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UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA

CAP COLUNI – COLÉGIO DE APLICAÇÃO DA UFV

A MULHER CANTADA EM PROSA E VERSO: A CONSTRUÇÃO DA


REPRESENTAÇÃO SOCIAL DA MULHER NAS CANÇÕES DE VOZES
FEMININAS DA MPB (1930-1980)

BOLSISTA: Luíza Estéfany Campos Sobreira


ORIENTADORA: Anita Maria Ferreira da Silva

Relatório final, referente ao período de Agosto/2016 a


Julho/2017, apresentado à Universidade Federal de
Viçosa, como parte integrante das exigências do
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
Científica para o Ensino Médio – PIBIC- EM.

VIÇOSA
MINAS GERAIS – BRASIL
AGOSTO/2017
A MULHER CANTADA EM PROSA E VERSO: A CONSTRUÇÃO DA
REPRESENTAÇÃO SOCIAL DA MULHER NAS CANÇÕES DE VOZES
FEMININAS DA MPB (1930-1980)

Luíza Estéfany Campos Sobreira - COLUNI


RESUMO
Na música popular brasileira, a mulher é tema de um grande contingente de canções. As
representações em torno da figura feminina, no entanto, costumam ser feitas através de uma
ótica externa, em que a moldam a partir da perspectiva de um criador. Tal fato suprime a
subjetividade da mulher e confere à mesma o papel de objeto em sua própria construção
simbólica. Dessa forma, tanto a mulher “amada” e “admirada” quanto à mulher “odiada” e
“desejada” são representações presentes na música que resultam da imaginação de
compositores e não simplesmente de mulheres reais e cotidianas. Sendo assim, nesse
contexto, temos por objetivo identificar e descrever os momentos em que o papel
representado pelas mulheres nas canções cantadas por elas, entre as décadas de 1930 e 1980,
na MPB, se dá como um sujeito. A restrição do corpus de pesquisa às músicas interpretadas
por mulheres se deve à hipótese de que, apesar de elas não serem, na maioria das vezes,
compositoras, é possível que a imagem das intérpretes influencie na construção simbólica de
mulheres-sujeito. Cabe acrescentar, também, que o nosso objeto de pesquisa se compõe de
ritmos variados, como sambas-canções, bossa nossa, rock, e sambas tradicionais, retirados de
importantes álbuns da música brasileira. Contudo, para construir uma análise da representação
social da mulher e de sua respectiva identificação em esfera discursiva, tomamos as letras
musicais como enunciados, em referência à natureza social da linguagem expressa por
Mikhail Bakhtin (1929). Além disso, também nos baseamos na Teoria das Representações
Sociais de Serge Moscovici (1961) e em recursos como dialogismo e polifonia (Bakhtin,
1929). As discussões, por sua vez, foram separadas em décadas, nas quais associamos o
conteúdo linguístico dos enunciados musicais com o seu respectivo contexto de produção e
circulação. Foi feita, portanto, a análise do discurso de cada uma das canções, em que
apreciamos as representações da mulher-sujeito e da mulher-objeto e como estas se constroem
nos enunciados.
DATA: __/__/__

PALAVRAS-CHAVE: Mulher. Música. Representação.

________________________________________________________________
Luíza Estéfany Campos Sobreira

_________________________________________________________________
Anita Maria Ferreira da Silva

1
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 3
1. REVISÃO DE LITERATURA 4

I. Realidade Social e Intersubjetiva, Teoria das Representações Sociais e o


processo de construção dos sujeitos 4

II. Representações Sociais e Linguagem 7


2. OBJETIVOS 10
3. METODOLOGIA 11
4. RESULTADOS E DISCUSSÕES 13

I. Amplitude acadêmica 13

II. Décadas de 1930 e 1940 15

III. Década de 1950 18

IV. Década de 1960 21

V. Década de 1970 23
5. CONCLUSÕES 25
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 27
7. ANEXOS 29

2
INTRODUÇÃO
A construção simbólica em torno da figura feminina na música popular brasileira
não costuma ser feita por ela própria, mas, sim, estruturada e apresentada por um sujeito
coletivo e externo, seu criador. Este fato transporta a mulher para uma realidade imaginada e a
distancia de sua subjetividade, suprimindo, portanto, seu espaço e voz na formulação de sua
própria identidade.

Neste contexto, a representação social da mulher, ao se distanciar de sua


condição de sujeito/self implica, normalmente, na atribuição de posições desfavoráveis e
restritivas ao gênero feminino. Tais atribuições, de acordo com Bourdieu (2011, apud Simão,
2016), “[...] ao serem internalizadas e instituídas, podem criar retóricas, hábitos e ações tão
normalizados que perdem a sua faculdade de construções e eternizam estruturas de divisões
sexuais que, na verdade, são arbitrários culturais.”

Na sociedade ocidental, por exemplo, a representação do gênero feminino se dá,


majoritariamente, a partir de construções que expressam um modo de ser feminino, através de
juízos que se configuram “[...] numa espécie de “naturalização do ser mulher”, adequando-as
a padrões universais criados em um jogo retórico e simbólico, sem necessária
correspondência com a realidade.” (Simão, 2016) Tais construções, por sua vez, são feitas ao
longo da história e permanecem vivas por meio da esfera discursiva, sustentada por diferentes
instituições, como a religião, a família, as classes sociais, entre outras, e não simplesmente
por indivíduos homens, em geral.

Na música popular brasileira, que, por sua vez, será nosso objeto de pesquisa, é
possível identificar características associadas intimamente ao feminino. Essas representações
tanto retomam imagens, geralmente, cristalizadas - a “esposa exemplar”, “mãe”, “virgem” e
“virtuosa”1 ou a “suja”, “sedutora” - sustentadas, principalmente, por discursos
tradicionalistas e religiosos - como, também, adaptam o imaginário social aos novos papéis
sociais assumidos pela mulher ao longo do tempo – a “lavadeira”, a “mulher do lesco-lesco”,
a “mulata assanhada”, a “bailarina”, entre outras.

1
Provérbios (30, 10-12): “Uma mulher virtuosa, quem pode encontrá-la? Superior ao das pérolas é
o seu valor. Confia nela o coração de seu marido e jamais lhe faltará coisa alguma.”

3
Neste contexto, a criação de representações opostas como “mulher-amada” e
“mulher-odiada”, que emergem em composições de diferentes ritmos e classes sociais,
representam ora a admiração pela figura feminina, sua beleza e preciosidade, ora as
insatisfações e repressões ao comportamento da mesma, em uma tentativa de conter a sua
autonomia. No entanto, ambos, por sua vez, definem interpretações particulares, externas à
consciência feminina e inclusiva ao universo masculino e, apesar de fortalecerem diferentes
visões, estas se apresentam relativamente distorcidas em relação ao mesmo objeto da
composição, a mulher.

Sendo assim, é a partir dessa certa ausência de subjetividade feminina, em que


fortes discursos sedimentados ao longo da história a condicionam ao papel de objeto em sua
construção simbólica2, que propomos este presente trabalho. A música, um forte instrumento
de criação de representações sociais e a mulher, um dos temas mais constantes da MPB, serão
relacionados aqui, em busca da identificação de mulheres sujeitos que emergiram nos
enunciados das canções ao longo do cenário musical de 1930 a 1980. E, assim, de acordo com
Mead (1967), a nossa aposta

[...] é de que as experiências do sujeito permitam uma certam autonomização do


funcionamento do pensamento, que o capacite a significar e ressignificar as palavras e as
coisas, o que parece constituir a condição necessária para que a pessoa possa intervir
verdadeiramente no processo de desenvolvimento dos seus grupos mais significativos, de
pertencimento; que o sujeito não se limite a uma simples reprodução de aquisições culturais de
origem, mas que compartilhe ativa e criticamente o processo coletivo de realização de
construções coletivas. (Sant’Ana, 2007, p.139)

1. REVISÃO DE LITERATURA

1) Realidade Social e Intersubjetiva, Teoria das Representações Sociais e o processo


de construção dos sujeitos

Durkheim é o autor da concepção cultural de sociedade dentro do pensamento


moderno.3 Este cientista social, que rompe com as linhas de pensamento psicológicas e

2
Outros trabalhos já discutiram sobre como a construção simbólica da mulher foi feita através de
discursos externos a ela, principalmente, discursos masculinos. Ver: Simão, F. L. R.,2016.
3
Definição de Talcott Parsons. Moscovici fala sobre isso em um trabalho originalmente preparado
para uma conferencia pública, em Genebra, setembro de 1996. Disponível no livro “Representações Sociais –
Investigações em psicologia Social”, 6ª edição, 2000, Capítulo 6, Página 287.

4
antropológicas que se utilizam da raça, instinto e hereditariedade para explicar a cultura e as
peculiaridades éticas, alega que o ambiente natural dos seres humanos é, na verdade, a
sociedade. Isso porque é a partir das crenças, normas e linguagem, ou seja, é a partir de um
conjunto de relações e concepções partilhadas que as pessoas se mantêm coesas e, “[...] do
mesmo modo que qualquer instituição, o conhecimento e as crenças têm uma existência antes,
durante e depois da existência dos indivíduos singulares”. (Moscovici, 2000, p.287) Dessa
forma, as chamadas “representações coletivas” constituem uma realidade, formada
intersubjetivamente, e que, de acordo com Durkheim, é tão real quanto, se não mais real, que
uma realidade física.

Conceitos, escreve Durkheim (1995/1993), que são coletivos na origem (como na verdade
todos os conceitos), assumem a nossos olhos, mesmo quando seu objeto não seja um objeto
real, tal força que ele se apresenta como real. É por isso que os conceitos adquirem a
vivacidade e a força de ação das sensações. [...] Representações coletivas ou sociais são a força
da realidade que se comunica e se transforma [...] e a consequência disso é que [elas] não
podem ser explicadas por fatos menos complexos que os que governam a interação social. Com
outras palavras, elas não podem ser explicadas pelos fatos da psicologia individual, ou por
alguns processos elementares. (Moscovici, 2000, p. 287)

Tais pontos abordados na tese de Durkheim são retomados por Serge Moscovici no
desenvolvimento da Teoria das Representações Sociais (TRS), que nasce centrada no ramo da
Psicologia Social. No entanto, as Representações Sociais (RS) deixam de ser vistas
simplesmente como conceitos e são tomadas como fenômenos.4 Essa nova perspectiva,
trazida por Moscovici (1961), enfoca o aspecto dinâmico das RS, característico das suas
constantes transformações da sociedade, em contraste com as estáticas representações
coletivas durkheimianas, que foram tomadas como permanentes, sem apresentar a
dinamicidade no tempo e espaço que propunham. (Santos, 2011, p.225)

Além disso, outra crítica que emerge com a TRS é a ligada ao caráter puramente
individual da mente humana5 e à importância da linguagem e, consequentemente, do social
para a constituição da mesma. Em “Marxismo e Filosofia da Linguagem”, a partir do conceito

4
“As representações sociais são conjuntos dinâmicos, sua característica é a produção de
comportamentos e de relações com o meio, é uma ação que modifica a ambos e não uma reprodução destes
comportamentos ou destas relações, nem uma reação a um estímulo exterior dado. “(Moscovici, 1979, apud
Santos, 2011, p.225)
5
O caráter puramente individual da mente humana se refere à razão pura, que nasce com os
indivíduos. René Descartes (1596-1650) é o grande nome dessa corrente de pensamento, o racionalismo.

5
de signo, que são unidades básicas de significação criadas a partir da interação social, Mikhail
Bakhtin (1929) defende que o cognitivo, chamado por ele de psiquismo, é formado através do
meio externo, ou seja, através do contato do indivíduo com o social.

O fenômeno psíquico, uma vez compreendido e interpretado, é explicável exclusivamente por


fatores sociais, que determinam a vida concreta de um dado indivíduo, nas condições do meio
social, [...] [pois] a realidade do psiquismo interior é a do signo. (p.47)

Em nenhum ponto a compreensão dos signos se quebra da cadeia formada por signos e penetra
na existência interior, de natureza não material e não corporificada em signos. A própria
consciência apenas se torna consciência ao se impregnar de conteúdo ideológico (semiótico) e,
consequentemente, somente no processo de interação social. [...] [Sendo assim,] fora desse
material, há apenas o simples ato fisiológico, não esclarecido pela consciência, desprovido do
sentido que os signos lhe conferem. (Bakhtin, 2006, p. 32 e 34)

A Psicologia de Mead (1967), que acaba por influenciar Moscovici na formação


da TRS, também propõe a substituição do paradigma da consciência pelo da linguagem. Para
Mead, a racionalidade não é uma razão intrínseca a cada indivíduo, mas, sim, algo que emerge
a partir das relações intersubjetivas. (Sant’Ana, 2007, p.132) Dessa forma, a própria
individualização dos sujeitos procede à socialização, que é, portanto, a “[...] forma primeira de
confrontação com a realidade, permitindo, ao mesmo tempo, a formação da consciência, do
pensamento e da linguagem.” (Idem, p. 134).

Habermas (1990), ao interpretar o pensamento de Mead (1967), diz que “[...] o


sujeito cognoscente, no processo de conscientização de si mesmo, só atinge a percepção de si
ao se tomar inevitavelmente como um objeto, o que requer a intersubjetividade.” (Habermas,
1990, apud Sant’Ana, 2007, p.132). Dessa forma, a existência do eu depende do outro, sendo
impossível ao sujeito atingir a consciência de si mesmo apenas a partir de suas reflexões sobre
ele próprio. A alteridade, ou seja, o colocar-se no lugar do outro é fundamental para que o
indivíduo possa se compreender, também, como um objeto e, assim, definir a sua existência
singular (Idem). Como defende Mead (1967), “[...] a subjetivação crescente do indivíduo
depende da interiorização das instâncias externas ao eu, de maneira a oferecerem ordem,
direção e estabilidade de comportamento” (Berger e Luckmann, 2002 apud Sant’Ana, 2007).

A questão da individualização dos sujeitos é retomada a partir do conceito de self,


formulado por Mead (1967), e de sua relação com o “outro generalizado”. Segundo o autor, o

6
self seria uma instância psíquica que permite ao sujeito olhar a si mesmo como um objeto e,
para que o mesmo se desenvolva, é necessário que o indivíduo se olhe pelo olhar do outro
com o objetivo de apreender a realidade social em que ambos estão inseridos (Sant’Ana,
2007, p.133). O “outro generalizado”, por sua vez, é resultado da “[...] abstração dos
elementos comuns das atitudes daqueles com os quais o indivíduo interage, que, uma vez
incorporado pelo indivíduo, passa a exercer autocontrole dentro da estrutura de ordem
normativa com a qual se identifica” (Idem).

2) Representações Sociais e Linguagem

O foco de Serge Moscovici (1961), ao desenvolver a TRS, foi argumentar sobre


como a organização coletiva está estruturada e organizada através de representações, sendo
estas indispensáveis tanto para conformar as influências comunicativas em ação na sociedade
– mediações sociais - quanto para tornar a comunicação possível. (Duveen, 2000, p.22) Nesse
contexto,

a análise das representações sociais vai além do trabalho individual do psiquismo e emerge
deslocada para um outro nível, ela não se centra no sujeito individual, mas nos fenômenos
produzidos pelas construções particulares da realidade social. As mediações sociais são quem
formam as representações – estratégia desenvolvida por atores sociais para enfrentar a
diversidade e a mobilidade do mundo que, embora pertença a todos, transcende cada um
individualmente. Nesse sentido, elas são um espaço de fabricação comum, onde cada sujeito
vai além de sua própria individualidade para entrar em domínio diferente, ainda que
fundamentalmente relacionado: o domínio da vida comum: o espaço público. Dessa forma, elas
não apenas surgem através de mediações sociais, mas tornam-se, elas próprias, mediações
sociais. E enquanto mediação social, elas expressam por excelência o espaço do sujeito na sua
relação com a alteridade, lutando para interpretar, entender e construir o mundo.
(Jovchelovitch, 2009, p.81)

Segundo Moscovici (2000, p.46), as representações sociais devem ser vistas


“como uma maneira específica de compreender e comunicar o que nós já sabemos” e, em
termos simples, elas igualam imagens a ideias e ideias a imagens. Neste sentido, cabe às RS
duas funções precisas:

a) Convencionalizar objetos, pessoas e situações vivenciadas;

7
As representações sociais dão forma definitiva ao conhecimento produzido acerca
de objetos, pessoas e/ou acontecimentos além de organizá-lo em uma determinada categoria,
tornando-o um modelo partilhado por um grupo. Além disso, Barlett (1961), ao falar sobre a
tendência dos novos elementos que surgem serem sintetizados no suposto “modelo”,
acrescenta que “[...] quando uma forma de representação comum e já convencional está em
uso antes que o signo seja introduzido, existe uma forte tendência para características
particulares desaparecerem e para todo o signo ser assimilado em uma forma mais familiar.”.
Assim, as RS convencionam elementos quaisquer em um processo de familiarização, ou
melhor, elas organizam o que é “não-familiar” para torná-lo “familiar”, tornando-se o
resultado das constantes generalizações de nosso pensamento.

b) Prescrever;

A série de convenções ditas representações sociais não são todas pensadas por nós
e, por isso, são impositivas ao nosso cenário de ação. Dessa forma, as RS já construídas são
alvo de constantes recriações e, portanto, formam uma estrutura de representações que
prescreve o surgimento de novas representações.

[...] nossas experiências e ideias passadas não são experiências ou ideias mortas, mas
continuam a ser ativas, a mudar e a infiltrar nossa experiência e ideias atuais. Sob muitos
aspectos, o passado é mais real que o presente. O poder e claridade peculiares - [...] das
representações sociais, - deriva o sucesso com que elas controlam a realidade de hoje através
da de ontem e da continuidade que isso pressupõe. (Moscovici, 2000, p.38)

Em resumo, as RS são parte da nossa realidade social e influenciam


constantemente na noção que temos sobre as coisas. Elas são feitas com função de
convencionar elementos e, consequentemente, prescrever a nossa realidade. Cabe acrescentar
que as representações se formam através da interação entre sujeitos e, além disso, de acordo
com Moscovici (1961), constroem-se especialmente por meio da linguagem a partir de dois
processos nomeados ancoragem e objetificação.

A ancoragem é definida por Santos (2011) como um processo que permite dois ou
mais interlocutores tornar familiar, em uma prática discursiva, ou seja, através da
comunicação, algo que não lhes é familiar. Já a objetificação, por sua vez, estabiliza de forma
temporária as informações criadas por meio do discurso. Sendo assim, é no discurso que as

8
RS se concretizam e, por isso, é por meio da linguagem, em especial, da comunicação que as
representações são construídas, difundidas e transformadas.

Logo, assim como defende Santos (2011), é plausível a utilização da análise dos
discursos dos enunciados para a identificação de representações sociais, como será feito neste
presente trabalho. Além disso, a identidade dos sujeitos também pode ser apreciada a partir da
mesma metodologia, pois reiterando a dialética que o indivíduo assume com a sociedade,
temos que “[...] o sujeito, ao mesmo tempo em que colabora com suas experiências e
conhecimentos para a construção do discurso, constrói-se e atualiza ou reafirma essas
experiências [sua identidade] a partir do discurso.” (Santos, 2011, p.226)

É portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as
transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma,
que ainda não abriram caminho para os sistemas ideológicos estruturados e bem formados. A
palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças
que ainda não tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade ideológica, que ainda não
tiveram tempo de engendrar uma forma ideológica nova e acabada. A palavra é capaz de
registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais. (Bakhtin,
2006, p.40)

[...] o estudo das formas de categorização e recategorização de objetos de discurso deveria dar
conta de identificar os efeitos das representações sociais na construção dos papéis sociais e
comunicativos dos sujeitos, assinalando suas funções identitárias nos movimentos de
objetivação e subjetivação que manifestam. Este estudo deveria, ainda, focalizar os
movimentos em que o recurso a uma determinada forma linguareira funciona como estratégia
para de ser compreendido ou para vincular-se/distinguir-se de grupos ou determinadas práticas
sociais. (Matêncio, 2008, p.7 apud Santos, 2011, p.229)

Para um estudo da linguagem, no entanto, é preciso considerar a sua natureza


social e o seu modo complexo e dinâmico de funcionamento (Bakhtin, 2006, p.124). As
enunciações, constituidoras dos discursos, são produtos das interações sociais, que, por sua
vez, são determinadas em um contexto social específico e para um interlocutor determinado.
Além disso, “[...] qualquer enunciação, por mais completa e significativa que seja, constitui
apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta.” (Idem, p.126).

9
Bakhtin (1929), por meio de suas análises sobre o romance de Dostoiévski6,
destaca o caráter dialógico da linguagem, em que os enunciados se constituem a partir de
outros enunciados e têm, pelo menos, duas vozes. Para ele, o homem, através do diálogo
interativo, auto revela-se livremente e se constrói neste processo de tal forma que se vê e se
reconhece através do outro, na imagem que o outro faz dele próprio. (Bezerra, 2007, p.194
apud Bakhtin, 1997, p.366)

Por sua natureza, o eu não pode ser solitário, um “eu” sozinho, pois só pode ter vida real em
um universo povoado por uma multiplicidade de sujeitos interdependentes e isônomos . Eu me
projeto no outro que também projeta em mim, nossa comunicação dialógica requer que meu
reflexo se projete nele e o dele em mim, que firmemos um para o outro a existência de duas
multiplicidades de “eu”, de duas multiplicidades de infinitos que convivem e dialogam em pé
de igualdade. (Idem)

O monologismo, pelo contrário, reduz os indivíduos à posição de objetos e


significa a sobreposição de uma voz sobre as outras. Nesse sentido, os personagens de um
enunciado são tidos como “[...] matéria muda que se esgota e se imobiliza no acabamento
definitivo que lhe dá” (Bezerra, 2007, p.192). A polifonia, nesse contexto, é a forma suprema
de funcionamento do dialogismo, em que a atuação dos sujeitos “[...] se define pela
convivência e pela interação, por [...] uma multiplicidade de vozes e consciências
independentes e imiscíveis, vozes plenivalentes e consciências equipontentes”. (Idem, p. 94)

2. OBJETIVOS
Temos, por hipótese, que a mulher, como tema de um grande contingente de
canções da música popular brasileira – MPB, não é sempre representada como um sujeito de
consciência, capaz de influenciar no discurso das canções, até mesmo em músicas cantadas
pelas próprias mulheres.

Sendo assim, este presente trabalho tem por objetivo geral identificar e analisar, a
partir da letra de canções de vozes femininas lançadas entre 1930 e 1990, os momentos em
que a representação da mulher na MPB se dá como sujeito. Os objetivos específicos, por sua
vez, pautam-se na utilização da Teoria das Representações Sociais de Serge Moscovici (1961)
e de recursos como dialogismo e polifonia, da teoria de linguagem de Mikhail Bakhtin (1929),
para a análise dos enunciados de letras musicais. Além disso, pretendemos construir nossas

6
Problemas da poética de Dostoiévski. SP: Forense, 2010

10
discussões a partir do conflito entre as representações mulher-sujeito e mulher-objeto,
presentes nos discursos das canções, debatendo, também, o espaço sócio histórico das
cantoras brasileiras (1930-1980) na construção da representação social da mulher.

3. METODOLOGIA
As canções analisadas neste presente trabalho foram retiradas do livro escrito por
Charles Gavin, nomeado “300 álbuns importantes da música brasileira”, que reúne, como o
nome sugere, álbuns de importância dentro do cenário musical brasileiro. Na tabela abaixo,
vê-se a lista completa das músicas selecionadas para análise (gráfico nossos).

Ano Músicas Cantoras Compositores Álbuns


Honrado o nome de Carmen Oswaldo Ribeiro e Carmen Miranda - 1936
1936 mulher Miranda Walfrido Silva (1996)
Emilinha Djalma Esteves e Moacir
1947 Escandalosa Borba da Silva Emilinha Borba (1992)
Elizeth Vinicius de Moraes e Tom 16 Seleções de Sucessos
1953 Vida de Bailarina Cardoso Jobim (1959)
Elizeth Américo Seixas, Canção do Amor Demais
1958 Luciana Cardoso Chocolate e Dorival Silva (1958)
1959 Lacinhos Cor de Rosa Celly Campello Mickei Grant Estúpido Cupido (1959)
Na Roda do Samba
1964 Mulata Assanhada Elza Soares Ataulfo Alves (1964)
Carlos Lyra e Vinicius de
1964 Maria Moita Nara Leão Moraes Nara (1965)
Elza & Wilson Neves
1965 Das Rosas Nana Caymmi Dorival Caymmi (1965)
1975 Etelvina, Minha Nega Alcione João Carlos A Voz do Samba (1975)
1979 Agito e Uso Angela Ro Ro Angela Ro Ro Angela Ro Ro (1979)

Inicialmente, a metodologia de recorte se deu através dos critérios tema, data de


lançamento e voz das canções. Assim, ao ter o universo reduzido às músicas cantadas por
mulheres, lançadas no período 1930-1980 e que, por sua vez, falam sobre a mulher, passamos
a dividir o objeto de pesquisa de acordo com o período histórico – décadas - em que se
encaixam.

A limitação do universo no período 1930-1980, por sua vez, deu-se devido à sua
antecedência ao advento da internet, um meio de comunicação em que se tem pouco controle
em termos de influência e difusão do discurso musical, o que, consequentemente, dificultaria
a análise das representações sociais da maneira em que propomos. Além disso, cabe destacar
que a utilização de álbuns como referência de canções importantes do cenário musical

11
brasileiro não significa que restringiremos a veiculação do objeto de pesquisa à indústria
fonográfica, até mesmo porque esta mantinha estreita ligação com outros meios de circulação,
como o ambiente radiofônico7 e a televisão.

Nesse contexto, ao dividir o corpus em décadas, selecionamos pelo menos duas


canções de cada uma delas para representarem, de certo modo, o período analisado. Apesar de
tal recorte ter sido feito, em parte, subjetivamente, demos destaque à representatividade e/ou
especificidade de cada uma das letras em relação ao tema mulher. Além disso, devido à
semelhança da produção musical nas décadas 1930 e 1940, foi possível analisá-las
conjuntamente, considerando-as um período único.

Com o recorte definido, analisamos o discurso de cada uma das canções tomando-
as como enunciados. Cabe ressaltar, assim, que é designado por enunciação o acontecimento
constituído pelo aparecimento do enunciado. Dessa forma, “[...] a realização de um enunciado
é um acontecimento histórico: é dado existência a alguma coisa que não existia antes de se
falar e que não existirá depois.” (Ducrot, 1981 apud Brait, 2007, p. 64). Com esse aspecto,
concebe-se a linguagem “de um ponto de vista histórico, cultural e social que inclui para
efeito de compreensão e análise, a comunicação efetiva e os sujeitos e discursos nela
envolvidos.” (Brait, 2007, p.65)

Sendo assim, organizamos nossas discussões em décadas e constituímos as


análises dos discursos musicais através de três fatores, não necessariamente dissociados – o
contexto de produção e difusão das canções, que inclui imagem das cantoras/intérpretes e a
sua contribuição imagética na interpretação canções; os discursos presentes nas letras e os
sujeitos/vozes encontrados em esfera enunciativa. Tais instâncias, por sua vez, são
fundamentais para a identificação de representações em meio ao enunciado musical. Isso
porque identificar a construção de RS, em enunciados, requer a reconstrução conjunta de
objetos discursivos e sujeitos durante as próprias atividades de interação – formulação dos
enunciados. (Santos, 2011, p. 229)

As definições “sujeito” e “objeto”, por sua vez, que serão atribuídas às


representações da mulher identificadas nos enunciados musicais, pautam-se no papel em que
a mulher, enquanto ser humano/self, assume em sua criação simbólica de gênero. De acordo

7
As relações entre rádio e indústria fonográfica são discutidas em “Da vitrola ao ipod: uma
história da indústria fonográfica no brasil” (2014), livro escrito por Irineu Guerrini Jr. e Eduardo Vicente)

12
com o que se afirma Moscovici (1961), os sujeitos, ao mesmo tempo em que constroem as
representações sociais, também são construídos por elas. Enquanto isso, os objetos são apenas
o resultado de construções dos sujeitos. No caso da mulher, dentro dos enunciados musicais, o
seu papel de objeto se dá quando esta é colocada como musa, objeto-motivo da composição
das canções. Enquanto a mulher-sujeito é ativa e contribui para a construção e reconstrução de
sua representação.

4. RESULTADOS E DISCUSSÕES

I. Amplitude acadêmica

O universo de discussões que associam a mulher e a música popular se compõe


como extenso e amplo. É possível identificar diferentes abordagens e aspectos em áreas de
pesquisa variadas, como Antropologia, Serviço Social, História, Linguística, Música, entre
outros. No entanto, foram identificados poucos trabalhos que relacionam essas duas variáveis
de forma semelhante ao que será abordado aqui. Sendo assim, cabe destacar pesquisas que
apresentam similaridades8 ou que, de certa forma, contribuíram significativamente para a
composição deste trabalho antes mesmo de iniciar qualquer discussão.

“Canções vadias: Mulheres, identidades e música brasileira de grande circulação


no rádio” (Senra, 2014) 9 defende o gênero como categoria analítica e trabalha com canções
de vozes femininas, veiculadas em rádios nacionais entre 2005 e 2012. Seu objetivo, além de
propor um novo olhar sobre a construção identitária da mulher na música, fenômeno que será
tido como um processo de auto entendimento dinâmico (Giddens, 2002), é descrever o
exercício auto reflexivo feminino dentro do repertório escolhido, em que a música também
funciona como uma forma de autoafirmação de gênero. Além disso, Senra analisa a letra das
canções com base na relação dialógica contexto e discurso, defendida por Bakhtin (1929).

A análise de Senra (2014), porém, difere de nosso presente trabalho pela seleção
do corpus musical, que é feita por ela em um período recente - 2005 a 2012. A diferença

8
Em relação ao corpus de pesquisa, como já foi expresso por Senra (2014), o número de estudos é
bem maior se consideramos os trabalhos que se limitaram à análise de um ritmo musical específico. Podemos
destacar as contribuições de Janotti Jr. (2013) no heavy metal, Trotta (2009, 2010) no forró eletrônico; Simone
Sá (2007) no funk carioca; Naves (2010); Sovik (2009), no samba; Soares (2012), na brega e, mais recentemente,
Moises (2016), no rap.
9
Ver: SENRA, I. Z. M.. Canções vadias: Mulheres, identidades e música brasileira de grande
circulação no rádio. 2014

13
temporal é significativa principalmente devido à difusão da internet a partir dos anos 1990,
que altera completamente a forma de contato entre o público e artistas, o que dificulta a
análise da construção de representações sociais, pois diminui o controle de circulação do
material estudado.

Em outro trabalho, feito pelo site Musicaria Brasil, com a colaboração do


psicólogo Rafik Jorge Chakur10, as representações da mulher-objeto e da mulher-sujeito na
música popular brasileira foram identificadas. Neste artigo, a mulher-objeto é tratada de
forma semelhante à desta pesquisa, dando-se como

a mulher-motivo, musa e símbolo, dimensões que existem decorrentes da colocação da mulher


como objeto de desejo, inacessível ao sujeito, (distante). [...] O desejo está nas entrelinhas do
verso dirigido a um ser que não é de carne-e-osso, real, cotidiano, mas evanescente imagem
doce, pura, distinta, discreta, ardente musa inspiradora mal adivinhada pelo autor. 11

De acordo com o autor do texto, a inacessibilidade e a beleza são estereótipos da


mulher presentes em todo o trajeto da MPB. Nas primeiras décadas, anteriores à difusão do
rádio, Catulo e Pixinguinha já comparavam a estética feminina à figura de uma flor, fazendo-a
algo tangível e inacessível; a musa que inspira a composição das canções. Posteriormente, a
mulher bela e amada também se materializa em músicas como Garota de Ipanema (1964) –
Tom Jobim e Vinícius de Moraes; Amélia (1946) – Ataulfo Alves; Marina (1947) – Dorival
Caymi; entre outras. A mulher da MPB é a “coisa mais linda, mais cheia de graça”12.

Apesar das semelhanças com este trabalho, o texto do site musicaria brasil é
apenas um apanhado geral das RS da mulher no amplo contingente da MPB. Em contraste,
temos, aqui, um corpus delimitado que pretende dar margens para a compreensão construção
da representação da mulher ao longo de um período específico (1930-1980).

Cabe destacar também as discussões desenvolvidas por Cristiane Alvarenga


Rocha Santos em “A Teoria das Representações Sociais e a Análise do discurso em uma
narrativa esportiva de futebol”13. A autora, assim como nós, defende a análise do discurso

10
Psicólogo, professor da Teoria Psicanalítica da Escola S. Freud, em São Paulo, e mestrando em
Psicologia Clínica no IMS-S.
11
Publicação de 06 de março de 2010, disponível em:
https://musicariabrasil.blogspot.com.br/2010/03/mulher-na-musica-popular-brasileira.html (Acesso: 27/07/2017)
12
Trecho de Garota de Ipanema – Vinicius de Moraes e Tom Jobim (1964).
13
Santos, Cristiane Alvarenga Rocha. A teoria das representações sociais e a análise do discurso
em uma narrativa esportiva de futebol. Revista Diadorim . Volume 10, Dezembro de 2011(p.223-228)

14
como uma forma de identificação de representações sociais. Segundo ela, a TRS propõe um
estudo das RS ora social e ora psicológico, sem acrescentar uma sólida interface sócia-
cognitiva feita pela linguagem. Para Santos (2011), “[...] o estudo das representações sociais
consiste em responder como o homem constrói a realidade, e essa construção, [...] é fruto
dessa relação entre cognição e interação.” (p.237)

Na análise da narrativa de futebol feminino de Santos (2011), são identificadas


duas RS em conflito, percebidas através de marcas linguísticas que colaboram para a
construção de duas imagens que se opõem - uma pessimista, em relação ao futuro das
jogadoras de futebol, e outra otimista. Ambas as representações são sustentadas pelos
interlocutores do discurso, o narrador da partida e os comentaristas, os quais também
constroem suas identidades através do que enunciam. Segundo Cristiane, trata-se de uma co-
construção, em que os sujeitos, ao mesmo tempo em que contribuem para a construção de RS,
são influenciados e construídos pelo que ancoram e reafirmam. (Idem, p.229).

II. Décadas de 1930 e 1940

As décadas de 1930 e 1940 compreenderam os famosos “Anos de Ouro do


Rádio”, concomitantes ao processo de industrialização brasileira, promovida, principalmente,
pela Era Vargas (1930-1945). A transmissão de importantes eventos, como a Copa do Mundo
de Futebol de 1938 e os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), foram
marcantes para a consagração do Rádio como o principal meio de comunicação do período e
como um importante veículo de integração nacional14 e internacional, sendo marcante a
intimidade entre as fontes emissoras e o público. Em relação à música, destacam-se, no
período, canções ligadas às camadas mais populares, tidas como símbolo de vitalidade e
otimismo da sociedade, com fortalecimento de ritmos essencialmente brasileiros, como o
samba.

Neste contexto, o crescente número de mulheres que assumia papéis sociais no


espaço urbano e político15 embaralhava as habituais divisões sexuais do trabalho. A imagem
de trabalhadoras urbanas e lavadeiras que se incomodavam com a malandragem dos seus

14
Destaca-se o programa informativo oficial “A hora do Brasil”, criado em 1935, além de outros
meios de controle informacional pelo Estado, como a DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda, que
controlava as transmissões radiofônicas.
15
A mulher conquista o direito ao voto em 1932.

15
maridos, preguiçosos e boêmios foi muito difundida e se expressou em músicas do samba
urbano carioca como “Vai trabalhar”, cantada por Aracy de Almeida e “No lesco-lesco”, por
Carmen Costa. Além disso, a difusão radiofônica trouxe consigo figuras femininas
importantes e influentes como Emilinha Borba, Linda Batista, Carmen e Aurora Miranda,
entre muitas outras, consagradas como as “Cantoras do Rádio” 16, representantes das mulheres
no universo artístico musical, majoritariamente masculino. Ao mesmo tempo, entretanto,
também foi possível notar o fortalecimento de correntes tradicionalistas, muito defendidas por
projetos do Estado Novo varguista, que procuravam alimentar um modelo de família ideal
para o progresso nacional17 ao evocar a imagem da mulher dona-de-casa, mãe e senhora do
proletariado.

Apesar de alguns esforços em conter as representações que, de acordo com


Paranhos (2002, p.91) “[...] se nutriam, mesmo que parcialmente, de experiências vividas; [...]
o coro dos diferentes jamais deixou de se manifestar, de modo mais ou menos sutil, conforme
as circunstâncias”. A mulher que emergia ligada ao espaço público do prazer/lazer, por
exemplo, pode ser identificada em “Escandalosa” (1947), interpretada por Emilinha Borba e
composta por Djalma Esteves e Moacir Silva.

Uma vez lá em cuba

Dançando uma rumba18,

Disseram que eu era,

Escandalosa (2x)

Dancei,

E não me incomodei

Pois a rumba em si,

É maliciosa...19

16
As “Cantoras do Rádio” é uma música interpretada por Carmen e Aurora Miranda, lançada em
1936, que quase sempre acompanhara as transmissões radiofônicas brasileiras.
17
“Na contracorrente das novas realidades que vinham se estabelecendo, Gustavo Capanema,
ministro da Educação e Saúde, chegou a bancar um projeto que, em prol da grandeza do país, salientava a
necessidade de promover o aumento da população e de oferecer proteção estatal à família monogâmica e ao
casamento indissolúvel.” (PARANHOS, Adalberto. Mulheres do lesco-lesco e do balacobaco: relações de gênero
e música popular no tempo do “Estado Novo”. UFU. 2008. Disponível em:
http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/sts/ST55/Adalberto_Paranhos_55.pdf (Acesso 29/07/2017)
18
Rumba é uma dança de origem cubana, marcada por ser um estilo suave e descontraído, apesar
de apresentar um ritmo complexo.

16
Diferentemente de outras canções compostas por homens, nesta, o compositor se
coloca, de certo modo, no lugar da cantora e intérprete, aproximando o enunciado musical da
visão e imagem da mesma. No enunciado, a atribuição de “Escandalosa” à figura do eu-
lírico é, aparentemente, parte dos discursos tradicionalistas que depreciam e julgam a sua
figura, ligada intimamente à dança, ao canto e à boemia. No entanto, apesar da suposta crítica,
observa-se que a pessoa retratada não se incomoda com o que dizem ao seu respeito, pois ela
mesma considera a sua postura “maliciosa” e é exatamente por isso que aprecia o ritmo ao
qual se dispõe. Sendo assim, neste diálogo, a identidade cantora, enquanto figura feminina, é
reafirmada por si própria, com o auxílio de sua posição emancipada enquanto artista, o que
revela a sua subjetividade e constrói a representação de uma mulher-sujeito.

Outro fenômeno constante dos anos de 1930 e 1940 é a construção da identidade


nacional brasileira. Neste processo, Carmen Miranda, famosa mundialmente e responsável
por propagar uma imagem tropical do Brasil no exterior, é peça importante, pois, além de
encarnar em seu samba expressões de diferentes classes e regiões do Brasil 20, detinha ligações
com o governo estado novista, o qual chegou a patrocinar suas excursões para os Estados
Unidos21 e promover intercâmbios culturais. Em “Honrado um nome de mulher” (1936), as
discussões entre o que aparenta ser um estrangeiro, esposo da eu-lírico e ela própria, mostra-
nos embates que atingem a representação social do papel da mulher.

Nossa união chegou ao fim por culpa sua

Você quer viver na rua para conquistar

Você se vista e casa então onde quiser

Que eu fico mesmo no Brasil honrando um nome de mulher22

No cenário descrito, a decisão da intérprete em ser uma “mulher honrada” pode


até retomar a RS da mulher tradicional brasileira – dona de casa, esposa fiel e senhora do
proletariado – e, parcialmente, sustentar-se em um discurso masculino. No entanto, ao mesmo
tempo em que é impossível admitir a neutralidade das vozes discursivas, também não se pode

19
Anexo 1.
20
KERBER, Alessander. Carmen Miranda entre as representações da identidade nacional e de
identidades regionais. Revista ArtCultura, Uberlândia, v.7, n. 10, p.122, jan-jun. 2005
21
O sucesso da Carmen Miranda nos Estados Unidos não é justificado apenas pelo seu talento,
pois a cantora também fez parte da propaganda política da boa vizinhança, existente no período entre guerras.
Isso é comentado no livro O “it verde-amarelo” de Carmen Miranda (1930-1946) de Tânia de Souza, p.10.
2004.
22
Anexo 2.

17
ignorar a emersão de uma voz feminina em contraposição a uma representação preexistente.
Tal voz, que, por sua vez, configura-se como um elemento de subjetividade, emerge ao se
atribuir novas características à identidade da mulher – ela pode ser recatada, mas também é
honrada – estruturando-se como uma forma de resistência ao discurso dominante. Além disso,
cabe acrescentar que a recusa em se submeter às vontades do homem, descrita no enunciado,
torna-se possível, principalmente, pela autonomia financeira da mulher retratada em relação
ao seu marido, – “Daqui não saio, que o chatô também é meu / Pois a metade do dinheiro foi
meu pai quem deu” – o que demonstra a interferência das novas configurações sexuais de
funções e trabalho da conjuntura brasileira dos anos 1930/1940 nas representações da mulher
na música brasileira.

III. Década de 1950

Nos anos de 1950, é possível destacar importantes mudanças no cenário político


e social, marcadas pela modernização23, além de inovações nos meios de comunicação de
massa, impulsionadas pelo advento da televisão e da indústria cultural. Na música, no entanto,
apesar de seu vasto repertório e de compreender uma nova geração de compositores – Maysa,
Dolores Duran, Lupicínio Rodrigues – o samba-canção, que é destaque ao longo dos anos
1950, com melodias pesadas e carga dramática, foi sinônimo de música de baixa qualidade24 e
ridicularizado por correntes posteriores25.

Em relação à RS da mulher, a peculiaridade temática e rítmica do samba-canção,


comumente ligada ao clima e costumes boêmios, trouxe em suas letras sofridas seja a dor do
feminino causada pelo amor sob a ótica da culpa, da solidão e da espera, geralmente nas
canções compostas por Maysa, ou a figura da mulher ingrata e traiçoeira, geralmente, em
composições masculinas (Matos, 2005, p.66). Sendo assim, neste estilo, é muito frequente a
representação de uma mulher boêmia, traiçoeira e, por vezes triste. Na canção “Vida de
Bailarina”, interpretada por Ângela Maria, é retratado o drama de uma prostituta em uma
reflexão introspectiva do eu-lírico, um homem; o qual retrata os sentimentos íntimos que
ficam escondidos por trás de uma imagem “passional” dessa mulher.

23
A política de J.K. costuma ser definida como Nacional Desenvolvimentismo, com grande
abertura dos mercados brasileiros às transnacionais estrangeiras, principalmente no setor de transportes.
24
Napolitano, 2010, p.64 apud De Almeida, p.2
25
Os defensores da Bossa Nova são famosos pela crítica ao Samba-canção.

18
Prepara em noite de orgia

O seu drama, passional

Fingindo sempre que gosta

De ficar a noite exposta

Sem escolher o seu par

Vive uma vida de louca

Com um sorriso na boca

E uma lágrima no olhar26

No enunciado, apesar da tentativa de aproximação do observador com a suposta


realidade da mulher prostituta, esta, por sua vez, continua sendo representada externamente.
De certa forma, o sentimentalismo piedoso do narrador, acrescido, também, pela própria
melodia do samba-canção, não é suficiente para dar voz ao objeto-motivo de sua descrição.

Na década de 1950, entretanto, outras atmosferas deram mostra, principalmente


em torno das classes médias brasileiras do pós-guerra. Em 1958, é lançado o disco
considerado “pedra fundamental” do movimento da Bossa Nova - “Canção do Amor demais’,
interpretado por Elizeth Cardoso e composto por Vinicius de Moraes e Tom Jobim. A
peculiaridade das composições musicais desse estilo, em que se buscam correspondências
sonoras do nível linguístico ao ritmo das canções27, sofisticou o samba brasileiro e trouxe
novos temas e abordagens, distantes dos sambas-canção e “sambas de morro” (Tinhorão,
2010, p.325). Neste estilo, é recorrente a idealização do amor e da figura feminina, como
assim, podemos ver em “Luciana” (1958)28:

Olha que amor, Luciana

É como a flor, Luciana

Olhos que vivem sorrindo

Riso tão lindo, canção de paz

Olha que o amor, Luciana

26
Anexo 3.
27
Brito, 1974, p.38-39
28
Álbum “Canção do Amor demais” (1958); composição de Vinicius de Moraes e Tom Jobim.
Disponível no anexo 4.

19
É como a flor que não dura de mais

Embriagador...

Mas também trás muita dor, Luciana

Luciana, que significa “a luminosa”29é construída no enunciado numa boa


alternância entre aposto e vocativo; sendo, incialmente, comparada a uma flor – “olha que
amor, Luciana; é como a flor, Luciana” – e, posteriormente, torna-se a pessoa a quem o
narrador explica suas concepções do amor – “olha que o amor, Luciana; é como a flor que não
dura de mais”. Neste jogo de artifícios linguísticos bem localizados, a construção do feminino
é feita delicadamente, com e sobre uma ótica idealizada e totalmente externa. Aparentemente,
não é possível imaginar “Luciana” fora das linhas de descrição de alguém, pois a mesma não
tem vida própria e é passiva, uma mulher-objeto formulada e moldada de acordo com as
percepções do seu criador.

Em paralelo, no final da década de 1950, surge nos Estados Unidos, o rock


símbolo do inconformismo jovem após as contradições da Segunda Guerra. O ajustamento
cultural através da música de consumo, em concomitância aos filmes e produtos de moda que
focalizavam a emergente juventude30, de certo modo, também deu respaldo para
questionamentos políticos e de gênero. Neste contexto, apesar da emancipação feminina quase
sempre sofrer com o efeito de forças repressivas, seja com um discurso religioso ou com a
concepção de “rebeldia”, que se opunha a estes movimentos culturais, a mesma começou a
sofrer impulso até mesmo através do próprio mercado da moda.

No Brasil, os irmãos Tony e Celly Campello foram responsáveis por firmar tal
atmosfera. Em 1959, eles gravaram o disco “Estúpido Cupido”, que conta com uma série de
regravações de canções norte-americanas, como a própria Stupid Cupid. Em “Lacinhos Cor de
Rosa” (1959), por sua vez, é visível a emersão dessas novas configurações sociais e a
construção imagética do jovem por meio do rock e da indústria cultural. Na letra da canção, a
estagnação do uso de lacinhos cor-de-rosa, que passam a ser vistos como peças infantis,
ultrapassadas para os adolescentes, revela-se problemática para a menina, a eu-lírico do

29
Etimologia da palavra segundo o site dicionário de nomes próprios. Disponível em:
(https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/luciana/ (Acesso: 02/08/2017).
30
O grande destaque é o filme “Juventude Transvia” (Movel rebel without a cause), lançado em
1955, do cineasta Nicholas Rey e atores muito famosos na época como James Dean e Natalie Wood.

20
enunciado. Na passagem abaixo, vê-se, aparentemente, uma pressão para a emancipação
feminina em meio a esses produtos de consumo.

Um dia eu resolvi, e ao broto fui falar

O que ele me disse deu vontade de chorar:

“Lacinhos cor de rosa ficam bem só na cabeça

Se quiser me conquistar você cresça e apareça”31

IV. Década de 1960

A Bossa Nova inicia a década de 1960 com certo destaque no cenário musical
brasileiro. A sua batida característica, criada por João Gilberto, líder do movimento, com
compassos inspirados no cool jazz, rompeu com os dramáticos sambas-canção da década de
1950 e atraiu o público da classe média, que aos poucos passava a escutar mais músicas
brasileiras32. Tal ruptura atingiu também a representação social da mulher, que passou a se
distanciar da figura das lavadeiras, prostitutas, cantoras, etc comumente encontradas em
outros sambas e gêneros musicais. A metonímia mulher/rosa/flor típica da mulher-objeto
ideal33 é muito regular em canções, como em “Das rosas” (1965), composta por Dorival
Caymmi e interpretada por Nana Caymmi: “Um amigo meu disse que em samba / Canta-se
melhor flor e mulher / E eu que tenho rosas como tema / Canto no compasso o que quiser //
Rosas, rosas, rosas... / Rosas formosas / São rosas de mim[...]”.34

Neste contexto, no entanto, cabe destacar o engajamento de alguns compositores e


cantoras com as reformas sociais em voga no início dos anos 1960, como Nara Leão35 e
Carlos Lyra, um dos primeiros compositores a se preocupar com a politização da música
popular brasileira. A expressão dessas transformações, no quesito gênero, pode ser vista em
“Mulher Moita”, lançada por estes artistas em 1964, anteriormente ao período de censura e
resgate do conservadorismo característico da Ditadura Civil-Militar brasileira (1964-1985).

31
Anexo 5.
32
Ver sobre a Bossa Nova em NAVES, Santuza Cambraia Neves. Da Bossa Nova à Tropicália:
contenção e excesso na música popular. RBCS. Vol. 15 nº 43 junho 2000
33
Ver HAUDENSCHILD, André Rocha Leite. “O dengo que a nega tem”: Representações de
gênero e raça na obra de Dorival Caymmi. Art Cultura, Uberlândia, v. 16, n. 28, p. 77-88, jan-jun. 2014
34
Anexo 8.
35
Ver: GEROLAMO, Ismael de Oliveira. Nara Leão: entre a bossa nova e a canção engajada.
Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 66, p. 172-198, abr. 2017

21
Mulher que fala muito perde logo seu amor

Deus fez primeiro o homem

A mulher nasceu depois

Por isso é que a mulher

Trabalha sempre pelos dois

Homem acaba de chegar, tá com fome

A mulher tem que olhar pelo homem36

Na canção, a figura feminina é ligada diretamente ao ambiente doméstico,


mostrando-se um objeto subordinado às vontades do homem, apesar de ser ela quem trabalha
“pelos dois”. A mulher descrita, literalmente, não apresenta consciência, no entanto, essa
situação é questionada e, de acordo com o eu-lírico, ainda pode mudar – “Vou pedir ao meu
Babalorixá / Pra fazer uma oração pra Xangô / Pra por pra trabalhar gente que nunca
trabalhou.” A mulher-sujeito, no enunciado, encarna através dessa ironias, as quais podem ser
tidas como elementos de resistência à dominação masculina. Cabe destacar, também que a
voz da eu-lírico, apoia-se na figura de Nara Leão, uma intérprete engajada com as
transformações sociais da década de 1960.

Ainda na década de 1960, o “samba de morro” ganha, novamente, força, assim


como a retomada de representações da mulher difundidas nos anos 1930. Na música “Mulata
Assanhada”, composta por Ataulfo Alves e interpretada por Elza Soares, reitera-se o
fetichismo atribuído à mulher negra ou miscigenada. A canção, considerada a mais ouvida no
Brasil em 1965, tem um ritmo solto e envolvente e descreve, através de uma postura malandra
do sujeito-enunciador, o poder da mulata sobre o mesmo, um homem “Ai, mulata assanhada /
Que passa com graça / Fazendo pirraça / Fingindo inocente / Tirando o sossego da gente
(...)”.37

Na canção, nota-se, mais uma vez, a redução do papel da mulher a objeto-motivo


da composição. No trecho: “Ai, meu Deus, que bom seria / Se voltasse a escravidão / Eu
pegava a escurinha / Prendia no meu coração”, é possível destacar o desejo do sujeito-

36
Anexo 7.
37
Anexo 6.

22
enunciador em ser dono da “Mulata Assanhada”, o que reitera a condição de objeto que o
mesmo atribui à mulher.

V. Década de 1970

As canções de protesto contra a ditadura militar continuaram seu percurso na


primeira metade dos anos 1970. Entretanto, é possível observar, nessa década, um cenário
musical relativamente diversificado, o qual, segundo Napolitano (2005, p.127), dividia-se em
três: o circuito engajado herdeiro da tradição popular de 1960, o circuito alternativo e
experimental e o circuito cultural mais massificado. Nesse contexto, o samba, principalmente
através de compositores e cantores como Martinho da Vila, ganhou uma nova linhagem e
encontrou seus critérios próprios de legitimidade, pautado na tradição do próprio ritmo
musical. A expressão “samba de raiz”, atribuída, posteriormente, ao tal resgate do “samba de
fundo de quintal” pelos compositores dos anos 1970, reafirmou a autenticidade do estilo
musical do período, que, por sua vez, conquistou o público de classes mais elevadas e se
constituiu como um diferencial de mercado.38

O álbum “A Voz do Samba” (1975), que marca o início de carreira da cantora


Alcione, também expressa a suposta autenticidade do samba, retomando suas origens e
reafirmando a sua condição de “voz do morro” e “voz do povo”. Nesse cenário, as
representações da mulher típica desse estilo musical – negra, dançarina - também são
resgatadas. Em “Etelvina, Minha Nega” (1975):

Carrega no cheiro Etelvina

Deixa esse quadril balançar

Carrega no cheiro Etelvina

Quero ver a turma gritar (ei)39

A expressão “Etelvina, Minha Nega” pressupõe, através do pronome possessivo


“minha”, o pertencimento de “Etelvina”, uma mulher negra, à alguém, o seu dono e sujeito-
enunciador. O enaltecimento do quadril e da dança de Etelvina reforça a sua condição de
objeto-motivo da composição, com uma visível descrição externa da figura feminina. Nesse

38
Ver: MACHADO, A. C. Martinho da Vila: uma nova linhagem do samba nos anos de 1970...
Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.208-221.
39
Anexo 9.

23
cenário, a mulher admite a função que o seu criador condiciona, sendo, portanto, apenas
objeto de sua criação.

Na segunda metade da década de 1970 até o início da década de 1980, entretanto,


eclodiu-se um clima de reabertura política, em que se vê o sentimento de oposição ao regime
autoritário disseminado na música de tal forma a se constituir como um “coração civil”. A
canção de abertura, marcada pela “[...] tensão entre o imperativo conscientizante da esquerda
e a expressão de novos desejos dos setores mais jovens da classe média, mostrou-se como
uma espécie de “erupção violenta de uma energia reprimida há muito tempo.”40 Nesse
contexto, a cantora e compositora Angela Ro Ro lança, em 1979, seu primeiro álbum, escrito
por ela durante os anos de repressão do período militar. O rock, que já havia sido inserido
pelos tropicalistas no cenário musical brasileiro de forma a compor a “riqueza cultural” e o
sincretismo da música popular, é um dos ritmos mais marcantes do clima de reabertura
política. Em “Agito e Uso” – Angela Ro Ro (1979), observa-se a expressão de revolta da
cantora compilada com o ritmo revolucionário do rock :

Sou uma moça sem recato

Desacato a autoridade e me dou mal

Sou o que resta da cidade

Respirando liberdade por igual41

No enunciado, o sujeito-enunciador, que se ancora na figura de Angela, uma


cantora, mulher e homossexual nos anos 1970, demonstra seus incômodos e sua rebeldia em
desacatar a autoridade, além de dar margens para seus desejos e expectativas sobre a liberdade
e a igualdade. Aparentemente, observa-se a construção da representação de uma “moça sem
recato”, uma mulher-sujeito diferente e ativa, que aspira por transformações de gênero e
reafirma a sua identidade em certa oposição às mulheres tradicionais - recatadas. Além disso,
é possível que a postura da cantora seja fortemente influenciada por correntes feministas, que
se expandiram nos anos 1960 e 1970. A mulher-sujeito do enunciado, no entanto, também
demonstra suas dificuldades em emergir e se sustentar da forma que é em meio à “defesa da

40
NAPOLITANO, 2010, p.389
41
Anexo 10.

24
moral e dos bons costumes”42 - “E o jeito que eu conduzo a vida / Não é tido como forma
popular”.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No gráfico abaixo, vê-se a disposição entre as representações da mulher em nosso
objeto de pesquisa. Tal disposição, apesar de oscilar um pouco ao longo das décadas,
principalmente entre o período 1930-1949 e os demais, mantem-se, razoavelmente, constante
ao longo do tempo.

100%
90%
80%
70%
60%
50% OBJETO

40% SUJEITO

30%
20%
10%
0%
1930/1940 1950 1960 1970

Os anos 1930/1940 se destacam por demonstrarem predominância de


representações da mulher-sujeito na música popular. Essa particularidade, por sua vez, pode
ter influência direta das novas funções que a mulher assumiu no espaço público nesse
período, marcado pela crescente industrialização e pela expressão de novos costumes ligados
ao prazer/lazer. Além disso, outro fator que contribui para tal fenômeno é a forte reafirmação
das cantoras como artista - Carmen Miranda, Emilinha Borba, Marlene, entre outras - através
do enunciado musical, sem contar a recorrência de temas ligados à dança, à boemia, ao
trabalho e à malandragem. Apesar da predominância, no entanto, tais representações da
mulher incluíam, na verdade, apenas as que estavam presentes e ativas no espaço urbano
brasileiro, em especial, as mulheres artistas e/ou boêmias.

42
Ver: SETEMY, A. C. L. “Em defesa da moral e dos bons costumes”: a censura de periódicos na
ditadura militar (1964-1985) 2008. (Disponível em:
http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4205239/4101474/artigo_adriana_cristina.pdf)

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A partir da década de 1950, devido, entre outros fatores à diversificação de temas
e ritmos, encontram-se diferentes representações da mulher no cenário musical brasileiro. Nos
sambas-canções, em que é presente a expressão de “dores de cotovelo”, a mulher se dá, por
vezes, em exemplo da canção “Vida de Bailarina” – Angela Maria (1953), como um objeto
que possui e causa dor, sofrimento e drama. Em outro contexto, contudo, na incipiente bossa
nova do final da década de 1950 (“Luciana” - Elizeth Cardoso (1958)), a figura feminina,
apesar de ser, neste samba sofisticado, próxima da mulher ideal, também se mostra,
majoritariamente, apenas como objeto-motivo das canções.

Além disso, a mulher-objeto ideal ou objeto de desejo também é presente no MPB


de “Das Rosas” – Nana Caymmi (1965) e em sambas, como “Mulata Assanhada” – Elza
Soares (1964) e “Etelvina, Minha Nega” – Alcione (1975).

As representações de mulheres-sujeito, a partir da década de 1950, por sua vez,


são observadas em “Lacinhos Cor de Rosa” – Celly Campello (1959), “Maria Moita” – Nara
Leão (1964) e “Agito e Uso” – Angela Ro Ro. Em exceção da primeira, em que a
emancipação feminina está ligada à indústria cultural jovem, as duas últimas canções
demonstram um engajamento crítico em relação ao papel representado pela mulher na
sociedade e à dominação masculina.

Outro detalhe importante de nosso corpus é a predominância de compositores


masculinos, na proporção 9/10, sendo apenas a canção “Agito e Uso” (1979) composta por
uma mulher. Nesse cenário, é provável que a imagem das mulheres intérpretes contribua para
a construção representativa de mulheres-sujeito. Isso porque, na maioria das músicas em que
se identifica subjetividade feminina, observa-se a presença da mulher enquanto sujeito-
enunciador numa tentativa do compositor em expressar, de certo modo, a voz e a visão da
mulher. Além disso, no caso em que não se utiliza a primeira pessoa no enunciado, como em
“Maria Moita” (1964), a ironia e o significado da letra são, em parte, sustentados pela figura
da cantora, Nara Leão, engajada com as transformações sociais de sua época.

Para que se afirme, no entanto, a influência das intérpretes na construção de


representações de mulheres-sujeito, seria preciso outras pesquisas que possam ser comparadas
às discussões desenvolvidas aqui. Uma sugestão seria apreciar se os resultados seriam
diferentes se analisássemos apenas canções de vozes masculinas, observando

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comparativamente como se dá a construção imagética feminina em cada um dos objetos de
pesquisa.

Por fim, temos que as representações sociais da mulher-sujeito, ao longo de 1930


até 1980, sofreram forças impulsivas, como, por exemplo, a emersão de novos padrões de
comportamento, e forças repressivas, como correntes tradicionalistas. Dessa forma, no
período, imagens de mulheres-sujeito e mulheres-objetos coexistem, seja em diferentes ritmos
ou em diferentes abordagens de um mesmo estilo musical.

Além disso, apesar deste projeto de pesquisa ser, relativamente, limitado para
que se obtenham dados significativos, apreciamos a experiência de produzir e reunir
conhecimento. Foi possível, com esse trabalho, conhecer metodologias de pesquisa e adentrar,
de forma considerável, no ambiente acadêmico. Tivemos dificuldade em selecionar o corpus,
devido ao enorme contingente de canções disponíveis, além de ter sido complicado aplicar e
entender as teorias utilizadas aqui. No entanto, com a ajuda da orientadora, consegui escrever,
ou melhor, construir este presente trabalho.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GAVIN, Charles. 300 Discos Importantes da Música Brasileira. 1.ed. Brasil: Editora
Cabeça de Dinossauro, 2008

TINHORÃO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. 2. ed. Brasil:
Editora 34, 2010. 381 p. v. 1

GUARESCHI, Pedrinho; JOVCHELOVITCH, Sandra (Org.). Textos em


Representações Sociais . 11. ed. [S.l.]: Vozes Ltda., 2009. 324 p. v. único.
BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: Conceitos-Chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2007. 223 p.
v. único

NAVES, Santuza Cambraia Naves. Da bossa nova à tropicália: contenção e excesso na


música popular . Vol. 15 N° 43: RBCS, REY, Fernando Gonzalez. O social na
psicologia e a psicologia social : A emergência do sujeito. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes
Ltda., 2009. 182 p. v. único.2000.

SANTOS, Cristine Alvarenga Rocha. A teoria das representações sociais e a análise do


discurso em uma narrativa esportiva de futebol. Revista Diadorim / Revista de
Estudos Linguísticos e Literários do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas
da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Dezembro 2011. v.10

27
SANT’ANA, R.B.. A dimensão social na formação do sujeito na psicologia.
Memorandum, 12, 125-142. World Wide Web, 2007
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a12/santana01.pdf (Acesso: 31/08/2017)

PIRES, Vera Lúcia; TAMANINI-ADAMES, Fátima Andréia. Desenvolvimento do


conceito bakhtiniano de polifonia . 2010. 66-76 p. Artigo (Doutora)- UFSM, UFSM,
[S.l.], [novembro de 2010]. 6. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es>.
Acesso em: 31 ago. 2017.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem . 12. ed. [S.l.]: HUCITEC,


2006. 201 p. v. úncio.

MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais : Investigações em psicologia social. 6.


ed. Petrópolis, RJ: Vozes Ltda., 2009. 403 p. v. único.

REY, Fernando Gonzalez. O social na psicologia e a psicologia social : A emergência


do sujeito. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes Ltda., 2009. 182 p. v. único.

SIMÃO , Fábio Luiz Rigueira. Ser Mulher, Uma Missão? : A Escola Superior de
Ciências Domésticas, Domesticidade, Discurso e Representações De Gênero (1948 -
1992). 2016. 267 p. Dissertação de Doutorado (História)- Universidade Federal de Juiz
de Fora, UFJF, [S.l.], 2016. único.
208

ALMEIDA, A. T. O Samba-Canção na Década De 1950. [S.l.]: ANPUH-SP

MACHADO, A. C. Martinho da Vila: uma nova linhagem do samba nos anos de


1970... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.208-221.

NAPOLITANO, Marcos . MPB: a trilha sonora da abertura política (1975/1982).


Estudos Avançados 24 (69): [s.n.], 2010.

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7. ANEXOS

1) HONRANDO O NOME DE MULHER – CARMEN MIRANDA


Acho bom você falar mais baixo
Nosso vizinho está nos escutando (e que vizinho!)
A roupa suja a gente lava em casa
Vamos fingir que não se está brigando
Você já vem queimado lá da rua
Encrenca logo só por coisa à toa
Mas se não quer continuar casado
Se vista e vá-se embora, ora essa é muito boa
Daqui não saio, que o chatô também é meu
Pois a metade do dinheiro foi meu pai quem deu
E vá tratando de tirar minha pulseira
Que você botou no "prego" p'rá tomar uma bebedeira
Nossa união chegou ao fim por culpa sua
Você quer viver na rua para conquistar
Você se vista e casa então onde quiser
Que eu fico mesmo no Brasil honrando um nome de mulher
Composição: Gadé / Valfrido Silva
Letra por: https://www.letras.mus.br/carmen-miranda/1216535/ (Acesso: 08/08/2017)

2) ESCANDALOSA – EMILINHA BORBA


Um dia,
Uma vez lá em Cuba
Dançando uma rumba,
Disseram que eu era,
Escandalosa (2x)

Dancei,
E não me encomodei
Pois a rumba em si,
É maliciosa...
Escandalosa (2x)

A rumba, tem um ritmo louco,


Que remexe meu corpo assim,
Escandalosa...
Com Muchachos sabidos,
Bem juntinhos de mim,
Confessando ao meu ouvido, "És deliciosa",
Escandalosa...
Composição: Djalma Esteves e Moacir da Silva
Letra por: https://www.letras.mus.br/emilinha-borba/306231/ (Acesso: 08/08/2017)

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3) VIDA DE BAILARINA – ANGELA MARIA

Quem descerrar a cortina


Da vida da bailarina
Há de ver cheio de horror
Que no fundo do seu peito
Existe um sonho desfeito
Ou a desgraça de um amor
Os que compram o desejo
Pagando amor a varejo
Vão falando sem saber
Que ela é forçada a enganar
Não vivendo pra dançar
Mas dançando pra viver!

Obrigada pelo ofício


A bailar dentro do vício
Como um lírio em lamaçal
É, uma sereia vadia
Prepara em noite de orgia
O seu drama, passional
Fingindo sempre que gosta
De ficar a noite exposta
Sem escolher o seu par
Vive uma vida de louca
Com um sorriso na boca
E uma lágrima no olhar
Composição: Americo Seixas
Letra por: https://www.letras.mus.br/angela-maria/44140/ (Acesso: 08/08/2017)

4) LUCIANA – ELIZETH CARDOSO


Olha que amor, Luciana
É como a flor, Luciana
Olhos que vivem sorrindo
Riso tão lindo, canção de paz

Olha que o amor, Luciana


É como a flor que não dura de mais
Embriagador...
Mas também traz muita dor, Luciana

Olha que o amor, Luciana


É como a flor que não dura de mais
Embriagador...
Mas também traz muita dor, Luciana
Composição: Vinicius de Moraes e Tom Jobim
Letra por: https://www.letras.mus.br/elisete-cardoso/423173/ (Acesso: 08/08/2017)

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5) LACINHOS COR DE ROSA – CELLY CAMPELLO
Tenho um amor puro e verdadeiro
É playboy é bom companheiro
Brotinho enxuto um amor
Mas não me liga que horror

Um sapatinho eu vou
Com laço cor de rosa enfeitar
E perto dele eu vou
Andar devagarinho e o broto conquistar

Ele usa lambreta e é tão veloz


Se passa na corrida eu perco a voz
E fico desejando, Oh! meu Deus!
Que ele caia bem nos braços meus

Um sapatinho eu vou
Com laço cor de rosa enfeitar
E perto dele eu vou
Andar devagarinho e o broto conquistar

Quando ele dança rock é uma sensação


Faz rápido dançar o meu coração
Seu beijo deve ter a delícia do amor
E ele não me beija que horror

Um sapatinho eu vou
Com laço cor de rosa enfeitar
E perto dele eu vou
Andar devagarinho e o broto conquistar

Um dia resolvi, e ao broto fui falar


O que ele me disse deu vontade de chorar
Lacinhos cor de rosa ficam bem só na cabeça
Se quiser me conquistar você cresça e apareça

Um sapatinho eu vou
Com laço cor de rosa enfeitar
E perto dele eu vou
Andar devagarinho e o broto conquistar
Composição: M. Grant
Letra por: https://www.letras.mus.br/celly-campello/69832/ (Acesso: 08/08/2017)

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6) MULATA ASSANHADA – ELZA SOARES
Ai, mulata assanhada
Que passa com graça
Fazendo pirraça
Fingindo inocente
Tirando o sossego da gente

Ai, mulata se eu pudesse


E se meu dinheiro desse
Eu te dava sem pensar
Essa terra, este céu, este mar
E ela finge que não sabe
Que tem feitiço no olhar

Ai, mulata assanhada

Ai, meu Deus, que bom seria


Se voltasse a escravidão
Eu pegava a escurinha
Prendia no meu coração
E depois a pretoria
É quem resolvia a questão
Ai, mulata assanhada
Composição: Ataulfo Alves
Letra por: https://www.letras.mus.br/elza-soares/887040/ (Acesso: 08/08/2017)

7) MARIA MOITA – NARA LEÃO


Nasci lá na Bahia
De Mucama com feitor
Meu pai dormia em cama
Minha mãe no pisador
Meu pai só dizia assim, venha
Minha mãe dizia sim, sem falar
Mulher que fala muito perde logo seu amor
Deus fez primeiro o homem
A mulher nasceu depois
Por isso é que a mulher
Trabalha sempre pelos dois
Homem acaba de chegar, tá com fome
A mulher tem que olhar pelo homem
E é deitada, em pé, mulher tem é que trabalhar
O rico acorda tarde, já começa resmungar
O pobre acorda cedo, já começa trabalhar
Vou pedir ao meu Babalorixá
Pra fazer uma oração pra Xangô
Pra por pra trabalhar gente que nunca trabalhou

Composição: Carlos Lyra e Vinicius de Moraes


Letra por: https://www.letras.mus.br/nara-leao/128271/ (Acesso: 08/08/2017)

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8) DAS ROSAS – NANA CAYMMI
Nada como ser rosa na vida
Rosa mesmo ou mesmo rosa mulher
Todos querem muito bem a rosa
Quero eu ....

Todo mundo também quer


Um amigo meu disse que em samba
Canta-se melhor flor e mulher
E eu que tenho rosas como tema
canto no compasso que quiser

Rosas...rosas ... rosas...


Rosas formosas são rosas de mim
Rosas a me confundir / Rosas a te confundir
Com as rosas, as rosas, as rosas, de abril
Rosas... rosas... rosas...
Rosas mimosas são rosas de ti
Rosas a me confundir / Rosas a te confundir
Com as rosas, as rosas, as rosas de abril
Rosas a me confundir / Rosas a te confundir
São muitas...são tantas / São todas tão rosas

Composição: Dorival Caymmi


Letra por: https://www.letras.mus.br/nana-caymmi/1417026/ (Acesso: 08/08/2017)

9) ETELVINA, MINHA NEGA - ALCIONE


Carrega no cheiro Etelvina
Deixa esse quadril balançar
Carrega no cheiro Etelvina
Quero ver a turma gritar (ei)

Tu para com isso mulher


Deixa de sacudir
Tu remexe tanto Etelvina
Vê que tudo pode cair

Etelvina quando dança


Chama a todos atenção
Ninguém pense que ela é bahiana
Ou mesmo de outra nação

Não, Etelvina minha nega


É daqui do Maranhão
Composição: João Carlos
Letra por: https://www.letras.mus.br/alcione/etelvina-minha-nega/ (Acesso: 08/08/2017)

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10) AGITO E USO – ANGELA RO RO
Sou uma moça sem recato
Desacato a autoridade e me dou mal
Sou o que resta da cidade
Respirando liberdade por igual

Viro, reviro, quebro e tusso


Apronto até ficar bem russo
Viro, reviro, quebro e tusso
Apronto até ficar bem russo

Meu medo é minha coragem


De viver além da margem e não parar
De dar bandeira a vida inteira
Segurando meu cabresto sem frear

Por dentro eu penso em quase tudo


Será que mudo ou não mudo
Por dentro eu penso em quase tudo
Será que mudo ou não mudo

O mundo, bola tão pequena


Que me dá pena mais um filho eu esperar
E o jeito que eu conduzo a vida
Não é tido como forma popular

Mesmo sabendo que é abuso


Antes de ir, agito e uso
Mesmo sabendo que é abuso
Antes de ir, agito e uso

Sou uma moça sem recato


Desacato a autoridade e me dou mal
Sou o que resta da cidade
Respirando liberdade por igual

Viro, reviro, quebro e tusso


Apronto até ficar bem russo
Viro, reviro, quebro e tusso
Apronto até ficar bem russo, russo, russo

Composição: Angela Roro


Letra por: https://www.letras.mus.br/angela-ro-ro/44141/ (Acesso: 08/08/2017)

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