavras lacanianas, a ausência de ―gente

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

163
grande‖ (LACAN, 2003, p. 367) e a segregação, que nessas coletividades eram vividas
como exceção à regra, passaram a qualificar a subjetividade atual.
Seria, portanto, por referência às sociedades tradicionais, em que a adolescência
não existia, que Lacan propõe a generalização do termo criança? E se o intuito é
pensarmos a sociedade ocidental na atualidade, caberia supor o termo adolescente
generalizado?
Lembremos que a adolescência surge na modernidade, enquanto espaço
intervalar entre a infância e a vida adulta. E sua consolidação ocorre ao longo do século
XIX, junto a intensas transformações das relações públicas e privadas na sociedade
ocidental, que vivia avanços da industrialização e do capitalismo.
A figura do adolescente moderno é, pois, uma consequência do enfraquecimento
da tradição, da imago social do pai, da vida pública e coletiva. É resultado da
obsolescência e mesmo ausência de uma transmissão de saber sobre o que fazer com o
corpo no momento da puberdade. Por isso, não é sem motivos caracterizado como um
sujeito em crise, tomado por intensas emoções aflitivas, a exemplo de como é ilustrado
por Jean-Jacques Rousseau em ―Emílio, ou, Da Educação‖ (1762):

Mas o homem, em geral, não foi feito para permanecer sempre na infância.
Dela sai no tempo indicado pela natureza, e esse momento de crise, embora
muito curto, tem longas influências. Como o mugido do mar precede de
longe a tempestade, essa tempestuosa revolução é anunciada pelo murmúrio
das paixões nascentes; uma fermentação muda anuncia a aproximação do
perigo. Uma mudança no humor, arroubos frequentes, uma contínua agitação
de espírito tornam a criança quase indisciplinável. Torna-se surda à voz que a
fazia ficar dócil; é um leão em sua febre; desconhece seu guia, já não quer ser
governada. (ROUSSEAU, 2014, p. 286).

Podemos dizer, assim, que um sujeito adolescente vive a maturação sexual


biológica de forma bastante diversa de um jovem de sociedade tradicional. Enquanto o
segundo, além de sofrer uma interferência social no corpo próprio, recebe uma
orientação de como proceder na vida, o primeiro não encontra na cultura ―liberal‖ uma
explicação a respeito do que começa a experimentar no corpo e no pensamento.
Situação, portanto, que resulta enviando-o a um vazio, a uma ausência de palavras, a um
sentimento de exílio, de inadequação, de não pertencimento – ou melhor, de estar
segregado, separado do mundo e da vida.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

164
Em outras palavras, o aparecimento dos caracteres sexuais secundários é sentido
pelo adolescente enquanto ruptura de um corpo estranho, visto que, além de novo, não
conta com um sentido comum que possa traduzi-lo. Isso implica que na sociedade
ocidental cada um deve inventar uma forma de se virar com o corpo que possui,
construindo um sentido, um saber sobre o mesmo. Ou, para ser mais precisa,
responsabilizando-se pelo seu modo de gozo, pela afetação do seu corpo. Seria isso,
aliás, que faria de um sujeito uma ―pessoa grande‖, conforme esclarece Eric Laurent:

[...] existe algo que separa a criança da pessoa grande; certamente não é a
idade, nem o desenvolvimento, tampouco a puberdade. No fundo, o que
separa a criança da pessoa grande é a ética que cada um faz de seu gozo. A
“grande personne” é aquela que se faz responsável por seu gozo.
(LAURENT, 1994, p. 32, grifos do autor).

Se por um lado, porém, devemos considerar que a adolescência é o tempo, não


exclusivo, mas privilegiado de construção desse saber – já que a puberdade levanta a
questão de como lidar com o corpo maturado nos relacionamentos –, por outro
perguntamos como vem ocorrendo numa cultura liberalista. As pessoas tem construído
uma saber sobre o gozo que experimentam? Ou permanecem adolescentes, ainda por
saberem o que vivem em seus corpos?
Cabe retomar Lacan em 1967 que, sem desconsiderar a relação da ciência com o
capitalismo, aponta que ela mantinha o corpo na ignorância, ou seja, como um objeto de
aplicação do seu conhecimento, sem apropriação de um saber pelo sujeito. Lacan,
entretanto, não viveu a revolução digital tal como a presenciamos hoje. E dessa forma,
indagamos: o fenômeno das redes sociais virtuais, que aparenta imperar como forma
atual de relação entre os homens, está relacionado à segregação? Favorece um saber
sobre o gozo? Ou contribui para o desconhecimento dele?

As relações virtuais: segregativas?

TAMBÉM entrei na brincadeira! A proposta é fazer um pequeno teste para


ver quem lê as mensagens quando elas não possuem fotos. Portanto, se você
está lendo esta mensagem, faça um comentário utilizando uma única palavra
sobre como nos conhecemos. Uma única palavra, por favor. Em seguida,
copie esta mensagem para o teu mural para que eu possa deixar uma palavra,
ok? (PIRAGIBE OFICIAL, 2015, grifos nossos).

O trecho acima refere-se a um post publicado no Facebook na qualidade de uma


corrente, isto é, levando a sua republicação por alguns, muitos talvez, que se depararam

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

165
com ele. Como se pode notar, a intenção era provocar as pessoas a se manifestarem,
confirmando que o leram. Logo, quem o criou, ou mesmo quem o republicou,
possivelmente acredita que vários dos seus amigos dali não lêem suas postagens,
quando não acompanhadas de uma imagem.
Inclusive chama a atenção que a manifestação de quem leu deveria ser uma
única palavra a respeito de como conheceu quem publicou. Ou melhor, não poderia ser
qualquer demonstração, mas uma que trouxesse a lembrança de como estabeleceram
uma ―amizade‖ (um contato, uma relação).
O que tal passagem, se a consideramos representativa do modo de
funcionamento das redes sociais virtuais – ainda que corramos o risco de um
reducionismo –, fala da relação entre as pessoas na atualidade? Afinal, estamos ―todos‖
ou ―quase todos‖ nelas conectados e, não raro, em variados períodos, no tempo de
alcance pelas mãos de nossos smartphones. O que ela não deixa de sugerir é que as
pessoas não se relacionam: não se lêem, não se lembram porque constam como amigos.
Nessa direção é que Zygmunt Bauman, em uma entrevista de 2015, concedida
ao jornal ―El País‖, comenta que ―as redes sociais são uma armadilha‖, já que nos fazem
achar que estamos conectados uns aos outros, quando, na verdade, não estamos. Em
seus termos:

[Falando sobre comunidade...] o que as redes sociais podem gerar é um


substituto. A diferença entre a comunidade e a rede é que você pertence à
comunidade, mas a rede pertence a você. É possível adicionar e deletar
amigos, e controlar as pessoas com quem você se relaciona. Isso faz com
que os indivíduos se sintam um pouco melhor, porque a solidão é a grande
ameaça nesses tempos individualistas. Mas, nas redes, é tão fácil adicionar e
deletar amigos que as habilidades sociais não são necessárias. Elas são
desenvolvidas na rua, ou no trabalho, ao encontrar gente com quem se precisa
ter uma interação razoável. Aí você tem que enfrentar as dificuldades, se
envolver em um diálogo [...]. As redes sociais não ensinam a dialogar
porque é muito fácil evitar a controvérsia... Muita gente as usa não para unir,
não para ampliar seus horizontes, mas ao contrário, para se fechar no que eu
chamo de zonas de conforto, onde o único som que escutam é o eco de suas
próprias vozes, onde o único que veem são os reflexos de suas próprias caras
[...]. (BAUMAN, 2015, grifos nossos).

Sendo assim, podemos falar que as redes sociais contem a segregação? São uma
forma de manter separados homens que ocupam um único espaço, geográfico e/ou
familiar, a exemplo de um transporte coletivo, uma mesa de restaurante ou até mesmo
um sofá? E se nelas é tranquilo evitarmos o contraditório, como fica a construção da

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166
conversa, da invenção de palavras, de um saber que rompa com um certo isolamento,
típico da adolescência, e comunique o que pensamos e sentimos?
Enfim, questões iniciais que merecem uma investigação mais detalhada.

Referências bibliográficas

BAUMAN, Zygmunt. “As redes sociais são uma armadilha”. 2015. Disponível em:
<http://brasil.elpais.com/brasil/2015/12/30/cultura/1451504427_675885.html?id_extern
o_rsoc=fb_CM>. Acesso em: 10 fev. 2017.

LACAN, Jacques. (1967). Alocução sobre as psicoses da criança. Outros Escritos (V.
Ribeiro, trad.). Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 359-368.

LAIA, Sérgio. O que é “Império”, o que são “imagens”. 2015. Disponivel em:
<http://oimperiodasimagens.com.br/pt/faq-items/o-que-e-imperio-o-que-sao-imagens-
sergio-laia/>. Acesso em: 10 fev. 2017.

LAURENT, Eric. Existe um final de análise para as crianças. Opção Lacaniana n° 10.
São Paulo: Eolia, 1994, p. 24-33.

PIRAGIBE OFICIAL, Maytê. 2015. Disponível em:


<https://www.facebook.com/maytepiragibeoficial/posts/938915659515046>. Acesso
em: 6 mar. 2017.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. (1762). Emílio, ou, Da Educação. (Roberto Leal Ferreira,


trad.) 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

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167
Terror à moda brasileira?

Os “terroristas” no Twitter antes das Olimpíadas Rio 2016

Roberta Firmino da Silva


Carlos d'Andréa

Resumo
A pesquisa se debruça sobre as repercussões do tema ―terrorismo‖ no Twitter nas
semanas que antecederam as Olimpíadas Rio 2016. Mais especificamente, nosso
objetivo é analisar as imagens associadas aos termos ―terrorista‖ e ―terroristas‖ pelos
usuários brasileiros dessa plataforma. As imagens publicadas nos tweets sobre
―terrorista(s)‖ foram identicadas em um dataset de 483.503 tweets coletados com a
ferramenta TCAT-DMI. Uma análise qualitativa das repercussões da Operação Hashtag
nos dias 21 e 22 de julho indicou a apropriação da linguagem jornalística típica dos
breaking news (―Polícia Federal prende grupo suspeito‖, por exemplo) para fazer
circular imagens de humor (fotos de personagens populares da TV brasileira) e crítica
política (políticos acusados de corrupção). Muitas vezes, as personalidades chamadas de
terroristas estavam vestidas com trajes muçulmanos, o que revela a islamofobia dos
tweets. De forma complementar, as diferentes associações do terror a políticos e
instituições do Estado parecem revelar um reconhecimento do estado de exceção
gestado a partir dos mega-eventos esportivos sediados no Brasil.

Palavras-chave: Terrorismo, Olimpíadas, Twitter, islamofobia, métodos digitais

A realização dos Jogos Olímpicos na cidade do Rio de Janeiro desencadeou um


extenso conjunto de discussões sociopolíticas em todo o país. Entre essas discussões,
destacamos neste artigo uma das controvérsias que parece ser inédita no Brasil: a
suposta ameaça de o país ser alvo de atentados terroristas internacionais. Motivado por
este cenário marcado por incertezas, o presente artigo se debruça sobre as repercussões
no Twitter em torno do tema ―terrorismo‖ nas semanas que antecederam os Jogos
Olímpicos Rio 2016. Nosso objetivo é, a partir de um dataset de 483.503 postagens do
Twitter, identificar que atores e referências são associados aos termos ―terrorista‖ e
―terroristas‖ durante um período de três semanas (7 a 28 de julho de 2016) antes das
Olimpíadas.
Identificamos que imagens (fotos, vídeos e gifs) foram mais associadas aos
tweets publicados nos dias em que hashtags relacionadas ao Brasil se destacaram (21 e
22 de julho) dentre os dias de maior ocorrência dos termos ―terrorista‖ e ―terroristas‖.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

168
Na análise das imagens, gifs e vídeos, os ―terroristas‖ são amplamente associados a
autoridades brasileiras, o que ocorre em diálogo com o contexto político no país à época
(o impeachment da presidenta Dilma e a posse do governo por Michel Temer).
Islamofobia e outras formas de preconceito são evidentes na maioria dessas críticas a
políticos. Os dados coletados apontam ainda para uma apropriação de imagens de
arquivo de personalidades da TV aberta, em uma prática marcada pelo humor.

Terrorismo, violência, Estado

Sem deixar de considerar as diferentes características assumidas pela prática do


terrorismo de acordo com o momento histórico, os atores envolvidos, dentre outros
aspectos, Eugênio Diniz (2002, p.2) busca estabelecer uma definição que forneça
―critérios que nos permitam inclusive avaliar a plausibilidade da designação de um ou
outro ator como terrorista‖ (2002). Para este autor,
podemos entender terrorismo como sendo o emprego do terror contra um
determinado público, cuja meta é induzir (e não compelir nem dissuadir) num
outro público (que pode, mas não precisa, coincidir com o primeiro) um
determinado comportamento cujo resultado esperado é alterar a relação de
forças em favor do ator que emprega o terrorismo, permitindo-lhe no futuro
alcançar seu objetivo político — qualquer que este seja. (DINIZ, 2002, p. 15)

Em um esforço de compreender o fenômeno do terrorismo a partir de uma


perspectiva histórica, Martin A. Miller (2013) aponta que, após 1991, com o fim da
Guerra Fria, a política estadunidense de intervenção externa passou a se apresentar
como uma ―responsabilidade de controlar a segurança mundial através da expansão de
sua influência como 'o império da liberdade'" (MILLER, 2013, p. 242, tradução nossa).
O novo ―inimigo‖, ao invés de grupos comunistas, passou a ser a rede de células
comandadas pela Al-Qaeda. Porém, o que não faz parte da narrativa oficial do governo
estadunidense sobre sua política de segurança é a repetição dos atos violentos que diz
combater.
Outra característica do terrorismo na contemporaneidade é a continuidade e o
reforço da elaboração de políticas públicas por especialistas em questões de violência, o
que hoje resulta em uma forte influência dos serviços de inteligência nas políticas de
Estado. A segurança como fator fundamental da política de Estado aparece em conjunto

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

169
com o surgimento do Estado Moderno, de acordo com Giorgio Agamben (2001).
Segundo o autor,
Durante uma época de gradual neutralização da política e abandono
progressivo das tradicionais funções do estado, a segurança se torna o
princípio básico da atividade de estado. O que antes era apenas uma entre
várias medidas definitivas de administração pública, até a primeira metade do
século XX, agora se torna o único critério de legitimização política. A idéia
de segurança traz consigo um risco essencial. Um Estado que faz da
segurança sua única tarefa e fonte de legitimidade é um organismo frágil; ele
é sempre passível de ser provocado pelo terrorismo, até se tornar ele mesmo
terrorista. (AGAMBEN, 2001, s/p.)

Por outro lado, sendo um termo sujeito a uma carga política e depreciativa,
como destacado por Diniz (2002), o ―terrorismo‖ tem a sua utilização, muitas vezes,
atrelada a preconceitos e estereótipos. Um exemplo disso é o reforço da islamofobia,
que, apesar de possuir origens muito anteriores às associações do mundo muçulmano ao
terrorismo, é intensificada pela narrativa da guerra contra o terror. Segundo Farish A.
Noor (2012, p. 76), ―o temor ao ativismo islâmico foi aproveitado por alguns como a
melhor maneira de despertar o sentimento anti-muçulmano, disfarçado como parte da,
agora global, guerra contra o terror‖.

Terrorismo? No Brasil??

Um marco fundamental das discussões recentes sobre terrorismo no Brasil foi a


preparação para os dois megaeventos esportivos sediados pelo país nos últimos anos: a
Copa do Mundo FIFA 2014 e os Jogos Olímpicos Rio 2016. As alterações introduzidas
pelo Sistema Integrado de Comando e Controle (criado para operar na Copa do Mundo
de 2014) são emblemáticas de um modelo de ―urbanismo militarizado‖ já percebido em
outros países (CARDOSO, 2016). Já a aprovação da Lei Nº 13.26064, conhecida como
Lei Antiterrorismo, provocou muitas discussões por conta do risco de criminalização de
manifestantes, organizações políticas e movimentos sociais.
Nos meses que antecederam a Rio 2016, narrativas alarmistas tomaram os meios
de comunicação e influenciaram diversas medidas de segurança e prevenção tomadas
pelas autoridades. A Operação Hashtag foi uma das maiores e mais controversas ações
anti-terrorismo pré-Olimpíadas. Realizada em 10 estados, a Operação foi a primeira

64 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13260.htm
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

170
tipificada dentro da Lei Antiterrorismo, e prendeu 12 supostos ―terroristas‖. Segundo o
ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, além de viver em estados diferentes, os
suspeitos não se conheciam e eram amadores. Mais tarde, o ministro da Defesa, Raul
Jungmann, afirmou que as ―prisões foram para dissuadir outros terroristas‖.
Por outro lado, publicações em redes sociais online apresentando relatos de
violência policial, dizendo que a narrativa de antiterrorismo estava sendo construída
como uma ferramenta de criminalização dos movimentos sociais e os apontamentos do
Estado como verdadeira organização terrorista também se multiplicaram mesmo antes
de os Jogos começarem.

Metodologia

Por meio da ferramenta Twitter Capture and Analysis Toolset (DMI-TCAT)


(BORRA; RIEDER, 2014), que coleta tweets e gera arquivos que permitem a análise de
seus componentes (como hashtags, URLs e mentions), foram coletados 8.397.278
tweets com os termos ―terror‖, ―terrorismo, ―terrorista‖ e ―terroristas‖ antes, durante e
depois das Olimpíadas. No recorte temporal (7 a 28 de julho de 2016) dado para este
artigo foram identificadas 483.503 postagens com os termos ―terrorista‖ e ―terroristas‖.
Inicialmente, identificamos os dias com os maiores picos de publicações com os
termos selecionados (―terrorista‖ e ―terroristas‖): 15, 21, 22 e 27 de julho65.
Compreendendo o uso das hashtags como um recurso que tematiza as discussões no
Twitter, identificamos, então, quais foram as 50 hashtags mais utilizadas nos tweets
publicados nesses dias. Em três deles, as hashtags mais populares não tinham relação
direta com os acontecimentos no Brasil ou com os Jogos Olímpicos66. No dia 15 de
julho, por exemplo, as hashtags que mais se destacam dizem respeito ao atentado em
Nice, na França.
Buscando olhar mais atentamente para as temáticas que possuem algum tipo de
relação com o contexto brasileiro, selecionamos os dias 21 e 22 de julho para a análise a
seguir. No dia 21, as hashtags #Rio2016, #Paz e #Brasil aparecem em primeiro,

65https://public.tableau.com/profile/roberta.firmino.da.silva#!/vizhome/Linhadotempoterroristaeterrorista
s-07_07a28_07/LinhadoTempo
66 Para visualizar as 50 hashtags mais populares dos quatro dias em questão, acesse
https://public.tableau.com/profile/roberta.firmino.da.silva#!/vizhome/Frequnciade-15-21-22-
27_07terroristaeterroristas-07_07a28_07/15-21-22-27_07
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

171
segundo e terceiro lugar, respectivamente. A hashtag #envivo, que é utilizada para
marcar, dentre outras, notícias relacionadas ao Brasil, fica em 5° lugar no dia 22,
seguida por #Rio2016 e #ForaTemer. As hashtags #Brasil, #Paz, #OperaçãoTabajara,
#TeimaDilma, #Brasil2016, e #JJOO também aparecem entre as cinquenta mais
frequentes nesse dia (Figura 1).

Figura 1 - Hashtags com maior frequência nos dias 21 e 22 de julho de 2016

Apresentadores de TV “terroristas”

A partir das imagens, vídeos e GIFs que aparecem com maior frequência nas
publicações coletadas nos dias 21 e 22 de julho, buscamos então identificar que
indivíduos e grupos são os ―terroristas‖ nas discussões que dizem respeito ao Brasil no
Twitter. As figura 2 e 3 apresentam os gráficos das imagens e GIFs com maior
ocorrência, sendo o tamanho do quadro proporcional à frequência de compartilhamentos
da publicação, e os quadros cinzas referentes à publicações relacionadas a outros países.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

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Figura 2 – Imagens com maior frequência no dia 21 de julho de 201667

Figura 3 – Imagens com maior frequência no dia 22 de julho de 201668

Uma das imagens que mais se destaca, ficando posicionada em primeiro lugar
no dia 21 e em segundo no dia 22, é um GIF animado com imagens do programa Mais
Você, em que a apresentadora Ana Maria Braga e o personagem Louro José estão
usando trajes similares aos tipicamente islâmicos. A publicação traz o texto „Polícia
federal prende grupo que planejava ataques terroristas no Brasil‟, muito próximo às
manchetes que, naquele momento, noticiavam a Operação Hashtag em diversos portais
de jornais brasileiros. Assim como a Ana Maria Braga, imagens de outros
apresentadores de telejornais e programas televisivos de entretenimento foram utilizadas
para fazer referência à Operação Hashtag. Um exemplo é a fotografia d'Os Trapalhões
que, das imagens mais compartilhadas, está posicionada em quarto lugar no dia 21 e em

67 https://public.tableau.com/profile/roberta.firmino.da.silva#!/vizhome/MediaFrequency-21_07-
tweets/MediaFrequency-21_07
68 https://public.tableau.com/profile/roberta.firmino.da.silva#!/vizhome/MediaFrequency-22_07-
tweets/MediaFrequency-22_07
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

173
terceiro no dia 22, e uma montagem com fotografias dos apresentadores José Luiz
Datena, Marcelo Rezende e Gugu Liberato, onde todos aparecem segurando armas
durante a apresentação dos programas. Os textos dessas publicações também realizam
uma nítida referência às notícias da Operação Hashtag.
Diferente das publicações com imagens de apresentadores de programas
televisivos, outro tweet em destaque traz as fotografias de quatro cachorros vestindo
trajes e portando equipamentos semelhantes aos de soldados em situação de guerra.
Porém, a publicação também referencia as notícias da Operação Hashtag com o texto
„polícia federal prende grupo que planejava ataques terroristas no Brasil‟. A
montagem está posicionada em segundo lugar no gráfico do dia 21, e em sétimo lugar
no dia 22.

Políticos “terroristas”

A imagem que aparece em terceiro lugar das mais compartilhadas no dia 21 é


uma chamada do jornal O Globo com o link para a notícia da Operação Hashtag. Com a
palavra ―URGENTE‖ em destaque ao centro da imagem, a publicação cita a manchete
da notícia, menciona o jornalista redator e é acompanhada da hashtag #Rio2016. Nas
respostas a este tweet, aparecem algumas associações do termo terrorismo a políticos
brasileiros e a problemas de infraestrutura nos hospitais e de insegurança nas favelas.
A associação de políticos brasileiros a terrorismo é comum em diversos tweets
que se destacam por possuírem as imagens mais compartilhadas . Em quinto lugar no
dia 22 de julho, uma edição das fotos do presidente do STF, Gilmar Mendes, do Juiz
Sérgio Moro e do ex-deputado Eduardo Cunha, utilizando vestimentas similares às
tradicionalmente islâmicas é integrante de uma postagem com o texto Divulgadas as
fotos dos terroristas que estão em solo brasileiro. Vamos divulgar pra expulsar os
bandidos do País. A crítica aos políticos brasileiros também é reforçada nas respostas
deste tweet.

Análise e considerações finais

A descrição das imagens e dos tweets mais frequentemente associados aos


termos ―terrorista‖ e ―terroristas‖ às vésperas dos Jogos Olimpicos Rio 2016 nos

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

174
permitem identificar pelo menos duas formas predominantes de apropriação da temática
pelos usuários dessa rede social online. Uma das práticas é o uso de imagens antigas
protagonizadas por celebridades televisivas para, através de associações inesperadas,
fazer humor. A aparição de personalidades como Ana Maria Braga, Louro José, Os
Trapalhões e apresentadores de programas de auditório ressalta o forte vínculo do
Twitter com a cultura midiática de massa, e em especial com as TVs abertas e seus
programas mais populares. Esta relação, no entanto, não está isenta de contaminações
políticas e preconceitos, como no caso da associação da dupla de apresentadores do
programa Mais Você com o terrorismo em função dos trajes de origem muculmana.
Outra prática frequente no período estudado é a associação entre o Estado
brasileiro e, em especial, os políticos eleitos com o terrorismo. Diferentes
personalidades do mundo político do país à época - com certo destaque para o ex-
presidente Lula - são associados ao terrorismo em função de supostos ―ataques‖ à
sociedade brasileira, como por exemplo as crescentes denúncias de corrupção que
emergiram com a Operação Lava-Jato. Também nesses tweets chamam a atenção a
associação entre terrorismo e as características físicas (barba, especialmente) e trajes
típicos da cultura mulçumana, o que reforça a uma leitura islamofóbica do terrorismo.
Para demonstrar insatisfações com os rumos da política partidária e com os serviços
públicos do Estado brasileiro, esses tweets exemplificam bem a tendência apontada por
Diniz (2002, p.2) de uso do termo ―terrorismo‖ para ―desqualificar politicamente
adversários‖.
De forma mais pontual, os termos ―terrorista(s)‖ são também associados a
organizações (como a Polícia Federal e a Rede Globo) e situações (como o estado dos
hospitais, o ―pós-olimpíadas‖), o que nos permite identificar um certo reconhecimento
de que o Estado também é terrorista nos moldes que discute, por exemplo, Agamben
(2001). Assim, as resignificações de quem são ―terrorista(s)‖ apontam, para além da
disputa de sentidos em torno do termo, uma forte reação em relação às questões
políticas em destaque no país, às insatisfações públicas, às discordâncias com o Estado.
Isso ressalta que, apesar da importância de se recortar um significado do terrorismo para
a compreensão do fenômeno stritu sensu, é importante observar e buscar compreender
suas apropriações implicadas nas mais diversas formas na política, nos discursos
midiáticos, nas ações governamentais, nas condições de vida e na manutenção do

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

175
Estado, que também é compreendido como terrorista a partir do momento em que
institui políticas de vigilância e militarização que levam ao cerceamento dos direitos,
principalmente de pessoas em situação de vulnerabilidade social.
É importante lembrar, por fim, que além do debate em curso no Brasil, muitas
outras temáticas se destacaram nas publicações dos dias analisados tanto nas imagens
mais compartilhadas, quanto nas hashtags mais utilizadas. Entre elas, estão questões
relacionadas às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, que à época era assunto
da aprovação de um plebiscito para um possível acordo de paz no país, o atentado em
Munique e o conflito na Síria. Esta diversidade de situações e apropriações simultâneas
envolvendo o terrorismo nos sinaliza a importância desse fenômeno para a compreensão
de debates e controvérsias em curso em diferentes localidades na contemporaneidade.

Referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. O flerte do Ocidente com o totalitarismo. Disponível em:


<http://outraspalavras.net/posts/agamben-o-flerte-do-ocidente-com-o-totalitarismo/>. Acesso
em 15 set. 2016.

AGAMBEN, Giorgio. Sobre segurança e terror. Disponível em: <http://imediata.org/?p=70>.


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177
3.2 EIXO 2

A ELIMINAÇÃO DAS DIFERENÇAS ENTRE OS SEXOS:


Uma leitura psicanalítica69

Nádia Laguárdia de Lima


Adilson Pereira dos Santos
Alice Oliveira Rezende
Ronaldo Sales de Araujo

RESUMO:
Este artigo apresenta o resultado parcial de uma pesquisa que teve como objetivo
investigar as noções de feminilidade construídas pelas adolescentes na atualidade.
Partimos da hipótese de que o crescimento de grupos de adolescentes que nomeiam-se
―bissexuais‖ nas redes sociais da internet é resultado da ideologia atual de eliminação
das diferenças entre os sexos. Utilizando o referencial teórico da psicanálise,
consideramos a ideologia de igualdade como um efeito do discurso capitalista, que visa
a escamotear a castração. O declínio das diferenças entre os sexos coloca o adolescente
com maiores dificuldades para situar-se como homem ou mulher no campo das
identificações. Para além das várias máscaras identificatórias que buscam definir os
gêneros sexuais, a psicanálise sustenta a existência de uma diferença irredutível entre os
sexos, que aponta para a impossibilidade da relação sexual.

Palavras-chave: Adolescência. Contemporaneidade. Sexualidade.

1. INTRODUÇÃO

As noções de masculinidade e feminilidade são construídas socialmente. Na


Modernidade, os papéis sociais femininos e masculinos eram mais claramente

69
Este trabalho é produto da pesquisa ―Adolescência e contemporaneidade: o feminino nas redes sociais‖
coordenada pela Profa. Nádia Laguárdia entre 2013 e 2014 na Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). O presente texto é um resumo do artigo: LIMA, N. L. & SANTOS, A. P. & REZENDE, A.
O. & MELO, C. M. & CERQUEIRA, F. & ARAÚJO, R. S. A eliminação das diferenças entre os sexos:
uma leitura psicanalítica. Psicologia em Revista (Online), v. 22, p. 445-466, 2016. Recuperado a partir de:
http://periodicos.pucminas.br/index.php/psicologiaemrevista/article/view/5566

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178
diferenciados. Os atributos considerados masculinos estavam relacionados à força,
virilidade e agressividade, e os femininos ligados à passividade, submissão e docilidade.
A igualdade de direitos, um dos valores fundamentais da democracia, estende-se para
uma ideologia da uniformidade, que alcança todos os setores da vida. É o que
observamos no campo sexual. O importante movimento social em defesa dos direitos
das mulheres alcança o campo das identidades sexuais, convertendo-se em uma
apologia da igualdade sexual, que busca a condensação dos gêneros. Surge um
descrédito com relação a todos os semblantes identitários. Contrária a essa ideologia
social, a psicanálise defende a existência de uma diferença irredutível entre os sexos. A
adolescência é um tempo lógico de encontro com o outro sexo, que exige do sujeito
uma escolha de posição sexuada. Freud (1905/1974; 1924/1974) demonstra que o
confronto com a castração exige do sujeito uma tomada de posição na partilha sexual,
como homem ou mulher, a partir da referência fálica.
Para Lacan (1960/1998), o falo é o significante do desejo, ou seja, ―é o
significante que dá a razão do desejo‖ (p. 700). Cada sujeito assume seu sexo em função
de sua relação com o significante da castração, o falo. A assunção subjetiva da diferença
sexual é decisiva para a orientação sexual dos sujeitos.
Lacan (1960/1998) substitui o ―não ter‖ o falo do lado das mulheres, proposto
por Freud, por ―ser o falo‖. A falicização do corpo da mulher é uma solução que passa
pela via da mascarada. No entanto Lacan (idem) reconhece algo de paradoxal nessa
posição, pois, ―para ser o falo, isto é, o significante do desejo do Outro, a mulher vai
rejeitar uma parcela essencial da feminilidade, nomeadamente todos os seus atributos na
mascarada‖ (p. 701). Essa parcela essencial da feminilidade aponta para o que é
irrepresentável simbolicamente. Lacan reconhece que ―a mediação fálica não drena tudo
o que pode se manifestar de pulsional na mulher‖ (idem, p. 739). Existe, portanto, uma
dimensão de gozo que não passa pela mediação do significante fálico.
Posteriormente, Lacan (1972-1973/1985) formula que as posições feminina e
masculina implicam duas modalidades de gozo, fálico e feminino. A mulher
experimenta um gozo que, em parte, está referido ao falo e, em parte, não pode ser
simbolizado. O gozo feminino aponta para um impossível de simbolizar. O impossível
se situa no nível da diferença sexual. Se não existe um significante, no inconsciente, que
designe o ser mulher, cada adolescente busca, na cultura, um significante que designe o

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179
feminino, como forma de situar-se no campo das identificações. Essa solução é sempre
insatisfatória, já que o feminino não pode ser simbolizado. Nenhuma identificação o é.
No entanto, a identificação permite certo apaziguamento da angústia diante do
confronto com a impossibilidade simbólica na puberdade. O ideal social atual de
apagamento das diferenças sexuais deixa o adolescente com maiores dificuldades para
situar-se como homem ou mulher no campo das identificações. Diante desse impasse
social, surgiu o nosso interesse em investigar as noções de feminilidade construídas
pelas adolescentes hoje.

2. METODOLOGIA DE PESQUISA

Utilizamos, como método, a pesquisa qualitativa. Buscamos ler alguns escritos


de adolescentes que se apresentam identificadas ao sexo feminino nas redes sociais da
internet para conhecer os significantes que elas utilizam para dizer do feminino, quais as
soluções que elas constroem no campo das identificações para construir uma identidade
supostamente feminina. Nesse sentido, no primeiro momento da pesquisa, fizemos uma
leitura das narrativas de adolescentes do sexo feminino de diferentes redes sociais da
internet, abertas ao público, selecionadas por meio de amostra não probabilística. Para
escolhermos as redes sociais, utilizamos as palavras-chave: adolescência, sexo,
feminino, feminilidade e mulher. Circunscrevemos três grupos de identificação sexual,
com base na maior frequência desses grupos nas redes sociais pesquisadas. O primeiro
grupo, formado por adolescentes que assumem os semblantes tradicionalmente
considerados masculinos, como os de força e virilidade; o segundo grupo, que defende
as diferenças entre os sexos, buscando definir o que é feminilidade; e o terceiro grupo,
formado por adolescentes que se nomeiam bissexuais, defende a ideia de que todas as
pessoas são bissexuais, abolindo qualquer diferença entre os sexos.
No segundo momento da pesquisa, selecionamos três redes sociais de
adolescentes do segundo grupo, que escrevem sobre o que é ser mulher hoje. Nessas
redes, as adolescentes compartilham dicas, conselhos, fotos, imagens, além de
sentimentos e experiências pessoais. Nesses grupos, as adolescentes buscam
circunscrever o gênero feminino, diferenciando-o do masculino. Recortamos os
principais temas abordados pelas jovens, os significantes privilegiados para dizer do
feminino, além das questões e perguntas que formulam sobre a feminilidade.

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180
Buscamos refletir sobre os dados levantados na primeira etapa da pesquisa, mais
especificamente sobre os grupos formados por adolescentes do sexo feminino que se
organizam com base na nomeação ―bissexual‖. Analisou-se oito redes sociais de
adolescentes que se nomeiam bissexuais. No Yahoo Respostas, uma adolescente de 14
anos, que não revela o seu nome nem o seu sexo, questiona: ―Onde encontro garotas
adolescentes bissexuais?‖. Uma série de adolescentes responde à sua pergunta,
buscando informá-la ou criticando-a.
A comunidade do Facebook ―Sou bissexual‖ tem 6.939 curtidas. Jovens, a partir
de 13 anos, publicam suas fotos pessoais e revelam suas identidades nessa comunidade.
A comunidade ―Meninas bissexuais‖ têm 8.561 curtidas. Em algumas redes sociais
pesquisadas, as adolescentes comentam sobre um possível aumento de jovens bissexuais
na atualidade, descrevem celebridades que assumiram sua bissexualidade e mostram a
frequência com que o tema tem aparecido na mídia. Algumas adolescentes acreditam
que o que existe hoje não é o aumento do número de pessoas bissexuais, mas a maior
possibilidade de expressão dessas jovens.
Defendemos a hipótese de que ―a possível expansão‖ desses grupos de
adolescentes do sexo feminino nas redes sociais pode ser interpretada como o resultado
da ideologia social atual de apagamento das diferenças entre os sexos.

3. A CONTEMPORANEIDADE E SUAS IMPLICAÇÕES SUBJETIVAS

Embasados em diversos autores que analisam a Contemporaneidade,


especialmente Agamben (2009) e Bauman (2004), a consideramos marcada pelo
fenômeno da globalização, promovido pelo capitalismo e definido como o
estabelecimento de uma rede de informações a distância e de fluxo contínuo, que tem
como suporte as tecnologias da informação, que organizam a vida econômica, política e
social, segundo uma ordem mundial.
A lógica capitalista alimenta a competitividade, o individualismo e o
consumismo. Como marca de nosso tempo, o consumo é um veículo de narcisismos,
por meio dos seus estímulos estéticos, morais e sociais, e converte-se no grande
fundamentalismo da atualidade (cf. Santos, 2011). Nesse mundo, não é preciso conhecer
o vizinho mais próximo. A interação social é mediada por objetos de conexão que visam
tamponar a falta de satisfação estrutural ao ser falante.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

181
O consumo, a globalização e a constituição da sociedade em rede inauguram,
pois, uma nova lógica, marcada pela exacerbação do individualismo e pela
horizontalidade das relações. Há, assim, o declínio das diferenças que até então
sustentavam o mundo, entre elas o público e o privado, o próximo e o distante, o real e
virtual. Os ideais sociais verticais que agrupavam os sujeitos são substituídos pelos
objetos de consumo, que prometem a satisfação individual. A (in)satisfação que
caracteriza a pulsão alimenta o mercado de produção com objetos cada vez mais
descartáveis e evanescentes. Sob esse novo regime, somos submetidos a uma nova
economia psíquica na qual o desejo cede lugar ao gozo.
Observamos, então, que a cultura atual é guiada pela queda dos ideais e pelo
culto ao gozo que apaga, por assim dizer, a particularidade do sintoma. No lugar do
Ideal do Eu (cf. Freud, 1923/2013) que está na origem da identificação, ordenando os
gozos, surge o ―nomear para‖, que tem como uma das facetas o ―ter um nome para
tudo‖ (Brodsky, 2011, p. 66). As comunidades se formam em torno de um nome
comum, e não do nome próprio, impondo modos de gozo comum a todos, como
comunidades de gozo. Como destaca Brodsky (idem), esse nome comum não identifica
alguém, como o nome próprio o faz, mas os mantêm anônimos, como os alcoólicos
anônimos, jogadores anônimos, compulsivos anônimos, entre outros.
Essa nova ordem de igualdade incide sobre o campo sexual, com efeitos na
construção da identidade sexual dos adolescentes. Um grupo crescente de pessoas
recusa a utilização de qualquer tipo de ―classificação‖ ou categorização para as práticas
e prazeres sexuais, justificada não só pelos efeitos excludentes e segregativos destas
classificações, mas, principalmente, pela crença num domínio absoluto sobre o gozo,
numa sexualidade absolutamente livre, sem nenhum tipo de determinação, mesmo que
inconsciente. Essa suposta liberdade, no entanto, esconde um repúdio à castração.

4. ADOLESCÊNCIA NA PSICANÁLISE

A ruptura do ser criança leva o sujeito a se interrogar sobre o que é ser homem
ou mulher. O seu corpo não produz respostas, e sim, questionamentos. É um momento
delicado de transição, marcado por rupturas, que coloca o sujeito diante do impasse da
inexistência da relação sexual. Nesse tempo lógico do despertar de um gozo que escapa

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

182
ao sentido, surge o embaraço com relação à identidade sexual. As experimentações com
os parceiros do próprio sexo são frequentes nesse momento, em especial, entre as
meninas, que podem desfrutar do contato físico com as amigas com maior liberdade do
que os meninos, em razão da maior repressão social imposta para os homens. Freud
(1905/1974) apontou que a pulsão sexual não tem um objeto fixo, a sexualidade humana
é perverso-polimorfa. Assim, o contato físico com outra pessoa pode ser prazeroso,
independentemente de seu sexo. Além disso, os investimentos libidinais nos
progenitores do próprio sexo ocorrem desde a mais tenra infância e permanecem no
inconsciente. Para Freud (idem), a escolha de objeto sexual e de uma posição sexuada é
um processo resultante das resoluções edipianas, ou seja, das relações simbólicas. A
puberdade é o momento de reedição do Édipo, quando o sujeito terá a chance de refazer
a sua escolha de posição e de objeto sexual. Para Lacan (1974/2003), a passagem pelo
Édipo leva o gozo a adquirir uma significação fálica, mas o despertar dos sonhos, na
puberdade, confronta o jovem com um gozo que extrapola o campo significante.
Lacan (1973/2003) comenta que ―o impasse sexual secreta as ficções que
racionalizam a impossibilidade da qual provém‖ (p. 531). Assim, trata-se, no confronto
com o real do sexo, de produzir ficções, que, entretanto, somente podem recobrir
parcialmente o furo no real. O sujeito adolescente é levado a elaborar respostas para o
mal-estar provocado pela irrupção do real e pela perda das referências de identificação
construídas na infância. Para isso, ele se apoia nas ofertas da cultura, isto é, em
significantes que lhe garantem uma ―identidade social‖. A formação de grupos a partir
de um significante comum, que os enlaça, é fundamental nesse momento. São respostas
que o ajudam a situar-se no campo do Outro. Surge, pois, a possibilidade de servir-se do
significante bissexual ofertado pela mídia.

5. CONCLUSÃO: O IDEAL CONTEMPORÂNEO DE APAGAMENTO DAS


DIFERENÇAS ENTRE OS SEXOS

A condição feminina requer, por um lado, o uso dos semblantes fálicos, mas, por
outro, exige saber operar com o vazio da castração, com a dimensão real do gozo.
Existem diferentes modalidades de identificação nas redes sociais da internet. Todas as
soluções buscadas no campo das identificações estão referidas à lógica fálica e,
portanto, não abordam o feminino.

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183
A identificação com o significante ―bissexual‖ não pode ser tomada como
apenas uma das modalidades de identificação hoje. Ela aponta para o descrédito nos
significantes utilizados para delimitar as diferenças entre o homem e a mulher. Trata-se
de uma tentativa de se abolirem os alicerces da identificação sexual, apagando qualquer
diferença entre os gêneros sexuais, como uma recusa do sujeito em fazer uma eleição
sexual.
Esse ideal de igualdade serve ao discurso capitalista, que promete ao sujeito o
acesso direto ao gozo, um gozo absoluto, sem perdas, ou seja, a ilusão de eliminação da
castração, sustentada pela ideologia do consumo. Nas redes sociais pesquisadas, as
adolescentes defendem a livre experimentação, sem restrições, do próprio corpo e dos
corpos dos parceiros, de ambos os sexos, visando a alcançar um gozo pleno.
Para além das várias máscaras identificatórias que buscam definir os gêneros
sexuais, a psicanálise sustenta a existência de uma diferença irredutível entre os sexos,
que aponta para a impossibilidade da relação sexual, com a qual todo sujeito deve se
haver. A diferença radical do Outro sexo é o feminino. Como destaca Fuentes (2012), a
diferença sexual não é nem a anatomia nem o gênero. Este, como uma norma simbólica,
fixa a identidade do sujeito. A noção de sexuação permite a Lacan (1972-1973/1985)
precisar o que está em questão na diferença sexual. Como há uma disjunção entre o real
e o simbólico, as identificações sexuais são infinitas, assim como são infinitas as
práticas discursivas. Todos os significantes no campo da identificação sexual surgem
como respostas ao impossível de simbolizar, o feminino. No entanto não podemos
desprezar qualquer tentativa de simbolizar a diferença sexual, abolindo definitivamente
as diferenciações de gênero que orientam o sujeito no campo das identificações. Por
outro lado, não vivemos num universo puramente simbólico. O real como impossível
afeta a todos. A diferença sexual anatômica não é sem efeitos para o sujeito. O que
importa é reconhecer como essa diferença é subjetivada por cada um e a escolha
inconsciente que o sujeito faz do sexo, tendo em vista as duas formas distintas de
tratamento do impossível.
Na contramão do ideal social de igualdade entre os sexos, a psicanálise oferece
uma saída ética ao sujeito, pela via do reconhecimento da diferença, da localização do
gozo estranho e opaco que não se submete à norma fálica, buscando, no caso a caso, a
solução singular para lidar com o impossível de simbolizar.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

184
REFERÊNCIAS

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LACAN, J. Letra de uma Carta de Almor (1972-1973). In: O seminário: mais, ainda.
Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, livro 20, p. 105-120.

LACAN, J. Televisão (1973). In: Outros escritos. Traduzido por Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p.508-543.

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Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.557-559.

SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência


universal. Rio de Janeiro: Record, 2011.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

185
Aprendizagem, cultura digital e déficit de atenção: reflexões no Ensino Médio

Jordane Trindade de Jesus70


Iago Jhonatan Santos Ferreira71
Gabriel Fernandes de Lima72

RESUMO:
O presente artigo foi desenvolvido no intuito de trazer à tona reflexões sobre alguns
problemas relativos aos jovens alunos do Centro Educacional Águia de Prata (CEAP) e
seus interesses para com as áreas de aprendizagem e tecnologia, tendo em vista que na
atualidade, o professor, o quadro negro, a escola e demais ambientes educacionais têm
perdido espaço para o aparato digital, o que, de certa forma, prende mais a atenção dos
jovens, causando, além da dependência tecnológica, um afastamento dos discentes da
sala de aula, dos livros e de todas as disciplinas envolvidas no processo.O resultado
obtido por esse processo é indesejável: falta de concentração, dispersão, notas baixas e o
famoso e inevitável déficit de atenção, pois os olhos dos educandos, em vez de voltados
para o quadro, estão abaixados, fixados na tela brilhante e colorida dos aparelhos
celulares. Portanto, o artigo visa demonstrar de que maneira os jovens podem retornar
ao caminho da concentração e da atenção, e de outros processos cognitivos pelo
caminho do conhecimento, tendo em vista que, atualmente, há uma necessidade maior
de um envolvimento interpretativo-linguístico.

Palavras-chaves: aprendizagem, cultura digital, déficit de atenção, cognição.

1. Introdução

Vive-se em um mundo onde a tecnologia está presenteem todos os lugares, até


mesmo nas salas de aula. Com a evolução da Revolução Industrial, foram criadas

70
Graduado em Comunicação Social/Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
Especialista em Cinema, TV e Mídias Digitais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Mestre
em Comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Atualmente é professor de produção
textual no Centro Educacional Águia de Prata (CEAP) em Lagoa da Prata/MG. E-
mail:jordanetrindade@gmail.com
71
Pesquisador e aluno do EM no Centro Educacional Águia de Prata (CEAP) em Lagoa da Prata/MG.
72
Pesquisador e aluno do EM no Centro Educacional Águia de Prata (CEAP) em Lagoa da Prata/MG.
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186
ferramentas que facilitaram a expansão dos meios de comunicação na atualidade como,
por exemplo, o aparelho celular. Entretanto, a partir da utilização de tal dispositivo, o
quadro negro e os conteúdos escolares não são mais capazes de captar a atenção do
aluno, que acaba voltando-se para o conteúdo presente em seu smartphone. O uso
excessivo deste dispositivo (aparelho celular) provoca falta de atenção nos alunos, e,
consequentemente, abaixa o desempenho do ensino.
A pesquisa tem como objetivo despertar tanto o olhar como também o senso
crítico de alunos do Ensino Médio do Colégio Águia de Prata, em Lagoa da Prata/MG,
em relação à utilização de aparelhos celulares no âmbito escolar, especialmente durante
os horários de aula, no intuito de incitar os alunos à reflexão gerada pelo impasse na
aprendizagem produzido pela utilização dos chamados smartphones. Para que os
objetivos de tal reflexão fossem obtidos, a metodologia contou com a aplicação de
questionários a todos os 60 alunos do ensino médio da referida instituição, chamando a
atenção para o déficit de atenção causado – em parte – pela ―cultural digital‖.
A pesquisa, a qual resulta no artigo aqui descrito, fez com que os alunos
refletissem sobre o uso prejudicial dos smartphones, e em comum-acordo com a
coordenação pedagógica, os alunos aceitaram a não utilização dos aparelhos em sala de
aula a partir do mês de fevereiro de 2017.

2. A virtualização em sala de aula: do desinteresse pedagógico à preguiça literária

Embora alguns alunos consigam prestar atenção nas aulas e no professor,


mantendo-se longe dos dispositivos eletrônicos, infelizmente, a maioria deles não
consegue. A chamada ―geração do videoclipe‖ (KELLNER, 2001) é imediatista, em
grande parte refém e dependente da tecnologia e dos aplicativos disponíveis nos
smartphones, dependentes especialmente das chamadas redes sociais, em que o ―ter‖, o
―ser‖ e o ―aparecer‖ legitimam o ideal de ―Sociedade do Espetáculo‖, cunhado pelo
autor Guy Debord há aproximadamente meio século atrás. Sob a ótica de
Debord,essaespetacularização, que tanto atrai a atenção dos alunos é algo totalmente
efêmero, representativo e inconsistente, ao contrário do conteúdo pedagógico que
poderia estar sendo apreendido pelos mesmos. ―Toda a vida das sociedades nas quais
reinam as condições modernasde produção se anuncia como uma imensa acumulação de

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

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espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se esvai na fumaça da representação‖
(DEBORD, 2002, p.13). Tal espetacularização chega através de jogos, aplicativos de
conversação e das redes sociais em forma de mini-textos, fotos, comentários e notícias,
que, na sua grande maioria, são fúteis ou até mesmo falsas. Contudo, mesmo
inverossímeis, tais espetáculos insossos têm maior atração do que o conteúdo
pedagógico ensinado até mesmo pelo melhor dos professores.
A reclamação por parte dos professores é geral e não ilustra a situaçãoapenas do
colégio em questão ou a situação de escolas municipais, mas engloba sim a questão no
âmbito estadual e também nacional, haja vista que pouco se tem feito para tentar mudar
a situação no âmbito pedagógico e também no jurídico.

Aproximadamente na década de 90, com a privatização do setor de telefonia,


os celulares tornaram-se mais populares entre os jovens, em especial os
adolescentes. Em um mundo onde a tecnologia faz parte da vida de quase
todas as pessoas, e o celular especificamente tornou-se para os pais, símbolo
de segurança e controle. Para os filhos, veículo de comunicação e fonte de
entretenimento e informação. E para a escola? Oficialmente, sinônimo de
proibição. Para tanto, diversos estados e inclusive deputados e senadores
brasileiros já tentaram por diversas vezes na Câmara e no Senado Federal
transformar em lei de nível nacional, dispositivo para proibir o uso de
aparelhos celulares em sala de aula, porém o texto que compreende o tema é
bastante complexo, contraditório e antiético (SILVA, 2012, p.11).

O desinteresse dos alunos pelas aulas ministradas em função da utilização dos


dispositivos celulares é alarmante e vem crescendo nos últimos anos. Grande parte
desse desinteresse se deve, especialmente,ao efeito da virtualização e digitalização dos
processos de comunicação. Nas áreas de humanas relativas a ―letras‖, respectivamente
as disciplinas de produção textual e literatura são – diretamente – as mais afetadas, pois,
atualmente, os adolescentes e jovens preferem a comunicação digital a ter que escrever
uma redação ou ler um livro. Talvez a falta de criatividade ou de ―paciência‖ ao pensar
em se sentar e escrever algo ou ler um livro pode estar atrapalhando o processo
cognitivo de aprendizagem. O avanço – e a utilização em demasio – do aparato digital
acarreta mais do que simples palavras escritas de forma errônea (os famosos VCs ou
TBs da linguagem digital); ele influi na má interpretação de textos, na fala, na disciplina
e em muitos casos na própria percepção de mundo por parte do estudante.

A escola tem um papel imprescindível na formação de leitores competentes,


reservando na elaboração de projetos, organização curricular um espaço

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especialmente para a leitura, promovendo atividades focando nessa prática.
Os jovens não leem porque não são estimulados. Esse hábito deve vir, em
primeiro lugar, de casa. Pais que tem o hábito de ler estimulam seus filhos, e
isso passa de geração pra geração. O avanço da tecnologia contribui para que
o número de leitores caia cada vez mais (CERQUEIRA, 2012, p.1).

Infelizmente, os dispositivos digitais são vistos, na maioria dos casos, como os


vilões deste processo de aprendizagem – mesmo que eles não sejam totalmente
culpados. É preciso que o português e suas áreas consigam ultrapassar a barreira da
tecnologia, pois para Piaget (1975) o pensamento cognitivo ―constitui o polo extremo da
assimilação da realidade no ego, tendo relação com a imaginação criativa que será fonte
de todo o pensamento e raciocínio posterior‖ (PIAGET, 1975, p.162). O autor explicita,
dessa forma, a importância da leitura e da produção textual, ressaltando a importância
da área de ―letras‖ e tendo-a como determinante para os resultados das demais áreas.
Dessa forma, a área de ―letras‖, como também as demais áreas, ficaprejudicada,
pois a virtualidade interfere negativamente no processo, não por ser um dispositivo
ruim, mas sim por ser mal utilizado pelos alunos. Sendo os aparelhos de comunicação
considerados, no geral, como extensões do homem (MCLUHAN, 2000), deve-se saber
usá-los de forma adequada para que os mesmos tragam reflexos positivos para o âmbito
educacional e pedagógico, levando em conta que poucos educandos utilizam seus
dispositivos para uma interação pedagógica com o professor ou para buscar informações
sobre o conteúdo estudado.

3. Investigação e pesquisa: a virtualização e seus efeitos negativos no Ensino Médio

Para se alcançar os objetivos e resultados esperados pela pesquisa, a mesma se


utilizou de dois principais métodos de pesquisa, sendo eles a aplicação de questionários,
a análise de conteúdo (BARROS; DUARTE, 2012) e a observação participante
(MARCONI; LAKATOS, 2006).Como a ‗análise de conteúdo‘ estaria mais ligada ao
escrito/documental, outra técnica que poderia também ser utilizada ao longo da
aplicação da pesquisa seria a ‗análise de discurso‘ (CAREGNATO, MUTTI, 2006), que
estaria ligada à análise do desempenho em avaliações ao longo dos trimestres. Em
virtude desta metodologia, tais avaliações seriam estudadas e interpretadas, observando
assim como se dá a construção de discursos durante as produções textuais, percebendo

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

189
também uma possível diminuição de erros em questões avaliativose algum nível de
interesse pelas aulas, explicações e correções de exercícios.

É importante lembrar que a Análise do Discurso propõe uma distinção entre o


que se chama de ―posição‖ e ―lugar‖. Segundo o filósofo francês Michel
Foucault, o sujeito discursivo é pensado como uma ―posição‖ entre outras.
Ele ocupa um ―lugar‖ para ser sujeito do que diz, e o modo como o faz não
lhe é acessível (MEGID, CAPELLANI, 2007, p.33).

Outro método importante para o alcance dos objetivos propostos pelo presente
estudo é a observação participante, pois tendo os professores de todas as áreas acesso
direto aos alunos envolvidos, os docentes podem contribuir de forma contundente em
relação à aplicação dos objetivos da pesquisa, incentivando e cobrando dos alunos uma
maior atenção em relação às aulas e também um possível – e temporário – ―abandono‖
dos dispositivos celulares durante as mesmas.
A pesquisa foi realizada com 60 alunos do Ensino Médio do Colégio Águia de
Prata em Lagoa da Prata, Minas Gerais. Este quantitativo refere-se às três turmas de
Ensino Médio da referida instituição. A situação proposta que seria a de deixar de lado
os aparelhos celulares durante o período de aula, que se estende de 7h00 as 12h20,
partiu do incentivo da coordenação pedagógica junto aos pais dos alunos em questão. A
metodologia de aplicação de questionários foi crucial para o respaldo da direção e da
coordenação pedagógica em relação à proibição dos referidos dispositivos no horário de
aula, fazendo com que os alunos refletissem em relação à utilização dos mesmos.
Os questionários aplicados continham cinco questões básicas, sendo elas: 1)
Você utiliza seu aparelho celular durante a aula? 2) Você já utilizou seu celular para
pesquisar assuntos relativos às aulas – independente da disciplina? 3) Você já deixou de
estudar ou fazer alguma atividade pedagógica (deveres, exercícios) para mexer no
celular? 4) Você tem consciência de que a virtualidade pode atrapalhar no seu processo
de aprendizagem? 5) Você conseguiria ficar longe do seu smartphone durante o período
de aulas?Tais questões foram respondidas pelos 60 alunos e resultam no gráfico
elaborado a seguir:

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

190
Resultado dos Questionários
100 95%
91%
90
80% 78%
80 75%
70
60
50 SIM
40 NÃO
30 25% 22%
20%
20
9%
10 5%
0
Questão 1 Questão 2 Questão 3 Questão 4 Questão 5

FIGURA 1 – Gráfico em porcentagem relativo às respostas dos 60 questionários aplicados

A maior discrepância em relação ao gráfico refere-se às questões 1 e 4, tendo em


vista a primeira reflete que 91% dos alunos pesquisados utilizam seus smartphones
durante alguma aula73, e em contrapartida, 95% deles têm consciência de que essa
utilização pode atrapalhar seus desempenhos durante o processo de aprendizagem e
mesmo assim eles continuam a utilizá-los. Percebendo que ¾ destes estudantes (78%)
responderam negativamente à questão de número 5 que suscita a capacidade de não
utilização dos aparelhos celulares durante os horários de aula, a direção da instituição,
juntamente com a coordenação pedagógica, não viu outra saída se não proibir o uso dos
dispositivos durante as aulas.
Como dito anteriormente, a utilização dos dispositivos pelos alunos acaba
causando sérios impactos negativos em relação ao processo cognitivo de aprendizagem
e letramento. Porém, fatores sociais e psíquicos também podem ser apontados como
causadores dessa necessidade tecnológica e também da autoafirmação no ciberespaço
enquanto sujeito e interator (MACHADO, 2007). Dentre tais fatores podemos destacar a
chamada ―Síndrome do pensamento acelerado‖ (CURY, 2013) e também a
―Hiperatividade‖ (EIDT, TULESKI, 2013). É importante ressaltar que ambos os
distúrbios podem provir de diversas condições, tanto econômicas como sociais e

73
Tal utilização foi discriminada no sentido de englobar todas as ações digitais passíveis de serem
executadas por um smartphone como verificação de e-mails, checagem de redes sociais e interações
comunicativas, como é o caso dos aplicativos Whatsapp e Messenger.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

191
também psíquicas, e entre seus resultados negativos estão: ansiedade, falta de
concentração, déficit de atenção e outros.
Em vista de tantos aspectos negativos e da reflexão produzida pelos próprios
alunos em consonância com a comunidade escolar, ocorreu, por fim, a proibição da
utilização dos dispositivos eletrônicos em sala de aula. Contudo, tal proibição não
ocorreu de modo abrupto ou violento. Parafraseando Freud (1996), pode-se dizer que
não houve uma ―castração digital‖ repentina. A solução encontrada para a problemática
decorrente da virtualização versus aprendizagem está descrita na subseção a seguir.

4. Resultados esperados e conclusão

É compreensível que embora o trabalho tenha abarcado apenas


questõesnegativas em relação à utilização deste tipo de tecnologia em sala de aula, os
smartphones têm muito a oferecer aos alunos e demais usuários no quesito
aprendizagem. A pesquisa aqui apresentada não descarta a hipótese de ações positivistas
em relação aos aparelhos aqui destacados e identificados como os ―vilões do campo da
aprendizagem‖, entretanto, devido à discrepância oriunda dos resultados da pesquisa,
percebe-se que os alunos ainda não possuem discernimento para saberem a hora correta
de utilizarem-se dos dispositivos digitais. Com isso, para que não ocorram mais
―ruídos‖ na relação virtualização versus aprendizagem, a solução encontrada pela
comunidade e coordenação escolar foi a utilização de caixas em todas as salas do
Ensino Médio e também do Ensino Fundamental I e II para a colocação dos celulares
durante o período de aula. As caixas foram disponibilizadas e já estão em uso desde o
início do ano letivo escolar (01/02/2017). Espera-se que com a aplicação de tal método
os problemas que foram apontados pelo trabalho possam ser sanados para o bem de toda
a comunidade, tanto a escolar como também a externa.
Conclui-se, por conseguinte, que a tecnologia pode sim ser uma grande aliada da
educação, porém, se usada de forma correta e coerente, no intuito de elevar o nível de
aprendizagem e não promover o contrário, impedindo, assim, que a cultura digital
suplante o conhecimento escolar e relegue o seu usuário a apenas um nível totalmente
subjetivo.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

192
Referências

BARROS, Antônio; DUARTE, Jorge. Métodos e técnicas de pesquisa em


comunicação. São Paulo: Atlas, 2012.

CAREGNATO, Rita C. A.; MUTTI, Regina. Pesquisa qualitativa: análise de discurso


versus análise de conteúdo. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/tce/
v15n4/v15n4a17>. Acesso em: 10 Fev. 2017.

CERQUEIRA, Mariana Costa. A falta do hábito de leitura nos jovens. Disponível em:
https://www.portaleducacao.com.br/pedagogia/artigos/16445/a-falta-do-habito-de-
leitura-nos-jovens>. Acesso em: 09 Fev. 2017.

CURY, Augusto. Ansiedade: como enfrentar o mal do século. São Paulo: Editora
Saraiva, 2013.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002.

EIDT, Nadia Mara.; TULESKI, Silvana Calvo. Transtorno de déficit de


atenção/Hiperatividade e psicologia Histórico-cultural. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/cp/v40n139/v40n139a07.pdf>. Acesso em: 15 Jan. 2017.

FREUD, S. A dissolução do complexo de Édipo. In: FREUD, S.Edição standard


brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. 19, p. 189-199,
Rio de Janeiro: Imago, 1996.

KELLNER, Douglas. A cultura da mídia.São Paulo, Bauru: EDUSC, 2001

LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Técnicas de pesquisa. 6ª ed. São Paulo: Atlas.


2006.

MACHADO, Arlindo. O sujeito na tela: métodos de enunciação no cinema e no


ciberespaço. São Paulo: Paulus, 2007.

MCLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem. São


Paulo: Editora Cultrix, 1969.

SOARES, Maria Vilani. Por que nossos alunos não gostam de ler? Disponível em:
<http://educacaopublica.cederj.edu.br/revista/artigos/por-que-nossos-alunos-nao-
gostam-de-ler>. Acesso em: 10 Fev. 2017.

PIAGET, Jean. INHELDER, Barbel. O desenvolvimento das qualidades físicas na


criança: conservação e atomismo. Rio de janeiro: Zahar, 1975.

SILVA, Marley Guedes da. O uso do aparelho celular em sala de aula. (Monografia)
– Programa de pós-graduação em Mídias na Educação. Universidade Federal do
Amapá, Macapá, 2012. Disponível em: <http://www2.unifap.br/midias/files/2016/04/O-

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

193
USO-DO-APARELHO-CELULAR-EM-SALA-DE-AULA-MARLEY-GUEDES-DA-
SILVA.pdf>. Acesso em: 10 Jan. 2017.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

194
Apropriações do conhecimento:
O sujeito e o saber na sociedade em rede

―As palavras mais quietas são as que trazem a tempestade,


pensamentos que vêm com pés de pomba dirigem o mundo.‖
Nietzsche

Cristina Petersen Cypriano


Maria Bernadete de Carvalho

Resumo:
O objetivo da pesquisa é identificar e analisar as respostas que os alunos de um curso
universitário vêm dando ao contexto atual de ensino, marcado pela convivência entre os
recursos tradicionais de transmissão do conhecimento e o acesso às Tecnologias de Informação
e Comunicação – TICs. Para isso, criou-se uma parceria com um grupo de estudantes
interessados nos problemas de aprendizagem. Os dados estão sendo colhidos em conversas e
entrevistas com esses estudantes que participam também das discussões para análise qualitativa
dos dados.

Palavras-chave: saber; transmissão; tecnologias digitais; laço social; subjetividade.

O potencial transformador do amplo e profundo processo de assimilação social das


redes tecnológicas vinculadas à Internet suscita questões de ordens diversas. A começar por uma
indagação mais geral que procura saber se estamos convivendo com um fenômeno capaz de
alterar de maneira significativa nossas experiências de vida social e individual. É possível supor
que a incidência das novas tecnologias sobre os nossos modos de ser e de viver juntos
corresponde a transformações na esfera da cultura que alcançam seus códigos fundamentais?
Essa questão se baseia na perspectiva aberta por Michel Foucault (1981), em As
palavras e as coisas, a partir da qual se identifica mudanças no processo histórico da cultura que
redefinem alguns de seus códigos mais fundamentais: aqueles que regem as linguagens, os
valores, as hierarquias de práticas, as trocas, os nossos esquemas perceptivos e mesmo, com
Freud, nossos regimes libidinais. Estaríamos imersos em uma transformação desse gênero?
Como essas redefinições podem estar implicadas nas novas modalidades de ligação em rede,
pelas quais são forjadas novas formas de sociabilidade e de laço social? Quais seriam, então, as
repercussões disso para os nossos modos de individualização?

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

195
Para abordar essa questão voltamos nosso foco para o tema do saber e sua transmissão,
buscando compreender de que maneira a presença das novas Tecnologias de Informação e
Comunicação (TICs) na rotina escolar interfere na relação que se estabelece com o saber, e
também nos laços sociais que aí se tecem. Entendemos, a partir de J. Lacan, que as relações com
o saber e com os outros ocorrem no interior de determinadas organizações discursivas que são
socialmente ancoradas (LACAN, 1992, p. 13). De modo que buscamos compreender de que
maneira a inserção das TICs no ambiente de ensino intervém nos padrões de relações que o
sujeito estabelece com tipos específicos de discursos sociais habitualmente vigentes no contexto
escolar.
Assim, essa pesquisa visa descrever e analisar o contexto atual de ensino de uma
faculdade pública, marcado pela convivência entre os recursos tradicionais de transmissão do
conhecimento e o acesso às novas TICs, buscando identificar e analisar as respostas dos alunos
a esse contexto. Alguns pontos de tensão nessa convivência entre o modus operandi tradicional
e o das tecnologias digitais podem ser destacados como parâmetros analíticos: diferenças quanto
à posição de receptor e/ou produtor a ser ocupada pelos alunos; diferenças quanto à maneira
como são compostos os agrupamentos a partir de um ou outro dispositivo de acesso ao
conhecimento; diversidade quanto aos modos de expressão que são legitimados em cada um
desses recursos.
Em contraste com os modos tradicionais de transmissão, as tecnologias digitais são
sustentadas por sistemas informáticos que operam segundo padrões interativos, onde o sujeito é
continuamente solicitado a escolhas e ações pelas quais interage com a máquina que lhe oferece
conteúdos de toda natureza. É fundamental para isso que cada um esteja habilitado a não
somente buscar e receber os conteúdos solicitados, mas também a produzir, editar, remixar e
compartilhar material digitalizado. E a tendência crescente é de que os próprios aparelhos
habilitem os usuários a se colocarem como produtores ou criadores de conteúdos online. Ocorre
que essa forma de operar retira a prevalência do lugar de receptor de conhecimentos que é dado
ao aprendiz nas tecnologias de transmissão vinculadas à escola. Nesse sentido, a escola pode
assumir feições de uma ―máquina antiquada‖ (SIBILIA, 2012), que pareceria inadequada aos
modos de ser das gerações que crescem familiarizadas com as máquinas portáteis de conexão
em rede, pelas quais facilmente o sujeito alterna entre o lugar de receptor, produtor e
transmissor de conteúdos. Entretanto, o modelo escolar permanece como forma privilegiada de
transmissão do conhecimento, trazendo para o contexto de ensino a coexistência de posições –
receptor/produtor – entre as quais o sujeito pode se deslocar. Cabe questionar: quais seriam as
implicações disso para o processo de apropriação do conhecimento? Podem-se detectar

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

196
deslocamentos nesse processo? Que repercussões haveria sobre o modo de subjetivação desses
estudantes?
A convivência entre diferenças não para por aí e mais elementos podem ser agregados a
essas questões. São também distintos os modos de agrupamento típicos do meio escolar e
aqueles que são proporcionados pelas novas tecnologias. Dificilmente se encontra na escola
alguém que não pertença a redes sociais tecnologicamente sustentadas (isso inclui desde as que
se formam na mais famosa plataforma de rede social, o Facebook, até as mais restritas e
passageiras que se constituem em agrupamentos do Whatsapp). O pertencimento a tais redes
segue critérios inteiramente diversos aos que definem as enturmações escolares – ano de
entrada, idade, desempenho, etc. – geralmente arbitrários em relação às escolhas e preferências
pessoais. De caráter muito mais fluido que as ―turmas de escola‖, as redes de relações sociais
que são cultivadas on-line primam pela facilidade com que são feitos e desfeitos os laços, cujo
valor frequentemente se encontra no simples ato dos integrantes ligarem-se uns aos outros. Essa
nova dinâmica de agrupamento promove interações orientadas por afinidades entre membros,
com que são traçadas diferenças e semelhanças, proximidades e distâncias.
Cabe lembrar que essas ligações em redes digitais ―são conectadas não por laços sociais
per se, mas sim por vínculos sócio-técnicos. Elas são unidas por conexões tão técnicas quanto
sociais‖ (LASH, 2001, p. 112). Desse modo, aos critérios de afinidade socialmente definidos
vêm se juntar os padrões tecnológicos de interação que são estabelecidos pelos algoritmos que
operam os serviços de redes sociais. Surgem, assim, as chamadas ligações numéricas
(CASILLI, 2010), um tipo de ligação inteiramente específica dos ambientes sociais da web, um
tipo de laço que não existe senão nas dinâmicas características do mundo on-line. É notável que,
no incentivo à conectividade, os padrões tecnológicos apliquem hipóteses formuladas no âmbito
dos estudos de rede, como ocorre com a operacionalização da ideia de ―mundo pequeno‖,
segundo a qual, é ―provável que o mundo esteja globalmente conectado‖, uma vez que
―praticamente qualquer par de indivíduos pode se conectar através de uma cadeia curta de
intermediários‖ (WATTS, 2009, p. 52). Na internet, esse encadeamento é sustentado por
tecnologias que tornam de fato exíguas as distâncias. Mas, afinal, que tipo de incitação a oferta
desse tipo de ligação exerce sobre nós? Porque são tão frequentes os afetos trocados nessas
relações mediadas por máquinas?
A expressão de afetos em redes sociais é amparada por recursos de linguagem tais como
a enunciação na primeira pessoa, a inserção de enunciados exclamativos, a presença da
veemência e do entusiasmo. Em condições variáveis, na forma de textos e imagens, a
expressividade online vem sendo inundada pela troca de experiências que poderiam ser
silenciadas ou comunicadas em segredo apenas aos mais próximos, não fosse pela facilidade

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

197
com que hoje em dia se pode publicar em uma página pessoal o relato de uma vivência e os
sentimentos nela envolvidos. O uso das tecnologias móveis (celulares, smartphones, tablets)
favorece largamente essa aptidão à abertura e ao compartilhamento da vida pessoal. Não raro, as
interações via tecnologias móveis duram noite e dia, sendo atualizados de maneira intermitente,
penetrando a esfera privada com formação do que pode ser denominado por ―comunidade
íntima a tempo inteiro‖ (MATSUDA citada por CASTELLS et alii, 2009, p. 117).
Do contínuo compartilhamento de conteúdos provenientes da vida pessoal (imagens,
relatos, opiniões, posicionamentos, desabafos) nas redes sociais on-line vemos surgir uma
espécie de ―cultura expressiva‖, onde a manifestação de sentimentos e afetos adquire valor
diverso do que possui em ambientes off-line, como é o caso das salas de aula. A proliferação do
uso de caracteres expressivos, a exemplo dos emojis, dão mostras da legitimidade que esse tipo
de manifestação vem adquirindo entre os frequentadores de redes sociais. Em contraste, o tipo
de conteúdo valorizado nas instituições de ensino tem características inteiramente diversas.
Normalmente o que é legítimo nessas instituições possui caráter objetivo, argumentativo,
lógico. Ocorre que o cenário atual é marcado pela coexistência entre o modelo tradicional e
essas novas formações sociais e culturais propiciadas pelas tecnologias digitais, onde os
distintos modos de expressão se compõem.
Diante do campo de tensão criado pela coexistência desses e de outros elementos
divergentes, indagamos: de que forma a intensa utilização das tecnologias digitais na rotina
escolar e na vida social vêm interferindo no processo de aprendizado e nos laços sociais tanto
horizontais quanto verticais? Estão sendo inventadas, como sugere Michel Serres (2012), novas
maneiras de viver junto? Que tipos de usos vêm sendo construídos, a quê eles respondem e o
que visam? O que essas práticas podem nos dizer a respeito dos sujeitos que as inventam e
adotam?
Para essa investigação, criou-se uma parceria com um grupo de estudos já constituído,
composto por estudantes interessados nos problemas de aprendizagem. Os dados estão sendo
colhidos em conversas e entrevistas com esses estudantes que participam também das
discussões para análise qualitativa dos dados. Como resultados parciais, indicamos: a
importância da construção de coletivos em rede como resposta à desorientação e impotência
geradas pela infinidade dos conteúdos informacionais disponíveis; uma tendência à autonomia
dos entendimentos; a utilização das novas tecnologias como instrumento de destituição da
autoridade do mestre; a facilitação das expressões de coleguismo.
Ainda é cedo para uma conclusão, mas buscamos avançar interrogando, a partir desse
cenário, sobre o que falha em momentos cruciais do curso, quando as exigências da prática

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

198
supõem um processo de apropriação do conhecimento, um deslocamento de uma posição de
exterioridade em relação ao saber para um lugar de sujeito do saber.
Entendendo que as relações com o saber e com os outros ocorrem no interior de
discursos, trabalhamos com a hipótese de fundo de que as TICs vêm fortalecer relações que não
se devem exatamente a elas, mas para as quais elas oferecem um suporte adequado. De outra
forma, as TICs reafirmam padrões de relações compatíveis com outros elementos da cena social
reforçando a lógica de um discurso. Por meio dos discursos, os sujeitos não só se situam
simbolicamente como organizam um modo de retorno do gozo. Como ensina Lacan (1992, p.
46), o trabalho do simbólico nos sujeitos engendra aquilo que o excede. Assim, quando
indagamos sobre as relações com o saber e sobre os laços sociais estamos também interessados
nas formas de mal-estar específicas aí encontradas.

Referências bibliográficas:

CASILLI, A. Les liasons numériques: vers une nouvelle sociabilité? Paris: Éditions Du Seuil,
2010.

CASTELLS, M., FERNANDEZ-ARDÈVOL, M., QIU, J. L., SEY, A. Comunicação móvel e


sociedade. Uma perspectiva global. Lisboa: Ed. da Fundação Calouste Gulbenkian, 2009.

FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São


Paulo: Martins Fontes, 1981.

FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

FREUD, S. (1930 [1929]). O mal-estar na civilização. In: FREUD, S. Edição standard


brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 21. Rio de Janeiro: Imago,
1974, pp. 81-171.

LACAN, J. O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, 1969-1970. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1992.

LASH, S. ―Technological forms of life‖. Theory, Culture and Society. Vol. 18 (1), 2001, pp.
105-120.

SERRES, M. Petite poucette: le monde a telement changé que lês jeunes doivent tout
réiventer une maniére de vivre ensemble, des instituitions, une maniére d`être et de
connaître. Paris: Éditions Le Pommier, 2012.

SIBILIA, P. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro:


Contraponto, 2012.

WATTS, D. J. Seis graus de separação. São Paulo: Leopardo Editora, 2009.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

199
O corpo como o que resiste: considerações sobre
o saber e a adolescência na cultura digital

Daniela Teixeira Dutra Viola


Márcio Rimet Nobre
Helena Greco Lisita
Isadora del Vecchio

Resumo:
Este artigo propõe uma reflexão sobre o estatuto do saber e do corpo na experiência dos
jovens com a virtualidade. A partir da escuta de adolescentes, num contexto de pesquisa
e extensão, levantamos algumas questões que serviram como ponto de partida para este
trabalho: o que buscam saber no espaço virtual? O que aprendem? O que ensinam? O
que têm a dizer sobre as trocas de conhecimento e informação que o ciberespaço
proporciona? Como falam sobre suas impressões e sobre os efeitos afetivos dessas
vivências? Diante disso, propomos discutir as novas modalidades de relação entre os
corpos e a transmissão de saber possível na cultura digital.

Palavras-chave: saber; corpo; adolescência; cultura digital.

A partir de um contexto de pesquisa e extensão universitária, oferecemos a


grupos de adolescentes de uma escola pública de Belo Horizonte um espaço de fala, nos
moldes da conversação clínica de orientação lacaniana. Com essa metodologia,
apostamos numa associação livre coletivizada (MILLER, 2003) em que todos os
sujeitos têm voz e podem expressar aspectos singulares de suas subjetividades. Assim,
adolescentes são convidados a falar sobre suas experiências na internet, com ênfase na
questão do saber: o que buscam saber no espaço virtual? O que aprendem? O que
ensinam? O que têm a dizer sobre as trocas de conhecimento e informação que o
ciberespaço proporciona? Como falam sobre suas impressões e sobre os efeitos afetivos
dessas vivências?
O saber, fonte mais antiga de recursos que está na base da formação subjetiva,
pode ser referido como um traço constante que perpassa as tradições e produz efeitos
sobre os indivíduos. (LAMO DE ESPINOSA, 2004). Trata-se de um elemento que
remonta à experiência do sujeito e que pressupõe, portanto, um nível de aprendizagem
que não é apenas pretensamente cognitivo, mas que é assimilado de forma inteira, sendo
experienciado de forma orgânica, por meio de inscrições no corpo, que extrapolam a
mera passagem pelos órgãos dos sentidos. Conforme nos diz Benjamim (1936/1987), a
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

200
experiência se conjuga ao saber para dar acesso ao sentido. E é por meio do saber que se
dá a transmissão entre gerações. Esta operação pressupõe, entretanto, dois elementos
fundamentais: o corpo e o Outro, conforme veremos mais adiante.
Desde Freud (1914/1996), a transmissão de saber envolve a relação com a
alteridade, carregada de afetos ambivalentes, o que a psicanálise chamou de
transferência. Na relação transferencial, o sujeito está presente com seu corpo, tomado
por experiências afetivas imemoriais que são então atualizadas de forma viva e intensa.
É assim que muitas vezes os alunos se percebem tão ―provocados‖ – positiva ou
negativamente – por um determinado professor, que faz valer sua função de transmissão
justamente com sua presença, carregada de significados, na sala de aula.
Lacan (1962-1963/2005) também falou dessa conexão radical entre o saber e o
corpo. Esse autor alude a um ―ponto vivo‖ no ato de aprender, uma espécie de limiar
que demarcaria uma verdadeira transmissão. Muitos anos depois, ele continua se
aprofundando nessa articulação do saber com o corpo e chega à ideia de um saber-fazer
com a dimensão pulsional, um ato de invenção intimamente relacionado ao corpo.
A psicanálise sempre problematizou o corpo, que é o organismo humano afetado
pela linguagem e que deve ser tomado de forma complexa em todas as suas dimensões –
imaginária, simbólica e real. O corpo é profundamente transformado pela cultura e pelos
modos de vida das sociedades, de maneira que os corpos a que Freud e Lacan se
referem devem ser repensados hoje, na cultura digital. Essa diferença pode ser delineada
pelo fato de que mesmo que o virtual acarrete a exclusão do corpo em sua
materialidade, é preciso pensar que este ainda se faz presente nesse âmbito de diferentes
maneiras. Seja como projeção imaginária, que se mostra quase sempre em sua melhor
versão, seja por suas marcas simbólicas na forma de pistas virtuais, ou ainda por
perceber efeitos no real do corpo.
Em vista disso, chegamos às seguintes questões: qual o estatuto do corpo na
transmissão e na apreensão do saber na cultura digital? Diante da incidência massiva da
cibercultura no laço social contemporâneo, como se ensina e como se aprende? Como
compreender a relação do sujeito adolescente com o saber e com o conhecimento em
face dos excessos da sociedade da informação e da hiperconexão?

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

201
De que corpo se trata?

A experiência humana implica uma subjetividade que marca o corpo, portanto,


como já apontava Freud, não se trata apenas de um corpo biológico. A partir do ensino
de Lacan, é possível levantar reflexões acerca do corpo em suas diferentes dimensões,
quais sejam, o corpo pensado a partir do registro do imaginário, isto é, como o que
permite ao sujeito se fazer consistir a partir de uma imagem de si, do simbólico,
marcado pelo significante e, do ponto de vista do real, na sua dimensão de gozo
(CUKIERT; PRISZKULNIK, 2002).
Lacan, que num primeiro momento direcionou seus estudos principalmente ao
registro do imaginário, desenvolveu o conceito teórico do estádio do espelho, marcando
a importância da imagem do corpo nesse momento lógico da formação do sujeito. Nesse
sentido, tanto a figura do Outro em sua consistência, quanto o corpo próprio, mediado e
apresentado antecipadamente à maturação fisiológica como unidade por esse mesmo
Outro, formam a base para o desenvolvimento da subjetividade e da unidade do eu.
Assim, as noções de eu e de corpo estão especialmente articuladas como identificação
do sujeito com a imagem desde um momento em que a percepção de corpo é ainda
fragmentada e autoerótica (CUKIERT; PRISZKULNIK, 2002).
Em um momento posterior, Lacan baliza suas formulações teóricas a partir
especialmente do registro do simbólico, levando assim à consideração do corpo como
marcado pelo significante. Nesse sentido, o espelho corresponderia ao Outro que, ao
reconhecer e nomear a criança, a introduz ao campo do simbólico. Da relação do
simbólico com o corpo, passa-se a considerar o ―corpo falante‖, que sofre efeitos dos
significantes que lhe fazem marcas. (CUKIERT; PRISZKULNIK, 2002)
Em relação à incidência do significante sobre o corpo, Laurent (2016) aponta
que Lacan considerava o desejo em sua eternização como constituído a partir da morte
instaurada pelo significante. Neste sentido, a repetição metonímica define o desejo,
desejo que é do Outro, de um discurso que fornece os significantes. Assim, o desejo é
considerado em sua ―alternância significante‖ (LAURENT, 2016, p. 40), e é a partir daí
que entraria a dimensão do sentido para a existência do sujeito. O que estaria em
primeiro plano neste momento da teoria lacaniana é o sentido como produto da

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

202
incidência do significante, o que dará lugar, em um momento posterior de seus ensinos,
à dimensão do gozo.
Partimos então para uma terceira perspectiva a se considerar o corpo,
direcionada especialmente ao estudo do registro do real. A noção de gozo entra aqui
para demonstrar aquilo que é experimentado no corpo ―quer como presença de Outra
coisa, quer como ausência de uma instância de percepção e de representação que
poderia responder a isso‖ (LAURENT, 2016, p.17). Lacan (1972-73/1985) designa o
corpo como a superfície em que o gozo irá se inscrever, mas de maneira falha, não-toda,
visto que a operação da linguagem no corpo afasta o sujeito de uma aproximação total
com o gozo, pois ―só se pode gozar de uma parte do corpo do Outro, pela simples razão
de que jamais se viu um corpo enrolar-se completamente, até incluí-lo e fagocitá-lo, em
torno do corpo do Outro. [...] o que chamo propriamente o gozo do Outro, no que ele
aqui só é simbolizado, [...] [é] o não-todo que terei que articular‖ (LACAN, 1972-
73/1985, p. 35 e 36).
Dessa forma, é possível uma leitura do corpo que considera o real do gozo, mas
que se articula com o registro do simbólico: Lacan nos apontava que ―o significante se
situa no nível da substância gozante‖ (1972-73/1985, p. 36) e que o ―significante é a
causa do gozo‖ (p. 36). Neste sentido, Laurent aponta para a perspectiva que Lacan
demonstrou em Radiofonia, ao dizer que ―o lugar do Outro não é mais o lugar do
discurso que se encarrega do desejo eternizado do sujeito [...] o significante produz o
corpo, o significante negativiza o gozo na carne e, por esse viés mesmo, o corpo [...],
como cadáver, se separa dela‖ (2016, p. 40).
A noção de corpo, como é possível notar neste breve passeio pelos caminhos da
psicanálise lacaniana, é um tema complexo que evoca diversos outros pontos teóricos
que mereceriam um extenso trabalho. O que cabe aqui é uma reflexão sobre o corpo e
sua relação com o saber numa dimensão evocada pelo contexto contemporâneo, da
cultura digital.
Na contemporaneidade, a dimensão imaginária do corpo se escancara num
contexto de inflacionamento da imagem em resposta ao que não é representável, ao real
do gozo. A proliferação da prática das selfies, os memes, o sucesso dos youtubers e o
culto a um suposto bem-estar do corpo orgânico configuram certo tipo de apelo à
imagem numa cultura em que as exigências morais de outrora já não convocam o sujeito

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

203
de maneira contundente (LAURENT, 2016). Nesse espaço em que a virtualidade se
apresenta especialmente através de imagens, o gozo, aparentemente sob menor impacto
do Real, transita com mais facilidade.
O virtual pode ser tomado como campo da potência, o que nos permite pensar no
corpo não como ausente, mas como estando em suspensão. Esse corpo não pode,
entretanto, se manter em suspenso indefinidamente. Em algum momento o Real entra
em cena e mostra ao sujeito que ―a língua do corpo, aquela do gozo, não autoriza
nenhum hedonismo feliz‖ (LAURENT, 2016 p. 13): há falhas, há falta. E aí o corpo é
requisitado, como ocorre em alguns casos que ultrapassam a cena do ciberespaço.
Podemos tomar como exemplo os adolescentes que aceitam os desafios com riscos de
vida, atos que em algumas situações levam à morte. Outro exemplo são os casos
recorrentes de suicídio transmitidos ao vivo no Periscope74. Nesses contextos radicais, a
tela do imaginário é rompida com efeitos no real.

O saber na adolescência

Para a psicanálise, o saber tem função constitutiva na adolescência (VIOLA,


2016), passagem assentada em operações simbólicas delicadas, que envolvem a
transmissão e a apreensão do saber e o confronto com um não saber. Com a puberdade,
a sexualidade faz furo no real (LACAN, 1974/2003), ou seja, irrompe para o sujeito
como um enigma que perturba o corpo. A maturação orgânica pubertária não é
acompanhada de um saber fazer sobre o sexo. Por conseguinte, o não saber é inerente
ao despreparo estrutural do ser humano para o real traumático da sexualidade. E é na
puberdade que esse descompasso – que Lacan aborda, ao longo de todo seu ensino, nos
termos de uma impossibilidade radical no âmbito da sexualidade humana – apresenta-se
ao sujeito de modo decisivo. Diante desse vazio de sentido e do caráter excessivo do
gozo que acomete o corpo nesse momento, o adolescente precisa inventar uma saída
própria, um saber-fazer singular que lhe dará algumas coordenadas nessa travessia rumo
à vida adulta. Para tanto, é essencial a presença do Outro nesse difícil percurso, como
um amparo necessário num momento em que as referências familiares tendem a se
desgastar.

74
Rede social que permite aos usuários fazer vídeos com transmissão em tempo real.
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

204
No que diz respeito à cultura digital, a relação que o sujeito mantém com o saber
parece sofrer os efeitos causados pelo uso massivo das tecnologias do virtual. O ritmo
das mudanças em termos de novidades e toda sorte de ofertas do mundo virtual
capturam o olhar do sujeito contemporâneo em sua ânsia por participar da anunciada
aldeia global. Com o desenvolvimento e proliferação das redes sociais, o próprio laço
social vem sendo paulatinamente virtualizado.
Tendo isso em vista, a psicanálise demonstra a importância da oferta de espaços
de escuta do que os jovens têm a dizer, em que se torna possível o reconhecimento do
singular que se manifesta em cada adolescência, muitas vezes de modo perturbador,
caótico, sintomático. É o que Freud (1910/1996) já recomenda aos educadores de
adolescentes: é preciso despertar nos jovens ―o desejo de viver‖, assim como apoio e
amparo nesse tempo da vida em que os vínculos se afrouxam, em que as referências se
dissipam, em que se explicita o descompasso temporal de um sujeito que lida com uma
maturação que se dá mediante uma imaturidade insuperável. Esse reconhecimento do
singular que irrompe para cada adolescente nesse tempo da vida é contrário a qualquer
perspectiva homogeneizante, rotuladora e normativa de tratamento da adolescência, e
pode fazer borda, cingir o pulsional que extravasa do corpo, legitimando um ―saber
haver-se‖ com o campo do gozo (LACAN, 1968-1969/2008).
Sendo assim, nosso trabalho de pesquisa e extensão baseia-se na oferta de um
lugar para o saber dos adolescentes. Nessa escuta, verificamos que a função operativa
do saber é notável na passagem adolescente, e ganha novas nuances e desafios no
mundo contemporâneo. Nos grupos de conversação de nossa pesquisa, volta e meia,
meninas e meninos falam do que sabem, do que não sabem, de suas angústias diante
disso, da maneira como se posicionam e como compreendem o processo de
aprendizagem e de seus fracassos.
Chamam nossa atenção as falas de dois adolescentes, de grupos distintos, que
convergem num mesmo ponto que diz respeito à relação entre o corpo e saber. Durante
um encontro, surge o assunto das vídeo-aulas e tutoriais na internet, e um menino, com
a total concordância dos colegas, fala o seguinte:

A gente até gosta das aulas no Youtube, dá pra aprender muitas coisas. A
gente aprende muito na internet, procura as coisas, qualquer coisa... Mas não
é a mesma coisa. Por exemplo: tem uma matéria ―cabulosa‖ de matemática
que vai cair na prova e a gente vai tentar entender com o cara do Youtube.
Beleza, até dá pra começar. Mas aí chega uma hora que complica e não dá

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

205
pra entender. A gente vai lá e volta o vídeo. E volta e volta e volta... Mas
sempre repete igual. Entendeu? Não é a mesma coisa, porque o cara não tá lá
pra saber o que você não sabe e repetir diferente, ele não tá lá! Meu professor
de matemática é bom ―pra caralho‖! Ele ―saca‖ o que eu não sei. [Fragmento
clínico]

Essa conversação prossegue com uma série de comentários, por parte dos
adolescentes, sobre os professores. Os meninos se divertem os imitando, de forma
caricatural, na maneira de falar, de andar, seus trejeitos e cacoetes. Como numa
associação livre, mostram como esses detalhes tão singulares, marcados no corpo e pelo
corpo e que apenas aquele professor poderia ter, são essenciais, de algum modo, para o
ato de aprender. E não se trata apenas da presença corpórea dos professores. Cada aluno
se coloca e se posiciona de um jeito próprio na escola. Nos pátios, salas e corredores, o
excesso pulsional que circula nos corpos adolescentes é audível e evidente. Eles usam o
corpo como expressão da singularidade e isso tem consequências para a apreensão do
saber. Esses jovens, imersos na cultura digital e hiperconectados, de certa forma estão
nos dizendo que há algo ali, na transmissão presencial, que deve resistir à tendência de
virtualização das relações sociais.
Num outro grupo, numa conversa sobre como fazer vídeos para o Youtube, os
adolescentes falam de suas habilidades e dificuldades (KELLES, 2017). Um menino
mostra aos outros a introdução de um vídeo e conta que o primo o ensinou como fazer a
inserção de um emoticon:

Até que não foi tão difícil não, eu tenho preguiça de ver vídeo tutorial para
aprender (...) tipo, não entendi, pode explicar de novo? Aí vai ter que voltar o
vídeo e o cara vai falar a mesma coisa, não vai falar de um jeito mais fácil de
você entender, você vai continuar do mesmo jeito que ele falou antes.
[Fragmento clínico]

Com essa fala, também apoiada pelos outros adolescentes, ele parece sugerir que
a transmissão que ocorre na internet não é da mesma ordem daquela que ele obtém no
contato presencial com seu primo ou com um colega do grupo, a quem também recorre
quando tem alguma dúvida ao editar seus vídeos.

Considerações finais

Percebemos que esses jovens, que nasceram imersos na cultura digital e nela
nadam de braçada, reconhecem que a presença do outro é necessária, de alguma forma,

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

206
na transmissão do saber. Não se trata de uma recusa às transformações da escola e dos
dispositivos de profusão de informação e conhecimento nos tempos hiperconectados,
mas de novas modalidades de relação entre os corpos e a transmissão de saber.
Por serem sujeitos atravessados por um não saber acerca do que pulsa em seus
corpos, os adolescentes precisam aprender um modo de se virar com isso, e muitos
conseguem construir, a partir desse ponto de sombra e impasse, um saber-fazer
particular, marca pessoal que pode viabilizar uma saída inventiva. É assim que
compreendemos a especial habilidade dos jovens para inventar, no universo virtual, uma
forma de se colocarem com seus corpos e de reconhecerem os limites da transmissão.

Referências:

BENJAMIN, W. O Narrador. In: Magia, Técnica, Arte e Política. Obras Escolhidas I.


São Paulo: Brasiliense, [1936]1987. pp. 197-221.

CUKIERT, M.; PRISZKULNIK, L. Considerações sobre eu e o corpo em Lacan.


Estudos de Psicologia, Natal, v. 7, n. 1, p. 143-149, 2002.

FREUD, S. Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar. In: FREUD, S. Totem e


tabu e outros trabalhos. Trad. J. Salomão, v. 13. Rio de Janeiro: Imago, [1914]1996. pp.
245-250.

____. Contribuições para uma discussão acerca do suicídio. In: FREUD, S. Cinco lições
de psicanálise, Leonardo da Vinci e outros trabalhos. Trad. J. Salomão, v. 11. Rio de
Janeiro: Imago, [1910]1996. pp. 243-244.

KELLES, N. F. Adolescentes no ciberespaço: uma reflexão psicanalítica sobre saber e


sexualidade. 2017. 113f. (Dissertação) Mestrado - Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017.

LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar,
[1962-1963]2005.

____. O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Trad. A. Roitman. Rio de Janeiro:
Zahar, [1969-1970]1992.

____. O Seminário Livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, [1972-
1973]1985.

____. Prefácio a O despertar da primavera. In: LACAN, J. Outros escritos. Trad. V.


Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, [1974]2003. pp. 557-559.

LAMO DE ESPINOSA, E. Información, ciência y sabiduría. El País, 22/01/2004.


Disponível em:

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

207
<https://elpais.com/diario/2004/01/22/opinion/1074726007_850215.html>. Acessado
em: 06 jun. 17.

LAURENT, E. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra
Capa, 2016.

MILLER, J.-A. La pareja e el amor: conversaciones clinicas com Jacques Alain-Miller


em Barcelona. Buenos Aires: Paidós, 2003.

VIOLA, D. T. D. O momento-limite conceitual: um estudo sobre as implicações sociais


e subjetivas do saber na passagem adolescente. 2016, 290f. (Tese) Doutorado -
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte, 2016.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

208
O MAL-ESTAR DOCENTE NA ERA DA CULTURA DIGITAL

Profª Drª Vanina Costa Dias


Profº Drº Marcelo Fonseca Gomes de Sousa
Profª Ms Viviane Marques Alvim Campi Barbosa

Resumo:

O presente artigo, redigido a partir da pesquisa Cultura Digital no Ambiente Escolar,


realizado pelo Centro de Pesquisa da FaE/UEMG, objetiva investigar as transformações
ocorridas no contexto da educação formal a partir da inserção das Tecnologias de
Comunicação e Informação – TIC‘s – nas escolas. Esta pesquisa, mais especificamente,
tem como finalidade compreender como os professores têm vivenciado e interpretado
este fenômeno que possui uma dimensão global. Para tanto, estão sendo realizadas
entrevistas semiestruturadas com professores de uma Escola Estadual do Município de
Belo Horizonte e os dados coletados estão sendo tratados por meio da análise do
discurso. Os resultados parciais e os estudos bibliográficos têm apontado para a
complexidade do tema e para a existência de formas distintas de percebê-lo e abordá-lo.
Por um lado, é fato que as TIC‘s serão, daqui para frente, cada vez mais utilizadas nos
processos de ensino-aprendizagem. Os professores têm se preocupado com o
desenvolvimento de ferramentas adequadas para poder usá-las de formas estratégicas e
inovadoras, não apenas visando se ―aproximarem mais da língua dos estudantes‖, mas,
sobretudo, se constituírem como importantes intermediários entre eles e as tecnologias.
Por outro lado, as TIC‘s também se apresentam como uma ameaça. O mal-estar relatado
pelos professores tem, ao menos, duas diferentes dimensões: a da miniaturização da sua
função, expressa pelo seu rebaixamento à condição de um técnico assombrado pela
ideia constante da obsolescência e da substituibilidade, e o temor do impacto subjetivo
que elas podem causar, uma vez que se encontram integradas às estratégias perversas do
discurso capitalista.

Palavras-chave: Cultura digital; mal-estar docente; escola.

Introdução

O acesso cada vez mais global às Tecnologias de Informação e Comunicação -


TIC - têm, nas últimas duas décadas, modificado o modo como compreendemos e
interagimos com as dimensões mais elementares da vida, tais como o tempo, o espaço e
os modos de relação estabelecidos com o Outro. Seus efeitos estendem-se a instituições,

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

209
processos sociais, relações interpessoais, estruturas de poder, trabalho, lazer, educação,
e também às próprias pessoas como sujeitos individuais. Assim, na atualidade,
participamos de uma sociedade construída a partir da inter-relação posta por essas
mudanças tão profundas quanto recentes, de cunho social, tecnológicos e subjetivos,
que nos fazem pensar em novas relações. Este trabalho, realizado a partir da pesquisa
Cultura Digital no Ambiente Escolar, pretende apontar de que maneira as novas
tecnologias - e com ela o uso das novas mídias, possibilitada principalmente pela
internet, meio de comunicação fundamental enquanto nova forma de interação humana -
tem sido utilizada no espaço escolar e de que maneira essa utilização tem recaído sobre
a relação professor-aluno.

O uso das tecnologias na escola

Desde 1990 vem se debatendo sobre o uso das tecnologias de informação e


comunicação na educação com a implementação das primeiras políticas públicas mais
estruturadas nesse campo. No início, as ações governamentais enfocavam o acesso ao
computador e a conexão à Internet. Mais recentemente, a ênfase se deslocou para
programas voltados à produção de conteúdos digitais e à difusão das tecnologias. Tendo
em conta o papel estratégico que as TIC desempenham no campo da educação, diversos
pesquisadores e agências de pesquisa tem buscado conhecer o alcance dessas iniciativas
e em que medida essas políticas vêm atingindo os objetivos e metas a que se propõem.

Com o objetivo de fornecer subsídios para responder a esses e outros


questionamentos, o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade
da Informação (Cetic.br) realiza anualmente, desde 2010, a pesquisa TIC Educação, que
investiga os usos e apropriações das tecnologias, principalmente da Internet banda larga,
nas escolas brasileiras. Fazendo uso de uma abordagem quantitativa, a pesquisa TIC
Educação tem revelado, ao longo dos anos, (CGI.br, 2011, 2012, 2013, 2014a, 2015),
além da persistência de inúmeros desafios no campo da infraestrutura tecnológica, que
mostram a insuficiência de equipamentos para todos os alunos de uma escola; as
limitações da conexão à Internet ou em problemas de manutenção dos recursos TIC.
Também se percebe que o acesso às tecnologias não garante o aproveitamento dessas
ferramentas para o uso pedagógico. Mesmo sabendo que maior parte das escolas

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

210
públicas brasileiras possuam computadores, Internet e outros dispositivos, não há,
necessariamente, uma apropriação desses meios tecnológicos no processo ensino-
aprendizagem.

Em seu estudo qualitativo também iniciado em 2010 e paralelo ao levantamento


quantitativo, o Cetic.br procurou elucidar as barreiras e motivações para a adoção das
TIC no ambiente da escola. Nesse estudo foi possível verificar os avanços e eventuais
retrocessos na incorporação da tecnologia nas escolas, além de observar e identificar as
mudanças no ambiente escolar que demonstrem inovações nos processos pedagógicos e
administrativos que envolvam o uso e apropriação das TIC pela comunidade escolar
principalmente os educadores e alunos.

Já outros estudos se aprofundaram no papel do laboratório de informática e nas


limitações de seu uso por professores e alunos (OCDE, 2010). As resistências à
utilização de redes sem fio e de celulares pelos alunos, por sua vez, sugerem
movimentos restritivos à introdução das TIC no ambiente escolar – um tema que é
particularmente importante como indicador de um novo modelo de informatização
escolar (UNESCO, 2009).

Sabemos também que os usos dos recursos tecnológicos ainda exigem muito de
professores que mesmo com o passar dos anos ainda continuam pouco familiarizados
com a tecnologia, o que remete à necessidade de apoio formal e informal para o
desenvolvimento profissional dos educadores. Embora, os dados apontados acima sejam
importantes para a compreensão da utilização das tecnologia no ambiente escolar, nossa
pesquisa pretende identificar os enlaces subjetivos da relação professor-aluno
permeados por essa tecnologia.

Para Sibilia (2012) aqueles professores que não nasceram nesse novo ambiente
envolto às tecnologias, mas foram atravessados por ela e vivenciam suas consequências
na ‗própria pele‘, se angustiam com esse novo modo de ser e estar no mundo
contemporâneo, pois são mais compatíveis com o modelo tradicional de ensino-
aprendizagem, revelando sua ―flagrante incompatibilidade com tais ferramentas
enquanto se ensamblam com outros artefatos‖ (SIBILIA, 2012, p. 198).

Em relação aos professores, mesmo que façam uso de seus equipamentos no


preparo das aulas, em pesquisas e atividades de formação continuada, ao levarem seus

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

211
‗notebooks‘ para o ambiente escolar, esses, muitas vezes, não fazem parte do contexto
da aula, servindo apenas como suporte às atividades docentes. Os professores pouco
inovam em propostas metodológicas colaborativas com recursos digitais, apesar de já
serem usuários de Internet em suas próprias residências. Com isso, em espaços
escolares que permitem a utilização dos aparelhos móveis (smartphones e tablets) e
também o uso permanente pelos alunos em casa, eles tem se tornado o grande
concorrente do professor que perde seu lugar para os sites e aplicativos de pesquisa
virtuais. Para Voltolini (2014) esse fenômeno vem despertando algo inédito nos
professores: o fantasma da miniaturização do professor, uma vez que ele se depara com
um objeto em que os jovens sabem mais do que ele.

Assim, sabemos que os avanços das ferramentas tecnológicas vêm afetando a


maneira como os professores pensam e realizam as suas ações pedagógicas.
Substituídos pelos aparatos tecnológicos e pela Internet, os professores vem perdendo
seu antigo lugar de soberanos do saber na tríade da construção da aprendizagem.
Juntamente com isso questões que vão desde a intensificação burocrática do trabalho
docente – capturado por sistemas de informatização - até a quantificação do saber
docente também vêm modificando sua prática. Torna-se, pois, importante refletir sobre
o uso em sala de aula das diferentes mídias, no que diz respeito às ferramentas de
trabalho do professor e o lugar que elas ocupam no seu fazer pedagógico, para
compreender, de que forma o mundo virtual vem afetando o fazer docente e a relação
dos professores com os alunos.

Não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, observa-se uma necessidade de


integrar – ou mais efetivamente, impregnar – as TIC ao currículo de forma qualitativa e
trazer de fato a cultura digital para a escola e demais espaços de aprendizagem.
Pesquisadores americanos e europeus apontam que as principais competências e
habilidades para o uso dos aparatos tecnológicos pelos alunos proporcionados pela
cultura digital devam estar envolvidas em três grandes domínios: o cognitivo, que se
relaciona às estratégias de aprendizado, criatividade e pensamento crítico; o
intrapessoal, que se relaciona com a capacidade de lidar com emoções e objetivos; e o
interpessoal que envolve a habilidade de expressar ideias, interpretar, dialogar e
interagir com o outro. A UNESCO (2009) propõe para os professores três níveis de
apropriação das TIC: ―alfabetização em tecnologia, aprofundamento do conhecimento e

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

212
criação de conhecimentos‖ que se desenvolvem por meio de ―seis componentes do
sistema educacional – política e visão, currículo e avaliação, pedagogia, TIC,
organização e administração e desenvolvimento profissional do docente‖ (UNESCO,
2009, p. 7).

Como se percebe esse desafio se relaciona, num primeiro momento com a


formação inicial e continuada dos professore e, concomitantemente com a incorporação
de tendências que já fazem parte do cotidiano da sociedade conectada, tais como:
personalização de uso, práticas colaborativas em redes digitais, adoção crescente de
celulares, smartphones, tablets e computadores móveis. Além disso, a prática docente na
cultura digital se relaciona a modos de fazer que se desenvolvem gradativamente, a
partir das particularidades de cada contexto escolar. Em cada escola, com suas
realidades sociais e econômicas, encontram-se professores com distintos níveis de
competências, que influenciam os modos com que incorporam as TIC em sua prática
pedagógica.

O impacto do uso das tecnologias na prática pedagógica

Fortemente impactados pelo avanço da cultura digital, o espaço escolar, espaço


de convivência de crianças e adolescentes que dão mostras cada vez mais categóricas de
reconfiguração das relações que estabelecem a partir da virtualização de suas práticas
sociais e também o modo como criam vínculos com professores e com o conhecimento.
Esta reconfiguração faz surgir um mal-estar entre os professores que, diante de uma
resistência ou de um não saber em relação à maneira como a integração destas novas
tecnologias deve ocorrer na sua prática pedagógica cotidiana, ensaiam diversas formas
de lidar com esse mal-estar.

A presença das TIC‘s no ambiente escolar despertam em muitos professores a


experiências de descontrole, como também de falta de domínio de sua ação, pois a
entrada da tecnologia e das redes sociais no campo da educação retira do professor o
lugar de saber (VOLTOLINI, 2014) e também a escola do lugar de compartilhamento
do conhecimento. Do confronto entre as gerações, pode-se perceber, de um lado, a
emergência de um objeto que as crianças manejam melhor que os adultos, e por outro

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

213
lado, a consumação de um espaço virtual desterritorializado, não como um espaço
―vazio‖, mas sim preenchido por múltiplos objetos, que o configuram como um espaço
onde se agenciam relações, no qual o indivíduo se move, se comunica e se constitui.

Nesse espaço, o que produz o mal-estar na confrontação do professor com aquilo


que ele talvez mais tema não é o seu choque com o não saber em relação ao uso das
tecnologias que poderiam afetar sua relação com os alunos, mas sim com a própria
docência, que se vê ameaçada em relação à destituição de seu lugar de mestria no
processo educativo, além da percepção de uma reserva dos professores em relação aos
impactos que o uso das tecnologias pode ter na economia subjetiva de adolescentes.

Diante dessa nova realidade, observamos, na prática pedagógica de professores


que estão buscando a inserção das tecnologias em seu dia a dia de trabalho, dois
elementos diferentes, a partir dos quais percebemos seu mal-estar:

O primeiro elemento é o sintoma do professor pensado como um sofrimento


relativo ao seu despreparo para lidar com os avanços da cibercultura e o seu assombro
com o fantasma da miniaturização de sua função (VOLTOLINI, 2014). Essa
miniaturização é assim apontada nas falas dos professores:

Essa geração vive o momento, eles ficam conectados o tempo


todo. Na minha disciplina é preciso que exista uma
temporalidade.
Já fiz projeto para ensinar aspectos históricos através da
história dos videogames, mas eles não se interessaram.
(Fabiano- Professor de História)75

O segundo elemento está ligado à incerteza dos professores em relação à


maneira como o avanço da cibercultura pode ser observado entre os alunos, que podem
potencializar as formas como a aprendizagem ocorre, visto que novos recursos podem
se aliar a novas estratégias pedagógicas; contudo, sintomas ligados ao uso das
tecnologias podem ser notados no processo de aprendizagem. Com eles afirmam:

A tecnologia é o vilão ou é o herói. Eu uso como herói.

75
Entrevista gravada na escola pública onde foi realizada a primeira parte da pesquisa de campo.
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

214
Utilizo o grupo do Facebook como um canal de comunicação.
Os meninos não saem das redes sociais. Não respondo no
Facebook o aluno “picareta” ele tem que utilizar a fala em sala
de aula. (Lucas – Professor de Geografia)¹

Tendo em vista essa realidade, é correto afirmar, como alguns estudiosos


propõem, que a disponibilidade de acesso à grande rede, cada vez mais democratizada,
traga alguns efeitos ou consequências bastante positivas do ponto de vista do proveito
individual e coletivo. Pierre Lévy (1999) destaca que a internet promove uma
verdadeira revolução na inteligência coletiva, uma vez que a existência de uma rede de
usuários conectados em tempo real possibilita que a construção dos saberes seja
constantemente revisitada e que a diversidade e pluralidade de posições de grupos
heterogêneos seja contemplada, divulgada e expandida. Castells (2001), por sua vez,
revela como a internet produz uma expansão dos regimes democráticos, não apenas
porque permite o acesso ampliado a uma multiplicidade de saberes, mas também porque
cria ferramentas novas de mobilização social, de debate de pautas políticas relevantes e
de quebra da hegemonia da informação por certos grupos midiáticos poderosos. Embora
estes autores tenham razão - e temos muitos exemplos recentes no Brasil e no mundo
que permitem corroborar suas teses -, há, também aqui, outra dimensão das TIC‘s que
deve ser olhada com bastante cuidado, visto que ela gera, sobretudo do ponto de vista da
educação das crianças e jovens, efeitos verdadeiramente deletérios sobre suas
subjetividades.

Reflexões Finais

Os estudos bibliográficos e as entrevistas realizadas com professores a partir da


pesquisa Cultura Digital no Ambiente Escolar tem revelado, até aqui que a utilização
das TIC por professores como um complemento à sua prática docente, é tida por eles
como mediadora da aquisição do conhecimento. Esta deve ser incorporada no seu fazer
cotidiano, mas não substituindo a sua função docente, e sim, dando a ele diversas
possibilidades e ferramentas que podem ser incorporadas às aulas, tornando-as mais
atrativas aos alunos.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

215
Assim, entendemos que as tecnologias proporcionam tanto aos professores
quanto aos alunos o acesso a uma quantidade infinita de informações, que podem ser
utilizadas de diversas maneiras, dando ao professor a condição de oferecer ao aluno uma
série de possibilidades de conhecimento que antes não poderiam ser apresentadas. Por
outro lado, a angústia dos professores diante de jovens cada vez mais estimulados em
sala de aula permanece produzindo um desencontro entre a demanda desses jovens e as
habilidades docentes.

Remetendo-nos a Perrenoud (2000, p. 125), que já indicava que entre as novas e


necessárias competências profissionais para ensinar no século XXI destaca-se a de
―utilizar novas tecnologias‖, esse autor afirmava que, ―as novas tecnologias da
informação e da comunicação transformam espetacularmente não só nossas maneiras de
comunicar, mas também de trabalhar, de decidir, de pensar‖. Dessa forma, ao fazer
parte da evolução do ofício do professor, as TIC‘s possibilitarão a criação de situações
de aprendizagem ricas, complexas e diversificadas.

Encontramos, na atualidade, professores que acompanham a tecnologia tanto


quanto os alunos, mas ainda há aqueles que continuam presos ao tradicionalismo de
tempos atrás e ainda prejudicados pela configuração atual das escolas públicas e da
realidade socioeconômica híbrida da maioria de seus estudantes, que ainda não tem
acesso de forma igualitária às tecnologias digitais.

Finalizando, podemos apontar que os impactos das tecnologias sobre a sociedade


e a cultura incitam uma reflexão sobre as relações entre o professor e o aluno sendo
necessária sua ressignificação. As novas tecnologias precisam ser contempladas na
prática pedagógica do professor, de modo a incrementar sua ação e interação no mundo
contemporâneo, com critério, ética e uma visão transformadora da escola.

Referências

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra. 2001


COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL . Pesquisa Sobre o Uso das
Tecnologias de Informação e Comunicação no Brasil – TIC Educação 2014. Coord.
Alexandre F. Barbosa. São Paulo: CGI.br, 2015. Disponível em:

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

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Acesso em: 16 jul. 2016.
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LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 1999.
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PERRENOUD, P. Dez novas competências para ensinar: convite à viagem. Porto


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UNICAMP/NIED, 1999.

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Sociais: notas psicanalíticas. Belo Horizonte MG; Fino Traço.2014.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

217
Profissionais da saúde, adolescentes grávidas e a cultura digital:
desafios e possibilidades

Patrícia Pinto de Paula76


Márcia Stengel77
Luiza de Abreu França78
Natália Katielle Oliveira Ferreira79

RESUMO
Com a propagação das tecnologias de informação e comunicação, nosso cotidiano e
ações são perpassados pelo ―universo oceânico de informações‖ presente no
ciberespaço, destacado por Lévy (1999). Nesta pesquisa tomamos como cibercultura as
trocas, inventividades, entrelaçamentos entre diferentes vias virtuais que compartilham
informações e influências. Essa cultura digital perpassa também as relações de trabalho
na saúde. Com o objetivo de buscar compreender como a cultura digital intermedia o
acolhimento dos profissionais da saúde da família junto às adolescentes grávidas em
uma Unidade Básica de Saúde, realizou-se entrevistas e observação em reuniões de
quatro equipes de saúde da família. A obtenção das informações pode promover o
desenvolvimento de habilidades pessoais sobre as questões relativas à saúde e reduzir a
assimetria na relação com os profissionais da saúde. No serviço de saúde, a participação
de adolescentes grávidas no planejamento e na avaliação das ações contribui
decisivamente para a eficácia do trabalho junto a esse público, mas também traz
desafios aos profissionais em como lidar com a cibercultura em seu cotidiano de
trabalho.

Palavras-chave: Profissionais da Saúde da Família; Gravidez na Adolescência; Cultura


Digital.

76
Doutora em Psicologia Social – USP e Professora da Faculdade de Psicologia da PUC Minas.
77
Doutora em Ciências Sociais – UERJ e Professora do Programa de Pós-graduação de Psicologia da
PUC Minas.
78
Aluna do curso de Psicologia da PUC Minas e Bolsista CNPq/PIBIC/PUC Minas.
79
Aluna do curso de Psicologia da PUC Minas e Bolsista CNPq/PIBIC/PUC Minas.
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

218
A virtualidade tem sido foco de diversas discussões e no âmbito da saúde não
tem sido diferente. A relação com o saber e o conhecimento perpassa a sociedade da
informação, com diversos atravessamentos não somente na Atenção Básica, mas
também na Atenção Secundária e Alta Complexidade, além de atravessar as esferas
pública e privada. Desse modo, nosso cotidiano e nossas ações são atravessados pelo
ciberespaço. Este abarca não somente a ―infra-estrutura material da comunicação
digital‖, mas também o ―universo oceânico de informações‖, no qual navegamos e
alimentamos (LÉVY, 1999, p. 17).
No que concerne à cibercultura, Lévy (1999, p. 17) a descreve como ―conjunto
de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e
de valores que se desenvolvem juntamente ao crescimento do ciberespaço‖. Logo, é
possível pensar nos impactos da virtualização, social e culturalmente, considerando que
as tecnologias proporcionam o desenvolvimento tanto dos sistemas, da sociedade e do
próprio sujeito. A partir dessas constatações, este trabalho pretende discutir como a
cibercultura se faz presente no campo da saúde, especificamente no que tange os
adolescentes e as adolescentes grávidas.
Em busca da consolidação e expansão da rede de assistência e de modelos de
atenção, no ano de 2006, assinou-se a Política Nacional de Atenção Básica,
apresentando a estratégia da saúde da família como norteadora da organização dos
serviços voltados para atenção às necessidades da população que vive no território
adstrito, circunvizinho à Unidade Básica de Saúde - UBS. Essa Política é concebida na
perspectiva da saúde coletiva, ou seja:

A Atenção Básica caracteriza-se por um conjunto de ações de saúde, no


âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e proteção da saúde, a
prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e a
manutenção da saúde. [...] É a porta de entrada preferencial no sistema de
saúde. (BRASIL, 2006).

A UBS é o principal equipamento de saúde da rede de Atenção Básica, ou rede


de Atenção Primária à Saúde, como se denomina em Belo Horizonte, cidade que
compõe o cenário da presente pesquisa.
As equipes de saúde da família que trabalham nas UBS‘s são compostas por
profissionais generalistas: um médico, um enfermeiro, um ou dois auxiliares de

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

219
enfermagem, quatro a seis agentes comunitários de saúde. O número de equipes e
profissionais varia conforme o índice de vulnerabilidade social e o risco epidemiológico
da população que será atendida pela equipe.
Dentre essa população, estão os adolescentes, que merecem atenção. Para tanto,
o documento oficial das Diretrizes para Saúde Integrada de Adolescentes e Jovens
defende que ocorra a promoção de um desenvolvimento saudável de jovens de ambos os
sexos, especialmente adolescentes, e sejam assistidos sistematicamente nas UBS‘s para:
investigar o desenvolvimento físico com a identificação das variáveis pubertárias
fisiológica comuns ou patológicas e suas repercussões no indivíduo; complementar o
esquema vacinal, utilizando de estratégias com a educação. (BRASIL, 2010, p. 79).
No contexto das Diretrizes, garantir os direitos reprodutivos aos adolescentes e
jovens, de ambos os sexos, significa certificar: informações e ações educativas em saúde
sexual e saúde reprodutiva; as formas de utilização de contraceptivos e preservativos,
oferecendo serviços de contracepção e planejamento familiar, com acesso
disponibilizado a adolescentes e jovens; ações educativas que também abarcam as
famílias e as comunidades; a assistência ao pré-natal, ao parto e ao puerpério, focando
nas necessidades das adolescentes grávidas, seus parceiros e suas famílias, de forma que
a gravidez possa ser desejada, elaborada e vivenciada de maneira saudável; a
qualificação dos profissionais que trabalham nos serviços de atenção básica e
maternidades para uma atuação que considere as especificidades da adolescência
(BRASIL, 2010).
Assim, desenvolver saúde com adolescentes e jovens é reconhecer seus projetos
de vida, é valorizar sua participação e o desenvolvimento de sua independência, é
considerar ―que eles e elas aprendem a lidar com os seus problemas e com seu contexto
de vida tendo o apoio e a corresponsabilidade dos trabalhadores da saúde, sem
moralismos, controle e opressão.‖ (BRASIL, p.77, 2010).
Segundo o documento oficial das Diretrizes para Atenção Integral à Saúde de
Adolescentes e Jovens (BRASIL, 2010), faz-se necessária uma atenção diferencial para
as adolescentes grávidas de 10 a 14 anos. Essa faixa etária deve ser tratada como indício
de maior vulnerabilidade relacionada à situação social, assim como a falta de
informação e acesso aos serviços de saúde e ao baixo status de adolescentes mulheres
nas relações sociais em vigor, principalmente de mulheres adolescentes pobres e negras.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

220
Na compreensão do fenômeno da gravidez na adolescência, é fundamental
considerar, como parte de um conjunto de fatores psíquicos e sociais, que a
falta de um projeto educacional e profissional, a dificuldade de negociação da
contracepção com o parceiro e a maternidade, como uma fonte de
reconhecimento social para as mulheres, são fatores importantes de análise.
(LEAL apud BRASIL, 2010, p. 91).

O fenômeno da gravidez na adolescência chama a atenção para a difícil


realidade da juventude brasileira e, em particular de adolescentes, vinculando aspectos
ligados ao exercício da sexualidade e da vida reprodutiva, às condições materiais de
vida e às múltiplas relações de desigualdades que fazem parte da vida social em nosso
país (BRASIL, 2010).
Entretanto, devemos salientar que a gravidez na adolescência pode assumir
diversos significados e ser também tratada de diferentes modos e apresentar distintos
desfechos, mesmo que, por muitas vezes, seja considerada como uma espécie de
―evento-problema‖ nas análises e nas políticas. A experiência e pesquisas têm revelado
que a gravidez está inserida, diversas vezes, em projetos de vida de adolescentes do
sexo feminino, o que também é vivenciado por adolescentes e homens jovens. A
maternidade e a paternidade podem se mostrar, nessa faixa etária, como um elemento
reorganizador da vida e não apenas desestruturador (KEHL, 2004).
Para as Diretrizes Nacionais da Atenção à Saúde do Adolescente e Jovem
(BRASIL, 2010), o acolhimento feito por profissional qualificado, médico ou
enfermeiro, constitui-se em espaço propício para ações de promoção, prevenção,
diagnóstico, tratamento da saúde sexual e da saúde reprodutiva, associadas à política de
prevenção e controle de DST/Aids e política de Saúde da Mulher, de forma que respeite
as necessidades singulares dessa faixa etária.
E como a virtualidade tem se feito presente nos serviços de saúde? No que tange
os profissionais, Vieira (2015, p. 33) menciona que, nas últimas três décadas, tem
crescido o uso das tecnologias de informação na Saúde, oferecendo suporte seguro para
os atendimentos e permitindo ―que os profissionais de saúde tenham acesso, em
qualquer lugar ou hora, a uma vasta quantidade de informações tanto do paciente, por
meio de seu registro de saúde, quanto das melhores práticas clínicas‖.
Ainda, o Ministério da Saúde propôs a Política Nacional de Informação e
Informática em Saúde (PNIIS, 2016), norteadora das ações da Tecnologia da

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

221
Informação e Comunicação (TIC), que busca padronizar e potencializar a integralidade
do serviço, tendo em vista a qualificação e ampliação das ações na Atenção Básica
através, por exemplo, do e-SUS. Este é

(…) é uma das estratégias do Ministério da Saúde para desenvolver,


reestruturar e garantir a integração desses sistemas, de modo a permitir
um registro da situação de saúde individualizado por meio do Cartão
Nacional de Saúde (…) O nome, e-SUS, faz referência a um SUS
eletrônico, cujo objetivo é sobretudo facilitar e contribuir com a
organização do trabalho dos profissionais de saúde, elemento decisivo
para a qualidade da atenção à saúde prestada à população. (DATA
SUS, 2017, p.1).

Já a PNIIS considera, em relação à formação de pessoal para o SUS, a


―promoção da formação da qualificação e da educação permanente dos trabalhadores e
dos gestores de saúde para uso da informação e informática em saúde‖ (2016, p.17).
Vale salientar que, apesar da PNIIS exigir capacitação dos profissionais, na prática do
trabalho é comum existir uma resistência à inovações.Essa resistência está associada a
diversas razões, tendo em vista que essas mudanças podem vir a obrigá-los a abandonar
velhos hábitos associados à prática do trabalho. ―A resistência à mudança é poderosa,
mesmo em face de evidências objetivas que uma determinada mudança faz sentido‖.
(PINHEIRO et al, 2016, p.5)
A competência informacional, embora esteja associada à capacidade de lidar
com informação, não se limita aos profissionais da informação (PINHEIRO et al, 2016),
o que não difere da cibercultura. Sendo assim, para Lévy (1999, p. 23, grifos do autor),
―as verdadeiras relações, portanto, não são criadas entre ‗a‘ tecnologia (que seria da
ordem da causa) e ‗a‘ cultura (que sofreria os efeitos), mas sim entre um grande número
de atores humanos que inventam, produzem, utilizam e interpretam de diferentes formas
as técnicas.‖.
Percebe-se que, por um lado, a informatização do SUS pode auxiliar e facilitar o
trabalho dos profissionais, por outro, é um desafio, já que os funcionários precisam se
adaptar à nova tecnologia e conciliá-la com suas outras demandas cotidianas. Além
disso, eles se veem diante de outro grande desafio: como alcançar os adolescentes de
uma maneira geral e as jovens grávidas?
Os adolescentes pertencem a uma geração nomeada de nativos digitais, o que
significa que as TIC‘s fazem parte de seu cotidiano de forma naturalizada, utilizando-as

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

222
para inúmeras atividades, dentre elas aquelas relacionadas à saúde. Com milhares de
sites, além de páginas pessoais e comunidades virtuais, eles podem ter acesso a todo
tipo de informação, que vai da busca diagnóstica à compra de medicamentos, passando
por orientação terapêutica (GARBIN, GUILAM e PEREIRA NETO, 2012). Essas
informações podem ser obtidas a qualquer hora, em qualquer lugar, fácil e rapidamente,
de maneira privada, ou seja, sem necessitar de alguém que repasse essas informações.
É possível citar, como exemplo, os aplicativos Calendário Menstrual, que
registra o período menstrual e realiza o controle do ciclo, além de ter funções de
controle de relações sexuais, orgasmo feminino, humores, sintomas e peso.Para este
aplicativo gratuito, de acordo com a loja virtual do Google Play (2017) até a data
pesquisada, haviam sido realizados o total de 292.824 downloads.A marca de
absorvente Always possui em sua página online, um modelo de calendário menstrual, de
modo que as usuárias podem calcular e prever seus ciclos, permitindo o planejamento
de eventos ou viagens.Outro aplicativo é Hora da Pílula, no qual a usuária recebe um
lembrete com as horas cadastradas para que a mesma não se esqueça do
medicamento.Essas plataformas ressaltam a importância de não se desconsiderar a
orientação de profissionais, sendo o aplicativo uma alternativa para auxiliar o controle
durante as consultas.
Além da familiaridade com a tecnologia, as adolescentes podem buscar a
informação para, quando estiverem com um profissional de saúde, estarem preparadas
para fazer perguntas e compreenderem o que lhe é dito. Assim, se sentirão mais
confiantes sobre sua saúde e seu tratamento. Logo, pode-se pensar em trocas de saberes
entre os profissionais e as adolescentes, agilizando e potencializando o trabalho
desenvolvido por tais profissionais.
Foucault (2000) menciona uma época clássica em que os corpos são produzidos
"como objeto e alvos do poder", corpos manipulados e modelados de acordo com as
respectivas necessidades, docilizados em uma sociedade de controle. Costa (2004, p.
161) afirma que

(...) a sociedade de controle seria marcada pela interpenetração dos espaços,


por sua suposta ausência de limites definidos (a rede) e pela instauração de
um tempo contínuo no qual os indivíduos nunca conseguiriam terminar coisa
nenhuma, pois estariam sempre enredados numa espécie de formação
permanente, de dívida impagável, prisioneiros em campo aberto.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

223
Como pensar nos atravessamentos da virtualidade na subjetividade das usuárias
de tais aplicativos? Até que ponto o uso individualizado dessas tecnologias substitui ou
vem substituindo o acesso dessas jovens à rede de saúde?
Desta forma, é possível propor questionamentos sobre prováveis relações entre a
sociedade de controle, mencionada por Deleuze (1992), como substituta das sociedades
disciplinares, ditas por Foucault (2000), e as redes sociais, partindo do pressuposto de
que esse controle atravessa as relações entre os profissionais da saúde e os adolescentes
e jovens.
Na Atenção Básica de Saúde há a realização de grupos com objetivos
específicos, seja para adolescentes, adultos ou idosos. No que se refere ao público
adolescente e jovem é possível notar uma baixa ou nenhuma adesão aos grupos de
controle, promoção e prevenção à saúde sexual e reprodutiva. De acordo com os dados
da pesquisa realizada no Centro de Saúde Gentil Gomes, uma Agente Comunitária de
Saúde levanta como uma hipótese da baixa adesão aos grupos que

(...) é porque não tem um compromisso [dos adolescentes] de vir e sentar


numa sala pra ouvir uma palestra, sabe, é mais fácil uma internet, ficar lá...
Então, é isso, sabe?! Saber ouvir, eles não têm paciência não. Então, se vêm
uma vez nunca mais volta. Ah, aquela chatice lá...

A partir da fala da entrevistada, podemos observar que é notória certa resistência


dos adolescentes em aderir às propostas de grupos sobre sexualidade no Centro de
Saúde, tendo em vista que cada vez mais eles têm livre acesso a informações,
principalmente por meio do ambiente virtual. Esse não pode ser visto nem como algo
positivo nem negativo, o que precisa ser considerado são os possíveis impactos que
possam interferir no acolhimento presencial.
Percebe-se na fala da Agente Comunitária de Saúde que se os recursos
tecnológicos são importantes para aproximar o público jovem, também são um desafio
para os profissionais, que precisam aprender a lidar com a tecnologia e, especialmente,
com essa geração inserida na sociedade da informação. Desse modo, torna-se necessário
criar estratégias para alcançar esses adolescentes, de forma que haja um engajamento
deles no serviço de saúde.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

224
REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Departamento de Monitoramento


e Avaliação do SUS.Política Nacional de Informação e Informática em Saúde /
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DELEUZE, G. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219-226.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 23. Ed. Petrópolis: Vozes,


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GARBIN, H. B. R., GUILAM, M. C. R.e PEREIRA NETO, A. F. Internet na promoção


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LÉVY, P. A Cibercultura. Editora. 34, 1999. 1a edição. [ Livro online]. Acesso em 23


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Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

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PINHEIRO, A. L. S. e outros. Gestão da saúde: o uso dos sistemas de informação e o
compartilhamento de conhecimento para a tomada de decisão.Texto Contexto Enferm;
25(3):e3440015; 2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/tce/v25n3/pt_0104-
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2013:survey on the use of information and communication technologies in
brazilianhealth care facilities / coordenador/coordinator Alexandre F. Barbosa. -- 2.
ed.rev -- São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2015. 4,77 Mb. Disponível em
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2017.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

226
Saber e laço: avanços e limites na construção de uma metodologia
de trabalho com jovens

Débora Matoso
Ângela Vorcaro

Resumo:
Nessa comunicação pretendemos transmitir, a partir de alguns recortes, o modo como
nossa experiência de acompanhamento a adolescentes em serviços públicos e
universitários da rede de atenção à criança e ao adolescente culminou em perguntas que,
endereçadas à universidade, se materializaram em um projeto de pesquisa de doutorado.
Dessa forma, nossa pesquisa se articula e provem da práxis. Destacaríamos, como
recorte a orientar a investigação teórica, nossa experiência de trabalho no Projeto
SELEX. Tomaremos a lógica que orientou a construção desse projeto, bem como sua
metodologia, como paradigma a auxiliar uma possível leitura sobre avanços e limites
em ofertas que se pretendem como feitas com os jovens e não para os jovens.

Palavras-chave: Saber; Jovens; Laço Social; Tecnologia; Universidade

SELEX: uma aposta na experiência como (trans)formação:

O projeto Sistemas Elétricos Experimentais – SELEX, implementado em 2011, é


uma iniciativa de extensão vinculada e estruturada a partir da proposta curricular do
curso de graduação em engenharia de sistemas da Universidade Federal de Minas
Gerais - UFMG. Este projeto tem como objetivo principal promover a convivência e
troca de experiências entre jovens. Propor convivência entre jovens de experiências de
vida distintas, no espaço da universidade, foi uma forma de apostar que o próprio
encontro com as diferenças, e também semelhanças, produziriam efeitos de formação e
transformação para todos aqueles que se engajaram nessa experimentação (MATOSO,
2014). Alçamento foi o termo proposto pelo psicanalista Célio Garcia, idealizador do
projeto, para esse efeito de transformação, e seus modos de transmissão, que fomos
recolhendo pelo caminho.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

227
Por que na engenharia?

SELEX é atividade curricular da graduação em engenharia de sistemas por ser


uma proposta que se orientou e se articulou ao eixo Humanidades previsto no currículo
político-pedagógico deste curso (NETO, et al., 2011). O curso foi proposto trazendo em
sua estrutura um percurso tecnocientífico e outro suplementar em humanidades.
Formação em ciências humanas já se faz presente nos currículos dos cursos de
engenharia há bastante tempo. Em comunicação80, o filósofo e crítico literário, Prof.
Antônio Cândido (2015), estabeleceu o contexto histórico e político que favoreceu a
implementação da primeira universidade brasileira, em 1934, a Universidade de São
Paulo – USP. Ele destacou que com a implementação da USP criou-se também algo
novo: a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Essa faculdade foi criada como um
eixo transversal a oferecer formação básica em Humanidades para todas as outras
faculdades. Desse modo, surge pela primeira vez, no Brasil, um ensino articulado ao
campo das Humanidades, possibilitando também a criação de espaços de reflexão e
construção de conhecimento, no ensino superior, acerca dos problemas da sociedade
brasileira.
Dessa maneira, quando o curso de Engenharia de Sistemas (2008) propõe
formação suplementar em Humanidades, não há aí propriamente uma inovação como
nos apontou o Prof. Cândido. A inovação se dá em propor formação em Humanidades
através da experimentação do discente, e preferencialmente, articulando-a ao percurso
tecnocientífico. Buscava-se uma formação universitária mais ampliada e que
potencializasse o “estar em contato com a sociedade” – seus conflitos e soluções. De
modo a exercer a função da universidade em promover o contato com problemas reais e
complexos do país, como parte da formação acadêmica de seus discentes. Mas não só
deles. Em igual medida buscou-se que os jovens não inseridos institucionalmente na
UFMG pudessem se servir dessa abertura para acessar a educação pública. A extensão,
como franja da universidade, ganha importância ao abrir-se como um espaço onde as
rígidas fronteiras institucionais, que barram o acesso de várias pessoas, dentre elas os
jovens convidados a participarem do SELEX, se tornam mais fluídas e franqueadas.
Com ingressos mais à mão, é possível viver o campus universitário, experimentar outras

80
Comunicação realizada por ocasião da posse do então ministro da educação Renato Janine Ribeiro.
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

228
linguagens, acessar novas experiências e delas extrair consequências para suas vidas,
para cada um e cada um ao seu modo, ainda que numa experiência coletiva. Tornar-se
um dispositivo de acesso, um tipo de conector entre os jovens e a universidade pública
sempre esteve no horizonte vislumbrado por esse trabalho.
SELEX, portanto, integra o campo das Humanidades como uma oferta de
formação através da experimentação. Ao se instalar no eixo contato com a sociedade e
propor convivência com jovens que respondem ao campo jurídico81, por um ato
infracional praticado, traz para o interior da universidade um problema complexo que
não é, necessariamente, tema sobre o qual os engenheiros se debruçam para alcançar sua
formação. Ao introduzir a questão do fora da lei na agenda de Humanidades traz para
dentro, como convite à reflexão e à conversação, temáticas que estava aparentemente
fora do escopo do curso.
Como metodologia central, considera que cada participante possui um saber e
que esse saber pode ser transmitido. Para tanto, adotou-se a ideia de se trabalhar em
oficinas, ou seja, lugar onde se elabora, conserta ou fabrica algo, como pretexto para se
alçar um outro texto – a extração de um novo saber construído coletivamente via
encontro entre os participantes. Mas não participantes quaisquer, vale dizer que são
jovens. Para cada proposta de atividade a ser feita, tem-se um (ou vários) instrutor(es),
ou seja, alguém que fique responsável por conduzir o trabalho proposto naquela oficina.
E transmitir o seu conhecimento aos demais participantes. Com essa proposta busca-se
fazer vacilar a hegemonia do conhecimento científico sobre outros saberes, inclusive
aqueles espontâneos que se adquire a partir da experiência de vida.
Outro ponto que vale destacar desta metodologia é a produção de um objeto
físico ou virtual como produto do trabalho em oficina ou, como exemplos: lanterna,
protótipo de usina hidrelétrica, foguete, barco a motor. Todos esses objetos foram
construídos misturados aos elementos próprios à cultura juvenil, sobretudo ligada ao
movimento Hip Hop como as letras de RAPs, Funks, grafitti, programa de rádio82. As
oficinas acontecem durante cerca de dois meses, em duas edições, uma a cada semestre,

81
O SELEX foi um projeto criado e realizado entre 2011 e 2015 em parceria com o Catu, projeto cuja
responsabilidade é acompanhar jovens durante o cumprimento de medidas protetivas do Programa de
Atenção Integral ao Paciente Judicário do Tribunal de Justiça de Minas Gerais – PAI-PJ/TJMG. Vale
destacar que a autora Débora Matoso trabalhou nesse projeto entre 2009 e 2016, portanto esse relato é
relativo a esse período.
82
O Programa de rádio foi uma oficina realizada em parceria com a Radio UFMG Educativa.
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

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na Escola de Engenharia (laboratórios de eletrotécnica e de informática e salas de aula)
e em outros espaços do campus e da cidade.
Em meio a um processo marcado por uma experimentação bastante livre, tem
sido possível construir uma nova tecnologia (tecnologia social), ou seja, tornar o saber
próprio a cada participante, um saber sabido e, portanto, possível de ser transmitido não
só no espaço do SELEX, como em outros lugares por onde circulam esses jovens,
favorecendo o laço social. Como nos aponta um estudante de psicologia que participou
do projeto:

SELEX é um local de experimentação, um espaço para o descobrimento, para


se fazer experiências, não só para os adolescentes que vêm para cá, mas
também para os alunos da UFMG. O SELEX tem um tempo que é bem
diferente daquele que se vivencia na universidade. Entre o aprender e o saber
é preciso incluir algo aí.83

As intervenções produzidas nesse espaço de convivência, sustentada por uma


lógica de que, ante o conflito, pode-se inventar novas respostas e prescindir das
respostas protocolares produtoras de segregação, produz efeitos que repercutem para
além do próprio projeto. Foi como aconteceu com o jovem que participou do programa
de rádio cantando seus RAPs. Ele estava envolvido em vários conflitos na escola em que
estudava. Levar esse programa para tocar na rádio de sua escola possibilitou-lhe se
apresentar de um outro lugar na comunidade escolar. Produziu também contraponto ao
discurso recorrente acerca do fracasso escolar devido ao desinteresse dos jovens pela
aprendizagem. No SELEX ele fez rimas: “mandou seu papo para os políticos „vacilão‟
que pensa que todo preto é ladrão”. E ainda se apresentou: “merecemos igualdade, sou
favelado cantando com dignidade, sou MC Books”.
A lanterna, conforme foto abaixo, foi um dos produtos confeccionados ao longo
das oficinas de circuitos elétricos, comunicação e informática. A lanterna tem como
base um circuito elétrico simples, no qual a conexão de seus componentes permite que
ela funcione. E cada um fez sua arte para dar acabamento às lanternas.

83
Trecho de depoimento de participante extraído em seminário interno de avaliação da edição do projeto
que aconteceu no primeiro semestre de 2014. Vale esclarecer que o trabalho no SELEX era dividido em
três momentos: planejamento, execução e avaliação.
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FIGURA 1 - Lanterna produzida em oficina do SELEX.

FONTE: O autor

Um outro saber: uma extração, ou retomando a pesquisa

Trazíamos em nossas bagagens o encontro com os jovens classificados pelo


sistema jurídico como infratores. Cada encontro, cada jovem e suas histórias de vida nos
faziam testemunhar os modos criativos através dos quais forjam formas de lidar, e
sobreviver, ante situações de violências que experimentam. Como é o caso do jovem
que insiste para que a polícia o leve preso, após ter o dinheiro que transportava
apreendido. Foi, portanto, obrigado a negociar com a polícia pois, se não o prendessem
e ficassem com o montante, o jovem enfrentaria sérias dificuldades junto ao tráfico,
para onde teria que retornar com o dinheiro. Conforme Matoso e Moura, “talvez se
possa pensar que esse jovem produziu uma „forçação ao contrário‟: quando da sua
posição de „fora da lei‟, ele reconduz o sistema aos trilhos legais” (2013, p. 74). Esse
saber que se constrói via experiência, e que passa pelo corpo, ganham outra dimensão
ao ser destacado e articulado a uma atividade. A tecnologia tem sido uma grande aliada.
Os dispositivos tecnológicos, como câmeras fotográficas, computadores, tabletes,
celulares e as redes sociais, assim como os elementos próprios à cultura juvenil,
serviram como pontes através das quais se abriu passagem entre o conhecimento
espontâneo experimentado e demostrado pelos jovens e o conhecimento formal
produzido na universidade.
Da prática recortamos pontos a serem alinhavados à pesquisa, ou seja, a
possibilidade de falar de seu saber que, ainda de forma precária e mesmo mal-dita,
produz efeitos subjetivos. Esta prática permitiu a localização e invenção de formas de se
nomear que marcam a inscrição daquele sujeito no laço social de uma outra forma,

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inédita. Como a jovem que, como MC Loló, cantou seus RAPs e produziu alguma
distância do nome homicida vociferado no campo do Outro, ao qual ela se mantinha
colada. Por outro lado, práticas que incentivam jovens à construção desse novo lugar no
laço, também encontram seus limites. Marcados também pela descontinuidade nas
ofertas.
Por fim, essa pesquisa tem por objetivo lançar luz a um tipo de metodologia de
trabalho com jovens onde a palavra é a matéria-prima do trabalho e os dispositivos
tecnológicos são as ferramentas através das quais pode-se facilitar a entrada de novas
palavras ao campo discursivo e inventar novas formas de se enlaçar.
A proposto de investigar o termo “saber” a partir dos seminários de Lacan
ministrados entre os anos de 1969 a 1976, marca um corte temporal através do qual
busca-se localizar tanto a pergunta empreendida pela pesquisa quanto suas hipóteses.
Ou seja, pretende-se investigar as mutações, se houveram, da noção de saber. Nossa
hipótese: tais mutações levaram o autor a estabelecer as noções de saber fazer e saber
fazer com (savoir-faire e savoir-y-faire). Construímos nossa hipótese em articulação
com a práxis. Assim poderíamos aproximar as noções de saber e saber-fazer com as
invenções que os jovens nos dão mostras? Estaríamos ante um tipo de saber-fazer da
vida cotidiana?

Referências:

CANDIDO, A. Ministério da Educação (MEC). Brasília, 2015. Disponível em:


<https://youtu.be/mZvFy6gdGLs>. Acesso em: 16 abr. 2017.

MATOSO, D. Jovem: Infrator? A experiência do Projeto SELEX. 2014. Dissertação


(Mestrado em Teoria Psicanalítica) Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas -
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014.

MATOSO, D.; MOURA, D. Armados... para conversar: a experiência do SELEX. In:


BRISSET, F., SANTIAGO, A.L., MILLER, J. (Orgs.). Crianças falam! E têm o que
dizer: Experiências do CIEN no Brasil. Belo Horizonte: Scriptum, 2013. p. 69-75.

NETO, O. Curso de graduação em Engenharia de Sistemas da UFMG – relato de


experiência em processo. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ENGENHARIA
(COBENGE): Formação continuada e internacionalização, 39º, 2011, Blumenau.
ANAIS... Blumenau: 2011.

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SABERES D‘AVÓ: CONEXÃO ENTRE GERAÇÕES ATRAVÉS DE
APLICATIVOS DESENVOLVIDOS POR ESTUDANTES DE ESCOLAS PÚBLICAS
DE BELO HORIZONTE.

Laura Ituassu
Manuela Gomes Lopes Cotta
Regina Mara Ribeiro Cruz
Vanina Costa Dias

Resumo: Este trabalho analisa os resultados do projeto de Extensão Universitário que


teve como objetivo ensinar alunos de escolas públicas de ensino fundamental a
desenvolver games educativos (aplicativos para celular) utilizando os Saberes das Avós
como tema para conectar gerações, empoderar alunos e analisar o impacto da utilização
desta ferramenta na escola. As observações confirmam distância entre práticas escolares
e o uso da tecnologia e mostram o quanto tais ferramentas são importantes para o
empoderamento dos jovens e a formação da sua identidade. Os depoimentos dos
adolescentes e professores mostram grande necessidade de capacitar professores e
escolas para trabalhar os recursos digitais na educação.

Palavras-chave: Tecnologia; Gerações; Cultura digital; Empoderamento; Escola.

Introdução

Em tempos digitais, quando a comunicação humana passa necessariamente pelas


tecnologias das redes sociais, aplicativos de celular e pela internet, direta ou
indiretamente, indispensável se faz pensar em como a tecnologia pode se fazer presente
na escola e que impactos ela traz nos relacionamentos e na dinâmica individual.
A velocidade dos avanços tecnológicos afasta gerações e constrói uma cultura
digital que exclui sabedoria dos mais velhos. Pela primeira vez na história da
humanidade, os mais jovens são os que detêm o conhecimento, sendo este baseado nas
novas tecnologias, cujo domínio pertence quase exclusivamente às novas gerações.

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Buscando mergulhar neste fenômeno e desenvolver um Projeto de Extensão na
Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais – FaE/UEMG teve-
se acesso a um programa experimental do Departamento de Computação da UFSJ –
Universidade Federal de São João Del Rey, em Minas Gerais, que pareceu com enorme
potencial para explorar o tema. O programa, chamado Saberes D‘Avó tinha como
objetivo verificar se alunos do Ensino Médio conseguiriam aprender a desenvolver
aplicativos de celular com jogos (ou ―games‖, na linguagem dos garotos), em algumas
aulas de informática. O contexto utilizado foi a conexão entre gerações, de tal forma
que os aplicativos tiveram como tema a cultura dos seus avós – receitas, lendas,
costumes, etc.
Elaborou-se, então, uma nova versão deste programa acrescentando as
dimensões psicológicas e pedagógicas aos objetivos, que passaram a ser ensinar alunos
de escolas públicas de ensino fundamental a desenvolver games educativos utilizando
os saberes dos avós como tema para conectar gerações, empoderar alunos e analisar o
impacto da utilização desta ferramenta na escola. Para acompanhar o processo, foram
realizadas entrevistas com pais dos alunos, com professores, coordenadores e com os
próprios alunos.

Cultura digital e conexão entre gerações

A cultura digital da sociedade contemporânea, impondo ritmo veloz de


mudanças, tem sido muito pesquisada entre as novas gerações nas suas formas de agir e
pensar. Importante também é ampliar este foco e investigar como se dão as relações
entre gerações numa mesma família, como as tradições são transmitidas e como os
jovens se apropriam delas, pois a relação entre gerações que vivem num mesmo tempo
impacta a estrutura política, social e econômica de toda uma sociedade.
O conceito de exclusão digital inicialmente referia-se apenas às questões sócio-
econômicas que impediam o acesso de determinados grupos às tecnologias digitais.
Segundo Pischetola (2016), estudos mais recentes consideram múltiplas dimensões do
que chamam a ―brecha digital‖, porque a exclusão não se limita simplesmente a
impossibilidade de acesso a recursos digitais, mas a toda uma visão de mundo. A
retrosocialização, quando os filhos ensinam pais e avós, pode ser um caminho para
diminuir esta brecha. (BUCKINGHAM, 2006, p 3-4 apud PONTES, 2011, p 31).

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No Projeto Saberes D‘Avó, nove alunos foram selecionados em três escolas
públicas estaduais para participar de um curso de desenvolvimento de aplicativos, em
20 horas-aula. Os alunos deveriam entrevistar seus avós para conhecer a cultura da
época, que seria o tema para o desenvolvimento dos aplicativos. Os alunos tinham entre
12 e 14 anos e mostraram-se muito interessados em aprender, mas revelaram
dificuldades em conectar-se com seus avós e em integrarem esta experiência em sua
realidade de vida.
Um relato comum entre os participantes foi a surpresa em relação à história
familiar e a estranheza com os hábitos da época dos avós. Percebeu-se que estes jovens
desconhecem seu passado e a história de suas famílias.
Todas as famílias tinham uma origem pobre, vieram da zona rural e ficou nítido
para todos o quanto a situação de vida atual é mais confortável que a de seus avós.
―Minha avó fazia boneca de sabugo de milho.‖; ―A minha avó brincava com bonecas de
papelão.‖ O nível de responsabilidades assumidas pelos avós, ainda com pouca idade,
também foi comentado: ―Minha avó já trabalhava aos 9 anos!‖ e comparações com o
contexto atual mostraram uma tentativa de conexão do tempo dos avós com o presente:
―No namoro não podia beijar e as amigas sempre ajudavam na mediação com os rapazes
as mulheres continuam fazendo isto!‖
Por meio das entrevistas com seus avós, estes jovens tiveram acesso a
informações que modificaram, de alguma forma, a imagem que tinham de suas origens:
―Minha avó é filha adotiva e queria fugir de casa por não se sentir aceita. Tinha
ascendência indígena e perdeu um filho autista...‖; ―Minha avó se casou com 16 anos!‖.
Para alguns foi sofrida a experiência de conhecer o histórico psiquiátrico dos
avós e tios, que incluíam alcoolismo, violência, depressão, autismo e até tentativa de
assassinato: ―É muita informação ruim para assimilar ... eu não sabia porquê minha mãe
é tão difícil.‖ Eles não conseguiram integrar estas informações no contexto de suas
vidas: ―Foi legal conversar com minha avó, mas não mudou nada.‖
A estranheza dos adolescentes ao comentar as histórias dos avós levou à
indagação de qual seria a contribuição das famílias na construção da cultura das novas
gerações. Pontes (2011) mostra a determinante influência das mães na cultura digital de
adolescentes e alerta que mães que vivem uma situação de exclusão digital, com
habilitações escolares baixas e empregos que não exigem contato com a tecnologia

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

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afetam a sua capacidade de construir uma cultura mais consistente de utilização da
internet.
Os avós dos adolescentes observados têm ente 62 e 81 anos, escolaridade básica
e apresentaram-se como excluídos digitais, com exceção de uma avó que é utiliza o
Facebook. Já a maioria das mães tem acesso à internet e redes sociais e mostraram-se
conscientes da importância da internet e dos recursos digitais para o desenvolvimento
dos filho, bem como dos riscos de uma utilização de tais recursos sem critérios bem
estabelecidos: ―Acho que, atualmente, a internet tem atrapalhado mais do que ajudado,
pois eles (os filhos) não estão tendo discernimento em como usar o computador‖;
―Depende muito da maturidade deles. Acho que a maioria (dos jovens) não tem limites,
se deixar, fica o dia inteiro no computador e no celular.‖; ―Tem que haver uma
supervisão dos pais; os pais precisam ficar muito atentos senão vira um vício para o
jovem.‖
Tal consciência não foi suficiente para influenciar a utilização da tecnologia de
forma mais ampla, pois os participantes relataram utilizar a internet praticamente para
redes sociais, com pouco ou nenhum objetivo escolar ou educativo. A baixa qualidade
da internet em casa e a ausência de laboratórios e rede wifi (sem fio) em duas das três
escolas envolvidas no projeto foram as justificativas dos alunos para a pouca utilização
da internet com fins de pesquisas escolares.

Tecnologia e redes sociais: instrumentos de empoderamento.

Os novos modos de subjetivação da juventude contemporânea em redes sociais


virtuais são tema de pesquisas recentes nos Estados Unidos e Europa, que mostram que
os adolescentes de hoje procuram ressignificar o mundo e encontram nas redes sociais
um prolongando de seus quartos e de sua individualidade, da mesma forma que as
outras gerações buscavam a praça ou as ruas como possibilidades de vivências longe do
controle dos adultos.
Segundo Dias (2016) a internet e as tecnologias digitais constituem-se como
espaços onde os adolescentes se sentem numa posição de poder em relação aos adultos
que são considerados por eles como semianalfabetos digitais.

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Entretanto, toda a habilidade para navegar na internet e redes sociais termina
quando se trata de compreender o funcionamento dos sites ou sua programação. As
tecnologias digitais interessam os jovens enquanto ferramentas, mas eles não
compreendem o processo de construção da tecnologia da qual se valem. (Le Breton,
2017, p. 29)
Ampliar o conhecimento e as possibilidades de utilização das tecnologias
digitais para além das redes sociais pode, então, ser um caminho para empoderar o
adolescente, que, por outro ângulo, encontra-se frágil, solitário e perdido num mundo de
possibilidades virtuais infinitas.
Os adolescentes do Projeto Saberes D‘Avó chegaram tímidos à primeira aula, no
laboratório de informática da FAE e logo se tornaram inquietos. Queriam saber se
poderiam utilizar a internet para entrar nas redes sociais depois das tarefas, o que era
proibido na escola. Usavam fones de ouvido enquanto trabalhavam e disseram que a
música ajuda.
Já na 1ª aula aprenderam a desenvolver uma calculadora e ficaram muito
surpresos por se descobrirem capazes: ―Nossa, é muito mais fácil do que eu pensava!‖.
À medida que as aulas iam correndo, observou-se uma autoconfiança crescente, diante
de cada novo aprendizado: ―Posso utilizar conhecimentos de história e geografia no
game que vou desenvolver?‖; ―Posso ensinar o que aprendi para os que faltaram hoje.‖;
―Olha professora, sou inteligente!!; ―Ontem, eu ajudei meu irmão que estuda Design
...ele não conhecia a plataforma com a qual trabalhamos.‖
Na última aula do curso, os adolescentes estavam cheios de si e colocavam-se
como autores das ideias que propunham sobre como aproveitar a experiência que
tiveram: ―Vou fazer um app para apresentar minha pesquisa de sustentabilidade na Feira
de Ciências.‖; ―Adultos não enxergam as coisas pela visão dos adolescentes. Nós
poderíamos ensinar crianças e adolescentes a desenvolver apps.‖; ―Queremos um
espaço de discussão para discutirmos formas melhores de ensinar.‖; ―Quero dar aulas no
contraturno da escola.‖; ―Eu não sabia nada sobre tecnologia. Ontem, me vi
pesquisando mais sobre o tema...antes, nem ousava.‖
Tais depoimentos evidenciam a autoconfiança desses jovens, expressa através da
busca de uma ação diferenciada nos ambientes escolar e familiar e leva a crer que a

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experiência de aprender a manejar processos tecnológicos levou os participantes a
sentirem-se mais capazes e descobrirem novas formas de atuação no mundo real.
Observou-se também, elaborações pessoais que se constituíram em ensaios de
papéis vocacionais: ―Já tinha pensado em trabalhar com informática. Esta experiência
ajudou a entender melhor.‖; ―Pensava em ser veterinária, mas agora quero mexer com
tecnologia.‖; ―Quero usar este conhecimento profissionalmente, aprender mais recursos
e ganhar dinheiro com isto.‖
Estas observações puderam ser enfatizadas na entrevista com professores, que
perceberam, em um dos alunos, mudanças comportamentais significativas: ―Não é mais
indisciplinado em sala de aula. Está mais focado e responsável. Tem entregado todos os
trabalhos, o que não fazia antes. Era um aluno mediano e disperso.‖
Em 20 horas de trabalho com estes jovens pôde-se observar o crescimento da
autoconfiança e da autoestima com consequente vontade de ajudar os outros, com
tentativas de construção de uma imagem profissional e uma melhora no comportamento
escolar. A isto chamamos empoderamento.
Esta experiência aponta na direção de que aprender os processos das ferramentas
virtuais pode levar adolescentes a descobrirem formas de inserção social mais
afirmativas e levou a constatação do quanto a escola está distante desta oportunidade
educacional.

A escola e a tecnologia

A crescente insatisfação com as respostas que a escola dá às questões do mundo


contemporâneo tem inspirado críticas que apontam para o quanto ela está desconectada
das tecnologias e dos novos padrões e comunicação.
Sibilia (2012) caracteriza a escola como fruto de um projeto da sociedade
industrial que valorizava a produção em massa. A sociedade contemporânea tem outros
valores – a sociedade do espetáculo, da imagem, do hedonismo que torna o modelo de
escola antiquado, gerando frutos que já não são demandados.
O professor não tem sido capaz de trazer para o campo pedagógico o significante
das redes sociais. As lógicas de funcionamento do mundo virtual e da aprendizagem
tem sido antagônicas, mas é possível adotar práticas pedagógicas inovadoras e utilizar

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as redes sociais para construção do conhecimento tendo a escuta do professor como
suporte essencial, diz Ornellas, (2014).
No Projeto Saberes D‘Avó, durante o processo para selecionar os alunos que
participariam do curso de desenvolvimento de aplicativos, foram frequentes as
sugestões de professores e coordenadores para que o critério fosse ―meninos bons‖, ou
seja, aqueles com as melhores notas. Nas entrevistas com professores também foi
frequente a identificação de alunos pelo seu rendimento escolar, revelando educadores
com uma visão limitada do seu papel. A relação professor-aluno também não é
significativa. Ao perguntar aos alunos se eles comentaram sobre as aulas de apps com
seus professores, um dos participantes disse: ―Meus professores nem sabem sobre o
projeto. Apenas pensam: Oba! Um aluno a menos em sala de aula.‖
Duas das três escolas envolvidas no projeto não tinham laboratório de
informática, nem acesso a internet, mostrando um cenário que confirma a imensa
distância entre a escola e a cultura tecnológica, em especial as escolas públicas
brasileiras.
Segundo Pischetola (2016) a participação da escola na revolução da sociedade
contemporânea consiste em promover práticas significativas nas atividades didáticas
cotidianas e o elemento chave de uma reforma na educação é a formação de professores
capazes de articular mudanças no currículo relacionadas às TICs – Tecnologias da
Informação e Comunicação.
Surgiu, então, um novo projeto de extensão: promover, nas escolas, oficinas de
desenvolvimento de aplicativos tendo como monitores os participantes do projeto
Saberes D‘Avó e como orientadores de conteúdo dos games, os professores.

Considerações finais

A experiência de ensinar alunos de escolas públicas de ensino fundamental a


desenvolver games educativos utilizando os saberes dos avós como tema para conectar
gerações, empoderar alunos e analisar o impacto da utilização desta ferramenta na
escola mostrou que a geração dos avós está muito distante da cultura digital e a
transmissão das tradições familiares encontra grandes brechas para chegar até os
adolescentes atuais. O resultado é o desconhecimento das histórias familiares e do

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contexto de sua origem pelos adolescentes atuais que navegam sem âncora, nas redes
sociais, buscando construir sua identidade.
Em relação ao empoderamento, a aprendizagem de como desenvolver games
produziu transformações na autoimagem destes adolescentes e gerou posturas ativas
abrindo novas possibilidades de relação com o espaço escolar.
Os impactos da utilização de tecnologias digitais na escola restringiram-se a
percepção de dois professores sobre mudanças no comportamento de um aluno, que se
tornou mais envolvido com as atividades escolares. A falta de infraestrutura física para
abrir espaços escolares de utilização das TICs motivou uma nova edição deste projeto
de extensão, tendo os alunos participantes desta experiência como monitores das
próximas turmas do curso de desenvolvimento de aplicativos.
Concluindo, é importante reafirmar a necessidade de inserir políticas públicas
que capacitem professores e escolas a trabalhar os recursos digitais na educação para a
formação das novas gerações.

Referências Bibliográficas

DIAS, Vanina Costa. “Morando na rede”: novos modos de constituição de


subjetividades de adolescentes nas redes sociais. Curitiba: CVR, 2016.

LE BRETON, David. Adolescência e comunicação. In: LIMA, Nádia Laguardia de. et


al. (Org) Juventude e cultura Digital. Diálogos interdisciplinares. Belo Horizonte: Ed.
Artesã, 2017. Cap. 1, p 15-31

ORNELLA, Maria de Lourdes S. et al. Educação no balanço das redes sociais: notas
psicanalíticas. Belo Horizonte: Fino Traço, 2014.

PONTE, Cristina. Uma geração digital? A influência familiar na experiência


mediática de adolescentes. Revista Sociologia, problemas e práticas, n.º 65, 2011, pp.
31-50

PISCHETOLA, Magda. Inclusão digital e educação. A nova cultura da sala de aula.


Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016

SIBILIA, Paula. A escola no mundo hiperconectado: Redes em vez de muros?


Matrizes. Ano 5 – nº 2 jan./jun. 2012 - São Paulo. p. 195-211

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3.3 EIXO 3

Adolescência, feminino e Moda84: um saber tecido na rede?

Fabiana Cerqueira

Resumo
Este trabalho é o resultado de uma pesquisa de mestrado que teve como proposta
analisar blogs e redes sociais elaborados por adolescentes que abordam o tema da Moda.
Para a investigação analisamos a relação entre adolescência, feminino e Moda, bem
como o saber que circula nessa equação. Partimos da hipótese de que os materiais
publicados na internet pudessem operar, para algumas das autoras, como uma forma de
abordar o feminino. Para a análise do material, utilizamos a teoria psicanalítica,
especificamente Freud e Lacan, em diálogo com autores de outros campos de
conhecimento. Concluímos que a internet é um campo fértil para as identificações
contemporâneas no tempo lógico da adolescência que, em épocas de declínio do Ideal,
podem se constituir em torno dos objetos de consumo. Por outro lado, vimos que no
espaço virtual, com a sua multiplicidade de opções, também há estímulo para escolhas
individuais e a criatividade. Isso pode ser usado pelas adolescentes em suas elaborações
sobre o feminino, permitindo a criação singular a partir dos pequenos detalhes, e
auxiliar na relação com o corpo.

Palavras-chave: Adolescência. Feminino. Moda. Identificação. Blogs.

No curso de pós-graduação em Psicologia da UFMG iniciamos a pesquisa que,


num primeiro momento, tinha como proposta investigar se a relação das meninas
adolescentes com a roupa e a moda contribuiria para a elaboração do feminino. A priori,
sabemos que a ligação da mulher com a roupa, impulsionada pela moda, é muito antiga
e simbólica, pois a vestimenta é rica em diversos atributos. Vestir-se, a princípio, vai

84
Neste trabalho escreveremos Moda, com letra maiúscula, para referirmos à Moda enquanto
manifestação cultural; assim diferenciamos ―a Moda‖ de ―uma moda‖.

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além do ato de cobrir-se. Adornar o próprio corpo pode ser uma forma de endereçar
uma mensagem ao Outro, de expressar um estado de espírito, de assumir uma
identidade sexual, de demonstrar uma posição social ou política.

(…) como substituto do corpo, o vestuário, com seu peso participa dos
sonhos fundamentais do homem, do céu e da caverna, da vida sublime e do
enterramento, do voo e do sono; é com seu peso que o vestuário se torna
asa ou mortalha, sedução ou autoridade; os trajes cerimoniais
(principalmente os carismáticos) são pesados: a autoridade é um tema da
imobilidade de morte; os trajes que festejam as bodas, o nascimento, a vida
são vaporosos e leves. (BARTHES, 1967, p. 245)

O corpo adornado permite diferenciar o sujeito de um determinado grupo, bem


como incluí-lo. A roupa, amparada pela Moda, permite que o sujeito seja igual e
diferente. Assim, ela favorece a inserção social, baliza as identificações e cria
identidades. Então, por si só, a roupa já se apresenta como uma poderosa ferramenta.
E mais especificamente, os adolescentes fazem uso da Moda como uma forma
de expressão e/ou de inserção social. A roupa e outros adornos corporais veiculam uma
mensagem, como por exemplo, ―não sou mais criança!‖. Esse tempo é lógico, pois não
corresponde a uma faixa etária delimitada, e enlaça os campos biológico, psíquico e
social. A adolescência é acionada pela puberdade – por sua vez, determinada
biologicamente –, mas é uma elaboração simbólica sobre a própria puberdade.
O sujeito adolescente viabiliza ―sua maneira de estar ali, a forma de buscar sua
via, de endereçar uma demanda, seja ela insuportável ou desrespeitosa, para saber como
situar em seu justo lugar o que o ‗macula‘‖ (LACADEÉ, 2011, p. 117). Diante de
imperativos subjetivos, ele busca construir uma resposta que lhe ofereça um
apaziguamento, seja em relação à sexualidade, ao seu lugar no mundo ou ao corpo que
agita. O adolescente busca um lugar possível no campo social, ou seja, ele busca
construir um saber que permita situar-se no campo do Outro, mas ―apenas ele tem a
chance de saber inventar sua própria resposta, a que lhe permitirá tecer o que torna sua
história singular‖ (LACADEÉ, 2011, p. 16). Marcados pela inserção na cultura, o
posicionamento sexual e as exigências de separação do objeto amoroso infantil (pais),
os adolescentes podem eleger a roupa como uma ferramenta simbólica para ajudá-los na
elaboração de respostas.
Ao voltarmos nosso olhar para o que nos é contemporâneo, vemos que, junto à
parceria adolescentes-roupa, esse público faz um intenso no universo virtual: se
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242
mostram nas redes sociais, território de exibição, fazendo da própria imagem uma forma
de capturar o olhar do Outro. As redes sociais cibernéticas são espaços de preferência
dos adolescentes (LIMA, 2014). Colaboram para isto a rapidez e a facilidade com que
tais imagens podem ser veiculadas, ainda que seus alcances não possam ser mensurados.
O adolescente tem feito amplo uso dessas formas de manifestação subjetiva. Eles
publicam nas redes sociais imagens de si mesmos e dos objetos, lugares e pessoas que
estão à sua volta. São registros do olhar de cada um sobre si e sobre o mundo e, ao
mesmo tempo, modos contemporâneos de expressão cultural.
Diante disso, para maior riqueza e precisão da pesquisa, recorremos ao material
encontrado na internet referente aos blogs, vlogs e redes sociais produzidos por
adolescentes. Sendo assim, usando a ferramenta do Google, significantes como
adolescência, feminino, adolescência feminina, moda, roupa e blog foram pesquisados e
apareceram muitas páginas. Aqui, encontramos um conteúdo bastante diversificado em
que se destacam textos opinativos, vídeos tutoriais, muitas imagens e dicas. Mas,
aproximando mais percebemos que muitos blogs são ―abandonados‖, ou seja, tem
algumas postagens e nada mais. Por isso, alguns critérios foram elencados para a
escolha dos blogs para a pesquisa: páginas que mantivessem textos recentes,
atualizações constantes, de autoria de meninas com idades entre 12 e 16 anos e que não
tivessem apelo comercial, a bem da espontaneidade de seu conteúdo.
Sendo assim, não foi fácil encontrar blogs dentro destas premissas. Muitos que
pareciam de adolescentes eram de jovens mais velhas, outros com muito apelo
comercial e outros, como já dissemos, com poucas postagens e abandonados. Mas
encontramos dois que pudemos analisar. O primeiro leva o nome da própria
adolescente, Mah Costa. Neste, encontramos muitas postagens e, também, alto número
de visualizações. O blog surgiu quando ela tinha 13 anos e até a data da pesquisa –
junho 2016 - ela contava 16 anos. No decorrer do crescimento de seus canais de
comunicação passou a ter fãs – mah lovers – e com o tempo passou a se nomear como
youtuber.
O outro blog que acompanhamos na pesquisa, o ―At nine‖ (<at-
nine.blogspot.com.br>), feito por Vitória Barreto, é consideravelmente menor e teve
apenas dezesseis postagens no período de dois anos. A primeira foi em 09 de maio de
2014 e a última em março de 2016. Então, como se percebe, suas postagens são mais

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espaçadas e os comentários são poucos, assim como é pouca a popularidade do blog.
Mas em virtude da peculiaridade deste trabalho, falaremos de maneira mais abrangente
do material pesquisado. Ressaltamos que num primeiro momento foram listados e
pesquisados vários blogs e depois escolhidos apenas dois, devido às suas
especificidades.
Uma característica geral de todos os blogs que pesquisamos é a multiplicidade
de temas que são citados para montar seus conteúdos. Um exemplo disso são as
apresentações desses blogs, como por exemplo:

Vitória Barreto, uma adolescente de 14 anos com muitos sonhos para realizar. Blogueira, gosta
de falar de tudo um pouco: moda, beleza, entretenimento etc... Sejam Bem-Vindos ao At Nine !
(sic, Vitória Barreto, 2014, 12 anos, blog <At-nine.blogspot.com.br>)

Meu nome é Mayara Costa, mais conhecida como Mah Costa !! HEHEH, Sou blogueira e
Youtuber. Sou apaixonada pelo o que eu faço, amo músicas, filmes, séries (TWD e PLL),
viagens, moda, decoração, jogos e tudo que essa vida tem para nos oferecer... (sic, Mah Costa,
12 anos, 2014, blog <mahcosta.blogspot.com.br>)

Oi! Eu sou Fernanda, e esse é o meu blog sobre moda adolescente e afins, espero que curta. (sic,
Fernanda, 2012, http://modateendafe.blogspot.com.br/)

Duas meninas ... Falando de tudo da vida de um adolescente, músicas, notícias, programas,
moda, etc... A cada dia um novo cantor, bandas e música pra vc curtir bastante...Não perca a
dicas de moda Super legais... Aproveite ao máximo nosso blog.... o.O (sic, Sem nome e idade,
2008, blog http://diriodeadolescentes.blogspot.com.br/)

Tudo o que TU precisas para seres uma adolescente: perfeita, linda e com STYLE! : ) E
precisares de ajuda com o que quer que seja manda-me um email para
adolescentescomstyle@gmail.com... Bjinhs, diverte-se!!! (sic, Rita Mesquita, 12 anos, 2010,
blog http://adolescentescomstyle.blogs.sapo.pt/)

Percebemos que montar um conteúdo no blog com tantos temas é uma maneira
de abarcar o universo feminino. As apresentações sugerem que tais adolescentes se
apresentam como alguém que detém todo o saber referente ao que é ser mulher. Ao se
colocarem como detentoras de um determinado saber sobre a feminilidade em seu blog
ou canal do YouTube, elas visam alcançar seguidoras e, com isso, fama, sucesso e/ou

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

244
dinheiro, valores fundamentais da nossa cultura.
Outra característica marcante encontrada nos blogs é o quanto as adolescentes
apresentam o que elas chamam de ―dicas‖ ou ―inspirações‖ sobre o que fazer com o
corpo. Por exemplo, como usar determinada peça de roupa e suas possíveis variações;
possibilidades de looks para ir ao primeiro dia de aula ou a uma festa de quinze anos;
como passar um batom vermelho; o que fazer nos dias de chuva; qual o celular que
usam e quais ―capinhas‖ têm à disposição; como fazer determinados penteados. E por aí
se acham ―dicas‖ para tudo. Uma circulação incessante de saber em torno do corpo, dos
objetos e do como fazer. Muitas dessas postagens têm como mensagem o estímulo para
a criação própria e a negação da cópia, pois, como elas mesmas dizem, tudo o que
transmitem é para que as outras meninas se inspirem e não fiquem reféns da imitação.
Em todos os blogs analisados é perceptível que, ao falarem ou escreverem, as
adolescentes parecem estar acompanhadas de suas leitoras. A expressão mais comum
quando iniciam uma postagem é ―Ei, gente!‖. Uma saudação que passa a sensação de
não estarem sozinhas, mas em um grupo de iguais. A nossa leitura é de que elas estão,
na verdade, acompanhadas de si mesmas.
Percebemos que esses materiais operam como ofertas de identificação para as
adolescentes. Neles, uma adolescente ensina a outras como vestir-se, enfeitar-se ou
embelezar-se. Equivale a dizer que uma menina ensina às outras como ser bela, atraente
e feminina. Trata-se de uma adolescente que, na visão desse seu público, detém ―a
chave‖ do enigma sobre o que é ser mulher. Algumas garotas passam a assumir essa
posição de mestria diante das outras e têm milhões de seguidoras.
Mas, podemos pensar que tais espaços virtuais operam como páginas em branco,
que permitem as adolescentes as mais diversas elaborações. Se a adolescência é um
tempo lógico de confronto com o feminino, ou seja, com o vazio de representação, esse
momento é o de uma construção de uma resposta particular a esse confronto e a
construção desse material virtual pode ser uma ferramenta para isso. Então, avaliamos
que este ―fazer‖ de um conteúdo no universo virtual pode ser positivo.
Com o desenvolver da pesquisa questões surgiram, como: Através dos blogs e
dos adornos corporais, as adolescentes blogueiras estariam tentando elaborar uma
resposta para o feminino? E, no caso das adolescentes que seguem tais blogueiras, elas
estariam buscando, pela via da identificação, construir uma resposta para o que é ser

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

245
mulher? De que ordem seriam as identificações na internet? Elas poderiam propiciar o
acesso ao que há de mais singular em cada um?
O feminino para a psicanálise é diferente de gênero feminino. O gênero feminino
é uma construção social, e, portanto, está no campo simbólico. O feminino para a
psicanálise é da ordem do real, ou seja, fora do campo da representação simbólica. A
―identidade feminina‖ é sempre imaginária. Portanto, quanto mais as adolescentes
buscam se inserir em grupos de identificação, construindo uma identidade supostamente
feminina, mais elas se distanciam do que é propriamente feminino. O feminino, na
psicanálise, está além do campo fálico ou simbólico. Abordar o feminino envolve tecer
em torno do que não tem significação, que é sempre algo singular.
Atualmente, o campo da internet oferece inúmeras referências de identificação
para os adolescentes. Nesse espaço virtual, o adolescente pode buscar, através do laço
com o outro, tecer suas respostas aos enigmas da existência. Mas será que os
agrupamentos favorecem construções singulares?
As meninas adolescentes, frente a essas mudanças físicas, psíquicas e sociais, se
veem no controle de seus investimentos narcísicos. Ao refletir sobre a adolescência no
mundo contemporâneo lidamos com a marca da supervalorização da imagem. Nas
produções das adolescentes na internet, percebemos como o narcisismo contribui para
que suas imagens – sejam fotografias ou vídeos – registrem o gozo com o corpo e o
objeto. A identificação é contornada pelo imaginário, de forma especular, sem
referência a um Ideal.
À primeira vista, o material que encontramos na internet, produzido pelas
adolescentes, aponta as suas tentativas de fazer laço social, de buscar o reconhecimento
e a aceitação do Outro. A busca pela inserção no campo social leva-as às identificações
no espaço virtual, porém, fica a questão se elas fazem laço social ou se ficam atreladas a
um gozo com o objeto na web.
Estamos em tempo que o Ideal não ocupa mais o lugar de mestria, onde o Outro
é pulverizado e o imperativo de gozo se faz presente. Não se estabelece um Ideal
norteador que organize as identificações e há uma proliferação de S1, como
significantes atrelados ao gozo. Surgem as pseudoidentificações que são agrupamentos
ordenados em torno de um gozo comum (BRODSKI, 2011). Muitas adolescentes, em
seus blogs, demonstram às outras como gozam com os seus objetos de consumo.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

246
Mas, a internet não pode ser pensada como uma via de mão única. Algumas
garotas que comandam os blogs e páginas na internet transmitem seu saber, na maior
parte das vezes, através dos significantes ―dicas‖ e ―inspiração‖. A mensagem que elas
tentam transmitir, resumidamente, é: inspire-se na moda e crie seu estilo. Destarte,
transmitem a possiblidade de se fazerem arranjos particulares.
Sabemos que a Moda e seus gadgets tendem a engessar as meninas adolescentes
no gozo com os objetos de consumo determinados pela mídia. Mas, não podemos
afirmar que existe apenas esse vínculo com a Moda. A multiplicidade de ofertas e o
incentivo de soluções individuais frente à Moda podem abrir brechas para invenções
singulares. Enfim, com esta pesquisa pudemos concluir que há um universo virtual
amplamente explorado pelas adolescentes. Esse ambiente pode oferecer alguma solução
para as questões com que elas se deparam por atravessarem essa fase da vida, o que nos
permite pensar em tessituras de saber.

Referências bibliográficas

BARTHES, Roland. Sistema da Moda. São Paulo: WMF Martins Fontes, 1967.

BRODSKI, Graciela. Epidemias actuales y angustia. La clínica Psicoanalítica.


Seminário Internacional. CIEC: Centro de Investigacion y Estudios Clínicos Asociada
al Instituto del Campo Freudiano. Buenos aires, Argentina, 2011.

LACADÈE, Philippe. O despertar e o exílio: ensinamentos psicanalíticos da mais


delicada das transições, a adolescência. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011.

LIMA, Nádia, Laguardia. A escrita virtual na adolescência: uma leitura psicanalítica.


Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

247
A EXTERIORIZAÇÃO DO DESEJO FACILITADA PELA TECNOLOGIA

Anna Maria Soares de Brito85


Cláudia Ferreira Melo Rodrigues 86
Taynara Silva Carvalho87

Resumo:
Considerando a tecnologia como facilitadora para o processo de identificação e subjetivação, o
presente estudo trata-se de um relato clínico a partir da experiência de estágio curricular do
Curso de Psicologia cujos encontros com o grupo de adolescentes foram mediados pelas
diversas variações artísticas. Dentro do grupo trabalhado tivemos um encontro com o menino
―Tonho‖. Ele apresenta dificuldades cognitivas e de sociabilização, demonstrando pouca noção
corporal (um corpo sem contorno) e todo o investimento libidinal voltado para o próprio corpo.
Através do contato com um objeto tecnológico que até então lhe era desconhecido, houve uma
identificação possibilitando que ―Tonho‖ tivesse acesso há algo próprio, criando um contorno
ao seu corpo e evoluindo para o nome próprio: ―Antônio‖.

Palavras chave: objeto digital, identificação, subjetivação, desejo, psicanálise.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho faz referencia a um relato de caso clínico, construído a partir da


experiência de estágio curricular do Curso de Psicologia da Faculdade Divinópolis - FACED. O
estágio foi realizado na instituição GEEC – Grupo de Ética Educação e Cultura em parceria com
a Comunidade Servos da Cruz que é uma Instituição de acolhimento situada em
Divinópolis/MG. A proposta do estágio foi promover um espaço para que crianças e
adolescentes pudessem se expressar livremente, sem quaisquer restrições ou limitações. Os
encontros com os adolescentes foram mediados por via da arte e suas variações, por exemplo:
dança, expressões corporais, música, desenhos, literatura, entre outros.
No decorrer de nossa prática, enquanto estagiárias – embasada sempre teoricamente
pela epistemologia psicanalítica – nos encontramos com o menino ―Tonho‖, um adolescente de

85
Discente do 9º Período do curso de Psicologia da Faculdade Divinópolis/FACED. Membro do grupo de estudo em
Psicanálise – NEP – FACED e Integrante do Grupo de Pesquisa e Extensão de Luto e Morte – GELuM/FACED. E-mail:
brito.annam@gmail.com.
86
Psicóloga Clínica. Psicanalista. Especialista em Educação, Juventude e Cidadania. Especialista em Gerontologia
Social. Mestre em Educação, Cultura e Organizações Sociais. Docente no Curso de Psicologia da Faculdade
Divinópolis/FACED. E-mail: cfmrodrigues@yahoo.com.br.
87
Discente do 9 º Período do curso de Psicologia da Faculdade Divinópolis/FACED. Integrante do Projeto de
Pesquisa e Extensão – Envelhecimento e Psicanálise: Envelhe-ser sob a perspectiva da psicanálise freudiana e
lacaniana. Membro do grupo de estudos em Psicanálise- NEP - FACED. E-mail: taynara.carvalho20@yahoo.com.br.

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248
17 anos, que foi abandonado pela família aos sete, idade com a qual chegou à instituição em que
está desde então, o mesmo apresenta uma dificuldade cognitiva, foi diagnosticado com
transtorno mental leve e dificuldades de socialização. ―Tonho‖ cresceu nesse ambiente
institucional, sem muita ligação com o mundo externo. Portanto, neste trabalho, entenderemos
como tecnologia a própria definição dada por ―Tonho‖, mesmo estando essa tecnologia
ultrapassada.

O MENINO “TONHO”

No texto ―Sobre o narcisismo uma introdução‖, de 1914, Freud faz a distinção entre
libido do ego e libido objetal em que ele diz: ―Os instintos sexuais estão, de início, ligados à
satisfação dos instintos do ego; somente depois é que eles se tornam independentes destes, e
mesmo então encontramos uma indicação dessa vinculação original no fato de que os primeiros
objetos sexuais de uma criança são as pessoas que se preocupam com sua alimentação, cuidados
e proteção‖. (FREUD, 1914/1996)
Para compreender melhor, essa noção acerca das relações objetais, tomaremos como
conceito o que foi proposto por Zanatta e Benetti (2012). Esses autores partem da ideia de que
as primeiras relações entre a criança e o cuidador desempenham uma função de extrema
importância no desenvolvimento das estruturas psíquicas dessa criança. Visto que estas
experiências são internalizadas e originadas como uma representação mental do objeto, sendo
este o objeto de amor. Dessa forma podemos considerar, a partir do apresentado no decorrer do
texto, que ―Tonho‖, se constituiu enquanto sujeito, marcado por uma falta, representado pela
ausência afetiva, desses cuidadores, que pudesse lhe oferecer segurança, amor e desejo.
Fazendo uma análise da vida infantil de ―Tonho‖, fica nítida a ausência de objetos que
representam proteção e cuidado, bem como a falta de investimento libidinal daqueles que
estavam a sua volta. Pode-se levantar esta hipótese, considerando que ele foi abandonado pela
sua família, ainda muito pequeno. Não se tem relatos concretos, sobre sua história pregressa
antes de entrar na instituição de acolhimento, porém o contato com sua família de origem foi
rompido no momento em que entrou na instituição.
―Tonho‖ mostrou-nos uma característica marcante, sua pouca noção corporal (um corpo
sem contorno) e todo o investimento libidinal voltado para o corpo. Freud (1930) em seu texto
―O mal estra na cultura‖, apresentou a ideia de que a relação do homem com o seu corpo é
marcada por uma estranheza. O corpo é como um objeto fragmentado, em que cada pedaço,
seria um pedaço pulsional, uma zona erógena, em busca de uma satisfação para a pulsão.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

249
―Tonho‖ se apresenta assim, um menino grande, que mal tem noção de seu próprio tamanho,
tentando caber em pequenos lugares, como se seu corpo funcionasse em partes separadas.
Uma das regras da instituição é a não permanência dos adolescentes após completar 18
anos. O que significa que o tempo de ―Tonho‖ na instituição está acabando e, teoricamente, ele
precisaria se mudar. Por isso, é interessante observar sua relação simbólica com o relógio, como
se ele quisesse controlar o tempo, não somente dentro da instituição, mas o seu próprio tempo
de transformação de menino para adolescente.

No decorrer dos encontros ele foi se apropriando do próprio corpo, começando a se


mostrar mais, ao ponto de manifestar seus desejos. Porém, até então era um discurso desconexo
e sem sentido para nós que o escutávamos. Em suas falas ele deixava escapar significantes como
desabrochar e, posteriormente, transformar, mas que só fizeram sentido a posteriori quando
esses dois significantes deram sentido um ao outro. Assim como aponta Quinet o significante é
representado para outro significante, portanto o sujeito se encontra no espaço entre dois
significantes (QUINET, 2012, p. 22).

“TONHO” E A TECNOLOGIA

―Tonho‖ viveu sua infância e adolescência na Instituição de acolhimento, e embora


tenha sempre se socializado, convivido com outras crianças e se relacionando externamente à
Instituição, sua aproximação e apropriação de objetos tecnológicos foram bem ausentes.
Portanto, a tecnologia considerada por ―Tonho‖, dentro de suas representações, sobre o que é
um objeto tecnológico, trata-se de uma tecnologia simples e, para alguns, obsoleta, mas que pra
ele é algo extraordinário.
Ao passar dos encontros ―Tonho‖ foi nos dizendo que algo daquele menino precisava
ser transformado, que ali se encontrava um sujeito, para além de suas limitações, um sujeito do
desejo. A grande mudança ocorreu quando o menino ―Tonho‖ ganhou de presente um relógio
digital e holográfico, que projeta na parede a imagem do desenho Ben 10. O Bem 10 é um
desenho animado e conta a história de uma criança que encontra um relógio com poderes de
transformá-lo em seres alienígenas, concedendo habilidades especiais que o Bem utiliza para
lutar contra os ―caras maus‖ e salvar o mundo.
―Tonho‖ se identificou com o objeto, se projetou nele ―é só apertar que ele transforma‖,
a imagem foi refletida como um espelho, em uma tentativa de ―Tonho‖ de construir um sentido,
uma forma de se reinventar. Aquilo que se projeta na imagem é como uma simulação,
possibilitando a exteriorização do desejo pelo reflexo na parede, o desejo de ser transformado.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

250
Assim como o Ben 10, ele se transformou em ―Antônio‖ afirmando que esse era seu
nome próprio: ―Meu nome é Antônio‖. Tomando posse de algo que era realmente próprio dele.
Esse ―Antônio‖ é o algo que escapa, é o desejo contido, é a manifestação mais intima do menino
―Tonho‖, o seu ideal do eu. Agora, ―Antônio‖ tem forma, contorno, ele consegue dizer de um
lugar próprio que é único e exclusivamente dele. É o objeto contido em ―Tonho‖ que se
exterioriza a partir de seu investimento libidinal em um objeto externo: o relógio.
Tudo faz sentido por que partiu de ―Tonho‖ o desejo de ter um relógio, pois ele se
identificou não só com o objeto, mas com o que o objeto representa pra ele. Assim como ele
mesmo disse: ―relógio é pra gente grande, não é?‖. Todas as peças do quebra cabeça se
encaixam e começam a fazer sentido após a transformação. O que até então era significantes
soltos e desconexos ganharam sentido, afinal era isso o que ele queria o tempo todo, deixar de
ocupar esse lugar de menino para crescer, ―desabrochar‖.

RELAÇÃO SUJEITO X OBJETO

A tecnologia pode ser utilizada como meio facilitador para a manifestação dos desejos
inconscientes, como no caso ―Tonho‖, possibilitando uma elaboração subjetiva do desejo
contido. ―Os objetos são como substitutos, que representam algo de uma experiência
emocional‖ (ZANATA E BENETTI, 2012, p.97). Sendo assim a identificação com o objeto,
pode nos dizer muito sobre o sujeito que a ele se identifica.
Freud (1905) afirmou que se constitui como objeto da pulsão todo aquele objeto no qual
a pulsão consegue satisfazer-se, sendo que este não é fixo e nem determinado, pois na verdade o
que acontece é que o encontro com o objeto é sempre um reencontro. Despertando no sujeito
um sentimento de uma memória infantil, por isso, essa relação faz metáfora, por dizer de uma
relação arcaica do sujeito com o seu primeiro objeto de amor.
Cabe aos objetos tecnológicos explicitar o limite do pensamento e da capacidade de
criação de mundos e subjetividade (KRIST, FONSECA, 2010). Compreendendo que para além
da função do objeto tecnológico, a qual ele se destina, há também uma função simbólica, que
cada sujeito atribui a ele, tornando singular a maneira de se relacionar. ―Tonho‖ se relaciona
com o relógio digital, de uma forma bem particular e única, pois este objeto desperta nele um
desejo, uma lembrança, um sentimento. No decorrer dos encontros ele manifesta, mesmo que
inconscientemente, o desejo de ser grande, de desabrochar e é o relógio que o permite
exteriorizar tal desejo.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

251
CONSIDERAÇÕES FINAIS

―Tonho‖ nos mostrou, de forma sutil, que algo ali daquele menino escapava. Quando
ganha de presente um relógio digital e holográfico do ―Ben 10‖, assim como os personagens do
desenho, o menino evoluiu deixando que ―Antônio‖ surgisse em cena. Quando ―Tonho‖ se
identifica com o objeto, se transforma, pois há um traço que era familiar e lhe remeteu a uma
memória esquecida. Havendo aí uma condensação de todo seu desejo projetado nesse objeto,
possibilitando a ele uma ressignificação subjetiva, um novo modo de se posicionar, agora como
―Antônio‖. O menino desabrocha e transforma-se, aos 17 anos, em adolescente. Algo de mais
intimo seu, surge, aparece!
Portanto, a tecnologia, como meio facilitador, pode ser de grande valia, principalmente
quando se leva em consideração a relação subjetiva, do sujeito com o objeto tecnológico. Ela
não se limita unicamente a sua função original, enquanto objeto que tem uma função específica,
mas se destina a função particular que cada sujeito projeta sobre esse objeto. Podendo articular a
tecnologia como modo de identificação e subjetivação do sujeito. Unindo tecnologia e
psicologia, muitas possibilidades de intervenção são possíveis, considerando sempre o melhor
caminho para que o sujeito se encontre.

REFERÊNCIAS

FREUD, S. O Mal estar na civilização. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro: Ed. Imago. p.67-148.
1930/1996.

FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: S. Freud, Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. VII. Rio de Janeiro: Ed.
Imago. p.119-217. 1905/1996.

FREUD, S. Sobre o Narcisismo: uma introdução. In: S. Freud, Edição Standart brasileira das
obras Psicológicas de Sigmund Freud, vol. XIV. Rio de Janeiro: Ed. Imago. p. 77-108.
1914/1996.

KIRST, P. B. A. G.; FONSECA, T. M. G. A imagem digital como dispositivo de apropriação


dos modos de subjetivação contemporâneos. Psicol. estud., Maringá, v. 15, n. 2, p. 401-408,
jun. 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
73722010000200019&lng=pt&nrm=iso>. Acessos em 01/abr/2017.

QUINET, A. Os outros em Lacan. Rio de Janeiro, Ed. Jorge Zahar, 2012.

ZANATTA, D; BENETTI, S. P. C. Representação mental e mudança terapêutica: uma


contribuição da perspectiva psicanalítica da teoria das relações objetais. Psic.Teor. e Pesq.,
Brasília, v. 28, n. 1, p. 93-100, mar. 2012. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
37722012000100012&lng=pt&nrm=ISO>. Acessos em 01/abr/2017.

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252
A produção da subjetividade em cibercartografias sensoriais

Renata Crisóstomo88

Resumo
Este artigo analisa de que maneira a produção de subjetividades, segundo a formulação
de Guattari e Rolnik (1996), estão afetivamente vinculadas às percepções que se tem
dos lugares. Através da pesquisa sensorial, SmellMaps, a designer Katharine McLean
(2015), demonstra que os cheiros das cidades revelam uma espacialização heterogênea.
Os corpos em agenciamento com o ambiente permitem discriminar uma infinidade de
percepções e produzir diferentes paisagens de uma mesma cidade. Esta tese é reforçada,
na adoção do conceito de reflexividade presente na metodologia cibercartográfica de
Taylor (2005) que descreve a importância que diferentes atores, não especialistas, na
produção dos sistemas de informação geográfica. Assim, acredita-se que ao considerar
os dados cibercartográficos, a partir de uma metodologia de análise filosófica, esteja se
evidenciando a potência do processo de subjetivação para reforçar ou romper com as
visões convencionadas entre o corpo e as cidades.

Palavras chave:. Produção de Subjetividade, Cibercartografia, Mapeamento Senso-rial,


Interface de mapeamento do usuário.

1. Introdução

Dorren Massey (2008), geográfa adepta a geografia crítica, em sua obra ―Pelo
Espaço‖, atenta para a necessidade de uma prática de mapeamento do território a partir
da experiência. Baseada nos conceitos de multiplicidade em Deleuze e Guattari (1995a),
a autora descreve o conceito de espaço relacional ou em agenciamento:

―E isto faz emergir o aspecto do espaço praticado, que é sua construção


relacional, sua produção através de práticas de envolvimento material. Se o
tempo se revela como mudança, então o espaço se revela como interação.
Neste sentido, o espaço e a dimensão social não no sentido da sociabilidade
exclusivamente humana, mas no sentido do envolvimento dentro de uma
multiplicidade. ‖ (MASSEY, 2008, p. 98)

Assim, compreende-se que para a autora, a realidade deveria ser representada


como um fluxo, ou seja, estaria sempre vinculada a subjetividade produzida, e, portanto,
a vivência de uma experiência. Isso significa que não haveria um cartógrafo, ou melhor,
não seria possível que o conhecimento de um único sujeito, totalizasse a representação

88
Mestre em Artes pela UFMG; Especialista em Design e Cultura pela FUMEC; Bacharel em Artes pela UEMG; Bacharel em
Comunicação pelo UNI BH; Integrante do grupo de pesquisa INTERNET e FILOSOFIA/UFMG E-mail.rcrisostomor@gmail.com

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

253
do espaço. A representação espacial, assim, conceberia uma série de agenciamentos que
conectariam diferentes espacialidades ―locais‖ ás ―globais‖. Massey, demonstra assim
de que não é possível uma concepção panóptica de espaço,mas uma variedade de
espacializações locais que dialogam com os mecanismos globais mais amplos.
A partir dessa demanda de interrelacionar diferentes espacialidades a um mesmo
atlas, Taylor (2005) propôs a Cibercartografia, uma ―modelagem‖ de mapeamento que
reúne dados multimídia, imagens, sons, vídeo e visualizações de dados e também dados
sensoriais, para garantir formas mais dinâmicas de documentação do território. A
abordagem cibercartográfica, no nível da interface do usuário, preza pela reflexividade
deste no mapeamento, apresentando diferentes narrativas ao mapeamento, sem
privilegiar nenhuma delas. A cibercartografia assim ―envolve novas maneiras de
engajamento e compreensão do usuário e um novas abordagens integradas de
pesquisa‖89 (TAYLOR, 2005 p. 405). O espaço nesta abordabem é constituído de
materialidade, objetos e movimentos que deslocam a subjetividade humana, ou seja há
uma mistura, divergência e produção por meios não lineares.
Segundo Reyes (2005), a cibercartografia científica tem uma abordagem
reflexiva com o espaço, no qual o cartógrafo participa ativamente da experiência com o
espaço, e pode interferir na produção de mapeamento inserindo não só informações,
mas interferindo na metodologia de mapeamento. Acredita-se que num primeiro ponto
este processo promove a inclusão da subjetividade ao processo de mapeamento e num
segundo momento, proporcione o aumento da potência dos principais elementos que
compõe a produção cartográfica. Assim, considera-se que a cibercartografia, ou
cartografia online, uma metodologia adequada para explorar a subjetividade relacionada
a representação espacial de dados qualitativos.
Portanto a presente análise argumenta que as cibercartografias que incorporam
as espacializações heterogêneas contribuem para a produção de subjetividade
proporcionando uma mudança paradigmática na maneira como se representa o espaço,
se produz o mapa e consequentemente nas verdades que este divulga sobre o lugar.
Como um exemplo analisada o projeto SmellMaps, uma cibercartografia em que
predomina um novo tipo de cartógrafo que insere registros no espaço, muito
particulares, baseados na própria experiência deste com sua percepção olfativa das

89
Traduçãonossa: ―It involves new ways of engaging and understanding the user and new integrated research frameworks‖.

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254
cidades90. Esta pesquisa pretende, portanto, analisar se a reflexividade proporciona uma
percepção crítica do lugar.
O presente artigo foi dividido em três partes: A primeira parte aborda os
conceitos filosóficos estabelecendo a adequação de conceitos e vocabulário. A segunda
parte examina as camadas de representação espacial nas cibercartografias de SmellMaps
e a terceira e última parte discute como a produção de subjetividade aumenta os
agenciamentos automatizados proporcionados pelos mapeamentos convencionais.

2. Revisão da Literatura

A reflexividade dos usuários no mapeamento, é um ponto a ser resolvido pela


cibercartografia já levantado por Taylor e Caquard (2005) ao atentarem que ―os usuários
do mapa não estão necessariamente conscientes do poder de retórica do mesmo. Para os
autores os usuários ―frequentemente nem mesmo desafiam a neutralidade e a
objetividade do mapa" (TAYLOR E CAQUARD, 2005 p. 288). O mapa para os autores
tem sua validade e função, mas cabe ao usuário do mapa a consciência de que o lugar
revela mais do que está ali descrito. Neste sentido é que se considera fundamental ao
estudo das cibercartografias, uma aproximação ao conceito de produção de
subjetividade, proposta por Guattari e Rolnik (1996) em Micropolíticas do Desejo, uma
vez que estas valorizam a espacialização a partir da experiência de reciprocidade do
usuário do mapa com a cidade e, portanto, provoca singularizações, ou seja aqui
considerada como a quebra paradigmas já existentes sobre a institucionalização das
cidades.
A produção de subjetividade como proposta por Guattari e Rolnik (1996), não
concebe a dicotomia entre o sujeito autônomo e o mundo que este habita, mas concebe a
produção de multiplicidades91. O sujeito é descentrado e a produção de subjetividade
não seria mais resultante de relações interpessoais e complexos familiares. A
subjetividade seria então o resultante de "uma mistura de corpos", um agenciamento
coletivo de enunciação na medida em que é uma concatenação de vozes, culturas,
90
Apesar de SmellMaps não atender a todas as especificações da cibercartografia, considera-se que seja uma pois apresenta o
aspecto mais importante da sua metodologia que é a reflexividade do usuário.
91
Segundo Deleuze e Guattari (1995 a) tratam o múltiplo como substantivo ou seja multiplicidade que “não tem mais nenhuma
relação com o uno como sujeito ou como objeto, como realidade natural ou espiritual, como imagem e mundo” (p.15). É
importante notar que a categoria de sujeito em uma multiplicidade passa a existir enquanto noção de unidade integrante ao
agenciamento.(p.16)

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255
valores, imagens, objetos, sons e signos capazes de produzir modos de vida. Para os
autores a produção de subjetividade é uma máquina ou seja, se move pela produção e
nunca pela falta:

A essa máquina de produção de subjetividade eu oporia a ideia de que é


possível desenvolver modos de subjetivação singulares, aquilo que
poderíamos chamar de ‗processos de singularização‘, uma maneira de recusar
esses modos de encodificação preestabelecidos, todos esses modos de
manipulação e telecomando, recusá-los para construir, de certa forma, modos
de sensibilidade, modos de relação com o outro, modos de produção, modos
de criatividade que produzam uma subjetividade singular. (GUATTARI &
ROLNIK, 1996 p.16)

O conceito de produção de subjetividade aqui produz a singularização e é nesta


medida que poderíamos compreender o mapa como um agenciamento. Deleuze e
Guattari (1995b) constituem o agenciamento por dois eixos ou conjuntos denominados
por coletivo de enunciação, sinais e gestos, e por maquínico de interação de corpos:

Segundo um primeiro eixo, horizontal, um agenciamento comporta dois


segmentos: um de conteúdo, o outro de expressão. Por um lado, ele é
agenciamento maquínico de corpos, de ações e de paixões, mistura de corpos
reagindo uns sobre os outros; por outro lado, agenciamento coletivo de
enunciação, de atos e de enunciados, transformações incorpóreas sendo
atribuídas aos corpos. (DELEUZE & GUATTARI, 1995b p.23)

Os agenciamentos, portanto, são redes complexas que envolvem tanto o


discursivo como o não discursivo, a partir do qual entidades heterogêneas ou mesmo
ações funcionam em conjunto. Entretanto, os agenciamentos maquínicos, não se
referem ao discurso, mas a práticas por meio das quais as entidades se criam. Os
agenciamentos coletivos de enunciação, por sua vez, tornam possíveis afirmações
linguísticas sendo a união tanto dos conceitos abstratos e linguísticos quanto do aspecto
físico. O agenciamento, mais do que um acoplamento mecânico ou ―simbioses de
corpos‖ o que aqui se denomina por singularização, devem promover
―transformaçõesincorpóreas‖ ao agenciamento que tem a função de individualizar seus
componentes. Assim a produção de subjetividade para Deleuze e Guattari(1995),
Guattari e Rolnik (1996) produz agenciamentos que são regimes de enunciados em que
os sinais se organizam de uma maneira diferente do original proporcionando
particularidades.
Assim, os odores em SmellMaps não são apenas categorias estanques, mas
relacionados as emoções particularizam os lugares de acordo com as memórias
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256
individuais. Assim, as ―transformações incorpóreas‖ seriam as mudanças que as
enunciações provocam, incluindo as palavras e os significados em relações não
corpóreos que ligam os significantes aos seus efeitos: ―um "eu te amo" que se dirige a
um centro de significância, e faz toda uma série de significados corresponder, por
interpretação, à cadeia significante‖ (DELEUZE & GUATTARI, 1995b p.91).

3. SmellMaps: mapeamento olfativo em Glasgow e Paris

Em 2012, um evento provocativo sobre cartografia sensorial ocupou o museu e


as ruas de Glasgow. A designer Kate Mclean(2013), desenvolveu uma deriva olfativa e
a partir dela uma análise sensorial para exibir as percepções dos participantes com a
cidade. Como resultado, o museu de ciência de Glasgow exibiu um mapa que revelou
uma variedade de odores da cidade sentidos e capturados por meio de uma pesquisa
qualitativa e por meio da reprodução dos odores identificados. Esta cartografia, que tem
uma base de desenvolvimento de vários projetos semelhantes da designer, contou com a
participação de vários voluntários da cidade. Na categorização dos aspectos
quantitativos a designer e os voluntários da deriva olfativa registraram os odores
predominantes que podem ser vistos na Fig.01: perfume, lojas de fast-food, musgo
húmido, poeira de construção, fumaça de diesel, sabão, lornesausage (salsicha fatiada),
Hot Brovil (caldo de carne) e maré baixa do Rio Clyde. Os dados quantitativos da
cidade foram registrados em um segundo momento deste processo como mostra a Fig2.
e Fig3. É no momento da exibição do mapa ao público no museu de história natural de
Glasgow, que os dados são registrados no mapa. Para isso foi proposta uma dinâmica no
qual os visitantes que não participaram da deriva olfativa na cidade, cheiravam os
frascos com os odores selecionados pelos voluntários e os relacionavam aos lugares no
mapa.
Estes visitantes tiveram além dos odores, sua memória como agente de trabalho
e por meio dela reproduziram uma deriva virtual da cidade por meio dos cheiros dos
frascos de perfume. A memória é ativada por meio do olfato é o que permite que se
relacione os odores aos locais da cidade. Portanto, esta pesquisa apresenta duas
variáveis: os odores e a memória. Os odores, apesar de terem sido uma variável da
pesquisa da qual os participantes não tiveram controle, formam a base de dados de

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

257
análise desta pesquisa. Esta variável, apesar de fugidia, é passível de análise justamente
porque foi categorizada e registrada enquanto mapa impresso.A memória é a segunda
variável de análise e apesar de não ter sido descrita e justificada por cada usuário foi
registrada no mapa impresso assim como os odores.
Resta-nos agora apresentar a conjugação das variáveis com o problema da
pesquisa a partir da qual gerou-se a seguinte hipótese: como a produção de um mapa de
odores da cidade poderia influenciar na percepção que os indivíduos têm do espaço?
Para tentar encontrar respostas buscou-se em um primeiro momento levantar os
objetivos de uma deriva olfativa e seu mapeamento e um segundo momento o
tratamento destes dados na experiência de mapeamento. McLean (2014) descreve como
objetivo final do projeto a redescoberta do território já politicamente determinado nos
mapas geográficos oficiais, ou seja, a produção de espacialização enquanto ação:

The function of such smellmaps is to explore new ways to depict cities other
than purely visual, encouraging tourists and visitors to explore and find their
own city experiences, which thereafter become memorable through a direct
link with smell (McLEAN, 2013, p.310).

Ao compreendermos o objetivo do registro de odores, na produção cartográfica


de Glasgow, nos deparamos com características da produção de subjetividade segundo
Guattari e Rolnik (1996) que são defendidas na proposta de McLean. Pode-se afirmar
isso uma vez que a informação exibida pelo mapa advém de uma experiência com a
cidade. A produção de subjetividade ser á uma vez que cria um agenciamento seja por
meio da deriva olfativa, ou por meio da ativação das memórias com a cidade através dos
frascos de perfume do mapa.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

258
Fig. 1. Mapas dos odores de Glasgow que revelam o movimento, reconstrução e regeneração como
identidade da cidade. ©Kate McLean Design

Outro aspecto importante a se analisar será o aspecto cibercartográfico da


proposta de McLean (2013; 2014). A reflexividade do corpo com a cidade, não é
descrita no processo, mas pode ser apontada como o fator que gera o agenciamento e
portanto o seu resultado: os processos de singularização do indivíduo com a cidade. A
valorização da reflexividade e a heterogeneidade de informações sobre os odores
diferencia este mapeamento das cartografias oficiais das cidades apresentadas, uma vez
que não valoriza determinados pontos os por meio das regras políticas ou econômicas
que atenderia a demandas turísticas92. A singularização foi identificada enquanto
experiência de mapeamento uma vez que o dado é resultado da associação do odor ao
local, e, portanto, é uma experiência que proporcionaria uma maneira particular de
existir na cidade. O valor deste trabalho reside, portanto, está na convergência de
temporalidades de um mesmo espaço evidenciadas na heterogeneidade entre memórias,
lugares, sons, cores, expectativas e possibilidades. A heterogeneidade,assim ao

92
No website oficial de Glasgow <http://www.scotland.org/experience-scotland>, são valorizados os sentidos dos usuários por meio
de imagens de paisagens construídas, evidenciando o lado agradável da cidade, afim de vender o turismo escocês. Diferentemente
do mapeamento de SmellMaps, este website não registra aspectos desagradáveis, como odores pungentes que desestabilizariam o
discurso do mapa geográfico turístico.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

259
evidenciar a experiência olfativa com o lugar não define um perfil de odor para a
cidade, mas revela contradições e complexidades dos dados.

Fig. 2. e 3. Usuários do mapa e visitantes da exposição ―Sentidos de Glasgow‖ registraram no mapa os


odores, por meio de carimbos relacionados ao perfume. ©Kate McLean Design

Fig4. Registro de impressões dos usuários sobre os odores na exposição SmellMapsem Paris. ©Kate
McLean Design

4. Discussão

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

260
Como visto, os conceitos de agenciamento descontroem a divisão entre sujeito e
máquina permitindo compreender como as máquinas, e aqui especificamente as bases
de dados de mapeamentos, estão imbrincadas com a subjetividade, na qual os corpos as
assumem e usam para os seus próprios meios expressivos. No trabalho SmellMaps, o
maquínico se refere ao conjunto de fluxos heterogêneos de processos entre os odores, o
espaço e os corpos e o agenciamento não trata de uma metáfora, mas designa arranjos e
processos que complementam ou por vezes superam as impressões sobre os
mapeamentos já feitos nas cidades.
Afim de compreendermos de que modo a produção de subjetividade poderia
produzir singularizações analisou-se um segundo mapeamento olfativo desenvolvido
por Kate Mclean(2014), no qual foram registrados os dados quantitativos da cidade.
Para tanto a pesquisadora propôs que os visitantes da exposição, agora realizada em
Paris, relacionassem os odores aos lugares e também que descrevessem as suas
memóriassobre os locais apresentados na Fig4. Diferentemente do primeiro
mapeamento, Kate acrescenta à deriva, um sentido de produção de narrativas pessoais:

Despite this degree of removal from the point of origin, I suggest that a
digital smell-induced dérive perfectly embodies Guy Debord‘s description of
the derive as ―a technique of rapid passage through varied ambiances‖
(Coverley). The cartographic framework for the ―smellscape‖ (Porteous)
serves as the platform for multiple, personal narratives. The map is the unifier
of place and sensory stimuli, both in physical exhibition and in the final
virtual smell walk. (McLEAN, 2014, sempaginação)

Nesta segunda experiência, na qual não houve uma coleta de dados diferente por
meio do facebook, ficou mais evidente a produção de subjetividade ou os modos de vida
que são descritos pelos visitantes da exposição. A produção de subjetividade defentida
por Guattari e Rolnik (1996) parece ter sido a adotada pela designer Kate Mclean em
seu projeto educativo SmellMaps uma vez que, este mapeamento demonstra como a
cibercartografia, pode ser vista sob o ponto de vista de um acoplamento entre os corpos
e as bases de dados, aqui máquinas técnicas, que não existem em separado aguardando
alguma ativação. As memórias ou enunciados expressos nos mapas, não estão separados
dos corpos e estados que existem no agenciamento maquínico, mas se a produção de
mapeamentos que determinam os pontos de interesse da cidade de acordo com as
necessidades turísticas do mercado.

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261
Ainda como resultado de um agenciamento a produção de subjetividades como
foi apresentado acima no mapa tem como resultado um processo de singularização na
qual as experiências sensoriais com o lugar deixam de ser apenas uma representação
estanque de lugares, pessoas, serviços e instituições para ser uma multiplicidade, uma
teia de relações, um agenciamento aberto entre objetos e corpos, discursos e poder,
temporalidades e performances onde se constituem experiências múltiplas. Isso fica
mais evidente no segundo estudo de caso que, diferentemente do primeiro, deixa
evidente que os odores alteram as transformações incorpóreas postas ao corpo
contradizendo as determinações que enquadram e qualificam determinado grupo que
corrobora com uma concepção já sedimentada sobre o território. Isso pode ser afirmado
ao se ter acesso as notas relacionadas aos mesmos locais nas quais a autora descreve
uma variedade de emoções, objetos e atividades:

The smells led visitors to write about far more than just location and
emotion—namely objects, people, activities, eras, events, as well as what I
termed ―unspecified locations‖ (e.g. "granny‘s bedroom") and unspecified
emotions such as ―socks without wash for 356 days! (McLEAN, 2014,
sempaginação)

Com este resultado percebe-se que as cibercartografias de SmellMaps realmente


produzem singularizações uma vez que o mesmo odor, afixado a um mesmo local do
mapa da cidade de Paris, apresentou diferentes memórias e associações gerando
espacializações distintas, reflexos dos modos próprios de vivência com o lugar.

5. Considerações Finais

Entretanto, agora cabe elencar o que seria o agenciamento coletivo de


enunciação no mapeamento e seriam as suas contribuições para uma análise crítica do
espaço. Por análise crítica compreende-se aqui a coexistência de espacialidades
singulares, ou heterogeneidades que não tem como função ordenar as percepções do
lugar, mas busca antes uma experiência com o mesmo.
Em SmellMaps um mesmo local tinha atribuído a si além de diferentes odores,
diferentes memórias e diferentemente do que esperava a pesquisadora, que foram
revelados ―outros temas emergentes‖ como associação a outros ―objetos‖, ―atividades‖,
―pessoas‖ e eventos. Assim, tornou-se claro que os odores provocavam não apenas uma
contradição de percepções sobre os locais, mas que o odor poderia simular um processo
de existência de diferentes temporalidades sobre o lugar na medida em que este
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

262
auxiliaria num processo de imersão, transportando o visitante, mesmo que
momentaneamente a um local distante dali, por meio da memória. Estes registros
indicam mais do que particularidades sobre o lugar, evidenciam os diferentes discursos
em um território, e, portanto, demonstram a heterogeneidade de vetores de forças pré-
pessoais, sobre um determinado lugar.
Assim conclui-se que a heterogeneidade espacial produzida é importante pois
não tem compromisso em refletir as determinações que as instituições oficiais de
mapeamentos utilizam dados para invocar umas transformações incorpóreas nos
sujeitos. Estas definem um protocolo de uso do lugar, de comportamento e, portanto,
não permitem uma produção se si. O odor ao permitir por meio da memória, o acesso a
diferentes temporalidades existentes no espaço, abre condições para uma discussão
sobre a superação das produções estabelecidas pelas condições históricas que terminam
a produção de subjetividade no lugar.

Referências

CAQUARD, S. T. (2005). Art, maps and cybercartography: Stimulating reflexivity


among map-users. Em D. R. TAYLOR, Cybercartography: Theory and Practice Vol. 5
(pp. 285-307). Otawa,:Elsevier.

DELEUZE, G., & GUATARRI, F. (1995a). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia.


Vol. 1. . São Paulo: Editora 34.

DELEUZE, G., & GUATARRI, F. (1995b). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia.


Vol. 2. . São Paulo: Editora 34.

DR. FRASER, T. (2005). The concept of cybercartography. Em M. PETERSON, Maps


and the Internet (pp. 405-420). Amsterdan: Elsevier.

GUATTARI, F., & ROLNIK, S. (1996). Micropolítica: Cartografias do Desejo.


Petrópolis, RJ: Vozes.

MASSEY, D. (2008). Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil.

MCLEAN, K (2013) ‗Smellmap: Glasgow‘, in Buchroithner, M et al. (ed) Proceedings


of the 26th International Cartographic Conference, Dresden

MCLEAN, K. (novembro de 2014). Smell Map Narratives of Place—Paris. NANO:


New American Notes Online Issue 6: CartographyandNarratives.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

263
REYES, M. D. C. (2005). Cybercartography from a modeling perspective. Em D. R.
TAYLOR, Cybercartography: Theory and Practice Vol. 5 (pp. 63-97). Otawa,: Elsevier.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

264
A virtualização do espaço urbano cotidiano

Laura Fonseca de Castro


lauracastroo@gmail.com
Núcleo de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (NPGAU-UFMG)

Resumo
O trabalho discute a instância virtual dos acontecimentos cotidianos que orienta o
comportamento inventivo na apropriação do espaço ao longo da vivência diária na cidade
contemporânea, a fim de analisar a multiplicidade de usos interpretativos das estruturas urbanas.
Pierre Lévy (1995) aponta a coexistência de duas instâncias nos fenômenos vividos: a
substância e o evento. A substância se refere ao caráter material das coisas enquanto o evento se
refere à experiência vivida a partir de seu uso. O evento pode ser atual, se de fato acontece, ou
virtual, se é um problema ou objetivo ainda a ser resolvido ou alcançado. No cotidiano, os
corpos se apropriam espontaneamente do espaço para responder a necessidades imediatas de
uso. Discute-se o virtual a fim de enfatizar a importância da problematização das práticas
ordinárias referentes ao uso do espaço urbano, ao considerar a atualização de fenômenos virtuais
como ação interpretativa de suas múltiplas possibilidades de uso. A maneira como se dá a
atualização das virtualidades de uso no espaço é condicionada pela materialidade das estruturas
reais existentes no local onde a ação acontece. Por ser resultado de interpretações que
combinam informações adquiridas ao longo da experiência cotidiana, a atualização de um
fenômeno virtual no espaço urbano se coloca como produção estética inventiva e crítica e tem,
portanto, valor político.

Palavras-chave: cotidiano; virtual; atualização; espaço urbano

A virtualização do espaço urbano cotidiano

O presente trabalho é resultado da discussão que tomou lugar no fórum sobre arte e
invenções na cultura digital do I Simpósio Subjetividade e Cultura Digital. Ele é um extrato da
pesquisa desenvolvida ao longo do curso de mestrado do Núcleo de Pós-Graduação em
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais, cujos desdobramentos serão
apresentados em um artigo a ser publicado posteriormente em revista científica da área. Visa-se
discutir a instância virtual dos acontecimentos cotidianos, que orienta atitudes inventivas na
apropriação do espaço ao longo da vivência diária na cidade contemporânea, a fim de analisar a
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

265
multiplicidade de usos interpretativos possíveis para as estruturas urbanas. Henri Lefebvre
(2008b) afirma:

É no cotidiano que uma possibilidade se torna aparente (seja de jogar,


trabalhar ou amar, etc.) em toda sua bruta espontaneidade e ambiguidade. É
igualmente no cotidiano que a decisão inaugural é feita em cada momento
que começa e se abre; esta decisão percebe uma possibilidade, escolhe-a
dentre outras possibilidades, leva-a a cabo e se compromete com ela sem
reservas. (LEFEBVRE, 2008b, p.351, tradução minha 93)

Assim, o cotidiano pode ser visto como uma sucessão de tomadas de decisão diante de
diferentes circunstâncias e modos de agir. No que se refere às múltiplas possibilidades que
poderiam ser levadas a cabo em uma determinada situação, é interessante discutir o conceito
filosófico de virtualidade sob a perspectiva de Pierre Lévy (1996, 1999). Para o autor, o termo
virtual pode ser abordado em pelo menos três diferentes sentidos. O primeiro é um sentido
técnico do termo que se relaciona à informática que frequentemente é usado para se referir a
acontecimentos digitais, ou seja, que são programados com o suporte de computador. O
segundo é o uso corrente que se aplica a algo que não existe materialmente, de modo que o
virtual não possuiria forma física e, portanto, não seria real. Finalmente, o terceiro sentido do
termo apresenta uma abordagem filosófica onde o virtual não exclui a capacidade de o digital ou
de o real acontecerem simultaneamente a um fenômeno.

Na acepção filosófica, é virtual aquilo que existe apenas em potência e não


em ato, o campo de forças e de problemas que tende a resolver-se em uma
atualização. O virtual encontra-se antes da concretização efetiva ou formal (a
árvore está virtualmente presente no grão). No sentido filosófico, o virtual é
obviamente uma dimensão muito importante da realidade. (LÉVY, 1999,
p.47)

O virtual é uma possibilidade que ainda não tomou lugar no momento presente, mas que
existe como probabilidade de materialização. Ele se opõe ao atual, e não ao real. O exemplo
citado da árvore no grão ilustra bem essa característica virtual: a árvore existe, é real, mas não
aqui e nem agora. Sob essa perspectiva, o autor analisa os fenômenos do cotidiano em duas
instâncias: a da substância e a do evento. De acordo com ele, a substância se refere à
materialidade da vida e pode ser real – característica manifesta da substância, capaz de ser
localizada no tempo e no espaço - ou potencial - característica latente da substância, se for
realidade possível predeterminada. Em se tratando de evento, ou seja, da ação que desenvolve,

93
“It is in the everyday that a possibility becomes apparent (be it play, work or love, etc.) in all its brute
spontaneity and ambiguity. It is equally in the everyday that the inaugural decision is made by which the
moment begins and opens out; this decision perceives a possibility, chooses it from among other
possibilities, takes it in charge and becomes commited to it unreservedly.” (LEFEBVRE, 2008b, p.351)
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

266
um fenômeno pode ser atual - característica manifesta do evento, se for solução para um
problema que acontece aqui e agora - ou virtual - característica latente do evento, se for
problema ou objetivo a ser resolvido ou alcançado. De acordo com Lévy (1996), as quatro
instâncias ocorrem simultaneamente em todas as ações do dia-a-dia. O autor apresenta um
quadro para ilustrar os quatro modos de ser que coexistem nos fenômenos:

Latente Manifesto
Substância Potencial (insiste) Real (subsiste)
Evento Virtual (existe) Atual (acontece)
Tabela 1: Os quatro modos de ser, de acordo com Pierre Lévy.
Fonte: LÉVY, 1996, p.138, graficamente editado pela autora.

Por ambos estarem na mesma ordem substancial, o real se assemelha ao potencial, pois
seu acontecimento não envolve processo de criação, visto que o potencial já se encontra pré-
programado e constituído. A diferença entre os dois estados é que o real possui uma
subsistência física tangível, enquanto o potencial insiste no limbo de uma manifestação
possível. Paralelo a isso, o atual responde ao virtual. O virtual existe como a problematização de
uma ação, pois ele é uma situação subjetiva que envolve a configuração dinâmica de tendências.
Em resposta, a atualização é um acontecimento que inventa uma solução válida a esse problema
virtual na circunstância presente. Resumidamente, a atualização pode ser expressada por um
substantivo, é uma das várias saídas possíveis para um problema, e a virtualização, por um
verbo no infinitivo, é a formulação do problema que considera a ação atual (LÉVY, 1996).
Apesar de manifestada em uma atualização, a questão virtual não é destruída,
consumida ou definitivamente resolvida no instante em que se apresenta uma solução para ela.
Mesmo atualizada, ela continua a existir em nível de problematização da realidade, tal como
ocorre, por exemplo, no caso do conhecimento. O conhecimento é essencialmente virtual, no
momento em que se usa uma informação conhecida é necessário que seja associada a outras
informações para que faça sentido em uma determinada circunstância para que, então, seja
possível tomar uma decisão. A ação de atualizar uma informação inicial por meio de
interpretações é um ato inventivo, é uma criação que produz uma nova situação a partir das
circunstâncias do momento atual. Por sua vez, a geração de conhecimento faz o caminho
contrário. Ele advém da problematização da experiência vivida a partir da aprendizagem,
portanto decorre da virtualização da experiência imediata, atual (LÉVY, 1996).
Com a virtualização, o conhecimento pode ser aplicado indefinidamente a outras
situações, em condições diferentes daquelas da aprendizagem original. A atualização ―não é,
portanto, uma destruição mas, ao contrário, uma produção inventiva, um ato de criação. [...]

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267
Toda aplicação efetiva de um saber é uma resolução inventiva de um problema, uma pequena
criação‖ (LÉVY, 1996, p.58-59). Sob esse ponto de vista, a prática da atualização pode ser
percebida como tática, pois, se o virtual é uma questão latente de uso que não se prende ao aqui
e ao agora, o atual é a solução produzida para esse problema em uma dada ocasião.
Se o cotidiano existe como prática ordinária, o virtual seria o complexo problemático
que orienta e demanda a invenção de soluções mais ou menos banais ao longo da vivência
diária. A atualização de um fenômeno que antes só existia virtualmente e que agora passa a se
manifestar como produção inventiva é resultado também das interpretações guiadas pelo
acúmulo coletivo de referências de situações vividas em diferentes conjunturas. No cotidiano, a
atualização pode se dar quando uma estrutura física espacial é apropriada, o que ativa as
instâncias de substância e de evento. Nessas situações de apropriação espontânea e ordinária, a
atualização responde a uma necessidade de uso imediata mais ou menos complexa. Por
exemplo, um poste de sinalização de um ponto de ônibus que tem o objetivo funcional definido
de sustentar uma placa poderia, virtualmente, também servir de suporte para a fixação de
lixeiras ou para a prática de pole dance. A maneira como poderia ocorrer qualquer uma dessas
atualizações é uma manifestação inventiva condicionada pela materialidade das estruturas reais
pré-existentes no local e também pela complexidade do problema cotidiano a ser resolvido. O
grau de complexidade ou de banalidade que se desenvolve no modo como se dá essa
apropriação revela a capacidade interpretativa e criativa da atualização, condicionada pela
realidade de suas estruturas físicas. No entanto, a atualização é geradora de situações que
permitem o uso interpretativo de uma estrutura apesar de suas limitações, portanto, ela se dá
essencialmente como prática inventiva espacial vivida em nível cotidiano.
Sempre que o espaço é usado ele também é atualizado, pois é ativada a ordem do
evento. Ao pensar o espaço em nível de evento, considera-se o seu uso para além de sua
materialidade, condição física limitada pelo real e pelo potencial, que predetermina as
possibilidades de apropriação de acordo com uma função específica. A virtualidade do espaço
surge com a problematização desses limites reais e atuais, que só podem ser percebidos ao longo
das situações de uso. Ao aprofundar a análise dos fenômenos cotidianos em sua condição de
evento, busca-se compreender os modos de vida que orientam as manifestações coletivas no que
se refere a tomadas de decisões ordinárias, condicionadas pelos atributos arquitetônicos físicos
que dão suporte a essas ações. No cotidiano, os corpos se apropriam espontaneamente do espaço
para responder a necessidades imediatas de uso. Desse modo, a discussão acerca do virtual é
essencial a fim de enfatizar a importância da problematização das práticas ordinárias referentes
ao uso do espaço urbano, pois considera a atualização de fenômenos virtuais como ação
interpretativa de seus múltiplos modos de uso e evidencia as limitações físicas decorrentes da

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

268
produção do espaço sob um viés funcionalista que predetermina e limita as possibilidades de
ação. A maneira como se dá a atualização das virtualidades de uso no espaço é condicionada
pela materialidade das estruturas reais existentes no local onde a ação acontece. Por ser
resultado de interpretações que combinam informações adquiridas ao longo da experiência
cotidiana, a atualização de um evento virtual no espaço urbano se coloca como produção
estética inventiva e crítica, e, portanto, tem valor político.

Bibliografia

CASTRO, L. F. O uso desviado do espaço. 2016. 135 f. Dissertação (Mestrado em


Arquitetura e Urbanismo) - Escola de Arquitetura, Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte. 2016.

LEFEBVRE, H. (1961) Critique of everyday life. Volume 2: Foundations for a


sociology of the everyday. (Trad. John Moore) Nova York: Verso, 2008b. p.340-358.

LÉVY, P. (1995) O que é o virtual?. São Paulo: Editora 34, 1996. (Coleção Trans)

. (1997) Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999. (Coleção Trans)

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269
CARTOGRAFIA DAS ETIQUETAS:
As controvérsias da literatura de Santiago Nazarian

Gabriela Lopes Vasconcellos de Andrade

RESUMO:
A partir das concepções da Teoria Ator-rede e das Cartografias das Controvérsias, o objetivo do
presente trabalho é traçar um mapa dos atores que discordam sobre a classificação e o lugar
ocupado pelos romances do escritor Santiago Nazarian. Para isso, utilizará como metodologia a
perspectiva da crítica literária, a qual busca analisar criticamente a performatividade, a
subjetividade e a produção de um escritor. Nesse sentido, foi utilizado o conceito de ator,
baseado na Teoria Ator-rede de Bruno Latour e do conceito de rizoma de Gilles Deleuze e Félix
Guatarri, para mapear os atores e a controvérsia da classificação e interpretação da obra de
Santiago Nazarian. Quando os atores discordam, a controvérsia acontece. Assim, o trabalho traz
como discussão o desacordo na classificação da obra de Santiago Nazarian, já que a crítica
acadêmica, o leitor comum e o próprio autor apresentam opiniões diferentes. Concluiu-se que os
próprios livros podem ser vistos como atores não-humanos, pois a controvérsia surge por conta
da produção literária. Assim, a arte literária é a protagonista dessa controvérsia.

Palavras Chave: Santiago Nazarian; Teoria Ator-Rede; Rizoma;

Santiago Nazarian é um escritor múltiplo. Além de ficcionista, o autor paulistano


trabalha como tradutor, roteirista, escreve para A Folha de São Paulo e mantém um blog
chamado Jardim Bizarro. Nazarian teve seu primeiro romance publicado em 2003, Olívio, por
ganhar o prêmio Fundação Conrado Wessel de Literatura. Nos anos seguintes, o escritor
publicou mais dois romances: A morte sem nome (2004) e Feriado de mim mesmo (2005). Em
2006, foi publicado o maior sucesso de vendas de Nazarian - Mastigando Humanos (2006). Por
conta do sucesso comercial e do apelo ao público jovem alternativo, os próximos romances, O
prédio, o tédio e o menino cego (2009) Garotos Malditos (2012), tinham como protagonistas
adolescentes. A ambos não agradaram a crítica especializada, no entanto, apenas o livro de 2012
é voltado para o público infanto-juvenil. E, em 2014, lançou o livro que afirma ser o retorno
para a literatura adulta, Biofobia (2014).
Esse breve panorama da produção de Santiago Nazarian já demonstra uma série de
fatores que influenciam na percepção e na interpretação do projeto literário do escritor. Uma
opinião, um livro e um escritor existem porque fazem parte de uma rede. Toda a rede de
relações e interpretações surge a partir do objeto livro. Félix Guattari e Gilles Deleuze (1995) no
livro Mil Platôs: volume I desenvolvem o conceito de rizoma. A concepção é ilustrada pela
ideia de um livro que não tem objeto nem sujeito, é formado por materiais, por datas e por

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270
velocidades diferentes. As linhas de força configuram-se como multiplicidade e deslocam os
lugares de sujeito e de objeto, situando-os como agentes em um rizoma.
O livro funciona como um agenciamento. Traz em si termos heterogêneos e estabelece
ligações entre eles. O livro é a imagem para ilustrar a multiplicidade de todas as coisas. Os
autores afirmam que, para estudar essa multiplicidade das coisas, é preciso fazer uma análise
cartográfica, um mapa, passível de visualizar relações múltiplas, as quais não se excluem e se
tensionam. O presente trabalho foca-se nas relações agenciadas pelos livros de Santiago
Nazarian. Para tentar cartografar essas múltiplas vozes e o desacordo entre elas, será utilizada a
Teoria Ator-Rede (TAR), uma corrente de pesquisa que surgiu na área de estudos de ciência,
tecnologia e sociedade na década de 1980, a partir dos estudos de Bruno Latour. A TAR
desenvolve a ideia de que atores, humanos e não humanos, estão interligados a uma rede social
de elementos. O ator é definido pelo papel que desempenha, os efeitos que produz na rede e a
forma que muda as ações dos outros, por isso, pessoas, objetos, animais e instituições podem ser
atores.
As coisas e os seres são plurais, existem enquanto trajetória e relacionando-se a outros.
O conceito de rede é, então, fundamental para entender o funcionamento da TAR. Rede é o
movimento de associação das trajetórias das coisas. O ator é rede. A associação é rede. A TAR
não busca explicações sociais, como se existisse uma origem ou uma força superior, mas sim,
busca, nas associações, um rastro das agências em circulação. André Lemos (2013), em A
comunicação das coisas: Teoria ator-rede e cibercultura, afirma que o actante ―significa tudo
aquilo que gera uma ação, que produz movimento e diferença, podendo ser humano ou não-
humano. É, na realidade, o ator da expressão ator-rede‖ (LEMOS, 2013, p.42).
O objetivo dos estudos da TAR é revelar quem são os mediadores de uma dada situação
e a sua relação com os outros, principalmente em um contexto conflituoso. Uma ação não
pertence ao actante, mas à rede. O diferencial da Teoria Ator-Rede, em relação a outras
perspectivas sociológicas, é não favorecer o humano em detrimento do não humano. O que está
em questão é o agenciamento, já que ―Actantes (humanos e não-humanos) atuam sem
hierarquias previamente determinadas e o objetivo é descrever e analisar o social a partir de seus
rastros‖ (LEMOS, 2013, p.44-45). O ponto chave para produzir um trabalho na perspectiva da
Teoria Ator-Rede é a controvérsia. O momento da controvérsia existe antes de uma
organização, um artefato, uma lei, um conceito (ou preconceito) se estabilizar. Na instabilidade,
os actantes ficam visíveis. Tommaso Venturini, com base nos trabalhos de Bruno Latour,
sistematiza a Cartografia das Controvérsias. O autor afirma que as controvérsias começam
quando os actantes percebem suas divergências. É o momento de instabilidade e de tensão, que
pode cristalizar uma rede após a resolução, mas, ao mesmo tempo abrir a caixa-preta de várias

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271
outras. É um processo de construção, desconstrução e reconstrução. Um estado de magma, nem
sólido e nem líquido.
Como o livro é um objeto que possibilita diversas interpretações, é possível afirmar que
gerará controvérsias já que diversos atores compõem a sua rede de produção e de recepção,
principalmente, para um escritor contemporâneo como Santiago Nazarian, que atua nas redes
sociais e interage com seus leitores na internet. André Lemos afirma que: ―A cultura digital é,
certamente, um ambiente propício a controvérsias, justamente por sua dinâmica e relação com o
rápido desenvolvimento tecnológico contemporâneo.‖ (LEMOS, 2013, p.25). Nesse sentido, é
possível afirmar que a tentativa de dar etiquetas aos livros de Santiago Nazarian é uma
controvérsia, já que não há consenso do lugar que o autor ocupa no espaço literário.
Eneida Maria de Souza (2002), em Crítica Cult, afirma que o movimento da recepção
na contemporaneidade parece ser outro. Como a figura do escritor assume uma identidade
midiática, ele e sua biografia são tecidos através de uma rede imaginária formada por seus
interpretes. A imagem do escritor e do intelectual se caracteriza tanto pela assinatura em sua
obra quanto sua atuação no cenário literário e cultural. Assim, o próprio escritor preocupa-se
com a recepção do seu trabalho e o imaginário que a circunda (ENEIDA, 2002). A polêmica
sobre a classificação da obra de Nazarian está vinculada a sua exposição na mídia. Por isso, é
possível selecionar quatro actantes iniciais: o prêmio Fundação Conrado Wessel de Literatura,
a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), o Ministério da Educação com o Projeto
Nacional Biblioteca na Escola (PNBE) e a Universidade Estadual da Paraíba. O primeiro
actante é o prêmio ganho em 2002, que culminou na publicação de Olívio em 2003. Um prêmio
literário confere legitimidade. Da mesma forma age o segundo actante, o convite da FLIP em
2003.
Esses mediadores atuam para legitimar um escritor e provocaram a parceria de Santiago
Nazarian com a Editora Planeta. Com o contrato da Editora e a boa recepção da crítica, foi
possível publicar mais três romances em anos seguintes: A morte sem nome, Feriado de mim
mesmo e Mastigando Humanos. O último livro começou a vender melhor do que os anteriores e
foi adotado em 2008 pelo Ministério da Educação no Projeto Nacional Biblioteca na Escola, o
qual distribui o livro para professores e escolas do país inteiro. O Ministério da Educação é um
mediador importante porque legitima o livro para outro público, o infanto-juvenil. Outro
mediador importante que atua no mesmo sentido, é a UEPB, pois incluiu Mastigando Humanos
na lista de leitura obrigatória no vestibular de 2012. A ação de aproximar o romance de leitores
mais jovens e do público escolar funciona como uma classificação ambígua de literatura de
infanto-juvenil e literatura reflexiva, por causa dos critérios dos vestibulares brasileiros.

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272
A partir disso, é possível afirmar outro actante: os leitores. No perfil do autor no Skoob,
estão inscrito 3.001 leitores. Um terço desses leitores está divido entre as duas edições de
Mastigando Humanos. Coletando os dados dos três mil leitores de Nazarian, é possível ter uma
faixa-etária média dos leitores. O leitor do Nazarian é o jovem adulto. Mesmo que não seja uma
demografia exclusivamente infanto-juvenil, a idade majoritária dos leitores (16-26 anos)
funciona como um actante para classificar a obra Atrelado a esse perfil, o financiamento do
Programa Petrobrás Cultural para a escrita do livro juvenil Garotos Malditos funciona como
um actante. Afinal, ganhar dinheiro previamente para escrever uma literatura ―fácil e comercial‖
pode parecer um atestado do interesse em estabelecer-se no mercado.
Existem duas instancias discursivas que funcionam como actantes. A primeira é a
cultura do best-seller. Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2007) em A tela Global afirmam que
existem estratégias das instituições econômicas para aproximar-se do grupo juvenil, já que são
considerados os grandes consumidores da indústria cultural, como afirmam ―Ou seja, os
maiores consumidores de cinema detêm as chaves do sucesso. Daí toda uma série de filmes [e
livros] que visam explicitamente esse alvo, a começar pelo gênero prolífico dos teen movies.
Daí também um estilo 'jovem', 'violento' marcado pelo grande espetáculo‖ (LIPOVETSKY;
SERROY, 2007, p. 66). Esse estigma é reproduzido pelo outro actante: a crítica literária. Em
Crítica Cult, Souza discute sobre o posicionamento da crítica no Brasil. Diante da quebra da
hegemonia do discurso canônico, a crítica tradicional acusa a falta de critérios na valoração dos
textos e, principalmente, o nivelamento da qualidade pelo número de vendas. Os critérios de
qualidade estariam sendo esquecidos em detrimento do consumo fácil e do gosto do leitor pouco
preocupado com o valor estético. Esse posicionamento da crítica atua como forma de resistência
à democratização dos discursos e a cultura de consumo dos best-sellers (ENEIDA, 2002).
A partir disso, a crítica costumou a rotular Santiago Nazarian como um autor juvenil,
por conta da sua proximidade com as temáticas da juventude e o flerte com a cultura pop. Ao
mesmo tempo, veem essa proximidade com a cultura pop e a juventude urbana como traços da
literatura contemporânea, como algo positivo, alegórico e não restritivo. Essas opiniões
divergentes aparecem nas falas de três teóricos: o professor de teoria literária da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), Álcir Pécora, a professora de poética da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Beatriz Resend, e o professor dinamarquês convidado da PUC-Rio
Karl Erik Shollhammer.
Em 1 de Julho de 2007, Álcir Pécora escreveu uma resenha do romance Mastigando
Humanos para o jornal O Estadão. O teórico descreve o romance de Nazarian como um
nonsense preguiçoso. Em 2011, a revista Serrote propôs um debate entre Álcir Pécora e Beatriz
Resende sobre o valor da literatura contemporânea brasileira. Pécora diz na entrevista que a ―há

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273
um esgotamento do discurso literário‖ e que este não é um problema exclusivo da literatura
brasileira. A sua opinião difere das concepções de Beatriz Resende, a qual acredita que não é
possível comparar autores de origens literárias diferentes sem salientar os meios de produção
desiguais. A pesquisadora definiu a literatura do século XXI como múltipla, com grande
dispersão de temas. Como um dos exemplos, ela indica o escritor Santiago Nazarian.
Beatriz Resende, com a publicação elogiosa sobre a obra de Nazarian, é uma mediadora
que atribui valor estético aos livros do escritor. Na mesma alçada, Karl Erik Shollhammer
(2009) também atua da mesma forma como mediador. Em seu livro, Ficção brasileira
contemporânea, descreve Feriado de Mim Mesmo como um romance existencialista com uma
narrativa bem construída e analisa Mastigando Humanos como o romance que o fantástico
acontece plenamente. Entretanto, Beatriz Resende denuncia o comportamento de alguns grupos
combinarem elogios mútuos, formando ―gangues‖, que podem isolar outros escritores. E para
ela, Santiago Nazarian cedeu à sedução de tornar-se um escritor comercial por causa desse
isolamento. Os suportes jornalísticos, impresso ou online, ratificam essa ideia e agem como
mediadores para difundir o rótulo de Santiago Nazarian como escritor juvenil. No entanto,
simultaneamente, elogiam o escritor e a sua volta ao romance adulto, Biofobia, mesmo que o
autor só tenha escrito um romance juvenil. No ano de 2014, esse discussão sobre a classificação
da obra do Nazarian voltou à tona nos grandes portais jornalísticos.
O escritor é uma figura pública e performática. Ambientar-se no meio acadêmico e nos
palcos da literatura faz parte do ofício do escritor. Nazarian insere-se neste espaço. Além disso,
é muito ativo nas redes sociais como Facebook e Instagram e em seu blog. Em 2011, por
exemplo, após o fracasso da crítica do romance O prédio, o tédio e o menino cego, Nazarian
escreve em seu blog sobre o debate entre Álcir Pécora e Beatriz Resende. O escritor posiciona
que a visão de Pécora é elitista e excluí a dificuldade real de um escritor se legitimar em um país
que não tem o hábito de leitura. No entanto, o seu texto é focado no comentário de Resende,
afinal, apesar de afirmar que, no início da carreira, preocupava-se mais com a recepção e agora
estava investindo em um universo diferente, com referências da cultura pop, Nazarian questiona
se o pop é necessariamente juvenil. Ao mesmo tempo em que quer fazer literatura com
referências da cultura pop, Nazarian não se afirma como escritor do entretenimento puro, se diz
um pop diferente. Ele também não tem a pretensão de fazer literatura para academia. Várias
vezes, Nazarian afirmou que gostaria de provar que é capaz de fazer um romance adulto que use
o pop e o terror, lançando Biofobia, e atuando como actante nesta rede.
O último actante é o livro. Os livros são os mediadores não-humanos dessa rede. Os
livros possibilitam interpretações, discussões, contradições e até classificações. Os livros de
Nazarian trazem referências da cultura pop, do terror e do suspense. Em Olívio há o universo

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274
urbano e jovem da noite e das drogas no universo urbano e jovem. Feriado de mim mesmo usa
de uma série de produtos e marcas para enclausurar ainda mais um homem paranoico.
Mastigando Humanos, protagonizado por um jacaré inspirado no filme Pânico no lago, fala dos
lixos, dos doces e dos sintéticos jogados nos esgotos. Pornofantasma (2011) traz zumbies,
fantasmas e vampiros. E até Biofobia trabalha com diversas referências e da literatura, de
Suassuna ao Exorcista.
No entanto, esses romances diferenciam-se de produtos que apenas buscam uma
narrativa para vender para massa mainstream, inserida na lógica do descarte e da venda
incessante de produtos. São livros que transitam no lado B da mídia de massa. Inserem-se uma
cultura de nicho, que alcança quantidades de leitores, principalmente jovens, mas não o
suficiente para gerar lucros exorbitantes. Nas obras de Nazarian, existe um trânsito entre o
espaço da cultura de massa e a cultura acadêmica erudita. As culturas coexistem e dialogam no
mesmo patamar, sem construção de hierarquias, sem reafirmar dicotomias históricas.
O uso desses elementos é crítico. Flagram as tensões do mundo de consumo e dos
sujeitos através das referências à música indie, dos filmes de zumbie e da Disney. Os textos
utilizam dos elementos da indústria cultural para falar deles, mas essa fala acontece em
diferença. Tritura-se a cultura de consumo para produzir também cultura de consumo, mas com
um twist, uma subversão, um olhar enviesado sobre ela. Nesse ponto, esses livros podem sim ser
pensados como pop e, não necessariamente juvenis, eles tocam em ambos desses universos, mas
tocam com um tom irônico que se afastam de uma leitura ingênua. Os livros de Nazarian
produzem diversos agenciamentos e estão no entre-lugar, no magma da classificação literária.
Seus romances estão nesses espaços de territorialização e desterritorialização contínuas. São
rizomáticos.
A obra de Nazarian é literatura, é arte, talvez a não canônica, mas outra forma, uma
forma magmática. E, talvez por isso, seja difícil estabelecer uma classificação para sua ficção,
porque a arte busca romper com as estabilizações e desestruturar as coisas ao seu redor.
Venturini diz que os mediadores buscam estabilizar as coisas e são os conflitos entre vozes
diferentes que geram as controvérsias, que em algum momento serão transformadas em caixas-
pretas. Talvez a literatura e a arte sejam esse espaço que o magma não se solidifica e o sentido
final nunca é á alcançado. E, de tempos em tempos, transborda, gerando cada vez mais
controvérsias, pois a cada leitura transforma o leitor, o autor, o crítico e a própria literatura.

REFERÊNCIAS

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofreniaVol.1.


Traduçãode Aurélio Guerra e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed. 24, 1995.

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275
LIPOVESSTSY, Gilles. SERROY, Jean. A Tela Global: Mídias Culturais e Cinema na era
hipermoderna. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: Sulina, 2009.

LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-rede. Tradução de


Gilson César Cardoso de Souza. Salvador: EDUFBA/EDUSC, 2012.

LEMOS, André. A Comunicação das Coisas: Teoria ator-rede e cibercultura. São Paulo:
Annablume, 2013.

NAZARIAN, Santiago. A morte sem nome. São Paulo: Planeta, 2004.

NAZARIAN, Santiago. Biofobia. São Paulo: Record, 2014.

NAZARIAN, Santiago. Feriado de mim mesmo. São Paulo: Planeta, 2005.

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NAZARIAN, Santiafo. O prédio, o tédio e o menino cego. São Paulo: Record, 2009.

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PÉCORA, Álcir; RESENDE, Beatriz. Ficção, compradrio e as tias. Disponível em:


< http://www.revistaserrote.com.br/2011/06/ficcao-compadrio-e-as-tias-%E2%80%93-beatriz-
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PÉCORA, Alcir. O nonsense preguiçoso de Santiago Nazarian. O Estadão, São Paulo, 01 de


Julho de 2007. Cultura, p.31.

RESENDE, Beatriz. Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio de


Janeiro: Casa da Palavra/ Biblioteca Nacional, 2008.

Schollhammer, Erik Karl. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2009.

SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

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VENTURINI, T. Diving in magma: how to explore controversies with actor-network theory.
258-273. In Public Understanding of Science 19 (3): 258. Disponível em <
http://pus;sagepub.com/content/19/3/258. >. Acesso em 17 set. 2014.

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277
Cibercultura e subjetividade: algumas reflexões

Edson Santos de Oliveira


UFMG/EBAP

Resumo:
O objetivo deste artigo é apostar na possibilidade de uma convivência possível entre a
realidade e o mundo virtual sem perder de vista o sujeito. Atualmente assistimos a
questionamentos de alguns pensadores sobre a virtualidade, como Manuel Castells, Paul
Virilio e Jean Baudrillard, os quais alegam que ela poria em risco as relações sociais.
No entanto encontramos defensores do ciberespaço como Pierre Lévy e Michel
Maffesoli. Esses pensadores estão em sintonia com as propostas dos filósofos Gilles
Deleuze e Félix Guattari. O primeiro propõe a noção de dobra e o segundo a de máquina
como mediadores para entender o acoplamento do virtual com o real, criando um novo
conceito de subjetividade.

Palavras-chave: subjetividade, virtual, real, dobra, máquina.

A cibercultura é marcada pela ―convivência das mídias‖, o que envolve uma


circulação tremenda da informação que cresce assustadoramente ano a ano, levando a
questionamentos sobre a noção do que seja real e virtual, sujeito e objeto. De um lado,
encontramos pensadores que defendem ardorosamente o universo cibercultural,
propondo uma visão de sujeito fora dos padrões cartesianos. De outro, nos deparamos
com teóricos que questionam o avanço do mundo digital como uma possível ameaça às
relações sociais.
Lúcia Santaella, citando Michael Heim, destaca três reações básicas à ciber-
realidade (SANTAELLA, 2003, p.29). Pertencem à primeira reação os ―realistas
ingênuos‖, que acreditam ser a realidade detectada pela experiência. À segunda se
encaixam os ―idealistas da rede‖, que creem que o universo virtual revolucionou a
evolução humana, afetando todos os setores culturais, propondo nova visão de
subjetividade e de socialidade. Afirma Heim, segundo a mesma autora: ―Enquanto o
idealista avança com otimismo sem reservas, o realista pisa para trás movido pelo
desejo de nos assentar fora da tecnologia‖ (HEIM, apud SANTAELLA, 2003, p. 29). À
terceira reação se enquadram os céticos, que deixam acontecer, sempre duvidando do
avanço tecnológico. Conforme Michael Heim, nenhuma dessas reações é suficiente. Ele
propõe então o ―realismo virtual‖, uma posição dialética entre o ―idealismo da rede‖ e o

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―realismo ingênuo‖: ―O realismo virtual vai ao encontro do destino sem ficar cego às
perdas que o progresso traz‖(HEIM, apud SANTAELLA, 2003, p. 29).
Vamos destacar a seguir duas visões opostas dacibercultura: de um lado, Pierre
Lévy e Maffesoli, que a defendem; de outro Manuel Castells, Jean Baudrillard e Paul
Virilio, que a questionam. A partir daí, lançaremos mão do conceito de dobra em Gilles
Deleuze e de máquina e subjetividade em Félix Guattari. Esses autores tentam substituir
a visão clássica de subjetividade, centrada na ideia de agência e propõem a noção de
acoplamento do sujeito ao objeto, como detalharemos no final deste trabalho.
Manuel Castells faz uma diferença entre sociedade de informação e sociedade
informacional. Segundo ele, a informação foi fundamental em todas as sociedades
possibilitando a conexão de laços afetivos, sociais e econômicos. Já na sociedade
informacional, estribada no poder tecnológico, a informação está a serviço da
produtividade, possibilitando a exclusão (CASTELLS, 1999, p.64). Haveria assim ―uma
dissolução de identidades compartilhadas, sinônimo da sociedade como sistema social
relevante‖ (CASTELLS, 2013, p.418). No entanto, o mesmo autor percebe que nos
últimos anos estão surgindo identidades de resistência, capazes de se transformarem em
identidades de projeto, visando a uma mudança da sociedade (CASTELLS, 1999,
p.420). Como se vê, não há um consenso entre os especialistas sobre a dissociação ou
interação social promovida pela internet. Uma das causas da falta de acordo se deve à
dificuldade de perceber que atualmente as diferenças entre real e virtual estão cada vez
mais tênues. Como afirma André Lemos, ―Longe de ser uma ilusão ou um universo
oposto ao real, o virtual [...] incorpora e está ancorado em sensações reais. O virtual
não é oposto ao real‖ (LEMOS, 2015, p. 161). Poderíamos acrescentar que o virtual
coexiste com a realidade. O autor afirma ainda que não só o virtual nos estranha, mas
também o real:

Podemos dizer que a realidade é um consenso mais ou menos estável,


produto de virtualizações e atualizações sucessivas. Não é só a ideia de
virtual que é estranha, mas como mostra J. Larnier, a própria ideia de
realidade também o é (LEMOS, 2015, p. 162).

Para Jean Baudrillard, no mundo da virtualidade, há uma desarticulação do


social e um esvaziamento do real, uma vez que a imagem antecede a realidade. O que há
entre o homem e os media, segundo esse pesquisador, é uma simulação de interação:
―Assim, os media são produtores não da socialização, mas do seu contrário, da implosão

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

279
do social nas massas‖ (BAUDRILLARD, 1991, p. 105). Essa proposta é questionada
por vários pensadores, dentre eles, Murphy:

O que Baudrillard visivelmente esqueceu é que a técnica [...] não afeta os


indivíduos de maneira causal. Dito de outra forma, um fenômeno não tem
nunca um impacto direto sobre os indivíduos, e isso porque a imaginação é
indissociável da realidade [...] a realidade é apenas uma interpretação que
dura (MURPHY apud LEMOS, 2015, p. 75).

Paul Virilio caminha na direção de Baudrillard ao destacar que na relação com o


virtual somente a informação é transportada, mas não as sensações, havendo uma
extinção do sujeito com ―o desaparecimento da consciência como percepção direta dos
fenômenos que nos informaram sobre nossa própria existência‖ (VIRILIO, 1989, p.52).
Numa perspectiva diametralmente oposta à de Baudrillard e Virilio, Michel
Maffesoli aposta na socialidade como traço da sociedade pós-moderna, diferenciando
esse vocábulo da palavra sociabilidade. O conceito de indivíduo, no sentido clássico da
modernidade, estaria se transformando na noção de tribo, no mundo contemporâneo.
Maffesoli entende por tribo os grupos de indivíduos movidos por interesses comuns
num espaço determinado, principalmente o urbano, incluindo o virtual, com códigos
próprios (MAFFESOLI, 1987). Se nas sociedades modernas predominava a
sociabilidade, marcada pela valorização da tradição, pelos engajamentos políticos fixos,
pelo sentimento de pertencimento a classes sociais, na sociedade pós-moderna, na
vivência da socialidade, via tribo, há uma ênfase no presente caótico, politeísta,
realçando o efêmero, o poder descentralizado. Estamos diante não mais de uma
unidade, mas de uma unicidade, ―uma união holística, com um processo em que
elementos dos mais diversos agem em sinergia, dentro de uma mesma forma formante‖
(MAFFESOLI apud LEMOS, 2015, p.84- 85).
A noção de virtual, na abordagem de Pierre Lévy, pode nos ajudar a entender a
cibercultura num ângulo diferente daqueles teóricos resistentes às novas tecnologias.
Segundo Lévy, o virtual deve ser enfocado como potência e não como ato. Ele não se
opõe ao real, mas ao atual. Na atualização, um problema pode ser solucionado. A
atualização supõe invenção, troca. O virtual não se opõe ao real, mas coexiste com ele
(LÉVY, 2003, p.14). Conforme Lévy, o virtual, sendo enfocado como potência, traz
possibilidade de se tornar atual. Ele é uma espécie de vazio estrutural que possibilita o
movimento. Desse modo, o virtual, entendido pelo pensador francês como algo em

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

280
constante atualização, põe em xeque a identidade clássica, baseada na visão centrada do
ser como presença. A virtualização possibilita uma multiplicação do corpo, ampliando
o mundo sensível, permitindo que esse ―corpo se encontre enquanto matéria, em
movimento com os corpos-sujeitos do e no ciberespaço‖ (LEMOS, 2009, p. 30).
A partir das propostas de Lévy e de Maffesoli, é possível pensar numa
socialidade do virtual, sem deixar de lado o sujeito. A concepção clássica de sujeito,
proposta por Descartes e entendida como fonte de ação, tem sido questionada por vários
autores. Rosana de Oliveira, apoiada em Pierre Lévy, Deleuze e Guattari, tenta
demonstrar que há um enfoque redutor do conceito de agência. A autora defende um
abandono desse conceito, que sempre esteve relacionado estreitamente ao humano. Ela
advoga a tese ―dos híbridos, dos coletivos sociotécnicos e das máquinas entendidas
como acoplamentos heterogêneos que produzem efeitos‖ (OLIVEIRA, 2005, p. 56-59).
Essa noção poderia ser ampliada também às máquinas, que teriam algo de subjetivação.
A mesma autora, apoiada em Guattari (GUATTARI, 1992, p. 29), afirma que a
subjetividade deve ser entendida como um processo, uma construção de si englobando
não só as coletividades humanas, mas também as tecnológicas. Dessa forma, se a
sensibilidade humana é afetada pelas máquinas de informação, a subjetividade não pode
descartar o maquínico .
Pierre Lévy apresenta a noção de ator para mostrar a relação híbrida entre
humanos e objetos (LÉVY, 2003). Ator, para o pensador francês, não deve ser
entendido, na linha clássica, como fonte de ação, mas como signo do heterogêneo, pela
sua mistura de humano e não humano. Desse modo, a noção de ator pode ser tanto o
humano como a máquina. Assim, o conceito de máquina não deve ser entendido pelo
que ela é, mas pelo que faz .
Nessa mesma linha, Oliveira, na esteira de Bruno Latour, tenta romper com a
relação entre objetos e sujeitos criando a expressão ―quase-objetos‖ e ―quase-sujeitos‖
(OLIVEIRA, 2005, p. 57-58). Segundo a pesquisadora, o sujeito passa a ser pensado
como um espaço de montagem contínua, como um processo de subjetivação. Torna-se
um artefato em constante engendramento, mas que não deixa de ter materialidade e
capacidade de agenciamento (OLIVEIRA, 2005, p. 58).
Gilles Deleuze entende a subjetivação como um processo, um dentro como
―dobra do fora‖. Rompendo com a visão cartesiana, presa a uma anterioridade do

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

281
sujeito, o filósofo francês propõe o plano da imanência, um ―campo transcendental
impessoal‖, marcado por singularidades. Comentando sobre a dobra deluziana, afirma
Neves da Silva:

A dobra deleuziana é a curvatura ou a inflexão destas linhas infinitamente


móveis que percorrem o plano da imanência cuja superfície é povoada por
singularidades anônimas e nômades. A dobra exprime a desaceleração deste
movimento infinito, produzindo a convergência de singularidades em um
dado momento, criando assim um dentro que é coextensivo ao fora, e que é a
condição para que um mundo comece. A dobra é, portanto, a expressão de
um mundo possível (DA SILVA, 2004, p. 06).

Assim, a noção de dobra em Deleuze rompe com o dualismo sujeito e objeto.


Pierre Lévy lança mão dessa proposta associando-a à virtualização e nomeando-a de
―efeito Moebius‖:

Além da desterritorialização, um outro caráter é frequentemente associado à


virtualização: a passagem do interior ao exterior e do exterior ao interior.
Esse ―efeito Moebius‖ declina-se em vários registros: o das relações entre
privado e público, próprio e comum, subjetivo e objetivo, mapa e território,
autor e leitor (LÉVY, 2003, p. 10, destaque nosso).

Finalizando, a proposta de Deleuze, com o conceito de dobra, enfocado como a


―expressão de um mundo possível‖, excluindo a relação maniqueísta fora e dentro
(SILVA, 2004, p. 06) dialoga com a noção de sujeito como ―espaço de montagem
contínua‖(OLIVEIRA, apud LATOUR, 2008, p. 57-58), permitindo entender que a
máquina, enfocada como acoplamento, não extingue o humano. Ela é, no dizer de
Latour, um ―quase sujeito‖. Esses conceitos nos levam a uma nova relação do real com
o virtual.
Voltando ao início de nosso artigo, podemos concluir que tanto os ―realistas
ingênuos‖, quanto os ―idealistas da rede‖ ou mesmo os céticos da cibercultura,
enumerados por Michael Heim, podem encontrar uma defesa de seus pontos de vista.
Talvez o melhor caminho seja mesmo aquele proposto por Heim: o meio termo do
―realismo virtual‖ e que nos faz lembrar o velho bordão latino:―Virtus in medium est‖,
a virtude está no meio. Virtude, acrescentamos, que não deve ser entendida apenas
como bom senso, mas comovirtus. Ressignificando esse conceito, a virtus, deve ser
enfocada no sentido filosófico de potência, isto é, aquilo que está no meio, já que,
como afirma Pierre Lévy, ―o virtual tende a atualizar-se, sem ter passado no entanto à
concretização efetiva ou formal‖ (LÉVY, 2003, p. 04).

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

282
Referências

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio D‘Água Editores,


1991.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. 8ª ed. Trad. deKlaussBrandini Gerhardt.


São Paulo: Editora Paz e Terra, 2013.

DELEUZE, Gilles. O Atual e o virtual. In: ALLIEZ, Éric. Deleuze: filosofia


virtual.Trad. de Heloisa B. S. Rocha. São Paulo: Editora 34, 1996.

DA SILVA, Rosane Neves. A dobra deleuziana: políticas de subjetivação. Disponível


em: www. ichf.uff.br/publicações/revista-psi-artigos/2004-1-cap4.pdf

GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Trad. Ana L. de Oliveira


& Lícia C. Leão. São Paulo: Editora 34, 1992/2000.

HEIM, Michael. The cyberspace dialectic. In: The digital dialectic: new essays on
new media. Peter Lunenfeld (ed.). Cambridge, MA: The MIT Press, 1999, p. 25-45.

LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica.


Tradução de Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34. 1991/1994.

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Janeiro, Curso de Pós-Graduação/ Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e
Sociedade- Universidade Veiga de Almeida (UVA), 2009 [Dissertação de Mestrado].

LEMOS, André.Cibercultura: Tecnologia e vida social na cultura contemporânea. 7ª


ed. Porto Alegre: Sulina, 2015.

LÉVY, Pierre. O que é o virtual ?Trad. de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2003.

LÉVY, Pierre. Cibertcultura. Trad. de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34,
1999.

LÉVY, Pierre. Plissê fractal ou como as máquinas de Guattari podem nos ajudar a
pensar o transcendental hoje. Internet, disponível em:
<http://empresa.portoweb.com.br/pierre Lévy/plisssefractal.html>. Acesso em: 5 agosto
2003.

MAFFESOLI, M. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de


massa. Trad. de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense, 1987.

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Moyensd‘yéchapper. In: Diogène, n. 162. Avril-juin, 1993. Paris: Galimard, p. 29.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

283
OLIVEIRA, Rosana Medeiros de. Tecnologia e subjetivação: a questão da agência.
Psicologia e Sociedade. Porto Alegre: UFRGS.17(01:17-28; jan/abr. 2005.

SANTAELLA, Lúcia. Da cultura das mídias à cibercultura: o pós-advento do pós-


humano. Revista Famecos. Porto Alegre, n. 22, dez, 2003, p. 23-32.

VIRILIO, Paul. Esthétique de la Disparition. Paris: Livre de Poche, Galilée, 1989.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

284
Dos arcos ao subterrâneo de um viaduto:
Cidade ocupada pela palavra e pelo corpo

Bruna Simões de Albuquerque


Ana Lydia Santiago

Resumo
O trabalho tem como objeto de pesquisa a produção linguageira dos jovens e aquilo que
há de invenção na relação de cada jovem com a linguagem. Tomamos o jovem como
um artista que trabalha a matéria linguagem em seus encontros contingentes pelos
caminhos urbanos. O que é produzido de novo na cidade que ele constrói para si ao
ocupá-la com a palavra e com o corpo? Entendemos que há uma cidade íntima que se
conecta com uma cidade compartilhada justamente por algum tipo de linguagem
particular (música, literatura, poesia, etc.). Veremos que, ao buscar novas formas de
vivenciar a cidade, os jovens atualizaram o uso do viaduto Santa Tereza: se antes
Drummond e os escritores subiam os arcos, agora os jovens ocupam os subterrâneos do
viaduto, transformando e desviando o uso desse espaço. Os jovens atualizaram o uso do
viaduto a partir de algo que já estava lá em potência, virtualmente, no ato dos escritores
que o escalaram em sua juventude. Dentro desse contexto, cada jovem entrevistado pela
pesquisa entra com sua presença viva na cidade modificando-a e transformando a si
mesmo a partir dos encontros contingentes potencializados pela condição digital da vida
atual.

Palavras-chave: jovem; linguagem; cidade; psicanálise; virtual.

A linguagem e o Outro

Em nossa pesquisa, lançamos o olhar para a produção linguageira dos jovens e


interrogamos o que eles inventam com sua presença viva na cidade. Tomamos o jovem
como um artista que trabalha a matéria linguagem em seus percursos e encontros
urbanos. Ao longo da pesquisa,94 tentamos costurar elementos que possam apontar para
uma definição (sempre indefinida) de linguagem, menos pelo campo da linguística,
mais pela psicanálise, tocada pela contingência e pela arte.
A linguagem é concebida em psicanálise justamente a partir daquilo que está
para além da própria linguagem tomada em seu sentido lógico:

94
Pesquisa de Doutorado em curso no Programa de Pós-Graduação em Educação: Conhecimento e
Inclusão Social (Faculdade de Educação, UFMG). Orientação: Ana Lydia Santiago (coautora).
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

285
O que começou com a descoberta de Freud foi uma outra abordagem da
linguagem, uma outra abordagem da língua cujo sentido só veio à luz com
sua retomada por Lacan. Dizer mais do que se sabe, não saber o que se diz,
dizer outra coisa do que o que se diz, falar para nada dizer, não são mais, no
campo freudiano, as falhas da língua que justificam a criação das línguas
formais. São propriedades inelimináveis e positivas do ato de falar.
Psicanálise e lógica – uma se funda sobre o que a outra elimina. A análise
encontra seu bem nas lixeiras da lógica. Ou, ainda, a análise desencadeia o
que a lógica domestica. (MILLER, 1996, p. 62)

A psicanálise coloca em evidência uma linguagem concebida a partir das


irrupções do inconsciente, ou seja, uma linguagem entendida a partir do inconsciente.
Freud (1905) voltou nosso olhar para os esquecimentos, os lapsos, os atos falhos,
justamente para o que parece ―falhar‖ na linguagem, aquilo que permanece como mal-
entendido.

O chiste e sua relação com o inconsciente continua a ser a obra mais


incontestável, porque a mais transparente, em que o efeito do inconsciente
nos é demonstrado até os confins de sua fineza; e a face que ele nos revela é
justamente a do espírito, da espirituosidade, na ambiguidade que lhe confere
a linguagem... (LACAN, 1953, p.271)

Num primeiro momento do ensino lacaniano, a fala é sempre articulada ao Outro


e configura-se a partir de uma dinâmica de querer-dizer ao Outro ou a partir dele, ainda
que falar não implique saber o que se diz (MILLER, 2012). Para Lacan (1953),
buscamos na fala a resposta do outro, pois o sujeito constitui-se nessa pergunta.

O que busco na fala é a resposta do outro. O que me constitui como sujeito é


minha pergunta. Para me fazer reconhecer pelo outro, só profiro aquilo que
foi com vistas ao que será. Para encontrá-lo, chamo-o por um nome que ele
deve assumir ou recusar para me responder. (LACAN, 1953, p.301)

É o Outro que pode nos ensinar o que temos a dizer, é do Outro que
apreendemos aquilo que somos (MILLER, 1988), num esforço contínuo ao longo da
vida entre nossos outros.
Isso que tentamos nomear nesta pesquisa como linguagem pode tomar, para cada
jovem, a forma da música, da poesia, da literatura, do cinema ou mesmo do ato de
ocupar um espaço com seu corpo para manifestar (ocupação ou poderíamos mesmo
dizer ―ocorpoação‖). É a partir de tais definições que formulamos a pergunta sobre o
que há de invenção na relação de cada jovem com a linguagem. O que é produzido de
novo (novamente?) na cidade que ele constrói para si ao ocupá-la com a palavra e com o
corpo?

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286
Viaduto Atualizado

Pensamos que para cada habitante há uma cidade particular, um mapa


sentimental recortado por sua história de vida, uma cidade construída por seus passos no
urbano e inventada por sua imaginação (KEHL, 2015). Entendemos que essa cidade
íntima se conecta com uma cidade compartilhada justamente por algum tipo de
linguagem particular (música, literatura, poesia, etc.). É a arte, o artista, e a fineza da
palavra que fazem a conexão entre a cidade de cada um e a cidade compartilhada por
todos os cidadãos.
Para cada jovem uma cidade se inventa, e essa possível invenção resulta sempre
de um entrelaçamento da tradição com o novo. Cada geração que anda por um espaço
urbano introduz aí sua forma de viver a cidade, sua maneira de estar com o outro, de
estar no campo do Outro. Andar pela cidade é finalmente uma forma de escrita,
inscrever seu corpo, habitar lugares e modificar o próprio espaço, vasculhar o corpo da
cidade. Antes dos jovens que entrevistamos nesta pesquisa, várias gerações de escritores
e poetas inscreveram lugares na cartografia literária de Belo Horizonte. Seus atos e seus
lugares preferidos escreveram uma outra cidade, uma cidade como linguagem própria
(MARQUES, 2015). Assim, há uma linguagem própria da cidade, uma linguagem que
resulta de seu passado e da história calada de suas populações (KEHL, 2015). Ao
escalar o viaduto Santa Tereza, Carlos Drummond de Andrade constrói de modo
literário Belo Horizonte, e marca de maneira perene a relação entre a experiência urbana
e a literatura moderna (MARQUES, 2015). Muitos foram os poemas, contos e crônicas
surgidos da relação dos jovens escritores com o espaço urbano, produções que ajudaram
a construir o imaginário de uma cidade para seus moradores.
Na Belo Horizonte de ontem, jovens escritores deram uma resposta da literatura
à cidade que encontraram no tempo de sua juventude. Escalaram arcos em sinal de
protesto, produziram escritos que denunciaram como uma cidade recém-nascida podia
se mostrar tão ultrapassada no uso e compartilhamento de seus espaços. Drummond,
Pedro Nava e Cyro dos Anjos, em seu desatino juvenil, fizeram parte do movimento de
ocupação do espaço cultural da Belo Horizonte dos anos 20 (MARQUES, 2015): a rua
da Bahia nunca mais foi a mesma.

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287
O viaduto Santa Tereza sofreu uma potente atualização pelos jovens de hoje. Ele se
tornou ponto de encontro, de ação e de manifestação dos jovens que se preocupam com
o uso do espaço público na cidade em que vivem.

A arte sempre inspirou juventudes. Hoje está pelo Viaduto a geração de


jovens que ocupa as ruas para reclamar seus direitos. Buscam novas formas
de vivenciar a cidade e a sociabilidade. São avessos a políticas higienistas e
têm conduta libertária. Junto à Praça da Estação, o Viaduto acabou se
tornando espaço privilegiado para a reunião dessa moçada. Promoveram
encontros que fizeram época, como o Duelo de MCs, a Praia da Estação e
uma infinidade de movimentos sociais. (PERDIGÃO, 2016, p.12-13)

Ao buscarem novas formas de vivenciar a cidade, os jovens atualizaram o uso do


viaduto: se antes Drummond e os escritores subiam os arcos, agora os jovens ocupam os
subterrâneos do viaduto, tranformando e desviando o uso desse espaço:

No cotidiano, a atualização ocorre no momento em que uma estrutura física


espacial é apropriada para responder a uma necessidade imediata de uso. A
atualização, portanto, é uma ação interpretativa e criativa, pois se baseia em
condições e elementos pré-existentes, e produz novas situações. A
atualização vista como uso interpretativo de uma estrutura física espacial é
essencialmente um desvio vivido em nível cotidiano. É uma manifestação
inventiva condicionada pela materialidade das estruturas reais que já existem
em um determinado tempo e espaço. (CASTRO, 2016, p.94)

Os jovens desceram os arcos escalados pelos escritores, numa descida radical até
o subsolo, fizeram viver e pulsar a cidade a partir ―debaixo‖. O movimento feito pelos
jovens atualiza um espaço que deixa de ser apenas uma via de passagem para tornar-se
palco de discussão acerca do uso dos espaços públicos em Belo Horizonte
(PERDIGÃO, 2016).
Pensar a dimensão da atualização dos espaços no urbano nos remete ao conceito
de virtual tal como concebido por Lévy (1995). Ou seja, uma ideia de virtualidade que
não se restringe à dimensão do digital e não se confunde com a ideia da não
materialidade, mas que toca a dimensão de algo que existe em potência e que pode advir
a partir de uma atualização. Assim, a atualização se conecta com a ideia de ato
inventivo, uma criação produzida a partir das circunstâncias do momento atual
(CASTRO, 2016). Os jovens atualizaram o uso do viaduto Santa Tereza a partir de algo
que já estava em potência, virtualmente, no ato dos escritores que escalaram o viaduto
em sua juventude. A ideia de invenção estaria assim ligada ao encontro entre a tradição
e o novo, ou seja, entre aquilo que foi novo em um dado momento histórico e geracional
com aquilo que se mostra novo nos tempos atuais.
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288
O viaduto e os encontros contingentes

Ao longo do processo da pesquisa de doutorado, realizamos dois tipos de


entrevistas: primeiro escutamos jovens que têm uma relação particular com a
linguagem; entrevistamos também escritores reconhecidos na cidade com o intuito de
construir um conceito de ―invenção‖ que pudesse servir como chave de leitura para a
análise das entrevistas com os jovens. A fala dos escritores ganhou, entretanto, um
contorno inesperado quando as entrevistas se tornaram um reencontro com o
adolescente ou jovem que o escritor foi. Foi assim que as entrevistas com os jovens e
com os escritores se entrelaçaram, e nos reenviaram, cada uma a seu modo, ao lugar de
uma linguagem particular no percurso de um jovem.
Notamos que os escritores reconhecidos não conseguiram identificar o que há de
novo na produção linguageira dos jovens artistas contemporâneos. Os escritores pensam
que apenas será possível mapear tal dimensão mais tarde, no après-coup, quando não
pertencermos mais a esse tempo. Entretanto, nos raros momentos em que conseguiam
indicar algo novo, isso se apresentava referido à internet, e os efeitos do mundo virtual
apareciam como índice dessa novidade. Os escritores destacaram a potência de
articulação na internet. Como exemplo, citaram escritores muito jovens, adolescentes,
que se tornam reconhecidos e admirados por grandes escritores consagrados, que
arrastam multidões para saraus de poesia ou lançamentos de livros e que possuem
milhares de seguidores nas redes sociais. Outra dimensão contemporânea citada como
efeito da internet seria a ideia da produção do artista pelo público, ou seja, quem faz o
artista é o público e não tanto a consistência de uma obra. No contexto digital, o público
é não apenas receptor, mas produtor e emissor de conteúdo (FOGEL & PATINO,
2013). Assim, uma vez que o público gosta e compartilha, determinado jovem torna-se
uma celebridade, um artista, independentemente de ter ou não uma obra reconhecida.
A novidade da rede social e do espaco virtual observada pelos escritores
reconhecidos converge com as entrevistas realizadas com adolescentes e jovens. A
seguir, apresentamos dois fragmentos de entrevistas com jovens nas quais o viaduto
Santa Tereza e os encontros contingentes na cidade, potencializados pela internet,
desempenharam papel fundamental.

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289
O meu sonho é meu mundo

Ao falar na entrevista sobre como o rap entrou em sua vida, uma adolescente que
participa do duelo de MCs contou que foi um tio que ―me aplicou um dos primeiros
sons, tirando o Racionais que é o que a gente escuta sempre né, na quebrada.‖. O som
que o tio aplicou foi o da Flora Matos (2017), segundo a jovem: ―ele falou, escuta essa
mina, é um som que chama ‗Mundo pequeno‘, que é assim bem, bem foda, que foi o
que me fisgou assim, eu, opa, essa mina é foda‖. A fala captada a partir da indicação do
tio ―essa mina é foda‖ ressoou no corpo da adolescente que começou a pesquisar as
músicas da cantora na internet e concluiu ―essa mina é da hora‖. A adolescente conta
que, a partir das buscas orientadas pela sugestão do tio, o ―youtube vai relacionando as
coisas‖, vai propondo vídeos semelhantes; e foi assim que ela chegou nos duelos de
MCs: ―como é que esse cara faz isso véio, na hora, ao vivo‖. Em um momento da
entrevista, ela canta a seguinte parte da música apresentada pelo tio: ―o mundo é tão
pequeno, pras vontades que eu venho tendo, nem eu entendo, todo dia eu me supreendo,
parece que eu nem tô mas o fato é que eu tô te vendo, e que tudo...‖ (MATOS, 2017).
Intervenho dizendo que a música parece ter a ver com o momento da
adolescência, ao que ela responde com a seguinte definição de adolescência: ―É porque
a gente sonha demais, a gente quer demais e parece que o mundo fica pequeno diante
disso, sacou? Porque o mundo é só o mundo, o meu sonho é o meu mundo. Tipo isso‖.
Nesse fragmento da entrevista, vemos como as diversas redes e suas conexões (no caso
youtube) fazem uma colisão a partir de encontros contingentes (o tio e sua fala ―essa
mina é foda‖) na vida de uma jovem, e produzem efeitos em seu corpo e em seu destino.
A adolescente se torna uma MC reconhecida em sua cidade e passa inclusive a circular
pelo Brasil, rimando. Podemos dizer que a internet potencializa algo desse encontro
contingente com a fala do tio, expandindo e ampliando as possibilidades nos múltiplos
percursos digitais. A jovem parece ter se tornado uma mina foda no contexto dos duelos
de MCs.
Para uma outra jovem foi o movimento da ocupação como forma de manifestar
que funcionou como modo de fazer laço, de ser reconhecida e de se abrir para a
diversidade. A sua entrada nos movimentos de ocupação também se deu a partir de um
encontro contigente no centro da cidade, marcado pelo potencial de contato e

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

290
articulação das redes sociais e pelo papel do viaduto Santa Tereza nas manifestações de
2013.
Na entrevista, a jovem ocupante relata o encontro com uma pessoa adulta que se
tornou posteriormente sua professora de desenho, uma referência de vida e que foi
fundamental para que ela pudesse ―colocar a cara assim e sair nas ruas para manifestar‖.
Sobre esse encontro, ela explica a seguinte cena. Ela saía de uma loja com uma amiga,
quando um homem mexeu com elas. A futura professora ouviu e se solidarizou com as
duas, ao considerar um absurdo tal atitude. A cena ocorreu nas manifestações de junho
de 2013, a professora se dirigia para o viaduto Santa Tereza para manifestar e convidou-
as para participar. A jovem respondeu que naquele momento não poderia, pois estava
tarde e precisava ir para casa, mas trocaram facebook e mantiveram contato.

Aí a gente começou a conversar a partir disso, foi alí naquela descida da


praça da liberdade, sabe? Foi muito legal, aí a gente ficou conversando, aí ela
foi pro viaduto, falou, olha vai ter uma manifestação agora, ah, eu tenho que
ir pra casa, porque tá tarde né, aí ela ―não, beleza, pega meu facebook aí‖ e a
partir disso a gente começou a conversar. E a gente foi, a partir daquilo a
gente pegou o facebook uma da outra e a gente virou amiga.

Nesse encontro, no centro da cidade, a adolescente conheceu alguém que se


dirigia para uma manifestação no viaduto e que teria um papel fundamental em sua vida
ao lhe sugerir que fosse conhecer uma ocupação para mulheres, na qual acabou vivendo
por um tempo. Quando entrevistei a jovem, ela já tinha passado pela experiência de
diversas ocupações e era bastante atuante em uma das ocupações dos secundaristas nas
escolas em 2016. De modo evidente, a ocupação passou a preencher lugar central em
sua vida, lugar de luta, de reconhecimento, de identificação, de abertura para a
diversidade, além de se apresentar como uma saída possível para a dura realidade que
relatou vivenciar na casa de sua família.
A linguagem e a forma que ela pode tomar para cada jovem os reenvia ao
encontro tão singular entre o corpo e a palavra, entre o corpo e o O(o)utro na cidade. Os
jovens participam da construção de um espaço social no qual a comunicação parece
instantânea e sem limites. Sabemos que a conexão permanente, marcada por uma
desordem atualizada em permanência, é uma nova forma de estar no mundo (FOGEL &
PATINO, 2013). Na internet, há efeitos de visibilidade, reconhecimento e mobilização
importantes para jovens artistas e ocupantes. Se por um lado apresentamos a
potencialização que o mundo digital pode operar a partir dos encontros contingentes,

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

291
por outro lado enfatizamos neste trabalho a ideia de virtual como algo em potência e de
atualização do espaço como um ato de invenção do jovem a partir do que foi colocado
pela geração anterior. Cada jovem faz isso a sua maneira e a partir dos encontros
contingentes que têm lugar na cidade a qual constrói para si. Ao construir uma cidade
íntima, é a própria cidade que se modifica e ganha espaços inventados a partir de um
uso desviado.

Referências:

CASTRO, Laura. O uso desviado do espaço. 2016. 135 f. Dissertação (Mestrado em


Arquitetura e Urbanismo) – Escola de Arquitetura, Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte. 2016.

FOGEL, Jean-François; PATINO, Bruno. La condition numérique. Paris: Grasset, 2013.

FREUD, Sigmund. (1905) Os chistes e sua relação com o inconsciente. Rio de Janeiro:
Imago, 1996. (Volume VIII Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud).

KEHL, Maria Rita. Olhar no olho do outro. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 07, p.
22-31, 2015.

LACAN, Jacques. (1953) Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In:


Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 238-324.

LÉVY, Pierre. (1995) O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 1996. (Coleção Trans)

MARQUES, Fabrício. Uma cidade se inventa: Belo Horizonte na visão de seus


escritores. Belo Horizonte: Editora Scriptum, 2015.

MATOS, Flora. O mundo é tão pequeno. Disponível em:


https://www.ouvirmusica.com.br/flora-matos/o-mundo-e-tao-pequeno/. Acesso em 03
de maio de 2017.

MILLER, Jacques-Alain. Matemas I. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.

MILLER, Jacques-Alain. Percurso de Lacan: uma introdução. Rio de Janeiro: Zahar,


1988.

MILLER, Jacques-Alain. O monólogo da aparola. In: Opção Lacaniana online nova


série. Ano 3, n. 9, novembro de 2012.

PERDIGÃO, João. Viaduto Santa Tereza. Belo Horizonte: Conceito, 2016.

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292
O “EU” E O EU VIRTUAL EM UMA PROPOSTA DE REFLEXÃO:
A CONSTRUÇÃO DO PERSONAGEM NOS JOGOS DE VIDEOGAME
E O "EU" PRIMORDIAL

Diego Sabádo95
Marlise A. Bassani96
Zakiee Hage97

Resumo
O trabalho traz uma reflexão acerca da relação entre o "Eu" real e o "Eu" criado
virtualmente nos jogos de vídeo game, através das ferramentas de edição de avatares e
criação de personagens, baseando-se em conceitos da Psicologia Existencial e
fundamentado nas filosofias de Kierkegaard e Heidegger. Levantamos, a partir de
conversas informais, com jogadores regulares, questionamentos e possibilidades acerca
das conexões e discrepâncias entre os indivíduos e seus personagens, buscando elaborar
uma projeto de pesquisa que objetive compreender os significados subjacentes a suas
criações. As hipóteses surgidas apontam para o fato de a criação possuir conexão com
os anseios e desejos do "Eu". A reflexão em torno dos personagens mostra que o corpo,
a face e as características de personalidade dos avatares/personagens criados carregam
semelhanças físicas e psicológicas com seus criadores, e mesmo quando criados com
características opostas, levam sempre elementos do ―Eu‖ primordial, trazendo
possibilidades não reais, ainda que verossímeis, ampliando potencialidades e dando
vazão a modos de ser inviáveis na realidade, mostrando que o corpo virtual e o corpo
real são regidos pela mesma compreensão da corporeidade e personalidade do
indivíduo. O conceito de verossimilhança surge então como o conceito que relaciona o
real e o virtual. A pesquisa a partir deste trabalho prévio abrirá caminhos para a
compreensão do sujeito e de seus projetos existenciais, e possibilitará a ampliação em
um experimento de encontro entre os participantes e seus avatares/personagens,
objetivando o aprofundamento do conhecimento de si e das relações entre o ―Eu‖ real e
o virtual.

Palavras Chave: "Eu" primordial. Corporeidade. Indivíduo. Verossimilhança.


Virtualização.

95
Doutorando - Programa de Estudos Pós Graduados em Psicologia Clínica PUC/SP – E-mail:
diego_lfb@hotmail.com
96
Professora Titular - Programa de Estudos Pós Graduados em Psicologia Clínica, PUC/SP. Doutora em
Psicologia: Psicologia da Educação (PUC/SP) – E-mail: marlise@pucsp.br
97
Mestrando - Programa de Estudos Pós Graduados em Psicologia Clínica PUC/SP – E-mail:
zakieehage@hotmail.com
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293
O “Eu” primordial: o que entendemos por isso?

O que estamos chamando de ―Eu‖ primordial é o mesmo fenômeno que


recebe, em teorias e epistemologias diversas, o nome de: Self, Pessoa, Si-mesmo, Em-
si, Identidade. Martin Heidegger chamou de Ser-aí (Dasein) e Sören Kierkegaard
nomeou de Indivíduo. Mas, ambos, utilizando suas próprias estruturas conceituais e
construções de raciocínio, tentavam pôr luz no mesmo fenômeno: a estrutura fundante
do ente existente que chamamos ser humano, exatamente a estrutura que faz dele um
ente particularizado, único, diferenciado.
O ―Eu‖ primordial corresponde ao que faz de um determinado ser humano
aquele ser humano que ele é e não outro. Não nos interessa neste artigo os diversos
processos que levam à constituição deste ―Eu‖, ou mesmo explanar as teorias e
epistemologias que buscam explicá-lo ou determiná-lo. Apenas assumimos sua
existência como aquilo que diferencia um humano de outro, como aquilo que
particulariza cada sujeito, e ao assumir como verdadeira esta noção, partimos em busca
do modo como este ―Eu‖ se apresenta e se insere na possibilidade de Virtualização,
trazida pelos jogos de videogame.
Para Heidegger (1996) o Ser-aí (modo como ele nomeia a estrutura do ―Eu‖
primordial) é um ser-no-mundo, um ente que existe ―em‖ um mundo, como um ―ser-
junto-a‖ entes diversos deste mundo, e como um ―ser-com‖ outros entes com a mesma
característica deste Ser-aí. Ou seja, cada ―Eu‖ existe em um mundo junto de outros
―Eus‖ e de uma infinidade de outros entes que não são ―Eus‖: coisas em geral e outros
seres vivos.
Este ser-no-mundo possui uma relação tripartida com o próprio mundo,
nomeada pela Existência, pela Faticidade e pela Decadência. Estas estruturas são
compreendidas por Heidegger como co-originárias e fundantes do próprio Ser-aí. Existir
em um mundo se refere constante tornar-se; ser neste mundo fáticamente, aponta para o
caráter fatual das relações, marcadas pela historicidade, pelo contexto sóciocultural e
pelas relações próprias com outros seres; e ser em decadência (Verfallen), mostra
exatamente o caráter de imersão no mundo. Esta imersão, apesar de um modo genuíno
de ser no mundo, precisa ser percebida, compreendida e, de certo modo, superada, se o
―Eu‖ desejar assumir-se enquanto tal.

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294
O Ser-aí necessita tornar-se si mesmo para compreender-se e compreender-
se no mundo. Interessa-nos a percepção de que o ―Eu‖ imerso no mundo precisa pensar,
refletir sobre si mesmo, compreender a si mesmo, para tornar-se de fato o ―Eu‖ que se é.
Entrelaçando a concepção de Heidegger com a filosofia de Kierkegaard, temos nossa
noção deste do tornar-se um indivíduo: aquele que realizou o processo de individuação.
Ser desesperado, para Kierkegaard (2003), é o estado natural de cada ser
humano. Desesperamos por diversas razões e todas elas estão relacionadas com o nosso
―Eu‖. Para o filósofo há: o desespero do finito; o desespero do infinito; desespero da
necessidade e desespero do possível; desespero da consciência e desespero da
inconsciência do ―Eu‖.
Todos estes modos de desesperar indicam que: ou o ―Eu‖ não sabe quem é e
pretende se descobrir; ou não sabe quem é e deseja tornar-se o ―Eu‖ que imagina ser; ou
já sabe que é e pretende fugir de si para se transformar noutro ―Eu‖ que idealiza. E
mais: ou o ―Eu‖ perde-se no infinito, levando seu ―Eu‖ primordial para cada vez mais
longe da realidade material e objetiva do mundo; ou o ―Eu‖ se prende ao finito, nas
coisas ―reais‖ e materiais do mundo, tornando impossível sua transcendência, em
qualquer grau que seja. Trata-se de um jogo de desespero, nas dialéticas do possível e
do necessário ou da consciência ou inconsciência de si mesmo. Tornar-se Indivíduo é
reconhecer em qual destes desesperos o ―Eu‖ se desespera e assumir a si mesmo,
apropriar-se de seu próprio ―Eu‖.
O ―Eu‖ primordial é a estrutura fundante e diferenciadora de cada ser
humano, o que torna cada um o ser humano que é e não outro. Porém, este ―Eu‖
primordial nem sempre é reconhecido como tal: um processo de reconhecimento deste
―Eu‖ passa a ser buscado sempre, a cada nova abordagem do fenômeno. Tornar-se
―Eu‖, autenticar-se, tornar-se autônomo, autêntico, pessoal, são muitos nomes para este
processo. O termo individuação será usado, neste texto, como um processo de
reconhecimento deste ―Eu‖ primordial.
Nosso processo de individuação é entendido como um fenômeno
estruturante dividido didaticamente em quatro momentos co-originários: Descoberta,
Compreensão, Aceitação e Assunção de si mesmo. Cada um destes momentos possui
suas características próprias e suas funções neste individuar-se, neste ser o ―Eu‖
primordial que se é. Descoberta de si refere-se ao momento inicial de percepção da

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295
singularidade. Compreensão de si mesmo, ao momento em que o ser humano começa a
experienciar de forma plena e a tematizar de forma clara, para si mesmo, sua existência
singular. Aceitação de si refere-se ao momento em que, descoberto o ―Eu‖, acolhe a si
mesmo do jeito que é. Assunção de si, por último, é o momento da tomada de decisão,
do decidir-se por si mesmo e por seus projetos. Aquele que assume o ―Eu‖ que é,
descobriu, compreendeu, aceitou a si mesmo. Dizemos então que este sujeito realizou o
processo de individuação.
Trata-se de um processo subjetivo, ou seja, de um processo singular a cada
ser humano, que se estrutura a cada vez a partir das verdades de cada um e para cada
um. O indivíduo é aquele que realizou seu processo de individuação de forma plena, e
que se mantém firme no continuum deste processo, na manutenção permanente de si
mesmo, na permanente descoberta, compreensão, aceitação e assunção de seu ―Eu‖
primordial.

O videogame e a possibilidade de criar mundos do Eu

Os primórdios do videogame estão nos anos 1960 e 1970, com os primeiros


modelos de vídeo jogos a serem criados, mas somente na década de 1980 os vídeos
games ganham seu espaço efetivo no cotidiano das pessoas e desde então crescem cada
vez mais. Os anos 1980 e 1990 foram marcados pelos grandes jogos e pela evolução
arrebatadora das tecnologias.
O século XXI se inicia, para os fãs do videogame, com uma infinidade de
possibilidades, desde os jogos de plataforma (jogos onde o personagem anda na
horizontal e evita obstáculos com saltos e golpes) até os jogos que utilizam o sistema
VR (Virtual Reality).
No videogame é possível controlar o personagem, dar vida às dinâmicas do
enredo. É necessário o roteiro escrito e computadorizado para ser realizado no jogo.
Temos um fenômeno artístico que exige que o público saia da passividade para a
atividade, isso muda a lógica artista-obra-público. É o público que, ativamente, controla
o acontecer da obra, é quem permite que a arte se atualize e aconteça.
A criação de um gênero novo, o de simulação, ao lado dos gêneros de
plataforma, RPG, ação, esportes, luta entre outros, abriu ao mundo dos gamers uma

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296
nova porta. Não havia mais um roteiro pré-definido, uma história a ser contada, um jogo
com início, meio e fim. Os gamers estavam agora diante de um produto sem final, que
permitia que eles simulassem a vida de forma indefinida.
Junto com estes jogos de simulação outra inovação surge no mundo do
videogame: as ferramentas de edição do avatar/personagem permitindo, gradativamente,
que o jogador customizasse o avatar/personagem ao seu modo, dando a ele
características físicas e, por vezes, de personalidade. E é este elemento da construção
dos personagens que nos interessa aqui, pois é aqui que a reflexão acerca do ―Eu‖
primordial se toca com o debate sobre a construção de si mesmo nos vídeo jogos.
Jogos de simulação da vida, como a franquia The Sims, permitem que o
jogador crie um avatar/personagem, e que simule a vida inteira deste personagem ali,
desde o nascimento até a morte. Iremos nomear este fenômeno de: Virtualização da vida
e do ―Eu‖, que consiste no tornar virtual aquilo que existe na realidade.
Outros significados de virtual remontam à noção daquilo que é possível ser,
mas que ainda não se efetivou, nos lembrando da clássica definição aristotélica de Ato e
Potência, apresentada em sua Lógica. O que existe em Ato é o que existe faticamente,
na realidade, que não pode ser negado, o que existe em Potência é o que é possível de
existir.
Neste sentido a noção de virtual como Potência parece não funcionar na
realidade do videogame. O virtual no mundo dos games não pode ficar na esfera do que
não é palpável e que se encontra num plano imaterial como possibilidade, exatamente
porque o virtualizado nos games é aquilo que foi tornado real e que por ter se tornado
efetivamente real exige do jogador ação, reação, vivência. Nosso conceito de
Virtualização precisa ser entendido neste recorte de significado. Jogos de videogame
conquistam um grau de realidade nunca antes experimentado. O que acontece no jogo é
tão real, para alguns jogadores, quanto à própria realidade.
Com os chamados jogos de livre ação e de mundo aberto (jogos onde não há
um enredo principal, e o jogador é livre para criar sua história) as possibilidades
existenciais se desdobram infinitamente. O personagem controlado pelo jogador possui
um corpo (sexo, gênero e características físicas em geral), habilidades específicas,
características de personalidade, em suma, possui uma identidade. Construir um
personagem corresponde à criação de um Eu virtual.

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297
Corporeidade: o corpo “real” e o corpo “virtual” são igualmente corpo

O corpo virtual corpora o mundo virtual do mesmo modo que o corpo real
corpora o mundo. Corre-se virtualmente movendo os dedos na realidade. São os
movimentos do corpo real que realizam as ações no corpo virtual. Os controles
(Joypads, Joysticks, Sensores de Movimento) são o elo entre o corpo real e o virtual,
mas a ligação entre ambos é ainda mais profunda.
O corpo criado virtualmente pode elevar potenciais, permite ações
impossíveis na realidade, tais como voos, saltos e movimentos para além da realidade.
O corpo do ―Eu‖ se encontra no jogo, realizando ações, pulando obstáculos, atirando,
batendo, respondendo aos impulsos dos dedos, dos braços e respondendo ao corpo
físico real. O corpo como essência material do ser humano, como o canal para o existir
físico, ao ser virtualizado, permite ao ser humano novas possibilidades. Ambos são
igualmente corpo, e ambos são o corpo do mesmo ―Eu‖ primordial, ainda que um seja
um corpo material real e o outro seja apenas uma Virtualização.

Identidade: as virtudes e as características dos personagens

Alguns jogos possuem ferramentas tão minuciosamente detalhadas que


permitem atribuir-se características de personalidade a um avatar/personagem. Além de
virtualizar seu corpo o jogador é convidado a virtualizar sua própria identidade: editar
suas características de personalidade; seu próprio ―Eu‖ pode ser reproduzido no jogo, ou
ampliado ou modificado.
Os jogos em questão permitem o diálogo em tempo real entre jogadores, de
diversas partes do mundo; as decisões tomadas pelos avatares/personagens influenciam
no andamento da narrativa, modificam a realidade. Há que se criar um personagem e se
viver como ele dentro daquele mundo. Porém, diferente da realidade, não existem as
responsabilidades para consigo mesmo e para com o outro. As consequências das ações
não definem de todo aquele avatar/personagem, que pode ser apagado e substituído por
outro.

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298
O controle ético das empresas permite, na maioria dos jogos no estilo,
denunciar usuários que descumpram as regras do próprio ou mesmo as regras e leis da
sociedade, banindo dos servidores aqueles personagens que agem de forma errônea.
Mas, em contrapartida, a liberdade nestes jogos é desmedida, e a possibilidade de
experimentação de identidades também. O avatar/personagem pode ser tal e qual a
personalidade do jogador, ou pode ser o oposto, ou mesmo pode ser fruto de uma
criação aleatória. Mas a identidade virtual, aquele Eu virtualizado, só pode existir
porque um jogador real o criou. É neste sentido que interessa-nos saber qual a relação
deste ―Eu‖ primordial com o Eu virtual.

Ser como um Projeto: as possibilidades existenciais... Verossimilhança

Cada um de nós é no mundo como um projeto: ser como um projeto é o


modo de ser de nosso ser-no-mundo que aponta para nossa temporalidade. Heidegger
(1992) escreveu que o Ser-aí é um ser em-vista-de. Ser em-vista-de refere-se
exatamente ao modo de ser como um projeto: são as possibilidades existenciais que se
abrem a cada instante diante de nós, no compasso da nossa existência.
Os limites de nossa finitude perpassam os limites de nosso ser como um
projeto. Apesar das possibilidades sempre infinitas de ser, nossas escolhas vão
delineando nossos caminhos. Escolher uma possibilidade de ser é dizer não a várias
outras. Este jogo das possibilidades existenciais no mundo dos games existe sem a
limitação da finitude. As limitações presentes nos jogos são apenas de programação,
capacidades técnicas dos sistemas e do software, são especificamente pontuais, e nunca
limitações como as da finitude.
Assim, as possibilidades existenciais nos jogos de videogame são
plenamente infinitas e a escolha de uma ação não anula as ações contrárias. Isto permite
que o jogador experimente a liberdade de ser de um jeito agora e de outro jeito depois.
Vivenciar assim inúmeras possibilidades existenciais, por vezes semelhantes, por vezes
absolutamente contrárias, faz com que o Eu virtual exista como um projeto absoluto e
infindável. O que nos remete à reflexão sobre a verdade a partir das possibilidades nos
jogos.

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299
Verdade, do grego Alethéa, é aquilo que foi desvelado, que perdeu o véu,
que foi trazido à luz para que pudéssemos ver. Kierkegaard (2010) afirmou que a
subjetividade é a verdade, e ele afirmou isso no período em que a filosofia,
decepcionada com o ―fracasso‖ dos absolutos filosóficos e com os grandes sistemas,
como o de Hegel, passa a se mostrar insuficiente para explicar o mundo. Construir sua
própria verdade é parte dos homens desta nova época. Para Kierkegaard (2010), esta
verdade subjetiva não era nada além da prova de que não há nada mais importante, entre
as coisas dos seres humanos, que tornar-se indivíduo, ou seja, assumir sua própria
subjetividade.
O que é verdadeiro para o indivíduo o é em absoluto. Não se trata aqui de
meras construções e de um mundo onde todas as menores opiniões são igualmente
verdadeiras: trata-se de encontrar as verdades mais fundamentais do ―Eu‖ primordial. É
verdadeiro aquilo que provém da subjetividade do Indivíduo, daquele que realizou o
processo de individuação.
A verossimilhança surge, neste artigo, como uma espécie de verdade
subjetiva virtualizada. O verossímil é aquilo que podemos crer como real, como
possível de ser real. Na arte, o verossímil é aquilo que faz sentido dentro do plano da
narrativa ou construção artística.
O conceito de verossimilhança, deste modo, é aquilo que relaciona o real e o
virtual no tocante à questão da verdade. Sendo esta verdade subjetiva, a verossimilhança
no mundo virtual também adquire esta característica. Na criação de um
avatar/personagem, o que é posto como características para ele, só pode ser julgado
como verossímil ou não a partir das verdades subjetivas do seu criador real. Para uns
será verossímil controlar um avatar/personagem do sexo oposto, para outros apenas se o
personagem reproduzir fielmente seu criador, fisicamente e nas características de
personalidade. Os limites da verossimilhança dependem da verdade do ―Eu‖ primordial
de cada jogador.

Propondo além da reflexão: uma pesquisa empírica

A partir desta reflexão inicial, seria pertinente a proposta de uma pesquisa


empírica em que estas reflexões pudessem ser investigadas a partir da vivência de

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300
efetivos jogadores de videogame. Considerando seu objetivo principal, a pesquisa seria
em abordagem qualitativa, de amostragem intencional, que busque os sentidos e os
significados da criação do avatar/personagem para os jogadores. O intuito na análise é
compreender a relação desta criação com o ―Eu‖ primordial de cada jogador.

Considerações finais: possíveis caminhos para interpretação

Os resultados deste artigo reflexivo indicam que a criação de um


avatar/personagem possui conexão com os anseios e desejos do "Eu". A reflexão em
torno dos personagens leva-nos à hipótese de que o corpo, a face e as características de
personalidade dos avatares/personagens criados podem carregar semelhanças físicas e
psicológicas com seus criadores, mas também podem trazer possibilidades não reais,
ainda que verossímeis, ampliando potencialidades e dando vazão a modos de ser
inviáveis na realidade, mostrando que o corpo virtual e o corpo real são regidos pela
mesma compreensão da corporeidade e personalidade do indivíduo. Ampliar este
projeto e transformá-lo em uma pesquisa permitirá a compreensão do sujeito e de seus
projetos existenciais, bem como os modos mais fundamentais da relação entre o ―Eu‖
primordial e o Eu virtual.

REFERÊNCIAS

HEIDEGGER, Martim. Trad. Joan Stambaugh. Being and Time. New York: State
University of New York Press, 1996.

HEIDEGGER, Martin. The Metaphysical Foundations of Logic. Indianapolis: Indiana


University Press. 1992.

KIERKEGAARD, Sören. O Desespero Humano. Martin Claret. São Paulo, 2003.

KIERKEGAARD, Sören. Post Scriptum no científico y definitivo a “Migajas


filosóficas”. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2010.

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301
3.4 EIXO 4

A clínica psicanalítica face ao transhumanismo

Autor: Charles Elias Lang98


Coautora: Juliana Falcão Barbosa de Araújo99

Resumo:
Nesse trabalho introduz-se um assunto pouco discutido no Brasil: o transhumanismo, uma
corrente de pensamento que celebra o uso de ciências e técnicas com o objetivo de melhorar a
espécie humana, aumentando as performances físicas e mentais, considerando que aspectos da
condição humana tais como as deficiências, a doença, o envelhecimento e a morte são inúteis e
indesejáveis. Visível nos EUA e Europa, a partir do início do nosso século, sua filosofia passou
a ser debatida em congressos acadêmicos, simpósios, colóquios, livros e artigos. Aqui
apresentam-se as diretrizes do transhumanismo e as implicações que elas colocam para a clínica
psicanalítica na era da convergência NBIC. Utiliza-se como método a revisão da literatura atual
sobre o assunto. O tema interessa ao psicanalista e ao clínico em pelo menos dois aspectos. Um
é o da mudança do paradigma da clínica, de uma lógica terapêutica para uma lógica melhorativa
do humano, o que coloca em questão o lugar do analista. O outro é a respeito da relação com o
corpo, com a falta e com a castração. A conclusão geral é a de que a temporalidade própria à
clínica psicanalítica é oposta à nova lógica posta em marcha pelo estado de arte do
transhumanismo.

Palavras-chave: Psicanálise; Transhumanismo; Condição Humana; Corpo; Paradigma.

Transhumanismo, transumanismo, trans-humanismo. Ainda não há acordo quanto ao


modo como se escreve. Buscar ajuda em um dicionário pouco adianta, pois, a palavra não está
dicionarizada. Se procurarmos na internet, encontraremos que Transhumanismo (abreviado com
H+ ou h+) é um movimento internacional e intelectual que visa transformar a condição humana
e criar tecnologias amplamente disponíveis para aumentar as capacidades intelectuais, físicas e
psicológicas do ser humano.
Por que deveríamos nos interessar pelo transhumanismo?
Em primeiro lugar, segundo Ferry (1988, 2012) e Harvey (2008), as transformações
sociais e econômicas dos anos 70 e 80 deixaram-nos numa espécie de vácuo ideológico ou de

98
Psicólogo. Doutor em Psicologia Clínica. Professor permanente no PPG/Psicologia da UFAL.
Psicanalista, Analista Membro da Appoa.
99
Psicóloga. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura – Universidade
de Brasília. Psicanalista.

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302
vazio no que diz respeito às ideologias políticas ou utopias sociais, aos projetos de vivermos
juntos. Para Ferry (2009), a única coisa que se produziu de novo a partir desses anos foi o
movimento ecológico, em uma época em que o maior ideal das famílias é o de levar os filhos ao
shopping no sábado à tarde para consumirem, na ilusão de um mundo sem limites, farto e de
recursos infinitos aos quais todos terão acesso – se tiverem dinheiro, é claro.
Para Francis Wolff , utopias são para as comunidades o que os sonhos são para os
indivíduos. Uma utopia é um refúgio num ideal irrealizável quando o real parece insuportável. É
a aspiração ao impossível. Wolff (2016) aponta três utopias que traduzem tanto a nossa época
quanto a modernidade: a utopia transhumanista, a utopia biosférica e a utopia humanista.
Na utopia transhumanista o futuro do homem não é o devir animal ou o retorno
triunfal a uma natureza reconciliada. Um dia, acredita-se, o homem não será mais um mamífero,
nem mesmo um animal. Ele se libertará de seu corpo, será igual a um computador, a uma
máquina, a um robô e, graças à inteligência artificial, poderá ser imortal. Os progressos das
ciências e das técnicas permitirão o desenvolvimento indefinido de nossas capacidades físicas,
mentais, psicológicas e morais.
A utopia transhumanista alimenta-se do fato de que, desde o século XIX, o progresso
científico e técnico, especialmente o biomédico, contribuiu para o prolongamento da existência
e a melhoria das nossas condições de vida. Anestesias, vacinas, pílulas, quimioterapia,
implantes, medicina por imagem, a lista das invenções é imensa. A morte prematura de crianças,
que por milênios foi o flagelo da humanidade, recuou consideravelmente ao longo do último
século, graças à biomedicina.
Querer viver mais e melhor são aspirações escritas desde os textos mais antigos e
preservados da epopeia humana, e a imortalidade é a promessa das grandes religiões. Com o
mesmo fervor que algumas religiões pregam a vida eterna ou uma vida após a morte – dando a
ideia de um ciclo infinito – alguns representantes do transhumanismo defendem uma vida
prolongada, ou mesmo eterna, produzida pela tecnologia, e na qual o nosso corpo seria
secundário, estaria obsoleto.
Para David Le Breton, antropólogo francês que se dedica extensivamente em pesquisas
sobre o corpo, o discurso sobre o fim do corpo é um discurso religioso que já acredita no
advento do Reino. No mundo gnóstico do ódio do corpo, prefigurado por uma parte da cultura
virtual, o paraíso é necessariamente um mundo sem corpo cheio de bits eletrônicos e de
modificações genéticas ou morfológicas (LE BRETON, 2013).
O transhumanismo começa quando, em vez de buscar-se a melhora do homem pela
educação, cultura e pelo aperfeiçoamento das instituições, passa-se a acreditar que a melhora se
dará pela modificação da condição e da natureza humanas, através do recurso de ciências e

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303
técnicas como as advindas da genética e da informática. Enquanto utopia, o transhumanismo
mais visível é aquele engendrado pela mente de cientistas e engenheiros californianos, na esteira
da contracultura dos anos 60, e popularizado pela ficção científica, pelo cinema e pelas séries de
TV.
A segunda utopia é a utopia biosférica, presente nos movimentos que convocam a
juventude dos grandes centros urbanos aos movimentos ecológicos e de libertação dos animais,
em favor da vida vegana e antiespecista. Nesta utopia, os animais tomam o lugar do operário
explorado de antanho. Não é mais o senhor que explora o escravo, não é mais o homem
oprimido que busca seus direitos. Trata-se agora do mundo vegetal e do mundo animal comido,
explorado, digerido e em vias de extinção. Cada vez mais, empresas de grande porte declaram-
se a favor do bem-estar animal, a exemplo de algumas empresas de cosméticos que
interromperam a testagem de produtos em animais. Nas últimas décadas são crescentes os
movimentos a favor da proibição de atividades culturais e tradicionais que envolvam qualquer
tipo de violência, maus-tratos ou subjugação de animais, como, por exemplo, circos, touradas,
vaquejadas, rinhas de galo, de cachorro etc.
Na terceira utopia da modernidade, a utopia humanista, almeja-se a comunidade dos
homens que podem falar e se fazer iguais na medida em que são seres falantes. O homem não é
deus nem bicho e a verdadeira sabedoria desse tempo é aquela que reata nosso tempo ao
humanismo das luzes e com a sabedoria dos antigos. Um exemplo dessa tentativa de reconexão
com o que há de humano e natural nos nossos antepassados é o nicho, cada vez mais crescente,
de produtos alimentícios que se dizem naturais, sem conservantes e, portanto, mais saudáveis.
Esta corrente está indo na contramão do boom de produtos industrializados, surgidos algumas
décadas atrás, que continham a promessa tentadora de facilitar a vida urbana. Os alimentos para
micro-ondas e ―prontos em três minutos‖ têm, pouco a pouco, perdido espaço para produtos
orgânicos.
Uma das dietas alimentares que tem ganhado cada vez mais evidência é a chamada
―dieta paleolítica‖, que propõe a volta da alimentação de nossos ancestrais - que se alimentavam
de carne, frutos e sementes (através de caça, pesca e plantações) - com a justificativa de que
essa é a alimentação para a qual nosso organismo foi moldado por milhões de anos. Quem
defende a dieta paleolítica afirma que doenças comuns nos dias de hoje (como diabetes,
obesidade e distúrbios metabólicos), são reações do corpo ao excesso de alimentos processados
consumidos na dieta contemporânea. Assim, existe uma premissa de que os nossos ancestrais
tinham um conhecimento do organismo humano que nós, pouco a pouco, perdemos – e que
devemos resgatar, se quisermos viver melhor.

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304
Assim, para a utopia humanista, a grande sabedoria religaria o homem ancestral ao
presente; enquanto a utopia biosférica buscaria um elo com o passado animal e a transhumanista
buscaria a relação do homem com um futuro baseado na máquina.
O transhumanismo é hoje muito mais do que ficção científica e utopia, possui o status
de um movimento filosófico e científico, e uma declaração, a Declaração Transhumanista100,
originalmente criada em 1998 por um grupo internacional de autores e à qual aderem nomes
respeitáveis no meio científico e acadêmico. O movimento, que surgiu na Europa do Norte e nos
Estados Unidos há mais de 30 anos, defende que a utilização dos meios postos à disposição do
homem pela tecnologia melhore significativamente a espécie humana, aumentando a capacidade
de percepção, cognição, reflexão e performance, em busca da post humanidade (JOUSSET-
COUTURIER, 2016, p.11). Não se trata, portanto, de sermos contra ou a favor, mas de
constatarmos que, após a ruína dos humanismos e as tentativas de reconstruir-se novos
humanismos, abriu-se um espaço vacante.
Em geral, quando é-nos apresentado o transhumanismo, a apresentação começa pela
contraposição entre a inutilidade e a indesejabilidade de certos ―defeitos humanos‖ (a doença, a
velhice e a morte) e o que pode ser-nos oferecido em termos de conserto ou reparação do
humano. Constrói-se, de um lado, o ―homem diminuído‖, o homem que necessita ser reparado;
e de outro, o ―homem melhorado, aumentado, melhor, mais rápido, mais forte...‖. O leque das
tecnologias em desenvolvimento e em vias de uma convergência estão à raiz de uma revolução
científica eminente, expressa em uma sigla: NBIC. N de nanotecnologia, B de biomedicina, I de
informática e C de cognitivismo: os grandes aliados na luta contra todas as doenças e o
envelhecimento insuportável.
Se, e somente se, considerarmos que não existem leis naturais inerentes ao homem, e
que o envelhecimento é uma doença, e que as doenças são acidentes ou contingências da
condição humana, então tudo se torna legítimo e adentramos em um universo em que tudo é
possível, desde que tenhamos os meios para fazê-lo. A isso somam-se recursos financeiros
exponenciais, em um contexto ético, político e ideológico francamente neoliberal.
Se o grande objetivo do transhumanismo, enquanto movimento, é o de melhoramento,
de aumento do humano, desembaraçando-nos daquilo que nos limita, a pregação ideológica e o
convencimento acerca do interesse vital desta perspectiva seguem etapas muito claras. Em
primeiro lugar, exalta-se a Medicina pelos seus avanços, pela seriedade de seus pesquisadores e
pela neutralidade de seus propósitos. Em segundo, justifica-se a Medicina pelo seu papel
preponderante na melhoria do bem-estar humano. Em terceiro, difunde-se a mensagem por meio

100
http://humanityplus.org/philosophy/transhumanist-declaration/

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305
do cinema, livros, conferências midiáticas e jogos de vídeo. Por fim, alcança-se o almejado:
habitua-se os espíritos a pensar deste modo, como se isso fosse natural.
Os promotores da ideologia transhumana prometem bem-estar absoluto, conforto, saúde
para todos, justiça social universal e segurança para cada um em uma sociedade em que a
igualdade em todos os níveis será possível e na qual poderemos nos tornar super-homens. O
quotidiano será como jamais foi. Promete-se o alongamento da vida ocultando-se que o espaço
no planeta e seus recursos não são infinitos.
Ao comparar-se o cérebro com a máquina ou o computador, percebe-se que existem
duas perspectivas possíveis: a de aproximar o computador do humano, ou seja, tentar implantar
emoções em uma máquina, fazendo o computador ficar mais ―humanizado‖; ou então aproximar
o humano da máquina, tornando-o desprovido de emoções, mecanizado. Para Le Breton (2013),
esvaziar o homem de seus atributos é uma maneira radical de reduzir a distância da máquina. As
antigas fronteiras entre o biológico e o mecânico atenuam-se ou dissolvem-se. A ciborguização
remete também a modalidades técnicas mais discretas, como a programação da afetividade
cotidiana pelo recurso à psicofarmacologia. Sem a prótese, a vida diminuiria. Nesse sentido, o
ciborgue é uma autorização dada pela técnica para o prosseguimento da existência individual.
A segunda razão para nos interessarmos pelo transhumanismo diz respeito ao lugar
designado para a clínica. Desde a Antiguidade até os tempos atuais, o paradigma clássico da
clínica é o da terapêutica, o do alívio das dores da condição humana. Clínica, por milênios,
designou a prática médica de atender aos pacientes na cama e o clínico, em sua origem, é aquele
que se debruça sobre o leito do paciente para observá-lo.
Clínica designa toda atividade envolvendo diagnóstico, prognóstico e a terapêutica das
doenças, sendo que hoje o trabalho clínico ocorre nos consultórios, ambulatórios e enfermarias e
por isso costuma-se diferenciar os médicos em clínicos e cirurgiões. O termo também designa as
práticas de outros profissionais e suas competências na área da Saúde, ou até mesmo as
instituições nas quais trabalham.
A mudança paradigmática proposta pelos transhumanistas - de que determinados
aspectos da condição humana, do ―homem diminuído‖ (as deficiências físicas, as doenças, o
envelhecimento e a morte) são contingentes e indesejáveis - flutua em nossas ambiguidades.
Isto, no entanto, não está tão longe de um pensamento que parece permear a condição humana.
Para Freud, nós humanos estamos convencidos de nossa imortalidade, nosso inconsciente não
acredita na própria morte. Em Reflexões para os tempos de guerra e morte (1915), ele afirma
que nós nos comportamos como se a morte não fosse natural ou inevitável, pois a morte
propriamente dita é irrepresentável. Por mais que frequentemente façamos a tentativa de

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306
representá-la, nós continuamos como meros espectadores. Por outro lado, a nossa consciência
sabe que vamos morrer.
Charles Melman e Celine Masson, psicanalistas franceses, usam como exemplo o
mesmo fenômeno para abordar um aspecto da relação dos sujeitos com a morte. Ambos citam
uma exposição de arte anatômica intitulada “Körper-welten, o fascínio do autêntico”, obra do
anatomista Günter Von Hagens. Melman (2008) explica que Von Hagens colocou em operação
uma técnica segundo a qual fez passar tecidos ou cadáveres ainda frescos num banho de
acetona, expulsando, assim, a água das células e a substituindo por resinas epóxi, de tal modo
que o cadáver fica protegido da putrefação, plastificado em suas formas originais. Ao fazer isso,
torna-se possível impor-lhe posturas próximas das da vida.
Ao falar sobre essa exposição de arte, Melman (2008) fala sobre um desaparecimento,
um apagamento do caráter sagrado que a morte costumava possuir. Cadáveres são expostos em
posições que remetem à vida – e não à morte, que seria inerte – com o objetivo de proporcionar
um gozo escópico da morte aos espectadores que pagam para ter essa experiência. Para defender
sua tese acerca de uma ultrapassagem de limites e de uma mutação cultural que estamos
vivenciando, Melman foca na banalização da morte e no apagamento da reverência que se tinha
em relação a esta. A banalização poderia ser traduzida como um ―não querer saber‖.
Masson (2016) também escreve sobre a exposição de Von Hagens afirmando que esta
parece responder ao que a sociedade espera do homem diante da morte: que ela não se pareça
com a morte, mesmo que isto demande todas as astúcias plásticas possíveis. O espectador paga
o preço justamente para não ver e se desviar de sua própria morte. A autora propõe que, nesta
exposição, o dispositivo em questão seria perverso, evocando o mecanismo próprio da
perversão, a Verleugnung, ou a denegação. Seria uma formulação do tipo “Eu sei muito bem
que sou mortal, mas, ainda assim, sou eterno‖.
É pensando nessa denegação dos limites da vida – presente na perspectiva
transhumanista – que consideramos que há o risco de a clínica desaparecer, ou modificar-se
substancialmente, diante do paradigma que se anuncia. É controverso o que se considera
―normal‖ e ―saudável‖, contudo, não é tão controverso o objetivo: o poder médico será
distribuído entre aqueles que detêm as tecnologias e se chegará a uma medicina sem médicos,
conforme anuncia Guy Vallancien (2015), em que a informática entrará em serviço.
Se a predição e o controle iniciarem antes do nascimento, se detectarmos os problemas
muito antes deles aparecerem, estes poderão ser controlados. No futuro, aposta-se, um grau
elevado de doenças, entre as quais se incluem as psiquiátricas, irá desaparecer, pois a ―alma‖ e
―consciência‖ serão consideradas como produtos do cérebro e dos neurônios.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

307
Assim, não se trataria mais de modificar o meio, a sociedade ou as instituições, de
ordenar os significantes e a relação do sujeito com esse tesouro. Tratar-se-ia de modificar a
própria biologia do homem, como se ela fosse a fonte de todos os males.
Transhumanistas mostram pouca ou nenhuma preocupação com a preservação do meio
ambiente, desprezando o nosso corpo e nosso planeta nativo. Não se trata mais de acompanhar,
controlar, reparar, curar, mas de melhorar o homem, torná-lo eficiente na competição
generalizada. O capital e o neoliberalismo apontam que o importante não é tratar as deficiências,
os problemas ou as faltas constituintes da condição humana (sobre a quais, inclusive, repousam
os Direitos Humanos) mas de termos corpos eficazes, planejados e produzidos pelas
tecnologias, corpos hibridizados com a máquina, almas felizes com drogas e medicamentos.

Referências

FERRY, L. O anticonformista. Uma autobiografia intelectual. (Entrevistas com Alexandra


Laignel-Lavastine. Rio de Janeiro : Difel, 2012.
______. A nova ordem ecológica: a árvore, o animal e o homem. Rio de Janeiro, Difel, 2009.
______. RENAUT, A. Pensamento 68. Ensaio sobre o anti-humanismo contemporâneo. São
Paulo : Ensaio, 1988.
FREUD, S. Reflexões para os tempos de guerra e morte (1915). In: Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
HARVEY, D. Condição pós-moderna. Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
São Paulo: Loyola, 2008.
JOUSSET-COUTURIER, B. Le transhumanisme. Faut-il avoir peur de l‘avenir? Paris:
Groupe Eyrolles, 2016.
LE BRETON, David. Adeus ao corpo: Antropologia e sociedade. 6ª ed. Campinas-SP: Papirus,
2013.
MASSON, C. O corpo transformado por uma morte exposta: Gunther Von Hagens e a máquina
de fabricar ilusão de ótica. In: Novaes, J. V. & Vilhena, J. (org.). Que corpo é este que anda
sempre comigo?: corpo, imagem e sofrimento psíquico. Curitiba: Appris, 2016.
MELMAN, C. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre
Lebrun. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2008.
VALLANCIEN, G. La médecine sans médecin? Le numérique au service du malade. Paris:
Gallimard, 2015.
WOLFF, F. As três utopias da modernidade. In: NOVAES, A. (Org.) Mutações: o novo espírito
utópico. São Paulo: SESC, 2016.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

308
A CONTRAPOSIÇÃO ENTRE ÉTICA E ESTÉTICA NA CONSTRUÇÃO DE
VALORES ACERCA DO CORPO FEMININO IDEAL101

Ramon Sousa de Assis102


Glória Dias Soares Vitorino103

RESUMO
O principal intuito deste estudo foi investigar particularidades das configurações
formais de peças publicitárias direcionadas ao público feminino, no Brasil, em certo
tempo/espaço, com o intuito de, aparentemente, orientar a saúde da mulher, mas, na
prática, estariam fortemente direcionadas para a construção de um corpo feminino tido
como ideal. Para realizar este trabalho, considerou-se que o texto publicitário é um
objeto que veicula discursos os quais orientam e favorecem a construção de sentidos.
Partindo-se desse princípio, o estudo foi realizado com base no quadro teórico da
Análise do Discurso da vertente francesa, contemplando noções conceituais sobre
processos enunciativos e discursivos, discurso, imagem, corpo e Publicidade. Na
discussão proposta, a partir da constituição do corpus, foram analisadas estratégias
textuais - verbais e não verbais - utilizadas na elaboração de peças publicitárias
direcionadas ao público feminino no Brasil, nas mídias impressa e eletrônica, as quais
buscam ―orientar‖ procedimentos de saúde da mulher, mas, ao mesmo tempo, põem, em
jogo princípios estéticos ditados por interesses do mercado, em detrimento de princípios
éticos que deveriam priorizar a promoção da saúde da mulher. O estudo mostrou-se
relevante porque a partir da contraposição entre estética e ética foi possível trazer à tona
questionamentos e informações sobre o papel das mídias impressa e digital na
construção de valores acerca do corpo feminino como instrumento de comunicação e
veiculação de linguagem.

Palavras-chave: Corpo feminino; Publicidade; Estética; Ética; Mídia digital.

1. INTRODUÇÃO

A linguagem se manifesta por meio de signos linguísticos e imagéticos, os quais


são utilizados pela Publicidade, fazendo emergir valores ideologicamente situados104.

101
Este estudo faz parte de uma monografia intitulada ―LIVRE-SE DO COMPLEXO DA MAGREZA: a
construção do corpo feminino ideal por meio de propagandas de medicamentos no Brasil‖, realizada na
área de Ciências Sociais Aplicadas, curso de Publicidade e Propaganda, em cumprimento ao proposto no
Projeto de Iniciação Científica, do Centro Universitário do Leste de Minas Gerais (UNILESTEMG),
fomentado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).
102
Graduando do último período de Publicidade e Propaganda, UNILESTE MG / 2017 – Autor.
103
Professora Orientadora – Coautora, Doutora em Língua Portuguesa e Linguística, PUC Minas / 2009.
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

309
Nessa discussão, destacam-se alguns elementos singulares de cada cultura por suas
diferentes formas de organização. Essas singularidades são evidenciadas sócio-
historicamente em cada sociedade. Nesse cenário, há uma forte preocupação com a
estética relacionada ao corpo. Essa realidade acaba por colocar o culto ao corpo como
objeto de consumo cultural em uma sociedade que valoriza e acolhe discursos cobertos
de questões sobre ―aparência‖. Neste estudo, propõe-se investigar, por meio do
referencial teórico da Análise do Discurso (AD) da vertente francesa, como são
construídas noções do corpo feminino com base na análise de peças publicitárias. Dessa
forma, foram selecionadas para este estudo, 3 peças publicitárias, veiculadas em mídia
impressa e digital, voltadas para a ―saúde do corpo‖ feminino.

2. O CULTO AO CORPO E A PUBLICIDADE

Ao abordar diferentes relações de poder que podem existir entre homem e


mulher, percebe-se a discriminação de papéis fundada em parâmetros que foram
estabelecidos sócio- historicamente. Esses parâmetros interagem com a questão
comportamental da época e padronizam o modelo ―ideal‖ da identidade da mulher,
construindo uma espécie de imaginário do consumo e, nele circunscrito, o consumo do
corpo (HOFF, 2009, apud SAMARÃO, 2009). Com a possibilidade de alcançar a sua
satisfação pessoal, a partir desses modelos, o sujeito passa a investir em produtos e/ou
serviços, no esforço de alcançar um padrão, que ele próprio tem como ideal. Como
observado anteriormente, é nesse aspecto que a Publicidade irá trabalhar, sugerindo
modelos-imagem que funcionam como referências para esse sujeito. Ao utilizar uma
referência, pode-se perguntar se esses modelos estéticos são realmente possibilidade de
projeção para aquele sujeito a quem se direciona uma propaganda. Se esses corpos são
arquitetados de forma a beirar a perfeição, acabam fugindo à realidade, o que faz com
que o sujeito possa encontrar dificuldades ao construir sua identidade.

104
O conceito de ideologia ora discutido diz respeito à concepção segundo a Análise do Discurso, como
sendo ―condição fundamental para a constituição do sujeito e dos sentidos. O indivíduo é interpelado pela
ideologia para que se produza o dizer‖ (ORLANDI, 2007).
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

310
3. DISCURSO

A AD permite ao pesquisador se colocar em estado de reflexão sobre as formas


de construção do discurso. O discurso, segundo Orlandi (2007), está carregado de
sentidos. Considerando-se a imagem, física ou mental (cognitiva), estática ou em
movimento, como texto, pode-se dizer que, como em todo texto, nela, há também um
discurso, não em forma de palavras, mas de uma forma estética, que se traduz em
informação. Tal informação pode ser encontrada por meio da análise da imagem. São
importantes para a análise de uma imagem suas marcas de temporalidade, visto que é
em função dessa dimensão que a imagem é produzida, o que denota sua historicidade. A
historicidade permite estudar sobre acontecimentos que se desenvolveram em dado
tempo. Como apontado por Santaella e Nöth (2001, p. 83) ―ao representar o referente, a
imagem acaba inevitavelmente por trazer para dentro de si a historicidade a que
pertence o referente. Nesse sentido, imagens figurativas podem funcionar como
documentos de época‖. Através da análise da imagem podem-se perceber traços que
evidenciam formas de interpelação (posicionamento e poder) e reconhecer conceitos
que são, em sua essência, ideológicos.

4. ANÁLISE DO CORPUS

Para a constituição do corpus, foram selecionadas três peças publicitárias que


instigam um estudo reflexivo sobre a relação entre estética, ética e corpo. De tais peças,
duas foram veiculadas no livro ―Vendendo Saúde― (BUENO; TAITELBAUM, 2008).
Publicado pela ANVISA, o livro aborda a história da propaganda de medicamentos no
Brasil, desde o período do Império até o século XXI. A outra foi selecionada com o
intuito de realizar um estudo investigativo no qual se pretendia observar se o discurso
acerca da estética na mídia digital tinha sido articulado da forma como fora apresentado
nas peças veiculadas no livro da ANVISA. Dessa perspectiva, compreende-se como os
recursos e estratégias utilizados nas peças em análise são articulados de forma a
persuadir e sugestionar o interlocutor para a compra de certo produto. A escolha de tais
peças publicitárias baseou-se, em especial, no critério de abordagem temática acerca da

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

311
saúde do corpo feminino como elemento fundamental para a venda de medicamentos e
suplementos vitamínicos. A seguir, na Figura 1, pode-se observar o primeiro texto.

Figura 1: Livre-se do complexo da magreza.


Fonte: BUENO; TAITELBAUM, 2008, p. 100. Original de 1961, O Cruzeiro.

Na peça publicitária apresentada na Figura 1, ao lado, pode-se perceber que a


linguagem publicitária é utilizada de forma a trabalhar a autoestima da mulher em
relação ao próprio corpo. Com o intuito de sugerir um padrão de beleza desejável,
coloca-se em questão a saúde do corpo, que, por consequência, remete à modelo do
anúncio em questão. Logo, um corpo ―livre da magreza‖ será benéfico à mulher, visto
que melhora não apenas sua saúde, como também sua autoestima, melhorando, em
decorrência, sua aparência.
Esses elementos são reforçados com o corpo do texto, com a apresentação do
medicamento Vikelp e com a imagem da modelo, a que o texto se refere como
vencedora, forte, enérgica e confiante. Em contrapartida, a magreza é depreciada. Ao
dizer que o medicamento tem a capacidade de tornar pessoas magras em criaturas fortes
e cheias de vida – o que torna o corpo como objeto de admiração – fica implícito o
discurso de que a pessoa magra, naquele contexto sócio-histórico (década de 60), ainda
era vista como uma pessoa frágil, com pouca ou nenhuma vontade de viver. Apesar de
somente se referir aos sujeitos que são magros desde nascença, o locutor cria um
estereótipo geral dado que, por mais que o sujeito possa estar em uma fase na qual seu
corpo se encontra magro, ele pode estar com problemas de saúde. Logo, se quem está
apenas passando por uma fase é visto como uma pessoa não saudável, quem tem esse
corpo desde nascença é visto em estado doentio mais crônico. Quanto a isso, o locutor

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

312
do anúncio da Vikelp promete a transformação do corpo para uma estatura mais
curvilínea. Na peça publicitária em questão, também se utiliza a expressão ―carnes rijas‖
como noção de maior massa corporal.
Com o intuito de ampliar essa discussão sobre o discurso estético acerca do
corpo, se tal discurso poderia ser o mesmo ou vir a se modificar –, tem-se a análise de
mais dois anúncios voltados para a saúde do corpo, sendo o último veiculado em mídia
digital. Dessa vez, ao contrário do anterior, os novos anúncios focam na questão do
emagrecimento como referencial de saúde. O segundo anúncio foi veiculado na revista
Veja, no ano de 1994, segundo dados do livro ―Vendendo Saúde‖ (BUENO;
TAITELBAUM, 2008).

Figura 2: Redoxon, a vitamina C da geração saúde.


Fonte: BUENO; TAITELBAUM, 2008, p. 134. Original de 1994, Veja.

No anúncio em análise, Figura 2, observa-se a modelo como representação de


um padrão estético ideal relacionado à saúde. Nota-se que o olhar da modelo retorna em
direção ao texto, fazendo com que haja uma espécie de correlação entre texto verbal e
imagem. As cores claras ajudam a reforçar um aspecto de leveza. Diferente do anúncio
da figura 1 (também de mídia impressa, porém, antigo), a melhor aplicação das cores,
que se deu com o tempo, permite criar novas estratégias para um discurso persuasivo. O
reforço acerca do padrão estético ideal também é feito com o corpo do texto e com
expressões que reforçam esse ideal.

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313
A chamada principal da propaganda define exatamente as características do que
seria um padrão ideal ―saudável‖: Ter 21 anos, 1 metro e 67, 55 quilos e 1 grama.
Apesar de ―1 grama‖ estar articulado junto à parte que define as características da
modelo nomeada de Ana Lúcia, essa parte, na realidade, remete ao peso do comprimido
do medicamento, que está representado logo em seguida, situação que confirma a
ambiguidade como recurso persuasivo.
Ao representar um corpo com todas essas características, imortaliza-se o corpo,
de forma a superar a noção do real. Nesse caso, o sujeito que não se enquadrar nesse
perfil, não poderá representar um caso típico da ―geração saúde‖, como apontado pela
propaganda. Tem-se a concepção de que esse corpo imortalizado, esse verdadeiro
―simulacro do eu‖, assim chamado por Santaella (2004), é objetificado de forma a
esconder a subjetividade daquele (a) modelo representado (a) e a do consumidor. O que
leva novamente a perguntar se tais modelos de referência estética, em dada época, são
realmente possibilidades de projeção para os consumidores do produto. Se for assim, os
consumidores, possivelmente, não encontrariam dificuldades ao construir sua própria
imagem, em caso contrário, isso ocorreria. Esse debate se inscreve na questão da ética
na Publicidade, pois se observa a promoção da saúde como via de acesso à estética, ou
vice-versa. O anúncio da figura 3 foi veiculado na página do Facebook da marca
Redubío, no ano de 2017.

Figura 3: Redubío
Fonte: FACEBOOK REDUBIO; 2017.

A figura 3 traz um dos produtos da marca Redubío. Seus produtos estão voltados
para a perda de gordura corporal e a campanha é protagonizada pela celebridade Sabrina
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

314
Sato Rahal, o que auxilia no ganho de notoriedade para o produto. Observa-se que a
modelo que protagoniza o anúncio – em tamanho maior – não possui um rosto / uma
identificação. A forma como esse corpo se apresenta, acompanhado com uma fita
métrica, sugere ser o modelo estético ideal que a propaganda visa vender, podendo
sugerir também o corpo que sua consumidora poderá atingir, se utilizar o produto.
Funciona como um corpo modelo de projeção para a consumidora – o que justifica a
falta de identificação e o enfoque em primeiro plano (foco no consumidor). Outro ponto
a se observar é o fato de que a imagem de Sabrina Sato serve como referência para
aquela modelo em evidência – representada pelo corpo sem rosto. Essa modelo, por sua
vez, serve como referência para o consumidor. O dizer ―Você na Medida‖ reforça o
ideal estético e as tonalidades de azul também reforçam um aspecto de leveza, como na
figura 2.
As postagens na página do Facebook, da marca Redubío, resumem-se em dicas,
menções, frases de motivação e anúncios de produtos, mas todas fazem referências aos
produtos, ao ideal de emagrecimento que a marca pretende vender. Na página inicial do
site, observa-se a chamada para o desafio de eliminação de peso. Há também um espaço
dedicado para depoimento de pessoas que já utilizaram os produtos da marca. Essas são
estratégias utilizadas para reforçar a ideia da eficácia do produto.
A eficácia do produto se resumiria no emagrecimento do consumidor.
Entretanto, se esse modelo serve como um modelo de projeção para o consumidor, e
foge à sua realidade, pode ocorrer que o consumidor tenha dificuldades ao tentar firmar
sua identidade, o que induz a estética, implicando questões éticas na esfera publicitária.
A partir da análise dos três anúncios e dos estudos realizados, constata-se que os
padrões de corpo feminino ideal são desenvolvidos de forma semelhante, mesmo
mudando-se as referências e os conceitos de beleza estética ao longo dos tempos. Com a
internet, constata-se que há um espaço maior para interação com o interlocutor, ou seja,
diversos espaços e informações que o estimulam a compra dos produtos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo, conclui-se que, com o intuito de persuadir os interlocutores, a


propaganda apresenta um padrão que certas pessoas devem considerar como ideal.

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315
Observa-se uma supervalorização de determinado padrão e o menosprezo de outro,
mesmo quando isso implica questões éticas ―versus‖ estética. Esse padrão gera certo
desconforto no interlocutor que, através da comparação e estímulo, vê-se instigado a
conquistar o corpo que lhe é apresentado. Dessa forma, o interlocutor cria estratégias
para ―atingir‖ o seu desejo, entre essas estratégias, a compra do produto. Finalizando
este estudo, conclui-se que estudar os processos de construção de sentidos para
compreensão da formação identitária do sujeito, dentro de uma sociedade, evidencia
construções sociais como fundamentais para a construção de ideologias acerca do corpo
e, por sua vez, do corpo feminino. A esse respeito, diz sobre a formação cultural de uma
sociedade, de forma a criar um corpo estruturado a partir de valores, costumes e
condições às quais o sujeito está submetido.
Evidencia-se, assim, a contraposição entre estética e ética, sendo possível
observar a relevância do estudo do discurso para a compreensão da construção de
valores acerca do corpo feminino, como instrumento de comunicação e veiculação de
linguagem. A discussão a respeito do uso midiático do corpo contribui para o
entendimento de alguns processos de construção sociocultural. Não obstante, evidencia-
se também questões éticas que demandam essencial atenção por parte dos profissionais
da Comunicação Social, uma vez que estes se apropriam de discursos outros na
construção de peças publicitárias que permitem novas significações em todos os campos
do saber e determinam, portanto, um paradigma adequado e responsável de projeção
para o público-alvo.

REFERÊNCIAS

ANVISA. Resolução-RDC nº 96, de 17 de dezembro de 2008. Disponível em:


<http://www.anvisa.gov.br/propaganda/rdc/rdc_96_2008_consolidada.pdf>. Acesso em:
01 fev. 2017.

BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à Análise do Discurso. 7. ed.


Campinas, SP: Unicamp, 1998.

BUENO, Eduardo; TAITELBAUM, Paula. Vendendo Saúde: a história da propaganda


de medicamentos no Brasil. Brasília: Agência Nacional de Vigilância Sanitária, 2008.

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316
FACEBOOK REDUBIO. Você na Medida. Disponível em: <https://www.facebook
.com/Redubio/photos/a.279754065498106.1073741828.266701770136669/8546912913
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GROSSI, Miriam Pillar. Identidade de gênero e sexualidade. Antropologia em


Primeira Mão. Disponível em: <http://joomla.londrina.pr.gov.br/dados/images/
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ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 7. ed.


Campinas: Pontes, 2007.

SAMARÃO, Liliany. O corpo da publicidade: ideias e apontamentos de Tânia Hoff.


Revista Contemporânea, n. 12, p. 167-175, 2009.

SANTAELLA, Lucia. Corpo e comunicação: sintoma da cultura. São Paulo: Paulus,


2004.

SANTAELLA, Lucia; NÖTH, Winfried. Imagem: cognição, semiótica, mídia. 3. ed.


São Paulo: Iluminuras, 2001.

SAÚDE. O que são saneantes?. Disponível em: <http://www.saude.rs.gov.br/


upload/1334257915_DVS%20-%20saneantes.pdf>. Acesso em: 06 fev. 2017.

SILVA, Angela A. Gimenes; VALENCIA, Maria Cristina Palhares. História da Moda:


da idade média à contemporaneidade do acervo bibliográfico do Senac – Campus Santo
Amaro. CRB-8 Digital, São Paulo, v. 1, n. 5, p. 102-112, jan. 2012.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

317
A governamentalidade algorítmica
e as tecnologias de controle dos corpos

Edson Teles105

Resumo:
Esta comunicação tem por objetivo problematizar a racionalidade de governo gerida pelos
algoritmos cuja consequência é a condução dos corpos. Argumentar-se-á que a
governamentalidade, tal como definida por Michel Foucault, a saber, uma lógica de cálculos e
estatísticas utilizada para regulamentar a ação dos indivíduos, mesclada às funções das
máquinas autônomas, configura um novo regime de produção de subjetividades. Pretendemos
demonstrar que a elisão das subjetivações implicaria no bloqueio ou na limitação de
experiências sociais e políticas, provocando a eliminação das esferas de debates e de criação do
comum.

Palavras-chave: Michel Foucault, algoritmos, corpo, normatividade.

Certa autonomia das máquinas, indo de um usual laptop até os mais sofisticados
sistemas de segurança por sensores e câmeras, é hoje um fato. A definição de seu
funcionamento é de difícil objetificação, contudo, sua presença é notável. Através das mais
variadas tecnologias, a computação autônoma de dados acessa, traduz e classifica gestos,
relacionamentos, subjetividades e individualidades em tempo imediato, capturando as mais
sensíveis ou rústicas variações.Define-se a autonomia das máquinas por sua capacidade de auto
conhecimento, pela dinâmica de ajuste próprio diante do imprevisto, otimização com auto
prevenção, reparação do mal funcionamento e capacidade de adaptação ao ambiente e seus
processos.
A infraestrutura com múltiplos modos de observação, automatização de funções,
ambientes interativos e inteligentes das novas tecnologias tendem a proporcionar formas de vida
mais fáceis, confortáveis, prazerosas e eficientes. Há ganhos no fato de as máquinas detectarem,
avaliarem e, principalmente, anteciparem desejos e interesses, conhecendo as preferências e as
redes de relações. Customizando as necessidades de acordo com as ofertas e serviços e
construindo um perfil individualizado,fornece a impressão de nos conhecer melhor do que nós
mesmos.Ademais, permite a identificação do que não se deseja, evitando a perda de tempo, nos

105
Professor de Filosofia Política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Texto integrante de
pesquisa realizada com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
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318
colocando em segurança em relação às ameaças da urbanidade violenta, produzindo outras
possibilidadessociais. Ser observado, dentro de uma ideologia da objetividade dos
procedimentos autômatos das máquinas, tem o aspecto de uma seletiva tecnologia de segurança
e serviços.
Com base na ideia de que governar é a ação de condução das ações dos outros e das
coisas, se estabeleceu uma dinâmica de cálculos baseados na observação dos fenômenos
populacionais e dos fatos relacionados a estes eventos. De posse de uma série de dados e
probabilidades regularesse pode fabricar políticas de otimização da capacidade de
controle,objetivando produtividade e aumento do capital.Não são funções específicas dos
indivíduos, nem apenas dosregimes de produção de subjetividades, mas saídas e entradas, inputs
e outputs, nos processos geridos e governados pelas tecnologias. Não seria o fim do indivíduo,
nem mesmo sua dessubjetivação. Porém, a anulação das subjetividades, congelando sujeitos em
suas bolhas discursivas, ideológicas e identitárias.
Na esteira da problemática do governo através de estatísticastemosas coletas de dados
em larga escala, com conteúdos múltiplos e sendo produzidos em alta velocidade. São os Big
Data.Estes novos dispositivos106 permitem reduzir o investimento de controle no indivíduo
médio ou normal, como se valoriza natradicional normatização social, propiciando uma ação
sobre os processos e o meio ambiente. Pode-seacessar a ―realidade‖ de um território, grupo,
instituição, mercado, país em micro partes de segundos. Dito de outra forma, apreende-se a
realidade de modo imediato e imanente. As informações viriam ao mesmo passo em que são
produzidas e, sequencialmente e de modo quase instantâneo, se tornariam funções de governo.
As relações entre a entrada e a saída das informações seriam o próprio processo político em
andamento.
Para se transformar dados em práticas de governo se aciona os datamining. Como em
um espremedor de frutas, se extrai dados em situação bruta a seiva que interessa à determinada
modelagem de comportamentos. Das massivas acumulações de dados começam a emergir
saberes estatísticos oriundos das correlações de informações não selecionadas, não classificadas
e não hierarquizadas, altamente heterogêneas. Com o máximo de automação, reduzindo a
intervenção humana e dispensando o uso de hipóteses ou convenções prévias, esquiva-se das

106
Para Michel Foucault, o dispositivo, em seu caráter estratégico e funcional, visa lidar com uma tensão,
podendo ser para conduzir as relações de forças, ou para bloqueá-las e delas fazer uso. Em entrevista
concedida em 1977, ele comenta o termo: ―Aquilo que procuro destacar com este nome é, primeiramente,
um conjunto absolutamente heterogêneo que implica discursos, instituições, estruturas arquitetônicas,
decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas,
morais e filantrópicas, em resumo: tanto o dito como o não dito, eis os elementos do dispositivo. O
dispositivo é a rede que se estabelece entre estes elementos. (…) O dispositivo tem uma função
eminentemente estratégica. (…) Trata de uma certa manipulação de relações de força, de uma intervenção
racional e combinada das relações de força, seja para desenvolvê-las em certa direção, seja para bloqueá-
las, ou para estabilizá-las, utilizá-las‖ (FOUCAULT, 2001, p. 299-300 -tradução nossa).
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

319
subjetividades e das normas discursivas.O funcionamento dos Big Data e dos datamining a
partir de um sistema de relações não se submete a qualquer média e mantém autonomia diante
das normas sociais. ―Esta emancipação em relação a toda forma de média associa-se,
notadamente, ao caráter autodidata destes dispositivos e pode ser considerada como essencial à
ação normativa contemporânea‖ (ROUVROY E BERNS,2015, p. 38).
Em um trabalho estatístico tradicional as informações obtidas são o resultado de filtros e
convenções advindas de debates e conflitos, podendo ser questionadas pelas subjetividades
envolvidas, em especial pelas que as operam enquanto cálculos de governo. A estatística
clássica possui características diferentes das probabilidades algorítmicas das grandes bases de
dados. Ela objetiva a confirmação de hipótese previamente colocada. Posta a ideia a ser
confirmada a estatística clássica irá selecionar os dados sobre os quais trabalhará. Após a
objetificação dos dados a partir de uma temática, ocorre a quantificação dos números em cifras
de comparação. Seráfeita uma avaliação negativa ou positiva da hipótese proposta a partir de
convenções muitas vezes controversas e com significações diferentes segundo o ponto de vista
de quem as opera.
Já nos Big Data, não há hipóteses prévias, pois se procura diretamente na correlação dos
dados a expressão dos fenômenos. As relações estatísticas dos datamining esquivam-se das
normas sociais de seleção, classificação e hierarquização dos dados, transitando diretamente
entre o real das informações e a operação destas via seus elementos técnicos e tecnológicos.A
realidade ganha uma aparência de esfera pública, porém controlada por interesses particulares e
comgovernos e empresas coletando quantidades massivas de dados não classificados. Eles
podem vir de redes sociais, blogs, feeds de notícias, dados de sensores de faces, sons e imagens,
emails, jogos, geolocalizadores e autorizações de celulares, sistemas de cartões, operações de
marketing e publicidade, pesquisas científicas, redes e sistemas de segurança. Este volume
astronômico de dados, todos eletronicamente armazenados e acessíveis de qualquer lugar e a
qualquer momento – óbvio que não por qualquer pessoa ou sistema de coleta de dados – podem
ser inseridos por indivíduos voluntariamente, ou em resposta a alguma demanda, cedidos ou
simplesmente abandonados. De fato, são mais dados ―deixados‖ do que ―transmitidos‖. Ainda
assim, não aparecem como subtraídos sem autorização, pois aparentam estarem dispersos e em
lugares quaisquer.
As funções algorítmicas têm a característica de produzirem mecanismos de controle
sem a necessidade de acionar discursos e ideologias como estratégias centrais de governo.
Enquanto os dados entram e saem em big quantidades, velocidades e variedades, e os elementos
da operação se inserem em funções sem debates ou discordâncias, os discursos são mantidos
dentro de bolhas, cada vez mais fechadas e direcionadas. Para alguns pesquisadores este modo

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320
de correlação produz a radicalização das opiniões e a fragilidade das experiências comuns
(SUSTEIN, 2009).

O governo da circulação e dos meios

A condução da ação dos indivíduos por meio de funções, em torno dos Big Data,pode
ser nomeada como―governamentalidade algorítmica‖107.Ela se fundamenta no conceito de
governamentalidade, em Michel Foucault, notadamente no seminário ―Segurança, Território,
População‖ (1978), acrescido e transformado pelas funções algorítmicas.
Michel Foucault denominou governamentalidade os procedimentos e cálculos que têm
por alvo a vida de uma população. Segundo o filósofo, a adoção desse tipo de governo foi o
modo astuto com que o Estado moderno se permitiu sobreviver através ―de um poder que se
exerce mais sobre uma multiplicidade do que sobre um território‖ (FOUCAULT, 2008,p.
173).A lógica desta estratégiaconsiste em ―trabalhar na realidade, fazendo os elementos da
realidade atuarem uns em relação aos outros, graças a e através de toda uma série de análises e
disposições específicas‖ (FOUCAULT, 2008, p. 62).
A condução da vida e dos corpos atua em uma determinada quantidade e qualidade de
meios onde se identifica um acontecimento do qual se possa extrair dados regulares e
suscetíveis de entrarem em jogos de probabilidade. Não se determina o espaço, se atua sobre
algo dado. Pode ser uma manifestação política, a venda de algum produto comercial, o acesso
ao sistema público de saúde. Atua no sentido de aumentar, o quanto possível, os índices
positivos e produtivos e, simultaneamente, diminuir o impacto do que seja risco à ordem. Age
sobre as séries, as regularidades estatísticas, e busca levar em conta o que pode acontecer.
Assim, seu mecanismo não é de única função ou forma processual. Adequa-se ao fenômeno, de
modo multifuncional e a depender da demanda. ―O meio é certo número de efeitos, que são
efeitos de massa que agem sobre todos os que aí residem‖ (FOUCAULT, 2008, p. 28).Trata-se
do controle mais da circulação e das relações, do que dos indivíduos e de seus discursos.
Este modo de governar efetivado através de algoritmos, designa ―globalmente um certo
tipo de racionalidade (a)normativa ou (a)política que repousa sobre a coleta, agregação e análise
automatizada de dados em quantidade massiva de modo a modelizar, antecipar e afetar, por
antecipação, os comportamentos possíveis‖ (ROUVROY; BERNS, 2015p. 42).Há uma

107
O termo ―governamentalidade algorítmica‖ foi cunhado, entre os anos de 2011 e 2013, pela filósofa do
direito Antoinette Rouvroy. No seu artigo ―Technology, virtualityand utopia‖ (2011) ela anuncia uma
―racionalidade governamental‖ animada pela ―computação autônoma‖. Neste texto a autora ainda não
utilizava o termo ―algoritmo‖ colado ao ―governamentalidade‖. Na conferência
―AlgorithmicGovernmentalityandtheEnd(s) of Critique‖ (2013), o termo já aparece tal como
apresentamos aqui.
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321
descentralização do indivíduo, diminuindo o papel das subjetivações comuns às formas
discursivas de ação política.Os Big Data dispensam a identificação do indivíduo para conduzir
circulações e relações. Funcionam em umfluxo no qual ―não se enclausuram pessoas, mas, ao
fazer estradas, multiplicam-se os meios de controle. Não digo que esse seja o único objetivo das
estradas, mas as pessoas podem trafegar até o infinito e ‗livremente‘, sem a mínima clausura, e
serem perfeitamente controladas‖ (DELEUZE, 1999,p. 12). Os fluxos e deslocamentos
produzem normatividades, bem como estas implicam em mais circulações. Neste sentido,
quanto mais caminhos foram produzidos, maior será a ―livre‖ circulação e mais normas serão
ativadas.

Esterilizando os processos de subjetivação

A governamentalidade mantém a aparência de estar sob a ―democracia‖ da


heterogeneidade, da multiplicidade e do anonimato como formas imanentes das ―livres‖
correlações de dados. O espaço público estaria garantido pelo amplo acesso ao meio virtual e à
conectividade à Internet, sem a necessidade de debater sob quais interesses se encontra sua
gestão. Não haveria, nestasmáquinas de governo, o uso das referências classistas, racistas,
ideológicas, religiosas, de gênero. Não seria mais a política da exclusão do anormal, daquele
que escapou à média das normas sociais, mas a de evitar o imprevisívelsob a garantiade
―liberdade‖ para cada um ser plenamente quem de fato é.
A racionalidade governamental se alimentaria de dados objetivos, aparentemente
insignificantes e sem a marca do sujeito. Cria-se modelos de comportamento sem que o
indivíduo perceba a condução de suas ações pelas funções acionadas via algoritmos. E quanto
mais se utiliza dos dispositivos tecnológicos, mais se potencializa o governo e sobre uma mais
ampla gama de grupos e indivíduos ela produz efeitos.
A estratégia da correlação de dados visa adaptar os desejos dos indivíduos à oferta e às
possibilidades inerentes à velocidade de circulação. Um exemplo simples é a solicitação de um
carro no aplicativo de transporte urbano. Tão logo se abra abusca, ainda na fase em que se
localiza de onde é feito o pedido, já aparecem um, dois ou três carros disponíveis. Depois que se
aciona a chamada, verifica-se que o carro disponível está mais distante do que aparecia
inicialmente (este é um caso mais comum em locais com menor oferta de veículos). ―Trata-se de
suscitar o ato de compra no modo da resposta-reflexo a um estímulo de alerta que provoca um
curto-circuito na reflexividade individual e na formação do desejo singular‖ (ROUVROY;
BERNS.2015,p.44). A imagem inicial de um carro nas proximidades acelera no usuário o desejo
imediato pelo consumo do serviço, ―aproveitando‖ a oferta e antecipando outro consumidor.

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322
Se vai ao ato sem passar pela elaboração do desejo. Com isto, se elimina as etapas da
troca de opiniões e gostos que participariam da escolha. Os dados parecem produzir o benefício
objetivo, dentro de condutas possíveis e efetivas, sem acionar as condições espaciais, temporais,
subjetivas e significantes. A partir de dados ―puros‖, em si mesmos a-significantes, o tratamento
probabilístico visa o controle preditivo dos eventos atravésda circulação acelerada. Evita-se as
formas de desvios subjetivos encurtando a distância espaço temporal entre estímulo e ―resposta-
reflexo‖. A velocidade do fluxo dispensa os sistemas semióticos e significantes sem se desfazer
deles. Qualquer que seja o significado dos dados, o agenciamento das máquinas algorítmicas
será acionado.
Forma-se a ideia de que normatividades imanentes às correlações de dados reais não
seriam uma prescrição para o comportamento humano. Seria como uma descrição objetiva dos
atos, seja de indivíduos ou de grupos, relacionados a partir do que foi enviado, recebido ou
deixado nos Big Data. Em extremo, cria-se a lógica do fim da ética, do comportamento e das
relações sociais em favor da verdade e da objetividade dos atos em si. Produz-se uma política
preditiva, determinando decisões com base nos processos autômatos, eliminando quase por
completo uma característica fundamental da ação política, o risco de sua imprevisibilidade. E
este é o elemento sedutor dos algoritmos, o de que estaríamos construindo uma vida mais
segura, estável e produtiva. O humano se tornaria parte do mecanismo das máquinas e
tecnologias de dados.
Os indivíduos, ao fazerem uso de serviço de cartões, celulares, ou de qualquer
dispositivo conectado aos Big Data, imaginam seus perfis nas estruturas de informações a partir
de uma individualidade. Contudo, há uma profícua organização de saberes a partir da formação
de perfis que, apesar de não serem perceptíveis aos indivíduos ou ao público, se tornaram a base
da política maquínica.O perfil reúne traços deixados pelos indivíduos, mas não se configura
como a expressão do ―quem‖ o indivíduo é. Caracteriza-se mais por padrões de
individualidades, categorizando costumes, hábitos, respostas-reflexo, ideologias, afetos e
comportamentos psíquicos. Contribui para predizer ao invés de buscar causas. Antecipa o agir
dos similares, dentro de uma gama de variáveis, no lugar de vigiar o que fazem os singulares.
Estaríamos diante de um processo de esquiva das subjetivações no quadro normativo da
governamentalidade. Constata-se que a deliberação do indivíduo sobre a transmissão de
informações é fraca e se dilui em proporção inversa à quantidade massiva de cliques e touchs.
Assim, estes dados não estariam sendo ―roubados‖, o que concretamente poderia gerar atos de
resistência e demandas por direitos (fato que, em certa medida, pequena, tem gerado e
produzido leis como as já citadas). Considerados triviais, descontextualizados, segmentados o
bastante para se deixarem ―perder‖ nos caminhos da rede, os traços seguem percursos

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323
incontroláveis para os sujeitos. E mais, estes dados produzem saberes extraídos diretamente da
grande massa de informações e proveem de hipóteses (funções algorítmicas) que emergem dos
próprios dados.
Desta forma, a ação normativa surgida das estatísticas produz efeitos sobre os ambientes
e processos. A potência de condução da vida estaria justamente na capacidade de não usar os
sujeitos diretamente como suporte e se apoiando na autonomia e indiferença quanto ao caráter
dos dados. O fato de a unidade singulartornar-se somente umbioaplicativo,input eoutput de
informações cujos processosocorrem independente das escolhas políticas e ideológicas, é a
garantia de eficácia das normatividades imanentes dos algoritmos.

Referências
DELEUZE, Gilles. ―O ato de criação‖. Tradução de José Marcos Macedo. Folha de S. Paulo, 27
de junho de 1999, pp. 4-5.Disponível em http://intermidias.blogspot.com.br/2007/07/o-ato-de-
criao-por-gilles-deleuze.html. Acesso em dezembro de 2016.Transcrição de conferência
realizada em 17 de maio de 1987 (Qu‟est-ce que l‟acte de création?). Vídeo disponível em
http://www.dailymotion.com/video/x1dlfsr_gilles-deleuze-o-que-e-o-ato-de-criacao-legendas-
em-portugues_creation. Acesso em dezembro de 2016.

FOUCAULT, Michel.“Segurança, Território, População. Curso dado no Collège de France


(1977-1978)‖. Traduçãode Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

_____. ―Le jeu de Michel Foucault‖. In: Dits et Écrits II. 1976-1988. Paris: Gallimard, 2001,
pp. 298-329.

ROUVROY, Antoinette, BERNS, Thomas. ―Governamentalidade algorítmica e perspectivas de


emancipação: o díspar como condição de individuação pela relação?‖. Tradução de Paulo
Henrique Andrade. Revista Eco Pós, vol. 18, n. 2. Rio de Janeiro: UFRJ, 2015, pp. 36-56.

ROUVROY, Antoinette.―Algorithmic Governmentality and the End(s) of Critique‖. Conference


Society of the Query #2, Main Building Amsterdam Public Library (OBA), Amsterdam,
Holanda, 08 de novembro de 2013. Disponível em https://vimeo.com/79880601. Acesso em
dezembro de 2016.

_____. ―Technology, Virtualityand Utopia. Governmentality in an Age of Autonomic


Computing‖. In: HILDENBRANDT, M., ROUVROY, A. (eds.). Law, Human Agency and
Autonomic Computing. Philosophers of Law Meet Philosophers of Technology. Routledge,
2011, pp. 119-140.

SUSTEIN, C.R. ―Republic 2.0‖. Princeton University Press, 2009.

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324
A SUBVERSÃO DAS MODELOS PLUS SIZE NAS REDES SOCIAIS AO MODELO
NORMATIZADOR DE BELEZA DA CONTEMPORANEIDADE

Patrícia Eliane de Melo*

Resumo:
Com o objetivo de analisar os efeitos da subversão proposta pela imagem do corpo ‗diferente da norma
estética contemporânea‘do corpo das modelos plus size nas redes sociais, esse estudo se configurou em
buscar junto a universitários de diferentes cursos da área de Humanas – através do recurso metodológico
de breves entrevistas semi-dirigidas - o significado, as impressões e percepções diante de corpos de
modelos plus size nas redes sociais. A questão que se coloca é se na subversão proposta por essas
modelos que fogem ao padrão, o mercado na verdade não estaria normatizando outro padrão de corpo por
trás do discurso da diversidade.

Palavras-Chaves: Corpo; Redes Sociais; Plus Size; Subjetividade.

1 – Apresentação: o que é um corpo?


Para a Psicologia o corpo não é algo dado - de início - na vida do ser humano, ele é
construído. A construção do corpo se dá por meio de identificações imaginárias e simbólicas,
tem início na tenra infância, e sofre os efeitos da puberdade, na qual as mudanças corporais se
caracterizam pelo aumento da secreção de hormônios, pelo rápido crescimento linear, seguido
de ganho de peso e do aparecimento de características sexuais (OMS, 1995).
Por ser uma construção, é passível de ser reconstruído com e por novas significações,
constatando que o sujeito psicológico é o sujeito do devir – do vir a ser – processo permanente
de construção social e histórica.
Como construção dialética, o corpo como imagem é fruto das trocas simbólicas e
culturais do tempo histórico em que se vive. Podemos verificar isso recorrentemente na arte. Na
obra de Botticelli A Primavera, também conhecido como Alegoria da Primavera, vemos o
ideal do corpo feminino curvilíneo e totalmente fora dos padrões de magreza considerados
adequados para os tempos atuais, enquanto corpos magros e esquálidos – tão valorizados no
Contemporâneo – poderiam ser considerados como corpos doentes e tísicos àquela época.
Ou seja, os padrões de beleza são construções culturais e simbólicas que podem
responder tanto ao ideal do que se proclama feminino pelos meios midiáticos quanto podem ser
entendidos como resposta ao mercado.
O que vimos acontecer na atualidade são tentativas de se balizar todos os corpos em um
modelo padrão só. Quem está fora do tom, que se adeque. Vivemos num mundo onde não há
lugar para a diferença. Não sabemos lidar com a diferença.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

325
Nas tentativas insistentes de massificação do padrão do corpo feminino, dociliza-se as
consciências, captura-se as subjetividades. Quem não responde a isso, adoece, deprime, torna-se
bulímica, inadequada, triste, melancólica.
Predominantemente, na sociedade patriarcal brasileira em que as meninas são criadas,
segundo um padrão feminino já posto – é veemente o processo de convencimento que só se é
feliz tendo um corpo esguio e magro entendido como sinônimo de ‗garantia‘ de felicidade –
inclusive conjugal. À herança genética que subverte esse modelo é guardada no futuro a
promessa das várias correções possíveis em lipoesculturas, cirurgias bariátricas, redução de
seios, etc. Padroniza-se o belo. Não há espaço para a diferença.
Essas meninas crescem já com o sentimento de inadequação e da promessa da correção
futura. Correção de que? É a pergunta que se faz. Corrige-se para quem?
Até Freud, no texto escrito sobre a feminilidade, aponta para o fato de que a importância
que as mulheres atribuem ao próprio corpo nada mais é do que uma compensação da falta fálica
(FREUD, S. 1933[1932]/1996). A ideia de Freud é que o interesse da mulher pelo espelho
mostra que todo seu corpo faz suplência ao falo que falta. O corpo assume valor fálico, o valor
de um falo imaginário.
Contudo, nacontramão desse movimento de ode ao corpo magro, surgiu recentemente a
valorização das modelos plus size entendida muitas vezes como uma subversão à ordem imposta
tanto pelo mercado em que se valoriza corpos femininos atléticos quanto pelo imaginário do
corpo feminino forjado desde a tenra infância na Contemporaneidade.
Curvas generosas e, por muitos, consideradas até excessivas no corpo da mulher, fazem
uma ruptura com esse padrão até então unívoco de beleza magra, incomodam e transgridem a
ordem vigente. O que fazer com aquele corpo que tanto expõe a diferença entre um corpo
masculino e feminino? Como lidar com a diferença agora estampada e não mais escondida por
trás de um corpo sem curvas?
O corpo de curvas generosas expõe, grita a diferença tão marcada entre o homem e a
mulher. Não há espaço para o disfarce. Não é preciso esconder a diferença.
Talvez por isso a tentativa é que se ligue à concepção de não saúde, de que ―algo está
fora de controle‖ – sim, o desejo do outro ao ver a diferença no corpo da mulher denuncia o fora
de controle. Talvez por isso incomode tanto.
Por séculos coube ao que se convencionou ser chamado de ―mulher de bem‖ se
esconder, não se permitir ser desejada – para não ser vítima de violência. Por séculos a mulher
compactuou com jogos de poder patriarcais para manter-se viva, para sobreviver ao jogo do
desvela-esconde-revela de seu corpo submetendo-se ao domínio não somente de seu corpo,
como também de sua voz, de suas escolhas à cultura do patriarcalismo.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

326
Em pleno século XXI, ainda somos assaltados por notícias de violências contínuas
contra o corpo da mulher – em que quase em todas as situações a culpa é atribuída a ela que não
soube ―se guardar‖.
Sabemos que como significação, o corpo é fruto das trocas simbólicas e culturais entre o
sujeito e a cultura. O sujeito não é apenas receptor, ele é ator. Então cabe a ele – em suas trocas
com a cultura – demandar um novo lugar para seu corpo, para o exercício de sua diferença – e
daí construir sua subjetividade.

2 - Análise dos Dados: o impacto e o estranhamento de frente a um corpo denominado Plus


Size.
Essa pesquisa foi realizada em parceria com os alunos graduandos de uma universidade
particular no estado de Minas Gerais. O objetivo desse estudo se justifica no interesse cada vez
mais crescente entre os estudantes de compreensão do corpo/imagem midiática no
Contemporâneo.
Como recurso metodológico – além de pesquisa documental e acurada observação nas
Redes Sociais em sites e páginas que contemplam o corpo plus size - foi usada a Entrevista
semi-estruturada com uma amostra de estudantesuniversitários de curso ligados às Ciências
Humanas e Curso de Psicologia.
Nos vários depoimentos - o que foi possível observar é ainda o impacto e o
estranhamento do olhar diante de uma modelo com corpo denominado plus size.
Foram relatados pelos entrevistados sentimentos que variam da solidariedade à
satisfação pela revanche ao ver um corpo fora do padrão magro - ―mas bonito‖ em sua diferença
- exposto nas redes sociais.
Foram reconhecidas pelos participantes da pesquisa reações de ―susto‖, medo pela
modelo - justificado em comentários ‗gordofóbicos‘ e piadas de ―haters‖, (odiadores) - receio de
bullying virtual como também admiração pela coragem da modelo.
Entretanto, o aspecto que chamou mais a atenção na análise dos dados se configura na
desconfiança de alguns entrevistados em relação à suspeita que para além de um corpo diferente
do padrão magro e admirado, não esteja se criando na verdade um outro padrão de beleza e de
corpo pela mídia e pelo mercado.
Entre os entrevistados surgiu o questionamento que se mais uma vez não estaria sendo
criado um outro modelo-padrão de corpo feminino? Ou seja, o movimento agora se tornaria
pendular, mas nem por isso, menos normatizante. E os outros corpos que não se encaixariam
nesses dois padrões? Onde se encaixariam?

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327
Guattari (1992) nos adverte dos limites que se prefiguram na massificação e na
laminação dos gostos, bem como dos modos de agir, de pensar e de sentir que estamos
assistindo diariamente acontecer nas redes sociais.
Por outro lado, este pensador percebe a utilização da mídia como também suporte de
invenção de novos possíveis, de engendramento de forças criativas e de novos universos de
referência. Neste ambiente virtual, tanto a simples reprodução como a criação podem estar por
toda parte. A compreensão desse fenômeno do corpo plus size e na forma como isso tem
influído nas relações sociais, na forma de pensar, isto é, no processo de subjetivação, pode
servir tanto à emancipação do corpo feminino quanto à massificação da ideia de corpo
adequado.
O convite que aqui se faz, agenciados por Guattari, é o reconhecimento da potência da
diferença - e o convite ao rechaço à ideia da normatização dos corpos.

3 – Conclusão: o corpo e as relações de poder.


Tanto a palavra escrita como a imagem tem como inimigo comum o consumo imediato,
a presentificação rasa. São os mesmo poderes que em nome do capital – do mercado - agem na
domesticação, na padronização de corpos e no processo de docilização das consciências.
(FOUCAULT, 2010)
É nesse sentido que destacamos a importância de que, além dos historiadores estudarem
o corpo no campo da demografia ou da patologia, devem considerar que ele também está
inserido num campo político. As relações de poder o atingem, o dominam.
Foucault (2010, p. 29) afirma que ―[...] o corpo só se torna força útil se é ao mesmo
tempo corpo produtivo e corpo submisso‖.
Confrontados com essa história de policiamento e violência ao corpo feminino e para
além do modelo magro ou plus size, o questionamento maior e a anteriori que se propõe a
fazer é sobre esse corpo feminino – magro ou não: ele pertence a quem? A reflexão que se
propõe é: antes de questionarmos se o ideal é o corpo magro ou plus size temos que nos
questionar de que corpo feminino estamos falando. Corpo pertencente a quem?
O campo da Psicologia, mesmo que inserido nos macropoderes que legitimam essa
padronização, deve se assumir como lugar privilegiado de produção e circulação simbólica, em
micropoderes cotidianos, na recusa à massificação e na discussão e apropriação da relação entre
a mídia e a produção subjetiva na Contemporaneidade.

Referências Bibliográficas

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

328
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete.
Petrópolis: Vozes, 1987.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2010.

FREUD, S. Conferência XXXI: A dissecção da personalidade psíquica (1933[1932]).


In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago,
v.XXII, 1996,p.63-84.

GARCIA-ROZA. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.

GUATTARI, F.O inconsciente maquínico: ensaios de esquizo-análise. Tradução Constança


Marcondes César e Lucy Moreira César. Campinas: Papirus Editora, 1988.

____. Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia
Leão. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: Cartografias do Desejo. Petrópolis: Vozes, 1999.

OMS (Organización Mundial de la Salud), 1995. La Salud de los Jóvenes: Un Reto y una
Esperanza. Geneva: OMS.

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329
Corpos utópicos e distópicos em Black Mirror:108
dilemas subjetivos nos espaços biográficos das redes sociais online

Polyana Inácio Rezende Silva109

RESUMO:
O trabalho em questão relaciona o episódio Nosedive (Queda Livre) da terceira temporada da
série Black Mirror ao uso da função like em redes sociais online como o Facebook e Instagram.
Disponível no serviço Netflix, a história mostra como um aplicativo conecta todos os
personagens da história. Os contatos presenciais ou postagens compartilhadas geram uma boa
avaliação na rede. A emergência de dilemas subjetivos (ARFUCH, 2009) na relação com a
tecnologia, em meio a métricas de aprovação e visibilidade alheia revelam a circulação de
muitas utopias e distopias relacionadas aos conteúdos digitais na internet. Eles tornam-se
―elementos de valor‖ na medida em que promovem a socialização, aproximação ou
distanciamento de pessoas e grupos. Henry Jenkins denominou tais aspectos como parte da
Cultura da Conexão (JENKINS, 2015).

Palavras-chave: Cultura da Conexão; corpos; redes sociaisonline; Black Mirror.

INTRODUÇÃO

Instâncias online circulam conteúdos digitais que reforçam a relação entre


pessoas, tecnologias móveis e dimensões algorítmicas. Tais elementos reforçam o
caráter sempre atualizável da internet em termos técnicos e conceituais. Assim, a
relação contemporânea com a tecnologia também é marcada por complexidades
maquínico-cognitivas decorrentes da utilização de sites e aplicativos de redes sociais.
Segundo Paula Sibília (2015) as ambiências, interfaces e ações contemporâneas em rede
reflitem ―a alquimia dos corpos e almas à luz de tecnologias digitais‖ (SÍBILIA, 2015).
Ou seja, a confluência entre técnica e vida atualiza-se junto com as novas versões de
aplicativos e máquinas, assim como é permeada por dicotomias entre elementos
maquínicos, espaços-tempo e dilemas que atravessam as subjetividades.
As utopias e distopias110 as quais nos referimos dizem das formas adotadas pelas
pessoas para se fazerem visíveis e atraentes às métricas de espraiamento do conteúdo

108
Trabalho apresentado Eixo 4: Tecnologias, política e regulação dos corpos - Regulação dos corpos
por meio do olhar/ser olhado da hiperconexão;
109
Doutoranda em Comunicação pela UFMG e membro do Grupo de Pesquisa em Comunicação
Nuccon/CCNM UFMG - Disponível em:<http://nuccon.fafich.ufmg.br/>. E-mail:
polyanainacio@gmail.com
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330
(JENKINS, 2015). Visualizações, curtidas e compartilhamentos nas redes sociais online
fazem parte deste escopo de medidas da popularidade de alguém. Os modos de se
apropriar de uma tecnologia e o uso que fazemos dela (GUATTARI, 2011) justificam
muitas operações. Entretanto para que se revele outros sentidos possíveis para a
existência de tais recursos, deve-se considerar o aspecto político111 que as inovações
tecnológicas podem conter (WINNER, 1986). Ainda que as mesmas não tenham sido
concebidas e pautadas por um viés politizado.
Nas ambiências das redes sociais online, corpos humanos e maquínicos
encadeiam a ação de pessoas e máquinas que significam e ressignificam utopias e
distopias nas redes sociais online. Deste modo, vivemos um tempo em que a internet
torna-se mediadora da Cultura da Conexão. Uma cultura que segundo Henry Jenkins
(2015) é resultante das tensões entre empresas, produtores, fãs e usuários ativos da
chamada Web 2.0. Ou seja da web caracterizada pela interação em torno do
compartilhamento e espraiamento de arquivos, conteúdos. Ainda sobre isso, Barbosa
(2015) destaca o que Jenkins (2015) chama de ―Valor do Engajamento da Mídia‖
destacando o potencial de um conteúdo reunir audiências dispersas ou viralizar pela
internet.
O aspecto acima possui relação com o objetivo deste trabalho na medida em que
o gênero ficcional do episódio Nosedive da série Black Mirror evidencia os dilemas de
uma mulher, a personagem Lacie, que vive sob a pressão de ser bem avaliada por sua
aparência, experiências, hábitos e conteúdos compartilhados, em um aplicativo
universal, instalado nos smartphones dos personagens. Em redes como o Facebook,
Instagram e YouTube a função like assemelha-se como um recurso avaliativo para a
construção da visibilidade e do engajamento em torno dos perfis de usuários conectados
as redes sociais online.
De modo geral, as temporadas da série Black Mirror são consideradas como
uma crítica à naturalização da tecnologia no cotidiano assim como remetem ao Pós-

110
O termo é aqui empregado segundo etimologia da palavra. Trata-se da negação da utopia que segundo
dicionário Houaiss (2017) diz de um ―lugar ou estado imaginário em que se vive em condições de
extrema opressão, desespero ou privação; antiutopia; de qualquer representação ou descrição de uma
organização social futura caracterizada por condições de vida insuportáveis, com o objetivo de criticar
tendências da sociedade atual, ou parodiar utopias, alertando para os seus perigos.
111
Langdon Winner (1986) não menciona que o projeto político faça parte da criação de tecnologias ou
projetos afins. Ele refere-se a considerar os elementos políticos, nem sempre anunciados, no
entendimento da relação tecnologia e sociedade.
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331
humano e à ficção Ciberpunk112 que segundo Lemos (2014) e Barbuto (2017) vinculam-
se às narrativas e reflexões que servem de base para a construção de narrativas que
problematizam o elemento humano no contexto da imersão tecnológica.

A SÉRIE BLACK MIRROR, O EPISÓDIO NOSEDIVE

A Netflix é uma plataforma de streaming113 conhecida por oferecer acesso a


filmes e séries, em vários países do mundo. O serviço dispõe de conteúdos autorais e
outros programas, filmes e séries de canais pagos e abertos da TV norte-americana ou
britânica. Como é o caso da série Black Mirror exibida pelo ―Channel 4‖114 da BBC de
Londres no ano de 2011 e disponibilizada pela Netflix em 2016.
Considerada um fenômeno televisivo115, Black Mirror possui três temporadas,
cada uma com três episódios, com duração média de uma hora e meia. Como exemplo,
alguns dos temas dos episódios: um primeiro-ministro obrigado a copular com um
porco para salvar uma princesa; uma mulher perseguida por um mascarado enquanto os
vizinhos, impassíveis, gravam tudo com seus celulares; um desenho animado que se
aproveita sua popularidade para se candidatar a primeiro-ministro116.
Por escolha metodológica e em virtude do interesse desta análise nas redes
sociaisonline, o primeiro episódio da terceira temporada com o nome ―Queda Livre‖ ou
―Nosedive‖ (nome original em inglês). Lançado em outubro de 2016, o episódio nos
convocou a refletir sobre o desdobramento contemporâneo da relação Tecnologia e
Sociedade.
A sinopse explica que a história trata de ―uma mulher desesperada para ser
notada nas mídias sociais acha que tirou a sorte grande ao ser convidada para um
casamento luxuoso, mas nem tudo sai como planejado.‖ Por meio de um aparelho

112
Segundo Lemos (2004) termo cyberpunk aparece para designar um movimento literário no gênero da
ficção científica, nos Estados Unidos, unindo altas tecnologias e caos urbano, sendo considerado como
uma narrativa tipicamente pós-moderna. O termo passou a ser usado também para designar os
ciberrebeldes, o underground da informática, com os hackers, crackers, phreakers, cyberpunks, otakus,
zipp. Esses seriam os cyberpunks reais. Assim, o termo cyberpunk é, ao mesmo tempo, emblema de uma
corrente da ficção científica e marca dos personagens do submundo da informática.
113
Forma de distribuição de dados, em rede e frequentemente utilizada para distribuir conteúdo através
da internet. Em streaming, as informações não são armazenadas pelo usuário em seu próprio computador.
Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Streaming>. Acesso. 18 jan. 2017.
114
Disponível em: <http://www.channel4.com/>. Acesso 09 jan. 2017.
115
Disponível em:<http://brasil.elpais.com/tag/black_mirror/a>. Acesso 09 jan. 2017.
116
Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2016/10/26/cultura/1477475621_736580.html>.
Acesso em 10 jan. 2016.
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332
similar ao smartphone, companhia constante de todos os personagens, o aplicativo
funciona quase como uma carteira de identidade digital.

Figura 1 - Cena de ―Nosedive‖ (Queda Livre) com a personagem Lacie


117
Fonte: PopZoneTV

A protagonista, a atriz Bryce Dallas Howard, de nome ―Lacie‖ no episódio, vive


sua vida solicitando uma constante aprovação social por uma questão de sobrevivência.
Isso se torna uma obsessão para ela, quando uma boa avaliação de si mesma torna-se a
chave para participar do casamento de uma amiga de infância. No mundo de Lacie é
preciso agradar a todo mundo fora e dentro da rede social. Para todos a nota atribuída
aos perfis são o passaporte para a inclusão dos personagens em todas as esferas da vida
social. Não se trata apenas de causar uma boa impressão mas de criar conteúdos
interessantes sobre si mesmo ou que se vê do mundo.
Como cidadã, consumidora, profissional e até pela estima, convivência e
aceitação em círculos de afeto, Lacie procura ser bem vista, postando imagens e textos
no padrão de aceitação da rede. Além de controlar as próprias emoções e opiniões, ela
esquece do valor próprio na troca de pontos que o aplicativo exige. Afinal uma nota
abaixo do esperado ou um comportamento fora do padrão social pode levar o indivíduo
inclusive para a prisão.
A história deixa todos esses aspectos evidentes a partir do convite de uma velha
amiga de Lacie para que ela seja madrinha do casamento de uma amiga. Na tentativa de
agradar a noiva, a protagonista cria e recria discursos, busca parecer atraente e à altura
das expectativas para a ocasião. Embora tente alcançar popularidade e sucesso na rede

117
Disponível em: <http://popzone.tv/2016/10/black-mirror-explora-mau-uso-da-tecnologia-para-expor-
falhas-humanas.html>. Acesso 20 jan. 2017.
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333
social, Lacie não obtém o sucesso esperado nas postagens e contatos que faz.
Avaliações ruins impedem que as coisas aconteçam como ela queria e ao final ela se vê
presa, esquecida no mundo de aparências da amiga e confrontada pela realidade fora da
bolha de boas avaliações da rede social.
Para promover a terceira temporada, a Netflix criou um aplicativo semelhante ao
do episódio. No aplicativo Rate Me118 mais do que atribuírmos notas aos outros ou
medir nossa popularidade, podemos viver a distopia da função like como a conhecemos
em redes como Facebook, Instagram ou YouTube. Embora o programa Rate Me seja
uma brincadeira, ele também reflete uma demanda dos usuários à empresas como o
Facebook. Muitos adeptos cobram a criação da função ―Não gostei‖ ou ―Não Curtir‖
(―Dislike‖).

119
Figura 2 - Aplicativo Rate Me - Fonte: Jovem Nerd

Tanto episódio Nosedive e na série Black Mirror como um todo, as implicações


de uma apropriação despolitizada e acrítica da tecnologia ficam evidentes. As pessoas
aderiram ao modo de operação da rede social traçando disputas nos espaços de interação
e compartilhamento por meio dos conteúdos que veiculavam corpos, experiências e
subjetividades. Durante a história, o aplicativo e a utilização de um smartphone com
acesso à internet são ferramentas de sobrevivência para Lacie e demais personagens.
Em pesquisa apontada pelo Pew Research Center120o uso de tecnologias
vestíveis inteligentes, sensores embutidos e sistemas de comunicação para troca de

118
Disponível em: <https://rateme.social/>. Acesso 15 jan. 2017.
119
Disponível em: <https://jovemnerd.com.br/nerdnews/black-mirror-netflix-lanca-aplicativo-para-dar-
nota-para-pessoas/>. Acesso 16 jan 2017.
120
Disponível em:<http://www.pewinternet.org/2014/03/11/digital-life-in-2025/>. Acesso 20 jan. 2016.
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334
dados entre smartphones, tende a crescer. Fora da realidade Black Mirror, inseridos na
experiência das redes sociais online, fica o ensejo para problematizarmos a relação que
estabelecemos com essas ambiências.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Marcadas por utopias e distopias, as ações que movimentam os espaços online


sustentam práticas de visibilidade na Cultura da Conexão (JENKINS, 2015) por meio de
conteúdos que propagam versões da vida e da personalidade das pessoas. Tais práticas
são incentivadas pelo mercado de tecnologia e instigadas pelas pessoas na medida em
que atendem a muitas demandas de interação na vida social.
Neste contexto recorremos ao pensamento de Leonor Arfuch (2009) para
destacar que as redes sociais também podem constituir-se como espaços biográficos ou
ambiências que evidenciam a subjetividade por meio de narrativas traduzidas em
conteúdos. Estas narrativas indicam a complexa relação entre sujeito, linguagem,
sociedade e discursos representativos do biográfico. Segundo Chiara (2007), trata-se de
compreender que Arfuch chama a atenção para as formas narrativas como potência de
constituição dos sujeitos, comportamentos e até mesmo de vidas imaginárias.
Segundo Arfuch (2009, p.97) o espaço biográfico também está no registro de
entrevistas, reality shows e blogs. A autora não menciona as redes sociais online no
sentido abordado no episódio analisado em Black Mirror. Entretanto, diante das
construções narrativas compartilhadas nas redes, a partir da experiência pessoal, torna-
se possível a aproximação com o pensamento de Arfuch na medida em que a ações
online abrem espaço para ressignificações do sujeito.
Os dilemas da personagem Lacie evidenciam como as construções narrativas e a
imagem que ela associava a si mesma na rede social, tornava-a vulnerável. Ou seja, a
valorização de si mesma dependia da avaliação de outros usuários. Sobretudo pela
busca da convivência social e realização das expectativas dos outros. A compreensão
deste aspecto permite politizar a relação com as redes sociais pois nestas ambiências de
interação utopias e distopias tomam corpo e se revelam nas escolhas que fazemos para
nos tornar visíveis. E desta forma buscamos o engajamento peculiar aos conteúdos que
nos representam, viralizam e ganham repercussão.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

335
REFERÊNCIAS

ARFUCH, Leonor. O Espaço biográfico. Dilemas da Subjetividade Contemporânea. Rio de Janeiro:


EdUerj, 2010.

BARBOSA, Anderson Wagner da Silva. Cultura da conexão: criando valor e significado por meio da
mídia propagável. In: Ano XI, n. 06 - Junho/2015 - NAMID/UFPB. Disponível em:
<http://periodicos.ufpb.br/index.php/tematica/article/viewFile/25068/13710>. Acesso em: 28 jul. 2017.

CERP IoT – INTERNET OF THINGS EUROPEAN RESEARCH CLUSTER (2009). Internet of Things :
Strategic Research Roadmap. disponível em : < http://www.internet-of-things-
research.eu/pdf/IoT_Cluster_Strategic_Research_Agenda_2009.pdf >.

CHIARA, Ana Cristina de Rezende. O espaço biográfico de Leonor Arfuch: uma nova leitura dos modos
como vidas se contam. In: Matraga, rio de janeiro, v.14, n.21, jul./dez. 2007. Disponível em:
<http://www.pgletras.uerj.br/matraga/matraga21/arqs/matraga21r01.pdf>. Acesso em: 29 jul. 2017.

GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético - 3a ed. - São Paulo: Ed. 34, 2000.

JENKINS, Henry. Cultura da conexão - criando valor e significado por meio da mídia propagável. São
Paulo. Ed: Aleph, 2014.

KEEN, Andrew. #VertigemDigital - Por que as Redes Sociais estão nos dividindo, diminuindo. Rio de
Janeiro: Zahar, 2012.

LATOUR, Bruno. Reagregando o Social uma introdução Teoria do Ator-Rede. Salvador: Edufba,
2012; Bauru, SP: Edusc, 2012.

LEMOS, André. Ficção científica cyberpunk. O imaginário da cibercultura. In: Revista Conexão –
Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 3, n. 6, p. 9-16, 2004. Disponível em:
<http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conexao/article/view/71/61>. Acesso em: 28 jul. 2017.

SIBILIA, Paula. O homem pós-orgânico. Rio de Janeiro. Ed: Contraponto, 2015.

WINNER, Langdon; MANSO, Fernando (Trad.). Artefatos têm política? in __________. 1986. ―The
Whale and the Reactor – A Search for Limits in an Age of High Technology‖. Chicago: The University of
Chicago Press. p. 19-39. Disponível em:
<http://www.necso.ufrj.br/Trads/Artefatos%20tem%20Politica.htm>. Acesso em: 19 jan. 2016.

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336
EMAGRECENDO EM REDE:
UM ESTUDO ACERCA DO UNIVERSO DAS #INSTAFITNESS

Bruna Madureira
Junia de Vilhena

Resumo:
O objetivo do presente trabalho é analisar de que modo a tecnologia se apresenta como uma
poderosa ferramenta para eliminar gordura na contemporaneidade. O universo das redes sociais,
sobretudo do Instagram, ganha cada vez mais espaço no universo feminino, na medida em que
se transformam em diários de tela virtuais, cuja finalidade é registrar diariamente o processo de
emagrecimento de suas usuárias. A metodologia para se construir o corpo desejado é
compartilhada publicamente com detalhes em formato de fotografias e mini-vídeos de até um
minuto cada. Em sua grande maioria, o conteúdo das imagens reflete a rotina militar de
exercícios físicos e alimentação, cujo partilhamento com o público virtual se dá com a
finalidade de eliminar peso e talhar o corpo dos sonhos: magro e definido.

Palavras-chave: redes sociais; tecnologias; subjetividade.

Introdução

A mulher dos dias atuais vive diversos dilemas na medida em que é atravessada pelo
amplo discurso social da alta performance. No mundo contemporâneo, ser mulher reflete um
trabalho árduo para se atingir objetivos específicos da feminilidade e do papel do feminino no
espaço social. Por exemplo, é imprescindível o sujeito feminino exibir uma alta performance em
todos os campos da sua vida, seja enquanto profissional, seja no ambiente familiar como mãe,
esposa, filha ou dona de casa. No entanto, a exigência performática não se limita a essas duas
esferas da sua vida, que já são extensas e trabalhosas. Ser mulher na contemponeidade é ser
atravessada por um discurso social, talhado pela mídia e reforçado pela medicina, da aparência
enquanto primordial para a existência do sujeito feminino no mundo.
No presente contexto, a performance da aparência ganha grande relevância e passa a ser
considerada vital para a existência do ser feminino. Nesse sentido, a moral da beleza reforça a
ideia de que ―só é feia quem ser‖, na medida em que existem infinitos caminhos para moldar a
beleza nos padrões estéticos vigentes. Padrões esses, diga-se de passagem, que retiram a
essência da mulher brasileira, pois reforçam o conceito de que mulher bela é branca, alta e

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337
magra. Essa concepção muito restrita de beleza nega as próprias raízes, uma vez que a
população brasileira é historicamente formada pelo encontro entre três diferentes etnias:
africana, portuguesa e indígena (NOVAES, 2006).
O modelo social de beleza enxerga o negro como esteticamente inferior ao branco, de
modo que não nos surpreende a quantidade de pessoas que buscam embranquecer a pele através
de cirurgias estéticas ou de maquiagens. Da mesma forma, o critério de padrão estético exclui a
gordura enquanto uma possibilidade de existir no corpo feminino. Ser gorda é um sinônimo
automático de menos-valia e fracasso feminino e, consequentemente, o mercado de trabalho
apresenta-se de maneira inexoravelmente cruel para essas mulheres, de modo a descartar todo e
qualquer corpo que esteja aquém das medidas sociais e culturalmente aceitáveis. Novamente
não nos surpreende que mulheres consideradas gordas ou obesas do ponto de vista estético e
médico estejam longes de serem convocadas para participar de processos seletivos para vagas
de empregos (MADUREIRA, 2013).
Infelizmente, as razões são tirânicas. Mulheres acima do peso são frequentemente
percebidas enquanto contraexemplo da feminilidade, na medida em que são vistas como pessoas
doentes que não tem controle da própria alimentação ou do próprio comportamento. Essa
concepção corrobora o comportamento de empresas que veem o obeso/gordo como peso
financeiro para a empresa, porque afinal tendem a utilizar com maior frequência o plano de
saúde fornecido pela organização, o que aumenta o custo para manter o funcionário trabalhando
ativamente (MADUREIRA, 2015).
Se o imperativo social da beleza feminina gira em torno do corpo, onde a gordura, ao
lado do envelhecimento, se transforma no grande inimigo da mulher, não é de se surpreender o
sofrimento psíquico que isso gera em suas vidas, cujo resultado é a busca de um corpo
―perfeito‖, que ganha status de inalcançável (Novaes, Vilhena & Rosa, 2016). Sobre isso,
pesquisas apontam que pelo menos 63% das mulheres brasileiras acreditam que corresponder ao
ideal estético social facilita as suas vidas, de modo a lhes trazer, inclusive, melhores
oportunidades de trabalho e de relacionamento amoroso. Isso significa que ser magra e
aparentar jovialidade aumenta as possibilidades da mulher ser vista positivamente na busca por
um emprego e, consequentemente, ser aprovada na seleção de trabalho. Isso reforça a ideia de
que beleza é um traço fundamental para o sujeito feminino, já que 83% das mulheres acreditam
que a aparência influencia diretamente a sua autoconfiança e a autoestima, refletindo
positivamente em relacionamentos amorosos e profissionais. Além disso, 91% das mulheres
sentem que beleza e felicidade estão intimamente ligadas, pois se a mulher se cuida de modo a
corresponder ao padrão estético vigente, logo ela tem mais chances de ser feliz na vida
(NOAVES, 2016).

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338
O que se observa como consequência é um intenso sofrimento em virtude da busca do
corpo ideal ou por causa da impossibilidade de se conquistar esse corpo. Quanto mais as
mulheres procuram se enquadrar nesse modelo rígido de beleza, que parece abarcar somente
modelos de passarela, que se tornaram os grandes exemplos a serem religiosamente seguidos,
mais essa busca desenfreada gera sofrimento em suas vidas, tendo em vista que esse molde
corpóreo é muito restrito e desigual. Nesse cenário, a mídia digital acentua ainda mais a
obrigação de se ter um corpo magro e tonificado e, sobretudo, a possibilidade de alcançar, ainda
que a qualquer custo, esse corpo ―perfeito‖. Não à toa, com o boom das mídias sociais, pessoas
comuns ganham grande visibilidade, na medida em que mostram em suas redes sociais a
construção desse corpo-padrão (Novaes & Vilhena, 2016) .
Nesse cenário, as redes sociais aparecem como uma ferramenta interessante para as
mulheres que se sentem excluídas do mundo, pois conecta pessoas com sofrimentos parecidos e
objetivos semelhantes, como é o caso das #instafitness. Para essas mulheres, a relação com o
corpo sempre foi aprisionante e persecutória, e a gordura desde sempre mediou a sua relação
com o mundo, o que significa receber olhares indecorosos e vis como sinônimo de advertência
em virtude do fracasso corpóreo, conduzindo até mesmo a uma exclusão parcial ou total do
mercado de trabalho e de relacionamentos sociais e amorosos (prelo) .
Com esse intenso sofrimento enraizado em suas camadas adiposas, elas começam a
utilizar o Instagram e Snapchat como mais uma tentativa de eliminar a vergonha de ser gorda
em um mundo cada vez mais lipofóbico. Surpreendentemente, o instrumento virtual começa a
dar resultados positivos e essas mulheres conseguem sair da categoria de obesa para gorda e,
posteriormente, de gorda para magra. Essa redução no número do manequim muda
completamente as suas vidas, porque afinal de contas, o Instagram descortina um mundo
infinito de possibilidades a cada subtração de camada adiposa que cumpria a função de mediar a
sua relação com o mundo (prelo).
Com isso, o mercado de trabalho abre as portas, as relações amorosas começam a brotar
e, inclusive, a família passa a colocar essa mulher em um outro lugar dentro do espaço familiar.
Um mundo de conquistas se potencializa em virtude do uso do Instagram enquanto um espaço
potencial de criação. Ali, no mundo online, existe a possibilidade de criar amizades, encontrar
semelhantes que experienciam a vida com o mesmo sofrimento psíquico em virtude da gordura
e, sobretudo, existe um espaço potencial para construção da autoestima e do amor-próprio.
Nesse sentido, a rede social deve ser positivada e reconhecida enquanto um espaço de potência e
criação que viabiliza uma mudança de postura em virtude da transformação que provoca na vida
dessas mulheres (prelo).

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339
Admirável mundo-vitrine

O sujeito contemporâneo vive na época do virtual e instantâneo e, consequentemente, a


experiência ganha contorno fragmentado e serializado, bem como o próprio sujeito. No cenário
virtual, absolutamente tudo deve ser compartilhado e visto, já que o contrário significa que não
foi realmente vivido. Assim sendo, a experiência só ganha real sentido quando partilhada
virtualmente, conforme corrobora o seguinte depoimento: “seu eu fui pra academia e não postei
foto, eu fui literalmente à toa, porque como que as pessoas vão saber que eu fui?”. Nos dias de
hoje, ser significa aparecer na vitrine virtual do outro. Essa vitrine pode ser o blog, o vlog ou a
rede social. Na presente pesquisa, especificamente, a vitrine é o Instagram, que se torna um
palco performático, cuja função primordial parece ser atrair o olhar do outro. Lembrando que o
comportamento de tornar-se visível tem o objetivo de receber um olhar que legitime a sua
existência, seja enquanto mulher, mãe, homosexual, negro e etc (prelo).
Além disso, ao congelar a imagem do sujeito, as redes sociais, sobretudo o Instagram,
registram um corpo ―em construção‖ do seu próprio ideal imagético. É justamente esse o
caminho que conduzirá ao seu maior objetivo: fazer-se mestre de seu próprio corpo. Em outras
palavras, controlar suas dobras e rugas, de modo a expurgá-las ou transformá-las em um tecido
adiposo liso e definido. Entendemos o mundo virtual das #instafits como um grande Big Brother
na medida em que o olhar alteritário não cessa buscar por imagens, ou corpos de alta
performance, para avaliar ou julgar, aprovar ou reprovar (prelo).
No entanto, ainda que seja um lugar imagético dominado pelo alto desempenho, o que
pode trazer enquanto consequência um sofrimento psíquico insuportável, nota-se, igualmente, a
rede social como um espaço potencial de afeto e acolhimento, na medida em que também é
possível encontrar um olhar que, para além do julgar, observa com cuidado e zelo. É justamente
no mundo de vitrines virtuais, intensamente censurado por afastar as pessoas e reduzir a
intesidade do relacionamento social, que sujeitos femininos excluídos socialmente em virtude
da sua gordura, encontram um espaço para falar da sua dor de existir dentro de um corpo
predominantemente gordo que custa a atrair um olhar afetuoso ou de reconhecimento.
Nesse contexto, o Instagram torna-se um grande palco dos excluídos que buscam o seu
espaço, a sua tribo e a sua pertença. É justamente esse encontro com o semelhante, que também
sofre por estar além das medidas que é possível construir uma ferramenta coletiva que funcione
como uma espécie de escudo protetor do olhar vil e indecoroso do outro, conforme atesta o
seguinte depoimento “a gente se ajuda mesmo, porque a gente se escuta e cuida uma da outra
quando percebe que a peteca vai cair”. Encontrar o semelhante cria possibilidades de

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identificar-se com quem também sofre e experiencia o mundo com dor e angústia em virtude do
corpo ―imperfeito‖.
Com isso, cada imagem partilhada, que recebe uma curtida ou um comentário acerca da
sua performance, é vivida com intensa alegria, porque é sinônimo uma conquista, ainda que
pequena, da sua existência. É uma forma de ―gritar‖ para o mundo que, apesar de ser
considerada com menos-valia, a #instafit está ―correndo contra o tempo‖ para moldar-se diante
dos padrões estéticos dominantes. Uma das conseqüências mais notórias é o apoio que recebem
de seus pares, outras #instafits, que se veem espelhadas diante de outras mulheres que passam
não apenas pelo mesmo sofrimento psíquico, mas também pela dor de eliminar gordura.
O Instagram, assim, funciona enquanto um grande espelho virtual que reflete o olhar do
outro a cada foto compartilhada. Esse olhar, tão fundamental para a constituição psíquica
conforme nos lembra Winnicott (1971 [1967]), e que parece deficitário nesse universo de
mulheres estudadas na presente pesquisa, ganha força e intensidade a cada curtida e comentário,
representando, com isso, um espaço significativo na vida dessas mulheres.

Referências:

MADUREIRA, Bruna. Vagas para moças de fina estampa: padrões estéticos e seleção
no comércio da moda carioca. Dissertação de mestrado. Departamento de Psicologia.
Pontifícia Universidade Católica – PUC-Rio. 2013

MADUREIRA, Bruna . As Barbies do varejo: um estudo acerca dos padrões estéticos


dos processos de seleção do comércio da moda carioca. Revista Eletrônica Polêmica.
2015. Disponível em: http://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/polemica/article/view/16007/12058.

MADUREIRA, Bruna & VILHENA, Junia. Emagrecendo na rede: Um estudo acerca


do universo das #instafits (prelo).

MADUREIRA, Bruna; MELGAÇO, Paula; VILHENA, Junia . “Compartilho, logo


existo” Um estudo sobre selfies e a inserção social. Revista Athenea (prelo).

NOVAES, Joana. O intolerável peso da feiúra. Sobre as mulheres e seus corpos. Ed.
PUC/Garamond. 2006.

NOVAES, Joana. Há uma Beleza nada convencional. In: Relatório nacional sobre
autoestima, confiança corporal e o impacto desses aspectos subjetivos no Brasil. Dove
Brasil. 2016.

NOVAES, Joana; VILHENA, Junia (Orgs). Que corpo é este que anda sempre
comigo? Corpo, imagem e sofrimento psíquico. Ed. Appris. 2016
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341
NOVAES, Joana; VILHENA, Junia; ROSA, Carlos. A tirania da estética sobre
mulheres e seus corpos. Rumus Revista Científica da Universidade de Mindella. Cabo
Verde, pg. 297-323.2016.

WINNICOTT, Donald. Playing and Reality. London: Tavistock. 1971 [1967]

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342
(In)dócil: a resistência do corpo feminino diante da violência de gênero

Juliana Ribeiro121

RESUMO

O objetivo desta proposta é fazer uma reflexão sobre como as mulheres se organizam em redes sociais,
utilizando seu próprio corpo como resistência no combate à violação dos seus direitos, à violência e à
desigualdade de gênero. Nestainvestigação, realizou-se uma reflexão sobre o movimento feminista
Marcha das Vadias, que surgiu no Canadá em 2011 e se espalhou por vários outros países, chegando,
inclusive, no Brasil. Como metodologia, utilizou-se a cartografia, que possibilita o mapeamento de
assuntos estabelecendo conexões e fluxos, a partir de um ponto de vista. Com o levantamento, observou-
se que o corpo, quando age em rede, é bastante potente, não somente para pautar a discussão sobre a
violência contra a mulher, como também para reagir à agressão e legitimar o entendimento de que o corpo
é uma construção social e está em constante mutação, adaptando-se à época em que é experienciado.
Trata-se de um processo simbólico, constituído pela cultura, tecnologia disponível, capacidade de
transformação e adaptaçãoorgânica ao tempo em que existe e, por isso, uma das frases mais significativas
estampadas no corpo das mulheres que participaram da Marcha era: ―Meu corpo, minhas regras‖.

Palavras-chave: corpo; feminismo; mulher; rede.

De acordo com o últimorelatório da ONU, referente aos anos 2014-2015122 – divulgado


em agosto de 2015, em Nova Iorque, o mundo tem sete bilhões de pessoas e as mulheres
representam 57 milhões de indivíduos a menos do que os homens. Já segundo a Organização
Mundial da Saúde – OMS, em relatório divulgado em 2014123, que reúne uma série de dados
relativos à saúde da mulher, foi constatado que 71 dessas mulheres sofrem violênciafísica ou
sexual dos seus parceiros, sendo que, para 1/5 delas, a violência acontece antes dos 15 anos. O
mesmo diagnóstico revela que 40 das mulheres assassinadas no mundo foram vítimas de
feminicídio. Na análise dos dados, a OMS destacou que os países em desenvolvimento
representam quase a totalidade dos ataques contra as mulheres, com porcentagens que variam
entre 87% e 99% em alguns indicadores.

121
Mestranda em Design, Inovação e Sustentabilidade pela Universidade do Estado de Minas Gerais. E-mail:
juliana.ribeiro@multiverse.com.br

122
ONU Mujeres – Informe Anual. Disponível em: <http://www.onumulheres.org.br/wp-
content/uploads/2013/01/annual_report_SP_2014_2015.pdf>, acesso em 30 jul. 2016.

123
Disponível em: <http://www.who.int/features/factfiles/women_health/es/index9.html , acesso em 30 jul. 2016.

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343
Já uma pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha, entre os dias primeiro e cinco de
agosto de 2016, com 3.625 mulheresde 217 cidades brasileiras, a pedidodo Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, revelou que um em cada três brasileiros culpa a mulher em casos de estupro.
Os dados estatísticos apontaram que 33,3% da população do país – e isso inclui os mais
diferentes gêneros, inclusive o feminino – responsabilizaram a vítima pelos casos de violência
sexual. Se considerarmos apenas o gênero masculino, os dados tornam-se mais alarmantes,
evidenciando que 42% dos homens acreditam que as mulheres que se dão ao respeito não são
estupradas.
Mas, engana-se quem supõe que este tipo de concepção – extremamente machista,
sexista e discriminatória – revela a percepção apenas dos brasileiros. Em 2011, na Universidade
de Toronto, no Canadá, o policial Michael Sanguinetti– responsável por investigar uma série de
estupros que estavam acontecendo no campus - afirmou que as mulheres deveriam evitar se
vestirem como vadias para não serem violentadas. A reação da comunidade feminina
acadêmica, bem como de grupos ativistas e da sociedade civil, completamente estarrecida diante
de tal afirmação, foi imediata e, na tentativa dereagir a esta declaração, que transferia para a
vítima a culpa da agressão sexual, organizou-se um movimento feminista denominadoSlutwalk,
em português,Marcha das Vadias.
O primeiro protesto reuniu, nas ruas de Toronto, cerca de três mil mulheres que, juntas,
apropriaram-se da terminologia ―vadia‖ – empregada, de maneira unânime, para depreciar
comportamentos femininos considerados ―inadequados‖ por um determinado grupo ou
convenção social – e saíram às ruas exibindo seus corpos, na maioria das vezes seminus - que
se tornaram tela, dispositivo de resistência e superação frente à opressão (CARSON, 2011).
O movimento logo se espalhou pelos Estados Unidos, com marchas em Los Angeles e
Chicago. Espalhou-se, também, pelo continente europeu, alcançando Amsterdã, França, Itália,
Alemanha; pela América do Sul, chegando ao Chile, Argentina e Brasil. A primeira Marcha das
Vadias brasileira aconteceu em São Paulo, no dia quatro de junho de 2011.
Diante disso, é inegável o quão importante e significativa foi a mobilização organizada
por essas mulheres, como também a capacidade de mobilização e repercussão que elas
conseguiram viabilizar através do ciberativismo. Vale lembrar que o ativismo, conforme
esclarece FUAD-LUKE (2009), nos dias de hoje, assumiu uma forma bastante pluralista, com o
apoio das Tecnologias de Informação e Comunicação – TIC‘s e, assim, se configura através de
movimentos, na maior parte das vezes coletivos, cujo objetivo maior é desafiar a hegemonia dos
grupos elitistas e das autoridades – sejam elas governamentais ou não-governamentais – que
ditam as regras para a manutenção de um sistema (político, econômico, cultural e social), que
privilegia os interesses das classes dominantes que, por inúmeras questões e contextos, podem

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344
praticar violência, contribuir para a manutenção da desigualdade, deslegitimar a soberania de
um povo, uma raça, um gênero, dentre tantas outras questões.
O que tem se mostrado bastante claro nas ações propostas pelos movimentos ativistas é
a reunião de pessoas com um propósito comum, orientadas em grupos com interesses especiais,
em torno de questões específicas, que podem ter foco antropocêntrico (pró-vida, contra ou a
favor do aborto, contra guerras, em prol da maternidade, do feminismo ou das questões raciais),
foco na política (regimes ditatoriais e escravocratas) e, ainda, foco na economia (a favor ou
contra o capitalismo, liberalismo ou socialismo), dentre inúmeros outros. Mas, neste caso, o
foco é em prol do movimento feminista e contra a discriminação de gênero.

Todos os ativistas estão envolvidos em provocar


mudanças que favorecem a sua visão de mundo , isto é,
como eles vêemo(s) atual(is) paradigma(s) e as questões
associada(s) a ele(s). A mudança implica passar do "estado
A‖ de um sistema para o ―estado B‖. Isso pode envolver
uma transformação do sistema e de seus públicos-alvo ou
grupos sociais, mas muitas vezes também envolve a
transformação individual dos próprios ativistas (FUAD-
LUKE, 2009, p.5)124.

E foi justamente isso que aconteceu na Marcha das Vadias: mulheres que, até então,
não militavam juntas em prol do movimento, se reuniram, de forma rápida e dinâmica,através
das redes sociais mediadas pelas tecnologias – como o Facebook, o Twitter e o Instagram –,
intercambiaram informações e, unidas, identificaram a melhor maneira de tornar o movimento
expressivo, ou seja, na Marcha das Vadias, o que imperou foi a exibição do corpo-rede
(in)dócil.
Se o corpo contemporâneo pode ser traduzido como um objeto histórico, polissêmico,
heterogêneo, instituído em uma realidade, especialmente, multifacetada, é possível inferir que o
corpo é, sobretudo, singular. ―cada sociedade tem seu corpo, assim como ela tem sua língua‖, já
diria Michel de Certeau (1982, p.180), em Histoires Du corps. Neste sentido, vale ressaltar que
o corpo está em constante mutação, adaptando-se à época em que é experienciado. Trata-se de
um processo simbólico, constituído pela cultura, pela tecnologia disponível, pela capacidade de

124
All activists are involved in inculcating change that favours their ‗world-view‘, i.e. how they see the current
paradigm(s) and the associated issues. Change implies moving from ‗state A‘ of a system to ‗state B‘. This may
involve a transformation of the system and its target audiences or social groups, but often also involves the
transformation of the individual activists too (FUAD-LUKE, 2009, p.5).

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

345
transformação e adaptação ao tempo em que existe. Segundo o pesquisador David Le Breton,
professor de Sociologia e Antropologia na Universidade Marc Bloch de Strasbourg (França) e
um dos especialistas da atualidade que mais desenvolve estudos sobre o corpo (considerado, na
perspectiva do pensador, como particular, múltiplo, lesado, esfacelado) e a corporeidade, o
corpo é, essencialmente, uma representação social, idealizado nas visões de mundo das mais
distintas comunidades humanas.

O corpo parece explicar-se a si mesmo, mas nada é mais


enganoso. O corpo é socialmente construído, tanto nas
suas ações sobre a cena coletiva quanto nas teorias que
explicam seu funcionamento ou nas relações que mantém
com o homem que encarna. [...] O corpo é uma falsa
evidência, não é um dado inequívoco, mas o efeito de uma
elaboração social e cultural (LE BRETON, 2011, p. 26).

Sendo assim, no caso da Marcha das Vadiaspercebe-se que o corpo estabelece uma
estreita relação com o mundo e com o outro, com o tempo e espaço, permitindo inferir um
estatuto de existência do corpo que é o da rede. Anne Cauquelin tem uma definição bem
interessante de rede a partir da perspectiva da arte e que pode ser adaptada tranquilamente para a
noção deste corpo com status de rede. Segundo ela, em tempos extremamente direcionados
pelos meios de comunicação, aportados por canais tecnológicos ligados entre si e conectados,
simultaneamente, em diferentes graus, a noção de indivíduo esfacelou-se, assim como a de
sujeito comunicante, cedendo lugar a ―uma produção global de comunicação. É o que se designa
também como interatividade‖ (CAUQUELIN, 2005, p.59-60). Ao propor tal reflexão, ela avalia
o circuito da arte contemporânea – perpassando pela noção de consumo, mercado, papel do
artista, do público, do marchand, do colecionador, da critica, da mídia e, enfim, da própria obra
– e conclui que o valor125 da arte, atualmente, está associadoe é determinado diretamente pelas
TIC‘s e, consequentemente, pela rede. ―Antes de ter sido exposta, a obra do pintor, ou mais
precisamente, seu signo, já circula nos circuitos da rede. O signo precede, pois, aquilo que é
signo‖ (CAUQUELIN, 2005, p.13).
Apropriando-se dessa perspectiva, podemos fazer uma analogia com o corpo e induzir
que a expressividade, potência e indocilidade que ele conquistou na Marcha das Vadias só foi

125
Valor, neste caso, refere-se tanto ao preço de mercado de uma obra de arte, como também o seu reconhecimento e
mérito.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

346
possível devido à interação em rede. O corpo das ativistas – revestido na aura da rede, tornou-se
sistêmico, envolto por uma linguagem simbólica e relações de poder – retroalimentando a sua
organicidade, produzindo e compartilhando valores, sentidos e crenças capazes de emergir em
um movimento com expressividade internacional, em que corpos foram utilizados como
dispositivo de resistência, pujantes, reativos e, sobretudo, como meio para combater a violência
praticada contra uma minoria – lembrando que minoria, neste caso específico, não pode ser
entendida apenas no sentido quantitativo, mesmo porque, em se tratando de números, existem
mais mulheres do que homens no mundo, mas minoria, aqui, deve ser entendida, como aponta
Muniz Sodré, como uma ―(...) fusão gregária mobilizadora como dispositivo ou a multidão ou
ainda um grupo, mas principalmente, um dispositivo simbólico com uma intencionalidade ético-
política dentro da luta contra-hegemônica (SODRÉ, 2005, p.11). Assim, procuramos
caracterizar minorias considerando questões como a vulnerabilidade jurídico-social, identidade,
luta contra-hegemônica e estratégias discursivas, e isso faz com que as mulheres se configurem
como uma das minorias mais representativas da contemporaneidade, retroalimentando a
necessidade do corpo resistir veementemente.

Referências:

CARSON, Brian. SlutWalk Toronto 2011. Califórnia: Blurb, Incorporated, 2011.

CAUQUELIN, Anne. Arte contempor nea: uma introdução. São Paulo: Martins, 2005.

o
CERTEAU, Michel de. Histoiresdu corpos. Escprit, n 62, fevereiro 1982. P.180

FUAD-LUKE, Alastair. Design activism – beautiful strangeness for a sustainable world.


London: Earthscan, 2009.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA & DATAFOLHA INSTITUTO DE


PESQUISA. Visível e invisível: A vitimização de mulheres no Brasil. Acesso em 30 mar.
2016. Disponível em: <http://www.forumseguranca.org.br/wp-
content/uploads/2017/03/visivel_invisivel_apresentacao.pdf>.

a
LE BRETON, David. A Sociologia do corpo. 5 ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes. 2011.

SODRÉ, Muniz. Por um conceito de minoria. In: PAIVA, Raquel; BARBALHO, Alexandre
(Org.). Comunicação e cultura das minorias. São Paulo: Paulus, 2005. p.11-14.

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347
MULHERES MILITANTES:
A EXPOSIÇÃO DO CORPO, A DIVULGAÇÃO DAS IDEIAS
E A CONSTRUÇÃO DE COLETIVOS NAS REDES SOCIAIS

José Heleno Ferreira126

Resumo:

O uso das redes sociais como espaço para militância feminista e LGBTQA e a
exposição do corpo no espaço virtual são os temas desta pesquisa, tendo Louro
(2000)como principal referencial teórico, além de César (2009) e Felipe (2006).
Buscou-se compreender como mulheres engajadas em coletivos feministas e LGBTQA
utilizam as redes sociais para o exercício de sua militância, bem como a percepção das
mesmas acerca da contribuição dessas mídias para o avanço das lutas quanto às
questões de gênero, além da análise que fazem sobre a exposição dos corpos femininos
e masculinos nestes espaços midiáticos. Para isso, foram entrevistadas cinco mulheres
que participam do Coletivo Clarissas e ou do Coletivo LGBTQA UEMG, na cidade de
Divinópolis – MG. A análise das entrevistas indica, de um lado, a potencialização dos
estereótipos machistas e homofóbicos nas redes sociais, por outro, a possibilidade de
estabelecer diálogos, bem como a divulgação das ideias dos movimentos através dessas
mesmas redes. Outro fator importante a ser analisado diz respeito ao conflito entre a
manifestação coletiva e o direito à individualidade. As pontuações feitas pelas
entrevistadas salientam a dicotomia entre a exposição nas redes sociais, considerada
necessária, no caso destas mulheres, para o enfrentamento de suas lutas contra o
machismo e a homolesbofobia, e o anseio pelo respeito à individualidade e à
subjetividade, por vezes, negadas nos próprios coletivos.

Palavras-chave: corpo; militância; redes sociais; subjetividade

126
Professor – UEMG – Unidade Divinópolis, Mestre em Mídia e Conhecimento (UFSC)

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348
O corpo fala. Corpos podem ser dóceis... ou docilizados. O controle sobre os
corpos é objeto de disputa política ao longo da história da humanidade. O corpo é
educado (LOURO, 2000). E a educação dos corpos, bem como, num sentido mais
amplo, as relações entre gênero, sexualidade e educação, não estão imunes ao jogo das
forças políticas.
César (2009) analisa os processos históricos pelos quais passou (e passa) o
debate em torno da diversidade sexual, das questões de gênero e da educação sexual ao
longo dos séculos XIX e XX, no Brasil e em países europeus. A análise da autora
evidencia a estreita relação entre momentos em que as forças políticas democráticas são
hegemônicas e uma maior abertura em relação ao debate acerca das questões de gênero
e educação sexual. Em contrapartida, nos momentos em que há um fortalecimento do
autoritarismo, como no caso da sociedade brasileira, que enfrentou duas longas
ditaduras durante o século XX, fecham-se as possibilidades de discutir a temática nos
estabelecimentos educacionais e nos espaços políticos e institucionais de forma geral.
Os últimos anos têm sido marcados por uma explosão de manifestações em
defesa da liberdade das mulheres e de todas as pessoas que, de alguma forma, fogem à
heteronormatividade, quanto à expressão de seus desejos, quanto ao direito de dispor
livremente de seus corpos e de sua sexualidade, quanto à exibição de seus corpos e a
ocupação dos espaços públicos. Por outro lado, assiste-se também a uma reação
conservadora no sentido de coibir tais manifestações. No campo educacional, esta
reação conservadora tem se materializado em projetos de lei que proíbem o debate
quanto à questão de gênero e quanto à sexualidade e em movimentos que buscam
impedir que os documentos educacionais aprovados pelos legislativos – em suas
diversas instâncias – façam referência à questão.
Felipe (2006) analisa as representações de gênero, sexualidade e corpo na mídia
no Brasil ao longo dos últimos anos do século XX e início do século XXI. Afirma a
autora que:

A velocidade com que surgem novas tecnologias tem possibilitado a


emergência de outras instituições culturais que, de uma forma ou de
outra, acabam por educar e auxiliar na construção de identidades de
meninos e meninas, jovens e adultos. Neste sentido, a mídia se tornou,
nas últimas décadas, um poderoso instrumento de produção de
conhecimento. (p. 44)

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

349
Em comum, as três autoras têm a fonte: Michel Foucault, que com ―Vigiar e
punir‖ (1987) nos possibilitou compreender os processos históricos através dos quais os
corpos foram sendo moldados a interesses diversos.
Neste trabalho, buscou-se compreender como mulheres engajadas em coletivos
feministas e LGBTQA utilizam as redes sociais para o exercício de sua militância e a
análise que fazem dessas mídias quanto à contribuição para o avanço das lutas quanto às
questões de gênero. Foram ouvidas cinco mulheres, estudantes universitárias, entre 20 e
25 anos de idade, que participam de coletivos feministas e ou coletivos LGBTQA (duas
das cinco mulheres ouvidas participam simultaneamente de um coletivo feminista e de
um coletivo que reúne mulheres homossexuais) no município de Divinópolis – MG.
Neste trabalho, os nomes citados são fictícios, sendo preservada a identidade das
mulheres que contribuíram com a pesquisa.
As entrevistadas utilizam redes sociais diversas, mas, com maior frequência,
utilizam o facebook. Estão conectadas diariamente, entre três e cinco horas por dia (duas
delas afirmam estarem conectadas mais de cinco horas diárias). As redes sociais são
utilizadas, segundo as mesmas, para ter acesso aos grupos de discussão e a notícias e
informações de seus interesses, mas também em busca de entretenimento.
Concordam, todas elas, que numa sociedade capitalista e hedonista, o corpo é
transformado em objeto, sobre o qual incidem os anúncios publicitários e em torno do
qual se desenvolve uma lucrativa rede de empresas. São também unânimes ao afirmar
que as redes sociais potencializam a imagem de um corpo padronizado pela sociedade
de consumo. Ao responderem às questões acerca desses dois tópicos, todas afirmaram
concordar plenamente. São, ainda, otimistas quanto ao potencial dessas mesmas redes
sociais como espaço de combate à ditadura do corpo perfeito. Apenas uma entre as
cinco entrevistadas respondeu a esta última questão dizendo que concordava
parcialmente, levantando questionamentos quanto à eficácia e o alcance das redes
sociais.
Ao discutir as relações entre o corpo feminino e o corpo masculino, as mulheres
entrevistadas afirmam que ―até nas redes sociais o homem é mais livre do que a mulher‖
(Amélia). Exemplificam tal afirmativa com o fato de aos homens ser permitido postar
uma foto sem camisa, enquanto as mulheres, se fizerem o mesmo, sofrerão censura e

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

350
serão bloqueadas pelas próprias redes sociais. ―Em redes sociais como o facebook,
mamilos (sim, mamilos) femininos são expressamente proibidos enquanto mamilos
masculinos circulam livremente, como[também acontece] nas ruas‖ (Maria). Discutem,
ainda, o fato de as mulheres sofrerem de forma reiterada a cobrança quanto ao corpo
perfeito. Analisam os comentários dos internautas a respeito das imagens do corpo
feminino nas redes sociais, ressaltando os termos pejorativos que são utilizados para se
referir àquelas que não exibem o corpo padrão, de acordo com os critérios midiáticos.
Ou seja, se a mulher é gorda, se não apresenta com um penteado considerado aceitável,
se não se veste de acordo com os ditames da moda etc., mais facilmente será chamada
de ―feia‖, ―vagabunda‖ (Maria). No caso das mulheres negras a situação se agrava. São
comuns os comentários pejorativos em relação àquelas que postam fotos com um
penteado e adereços que remetem à cultura afro. Nesse caso, diz Madalena, outra das
entrevistadas, além dos comentários jocosos em relação ao corpo, serão condenadas por
exibicionismo. Afirmam, ainda, que os comentários sobre as fotos masculinas são mais
fraternos, enquanto os comentários sobre as fotos femininas, via de regra, fazem
referência à beleza física.
Tal afirmação corrobora a ideia de que, no que diz respeito ao corpo masculino,
a cobrança é menor. No entanto, aquele homem que se assume como homossexual
enfrentará as mesmas dificuldades. ―Tão bonito, pena que é gay‖ é um comentário
recorrente, diz Nara, complementando: ―não consigo ver qual é a relação do corpo e a
condição sexual deste. Daí vemos novamente o preconceito exacerbado, se não for
‗homem-branco-cis-hétero‘, não vale.‖
As redes sociais são apontadas como instrumentos que potencializam o discurso
de ódio, bem como o culto ao corpo esbelto, de acordo com os padrões midiáticos. ―O
que eu percebo nas redes sociais é que existe um ego muito grande entre as pessoas, elas
sempre procuram demonstrar corpos e roupas perfeitas, cabelos sempre bem
arrumados‖ (Amélia). Afirmam, ainda, que o número de pessoas que curtem as imagens
postadas massageia o ego e alimenta a ―ditadura dos corpos‖ (Madalena). Discutem
também a potencialização das manifestações de racismo, homofobia, machismo,
misoginia e intolerância religiosa, uma vez que as pessoas ―despejam suas opiniões nas
redes sociais‖ (Amélia) e se sentem protegidas pelo anonimato (Maria) ou, ainda, pela
posição confortável daquele(a) que está instalado em frente a um dispositivo eletrônico

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

351
e não precisa encarar diretamente o(a) seu(sua) interlocutor(a) (Madalena). Citam,
ainda, a proliferação de páginas que abordam conteúdos claramente misóginos e
homofóbicos, tais como a página intitulada ―Orgulho de ser hétero‖. Transcreve-se, a
seguir, trecho de uma das entrevistas com uma análise contundente a respeito.

Creio se tratar de uma falência ética das pessoas em entender que se


trata ali de uma pessoa ou comunidade, e que as necessidades e
particularidades devem ser respeitadas. O poder da fala e da opinião é
deturpado para satisfazer um narcisismo ideológico (muitas vezes
desprovido de ideologia) ou pessoal. A rede social nos dá o espaço de
expressão que o cotidiano não nos dá, além disso, o número de
informações sobre as quais se podem opinar é muito maior; a carência
afetivo-social atual permite que estes sujeitos encontrem seu espaço e
somente seu espaço os interessa. (Maria)

Embora afirmem a contribuição das redes sociais para a potencialização do


discurso de ódio, afirmam também o papel potencializador da mobilização social por
essas mesmas redes: ―da mesma forma que as redes sociais potencializam o discurso de
ódio, potencializam a mobilização social, isso porque as pessoas que se identificam se
encontram, o que facilita a troca de ideias e as mobilizações sociais ganham mais força
(Lúcia). Nesse sentido, as cinco mulheres ouvidas afirmam a importância das redes
sociais para a organização dos coletivos dos quais participam e para a realização dos
eventos desses mesmos coletivos. Problematizam este potencial ao questionar o efeito
real da militância na internet sobre as políticas públicas. Pontuam mudanças que vêm
acontecendo por parte de algumas empresas e marcas na divulgação de seus produtos,
numa clara reação à reação da opinião pública, mas salientam o fato de que tais
mudanças acontecem por razões comerciais, uma vez que as empresas não querem
perder uma fatia do público consumidor. Em todo caso, reconhecem que tais mudanças
são importantes para o fortalecimento das lutas sociais e para a educação das novas
gerações.
Uma das mulheres entrevistadas, militante feminista e lésbica, afirma que as
minorias sociais têm conquistado espaço e credita este avanço também às redes sociais.
Exemplifica com sua história esta afirmação:

nasci em uma cidade do interior,sou ‗mulher lésbica‘. Na minha


cidade eu jamais tinha ouvido falar em feminismo e em movimento
LGBTQA, se não fossem as redes sociais talvez eu demorasse mais

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

352
tempo para me entender e me assumir, não havendo nenhuma
referência e nenhum apoio,que seja virtual. (Amélia)

Voz dissonante quanto à posição entusiástica relacionada ao potencial das redes


sociais nos processos de mobilização social, Nara afirma que ―em cada época houve um
indicador que potencializou mobilizações sociais, os avanços tecnológicos fizeram das
redes sociais um meio de alcance maior para tais movimentos‖.No entanto, a militante
feminista aponta os limites da mobilização via redes sociais, que atinge uma parcela da
juventude, mas deixa ainda milhões de sujeitos sociais, especialmente o grande
contingente que ainda não têm acesso à internet à margem. Salienta ainda que o
cotidiano das mulheres operárias, bem como daquelas que pertencem aos grupos sociais
que enfrentam maior vulnerabilidade social, não é problematizado nas discussões dos
coletivos feministas e LGBTQA.
Por fim, coloca-se em discussão a questão da individualidade. Até que ponto a
organização em coletivos respeita a individualidade, a subjetividade de cada uma dessas
mulheres? Até que ponto o pertencimento a um coletivo não impõe regras de conduta e
posicionamentos que, por vezes, anulam a individualidade dessas militantes?
Não se trata de uma questão nova. Em ―Mulheres e militância‖ (2012)
encontramos essa mesma problemática abordada sob o viés da subjetividade negada às
mulheres que participaram ativamente da luta armada contra a ditadura civil-militar no
Brasil, nos anos 1970. Foram nove as mulheres entrevistadas pelas organizadoras do
livro. Essas nove mulheres, que se diferenciam quanto à posição social, quanto aos
organismos dos quais participaram, afirmam, em depoimentos colhidos três décadas
após terem enfrentado a prisão e, em alguns casos, a tortura, a necessidade de
reconhecimento da individualidade. Noutras palavras, afirmam a importância dos
sonhos coletivos, bem como a importância de não abrir mão dos sonhos que fazem com
que cada uma delas seja também reconhecida como a mulher, a pessoa, o indivíduo que
é.
As pontuações feitas pelas entrevistadas salientam a dicotomia entre a exposição
nas redes sociais, considerada necessária, no caso destas mulheres, para o enfrentamento
de suas lutas contra o machismo e a homolesbofobia, e o anseio pelo respeito à
individualidade e à subjetividade, por vezes, negadas nos próprios coletivos. São
pontuações importantes que nos permitem vislumbrar, ainda que inicialmente,

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353
considerando as limitações do trabalho aqui apresentado, desafios colocados às
mulheres militantes:
* o enfrentamento das demandas relacionadas à individualidade e da
subjetividade, demanda esta que, ao longo do tempo, vem sendo colocada por mulheres
militantes;
* o desafio de alcançar, através da militância feminista, mulheres que não têm
acesso às redes sociais, mulheres de gerações anteriores e também aquelas que se
encontram em situação de vulnerabilidade social;
* o desafio cotidiano de enfrentar, nas redes sociais, as reações carregas de
machismo, homolesbofobia e misoginia.
Se muitos os desafios. Mas as lutas das mulheres anunciam que eles serão
enfrentados. E que o novo, que sempre vem, anuncia-se por entre as fimbrias do velho
que resiste e, por vezes, insiste em se instalar.

Referências:

CÉSAR, Maria Rita de Assis. Gênero, sexualidade e educação: notas para uma
epistemologia. Educar, Curitiba, n. 35, p. 37-51, 2009. Editora UFPR.

GIAMORDOLI-NASCIMENTO, Ingrid Faria; TRINDADE, Zeidi Araújo; SANTOS,


Maria de Fátima de Souza (Orgs.). Mulheres e militância: encontros e confrontos
durante a ditadura militar. Belo Horizonte, MG: UFMG, 2012.

FELIPE, Jane. Representações de gênero, sexualidade e corpo na mídia. Revista


Tecnologia e Sociedade, v. 2, n. 3, p. 41-53, 2006. Editora UFRGS.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel


Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes, 1987.

LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2 ed. Belo


Horizonte, MG: Autêntica, 2000.

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354
O sofrimento endereçado ao outro: a automutilação no espaço virtual

Juliana Falcão Barbosa de Araújo127


Terezinha de Camargo Viana128

RESUMO
Este trabalho objetiva abordar a relação dos sujeitos com o próprio corpo e com o olhar
do outro. O corpo tem sido objeto de estudo frequente entre psicólogos e psicanalistas,
visto que algumas formas de sofrimento que chegam aos consultórios e hospitais se
manifestam através do corpo, como os transtornos alimentares, dores crônicas e
automutilações. Neste texto, toma-se como objeto de estudo a automutilação – o ato de
machucar o próprio corpo deliberadamente. Vislumbra-se apresentar uma leitura da
automutilação como forma silenciosa de endereçamento do sofrimento, uma busca de
suporte no outro, através do oferecimento do próprio corpo machucado ao olhar do
outro. Além de chegar aos consultórios e hospitais, o corpo automutilado aparece no
espaço virtual em forma de imagem e texto, em sites e blogs que funcionam como
diários virtuais a serem lidos e olhados. Como estratégia metodológica, partiu-se da
análise de trechos do livro Cutting it out: a journey through psychotherapy and self-
harm (2006, sem tradução para o português), escrito por Carolyn Smith, no qual a
autora conta sua experiência de tratamento da automutilação através da psicoterapia. O
livro, embora tenha sido somente publicado em papel, oferece elementos para pensar e
identificar mecanismos que estão presentes também em publicações virtuais sobre
automutilação. Conclui-se que há uma mudança significativa no alcance do olhar do
outro desde que se passou a utilizar o espaço virtual para falar de si, acarretando em
uma mudança na relação com o outro e, consequentemente, na relação com o próprio
corpo e o próprio sofrimento.

Palavras-chave: Corpo; Automutilação; Sofrimento; Olhar do outro; Espaço virtual.

127
Psicóloga. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura –
Universidade de Brasília.
128
Professora Titular. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura – Universidade de
Brasília.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

355
Este trabalho pretende abordar a relação dos sujeitos com o próprio corpo e com
o olhar do outro. Algumas formas de sofrimento que chegam aos consultórios e
hospitais se manifestam através do corpo, como os transtornos alimentares, dores
crônicas e automutilações. Neste texto, toma-se como objeto de estudo a automutilação.
Aqui, estamos nos referindo a pessoas que machucam o próprio corpo de formas
diversas, através de cortes, queimaduras, autoespancamento, dentre outras.
A automutilação é uma questão clínica que tem aparecido com frequência nos
consultórios dos psicólogos e psicanalistas, assim como nas escolas, especialmente
entre os adolescentes. É também um tema tratado pela psiquiatria, de modo que muitas
pessoas que machucam o próprio corpo são encaminhadas para tratamento psiquiátrico.
No Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), atos de
automutilação aparecem, por exemplo, na forma de um transtorno específico, no
Transtorno de Escoriação (Skin-Picking). Aparece também como um sintoma dentre os
critérios diagnósticos de alguns outros transtornos, como Transtorno de Personalidade
Borderline e Transtorno Dissociativo de Identidade.
A automutilação não é uma prática nova, visto que é possível verificar relatos e
estudos de caso que retratam formas de marcar o corpo ao longo de toda a história, seja
em rituais grupais, religiosos ou não, seja em contextos relacionados a doenças ou
perturbações mentais. Fortes (2016) indica que vários estudos epidemiológicos
(GAUTHIER, 2007) têm mostrado que os comportamentos de automutilação tiveram
um aumento considerável nos últimos 30 anos. Tais atos costumam surgir na
adolescência, podendo se estender por um período curto ou se prolongar pela vida
adulta.
Neste trabalho, entretanto, vislumbramos apresentar uma leitura da
automutilação não como um transtorno mental, como na leitura psiquiátrica, mas como
uma forma silenciosa de endereçamento do sofrimento, uma busca de suporte no outro,
através do oferecimento do próprio corpo machucado ao olhar do outro.
Como estratégia metodológica para este trabalho, partimos da análise de trechos
do livro Cutting it out: a journey through psychotherapy and self-harm (Uma jornada
pela psicoterapia e automutilação – sem tradução para o português, tradução livre)
lançado em 2006. O livro foi escrito pela britânica Carolyn Smith e se trata de um relato
autobiográfico, no qual a autora conta sua experiência de tratamento da automutilação

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

356
através da psicoterapia. O livro, embora tenha sido somente publicado em papel, oferece
elementos para pensar e identificar mecanismos que estão presentes também em
publicações virtuais sobre automutilação.
Como o escrito representa um registro concreto, por exemplo, uma existência
concreta de memórias, os cortes realizados por um automutilador também representam
um registro concreto de algo que se deseja comunicar. Um escrito registrado no corpo.
No livro, Carolyn escreve na forma de um diálogo consigo mesma: ―Conte suas
cicatrizes. Não as deixe desaparecer. Se elas desaparecerem você não será real, não
existirá. A dor mantém você viva, traz você de volta‖ (SMITH, 2006, p.15).
Foi possível contatar a autora através de e-mail e trocar algumas mensagens
sobre o processo de escrita do livro. Carolyn Smith considera que a escrita do livro, o
próprio ato de escrever, ajudou-a a interromper sua prática de automutilação. Em um
dos e-mails, ela relatou:

O ato de escrever me ajudou a entender muitas coisas na minha cabeça e me


ajudou a parar de me automutilar. As pessoas perguntam por que eu escrevi o
livro e a única resposta que eu posso dar é porque eu precisei. Eu escrevi um
pouco todos os dias e foi como se estivesse arquivando todos os meus
pensamentos, como se uma vez que eu os tivesse escrito, eles estavam fora de
mim e eu podia seguir em frente‖ (E-mail pessoal, 23 de maio de 2007).

No corpo automutilado, os cortes e as cicatrizes contam uma história e guardam


um registro, uma memória. Diana Corso e Mário Corso, em seu texto Eu me inscrevo,
me descrevo: escrevendo em mim (2008), lembram-nos que Freud, ao pensar sobre as
neuroses de guerra, percebia que os mais afetados pelo horror do que tinham vivido
eram os que não portavam nenhuma marca visível. Quem havia ficado com uma
cicatriz, uma lesão, ou perdido um membro, paradoxalmente, estava menos vulnerável
às más lembranças. Um dos dramas de quem passou por experiências limites é não
encontrar quem tenha verdadeira empatia com suas memórias. Nesse caso a marca no
corpo cristalizava o intransmissível da sua experiência de horror. As marcas do
sofrimento ajudam a certificar-se de que aquilo realmente ocorreu e de que nossa dor
procede.
Na leitura psicanalítica, é a partir do olhar do outro que passamos a existir
enquanto sujeitos. Podemos pensar na autobiografia como uma tentativa de ser olhado,
de se fazer olhar. Quando se publica um livro autobiográfico, deseja-se que alguém o

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357
leia, que alguém volte seu olhar para a vida daquele que escreve. De modo semelhante,
é possível pensar que todo corte na pele possui um endereçamento, afinal a pele é a
parte visível do corpo humano. Mesmo que se tente esconder, é comum que,
inconscientemente, deseje-se ser visto e decifrado.
Ainda no livro Cutting it out, ao narrar outra sessão de análise, no dia seguinte
em que havia se cortado com uma lâmina, Carolyn descreve o que sentia enquanto
estava deitada no divã:

Ela não me pressiona para falar, mas continua sentada calmamente e eu posso
senti-la me observando. Eu começo a ficar inquieta. E, de repente, a pulseira
do meu relógio parece extremamente importante. Eu preciso examiná-la. Eu
sinto o momento em que ela vê os novos cortes, no mesmo braço em que eu
uso o meu relógio. Talvez eu realmente quisesse que ela os visse, mas eu não
quero falar sobre eles (SMITH, 2006, p.79).

Além de chegar aos consultórios e hospitais, o corpo automutilado aparece no


espaço virtual em forma de imagem e texto, em sites e blogs que funcionam como
diários virtuais a serem lidos e olhados. Ganha uma nova roupagem com a internet e a
forma de se endereçar ao outro virtualmente. Estudar as autobiografias e os textos
literários que se apresentam na forma de diários ou de escrita íntima pode ajudar o
clínico a perceber mecanismos, desejos e motivações associados aos atos de mutilação
voluntária. Pode fornecer uma metáfora para pensar sobre um processo de voltar a
energia para si próprio - o próprio diário, o próprio corpo, a própria pele – e, ao mesmo
tempo, desejar que o outro olhe, ou que o outro descubra. Schittine (2004) aborda o
blog como o novo diário íntimo. Para ela, o blog gera um relacionamento em via dupla
entre um autor disposto a contar sua vida íntima a um público desconhecido e um
público que se propõe a ler sobre ela e a comentá-la.
Fortes (2016) fala sobre uma precariedade da dimensão da alteridade que, a seu
ver, é um traço não somente da automutilação, mas do sofrimento psíquico
contemporâneo. Ela faz esta avaliação após refletir sobre testemunhos colhidos em
blogs de automutilação em que vários jovens apontam a ausência de um destinatário
para a sua dor ou a ausência de um interlocutor com quem desabafar. A reflexão sobre a
ausência de um outro que possa acolher a dor é fundamental para entendermos esse
modo de sofrimento psíquico que se configura por meio de uma descarga direta na
dimensão do corpo. A análise das narrativas desses blogs revelou um vazio ali onde se

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358
esperava a presença do outro. Ela enfatiza que o sentimento de solidão entre esses
jovens é intenso, vindo os testemunhos na rede ocupar a função do Outro inexistente.
Para Fortes (2016), a ausência do Outro reforça a impossibilidade de encontrar
palavras para a dor. O sofrimento psíquico deve ser endereçado ao outro, o qual
oferecerá um espaço de ressonância no qual o sujeito pode legitimar a sua dor. Se a dor
não ressoa em ninguém, ela se mantém no próprio sujeito e, segundo a hipótese da
autora, é redirecionada para o próprio corpo.
Neste sentido, há uma mudança significativa no alcance do olhar do outro desde
que se passou a utilizar o espaço virtual para falar de si, acarretando em uma mudança
na relação com o outro, com o próprio corpo e o próprio sofrimento. O livro do qual
citamos alguns trechos foi somente publicado em papel. A autora provavelmente
recebeu alguns retornos acerca de sua escrita e de sua automutilação por e-mail, ou
através da editora. Já na internet, consegue-se alcançar muito mais gente em questão de
segundos e consegue-se um retorno imediato acerca do que se expôs - o que pode ser
um remédio ou um veneno. Protegidos pelo anonimato, os comentários a respeito de
uma foto ou texto publicado podem levar uma pessoa a um alívio ou a um desespero.
Assim, podemos afirmar que automutilação e escrita estão relacionadas, pois
ambas são formas poderosas de comunicação de um sofrimento. A escrita, assim como
aconteceu com Carolyn, pode ajudar um automutilador a interromper o ciclo de
autoagressão a partir do momento em que usa as mãos para comunicar sentimentos no
papel, ao invés da pele. Na automutilação, entende-se que estas marcas, cortes e
cicatrizes buscam um olhar, uma escuta e uma leitura. Talvez o ato de escrever sobre o
sofrimento em outro lugar (no papel, no diário, ou mesmo na internet, em blogs) seja
um exercício interessante para uma mudança de posição subjetiva, para deixar que o
escrito siga seu curso em outro lugar, ao invés de ficar aprisionado no próprio corpo.

REFERÊNCIAS

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. DSM-5: manual diagnóstico e


estatístico de transtornos mentais. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.

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359
CORSO, Diana.; CORSO, Mário. Eu me inscrevo, me descrevo: escrevendo em mim,
2008. Disponível em: http://www.marioedianacorso.com/eu-me-inscrevo-me-descrevo-
escrevendo-em-mim. Acesso em: 18/11/2016.

FORTES, Isabel. A automutilação e a dimensão da alteridade. In: NOVAES, J. V. &


VILHENA, J. (org.). Que corpo é este que anda sempre comigo?: corpo, imagem e
sofrimento psíquico. Curitiba: Appris, 2016.

SCHITTINE, Denise. Blog: comunicação e escrita íntima na internet. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2004.

SMITH, Carolyn. Cutting it out: a journey through psychotherapy and self-harm.


Philadelphia, Jessica Kingsley Publishers, 2006.

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360
Reflexões acerca da constituição psíquica e da sociedade de consumo:
um diálogo entre psicanálise e tecnologia

Paula Pegado129
Junia de Vilhena130

Resumo:
Na geração atual caracterizada pelo excesso,a sensação de pertencimento na sociedade
ocorre pela via do consumo. Com essa ilusão de completude existe uma dificuldade
crescente em lidar com os fatos da realidade. Essa ilusão se reflete nas famílias
contemporâneas, que inseridas neste estilo de vida, vivenciam incertezas e inseguranças
cada vez maiores na criação dos filhos. Esse sentimento de inclusão e pertencimento
oferecido na cultura capitalista, com base no consumo, nos faz ressaltar o conceito de
limite e a constituição da realidade psíquica. Para o desenvolvimento satisfatório do
bebê é fundamental que suas necessidades sejam atendidas de forma espontânea para
não romper o ―continuar a ser‖, e gradativamente o lactente irá tolerar a espera e a
―frustração‖, necessárias no lidar com a realidade externa (Winnicott, 1963). Assim,
propomos aqui analisar o contexto histórico-social contemporâneo e dialogar com a
psicanálise, através das ideias de Winnicott, a partir da coleta de materiais em blogs
maternos, sobre as dificuldades em colocar limites nos filhos em uma sociedade em que
o consumo em série é enaltecido.

Palavras-chave: Vínculos de cuidado; pós-modernidade; insegurança; sociedade de


consumo; limite.

Introdução:

Com o passar dos séculos a sociedade sofreu transformações em vários âmbitos,


particularmente no familiar. Desde o período industrial, com a luta por melhores
condições de trabalho, até o surgimento da pílula anticoncepcional e a

129
Mestranda em Psicologia Clínica pela PUC-Rio.
130
Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio.
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361
inserçãofemininano mercado de trabalho, as mulheres conquistaram outro patamar e
alcançaram sua autonomia em relação ao seu corpo e à maternidade – desejando ou não
ter filhos- e até hoje continuam firmando seus direitos e escolhas.Com isso, reflexões
acerca das suas funções e papéis familiares e sociais começaram a ser repensados e
questionados, sinalizando a importância de discutirmos acerca do papel feminino ao
longo da história.
Propomos aquianalisar o contexto histórico-social contemporâneo e dialogar
com a psicanálise, através das ideias de Winnicott, a partir da coleta de materiais em
blogs maternos, sobre as dificuldades em colocar limites nos filhos em uma sociedade
em que o consumo em série é enaltecido. Os sentimentos vivenciados na pós-
modernidade quanto ao futuro, ao trabalho e aos cuidados com os filhos são de
insegurança e incerteza. Em meio a uma sociedade líquida (Bauman,2001), em que as
relações não se sustentam mais nos valores e normas até então vigentes de continuidade
e solidez estruturados na modernidade, surge a necessidade de qualificaçãoconstante
para viver no mundo pós-moderno, instável e fluido. Assim, busca-seno olhar e discurso
dos especialistas a referência de sustentação e o amparo para cuidar dos filhos (Bauman,
1998).
Dessa forma, faremos uma reflexão sobre a constituição psíquica através da
investigação do conceito de limite na atualidade, tendo o consumismo como critério
para desenvolver este conceito. Para tanto, analisaremos cinco blogs escritos por mães,
com o pré-requisito de terem um elevado número de depoimentos e trocas entre as
seguidoras e as blogueiras; além do conteúdo apresentado ser considerado relevante e de
fácil leitura às internautas. Observamos que o apoio através dos comentários em cada
texto fortalece o vínculo entre elas e dá sustentação para que possam continuar cuidando
suficientemente bem dos seus filhos.

Maternagem e a constituição psíquica

No campo da psicanálise, principalmente nas ideias de Donald Winnicott, a


relação mãe-bebê é fundamental para que as fases do desenvolvimento do bebê sejam
construídas. Cabe ressaltar que o termo ―mãe‖ refere-se à função materna, podendo ser
exercido por qualquer pessoa que assuma a função de cuidadora do bebê. Sendo assim,
a partir de suas vivências enquanto pediatra e psicanalista, Winnicottconferiu grande

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

362
relevância para a construção da identidade, enfatizandoa análise dos primeiros anos de
vida do bebê; com a presença materna sendo transmitida pelo ambiente.
O sentimento de inclusão e pertencimento oferecido na cultura capitalista com
base no consumo nos faz ressaltar o conceito de limite e a constituição da realidade
psíquica. Para o desenvolvimento satisfatório do bebê é fundamental que suas
necessidades sejam atendidas de forma espontânea para não romper o ―continuar a ser‖,
e gradativamente o lactente irá tolerar a espera e a ―frustração‖, necessárias no lidar
com a realidade externa (Winnicott, 1963).
Essa transformação do tempo contemporâneo encontra-se na contramão da
construção do tempo interno, singular, de cada sujeito. Segundo Winnicott, os bebês
começam a existir através da relação inicial mãe-bebê, na qual a sua dependência é
absoluta. É fundamental que a função materna esteja identificada ao bebê para que,
dessa forma, possa atender as suas necessidades. Conforme as condições são
vivenciadas pelos bebês, como favoráveis ou desfavoráveis, eles podem vir a se
constituir emocionalmente de diferentes maneiras.
O equilíbrio entre frustração e satisfação transmitido suficientemente bem permite
ao lactente se constituir psiquicamente. O bebê desenvolve o caminho da criatividade a
partir da tolerância a frustração. Em uma cultura na qual a frustração evita ser
vivenciada, observamos o processo criativo diretamente afetado, ou seja, o seu desejo
não aparece. Segundo o autor (1967), as fases iniciais são registros para a organização
do ego em formação e parâmetros para convivência e atitudes na interação social.
O lactente vivencia seu tempo e espaço diferentemente da realidade externa
transmitida pela mãe, pois sua posição inicial não permite maturidade para que
experiencie o mundo externo. Com isso, ele vivencia seu próprio mundo interno, para
que mais adiante - com o cuidado materno – internalize a concepção de tempo e mundo
externo, para além de sua subjetividade (Winnicott, 1949).
Considerando-se os atravessamentos da atualidade, é essencial retratarmos sobre a
preocupação materna primária (Winnicott, 1952), respeitando o ritmo e tempo singular
do bebê em uma cultura em que os valores são fluidos, as relações são instáveise o
sentimento de incerteza predomina (Bauman, 1998). Nesse sentido, contemplamos nos
blogs analisados uma apreciação quanto à naturalidade do cuidado e do saber materno,
prezando este tempo individual de cada bebê.

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363
A sociedade de consumo

A partir do estudo de questõesda sociedade atual como o consumo em excesso e


a valorização material, observamos uma dificuldade dos pais em transmitir limites. As
ofertas inacabáveis, juntamente com a necessidade crescente de adquirir bens materiais,
acarreta nos sujeitos uma procura interminável por descarga imediata de suas
necessidades, como único meio pelo qual seja viável alcançar a felicidade. Esse ciclo
vicioso ilustra o movimento atual que coloca a felicidade como realização momentânea
e não mais como patamar a ser atingido no futuro, sendo preciso se alimentar a todo
instante com novos produtos para ter a sensação constante de prazer.Dessa forma, com
o enaltecimento do consumo e da satisfação a qualquer custo, uma lacuna surge com
relação à percepção da realidade.
Ao longo de todos os textosdos blogsfoi possível analisar que os discursos em
relação à educação das crianças nos dias atuais, principalmente em relação ao limite,
sinalizava a queda da implicação dos pais no exercício de suas funções, sendo
necessário abordar sobre o assunto para impulsioná-los e dar apoio na transmissão das
regras. O mundo atual, acelerado e individualista (Bauman 2001), é refletido no
comportamento das crianças que vivenciam estímulos de todos os lados e não sabem
lidar com a espera. Antigamente a criança precisava esperar dias, horas, para verum
desenho novamente, hoje, com os tablets e a internet, é possível ter acessoa qualquer
momento.

―Também sofro com isso porque mantenho regras e muitas vezes sou mal
interpretada. Isso é bom para as crianças ou serão adultos incapazes de aceitar
e lidar com os nãos da vida e suas frustações‖. (Depoimento C. – Blog
Macetes da mãe)

Porém, em uma sociedade em que o consumo desenfreado é valorizado e tudo se


mostra substituível, ou seja, o ambiente nutridor não se apresenta de forma satisfatória,
intuindo o momento de frustração, colocando os limites e proporcionando um equilíbrio
entre a satisfação e a frustração, há um abalo na percepção da criança com a realidade
externa.

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364
―Necessário deixar de preguiça e participar mais da vida de nossos filhos de
maneira que a mídia não se torne a babá deles!‖. (Depoimento G. – Blog
Vida Materna)

Investigando blogs maternos

Posto isso, observamos, através da análise dos blogs maternos, relatos sobre suas
experiências pessoais e a necessidade em compartilhar essas vivências como meio
através do qual pudessem trocar informações com outras mães sobre o desenvolvimento
dos seus filhos. Essa troca e conexão entre as mães promove o amparo (holding)
necessário para cuidarem suficientemente bem de seus filhos.
Os blogs aparecem como um espaço através do qual as mães buscam respostas
sobre como criar seus filhos e, ao mesmo tempo, percebem um discurso no qual
valoriza o cuidar espontâneo e natural de cada uma em prol do desenvolvimento
saudável e singular de cada criança. A sociedade atual valoriza o saber do outro, do
especialista, e desvaloriza as tradições e a preocupação materna primária,na
qualafunção materna se expressa naturalmente e inclui o gesto espontâneo em cuidar do
seu próprio bebê, intuitivamente, a cada demanda (Winnicott, 1952). Nesse momento, o
discurso contrário dos blogs enfatiza a maior participação dos pais nas suas funções e
promove esse amparo necessário para seguirem.
Aqui nos manteremos nos textos e temas sobre limite, consumo e pós-
modernidade, que são o foco do estudo. Do total de cinco mães, quatro apresentam
ensino superior completo, uma apresenta ensino superior incompleto e duas delas
informam o local de residência – regiões sudeste e sul. Com base nas informações
oferecidas pelas próprias blogueiras e o material analisado nos sites, se classificam nas
classes média/alta da sociedade brasileira.
Assim, mediante uma sociedade que estimula o consumo excessivo e desvaloriza
a espera e o tempo singular, fundamentais para a constituição psíquica saudável de cada
sujeito, percebemos através da análise dos blogs as dificuldades cada vez maiores dos
pais em colocar limites nos seus filhos. As propagandas ao longo dos desenhos infantis,
o excesso de exposição tecnológica e de informações são fatores que interferem no
exercício de suas funções parentais. Cansados pela rotina intensa esquivam-se em dizer
não para evitar choros e birras, optando por atender seus pedidos para, de alguma forma,
poder ―recompensar‖ o tempo em que estiveram ausentes.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

365
As trocas entre as seguidoras e as blogueiras possibilitam o fortalecimento dos
vínculos e permitem observarem, através dos relatos pessoais de cada uma, seus
comportamentos em comum quanto aos cuidados dos filhos. Cabe ressaltar, por fim,que
cada sujeito reagirá de uma maneira diferente em relação a essas demandas da
sociedade atual, consumista. Os sujeitos que não receberam cuidados suficientemente
bons e não tiveram um ambiente nutridor satisfatório, tendem a ter dificuldades em lidar
com a frustração e a satisfação – limite (Winnicott, 1963), ou seja, em exercer suas
funções paternas.

Conclusão

Percebemos o uso dos blogs como caminho através do qual as blogueiras –mães-
encontraram para elaborar suas experiências pessoais na criação dos filhos e, assim,
alcançarem outras mães que vivenciaram situações similares. Não estabeleciam meios
pelos quais as seguidoras deveriam trilhar, ou como seria o jeito ―certo‖ de cuidar dos
filhos, pelo contrário, indagavam a importância da singularidade de cada uma, de
seguirem suas intuições quanto ao melhor para cada criança, fortalecendo a ideia de
Winnicott quanto a preocupação materna primária e a capacidade interna de cada mãe
alcançar as necessidades individuais de seus filhos. Esta visão é distinta das que
podemos observar em outras situações atuais, que valorizam a padronização do cuidado
e a rede de apoio especializado como direção a ser seguida para o desenvolvimento
saudável das crianças, pondo de lado o saber materno, natural e espontâneo.
Constatamos que nos dias de hoje os ideais de alta performance e as exigências
por qualificação têm direcionado os pais – cuidadores- a cuidar de seus filhos a partir da
visão externa, especializada e capacitada, que dita as regras e os percursos pelos quais
devem seguir. A consequência disso aparece na busca pelos blogs como outro meio que
esclareça dúvidas e informe qual direção deve ser seguida, padronizando o cuidado e
desvalorizando a individualidade de cada sujeito. No entanto, nesta pesquisa podemos
observar blogs que instigavam a maior participação dos pais nos cuidados dos filhos,
valorizando o gesto espontâneo com o bebê e proporcionando uma rede de sustentação
(holding) para apoiar o cuidado natural, intuitivo e singular de cada mãe com seus
bebês.

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366
Ressaltamos que os atravessamentos da sociedade de consumopodem influenciar
nos cuidados primários do bebê. É fundamental relatarmos sobre a necessidade de apoio
para esses pais que imersos nesse modo de vida atual, também necessitam de cuidado.
A sociedade encontra-se carente de cuidado com os cuidadores e,sendo assim, afeta
diretamente o cuidado com as crianças. A dificuldade em colocar limites e assumir suas
funções é vista como reflexo dessa realidade. Posto isto,julgamos o presente estudo
como uma temática recente e, por isso, não podemos ainda classificar os impactos dos
blogs na vida dessas mães e, consequentemente, no desenvolvimento dos seus
filhos.Todavia, contamos serde grande relevância para a constituição psíquica do bebê
uma relação com a mãe alicerçada no afeto e naharmonia com o seu bebê.

Referências:

BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

_______. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

Blog A mãe coruja. O seu NÃO também é um ato de amor! 08 de fevereiro de 2017.
Disponível em: <http://www.amaecoruja.com/2017/02/limites-na-infancia/>. Acesso em
10 de fevereiro de 2017.

Blog Macetes de mãe. Ser legal é fácil. Difícil é educar. 19 de Janeiro de 2017.
Disponível em: <http://www.macetesdemae.com/2017/01/ser-legal-e-facil-dificil-e-
educar.html>. Acesso em: 04 de Fevereiro de 2017.

Blog Mãelabaristas. Porque não fazer todas as vontades dos filhos? 22 de dezembro
de 2015. Disponível em: <http://www.maelabaristas.com.br/por-que-nao-fazer-todas-as-
vontades-dos-filhos/>. Acesso em 10 de fevereiro de 2017.

Blog Mamãe Plugada. Amar demais não estraga, mas não ensinar a esperar sim.
São Paulo, 18 de abril de 2016. Disponível em:
<https://www.mamaeplugada.com.br/amar-demais-nao-estraga-mas-nao-ensinar-a-
esperar-sim-5708>. Acesso em 04 de Fevereiro de 2017.

_________. Ensinar as crianças a esperar é mais importante do que imagina! São


Paulo, 13 de abril de 2016. Disponível em:
<https://www.mamaeplugada.com.br/?s=ENSINAR+AS+CRIAN%C3%87AS+A+ESP
ERAR+%C3%89+MAIS+IMPORTANTE+DO+QUE+IMAGINA>. Acesso em 04 de
fevereiro de 2017.

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367
Blog Vida Materna. A influência da mídia na educação das crianças. Curitiba. 08 de
novembro de 2012. Disponível em: <http://www.vidamaterna.com/a-influencia-da-
midia-na-educacao-das-criancas/#comments>. Acesso em 14 de fevereiro de 2017.

FÉRES-CARNEIRO, Terezinha (Org). Família e casal: parentalidade e filiação em


diferentes contextos. Rio de Janeiro: Prospectiva & PUC-Rio,2015.

ROUDINESCO, E. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

WINNICOTT, D. W. O bebê como pessoa. In: A criança e o seu mundo. Rio de


Janeiro: Zahar, (1977 [1964]).

_______. Psicose e cuidados maternos. In: Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro:


F. Alves, 1988.

________. O relacionamento inicial entre uma mãe e seu bebê. In: A família e o
desenvolvimento individual. São Paulo: WMF Martins Fontes, (2013 [1965]).

________. Teoria do relacionamento paterno-infantil. In: O ambiente e os processos


de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, (1988 [1979]).

________.Da dependência à independência no desenvolvimento do indivíduo. In:O


ambiente e os processos de maturação.Porto Alegre: Artes Médicas, (1988 [1979]).

________. O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil. In: O


brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, (1975 [1971]).

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368
Reflexões sobre a vivência da privacidade no Facebook

Eliane Cristina de Freitas Rocha131

Resumo
Este artigo aborda a privacidade no Facebook por meio de discussões teóricas e filosóficas (com
destaque para Arendt, Huizinga e Bauman) e ilustrações de dados empíricos coletados junto a
usuários da ferramenta por questionários e entrevistas. São abordados três aspectos envolvidos
nessa questão: 1- a constituição do Facebook como ambiente público/espaço público; 2- a
regulamentação privada do espaço de visibilidade pública (políticas de privacidade de dados do
Facebook); 3- as táticas, apropriações e vivências dos usuários ao lidarem com este espaço e
com sua regulamentação. A empresa Facebook tem amplo acesso aos dados publicados pelos
usuários, mas não os compartilha de maneira individualizada. Usuários adotam medidas
contraditórias para protegerem sua privacidade: embora eles queiram preservar a intimidade por
meio de autocensura, eles não são conscientes do uso que o Facebook faz de seus dados e não
têm absoluto controle da visibilidade de seus perfis e postagens. O risco que se corre da
contínua exposição não chega a ser profundamente problematizado pelos usuários, pois a
capacidade humana de ação e palavra (de colocar-se como autônomo num mundo constituído
por ele mesmo) não está sujeita a contestações em um sistema técnico digital previamente
configurado e que proporciona um mergulho no espetáculo inebriante das coisas irrelevantes e
belas da vida privada (prevalecendo o espírito lúdico).

Palavras-chave: Facebook; privacidade; intimidade.

1. INTRODUÇÃO
Têm se tornado ponto de discussão importante, para as pesquisas associadas aos fatores
humanos do uso da tecnologia da informação, as ameaças à privacidade dos usuários da rede
social Facebook, dada a característica fundamental da ferramenta de exposição do indivíduo no
ciberespaço e as implicações de tal exposição (ROSA; SANTOS, 2013), incluindo a
problemática da regulamentação privada dos espaços de visibilidade pública.
Este artigo busca entender a vivência da privacidade pelos usuários da ferramenta, por
meio da abordagem de três aspectos envolvidos nesta questão, apresentadas em cada uma de
suas seções subsequentes: a constituição do Facebook como ambiente público/espaço público; a
regulamentação privada do espaço de visibilidade pública (políticas de dados do Facebook); e as
percepções, pelos seus usuários, dos problemas relativos à privacidade decorrentes do uso da
ferramenta.

131
Doutora em Ciência da Informação, Mestra em Comunicação Social, professora da Escola de Ciência
da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais.
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

369
2. O FACEBOOK COMO ESPAÇO PÚBLICO

O homem contemporâneo vive o seu cotidiano tanto no espaço concreto quanto no


ciberespaço. O Facebook é um desses espaços frequentados pelo homem cotidiano onde
acontecem relações entre pessoas, um espaço público no sentido de um espaço de visibilidade
pública, de espaço comum de convivência entre os homens, mas não no sentido do espaço de
domínio estatal (THOMPSON, 1998). O Facebook é um espaço público privatizado por ser um
espaço de convivência (visibilidade pública) regulado por uma empresa comercial, ao mesmo
tempo que é tomado por propriedades privadas (perfis de pessoas físicas e jurídicas que lá se
estabelecem).
É no sentido do espaço público enquanto espaço de convivência entre as pessoas que
normalmente se coloca a problemática da privacidade. Antes da emergência dos meios de
comunicação modernos, os espaços de exposição do indivíduo ao público eram limitados pela
espacialidade concreta, como a que se estabelecia nas igrejas e ruas (THOMPSON, 1998).
Arendt (1993) problematiza que o espaço privado (a esfera privada), na antiguidade, era o reino
da necessidade, da privação da liberdade, do exercício do labor (ligado às necessidades do
corpo) e dos negócios humanos (tendo a economia agrária como base), enquanto o espaço
público (da pólis) era o reino da dignidade e realização humana, onde o homem poderia deixar a
sua marca, por meio do discurso e da ação – era o espaço político ocupado por cidadãos livres
(escravos, mulheres e crianças não eram contemplados).
Com a modernidade, Arendt (1993) e Huizinga (2004) concordam que a vida humana é
dominada pelo utilitarismo, que passaria a balizar a atividade política por critérios de eficiência
e eficácia (ARENDT, 1993), os quais levam à perda do espírito esportivo, ao acirramento de
sectarismos e à procura por divertimentos vulgares e sensacionalistas (HUIZINGA, 2004).
Também há regulamentação da esfera privada (do reino dos negócios humanos, como os
comerciais) pelo Estado, e a vivência da intimidade se configuraria como o refúgio para o
homem, conforme o pensamento romântico de Rousseau (ARENDT, 1993).
Para Baumam (2010), existe uma tendência à dissolução do interesse pela vida pública
política, com o fim da modernidade e o ingresso em uma sociedade pós-industrial, sendo
crescente o interesse do público na vida privada, conforme se pode notar em programas de
televisão cuja temática é espetacularizar o cotidiano e a intimidade (que encontra, no Brasil,
suas manifestações em edições do programa televisivo Big Brother Brasil, por exemplo). Essa
tendência pode ser explicada, também, ao se notar que o espaço público da política se volta para

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

370
questões outrora privadas (como a propriedade e a vida dos indivíduos): como manifestar-se
sobre questões de interesse comum onde o que se discute é o interesse privado, dos negócios
humanos? A busca do espaço de visibilidade pública (o espaço comum) parece se voltar para a
publicização do íntimo como uma realização humana: o homem quer deixar sua marca no
espaço comum/público não pelo discurso e ação ou por aquilo que permanece (como a obra de
arte), mas pela espetacularização de si, tendência que também pode estar associada ao caráter
competitivo existente antes mesmo do processo civilizatório (HUIZINGA, 2004). Para Sibilia
(2015), o mundo contemporâneo redefine a intimidade na extimidade ―em lugar daquela
subjetividade interiorizada que foi hegemônica até pouco tempo atrás, agora se desenvolvem
formas que poderíamos chamar ‗exteriorizadas‘ de ser e estar no mundo‖ (SIBILIA, 2015, p.
144).
O conceito normativo da privacidade – ―são invioláveis a intimidade, a vida privada, a
honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação‖ (BRASIL, 1988) – considera-a praticamente como defesa da
visibilidade. Nota-se a tendência em se considerar a visão intimista do conceito de privacidade
em Rousseau, comentado por Arendt (1993), o qual está voltado para a proteção da intimidade e
hoje em declínio com a extimidade. Melo (2006) acredita que a privacidade é a capacidade do
sujeito administrar o que pode ou não ser visto pelas outras pessoas acerca de si. Cada indivíduo
pode julgar de maneira diferente de outro o que deve ou não ser exposto sobre si mesmo, mas
são as normas culturais e éticas que alicerçam esse julgamento, no entender de Gill et al. (2011).
Têm papel protagonista os meios digitais de comunicação, como das redes sociais, nesse
aspecto, ao seram ativos nas mudanças de costumes relativos à exposição pessoal e aos valores
relativos à privacidade (ROSA; SANTOS, 2013).
A defesa da intimidade é, portanto, relativa. A abertura da vida íntima pode acontecer
deliberadamente, como uma reação ao isolamento crescente dos indivíduos nas megalópoles, o
que levaria ao desenvolvimento de relações interativas como presença reconfortante, no
entendimento de Ferraz (2001). Também o anonimato dos espaços urbanos pode levar à busca
da identidade individual, da notoriedade do nome, aspecto que faria parte da natureza humana
(HUIZINGA, 2004), e obtida cada vez mais por intermédio dos meios de comunicação
(anteriormente de massa e, atualmente, interativos). A tendência à intimização da vida social,
porém, não beneficia a sociabilidade em si, pois a invasão da vida privada íntima volta os
indivíduos para si mesmos: quanto mais intimista é a comunidade, menos sociável ela é
(BAUMAN, 2010). Hannah Arendt (1993) já alertava que a experiência íntima da dor é
incomunicável, por exemplo.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

371
Segundo Bauman (2010), a contínua exposição do sujeito a olhares vigilantes de outros
significa perda de liberdade. Ao se sentir exposto continuamente, o indivíduo tende a ajustar seu
comportamento para obter aprovação de seus observadores, ajustamento tal que se alinha com a
metáfora do prisioneiro em um panóptico (SILVA, 2000).
Ao se considerar os conceitos de liberdade discutidos por Gomes (2002), inspirados na
obra da filósofa Hannah Arendt (1993), a liberdade de colocar a vida íntima sob vigilância não
é, efetivamente, liberdade nem no sentido político (liberdade de ação no espaço público com
autonomia para tratar de questões de interesse público e não de interesse privado/íntimo,
liberdade para criar novas premissas de ação), nem no sentido individual, haja vista a
subserviência aos formatos e padrões quase inquestionáveis dos sistemas sociais e seus
dispositivos, e a dificuldade de estabelecer um refúgio do mundo comum. Por outro lado,
também a liberdade no sentido de exercício lúdico da criatividade (vislumbrada pelo
pensamento de HUIZINGA, 2004), da não seriedade, é ameaçada pelo enrijecimento das regras
e normas sociais impostas pelo mercado e cristalizadas pelos dispositivos técnicos. Será que os
sujeitos usuários do Facebook têm noção de que se encontram num mecanismo potencialmente
panóptico? Sabem o que a ferramenta tem sobre seus dados? Como desejam vivenciar sua
privacidade – vêem com bons olhos a exposição pessoal, procuram refugiar-se, proteger-se? De
que maneira o espaço social de visibilidade pública do Facebook é constituído e vivenciado
pelos seus usuários?

3. REGRAS DO FACEBOOK E VIVÊNCIA DA PRIVACIDADE

A leitura da política de uso dos dados de usuários do Facebook (FACEBOOK, 2013)


revela que a ferramenta coleta vários dados dos usuários, tanto pessoais (nome, data de
nascimento, entre outras) quanto de uso (conexões, ‗curtidas‘, postagens, entre outros).
A mera coleta dos dados (como os que são coletados indiretamente por conexões do
usuário), bem como a visibilidade pública da lista de amigos (e outros itens como foto de perfil
e de capa) é indicativa da falta de privacidade do usuário – ou controle sobre os dados e sua
imagem, no sentido normativo da privacidade e associado à vivência da intimidade. O Facebook
funcionaria como um grande catálogo de pessoas com seu respectivo círculo social para
qualquer habitante do ciberespaço acessar livremente. Tal catálogo é utilizado pela empresa
para realização de mídia push – distribuição de mensagens/propagandas customizadas e
personalizadas diretamente às pessoas sem que elas as procurem – e pode ser visto como
realização da agressividade do mercado para invasão do ciberespaço pessoal do usuário.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

372
O Facebook não identifica individualmente seus usuários, o que representaria violação
completa da privacidade em seu sentido normativo, mas possui vários produtos que ajudam os
anunciantes a encontrar pessoas e utiliza cookies e pixels, alegando interesse de tornar o acesso
do usuário mais rápido. Quando o usuário acessa um jogo ou site por meio de sua conta (login
social), são fornecidos dados para os aplicativos solicitantes. Dados públicos também podem ser
compartilhados, até mesmo quando a conta é excluída. Somente a desativação de aplicativos na
plataforma possibilita a restrinção de tal compartilhamento.
Não há efetivo controle, pelo usuário, daquilo que é divulgado a seu respeito, nem pela
empresa Facebook aos seus parceiros, nem por outros usuários. Mesmo que o usuário não
permita que alguma publicação circule (denunciando, por exemplo, ou, controlando o que
imediatamente vai estar visível no seu perfil/linha do tempo), outros usuários podem copiar,
compartilhar e comentar publicações sem que o indivíduo tenha controle sobre isso.
Aqui se observa que a vivência da intimidade (no sentido de refúgio do indivíduo,
emergente na modernidade) é ameaçada tanto pela contínua exposição do indivíduo
(convertendo a intimidade em extimidade), quanto pela falta de controle quanto à circulação de
seus dados e pela invasão da esfera privada dos negócios comerciais neste espaço.
Esse espaço de visibilidade pública tem sido apropriado pelo mercado e, também, pelos
indivíduos, quando realizam o espetáculo de si. Por outro lado, o potencial de mobilização das
pessoas por meio do Facebook também se faz presente (ROSA; SANTOS, 2013), pois é
possível a manifestação e compartilhamento de mensagens tanto de cunho político quanto
lúdico.

4. EXPLORANDO VIVÊNCIAS DOS USUÁRIOS DO FACEBOOK

A título de trabalho exploratório e ilustrativo dos conceitos aqui abordados, foi realizada
uma pesquisa empírica que contemplou a aplicação de um questionário – em abril de 2014 – e a
realização de entrevistas – no período de outubro a novembro de 2014 – que procuraram
explorar as vivências da privacidade pelos usuários da ferramenta132. O perfil, tando dos
respondentes do questionário (57 pessoas responderam o questionário online que continha 31
questões sobre a vivência da privacidade), quanto dos oito participantes da entrevista, foi
predominantemente jovem: cerca de 75% dos respondentes do questionário e 87,5% dos
participantes da entrevista estavam na faixa etária compreendida entre os 18 e 41 anos.

132
Agradeço à Camila de Fátima Pereira, pela aplicação do questionário e tratamento dos seus dados. A
Eliane de Matos Silva e João Paulo S. R. Bastos agradeço pela realização das entrevistas e tratamento de
seus dados.
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

373
Tanto nas entrevistas quanto nos questionários, os usuários demonstram estar
preocupados com a proteção dos dados que não querem tornar públicos. Porém, eles não
dominam o que o dispositivo oferece de controle de dados: Pereira Junior e outros (2013)
apontam claramente, por trabalhos empíricos, que há dificuldades de os usuários identificarem
as consequências causadas em não estarem atentos às configurações de publicação de dados,
como fotos. Esta constatação da falta de consciência do usuário sobre o controle da visibilidade
de suas postagens também aparece nos resultados do questionário aplicado, no qual se notam
respostas que revelam desconhecimento sobre a visibilidade de dados e postagens. Notou-se,
nas entrevistas, que os usuários são confusos quanto à efetiva visibilidade dos seus dados.
Pelo comportamento despreocupado acerca de quem vai ter acesso ou não aos dados de
perfil e publicados, há perda de privacidade no sentido da perda de controle dos dados sobre si,
a qual é acentuada quando se sabe que os dados de visibilidade pública são acessíveis a qualquer
internauta e a parceiros comerciais do Facebook. Outro ponto importante quanto ao controle dos
dados é que os usuários entrevistados não estão certos sobre quais dados o Facebook tem acesso
e compartilha, aspecto também apontado por Pereira Júnior e outros (2013).
Os usuários convivem com poucos de seus contatos (perguntados se conviviam no
espaço concreto com os usuários cadastrados na lista de amigos, apenas 3,7% afirmaram
conviver com todos, outros 42,6% com a maioria deles e 48,1% com a minoria deles), e
consideram a ferramenta útil para obter informação e entretenimento. Um deles, na pesquisa
qualititativa, informou que gosta de compartilhar ―coisas engraçadas que o Facebook tem‖.
A falta de conhecimento do destino dos dados pessoais, pela ferramenta, não é
impeditiva para seu uso e a perda da privacidade é encarada como um risco calculado. Alguns
usuários adotam a autovigilância e autocensura (possível consequência da natureza panóptica da
ferramenta) ao afirmarem não postar ―nada comprometedor‖. A percepção da privacidade dos
usuários, pelos entrevistados, está associada essencialmente à preservação da intimidade quando
ela afeta a imagem pessoal e os relacionamentos afetivo-sexuais.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A falta de conhecimento do destino dos dados compartilhados pelo Facebook, além da


constante exibição de dados a um público cada vez maior, é indicativa da pouca consciência da
importância da privacidade pelo usuário da ferramenta. O porquê disso ainda precisa ser
discutido, suscitando discussões sobre valores sociais que podem remeter a estratégias de
autopromoção em um mundo espetacularizado ou à objetificação do ser humano no ciberespaço.
Não é possível dizer não ao uso da ferramenta: Como deixar de fazer parte do mundo dos

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

374
homens, de realização do espírito humano lúdico, competitivo e gregário que lá encontra espaço
de manifestação? Pertencendo a esse espaço, qual é o risco da exposição de si no espaço de
visibilidade pública? O risco que se corre da contínua exposição não chega a ser profundamente
problematizado pelos usuários, pois a capacidade humana de ação e palavra (de colocar-se como
autônomo num mundo constituído por ele mesmo) não está sujeita a contestações em um
sistema técnico digital previamente configurado e que proporciona um mergulho no espetáculo
inebriante das coisas irrelevantes e belas da vida privada.

REFERÊNCIAS

ARENDT, H. A condição humana. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993.

BAUMAN, Z. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2010.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988.

FACEBOOK. Política de dados. 2013. Disponível em


<https://www.facebook.com/full_data_use_policy> Acesso em dez 2014.

FERRAZ, M. C. F. Reconfigurações do público e do privado – Mutações da sociedade


tecnológica contemporânea. In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE
PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO (COMPOS), 10., 2001,
Brasília. Anais... Compós, 2001.

GILL, A. J. et al. Privacy Dictionary: A Linguistic Taxonomy of Privacy for Content Analysis.
In: CONFERENCE ON HUMAN FACTORS IN COMPUTING SYSTEMS, CHI 2011., 2011.,
Vancouver, Candada. Proceedings… ACM-SIGCHI.

GOMES, J. C. L. Marcuse: tecnologia e liberdade no mundo administrado. Síntese, Belo


Horizonte, v. 29, n. 93, p.237-250, 2002.

HUIZINGA, J. Homo Ludens: o jogo como elemento de cultura. São Paulo: Perspectiva, 2004.

MELO, H.S. Comunicação mediada por computador e privacidade. 2006. Tese (Doutorado
em Comunicação) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, ECO. Rio de Janeiro.

PEREIRA JUNIOR, M. P. et al. Navegar impreciso: a privacidade no facebook vivenciada por


seus usuários. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE SISTEMAS DE INFORMAÇÃO, 9., 2013,
João Pessoa. Anais... SBC: Porto Alegre, 2013.

ROSA, G. A. M.; SANTOS, B. R.. Facebook e nossas identidades virtuais. Thesaurus, 2013.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

375
SIBILIA, Paula. O universo doméstico na era da extimidade: Nas artes, nas mídias e na internet.
Revista ECO-Pós, [S.l.], v. 18, n. 1, p. 133-147, jul. 2015. ISSN 2175-8689. Disponível em:
<https://revistas.ufrj.br/index.php/eco_pos/article/view/2025/2032>. Acesso em: 04 Abr. 2017.

SILVA, T. T.. O panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes,


1998.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

376
Seus filhos falam através de imagens:
Considerações sobre o uso do aplicativo Snapchat pelos jovens133

Taciane Caldeira134

RESUMO
Uma das mais recentes novidades em aplicativo para smartphones o snapchat, mais
utilizado entre os jovens, impressiona por ser o onde mais se compartilha fotos por
segundo, apesar de ter um número menor de usuários que seus concorrentes whatsapp e
instagram. O snapchat caracteriza-se por ser um chat rápido e efêmero que
necessariamente começa com uma imagem, sua tela principal é a câmera. Nesse sentido
interessou neste texto extrair a partir desse modo de comunicar que o aplicativo nos
apresenta, qual função cumpre no laço social dos jovens que são seu maior público,
além de compreender a que serve o uso constante e ou até excessivo da imagem que fala
sem palavras, particularmente a autoimagem selfie, e logo se autodestrói. A partir de
referenciais teóricos principalmente da sociologia e psicanálise demonstrou que o poder
das imagens tem ocupado um lugar crescente e inseparável na nossa civilização, que
pode ser considerada uma civilização do olhar que olha, porém não sem ser olhado. O
modo de funcionar do aplicativo snapchat cumpre a função de proteger quem o utiliza
de olhares que poderiam lhe ser insuportáveis. E ainda que o constante uso da própria
imagem pra se comunicar com o outro, tem efeitos de gozo sobre o corpo, que para cada
ser se manifesta de um modo singular.

Palavras-chave: imagem. snapchat. corpo.

Com mais 200 milhões de usuários ativos o snapchat impressiona por ser um
dos mais novos aplicativos do gênero que supera whatsapp e instagram no número de
compartilhamento de fotos. De acordo com dados divulgados pelo site PhotoWorld135
através de um gráfico interativo que se atualiza a todo instante são cerca de 8.800
imagens por segundo, somando mais de 700 milhões por dia, enquanto que estes outros,
mesmo tendo o dobro de usuários ativos, não atingem essa marca. Segundo Lívia
Dâmaso (2015) jornalista especialista em Produção em Mídias Digitais, nem mesmo a
rede social Facebook, que atualmente tem cerca de 1,39 bilhão de usuários, consegue
superar a marca do concorrente, ficando muito atrás com 4.500 imagens compartilhadas
por segundo.

133
Texto apresentado no fórum do I Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital, Belo
Horizonte 2017.
134
Graduada em Psicologia pela UEMG-Divinópolis. Atua como Psicóloga Psicanalista em Moradia
Assistida BH.
135
Dados retirados de infográfico interativo da internet. Disponível em: https://cewe-
photoworld.com/how-big-is-snapchat/
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

377
O aplicativo ficou famoso principalmente entre os jovens que queriam mandar
nudes, pois possuiu um sistema de segurança que alerta o usuário caso sua imagem seja
republicada através de um print por parte de quem a recebe, mas esse parece não seu
principal uso. Quem apresenta o segredo e a isso atribui o sucesso do aplicativo é seu
fundador, Evan Spiegel através de um vídeo divulgado no Youtube, e usando apenas sua
voz e um bloco de notas ele tenta explicar para os pais o que eles não conseguem
entender: ―seus filhos falam através de imagens, por isso tiram tantas fotos, o tempo
todo, com a câmera dos seus celulares‖, e acrescenta, ―se antes as fotografias serviam
para guardar memórias, agora elas são feitas para falar‖. (Informação verbal).136
Outras características do aplicativo que segundo Spiegel fazem sucesso entre os
jovens são seu caráter de urgência, imediatismo e agilidade, ele explica que o snapchat
não é uma rede social, os usuários não têm por que interagir com outras pessoas ou
sequer criar conteúdo próprio. No aplicativo as pessoas mostram algo do cotidiano, da
sua identidade, seus gostos, mas sem se preocupar com o conteúdo ou com a melhor
pose, podem escolher pra quem e o que querem mostrar, inclusive esconder, pois tudo
será apagado do seu perfil e no de quem o visualiza após 10 segundos ou 24 horas, sem
deixar rastros de que tenha acontecido.
É justamente o que sugere o termo snap (em inglês) referindo-se a algo que
acontece de forma súbita, e chat, um meio de comunicação à distância através da
internet, ou seja, é uma comunicação rápida e efêmera, que obrigatoriamente começa
com uma imagem, sua tela principal é a câmera.
―Encontrar pessoas onde elas estão‖137 essa foi a estratégia usada pela Casa
Branca que anunciou em janeiro do ano passado, sua adição ao aplicativo Snapchat. O
objetivo do ex-presidente dos Estados Unidos é claro, não era o de trocar fotos com
filtros divertidos com seus amigos, senão o de alcançar a geração de jovens, e através do
compartilhamento de vídeos fazer campanha para a então candidata Hillary Clinton.
Os jovens não só estão acessíveis aí nos aplicativos, nas redes sociais, como o
são, sobretudo, acessíveis através do olhar, de imagens disponibilizadas nas telas, de

136
Spiegel, E. “What is snapchat”. 2015. Vídeo disponível no Youtube. Disponível em:
<Ehttps://www.youtube.com/watch?v=ykGXIQAHLnA>
137
Informação retirada de Internet: Casa Branca Lança Perfil no Snapchat, Site O Globo, 2016.
Disponível em:< http://oglobo.globo.com/sociedade/tecnologia/casa-branca-lanca-perfil-no-snapchat-
18451114>
Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

378
fotos, vídeos, até mesmo as conversas, os chats, são capturados pelo olhar que vê,
porém não sem ser visto.
Gérard Wajcman (2011) aponta que o século XXI coloca em marcha e revela o
nascimento de uma nova modernidade, uma nova civilização, a civilização do olhar.
Segundo o autor, esta mutação sem precedentes tem mudado a forma como nos
relacionamos com o mundo, com nosso corpo e até com nosso ser e mesmo que não a
distingamos com precisão, não se trata de uma involução ou revolução. Ele diz: ―de uma
ou de outra maneira, tais mudanças já pertencem a nossas vidas, e porque estão aí
aparecem irreversíveis, às vezes quase naturais‖, (WAJCMAN, 2011 pg.14). Portanto
temos a escolha de fechar os olhos frente a esta mutação ou abri-los e com isso
ganharmos um pouco mais de inteligência se nos orientarmos para algo melhor neste
mundo e finalmente ganharmos algo de liberdade.
Para Wajcaman nem mesmo o nascimento de um bebê está livre do imperativo
do olhar que caracteriza nossa civilização hoje, pois as imagens médicas inventaram um
novo nascimento. Ele diz ―o menino já não é antecipado pela palavra, é realizado, posto
em presença na tela‖, (WAJCMAN, 2011, pg.35). E isso pode ser facilmente constatado
quando nem mesmo exames que atestam o estado gravídico da mulher a satisfazem com
a novidade, pois não veem a hora de realizar uma ultrassonografia que lhe dê uma
imagem que finalmente ateste a nova vida em seu ventre, é o ver para crer.
O poder das imagens mostra-se cada vez mais crescente e inseparável de nossas
vidas. Lamentar tais mudanças e fechar os olhos não parece ser a melhor opção,
portanto, resolvemos como orienta Wajcman (2011), abrir os olhos e ao menos tentar
ver o que está ai nesta nova civilização. Sem dúvida os jovens, sobretudo os
adolescentes não parecem sofrer tanto com as mudanças do tempo como nós, ao
contrário eles sabem muito bem como servir-se delas.
Em primeiro lugar, como aponta Idoia Larrañaga (2013), os jovens estão
deixando ou diminuindo o acesso ao facebook e buscando outras que lhes possibilitem
um pouco mais de liberdade, como o instagram e snapchat. O motivo, segundo o autor,
é que preferem se relacionar com os outros de sua escolha, longe do olhar dos pais,
familiares e professores, e acrescentaria, longe de qualquer outro que possa lhe parecer
ameaçador, principalmente a sua imagem.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

379
Nesse sentido podemos perceber minimamente que o modo de funcionar deste
aplicativo está a serviço de proteger quem o utiliza, de olhares que poderiam lhe ser
insuportáveis, por seu caráter efêmero e pela liberdade de escolha do destinatário da
imagem. A câmera como tela principal capta não só conteúdo a ser exibido, como
também serve de recurso aparentemente mais eficaz para lidar com um real impossível
de suportar, como aponta a psicanalista Beatriz García Moreno:

A câmera parece funcionar, assim, como um operador do olhar que não


apenas permite o enquadramento, mas também a apropriação do instante, a
manipulação do objeto e a conversão de qualquer acontecimento em uma
ficção que parece situar-se no imaginário e cavalgar sobre o real em gozos
insuspeitos. (MORENO, pg.1, 2015)

Dessa maneira ela protege o sujeito de ser tocado pelo gozo ameaçador do
Outro, bem como as diferenças que esse exibe. Se os pais estiverem encarnados na
figura desse grande Outro ameaçador, possivelmente estarão fora dos grupos de pessoas
que podem ver as fotos dos filhos.
Em segundo lugar, tentemos situar a que serve o uso constante de imagens de
caráter efêmero e aqui nos interessa, sobretudo, as chamadas imagens selfies. O selfie
pode ser entendido como um registro de si mesmo e do que está ao redor, e que
compõem uma cena ilusória de um ser completo, de um acontecimento sem furos. Mas
como nos orienta Bassols uma imagem, um selfie, terá sempre uma significação vazia
na medida em que ela está desligada da linguagem. Ele diz: ―costumamos dizer a frase:
uma imagem vale mais que mil palavras, mas esquecemos que são necessárias pelo
menos oito palavras para evocar essa significação que nenhuma imagem pode mostrar
por si mesma‖. (BASSOLS, pg.4, 2015)
Para o psicanalista, uma imagem, portanto, não fala, não faz laço, pelo contrário,
ela esconde, oculta o indizível que só a palavra pode evocar. O oculto da imagem, o que
não se vê, é o próprio olhar como objeto, pois ele está protegido pela distância que o
mundo virtual nos coloca do outro. No selfie o que impera é o gozo do olhar sobre si
mesmo, sobre o corpo, e é ai que reside seu poder e o faz uma prática cada vez mais
comum e constante, principalmente entre os jovens. Lacan em ―A Terceira‖ disse: ―o
homem conhece o mundo como conhece sua imagem, o que faz com que adore seu
corpo. Se o adora é porque acredita que o tem: a única relação do ser com seu corpo é
de adoração‖. (LACAN, pg11-35, 1974).

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

380
Cada imagem revela seu infinito poder de captação do gozo do corpo, tem o
corpo malhado, o corpo entregue as cirurgias estéticas, o magro, o saudável, o gordo, o
nu, o esquisito, o fragmentado, o tatuado, dentre outros. Diante disso a frase de Spiegel,
criador do snapchat, ―seus filhos falam através de imagens‖ poderia ser lida como ―seus
filhos gozam através de imagens‖.
O caráter efêmero do snapchat permite a repetição desse gozo, mais ainda, ele
exige que para continuar gozando, é necessário seguir nesse circuito interminável de
postar a próxima e a próxima imagem, e antes mesmo que essa imagem possa insistir
em mostrar aquilo que ela tenta ocultar, ou produzir algum efeito de angústia para o
sujeito, ela é automaticamente apagada, é o que faz do aplicativo um diferencial dos
outros do gênero.
Finalmente, existem outros meios onde os jovens podem falar, se equivocar e
fazer laços e assim fazer um corte nessa sucessão ininterrupta de imagens que não
constituem nem acontecimento nem dizer, cujo paradigma encontramos no snapchat.

REFERÊNCIAS

BASSOLS, M. O Império das imagens e o gozo do corpo falante. In: VII ENAPOL, O
IMPERIO DAS IMAGENS, Texto eletrônico. Buenos Aires 2015. Disponível em:
<http://oimperiodasimagens.com.br/pt/faq-items/o-imperio-das-imagens-e-o-gozo-do-
corpo-falante-miquel-bassols/> acesso em 12/12/2016

DÂMASO, L. Snapchat supera Whatsapp, Instagram e Facebook em volume de


fotos. 2015. Disponível em:
<http://www.techtudo.com.br/noticias/noticia/2015/06/snapchat-supera-whatsapp
-instagram-e-facebook-em-volume-de-fotos.html>. Acesso em 12/01/2017

LACAN, J. ―A Terceira‖, In: Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de


Psicanálise, São Paulo, Ed. Eólia, nº 62, p. 11-35, 1974.

LARRAÑAGA, I. Por que os jovens estão perdendo interesse no Facebook. BBC


Mundo 2013. Disponível em:
<http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/11/131113_facebook_troca_fn>.
Acesso em 12/01/2017

MORENO, B. G. De câmeras, imagens e voyeurismos. In: VII ENAPOL, O


IMPERIO DAS IMAGENS. Texto Eletrônico. Buenos Aires, 2015. Disponível em:
http://oimperiodasimagens.com.br/pt/faq-items/de-cameras-imagens-e-voyeurismos-
beatriz-garcia-moreno/ acesso em: 14/01/2017

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

381
WAJCMAN, G. El ñino image. In: El ojo absoluto. – 1. ed. Buenos Aires: Manantial,
2011. Pg35

____. Nueva Civilización. In: El ojo absoluto. – 1. ed. - Buenos Aires: Manantial,
2011. P.14.

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

382
TRANSMASCULINIDADES NA REDE:
Discutindo pressupostos repressivos do sexo no universo do Netporn

Ulisses Gonçalves de Oliveira


Vincent Rosa de Lima Silva

Resumo
Na era das mídias sociais, temos os netporns, plataformas online de pornografia pela
internet, espaços de exibição de conteúdos pornográficos autônomos e clandestinos.
Estes têm sido uma forte ruptura com o mercado pornográfico mainstream (mercado do
lucro e da pornografia heteronormativa), tornando-se possível o compartilhamento
―clandestino‖ de produções desse mercado e modalidades pornográficas não
hegemônicas. Neste trabalho, retomamos discussões clássicas e debates acerca da
sexualidade na sua formatação para o mundo ocidental, a partir da análise dos
comentários deixados pelos usuários dos "netporns" de vídeos de FTMs (Female to
Male), ou homens trans e outras transmasculinidades em uma plataforma bastante
popular – o Xvideos. Buscamos contextualizar as perspectivas discursivas dos
internautas pelos comentários dispostos em diversos vídeos obtidos desse portal online,
extraindo das narrativas escritas a noção acerca da transgressão corporal dessa categoria
de gênero pelos comentadores. Sobretudo, problematizamos suas evocações de certos
padrões e hierarquias sobre os corpos da categoria em questão, percebendo também o
rompimento de padrões discursivos na medida em que as pessoas acessam e atualizam a
diversidade sexual como uma possibilidade para si.

Palavras-chave: Netporn; Pornografia Online; Transmasculinidades;


Heteronormatividade.

INTRODUÇÃO

O contexto da chamada Web 2.0, como elucida a antropóloga especialista em


―pornografia online‖ Carolina Parreiras (2012), proporciona uma reconfiguração do
mercado pornográfico por um processo de ruptura de padrões que faz surgir ramos
alternativos ao mainstream da indústria pornográfica, bem como celebra um novo
caminho em que os limites entre produtor e consumidor tornam-se, cada vez mais,
fluidos.
Segundo a antropóloga, ―cerca de 40 das atividades realizadas online
envolvem algum conteúdo pornográfico‖ (PARREIRAS, 2012, p. 200). Desse modo, a
Web 2.0 estaria caracterizada, portanto, por uma forma mais aberta e mais flexível ao
acesso de conteúdos digitais, em que há um rompimento das barreiras entre produção e
consumo, assegurando, segundo a autora,

Anais do 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital – Textos Completos

383
[…] a possibilidade de ampliar os conceitos de comunidades e interação
online para englobar variadas ferramentas geradoras de redes sociais e
também as chamadas mídias sociais; revisão da questão dos direitos autorais,
com o surgimento de alternativas como as licenças Creative Commons;
utilização de plataformas abertas (API). Outra ideia da web 2.0 que passa a
ser bastante utilizada pelas pessoas ligadas à pornografia são as mídias e
redes sociais. (PARREIRAS, 2012, p. 202)

Embora a ampliação dos acessos de conteúdos virtuais venha rompendo com


certos padrões, não podemos simplesmente achar que haja, então, uma substituição de
um sistema de controle do mercado pornográfico para uma abertura do acesso desses
conteúdos sem qualquer hierarquia ou manutenção de certos padrões. Como em
qualquer comunidade humana, as categorias e padrões podem ser reinscritos ou
reproduzidos.
A pornografia em uma dimensão mais conceitual deve ser lida em um viés
contextual, como elucida Parreiras (2012). Vale considerar uma mudança estrutural de
emergência de outras vozes, outros segmentos de gênero pornográficos e que, muitas
vezes, vem caminhando por uma via de mão dupla da exibição do sexo explícito, mas
também de uma estratégica forma de expressão política no embate com o universo
hegemônico pornográfico, como pontua a pesquisadora, ressaltando a pornografia
feminista. Ainda mais proporcionada por mecanismos de formação de redes de
relacionamento, onde é possível uma maior dinâmica de comunicação e de troca de
informações dos netporns.

O netporn se caracteriza por representar pornografias próprias das


plataformas e redes online. Os maiores exemplos são o altporn e os vídeos
amadores. Alguns pontos são marcantes quando se fala em pornografia
produzida especificamente para a internet e com as possibilidades fornecidas
pelas novas tecnologias: revisão das fronteiras entre produtores e
consumidores, crescimento na quantidade de manifestações alternativas ou
independentes, tentativa de modificação nas convenções do pornô mais
convencional, referencial queer e não-normativo, busca de ruptura com
práticas consideradas opressoras e encontradas no mainstream (exemplo é a
pornografia feminista), resistência à comoditização (commoditization).
(PARREIRAS, 2012, p. 208).

Nesse ambiente cibernético, considera-se de fato um lugar onde as


possibilidades sexuais são bem mais permissíveis, em que muitas práticas e sujeitos
podem, externamente, ser compreendidas como formas de transgressão das normativas
heterossexuais. Mas não podemos também designar absolutamente o espaço da internet
como algo distante ou separado do universo não virtual, aliás, não gostaríamos de

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384
pensar em uma ideia de virtualidade no sentido estrito, pois percebemo-lo como uma
extensão das relações humanas. Linda Williams (2012) demonstra, diante disso, que
aquilo que está disposto nas telas por meio da pornografia passa a revelar as nossas
próprias conotações sexuais e o sexo aparece como ―um ato construído, mediado,
atuado, e cada revelação é também uma dissimulação que deve algo à imaginação.‖
(WILLIAMS, 2012, p. 16).
Desse modo, construímos aqui uma análise partindo do mundo do netporn para
pensar pontos de reflexões clássicas como da hipótese repressiva da sexualidade de
Michel Foucault (2012). No sentido de equacionar proposições reflexivas das
ambivalências presentes com a emergência de novas tendências no mundo pornográfico,
alcançado principalmente pelo meio das redes online, tentando trazer os dispositivos
reveladores de tal hipótese, do discurso da ciência médica e jurídica, uma ligação entre
poder, saber e sexualidade. E que ainda é bastante sustentada e acompanhada pelo
desenvolvimento do capitalismo.
Embora reconheçamos que haja uma maior flexibilidade no que tange aos
parâmetros da pornografia no contexto da Web 2.0, podemos perceber ainda
articulações internas de uma flexibilização cuidadosa, forjada pelos dispositivos
repressivos - ―esse discurso sobre a repressão moderna do sexo se sustenta. Sem dúvida
porque é fácil de ser dominado‖ (FOUCAULT, 2012, p. 11). E o mercado, de certa
forma, busca cuidadosamente ampliar aderindo novos potenciais de lucro diante do
poder de fala de novos ―atores sexuais‖. Atentemos, portanto, ao momento histórico da
revolução sexual ocorrida na segunda metade do século XX em que Williams (2012, p.
23) ressalta: ―a revolução sexual dos anos 60 é inseparável dos objetivos mais amplos
de uma atividade contracultural que permeava tudo – contra a guerra, contra o racismo,
contra o capitalismo e, eventualmente contra o patriarcalismo‖.
Para abrir caminho desse trabalho, portanto, não buscamos desenvolver um
raciocínio pragmático com essas abordagens clássicas, pois tentamos trazer pontos e
questões que possa correlacionar com um percurso histórico da pornografia, em âmbitos
ainda mais explícitos. Aqui refletimos alguns apontamentos de uma pesquisa sobre
vídeos pornográficos da página do Xvideos, o site pornô mais acessado do mundo e que
está entre os quarenta e quatro sites da internet de maneira geral, segundo o portal da

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revista VIP da editora Abril138.
A pesquisa se dá com uma análise dos comentários deixados pelos usuários
desse netporn relacionado aos pontos de vista e recepção de vídeos de sujeitos
transmasculinos. De praxes tentamos refletir as interpretações dos internautas da noção
acerca da transgressão corporal dessa categoria de gênero, de forma a não preocupar
com sua validação ou não de transgressão por não prestar atenção a uma rígida fronteira
entre liberação e repressão articulada no mundo da mídia. Ou seja: ―as perversões são
implantadas pelo mesmo discurso que pode tentar controlá-las.‖ (WILLIAMS, 2012, p.
31). Diante disso, portanto, mais interessante, busca-se contextualizar as perspectivas
discursivas dos internautas, neste caso, acompanhando a partir dos comentários
dispostos em diversos vídeos obtidos do portal online.

COMENTANDO COMENTÁRIOS

O primeiro passo para chegar aos vídeos deu-se pela busca na plataforma por
meio dos códigos de buscas ou tags. Inicialmente não conhecíamos a nomenclatura a
ser trabalhada. De fato, relacionamos essa dificuldade de compreensão das
disponibilidades de informações acerca da transsexualidade masculina, realidade que
ainda vem caminhando precocemente na esfera midiática brasileira. Justamente
correlacionamos tal indagação sendo reflexo na página do Xvideos, por ver muitas
dificuldades de localizar vídeos pornográficos com dada categoria. Primeira tentativa
foi buscar por meio de uma nomenclatura que já havia em mente, ―Homemtrans‖ e
―Homem trans‖, ―Homem transexual‖, também na versão inglês, ―Transman‖ e ―Trans
man‖. Com estas nomenclaturas foi possível encontrar vídeos, mas ainda muito
insatisfatório, uma média de dois a três, e que apareciam acompanhados por outras
categorias de vídeos e em grande maioria era de pornografia com transexuais
femininas139.
Dos poucos vídeos encontrados, observamos os termos FtM, uma sigla inglesa
que significa Female to Male, feminino para masculino e o inverso, MtF, Male to

138
Disponível em: <http://vip.abril.com.br/os-6-sites-pornos-mais-acessados-do-mundo/> Acesso em: 21
dezembro 2015.

139 A coleta dos materiais de análise ocorreu entre os dias 11 e 21 de dezembro de 2015.

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Female, masculino para feminino. Na nova tentativa de busca com essa sigla,
encontramos mais opções de vídeos. O interessante é que essas categorias pesquisadas
vêm recentemente fazendo parte das mídias sociais. O portal de tecnologia da
140
Globo.com informou que a partir do dia 02 de março de 2015 o Facebook tornou
disponível dezessete opções de gênero diferentes, além da possibilidade de escolha livre
de como o usuário quer ser identificado na rede.
Ainda considerando um ponto marcante do baixo volume de vídeos de FtM no
site, considerando as tags mencionadas nas buscas, foram menos de trinta vídeos
disponíveis. Sendo analisados quarenta e seis comentários de sete vídeos diferentes, já
que a maioria do total de vídeos encontrados eram repetidos ou partes destes. Vale
enfatizar que boa parte era compartilhamento de partes de produções profissionais. Das
amadoras, de maneira geral, havia mais vídeos relacionados a atos sexuais sempre
voltadas ao genital. Quando não enfatizando sujeitos com corpos musculosos
manipulando sua ―genitália feminina‖, havia vídeos apenas com enquadramento no
genital, pelo enfoque a grande espessura do clitóris, segundo dizeres de alguns dos
usuários, ―o grelão‖, ou ―o menor pau do mundo‖, ou ―big clit‖.
Nas observações obtidas nos comentários há pontos que trazem uma reflexão a
questões elucidando o pensamento foucaultiano. As interpretações dos corpos dos FtMs
pelos usuários é sustentada por determinismos biológicos de patologização, por um
moralismo incorporado pela ciência positivista de definição de normalidade.
Comentários do tipo: ―Bizarro e nojento... Não é um homem, é uma guria com
problema mental que desfigurou o clitóris injetando hormônio‖.
A patologização dos corpos transexuais são parte de um problema constante
dentro das instituições detentoras do poder e do saber sobre o sexo, parafraseando
Foucault (2012), quiçá no resto da sociedade alienada ao discurso dessas instituições.
Judith Butler (2009) explica que esse tipo de perspectiva ainda sim são determinantes
para colocar em prática uma cirurgia de mudança de sexo. O diagnóstico psiquiátrico de
transtorno de identidade de gênero (TIG) para a garantia da efetivação da cirurgia torna-
se um fator preponderante para que muitos transgêneros acatem ser caracterizados como
doentes. São mecanismos que elucida Butler (2009) de uma forma de economia do
percurso de realização do sujeito. A lógica discursiva da repressão moderna do sexo está

140
Disponível em: <http://www.techtudo.com.br/noticias/noticia/2015/03/facebook-libera-17-opcoes-de-
genero-no-brasil-baseadas-em-grupos-lgbt.html>. Acesso em: 21 dezembro 2015.
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intrínseca pelo controle deliberativo.
O fator do diagnóstico psiquiátrico é ainda manter reflexões pelo senso comum
da transexualidade numa concepção de erro, falha, desvio, doença, desrespeitando
assim, a autonomia do sujeito quanto à sua identidade. E é a ambivalência do discurso
implantado que provoca divergências e confusões interpretativas e, por mais que ambas
sejam possíveis, e mesmo que haja uma ruptura desse discurso patologizador da
transexualidade, devemos ficar atentos que tal ambivalência deixa o sujeito
diagnosticado em uma situação duvidosa de compreensão da sua autodeterminação que
nos leva a questões pontuais, como:

[…] o que significa viver com esse diagnóstico? Ele ajuda algumas pessoas a
viver, a alcançar uma vida que elas sintam merecer ser vivida? Ele dificulta a
vida de algumas pessoas, fazendo com que se sintam estigmatizadas, e, em
alguns casos, contribui para um final suicida? (BUTLER, 2009, p. 98).

A determinação psiquiátrica aparece como fruto de um dispositivo repressivo e


de controle da sexualidade produzido ao longo da história da modernidade ocidental e
que, sem dúvida, faz parte da compreensão discursiva do senso comum sobre os corpos
transexuais e que pode revelar a saída mais imediata para superação das barreiras dos
sujeitos desde a conquista da mudança de sexo e, sobretudo, das barreiras do
preconceito, como pode assimilar um dos usuários - ―O gênero está na cabeça! Não no
pau ou na buceta! Porra! ELE é HOMEM...e que homem!”
Desse modo podemos considerar que diante das diversas trajetórias,
possivelmente, haverá alguns homens trans que optem por não fazer o tratamento,
refutando a imposição social de que sejam homens ―perfeitos‖ e que sigam os padrões.
Mas como fica a trajetória desses sujeitos, sabendo que as críticas quanto ao corpo
continua, ao passo que a indústria da beleza cobra caro pela aceitação de um gênero?
Em alguns comentários, de outro lado, vemos afirmações que consideram
homens trans como mulheres masculinizadas, mesmo estando eles seguindo o padrão
imposto (corpo malhado, pelos e barba, na maioria dos casos) e essa crítica vêm pela
genitália. Nesses comentários a focalização do órgão genital nos mostra como a
sociedade ainda procura o novo, o curioso, impondo o que seria certo ou errado. O que
encontramos nos vídeos não é um reflexo do nosso dia a dia, uma imposição da
sociedade de como devemos ser, uma exigência externa de uma masculinidade
falocêntrica? Visto que a existência de um corpo social passa pela percepção no final

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das contas de um determinismo biológico ainda na supremacia da definição das
sexualidades e das identidades gênero.
Podemos perceber, pelas observações, que no espaço da internet ainda ganha
ênfase o discurso biológico para interpretação dos corpos dos FTMs. Nos comentários
das cenas sexuais são revistos uma vasta sobreposição interpretativa de caráteres
convencionais binários da normativa sexual, determinado pelo entendimento das
pessoas da diferença manipulada pelo recurso hormonal, o qual é recorrente nos
comentários para legitimação e reconhecimento dos corpos masculinos dos atores dos
vídeos, como a concepção do grande clitóris a um pênis.
Será que as descobertas endócrinas são pontos a correlacionar com tal discurso
presente na construção desses corpos masculinizados? O esforço reflexivo remete ao
que elucida Fabiola Rohden (2009) como parte importante de uma inversão do discurso
que antecipava essas descobertas da diferenciação do sexo a partir da ausência ou não
de determinados órgãos. A inversão se dá, portanto, com a legitimação da substituição
por substâncias, no caso os hormônios, que passaram a ser determinantes para a
diferença sexual. Vale ressaltar que o trabalho da autora mencionada se aproxima a uma
compreensão mais aprofundada dos nossos dados relacionados à transexualidade
masculina, por tomar como base uma revisão histórica da construção do corpo feminino
em contraposição ao masculino.

No começo do século XX, novos argumentos científicos que condenavam a


ovariotomia vieram à tona. Nesse momento, o ovário foi convertido no órgão
que condensa a feminilidade e capacita a mulher para a função reprodutiva.
Sua presença tornou-se imprescindível, e a castração passou para segundo
plano. Daí em diante, a apreciação da saúde da mulher e de sua própria
identidade teve como referência seus ovários. As substâncias produzidas por
esse órgão passaram a ditar a diferença em relação ao homem e às secreções
dos testículos. (ROHDEN, 2008, p. 144).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ―contrato heterocentrado‖, como salienta Beatriz Preciado (2014) em seu


―manifesto contrassexual‖, é caracterizado biologicamente pela diferença de gênero e
sexo, seja no discurso científico, no universo pornográfico, no senso comum.
Entretanto, observa-se que a disponibilização ainda que escassa de vídeos eróticos ou
pornográficos mediante a modalidade da Web 2.0 fornece aos espectadores uma

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389
explosão discursiva de suas próprias ―sexualidades perversas‖. Desses comentários são
reveladas vontades, desejos, fetiches, potencialidades inertes.
A apresentação desses vídeos em rede abre aquilo que Preciado (2014) propõe
em seu manifesto - ―no âmbito do contrato contrassexual, os corpos se reconhecem a si
mesmos não como homens ou mulheres, e sim como corpos falantes, e reconhecem os
outros corpos como falantes‖ (PRECIADO, 2014, p. 21). Tudo isso provoca-nos, diante
do surgimento de outras vozes na cena do netporn, a entender que tais potencialidades
reveladas podem fazer parte de um arcabouço interpretativo que evidenciam
mecanismos tácitos de renegociar formas, anatomias e, sobretudo, reescrever a história
da sexualidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUTLER, Judith. Desdiagnosticando o gênero. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio


de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 95-126, 2009.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro:


Graal, 2012.

PARREIRAS, Carolina. Altporn, corpos, categorias e cliques: notas etnográficas sobre


pornografia online. Cadernos Pagu, Campinas, n. 38, 197-222, jan./jun. 2012.

PRECIADO, Beatriz. Manifesto contrassexual: práticas subversivas de identidade


sexual. São Paulo: n-1 edições, 2015.

ROHDEN, Fabíola. O império dos hormônios. História, Ciências e Saúde –


Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 15, p.133-152. 2008. Suplemento.

WILLIAMS, Linda. Screening Sex: revelando e dissimulando o sexo. Cadernos Pagu,


Campinas, n. 38, p. 13-51, jan./jun. 2012.

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4 Além da Tela: Psicanálise e Cultura Digital

O 1º Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital foi uma


realização coletiva sustentada no trabalho do Além da Tela - Psicanálise e
Cultura Digital. Somos um grupo de pesquisa e extensão orientado pela
Psicanálise e vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
UFMG. Temos como objetivo principal investigar as relações dos sujeitos
contemporâneos com as tecnologias digitais, numa constante e necessária
interlocução com outras áreas da Psicologia, em especial a Psicologia Social,
e com outros campos do saber, como a Educação, a Arte, a Comunicação
Social, a Antropologia, a Filosofia e o Direito. Nosso trabalho agrega
professores, pesquisadores e estudantes de graduação e pós-graduação e
mantém um diálogo permanente com outros coletivos e instituições.
Apresentamos, a seguir, nossos membros e parceiro(a)s:
Professore(a)s participantes:
Nádia Laguárdia de Lima (coordenação)
Daniela Teixeira Dutra Viola
Ernesto Anzalone
Libéria Rodrigues Neves
Márcia Stengel
Vanina Costa Dias

Aluno(a)s da Pós-Graduação:
Juliana Tassara Berni
Júnia Graziele de Almeida Couto
Helena Greco Lisita
Márcio Rimet Nobre
Natália Fernandes Kelles
Patrícia da Silva Gomes

Aluno(a)s da Graduação:
Isadora del Vecchio Neves Maizatto
Luiz Henrique de Carvalho Teixeira
Marina Luiza Margotti
Pedro Ramos da Cruz Chaves
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Professore(a)s e pesquisadore(a)s parceiro(a)s:
Ângela Maria Resende Vorcaro
Andréa Máris Campos Guerra
Cândida Rosa da Silva
Cristiane de Freitas Cunha
Eduardo Antônio de Jesus
Guilherme Massara Rocha
Jacqueline de Oliveira Moreira
Regina Helena Alves da Silva
Rose Gurski
Paula Ângela de Figueiredo e Paula
Samara Sousa Diniz Soares

Grupos, laboratórios e instituições parceiros:


LEPSI (Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e
Educacionais) - Seção Minas
OCA - Observatório da Criança e do Adolescente da UFMG
LAPE - Laboratório de Pesquisa e Educação da UFMG
CIEN (Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança) Minas
Gerais - Campo Freudiano

Para saber mais sobre o Além da Tela e acompanhar nossas produções,


consulte o site: http://alemdatelaestudos.wixsite.com/psicanalise/inicio

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